Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
TRIPULAÇÃO DE ESQUELETOS
(contos)
A BALADA DO PROJÉTIL FLEXÍVEL
O churrasco havia terminado. Tinha sido excelente; bebidas, a carne mal-passada, tostada na brasa, uma salada de verduras e o molho especial de Meg. Começara às cinco da tarde. Agora eram oito e meia, já quase crepúsculo — a hora em que reuniões movimentadas começam a gerar desordem. Contudo, ali não havia uma reunião movimentada. Os reunidos eram apenas cinco: o agente e sua esposa, o prestigiado jovem escritor e sua esposa, e o editor da revista, de sessenta e poucos anos, porém parecendo ser mais idoso. O editor dedicara-se a beber Fresca. Antes que ele chegasse, o agente havia contado ao jovem escritor que, uma vez, ali houvera um problema de bebida. O problema desaparecera, bem como a esposa do editor... motivo pelo qual eles eram cinco, em vez de seis.
Ao invés de surgir qualquer desordem, caiu sobre eles um ânimo introspectivo, quando começou a escurecer no pátio dos fundos do jovem escritor, dando para o lago. O primeiro livro do jovem escritor tinha recebido uma crítica excelente e vendera uma boa quantidade de exemplares. Ele era um rapaz de sorte e, para seu crédito, estava a par disso.
Com divertida morbidez, a conversa passara do precoce sucesso do jovem escritor para outros escritores também prematuramente bem sucedidos e que, então, se haviam suicidado. Falou-se em Ross Lockridge, depois em Tom Hagen. A esposa do agente mencionou Sylvia Plath e Anne Sexton. O jovem escritor disse que não achava Sylvia Plath qualificada como escritora vitoriosa. Ela não se suicidara por causa do sucesso, disse ele; ela obtivera sucesso por ter-se suicidado. O agente sorriu.
— Por favor, não podíamos falar de outras coisas? — perguntou a esposa do jovem escritor, um pouco nervosamente.
Ignorando-a, o agente disse:
— Também há a loucura. Houve os que enlouqueceram devido ao sucesso.
O agente falava nos tons brandos, mas gorgeados, de um ator nos bastidores. A esposa do escritor ia protestar novamente — ela sabia que o marido, além de gostar de falar sobre o assunto, também pilheriava a respeito, porque pensava demais naquilo quando o editor da revista começou a falar. E ele disse algo tão estranho, que ela esqueceu o protesto.
— A loucura é um projétil flexível.
A esposa do agente olhou para ele, intrigada. O jovem escritor inclinou-se para diante, com ar inquisitivo.
— Isso me soa familiar... — disse ele.
— Sem dúvida — replicou o editor. — Esse termo, a imagem, "projétil flexível", é de Marianne Moore. Ela a usou para descrever um ou outro tipo de carro.
Eu sempre pensei que descrevia perfeitamente a condição da loucura. A loucura é uma espécie de suicídio mental. Hoje em dia, os médicos não afirmam que a única maneira de realmente medir-se a morte é através da morte da mente? Pois a loucura é uma espécie de projétil flexível para o cérebro.
A esposa do jovem escritor procurou mudar de assunto.
— Alguém quer outra bebida?
Ninguém se manifestou.
— Pois eu quero, já que iremos falar dessas coisas — disse ela, e saiu para preparar seu drinque.
— Apresentaram-me uma história certa vez, quando eu trabalhava em sua seleção, em Logan's. Naturalmente, já encerrou suas atividades, da mesma forma que Collier's e agora The Saturday Evening Post, porém sobrevivemos a ambos. — Ele declarou isto com um toque de orgulho na voz. — Publicávamos trinta e seis contos por ano, talvez mais, e a cada ano, quatro ou cinco deles figuravam na coleção de alguém como melhores do ano. E as pessoas os liam. De qualquer modo, o nome desta história a que me referi era "A Balada do Projétil Flexível", tendo sido escrita por um homem chamado Reg Thorpe. Um rapaz da idade deste jovem aqui e também um sucesso.
— Não foi ele que escreveu Underworld Figures? — perguntou a esposa do agente.
— Sim, foi ele. Uma ficha espantosa para uma primeira novela... Críticas espetaculares, vendas formidáveis em brochura e encadernação, Associação Literária, tudo. Inclusive o filme foi bom, embora não tanto como o livro. Nem lhe chegou aos pés.
— Eu adorei aquele livro — disse a esposa do autor, novamente atraída à conversa, embora a contragosto. Tinha a surpresa e agradável expressão de quem acaba de recordar algo esquecido por muito tempo. — Ele escreveu mais alguma coisa em seguida? Li Underworld Figures quando freqüentava a faculdade, e isso foi... bem, há muito tempo, para lembrar agora.
— Você não envelheceu um dia desde então — disse a esposa do agente, em tom simpático, embora achando que a esposa do jovem escritor usava um corpete pequeno demais e shorts muito apertados.
— Não, ele não tornou a escrever — disse o editor. — Exceto por esta única história de que falei. Ele se matou. Ficou louco e matou-se.
— Oh! — exclamou desoladamente a esposa do escritor. Eles voltavam ao tema
— E o conto foi publicado? — perguntou o jovem escritor.
— Não, mas não porque o autor enlouquecesse e se matasse. Ela jamais foi impressa, porque o editor ficou louco e quase se matou.
O agente levantou-se de súbito para renovar seu drinque, que dificilmente precisava ser renovado. Ele sabia que o editor tivera um colapso nervoso no verão de 1969, não muito antes de Logan's ter afundado em um mar de tinta vermelha.
— Eu era o editor — informou o editor aos restantes. — Em certo sentido, ficamos loucos juntos, Reg Thorpe e eu, embora eu estivesse em Nova York, ele em Omaha e nem mesmo nos conhecêssemos. Seu livro havia sido publicado seis meses antes, e ele se mudara para lá, a fim de "ordenar as idéias", como se dizia então. Só sei este lado da história, porque vejo ocasionalmente a esposa dele, quando ela vem a Nova York. É pintora e bastante boa nisso. Aliás, é uma moça de sorte. Ele quase a levou consigo.
O agente voltou e sentou-se.
— Começo a me lembrar de algo disso agora — falou. — E não foi apenas a esposa, certo? Ele baleou duas outras pessoas, uma delas uma criança.
— Exatamente — confirmou o editor. — E foi a criança que finalmente lhe desencadeou a loucura.
— A criança o levou à loucura? — perguntou a esposa do agente. — O que quer dizer com isso?
O rosto do editor, no entanto, dizia que não ia ser forçado; falaria, mas sem que o questionassem.
— Conheço o meu lado da história, porque o vivi — disse o editor da revista. — Também sou um sujeito de sorte. Tive uma maldita sorte. É uma coisa interessante, sobre aqueles que tentam matar-se apontando uma arma para a cabeça e puxando o gatilho. Qualquer um pensaria que é um método certeiro, melhor do que pílulas ou cortar os pulsos, mas não é. Quando uma pessoa dá um tiro na cabeça, não pode dizer o que vai acontecer. O balaço pode ricochetear no crânio e matar alguém mais. Pode seguir a curvatura craniana inteiramente e sair do outro lado. Pode alojar-se no cérebro e cegar a pessoa, sem matá-la. Um homem pode meter na testa uma bala de um 38 e acordar no hospital.
Outro pode meter na testa uma bala de um 22 e acordar no inferno... se é que existe tal lugar. Sou propenso a crer que está aqui mesmo, na terra, possivelmente em Nova Jersey.
A mulher do escritor riu um tanto agudamente.
— O único método infalível de suicídio é atirar-se de um prédio bem alto, mas esta é uma saída tomada apenas pelos extraordinariamente dedicados. Causa tanta confusão, não é mesmo?
"Meu ponto, contudo, é simplesmente este: quando a pessoa atira em si mesma com um projétil flexível, em realidade ignora qual será o desfecho. No meu caso, saltei de uma ponte e acordei em um aterro entulhado de lixo, com um motorista de caminhão espancando-me as costas e bombeando meus braços, para cima e para baixo, como se tivesse apenas vinte e quatro horas para ficar em forma e me tomasse por algum aparelho para exercitar-se em remadas. Para Reg, o projétil foi letal. Ele... Bem, lá estou eu contando uma história e nem sei se querem ouvi-la.
Ele olhou inquisitivamente em torno, à penumbra cada vez maior. O agente e sua esposa entreolharam-se, duvidosos. A esposa do escritor ia falar que já haviam tido uma dose suficiente de assuntos lúgubres, quando seu marido disse:
— Eu gostaria de ouvi-la. Caso não se importe de contá-la, por motivos pessoais, quero dizer.
— Nunca a contei — disse o editor — porém não por motivos pessoais. Talvez nunca tenha encontrado os ouvintes certos.
— Pois então, conte! — convidou o escritor.
— Paul... — Sua esposa lhe pôs a mão no ombro. — Não acha que...
— Agora, não, Meg.
O editor disse:
— A história chegou de bandeja, uma vez que nessa época, a Logan's há muito deixara de ler textos não solicitados. Quando eles chegavam, uma moça se limitava a enfiá-los em envelopes de devolução, anexando uma nota: "Devido à crescente despesa e à crescente impossibilidade do pessoal editorial em dar conta do número crescente de textos recebidos, Logan's deixou de ler manuscritos não solicitados. Desejamos-lhe sorte e que coloque sua obra em outra editora". Não é um formidável punhado de conversa fiada?
Não é fácil usar a palavra "crescente" três vezes em uma só frase, mas eles conseguiram.
— E se não houvesse selos para a devolução, a história ia para a cesta de papéis — disse o escritor. — Não é?
— Oh, inapelavelmente! Não há piedade na cidade nua.
Uma estranha expressão de desconcerto pairou no rosto do escritor. Era a expressão do homem que está em uma cova de tigres, onde dúzias de homens melhores já foram rasgados em pedaços. Até então, este homem não viu tigre algum. Contudo, ele pressente que os tigres estão lá e que suas garras continuam afiadas.
— De qualquer modo — disse o editor, pegando sua cigarreira — esta história chegou e a moça da sala de correspondência a pegou, grampeou a fórmula de rejeição à primeira página e já ia enfiá-la no envelope de devolução, quando viu o nome do autor. Bem, ela tinha lido Undenworld Figures. Todos a tinham lido naquele outono ou estavam lendo, quando não se encontravam na lista de espera da livraria ou vistoriando as prateleiras dos drugstores pela edição em brochura.
A esposa do escritor, que percebera a momentânea inquietude no rosto do marido, tomou-lhe a mão. Ele sorriu para ela. O editor acendeu o cigarro com um isqueiro Ronson de ouro e, à crescente escuridão, todos puderam ver quão desfigurado estava seu rosto — as bolsas frouxas abaixo dos olhos, com uma pele semelhante à dos crocodilos, as faces marcadas por sulcos, a ponta do queixo do velho emergindo daquele rosto de avançada meia-idade, como a proa de um navio. Um navio, pensou o escritor, que se chama velhice. Ninguém deseja um cruzeiro nele, porém os camarotes estão cheios. Por falar nisso, também os porões.
O isqueiro apagou-se e o editor, sugou pensativamente o cigarro.
— A moça da sala de correspondência que leu aquela história e a passou adiante, em vez de devolvê-la ao autor, é hoje editora-chefe na G. P. Putnam's Sons. Seu nome não vem ao caso; importa é que, no grande gráfico da vida, o vetor dessa jovem se cruzou com o de Reg Thorpe, na sala de correspondência da revista Logan's. Seu vetor subia, o dele descia. Ela entregou a história a seu chefe e esse chefe a passou para mim. Eu a li e adorei. Em realidade, era um pouco longa, mas pude ver onde ele cortaria quinhentas palavras, sem deturpar o sentido.
Então, ficaria ótima.
— Qual era o tema? — perguntou o escritor.
— Você nem devia perguntar — replicou o editor. — Ele se ajusta maravilhosamente ao contexto total.
— É sobre enlouquecer?
— Sim, de fato. Qual é a primeira coisa que lhe ensinam, em seu primeiro curso universitário de escrita criativa? Escreve sobre o que você sabe. Reg Thorpe sabia sobre ficar louco, porque estava envolvido nisso. A história provavelmente me tenha seduzido, porque eu também me achava no mesmo caminho. Agora você diria — se fosse editor — que a única coisa que não precisa ser impingida ao público leitor americano, é outra história a respeito de Enlouquecer Elegantemente na América, tema secundário, Não Existe mais Dialogo. Um tema popular, na literatura do século XX. Todos os grandes escreveram a respeito e todos os escribas parecem obcecados por isso. Contudo, aquela história era engraçada. Quero dizer, era de fato hilariante.
"Eu não havia lido nada igual antes e não li até hoje. O mais aproximado seriam alguns dos contos de F. Scott Fitzgerald... e Gatsby. O personagem na história de Thorpe estava enlouquecendo, mas enlouquecia de maneira muito divertida. A gente ri o tempo todo e havia duas passagens — aquela em que o herói despeja a gelatina de limão na cabeça da moça gorda é a melhor — em que se dava gargalhadas. Só que são gargalhadas nervosas, compreendam. Rimos e depois queremos olhar por cima do ombro, para saber o que ouvimos. As linhas opostas de tensão nessa história são realmente extraordinárias.
Quanto mais se ri, mais nervoso se fica. E quanto mais nervoso, mais se ri... até o ponto em que o herói sai da festa dada em sua homenagem e volta para casa, onde mata a esposa e a filhinha.
— Qual é a trama? — perguntou o agente.
— Ora, isso não vem ao caso — replicou o editor. — Tratava-se apenas de uma história sobre um rapaz que, aos poucos, ia perdendo o controle para enfrentar o sucesso. É melhor que tudo fique vago. Uma sinopse detalhada da trama seria apenas tediosa.
Sempre é assim.
"De qualquer modo, escrevi-lhe uma carta. Dizia o seguinte:
"Caro Reg Thorpe, Acabei de ler "A Balada do Projétil Flexível" e achei excelente. Gostaria de publicá-la em Logan's, no início do próximo ano, se lhe convier. Acha que 800 dólares soam bem?
Pagamento contra aceitação. Mais ou menos". Ponto parágrafo.
O editor pontilhou o ar noturno com seu cigarro.
"A histeria está um pouco longa e gostaria que você a encurtasse em cerca de quinhentas palavras, se for possível. Eu estabeleceria um corte mínimo de duzentas palavras. Podemos fazer uma ilustração". Ponto parágrafo. "Telefone, se interessar."
Minha assinatura. E lá se foi a carta para Omaha.
— E ainda se lembra dela, palavra por palavra, como disse? — perguntou a esposa do escritor.
— Mantenho toda a correspondência em um arquivo especial — disse o editor. — As cartas dele, as cópias das minhas. No fim, havia uma boa pilha, incluindo-se três ou quatro cartas de Jane Thorpe, sua esposa. De vez em quando leio tudo aquilo. Não é muito bom, claro. Querer tentar compreender o projétil flexível, é tentar compreender como uma fita de Môbius só pode ter uma superfície. É assim que são as coisas, neste melhor-de-todos-os-possíveis mundos. Sim, sei a carta palavra por palavra ou quase isso. Algumas pessoas sabem a Declaração da Independência de cor.
— Aposto como ele telefonou no dia seguinte — disse o agente, sorrindo. — A cobrar.
— Não, ele não telefonou. Logo depois de Underworld Figures, Thorpe deixou completamente de usar o telefone. Foi sua esposa que me contou. Quando se mudaram de Nova York para Omaha, eles nem mesmo mandaram instalar um aparelho na casa nova. Compreendam, ele havia decidido que o sistema telefônico não funcionava realmente à base de eletricidade, mas do radium. Thorpe achava que este era um dos dois ou três mais bem guardados segredos do mundo. Afirmou para sua esposa que era o radium o único responsável pela porcentagem crescente de câncer, não os cigarros, emissões de automóveis ou a poluição industrial. Cada telefone tinha um pequeno cristal de radium no fone, de modo que, em todas as vezes quando era usado, a pessoa injetava radiação na cabeça.
— Nossa, o cara era mesmo louco — disse o escritor, e todos eles riram.
— Ele escreveu, em vez de telefonar — disse o editor, com um piparote atirando seu cigarro na direção do lago. — Sua carta dizia o seguinte: "Caro Henry Wilson (ou apenas Henry, se possível), Sua carta foi não apenas excitante, mas também gratificante. Minha esposa ficou ainda mais satisfeita do que eu. O dinheiro está ótimo... embora eu deva dizer, com toda sinceridade, que a idéia de ver o conto publicado em Logan's me pareceu uma compensação mais do que adequada (contudo, eu o aceito, vou aceitá-lo). Estive examinando os cortes que indicou e parecem oportunos. Acredito que melhorarão a história, além de deixarem espaço para aquelas ilustrações. Atenciosamente, Reg Thorpe."
— Sob sua assinatura havia um pequeno e curioso desenho... mais como um rabisco. Um olho em uma pirâmide, como aquele no verso da nota de um dólar. Contudo, em vez de Novus Ordo Secloruin, na faixa abaixo, havia estas palavras: Fornit Some Fornus.
— Deve ser latim ou Groucho Marx — disse a esposa do agente.
— Era apenas parte da crescente excentricidade de Reg Thorpe — respondeu o editor. — Sua esposa me disse que ele começara a acreditar nas "pessoas miúdas", algo assim como elfos e fadas. Os Fornits. Eram os elfos da sorte e Reg achava que um deles morava em sua máquina de escrever.
— Oh, meu Deus! — exclamou a esposa do escritor.
— Segundo Thorpe, cada Fornit possuía um pequeno dispositivo, como um pulverizador, cheio de... pó-da-sorte, creio que poderia dizer-se assim. E o pó-da-sorte...
— ... tinha o nome de fornus — completou o escritor, sorrindo amplamente.
— Exato. A esposa dele achava isso muito divertido. A princípio. De fato, no início — Thorpe havia concebido os Fornits dois anos antes, enquanto rascunhava Undenworld Figures — ela pensava apenas que Reg estivesse lhe fazendo uma brincadeira. Talvez, no começo ele estivesse mesmo. A coisa parece ter progredido de fantasia a superstição e de superstição a crença absoluta. Era uma... uma fantasia flexível. Só que rija no fim.
Muito rija.
Todos ficaram calados. Os sorrisos morreram.
— Os Fomits tinham seu lado engraçado — disse o editor. — A máquina de escrever de Thorpe começou a ir regularmente para o conserto, no final da permanência do casal em Nova York, idas que se tornaram ainda mais freqüentes quando se mudaram para Omaha. Thorpe escrevia em uma máquina emprestada, quando a sua foi consertada a primeira vez, já em Omaha. O gerente da firma ligou dias depois de Reg receber sua máquina de volta, para comunicar que lhe mandaria uma conta, pela limpeza não só da máquina de empréstimo, como da que pertencia a ele.
— Qual era o problema? — quis saber a esposa do agente.
— Acho que sei — disse a esposa do escritor.
— Ela estava cheia de comida — disse o editor. — Pedacinhos diminutos de bolo e biscoitos.
Havia também manteiga de amendoim na peça em que são fixados os tipos da máquina.
Reg estava alimentando o Fornit que vivia em sua máquina de escrever. Também colocara comida na máquina de empréstimo, na hipótese de que o Fomit se tivesse mudado para ela.
— Caramba! — exclamou o escritor.
— Eu não sabia de nada disso então, compreendam. Por essa vez, escrevi em resposta, dizendo-lhe o quanto estava satisfeito. Minha secretária datilografou a carta e a trouxe para que eu a assinasse, mas então precisou sair para fazer qualquer coisa. Assinei, e ela ainda não tinha voltado. Foi quando — sem a menor razão para tanto — fiz o mesmo desenho garatujado abaixo de meu nome. Pirâmide. Olho. E "Fornit Some Fornus".
Loucura. A secretária viu aquilo e perguntou se eu ia mandar a carta assim mesmo. Dei de ombros, disse-lhe que a enviasse.
— Dois dias mais tarde, Jane Thorpe me telefonou. Disse que minha carta deixara Reg muitíssimo excitado. Ele pensava que achara uma alma gêmea... outra pessoa que também sabia sobre os Fornits. Vêem a que situação louca estava chegando a situação?
Que me conste, àquela altura um Fornit poderia ser qualquer coisa, desde chave-inglesa para canhotos a faca de carne polaca. Idem para fornus. Expliquei a Jane que me limitara a copiar o desenho de Reg. Ela quis saber por quê. Esquivei-me à pergunta, embora a resposta pudesse ser que eu estava muito bêbado, quando assinei a carta.
Ele fez uma pausa, e um silêncio incômodo caiu sobre o pátio dos fundos. As pessoas olharam para o céu, para o lago, as árvores, embora não estivessem mais interessantes agora, do que tinham estado um ou dois minutos antes.
— Eu tinha estado bebendo durante toda a minha vida adulta, sendo-me impossível dizer quando a situação me escapou ao controle. No sentido profissional, eu ia do topo da garrafa até quase o próprio final. Começava a beber no almoço e voltava tocado para o escritório. Contudo, funcionava perfeitamente bem. Era a bebida depois do trabalho — primeiro no trem e depois em casa — que me levava para além do ponto funcional.
"Eu e minha esposa vínhamos tendo problemas não relacionados à bebida, mas o fato de beber piorava ainda mais aqueles problemas. Ela viera se preparando para ir embora havia muito tempo. Uma semana antes da história de Reg Thorpe chegar, ela se foi.
"Eu tentava manejar a situação, quando deparei com a história dele. Agora bebia pesadamente. E, para cúmulo, estava tendo — bem, acho que agora é moda dar a isso o nome de crise da meia-idade. Na época, sabia apenas que estava deprimido por causa de minha vida profissional e também da vida pessoal. Procurava lutar contra — ou tentava — uma crescente sensação de que editar histórias em massa para o mercado, histórias que terminariam sendo lidas por pacientes nervosos no dentista, donas de casa na hora do almoço e um ocasional universitário entediado, não era propriamente uma atividade nobre. Procurava também lutar contra a idéia — novamente, tentava, aliás, era o que todos fazíamos na Logan's, nessa época — de que em mais seis meses, dez ou quatorze, talvez não houvesse mais nenhuma Logan's.
"Então, nessa monótona paisagem outonal da meia-idade angustiada, surge uma boa história, de autoria de um bom escritor — uma energética e divertida espiada à mecânica do enlouquecer. Foi como um raio brilhante de sol. Sei que parece estranho dizer isso sobre uma história que termina com o personagem matando a esposa e a filha pequenina, porém perguntem a qualquer editor o que ele considera uma real alegria, e ele lhes dirá que é a grande novela ou história inesperadas, caindo em sua mesa de trabalho como um grande presente de Natal. Bem, vocês todos conhecem aquela história de Shirley Jackson, "A Loteria". Ela termina da maneira mais deprimente que se possa imaginar. Quero dizer, uma bela dama é apedrejada até morrer. Seu filho e sua filha participam de seu assassinato, pelo amor de Deus! Contudo, foi uma história e tanto... e aposto como o editor da New York que primeiro leu a história, naquela noite voltou assobiando para casa.
"O que estou tentando dizer é que a história de Thorpe foi a melhor coisa em minha vida, naquele momento. A única coisa boa. E, segundo o que a esposa dele me disse ao telefone, nesse dia, minha aceitação da história foi a única coisa boa que tinha acontecido a Thorpe ultimamente. O relacionamento escritor-editor é sempre de mútuo parasitismo, porém no meu caso e de Reg, esse parasitismo foi elevado a um grau incomum.
— Voltemos a Jane Thorpe — pediu a esposa do escritor.
— Certo. Penso que a deixei em um desvio, não? Ela ficou zangada no tocante aos Fornits. A princípio. Contei-lhe que apenas garatujara aquele símbolo olho-e-pirâmide, sem saber ao certo seu significado, e me desculpei pelo que quer que houvesse feito.
"Ela dominou sua raiva e soltou tudo para mim. Estivera ficando cada vez mais ansiosa, sem ter com quem desabafar. Seus pais estavam mortos e todos os seus amigos viviam em Nova York. Reg não permitia a presença de ninguém em casa, além deles dois, alegando que os outros eram gente do Imposto de Renda, do FBI ou da CIA.
Não muito depois de se mudarem para Omaha, uma garotinha chegou à porta, vendendo biscoitos para as escoteiras. Reg gritou com ela, disse-lhe que fosse vender aquilo no inferno, que sabia perfeitamente por que estava ali, e por aí adiante. Jane tentou argumentar com ele. Disse que a menina só tinha dez anos. Reg respondeu que a gente dos impostos não tinha almas nem consciências. Além do mais, disse ele, a menininha podia ser algum andróide. Andróides não estariam sujeitos às leis trabalhistas para crianças. Talvez o pessoal dos impostos houvesse mandado uma escoteira andróide, cheia de cristais de radium, para descobrir se ele estava guardando segredos... e, nesse meio tempo, para impregna-lo com raios cancerosos.
— Santo Deus! — exclamou a esposa do agente.
— Ela havia esperado uma voz amistosa e a minha foi a primeira. Fiquei sabendo a história da menina escoteira, sobre a preocupação de Reg com os Fornits e sua alimentação, sobre fornus e sobre como ele se recusara a ter um telefone em casa ou a usar um. Ela falava comigo de um telefone pago, em uma cabine de drugstore, cinco quarteirões além de sua casa. Disse recear que Reg não estivesse realmente preocupado com a gente dos impostos, homens do FBI ou da CIA. Em sua opinião, o que seu marido realmente temia era que Eles — algum maciço e anônimo grupo que o odiava, que o invejava, que não se deteria diante de nada para apanha-lo — houvessem tomado conhecimento de seu Fornit e quisessem matar a criatura. Se o Fornit morresse, não haveria mais novelas, mais contos, nada. Compreendem? A essência da insanidade. Eles estavam decididos a liquida-lo. Resumindo, nem mesmo o Imposto de Renda, que o fizera passar momentos infernais, no relacionado à renda gerada por Underworld Figures, serviria como pretexto. No fim, eram apenas Eles. A perfeita fantasia paranóica. Eles queriam matar o seu Fornit.
— Céus, e o que você disse a ela? — perguntou o agente.
— Procurei tranqüiliza-la — disse o editor. — Lá estava eu, tendo retornado pouco antes de um almoço regado a cinco martinis, falando com aquela mulher aterrorizada que me ligava de uma cabine telefônica em um drugstore de Omaha, procurando convencê-la de que tudo estava bem, de que não devia preocupar-se com o marido que acreditava estarem os telefones repletos de cristais de radium, imaginando que um bando de pessoas anônimas enviava escoteiras andróides para liquida-lo. Disse-lhe para não inquietar-se, se seu marido havia desligado seu próprio talento de sua mentalidade, a tal ponto, que acreditava haver um elfo morando em sua máquina de escrever.
"Não acho que tenha sido muito convincente". Ela me pediu — não, suplicou — para trabalhar com Reg em sua história, para providenciar sua publicação. Aquela mulher fez tudo, exceto dizer que "O Projétil Flexível" era o último contato do marido com o que, humoristicamente, chamamos de realidade.
"Perguntei-lhe como agir, caso Reg tornasse a mencionar os Fornits. "Seja indulgente com ele", disse ela. Foram suas exatas palavras — seja indulgente com ele. E então, desligou.
"No dia seguinte, havia uma carta de Reg na correspondência — cinco páginas, datilografadas, espaço um. O primeiro parágrafo era sobre a história. Ele dizia que o segundo rascunho estava indo bem. Achava-se capaz de cortar setecentas palavras das originais dez mil e quinhentas, reduzindo o conto definitivo a nove mil e oitocentas palavras.
"O restante da carta era sobre Fornits e fornus. Suas próprias observações e perguntas... dúzias de perguntas.
— Observações? — o escritor inclinou-se para diante. — Quer dizer que ele os via realmente?
— Não — disse o editor. — Reg não os via, em um sentido real, porém, de outra maneira... suponho que sim. Sabem como é: os astrônomos supunham — sabiam — que Plutão estava lá, muito antes de contarem com um telescópio potente o bastante para vê-lo. Sabiam tudo sobre ele, estudando a órbita do planeta Netuno. Era dessa maneira que Reg observava os Fornits. Eles gostavam de comer à noite, segundo escreveu. Será que eu já percebera isso? Ele os alimentava durante todas as horas do dia, porém havia notado que a maioria da comida desaparecia após as oito da noite.
— Alucinação? — perguntou o escritor.
— Não — respondeu o editor. — Sua esposa, simplesmente, limpava o máximo daquela comida na máquina de escrever, quando Reg saia para sua caminhada noturna. E ele saía todas as noites, às nove horas.
— Eu diria que ela teve coragem, ligando para você — grunhiu o agente, remanejando o corpo volumoso na cadeira de jardim. — Ela própria alimentava a fantasia do homem.
— Acho que não entendeu por que ela me telefonou e por que estava tão perturbada. replicou quietamente o editor. Olhou para a esposa do escritor. — Pois aposto que você entendeu, Meg.
— Talvez — disse Meg, e dirigiu ao marido um desconfortável olhar de esguelha. — Ela não se irritou por você incentivar a fantasia do marido. Apenas, tinha medo que você a transtornasse.
— Muito bem! — exclamou o editor, acendendo outro cigarro. — E ela removia o alimento pelo mesmo motivo. Se a comida continuasse a acumular-se na máquina de escrever, Reg faria a dedução lógica, partindo diretamente de sua própria e decididamente ilógica premissa. Ou seja, que seu Fornit morrera ou tinha ido embora. Portanto, não haveria mais fornus. Em resultado, não haveria mais escritos. Daí...
O editor deixou a palavra em suspenso na fumaça do cigarro, depois prosseguiu:
— Reg imaginou que os Fornits deviam ser criaturas notívagas. Elas detestavam barulho — ele já percebera que não conseguia escrever pela manhã, após reuniões ruidosas — odiavam a televisão, a eletricidade livre e o radium. Reg vendera sua TV para a Goodwill por vinte dólares, segundo afirmava, e há muito se fora o seu relógio de pulso com mostrador de radium. Depois, as perguntas. Como eu ficara sabendo sobre os Fornits? Seria possível que tivesse um morando comigo? Em caso afirmativo, o que eu pensava disto, disto ou daquilo? Acho que não preciso ser mais específico. Se vocês já possuíram um cão de determinada raça e podem recordar as perguntas feitas sobre cuidados com ele e alimentação, percebem a maioria das perguntas que Reg me fez. Um pequeno rabisco abaixo de minha assinatura, foi tudo quanto se precisou, para que se abrisse a caixa de Pandora.
— O que escreveu em resposta? — perguntou o agente.
— Foi aí que realmente começou o problema — respondeu lentamente o editor. — Para nós dois. Jane havia dito "Seja indulgente com ele" e foi o que fiz. Infelizmente, acho que exagerei. Quando respondi à carta, estava em casa e muito bêbado. O apartamento me parecia demasiado vazio. Tinha um cheiro rançoso de excesso de cigarros fumados e pouca aeração. As coisas tinham piorado muito, sem Sandra por ali. As cobertas em cima do sofá estavam amarfanhadas. Havia pratos sujos na pia, esse tipo de situação. Eu era um homem de meia-idade, despreparado para a domesticidade.
"Enfiei uma folha de papel de minha correspondência pessoal na máquina de escrever, e pensei: Preciso de um Fornit. De fato, eu precisava de uma dúzia deles, para que tirassem o pó desta maldita casa solitária com fornus, de ponta a ponta. Naquele instante, de fato eu estava bêbado o bastante para invejar a fantasia de Reg Thorpe.
"Naturalmente, escrevi para ele que tinha um Fornit. Disse-lhe que o meu tinha incríveis características similares ao dele. Era notívago. Odiava barulho, mas parecia apreciar Bach e Brahms... Falei que era comum executar meu melhor trabalho após uma noite ouvindo-os. Descobrira que meu Fornit mostrava uma decidida predileção por salsichão Kirschner's... — Reg já fizera essa experiência? Eu simplesmente deixava pequenas migalhas perto do Scrillto que sempre carregava — meu lápis azul editorial, caso não saibam — e, pela manhã, estava quase tudo consumido. A menos que, como dizia Reg, tivesse havido barulho na noite anterior. Falei-lhe que ficara satisfeito em saber do detalhe sobre o radium, embora não possuísse um relógio de pulso com mostrador fosforescente. Acrescentei que meu Fornit estava comigo desde a universidade. Fiquei tão entusiasmado com minha invenção, que escrevi quase seis páginas. No final, acrescentei um parágrafo sobre a história, algo bastante superficial, e assinei.
— E abaixo de sua assinatura...? — perguntou a esposa do agente.
— Claro. Fornit Some Fornus. — O editor fez uma pausa. — Não podem enxergar no escuro, mas fiquei vermelho. Eu estava tão infernalmente bêbado, tão infernalmente tocado... É possível que mudasse de idéia à fria luz do dia, mas então já era muito tarde.
— Colocou a carta no correio à noite? — murmurou o escritor.
— Exatamente. E então, por uma semana e meia, contive o fôlego, enquanto esperava. Certo dia, chegou o manuscrito, endereçado a mim, sem nenhuma carta. Os cortes estavam como havíamos discutido e pensei que a história houvesse ficado perfeita, mas o manuscrito estava... bem, eu o coloquei em minha pasta, levei-o para casa e o redatilografei pessoalmente. Estava coberto de manchas amarelas e estranhas. Imaginei...
— Urina? — perguntou a esposa do agente.
— Sim, foi o que imaginei. Contudo, não era. Quando cheguei em casa, havia uma carta de Reg em minha caixa de correspondência. Agora, dez páginas. Naturalmente, ali vinha a explicação para as manchas amarelas. Ele não conseguira encontrar o salsichão Kirschner's, de maneira que tentara o Jordan's.
"Acrescentou que eles o tinham adorado. Em especial com mostarda.
"Naquele dia, eu estava absolutamente sóbrio. Contudo, sua carta, acrescida daquelas lamentáveis manchas de mostarda através das páginas de seu manuscrito, fez com que eu caminhasse diretamente para o armário de bebidas. Não apenas passei ao lado do armário, não me multei. Fui embriagar-me.
— O que mais dizia a carta? — quis saber a esposa do agente.
Ela se mostrara cada vez mais fascinada pelo relato e agora, inclinada sobre ventre algo avolumado, exibia uma postura que fazia a esposa do escritor recordar Snoopy, no teto de sua casa de cachorro, fingindo ser um abutre.
— Desta vez, continha apenas duas linhas sobre a história. Todo o crédito era atribuído ao Fornit... e a mim. O salsichão tinha sido, de fato, uma idéia fantástica. Rackne o adorara e, em decorrência...
— Rackne? — perguntou o escritor.
— Era o nome do Fornit — disse o editor. — Rackne. Então, em decorrência do salsichão, Rackne é que, em realidade, estava por trás do texto reescrito. O restante da carta era um canto paranóico. Nunca vi nada semelhante na vida.
— Reg e Rackne... um casamento traçado no céu — disse a esposa do escritor, com uma risadinha nervosa.
— Oh, de maneira alguma — replicou o editor. — O relacionamento deles era puramente de trabalho. Afinal, Rackne era macho.
— Bem, fale-nos sobre a carta.
— Essa é uma que não sei de cor. Tanto melhor para vocês. Mesmo anormalidades, após algum tempo tornam-se tediosas. O carteiro era da CIA. O entregador de jornais era do FBI; Reg tinha visto um revólver provido de silenciador, no saco de jornais que o menino carregava. Os vizinhos eram espiões de alguma espécie; possuíam um equipamento de vigilância em seu furgão. Ele não ousava mais ir à mercearia da esquina para comprar mantimentos, porque o proprietário era um andróide. Disse que já desconfiava disso antes, porém que agora tinha certeza. Ele vira os fios que se entrecruzavam sob o couro cabeludo do homem, nas partes que começavam a ficar calvas. Além do mais, estava alta a contagem do radium em sua casa; à noite, podia ver uma mortiça claridade esverdeada nos aposentos.
"A carta terminava assim: "Espero que responda a esta e me ponha ao corrente de sua situação (e do seu Fornit), com referência a inimigos, Henry. Acredito que este nosso relacionamento tenha sido uma ocorrência que transcende à coincidência. Poderíamos dar a ele o nome de alerta-vital (de Deus? Da Providência? Do Destino? Inclua o termo que desejar) no último instante possível.
"Não é crível que um homem fique sozinho por tanto tempo, contra mil inimigos. E quando, afinal, descobrir que não se encontra só... seria exagero dizer que a comunalidade de nossa experiência se levanta entre a minha pessoa e a destruição total?
Talvez não. Eu preciso saber: os inimigos estão atrás de seu Fornit, como estão de Rackne? Em caso afirmativo, como você maneja a situação? Em caso negativo, tem alguma idéia de por que não estão? Repito, eu preciso saber."
"A carta continha o desenho do Fornit Some Fornus abaixo da assinatura e, em seguida, vinha um P.S., constando de apenas uma frase. Contudo, uma frase letal. O P.S. dizia: "Às vezes, desconfio de minha esposa."
"Li a carta do começo ao fim três vezes. No processo, dei cabo de uma garrafa inteira de Black Velvet. Comecei a considerar opções sobre como responder àquela carta. Era um grito de socorro de um homem afogando-se, sem qualquer dúvida. A história o mantivera lúcido por algum tempo, mas agora ela ficara pronta. E agora ele dependia de mim para continuar lúcido. Era algo perfeitamente racional, desde que eu acarretara tudo aquilo.
"Andei de um lado para outro dentro de casa, por todos os aposentos vazios. Então, comecei a desligar coisas. Estava muito bêbado, lembrem-se, e uma forte bebedeira abre vias inesperadas de sugestibilidade. Daí o motivo de editores e advogados optarem por três drinques, antes de falarem sobre contratos, à hora do almoço.
O agente deu uma risada ruidosa, mas os ânimos permaneceram rígidos, tensos e incômodos.
— Por favor, tenham em mente que Reg Thorpe era um senhor escritor. Estava absolutamente convicto do que dizia. FBI. CIA. IR. Eles. Os inimigos. Certos escritores possuem o dom muito raro de refrigerar sua prosa, quanto mais apaixonadamente sentem o seu tema. Steinbeck fazia isso e também Hemingway. Reg Thorpe tinha o mesmo talento. Quando alguém penetrava em seu mundo, tudo começava a parecer muito lógico. Achava-se muito provável, uma vez aceita a premissa básica do Fornit, que o menino entregador de jornais tivesse um 38 com silenciador em sua saca de jornais. Que os universitários da casa ao lado, donos do furgão, poderiam realmente ser agentes da KGB, com cápsulas mortíferas em molares de cera, empenhados em uma missão faça-ou-morra, para matar ou capturar Rackne.
"Naturalmente, não aceitei a premissa básica. Contudo, eu sentia grande dificuldade em raciocinar. E desligava coisas. Primeiro foi a televisão colorida, por que todos sabem que realmente emitem grande radiação. Na Logan's, publicamos certa vez um artigo da autoria de um cientista de reputação inatacável, sugerindo que a radiação emitida pela TV em cores doméstica estava interrompendo as ondas cerebrais humanas o suficiente para alterá-las, minuciosa, mas permanentemente. Esse cientista sugeria que talvez fosse este o motivo do declínio das notas em geral dos estudantes, dos testes literários e do desenvolvimento de especialização matemática na escola primária. Afinal, quem fica mais sentado diante de um aparelho de TV do que uma criança?
"Assim, desliguei a televisão, e isso pareceu realmente arejar meus pensamentos. De fato, senti-me tão melhor, que desliguei o rádio, a tostadeira, a máquina de lavar e a secadora de roupas. Lembrei-me então do forno de microondas e o desliguei da parede.
"Senti um verdadeiro alívio, quando os dentes da maldita coisa foram arrancados. Era um dos primeiros modelos no mercado, mais ou menos do tamanho de uma casa e, sem dúvida, realmente perigoso. Hoje em dia, consegue-se fazê-los mais protegidos.
"Ocorreu-me quantas coisas possuímos em uma residência comum da classe média, ligadas à parede. Veio-me uma imagem sobre esses sérios octópodes elétricos, seus tentáculos consistindo de fios elétricos, todos serpenteando pelas paredes, todos ligados a cabos externos, e todos os cabos seguindo para estações de energia elétrica, dirigidas pelo governo.
"Quando fiz aquelas coisas, havia uma curiosa duplicidade em minha mente — prosseguiu o editor, após uma pausa para um gole de Fresca. — Essencialmente, eu reagia a impulsos supersticiosos. Há muitas pessoas que não passam debaixo de escadas ou abrem um guarda-chuva dentro de casa. Há jogadores de basquete que se benzem antes de uma jogada decisiva e jogadores de beisebol que trocam as meias quando estão inferiorizados. Creio que seja a mente racional tocando um acompanhamento em mau estéreo com o subconsciente irracional. Eu diria que se trata de um pequeno aposento acolchoado, dentro de todos nós, onde o único mobiliário é uma pequena mesa dobrável de jogo, sendo a única coisa sobre a mesa um revólver carregado com projéteis flexíveis.
"Quando trocamos de calçada para fugir à escada ou saímos do apartamento para a chuva com um guarda-chuva fechado, parte de nosso eu integral se despe e penetra naquele aposento, onde pega a arma em cima da mesa. Talvez estejamos cônscios de dois pensamentos conflitantes: passar debaixo da escada é inofensivo e não passar debaixo de uma escada também é inofensivo. Contudo, assim que a escada está atrás de nós — ou assim que o guarda-chuva é aberto — voltamos ao ponto de partida.
— Isso é muito interessante — disse o escritor. — Avance um pouco mais para mim, caso não se importe. Quando é que a parte irracional pára realmente de brincar com a arma e a aponta para a têmpora?
O editor respondeu:
— Quando a pessoa em questão começa a escrever para a seção de leitores dos jornais, exigindo que todas as escadas sejam retiradas, porque passar debaixo delas é perigoso.
Houve risos.
— Já que fomos tão longe, creio que devemos terminar. O eu irracional disparou realmente o projétil flexível no cérebro, quando a pessoa começa a mover-se violentamente pela cidade, derrubando escadas e talvez machucando os que nelas trabalham. Dar a volta em torno de escadas ou passar debaixo delas não é, certamente, um comportamento interditável. Tampouco é comportamento interditável alguém escrever cartas ao jornal, dizendo que a Cidade de Nova York entrou em colapso, porque todos passam atrevidamente debaixo das escadas usadas por operários. Contudo, é interditável começar a derrubar escadas.
— Porque é premeditado — murmurou o escritor.
O agente disse:
— Você acertou o alvo aí, Henry. Pessoalmente, sou contra acender três cigarros com um só fósforo. Não sei como adquiri a mania, mas é assim que ajo. Aliás, li em algum lugar, que isso começou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Parece que os atiradores alemães esperavam que os Tommies começassem a acender os cigarros uns dos outros.
No primeiro clarão, consegue-se o alcance de tiro. No segundo, avalia-se o desvio da bala. E, no terceiro, estoura-se a cabeça do sujeito. Contudo, mesmo saber disso não fez qualquer diferença. Ainda continuo sem acender três cigarros com um fósforo. Uma parte de mim diz que pouco importa se acendo uma dúzia de cigarros com um fósforo. A outra, no entanto — esta, uma voz lúgubre e soturna, como um Boris Karloff interior — diz, Ohhhh, se você fizer isso..."
— Entretanto, nem toda a loucura é supersticiosa, certo? — perguntou timidamente a esposa do escritor.
— Será? — replicou o editor. — Joana d'Arc ouvia vozes do céu. Algumas pessoas julgam-se possuídas por demônios. Outras vêem gremlins... ou diabos... ou Fornits. Os termos que usamos para a loucura, sugerem superstição, em uma ou outra forma. Mania... anormalidade... irracionalidade... demência... insanidade... Para a pessoa louca, a realidade entortou-se. Como um todo, a criatura começa a reintegrar-se naquele quartinho onde está a pistola.
"Contudo, a minha parte racional ainda estava bem presente. Ensangüentada, esfolada, indignada e talvez amedrontada, mas ainda funcionando. Dizendo: "Oh, está tudo bem. Amanhã, quando você ficar sóbrio, poderá ligar tudo outra vez, graças a Deus. Faça as brincadeirinhas que quiser, mas não passe daí. Não vá além disso."
"Aquela voz racional tinha o direito de estar amedrontada. Em nós, existe algo que é muito atraído para a loucura. Todos que olham pela borda de um edifício alto, já sentiram pelo menos uma fraca, mórbida vontade de saltar. E quem quer que já tenha encostado uma arma carregada à cabeça...
— Ai, pare! — disse a esposa do escritor. — Por favor!
— Está bem — respondeu o editor. — Meu ponto é apenas este: mesmo a pessoa mais bem ajustada, tem sua lucidez pendendo de uma corda ensebada. Acredito realmente nisso. Os circuitos da racionalidade são fracamente construídos dentro do animal humano.
"Com as tomadas desligadas, fui para meu estúdio, escrever uma carta para Reg Thorpe.
Depois a coloquei em um envelope, selei-a, saí e a postei. Aliás, não me recordo de ter feito nada disso. Estava bêbado demais para lembrar. No entanto, deduzi que fiz, porque quando me levantei, na manhã seguinte, o carbono ainda estava sobre minha máquina de escrever, juntamente com os selos e a caixa de envelopes. A carta dizia o que se pode esperar de um bêbado. Seu conteúdo explicava mais ou menos isto: os inimigos eram atraídos pela eletricidade, assim como os próprios Fornits. Livre-se da eletricidade e estará livre dos inimigos. No fim, eu tinha escrito: "A eletricidade está transtornando suas idéias sobre estas coisas, Reg. Interferência com ondas cerebrais. Sua esposa tem um liquidificador?"
— Com efeito, você começava a escrever cartas para o jornal — comentou o escritor.
— Sem dúvida. Escrevi aquela carta em uma noite de sexta-feira. Na manhã de sábado, levantei por volta das onze horas, com ressaca e apenas vagamente cônscio da traquinada cometida na véspera. Senti ondas de vergonha, quando comecei a religar os aparelhos elétricos. A vergonha maior — e medo — foi quando vi o que tinha escrito a Reg. Revisei toda a casa em busca do original daquela carta, rezando para não a ter enviado. Contudo, ela já estava a caminho de Omaha. E só consegui passar aquele dia, tomando a decisão de carregar minha cruz como homem e seguir em frente. Foi o que fiz.
"Na quarta-feira seguinte, recebi carta de Reg. Uma página, manuscrita. Toda desenhada com Fornit Some Fornus. No meio, apenas isto: "Você tinha razão. Obrigado, obrigado, obrigado. Reg. Você tinha razão. Tudo está ótimo agora. Reg. Muitíssimo obrigado. Reg. O Fornit está ótimo. Reg. Obrigado. Reg."
— Oh, meu Deus! — exclamou a esposa do escritor.
— Aposto como a mulher dele ficou louca — disse a esposa do agente.
— Nada disso. Porque a coisa funcionou.
— Funcionou? — perguntou o agente.
— Ele recebeu minha carta na correspondência da manhã de segunda-feira. Na tarde desse dia, Reg foi ao escritório local da companhia de eletricidade e disse a eles que cortassem a energia de sua casa. Jane Thorpe, naturalmente, ficou histérica. Seu fogão era elétrico e, de fato, ela possuía um liquidificador, máquina de costura, uma combinação de lavadora-secadora de roupas... bem, vocês entendem. Na noite de segunda-feira, tenho certeza de que ela estava pronta para ter minha cabeça em uma bandeja.
"Contudo, foi o comportamento de Reg que a levou a considerar-me um fazedor de milagres, em vez de lunático. Ele a fez sentar-se na sala de estar e conversou com ela, demonstrando a maior racionalidade. Disse saber que estivera agindo de maneira muito singular. Sabia-a preocupada com isso. Disse-lhe que se sentia bastante melhor com a eletricidade cortada e que ficaria satisfeito em ajudá-la, ante qualquer inconveniência produzida por aquele corte de energia. Depois sugeriu que fossem até a casa vizinha, dizer olá.
— Não era a residência dos agentes da KGB, com radium em seu furgão? perguntou o escritor.
— Exatamente. Jane não teve saída. Concordou em ir lá com ele, segundo me disse, mas já preparada para uma cena desagradável. Acusações, ameaças, histeria. Começara a pensar em abandonar Reg, se ele não acedesse em obter ajuda para seu problema.
Contou-me que, naquela manhã de quarta-feira ao telefone, fizera a si mesma uma promessa: a questão da eletricidade era a gota que fazia o copo transbordar. Ele que aprontasse mais uma, e ela partiria para Nova York. Estava ficando amedrontada, entendam. A situação havia piorado aos poucos, em graus quase imperceptíveis, e ela o amava, mas já fora tão longe até onde podia ir. Decidira que, se Reg dissesse uma só palavra estranha aos estudantes vizinhos, sairia de casa. Muito mais tarde, fiquei sabendo que ela já tomara algumas discretas informações sobre o procedimento em Nebraska para internação involuntária de um doente mental.
— Pobre mulher! — murmurou a esposa do escritor.
— A noite, contudo, foi um estrondoso sucesso — disse o editor. — Reg não podia estar mais fascinante... e, segundo Jane, ele foi extraordinariamente fascinante. Nunca o vira assim, nos últimos três anos. A casmurrice, o retraimento, tudo desaparecera. Os tiques nervosos. O salto involuntário e o olhar por sobre o ombro, sempre que uma porta era aberta. Ele tomou uma cerveja e discorreu sobre todos os sombrios tópicos da atualidade naquela época: a guerra, as possibilidades de um exército de voluntários, as desordens nas cidades, as leis decadentes.
"O fato dele haver escrito Underworld Figures veio à tona, e eles ficaram... "impressionados pelo escritor", foi como disse Jane. Três deles já o tinham lido, mas é fora de dúvida que o outro não perderia muito tempo, antes de correr para a biblioteca.
O escritor riu e assentiu. Já passara por isso também.
— Assim — prosseguiu o editor — deixaremos Reg Thorpe e sua esposa apenas por um momento, sem energia elétrica, porém mais felizes do que nunca...
— Ainda bem que ele não possuía uma máquina de escrever IBM — disse o agente — e voltaremos ao Senhor Editor. Duas semanas passaram. O verão chegava ao fim. O Senhor Editor tinha, é claro, recaído na bebedeira várias vezes, mas em geral conseguia permanecer bastante respeitável. Os dias sucederam-se. Em Cabo Kennedy, estavam prontos para colocar um homem na Lua. O novo exemplar de Logan's, com John Lindsay na capa, já estava à venda. mas vendendo miseravelmente, como de costume.
Eu havia apresentado um pedido para compra de um conto chamado "A Balada do Projétil Flexível", da autoria de Reg Thorpe, direitos para a primeira série, publicação proposta para janeiro de 1970 e preço proposto de compra 800 dólares, que era o padrão, para uma história principal na Logan's.
"Recebi uma chamada de meu superior, Jim Dohegan. Eu poderia subir para falar com ele? Trotei até seu gabinete às dez da manhã, com minha melhor aparência e sentido-me ótimo. Só mais tarde, ocorreu-me que Janey Morrison, secretária dele, parecia com cara de velório.
"Sentei-me e perguntei a Jim o que podia fazer por ele ou vice-versa. Evidentemente, estava com o nome de Reg Thorpe na cabeça; ter sua história era um tremendo sucesso para Logan's e desconfiei que havia algumas felicitações a caminho. Assim, podem imaginar qual o meu aturdimento, quando ele empurrou duas ordens de compra sobre a mesa, em minha direção. A história de Thorpe e uma novela de John Updike, que havíamos programado como a ficção principal para fevereiro. A palavra DEVOLUÇÃO tinha sido carimbada em ambas.
"Olhei para as ordens de compra revogadas. Olhei para Jimmy. Não conseguia entender nada. De fato, não conseguia pôr meu cérebro em funcionamento para desvendar aquilo.
Havia um bloqueio interno. Olhei em torno e vi sua placa elétrica. Janey a levava todas as manhãs, quando vinha trabalhar, e então ligava a placa, a fim de que Jimmy tivesse café fresco, sempre que quisesse. Aquele tinha sido um rigoroso costume na Logan's, durante três anos ou mais. E, naquela manhã, eu só conseguia pensar era, se aquela coisa estivesse desligada, eu poderia raciocinar. Sei que, se aquela coisa estivesse desligada, eu compreenderia esta questão.
"Perguntei, "O que significa isto, Jim?"
"Lamento como o diabo ter que dizer-lhe isto, Henry", respondeu ele, "mas Logan's não estará mais publicando trabalhos de ficção em janeiro de 1970."
O editor fez uma pausa para acender um cigarro, mas seu maço estava vazio.
— Alguém tem um cigarro? — perguntou.
A esposa do escritor passou-lhe um maço de Salem.
— Obrigado, Meg.
Ele acendeu o cigarro, jogou fora o fósforo e aspirou profundamente. A brasa brilhou maciamente no escuro.
— Bem — disse ele — Jim deve ter pensado que eu estava doido. Perguntei a ele, "Você se importa?" e então, inclinando-me, puxei fora a tomada de aquecimento de sua placa elétrica.
"Ele ficou boquiaberto. "Diabo, o que há, Henry?" perguntou.
"Sinto dificuldades em pensar com uma coisa dessas ligada", respondi. "Dá interferência". E parecia ser isso mesmo, porque sem a tomada na parede, eu conseguia encarar a situação com muito maior clareza. "Quer dizer que me mandam embora?" perguntei a ele.
"Não sei", respondeu ele. "Isso é com San e a diretoria. Sinceramente, não sei de nada, Henry".
"Havia muitas coisas que eu podia ter dito. Acho que Jimmy esperava uma súplica ardente por meu emprego. Sabem aquele dito, "Ele estava no mato sem cachorro"?... Pois eu digo que só compreenderão o sentido desta frase, quando forem chefes de um departamento subitamente não-existente.
"Contudo, não supliquei por minha causa ou pela causa da ficção na Logan's. Minha súplica foi pela história de Reg Thorpe. Primeiro, falei que poderíamos dar-lhe outra programação — colocá-la no número de dezembro.
"Ora, vamos, Henry", disse Jimmy. "O número de dezembro já está fechado e você sabe. Além do mais, aqui estamos lidando com dez mil palavras!"
"Nove mil e oitocentas", falei.
"Mais uma página inteira com ilustração", disse ele. "Esqueça".
"Bem, tiramos a ilustração", argumentei. "Ouça, Jimmy, esta é uma grande história, talvez a melhor ficção que já tivemos, nos últimos cinco anos".
"Eu a li, Henry", disse Jimmy. "Sei que é uma grande história. Contudo, não podemos publicá-la. Não em dezembro. É o mês do Natal, pelo amor de Deus! Você quer inserir uma história sobre um sujeito que mata a esposa e a filha, debaixo das árvores de Natal da América? Ora, você deve estar..." Ele se interrompeu, mas vi o olhar que lançou para sua placa elétrica. Era o mesmo que ter dito em voz alta, entendem?
O escritor assentiu lentamente, seus olhos nunca se afastando da sombra escura que era o rosto do editor.
"Comecei a ficar com dor de cabeça. Primeiro, apenas uma dorzinha. Foi ficando mais difícil concentrar as idéias. Recordei que Janey Morrison tinha um apontador elétrico para lápis em sua mesa. Havia todas aquelas lâmpadas fluorescentes no gabinete de Jim... Os aquecedores... As máquinas de venda automáticas na concessão, no final do corredor... Se parasse para pensar nisso, concluiria que todo o maldito edifício funcionava à base de eletricidade; era um milagre que alguém conseguisse fazer qualquer coisa. Foi quando a idéia começou a imiscuir-se, imagino. A idéia de que a Logan's ia quebrar, porque ninguém podia pensar direito. E o motivo de não se poder pensar direito, era porque estávamos todos trabalhando juntos naquele arranha-céu funcionando eletricamente. Nossas ondas cerebrais estavam em total confusão..
Lembro-me de haver pensado que se um médico aparecesse lá com um desses aparelhos EEG, obteria alguns gráficos incrivelmente estranhos. Repletos daquelas enormes e agudas ondas alfa, que caracterizam tumores malignos no cérebro anterior.
"Só pensar nessas coisas, aumentava minha dor de cabeça. Contudo, fiz mais uma tentativa. Perguntei-lhe se, pelo menos, falaria com Sam Vadar, o editor-chefe, para deixar a história sair no número de janeiro. Como a ficção de encerramento na revista, se preciso fosse. O último conto a ser publicado na Logan's.
"Jimmy brincava com um lápis e assentiu. Disse, "Tratarei do assunto, mas nada posso garantir. Temos a história de um novelista de um só livro e a história de John Updike, também muito boa... talvez até melhor... e..."
"A história de Updike não é melhor!" — exclamei.
"Ora, Henry, por favor, não precisa gritar..."
"Eu não estou gritando!" — gritei.
"Ele ficou um tempão olhando para mim. Minha dor de cabeça estava lancinante, àquele momento. Eu podia ouvir o zumbido das lâmpadas fluorescentes. Eram como um punhado de moscas, capturadas em uma garrafa. Um som francamente odioso. Pensei então que podia ouvir Janey usando seu apontador elétrico. Estão, jazendo isso de propósito, imaginei. Querem confundir-me. Sabem que não posso concatenar as idéias e falar com clareza, enquanto essas coisas estiverem funcionando, e assim... e assim...
"Jim falava algo sobre levar o assunto à próxima reunião editorial, sugerindo que, em vez de uma data arbitrária para a exclusão de ficção na revista, eles poderiam publicar todas as histórias com que eu já me comprometera verbalmente... embora...
"Levantei-me, cruzei a sala e apaguei as luzes
"Por que fez isso?" perguntou Jimmy.
"Você sabe porquê" respondi. "Devia sair daqui, Jimmy, antes que nada mais reste de você!"
"Ele se levantou e caminhou para mim. "Acho que devia tirar uma folga pelo resto do dia, Henry", disse. "Vá para casa. Descanse. Sei que tem vivido sob tensão ultimamente. Fique sabendo que farei o melhor ao meu alcance quanto a este assunto. Lamento tanto quanto você... bem, quase tanto quanto você. Contudo, devia ir para casa, pôr os pés para o alto e ver um pouco de televisão."
"Televisão!" repeti, e dei uma risada. Era a coisa mais engraçada que já ouvira. "Ouça Jimmy, quero que diga algo mais a Sam Vadar em meu nome."
"O que é, Henry?"
"Diga a ele que está precisando de um Fornit. Ele e toda a equipe. Um Fornit? Não. Uma dúzia deles."
"Um Fornit", assentiu Jimmy" Está bem, Henry. Fique certo de que direi isso a ele".
"Minha dor de cabeça era terrível. Eu mal conseguia enxergar. Em alguma parte, no fundo de minha mente, eu já me perguntava como dar a notícia a Reg e gostaria de saber como ele aceitaria isso.
"Eu mesmo providenciarei o pedido de compra, se descobrir a quem enviá-lo", falei. "Reg talvez tenha algumas idéias. Uma dúzia de Fornits. Seriam postos limpando este lugar, com fornus, de ponta a ponta. A maldita energia elétrica seria desligada, toda ela".
Eu caminhava pelo gabinete de Jimmy e ele olhava para mim, boquiaberto. "Devem cortar toda a energia elétrica, Jimmy, diga a eles que façam isso. Diga isso a Sam. Ninguém consegue pensar direito, com toda essa interferência elétrica, estou certo?"
"Você está certo, Henry, cem por cento certo. Agora, vá para casa e descanse um pouco, está bem? Tire uma soneca ou coisa assim."
"Ah, os Fornits, sabe? Eles não gostam de toda essa interferência. Radium, eletricidade, é tudo a mesma coisa. Alimente-os com salsichão. Bolo. Manteiga de amendoim. Podemos conseguir requisições para essa compra?"
Minha dor de cabeça era como uma bola negra de dor, por trás dos olhos. Eu via dois Jimmy, tudo em duplicata. Então, de repente, senti necessidade de um drinque. Se não havia fornus e se o lado racional de minha mente afirmava que não havia, então um drinque era a única coisa no mundo que me deixaria bem.
"Claro, podemos conseguir as requisições", disse ele.
"Não acredita em nada disto, não é, Jimmy?" perguntei.
"É claro que acredito. Está tudo bem. Agora,. vá para casa e procure descansar um pouco."
"Você não está acreditando", insisti, "mas talvez passe a acreditar, quando este circo for à falência. Como, em nome de Deus, julga que está tomando decisões racionais, se fica sentado a menos de quinze metros de um punhado de máquinas de Coca, máquinas de doces e máquinas de sanduíches" Foi quando tive um pensamento realmente terrível. "E um forno de microondas!" gritei para ele. "Elas tem um, forno de microondas embutido, para esquentar os sanduíches!"
Ele começou a dizer qualquer coisa, mas não lhe prestei muita atenção. Corri para fora.
A idéia daquele forno de microondas explicava tudo. Eu tinha que ir embora dali. Era isso que tornava a minha dor de cabeça tão terrível. Recordo que vi Janey e Kate Younger, do departamento de anúncios, bem como Mert Strong, da publicidade, no gabinete externo, todas me fitando de olhos esbugalhados. Deviam ter-me ouvido gritar.
Meu gabinete ficava logo no andar de baixo. Fui pela escada. Entrei em minha sala, apaguei todas as luzes e peguei minha pasta. Fui de elevador até o saguão do prédio, coloquei a pasta entre meus pés e enfiei os dedos nos ouvidos. Também recordo que as outras três ou quatro pessoas que estavam no elevador, olhavam para mim com estranheza. — O editor deu uma risadinha seca. Estavam com medo. Por assim dizer.
Se estivessem confinados em uma pequena caixa móvel, em companhia de um louco óbvio, vocês também teriam medo.
— Oh, sem dúvida! Esta foi um pouco forte — comentou a esposa do agente.
— Nem tanto. A loucura tem que começar em algum lugar. Se esta é uma história sobre qualquer coisa — se os eventos na vida de uma pessoa podem ser considerados como sendo sobre qualquer coisa — então esta é uma história sobre a gênese da insanidade. A loucura tem que começar em algum lugar e também tem que ir para algum lugar. Como uma estrada. Ou um projétil, do cano de uma arma. Eu ainda estava quilômetros atrás de Reg Thorpe, mas me encontrava a caminho. Podem apostar.
"Eu tinha que ir para algum lugar, portanto, dirigi-me ao Four Fathers, um bar na Rua 49. Recordo ter escolhido especificamente esse bar, porque lá não havia vitrola automática, televisão a cores ou luzes em demasia. Lembro-me de ter pedido o primeiro drinque. Depois disso, não consigo recordar mais nada, até acordar no dia seguinte, em casa, na minha cama. Havia vômito no chão e uma enorme queimadura de cigarro no lençol que me cobria. Em meu estupor, aparentemente eu escapara da morte por dois meios extremamente desagradáveis — asfixiado ou queimado. Aliás, acho que não chegaria a sentir nenhum dos dois.
— Céus! — exclamou o agente, quase com respeito.
— Foi um blackout — disse o editor. — O primeiro real e legítimo blackout de minha vida — mas eles são sempre um sinal do fim e a gente nunca passa por muitos. De um modo ou de outro, nunca há muitos. Contudo, um alcoólatra lhes dirá que um blackout não é o mesmo que ficar inconsciente. Se fosse, muitos problemas seriam evitados. Quando um alcoólatra entra em blackout, ele continua fazendo coisas. Um alcoólatra em blackout é um demoninho em atividade. Uma espécie de Fornit maligno. Ele liga para a ex-esposa e diz-lhe horrores ao telefone, quando não dirige seu carro pelo lado errado no pedágio, acabando por arrasar outro carro, lotado de garotada. Ele abandona o emprego, rouba um supermercado, desfaz-se da aliança de casamento. São demoninhos ativos.
"Aparentemente, o que eu fiz, foi ir para casa e escrever uma carta. Só que não era dirigida a Reg. Era para mim mesmo. E eu não a escrevi — pelo menos, segundo a carta, não fui eu".
— Quem a escreveu? — perguntou a esposa do escritor.
— Bellis.
— E quem é Bellis?
— O Fornit dele — respondeu o escritor, quase alheadamente, com olhar sombrio e distante.
— Exato — disse o editor.
Não parecia nem um pouco surpreso. A seguir, repetiu a carta para seus ouvintes, novamente ao doce ar da noite, acentuando com o dedo os pontos adequados.
— Olá, da parte de Bellis. Sinto muito por seus problemas, meu amigo, porém gostaria de indicar, desde o princípio, que você não é o único a tê-los. Esta não é uma tarefa fácil para mim. Posso limpar sua máquina com fornus, de agora até a eternidade, porém supõe-se que movimentar as TECLAS seja responsabilidade sua. PARA isso é que Deus fez as pessoas em tamanho grande. Assim, solidarizo-me com você, mas é tudo que posso fazer.
"Compreendo sua preocupação com respeito a Reg Thorpe. Eu não me preocuparia com ele, mas com Rackne, meu irmão. Thorpe fica preocupado com o que lhe acontecerá, se Rackne for embora, mas somente por ser egoísta. A maldição de servir-se a escritores, é serem todos eles egoístas. Ele não se preocupa com o que acontecerá a Rackne, se THORPE for embora. Ou se for el bonzo seco. Parece que tais coisas jamais cruzaram sua mente, oh, tão sensível. Contudo, felizmente para nós, todos os nossos infortunados problemas têm a mesma solução a curto prazo, de modo que estendo meus braços e meu diminuto corpo para dá-los a você, meu embriagado amigo. VOCÊ pode querer saber sobre soluções a longo prazo; eu lhe garanto que não existem. Todos os ferimentos são mortais. Aceite o que lhe é dado. Por vezes, você fica um pouco bambo na corda, porém ela sempre tem um fim. Abençoe a corda bamba e não desperdice respiração, xingando a queda. Um coração agradecido sabe que, no fim, todos balançamos.
"Você deve pagar-lhe a história, de seu bolso, mas não com um cheque pessoal."
Os problemas mentais de Thorpe são sérios, talvez perigosos, porém isto, de maneira alguma, indica burrice.
Neste ponto, o editor soletrou a palavra: b-u-r-r-i-c-e. Então, prosseguiu:
— Se você enviar-lhe um cheque personalizado, a loucura dele explodirá, em uns nove segundos.
"Saque oitocentos e poucos dólares de sua conta bancária e faça seu banco abrir uma nova conta para você, em nome de Arvin Publishing, Inc. Faça-os compreender que precisa de cheques com aparência comercial — nada de cães de luxo ou vistas de canyons neles. Encontre um amigo, alguém de sua confiança, e o coloque como co-sacador.
Assim que estiver de posse do talonário, preencha um cheque com oitocentos dólares e peça a essa outra pessoa que o assine. Então, envie o cheque a Reg Thorpe. Isso deixará você a coberto, futuramente.
"Encerro e desligo." Estava assinado "Bellis". Não em holograma. Datilografado.
— Minha nossa! — exclamou o escritor.
— Quando levantei, a primeira coisa que notei foi a máquina de escrever. Parecia que alguém a caracterizara, como máquina de escrever-fantasma, em algum filme barato. Na véspera, ela havia sido uma Underwood negro-escritório. Ao levantar-me — com uma cabeça que parecia do tamanho de Dakota do Norte ela estava de um tom acinzentado.
As últimas frases da carta estavam atropeladas e desbotadas. Dei uma espiada e imaginei que minha fiel e antiga Underwood chegara ao fim da linha, com toda a certeza. Provei algo na boca e fui até a cozinha. Havia um saco de açúcar de confeiteiro aberto, em cima do balcão, com uma concha em seu interior. Também havia açúcar de confeiteiro espalhado por todo canto, entre a cozinha e o pequeno aposento onde eu trabalhava, naquela época.
— Você alimentava seu Fornit — disse o escritor. — Bellis gostava de coisas doces. Pelo menos, você assim pensou.
— Sem dúvida. No entanto, embora indisposto e de ressaca como me encontrava, eu sabia perfeitamente quem era o Fornit.
O editor enumerou nos dedos.
— Primeiro, Bellis era o sobrenome de solteira de minha mãe.
"Segundo, aquela frase, el bonzo seco. Era uma frase particular que eu e meu irmão costumávamos usar, com o significado de loucura. Quando éramos crianças.
"Terceiro, e mais execrável, foi a escrita da palavra "burrice". Trata-se de uma palavra que geralmente escrevo errada. Certa vez, tive um escritor gritantemente letrado, que costumava escrever "refridgerador", com um d — em vez de "refrigerador" — pouco importando quantas vezes os revisores o corrigissem. Esse mesmo sujeito, diplomado em Princeton, sempre escrevia "sombrancelha", em vez de "sobrancelha".
A esposa do escritor deu uma risada súbita — tanto embaraçada, como alegre.
— Eu faço isso — disse ela.
— Tudo quanto quero dizer é que os erros ortográficos de um homem — ou de uma mulher — são suas impressões digitais literárias. Perguntem a qualquer copydesk que tenha revisado algumas vezes trabalhos do mesmo escritor.
"Não, Bellis era eu e eu era Bellis. No entanto, seu conselho era infernalmente bom. De fato, achei-o um grande conselho. Contudo, aqui vai algo mais, o subconsciente deixa suas impressões digitais, mas lá embaixo também existe um ser estranho. Um diabo de sujeito esquisito, que entende um diabo de coisas. Eu jamais vira aquele termo "co-sacador", apesar de todo o meu conhecimento... mas lá estava ele, era muito bom e, tempos depois, fiquei sabendo que realmente os bancos o usam.
"Peguei o fone, a fim de ligar para um amigo, e então senti aquela pontada de dor — incrível! — varando-me a cabeça. Pensei em Red Thorpe, em seu radium e tornei a colocar precipitadamente o fone no gancho. Procurei esse amigo pessoalmente, após tomar uma ducha, fazer a barba e examinar-me umas nove vezes ao espelho, para ter certeza de que minha aparência correspondia aproximadamente à de um ser humano racional, como se presume que seja. Ainda assim, fiz-me um monte de perguntas e vigiei-me intimamente. Creio serem bem poucos os indícios que uma ducha, barba feita e uma boa dose de Listerine não consigam esconder. Esse amigo não era do meu ramo, o que já significava algo. As notícias costumam voar, como sabem. Nos negócios. Por assim dizer. Aliás, se ele fosse do ramo, saberia que Arvin Publishing, Inc., era responsável pela Logan's e gostaria de saber que tipo de tramóia eu estava querendo armar. Como era alheio à atividade, nada perguntou e pude falar-lhe de um empreendimento de auto-editoração em que estava interessado, uma vez que, aparentemente, a Logan's decidira eliminar o departamento de ficção.
— Ele perguntou por que lhe dava o nome de Arvin Publishing? — quis saber o escritor.
— Perguntou.
— E o que você respondeu?
— Respondi — disse o editor, com um sorriso frio — que Arvin era o sobrenome de solteira de minha mãe.
Houve uma breve pausa e depois o editor recomeçou a falar. Então, falou até o fim, quase sem ser interrompido.
— Assim, comecei a esperar pelos cheques impressos, dos quais desejava exatamente um.
Para passar o tempo, eu me exercitava. Sabem como é — levantar o copo, flexionar o cotovelo, esvaziar o copo, flexionar o cotovelo novamente. Até que, por fim, o exercício nos cansa e acabamos caindo para diante, com a cabeça em cima da mesa. Aconteceram outras coisas, mas estas eram as únicas que realmente me ocupavam a mente — a espera e o flexionamento. Que me recorde, aliás. Devo acentuar isto, porque eu estava bêbado a maior parte do tempo e então, para cada coisa que recorde, devem existir talvez cinqüenta ou sessenta que nem me passam pela cabeça.
"Deixei o emprego — o que provocou um suspiro de alívio geral, disto estou certo. Um suspiro deles, porque não precisaram executar a tarefa existencial de me demitirem por loucura, de um departamento não mais em existência; um suspiro meu, porque eu achava que não conseguiria enfrentar novamente aquele edifício — o elevador, as lâmpadas fluorescentes, os telefones, a idéia de tudo quanto recebia eletricidade.
"Escrevi a Reg Thorpe e sua esposa duas cartas, uma a cada um, durante aquele período de três semanas. Lembro-me de ter escrito a dela, mas não a dele — como aconteceu com a carta de Bellis, escrevi aquelas em momentos de blackocct. Contudo, eu revertia a meus velhos hábitos de trabalho quando estava alto, assim como persistia em minha velha ortografia errada. Nunca deixava de usar um carbono... e quando chegava a manhã seguinte, as cópias a carbono estavam por ali. Era como ler cartas de um estranho.
"Não que as cartas fossem loucas. De maneira alguma. Aquela que terminei com o P.S. sobre o liquidificador, foi muito pior. Aquelas cartas pareciam... quase racionais.
Ele parou e meneou a cabeça, lenta e cansadamente.
— Pobre Jane Thorpe! Não que as coisas parecessem tão ruins no final. Ela deve ter achado que o editor de seu marido estava fazendo um altamente especializado — e humano — trabalho, ao ser indulgente com ele, arrancando-o de uma depressão cada vez mais funda. Provavelmente já tivesse ocorrido a ela a questão de ser ou não uma boa idéia alguém mostrar-se indulgente com uma pessoa que está acalentando todo o tipo de fantasias paranóicas — fantasias que, em um caso, quase levaram ao real assalto contra uma menininha. Se ocorreu, então ela preferiu ignorar os aspectos negativos, uma vez que também estava sendo indulgente com o marido. Jamais a censurei por isso — Thorpe não era apenas um ticket para refeição, alguma mula velha que precisava ser trabalhada e paparicada, trabalhada e paparicada, até estar pronta para o matadouro; acontece que ela amava o cara. À sua maneira, Jane Thorpe era uma grande dama. Assim, após ter vivido com Reg desde os Primeiros Tempos aos Altos Tempos e finalmente aos Loucos Tempos, creio que ela concordaria com Bellis, ao abençoar a corda bamba, sem desperdiçar a respiração xingando a queda. Naturalmente, quanto mais bambos nos sentimos, mais difícil se torna equilibrar-nos, quando afinal chega o fim... mas mesmo aquele rápido equilíbrio pode ser uma bênção, admito — pois quem prefere cair?
"Naquele curto período, recebi respostas de ambos — cartas extraordinariamente otimistas... embora houvesse uma qualidade estranha e quase final naquele otimismo.
Era como se... bem, esqueçamos a filosofia barata. Se eu conseguir atinar com o significado, falarei. Deixemos isso por ora.
"Reg passou a jogar cartas com os rapazes vizinhos, todas as noites. Quando as folhas começaram a cair, eles achavam que Reg Thorpe era o próprio Deus, baixado à terra. Se não jogavam cartas ou disputavam uma partida de Frisbee, discutiam literatura, com Reg animando-os delicadamente em seus passos futuros. Ele arranjara um cachorrinho no abrigo de animais local e passeava com ele, de manhã e à noite, enquanto isso conhecendo outros moradores do quarteirão, como acontece conosco, se levamos nosso cão a passeio. Quem decidira que os Thorpe eram pessoas peculiares, agora começava a pensar diferente. Quando Jane sugeriu que, sem aparelhagem elétrica ela poderia usar os serviços de uma faxineira, Reg concordou imediatamente. Ela ficou pasma ante o jovial assentimento dele. Não se tratava de uma questão de dinheiro — após Undenworld Figures, eles nadavam no ouro — tratava-se deles, deduziu Jane. Eles estavam em toda parte, tal era o decreto de Reg, e que melhor agente para eles do que uma faxineira, que andava por todos os cantos da casa, espiava debaixo das camas e armários, talvez até dentro das gavetas também, caso elas não estivessem trancadas e depois fixadas com pregos, por medida de segurança?
"Contudo, ele lhe disse que contratasse a mulher, acrescentou que se sentia um sujeito insensível, por não haver pensado nisso mais cedo, mesmo embora ela insistiu em contar-me o detalhe — Reg estivesse fazendo a maioria dos serviços pesados, como a lavagem de roupa, por exemplo. Reg só impunha uma pequena condição: que a faxineira não tivesse permissão de entrar em seu estúdio.
"O melhor de tudo, o mais encorajador, na opinião de Jane, era o fato de que seu marido voltara a trabalhar, agora em um novo romance. Ela lera os três primeiros capítulos e os considerara maravilhosos. Tudo isto, segundo me escreveu, começara quando eu havia aceito "A Balada do Projétil Flexível" para a Logan's — o período anterior, que havia sido de maré muito baixa. E ela me abençoava por isso.
"Estou certo de que o agradecimento de Jane era sincero, embora sua gratidão não parecesse conter muito calor e o otimismo de sua carta se mostrasse algo turvo — pronto, voltamos novamente a isso. Naquela carta, seu otimismo assemelhava-se a um dia ensolarado, mas com aquelas nuvens de bordas carregadas, prenunciando um temporal para breve.
"Todas essas boas notícias — jogos de cartas, o cachorro e a faxineira, além do novo romance — e, no entanto, ela era inteligente demais para acreditar que o marido estivesse ficando bom novamente... ou assim acreditei, apesar de em meu próprio fog, Reg viera exibindo sintomas de psicose. A psicose é como câncer pulmonar, em um sentido — nenhum dos dois se cura espontaneamente, embora tanto os pacientes de câncer como os lunáticos possam ter seus bons dias.
"Pode me dar outro cigarro, querida?
A esposa do escritor deu-lhe o cigarro.
— Afinal de contas — prosseguiu o editor, puxando seu isqueiro Ronson, os sinais da idéia fixa do marido estavam por toda parte, em volta dela. Nada de telefone; nada de eletricidade. Ele afixara plástico de embalar em todas as placas de interruptores.
Continuava colocando comida na máquina de escrever, tão regularmente, como a punha no prato de seu novo cãozinho. Os universitários que moravam ao lado o julgavam um grande sujeito, mas não o viam calçar luvas de borracha para recolher o jornal no alpendre pela manhã, devido a seus temores sobre a radiação. Eles não o ouviam gemer enquanto dormia e nem tinham que consolá-lo, quando ele acordava gritando, com terríveis pesadelos que não conseguia recordar.
"Você, minha querida — disse ele, virando-se para a esposa do escritor —, deve estar-se perguntando por que Jane continuou em companhia do marido. Embora não tenha dito em palavras, a idéias está em sua mente, não?
Ela assentiu.
— Exato. E não pretendo oferecer uma longa tese motivacional — a coisa conveniente sobre histórias reais, é que só precisamos dizer — foi assim que aconteceu, deixando que os outros se preocupem sobre o motivo. Em geral, ninguém jamais sabe por que coisas acontecem... em particular as pessoas que dizem saber.
"Em termos de Jane Thorpe, no entanto, relativamente à sua percepção seletiva, tinham acontecido coisas que eram um bocado boas. Contratou uma mulher negra de meia-idade para fazer a faxina e se dispôs a explicar-lhe francamente as idiosincrasias do marido. A mulher, de nome Gertrude Rulin, riu e disse que estava acostumada a pessoas de hábitos bastante estranhos: Jane passou a primeira semana do serviço de Gertrude mais ou menos como se sentiu durante aquela primeira visita aos vizinhos jovens do lado — esperando alguma explosão de loucura. Contudo, Reg encantou a faxineira tão completamente como encantara os rapazes, conversando sobre o trabalho dela na igreja, seu marido e o filho caçula, Jimmy que, segundo Gertrude, fazia Dennis o Terrível, parecer o próprio tédio no primeiro grau escolar. Gertrude tinha onze filhos ao todo, mas havia um espaço de nove anos entre Jimmy e o anterior. Esse filho temporão lhe tornava a vida dura.
"Reg parecia estar indo bem... pelo menos, olhando-se as coisas de uma certa forma.
Contudo, estava tão louco como sempre, é claro, o que também acontecia comigo. A loucura bem pode ser uma espécie de projétil flexível, mas qualquer perito em balística que entenda do ofício, dirá que duas balas jamais são iguais. A carta de Reg para mim falava ligeiramente sobre seu novo romance, para então passar de imediato para os Fornits. Os Fornits em geral, Rackne em particular. Ele especulava sobre se eles realmente queriam matar Fornits ou — achava mais provável — capturá-los vivos e estudá-los.
Fechava a carta, dizendo, "Tanto meu apetite como minha visão de vida melhoraram imensuravelmente depois que começamos nossa correspondência, Henry. Fico-lhe muito grato. Afetuosamente, Reg" Um P.S. mais abaixo, perguntava casualmente se fora designado algum ilustrador para sua história. Aquilo me provocou uma ou duas pontadas de culpa, bem como uma rápida viagem ao armário de bebidas.
"Reg envolvia-se com os Fornits; eu com o álcool.
"Minha carta de resposta mencionava os Fornits apenas de passagem — a esta altura, eu estava realmente paparicando o homem, pelo menos nessa questão; um elfo com o sobrenome de solteira de minha mãe e meus hábitos pessoais de errar na ortografia estavam pouco me importando.
"O que passara a interessar-me, cada vez mais e mais, era o tema da eletricidade, microondas, ondas radiofônicas e interferência do rádio irradiando-se de pequenos aparelhos eletrodomésticos, bem como um baixo nível de radiação e só
Deus sabe o que mais. Fui à biblioteca e apanhei livros sobre o assunto; comprei livros que falavam nisso também. Neles, havia muita coisa assustadora... e naturalmente, bem aquilo que eu procurava.
Tomei providências para que meu telefone fosse desligado e a eletricidade cortada. Isso ajudou durante algum tempo, mas certa noite, quando eu cambaleava na porta, bêbado, com uma garrafa de Black Velvet em uma das mãos, a outra mão enfiada no bolso do sobretudo, vi aquele olhinho vermelho no teto, espiando para mim. Céus, por um minuto, pensei que ia ter um ataque cardíaco. A princípio, ele parecia um besouro... um grande besouro escuro, com um olho cintilante.
"Eu tinha uma lanterna Coleman, a gás, e a acendi. Imediatamente vi o que era. Só que, em vez de ficar aliviado, aquilo me deixou pior. Assim que dei uma boa espiada na coisa, tive a impressão de que podia sentir vastos e nítidos acessos de dor varando-me a cabeça — como ondas de rádio. Por um momento, foi como se meus olhos houvessem girado nas órbitas, de maneira a permitirem que eu olhasse meu próprio cérebro e, lá dentro, visse células soltando fumaça, ficando negras, morrendo. Era um detector de fumaça — um dispositivo ainda mais recente do que os fornos de microondas, em 1969.
"Saí precipitadamente do apartamento e fui até o térreo — eu morava no quinto andar, mas então estava sempre usando as escadas — e martelei a porta do zelador. Disse-lhe que queria aquela coisa fora de minha casa, queria-a fora de lá em seguida, queria-a fora de lá ainda aquela noite, queria-a fora de lá dentro de uma hora. Ele me fitou como se me julgasse absolutamente pirado — perdoem-me a expressão — bonzo seco, e hoje posso compreender aquilo. Aquele detector de fumaça deveria fazer com que me sentisse bem, presumia-se que me daria segurança. Hoje, é claro, eles são previstos em lei, mas então constituíam um Grande Avanço, pago pela associação de moradores do prédio.
"O zelador o removeu — não demorou muito — mas não me perdia de vista e, em certa forma limitada, eu podia entender o que sentia. Eu precisava barbear-me, fedia a uísque, tinha os cabelos grudados à cabeça e meu sobretudo estava sujo. Ele certamente sabia que eu não estava mais trabalhando; que minha televisão fora levada embora; que meu telefone e a energia elétrica haviam sido voluntariamente cortados. O zelador me considerava louco.
"Posso ter estado louco mas — como Reg — não era burro. Apelei para o charme. Editores precisam ter uma certa dose de charme, compreendam. Então, azeitei a situação que parecia lamentável, com uma nota de dez dólares. Por fim, fui capaz de ajeitar as coisas, mas da maneira como todos olhavam para mim, nas duas semanas seguintes — minhas duas últimas semanas no prédio — a história sem dúvida viajou. O fato de nenhum membro da associação dos moradores procurar-me, desgostoso com minha atitude ingrata, era particularmente revelador. Talvez pensassem que eu poderia atacá-los com uma faca de carne.
"De qualquer modo, naquela noite tudo isso era de menos em meus pensamentos.
Sentei-me à luz da lanterna Coleman, a única luz nos três aposentos, excetuando-se toda a eletricidade que, em Manhattan, passava pelas janelas. Eu tinha uma garrafa na mão e um cigarro na outra. Fiquei olhando para a chapa no teto, onde estivera o detector de fumaça com seu único olho vermelho — um olho tão imperceptível à luz do dia, que eu nem o notara. Considerei o fato inegável de que, embora estivesse com toda a energia elétrica desligada em meu apartamento, existira aquele ítem isolado e vivo... e onde havia um, poderia haver outros.
"Mesmo não havendo, todo o edifício pululava de fios — tinha tantos fios, como as células malignas e os órgãos deteriorados enchendo o organismo de um moribundo de câncer. Fechando os olhos, eu podia ver todos eles na escuridão de seus condutos, cintilando com uma espécie de luz verde inferior. E, mais além, a cidade inteira. Um fio, quase inofensivo em si, ligado a um interruptor... o fio além do interruptor, um pouco mais grosso, levando ao porão, através de um conduto, onde se unia a outro fio ainda mais grosso... este internando-se debaixo da rua, até um volumoso punhado de fios, estes últimos tão grossos, que em realidade eram cabos.
"Quando recebi a carta de Jane Thope, falando no plástico de embalar, parte de minha mente reconhecia que ela encarava isso como um sinal da loucura de Reg — e essa parte sabia que eu teria de reagir como se toda a minha mente a julgasse com razão. A outra parte de minha mente — de longe agora a preponderante — pensou: "Que idéia maravilhosa!" e então cobri todas as chapas de interruptores do apartamento da mesma forma que Reg havia feito, já no dia seguinte. Lembre-se, eu era o homem que, supostamente; estava ajudando Reg Thorpe. De um modo um tanto desesperador, chega a ser muito engraçado.
"Naquela noite, decidi ir embora de Manhattan. Havia uma velha casa da família, nas Adirondacks, para onde eu poderia ir. A idéia pareceu excelente. A única coisa que me mantinha na cidade, era a história de Reg Thorpe. Se "A Balada do Projétil Flexível" era o salva-vidas de Reg em um mar de loucura, também era o meu — eu queria inserir aquela história em uma boa revista. Feito isto, que tudo se danasse.
"Foi onde parou a não-tão-famosa correspondência Wilson-Thorpe, pouco antes de tudo ir por água abaixo. Éramos como dois agonizantes viciados em drogas, comparando os méritos relativos da heroína e das anfetaminas. Reg tinha Fornits em sua máquina de escrever. Eu tinha Fornits nas paredes e ambos tínhamos Fornits em nossas cabeças.
"Ainda havia eles. Não esqueçam: eles. Não fazia muito tempo que eu andava oferecendo a história, quando decidi que eles incluíam todos os editores de ficção das revistas em Nova York — embora não existissem muitos, no outono de 1969. Se fossem todos reunidos, poderiam ser mortos com um só cartucho de espingarda, algo que, não demorou muito, comecei a achar uma idéia infernalmente boa.
"Foram precisos cinco anos, antes que eu pudesse ver a situação pela perspectiva deles.
Eu me indispusera com o zelador, um sujeito que só me via quando o calor era infernal e quando era época de sua gratificação natalina. Quanto aos outros sujeitos... bem, ironicamente, muitos deles eram realmente meus amigos. Na época, Jared Baker era o editor-assistente de ficção na Esquire e ambos havíamos estado na mesma companhia de fuzileiros, na Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Tais sujeitos não ficavam apenas inquietos, após verem o novo e melhorado Henry Wilson. Ficavam abismados. Se eu apenas enviasse a história aos possíveis interessados, com uma carta agradável de apresentação, explicando a situação de qualquer modo, a versão que eu tinha dela — eu talvez houvesse vendido a história de Thorpe quase em seguida. Contudo, oh, de maneira alguma, isso não era o suficiente.
Não para aquela história. Eu precisava cuidar para que ela recebesse o tratamento pessoal. Assim, andei de porta em porta com ela, um fedorento e grisalho ex-editor, de mãos trêmulas, olhos vermelhos e uma grande equimose na face esquerda, produto de um choque contra a porta do banheiro, quando ele se encaminhara para o vaso, no escuro, duas noites antes. Eu bem podia estar usando um letreiro com a inscrição FUGITIVO DO HOSPÍCIO.
"Eu tampouco queria falar com eles em seus escritórios. De fato, era-me impossível. Há muito se fora o tempo em que podia entrar em um elevador e subir quarenta andares.
Assim, eu os encontrava como os traficantes encontram os viciados — em parques, escadas ou, no caso de Jared Baker, em uma casa de hamburgers, na Rua 49. Jared, pelo menos, ficaria satisfeito em pagar-me uma refeição decente, mas já se fora o tempo, vocês compreendem, em que qualquer maitre cioso do nome permitiria minha entrada em um restaurante freqüentado por pessoas do mundo dos negócios.
O agente pestanejou.
— Recebi promessas negligentes de que a história seria lida, depois perguntas sobre como eu estava, quanto andava bebendo. Recordo — vagamente — haver tentado dizer a uns dois deles que vazamentos de eletricidade e radiação estavam deteriorando o pensamento de todo mundo. Lembro-me também de que quando Andy Rivers, que editava ficção para American Crossings, aconselhou-me a procurar ajuda profissional para meu estado, respondi que era ele quem precisava dessa ajuda.
— Vê aquelas pessoas na rua? — perguntei-lhe. Estávamos no Parque Washington Square. Metade delas, talvez até mesmo três quartos delas, têm tumores cerebrais. Eu não lhe venderia a história de Thorpe por nada, Andy. Diabo, você não a entenderia, nesta cidade. Seu cérebro está na cadeira elétrica e você nem sabe disso.
"Eu tinha uma cópia da história em minha mão, enrolada com um jornal. Sacudi-a diante do nariz dele, da maneira como se faz com um cão, para que fique ereto em um canto. Depois fui embora. Lembro-me dele gritando para que eu voltasse, qualquer coisa sobre uma xícara de café e conversarmos mais um pouco, mas então passei por uma loja vendendo discos com desconto, seus alto-falantes estrondeando heavy metal para a calçada, e filas de luzes fluorescentes, frias como gelo, brilhando no interior.
Perdi a voz dele, em uma espécie de profundo zumbido dentro de minha cabeça.
Recordo haver pensado duas coisas — eu precisava sair logo da cidade, o mais depressa possível, ou estaria acalentando meu próprio tumor cerebral — e era imperioso tomar um drinque, imediatamente.
"Naquela noite, voltando ao meu apartamento, encontrei uma nota debaixo da porta.
Dizia "Queremos você fora daqui, seu biruta." Joguei-a fora, sem lhe dar a menor importância. Nós, veteranos em birutice, temos coisas mais importantes a preocupar-nos, do que notas anônimas de inquilinos vizinhos.
"Eu refletia no que havia dito a Andy Rivers sobre a história de Reg. Quanto mais pensava nisso — e mais drinques tomava — mais sentido fazia. O "Projétil Flexível" era curioso e, superficialmente, fácil de ser seguido... mas abaixo da superfície era surpreendentemente completo. Estaria eu imaginando que outro editor na cidade conseguiria apreender a história em todos os seus níveis? Talvez outrora, mas eu ainda acharia isso, agora que meus olhos se tinham aberto? Teria eu realmente pensado que havia espaço para apreciação e compreensão, em um local entupido de fios como uma bomba de terrorista? Céus, havia voltagem vazando por todos os lados!
"Li o jornal, enquanto ainda havia luz do dia suficiente para isto, procurando esquecer todo o maldito negócio por um momento e, ali, na página um do Times, havia um artigo sobre como o material radiativo de usinas de força nuclear permanece desaparecendo — o artigo prosseguia, teorizando que se houvesse nas mãos certas uma quantidade suficiente desse material, ele podia ser facilmente usado para uma arma nuclear muito suja.
"Permaneci sentado à mesa da cozinha enquanto o sol se punha e, em minha mente, podia vê-los batendo pó de plutônio, como os mineiros de 1849 batiam ouro. Apenas, eles não queriam explodir a cidade com aquilo, oh, não! Eles o queriam apenas para salpicá-lo por aí e liquidar a mente de todos. Eles eram os maus Fornits, e toda aquela poeira radioativa era fornus de má-sorte. Os piores fornus de má-sorte de todos os tempos.
"Decidi que, afinal de contas, não queria vender a história de Reg — pelo menos, não em Nova York. Saí da cidade, assim que chegaram os cheques que eu pedira. Quando estivesse no interior do estado, poderia começar a enviá-la para as revistas literárias de fora da cidade. Sehanee Review seria um bom lugar para começar, admiti, ou talvez Iowa Review. Eu poderia explicar a Reg mais tarde. Ele compreenderia. Aquilo parecia resolver todo o problema, de modo que tomei um drinque. E o drinque tomou o homem.
Por assim dizer. Entrei em blackout. Conforme resultou, só me restava mais um blackout.
"No dia seguinte, chegaram os talões de cheques de minha Companhia Arvin. Preenchi um deles a máquina e fui ver meu amigo, o "co-sacador". Houve outro daqueles aborrecidos interrogatórios, mas desta vez, mantive a calma. Eu queria aquela assinatura. Conseguia-a, finalmente. Fui a um estabelecimento que fornecia material impresso e providenciei para que me fizessem papel de correspondência com o timbre da Companhia Arvin, comigo esperando. Carimbei um endereço de retorno em um envelope comercial, datilografei o endereço de Reg (o açúcar de confeiteiro já fora removido de minha máquina de escrever, porém as teclas ainda tinham uma tendência a colar-se umas nas outras) e acrescentei uma breve nota pessoal, dizendo que nenhum cheque a um escritor já me dera mais prazer pessoal... e estava sendo sincero. Isso ainda é verdade. Passou-se quase uma hora, antes que eu me decidisse a pô-lo no correio — simplesmente, não conseguia saber até que ponto ele parecia oficial. Era muito difícil, para um fedorento bêbado, que em cerca de dez dias não trocara a roupa de baixo, chegar a essa vital conclusão.
O editor fez uma pausa, esmagou o cigarro no cinzeiro e olhou para seu relógio. Então, curiosamente, como o chefe do trem anunciando que a composição chegou a alguma cidade importante, falou:
— Chegamos ao inexplicável.
"Este é o ponto de minha história que mais tem interessado aos dois psiquiatras e vários analisadores mentais com quem estive associado nos meus trinta meses de vida seguintes. Foi a única parte que me forçavam a desdizer, como sinal de que eu estava ficando bem. Segundo um deles declarou, "Esta é a única parte de sua história que não pode ser explicada como indução censurável... uma vez, isto é, seu sentido de lógica tenha sido recuperado". Finalmente, eu a desmenti, porque tinha certeza — mesmo eles não tendo — de que estava ficando bem e sentia uma maldita vontade de sair do sanatório.
Pensei que se não desse o fora de lá em pouco tempo, acabaria maluco novamente.
Assim, voltei atrás — Galileu também fez isso, quando mantiveram seus pés no fogo — mas nunca desmenti nada para mim mesmo. Não afirmo que tenha realmente acontecido o que vou dizer; apenas digo ser a minha crença de que aconteceu. Trata-se de uma pequena qualificação, mas crucial para mim.
"Portanto, meus amigos, vamos ao inexplicável:
"Levei os dois dias seguintes preparando-me para uma mudança da cidade. Por falar nisso, a idéia de dirigir o carro não me perturbava em absoluto. Quando eu era criança, havia lido que o interior de um carro é um dos lugares mais seguros para ficar-se durante uma tempestade elétrica, já que os pneus de borracha funcionam como isoladores quase perfeitos. Realmente, eu ansiava por entrar em meu velho Chevrolet, levantar os vidros de todas as janelas e rodar para fora daquela cidade, que já começara a considerar um poço de raios. Não obstante, em meus preparativos incluía-se a remoção da lâmpada do teto, cuja tomada seria vedada com plástico de embalagem, além de girar o botão da luz inteiramente para a esquerda, a fim de eliminar a iluminação do painel.
"Quando entrei em meu apartamento, pretendendo passar nele a última noite, o lugar estava vazio, exceto pela mesa da cozinha, a cama e minha máquina de escrever no estúdio. Aliás, a máquina estava no chão. Não era minha intenção levá-la comigo — havia demasiadas más associações ligadas a ela e, por outro lado, as teclas iam ficar grudadas para sempre. Que o próximo inquilino fique com ela, pensei — ele e também Bellis.
"Era apenas o pôr-do-sol e o lugar tinha uma coloração esquisita. Eu estava totalmente bêbado e tinha outra garrafa no bolso do sobretudo, contra as vigílias noturnas. Passei pelo estúdio, acho que querendo ir até o quarto. Lá eu me sentaria na cama, pensaria sobre fios, eletricidade, radiação livre e beberia, até ficar embriagado o suficiente para dormir.
"O que eu chamava de estúdio era, em realidade, a sala de estar. Eu a tornara meu local de trabalho, porque tinha a melhor iluminação de todo o apartamento uma grande janela dando para oeste, parecendo chegar até o horizonte. Era algo próximo do Milagre dos Pães e dos Peixes, em um apartamento de quinto andar em Manhattan, mas a linha de visão lá estava. Eu não a questionava, apreciava-a, apenas. Aquele aposento era cheio de uma límpida, adorável claridade, mesmo nos dias chuvosos.
"A qualidade da luz noturna, contudo, era espectral. O sol poente inundara a sala com um clarão avermelhado. Claridade de fornalha. Vazio, o aposento parecia grande demais. Meus calcanhares faziam ecos uniformes, no assoalho de madeira.
"A máquina de escrever estava no meio do piso e eu ia apenas passar por ela, quando vi que havia um pedaço rasgado de papel, enfiado debaixo do rolo — o que me sobressaltou, pois sabia que não havia papel algum na máquina, quando saíra da última vez para comprar uma nova garrafa.
"Olhei em torno, procurando se havia alguém — algum intruso — ali dentro comigo.
Contudo, não era bem em intrusos, assaltantes ou pivetes que eu pensava, mas em... fantasmas.
"Notei um espaço rasgado no papel da parede, à esquerda da porta do quarto.
Compreendi, então, de onde proviera o papel na máquina de escrever. Alguém havia, simplesmente, arrancado um pedaço do papel de parede.
"Eu ainda olhava para aquilo, quando ouvi um único, mas distinto ruído claque! — embora quase imperceptível, atrás de mim. Dei um salto e girei, com o coração em disparada na garganta. Estava aterrorizado, mas sabia perfeitamente que som era aquele — quanto a isso, não havia dúvida nenhuma. A gente trabalha com palavras a vida inteira e conhece bem o som de uma tecla da máquina de escrever batendo contra o papel, mesmo em um quarto vazio ao crepúsculo, onde não há ninguém batendo a tecla.
Todos olharam para ele no escuro, as faces como borrados círculos brancos. Ninguém disse nada, mas uns se aproximaram mais dos outros. A esposa do escritor segurava firmemente uma das mãos do marido.
— Eu me senti... fora de mim. Irreal. Talvez seja sempre assim que nos sentimos, ao atingirmos o ponto do inexplicável. Caminhei lentamente até a máquina de escrever.
Meu coração batia como louco em minha garganta, mas mentalmente eu estava calmo... inclusive, gelado.
"Claque! Outra tecla saltou. Desta vez, eu a vi — a tecla ficava na terceira fileira, a partir do topo, do lado esquerdo.
"Agachei-me lentamente sobre os joelhos. Então, todos os músculos em minhas pernas ficaram bambos de repente e quase encolhi pelo resto do movimento, até cair sentado diante da máquina de escrever, com meu sujo sobretudo London Fog espalhado à minha volta, como a saia de uma jovem, ao fazer sua mais reverente e profunda mesura. A máquina de escrever emitiu aquele ruído mais duas vezes, rapidamente, pausou, tornou a emiti-lo. Cada claque produzia a mesma espécie de eco surdo que meus pés haviam feito no assoalho.
"O papel de parede havia sido colocado no rolo da máquina, de maneira a que a parte com a cola seca ficasse para fora. As letras estavam onduladas e empastadas, mas pude lê-las: rackn, diziam. Depois, houve mais um claque! e a palavra era rackne.
"Então... — ele pigarreou e sorriu de leve. — Mesmo após tantos anos, é difícil dizer isto... apenas falar o que houve. Tudo bem. O simples fato, sem qualquer enfeite, é o seguinte: eu vi uma mão saindo da máquina de escrever. Uma mão incrivelmente pequenina. Saiu de entre as teclas B e N, na última fileira, enrolada em si como um punho, para movimentar a barra do espaçamento. A máquina saltou um espaço — muito depressa, como um soluço — e a mão recuou para onde viera.
A esposa do agente riu com estridência.
— Ria com vontade, Marsha — disse suavemente o agente, e ela riu.
As batidas de teclas começaram a soar um pouco mais rápido — prosseguiu o editor — e, após algum tempo, pude ouvir ofegar a criatura que movia as teclas, da maneira como alguém ofega, ao trabalhar duro, chegando mais e mais perto de seu limite físico. Após algum tempo, a máquina mal imprimia alguma coisa. A maioria das teclas se enchera com aquela velha matéria gomosa, mas eu podia ler as letras. Estava escrito Rackne está morr, e então a tecla do e ficou presa à cola. Olhei para aquilo por um momento e então, estirando um dedo, libertei-a. Não sei se a criatura — Bellis — conseguiria libertá-la sozinha. Acho que não. Contudo, eu não queria ver... vê-la... tentar. Apenas a visão daquele pulso já era suficiente para deixar-me à beira do desequilíbrio. Se visse o elfo inteiro, por assim dizer, creio que ficaria realmente louco. E não havia a questão de fugir dali, porque toda a força das pernas me abandonara.
"Claque-claque-claque, aqueles diminutos grunhidos e soluços de esforço e, após cada palavra, aquele punho pálido, sujo e oleoso de graxa, saindo entre o B e o N para martelar a barra do espaço. Não sei ao certo quanto isso durou. Sete minutos, talvez.
Talvez dez. Ou talvez para sempre.
"Por fim, os claques pararam e percebi que não o ouvia mais respirar. Talvez o entezinho houvesse perdido os sentidos... talvez apenas tivesse desistido e ido embora... ou talvez houvesse morrido. Podia ter tido um ataque de coração ou coisa assim. Minha única certeza é de que a mensagem não havia sido completada. Ao todo, ela dizia, em caixa baixa: rackne está morrendo é o garotinho jimmy thorpe que não sabe diga a thorpe que rackne está morrendo garotinho jimmy está matando rackne e... isso era tudo.
"Encontrei forças para me firmar nos pés e então saí dali. Caminhei em largas passadas na ponta dos pés, como se a criatura tivesse ido dormir e, se eu tornasse a produzir aqueles ecos surdos no assoalho, ela talvez acordasse, para começar novamente a datilografar... Acho que se isso acontecesse, o primeiro claque me poria gritando. E continuaria gritando, até que meu coração ou a cabeça explodissem.
"Meu Chevrolet estava no pátio do estacionamento, no fim da rua, cheio de gasolina, já carregado e pronto para a partida. Coloquei-me atrás do volante, e então recordei a garrafa no bolso do sobretudo. Minhas mãos tremiam tanto, que eu a deixei cair, mas ela aterrou em cima do banco e não se quebrou.
"Lembrei-me dos blackouts e, meus amigos, naquele momento exato um blackout era exatamente do que eu precisava — e foi exatamente o que aconteceu. Recordo haver tomado o primeiro e segundo goles do gargalo da garrafa. Recordo ter ligado a chave do carro e depois de ouvir Sinatra no rádio, cantando "That Old Black Magic", o que parecia bem ajustado à situação. Em vista das circunstâncias. Por assim dizer. Lembro-me de ter acompanhado a canção e de beber mais alguns goles. Eu estava na última fila do estacionamento e podia ver a luz do tráfego na esquina, mudando segundo a passagem do tempo. Fiquei pensando naqueles estalidos de teclas na sala vazia e no clarão avermelhado que ia fanando em meu estúdio. Pensei naqueles sons arquejantes, como se algum elfo ginasta houvesse pendurado pesos de linha de pesca nas extremidades da tecla O e fizesse exercícios de levantamento, dentro da minha velha máquina de escrever. Pensei também na superfície áspera do avesso daquele retalho de papel de parede. Minha mente insistiu em querer examinar o que poderia ter acontecido, antes que eu chegasse ao apartamento... insistia em ver a coisa — ele — Bellis — saltando, agarrando o pedaço frouxo do papel de parede junto à porta do quarto, por ser o único ainda existente no local com qualquer semelhança de papel — pendurando-se nele — e finalmente o rasgando, carregando-o em sua cabeça para a máquina de escrever, como a uma folha de palmeira nipa. Fiquei procurando imaginar como é que ele — a criatura — conseguira colocar o pedaço de papel em torno do rolo da máquina. Como nada disso tinha aparência de blackout, então fiquei bebendo. Frank Sinatra parou de cantar, houve uma publicidade para o Crazy Eddie's e depois Sarah Vaughan passou a cantar "I'm Gonna Sit Right Down and Write Myself a Letter" (Vou-me sentar bem aqui e escrever uma carta para mim mesmo) e isso era algo mais que podia relacionar à situação. Afinal, eu havia escrito para mim recentemente ou, pelo menos, pensava que tinha escrito, até essa noite, quando acontecia algo, dando-me motivo para considerar minha postura naquela questão, por assim dizer. Cantei juntamente com a boa e velha Sarah Soul, e foi quando devo ter adquirido velocidade de escape pois, em meio ao segundo estribilho, sem a menor pausa em absoluto, eu estava botando as tripas para fora, enquanto alguém primeiro me dava tapas nas costas, em seguida erguia-me os cotovelos, atrás de mim, depois os baixando e tornando a dar-me palmadas. Era o motorista de caminhão. A cada palmada sua, eu sentia um enorme jato de líquido subir em minha garganta e quase voltar novamente para dentro do corpo, exceto que o homem me erguia os cotovelos e, quando fazia isso, eu tornava a vomitar. A maioria de meu vômito não se compunha de Black Velvet, mas de água do rio. Quando finalmente tive forças para erguer a cabeça o suficiente e espiar em torno, eram seis horas da tarde e três dias depois; eu jazia na rampa do Rio Jackson, na Pensilvânia oeste, cerca de cento e cinqüenta quilômetros ao norte de Pittsburgh. Meu Chevrolet caíra no rio e sua traseira era visível, apontando para o alto. Eu ainda conseguia ler o adesivo de McCarthy, colado no pára-choque.
"Arranja-me outra Fresca, meu bem? Tenho a garganta seca como o inferno.
A esposa do escritor foi buscar-lhe a soda, silenciosamente. Quando a entregou a ele, abaixou-se impulsivamente e beijou sua face enrugada, como couro de crocodilo. Ele sorriu, e seus olhos cintilaram à claridade mortiça. Uma bondosa e delicada mulher, não obstante, ela não se deixou enganar, em absoluto, por aquele cintilar. Jamais era a alegria que punha olhos brilhantes daquela maneira.
— Obrigado. Meg.
Ele bebeu profundamente, tossiu, rejeitou com um aceno a oferta de um cigarro.
— Já fumei os suficientes por hoje. Vou parar de fumar inteiramente. Em minha próxima encarnação. Por assim dizer.
"Nem preciso contar o resto de minha história. Ela teria contra si o único pecado de que qualquer história pode ser realmente culpada — é previsível. Eles pescaram cerca de quarenta garrafas de Black Velvet de meu carro, muitas delas vazias. Eu balbuciava sobre elfos e eletricidade, sobre Fornit, mineradores de plutônio e fornus. Decidiram que eu estava totalmente louco e, claro, era exatamente o que acontecia comigo.
"Agora, temos aqui o que aconteceu em Omaha, enquanto eu dirigia por lá segundo os talões de crédito para gasolina, encontrados no porta-luvas do Chevrolet. Enquanto eu dirigia por cinco estados do norte. Tudo isto, compreendam, foi informação que obtive de Jane Thorpe, durante um longo e penoso período de correspondência, que culminou com um encontro a dois em New Haven, onde ela hoje reside, pouco depois que recebi alta do sanatório — uma recompensa por, finalmente, voltar atrás em minha história.
Findo aquele encontro, choramos nos braços um do outro, e foi quando acreditei ser possível haver ainda uma vida real para mim, talvez mesmo a felicidade.
"Naquele dia, por volta de três da tarde, bateram à porta da residência dos Thorpe. Era um garoto mensageiro do telégrafo. O telegrama tinha sido enviado por mim, última peça de nossa infortunada correspondência. Dizia o seguinte:
REG TENHO INFORMAÇÃO CONFIANÇA DE QUE RACKNE ESTÁ MORRENDO É O GAROTINHO SEGUNDO BELLIS BELLIS DIZ NOME DELE É JIMMY FORNIT SOME FORNUS HENRY.
"Caso tenha passado por suas mentes aquela maravilhosa pergunta de Howard Baker O que ele sabia e quando ele soube? direi isto: eu sabia que Jane contratara uma faxineira; e não sabia — exceto através de Bellis — que essa faxineira tinha por filho um garotinho endiabrado chamado Jimmy. Terão de aceitar minha palavra por isso, embora eu deva acrescentar, com toda sinceridade, que os psiquiatras ocupados com meu caso nos dois anos e meio seguintes não me deram o menor crédito.
"Jane estava na mercearia, quando o telegrama chegou. Ela o encontrou, após a morte de Reg, em um de seus bolsos traseiros da calça. A hora da transmissão e da entrega estava anotada nele, juntamente com a linha informando Sem telefone. Entrega pessoal.
Jane disse que, embora o telegrama tivesse apenas um dia, havia sido tão manuseado que dava a impressão de haver sido recebido um mês antes.
"De certa maneira, esse telegrama, aquelas vinte e quatro palavras foram o verdadeiro projétil flexível, e eu o disparei bem no cérebro de Reg Thorpe, por toda a distância a partir de Paterson, Nova Jersey. Eu estava tão infernalmente bêbado, que nem mesmo me lembrava de tê-lo feito.
"Durante suas duas últimas semanas de vida, Reg se ajustara a um padrão que parecia a própria normalidade. Levantava-se às seis, preparava o desjejum para si mesmo e a esposa, depois escrevia por uma hora. Por volta das oito, trancava seu estúdio e levava o cão para um longo e despreocupado passeio na vizinhança. Mostrava-se sempre acessível em tais passeios, parando para conversar com quem quisesse palestrar com ele, amarrando o cachorro fora de um café próximo e tomando uma xícara de café pelo meio da manhã. Depois, recomeçava a caminhada. Raramente voltava para casa antes do meio-dia. Em muitos dias, chegava ao meio-dia e meia ou uma da tarde. Parte disto era um esforço para escapar à gárrula Gertrude Rulin, segundo acreditava Jane, porque o padrão de seu marido só começara a solidificar-se, uns dois dias depois da faxineira começar a trabalhar para eles.
"Reg fazia um almoço leve, deitava-se por cerca de uma hora, depois se levantava e escrevia por duas ou três horas. Ao anoitecer, às vezes visitava os rapazes vizinhos, com Jane ou sozinho; em outras ocasiões; ele e Jane iam ao cinema ou apenas ficavam lendo na sala de estar. Deitavam-se cedo, Reg geralmente um pouco antes de Jane. Ela escreveu que havia muito pouco sexo entre eles e que, quando havia, era sem êxito para ambos. "Contudo, o sexo não é importante para a maioria das mulheres", disse ela, "e Reg vinha trabalhando bem novamente, o que constituía um substituto razoável para ele. Eu diria que, naquelas circunstâncias, essas duas últimas semanas foram as mais felizes nos últimos cinco anos. "Eu quase chorei ao ler isto.
"Eu ignorava tudo sobre Jimmy, mas não era esse o caso de Reg. Ele estava a par de tudo, exceto do fato mais importante — que Jimmy passara a ir com sua mãe para o trabalho.
"Como deve ter ficado furioso ao receber meu telegrama e perceber o que sucedia! Ali estavam eles, afinal. E, aparentemente, sua própria esposa era um deles, porque ela estava na casa, quando Gertrude e Jimmy lá se encontravam. E ela nunca lhe dissera uma só palavra sobre Jimmy. O que me tinha ele escrito, em uma carta anterior? Às vezes, desconfio de minha esposa."
"Quando ela voltou para casa, no dia em que o telegrama chegou, descobriu que Reg se ausentara. Havia uma nota, em cima da mesa da cozinha, dizendo, "Meu bem — fui à livraria. Volto à hora do jantar". A nota pareceu a Jane perfeitamente normal... mas se ela soubesse de meu telegrama, a própria normalidade daquelas palavras a teria deixado terrivelmente amedrontada, creio eu. Jane compreenderia que Reg a imaginava como tendo mudado de lado.
"Reg nem chegou perto de uma livraria. Foi ao Empório de Armas Little John's, no centro da cidade. Comprou uma automática 45 e dois mil cartuchos de munição. Teria comprado uma AK-70, se Little John's possuísse permissão para vendê-las. Reg queria proteger seu Fornit, compreendam. De Jimmy, de Gertrude, de Jane. Deles.
"Na manhã seguinte, tudo transcorreu dentro da rotina estabelecida. Jane recorda ter pensado que seu marido usava uma suéter muito grossa para um dia de outono tão quente, mas isso foi tudo. A suéter, naturalmente, era por causa da arma. Ele saiu para passear com o cão, levando a 45 enfiada no cinto.
"Reg seguiu diretamente para o restaurante onde costumava tomar seu café matinal, sem paradas ou conversas durante o trajeto. Levou o cãozinho até a área de descarga de mercadorias, amarrou sua correia a um trilho e voltou para casa, por ruas traseiras.
"Estava a par da programação dos rapazes vizinhos, sabia que eles não se encontrariam em casa. Sabia também onde eles guardavam uma duplicata da chave. Entrou na casa, foi para o andar de cima e ficou vigiando sua própria residência.
"Às oito e quarenta, viu Gertrude Rulin chegar. Ela não estava sozinha. Em sua companhia, havia realmente um menino pequeno. O comportamento turbulento de Jimmy Rulin, na classe do primeiro grau, convenceu a professora e o conselheiro-chefe, quase imediatamente, de que todos (exceto talvez a mãe de Jimmy, que descansaria com a ausência do filho) passariam melhor, caso o menino esperasse mais um ano, antes de freqüentar a escola. Jimmy estava farto de repetir o jardim-da-infância e, durante a primeira metade do ano, ia para a escola no período da tarde. As duas creches existentes na zona de Gertrude encontravam-se lotadas, e ela não podia trabalhar à tarde para os Thorpe, porque já tinha outro compromisso como faxineira, de quatorze às dezesseis horas, no lado oposto da cidade.
"O desfecho de tudo, foi o consentimento relutante de Jane, quanto a Gertrude poder levar Jimmy consigo, até que conseguisse providenciar um outro arranjo. Ou até Reg descobrir, como estava prestes a ocorrer.
"Jane achava que talvez o marido não se incomodasse, já que, ultimamente, vinha sendo muito cordato sobre tudo. Por outro lado, ele poderia ter um ataque de nervos. Se tal acontecesse, teriam que ser feitos outros arranjos. Gertrude disse que compreendia. E, acima de tudo, estipulou Jane, o garoto não devia tocar em qualquer coisa pertencente a Reg. Gertrude garantiu que assim seria; a porta do dono da casa estava trancada, e trancada ficaria.
"Thorpe deve ter cruzado os dois pátios como um atirador de tocaia, cruzando a terra-de-ninguém. Ainda não vira o menino. Moveu-se ao longo da lateral da casa. Ninguém na sala de refeições. Ninguém no quarto. E então, no estúdio — onde Reg morbidamente esperara vê-lo — lá se encontrava ele. O rosto do garoto parecia afogueado de excitamento e, sem dúvida. Reg deve ter acreditado que, finalmente, ali estava um legítimo agente deles.
"O garoto empunhava uma espécie de máquina do raio-da-morte e a apontava para a mesa de trabalho... enquanto Reg podia ouvir Rackne gritando, do interior de sua máquina de escrever.
"Talvez julguem que eu esteja atribuindo dados subjetivos a um homem que agora se encontra morto. Ou, em palavras mais rudes, inventando coisas. Pois não estou. Na cozinha, tanto Jane como Gertrude ouviam o nítido som trinado da pistola espacial de plástico que Jimmy empunhava. Ele a estivera usando pela casa inteira, desde que começara a vir com a mãe e, a cada dia, Jane tinha esperanças de que as pilhas do brinquedo se extinguissem. Não havia engano quanto ao som. Tampouco havia engano sobre o lugar de onde ele vinha — o estúdio de Reg.
"Compreendam, o garoto era realmente do material de Dennis o Terrível, se havia um lugar na casa onde ele não deveria ir, era justamente esse o lugar onde tinha de ir, para não morrer de curiosidade. Ele não demorou muito a descobrir que Jane tinha uma chave do estúdio de Reg sobre a platibanda da lareira na sala de refeições. Jimmy já teria entrado antes no estúdio? Creio que sim. Jane disse recordar haver dado uma laranja a ele, três ou quatro dias antes; mais tarde, quando limpava a casa, encontrou cascas da laranja debaixo do pequeno sofá do estúdio. Reg não gostava de laranjas — dizia-se alérgico a elas.
"Jane deixou cair na pia o lençol que lavava e correu para o quarto de dormir. Ouvia o ruidoso ríá-icá-iiá da pistola espacial e também ouvia Jimmy gritando: "Eu vou te pegar! Você não pode fugir! Posso ver você pelo VIDRO!" E... ela disse... disse ter ouvido algo gritando. Um som agudo e desesperado, segundo afirmou, tão cheio de dor, que era quase insuportável.
"Quando ouvi aquilo", disse ela, "compreendi que teria de abandonar Reg, pouco importando o que acontecesse, porque os contos da carochinha eram verdadeiros... a loucura era contagiosa. Sim, pois quem eu ouvia era Rackne; de algum modo, aquele garotinho levado estava matando Rackne, matando-o com os disparos de uma arma espacial, comprada por dois dólares na casa Kresge's.
"A porta do estúdio estava escancarada, com a chave na fechadura. Mais tarde, nesse mesmo dia, vi uma das cadeiras da sala de refeições encostada junto à lareira, com o assento todo marcado pelos tênis de Jimmy. O menino estava inclinado para a mesa da máquina de escrever de Reg. Ele — Reg — possuía um antigo modelo de máquina de escrever, do tipo para escritório, com partes de vidro nas laterais. Jimmy tinha o cano de sua pistola espacial encostado a uma daquelas partes de vidro e disparava para o interior da máquina de escrever. Uá-uá-uá, e impulsos púrpuras de luz eram disparados contra a máquina de escrever. De repente, pude compreender tudo quanto Reg já dissera sobre eletricidade, porque embora aquele brinquedo fosse apenas movido por pilhas elétricas inofensivas, realmente dava a impressão de expelir ondas venenosas, que me varavam a cabeça e carbonizavam meu cérebro.
"Eu vi você aí!" gritava Jimmy, e seu rosto estava tomado pela alegria infantil — era algo belo e terrível ao mesmo tempo. "Você não vai poder fugir, Capitão Futuro! Você está morto, alienígena!" E aqueles gritos... ficando mais fracos... menos intensos...
"Pare com isso, Jimmy!" gritei.
"Ele saltou. Eu o assustara. Virou-se... olhou para mim... estirou-me a língua... e tornou a encostar o cano da pistola no painel de vidro, recomeçando a atirar — uã-uã-uã — e expelindo aquela nojenta luz purpúrea.
"Gertrude vinha chegando pelo corredor, gritava que ele parasse, que saísse dali, que ia levar a maior surra de sua vida... quando então a porta da frente escancarou-se com ímpeto e Reg surgiu no corredor, berrando. Bastou-me um olhar para ele e compreendi que estava insano. A arma encontrava-se em sua mão.
"Não mate o meu filhinho!" gritou Gertrude quando o viu, avançando para contê-lo.
Reg simplesmente a empurrou para um lado.
"Jimmy nem parecia perceber o que acontecia — apenas continuou disparando sua pistola espacial para dentro da máquina de escrever. Eu podia ver aquela luz purpúrea pulsando na escuridão entre as teclas, uma luz semelhante à produzida por aqueles arcos elétricos, a mesma sobre a qual dizem que não podemos olhar sem óculos protetores especiais, porque ela poderia cozinhar as retinas, cegando-nos.
"Reg entrou, roçou violentamente em mim, derrubando-me.
"RACKNE!" gritou ele. "VOCÊ ESTÁ MATANDO RACKNE!"
"E, mesmo enquanto Reg cruzava o estúdio às carreiras, aparentemente pretendendo matar aquela criança", disse-me Jane, "tive tempo de pensar nas muitas vezes em que Jimmy estivera ali, disparando sua arma contra a máquina de escrever, enquanto eu e sua mãe estávamos no andar de cima, trocando a roupa de cama, ou no pátio dos fundos, pendurando a roupa lavada, sem ouvirmos o uá-uáuá... sem ouvirmos aquela coisa... o Fornit... lá dentro, gritando.
"Jimmy não parou, nem mesmo quando Reg irrompeu no estúdio — apenas ficou disparando contra a máquina de escrever, como se soubesse que aquela era sua última chance. Desde então, tenho-me perguntado se Reg não estaria certo também sobre eles.
Talvez eles apenas flutuem por aí, de vez em quando penetrando na cabeça de uma pessoa, como alguém mergulhando em uma piscina. Em seguida, eles fazem esse alguém executar o trabalho sujo, insistindo em serem atendidos. Depois, o sujeito em que eles estiveram, pergunta, "Como? Eu? Fiz o quê?"
"Um segundo antes de Reg chegar lá, o grito no interior da máquina de escrever tornou-se um breve guincho esganiçado — e vi sangue espalhar-se por todo o interior daquela placa de vidro, como se o que quer que existisse lá, finalmente acabasse de explodir, como dizem que um animal vivo explodirá, se colocado em um forno de microondas. Sei que isto pode parecer loucura, mas eu vi aquele sangue — ele bateu no vidro em um jato, antes de começar a escorrer.
"Peguei ele! exclamou Jimmy, altamente satisfeito. "Peguei..."
"Então, Reg o jogou através do estúdio, em toda a distância. Jimmy se chocou contra a parede. A pistola foi arrancada de sua mão, bateu no chão e se quebrou. Nada mais era além de plástico e pilhas Eveready, naturalmente.
"Reg espiou dentro da máquina de escrever e deu um grito. Não foi um grito de dor ou de fúria, embora nele houvesse fúria — era, principalmente, um grito de pesar. Virou-se então para o menino. Jimmy tinha escorregado para o chão e o que quer que houvesse sido — se é que fora algo mais do que apenas um garotinho travesso — agora era apenas uma criança aterrorizada de seis anos. Reg apontou a arma para ele e isso é tudo de que me lembro.
O editor terminou sua soda e colocou a lata a um lado, cuidadosamente.
— Gertrude e Jimmy Rulin recordam o suficiente para preencher a lacuna — disse ele. — Jane gritou, "Reg, NÃO!— Quando Reg se virou para fitá-la, ela conseguiu levantar-se e atracou-se com o marido. Ele a baleou, estilhaçando-lhe o cotovelo esquerdo, mas Jane não o soltou. Enquanto continuava atracada a ele, Gertrude chamou o filho e Jimmy correu para ela.
"Reg empurrou Jane e tornou a baleá-la. Agora, a bala passou raspando pelo lado esquerdo de seu crânio. Menos de meio centímetro para a direita, e o projétil a teria matado. Há pouca dúvida quanto a isso e nenhuma quanto à certeza de que Reg mataria Jimmy Rulin e talvez também sua mãe, se não fosse a intervenção de Jane Thorpe.
"Ele baleou o garoto — quando Jimmy correu para os braços da mãe, logo depois da porta do estúdio. A bala penetrou na nádega esquerda do garoto, em um trajeto para baixo.
Saiu pela parte superior da coxa esquerda, sem ofender o osso, passando através da pele de Gertrude Rulin. Houve muito sangue, porém nenhum dano importante a qualquer dos dois.
"Gertrude bateu a porta do estúdio e carregou seu filho que chorava e sangrava, corredor abaixo, até deixar a casa pela porta da frente.
O editor tornou a fazer uma pausa, pensativo.
— Jane estaria sem sentidos, na ocasião, ou deliberadamente preferiu esquecer o que aconteceu em seguida. Reg sentou-se em sua poltrona de escritório e encostou o cano da 45 contra o meio da testa. Apertou o gatilho. O projétil não lhe varou o cérebro e o transformou em um vegetal vivo, nem viajou em semicírculo pelo crânio, saindo inofensivamente no ponto mais distante. A fantasia era flexível, mas o projétil final foi o mais rijo possível. Reg caiu para diante, em cima da máquina de escrever, morto.
"Quando a polícia irrompeu, encontraram-no desse jeito. Jane estava sentada em um canto afastado, semi-inconsciente.
"A máquina de escrever estava coberta de sangue e, presumivelmente, também cheia dele; ferimentos na cabeça são muito, muitíssimo hemorrágicos.
"Todo o sangue era Tipo O.
"O tipo do sangue de Reg Thorpe.
"E esta, senhoras e senhores, é a minha história. Não, posso dizer mais nada.
De fato, a voz do editor se fora reduzindo, até não passar de um fosco sussurro.
Não houve a costumeira tagarelice pós-reunião, nem mesmo a desajeitadamente brilhante conversa que as pessoas às vezes usam para cobrir a indiscreção momentânea em algum coquetel ou, pelo menos, para disfarçar o fato de que a situação, em algum ponto, ficou muito mais séria do que em geral acontece, quando por ocasião de um jantar.
Não obstante, quando o escritor viu o editor encaminhar-se para seu carro, foi incapaz de conter uma pergunta final.
— A história — disse ele. — O que aconteceu à história?
— Está se referindo à...
— À "Balada do Projétil Flexível", exatamente. À história de Reg Thorpe, que provocou tudo isso. Aquele foi o real projétil flexível — para você, se não para ele. Que diabo aconteceu a uma história que era tão infernalmente espetacular?
O editor abriu a porta de seu carro; era um pequeno Chevette azul, tendo no para-choque traseiro um adesivo que dizia AMIGOS NÃO DEIXAM QUE AMIGOS DIRIJAM EMBRIAGADOS.
— Bem, ela jamais foi publicada. Se Reg possuía uma cópia a carbono, deve tê-la destruído após estar de posse do meu recibo e aceitação da história — considerando-se seus sentimentos paranóicos sobre eles, o que seria bem condizente com a situação.
"Eu tinha comigo seu original mais três fotocópias, quando mergulhei no Rio Jackson.
Os quatro estavam em uma pasta de papelão. Se houvesse colocado essa pasta no porta mala, hoje ainda teria a história, uma vez que a traseira de meu carro não chegou a mergulhar — e, mesmo que mergulhasse, as laudas se teriam secado. Contudo, eu a queria perto de mim, de modo que coloquei a pasta no banco dianteiro, ao lado do motorista. As janelas estavam arriadas, quando bati na água. As laudas... presumo que apenas tenham sido levadas boiando pela correnteza, chegando até o mar. Antes quero acreditar nisso, do que em irem apodrecendo com o resto do lixo no fundo daquele rio, inclusive comidas pelos peixes locais ou algo ainda menos agradável esteticamente.
Acreditar que foram levadas para o mar é mais romântico e ligeiramente mais improvável, porém quando se trata daquilo em que prefiro crer, acho que ainda posso ser flexível.
"Por assim dizer.
O editor entrou em seu pequeno carro e afastou-se. O escritor ficou parado, espiando até as luzes traseiras piscarem e desaparecerem. Então se virou. Meg estava ali, parada à cabeceira da alameda, no escuro, sorrindo um pouco incertamente para ele. Tinha os braços apertadamente cruzados sobre o busto, embora a noite fosse cálida.
— Somos os últimos dois — disse ela. — Quer entrar?
— Naturalmente.
A meio caminho, na alameda, ela parou e perguntou:
— Não há Fornits em sua máquina de escrever, há, Paul?
E o escritor que, por vezes — com freqüência — perguntava-se de onde, exatamente, vinham as palavras, respondeu, em tom corajoso:
— É claro que não. Em absoluto! Os dois entraram em casa, de braços dados, e fecharam a porta contra a noite.
A BALSA
São uns sessenta e cinco quilômetros, da Universidade Horlicks, em Pittsburgh, até o Lago Cascade, e embora em outubro escureça cedo nessa parte do mundo, e apesar deles só partirem às seis horas, ainda havia uma ligeira claridade no céu quando chegaram lá. Tinham ido no Camaro de Deke. Deke não perdia tempo, se estava sóbrio.
Após duas cervejas, fazia o Camaro caminhar e falar.
Ele mal havia parado o carro junto à cerca de estacas, entre o pátio de estacionamento e a praia, quando saltou para o chão e tirou a camisa. Seus olhos esquadrinhavam a água, à procura da balsa. Randy saiu do banco ao lado do motorista, algo relutante. A idéia tinha sido sua, claro, porém nunca esperara que Deke a levasse a sério. As garotas se remexiam no banco traseiro, preparando-se para descer.
Os olhos de Deke perscrutaram as águas incessantemente, de um lado para outro (olhos de atirador de tocaia, pensou Randy, desconfortavelmente), e então se fixaram em um ponto.
— Está lá! — gritou, dando um tapa no capô do Camaro. — Bem como você disse, Randy! Que barato! O último a chegar é um ovo podre!
— Deke... — começou Randy.
Recolocava os óculos no nariz, mas isso foi tudo com que preocupar-se, porque Deke já pulava a cerca e descia correndo para a praia, sem se virar para trás, sem olhar para Randy, para Rachel ou LaVerne, concentrado apenas na balsa, ancorada no lago, a uns cinqüenta metros da margem.
Randy se virou, como se desculpando com as garotas por envolvê-las naquilo, mas elas olhavam para Deke — que Rachel olhasse para ele, tudo bem, porque era a namorada de Deke, mas LaVerne também o olhava, de modo que Randy sentiu uma quente e momentânea fagulha de ciúme, que o obrigou a movimentar-se. Despojou-se de sua camisa de malha para atletismo, deixou-a cair ao lado da de Deke e saltou a cerca.
— Randy! — chamou LaVerne.
Ele apenas estirou o braço naquele cinzento ar de crepúsculo de outubro, em um gesto de "vamos", odiando-se um pouco por agir assim — ela agora estava insegura, talvez pronta para desistir. A idéia de uma sessão de natação em outubro, no lago deserto, não havia sido apenas parte de uma bem iluminada reunião para conversa fiada no apartamento que ele e Deke não partilhavam mais. Randy gostava dela, porém Deke era mais forte. E uma ova, se LaVerne não estava caída por Deke, uma droga, aquilo ser irritante.
Deke abriu o cinto do jeans, ainda correndo, deixando as calças descerem pelas coxas esguias. Conseguiu livrar-se delas no trajeto, sem parar para isso, uma façanha que Randy não conseguiria imitar em mil anos. Deke continuou correndo, agora apenas de sunga, os músculos das costas e nádegas funcionando harmoniosamente.
Randy ficou mais do que consciente de suas canelas finas, quando arriou sua Levi's e desajeitadamente a sacudiu dos pés. Com Deke, parecia balé, com ele, era burlesco.
Deke chegou à água e deu um berro.
— Está gelada! Deus do céu!
Randy hesitou, mas apenas em pensamento, onde as coisas demoravam mais — aquela água deve estar a nove graus, dez no máximo, disse sua mente. Seu coração poderia parar. Ele cursava o pré-médico, sabia que isso era verdade... mas, no mundo físico, não vacilou, em absoluto. Saltou para a água e, por um momento, seu coração parou ou assim pareceu; a respiração congelou-se na garganta e ele precisou forçar a entrada de ar nos pulmões, enquanto sua pele submersa ficava entorpecida. Isto é loucura, pensou, e depois: Bem, a idéia foi sua, Pancho. Começou a nadar na esteira de Deke.
As duas garotas entreolharam-se por um momento. LaVerne deu de ombros e sorriu.
— Se eles podem, nós também podemos! — exclamou, tirando sua blusa Lacoste e revelando um sutiã quase transparente. — Não dizem que as mulheres têm uma camada extra de gordura?
Em seguida, ela pulava a cerca e corria para a água, desabotoando as calças de brim.
Rachel a seguiu um momento depois, mais ou menos como Randy havia seguido Deke.
As garotas tinham chegado ao apartamento pelo meio da tarde. Às terças-feiras, a aula de uma da tarde era a última que todos eles tinham. Chegara a mesada de Deke — um dos ex-alunos, maníaco por futebol (os jogadores os chamavam de "anjos") providenciava para que ele recebesse duzentos dólares mensais em dinheiro — havia uma embalagem de cerveja na geladeira e um álbum novo — Night Ranger — no surrado estéreo de Randy. Os quatro ficaram batendo papo e bebendo alegremente. Após algum tempo, a conversa girou para o final do prolongado veranico que estavam desfrutando. O rádio previa rajadas de vento para a quarta-feira. LaVerne opinou que meteorologistas prevendo rajadas geladas em outubro deviam ser liquidados a tiros, e ninguém discordou.
Segundo Rachel, os verões pareciam durar para sempre quando ela era criança, mas agora que se tornara adulta ("uma tremelicante senil de dezenove anos", brincou Deke, e ela lhe chutou o tornozelo), eles ficavam cada vez mais curtos, de ano para ano.
— Era como se eu tivesse passado a vida inteira no Lago Cascade — falou, cruzando o gasto linóleo da cozinha, até a geladeira. Vistoriou o interior, encontrou uma lata de cerveja escondida atrás de uma pilha de caixas azuis de plástico para guardar alimentos (a do meio continha um chili quase pré-histórico, agora espessamente orlado de mofo — Randy era um bom aluno e Deke um bom jogador de futebol, mas nenhum dos dois valia nada, em se tratando de serviços domésticos) e apoderou-se dela. — Ainda me lembro da primeira vez em que consegui nadar toda a distância até a balsa. Fiquei lá quase duas horas, apavorada, com medo de nadar para a margem.
Sentou-se junto a Deke, que passou um braço em torno dela. Rachel sorriu, recordando.
De repente, Randy achou-a parecida com alguém famoso ou quase famoso. Não conseguia encaixar a semelhança. Lembrar-se-ia mais tarde, em circunstâncias menos agradáveis.
— Por fim, meu irmão teve que me rebocar com uma bóia. Puxa, ele ficou louco da vida! E eu tive uma queimadura de sol, que ninguém acreditaria...
— A balsa continua lá — falou Randy, mais para dizer alguma coisa.
Percebia que LaVerne estava olhando outra vez para Deke; aliás, ultimamente ela vinha olhando bastante para ele. Agora, no entanto, era para Randy que olhava.
— Já é quase o Dia das Bruxas, Randy. A praia do Cascade esteve fechada desde o Dia do Trabalho.
— Ainda assim, provavelmente a balsa continua lá — disse Randy. — Faz umas três semanas, estivemos na outra margem do lago, em uma excursão geológica de campanha, e eu a vi. Era como... — Ele deu de ombros. — Como algo no verão, que alguém esqueceu de limpar e guardar no armário, até o ano seguinte.
Randy pensou que achariam engraçado o que dissera, mas ninguém riu — nem mesmo Deke.
— Só porque a balsa estava lá o ano passado, não significa que ainda esteja — disse LaVerne.
— Falei nisso a um cara — disse Randy, terminando sua cerveja. — Billy DeLois, lembra-se dele, Deke?
Deke assentiu.
— Jogava como segundo reserva, até machucar-se.
— Certo, acho que sim. De qualquer modo, ele era de lá e contou que os caras donos da praia só a tiravam de lá quando o lago estava quase congelado. Pura preguiça — pelo menos, foi o que ele disse. Contou que certo ano esperaram tanto, que a balsa ficou bloqueada pelo gelo.
Randy se calou, recordando a aparência da balsa, ancorada no lago — um quadrado brilhante de madeira branca, em toda aquela brilhante água azul do outono. Evocou o som das barricas sob ela — aquele som flutuante de clonk-clonk — que havia chegado até eles. Era um som suave, mas os sons viajam bem no ar imóvel em torno do lago.
Houvera esse som e o de corvos grasnando sobre os remanescentes da colheita na horta de algum fazendeiro.
— Vai nevar amanhã — disse Rachel, levantando-se, quando a mão de Deke deslizou, quase alheada, para a curvatura superior de seu busto. Foi até a janela e espiou para fora. — Que droga!
— Pois eu sugiro uma coisa — disse Randy. — Vamos até o Lago Cascade. Nadamos até a balsa, dizemos adeus ao verão e depois nadamos de volta.
Se não estivesse meio alto, jamais teria feito a sugestão e, certamente, não esperava que ninguém o levasse a sério. Deke, no entanto, exultou ao ouvi-lo.
— Boa pedida! Chocante, Pancho! Pra lá de chocante! — explodiu ele. LaVerne levantou-se subitamente, derramando sua cerveja. Contudo, ela sorriu — o sorriso que deixava Randy um pouco preocupado. — Iremos até lá!
— Você é louco, Deke — disse Rachel, também sorrindo, mas o riso era algo forçado e inquieto.
— Nada disso, nós vamos lá! — exclamou Deke.
Excitado, mas temeroso ao mesmo tempo, Randy reparou no sorriso de Deke — inquieto e um pouco louco. Já fazia três anos que eles dividiam o mesmo quarto — o Atleta e o Cérebro, Cisco e Pancho, Batman e Robin — e Randy identificava aquele sorriso. Deke não estava brincando; resolvera mesmo ir ao lago. Em sua cabeça, já estava quase lá.
Esquece isso, Cisco — comigo, não. As palavras lhe chegaram aos lábios, mas antes de pronunciá-las, LaVerne já se tinha levantado, com a mesma expressão prazeirosa e amalucada nos olhos (ou talvez fosse cerveja em excesso).
— Pois eu topo! — exclamou ela.
— Então, a caminho! — Deke olhou para Randy — O que acha, Pancho?
Randy se virou para Rachel por um momento e viu qualquer coisa de quase frenético em seu olhar — no que lhe dizia respeito, Deke e LaVerne poderiam ir para o Lago Cascade e lá ficarem transando a noite inteira; não se alegraria sabendo que os dois estariam trepando como loucos, mas tampouco se surpreenderia. Contudo, aquela expressão no olhar de Rachel, aquele ar obcecado...
— Ohhh, Ciisco! — exclamou.
— Ohhh, Pancho! — gritou Deke, delicado
Um bateu na palma do outro.
Randy estava a meio caminho para a balsa, quando avistou a mancha negra na água.
Ficava além da balsa, mais para a esquerda, na direção do meio do lago. Cinco minutos mais tarde, a claridade do entardecer não lhe teria deixado perceber se ali havia algo mais que uma sombra... se chegasse a vê-la, afinal. Mancha de óleo? pensou, ainda avançando com dificuldade na água, vagamente cônscio das garotas dando braçadas mais atrás. De qualquer modo, o que estaria fazendo uma mancha de óleo em um lago, naquele outubro deserto? Aliás, ela era estranhamente circular, pequena, não tendo mais de metro e meio de diâmetro...
— Uaaaan! — tornou a gritar Deke, e Randy olhou em sua direção. Ele subia a escada na lateral da balsa, sacudindo a água como um cão. — Como está se saindo, Pancho?
— Tudo bem! — gritou Randy, nadando com mais vigor.
Em verdade, a coisa não estava tão ruim como imaginara, pelo menos, depois de entrar na água e começar a mover-se. Seu corpo formigava de calor e agora seu motor estava em alta velocidade. Podia sentir o coração batendo com força, aquecendo-o de dentro para fora. Seus pais tinham uma casa em Cape Cod e, lá, a água era mais fria do que aquela, em meados de julho.
— Se acha que agora está ruim, Pancho, espere só até sair! — gritou Deke alegremente.
Estava dando pulos, fazendo a balsa balançar-se, enquanto friccionava o corpo. Randy esqueceu a mancha de óleo, até suas mãos tocarem a áspera madeira pintada de branco da escada virada para a praia. Então, tornou a vê-la. Estava um pouco mais perto. Uma mancha redonda e escura na água, como uma enorme verruga, subindo e descendo com as ondas mansas. Quando a vira pela primeira vez, a mancha estaria a uns quarenta metros da balsa. Agora, estava a metade dessa distância.
Como é possível? Como...
Então, saiu da água e o ar frio mordiscou-lhe a pele, mordiscou-o ainda com mais vigor do que a água, quando nela mergulhara.
— Ohhhhhh, merda! — gritou, rindo e tiritando em sua sunga.
— Pancho, tu és um moleirão! — exclamou Deke, satisfeito. Ajudou-o a subir para a balsa. — Está frio demais pra você? Tudo bem?
— Tudo bem comigo! Tudo bem comigo!
Randy começou a pular como Deke havia feito, cruzando os braços sobre o peito e estômago, em um X. Os dois se viraram para as garotas. Rachel ultrapassara LaVerne, esta exibindo um estilo cachorrinho, executado por um cão de maus instintos.
— As senhoritas estão bem? — gritou Deke.
— Vá para o inferno, Senhor Machão! — gritou LaVerne.
Deke não a importunou mais. Randy olhou para o lado e viu que a curiosa mancha escura e circular estava agora mais próxima — agora a dez metros e ainda aproximando-se.
Flutuava na água, redonda e circular, como o topo de um grande latão de aço, porém a maneira frouxa como se movia deixava perceber que não era a superfície de um objeto sólido. O medo, errante, mas poderoso, tomou conta dele.
— Nadem! — gritou para as garotas.
Abaixou-se para agarrar a mão de Rachel, assim que ela chegasse. Ajudou-a a subir. Ela bateu um joelho na madeira, com força — ele ouviu o baque distintamente.
— Ai! Puxa, o que...
LaVerne ainda estava a uns três metros de distância. Randy tornou a olhar para o lado e viu a coisa redonda colidir com o outro lado da balsa. Era escura como petróleo, mas Randy tinha certeza de que não se tratava de petróleo — parecia escura demais, espessa demais, regular demais.
— Randy, isso doeu! O que está fazendo, querendo divertir-se...
— LaVerne! Nade! — gritou ele.
Agora não era apenas medo; era terror. LaVerne ergueu os olhos, talvez não captando o horror, mas ouvindo a pressa. Pareceu confusa, mas intensificou seu estilo cachorrinho, encurtando a distância para a escada.
— O que há com você, Randy? — perguntou Deke.
Randy olhou novamente para o lado e viu a coisa dobrar-se em torno do canto quadrado da balsa. Por um momento, ela pareceu a imagem de um troglodita, de boca aberta para comer biscoitos eletrônicos. Depois deslizou em volta de todo o canto e começou a escorregar ao longo da balsa, com uma de suas bordas agora reta.
— Ajude-me a içá-la! — grunhiu Randy para Deke, estendendo o braço para LaVerne. — Depressa!
Deke deu de ombros despreocupadamente e pegou a outra mão da garota. Os dois a puxaram para cima, colocando-a na superfície de tábuas da balsa, apenas segundos antes da coisa negra deslizar junto à escada, os lados encovando-se, como se deslizasse por sobre os degraus.
— Você ficou louco, Randy? — perguntou LaVerne.
Estava sem fôlego, um pouco amedrontada. Seus bicos dos seios eram claramente visíveis através do sutiã, espetando o tecido em pontas duras e frias.
— Aquela coisa — disse Randy, apontando. — O que será, Deke?
Deke localizou-a. Tinha chegado ao canto esquerdo da balsa, de onde escorregara um pouco para um lado, reassumindo o formato redondo. Parecia apenas flutuar ali. Os quatro olharam para a mancha.
— Acho que é uma mancha de óleo — disse Deke.
— Você realmente machucou meu joelho — queixou-se Rachel, olhando a coisa escura sobre a água e depois se virando para Randy. — Você...
— Não é uma mancha de óleo — disse Randy. — Já viu uma mancha de óleo redonda? Isso é qualquer outra coisa.
— Nunca vi uma mancha de óleo em minha vida — replicou Deke. Falava com Randy, mas olhava para LaVerne. As calcinhas dela eram quase tão transparentes como o sutiã, o delta de seu sexo claramente esculpido em seda, cada nádega um teso crescente. — Aliás, nem mesmo acredito nelas. Eu sou do Missouri.
— Vou ficar esfolada — disse Rachel.
A raiva, contudo, desaparecera de sua voz. Tinha visto Deke olhando para LaVerne.
— Puxa, estou com frio — disse LaVerne, toda arrepiada.
— Essa coisa estava atrás das garotas — disse Randy.
— Ora, vamos, Pancho! Não disse que estava tudo bem com você?
— Ela queria as garotas — repetiu ele, teimosamente, e pensou: Ninguém sabe que estamos aqui. Absolutamente ninguém.
— Já viu uma mancha de óleo, Pancho? — perguntou Deke.
Passara o braço pelos ombros nus de LaVerne, quase da mesma forma alheada com que tocara o seio de Rachel, horas antes. Não tocava o seio de LaVerne — de qualquer modo, ainda não — porém sua mão estava próxima. Randy decidiu que pouco lhe importava, de um jeito ou de outro. Aquela mancha negra e circular na água. Aquilo, sim, o deixava preocupado.
— Vi uma no Cape, faz quatro anos — respondeu. — Todos nós retiramos aves das ondas e tentamos limpá-las...
— Ecológico, Pancho — disse Deke, aprovadoramente. — Muito ecológico, yo creo.
— Era uma coisa enorme, um negócio pegajoso, estendendo-se por cima de toda a água. Em tiras e pequenos salpicos. Nada tinha de parecido com isso aí. Entenda, não era compacta.
Tinha um formato acidental, ele queria dizer. Esta coisa aqui nada tem de acidental; parece algo com objetivos definidos.
— Quero voltar agora — disse Rachel.
Ainda olhava para Deke e LaVerne. Randy leu a mágoa em seu rosto. Tinha certeza de que Rachel não percebia a transparência de sua expressão.
— Pois então, vá — disse LaVerne.
Havia um ar em seu rosto — a clareza do triunfo absoluto, pensou Randy e, se tal idéia parecia pretensiosa, também parecia exatamente correta. A expressão não era dirigida expressamente a Rachel... mas tampouco LaVerne procurava escondê-la de outra garota.
Ela se moveu um passo para Deke; um passo, era tudo que havia. Agora, os quadris de ambos se tocaram ligeiramente. Por um rápido momento, a atenção de Randy desviou-se da coisa flutuante na água e concentrou-se em LaVerne, com um ódio quase curioso.
Embora nunca houvesse agredido uma garota, naquele momento a esbofetearia com real prazer. Não porque a amasse (ficara um pouco caído por ela, sem dúvida, também mais do que um pouco sequioso dela, sem dúvida, e bastante enciumado quando a vira começando a ir com Deke para o apartamento. Claro que ficara, mas em primeiro lugar, nunca levaria uma garota a quem realmente amasse, a menos de vinte e cinco quilômetros de distância de Deke), mas por conhecer aquela expressão no rosto de Rachel — qual a sensação daquilo por dentro.
— Estou com medo — disse Rachel.
— Medo de uma mancha de óleo? — perguntou LaVerne, incrédula.
Depois ela riu. A vontade de esbofeteá-la tornou a crescer dentro de Randy, apenas girar a palma aberta no ar e atingi-la, acabar com aquela expressão de nojenta grandiosidade em seu rosto e deixar-lhe na bochecha uma marca que teria o formato de uma mão.
— Pois eu gostaria de vê-la nadar até a margem — disse Randy.
LaVerne sorriu indulgentemente para ele.
— Ainda não estou com vontade — respondeu, como se falasse a uma criança. Olhou para o céu, depois para Deke. — Quero ver as estrelas saírem.
Rachel era uma jovem baixinha e bonita mas, para uma garota, tinha um jeito ligeiramente inseguro, que fazia Randy pensar nas de Nova York — a gente as vê apressando-se para o trabalho pela manhã, usando suas elegantes saias com fendas na frente ou bem altas em um lado, com a mesma expressão graciosa. Os olhos de Rachel estavam sempre brilhantes, mas seria difícil definir se era a animação que lhes emprestava aquela vivacidade ou apenas uma ansiedade flutuando livremente.
Em geral, as preferências de Deke eram para garotas altas, de cabelos escuros e olhos tendendo para negros. Randy percebeu que agora nada existia entre Deke e Rachel — o que quer que tivesse havido, algo simples e talvez um pouco entediado por parte dele, era profundo, complicado e possivelmente doloroso para ela. Terminara, tão nítida e subitamente, que Randy quase ouviu o estalo: um som como um graveto seco, sendo quebrado com o joelho.
Ele era um rapaz tímido, mas decidiu aproximar-se de Rachel e passou um braço em torno dela. Ela o fitou brevemente, o ar infeliz, mas grato por seu gesto. Randy ficou satisfeito, por haver melhorado um pouco a situação dela. A similaridade flutuou de novo em sua mente. Algo no rosto de Rachel, em sua expressão...
Associou-o o primeiro a espetáculos de jogo na TV, depois a comerciais para biscoitos, bolos, qualquer droga de coisa assim. Então lhe ocorreu — ela parecia Sandy Duncan, a atriz que atuara na reapresentação de Peter Pan, na Broadway.
— O que é aquela coisa? — perguntou ela. — O que é, Randy?
— Não sei.
Randy se virou para Deke e o viu fitando-o com aquele sorriso familiar, no qual havia mais companheirismo do que raiva... mas havia raiva nele, também havia. Talvez Deke nem mesmo se desse conta disso, mas havia. A expressão dizia Lá está o velho Randy, sempre preocupado com ninharias e estragando tudo outra vez. Presumivelmente, isso faria Randy murmurar um acréscimo — Vai ver, não é nada. Não se preocupe com isso. A coisa acabará indo embora daqui. Qualquer coisa assim. Ele não a acrescentou. Que Deke sorrisse. A mancha negra na água o assustava. Essa era a verdade.
Rachel afastou-se de Randy e ajoelhou-se recatadamente na quina da balsa mais próxima da coisa e, por um momento, ela provocou uma associação de lembranças ainda mais clara: a garota nos rótulos de White Rock. Sandy Duncan nos rótulos de White Rock, corrigiu sua mente. Seus cabelos, cortados curtos e de uma tonalidade ligeiramente alourada, jaziam assentados e molhados contra o crânio belamente conformado. Podia ver as covinhas arrepiadas em suas omoplatas, acima da faixa branca do sutiã.
— Não vá cair, Rache — disse LaVerne, com visível malícia.
— Pare com isso, LaVerne — disse Deke, ainda sorrindo.
Randy desviou os olhos dos dois, em pé no meio da balsa, um com o braço frouxamente em torno da cintura do outro, os quadris se tocando de leve. Tornou a fitar Rachel. O alarme desceu velozmente por sua espinha e através de seus nervos como fogo. A mancha negra diminuíra em metade a distância entre ela e a quina da balsa onde Rachel, de joelhos, a observava. Antes, eram dois, dois metros e meio. Agora, a distância era de um metro ou menos. Randy captou a expressão estranha nos olhos da garota, uma total opacidade circular, singularmente semelhante a total opacidade circular daquela coisa na água.
Agora é Sandv Duncan sentada em um rótulo de White Rock, fingindo-se hipnotizada pelo suculento, delicioso sabor dos Biscoitos de Mel Nabisco, pensou ele, idiotamente. Seu coração aumentou as batidas, como acontecera antes na água, e então gritou:
— Saia daí, Rachel!
Depois, tudo aconteceu muito depressa — as coisas aconteceram com a rapidez de fogos de artifícios explodindo. No entanto, ele viu e ouviu cada coisa, com perfeita e infernal clareza. Cada coisa parecia presa em sua própria e diminuta cápsula.
LaVerne riu. No pátio, em uma hora luminosa da tarde, soaria como o riso de qualquer garota universitária, mas ali, na crescente escuridão, mais parecia o árido cacarejo de uma feiticeira, remexendo poções no caldeirão.
— Rachel, talvez seja melhor você... — começou Deke.
Ela o interrompeu então, quase segura de si pela primeira vez na vida e, indubitavelmente, pela última.
— Isso tem cores! — exclamou ela, em um tom de absoluta admiração. Seus olhos fixavam-se na mancha negra em cima da água, com opaca euforia, e por um instante apenas, Randy julgou ter visto o que ela apontava — cores, isso mesmo, cores girando em vivas espirais que se contorciam para o centro. Desapareceram em seguida, restando apenas aquele negrume fosco e sem brilho. — Que parece cores mais lindas!
— Rachel!
Ela estendeu o braço para a coisa — espichando-o e abaixando-o — seu braço alvo e marmorizado pelos arrepios. Esticou-o, querendo tocar, e Randy notou que Rachel roera as unhas até o sabugo.
— Ra...!
Sentiu a balsa oscilar na água, quando Deke se moveu em direção a eles. Randy inclinou-se para Rachel ao mesmo tempo, querendo puxá-la e vagamente cônscio de não desejar que Deke fizesse isso.
A mão de Rachel já tocava a água — seu indicador apenas, formando delicados círculos concêntricos na superfície — e a mancha negra avançou para aquele ponto. Randy ouviu Rachel ofegar e, de repente, a opacidade lhe abandonou os olhos, substituída por agonia.
A substância negra e viscosa subiu pelo braço dela como lodo... e, por baixo, Randy viu a pele de Rachel dissolver-se. Ela abriu a boca e gritou. Ao mesmo tempo, inclinou-se para diante. Agitou cegamente a outra mão para Randy, e ele tentou segurá-la. Os dedos de ambos de roçaram. Os olhos dela encontraram os dele, e Rachel ainda mostrava uma infernal semelhança com Sandy Duncan. Depois ela caiu para diante, estatelando-se na água.
A coisa negra fluiu para o ponto em que ela caíra.
— O que aconteceu? — gritava LaVerne, atrás deles. — O que aconteceu? Ela caiu? O que houve com ela?
Randy fez menção de mergulhar atrás dela, mas Deke o puxou para trás, quase sem esforço.
— Não! — exclamou ele, em uma voz amedrontada, como jamais acontecera.
Os três a viram emergir. Seus braços levantaram-se, agitando-se — não, não eram braços.
Um braço. O outro estava coberto por uma membrana negra, que pendia em fiapos e dobras de algo vermelho e entretecido com tendões, algo que parecia um pedaço redondo de rosbife.
— Socorro! — gritou Rachel.
Seus olhos arregalados fixaram-se neles, desviaram-se, fixaram-se novamente, tornaram a desviar-se... eram como lanternas agitadas desordenadamente no escuro. Ela bateu na água, formando espuma.
— Socorro! Como dói! Por, favor, socorro! COMO DÓI, COMO DOOÓI...
Randy teria caído, quando Deke o puxou. Levantando-se das tábuas da balsa, caiu para diante outra vez, incapaz de ignorar aquela voz. Tentou saltar, e Deke o agarrou, passando seus braços musculosos pelo tórax magro do outro.
— Não, ela está morta — sussurou rispidamente. — Céus, será que não vê isso? Ela está morta, Pancho!
Uma espessa cor negra espraiou-se subitamente pelo rosto de Rachel, como um lençol, primeiro sufocando seus gritos, depois cortando-os inteiramente. Agora, a coisa negra começou a enrolá-la em cordas entrecruzadas. Randy pôde vê-las, afundando na pele de Rachel como ácido. Quando sua jugular se rompeu, esguichando um jato escuro, ele viu a coisa enviar um pseudópodo em direção ao sangue que escapava. Não podia acreditar no que via, não podia entender... mas era a pura realidade, não uma sensação de estar perdendo o juízo, nenhuma impressão de que estivesse sonhando ou fosse vítima de uma alucinação.
LaVerne gritava. Randy se virou, em tempo de vê-la tapar os olhos melodramaticamente com uma das mãos, parecendo uma heroína de filme mudo. Pensou que ia rir e dizer-lhe o que imaginara, mas constatou que não conseguia emitir nenhum som.
Tornou a olhar para Rachel. Praticamente, ela não estava mais lá.
Suas contorções haviam diminuído, a ponto de não passarem de espasmos. O negrume espojou-se sobre ela — agora maior, pensou Randy, está maior, não há a menor dúvida — com silenciosa e muscular força. Viu a mão de Rachel agitar-se contra aquilo; viu a mão começar a ficar presa, como que aderida a melaço ou papel pega-moscas; viu-a desaparecer. Agora, havia apenas um senso das formas dela, não na água, mas na coisa preta, não se virando, mas sendo virada, a forma se tornando menos e menos identificável, um lampejo branco — ossos, pensou nauseado, e virou o rosto, vomitando inapelavelmente por sobre uma borda da balsa.
LaVerne ainda gritava. Houve então um pláft! surdo, e ela parou de gritar, começando a acalmar-se.
Ele a esbofeteou, pensou Randy. Eu queria fazer isso, lembra-se?
Recuou, limpando a boca, sentindo-se fraco e nauseado. E com medo. Tão apavorado, que só conseguia pensar com uma diminuta porção da mente. Em breve, começaria também a gritar. Deke precisaria esbofeteá-lo, Deke não entraria em pânico, oh, não, Deke era mesmo um herói, sem dúvida. Você precisa ser um herói do futebol... para arranjar garotas bonitas, cantarolava sua mente, com alegria.
Então, ouviu Deke falando com ele e ergueu o rosto para o céu, tentando clarear a cabeça, tentando desesperadamente afastar a visão da forma de Rachel, tornando-se disforme e inumana enquanto a coisa negra a devorava, não querendo que Deke o esbofeteasse como esbofeteara LaVerne.
Olhou para o céu e viu que brilhavam no alto as primeiras estrelas, o formato da Ursa Maior já claro, enquanto a última luminosidade do dia desbotava no oeste. Eram quase dezenove e trinta.
— Oh, Cisco — balbuciou. — Acho que estamos com um grande problema desta vez...
— O que é aquilo? — Sentiu a mão de Deke em seu ombro, apertando, crispando dolorosamente. — Aquela coisa a comeu, você viu? A coisa a comeu, a maldita coisa a comeu toda! O que é aquilo?
— Não sei — disse Randy. — Não lhe falei antes?
— Pois devia saber! Você é um maldito inteligente, segue todos os malditos cursos de ciências!
Agora, era o próprio Deke que quase gritava, permitindo que Randy recuperasse um pouco mais de controle.
— Não existe nada como aquilo em todos os livros científicos que já li — explicou.
— A última vez que vi algo semelhante, foi no Show de Horrores do Dia de Bruxas, no Rialto, quando tinha doze anos.
A coisa agora recuperara seu formato redondo. Flutuava sobre a água, a três metros da balsa.
— Está maior — gemeu LaVerne.
Quando Randy a vira pela primeira vez, avaliara seu diâmetro em cerca de metro e meio. Agora, tinha pelo menos dois e meio.
— Está maior, porque comeu Rachel! — soluçou LaVerne, começando a gritar novamente.
— Para com isso ou eu lhe quebro o queixo — ameaçou Deke.
Ela parou — não imediatamente, mas pouco a pouco, como um disco, quando alguém desliga o aparelho, sem levantar o braço da agulha. Os olhos de LaVerne estavam esbugalhados.
Deke se virou para Randy.
— Tudo bem com você, Pancho?
— Não sei. Acho que sim.
— Rapaz... — Deke tentou sorrir e, com certo alarme, Randy viu que ele conseguia — alguma parte de Deke estaria achando aquilo divertido? — Você não tem nenhuma idéia do que tudo isso possa ser?
Randy meneou a cabeça. Talvez, afinal fosse mesmo uma mancha de óleo... ou havia sido, até ter-lhe acontecido alguma coisa. Poderia haver sido atingida por raios cósmicos, de algum modo. Ou, talvez, Arthur Godfrey urinara poeira atômica sobre aquilo, quem sabe? Quem poderia saber?
— Será que podemos nadar contornando a coisa? — insistiu Deke, sacudindo o ombro de Randy.
— Não! — gritou LaVerne, em voz estridente.
— Pare com isso ou acabo com você, LaVerne — disse Deke, erguendo novamente a voz. — Não estou brincando!
— Você viu com que rapidez aquilo pegou Rachel — disse Randy.
— Talvez estivesse com fome — respondeu Deke. — É possível que agora tenha perdido o apetite.
Randy pensou em Rachel, de joelhos na quina da balsa, tão quieta e bonita em seu sutiã e calcinhas. Seu pomo de Adão tornou a subir.
— Você procurou isso — falou para Deke. Deke sorriu sem vontade.
— Oh, Pancho!
— Oh, Ciiisco!
— Quero ir para casa — disse LaVerne, em um sussurro furtivo. — Está bem?
Nenhum deles respondeu.
— Acho melhor esperarmos que a coisa se vá — disse Deke. — Assim como veio, irá embora.
— Talvez — disse Randy.
Deke olhou para ele, o rosto tomado por forçada concentração, na penumbra ambiente.
— Talvez? O que é essa merda de talvez?
— Nós chegamos, a coisa chegou. Eu a vi chegar — como se nos farejasse. Se está saciada, como falou, irá embora. Acho. Se ainda quiser comer...
Randy deu de ombros. Deke ficou parado e pensativo, de cabeça agachada. Seus cabelos curtos ainda pingavam um pouco.
— Vamos esperar — decidiu. — Que essa coisa coma peixe!
Passaram-se quinze minutos. Eles não falaram. A temperatura esfriava. Estaria pelos dez graus e os três encontravam-se apenas com roupas de baixo. Após os primeiros dez minutos, Randy pôde ouvir o vivo, intermitente chocalar de seus dentes. LaVerne tentara encostar-se a Deke, mas ele a recusara — com delicadeza, mas firmemente.
— Deixe-me sozinho agora — disse ele.
Ela ficou sentada, os braços cruzados sobre os seios, as mãos segurando os cotovelos, tiritando. Olhava para Randy, seus olhos dizendo que ele poderia voltar, passar os braços em torno dela, que tudo estava bem agora.
Ele desviou os olhos, preferindo concentrar-se no círculo escuro sobre a água. A coisa apenas flutuava ali, não se aproximando e tampouco afastando-se. Olhou para a margem e lá estava a praia, um crescente branco e fantasmagórico, que parecia flutuar. As árvores mais atrás formavam uma volumosa e escura linha do horizonte. Randy pensou que conseguia ver o Camaro de Deke, mas não tinha certeza.
— Nós apenas decidimos e viemos — falou Deke.
— Exato — disse Randy.
— Não contamos a ninguém.
— Não.
— Portanto, ninguém sabe que estamos aqui.
— Ninguém.
— Parem com isso! — gritou LaVerne. — Parem, estão me amedrontando!
— Feche essa matraca — disse Deke, com o pensamento em outra coisa, e Randy riu, a despeito de si mesmo — pouco importava quantas vezes Deke dissesse aquilo, ele sempre achava engraçado. — Se tivermos que passar a noite aqui, passaremos. Alguém ouvirá nossos gritos amanhã. Afinal, não estamos no meio do deserto australiano, não é mesmo, Randy?
Randy não respondeu.
— Estamos?
— Você sabe onde estamos — replicou Randy. — Sabe tão bem quanto eu. Saímos da Estrada 41 e percorremos treze quilômetros em uma estrada secundária...
— Com chalés a cada quinze metros...
— Chalés de verão. Estamos em outubro. Os chalés estão vazios, a maldita maioria deles. Chegamos aqui e você tinha que contornar o maldito portão, indicadores de PROIBIDA A ENTRADA a cada quinze metros...
— E daí? Algum zelador...
Deke parecia um pouco sem jeito agora, algo desconfortável. Com um certo medo, talvez? Pela primeira vez naquela noite, a primeira vez nesse mês, nesse ano, talvez a primeira vez em toda a sua vida? Ocorreu uma idéia cretina — Deke perde a virgindade de seu medo. Randy não tinha certeza de ser isso que acontecia, mas achou que talvez fosse... e sentiu um perverso prazer nisso.
— Nada para roubar, nada para vandalizar — falou. — Se houver zeladores, talvez só apareçam por aqui duas vezes ao mês.
— Caçadores...
— No mês que vem, não duvido — disse Randy e se calou de repente, porque também estava ficando com medo.
— Talvez essa coisa nos deixe em paz — disse LaVerne. Seus lábios esboçaram um leve e patético sorriso. — Talvez ela apenas... sabem como é... nos deixe em paz.
— Os tiras... — recordou Deke.
— Está se movendo — disse Randy.
LaVerne ficou em pé bruscamente. Deke aproximou-se de Randy e, por um momento, a balsa inclinou-se. O coração de Randy galopou no peito, apavorado, enquanto LaVerne tornava a gritar. Deke recuou um pouco e a balsa estabilizou-se, com a quina frontal esquerda (ao ficarem de frente para a praia) ligeiramente mais mergulhada na água do que as restantes.
A coisa aproximou-se com ginosa e aterradora rapidez. Enquanto se movia, Randy observou as cores que Rachel vira — fantásticos vermelhos, amarelos e azuis, espiralando sobre uma superfície de ébano semelhante a plástico frouxo ou escura, como couro. Subia e descia com as ondas, o que modificava as cores, fazia com que se fundissem girando. Randy percebeu que ia cair pela borda, diretamente sobre a coisa, podia sentir que se inclinava...
Com a última força que lhe restava, levou o punho direito ao nariz — o gesto de um homem amortecendo a tosse, só que um pouco mais alto e com muito mais força. Seu nariz explodiu em dor, ele sentiu o sangue quente escorrendo pelo rosto. Então, conseguiu recuar, gritando:
— Não olhem para aquilo! Deke! Não o encare diretamente, as cores o deixam zonzo!
— Está querendo passar para baixo da balsa — disse Deke, com ar sombrio. — Que merda é essa, Pancho?
Randy espiou — espiou com o máximo cuidado. Viu a coisa focinhando a lateral da balsa, achatando-se no formato de meia pizza. Por um momento, pareceu empilhar-se ali, espessando-se, e ele teve uma alarmante visão daquilo ganhando consistência bastante para subir à superfície da balsa.
Então, a coisa negra espremeu-se sob ela. Randy julgou ouvir um ruído por um momento — um ruído áspero, como uma cortina de lona, das de enrolar, sendo puxada através de uma janela estreita — mas aquilo poderia ter sido produto apenas de seus nervos.
— Ela entrou debaixo da balsa? — perguntou LaVerne, e havia algo curiosamente despreocupado em seu tom, como se fizesse o máximo esforço para conversar, mas também estava gritando. — Está debaixo da balsa? Está debaixo de nós?
— Está — respondeu Deke. Olhou para Randy. — Vou nadar até a praia, imediatamente. Se essa coisa está aqui embaixo, acho que tenho uma boa chance.
— Não! — gritou LaVerne. — Não, não nos deixe aqui, não...
— Eu sou rápido — disse Deke, olhando para Randy e ignorando LaVerne inteiramente. — Só que, preciso ir enquanto ela estiver aqui embaixo.
Randy teve a sensação de que sua mente disparava em Mach dois — de uma forma ensebada e nauseante aquilo era estimulante, como os derradeiros segundos antes de sermos lançados na vertigem do passeio em um divertimento de parque de diversões barato. Havia tempo para ouvir as barricas se entrechocando ocamente debaixo da balsa, tempo para ouvir as folhas das árvores roçando secamente a uma pequena brisa, além da praia, tempo para perguntar-se por que a coisa tinha ido para baixo da balsa.
— Está bem — disse a Deke, — mas não creio que você consiga.
— Conseguirei — respondeu Deke, encaminhando-se para a beira da balsa.
Deu dois passos, e então parou.
Sua respiração ganhara rapidez, o cérebro deixava o coração e os pulmões prontos para nadar os mais rápidos cinqüenta metros de sua vida, e agora sua respiração havia parado, como todo ele, simplesmente cortada no meio de uma inalação. Virou a cabeça, e Randy viu salientarem-se os tendões em seu pescoço.
Panch... — disse ele, em voz perplexa e sufocada, para então começar a gritar.
Deke gritou com espantosa força, vigorosos gritos de barítono, que foram descendo a fantásticos níveis de soprano. Eram altos o bastante para ecoarem na praia, voltando em espectrais tons de mínimas. A princípio, Randy julgou que ele apenas gritava, mas depois percebeu que era uma palavra, duas palavras, as mesmas duas palavras, repetidas sem cessar:
— Meu pé! Meu pé! Meu pé! Meu pé!
Randy olhou para baixo. O pé de Deke apresentava uma estranha aparência rebaixada.
O motivo era óbvio, porém a mente de Randy se recusava a aceitá-lo de início — era impossível demais, insanamente grotesco demais. Enquanto olhava, o pé de Deke foi sendo puxado para baixo, por entre duas das tábuas que compunham a superfície da balsa.
Então, viu o brilho escuro da coisa negra, além do calcanhar e dedos do pé, um vivo brilho escuro, com malignas cores giratórias.
A coisa agarrara o pé dele. (Meu pé! gritava Deke, como que confirmando tal elementar dedução. Meu pé, oh, meu pé, meu PÉÉÉÉÉÉ!) Ele havia pisado em uma das fendas entre as tábuas (pise em uma fenda e sua mãe ofenda, tagarelou a mente de Randy) e a coisa o prendera ali. A coisa tinha...
— Puxe! — gritou Randy, subitamente. — Puxe, Deke, que merda, PUXE!
— O que está acontecendo? — bradou LaVerne.
Vagamente, Randy percebeu que ela não lhe sacudia os ombros apenas afundara nele as unhas compridas como garras. LaVerne não seria de nenhuma ajuda, em absoluto. Deu-lhe uma cotovelada no estômago, ela emitiu um som semelhante a um latido, como que tossindo, e caiu sentada sobre o traseiro. Randy saltou para Deke e agarrou um de seus braços.
Era duro como mármore de Carrara, cada músculo projetando-se como a costela no esqueleto de um dinossauro esculpido. Puxar Deke era como tentar arrancar uma árvore enorme do chão, pelas raízes. Os olhos de Deke se erguiam para o púrpura-real do céu pós-crepúsculo, arregalados e incrédulos, sem que ele parasse de gritar, gritar e gritar.
Randy olhou para baixo e viu que agora o pé de Deke desaparecera na fenda entre as tábuas, até o tornozelo. Aquela fenda não teria mais do que um centímetro de largura, certamente não mais que meio centímetro, mas o pé penetrara por ela. O sangue escorria para as tábuas brancas, em espessos regatos escuros. A coisa negra, como plástico aquecido, pulsava para cima e para baixo na fenda, para cima e para baixo, como um coração.
Preciso arrancá-lo. Preciso arrancá-lo depressa ou nunca chegaremos a arrancá-lo...
Controle-se, Cisco, por favor, controle-se...
LaVerne levantou-se e recuou para longe da árvore — Deke, que se contorcia e gritava no meio da balsa, uma balsa que flutuava ancorada, sob as estrelas de outubro, no Lago Cascade. Ela sacudia a cabeça aturdida, os braços cruzados sobre o estômago, onde levara a cotovelada de Randy.
Deke inclinou-se pesadamente contra ele, os braços tateando às cegas. Tornando a olhar para baixo, Randy viu o sangue jorrando da canela de Deke, que agora se afinava, como se afina a ponta de um lápis — só que a ponta do lápis aqui era branca, não preta, a ponta era um osso, que quase não se divisava.
A coisa negra impeliu-se para cima de novo, sugando, comendo.
Deke uivou de dor.
Nunca mais jogará futebol com esse pé, QUE pé? Ha-ha, e ele puxou Deke com todas as forças, mas ainda era como tentar arrancar uma árvore, com raízes e tudo.
Deke pendeu novamente e agora proferiu um longo, estridente uivo, que fez Randy recuar, guinchando também, cobrindo os ouvidos. O sangue esguichava dos poros da perna de Deke; sua rótula tinha uma aparência purpúrea e intumescida, como se tentasse absorver a tremenda pressão colocada sobre ela, enquanto a coisa negra puxava a perna de Deke para baixo, através da estreita fenda, centímetro a centímetro.
Não posso ajudá-lo. Teria que ser muito forte! Não posso ajudá-lo agora, Deke, sinto muito, Deke, sinto tanto...
— Abrace-me, Randy! — gritou LaVerne, agarrando-se a ele por todo o corpo, enterrando o rosto em seu peito. O rosto dela estava tão quente, que parecia chiar. — Abrace-me, por favor, por que não me abraça...?
Desta vez, ele a abraçou.
Só mais tarde, Randy fez a terrível constatação: eles dois, com quase certeza, teriam nadado até a margem, enquanto a coisa negra se ocupava com Deke — e se LaVerne não quisesse, ele o faria sozinho. As chaves do Camaro estavam no jeans de Deke, caído na praia. Teria conseguido... mas essa certeza só lhe chegou quando era demasiado tarde.
Deke morreu, assim que sua coxa começou a desaparecer na estreita fenda entre as tábuas. Parara de gritar agudamente minutos antes disso. Desde então, emitira apenas grunhidos roucos. Então, isso parou também. Quando ele desmaiou, caído para diante, Randy ouviu o que quer que restava do fêmur em sua perna direita, estilhaçar-se como um graveto sendo partido.
Um momento depois, Deke ergueu a cabeça, olhou em torno atordoadamente e abriu a boca. Randy pensou que ele fosse gritar novamente. Só que, em vez disso, ele lançou um grande jato de sangue, tão espesso, que era quase sólido. Randy e LaVerne foram salpicados com o calor do sangue e ela começou a gritar de novo, agora roucamente.
— Utntnq! — gritou ela, o rosto contorcido em quase enlouquecida repugnância. — Unnng! Sangue! Urnnacy, sangue! Sangue!
Ela se esfregou, procurando limpar-se, mas só conseguiu espalhar mais o sangue que recebera.
O sangue fluía dos olhos de Deke, esguichando com tal força, que eles se esbugalhavam quase comicamente, pela potência da hemorragia. Randy pensou: Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
O sangue jorrou dos ouvidos de Deke. Seu rosto era um hediondo nabo purpúreo, inchado e deformado pela pressão hidrostática de alguma inacreditável inversão; era o rosto de um homem apertado pelas garras de um urso, dotado de monstruosa e desconhecida força.
E então, misericordiosamente, aquilo terminou.
Deke tornou a descambar para diante, os cabelos pendendo acima das tábuas ensanguentadas da balsa. Com nauseado espanto, Randy viu que até mesmo o couro cabeludo dele sangrava.
Sons por baixo da balsa. Sons de coisa sugando.
Foi quando ocorreu à sua aturdida mente, seu cérebro sobrecarregado, que poderia ter escapado a nado, com boa chance de ter êxito. Contudo, LaVerne pesava demais em seus braços, pesava como chumbo. Olhou para o rosto descomposto, ergueu-lhe uma pálpebra e viu apenas o branco de olho. Compreendeu então que ela não desmaiara apenas, mas caíra inconsciente, em estado de choque.
Randy olhou para a superfície da balsa. Podia deitá-la, naturalmente, mas as tábuas só tinham uns trinta centímetros de largura. Havia uma plataforma para mergulho que era adaptada à balsa durante o verão, mas pelo menos isso fora desmontado e guardado em algum lugar. Nada mais restava senão o próprio piso da balsa, quatorze tábuas, cada uma com trinta centímetros de largura e seis metros de comprimento. Não era possível deitá-la, deixar seu corpo sem sentidos sobre qualquer daquelas fendas.
Pise em uma fenda, e sua mãe ofenda.
Cale-se.
E então, tenebrosamente, sua mente sussurrou: Vá, mesmo assim. Deite-a aí e nade para a salvação!
Contudo, ele não fez isso, não podia. Um terrível sentimento de culpa cresceu nele, a essa idéia. Abraçou-a, sentindo o peso macio e firme em seus braços e costas. Ela era uma grande garota.
Deke tombou de todo.
Randy segurava LaVerne nos braços doloridos e viu aquilo acontecer. Não queria olhar e, por longos segundos que lhe pareceram minutos, virou o rosto inteiramente. No entanto, seus olhos sempre vagavam para lá.
Com Deke morto, tudo pareceu mais rápido.
O restante de sua perna direita desapareceu. A perna esquerda estirou-se, mais e mais, até ele assemelhar-se a um dançarino de balé, com apenas uma perna à vista, fazendo uma pirueta impossível. Houve o estalar da fúrcula em sua pélvis e então, quando o estômago de Deke começou a inchar ominosamente sob nova pressão, Randy desviou os olhos por muito tempo, procurando não ouvir os sons líquidos, tentando concentrar-se na dor em seus próprios braços. Pensou que talvez poderia fazer LaVerne voltar a si, mas por enquanto era melhor sentir a dor latejante nos braços e ombros. Aquilo lhe dava algo em que pensar.
Às suas costas houve um som como o provocado por enormes dentes mastigando um punhado de balas quebra-queixo. Quando olhou, as costelas de Deke penetravam pela fenda. Os braços dele estavam erguidos e distendidos. Ele parecia uma obscena paródia de Richard Nixon fazendo o V da vitória, o sinal que enlouquecera o público, nos anos sessenta e setenta.
Ele tinha os olhos abertos. A língua estirava-se para Randy.
Randy se virou de novo, ficou olhando através do lago. Procure luzes, disse a si mesmo.
Sabia que por lá não haveria luzes, mas quis convencer-se disso. Procure por luzes Pelas margens, alguém deve estar passando a semana em seu chalé, apreciando a folhagem do outono, não iria perder o espetáculo, viria com sua Nikon, o pessoal em casa adoraria as fotos.
Quando tornou a olhar para trás, os braços de Deke estavam erguidos em linha reta. Não era mais Nixon; agora parecia um juiz de futebol, indicando que o ponto extra fora válido.
A cabeça de Deke dava a impressão de pousada nas tábuas.
Os olhos continuavam abertos.
A língua continuava espichada para fora.
— Oh, Ciisco — murmurou Randy, tornando a olhar para outro lado.
Seus braços e ombros agora gritavam, mas permaneceu segurando LaVerne nos braços.
Olhou para a margem mais distante do lago. Estava totalmente escura. Estrelas salpicavam o céu negro, desenrolavam-se através dele, uma fita de leite frio, de algum modo suspensa bem alto no ar.
Os minutos passaram. Ele deve ter ido agora. Você já pode olhar. Está bem, está bem, eu sei. Só que não vou olhar. Apenas por segurança, eu não vou olhar. Certo? Certo. Em definitivo. Assim dizemos todos e assim todos nós dizemos.
Ele terminou olhando mesmo, apenas em tempo de ver os dedos de Deke serem puxados para baixo. Eles se moviam — provavelmente o movimento da água sob a balsa era transmitido à coisa desconhecida que agarrara Deke e esse mesmo movimento se transmitia aos seus dedos. Provavelmente, provavelmente. Contudo, a Randy parecia que Deke lhe acenava. O Cisco Kid acenando adeus. Pela primeira vez, sentiu sua mente sofrer um doentio repelão — ela pareceu inclinar-se, da maneira como a balsa se inclinara, quando eles quatro haviam ficado em pé sobre o mesmo lado. Percebeu-a endireitar — sem mais, de repente, compreendeu que a loucura — a verdadeira demência — talvez não estivesse muito distante.
O anel de futebol de Deke — Assembléia Geral, 1981 — escorregou lentamente do terceiro dedo de sua mão direita. A claridade das estrelas refletiu-se no ouro e brincou nos minúsculos sulcos entre os números gravados — 19, em um lado da pedra avermelhada, 81, no outro lado. O anel caiu-lhe do dedo. Era um pouco grande demais para encaixar-se na fenda e, naturalmente, não se comprimiria.
Ficou caído ali. Era tudo que restava de Deke, agora. Deke se fora. Nada mais de garotas de cabelos e olhos escuros, nada mais de bater no traseiro nu de Randy com uma toalha molhada, quando Randy saía do chuveiro, nada mais de corridas antes do jogo pelo meio do campo, com fãs levantando-se na ponta dos pés nas arquibancadas e as chefes de torcida executando cabriolas histéricas nas linhas laterais.
Nada mais de escapadas após o escurecer, no Camaro, com Thin Lizzy clamando "Os rapazes voltaram à cidade", no gravador do carro. Nada mais de Cisco Kid.
Houve aquele vago ruído arranhando novamente — uma lona enrolada, sendo lentamente puxada pela fenda de uma janela.
Randy estava em pé e descalço sobre as tábuas. Olhou para baixo e viu as fendas a cada lado dos dois pés subitamente cheias de pegajosa escuridão. Seus olhos esbugalharam-se.
Pensou na maneira como o sangue jorrara da boca de Deke, quase semelhante a uma corda sólida, na maneira como os olhos dele haviam saltado, parecendo providos de molas, enquanto a hemorragia, provocada pela pressão hidrostática, esmagava-lhe o cérebro.
A coisa me fareja. Sabe que estou aqui. Conseguirá subir? Conseguirá subir pelas fendas? Conseguirá? Conseguirá?
Olhou para baixo, inconsciente do peso flácido de LaVerne, fascinado pela enormidade da questão, perguntando-se o que sentiria a coisa ao fluir sobre seus pés, quando se ancorasse neles.
O cintilar negro subiu quase até a borda das fendas (Randy ficou na ponta dos pés, sem mesmo perceber o que fazia) e depois desceu. Recomeçou o ruído de lona deslizando.
De repente, Randy tornou a ver a coisa sobre a água, uma grande verruga escura, agora talvez a uns cinco metros de distância. Ela subia e descia com as pequeninas ondulações da superfície, subia e descia, subia e descia... e quando Randy começou a ver as cores pulsando uniformemente sobre ela, desviou os olhos para outro lado.
Colocou LaVerne sobre o piso, e tão logo ficou livre do peso, seus braços começaram a tremer loucamente. Deixou que tremessem. Ajoelhou-se ao lado dela, cujos cabelos espalhavam-se sobre as tábuas brancas, em um irregular leque escuro. De joelhos, ele ficou espiando aquela verruga escura na água, pronto para levantar LaVerne novamente, se percebesse sinais de movimento na coisa.
Começou a bater-lhe nas faces de leve, primeiro em uma, depois na outra, repetindo a dose, como um segundo tentando animar um boxeador. LaVerne não queria voltar a si.
Ela não queria atender ao indicador Siga e ganhar duzentos dólares ou dar uma volta no Trem-fantasma. LaVerne já vira o suficiente. Contudo, Randy não podia segurá-la a noite inteira, levantando-a como a um saco de lona, sempre que a coisa se movesse (e tampouco se podia ficar olhando demais para a coisa; aí estava outro detalhe). Ele aprendera um truque, no entanto. Não o aprendera na universidade, mas com um amigo de seu irmão mais velho. Esse amigo fora médico paraquedista em Nam e conhecia todos os tipos de truques — como catar piolhos em um couro cabeludo humano e fazê-lo apostar corrida em uma caixa de fósforos, como diluir cocaína em laxativo infantil, como costurar cortes fundos com agulha e linha comuns. Certo dia, quando conversavam sobre maneiras de despertar-se bêbados profundamente embriagados, para que esses bêbados profundamente embriagados não vomitassem nas próprias gargantas e morressem, como Bon Scott, o cantor do AC/DC havia feito.
— Quer fazer alguém voltar a si rapidamente? — perguntara o amigo com o repertório de truques interessantes. — Experimente isto.
Então, ele lhe ensinou o truque que Randy ia usar agora.
Inclinando-se para LaVerne, ele lhe mordeu o lóbulo da orelha, o mais forte que pôde.
Sangue quente e acre espirrou em sua boca. As pálpebras de LaVerne se ergueram como persianas. Ela gritou, em uma voz rouca e rabujenta, depois o esmurrou com raiva.
Randy olhou para cima e viu apenas a parte mais distante da coisa; o restante já estava debaixo da balsa. Ela se movera com uma fantástica, terrível e silenciosa velocidade.
Randy tornou a içar LaVerne, seus músculos gritando em protesto tentando enovelar-se em cãibras. Ela lhe batia no rosto. Uma de suas mãos atingiu-lhe o nariz sensível e ele viu estrelas vermelhas.
— Pare com isso! — gritou, deslizando os pés para as tábuas. — Pare com isso sua cretina, a coisa está debaixo de nós novamente! Pare ou eu a deixo cair, juro por Deus como deixo!
Os braços dela pararam imediatamente de agitar-se e se enrolaram quietamente em torno do pescoço de Randy, como em um abraço de afogado. Os olhos de LaVerne pareciam brancos, à claridade das estrelas.
— Pare com isso! — Ela não parou. — Pare, LaVerne, está me sufocando!
Ela apertou com mais força. O pânico aflorou à mente de Randy. O entrechocar cavo das barricas assumira uma nova característica, mais seca, mais abafada. Era a coisa lá embaixo, pensou ele.
— Não posso respirar!
A pressão afrouxou um pouco.
— Agora, escute. Vou pôr você no chão. Tudo vai ficar bem, se você...
Ela, no entanto, ouvira apenas pôr você no chão. Seus braços enrolaram-se naquele aperto mortal novamente. Randy tinha a mão direita nas costas dela. Engalfinhou os dedos e arranhou-a. LaVerne agitou as pernas, ganindo roucamente e, por um momento, ele quase perdeu o equilíbrio. Ela o percebeu. O medo, maior que a dor, fez com que parasse de lutar.
— Fique em pé nas tábuas.
— Não!
A negativa saiu em um jato no rosto dele, quente como um vento do deserto.
— A coisa não poderá pegá-la, se ficar em pé nas tábuas.
— Não, não me ponha no chão! Ela vai me pegar, sei que vai, sei que vai...
Ele tornou a arranhar-lhe as costas. LaVerne gritou de raiva, de dor e medo.
— Fique em pé ou a deixo cair, LaVerne.
Ele abaixou, lenta e cuidadosamente, ambos respirando em haustos curtos, chiantes — flauta e oboé. Os pés dela tocaram as tábuas. LaVerne encolheu as pernas para cima, como se as tábuas estivessem em brasa.
— Ponha os pés no chão! — sibilou Randy. — Eu não sou Deke, não agüento segurá-la a noite inteira!
— Deke...
— Está morto.
Os pés dela pousaram nas tábuas. Pouco a pouco, ele a foi largando. Ficaram à frente um do outro, como dançarinos. Randy podia vê-lo esperando o primeiro toque da coisa.
A boca de LaVerne ofegou, como a de um peixe dourado.
— Randy — sussurrou ela. — Onde está a coisa?
— Embaixo. Olhe para baixo.
Ela olhou. Ele olhou também. Viram a escuridão que recheava as fendas, preenchendo-as agora por quase toda a extensão da balsa. Randy sentiu a ansiedade da coisa e pensou que LaVerne também a sentira.
— Randy, por favor...
— Pssst!
Os dois ficaram quietos.
Randy esquecera de tirar o relógio ao entrar na água e agora ele marcava quinze minutos. Às vinte e um quarto, a coisa negra tornou a deslizar para fora da balsa.
Afastou-se até uns quatro, cinco metros e então parou, como fizera antes.
— Vou me sentar — disse Randy.
— Não!
— Estou cansado. Vou me sentar e você ficará vigiando. Lembre-se apenas de ficar olhando para longe. Depois eu me levanto e você fica sentada. Faremos assim. Tome — e ele lhe entregou o relógio. — Turnos de quinze minutos.
— Aquilo comeu Deke — sussurrou ela.
— Eu sei.
— O que é?
— Não sei.
— Estou com frio.
— Eu também.
— Então, me abrace.
— Já fiz isso o suficiente.
Ela pareceu conformar-se.
Sentar-se era o paraíso; não ter que vigiar a coisa era beatífico. Em vez disso, ele vigiou LaVerne, certificando-se de que ela continuava desviando os olhos da coisa sobre a água.
— O que vamos fazer, Randy?
Ele refletiu.
— Esperar — disse.
Ao final de quinze minutos, Randy levantou-se e deixou que ela primeiro ficasse sentada e depois deitada, por meia hora. A seguir, fez com que LaVerne se levantasse novamente e ela permaneceu em pé por quinze minutos. Continuaram assim. Faltando quinze minutos para vinte e duas horas, uma fria côdea de lua subiu no céu e lançou uma trilha luminosa sobre a água. Às vinte e duas e trinta, ouviram um grito agudo e solitário ecoando através do lago. LaVerne soltou um grito estridente.
— Cale a boca — disse ele. — Foi apenas um mergulhão-do-norte.
— Estou gelando, Randy... Estou toda dormente.
— Nada posso fazer quanto a isso.
— Abraça-me — pediu ela. — Você tem que me abraçar. Ficaremos abraçados, esquentando-nos. Podemos nos sentar, os dois, vigiar a coisa juntos.
Ele resistiu à idéia, mas o frio penetrava em sua carne, agora atingia os ossos.
— Está bem — disse.
Sentaram-se juntos, os braços passados um em torno do outro, e algo aconteceu — natural ou perverso, mas aconteceu. Randy sentiu-se enrijecer. Uma de suas mãos encontrou o seio de LaVerne, comprimiu-se sobre o náilon úmido e apertou. Ela emitiu o ruído de um suspiro e sua mão caminhou para a virilha da sunga.
Randy deslizou a outra mão para baixo e encontrou um lugar onde existia algum calor.
Empurrou-a de leve, fez com que ela se deitasse.
— Não — disse LaVerne, mas a mão nas virilhas dele começou a mover-se mais depressa.
— Posso ver a coisa — disse Randy. As batidas de seu coração aumentavam de velocidade novamente, impedindo o sangue com mais rapidez para a superfície de sua pele nua e friorenta. — Posso vigiá-la.
LaVerne murmurou alguma coisa e ele sentiu o elástico descendo em seus quadris, até o alto das coxas. Vigiou a coisa. Randy deslizou para cima, depois para a frente.
Penetrou-a. Calor. Ceús, LaVerne era quente ali, pelo menos. Ela deixou escapar um ruído gutural e seus dedos aferraram as nádegas frias e comprimidas do companheiro.
Randy continuou vigiando. A coisa não se movia. Vigiou-a. Vigiou-a atentamente. As sensações táteis eram incríveis, fantásticas. Sua experiência não era grande, mas tampouco permanecera virgem. Havia feito amor com três garotas, mas nunca havia sido assim. Ela gemeu e começou a erguer os quadris. A balsa balançava docemente, como o mais duro colchão d'água do mundo. Por baixo dela, as barricas murmuravam ocamente.
Randy vigiava a coisa. As cores começaram a girar — lentamente agora, sensualmente, não ameaçadoras; ele ficou espiando e viu as cores. Tinha os olhos arregalados. As cores estavam em suas pupilas. Não sentia mais frio agora; sentia calor, o calor que sentimos no primeiro dia de volta à praia, em princípios de junho, quando o sol nos espeta a pele branquicenta do inverno, avermelhando-a, dando-lhe alguma (cores) cor, alguma tonalidade. O primeiro dia na praia, primeiro dia de verão, sugerindo antigas canções dos Beach Boys, sugerindo os Ramones. Os Ramones lhe diziam que Sheena é uma roqueira punk, os Ramones lhe diziam que você pode pegar carona até a praia Rockaway, para a areia, a praia, as cores (movendo-se, a coisa começa a mover-se) e a sensação do verão, sua contextura; Gary U.S. Bonds, o período letivo encerrou-se e eu posso torcer pelos Yankees das arquibancadas, garotas de biquíni na praia, a praia, a praia, oh, a gente ama, a gente ama (ama) a praia, a gente ama (amo, eu amo seios firmes e fragrantes de óleo Coppertone, e se o fundilho do biquíni fosse diminuto o bastante, era possível ver-se alguns (cabelos, seus cabelos, SEUS CABELOS ESTÃO NA OH, CÉUS, NA ÁGUA, SEUS CABELOS)
Ele recuou subitamente, tentando levantá-la, mas a coisa se movera com oleosa velocidade, enredando-se nos cabelos de LaVerne como uma espessa teia de cola negra.
Quando Randy a ergueu, ela já estava gritando e estava pesada com a coisa; a coisa que saiu da água, em uma membrana contorcida e horripilante, que se enrolava em vívidas cores nucleares — escarlate, vermelhão, esmeralda cintilante, ocre opaco.
A membrana fluiu para o rosto de LaVerne, cobrindo-o como uma maré, obliterando-o.
Ela sacudia os pés, tamborilando a madeira do piso. A coisa se torcia e movia onde estivera o rosto de LaVerne. O sangue lhe escorreu pelo pescoço em borbotões, gritando, sem se ouvir gritar, Randy correu para ela, firmou o pé em sua anca e empurrou. Ela saiu rolando e caiu pela borda da balsa, as pernas como alabastro ao luar.
Por alguns momentos intermináveis, a água agitou-se e bateu contra a lateral da balsa, como se alguém houvesse fisgado ali um peixe gigantesco, que se debatia como o diabo.
Randy gritou. Continuou gritando. E então, para variar, gritou ainda mais.
Uma meia hora mais tarde, muito depois de terminada a frenética agitação na água, os mergulhões-do-norte gritaram em resposta.
Aquela noite foi eterna.
O céu começou a clarear no leste, quando faltava um quarto para as cinco. Randy sentiu-se um pouco mais animado. Foi uma animação momentânea apenas; era tão falsa como o amanhecer. Ficou em pé sobre as tábuas, de olhos semicerrados, o queixo fincado no peito. Estivera sentado nas tábuas até uma hora atrás, tendo despertado subitamente — até então sem mesmo saber que adormecera, a esta era a parte aterradora — por causa daquele indivisível som sibilante de lona. Saltou em pé, apenas segundos antes de aquele negrume começar a sugar com ânsia por ele, nas fendas entre as tábuas.
Sua respiração sibilava, entrando e saindo; ele mordeu o lábio, fazendo-o sangrar.
Dormindo, você esteve dormindo, seu imbecil!
A coisa tornara a deslizar debaixo da balsa meia hora mais tarde, porém ele não tornou a sentar-se. Receava sentar-se, temia dormir novamente e sabia que, desta vez, sua mente não o faria acordar em tempo.
Seus pés continuavam firmemente plantados nas tábuas, quando uma claridade mais forte, o verdadeiro amanhecer, encheu o leste, e os primeiros pássaros matinais começaram a cantar. O sol nasceu e, por volta de seis horas, o dia estava claro o suficiente para permitir-lhe ver a praia. O Camaro de Deke, amarelo-vivo, estava bem lá onde seu dono o estacionara, encostado à estaca de cerca. Uma vívida fileira de camisas e suéteres, além de quatro jeans, se torcia em pequenas formas, até a praia. Aquela visão o encheu de renovado horror, quando pensava que sua capacidade para o horror já se exaurira. Podia avistar o seu jeans, uma perna virada pelo avesso, o forro do bolso aparecendo. Seu jeans parecia a salvo, tão a salvo, jazendo lá na areia; apenas esperando que ele chegasse e virasse a perna da calça pelo direito, agarrando o bolso enquanto fazia isso, para que as moedas não caíssem. Quase podia ouvi-las sussurando contra sua perna, enquanto vestia as calças, podia sentir-se abotoando o botão de latão acima da braguilha... (você amou, sim, ele amou)
Olhou para a esquerda e lá estava ela, negra, redonda como uma ficha de jogo, flutuando levemente. As cores começaram a girar através de sua superfície e ele virou rapidamente o rosto.
— Vá embora — grasnou. — Vá embora ou vá para a Califórnia e faça um teste para um filme de Roger Corman!
Um avião roncou em algum lugar distante e ele mergulhou em sonolenta fantasia: Fomos dados como desaparecidos, nos quatro. A busca se espalha, a partir de Horlicks.
Um fazendeiro se lembra de ter visto passar um Camaro amarelo. "como um morcego, fugido do inferno". A busca centraliza-se na área do Lago Cascade. Pilotos particulares preparam-se para uma rápida checagem aérea, e um sujeito, — dirigindo acima do lago seu Tirin Bonanza, avista um rapazola na balsa, tem um rapaz, olá, um sobrevivente, um...
Randy surpreendeu-se junto à borda novamente, quase caindo, e tornou a esmurrar o nariz, gritando com a dor.
A coisa negra partiu como flecha para a balsa, imediatamente, apertando-se debaixo dela — talvez pudesse ouvir, sentir... ou qualquer coisa.
Randy esperou.
Desta vez, passaram-se quarenta e cinco minutos, antes da coisa surgir à vista.
A mente de Randy orbitava lentamente à claridade que ia aumentando. (você ama) sim, eu adoro torcer pelos Yankees e pelos Catfìsh, (você gosta dos Catfìsh), sim, eu gosto de... Rota 66, lembra-se do Corvette de George Maharis, Marfim Milner no Corvette, (você gosta de Corvette), sim, eu gosto do Corvette, (ele ama, você ama), o sol está tão quente, é como um vidro queimando, estava nos cabelos dela, é a luz que mais recordo, a luz do verão, luz (a luz do verão, ao entardecer).
Randy estava chorando.
Ele chorava, porque agora havia sido acrescentado algo novo... A cada vez que tentava sentar-se, a coisa deslizava para baixo da balsa. Portanto, ela não era totalmente estúpida; pressentia ou imaginava que podia agarrá-lo, enquanto estava sentado.
— Vá embora! — soluçou ele, dirigindo-se à grande verruga negra que flutuava na água. A cinqüenta metros de distância, zombeteiramente próximo, um esquilo saltitava de um lado para outro, no capô do Camaro de Deke. — Vá embora, por favor, vá para qualquer lugar, mas me deixe em paz! Não gosto de você! Não a amo!
A coisa não se movia. As cores começaram a girar através de sua superfície visível. (você me ama, você me ama)
Randy desviou os olhos e contemplou a praia, procurou socorro, mas lá não havia ninguém, absolutamente ninguém. Seu jeans continuava lá, uma perna virada pelo aveso, o forro branco do bolso aparecendo. Suas calças não davam mais a impressão de que seriam recolhidas por alguém. Pareciam relíquias.
Ele pensou: Se eu tivesse uma arma, agora poderia matar-me.
Ficou em pé na balsa.
O sol escondeu-se.
Horas mais tarde, a lua apareceu.
Não muito depois disso, os mergulhões-do-norte começaram a gritar.
Não muito depois disso, Randy se virou e olhou para a coisa negra na água. Não podia matar-se, mas talvez a coisa desse um jeito, sem que houvesse dor alguma; talvez fosse para isso que havia as cores. (você me ama você me ama você me ama)
Olhou para ela, e lá estava, flutuando, ao sabor das ondas.
— Cante comigo — grasnou Randy. — Posso torcer pelos Yankees das arquibancadas... Não tenho de me preocupar com professores... Estou tão alegre porque as aulas terminaram... Eu vou... cantar e gritar.
As cores começaram a formar-se e contorcer-se. Desta vez, Randy não desviou os olhos.
— Você ama? — sussurou ele.
Em algum ponto bem distante, através do lago vazio, um mergulhão-do-norte piou.
A EXCURSÃO
"Esta é a última chamada para a Excursão 701" — a agradável voz feminina ecoou através do Blue Concourse no Departamento Terminal Portuário de Nova York. O DTP não mudara muito nos últimos mais ou menos trezentos anos — continuava maltratado e um tanto amedrontador. A voz feminina automatizada talvez fosse o detalhe mais agradável no local. — "Todos os passageiros munidos de passagem deverão estar agora no salão-dormitório do Blue Concourse. Verifique se seus papéis de confirmação estão em ordem. Obrigada."
O salão-dormitório no andar de cima nada tinha de maltratado. Era atapetado de parede a parede em cinza-ostra. As paredes exibiam uma tonalidade branco casca-de-ovo e dela pendiam agradáveis quadros abstratos. Uma permanente calmante progressão de cores se encontrava e revoluteava no teto. Havia cem divãs no grande recinto, ordenadamente espaçados em fileiras de dez. Cinco atendentes da Excursão circulavam por ali, falando em voz baixa e animada, enquanto ofereciam copos de leite. A entrada ficava a um lado da sala, flanqueada por guardas armados e outro atendente da Excursão, que no momento checava os papéis de confirmação de um passageiro retardatário, um homem de negócios com expressão apoquentada e o World Times de Nova York dobrado debaixo de um braço. Na direção exatamente oposta, o piso descia em uma espécie de calha, com cerca de metro e meio de largura e talvez uns três de comprimento; essa passagem insinuava-se através de uma abertura sem portas, tendo uma vaga semelhança com um escorrega para crianças.
A família Oates jazia lado a lado em quatro divãs-Excursão, perto do final da sala. Mark Oates e Marilys, sua esposa, flanqueavam os dois filhos.
— Papai, vai me falar sobre a Excursão agora? — perguntou Ricky. — Você prometeu.
— Isso mesmo, pai, você prometeu — acrescentou Patrícia, com um agudo risinho sufocado, sem motivo algum.
Um homem de negócios com a corpulência de um touro olhou para eles e depois voltou a concentrar-se na pasta de papéis que examinava, enquanto jazia deitado de costas, os sapatos reluzentes ordenadamente juntos. De algum lugar, chegou o murmúrio surdo de conversas e o rumor de passageiros ajeitando-se nos divãs-Excursão.
Mark olhou para Marilys Oates e piscou. Ela piscou de volta, mas estava quase tão nervosa quanto Patty parecia. Por que não? pensou Mark. Era a Primeira Excursão para os três. Ele e Marilys haviam discutido as vantagens e inconveniências de uma mudança da família inteira por seis meses — desde que ele fora notificado pela Texaco Water de que seria transferido para a Cidade de Whitehead. Finalmente, decidiram que iriam todos e permaneceriam em Marte durante os dois anos em que Mark ficaria lá. Agora, observando a palidez de Marilys, ele se perguntou se ela lamentava a decisão.
Olhou para o relógio e viu que ainda faltava meia hora para a partida da Excursão.
Havia tempo suficiente para contar a história... e imaginou que isso deixaria as crianças menos nervosas. Quem sabe, talvez até acalmasse Marilys um pouco.
— Muito bem — decidiu-se.
Ricky e Pat o encaravam com seriedade. Ricky tinha doze anos e Pat nove. Disse novamente para si mesmo, que Ricky estaria atolado no pântano da puberdade e sua filha provavelmente teria seios em desenvolvimento, quando retornassem à terra. E de novo, achou difícil de acreditar. As crianças freqüentariam a pequena Escola Mista de Whitehead, juntamente com os cento e poucos filhos de engenheiros e pessoal da companhia de petróleo que lá estavam; seu filho bem poderia engajar-se em uma viagem de campanha geológica a Fobos, não muitos meses distante. Era difícil de acreditar... mas verdadeiro.
Querem saber? pensou torcidamente. Talvez isso também me traga certas vantagens.
— Até onde sabemos — começou ele — a Excursão foi inventada há cerca de trezentos e vinte anos atrás, por volta de 1987, por um indivíduo chamado Victor Carune. Ele fez isso como parte de um projeto privado de pesquisa, financiado por algum dinheiro do governo... e, eventualmente, o governo tomou as rédeas, claro está. Por fim, a coisa foi passada para o governo e também para as companhias de petróleo. O motivo de ignorarmos a data exata, é porque Carme era um tanto excêntrico...
— Está querendo dizer que ele era maluco, papai? — perguntou Ricky.
— Excêntrico significa só um pouquinho maluco, meu bem — disse Marilys, enquanto sorria para Mark, por cima das crianças.
Ele pensou que sua esposa agora parecia algo menos nervosa.
— Oh!
— De qualquer modo, ele fez experiências com o processo por bastante tempo, antes de informar ao governo o que descobrira — prosseguiu Mark — mas só deu a informação, porque estava ficando sem dinheiro e eles não pretendiam continuar a financiá-lo.
— Seu dinheiro prontamente devolvido — disse Pat, tornando a dar aquela risadinha aguda.
— Exato, querida — disse Mark e desarrumou-lhe o cabelo delicadamente.
No extremo oposto do recinto, ele viu uma porta deslizar silenciosamente dando passagem a mais dois atendentes, trajando os vivos macacões do Serviço Excursão e empurrando uma mesa rolante. Sobre ela, havia um bocal de aço inoxidável preso a uma mangueira de borracha; debaixo da mesa, esteticamente escondidas, Mark sabia que havia duas garrafas de gás; na sacola de malhas presa ao lado, estavam cem máscaras descartáveis. Mark continuou falando, não querendo que os seus vissem os representantes do Letes antes do momento oportuno.
E, se conseguisse tempo para relatar toda a história. eles acolheriam de braços abertos os aplicadores do gás.
A alternativa também devia ser considerada.
— Naturalmente, vocês sabem que a Excursão é teletransporte, nem mais e nem menos — disse ele. — Por vezes, na Química e Física das universidades, dão-lhe o nome de Processo Carune, mas em realidade é teletransporte, tendo sido o próprio Carune a acreditar-se no que dizem — que o denominou "a Excursão". Ele apreciava a Ficção científica e há uma história, escrita por um homem chamado Alfred Bester e intitulada As estrelas são o nosso destino, na qual o autor emprega a palavra "excursão" como teletransporte. Só que, no livro, pode-se fazer a Excursão apenas pensando nela, o que evidentemente não podemos.
Os atendentes agora fixavam a máscara ao bocal de aço e a estendiam a uma mulher idosa, no extremo oposto do recinto. Ela a tomou, inalou uma vez e caiu em seu divã, imóvel e flácida. Sua saia subiu um pouco, revelando uma coxa bamba, semelhante a um mapa rodoviário de veias varicosas. Um atendente gentilmente ajeitou a saia para ela, enquanto o outro se desfazia da máscara usada e afixava uma nova. Era um processo que fazia Mark pensar nos copos plásticos dos quartos de motel. Desejava ardentemente que Pat se acalmasse um pouquinho: vira crianças que precisavam ser subjugadas em seus divãs e que, por vezes, gritavam enquanto a máscara de borracha lhes cobria o rosto. Não era uma reação anormal em uma criança, pensou ele, porém era uma visão desagradável e não queria que acontecesse a Patty. No tocante a Ricky, sentia-se mais confiante.
— Creio que se poderia dizer que a Excursão surgiu no exatíssimo momento — recomeçou. Falava para Ricky, mas estendeu o braço e segurou a mão da filha. Os dedos de Pat se fecharam sobre os dele, com imediata e amedrontada pressão. A palma dela estava fria, suando ligeiramente. — O mundo vinha ficando sem petróleo e a maioria do que sobrara pertencia aos povos dos desertos do Oriente Médio, que o usavam como arma política. Eles tinham formado um cartel petrolífero a que denominaram OPEP...
— O que é um cartel, papai? — perguntou Patty.
— Bem, é um monopólio — respondeu Mark.
— Como um clube, meu bem — disse Marilys. — E a pessoa só podia entrar nesse clube se tivesse quantidades de petróleo.
— Oh!
— Não tenho tempo para explicar toda a confusão — disse Mark. — Vocês vão estudar alguma coisa disso na escola, mas foi uma confusão — e deixemos como está. Se você tinha um carro, só podia dirigi-lo dois dias por semana, além do que, a gasolina custava quinze pratas antigas o galão...
— Puxa! — exclamou Ricky. — Ela hoje só custa quatro centavos o galão, não é, pai?
Mark sorriu.
— Aí está o motivo de estarmos indo para onde vamos. Ricky. Em Marte há petróleo bastante para durar quase oito mil anos, enquanto que em Vênus há para outros vinte mil... Enfim, o petróleo não é mais tão importante. Agora, aquilo de que mais precisamos é...
— Água! — gritou Patty.
O homem de negócios ergueu os olhos de sua papelada e sorriu para ela por um instante.
— Exato — disse Mark. — Porque nos anos entre 1960 e 2030, envenenamos a maioria da água que possuíamos. A primeira extração de água das calotas de gelo marcianas foi chamada...
— Operação Canudinho — disse Ricky.
— Certo. Em 2045, mais ou menos. Contudo, muito antes disso, a Excursão estava sendo usada para encontrar fontes de água potável aqui na terra. Agora, a água é nossa principal exportação marciana... ficando o petróleo estritamente em posição secundária. Contudo, era importante naquela época.
As crianças assentiram.
— A questão é que essas coisas sempre estiveram lá, mas só conseguíamos obtê-las por causa da Excursão. Quando Carune inventou este processo, o mundo descambava para uma nova idade média. No inverno anterior, mais de dez mil pessoas morreram congeladas nos Estados Unidos apenas, já que não havia energia suficiente para aquecê-las.
— Oh, puxa! — exclamou Patty, em tom prosaico.
Mark olhou para a direita e viu os atendentes falando com um homem de ar tímido, tentando convencê-lo. Por fim, ele aceitou a máscara e pareceu cair morto em seu divã, segundos mais tarde. Marinheiro de primeira viagem, pensou Mart. A gente percebe logo.
— Para Carune, a coisa começou com um lápis... algumas chaves... um relógio de pulso... e então, alguns ratinhos. Os ratinhos lhe mostraram que havia um problema...
Victor Carune voltou a seu laboratório em uma vertiginosa febre de excitamento.
Pensou que agora sabia como Morse, Alexander Graham Bell e Edison se haviam sentido... só que isto era maior do que todos eles e, por duas vezes, quase acabou com a caminhonete, ao retornar da loja de animais de estimação em New Paltz, onde gastara seus últimos vinte dólares na compra de nove ratinhos brancos. O que lhe restava no mundo eram os noventa e três centavos no bolso direito do paletó e os dezoito dólares em sua conta de poupança... mas isto não lhe ocorreu. E, se ocorresse, certamente não o preocuparia.
O laboratório ficava em um celeiro restaurado, no final de uma estrada de terra batida com um quilômetro de comprimento, partindo da Rota 26. Foi ao manobrar para a estradinha, que quase espatifou sua caminhonete Brat pela segunda vez. O tanque de gasolina estava quase vazio e não haveria mais combustível para dez dias e duas semanas, porém isto tampouco o preocupava. Sua mente estava em delicioso torvelinho.
O que acontecera não era totalmente inesperado. Não. Um dos motivos que levaria o governo a ajudá-lo com a mísera subvenção de vinte mil dólares anuais, era porque a possibilidade irrealizada sempre estivera presente no campo de transmissão de partículas.
No entanto, ter de acontecer assim... de repente... sem nenhum aviso... e movido, por menos eletricidade do que a necessária ao funcionamento de uma TV colorida... Deus! Cristo!
O Brat estacou com uma guinchada de freios à entrada de terra nos fundos do celeiro, Carune agarrou a caixa sobre o assento sujo ao seu lado, aferrando-a pelas alças (na caixa havia cães, gatos, hamsters e peixinhos dourados, mais a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO STACKPOLE'S) e correu para as grandes portas duplas. Do interior da caixa brotavam rumores das corridinhas e movimentos de suas cobaias.
Ele tentou empurrar uma das enormes portas em seus trilhos corrediços, mas quando ela não se moveu, recordou que a trancara. "Merda!" exclamou Carune em voz alta, enquanto procurava as chaves no bolso. O governo exigira que o laboratório ficasse sempre trancado — era uma das condições sob as quais soltava seu dinheiro — mas Carune vivia esquecendo.
Encontrou as chaves e, por um momento, ficou apenas olhando para elas, hipnotizado, passando a polpa do polegar sobre as chanfraduras na chave de ignição da Brat. Tornou a pensar: Deus! Cristo! Depois, seus dedos percorreram as chaves no molho, até encontrarem a Yale que abria a porta do celeiro.
Assim como o primeiro telefone havia sido usado inadvertidamente — Bell gritando nele, "Watson, venha cá!" ao derramar algum ácido em seus papéis e em si mesmo — também o primeiro ato de teletransporte ocorrera por acidente. Victor Carune teletransportara os dois primeiros dedos de sua mão esquerda através dos cinqüenta metros de largura do celeiro.
Carune havia instalado dois portais nos lados opostos do celeiro. Em seu final, havia uma arma elementar de íons, do tipo encontrado em qualquer loja de artigos eletrônicos, por menos de quinhentos dólares. Na outra extremidade, bem após o portal mais distante — ambos retangulares e do tamanho de um livro de bolso — havia uma câmara fosca. Entre os dois portais ficava o que parecia uma cortina de chuveiro opaca, exceto que cortinas de chuveiro não são feitas de chumbo. A idéia era disparar os íons através do Portal Um, contorná-lo e vê-los passando através da câmara fosca logo após o Portal Dois, com a cortina blindada entre os dois, para provar que os íons tinham sido realmente transmitidos. Só que, nos dois últimos anos, o processo funcionara apenas duas vezes — e Carune não tinha a menor idéia de por que isso ocorrera.
Enquanto ajustava a pistola de íons, seus dedos haviam deslizado através do portal — em geral não havia qualquer problema, mas nessa manhã, seu quadril também roçara na cavilha interruptora, sobre o painel de controle à esquerda do portal. Carune não percebeu o que tinha acontecido — o mecanismo deixou escapar apenas o menos audível zumbido — até ele sentir um formigamento nos dedos.
"Não foi como um choque elétrico", escreveu em seu primeiro e último artigo a respeito, antes que o governo lhe fechasse a boca. O artigo foi publicado em Mecânica Popular, entre várias outras publicações. Carune o vendeu por setecentos e cinqüenta dólares, em um desesperado esforço para manter a Excursão um assunto de empreendimento privado. "Não aconteceu aquele desagradável formigamento de quando pegamos em um fio elétrico desencapado, por exemplo. Foi mais como a sensação de colocar-se a mão no corpo de uma pequena máquina que funcionasse a todo vapor. A vibração é tão rápida e leve que, literalmente, dá essa sensação de formigamento.
"Olhei então para o portal, e vi que meu indicador sumira, cortado diagonalmente através da falange média. O segundo dedo desapareceu pouco acima disso. Em adição, a parte em que fica a unha do terceiro dedo havia sumido."
Carune puxara a mão instintivamente, gritando. Escreveu mais tarde, ser tamanha a sua certeza de que o sangue jorraria, que chegou a vê-lo, em alucinação. Por um ou dois momentos. Seu cotovelo bateu na pistola de íons e a derrubou da mesa.
Ficou parado com os dedos na boca, verificando que continuavam ali, e inteiros. O pensamento de que andara trabalhando demais lhe passou pela cabeça. Pensou também outra coisa: o último conjunto de alterações podia ter... podia ter provocado algo.
Não recolocou os dedos de volta. Aliás, em toda a sua vida. Carune só Excurcionou uma vez mais.
A princípio, ele nada fez. Deu uma longa e errante caminhada em volta do celeiro, passando as mãos pelos cabelos e perguntando-se se deveria ligar para Carson, em Nova Jersey, ou talvez para Buffington, em Charlotte. Carson não aceitaria um interurbano a cobrar, aquele sovina nojento, mas Buffington provavelmente aceitaria. Então, teve uma idéia súbita e correu até o Portal Dois, pensando que, se seus dedos realmente haviam cruzado o celeiro, poderia haver algum sinal disso.
Não havia sinal algum, claro. O Portal Dois ficava no alto de três caixotes de laranjas Pomona empilhados, assemelhando-se a um daqueles brinquedos de guilhotina, sem a lâmina. Em um lado de sua moldura de aço inoxidável ficava uma tomada, com um cordel que ia até o terminal de transmissão, este pouco mais do que um transformador de partículas, ligado a uma linha de alimentação de computador.
Isto lhe recordava...
Carune olhou para seu relógio e viu que passavam quinze minutos das onze. Seu envolvimento com o governo consistia de dinheiro curto, mais tempo de computador, o qual era infinitamente valioso. Sua ligação com o computador durava até três horas daquela tarde e depois seria adeus, até a segunda-feira. Precisava mover-se, tinha que fazer alguma coisa...
"Tornei a olhar para a pilha de caixotes", escreveu ele, em seu artigo para Mecânica Popular, "e então olhei para as polpas de meus dedos. Claro, a prova estava ali.
Contudo, pensei então, aquilo não convenceria ninguém, além de mim mesmo. No começo, entretanto, é apenas a nós próprios que temos de convencer.
— Qual era o problema. Pai? — perguntou Ricky.
— Sim, papai, qual era? — acrescentou Patty.
Mark sorriu de leve. Estavam todos atentos agora, inclusive Marilys. Quase haviam esquecido onde estavam. Pelo canto do olho, ele podia ver os atendentes da Excursão empurrando silenciosa e lentamente seu carrinho por entre os Excursionistas, colocando-os para dormir. O processo nunca era tão rápido no setor civil como era no militar, ele havia descoberto: os civis ficavam nervosos e queriam discutir o assunto. O bocal e a máscara de borracha recordavam demais as salas de cirurgia dos hospitais, onde o cirurgião, com suas facas, espreitava de algum ponto atrás da anestesista, esta com sua seleção de gases em recipientes de aço inoxidável. Por vezes havia pânico, histeria, sempre existindo alguns que simplesmente tinham acessos de nervos. Mark observou dois destes, enquanto falava com os filhos: dois homens se haviam limitado a abandonar seus divãs, caminharam até a entrada, sem o menor alvoroço, soltaram os papéis de confirmação espetados em suas lapelas. devolveram-nos e saíram, sem olhar para trás. Os atendentes da Excursão recebiam instruções estritas para evitar discussões com aqueles que iam embora. Sempre havia gente na fila de espera, às vezes quarenta ou cinqüenta pessoas, esperando contra a esperança. Quando iam embora aqueles que não podiam suportar a situação, permitia-se que entrassem as pessoas da fila, com suas próprias confirmações espetadas nas camisas.
— Carune encontrou duas lascas em seu dedo indicador — disse ele aos filhos. — Tirou-as e as deixou de lado. Uma se perdeu. mas a outra pode ainda ser vista no Anexo Smithsoniano, em Washington. Foi colocada em uma caixa de vidro hermeticamente lacrada, perto das rochas lunares que os primeiros viajantes espaciais trouxeram da lua...
— A nossa lua ou uma de Marte, papai? — perguntou Ricky.
— A nossa — respondeu Mark, sorrindo de leve. — Foi lançado a Marte apenas um foguete tripulado por homens, Ricky. Tratava-se de uma expedição francesa, por volta de 2030.
De qualquer modo, eis por que um mero e velho pedacinho de madeira, vindo de um caixote de laranjas, está no Instituto Smithsoniano. Foi o primeiro objeto em nosso poder que realmente atravessou o processo do teletransporte — Excursionou — através do espaço.
— O que aconteceu depois? — perguntou Patty.
— Bem, segundo a história, Carune correu...
Carune correu para o Portal Um e ficou lá um instante, o coração em disparada, sem fôlego. Preciso ficar calmo, disse para si mesmo. Tenho que refletir no que houve. Se ficar nervoso, não posso ampliar meu tempo.
Ignorando deliberadamente a premência de seu cérebro, que lhe gritava para apressar-se e fazer alguma coisa, ele pegou o cortador de unhas no bolso e usou a ponta da lixa para arrancar a lasca do dedo indicador. Deixou-o cair no papel branco da embalagem interna de uma barra de chocolate que havia comido, enquanto lidava com o transformador e tentava aumentar sua capacidade aferente (aparentemente, teve êxito nisso, além de seus sonhos mais impetuosos). Uma lasca rolou do papel e ficou perdida, mas a outra terminou no Instituto Smithsoniano, trancada em uma caixa de vidro, distanciada do público por uma barreira de grossas cordas de veludo e observada, vigilante e eternamente, por uma câmara de TV em circuito fechado, monitorizada por computador.
Terminada a extração da lasca, ele ficou um pouco mais calmo. Um lápis. Era tão bom quanto qualquer outra coisa. Pegou um, ao lado do quadro de avisos sobre a prateleira acima dele e o passou delicadamente pelo Portal Um. O lápis desapareceu limpamente, centímetro por centímetro, como algo em uma ilusão de óptica ou em um truque de excelente mágico. Havia a inscrição EBERHARD FABER N.° 2 em um de seus lados, letras negras estampadas em madeira pintada de amarelo. Quando empurrou o lápis até tudo — exceto EBERH — haver desaparecido, ele deu a volta para o outro lado do Portal Um. Espiou.
Viu o lápis como que amputado, como se perfeitamente cortado por uma faca. Tateou o lugar onde deveria estar o resto do lápis e, naturalmente, nada havia. Correu através do celeiro até o Portal Dois, e lá estava a parte que faltava, jazendo sobre o caixote superior. Com o coração batendo tão forte que parecia sacudir todo o seu peito, Carune agarrou o lápis pelo lado da ponta afiada e o puxou pelo restante da travessia.
Ergueu-o no ar, olhou para ele. De repente, apanhou-o e escreveu FUNCIONA! em um pedaço de tábua do celeiro. Escreveu com tanta força, que a ponta do lápis se quebrou na última letra. Carune começou a rir estridentemente no celeiro vazio; ria tão alto, que espantou as andorinhas adormecidas e elas começaram a voar por entre os altos caibros do teto.
— Funciona! — bradou, e correu de volta ao Portal Um. Agitava os braços, com o lápis quebrado preso no punho fechado. — Funciona! Funciona! Está me ouvindo, Carson, seu filho da puta? Funciona E EU CONSEGUI!
— Cuidado com o que diz às crianças, Mark — censurou Marilys.
Mark deu de ombros.
— Supõe-se que foi o que ele disse.
— Bem, não poderia ser mais seletivo ao repetir?
— Um urso faz cocô na floresta? — disse Mark, logo em seguida tapando a boca com a mão.
As duas crianças riram freneticamente e Mark ficou satisfeito ao notar que aquele tom agudo desaparecera da voz de Patty. Após um momento tentando ficar séria, Marilys começou a rir também.
Em seguida, foram as chaves; Carune simplesmente as jogou através do portal. Estava começando a pensar com coerência de novo e pareceu-lhe que a primeira coisa a descobrir, seria se o processo produzia coisas na outra extremidade, exatamente como haviam sido antes ou se, de algum modo, elas sofriam alterações na viagem.
Viu as chaves irem e desaparecerem; exatamente no mesmo instante, ouviu-as tilintando no caixote do outro lado do celeiro. Correu até lá — agora, em realidade ia trotando — e, de passagem, fez uma pausa para jogar a cortina de chumbo de volta a seus trilhos.
Agora não precisava dela nem da pistola de íons. Dava no mesmo, porque a pistola de íons ficara irremediavelmente destroçada.
Apanhou as chaves, foi à fechadura que o governo o forçara a colocar na porta e experimentou a chave Yale. Funcionou perfeitamente. Experimentou a chave da casa.
Também funcionou. O mesmo aconteceu com as chaves de seu fichário e a que dava partida à caminhonete Brat.
Carune botou as chaves no bolso e tirou seu relógio. Era um Seiko LC de quartzo, com uma calculadora embutida abaixo do mostrador digital — vinte e quatro diminutos botões que lhe permitiam tudo, de adição a subtração, passando pela raiz quadrada. Uma delicada peça de mecanismo — e, com a mesma importância, também um cronômetro.
Carune colocou o relógio diante do Portal Um e o empurrou com um lápis.
Correu através do celeiro e o apanhou. Antes de empurrar o relógio pela passagem, ele marcava 11:31:07. Agora, marcava 11:31:49. Muito bom. Direto ao dinheiro, mas ele devia ter ali um assistente para confiar o fato de que não houvera nenhum tempo ganho, em absoluto. Bem, não importava. Logo o governo o cercaria de assistentes.
Experimentou a calculadora. Dois e dois continuavam sendo quatro, oito dividido por quatro ainda dava dois, a raiz quadrada de onze, como sempre, resultava ser 3,3166247... e por aí adiante.
Foi quando ele decidiu que chegara a vez dos ratinhos.
— O que aconteceu com os ratinhos, papai? — perguntou Ricky.
Mark vacilou ligeiramente. Aqui, precisaria tomar certa cautela, se não quisesse amendrontar seus filhos (para não falar na esposa) tornando-os histéricos, minutos antes de sua primeira Excursão. A questão principal era deixá-los com a certeza de que tudo agora estava bem, que o problema havia sido resolvido.
— Como falei, houve um pequeno problema...
Sim. Horror, loucura e morte. Que tal isso como pequeno problema garotos?
Carune tirou da prateleira a caixa com a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO STACKPOLE'S e olhou para seu relógio. Droga, havia colocado o mostrador ao contrário. Virou-o para a posição correta e viu que passavam quinze minutos das duas. Dispunha ainda de uma hora e quinze minutos para o computador.
Como o tempo vôa quando a gente se diverte, pensou, e riu desatinadamente.
Abriu a caixa, esticou o braço e pegou um chiante ratinho branco pela cauda. Colocou-o diante do Pontal Um e disse, "Vá, ratinho." O ratinho correu prontamente para um lado do caixote de laranjas sobre o qual se situava o portal e disparou em desabalada corrida pelo chão.
Praguejando, Carune o caçou e chegou realmente a pegá-lo, antes que ele se espremesse por uma fenda entre duas tábuas e desaparecesse.
— MERDA! — gritou, tornando a correr para a caixa dos ratos.
Chegou em tempo de jogar para dentro dela dois fugitivos em potencial. Pegou um segundo rato, agora segurando-o pelo corpo (era um físico de profissão, ignorando as maneiras de lidar com ratos) e bateu a tampa da caixa, trancando-a.
Com este, Carune não facilitou. O rato agarrou-se à sua palma, de pouco adiantando; terminou caminhando com suas próprias patinhas e atravessou o Portal Um. Carune o ouviu aterrar imediatamente sobre os caixotes no lado oposto do celeiro.
Desta vez ele correu velozmente, recordando com que facilidade o primeiro rato lhe fugira. Não precisava ter-se preocupado. O rato branco apenas se agachava no caixote, os olhos opacos, os lados do corpo aspirando fracamente. Carune diminuiu a corrida, aproximando-se com cautela. Não era um homem acostumado a manipular ratos, porém não precisa ser um veterano de quarenta e um anos, para ver que ali havia algo terrivelmente errado.
("O rato não se sentia muito bem após a travessia, disse Mark Dates aos filhos, com um amplo sorriso, que somente sua esposa percebeu ser falso.)
Carune tocou o rato. Era como tocar algo inerte — talvez um molho de palha ou serragem ensacada — exceto pelas laterais — aspirando. O rato não olhou para ele; seus olhos estavam fixos diretamente à frente. Carune empurrara um animalzinho vivo, esperto e guinchante pelo Portal Um; ali havia o que parecia um simulacro de rato.
Então, estalou os dedos diante dos pequenos olhos rosados do rato. Ele piscou... e caiu morto, deitado de banda.
— Então, Carune decidiu experimentar com outro rato — disse Mark.
— O que aconteceu ao primeiro? — perguntou Ricky.
Mark exibiu novamente aquele vasto sorriso.
— Foi aposentado com todas as honras — respondeu.
Carune encontrou um saco de papel e dentro dele colocou o rato. Pretendia levá-lo para Mosconi, o veterinário, ainda aquela noite. Mosconi o dissecaria e lhe diria se os órgãos do bichinho tinham ficado avariados. O governo desaprovaria a intromissão de um cidadão privado em um projeto que seria classificado como tríplice altamente secreto, assim que eles fossem informados do sucedido. Tetas robustas, presumia-se que a gata dissera aos gatinhos que se queixavam da quentura do leite. Carune decidira que o Grande Pai Branco em Washington só seria informado da brincadeira o mais tarde possível. Eles bem podiam esperar, por conta da insignificante ajuda que o Grande Pai Branco lhe dera. Tetas robustas.
Então, recordou que Mosconi morava onde o diabo perdeu as botas, do outro lado de New Paltz. Não havia gasolina suficiente no Brat para cruzar metade da cidade... quanto mais para a volta.
Contudo, já eram 2:03 — sobrava-lhe menos de uma hora para o computador. Decidiu preocupar-se mais tarde com a maldita dissecação.
Carune construiu uma rampa improvisada, levando à entrada do Portal Um (em realidade, o primeiro Escorrega-Excursão, disse Mark as crianças, e Patty achou deliciosamente divertida a idéia de um Escorrega-Excursão para ratos) e deixou cair nele um novo rato branco. Bloqueou a extremidade final com um livro grande e, após alguns momentos de farejar e sondar sem destino, o rato cruzou o portal e desapareceu.
Carune correu para o outro lado do celeiro.
O rato estava morto.
Não havia sangramento, nenhuma inchação no corpo indicando que uma mudança radical de pressão promovera a ruptura de algo interno. Carune supôs que a carência de oxigênio poderia...
Meneou a cabe, impaciente. O rato branco levara apenas escassos segundos na travessia; seu próprio relógio informara que o tempo permanecia uma constante no processo ou quase isso.
O segundo rato branco se juntou ao primeiro, no saco de papel. Carune apanhou um terceiro (um quarto, se contarmos o felizardo que escapara pela fenda entre as tábuas), perguntando-se pela primeira vez o que acabaria antes — seu tempo de computador ou seu suprimento de ratos.
Este, ele segurou firmemente em torno do corpo, forçando suas ancas através do portal.
No outro lado do celeiro, viu as ancas reaparecerem... apenas as ancas. As patinhas desincorporadas arranhavam freneticamente a madeira rústica do caixote.
Carune puxou o rato de volta. Nada de catatonia agora; o rato mordeu a pele de ligação entre seu polegar e o indicador, com força bastante para tirar sangue. Rápido, deixou o rato na caixa EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇAO STACKPOLE'S e usou o vidrinho de água oxigenada em seu estojo de pronto-socorro do laboratório, a fim de desinfetar a mordida.
Colocou um Band-Aid sobre ela, depois vasculhou o local até encontrar um par de grossas luvas de trabalho. Podia sentir o tempo esgotar-se, esgotar-se, esgotar-se. Agora eram 2:11 da tarde.
Pegou outro rato e o empurrou de costas pela passagem — todo ele. Correu para o Portal Dois. Este rato viveu por quase dois minutos, chegando mesmo a caminhar um pouco.
Depois cambaleou sobre o caixote de laranjas Pomona, caiu de banda, esforçou-se fracamente para ficar sobre os pés e terminou caindo agachado. Carune estalou os dedos perto da cabeça do animalzinho e ele conseguiu dar uns quatro passos, antes de tornar a cair de banda. A aspiração nos lados do corpo diminuiu... diminuiu... e parou. Ele estava morto.
Carune sentiu um calafrio.
Voltou, pegou outro rato e o empurrou pela metade no portal, a cabeça primeiro. Viu-o reaparecer no outro lado, apenas a cabeça... depois o pescoço e o peito. Cautelosamente, afrouxou a pressão no corpo do rato, pronto a agarrá-lo, se ficasse arisco. Não ficou.
Apenas permaneceu ali, metade em um lado do celeiro, metade no outro.
Carune correu para o Portal Dois.
O rato estava vivo, porém seus olhos rosados haviam ficado vidrados e apáticos. Os bigodes não se moviam. Dando volta ao portal, Carune teve uma visão espantosa; como vira o lápis cortado ao meio, assim via o rato. Via as vértebras de sua pequenina espinha terminarem abruptamente em redondos círculos brancos; viu seu sangue se movendo nos vasos; viu o tecido se movendo suavemente com a maré da vida, em torno de seu minúsculo esôfago. Se aquilo não servisse para nada mais, pensou (e escreveu mais tarde, em seu artigo para Mecânica Popular), pelo menos seria uma formidável ferramenta para diagnósticos.
Então, percebeu que o movimento de maré nos tecidos havia cessado. O rato tinha morrido.
Carune empurrou o rato pelo focinho, não gostando da sensação daquilo, e o deixou cair no saco de papel, com os companheiros. Chega de ratos brancos, decidiu. Os ratos morrem. Morrem quando fazem a travessia de corpo inteiro, e morrem quando só fazem metade da travessia, com a cabeça primeiro. Fazendo metade da travessia, com as ancas primeiro, eles permanecem espertos.
Diabo, o que há aqui?
Imput sensorial, pensou, quase ao acaso. Quando atravessam, eles vêem alguma coisa... ouvem alguma coisa... tocam alguma coisa... Céus, talvez até cheirem alguma coisa... que literalmente os mata. O que será?
Ele não fazia a menor idéia — mas pretendia descobrir.
Ainda dispunha de quarenta minutos, antes que COMLINK lhe fechasse a fonte de dados básicos. Desatarrachou o termômetro da parede ao lado da porta de sua cozinha, trotou de volta ao celeiro com ele e o colocou através dos portais. O termômetro marcava 83.° F; chegou do outro lado marcando os mesmos 83° F. Carune vasculhou o aposento sobressalente, onde guardava alguns brinquedos para distrair os netos. Entre eles, encontrou um pacote de bolas de gás. Soprou uma, amarrou-a e a passou pelo portal. Ela chegou inteira e perfeita — um começo na resposta à sua pergunta sobre uma mudança súbita de pressão, de algum modo causada pelo que já pensava como o processo Excursional.
Faltando cinco minutos para a hora fatal, ele correu até sua casa e apanhou o aquário com seus peixes dourados (no interior, Percy e Patrick agitavam as caudas e nadavam inquietos). Correu de volta ao celeiro, e lá passou o aquário através do Portal Um.
Correu até o Portal Dois, onde seu aquário estava sobre o caixote. Patrick flutuava de ventre para cima; Percy nadava indolente, perto do fundo do aquário, como que estonteado. Um momento depois, também boiava de barriga para cima. Carune estendia o braço para apanhar o aquário, quando Percy teve um leve movimento de cauda e reiniciou seu lânguido nadar. Lentamente, pareceu eliminar qualquer efeito havido e, quando Carune retornou da Clínica Veterinária de Mosconi, às nove daquela noite, Percy parecia tão animado como sempre.
Patrick estava morto.
Carune deu a Percy uma ração dupla de alimento para peixes e a Patrick um sepultamento de herói, no jardim.
Depois que o computador ficou fechado para ele por aquele dia, Carune decidiu ir de carona ao encontro de Mosconi. Assim, às quatro e quinze daquela tarde, estava parado no acostamento da Estrada 26, de calças jeans e um paletó esporte simples, com o polegar à mostra e um saco de papel na outra mão.
Por fim, um rapazola dirigindo um Chevette não muito maior do que uma lata de sardinhas, parou junto dele e Carune entrou.
— O que tem nesse saco, amigo?
— Um punhado de ratos mortos — respondeu Carune.
Eventualmente, outro carro parou. Quando o fazendeiro atrás do volante o interrogou sobre o saco, ele lhe disse que levava dois sanduíches.
Mosconi dissecou um dos ratos imediatamente e concordou em dissecar os outros mais tarde, depois dizendo os resultados por telefone. A conclusão inicial não foi muito encorajadora; até onde o veterinário podia dizer, o rato que abrira estava perfeitamente saudável, excetuando-se o fato de encontrar-se morto.
Deprimente.
— Victor Carune era excêntrico, mas não um tolo — disse Mark. Os atendentes da Excursão agora estavam bem perto e ele supôs que precisaria apressar-se... ou terminaria sua história na Sala do Despertar, na Cidade Whitehead. — Tomando carona ao voltar para casa aquela noite — e ele teve que fazer a pé a maioria do trajeto, segundo diz a história — percebeu que talvez houvesse resolvido um terço da crise de energia, em uma só penada. Todas as mercadorias que tinham sido transportadas por trem, caminhão, barco e avião até aquele dia, podiam ser Excursionadas. Escrevia-se uma carta para um amigo em Londres, Roma ou Senegal, e ele a receberia logo no dia seguinte — sem que se precisasse queimar dez gramas de petróleo. Nós aceitamos isso como coisa certa, porém era uma grande coisa para Carune, acreditem. E para qualquer pessoa também.
— Sim, mas o que aconteceu aos ratos, papai? — perguntou Ricky.
— Foi a pergunta que Carune se fez muitas vezes — disse Mark — porque também percebeu que, se pessoas pudessem usar a Excursão, isso resolveria quase toda a crise de energia.
Além disso, teríamos capacidade de conquistar o espaço. Em seu artigo na Mecânica Popular, ele declarou que até mesmo as estrelas finalmente poderiam ser nossas. E a metáfora que Carune usou, foi de cruzar-se um riacho raso sem molhar-se os sapatos.
Apanha-se uma pedra grande, que é atirada ao riacho, depois outra pedra, atirada à frente da primeira, também dentro do riacho. Uma terceira pedra é atirada à frente da segunda, no riacho, até conseguir-se uma trilha de pedras por todo o trajeto, através do riacho... ou, neste caso, através do sistema solar, talvez mesmo da galáxia.
— Não estou entendendo bem — disse Patty.
— É porque você tem miolos de galinha — disse Ricky, debochado.
— Não tenho! Papai, Ricky disse...
— Crianças, parem com isso — disse Marilys, com delicadeza.
— Carune previu com acerto o que tem acontecido — disse Mark. — Naves foguete de controle remoto, programadas para pousar, primeiro na lua, depois em Marte, a seguir em Vênus e nas luas exteriores de Júpiter... em realidade, programadas apenas para efetuarem uma coisa, após o pouso...
— Instalar uma estação-Excursão para astronautas — disse Ricky.
Mark assentiu.
— E, atualmente, há postos científicos avançados por todo o sistema solar. Um dia, muito depois de havermos morrido, é possível, inclusive, que haja outro planeta para nós.
Temos naves-Excursão a caminho de quatro diferentes sistemas estelares, com seus próprios sistemas solares... porém ainda vão demorar muito, muitíssimo tempo a chegar lá.
— Quero saber o que aconteceu aos ratinhos — disse Patty, impaciente.
— Bem, eventualmente, o governo interveio na questão — continuou Mark. — Carune reteve as informações o mais que pôde, mas finalmente eles farejaram o ocorrido e aterraram em cima dele, com os dois pés. Carune passou a chefe nominal do projeto Excursão, até falecer dez anos mais tarde, porém a verdade é que nunca mais ficou encarregado do mesmo.
— Puxa! — exclamou Ricky. — Coitado dele!
— Pois virou um herói — disse Patrícia. — Está em todos os livros de História, como o Presidente Lincoln e o Presidente Hart.
Tenho certeza de que isso é um grande consolo para ele... onde quer que esteja, pensou Mark, e então prosseguiu, omitindo cuidadosamente as partes mais cruas.
Tendo sido encostado à parede pela crise energética em espiral ascendente, o governo entrou realmente com os dois pés na questão. Eles queriam a Excursão funcionando em base rentável o mais breve possível, isto é, ontem. Enfrentando o caos econômico e um provável, crescente quadro de anarquia e fome maciça na década de 90, somente um desesperado patrocínio de causa fez com que protelassem a proclamação da Excursão, antes que fosse concluída uma exaustiva análise espectográfica dos artigos que haviam Excursionado. Encerradas as análises que não revelaram modificações na estrutura dos artefatos Excursionados — foi anunciada a existência da Excursão, com aplausos internacionais. Por uma vez demonstrando inteligência (afinal de contas, a necessidade é mãe da invenção), o governo dos E.U.A. colocou Young e Rubicam incumbidos das relações públicas.
Foi aí que começou o mito fabricado em torno de Victor Carune, um homem idoso e um tanto peculiar, que tomava banho talvez duas vezes na semana e só trocava de roupas quando se lembrava disso. Young e Rubicam, juntamente com as agências que os seguiam, transformaram Carune em uma mescla de Thomas Edison, Eli Whitney, Pecos Bill e Flash Gordon. O humor negro em tudo isto (e Mark Oates não transmitiu esta parte à família), era que Victor Carune podia, inclusive, estar morto ou insano; dizem que a arte imita a vida, e Carune estaria familiarizado com a novela de Robert Heinlein, sobre os sósias de personalidades, aparecendo aos olhos do público.
Victor Carune era um problema; um importuno problema que não cessava. Ele era um tagarela andarilho, um remanescente dos Ecológicos Anos Sessenta uma época em que ainda havia suficiente energia flutuando no ambiente, permitindo o luxo de caminhadas.
Por outro lado, aqueles eram os Irritantes Anos Oitenta, com nuvens de carvão tisnando o céu e uma longa faixa do litoral californiano destinada a ficar desabitada por talvez sessenta anos, devido a um "desvio" nuclear.
Victor Carune permaneceu um problema até cerca de 1991 — e então se tornou uma pessoa não questionante, sorridente, tranqüila, avoenga; uma figura que os filmes dos noticiários mostravam acenando dos pódios. Em 1993, três anos antes de falecer oficialmente, ele desfilou no carro da paz, na Parada do Torneio de Rosas.
Intrigante. E um tanto sinistro.
Os resultados da proclamação da Excursão — do funcionamento do teletransporte — a 19 de outubro de 1988, foi um golpe de excitamento mundial e revolução econômica. Nos mercados financeiros mundiais, o surrado e velho dólar americano disparou repentinamente através do teto. Pessoas que haviam comprado ouro a oitocentos e seis dólares uma onça, viram subitamente que uma libra de ouro (mais ou menos meio quilo) lhes daria algo menos de mil e duzentos dólares. No ano entre a proclamação da Excursão e as primeiras Estações-Excursão em funcionamento, em Nova York e Los Angeles, o mercado de ações subiu pouco mais de mil pontos. O preço do petróleo caiu somente setenta centavos por barril, mas por volta de 1994, com Estações-Excursão entrecruzando os E.U.A. nos pontos de pressão em setenta cidades importantes, a OPEP cessara de existir e o preço do petróleo começou a cair. Em 1998, com Estações na maioria das cidades do mundo livre e com mercadorias Excursionadas rotineiramente entre Tóquio e Paris, Paris e Londres, Londres e Nova York, Nova York e Berlim, o petróleo caíra para quatorze dólares o barril. Em 2006, quando as pessoas finalmente começaram a usar a Excursão em uma base regular, o mercado de ações se fixara a cinco mil pontos acima de seus níveis de 1987, o petróleo era vendido a seis dólares o barril e as companhias petrolíferas tinham começado a mudar de nome. A Texaco se tornou Texaco Petróleo/Água, enquanto a Mobil passou a ser Mobil Hidro-2-Ox.
Em 2045, a prospecção de água se tornou o grande jogo, ao passo que o petróleo recuara para o que havia sido em 1906: um brinquedo.
— E quanto aos ratinhos, papai? — perguntou Patty, impacientemente. — O que aconteceu com os ratinhos?
Mark decidiu que agora talvez fosse viável e chamou a atenção de seus filhos para os atendentes da Excursão, que aplicavam o gás a apenas três corredores deles. Ricky apenas assentiu, mas Patty pareceu perturbada, quando uma senhora de cabeça raspada e pintada, como ditava a moda, tomou uma tragada da máscara de borracha e caiu inconsciente.
— Não podemos Excursionar quando acordados, não é, papai? — perguntou Ricky.
Mark assentiu e sorriu tranqüilizadoramente para Patricia.
— Carune percebeu isso, antes mesmo que o governo assumisse a situação — disse ele.
— E como foi que o governo assumiu a situação, Mark? — perguntou Marilys.
Mark sorriu.
— Graças ao tempo do computador — disse. — Os dados básicos. Aquilo era a única coisa que Carune não podia pedir, tomar emprestado ou roubar. O computador manejava a real transmissão de partículas — bilhões de peças de informação. Ainda é o computador, você sabe, que garante a integridade física da pessoa, isto é, que ela não ficará com a cabeça em algum ponto no meio do estômago.
Marilys estremeceu.
— Não tenho receio — disse ele. — Nunca houve uma situação semelhante, Mare. Nunca.
— Sempre há uma primeira vez — murmurou ela.
Mark olhou para Ricky.
— Como é que ele soube? — perguntou ao filho. — Como é que Carune descobriu que as pessoas tinham que estar adormecidas, Ricky?
— Quando colocou os ratos de costas — disse Ricky lentamente — eles ficaram bem. Pelo menos, enquanto não os atravessou de todo. Eles ficaram apenas — bem, confusos — quando Carune os colocou com a cabeça em primeiro lugar. Certo?
— Certo — respondeu Mark. Os atendentes da Excursão se moviam agora, empurrando sua silenciosa mesinha rolante do esquecimento. Não haveria tempo dele contar tudo; talvez até fosse melhor assim. — Naturalmente, não foram necessárias muitas experiências para esclarecer-se o que acontecia. A Excursão liquidou toda a atividade dos caminhões de carga, crianças, mas pelo menos afastou a pressão de cima dos pesquisadores...
Sim. Caminhar se tornara um luxo novamente e os testes haviam prosseguido por mais de vinte anos, embora as primeiras experiências de Carune com ratos drogados o tivessem convencido de que animais inconscientes não estavam sujeitos ao que, depois disso, ficou conhecido para sempre como Efeito Orgânico ou, mais simplesmente, Efeito Excursão.
Ele e Mosconi tinham drogado vários ratos, que foram passados pelo Portal Um e recuperados no outro lado. Ansiosos, esperaram que suas cobaias acordassem de novo... ou morressem. Elas haviam acordado e, após um breve período de recuperação, retomaram suas vidas de camundongos — comendo, copulando, brincando e defecando — sem quaisquer efeitos prejudiciais. Aqueles ratos foram os primeiros, em várias gerações, estudados com grande interesse. Não apresentaram nenhum efeito pernicioso a longo prazo. Tampouco morreram mais cedo, seus filhotes não nasceram com duas cabeças ou pelagem verde, estes também não apresentando nenhum efeito negativo a longo termo.
— Quando foi que eles começaram com pessoas, papai? — perguntou Ricky, embora certamente já houvesse aprendido isso na escola. — Conte esta parte!
— Eu quero saber o que aconteceu aos ratinhos! — insistiu Patty.
Embora os atendentes da Excursão agora houvessem atingido o início de seu corredor (eles se achavam quase no foral), Mark Oates fez uma pausa momentânea para refletir.
Sua filha, menos informada, assim mesmo ouvira com atenção e tinha feito a pergunta certa. Portanto, ele preferiu responder à pergunta do filho.
Os primeiros Excursionistas humanos não haviam sido astronautas nem pilotos de provas, mas prisioneiros voluntários, nem ao menos selecionados com qualquer interesse particular em sua estabilidade psicológica. De fato, foi opinião dos cientistas, então encarregados (Carune não estava entre eles; transformara-se no que é comumente chamado um chefe titular), que quanto mais instáveis eles fossem, tanto melhor; se um espástico mental suportava a travessia e a encerrava perfeito — ou, pelo menos, não pior do que era antes — então o processo provavelmente era seguro para executivos, políticos e modelos de moda do mundo.
Meia dúzia desses voluntários foi levada a Province, em Vermont (um lugar que, desde então, ficou tão famoso quanto havia sido Kitty Hawk, na Carolina do Norte), onde eles receberam a aplicação do gás e foram passados através dos portais, colocados exatamente a três quilômetros de distância entre si, um por um.
Mark contou isto aos filhos porque, naturalmente, todos os seis voluntários terminaram a prova sentindo-se bem, em excelente estado, obrigado. Ele não lhes falou no implicado sétimo voluntário. Esta figura, que poderia ter sido real, um mito ou (mais provavelmente) uma combinação dos dois, inclusive tinha nome: Rudy Foggia.
Supunha-se que Foggia era um assassino confesso, condenado à morte no estado da Flórida, por haver assassinado quatro pessoas idosas, em um jogo de bridge em Sarasota. De acordo com relatos apócrifos, as forças combinadas da Central Intelligence Agency (CIA) e do Effa Bee Eye (FBI) fizeram a Foggia numa oferta única, pegar-ou-largar, em-absoluto-não-repetida. Fazer a Excursão plenamente desperto. Se você sair dela em perfeitas condições, receberá o seu perdão, assinado pelo Governador Thurgood. Deixará a prisão, livre para seguir a única e Verdadeira Cruz ou liquidar mais alguns velhos jogando bridge, em suas calças amarelas e sapatos brancos. Faça a travessia, saia dela morto ou doido, tetas vigorosas. Como se presume que a gata falou.
O que responde?
Sabendo que a Flórida era um estado que levava a sério a pena de morte e, tendo sabido por seu advogado, que com toda probabilidade ele seria o próximo a sentar-se na Velha Cadeira, Foggia disse, tudo bem.
No Grande Dia, no verão de 2007, cientistas suficientes para lotar uma banca de jurados (com mais cinco ou seis sobressalentes) achavam-se presentes para testemunhar o que ocorreria, mas se a história de Foggia era real — e Mark Oates acreditava que provavelmente fosse — ele duvidava que a notícia transpirara de qualquer dos cientistas.
O mais crível é que se ficara sabendo do sucedido por algum dos guardas que tinham voado com Foggia de Raiford a Montpelier e depois o escoltado de Montpelier a Province, em um veículo blindado.
— Se eu sair disto vivo — diz-se que Foggia falou — quero jantar um frango, antes de acabar com esta espelunca.
Ele então cruzou o Portal Um, reaparecendo imediatamente no Portal Dois.
Surgiu vivo, mas Rudy Foggia não estava em condições de jantar seu frango. No espaço de tempo em que fez a Excursão através dos três quilômetros (indicado como 0,000000000067 de segundo, por computador), o cabelo de Foggia ficou branco como neve. Seu rosto não mudara, em qualquer sentido físico — não mostrava rugas, papada e nem estava debilitado — mas dava a impressão de uma grande, quase incrível idade.
Foggia saiu pelo portal arrastando os pés, os olhos arregalados e opacos, a boca torcendo-se, as mãos estendidas à sua frente. Dentro em pouco, ele começou a babar. Os cientistas que se tinham reunido em torno dele, recuaram e, não, Mark duvidava que algum deles houvesse comentado o fato. Eles sabiam sobre os ratos, afinal de contas, sabiam sobre as cobaias e os hamsters; de fato, sobre qualquer animal com cérebro maior do que a minhoca mediana. Deviam ter-se sentido algo semelhantes àqueles cientistas alemães, que tentaram impregnar mulheres judias com o esperma de pastores alemães.
— O que aconteceu? — bradou um dos cientistas (diz-se que ele bradou).
Foi a única pergunta a que Foggia teve chance de responder.
— Lá é a eternidade — disse ele, e caiu morto, vitimado pelo que foi diagnosticado como um ataque cardíaco maciço.
Os cientistas lá reunidos ficaram com seu cadáver (o qual foi caprichosamente cuidado pela CIA e pelo Effa Bee Eye) e aquela estranha, terrível declaração agonizante: Lá é a eternidade.
Papai, eu quero saber o que aconteceu com os ratos — repetiu Patty.
O único motivo que lhe permitira fazer novamente a pergunta era porque o homem do terno caro e os sapatos de brilho-eterno parecia haver-se transformado em um problema para os atendentes da Excursão. Em realidade, ele não queria tomar o gás e procurava disfarçar a recusa com uma conversa incessante, as fanfarronices de um garoto metido a valente. Os atendentes cumpriam sua missão o melhor que podiam — sorrindo, adulando, persuadindo — mas aquilo os retardava.
Mark suspirou. Ele iniciara o assunto — apenas como uma forma de distrair os filhos daquelas festividades pré-Excursão, sem dúvida, mas o iniciara. Agora, era de supor que deveria encerrá-lo o mais verdadeiramente possível, sem alarmá-los ou perturbá-los.
Não lhes mencionaria, por exemplo, o livro de C. K. Summers, A política da Excursão, que continha uma seção intitulada "A Excursão confidencialmente", um compêndio dos mais críveis rumores sobre a Excursão. Estava lá a história de Rudy Foggia, aquele dos assassinatos no clube de bridge e do frango não comido ao jantar. Também havia o histórico dos casos de uns trinta (ou mais... ou menos... ou quem sabe) voluntários, bodes expiatórios ou loucos, que haviam Excursionado inteiramente despertos, no correr dos últimos trezentos anos. Em sua maioria, chegaram mortos ao outro lado. Os restantes tinham ficado irremediavelmente loucos. Em certos casos, o ato de reemergirem realmente os deixara em um estado de choque que levara à morte.
Aquela seção do livro de Summer, relatando rumores e histórias apócrifas sobre a Excursão, continha também outros perturbadores informes: aparentemente, a Excursão havia sido várias vezes usada como meio para o assassinato. No caso mais famoso (e único documentado), que ocorrera apenas trinta anos antes, um pesquisador da Excursão, chamado Lester Michaelson havia amarrado a esposa com os Cordões-sonho de plexiplast da filha de ambos, e a empurrara, com ela gritando, pelo portal da Excursão em Silver City, Nevada. Contudo, antes de fazer isso, Michaelson apertara o botão Nada, no painel de seu aparelho, apagando cada e todas as centenas de milhares de portais possíveis, através dos quais a Sra. Michaelson poderia ter emergido — qualquer lugar, desde a vizinha cidade de Reno à Estação-Excursão experimental em To, uma das luas jupiterianas. Assim, a Sra. Michaelson permaneceria eternamente Excursionando em algum ponto além, lá fora, no ozônio. O advogado de Michaelson, depois que ele foi declarado sadio e capaz de enfrentar um julgamento pelo que havia feito (dentro dos estreitos limites da lei, talvez ele fosse são de espírito, mas em qualquer sentido prático, Lester Michaelson era tão louco como um chapeleiro), apresentou uma nova modalidade de defesa: seu cliente não podia ser julgado por assassinato, porque ninguém podia provar, conclusivamente, que a Sra. Michaelson estava morta.
Isto havia evocado o terrível espectro da mulher, desincorporada, mas de certo modo ainda consciente, gritando no limbo..: para sempre. Michaelson foi condenado e executado.
Em adição, sugeria Summers, a Excursão tinha sido usada por vários ditadores baratos que queriam livrar-se de dissidentes e adversários políticos; certas pessoas acreditavam que a Máfia possuía suas próprias Estações-Excursão ilegais, ligadas ao computador central de Excursão, através de suas conexões com a CIA. Summers dava a entender que a Máfia usara a capacidade-Nada da Excursão, a fim de livrar-se de corpos que já estavam mortos, ao contrário do da Sra. Michaelson. Vista sob este ponto de vista, a Excursão se tornara a máquina definitiva de Jimmy Hoffa, muito melhor do que a cascalheira ou pedreira locais.
Tudo isto levara às conclusões e teorias de Summers sobre a Excursão e, naturalmente, também à persistente pergunta de Patty sobre os camundongos.
— Bem — disse Mark lentamente, enquanto a esposa lhe fazia sinais com os olhos para que fosse cuidadoso — até hoje ninguém sabe ao certo, Patty. Contudo, todas as experiências com animais — incluindo-se os ratinhos — pareciam levar à conclusão de que, embora a Excursão seja quase instantânea fisicamente, demora um longo, longo tempo mentalmente.
— Eu não entendo isso — replicou Patty, taciturnamente. — Sabia que não ia entender.
Ricky, no entanto, olhava pensativo para o pai.
— Eles continuaram pensando — disse ele. — Os animais usados como cobaias. E nós também pensaremos, se não ficarmos inconscientes.
— Certo — respondeu Mark. — É o que agora acreditamos.
Havia algo surgindo nos olhos de Ricky. Medo? Excitamento?
— Não é apenas um teletransporte, certo, papai? Deve ser alguma espécie de distorção do tempo.
Lá é a eternidade, pensou Mark.
— De certa forma — respondeu ele. — Contudo, essa é uma expressão de histórias em quadrinhos — parece correta mas, em realidade, nada significa, Ricky. Parece revolver-se em torno da idéia de consciência e do fato de que a consciência não se divide em partículas — ela permanece inteira e constante. Também encerra algum peculiar senso de tempo. Entretanto, ignoramos como a consciência pura mediria o tempo ou mesmo se tal conceito tem algum sentido para a mente pura. Aliás, nem mesmo podemos conceber o que seria mente pura.
Mark se calou, perturbado pelos olhos do filho, de repente tão aguçados e curiosos. Ele entende, mas não compreende, pensou. A mente pode ser nosso melhor amigo; ela nos mantém satisfeitos, mesmo nada havendo para ler, nada a fazer. Entretanto, também pode voltar-se contra nós, se mantida sem imput por tempo demasiado. Pode voltar-se contra nós, isto querendo dizer que se volta contra si mesma, barbariza-se, talvez se consuma a si própria, em um ato inconcebível de autocanibalismo. Quanto tempo ficaria lá, em termos de anos? 0,000000000067 de segundo para o corpo Excursionar, mas quanto tempo para a consciência não dividida em partículas? Cem anos? Mil? Um milhão? Um bilhão? Quanto tempo a sós com seus pensamentos, em um interminável campo branco? E então, passado um bilhão de eternidades, o abrupto retorno à luz, à forma e ao corpo. Quem não enlouqueceria?
— Ricky... — começou ele, mas os atendentes da Excursão chegaram com sua mesinha rolante.
— Estão prontos? — perguntou um deles.
Mark assentiu.
— Estou com medo, papai — disse Patty, em um fio de voz. — Vai doer?
— Não, meu bem, é claro que não dói. — falou Mark, em voz calma o suficiente, embora o coração batesse um pouco mais rápido — era sempre assim, mesmo sendo aquela mais ou menos sua vigésima-quinta Excursão. — Serei o primeiro e assim você verá como é fácil.
O atendente da Excursão olhou inquisitivamente para ele. Mark assentiu e esboçou um sorriso. A máscara desceu. Mark a tomou nas próprias mãos e respirou fundo no escuro.
A primeira coisa de que teve consciência foi do negríssimo céu marciano, como visto através do topo da abóbada que circundava a Cidade Whitehead. Era noite ali e as estrelas esparramavam-se com um uivo fulgor, desconhecido na terra.
A segunda coisa que percebeu foi uma espécie de rebuliço na sala de recuperação — murmúrios, depois gritos, então um uivo agudo. Oh, meu Deus, foi Marilys! pensou, enquanto saltava estonteado de seu divã, lutando com as ondas da vertigem.
Houve outro grito, e viu atendentes da Excursão correndo para os divãs que eles ocupavam, seus vivos macacões vermelhos esvoaçando em torno dos joelhos. Marilys deu alguns passos cambaleantes em direção a ele, apontando. Depois tornou a gritar e caiu ao chão. O divã da Excursão desocupado ao seu lado, rolou lentamente corredor abaixo, quando ela tentou agarrar-se a ele com mão trêmula.
Mark, no entanto, já vira o que ela apontava. O que havia observado antes nos olhos de Ricky não tinha sido medo, mas excitamento. Devia ter sabido, porque conhecia bem o filho — Ricky, que caíra do galho mais alto da árvore em seu quintal de Schenectady, quando contava apenas sete anos, tendo quebrado o braço (e tivera sorte, pois fora apenas o braço que quebrara); Ricky, que ousava ir mais depressa e mais longe em seu skate do que qualquer outro garoto da vizinhança; Ricky, que era sempre o primeiro a enfrentar qualquer desafio. Ricky e medo não se davam bem.
Até agora.
Ao lado de Ricky, sua irmã ainda dormia misericordiosamente. A coisa que havia sido seu filho saltou e contorceu-se no divã-Excursão, um garoto de doze anos de idade, de cabelos brancos como a neve e olhos que eram incrivelmente velhos, as córneas apresentando um amarelado doentio. Ali estava uma criatura mais velha do que o tempo, mascarada como menino; no entanto, ela quicava e se torcia com horrendo, obsceno regozijo. Sua garrulice chocante e lunática fizera com que os atendentes da Excursão recuassem, tomados de horror. Alguns deles fugiram dali, embora houvessem sido justamente treinados para lidar com tal inconcebível eventualidade.
As pernas jovens-velhas estremeceram e contorceram-se. Mãos em garras batiam, torciam e dançavam no ar; depois desceram repentinamente e a coisa que havia sido seu filho começou a dilacerar o próprio rosto.
— É mais longa do que se pensa, papai! — cacarejou a criatura. — Mais longa do que se pensa! Eu prendi a respiração, quando eles me aplicaram o gás! Eu queria ver! Eu vi! Eu vi! É mais longa do que se pensa!
Cacarejando e guinchando, a coisa sobre o divã-Excursão subitamente arrancou os olhos com as garras. O sangue jorrou. A sala de recuperação era agora um aviário de vozes gritando agudamente.
— Mais longa do que se pensa, papai! Eu vi! Eu vi! Longa Excursão! Mais longa do que se pensa...
A criatura ainda disse outras coisas, antes que os atendentes da Excursão finalmente conseguissem levá-la dali, rodando seu divã a toda rapidez, enquanto ela gritava e fincava os dedos engalfinhados nas órbitas dos olhos que tinham visto o para sempre e eterno oculto. Ela disse outras coisas e então começou a gritar, mas Mark Oates não ouviu, porque a essa altura também estava gritando.
A FESTA DE CASAMENTO
Era o ano de 1997 e nós estávamos tocando jazz em um boteco ao sul de Morgan, Illinois, uma cidadezinha a uns cem quilômetros de Chicago. Era uma zona absolutamente matuta, sem nenhuma cidade maior à distância de trinta quilômetros, em qualquer direção. Contudo, havia por lá um bocado de rapazes trabalhando nas fazendas, que ansiavam por algo mais forte do que audácia, depois de um dia calorento no campo, além de um bocado de supostas garotas amantes de jazz, saindo com seus namorados faroleiros. Havia também alguns homens casados (a gente sempre os identifica, como se eles usassem algum indicador do estado civil) andando bem longe das trilhas costumeiras, onde ninguém os conhecia, enquanto esfregavam coxas, nas danças com suas nada legítimas metades.
Isso era quando jazz era jazz, em vez de barulho. Tínhamos um conjunto de cinco homens — bateria, cornetim, trombone, piano, trompete — e éramos danados de bons. Foi três anos antes de gravarmos nosso primeiro disco e quatro antes do cinema falado.
Estávamos tocando "Bamboo Bay", quando entrou aquele sujeito grandalhão, usando terno branco e fumando um cachimbo mais enrolado do que uma trompa. A turma inteira estava um pouco alta nesse momento, mas todos ali dentro estavam absolutamente cegos e, de fato, sacudindo o ambiente. Não obstante, havia calma no boteco; não tinha havido uma só briga, a noite inteira. Todos nós, os músicos, deitávamos rios de suor, e Tommy Englander, o sujeito que dirigia o lugar, não parava de enviar-nos uísque de centeio, tão suave como uma tábua envernizada. Englander era um bom sujeito com quem se trabalhar e gostava do nosso som. Naturalmente, isso lhe dava um bocado de pontos em meu cadernininho.
O cara de terno branco sentou-se no bar e eu o esqueci. Encerramos aquela parte com "Blues da Tia Hagar", uma música que, lá no meio do mato, então passava por estimulante. Recebemos uma trovoada de aplausos. Manny tinha um enorme sorriso no rosto, quando afastou o trompete na boca, e eu lhe bati nas costas, ao descermos do palco. Havia uma garota que parecia solitária, com um vestido de noite verde, que ficara de olho em mim a noite toda. Era ruiva e sempre tive uma queda por ruivas. Seus olhos e a cabeça ligeiramente de banda enviaram-me um sinal, de maneira que comecei a abrir caminho por entre o povaréu, a fim de saber se ela queria um drinque.
Estava na metade do trajeto para a ruiva, quando o homem de terno branco se postou na minha frente. Visto de perto, parecia um cara bastante durão. Seu cabelo espetava em pontas atrás da cabeça, embora cheirasse como um vidro inteiro de óleo Cremoso Wildroot. Além disso, tinha os olhos parados e estranhamente brilhantes de alguns peixes de alto mar.
— Quero falar com você lá fora — disse.
A ruiva desviou os olhos, fazendo beicinho.
— Isso pode esperar — respondi. — Deixe-me passar.
— Meu nome é Scollay. Mike Scollay.
Eu conhecia o nome. Mike Scollay era um contrabandista de segunda em Shytown, que pagava sua cerveja e suas farrinhas contrabandeando bebida do Canadá. Aquele ofício de alta-voltagem havia começado onde os homens usam saias e tocam gaitas de foles.
Quando não estão enchendo as barricas, quero dizer. Seu retrato aparecera algumas vezes nos jornais. A última, tinha sido quando um outro candidato à cela da morte tentou furá-lo a balaços.
— Está muito longe de Chicago, meu amigo — falei.
— Trouxe alguns companheiros — disse ele. — Não se preocupe. Estão lá fora.
A ruiva deu outra espiada. Apontei para Scollay e dei de ombros. Ela fungou e me virou as costas.
— Viu? — falei. — Você me estragou a jogada.
— Garotas iguais a essa são como um níquel em um balde cheio, lá em Chi — respondeu ele.
— Eu não quero um balde cheio.
— Lá fora.
Fui com ele para fora. O ar caiu fresco em minha pele, depois da atmosfera enfumaçada do boteco-clube, adocicado com o cheiro da alfafa recém-cortada. As estrelas se exibiam, suaves e piscando. Os capangas também se exibiam, mas não pareciam suaves e as únicas coisas piscando eram seus cigarros.
— Tenho um trabalho para você — disse Scollay.
— Oh, então é isso...
— Pago dois grandes. Pode dividi-los com a banda ou ficar com cem para você.
— De que se trata?
— De um arrasta, o que mais poderia ser? Minha irmã está se amarrando. Quero que você toque para a recepção. Ela gosta de jazz. Dois de meus rapazes disseram que vocês tocam um bom jazz.
Já falei que Englader é um bom sujeito com quem se trabalhar. Ele vinha nos pagando oitenta pratas por semana. O cara do terno branco oferecia mais de duas vezes aquilo, por uma única sessão.
— Será de cinco às oito da noite, na próxima sexta-feira — disse Scollay. No Salão Filhos de Erin, na Rua Grover.
— É um bocado de grana — falei. — Por quê?
— Há dois motivos — disse Scollay.
Ele sugou seu cachimbo. Aquele artigo parecia deslocado, no meio daquela cara de vigarista. Ele devia ter um Lucky Strike Green pendurado na boca ou talvez um Caporal Doce. O Cigarro dos Vagabundos. Com o cachimbo, ele não parecia um vagabundo. O cachimbo o fazia parecer triste e esquisito.
— Dois motivos — repetiu ele. — Talvez tenha ouvido que o Grego quis acabar comigo.
— Vi seu retrato no jornal — falei para a calçada.
— Muito espertinho — rosnou ele, mas sem periculosidade. — Estou crescendo demais para o Grego. Ele está ficando velho. Não tem visão das coisas. Devia voltar para a velha pátria, ficar bebendo óleo de oliva e olhando para o Pacífico.
— Penso que é o Egeu — falei.
— Pouco estou me lixando se for o Lago Huron — replicou ele. — A questão é que o Grego não quer envelhecer. E ainda quer acertar as contas comigo. Ele não distingue nada, mesmo que esteja à sua frente.
— Está se referindo a você, não?
— Você merece nota A.
— Em outras palavras, você me paga dois grandes, porque nosso último número poderia ter o acompanhamento de rifles Enfield.
A raiva estampou-se em seu rosto, porém também havia algo mais. No momento, eu não sabia o que fosse, mas creio que agora sei. Pareceu-me tristeza.
— Meu chapa, eu tenho a melhor proteção que o dinheiro pode comprar. Se algum engraçadinho meter o nariz, não terá oportunidade de fungar duas vezes.
— Qual é o outro motivo?
A voz dele saiu maciamente.
— Minha irmã vai casar com um italiano.
— Um bom católico, como você — rosnei suavemente.
A raiva estampou-se outra vez, como ferro em brasa e, por um minuto, achei que fora longe demais.
— Um bom católico-romano! Um bom e comum irlandês católico-romano, filho, e é melhor que não esqueça! — A isto, ele acrescentou, quase em voz inaudível: — Mesmo que tenha perdido a maior parte de meu cabelo, fique sabendo que era ruivo!
Comecei a dizer alguma coisa, mas ele não me deu chance. Girou-me e baixou o rosto, até nossos narizes quase se tocarem. Eu nunca tinha visto tanta raiva, humilhação, fúria e determinação no rosto de um homem. Hoje em dia nunca se vê essa expressão em um rosto branco, tão dolorida e dando idéia de insignificância. Todo aquele amor e ódio.
Contudo, eu a vi em seu rosto aquela noite e compreendi que, se bancasse o engraçadinho algumas vezes mais, ficaria sem os fundilhos.
— Ela é gorda — ele quase sussurrou e pude sentir o cheiro de pastilhas de galtéria em seu hálito. — Muita gente andou rindo de mim pelas costas. Eles não riem quando posso vê-los, fique sabendo disto, Sr. Tocador de Cornetim. Afinal, esse carcamano talvez tenha sido tudo que ela pôde conseguir. Só que você não vai rir de mim, dela ou do carcamano. E mais ninguém rirá, eu lhe garanto. Porque vocês vão tocar bem alto. Ninguém vai rir da minha mana.
— Nós nunca rimos quando estamos tocando. É difícil fazer as duas coisas.
Aquilo aliviou a tensão. Ele riu — um riso curto, latido.
— Vocês estarão lá, às cinco horas, prontos para tocar. Os Filhos de Erin, na Rua Grover. Também pagarei as despesas de ida e volta.
Ele não estava perguntando. Eu ainda estava indeciso, mas o homem não me dava tempo para discutir o assunto. Já se afastava em largas passadas e um de seus capangas mantinha aberta a porta traseira de um cupê Packard.
O carro afastou-se. Fiquei lá fora mais algum tempo e fumei um cigarro. A noite era bela e agradável, Scollay parecia cada vez mais, algo que eu sonhara. Começava a desejar que pudéssemos trazer o palco da banda para o pátio de estacionamento e tocar, quando Biff me deu um tapinha no ombro.
— Está na hora — avisou.
— Certo.
Entramos. A ruiva tinha escolhido um marinheiro veterano que parecia ter o dobro de sua idade. Não sei o que um membro da Marinha dos EUA fazia no Illinois, mas no que me dizia respeito, que a ruiva ficasse com ele, já que tinha tão mau gosto. Eu não me sentia muito bem. O uísque barato me subira à cabeça e Scollay parecia muito mais real ali dentro, onde os vapores do que ele e sua gente vendiam eram fortes o bastante para flutuar no ar.
— Tivemos um pedido para "Campton Races" — disse Charlie.
— Esqueça — respondi, lacônico. Não tocamos essas coisas de negros depois da meia-noite.
Pude ver Billy-Boy retesar-se enquanto se sentava ao piano, mas depois seu rosto ficou normal outra vez. Eu devia dar-me pontapés rodando o quarteirão mas, droga, um homem não pode amordaçar a boca da noite para o dia, em um ano ou talvez em dez. E, naquela época, negro era uma palavra que eu odiava e estava sempre dizendo. Fui até ele.
— Desculpe, Bill... Não sei o que há comigo esta noite.
— Tudo bem — respondeu ele.
Contudo, ele me fitou sobre meu ombro e percebi que não aceitara minhas desculpas.
Aquilo era ruim, mas eu digo o que era ainda pior — saber que ele se decepcionara comigo.
Em nosso próximo intervalo, falei a eles sobre a sessão de jazz, não mentindo quanto ao dinheiro e explicando que Scollay era um gangster (embora não lhes falasse sobre o outro que pretendia liquidá-lo). Também disse que a irmã de Scollay era gorda e que isso o tornava muito suscetível. Quem quer que soltasse alguma piadinha sobre baleias, poderia terminar com um terceiro buraco para respirar, em algum ponto acima dos outros dois.
Fiquei olhando para Billy-Boy Williams enquanto falava, mas era impossível ler alguma coisa naquela sua cara de gato andarilho. Seria mais fácil imaginar o que pensava uma noz, lendo as fissuras na casca. Billy-Boy era o melhor pianista que jamais tivéramos e todos lamentávamos os pequenos tropeços que ele provocara para nós, quando viajávamos de um lugar para outro. No sul era pior, naturalmente — relegado aos últimos bancos em conduções públicas, às galerias superiores nos cinemas, coisas assim — mas o tratamento não era tão ruim no norte. De qualquer modo, o que eu poderia fazer? Hem? Quem souber, que me diga. Naqueles tempos, a gente convivia com essas diferenças.
Às quatro horas da tarde de sexta-feira, uma hora antes do combinado, chegamos ao Salão Os Filhos de Erin. Costumávamos usar um caminhão Ford muito especial, que eu, Biff e Manny havíamos reformado. A parte traseira era toda fechada com lona e havia duas camas, também de lona, pregadas ao piso. Tínhamos até um fogareiro elétrico que podia ser ligado à bateria e havíamos pintado o nome da banda no lado de fora.
O dia estava na medida certa — um presunto-e-ovos, se você já viu algum, com pequenas nuvens brancas de verão lançando sombras nos campos. Contudo, mal chegamos à cidade, ela estava quente e fuliginosa, com a barulheira e movimentação a que a gente se desacostuma, em um lugar como Morgan. Quando chegamos ao salão, minhas roupas se colavam ao corpo e precisei ir ao banheiro público. Também poderia ter usado uma dose do uísque de Tommy Englander.
Os Filhos de Erin era um grande edifício de madeira, anexo à igreja onde estava sendo casada a irmã de Scollay. Imagino que vocês conheçam lugares como esses, se forem adeptos da lástia — reuniões da Juventude Católica às terças-feiras, bingo às quartas e uma festinha para a moçada nas noites de sábado.
Trotamos pela alameda, cada um de nós carregando seu instrumento em uma das mãos e parte da bateria de Biff na outra. Uma senhora magra, sem busto digno de menção, dirigia o trânsito no interior. Dois homens suados penduravam guirlandas de papel crepom. Havia um tablado para a banda na frente do salão, tendo sobre ela um estandarte e dois enormes sinos matrimoniais em papel cor-de-rosa. A inscrição em ouropel no estandarte, dizia FELICIDADES PARA MAUREEN E RICO.
Maureen e Rico. Macacos me mordessem, porque eu não via o motivo de Scollay ficar tão deprimido. Maureen e Rico. Francamente!
A dama magricela avançou para nós. Parecia ter muito a dizer, de modo que falei primeiro.
— Somos a banda — anunciei.
— A banda? — Ela pestanejou, olhando desconfiadamente para nossos instrumentos. — Oh! Eu pensava que fossem os fornecedores.
Eu sorri, como se fornecedores estivessem sempre carregando tambores de parada e caixas de trombone.
— Vocês podem... — começou ela.
Foi interrompida pela chegada de um janota magricela com uns dezenove anos. Um cigarro lhe pendia do canto da boca, mas que eu percebesse, aquilo nada acrescentava à sua imagem, exceto um olho esquerdo lacrimejando.
— Abram essa joça — disse ele.
Charlie e Biff olharam para mim. Dei de ombros. Abrimos as nossas caixas e ele viu os instrumentos. Nada encontrando que parecesse algo capaz de ser carregado e disparado, o cara voltou para seu canto e sentou-se em uma cadeira dobrável.
— Podem levar suas coisas para lá — prosseguiu a dama de poucas carnes, como se nunca a tivessem interrompido. — Há um piano na outra sala. Mandarei meus homens rodarem o piano para o palco, depois que acabarem de pendurar nossas decorações.
Bill já levava parte de seus tambores para o pequeno palco.
— Pensei que vocês fossem os fornecedores — repetiu ela, com ar confuso. O Sr. Scollay encomendou um bolo de casamento e ainda estão para chegar também os hors d'oeinres, os rosbifes e...
— Tudo chegará em tempo, madame — falei. — Eles recebem seu pagamento contra entrega.
— ...dois porcos assados, além de um peru. O Sr. Scollay ficará simplesmente furioso se...
— Ela viu um de seus homens parando para acender um cigarro, bem abaixo de uma guirlanda de crepon suspensa mais acima, e gritou, em voz estridente: — HENRY!
O homem deu um salto, como se o tivessem baleado. Eu fugi para o tablado da orquestra.
Estávamos todos prontos, faltando quinze minutos para as cinco da tarde. Charlie, o trombonista, tocava seu instrumento em surdina, enquanto Biff exercitava os pulsos. Os fornecedores tinham chegado às 16:20, e a Srta. Gibson (era o nome da dama magrela; ela possuía um bem sucedido negócio no ramo) quase se jogou sobre eles.
Tinham sido montadas quatro compridas mesas, cobertas de toalhas brancas, onde quatro mulheres de cor, de touca e avental, colocavam os lugares. O bolo fora conduzido em mesinha de rodas para o meio da sala, a fim de que todos pudessem vê-lo e ficar boquiabertos. Tinha seis camadas de altura, com a noiva e o noivo em miniatura postados no alto.
Caminhei para o exterior, a fim de tirar uma fumaça, e estava a meio caminho, quando os ouvi chegando — tocando buzinas, fazendo uma barulheira infernal. Fiquei onde estava, até ver o carro principal, dobrando a esquina do quarteirão abaixo da igreja.
Então, terminei meu cigarro e voltei para dentro.
— Eles já estão vindo — anunciei à Srta. Gibson.
Ela ficou pálida e, realmente, balançou sobre os calcanhares. Ali estava uma dama que devia ter enveredado por uma profissão diferente — decoração de interiores, talvez, ou bibliotecária científica.
— O suco de tomates! — gritou ela. — Tragam o suco de tomates!
Voltei para o tablado da banda e ficamos a postos. Já havíamos tocado em festas semelhantes — que banda não tocou? — e, quando as portas se abriram, iniciamos uma versão em ragtime da "Marcha Nupcial", em arranjo de minha autoria. Se alguém pensar que aquilo soava como uma espécie de coquetel de limonada, sou forçado a concordar. Contudo, na maioria das recepções em que a tocamos, todo mundo adorou, e ali não foi diferente. O pessoal batia palmas, gritava e assobiava, depois começaram a conversar fiado, uns com os outros. No entanto, a julgar pela maneira como alguns marcavam o compasso com os pés, enquanto conversavam, posso dizer que estavam bem sintonizados em nossa música. Continuamos tocando — eu achava que ia ser uma festa e tanto. Sei de tudo quanto se diz sobre irlandeses e a maioria é verdade, mas, droga! eles sabem divertir-se, quando decididos a isso.
De qualquer modo, devo admitir que quase estraguei todo o número, quando entraram o noivo e a enrubescida noiva. Trajando um paletó informal e calças listradas, Scollay atirou-me um olhar duro e, podem crer, eu o recebi em cheio. Consegui fazer uma cara de jogador de pôquer e o resto de meus companheiros seguiu a dica — sem que ninguém errasse uma nota. Sorte nossa. Os convidados do casamento, parecendo todos serem os cupinchas de Scollay e suas damas, já estavam de sobreaviso. Tinham de estar, se houvessem ido à igreja. Contudo, poder-se-ia dizer que só ouvi fracos murmúrios.
Vocês devem ter ouvido falar em Jack Sprat e sua esposa. Bem, esta era cem vezes pior.
A irmã de Scollay tinha os cabelos ruivos que ele estava perdendo, compridos e anelados. Entretanto; não possuíam aquela tonalidade castanho-avermelhado que talvez imaginem. Não. A cor destes cabelos era vermelho Condado de Cork — vivo como uma cenoura e enrolado como molas de colchão. Sua compleição natural era de um branco leite coalhado, porém as sardas eram demasiadas, para dizer-se com segurança. E Scollay havia dito que era gorda? Irmão, era o mesmo de quando se diz que compramos algumas coisinhas no Macy's. Ela era um dinossauro humano — cento e setenta e cinco quilos, no mínimo. Tudo tinha ido para o busto, traseiro e coxas, como geralmente acontece com moças gordas, tornando grotesco e algo amedrontador, o que deveria ser sexy. Algumas moças gordas têm rostos pateticamente bonitos, mas a mana de Scollay, nem isso tinha. Seus olhos eram demasiado juntos, a boca era grande demais e, para cúmulo, ainda tinha orelhas de abano. Sem falar nas sardas. Se fosse magra, ela ainda seria feia o bastante para parar um relógio — bem, uma vitrine inteira deles.
Tais detalhes, apenas, não fariam ninguém rir, a menos que a pessoa fosse uma débil mental ou somente venenosa. O hilariante era quando se acrescentava o noivo ao quadro — Rico — e então a gente tinha vontade de rir até chorar. Ele poderia usar cartola, e ainda continuaria na metade da sombra dela. Devia pesar uns quarenta e cinco quilos, por aí, e estava molhado de suor. Fino como um trilho, tinha uma tonalidade de pele oliva escuro.
Quando sorriu nervosamente, seus dentes pareciam as estacas pontiagudas de uma cerca, nos arredores de uma favela.
Nós continuamos tocando.
— Aos noivos! — gritou Scollay — Que Deus lhes dê toda felicidade do mundo! E se Deus não der, proclamou seu trovejante semblante, vocês, os presentes aqui, é melhor que dêem — pelo menos hoje.
Todos gritaram sua aprovação e aplaudiram. Terminamos nosso número com um floreio e isso provocou novos aplausos. Maureen, a irmã de Scollay, sorriu. Céus, como sua boca era grande! Rico sorriu tolamente.
Por alguns momentos, todos vagaram de lá para cá, comendo queijo, salgadinhos e bebendo scotch contrabandeado de Scollay. Eu próprio acabei com três doses entre os números, e aquela bebida era de deixar o uísque de centeio de Tommy Englander apagado.
Scollay começou a parecer mais feliz — um pouco, afinal.
Chegou até o tablado onde tocávamos e disse:
— Vocês tocam muito bem, caras.
Vindo de um amante da música como ele, admito que era um cumprimento e tanto.
Pouco antes de todos se sentarem para a refeição, Maureen é que se levantou. De perto era ainda mais feia, e seu vestido branco (ali havia suficiente cetim branco, enrolado em torno da criatura, capaz de cobrir três camas) não ajudava nem um pouco. Ela perguntou se podíamos tocar "Rosas da Picardia" como Red Nichols and His Five Pennies porque, segundo disse, era sua canção favorita. Embora gorda e feia, ela nada tinha de esnobe ou presunçosa — ao contrário de alguns dos convidados insignificantes que apareciam para fazer seus pedidos de músicas. Tocamos, mas não muito bem. Ainda assim, ela nos deu um sorriso doce, que quase a tornava bonita, tendo aplaudido quando encerramos.
Às 18:15 eles se acomodaram para comer e os empregados contratados da Srta. Gibson mandaram comida nos convidados. O pessoal avançou como um bando de animais, o que não constituía muita surpresa, entornando aquela bebida de alta-voltagem o tempo todo. Eu não podia deixar de espiar a maneira como Maureen comia. Tentei desviar os olhos, mas eles continuavam voltando atrás, como que para certificar-se de que viam realmente o que pensaram estar vendo. Os comensais restantes empanturravam-se, mas ela fazia com que parecessem velhas damas em um salão de chá. Não tinha mais tempo para sorrisos doces, nem para ouvir "Rosas da Picardia"; podia-se colocar diante dela um cartaz anunciando MULHER TRABALHANDO. Aquela dama dispensava garfo e faca; precisava de uma pá e de uma correia deslizante. Era triste observá-la. E Rico (só se conseguia enxergar seu queixo, acima da mesa em que se sentava a noiva, além de dois olhos castanhos, tímidos como os de uma corça) atendia-a o tempo todo, nunca alterando aquele tolo sorriso.
Tivemos um intervalo de vinte minutos, enquanto transcorria a cerimônia de cortar o bolo. A Srta. Gibson alimentou-nos na cozinha. O forno ligado deixava o recinto quente como uma estufa e nenhum de nós sentia muita fome. A festança começara com indícios de tudo correto, mas agora eu a sentia errada. Podia lê-lo no rosto de meus companheiros músicos... e, quanto a isso, também no da Srta. Gibson.
Quando retornamos ao palco da banda, a bebedeira andava solta. Indivíduos de ar durão, cambaleavam por ali com sorrisos idiotas acima de suas canecas ou permaneciam parados nos cantos, discutindo programas de corridas de cavalos. Alguns casais queriam charleston, de maneira que tocamos "Blues da Tia Hagar" (os imbecis adoraram) e "Vou dançar charleston em Charleston", bem como outros números parecidos. Coisas para quem aprecia jazz. As garotas rebolavam-se no salão ao som da música, exibindo as meias enroladas e sacudindo os dedos junto ao rosto, enquanto gritavam vu-du-di oh-du, uma frase que até hoje me dá vontade de vomitar o jantar. Lá fora estava ficando escuro. As telas haviam caído de algumas janelas, permitindo que entrassem mariposas e enxameassem em nuvens, ao redor dos lustres. E, como diz a canção, a banda continuava tocando. Os noivos andavam por ali — nenhum deles parecendo interessado em ir embora cedo — quase completamente negligenciados. O próprio Scollay parecia tê-los esquecido. Aliás, ele estava em total carraspana.
Eram quase 20:00, quando o sujeitinho esgueirou-se para o interior. Localizei-o imediatamente, porque estava sóbrio e parecia assustado; assustado como um gato míope, em terreno exclusivo para cães. Ele caminhou até Scollay, que conversava com uma garota de ar vivido bem junto do tablado da banda, e lhe bateu de leve no ombro.
Scollay deu meia volta e ouvi cada palavra que os dois trocaram. Acreditem, eu gostaria de não ter ouvido.
— Diabo, quem é você? — perguntou Scollay rudemente.
— Meu nome é Demetrius — disse o sujeito. — Demetrius Katzenos. Vim a mando do Grego.
O movimento no chão estacou subitamente. Botões de paletós foram abertos e mãos desapareceram de vista debaixo de lapelas. Vi que Manny ficara nervoso. Raios, eu tampouco me sentia calmo. No entanto, nós continuamos tocando.
— Está bem — disse Scollay em voz quieta, quase reflexivamente.
O sujeito explodiu:
— Eu não queria vir, Sr. Scollay! O Grego está com minha esposa. Disse que a mataria, se eu não lhe desse seu recado.
— Que recado? — rosnou Scollay.
Sua fronte voltara a ficar anuviada.
— Ele disse... — O sujeitinho fez uma pausa, com expressão agoniada. Sua garganta funcionou como se as palavras fossem coisas físicas, ali apertadas, sufocando-o. — Ele mandou dizer que sua irmã é uma porca obesa. Ele mandou dizer... mandou dizer... — Seus olhos reviraram-se descontroladamente, ante a expressão imóvel de Scollay. Olhou de esguelha para Maureen. Ela dava a impressão de ter sido esbofeteada. — Ele mandou dizer que ela pegou uma comichão. Que quando uma mulher sente comichão nas costas, compra um coçador de costas. Que quando ela sente comichão nas partes, então compra um homem.
Maureen soltou um grito estrangulado e correu dali, chorando. O piso balançava com sua corrida. Rico disparou atrás dela, com ar perplexo e torcendo as mãos.
Scollay havia ficado tão vermelho, que suas bochechas estavam realmente purpúreas.
Eu quase esperava — talvez praticamente esperava — que seus miolos espirrassem pelos ouvidos. Vi aquele mesmo ar de louca agonia que vira na penumbra, fora da casa de Englander. Talvez ele fosse apenas um gangster barato, mas tive pena.
Vocês também teriam.
Quando falou, sua voz era muito calma — quase branda.
— Ainda há mais?
O pequeno grego acovardou-se. Sua voz estava trêmula de angústia.
— Por favor, não me mate, Sr. Scollay! Minha esposa... o Grego a tem em seu poder! Eu não quero dizer estas coisas! Ele está com minha esposa, minha mulher...
— Não farei nada contra você — disse Scollay, ainda mais calmo. — Apenas, diga-me o resto.
— Ele mandou dizer que a cidade inteira está rindo do senhor.
Nós havíamos parado de tocar e houve um silêncio mortal por um segundo. Então, Scollay voltou os olhos para o teto. Suas mãos tremiam e ele as crispou diante de si.
Tinha os punhos tão apertados, que pude perceber os músculos sobressaindo debaixo de sua camisa.
— ESTÁ BEM! — gritou: ESTÁ BEM!
Caminhou apressadamente para a porta. Dois homens seus tentaram detê-lo, dizer-lhe que era suicídio, que o Grego não queria outra coisa, mas Scollay estava como que enlouquecido. Derrubou-os e correu para a negra noite de verão.
No silêncio que se seguiu, tudo quanto pude ouvir foi a torturada respiração do mensageiro e, em algum ponto ao fundo, o soluçar baixinho da noiva.
Nesse momento, o rapazola que nos detivera ao chegarmos, proferiu uma praga e correu para a porta. Foi o único.
Antes que pudéssemos chegar abaixo do enorme trevo de papel, o emblema nacional da Irlanda, pendurado no saguão, pneus de automóveis chiaram no pavimento e motores roncaram — um monte de motores. Aquilo soava como o Memorial Day*, no pátio de tijolos lá fora.
*(EUA) dia em memória dos soldados mortos na guerra. (N. da T.)
— Oh, meu Deus do céu! — gritou o rapazola, da soleira. — É uma maldita caravana! Abaixe-se, chefe! Abaixe-se! Abaixe-se...
A noite explodiu em pipocar de armas. Lá fora foi como a Primeira Guerra Mundial, por um minuto, talvez dois. As balas zuniam pela porta aberta do saguão e um dos globos de luz oscilando no alto terminou explodindo. No exterior, a noite brilhava com fogos de artifícios dos Winchester. A seguir, os carros partiram em disparada. Uma das garotas sacudia estilhaços de vidro dos cabelos cacheados.
Agora que o perigo terminara, os capangas restantes correram para fora. A porta para a cozinha escancarou-se e Maureen reapareceu. Tudo nela tremelicava. Seu rosto estava mais redondo do que nunca. Rico surgiu em sua esteira, como um atônito valete. Os dois desapareceram pela porta.
A Srta. Gibson apareceu no saguão vazio, de olhos arregalados e chocada. O homenzinho que começara toda a confusão com seu telegrama cantado, àquela altura já se evaporara.
— Foi um tiroteio — murmurou a Srta. Gibson. — O que aconteceu?
— Acho que o Grego acabou de esfriar o pagador — disse Biff.
Ela olhou para mim, sem entender, mas antes que eu pudesse traduzir, Billy Boy falou, em sua voz macia e polida:
— Ele está querendo dizer que o Sr. Scollay acabou de ser liquidado, dona.
A Srta. Gibson se virou para ele, os olhos ficando mais e mais arregalados, e então desmaiou. Tive a impressão de que também eu acabaria desmaiando.
Foi quando, do exterior, chegou até nós o grito mais angustiado que já ouvi, em toda a minha vida. Era como um miado histérico, sustentando-se indefinidamente em prolongada nota. Não se precisava chegar à porta e espiar, para saber quem dilacerava o coração lá na rua, carpindo o irmão morto, inclusive enquanto os tiras e novidadeiros dos jornais estavam a caminho.
— Vamos cair fora — murmurei. — Depressinha!
Quando ficamos com tudo embalado, já haviam passado cinco minutos. Alguns dos capangas tornaram a entrar, mas estavam demasiado bêbados e assustados para se meterem conosco.
Saímos pelos fundos, cada um de nós carregando parte da bateria de Biff. Devíamos ter sido uma parada e tanto, subindo a rua, para que ninguém nos visse. Eu ia à frente, com o estojo de meu cornetim debaixo do braço e um címbalo em cada mão. Os rapazes esperaram na esquina do fim do quarteirão, enquanto fui buscar nosso caminhão. Os tiras ainda não haviam chegado. A obesa garota continuava agachada junto ao corpo do irmão, no meio da rua, uivando como uma banshee *, enquanto o minúsculo noivo corria à sua volta, como uma lua orbitando um enorme planeta.
*(Irlanda e Escócia) espírito feminino do folclore gaélico que, com seus lamentos, anuncia morte iminente na família. (N. da T.)
Rodei até a esquina e os rapazes atiraram tudo na traseira do caminhão, de qualquer jeito. Depois, afastamo-nos dali a toda velocidade. Fizemos uma média de sessenta quilômetros horários por todo o trajeto até Morgan, por estradas secundárias ou não. Os capangas de Scollay não devem ter-se preocupado em apontar-nos aos tiras ou os tiras não nos deram importância, porque não soubemos deles.
Aliás, também não recebemos as duzentas pratas.
Ela chegou ao Tommy Englander's uns dez dias mais tarde, uma gorda jovem irlandesa em vestido negro de luto. O preto não lhe assentava melhor do que o cetim branco.
Englander devia saber quem ela era (sua foto saíra nos jornais de Chicago, junto à de Scollay), porque a levou pessoalmente até uma mesa e forçou ao silêncio dois bêbados do bar, que haviam estado debochando dela.
Senti muita pena dela, como às vezes sentia pena de Billy-Boy. É duro ser marginalizado. Não se precisa ser um marginalizado para saber, embora eu concorde quanto à gente não saber exatamente como é. E ela havia sido muita simpática, nas poucas palavras trocadas comigo.
Chegado o intervalo, fui até sua mesa.
— Sinto muito por seu irmão — falei, meio sem jeito. — Sei que ele realmente a apreciava muito e...
— Foi como se eu mesma apertasse aqueles gatilhos — respondeu ela. Olhava para as mãos e então percebi que eram o seu melhor traço, pequenas e graciosas. — Tudo que aquele homenzinho disse era verdade.
— Oh, não diga isso — repliquei, procurando consolá-la.
O que mais poderia dizer? Eu lamentava ter-me aproximado, ela falava de maneira tão estranha... Era como se estivesse absolutamente só e alucinada.
— De qualquer modo, não me divorciarei dele — prosseguiu Maureen. — Antes disso eu me mataria e minha alma penaria no inferno.
— Não fale assim — disse-lhe.
— Nunca teve vontade de matar-se? — perguntou ela, fitando-me apaixonadamente. — Nunca sentiu esse impulso, quando as pessoas o usam e depois se divertem à sua custa? Ou isso jamais lhe aconteceu? Talvez negue, mas me desculpe se não acredito. Sabe o que se sente, quando comemos sem parar, odiando-nos por isso, para então comermos mais? Sabe como é matar o próprio irmão, pelo fato de ser gorda?
As pessoas se viravam para olhar-nos e os bêbados recomeçavam as risadinhas.
— Sinto muito — sussurrou ela.
Quis dizer-lhe que também sentia. Quis dizer-lhe... oh, qualquer coisa, admito, qualquer coisa que a fizesse sentir-se melhor. Gritar, para atingir-lhe o âmago, debaixo de toda aquela gordura. Entretanto, não conseguia alinhavar uma só frase.
— Preciso ir agora — consegui dizer. — Temos que tocar mais um período.
— Oh, claro — respondeu ela, suavemente. — Claro que deve ir... ou eles começarão a rir de você. Aliás, o motivo de minha vinda aqui... Quer tocar "Rosas da Picardia"? Achei que tocaram muito bem, na recepção. Pode fazer isso?
— Naturalmente — respondi. — Será um prazer.
Tocamos. Contudo, ela foi embora na metade do número e, como canções do gênero são melosas demais para um lugar como o Englader's, nós a interrompemos e passamos para uma versão ragtime de "The Varsity Drag". Esta sempre é do agrado geral. Bebi muito aquele resto da noite e, pela hora de fechar, já esquecera tudo sobre Maureen. Bem, quase tudo.
Ao sair para a noite, ocorreu-me a idéia. O que eu devia ter dito a ela. A vida continua — era o que devia ter-lhe dito. É o que dizemos a uma pessoa, quando lhe morre um ente querido. Enfim, pensando bem, fiquei satisfeito por não haver dito. Porque, talvez, era isso que ela temia ouvir.
Sem dúvida, todos sabem sobre Maureen Romano e seu marido Rico, que sobreviveu a ela como hóspede dos contribuintes, na Penitenciária Estadual do Illinois. Todos sabem como ela assumiu a medíocre organização de Scollay e transformou em um império durante a Proibição, isto é, a lei seca, rivalizando com o de Capone. Como ela eliminou dois outros líderes de quadrilha do North Side, abocanhando suas operações. Como ela teve o Grego trazido à sua presença e supostamente o matou, enfiando um pedaço de corda de piano por seu olho esquerdo até o cérebro, com ele ajoelhado à sua frente, babando, choramingando e suplicando misericórdia. Rico, o perplexo valete, se tornou seu braço direito, sendo responsável pessoal por uns doze sucessos como gangster.
Da Costa Oeste, onde estávamos gravando alguns discos bem sucedidos, segui as façanhas de Maureen. Estávamos sem Billy-Boy. Ele formara uma banda própria, não muito tempo depois de deixarmos o Englander's, um conjunto só de negros, que tocava Dixieland e ragtime. Eles se deram muito bem no sul e fiquei satisfeito com isso.
Mereciam o sucesso. Para nós também foi boa a separação, porque muitos lugares não nos aceitavam, tendo um negro no grupo.
Afinal, era de Maureen que eu falava. Ela forneceu grandes noticiários aos jornais, não apenas por ser uma espécie de Ma Barker com cérebro, embora isso fizesse parte do quadro. Ela era terrivelmente grande e terrivelmente feia, mas os americanos de costa a costa dedicavam-lhe uma estranha espécie de afeição. Quando Maureen morreu, de ataque cardíaco em 1933, alguns jornais disseram que pesava duzentos e cinqüenta quilos. Contudo, eu duvido. Ninguém pesa tanto, não é mesmo?
De qualquer modo, seu funeral ganhou as primeiras páginas. Era mais do que se poderia dizer sobre o irmão dela, que nunca passou da quarta página, em toda a sua mísera carreira. Foram necessários dez carregadores para o transporte do caixão. Havia uma enorme foto deles, salientando-se em um tablóide. Aliás, uma foto horrível de ver. O ataúde era do tamanho de uma geladeira de carne nos açougues — o que, de certo modo, não deixava mesmo de ser.
Rico não teve inteligência suficiente para continuar liderando sozinho a situação e acabou acusado e condenado por assalto com tentativa de morte, logo no ano seguinte.
Jamais consegui tira-la da lembrança, como nunca esqueci a maneira agoniante e humilde de Scollay naquela primeira noite, quando foi me falar sobre ela. Contudo, olhando para trás, não a lamento demais. Pessoas gordas sempre podem parar de comer.
Sujeitos como Billy-Boy Williams, podem apenas parar de respirar. Até hoje não sei como poderia ajudar a qualquer dos dois, mas de vez em quando me sinto algo mal, quanto a isso. Talvez seja porque fiquei muito mais velho e já não durma tão bem como quando era novo. Só pode ser por isso, concordam? Concordam?
A IMAGEM DO SEGADOR
Nós o transportamos o ano passado, foi uma operação e tanto — disse o Sr. Carlin, enquanto subiam a escada. A remoção teve que ser manual, claro. Não havia outro jeito.
Fizemos um seguro contra acidentes, no Lloyd's, antes mesmo de tirá-lo de sua vitrine, na sala de visitas. Era a única firma que o seguraria pela soma que tínhamos em mente.
Spangler nada disse. O homem era um tolo. Johnson Spangler aprendera, havia muito e muito tempo, que a única maneira de lidar com um tolo é ignorá-lo.
— Foi segurado por um quarto de milhão de dólares — prosseguiu o Sr. Carlin, quando chegaram ao patamar do segundo andar. Sua boca contorceu-se em uma linha meio amarga e meio humorística. — Aliás, o prêmio nos custou um bom dinheiro...
Era um homem de baixa estatura, não inteiramente gordo, com óculos sem aros e uma calva amorenada, que brilhava como uma bola de vôlei envernizada. Uma armadura, guardando as sombras de mogno do corredor do segundo andar, fitou-os impassivelmente.
Era um longo corredor, e Spangler examinou as paredes e quadros com frio olho clínico.
Samuel Claggert comprara em vastas quantidades porém não soubera comprar. Como tantos outros imperadores autodidatas da indústria de fins dos anos 80, no século passado, ele fora pouco mais do que um vasculhador de casas de penhores, mascarando-se em roupagens de colecionador, um connoisseur de monstruosidades em telas, de coleções vulgares de poesia ou novelas em luxuosas encadernações de couro, bem como de atrozes peças esculpidas, por ele consideradas como Arte.
Naquelas paredes estavam pendurados — engrinaldados, seria o termo correto — imitações de tapetes marroquinos, inúmeras (e sem dúvida anônimas) madonas segurando inúmeros bebês com halos, enquanto inúmeros anjos pairavam em todos os pontos do fundo, grotescos candelabros em arabescos e um lustre monstruoso, obscenamente enfeitado e encimado por uma ninfeta sorrindo despudoradamente.
Sem dúvida, o velho pirata conseguira alguns artigos interessantes; a lei de proporcionalidade assim o exigia. E, se o Museu Particular Memorial Samuel Claggert (Visitas com Guia, por Hora — Entrada: 1 dólar para Adultos, 50 centavos para Crianças — repugnante) se constituía de lixo gritante em 98 por cento, sempre havia aqueles outros dois por cento, coisas como o longo rifle Coombs acima do fogão, na cozinha, a estranha e pequena câmera obscura na sala e, naturalmente, o...
— O espelho Delver foi removido do andar de baixo após um... um acidente algo infeliz — disse bruscamente o Sr. Carlin, aparentemente motivado pelo fantasmagórico e penetrante retrato de ninguém em particular, na base do segundo lance de escadas. — Houve outros — declarações rudes, comentários maldosos — porém desta vez, foi realmente uma tentativa de destruir o espelho. A mulher, uma Srta. Sandra Bates, chegou com uma pedra no bolso. Por sorte, sua pontaria era ruim e ela só rachou um canto da vitrine. O espelho ficou intato. Essa Srta. Bates tinha um irmão...
— Não é preciso oferecer-me a visita de um dólar — disse Spangler em voz calma. — Estou a par da história do espelho Delver.
— Fascinante, não é mesmo? — Carlin atirou-lhe um olhar curioso enviezado. — Houve aquela duquesa inglesa em 1709... e o mercador de tapetes da Pensilvânia, em 1746... para não mencionarmos...
— Estou a par da história — repetiu Spangler, na mesma voz tranqüila. — O que me interessa é o acabamento artesanal. Além disso, claro, existe a questão da autenticidade...
— Autenticidade? — O Sr. Carlin deu uma risadinha sufocada, um som seco, como o de ossos espreguiçando-se em um armário debaixo da escada. — Ele foi examinado por peritos, Sr. Spangler.
— O Stradivarius Lemlier também.
— É verdade — disse o Sr. Carlin, com um suspiro — mas nunca nenhum Stradivarius possuiu o... o efeito perturbador do espelho Delver.
— Sim, nunca — disse Spangler, em sua voz suavemente contida. Agora percebia que era impossível calar Carlin; o velho possuía uma mente perfeitamente sintonizada com a idade. — Nunca.
Subiram o terceiro e quarto lance em silêncio. À medida que se aproximavam do teto da desconexa edificação, ficava opressivamente quente nas escuras galerias superiores.
Com o calor, chegava um insinuante odor que Spangler conhecia bem, pois passara toda a sua vida adulta trabalhando nele — o cheiro de mostras mortas há muito nos cantos penumbrosos, de decomposição úmida e rastejantes parasitas de madeira por trás do estuque. O cheiro da idade. Era um cheiro comum apenas aos museus e mausoléus. Ele imaginava que o mesmo cheiro podia provir da sepultura de uma jovem virginal, falecida quarenta anos antes.
Ali em cima, as relíquias eram empilhadas a torto e a direito, na profusão de uma verdadeira loja de quinquilharias; o Sr. Carlin conduziu Spangler através de um labirinto de esculturas, telas com molduras estilhaçadas, pomposas gaiolas de pássaros dourado-prateadas, o esqueleto desmembrado de uma antiga bicicleta tandem. Levou-o até a parede mais afastada, onde uma escada de mão fora colocada abaixo de um alçapão no forro. Um cadeado enferrujado pendia do alçapão.
Mais para a esquerda, um Adônis de imitação os fitava impiedosamente com opacos olhos sem pupilas. Um braço estava estirado e, do pulso, pendia um cartão amarelo, com os dizeres: ENTRADA ABSOLUTAMENTE PROIBIDA.
O Sr. Carlin, tirou um molho de chaves do bolso do casaco, selecionou uma das chaves e subiu na escada. Parou no terceiro degrau, a calva brilhando fracamente nas sombras.
— Não gosto desse espelho — comentou. — Aliás, jamais gostei dele. Não gosto de espiar nele. Tenho medo de, um dia, olhar e ver... o que o resto deles viu.
— Eles nada viram além de si mesmos — disse Spangler.
O Sr. Carlin começou a falar, parou, balançou a cabeça e remexeu acima dele, dobrando o pescoço para encaixar direito a chave na fechadura.
— Devia ser trocada — murmurou. — Ele está... droga!
A fechadura saltou de repente e o cadeado se soltou. O Sr. Carlin tentou apanhá-lo no ar e quase caiu da escada. Spangler agarrou o cadeado, antes que batesse no chão, depois ergueu os olhos para o homem. O Sr. Carlin agarrava-se tremulamente ao alto da escada, o rosto branco, brilhando na penumbra.
— Isso o deixa nervoso, não é? — perguntou Spangler, em um tom ligeiramente inquisitivo.
O Sr. Carlin não respondeu. Parecia paralisado.
— Desça — disse Spangler. — Por favor. Antes que caia.
Carlin desceu lentamente, agarrando-se a cada degrau, como um homem engatinhando acima de um abismo sem fundo. Quando seus pés tocaram o chão, começou a gaguejar, dando a impressão de que o piso era percorrido por alguma corrente e que esta o ligara, como uma lâmpada elétrica.
— Um quarto de milhão — dizia ele. — Um quarto de milhão de dólares como seguro, para trazer aquela... coisa lá de baixo até aqui! Essa maldita coisa! Tiveram que montar uma forma especial e içá-la com guincho até o espigão do depósito, lá em cima. E eu esperava — quase rezava — para que os dedos de alguém ficassem escorregadios... que a corda não agüentasse... que a coisa despencasse e se estilhaçasse em mil pedaços...
— Fatos — disse Spangler. — O que interessa são fatos, Carlin. Nada de novelas em brochuras baratas, de histórias baratas de tablóides ou de filmes de terror igualmente baratos. Fatos. Número um: John Delver foi um artesão inglês, de descendência normanda, fabricante de espelhos no que chamamos de período elizabetano da história da Inglaterra. Viveu e morreu obscuramente. Sem pentáculos riscados no chão, para a criada apagar, sem documentos cheirando a enxofre, com uma mancha de sangue na linha pontilhada. Número dois: Seus espelhos se tornaram peças de colecionadores, devido principalmente ao seu fino acabamento artesanal e ao fato de que uma forma de cristal fosse usada com um leve efeito ampliador e distorcido para o olho de quem a segurasse — uma marca registrada bem distintiva. Número três: que saibamos, restam apenas cinco Delver — dois deles na América. Inestimáveis, no tocante a preço. Número quatro: Este Delver e um outro que foi destruído na Blitz de Londres, adquiriram uma reputação algo espúria, devido principalmente à falsidade, exagero e coincidência...
— Fato número cinco — disse o Sr. Carlin — você é um arrogante bastardo, não?
Spangler fitou o Adônis cego, com leve irritação.
— Eu fui o guia no tour do qual fazia parte o irmão de Sandra Bates, quando ele viu seu precioso espelho Delver, Spangler. O rapazinho teria uns dezesseis anos, estava com um grupo de ginásio. Eu ia relatar a história do espelho e acabara de chegar à parte que você apreciaria — enaltecendo seu acabamento perfeito, a perfeição do espelho em si — quando o rapaz levantou a mão. "O que significa aquele borrão preto no canto superior esquerdo?" perguntou ele. "Parece que houve uma falha".
— Um amigo seu perguntou o que ele queria dizer. O rapaz Bates começou a dizer, depois se calou. Olhou para o espelho com profunda atenção, chegando bem junto da corda de veludo vermelho, em torno da vitrine que guardava o espelho então olhou para trás, como se o que houvesse visto fosse o reflexo de alguém, de alguém vestido de preto — de pé ao seu ombro. "Parecia um homem — disse ele, — mas não pude ver seu rosto. Agora, desapareceu". E isso foi tudo.
— Continue — disse Spangler. — Está ardendo de vontade de me dizer que era a Morte. O Segador — creio que esta é a explicação comum, não? A de que ocasionais pessoas escolhidas vêem a imagem do Segador no espelho? Ora, esqueça, homem! O National Enquirer adoraria isso! Fale-me sobre as horríveis conseqüências e desafie-me a explicá-las. Ele foi atropelado por um carro, mais tarde? Atirou-se de uma janela? O que foi?
O Sr. Carlin deu uma risadinha incrédula.
— Penso que devia saber melhor, Spangler. Não me disse duas vezes que está... hum... a par da história do espelho Delver? Não houve conseqüências horríveis. Nunca tem havido. Dai por que o espelho Delver não aparece nos suplementos dominicais, como o diamante Koh-i-noor ou a maldição da tumba do Rei Tutankamon. Ele é mundano, comparado ao resto. Acha que sou um tolo, não?
— Exatamente — respondeu Spangler. — Podemos subir agora?
— Claro — disse o Sr. Carlin, ardoroso.
Subiu a escada e empurrou o alçapão. Houve um ruído "clique-claque", quando ele foi puxado para as sombras por um contrapeso. O Sr. Carlin desapareceu na penumbra.
Spangler o seguiu. O Adônis cego olhava cegamente para eles.
O aposento do espigão era explosivamente quente, iluminado apenas por uma janela de muitos ângulos, coberta de teias de aranha, que filtrava a claridade crua do exterior, transformando-a em suja luminosidade leitosa. O espelho estava inclinado em uma esquina, de frente para a luz, captando a maioria da claridade e refletindo-a em uma faixa perolada, na parede oposta. Havia sido seguramente ajustado em uma moldura de madeira. O Sr. Carlin não olhava para ele. Deliberadamente, evitava fitá-lo.
— Nem ao menos o protegeu com um pano velho! — exclamou Spangler visivelmente irritado pela primeira vez.
— Eu penso nele como um olho — disse o Sr. Carlin. Sua voz continuava seca, absolutamente vazia. — Se for deixado aberto, sempre aberto, talvez acabe ficando cego.
Spangler não lhe deu atenção. Tirou o casaco, dobrou cuidadosamente os botões para dentro e, com infinita delicadeza, limpou a poeira da superfície convexa do espelho.
Depois recuou e olhou para ele.
Era legítimo. De fato, não havia dúvidas quanto a isso, nunca houvera. Tratava-se de um perfeito exemplo do particular gênio de Delver. O recinto amontoado de quinquilharias atrás dele, seu próprio reflexo, a imagem meio virada de Carlin — tudo surgia claro, nítido, quase tridimensional. O ligeiro efeito amplificador do espelho dava a tudo uma qualidade levemente encurvada, que acrescentava uma distorção quase quadridimencional. Ele era...
Seu fio de pensamentos interrompeu-se e ele sentiu outra onda de raiva.
— Carlin!
Carlin nada disse.
— Carlin, seu maldito tolo, pensei ouvi-lo dizer que a moça não danificara o espelho!
Nenhuma resposta.
Spangler dirigiu-lhe um olhar gélido, através do espelho.
— Há um pedaço de fita isolante no canto superior esquerdo. Ela o rachou? Pelo amor de Deus, homem, diga alguma coisa!
— Você está vendo o Segador — disse Carlin. Sua voz era inexpressiva e sem paixão. — Não há nenhuma fita isolante no espelho. Passe a mão sobre o lugar... oh, Deus!
Spangler enrolou cuidadosamente a parte superior da manga do casaco em torno da mão, esticou o braço e fez uma leve pressão contra o espelho.
— Está vendo? Não há nada de sobrenatural. Desapareceu. Minha mão cobriu o que havia.
— Cobriu? Pode sentir a fita? Por que não a arranca?
Spangler afastou a mão cautelosamente e olhou para o espelho. Tudo nele parecia um pouco mais distorcido; os estranhos ângulos do aposento davam a impressão de bocejar loucamente, como se prestes a deslizarem para o âmago de alguma eternidade invisível.
Não havia nenhuma mancha escura no espelho. Estava imaculado. Spangler percebeu um medo súbido e doentio crescer dentro de si e desprezou-se por senti-lo.
— Parecia ele, não? — perguntou o Sr. Carlin. Seu rosto estava muito pálido e ele olhava diretamente para o chão. Um músculo saltou espasmodicamente em seu pescoço. — Confesse, Spangler. Não parecia uma figura encapuzada, em pé às suas costas?
— Parecia uma fita isolante, tapando uma pequena rachadura — respondeu Spangler, em voz firme. — Nada mais, nada menos...
— O rapaz Bates era muito robusto — disse Carlin rapidamente. Suas palavras pareciam cair na atmosfera quente e imóvel, como pedras atiradas em água escura. — Como um jogador de futebol. Usava um blusão com iniciais e calças verde-escuras. Estávamos a meio caminho para a exposição no andar de cima, quando...
— Este calor me faz mal — disse Spangler, em voz pouco firme.
Havia apanhado um lenço e enxugava o pescoço. Seus olhos perscrutaram a superfície convexa do espelho, em leves e abruptos movimentos.
— Quando ele disse que queria um gole d'água... um gole d'água, pelo amor de Deus! — Carlin se virou e olhou desvairadamente para Spangler. — Como eu podia saber? Como eu podia saber?
— Há algum lavatório por aqui? Acho que vou...
— O blusão dele... apenas tive um vislumbre de seu blusão, quando ele desceu a escada... e então...
— ... vomitar!
Carlin abanou a cabeça, como se quisesse areja-la, e tornou a fitar o chão.
— Claro. Terceira porta à sua esquerda, no segundo andar, tomando a direção da escada. — Ergueu os olhos, suplicante. — Como eu podia saber?
Spangler, no entanto, já começava a descer a escada. Ela balançou sob seu peso e, por um momento, Carlin pensou — esperou — que ele fosse cair. Não caiu. Pela abertura quadrada no piso, Carlin o viu descer, tapando levemente a boca com uma das mãos.
— Spangler...?
Ele já se fora.
Carlin ouviu as pisadas dissolvendo-se em ecos, depois cessando. Quando deixou de ouvi-las, estremeceu violentamente. Tentou mover os pés para o alçapão, mas estavam gelados. Apenas aquele último e apressado vislumbre do blusão do rapaz... Céus!...
Era como se enormes mãos invisíveis lhe puxassem a cabeça, forçando-a a erguer-se.
Não querendo espiar, assim mesmo Carlin olhou para as bruxuleantes profundezas do espelho Delver.
Nada havia lá.
O aposento se refletia fielmente para ele, seus confins empoeirados transformados em difuso infinito. Ocorreu-lhe um trecho quase esquecido de um poema de Tennyson, e ele o recitou, em um murmúrio:
"As sombras deixam-me algo indisposta, disse a Senhora de Shallott..."
E, ainda assim, ele não conseguia desviar os olhos, imobilizado pela quieta atmosfera.
Perto de um canto do espelho, uma cabeça de búfalo roída de traças, espiava-o com chatos olhos obsidianos.
O rapaz quisera água e o bebedouro ficava no saguão do primeiro andar. Ele havia descido a escada e...
E nunca mais voltara.
Nunca mais!
Como a duquesa, que fizera uma pausa após arrumar-se para uma soirée diante do espelho e voltara ao quarto de vestir para apanhar suas pérolas. Como o mercador de tapetes, que saíra para um passeio de carruagem e deixara para trás apenas uma carruagem vazia e dois cavalos mudos.
E o espelho Delver estivera em Nova York de 1897 a 1920, estivera lá, quando o Juiz Crater...
Carlin olhava fixamente, como que hipnotizado, para as rasas profundezas do espelho.
Mais abaixo, o Adônis cego continuava vigilante.
Ele esperou por Spangler, da mesma forma como a família Bates devia ter esperado pelo filho, como o marido da duquesa devia ter esperado que sua esposa voltasse do quarto de vestir. Ficou olhando para o espelho e esperou.
E esperou.
E esperou.
AQUI HÁ TYGRES
Charles precisava desesperadamente ir ao banheiro.
Não adiantava continuar a enganar-se, achando que poderia esperar até a hora do recreio.
Sua bexiga gritava para ele, e a Srta. Bird o surpreendeu contorcendo-se.
Havia três professoras do terceiro grau, na Escola Primária da Rua Acorri. A Srta. Kinney era jovem, loura e cheia de vitalidade, com um namorado que a vinha buscar depois das aulas, em um Camaro azul. A Sra. Trask tinha as formas de uma almofada mourisca, penteava o cabelo em tranças e ria estentoreamente. E havia a Srta. Bird.
Charles sabia que terminaria liquidando a Srta. Bird. Ele sabia disso. Era inevitável.
Porque, obviamente, a Srta. Bird queria destruí-lo. Ela não permitia que crianças fossem ao porão. O porão, dizia a Srta. Bird, era onde ficavam as caldeiras, de modo que damas bem comportadas e cavalheiros nunca desciam lá, porque porões eram desagradáveis, velhas coisas fuliginosas. Mocinhas e cavalheiros não vão ao porão, havia dito ela. Eles vão ao banheiro.
Charles contorceu-se novamente. A Srta. Bird o fitou de banda.
— Charles — disse ela claramente, ainda apontando seu ponteiro para a Bolívia, — você precisa ir ao banheiro?
Cathy Scott, no assento à frente dele, deu uma risadinha sufocada, cobrindo a boca prudentemente.
Kenny Griffen riu à socapa e chutou Charles por baixo da carteira.
Charles ficou vermelho-vivo.
— Responda, Charles — disse animadamente a Srta. Bird. — Você precisa... (urinar, ela dirá urinar, como sempre faz)
— Sim, Srta. Bird.
— Sim, o quê?
— Eu tenho que ir ao po — ao banheiro.
A Srta. Bird sorriu.
— Muito bem, Charles. Pode ir ao banheiro e urinar. É o que precisa fazer lá? Urinar?
Charles baixou a cabeça, condenado.
— Muito bem, Charles. Pode ir. E, da próxima vez, por favor, não fique esperando que eu lhe pergunte.
As risadinhas sufocadas encheram a sala. A Srta. Bird bateu no quadro com seu ponteiro.
Charles arrastou-se pelo corredor entre as carteiras, na direção da porta, sentindo trinta pares de olhos pousados em suas costas. E cada um daqueles colegas, incluindo-se Cathy Scott, sabia que ele ia ao banheiro para urinar. A porta ficava a uma distância de, pelo menos, um campo de futebol. A Srta. Bird não continuou a aula, ficando calada até ele abrir a porta, passar para o corredor abençoadamente vazio e fechar a porta suavemente.
Ele caminhou em direção ao banheiro dos meninos, (porão porão porão SE EU QUISER) arrastando os dedos ao longo dos frios ladrilhos da parede, deixando que escalassem o quadro de avisos, com os avisos pregados a percevejos e escorregassem levemente através da (QUEBRE O VIDRO EM CASO DE EMERGÊNCIA) caixa vermelha de alarme contra incêndios.
A Srta. Bird gostava daquilo. Ela gostava de deixá-lo com o rosto vermelho. Em frente de Cathy Scott — que nunca precisava ir ao porão, isso era justo? — e de todos os outros.
Filha da P-U-T-A, pensou ele. Soletrou a palavra, porque no ano anterior decidira que Deus não a consideraria um pecado, se fosse soletrada.
Entrou no banheiro dos meninos.
Estava muito frio lá dentro, com um cheiro fraco, mas não desagradável, de água sanitária pairando acremente no ar. Agora, pelo meio da manhã, o banheiro estava limpo e solitário, tranqüilo e muitíssimo agradável, nada parecido com o cubículo enfumaçado e fedorento do Cinema Star, no centro da cidade.
O banheiro (porão!) era construído em forma de L, ficando a haste mais curta com uma fileira de pequenos espelhos quadrados e pias de porcelana branca, além de um toalheiro com toalhas de papel (NIBROC), e a haste mais comprida com dois mictórios e três cubículos com vaso sanitário.
Charles dobrou a esquina, após olhar soturnamente para seu rosto fino e algo pálido, em um dos espelhos.
O tigre estava deitado na extremidade mais distante, logo abaixo da janela branco-pedregosa.
Era um tigre grande, com persianas fulvas e tiras escuras cruzando seu pêlo.
Ele ergueu os olhos alertamente para Charles, apertando as pupilas esverdeadas. Uma espécie de ronronar sedoso escapou-lhe da boca. Músculos lisos flexionaram-se e o tigre se pôs sobre as patas. Sua cauda agitou-se, fazendo pequenos sons de batidas contra o lado de porcelana do último mictório.
O tigre parecia absolutamente faminto e muito perigoso.
Charles correu, percorrendo de volta o caminho já feito. A porta parece levar uma eternidade para resfolegar pneumaticamente atrás dele, mas quando se fechou, Charles considerou-se a salvo. Aquela porta apenas oscilava, e ele não se lembrava de já ter lido ou ouvido dizer que tigres são inteligentes o bastante para abrir portas.
Passou o dorso da mão sobre o nariz. Seu coração batia tão forte, que era capaz de ouvi-lo. Ainda precisava ir ao porão, mais do que nunca.
Contorceu-se, pestanejou e apertou uma das mãos contra a barriga. Realmente, tinha que ir ao porão. Se, pelo menos, tivesse certeza de que não viria ninguém, usaria o das meninas. Ficava bem do outro lado do corredor. Charles olhou para lá ansiosamente, sabendo que nunca teria coragem, nem em um milhão de anos. E se Cathy Scott aparecesse? Ou — tremendo horror! — se a Srta. Bird aparecesse?
Talvez ele houvesse imaginado o tigre.
Abriu a porta, uma fresta suficiente para um olho, e espiou.
O tigre espiava de volta, junto ao ângulo do L, seu olho era de um verde cintilante.
Charles fantasiou que podia distinguir um pequenino salpico azul naquele brilho profundo, como se o olho do tigre tivesse comido o seu próprio. Como se...
Uma mão deslizou em volta de seu pescoço.
Charles soltou um grito contido, enquanto sentia o coração e o estômago amontoarem-se em sua garganta. Por um terrível momento, pensou que ia urinar-se.
Era Kenny Griffen, sorrindo complacentemente.
— A Srta. Bird me mandou atrás de você, porque saiu da aula há seis anos. Você está encrencado.
— Eu sei, mas não posso ir ao porão — disse Charles, ainda nervoso pelo susto que Kenny lhe dera.
— Está com prisão-de-ventre! — cantarolou Kenny alegremente. — Espere só até eu contar a Cathy!
— Não tem nada que contar a ela! — exclamou Charles prontamente. Além disso, não estou com prisão-de-ventre. Há um tigre lá dentro.
— E o que ele está fazendo? — perguntou Kenny. — Mijando?
— Não sei — respondeu Charles, virando o rosto para a parede. — Eu só queria que ele fosse embora — acrescentou, começando a chorar.
— Ei! — disse Kenny, perplexo e um pouco amedrontado. — Ei!
— E se eu tiver que ir? E se não houver outro jeito? A Srta. Bird irá dizer que...
— Ora, vamos! — disse Kenny, agarrando seu braço com uma das mãos e empurrando-o pela porta aberta com a outra. — Você está inventando.
Já estavam dentro do banheiro, antes que Charles, aterrorizado, pudesse libertar-se e encolher-se contra a porta.
— Um tigre — disse Kenny, enojado. — Rapaz, a Srta. Bird matará você!
— Ele está no outro lado.
Kenny começou a caminhar ao longo da fila de pias.
— Pss-pss-pss? Psss?
— Não faça isso! — sibilou Charles.
Kanny desapareceu atrás da quina da parede.
— Pss-pss? Pss-pss? Pss...
Charles disparou pela porta novamente e apertou-se contra a parede, esperando, as mãos cobrindo a boca e os olhos fortemente apertados, esperando, esperando o grito.
Não houve grito nenhum.
Ele não fazia idéia de quanto tempo permaneceu ali, hirto, a bexiga explodindo. Olhou para a porta do porão dos meninos. Ela nada lhe disse. Era apenas uma porta.
Não iria.
Não poderia ir.
Contudo, finalmente entrou.
As pias e espelhos continuavam em ordem e o fraco cheiro de água sanitária não se modificara. No entanto, parecia haver um cheiro sob aquele. Um cheiro vago e desagradável, como o de cobre recém-cortado.
Com sofrida (mas silenciosa) apreensão, ele chegou até a quina do L e espiou.
O tigre estava estirado no chão, lambendo as enormes patas com uma comprida língua rosada. Olhou para Charles sem curiosidade. Em uma de suas presas, havia um pedaço rasgado de camisa.
A necessidade de Charles, no entanto, agora se tornava agônica e ele não podia esperar mais. Tinha que se aliviar. Na ponta dos pés, voltou até a pia de porcelana branca mais próxima da porta.
A Srta. Bird irrompeu no banheiro, justamente quando ele puxava o zíper das calças.
— Ora, mas você, seu garotinho sujo, seu porco! — disse ela, quase ponderadamente.
Charles mantinha um olho vigilante na esquina.
— Sinto muito, Srta. Bird... o tigre... eu vou limpar a pia... vou passar sabão... juro que vou...
— Onde está Kenneth? — perguntou calmamente a Srta. Bird.
— Não sei.
De fato, ele não sabia.
— Ele está aí dentro?
— Não! — gritou Charles.
A Srta. Bird começou a caminhar para o ponto em que o banheiro fazia quina.
— Venha cá, Kenneth! Imediatamente!
— Srta. Bird...
A Srta. Bird, entretanto, já dobrara a quina. Ela quisera surpreender. Charles pensou que a Srta. Bird estava prestes a descobrir o que realmente significava surpreender.
Tornou a cruzar a porta. Bebeu água no bebedouro. Olhou para a bandeira americana pendendo à entrada do ginásio. Olhou para o quadro de avisos. A Coruja Sábia dizia FIQUE ATENTO, NÃO POLUA. O Policial Amigo dizia NUNCA ACEITE CARONA DE ESTRANHOS. Charles leu tudo duas vezes.
Depois voltou para a sala de aula, seguiu por sua fila de carteiras até onde ficava a sua, sempre com os olhos baixos, deslizou para o banco. Faltavam quinze para as onze.
Apanhou Estradas para toda parte e começou a ler sobre Bill no Rodeio.
CAIM REBELADO
Garrish saiu do brilhante sol de maio para a frieza dos dormitórios. Seus olhos demoraram um instante a adaptar-se, de modo que a voz de Harry "Castor" foi, a princípio, apenas incorpórea, vinda das sombras.
— Uma droga, hem? — perguntou "Castor". — Não foi mesmo uma bruta droga?
— Foi — respondeu Garrish. — Um bocado difícil.
Agora, seus olhos pousavam em "Castor". Ele esfregava a mão nas espinhas da testa e havia suor sob seus olhos. Usava sandálias e uma camiseta 69, tendo à frente um botão dizendo que Howdy Doody era um pervertido. Seus enormes dentes protuberantes cintilavam na penumbra.
— Eu ia me mandar em janeiro — disse "Castor". — Fiquei repetindo para mim, caia fora enquanto é tempo. Então, encerrou-se o período para as comunicações de saída, e seria eu ir em frente ou não completar o termo. Acho que levei pau, Curt. Palavra.
A inspetora estava parada na esquina, ao lado das caixas de correspondência. Era uma mulher extremamente alta, mostrando uma vaga semelhança com Rodolfo Valentino.
Com uma das mãos, tentava endireitar uma alça por baixo da cava suada do vestido, enquanto com a outra pregava a percevejos uma lista com o nome dos que deixavam o dormitório.
— Um bocado difícil — repetiu Garrish.
— Tentei colar alguma coisa de você, mas não tive coragem, palavra. Aquela cara tem olhos de águia! Acha que conseguiu seu A?
— Acho que talvez seja reprovado — respondeu Garrish.
— Acha que vai levar pau? Você acha que...
— Vou tomar uma ducha, certo?
— Sim, certo, Curt. Certo. Esta foi sua última prova?
— Foi — respondeu Garrish. — Esta foi minha última prova.
Garrish cruzou o saguão, atravessou as portas e começou a subir. O poço da escada cheirava como um suporte atlético. Os mesmos velhos degraus. Seu quarto ficava no quinto andar.
Quinn e aquele outro idiota do terceiro, o que tinha pernas cabeludas, cruzaram com ele, atirando uma bola de softball de um lado para outro. Um sujeitinho de óculos de aro e um cavanhaque que se esforçava valentemente para aparecer, passou a seu lado entre o quarto e o quinto, apertando um livro de cálculo contra o peito, como uma Bíblia, os lábios se movendo em um rosário de logarítmos. Seus olhos eram vazios como quadros negros.
Garrish parou e o seguiu com o olhar, perguntando-se se ele não estaria melhor morto, mas o sujeitinho era agora apenas uma sombra vacilante que se esfumava contra a parede. Ela oscilou uma vez mais e desapareceu. Garrish subiu para o quinto e desceu o corredor até seu quarto. "Chiqueiro" havia partido dois dias antes. Quatro provas finais em três dias, um esforço dos diabos, e me dê o meu boné... "Chiqueiro" sabia como fazer as coisas. Deixara para trás apenas os posters de suas pin-ups, duas meias desparelhadas, sujas e fedorentas, e uma paródia em cerâmica do Pensador de Rodin, encarapitada em um vaso sanitário.
Garrish enfiou sua chave na fechadura e a girou.
— Curt! Hei, Curt!
Rollins, o conselheiro daquele pavimento, que tinha enviado Jimmy Brody para visitar o Deão dos Homens, por infração alcoólica, vinha descendo o corredor e acenava para ele. Era alto, corpulento, de cabelos em corte rente, simétrico. Parecia envernizado.
— Você já encerrou? — perguntou Rollins.
— Hã-hã.
— Não esqueça de varrer o chão e preencher o relatório de danos, certo?
— Hã-hã.
— Enfiei um relatório de danos debaixo de sua porta na quinta-feira, certo?
— Hã-hã.
— Se eu não estiver em meu quarto, basta enfiar o relatório de danos e a chave por baixo da porta.
— Certo.
Rollins estendeu a mão e apertou a dele, sacundindo-a duas vezes, rápido, pump-piemp.
A palma de Rollins era seca, de pele granulosa. Apertar a mão dele era como apertar um punhado de sal.
— Desejo-lhe um bom verão, cara.
— Obrigado.
— Não se esforce além da conta.
— Certo.
— Use, mas não abuse.
— Vou usar e não abusar.
Rollins pareceu momentaneamente intrigado, depois riu.
— Muito bem, cuide-se, rapaz.
Bateu no ombro de Garrish e continuou a descer o corredor, parando uma vez para dizer a Ron Frane que abaixasse o volume do estéreo. Garrish podia ver Rollins jazendo morto em uma sarjeta, com larvas nos olhos. Rollins não se importaria e tampouco as larvas. A gente come o mundo ou o mundo nos come e tudo acaba bem, de um jeito ou de outro.
Garrish ficou parado e pensativo, olhando até Rollins desaparecer de vista. Só então entrou em seu quarto.
Sem a ciclônica bagunça de "Chiqueiro", o aposento parecia nu e estéril. A montanha desordenada, crescida e dispersa que havia sido a cama de "Chiqueiro", desaparecera por completo, restando apenas o colchão desnudo — embora ligeiramente manchado de esperma. Duas capas duplas de Playboy olharam do alto para ele, exibindo congelados convites bidimensionais.
Houvera pouca mudança na metade do quarto que pertencia a Garrish, que sempre estivera arrumada como um quartel. Deixando-se cair uma moeda sobre a esticada coberta de sua cama, ela certamente ricochetearia. Tamanha arrumação dera nos nervos de "Porcalhão". Ele fazia especialização em Inglês e tinha tendência para belas frases.
Chamava Garrish de dono-de-pombal. A única coisa na parede, acima da cama de Garrish, era uma grande ampliação fotográfica de Humphrey Bogart, que adquirira na livraria da universidade. Bogie empunhava uma pistola automática em cada mão e usava elásticos nas mangas da camisa. "Chiqueiro" dizia que pistolas e braçadeiras eram símbolos de impotência. Garrish duvidava muito que Bogie tivesse sido impotente, mesmo nunca tendo lido nada sobre ele.
Chegou à porta do armário embutido, destrancou-a e tirou o enorme Magnum 325 com coronha de nogueira, que seu pai, um ministro metodista, lhe comprara pelo Natal. O visor telescópico havia sido comprado no último março, pelo próprio Garrish.
Supunha-se proibida a presença de armas nos quartos, inclusive de rifles de caça, porém não havia sido difícil. Ele o apanhara no depósito de armas da universidade, apresentando uma papeleta forjada de retirada. Colocara-o em seu estojo de couro à prova d'água e o deixara no bosque atrás do campo de futebol. Esta madrugada, por volta de três horas, deixara o dormitório e tinha ido apanhá-lo, trazendo-o de volta através dos corredores adormecidos.
Garrish sentou-se na cama, com o rifle cruzado sobre os joelhos, e chorou um pouquinho. O Pensador olhava para ele, sentado em seu vaso sanitário. Garrish largou a arma em cima da cama, cruzou o quarto e, com um tapa, jogou-o fora da mesa de "Porcalhão". O Pensador de cerâmica caiu ao chão, onde se estilhaçou. Houve uma batida à porta.
Garrish escondeu o rifle debaixo da cama.
— Entre!
Era Bailey, em roupas de baixo. Havia um rolo de fios do tecido, no botão sobre o estômago. Não existia futuro para Bailey. Ele se casaria com uma garota imbecil e os dois teriam filhos imbecis. Mais tarde, Bailey morreria de câncer ou talvez de insuficiência renal.
— Como foi em sua final de Química, Curt?
— Tudo bem.
— Queria saber se podia emprestar-me suas anotações. Tenho Química amanhã.
— Eu as queimei com meu lixo, esta manhã.
— Oh! Meu Deus! "Porcalhão" fez isso? — e ele apontou para os remanescentes do Pensador.
— Acho que fez.
— Por que tinha de fazer isso, se ia embora? Eu gostava daquela coisa. Ia comprá-la dele.
Bailey tinha feições miúdas e aguçadas, como as de um rato. Sua roupa de baixo era surrada, com fundilhos empapuçados. Garrish podia ver exatamente como ele pareceria, morrendo de enfizema ou coisa assim, em uma tenda de oxigênio. Como ficaria amarelo. Eu poderia ajudá-lo pensou.
— Acha que ele se importaria, se eu ficasse com as pin-ups?
— Acho que não.
— Ótimo. — Bailey cruzou o quarto, os pés nus pisando cautelosamente nos cacos de cerâmica, e tirou os percevejos que prendiam os posters das coelhinhas. — Essa foto de Bogart também é um barato. Sem maminhas, mas, puxa! Entende? — Bailey olhou de esguelha para Garrish, querendo ver se ele sorriria. Como não houvesse nenhum sorriso, acrescentou: — Estará pretendendo desfazer-se dele?
— Não. Apenas me preparava para uma ducha.
— Tudo bem. Se não tornar a vê-lo, tenha um bom verão, Curt.
— Obrigado.
Bailey caminhou até a porta, com os fundilhos bamboleando-se. Ali, parou e se virou.
— Outros quatro pontos este semestre, Curt?
— No mínimo.
— Boa pedida! Até o ano que vem!
Saiu e fechou a porta. Garrish sentou-se na cama por um momento, depois apanhou o rifle, desmontou-o e limpou-o. Levou a boca da arma até o olho e espiou para o pequeno círculo de luz na extremidade oposta. O cano estava limpo. Tornou a montar a arma.
Na terceira gaveta de sua secretária havia três pesadas caixas de munição Winchester.
Colocou-as sobre o peitoril. Passou a chave na porta do quarto e retornou à janela.
Ergueu as persianas.
A aléia principal da universidade estava clara e verdejante, pontilhada de estudantes indo e vindo. Quinn e seu amigo idiota estavam entretidos com mais um grupo, jogando bola. Corriam de um lado para outro, como formigas aleijadas escapando de um buraco desmantelado.
— Quero dizer-lhe uma coisa — falou Garrish para Bogie. — Deus ficou danado da vida com Caim, porque Caim o julgava um vegetariano. O irmão dele sabia mais. Deus fez o mundo à Sua imagem e, se a gente não devora o mundo, ele nos devora. Foi então que Caim perguntou ao irmão, "Por que não me contou?" E o irmão respondeu, "Por que você não ouviu?" E Caim disse, "Certo, estou ouvindo agora". Então, ele dá cabo do irmão e diz, "Ei, Deus! Você quer carne? Aqui a tem! Prefere assada. em bifes, Abelburger ou como?" E Deus lhe disse que comesse suas sandálias. E então... o que você acha?
Não houve resposta de Bogie.
Garrish ergueu a janela e descansou os cotovelos no peitoril, sem deixar que o cano da 353 se projetasse para fora, à luz do sol. Olhou pelo visor.
Centrou-o no dormitório feminino Carlton Memorial, no outro lado da aléia principal. O Carlton era mais popularmente conhecido como os canis. Colocou os fios cruzados sobre uma grande caminhonete Ford. Uma aluna loura, em jeans e camisa azul, conversava com a mãe, enquanto o pai, de rosto corado e calvo, enchia a traseira da caminhonete com malas.
Alguém bateu à porta.
Garrish esperou.
A batida repetiu-se.
— Curt? Eu lhe darei meia prata pelo poster de Bogart!
Bailey.
Garrish nada disse. A garota e sua mãe riam de alguma coisa, ignorando que havia micróbios em seus intestinos, alimentando-se, dividindo-se, multiplicando-se. O pai da garota se juntou a elas e ficaram reunidos ao sol, um retrato de família no retículo de fios cruzados.
— Que se danem todos! — exclamou Bailey.
Seus pés se moveram corredor abaixo.
Garrish apertou o gatilho.
O rifle escoiceou seu ombro com força, o bom e acolchoado coice de quando se tem a arma apoiada exatamente no lugar certo. A cabeça loura da garota sorridente espatifou-se.
Sua mãe continuou rindo por um momento, depois levou a mão à boca. Gritou por entre os dedos. Garrish atirou neles. Mão e cabeça desapareceram, em borrifos vermelhos. O homem que estivera colocando as malas no carro, interrompeu-se e correu.
Garrish o seguiu com a arma e baleou-o nas costas. O homem levantou a cabeça, ficando fora do visor por um instante. Quinn segurava a bola de soft e olhava para os miolos da garota loura, salpicados sobre o indicador PROIBIDO ESTACIONAR, atrás de seu corpo caído. Quinn não se moveu. Por toda a aléia principal, as pessoas ficaram imóveis, como crianças brincando de estátuas.
Alguém esmurrou a porta, depois sacudiu a maçaneta. Bailey novamente.
— Curt? Você está bem, Curt? Acho que alguém está...
— Boa bebida, boa carne, bom Deus, vamos comer! exclamou Garrish, e atirou em Quinn.
Quinn saltou, ao invés de encolher-se, de modo que o tiro se perdeu. Ele agora corria.
Sem problema. O segundo tiro o pegou no pescoço, fazendo-o voar por talvez uns seis metros.
— Curt Garrish está se matando! — gritava Bailey. — Rollins! Rollins! Venha depressa!
Suas pisadas distanciaram-se, corredor abaixo.
Agora, eles começavam a correr. Garrish podia ouvir a gritaria geral. Podia ouvir o distante som tap-tap de seus sapatos nas calçadas.
Ergueu os olhos para Bogie. Bogie empunhava suas duas armas e, do alto, olhou para ele. Garrish contemplou os restos estilhaçados do Pensador de "Porcalhão" e perguntou-se o que ele estaria fazendo naquele momento, se dormia, via televisão ou devorava alguma lauta e espetacular refeição. Coma o mundo, "Porcalhão", pensou Garrish. Engula o perfeito otário.
— Garrish! — agora era Rollins que esmurrava a porta. — Abra, Garrish!
— Está trancada a chave! — ofegou Bailey. — Ele parecia esquisito, ele se matou, eu sei!
Garrish empurrou novamente a boca da arma para fora da janela. Um rapaz de camisa xadrez, agachado atrás de um arbusto, perscrutava as janelas do dormitório, com desesperada intensidade. Garrish percebeu que ele queria correr, mas estava com as pernas endurecidas.
— Vamos correr, bom Deus — murmurou Garrish, e começou a puxar o gatilho de novo.
ENTREGAS MATINAIS (Leiteiro n.° 1)
O alvorecer espraiou-se lentamente pela Rua Culver.
Para os que estavam acordados dentro de casa, a noite continuava negra, porém o alvorecer estivera realmente espreitando por já quase meia hora. No grande bordo da esquina de Culver com Avenida Balfour, um esquilo vermelho pestanejou e voltou seu olhar sonolento para as casas adormecidas. Na metade do quarteirão, uma andorinha enfiou-se no pequeno chafariz para pássaros na residência dos Mackenzie e salpicou gotas peroladas sobre si mesma. Uma formiga caminhava a esmo pela sarjeta e se deparou com um diminuto fragmento de chocolate, aderido ao rejeitado papel que envolvera a barra inteira.
A brisa noturna, que rogaçara folhas e enfunara cortinas, agora se aquietara. O bordo da esquina deu um último e farfalhante estremecimento, antes de ficar quieto, aguardando a abertura plena que se seguiria a este tranqüilo prólogo.
Uma débil faixa de claridade tingiu o céu a leste. O obscuro curiango entrou de folga e os chapins fizeram uma tentativa para encarar a vida, ainda vacilantes, como que temerosos de acolher o dia por si mesmos.
O esquilo desapareceu em um beiçudo buraco na forquilha do bordo.
A andorinha agitou as asas na borda do chafariz e fez uma pausa.
A formiga também fez uma pausa diante de seu tesouro, como um bibliófilo ruminando sobre uma edição de formato in-fólio.
A Rua Culver tremeu silenciosamente na borda do planeta que o sol iluminava — aquela régua móvel a que os astrônomos denominam círculo de iluminação.
Um som ganhou intensidade quietamente dentro do silêncio, intumescendo com reservas até parecer que sempre estivera ali, oculto sob os ruídos maiores da noite que findava. Ele aumentou, ganhou clareza e transformou-se no decorosamente abafado som de um furgão leiteiro.
O veículo dobrou da Balfour para a Culver. Era um belo furgão bege, com inscrições vermelhas nas laterais. O esquilo assomou como uma língua à boca de seu buraco beiçudo, observou o furgão e depois espiou para um provável pedacinho de forragem para seu ninho. Apressou-se em descer pelo tronco da árvore, de cabeça para baixo. A andorinha voou. A formiga apossou-se do chocolate que suas forças permitiam e encaminhou-se para seu montículo.
Os chapins começaram a trinar mais alto.
No outro quarteirão, um cão latiu.
Nas laterais do furgão de entrega do leite, a inscrição dizia: LATICÍNIOS CRAMER'S.
Havia a figura de uma garrafa de leite e, mais abaixo, o seguinte: NOSSA ESPECIALIDADE — ENTREGAS DE MANHÃ!
O leiteiro usava um uniforme cinza-azulado e um chapéu de bico. Havia um nome escrito sobre o bolso, em fio dourado: SPIKE. Ele assobiava, acima do confortável sacolejo de garrafas no gelo, às suas costas.
O leiteiro parou o furgão junto ao meio-fio, diante da casa dos Mackenzie, pegou o engradado com leite, no piso ao seu lado, depois o colocou na calçada. Parou um instante para cheirar o ar, fresco, novo e infinitamente misterioso. Em seguida, em largas passadas, cruzou a calçada até a porta.
Um pequeno quadrado de papel branco estava preso à caixa de correspondência, por um ímã em forma de tomate. Spike leu o que estava escrito ali, bem de perto e lentamente, como alguém leria uma mensagem encontrada em uma velha garrafa, incrustada de sal.
1 lt. leite
1 creme econ
1 suco laranja
Obrigada
Nella M.
Spike, o leiteiro, olhou pensativamente para seu engradado, colocou-o no chão e tirou dele o leite e o creme. Tornou a examinar o papel, ergueu o ímã-tomate para certificar-se de que não perdera um ponto, vírgula ou traço que modificariam o estado de coisas, assentiu, recolocou o ímã, recolheu seu engradado e voltou ao furgão.
A parte traseira do furgão de leite era úmida, escura e fria. Havia um cheiro mofado de umidade em seu ar, misturando-se desconfortavelmente ao dos laticínios. O suco de laranja estava por trás da insuportável dulcamara. Spike tirou uma caixa de papelão do gelo, tornou a assentir e retornou à calçada. Deixou a caixa de suco ao lado do leite e do creme. Depois voltou a seu furgão.
Não muito longe dali, soou o apito das cinco horas na lavanderia industrial, onde trabalhava Rocky, o velho amigo de Spike. Ele pensou em Rocky, iniciando seu trabalho por entre nuvens de vapor, em meio a um calor sufocante, e sorriu. Talvez procurasse Rocky mais tarde. Talvez essa mesma noite... depois de feitas as entregas.
Spike deu partida ao motor e seguiu em frente. Um pequeno rádio transistorizado com uma correia em imitação de couro, pendia de um gancho de açougue, manchado de sangue, que se encurvava do teto da boléia. Ele o ligou e uma música sossegada funcionava como contraponto de seu motor, enquanto rodava para a casa dos McCarthy.
A nota da Sra. McCarthy estava no lugar costumeiro, a fenda do depósito de cartas. Era concisa e direta:
Chocolate
Spike pegou sua caneta, garatujou Entrega Feita através do papel e o empurrou de volta pela fenda. Depois voltou ao furgão. O leite chocolatado ficava estocado em dois esfriadores, bem no fundo, sendo alcançado pelas portas traseiras, porque era um produto de grande saída em junho. O leiteiro olhou para os esfriadores, depois estendeu o braço sobre eles e apanhou uma das caixas vazias de papelão para o leite chocolatado, que ficavam no canto oposto. Naturalmente, a caixa era marrom, e uma alegre criança cabriolava acima da matéria impressa, informando ao consumidor que aquele era um PRODUTO DOS LATICÍNIOS CRAMER'S INTEGRAL E DELICIOSO PODE SER TOMADO QUENTE OU GELADO AS CRIANÇAS O ADORAM!
Spike colocou a caixa vazia de papelão sobre um engradado de leite. Em seguida, limpou os fragmentos de gelo até poder ver o pote de maionese. Apanhou-o e espiou em seu interior. A tarântula se moveu, mas entorpecidamente. O frio a dopara. Spike desenroscou a tampa do pote e o virou sobre a caixa aberta de papelão. A tarântula fez um débil esforço para engatinhar de volta, subindo pelo deslizante lado de vidro do pote, mas não foi bem sucedida. Caiu dentro da caixa de papelão vazia do leite chocolatado, com um gordo plop. O leiteiro tornou a fechar a caixa cuidadosamente, colocou-a em seu suporte e subiu apressado a calçada dos McCarthy. Aranhas eram suas prediletas, o máximo, em sua opinião. Para Spike, o dia em que pudesse entregar uma cobra, seria um dia feliz.
Enquanto subia a Culver lentamente, continuava a sinfonia do alvorecer. A faixa perolada do leste foi substituída por um crescente clarão rosado, a princípio muito pouco discernível, depois abrilhantando-se rapidamente para um escarlate que, quase em seguida, começou a desbotar-se para o azul do verão. Os primeiros raios de sol, belos como um desenho infantil em um livro de exercícios da escola dominical, agora aguardavam nos bastidores.
Na casa dos Webber, Spike deixou uma garrafa de creme comum, repleta de gelatina ácida. Na dos Jenner, deixou cinco litros de leite. Ali havia meninos crescendo. Ele nunca os vira, porém havia uma casa-de-árvore nos fundos e, por vezes, bicicletas e bastões de jogar bola esquecidos no pátio fronteiro. Na dos Collins, dois litros de leite e uma embalagem de papelão com iogurte. Na da Srta. Ordway, uma caixa de papelão com eggnog, que fora batizada com beladona.
Uma porta bateu no fim do quarteirão. O Sr. Webber, que fazia o trajeto inteiro até a cidade, abriu a porta cinza-azulada de sua garagem e entrou, balançando sua pasta. O leiteiro esperou que soasse o zumbido do pequeno Saab, dando partida ao motor, e sorriu ao ouvi-lo. A variedade é o tempero da vida, gostava de dizer a mãe de Spike — que Deus dê descanso à sua alma! — porém nós somos irlandeses, e os irlandeses preferem comer suas batatas da maneira mais simples. Seja moderado em todos os sentidos, Spike, e você será feliz. Isto era absolutamente verdadeiro, conforme ele próprio descobrira, enquanto descia a estrada da vila rodando em seu asseado furgão leiteiro bege.
Agora, faltavam apenas três casas.
Nados Kincaid, ele encontrou uma nota dizendo "Nada hoje, obrigado", mas deixou uma garrafa de leite tampada, que parecia vazia, mas continha um mortítero gás de cianureto. Na casa dos Walker, deixou dois litros de leite e meio litro de creme batido.
Quando chegou à casa dos Merton, no fim do quarteirão, os raios de sol brilhavam por entre as árvores e mosqueavam a desbotada grade da amarelinha, na calçada que passava à frente do prédio.
Spike abaixou-se e apanhou o que parecia uma excelente pedra para jogar amarelinha — chata de um lado — e atirou-a. A pedra caiu sobre uma linha. Ele meneou a cabeça, sorriu e subiu a calçada, assobiando.
A leve brisa lhe trouxe o cheiro de sabão da lavanderia industrial, fazendo-o pensar novamente em Rocky. A cada momento, crescia sua certeza de que veria Rocky. Aquela noite.
Havia uma nota espetada no suporte de jornais dos Merton: Cancelado
Spike abriu a porta e entrou.
A casa estava gelada como uma cripta e sem qualquer mobiliário. Não podia ficar mais árida, com as paredes nuas. O próprio fogão da cozinha fora retirado; havia um quadrado brilhante no chão, mostrando onde estivera o linóleo.
Na sala de estar, o menor fragmento de papel fora removido das paredes. Não havia lustre, na lâmpada pendurada por um fio. Uma lâmpada agora queimada. Uma grande mancha de sangue seco cobria parte de uma parede. Assemelhava-se à mancha de tinta de um psiquiatra. No centro dela, uma cratera aprofundava-se no reboco. Havia um punhado de cabelos emaranhados na cratera, além de algumas lascas de ossos.
O leiteiro assentiu, saiu e ficou parado na entrada por um instante. Aquele ia ser um lindo dia. O céu já estava mais azul do que um olho de bebê, salpicado de ingênuas nuvenzinhas precursoras do bom tempo... aquelas a que os jogadores de beisebol chamam de "anjos".
Retirando a nota do suporte de jornais, ele a amassou em uma bola. Depois a enfiou no bolso esquerdo frontal, em sua calça branca de leiteiro.
Voltou ao furgão, chutando a pedra da amarelinha para a sarjeta. O furgão de entrega de leite chocalhou ao dobrar a esquina e sumiu de vista.
O dia ficou ainda mais radioso.
Um menino irrompeu de uma casa, sorriu para o céu e tornou a entrar, levando o leite.
NONA
Ouvi sua voz dizendo isto — algumas vezes ainda a ouço. Em meus sonhos.
— Você ama?
— Sim — respondo. — Sim — e o verdadeiro amor jamais morrerá.
Então, acordo gritando.
Mesmo agora, eu não sei como explicar. Não posso contar por que fiz aquelas coisas.
Tampouco poderia fazê-lo no julgamento. E aqui há um bando de gente que me interrogará a respeito. Há um psiquiatra que me faz perguntas, mas fico calado. Meus lábios estão selados. Exceto aqui, em minha cela. Aqui não fico calado. Acordo gritando.
No sonho, eu a vejo caminhando para mim. Está usando um vestido branco, quase transparente, com uma expressão mesclada de desejo e triunfo. Ela caminha para mim através de um aposento escuro, com piso de pedra, e sinto cheiro de rosas secas de outubro. Seus braços estão abertos e aproximo-me com os meus também abertos, a fim de abraçá-la.
Sinto medo, respulsa, uma ânsia indizível. Medo e repulsa, porque sei que lugar é aquele, ânsia, porque a amo. Sempre a amarei. Houve vezes em que desejei que ainda houvesse pena de morte neste estado. Uma curta caminhada por um corredor sombrio, uma cadeira de espaldar reto, dotada de um chapéu metálico, correias... depois um rápido sacolejo, e eu estaria com ela.
A medida que nos aproximamos, no sonho, meu medo aumenta, mas é impossível afastar-me dela. Minhas mãos se pressionam sobre a lisura plana de suas costas, sua pele logo abaixo da seda. Ela sorri, com aqueles olhos negros e profundos. Sua cabeça se ergue para a minha, os lábios se entreabrem, prontos para serem beijados.
É então que ela se modifica, se encolhe. Os cabelos ficam ásperos e embolados, dissolvendo-se do negro para um horroroso castanho, que cai sobre a brancura cremosa de suas faces. Os olhos se apertam e ficam vidrados como contas. As escleróticas desaparecem e ela me fita com olhinhos semelhantes a duas bolas de azeviche polido. A boca se torna um papo, através do qual salientam-se tortos dentes amarelos.
Eu tento gritar. Tento acordar.
Não posso. Sinto-me preso novamente. Sempre ficarei preso.
Estou preso em um enorme, fétido cemitério de ratos. Luzes oscilam diante de meus olhos. Rosas de outubro. Em algum lugar, um sino bimbalha surdamente.
— Você ama? — a coisa sussura. — Você ama?
O cheiro das rosas é sua respiração, quando ela se precipita para mim, dores mortas em uma capela mortuária.
— Sim — respondo à coisa-rato. — Sim — e o verdadeiro amor jamais morre —
Então, começo a gritar e acordo.
Eles pensam que o que fizemos me deixou louco. Não obstante, minha mente continua funcionando, de um jeito ou de outro, e nunca parei de buscar as respostas. Ainda quero saber o que foi e como foi.
Eles me deram papel e uma caneta de pontas de feltro. Vou registrar tudo. Talvez responda a algumas de suas perguntas e, ao mesmo tempo, enquanto escrevo talvez possa responder a algumas das minhas. E quando terminar, há algo mais. Algo que eles ignoram em meu poder. Algo que eu tenho. Está aqui, debaixo do meu colchão. Uma faca, do refeitório da prisão.
Devo começar falando a vocês sobre Augusta.
É noite enquanto escrevo isto, uma bela noite de agosto, pontilhada de estrelas cintilantes. Posso vê-las através das grades de minha janela, que dá para o pátio de exercícios e também para uma fatia de céu, que posso bloquear com dois dedos. Faz muito calor e estou apenas de sunga. Posso ouvir os suaves rumores estivais de sapos e grilos. No entanto, consigo trazer o inverno de volta, apenas fechando os olhos. O frio amargo daquela noite, as desoladas, duras e inamistosas luzes de uma cidade que não era a minha. Era quatorze de fevereiro.
Como vêem, lembro-me de tudo.
E olhem para meus braços — cobertos de suor, ficaram arrepiados.
Augusta...
Quando cheguei a Augusta, estava mais morto do que vivo, por causa do frio. Escolhera um belo dia para despedir-me do cenário da universidade e viajei de carona para o oeste; antes de sair do estado, parecia que poderia morrer congelado.
Um tira me chutara na divisa interestadual, ameaçando prender-me se tornasse a me pegar por ali, pedindo carona. Quase fiquei tentado a desacatá-lo e deixar que me levasse. A lisa fita de auto-estrada com quatro faixas parecia a pista de pouso de um aeroporto, com o vento ululando e empurrando membranas de neve pulverizada, em turbilhões ao longo do concreto. E, para os anônimos Eles, por trás de seus garantidos pára-brisas, qualquer um em pé no acostamento, em uma noite escura, só pode ser um estuprador ou assassino. Se o sujeito tem cabelos compridos, ainda é encarado como molestador de criança e homossexual.
Durante algum tempo, fiquei tentando na estrada de acesso, mas não adiantou. Faltando quinze minutos para as oito da noite, percebi que se não chegasse logo a algum lugar aquecido, acabaria desmaiando.
Caminhei dois quilômetros, antes de encontrar uma combinação de restaurante e posto para diesel, na estrada 202, já dentro dos limites da cidade. A BOA COMIDA DO JOE, dizia o anúncio em neon. Havia três enormes ônibus estacionados no pátio de pedrinhas soltas e um sedã novo. Uma coroa de Natal, já surrada, estava pendurada à porta, sem que ninguém se preocupasse em retirá-la. Perto dela, um termômetro mostrava exatamente cinco graus de mercúrio acima do grande zero. Eu nada tinha para cobrir os ouvidos além dos cabelos e minhas luvas de couro cru já se desintegravam. As pontas de meus dedos pareciam pedaços de móveis.
Abri a porta e entrei.
O calor foi a primeira coisa que me recebeu, quente e gostoso. Em seguida, foi uma canção montanhesa na vitrola automática, na voz indiscutível de Merle Haggard: "Não deixamos nossos cabelos compridos e desgrenhados, como fazem os hippies em San Francisco."
A terceira coisa foi O Olho. A gente passa a conhecer O Olho, assim que deixa os cabelos crecerem abaixo dos lóbulos das orelhas. No mesmo instante, os outros sabem que não fazemos parte dos Lions, Elks ou VFW — os Veteranos de Guerras no Estrangeiro. Identificamos O Olho, porém nunca nos acostumamos a ele.
Naquele exato momento, as pessoas que me dirigiam O Olho eram quatro motoristas de caminhão em uma cabine, dois mais ao balcão, duas velhotas com casacos de pele baratos e cabelos rinsados de azul, o cozinheiro de refeições rápidas e um rapazola babaca, com espuma de sabão nas mãos. Havia uma garota sentada no extremo mais distante do balcão, porém ela se limitava a contemplar o fundo de sua xícara de café.
Foi ela a quarta coisa que me tocou.
Já tenho idade suficiente para saber que não existe isso de amor à primeira vista. Trata-se apenas de algo que Rodgers e Hammerstein idealizaram um dia, para rimar com lua e junho. Esse negócio é para jovens de mãos dadas nos bailes escolares, certo?
Contudo, olhar para ela faz-me sentir algo. Podem rir, mas aposto como não ririam, se a tivessem visto. Ela era quase inacreditavelmente linda. Sem a menor sombra de dúvida, compreendi que todo mundo ali dentro, sabia o mesmo que eu. Como se eu soubesse que ela era alvo de O Olho, antes de minha chegada. Tinha cabelos cor de carvão, tão negros, que pareciam quase azulados sob as luzes fluorescentes. Caíam livremente por seus ombros, cobertos por um casaco surrado, castanho-amarelo. Tinha a pele branco cremosa, com apenas um ligeiríssimo toque rosado abaixo da superfície — o frio que havia trazido consigo. Cílios negros e compridos. Olhos solenes, um pouquinho amendoados nos cantos. Uma boca cheia e móvel, abaixo de um nariz patrício. Eu não poderia dizer como era seu corpo. Não fazia diferença. Vocês não se importariam também. Ela precisava apenas daquele rosto, daqueles cabelos, daquele ar. Era refinada.
Não conheço outra palavra que se ajuste melhor.
Nona.
Sentei duas banquetas distante dela e o cozinheiro de refeições rápidas aproximou-se, olhando para mim.
— O que vai querer?
— Café puro, por favor.
Ele foi buscá-lo. Atrás de mim, alguém disse:
— Bem, acho que Cristo voltou, justamente como mamãe sempre disse que Ele voltaria.
O lavador de pratos babaca riu, emitindo um rápido som como iec-iec. Os motoristas do balcão riram também.
O cozinheiro trouxe meu café, soltou-o em cima do balcão e derramou um pouco sobre a carne constelada de minha mão. Puxei-a bruscamente.
— Desculpe — disse ele, indiferente.
— Ele mesmo se curar — disse um dos motoristas da cabine.
As gêmeas de cabelos rinsados pagaram suas contas e apressaram-se em dar o fora. Um dos cavaleiros da estrada investiu para a vitrola automática e enfiou nela outra moeda.
Johnny Cash começou a cantar "Um rapaz chamado Sue", Soprei meu café.
Alguém puxou minha manga. Virei a cabeça e lá estava ela — tinha vindo para a banqueta vazia. Olhar de perto para aquele rosto era quase ofuscante. Entornei um pouco mais de meu café.
— Sinto muito — disse ela, em voz baixa, quase átona.
— A culpa foi minha. Ainda não tenho muito tato no que faço.
— Eu...
Ela parou, como que constrangida. De repente, percebi que estava amedrontada. Senti novamente minha primeira reação por ela — a de protegê-la, cuidar dela, não deixá-la ter medo.
— Preciso de uma carona — terminou, apressadamente. — Não tive coragem de pedir a nenhum deles — acrescentou, fazendo um gesto quase imperceptível para os motoristas de caminhão na cabine.
Não sei como fazê-los compreender que daria qualquer coisa — tudo — para ser capaz de dizer-lhe, Claro, termine seu café, lenho o carro lá fora. Parece loucura dizer que me sentia assim, após ouvir uma meia dúzia de palavras de sua boca e o mesmo número da minha, porém aconteceu. Olhar para ela era como ver a Mona Lisa ou a Vênus de Milo adquirirem vida. Havia ainda outra sensação. Era como se uma súbita e potente luz se houvesse subitamente acendido na confusa escuridão de minha mente. Tudo ficaria mais fácil, se eu pudesse dizer que ela era uma garota fácil e eu um homem rápido em conquistar mulheres, ágil em piadinhas e um bom papo, mas ela não era desse tipo e nem eu tampouco. Naquele momento, eu sabia apenas que não podia proporcionar o que ela queria e isso me dilacerava.
— Estou viajando de carona — falei. — Um tira me expulsou para fora da interestadual e só vim até aqui para fugir do frio. Sinto muito.
— Você é da universidade?
— Fui. Saí antes que me mandassem embora.
— Está voltando para casa?
— Não tenho casa para onde ir. Fui tutelado do estado. Estava na universidade com uma bolsa-de-estudos. Caí fora. Agora, não sei para onde ir.
Era a história de minha vida, em cinco frases. Acho que isso me deixou deprimido. Ela riu — o som de seu riso me esquentou. depois esfriou.
— Acho que somos gatos do mesmo saco — disse.
Pensei que ela dizia gatos. Pensei, no momento. Naquele instante. Contudo, aqui tive tempo para refletir e cada vez tenho mais impressão de que ela teria dito ratos. Ratos do mesmo saco. Isso mesmo. E eles não têm significado igual, têm?
Eu ia iniciar minha melhor linha de conversa — algo inteligente como "É mesmo?" — quando uma mão caiu em meu ombro.
Virei-me. Era um dos motoristas da cabine. Uma barba loura começava a despontar em seu queixo e havia um fósforo pendurado em sua boca. Ele cheirava a óleo de motor e parecia algo saído de um desenho de Steve Ditko.
— Acho que você já acabou esse café — disse ele.
Seus lábios dividiram-se em torno do fósforo, exibindo um sorriso. O homem tinha um bocado de dentes muito alvos.
— Como?
— Você está deixando o lugar fedorento, cara. Você é um cara, não? Fica um tanto difícil adivinhar.
— Você também não é nenhuma rosa — repliquei. — Qual a sua loção de barba, simpático? Eau de óleo-de-cárter?
Ele me deu um tapa brutal em um lado do rosto, com a mão aberta. Vi pontinhos pretos.
— Nada de brigas aqui dentro-disse o cozinheiro de refeições rápidas. — Se está querendo amarrotá-lo, vá lá para fora.
— Vamos, seu comunista maldito — disse o motorista.
É a esta altura que uma garota costuma dizer alguma coisa, como "Tire as mãos de cima dele" ou "Seu bruto". Ela não disse nada. Olhava para nós dois com febril intensidade.
Chegava a ser assustador. Creio ser aquela a primeira vez em que percebi como seus olhos eram enormes.
— Vou precisar esmurrá-lo outra vez?
— Não. Vamos, saco de bosta!
Não sei como aquilo saltou de mim. Não gosto de brigar. Não sou um bom lutador. Sou ainda pior para xingamentos. Contudo, estava zangado. No mesmo instante, senti vontade de matá-lo.
Talvez ele houvesse captado meu desejo. Por um segundo apenas, uma sombra de incerteza passou por seu rosto, a inconsciente dúvida de se não teria escolhido o hippie errado. Então, desapareceu. Não, ele não ia recuar, diante de um efeminado esnobe e elitista, de cabelos compridos, que usava a bandeira para limpar o traseiro — pelo menos, não em frente de seus companheiros. Não um motorista de caminhão, forte e machão como ele.
A raiva me tomou novamente. Bicha? Bicha? Perdi o controle e foi bom sentir-me assim. A língua estava espessa em minha boca. Meu estômago parecia um pedaço de pedra.
Cruzamos a porta e os chapas do meu chapa quase quebraram as costas, querendo apreciar a diversão.
Nona? Pensei nela, mas apenas de maneira vaga, distante. Sabia que ela estaria lá. Nona cuidaria de mim. Sabia disso, tão bem como sabia que lá fora estava frio. Era estranho saber isso de uma garota conhecida apenas cinco minutos antes. É curioso, mas só mais tarde pensei nisso. Minha mente estava tomada — não, quase sobrecarregada — pela pesada nuvem de fúria. Eu me sentia homicida.
O frio estava tão cortante e sólido, que dava a impressão de cortar nossos corpos como faca. O cascalho gelado do pátio de estacionamento rangeu cruamente sob as pesadas botas do motorista e os meus sapatos. A lua, cheia e intumescida, espiava para nós com um olho insosso. Estava rodeada de anéis desbotados, sugerindo mau tempo a caminho.
O céu era negro como uma noite no inferno. Deixávamos pequenas sombras miniaturizadas atrás de nossos pés, ao brilho monocrômico de uma única lâmpada de sódio, no alto de um poste, além dos veículos estacionados. Nossa respiração pairava no ar como pluma, em alentos curtos. O motorista se virou para mim, comprimindo os punhos enluvados.
— Muito bem, seu filho da puta — disse ele.
Eu pareci inchar — todo o meu corpo parecia inchar. De algum modo, entorpecidamente, eu soube que meu intelecto ia ser eclipsado por algo invisível, que jamais suspeitara existir em mim. Era aterrorizante, porém ao mesmo tempo eu agradeci, desejei-o, ansiei por aquilo. Naquele último instante de pensamento coerente, parecia que meu corpo se tornara uma pirâmide de pedra ou um ciclone capaz de destruir tudo que tivesse pela frente, reduzindo a gravetos. O motorista parecia pequenino, reles, insignificante. Ri dele. Ri, e o som era tão negro e lúgubre como aquele céu manchado pela lua, acima de nós.
Ele investiu gingando os punhos, ainda rindo como um cão de fazendeiro latindo para a lua. Atingi-o três vezes, antes mesmo dele poder fazer um quarto de volta — no pescoço, no ombro, em uma orelha vermelha.
Ele emitiu um grito uivado e uma de suas mãos em movimento me roçou o nariz. A fúria que me tomara avolumou-se e tornei a chutá-lo, erguendo o pé alto e com força, como uma ponteira. Ele gritou dentro da noite e ouvi uma costela estalar. O homem se dobrou e saltei sobre ele.
No julgamento, um dos outros motoristas de caminhão testemunhou que eu parecia um animal selvagem. E era mesmo. Não posso recordar bem como foi, porém posso recordar que grunhia e rosnava para ele como um cão danado.
Montei nele, agarrei punhados duplos de seus cabelos gordurosos e comecei a esfregar-lhe o rosto no cascalho. À claridade monótona da luz de sódio, seu sangue parecia negro, como sangue de besouro.
— Jesus, pare com isso! — alguém gritou.
Mãos agarraram meus ombros e me puxaram. Vi rostos rodopiando e avancei para eles.
O motorista tentava fugir dali. Seu rosto era uma horrenda máscara de sangue, de onde seus olhos alucinados espiavam. Comecei a chutá-lo, afastando-me dos demais, rosnando de satisfação a cada vez que o atingia.
Ele não tinha mais condições de luta. Tudo quanto queria era ir embora. A cada vez que eu o chutava, seus olhos se espremiam, semicerrando-se, como os de uma tartaruga, e então ele parava. Depois, recomeçava a engatinhar. Parecia idiotizado. Decidi que ia matá-lo. Ia chutá-lo até tirar-lhe a vida. Depois mataria os outros — todos, exceto Nona.
Voltei a chutá-lo e ele rolou de costas, fitando-me com olhos esgazeados.
— Meu tio — grasnou. — Vou chamar meu tio. Por favor, por favor!
Ajoelhei-me ao seu lado, sentindo o cascalho morder-me os joelhos, através do tecido fino de meu jeans.
— Aqui está, simpático — cochichei. — Aqui está seu tio!
Engalfinhei as duas mãos em seu pescoço.
Três deles saltaram em cima de mim imediatamente e arrancaram-me daquela posição.
Levantei-me, ainda sorrindo, comecei a caminhar para eles. Os três recuaram, três homens grandalhões, todos verdes de medo.
Então, a coisa desligou.
Exatamente assim. Desligou e voltei a ser eu mesmo, parado no pátio de estacionamento do "A Boa Comida do Joe", respirando com dificuldade, sentindo-me nauseado e aterrorizado.
Virei-me e olhei para o bar. A garota estava lá; suas belas feições pareciam iluminadas pelo triunfo. Ela ergueu um punho fechado à altura do ombro, em saudação, como fez um daqueles caras negros nas Olimpíadas nessa época.
Virei-me agora para o homem no chão. Ele ainda tentava engatinhar para longe e, ao aproximar-me, seus olhos giraram temerosamente.
— Não toque nele! — gritou um de seus amigos.
Olhei para eles, confuso.
— Eu... sinto muito... não queria... machucá-lo tanto. Deixem-me ajudá-lo...
— O que você vai fazer é dar o fora daqui — disse o cozinheiro. Estava parado à frente de Nona, ao pé dos degraus, aferrando uma espátula gordurosa. — Vou chamar os tiras.
— Ei, cara, foi ele que começou. Ele...
— Não me venha com sua conversa fiada, seu bicha piolhento — disse ele, recuando até o alto dos degraus. — Só sei que você quase matou aquele sujeito. Vou chamar os tiras!
O cozinheiro precipitou-se para o interior.
— Tudo bem — falei, para ninguém em particular. — Tudo bem, tudo bem...
Havia deixado minhas luvas de couro cru lá dentro, mas não me pareceu uma boa idéia tornar a entrar para pegá-las. Enfiei as, mãos nos bolsos e comecei a caminhar de volta à estrada interestadual de acesso. Imaginei minhas chances de pegar uma carona, antes que os tiras me apanhassem. Uma em dez. Minhas orelhas congelavam e meu estômago doía. Que noite miserável!
— Espere! Ei, espere!
Virei-me. Era ela, correndo para alcançar-me, os cabelos voando às suas costas.
— Você foi maravilhoso! — exclamou. — Formidável.
— Eu o machuquei muito — falei, taciturnamente. — Nunca fiz nada assim antes.
— Pois eu gostaria que o tivesse matado!
Pestanejei para ela, à luminosidade gélida.
— Devia ter ouvido as coisas que diziam a meu respeito, antes de você chegar. Riam, daquela maneira aberta, debochada e suja — "Ha, ha, ha, vejam só a garotinha, fora de casa tanto tempo, já noite fechada. Para onde vai, meu bem? Quer uma carona? Eu lhe darei uma carona, se você me der outra. Porra!"
Ela olhou para trás sobre o ombro, como se pudesse liquidá-los com um súbito raio de seus olhos escuros. Depois me fitou e, novamente, era como uma lanterna, virada sobre minha mente.
— Meu nome é Nona. Vou com você.
— Para onde? Para a cadeia? — Passei as duas mãos nos cabelos. — Desta maneira, o primeiro sujeito que nos der uma carona bem pode ser um tira estadual. Aquele cozinheiro falava sério, quando avisou que ia chamar a polícia.
— Eu peço a carona. Você ficará atrás de mim. Quando me virem, eles vão parar. Sempre param para uma garota, se for bonita.
Não quis discutir com ela a respeito e nem podia. Amor à primeira vista? Talvez não.
Enfim, era alguma coisa. Dá para entender?
— Tome — disse ela. — você esqueceu lá dentro.
Eram as minhas luvas. Ela não tornara a entrar, de maneira que devia ter estado com as luvas o tempo todo. Sabia que viria comigo. Aquilo me deu uma sensação fantástica.
Calcei as luvas e caminhamos para a estrada de acesso, na rampa de pedágio.
Ela estava certa sobre a carona. Tomamos o primeiro carro que apareceu na rampa.
Não falamos mais nada enquanto esperávamos, porém foi como se falássemos. Não vou enchê-los com uma longa arenga sobre PES e coisas assim, porque devem saber do que estou falando. Qualquer um sentiria o mesmo, ao lado de alguém realmente íntimo ou tomando uma daquelas drogas que têm iniciais como nome. Não se precisa falar. A comunicação parece irradiar-se por alguma faixa emocional de alta freqüência. Um gesto de mão faz tudo. Éramos estranhos. Eu só a conhecia pelo primeiro nome, e agora que penso nisto, não creio que lhe tenha dito o meu. Contudo, estávamos sintonizados.
Não era amor. Odeio ficar repetindo isso, mas sinto que é preciso. Eu não macularia essa palavra com o que quer que havia entre nós — não depois do que fizemos, não depois de Castle Rock, não depois dos sonhos.
Um uivo agudo, ululante, encheu o frio silêncio da noite, subindo e descendo.
— Parece uma ambulância — falei.
— É, parece.
Silêncio novamente. O luar se dissolvia por trás de uma espessa membrana de nuvem.
Refleti que os anéis em torno da lua não haviam mentido; teríamos neve, antes que a noite terminasse.
Luzes surgiram acima da colina.
Fiquei atrás dela, sem que me fosse mandado. Ela jogou os cabelos para trás e ergueu aquele rosto maravilhoso. Enquanto espiava o carro sinalizar para a rampa de entrada, fui tomado por um senso de irrealidade — era irreal que essa linda jovem houvesse preferido vir comigo, era irreal que eu tivesse espancado um homem, a ponto de chamarem uma ambulância para ele, era irreal pensar que eu poderia estar na cadeia pela manhã. Irreal. Senti-me apanhado em uma teia de aranha. quem seria a aranha?
Nona espichou o polegar. O carro, um sedã Chevrolet, passou por nós e pensei que fosse seguir em frente. Então, faroletes traseiros piscaram e Nona me agarrou a mão.
— Vamos, conseguimos uma carona!
Ela sorriu para mim, com satisfação infantil, e eu lhe sorri de volta. O sujeito inclinava-se entusiasticamente sobre o assento para abrir-lhe a porta. Quando a luz se acendeu, pude vê-lo — um homem razoavelmente corpulento, vestindo um caro sobretudo de pêlo de camelo, os cabelos embranquecendo em torno das abas do chapéu, fisionomia próspera, amolecida por anos de boa comida. Um homem de negócios ou vendedor.
Sozinho. Quando me viu, esboçou uma reação de surpresa, porém tardia em um ou dos segundos, para que pudesse engrenar o carro e ir embora. Aliás, assim foi mais fácil para ele. Mais tarde, poderia vangloriar-se, acreditando que vira nós dois e que realmente era uma boa alma, dando uma carona a um casal.
— Noite fria — disse, quando Nona deslizou ao seu lado e eu me,sentei junto dela.
— Sem dúvida — disse ela, docemente. — Muito obrigada!
— Sim — falei. — Obrigado.
— Não foi nada.
Partimos, afastando-nos de sirenes, deixando para"trás motoristas logrados e A Boa Comida do Joe.
Eu tinha sido chutado para fora da interestadual às sete e meia. Então, eram apenas oito e meia. É espantoso o quanto se pode fazerem um breve período ou quanto podem fazer conosco.
Estávamos nos aproximando das pestanejantes luzes amarelas indicando o posto de pedágio de Augusta.
— Até onde vão? — perguntou o motorista.
Era uma pergunta difícil. Eu esperava chegar até Kittery e encontrar um conhecido, dono de uma escola local. Parecia uma resposta tão boa quanto qualquer outra e já abria minha boca para falar, quando Nona disse:
— Estamos indo para Castle Rock. É uma cidadezinha logo ao sul e a oeste de Lewinston-Auburn.
Castle Rock. Senti-me estranho ao ouvir o nome. Certa vez, tivera excelentes relações com Castle Rock, mas isso fora antes de Ace Merrill se meter comigo.
O sujeito parou o carro, pegou um ticket de pedágio e seguimos viagem novamente.
— Quando a mim, só vou até Gardiner — disse ele, recostando-se confortavelmente no assento. — Terei que tomar a saída número um. De qualquer modo, já é um começo para vocês.
— Claro — disse Nona, em voz tão doce quando antes. — Foi muita gentileza sua parar para nós em uma noite tão fria.
Enquanto ela falava, eu podia captar sua raiva, naquele comprimento de onda altamente emocional, uma raiva crua, cheia de veneno. Aquilo assustou-me, da maneira como me assustaria o tiquetaquear de um pacote embrulhado.
— Meu nome é Blanchette — disse ele. — Norman Blanchette.
Estendeu a mão para nós, cumprimentando.
— Cheryl Craig — disse Nona, apertando-lhe a mão delicadamente.
Aceitei sua deixa e forneci a ele um nome falso.
— Muito prazer — murmurei.
A mão dele era lisa e frouxa. Como um saco de água quente, no formato de mão. O pensamento nauseou-me. Repugnava-me saber que havíamos sido forçados a uma carona com aquele sujeito benevolente, que imaginava ter tido a chance de dar carona a uma moça sozinha, uma moça que podia ou não concordar em uma hora passada em algum quarto de motel, em troca de dinheiro suficiente para comprar uma passagem de ônibus. Repugnava-me saber que, se eu estivesse sozinho, o homem que acabara de oferecer-me sua mão frouxa e quente, seguiria em frente sem mim e sem vacilar.
Repugnava-me saber que ele nos desembarcaria na saída para Gardiner, faria o retorno e depois arremeteria novamente pela interestadual, passando por nós pela rampa que levava, ao sul, sem um olhar, congratulando-se pela facilidade com que resolvera uma situação incômoda. Tudo a respeito dele me repugnava. As dobras porcinas de sua papada, as ondas de cabelo alisadas para trás, o cheiro de sua colônia.
E que direito tinha ele? Que direito?
A repugnância azedou e as flores de raiva começaram a florescer novamente. Os faróis de seu potente sedã Impala varavam a noite com tranqüila facilidade, enquanto minha fúria queria estirar-se e estrangular tudo que dizia respeito a ele — o tipo de música que certamente ouvia, recostado em sua poltrona predileta, com o jornal da noite em suas mãos de bolsa de água quente, a rinsagem que sua mulher devia usar nos cabelos, a roupa de baixo que ela usava, os filhos sempre enviados aos cinemas, à escola ou acampamentos — enquanto o casal se ausentava em algum lugar — os amigos esnobes daquele sujeito e as reuniões de bebedeiras a que compareceria com eles.
Sua colônia, no entanto, era pior. Enchia o carro com o cheiro adocicado e nauseante.
Cheirava como o desinfetante perfumado que usam em um abatedouro, ao fim de cada turno.
O carro disparou através da noite, com Norman Blanchette segurando o volante em suas mãos intumescidas. As unhas manicuradas brilhavam suavemente às luzes do painel de instrumentos. Eu queria quebrar o vidro de uma janela e fugir daquele cheiro enjoativo.
Não, mais: eu queria arriar todo o vidro da janela, espichar a cabeça para o ar frio, espojar-me na frescura gelada — mas estava congelado, congelado nas mudas entranhas de meu ódio, silencioso e inexpressado.
Foi quando Nona colocou a lima de unhas em minha mão.
Aos três anos de idade, tive um caso de gripe e precisei ficar no hospital. Enquanto permaneci lá, meu pai adormeceu fumando na cama e a casa incendiou-se matando meus velhos e Drake, meu irmão mais velho. Tenho fotos deles. Parecem atores de um antigo filme de horror da American International, em 1958 rostos que vocês não conhecem como sendo os de grandes astros, mais como Elisha Cook, Jr. e Mara Corday, bem como de um ator infantil que não devem recordar bem — Brandon de Wilde, talvez.
Não tenho parentes que ficassem comigo, fui enviado para um orfanato em Porfand, onde fiquei cinco anos. Depois, tornei-me tutelado do estado. Isto significa que uma família toma conta da gente e o estado lhe paga trinta dólares mensais pela guarda. Não creio que haja algum tutelado do estado que tenha adquirido predileção por lagosta. Em geral, um casal aceita dois ou três tutelados — não porque o leite da bondade humana flui em suas veias, mas por ser isto um investimento comercial. Eles nos alimentam. Pegam os trinta pagos pelo estado e nos alimentam. Se uma criança é alimentada, pode pagar pela guarda fazendo tarefas variadas em casa. Isso transforma os trinta em quarenta, cinqüenta, talvez sessenta e cinco pratas. É o capitalismo, aplicado aos sem-lar. No maior país do mundo, certo?
Meus "velhos" chamavam-se Hollis e moravam em Harlow, do outro lado do rio de Castle Rock. A casa de fazenda em que viviam era de três andares e quatorze cômodos.
Havia uma lareira de carvão na cozinha, e o calor subia para os andares de cima da maneira como podia. Em janeiro, a gente ia para a cama com três edredons, mas ainda assim, sem certeza de que teria os pés no lugar, quando acordasse na manhã seguinte.
Era preciso colocá-los no chão, onde se podia olhar para eles e certificar-se. A Sra. Hollis era gorda. O Sr. Hollis era sovina e raramente falava. A casa era uma total confusão de mobiliário elefante branco, objetos comprados em liquidações, colchões mofados, cachorros, gatos e peças automotivas, encomendadas através dos jornais. Eu tinha três "irmãos", todos eles tutelados. Havia entre nós uma aceitação tácita, éramos como pessoas companheiras de uma viagem de ônibus durante três dias.
Eu tinha boas notas na escola e fui escalado para o beisebol de primavera, no segundo ano do ginásio. Hollis insistia comigo para largar aquilo, mas eu teimei, até acontecer a coisa com Ace Marrili. Então, desisti de continuar, não quis mais, não com o rosto todo inchado e cortado, não com as histórias que Betsy Malenfant andava espalhando.
Assim, saí do time e Hollis conseguiu-me um emprego para servir sodas na drugstore local.
Em fevereiro, no último ano letivo, enfrentei a Junta Examinadora, pagando com as doze pratas que tinha enfiado em meu colchão. Fui aceito na universidade, através de uma pequena bolsa-de-estudos e com um bom trabalho na biblioteca, para pagar os estudos.
A expressão no rosto dos Hollis, quando lhes mostrei os documentos de auxilio financeiro, é a melhor recordação de minha vida.
Curt, um de meus "irmãos", acabou fugindo. Eu não faria algo semelhante. Era passivo demais para tal passo. Estaria de volta depois de duas horas na estrada. A escola era o único meio para mim, de maneira que fui em frente.
A última coisa que a Sra. Hollis disse quando parti, foi, "Quando puder, mande-nos alguma coisa". Nunca mais tornei a vê-los. Tive boas notas em meu primeiro ano e, naquele verão, consegui um emprego de tempo integral na biblioteca. Enviei para eles um cartão de Natal naquele primeiro ano, porém foi o único.
No primeiro semestre de meu segundo ano, fiquei apaixonado. Era a coisa mais importante que já me acontecera. Bonita? Ela faria vocês recuarem dois passos. Até hoje, não imagino o que teria visto em mim. Aliás, nem sei bem se me amava ou não.
Creio que amou, a princípio. Depois disso, tornei-me apenas um hábito difícil de romper, como fumar ou dirigir com o cotovelo apoiado na janela do carro. Ela me prendeu por algum tempo, talvez não querendo quebrar o hábito. Possivelmente continuasse comigo por milagre ou então apenas por vaidade. Bom menino, role, sente-se, pegue o jornal. Tome um beijo de boa noite. Não importa. Porque foi amor durante algum tempo, depois foi com amor, então terminou.
Dormi com ela duas vezes, em ambas após outras coisas serem tomadas como amor.
Aquilo alimentou o hábito por um período. Então, ao voltar do feriado do Dia de Graças, ela anunciou estar apaixonada por um sujeito Delta Tau Delta, de sua cidade natal. Tentei reconquista-la e quase consegui, mas agora ela possuía algo que não tivera antes — perspectiva.
O que quer que eu estivera construindo por todos aqueles anos, desde que o incêndio aniquilara os atores de filme de segunda que haviam constituído minha família, esse episódio conseguiu derrubar. Isso e o alfinete do tal sujeito, pregado na blusa dela.
Em seguida, andei saindo com três ou quatro garotas que queriam dormir comigo. Eu podia responsabilizar minha infância, quero dizer, pelo fato de nunca haver tido bons modelos sexuais, porém não era esse o caso. Jamais tive problemas com uma garota. Só depois que elas me deixavam.
Comecei a sentir certo receio delas. Acontecia sempre, quer eu fosse ou não importante com elas. Acontece que garotas me deixavam inquieto. Ficava me perguntando onde elas teriam escondido os machados que gostavam de esgrimir e quando iriam usa-los contra mim. Não que eu seja peculiar nesse ponto. Mostrem-me um homem casado ou um homem com uma mulher fixa, e eu lhes mostrarei alguém que pergunta a si mesmo (talvez somente nas primeiras horas da madrugada ou na tarde de sexta-feira, quando ela sai para o supermercado), O que ela andará fazendo em minha ausência? 0 que ela pensa realmente de mim? E, talvez, acima de tudo, Quanto de mim ela capturou? Quanto restou? Quando eu começava a pensar estas coisas, ficava pensando nelas o tempo todo.
Comecei a beber e minhas notas mergulharam de cabeça. Durante a folga do semestre, recebi uma carta dizendo que, se as notas não melhorassem dentro de seis semanas, seria retido o meu cheque para a bolsa-de-estudos do segundo semestre. Eu e alguns sujeitos com quem andava, ficamos bêbados e assim permanecemos por todo o período daquelas férias. No último dia, fomos a um bordel e tive um desempenho excelente.
Estava escuro demais para distinguir rostos.
Minhas notas continuaram baixas. Telefonei para a garota mais uma vez e chorei ao telefone. Ela chorou também e, de certo modo, creio que isso a envaideceu. Eu não a odiava então e não a odeio agora. Contudo, ela me assustava. Assustava-me muito.
A 9 de fevereiro, recebi uma carta do deão de Artes e Ciências comunicando que eu ficara reprovado em duas ou três matérias de minha especialização. A 13 de fevereiro, recebi uma carta algo vacilante da garota. Ela queria que tudo estivesse certo entre nós.
Estava planejando casar com o sujeito da Delta Tau Delta em julho ou agosto e eu estava convidado, se quisesse. Chegava a ser divertido. O que dar a ela como presente de casamento? Meu coração, amarrado em uma fita vermelha? Minha cabeça? Meu pau?
No dia 14, Dia dos Namorados, decidi que era tempo para uma mudança de cenário.
Nona surgiu em seguida, mas isso vocês já sabem.
Precisam entender o que ela significava para mim, caso isso adiante alguma coisa. Ela era mais bonita do que a tal garota, porém não se tratava disso. Em um país rico, boa aparência é o que não falta. Era o seu interior. Ela era sexy, porém a sexualidade que emanava dela era como algo fixo — um sexo cego, uma espécie de sexo aderente, para não ser negado e não tão importante, já que se tratava de algo tão instintivo como a fotossíntese. Não um sexo animal, mas um sexo de planta. Dá para entender? Eu sabia que faríamos amor, que o faríamos como homens e mulheres o fazem, mas que nossa união seria tão vaga, tão remota e sem significado, como a hera abrindo seu caminho para o alto, em uma treliça, ao solde agosto.
O sexo só era importante, porque não era importante.
Eu creio — não, tenho certeza — de que a violência era a real força motriz. A violência era real, não apenas um sonho. Tão grande, tão rápida e dura, como o Ford 52 de Ace Merrill. A violência de A Boa Comida do Joe, a violência de Norman Blanchette.
Inclusive, havia algo de cego e vegetativo nisso. Talvez ela fosse apenas uma gavinha adesiva, afinal de contas, porque a Vênus papa-moscas é uma espécie de vinha, com a diferença de ser carnívora e de fazer movimentos animais, quando uma mosca ou um pedaço de carne crua é colocado em sua goela. E isto era absolutamente real. A vinha esporulada pode apenas sonhar que fornica, mas tenho certeza de que a Vênus papa-moscas saboreia aquela mosca, sente prazer na diminuição de esforços do inseto, quando suas presas se fecham em torno dele.
A última parte era minha passividade. Eu não conseguia tapar o buraco em minha vida. Não o deixado pela garota ao dizer adeus — não quero atribuir-lhe isto — mas aquele que sempre esteve lá, o escuro e confuso torvelinho que nunca cessava dentro de mim. Nona preencheu esse buraco. Fez com que me movesse e agisse.
Fez-me nobre.
Agora, vocês compreendem um pouquinho da situação. Por que eu sonho com ela. Por que permanece o fascínio, a despeito do remorso e da repulsa. Por que a odeio. Por que a temo. E por que, mesmo agora, eu ainda a amo.
Eram doze quilômetros, da rampa de Augusta até Gardiner, e nós os cobrimos em escassos minutos. Agarrei firmemente a lima de unhas a um lado do corpo e vi o sinal verde, iluminado por refletores — PARA A SAÍDA 14, MANTENHA A SUA DIREITA — piscando na noite. A lua se fora e a neve começara a cair.
— Eu gostaria de poder levá-los mais longe — disse Blanchette.
— Está tudo bem — respondeu Nona calorosamente, mas pude sentir sua fúria zumbindo e penetrando na carne sob meu crânio, como uma ferroada seca. Basta deixar-nos no alto da rampa.
Ele iniciou a subida, observando a velocidade de trinta milhas horárias, indicada para a rampa. Eu sabia o que ia fazer. Sentia as pernas transformadas em chumbo quente.
O alto da rampa era iluminado por uma luz no alto. À esquerda, eu podia divisar as luzes de Gardiner contra o céu de nuvens espessas. À direita, nada além do negrume.
Não havia trânsito algum, vindo de qualquer lado, ao longo da estrada de acesso.
Desci do carro. Nona deslizou pelo assento, oferecendo a Norman Blanchette um sorriso final. Eu não estava preocupado. Ela dirigia a peça.
Blanchette ofereceu um ofensivo sorriso porcino, aliviado por ficar livre de nós.
— Bem, boa noi...
— Oh, minha bolsa! Não vá embora com minha bolsa!
— Eu apanho — falei para ela.
Inclinei-me para o banco traseiro. Blanchette viu o que eu tinha na mão e o sorriso porcino de seu rosto congelou-se.
Agora, surgiram luzes na colina, porém era demasiado tarde para parar. Nada me interromperia mais. Peguei a bolsa de Nona com a mão esquerda. Com a direita, mergulhei a lima de aço para unhas na garganta de Blanchette. Ele baliu uma vez.
Saí do carro. Nona acenava para o veículo que se aproximava. Eu não conseguia ver o que estava no escuro e na neve; via apenas os dois círculos brilhantes de seus faróis.
Agachei-me atrás do carro de Blanchette, espiando pelos vidros traseiro
As vozes quase se perdiam, na garganta cheia do vento. Problema, dona? pai... vento... teve um ataque do coração. Poderiam...
Deslizei ao longo do porta-mala do Impala de Norman Blanchette, agachado. Podia vê-los agora. A silhueta esguia de Nona e uma forma mais alta. Pareciam parados ao lado de uma pickup. Virando-se, aproximaram-se da janela do motorista do Chevrolet. onde Norman Blanchette escorregara para cima do volante, com a lima de Nona em sua garganta. O motorista da pickup era um rapaz, vestindo o que parecia um blusão da Força Aérea. Inclinou-se para o interior. Eu apareci atrás dele.
— Céus, dona! — exclamou ele. — Há sangue neste sujeito! O que...
Enganchei meu cotovelo direito à volta de seu pescoço e agarrei o punho direito com a mão esquerda. Apertei com força. A cabeça do rapaz bateu no topo da porta e houve um roc! surdo. Ele caiu flácido em meus braços.
Eu ainda podia ter parado. Ele não vira Nona direito e nem chegara a dar por mim. Eu podia ter parado ali. Contudo, ele era um intrometido, alguém em nosso caminho, tentando prejudicar-nos. Eu estava cansado de ser prejudicado. Estrangulei-o.
Ao terminar, ergui os olhos e vi Nona focalizada pelas luzes conflitantes do sedã e da pickup, seu rosto um ricto grotesco de ódio, amor, triunfo e alegria. Ela estendeu os braços e fui para eles. Beijamo-nos. Sua boca era fria, mas a língua tinha calor.
Mergulhei as duas mãos nos vãos secretos de seus cabelos, enquanto o vento uivava à nossa volta.
— Agora, termine — disse ela. — Antes que apareça mais alguém.
Eu terminei. Era uma tarefa desleixada, mas eu sabia tudo quanto era preciso para nós.
Um pouco mais de tempo. Depois disso, não importava. Estaríamos salvos.
O corpo do rapaz era leve. Ergui-o nos braços, carreguei-o através da estrada e o atirei na ladeira. Seu corpo ricocheteou frouxamente por todo o trajeto até o fundo, rolando, cabeça acima dos calcanhares, como um boneco de trapos, o espantalho que o Sr. Hollis me fazia colocar na plantação de trigo, todos os julhos.
Voltei para apanhar o Sr. Blanchette.
Ele era mais pesado e sangrava como um porco ferido. Tentei coloca-lo ereto, cambaleei três passos para trás e ele escorregou de meus braços, caindo na estrada.
Virei-o para cima. A neve recente aderira ao seu rosto, transformando-o em uma máscara de esquiador.
Abaixei-me, agarrei-o por baixo dos braços e o arrastei para a sarjeta. Seus pés desenhavam sulcos atrás dele. Joguei-o pela borda da estrada e o vi deslizar pela rampa, de costas, os braços acima da cabeça. Os olhos estavam arregalados, fitando como que fascinados os flocos de neve que caíam neles. Se a neve continuasse caindo, ambos seriam apenas vagos monturos, na ocasião em que chegassem os limpa-neves.
Cruzei a estrada de volta. Nona já se acomodara na pickup, sem que ninguém precisasse dizer-lhe que veículo usaríamos. Pude ver a mancha pálida de seu rosto, os furos escuros dos olhos, mas foi tudo. Entrei no carro de Blanchette, sentei-me sobre os regatos de sangue que se tinham empoçado sobre o assento acolchoado de vinil, e o dirigi para o acostamento. Apaguei os faróis, liguei os quatro pisca-alertas e saí. Para quem passasse perto, pareceria que o motorista tivera problemas com o motor e então caminhara até a cidade, em busca de uma garagem. Fiquei muito satisfeito com minha improvisação. Era como se tivesse assassinado pessoas a vida inteira. Trotei de volta à pickup, que permanecia com o motor ligado, sentei-me ao volante e manobrei para a rampa de entrada do pedágio.
Ela se sentou ao meu lado, sem me tocar, mas bem perto. Quando se movia, às vezes eu sentia uma mecha de seus cabelos em meu pescoço. Era como ser tocado por um diminuto eletrodo. Em certo momento, tive que esticar a mão e pousá-la em sua perna, para certificar-me de que ela era real. Nona riu quietamente. Era tudo bem real. O vento ululava em torno das janelas, atirando neve em grandes e ríspidas rajadas.
Rodamos para o sul.
Logo depois da ponte de Harlow, quando se entra na 126 para Castle Heights, chega-se a uma enorme e renovada fazenda, que tem o hilariante nome de Liga dos Jovens de Castle Rock. Eles possuem doze pistas para boliche, com desengonçados levantadores automáticos de pinos, que em geral se limitam a funcionar nos três últimos dias da semana, algumas antigas máquinas de fliperama, uma vitrola automática com os maiores sucessos de 1957, três mesas Brunswick de bilhar e um balcão para a venda de Coca-e-batatas-fritas, onde também se alugavam sapatos para boliche, que pareciam recém-saídos dos pés de coveiros mortos. O nome do lugar é hilariante, porque a maioria dos jovens de Castle Rock preferia o cinema drive-in de Jay Hill à noite ou as corridas de carros envenenados em Oxford Plains. Os que apareciam por ali eram, em sua maior parte, os desordeiros de Gretna, Harlow e da própria Rock. A média era de uma briga por noite, no pátio de estacionamento.
Comecei a pintar por lá, quando entrei para o ginásio. Um de meus conhecidos, Bill Kennedy, tinha um emprego na Liga dos Jovens três noites por semana e, não havendo ninguém à espera de mesa para o bilhar, ele me deixava jogar de graça por algum tempo. Não era grande coisa, porém ficava melhor do que voltar à casa dos Hollis.
Foi onde conheci Ace Merril. Ninguém tinha dúvidas, quanto a ele ser o maior valentão de três cidades. Dirigia um Ford conversível S2, envenenado. Corria o boato de que, quando preciso, chegava aos 210 quilômetros. Merrill entrava lá como um rei, os cabelos reluzindo de brilhantina, repuxados para trás, com um perfeito topete no alto da testa, disputava alguns jogos em donble-hank, por um dime a bola (Era bom nisso? Nem duvidem), comprava uma Coca para Betsey quando ela chegava, e então iam embora.
Quase se podia ouvir um relutante suspiro de alívio dos presentes, assim que a castigada porta da frente se fechava asmaticamente. Ninguém jamais fora ao pátio de estacionamento com Ace Merrill.
Ninguém, isto é, exceto eu.
Betsey Malenfant era namorada dele, a garota mais bonita de Castle Rock, creio eu. Não acho que fosse das mais inteligentes, porém isso não importava, quando se olhava para ela. Tinha a pele mais imaculada que já vi e não era resultado de frascos de cosméticos. Os cabelos eram negros como carvão, os olhos escuros, a boca generosa, um corpo de dar água na boca — e ela não se importava de exibi-lo. Quem iria pensar em assediá-la ou tentar dirigir sua locomotiva, com Ace por perto? Ninguém em seu juízo perfeito, eis a verdade.
Gamei por ela. Não da maneira como aconteceu com a outra garota, não da maneira como aconteceu com Nona, embora Betsey parecesse uma versão mais nova dela, porém com o mesmo desespero, a mesma seriedade. Se vocês já sofreram o pior caso de amor juvenil, sabem como me sentia. Ela estava com dezessete anos, dois a mais do que eu.
Comecei a aparecer por lá cada vez com mais freqüência, inclusive nas noites em que Billy não trabalhava, apenas para vê-la de relance. Eu me sentia como um observador de pássaros, exceto que aquele era um tipo de tarefa alucinada para mim. Voltava para casa, mentia aos Hollis sobre aonde andara e subia para meu quarto. Escrevia longas e apaixonadas cartas para ela, contando-lhe tudo que gostaria de fazer com ela, depois as rasgava. Nas salas de estudo do colégio, sonhava em pedi-ia para casar comigo, de modo que depois fugiríamos juntos para o México.
Betsy devia ter percebido o que acontecia e isso certamente a lisonjeou um pouco, porque era gentil comigo, quando Ace não andava por perto. Aproximava-se e conversava, deixava que eu lhe comprasse uma Coca, sentava-se em uma banqueta e, disfarçadamente, esfregava a perna na minha. Aquilo me enlouquecia.
Certa noite, em começos de novembro, eu perambulava por lá, jogando um pouco de bilhar com Bill, enquanto esperava a chegada de Betsey. O lugar estava deserto, pois não eram nem oito da noite ainda. Um vento solitário gemia lá fora, ameaçando o inverno.
— É melhor você cair fora — disse Billy, atirando a nove direta na caçapa.
— Cair fora, como?
— Você sabe.
— Não, eu não sei.
Errei uma tacada e Billy acrescentou uma bola à mesa. Acertou a seis e, enquanto jogava, fui colocar uma moeda na vitrola automática.
— Betsy Malefant. — Ele alinhou a bola cuidadosamente e a enviou contra a borda. — Charlie Hogan andou contando a Ace a maneira como você fica peruando a garota.
Charlie achou muito engraçado, isso dela ser mais velha e tudo, porém Ace não achou graça nenhuma.
— Ela não significa nada para mim — falei, num fio de voz.
— É bom que não signifique mesmo.
Mal ele terminou de falar, chegaram dois sujeitos e então ele foi até o balcão, entregar-lhes um taco de bilhar.
Ace apareceu por volta das nove e estava sozinho. Nunca me dera a mínima antes e eu até já esquecera o comentário de Billy. Quando somos invisíveis, achamos que somos também invulneráveis. Eu jogava fliperama e estava absolutamente concentrado naquilo. Nem mesmo percebi que o lugar ficava silencioso, enquanto todos paravam de jogar boliche ou bilhar. A coisa seguinte que soube, foi que alguém me jogara em cima do fliperama. Aterrei no chão, amontoado. Levantei-me. amedrontado e nauseado. Ele tinha inclinado a máquina, apagando meus três replays. Estava lá em pé, olhando para mim. e não havia um fio de cabelo fora do lugar, com o zíper puxado a meio em seu blusão militar.
— Senão parar de se meter a besta — disse maciamente — vou modificar sua cara.
Ele foi embora. Todos olhavam para mim e eu queria afundar bem ali, no chão à minha frente, até ver que havia uma espécie de relutante admiração na maioria dos rostos.
Então, sacudi a roupa com ar despreocupado e enfiei outra moeda no fliperama. A luz INCLINADO apagou-se. Dois sujeitos aproximaram-se e bateram em minhas costas antes de irem embora, sem dizerem nada.
Às onze, quando o lugar fechou, Billy ofereceu-me uma carona até em casa.
— Se não tomar cuidado, você vai acabar mal.
— Não se preocupe comigo — respondi.
Ele nada disse.
Duas ou três noites mais tarde, Betsey apareceu, por volta das sete da noite. Havia outro cara lá, um sujeitinho esquisito de óculos, chamado Vern Tessio, que largara a escola uns dois anos antes. Mal o percebi. Ele era ainda mais invisível do que eu.
Ela foi diretamente para onde eu jogava, chegou tão perto, que pude sentir o cheiro limpo de sabonete em sua pele. Aquilo me tonteou.
— Ouvi sobre o que Ace fez com você — disse ela. — Sei que não devo falar mais com você e não falarei, mas tenho algo que melhorará a situação.
Ela me beijou. Depois afastou-se, antes mesmo que eu pudesse baixar a língua do céu da boca. Voltei ao meu jogo, ainda atordoado. Nem mesmo via quando Tessio saiu, para espalhar a novidade. Aliás, eu não via mais nada, além dos olhos escuros, muito escuros de Betsey.
Assim, mais tarde nessa noite, terminei no pátio de estacionamento com Ace Merrill.
Ele me surrou com vontade. Era uma noite fria, terrivelmente fria, e por fim comecei a soluçar, pouco ligando para quem estivesse vendo ou ouvindo isto é, todos. A única lâmpada de sódio jogava impiedosamente sua claridade para baixo. Nem mesmo consegui acertar um soco nele.
— Muito bem — disse ele, agachando-se perto de mim. O ritmo de sua respiração nem se alterara. Tirou um canivete de molas do bolso e apertou o botão cromado. Dezoito centímetros de reluzente lâmina prateada saltaram para o mundo. — É isto o que vai ganhar da próxima vez. Vou esculpir meu nome no seu saco.
Ele se levantou, deu-me um último pontapé e foi embora. Fiquei no mesmo lugar por uns dez minutos, tremendo sobre a terra batida do piso. Ninguém veio ajudar-me ou bater-me nas costas, nem mesmo Billy. Betsy não apareceu, para melhorar a situação.
Finalmente, encontrei forças para levantar-me e fui de carona até em casa. Contei à Sra. Hollis que pegara carona com um bêbado e ele jogara o carro fora da estrada. Nunca mais voltei ao boliche.
Fiquei sabendo que Ace rompera com Betsy, não muito depois disso. A partir de então, ela foi descendo a colina, em rapidez cada vez mais acentuada — como um caminhão de carga sem freios. Durante o trajeto, ela acabou tendo um caso de doença venérea. Billy me contou que a vira certa noite no Manoir, em Lewinston, assediando sujeitos para lhe pagarem uma bebida. Havia perdido a maioria dos dentes e tivera o nariz quebrado em algum ponto ao longo da caminhada, segundo ele. Acrescentou que eu nem a reconheceria. Aquela altura, no entanto, aquilo pouco me importava.
A pickup não tinha pneus para neve, de modo que antes de chegarmos à saída para Lewinston, eu começara a dançar sobre a recente camada de neve pulverizada. Levamos mais de quarenta e cinco minutos para cobrir os trinta e cinco quilômetros.
O homem na saída de Lewinston ficou com meu cartão de pedágio e meus sessenta centavos.
— Viagem escorregadia?
Nenhum de nós respondeu. Estávamos agora chegando perto de nosso destino. Se eu não houvesse sentido aquela curiosa espécie de contato sem palavras com ela, seria capaz de dizê-lo, apenas pela forma como Nona se sentava no banco empoeirado da pickup, as mãos apertadamente dobradas em cima da bolsa, os olhos fixos diretamente na estrada, com feroz intensidade. Um estremecimento sacudiu meu corpo.
Tomamos a estrada 136. Não havia muitos carros à vista. O vento era refrescante e a neve estava ficando mais dura do que nunca. No outro lado de Harlow Village, passamos por um enorme Buick "Riviera", que havia patinado na neve e trepado na calçada. Seus pisca-alerta estavam ligados e tive uma fantasmagórica e dupla imagem do Impala de Norman Blanchette. Agora devia estar coberto de neve, nada mais que um monte espectral na escuridão.
O motorista do Buick tentou fazer-me parar, mas passei por ele sem diminuir a velocidade, atirando-lhe neve pulverizada. Meus limpadores de pára-brisa estavam emperrados pela neve e, espichando o braço, consegui libertar o do meu lado. Parte da neve se soltou e pude enxergar um pouco melhor.
Harlow era uma cidade fantasma, com tudo escuro e fechado. Assinalei minha direita. a fim de entrar na ponte para Castle Rock. As rodas traseiras queriam ir para outro lado, porém consegui firmar a direção. À frente e do outro lado do rio, era possível divisar a sombra escura, formada pelo prédio da Liga dos Jovens de Castle Rock. Estava fechado e solitário. Senti uma pena súbita, pena por ter havido tanta dor. E morte. Foi quando Nona falou pela primeira vez, desde a saída de Gardiner.
— Há um policial atrás de você.
— Ele está...?
— Não. O pisca-pisca está desligado.
Contudo, aquilo me deixou nervoso e o que aconteceu talvez tenha sido por isso. A Estrada 136 faz uma curva de noventa graus no lado do rio que dá para Harlow e depois segue reta até a ponte para Castle Rock. Fiz a primeira curva, porém havia gelo no lado de Rock.
— Merda... !
A traseira da pickup dançou e, antes que eu pudesse controlar a direção, ela já batera em um dos maciços pilares de aço da ponte. Continuamos deslizando em ziguezague e a coisa seguinte que vi foram os brilhantes faróis do carro policial atrás de nós. Ele freou — pude ver os reflexos vermelhos na neve que caía — mas o gelo o apanhou também. Veio direto sobre nós. Houve uma batida metálica e violenta, quando tornamos a colidir com os pilares de suporte. Fui atirado ao colo de Nona e, mesmo naquela rápida fração de segundo, houve tempo para sentir a uniforme firmeza de sua coxa. Então, tudo cessou.
Agora, o tira havia ligado o pisca-pisca. Ele enviava giratórias sombras azuis, que passavam sobre o capô da pickup e iluminavam as vigas cruzadas de aço da ponte Harlow-Castle Rock, cobertas de neve. Quando o tira saiu do carro, a luz do teto acendeu-se.
Se ele não estivesse atrás de nós, nada teria acontecido. Esse pensamento vai e vem em minha mente, como a agulha de um disco, presa em um sulco defeituoso. Eu exibia um sorriso tenso e gélido no escuro, quando apalpei o piso da boléia da pickup, em busca de algo com que atingi-lo.
Havia uma caixa de ferramentas aberta. Peguei uma chave de soquete e a deixei no banco, entre Nona e eu. O tira inclinou-se na janela, seu rosto modificando-se como o de um demônio, à luz de seu pisca-pisca.
— Não acha que está viajando um pouco depressa para as condições do tempo?
— E você não estava me seguindo perto demais, para as condições do tempo?
Ele devia ter enrubescido. Era difícil saber, àquela luz tremulante.
— Está me desacatando, filho?
— Estou, se você pretende responsabilizar-me pelo amassado em seu carro.
— Mostre-me sua licença de motorista e seu registro.
Peguei minha carteira e entreguei-lhe minha licença.
— O registro?
— O carro é de meu irmão. O registro está em sua carteira.
— É mesmo? — Ele me fitou duramente, tentando fazer-me baixar os olhos. Quando viu que isso demoraria um pouco, fixou-se em Nona. Eu podia ter-lhe arrancado os olhos, pelo que vi neles. — Como se chama?
— Cheryl Craig, senhor.
— O que está fazendo, viajando na pickup do irmão dele, em meio a uma tempestade de neve, Cheryl?
— Estamos indo visitar meu tio.
— Em Rock?
— Exatamente.
— Não conheço nenhum Craig em Castle Rock.
— Seu sobrenome é Emonds. Em Bowen Hill.
— É mesmo? — O tira caminhou até a traseira da pickup, a fim de verificar a chapa de matrícula. Abri a porta e inclinei-me para fora. Ele anotava o número. Voltou enquanto eu ainda me inclinava, focalizado ao clarão de seus faróis, da cintura para cima. — Eu vou... O que houve com você, rapaz?
Não precisei olhar para baixo, a fim de saber o que houvera comigo. Eu costumava pensar que inclinar-me para fora daquele jeito era apenas alheamento, mas ao registrar tudo isto, mudei de idéia. Não creio que fosse nenhum alheamento. Eu queria que ele visse o meu estado. Firmei os dedos em torno da chave de soquete.
— O que quer dizer?
Ele aproximou-se dois passos.
— Você está ferido — parece que se cortou. É melhor...
Saltei para ele. Seu chapéu havia caído com o choque do carro e o tira estava de cabeça descoberta. Atingi-o para matar, logo acima da testa. Nunca esquecerei aquele som, como o de meio quilo de manteiga, caindo em um chão duro.
— Depressa — disse Nona.
Pousou uma mão tranqüila em meu pescoço. Estava muito frio, como o ar em um porão subterrâneo. Minha mãe adotiva tinha um porão subterrâneo.
É curioso que me lembre disso. Ela me mandava ir lá embaixo, apanhar verduras no inverno. Ela mesma as enlatava. Não em latas de verdade, claro, mas em grossos potes Mason, com aqueles vedadores de borracha sob a tampa.
Desci lá um dia, para pegar um pote de feijão-manteiga que ela serviria no jantar. As conservas estavam todas em caixas, claramente marcadas pela mão da Sra. Hollis.
Recordo que ela sempre escrevia framboesa errado, algo que me enchia de secreta superioridade.
Naquele dia, passei pelas caixas marcadas "frambeza" e cheguei ao canto onde ela guardava os feijões. Estava frio e escuro. As paredes eram de terra, lisa e escura. No tempo das chuvas, segregavam umidade, em regatos gotejantes e tortuosos. O cheiro era um secreto e obscuro eflúvio, composto de coisas vivas, terra e vegetais estocados, um cheiro extraordinariamente semelhante ao das partes privadas de uma mulher. Em um canto havia uma velha impressora quebrada, que eu sempre vira ali, desde a minha chegada. Às vezes, eu costumava brincar com ela, fingir que poderia pô-la funcionando novamente. Eu adorava aquele porão subterrâneo. Naquela época — eu teria nove ou dez anos — o porão era meu local favorito. A Sra. Hollis recusava-se a pôr os pés lá embaixo, e era contra a dignidade de seu marido descer para apanhar verduras. Assim, quem ia era eu, e cheirava aquele peculiar odor secreto de terra, apreciava a privacidade de seu confinamento uterino. 0 porão tinha a claridade de uma lâmpada coberta de teias de aranha, posta lá pelo Sr. Hollis, provavelmente antes da Guerra dos Boers. Às vezes, movimentando as mãos, eu fazia enormes coelhos alongados na parede.
Apanhei o pote de feijão e já ia voltar, quando ouvi um movimento rogaçante debaixo de uma das caixas velhas. Fui até ela e a levantei.
Havia uma rata castanha debaixo dela, deitada de lado. Ela girou a cabeça para cima e me olhou. Seu lados estavam violentamente inchados e ela me arreganhou os dentes.
Era a maior ratazana que eu já vira e inclinei-me um pouco mais para ela. Estava no ato de parir. Dois filhotes, pelados e cegos, já mamavam em seu ventre. Outro estava a meio caminho para o mundo.
A mãe me fitou, impotente, mas pronta para morder. Eu queria matá-la, matar todos eles, esmagá-los, mas não pude. Era a coisa mais horrível que já vira. Enquanto espiava, uma pequena aranha marrom — acho que uma perna-longa — rastejou rapidamente pelo chão. A ratazana agarrou-a e a comeu.
Fugi dali correndo. Em meio da escada, caí e quebrei o pote de feijão. A Sra. Hollis me bateu por isso e nunca mais voltei ao porão, a menos que houvesse absoluta necessidade.
Eu olhava para o tira caído, enquanto recordava.
— Depressa — repetiu Nona.
Ele era muito mais leve do que Norman Blanchette ou, talvez, a minha adrenalina é que fluía mais livremente. Levantei-o nos braços e fui com ele até a borda da ponte. Mal percebia as cascatas, corrente abaixo, e corrente acima, o viaduto de ferrovia GS & WM era apenas uma sombra curiosa, como um cadafalso. O vento da noite fustigava e gemia, a neve me batia no rosto. Por um momento, mantive o tira contra meu tórax, como um recém-nascido adormecido, depois recordei quem realmente ele era e o joguei por sobre a borda, para a escuridão mais abaixo.
Voltamos à pickup e entramos, mas o motor não pegava. Insisti, até sentir o cheiro adocidado da gasolina, vindo do carburador inundado. Então, parei.
— Vamos — falei.
Fomos para o carro-patrulha. O banco dianteiro estava entulhado de etiquetas de violação, formulários, duas pranchetas. O rádio de ondas-curtas, abaixo do painel, estalava e crepitava.
— Unidade Quatro, responda. Quatro, está ouvindo?
Estirei o braço e o desliguei, batendo em algo com os nós dos dedos, enquanto procurava ó botão certo. Era uma espingarda de caça, pump action. Provavelmente, uma arma de uso particular do tira. Tirei-a dali e a passei para Nona. Ela colocou a espingarda no colo. Fiz o carro-patrulha dar marcha à ré. Estava amassado, mas sem estragos maiores. Dispunha de pneus para neve, que mordiam o solo maravilhosamente, tão logo começamos a rodar sobre o gelo que causara o estrago.
Logo depois estávamos em Castle Rock. As casas tinham desaparecido, exceto por um ocasional e castigado trailer, recuado da estrada. Esta ainda não fora limpa, não havendo outras marcas no solo além das que deixávamos para trás. Pinheiros monolíticos, pesados de neve, alteavam-se à nossa volta, fazendo com que me sentisse pequeno e insignificante, apenas mais um diminuto bocado que a garganta daquela noite tragava. Agora já passava das dez horas.
Não tive grande participação na vida social estudantil durante meu primeiro ano de universidade. Estudei com afinco e trabalhei na biblioteca, pondo livros nas prateleiras, reparando encadernações e aprendendo a cataloga-los. Na primavera houve o beisebol dos calouros.
Quando o ano acadêmico estava para terminar, logo antes das finais, houve um baile no ginásio. Eu estava sem compromissos, estudei para as duas provas iniciais e desci.
Tinha o dinheiro da entrada, por isso, entrei.
O ambiente estava escuro, apinhado, suado e frenético como só pode estar uma atividade social universitária, antes das provas finais. Havia sexo no ar. Não se precisava cheira-lo; quase se podia apanha-lo nas mãos, como uma peça grossa de roupa molhada. Sabia-se que havia amor a ser feito mais tarde — ou o que passa por amor. As pessoas iriam fazê-lo sob as arquibancadas, nas instalações de maquinaria para vapor do pátio de estacionamento, nos apartamentos e quartos dos dormitórios. Ia ser feito por rapazes/homens desesperados, com o recrutamento militar em seus calcanhares e por lindas estudantes que encerrariam os estudos aquele ano, iriam para casa e iniciariam uma família. Seria feito com lágrimas e risos, bebedeira e lucidez, formalmente e sem inibição alguma. Contudo, a maioria ia ser feita rapidamente.
Havia alguns rapazes desacompanhados, mas não muitos. Aquela era uma noite em que não se precisaria ir a qualquer lugar desacompanhado. Vagueei até o tablado do conjunto musical. Quando cheguei mais perto do som, o ritmo, a música, tornaram-se uma coisa palpável. O conjunto tinha às costas um grupo de amplificadores de metro e meio, em forma de semicírculo, de maneira que se podia sentir os tímpanos indo e vindo, no compasso do contrabaixo.
Recostei-me a uma parede e observei. Os dançarinos movimentavam-se em padrões prescritos (como se fossem trios, em vez de casais, com a terceira pessoa invisível entre eles, empurrada pela frente e por trás), os pés se movendo sobre o pó de serra que fora espalhado sobre o piso encerado. Não vi nenhum conhecido e comecei a sentir-se solitário, mas sem que isso me entristecesse. Encontrava-me naquela fase da noite quando fantasiamos que todos olham para nós pelo canto dos olhos, apreciando o romântico estranho.
Meia hora mais tarde, saí e fui beber uma Coca no saguão. Quando voltei, alguém iniciara uma dança em círculo e me puxaram para lá, meus braços nos ombros de duas garotas que nunca vira antes. Giramos e giramos. Havia talvez umas duzentas pessoas no círculo, o qual cobria metade do piso do ginásio. Então, parte dele se rompeu e vinte ou trinta pessoas formaram outro círculo dentro do primeiro, mas girando em sentido contrário. Aquilo me tonteou. Vi uma moça parecida com Betsy Malenfant, mas sabia que era fantasia minha. Quando tornei a procura-la, não a vi mais, nem ninguém que se parecesse com ela.
Finalmente interromperam os círculos, mas eu me sentia fraco e nada bem.
Caminhei até as arquibancadas e sentei-me. A música era muito alta, o ar demasiado oleoso. Minha mente ficava arfando e bocejando. Eu podia ouvir o coração bater em minha cabeça da maneira que sentimos depois da maior carraspana de nossa vida.
Eu costumava pensar que o ocorrido em seguida, aconteceu por eu estar cansado e algo nauseado de tanto girar e girar mas, como disse antes, ao escrever tudo isto, as coisas entraram em um foco mais nítido. Não acredito mais naquilo.
Tornei a olhar para eles, para todas aquelas pessoas, belas e apressadas, na semiescuridão.
Tive a impressão de que todos os homens pareciam aterrorizados, com os rostos alongados para grotescas máscaras em câmara lenta. Era compreensível. As mulheres — estudantes de escola mista, em suas suéteres, saias curtas, calças boca-de-sino — estavam transformando-se em ratos. A princípio, isso não me amedrontou. Até dei risadinhas. Sabia que estava vendo alguma espécie de alucinação e, por alguns momentos, pude apreciar o quadro de maneira quase clínica.
Então, uma garota ficou na ponta dos pés para beijar o parceiro e isso foi demais. Rosto peludo e contorcido, com olhos que eram bolas negras erguendo-se para o alto, boca revelando dentes...
Fui embora dali.
Fiquei um momento no saguão, um tanto vacilante. Havia um baile no fim do corredor, mas segui por ele e subi a escada.
O vestiário ficava no terceiro andar e precisei subir correndo o último lance de escadas.
Empurrei a porta e corri para uma das cabines de banho. Vomitei entre o cheiro mesclado de linimento, uniformes suados, couro engraxado. A música lá de baixo chegava distante, o silêncio aliem cima era virginal. Senti-me confortado.
Tivemos que pararem um sinal da Curva Sudoeste. A recordação do baile me deixara excitado, por algum motivo que não entendia. Comecei a tremer.
Ela olha, para mim, sorrindo com as pupilas escuras.
— Vamos?
Não pude responder-lhe. Estava tremendo demais para falar. Ela assentiu lentamente, em meu lugar.
Manobrei para um ramal da Estrada 7, que devia ter sido uma estrada de troncos, na época do verão. Não fui muito depressa, receando ficar atolado. Desliguei os faróis, e flocos de neve começaram a amontoar-se silenciosamente no pára-brisa.
— Você ama? — perguntou ela, quase gentilmente.
Certos sons continuavam escapando de mim, eram-me extraídos. Penso que seriam uma íntima contra parte oral dos pensamentos de um coelho, apanhado em uma armadilha.
— Aqui — disse ela. — Bem aqui.
Foi o êxtase.
Quase não conseguimos retornar à estrada principal. O limpa-neves havia passado, luzes alaranjadas piscando e cintilando na noite, atirando uma enorme muralha de neve em nosso caminho.
Havia uma pá no porta-mala do carro-patrulha. Precisei de meia hora para abrir passagem e, a essa altura, era quase meia-noite.
Ela ligou o rádio da polícia enquanto eu me atirava à tarefa de limpar a neve, e ele nos contou o que precisávamos saber. Os corpos de Blanchette e do rapaz da pickup tinham sido encontrados. Eles suspeitavam de que nos tínhamos apossado do carro-patrulha. O nome do tira tinha sido Essegian, um nome que achei engraçado. Houve um jogador de primeira divisão chamado Essegian — creio que ele jogava para os Dodgers. Talvez eu tivesse matado um parente seu. Não me incomodei em saber o nome do tira. Ele estivera nos perseguindo perto demais, havia cruzado o nosso caminho.
Dirigimos de volta à estrada principal.
Eu podia sentir o excitamento de Nona, vivo, quente, ardendo. Parei o tempo suficiente para limpar o pára-brisa com o braço e recomeçamos a rodar.
Seguimos pelo lado oeste de Castle Rock e, sem precisar que me dissessem, eu sabia onde virar. Um indicador incrustado de neve dizia que era a Estrada Stackpole.
O limpa-neves não estivera ali, mas um veículo passara antes de nós. Os sulcos de seus pneus ainda estavam recentes, no chão atapetado pela neve que caía.
Um quilômetro e meio, depois menos do que isso. A viva ansiedade de Nona, sua necessidade, acabaram contagiando-me e comecei a ficar novamente apreensivo.
Dobramos uma curva e lá estava o caminhão de força elétrica, com sua carroceria laranja-vivo e pisca-alertas de aviso, pulsando na cor do sangue. Estava bloqueando a estrada.
Não podem imaginar a raiva dela-em realidade, a nossa raiva-porque agora, depois de tudo quanto ocorrera, nós dois éramos um. Não podem avaliar a devastadora sensação de intensa paranóia, a convicção de que todas as mãos agora se voltavam contra nós.
Eram dois homens. Um era uma sombra encurvada na escuridão à frente. O outro segurava uma lanterna. Caminhou para nós, sua luz bamboleando como um olho sinistro. E havia mais do que raiva. Havia medo — medo de que tudo desse errado para nós, no último momento.
O homem gritava, e então baixei o vidro de minha janela.
— Não pode passar por aqui! Dê a volta pela Estrada Bower! Houve uma queda de fio de alta tensão aqui! Não pode...
Saí do carro, ergui a espingarda e enviei-lhe dois balaços. Ele foi atirado contra o caminhão alaranjado e eu cambaleei para trás, contra o carro-patrulha. O homem escorregou, poucos centímetros de cada vez, os olhos fixos em mim incredulamente, depois caiu sobre a neve.
— Há mais cartuchos? — perguntei a Nona.
— Há.
Ela me deu os cartuchos. Dobrei a espingarda, ejetei os cartuchos gastos e coloquei novos.
O companheiro do sujeito se levantara e estava olhando o ocorrido, sem acreditar no que via. Gritou para mim algo que se perdeu no vento. Parecia uma pergunta, mas não fazia diferença. Eu ia matá-lo. Caminhei para ele e o homem apenas ficou lá parado, olhando para mim. Não se moveu, nem quando ergui a espingarda. Acho que não imaginava o que ia acontecer. Talvez julgasse tudo aquilo um sonho.
Enviei um balaço, mas baixo demais. Um grande jato de neve explodiu para o alto, cobrindo-o. Então, ele deu um berro aterrorizado e correu, dando um salto gigantesco sobre o cabo de força caído na estrada. Atirei novamente e tornei a perder o tiro. A seguir, o homem desapareceu na escuridão e agora eu podia esquecê-lo. Não estava mais em nosso caminho. Retornei ao carro-patrulha.
— Vamos ter que caminhar — falei.
Passamos ao lado do corpo caído, saltamos sobre o crepitante cabo elétrico e seguimos pela estrada, acompanhando as passadas largamente espaçadas do homem que fugira.
Alguns montes de neve quase chegavam aos joelhos de Nona, porém ela permanecia sempre um pouco à minha frente. Ambos estávamos ofegando.
Subimos uma colina e descemos para um estreito buraco. De um lado, havia um inclinado galpão abandonado, com janelas sem vidraças. Ela parou e agarrou meu braço.
— Lá — disse, apontando para o lado oposto. Sua pressão era forte e doía, mesmo através de meu casaco. Havia um ricto de intensa vitória em seu rosto. Lá! Lá!
Era um cemitério.
Escorregamos e tropeçamos na subida da barragem, depois escalamos dificilmente um muro de pedra coberto de neve. Eu também já estivera ali, claro. Minha mãe verdadeira era de Castle Rock e, embora ela e meu pai nunca tivessem morado lá, aqui estava o seu pedaço de chão. Havia sido um presente para minha mãe, dado por seus pais, que tinham vivido e morrido em Castle Rock. Durante minha paixonite por Betsy, eu tinha vindo ali freqüentemente para ler os poemas de John Keats e Percy Shelley.
Talvez vocês achem que era uma coisa idiota a fazer, algo próprio de um calouro universitário, mas eu penso o contrário. Ainda agora, penso assim. Eu me sentia perto deles, consolado. Depois que Ace Merrill me surrou, nunca mais voltei ao cemitério.
Até Nona me levar lá.
Escorreguei e caí na neve solta e pulverizada, torcendo o tornozelo. Levantei-me e continuei caminhando, agora usando a espingarda como muleta. O silêncio era infinito, inacreditável. A neve caía em linhas retas e macias, amontoando-se sobre as lousas eretas e as cruzes, sepultando tudo, exceto as pontas dos corroídos mastros de bandeira, que só sustinham bandeiras no Dia de Finados e Dia dos Veteranos. O silêncio era sacrílego em sua imensidão e, pela primeira vez, senti terror.
Ela me guiou para uma construção de pedra, assentada na subida da colina, aos fundos do cemitério. Um mausoléu. Um sepulcro embranquecido pela neve. Nona tinha uma chave. Eu sabia que ela teria uma chave — e tinha mesmo.
Ela soprou a neve do rebordo da porta e encontrou a fechadura. O som de gonzos girando parecia arranhar, através da escuridão. Ela empurrou a porta, que se abriu para o interior.
O odor que escapou até nós era tão frio como o outono, tão frio como o ar no porão subterrâneo dos Hollis. Só consegui vislumbrar um pequeno trecho. Havia folhas mortas no chão de pedra. Ela entrou, parou e olhou para mim por sobre o ombro.
— Não — falei.
— Você ama? — ela perguntou e riu de mim.
Fiquei parado na escuridão, sentindo que tudo começava a caminhar junto, passado, presente, futuro. Eu queria correr dali, correr gritando, correr depressa o bastante, para desfazer tudo o que havia feito.
Nona ficou lá, olhando para mim, a mais linda garota do mundo, a única coisa que já havia sido minha. Fez um gesto com as mãos sobre o corpo. Não lhes direi como era.
Vocês saberiam, se também o vissem.
Entrei. Ela fechou a porta.
Estava escuro, mas eu podia ver perfeitamente. O lugar era iluminado por um fogo verde, que corria lentamente. Ele percorria as paredes e serpenteava em línguas, através do chão forrado de folhas. Havia um esquife no centro do mausoléu, porém estava vazio. Pétalas murchas de rosas espalhavam-se sobre ele, como uma antiga oferenda nupcial. Nona acenou para mim, depois apontou a pequena porta nos fundos. Uma portinhola sem marcas. Tive medo dela. Penso que, então, já sabia. Ela me usara e rira de mim. Agora, ia destruir-me.
Ainda assim, não pude parar. Fui até aquela porta, porque tinha de ir. O telégrafo mental ainda funcionava em júbilo — um terrível e insano júbilo — e triunfo. Minha mão tremeu, quando a estendi para a porta. Ela estava coberta de fogo verde.
Abri a porta e vi o que estava lá.
Era a garota, a minha garota. Morta. Seus olhos espiavam vazios, dentro daquele mausoléu de outubro, fitavam os meus. Ela cheirava a beijos roubados. Estava nua e tinha sido estripada da garganta às virilhas, seu corpo inteiro transformado em um útero.
E havia algo vivendo nele. Os ratos. Eu não podia vê-los, mas era possível ouvi-los, correndo dentro dela. Tinha certeza de que, a qualquer momento, sua boca seca se abriria e ela me perguntaria se eu amava. Recuei, sentindo todo o corpo entorpecido, o cérebro flutuando em uma nuvem escura.
Virei-me para Nona. Ela ria, estendendo os braços para mim. Então, num súbito relance de compreensão, eu soube, soube, soube. A última prova. A prova final. Eu passara por ela e estava livre!
Voltei para a porta de entrada e, naturalmente, tudo aquilo não passava de um closet vazio de pedra, com folhas mortas no piso.
Fui para Nona. Fui para minha vida.
Seus braços enrolaram-se em meu pescoço e eu a puxei para mim. Foi quando ela começou a transformar-se, a encolher e amoldar-se como cera. Os enormes olhos escuros ficaram pequeninos, eram como contas negras. Os cabelos tornaram-se ásperos e marrons. O nariz encurtou, as narinas dilataram-se. Seu corpo ficou informe, encurvado contra mim.
Eu estava sendo abraçado por um rato.
— Você ama? — guinchou ele. — Você ama, você ama?
Sua boca sem lábios estirou-se para cima, buscando a minha.
Não gritei. Não me sobravam mais gritos. Duvido que ainda torne a gritar um dia.
Está muito quente aqui.
O calor não me incomoda, de modo algum. Gosto de suar, quando posso tomar uma ducha. Sempre pensei no suor como uma coisa boa, uma coisa masculina, mas acontece que às vezes, quando faz calor, há insetos que picam — aranhas, por exemplo. Sabiam que as aranhas fêmeas ferroam e comem seus parceiros, pois é o que fazem, logo após a cópula.
Além disso, ouvi passinhos, apressados nas paredes. Não gosto disso.
Fiquei com cãibras de escritor, a ponta de feltro da caneta agora amoleceu e desfiou.
Ainda assim, terminei. E as coisas parecem diferentes. Não parecem mais as mesmas, em absoluto.
Sabem que, por um momento, eles quase me fizeram acreditar que eu havia feito todas aquelas coisas horríveis sozinho? Os homens na parada para caminhões, o sujeito do caminhão da força elétrica, que conseguiu fugir. Eles disseram que eu estava sozinho.
Eu estava sozinho quando me encontraram, quase congelado para morrer, naquele cemitério, ao lado das lousas que marcam as sepulturas de meu pai, minha mãe e meu irmão Drake. Isto, contudo, significa apenas que ela foi embora, e vocês bem podem compreender a situação. Qualquer tolo compreenderia. No entanto, fico satisfeito por ela ter ido embora. Fico, sinceramente. Não obstante, vocês precisam entender que ela esteve comigo o tempo todo, passo a passo, no decorrer do trajeto.
Vou matar-me agora. Será muito melhor. Estou cansado de todo esse sentimento de culpa, da angústia e dos pesadelos. Além do mais, não suporto os ruídos nas paredes.
Qualquer um poderia estar lá. Ou qualquer coisa.
Não estou louco. Tenho certeza disto e espero que vocês também tenham. Se dizem que não estão loucos, presume-se que o estejam, porém me encontro acima de todos esses joguinhos. Ela estava comigo, era real. Eu a amo. O verdadeiro amor jamais morrerá.
Foi como assinei todas as minhas cartas para Betsy, aquelas que rasguei depois de escritas.
Nona, entretanto, foi a única a quem amei realmente.
Faz muito calor aqui. E não gosto dos ruídos nas paredes.
Você ama?
Sim, eu amo.
E o verdadeiro amor jamais morrerá.
O ATALAHO DA SRA. TODD
Aí vem aquela Sra. Todd — falei. Homer Buckland ficou olhando o pequeno Jaguar aproximar-se e assentiu. A mulher ergueu a mão para ele. Homer moveu a cabeça grande e desgrenhada em um cumprimento, mas não acenou em resposta. A família Todd possuía uma grande casa de verão no Lago Castelo e Homer fora seu caseiro desde que se podia lembrar. Eu tinha a impressão de que ele não gostava da segunda esposa de Worth Todd, na mesma medida em que gostara de 'Phelia Todd, a primeira.
Isto foi há apenas dois anos e estávamos sentados em um banco, à frente do Mercado de Bell, eu com uma soda laranjada, Homer com um copo de água mineral. Era outubro, uma época de tranqüilidade em Castle Rock. Muitas casas do lago continuavam sendo usadas nos fins de semana, porém o agressivo, eufórico verão socializante já terminou e ainda não chegaram à cidade os caçadores com seus enormes rifles e caras licenças de não-residentes, presas em seus bonés alaranjados. A esta altura, já terminaram quase todas as colheitas. As noites são frescas, boas para dormir, e juntas velhas como as minhas ainda não começaram a queixar-se. Em outubro, o céu acima do lago está límpido, com aquelas enormes nuvens que se movem tão devagar; gosto de ver como parecem tão achatadas no fundo, como ali ficam um pouco acinzentadas, como com uma sombra pressagiando o sol poente, e posso contemplar o sol cintilando na água, sem me aborrecer pelo espaço de alguns minutos. É em outubro, sentado no banco diante do Bell's e contemplando o lago à distância, que desejaria ser ainda um fumante.
— Ela não dirige tão depressa como 'Pheila — disse Homer. — Juro que costumava pensar como uma mulher de nome tão antiquado era capaz de dirigir um carro naquela velocidade.
Os veranistas como os Todd não são, nem de longe, tão interessantes como os residentes fixos em cidadezinhas do Maine, da maneira como acreditam. O ano inteiro, o pessoal prefere suas próprias histórias de amor e odeia histórias de escândalos ou rumores de escândalos. Quando aquele sujeito têxtil de Amesbury se matou com uma bala, Estonia Corbridge descobriu que, após cerca de uma semana, nem mesmo era convidada para almoçar, por causa de sua história sobre como o encontrara, com a arma ainda em uma mão endurecida. E o pessoal ainda não comenta a respeito de Joe Camber, que foi morto pelo próprio cão.
Bem, isso não vem ao caso. Apenas corremos em pistas de corridas diferentes. Os veranistas trotam; nós, os outros, que não pomos gravata para cumprir nossa semana de trabalho, apenas caminhamos. Mesmo assim, houve bastante interesse local quando Ophelia Todd desapareceu, em 1973. Ophelia era realmente uma mulher encantadora e tinha feito muitas coisas na cidade. Trabalhou levantando fundos para a Biblioteca Sloan, ajudou na reforma do memorial de guerra e esse tipo de coisa. Entretanto, todos os veranistas gostam da idéia de levantar fundos.
Fala-se em levantar fundos e os olhos deles se acendem, começam a brilhar. Fala-se em levantar fundos e eles logo formam um comitê, indicando uma secretária e mantendo uma agenda. Eles gostam disso. No entanto, fala-se em tempo (além de uma longa, gigantesca combinação de coquetel e reunião do comitê) e não dá certo. Tempo parece ser o que a maioria dos veranistas prefere reservar. Eles o guardam e, se pudessem, colocariam o tempo em potes como os de conserva, claro que colocariam. 'Phelia Todd, no entanto, parecia querer gastar o tempo — não só ajudava na biblioteca, como também levantava fundos para ela. Chegada a hora do memorial de guerra ser esfregado, do pessoal sujar as mãos para limpá-lo, 'Phelia estava lá, com mulheres da cidade que haviam perdido os filhos em três guerras diferentes, usando um macacão e com os cabelos presos debaixo de um lenço. E quando as crianças precisavam de transporte para um programa de natação no verão, era certo vê-la como qualquer um, descendo a Estrada Landing com a carroceria da grande e lustrosa picape de Worth Todd entulhada de crianças. Uma boa mulher. Não uma mulher da cidade, mas uma boa mulher. E quando ela desapareceu. houve preocupação. Não que fosse exatamente lamentada, porque um desaparecimento não é bem uma morte. Não é como decepar-se algo, com um cutelo de açougueiro; é mais semelhante a qualquer coisa escorrendo pelo ralo da pia, tão lentamente, que só percebemos seu desaparecimento muito tempo depois.
— Era uma Mercedes que ela dirigia — disse Homer, respondendo à pergunta que eu não tinha feito. — Um carro esporte de dois lugares. Todd o comprou para ela, em sessenta e quatro ou sessenta e cinco, acho. Lembra-se dela, levando as crianças para o lago, todos aqueles anos em que havia concursos de Rãs e Girinos?
— Hum-hum.
— Com as crianças, ela não dirigia a mais de sessenta, sabendo que elas estavam ali atrás.
Só que isso a impacientava. Aquela mulher tinha chumbo no pé e um mancal de esferas bem atrás do tornozelo.
Acontece que Homer nunca falava sobre os veranistas de que era caseiro. Então, sua esposa morreu. Há cinco anos, foi isso. Ela estava arando uma rampa, quando o trator tombou em cima dela, e Homer sentiu demais o que aconteceu. Lamentou a esposa por uns dois anos e então pareceu sentir-se melhor. Só que não era mais o mesmo. Parecia esperar algo que ia acontecer, esperando a coisa seguinte. A gente às vezes passava por sua ordenada casinha ao crepúsculo e ele estava no alpendre, fumando um cachimbo, com um copo de água mineral na balaustrada. A claridade do sol poente lhe batia em cheio nos olhos, a fumaça do cachimbo lhe contornava a cabeça e a gente pensava — eu, pelo menos, pensei Homer está esperando a coisa seguinte. Isto me deixava com a cabeça mais preocupada do que eu gostaria de admitir e, por fim, decidi que, se fosse eu, não estaria esperando a coisa seguinte, como um noivo que veste o paletó de manhã e finalmente acerta o nó da gravata, mas tem que ficar sentado em uma cama, no andar de cima da casa, olhando-se primeiro ao espelho, depois consultando o relógio sobre a lareira, esperando que ele dê onze horas, que é quando se casará. Se fosse eu, não ficaria esperando a coisa seguinte; esperaria a coisa derradeira.
Contudo, nesse período de espera — que terminou quando Homer foi a Vermont, um ano mais tarde — ele às vezes falava sobre aquela gente. Comigo e mais alguns poucos.
— Que eu saiba, ela nunca dirigiu depressa quando estava com o marido. No entanto, se eu a acompanhava, ela fazia aquele Mercedes disparar.
Um sujeito parou na bomba de gasolina e começou a encher o carro. Um carro com chapa de Massachusetts.
— Não era um desses carros esporte modernos que correm com gasolina envenenada e saltam para diante, quando se aperta o acelerador; era um dos antigos, com o velocímetro todo calibrado, até duzentos e sessenta. Tinha uma cor marrom esquisita.
Uma vez perguntei que cor era aquela e ela respondeu que era Champanha. Isso não é direito, falei, e ela quase morreu de rir. Gosto de uma mulher que sabe rir sem a gente apontar onde está a graça da piada, se é que me entende.
O homem da bomba terminara de colocar a gasolina.
— Tarde, senhores — disse ele, quando subiu os degraus.
— Um bom dia para o senhor — respondi, quando ele entrou.
— 'Phelia estava sempre procurando um atalho — prosseguiu Homer, como se não houvesse sido interrompido. — Aquela mulher era louca por um atalho. Nunca vi que diferença fazia. Ela dizia que quando poupamos distância suficiente, também poupamos tempo. Seu pai tinha jurado isso sobre as Escrituras. Era vendedor, estava sempre viajando, ela o acompanhava quando podia e ele sempre procurava o trajeto mais curto.
Assim, ela ficou com o mesmo hábito.
"Certa vez, perguntei a ela se não achava um bocado curioso — isso de, por um lado, gastar seu tempo esfregando aquela velha estátua da Praça e levando as crianças às aulas de natação, em vez de jogar tênis, nadar e ficar de pileque, como qualquer veranista e, por outro lado, ficar tão empenhada em poupar quinze minutos entre aqui e Fryeburg, que isso talvez a fizesse perder o sono de noite. Parecia-me que as duas coisas se contradiziam, uma anulava a outra, está me entendendo? Ela apenas olhou para mim e disse, "Eu gosto de ser útil, Homer. Também gosto de dirigir — pelo menos em certas ocasiões, quando se trata de um desafio — mas não gosto do tempo que isso demora. É como remendar roupas — às vezes se tem que franzir, em outras o pano não chega.
Percebe o que quero dizer?
— Acho que percebo, sim, senhora — respondi, ainda duvidoso.
— Se estar atrás do volante de um carro fosse minha idéia de uma diversão realmente boa o tempo todo, eu procuraria atalhos longos — disse ela, ,e achei tão engraçado, que acabei rindo.— O sujeito de Massachusetts saiu do mercado com um engradado de seis latas de cerveja em uma das mãos e alguns bilhetes de loteria na outra.
— Tenha um bom fim de semana — disse Homer.
— Eu sempre tenho — respondeu o cara de Massachusetts. — Só gostaria de ter dinheiro bastante para morar aqui o ano inteiro.
— Bem, manteremos tudo em boa ordem, para quando o senhor puder vir disse Homer, e o sujeito riu.
Nós o vimos rodar com seu carro para algum lugar, exibindo aquela chapa de Massachusetts. Era uma verde. A minha Marcy explicou que essas são dadas pelo Cartório de Registros Motorizados de Massachusetts aos motoristas que, durante dois anos, ainda não tiveram nenhum acidente naquele estranho, irritado e enfurecido estado.
Se o motorista tem um acidente, me disse ela, recebe uma chapa vermelha, para os outros tomarem cuidado com ele, se o virem rodando.
— Eles eram gente do estado, compreenda, eles dois — disse Homer, como se o sujeito de Massachusetts o fizesse recordar o fato.
— Eu não sabia — falei.
— Os Todd devem ser as únicas aves que temos, voando para o norte durante o inverno. Quanto a essa dona nova, não acredito que goste muito de voar para o norte.
Homer bebericou sua água mineral e ficou um momento calado e pensativo.
— Ela, no entanto, não se importava — disse ele. — Pelo menos, acho que não se importava, embora costumasse se queixar algumas vezes, um tanto aborrecida. A queixa era apenas uma forma de explicar por que estava sempre procurando um atalho.
— Quer dizer que o marido pouco ligava por ela viver flanando em cada estrada de floresta, entre aqui e Bangor, apenas para verificar se aquela era nove décimos de quilômetros mais curta?
— Ele não ligava nem um pouco — disse Homer, lacônico.
Levantando-se, ele entrou no mercado. Escute aqui, Owens, falei para mim mesmo, sabe que não é seguro fazer perguntas quando ele está recordando. No entanto, teimou e fez a última, podendo ter estragado uma história que começava a ganhar forma.
Continuei ali sentado, levantei o rosto para o sol e, após uns dez minutos, ele apareceu trazendo um ovo cozido. Tornou a sentar-se. Comeu o ovo e tomei cuidado para ficar calado. As águas do Lago Castelo cintilavam, tão azuis como se poderia descrever, em uma história sobre tesouros. Quando Homer terminou seu ovo e tomou um gole de água mineral, continuou falando. Fiquei surpreso, mas nada disse. Era o mais conveniente.
— Eles tinham dois ou três rodantes, bons e diferentes — falou. — Havia o Cadillac, a caminhonete dele e o "trenó" dela, o pequeno Mercedes. Em uns dois verões, ele deixou a caminhonete, para o caso de quererem vir para esquiar um pouco. Em geral, terminado o verão, ele voltava com o Caddy e ela se ia em seu "trenó".
Assenti, mas continuei calado. Em verdade, temia arriscar outro comentário. Mais tarde, pensei que seriam precisos muitos comentários para Homer Buckland calar a boca, naquele dia. Há muito ele aguardava uma oportunidade para contar a história do atalho da Sra. Todd.
— O carrinho dela tinha um odômetro especial, que poderia dizer quantos quilômetros havia em um trajeto. Sempre que ela partia de Lago Castelo para Bangor, assentava-o em 000-ponto-0 e deixava o mecanismo funcionar à vontade. Achava aquilo um jogo e costumava irritar-me com isso.
Homer fez uma pausa, meditando no assunto.
— Não, não era bem assim.
Fez nova pausa e algumas linhas ligeiras surgiram em sua testa, como degraus em uma escada de biblioteca.
— Era como se achasse aquilo um jogo, mas em sua mente, era coisa séria. Tão séria como qualquer outra coisa. — Homer fez um gesto com a mão e pensei que se referia ao marido. — O porta-luvas do carrinho era recheado de mapas, havendo mais alguns na traseira, onde ficaria o banco de trás, em um carro comum. Alguns eram mapas depostos de gasolina e outros eram páginas que ela arrancara do Atlas de Estradas Rand-McNally; tinha alguns mapas de guias da Trilha Apalachiana, além de uma boa quantidade de outros com medições topográficas. Não foi o fato dela ter tantos mapas que me fez pensar não ser aquilo um jogo ou brincadeira; era a maneira como ela riscava linhas em todos eles, mostrando rotas que havia tomado ou, pelo menos, tentara tomar.
— Houve vezes em que ficou atolada, precisando ser tirada do atoleiro com um trator e correntes de algum fazendeiro.
— Um dia, eu assentava ladrilhos no banheiro, estava lá com argamassa fluida, tapando qualquer maldita brecha que se visse — não sonhei com mais nada, além de quadrados e rachaduras que sangravam argamassa, aquela noite quando ela surgiu à porta e ficou falando sobre aquilo algum tempo. Eu costumava irritá-la a respeito disso, mas também fiquei um tanto interessado, não apenas porque meu irmão Franklin vivia lá em Bangor e eu já percorrera todas aquelas estradas. Só fiquei interessado, porque um homem como eu sempre se interessa em saber qual o trajeto mais curto, mesmo que nem sempre queira segui-lo. Você também é assim?
— Hum-hum — falei.
Havia algo de poderoso em saber-se o caminho mais curto, ainda que se tome o mais comprido, se sabemos que a sogra nos está visitando. Em geral, chegar depressa é para os pássaros, embora ninguém com uma licença de motorista de Massachusetts pareça saber disso. No entanto, saber como chegar lá rapidamente ou menos saber como chegar lá, de modo ignorado pela pessoa sentada ao nosso lado... Bem, isso encerra poder.
— Ora, ela colecionava aquelas estradas, como um escoteiro faz com seus nós — disse Homer, exibindo seu largo e ensolarado sorriso. — Falou, "espere um minuto, espere um minuto", como uma garotinha, e então a ouvi através da parede, remexendo em sua secretária. Voltou logo depois, com uma caderneta de anotações parecendo muito antiga. A capa estava toda amarfanhada, sabe como é, e algumas páginas se tinham soltado daquelas espirais na lombada.
— A maneira de chegar-se a Worth — disse ela — , é como faz a maioria das pessoas: seguindo pela Estrada 97 até Mechanic Falls, depois pela Estrada 11 até Lewiston e em seguida pela Interestadual para Bangor. Isto soma 261.70 quilômetros.
— Desse jeito, a senhora não vai poupar tempo nenhum, madame — falei, — se for através de Lewiston e Augusta. Contudo, admito que dirigir pela Velha Estrada Derry até Bangor é muito bonito.
— Poupa quilômetros suficientes e, portanto, você economizará tempo disse ela. — E não contei qual o meu trajeto, embora o tenha feito muitas vezes. Vou apenas seguir as estradas usadas pela maioria. Quer que eu continue?
— Não é preciso — respondi. — Basta que me deixe neste maldito banheiro, sozinho, olhando para todas estas malditas rachaduras, até que eu fique furioso.
— Existem quatro estradas principais ao todo — disse ela. — O trajeto pela Estrada 2 é de 262,91 quilômetros. Já o fiz uma vez. Demasiado longo.
— É o que eu faria, se minha esposa telefonasse, dizendo que havia sobras para o jantar — respondi, em voz um tanto baixa.
— Como assim? — perguntou ela.
— Nada. — falei. — Foi um comentário comigo mesmo.
— Oh, está bem. Quanto à quarta — não há muita gente que saiba sobre ela, embora todas sejam boas estradas — pavimentadas, afinal — cruza a Montanha Speckled Bird, pela 219 até a 202, além de Lewiston. Então, tomando-se a Estrada 19, chega-se perto de Augusta. Depois, segue-se pela Velha Estrada Derry. Assim, cobre-se apenas 207,90 quilômetros.
"Fiquei calado por um instante. Talvez ela achasse que eu duvidava do que me dizia, porque falou, um tanto sem jeito, "Sei que é difícil de acreditar, mas digo a verdade".
"Respondi que a achava com razão quanto a isso e pensei — agora que me lembro — que provavelmente assim fosse. Sim, porque é como geralmente fazia, quando ia a Bangor ver Franklin, querendo saber se ele continuava vivo. Contudo, há anos não fazia esse trajeto. Acha que um homem pode simplesmente bem — esquecer uma estrada, Dave?
Achei que podia. É fácil pensar-se na auto-estrada com cobrança de pedágio. Após algum tempo, ela quase enche a mente de um homem e não pensamos em como se iria daqui até lá, mas como se iria daqui até a rampa da estrada de pedágio mais próxima de lá. Isso me fez pensar que talvez haja montes de estradas por todo canto, apenas vivendo de esmolas; estradas ladeadas por muralhas rochosas, verdadeiras estradas com matagais de amoras-pretas crescendo em suas margens, mas sem ninguém para comer as amoras, além dos pássaros, com cascalheiras tendo velhas correntes enferrujadas, pendendo em curvas baixas, diante de suas vias de acesso, as cascalheiras, em si, tão esquecidas como velhos brinquedos de crianças, com capinzais emaranhados crescendo em suas margens desertas e não lembradas. Estradas que apenas ficaram esquecidas, exceto por aqueles que vivem em seus arredores e pensam na maneira mais rápida de afastar-se delas, de chegar ao pedágio, onde a gente pode passar sobre uma montanha, não se queixando pela subida.
No Maine, gostamos de brincar dizendo que não se pode chegar lá indo daqui, mas talvez a piada seja contra nós. De fato, há bem umas mil maneiras de fazer-se isso e ninguém se preocupa.
Homer continuou:
— Trabalhei nos ladrilhos a tarde inteira, naquele pequeno banheiro sufocante, com ela parada à porta o tempo todo, um pé cruzado por trás do outro, de pernas nuas, usando sapatos de lona, uma saia cáqui e uma suéter pouco mais escura. Os cabelos estavam puxados para trás, em um rabo-de-cavalo. Ela devia ter trinta e quatro ou trinta e cinco anos, mas seu rosto se iluminava com o que me dizia e juro que parecia uma universitária, vindo passar as férias em casa.
"Após algum tempo, deve ter percebido quanto tempo ficara ali, cortando o ar em volta da boca, porque disse, "Devo estar aborrecendo você terrivelmente, Homer".
— Sim, madame — respondi. — Está mesmo. Gostaria que fosse embora e me deixasse falando com estas malditas rachaduras.
— Não banque o espertinho, Homer — disse ela.
— Está bem, madame. Não está me aborrecendo — respondi.
"Ela sorriu e voltou ao assunto, folheando sua caderneta, como um vendedor conferindo seus pedidos. Ela contava com aquelas quatro vias principais — bem, de fato eram três, porque desistiu da Estrada 2 em seguida-mas devia ter outras quarenta vias diferentes, em compensação. Havia estradas com números estaduais, estradas sem eles, estradas com nomes, estradas sem nomes. Minha cabeça borbulhava delas. Finalmente, ela me perguntou, "Está pronto para quem ganhou a fita azul, Homer?"
— Acho que sim — respondi.
— Pelo menos, quem ficará coma fita azul até agora — disse ela. — Sabe de uma coisa, Homer? Em 1923, um homem escreveu um artigo em Science Today, provando que nenhum homem poderia correr uma milha em menos de quatro minutos. Ele provou o que afirmava, com todos os tipos de cálculos, baseando-se no comprimento máximo dos músculos da coxa de um indivíduo, no comprimento máximo da passada, na capacidade máxima dos pulmões, no máximo em pulsações cardíacas e muita coisa mais. Fiquei fascinada por aquele artigo! A tal ponto, que o dei a Worth, pedindo que o entregasse ao Professor Murray, no departamento de matemática da Universidade do Maine. Queria àqueles números checados, certa de que haviam sido baseados nos postulados errôneos ou algo assim, Worth provavelmente me achou idiota — "Ophelia está com macaquinhos no sótão" foi o que disse — mas levou o artigo. Pois bem, o Professor Murray checou minuciosamente os números daquele homem... e sabe de uma coisa, Homer?
— O que, madame?
— Aqueles números estavam certos. Os critérios do homem eram sólidos. Ainda em 1923, ele provou que um homem não podia correr uma milha em menos de quatro minutos. Ele provou isso. No entanto, é o que as pessoas fazem o tempo todo — e sabe o que isso significa?
— Não, madame — falei, embora tivesse uma idéia.
— Significa que nenhuma fita azul é eterna — disse ela. — Algum dia-se o mundo não explodir nesse meio tempo — alguém correrá uma milha em dois minutos, nas Olimpíadas. Pode levar cem ou mil anos, mas vai acontecer. Porque não existe fita azul definitiva. Há o zero, como há a eternidade e a mortalidade, mas não há definitivo.
"E lá estava ela, com o rosto lavado, limpo e reluzente, aqueles cabelos escuros puxados para trás da cabeça, como se dissesse, Vá em frente e discorde, se puder. "Só que eu não podia. Porque acredito em coisas assim. Bem parecidas com o que o ministro quer dizer, imagino, quando está falando sobre a graça.
— Você está pronto para a — por enquanto — ganhadora da fita azul? perguntou ela.
— Hum-hum — respondi, chegando a suspender um pouco o conserto das rachaduras.
"De qualquer modo, já chegara até onde ficava a banheira e pouco me restava fazer, além de endireitar suas pequenas quinas rachadas. Ela respirou fundo e então soltou a ladainha, tão depressa, como aquele leiloeiro lá de Gates Falls, quando serve uísque para si mesmo. Não me lembro de tudo, porém foi mais ou menos assim...
Homer Buckland fechou os olhos por um momento, as manoplas jazendo perfeitamente imóveis sobre as coxas compridas, o rosto erguido para o sol. Depois tornou a abrir os olhos e, por um segundo, juro que se parecia com ela, sim, parecia mesmo — um velho de setenta anos parecendo-se com uma mulher de trinta e quatro que, naquele momento de sua vida, tinha a aparência de uma universitária de vinte. Não me recordo exatamente do que ele disse, como tampouco ele recordava exatamente o que ela dissera. Não que a coisa seja complicada, mas apenas por eu estar tão espantado com a aparência dele, enquanto dizia algo semelhante a isto:
— Partindo da Estrada 97, você sobe a Rua Denton até a Velha Estrada Townhouse, e assim chega perto do centro de Castle Rock, mas voltando à 97. Quinze quilômetros adiante, alcança uma antiga estrada de serraria, pela qual segue quilômetro e meio até a Estrada número 6, para a cidade. Esta o leva à Estrada Big Anderson, perto de Side's Cider Mill. Há um atalho que os antigos chamam de Estrada do Urso, que o leva à 219.
Uma vez no lado mais distante da Montanha Speckled Bird, você pega a Estrada Stanhouse, dobra à esquerda para a Estrada Buli Pine — há um trecho lamacento por aí, mas pode-se cruzá-lo sem problemas, ao ganhar-se velocidade suficiente sobre o cascalho — e então sai na Estrada 106. A 106 corta Alton's Plantation até a Velha Estrada Derry — e aí existem duas ou três estradas cortando bosques, que serão seguidas até sair na Estrada 3, pouco além do Hospital de Derry. De lá, são apenas seis quilômetros e meio para a Estrada 2, em Etna, chegando-se a Bangor.
"Ela fez uma pausa para recuperar o fôlego, depois olhou em minha direção. "Sabe quanto dá isso, tudo somado?"
"— Não, madame — falei, mas pensando que seriam praticamente uns trezentos quilômetros.
— 187,30 quilômetros — disse ela.
Eu ri. Ri, sem pensar que com isso talvez estragasse minha oportunidade de ouvir aquela história até o fim. Contudo, Homer também sorriu e assentiu.
— Entendo. E você sabe que não gosto de discutir com ninguém, Dave. Contudo, há uma diferença entre lhe darem uma rasteira ou o fazerem sacudir-se como uma maldita macieira.
Ela então me disse:
— Você não acredita em mim.
— Bem, é difícil acreditar, madame — respondi.
— Deixe essas rachaduras secando e eu lhe mostrarei — convidou ela. Pode terminar amanhã o conserto atrás da banheira. Vamos, Homer. Deixarei uma nota para Worth — afinal, talvez ele nem volte esta noite — e você pode ligar para sua esposa! Estaremos jantando no Pilot's Grille dentro de — e ela consultou seu relógio — duas horas e quarenta e cinco minutos, a partir de agora. E se demorar um minuto mais, eu lhe compro uma garrafa de Mist Irlandês, que levará para casa. Como vê, meu pai tinha razão. Poupe os quilômetros suficientes e economizará tempo, mesmo que precise cruzar cada maldito pântano e fossa no Condado de Kennebec para consegui-lo. E agora, o que me diz?
"Ela me fitava com seus olhos castanhos que pareciam duas lâmpadas. Havia neles uma expressão diabólica, dizendo, pegue o seu boné e vamos em frente, Homer; monte este cavalo, eu na frente, você atrás, e que o diabo siga na garupa. O sorriso em seu rosto dizia a mesma coisa e eu lhe confesso, Dave, senti vontade de ir. Nem mesmo quis tampar aquela maldita lata de argamassa. E, tenho absoluta certeza, não queria dirigir aquele carrinho dela. Bastava-me sentar no banco do passageiro e vê-la entrar, ver sua saia subir um pouquinho, vê-la puxá-la sobre os joelhos ou não, espiar seus cabelos brilhando.
A voz dele extinguiu-se e, de repente, Homer deu uma risada sarcástica, abafada. Uma risada que soava como uma espingarda carregada com sal-gema.
"— Apenas ligue para Megan e diga, Sabe a 'Phelia Todd, aquela mulher de quem começa a sentir tantos ciúmes, que nem consegue enxergar direito e nem encontra uma palavra boa para dizer sobre ela? Pois bem, nós dois vamos fazer uma viagem a jato até Bangor, naquele carrinho Mercedes dela, o cor de champanha, portanto, não me espere para jantar."
— Apenas ligar para ela e dizer aquilo. Oh, claro. Oh, hum-hum.
Ele tornou a rir, com as mãos pousadas sobre as pernas, da maneira tão natural de sempre. Então, vi em seu rosto algo que era quase odioso e, após um minuto, ele pegou seu copo de água mineral, em cima da balaustrada, derramando um pouco da água.
— Você não foi — falei.
— Não dessa vez.
Ele riu, um riso agora mais suave.
— Ela devia ter visto algo em meu rosto, porque foi como se caísse em si novamente.
Não ficou mais parecendo uma mocinha de universidade, voltou a ser como 'Phelia Todd. Olhou para a caderneta de anotações, como se não soubesse por que a segurava, depois a escondeu a um lado do corpo, quase atrás da saia.
"Eu disse — "Gostaria de fazer isso, madame, mas tenho que terminar aqui. Além do mais, minha esposa fez um assado para o jantar."
"Ela respondeu —, "Eu compreendo, Homer. Apenas exagerei em meu entusiasmo. Como sempre. Worth diz que sou assim o tempo todo."Depois ela empertigou o corpo e disse — "De qualquer modo, o convite está de pé, para quando você quiser ir. Poderá até ajudar a empurrar o carro, se ficarmos atolados em algum lugar, o que me pouparia cinco dólares" — E ela riu.
— Eu lhe cobrarei o convite, madame — respondi, e ela percebeu que eu falava sério, não estava apenas querendo ser polido.
— E antes de você acreditar que cento e oitenta e sete quilômetros até Bangor estão fora de questão, pegue seu mapa e veja quantos quilômetros seriam, em linha reta.
"Eu terminei com os ladrilhos, fui para casa e jantei sobras do almoço — não havia assado nenhum — mas creio que 'Phelia Todd sabia disso. Depois que Megan foi para a cama, peguei minha régua, uma caneta e meu mapa Mobil do estado. Fiz o que ela me dissera... porque suas palavras me tinham impressionado um pouco, entenda. Risquei uma linha reta e fiz os cálculos, segundo a escala de quilômetros. Fiquei algo surpreso.
Porque a gente indo de Castle Rock até Bangor, como um daqueles Piper Cubs, voando em um dia claro — se a gente não tiver que se preocupar com lagos ou terrenos de companhias madeireiras, de passagem proibida, com pântanos ou rios para cruzar onde não houver pontes, seriam apenas cento e vinte e sete quilômetros e pouco.
Sobressaltei-me ligeiramente.
— Meça você mesmo, se não acredita em mim — disse Homer. — Só depois de verificar aquilo, percebi como o Maine é pequeno.
Ele bebeu um gole, depois se virou e olhou para mim.
— Na primavera seguinte, houve uma ocasião em que Megan foi até New Hampshire, visitar o irmão. Precisei ir até a casa dos Todd, retirar as portas contra tempestade e colocar as teladas. O carrinho Mercedes dela estava lá. Ela viera sozinha.
"Chegou até a porta e disse, "Homer! Veio colocar as portas de tela?"
"E eu respondi prontamente, Não, madame, vim saber se quer me levar até Bangor, pelo caminho mais curto."
"Bem, ela olhou para mim sem a menor expressão no rosto e cheguei a pensar que tinha esquecido tudo a respeito. Percebi que começava a ficar vermelho, da maneira que acontece se damos um fora. Então, quando já ia desculpar-me, o rosto dela se abriu em um sorriso outra vez, e ela disse, "Espere aqui um instante, enquanto apanho minhas chaves. E não vá mudar de idéia, Homer!"
"Voltou logo depois, trazendo as chaves. "Se ficarmos atolados, você verá mosquitos do tamanho de libélulas!"
— Em Rangely, já os vi do tamanho de pardais, madame — falei — mas acho que ambos somos pesados demais para que eles nos carreguem."
"Ela riu. "Está bem. De qualquer modo, eu avisei. Vamos, Homer."
— E se nós não chegarmos lá em duas horas e quarenta e cinco minutos — lembrei, um tanto acanhado — a senhora me comprará uma garrafa de Mist Irlandês.
"Ela me fitou com certa surpresa, já tendo a porta do carrinho aberto e um pé no interior. "Que diabo, Homer", disse, "falei a você que era a Fita Azul por enquanto.
Descobri uma forma de chegar lá que é mais curta. Chegaremos em duas horas e meia. Entre, Homer. Vamos disparar!"
Ele tornou a fazer uma pausa, as mãos tranqüilamente pousadas sobre as coxas, os olhos opacos, talvez vendo o dois-assentos cor de champanha rodando para a íngreme entrada de carros dos Todd.
— Ela parou o carro no fim da alameda e perguntou, "Está bem certo de que quer ir?"
— Pode disparar — respondi. O mancal de esferas em seu tornozelo girou e aquele pé pesado afundou. Não lhe posso dizer muito sobre o que aconteceu depois disso, exceto que, após um momento, mal conseguia afastar os olhos dela. Havia algo selvagem transbordando em seu rosto, Dave — algo selvagem e também livre, que apavorou meu coração. 'Phelia era linda e eu caí de amor por ela, qualquer um cairia, qualquer homem, afinal, — e talvez qualquer mulher também, mas o caso é que, ao mesmo tempo, eu a temia, porque se ela tirasse os olhos da estrada e resolvesse amar em troca, acabaria matando a gente. Ela usava blue jeans e uma velha camisa branca, com as mangas enroladas — imaginei que talvez estivesse pensando em pintar alguma coisa no pátio dos fundos quando cheguei mas depois de estarmos rodando por algum tempo, dava a impressão de estar vestida apenas com aquelas roupagens embabadadas e frouxas, daqueles velhos livros de deuses e deusas.
Ele ficou pensativo, espiando através do lago, com o rosto muito sério.
— Como a caçadora que se supunha dirigir a lua pelo céu.
— Diana?
— Hã-hã. A lua era o seu carrinho. 'Phelia parecia assim a meus olhos e lhe digo francamente que estava doido de amor por ela e nunca faria um movimento, mesmo que fosse, então, mais novo do que sou agora. Não tomaria nenhuma iniciativa, mesmo que tivesse vinte anos, embora suponha que a tomasse com dezesseis anos, até me mataria por isso — claro, se ela olhasse para mim do jeito como eu desejaria.
"Ela era como aquela mulher dirigindo a lua através do céu, com metade do corpo acima do pára-lama, suas estolas transparentes voando mais atrás em teias de aranha prateadas e seus cabelos agitando-se fora da nuca, para mostrar as escuras covinhas de suas têmporas, vergastando aqueles cavalos e me dizendo para seguir mais depressa, jamais se importando com o quanto eles resfolegassem, apenas mais depressa, mais depressa, mais depressa.
"Rodamos por um bocado de estradas entre florestas — eu conhecia as primeiras duas ou três, mas depois disso, todas me eram desconhecidas. Devíamos ser uma visão incrível para aquelas árvores que nunca tinham visto nada com motor antes, exceto grandes e velhos caminhões carregando polpa de madeira e veículos especiais para rodar na neve.
E aquele carrinho, que provavelmente se sentiria mais à vontade no Sunset Boulevard do que disparando através daquelas florestas, seguia impetuosamente, abrindo caminho para subir uma colina e descendo a próxima sem cederem sua voracidade, por entre aquelas poeirentas lâminas formadas pelo sol da tarde — estava com a capota arriada e podia-se sentir todos os cheiros naquelas matas, e você sabe o quanto são deliciosos esses cheiros, como algo que ficou intocado por muito tempo e que não é visitado com freqüência. Atravessamos estradas com leito em toras de madeira, estendidas nas partes mais pantanosas, a lama negra espirrando entre alguns daqueles troncos cortados, enquanto ela ria como criança. Alguns troncos estavam velhos e apodrecidos, porque em cinco ou dez anos, digamos, ninguém passara por aquelas estradas exceto ela, claro está. Estávamos sozinhos, exceto pelos pássaros e quaisquer animais que nos vissem. O som do motor do carrinho, primeiro zumbindo, depois ganhando altura e potência, quando ela embreava e fazia a mudança... era o único som de motor que eu podia ouvir.
E, embora sabendo que estaríamos perto de algum lugar o tempo todo — quero dizer, nestes dias, a gente sempre está — comecei a sentir-me como se houvesse recuado no tempo e não houvesse nada. Isto é, se parássemos e eu subisse em uma árvore alta, não enxergaria nada em qualquer direção, além de matas cerradas, floresta e mais floresta.
E, o tempo todo, ela apenas persistindo naquilo, os cabelos esvoaçando às suas costas, sorridente, os olhos cintilando. Então, deixamos para trás a Estrada da Montanha Speckled Bird e, por um certo tempo, identifiquei onde nos encontrávamos novamente.
Depois, quando abandonamos essa estrada, apenas por um momento pensei que identificava, mas então decidi não me preocupar mais com isso. Atalhamos por outra estrada no meio do mato e fomos sair — juro — em uma bela via pavimentada, com um indicador que dizia MOTORWAY B. Já ouviu falar de alguma estrada no estado do Maine chamada MOTORWAY B?
— Não — respondi. — O nome é inglês, não?
— Hum-hum. Parecia inglês. Havia árvores pendendo sobre a estrada, como salgueiros.
"Tome cuidado agora, Homer," — disse ela, — "quase fui apanhada por uma delas há um mês atrás e fiquei com a pele esfolada."
Sem entender de que ela falava, abri a boca para dizer-lhe isso, mas então vi que, mesmo não havendo vento, os galhos daquelas árvores estendiam-se para baixo — pingavam e agitavam-se. Pareciam negros e molhados dentro de sua confusa verdura. Eu mal acreditava no que via. Quando um deles arrancou o meu boné, percebi que eu não sonhava. "Ei!" — gritei — "Devolva-me isso!"
— Tarde demais, Homer — disse ela, rindo. — Logo à frente teremos luz do dia... estamos indo bem.
"Então, outro daqueles galhos desceu, agora do lado dela, avançando em sua direção — juro que foi assim. 'Phelia abaixou a cabeça, ele agarrou seus cabelos e arrancou um punhado de fios anelados. "Droga, mas isso dói!" — gritou ela, mas continuava rindo. A velocidade do carro diminuiu ligeiramente quando ela se agachou e pude ver o interior da floresta de relance. Por Deus, Dave! Tudo ali dentro se movia! Havia ervas oscilando e plantas tão enoveladas juntas, que era como se fizessem caretas. Vi algo acocorado em cima de um tronco e parecia um sapo-de-árvore, só que era do tamanho de um gato adulto.
"Então, saímos da penumbra para o topo de uma colina. Ela disse, "Pronto! Foi excitante, não foi?"como se estivesse comentando nada mais que um passeio pela Casa Assombrada, na Feira de Fryeburg.
"Cinco minutos depois, deslizamos para outra de suas estradas entre bosques. Àquela altura, eu não queria mais saber de florestas — posso lhe dizer com segurança — mas aquelas eram apenas florestas comuns. Meia hora mais tarde, estávamos chegando ao pátio de estacionamento do Pilot's Grille, em Bangor. Ela apontou para aquele pequeno odômetro que marcava os trajetos, dizendo, "Dê uma espiada, Homer". Eu dei, e ele marcava 179,56 quilômetros. "O que me diz agora? Acredita em meu atalho?"
"A expressão bravia que mostrava antes já quase desparecera de todo e ela voltara a ser 'Phelia Todd outra vez. A outra expressão, no entanto, ainda persistia. Como se fossem duas mulheres, 'Phelia e Diana — e sua parte Diana, a que assumira o comando quando ela rodara por aquelas estradas secundárias, não deixara que sua parte 'Phelia percebesse como o atalho a levava por lugares... lugares que não existiam em nenhum mapa do Maine, nem mesmo naqueles topográficos.
"Ela repetiu, "O que diz de meu atalho, Homer?
"Finalmente respondi a primeira coisa que me veio à cabeça, algo que não se costuma dizer a uma dama como 'Phelia Todd.
"De fato, madame, é um filho da mãe de atalho," — respondi.
Ela riu, muito feliz da vida, e então pude ver, claro como se fosse vidro: ela não se lembrava de nenhuma daquelas coisas esquisitas. Não se lembrava dos galhos dos salgueiros — que salgueiros nada tinham, absolutamente, nem de qualquer outra coisa — que me tinham arrancado o boné, daquele indicador MOTORWA Y B ou daquela horrível coisa-sapo. Ela não se lembrava de nenhuma daquelas coisas esquisitas! Eu devia ter sonhado que aquilo estava lá ou então ela sonhara que não estava. Só posso afirmar com certeza, Dave, é que rodamos apenas cento e setenta e nove quilômetros até Bangor, e isso não era nenhuma fantasia, porque estava bem ali, marcado no pequeno odômetro do carrinho, em preto e branco.
— Bem, é isso mesmo — disse ela. — É um filho da mãe de atalho. Eu só queria que Worth o percorresse alguma vez... mas ele nunca larga seu carro, a menos que alguém o jogue para fora com uma explosão e precisaria ser um míssil Titan 11 para isso, porque acho que ele construiu um abrigo anti-atômico no fundo daquele veículo. Muito bem, Homer, vamos providenciar o seu jantar.
"E ela me pagou um baita jantar, Dave, mas não consegui comer muito. Fiquei pensando em como seria a viagem de volta, agora que começava a escurecer. Então, mais ou menos pelo meio do jantar, ela pediu desculpa e foi dar um telefonema. Quando voltou, perguntou se eu não me incomodaria de dirigir o carrinho até Castle Rock para ela. Disse ter telefonado para uma mulher do mesmo comitê escolar que o seu e ficara sabendo que estavam com algum tipo de problema sobre qualquer coisa. Falou que alugaria um carro para voltar, caso Worth não pudesse levá-la. "Você não se importa de dirigir no escuro?" — perguntou.
"Olhava para mim, com uma espécie de sorriso. Percebi que ela recordava alguma coisa do que acontecera — só Deus sabe quanto, mas recordava o suficiente para saber que eu não tentaria seu atalho depois do escurecer, se é que o tentaria dia claro... embora o brilho em seus olhos indicasse que isso não a incomodaria nem um pouco.
"Respondi que levaria o carro de volta e terminei minha refeição melhor do que começara. Já estava bem escuro ao terminarmos e fomos no carro até a casa da mulher para quem ela telefonara. Ao descer, 'Phelia olhou para mim com aquele mesmo brilho no olhar, e disse. "Tem mesmo certeza de que não quer esperar, Homer? Ainda hoje reparei em umas duas estradas secundárias e, embora não as encontre em meus mapas, acho que elas nos encurtam alguns quilômetros".
"Eu falei, — "Bem, madame, eu esperaria, mas na minha idade, a melhor cama para dormir, já descobri que é a minha. Levarei o seu carro de volta, mas sem repetir o trajeto... embora provavelmente chegue com alguns quilômetros a mais do que a senhora."
"Ela riu, foi um riso suave, e me deu um beijo. Foi o melhor beijo que já tive, em toda a minha vida, Dave. Bem no rosto, era o beijo casto de uma mulher casada, mas maduro como um pêssego ou como aquelas flores que desabrocham no escuro. Quando seus lábios me tocaram a pele, senti algo... não sei bem o que senti, porque um homem não se apega facilmente àquelas coisas que lhe acontecem com uma moça que estava madura quando o mundo era jovem ou à impressão deixada por essas coisas — estou falando sem dizer ao certo o que senti, mas acho que você compreende. São coisas que ficam impressas em brasa na lembrança e nada conseguimos ver através delas.
— Você é um homem adorável, Homer, e eu o aprecio por me ouvir, por ter vindo no carro comigo — disse ela. — Dirija com cuidado.
"Depois ela entrou na casa da tal mulher. Eu voltei para casa".
— Por onde voltou? — perguntei.
Homer riu baixinho.
— Pela estrada de pedágio, seu maldito tolo! — exclamou, e nunca vi tantas rugas em seu rosto como nesse momento.
Ele ficou quieto, olhando para o céu.
"Chegado o verão, ela desapareceu. Eu não a tinha visto com freqüência... foi o verão em que tivemos o incêndio, você se lembra, e depois aquela horrível tempestade que derrubou todas as árvores. Foi um período muito agitado para caseiros. Oh, eu pensava nela de quando em quando, pensava naquele dia, naquele beijo, e tudo começou a parecer como um sonho para mim. Como certa época, quando eu tinha uns dezesseis anos e não pensava em mais nada além de garotas. Estava arando o campo oeste de George Bascomb, o que dá para o lago, nas montanhas, sonhando o que rapazes adolescentes costumam sonhar. Então, bati em uma rocha com as lâminas do arado, ela se partiu e sangrou. Pelo menos, a mim pareceu que sangrava. Um negócio vermelho escorreu da fenda na rocha e encharcou o chão. Nunca contei para ninguém, a não ser minha mãe, e nunca disse a ela o que aquilo significava para mim ou o que acontecera comigo, embora ela lavasse minhas roupas debaixo e talvez soubesse. De qualquer modo, ela sugeriu que eu devia rezar por causa daquilo. Eu rezei, mas não tive qualquer revelação e, após algum tempo, sei lá o que começou a sugerir à minha mente que tudo fora um sonho. Algumas vezes funciona assim. Há buracos no meio, Dave. Você sabia?
— Sei — respondi.
Fiquei pensando em uma noite, quando vira algo. Era o ano de 59, fora um ano ruim para nós, mas meus filhos ignoravam isso; sabiam apenas que queriam comer, como sempre comiam. Eu tinha visto um bando de coelhos rabo-branco no campo traseiro de Henry Brugger, e fui até lá, em um escurecer de agosto, levando um candeio. Pode-se matar dois, quando eles estão com a gordura de verão; o segundo volta para farejar o primeiro, como se perguntasse, Ora, que diabo, já é outono?, e então a gente o derruba. como se fosse um pino de boliche. Eles dão carne bastante para alimentar crianças durante seis semanas e enterra-se o que sobra. Aqueles dois eram rabos-brancos que não levam tiros dos caçadores chegados em novembro, mas crianças precisam comer. Como disse o homem de Massachusetts, ele gostaria de poder viver aqui o ano inteiro, mas eu digo é que, às vezes, temos que pagar pelo privilégio, depois que escurece. Pois então, lá estava eu, quando vi aquela imensa luz alaranjada no céu; ela veio descendo, descendo, enquanto eu ficava parado e espiando, de boca caída no peito. Quando a luz bateu no lago, todo ele ficou aceso por um minuto, com uma claridade púrpura alaranjada, que parecia subirem raios, direta ao céu. Ninguém nunca me disse nada sobre aquela luz e eu também nunca disse nada a ninguém, em parte, porque tinha medo que rissem de mim, mas também porque, antes de mais nada iam querer saber que diabo eu fazia naquele lugar, depois do escurecer. Depois de certo tempo, foi bem como Homer tinha dito — tudo parecia um sonho, mas sem qualquer significado para mim, porque não me daria proveito algum. Eu não podia usa-lo. Era como um raio de lua.
Não tinha punhos e nem lâminas. Já que eu não podia fazê-lo trabalhar, deixei-o para lá, como faz um homem, sabendo que o dia tem de nascer, apesar de tudo.
— Há buracos no meio de coisas — disse Homer, sentando-se empertigado, como se estivesse biruta. — Bem no maldito meio das coisas, não à direita ou esquerda, onde fica a visão periférica e se pode dizer, "Bem, mas que diabo..." Eles estão lá e a gente os rodeia, como rodeia um buraco na estrada, capaz de quebrar-nos um eixo do carro. Sabia disso? No entanto, a gente esquece. É como a gente estar arando e arar um buraco. Só que, se houver alguma fenda na terra, onde vemos escuridão, como se fosse uma caverna, dizemos, "Dê a volta, cavalo velho. Deixe isso sossegado! Tenho um bom palpite de que deve ir pela esquerda!" Porque não era uma caverna que a gente queria, nem nenhum excitamento de colégio, mas arar bem a terra.
"Buracos no meio das coisas".
Ele ficou calado por muito tempo e deixei que se calasse. Não tinha pressa em atiçá-lo.
Por fim, Homer disse:
— Ela desapareceu em agosto. Eu a tinha visto pela primeira vez em começos de julho, e ela parecia... — Homer se virou para mim e pronunciou cada palavra com cuidadosa, espaçada ênfase. — Dave Owens, ela parecia deslumbrante! Deslumbrante, bravia e quase selvagem. As ruginhas que eu vinha percebendo em volta de seus olhos haviam desaparecido por completo. Worth Todd estava em alguma conferência ou coisa assim, em Boston. E lá estava ela, na borda do ancoradouro — eu estava no meio, sem a camisa — e então me disse, "Homer, você não vai acreditar!"
— Não, madame, mas tentarei — respondi.
— Encontrei duas estradas novas — disse ela, — e desta última vez fiz apenas cento e oito quilômetros até Bangor.
"Recordei o que ela havia dito antes e falei, "Não é possível, madame. Peço que me desculpe, mas somei a quilometragem no mapa, eu mesmo, e cento e vinte e sete é o mínimo... em linha reta.
"Ela riu, e parecia mais bonita do que nunca. Como uma deusa ao sol, em cima de uma daquelas montanhas, em uma história onde só existem relvados verdes e fontes, sem espinhos que arranhem os braços de um homem. "Está bem," disse ela, "e ninguém pode correr um quilômetro em menos de quatro minutos. Foi matematicamente provado."
— Não é a mesma coisa — respondi
— É a mesma coisa — disse ela. — Dobre o mapa e veja quantos quilômetros são, Homer. Se dobrá-lo pouco, podem ser menos do que uma linha reta, mas se dobrá-lo muito, serão muitos menos.
"Recordei então aquele nosso passeio, da maneira como se recorda um sonho. Falei, "Madame, a senhora pode dobrar um mapa no papel, mas não pode dobrar terra. Ou, pelo menos, não deveria tentar. Deve esquecer isso."
— Não, senhor — respondeu ela. — Esta é a única coisa, bem agora em minha vida, que não vou esquecer, porque está lá e é minha.
"Três semanas mais tarde — mais ou menos umas duas antes dela desaparecer — ligou para mim de Bangor. Disse, "Worth foi a Nova York e eu estou descendo para aí. Não sei onde deixei minha maldita chave, Homer. Gostaria que você abrisse a casa, para que eu possa entrar."
"Bem, esse telefonema foi às oito da noite, justo quando começava a escurecer. Comi um sanduíche e tomei uma cerveja antes de sair — cerca de vinte minutos. Depois fui até lá. Eu diria que, tudo somado, foram uns quarenta e cinco minutos. Quando cheguei à casa dos Todd, ainda descendo a entrada para carros, vi que havia luz acesa na despensa, embora a tivesse deixado apagada. Estava olhando para aquilo, quando quase colidi com seu carrinho. Estava parado meio de banda, da maneira como um bêbado o estacionaria, emplastado de lama até as janelas e, na lama ao longo da carroceria, havia coisas presas, coisas parecendo algas... e quando os faróis de meu carro bateram nelas, pareciam mover-se. Estacionei logo atrás e saí. Aquelas coisas não eram algas, mas eram ervas e estavam se movendo... de um jeito lerdo e apático, como que agonizando.
Toquei em um pedaço de erva e ela quis enrolar-se em volta de minha mão. Foi uma sensação repugnante e asquerosa. Puxei a mão e a enxuguei nas calças. Dei a volta pela frente do carro. Era como se ele houvesse percorrido uns cento e cinqüenta quilômetros de terrenos baixos e lamacentos. Tinha uma aparência de cansaço, se tinha! Havia insetos esmagados por todo o pára-brisa — só que não pareciam nenhum que eu já estivesse visto antes. Vi uma mariposa que tinha mais ou menos o tamanho de um pardal, as asas ainda batendo um pouco, fracas e morrendo. Vi coisas como mosquitos, mas eles tinham olhos verdadeiros que se podia ver — e pareciam olhar para mim. Pude ouvir aquelas ervas arranhando a carroceria do carrinho, morrendo, procurando agarrar-se em alguma coisa. E tudo quanto eu podia pensar, era Diabo, por onde andara ela? E como conseguiu chegar aqui em apenas três quartos de hora? Foi então que vi algo mais. Havia uma espécie de animal, meio amassado na grade do radiador, bem abaixo de onde fica aquele enfeite da Mercedes — aquele que parece uma estrela, fechada dentro de um círculo. Ora, a maioria dos animais de pequeno porte que se mata na estrada fica presa debaixo do carro, porque eles se agacham ao serem atingidos, esperando que o carro passe acima deles e os deixe com o couro ainda-preso à carne. Bem, de vez em quando, um deles salta, não para longe, mas diretamente contra o maldito carro, como se quisesse tirar uma boa dentada de seja qual for aquele tipo de inseto gigantesco que quer matá-lo — eu sei que isso acontece. Pois aquela coisa havia feito isso. E parecia decidido o bastante para atacar um tanque Sherman. Dava a impressão de ser um cruzamento entre uma marmota e uma doninha, mas havia aqueles outros detalhes em seu corpo, que eu nem mesmo queria espiar. Machucava os olhos, Dave; pior ainda, aquilo machucava a mente. O pêlo do bicho estava misturado com sangue e havia garras brotando das solas de suas patas, como as de um gato, só que mais compridas. Ele tinha enormes olhos amarelados, mas estavam vidrados. Quando era criança tive uma bola de gude porcelanizada, parecida com aqueles olhos. E os dentes! Dentes compridos e finos como agulhas, mais parecendo agulhas de costurar, projetando-se de sua boca. Alguns deles se tinham fincado na grade de aço do radiador. Por isso é que continuava ali, ainda pendurado; ele tinha o corpo suspenso pelos próprios dentes. Olhando para ele, soube que continham um bocado de veneno, como uma cascavel. O bicho saltara para o carrinho ao ver que ia ser atropelado, queria matá-lo com uma dentada. E eu é que não tentaria arrancá-lo dali, porque tinha cortes nas mãos — cortes de feno — e pensei logo que cairia morto, duro como uma pedra, se algum daquele veneno vazasse para os cortes.
"Fui até o lado do motorista e abri a porta. A luz interna acendeu-se, e olhei para aquele odômetro especial que ela regulava para as viagens... o qual, pude ver, marcava 50,84.
"Fiquei olhando para ele por instante, e então caminhei até a portados fundos. Ela havia forçado a tela e quebrado o vidro perto da fechadura, para poder enfiar a mão e abrir.
Havia uma nota dizendo: "Prezado Homer — cheguei aqui um pouco mais cedo do que pensava. Encontrei um atalho que é uma maravilha! Como você ainda não tinha vindo, entrei como um assaltante. Worth chega depois de amanhã. Será que pode consertar a porta de tela e substituir o vidro quebrado até lá? Espero que sim. Essas coisas sempre o aborrecem. Se eu não sair para dizer olá, é porque estou dormindo. A viagem foi muito cansativa, mas cheguei aqui num relance! Ophelia".
"Cansativa! Dei outra espiada naquela coisa-bicho pendurada na grade do radiador de seu carro, enquanto pensava, Sim, senhor, deve mesmo ter sido cansativa. Por Deus como foi.
Homer fez outra pausa e estalou um inquieto nó do dedo.
"Só tornei a vê-la mais uma vez. Foi cerca de uma semana depois. Worth estava lá, mas nadava no lago, de um lado para outro, indo e vindo, como se estivesse serrando madeira ou assinando papéis. Era mais como se assinasse papéis, acho.
— Madame — falei — não é da minha conta, mas acho que devia parar com isso. Naquela noite em que voltou e quebrou o vidro da porta para entrar, vi uma coisa pendurada na frente de seu carro e...
— Oh, a marmota? Eu dei um fim nela — respondeu 'Phelia.
— Céus! Espero que tenha tomado cuidado!
— Usei as luvas de jardinagem de Worth — disse ela. — Não foi nada de extraordinário, Homer, apenas uma marmota que saltou contra o carro, com certa dose de veneno.
— Mas, madame — falei — onde há marmotas, há ursos. E, se em seu atalho as marmotas são como aquele bicho, o que lhe acontecerá, se surgir urso?
"Phelia olhou para mim e vi nela aquela outra mulher — aquela mulher Diana. Ela disse, "Se as coisas são diferentes ao longo dessas estradas, Homer, talvez eu também seja diferente. Veja isto."
"Ela havia prendido os cabelos dobrados atrás da cabeça, parecendo uma espécie de borboleta, atravessados por um grampo. Soltou-os. Eram os cabelos que fariam um homem perguntar-se como seriam, quando espalhados sobre um travesseiro.
Ela disse, "Estavam ficando grisalhos, Homer. Consegue ver algum fio grisalho?" E ela os espalhou com os dedos, para que o sol brilhasse neles.
— Não, madame. Não vejo nenhum — respondi.
"Ela me fitou, seus olhos eram brilho puro. Então disse, "Sua esposa é uma boa mulher, Homer Buckland, mas tem me visto no mercado e no correio e trocamos uma ou duas palavras. Eu a vi olhando para meu cabelo, com uma certa satisfação que só as mulheres conhecem. Eu sei o que ela diz, o que conta às amigas... que Ophelia Todd começou a pintar o cabelo. Pois não é verdade. Mais de uma vez, perdi o rumo, quando procurava um atalho... perdi o rumo... e perdi os cabelos grisalhos". Ela riu, não como uma universitária, mas como uma garota de ginásio. Admirei-a e ansiei por sua beleza, mas nesse momento, vi também aquela outra beleza em seu rosto... e tornei a sentir medo. Medo por ela — e medo dela.
— Madame — falei — a senhora se arisca a perder mais do que alguns fios de cabelos brancos.
— Não — disse ela. — Eu lhe digo que, lá, sou diferente... Lá, sou eu mesma, inteiramente. Quando sigo por aquela estrada em meu carrinho, deixo de ser Ophelia Todd, a esposa de Worth Todd, que nunca conseguiu levar uma gravidez a termo ou aquela mulher que tentou escrever poesia e fracassou, a mulher que fica tomando notas em reuniões de comitês, ou qualquer outra coisa, qualquer outra pessoa. Quando estou naquela estrada, estou dentro de mim mesma e me sinto como...
— Diana — falei.
"Ela me olhou, parecendo divertida e surpresa, depois riu. "Oh, como alguma deusa, imagino", disse ela, "Ela serviria mais, porque sou uma pessoa da noite adoro ficar acordada até terminar de ler um livro ou até que a televisão encerre sua programação com o Hino Nacional, e porque sou muito pálida, como a lua... Worth está sempre dizendo que preciso de um tônico, de exames de sangue ou qualquer coisa parecida. Contudo, no fundo o que toda mulher quer ser é uma espécie de deusa, creio... Os homens recolhem um eco arruinado dessa idéia e tentam colocá-las em pedestais (uma mulher, cuja urina lhe corre pela perna abaixo, se não se agachar! É engraçado, quando se pára e pensa nisso) — mas o que um homem sente, não é o que uma mulher quer. Uma mulher deseja estar à vontade, eis tudo. Ficar em pé, se quiser, ou caminhar...
"Os olhos dela se voltaram para o carrinho na entrada de carros, e se apertaram. Então, ela sorriu.
"Ou dirigir, Homer. Um homem não vê isso. Ele acha que uma deusa quer refestelar-se em uma encosta qualquer no sopé do Olimpo e comer frutas, mas nisso não há deus e nem deusa. Tudo o que uma mulher quer é o que um homem quer — uma mulher quer dirigir".
— Tudo que lhe digo, madame, é que tome cuidado por onde dirigir — falei.
"Ela riu e me deu um beijo rápido, no meio da testa. Depois disse, "Tomarei cuidado, Homer", mas isso nada significava, dizendo à esposa ou namorada que tomará cuidado, quando ele sabe que não tomará... não poderá fazer isso.
"Voltei ao meu caminhão e acenei para ela uma vez. Foi uma semana mais tarde que Worth deu parte de seu desaparecimento. Dela e daquele seu carrinho. Todd esperou sete anos para que a esposa fosse declarada legalmente morta, depois esperou mais outro por medida de prudência — concedo isso àquele otário e então casou com a segunda Madame Todd, essa que acabou de passar. E não espero que você acredite em uma vírgula de toda esta lorota.
No céu, uma daquelas enormes nuvens de fundo achatado se moveu o suficiente para revelar o fantasma da lua — meio cheia e pálida como leite. Alguma coisa em meu coração saltou àquela visão, um tanto amedrontada e um tanto enamorada.
— Pois eu acredito — falei. — Em cada apavorante palavra dela, em cada vírgula. E mesmo que não seja verdade, Homer, deveria ser.
Ele me apertou em volta do pescoço com o braço, pois é tudo que os homens podem fazer, já que o mundo só permite que beijem mulheres, depois riu e ficou em pé.
— Mesmo que não devesse ser, ela é — falou. Tirou o relógio do bolso da calça e o consultou. — Tenho que descer a estrada e checar a casa dos Scott. Quer vir comigo?
— Acho que vou ficar aqui sentado mais um pouco — falei, pensando.
Ele desceu os degraus, depois se virou e olhou para mim, com um meio sorriso.
— Acho que 'Phelia tinha razão — disse. — Ela era diferente, naquelas estradas que descobria... não havia coisa alguma que ousasse tocá-la. Você ou eu seríamos tocados, talvez, mas não ela. E acredito que esteja jovem.
Dito isto, ele subiu em seu caminhão, e partiu para checar a casa dos Scott.
Isso foi há dois anos atrás e, desde então, Homer foi para Vermont, como acho que lhe contei. Certa noite, ele veio me ver. Tinha os cabelos penteados, fizera a barba e espalhava um cheiro bom de loção. Seu rosto era límpido, os olhos estavam vivazes.
Naquela noite, ele parecia ter sessenta anos, em vez de setenta. Fiquei satisfeito por ele, invejei-o e também o odiei um pouco. A artrite tem muito de um velho pescador e, naquela noite, parecia que a artrite não tinha nenhum anzol fincado nas mãos de Homer, como fincara nas minhas.
— Estou indo — disse ele.
— Hum-hum?
— Hum-hum.
— Tudo bem. Providenciou para que lhe enviem sua correspondência?
— Não quero que me enviem nada — respondeu ele. — Minhas contas estão pagas. Não deixo nada para trás.
— Bem, dê-me seu endereço. Eu lhe escreverei uma linha de vez enquanto, cavalo velho.
Eu já podia sentir a solidão me cobrindo como uma capa... e ao olhar para ele, sabia que as coisas não eram bem como pareciam.
— Ainda não tenho nenhum — respondeu ele.
— Está bem — falei. — É para Vermont que você vai, Homer?
— Hum... — disse ele. — Será, para quem quiser saber.
Quase me calei, mas acabei fazendo a pergunta:
— Como ela se parece agora, Homer?
— Como Diana — respondeu. — Só que é mais meiga.
— Eu o invejo, Homer — falei, e era verdade.
Fiquei parado à porta. Era crepúsculo, naquela parte intensa do verão em que os campos se enchem de perfume e da erva Renda da Rainha Anne. Uma lua cheia traçava um risco prateado através do lago. Ele cruzou meu alpendre e desceu os degraus. Havia um carro parado no mal definido acostamento da estrada, o motor roncando indolentemente, mas com toda potência, da maneira como fazem os veículos antigos que ainda correm com o conjunto de cavidades cilíndricas em linha reta, e os malditos torpedos. Agora que penso nisso, aquele carro parecia um torpedo. Estava um tanto castigado, mas como se pudesse atingir o máximo sem grande esforço. Homer parou ao pé de minha escada e ergueu algo — era sua lata de gasolina, a grande, com capacidade para dez galões. Seguiu por minha aléia até o lado do carro em que fica o passageiro. Ela se inclinou e abriu a porta. A luz interna acendeu-se e, por um breve relance eu a vi, os longos cabelos ruivos em torno do rosto, a testa brilhando como uma lâmpada. Brilhando como a lira. Ele entrou e ela deu partida. Fiquei em meu alpendre e espiei as luzes traseiras de seu carrinho, piscando vermelho no escuro... ficando cada vez menores e menores. Eram como brasas, depois pareceram pirilampos e sumiram.
Vermont, é o que digo ao pessoal da cidade, e todos acreditam, porque fica tão longe como a maioria consegue ver, dentro de suas cabeças. Às vezes, eu mesmo quase acredito nisso, principalmente quando estou cansado, esfalfado. Contudo, em outras penso neles — fiz isso todo este outubro, me parece, porque é principalmente em outubro que os homens pensam em lugares distantes e nas estradas que podem leva-los a tais lugares. Fico sentado no banco em frente do Mercado de Bell e penso em Homer Buckland, na bela jovem que se inclinou para abrir-lhe a porta, quando ele desceu aquela aléia levando na mão direita a lata vermelha cheia de gasolina — ela parecia uma mocinha com não mais de dezesseis anos, uma estudante com sua permissão de saída, e sua beleza era espetacular. Contudo, não creio mais que sua beleza mate o homem para quem ela se voltar; por um momento,.seus olhos pousaram em mim e eu não morri, embora parte de mim tenha morrido a seus pés.
O Olimpo deve ser uma maravilha para os olhos e o coração, existindo aqueles que anseiam por ele, assim como os que encontram um caminho nítido para atingi-lo, talvez.
No entanto, conheço Castle Rock como a palma da mão e jamais deixaria este lugar, por atalho algum onde existam estradas; em outubro, o céu acima do lago não é uma maravilha, mas eu o acho extraordinariamente belo, com aquelas enormes nuvens brancas que se movem tão devagar; sento-me aqui no banco, penso em 'Phelia Todd e Homer Buckland, mas sem necessariamente querer estar onde eles se acham... porém ainda gostaria de ser um fumante.
O CAMINHÃO DO TIO OTTO
Sinto um alívio enorme escrevendo isto. Não tenho dormido bem, desde que encontrei meu tio Otto morto, e houve ocasiões em que cheguei a perguntar-me se não ficara louco — ou se ficaria. De certo modo, tudo seria mais misericordioso se eu não estivesse com o objeto real aqui em meu estúdio, onde posso olhar para ele, pegá-lo e avaliar seu peso, se me der vontade. Contudo, não quero fazer isso; não quero tocar essa coisa. Só que, às vezes, eu quero.
Se não a houvesse trazido da casinha de um só cômodo de meu tio, quando fugi de lá, começaria a convencer-me de que tudo não passara de alucinação — uma ilusão de um cérebro sobrecarregado de trabalho e excessivamente estimulado. Contudo, ela está aqui. Tem peso. Pode ser apanhada na mão.
Tudo aconteceu mesmo, compreendam.
A maioria dos que lerem este registro não acreditará, a menos que algo semelhante tenha acontecido a essas pessoas. Descobri que a questão da crença alheia e o meu alívio é algo mutuamente exclusivo, de maneira que ficarei satisfeito em contar a história, mesmo assim. Acreditem no que quiserem acreditar.
Qualquer história de horror deve ter uma origem ou um segredo. A minha tem as duas coisas. Deixem-me começar pela origem — contando como é que meu tio Otto, que era rico pelos padrões do Condado de Castle, passou seus últimos vinte anos de vida em uma casa de um só cômodo, sem água encanada, junto a uma estrada secundária, em uma cidadezinha.
Otto nasceu em 1905, sendo o mais velho das cinco crianças Schenck. Meu pai, nascido em 1920, era o mais novo. Eu fui o filho caçula de meu pai e nasci em 1955, de maneira que o tio Otto sempre me pareceu muito velho.
À semelhança de muitos alemães industriais, meus avós vieram para a América com algum dinheiro. Meu avô instalou-se em Derry, por causa da indústria madeireira, um ramo sobre o qual ele entendia um pouco. Conseguiu ter êxito e seus filhos nasceram em situação confortável.
Meu avô morreu em 1925. Tio Otto, então com vinte anos, foi o único filho a herdar tudo. Mudou-se para Castle Rock e começou a especular na atividade imobiliária. Nos cinco anos seguintes conseguiu juntar um bom dinheiro, lidando com madeiras e terras. Comprou uma grande casa em Castle Hill, tinha criados e desfrutou de sua condição como um rapaz relativamente simpático (digo "relativamente", porque ele usava óculos) e excelente partido para as jovens casadouras. Ninguém o achava esquisito. Isso aconteceu mais tarde.
Ele foi atingido pelo estouro de 29 — não tanto como alguns, mas foi atingido. Permaneceu em sua grande casa de Castle Hill até 1933 e então a vendeu, porque uma grande área madeireira estava à venda por preço ínfimo e ele queria adquiri-la desesperadamente. A área de terra pertencia à Companhia de Papéis Nova Inglaterra.
A Papéis Nova Inglaterra existe até hoje e qualquer um pode adquirir suas ações, desde que o deseje. Em 1933, no entanto, a firma oferecia enormes porções de terra a preços de liquidação, em um último e denotado esforço para manter-se em funcionamento.
Quanta terra havia na área com que meu tio sonhava? A fabulosa escritura original foi extraviada e os relatos diferem... mas em todos eles, eram mais de quatro mil acres. A maioria situava-se em Castle Rock, porém espalhava-se até Waterford e Harlow também. Quando a notícia correu, a Papéis Nova Inglaterra pedia cerca de dois dólares e cinqüenta por acre... se o comprador adquirisse toda a área.
O preço total chegava a dez mil dólares. Tio Otto não dispunha de toda a quantia, de maneira que arranjou um sócio — um ianque chamado George McCutcheon. Se residirem na Nova Inglaterra, vocês certamente conhecerão os nomes Schenk e McCutcheon. A firma foi comprada há bastante tempo, mas ainda existem lojas de ferragens Schenk e McCutcheon em quarenta cidades da Nova Inglaterra, bem como serrarias Schenk e McCutcheon de Central Falls a Derry.
McCutcheon era um sujeito grandalhão, de povoada barba negra. Como meu tio Otto, também usava óculos. E, também como o tio Otto, herdara uma soma em dinheiro. Devia ser uma boa quantia, porque ele e tio Otto conseguiram comprar a tal área juntos, sem maiores problemas. Ambos possuíam natureza de piratas e deram-se muito bem nos negócios. A sociedade durou vinte e dois anos — de fato, até o ano de meu nascimento — e prosperidade era tudo o que eles conheciam.
A história começa com a compra daqueles quatro mil acres, que os dois passaram a explorar no caminhão de McCutcheon, cruzando as estradas entre as florestas e as trilhas dos madeireiros, rodando laboriosamente em primeira quase todo o tempo, sacolejando em vias acidentadas e atolando em lamaçais. Eles se revezavam ao volante, eram dois jovens que se tinham tornado barões da terra na Nova Inglaterra, quando das escuras profundezas da grande Depressão.
Ignoro onde McCutcheon conseguiu aquele caminhão. Tratava-se de um Cresswell, se é que isso importa — uma marca que há muito deixou de existir. Tinha uma boléia enorme, pintada de vermelho-vivo, largos estribos e motor-de-arranque elétrico, mas se este falhasse, apelava-se para a manícula — embora ela pudesse girar fortemente para trás e quebrar o ombro de quem a manejasse, se o indivíduo não tomasse cuidado. A carroceria media seis metros de comprimento, com as laterais fechadas, porém do que mais me lembro naquele caminhão, era de sua parte dianteira. Como a boléia era pintada em vermelho-sangue. Para alcançar-se o motor, era preciso que se levantasse dois painéis de aço, um a cada lado dele. O radiador chegava à altura do tórax de um homem. Era uma coisa feia, mostruosa.
O caminhão de McCutcheon se quebrava e era consertado, tornava a quebrar-se e era novamente consertado. Quando finalmente entregou os pontos, foi de maneira espetacular. Mais ou menos como a sege de um só cavalo, no poema de Holmes.
McCutcheon e tio Otto subiam a estrada Black Henry, certo dia de 1953 e, segundo admitiu meu tio, ambos estavam "bêbados de cair". Tio Otto engatou uma primeira, a fim de subir a colina Trinity. Tudo bem mas, embriagado como estava, ele nem pensou em mudar a marcha, quando iniciou a descida no outro lado. O velho e cansado motor do Cresswell ficou superaquecido. Nem tio Otto ou McCutcheon viram o ponteiro aproximar-se da marcação vermelha com a letra H, no lado direito do mostrador. No final da descida da colina, houve uma explosão que estourou os lados dobráveis do compartimento do motor, como duas asas vermelhas de dragão. A tampa do radiador disparou para o céu de verão. O vapor esguichou em linha reta para o alto, como o gêiser Old Faithful. O óleo espirrou, enchendo o pára-brisa. Tio Otto pisou no pedal do freio, mas no último ano o Cresswell pegara o mau hábito de vazar óleo do freio, de maneira que o pedal foi até o fundo. Não podendo enxergar para onde dirigia, tio Otto saltou da estrada, caindo primeiro em uma vala, depois saindo dela. Se o Cresswell houvesse afogado, tudo ainda terminaria bem, mas o motor continuou trabalhando. Primeiro explodiu um pistão e em seguida mais dois, como fogos de artifícios no Quatro de Julho. Um deles, segundo tio Otto, veio diretamente contra sua porta, que ficara escancarada. O buraco era tão grande, que dava para passar um punho por ele. Finalmente, viram-se todos repousando em um campo repleto das virgas-áureas de agosto. Dali, eles poderiam ter uma bela visão das White Mountains, se o pára-brisa não estivesse coberto de óleo Diamond Gem.
Aquele foi o último rodeio para o Cresswell de McCutcheon; ele nunca mais se moveu daquele campo. Não que houvesse qualquer irritação do dono da terra, pois ela pertencia aos dois sócios, é claro. Consideravelmente lúcidos pela experiência, tio Otto e McChutcheon foram examinar o estrago. Nenhum deles era mecânico, mas nem precisariam ser, para constatar que o ferimento era mortal. Tio Otto ficou constrangido — pelo menos, foi o que contou a meu pai — e ofereceu-se para pagar o caminhão. George McCutcheon respondeu que não fosse tolo. Aliás, MeCutcheon havia ficado em uma espécie de êxtase. Após dar uma olhada ao campo e ver o panorama das montanhas, decidiu que aquele era o lugar onde construiria sua casa de aposentado. Confessou isso a tio Otto, nos tons geralmente reservados para conversações religiosas. Retornaram à estrada e conseguiram carona para Castle Rock no caminhão da Padaria Cushman, que ia passando por ali. McCutcheon contou a meu pai que ali trabalhara a mão de Deus, ele estivera justamente procurando o lugar ideal, quando o lugar estava bem ali, o tempo todo, naquele campo pelo qual passavam três e quatro vezes por semana, sem nunca lhe deitarem os olhos. E a mão de Deus ignorava que ele morreria naquele campo dois anos mais tarde, esmagado pela parte dianteira de seu próprio caminhão — o caminhão que se tornou propriedade de tio Otto, quando seu sócio morreu.
McCutcheon providenciou para que Billy Dodd levasse seu carro-socorro até o Cresswell e o girasse, de modo a deixá-lo com a frente para a estrada. Disse que assim poderia olhar para ele, sempre que passasse por ali. Depois, quando Dodd voltasse a guinchar o caminhão e o rebocasse dali para sempre, naquele lugar é que os operários de construção lhe cavariam uma adega. McCutcheon tinha um toque de sentimentalismo, porém não era homem de permitir que os sentimentos o impedissem de ganhar um dólar. Quando um madeireiro chamado Baker apareceu lá um ano mais tarde, oferecendo-se para comprar as rodas do CresswelI, com pneus e tudo, porque eram do tamanho exato para seu veículo, MCCutcheon aceitou seus vinte dólares em um piscar de olhos. E, lembrem-se, nessa época, ele já era um homem que valia um milhão de dólares. McCutcheon também disse a Baker que calçasse o caminhão, de maneira a mantê-lo em posição elevada. Alegou que não queria passar por ali e vê-lo no campo, quase coberto pelo feno, capim rabo-de-galo e virga-áurea, como se fosse uma carcaça. Baker fez como ele queria. Um ano mais tarde, o Cresswell rolou para fora de seus blocos de sustentação e esmagou McCutcheon, matando-o. Os antigos contavam a história com alívio, mas sempre a encerravam dizendo esperarem que o velho George McCutcheon tivesse aproveitado os vinte dólares conseguidos por aquelas rodas.
Fui criado em Castle Rock. Quando nasci, meu pai já tinha quase dez anos de trabalho para Schenck e McCutcheon, de modo que o caminhão de propriedade do tio Otto, juntamente com tudo o mais que McCutcheon possuía, se tornou um marco em minha vida. Minha mãe costumava fazer compras na casa Warren's, em Bridgton, sendo a estrada Black Henry a única via de acesso até lá. Assim, sempre que passávamos pela estrada, lá estava o caminhão, pousado naquele campo, tendo as White Mountains como fundo. Não se encontrava mais elevado sobre os blocos — tio Otto dizia que um acidente já bastava - mas só a idéia do que ocorrera, era suficiente para provocar arrepios em um garoto de calças curtas.
O Crosswell estava lá no verão; no outono, com os carvalhos e olmos brilhando como tochas, em três bordas do campo; no inverno, às vezes atolado em montes de neve, até e sobre seus faróis semelhantes a olhos de besouro, como um mastodonte a debater-se em branca areia movediça; e na primavera, quando o campo era um lodaçal da lama de março, fazendo a gente perguntar-se como é que o caminhão não afundava na terra. Se não fosse pelo espinhaço subterrâneo de boa rocha do Maine, era bem possível que não acontecesse outra coisa. Através das estações e dos anos, ele estava lá.
Certa vez, até mesmo estive nele. Meu pai estacionou à beira da estrada, no dia em que estávamos a caminho da Feira de Fryeburg, tomou-me pela mão e me levou ao campo.
Acho que foi em 1960 ou 61. Aquele caminhão me amedrontava. Eu ouvira a história de como saltara dos blocos e esmagara o sócio de meu tio.
Ouvira tais relatos na barbearia, quieto como um ratinho, sentado atrás da revista Life que não podia ler, enquanto os homens falavam sobre como McCutcheon havia sido esmagado e como esperavam que o velho George tivesse aproveitado bem os vinte dólares pagos por aquelas rodas. Um deles — talvez fosse Billy Dodd, pai do louco Frank — dizia que McCutcheon ficara parecendo "uma abóbora sobre a qual passara um trator". Isso atormentou meus pensamentos durantes meses... mas meu pai, naturalmente, não sabia de nada.
Ele apenas achou que eu gostaria de sentar-me na boléia daquele velho caminhão; vira a maneira como eu espiava para a carcaça, a cada vez que passávamos ali, e imagino que tomou meu medo por admiração.
Lembro-me das virgas-áureas, com seu amarelo-vivo apagado pela friagem de outubro. Recordo o gosto tristonho do ar, um pouco amargo, um pouco pungente, assim como a aparência prateada da relva morta. Também recordo o uissst-uissst de nossas passadas. Contudo, o que mais recordo é do caminhão avolumando-se, ficando cada vez maior — o rosnado dentado de seu radiador, o vermelho sangrento de sua pintura, a aparência turva de seu pára-brisa. Lembro-me de que o medo me invadiu em uma onda mais fria e cinzenta do que o gosto do ar, quando meu pai me ergueu pelas axilas e colocou-me dentro da boléia, dizendo, " Dirija-o até Portland, Quantin... dirija-o!" Lembro-me do ar passando em meu rosto, enquanto eu subia mais e mais, depois de seu gosto limpo sendo substituído pelos cheiros de antigo óleo Diamond Gem, de couro rachado, de excrementos de ratos e... juro... de sangue. Lembro-me de que tentei não chorar, enquanto meu pai ficava sorrindo para mim, certo de que me proporcionava um prazer e tanto, um grande excitamento (e proporcionava mesmo, mas não da forma como ele imaginava). Naquele momento, tive absoluta certeza de que ele iria embora ou, pelo menos, viraria as costas, e o caminhão me comeria — comeria vivo. E o que depois cuspisse, estaria mastigado, esmigalhado e... como que explodido. Como uma abóbora, amassada por um trator.
Comecei a chorar, e meu pai, que era o melhor dos homens, tirou-me da boléia, consolou-me e me levou de volta ao carro.
Ele me levou sentado em seus ombros. Olhei para o caminhão que ia recuando, parado lá no campo, com seu enorme radiador assomando, o escuro buraco redondo onde se presumia fora aplicado o guincho do carro-socorro, parecendo uma órbita horrendamente deslocada. Eu quis dizer a ele que sentira cheiro de sangue, por isso havia chorado. Só que não sabia como dizer-lhe. Acho que, de qualquer modo, ele não teria acreditado.
Como um menino de cinco anos, que ainda acreditava em Papai Noel, na Fada do Dente e no bicho-papão, eu também acreditava que vinham do caminhão aquelas sensações de coisas ruins e amedrontadoras, quando meu pai me colocara naquela boléia. Levei vinte e dois anos para decidir que não havia sido o Cresswell que assassinara George McCutcheon; meu tio Otto é que fizera isso.
O Cresswell era um marco em minha vida, mas também na dos moradores de toda a redondeza. Quando se explicava a alguém como ir de Bridgton a Castle Rock, dizia-se que ele saberia estar na direção correta, se visse um enorme e velho caminhão vermelho à esquerda da estrada, em um campo de feno, mais ou menos cinco quilômetros após ter deixado a estrada 11. Era comum vermos turistas estacionados na curva de terra macia (às vezes, ficavam atolados lá, o que sempre valia boas risadas), tirando fotos das White Mountains, com o caminhão do tio Otto em primeiro plano, para a devida perspectiva - por muito tempo meu pai chamou o Cresswell de "Memorial Trinity Hill do Caminhão para Turistas", mas acabou parando. A esta altura, a obsessão de tio Otto pelo caminhão já ficara forte demais para ser divertida.
Já falei demais sobre as origens. Agora, vamos ao segredo.
O fato de que ele matou McCutcheon, é um a coisa da qual estou absolutamente convencido. "Amassado como uma abóbora", dizem os entendidos da barbearia. Um deles acrescentou:
— Aposto como ele estava agachado à frente daquele caminhão, rezando, como aqueles árabes sebosos rezam para Alá. Não poso imaginá-lo de outro jeito. Estavam giras, compreendam, todos os dois. Basta ver a maneira como Otto Schenk terminou, se não acreditam em mim. Bem no outro lado da estrada, naquela casinha que ele pensava que a cidade ia aproveitar como escola — e tão biruta como um rato numa casa de doidos.
Isto era colhido com assentimentos e olhares entendidos, porque então, eles pensavam que o tio Otto era esquisito — oh, claro! — porém entre os sabichões da barbearia não havia um só que considerasse aquela imagem — McChutcheon ajoelhado em frente do caminhão "como aqueles árabes sebosos rezando para Alá" — não apenas excêntrica, mas também suspeita.
Em cidades pequenas, os boatos sempre fervem; pessoas são condenadas como ladras, adúlteras, caçadoras ou pescadoras furtivas e trapaceiras, à mais leve evidência e às piores deduções. Creio que, muitas vezes, o falatório se origina acima de tudo do tédio. Em minha opinião, o que impede que isso seja realmente cruel — que é como a maioria dos romancistas pintou as cidadezinhas, de Nathaniel Hawthome e Grace Metalious — é o fato de serem curiosamente ingênuos (em sua maior parte) os boatos transmitidos pelas linhas telefônicas partilhadas, na mercearia ou barbearia. É como se tais pessoas, esperando a maldade e a futilidade, passam a inventá-las quando elas não existem. Contudo, o mal consciente e real pode estar além de sua concepção, mesmo quando flutua bem diante de seus olhos, como um tapete mágico de um daqueles contos de fadas dos árabes sebosos.
Como sei que foi ele? perguntam vocês. Só porque estava em companhia de McCutcheon naquele dia? Não. É por causa do caminhão. Do Cresswell. Quando a obsessão começou a dominar tio Otto, ele foi morar naquela casinhola, bem no outro lado da estrada... embora nos últimos anos de sua vida tivesse um medo mortal de que o caminhão fosse até lá.
Penso que tio Otto atraiu McCutcheon ao campo onde estava o caminhão, elevado em cima de blocos, com a desculpa de ouvi-lo falar sobre os planos para sua casa. MeCutcheon estava sempre disposto a falar na tal casa e em seu próximo afastamento dos negócios. Os sócios tinham recebido uma boa oferta, de uma companhia muito maior — não mencionarei seu nome, mas se o fizesse, todos saberiam qual é — e McCutcheon queria aceitá-la. Tio Otto era contrário à idéia. Houvera um quieto desentendimento desenvolvendo-se entre os dois, por causa daquela oferta, desde a primavera. Acho que esse desentendimento foi o motivo pelo qual tio Otto resolveu livrar-se do sócio.
Creio que meu tio podia haver-se preparado para o momento, fazendo duas coisas: primeira, minando os blocos que sustinham o caminhão, e segunda, deixando algo no chão, talvez um pouco enterrado nele, mas diretamente em frente do caminhão, onde McCutcheon pudesse vê-lo.
O que colocaria lá? Não sei. Algo brilhante. Um diamante? Nada mais que um pedaço de vidro quebrado? Não vem ao caso. O objeto reflete o sol e brilha. Talvez McCutcheon o veja. Se não o vir, fiquem certos de que tio Otto lhe mostrará. O que é aquilo? pergunta ele, apontando. Não sei, responde McCutcheon, apressando-se a verificar bem de perto.
McCutcheon fica de joelhos em frente do Cr esswell, exatamente como um daqueles árabes sebosos rezando para Alá, tentando arrancar o objeto do chão, enquanto meu tio dá a volta casualmente, até atrás do caminhão. Um bom empurrão, e lá se vai ele abaixo, esmagando McCutcheon no ato. Amassando-o como uma abóbora.
Desconfio que nele devia haver muito de pirata, para morrer facilmente. Em minha imaginação, eu o vejo preso debaixo do focinho inclinado do caminhão, o sangue escorrendo de seu nariz, sua boca e seus ouvidos, o rosto branco como papel, os olhos escuros, suplicando a ajuda de meu tio, pedindo-lhe que consiga um socorro rápido. Suplicando... depois implorando... e finalmente xingando meu tio, ameaçando matá-lo, acabar com ele... e meu tio parado, espiando, com as mãos nos bolsos, até tudo terminar.
Não se passou muito tempo depois da morte de McCutcheon, para que meu tio começasse a fazer coisas que, a princípio, eram descritas pelos sabichões da barbearia como estranhas... depois como esquisitas... e por fim, como "infernalmente singulares". As coisas que finalmente o levaram à condenação, no curioso palavreado da barbearia, sendo julgado "tão biruta como um rato em uma casa de doidos", chegaram na plenitude do tempo — mas na mente de todos parecia haver pouca dúvida de que suas peculiaridades começaram mais ou menos na época em que George McCutcheon morreu.
Em 1965, tio Otto fez construir uma casinha junto à estrada, no lado fronteiro ao caminhão. Houve muito falatório sobre o que Otto Schenck pretendia fazer na estrada Black Henry, junto à colina Trinity. A surpresa foi total, quando tio Otto chegou ao acabamento da pequena construção, fazendo Chuckie Barger pintá-la com uma brilhante mão de tinta vermelha, e então anunciou que era um presente à cidade — uma nova e bela escola, segundo disse, pedindo apenas que lhe dessem o nome de seu falecido sócio.
Os membros do conselho municipal de Castle Rock ficaram estupefatos. Como todo mundo nos arredores. Em Rock, a maioria freqüentara aquelas escolas de um só aposento (ou achava que tinha freqüentado, o que vem a dar quase no mesmo). Contudo, em 1965, todas as escolas de apenas uma sala haviam sido abolidas em Castle Rock. A última, a Castle Ridge School, fora fechada um ano antes. Hoje é uma casa de pizzas, a Steve's Pizzaville, ao lado da estrada 117. No momento, a cidade contava com uma escola primária, erigida em vidro e cimento no lado mais distante da área comunitária, bem como um moderno e excelente ginásio na Rua Carbine. Em decorrência de sua excêntrica oferta, tio Otto conseguira preencher, em uma só penada, todos os quesitos que iam de "estranho" a "infernalmente singular".
Os conselheiros municipais enviaram-lhe uma carta (nenhum deles parecendo com muita coragem de procurá-lo pessoalmente) agradecendo a gentileza e esperando que ele se lembrasse da cidade no futuro, mas declinando da escolinha, sob a alegação de que todas as necessidades educacionais das crianças da cidade já haviam sido providenciadas. Tio Otto ficou danado da vida. Lembrar-se da cidade no futuro? esbravejou para meu pai. Claro que se lembraria, mas não da maneira como eles queriam. Ele não havia nascido ontem. Sabia perfeitamente como eram os homens, a humanidade. E se queriam disputar com ele um concurso de mijo à distância, afirmou, iam ver que podia mijar como uma doninha-fedorenta que tivesse acabado de embocar um barrilete de cerveja.
— E agora? — perguntou-lhe meu pai.
Estavam sentados à mesa da cozinha, em nossa casa. Minha mãe fora costurar, no andar de cima. Ela dizia que não gostava do tio Otto. Dizia que ele cheirava como um homem que só tomasse banho uma vez por mês, precisando ou não — "e logo ele, um homem rico", sempre acrescentava, com uma fungadela. Acho que o cheiro dele realmente a irritava, mas também acho que minha mãe o temia. Por volta de 1965, tio Otto começara a parecer singularmente peculiar, também agindo da mesma forma. Andava vestido com calças verdes de operário, seguras por suspensórios, uma camisa de baixo térmica e enormes sapatos amarelos de trabalho. Seus olhos haviam começado a girar em direções estranhas, enquanto ele falava.
— Hum?
— O que vai fazer com a casa agora?
— Vou morar na filha da mãe — bufou tio Otto, e foi o que fez.
Não há muito a acrescentar à história de seus últimos anos. Ele sofria daquela triste espécie de loucura que costumamos ver relatada nos tablóides de jornais baratos. Milionário Morre de Subnutrição em Casa de Cômodos. Registros Bancários Revelam, a Mendiga era Rica. Magnata Banqueiro Morre Esquecido e Abandonado.
Ele se mudou para a casinha vermelha — em anos posteriores, sua pintura desbotou para um rosado fosco — logo na semana seguinte. Nada que meu pai dissesse conseguiu dissuadi-lo. Um ano mais tarde, ele vendeu o negócio que, segundo creio, procurara conservar através do assassinato. Suas excentricidades multiplicaram-se, mas o senso de negócios não o abandonou e ele conseguiu um vistoso lucro — em realidade, espantoso seria uma palavra mais adequada.
Assim, lá estava meu tio Otto, valendo talvez uns sete milhões de dólares, morando naquela casinha junto à estrada Black Henry. Sua moradia na cidade foi abandonada e trancada. Então, ele progredira de "infernalmente peculiar" para "biruta como um rato doido". A progressão seguinte é expressa em termos mais crus, menos coloridos, porém mais ominosos: "talvez perigoso". Tais palavras são, freqüentemente, seguidas pela convicção.
À sua maneira, tio Otto se tornou uma peculiaridade bem semelhante ao caminhão no outro fado da estrada, embora eu duvide que algum turista se interessasse em tirar o seu retrato. Ele deixou a barba crescer, uma barba que se revelou mais amarelada do que branca, como que infectada pela nicotina de seus cigarros. Também engordou muito. Sua papada pendia em dobras de carne, marcadas pela sujeira. Os moradores do lugar costumavam vê-lo parado à soleira de sua singular casinhola, apenas parado e imóvel, espiando a estrada e além dela.
Espiando o caminhão — o seu caminhão.
Quando tio Otto parou de ir à cidade, meu pai procurou certificar-se de que ele não morreria de fome. Levava-lhe mantimentos todas as semanas, pagando-os de seu próprio bolso, porque tio Otto nunca lhe devolvia o dinheiro — nunca pensava nisso, creio eu. Papai faleceu dois anos antes do tio Otto, cuja fortuna terminou indo para o Departamento Florestal da Universidade do Maine. Soube que eles ficaram encantados. Considerando-se a quantia, devem ter ficado mesmo.
Em 1972, depois que consegui minha licença de motorista, eu costumava levar-lhe os mantimentos semanais. A princípio, ele me encarava com franca suspeita, mas após um certo tempo, começou a descongelar. Foi três anos mais tarde, em 1975, que me contou, pela primeira vez, que o caminhão rastejava para a casa.
Na época, eu cursava a Universidade do Maine mas, sendo verão, estava em casa e retomei o velho hábito de levar-lhe os mantimentos semanais. Tio Otto ficava sentado à sua mesa, fumando, vendo-me separar os alimentos enlatados e me ouvindo tagarelar. Achei que ele poderia ter esquecido quem eu era. Ele às vezes esquecia... ou fingia esquecer. Em certa ocasião, deixou-me com o sangue gelado nas veias quando, da janela, perguntou "É você, George?" ao ver-me subir até a casa.
Naquele particular dia de julho, em 1975, tio Otto interrompeu uma tagarelice trivial minha para perguntar, rude e subitamente:
— O que acha daquele caminhão lá fora, Quentin?
Sua aspereza arrancou-me uma resposta sincera:
— Quando tinha cinco anos, molhei as calças na boléia dele. Penso que tornaria a molhá-las, se voltasse lá agora.
Tio Otto riu, alto e demoradamente. Olhei para ele, surpreso, já que não me lembrava de tê-lo ouvido rir antes. Sua risada terminou em prolongado acesso de tosse, deixando-o com as bochechas vivamente coradas. Então, virou-se para mim, com olhos cintilantes.
— Está ficando mais próximo, Quent — disse,
— O que, tio Otto? — perguntei.
Pensei que, mais uma vez, ele saltava enigmaticamente de um assunto para outro — talvez quisesse dizer que o Natal estava mais próximo, talvez o Milênio ou a volta de Cristo Rei.
— Aquela peste de caminhão — disse ele, fitando-me de modo enviezado e confidencial, que não gostei muito. — Fica mais próximo a cada ano.
— É mesmo? — perguntei cautelosamente, pensando que ali havia uma nova e bastante desagradável idéia.
Olhei para fora e vi o Cresswell no outro la do da estrada, cercado de feno por todos os lados, com as White Mountains ao fundo... e por um alucinado minuto, ele realmente pareceu mais próximo. Depois, quando pisquei, a ilusão se desfez. O caminhão continuava onde sempre estivera, claro está.
— Oh, sim — disse tio Otto. — Fica um pouco mais próximo a cada ano que passa.
— Ora, talvez esteja precisando de óculos, tio Otto. Eu não vejo diferença alguma.
— Claro que não vê! — bufou ele. — Também não vê o ponteiro das horas se movendo em seu relógio de pulso, certo? Aquela peste de coisa se move devagar demais para que se veja... a menos que seja vigiada o tempo todo. Como vigio esse caminhão.
Ele piscou para mim e eu estremeci.
— Por que ele se moveria? — perguntei.
— Ele quer a mim, eis o motivo — respondeu tio Otto. — Não pensa em outra coisa, o tempo todo. Um dia, vai irromper aqui dentro, e então será o fim. Ele acabará comigo, como fez com Mac, e será o fim.
Aquilo me deixou bastante assustado. Acho que seu tom perfeitamente lúcido é que mais me impressinou. E a maneira como os jovens costumam reagir ao medo, é bancando os espertos ou ficando petulantes.
— Se isso o preocupa, devia mudar-se para sua casa na cidade, tio Otto — falei.
Quem me ouvisse falando com tal despreocupação, jamais saberia que eu tinha as costas inteiramente arrepiadas. Tio Otto olhou para mim... e depois para o caminhão, no outro lado da estrada.
— Não posso, Quentin — disse ele. — Às vezes, um homem tem que ficar em um lugar, esperando o que virá.
— E o que é que virá, tio Otto? — perguntei, embora imaginando que ele se referisse ao caminhão.
— O destino — disse ele.
Tio Otto tornou a piscar... mas parecia amedrontado.
Meu pai caiu de cama em 1979, com a doença renal que parecia estar melhorando, apenas poucos dias antes de finalmente matá-lo. No outono daquele ano, em várias visitas ao hospital, eu e meu pai conversamos sobre tio Otto. Meu pai tinha algumas suspeitas sobre o que podia ter de fato acontecido em 1955 — suspeitas leves, que se tornaram o fundamento para outras mais sérias. Meu pai não imaginava o quanto a obsessão de tio Otto com o caminhão se tornara grave ou profunda. Eu, no entanto, percebia. Ele ficava quase o dia inteiro parado à porta de sua casa, espiando o caminhão. Espiando, como um homem observando o relógio de pulso, para ver o ponteiro das horas mover-se.
Por volta de 1981, tio Otto perdera o pouco que lhe restava de lucidez. Um homem mais pobre já teria sido internado anos antes, porém milhões no banco podem perdoar bastante loucura em uma cidadezinha — em especial se há pessoas suficientes pensando que no testamento do sujeito louco pode existir algum legado para a municipalidade. Ainda assim, em 1981 já havia gente começando a falar seriamente na internação de tio Otto, para o próprio bem dele. Aquela frase "talvez perigoso", manifesta e implacável, começara a suplantar "biruta como um rato doido". Ele agora passara a sair de casa e urinar à beirada estrada, em vez de sair pelos fundos e ir até a floresta, onde ficava sua privada. Por vezes, enquanto se aliviava, sacudia o punho fechado para o Cresswell e várias pessoas, passando de carro, pensavam que tio Otto sacudia o punho para elas.
Uma coisa era o caminhão com as cênicas White Mountains ao fundo; outra totalmente diversa era o tio Otto urinando à beira da estrada, com os suspensórios pendurados à altura dos joelhos. Aquilo não era atração turística.
Por essa época, eu usava com mais freqüência um terno completo, do que as blue jeans que me tinham acompanhado durante a faculdade, quando levava para meu tio seus mantimentos semanais — mas continuava a levar seus alimentos. Também procurei convencê-lo de que precisava parar de fazer suas necessidades à beira da estrada, pelo menos durante o verão, quando podia ser visto por gente do Michigan, Missouri ou Flórida, que acontecesse passar por ali.
Minhas palavras foram em vão. Ele não se dava ao luxo de preocupar-se com insignificâncias, quando tinha o caminhão para incomodá-lo. Aquela obsessão com o Creeswell se tornara mania. Ele agora clamava que o caminhão passara para o seu lado da estrada — para ser mais exato, que estava bem no seu quintal.
— Acordei esta noite, lá para as três horas, e aí estava ele, bem junto da janela, Quentin — queixou-se tio Otto. — Eu o vi, com o luar brilhando no pára-brisa, a menos de dois metros de onde eu estava deitado, e meu coração quase parou. Ele quase parou, Quentin.
Levei-o ao lado de fora e apontei para o Cresswell, que continuava onde sempre estivera, do outro lado da estrada, no campo onde McCutcheon planejara construir sua casa. Não adiantou.
— Isso é o que você vê, rapaz — disse ele, com infinita raiva na voz, um cigarro tremendo em uma das mãos, os olhos girando nas órbitas. — É só o que você vê!
— Tio Otto — falei, tentando ser espirituoso — a gente vê aquilo que é persuadido a ver.
Foi como se ele não me tivesse ouvido.
— O maldito quase me pegou — sussurrou.
Senti um arrepio. Ele não parecia louco. Infeliz, sim, e aterrorizado, sem dúvida... mas não louco. Por um momento, recordei meu pai, levantando-me no ar e colocando-me na boléia daquele caminhão. Recordei o cheiro de óleo, de couro... e de sangue.
— Ele quase me pegou — repetiu tio Otto.
E, três semanas mais tarde, assim foi.
Eu é que o encontrei. Era noite de quarta-feira, e saí com duas sacolas de mantimentos no banco traseiro do carro, como fazia quase sempre nas noites de quarta-feira. Estava quente, o ambiente era pesado. De vez em quando, um trovão rugia à distância. Lembro- me de que estava nervoso, enquanto subia a estrada Black Henry em meu Pontiac. Era como se estivesse certo de que algo ia acontecer, embora procurasse convencer-me de que tudo era apenas produto da baixa pressão barométrica.
Dobrei a última curva e, no momento em que a casinha de meu tio surgiu à vista, tive a mais estranha alucinação — por um instante, pensei que o maldito caminhão estava realmente à sua porta, grande e volumoso, com sua pintura vermelha e os lados apodrecidos da carroceria. Pensei em frear , mas antes que meu pé baixasse o pedal, pisquei e a ilusão se desfez. No entanto, eu sabia que tio Otto estava morto. Sem fanfarras e holofotes; era apenas o mero conhecimento, da mesma forma como conhecemos a disposição dos móveis, em um aposento familiar.
Parei apressadamente à sua porta e saí do carro, começando a caminhar para a casa sem me preocupar em levar os mantimentos.
A porta estava aberta — ele nunca a trancava. Perguntei-lhe o motivo disso certa vez e, pacientemente, da maneira como se explicaria algo manifestamente óbvio a um simplório, ele me disse que trancar a porta não manteria o Cresswell do lado de fora.
Ele estava deitado na cama, que ficava à esquerda do único aposento — a área da cozinha ocupando a direita. Jazia lá, com suas calças verdes e a camisa de baixo térmica, os olhos abertos e vidrados. Acredito que teria morrido menos de duas horas antes. Não havia moscas e nem cheiro algum, embora aquele houvesse sido um dia brutalmente quente.
— Tio Otto? — chamei quietamente, sem esperar resposta.
Ninguém vai para a cama e fica lá deitado, de olhos abertos e vidrados daquele jeito. Se senti alguma coisa, foi alívio. Tudo terminara.
— Tio Otto? — repeti, aproximando-me. — Tio...
Interrompi-me, ao notar pela primeira vez como a parte inferior de seu rosto parecia estranhamente deslocada — como se estivesse inchada e torcida. Pela primeira vez, notei que suas pupilas não apenas olhavam, mas estavam realmente espiando com fìxidez, em suas órbitas. Só que não se dirigiam para a porta ou para o teto. Estavam torcidas, em direção à pequena janela acima da cama.
Acordei esta noite, lá para as três horas, e aí estava ele, bem junto da janela, Quentin. Ele quase me pegou.
Amassou-o como uma abóbora, ouvi um dos boateiros da barbearia dizendo, enquanto eu estava sentado lá, fingindo ler uma revista Life e aspirando os aromas de Vitalis e óleo Cremoso Wildroot.
Quase me pegou, Quentin.
Aqui havia um cheiro — não de barbearia e não apenas o fedor de um velho sujo.
Era um cheiro oleoso, como de uma garagem.
— Tio Otto? — sussurrei.
Caminhei para a cama onde ele jazia e tive a sensação de encolher, não apenas em tamanho, mas em anos... voltando aos vinte novamente, quinze, dez, oito, seis anos... e por fim, cinco. Vi minha mão estender-se para sua face inchada. Quando minha mão o tocou, abarcando-lhe a face, ergui os olhos e a janela estava tomada pelo brilhante pára brisa do Cresswell — e embora fosse apenas por um momento, poderia jurar sobre a Bíblia como não foi alucinação. O Cresswell estava ali, na janela, a menos de dois metros de mim.
Eu havia pousado os dedos em uma das bochechas de tio Otto, meu polegar sobre a outra, querendo investigar aquela curiosa inchação, imagino. Quando vi o caminhão na janela, minha mão tentou crispar-se em um punho fechado, esquecendo que a tinha ajustada frouxamente em torno da parte inferior do rosto do cadáver.
Naquele instante, o caminhão desapareceu da janela como fumaça ou como o fantasma que imagino que fosse. Simultaneamente, ouvi um ruído de algo esguichando. Minha mão se encheu de líquido quente. Olhei para ela, percebendo que não segurava apenas carne e umidade, mas também alguma coisa dura e angulosa. Olhei para baixo e vi. Foi então que comecei a gritar. Havia óleo escorrendo da boca e do nariz de tio Otto. Óleo, fluindo dos cantos de seus olhos como lágrimas. Óleo Diamond Gem — do tipo reciclado que se compra em um recipiente plástico de cinco galões, do mesmo tipo que McCutcheon sempre usara no Cresswell.
Contudo, não havia apenas óleo; vi algo mais, assomando da boca de tio Otto.
Parei de gritar por um momento e fui incapaz de mover-me, incapaz de afastar de seu rosto minha mão suja de óleo, incapaz de afastar os olhos daquela enorme coisa oleosa que apontava em sua boca — a coisa que deixara tão distorcido o formato de sua face.
Por fim, minha paralisia cessou e saí correndo da casa, ainda aos gritos. Cruzei a porta até meu Pontiac, enfiei-me no carro e gritei de lá. Os mantimentos que trouxera para tio Otto escorregaram do banco traseiro para o chão, os ovos se quebraram.
Foi por milagre que não me matei nos primeiros três quilômetro — olhei para o velocímetro e vi que estava a mais de cento e dez. Parei na beira da estrada, fiz algumas respirações profundas e consegui recuperar parte do meu controle. Comecei então a perceber que, simplesmente, não podia deixar o tio Otto como o encontrara; aquilo levantaria muitas perguntas. Eu tinha que voltar lá.
Além disso, devo admitir que fora tomado por uma certa curiosidade infernal. Hoje, desejaria não havê-la sentido ou ignorá-la; de fato, se acontecesse agora, eu deixaria tudo correr por si mesmo, que eles fizessem suas perguntas. Não obstante, eu voltei lá. Fiquei alguns minutos parado diante da porta de tio Otto — mais ou menos no mesmo lugar e idêntica posição de quando meu tio permanecia ali, tão demorada e freqüentemente, olhando para aquele caminhão. Fiquei ali e cheguei a esta conclusão: o caminhão através de estrada mudara de lugar, embora ligeiramente.
Entrei na casinha.
As primeiras moscas estavam circulando e zumbindo em torno do rosto dele. Eu podia ver marcas oleosas de dedos em suas faces: o polegar na esquerda, três dedos na direita. Olhei nervosamente para a janela a onde vira o Cresswell assomando... e então aproximei-me da cama. Peguei meu lenço e limpei aquelas marcas de dedos. Então, inclinando-me, abri a boca do tio Otto.
O que caiu de sua boca era uma vela de ignição Champion — uma do antigo tipo Maxi Duty, quase tão grande como o punho de um homem-forte de circo.
Levei-a comigo. Hoje, desejaria não ter feito isso mas, naturalmente, naquele momento eu estava em choque. Tudo teria sido muito mais misericordioso, se eu não estivesse com o objeto real aqui em meu estúdio, onde posso olhar para ele, pegá-lo e avaliar seu peso, se me der vontade — a vela de ignição fabricada na década de 20, que caiu da boca do tio Otto.
Se a vela não estivesse lá, eu não a teria trazido da casinha de um só cômodo de meu tio, quando fugi de lá às pressas, pela segunda vez. Então, talvez eu começasse a convencer-me de que tudo aquilo — não apenas dobrar a curva e ver o Cresswell encostado ao lado da casinha, como um enorme sabujo vermelho, mas tudo o que aconteceu — foi apenas uma alucinação. Contudo, a vela está aqui; ela capta a luz. É real. Tem peso. O caminhão está mais próximo a cada ano, disse ele, e agora me parece que tinha razão... mas o próprio tio Otto jamais imaginaria o quão próximo aquele Cresswell podia chegar.
O veredito da cidade foi de que meu tio se matara engolindo óleo e isto gerou nove dias de espanto em Castle Rock. Carl Durkin, coveiro local e não o mais boca-fechada dos homens, contou que quando os médicos o abriram para a autópsia, encontraram mais de três litros de óleo nele... e não apenas em seu estômago. Havia óleo em todo o seu organismo. O que todos na cidade indagavam era: o que tinha ele feito com o recipiente plástico? Porque jamais foi encontrado qualquer recipiente.
Como falei, a maioria dos que lerem estas linhas não acreditará em nada... em absoluto, a menos que algo semelhante lhe tenha acontecido. O caminhão, entretanto, continua lá, em seu campo... e, sejam quais forem os seus méritos, tudo isto aconteceu.
O CARRÃO: Uma Narrativa Sobre Lavanderia (Leiteiro n.° 2)
Rocky e Leo, ambos embriagados como os últimos senhores da criação, rodaram lentamente pela Rua Culver e depois ao longo da Avenida Balfour, em direção à Crescent. Estavam repimpados no Chrysler 1957 de Rocky. Entre os dois, equilibrada com bêbado cuidado sobre a monstruosa protuberância do eixo motor do Chrysler, repousava uma caixa de cerveja Iron City. Aquela era a segunda caixa deles na noite — uma noite que realmente começara às quatro da tarde, hora de encerramento do expediente na lavanderia.
— Raios me partam! — exclamou Rocky, parando na pestanejante luz vermelha do cruzamento da Avenida Balfour e a Higway 99.
Não viu movimento de carros em nenhuma das duas direções, mas atirou um tímido olhar para trás. Entre suas pernas, descansava uma lata de I. C., pela metade. Ele tomou um gole e depois virou para a esquerda, entrando na 99. A junta universal emitiu um sonoro grunhido, quando a descarga começou a pipocar em segunda. O Chrysler havia perdido sua primeira marcha, uns dois meses antes.
— Dê-me um raio, que eu o parto — disse Leo, amavelmente.
— Que horas são?
Leo ergueu o pulso com relógio até bem perto da ponta do cigarro e então sugou furiosamente, até conseguir ver as horas.
— Quase oito — disse.
— Raios me partam!
Haviam passado por um sinal dizendo PITTSBURGH 44.
— Ninguém irá vistoriar esta gracinha de Detroit — disse Leo. — Pelo menos, ninguém em seu juízo perfeito.
Rocky passou para terceira. A junta universal resmungou para si mesma e o Chrysler começou a ter o equivalente automotriz de um ataque epiléptico, petit mal. O espasmo cessou eventualmente e o velocímetro subiu aos poucos para sessenta e cinco, onde pendeu precariamente.
Quando alcançaram o cruzamento da Highway 99 com a Devon Stream Road (Devon Stream formava a fronteira entre as jurisdições de Crescent e Devon, durante uns treze quilômetros), Rocky dobrou para a última, quase por impulso. Era possível que, naquilo que funcionava como seu subconsciente, muito lá no fundo, houvesse sido despertada alguma lembrança do velho Meia Suja.
Ele e Leo haviam estado dirigindo mais ou menos ao acaso, desde a saída do trabalho.
Era o último dia de junho, e o cartão de inspeção do Chrysler de Rocky perderia a validade exatamente às 12:01 do dia seguinte. Quatro horas, a partir de agora. Menos de quatro horas, a partir daquele exato momento. Rocky achava esta eventualidade quase demasiado dolorosa para ser contemplada e, quanto a Leo, não fazia diferença. O carro não lhe pertencia. Além do mais, bebera suficiente cerveja Iron City para alcançar um estado de profunda paralisia cerebral.
Devon Road serpenteava pela única área fortemente arborizada de Crescent. Nos dois lados da estrada amontoavam-se grandes maciços de olmos e carvalhos, exuberantes, vivos e repletos de sombras móveis, à medida que a noite se fechava no sudoeste da Pensilvânia. De fato, a área era conhecida como Os Bosques Devon. Conseguira uma situação com letras maiúsculas, após a tortura-assassinato de uma jovem e seu namorado, em 1968. O casal estivera estacionado ali, sendo encontrado no Mercury 1959 do namorado. O carro tinha assentos de couro legítimo e um grande enfeite cromado no capô. Os ocupantes estavam no assento traseiro. E também no dianteiro, no porta-mala e porta-luvas. O assassino jamais fora encontrado.
— É melhor que o motor desta lata velha não afogue aqui — disse Rocky. Estamos a cento e cinqüenta quilômetros de lugar nenhum.
— Cascata. — Esta interessante palavra, ultimamente ocupava o primeiro lugar entre as quarenta que compunham o vocabulário de Leo. — Lá está uma cidade, bem à frente.
Rocky suspirou e tomou outro gole de sua lata de cerveja. O clarão à vista não era realmente de uma cidade, porém o rapaz estava perto o suficiente para tornar inútil qualquer discussão. Era o novo centro comercial. Aquelas lâmpadas de sódio de alta luminosidade realmente emitiam claridade. Enquanto olhava naquela direção, Rocky dirigiu o carro para o lado esquerdo, gingou de volta, quase foi para o acostamento da direita, mas finalmente tornou a enfileirar-se em sua faixa.
— Caramba — disse ele.
Leo arrotou e gorgolejou.
Eles haviam estado trabalhando juntos na Lavanderia New Adams desde setembro, quando Leo tinha sido contratado como ajudante de Rocky. Leo era um rapaz de vinte e dois anos, com feições de roedor e parecendo ter em seu futuro um bocado de passagens pela cadeia. Ele alegava estar economizando vinte dólares semanais de seu pagamento, a fim de comprar uma motocicleta Kawasaki usada. Dizia que viajaria na moto para o oeste, assim que chegasse o tempo frio. Leo já passara por uns doze tipos de empregos, desde que se despedira do mundo estudantil, à idade mínima de dezesseis anos. Estava gostando bastante de trabalhar na lavanderia. Rocky lhe ensinava os vários ciclos da lavagem de roupa, fazendo-o acreditar firmemente que aprendia uma Especialização, algo muito conveniente, quando de sua chegada a Flagstaff.
Empregado mais antigo, Rocky já tinha quatorze anos na New Adams. Prova disso eram suas mãos, espectrais e manchadas ao volante. Ele já pegara quatro meses em 1970, por porte oculto de arma. Sua esposa, então obesamente grávida com o terceiro filho do casal, havia anunciado
1) que a criança não era dele, mas do leiteiro; e
2) que queria o divórcio, sob a alegação de crueldade mental.
Dois fatos a respeito dessa situação induziram Rock a andar com aquela arma:
l) fora corneado;
2) fora corneado pelo imbecil do leiteiro, um infeliz com olhos de peixe morto e cabelos compridos, chamado Spike Milligan. Spike dirigia o furgão leiteiro da Laticínios Cramer's.
Logo o leiteiro, pelo amor de Deus! O leiteiro não faltava mais nada! Não era para um homem atirar-se à sarjeta e morrer? Mesmo para Rocky, que nunca fora muito além da leitura dos Fleer's Funnies, as histórias em quadrinhos enroladas em torno da goma de mascar que ele mascava infatigavelmente no trabalho, a situação continha sonoras e clássicas implicações.
Em vista disso, comunicara à esposa, sombriamente, dois fatos:
1) nada de divórcio; e
2) ia ver a cor de um bocado de miolos de Spike Milligan.
Havia comprado uma pistola calibre 32 uns dez anos antes, que usava ocasionalmente para atirar em garrafas, latas vazias e cães de pequeno porte. Naquela manhã, saíra de sua casa na Rua Oak e rumara para a lavanderia, esperando pegar Spike, quando ele terminasse as entregas matinais.
Rocky fizera alto na Taverna Quatro Esquinas, a fim de tomar algumas cervejas — seis, oito, talvez vinte. Era difícil lembrar. E, enquanto bebia, sua mulher chamou os tiras.
Eles estavam à sua espera, na esquina de Oak com Balfour. Rocky havia sido revistado e um dos tiras encontrou o 32, em seu cinto.
— Acho que vai ausentar-se por algum tempo, meu amigo — disse o tira que encontrou sua arma.
Foi exatamente o que Rocky fez. Passou os quatro meses seguintes lavando lençóis e fronhas para a Estadual da Pensilvânia. Durante esse período, sua esposa conseguira um divórcio em Nevada, de maneira que quando Rocky saiu de trás das grades, ela vivia com Spike Milligan na Rua Dakin, em um prédio de apartamentos com um flamingo cor-de-rosa no gramado fronteiro. Juntamente com os dois filhos mais velhos (Rocky ainda mais ou menos presumia que fossem seus), o casal agora possuía um bebê, absolutamente tão olhos de peixe morto como seu pai. Também contava com uma pensão alimentícia semanal de quinze dólares.
— Andar tanto de carro está me dando náuseas, Rocky — disse Leo. Não podíamos parar um pouco e beber?
— Tenho que dar um jeito em minhas rodas — disse Rocky. — Um homem não é nada, sem suas rodas.
— Ninguém em seu juízo perfeito vai vistoriar isto — já lhe disse. Seu carro não tem sinalização para dobrar.
— As luzes piscam a cada vez que piso no freio, e quem não pisa no freio quando faz uma curva, está querendo capotar.
— O vidro da janela deste lado está rachado.
— Ele pode ser descido.
— E se quem for vistoriar pedir que você o levante, para que possa checá-lo?
— Bem, se chegar a este ponto, eu estou roubado — disse Rocky friamente.
Jogou fora a lata de cerveja e pegou uma nova. Esta tinha a figura de Franco Harris estampada. Pelo visto, a Iron City estava endeusando os Maiores Sucessos dos Steeler, naquele verão. Rocky abriu o topo da lata. A cerveja esguichou para fora.
— Eu gostaria de ter uma mulher — disse Leo, olhando para o escuro e sorrindo estranhamente.
— Se tivesse uma, você nunca iria para o oeste. É isso que uma mulher faz, impedir que um homem vá para mais oeste. É assim que elas operam. É a sua missão. Não me disse que queria ir para o oeste?
— Disse, e vou.
— Você nunca irá — replicou Rocky. — Dentro em breve terá uma mulher. Logo depois estará ferrado. Pensão alimentar. Entende? As mulheres estão sempre querendo a pensão alimentar. Os carros são melhores. Fique firme neles.
— É um bocado difícil transar com um carro.
— Você ficaria surpreso — disse Rocky e deu uma risadinha.
O bosque começava a rarear, substituído por novas moradias. Luzes piscaram à esquerda e Rocky pisou subitamente no freio. As luzes de frear e de sinalização ligaram-se imediatamente; um macete de fabricação caseira, por meio de fios. Leo foi atirado para diante, salpicando cerveja no assento.
— O que foi? O que foi? — perguntou.
— Veja — disse Rocky. — Acho que conheço aquele cara.
No lado esquerdo da estrada havia uma garagem arruinada e um posto de gasolina Citgo. Na fachada, um letreiro dizia:
GASOLINA E SERVIÇO BOB'S BOB DRISCOLL, PROP. ALINHAMENTO DIANTEIRO — NOSSA ESPECIALIDADE DEFENDA SEU LEGÍTIMO DIREITO DE USAR ARMAS!
E, bem no final:
POSTO ESTADUAL DE INSPEÇÃO 72
— Ninguém em seu juízo perfeito... — recomeçou Leo.
— É Bob Driscoll! — exclamou Rocky. — Eu e Bobby fomos colegas de escola! Fizemos misérias por lá, pode apostar!
Manobrou desajeitadamente, os faróis iluminando a porta aberta da garagem. Depois, pisando na embreagem, investiu para lá. Um homem de ombros encurvados, vestindo macacão verde, correu para fora, gesticulando freneticamente para que ele parasse.
— Esse é Bob! — gritou Rocky, exultante. — Olááá, Meia Dura!
Rasparam o lado da garagem. O Chrysler teve outro acesso epiléptico, grand mal desta vez. Uma pequena.chama amarelada surgiu no final do tubo de aspiração da bomba, seguida por um jato de fumaça azul. O carro afogou agradecidamente.
Leo foi atirado para diante, salpicando mais cerveja. Rocky girou a chave do motor e deu ré, para nova tentativa.
Bob Driscoll correu para eles, os palavrões jorrando de sua boca em coloridas torrentes.
Agitava os braços.
— ... que merda pensa que está fazendo, seu filho da...
— Bobby! — berrou Rocky, em euforia quase orgásmica. — Ei, Meia Suja! O que há, meu chapa?
Bob perscrutou através da janela de Rocky. Tinha um rosto contorcido e cansado, em sua maioria oculto pela sombra da pala do boné.
— Quem foi que me chamou de Meia Suja?
— Erra — Rocky quase trovejou. — Fui eu, seu velho punheteiro! O seu chapa dos velhos tempos!
— Quem, diabo...
— Johnny Rockwell! Ficou cego, além de imbecil?
A pergunta cautelosa:
— Rocky?
— Eu mesmo, seu filho da mãe!
— Deus do céu! — Uma alegria lenta, indesejada, espalhou-se pelo rosto de Bob. — Não vejo você desde... bem.. acho que desde aquele jogo dos Catamounts...
— Shoosh! Foi um tempo quente, hem?
Rocky bateu com força na coxa, enviando um esguicho de Iron City. Leo arrotou.
— Se foi! A única vez que ganhamos um torneio. Mesmo então, parecia que íamos perder... Ei, cara, você quase me acaba com o lado da garagem! Você...
— Sim, o mesmo e velho Meia Suja! O mesmo cara! Você não mudou nem um fio de cabelo! — Algo surpreso, Rocky espiou o mais que pôde abaixo da pala do boné de beisebol, esperando que fosse verdade. No entanto, parecia que o velho Meia Suja ficara parcial ou totalmente calvo. — Céus! Não é incrível vir dar com você por aqui? Casou finalmente com Marcy Drew?
— Raios, casei. Lá por 70. Por onde você andou?
— Na cadeia, o mais provavelmente. Ei, chapa, dá pra vistoriar o bebê aqui?
De novo, a pergunta cautelosa:
— Está falando de seu carro?
Rocky deu uma risada estridente.
— Não-do meu pau-de-fogo! Claro que é do meu carro! E então, dá pra ver?
Bob abriu a boca para dizer não.
— Este aqui é um velho amigo meu. Leo Edwards. Leo, quero que conheça o único jogador de basquete do Ginásio Crescent, que não mudou as meias suadas em quatro anos.
— Prazer conhecer — disse Leo, fazendo a sua obrigação, como a mãe lhe ensinara, certa vez em que a dama estava sóbria.
Rocky riu esganiçadamente.
— Uma cerveja, Suja?
Bob abriu a boca para dizer não.
— Tome, a pequenina levanta-defunto! — exclamou Rocky.
Arrancou a abertura do topo. Sacudida pela colisão com o lado da garagem, a cerveja espumou acima da tampa e escorreu pelo pulso de Rocky. Ele enfiou a lata na mão de Bob. Bob bebeu rapidamente, para evitar que sua própria mão ficasse alagada.
— Escute, Rocky, nós fechamos às...
— Só um segundo, um segundinho, me deixe explicar. Tenho alguma coisa desarranjada aqui.
Rocky puxou a alavanca de mudança ao inverso, pisou o pedal da embreagem rapidamente, tirou um fino em uma bomba de gasolina e então dirigiu o Chrysler para o interior, aos sacolejos. Saiu em um minuto, para sacudir a mão livre de Bob como um político. Bob parecia aturdido. Sentado no carro. Leo abriu outra cerveja. Também estava peidando. Muita cerveja sempre o deixava assim.
— Ei! — esclamou Rocky, cambaleando em torno de uma pilha de calotas enferrujadas. — Lembra-se de Diana Rucklehouse?
— Claro — disse Bob. Um sorriso forçado veio à sua boca. — Era aquela com os... — Ele colocou as mãos em concha, diante do peito.
Rocky uivou.
— Isso mesmo! Você morou, cara! Ela continua na cidade?
— Acho que se mudou para...
— Dá pra entender — disse Rocky. — Os que não ficam, sempre se mudam. Pode dar um visto nesta banheira, não pode?
— Bem, minha mulher disse que ia esperar para o jantar e nós fechamos às...
— Poxa, ia ser uma ajuda e tanto se me fizesse a vistoria. Eu apreciaria muito. Posso retribuir com uma lavagem de roupa pessoal para sua esposa. É o que faço. Lavar roupa. Na New Adams.
— E eu estou aprendendo — disse Leo, e tornou a peidar.
— Lavar as roupas de baixo, o que você quiser. E então, Bobby?
— Bem... acho que posso dar uma espiada.
— Boa! — exclamou Rocky, batendo nas costas de Bob e piscando para Leo. — O mesmo e velho Meia Suja. Grande sujeito!
— Hum-hum — disse Bob, com um suspiro. Sorveu um gole de cerveja, seus dedos sujos de óleo quase tapando o rosto do Grande Joe Green. — Você andou batendo um bocado com este pára-choque, Rocky.
— Dá uma certa classe. O maldito carro precisa de um pouco de classe. Mesmo assim, é um carraço e tanto, entende o que quero dizer?
— Sim, acho que...
— Ei ! Quero que conheça o sujeito com quem trabalho! Leo, este é o único jogador de basquete do...
— Você já nos apresentou — disse Bob, com um sorriso frouxo e desesperado
— Tudokay? — disse Leo.
Pegou outra lata de Iron City. Linhas prateadas, como trilhos de ferrovia vistos ao meio-dia, em um dia quente e límpido, começavam a surgir diante de seu campo visual.
— ... Ginásio Crescem, que não trocou suas...
— Quer me mostrar os faróis, Rocky? — pediu Bob.
— Claro. Grandes faróis! De halogênio, nitrogênio ou qualquer fodido gênio. Eles têm classe. Ponha os olhos do bichão em funcionamento, Leo.
Leo ligou os limpadores de pára-brisa.
— Então bons — disse Bob, pacientemente. Sorveu um bom gole de cerveja. — E agora, que tal os faróis?
Leo acendeu os faróis.
— Farol alto?
Com o pé esquerdo, Leo tateou em busca do dimmer. Tinha absoluta certeza de que o interruptor estava em algum lugar lá embaixo, até finalmente encontrá-lo. Os faróis altos deixaram Rocky e Bob em nítido relevo, como suspeitos em uma fila de reconhecimento da polícia.
— Fodidos faróis de nitrogênio, não lhe disse? — exclamou Rocky, depois deu uma risadinha casquinada. — Poxa, Bobby! Estou vendo você melhor do que um cheque pelo correio!
— E agora, que tal a sinalização para dobrar uma curva? — pediu Bob.
Leo sorriu vagamente para ele e não fez nada.
— É melhor eu ver isso — falou Rocky. Arranjou um bom galo na cabeça, quando se colocou atrás do volante. — Acho que o rapaz não se sente muito bem...
Apertou o freio, ao mesmo tempo em que bateu de leve no indicador de curva.
— Correto — disse Bob, — mas isso funciona sem o freio?
— O manual de inspeção de veículos a motor diz, em algum lugar, que tem de funcionar? — perguntou Rocky espertamente.
Bob suspirou. Sua esposa o esperava para jantar. Sua esposa tinha seios grandes e pendurados, cabelos louros que eram negros nas raízes. Sua esposa era adepta de biscoitos em quilos, vendidos na loja local Giant Eagle. Quando ela ia à garagem nas noites de quinta-feira, pegar seu dinheiro para o bingo, em geral tinha os cabelos presos em grandes rolinhos verdes, sob um lenço verde de chifon. Isto fazia com que sua cabeça parecesse um rádio AM/FM futurista. Certa ocasião, por volta de três da madrugada, ele acordara e tinha olhado para seu rosto bambo, cor de papel, à impiedosa claridade de cemitério da luz no poste da rua, entrando pela janela do quarto de casal.
Ele havia pensado em como seria fácil — apenas montar em cima dela, apenas fincar um joelho em seu estômago, para que ela ficasse sem ar e incapaz de gritar, apenas engalfinhar as duas mãos em torno de seu pescoço... Depois, apenas colocá-la na banheira e esquartejá-la, cortá-la em pequenos pedaços e enviá-la a qualquer lugar por via postal para Robert Driscoll, a/c da Posta Restante. Qualquer velho lugar, Lima, Indiana, Pólo Note, New Hampshire, Intercourse, Pensilvânia, Kunkle, Iowa. Qualquer velho lugar. Podia ser feito. Deus sabia que já fora feito antes.
— Não — respondeu ele a Rocky — Creio que em nenhum lugar do manual diz que eles têm que funcionar sozinhos. Exatamente. Em tantas palavras.
Erguendo a lata, ele deixou que o resto da cerveja gorgolejasse por sua garganta abaixo.
Estava quente na garagem e ainda não jantara. Podia sentir a cerveja subir-lhe prontamente para a cabeça.
— Ei, Meia Suja acabou de esvaziar a lata! — disse Rocky. — Mande mais uma, Leo!
— Não, Rocky, sinceramente...
Não enxergando muito bem, Leo finalmente conseguiu encontrar outra lata.
— Quer que mande tudo? — perguntou, e passou uma lata a Rocky.
Rocky a entregou a Bob, cujas negativas foram anuladas ao segurar a fria realidade da lata em sua mão. Esta exibia a face sorridente de Lynn Swann. Ele a abriu. Leo peidou comportadamente, fechando a transação.
Durante um momento, todos beberam de latas com jogadores de futebol.
— A buzina funciona? — perguntou Bob finalmente, quebrando o silêncio como que em uma desculpa.
— Claro. — Rocky bateu no círculo com seu cotovelo. Ele emitiu um débil grasnido. — Acho que a bateria está um pouco baixa.
Os três beberam em silêncio.
— Aquele maldito rato era tão grande como um cocker spaniel! — exclamou Leo.
— O garoto está um bocado alto — explicou Rocky.
Bob meditou a respeito.
— Hum-hum — disse.
Isso pareceu despertar a hilaridade de Rocky, porque ele gargalhou com a boca cheia de cerveja. Um pouco do líquido escorreu de seu nariz, o que fez Bob rir. Rocky gostou de ouvi-lo, porque o antigo colega lhe parecera um cara tristonho, quando tinham entrado ali.
Beberam em silêncio por mais algum tempo.
— Diana Rucklehouse — disse Bob, meditativamente.
Rocky deu uma risadinha abafada.
Bob o imitou e levou as mãos à frente do peito.
Rocky riu, agora também levando as mãos à frente do peito e aumentando a distância ainda mais, para dar a idéia de um busto generoso.
Bob gargalhou.
— Lembra-se daquela foto de Ursula Andress, que Tinker Johnson pregou no quadro de avisos da velha Freemantle?
Rocky emitiu um uivo.
— E ele desenhou aquelas maminhas enormes...
— ... e ela quase teve um ataque cardíaco...
— Vocês dois sabem rir — disse Leo, morosamente, e peidou.
Bob pestanejou, olhando para ele.
— Como?
— Rir — disse Leo. — Falei que vocês dois sabem rir. E podem. Nenhum tem um buraco nas costas.
— Não lhe dê ouvidos — disse Rocky, algo inquieto. — O garoto está num tremendo pileque.
— Você tem um buraco nas costas? — perguntou Bob a Leo.
— A lavanderia — disse Leo, sorrindo. — Temos aquelas enormes máquinas de lavar, entende? Só que as chamamos de rodas. São as rodas da lavanderia. Por isso é que as chamamos de rodas. Eu as carrego, eu as esvazio, depois torno a carregá-las. A droga da roupa está suja, quando sai de lá vem limpa. É isso que faço, e faço com categoria. — Olhou para Bob, com insana confiança. — No entanto, fazendo isso é que fiquei com um buraco nas costas.
— É mesmo?
Bob olhava fascinado para Leo. Rocky remexeu-se nervosamente.
— Há um buraco no teto — disse Leo. — Bem acima da terceira roda. Elas são redondas, compreenda, por isso as chamamos de rodas. Quando chove, a água cai por ali. Goteja, goteja, goteja. Cada pingo de chuva cai em cima de mim — plaft! — bem nas costas. Agora, estou com um buraco nas costas. Deste tamanho — Leo fez uma curva rasa com uma das mãos. — Quer ver?
— Ele não quer ver nenhuma deformidade como essa! — gritou Rocky. — Estamos relembrando os velhos tempos e, por outro lado, você não tem nenhuma merda de buraco nas costas!
— Eu quero ver o buraco — disse Bob.
— Elas são redondas, por isso damos o nome de lavanderia — disse Leo.
Rocky sorriu e bateu no ombro dele.
— Pare com essa conversa fiada ou irá andando para casa, amiguinho. E agora, se ainda sobrou alguma, quer me dar uma com o meu xará?
Leo espiou no engradado de cerveja, e, após um momento, entregou uma lata com Rocky Blier impresso.
— Vamos em frente! — esclamou Rocky, de novo alegre.
Uma hora mais tarde, a cerveja havia acabado e Rocky enviou Leo cambaleando estrada acima até o Pauline's Superette, para comprar mais. Os olhos do rapaz estavam injetados de sangue a esta altura e sua camisa saía para fora das calças. Com uma concentração de míope, ele tentava tirar seu maço de Camels das dobras enroladas da manga da camisa.
Bob estava no banheiro, urinando e entoando uma canção escolar.
— Não quero ir andando até lá — murmurou Leo.
— Claro, mas está bêbado demais para dirigir!
Leo caminhou em vacilante semicírculo, ainda tentando extrair os cigarros da manga da camisa.
— Tá escuro. E frio.
— Quer que este carro ganhe um certificado de vistoria ou não? — sibilou Rocky para ele.
Agora, começara a ver coisas estranhas nas bordas de seu campo visual. A mais persistente era um enorme besouro, envolto em teias de aranha, no canto mais distante.
Leo o fitou com olhos escarlates.
— O carro não é meu — replicou, com falsa sagacidade.
— E você nunca mais andará nele, se não for buscar essa cerveja — ameaçou Rocky.
Olhou temerosamente para o besouro morto no canto. — Provoque-me e verá se estou brincando!
— Está bem — gemeu Leo. — Não precisa se irritar por causa disso.
Caminhou duas vezes para fora da via, em seu trajeto até a esquina, uma vez, quando voltava. Ao finalmente retornar para o calor e claridade da garagem, encontrou os dois homens entoando a canção escolar. De um jeito ou de outro, Bob conseguira erguer o Chrysler no elevador. Agora, examinava a parte do chassis, observando o enferrujado sistema de exaustão.
— Seu cano de descarga tem alguns buracos — disse ele.
— Não há nenhuma privada aí embaixo — respondeu Rocky.
Os dois acharam aquilo muito engraçado.
— Chegou a cerveja! — anunciou Leo.
Colocou o engradado no chão, sentou-se em um aro de roda e caiu imediatamente em meia sonolência. Ele próprio havia esvaziado três latas no trajeto de volta, a fim de aliviar a carga.
Rocky estendeu uma cerveja para Bob e pegou uma para si.
— Disputa? Como nos velhos tempos?
— Certo — disse Bob.
Sorriu com os lábios comprimidos. Mentalmente, via-se na cabine de um carro de corridas de Fórmula Um, daquelas aerodinâmicas, rentes ao solo, uma das mãos pousando de banda no volante, enquanto esperava que baixassem a bandeira, a outra tocando seu amuleto de sorte — o enfeite do capô de um Mercury 59. Esquecera o cano de descarga de Rocky e sua desgrenhada esposa, com rolinhos transistorizados para os cabelos.
Os dois abriram suas cervejas e despejaram o conteúdo na boca, sorvendo-o ansiosamente; era uma disputa surda. Ambos deixaram as latas caírem no concreto rachado e ergueram o dedo médio ao mesmo tempo. Seus arrotos ecoaram nas paredes, como tiros de rifle.
— Bem como nos velhos tempos — disse Bob, parecendo melancólico. Nada é como nos velhos tempos, Rocky.
— Eu sei — assentiu Rocky. Lutou por um perfeito e luminoso pensamento, até encontrá-lo.
— Estamos envelhecendo a cada dia, Suja.
Bob suspirou e tornou a arrotar. Leo peidou no canto e começou a cantarolar "Get Off My Cloud".
— Mais uma vez? — perguntou Rocky, passando outra cerveja para Bob.
— Também acho — disse Bob, em resposta ao pensamento de Rocky. — Eu também acho, Rocky, meu chapa.
Por volta de meia-noite, o engradado que Leo trouxera estava vazio e um certificado de inspeção fora afixado no lado esquerdo do pára-brisa de Rocky, em um ângulo torto. O próprio Rocky havia anotado as informações pertinentes, antes de colar o certificado, copiando laboriosa e cuidadosamente os números do esfarrapado e ensebado registro que por fim encontrara no porta-luvas. Era preciso copiar com cuidado, porque estava vendo tudo em triplicata. Sentado de pernas cruzadas no chão, como um mestre ioga, Bob tinha uma lata de cerveja esvaziada pelo meio, pousada à sua frente. Seus olhos contemplavam o nada fixamente.
— Fique certo, você salvou minha vida, Bob — disse Rocky.
Chutou as costelas de Leo para acordá-lo. Leo grunhiu e bufou. Suas pálpebras tremularam brevemente, ainda fechadas, depois se abriram inteiramente, quando Rocky tornou a chutá-lo.
— Já chegamos em casa, Rocky? Nós...
— Você deu a este carro uma oportunidade e tanto, Bobby! — exclamou Rocky alegremente. Enfiou os dedos debaixo dos braços de Leo e puxou. Leo ficou em pé, gritando. Rocky quase o carregou até o Chrysler e depois o jogou no assento do passageiro. — Ainda voltaremos aqui qualquer dia, para você dar uma geral nele.
— Que tempos eram aqueles! — suspirou Bob. Estava com os olhos úmidos. De lá para cá, tudo ficou cada vez pior, sabia?
— É verdade — disse Rocky. — Tudo tem sido readaptado e abestalhado. Só que a gente apenas aponta os erros e não faz nada de nada...
— Minha esposa não quer saber de mim há ano e meio — disse Bob, mas as palavras foram sufocadas pelos estouros do motor do Chrysler.
Bob levantou-se e ficou espiando o carro sair em ré da garagem, arrancando uma lasca de madeira do lado esquerdo da porta. Leo pendurou-se à janela, sorrindo como um debilóide.
— Apareça na lavanderia, caminhoneiro. Eu lhe mostrarei o buraco em minhas costas. Eu lhe mostrarei minhas rodas! Eu lhe mostr...
O braço de Rocky disparou subitamente, como uma prostituta de vaudeville, e o reduziu ao silêncio.
— Adeus, chapa! — gritou.
O Chrysler executou um slalom embriagado em torno das três ilhotas das bombas de gasolina e disparou para dentro da noite. Bob o espiou até as luzes traseiras ficarem apenas como vagalumes e então caminhou cautelosamente para dentro da garagem. Em sua apinhada bancada de trabalho, havia um enfeite cromado de algum carro antigo.
Bob começou a brincar com ele e, em breve, estava chorando lágrimas de crocodilo pelos velhos tempos. Mais tarde, em algum momento depois das três da madrugada, ele estrangulou a esposa e incendiou a casa, para dar a tudo uma aparência de acidente.
— Santo Deus! — disse Rocky para Leo, quando a garagem de Bob encolheu-se para um ponto de luz branca atrás deles. — Quem diria, hem? O velho Meia Suja!
Rocky atingira aquele estado de embriaguez em que cada parte de si mesmo parecia ter-se evaporado, apagando-se à exceção de uma pequenina e cintilante brasa de sobriedade, em algum ponto bem enterrado no meio de sua mente.
Leo não respondeu. À pálida claridade esverdeada do painel de instrumentos, ele parecia o rato-do-campo no chá de Alice.
— Ele estava mesmo bombardeado — prosseguiu Rocky. Dirigiu pelo lado esquerdo da estrada por algum tempo e depois o Chrysler vagueou de volta. Aliás, foi até bom para você — o mais provável é que ele não se lembre do que você lhe disse. De outra vez, poderia ser diferente. Já lhe disse, não sei quantas vezes, para ficar calado sobre essa idéia de que tem um maldito buraco em suas costas.
— Você sabe que tenho um buraco nas costas.
— Bem, e daí?
— E daí, que o buraco é meu. E vou falar sobre o meu buraco sempre que qui... — Leo interrompeu-se e olhou repentinamente em torno. — Tem um furgão atrás da gente. Acabou de sair daquela estrada lateral. Faróis apagados.
Rocky ergueu os olhos para o retrovisor. Era um furgão leiteiro. Não precisava ler LATICÍNIOS CRAMER'S na lateral, para saber qual era.
— Spike — disse Rocky, temerosamente. — É Spike Milligan! — Céus, pensei que ele só fizesse entregas matinais!
— Quem?
Rocky não respondeu. Um tenso sorriso bêbado espalhou-se na parte inferior de seu rosto. Não chegou a tocar-lhe os olhos, que agora estavam esbugalhados e vermelhos, como espiriteiras.
De repente, pisou fundo no acelerador do Chrysler, que expeliu uma fumaceira azul de óleo queimado e, relutantemente, entre rangidos, aumentou a velocidade para noventa.
— Ei! Você está bêbado demais para ir tão depressa! Você está...
Leo parou de falar, com expressão vaga, como se houvesse perdido o fio do pensamento. As árvores e casas passavam em disparada por eles, apenas borrões difusos, na escuridão da meia-noite e quinze. Avançaram sobre um sinal de parada e o derrubaram, em resultado voando acima de um enorme buraco na pista. Depois disso, saíram da estrada por um momento. Quando voltaram a ela, o silencioso pendendo baixo arrancou uma faísca no asfalto. Na traseira do carro, latas entrechocaram-se e chocalharam. Os rostos de jogadores do Steeler de Pittsburg rolaram de um lado para outro, às vezes à luz, em outras à sombra.
— Eu estava brincando! — disse Leo, apavorado. — Não há nenhum furgão!
— É ele — e ele mata gente! — gritou Rocky. — Vi seu besouro, lá na garagem! Porra!
Subiram rugindo a Southern Hill, pelo lado errado da estrada. Uma caminhonete que vinha em direção contrária, derrapou loucamente na curva de cascalhos e foi parar no acostamento, saindo da frente deles. Leo olhou para trás. A estrada estava vazia.
— Rocky...
— Venha me pegar, Spike! — berrou Rocky. — Venha e me pegue!
O Chrysler tinha chegado a quase cento e trinta, uma velocidade que, em condições mais sóbrias, Rocky não acreditaria possível. Fizeram a curva que leva à estrada
Johnson Flat, com a fumaça sendo expelida dos pneus carecas do carro. O Chrysler uivou na noite com um fantasma, os faróis vasculhando a estrada vazia à frente.
De repente, um Mercury 1959 rugiu para eles, saindo do escuro e rodando pela linha central. Rocky gritou e ergueu as mãos, colocando-as à frente do rosto. Leo apenas teve tempo para ver que faltava o enfeite no capô do Mercury, antes que houvesse a colisão.
Meio quilômetro atrás, faróis brilham em uma estrada lateral, e um furgão leiteiro, com as palavras LATICÍNIOS CRAMER'S inscritas na lateral, entrou em movimento e começou a rodar para a coluna de chamas e retorcidas massas que enegreciam no meio da estrada. Movia-se em moderada velocidade. O rádio transistor, pendurado pela correia no gancho de carne, tocava ritmos e blues.
— Muito bem — disse Spike. — Agora, vamos à casa de Bob Driscoll. Ele pensa que levou gasolina de sua garagem, mas não estou bem certo disso. Este foi . um dia bastante longo, não acha?
No entanto, quando ele se virou, a traseira do furgão estava vazia. Até o besouro se fora.
O Homem Que Não Apertava Mãos
Stevens serviu drinques e, pouco depois das oito daquela frígida noite de inverno, quase todos o acompanhamos à biblioteca. Por algum tempo, ninguém disse nada; os únicos sons eram os do crepitar do fogo na lareira, o clique amortecido das bolas de bilhar, vindo do exterior, e os uivos do vento. Contudo, estava aquecido o suficiente ali dentro, no 2498 da Rua 35 Leste.
Recordo que David Adley estava à minha direita aquela noite e Emlyn McCarron, que certa vez já nos contara uma história aterrorizante sobre uma mulher que dera à luz em circunstâncias inteiramente incomuns, estava à minha esquerda. Além dele encontrava-se Johanssen, com seu Wall Street Journal dobrado no colo.
Stevens aproximou-se com um pequeno embrulho branco e o estendeu a George Gregson, sem qualquer vacilação. Stevens é o mordomo perfeito, apesar de seu leve sotaque de Brooklyn (ou, talvez, por causa dele), porém seu maior atributo, ao que me conste, é sempre saber para onde deve ir o embrulho, se ninguém perguntar por ele.
George o tomou sem nenhum protesto e ficou imóvel por um instante em sua poltrona bergère, olhando para o fogo na lareira, esta grande o bastante para assar um boi de bom tamanho. Vi seus olhos adejarem momentaneamente pela inscrição entalhada na base: É A HISTÓRIA, NÃO QUEM A CONTA.
Ele abriu o embrulho com seus dedos velhos e trêmulos, atirando o conteúdo ao fogo.
Por um instante, as chamas transformaram-se em um arco-íris e houve um murmúrio de risos. Virando-me, vi que Stevens estava em pé bem atrás, junto às sombras ao lado da porta para o saguão. Ele tinha as mãos cruzadas atrás das costas. Seu rosto permanecia cautelosamente fosco.
Suponho que todos nos sobressaltamos um pouco, quando sua voz áspera, quase rabugenta, rompeu o silêncio; sei que eu me assustei.
— Certa vez, vi um homem ser assassinado bem nesta sala — disse George Gregson — embora nenhum jurado condenasse o matador. Contudo, no fim ele próprio condenou-se — e foi seu próprio executor!
Houve uma pausa, enquanto ele acendia o cachimbo. A fumaça vagou à volta de seu rosto enrugado em grande quantidade azulada, e ele sacudiu o fósforo de madeira com os gestos lentos e declamatórios do homem cujas articulações lhe doem terrivelmente.
Jogou-o dentro da lareira, onde ele aterrou sobre os remanescentes em cinza do embrulho. George Gregson espiou as chamas carbonizarem a madeira. Seus agudos olhos azuis ficaram pensativos, abaixo das espessas sobrancelhas grisalhas. Seu nariz era comprido e adunco, os lábios finos e firmes, os ombros encovados, quase até a parte traseira do crânio.
— Não nos deixe em suspenso, George! — grunhiu Peter Andrews. — Conte de uma vez!
— Eu contarei. Tenha calma.
Restou-nos apenas esperar, até que ele houvesse fumado seu cachimbo com plena satisfação. Quando o grande fornilho de urze apresentou um belo leito de brasas, George dobrou sobre um joelho as grandes mãos ligeiramente paralisadas, e disse:
— Pois muito bem. Estou com oitenta e cinco anos e o que ocorreu aconteceu quando eu tinha vinte e poucos. De qualquer modo, foi em 1919 e acabara de voltar da Grande Guerra. Minha noiva havia morrido cinco meses antes, de influenza. Tinha apenas dezenove anos, e receio ter bebido e jogado cartas mais do que deveria. Ela ficara esperando dois anos, compreendam, e durante esse período, recebi fielmente uma carta a cada semana. Talvez possam entender por que sucumbi a tal ponto. Eu não tinha crenças religiosas, achava os dogmas e teorias gerais do cristianismo algo cômicos, quando nas trincheiras, e não possuía uma família que me apoiasse. Assim, posso afirmar, com segurança, que os bons amigos que me acompanharam durante esse período de provação raramente me deixaram. Eram cinqüenta e três amigos (mais do que possui a maioria das pessoas!): cinqüenta e duas cartas de baralho e uma garrafa de uísque Cutty Sark. Eu passara a morar nos mesmos aposentos em que hoje resido, na Rua Brennan. Contudo, então eram muito mais baratos e havia um número consideravelmente menor de vidros de remédios, pílulas e panacéias enchendo as prateleiras. A maior parte de meu tempo, no entanto, era passada aqui, no 249B, porque sempre podia encontrar um jogo de pôquer.
David Adley o interrompeu e, embora sorrisse, não creio que estivesse brincando, em absoluto.
— E Stevens já estava presente, George?
George se virou para o mordomo.
— Seria você ou seu pai, Stevens?
Stevens permitiu-se a ligeira sombra de um sorriso.
— Como 1919 foi há mais de sessenta e cinco anos atrás, acredito que fosse meu avô, senhor.
— Devemos então admitir que esse posto está no sangue — disse Adley.
— É como diz, senhor — replicou Stevens, delicadamente.
— Agora que penso nisso — falou George — é notável a semelhança entre você e seu... seu avô, não, Stevens?
— É o que me dizem, senhor.
— Se os dois fossem colocados lado a lado, eu teria dificuldades em afirmar quem era quem... porém isso é irrelevante, não?
— Perfeitamente, senhor.
— Eu me encontrava na sala de jogos — bem depois daquela mesma portinha acolá — jogando paciência, da primeira e única vez que vi Henry Brower. Éramos quatro, já dispostos a jogar pôquer; esperávamos apenas um quinto jogador para completar a mesa. Quando Jason Davidson me disse que George Oxley, nosso usual quinto companheiro, havia quebrado a perna e estava de cama, com ela engessada e pendurada em uma engenhoca de polias, pareceu que não teríamos qualquer jogo aquela noite. Eu contemplava a perspectiva de encerrá-la sem mais nada para desviar meus pensamentos da mente, além da paciência e de uma quantidade de uísque que me embotasse o cérebro, quando o sujeito no outro lado da sala disse, em voz clara e agradável:
— Se os cavalheiros falavam de pôquer, eu apreciaria muito tomar parte, caso não façam objeção.
"Ele estivera enterrado atrás de um exemplar do World de Nova York até então, de modo que quando ergui os olhos, foi a primeira vez que o vi. Era um rapaz de rosto velho, se entendem o que digo. Algumas das marcas que vi naquele rosto, começava a ver também no meu, desde a morte de Rosalie. Algumas — não todas elas. Embora o indivíduo não devesse ter mais do que vinte e oito anos, a julgar pelos cabelos, mãos e maneira de caminhar, seu rosto parecia marcado pela experiência, e os olhos, que eram muito escuros, mostravam mais do que tristeza; eram como que obcecados. Ele tinha uma excelente aparência, com um pequeno bigode em ponta e cabelos louros dando para escuro. Usava um terno marrom de bom corte e afrouxara o botão do colarinho alto.
— Meu nome é Henry Brower — apresentou-se ele.
"Davidson cruzou a sala imediatamente, a fim de apertar-lhe a mão. De fato, dava a impressão de que ia tomar a mão que Brower descansava no colo. Então, aconteceu algo estranho: Brower largou o jornal e ergueu as duas mãos, mantendo-as fora de alcance. A expressão em seu rosto era de puro horror.
"Davidson estacou, bastante confuso, mais perplexo do que zangado. Tinha apenas vinte e dois anos — Céus, como éramos jovens naquele tempo! — e era um tanto mimado.
"— Perdoem-me — disse Brower, com absoluta seriedade — mas nunca aperto mãos!" — Davidson pestanejou.
— Nunca? — exclamou. — Oh, mas que singular! E por que não?
"Bem, eu já lhes disse que ele era algo mimado.
Brower recebeu a pergunta da melhor maneira possível, com um sorriso aberto, embora um tanto perturbado.
— Acabo de voltar de Bombaim — explicou. — É uma cidade com excesso de população, suja, cheia de doenças e pestilência. As aves de rapina se pavoneiam e passeiam pelas próprias muralhas da cidade aos milhares. Estive lá durante dois anos, em uma missão comercial, e pareço ter tomado horror ao nosso costume ocidental de apertar mãos. Sei que sou tolo e descortês, mas não consigo dominar-me. Portanto, se tiver a bondade de perdoar-me e não guardar rancor...
— Somente com uma condição — disse Davidson, sorrindo.
— Qual seria?
— A de que viesse para a mesa e bebesse uma dose do uísque de George, enquanto vou convocar Baker, French e Jack Wilden.
"Brower sorriu para ele, assentiu e deixou o jornal de lado. Davidson fez um gesto impetuoso, unindo o polegar e o indicador em círculo, e saiu para ir buscar os outros. Eu e Brower caminhavamos para a mesa forrada de feltro verde e, quando lhe ofereci um drinque, ele declinou com um agradecimento, pedindo sua própria garrafa. Desconfiei que aquilo tivesse algo a ver com sua estranha mania, mas nada disse. Conheci homens, cujo pavor a micróbios e doenças foram muito além disso... como muitos de vocês.
Houve assentimentos de concordância.
— É bom estar aqui — disse-me Brower, com ar pensativo. — Tenho sentido falta de companhia, desde que voltei de meu posto. Não é bom para um homem ficar sozinho, compreenda. Acredito que, mesmo para o indivíduo mais auto-suficiente, ficar isolado dos semelhantes deve ser a pior forma de tortura!
"Ele disse isso com uma ênfase toda peculiar e eu assenti, porque já experimentara essa solidão nas trincheiras, geralmente à noite. Tornava então a experimentá-la, ainda mais aguda, após saber da morte de Rosalie. Vi-me simpatizando com ele, a despeito de sua auto proclamada excentricidade.
— Bombaim deve ser um lugar fascinante — falei.
— Fascinante... e terrível! Lá existem coisas com que nem sonha a nossa filosofia. A reação deles aos veículos motorizados chega a ser engraçada: as crianças fogem quando eles se aproximam, para depois os seguirem durante quarteirões. Acham o avião aterrorizante e incompreensível. Naturalmente que nós, os americanos, encaramos tais engenhos com absoluta equanimidade — até mesmo complacência! — mas afirmo que minha reação foi a mesma que a deles, quando pela primeira vez observei um mendigo de esquina engolir todo um pacote de agulhas de aço, para em seguida puxá-las, de uma em uma, pelas feridas abertas na ponta de seus dedos. Isso, no entanto, é algo que os nativos daquela parte do mundo aceitam com toda naturalidade.
— Talvez — acrescentou ele, com ar sombrio — as duas culturas nunca pretendessem fundir-se, mas manter para si mesmas suas separadas maravilhas. Para um americano, como eu ou o senhor, engolir um pacote de agulhas resultaria em morte lenta e terrível. No entanto, em relação a um automóvel...
"Brower deixou a frase em suspenso, enquanto uma expressão triste e soturna lhe vinha ao rosto. Eu me dispunha a falar, quando Stevens, o avô, apareceu com a garrafa de uísque para meu companheiro e, logo atrás dele, chegavam Davidson e os outros.
Davidson prefaciou as apresentações, dizendo:
— Já falei a eles sobre sua pequena mania, Henry, de modo que não há o que temer. Este é Darrel Baker, o barbudo de ar terrível é Andrew French e, por último, embora não menos importante, Jack Wilden. George Gregson você já conhece.
"Brower sorriu e assentiu para todos eles, em vez de lhes apertar as mãos. Foram trazidos três baralhos novos e fichas de pôquer, o dinheiro foi trocado por fichas, e o jogo começou.
"Jogamos por umas seis horas e ganhei cerca de duzentos dólares. Darrel Baker, que não jogava muito bem, perdeu cerca de oitocentos (e não que sentisse o prejuízo; seu pai era dono de três das maiores fábricas de sapatos na Nova Inglaterra), e os demais dividiram equitativamente comigo as perdas de Baker. Davidson ganhara uns dólares a mais e Brower uns a menos, mas para Brower aquilo foi uma façanha, já que suas cartas haviam sido excepcionalmente ruins, na maior parte da noite. Ele era destro, tanto na maneira tradicional de pedir cinco cartas, como na variedade mais recente do jogo, em que todas as cartas, exceto a primeira, são dadas a descoberto. Cheguei a pensar que, por várias vezes, Brower ganhara dinheiro por meio de astutos blefes, que eu próprio hesitaria em tentar.
"Houve uma coisa que percebi: embora bebesse muito — quando French se preparou para dar a última rodada, ele já esvaziara quase uma garrafa inteira de uísque — sua fala não se alterava em absoluto, seu jogo nunca vacilou e persistiu a sua curiosa fixação sobre o toque de mãos. Quando ganhava um bolo de apostas, ele jamais o tocava, caso alguém tivesse marcações ou troco, inclusive se "ficara limpo" e ainda com fichas para contribuir. Certa vez, quando Davidson colocou o copo perto do cotovelo dele, Brower recuou abruptamente, quase derrubando a própria bebida. Baker pareceu surpreso, mas Davidson deixou aquilo passar, sem fazer comentários.
"Momentos antes, Jack Wilden havia dito que horas mais tarde, naquela manhã, teria de ir até Albany, de maneira que só ficaria por mais uma rodada. Então, chegou a vez de French cartear e ele pagou para ver, com sete cartas.
"Posso recordar aquela mão final tão claramente como meu próprio nome, embora precise concentrar-me para dizer o que almocei ontem ou quem me acompanhou na refeição. Suponho que sejam os mistérios da idade, mas acho que se qualquer um de vocês estivesse lá, também recordaria como eu.
"Eu estava com duas cartas de copas viradas e uma a descoberto. Não poso falar sobre Wilden ou French, mas o jovem Davidson tinha o ás de copas e Brower o dez de espadas. Davidson apostou dois dólares — cinco era o nosso limite — e as cartas rodaram novamente. Pedi copas para firmar uma quadra. Brower ficou com um valete de espadas, para combinar com o seu dez. Davidson estava com um terno, que não pareceu melhorar sua mão, mas ainda assim, apostou três dólares.
— É a última rodada! — exclamou alegremente. — Sejam generosos, rapazes! Há uma dama que gostaria de sair da cidade comigo, amanhã à noite!
"Acho que eu não acreditaria em um adivinho, se ele me dissesse com que freqüência este comentário me perseguiria, nos momentos mais peculiares, até a data de hoje.
"French distribuiu nossa terceira rodada de cartas descobertas. Meu flush não me ajudou em absoluto, mas Baker, que era o grande perdedor, conseguiu casar alguma coisa — reis, suponho. Brower conseguira um duque de ouros, mas isso não pareceu adiantar muito. Baker apostou o limite em seu par, e Davidson prontamente o superou em cinco. Todos continuaram no jogo, sendo distribuída nossa última carta descoberta. Fiquei com o rei de copas, para completar meu fush, Baker recebeu uma terceira que combinou com seu par e a Davidson coube um segundo às, com o que seus olhos cintilaram. Brower conseguiu uma dama de paus e, juro para vocês, não entendi por que continuou jogando, pois suas cartas pareciam tão ruins, como as obtidas naquela noite.
"As apostas começaram a ficar um pouco mais firmes. Baker apostou cinco, Davidson colocou mais cinco, Brower aceitou o desafio.
— Não creio que meu jogo seja suficientemente bom — disse Jack Wilden e desistiu.
"Eu aceitei os dez e apostei outros cinco. Baker fez o mesmo.
"Bem, não vou cansá-los com uma descrição ponto por ponto. Direi apenas que havia um limite de três apostas por homem. Eu, Baker e Davidson, cada um por sua vez, aceitamos cada aposta e a elevamos em cinco dólares, a cada três vezes. Brower apenas aceitava cada aposta e a elevava, tomando a cautela de esperar até que todas as mãos estivessem desembaraçadas das apostas, antes de arriscar seu dinheiro. E ali havia um bocado de dinheiro — pouco mais de duzentos dólares — quando French distribuiu nossa última carta coberta.
"Houve uma pausa enquanto todos checávamos, embora de pouco valesse para mim; estava com minha mão e, pelo que podia ver na mesa, era boa. Baker apostou cinco, Davidson aumentou e esperamos para ver o que Brower faria. O rosto dele estava ligeiramente corado pelo álcool. Já tirara a gravata e desabotoara um segundo botão da camisa, mas parecia absolutamente calmo.
— Aceito... e aposto cinco — disse ele.
"Pestanejei um pouco, pois tinha certeza de que ele ia desistir. No entanto, as cartas em minha mão me diziam que eu devia jogar para ganhar, de maneira que apostei cinco.
Jogávamos sem qualquer limite para o número de apostas que um jogador podia fazer sobre a última carta, de maneira que o bolo cresceu maravilhosamente. Fui o primeiro a parar, satisfeito em apenas pagar para ver, em vista da flush hand que tinha, cada vez mais e mais seguro da mão que os outros possuiriam. Baker foi o seguinte a parar, pestanejando desconfiadamente, enquanto seus olhos iam do par de ases de Davidson para o mistificador refugo em poder de Brower. Baker não era o melhor jogador do mundo, porém bom o suficiente para farejar algo no vento.
"Entre ambos, Davidson e Brower apostaram pelo menos mais dez vezes, talvez até mais ainda. Eu e Baker fomos envolvidos, não querendo abandonar nossos grandes investimentos. Nós quatro havíamos ficado sem fichas, de maneira que agora, sobre elas, assentavam-se notas esverdeadas.
— Bem, — disse Davidson, em seguida à última aposta de Brower. — Acho que pago para ver. Se esteve blefando, Henry, saiu-se muito bem. De qualquer modo, você está por baixo e Jack tem uma longa viagem pela frente amanhã.
"Com isto, ele colocou uma nota de cinco dólares sobre a pilha.
— Estou pagando para ver — disse ele.
"Não sei quanto aos outros, mas eu senti um nítido alívio, que pouco tinha a ver com a grande soma de dinheiro que já arriscara. O jogo estava se tornando implacável e, embora eu e Baker pudéssemos suportar um prejuízo, se fosse o caso, Jason Davidson não podia. No momento, ele estava em dificuldades, vivendo dos rendimentos de ações — não uma grande quantidade — que uma tia lhe legara. E Brower — até onde suportaria o prejuízo? Lembrem-se, senhores, de que a esta altura, havia mais de mil dólares sobre a mesa.
George fez uma pausa. Seu cachimbo se apagara.
— E então, o que aconteceu? — perguntou Adley, inclinando-se para diante. — Não nos torture, George! Estamos todos sentados na borda das cadeiras. Derrube-nos delas ou ponha-nos sentados decentemente!
— Tenham paciência — disse George, imperturbável.
Apanhou outro fósforo, riscou-o na sola do sapato e sugou seu cachimbo. Esperamos ansiosamente, em silêncio. Lá fora, o vento guinchava e fustigava os beirais. Quando o cachimbo acendeu-se e tudo pareceu em ordem, George prosseguiu:
— Como sabem, segundo as regras do pôquer, o homem que paga para ver, deve ser o primeiro a mostrar suas cartas. Contudo, Baker estava ansioso para encerrar a tensão; virou uma de suas três cartas, com o que formou um four de reis.
— Não dá para mim — falei. — Um flush.
— Acabei com você — disse Davidson para Baker, enquanto mostrava duas de suas cartas viradas. Dois ases, formando um four. — Muitíssimo bem jogado...
"Davidson estendeu a mão para recolher a dinheirama da mesa.
— Um momento! — exclamou Brower.
"Ele não estendeu o braço para tocar a mão de Davidson, como a maioria teria feito, porém sua voz foi o bastante. Davidson fez uma pausa para olhar e sua boca caiu — realmente caiu aberta, como se todos os músculos houvessem virado água. Brower havia virado todas as três cartas que tinha cobertas, revelando um straight flush, do oito à dama.
— Creio que isto derruba seus ases, não? — perguntou polidamente.
"Davidson ficou vermelho, depois pálido.
— Derruba — disse lentamente, como se descobrisse o fato pela primeira vez. — Sim, tem razão.
"Eu daria tudo para saber qual a motivação de Davidson para o que houve em seguida.
Ele estava a par da extrema aversão de Brower em ser tocado, o homem já dera isso a entender e cem maneiras diferentes aquela noite. Talvez apenas Davidson houvesse esquecido, em seu desejo de mostrar a Brower (e a todos nós) que podia suportar a perda e mesmo aceitar aquela grande reversão com esportividade. Já disse que ele tinha algo de criança mimada, de modo que tal gesto poderia fazer parte de seu caráter.
Enfim, era como um inofensivo cãozinho. Só que, cãezinhos também agridem quando provocados. Não são matadores — um filhote não saltará para a garganta do adversário, mas muita gente já levou pontos nos dedos, por irritar um cãozinho além das medidas, com um chinelo ou um osso de borracha. Da maneira como me lembro de Davidson, isto também devia ser parte de seu caráter.
"Eu daria, não sei como dizer, daria qualquer coisa para saber... mas acho que o único importante são os resultados.
"Quando Davidson afastou as mãos do bolo de apostas, Brower estendeu as suas para apanha-lo. Nesse instante, o rosto de Davidson iluminou-se com uma espécie de rude simpatia e, pegando a mão de Brower em cima da mesa, sacudiu-a firmemente.
— Brilhante jogada, Henry, foi simplesmente brilhante. Acredito que nunca já tinha...
"Brower o interrompeu com um grito agudo, um grito feminino, que soou aterrador em meio ao silêncio da sala de jogos, enquanto puxava rapidamente a mão. Fichas e dinheiro cascatearam por todos os lados, quando a mesa oscilou e quase emborcou.
"Ficamos todos imobilizados ante a súbita reviravolta dos fatos, incapazes de qualquer gesto. Brower afastou-se da mesa, cambaleando, com a mão estirada à sua frente, parecendo uma versão masculina de Lady Macbeth. Estava pálido como um cadáver, e o espantoso terror em seu rosto está além de meu poder de descrição. Senti um sacolejo de pavor me tomar por inteiro, algo como jamais sentira antes, nem mesmo ao me entregarem o telegrama com a notícia da morte de Rosalie.
"Então, ele começou a gemer. Era um som oco, terrível, enigmático. Recordo que pensei, Ora, o homem está totalmente louco; depois ele disse a coisa mais estranha: "O interruptor... Deixei o interruptor do carro ligado... Oh, Deus, sinto tanto!" A seguir, Brower quase voou pelos degraus da escada que leva ao saguão principal.
"Fui o primeiro a refazer-me. Saltei de minha cadeira e corri atrás dele, deixando Baker, Wilden e Davidson sentados em torno da grande quantia de dinheiro que Brower havia ganho. Eles pareciam estátuas incas entalhadas, guardando um tesouro tribal.
"A porta da fachada ainda oscilava de um lado para outro. Quando disparei para a rua, vi Brower em seguida, parado à beira da calçada e olhando inutilmente por um táxi. Ao ver-me, ele se encolheu tão miseravelmente, que não pude deixar de sentir pena, mesclado de espanto.
— Ei! — chamei. — Espere! Lamento o que Davidson fez e posso garantir que não foi proposital. Enfim, se você quer ir embora por causa daquilo, tem todo o direito, mas deixou muito dinheiro para trás e deve leva-lo.
— Eu nunca devia ter vindo — resmungou ele. — Contudo, estava tão desesperado, tão necessitado de companhia humana que... que...
"Sem refletir, estirei a mão para toca-lo — o gesto mais elementar de um ser humano para outro que esteja angustiado — mas Brower recuou, exclamando:
— Não me toque! Um não é o bastante? Oh, Deus, porque eu simplesmente não morro?
"De repente, seus olhos se iluminaram como que febricitantes, ao avistar um vira-lata esquelético, de pelo coçado e ralo, que procurava alcançar a calçada do outro lado da rua deserta, àquela hora da madrugada. A língua do animal pendia para fora da boca e ele caminhava apoiando-se cautelosamente em apenas três pernas. Imagino que estivesse em busca de latas de lixo onde alimentar-se.
— Aquele lá podia ser eu — disse Brower pensativamente, como se para si mesmo. — Rejeitado por todos, forçado a seguir sozinho e aventurar-se apenas quando qualquer outra criatura viva está em segurança, atrás de portas trancadas. Cão pária!
— Ora, vamos — falei, algo consternado, porque suas palavras tinham um toque de melodramático. — Você certamente sofreu algum choque e, sem dúvida, aconteceu algo que deixou seus nervos em mau estado, mas quando estive na Guerra, vi mil coisas que...
— Não acredita em mim, não é mesmo? — exclamou ele. — Pensa que estou tomado por algum tipo de histeria, não é?
— Escute, amigo, realmente não sei por que está tomado, mas sei que se continuarmos aqui fora, neste ar úmido da noite, ambos pegaremos uma gripe. Enfim, se não se importa em voltar para dentro comigo — pelo menos até o saguão, se quiser — eu pedirei a Stevens para...
"Os olhos dele estavam alucinados o bastante para que eu ficasse francamente inquieto.
Naquelas pupilas não restara qualquer sombra de lucidez e ele me fez recordar os psicóticos com fadiga de combate, que vira serem removidos da linha de frente em carroças: invólucros de homens, com terríveis olhos apáticos, parecendo vigias para o inferno, murmurando e tremendo.
— Gostaria de ver como um proscrito reage a outro? — perguntou ele, como se não tivesse ouvido uma palavra do que eu dissera. — Pois dê uma espiado e veja o que aprendi em portos de escala estrangeiros!
De repente, ele levantou a voz e chamou, imperiosamente:
— Cão!
"O cão ergueu a cabeça, olhou para ele desconfiado, os olhos girando (um cintilou com furiosa selvageria; o outro estava coberto por uma catarata), e subitamente mudou de direção e se aproximou coxeando, relutante, enquanto cruzava a rua ao encontro de Brower.
"Ele não queria vir, isso era bastante óbvio. Ganiu, rosnou e enfiou entre as pernas a corda ensebada que era sua cauda. Entretanto, acabou vindo. Foi direto aos pés de Brower e então se deitou sobre o ventre, ganindo, encolhendo-se e tremendo. Seus lados emaciados afundavam e expandiam-se como um fole e seu olho sadio girava horrivelmente na órbita.
"Brower deu uma hedionda e desesperada gargalhada, que ainda ouço em meus sonhos, e agachou-se junto ao cão.
— Está vendo? — disse. — Ele me conhece como um de sua espécie... e sabe o que lhe trago!
"Brower estendeu a mão para o animal, que deixou escapar um lúgubre e rosnado uivo, depois mostrando os dentes.
— Não! — exclamei prontamente. — Ele vai mordê-lo!
"Brower não ligou. À claridade do poste de luz, seu rosto estava lívido, medonho, os olhos eram como buracos negros, carbonizados.
— Tolice — respondeu. — Tolice. Só quero apertar mãos com ele... como fez seu amigo comigo!
"De repente, ele ergueu a pata do cão e a apertou. O animal emitiu um horrível ruído uivante, porém não fez qualquer gesto para mordê-lo.
"Brower levantou-se abruptamente. Seus olhos pareciam ter clareado de algum modo e, a não ser pela excessiva palidez, poderia ter sido novamente o homem que, da maneira mais cortês possível, oferecera-se para participar de nosso jogo, nas primeiras horas da noite.
— Vou embora agora — disse, em voz quieta. — Por favor, desculpe-me com seus amigos, diga a eles que sinto muito ter agido como um tolo. Talvez tenha oportunidade para... redimir-se, em outra ocasião.
— Nós é que lhe devemos uma desculpa — falei. — E esqueceu o dinheiro? Passa de mil dólares.
— Oh, sim! O dinheiro! — exclamou ele, enquanto a boca se curvava no sorriso mais amargo que já testemunhei.
— Não precisa vir até o saguão — falei. — Se prometer ficar esperando aqui, eu lhe trarei o dinheiro. Fará isso?
— Claro — respondeu ele. — Esperarei, se é o seu desejo. — Ele fitou pensativamente o cão que gania aos seus pés. — Talvez ele queira ir comigo e ter uma refeição decente, por uma vez em sua vida miserável...
"Brower tornou a exibir aquele sorriso amargo. Afastei-me antes que ele mudasse de idéia e fui ao andar de baixo. Alguém, talvez Jack Wilden, que sempre fora uma pessoa metódica, trocara todas as fichas por notas e empilhara o dinheiro cuidadosamente, no centro do pano verde. Nenhum deles falou, quando apanhei o dinheiro. Baker e Jack Wilden fumavam em silêncio; Jason Davidson estava cabisbaixo, fitando os pés. Seu rosto era um quadro de desgosto e vergonha. Toquei-lhe o ombro ao voltar para a escada e ele me olhou com gratidão.
"Quando voltei à rua, encontrei-a absolutamente deserta. Brower já se fora. Fiquei lá, com um punhado de notas esverdeadas em cada mão, olhando inutilmente para os dois extremos da rua, mas nada se moveu. Chamei uma vez, para o caso dele estar parado nas sombras, perto dali, mas não houve resposta. Então, olhei casualmente para baixo. O vira-lata continuava ali, mas seus dias de vistoriar latas de lixo haviam terminado.
Estava morto. Pulgas e carrapatos abandonavam seu corpo, em colunas que marchavam.
Recuei, repugnado, mas também cheio de um estranho, fantástico terror. Tive o pressentimento de que Henry Brower ainda não saíra de minha vida, e assim foi, embora nunca mais voltasse a vê-lo.
O fogo na lareira havia morrido para pequenas e frágeis chamas, enquanto o frio começava a esgueirar-se das sombras, porém ninguém se moveu nem falou, até George tornar a acender seu cachimbo. Ele suspirou, cruzou as pernas de novo, fazendo as velhas juntas estalarem, e recomeçou a falar.
— Nem preciso dizer que os outros participantes do jogo foram unânimes quanto a devermos encontrar Brower e entregar-lhe o dinheiro. Penso que alguns talvez nos julgassem insanos por agirmos assim, mas aquela era uma época de mais honorabilidade. Davidson estava muito abatido, quando foi embora; tentei chamá-lo a um lado e oferecer-lhe algumas palavras de consolo, mas ele apenas abanou a cabeça e saiu, arrastando os pés. Deixei que se fosse. As coisas lhe pareceriam diferentes, após uma noite de sono, e iríamos procurar Brower, juntos. Wilden precisava sair da cidade e Baker tinha que fazer algumas "excursões sociais". Pensei que seria uma boa forma de Davidson recuperar parte do amor próprio.
"Entretanto, ao voltar ao seu apartamento, na manhã seguinte, ele ainda não se levantara. Eu poderia tê-lo acordado, mas Davidson era um homem jovem e resolvi deixá-lo passar a manhã dormindo, enquanto eu descobria alguns fatos elementares.
"Vim aqui, antes de mais nada, e conversei com Stevens...
George se virou para Stevens e ergueu uma sobrancelha.
— Com meu avó, senhor — disse Stevens.
— Obrigado.
— Não tem de que, senhor.
— Conversei com o avô de Stevens. Falei com ele no lugar exato em que Stevens se encontra agora, para ser verdadeiro. Ele disse que Raymond Greer, um sujeito a quem eu conhecia de vista, havia falado sobre Brower. Greer fazia parte da comissão mercantil da cidade e fui imediatamente a seu escritório, no Edifício Flatiron. Encontrei-o lá e ele veio falar comigo em seguida.
Quando lhe contei o sucedido na noite anterior, seu rosto se encheu de uma mescla de piedade, tristeza e medo.
— O pobre e velho Henry! — exclamou. — Eu sabia que isso acabaria acontecendo, porém nunca pensei que fosse tão depressa.
— De que está falando? — perguntei.
— De seu colapso — disse Greer. — Tudo começou a partir daquele ano passado em Bombaim e suponho que ninguém jamais saberá de toda a história, além do próprio Henry. De qualquer modo, eu lhe contarei o que puder.
"A história que Greer desenrolou para mim aquele dia, em seu escritório, só aumentou minha simpatia e compreensão. Tudo indicava que, infelizmente, Henry Brower se vira envolvido em verdadeira tragédia. E, como em todas as clássicas tragédias do palco, ela nasceu de um descuido fatal — no caso de Brower, do esquecimento.
"Como membro do grupo de comissão mercantil em Bombaim, ele desfrutava do uso de um automóvel, uma real raridade no lugar. Greer comentou que Brower sentia um prazer quase infantil em dirigi-lo através das ruas estreitas e becos da cidade, assustando galinhas em enormes bandos cacarejantes e fazendo com que homens e mulheres caíssem de joelhos, apelando para seus deuses pagãos. Ele rodava com aquele carro por todo canto, atraindo grande atenção e compactas multidões de crianças maltrapilhas, que o seguiam mas sempre recuavam timidamente ao lhes ser oferecida uma carona naquela máquina maravilhosa, o que ele constantemente fazia. O automóvel era um Ford Modelo-A, com carroceria de caminhão, um dos primeiros veículos a dar partida ao motor, não somente através de uma manivela, porém ao toque de um botão. Peço-lhes que se lembrem disto.
"Certo dia, Brower partiu com seu carro para um lugar muito afastado da cidade, um dos altos poobatrs locais, esperando conseguir possíveis consignações de corda de juta.
Atraiu a atenção costumeira, quando a máquina Tórd trovejava e espoucava através das ruas, soando como uma barragem de artilharia em movimento — e, naturalmente, as crianças o seguiram.
"Brower jantaria com o fabricante de juta, uma ocasião de grande cerimônia e formalidade. Mal haviam chegado ao segundo prato, sentados em um terraço ao ar livre, acima da rua movimentada, quando o familiar tiroteio, o rugido tossido do automóvel soou abaixo deles, acompanhados por gritos e guinchos estridentes.
"Um dos garotos mais audaciosos — filho de um obscuro homem santo tinha-se esgueirado para o interior do carro, convencido de que fosse qual fosse o dragão escondido debaixo do capô de ferro, não despertaria sem o homem branco sentado atrás do volante. E Brower, preocupado com as próximas negociações, deixara o interruptor ligado e a faísca retardada.
"Pode-se imaginar o garoto ganhando audácia ante os olhos dos companheiros, enquanto tocava o espelho, segurava o volante e emitia o ruído do motor em movimento. A cada vez que ele zombava do dragão debaixo do capô, deve ter aumentado o temor respeitoso no rosto dos outros.
"Seu pé deve ter pisado no pedal da embreagem, talvez em busca de apoio, quando ele apertou o botão de partida. O motor estava quente, deve ter dado sinal de vida prontamente. Em seu extremo terror, o menino talvez reagisse afastando imediatamente o pé da embreagem, pronto para pular do automóvel. Se o carro fosse mais velho ou estivesse em piores condições, o motor teria morrido. Contudo, Brower cuidava dele escrupulosamente. de maneira que o carro saltou para diante, em uma série de arremetidas e ruidosos sacolejos. Brower mal chegou em tempo de ver isto, ao correr para fora da casa do fabricante de juta.
"O engano fatal do menino poderia ter resultado em pouco mais do que um acidente.
Talvez, em sua movimentação para sair, um cotovelo tenha esbarrado acidentalmente no acelerador de mão. Ou talvez ele o houvesse puxado, com a apavorada esperança de ser assim que o homem branco asfixiava o dragão, pondo-o para dormir. Seja como for... aconteceu. O carro ganhou uma velocidade suicida e arremeteu pela rua congestionada e cheia de gente, saltando sobre trouxas e fardos, esmagando as gaiolas de vime do mascate de animais, estraçalhando uma carroça de flores até deixá-la em pedaços. O automóvel rugiu ladeira abaixo, em direção à esquina da rua, saltou para cima da calçada, chocou-se contra um muro de pedras e explodiu em uma bola de fogo.
George fez o cachimbo deslizar de um lado da boca para o outro.
— Foi tudo quanto Greer me contou, porque Brower nada mais lhe havia dito que fizesse sentido. O restante foi uma espécie de confusa arenga sobre a loucura de suas culturas tão díspares, que jamais se mesclavam. Evidentemente, o pai do menino morto enfrentou Brower, antes que este fosse chamado de volta, e atirou nele uma galinha estrangulada. Houve uma praga...
"Neste ponto, Greer sorriu para mim. Seu sorriso dizia que ambos éramos homens do mundo. Acendendo um cigarro, ele comentou:
— Sempre há uma praga, quando acontece uma coisa deste tipo. Os pagãos miseráveis precisam manter as aparências a todo custo. Trata-se do seu ganha pão.
— Qual foi a praga? — perguntei.
— Pensei que adivinharia — disse Greer. — O wallait disse a ele que, quando um homem faz feitiçaria contra uma criança, deveria tornar-se um pária, um proscrito. Então, afirmou a Brower que qualquer coisa tocada por ele com as mãos, morreria. Para sempre e eternamente, amém — finalizou Greer, com uma risadinha abafada.
— Bower acreditou nisso?
"Greer achava que sim.
— Lembre-se de que ele havia sofrido um choque terrível. E agora, pelo que consta, sua obsessão aumentou, em vez de acabar.
— Poderia dar-me seu endreço?
"Greer verificou em seus arquivos e finalmente o encontrou.
— Não garanto que o encontre aí — disse. — As pessoas sentem uma relutância natural em empregá-lo e, que eu saiba, ele não anda muito bem de dinheiro.
"Senti uma onda de culpa ao ouvir isto, porém nada falei. Greer parecia um pouco bombástico e presunçoso para meu gosto, não merecendo a menor informação que eu tivesse sobre Henry Brower. Entretanto, ao levantar-me, algo me impeliu a dizer:
— Vi Brower apertar as patas de um vira-lata esta noite. Quinze minutos depois, o cão estava morto.
— É mesmo? Que interessante!
"Ele ergueu as sobrancelhas, como se o comentário nada tivesse a ver com o que havíamos discutido. Eu me dispus a sair e ia apertar a mão de Greer, quando a secretária abriu a porta de seu gabinete.
— Perdão, mas o senhor é o Sr. Gregson?
"Respondi que era.
— Um homem chamado Baker acabou de telefonar. Pediu-lhe que vá ao número vinte e três da Rua 19, imediatamente.
"Aquilo me deixou assustado, porque já estivera nesse endereço uma vez nesse dia — era onde morava Jason Davidson. Quando deixei o gabinete de Greer, ele acabava de retornar a seu cachimbo e ao The Wall Street Journal. Nunca mais tornei a vê-lo e isso não significou qualquer perda para mim. Naquele momento, eu me sentia tomado por um medo muito específico — do tipo que jamais se cristaliza inteiramente em um medo real, com um objeto fixo, porque é demasiado terrível, inacreditável demais, para ser levado em consideração.
Aqui, eu lhe interrompi a narrativa. — Pelo amor de Deus, George! Não vai nos dizer que ele estava morto?
— Foi exatamente o que aconteceu — replicou George. — Cheguei quase na mesma hora em que a perícia policial. Sua morte foi registrada como uma trombose coronária. Faltavam dezesseis dias para ele completar vinte e três anos.
"Nos dias que se seguiram, tentei convencer-me de que tudo havia sido uma perversa coincidência, que seria melhor esquecer. Não pude dormir bem, inclusive com a ajuda de meu bom amigo "Sr. Cutty Sark". Dizia a mim mesmo que a coisa a fazer seria dividir o bolo de apostas da noite anterior entre nós três e esquecermos que Henry Brower um dia cruzara nossas vidas. Contudo, era impossível.
Assim, preferi encher um cheque com aquela soma e fui ao endereço fornecido por Greer, que ficava no Harlem.
"Ele não morava mais lá. Seu novo endereço era no East Side, em um bairro ligeiramente pior, embora de respeitáveis prédios com fachada em arenito pardo.
Brower deixara aqueles alojamentos um mês antes do jogo de pôquer e agora vivia no East Village, uma área de edifícios arruinados.
"O zelador do prédio, um homem esquelético com um enorme mastim negro rosnando em seus joelhos, informou que Brower se mudara a três de abril — um dia após o nosso jogo. Solicitei seu novo endereço. Ele jogou a cabeça para trás e emitiu um ruído chiado que, aparentemente, funcionava como gargalhada.
— O único endereço que eles dão quando saem daqui, é o inferno, chefe. Enfim, algumas vezes fazem uma parada no Bowery, a caminho de lá.
"Naquela época, o Bowery era o que, hoje, só acreditam ser os que moram fora da cidade; moradia dos sem-lar, a última parada para os homens sem rosto que só se preocupam com outra garrafa de vinho barato ou outra pitada do pó branco que prova longos sonhos. Fui lá. Naqueles dias, havia dúzias de casas de cômodos, algumas missões benevolentes que aceitavam bêbados para pernoite e centenas de becos onde um homem poderia esconder um velho colchão, pululando de piolhos. Vi punhados de homens, todos eles pouco mais do que meros envoltórios, decorados pela bebida e pelas drogas. Nomes não eram conhecidos nem usados. Quando um homem afunda ao nível de um porão derradeiro, com o fígado apodrecido pelo álcool de madeira, o nariz uma ferida aberta e purulenta pelo cheirar constante de cocaína e potassa, os dedos ulcerados pelo frio, dentes apodrecidos até se tornarem tocos enegrecidos — um homem não precisa mais de nome. Contudo, descrevi Henry Brower a todos os homens que vi, sem obter resposta.
Balconistas de bar abanavam a cabeça e davam de ombros. Os outros apenas olhavam para o chão e continuavam andando.
"Não o encontrei naquele dia, no seguinte, nem no outro. Duas semanas passaram e então falei a um homem que me informou sobre um indivíduo semelhante haver estado nos Quartos Devarney's, três noites antes.
"Fui até lá; ficava apenas a dois quarteirões da área que eu estava cobrindo. O homem na portaria era um ancião enrugado, com uma calva soltando peles, olhos purulentos e brilhantes. Os quartos para alugar eram anunciados na vidraça suja pelas moscas em uma janela dando para a rua, a um dime por noite. Repeti-lhe minha descrição de Brower, com o velho assentindo o tempo todo. Quando terminei, ele disse:
— Eu o conheço, meu jovem. Conheço-o bem. Contudo, não consigo recordar bem... Minha memória fica bem mais lúcida quando vejo um dólar.
"Dei-lhe um dólar, que ele fez desaparecer rapidamente, apesar de sua artrite.
— Ele esteve aqui, meu jovem, mas já se foi.
— Sabe para onde?
— Não me lembro bem — disse o velho — mas creio que minha cabeça ficaria melhor, se eu visse um dólar.
"Dei-lhe uma segunda nota, que desapareceu tão prontamente como a primeira. A esta altura, algo pareceu ocorrer-lhe como sendo francamente engraçado, de maneira que uma tosse rangente e tubercular lhe saiu do peito.
— Já teve sua diversão — falei — e foi muito bem paga. Agora, quero que me diga: sabe onde este homem se encontra?
"O velho tornou a rir deliciadamente.
— Sim, a vala dos indigentes é sua nova residência; seu contrato de aluguel tem duração da eternidade e o Diabo é seu companheiro de quarto. Como pode gostar desses tipos, meu jovem? Ele deve ter morrido a qualquer hora da manhã de ontem, porque quando o encontrei, ao meio-dia, ainda estava morno e tinha cores. Sentado empertigado junto à janela, era bem como estava. Fui até lá, para cobrar seu dime por mais uma noite ou mostrar-lhe a porta da rua. Quando acaba, a cidade é que lhe mostrou sete palmos de terra.
"Isto provocou-lhe outro acesso desagradável de alegria senil.
— Havia alguma coisa fora do comum? — indaguei, sem ousar refletir bem na importância da pergunta. — Algo anormal?
— Acho que me lembro de qualquer coisa assim... Vejamos...
"Dei-lhe mais um dólar para avisar sua memória, mas desta vez o dinheiro não causou hilaridade, embora sumindo à mesma velocidade anterior.
— Sim, passou-se algo muito estranho — afirmou o velho. — Já tenho chamado os tiras vezes suficientes para saber disso. Sagrado Coração de Jesus, como precisei chamá-los!
Já encontrei esses sujeitos pendurados da bandeira da porta, encontrei-os mortos na cama, encontrei-os do lado de fora, na escada de incêndio, em janeiro, com uma garrafa entre os joelhos congelados e tão azuis como o Atlântico. Cheguei a encontrar um que se afogara na pia, embora tenha sido há uns trinta anos. Só que este de agora — sentado empertigado, com seu terno marrom, parecendo um endinheirado da cidade, os cabelos bem penteados... Bem, ele segurava o pulso direito com a mão esquerda, segurava sim. Já vi de todas as espécies, porém ele foi o único que vi se cumprimentando, apertando a própria mão.
"Saí dali e caminhei todo o trajeto até as docas, enquanto as últimas palavras do velho pareciam girar e girar em meu cérebro, como um disco, engasgado em um único sulco.
Ele foi o único que vi apertando a própria mão.
"Andei até o final de um dos embarcadouros, lá onde a água cinzenta e terrosa lambe os pilares incrustados. Então, piquei aquele cheque em mil pedacinhos, que atirei à água.
George Gregson remexeu-se na cadeira e pigarreou. O fogo se extinguira, restando apenas brasas relutantes, enquanto o frio se esgueirava para o interior da deserta sala de jogos. As mesas e cadeiras pareciam espectrais e irreais, como móveis vislumbrados em um sonho, onde passado e presente se fundiam. As chamas destacaram as letras entalhadas na platibanda da lareira, com fosca luminosidade alaranjada: É A HISTÓRIA, NÃO QUEM A CONTA.
— Eu só o vira uma vez, mas foi o suficiente, porque nunca mais o esqueci. Contudo, serviu para que encerrasse meu próprio período de carpir, pois qualquer homem que pode caminhar entre seus semelhantes, não se encontra inteiramente só.
"Se trouxer meu casaco, Stevens, acho que vou caminhando até em casa — há muito passou da minha hora de ir para a cama.
Quando Stevens lhe trouxe o casaco, George sorriu e apontou para a pequena verruga, logo abaixo do canto esquerdo da boca do mordomo.
— Francamente, a semelhança é mesmo notável — seu avô tinha uma verruga nesse exato lugar.
Stevens sorriu e nada disse. George saiu. Nós, os restantes, fomos saindo logo depois dele.
O MACACO
Quando Hal Shelburn o viu, no instante em que seu filho Dennis o tirou de uma caixa de papelão que contivera ração para cães Ralston-Purina e havia sido empurrada para o canto mais distante, debaixo do beiral do sótão, ficou tomado por tal sensação de horror e medo que, por um momento, julgou-se prestes a gritar. Colocou um punho sobre a boca, como para reter o grito... e então apenas tossiu sobre o punho. Terry e Dennis nada haviam percebido, mas Petey olhou em torno, momentaneamente curioso.
— Que barato! — exclamou Dennis, em tom respeitoso.
O próprio Hal raramente agora recebia o mesmo tom da parte do filho. Dennis já estava com doze anos.
— O que é isso? — perguntou Petey. Olhou novamente para o pai, antes de voltar os olhos para a coisa que o irmão mais velho havia descoberto. — O que é isso, papai?
— É um macaco, miolo-mole — disse Dennis. — Será que nunca viu um macaco antes?
— Não chame seu irmão de miolo-mole — disse Terry automaticamente, começando a examinar uma caixa cheia de cortinas. As cortinas estavam escorregadias de bolor, e ela as largou bruscamente. — Irrk!
— Posso ficar com ele, papai? — perguntou Petey.
Petey tinha nove anos.
— Ei, de que está falando? — exclamou Dennis. — Eu o achei!
— Meninos, por favor — disse Terry. — Estou ficando com dor de cabeça!
Hal parecia não ouvi-los. O macaco cintilou para ele, das mãos de seu filho mais velho, exibindo-lhe o velho e familiar sorriso. O mesmo sorriso que assombrara seus pesadelos em criança, assombrando-os a tal ponto, que tivera de...
Lá fora, levantou-se uma fria rajada de vento e, por um instante, lábios sem carne alguma sopraram uma prolongada nota, através da velha e enferrujada calha externa.
Petey chegou mais para perto do pai, os olhos movendo-se inquietamente pelo rústico teto do sótão, através do qual salientavam-se cabeças de pregos.
— O que foi isso, papai? — perguntou, quando o assobio morreu para um zumbido gutural.
— Apenas o vento — respondeu Hal, ainda olhando para o macaco. Seus címbalos, crescentes de latão, em vez de círculos completos, à luminosidade mortiça da única lâmpada nua, permaneciam imóveis, talvez a trinta centímetros de distância, e ele acrescentou, automaticamente: — O vento pode assobiar, mas não consegue cantar.
Percebeu então que repetia uma frase do Tio Will e sentiu-se arrepiar. A nota repetiu-se, o vento procedendo do Lago Cristal, em prolongada e tonitroante investida, para então tremular na calha. Meia dúzia de pequenas rajadas lançaram o frio ar de outubro no rosto de Hal — Céus, aquele lugar era tão semelhante ao armário dos fundos, na casa em Hartfold, que todos poderiam ter sido transportados trinta anos atrás no tempo.
Não quero pensar nisso.
Só que agora, naturalmente, era tudo em que ele podia pensar.
No armário dos fundos, onde encontrei esse maldito macaco, naquela mesma caixa.
Terry se distanciara, a fim de examinar um caixote cheio de bugigangas, caminhando agachada, porque a inclinação do beiral era muito acentuada.
— Não gosto dele — disse Petey, e procurou a mão de Hal. — Dennis que fique com ele, se quiser. Podemos ir embora, papai?
— Está com medo de fantasmas, seu galinha morta? — perguntou Dennis.
— Dennis, pare com isso! — exclamou Terry, com ar ausente. Apanhou uma xícara de transparente porcelana, com um motivo chinês. — Que linda! Que...
Hal viu que Dennis encontrara a chave de dar corda, nas costas do macaco. O terror voou através dele, em asas soturnas.
— Não faça isso!
A frase lhe saiu mais brusca do que pretendia e já arrancara o macaco das mãos de Dennis, antes de realmente ter consciência do que fazia. Dennis olhou em torno, espantado. Terry também havia olhado por sobre o ombro, enquanto Petey erguia o rosto para o pai. Durante um momento, ficaram todos em silêncio, e o vento tornou a assobiar, em tom muito grave desta vez, como um desagradável convite.
— Quero dizer, provavelmente a corda está quebrada — disse Hal.
Ela costumava estar quebrada... exceto quando não queria estar.
— Bem, não precisava arrancá-lo da minha mão — disse Dennis.
— Cale a boca, Dennis!
Dennis pestanejou e, por um instante, pareceu quase nervoso. Há muito tempo que o pai não lhe falava naquele tom. Não, desde que perdera o emprego na National Aerodyne, na Califórnia, dois anos antes, e se tinham mudado para o Texas. Dennis resolveu não insistir... por enquanto. Virou-se para a caixa de ração para cães e começou a esmiuçá-la novamente, mas o resto de seu conteúdo era pura quinquilharia. Brinquedos quebrados, sangrando molas e recheios.
O vento agora ficara mais alto, ululando, em vez de assobiar. O sótão começou a estalar maciamente, produzindo um ruído semelhante ao de pisadas.
— Vamos, papai? — pediu Petey, alto apenas para que o pai o ouvisse.
— Certo — disse Hal. — Vamos embora Terry.
— Ainda não acabei com isto...
— Eu disse para irmos.
Foi a vez dela se voltar, para fitá-lo com espanto.
Eles haviam tomado dois quartos vizinhos em um motel. Às dez daquela noite, os meninos dormiam em seu quarto e Terry dormia no outro. Ela tomara dois Valiums, no trajeto de volta de casa, em Casco. Para evitar que os nervos a deixassem com enxaqueca. Ultimamente, ela vinha tomando um bocado de Valium. Tudo começara mais ou menos na época em que a National Aerodyne havia despedido Hal. Nos dois últimos anos ele vinha trabalhando para a Texas Instrumento — o que significava 4.000 dólares anuais a menos, mas era um emprego. Ele disse a Terry que estavam com sorte.
Ela concordou. Havia muitos arquitetos, desenhistas de software, desempregados, explicara Hal. Ela concordou. A firma em Arnette era tão boa quanto a de Fresno, disse ele. Ela concordou, mas Hal pensou que a concordância de Terry a tudo era uma mentira.
Além do mais, estava perdendo Dennis. Podia sentir que o menino se distanciava, alcançando uma prematura velocidade de fuga. Até logo, Dennis, adeus, estranho, foi bom estar no mesmo trem com você. Terry achava que o menino andava fumando maconha, porque algumas vezes tinha sentido o cheiro. Você precisa falar com ele. Hal.
E ele concordara, só que até então não tinha falado.
Os meninos dormiam. Terry dormia. Hal foi para o banheiro, trancou a porta, sentou-se sobre a tampa fechada da privada e olhou para o macaco.
Odiava a sensação que ele dava a seu tato, com aquele macio pêlo espesso e castanho, já careca em alguns pontos. Odiava seu sorriso — esse macaco sorri igualzinho a um negro, havia dito Tio Will certa vez, mas ele não sorria como um negro ou qualquer coisa humana. Seu sorriso era todo dentes, e quando se dava a corda, os lábios mexiam, os dentes pareciam maiores, tornavam-se dentes de vampiro, os lábios repuxavam-se e os címbalos tocavam, macaco idiota, estúpido macaco de corda, estúpido, estúpido...
Deixou-o cair. Suas mãos tremiam e o deixaram cair.
A chave da corda produziu um estalido no banheiro ladrilhado, ao bater contra o chão.
O som pareceu muito alto, em meio à quietude. O macaco sorria para ele, com seus densos olhos ambarinos, olhos de boneca, repletos de um brilho idiota, seus címbalos de latão como que prestes a atacar uma marcha, para alguma banda do inferno. No fundo, estavam inscritas as palavras MADE IN HONG KONG.
— Você não pode estar aqui — sussurrou Hal. — Eu o joguei no fundo do poço, quando tinha nove anos.
O macaco sorriu para ele.
Lá fora, na noite, uma soturna rajada de vento sacudiu o motel.
Bill, irmão de Hal, foi encontrá-los com sua esposa Collete, em casa do Tio Will e Tia Ida, no dia seguinte.
— Já lhe passou pela cabeça que uma morte na família é, de fato, uma terrível maneira de renovar-se um parentesco? — perguntou Bill, com um leve sorriso.
Havia recebido esse nome em homenagem ao Tio Will. Will e Bill, campeões do rodeyo, costumava dizer o Tio Will, desmanchando os cabelos de Bill. Aquele era um de seus ditos... como o de que o vento pode assobiar, mas não consegue cantar. Tio Will falecera seis anos antes, e Tia Ida ficara morando ali, sozinha, até que um ataque cardíaco a levara, justamente na semana anterior. Uma morte súbita, havia dito Bill, ao dar a notícia a Hal, em um telefonema interurbano. Como se ele pudesse saber; como se alguém pudesse saber... Ela morrera sozinha.
— Hã-hã — respondeu Hal. — Já me passou pela cabeça.
Olharam juntos para a casa, o lar onde haviam terminado de crescer. O pai de ambos, um marujo mercante, simplesmente desaparecera quando eles eram pequeninos, como que da própria face da terra. Bill alegava recordar-se vagamente do pai, porém Hal não tinha a menor lembrança dele. A mãe morrera quando Bill tinha dez anos e Hal oito.
Então, Tia Ida os trouxera para ali, em um ônibus Greyhound que partia de Hartford. E ali haviam sido criados, dali tinham ido para a universidade. Aquele havia sido o lar do qual sentiam saudades. Bill continuara no Maine e agora tinha uma próspera banca de advocacia em Portland.
Hal viu que Petey vagava na direção do emaranhado de amoras-pretas, que ficava no lado leste da casa, em louca profusão.
— Fique longe daí, Petey! — gritou.
Petey olhou para trás, questionante. Hal sentiu-se invadir por uma onda de puro amor pelo menino... e, de repente, tornou a pensar no macaco.
— Por que, papai?
— O velho poço fica por aí, em algum lugar — Bill disse. — O curioso é que nem me lembro de onde. Seu pai tem razão, Petey — é um bom lugar para se ficar longe dele. Os espinheiros farão um belo trabalho em você. Não é mesmo, Hal?
— Correto — disse Hal, automaticamente.
Petey afastou-se, sem olhar para trás, começando a descer a rampa que ia dar na pequena faixa de praia, onde Dennis atirava pedras sobre a água. Hal sentiu que algo em seu peito afrouxava-se um pouco.
Bill podia ter esquecido a localização do velho poço, mas quando a tarde ia avançada, Hal o encontrou sem vacilar, abrindo caminho com os ombros entre a galharia que rasgou seu velho blusão de flanela e que lhe procurava os olhos. Chegou ao poço e ficou perto dele, respirando forte, olhando para as tábuas empenadas e apodrecidas que o cobriam. Após um momento de debate, ajoelhou-se (seus joelhos dispararam tiros gêmeos de pistola) e moveu duas tábuas para um lado.
Do fundo daquela garganta molhada e forrada de pedras, um rosto afogado olhou para ele, com olhos esbugalhados, a boca careteando. Um gemido escapou de sua boca. Um gemido alto, apenas no coração, onde quase se tornava um grito.
Era o seu próprio rosto, na água escura do poço.
Não o do macaco. Por um momento, Hal pensou que fosse o do macaco.
Estava trêmulo. Todo o seu corpo tremia.
— Eu o joguei dentro do poço. Eu o joguei dentro do poço, por favor, Deus, não me deixe, fui louco, eu o joguei dentro do poço.
O poço havia secado no verão em que Johnny McCabe morrera, um ano depois que Bill e Hal tinham vindo morar com Tio Will e Tia Ida. Tio Will fizera um empréstimo no banco para mandar perfurar um poço artesiano, de maneira que as amoras-pretas vicejaram desordenamente em torno do buraco do velho poço. O poço seco.
Exceto que a água voltara. Como o macaco.
Desta vez, a recordação não podia ser negada. Hal sentou-se ali, impotente, deixando a memória falar, tentando lidar com ela, controlá-la como um surfista, ao cavalgar uma onda mostro que o esmagará, se ele cair fora da prancha, apenas tentando atravessá-la, para que ela fosse embora outra vez.
Ele se esgueirara até ali com o macaco, no final daquele verão, com as amoras-pretas em plena maturação, desprendendo um cheiro forte e enjoativo. Ninguém ia lá para colhê-las, embora a Tia Ida às vezes chegasse até a orla das amoreiras, um verdadeiro matagal, e colhesse um punhado delas em seu avental. Junto ao poço, as amoras-pretas tinham amadurecido e passado do ponto, algumas apodreciam, deixando fluir um líquido branco e grosso, como pus, enquanto os grilos cantavam alucinadamente, na grama alta sob as amoreiras, soltando seu grito interminável: Riiiii ....
Os espinhos o feriram, produziram pontos de sangue em suas faces e braços nus. Ele não fez qualquer esforço para fugir às espetadelas. Estivera cego de terror — tão cego, que por centímetros não tropeçara nas tábuas carcomidas que cobriam o poço, talvez por centímetros não despencando nove metros, até o fundo lodoso do poço. Havia girado os braços para recuperar o equilíbrio, e mais espinhos lhe marcaram os braços. Essa lembrança é que o levara a chamar Petey de volta bruscamente.
Aquele era o dia em que Johnny McCabe morrera — seu melhor amigo. Johnny estivera subindo os degraus da escada de mão para a casa em cima da árvore, que havia em seu quintal. Eles dois haviam passado muitas horas daquele verão lá em cima, brincando de pirata, avistando galeões de faz-de-conta no lago, preparando os canhões para a ação, içando as velas auxiliares (o que quer que fossem elas), preparando-se para a abordagem.
Johnny subia para a casa da árvore, como havia feito mil vezes antes, quando o degrau logo abaixo do alçapão, no fundo da casa, escapara de sua mão. Ele despencara nove metros até o solo, quebrara o pescoço e o macaco era o culpado disso, o macaco, o maldito e odioso macaco. Quando o telefone tocou, quando a boca de Tia Ida se entreabriu formando um O de horror, enquanto sua amiga Milly, residente na estrada mais abaixo lhe dava a notícia, quando Tia Ida disse: "Venha até o alpendre, Hal, tenho que lhe dar uma notícia ruim..." ele havia pensado, com repugnado horror, O macaco! O que foi que o macaco fez agora?
Não houvera reflexo de seu rosto, capturado no fundo do poço, no dia em que jogou o macaco lá dentro, apenas seixos e o fedor da lama molhada. Ele havia olhado para o macaco, jazendo sobre a grama eriçada que crescia entre o labirinto das amoras-pretas, seus címbalos suspensos, os enormes dentes sorridentes, entre os lábios alargados em ângulo, o pêlo faltando em faixas calvas e sarnentas, aqui e ali, seus olhos vidrados.
— Odeio você! — sibilou para o macaco.
Envolveu as mãos em torno daquele corpo odioso, sentindo o pêlo espesso ranger. O macaco lhe sorriu, quando o ergueu diante do rosto.
— Vamos! — ordenou, começando a chorar, pela primeira vez naquele dia. Sacudiu-o. Os címbalos suspensos retiniram baixinho. O macaco estragava tudo que era bom. Tudo. — Vamos, toque-os! Toque-os!
O macaco apenas sorriu.
— Vamos, toque-os! — Sua voz elevou-se histericamente. — Bicho nojento, bicho nojento, comece a tocá-los! Estou ordenando! ORDENO DUAS VEZES!
Seus olhos castanho-amarelados. Seus enormes dentes sorridentes.
Ele o jogou então no fundo do poço, louco de dor e terror. Viu-o dar dois volteios enquanto caía, um acrobata simiano fazendo um truque, enquanto o sol brilhava uma última vez naqueles címbalos. Ele caiu no fundo com um baque e isso deve ter feito seu mecanismo funcionar, porque repentinamente, os címbalos começaram a bater. Suas batidas firmes, deliberadas e quase inaudíveis, chegaram até seus ouvidos, ecoando e ricocheteando na garganta de pedra do poço morto: jang jang jang jang...
Hal levou as duas mãos à boca e, por um momento, viu-o lá embaixo, talvez apenas com os olhos da imaginação... jazendo na lama, os olhos brilhando para o pequeno círculo de seu rosto de menino a espiar pela borda do poço (como que marcando aquele rosto para sempre), lábios expandindo-se e contraindo-se em torno dos dentes risonhos, os címbalos entrechocando-se, um engraçado macaco de corda.
Jang jang jang jang, quem é que está morto? Jang jang jang jang, é Johnny McCabe, caindo de olhos abertos, dando seu próprio salto acrobático, enquanto cai através do luminoso ar das férias de verão, com o degrau solto ainda nas mãos, até bater no chão com um único e amargo baque, o sangue escorrendo de seu nariz, da boca e dos olhos abertos? É Johnny. Hal? Ou é você?
Gemendo, Hal empurrou as tábuas sobre o buraco, com lascas de madeira penetrando em suas mãos, pouco se incomodando, só tomando consciência delas bem mais tarde. E, ainda assim, continuava a ouvi-lo, mesmo através das tábuas, um som agora sufocado e talvez ainda pior por isso: o macaco estava lá embaixo, no escuro forrado de pedras, batendo seus címbalos e contorcendo o corpo repulsivo, o som subindo, como sons ouvidos em um sonho.
Jang jang jang jang, quem está morto desta vez?
Lutando, ele abriu caminho através do matagal das amoras-pretas. Os espinhos traçaram novas linhas de sangue, o qual fluía vivamente por seu rosto, enquanto as bardanas lhe aderiam às bainhas do jeans. Caiu uma vez ao comprido, as orelhas ainda retinindo, como se o som o seguisse. Tio Will o encontrou mais tarde na garagem, soluçando e sentado em um pneu velho. O homem pensou que o menino chorava pelo amigo morto.
Claro que ele chorava por Johnny, mas também chorava no paroxismo do terror.
Hal atirara o macaco no fundo do poço, durante a tarde. Naquela noite, quando o crepúsculo intrometeu-se através de um brilhante manto de nevoeiro junto ao solo, um carro que corria rápido demais para a reduzida visibilidade na estrada, atropelara o gato Manx da Tia Ida e seguira em frente. Havia tripas espalhadas por toda parte. Bill vomitara, mas Hal apenas tinha virado o rosto, um rosto pálido e tenso, ouvindo os soluços da Tia Ida (a perda do gato, aliada à notícia sobre o garoto McCabe, desencadeara nela um acesso de choro quase histérico, praticamente se passando umas duas horas, ante que o Tio Will conseguisse acalmá-la de todo), como que a quilômetros de distância. No fundo de seu coração, boiava uma gélida e exultante alegria. Aquela não fora a sua vez. Tinha sido o gato Manx da Tia Ida, não ele, nem seu irmão Bill ou o Tio Will (apenas dois campeões do rodayo). E agora o macaco se fora, estava no fundo do poço, e um velho gato Manx, com micuins nos ouvidos, não era um preço muito alto a pagar. Se o macaco quisesse tocar seus címbalos infernais agora, que tocasse. Podia tocá-los e chocalhá-los para os besouros e insetos rastejantes, as coisas escuras que moravam na goela soturna do poço. Ele apodreceria lá embaixo. Suas engrenagens, rodas e molas odientas enferrujariam lá no fundo. O macaco morreria lá.
Na lama e escuridão. As aranhas lhe teceriam uma mortalha.
Contudo... ele voltara.
Lentamente, Hal tornou a cobrir o poço, justamente como havia feito naquele dia e, em seus ouvidos, ouviu o eco fantástico dos címbalos do macaco: Jang jang jang jang, quem morreu, Hal? É Terry? Dennis? É Petey, Hal? Ele é o seu favorito, não é? Não é ele?
Jang jang jang...
— Largue isso!
Petey sobressaltou-se e deixou o macaco cair. Por um momento de pesadelo, Hal pensou que iria acontecer, que a queda ativaria o mecanismo e que os címbalos começariam a tocar, a entrechocar-se.
— Papai, você me assustou.
— Desculpe. Eu só... não queria que você brincasse com isso.
Os outros tinham ido a um cinema e ele pensou que seria o primeiro a chegar ao motel.
Contudo, ficou mais tempo do que pretendia na casa que fora o seu lar; as velhas, odiosas memórias, pareciam mover-se em sua própria e eterna zona de tempo.
Terry estava sentada perto de Dennis, vendo Os montanheses Beierly. Ela fitava a velha e granulosa impressão com uma concentração fixa e estupidificada, que falava de uma dosagem recente de Valium. Dennis lia uma revista de rock, como Culture Club na capa. Petey, sentado de penas cruzadas no carpete, manipulava o macaco.
— Isto não funciona, de jeito nenhum — disse Petey.
Então, está explicado por que Dennis o deixou ficar com o macaco, pensou Hal. Ficou envergonhado e irritado consigo mesmo. Sentia essa descontrolada hostilidade contra Dennis cada vez com maior freqüência, porém, em resultado ficava humilhado e repugnado... impotente.
— Não — falou. — Está muito velho. Vou jogá-lo fora. Vamos, dê-me esse macaco.
Estendeu a mão. Parecendo perturbado, Petey entregou-lhe o brinquedo.
— Papai está ficando um perfeito esquizofrênico — disse Dennis para a mãe.
Hal havia cruzado o aposento, antes mesmo de perceber que o tinha feito, o macaco em uma das mãos, parecendo sorrir aprovadoramente. Segurando Dennis pela camisa, arrancou-o da cadeira. Houve um som ronronado, quando uma costura se rasgou em alguma parte. Dennis ficou quase comicamente chocado. Sua revista Rock Wave caiu ao chão.
— Ei!
— Você, venha aqui comigo — disse Hal severamente, empurrando o filho para a porta de comunicação entre os dois aposentos.
— Hal! — Terry quase gritou.
Petey apenas esbugalhou os olhos. Hal empurrou Dennis para o outro quarto, bateu a porta e então pressionou o garoto contra ela. Dennis começava a parecer assustado.
— Você está ficando um problema com sua língua — disse Hal.
— Largue-me! Você rasgou minha camisa, você...
Hal tornou a apertar o garoto contra a porta.
— Sim, senhor — disse. — Um verdadeiro problema com essa língua. Aprendeu isso na escola? Ou lá nos fundos, onde os alunos fumam?
Dennis ficou vermelho, o rosto momentaneamente transtornado pela culpa.
— Eu não estaria naquela escola ordinária, se não tivessem posto você na rua! — explodiu ele.
Hal pressionou novamente o filho contra a porta.
— Eu não fui posto na rua, fui dispensado, como sabe muito bem, e dispenso suas piadinhas a respeito! Você está com problemas? Bem-vindo ao mundo, Dennis. Apenas não jogue todos eles em cima de mim. Você está comento. Está com seu traseiro aquecido. Tem doze anos de idade e, com doze anos, eu não preciso... não preciso de... de droga nenhuma sua! — Hal pontuava cada frase com safanões para diante, até os narizes de ambos quase se tocarem. Então empurrou o garoto, batendo-o contra a porta.
Hal não o empurrava com dureza suficiente para machuar, mas Dennis estava assustado — seu pai não lhe batera desde que tinham vindo para o Texas — e agora ele começou a chorar, em soluços fortes, zurrados e estentóreos de criança pequena.
— Vamos, pode me bater! — gritou para Hal, o rosto torcido e descomposto. — Pode me bater se quiser, eu sei o quanto me odeia!
— Eu não o odeio, pelo contrário. Gosto demais de você, Dennis, mas sou seu pai. Você tem que me respeitar ou terei de surrá-lo para que me respeite!
Dennis tentou libertar-se. Hal puxou o garoto para si e o abraçou. Dennis lutou por um momento, mas então encostou o rosto no peito do pai e chorou, como se exausto. Era o tipo de choro que Hal não ouvia em anos, de nenhum de seus filhos. Fechou os olhos, percebendo que também se sentia exausto.
Terry começou a esmurrar o outro lado da porta.
— Pare com isso, Hal! Seja lá o que for que estiver fazendo com ele, pare!
— Eu não o estou matando — disse Hal. — Vá embora, Terry.
— Você não...
— Está tudo bem, mãe — disse Dennis, a voz abafada contra o peito de Hal.
Hal pôde sentir o silêncio perplexo da esposa por um momento, e então ela se foi. Ele tornou a olhar para o filho.
— Sinto muito ter dito aquela coisa sobre você, papai — disse Dennis, com relutância.
— Está bem. Aceito e agradeço suas desculpas. Quando voltarmos para a casa semana que vem, vou esperar dois ou três dias, e então vasculhar todas as suas gavetas, Dennis. Se houver nelas alguma coisa que não quer que eu veja, acho melhor livrar-se dela.
A onda de culpa novamente. Dennis baixou os olhos e limpou o ranho com as costas da mão.
— Posso ir agora? — perguntou, de novo soando taciturno.
— Claro — disse Hal, e o soltou.
Preciso levá-lo para acampar na primavera, só nós dois. Pescaremos um pouco, como o Tio Will costumava fazer comigo e com Bill. Tenho que me aproximar dele. Preciso tentar.
Hal sentou-se na cama, no quarto vazio, e olhou para o macaco. Você nunca mais estará perto dele, Hal, seu sorriso parecia dizer. Fique certo disso. Voltei para cuidar da situação, como você sempre soube que eu voltaria — um dia qualquer.
Hal largou o macaco e cobriu os olhos com uma das mãos.
Nessa noite, enquanto escovava os dentes no banheiro, Hal pensou. Era a mesma caixa.
Como é que ele podia estar na mesma caixa?
A escova desviou-se para cima, machucando-lhe a gengiva. Ele pestanejou.
Ele tinha quatro anos e Bill seis, a primeira vez que viu o macaco. O desaparecido pai de ambos havia comprado uma casa em Hartford e ela fora deles, livre e clara, totalmente paga, antes que ele morresse ou caísse em um buraco no meio do mundo ou onde quer que fosse. A mãe dos dois trabalhara como secretária na Holmes Aircraft, a fábrica de helicópteros nas cercanias de Westville. Uma série de baby sitters cuidava dos meninos, embora fosse principalmente com Hal que elas se preocupavam durante o dia — Bill estava no primeiro grau, entrara na escola. Nenhuma das sitters ficava lá muito tempo.
Quando não apareciam grávidas e casavam com os namorados, iam trabalhar na Holmes ou então a Sra. Shelburn descobria que elas davam em cima de sua garrafa de sherry ou de brandy, guardadas no aparador para ocasiões especiais. Em sua maioria, eram jovens ignorantes, que pareciam apenas querer comer ou dormir. Nenhuma delas se preocupava em ler para Hal, como sua mãe lia.
Naquele longo inverno, a sitter era uma moça negra, corpulenta e maneirosa, chamada Beulah. Paparicava Hal, quando a mãe dele estava nos arredores, beliscando-o às vezes, quando ela não estava. Ainda assim, Hal sentira certa afeição por Beulah que, de vez em quando, lia para ele uma história horripilante de suas revistas de confissões ou de contos verídicos de detetives ("A Morte Chegou para a Loura Voluptuosa", entoava Beulah ominosamente, no sonolento silêncio da sala de estar durante o dia, enquanto jogava na boca outra taça de manteiga de amendoim Reese e Hal estudava solenemente as fotos granulosas do tablóide, bebendo leite em sua Xícara dos Desejos). A afeição tornava pior o que acontecera.
Ele encontrou o macaco em um nublado e frio dia de março. A neve caía esporadicamente no outro lado das janelas e Beulah adormecera no sofá, com um exemplar de Minha História aberto sobre seu busto admirável.
Hal se esgueirara até o armário nos fundos da casa, a fim de espiar as coisas de seu pai.
Aquele armário era um espaço de guardados que ocupava o comprimento do segundo andar, no lado esquerdo, um espaço extra, que nunca fora acabado. Entrava-se nele por uma portinhola — realmente uma portinha minúscula — que ficava no quarto dos meninos, no lado de Bill. Ambos gostavam de ir lá, embora fosse gélido no inverno e, no verão, quente o bastante para extrair dos poros um balde de suor. Comprido e estreito, de certa forma aconchegante, o armário dos fundos era cheio de fascinantes quinquilharias.
Pouco importando para quantas coisas se olhasse, tinha-se a impressão de que nunca se olhara para tudo. Ele e Bill haviam passado tardes inteiras de sábado ali, mal se falando, tirando coisas de caixas, examinando-as, revirando-as nas mãos, para poderem absorver sua realidade única, depois as deixando de lado. Agora, Hal se perguntava se ele e Bill não estariam tentando, da melhor maneira que podiam, de algum modo estabelecer contato com o pai desaparecido.
Ele havia sido marinheiro mercante, com certificado de navegador. Aquele armário guardava pilhas de cartas marítimas, algumas marcadas com círculos perfeitos (e a covinha da ponta aguçada do compasso no centro de cada um). Havia vinte volumes de algo intitulado Guia de Baron para a Navegação. Um par de binóculos tortos, que faziam os olhos ficarem quentes e esquisitos, quando se olhava por eles durante muito tempo. Havia coisas turísticas de uma dúzia de portos — bonecas hula-hula de borracha, um chapéu côco com uma faixa rasgada que dizia YOU PICK A GIRL AND I'LL PICCADILLY, um globo de vidro com uma diminuta Torre Eiffel no interior... Havia envelopes com selos estrangeiros, cheios de selos cuidadosamente guardados, também contendo moedas estrangeiras; havia amostras de rochas da ilha havaiana de Mauí, de um tom negro e aparência vidrenta — pesadas e, de certa forma, amedrontadoras — e discos engraçados, em língua estrangeira.
Naquele dia, com a neve caindo hipnoticamente do teto, logo acima de sua cabeça, Hal abriu caminho até a extremidade mais distante do armário da parede dos fundos, moveu uma caixa para um lado e viu uma outra atrás dela — uma caixa de Ralston-Purina.
Espiando sobre o topo, havia dois olhos vidrados cor de avelã. Assustaram-no e ele recuou um instante, o coração em disparada, como se houvesse descoberto um mortífero pigmeu. Então, viu seu silêncio, o vítreo daqueles olhos, e percebeu que era alguma espécie de brinquedo. Moveu-se novamente para diante e o tirou da caixa com cuidado.
O brinquedo sorriu seu sorriso imemorial à claridade amarelada, um sorriso cheio de dentes, seus címbalos distanciados.
Deliciado, Hal o virou de um lado para outro, sentindo as asperezas de seu pêlo enroscado. Aquele riso engraçado o alegrou. Contudo, não haveria algo mais? Um sentimento quase instintivo de repugnância, chegando e sumindo quase antes de percebê-lo? Talvez fosse isso, mas com uma recordação antiga, tão antiga como aquela, tinha-se que tomar cuidado, não acreditar muito na memória. Velhas lembranças podem mentir. Só que... não tinha ele visto a mesma expressão no rosto de Petey, lá no sótão do antigo lar?
Hal descobrira a chave no fim das costas do brinquedo e a girara. Ela girara com demasiada facilidade, não houvera os estalidos da corda se enrolando. Quebrada, portanto. Quebrada, mas ainda girando.
Ele o levara consigo, para fora do armário. Queria brincar com o macaco.
— O que é que tem aí, Hal? — perguntou Beulah, despertando de sua soneca.
— Nada — respondeu Hal. — Eu o achei.
Colocou-o na prateleira em seu lado do quarto. O brinquedo ficou em cima de seus livros de Lassie para colorir, sorrindo, fitando o espaço, címbalos imóveis. Estava quebrado, mas ria assim mesmo. Naquela noite, Hal acordou de um sonho inquieto, com a bexiga cheia, e levantou-se para ir ao banheiro no corredor. No outro lado do quarto, Bill era um monte enovelado de cobertas que respiravam.
Hal voltou, quase dormindo outra vez... e o macaco começou repentinamente a tocar os címbalos na escuridão.
Jang jang jang jang...
Despertou de todo, como se lhe houvessem batido no rosto com uma toalha fria e molhada. Seu coração deu um trêmulo salto de surpresa, enquanto um guincho diminuto, como o de um camundongo, escapava-lhe da garganta. Virou-se para o macaco, de olhos arregalados, lábios tremendo.
Jang jang jang jang...
O brinquedo girava e saltava na prateleira. Seus lábios se estiravam e fechavam, estiravam e fechavam, hediondamente jubilosos, revelando dentes enormes e carnívoros.
— Pare! — sussurrou Hal.
Seu irmão se virou e proferiu um único e sonoro resfolegar. Tudo o mais estava silencioso... exceto pelo macaco. Seus címbalos batiam e entrechocavam-se, certamente acordariam seu irmão, sua mãe, o mundo inteiro. Acordariam os mortos.
Jang jang jang jang...
Hal caminhou para ele, desejando pará-lo de algum modo, talvez colocando a mão entre seus címbalos, até a corda terminar, mas então o macaco parou sozinho. Os címbalos se juntaram uma última vez — jang! — e então se afastaram lentamente, para sua posição original. O latão cintilou nas sombras. Os dentes amarelo-sujos do macaco sorriram.
A casa tornou a ficar em silêncio. Sua mãe se virou na cama e ecoou o único ressonar de Bill. Hal voltou para sua cama e puxou as cobertas, o coração batendo depressa, enquanto pensava: Amanhã vou levar ele para o armário outra vez. Não quero esse macaco.
Na manhã seguinte, entretanto, ele esqueceu inteiramente de devolver o macaco ao armário, porque sua mãe não foi trabalhar. Beulah estava morta. A mãe não lhes contou exatamente o que ocorrera. "Foi um acidente, apenas um terrível acidente", foi tudo quanto disse. Naquela tarde, contudo, Bill comprou um jornal ao voltar para casa da escola e contrabandeou a página quatro para seu quarto, debaixo da camisa. Bill leu vacilantemente a notícia para Hal, enquanto a mãe deles preparava o jantar na cozinha, mas Hal conseguiu ler o título sozinho DUAS MORTES NO TIROTEIRO DO APARTAMENTO. Beulah McCaffery, de 19 anos, e Sally Tremont, de 20, haviam sido mortas a tiros pelo namorado da Srta. McCaffery, Leonard White, de 25 anos, em seguida a uma discussão sobre quem sairia para ir apanhar um pedido de comida chinesa. A Srta. Tremont falecera no Pronto-Socorro de Hartford. Beulah McCaffery fora declarada morta no local.
Era como se Beulah simplesmente houvesse desaparecido para uma de suas próprias revistas de detetives, pensou Hal Shelburn, enquanto um calafrio lhe percorria a espinha e depois oprimia seu coração. Então, percebeu que o tiroteio acontecera ao mesmo tempo em que o macaco...
— Hal? — era a voz sonolenta de Terry. — Não vem para a cama?
Ele cuspiu pasta de dentes na pia e enxaguou a boca.
— Já vou — respondeu.
Havia guardado o macaco em sua pasta, anteriormente, e a trancara. Dentro de dois ou três dias voariam de volta ao Texas. Só que, antes disso, ele se livraria para sempre da maldita coisa.
De algum modo.
— Você foi muito rude com Dennis esta tarde — disse Terry, no escuro.
— Acho que Dennis estava bem precisando disso. Ele tem andado muito aéreo. Não quero que comece a descambar.
— Psicologicamente, bater no garoto não é uma maneira muito produtiva...
— Eu não bati nele, Terry — pelo amor de Deus!
— ...de afirmar a autoridade paterna...
— Oh, não me venha com essa merda de encontro-de-grupos — disse Hal, ainda irritado.
— Dá para ver que você não quer discutir o caso — retorquiu ela, em tom frio.
— Falei a ele, também, para tirar a droga de dentro de casa.
— Falou? — Ela agora parecia apreensiva. — E como ele aceitou isso? O que respondeu?
— Ora, vamos, Terry! O que ele poderia dizer? Você está demitido?
— O que há com você, Hal? Não costuma ser assim — o que há de errado?
— Nada — disse ele, pensando no macaco trancado em sua pasta. Poderia ouvi-lo, se começasse a tocar seus címbalos? Sim, claro que ouviria. Um som abafado, mas audível. Chocalhando a tragédia para alguém, como chocalhara para Beulah, Johnny McCabe e Daisy, o cão do Tio Will. Jang jang jang, é você, Hal? — Estive sob demasiada tensão.
— Espero que isso seja tudo, porque não gosto de você agindo assim, como agora.
— Não? — As palavras então lhe escaparam, antes que pudesse detê-las; aliás, nem mesmo quis detê-las: — Sendo assim, engula um Valium e tudo ficará ótimo novamente.
Ouviu-a respirar fundo e exalar o ar tremulamente. Depois, ela começou a chorar. Podia tê-la consolado (talvez), mas parecia não existir conforto nele. Havia demasiado terror.
Tudo se arranjaria quando o macaco se fosse novamente, desta vez para sempre. Por favor, meu Deus, que ele se vá para sempre!
Ficou acordado até bem tarde, até a madrugada começar a acinzentar o ar lá fora.
Contudo achou que já sabia o que fazer.
Bill achara o macaco da segunda vez.
Isso foi cerca de ano e meio após Beulah McCaffery haver sido declarada Morta no Local. Estavam no verão. Hal tinha acabado o jardim de infância.
Estivera brincando, quando a mãe o chamou.
— Vá lavar as mãos, Senor, você está sujo como um porquinho.
Ela se achava na varanda, bebendo chá gelado e lendo um livro. Eram as suas férias; tivera duas semanas de folga.
Hal passou apenas ligeiramente as mãos na água fria e imprimiu sujeira na toalha de enxugar.
— Onde está Bill?
— Lá em cima. Diga a ele para arrumar seu lado do quarto. Está uma verdadeira bagunça.
Adorando ser o mensageiro de notícias desagradáveis em tais questões, Hal não esperou segunda ordem. Bill estava sentado no chão. A portinhola que dava entrada ao armário dos fundos encontrava-se escancarada. Ele tinha o macaco nas mãos.
— Isso não funciona — disse Hal imediatamente.
Estava apreensivo, embora mal se lembrasse daquela noite em que, ao voltar do banheiro, o macaco de repente começara a bater seus címbalos. Uma semana ou mais depois disso, tivera um pesadelo com o macaco e Beulah — não recordava bem o que tinha sido — e despertara chorando, por um momento pensando que o peso macio em seu peito era o macaco, que ele abriria os olhos e o veria dando-lhe um sorriso.
Naturalmente, o peso macio havia sido apenas seu travesseiro, agarrado com amedrontadora pressão. Sua mãe viera acalmá-lo com um gole de água e duas aspirinas laranja-claro infantis, aqueles Valiums para épocas perturbadas da infância. Ela julgara que a notícia da morte de Beulah fora a causa do pesadelo. Estava certa, mas não da maneira como havia imaginado.
Hal pouco se lembrava disto agora, porém o macaco continuava a amedrontá-lo, particularmente seus címbalos. E seus dentes.
— Eu sei — respondeu Bill, jogando o macaco a um lado. — É um imbecil. O brinquedo caiu em cima da cama de Bill, olhando para o teto, com os címbalos afastados. Hal não gostou de vê-lo ali. — Vamos ao Teddy's comprar pirulitos?
— Já gastei minha mesada — disse Hal. — Além disso, mamãe mandou dizer para você arrumar seu lado do quarto.
— Faço a arrumação mais tarde — replicou Bill. — E posso emprestar um níquel a você, se você quiser.
Bill costumava enganá-lo algumas vezes e, ocasionalmente, dava-lhe rasteiras ou pancadas, sem nenhum motivo particular mas, em geral, portava-se bem com ele.
— Claro — respondeu Hal, agradecido. — Só que, primeiro, vou botar esse macaco quebrado no armário, está bem?
— Nada disso — falou Bill, levantando-se. — Vamos logo!
Hal foi. Bill tinha um temperamento mutável e, se ele perdesse tempo guardando o macaco, podia perder também seu pirulito. Foram ao Teddy's e compraram os pirulitos, além dos mais raros, os de uvas-do-monte. Depois foram até a Reitoria, onde alguns garotos jogavam uma partida de beisebol. Hal era pequeno demais para jogar, mas ficou sentado bem além do perímetro das faltas, chupando seu pirulito de uvas-do-monte e devolvendo bolas perdidas aos meninos maiores. Quando voltaram para casa estava quase escuro, e a mãe o censurou por deixar marcas de mãos sujas na toalha, também brigando com Bill por não arrumar seu lado do quarto. Depois do jantar, eles viram TV e, quando tudo isso aconteceu, Hal esquecera inteiramente o macaco. De algum modo, o brinquedo encontrou caminho para a prateleira de Bill, onde ficou ao lado do retrato autografado de Bill Boyd, propriedade de seu irmão. Foi onde permaneceu, por quase dois anos.
Quando Hal completou sete anos, as baby-sitters se tinham tornado uma despesa desnecessária, de modo que a cada manhã, a despedida de sua mãe era: "Bill, tome conta de seu irmão!"
Naquele dia, entretanto, Bill teve que ficar na escola depois da aula e Hal voltou para casa sozinho, parando em cada esquina até não ver absolutamente nenhum trânsito vindo em uma e outra direção, depois atravessando a rua depressa, de ombros curvados, como um soldado de infantaria cruzando a terra de ninguém. Entrou em casa com a chave colocada debaixo do capacho e foi imediatamente à geladeira, para um copo de leite. Pegou a garrafa, mas então ela lhe escorregou entre os dedos e estilhaçou-se em pedacinhos no chão, os fragmentos de vidro voando para todos os lados.
Jang jang jang jang, soou no andar de cima, no quarto dele e de Bill. Jang jang jang, oi, Hal! Bem-vindo ao lar! E, por falar nisso, Hal, é você? É a sua vez? Eles vão encontrá-lo Morto no Local?
Ele ficou parado e imóvel, olhando para o vidro quebrado e a poça de leite, cheio de um terror que não conseguia ter nome ou compreender. Um terror que simplesmente o dominava, parecendo fluir de seus poros.
Virou-se e correu ao andar de cima, ao quarto dos dois. O macaco estava na prateleira de Bill, parecia fitá-lo. Havia derrubado a foto autografada de Bill Boyd, agora caída com a frente para baixo, em cima da cama de Bill. O macaco saltitava, sorria e batia seus címbalos. Hal aproximou-se dele lentamente, não querendo ir, mas incapaz de ficar distante. Os címbalos afastavam-se, depois se chocavam e tornavam a afastar-se. À medida que se aproximava, podia ouvir a corda girando nas entranhas do brinquedo:
Abruptamente, com um grito de repugnância e terror, Hal deu-lhe um tapa, como se dá um tapa em um inseto, derrubando-o da prateleira. O macaco bateu no travesseiro de Bill e dali caiu ao chão, os címbalos ainda chocalhando, jang jang jang, os lábios flexionando-se e fechando-se, enquanto jazia de costas em um retalho ensolarado de fins de abril.
Hal o chutou com seu tênis, chutou-o com toda a força que pôde, desta vez o grito saído de sua garganta sendo de pura fúria. O macaco de corda deslizou através do piso, chocou-se contra a parede e ficou silencioso. Parado, Hal olhava para ele, os punhos fechados, o coração em disparada. O macaco lhe sorria descaradamente, com um pontinho de sol queimando em um olho de vidro. Chute-me o quanto quiser, ele parecia dizer-lhe. Eu não passo de rodas dentadas, corda e uma ou duas engrenagens, chute-me o quanto quiser, eu não sou real, apenas um engraçado macaco de corda, é tudo o que sou, e quem está morto? Houve uma explosão na fábrica de helicópteros! O que é isso que sobe alto no céu, como uma enorme e sangrenta bola de boliche, com olhos onde deveriam estar os buracos para os dedos? É a cabeça de sua mãe, Hal? Poxa! Que passeio está dando a cabeça de sua mãe, Hal! Ou foi na esquina da Rua Brook? Escute aqui, cara! O carro estava indo muito depressa! O motorista estava bêbado! Há um Bill a menos no mundo! Não ouviu o rangido, quando as rodas passaram em cima da cabeça dele e os miolos espirraram pelas orelhas? Ouviu? Não ouviu? Talvez? Não me pergunte, porque eu não sei, não posso saber, tudo quanto sei fazer é bater estes címbalos, jang jang jang, e quem está Morto no Local, Hal? Sua mãe? Seu irmão? Ou é você, Hal? É você?
Hal precipitou-se novamente para o brinquedo, querendo pisoteá-lo, esmagá-lo, saltar sobre ele até rodas dentadas e engrenagens saírem voando, até seus horríveis olhos de vidro rolarem pelo chão. Só que; tão logo chegou perto, os címbalos se chocaram uma vez mais, muito suavemente... jang... como se alguma mola em qualquer ponto interior se expandisse em uma final e diminuta chanfradura... e uma fita de gelo pareceu abrir um caminho sussurrante pelas paredes de seu coração, empalando-o, imobilizando sua fúria e tornando a deixá-lo nauseado de horror. O macaco quase parecia saber — como seu riso parecia jubiloso!
Hal o pegou por um dos braços, entre o polegar e o indicador da mão direita, a boca repuxada em um esgar de ódio, como se estivesse segurando um cadáver. O esfiapado pêlo artificial parecia quente e febril contra sua pele. Conseguiu abrir a portinha que levava ao armário dos fundos e acendeu a lâmpada. O macaco sorria para ele, enquanto engatinhava pelo comprimento da área de estocagem, entre caixas empilhadas sobre caixas, além do conjunto de livros de navegação, dos álbuns de fotos com manchas de antigos produtos químicos, dos souvenirs e das roupas velhas. Enquanto isso, Hal pensava: Se ele começar a bater seus címbalos agora e remexer-se em minha mão, eu vou gritar, mas se eu gritar, ele fará mais do que sorrir, começará a dar gargalhadas, a rir de mim, e então vou ficar maluco, eles vão me encontrar aqui, babando e rindo feito doido, eu ficarei doido, oh, meu Deus, por favor, por favor, querido Jesus, não me deixe ficar doido...
Chegou à extremidade mais distante, afastou duas caixas, derrubando o conteúdo de uma delas, e tornou a enfiar o macaco na caixa de Ralston-Purina, no canto mais afastado. E ele ficou lá, confortavelmente, como que finalmente em casa, os címbalos afastados, sorrindo seu sorriso simiesco, como se a piada ainda fosse dirigida a Hal. Hal rastejou de volta, suando, quente e frio, todo fogo e gelo, esperando que os címbalos começassem a tocar. E quando começassem, o macaco saltaria da caixa, viria correndo para ele, em passinhos curtos como os de um besouro, a corda girando, os címbalos entrechocando-se loucamente, e ...
...e nada disso aconteceu. Ele apagou a lâmpada, bateu a portinhola e ficou recostado contra ela, ofegante. Por fim, começou a sentir-se um pouco melhor. Desceu para o térreo com pernas bambas, pegou uma sacola vazia e começou a recolher os pedaços e fragmentos de vidro da garrafa de leite quebrada, perguntando-se se ia cortar-se e sangrar até morrer, se era isso o que os címbalos chocalhantes queriam dizer. Nada aconteceu também. Pegou uma toalha, enxugou o leite derramado e então se sentou, esperando para ver se a mãe ou o irmão chegavam em casa.
Ela chegou primeiro, perguntando:
— Onde está Bill?
Em voz baixa, descolorida, agora certo de que Bill devia estar Morto em algum Local, Hal foi explicando sobre a reunião na escola e sabendo que, mesmo para uma reunião muito prolongada, Bill já deveria ter chegado uma meia hora antes.
A mãe o fitou com curiosidade, começou a perguntar o que havia de errado, mas então a porta se abriu e Bill entrou — só que não era o Bill de sempre, de maneira alguma.
Aquele era um Bill-fantasma, pálido e silencioso.
— O que houve de errado? — exclamou a Sra. Shelburn. — Bill, o que aconteceu?
Bill começou a chorar e então souberam da história, através de suas lágrimas. Tinha sido um carro, disse. Ele e seu amigo Charlie Silverman vinham juntos para casa, depois da reunião, e o carro dobrara a esquina da Rua Brook, em alta velocidade. Charlie estacara, Bill lhe puxara a mão uma vez, mas ela lhe escapara, e o carro...
Bill começou a chorar ruidosamente, em soluços histéricos. Sua mãe o abraçou, acalentando-o, e Hal olhou para a varanda, viu dois policiais parados lá. O carro patrulha em que haviam trazido Bill para casa ficara estacionado junto ao meio-fio.
Então, foi ele que começou a chorar... mas suas lágrimas eram de alívio.
Agora, foi a vez de Bill ter pesadelos — sonhos nos quais Charlie Silverman morria e tornava a morrer, derrubado em suas botas de vaqueiro Red Ryder, depois jogado sobre o capô do enferrujado Hudson Hornet que o bêbado dirigia. A cabeça de Charlie Silverman e o pára-brisa do Hudson haviam colidido com força explosiva.
Ambos se tinham estilhaçado. O motorista bêbado, dono de uma loja de doces em Milford, sofrera um ataque cardíaco logo após ser detido (talvez fosse a visão dos miolos de Charlie Silverman, secando em suas calças), e seu advogado tivera absoluto êxito durante o julgamento, com o tema de "este homem já foi punido o suficiente". O bêbado foi condenado a sessenta dias (pena suspensa) e perdera o privilégio de operar um veículo a motor no estado de Connecticut por cinco anos... tempo em que duraram os pesadelos de Bill Shelburn. O macaco estava novamente recolhido ao armário dos fundos. Bill nunca percebeu que ele sumira de sua prateleira... ou, se percebeu, jamais falou nisso.
Hal sentiu-se seguro por algum tempo. Começou até a esquecer novamente o macaco ou a acreditar que fora apenas um sonho ruim. No entanto, quando voltou da escola para casa, na tarde em que sua mãe morreu, ele estava de volta à sua prateleira, os címbalos afastados, sorrindo para Hal.
Aproximou-se do macaco lentamente, como que se projetando para fora de si mesmo — como se ele próprio se houvesse tornado um brinquedo de corda, à visão do macaco.
Viu sua mão estender-se e apanhá-lo. Sentiu o pêlo rijo ranger sob sua mão, porém a sensação era abafada, apenas uma pressão, como se alguém lhe tivesse injetado uma dose pura de Novocaína. Podia ouvir-se respirar, uma respiração rápida e seca, semelhante ao chocalhar da corda através da palha do recheio.
Virou o macaco e agarrou a chave da corda. Anos mais tarde, pensaria que aquele fascínio de drogado era como o de um homem, ao colocar um seis-tiros com apenas uma câmara carregada contra um olho trêmulo e fechado, para em seguida puxar o gatilho.
— Não faça isso, deixe-o em paz, jogue-o fora, não toque nele...
Girou a chave e, no silêncio, ouviu uma diminuta e perfeita série de cliques, quando a corda se enrolava. Depois soltou a chave, o macaco começou a bater os címbalos e Hal sentiu o corpo do brinquedo contorcendo-se, encurvar-e-saltar, encurvar-e-saltar, como se estivesse vivo, ele estava vivo, retorcendo-se em sua mão como um odiento pigmeu.
E a vibração que sentia através daquele pêlo castanho e gasto não era o de engrenagens girando, mas a batida do coração do macaco.
Com um grunhido, Hal o deixou cair ao chão e fugiu, as unhas encravando-se na carne abaixo dos olhos, as palmas apertando a boca. Tropeçou em algo e quase perdeu o equilíbrio (se caísse, seria precisamente no chão em cima do macaco, seus esbugalhados olhos azuis fitando os outros, aqueles olhos castanhos, cor de avelã). Correu aos tropeções para a porta, cruzou-a, bateu-a e recostou-se contra ela. De repente, saiu em disparada para o banheiro e vomitou.
Foi a Sra. Stukey, da fábrica de helicópteros, que trouxe a notícia. Foi também ela que os acompanhou naquelas duas primeiras noites intermináveis, até que a Tia Ida viesse do Maine, para levá-los. Sua mãe havia falecido de uma embolia cerebral, no meio da tarde. Estava em pé, junto ao bebedouro, com um copo de água na mão, e se tinha encolhido como que baleada, ainda segurando o copo de papel. Com a outra mão, aferrara-se ao bebedouro e havia derrubado consigo a grande garrafa de água Poland. A garrafa se estilhaçara... mas o médico da fábrica, que acudira em seguida, declarou mais tarde acreditar que a Sra. Shelburn já estivesse morta, antes que a água lhe caísse sobre o vestido e roupas de baixo, molhando-lhe a pele. Nada disto foi dito aos meninos, mas Hal sabia, de algum modo. Sonhou com isso incessantemente, nas longas noites seguintes à morte da mãe. Está com problemas para dormir, irmãozinho?
Bill lhe perguntara. Hall supôs que o irmão considerasse relacionados à morte súbita da mãe de ambos os seus pesadelos e a maneira como se debatia na cama — e estava certo... mas apenas parcialmente certo. Havia a culpa; o seguro, fatal conhecimento de que matara a mãe, ao dar corda no macaco, naquela tarde ensolarada, depois da escola.
Quando Hal finalmente adormeceu, seu sono devia ter sido profundo. Ao acordar, era quase meio-dia. Petey estava sentado de pernas cruzadas em uma cadeira, no outro lado do quarto, chupando uma laranja metodicamente, gomo por gomo, enquanto via um jogo na televisão.
Hal girou as pernas para fora da cama, com a sensação de que havia sido esmurrado enquanto dormia... e depois esmurrado para acordar. Sua cabeça latejava.
— Onde está sua mãe, Petey?
Petey olhou em torno.
— Ela e Dennis foram fazer compras. Eu disse que ia ficar aqui com você. Você sempre fala dormindo, papai?
Hal olhou cautelosamente para ó filho.
— Não. O que foi que eu disse?
— Não pude entender. Fiquei um pouco assustado.
— Bem, pois aqui estou eu, com a cabeça no lugar outra vez.
Hal forçou um sorriso. Petey sorriu de volta e ele tornou a sentir uma onda de puro amor pelo menino, uma emoção que era viva, forte e sem complicações. Perguntou-se por que era capaz de sempre sentir-se tão bem em relação a Petey, sentir que podia compreendê-lo e ajudá-lo, enquanto Dennis lhe parecia uma janela escura demais para olhar-se através dela, um mistério em suas maneiras e hábitos, o tipo de menino que não conseguia entender, porque nunca havia sido como ele. Era muito fácil dizer que a mudança da Califórnia modificara Dennis ou que...
Seus pensamentos congelaram-se. O macaco. O macaco estava no peitoril da janela, com os címbalos afastados. Hal sentiu o coração estacar dentro do peito, para subitamente começar a galopar. Sua visão oscilou e a cabeça latejante passou a doer ferozmente.
O macaco escapara de sua pasta e agora se postava no peitoril da janela, sorrindo para ele.
Pensou que se livraria de mim, não foi? Ora, você já pensou isso antes, não pensou?
Sim, pensou, nauseadamente. Sim, eu pensei.
— Foi você que tirou aquele macaco de minha pasta, Pete? — perguntou, já sabendo a resposta.
Hal havia trancado a pasta e colocara a chave no bolso do sobretudo. Petey olhou para o macaco e algo — Hal pensou que fosse inquietação — passou por seu rosto.
— Não — respondeu o menino. — Ela o botou ali.
— Mamãe fez isso?
— Fez. Ela tirou o macaco de você. E riu.
— Tirou-o de mim? De que está falando?
— Você foi para a cama com ele. Eu estava escovando os dentes, mas Dennis viu. Ele também riu. Disse que você parecia um bebê com um ursinho.
Hal olhou para o macaco. Tinha a boca demasiado ressequida para poder engolir.
Levara o macaco para a cama? Para a cama? Tivera aquele pêlo nojento contra seu rosto, talvez contra sua boca, aqueles olhos brilhantes fitando seu rosto adormecido, aqueles dentes sorridentes encostados a seu pescoço? Em seu pescoço? Santo Deus!
Virou-se abruptamente e foi até o armário. Sua pasta continuava lá, ainda trancada. E a chave ainda estava no bolso de seu sobretudo.
Às suas costas, houve o clique da televisão sendo desligada. Hal saiu lentamente do closet. Petey o fitava ponderadamente.
— Eu não gosto desse macaco, papai.
— Nem eu — respondeu Hal.
Petey olhou fixamente para ele, querendo ver se brincava, mas o pai falava sério.
Aproximou-se e o abraçou com força. Hal podia senti-lo tremendo.
Petey então falou em seu ouvido, muito depressa, como que receando não ter coragem para repeti-lo... ou que o macaco pudesse ouvir.
— É como se ele olhasse para a gente. Como se me olhasse, em qualquer lugar do quarto que eu esteja. E, se vou para o outro quarto, parece que ele olha para mim, através da parede. Eu continuo a sentir que ele me olha... como se me quisesse para alguma coisa.
Petey estremeceu. Hal o apertou mais fortemente contra si.
— Como se quisesse que a gente lhe desse corda — disse Hal.
Petey assentiu violentamente.
— Ele não está com a corda quebrada para sempre, não é, papai?
— Só algumas vezes — disse Hal, fitando o macaco por sobre o ombro do filho. — Em outras, ela ainda funciona.
— Eu fiquei querendo ir lá e dar corda nele. Estava tudo muito quieto, e então pensei, não posso, vou acordar papai, mas ainda estava querendo, e fui até lá e... toquei ele, e não gostei de tocar... mas gostei também... e era como se ele dissesse, Me dê corda, Petey, vamos brincar, seu pai não vai acordar, ele nunca mais vai acordar, me dê corda, me dê corda...
De repente, o menino prorrompeu em lágrimas — disse, em voz quase baixa demais
— Ele é ruim, eu sei que é. Há alguma coisa errada com ele. Não podemos jogá-lo fora, papai? Por favor?
O macaco exibiu seu riso interminável para Hal, que sentia as lágrimas do filho entre eles. O sol da manhã avançada cintilou nos címbalos de latão do macaco — a luz se refletia para o alto e desenhava manchas ensolaradas no teto simples do motel, caiado de branco.
— A que horas sua mãe achava que estaria de volta com Dennis, Petey?
— Lá pela uma hora. — Petey enxugou os olhos vermelhos com a manga da camisa, parecendo constrangido com suas lágrimas, mas não olhou para o macaco. — Eu liguei a televisão — sussurrou. — E liguei bem alto.
— Fez bem, Petey.
Como é que aconteceria? perguntou-se Hal. Ataque cardíaco? Uma embolia, como minha mãe? Como? Aliás, não importa muito, não é mesmo?
E, emendando-se, outro pensamento mais frio: Livre-se dele, como Petey disse. Jogue-o fora. Só que, como livrar-me dele? Para sempre?
O macaco lhe sorriu zombeteiramente, os címbalos trinta centímetros separados entre si.
Teria voltado à vida de repente, na noite em que a Tia Ida morreu? perguntou-se Hal, subitamente, Seria aquele o último som ouvido por ela, o jang jang jang sufocado do macado, batendo seus címbalos no sótão escuro, enquanto o vento assobiava ao longo da calha?
— Talvez não seja tanta loucura — disse Hal ao filho, lentamente. — Vá pegar sua sacola de vôo, Petey.
Petey olhou para ele, com ar incerto.
— O que é que vamos fazer?
Talvez eu possa livrar-me dele. Talvez permanentemente, talvez apenas por algum tempo... um longo ou curto período. Talvez ele fique voltando e voltando, irremediavel-mente... mas talvez eu-nós-possamos ficar livres dele por muito tempo.
Desta vez, ele levou vinte anos para voltar. Levou vinte anos para sair do poço...
— Vamos dar uma volta — disse Hal. Sentia-se razoavelmente calmo, porém, de algum modo, muito pesado por dentro. Seus próprios globos oculares pareciam ter ganho peso.
— No entanto, primeiro quero que você leve sua sacola de vôo lá fora, até o fim do pátio de estacionamento, e encontre três ou quatro pedras de bom tamanho. Coloque-as dentro da sacola e traga para mim. Entendeu?
A compreensão tremulou nos olhos de Petey.
— Tudo bem, papai.
Hal consultou seu relógio. Quase 1:15.
— Depressa, filho. Quero já ter saído, antes que sua mãe volte.
— Aonde a gente vai?
— À casa do Tio Will e da Tia Ida — disse Hal. — Aquela onde morei.
Hal foi ao banheiro, olhou atrás do vaso sanitário e apanhou a vassourinha para limpá-lo, guardada ali. Levou-a até a janela e ficou parado com a vassourinha na mão, como se fosse uma varinha-de-condão com cabo curto. Espiou para fora e viu Petey, em sua camisa-blusão de lã, atravessando o pátio de estacionamento, com sua sacola de vôo, a palavra DELTA destacando-se nitidamente em letras brancas contra o fundo azul. Uma mosca zumbiu em uma quina superior da janela, vagarosa e estúpida com o fim da estação calorenta. Hal sabia como ela se sentia.
Observou Petey escolhendo três pedras de bom tamanho e depois começar a andar de volta, cruzando o pátio de estacionamento. Um carro dobrou a esquina do motel, um carro que se movia muito rápido, rápido demais e, sem pensar, agindo com o tipo de reflexo mostrado por um bom shortstop* indo para a direita, a mão que segurava a vassourinha desceu bruscamente, como em um golpe de karatê... e parou.
* No beisebol, jogador situado perto da segunda base. (N. da T.)
Os címbalos se fecharam sobre sua mão interposta, silenciosamente, e ele captou algo no ar. Algo como raiva.
Os freios do carro chiaram. Petey saltou para trás. O motorista acenou para ele, impacientemente, como se o que quase acontecera houvesse sido culpa do menino.
Então, Petey cruzou o pátio de estacionamento em disparada, a gola agitando-se no ar, e entrou pela porta dos fundos do motel.
O suor escorria pelo peito de Hal; ele o sentiu na testa, como um filete de chuva oleosa.
Os címbalos pressionavam-se friamente contra sua mão, entorpecendo-a.
Prossiga, pensou ele, ferozmente. Prossiga, eu posso esperar o dia inteiro. Até que o inferno se congele, se demorar tanto.
Os címbalos afastaram-se e ficaram imóveis. Hal ouviu um débil clique!, vindo das entranhas do macaco. Afastou a vassourinha e olhou para ela. Algumas das cerdas brancas tinham escurecido, como que chamuscadas.
A mosca esvoaçou e zumbiu, tentando encontrar o frio sol de outubro, que parecia tão próximo.
Petey irrompeu no quarto, respirando apressadamente, as bochechas rosadas.
— Consegui três pedras ótimas, papai, eu... — interrompeu-se. Você está bem, papai?
— Estou ótimo — disse Hal. — Traga a sacola aqui.
Com o pé, Hal puxou a mesa junto ao sofá para baixo da janela, até deixá-la sob o peitoril, e colocou a sacola em sua superfície. Arreganhou a boca da sacola, como se fossem lábios. Podia ver as pedras que Petey reunira, brilhando no interior. Usou a vassourinha do banheiro, a fim de puxar o macaco para diante. Ele vacilou por um instante, depois caiu dentro da sacola. Houve um fraco jang! quando um de seus címbalos se chocou em uma das pedras.
— Pai? Papai?
A voz de Petey parecia amedrontada. Hal olhou para ele. Algo estava diferente; alguma coisa mudara. O que era? Então, viu a direção do olhar do menino e ficou sabendo. O zumbido da mosca cessara. Ela jazia morta no peitoril.
— Foi o macaco que fez isso? — sussurrou Petey.
— Vamos — disse Hal, puxando o zíper da sacola para fechá-la. — Eu lhe conto. enquanto vamos até a casa.
— E como podemos ir até lá? Mamãe e Dennis levaram o carro.
— Não se preocupe — disse Hal. e assanhou os cabelos de Petey.
Na portaria. ele mostrou ao atendente sua carteira de motorista e uma nota de vinte dólares. Após ficar com o relógio digital Texas Instruments como garantia colateral, o homem entregou-lhe as chaves de seu próprio carro — um castigado Gremlin AMC.
Enquanto rodavam para leste pela Estrada 302, em direção a Casco, Hal começou a falar, algo vacilante a princípio, depois um pouco mais rápido. Principiou contando a Petey que seu pai provavelmente trouxera o macaco do estrangeiro, como um presente para os filhos. Não era um brinquedo particularmente único — nada havia nele de estranho ou valioso. Talvez existissem centenas de milhares de macacos de corda no mundo, alguns fabricados em Hong Kong, outros em Taiwan ou na Coréia. Entretanto, em algum ponto ao longo da linha — talvez mesmo no escuro armário dos fundos da casa em Connecticut, onde os dois meninos tinham acabado de crescer — alguma coisa acontecera ao macaco. Alguma coisa ruim. Podia ser, disse Hal, enquanto tentava forçar o Gremlin do atendente a passar dos sessenta quilômetros, que algumas coisas ruins — talvez até coisas muito ruins — nem mesmo estivessem despertas e cônscias do que fossem. Deixou o assunto assim, porque provavelmente seria o máximo à altura do entendimento de Petey, mas sua mente prosseguiu em um curso pessoal. Refletiu que a maioria do mal podia ser muito semelhante a um macaco repleto de mecanismos a que se dava corda; a corda funcionava, os címbalos começavam a tocar, os dentes riam, os idiotas olhos de vidro davam risadas... ou pareciam dá-las...
Contou a Petey como encontrara o macaco, mas pouco mais além disso — não queria aterrorizar seu garoto, deixando-o mais amedrontado do que já estava. Desta maneira, a história ficou desconexa, não muito clara. porém Petey não fez perguntas; era possível que estivesse preenchendo os claros sozinho, pensou Hal, mais ou menos como acontecera com ele próprio, ao sonhar incessantemente com a morte da mãe, embora não a tivesse presenciado.
Tio Will e Tia Ida haviam comparecido ao funeral. Depois disso, o Tio Will retornara ao Maine — era época da colheita — e a Tia Ida ficara duas semanas com os meninos, a fim de regularizar os negócios da irmã, antes de levá-los para o Maine. Contudo, mais do que isso, ela procurava dar-se a conhecer aos dois — estavam tão atordoados pela morte súbita da mãe, que pareciam em choque. Quando não conseguiam dormir, ela se fazia presente com um copo de leite morno. Hal acordava às três da madrugada com pesadelos (pesadelos em que sua mãe se aproximava do bebedouro, sem ver o macaco que flutuava e bamboleava-se em suas frias profundezas azul-safira, rindo e batendo os címbalos, cada par convergente de batidas deixando esteiras de borbulhas); ela estava lá, quando Bill caiu doente, primeiro com febre, depois com uma erupção de dolorosas feridas na boca, seguida por urticária, três dias após o funeral; ela estava lá. Fez-se familiar aos meninos e, antes de tomarem o ônibus de Harford a Portland em sua companhia, tanto Bill como Hal a procuraram separadamente e choraram em seu colo, enquanto ela os abraçava e consolava, assim começando o elo entre eles.
Na véspera de deixarem Connecticut definitivamente e "descerem para o Maine" (era como se dizia naquele tempo), o trapeiro chegou em seu chocalhante caminhão e recolheu a enorme pilha de coisas inúteis que Bill e Hal haviam carregado para a calçada, coisas do armário dos fundos. Quando tudo aquilo ficou amontoado na calçada para ser recolhido, Tia Ida dissera aos dois que voltassem ao armário dos fundos e recolhessem quaisquer sounvenirs ou lembranças que gostassem de conservar. Lá em casa não teremos lugar para tudo isso, meninos, ela disse a eles, e Hal supôs que Bill a endentera ao pé da letra, tendo então vasculhado todas aquelas caixas fascinantes que o pai deixara para trás, por uma última vez. Hal não se juntara ao irmão mais velho — perdera a atração pelo armário dos fundos. Uma idéia terrível lhe ocorrera durante aquelas duas primeiras semanas de luto: talvez meu pai não houvesse apenas desaparecido ou fugido, simplesmente porque os pés comichavam e descobrira que casamento não era para ele.
Talvez o macaco o tivesse apanhado.
Ao ouvir o caminhão do trapeiro rugindo, pipocando e estourando no fim do quarteirão, Hal encheu-se de coragem, tirou o macaco da prateleira onde ficara desde o dia da morte de sua mãe (ele não ousara mais tocá-lo, nem mesmo jogá-lo de volta no armário) e correu para baixo com o brinquedo. Nem Bill nem Tia Ida o viram. A caixa de papelão de Ralston-Purina estava no topo de uma barrica, repleta de souvenirs quebrados e livros mofados. Hal jogara o macaco na caixa já cheia, a mesma caixa onde estivera antes, ordenando histericamente que ele começasse a tocar seus címbalos (continue, continue, eu lhe ordeno, estou ordenando. ORDENO DUAS VEZES), mas o macaco apenas ficou lá deitado despreocupadamente de costas, como se esperasse um ônibus, exibindo seu horrendo sorriso sabido.
Hal permaneceu ali, um menininho em velhas calças de brim e tênis surrados, enquanto o trapeiro, um italiano que usava um crucifixo e assobiava através de falhas entre os dentes, começava a colocar caixas e barricas em seu velho caminhão, na carroceria com laterais de madeira. Hal o viu erguer a barrica e a caixa de Ralston-Purina equilibrada em seu topo; viu o macaco desaparecer na carroceria do caminhão: viu quando o trapeiro subiu para a boléia, assoou vigorosamente o nariz na palma da mão, que depois limpou em um enorme lenço vermelho, e deu partida ao motor, com um rugido e uma explosão de fumaça azul cheirando a gasolina; viu o caminhão afastar-se. Então, um grande peso saiu de seu coração — chegou a senti-lo indo embora. Deu dois saltos, o mais alto que pôde saltar, os braços abertos, mãos espalmadas, e se algum vizinho o vira, certamente acharia aquela atitude estranha, talvez ao ponto de blasfêmia — porque aquele garoto está pulando de alegria (porque, evidentemente assim era; um salto de alegria dificilmente é disfarçado), eles sem dúvida se perguntariam, se ainda nem faz um mês que sua mãe foi sepultada?
Hal fazia aquilo porque o macaco se fora. Fora-se para sempre.
Ou, pelo menos, assim pensara ele.
Apenas três meses mais tarde, a Tia Ida o mandara ao sótão, apanhar as caixas com enfeites de Natal. Enquanto engatinhava de um lado para outro, empoeirando os joelhos das calças, de repente se vira outra vez cara a cara com ele. Seu espanto e terror haviam sido tais, que precisou morder rispidamente o lado da mão, para não gritar... ou perder os sentidos. Lá estava ele, exibindo o sorriso dentuço, os címbalos distanciados trinta centímetros um do outro e prontos para chocalhar, reclinado despreocupadamente contra um canto da caixa de papelão de Ralston-Purina, como se esperasse um ônibus, parecendo dizer: Pensou que ia ficar livre de mim, não foi? Só que não é tão fácil livrar-se de mim, Hal. Eu gosto de você, Hal. Fomos feitos um para o outro, apenas um menino e seu macaco de estimação, dois bons e velhos amigos. E, em alguma parte ao sul daqui, há um trapeiro idiota, um velho italiano jazendo em uma banheira com pés em garras, os olhos esbugalhados e as dentaduras quase caindo da boca, uma boca que dava gritos agudos, um trapeiro que fede como uma bateria Exide pifada. Ele estava me guardando para seu neto, Hal. Ele me pôs na prateleira do banheiro, ao lado de seu sabonete, de sua navalha de barba, de seu creme de barbear e do rádio Philco em que ouvia os jogos dos Dodgers de Brooklyn. Então, comecei a chocalhar, um dos meus címbalos bateu no velho rádio e o derrubou dentro da banheira. Foi quando voltei para você, Hal, fiquei vagando estradas à noite, com um luar se refletindo em meus dentes às três da madrugada: deixei muitas pessoas Mortas em muitos Locais. Vim para você, Hal, sou o seu presente de Natal. Quer me dar corda, quem está morto? É Bill? É o Tio Will? É você, Hal? É você?
Hal tinha recuado, fazendo alucinadas caretas, os olhos revirando-se e quase caiu escada abaixo. Contou para Tia Ida que não fora capaz de encontrar os enfeites de Natal — era a primeira mentira que lhe dizia e ela lera a mentira em seu rosto, mas não perguntou por que mentira, graças a Deus — e mais tarde, quando Bill chegara, ela lhe tinha pedido para procurar e ele encontrou os enfeites de Natal. Horas depois, quando estavam sozinhos, Bill o chamara de burro, incapaz de encontrar o próprio traseiro com as duas mãos e uma lanterna. Hal nada respondera. Estava pálido, apenas comendo seu jantar. E, naquela noite, tornou a sonhar com o macaco, com um de seus címbalos atingindo o rádio Philco, que irradiava a voz de Dean Martin, cantando Whenna da moon hitta you eye like a big pizza pie ats a moray. O rádio caía na banheira, enquanto o macaco ria e tocava seus címbalos, com um JANG, um JANG e um JANG. Só que não era o trapeiro italiano que estava na banheira, quando a agua ficou eletrificada.
Era ele.
Hal e seu filho desceram pelo acidentado terreno até o aterro atrás da casa, em direção à casa de barcos, que se projetava acima das águas sobre seus antigos pilares. Hal segurava a sacola de vôo na mão direita. Tinha a garganta seca, os ouvidos aguçados para um som singularmente sutil. A sacola estava muito pesada.
Depositou a sacola no chão.
— Não toque nela — avisou.
Tateou no bolso, procurando o molho de chaves que Bill lhe dera e encontrou uma, nitidamente etiquetada C. BARCOS, em uma tira de esparadrapo.
O dia era límpido e frio, ventava, o céu exibia um brilhante azul. As folhas das árvores que se adensavam até a beira do lago, ostentavam cada viva tonalidade outonal, do vermelho-sangue ao amarelo-ônibus-escolar. Elas falavam ao vento. Folhas soltas redemoinharam em torno dos tênis de Petey, enquanto o menino se mantinha ansiosamente imóvel, e Hal pôde captar o odor de novembro, logo abaixo do vento, com o inverno concentrando-se logo atrás.
A chave girou na fechadura e ele abriu as portas deslizantes. A lembrança era intensa; nem precisava olhar, para chutar o bloco de madeira que mantinha a porta aberta. O cheiro ali dentro era de pleno verão: lonas e madeiras resplandecentes, uma quentura luxuriante pairando no ar.
O bote a remos do Tio Will continuava ali, os remos cuidadosamente arrumados no interior, como se ainda na tarde da véspera ele o houvesse carregado com seus apetrechos de pesca e dois engradados de seis latas de Black Label. Tanto Bill como Hal haviam saído para pescar muitas vezes com o Tio Will, porém nunca iam juntos. Tio Will afirmava que o barco era pequeno demais para três pessoas. Os arremates vermelhos, que ele retocava a cada primavera, agora estavam desbotados e descascando.
As aranhas haviam fiado seda na proa do barco.
Hal puxou o barco pela rampa abaixo, até a diminuta faixa de praia. As excursões pesqueiras tinham sido uma das melhores partes de sua meninice com o Tio Will e a Tia Ida. Sua impressão era de que Bill devia sentir o mesmo. Normalmente, o tio Will era o mais taciturno dos homens, porém assim que tinha o bote posicionado a seu gosto, uns sessenta ou setenta metros além da margem, com as linhas colocadas, as bóias de linha de pesca flutuando acima da água, ele abria uma cerveja para si e outra para Hal (que raramente bebia mais do que metade da única lata permitida pelo Tio Will, sempre com a ritual advertência do tio, de que a Tia Ida jamais deveria saber, porque "ela me daria um tiro, se soubesse que eu estava dando cerveja para vocês, meninos, beberem"), tornando-se expansivo como cera. Contava histórias, respondia perguntas, recolocava isca no anzol de Hal quando era preciso... e o barco vagava para onde o vento e a branda corrente o levavam.
— Por que nunca vai até o meio do lago, Tio Will? — perguntara Hal certa vez.
— Olhe pela borda do barco — respondera o Tio Will.
Hal tinha olhado. Viu a água azul e sua linha de pesca afundando em negro.
— Está olhando para a parte mais funda do Lago Cristal — dissera Tio Will, amassando a lata vazia de cerveja em uma das mãos e escolhendo uma nova com a outra. — Uns cem metros, mais um, menos um centímetro. O velho Studebaker de Amos Culligan está em algum lugar, aí embaixo. O maldito tolo trouxe o carro para o lago, em um começo de dezembro, antes que o gelo ficasse firme. Teve sorte bastante em escapar vivo, se teve!
Nunca conseguiram recuperar aquele Stud e nunca mais o verão, até soprar a trombeta do Juízo Final. O lago é danado de fundo bem aqui, ora se é! Os peixes grandes estão bem aqui. Hal. Não precisamos ir mais longe. Vejamos como anda sua isca. Não faça cerimônia e enrole essa carretilha.
Hal obedeceu e, enquanto o Tio Will colocava uma minhoca fresca, tirada da velha lata de Crisco que servia como sua lata de iscas, ele espiou a água, fascinado, tentando ver o velho Studebaker de Amos Culligan, todo enferrujado, com algas escapando pela janela aberta do lado do motorista, através da qual Amos escapara no absolutamente último momento, algas (estonando o volante como um colar apodrecido, algas pendendo do espelho retrovisor e jogando de um lado para outro ao sabor das correntes, como um estranho rosário. No entanto, só conseguiu ver azul, matizando-se para negro, e havia o formato da minhoca do Tio Will, o anzol escondido dentro de seus nós, pendendo ali no meio das coisas, sua própria versão da realidade, um ensolarado e comprido cabo. Hal teve uma breve e vertiginosa visão de estar suspenso acima de um espantoso abismo, e fechara os olhos por um momento, até a vertigem passar. Naquele dia, teve a impressão de recordar, havia bebido toda a sua lata de cerveja.
...a parte mais funda do Lago Cristal... uns cem metros, mais um, menos um centímetro.
Parou por um momento, resfolegante, e ergueu os olhos para Petey, imóvel e olhando ansiosamente.
— Precisa de ajuda, papai?
— Não. É só um momento.
Recuperou a respiração e então puxou o barco pela estreita faixa de areia até a água, deixando um sulco. A pintura descascara, mas o barco tinha sido mantido ao abrigo e parecia em bom estado.
Nas ocasiões em que saía para pescar, o Tio Will puxava o barco rampa abaixo e pulava para ele quando a proa flutuava. Então, agarrando um remo para empurrá-lo, gritava para Hal: "Empurre-me para fora, Hal... é aqui que você merece confiança!"
— Dê-me essa sacola, Petey. Depois empurre o barco — disse ele. Sorrindo um pouco, acrescentou: — É aqui que você merece confiança!
Petey não sorriu de volta.
— Eu vou também, papai?
— Não agora. Em outra vez eu o levarei para pescar, mas... não agora.
Petey vacilava. O vento desmanchava seus cabelos castanhos e algumas folhas, leves e secas, passaram revoluteando por seus ombros, indo pousar no limite das águas, elas próprias boiando como barcos.
— Você devia tê-lo encoberto — disse ele, em voz baixa.
— O quê? — perguntou Hal, mas pensou ter entendido o que Petey queria dizer.
— Botar algodão em cima dos címbalos. Prender com fita adesiva. Assim, ele não poderia... fazer aquele barulho.
De repente, Hal se lembrou de Daisy vindo em sua direção — não caminhando, mas cambaleando — e como, subitamente, o sangue jorrara de ambos os olhos da cachorra, em uma torrente que lhe encharcou o pêlo e pingou no piso do celeiro, como ela tombou sobre as patas dianteiras... e no ar imóvel do dia chuvoso de primavera em que ouvira o som, não amortecido, mas curiosamente claro, vindo do sótão da casa, a quinze metros de distância: Jang jang jang jang!
Hal começara a gritar histericamente, deixando cair a braçada de lenha que levava para o fogo. Correu até a cozinha, ao encontro do Tio Will, que comia ovos estrelados e torradas, os suspensórios ainda nem puxados para cima dos ombros.
— Ela já estava velha, Hal —, havia dito o Tio Will, com o rosto abatido e infeliz ele também parecendo velho. — Estava com doze anos, o que é muita idade para um cão. Procure aceitar a realidade — a velha Daisy não gostaria de vê-lo assim.
Velha, ecoara o veterinário, ao mesmo tempo em que parecia perturbado, porque cães não morrem de hemorragias cerebrais explosivas, mesmo aos doze anos ("Como se alguém houvesse colado uma bomba em sua cabeça", Hal o ouviu dizendo ao Tio Will, enquanto este cavava um buraco atrás do celeiro, não muito longe do lugar em que enterrara a mãe de Daisy, em 1950; "Nunca vi nada parecido, Will").
E mais tarde, quase fora de si pelo terror, mas incapaz de controlar-se, Hal subiu até o sótão.
Olá, Hal, como vai? sorriu-lhe o macaco, de seu canto em penumbras. Os címbalos estavam imóveis, uns trinta ou mais centímetros distanciados entre si. A almofada do sofá, que Hal por fim colocara entre eles, agora estava jogada através do sótão. Algo — alguma força — a jogara lá com força bastante para rasgar-lhe o envoltório, e o recheio se espalhara para fora. Não se preocupe com Daisy, sussurrou o macaco, dentro de sua cabeça, os olhos vidrados, cor de avelã, fixos nos azuis e esbugalhados de Hal Shelburn.
Não se preocupe com Daisy, ela era velha, Hal, o próprio veterinário disse isso e, já que estamos no assunto, viu o sangue jorrando dos olhos dela, Hal? Dê-me corda, Hal. Dê-me corda, vamos brincar, e quem está morto, Hal? É você?
Quando caiu em si, percebeu que estivera engatinhando para o macaco, como que hipnotizado. Tinha uma mão estendida para tocar a chave da corda. Então, rastejou para trás, quase caindo pelos degraus do sótão em sua pressa — provavelmente teria caído, se o poço da escada não fosse tão estreito. Um leve som gemido brotava de sua garganta.
Agora, sentado no barco, olhava para Petey.
— Amortecer os címbalos não funciona — falou. — Já tentei isso uma vez.
Petey lançou um olhar nervoso para a sacola de vôo.
— O que aconteceu, papai?
— Nada sobre o que eu desejaria falar agora — respondeu Hal — e nada que você quisesse ouvir. Venha e dê-me um empurrão.
Petey inclinou-se para empurrar o barco. O leme riscou a areia e Hal ajudou com um remo. De repente, aquela sensação de estar amarrado à terra desapareceu e o barco se movia levemente, uma embarcação outra vez, após anos de prisão na escura casa de barcos, balouçando-se em ondas ligeiras. Hal libertou o outro remo e fechou as forquetas para sustentá-los.
— Tome cuidado, papai — disse Petey.
— Isto não vai demorar muito — prometeu Hal, mas olhou para a sacola de vôo e interrogou-se.
Começou a remar, flexionando o corpo para impelir o barco. Passou a sentir a velha dor familiar no fim das costas e entre as omoplatas. A margem foi ficando para trás. Petey estava magicamente com oito anos de novo, seis, um garoto de quatro anos, em pé à beira da água. Fez pala acima dos olhos, com uma mão de bebê.
Hal olhou casualmente para a margem, mas não se permitiu realmente estudá-la. Fazia quase quinze anos e, se observasse a linha da praia com minúcias, veria mais as modificações que as similaridades, e se perderia. O sol batia em seu pescoço e ele começou a suar. Olhou para a sacola de vôo e, por um momento, perdeu o ritmo abaixar-e-puxar. A sacola de vôo parecia... parecia avolumar-se. Hal passou a remar mais depressa.
O vento ganhou força, secando o suor e refrescando-lhe a pele. O barco subiu e a proa jogou água para os lados, quando ele desceu. Não teria o vento aumentado, somente no último minuto ou coisa assim? E Petey, não estava gritando algo? Sim, estava. Hal não podia ouvi-lo, por causa do vento. Não importava. Ia livrar-se do macaco, por mais outros vinte anos — ou talvez (para sempre, meu Deus, por favor) para sempre — isso era o que importava.
O barco empinou-se e desceu. Hal olhou para a esquerda e viu pequenas ondas coroadas de espuma. Tornou a espiar a linha da praia, viu Hunter's Point (a Ponta do Caçador) e uma construção em ruínas, que devia ter sido a casa de barcos dos Burdon, quando ele e Bill eram crianças. Estava quase lá agora. Quase sobre o ponto em que o famoso Studbaker de Amos Culligan afundara no gelo, em um longínquo dezembro. Quase acima da mais profunda zona do lago.
Petey gritava alguma coisa; gritava e apontava. Hal ainda não podia ouvi-lo. O barco a remos balançava e rolava, achatando nuvens de fino spray, em cada lado de sua proa descascada. Um diminuto arco-íris cintilou em um jato d'água pulverizado e foi dividido ao meio. Sol e chuva percorriam o lago, intercalados, e agora as ondas não eram mais tão brandas, as coroadas de espuma estavam mais altas. Seu suor secara e sua pele arrepiava-se, os borrifos de água haviam molhado as costas de seu blusão. Remou carrancudamente, os olhos alternando-se entre a linha da praia e a sacola de vôo. O barco tornou a subir, agora tão alto, que por um momento o remo direito moveu-se no ar, em vez de na água.
Petey apontava para o céu, seu grito agora era apenas uma fraca e brilhante tira sonora.
Hal olhou por sobre o ombro.
O lago era um frenesi de ondas. Passara para uma mortal e escura tonalidade de azul, pontilhado de espumas brancas. Uma sombra correu através de água em direção do barco, e algo em sua forma era familiar, tão familiar, que Hal olhou para cima — e então o grito estava ali, lutando em sua garganta opressa.
O sol estava atrás da nuvem, transformando-a em uma forma corcovada. com dois crescentes orlados de dourado, distanciados entre si. Havia dois buracos furados no final da nuvem. e a luz do sol passava através deles, em duas colunas.
Quando a nuvem cruzou por sobre o barco, os címbalos do macaco, apenas amortecidos pela sacola de vôo, começaram a bater. Jang jang jang jang, é você, Hal, finalmente é você; agora sobre a parte mais linda do lago chegou a sua vez, sua vez.. sua vez....
Todos os elementos necessários da linha da margem encaixavam-se em seus lugares. A carcaça apodrecida do Stubedaker de Amos Culligan jazia em algum ponto abaixo, era ali que ficavam os peixes grandes, aquele era o lugar.
Hal firmou os remos nas forquetas, em um gesto rápido, inclinou-se para diante, pouco ligando para o barco que saltava loucamente, e agarrou a sacola de vôo. Os címbalos tocavam sua selvagem música pagã; as laterais da sacola bramiam, como por efeito de tenebrosa respiração.
— Bem aqui, seu filho da mãe! — gritou Hal. — BEM AQUI!
Jogou a sacola por sobre a borda do barco.
Ela afundou depressa. Por um momento, ele a viu descendo, as laterais movendo-se — e naquele momento interminável, ainda podia ouvir os címbalos batendo. E também por um momento, as águas negras pareceram clarear, deixando-o ver no interior daquele terrível abismo, até onde jaziam os peixes graúdos; lá estava o Studebaker de Amos Culligan, e a mãe de Hal se postava atrás de seu volante limoso, um esqueleto sorridente, com um peixe de água doce espiando friamente por uma órbita ocular descarnada. Tio Will e Tia Ida reclinavam-se indolentemente ao lado dela, e os cabelos grisalhos da Tia Ida flutuaram para o alto quando a sacola caiu, girando e girando sobre si mesma, deixando para trás bolhas prateadas: jang jang jang jang...
Hal bateu com os remos na água outra vez, tirando sangue dos nós dos dedos esfolados (e, oh, meu Deus, a traseira do Studebaker de Amos Culligan estava cheia de crianças mortas! Charlie Silrerman... Johnny McCabe..., e começou a trazer o barco de volta.
Houve um estalo entre seus pés, seco como um tiro de revólver e, de repente, água clara se infiltrava entre duas tábuas. O barco era velho; a madeira encolhera um pouco, sem dúvida; era apenas uma pequenina fenda. Contudo, não estava ali, quando remara para o lago. Hal podia jurar.
A margem e o lago trocaram de lugares, em sua visão. Petey agora ficava às suas costas.
Acima dele, desfazia-se aquela terrível nuvem simiana. Hal começou a remar. Vinte segundos bastaram para convencê-lo de que remava para salvar a vida. Como nadador, era apenas regular, porém mesmo um ás da natação seria posto à prova. naquelas águas subitamente enfarruscadas.
Outras duas tábuas afastaram-se de repente, com aquele som de tiro de revólver.
Mais água penetrou no barco, molhando seus sapatos. Havia pequeninos ruídos metálicos de algo se quebrando, e ele percebeu que eram produzidos por pregos. Uma forqueta se soltou e voou para a água — o torniquete seria o seguinte?
O vento agora vinha de suas costas, como se tentasse retardá-lo ou mesmo impeli-lo para o meio do lago. Hal estava aterrorizado, mas sentia uma louca espécie de euforia, através do terror. Desta vez, o macaco se fora para sempre. De certa forma, estava certo disso. O que quer que lhe acontecesse, o macaco não voltaria para lançar uma sombra sobre a vida de Dennis ou de Petey. O macaco se fora, agora talvez repousasse sobre o capô do Studebaker de Amos Culligan, no fundo do Lago Cristal. Fora-se para sempre.
Hal remou, abaixando-se para diante e inclinando-se para trás. Aquele som estalante, retalhado, voltou a repetir-se. Agora, a enferrujada lata de Crisco que jazia no fundo do barco, flutuava em sete centímetros de água. Os borrifos salpicaram o rosto de Hal.
Houve um ruído mais alto e estalante, quando o assento de proa caiu em dois pedaços e ficou flutuando perto da lata de iscas. Uma tábua se soltou no lado esquerdo do barco, depois outra, esta junto à linha d'água, no lado direito. Hal remou. A respiração arranhava em sua boca, quente e seca, então foi sua garganta que se inchou, com o sabor de cobre da exaustão. Seus cabelos, molhados de suor, agitavam-se ao vento.
Agora, um estalo percorreu a superfície diretamente acima do fundo do barco, ziguezagueou entre seus pés e correu até a proa. A água esguichou para dentro; ele tinha água até os tornozelos, depois até o início da panturrilha. Continuou remando, mas o movimento do barco em direção à margem, agora ficara entorpecido. Não ousava olhar para trás, a fim de verificar em que altura estava.
Outra tábua se afrouxou. O estalo percorrendo o centro do barco adquiriu ramificações, como uma árvore. A água penetrava por todas as fendas possíveis.
Hal começou a usar os remos como em uma arrancada, a respiração lhe saindo em grandes haustos ofegantes. Deu uma remada... duas... e na terceira, os dois torniquetes dos remos se soltaram. Ele perdeu um remo, aferrou-se ao outro. Levantando-se, pôs-se a golpear a água com ele. O barco oscilou, quase emborcou e tornou a jogá-lo no assento, com um baque seco.
Momentos mais tarde afrouxavam-se outras tábuas, o assento afundou e ele se viu na água que enchia o fundo do barco, espantado com sua frieza. Tentou ficar de joelhos, pensando em desespero: Petey não deve ver isto, não pode ver o pai afogar-se diante de seus olhos, você vai nadar, nadar cachorrinho, se for preciso, mas faça, faça alguma coisa...
Houve outro estalo estilhaçante — quase um rompimento — e ele se viu na água, nadando para a margem como jamais nadara em sua vida... e a margem estava maravilhosamente próxima. Um minuto depois, viu-se em pé, com a água pela cintura, nem a cinco metros da praia.
Petey entrou estabanadamente no lago, com os braços estendidos, gritando e chorando, ao mesmo tempo em que ria. Hal correu para ele, chapinhou na água e caiu. Petey, com água pelo peito, caiu também.
Os dois agarraram-se.
Respirando em profundos haustos, Hal ainda assim ergueu o menino no colo e o carregou até a praia, onde os dois se jogaram, ofegantes.
— Papai? Ele se foi mesmo? Aquele macaco maldoso?
— Sim, acho que se foi. Desta vez, para sempre.
— O barco se desmanchou. Ele se... desmanchou todo, em volta de você. Hal olhou para as tábuas, flutuando dispersas sobre a água, a doze metros de distância. Não mostravam qualquer semelhança com o ajustado barco feito à mão, que havia puxado da casa de barcos.
— Está tudo bem agora — disse Hal, reclinando-se sobre os cotovelos.
De olhos fechados, deixou que o sol lhe aquecesse o rosto.
— Você viu a nuvem? — sussurrou Petey.
— Vi... mas não a vejo agora. E você?
Os dois olharam para o céu. Havia espalhados tufos brancos aqui e ali, mas nenhuma nuvem escura. Fora-se, com ele havia dito. Hal ajudou Petey a levantar-se.
— Há toalhas na casa. Vamos. — Então, fez uma pausa e contemplou o filho. — Você foi louco, correndo daquele jeito.
Petey o fitou solenemente.
— Você foi corajoso, papai.
— Fui? — A idéia de coragem nunca lhe passara pela cabeça. Nela havia somente seu medo. Um medo grande demais, para que pudesse ver qualquer outra coisa. Se é que algo mais existira lá. — Vamos, Pete.
— O que vamos dizer a mamãe?
Hal sorriu.
— Não sei, garotão, mas pensaremos em algo.
Parou por um momento mais longo e olhou para as tábuas que boiavam sobre a água. O lago estava novamente calmo, cintilando com pequenas ondulações. De repente, Hal pensou nos veranistas que nem mesmo conhecia — um homem e seu filho, talvez, em excursão de pesca, procurando os peixes graúdos. Acho que fisguei alguma coisa aqui, papai! grita o menino. Muito bem, enrole essa carretilha e vejamos o que foi, responde o pai, e então, içado das profundezas, com algas pendendo em seus címbalos e exibindo seu terrível sorriso de acolhida... surge o macaco.
Hal estremeceu — mas aquelas eram apenas coisas que podiam acontecer. — Vamos — tornou a dizer para Pete.
E os dois seguiram pela trilha acima, por entre a chamejante vegetação do outono, em direção à casa.
1903
De The Bridgton News 24 de outubro de 1980
MISTÉRIO NA MORTANDADE DE PEIXES
por Betsy Moriarty
Centenas de peixes mortos foram encontrados boiando de ventre para cima, no Lago Cristal, na vizinha cidade de Casco, em fins da semana passada. As quantidades maiores parecem ter morrido nos arredores de Hunter's Point, embora isto seja de difícil determinação, em vista das correntes que existem no lago. Os peixes mortos incluem todos os tipos comumente encontrados naquelas águas: pickerel, bluegills, sunnies, carpas, hornpout, truta castanha e arco-íris, assim como um salmão, perdido seu acesso ao mar. As autoridades de Caça e Pesca se dizem perplexas...
O NEVOEIRO
I. Chega a tempestade
Foi como aconteceu. Na noite em que finalmente cedeu a pior onda de calor da história no norte da Nova Inglaterra — a noite em julho de 19... toda a região oeste do Maine foi devastada pelas mais terríveis tempestades que já testemunhei.
Morávamos em Long Lake e vimos a primeira dessas tempestades abrindo caminho sobre a água, em nossa direção, pouco antes do escurecer. Durante uma hora o ar havia ficado absolutamente parado. A bandeira americana colocada por meu pai em nossa casa de barcos, em 1936, jazia flácida contra seu mastro. Nem mesmo as pontas oscilavam. O calor era como uma coisa sólida, parecendo tão profundo, tão soturno como água de poço. Naquela tarde, nós três tínhamos ido nadar, porém a água não causava alívio, a menos que se fosse bem no fundo. Acontece que, nem eu e nem Steff queríamos ir para o fundo, porque Billy não podia. Billy tem cinco anos.
Tivemos uma refeição fria às cinco e meia, beliscando desanimadamente sanduíches de presunto e salada de batata no passadiço que dá para o lago. Ninguém parecia querer algo mais além de Pepsi, que estava em um balde de aço com cubos de gelo.
Depois que terminamos, Billy voltou a brincar em suas barras de exercícios por algum tempo. Eu e Steffy ficamos sentados, sem falar muito, fumando e espiando o soturno espelho chato do lago até Harrison, no lado oposto ao nosso. Alguns barcos à motor troavam para lá e para cá. Os pinheiros na margem contrária pareciam empoeirados e murchos. Para oeste, nuvens enormes e purpúreas acumulavam-se lentamente, maciças como um exército. Relâmpagos faiscavam dentro delas. Na casa ao lado, o rádio de Norton, sintonizado para aquela estação de música clássica, transmitida do alto do Monte Washington, soltava uma alta torrente de estática, sempre que brilhava algum relâmpago. Norton era um advogado de Nova Jersey e aquela casa junto ao Long Lake era apenas uma residência de verão, sem qualquer fornalha ou calefação. Dois anos antes, havíamos tido uma disputa sobre divisas, que acabou indo parar no tribunal do condado. Eu venci. Norton dizia que eu vencera porque ele era um forasteiro. Não havia excessos de amizade entre nós.
Steff suspirou desanimada e abanou o alto dos seios com a barra de sua frente única.
Duvidei que aquilo a refrescasse muito, mas o movimento melhorava bastante a vista.
— Não quero assusta-la — falei — mas acho que vem uma tempestade e tanto por ai.
Ela me fitou dubitativamente.
— Já tivemos trovoadas na noite de anteontem e ontem também, David. Não deram em nada.
— Esta noite vai ser diferente.
— Você acha?
— Se a coisa ficar preta, vamos para o andar de baixo.
— Acha mesmo que haverá temporal?
Meu pai tinha sido o primeiro a construir uma moradia que resistisse o ano inteiro, naquele lado do lago. Quando pouco mais do que um garoto, ele e seus irmãos haviam levantado uma casa de verão onde a nossa agora se assentava, mas uma tempestade de verão, em 1938, a derrubara até os alicerces, com paredes de pedra e tudo. Só a casa de barcos escapara. Um ano mais tarde, ele havia começado a casa grande. Agora, as árvores é que sofrem nos temporais fortes. Envelheceram e o vento as derruba. É a maneira da mãe natureza limpar a casa periodicamente.
— Para ser franco, não sei — falei, em tom sincero. Eu tinha apenas ouvido histórias sobre a grande tempestade de trinta e oito. — Contudo, o vento pode soprar do lago como um trem expresso.
Billy apareceu. pouco depois, queixando-se de que não estava divertido brincar nas barras de exercício, porque ele estava "todo suado". Afaguei seus cabelos, desmanchando-os, e lhe dei outra Pepsi. Mais trabalho para o dentista.
As nuvens cúmulos de trovoadas, estavam chegando mais perto, empurrando o azul do céu. Agora não havia mais dúvida sobre a iminência de uma tempestade. Norton desligara seu rádio. Billy sentou-se entre sua mãe e eu, espiando o céu como que fascinado. Os trovões ribombavam, rolando lentamente através do lago, ecoando e voltando a nós. As nuvens se torciam e rolavam, agora encimando todo o lago, e pude ver uma coifa delicada de chuva que caía delas. Tudo ainda muito distante. Enquanto olhávamos, provavelmente devia estar chovendo em Bolster's Mills, talvez até em Norway.
O ar começou a mover-se, primeiro intermitente, erguendo a bandeira e deixando-a cair de novo. Começou a refrescar e a brisa se firmou, primeiro esfriando a transpiração de nossos corpos, depois parecendo congelá-la.
Foi então que avistei o véu prateado, cruzando o lago. Em segundos, apagou Harrison da vista e veio direto para nós. Os barcos a motor tinham desaparecido do cenário.
Billy levantou-se de sua cadeira, uma réplica em miniatura de nossas cadeiras de diretor, completa com seu nome pintado às costas.
— Papai! Olhe!
— Vamos entrar — falei, levantando-me e passando o braço em torno de seus ombros.
— Você viu, papai? O que era aquilo?
— Um ciclone de água. Vamos entrar.
Steff lançou um olhar rápido e assustado para meu rosto.
— Vamos, Billy — disse em seguida. — Faça o que seu pai mandou.
Entramos pelas portas deslizantes de vidro que dão para a sala de estar. Fechei as portas, empurrando-as em seus trilhos, depois parei e olhei novamente para fora. O véu prateado já fizera três-quartos do trajeto através do lago. Reduzira-se a uma espécie de xícara de chá girando loucamente entre o céu negro, cada vez mais baixo, e a superfície da água, que ficara cor de chumbo, raiada de branco cromado. O lago começava a oferecer uma fantástica semelhança com o oceano, havia ondas enormes que se quebravam e lançavam espuma acima das docas e quebra-mares. Lá fora, no meio, ondas de crista espumosa jogavam as cabeças para um e outro lado.
Espiar o ciclone líquido era hipnótico. Estava quase sobre nós, quando um relâmpago riscou tudo com tanta luminosidade, que a paisagem permaneceu em negativo nos meus olhos, por trinta segundos depois disso. O telefone fez um assustado ting! e, quando me virei, vi minha esposa e meu filho, parados bem à frente do janelão que nos dá uma vista panorâmica do lago a noroeste.
Tive uma daquelas terríveis visões — creio que são reservadas exclusivamente para maridos e pais — em que a janela panorâmica se estilhaçava com um som grave de tosse seca, disparando flechas de vidro ao estômago nú de minha esposa, ao rosto e pescoço de meu garoto. Os horrores da Inquisição nada são, comparados às sinas que nossa mente arquiteta para os entes queridos.
Agarrei os dois com firmeza e os puxei dali.
— Diabo, o que estão fazendo? Saiam daí!
Steff deu-me um olhar assustado. Billy apenas olhou para mim como parcialmente despertado de um sono profundo. Guiei-os para a cozinha e apertei o interruptor da luz.
O telefone tilintou novamente.
Então, o vento chegou. Era como se a casa houvesse decolado, imitando um 747. Ouvia-se um assobio arquejante e agudo, às vezes aprofundando-se em um rugido grave antes de glissar para um uivo ululante.
— Vá para baixo! — falei para Steff, agora precisando gritar, a fim de ser ouvido.
Diretamente acima da casa, os trovões estremeciam pranchas gigantescas e Billy encolheu-se, agarrado à minha perna.
— Venha você também! — gritou Steff.
Assenti, fazendo gestos para acalmá-la. Precisei arrancar Billy de minha perna.
— Vá com sua mãe. Preciso apanhar algumas velas, para o caso da luz faltar.
Ele a seguiu, e eu comecei a abrir armários. Velas são coisas engraçadas, sabem como é.
A gente as guarda, todas as primaveras, sabendo que uma tempestade de verão pode interromper a energia elétrica. No entanto, chegado o momento, elas se escondem.
Agora, eu vasculhava o quarto armário, passando pelos quinze gramas de erva que comprara com Steff, quatro anos atrás, mas que ainda não fora inteiramente fumada, passando pelas dentaduras chocalhantes de dar corda, pertencentes a Billy e compradas na Loja de Novidades de Auburn, passando pelas fotos espalhadas que Steff sempre esquecia de colar em nosso álbum. Olhei debaixo de um catálogo da Sears e atrás de uma boneca Kewpie, de Taiwan, que eu ganhara na Feira de Fryeburg, derrubando garrafas de leite em madeira, com bolas de tênis.
Encontrei as velas atrás da boneca Kewpie, com seus vidrados olhos mortos de ser humano. Ainda estavam embrulhadas no celofane. Quando fechei a mão em torno delas, as luzes apagaram-se e a única eletricidade era a que provinha do céu. A sala de refeições iluminava-se em uma série de flashes rápidos, brancos e purpúreos. Ouvi Billy começando a chorar lá embaixo e o murmúrio sufocado de Steff tentando acalmá-lo.
Eu tinha que dar mais uma espiada na tempestade.
O ciclone líquido já devia ter passado sobre nós ou se dissolvera junto à margem, mas eu não conseguia ver além de vinte metros na superfície do lago. A água estava em absoluto torvelinho. Vi o embarcadouro de alguém — dos Jasser, talvez — arrancado com seus esteios principais, virando-se alternadamente para o céu e enterrando-se na água encapelada.
Desci. Billy correu a agarrar-se em minhas pernas. Levantei-o no colo e o abracei com força. Depois acendi as velas. Sentamo-nos no quarto de hóspedes, abaixo do saguão de meu pequeno estúdio e nos entreolhamos, à tremeluzente claridade amarelada das velas, enquanto ouvíamos a tormenta urrar e sacudir nossa casa. Uns vinte minutos mais tarde, ouvimos um ruído de madeira lascando, depois a queda, quando um dos grandes pinheiros foi derrubado nas proximidades. Em seguida, houve silêncio.
— Será que já terminou? — perguntou Steff.
— Talvez — respondi. — Talvez, apenas por algum tempo.
Subimos ao andar de cima, cada um carregando uma vela, como monges indo às vésperas. Billy carregava a sua, com cuidado e orgulhosamente. Carregar uma vela, carregar o fogo era uma grande coisa para ele. Ajudava-o a esquecer que tivera medo.
Estava muito escuro, para ver-se quais os danos existentes em volta da casa. Já passara da hora de Billy dormir, mas nenhum de nós sugeriu levá-lo para a cama. Sentados na sala de estar, ouvíamos o vento e olhávamos os relâmpagos.
Cerca de uma hora mais tarde, o temporal voltou. Durante três semanas, a temperatura passara dos trinta e dois graus e, em seis daqueles vinte e um dias, o Serviço Nacional de Meteorologia sediado no aeroporto de Portland, anunciara temperaturas acima de trinta e cinco graus e meio. Tempo esquisito. Além do extenuante inverno que havíamos atravessado e da primavera atrasada, algumas pessoas tinham desencavado aquela velha piada sobre os efeitos retardados dos testes com a bomba A nos anos cinqüenta. Isso é, naturalmente, o fim do mundo. A mais velha piada de todas.
A segunda borrasca não foi tão violenta, mas ouvimos a queda de várias árvores, enfraquecidas pela primeira investida. Quando o vento começou a esmorecer novamente, ouviu-se uma forte pancada no teto, como um punho que caísse sobre a tampa de um ataúde. Billy deu um salto e olhou apreensivamente para o alto.
— Ele agüenta, campeão — falei.
Billy sorriu nervosamente.
Por volta das dez da noite, chegou a última borrasca. Terrível. O vento ululava quase tão alto como da primeira vez e os relâmpagos pareciam explodir em toda a nossa volta.
Mais árvores caíram e ouvimos um ruído de madeira estilhaçada, seguido de uma queda, perto da água. Steff sufocou um grito. Billy acabara dormindo em seu colo.
— O que foi isso, David?
— Acho que foi a casa de barcos.
— Oh! Oh, meu Deus!
— Vamos todos para baixo novamente, Steffy — falei.
Tomei Billy nos braços e levantei-me com ele. Os olhos de Steff estavam arregalados e cheios de medo.
— Será que vamos ficar bem, David?
— Claro.
— Fala sério?
— Naturalmente.
Fomos para baixo. Dez minutos mais tarde, quando a borrasca final atingiu o auge, houve uma barulheira de vidros espatifados no andar de cima — a janela panorâmica.
Talvez a minha visão de horas antes não houvesse sido assim tão louca. Steff estivera cochilando e acordou com um pequeno grito agudo, enquanto Billy se remexia inquietamente na cama de hóspedes.
— A chuva entrará em casa — disse ela. — Acabará com os móveis.
— Se entrar, paciência. Está tudo no seguro.
— Isso não torna as coisas melhores — disse ela, em voz perturbada e reprovadora. — A cômoda de sua mãe... nosso sofá novo... a TV colorida...
— Psst — falei. — Durma.
— Não posso — respondeu ela, mas dormia cinco minutos depois.
Fiquei acordado por outra meia hora, tendo uma vela acesa por companhia, ouvindo o temporal caminhar e falar lá fora. Tive a sensação de que, pela manhã, haveria uma porção de residentes das margens do lago ligando para seus agentes de seguro, um bocado de serras zumbindo, enquanto os moradores cortavam as árvores caídas em seus tetos e varado suas janelas, bem como inúmeros caminhões amarelos da companhia de eletricidade rodando nos arredores.
O temporal agora diminuía, sem nenhum sinal de nova borrasca. Subi ao andar de cima, deixando Steff e Billy na cama. Examinei a sala de estar. A porta de vidro deslizante agüentara o rojão. Entretanto, no lugar onde antes houvera a janela panorâmica, agora havia um buraco chanfrado e recheado de folhas de bétula. Era o topo da velha árvore que crescia junto à entrada lateral para o porão, desde que eu podia recordar. Olhando para seu topo, agora visitando nossa sala de estar, podia entender o que Steff quisera dizer, ao falar que o seguro não tornava as coisas melhores. Eu amara aquela árvore.
Havia sido uma rude veterana de muitos invernos, a única árvore no lado da casa dando para o lago, que ficara isenta de minha própria serra de cadeia. Enormes estilhaços de vidro em cima do tapete, refletiam e repetiam a claridade de minha vela. Lembrei-me de avisar a Steff e Billy. Teriam que usar seus chinelos ali. Os dois gostavam de perambular descalços pela manhã.
Desci novamente ao andar de baixo. Dormimos os três na cama de hóspedes, com Billy entre nós dois. Sonhei que via Deus caminhando através de Harrison, no lado oposto do lago, um Deus tão gigantesco que, da cintura para cima, ficava perdido em um cristalino céu azul. No sonho, eu podia ouvir o estalo lacerante e o ruído de árvores lascadas se quebrando, quando Deus pisava forte nos bosques, imprimindo Suas pegadas entre as árvores. Ele circulava o lago, seguia para o lado de Bridgton, em nossa direção. Todos os chalés e casas de verão explodiam em chamas branco-púrpura, como relâmpagos, e logo a fumaça encobria tudo. A fumaça encobria tudo como um nevoeiro.
II. Depois da tempestade. Norton. Viagem à cidade.
— Poxa! — exclamou Billy.
Ele estava em pé junto à cerca divisória entre nossa propriedade e a de Norton, com os olhos cravados em nossa entrada para carros, mais abaixo. Essa entrada de carros segue por uns duzentos e cinqüenta metros até uma estrada rural que, por sua vez, após uns setecentos e cinqüenta mais, emenda-se a uma outra, asfaltada e com duas pistas, chamada Estrada Kansas. Da Estrada Kansas, pode-se ir a qualquer lugar desejado, desde que seja Bridgton.
Vi o que Billy olhava e meu coração gelou.
— Não chegue mais perto, campeão. Onde você está já chega!
Billy não discutiu.
A manhã era brilhante e tão límpida como um toque de sino. O céu que mostrara uma tonalidade suja e obscura durante a onda de calor, recuperara um vívido azul que era quase outonal. Havia uma brisa leve, desenhando alegres manchas mosqueadas de sol na entrada de carros e movendo-as de um lado para outro. Não muito longe de onde estava Billy, ouvia-se um permanente ruído sibilante e, sobre a relva, estava o que, à primeira vista, seria tomado por um confuso enrodilhado de serpentes. Os cabos de força que vinham até nossa casa haviam caído emaranhados, a cerca de seis metros de distância, e jaziam sobre um retalho queimado de relva. Os cabos contorciam-se preguiçosamente e cuspiam. Se as árvores e o gramado não estivessem tão encharcados pelas chuvas torrenciais, aquilo poderia significar o fim para a casa. Agora, no entanto, havia apenas aquele retalho negro, onde os fios tinham tocado diretamente.
— Isso pode letocrutar uma pessoa, papai?
— Hã-hã. Pode sim.
— E o que a gente faz com isso?
— Nada. Vamos esperar pela companhia de eletricidade.
— E quando é que eles chegam?
— Não sei. — Garotos de cinco anos têm uma infinidade de perguntas a fazer. — Acho que eles andam muito ocupados esta manhã. Quer dar uma caminhada até o fim da alameda comigo?
Ele começou a andar e então parou, olhando nervosamente para os fios. Um deles se revirara e caíra de lado preguiçosamente, como que em um aceno.
— Papai, a letricidade pode andar no chão?
Uma pergunta sensata.
— Pode, mas não se preocupe. A eletricidade quer o chão, não você, Billy. Nada lhe acontecerá, se ficar longe dos fios.
— Ela quer o chão — murmurou Billy, caminhando para mim.
Seguimos pela entrada de carros, de mãos dadas. A coisa havia sido pior do que eu imaginara. Vi árvores caídas sobre a alameda em quatro pontos diferentes, uma delas de pequeno porte, outra mediana e uma vetusta, cujo tronco deveria medir metro e meio. O musgo aderira a ela como um corpete enlameado.
Galhos, alguns quase despidos das folhas, jaziam por toda parte, em desordenada profusão. Eu e Billy fomos até a estrada rural, atirando os ramos menores para o meio do mato, às margens da alameda. Aquilo me recordava certo dia de verão, talvez uns vinte e cinco anos antes; eu talvez não fosse muito mais velho do que Billy agora.
Todos os meus tios estavam ali e haviam passado o dia nos bosques, com machados e machadinhas, cortando mato. Já tarde avançada, haviam-se acomodado todos em volta da mesa de cavaletes que meus pais usavam para piqueniques e entregaram-se a uma refeição monstro de cachorros-quentes, hamburgeres e salada de batata. A cerveja Gansett rolara como água, e meu tio Reuben mergulhara no lago inteiramente vestido, inclusive com os sapatos. Naquele tempo, ainda havia alces nos bosques.
— Posso descer até o lago, papai?
Ele já se cansara de atirar galhos, de maneira que a coisa a fazer com um garotinho, quando se cansa, é deixá-lo fazer algo diferente.
— Claro — respondi.
Voltamos juntos e então Billy foi para a direita, contornando a casa e mantendo uma grande distancia dos fios caídos. Eu tomei a esquerda e fui à garagem, pegar minha serra McCullough. Como desconfiara, já podia ouvir a cantiga desagradável de outras serras, abaixo e acima, na margem do lago.
Completei o tanque, tirei a camisa e ia voltar para a alameda, quando Steff saiu. Ela olhou nervosamente para as árvores caídas, atravancando a entrada de carros.
— Está muito difícil?
— Posso dar um jeito — respondi. — E lá dentro?
— Bem, já limpei os vidros partidos, mas você terá que fazer algo com aquela árvore, David. Não podemos ficar com uma árvore na sala de estar.
— Não — concordei. — Acho que não podemos.
Entreolhamo-nos ao sol da manhã e demos risadinhas sufocadas. Coloquei a serra na área cimentada e beijei Steff, segurando suas nádegas com firmeza.
— Não faça isso — murmurou ela. — Billy está...
Ele surgiu gritando, enquanto dobrava a esquina da casa.
— Pai! Papai! Você tem que ver o...
Steff vira os fios soltos e gritou para ele tomar cuidado. Ainda a boa distância deles, Billy estacou de súbito e fitou a mãe, como se ela estivesse doida.
— Eu estou legal, mamãe — disse ele, naquele cuidadoso tom de voz que se emprega para acalmar os muito velhos e senis.
Depois caminhou para nós, mostrando o quanto estava bem. Steff começou a tremer em meus braços.
— Está tudo bem — falei em seu ouvido. — Billy sabe sobre esses fios.
— Sim, mas pessoas morrem — respondeu ela. Vêem anúncios na televisão o tempo todo, alertando sobre fios soltos, mas mesmo assim... Billy, quero que vá imediatamente para dentro!
— Oh, mãe, poxa! Quero mostrar a casa de barcos a papai!
Billy tinha os olhos quase esbugalhados de excitamento e desapontamento. Acabara de testemunhar uma amostra retardada do apocalipse e queria partilhá-la.
— Entre agora mesmo! Aqueles fios são perigosos e...
— Papai disse que eles querem o chão, não a mim...
— Não discuta comigo, Billy!
— Vou descer e dar uma espiada, campeão. Desça você também. — Pude sentir Steff retesar-se contra mim. — Vá pelo outro lado, filho.
— Tá bem! Eu vou!
Billy passou por nós correndo e desceu a escada de pedra que seguia para o oeste da casa, pulando os degraus de dois em dois. Desapareceu de vista com a fralda da camisa esvoaçando ao vento, e uma exclamação pairou no ar — "Uau!" — quando localizou outra peça de destruição.
— Ele já sabe sobre os fios, Steff. — Tomei-a delicadamente pelos ombros. Billy tem medo deles. Isso é bom. Deixa-o em segurança.
Uma lágrima lhe deslizou pelo rosto.
— Estou com medo, David.
— Ora, vamos! Tudo já terminou.
— Será? No inverno passado... e na primavera retardada... Na cidade, deram o nome de primavera negra... Eles disseram que nunca mais houvera outra, desde 1888...
"Eles", certamente significavam a Sra. Carmody, dona do Antiquário de Bridgton, uma loja de quinquilharias que Steff gostava de vasculhar de quando em quando. Billy adorava acompanhá-la. Em um dos sombrios e poeirentos aposentos dos fundos, corujas empalhadas com olhos orlados de dourado, estendiam as asas para sempre, enquanto os pés agarravam-se eternamente a troncos envernizados; raccons empalhados formavam um trio à volta de uma "corrente", que não passava de um comprido fragmento de espelho empoeirado, e um lobo comido de traças, espumando serragem em vez de saliva em torno da queixada, arreganhava a boca em arrepiante e eterno rosnado. A Sra. Carmody garantia que o lobo tinha sido abatido por seu pai, quando bebia no arroio Stevens, em certa tarde de setembro de 1901.
As expedições à loja de antiguidade da Sra. Carmody faziam bem a minha esposa e meu filho. Ela se infiltrava em uma fileira cheia de vidros espelhados, enquanto ele via a morte, sob o nome de taxidermia. Contudo, eu ainda achava que a velha exercia uma influência bastante desagradável sobre e mente de Steff que, em outros sentidos, era prática e obstinada. A Sra. Carmody encontrara o ponto vulnerável de Steff, seu calcanhar de Aquiles mental. Aliás, Steff não era a única na cidade que ficava fascinada com os pronunciamentos góticos da Sra. Carmody e seus remédios populares (sempre prescritos em nome de Deus).
Água com tocos de cigarros é boa para contusões, quando seu marido gosta de usar os punhos, depois de uns três drinques. Pode-se saber que tipo de inverno vai chegar, contando-se os anéis das lagartas em junho ou medindo a espessura dos favos de mel em agosto. E agora, que o bom Deus nos proteja e guarde, A PRIMAVERA NEGRA DE 1888 (acrescente tantos pontos de exclamação quantos achar que deva). Eu também ouvira a história. É do tipo que gostam de passar adiante, por aqui — se a primavera for fria o suficiente, o gelo nos lagos eventualmente ficará negro como um dente cariado. É coisa rara, ocorrência que dificilmente acontece em um século. Eles gostam de falar nisso para os outros, mas duvido que com maior convicção do que a Sra. Carmody.
— Tivemos um inverno duro e uma primavera atrasada — falei. — Agora, vamos ter um verão muito quente. Houve esta tempestade furiosa, mas já terminou. Não está agindo com naturalidade, Stephanie.
— Essa não foi uma tempestade comum — disse ela, na mesma voz roufenha.
— Não, não foi. Nisso, concordo com você
Bill Giosti é que me contara a história da Primavera Negra, Bill possuía e dirigia — já há uma temporada — o Giosti's Mobil, em Casco Village. Ele operava a casa com seus três filhos beberrões (e ajuda ocasional dos quatro netos beberrões... quando estes podiam largar um pouco a lanternagem de seus snowmobiles e bicicletas para estradas de terra). Bill estava com setenta anos, aparentava oitenta e podia beber como se tivesse vinte e três, quando sentia disposição. Eu e Bill havíamos levado o Scout para encher o tanque, no dia seguinte ao de uma tormenta-surpresa em meados de maio, que deixou a região com quase trinta centímetros de neve molhada e compacta, que cobriu a grama e flores recentes. Giosti andara entornando uns copos e estava feliz em passar adiante a história da Primavera Negra, com floreios pessoais.
Enfim, às vezes temos neve em maio ela vem e vai embora; dois dias mais tarde. Não é nenhum fenômeno.
Steff voltara a olhar pensativamente para os fios caídos.
— Quando será que o pessoal da companhia de eletricidade virá dar um jeito neles?
— Assim que for possível. Não vai demorar muito. Só quero que não se preocupe com Billy. Ele tem a cabeça no lugar. Esquece de guardar as roupas, mas não irá pisar em cima de um monte de fios caídos. Billy é um garoto vivo, saudável e inteligente.
Toquei um canto de sua boca e a forcei ao começo de um sorriso. — Está melhor agora?
— Você sempre torna as coisas melhores — disse ela, fazendo com que me sentisse bem.
Do lado da casa dando para o lago, Billy gritava para nós irmos lá ver alguma coisa.
— Venha — convidei. — Vamos apreciar os estragos.
Ela resmungou soturnamente.
— Não quero apreciar estrago nenhum. Vou para minha sala de estar e ficar lá sentada.
— Venha — insisti. — Deixará um garotinho feliz.
Descemos a escada de pedra, de mãos dadas. Mal havíamos chegado à primeira curva, quando Billy surgiu correndo da direção contrária, quase se chocando conosco, tal a sua pressa.
— Ei, calma! — disse Steff, franzindo de leve as sobrancelhas.
Em sua mente, talvez o visse escorregando para aquele mortal ninho de fios eletrizados, em vez de contra nós dois.
— Vocês têm que ver! — ofegou Billy. — A casa de barcos está toda rebentada! Tem um cais em cima das pedras... e árvores no abrigo de barcos... Jesus Cristo!
— Billy Drayton! — gritou Steff.
— Desculpe, mãe... mas você tem que... uau! — e ele se foi.
— Depois que solta as notícias, a pitonisa cai fora — falei, e isso fez Steff rir sufocado novamente. — Escute, assim que cortar aquelas árvores da entrada de carros, irei até os escritórios da companhia de eletricidade, em Portland Road. Direi ao pessoal da Central Maine Power o que temos por aqui. Está bem?
— Certo — disse ela, aliviada. — Quando acha que pode ir?
Exceto pela árvore maior — a que tinha o apertado corpete de musgo — eu teria cerca de uma hora de trabalho. Incluindo a grandona, haveria tarefa para até as onze ou coisa assim.
— Bem, então preparo o almoço para você aqui. E quando for, quero que me traga algumas coisas do supermercado... estamos quase sem leite e manteiga. Além disso... hum, acho que terei de fazer uma lista.
Mostrem um desastre a uma mulher e ela começa a querer estocar coisas, como um esquilo. Fiz-lhe um afago e assenti. Contornamos a casa. Bastou-me um olhar e entendi por que Billy ficara atônito.
— Céus! — exclamou Steff, em voz fraca.
De onde estávamos, havia altura suficiente para avistar praticamente uns duzentos e cinqüenta metros de margem do lago — a propriedade dos Bibber à esquerda, depois a nossa e a de Brent Norton à direita.
O velho e gigantesco pinheiro que havia protegido nosso abrigo de barcos, havia sido dividido ao meio, de alto a baixo. O que sobrara parecia um lápis brutalmente afilado. O interior da árvore mostrava um brilhante e indefeso branco, contra a casca escura do tronco, envelhecida pela idade. Com trinta metros de altura ao todo, o velho pinheiro tivera a metade superior parcialmente submergida nas águas rasas de nosso abrigo.
Ocorreu-me que havíamos tido muita sorte por nosso pequeno Star-Cruiser não haver afundado sob o pinheiro. Na semana anterior, seu motor andara falhando e o barco continuava na marina de Naples, esperando pacientemente a volta para casa.
Do outro lado de nosso pequeno trecho dando para a água, a casa de barcos que meu pai construíra — a mesma que um dia acolhera um Chris-Craft de 18 metros, quando a fortuna familiar dos Drayton estava mais alta alguns pontos do que nos dias presentes — jazia debaixo de outra árvore enorme. Como vi, era a que se erguia junto à linha divisória de propriedades, no lado de Norton. Aquilo me fez brotar o primeiro jato de raiva. Há cinco anos aquela árvore estava morta e há muito ele devia tê-la derrubado.
Fizera três quartos do trajeto da queda, estando escorada por nossa casa de barcos. O teto oferecia uma aparência bêbada, desmantelada. Do buraco produzido pela árvore, o vento espalhara telhas de madeira por toda a ponta de terra onde se erguia a construção.
A descrição de Billy — "rebentada" — encaixava-se perfeitamente.
— A árvore de Norton! — exclamou Steff.
Sua voz tinha tal fúria indignada, que acabei sorrindo, apesar de meu sofrimento. O mastro da bandeira jazia na água e a Old Glory jazia encharcada a seu lado, em um emaranhado de passadeira. E eu já podia adivinhar a resposta de Norton: Processe-me.
Billy estava em pé no quebra-mar rochoso, examinando o embarcadouro que fora parar em cima das pedras. Era pintado em joviais listras amarelas e azuis. Olhando para nós por sobre o ombro, ele gritou, jubiloso:
— É o dos Martin, não é?
— Sim, é — respondi. — Quer entrar na água e pescar a bandeira, Grande Bill?
— Claro!
À direita do quebra-mar havia uma pequena praia arenosa. Em 1941, antes que Pear Harbor ajustasse uma conta de sangue com a Depressão, meu pai contratara um homem para trazer aquela areia fina em seu caminhão — haviam sido seis viagens lotadas — e a espalhasse em uma espessura que me chegava até quase as axilas, cerca de metro e meio, digamos. O homem cobrara oitenta pratas pelo trabalho e a areia nunca se movera dali. Só que, atualmente, ninguém mais pode criar uma praia arenosa em sua própria terra. Agora, com todo o escoamento de esgotos, provenientes da onda industrial de construções, matando a maioria dos peixes e tornando os restantes impróprios para o consumo, o pessoal que zela pela conservação ambiental proibiu a instalação de praias de areia. Compreende-se, elas podiam alterar a ecologia do lago e, por enquanto, é contra a lei que alguém faça isso, exceto os donos de loteamentos.
Billy foi recolher a bandeira e então estacou. No mesmo instante, senti Steff retesar-se contra mim, e foi quando também vi. O lado do lago onde ficava Harrison havia desaparecido. Estava sepultado debaixo de um nevoeiro branco-brilhante, como uma nuvem de tempo bom que houvesse caído à terra.
O sonho daquela noite me voltou à cabeça e, quando Steff me perguntou o que era aquilo, a palavra que quase me saltara dos lábios — era Deus.
— David?
Não se conseguia avistar o menor trecho de margem naquele lado, mas os muitos anos olhando para Long Lake me fizeram crer que a orla não estivesse tão escondida; talvez apenas metros. A borda do nevoeiro era quase tão reta como uma régua.
— O que é aquilo, papai? — gritou Billy, afundando na água até os joelhos e tentando puxar a bandeira encharcada.
— Um banco de nevoeiro — respondi.
— Em cima do lago? — exclamou Steff, dubitativa.
Pude sentir em seus olhos a influência da Sra. Carmody. Maldita mulher! Meu momento pessoal de inquietação estava passando. Afinal de contas, sonhos são coisas insubstanciais, como o próprio nevoeiro.
— Claro. Você já viu nevoeiro sobre o lago antes.
— Nunca uma coisa assim. Aquilo mais parece uma nuvem.
— É por causa da claridade do sol — falei. — Como nuvens que vemos de um avião, ao voarmos acima delas.
— Como é possível? — insistiu ela. — Só temos nevoeiro no tempo úmido.
— Temos um justamente agora — respondi. — Harrison tem, pelo menos. Alguma sobra da tempestade, nada mais. Encontro de duas frentes. Qualquer coisa nesse sentido.
— Você tem certeza, David?
Dei uma risada e passei o braço por seu pescoço.
— Não. A verdade é que estou dizendo asneiras como um louco. Se tivesse certeza, estaria anunciando o tempo, no noticiário das seis. Ande, vá fazer sua lista de compras.
Ela me lançou outro olhar dubitativo, virou-se para o banco de nevoeiro por um instante, com a mão em pala sobre os olhos, depois meneou a cabeça.
— Esquisito — disse, e começou a andar.
Para Billy, o nevoeiro já havia perdido a novidade. Conseguira pescar da água a bandeira encharcada e um enredado de passadeira. Espalhamos tudo na grama para secar.
— Me disseram que a gente nunca pode deixar a bandeira encostar no chão, papai — disse ele, no tom sério de vamos-resolver-esta-questão.
— É mesmo?
— Hã-hã. Victor McAllister disse que eles letrocutam gente que faz isso.
— Pois diga a Vic que ele está recheado daquilo que faz a grama ficar verde.
— Esterco, certo?
Billy é um garoto vivo, mas curiosamente sério. Para o campeão, tudo tem que ser encarado com seriedade. Espero que viva o bastante para aprender que, neste mundo, essa é uma atitude perigosa.
— Certo, mas não conte para sua mãe que eu disse. Quando a bandeira secar, nós a tiramos daqui. Podemos até dobrá-la em chapéu de bico, e assim ninguém nos acusará de nada.
— Vamos consertar o telhado da casa de barcos e ter um mastro de bandeira novo, papai?
Pela primeira vez, Billy parecia ansioso. Talvez já tivesse visto destruição suficiente em tão pouco tempo. Apertei-lhe o ombro.
— Tudo a seu tempo, campeão.
— Posso ir até a casa dos Bibber e ver o que aconteceu por lá?
— Vá, mas não demore muito. Eles também devem estar limpando tudo e, às vezes, isso deixa as pessoas um pouco zangadas.
Era como, no momento, me sentia em relação a Norton.
— Está bem. Tchau! — e ele saiu correndo.
— Procure não atrapalhar ninguém, campeão. Ei, Billy!
Ele olhou para trás.
— Lembre-se dos fios eletrizados. Se encontrar outros, fique longe deles, entendido?
— Eu fico, papai.
Continuei ali por um momento, primeiro verificando os estragos, depois tornando a observar o nevoeiro. Ele agora parecia mais perto, porém era difícil afirmar com segurança. Se estava mais perto, desafiava todas as leis da natureza, porque o vento — uma brisa muito suave — soprava contra ele. Isso, evidentemente, era de todo impossível.
O nevoeiro era de uma alvura surpreendente. A única coisa com que podia compará-lo, seria neve caída de pouco, jazendo em ofuscante contraste contra o brilho azul-forte do céu invernal. Contudo, a neve reflete centenas e centenas de brilhos ao sol, como diamantes, e aquele peculiar banco de nevoeiro, embora cintilante e de aparência límpida, não faiscava. A despeito do que havia dito Steff, não é incomum o surgimento de nevoeiro em dias límpidos, mas havendo grande quantidade, a umidade suspensa em geral produz um arco-íris. E ali não havia nenhum arco-íris.
A inquietação voltou, espicaçando-me, mas antes que me concentrasse nela, ouvi um surdo som mecânico — via-via-via! — seguido por um "Merda!" quase inaudível. O som mecânico repetiu-se, agora sem xingamento. Da terceira vez, o som abafado foi seguido por "Porra!", naquele mesmo tom sufocado de estou-sozinho-mas puto-da-vida.
Vnt-rrlt-rtlt-rilt...
...Silêncio..
... então: "Filha da mãe".
Comecei a rir. O som se transmite longe por aqui e todo o zumbido das serras de cadeia estava razoavelmente distante. Distante o suficiente para que eu pudesse identificar os tons não-tão-doces de meu vizinho do lado, o prestigioso advogado e residente-do-lago.
Brenton Norton.
Cheguei um pouco mais perto da água, simulando caminhar para o cais que servia ao nosso embarcadouro. Agora, podia ver Norton. Estava na clareira ao lado de seu alpendre telado, em pé sobre um tapete de velhas agulhas de pinheiro, vestindo um jeans salpicado de tinta e uma camiseta branca sem mangas. Seus cabelos, cortados a quarenta dólares, estavam em desalinho, o suor lhe pingava do rosto. Abaixando-se sobre um joelho, voltou a trabalhar em sua serra de cadeia. Era muito maior e mais moderna do que a minha, pequena e que me custara 79,95 dólares. De fato, aquela serra parecia ter tudo, menos um botão de partida. Norton puxava um cordel, produzindo os apáticos sons de vrrt-vrrt-vrd, e nada mais. Fiquei profundamente satisfeito, ao ver que uma bétula amarela havia caído em cima de sua mesa de piquenique, partindo-a ao meio.
Norton deu um tremendo puxão no cordel do arranque.
Viu-vut-vutvutvut-VAT!VAT!VAT!... VAT!... Via.
Você conseguiu, por um instante, cara.
Outro hercúleo puxão.
Via-vut-vut.
— Filha da puta — sussurrou Norton ferozmente, mostrando os dentes para sua moderna serra de cadeia.
Voltei para casa, contornando o prédio, sentindo-me realmente bem pela primeira vez, desde que me levantara. Minha serra começou a funcionar ao primeiro puxão do cordel, e então fui trabalhar.
Por volta das dez horas, houve um tapinha em meu ombro. Era Billy, com uma lata de cerveja em uma das mãos e a lista de Steff na outra. Enfiei a lista no bolso de trás de meu jeans e peguei a cerveja, que não estava estupidamente gelada, mas pelo menos gelada. Sorvi quase metade de uma vez — raramente uma cerveja cai tão bem — e ergui a lata, em um cumprimento a Billy.
— Obrigado, campeão.
— Posso beber um pouquinho?
Deixei-o beber um gole. Ele fez uma careta e devolveu-me a lata. Sorvi o restante e surpreendi-me no instante em que ia amassar a lata ao meio. Há mais de três anos estava em vigor a lei sobre devolução de latas e garrafas, mas velhas manias custam a desaparecer.
— Mamãe escreveu uma coisa no fim da lista, mas não entendo a letra dela disse Billy.
Tornei a examinar a lista. "Não consigo pegar a WOXO no rádio," dizia a nota de Steff.
"Será que a tempestade tirou a estação do ar?"
WOXO é o nosso automatizado distribuidor local de rock em FM. Irradia de Norway, cerca de trinta quilômetros ao norte, sendo tudo o que nosso velho e fraco rádio FM conseguia pegar.
— Diga a ela que é possível — falei, após ler a pergunta para ele. — Pergunte a sua mãe se consegue pegar Portland, na faixa AM.
— Está bem, papai. Posso ir com você, quando for à cidade?
— Claro. E mamãe também, se ela quiser ir.
— Okay.
Billy correu de volta à casa, levando a lata vazia. Abri meu caminho até a árvore grandalhona. Fiz o primeiro corte, serrei através dele e depois desliguei a serra por alguns momentos, para esfriar — a árvore era realmente muito grossa para ela, mas pensei que tudo daria certo, se fosse com calma. Perguntei-me se a estrada de terra indo até Kansas não estaria livre de árvores tombadas e, justamente então, um caminhão alaranjado da companhia de eletricidade rodou à minha vista, sem dúvida indo para a extremidade mais distante de nossa estradinha. Aquilo dava a entender que tudo estava indo bem. A estrada permanecia livre e, por volta de meio dia, o pessoal da eletricidade estaria ali, a fim de dar um jeito naqueles fios eletrizados e caídos.
Destaquei uma boa tora da árvore, arrastei-a para um lado da alameda e a deixei cair à margem. O pedaço de madeira rolou pela encosta, desaparecendo entre o matagal que havia crescido, há muito tempo atrás, quando meu pai e meus irmãos — todos eles artistas, porque os Drayton sempre tinham sido uma família de artistas — o haviam desbastado.
Limpei o suor do rosto com o braço e ansiei por outra cerveja; uma única, só serve realmente para preparar a boca. Tornei a empunhar a serra e pensei na WOXO fora do ar. Era daquela direção que tinha vindo o esquisito banco de nevoeiro. Também era aquela a direção em que fica Shaymore (os locais pronunciavam Shammorel. E, em Shaymore sediava-se o Projeto Ponta de Flecha.
Era essa a teoria do velho Bill Giosti sobre a chamada Primavera Negra: o Projeto Ponta de Flecha. Na parte oeste de Shaymore, não muito afastado de onde a cidade se delimita com Stoneham, havia uma pequena reserva do governo, cercada de arame, com sentinelas e câmaras de televisão em circuito fechado, além de só Deus sabe o que mais.
Pelo menos, era o que eu tinha ouvido; em realidade, nunca vira o lugar, embora a Estrada Velha de Shaymore passe ao longo do lado leste da terra do governo, por cerca de dois quilômetros.
Ninguém sabia ao certo de onde surgira o nome Projeto Ponta de Flecha e ninguém poderia dizer, com cem por cento de segurança, se aquele era realmente o nome do projeto — se é que havia algum projeto. Bill Giosti dizia que havia, mas quando se perguntava onde conseguira tal informação, ele ficava evasivo. Alegava que sua sobrinha trabalhava para a Companhia Telefônica Continental e tinha ouvido coisas. E tudo ficava nisso.
— Coisas atômicas — havia dito Bill nesse dia, debruçando-se à janela do Scout e expelindo uma saudável baforada alcoólica em meu rosto. — É nisso que andam envolvidos por lá. Disparando átomos no ar e coisas assim.
— O ar está cheio de átomos, Sr. Giosti — replicara Billy. — Foi o que a Sra. Neary disse. A Sra. Neary disse que tudo está cheio de átomos.
Bill Giosti deu a meu filho um longo olhar injetado de sangue, que finalmente o desinflou.
— Aqueles são átomos diferentes, filho.
— Ahnn... — murmurou Billy, entregando os pontos.
Dick Muehler, nosso agente de seguros, afirmava que o Projeto Ponte de Flecha, era uma estação agrícola dirigida pelo governo, nem mais nem menos.
— Tomates maiores, com uma temporada mais prolongada de crescimento acrescentou sabiamente, antes de voltar a explicar-me como ajudar minha família de modo mais eficiente, morrendo jovem.
Jannine Lawless, nossa agente postal, disse que lá havia um trabalho de pesquisa geológica, tendo algo a ver com petróleo de xisto. Tinha certeza do que dizia, porque o marido de seu irmão trabalhara para um homem que havia...
E quanto à Sra. Carmody... ela provavelmente tendia mais para o ponto de vista de Bill Giosti. Não apenas átomos, mas átomos diferentes.
Cortei mais dois bons pedaços da enorme árvore e os larguei a um lado, antes de Billy voltar com uma nova lata de cerveja em uma das mãos e um bilhete de Steff na outra.
Se existe alguma coisa que o Grande Bill adore fazer, mais do que entregar mensagens, não imagino o que seja.
— Obrigado — falei, pegando as duas coisas.
— Posso tomar um gole?
— Só um. Você tomou dois da última vez. Não quero ver você andando embriagado por aí, às dez horas da manhã.
— Dez e quinze — disse ele, sorrindo timidamente por sobre a borda da lata.
Sorri de volta — não que aquela fosse uma grande piada, convenhamos, mas Billy as faz muito raramente — e então li o bilhete.
"Peguei a JBQ no rádio", escrevera Steff. "Não se embriague antes de ir à cidade. Beba mais uma lata, mas é só, antes do almoço. Acha que nossa estrada está desimpedida?"
Devolvi o bilhete a Billy e peguei minha cerveja.
— Diga a ela que a estrada está livre, porque acabou de passar um caminhão da companhia de eletricidade. Eles estão vendo se chegam até aqui.
— Está bem.
— Campeão?
— O que é, pai?
— Diga a ela que está tudo certo.
Ele tornou a sorrir, talvez primeiro repetindo aquilo para si mesmo.
— Okay — respondeu.
Correu de volta à casa e fiquei vendo-o afastar-se, pernas movimentando-se rapidamente, as solas da sandália aparecendo. Eu o amo. É seu rosto, às vezes a maneira como os olhos se erguem para os meus, que me fazem sentir como se tudo está realmente certo. Mentira, claro — as coisas não andam certas e nunca andaram — mas meu filho faz-me acreditar na mentira.
Bebi um pouco da cerveja, pousei a lata cuidadosamente em cima de uma pedra e tornei a pegar a serra. Uns vinte minutos mais tarde, senti um leve toque no ombro e me virei, esperando ver Billy outra vez. Não era ele, mas Brent Norton. Desliguei a serra.
Norton não mostrava sua aparência costumeira. Parecia acalorado, cansado e infeliz, além de algo desconcertado.
— Olá, Brent — falei.
Nossas últimas trocas de palavras haviam sido rudes, de maneira que eu me sentia um tanto inseguro quanto à maneira de agir. Tinha um curioso pressentimento de que ele estivera parado atrás de mim pelos últimos cinco minutos, mais ou menos, pigarreando educadamente, sob o rugido agressivo da serra. Naquele verão, eu não o observara muito de perto. Reparei agora que havia perdido peso, mas a diferença não lhe fizera bem. No entanto, deveria, porque ele tivera uns bons dez quilos a mais. Sua esposa falecera no último novembro. Câncer. Aggie Bibber contara a Steff. Aggie era a nossa necróloga local. Cada vizinhança tinha a sua. Em vista da maneira casual de Norton em ser violento com a esposa e depreciá-la (agindo com o desdenhoso à vontade de um matador veterano, inserindo banderillas no lombo de um touro velho e desconjuntado), eu diria que ele ficara satisfeito em perdê-la. Se interrogado, eu poderia inclusive especular que ele andara se exibindo no último verão com uma moça vinte anos mais nova pelo braço e um sorriso tolo de meu-galo morreu-e-foi-pro-céu, estampado na face. Só que, em vez do sorriso tolo, havia apenas uma nova carga de rugas de velhice, enquanto que o peso perdido se revelava nos lugares errados, deixando pelancas e dobras que contavam sua própria história. Por um fugaz momento, senti vontade apenas de levar Norton até um ponto banhado de sol, sentá-lo ao lado de uma das árvores caídas, com minha lata de cerveja na mão, e fazer um esboço a carvão de sua figura.
— Olá, Dave — disse ele, após um longo momento de desajeitado silêncio um silêncio ainda mais palpável na ausência da barulheira da serra. Ele parou, depois soltou: — Aquela árvore. Aquela maldita árvore. Sinto muito. Você tinha razão.
Dei de ombros.
— Outra árvore caiu em meu carro — acrescentou ele.
— Lamento sab... — comecei, mas então tive uma horrível suspeita. — Não foi em cima do T-Bird, foi?
— Exatamente. Foi.
Norton tinha um Thunderbird 1960, parecendo saído da fábrica, com apenas trinta mil milhas rodadas. Azul meia-noite, por dentro e por fora. Ele só o dirigia nos verões, mesmo assim, raramente. Adorava aquele carro, da maneira como alguns homens adoram trens elétricos, modelos de navios ou pistolas de tiro ao alvo.
— Que merda — falei, e era sincero.
Ele meneou a cabeça lentamente.
— Eu quase não o trazia para cá. Estava para vir com a camionete, você sabe. Depois disse, que diabo! Vim com o carro, e um maldito pinheiro, um enorme pinheiro, caiu em cima dele. O teto ficou todo amassado. Pensei que poderia cortá-la... a árvore, quero dizer... mas não consegui fazer minha serra funcionar... Paguei duzentos dólares por aquela droga... e... e....
Sua garganta começou a emitir leves sons de estalidos. A boca se movia como se fosse desdentado e mascasse tâmaras. Por um desamparado segundo, pensei que ele ia ficar ali e debulhar-se em lágrimas, como uma criança em um terreno baldio. Então, conseguiu recompor-se a meio, deu de ombros e se virou, como que olhando para as toras de madeira que eu havia cortado.
— Bem — falei — podemos dar uma espiada em sua serra. — Seu carro está no seguro?
— Está — disse ele, — como sua casa de barcos.
Entendi o que Norton queria dizer e recordei novamente o que Steff havia dito sobre seguros.
— Escute, Dave, estive pensando se você não poderia me emprestar seu Saab, para ir até a cidade. Queria comprar pão, alguma coisa fria para comer e cerveja. Bastante cerveja.
— Eu e Billy vamos até lá no Scout — falei. — Se quiser, pode ir conosco. Isto é, se me der uma ajuda para puxar este resto de árvore a um lado da estrada.
— Com prazer.
Ele agarrou uma ponta, mas não teve forças para erguê-la. Tive que fazer a maior parte do trabalho. Juntos, conseguimos jogar tudo dentro do mato. Norton respirava fundo e ofegava, as bochechas quase purpúreas. Depois de todos os puxões que ele dera na serra, tentando fazê-la funcionar, fiquei um pouco preocupado com seu coração.
— Tudo bem? — perguntei, e ele assentiu, ainda respirando com dificuldade. — Então, vamos até lá em. casa. Eu lhe arranjo uma cerveja.
— Obrigado — disse ele. — Como vai Stephanie?
Norton começava a readquirir parte da antiga e untuosa pomposidade que me desagradava.
— Muito nem, obrigado.
— E seu filbo?
— Também está ótimo.
— Fico satisfeito em saber.
Steff saiu, e um momento de surpresa passou por seu rosto, ao ver quem vinha comigo.
Norton sorriu, os olhos rastejando pela apertada camiseta que ela usava. Bem, afinal ele não mudara tanto assim.
— Olá, Brent — disse ela, cautelosamente.
Billy assomou com a cabeça, por sob o braço dela.
— Olá, Stephanie. Olá Billy.
— O T-Bird de Brent levou uma pancada e tanto na tempestade — contei a ela. — Em cima do teto, foi o que ele disse.
— Oh, não!
Norton repetiu a história, enquanto bebia uma de nossas cervejas. Eu bebericava uma terceira, que em nada me afetava; aparentemente, havia transpirado as anteriores tão depressa quanto as bebera.
— Ele vai à cidade comigo e Billy.
— Bem, acho que vão demorar um pouco. Terão que ir ao Compre-e-Poupe em Norway.
— É mesmo? Por quê?
— Bem, se em Bridgton não há energia...
— Mamãe disse que todas as registradoras e outras coisas só funcionam com eletricidade — acrescentou Billy.
Era um bom motivo.
— Você ainda tem a lista?
Bati no bolso de trás da calça. Steff se virou para Norton.
— Sinto muito sobre Carla, Brent. Todos nós sentimos.
— Obrigado — disse ele. — Muito obrigado.
Houve um novo momento de constrangido silêncio, quebrado por Billy.
— Já podemos ir, papai?
Reparei que agora vestia jeans e calçava tênis.
— Sim, acho que podemos. Está pronto, Brent?
— Dê-me mais uma cerveja para a estrada, e estarei.
Steff franziu as sobrancelhas. Ela nunca aprovara aquela filosofia de uma-para-a-estrada ou de homens que dirigem com uma lata de cerveja descansando entre as pernas.
Assenti de leve e ela deu de ombros. Não era minha intenção tornar a criar um caso com Norton agora. Steff trouxe-lhe a cerveja.
— Obrigado — disse ele, não realmente agradecendo, mas apenas dizendo uma palavra.
Era como a gente agradece a uma garçonete, em um restaurante. Depois se virou para mim: — Em frente, Macduff.
— Vamos indo — falei, e passamos para a sala de estar.
Norton me seguiu, soltou exclamações sobre a galharia da bétula, mas eu não estava interessado naquilo e, até então, pouco pensara no preço para recolocar os vidros quebrados. Olhava para o lago, através da porta deslizante envidraçada que dava para nosso passadiço. A brisa refrescara um pouco e a temperatura aumentara uns cincos graus, enquanto eu serrava a árvore. Achei que o singular nevoeiro observado pela manhã já devia ter-se esfumado, porém lá estava ele. Mais próximo, também. Já chegara à metade do lago.
— Reparei nisso mais cedo — disse Norton, em tom de entendido. — Deve ser alguma inversão de temperatura, creio eu.
Eu não estava gostando daquilo. Tinha a firme convicção de que jamais vira nevoeiro semelhante. Uma parte de minha inquietação era devido àquela enervante borda reta frontal. Na natureza nada é tão certinho; o homem é que inventou margens retas. Parte do nevoeiro era de uma brancura ofuscante, sem nenhuma variação, mas tampouco sem as cintilações provocadas pela umidade. Deveria estar a um meio quilômetro de distância agora, sendo mais incongruente do que nunca o contraste de sua alvura com os tons de azul do céu e do lago.
— Vamos, papai! — disse Billy, puxando-me pela calça.
Voltamos todos à cozinha. Brent Norton dedicou um olhar derradeiro à árvore que tombara em nossa sala de estar.
— Pena que não fosse uma macieira, hein? — comentou Billy, inteligentemente. — Foi o que minha mãe disse. É engraçado, não acha?
— Sua mãe sabe mesmo dizer coisas engraçadas, Billy.
Enquanto falava, Norton desmanchou-lhe os cabelos em um gesto negligente e seus olhos tornaram a se voltar para a frente da camiseta de Steff novamente. Sim, aquele era um homem com quem eu jamais simpatizaria.
— Ouça, por que não vem conosco, Steff? — perguntei.
Sem nenhum motivo concreto, de repente eu a queria comigo.
— Não. Acho que vou ficar aqui e arrancar algumas ervas daninhas do jardim — respondeu ela. Seus olhos pousaram em Norton e se voltaram para mim. Esta manhã, creio ser a única coisa por aqui que funciona sem eletricidade.
Norton riu, demasiado caloroso. Captei a mensagem de Steff, mas tentei de novo.
— Tem certeza?
— Absoluta. O velho abaixa-e-levanta me fará bem.
— Está certo. Não tome sol demais.
— Porei meu chapéu de palha. Comeremos sanduíches quando você voltar.
— Ótimo.
Ela ergueu a face para que a beijasse.
— Tome cuidado. Talvez haja coisas tombadas na Estrada Kansas também, sabe como é.
— Serei cauteloso.
— Você também, Billy, tome cuidado — recomendou ela, beijando-lhe a bochecha.
— Certo, mãe.
Ele disparou pela porta de tela, que se fechou com estrondo às suas costas. Eu e Norton saímos em seguida.
— Podíamos ir até sua casa e cortar a árvore que caiu em cima do Bird — sugeri.
De repente, eu conseguia pensar em um monte de razões que adiassem aquela ida à cidade.
— Só olho novamente para aquela árvore depois que almoçar e tiver mais algumas destas — disse ele, erguendo a lata de cerveja. — O estrago está feito, Dave, meu chapa.
Também não gostei dele me chamando de "chapa". Acomodamo-nos os três no banco dianteiro do Scout (no canto mais distante da garagem, meu castigado limpa-neve Fisher cintilava amarelado, como o fantasma do Natal por vir) e dei marcha à ré, esmagando punhados de gravetos e galhos ali atirados pela tempestade. Steff estava na trilha de cimento que leva à parte da horta, no fim da extremidade oeste de nossa propriedade. Segurava a tesoura em uma das mãos enluvadas e, na outra, a pinça de arrancar ervas daninhas. Enfiara na cabeça seu velho e frouxo chapéu de sol, cuja aba lançava uma faixa de sombra em seu rosto. Buzinei duas vezes, levemente. Ela ergueu a mão segurando a tesoura, em resposta. Começamos a rodar. Nunca mais vi minha esposa depois disto.
Tivemos que parar uma vez, no trajeto para a Estrada Kansas. Depois que o caminhão da companhia de eletricidade passara, um pinheiro de tamanho razoável caíra atravessado na alameda. Eu e Norton descemos e o movemos o suficiente para o Scout esgueirar-se. Ficamos com as mãos inteiramente sujas de betume no processo. Billy queria ajudar, mas acenei para que ficasse quieto, receando que pudesse ser atingido nos olhos. Velhas árvores sempre me faziam recordar os Ents, na maravilhosa saga Rings, de Tolkien, só que os Ents tinham ficado maus. Árvores velhas querem machucá-lo.
Pouco importa se você está usando calçados próprios para a neve, esquiando em corrida através das matas ou apenas dando um passeio na floresta. Árvores velhas querem machucá-lo e, se pudessem, creio que o matariam.
Em si, a Estrada Kansas aparecia desimpedida, mas vimos a fiação caída, em vários lugares. Uns duzentos e cinqüenta metros após o Acampamento Vicki Linn, um poste de energia caíra ao comprido no acostamento, os fios grossos enovelados em volta do topo, como cabeleira em desalinho.
— Uma tempestade e tanto!
Norton empregava sua voz melíflua e treinada dos tribunais, só que agora não bancava o entendido, estava apenas solene.
— Se foi!
— Veja, papai!
Billy apontava para o que havia sobrado do celeiro dos Ellitch. Durante doze anos, ele permanecera descambando cansadamente para o campo dos fundos na propriedade de Tommy Ellitch, as pernas escondidas por girassóis, virga-áureas e Lolly-venha-me-ver.
A cada outono, eu pensava que ele não agüentaria outro inverno, mas na primavera continuava lá. Só que agora não estava mais. Restara apenas um destroço estilhaçado e um teto que fora despido da maioria das telhas. Chegara a sua vez. E, por algum motivo, aquilo ecoou solenemente, até ominosamente dentro de mim. A tempestade chegara e o tinha arrasado.
Norton esgotou sua cerveja, amassou a lata na mão e a deixou cair indiferentemente no piso do Scout. Billy abriu a boca para dizer algo, mas tornou a fechá-la — bom garoto.
Norton era de Nova Jersey, onde não havia nenhuma lei garrafa-e-lata; acho que podia ser perdoado por amassar o meu níquel, quando eu próprio mal me lembrava de deixar as minhas latas intatas.
Billy começou a mexer nos botões do rádio e eu lhe pedi para ver se a WOXO estava de volta. Ele girou até FM 92, conseguindo apenas um zumbido apático. Olhou para mim e encolheu os ombros. Refleti por um momento. Que outras estações mais estariam do outro lado daquele peculiar front de nevoeiro?
— Tente a WBLM — falei.
Ele girou o ponteiro até a outra extremidade, passando sobre a WJBQ-FM e a WIGYFM, enquanto isso. Estavam em atividade, como sempre... mas a WBLM, a mais importante estação de rock do Maine, estava fora do ar.
— Esquisito — falei.
— O quê? — perguntou Norton.
— Nada. Só pensei em voz alta.
Billy voltara para o cereal-musical da WJBQ. Em pouco, chegávamos à cidade.
No centro-comercial, a Lavanderia Norge estava fechada, sendo impossível — a uma lavanderia automática funcionar sem eletricidade, mas a Farmácia Bridgton e o Supermercado Federal de Alimentos estavam abertos. O pátio de estacionamento se achava lotado e, como sempre acontecia no meio do verão, havia um bocado de carros com chapas de outros estados. Vi grupinhos de pessoas aqui e ali ao sol, comentando a tempestade, mulheres com mulheres, homens com homens.
Avistei a Sra. Carmody, aquela dos animais empalhados e da história da água com tocos de cigarro. Fazia sua entrada imponente no supermercado, vestindo um assombroso terninho amarelo-canário. De um braço seu, pendia uma bolsa do tamanho de uma pequena mala de mão. Então, um idiota pilotando uma Yamaha rugiu ao meu lado, deixando de bater em meu pára-choque dianteiro por escassos centímetros. Usava um blusão jeans, óculos escuros espelhados e não tinha capacete.
— Veja só esse imbecil! — rosnou Norton.
Circulei o pátio de estacionamento uma vez, à procura de uma boa vaga. Não havia nenhuma. Já me resignava a uma longa caminhada desde o extremo oposto, quando tive sorte. Um Cadillac verde-limão, do tamanho da cabine de um pequeno cruzador, esgueirava-se de uma vaga, na faixa mais próxima das portas do supermercado. Assim que ele saiu, encaixei-me na vaga.
Entreguei a Billy a lista de compra de Steff. Ele tinha cinco anos, mas sabia ler letras impressas.
— Pegue um carrinho e vá começando. Quero ligar para sua mãe: O Sr. Norton o ajudará. Não vou demorar.
Saímos, e Billy imediatamente agarrou a mão do Sr. Norton. Fora ensinado a não cruzar o pátio de estacionamento sem segurar a mão de um adulto, quando pequenino e, ao crescer mais, não perdera o hábito. Norton pareceu surpreso por um momento, depois sorriu de leve. Quase o perdoei por haver apalpado Steff com os olhos. Os dois entraram no supermercado.
Caminhei para a cabine telefônica, que ficava na parede entre a lavanderia e o drugstore.
Uma suada mulher, em um conjunto de blusa e short púrpura, sacolejava o gancho do telefone, para baixo e para cima. Postei-me atrás dela, de mãos nos bolsos, perguntando-me por que estava tão inquieto sobre Steff e por que a inquietação se misturava àquela linha de nevoeiro branquicento, mas sem brilho, às estações de rádio fora do ar... e ao Projeto Ponta de Flecha.
A mulher do conjunto púrpura tinha os ombros gordos queimados de sol e cobertos de sardas. Parecia um suado bebê alaranjado. Bateu com o fone no gancho, virou-se para o drugstore e então me viu.
— Poupe sua moeda — disse. — Aí só dá zumbido — acrescentou, afastando-se com ar rabugento.
Quase dei um tapa na testa. Claro que as linhas estavam interrompidas em algum ponto.
Algumas eram subterrâneas, mas apenas uma minoria. Mesmo assim, tentei o telefone.
Naquela área, os telefones públicos são o que Steff chama de Telefones Públicos Paranóicos. Ao invés de colocar-se logo a moeda, primeiro é preciso ouvir-se o toque de chamada e então se disca o número. Quando alguém atende, há uma interrupção automática e tem-se que colocara moeda, antes que a outra pessoa desligue. São chamadas irritantes mas, nesse dia, pouparam minha moeda. Não havia ruído de discar.
Como havia dito a senhora, só ouvi zumbidos.
Desliguei e caminhei para o supermercado em passos lentos, com tempo exato para apreciar um pequeno incidente. Um casal de idade encaminhava-se para a porta ENTRADA, tagarelando um com o outro. E, enquanto tagarelavam, colidiram em cheio com a porta. Pararam de falar subitamente e a mulher esganiçou sua surpresa. Os dois entreolharam-se, de maneira cômica, depois deram risadas. Então, o velho abriu a porta para a esposa, com algum esforço — essas portas fotelétricas são pesadas — e eles entraram.
Quando a eletricidade desaparece, somos surpreendidos de cem modos diferentes.
Empurrei a porta para entrar e a primeira coisa que percebi foi a falta do ar condicionado. No verão, em geral eles o ligam no ponto mais alto, suficiente para congelar o consumidor que fique lá dentro por mais de uma hora seguida.
Como a maioria dos modernos supermercados, o Federal havia sido construído como uma caixa de Skinner — as técnicas modernas de marketing transformam todos os consumidores em ratos brancos. Tudo aquilo de que realmente precisamos, os produtos de consumo básicos, como pão, leite, carne, cerveja e refeições congeladas, fica no lado mais distante do estabelecimento. Para chegar lá, tem-se que passar ao lado dos ítens de impulso, conhecidos do homem moderno — tudo, desde isqueiros Cricket a ossos de borracha para cães.
Além das portas de entrada, está o corredor de frutas-e-vegetais. Ergui os olhos, examinando até o final, mas não havia sinal de Norton ou de meu filho. A velha que colidira contra a porta examinava grapefruits. Seu marido segurava uma sacola-rede, para acondicionar as compras.
Caminhei pelo corredor acima e dobrei para a esquerda. Encontrei-os no terceiro corredor, com Billy meditando diante das prateleiras com caixas de gelatina e pudins instantâneos. Norton estava diretamente atrás dele, examinando a lista de Steff. Tive que sorrir, ante sua expressão de perplexidade.
Caminhei para eles, passando por carrinhos de compras meio lotados (aparentemente, Steff não fora a única tomada pelo impulso armazenador dos esquilos) e clientes que estavam ali apenas bisbilhotando os artigos. Norton apanhou duas latas de recheio de torta, na prateleira mais alta, e as colocou no carrinho.
— Como está se saindo? — perguntei, e ele olhou para mim. com indisfarçável alívio.
— Muito bem, não é mesmo, Billy?
— Claro — respondeu Billy, mas não resistiu e acrescentou, em tom algo presunçoso: — Só que tem muita coisa que o Sr. Norton também não pode ler, papai.
— Deixe-me ver isto — falei, apanhando a lista.
Norton havia feito um visível e ordenado sinal ao lado de cada artigo que ele e Billy já haviam posto no carrinho — uma meia dúzia deles, incluindo-se o leite e um engradado com seis Cocas. Havia ainda mais umas dez coisas que ela queria.
— Temos que voltar às frutas e vegetais — falei. — Steff quer tomates e pepinos.
Billy começou a manobrar o carrinho para irmos e Norton comentou:
— Devia dar uma espiada na fila de pagar, Dave.
Fui até lá e olhei. Era o tipo de coisa que às vezes vemos em fotos no jornal , em um noticiário enfadonho, com uma legenda humorística em baixo. Havia apenas duas caixas funcionando e a fila dupla de pessoas esperando para pagar suas compras, estirava-se além da maioria dos quase vazios balcões de pão, depois virava para a direita e se perdia de vista na direção dos frigoríficos de alimentos congelados. Todas as novíssimas máquinas registradoras computorizadas estavam cobertas com capas. Em cada uma das filas em funcionamento, uma apoquentada jovem calculava os preços em uma calculadora de bolso movida a pilha. Junto a cada uma delas, postava-se um dos dois gerentes do Federal, Bud Brown e Ollie Weeks. Eu simpatizava com Ollie, mas bem menos com Bud Brown, que parecia imaginar-se o Charles de Gaulle do mundo dos supermercados.
Quando cada jovem terminava de calcular uma batelada de compras, Bud ou Ollie pregavam um clipe no dinheiro ou cheque do cliente e o jogavam na caixa que usavam como depósito de dinheiro. Todos pareciam cansados e suados.
— Espero que tenha trazido um bom livro — disse Norton, juntando-se a mim. — Vamos ficar um bocado de tempo na fila.
Tornei a pensar em Steff, sozinha em casa, e tive outro acesso de inquietude.
— Vá pegar suas compras — falei. — Eu e Billy damos conta do resto disto.
— Quer que traga mais algumas cervejas para você também?
Eu já pensara nisso, mas a despeito da reaproximação, não queria passar a tarde com Brent Norton, embriagando-me. Não com a confusão em que estavam as coisas, em volta da casa.
— Sinto muito — respondi. — Vai ter que ficar para outra vez, Brent.
Achei que seu rosto ficara algo tenso.
— Está bem — disse ele apenas.
Afastou-se e eu o segui com os olhos, mas então Billy me puxou pela camisa.
— Você falou com mamãe?
— Negativo. O telefone não estava funcionando. Acho que a tempestade derrubou também os fios telefônicos.
— Está preocupado com ela?
— Não — menti. Estava preocupado, claro, mas não imaginava por que deveria estar. — Não, claro que não estou. E você?
— T-também... n-não...
Billy estava preocupado. Seu rosto tinha uma expressão ansiosa. Devíamos ter voltado nessa hora. Contudo, mesmo então talvez já fosse tarde demais.
III. Chega o nevoeiro
Conseguimos chegar até as frutas e vegetais como salmões, abrindo caminho corrente acima. Vi alguns rostos familiares — Mike Hatlen, um dos nossos conselheiros municipais, a Sra. Reppler, da escola primária (ela, que aterrorizara gerações de crianças do terceiro grau, no momento escarnecia dos cantalupos), a Sra, Truman, que às vezes tomava conta de Billy, quando eu e Steff saíamos — porém a maioria se compunha de veranistas, comprando artigos que dispensavam cozimento e brincando entre si sobre "aquela vida dura". Os frios sortidos haviam desaparecido, tão completamente como as novelas de dez centavos nos bazares de caridade; nada sobrara, exceto algumas embalagens de salsichão, de massa de macarrão e uma solitária, fálica lingüiça.
Apanhei os tomates, pepinos e um pote de maionese. Ela também queria bacon, mas todo o bacon já se fora. Levei algumas embalagens de salsichão como substituto, embora jamais houvesse conseguido comer aquilo com o menor entusiasmo legítimo, desde que o FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos) informara que cada embalagem continha uma pequena dose de sujeira de insetos — um pequeno extra por seu dinheiro.
— Veja — disse Billy, ao contornarmos a esquina para o quarto corredor. Homens do exército.
Eram dois, seus uniformes pardacentos contrastando com o fundo muito mais vivo das roupas de verão e esportivas. Estávamos acostumados a ver raramente o pessoal do exército ligado ao Projeto Ponta de Flecha e somente a quarenta ou mais quilômetros de distância. Aqueles dois mal pareciam com idade suficiente para fazer a barba.
Tornei a olhar para a lista de Steff e vi que tínhamos tudo no carrinho... não, quase tudo.
No fim da lista, como uma idéia de última hora, ela rabiscara: Garrafa de Lancers?
Aquilo soava bom para mim. Uns dois copos de vinho aquela noite, depois de Billy ir para a cama e depois, talvez um longo e lento período fazendo amor, antes de dormirmos.
Larguei o carrinho e abri caminho até o vinho. Apanhei uma garrafa e, quando voltava, passando diante das grandes portas duplas que conduziam à área de estocagem, ouvi o firme rugido de um gerador de bom tamanho.
Decidi que provavelmente seria grande o bastante para manter as embalagens frias, mas não o suficiente para fazer funcionar as portas, caixas registradoras e o equipamento elétrico restante. Parecia o barulho de uma motocicleta, atrás daquelas portas.
Norton apareceu justamente quando entramos na fila, equilibrando duas embalagens de seis Schtitz Light, um pão e a lingüíça que eu localizara minutos antes. Entrou na fila comigo e Billy. Estava muito quente no supermercado, com o ar condicionado fora de funcionamento, e perguntei-me por que nenhum dos rapazes que embalavam as compras, pelo menos não escancarara as portas. Eu tinha visto Buddy Eagleton dois corredores atrás, com seu avental vermelho, sem fazer nada além de empilhar artigos. O gerador rugiu monotonamente. Eu tinha uma dor de cabeça em início.
— Coloque suas coisas aqui, antes que deixe cair alguma — falei.
— Obrigado.
As filas agora chegavam aos alimentos congelados; havia pessoas cortando-a a todo instante, entre muitos "com licença" e "por favor".
— Isto vai ser uma merda — disse Norton morosamente.
Franzi a testa de leve. Esse tipo de linguagem é rude demais para cair nos ouvidos de Billy, em minha opinião.
O barulho do gerador amorteceu-se um pouco, quando a fila avançou alguns metros. Eu e Norton mantínhamos uma conversa incoerente, evitando a feia disputa entre propriedades que nos levara ao tribunal distrital e preferindo temas como as chances do Red Sox e o tempo. Por fim, exaurido o nosso pequeno estoque de conversa fìada, ficamos calados. Billy estava irrequieto ao meu lado. A fila arrastava-se. Agora, tínhamos refeições congeladas à direita e, à esquerda, os vinhos e champanhas mais caros. À medida que a fila avançou para os vinhos mais baratos, brinquei ligeiramente com a idéia de pegar uma garrafa de Ripple, o vinho de minha flamante juventude. Não a peguei. Afinal, minha juventude não fora assim tão flamante.
— Poxa, por que eles não andam mais depressa, papai? — perguntou Billy.
Meu filho continuava com aquela expressão ansiosa no rosto. De súbito, brevemente, a névoa de inquietação que me invadira abriu uma brecha e algo terrível espiou do outro lado — a face brilhante e metálica do terror. Então, passou.
— Fique calmo, campeão — falei.
Tínhamos chegado às gôndolas do pão — ao ponto em que a fila dupla dobrava para a esquerda. Agora, eu podia ver os corredores para as caixas registradoras, as duas em funcionamento e as outras quatro, abandonadas, cada uma com um pequeno aviso sobre a esteira-rolante imóvel, avisos dizendo POR FAVOR, ESCOLHA OUTRA CAIXA e WINSTON. Além das caixas, ficavam as enormes paredes envidraçadas, dando para o pátio de estacionamento e o cruzamento das Rotas 117 e 302, mais além. A vista era parcialmente obscurecida pelas costas dos avisos em cartolina branca, anunciando artigos em promoção e a última cortesia da casa, um conjunto de livros com o título Enciclopédia da Mãe Natureza.
Estávamos na fila que, eventualmente, nos levaria à caixa presidida por Bud Brown.
Havia ainda umas trinta pessoas à nossa frente. A mais identificável era a Sra. Carmody, com seu terninho amarelo-berrante. Ela parecia um anúncio de febre amarela.
De repente, um barulho agudo começou na distância, aumentando rapidamente até transformar-se no louco ulular de uma sirene policial. Soou uma buzinada no cruzamento, houve um chiado de freios e borracha queimada. Eu não podia ver-o ângulo não permitia — mas a sirene chegou ao auge quando se aproximou do supermercado, começando a diminuir à medida que a viatura policial se afastava.
Algumas pessoas saíram da fila para espiar, mas não muitas. Já haviam esperado demais, para perder seus lugares.
Norton saiu; suas compras estavam em meu carrinho. Após alguns momentos, retornou e voltou para a fila outra vez.
— Confusão local — disse.
Então, o apito de incêndios da cidade começou a gemer, lentamente passando para um guincho todo próprio, caindo e tornando a subir. Billy tomou minha mão — aferrou-a.
— O que é, papai? — perguntou, acrescentando imediatamente: — Mamãe está bem?
— Deve ser algum incêndio na Estrada Kansas — disse Norton. — Aqueles malditos fios derrubados pela tempestade... Os carros de bombeiros passarão daqui a pouco.
Aquilo deu algo para a minha inquietação concentrar-se. Havia fios eletrizados caídos em nosso terreno.
Bud Brown disse algo à moça da caixa que ele supervisionava; ela estivera se virando, para ver o que ocorria. A moça enrubesceu e voltou a digitar sua calculadora.
Eu não queria estar naquela fila. De repente, eu não queria estar ali, de maneira alguma.
Contudo, ela recomeçava a mover-se e parecia tolice deixá-la agora. Passamos juntos aos mostruários de cigarros.
Alguém passou pela porta ENTRE, um adolescente. Achei que era o rapazola que quase havíamos atingido, o da Yamaha, sem capacete.
— O nevoeiro! — gritou ele. — Vocês deviam ver o nevoeiro! Está vindo pela Estrada Kansas!
As pessoas se viraram para fitá-lo. Ele ofegava, como se houvesse corrido uma longa distância. Ninguém disse nada.
— Bem, vocês deviam ver — repetiu ele, agora soando defensivo.
Algumas pessoas olharam para ele, outras moveram os pés, mas ninguém queria perder o lugar na fila. Aquelas que ainda não estavam em fila, abandonaram seus carrinhos e passaram pelos corredores vazios das caixas desativadas, para ver se descobriam sobre o que ele falava. Um sujeito grandalhão, com um chapéu de verão exibindo uma faixa estampada (do tipo que a gente raramente vê, exceto em comerciais de cerveja, tendo churrascos ao fundo para compor o cenário), escancarou a porta SAÍ DA e várias pessoas — dez, talvez uma dúzia — saíram com ele. O rapazinho os acompanhou.
— Não deixem todo o ar condicionado escapar — disse um dos garotos do exército, com típica voz de falsete.
Houve algumas risadinhas. Eu não ri. Tinha visto o nevoeiro cruzando o lago.
— Por que não vai dar uma espiada, Billy? — sugeriu Norton.
— Não — falei de imediato, sem qualquer razão concreta.
A fila tornou a avançar. As pessoas espichavam o pescoço, querendo ver o nevoeiro que o rapazinho mencionara, porém nada havia à vista, exceto o céu azul-vivo. Ouvi alguém dizer que ele devia estar brincando. Alguém mais respondeu que tinha visto uma linha esquisita de nevoeiro sobre o Long Lake, cerca de uma hora atrás. O primeiro apito ululou e gritou. Não gostei daquilo. Dava a sensação de um Dia do Juízo em grande escala, soando daquela maneira.
Mais pessoas saíram. Algumas chegaram a abandonar seu lugar na fila, o que acelerou um pouco nosso avanço. Então, o encanecido velho John Lee Frovin, que trabalha como mecânico no posto Texaco, entrou encurvado e gritou:
— Ei! Alguém aí tem uma máquina de retratos?
Olhou em torno, depois tornou a sair com sua espinha encurvada. Aquilo causou certo rebuliço. Se a coisa valia a pena uma foto, também valia a pena ver o que era. Foi quando a Sra. Carmody gritou, com sua voz enferrujada, mas potente:
— Não saiam!
As pessoas se viraram para olhá-la. A forma ordenada das filas desorganizara-se inteiramente, com gente que saía para espiar o nevoeiro, que se afastava da Sra. Carmody ou que andava de um lado para outro, procurando os amigos. Uma mulher nova e bonita, com uma blusa de malha de algodão própria para atletismo e calça comprida verde-escura, olhava para a Sra. Carmody de maneira pensativa e avaliadora.
Alguns oportunistas aproveitavam-se da confusão furavam a fila, avançando uma ou duas vagas. A caixa ao lado de Bud Brown virou a cabeça novamente para olhar e ele lhe bateu um dedo comprido no ombro.
— Preste atenção ao que está fazendo, Sally.
— Não saiam! — gritou a Sra. Carmody. — É a morte! Sinto que a morte está lá fora!
Bud e Ollie Weeks, que a conheciam, pareceram impacientes e irritados, mas alguns veranistas à volta dela afastaram-se alguns passos, pouco ligando para seus lugares na fila. Nas cidades grandes, as bag-ladies parecem ter o mesmo efeito sobre os demais, como se fossem portadores de alguma doença contagiosa. Quem sabe? Talvez sejam mesmo.
Então, as coisas começaram a acontecer em ritmo acelerado e confuso. Um homem entrou aos tropeções no supermercado, empurrando a porta ENTRE até o fim.
Seu nariz sangrava.
— Há alguma coisa naquele nevoeiro! — gritou.
Billy encolheu-se contra mim — fosse por causado nariz sangrento do homem ou pelo que ele dizia, eu não sei.
— Há alguma coisa naquele nevoeiro! — repetiu ele. — Alguma coisa no nevoeiro agarrou John Lee! Alguma coisa... — Ele tropeçou de costas em uma amostra de adubo para jardim, amontoada junto às vidraças e sentou-se ali. — Alguma coisa no nevoeiro pegou John Lee e eu o ouvi gritando!
A situação mudou. Já nervosas pela tempestade, pela sirene policial e o apito de incêndios, pelo sutil deslocamento que qualquer interrupção da força elétrica provoca na psique americana e pelo ambiente de cada vez maior inquietude quando as coisas, de algum modo... alguma forma, se transformam (não sei como expressá-lo melhor do que isto), as pessoas começaram a mover-se como um todo.
Não saíram correndo. Se eu dissesse isso, estaria dando uma impressão absolutamente errônea. Não foi exatamente um pânico. Elas não correram — ou, pelo menos, a maioria não correu. Andaram. Algumas chegaram às enormes paredes envidraçadas, no ponto mais afastado das caixas, e olharam para fora. Outras saíram pela porta ENTRE, algumas ainda carregando os artigos escolhidos para compra. Inquieto e diligente, Bud Brown começou a gritar:
— Ei! Vocês ainda não pagaram! Ei, você! Volte aqui com esses pães para cachorro-quente!
Alguém riu dele, um som louco e guinchado, que provocou sorrisos dos demais.
Contudo, mesmo enquanto sorriam, aquelas pessoas estavam perplexas, confusas e nervosas. Então, alguém mais deu uma risada e Brown ficou vermelho. Arrancou uma caixa de cogumelos de uma senhora que passava a seu lado, para espiar na vidraça — os segmentos de vidro estavam agora tomados por filas de pessoas, eram como aquelas que vemos espiando através de furos, nos tapumes dos locais em construção — e a mulher gritou:
— Devolva meus cogumelinhos!
O bizarro termo afetivo fez com que dois homens nas proximidades estourassem em louco acesso de riso — e agora havia em tudo aquilo algo do velho manicômio inglês. A Sra. Carmody trovejou novamente para que ninguém saísse. O apito de incêndio ululou ofegante, como uma velha que houvesse levado um susto, com um gatuno dentro de casa. Billy prorrompeu em pranto.
— O que é aquele homem cheio de sangue, papai? O que é?
— Está tudo bem, Grande Bill. É só o nariz dele. Ele está bem.
— O que ele quis dizer, com alguma coisa no nevoeiro? — perguntou Norton.
Vi que ele franzia a testa inteiramente, sem dúvida a sua maneira de parecer confuso.
— Estou com medo, papai — disse Billy, através de lágrimas. — Será que a gente não podia ir para casa?
Alguém passou a meu lado, dando-me um encontrão que me fez perder ligeiramente o equilíbrio. Tomei Billy nos braços. Eu também estava ficando assustado. A confusão aumentava. Sally, a caixa supervisionada por Bud Brown, começou a afastar-se, mas ele a agarrou pela gola de sua bata vermelha e a trouxe de volta. O tecido rasgou-se. Sally avançou para ele, pronta a desferir-lhe uma bofetada, o rosto contorcido de fúria.
— Tire essas mãos sujas de cima de mim! — gritou ela.
— Oh, cale a boca, sua cretina! — exclamou Brown, parecendo absolutamente espantado.
Tornou a estender a mão para agarrá-la, mas Ollie Weeks disse com rispidez:
— Bud! Esfrie, cara!
Alguém mais gritou. Não houvera pânico ainda — não de todo — mas ia haver logo. As pessoas disparavam para o exterior, por ambas as portas. Houve um barulho de vidro quebrado e garrafas de Coca rolaram pelo chão subitamente, esguichando o conteúdo.
— Cristo, o que está acontecendo? — exclamou Norton.
Foi quando começou a escurecer... oh, não, não foi bem isso. No momento, não pensei que estivesse anoitecendo, mas sim que as luzes do supermercado se tivessem apagado.
Ergui os olhos para as luzes fluorescentes, em um rápido ato reflexo, e não fui o único.
A princípio, até recordar a interrupção da energia elétrica, pareceu-me que a luz se apagara, que isso é que modificara a qualidade da iluminação. Então, recordei que havíamos ficado sem energia o tempo todo, desde nossa chegada ao supermercado, mas que as coisas antes não pareciam escuras. Então adivinhei, ainda antes que as pessoas espremidas contra as janelas envidraçadas começassem a gritar e apontar.
O nevoeiro estava chegando.
Vinha da entrada da Estrada Kansas para o pátio de estacionamento e, apesar daquela proximidade, não parecia diferente de quando o percebêramos pela primeira vez, na margem oposta do lago. Era branco e brilhante, mas sem reflexos. Movia-se depressa, tendo eclipsado a maioria do sol. Onde o sol estivera, havia agora uma moeda de prata no céu, como uma lua cheia no inverno, vista através de uma fina camada de nuvens.
O nevoeiro chegou com indolente rapidez. Vê-lo, fazia-me recordar algo da chuva torrencial daquela noite. Na natureza há forças poderosas que dificilmente vemos — terremetos, ciclones, furacões — eu não chegara a ver todos eles, mas tinha visto o suficiente para intuir que se moviam com aquela preguiçosa, hipnotizante velocidade.
São coisas que nos mantém abismados, como Billy e Steff haviam estado, diante da janela panorâmica, a última noite.
Ele rolava imparcialmente pela estrada negra de duas pistas, apagando-a de vista. A residência dos McKeon, belamente restaurada em colonial holandês, foi engolida por inteiro. Durante um momento, o segundo pavimento do arruinado prédio de apartamentos ao lado, conseguiu destacar-se naquela brancura, porém desapareceu também. O aviso MANTENHA A DIREITA, nos pontos de entrada e saída do pátio de estacionamento do Federal, sumiu de vista, enquanto as letras negras pareciam flutuar por um instante no limpo, depois que o fundo branco-sujo do cartão desapareceu. Em seguida, foi a vez de os carros no pátio de estacionamento começaram também a esfumar-se.
— Cristo, o que está acontecendo? — repetiu Norton, nervoso.
O nevoeiro chegou, comendo o céu azul e a recente pintura negra no piso do estacionamento. Mesmo estando e seis metros de distância, a linha de demarcação era absolutamente nítida. Fiquei com a idiota sensação de estar assistindo a uma peça extraordinariamente boa de efeitos visuais, algo fantasiado por Willys O'Brien ou Douglas Trumbull. Aconteceu depressa demais. O céu azul pareceu ter sido abocanhado, transformando-se em faixa, depois em um fino risco de lápis: Então, desapareceu de todo. O branco opaco pressionou-se contra o vidro da enorme vitrine. O máximo que eu conseguia ver era até o barril para papéis usados, talvez a metro e meio de distância, porém não muito mais além. O único que distinguia era o pára-choque dianteiro de meu Scout, mas foi tudo.
Uma mulher deu um grito, muito alto e prolongado. Billy apertou-se mais contra mim.
Seu corpo tremia como um monte frouxo de fios, percorridos por alta voltagem.
Um homem gritou também e atirou-se por um dos corredores vazios de caixa, em direção à porta. Acho que isso finalmente desencadeou o estouro. As pessoas precipitaram-se para o nevoeiro.
— Ei! — rugiu Brown. Não sei se estava irritado, assustado, ou as duas coisas. Seu rosto ficara quase púrpura e as veias salientavam-se no pescoço, quase tão grossas como cabos de bateria. — Ei, vocês aí, não podem levar essa mercadoria! Voltem aqui com a mercadoria, isso é roubo!
Todos continuaram correndo para fora, mas alguns largaram as mercadorias que levavam. Uns poucos riam, excitados. Penetraram todos no nevoeiro e, entre os que ficaram para trás, ninguém mais tornou a vê-los. Pela porta aberta infiltrava-se um cheiro vagamente acre. As pessoas começaram a amontoar-se diante dela, entre empurrões e encontrões. Meus ombros doíam por segurar Billy, um garoto de bom tamanho. Steff às vezes o chamava de seu bezerrinho.
Norton começou a afastar-se, com ar preocupado, estupidificado. Dirigia-se para a porta. Passei Billy para o outro braço, a fim de agarrar o de Norton, antes que ele me fugisse do alcance.
— Nada disso, cara, não deve ir — falei.
Ele se virou para mim.
— O quê?
— É melhor esperar para ver.
— Ver o quê?
— Sei lá — respondi.
— Não está pensando que...
Um guincho saído do nevoeiro o interrompeu. Norton calou a boca. O apertado amontoado junto à porta SAÍDA afrouxou-se. O burburinho de excitadas conversas, gritos e chamados, amainou. O rosto das pessoas junto à porta pareceu subitamente achatado e pálido, bidimensíonal.
O guincho estendeu-se, prolongadamente, competindo com o apito de incêndio. Parecia impossível que qualquer par de pulmões humanos contivesse ar suficiente para agüentar semelhante uivo.
— Oh, meu Deus — murmurou Norton, passando as mãos através dos cabelos.
O guincho terminou subitamente. Não foi diminuindo; estancou de repente. Um outro homem saiu, um sujeito corpulento, em calças de trabalho de brim. Creio que pretendia resgatar quem guinchara. Por um momento, ele surgiu lá fora, visível através do vidro e do nevoeiro, como uma figura discernida através do leite em um copo. Então (e, que me conste, fui o único a ver isto) algo além dele pareceu mover-se, uma sombra cinzenta em toda aquela brancura. Tive a impressão de que, ao invés de penetrar no nevoeiro, o homem das calças de brim foi puxado para seu interior, as mãos debatendo-se no alto, como que surpreso.
Por um instante, houve silêncio total no supermercado.
Uma constelação de luas brilhou subitamente no exterior. As luzes de sódio do pátio de estacionamento, sem dúvida supridas por cabos elétricos subterrâneos, tinham sido acesas naquele momento.
— Não vão lá fora! — disse a Sra. Carmody, em sua melhor voz de corvo agourento. — Será a morte para quem sair!
Imediatamente, ninguém parecia disposto a discutir ou rir.
Outro grito brotou do exterior, este abafado e soando algo distante. Billy retesou-se contra mim.
— David, o que está acontecendo? — perguntou Ollie Weeks. Havia deixado o posto junto à caixa e mostrava grandes gotas de suor no rosto redondo e liso. O que é isto?
— Não faço a menor idéia — respondi.
Ollie parecia francamente assustado. Era solteiro, morava em uma aconhegante casinha perto de Highland Lake e gostava de beber no bar em Pleasant Mountain. No rechonchudo mindinho de sua mão esquerda, ostentava um anel com uma estrela de safiras. No último fevereiro, ele ganhara algum dinheiro na loteria estadual e então comprara o anel. Eu sempre tivera a impressão de que Ollie sentia certo medo de garotas.
— E eu não entendo nada — disse ele.
— Não dá para entender — falei. — Ouça, Billy, tenho que pôr você no chão. Ficarei segurando sua mão, mas você está quebrando meus braços, compreende?
— Mamãe — sussurrou ele.
— Ela está bem — respondi, pois tinha que dizer alguma coisa.
O velhote que tem uma loja de artigos usados, perto do Restaurante Jon's, passou por nós, enfiado na velha suéter com as letras da universidade, que não tirava do corpo o ano inteiro. Disse, em voz alta:
— Deve ser uma daquelas nuvens de poluição. As fábricas em Rumford e South Paris. Produtos químicos.
Enquanto falava, embrenhou-se no corredor 4, além das gôndolas de medicamentos e papel sanitário.
— Vamos sair daqui, David — disse Norton, sem a menor convicção. — O que acha de nós...?
Houve um baque surdo. Um baque estranho, estremecido, que senti principalmente nos pés, como se todo o edifício houvesse subitamente afundado um metro no chão. Várias pessoas gritaram, de medo e surpresa. Ouviu-se um jingle musical de garrafas caindo das prateleiras e estilhaçando-se no piso ladrilhado. Um pedaço de vidro em forma de cunha caiu de um dos segmentos da ampla vitrine frontal e vi as molduras de madeira sacudindo as pesadas seções envidraçadas, que saltaram e racharam em alguns pontos.
O apito de incêndio cessou abruptamente.
O silêncio que se seguiu foi a quietude expectante de gente esperando algo mais, qualquer outra coisa. Eu estava chocado e entorpecido. Minha mente executou uma estranha conexão cruzada com o passado. Recuou até quando Bridgton era pouco mais do que um cruzamento de estradas e meu pai me levava com ele, enquanto conversava junto ao balcão e eu espiava, através do vidro, para os doces de um penny e a goma de mascar a dois centavos. Era o degelo de janeiro. Não havia outro som, além da água derretida que pingava, caindo das calhas de estanho galvanizado nas barricas para águas pluviais, a cada lado da loja. Eu, olhando para os pés-de-moleque, botões e cataventos.
Os místicos globos amarelos de luz no alto, mostrando projetadas sombras monstruosas do batalhão de moscas mortas no último verão. Um garotinho chamado David Drayton e seu pai, o famoso artista Andrew Drayton, cuja pintura Christine Solitária estava na Casa Branca. Um garotinho chamado David Drayton, olhando para os doces e cartões da goma-de-mascar Davy Crockett, sentindo uma vaga vontade de urinar. E, lá fora, pressionante, o encapelado nevoeiro amarelo do degelo de janeiro.
A recordação enfumaçou-se, mas muito devagar.
— Ei, vocês todos! — bradou Norton. — Todos vocês, ouçam-me!
As pessoas olharam em torno. Norton erguia as duas mãos, os dedos estendidos em ângulo, como um candidato político acolhendo saudações.
— Pode ser perigoso alguém ir lá fora! — gritou ele.
— Por quê? — gritou uma mulher de volta. — Meus filhos ficaram em casa! Preciso voltar para junto deles!
— Quem sair daqui morrerá! — repetiu agudamente a Sra. Carmody.
Estava em pé junto aos sacos de doze quilos com fertilizantes, empilhados abaixo da janela envidraçada, e seu rosto parecia projetar-se para diante de algum modo, como se ela estivesse inchando.
Um adolescente a empurrou com rudeza e ela caiu sentada em cima dos sacos, com um grunhido de surpresa.
— Pare de ficar falando assim, velha maluca! Pare de dizer besteiras!
— Por favor! — gritou Norton. — Se apenas esperarmos alguns momentos, até tudo se acalmar, então veremos...
Uma confusão de gritos conflitantes acolheu suas palavras.
— Ele tem razão! — gritei, procurando fazer-me ouvir acima do barulho. Temos que ficar de cabeça fria!
— Acho que foi um terremoto — disse um homem de óculos. Tinha voz suave. Em uma das mãos segurava um pacote de hamburgeres e um saco de pãezinhos. Na outra, prendia a de uma menininha, talvez um ano mais nova do que Billy. Sinceramente, acho que foi um terremoto.
Houve um em Nápoles, há cerca de quatro anos — disse um gordo residente local.
— Aquilo foi em Casco — contradisse imediatamente sua esposa, empregando os tons indisfarçáveis de veterana contestadora.
— Naples — insistiu o gordo, porém com menos segurança.
— Casco! — declarou a mulher com firmeza, e ele desistiu.
Em algum lugar, uma lata que fora atirada até a borda da prateleira, pelo baque, terremoto ou fosse o que fosse, caiu finalmente, com atrasado clangor. Billy prorrompeu em choro.
— Quero ir para casa! Quero a minha MÃE!
— Não pode fazer esse garoto se calar? — perguntou Bud Brown, com os olhos indo rapidamente, mas sem destino, de um lado para outro.
— Quer que lhe dê um tiro nos dentes, boca de matraca? — falei.
— Vamos, Dave, isso não resolve nada — disse Norton, aturdido.
— Sinto muito — falou a mulher que gritara antes. — Sinto muito, mas não posso ficar aqui. Preciso ir para casa e ver meus filhos.
Olhou em torno para nós, uma mulher loura, de rosto bonito e fatigado.
— Wanda ficou cuidando do pequeno Victor, compreendam. Ela só tem oito anos e, às vezes, esquece... esquece que deveria... bem, tomar conta dele, sabem como é. E o pequeno Victor... ele gosta de ligar os bicos de gás do fogão, para ver aparecer a luzinha vermelha... ele gosta daquela luzinha... e às vezes puxa as tomadas da parede... o pequeno Victor faz isso... e Wanda fica... entediada de cuidar dele, após algum tempo... ela só tem oito anos... — A mulher interrompeu-se e ficou olhando para nós. Imagino que lhe tenhamos parecido apenas um bando de olhos impiedosos, não seres humanos, em absoluto, apenas olhos. — Será que ninguém vai me ajudar? — gritou ela. Seus lábios começaram a tremer. — Ninguém aqui... ninguém leva uma senhora em casa?
Não houve resposta. As pessoas arrastaram os pés. Ela olhou rosto por rosto, com suas feições compungidas. O gordo residente local ensaiou um meio passo à frente, mas a esposa o puxou de volta, com um gesto rápido, a mão se fechando no punho dele como uma algema.
— Você? — perguntou a loura a Ollie. Ele abanou a cabeça. — E você? — ela se virou para Bud. Ele pousou a mão na calculadora Texas Instruments sobre o balcão e nada disse. — Você? — perguntou ela a Norton.
Norton começou a dizer algo, em sua voz pomposa de advogado, algo sobre ninguém ser louco para sair dali e... e ela então o ignorou, permitindo que ele se afastasse.
— Você? — perguntou a mim.
Tornei a colocar Billy no colo e o mantive nos braços, como um escudo a proteger-me daquela terrível face descomposta.
— Espero que todos vocês apodreçam no inferno — disse ela.
Não gritou. Sua voz estava apática pelo cansaço. Caminhou para a porta SA Í DA e a empurrou, usando as duas mãos. Eu quis dizer-lhe algo, chamá-la de volta, mas tinha a boca demasiado seca.
— Ei, dona, escute... — começou o adolescente que gritara para a Sra. Carmody.
Ele lhe segurou o braço. A mulher loura baixou os olhos para aquela mão que a prendia e o rapazinho a soltou, envergonhado. Ela deslizou para dentro do nevoeiro. Nós a vimos ir e ninguém disse nada. Vimos o nevoeiro abraçá-la, torná-la insubstancial, não mais um ser humano, porém o desenho a tinta de um ser humano, feito no papel mais branco do mundo, e ninguém disse nada. Por um momento, foi como as letras do aviso MANTENHA A DIREITA, que tinha parecido flutuar no nada; seus braços, pernas e o pálido cabelo louro desapareceram, permanecendo apenas os enevoados remanescentes de seu vestido vermelho de verão, como se dançassem em um limbo alvacento. Então, o vestido também desapareceu e ninguém disse nada.
IV. A área de estocagem. Problemas com os geradores. O que aconteceu ao rapaz embalador
Billy começou a agir histericamente e com malcriação, gritando pela mãe de maneira rouca e exigente através das lágrimas, instantaneamente regredindo à idade de dois anos. Seu lábio superior estava coberto de ranho. Levei-o dali, descendo por um dos corredores centrais, com o braço em torno de seus ombros, tentando acalmá-lo.
Caminhei com ele ao longo do comprido gabinete branco para carnes, que ocupava toda a largura do supermercado, na parte dos fundos. O açougueiro, Sr. Mc Vey, ainda estava lá. Cumprimentamo-nos com um aceno de cabeça, o melhor que podíamos fazer, em vista das circunstâncias.
Sentando-me no chão, coloquei Billy no colo e mantive seu rosto contra meu peito, embalando-o e falando com ele. Contei-lhe todas as mentiras que os pais reservam para as situações difíceis, aquelas que soam infernalmente plausíveis para uma criança, e as contei em um tom de absoluta convicção.
— Aquele não é um nevoeiro igual aos outros — disse Billy. Ergueu o rosto para mim, os olhos circundados de sombras e marejados de lágrimas. — Não é igual, não, papai?
— Não, não é igual — falei, não querendo mentir sobre aquilo.
Crianças não lidam com o choque à maneira dos adultos; elas harmonizam-se com ele, talvez por viverem em semi permanente estado de choque até cerca dos treze anos. Billy começou a cochilar. Eu o mantive nos braços, achando que fosse acordar de novo, mas seu sono aprofundou-se, ficou pesado. Talvez houvesse ficado desperto parte da noite anterior, ao dormirmos os três em uma só cama, pela primeira vez, desde que ele era bebê. E talvez — senti algo como uma lâmina fria me varando ao pensar nisso — talvez ele houvesse pressentido algo que estava para ocorrer.
Quando fiquei certo de que ele dormia profundamente, depositei-o no chão e saí em busca de algo com que cobri-lo. Em sua maioria, as pessoas continuavam na parte interna e fronteira do supermercado, espiando o espesso lençol do nevoeiro. Norton reunira um pequeno grupo de ouvintes e ocupava-se em fasciná-los com sua palavra eloqüente — ou, pelo menos, tentava. Bud Brown permanecia rigidamente em seu posto, mas Ollie Weeks já abandonara o seu.
Havia umas poucas pessoas pelos corredores, perambulando como fantasmas, os rostos sebosos pelo choque. Entrei na área de estocagem, através das grandes portas duplas entre o gabinete de carnes e o refrigerador de cerveja.
O gerador rugia com firmeza, através de sua divisória de compensado, mas havia algo errado. Pude sentir cheiro dos vapores de diesel e eram muito fortes. Caminhei para a divisória, poupando a respiração. Por fim, desabotoando a camisa, tapei a boca e o nariz com parte dela.
A área de estocagem era comprida e estreita, fracamente iluminada por dois conjuntos de luzes de emergência. Havia caixas de papelão amontoadas por toda parte — alvejantes a um lado, caixas de refrigerantes no lado mais distante da divisória, caixotes de Beefaroni e catchup empilhados. Um destes havia caído e o papelão parecia sangrar.
Abri a porta que dava para o compartimento do gerador e entrei. A máquina estava obscurecida por nuvens densas e oleosas de fumaça azul. O tubo de exaustão passava por um buraco na parede. Algo devia ter bloqueado a saída externa do tubo. Havia um interruptor simples, liga/desliga, e eu o acionei. O gerador estremeceu, arrotou, tossiu e morreu. Depois emitiu uma série de pequenos estouros, cada vez mais sufocados, recordando-me a obstinada serra de cadeia de Norton.
As luzes de emergência apagaram-se e me vi na escuridão. Fiquei logo assustado e perdi a orientação. Minha respiração parecia um vento rasteiro, agitando palha. Bati com o nariz na fina porta de compensado e meu coração cambaleou. Havia vidraças nas portas duplas mas, por algum motivo, tinham sido pintadas de preto, de modo que a escuridão era quase total. Desorientado, colidi com uma pilha de caixas de alvejantes.
As caixas de papelão oscilaram e caíram. Uma passou rente à minha cabeça, fazendo me recuar um passo e tropeçar em outra, que caíra às minhas costas. Caí sentado, levando uma forte pancada na cabeça, que me fez ver estrelas brilhando no escuro. Um bom espetáculo.
Fiquei ali, xingando-me e esfregando a cabeça, dizendo a mim mesmo para ficar calmo e sair daquele lugar, voltar para Billy, convencendo-me de que nada macio e escorregadio se fecharia em volta de meu tornozelo ou me prenderia a mão.
Falei-me para não perder o controle ou terminaria dando voltas ali dentro, em pânico, colidindo com coisas e criando uma louca pista de obstáculos para mim próprio.
Levantei-me com cautela, procurando alguma réstia de luz entre as portas duplas.
Encontrei-a, um fraco mas indiscutível risco de claridade na escuridão. Caminhei para ela, mas então parei.
Houve um som. Um som suave, deslizante. Parou, depois recomeçou, com um furtivo baquezinho. Tudo dentro de mim ficou bambo. Como por mágica, recuei aos quatro anos de idade. Aquele som não provinha do supermercado, mas de trás de mim. Do exterior. Onde estava o nevoeiro. Alguma coisa deslizava e deslizava, rastejando sobre os blocos de concreto. E, talvez, procurando um jeito de entrar.
Aliás, talvez já houvesse entrado e procurasse por mim. Em mais um momento, eu poderia estar sentindo sobre meu sapato o que quer que emitia aquele som. Ou em meu pescoço.
O som repetiu-se. Agora, eu tinha certeza, era do lado de fora. Isso, contudo, não tornou nada melhor. Ordenei a minhas pernas que se movessem e elas recusaram a ordem.
Então, a qualidade do ruído mudou. Alguma coisa arranhou em meio à escuridão. Meu coração saltou no peito e eu dei um salto de mergulho para aquela fina linha de luz vertical. Bati contra as portas com os braços estirados e irrompi no supermercado.
Três ou quatro pessoas estavam bem junto às portas duplas — Ollie Weeks era uma delas — e elas saltaram para trás, surpresas. Ollie aferrou o peito.
— David! — disse, em voz agoniada. — Meu Deus, você quer me tirar dez anos de... — Parou ao ver meu rosto. — O que há com você?
— Vocês ouviram? — perguntei. Minha voz soava estranha a meus próprios ouvidos, aguda e estridente. — Algum de vocês ouviu?
Eles nada tinham ouvido, claro. Estavam vindo para saber por que o gerador parara de trabalhar. Quando Ollie me disse isso, um dos rapazes que embalava mercadorias junto à caixa, surgiu carregando um monte de lanternas à pilha. Olhou de Ollie para mim, curiosamente.
— Eu desliguei o gerador — falei, explicando por quê.
— O que foi que ouviu? — um homem perguntou. Trabalhava no departamento rodoviário da cidade, seu nome era Jim qualquer coisa.
— Não sei. Era um ruído rastejante. Gosmento. Não quero tornar mais a ouvi-lo.
— Foram seus nervos — disse o outro sujeito com Ollie.
— Não. Não foram meus nervos.
— Ouviu o ruído antes das luzes se apagarem?
— Não, só depois. Mas...
Não adiantava explicar, podia ver pela maneira como me olhavam. Não queriam mais notícias ruins, nada amedrontador ou fora do normal. Já haviam tido o suficiente disso. Apenas Ollie parecia acreditar em mim.
— Vamos entrar e ligar o gerador novamente — disse o rapaz embalador, estendendo as lanternas.
Ollie pegou a sua, com ar duvidoso. O rapaz ofereceu-me uma, com um brilho ligeiramente sarcástico nos olhos. Teria uns dezoito anos. Após pensar um momento, peguei a lanterna. Eu ainda precisava encontrar alguma coisa com que cobrir Billy.
Ollie abriu as portas, escancarando-as e deixando entrar um pouco de claridade. As caixas de papelão dos alvejantes jaziam espalhadas em torno da porta entreaberta da divisória de compensado. O sujeito chamado Jim farejou o ar.
— Parece bem enfumaçado. Acho que fez bem em desligá-lo.
Os fachos das lanternas saltitaram e dançaram pelas caixas de papelão acondicionando latarias, papel sanitário e ração para cães. Os fachos luminosos surgiam enfumaçados nas emanações que enchiam o recinto, enviadas de volta à área de estocagem por causa do exaustor bloqueado. O rapaz embalador dirigiu brevemente sua luz para a ampla porta de descarregamento de mercadorias, na extrema direita.
Ollie e os dois homens entraram no compartimento do gerador. Os fachos de suas lanternas andavam inquietamente de um lado para outro, recordando-me algo de uma história de aventuras para garotos — e eu ilustrara uma série delas quando ainda cursava a universidade. Piratas enterrando seu ouro sangrento à meia-noite ou talvez o cientista louco e seu assistente esquartejando um corpo. Sombras dançavam nas paredes, distorcidas e monstruosas pelos fachos de luz que se entrecruzavam pelas paredes. O gerador tiquetaqueava, esfriando.
O rapaz embalador aproximava-se da porta de descarregamento, iluminando o caminho à sua frente.
— Se fosse você, eu não iria aí — falei.
— Oh, claro, eu sei que você não iria.
— Experimente agora, Ollie — disse um dos homens.
O gerador estremeceu, depois rugiu.
— Céus! Desligue logo! Raios, como isso fede!
O gerador morreu novamente. O rapaz embalador retornava da porta de descarga, no momento em que eles saíam do compartimento do gerador.
— Há alguma coisa bloqueando esse exaustor, não há dúvida — comentou um dos homens.
— Pois eu seio que fazer — disse o rapaz embalador. Seus olhos brilhavam ao clarão das lanternas e, em seu rosto, havia uma expressão de que-se-danem, tantas vezes desenhada por mim como parte do frontispício em minha série de aventuras para garotos. — Liguem o gerador o tempo suficiente, até que eu levante a porta de descarga, lá atrás. Vou desentupir esse exaustor, dar um jeito no que quer que o esteja bloqueando.
— Não acho que seja uma boa idéia, Norm — disse Ollie, duvidoso.
— A porta é elétrica? — perguntou o chamado Jim.
— Claro — respondeu Ollie, — mas não creio que seria sensato...
— Então, tudo bem — declarou o outro sujeito. Ajeitou o boné de beisebol na cabeça. — Deixe comigo.
— Não, você não entendeu — tornou a dizer Ollie. — Francamente, acho que ninguém deveria...
— Não se preocupe — disse o outro a Ollie, em tom indulgente, começando a afastar-se.
Norm, o embalador, estava indignado.
— Ei, a idéia foi minha! — exclamou.
Imediatamente, como que por mágica, eles começaram a discutir sobre quem faria aquilo, em vez de se devia ou não ser feito. Enfim, nenhum deles ouvira ainda aquele desagradável som deslizante.
— Parem com isto! — gritei bem alto.
Eles se viraram para mim.
— Vocês parecem não entender ou então fazem o possível para não entender! Este não é um nevoeiro comum. Ninguém mais entrou no supermercado, desde que ele chegou aqui, notaram? Se abrirem aquela porta de descarga e alguma coisa entrar...
— Alguma coisa, como? — perguntou Norm, com o perfeito ar desdenhoso e machão dos dezoito anos.
— Seja lá o que tenha feito o barulho que ouvi.
— Sr. Drayton — disse Jim — desculpe-me, mas acho que não ouviu coisa alguma. Sei que é um artista muito importante, com ligações em Nova York e Hollywood mas, para mim, isso não o torna diferente de mais ninguém. Da maneira como imagino, entrou aqui no escuro e talvez tenha ficado... um pouco confuso, digamos.
— Sim, talvez tenha mesmo — respondi. — E talvez, se quer ficar dando palpites por aí, devia começar certificando-se de que aquela senhora chegou junto dos filhos sã e salva.
Sua atitude — bem como a de seu companheiro e a de Norm, o rapaz embalador — estava me deixando nervoso e assustado ao mesmo tempo. Eles tinham nos olhos o tipo de brilho que alguns homens exibem, quando saem matando ratos a tiros, nos terrenos baldios da cidade.
— Ei — disse o companheiro de Jim — quando quisermos conselhos, nós pediremos.
Ollie falou, hesitante:
— O gerador não tem tanta importância assim, entendam. Os alimentos postos nas caixas de refrigeração agüentam bem por doze horas e até mais, sem que...
— Muito bem, garoto, vamos em frente — cortou Jim com brusquidão. — Eu ligo o motor, depois você levanta a porta, para que isto aqui não fique tão fedorento. Eu e Myron estaremos ao lado da saída do exaustor. Dê-nos um grito, quando ele ficar desimpedido.
— Certo — disse Norm, afastando-se excitadamente.
— Isto é loucura — falei. — Vocês deixaram aquela senhora ir embora sozinha e...
— Não vi você contorcendo seu traseiro para ir acompanhá-la — falou Myron, o companheiro de Jim. Um rubor opaco, cor de tijolo, rastejava para fora de sua gola, — mas vai deixar que este garoto arrisque a vida por um gerador que nem mesmo é importante?
— Por que não fecham a matraca? — gritou Norm.
— Ouça, Sr. Drayton — disse Jim, e sorriu para mim friamente. — Quero lhe dizer uma coisa. Se tem algo mais a dizer, é melhor antes contar seus dentes, porque estou me cansando de ouvir suas cascatas.
Ollie olhou para mim, visivelmente amedrontado. Dei de ombros. Eles eram loucos, nada mais. Seu senso de proporção desaparecera temporariamente. Fora dali, estavam confusos e assustados. Aqui, havia um problema direto e mecânico: um gerador birrento. Podiam resolver o problema. Se o resolvessem, ficariam menos confusos e impotentes. Portanto, iam resolvê-lo.
Jim e seu amigo,.Myron concluíram que eu me sentia derrotado e tornaram a entrar no compartimento do gerador.
— Pronto, Norm? — perguntou Jim.
Norm assentiu, depois percebeu que eles não ouviriam seu gesto com a cabeça.
— Estou pronto — respondeu.
— Norm — falei. — Não seja tolo!
— Não deviam fazer isso — acrescentou Ollie.
Norm olhou para nós e, de repente, vi seu rosto muito mais jovem do que dezoito anos.
Era o rosto de um menino. Seu pomo de Adão subiu e desceu convulsivamente, fazendo-me perceber que ele estava apavorado. Abriu a boca para dizer algo — penso que queria desistir — mas então o gerador rugiu para a vida novamente. Quando passou a trabalhar com ruído uniforme, Norman investiu contra o botão à direita da porta e ela começou a chacoalhar para o alto, em suas duas trilhas de aço. As luzes de emergência se tinham acendido, quando o gerador entrou em funcionamento, mas agora ficavam mortiças, enquanto o mecanismo que levantava a porta sugava corrente.
As sombras recuaram e desmancharam-se. A área de estocagem começou a encher-se com a suave luz esbranquiçada de um dia carregado, no final do inverno. Percebi de novo aquele cheiro estranho e acre.
A porta para o desembarque de mercadorias subiu meio metro, depois mais meio. Além dela, pude ver uma plataforma quadrada de cimento, as bordas contornadas por uma faixa amarela. O amarelo desbotava e desaparecia, a um metro de distância. O nevoeiro era incrivelmente espesso.
— Subiu! — berrou Norm.
Gavinhas de nevoeiro, brancas e finas como renda flutuante, esgueiraram-se para o interior. O ar estava frio. Estivera bastante fresco durante toda a manhã, especialmente após o pegajoso calor das últimas três semanas, porém havia sido uma friagem de verão. Agora, fazia frio. Como se estivéssemos em março. Estremeci. Então, pensei em Steff.
O gerador morreu. Jim apareceu, justamente quando Norm mergulhou sob a porta. Ele viu aquilo. Eu vi. E Ollie também.
Um tentáculo rastejou da orla oposta da plataforma acimentada do descarregamento e agarrou Norm em volta da barriga da perna. Fiquei boquiaberto. Ollie engoliu em seco, emitindo um ruído surpreso — uk! O tentáculo afinava-se para a espessura de trinta centímetros — era como uma cobra de capim no ponto onde se enrolara à perna de Norm, engrossando para um metro, talvez um e vinte, onde desaparecia no nevoeiro. Era cinza azulado na parte superior, matizando-se para um rosado cor de carne na inferior. E havia filas de ventosas no lado de baixo, movendo-se e encolhendo-se como centenas de pequeninas bocas beiçudas.
Norm olhou para baixo. Viu o que o agarrara. Seus olhos esbugalharam-se.
— Tirem isso de mim! Ei, tirem isso de mim! Pelo amor de Deus, tirem essa coisa horrível de mim!
— Oh, meu Deus! — gemeu Jim.
Norm agarrou-se à parte inferior da porta, ancorando-as a ela. O tentáculo pareceu inchar, da maneira como fica um braço, se o flexionamos. O rapazinho foi puxado para a porta de aço corrugado — sua cabeça se chocou fragorosamente contra ela. O tentáculo inchou ainda mais. As pernas e o torso de Norm começaram a escorregar para o exterior. A borda inferior da porta arrancou as fraldas da camisa para fora de suas calças. Ele agarrou-se furiosamente e impeliu-se para trás, como um homem que fizesse flexões de corpo com a barriga para cima.
— Ajudem-me! — ele estava soluçando. — Vocês aí, caras, ajudem-me, por favor, por favor!
— Meu Deus do céu! — disse Myron.
Ele havia saído do compartimento do gerador, para ver o que acontecia. Sendo eu o mais próximo, agarrei Norm pela cintura e puxei, com toda a força que pude, sustentado nos saltos dos sapatos. Por um momento, ele recuou um pouco, mas foi só um momento. Era como espichar uma tira de borracha ou bala-puxa. O tentáculo cedeu, mas não o soltou de todo. Então, três outros tentáculos flutuaram para fora do nevoeiro, em nossa direção. Um deles enrolou-se em torno do avental vermelho do Federal, que Norm usava, e o rasgou inteiro. O pano desapareceu no nevoeiro, enrolado naquela garra branquicenta, fazendo-me pensar em algo que minha mãe dizia, quando eu e meu irmão lhe pedíamos alguma coisa que ela não queria dar — doces, uma revista de histórias em quadrinhos, algum brinquedo: "Vocês precisam tanto disso, como uma galinha precisa de uma bandeira." Pensei naquilo e pensei no tentáculo agitando o avental vermelho de Norm. Comecei a rir. Fiquei rindo, exceto que meu riso e os gritos de Norm soavam como a mesma coisa. Talvez ninguém mais soubesse que estava rindo, a não ser eu.
Os outros dois tentáculos deslizaram sem direção, de um lado para outro sobre a plataforma de carga, durante um momento, emitindo aqueles ruídos surdos de arranhões que eu ouvira anteriormente. Então, um deles encontrou a coxa esquerda de Norm e enovelou-se em torno dela. Eu o senti tocar meu braço. Era quente, liso e pulsante. Creio que, se me houvesse aferrado aquelas ventosas, eu também teria sido puxado para dentro do nevoeiro. No entanto, foi Norm que elas aferraram. E o terceiro tentáculo enrodilhou-se em seu outro tornozelo. Agora, o rapaz estava sendo puxado de mim.
— Ajudem-me! — gritei. — Ollie! Alguém aí! Ajudem-me aqui!
Eles não ajudaram. Não sei o que faziam, mas o fato é que não ajudaram. Olhei para baixo e vi o tentáculo em torno da cintura de Norm, procurando sua pele. As ventosas o estavam comendo, no ponto em que a camisa escorregara das calças. Tão vermelho como seu avental, o sangue começou a fluir da trincheira feita pelo tentáculo pulsante.
Bati a cabeça contra a borda inferior da porta parcialmente erguida.
As pernas de Norm estavam novamente no exterior. Um tênis lhe saíra do pé. Um novo tentáculo destacou-se do nevoeiro, enrolou a ponta firmemente em volta do sapato e o puxou para si. Os dedos de Norm agarraram-se à borda inferior da porta, mantendo-se ali com firmeza, em um apertão mortal. Seus dedos estavam lívidos. Ele não gritava mais; estava além disso. Sua cabeça sacudia-se para trás e para os lados, em um gesto interminável de negação, enquanto seus compridos cabelos negros agitavam-se violentamente.
Olhando por sobre seu ombro, vi novos tentáculos aproximando-se, dúzias deles, uma verdadeira floresta. Em sua maioria eram pequenos, mas havia uns poucos gigantescos, tão grossos como a árvore com o colete musgoso que estivera caída em nossa entrada de carros, aquela manhã. Os maiores tinham ventosas rosadas que pareciam do tamanho de tampões de esgotos. Um daqueles grandes bateu na plataforma de carga com um forte e prolongado thrrrrap! logo depois começando a mover-se indolentemente para nós, como uma gigantesca minhoca cega. Dei um puxão desesperado e o tentáculo segurando a panturrilha direita de Norm deslizou um pouco. Foi tudo, mas antes que ele reassumisse seu aperto, vi que estava comendo a perna do rapaz.
Um dos tentáculos roçou seu rosto delicadamente e então oscilou no ar, indeciso. Pensei então em Billy. Meu filho dormia lá dentro do supermercado, perto do comprido e branco frigorífico para carnes do Sr. McVey. Eu tinha ido até ali em busca de algo com que cobri-lo. Se uma daquelas coisas me prendesse, não restaria ninguém para cuidar dele — exceto e talvez Norton.
Pensando nisto, larguei Norm e caí sobre as mãos e joelhos.
Eu tinha o corpo metade dentro e metade fora, diretamente abaixo da porta erguida. Um tentáculo passou à minha esquerda, parecendo caminhar sobre as ventosas. Aderiu-se a um dos musculosos braços de Norm, fez uma brevíssima pausa e então enovelou-se apertadamente.
Agora, Norm parecia algo extraído do pesadelo de um louco encantador de serpentes.
Tentáculos se contorciam inquietamente sobre ele, em todos os sentidos... e estavam também à minha volta. Obriguei-me a um desajeitado salto de rã, para trás e para um lado, caí sobre um ombro e rolei. Jim, Ollie e Myron continuavam ali. Pareciam um quadro vivo de figuras de cera no museu de Madame Tussaud, com rostos pálidos e olhos muito brilhantes. Jim e Myron estavam aos lados da porta para o compartimento do gerador.
— Liguem o gerador! — gritei para eles.
Ninguém se moveu. Eles olhavam fixamente para o quadrado de descarga, com uma drogada e tanatótica avidez.
Tateei pelo chão, agarrei a primeira coisa ao alcance — uma caixa de alvejante "Nevado" — e a atirei em Jim. A caixa lhe bateu no estômago, logo acima da fivela do cinto. Ele grunhiu e apertou a barriga. Seus olhos mostraram outra expressão, alguma semelhança de normalidade.
— Vá ligar o maldito gerador! — gritei, tão alto, que me doeu a garganta.
Ele não se moveu. Em vez disto, começou a defender-se, aparentemente tendo decidido que, com Norm devorado vivo por algum insano horror proveniente do nevoeiro, chegara o momento das censuras.
— Sinto muito — ganiu. — Eu não sabia, diabo, como poderia saber? Você disse que ouviu alguma coisa, mas eu não entendi direito, acho que deveria ter-se explicado melhor. Pensei que, sei lá, poderia ser uma ave, um pássaro, qualquer coisa assim...
Foi então que Ollie se moveu, empurrando-o para o lado com seu ombro maciço e precipitando-se para o compartimento do gerador. Jim tropeçou em uma das caixas de alvejantes e caiu, justamente como me acontecera no escuro.
— Sinto muito — repetiu.
Seu cabelo vermelho lhe caíra sobre a testa. As faces estavam pálidas como queijo. Os olhos eram os de um garotinho aterrorizado. Segundo mais tarde, o gerador tossiu e ganhou vida.
Voltei à porta de descarga. Norm já se fora quase todo, mas ainda assim, aferrava-se a ela com uma das mãos. Seu corpo era um novelo de tentáculos e o sangue fluía calmamente para o concreto, em gotas do tamanho de moedas. Sua cabeça agitava-se de um lado para outro e os olhos dilatavam-se de terror, obstinadamente fixos no nevoeiro.
Outros tentáculos agora rastejavam e engatinhavam pelo piso interno. Estavam demasiado perto do botão que controlava a porta de descarga, para chegar a pensar em aproximar-me dele. Um daqueles tentáculos se fechou em torno de uma garrafa de meio litro de Pepsi e a levou para fora. Outro deslizou em volta de uma caixa de papelão e apertou-a.
A caixa se rompeu e rolos de papel sanitário, dois conjuntos envoltos em celofane, foram cuspidos para o alto, desceram e rolaram por todo canto. Novos tentáculos apoderaram-se deles avidamente.
Um dos maiores deslizou para mais perto. Sua ponta se ergueu do solo e pareceu farejar o ar. Começou a avançar para Myron e ele se afastou em passinhos miúdos, com os olhos girando loucamente nas órbitas. Um gemido agudíssimo escapou de seus lábios sem cor.
Olhei em torno procurando algo, qualquer coisa de comprimento suficiente para passar acima dos tentáculos sondantes e apartar o botão FECHAR, cravado na parede. Avistei uma vassoura de faxineiro, recostada contra uma pilha de engradados de cerveja, e agarrei-a.
A mão ilesa de Norm ficou solta. Ele caiu com um baque surdo sobre a plataforma acimentada de descarga, procurando alucinadamente onde agarrar-se com aquela mão.
Seus olhos encontraram os meus por um instante. Estavam infernalmente brilhantes e conscientes. Norm sabia o que lhe acontecia. Em seguida, foi puxado para o nevoeiro, rolando e aos trambolhões. Houve outro grito, abafado. Norm desaparecera.
Apertei a ponta do cabo da vassoura contra o botão e o motor uivou. A porta começou a deslizar para baixo. Tocou primeiro o tentáculo mais grosso, aquele que estivera investigando na direção de Myron. A borda de aço bateu em sua pele — couro, sei lá — e então o partiu. Uma gosma negra começou a escorrer daquilo. O tentáculo contorceu-se loucamente, chicoteando o piso de concreto da área de estocagem, como um chicote obsceno, antes de achatar-se. Um momento depois, desaparecia. Os outros começaram a retrair-se.
Um deles tinha um saco de dois quilos e meio de "Gaines", a ração para cães, e não o largou. A porta que descia o cortou em dois, antes de encaixar-se em sua fenda no piso.
A ponta amputada do tentáculo comprimiu-se convulsivamente, cada vez apertando mais o saco, até rasgá-lo e enviar pelotas castanhas de ração para cães por todo lado. Em seguida, começou a saltitar no chão, como peixe fora d'água, enrolando-se e desenrolando-se, porém cada vez mais devagar, até ficar imóvel. Espetei-a com a ponta da vassoura. Aquele pedaço de tentáculo teria cerca de um metro de comprimento, mas aferrou furiosamente o cabo da vassoura por um instante, depois afrouxando a pressão e caindo flácido em meio àquela confusa mistura de papel sanitário, ração para cães e caixas de alvejante.
Não havia outro som além do rugido do gerador e de Ollie, chorando dentro do compartimento de compensado. Eu podia vê-lo sentado em uma banqueta, com o rosto enterrado nas mãos.
Então, tive consciência de outro som. Era o mesmo som suave e deslizante que ouvira no escuro. Só que, agora, ele se multiplicava por dez. Era o som dos tentáculos contorcendo-se do outro lado da porta de descarga, procurando um jeito de entrar.
Myron deu dois passos para mim.
— Escute — disse. — Você precisa compreender que...
Dei-lhe um soco no rosto. Ele estava tão surpreso, que nem tentou apará-lo. Meu punho fechado caiu abaixo de seu nariz e esmagou-lhe o lábio superior contra os dentes. O sangue fluiu de sua boca.
— Você o empurrou para a morte! — gritei. — Olhou bem para aquilo? Olhou bem para o que você fez?
Comecei a esmurrá-lo, em loucos socos de esquerda e direita, não como me fora ensinado nas aulas de pugilismo da universidade, mas apenas agredindo. Ele recuou, esquivando-se a alguns golpes, mas levando outros, com um entorpecimento que parecia uma espécie de conformação ou punição. Aquilo me deixou ainda mais louco. Tirei sangue de seu nariz. Consegui acertá-lo embaixo dos olhos e aquilo ia ficar lindamente preto. Tornei a atingi-lo duramente no queixo. Depois disso, os olhos dele ficaram turvos e semi-apáticos.
— Escute — repetia ele, — escute, escute...
Então, esmurrei-o abaixo no estômago, o ar escapou de seu corpo e ele parou de dizer "escute, escute". Não sei quanto tempo continuaria a esmurrá-lo, se alguém não me agarrasse pelos braços. Libertei-me com um puxão e me virei. Esperava que fosse Jim, porque queria esmurrá-lo também.
Não era Jim, mas Ollie, com o rosto redondo mortalmente pálido, à exceção dos círculos escuros em torno dos olhos — olhos que ainda brilhavam com as lágrimas.
— Não, David — disse. — Não bata mais nele. Isto não resolve nada.
Jim estava de pé a um lado, o rosto parecendo uma máscara de apática perplexidade.
Chutei a caixa de alguma coisa contra ele. A caixa bateu em uma de suas botas e ricocheteou de volta.
— Você e seu amigo são dois filhos da mãe! — exclamei.
— Vamos, David — disse Ollie, entristecido. — Pare com isso.
Jim baixou os olhos para as botas. Sentado no chão, Myron segurava a pança de bebedor de cerveja. Eu respirava com dificuldade. O sangue fervia em meus ouvidos e todo o meu corpo tremia. Sentei-me em duas caixas de papelão, coloquei a cabeça entre os joelhos e apertei as pernas com força, pouco acima dos tornozelos. Fiquei assim por algum tempo, os cabelos caídos no rosto, esperando para ver se ia perder os sentidos, vomitar ou qualquer coisa.
Após alguns momentos, a sensação passou e ergui os olhos para Ollie. Seu elegante anel cintilou com faíscas mortiças, ao pálido clarão das luzes de emergência.
— Está bem — falei, em tom monótono. — Já acabei.
— Ainda bem — disse Ollie. — Temos que pensar no que faremos em seguida.
A área de estocagem começava novamente a feder, com o exaustor entupido.
— Desligue o gerador. É a primeira coisa a fazer.
— Certo, e vamos dar o fora daqui — disse Myron. Fitou-me com ar suplicante. — Sinto muito sobre o garoto, mas você precisa compreender...
— Não compreendo coisa nenhuma. Você e seu amigo, voltem para o supermercado, mas esperem lá, perto do freezer da cerveja. E não digam uma palavra a ninguém. Pelo menos, por enquanto.
Os dois saíram obedientemente, lado a lado, ao passarem pelas portas de vaivém. Ollie desligou o gerador e, justamente quando as luzes começavam a falhar, avistei uma manta axadrezada — o tipo de coisa utilizada nas mudanças, para proteger artigos quebráveis — atirado em cima de uma pilha de engradados com garrafas vazias de soda, devolvidas por consumidores. Estendi o braço e a apanhei para Billy.
Houve o som de pés lentos e arrastados, quando Ollie saiu do compartimento do gerador. Sendo ele um homem grandalhão, com excesso de peso, sua respiração tinha um som levemente ofegante.
— David? — perguntou, em voz algo trêmula. — Ainda está aí?
— Bem aqui, Ollie. Cuidado com todas essas caixas caídas de alvejantes.
— Hã-hã.
Eu o guiei com minha voz e, em uns trinta segundos, ele se destacou da escuridão e agarrou meu ombro. Ouvi seu longo e trêmulo suspiro.
— Céus, vamos sair daqui. — Eu podia sentir em seu hálito o cheiro dos Rolaids que ele costumava mascar. — Esta escuridão... é horrível.
— Também acho, mas espere um minuto, Ollie. Preciso falar com você e não quero que aqueles dois cretinos ouçam.
— Dave... eles não obrigaram Norm. Lembre-se disto. .
— Norm era um garoto, eles não. Está bem, tudo acabou. Vamos ter que contar a eles, Ollie. Às pessoas no supermercado.
— Podem entrar em pânico... — disse Ollie, dubitativo.
— Talvez sim, talvez não. Contudo, se ficarem sabendo, vão pensar duas vezes se quiserem ir para a rua. Aliás, é o que a maioria quer. Por que não? Quase todos deixaram alguém em casa. Eu deixei. Precisamos fazê-los compreender a que se arriscam, se saírem daqui.
A mão de Ollie apertava meu braço com força.
— Está bem — respondeu. — Eu estava me perguntando... todos aqueles tentáculos... como um polvo ou coisa assim... A que estavam presos, David? A que aqueles tentáculos estavam presos?
— Não sei, mas não quero aqueles dois contando aos outros à sua maneira. Isso desencadearia o pânico. Vamos.
Olhei em torno e, após um momento, localizei a fina estria vertical de claridade entre as portas de vaivém. Começamos a caminhar naquela direção, arrastando os pés, desviando-nos das caixas de papelão espalhadas pelo chão, com uma das manoplas de Ollie agarrando meu braço. Ocorreu-me que todos nós havíamos perdido nossas lanternas.
Quando alcançamos as portas, Ollie disse, em voz apática:
— O que nós vimos... é impossível, David. Sabe disso, não? Mesmo que um furgão fechado do Boston Seaquarium chegasse aqui e descarregasse um daqueles polvos gigantescos, como em Vinte Mil Léguas Submarinas, o bicho morreria. Tinha que morrer.
— Exato — respondi. — Você tem toda razão.
— Então, o que aconteceu? Hem? O quê? O que será esse maldito nevoeiro?
— Eu não sei, Ollie.
Nós dois saímos para o supermercado.
V. Desentendimento com Norton. Discussão junto ao freezer de cerveja. Verificação.
Jim e seu bom amigo Myron estavam logo ali, perto das portas, cada um com uma Budweiser na mão. Olhei para Billy, vi que ele ainda dormia, e o cobri com a áspera manta acolchoada de mudanças. Ele se remexeu levemente, murmurou algo, depois aquietou-se. Olhei para meu relógio. Meio-dia e quinze. Aquilo parecia totalmente impossível. Para mim, era como se houvessem passado cinco horas, desde que entrara naquele recinto em busca de algo para cobrir Billy. No entanto, a coisa toda, do começo ao fim, durara apenas cerca de trinta e cinco minutos.
Voltei para onde estava Ollie, com Jim e Myron. Ollie tomava uma cerveja e ofereceu-me uma. Apanhei-a e sorvi metade da lata imediatamente, como tinha feito aquela manhã, cortando a árvore. Fiquei algo estonteado.
Jim era Jim Grondin. O sobrenome de Myron era LaFleur — o que tinha seu lado cômico, sem dúvida, Myron, a flor, tinha sangue coagulado nos lábios, queixo e rosto. O olho com a contusão começava a inchar. A moça da camisa de atletismo cor de uva-do-monte perambulou por perto, sem destino, e lançou um olhar cauteloso a Myron. Eu poderia ter-lhe dito que ele só era perigoso para rapazes adolescentes que queriam provar sua masculinidade, mas poupei o fôlego. Afinal, Ollie estava certo — eles só tinham feito o que julgavam ser melhor, embora de maneira cega e amedrontada, em vez de agirem em beneficio do real interesse comum. Agora, eu precisava deles, para o que julgava ser melhor. Não achei que isso seria problema. Os dois estavam esvaziados de coragem. Nenhum deles — em especial Myron, a for — valeria grande coisa, nem teria utilidade durante algum tempo ainda. Algo que estivera em seus olhos, quando procuravam fazer Norm sair para desentupir o exaustor, agora havia desaparecido. A valentia os abandonara.
— Vamos ter que contar alguma coisa a esta gente — falei.
Jim abriu a boca para protestar.
— Eu e Ollie omitiremos qualquer parte que você e Myron tiveram, mandando Norm lá fora, se os dois confirmarem o que vamos dizer sobre... bem, sobre aquilo que o pegou.
— Está bem — disse Jim, pateticamente ansioso. — Claro, se não contarmos, as pessoas podem querer ir para fora... como aquela mulher... aquela mulher que... — Ele limpou a boca com a mão e depois bebeu mais cerveja rapidamente. — Oh céus, que coisa!
— David — disse Ollie, — e se... — Interrompeu-se, depois obrigou-se a continuar: — e se eles entrarem aqui? Os tentáculos?
— Como poderiam entrar? — exclamou Jim. — Vocês fecharam a porta.
— Claro — replicou Ollie, — mas toda a parede fronteira deste lugar é vidro puro.
Meu estômago contorceu-se, como se um elevador houvesse despencado vinte andares, comigo em seu interior. Eu sabia daquilo, mas fizera o possível para ignorá-lo. Olhei para onde Billy dormia. Pensei naqueles tentáculos, enxameando sobre Norm. Pensei naquilo acontecendo a Billy.
— Vidro puro... — sussurou Myron LaFleur. — Jesus Cristo em um sidecur puxado por uma carruagem...
Deixei os três parados junto do frigorífico, cada um às voltas com uma segunda lata de cerveja, e fui procurar Brent Norton. Encontrei-o em uma reservada conversa com Bud Brown, perto da Registradora n.° 2. Eles — Norton com seus cabelos grisalhos de corte elegante e boa aparência de veterano, Brown com sua cara austera de Nova Inglaterra — pareciam algo extraído de uma caricatura da New Yorker.
Umas duas dúzias de pessoas vagavam incessantemente no espaço entre o final das entradas para as caixas e a comprida vitrine panorâmica. Muitas enfileiravam-se junto ao vidro, olhando para o nevoeiro. À minha mente, retornou a visão de espectadores reunidos junto a um prédio em construção.
A Sra. Carmody estava sentada na esteira rolante parada de uma das entradas de caixa, fumando um Parliament com filtro. Seus olhos me mediram, viram-me procurando e desviaram-se. Ela dava a impressão de estar sonhando acordada.
— Brent! — chamei.
— David! Por onde é que andou?
— Eu queria falar a você justamente sobre isso.
— Aquelas pessoas, lá no fundo, estão bebendo cerveja — apontou Brown, em tom taciturno. Soava como um homem anunciando que filmes impróprios haviam sido exibidos em uma reunião de diácortos. — Posso vê-las pelo espelho de segurança. Francamente, isto não pode continuar.
— Brent!
— Pode me dar licença por um instante, Sr. Brown?
— Naturalmente. — Brown dobrou os braços sobre o peito e espiou carrancudamente pelo espelho convexo. — Isto não pode continuar e vai parar, eu lhes prometo!
Eu e Norton caminhamos para a geladeira de cerveja, no canto mais distante do supermercado, passando ao lado dos utensílios domésticos e afins. Olhei por sobre o ombro e, inquieto, reparei nos batentes de madeira emoldurando as altas seções retangulares de vidro, que estremeciam, se contorciam e estilhaçavam-se. Recordei que uma das janelas nem ao menos estava inteira. Um pedaço de vidro, em formato de cunha, havia caído do canto superior, no momento daquele baque surdo esquisito. Se pudéssemos encher o buraco com panos ou alguma coisa talvez um bom punhado daqueles tops para senhoras, a 3,59 dólares, que eu percebera perto dos vinhos...
Meus pensamentos foram bruscamente interrompidos e tive que colocar as costas da mão sobre a boca, como que sufocando um arroto. O que eu realmente procurava sufocar era a repugnante inundação de horríveis risadinhas que queriam escapar, quando pensei em enfiar um punhado de blusas em um buraco, para impedir a entrada daqueles tentáculos que haviam agarrado Norm. Eu vira um daqueles tentáculos — um pequeno — espremer um saco de ração para cães, até o saco simplesmente explodir.
— Tudo bem com você, David?
— Que?
— Seu rosto... Dá a impressão de que acabou de ter uma boa idéia ou uma horrenda.
De repente, algo me passou pela cabeça.
— Escute, Brent, o que aconteceu àquele homem que entrou aqui como louco, gritando sobre algo no nevoeiro, pegando John Lee Frovin?
— O sujeito com o nariz sangrando?
— Sim, ele mesmo.
— Perdeu os sentidos e o Sr. Brown o fez voltar a si com alguns sais para cheirar, do estojo de pronto-socorro. Por quê?
— Ele disse alguma coisa mais, quando acordou?
— Continuou com aquela alucinação. O Sr. Brown o levou para o escritório. O cara estava amedrontando algumas mulheres e pareceu satisfeito em ir. Oh. houve algo mais! Quando o Sr. Brown disse que no escritório do gerente havia apenas uma janela pequena, assim mesmo reforçada com tela aramada, o sujeito pareceu contente em ir para lá. Presumo que ainda nem tenha saído.
— O que ele dizia não era nenhuma alucinação.
— Não, claro que não.
— E aquele baque que sentimos?
— Não foi alucinação, David, mas...
Brent está assustado, fiquei repetindo para mim mesmo. Não se aborreça com ele, já se aborreceu o suficiente esta manhã, e basta. Vá com calma, porque bem sabe como Brent agiu, durante aquela idiota briga sobre as divisas entre as duas propriedades... primeiro altaneiro, depois sarcástico e, finalmente, quando se tornou claro que ele ia perder, intolerável. Nada de aborrecimentos agora, porque irá precisar dele. Brent Norton talvez não consiga ligar a própria serra em cadeia, mas parece a figura paterna do mundo ocidental e, se disser a esta gente para não entrar em pânico, ninguém entrará. Portanto, não discuta com ele.
— Está vendo aquelas portas duplas além da geladeira da cerveja?
Ele espiou, franzindo a testa.
— Um daqueles bebendo cerveja não é o outro gerente-assistente? Weeks? Se Brown descobrir, posso lhe garantir que esse homem estará procurando outro emprego muito breve.
— Quer me ouvir, Brent?
Ele se virou para mim, com expressão ausente.
— O que estava dizendo, Dave? Sinto muito.
Em pouco, estaria sentindo muito mais.
— Vê aquelas portas?
— Sim, claro que vejo. O que há com elas?
— Dão para a área de estocagem, que ocupa toda a fachada oeste do prédio. Billy pegou no sono e fui até lá, ver se encontrava alguma coisa com que cobri-lo...
Contei-lhe tudo, omitindo apenas a discussão sobre se Norm devia ter ido lá fora ou não. Contei-lhe o que havia entrado... e finalmente o que havia saído, gritando. Brent Norton recusou-se a acreditar. Não — ele se recusou, inclusive, a pensar no que eu lhe dizia. Levei-o até Jim, Ollie e Myron. Os três confirmaram a história, embora Jim e Myron, a flor, estivessem a caminho da embriaguez.
Novamente, Norton recusou-se a acreditar e mesmo a aceitar aquilo. Respondeu apenas:
— Não! Não, não e não! Perdoem-me, senhores, mas isso é absolutamente ridículo. Se não for uma brincadeira de mau gosto — declarou altaneiro, com seu sorriso radioso, mostrando que sabia aceitá-la tão bem quanto qualquer um, vocês estão sendo vítimas de alguma hipnose coletiva:
Minha raiva cresceu novamente e procurei contê-la, com dificuldade. Não creio que, normalmente, seja um homem de temperamento irascível. Entretanto, aquelas não eram circunstâncias normais. Precisava pensar em Billy e no que acontecia — no que já acontecera — a Stephanie. Eram coisas que constantemente emergiam no fundo de minha mente.
— Muito bem — falei. — Vamos voltar lá. Há um pedaço de tentáculo caído no chão. A porta o decepou, quando foi arriada. E você também poderá ouvi-los. Estão se roçando contra aquela porta. Fazem um ruído semelhante ao do vento na hera.
— Não — respondeu ele, calmamente.
— Como? — Em verdade, eu sabia que o ouvira perfeitamente. — O que foi que disse?
— Eu disse que não. Que não vou até lá. A brincadeira já foi longe demais.
— Juro para você que não é nenhuma brincadeira, Brent!
— Claro que é! — bufou ele. Seus olhos passaram por Jim, Myron e descansaram brevemente em Ollie Weeks — que lhe sustentou o olhar com calma impassividade — e finalmente voltaram para mim. — Isto é o que vocês, gente daqui, provavelmente consideram "uma boa piada". Não é, David?
— Brent... escute...
— Não! Escute você! — Sua voz começou a elevar-se para um brado de tribunal. Era uma voz que tinha alcance, um bom alcance, de maneira que vários dos que perambulavam por ali espiaram, querendo saber o que acontecia. Norton apontou o dedo para mim, enquanto falava. — É uma piada. Uma casca de banana e eu sou o sujeito que deve escorregar nela. Vocês, os nativos, não são precisamente loucos por forasteiros, certo? Estão sempre mancomunados. Foi o que aconteceu, quando o levei aos tribunais para recuperar o que era legitimamente meu. Você venceu aquela, tudo bem. Por que não? Seu pai era o famoso artista e esta é a sua cidade. Eu apenas pago meus impostos e gasto meu dinheiro aqui!
Ele não estava mais representando, exibindo-nos seu treinado vozeirão de tribunal.
Agora quase gritava, estava já perdendo todo o controle. Ollie Weekes deu mais meia volta e afastou-se, aferrado à sua cerveja. Myron e seu amigo Jim olhavam para Norton com aberto espanto.
— Quer dizer que devo ir até lá e olhar para um daqueles artifícios de borracha que custam noventa e oito centavos, enquanto estes dois pulhas ficam olhando e morrendo de rir?
— Ei, você quer ver quem está chamando de pulha — disse Myron.
— Se quer saber a verdade, estou contente por aquela árvore ter caído em sua casa de barcos. Contente! — Norton ria ferozmente para mim. — Afundou-a direitinho, não foi? Fantástico! E agora, saia do meu caminho.
Ele tentou empurrar-me para passar. Agarrei-o pelo braço e o empurrei contra a geladeira de cerveja. Uma mulher abriu a boca, espantada. Dois engradados caíram.
— Abra bem os ouvidos e ouça, Brent. Aqui dentro há vidas em jogo e meu filho está nisto também, Portanto, ouça, ou juro que acabo com sua raça!
— Vá em frente — disse Norton, ainda rindo, com uma espécie de insana coragem. Seus olhos, injetados e grandes, salientavam-se nas órbitas. — Mostre a todos como é grandão e valente, espancando um homem que sofre do coração e tem idade bastante para ser seu pai.
— Espanque-o assim mesmo! — exclamou Jim. — O coração dele que se dane. Aliás, acho que um rábula nova-yorkino barato como ele nem tem coração.
— Fique fora disto — falei para Jim, e então baixei o rosto até o de Norton. Estava à distância de beijá-lo, se tivesse isso em mente. A geladeira não estava funcionando, mas ainda irradiava friagem. — Pare de jogar areia para o alto, homem. Sabe muito bem que digo a verdade!
— Eu não... sei de... nada... — ofegou ele.
— Se a hora e o lugar fossem outros, eu deixaria você levar a melhor nisto. Pouco me importa o quanto esteja apavorado, porque eu também estou. Só que preciso de você, droga! Deu para entender? Eu preciso de você!
— Largue-me!
Agarrei-o pela camisa e o sacudi.
— Será que não compreendeu? Todos vão começar a sair do supermercado e caminhar direto para aquela coisa lá fora! Pelo amor de Deus, procure entender!
— Largue-me!
— Não, enquanto não for até lá nos fundos comigo e ver por si mesmo.
— Já lhe disse que não vou! É tudo uma piada, uma brincadeira de mau gosto. Não sou tão idiota como imaginam e...
— Então, eu mesmo o levarei lá.
Agarrei-o pelo ombro e cangote. A costura da camisa de baixo de um braço, se rasgou com um macio ruído ronronado. Arrastei-o até as portas duplas. Norton deu um grito lamuriento. Algumas pessoas se tinham amontoado em um grupo, talvez quinze ou dezoito, mas ficaram à distância. Nenhuma delas mostrava sinais de interferir.
— Ajudem-me! — gritou Norton, os olhos salientando-se atrás das lentes dos óculos.
Seu bem penteado cabelo desmanchara-se outra vez, formando dois pequenos tufos atrás das orelhas. As pessoas arrastavam os pés e espiavam.
— Por que está gritando? — falei em seu ouvido. — É só uma brincadeira, não? Foi por isso que o trouxe à cidade, quando você pediu, e também por isso confiei-lhe Billy para a travessia do pátio de estacionamento... porque eu havia confeccionado todo este nevoeiro, aluguei uma máquina de fabricar nevoeiro em Hollywood, que me custou quinze mil dólares e mais oito mil para trazê-la até aqui, tudo isso só para fazer uma brincadeira de mau gosto com você. Pare de dizer tolices e abra os olhos!
— Lar... que... me...! — gritou ele.
Estávamos já quase junto às portas.
— Ei, ei! O que é isto? O que está fazendo?
Era Brown. Afobado, ele abriu caminho às cotoveladas através do grupo amontoado de espectadores.
— Diga a ele para largar-me! — pediu Norton, em voz rouca. — Ele está maluco!
— Não, ele não está maluco. Eu gostaria que estivesse, mas infelizmente não está.
Era Ollie e eu o abençoaria por ter dito isso. Contornando o corredor às nossas costas, ele se aproximou e encarou Brown. Os olhos de Brown desceram até a cerveja que Ollie segurava.
— Você está bebendo! — exclamou, em tom de surpresa, mas não inteiramente desprovido de prazer. — Perderá seu emprego por isto!
— Ora, vamos, Bud — falei, soltando Norton. — Esta não é uma situação comum.
— Os regulamentos não mudam — declarou Brown, enfático. — Providenciarei para que a firma saiba disto. É a minha obrigação.
Nesse meio tempo, Norton esqueirara-se para longe e ficara a alguma distância, procurando endireitar a camisa e alisar o cabelo para trás. Seus olhos iam nervosamente de Brown para mim.
— Ei! — gritou Ollie de repente, erguendo a voz e produzindo um trovejar profundo, que eu jamais suspeitaria daquele homem grandalhão, porém delicado e não assumido. — Ei! Vocês todos no supermercado! Aproximem-se e escutem isto! É do interesse de todos vocês! — Olhou de frente para mim, ignorando Brown por completo. — Estou me saindo bem?
— Está ótimo.
As pessoas começaram a amontoar-se. O grupo original de espectadores de minha discussão com Norton duplicou, depois triplicou.
— Está acontecendo algo que seria bom todos saberem... — começou Ollie.
— Largue essa cerveja imediatamente — disse Brown.
— E você, cale essa boca imediatamente! — falei, dando um passo para ele.
— Não sei que tipo de coisa está fazendo — replicou ele, ao mesmo tempo em que dava um passo compensatório para trás, — mas posso lhes dizer que isto será comunicado à Companhia Federal de Alimentos! Tudo! E quero que entenda uma coisa — pode haver culpados!
Seus lábios repuxavam-se nervosamente, mostrando os dentes amarelados, e até tive pena dele. Brown apenas tentava enfrentar a situação, nada mais. Como Norton, que impunha a si mesmo a mordaça de uma ordem mental. Myron e Jim havia tentado, mas transformando tudo aquilo em uma charada de machões — se o gerador pudesse ser consertado, o nevoeiro se dissiparia. Aquela era a maneira de Brown. Ele estava...
Protegendo a Casa.
— Pois vá em frente e anote os nomes — falei — mas, por favor, sem falatórios.
— Anotarei os nomes suficientes — respondeu ele. — E o seu encabeçará a lista, seu... seu boêmio!
— O Sr. David Drayton tem algo a dizer-lhes — falou Ollie — e acho melhor que todos o ouçam, caso estejam pretendendo ir para casa.
Em vista disto, contei a eles o que havia acontecido, mais ou menos como havia contado a Norton. Houve alguns risos a princípio, depois uma profunda inquietação, assim que terminei.
— É uma mentira e você sabe — disse Norton.
Sua voz empenhava-se em ser enfática, mas caiu na estridência. Aquele era o homem a quem eu contara primeiro, esperando captar-lhe a credibilidade. Que piada!
— Claro que é uma mentira — assentiu Brown. — Maluquice. De onde imagina que vieram esses tentáculos, Sr. Drayton?
— Não sei mas, a esta altura, a pergunta nem tem importância. Eles estão aqui. Há um...
— Acho que eles brotaram de algumas dessas latas de cerveja. Não posso imaginar outra coisa.
Sua tirada conseguiu uma dose apreciável de risadas, mas logo tudo foi silenciado pela voz forte e enferrujada da Sra. Carmody.
— É a morte! — exclamou ela, e os que riam calaram-se prontamente.
Ela avançou para o centro da espécie de círculo que se formara, as calças amarelo canário parecendo irradiar uma luminosidade própria, a gigantesca bolsa oscilando contra uma coxa elefantina. Seus olhos negros passaram arrogantemente em torno, tão afiados e malevolamente cintilantes como os de uma cega. Duas graciosas jovens com cerca de dezesseis anos, usando camisetas de rayon branco com ACAMPAMENTO WOODI-ANDS escrito nas costas, encolheram-se e afastaram-se dela.
— Vocês ouvem, mas não escutam! Ouvem e não acreditam! Qual de vocês quer ir lá fora e constatar por si mesmo? — Os olhos dela percorreram o grupo e depois caíram em mim. — E, simplesmente, o que pretende fazer sobre isto, Sr. David Drayton? O que pensa que pode fazer?
Ela sorriu, como uma caveira, acima de seu traje canário.
— É o fim, estou-lhes dizendo. O fim de tudo. Estamos no Final dos Tempos. O dedo que se move escreveu, não em fogo, mas em linhas de nevoeiro. A terra se abriu e vomitou suas abominações...
— Não podem fazê-la calar a boca? — explodiu uma das adolescentes, começando a chorar. — Ela me mete medo!
— Está com medo, queridinha? — perguntou a Sra. Carmody, virando-se para ela. — Oh, não, você agora não está com medo. No entanto, quando as criaturas imundas que o ímpio lançou à face da terra vierem buscá-la...
— Acho que já basta, Sra. Carmody — disse Ollie, segurando-lhe o braço. Foi um belo discurso.
— Tire as mãos de mim! É o fim, estou dizendo! É a morte! Morte!
— É um monte de merda — disse irritadamente um homem de óculos e chapéu de pescador.
— Não, senhor — interveio Myron. — Sei que tudo parece algo saído de um pesadelo de viciado em drogas, mas é a pura verdade, nua e crua. Eu mesmo vi.
— Eu também — disse Jim.
— E eu — assegurou Ollie.
Conseguira aquietar a Sra. Carmody, pelo menos por algum tempo. No entanto, ela continuou por perto, aferrada à enorme bolsa e exibindo o sorriso alucinado. Ninguém queria ficar muito perto dela — os outros murmuravam entre si, não gostando da corroboração. Vários olharam para trás, na direção das grandes vidraças da fachada, de maneira inquieta e especulativa. Fiquei contente em ver aquilo.
— Mentiras — disse Norton. — Vocês todos mentem, uns para os outros. Mentiras sobre mentiras, nada mais do que isso.
— O que está sugerindo fica inteiramente além da credibilidade, Sr. Drayton — disse Brown.
— Não precisamos estar aqui, repisando o assunto — repliquei. — Venham à área de estocagem comigo. Dêem uma espiada. E escutem também.
— Os clientes não têm permissão de entrar na...
— Bud — disse Ollie, — vá com ele. Vamos resolver isto.
— Está bem — assentou Brown. — Sr. Drayton? Vamos acabar logo com essa tolice!
Empurramos as portas duplas e penetramos na escuridão.
O som era desagradável — talvez maligno.
Brown também sentiu isso, apesar de suas maneiras obstinadas de ianque. Senti sua mão agarrar meu braço imediatamente, a respiração suspensa por um momento e depois reiniciada com certa dificuldade.
Era um sussurro abafado, vindo da direção da porta de descarga — um som quase acariciante. Movi cautelosamente um pé em torno e finalmente esbarrei em uma das lanternas. Abaixei-me, apanhei-a e a acendi. O rosto de Brown estava inteiramente tenso, e ele ainda nem os vira — apenas os ouvia. Eu, no entanto, já os vira e podia imaginá-los, contorcendo-se e escalando a superfície de aço corrugado da porta, como gavinhas vivas.
— O que pensa agora? Inteiramente além da credibilidade?
Brown passou a língua pelos lábios e olhou para a tremenda confusão de caixas e sacos.
— Eles fizeram isto?
— Mais ou menos. Quase tudo. Venha cá.
Ele foi — com relutância. Apontei o facho da lanterna para a enegrecida e enrolada seção de tentáculo, ainda jazendo perto da vassoura esfregão. Brown abaixou-se para olhar.
— Não toque nisso — falei. — Pode ainda estar vivo.
Ele se ergueu rapidamente. Peguei a vassoura e, com a parte das cerdas, espetei o tentáculo. A terceira ou quarta espetadela fez com que ele se desenrolasse espasmodicamente, revelando duas ventosas intatas e parte de uma terceira. Em seguida, o fragmento tornou a enovelar-se com muscular velocidade e ficou imóvel. Brown emitiu um som sufocado de repugnância.
— Viu o suficiente?
— Vi — respondeu. — Vamos sair daqui.
Seguimos a luz vacilante até as portas duplas e as empurramos. Todos os rostos se voltaram para nós e o zumbido das conversas morreu. As feições de Norton pareciam queijo velho. Os olhos negros da Sra. Carmody cintilaram. Ollie bebia cerveja; seu rosto ainda mostrava filetes de suor escorrendo, embora o ambiente no supermercado houvesse ficado um tanto friorento. As duas jovens com ACAMPAMENTO WOODLANDS nas camisetas estavam bem perto uma da outra, como cavalos jovens antes de uma tempestade. Olhos. Tantos olhos. Eu poderia pintá-los, pensei, com um calafrio. Nada de rostos, apenas olhos na claridade mortiça. Poderia pintá-los, mas ninguém acreditaria que fossem reais. Bud Brown entrelaçou afetadamente, diante de si mesmo, as mãos de dedos longos.
— Pessoal — disse — parece que temos um problema de certa magnitude por aqui.
VI. Mais Discussões. A Sra. Carmody Fortificações. O que aconteceu à Estagnada Sociedade da Terra
As quatro horas seguintes transcorreram em uma espécie de sonho. Houve uma longa e quase histérica discussão em seguida à confirmação de Brown ou, talvez, a discussão não tivesse sido tão longa quanto pareceu; possivelmente seria a soturna necessidade das pessoas repisarem a mesma informação, procurando vê-la de cada ponto de vista plausível, manejando-a como um cachorro maneja um osso, a fim de chegar à medula.
Foi uma longa viagem até a crença. Pode-se constatar a mesma coisa em qualquer reunião de março, nas cidades da Nova Inglaterra.
Havia a Estagnada Sociedade da Terra, encabeçada por Norton. Era uma minoria vocal de mais ou menos dez pessoas, as quais não acreditavam em nada daquilo. Norton continuava insistindo em que havia apenas quatro testemunhas no caso do rapaz embalador sendo carregado para fora pelos Tentáculos do Planeta X (um bom motivo para risos no começo, mas que logo perdeu a graça; em sua crescente agitação, Norton não parecia percebê-lo). Ele acrescentou que, pessoalmente, não confiava em nenhum dos quatro. Disse ainda que cinqüenta por cento das testemunhas estavam, naquele momento, desesperançadamente ébrias. Aí havia uma verdade inquestionável. Jim e Myron LaFleur, com toda a geladeira da cerveja e gôndola de vinhos à disposição, estavam incrivelmente bêbados. Considerando o que acontecera a Norm e a parte dos dois naquilo, eu não os censurei. Eles logo estariam lúcidos novamente.
Ollie continuou a beber sistematicamente, ignorando os protestos de Brown. Após algum tempo, Brown desistiu, contentando-se em soltar uma ocasional e malévola ameaça sobre a Companhia. Nem parecia conceber que a Federal Foods, Inc., com estabelecimentos em Bridgton, North Windham e Portland, talvez nem existisse mais.
Pelo que sabíamos, o litoral leste poderia ter deixado de existir. Ollie bebia sem parar, porém não ficava bêbado. Suava continuamente a bebida, com a mesma rapidez com que a ingeria.
Por fim, quando a discussão com os Terrestres Estagnados começou a ficar acerba, Ollie tomou a palavra.
— Se não acredita nisso, Sr. Norton, muito bem. Eu lhe direi o que fazer. Saia por aquela porta da frente e contorne o prédio até os fundos. Lá se encontra uma enorme pilha de cascos de cerveja e soda, recebidos em devolução. Eu, Norm e Buddy a colocamos lá, ainda esta manhã. Traga-nos duas daquelas garrafas e então saberemos que o senhor foi realmente até a pilha. Faça isso e juro que comerei a minha camisa.
Norton começou a vociferar.
Ollie interrompeu-o, com a mesma voz suave e uniforme.
— Se quer saber, o senhor só está prejudicando, se continuar falando assim. Aqui há gente que deseja ir para casa, assegurar-se de que seus familiares estão bem. Neste momento, minha irmã e sua filha de um ano estão em casa, em Napies. Eu gostaria de ter certeza disso, claro. No entanto, se todos começarem a acreditar no senhor e tentarem ir para casa, o que aconteceu a Norm, acontecerá também a eles.
Ollie não convenceu Norton, mas sim alguns dos indecisos e duvidosos embora suas palavras não dissessem tanto quanto seus olhos, aqueles seus olhos obcecados. Creio que a lucidez de Norton dependia de não ser convencido ou de imaginar que o fora.
Contudo, não aceitou a proposta de Ollie, para ir lá fora e trazer uma amostra dos cascos nos fundos do prédio. Aliás, ninguém a aceitou. Eles ainda não estavam dispostos a sair, pelo menos até então. Norton e seu pequeno grupo de Terrestres Estagnados (a esta altura, reduzido em um ou dois), afastaram-se de nós o mais que podiam, reunindo-se perto das embalagens de carnes preparadas. Um deles tropeçou na perna de meu filho, ainda adormecido, acordando-o.
Fui até lá e Billy agarrou-se a meu pescoço. Quando tentei deita-lo outra vez, ele me apertou com mais força.
— Não faça isso, papai. Por favor!
Encontrei um carrinho de compras e o coloquei no assento para crianças. Ele parecia enorme ali. A coisa seria cômica, se não fosse seu rosto pálido, os cabelos escuros espalhados pela testa, logo acima das sobrancelhas, seus olhos espantados.
Provavelmente, desde dois anos antes não voltara a ocupar o assento de criancinhas nos carros de compras do supermercado. São pequeninas coisas que nos passam de leve pela mente, sem que as percebamos bem, mas ao constatarmos a mudança operada, sempre recebemos um choque desagradável.
Nesse meio tempo, com o recuo dos Terrestres Estagnados, a discussão encontrara outro pára-raios — agora era a Sra. Carmody e, compreensivelmente, ela se viu sozinha.
À claridade mortiça e lúgubre, ela parecia uma feiticeira naquelas berrantes calças amarelas, na viva blusa de rayon, os braços pesados de chocalhantes pulseiras de quinquilharia — cobre, casco de tartaruga, material inquebrável — e sua tireoideana bolsa.
Seu rosto enrugado aparecia sulcado por fortes linhas verticais. O penugento cabelo grisalho se achatava sobre o couro cabeludo, preso com três pentes de chifres e torcido na nuca. Sua boca era uma linha de corda em nós.
— Não existe defesa contra a vontade de Deus! Isto estava para vir. Eu vi os sinais. Aqui há gente a quem eu falei, porém ninguém é mais cego do que aqueles que não querem ver.
— Afinal, o que quer dizer? O que está pretendendo? — interrompeu-a Mike Hatlen, impacientemente.
Era membro do conselho municipal, embora no momento não tivesse tal aparência, com seu quepe de iatista e as bermudas amarrotadas nos fundilhos. Bebericava uma cerveja, o que muitos homens agora também faziam. Bud Brown desistira de protestar, mas estava realmente anotando nomes — queria manter uma certa vigilância sobre todos quantos pudesse.
— Pretendendo? — ecoou a Sra. Carmody, aproximando-se de Hatlen. Pretendendo? Ora, estou pretendendo que se prepare para encontrar o seu Deus, Michael Hatlen. — Virou-se e olhou para todos nós. — Preparem-se para o encontro com seu Deus!
— Preparem-se para encontrar disparates — disse Myron Lafleur, em bêbado rosnado, perto da geladeira de cerveja. — Velha, acho que sua língua deve ser pendurada pelo meio, para trabalhar pelas duas extremidades.
Houve um rumor de concordância. Billy olhou nervosamente em torno e eu passei um braço em volta de seus ombros.
— Tenho o direito de falar! — exclamou ela. Seu lábio superior encurvou-se para trás, revelando dentes tortos e amarelados de nicotina. Pensei nos empoeirados animais empalhados de sua loja, bebendo eternamente no espelho que funcionava como seu riacho. — Os incrédulos duvidarão até o fim! Contudo, uma monstruosidade capturou aquele pobre rapaz! Coisas no nevoeiro! Todas as abominações saídas de um pesadelo! Monstros sem olhos! Horrores lívidos! Ainda duvidam? Pois então, saiam! Cheguem até lá fora e digam "como vai?"!
— Acho que devia calar-se, Sra. Carmody — falei. — Está assustando meu filho.
O homem com a garotinha ecoou o sentimento. A menina, de pernas gorduchas e joelhos esfolados, escondera o rosto contra o estômago do pai e tapava os ouvidos com as mãos. O Grande Bill não chorava, mas estava perto disso.
— Só há uma chance — disse a Sra. Carmody.
— Que chance, senhora? — perguntou Mike Hatlen polidamente.
— Um sacrifício — respondeu a Sra. Carmody — ela parecia rir na claridade mortiça. — Um sacrifício de sangue.
Sacrifício de sangue — as palavras ficaram suspensas no ar, girando lentamente. Ainda agora, quando sei melhor, digo a mim mesmo que ela se referia ao cão de estimação de alguém — havia lá uns dois deles, trotando pelo supermercado, apesar dos regulamentos proibindo sua entrada. Ainda agora, digo isso para mim mesmo. Na obscuridade, ela parecia um louco remanescente do puritanismo da Nova Inglaterra... mas desconfio que era motivada por algo mais profundo e mais sombrio do que o mero puritanismo. O puritanismo tivera seu próprio e soturno avô, o velho Adão, com mãos sangrentas.
Ela abriu a boca para dizer algo mais, porém um homem baixote e bem vestido, com calças vermelhas e elegantes camisa esporte, esbofeteou-lhe o rosto, de mão espalmada.
Ele repartia o cabelo no lado esquerdo, em uma linha de perfeita simetria. Usava óculos e tinha a aparência indiscutível do turista de verão.
— Cale essa boca suja — falou, em voz macia, sem inflexões.
A Sra. Carmody levou a mão à boca, depois estendendo-a para nós, em uma acusação sem palavras. Havia sangue em sua palma. Entretanto, os olhos negros pareciam dançar, com louca alegria.
— A senhora estava provocando! — exclamou uma mulher. — Eu lhe teria feito o mesmo!
— Eles cuidarão de vocês — 6disse a Sra. Carmody, mostrando-nos a palma suja de sangue.
O filete de sangue agora escorria no sulco de uma ruga que ia da boca ao queixo, assemelhando-sé a um pingo de chuva descendo por uma calha. — Não hoje, talvez. Esta noite. Esta noite, quando ficar escuro. Eles virão dentro da noite e levarão mais alguém. É com a noite que virão. Vocês os ouviram chegando, rastejando e coleando. E quando eles estiverem aqui suplicarão à Mãe Carmody que lhes mostre o que fazer!
O homem das calças vermelhas ergueu a mão lentamente.
— Aproxime-se e agrida-me — sussurrou ela, exibindo seu sorriso malévolo para ele. A mão do homem oscilou. — Agrida-me, se tiver coragem!
A mão dele caiu. A Sra. Carmody afastou-se, sozinha. Então, Billy começou a chorar, escondendo o rosto contra mim. enquanto a menininha fazia o mesmo com o pai.
— Quero ir para casa — disse ele. — Quero ver minha mãe.
Consolei-o o melhor que pude. Provavelmente. não me saí tão bem quanto desejaria.
Finalmente, a conversa derivou para canais menos amedrontadores e destrutivos. As enormes vidraças frontais do supermercado, evidentemente o seu ponto fraco foram então mencionadas. Mike Hatlen perguntou que havia outras entradas e Ollie e Brown as apontaram com presteza — duas portas para descarregamento de mercadorias, além daquela que Norm abrira. As portas principais ENTRADA/SAÍDA. Havia ainda a janela do gabinete do gerente (de vidro espesso e reforçado seguramente trancada).
Falar sobre tais coisas causou um efeito paradoxal. Fez o perigo parecer mais real, embora ao mesmo tempo deixasse todos se sentindo melhor. O próprio Billy sentiu isso.
Perguntou se podia comer uma barra de chocolate. Respondi que não havia problema, desde que não se aproximasse das grandes vidraças.
Quando ele se distanciou. não ouvindo mais o que dizíamos, um homem perto de Mike Hatlen perguntou:
— Muito bem, o que faremos com aquelas vidraças? A velha pode ser lunática, mas talvez tivesse razão, sobre algo se movendo depois do escurecer.
— Talvez. até lá, o nevoeiro já tenha acabado — disse uma mulher.
— Talvez — assentiu o homem. — E talvez não.
— Tem alguma idéia? — perguntei a Bud e Ollie.
— Um momento — disse o homem perto de Hatlen. — Eu sou Dan Miller, de Lynn, Massachussetts. Vocês não me conhecem e nem haveria motivos para conhecerem, mas tenho uma propriedade em Highland Lake. Comprei-a ainda este ano. O preço foi praticamente um assalto, mas eu tinha que comprá-la e comprei. — Houve algumas risadinhas. — Bem, vi uma boa pilha de sacos de adubos e fertilizantes para gramado lá adiante. Sacos de quinze quilos, em sua maioria. Podíamos usa-los como sacos de areia. Deixando vãos para espiarmos ...
Agora, havia mais pessoas assentindo e falando excitadamente. Eu quase disse alguma coisa, mas me contive. Miller tinha razão. Colocar aqueles sacos como ele dizia não faria mal nenhum, até talvez fizesse algum bem. Minha mente no entanto, recuou àquele tentáculo comprimindo o saco de ração para cães. Pensei que um dos tentáculos maiores poderia fazer o mesmo com um saco de quinze quilos contendo Vigoro ou fertilizante para gramados "Verdes Acres". De qualquer modo, uma preleção a respeito não contribuiria para levantar o ânimo de ninguém.
As pessoas começaram a dispersar-se, comentando a tarefa a ser feita, e Miller agritou:
— Um momento! Um momento! Vamos organizar isto, enquanto estamos todos juntos!
As pessoas voltaram, compondo um grupo indefinido de cinqüenta ou sessenta, na esquina formada pela geladeira de cerveja, as portas da área de estocagem e a extremidade esquerda das carnes preparadas, onde o Sr. Mc Vey sempre colocava os artigos que ninguém quer, como timo de vitela, ovos partidos, miolos de carneiro e geléia de mocotó. Billy abriu caminho através do emaranhado de adultos com a inconsciente agilidade de um menino de cinco anos em um mundo de gigantes, e estendeu-me uma barra de chocolate Hershey.
— Quer esta, papai?
— Obrigado.
Peguei o chocolate. Tinha sabor doce e gostoso.
— Talvez seja uma pergunta idiota — continuou Miller, — Mas devemos preencher os espaços em branco. Alguém tem armas de fogo?
Houve uma pausa. As pessoas entreolharam-se e deram de ombros. Um velho de cabelos grisalhos, que se apresentou como Ambrose Comell, disse que tinha uma espingarda de caça no porta-malas do carro.
— Se quiser, posso ir buscá-la.
— Não creio que fosse uma boa idéia justamente neste momento, senhor Comell — disse Ollie.
Comell deu um grunhido.
— Também digo o mesmo, filho, mas pensei que devia oferecer-me.
— Bem, em verdade não foi essa a minha idéia — falou Dan Miller — , mas achei que...
— Um momento — disse uma mulher.
Era a que vestia camisas de atletismo cor de uva-do-monte, com calças compridas verde-escuras. Tinha cabelos louro-areia e uma bela silhueta. Uma jovem muito bonita.
Abriu a bolsa e tirou de seu interior uma pistola de tamanho médio. Os reunidos fizeram um som de ahhh! como se tivessem acabado de assistir ao truque particular de algum mágico. A jovem estivera enrubescendo, mas agora enrubesceu muito mais. Tomou a remexer na bolsa e encontrou uma caixa de munição para Smith & Wesson.
— Meu nome é Amanda Dumfries — disse a Miller. — Esta arma... foi idéia de meu marido. Ele achava que eu devia tê-la para proteger-me. Carreguei-a desarmada durante dois anos.
— Seu marido está aqui, senhora?
— Oh, não. Ele está em Nova York, a negócios. Está sempre viajando a negócios e por isto queria que eu andasse com a arma.
— Bem — disse Miller, — se pode usá-la, devia conservá-la. Que calibre é? Trinta e oito?
— Sim, trinta e oito. Aliás, nunca disparei uma arma na vida, exceto uma vez, fazendo tiro-ao-alvo.
Miller pegou a arma, examinou-a e abriu o tambor, após alguns momentos. Checou-o para ver se não estava carregado.
— Muito bem — disse. — Temos uma arma. Quem atira bem? Eu não estou nesse rol.
Os reunidos entreolharam-se. A princípio, ninguém disse nada. Então, com relutância, Ollie confessou:
— Eu costumo praticar bastante tiro-ao-alvo. Tenho um Colt 45 e um Llama 25.
— Você? — exclamou Brown. — Humm... Quando escurecer, estará bêbado demais para ver alguma coisa.
Ollie replicou, em voz extremamente clara:
— Por que não se cala de uma vez e fica anotando nomes?
Borwn o encarou fixamente, com olhos arregalados. Abriu a boca. Depois, decidiu sabiamente, creio eu, tornar a fechá-la.
— É sua — disse Miller, pestanejando ligeiramente ante a mudança.
Estendeu a arma a Ollie, que a checou de novo, agora de modo mais profissional.
Colocou a arma no bolso direito dianteiro das calças e deslizou a caixa de cartuchos para o bolso da camisa, onde ela deixou um volume semelhante ao de um maço de cigarros. A seguir, Ollie recostou-se contra a geladeira, o rosto redondo ainda porejando suor, e abriu uma lata de cerveja. Persistia a sensação de que eu estava vendo um Ollie totalmente insuspeitado.
— Obrigado, Sra. Dumfries — disse Miller.
— Não foi nada — respondeu ela.
Fugazmente, pensei que se eu fosse seu marido e dono daqueles olhos verdes, unidos àquele corpo escultural, talvez não viajasse tanto. Entregar uma arma à esposa, podia ser encarado como um ato ridiculamente simbólico.
— Isto também pode parecer idiota — disse Miller, virando-se para Brown com sua prancheta e Ollie com sua cerveja — , mas neste lugar há qualquer coisa semelhante a lança-chamas?
— Ohhh, merda! — soltou Buddy Eagleton, imediatamente ficando tão vermelho como ficara Amanda Dumfries.
— O que é? — perguntou Mike Hatlen.
— Bem... até a semana passada, tínhamos uma caixa inteira daqueles maçaricos. Do tipo que se usa em casa para soldar canos que vazam, emendar canos de descarga ou coisas assim. Lembra-se deles, Sr. Brown?
Brown assentiu, com ar taciturno.
— Todos vendidos? — perguntou Miller.
— Não, de maneira nenhuma. Só vendemos três ou quatro, depois devolvemos os restantes. Que mer... quero dizer, uma pena.
Enrubescendo tão profundamente que ficou quase purpúreo, Buddy Eagleton voltou de novo para os bastidores de onde saíra.
Tínhamos fósforos, naturalmente, bem como sal (alguém comentou vagamente ter ouvido dizer que sal era o que devia ser posto em chupadores de sangue ou coisa assim) e todos os tipos de esfregões, além de vassouras de cabos compridos. Em sua maioria, as pessoas continuavam animadas, mas Jim e Myron estavam ébrios demais para emitir qualquer nota dissonante. Encontrei os olhos de Ollie e vi neles uma tranqüila desesperança, que era pior do que medo. Nós dois tínhamos visto os tentáculos. A idéia de jogar-se sal neles ou de tentar parti-los com os cabos dos esfregões era engraçada, de certa forma macabra.
— Mike — disse Miller — por que não dirige esta pequena aventura? Quero falar com Ollie e Dave por um minuto.
— Será um prazer. — Hatlen bateu no ombro de Dan Miller. — Alguém precisava dar as ordens e você se saiu muito bem. Seja bem-vindo à cidade.
— Isto significa que terei alguma redução em meus impostos? — perguntou Miller.
Era um homenzinho engraçado, com cabelos ruivos começando a recuar na cabeça.
Parecia o tipo do sujeito com quem logo simpatizamos, mal o conhecemos e — apenas talvez — o tipo do sujeito com quem simpatizamos após estar em cena por algum tempo.
O tipo do sujeito que sabe fazer tudo melhor do que a gente.
— Nem pense nisso — respondeu Hatlen, rindo.
Hatlen afastou-se. Miller baixou os olhos para meu filho.
— Não se preocupe com Billy — falei.
— Homem, nunca estive tão preocupado em toda a minha vida — respondeu
— Exato — concordou Ollie.
Deixou cair uma lata vazia na geladeira de cerveja, depois pegou outra e a abriu. Houve um sibilo suave do gás escapando.
— Reparei na maneira como vocês dois se olhavam — disse Miller.
Terminei minha barra de chocolate e peguei uma cerveja, para rematar a deglutição.
— Vou dizer o que penso — começou Miller. — Devíamos recrutar uma meia dúzia de pessoas para enrolar panos naqueles cabos de esfregão e depois amarrá-los com barbante. A seguir, acho que devíamos ter umas duas daquelas latas de fluido para isqueiro à disposição. Se cortarmos a parte superior das latas, poderemos fazer tochas com grande rapidez.
Assenti. Aquilo era bom. Evidentemente, não bom o suficiente — não para quem viu Norm ser puxado para fora do supermercado — Mas já era melhor do que sal.
— Pelo menos, seria alguma coisa para eles meditarem — disse Ollie.
Miller comprimiu os lábios.
— A coisa é assim tão ruim? — perguntou.
— Exatamente — assentiu Ollie, e virou sua cerveja.
Por volta de quatro e meia daquela tarde, os sacos de fertilizante e de adubo estavam no lugar, bloqueando as enormes vidraças, exceto por estreitos visores para vigilância. Um vigia fora colocado junto a cada pilha de sacos e, ao lado de cada vigia, havia uma lata de fluido para isqueiro, já sem o topo, e um suprimento de tochas, feitas com cabos de esfregões. Havia cinco visores e Dan Miller organizou um rodízio de sentinelas para cada um. Por volta das quatro e meia da tarde, eu estava sentado em uma pilha de sacos, em um dos visores, com Billy ao meu lado. Estávamos espiando o nevoeiro.
Logo além da vidraça, havia um banco vermelho, onde as pessoas às vezes esperavam que as viessem apanhar, com os sacos de artigos comprados junto delas. Mais adiante ficava o pátio de estacionamento. O nevoeiro desenrolava-se lentamente, espesso e pesado. Havia umidade nele, mas como parecia opaca e sombria! Só em olhar para aquilo, eu me sentia acovardado e perdido.
— Você sabe o que está acontecendo, papai? — perguntou Billy.
— Não, meu bem — falei.
Ele ficou calado por um momento, contemplando as mãos que jaziam flácidas sobre as coxas de seus jeans.
— Porque não aparece alguém e nos salva? — perguntou finalmente. — A Polícia Estadual, o FBI ou alguém?
— Não sei.
— Você acha que mamãe está bem?
— Billy, eu não sei — respondi, e passei o braço em torno dele.
— Eu gosto demais dela — disse Billy, lutando com as lágrimas. — Sinto muito pelas vezes em que fui malcriado com ela.
— Billy — comecei, mas tive que parar, porque senti um gosto salgado na garganta e minha voz queria tremer.
— Isto vai acabar? — perguntou ele. — Vai, papai? Vai?
— Eu não sei — respondi.
Ele colocou o rosto na concavidade de meu ombro e eu sustive a parte traseira de sua cabeça, senti a curva delicada de seu crânio, logo abaixo dos cabelos bastos. Vi-me recordando a noite de meu casamento. Espiando Steff tirar o singelo vestido castanho que vestira após a cerimônia. Havia uma enorme equimose arroxeada em sua coxa, por batê-la contra a quina de uma porta, no dia anterior. Recordei que tinha olhado para a equimose, pensando, Quando ela fez isso, ainda era Stephanie Stepanek, e sentindo algo semelhante a deslumbramento. Depois, fizemos amor e, lá fora, caía neve de um opaco e cinzento céu de dezembro.
Billy estava chorando.
— Psst, Billy, pst... — falei, balançando sua cabeça contra mim.
Não obstante, ele continuou chorando. Era o tipo de choro que só as mães sabem como manejar direito.
Caiu uma noite prematura no interior do Supermercado Federal. Hatlen e Miller, além de Bud Brown, distribuíram lanternas de pilha, todo o estoque, cerca de vinte. Norton reivindicou-as clamorosamente para seu grupo e recebeu duas. As luzes vagavam aqui e ali pelos corredores, como fantasmas inquietos.
Aconcheguei Billy contra mim e espiei pelo visor. A qualidade leitosa e translúcida da claridade exterior não mudara muito; os sacos empilhados é que deixavam o supermercado tão escuro. Por várias vezes julguei ter visto algo, mas era apenas nervosismo. Um dos outros vigias levantou um hesitante alarme falso.
Billy tornou a ver a Sra. Truman novamente e foi para ela com rapidez, embora não a tivéssemos chamado para ficar com ele, durante todo o verão. A Sra. Truman tinha uma das lanternas e a entregou para ele, com ar amistoso. Em pouco, Billy tentava escrever o seu nome, em luz, sobre as opacas faces de vidro dos acondicionadores de alimentos congelados. Ela parecia satisfeita em vê-lo e Billy demonstrava o mesmo, de maneira que, não demorou muito, estavam entretidos um com o outro. Hattie Truman era uma mulher alta e magra, de bela cabeleira ruiva, começando a mostrar alguns fios grisalhos. Seus óculos pendiam de uma decorativa corrente sobre o busto do tipo, creio eu, de uso ilegal para qualquer um, excetuando-se as mulheres de meia-idade.
— Stephanie está aqui, David? — perguntou ela.
— Não. Ficou em casa.
Ela assentiu.
— Alan também. Quanto tempo vai ficar de vigia aqui?
— Até as seis.
— Viu alguma coisa?
— Não. Apenas o nevoeiro.
— Se quiser, fico com Billy até as seis.
— Você gostaria, Billy?
— Gostaria muito — respondeu ele, movendo a lanterna acima da cabeça, em lentos arcos, e vendo a luz brincar no teto.
— Deus protegerá sua Steff e Alan também — disse a Sra. Truman.
Em seguida, afastou-se, levando Billy pela mão. Falara com tranqüila segurança, mas não havia convicção em seus olhos.
Por volta de cinco e meia, surgiram sons de excitada discussão, perto dos fundos do supermercado. Alguém reclamava de algo que outra pessoa dissera, quando ouvi uma voz — creio que de Buddy Eagleton — gritando:
— Vocês estão loucos, se forem lá fora!
Vários fachos de lanternas concentraram-se no centro da controvérsia e as pessoas encaminharam-se para a frente do supermercado. O riso guinchado e desdenhoso da Sra. Carmody cortou a penumbra, tão abrasivo como dedos raspando a superfície de um quadro-negro.
Acima do burburinho de vozes, soou o vozeirão de tenor de Norton, como em uma sala de tribunal:
— Deixem-nos passar, por favor! Deixem-nos passar!
O homem na vigia perto de mim abandonou seu posto para ver o que significava aquela gritaria. Resolvi continuar onde estava. O que quer que estivesse acontecendo, aproximava-se aos poucos de mim.
— Por favor — dizia Mike Hatlen. — Por favor, vamos discutir este assunto francamente!
— Não há nada a discutir! — proclamou Norton. Agora, seu rosto destacava-se na penumbra. Estava determinado, feroz e deplorável inteiramente. Ele empunhava uma das lanternas destinadas aos Terrestres Estagnados. Os tufos cacheados de seu cabelo ainda se erguiam atrás das orelhas, como os chifres de um corno. Encabeçava uma procissão muito pequena — cinco pessoas, das dez originais. — Nós vamos sair — declarou.
— Não insista nessa loucura — disse Miller. — Mike tem razão. Será que não podemos conversar a respeito? O Sr. Mc Vey vai preparar um churrasco com algumas galinhas na grelha de gás, podemos todos sentar, comer e apenas...
Postou-se diante de Norton e este o empurrou. Miller não gostou disso. Seu rosto ficou vermelho, depois mostrou uma expressão dura.
— Muito bem, faça o que quiser — disse — , mas é como se assassinasse estas outras pessoas.
Com toda a naturalidade de grande solucionador ou de obcecado inquebrantável, Norton replicou:
— Nós mandaremos ajuda para vocês.
Um dos seguidores murmurou sua concordância, mas outro preferiu afastar-se quietamente. Agora, havia apenas Norton e mais quatro. Talvez não fosse tão ruim. O próprio Cristo só conseguiu encontrar doze.
— Ouçam — disse Mike Hatlen. — Sr. Norton... Brent... pelo menos, esperem o churrasco. Comam alguma coisa quente antes.
— E dar-lhe uma chance para continuar falando? Já estive em tribunais o suficiente para cair nessa. Já conseguiu convencer meia dúzia de minha gente.
— Sua gente? — Hatlen quase rosnou. — Sua gente? Meu Deus, que espécie de conversa é esta? Eles são pessoas, nada mais. Isto aqui não é uma brincadeira e muito menos uma sala de tribunal. Existem coisas, na falta de outra palavra coisas lá fora. De que adianta querer matar-se?
— Você disse coisas — respondeu Norton, parecendo superficialmente divertido. — Onde? Seu pessoal já ficou duas horas vigiando. Quem viu alguma coisa?
— Bem, lá nos fundos, na área de...
— Não, não, não — disse Norton, sacudindo a cabeça. — Essa história já foi dita e repetida. Nós vamos sair...
— Não — sussurou alguém.
O sussurro ecoou e espalhou-se, dando a impressão do roçar de folhas mortas ao crepúsculo de um anoitecer outonal. Não, não, não...
— Quem nos impedirá? — perguntou uma voz esganiçada. Era um membro da "gente" de Norton, para usar sua palavra — uma dama de idade, usando óculos bifocais. — Quem nos impedirá?
O suave murmúrio de negativas esfumou-se.
— Não, ninguém os impedirá — respondeu Mike. — Acho que ninguém os impedirá.
Cochichei no ouvido de Billy. Ele olhou para mim, assustado e questionante.
— Vá agora — falei. — E volte depressa.
Ele foi.
Norton passou as mãos através dos cabelos, em um gesto mais calculado do que qualquer um já feito por um ator da Broadway. Eu simpatizara mais com ele ao vê-lo puxando inutilmente o cordel de sua serra em cadeia, praguejando e imaginando-se não observado. Naquele momento, como também agora, não sei dizer se ele acreditava ou não no que estava fazendo. Lá no fundo, acho que Norton sabia o que podia acontecer. Creio que a lógica de sua falação da boca para fora, durante a vida inteira, agora finalmente se voltava contra ele, como um tigre que se tornou mau e mesquinho.
Norton olhou em torno inquietamente, parecendo desejar que houvesse algo mais a dizer. Então, guiou seus quatro seguidores para uma das alamedas das caixas registradoras. Além da mulher idosa, havia um rapazola rechonchudo com uns vinte anos, uma jovem e um homem de blue jeans, usando um boné de golfe ladeado na cabeça.
Os olhos de Norton encontraram os meus, dilataram-se ligeiramente e então começaram a desviar-se.
— Espere um minuto, Brent — falei.
— Não quero discutir mais isso. E, certamente, não com você.
— Eu sei que não quer. Só desejo pedir-lhe um favor.
Olhei em torno e vi Billy que voltava correndo.
— O que é isso? — perguntou Norton, desconfiado, ao vê-1o entregar-me um pacote embrulhado em celofane.
— Linha para varal de roupa — falei. Eu estava vagamente cônscio de que todos no supermercado agora olhavam para nós, mais ou menos enfileirados no outro lado das caixas registradoras e seus corredores. — É o pacote grande. O de noventa metros.
— E daí?
— Achei que você poderia amarrar uma extremidade em volta de sua cintura, antes de sair. Irei soltando a linha. Quando a sentir bem esticada, basta atá-la em torno de alguma coisa, não importa o quê. Uma maçaneta de porta de carro serviria.
— Para que, em nome de Deus?
— Assim, ficarei sabendo que você chegou até nove metros, pelo menos respondi.
Algo brilhou em seus olhos, porém apenas momentaneamente.
— Não — disse ele.
Dei de ombros.
— Está bem. De qualquer modo, boa sorte.
O homem do boné de golfe disse, de repente:
— Eu farei isso, senhor. Não há motivo para recusar-me.
Norton girou para ele, como se fosse dizer algo ríspido. O homem do boné de golfe estudou-o calmamente. Em seus olhos nada havia brilhando. Norton também percebeu isso e não disse nada.
— Obrigado — falei.
Abri o envoltório com meu canivete e o cordel se soltou do pacote, em alças rígidas, como um acordeon. Encontrei uma das extremidades e a amarrei em torno da cintura de Boné de Golfe, com um nó frouxo. O homem imediatamente o desfez, para amarrar a linha em seguida com um apertado nó cego. Não havia um som no supermercado. Norton oscilava inquietamente, ora em um pé, ora no outro.
— Quer levar meu canivete? — perguntou ao homem do boné de golfe.
— Eu tenho um. — Ele olhou para mim com o mesmo tranqüilo desdém. Vá soltando sua linha. Quando esticar bem, eu a prenderei.
— Todos prontos? — perguntou Norton, alto demais.
O rapaz roliço sobressaltou-se, como se estivesse assustado. Não recebendo resposta, Norton se virou para sair.
— Brent — falei, estendendo a mão. — Boa sorte, homem.
Ele estudou minha mão, como se ela fosse algum duvidoso objeto estranho.
— Nós enviaremos ajuda — disse finalmente.
Empurrou a porta SAÍDA. Aquele cheiro ralo e acre entrou novamente. Os outros o seguiram para o exterior. Mike Hatlen aproximou-se e ficou ao meu lado. Os cinco componentes do grupo de Norton penetraram no nevoeiro leitoso, de movimentos lentos. Norton disse algo e eu deveria ter ouvido, mas o nevoeiro tinha um estranho efeito amortecedor. Percebi apenas o som de sua voz e duas ou três sílabas isoladas como a voz no rádio, ouvida de alguma distância. Eles se afastaram.
Hatlen segurou a porta entreaberta. Dei linha, mantendo-a o mais folgada que pude, pensando na promessa do homem, que a ataria se ficasse tensa. Ainda não havia som algum. Billy permanecia ao meu lado, imóvel, mas parecendo vibrar com sua própria corrente interior.
De novo, houve aquela singular sensação de que os cinco não só desapareciam no nevoeiro, como tinham ficado invisíveis. Por um momento, sua roupas pareciam ficar em pé sozinhas, mas depois sumiram. Só se ficava realmente impressionado com a densidade antinatural do nevoeiro, quando se via pessoas sendo engolidas por ele em um espaço de segundos.
Dei mais linha. Um quarto dela se foi, depois metade. Parou de ser puxada por um instante. De coisa viva em minhas mãos, tornou-se morta. Contive a respiração. Em seguida, a linha foi novamente puxada. Deixei-a escorregar entre os dedos e, de repente, lembrei-me de meu pai, levando-me para ver Moby Dick, o filme com Gregory Peck, em Brookside. Acho que sorri um pouco.
Três quartos da linha já tinham ido agora. Eu podia ver sua extremidade, caída ao lado de um dos pés de Billy. Então, ela parou de mover-se novamente em minhas mãos.
Ficou imóvel por talvez cinco segundos, mas de súbito cerca de metro e meio desenrolou-se. De repente, entortou-se violentamente para a esquerda, tangendo a borda da porta SAÍDA.
Seis metros de linha desenrolaram-se bruscamente, quase me cortando a palma esquerda. E lá de fora, do meio do nevoeiro, chegou um grito agudo e oscilante. Era impossível dizer o sexo de quem gritara.
A corda forcejou outra vez em minhas mãos. De novo. Deslizei através do espaço da entrada, para a direita, depois de volta à esquerda. Mais alguns metros de linha se foram, quando soou um uivo ululante vindo do exterior, provocando um gemido de meu filho. Hatlen ficou horrorizado, de olhos esbugalhados. Um canto de sua boca descambou, trêmulo.
O uivo foi cortado abruptamente. Não houve som algum, pelo que pareceu uma eternidade. Então, a velha senhora gritou — desta vez não havia dúvidas sobre quem gritara. "Tirem isso de mim!" bradou ela. "Oh, meu Deus, meu Deus, tire isso... "
Então, sua voz também foi interrompida.
Quase toda a corda deslizou bruscamente por meu punho fechado frouxamente, agora me queimando a pele com vigor. Então, ficou inteiramente bamba, enquanto um som brotava do nevoeiro — um grunhido alto e espesso — que deixou seca toda a saliva em minha boca.
Eu jamais ouvira um som como aquele, porém o mais aproximado deveria ser o de um filme rodado na savana africana ou em um pântano sul-americano. Era o som de um gigantesco animal. Ele se repetiu, surdo, dilacerante e selvagem. Novamente... e depois diminuiu para uma série de baixos murmúrios. Então, houve silêncio total.
— Feche a porta — disse Amanda Dumfries, em voz trêmula. — Por favor.
— Em um minuto — falei.
Comecei a puxar a linha de volta. Ela saiu do nevoeiro e amontoou-se em torno de meus pés, formando uma confusão de dobras e alças. Faltando um metro para o final, a linha para varal de roupas, nova e branca, ficou vermelho-vivo.
— Morte! — gritou a Sra. Carmody. — A morte para quem for lá fora!,Viram agora?
O final da linha de vara, era uma mistura de fibras e pequenos tufos de algodão, emaranhada e mascada. Os tufos de algodão apresentavam diminutas gotas de sangue.
Ninguém contradisse a Sra. Carmody.
Mike Hatlen deixou que a porta de vaivém se fechasse.
VII. A primeira noite
O Sr. McVey trabalhara em Bridgton como açougueiro desde que eu tinha doze ou treze anos, porém jamais tive qualquer idéia sobre seu primeiro nome ou qual seria a sua idade. Ele instalara uma grelha a gás sob um dos pequenos ventiladores exaustores — os ventiladores agora estavam parados, mas presumivelmente ainda proporcionavam alguma ventilação — e, por volta de seis e meia da tarde, o cheiro de galinha sendo preparada ao fogo enchia o supermercado. Bud Brown não fez objeções. Talvez ele estivesse em estado de choque, porém o mais provável é que reconhecesse o fato de que sua carne fresca e as aves abatidas não estavam ficando nem um pouco mais frescas. O cheiro da galinha era convidativo, mas muitas pessoas não quiseram comer. Pequenino, metódico e limpo em suas roupas brancas, o Sr. McVey preparou as galinhas assim mesmo e colocou os pedaços, de dois em dois, em pratos de papel que foi alinhando no topo do balcão de carnes, como em uma lanchonete.
A Sra. Turman trouxe um prato para mim e outro para Billy, guarnecidos com bocados de salada de batata. Comi o melhor que pude, mas Billy nem tocou no seu.
— Você precisa comer, garotão — falei.
— Não estou com fome — disse ele, pondo o prato de lado.
— Como é que vai ficar grande e forte, se não...
Sentada logo atrás de Billy, a Sra. Turman abanou a cabeça para mim.
— Está bem — falei. — Pelo menos, pegue um pêssego e coma. Certo?
— E se o Sr. Brown disser alguma coisa?
— Se ele disser alguma coisa, venha me contar.
— Está bem, papai.
Ele se afastou lentamente. De certa forma, parecia ter encolhido. Meu coração doeu, ao vê-lo caminhar daquela maneira. o Sr. McVey continuou preparando galinhas, parecendo não ligar para o fato de bem poucos estarem comendo, mas feliz no ato de prepará-las. Como creio ter dito, há muitos meios de manejar-se uma situação como aquela. Ninguém diria, mas é assim. Nossa mente é curiosa.
Eu e a Sra. Turman nos sentamos a meio caminho no corredor em que ficavam as gôndolas de medicamentos. Os outros sentavam-se em pequenos grupos, por todo o supermercado. Ninguém permanecia sozinho, com exceção da Sra. Carmody; o próprio Myron e seu amigo Jim estavam juntos — os dois não ligavam mais para a geladeira de cerveja.
Seis novos homens agora estavam a postos nas vigias. Um deles era Ollie, mascando uma perna de galinha e bebendo uma cerveja. As tochas confeccionadas com cabos de esfregão achavam-se ao lado de cada posto de vigilância, tendo ao lado uma lata de fluido para isqueiro... mas duvido que alguém continuasse acreditando naquelas tochas como antes. Não, depois daquele surdo e terrivelmente vital grunhido, não depois da linha para varal de roupas, mascada e encharcada de sangue. Se o que quer que estivesse lá fora decidisse capturar-nos, iria capturar-nos.
— Como vai ser esta noite? Boa? Ruim? — perguntou a Sra. Turman.
Sua voz era calma, mas os olhos estavam doentios e assustados.
— Sinceramente, Hattie, não sei dizer.
— Deixe Billy comigo, o mais que quiser. Eu... Davey, acho que estou morrendo de medo. — Ela deu uma risadinha seca. — Sim, acho que estou mesmo. Entretanto, se tiver Billy comigo, isso me fará bem. Como também será bom para ele.
Seus olhos cintilavam. Inclinei-me e bati-lhe no ombro.
— Estou tão preocupada com Alan! — suspirou ela. — Alan está morto, Davey. No fundo do coração, sei que ele está morto.
— Não, Hattie. Você não sabe nada disso.
— Sinto que é verdade. Não sente alguma coisa em relação a Stephanie? Não tem um... pressentimento, ao menos?
— Não — respondi, mentindo descaradamente.
Um som estrangulado lhe brotou da garganta e ela apertou a boca com a mão. Seus óculos refletiram a claridade soturna e mortiça.
— Billy está voltando — murmurei.
Ele comia um pêssego. Hattie Turman bateu no piso ao seu lado e disse que quando ele terminasse, iria mostrar-lhe como fazer um homenzinho com o caroço do pêssego e um pedaço de linha. Billy sorriu abatidamente para ela e a Sra. Turman lhe devolveu o sorriso.
Às oito da noite, seis novos homens estavam de vigia. Ollie chegou até onde eu me sentava.
— Onde está Billy?
— Com a Sra. Turman, lá nos fundos — respondi. — Eles estão fazendo brincadeiras. Já passaram pelos bonequinhos de caroço de pêssego e máscaras com sacolas de compras ou bonecas feitas de maçãs. Agora, o Sr. McVey mostra a ele como fazer bonecos com limpadores de cachimbo.
Ollie sorveu um comprido gole de cerveja. Depois disse:
— As coisas estão se movendo lá fora.
Olhei fixamente para ele. Ele também me encarou.
— Não estou bêbado — disse. — Tentei embriagar-me, mas não consegui. Gostaria de tomar um pileque, David.
— O que quer dizer com coisas que se movem lá fora?
— Não posso afirmar com certeza. Perguntei a Walter e ele disse ter a mesma impressão, de que partes do nevoeiro ficavam mais escuras a cada minuto — por vezes apenas uma pequena mancha, em outras uma grande área escura, como uma equimose. Depois, tudo voltava a ficar cinzento. Aliás, a coisa está formando uma espécie de redemoinho. O próprio Arnie Simrns afirmou ter a sensação de que acontecia algo lá fora — e Arnie é quase tão cego como um morcego.
— E quanto aos outros?
— São todos gente de fora do estado, estranhos para mim — replicou Ollie. Não perguntei a nenhum deles.
— Como tem certeza de que vocês não estavam apenas vendo coisas?
— É só uma impressão — disse ele. Assentiu na direção da Sra. Carmody, sentada sozinha no final do corredor. Nada do que ocorria lhe diminuíra o apetite, porque havia um cemitério de ossos de galinha em seu prato. Ela devia estar bebendo sangue ou suco V-8. — Acho que ela estava certa sobre uma coisa — concluiu Ollie. — Nós descobriremos. Quando anoitecer, nós descobriremos.
De qualquer modo, não precisamos esperar até o anoitecer. Quando aconteceu, Billy viu bem pouco do sucedido, porque a Sra. Turman o manteve nos fundos do supermercado.
Ollie ainda estava sentado comigo, no momento em que um dos homens na fachada deu um grito agudo e recuou de seu posto, girando os braços.
Eram quase oito e meia; lá fora, o nevoeiro branco-pérola escurecera para um tom opaco de um crespúsculo de novembro.
Algo havia caído na parte externa da vidraça de uma das vigias.
— Oh, meu Deus! — gritou o homem que ficara vigiando ali. — Livre-me disto! Livre-me disto!
Ele disparou em um círculo errante, os olhos sobressaindo no rosto, com um filete de saliva no canto da boca, cintilando nas sombras que se adensavam. Então, caminhou diretamente para o corredor mais distante, além da área dos alimentos congelados.
Houve gritos em resposta. Algumas pessoas correram para a parte frontal do supermercado, querendo saber o que acontecia. Muitas recuaram até os fundos, não se preocupando e não querendo ver o que quer que rastejava sobre a parte externa das vidraças.
Encaminhei-me para aquele posto de vigia, com Ollie a meu lado. A mão dele estava no bolso que guardava a arma da Sra. Dumfries. Nesse momento, outro vigia gritou — não só de medo, como de repugnância.
Eu e Olliver esgueiramo-nos por um dos corredores das caixas. Agora, era possível ver o que afugentara o sujeito de seu posto. Eu não podia dizer o que seria, mas conseguia ver a coisa. Assemelhava-se a uma das criaturas menores em uma tela de Bosh — um de seus diabólicos murais. Havia algo quase comicamente horrível sobre aquilo, além do mais, porque se parecia um pouco com uma daquelas estranhas criações de vinil e plástico, compradas a 1 dólar e 89 para assustar os amigos... de fato, justamente o tipo de coisa de que Norton me acusara de haver colocado na área de estocagem.
Deveria ter um meio metro de comprimento, era segmentado, com a tonalidade rósea de carne queimada que cicatrizou. Olhos bulbosos espiavam em duas direções opostas ao mesmo tempo, localizados nas extremidades de talos curtos, semelhantes a membros. A coisa aderia à vidraça sobre gordas ventosas. Do lado contrário, projetava-se algo que tanto podia ser um órgão sexual, como um ferrão. E de seu dorso, brotavam enormes asas membranosas, como as da mosca doméstica. Elas se moviam muito lentamente, quando eu e Ollie nos aproximamos do vidro.
Na vigia à nossa esquerda, onde o homem havia emitido aquele som crocitado, três daquelas coisas rastejavam sobre o vidro. Moviam-se vagarosamente através dele, deixando pegajosos rastros de lesma para trás. Seus olhos — se é que eram olhos — encaixavam-se na ponta dos talos da grossura de dedos. O maior talvez tivesse metro e meio de comprimento. Às vezes, eles rastejavam uns contra os outros.
— Veja as malditas coisas — disse Tom Smalley, com repugnância.
Ele estava na vigia à nossa direita. Não respondi. Os besouros agora estavam sobre todas as vigias, isto significando que provavelmente deviam rastejar por todo o prédio... como vermes em um pedaço de carne. Não era uma imagem agradável e eu podia perceber como toda a galinha que conseguira comer, agora esforçava-se por deixar meu organismo.
Alguém soluçava. A Sra. Carmody bradava sobre abominações vindas do interior da terra. Alguém lhe disse, iradamente, que devia calar a boca, se soubesse o que melhor lhe convinha. A mesma velha história.
Ollie tirou do bolso a arma da Sra. Dumfries e eu lhe agarrei o braço.
— Não seja louco! — falei.
Ele se libertou com um safanão.
— Sei o que estou fazendo — respondeu.
Bateu na vidraça com o cano da arma, mostrando no rosto uma expressão de nojo. A velocidade das asas das criaturas aumentou, até se tornar apenas uma imagem borrada — se não soubéssemos, pensaríamos que eles não eram seres alados, em absoluto. Depois, simplesmente afastaram-se voando.
Alguns dos outros viram o que Ollie havia feito e seguiram sua idéia. Começaram a bater nas vidraças com cabos de esfregões. As coisas voavam e iam embora, mas voltavam logo depois. Aparentemente, tampouco tinham mais cérebro do que a mosca comum. O quase pânico dissolveu-se em um rumor de conversas. Ouvi alguém perguntando a outra pessoa o que achava que aquelas coisas fariam, se pousassem em um ser humano. Aí estava uma pergunta que não me interessava ver respondida.
As batidas nas vidraças começaram a diminuir. Ollie se virou para mim e ia dizer alguma coisa, mas tão logo abriu a boca, algo se destacou do nevoeiro e abocanhou um daqueles seres que rastejavam na vidraça. Acho que gritei, não tenho bem certeza.
Era uma coisa voadora. Fora isso, eu não poderia afirmar mais nada. O nevoeiro pareceu escurecer, exatamente da maneira como Ollie havia descrito, somente que a mancha escura não diminuiu; solidificou-se em algo de asas coriáceas que se agitavam, um corpo branco-albino, de olhos avermelhados. Chocou-se na vidraça com força suficiente para fazê-la estremecer. Seu bico se abriu. Pescou a coisa rosada com ele e se foi. Todo o incidente não durou mais do que cinco segundos. Tive uma crua e final impressão de coisa rosada estrebuchando e debatendo-se enquanto desaparecia naquele alçapão, da maneira como um peixe pequeno estrebucha e se debate no bico de uma gaivota.
Houve um novo baque contra a vidraça, depois outro. As pessoas recomeçaram a gritar, a maioria correndo em tropel para os fundos do supermercado. Ouvimos então um grito mais agudo, um grito de dor, e Ollie disse:
— Oh, meu Deus, aquela senhora idosa caiu e os outros simplesmente correram por cima dela!
Ollie correu de volta aos corredores das caixas registradoras. Eu me virei para segui-lo, mas então vi uma coisa que me fez estacar bruscamente onde estava.
Bem no alto, à minha direita, um dos sacos de adubo para jardim escorregava lentamente. Tom Smalley estava bem abaixo dele, espiando para o nevoeiro lá fora, através de sua vigia.
Outro daqueles bichos rosados aterrou sobre o espesso vidro da vigia onde eu e Ollie estivéramos. Uma das coisas voadoras precipitou-se para baixo e o agarrou. A velha que havia sido pisoteada começou a gritar em voz aguda, cacarejante.
Aquele saco. Aquele saco escorregando...
— Smalley! — gritei. — Cuidado! Olhe para cima!
Na confusão geral, ele nem chegou a ouvir-me. O saco oscilou e então caiu, atingindo-o em cheio na cabeça. Smalley caiu brutalmente, batendo com o queixo na prateleira que corria abaixo daquela vidraça.
Uma das coisas albinas voadoras procurava abrir caminho, através do buraco em cunha que havia no vidro. Eu podia ouvir o arranhar suave que ela fazia, agora que um pouco da gritaria cessara. Seus olhos vermelhos cintilaram na cabeça triangular, ligeiramente virada de banda. Um bico enorme e em gancho se abriu e fechou com voracidade. Tinha certa semelhança com as pinturas de pterodáctilos que vemos nos livros de dinossauros, porém mais parecido a algo saído do pesadelo de um lunático.
Peguei uma das tochas, enfiei-a em uma das latas com fluido para isqueiro, encharquei-a e deixei cair um pouco do líquido no chão.
A criatura voadora fez uma pausa no topo da pilha dos sacos de adubo, olhando em torno, equilibrando-se lenta e malignamente, ora em um ora em outro pé provido de esporão. Era uma criatura imbecil, tenho certeza disso. Tentou duas vezes abrir as asas, que batiam contra as paredes e então se dobravam sobre si mesmas, acima das costas arqueadas, como as asas de um grifo. À terceira tentativa, perdeu o equilíbrio e caiu desajeitadamente de seu poleiro, ainda procurando distender as asas. Aterrou sobre as costas de Tom Smalley. Com uma flexão de suas garras, a camisa de Tom se rasgou de alto a baixo. O sangue começou a fluir.
Eu estava lá, a menos de um metro de distância. Minha tocha pingava fluido de isqueiro.
Emocionalmente, sentia-me impelido a matar aquela coisa, se pudesse... e então percebi que não tinha fósforos para acender a tocha. Usara o último acendendo um charuto para o Sr. McVey, uma hora atrás.
A essa altura, o lugar se transformara em pandemônio. As pessoas tinham visto a coisa empoleirada nas costas de Smalley, algo que ninguém no mundo já vira antes. Ela esticou a cabeça para diante, em um ângulo inquisitivo, depois arrancou um pedaço de carne da nuca de Smalley.
Eu me dispunha a usar a tocha como porrete, quando sua extremidade envolta em panos ficou repentinamente em chamas. Dan Miller estava ali, segurando um isqueiro Zippo, com um emblema da Marinha gravado. Seu rosto estava duro como rocha, tomado de horror e fúria.
— Mate-o! — disse ele, em voz rouca. — Mate-o, se puder!
Ollie estava ao lado dele. Empunhava o 38 da Sra. Dumfries, mas sem ângulo de tiro. A coisa estendeu as asas e bateu-as uma vez — aparentemente, não para voar, apenas para se firmar melhor sobre sua presa — e então suas asas membranosas e rijas envolveram toda a parte superior do corpo do pobre Smalley. A seguir, foram os sons apenas que ouvimos — sons mortais de dilaceramento, que não consigo descrever de maneira alguma.
Tudo isto aconteceu apenas em segundos. Foi então que arremeti com minha tocha contra a coisa. Houve a sensação de atingir algo sem mais substância real do que um papagaio de empinar. No momento seguinte, a criatura inteira ardia. Ela emitiu um grasnido agudo e distendeu as asas; a cabeça se contorceu e os olhos avermelhados rolaram com o que eu sinceramente desejava que fosse uma grande agonia. A criatura alçou vôo, fazendo um som semelhante ao de lençóis pendurados em um varal, sacudidos por uma firme brisa de primavera. Tornou a emitir aquele grasnido enferrujado.
As cabeças se ergueram para seguir seu vôo agonizante e flamejante. Creio que nada, em tudo aquilo, permanece tão vívido em minha memória, como aquela coisa-ave em chamas, voando aos ziguezagues acima dos corredores do Supermercado Federal, deixando cair pedaços carbonizados e fumacentos de si mesma, aqui e ali. Finalmente abateu-se entre os molhos para espaguete, espalhando sucos por todos os lados, como gotas de sangue. Agora, era pouco mais do que cinzas. O cheiro que desprendia era de algo carbonizado, forte e repugnante. E, acentuando isto, como um contraponto, havia o difuso e acre odor do nevoeiro, insinuando-se através do buraco no vidro.
Houve o mais absoluto silêncio por um momento. Ficamos unidos pelo negro assombro daquele vôo mortal, vivamente iluminado. Então, alguém deu um grito ululante. Outras pessoas gritaram também. E, de alguma parte nos fundos do supermercado, pude ouvir meu filho chorando.
A mão de alguém agarrou-me. Era de Bud Brown. Seus olhos avolumavam-se nas órbitas, esbugalhados. Os lábios repuxavam-se para trás, sobre a dentadura postiça, como em um rosnado.
— Mais uma daquelas coisas — disse ele, e apontou.
Um dos besouros esgueirara-se através do buraco e agora encarapitava-se sobre um saco de adubo para jardim, zumbindo as asas como uma mosca varejeira — a gente podia ouvi-la, soavam como um ventilador elétrico barato das lojas de departamentos — os olhos salientes em seus talos. O corpo rosa e roliço aspirava rapidamente.
Movi-me para ele. Minha tocha ainda fumegava. Entretanto, a Sra. Reppler, a professora do terceiro grau, foi mais rápida. Teria uns cinqüenta e cinco anos, talvez sessenta, e era extremamente magra. Seu corpo tinha uma aparência estorricada e seca, que sempre me fazia pensar em um bife duro, tipo sola de sapatos.
Ela empunhava uma lata de Raid em cada mão, como um pistoleiro de comédia existencial. Proferiu um rosnado de raiva digno de um homem das cavernas, esmagando o crânio de um inimigo. Segurando as latas de inseticidas sob pressão com os braços inteiramente estirados, apertou os botões. Um jato espesso de inseticida cobriu a coisa.
O besouro contorceu-se de agonia, agitando-se e girando loucamente, para afinal cair dos sacos, ricochetear no cadáver de Tom Smalley — que estava morto, sem a menor sombra de dúvida — e por fim rolar para o chão. Suas asas zumbiam alucinadamente, mas não o levariam a lugar algum, porque estavam fartamente impregnadas de Raid. Momentos depois, o movimento das asas diminuía, até elas cessarem de bater por completo. A coisa estava morta.
Agora, ouvia-se pessoas chorando. E gemendo. A velha senhora que fora pisoteada estava gemendo. Também havia risos. As gargalhadas dos amaldiçoados. A Sra. Reppler ficou ao lado de sua presa, o peito magro subindo e descendo rapidamente.
Hatlen e Miller encontraram um daqueles carrinhos de plataforma que os arrumadores de prateleiras usam para mover artigos embalados pelo supermercado e, juntos, o levantaram até o alto dos sacos de adubo para jardim, bloqueando o buraco em forma de cunha que havia na vidraça. Uma medida temporária, porém conveniente.
Amanda Dumfries aproximou-se como uma sonâmbula. Tinha um balde de plástico em uma das mãos. Na outra, segurava uma escova de roupas em forma de vassourinha, ainda fechada em seu envoltório transparente. Inclinando-se, os olhos ainda dilatados e apáticos, ela varreu a coisa morta e rosada — besouro, lesma, fosse o que fosse — para dentro do balde. Podia-se ouvir o roçar áspero do envoltório da escova de roupas, varrendo o chão. Ela caminhou para a porta SAÍ DA. Não havia nenhum besouro ali.
Abrindo-a um pouco, a Sra. Dumfries jogou o balde no exterior. Ele caiu de banda e rolou de um lado para outro, em arcos decrescentes. Uma das coisas rosadas zumbiu para fora da noite, aterrou em cima do balde e começou a rastejar sobre ele.
A mulher prorrompeu em lágrimas. Aproximando-me, passei um braço em torno de seus ombros.
Por volta de uma e meia da madrugada, eu estava sentado com as costas contra a lateral esmaltada de branco do balcão de carnes, em um semi cochilo. A cabeça de Billy repousava em meu colo. Ele dormia profundamente. Não muito longe dali, Amanda Dumfries dormia, tendo o blusão de alguém como travesseiro.
Algum tempo após a morte chamejante da coisa-ave, eu e Ollie tínhamos voltado à área de estocagem e reunido meia dúzia de mantas acolchoadas, semelhantes àquela com que cobrira Billy anteriormente. Várias pessoas dormiam sobre elas. Também trouxemos um bom número de pesados caixotes de laranjas e peras; juntos, quatro de nós conseguimos içá-los para o alto das pilhas de sacos com adubo para jardim, em frente do buraco na vidraça. As criaturas-aves precisariam esforçar-se bastante para deslocar um daqueles caixotes, cada um dos quais pesava cerca de quarenta e cinco quilos.
Entretanto, as aves, as coisas semelhantes a besouros, não eram as únicas coisas lá fora.
Havia a outra coisa de tentáculo que arrastara Norm. Havia ainda aquele cordel para varal de roupas, esmagado, dando o que pensar. Havia a coisa invisível que proferira aquele rugido grave e gutural, também dando o que pensar. Tínhamos ouvido sons semelhantes desde então — por vezes bem distantes mas até que ponto era "distante", através do efeito amortecedor do nevoeiro?
Aliás, havia ocasiões em que eram suficientemente próximos para estremecer o prédio, dando a sensação de que os ventrículos de nosso coração tivessem sido subitamente inundados de água gelada.
Billy sobressaltou-se em meu colo e gemeu. Afaguei seus cabelos e ele gemeu mais alto. Depois pareceu reencontrar as águas menos perigosas do sono. Meu próprio cochilo era entrecortado, de maneira que eu voltara a ficar de olhos arregalados. Desde o anoitecer, conseguira dormir apenas uns noventa minutos, assim mesmo, com o sono povoado de pesadelos. Em um daqueles sonhos fragmentados, eu me via novamente na noite anterior, Billy e Steff estavam diante da janela panorâmica, olhando para as águas negro-acinzentadas, para a rodopiante e prateada tromba-d'água que prenunciava a tormenta. Tentei aproximar-me deles, convencido de que um vento forte poderia quebrar a janela e atirar flechas mortais de vidro por toda a sala de estar. No entanto, por mais que corresse, não conseguia alcançá-los. Então, surgiu uma ave da tromba-d'água, um gigantesco oiseau de nort escarlate, cuja envergadura de asas pré-históricas deixava todo o lago ensombrecido, de leste a oeste. Seu bico se abriu, revelando uma goela do tamanho do Túnel Holland. E, quando a ave se precipitava para minha esposa e meu filho, uma voz grave e sinistra começou a sussurar, incessantemente: O Projeto Ponta de Flecha... o Projeto Ponta de Flecha... o Projeto Ponta de Flecha...
Não que eu e Billy fôssemos os únicos a dormir mal. Havia outros que gritavam dormindo e outros que continuavam gritando, depois de acordados. A cerveja desaparecia da geladeira em grande velocidade. Buddy Eagleton a carregara novamente, com garrafas do estoque nos fundos do prédio, sem qualquer comentário. Mike Hatlen veio me dizer que o Sominex desaparecera. Os vidros não tinham sido esvaziados — haviam sumido. Ele achava que algumas pessoas podiam ter apanhado seis ou oito vidros.
— Ainda há uma sobra de Nytol — acrescentou. — Quer um vidro, David?
Meneei a cabeça em negativa e agradeci.
No último corredor, o da caixa registradora 5, tínhamos os vinhos. Havia umas sete pessoas lá, todas de fora do estado, com exceção de Lou Tattinger, que dirigia a Lavadora de Carros "Pine Tres". Lou não precisava de nenhuma desculpa para farejar a rolha, como se diz. A brigada dos vinhos já estava perfeitamente anestesiada.
Oh, sim... havia ainda seis ou sete pessoas que tinham ficado malucas. Malucas, aliás, não é bem o termo; talvez eu apenas não conseguisse encontrar o mais adequado.
Contudo, aquelas eram as pessoas que haviam mergulhado em absoluto estupor, fosse provocado pela cerveja, vinho ou pílulas. Elas nos fitavam com olhos vagos, semelhantes a maçanetas reluzentes. O duro cimento da realidade, seus alicerces, se tinham desfeito através de algum inimaginável terremoto, e aqueles pobres diabos haviam caído com eles. Com o tempo, alguns poderiam recuperar-se. Caso houvesse tempo.
Nós, os restantes, havíamos feito nossos compromissos mentais e, em alguns casos, imagino que fossem bastante estranhos. A Sra. Reppler, por exemplo, estava convencida de que tudo aquilo era um sonho — ou pelo menos foi o que disse. Aliás, expressara-se com bastante convicção.
Olhei na direção de Amanda. Eu começava a experimentar um sentimento incomodante forte por ela — incômodo, mas não de todo desagradável. Seus olhos eram de um verde incrivelmente brilhante... e por algum tempo a ficara vigiando, para ver se tiraria um par de lentes de contato, mas pelo visto, a cor era verdadeira. Sentia vontade de fazer amor com ela. Minha esposa estava em casa, talvez viva, mais provavelmente morta, de qualquer modo, sozinha, e eu a amava. Queria voltar para ela com Billy, acima de tudo, mas também queria transar com aquela mulher chamada Amanda Dumfries. Tentei dizer a mim mesmo que era produto da situação em que nos encontrávamos — e talvez fosse mesmo — porém isso não alterou o desejo.
Continuei dormitando e despertando, até acordar de todo, por volta das três da madrugada. Amanda se deslocara para uma posição fetal, com os joelhos encostando no peito. as mãos entrelaçadas entre as coxas. Parecia dormir profundamente. Sua blusa de atletismo se erguera levemente em um lado, mostrando a pele muito alva. Vendo aquilo, comecei a ter uma desconfortável e totalmente inútil ereção.
Tentei distrair as idéias, levando-as para um novo rumo. Pensei em como quisera pintar Brent Norton no dia anterior. Nada tão importante como um quadro, mas... apenas sentá-lo em um trono, com minha cerveja na mão, e garatujar seu rosto cansado e suado, as duas asas de seu cabelo cuidadosamente penteado, projetando-se desmazeladamente na parte traseira da cabeça. Poderia ter sido um bom quadro. Eu precisaria de vinte anos vivendo com meu pai, para aceitar a idéia de que ser bom, poderia ser bom o suficiente.
Sabem o que é o talento? É o castigo da expectativa. Quando crianças, temos que lidar com isso, vencê-lo de algum modo. Se podemos escrever, achamos que Deus nos colocou na terra para superarmos Shakespeare. Ou, se sabemos pintar, talvez achemos — eu achei — que Deus nos colocou na terra para superarmos nosso pai.
Resultou que eu não era tão bom quanto ele. Continuei tentando ser como ele, talvez por mais tempo do que deveria. Tive uma exposição em Nova York e me saí muito mal — fui derrotado pelos críticos de arte, na comparação com meu pai. Um ano mais tarde, era com o desenho comercial que sustentava a mim e Steff. Ela estava grávida, de maneira que me concentrei e falei comigo mesmo a respeito. O resultado dessa conversa, foi a convicção de que a arte séria seria sempre um hobby para mim, nada mais.
Fiz a publicidade do Xampu Garota de Ouro — aquele em que a Garota está montada em sua bicicleta, aquele em que ela joga Frisbee na praia, aquele em que ela se acha no balcão de seu apartamento, com um drinque na mão. Ilustrei contos para a maioria das grandes revistas elegantes, mas de poucos méritos literários, porém penetrei nesse campo fazendo ilustrações rápidas para contos nas revistas mais espalhafatosas para homens. Também fiz alguns posters para cinema. O dinheiro ia entrando. Conseguíamos manter nossas cabeças lindamente acima d'água.
Tive uma exposição final em Bridgton, bem no último verão. Expus nove telas que havia pintado em cinco anos, tendo vendido seis. A que não venderia de maneira alguma, mostrava o supermercado Federal, por singular coincidência. A perspectiva era da extremidade mais distante do pátio de estacionamento. Em meu quadro, o pátio estava vazio, exceto por uma fileira de latas de feijão Campbell, cada uma maior do que a antecedente, à medida que se aproximavam do olho do espectador. A última parecia ter dois metros e meio de altura. O quadro tinha o título de Feijões e Falsa Perspectiva.
Um homem da Califórnia, alto executivo em uma fábrica de raquetes e bolas de tênis, entendido em todo tipo de equipamento esportivo, ficou encantado com o quadro e não aceitava uma negativa como resposta, apesar do cartão NEV (Não está à venda), enfiado no canto inferior esquerdo, na moldura descartável de madeira. Ofereceu seiscentos dólares e subiu até quatro mil. Afirmou querer o quadro para seu estúdio. Recusei as ofertas e ele se foi, irritado e pasmo. Ainda assim, não desistiu de todo, deixando seu cartão para o caso de eu mudar de idéia.
Aquele poderia ser um dinheiro bem empregado — foi no ano em que aumentei a casa e comprei o tração-nas-quatro-rodas — mas preferi ficar com o quadro. Não poderia vendê-lo, já que o considerava minha pintura mais bem feita e, além disso, queria tê-lo comigo, para poder contemplá-lo, depois que alguém me perguntasse, com crueldade totalmente inconsciente, quando é que me dedicaria a algo mais sério.
Então, em certo dia do outono passado, mostrei casualmente o quadro a Ollie Weeks.
Ele me pediu para fotografá-lo e usá-lo como propaganda, durante uma semana. Foi esse o fim de minha falsa perspectiva. Ollie reconhecera minha pintura pelo que era em realidade, com isso, forçando-me a fazer o mesmo. Era uma peça perfeitamente válida, como espalhafatosa arte comercial. Nada mais. E, graças a Deus, nada menos.
Deixei que ele fizesse o que pretendia e então liguei para o tal executivo, em sua casa de San Luís Obispo. Falei que, se ainda quisesse a pintura, poderia tê-la, por dois mil e quinhentos. Ele a queria, e eu a despachei para a costa. A partir daí, aquela voz de decepcionada expectativa — aquela ludibriada voz infantil nunca satisfeita ante um adjetivo como bom — tem andado bastante silenciosa. E, exceto por alguns roncos — semelhantes aos sons daquelas criaturas invisíveis lá fora, em algum ponto dentro da noite — desde essa época, tal voz quase se calou. Talvez alguém me possa dizer — por que o silenciar daquela voz infantil e exigente se pareça tanto com agonizar?
Por volta de quatro horas, Billy acordou — parcialmente, pelo menos — e olhou em torno com olhos remelentos, cheios de visível incompreensão.
— Ainda estamos aqui?
— Sim, meu bem — respondi. — Ainda estamos.
Ele começou a chorar, com uma fraca impotência que era horrível. Amanda acordou e olhou para nós.
— Ei, garoto — disse ela, e o puxou delicadamente para si. — Tudo vai parecer um pouco melhor, quando a manhã chegar.
— Não — disse Billy. — Não vai. Não vai. Não vai!
— Psst! — disse ela. Seus olhos encontraram os meus, acima da cabeça dele. — Psst... Já está passando da sua hora de dormir.
— Eu quero a minha mãe!
— Claro que quer — disse Amanda. — Eu sei.
Billy remexeu-se em seu colo, até poder olhar para mim, o que ficou fazendo por algum tempo. Então, tornou a dormir.
— Obrigado — falei. — Ele precisava de você.
— Ele nem ao menos me conhece.
— Não faz diferença.
— O que você acha? — perguntou ela. Seus olhos verdes fixaram-se insistentemente nos meus. — O que acha, em realidade?
— Pergunte-me quando amanhecer.
— Estou perguntando agora.
Abri a boca para responder, mas então Ollie Weeks materializou-se da penumbra, como algo saído de um conto de horror. Tinha uma lanterna, com uma das blusas para senhoras cobrindo a lente, e apontava o facho para o teto. A luminosidade produzia sombras estranhas em seu rosto abatido.
— David — sussurrou.
Amanda olhou para ele, primeiro sobressaltada, depois novamente amedrontada.
— O que é, Ollie? — perguntei.
— David — ele tornou a sussurrar. Depois: — Venha. Por favor.
— Não quero deixar Billy. Ele acabou de adormecer.
— Eu ficarei com ele — ofereceu-se Amanda. — É melhor você ir. — Depois, em voz mais baixa: — Meu Deus, isto nunca vai terminar!
VIII. O que aconteceu aos soldados. Com Amanda. Uma conversa com Dan Miller.
Acompanhei Ollie. Ele tomou a direção da área de estocagem. Ao passarmos junto à geladeira, apanhou uma cerveja.
— O que é, Ollie?
— Quero que você veja.
Empurrou as portas duplas e entramos. Elas deslizaram e se fecharam atrás de nós, com pequena agitação de ar. Estava frio. Eu não gostava daquele lugar, não depois do sucedido a Norm. Uma parte de minha mente insistia em recordar que ali ainda havia um pequeno pedaço de tentáculo morto, jazendo no chão, em algum lugar.
Ollie retirou a blusa que amortecia o facho da lanterna. Ele dirigiu a luz para o alto. A princípio, tive a impressão de que alguém pendurara dois manequins em um dos canos de aquecimento, correndo abaixo do teto. Achei que tinham sido pendurados em cordas de piano ou coisa assim, um truque de crianças, no Dia das Bruxas.
Então reparei nos pés, pendendo cerca de vinte centímetros acima do piso de cimento.
Havia duas pilhas de caixas de papelão derrubadas. Ergui os olhos para os dois rostos e um grito começou a brotar em minha garganta, porque aquelas não eram as faces dos bonecos de loja de departamentos. As duas cabeças estavam viradas para um lado, como se apreciassem alguma terrível e engraçada piada, uma piada que os fizera rir até ficarem arroxeados.
Suas sombras. Suas sombras encompridavam-se na parede atrás deles. Suas línguas. Suas línguas saltadas para fora.
Ambos usavam uniforme. Eram os rapazolas que eu percebera anteriormente e que não tornara a ver mais. Os rapazolas do exército, sediados em...
O grito. Eu podia ouvi-lo, começando em minha garganta como um gemido, crescendo como uma sirene policial, mas então Ollie aferrou meu braço, pouco acima do cotovelo.
— Não grite, David! Ninguém sabe disto, além de você e eu. E é assim que vai ficar.
De alguma forma, consegui conter-me.
— Aqueles garotos do exército — murmurei.
— Do Projeto Ponta de Flecha — disse Ollie. — Não há dúvida. — Algo frio me foi enfiado na mão. A lata de cerveja. — Beba isto. Está precisando.
Esvaziei a lata em um prolongado gole.
— Voltei aqui para ver se tínhamos cartuchos extras para aquela grelha a gás que o Sr. McVey esteve usando. Vi estes caras. Do jeito como imagino, devem ter preparado os laços e subiram para o alto dessas duas pilhas de caixas de papelão. Devem ter amarrado as mãos, um ao outro e então equilibraram-se, também um ao outro, enquanto passavam através da corda entre seus pulsos. Assim... assim ficariam com as mãos atrás deles, entenda. A seguir — é assim que imagino — enfiaram as cabeças nos laços e os apertaram com força. inclinando as cabeças para um lado. Talvez um deles contasse até três e pularam juntos. Eu não sei.
— Não poderia ser feito — falei, sentindo a boca seca.
Entretanto, as mãos dos dois estavam amarradas às costas de ambos, claro. Eu não conseguia afastar os olhos daquilo.
— Poderia. Se eles estivessem mesmo decididos, poderiam, David.
— Está bem, mas por quê?
— Acho que você sabe por quê. Não algum turista, os veranistas — gente como o tal Miller — mas há gente daqui que poderia fazer uma suposição muito decente.
— O Projeto Ponta de Flecha?
— Fico em pé junto àquelas registradoras o dia inteiro e ouço um bocado de coisas — disse Ollie. — Durante toda esta primavera andei ouvindo comentários sobre essa maldita coisa Ponta de Flecha, nenhum deles favorável. O gelo negro nos lagos...
Pensei em Bill Giosti, inclinado à janela de meu carro, bafejando álcool morno em meu rosto. Não apenas átomos, mas átomos diferentes. Agora, aqueles cadáveres pendendo dos canos suspensos. As cabeças ladeadas. Os sapatos pendentes. As línguas saltadas para fora, como salsichas de verão.
Com renovado horror, percebi que novas portas de percepção haviam sido abertas no interior. Novas? Nem tanto. Velhas portas de percepção. A percepção de uma criança que ainda não aprendeu a proteger-se, desenvolvendo a visão do túnel visual que impede o aparecimento de noventa por cento do universo. Crianças vêem tudo em que pousam os olhos, ouvem tudo dentro do alcance de sua audição. A vida, no entanto, se for uma elevação de consciência (como um trabalho principiante de tapeçaria que minha esposa fez, nas exposições do curso secundário), então também é a redução do túnel.
O terror é a dilatação da perspectiva e da percepção. O horror consistia em saber que eu nadava para um lugar que a maioria de nós abandonou, ao passarmos das fraldas para as calças à prova de urina. Eu podia discernir isto também no rosto de Ollie. Quando a racionalidade começa a desmoronar, os circuitos do cérebro humano podem ficar sobrecarregados. Axônios ficam brilhantes e febris. Alucinações tornam-se reais: a poça de azougue onde a perspectiva faz com que linhas paralelas pareçam encontrar-se, está realmente lá; os mortos caminham e falam; uma rosa começa a cantar.
— Ouvi comentários de umas duas dúzias de pessoas — disse Ollie. — Justine Robards. Nick Tochai. Ben Michaelson. Não se pode guardar segredos em cidades pequenas. As notícias se espalham. Às vezes, é como uma fonte — simplesmente borbulha acima da terra e ninguém faz idéia de onde veio a água. Ouve-se alguma coisa na biblioteca e passa-se adiante, como se pode ouvir na marina, em Harrison, e só Deus sabe mais aonde ou por quê. Contudo, durante toda a primavera, durante todo o verão, estive ouvindo falarem no Projeto Ponta de Flecha, Projeto Ponta de Flecha.
— Compreendo, Ollie, mas estes dois... Eram duas crianças!
— Em Nam, havia crianças que costumavam arrancar orelhas. Eu vi. Eu estive lá.
— Mas... o que os impeliria a fazer isto?
— Eu não sei. Talvez eles soubessem algo. Talvez apenas suspeitassem. Talvez percebessem que as pessoas aqui, eventualmente começariam a interrogá-los. Se houvesse um eventualmente.
— Se você estiver certo — falei — , deve ter sido algo realmente terrível.
— Aquela tempestade — disse Ollie, em sua voz suave e uniforme. — Talvez tenha desarranjado alguma coisa por lá. Talvez houvesse algum acidente. Eles bem poderiam estar lidando com alguma coisa. Certas pessoas dizem que trabalhavam com lasers e masers de alta intensidade. Às vezes, eu ouvia falar em energia de fusão. E suponhamos... suponhamos que eles tenham aberto um buraco, diretamente para outra dimensão?
— Ora, isso é tolice! — exclamei.
— Eles são? — perguntou Ollie, apontando para os corpos.
— Não. A questão agora é: o que faremos?
— Acho que devemos tirá-los daí e escondê-los — disse Ollie prontamente. Colocá-los debaixo de uma pilha de artigos que as pessoas não queiram — ração para cães, detergente para louças, coisas assim. Se isto vier a furo, só servirá para piorar a situação. Daí por que eu o chamei, David. Achei que era o único em quem podia confiar.
— Isto é como os criminosos de guerra nazistas, matando-se em suas celas, depois da guerra perdida — murmurei.
— Hã-hã. Foi o mesmo que pensei.
Caímos em silêncio e, de repente, aqueles suaves ruídos rastejantes começaram do outro lado da porta de aço, na área de estocagem de mercadorias — o som dos tentáculos tateando-a maciamente. Aproximamo-nos um do outro. Eu tinha a pele arrepiada.
— Está bem — falei.
— Faremos isso o mais depressa que pudermos — disse Ollie. Seu anel de safira cintilou opacamente, enquanto ele movia a lanterna. — Quero dar logo o fora daqui.
Ergui os olhos para as cordas. Eles haviam usado o mesmo tipo de cordel para varal de roupas que o homem do boné de golfe me permitira amarrar em torno de sua cintura. Os laços haviam penetrado na carne estufada de seus pescoços e tornei a perguntar-me como aqueles dois tinham conseguido ir adiante com aquilo. Eu compreendia o que Ollie quisera dizer, ao falar que se a notícia do duplo suicídio transpirasse, talvez a situação piorasse. Para mim, ela já piorara — e eu não acreditaria que fosse possível.
Houve um estalido metálico. Ollie abrira sua faca, uma boa e pesada ferramenta, própria para abrir caixas de papelão. E, naturalmente, cortar cordas.
— Eu ou você? — perguntou ele.
Engoli em seco.
— Um para cada — respondi.
Entregamo-nos à tarefa.
Quando voltei, Amanda não estava à vista e quem acompanhava Billy era a Sra. Turman. Ambos dormiam. Segui descendo por um dos corredores, quando ouvi uma voz:
— Sr. Drayton! David!
Era Amanda, em pé junto à escada para o escritório do gerente, seus olhos brilhando como esmeraldas.
— O que houve? — perguntou ela.
— Nada — respondi.
Ela aproximou-se e pude sentir um cheiro vago de perfume. E, oh, como a desejava!
— Seu mentiroso — disse ela.
— Não aconteceu nada. Foi um falso alarme.
— Se é assim que prefere... — Ela me tomou a mão. — Acabei de subir ao escritório. Está vazio e a porta tem chave.
Seu rosto era perfeitamente calmo, mas os olhos tremulavam, quase bravios, enquanto uma pulsação batia firmemente em sua garganta.
— Eu não...
— Vi a maneira como você olhou para mim — disse ela. — Não há necessidade de falarmos a respeito. Aquela Sra. Turman está com seu filho.
— Eu sei.
Ocorreu-me que aquele era um meio — talvez não o melhor, mas ainda assim, um meio — de afastar a maldição do que eu e Ollie havíamos acabado de fazer. Não o melhor meio, porém o único.
Subimos o estreito lance de escadas para o escritório. Estava vazio, conforme ela dissera. E havia uma chave na porta. Girei-a. Na escuridão, ela era apenas uma forma difusa. Estendi os braços, toquei-a e a puxei para mim. Estava trêmula. Fomos para o chão, primeiro ajoelhados, beijando-nos. Pus a mão em concha sobre um seio rijo e senti as fortes batidas de seu coração, através da camisa de atletismo. Pensei em Steff, dizendo a Billy para não ficar nos fios de eletricidade soltos. Pensei na equimose em sua coxa, quando ela tirou o vestido castanho, em nossa noite de núpcias. Pensei na primeira vez em que a vira, pedalando sua bicicleta pela rua de pedestres na Universidade do Maine, em Orono, quando me dirigia para uma das aulas de Vincent Hartgen, com meu portfólio debaixo do braço. E minha ereção era enorme.
Deitamo-nos, e ela disse:
— Ame-me, David. Faça com que me esquente.
Quando teve seu orgasmo, ela enterrou as unhas em minhas costas e me chamou por um nome que não era o meu. Não me importei. Isso nos deixava quites.
Ao descermos, iniciava-se uma espécie de vacilante alvorecer. A escuridão além das vigias passou relutantemente para um cinza opaco, depois para cromo, em seguida para o vivo, incorpóreo e opaco branco de uma tela de cinema drive-in. Mike Hatlen dormia em uma cadeira dobrável, arranjada em algum lugar. Dan Miller, sentado no chão a alguma distância, comia um biscoito Hostess. Do tipo polvilhado com açúcar cristal.
— Sente-se, Sr. Drayton — convidou.
Olhei em torno, procurando Amanda, mas ela já se distanciava, a meio caminho para o fim do corredor. Não olhou para trás. Nosso ato de amor no escuro já parecia algo extraído de uma fantasia, impossível de acreditar, mesmo naquele singular alvorecer.
Sentei-me.
— Pegue um biscoito — disse Miller, estendendo-me a caixa.
— Todo esse açúcar é morte certa. Pior do que cigarros.
Minhas palavras o fizeram rir um pouco.
— Sendo assim, pegue dois.
Fiquei surpreso ao constatar que ainda me sobrara um pouco de riso — Miller o fizera brotar e gostei dele por isso. Peguei dois de seus biscoitos. Tinham um excelente sabor.
Rematei-os com um cigarro, embora normalmente não tenha o hábito de fumar pela manhã.
— Preciso voltar para junto de meu garoto — falei. — Ele deve estar acordando.
Miller assentiu.
— Aqueles besouros rosados — disse ele. — Foram-se todos. Também as aves. Hank Vannerman disse que o último se chocou na vidraça por volta das quatro. Aparentemente, a... vida selvagem... fica muito mais ativa durante na escuridão.
— Não está querendo dizer isso a Brent Norton — falei. — Ou a Norm.
Ele tornou a assentir e ficou calado por um longo momento. Então, acendeu um cigarro de seu maço e olhou para mim.
— Não podemos ficar aqui, Drayton — disse.
— Há comida. E bastante bebida.
— Os suprimentos nada têm a ver com isso e sabe muito bem. O que faremos, se uma dessas feras maiores lá de fora resolver invadir o supermercado, em vez de apenas se chocar contra ele, durante a noite? Tentaremos expulsá-la a cabo de vassoura e fluido para isqueiro?
Claro que ele tinha razão. De certo modo, talvez o nevoeiro nos estivesse protegendo.
Escondendo-nos. Só que o esconderijo poderia não durar muito, e então... Havíamos permanecido no Federal umas dezoito horas, mais ou menos, e eu podia sentir uma espécie de letargia me invadindo, não muito diferente da que sentira uma ou duas vezes, ao tentar nadar uma distância muito grande. Havia uma urgência em ficar seguro, em continuar ali, cuidar de Billy (e talvez transar com Amanda Dumfries no meio da noite, murmurou uma voz), ver se o nevoeiro terminaria subindo e deixando tudo como estivera antes.
Eu podia perceber isto também nos outros rostos e, de repente, ocorreu-me que, no Federal, agora talvez houvesse pessoas que não sairiam dali, em hipótese alguma. A própria idéia de cruzarem a porta de saída, depois de tudo o que acontecera, bastaria para dissuadi-las.
Miller talvez estivesse vendo esses pensamentos me cruzarem o rosto.
— Quando este maldito nevoeiro chegou, havia umas oitenta pessoas aqui dentro. Desse número, subtraímos o rapaz embalador, Norton, as quatro pessoas que saíram com ele e aquele homem Smalley. Isso deixa setenta e três.
E subtraindo-se os dois soldados, agora repousando sob uma pilha de sacos de ração Purina para filhotes de cachorro, temos setenta e uma.
— Depois, subtraímos as que apenas optaram em sair — prosseguiu ele. — São dez ou doze. Dez, digamos. Ficamos com sessenta e três. Mas — ele ergueu um dedo sujo de açúcar — destas sessenta e três, temos cerca de vinte que não sairão. Terão que ser postas para fora a gritos e pontapés.
— O que prova tudo isso?
— Que temos de sair daqui, nada mais. Eu vou sair. Por volta do meio-dia, creio. Estou planejando levar comigo o maior número de pessoas que puder. Gostaria que você e o garoto também fossem.
— Depois do que aconteceu a Norton?
— Norton foi como uma ovelha para o matadouro. Isto não significa que o mesmo aconteça comigo ou com quem me acompanhar.
— E como o evitaria? Só temos uma arma.
— O que é uma sorte. Entretanto, se conseguirmos ir pelo cruzamento, talvez possamos chegar ao Sportsman's Exchange, na Main Street. Lá existem mais armas do que possa imaginar.
— Em tudo isso há "se" e "talvez" demais.
— Drayton — disse Miller, — esta é uma situação cheia de "se".
A frase lhe rolou maciamente da língua, mas ele não tinha que cuidar de um garotinho.
— Ouça, vamos dar um tempo, está bem? Não dormi muito esta noite, mas pude refletir em algumas coisinhas. Quer ouvi-las?
— Claro.
Ele ficou em pé e espreguiçou-se.
— Façamos uma caminhada até as vidraças.
Passamos pela alameda da caixa-registradora mais próxima das gôndolas para pães e paramos diante de uma das vigias. O homem de guarda ali, informou:
— Os besouros foram embora.
Miller deu-lhe uma palmada nas costas.
— Vá tomar um café, companheiro. Eu fico em seu lugar.
— Está bem. Obrigado.
O homem afastou-se. Eu e Miller ficamos em sua vigia.
— Agora, diga-me o que vê lá fora — falou ele.
Eu espiei. O recipiente para lixo fora derrubado durante a noite, provavelmente por alguma daquelas rapinantes coisas-ave, espalhando uma confusão de papéis, latas e copos de papelão da lanchonete por todo o piso alcatroado. Além disso, eu podia ver a fila de carros mais próximos do supermercado, dissolvendo-se em brancura. Era tudo quanto enxergava, e foi o que disse a ele.
— Aquela pickup Chevrolet azul é minha — disse Miller. Apontou e vi apenas uma sombra azulada no nevoeiro. — Entretanto, deve lembrar que ontem, quando estacionou, o pátio estava apinhado, não?
Tornei a olhar para meu Scout e recordei que só conseguira o espaço próximo ao supermercado, porque alguém mais saía com seu carro. Assenti, e Miller disse:
— Agora, some algo mais a esse fato, Drayton. Norton e seus quatro... como é mesmo que os chamou?
— Terrestres Estagnados.
— Exato, perfeito. Eles não eram outra coisa. Deixaram o supermercado, certo?
Avançaram por quase o comprimento total daquela linha para varal de roupas. Então, ouvimos os rugidos, como se lá fora houvesse uma manada de elefantes. Certo?
— Não soava como elefantes — falei. — Soava como...
Como algo vindo do pântano primordial, foi a frase que me veio à mente, mas eu não queria dizer isso a Miller, não depois de haver batido nas costas daquele sujeito e dizer-lhe para ir tomar café, como um treinador dispensando um jogador da grande partida.
Eu poderia ter dito isso a Ollie, mas não a Miller.
— Não sei o que parecia — completei, desanimado.
— Certo, mas dava a impressão de algo grande.
— Sim.
A coisa dera realmente a impressão de algo muito grande.
— Pois então, como é que não ouvimos carros sendo sacolejados? Nem metal rangendo? Vidros se quebrando?
— Bem, foi porque... — Interrompi-me. Ele me pegara. — Não sei!
— De qualquer modo — disse Miller — as coisas estavam lá fora, no pátio de estacionamento, quando sei-lá-o-que as atingiu. Eu lhe direi o que penso. Penso que não ouvimos nenhum carro sendo danificado, porque um bocado dessas coisas já podia ter-se acabado. Apenas isso... acabado! Penetrado na terra, evaporado, seja o que for.
Alguma coisa forte o suficiente para estilhaçar estas vigas, modificar-lhes o formato e derrubar artigos das prateleiras. E o apito da cidade parou ao mesmo tempo.
Eu tentava visualizar metade do pátio de estacionamento como desaparecida. Procurava visualizar uma caminhada lá fora e deparar com um recente desnível na terra onde estivera o piso do pátio, com suas vagas de estacionamento demarcadas em ordenadas linhas amarelas. Um desnível, uma ondulação... ou talvez um precipício sem fim, cavado em meio ao branco e inconsistente nevoeiro...
— Se você estiver certo — falei, após uns dois segundos — até onde acha que conseguiria ir em sua pickup?
— Eu não pensava nela, mas em seu carro de tração nas quatro rodas.
Aquilo era algo para digerir, porém não agora.
— O que mais tem em mente?
Miller estava ansioso em prosseguir.
— O que tenho em mente é a farmácia ao lado. O que acha?
Abri a boca para dizer que não atinava aonde ele queria chegar, mas depois a fechei de súbito. A Farmácia Bridgton estava em atividade, ao chegarmos ali na véspera. Não a parte de lavanderia automática, mas a drugstore estivera de portas escancaradas para deixar entrar um pouco de ar fresco, aquelas portas com retentores de borracha — a falta de energia evidentemente os deixara sem ar condicionado. A entrada para a farmácia não devia ficar a mais de seis metros das portas do supermercado Federal. Então, por que...
— Por que ninguém de lá apareceu aqui? — perguntou-me Miller. — Foram dezoito horas, não? Será que não sentiram fome? Seguramente, não se alimentariam com pílulas e supositórios.
— Lá também há alimentos — respondi. — Eles estão sempre vendendo comestíveis especiais. Às vezes, biscoitos em forma de animais, quando não, tortas crocantes, todos os tipos de coisas. Além disso, há o balcão dos doces.
— Não creio que se enchessem dessas coisas, quando aqui há tudo que se procure para comer.
— Aonde quer chegar?
— Minha idéia é de que pretendo sair daqui, mas sem servir de jantar para algum fugitivo de um filme de terror. Quatro ou cinco de nós poderiam ir até lá, verificar o que aconteceu na drugstore. Uma espécie de balão de ensaio.
— Isso é tudo?
— Não. Há mais uma coisa.
— O quê?
— Ela — disse Miller apenas, e apontou o polegar para um dos corredores centrais. — Aquela cadela nojenta. Aquela feiticeira.
Era para a Sra. Carmody que ele apontara o polegar. Ela não estava mais sozinha; agora tinha a companhia de duas mulheres. Por suas roupas vistosas, deduzi que deviam ser turistas ou veranistas, senhoras que haviam saído de casa para "apenas ir até a cidade, comprar algumas coisas" e agora estavam cheias de preocupação com os maridos e filhos. Senhoras ansiosas para agarrar-se a qualquer apoio. Talvez, até mesmo o sombrio consolo propiciado pela Sra. Carmody.
O terninho dela destacava-se com o mesmo resplendor maligno. Ela falava, gesticulava, o rosto duro e taciturno. As duas senhoras de roupas vistosas (não tanto quanto a da Sra. Carmody, nada disso, e sua gigantesca sacola-bolsa, ainda firmemente presa debaixo de um braço pastoso) a ouviam com enlevo.
— Ela é outro motivo que me faz querer sair daqui, Drayton. Chegada a noite, essa bruxa terá seis pessoas ao seu lado: Se aqueles besouros cor-de-rosa e os pássaros voltarem esta noite, amanhã cedo ela estará liderando um bom grupo. Então, é hora de nos preocuparmos sobre quem essa mulher apontará aos outros para ser sacrificado, a fim de que a situação melhore. Talvez eu; você ou aquele sujeito Haden. Talvez seu garoto.
— Isso é idiotice — falei.
Seria mesmo? O arrepio gelado subindo por minhas costas, dizia que não necessariamente. A boca da Sra. Carmody se movia sem parar. Os olhos das senhoras turistas estavam fixos em seus lábios franzidos. Seria realmente idiotice? Pensei nos poeirentos animais empalhados bebendo em seu riacho espelhado. A Sra. Carmody tinha poder. A própria Steff, normalmente teimosa e firme de opiniões, invocava o nome daquela velha com desassossego.
Aquela cadela nojenta, assim Miller a chamara. Aquela feiticeira.
— Neste supermercado, as pessoas estão vivendo uma experiência neurótica, sem dúvida — disse Miller. Fez um gesto para as vigas pintadas de vermelho, emoldurando os segmentos de vidraças... torcidas, estilhaçadas e fora do alinhamento. — Suas mentes provavelmente estão como essas vigas. A minha está também, droga. Passei metade desta noite pensando que talvez tivesse ficado biruta, que provavelmente vestia uma camisa de força, em Danvers, a cabeça povoada de besouros, aves dinossauros e tentáculos, mas que tudo acabaria, assim que o atencioso enfermeiro aparecesse, para injetar-me uma dose de Thorazine no braço. — Seu rosto miúdo estava tenso e pálido. Ele olhou para a Sra. Carmody e depois tornou a encarar-me. — Eu lhe digo que isso poderia acontecer. À medida que as pessoas forem fraquejando, essa mulher cada vez parecerá melhor para algumas delas. E não quero estar por perto, quando isso acontecer.
Os lábios da Sra. Carmody continuavam a mover-se. A língua dançava em torno dos dentes desiguais da velha. Ela parecia uma bruxa. Com um chapéu pontudo na cabeça, ficaria perfeita. O que estaria dizendo aos seus dois pássaros capturados, vestidos de viva plumagem de verão?
Projeto Ponta de Flecha? Primavera Negra? Abominações das entranhas da terra? Sacrifício humano?
Cascata.
Dava tudo no mesmo...
— E então, o que me diz?
— A idéia é boa— respondi. — Tentaremos chegar até a farmácia. Eu, você, Ollie, caso ele queira ir, mais uma ou duas pessoas. Então, voltaremos a discutir o assunto.
Mesmo isso, dava-me a sensação de caminhar para fora sobre uma viga estreita, em direção a uma queda impossível. Matar-me, nenhum bem faria a Billy. Por outro lado, em nada o ajudaria ficando ali sentado. Seis metros até a drugstoe. Não era assim tão ruim.
— Quando? — perguntou ele.
— Dê-me uma hora.
— Certo — disse Miller
IX. A expedição à farmácia
Contei à Sra. Turman, contei a Amanda e depois contei a Billy. Ele parecia melhor esta manhã: havia comido dois biscoitos e uma tijela de Special K para desjejum. Em seguida, apostei corrida com ele, indo e vindo por dois dos corredores, chegando mesmo a fazê-lo rir um pouco. Crianças são tão adaptáveis, que às vezes chegam a assustar-nos.
Ele estava muito pálido, a carne por sob os olhos ainda aparecia inchada das lágrimas vertidas à noite e o rosto tinha uma horrível expressão de desgastado. De certa maneira, ficara parecendo o rosto de um velho, como se uma carga demasiada de grande voltagem emocional houvesse corrido sob ele, por um período exagerado. Contudo, continuava vivo e ainda capaz de rir... pelo menos, até recordar onde estava e o que acontecera.
Depois dos exercícios de aquecimento, sentamo-nos com Amanda e Hattis Turman. Bebemos Gatorade em xícaras de papel e contei a ele que ia até a drugstore, com mais algumas pessoas.
— Não quero que você vá — disse Billy imediatamente, com o rosto ensombrecendo.
— Vai dar tudo certo, Grande Bill. Eu lhe trarei uma revistinha do "Homem Aranha".
— Eu quero que você fique aqui.
Seu rosto agora não estava apenas sombrio, mas carregado. Tomei-lhe a mão. Ele a puxou. Tornei a pegá-la.
— Ouça, Billy. Temos que sair daqui, mais cedo ou mais tarde. Você entende isso, não entende?
— Quando o nevoeiro for embora...
Ele falou sem a menor convicção. Bebeu seu Gatorade, mas não pareceu aliviado.
— Até agora, ficamos quase um dia inteiro aqui, Billy.
— Eu quero mamãe!
— Bem, talvez este seja o primeiro passo, a fim de você voltar para ela.
— Não encha o garoto de esperanças, David — disse a Sra. Turman.
— Ora, que diabo! — bufei para ela. — O menino precisa ter esperanças em alguma coisa!
Ela baixou os olhos.
— Sim. Acho que precisa.
Billy pareceu não perceber a troca de palavras.
— Papai... Papai, lá fora há coisas. Coisas.
— Nós sabemos disso, Billy, mas muitas delas — não todas, mas muitas parecem chegar só quando é noite.
— Elas estão esperando — disse ele. Seus olhos estavam dilatados, fixos nos meus. — Ficam esperando no novoeiro... e quando a gente não pode voltar para cá, elas comem a gente. Como nas histórias de fadas. — Ele se apertou contra mim, com uma força selvagem, cheia de pânico. — Por favor, papai, não vá!
Afastei-lhe os braços, o mais delicadamente que pude e lhe disse que tinha de ir.
— Eu vou, mas voltarei, Billy.
— Está bem — disse foscamente, mas não tornou a olhar para mim.
Billy não acreditava que eu voltaria. Estava escrito em seu rosto, agora não mais carregado, porém infeliz e pesaroso. Perguntei-me outra vez se estaria fazendo a coisa certa, ao colocar-me em risco. Então, aconteceu-me olhar para o fim do corredor central e vi a Sra. Carmody. Ela conquistara um terceiro ouvinte, um homem de barba grisalha despontando no rosto, de olhos inquietos e injetados de sangue. Seu rosto desfigurado e as mãos trêmulas, quase gritavam a palavra ressaca. Era nada mais, nada menos, do que o nosso amigo Myron La Fleur. O sujeito que não sentira o menor remorso ao enviar um rapazola para fazer o serviço de um homem.
Aquela cadela louca. Aquela feiticeira.
Beijei Billy e o abracei com força. Depois caminhei para a parte frontal do supermercado — mas não pelo corredor dos utensílios domésticos. Não queria passar sob os olhos dela.
Havia feito três quartos do trajeto, quando Amanda emparelhou comigo.
— Tem mesmo que fazer isto? — perguntou ela.
— Sim, acho que tenho.
— Perdoe-me se lhe digo isto, mas o que está pretendendo me parece pura tolice machista.
Havia manchas ruborizadas no alto de suas faces e seus olhos estavam mais verdes do que nunca. Ela estava altamente — não, regiamente — irritada.
Peguei-lhe o braço e repeti minha discussão com Dan Miller. O enigma dos carros e o fato de ninguém da farmácia se ter juntado a nós, não a impressionaram muito. Foi a história sobre a Sra. Carmody que a convenceu.
— Ele talvez estivesse certo — falou.
— Acredita realmente nisso?
— Não sei... Aquela mulher irradia uma sensação de veneno. E se pessoas estiverem apavoradas pelo tempo suficiente, apegar-se-ão a quem quer que lhes prometa uma solução.
— Certo, mas... sacrifício humano, Amanda?
— Os astecas faziam isso — declarou ela calmamente. — Ouça, David. Você tem que voltar. Se alguma coisa acontecer... qualquer coisa... volte para cá. Dê meia volta e venha correndo. Não para mim — o que aconteceu esta noite foi bonito, mas isso foi à noite passada. Volte para seu garoto.
— Sim, eu voltarei.
— É o que espero — disse ela, e agora tinha a aparência de Billy, infeliz e envelhecida.
Ocorreu-me que a maioria de nós devia ter tal aparência. Menos a Sra. Carmody. Ela parecia de algum modo mais jovem e mais vital. E se conseguisse levar a melhor...
Aliás, era como se já conseguira. Como se... estivesse alimentando-se daquilo.
Só às 9:30 da manhã é que nos pusemos a caminho. Éramos sete: Ollie, Dan Miller, Mike Hatlen, o anterior amigo de Myron LaFleur, Jim (também de ressaca, mas parecendo determinado a encontrar algum meio de expiar sua falta), Buddy Eagleton e eu. O sétimo membro era Hilda Reppler. Miller e Hatlen fizeram o possível para que ela desistisse de ir. Nada tinha a ver com aquilo. Eu nem ao menos tentei. Desconfiava que Hilda Reppler podia ser mais competente do que qualquer de nós, talvez com exceção de Ollie. Ela carregava uma pequena sacola de lona para compras, lotada com um arsenal de Raid e Black Flag, em latas de spray, todas já sem as tampas e prontas para entrar em ação. Na mão livre, empunhava uma raquete de tênis, retirada de uma mostra de artigos esportivos, no Corredor 2.
— O que vai fazer com isso, Sra. Reppler? — perguntou Jim.
— Não sei — respondeu ela. Tinha uma voz grave, de som irritante e cheia de decisão — mas parece adequada em minha mão. — Encarou-o mais de perto e seu olhar era frio. — Jim Grondin, não é? Por acaso, não foi aluno meu?
Os lábios de Jim estiraram-se em um sorriso desajeitado, como se estivesse chupando um ovo.
— Sim, senhora. Eu e minha irmã Pauline.
— Bebeu muito esta noite?
Muito mais alto do que ela e provavelmente pesando uns cinqüenta quilos mais, Jim ficou vermelho até a raiz de seus cabelos cortados à Legião Americana.
— Há... hum... não...
Ela se virou bruscamente, interrompendo-o.
— Penso que estamos prontos — declarou.
Todos nós levávamos alguma coisa, embora qualquer um pudesse considerar aquilo um curioso sortimento de armas. Ollie tinha a arma de Amanda, Buddy Eagleton uma alavanca, apanhada em algum lugar nos fundos do supermercado, e eu um cabo de vassoura.
— Muito bem! — exclamou Miller, levantando a voz. — Ei, pessoal, vocês querem me ouvir por um minuto?
Umas doze pessoas tinham vagado até a porta SAÍDA, querendo ver o que acontecia.
Formavam um grupo disperso e, à sua direita, vimos a Sra. Carmody com seus novos amigos.
— Pretendemos ir até a drugstore, ver como anda a situação por lá. De passagem, queremos trazer algo da farmácia para ajudar a Sra. Clapham.
Era a senhora que tinha sido pisoteada na véspera, quando da chegada dos besouros.
Havia fraturado uma perna e sentia dores intensas. Miller passou os olhos por nós.
— Não queremos correr riscos — disse. — Ao primeiro sinal de algo ameaçador, viremos correndo de volta ao supermercado...
— E atraindo todos os demônios do inferno sobre as nossas cabeças! — gritou a Sra. Carmody.
— Ela tem razão! — secundou uma das veranistas. — Vocês farão com que eles nos percebam! Farão com que eles venham para cá! Por que têm de intrometer-se sem necessidade?
Houve um murmúrio de assentimento, por parte de alguns dos que se haviam reunido para ver nossa saída.
— Deseja mesmo que não nos intrometamos, senhora? — perguntei.
Ela baixou os olhos, confusa. A Sra. Carmody deu um passo à frente. Seus olhos chispavam.
— Você morrerá lá fora, David Drayton! Está querendo deixar seu filho órfão?
Erguendo o rosto, ela nos fustigou com os olhos. Buddy Eagleton olhou para baixo e, ao mesmo tempo, ergueu sua alavanca, como se quisesse atacá-la.
— Todos vocês morrerão lá fora! Não perceberam que chegou o fim do mundo? O Demo foi solto! A Estrela da Desgraça chameja, e cada um que pisar fora dessa porta, será feito em pedaços! Então, eles virão em busca dos que sobraram, justamente como disse esta boa mulher! E vocês vão deixar que isso aconteça? Ela agora apelava para os espectadores, e um leve murmúrio correu entre eles. Depois do que aconteceu ontem aos incrédulos? Isto é a morte! É a morte! É a...
Uma lata de ervilhas voou subitamente através dos corredores das caixas registradoras e atingiu a Sra. Carmody no seio direito. Ela cambaleou para trás, com um guincho assustado. Amanda adiantou-se.
— Cale a boca! — disse. — Cale a boca, sua coruja miserável!
— Ela está a serviço do Abominável! — bradou a Sra. Carmody. Um sorriso torto bailou em seu rosto. — Com quem dormiu esta noite, senhora? Com quem se deitou esta noite?
A Mãe Carmody enxerga, oh, sim, ela enxerga o que os outros não vêem!
Não obstante, o momento de fascínio que ela criara se tinha quebrado, e os olhos de Amanda permaneceram firmes.
— Vamos andando ou querem ficar aqui o dia inteiro? — perguntou a Sra. Reppler.
E nós fomos. Que Deus nos ajude, mas fomos.
Dan Miller seguia à frente. Ollie era o segundo e eu encerrava a fila, com a Sra. Reppler à minha frente. Acho que nunca senti tanto medo na vida, e a mão firmemente apertada em torno de meu cabo de vassoura estava escorregadia de suor.
Senti aquele cheiro acre e difuso do nevoeiro, um odor antinatural. Quando chegou a minha vez de passar pela porta, Miller e Ollie já se tinham dissolvido no fog, e Hatlen, que era o terceiro, mal podia ser vislumbrado.
Apenas seis metros, repetia para mim mesmo. Apenas seis metros.
A Sra. Reppler caminhava devagar e firmemente diante de mim, com sua raquete de tênis oscilando de leve na mão direita. À nossa esquerda, havia uma parede vermelha de blocos de concreto. À direita, a primeira fila de carros, esboçando-se no nevoeiro como navios fantasmas. Outro depósito de lixo materializou-se naquela brancura e, mais além, ficava um banco onde, às vezes, as pessoas costumavam esperar pela vez de falar em um telefone público. Apenas seis metros, provavelmente Miller já até chegou lá e seis metros são apenas dez ou doze passos, de modo que...
— Oh, meu Deus! — gritou Miller. — Oh, meu Deus do céu, vejam só isto!
Miller havia chegado lá, claro.
Buddy Eagleton estava à frente da Sra. Reppler e se virou para correr, com olhos esbugalhados e brilhantes. Ela lhe deu uma leve estocada no peito com sua raquete de tênis.
— Aonde você pensa que vai? — perguntou, em sua voz rouca e ligeiramente irritante.
Esse foi todo o pânico que houve. Os restantes de nós se juntaram em torno de Miller.
Dei uma espiada sobre o ombro e vi o Federal sendo engolido pelo nevoeiro.
A parede vermelha de concreto desbotara para um leve tom rosado, depois desapareceu por completo, provavelmente a quatro metros e pouco da Farmácia Bridgton, ao lado da porta SAÍDA. Senti-me mais isolado, mais simplesmente só, do que jamais na vida. Era como se houvesse perdido o útero materno.
A farmácia havia sido palco de uma carnificina.
Eu e Miller, naturalmente, estávamos bem perto daquele cenário — praticamente em cima dele. Todas as coisas no nevoeiro operavam primeriamente pelo sentido do olfato. E não podia ser de outro modo. A visão teria sido quase sem a menor utilidade para elas. A audição funcionava algo melhor mas, como falei, o nevoeiro tinha um meio de confundira acústica, fazendo com que um som próximo parecesse distante e — por vezes — que o distante parecesse perto. As coisas no nevoeiro seguiam seu sentido mais acurado.
Seguiam os próprios narizes.
Nós, os do supermercado, tínhamos sido salvos mais pela falta de energia elétrica, do que por qualquer outra coisa. As portas operadas pelo olho elétrico não funcionavam.
Em certo sentido, o supermercado estivera hermeticamente selado, quando da chegada do nevoeiro. As portas da farmácia, no entanto... estavam escancaradas. O corte da energia acabara com o seu ar condicionado, de maneira que eles haviam aberto as portas, para que uma brisa penetrasse. Só que, algo mais também penetrara lá.
Um homem de camiseta castanha jazia de bruços na soleira. De início, pensei que a camiseta fosse castanha, mas então vi algumas partes brancas na parte inferior e compreendi que, uma vez, toda ela fora branca. O castanho era sangue seco. Havia outra coisa mais errada com ele, algo que fiquei remoendo mentalmente. Mesmo quando Buddy Eagleton se virou e vomitou ruidosamente, não percebi o que era. Creio que quando uma coisa como aquela... quando finalmente acontece a alguém, nossa mente a rejeita inicialmente... a menos que estejamos em uma guerra.
A cabeça dele se fora, era isso. As pernas estavam estiradas para dentro da farmácia e a cabeça deveria descambar para fora, pendendo sobre o degrau inferior. Só que não havia cabeça.
Jim Grondin já tivera o suficiente. Deu meia volta, com a mão tapando a boca, os olhos injetados postos loucamente nos meus. Depois, aos tropeções, tomou a direção do supermercado.
Os outros não deram por isso. Miller já havia entrado e Mike Hatlen o seguiu. A Sra. Reppler se postou ao lado das portas duplas, empunhando sua raquete de tênis. Ollie tomou posição no outro lado, com a arma de Amanda em punho, apontada para o piso.
— Acho que estou perdendo toda esperança, David — disse ele, em voz comedida.
Buddy Eagleton apoiava-se fracamente no balcão no telefone público, como alguém que acabou de receber más notícias de casa. Seus ombros largos sacudiam-se com a força de seus soluços.
— Não nos exclua por enquanto — falei para Ollie.
Cruzei a porta. Não queria entrar lá, mas havia prometido uma revista de histórias em quadrinhos a meu filho.
A Farmácia Bridgton era um pandemônio. Havia livros e revistas jogados por toda parte. Vi uma revista do Homem Aranha e outra do Incrível Hulk quase aos meus pés; sem pensar, apanhei-as e enfiei-as no bolso traseiro da calça para Billy. Vidros e caixas espalhavam-se pelos corredores. Uma mão pendia de uma prateleira.
Fui invadido por um senso total de irrealidade. Os destroços... a carnificina já eram ruim o suficiente. Contudo, o local também dava a impressão de ter sido o cenário de alguma festa de loucos. Ali havia pendentes e festões que, a princípio, tomei por guirlandas.
Contudo, não eram largos e chatos, porém mais semelhantes a barbantes muito grossos ou cabos muito finos. Ocorreu-me que eram quase do mesmo branco brilhante que o próprio nevoeiro, e então um calafrio gelado me subiu pela espinha. Aquilo não era papel crepom. O quê era aquilo que pendia no ar, oscilando em alguns daqueles fios.
Mike Hatlen cutucava uma estranha coisa negra com um pé. Era comprida e eriçada.
— Que merda é esta? — perguntou, a ninguém em particular.
De repente, eu soube. Soube o que havia matado todos os que não haviam tido sorte suficiente, por estarem na farmácia quando o nevoeiro chegou. Pessoas com azar bastante para serem farejadas. Fora...
— Para fora! — falei. Minha garganta estava completamente seca e as duas palavras saíram como uma bala coberta de fiapos. — Para fora daqui! Vamos!
Ollie olhou para mim.
— David...?
— São teias de aranha — falei.
Então, dois gritos brotaram do nevoeiro. O primeiro, talvez de medo. O segundo, de dor.
Era Jim. Se houvesse débitos a pagar, ele os estava saldando.
— Saiam! — gritei para Mike e Dan Miller.
Foi quando algo se desenrolou do nevoeiro. Era impossível distingui-lo contra o fundo branco, mas eu podia ouvi-lo. Soava como um chicote de couro, desenrolando-se sem muita pressa. Depois pude vê-lo, quando se enrolou em torno da coxa dos jeans de Buddy Eagleton.
Ele gritou e agarrou a primeira coisa ao alcance, que aconteceu ser o telefone. O receptor estirou-se em todo o comprimento do fio, depois ficou balançando de um lado para outro.
— Oh, Deus, isso DOI! — gritou Buddy.
Ollie agarrou-o e eu vi o que acontecia. No mesmo instante, compreendi por que o homem caído na soleira estava sem a cabeça. O fino cabo brando que se torcia em volta da perna de Buddy, como uma corda de seda, estava afundando em sua carne. A perna de seu jeans fora cortada perfeitamente e agora lhe escorregava perna abaixo. Uma nítida incisão circular em sua carne estava orlada de sangue, à medida que o cabo se aprofundava.
Ollie o puxou com força. Houve um vago som de estalido e Buddy ficou livre. Seus lábios haviam ficado azuis com o choque.
Mike e Dan vinham chegando, porém lentos demais. Então, Dan colidiu contra vários fios pendurados e ficou preso, exatamente como um besouro em um papel pega-moscas.
Libertou-se com um tremendo safanão, deixando um pedaço de sua camisa pendurado nas teias.
De repente, todo o ar se encheu com aqueles estalos langorosos de chicotadas, e os finos cabos brancos vagavam para baixo, em torno de todos nós. Eram cobertos com a mesma substância corrosiva. Esquivei-me a dois deles, mais por sorte, do que por outra coisa.
Um caiu aos meus pés e ouvi um fraco chiado do piso se queimando. Outro flutuou no ar e, calmamente, a Sra. Reppler esgrimiu sua raquete de tênis contra ele. O entrançado ficou preso. Ouvi um agudo tuing! tuing! tuing! quando o corrosivo devorou os fios da rede trançada, arrebentando-os. Soava como se alguém tangesse rapidamente as cordas de um violino. Um momento mais tarde, um fino cabo enrolou-se em torno do punho da raquete e ela foi atirada dentro do nevoeiro.
— Para trás! — gritou Ollie.
Começamos a mover-nos. Ollie tinha um braço em torno de Buddy. Dan Miller e Mike Hatlen ladeavam a Sra. Reppler. Os fios brancos de teia continuavam a esvoaçar do nevoeiro, praticamente invisíveis, só sendo distinguidos contra o fundo vermelho de concreto.
Um deles enrolou-se em torno do braço esquerdo de Mike Hatlen. Outro saltou em volta de seu pescoço, com uma série de rápidos estalidos no ar. Sua jugular se abriu, em brusca e esguichada explosão, e ele foi arrastado, com a cabeça pendurada. Um de seus tênis lhe saiu do pé e caiu de lado.
Buddy escorregou repentinamente para diante, quase derrubando Ollie de joelhos.
— Ele desmaiou, David! Ajude-me!
Agarrei Buddy pela cintura e o puxamos, os dois juntos, de maneira desajeitada, aos tropeções. Mesmo inconsciente, Buddy ainda se mantinha aferrado à sua alavanca. A perna que o fio de teia de aranha envolvera, pendia de seu corpo em um ângulo esquisito. A Sra. Reppler se virara.
— Cuidado! — gritou, em sua voz enferrujada. — Atrás de vocês! Cuidado!
Quando comecei a me virar, um daqueles fios flutuou acima da cabeça de Dan Miller, depois a alcançou. Ele usou as mãos para agarrá-lo e arrancá-lo.
Uma das aranhas saíra do nevoeiro, às nossas costas. Era do tamanho de um cão de grande porte, negra, com filetes amarelos. Uniforme de jóquei, pensei doidamente. Seus olhos eram vermelhos-púrpura, como romãs. Ela trotou diligentemente em nossa direção, sobre o que seriam doze ou quatorze pernas de inúmeras articulações — não era uma vulgar aranha terráquea, amplificada para o tamanho visto em filmes de terror; era algo inteiramente diverso, talvez nem fosse mesmo uma aranha. Se a visse, Mike Hatlen teria compreendido o que era a coisa negra e eriçada que estivera cutucando na farmácia.
Ela se aproximou de nós, fiando sua teia de um orifício ovalado na parte superior do corpo. Os fios flutuaram em nossa direção, em formato quase de leque. Olhando para aquele pesadelo, tão semelhante às fatais aranhas negras que ruminavam sobre suas moscas e insetos mortos, nas sombras de nossa casa de barcos, senti minha mente tentando soltar-se completamente de seus ancoradouros. Agora, acredito que somente o pensamento em Billy me permitia manter qualquer semelhança de lucidez. Eu emitia sons. Ria. Chorava. Gritava. Eu não sei.
Ollie Weekes, no entanto, era como uma rocha. Ergueu a arma de Amanda, tão calmamente como se estivesse em uma cabine de tiro ao alvo, esvaziando-a em tiros espaçados contra a criatura, à queima-roupa. Seja qual for o inferno de onde ela viera, não era invulnerável. Uma seiva negra esguichou de seu corpo e ela soltou um terrível som miado, tão baixo, que era mais sentido do que ouvido, como uma nota grave de um sintetizador. Depois, deslizou de volta ao nevoeiro e desapareceu. Poderia ter sido um fantasma, de um terrível sonho drogado... exceto pelas poças de pegajosa matéria negra que deixara para trás.
Houve um som metálico, quando Buddy finalmente deixou sua alavanca de aço cair ao solo.
— Ele está morto — disse Ollie. — Largue-o, David. A maldita coisa acertou-lhe a artéria femural e ele morreu. Vamos dar o fora daqui, já!
Seu rosto era novamente uma máscara de suor escorrendo e os olhos salientavam-se no enorme rosto redondo. Um dos fios de teia flutuou e caiu sem dificuldade nas costas de sua mão. Ollie girou o braço, partindo-o. O fio deixou um risco sanguinolento em sua pele.
— Cuidado! — tornou a gritar a Sra. Reppler.
Nós nos viramos para ela. Outro daqueles bichos saíra do nevoeiro e envolvera as pernas em torno de Dan Miller, em um louco abraço de amante. Miller lutava com ele a socos. Quando me abaixei e apanhei a alavanca de Buddy, a aranha começara a envolver Dan Miller em sua teia mortal. Os esforços dele se tornaram hercúleos, uma saltitante dança mortal.
A Sra. Reppler caminhou para a aranha, com uma lata de repelente de insetos Black Flag na mão espichada. A aranha estendeu as pernas para ela. A Sra. Reppler apertou o botão e uma nuvem do produto esguichou em um de seus olhos cintilantes, semelhante a uma pedra preciosa. Aquele miado em nota grave soou novamente. A aranha pareceu estremecer de alto a baixo e começou a recuar, suas patas peludas arranhando o pavimento. Arrastou o corpo de Dan atrás de si, aos trambolhões. A Sra. Reppler jogou a lata de repelente contra ela. A lata bateu no corpo da aranha, ricocheteou e caiu ao solo. O bicharoco tropeçou no lado de um pequeno carro esporte, com força suficiente para fazê-lo oscilar sobre suas molas, em seguida desaparecendo.
Cheguei até a Sra. Reppler, que mal se mantinha sobre os pés, mortalmente pálida.
Passei o braço em torno dela.
— Obrigada, meu rapaz — disse. — Sinto-me um pouco fraca.
— Está tudo bem — falei em voz rouca.
— Eu o salvaria, se pudesse.
— Eu sei disso.
Ollie se juntou a nós. Corremos para as portas do supermercado, em meio àqueles fios que caíam à nossa volta. Um deles encontrou a bolsa de compras da Sra. Reppler e afundou na lateral de lona. Ela se aferrou carrancudamente ao que lhe pertencia, puxando pela alça com as duas mãos, mas não teve êxito. A bolsa escapou-lhe dos dedos e foi arrastada para o nevoeiro, aos trancos e barrancos, lá desaparecendo.
Quando alcançamos a porta ENTRADA, uma aranha menor, mais ou menos do tamanho de um filhote de cocker spaniel, escapou do meio do nevoeiro, ao longo do lado do prédio. Não produzia teia nenhuma; talvez ainda não fosse madura o suficiente para isso.
Enquanto Ollie inclinava um ombro musculoso contra a porta, para que a Sra. Reppler pudesse entrar, atirei a barra de aço contra a coisa, à maneira de um dardo, empalando-a.
Ela se contorceu desvairadamente, as pernas agitando-se no ar, os olhos vermelhos encontrando os meus, como se me marcassem...
— David! — gritou Ollie, ainda mantendo a porta entreaberta.
Corri para lá e entrei. Ele me seguiu.
Rostos pálidos e amedrontados olharam para nós. Éramos sete na ida. Três apenas voltavam. Ollie recostou-se contra a pesada porta de vidro, o tórax imenso arfando.
Começou a recarregar a arma de Amanda. Sua camisa branca de assistente do gerente se colara ao corpo e grandes manchas acinzentadas de suor espalhavam-se debaixo de seus braços.
— E então? — perguntou alguém, em voz grave e rouca.
— Aranhas — respondeu a Sra. Reppler, carrancuda. — As bastardas nojentas levaram minha sacola de compras.
Então, Billy correu para meus braços, chorando. Levantei-o no colo e o abracei.
Apertadamente.
X. O fascínio da Sra. Carmody. A segunda noite no supermercado. O confronto final.
Era o meu turno de dormir e, durante quatro horas, não me lembrei de absolutamente nada. Amanda me contou que falei bastante, tendo gritado uma ou duas vezes, mas não me recordo de haver sonhado. Quando acordei, era de tarde. Senti uma sede terrível.
Uma parte do leite se estragara, mas ainda havia algum em bom estado. Bebi um litro e pouco.
Amanda aproximou-se de onde eu me encontrava com Billy e a Sra. Turman. O velho que se oferecera para ir apanhar uma arma no porta-mala de seu carro, vinha com ela — Cornell, recordei. Ambrose Cornell.
— Como está, filho? — perguntou ele.
— Tudo bem. — Não obstante, eu continuava sedento e minha cabeça doída. Deslizei um braço em torno de Billy e depois olhei de Cornell para Amanda. — O que há?
— O Sr. Cornell está preocupado com aquela Sra. Carmody — disse Amanda. — E eu também.
— Por que não vem dar uma volta comigo, Billy? — convidou Hattie.
— Não quero ir — respondeu ele.
— Vá, Grande Bill — falei, e ele se foi, relutante. — E agora, o que há sobre a Sra. Carmody?
— Ela está atiçando os ânimos — disse Cornell. Encarou-me com a taciturnidade de um velho. — Acho que precisamos botar um ponto final nisso. Da maneira como pudermos!
— Agora há quase uma dúzia de pessoas com ela — comentou Amanda. Parece algum louco serviço religioso.
Recordei minha conversa com um amigo escritor que morava em Otisfield, o qual sustentava esposa e dois filhos criando galinhas e escrevendo um livro de bolso original por ano — histórias de espionagem. Havíamos comentado o crescimento da popularidade de livros envolvendo o sobrenatural. Gault havia dito que, nos anos 40, Histórias Fantásticas rendera uma bagatela e, nos anos 50, afundara de vez. Quando as máquinas falham, dissera ele (enquanto sua esposa examina ovos contra a luz e galos cantavam lamuriosamente no exterior), quando a tecnologia falha, quando os sistemas religiosos convencionais falham, as pessoas precisam contar com algo. Até mesmo um zumbi cambaleando através da noite, pode aparecer como francamente agradável, comparado à comédia/horror existencial da camada de ozônio dissolvendo-se sob o assalto combinado de um milhão de latas de desodorantes, com spray fluorocarbonado.
Há vinte e seis horas estávamos acuados ali e ainda não tínhamos conseguido fazer nada que valesse a pena. Nossa única expedição ao exterior resultara em cinqüenta e sete por cento de baixas. Portanto, não era de admirar que a Sra. Carmody talvez estivesse aumentando seu rebanho.
— Ela realmente conseguiu doze pessoas? — perguntei.
— Bem, foram apenas oito — disse Cornell — mas a verdade é que ela nunca se cala! Parece estar imitando aqueles discursos de dez horas, que Castro costumava fazer. É uma maldita flibusteira!
Oito pessoas. Não muitas, nem mesmo um número suficiente para preencher uma banca de jurados. Contudo, eu compreendia a preocupação que eles mostravam no rosto.
Bastava tornar aquela gente a única e maior força política no supermercado, em especial agora que Dan e Mike não estavam mais ali. A idéia de que o maior e único grupo em nosso fechado sistema estava ouvindo sua arenga sobre os abismos do inferno e os sete frascos sendo abertos, produzia em mim uma terrível sensação de claustrofobia.
— Ela começou a falar sobre sacrifício humano outra vez — disse Amanda. — Bud Brown foi até lá e lhe disse para cessar com aquelas sandices em seu supermercado. E dois homens que estão com ela — um deles era aquele Myron LaFleus — responderam que quem devia se calar era ele, porque este ainda era um país livre. Brown não se calou, de modo que houve, um... bem, acho que você qualificaria de duelo pugilístico.
— Brown ficou com o nariz correndo sangue — disse Cornell. — Os dois falavam sério.
— Imagino que não a ponto de realmente matarem alguém — falei.
— Não sei até onde irão — disse Cornell suavemente — se este nevoeiro não subir. De qualquer modo, prefiro não saber. Pretendo dar o fora daqui.
— É mais fácil dizer do que fazer.
Contudo, algo começara a brotar em minha mente. Cheiro. Ali estava a chave. Havíamos ficado inteiramente a sós no supermercado. Os besouros poderiam ter sido atraídos pela luz, como acontecia aos besouros mais comuns. As aves tinham simplesmente seguido seu suprimento alimentar. No entanto, as coisas de maior porte nos tinham deixado em paz, a menos que nos mostrássemos a elas de algum modo. A carnificina na Farmácia Bridgton só ocorrera porque as portas haviam ficado escancaradas — eu tinha certeza disso. A coisa ou coisas que tinham agarrado Norton e seu grupo, soavam tão grandes como uma casa, porém ela ou elas não haviam se aproximado do supermercado. E isso significa que, talvez...
De repente, senti vontade de falar com Ollie Weeks. Precisava falar com ele.
— Pretendo sair daqui ou morrer na tentativa — disse Cornell. — Não projetei passar o resto do verão dentro deste supermercado.
— Já houve quatro suicídios — disse Amanda subitamente.
— Como?
A primeira coisa a me cruzar a mente, em um relance de quase culpa, foi que os corpos dos soldados tinham sido descobertos.
— Pílulas — disse Cornell, lacônico. — Eu e mais dois ou três sujeitos carregamos os corpos para os fundos do prédio.
Tive que sufocar um riso agudo. Estávamos ficando com um regular necrotério nos fundos do supermercado.
— O pessoal está diminuindo — disse Cornell. — Quero ir embora.
— Não conseguiria chegar a seu carro. Acredite em mim.
— Nem mesmo àquela primeira fila? Fica mais próxima do que a drugstore.
Não lhe dei resposta. Ainda não.
Cerca de uma hora mais tarde, encontrei Ollie saqueando a geladeira e bebendo uma Busch. Seu rosto era impassível, mas ele parecia vigiar a Sra. Carmody. Aparentemente, ela era incansável e estava mesmo discutindo novamente a possibilidade do sacrifício humano, só que, agora, ninguém mais lhe dizia para calar-se. Algumas das pessoas que, na véspera, a tinham mandado calar a boca, se agora não estavam do seu lado, pelo menos queriam ouvi-la — superando as restantes em número.
— É bem capaz dessa mulher ainda estar repisando o assunto amanhã de manhã — comentou Ollie. — Talvez não... mas se estiver, quem você acha que ela escolheria?
— Ouça, Ollie — falei. — Creio que talvez meia dúzia de nós consiga escapar daqui. Não sei até que distância chegaremos, mas acho que, pelo menos, poderíamos sair.
— De que maneira?
Expus-lhe minha idéia. Era bastante simples. Se disparássemos até o meu Scout e entrássemos nele, as coisas não captariam nenhum cheiro humano. Pelo menos, se permanecêssemos com os vidros das janelas fechados.
— E se os bicharocos forem atraídos por outro cheiro? — perguntou Ollie. O da fumaça da descarga, por exemplo.
— Nesse caso, estaremos fritos — concordei.
— O movimento — acrescentou Ollie. — Um carro se movendo através do nevoeiro também poderia atraí-los, David.
— Não acredito. Não haveria o cheiro de uma presa. Aliás, acho que este é o único jeito de sairmos daqui.
— Você não tem certeza.
— Claro que não.
— E para onde iria?
— Primeiro? Até em casa, apanhar minha esposa.
— David...
— Está bem. Verificar. Ter certeza.
— As coisas lá fora talvez estejam em toda parte. David. Podem capturá-lo, no minuto em que sair de seu Scout para a porta de sua casa.
— Se isso acontecer, o Scout é de vocês. Seu. Só lhe peço que cuide de Billy, o melhor que puder e enquanto puder.
Ollie terminou a sua Busch e deixou a lata cair de volta na geladeira, onde ela chocalhou entre as vazias. A coronha do revólver do marido de Amanda assomava em seu bolso.
— Para o sul? — perguntou ele, encontrando meus olhos.
— Sim, eu iria para o sul. Vá para o sul e tente sair do nevoeiro. Tente o mais que puder.
— De quanta gasolina dispõe?
— Um tanque quase cheio.
— Já pensou que seria impossível sair?
Eu havia pensado. Supondo-se que o trabalho desenvolvido pelo Projeto Ponta de Flecha houvesse colocado toda aquela região em outra dimensão, tão facilmente quando virar-se uma meia pelo avesso...
— Isso já me passou pela cabeça — respondi — mas a alternativa parece ser ficarmos aqui, esperando, para ver quem a Sra. Carmody escolhe para o posto de honra.
— Esteve pensando nisso para hoje?
— Não. Já é tarde e aquelas coisas ficam ativas à noite. Imagino que amanhã cedo seja uma boa hora.
— Quem gostaria de levar?
— Eu, você e Billy. Hattie Turman. Amanda Dumfries. Aquele velhote Cornell e a Sra. Reppler. Talvez Bud Brown também. São oito pessoas, mas Billy pode sentar-se no colo de alguém e nos apertarmos no carro.
Ele refletiu na idéia.
— Está bem — disse por fim. — Vamos tentar. Já falou nisso a alguém mais?
— Não. Ainda não.
— Meu conselho seria para não falar, pelo menos, até manhã de manhã. Colocarei umas duas sacolas de mantimentos por baixo da registradora, no corredor mais perto da porta. Se tivermos sorte, conseguiremos dar o fora, antes que alguém perceba o que está havendo. — Seus olhos vagaram novamente até a Sra. Carmody. — Se ela souber, talvez tente impedir que saiamos.
— Você acha?
Ollie pegou outra cerveja.
— Acho — respondeu.
Naquela noite — a tarde de ontem — o tempo escoou-se em uma espécie de câmara lenta.
A escuridão esgueirou-se para o interior do supermercado, transformando o nevoeiro novamente naquela fosca tonalidade cromo. Qualquer mundo que restasse lá fora, dissolveu-se lentamente para negro, por volta de vinte e trinta.
Os besouros rosados voltaram, depois as coisas-aves, arremetendo contra as vidraças e chocando-se nelas. Alguma coisa rugia ocasionalmente na escuridão e, uma vez, pouco antes da meia-noite, houve um prolongado e rascante Aaaaarimrnm! que fez todos se voltarem amedrontados para o negrume exterior, como faces inquisitivas. Era o tipo de som que se imaginaria proveniente de um gigantesco crocodilo em um pântano.
Tudo aconteceu justamente como Miller previra. Pela madrugada, a Sra. Carmody aliciara outra meia dúzia de almas. O açougueiro, Sr. McVey estava entre elas, de pé, com os, braços cruzados, olhando para a velha.
A Sra. Carmody estava com a corda toda. Parecia insensível ao sono. Seu sermão, uma firme corrente de horrores à maneira de Doré, Bosch e Jonathan Edwards, fluía e fluía, crescendo para algum clímax. Seu grupo começou a murmurar com ela, a oscilar inconscientemente de um lado para outro, como verdadeiros crentes em uma tenda de despertar ao fervor religioso. Os olhos deles estavam vagos e brilhantes, dominados pelo fascínio daquela criatura.
Mais ou menos às três da madrugada (o sermão prosseguia incessantemente e os não interessados haviam recuado para os fundos do supermercado, procurando dormir um pouco), vi Ollie colocar uma sacola de mantimentos em uma prateleira, debaixo do corredor de registradoras mais próximo da porta SAÍDA. Meia hora mais tarde, ele colocou outra sacola ao lado da primeira. Ninguém pareceu perceber, exceto eu. Billy, Amanda e a Sra. Turman dormiam juntos, perto da vazia seção de frios sortidos. Juntei-me a eles e mergulhei em um cochilo inquieto.
Às quatro e quinze, pelo meu relógio, Ollie veio acordar-me. Cornell estava com ele, os olhos brilhando muito, atrás dos óculos.
— Está na hora, Davi — avisou Ollie.
Uma cãibra nervosa envolveu meu estômago, depois passou. Acordei Amanda. Por minha mente passou a questão do que poderia acontecer, com Amanda e Stephanie juntas no carro, mas foi algo passageiro. Hoje, seria melhor aceitar as coisas como nos vinham. Aqueles notáveis olhos verdes se abriram e fitaram os meus.
— David?
— Vamos arriscar-nos a sair daqui. Quer vir também?
— De que está falando?
Comecei a explicar, mas então acordei a Sra. Turman para falar tudo apenas uma vez, rapidamente.
— Sua teoria sobre o cheiro — disse Amanda. — A esta altura, é apenas uma dedução erudita, não?
— Exatamente.
— Não faz diferença para mim — declatou Hattie.
Seu rosto estava pálido e, a despeito do sono que dormira, havia grandes manchas descoloridas sob os olhos.
— Eu faria qualquer coisa — continuou ela — assumiria quaisquer riscos, só para ver o sol outra vez.
Só para ver o sol outra vez. Fui percorrido por ligeiro calafrio. Ela colocara o dedo em um ponto muito perto do centro de meus próprios medos, sobre o senso de quase antecipada ruína que me invadira, desde que tinha visto Norm ser arrastado através da porta de descarga de mercadorias. Era possível vislumbrar-se o sol através do nevoeiro, como uma pequena moeda de prata. Parecia Vênus.
Não era tanto pelas criaturas monstruosas que cambaleavam no nevoeiro; minha defesa com a alavanca revelara que elas não eram nenhum horror Lovecraftiano com vida imortal, mas sempre seres orgânicos, com suas próprias vulnerabilidades. Tratava-se do nevoeiro em si, que sabotava a força e roubava a vontade. Só para ver o sol outra vez.
Ela estava certa. Apenas isso, merecia que se atravessasse não um, mas vários infernos.
Sorri para Hattie e ela tentou devolver-me o sorriso.
— Muito bem — disse Amanda — eu quero ir.
Comecei a despertar Billy, o mais delicadamente que pude.
— Estou com você — declarou brevemente a Sra. Reppler.
Estávamos todos juntos, perto do balcão de carnes, exceto pela ausência de Bud Brown.
Ele nos agradecera o convite e o declinara. Não deixaria seu posto no supermercado, alegou, mas acrescentando, em um tom de voz incrivelmente gentil, que não censurava Ollie por querer ir.
Um aroma desagradável e adocicado começava agora a irradiar-se do recipiente de esmalte branco, um cheiro que me fez recordar a época em que nosso freezer ficou avariado, quando passávamos uma semana no Cape. Achei que talvez o cheiro de carne estragando-se é que atraíra o Sr. McVey para o time da Sra. Carmody.
— ... expiação! E sobre a expiação que vamos pensar agora! Fomos flagelados com chicotes e escorpiões! Temos sido punidos por penetrar-mos em segredos proibidos pelos mestres dos velhos tempos! Vimos os lábios da terra se abrirem! Vimos tais obscenidades de pesadelo! A rocha não os esconderá, a árvore morta não lhes dará abrigo! E como isto terminará? Como será detido?
— Expiação! — gritou o bom e velho Myron LaFleur.
— Expiação... expiação... — sussuraram eles, indecisos.
— Quero ouvir vocês dizerem isso com toda a sinceridade! — bradou a Sra. Carmody.
As veias sobressaiam em seu pescoço, como cordões salientes. Sua voz agora era rouca e cacarejante, mas ainda cheia de vigor. Ocorreu-me que o nevoeiro é que lhe transmitira esse vigor — o poder para anuviar as mentes das pessoas, para fazer um jogo de palavras particularmente adequado — assim como tinha tomado do restante de nós o poder do sol. Antes, ela não passava de uma velha mais ou menos excêntrica, com uma loja de antiguidades em uma cidade cheia de lojas de antiguidades. Nada mais que uma velha, com alguns animais empalhados no aposento dos fundos e uma reputação de (aquela feiticeira... aquela cadela!) entendida em medicina popular. Dizia-se que ela podia encontrar água com uma forquilha de macieira, que fazia verrugas caírem e vendia um creme capaz de transformar sardas em sombras do que tinham sido. Eu inclusive ouvira — seria do velho Bill Giosti? — que a Sra. Carmody podia ser procurada (mantendo o máximo sigilo) para conselhos sobre a vida amorosa de uma pessoa; que quando alguém estava tendo dificuldades no quarto de dormir, podia conseguir com ela uma beberagem e tudo voltava a funcionar a contento.
— EXPIAÇÃO! — gritaram todos, um uníssono.
— Expiação, eis a palavra! — gritou ela, delirantemente. — É a expiação que fará esse neivoeiro desaparecer! A expiação que afastará esses monstros e abominações! A expiação fará com que as escamas do nevoeiro caiam de nossos olhos, permitindo que enxerguemos! — Sua voz baixou um grau. — E o que é a expiação, segundo a Bíblia? Qual é o cínico purificador do pecado, diante dos Olhos e da Mente de Deus?
— O sangue!
Desta vez, o calafrio sacudiu-me o corpo inteiro, aninhando-se na nuca e me eriçando os cabelos. O Sr. McVey é que dissera aquilo, o Sr. McVey, o açougueiro que estivera cortando carne em Bridgton, desde que eu era uma criança, segurando a mão talentosa de meu pai. O Sr. McVey, recebendo pedidos e cortando carnes, em suas roupas brancas, manchadas de sangue. O Sr. McVey, cuja intimidade com a faca era longa — sim, e também com a serra e o cutelo. O Sr. McVey que, melhor do que ninguém, compreenderia que a limpeza da alma flui dos ferimentos do corpo.
— Sangue... — sussurraram eles.
— Estou com medo, papai — disse Billy.
Estava segurando minha mão apertadamente, tinha o rostinho tenso e pálido.
— Ollie — falei — por que não damos o fora desta arca de doidos?
— Certo — disse ele. — Vamos.
Começamos a descer pelo segundo corredor, em um grupo disperso — Ollie, Amanda, Cornell, a Sra. Turman, a Sra. Reppler, Billy e eu. Faltavam quinze minutos para as cinco da manhã e o nevoeiro começava a clarear novamente.
— Você e Cornell, peguem as sacas de mantimentos — disse Ollie.
— Está bem — respondi.
— Eu irei na frente. Seu Scout é um quatro portas, não?
— Isso mesmo.
— Okai, vou abrir a porta do motorista e a traseira do mesmo lado. Pode carregar Billy, Sra. Dumfries?
Ela o pegou no colo.
— Sou muito pesado? — perguntou Billy.
— Não, meu bem.
— Que bom!
— A senhora e Billy vão no banco dianteiro — prosseguir Ollie. — Abra caminho. A Sra. Turman também no dianteiro, no meio. David, você fica atrás do volante. E nós, os restantes...
— Aonde vocês pensam que vão?
Era a Sra. Carmody.
Estava parada à cabeceira do corredor da caixa registradora onde Ollie havia escondido as sacolas de mantimentos. Seu terninho era um berro amarelo na penumbra. Os cabelos frisados espalhavam-se desalinhadamente em todas as direções, por um momento fazendo-me recordar Elsa Lanchester, em A Noiva de Frankenstein. Seus olhos chamejavam. Dez ou quinze pessoas, postadas atrás dela, bloqueavam as portas ENTRADA e SAÍDA. Todas tinham a aparência de quem esteve em um acidente de carro, viu um disco-voador pousar ou uma árvore arrancar as raízes do solo e sair andando.
Billy encolheu-se contra Amanda, enterrando o rosto em seu pescoço.
— Vamos sair, Sra. Carmody — disse Ollie, em voz curiosamente gentil. Afaste-se, por favor.
— Vocês não podem sair! Se saírem, é morte certa! Já devia saber disso, não?
— Ninguém se meteu com a senhora — respondi. — Queremos apenas o mesmo privilégio.
Abaixando-se, ela descobriu os mantimentos, sem a menor vacilação. Devia saber o que planejávamos, o tempo todo. Puxou as sacolas da prateleira em que Ollie as colocara.
Uma se rasgou, espalhando latas pelo solo. A Sra. Carmody atirou a outra ao chão e ela se escancarou, com o som de vidro se quebrando. Havia soda esguichando para todos os lados e sobre as partes cromadas frontais do corredor de registradoras seguinte.
— Aqui temos o tipo de pessoas que atraíram isto! — gritou ela. — Pessoas que não se dobram à vontade do Todo-Poderoso! Pecadores orgulhosos, arrogantes que são, além de obstinados! É dentre eles que deve vir o sacrifício! Dentre eles virá o sangue da expiação!
Um crescente murmúrio de assentimento a espicaçou. Ela agora estava frenética. A saliva saltava de seus lábios, enquanto gritava para os que se amontoavam às suas costas:
— É o menino que queremos! Peguem-no! É o menino que queremos!
O grupo avançou, com Myron LaFleur à testa, de olhos opacamente jubilosos. O Sr. McVey estava logo atrás dele, o rosto inexpressivo e impassível.
Amanda recuou, cambaleante, apertando Billy ainda com mais força. Os braços dele estavam enrolados em seu pescoço. Ela olhou para mim, aterrorizada.
— David, o que eu...
— Peguem os dois! — gritou a Sra. Carmody. — Peguem essa prostituta também!
Ela era um apocalipse de amarelo e sombria alegria. Ainda mantinha a bolsa debaixo do braço. Começou a saltitar.
— Peguem o menino, peguem a prostituta, peguem os dois, peguem-nos, peguem...
Houve o súbito clangor de um disparo.
Tudo se congelou, como se fôssemos uma classe de alunos descontrolados e o professor tivesse acabado de chegar, batendo a porta com estronto. Myron LaFleur e o Sr. McVey estacaram de repente, a cerca de dez passos de distância. Myron se virou, olhando duvidosamente para seu companheiro. O açougueiro não o percebeu, aliás, não parecia perceber a presença de LaFleur. O Sr. McVey tinha uma expressão que eu já vira em inúmeros outros rostos, naqueles últimos dois dias. Ele não era mais a mesma pessoa.
Sua mente se estiolara.
Myron agora fitava Ollie Weeks, com olhos arregalados e temerosos. Então, começou a correr. Dobrou a quina do corredor, tropeçou em uma lata, caiu, conseguiu levantar-se e desapareceu de vista.
Ollie permanecia na clássica posição do atirador, com a arma de Amanda aferrada nas duas mãos. A Sra. Carmody ainda continuava na cabeceira do corredor da registradora.
Tinha as duas mãos, salpicadas de manchas hepáticas, apertando o estômago. O sangue fluiu por entre seus dedos, manchando-lhe as calças compridas amarelas.
Ela abriu e fechou a boca. Uma vez. Duas vezes. Estava querendo falar. Por fim, conseguiu.
— Todos vocês morrerão lá fora! — disse, e então descambou lentamente para diante.
A bolsa escorregou-lhe do braço, bateu no chão e espalhou o seu conteúdo. Um tubo com papel enrolado saiu rolando pelo chão e veio se chocar contra um de meus sapatos. Sem pensar, abaixei-me e apanhei-o. Era um rolo de papel sanitário, já pela metade. Joguei-o para o chão outra vez. Não queria tocar em nada que houvesse pertencido a ela.
A "congregação" começava a debandar, dispersando-se, após eliminado o seu foco.
Nenhum dos membros afastava os olhos da figura caída e do sangue escuro que começava a espalhar-se de baixo de seu corpo.
— Vocês a assassinaram! — gritou alguém, com medo e raiva.
Entretanto, ninguém apontava que ela estivera planejando algo similar contra meu filho.
Ollie permanecia imóvel em sua posição de atirador, mas agora sua boca tremia. Toquei nele de leve.
— Vamos, Ollie. E obrigado.
— Eu a matei — disse ele, em voz rouca. — Não tinha saída!
— Sim — assenti. — Foi isso que lhe agradeci. Agora, vamos!
Pusemo-nos em movimento novamente.
Sem mantimentos para levar — graças à Sra. Carmody — fui capaz de carregar Billy.
Paramos um instante à porta.
— Eu não atiraria nela — disse Ollie, em voz grave e contida. — Não, se houvesse qualquer outra alternativa.
— Eu sei.
— Acredita em mim, não?
— Claro que acredito.
— Então, vamos embora.
Saímos do supermercado.
XI. O fim
Ollie se moveu depressa, empunhando a arma na mão direita. Antes que eu e Billy houvéssemos cruzado a porta do supermercado, ele já estava em meu Scout, um Ollie insubstancial, como um fantasma em uma tela de televisão. Abriu a porta do motorista.
Depois a traseira. Então, algo brotou do nevoeiro e quase o cortou pelo meio.
Não consegui ver bem o que seria e fico satisfeito por isso. Parecia algo vermelho, da irada tonalidade de uma lagosta cozida. Tinha garras. Emitia um grunhido surdo, não muito diferente do som que ouvíramos após a saída de Norton e seu pequeno grupo de Terrestres Estagnados.
Ollie chegou a disparar um tiro, mas então as garras de coisa continuaram apertando como tesouras e o corpo dele pareceu desmantelar-se, em um terrível jato de sangue. A arma de Amanda lhe caiu da mão, bateu no pavimento e disparou. Tive um demoníaco relance de enormes olhos negros e opacos, do tamanho de bagas marinhas, e então a coisa cambaleou de volta ao nevoeiro, com o que restara de Ollie Weeks em suas garras.
Um corpo alongado e multissegmentado de escorpião rastejou pesadamente no pavimento.
Houve um instante de escolhas. Talvez sempre haja, por breve que seja. Metade de mim queria correr de volta para o supermercado, levando Billy apertado contra meu peito. A outra metade corria para o Scout, jogava Billy em seu interior e mergulhava após ele.
Então, Amanda gritou. Era um grito agudo, um som em crescendo, que parecia espiralar para o alto, até quase se tornar ultra-sônico. Billy agarrou-se a mim, enterrando o rosto em meu peito.
Uma das aranhas pegara Hattie Turman. Aquela era das grandes e a derrubara. O vestido foi puxado acima de seus joelhos escanifrados, quando o bicharoco se agachou sobre ela, as pernas espinhosas e eriçadas acariciando-lhe os ombros. Em seguida, a aranha começou a fiar sua teia.
A Sra. Carmody tinha razão, pensei. Vamos morrer aqui fora, vamos realmente morrer aqui fora.
— Amanda! — gritei.
Não houve resposta. Ela estava fora de si. A aranha cavalgou o que sobrara da baby- sitter de Billy, uma mulher que apreciava decifrar enigmas e quebra cabeças, aquelas malditas charadas que nenhuma pessoa normal conseguia fazer sem ficar biruta. Os fios lhe entrecruzaram o corpo, os cordões alvos já se avermelhando, à medida que o envoltório ácido afundava nela.
Cornell recuava lentamente para o supermercado, os olhos tão avantajados como pratos de jantar, atrás dos óculos. De repente, deu meia volta e correu. Agarrou-se à porta ENTRADA, conseguiu abri-la e precipitou-se para o interior.
A cisão em minha mente se fechou, quando a Sra. Reppler avançou vivamente e esbofeteou Amanda, primeiro de mão aberta, depois com o dorso da mão. Amanda parou de gritar. Corri para ela, obriguei-a a virar-se para onde estava o Scout e gritei "VENHA!" em seu rosto.
Ela foi. A Sra. Reppler passou rente a mim. Empurrou Amanda para o assento traseiro do Scout, entrou depois dela e bateu a porta violentamente.
Desprendi-me de Billy e o joguei dentro do carro. Quando entrei também, um daqueles fios de aranha esvoaçou e pousou em meu tornozelo. Queimava como uma linha de pesca puxada rapidamente por entre os dedos fechados. Era uma queimadura ainda mais forte. Dei um forte puxão no pé e o fio se quebrou. Deslizei para trás do volante.
— Feche, feche essa porta, pelo amor de Deus! — gritou Amanda.
Bati a porta. Apenas um segundo depois, uma das aranhas se chocou maciamente contra ela. Fiquei a centímetros apenas de seus olhos vermelhos, malevolamente estúpidos.
Suas pernas, da grossura de meu punho, escorregavam de um lado para outro sobre o teto quadrado do carro. Amanda gritava incessantemente, como uma sirene de incêndios.
— Cale essa boca, mulher! — disse-lhe a Sra. Reppler.
A aranha desistiu. Não sentia mais nosso cheiro, logo, não estávamos mais ali. Trotou de volta para o nevoeiro, sobre seu incrível número de pernas, transformou-se em fantasma e depois desapareceu.
Espiei pela janela, a fim de certificar-me de que ela se fora, e então abri a porta.
— O que está fazendo? — gritou Amanda.
Eu sabia o que fazia. Gostava de pensar que Ollie teria feito exatamente o mesmo. Dei um meio passo, inclinei-me para fora e apanhei a arma. Algo avançou a toda pressa na minha direção, mas nem cheguei a ver o que era. Joguei-me novamente dentro do carro e bati a porta.
Amanda começou a soluçar. A Sra. Reppler passou um braço em torno dela e a confortou animadamente.
— Nós vamos para casa, papai? — perguntou Billy.
— Tentaremos ir, Grande Bill.
— Está bem — disse ele, quietamente.
Examinei a arma, depois a coloquei no porta-luvas. Ollie a recarregara após a expedição à drugstore. O restante da munição se fora com ele, mas o que eu tinha era suficiente.
Ele atirara na Sra. Carmody, depois atirara contra a coisa de garras e, ao se chocar no chão, a arma disparara uma vez. Éramos quatro no Scoút, mas se a situação chegasse a extremos, eu encontraria um meio de acabar comigo.
Passei por um momento terrível, quando não conseguia encontrar meu chaveiro.
Verifiquei em todos os bolsos, fiquei de mãos vazias e então tornei a checá-los, forçando-me a agir devagar e com calma. Encontrei as chaves no bolso da calça; tinham ficado debaixo das moedas, como às vezes acontece. O Scout pegou sem dificuldade.
Ao ouvir o consolador rugido do motor, Amanda tornou a desfazer-se em lágrimas.
Fiquei quieto, ouvindo o motor, querendo ver o que seria atraído por aquele som ou pelo cheiro expulso no cano de descarga. Cinco minutos, os cinco minutos mais longos de minha vida, escoaram-se lentamente. Nada aconteceu.
— Vamos ficar aqui parados ou vamos em frente? — perguntou a Sra. Reppler afinal.
— Vamos em frente — respondi.
Manobrei para sair da vaga e deixei os faróis baixos. Algum impulso — provavelmente um impulso básico — me levou a passar o mais rente que pude pelo Supermercado Federal. O lado direito do pára-choque do Scout empurrou o recipiente de lixo para um lado. Era impossível ver o que acontecia lá dentro, exceto através das vigias — todos aqueles sacos de fertilizante e adubo para jardim faziam o lugar dar a impressão de estar no auge de alguma louca liquidação de jardinagem — mas em cada vigia havia dois ou três rostos pálidos, espiando para nós.
Depois guinei para a esquerda e o nevoeiro se fechou impenetravelmente atrás de nós. E o que foi feito daquelas pessoas, eu não sei dizer.
Dirigi de volta à Estrada Kansas, a oito quilômetros por hora, tateando meu caminho.
Mesmo com os faróis do Scout acesos, era impossível enxergar mais do que dois ou três metros à frente.
A terra havia sofrido alguma terrível contorção. Miller estivera certo quanto a isso. Em alguns pontos, a estrada estava apenas rachada, mas em outros, o chão parecia ter sido escavado, erguendo grandes lajes de pavimentação. Consegui ir em frente, graças à tração nas quatro rodas. E também graças a Deus. Ainda assim, sentia um medo terrível de deparar com algum obstáculo que nem mesmo o Scout conseguisse transpor.
Levei quarenta minutos para um trajeto que geralmente exigia apenas sete ou oito. Por fim, o indicador apontando nossa estrada particular brotou do meio do nevoeiro.
Despertado faltando quinze minutos para as cinco, Billy caíra profundamente adormecido dentro daquele carro que conhecia tão bem e que devia ter-lhe parecido o lar. Amanda olhava nervosamente.
— Vai mesmo descer até lá?— perguntou ela.
— Tentarei — respondi.
Contudo, era impossível. A tempestade que se desencadeara havia afrouxado as raízes de inúmeras árvores, e aquela ladeira íngreme, torcida, terminara o serviço de derrubá-las.
Consegui rodar sobre as duas primeiras, razoavelmente pequenas. A seguir, cheguei a um robusto e velho pinheiro, atravessado na estrada, como uma barricada contra foragidos. Faltava quase meio quilômetro para chegar até a casa. Billy dormia a meu lado, e então deixei o Scout parado, de motor ligado, enquanto punha as mãos sobre os olhos e refletia no que fazer em seguida.
Agora, sentado no Howard Johnson's, perto da Saída 3 da auto-estrada para o Maine, escrevendo tudo isto em papel de cartas, desconfio que a Sra. Reppler, essa velhota durona e capaz, poderia ter registrado a futilidade essencial da situação em apenas alguns rabiscos rápidos. No entanto, ela teve a gentileza de permitir que eu mesmo cuidasse disso.
Eu não podia sair. Não podia abandoná-los. Nem podia tentar convencer-me de que todos os monstros de filme de terror haviam ficado para trás, junto ao Federal. Quando baixei o vidro da janela — apenas uma fresta — pude ouvi-los no matagal, andando de um lado para outro e entrechocando-se pela íngreme faixa de terra a que, por estas bandas, dão o nome de Ledges, isto é, Recifes. A umidade gotejava das folhas mais altas, sem cessar. Acima de nós, o nevoeiro escurecia momentaneamente, quando algum bicharoco de pesadelo, semelhante a um animado papagaio de empinar, sobrevoava o Scout.
Tentei dizer a mim mesmo — lá e agora — que se ela agisse com a máxima rapidez, fechando a casa consigo mesma no interior, teria alimentos suficentes para dez dias a duas semanas. Não é grande consolo. O que persiste em minha memória é a última lembrança dela, usando o frouxo chapéu contra o sol e suas luvas de jardinagem, a caminho de nossa pequena horta, com o nevoeiro rolando inexoravelmente através do lago, mais atrás.
É em Billy que tenho de pensar agora. Billy, digo para mim mesmo. Grande Bill, Grande Bill... Eu devia escrever isto umas cem vezes nesta folha de papel, como uma criança condenada a escrever Não atirarei bolas de papel durante a aula, enquanto a ensolarada quietude das três horas se derrama através das janelas e a professora corrige deveres de casa em sua mesa, o único som ouvido sendo o de sua pena e, em algum lugar muito distante, o de garotos selecionando equipes para uma partida de beisebol.
De qualquer modo, por fim fiz o único que me era possível. Manobrei o Scout cautelosamente e retornei à Estrada Kansas. Então, chorei.
Amanda tocou meu ombro, timidamente.
— Oh, David, sinto tanto... — disse ela.
— Hum — respondi, tentando conter as lágrimas, sem muito êxito. — Hum... eu também.
Dirigi para a Estrada 302 e dobrei à esquerda, em direção a Portland. Também esta estrada estava rachada e afundada em vários pontos mas, no todo, seu estado era melhor do que o da Kansas. Minha preocupação eram as pontes. A superfície do Maine é recortada por água corrente, de maneira que há pontes por toda parte, pequenas e grandes. Entretanto, o Dique Naples estava intato e, a partir de lá, seria fácil — embora lento — seguir todo o trajeto até Portland.
O nevoeiro continuava espesso. Precisei parar uma vez, pensando que havia árvores atravessadas na estrada. Então, as árvores começaram a mover-se e ondular, fazendo-me compreender que eram mais tentáculos. Fiz alto e, após algum tempo, eles recuaram.
Em outra ocasião, uma enorme coisa verde, com um corpo verde e iridescente, provida de compridas asas transparentes, pousou no capô do carro. Parecia uma libélula incrivelmente disforme. Ficou ali um instante, depois tornou a alçar vôo e se foi.
Billy acordou cerca de duas horas após termos deixado a Estrada Kansas, e perguntou se ainda não tínhamos apanhado sua mãe. Falei-lhe que eu não conseguira descer até a nossa estrada, por causa das árvores caídas.
— Ela está bem, papai?
— Eu não sei, Billy, mas vamos voltar lá e saber.
Ele não chorou. Em vez disto, tornou a dormir. Eu preferiria vê-to debulhar-se em lágrimas. Billy estava dormindo demais e isso não me agradava nem um pouco.
Comecei a ficar com dor de cabeça, devido à tensão. Continuava dirigindo através do nevoeiro, entre oito a quinze quilômetros por hora, e havia a tensão de saber que qualquer coisa podia brotar dele, tudo, afinal — uma erosão, desmoronamento ou Hidra, o Monstro de Três Cabeças. Penso que rezei. Pedi a Deus que Stephanie estivesse viva e que Ele não lançasse meu adultério contra ela. Pedi a Deus que me permitisse levar Billy à segurança, porque ele já sofrera tanto.
A maioria das pessoas estacionara no acostamento, quando da chegada do nevoeiro e, por volta de meio-dia, estávamos em North Windham. Experimentei a Estrada do Rio, mas cerca de seis quilômetros além, uma ponte cruzando um pequeno e ruidoso rio, havia caído na água. Tive que voltar atrás por quase quilômetro e meio, em marcha à ré, antes de encontrar um lugar com espaço suficiente para manobrar. Afinal, seguimos para Portland pela Estrada 302.
Chegando lá, peguei o desvio para o pedágio. A ordenada fila de cabines guardando o acesso, havia sido transformada em esqueletos de olhos vazados, em Pola-Glas amassado. Estavam todas vazias. Na porta deslizante de vidro de uma delas, havia um blusão rasgado, com a inscrição Jurisdição da Auto-estrada Maine, pregada nas mangas. Estava encharcado de sangue seco. Desde que havíamos deixado o Federal, ainda não tínhamos visto uma única pessoa viva.
— Tente seu rádio, Davi — disse a Sra. Reppler.
Bati na testa, irado e frustrado comigo mesmo, perguntando-me como havia sido tão imbecil, a ponto de esquecer o AM/FM do Scout por tanto tempo.
— Não fique assim — disse a Sra. Reppler, abruptamente. — Você não pode pensar em tudo. Se quiser fazer tudo, acabará doido e isso não adiantaria nada.
Nada consegui, além de guinchos de estática em toda a faixa AM. A FM nada revelou, além de profundo e agourento silêncio.
— Isto significa que todas as estações estão fora do ar? — perguntou Amanda.
Eu sabia o que ela pensava. No momento, estávamos bem para o sul, deveríamos estar pegando uma seleção das potentes estações de Boston, como a WRKO, WBL e WMEX.
No entanto, se nada havia em Boston...
— Isto não significa coisa alguma com segurança — falei. — Essa estática na faixa AM é pura interferência. O nevoeiro está também provocando um efeito amortecedor nos sinais de rádio.
— Tem certeza de que é só isso?
— Tenho — respondi, de maneira alguma convicto.
Seguimos para o sul. Os marcos rodoviários passavam por nós, em contagem decrescente a partir de quarenta. Quando chegássemos ao Quilômetro 1, estaríamos na divisa de New Hampshire. O trajeto até o pedágio foi mais lento; muitos motoristas não tinham querido desistir, de modo que havia colisões de traseiras em vários lugares.
Foram inúmeras as vezes em que precisei usar a faixa central.
Mais ou menos a uma e vinte da tarde — eu começava a ficar com fome — Billy agarrou meu braço.
— Papai, o que é aquilo? O que é aquilo?
Uma sombra destacou-se do nevoeiro, manchando-o de escuro. Era alta como um penhasco e vinha direta para nós. Pisei nos freios. Amanda estivera cochilando e foi atirada para diante.
Algo chegou. Novamente, é só o que posso afirmar com segurança. Talvez fosse porque o nevoeiro só permitia que víssemos coisas de relance, mas creio ser também provável a existência de certas coisas que nosso cérebro simplesmente rejeita. Existem coisas de tanta fealdade e horror — suponho que assim como existem coisas de tanta beleza e lirismo — que elas não conseguem cruzar as insignificantes portas da percepção humana.
Tinha seis pernas, disso estou certo; sua pele era cor de chumbo, salpicada de marrom escuro.
Aquelas manchas castanhas me faziam absurdamente recordar as manchas hepáticas nas mãos da Sra. Carmody. A pele da coisa era profundamente enrugada e sulcada; pendentes e aderentes a ela havia multidões, centenas daqueles "besouros" rosados, com olhos na ponta de talos. Não posso avaliar ao certo qual o seu tamanho, porém o bicharoco passou diretamente sobre nós. Uma de suas pernas enrugadas e cinzentas bateu bem ao lado de minha janela. Mais tarde, a Sra. Reppler comentou que não conseguira ver a parte inferior de seu corpo, embora espichasse o pescoço para olhar. Viu apenas duas pernas ciclópicas, que subiam e se perdiam dentro do nevoeiro, como torres animadas, até desaparecerem.
No momento em que a coisa ficou acima do Scout, tive a impressão de algo tão grande, que faria uma baleia azul parecer do tamanho de uma truta — em outras palavras, algo tão grande, que desafiava a imaginação. Depois ela se foi, deixando em sua esteira uma série de baques sismológicos, cujos ecos chegavam até nós. A criatura deixou pegadas no asfalto da Interestadual, pegadas tão fundas, que eu não conseguia ver-lhes o final interior. E cada pegada era quase grande o suficiente para que o Sccut afundasse nela.
Por um momento, ninguém falou. Não havia outro som além de nossa respiração e do baque distanciado, indicando a passagem da grande Coisa.
— Era um dinossauro, papai? — perguntou Billy. — Como aquela ave que entrou no supermercado?
— Não acredito que fosse. Acho mesmo que nunca existiu um animal tão grande assim, Billy. Pelo menos, aqui na terra.
Tornei a pensar no Projeto Ponta de Flecha e novamente me perguntei que loucas e malditas coisas eles poderiam ter feito por lá.
— Podemos continuar? — perguntou Amanda timidamente. — Essa coisa talvez volte.
Sim, e talvez houvesse outras à frente. Entretanto, de nada adiantava dizer isso.
Tínhamos que ir a algum lugar. Segui em frente, rodando em ziguezagues, esquivando-me daquelas terríveis pegadas, até elas abandonarem a estrada.
Foi o que aconteceu. Ou, quase tudo o que aconteceu — há um ponto final, ao qual logo chegarei. Entretanto, não vá você esperar alguma conclusão viável. Nada de E eles escaparam do nevoeiro, penetrando no bom calor do sol de um novo dia; ou Quando acordamos, finalmente a Guarda Nacional havia chegado; ou, até mesmo o grande e velho chavão: Foi tudo um sonho!.
Suponho que seja o que meu pai costumava chamar, franzindo o cenho, "um final à Alfred Hitchcok", com isto querendo indicar uma conclusão em ambiguidade, permitindo que o leitor ou espectador formule a própria opinião sobre como tudo terminou. Meu pai nutria apenas desdém por tais histórias, qualificando-as de "matéria barata".
Chegamos a este Howard Johnson's, perto da Saída 3, quando o crespúsculo começou a ganhar corpo, transformando o ato de dirigir um carro um risco suicida. Antes disso, fizemos uma tentativa na ponte que cruza o Rio Saco. Estava bastante retorcida e disforme, porém, em meio ao nevoeiro, era impossível dizer se o estrago era ou não total. Vencemos esse particular jogo.
Contudo, há o amanhã para se pensar, não é?
Enquanto escrevo isto, faltando quinze minutos para uma da madrugada de vinte e três de julho, recordo que a tempestade parecendo indicar o início de tudo quanto ocorreu, foi há apenas quatro dias. Billy está dormindo no saguão, em um colchão que arrastei até lá para ele. Amanda e a Sra. Reppler estão por perto. Escrevo à luz de uma grande lanterna Delco e, lá fora, os besouros cor-de-rosa beliscam e tropeçam nas vidraças. De vez em quando ouvimos um baque mais alto, como quando uma das aves alça vôo.
O Scout tem gasolina suficiente para carregar-nos por outros cento e quarenta e cinco quilômetros. A alternativa é tentar arranjar combustível aqui; há um posto Exxon que serve à ilha e, embora não havendo energia elétrica, acho que posso transferir um pouco para o tanque do carro, extraindo-o por meio de um sifão. Entretanto...
Entretanto isto significa ter de ir lá fora.
Se conseguirmos gasolina — aqui ou mais adiante — continuaremos rodando. Agora tenho um destino em mente, compreenda. É a última coisa que eu lhe queria contar.
Eu não tinha certeza. Eis aí a coisa, a maldita coisa. Poderia ter sido imaginação minha, apenas um desejo de realização. Mesmo em caso contrário, é uma demorada chance.
Quantos quilômetros mais? Quantas pontes? Quantas coisas mais adorando dilacerar meu filho e devorá-lo, mesmo que ele grite de terror e agonia?
As chances são tão boas, que não passavam de um devaneio, algo que não contei aos outros... pelo menos por enquanto.
No apartamento do gerente, encontrei um grande rádio de várias faixas, funcionando com bateria. De sua parte traseira sai uma antena achatada, atravessando a janela. Liguei o rádio, virei o botão para BAT., percorri o mostrador, girei várias vezes o botão seletor de faixas e ainda nada consegui, além de estática ou silêncio total.
Então, no último extremo da faixa AM, justamente quando já ia girar o botão de desligar, pensei ter ouvido — ou sonhei ter ouvido — uma única palavra.
Não houve mais nada. Fiquei ouvindo por uma hora, porém nada aconteceu. Se houvesse aquela única palavra, ela chegou através de alguma fenda mínima no nevoeiro úmido; uma passagem infinitesinal, que imediatamente se fechou outra vez.
Uma palavra.
Preciso dormir um pouco... se puder dormir, em vez de ser assombrado até o amanhecer pelos rostos de Ollie Weeks, da Sra. Carmody e de Norm, o rapaz embalador... ou pelo rosto de Steff, meio sombreado pela aba larga de seu chapéu contra o sol.
Há um restaurante aqui, um típico restaurante Hojo, com refeitório e um comprido balcão para almoço, em forma de ferradura. Deixarei estas páginas em cima do balcão e, um dia, talvez alguém as encontre e as leia.
Uma palavra.
Se apenas eu a tivesse ouvido realmente... Se apenas...
Vou agora para a cama. Entretanto, primeiro quero beijar meu filho e sussurar duas palavras em seu ouvido. Contra os sonhos que possam surgir, sabe como é. Duas palavras que soam um pouco parecidas. Uma delas é Hartford. A outra é hope — esperança.
O PROCESSADOR DE PALAVRAS DOS DEUSES
A primeira vista, aquilo parecia um processador de palavras Wang — possuía teclado Wang e armação Wang. Só após observar melhor, Richard Hagstrom viu que a armação havia sido cortada e aberta (e não cuidadosamente, pois lhe parecia que o serviço fora feito com uma lâmina de serra para metais), a fim de admitir um tubo de raios catódicos IBM, ligeiramente maior. Os discos de arquivo que tinham vindo com aquele singular híbrido nada tinham de moles; eram tão duros como os de 45 rotações, que Richard ouvira em criança.
— Em nome de Deus, o que é isso?
Lina fizera a pergunta quando ele e o Sr. Nordhoff o levaram para seu estúdio, peça por peça. O Sr. Nordhoff morava na casa vizinha à da família do irmão de Richard Hagstrom... Roger, Belinda e seu filho Jonathan.
— É qualquer coisa que Jon fabricou — disse Richard. — Segundo o Sr. Nordhoff, ele queria que eu ficasse com o aparelho. Parece um processador de palavras.
— Oh, sim — disse o Sr. Nordhoff. Ele não tornaria a ver os sessenta anos novamente e seu fôlego não andava bem. — Foi o que ele disse, o pobre garoto... Será que podíamos largá-lo por um minuto, Sr. Hagstrom? Estou bufando.
— Claro — disse Richard.
Chamou seu filho, Seth, que dedilhava estranhos e atonais acordes de sua guitarra Fender, no andar de baixo — no aposento que Richard imaginara uma "sala da família", ao apainelá-lo, mas que acabara se tornando a "sala de ensaios" de seu filho.
— Seth! — gritou. — Venha cá dar uma mãozinha!
No andar debaixo, Seth continuou extraindo acordes da Fender. Richard olhou para o Sr. Nordhoff e deu de ombros, envergonhado e incapaz de disfarçar o que sentia.
Nordhoff também deu de ombros, como se dissesse Garotos! O que se pode esperar de melhor deles, hoje em dia? Contudo, ambos sabiam que Jon — o pobre e condenado Jon Hagstrom, filho de seu louco irmão — havia sido melhor.
— Foi muita bondade sua em ajudar-me com isto — disse Richard.
Nordhoff deu de ombros.
— O que mais um velho tem a fazer com seu tempo? Penso que foi a última coisa que podia, pelo menos, fazer por Jonny. Sabe que ele costumava cortar de graça o meu gramado? Eu queria pagar, mas ele nunca aceitava. Era um grande garoto. — Nordhoff ainda estava sem fôlego. — Poderia arranjar-me um copo d'água, Sr. Hagstrom?
— Naturalmente. — Ele mesmo apanhou a água, ao ver que sua esposa não se movia da mesa da cozinha, onde lia um enxovalhado livro de bolso e comia um biscoito. — Seth! — ele gritou de novo. — Venha cá e nos ajude, está bem?
Não obstante, Seth continuou tocando amortecidos e bem dissonantes acordes na Fender que Richard ainda estava pagando.
Ele convidou Nordhoff a ficar para o jantar, porém o velho recusou polidamente.
Richard assentiu, de novo embaraçado, talvez agora disfarçando um pouco melhor. O que um cara legal como você tem a ver com semelhante família? dissera certa vez seu amigo Bernie Epstein, e ele só conseguira abanar a cabeça, sentindo o mesmo fosco constrangimento de agora. Ele era um cara legal. Não obstante, ali estava o que arranjara-uma esposa obesa e carrancuda, que se sentia lograda nas boas coisas da vida, como se houvesse apostado no cavalo perdedor (mas que nunca se animava a criar coragem e expor a situação) e um filho retraído de quinze anos, que fazia um trabalho marginal na mesma escola em que Richard lecionava... um filho que tocava acordes dissonantes na guitarra, dia e noite (principalmente à noite), parecendo pensar que, de alguma forma, aquilo o impeliria para a frente.
— Bem, e que tal uma cerveja? — sugeriu Richard.
Relutava em deixar Nordhoff ir embora — queria ouvir mais coisas sobre Jon.
— Uma cerveja seria ótimo — disse Nordhoff, e Richard assentiu gratamente.
— Excelente — concordou, e saiu, voltando em seguida com duas garrafas de Bud.
Seu estúdio ficava em um pequeno galpão, construído fora da casa — ajeitado por ele próprio, como fizera com a sala da família. No entanto, ao contrário daquele cômodo, ali era um lugar que ele considerava apenas seu — um lugar em que podia ficar trancado, deixando de fora a estranha com quem se casara e o estranho a que ela dera nascimento.
Naturalmente, Lina não aprovava o fato dele ter seu próprio refúgio, mas não fora capaz de impedi-lo — aquela tinha sido uma das raras e pequenas vitórias de Richard contra ela.
Ele supunha que, de certa forma, Lina havia apostado no cavalo perdedor quando se tinham casado, dezesseis anos antes, ambos acreditavam que ele escreveria maravilhosos e lucrativos romances e que, em pouco tempo, estariam rodando em uma Mercedes-Benz. Contudo, o único romance que ele publicara não havia sido lucrativo e os críticos rapidamente apontaram que tampouco era muito maravilhoso. Lina vira as coisas pelo ponto de vista dos críticos, de maneira que aquilo fora o início do afastamento de ambos.
Desta maneira, as aulas dadas no ginásio, que os dois tinham encarado como apenas um degrau em seu caminho para a fama, glória e riquezas, havia sido sua principal fonte de renda nos últimos quinze anos — um malditamente alto degrau, como ele às vezes pensava. Escrevia contos, um artigo ocasional. Era membro em boa situação na Associação de Escritores. Produzia uma renda adicional de uns 5.000 dólares com sua máquina de escrever a cada ano e, pouco importando o quanto Lina reclamasse a respeito, isso lhe dava o direito de ter seu próprio estúdio... em especial, desde que ela se recusava a trabalhar.
— Você tem um bom recanto aqui — comentou Nordhoff, olhando em torno do pequeno aposento, com a mistura de antigas gravuras na parede.
O híbrido processador de palavras foi assentado em cima da mesa, com o CPU sob ela.
A antiga Olivetti elétrica de Richard foi momentaneamente deslocada para o topo de um dos fichários.
— Preenche a finalidade — disse Richard. Apontou a cabeça para o processador de palavras. — Acha mesmo que isso funciona? Jon só tinha quatorze anos.
— Parece curioso, não?
— Sem dúvida — concordou Richard.
Nordhoff riu.
— Pois não sabe da metade — disse. — Dei uma espiada atrás da unidade de vídeo. Alguns fios estão marcados IBM e outros Artigos Eletrônicos. Há boa parte de um telefone Western Electric aí. E, acredite ou não; também há um pequeno motor de um Erector Set. — Ele bebericou sua cerveja e disse, como se só então recordasse: — Quinze anos. Ele acabara de fazer quinze anos. Uns dois dias antes do acidente. — Fez uma pausa e repetiu, baixando os olhos para sua garrafa de cerveja: — Quinze anos.
Disse as duas palavras em voz quase inaudível.
— Erector Set? — exclamou Richard, pestanejando.
— Exatamente. O Erector Set faz funcionar um kit elétrico. E Jon tinha um, desde que contava... oh, talvez seis anos de idade. Dei-lhe como presente de Natal, certo ano. Já nesse tempo, ele era louco por mecanismos. Qualquer engenhoca servia e terá gostado daquela caixinha com os motores do Erector Set? Acho que sim. Ele os guardou por quase dez anos. Não há muitos garotos que façam isso, Sr. Hagstrom.
— Não, não há — disse Richard, pensando nas caixas de brinquedos de Seth que se acumulavam no correr dos anos — rejeitados, esquecidos ou apenas destruídos conscientemente. Olhou para o processador de palavras. — Então, ele não funciona.
— Eu só diria isso após experimentá-lo — falou Nordhoff. — O garoto era quase um gênio em eletricidade.
— Há um certo exagero nisso, creio. Sei que Jon era bom para lidar com engenhocas e ganhou o prêmio da Feira Científica Estadual quando cursava o sexto grau...
— Competindo com garotos muito mais velhos — já nos últimos anos do ginásio, alguns deles — disse Nordhoff. — Pelo menos, assim falava sua mãe.
— É verdade. Todos sentíamos muito orgulho dele. — Não era bem verdade. Richard se orgulhara e a mãe de Jon também. O pai do menino não ligava, em absoluto. — Contudo, na Feira Científica são projetos e, construir, montar pessoalmente um mastigador híbrido de palavras...
Richard deu de ombros. Nordhoff pousou sua cerveja.
— Houve um garoto, nos anos cinqüenta — disse — que montou um desintegrador de átomos usando duas latas de sopa e equipamento elétrico no valor de cinco dólares. Jon me falou a respeito. Ele também disse que um garoto de uma cidadezinha matuta do Novo México, em 1954 descobriu os táquions — partículas negativas que se supõe viajarem para trás, através do tempo. Em Waterbury, Connecticut, um garoto de onze anos montou uma bomba tubular, com o celulóide que raspou das costas de um baralho de cartas de jogar. Com essa bomba, ele explodiu um canil vazio. Crianças às vezes são curiosas. Em particular as muito inteligentes. Você ficaria surpreso.
— Talvez. Talvez eu ficasse.
— De qualquer modo, ele era um ótimo garoto.
— O senhor gostava um pouco dele, não?
— Sr. Hagstrom — disse Nordhoff — eu gostava muito dele. Jon era realmente um garoto às direitas.
Richard então pensou em como era estranho aquilo — seu irmão, que tinha sido um irresponsável desde os seis anos, conseguira uma excelente esposa e um filho excepcional. Ele próprio, no entanto, que sempre procurara ser delicado e generoso (o que quer que "generoso" significasse, neste mundo louco), acabara casando com Lina, que se transformara em uma mulher taciturna e porcina, além de lhe dar Seth. Olhando para o rosto cansado e honesto de Nordhoff, ele se perguntava o que, exatamente, tinha acontecido, e que parte disto fora culpa sua, um resultado natural de sua própria e calada fraqueza.
— Sim — disse Richard. — Um garoto às direitas, não?
— Eu não me surpreenderia se isso funcionasse — falou Nordhoff. — Não me surpreenderia em absoluto.
Depois que Nordhoff se foi, Richard Hagstrom conectou o processador de palavras à tomada na parede e ligou o aparelho. Houve um zumbido, e ele esperou para ver se as letras IBM surgiam na face da tela. Nada apareceu. Em vez disso, espectralmente, como uma voz vinda da sepultura, estas palavras brotaram das sombras, como fantasmas verdes:
FELIZ ANIVERSÁRIO, TIO RICHARD! JON
— Céus! — murmurou Richard, caindo sentado na cadeira.
O acidente que matara seu irmão, esposa e filho, acontecera duas semanas antes — os três voltavam de uma espécie de excursão que durara todo o dia, e Roger estava embriagado.
Estar embriagado era uma ocorrência perfeitamente comum na vida de Roger Hagstrom.
Desta vez, no entanto, sua sorte se esgotara e ele dirigira a velha e empoeirada caminhonete pela borda de um abismo de vinte e sete metros. O veículo se espatifara e ardera. Jon tinha quatorze anos — não, quinze. Fizera quinze anos apenas uns dois dias antes do acidente, segundo havia dito o velho. Mais três anos, e se livraria daquele estúpido brutamontes. O aniversário dele... e o meu logo chegando.
Uma semana, a partir desse dia. O processador de palavras havia sido o presente de aniversário que Jon lhe daria.
De algum modo, isso tornava as coisas piores. Richard não saberia dizer precisamente como ou porque, mas assim era. Esticou a mão para desligar a tela, mas depois recuou.
Certo garoto montou um desintegrador de átomos com duas latas de sopa e partes elétricas de automóvel no valor de cinco dólares.
Sim, e na cidade de Nova York, o sistema de esgotos está cheio de crocodilos. E a Força Aérea dos E. U.A. tem o corpo de um alienígena preservado em gelo, em qualquer ponto de Nebraska. Conte-me algo mais. É cascata. Contado, isso talvez seja algo que eu não queira saber com certeza.
Richard levantou-se, deu a volta até atrás do VDT e espiou por entre as fendas. Era bem como Nordhoff tinha dito. Fios com a inscrição PEÇAS ELETRÔNICAS PARA RÁDIO — MADE IN TAIWAN. Fios com a inscrição WESTERN ELECTRIC e WESTRE X ou ERECTOR SET, com o pequeno r da marca registrada dentro do círculo.
Ele também viu algo mais, algo que Nordhoff não vira ou não quisera mencionar. Havia um transformador de Trem Lionel ali dentro, preso com arames, como a Noiva de Frankenstein.
— Céus! — exclamou, rindo, mas de repente, perto das lágrimas. — Céus, Jonny, o que achava que estava fazendo?
Esta resposta ele também sabia. Durante anos sonhara e falara em possuir um processador de palavras, mas quando as risadas de Lina tinham ficado demasiado sarcásticas para que as suportasse, conversara a respeito com Jon.
— Eu poderia escrever mais depressa, reescrever mais depressa e produzir mais — havia dito a Jon, no final daquele verão. O menino o fitara seriamente, os olhos azul-claros, inteligentes, mas sempre tão cautelosamente circunspectos, amplificados por trás dos óculos. — Seria grande... realmente formidável.
— Então, por que não compra um, Tio Rich?
— Eles não são dados precisamente de graça — respondera Richard, sorrindo. — O modelo mais barato custa uns três mil. A partir dele, pode-se chegar até os que custam uma faixa de dezoito mil.
— Bem, qualquer dia eu lhe monto um — havia dito Jon.
— Sim, talvez você monte — respondera Richard, dando-lhe um tapinha nas costas.
Então, até o telefonema de Nordhoff, ele não pensara mais nisso.
Fios de modelos elétricos comprados em lojas comuns.
Um transformador de Trem Lionel.
Céus.
Retornou à frente do aparelho, querendo desligá-lo, como se realmente tentasse escrever algo nele e uma falha, de certa forma, profanaria o que seu ansioso e frágil (condenado) sobrinho pretendera.
Em vez disso, ele apertou o botão EXECUTAR, no teclado. Um curioso e leve arrepio percorreu-lhe a espinha quando fez isso. EXECUTAR era uma singular palavra para ser usada, se refletirmos nisso. Não era uma palavra que ele associasse à escrita, mas sim a câmaras de gás e cadeiras elétricas... talvez as velhas e poeirentas caminhonetes despencando da beira de estradas.
EXECUTAR.
O CPU tinha um zumbido mais alto do que os ouvidos nas ocasiões em que vira processadores de palavras funcionando em vitrines. De fato, ele quase rugia. O que contém a caixa de memória, Jon? perguntou-se. Molas de colchão? Transformadores de trem enfileirados? Latas de sopa? Tornou a pensar nos olhos de Jon, em seu rosto quieto e delicado. Seria estranho, talvez mórbido, ter ciúmes do filho de outro homem?
Ele devia ter sido meu. Eu sabia... e penso que ele também sabia. Então, havia Belinda, a esposa de Roger. Belinda, que usava óculos escuros com freqüência, mesmo em dias nublados. Dos modelos de aros grandes, porque contusões em torno dos olhos têm a infeliz mania de espalhar-se. Contudo, às vezes olhava para ela, sentada lá, imóvel e vigilante, sob o ruidoso guarda-sol das gargalhadas de Roger, e pensava quase a mesma e exata coisa: ela devia ter sido minha.
Era um pensamento aterrador, porque ambos haviam conhecido Belinda no ginásio e ambos tinham saído com ela. Havia uma diferença de dois anos entre ele e Roger, de modo que Belinda se situara perfeitamente na linha intermediária, um ano mais velha do que Richard e um mais nova do que Roger. De fato, Richard fora o primeiro a ter encontros com a jovem que depois se tornaria a mãe de Jon. Então, surgira Roger.
Roger que era mais velho e mais forte, Roger que sempre tivera o que queria, Roger que prejudicaria quem atravessasse seu caminho.
Fiquei com medo. Fiquei com medo e a deixei ir-se. Teria sido assim tão simples?
Por Deus, acho que foi. Eu gostaria que, fosse diferente, mas talvez seja melhor não mentir para nós mesmos, sobre coisas como covardia. E vergonha.
E se aquelas coisas fossem verdade? Se, de algum modo, Lina e Seth pertencessem a seu malévolo irmão e se Belinda e Jon, de algum modo, pertencessem a ele, o que isso provaria? E como, exatamente, uma pessoa racional imaginaria lidar com tal confusão, tão absurdamente equilibrada? Dava para rir? Para chorar? Alguém se mataria por um vira-lata?
Eu não me surpreenderia se isso funcionasse. Não me surpreenderia em absoluto.
EXECUTAR.
Seus dedos moveram-se rapidamente sobre as teclas. Richard olhou para a tela e viu estas letras, flutuando em verde:
MEU IRMÃO ERA UM BÊBADO IMPRESTÁVEL.
Elas flutuaram na tela e, subitamente, Richard pensou em um brinquedo que tivera em criança. Era chamado Bola-Oito Mágica. Fazia-se a ele uma pergunta que pudesse ter sim ou não como resposta e depois se girava a Bola-Oito Mágica, para saber-se o que ela diria a respeito do assunto — e suas respostas mistificadoras, mas ainda assim misteriosamente fascinantes, incluíam coisas como É QUASE CERTO, EU NÃO PLANEJARIA ISSO e TORNE A PERGUNTAR MAIS TARDE.
Roger sentira ciúmes do brinquedo e, finalmente, após obrigar Richard a entregá-lo certo dia, atirara-o na calçada o mais forte que pudera, quebrando-o. Depois rira. Agora, sentado ali, ouvindo o estranhamente espasmódico rugido do gabinete CPU que Jon improvisara, Richard recordou como se jogara à calçada, chorando e incapaz de acreditar que o irmão houvesse feito tal coisa.
— Bebê-chorão, bebê-chorão, vejam o bebê-chorão! — zombara Richard. Isso não passava de um brinquedinho vagabundo, Richie. Dê uma espiada, nele só havia alguns letreiros e um montão de água.
— EU VOU CONTAR! — Richard havia gritado, com todo o vigor dos pulmões. Sua cabeça estava quente. Seu nariz se entupira com as lágrimas do ultraje sofrido. — VOU CONTAR O QUE VOCÊ FEZ, ROGER! VOU CONTAR A MAMÃE!
— Se contar a ela, eu quebro seu braço — ameaçara Roger:
E, em seu gélido sorriso, Richard percebera que ele não estava brincando. Nada contara à mãe.
MEU IRMÃO ERA UM BÊBADO IMPRESTÁVEL.
Bem, singularmente montado ou não, o aparelho imprimia letras na tela. Ainda estava por ver se estocava dados no CPU, mas a combinação feita por seu sobrinho, unindo um painel Wang a uma tela IBM, de fato funcionara. Só por coincidência, aquilo evocara lembranças bastante cruéis, mas ele decidiu que Jon não tivera culpa disso.
Olhou em torno do estúdio e seus olhos pousaram em uma foto que não havia escolhido e da qual não gostava. Era uma foto de Lina, feita em retratista, que ela lhe dera no Natal, dois anos antes. Quero que a pendure em seu estúdio, havia dito e, naturalmente, ele a pendurara. Imaginou que talvez fosse um meio de Lina vigiá-lo, mesmo não estando presente. Não me esqueça, Richard. Eu estou aqui. Talvez tenha apostado no cavalo errado, mas continuo aqui. E é melhor não se esquecer disto.
A foto retocada, com suas tonalidades pouco naturais, destoava curiosamente da amistosa mescla de gravuras de Whistler, Homer e N. C. Wyeth. Os olhos de Lina estavam semicerrados, o forte arco de Cupido de sua boca composto em algo que não era bem um sorriso. Eu continuo aqui, Richard, aquela boca parecia dizer-lhe. E não se esqueça disto.
Ele datilografou:
A FOTO DE MINHA ESPOSA ESTÁ PENDURADA NA PAREDE OESTE DE MEU ESTÚDIO.
Contemplou as palavras e detestou-as tanto como detestava a foto. Pressionou o botão SUPRIMA. As palavras desapareceram. Agora nada mais havia na tela, exceto o fixo tremular do cursor.
Richard olhou para a parede e viu que a foto de sua esposa também desaparecera.
Permaneceu sentado por muitíssimo tempo — pelo menos, assim lhe pareceu — contemplando a parede onde a foto estivera. O que finalmente o despertou daquele torpor, provocado pelo choque do inacreditável, foi o cheiro emitido pelo CPU — um cheiro que recordava da infância, tão nitidamente, como recordava a Bola-Oito Mágica que Roger quebrara, porque não era dele. O cheiro era essência de transformador de trem elétrico. Depois que se sentia tal cheiro, devia-se desligá-lo, para que esfriasse.
Foi o que ele fez.
Em um minuto.
Levantou-se e foi até a parede, caminhando sobre pernas entorpecidas. Passou os dedos pelo apainelado Armstrong. A foto havia estado ali, bem ali. Só que agora sumira, como sumira a alça onde era pendurada. Tampouco existia o buraco em que aparafusara a alça, no apainelado.
Desapareceram.
A palavra esmaeceu abruptamente e ele cambaleou para trás, pensando alheadamente que ia desmaiar. Esforçou-se o mais que pôde, até a palavra entrar de novo em foco.
Seus olhos passaram no espaço vazio na parede, onde estivera o retrato de Lina, para o processador de palavras que seu sobrinho falecido havia montado.
Você ficaria surpreso, ouvia Nordhoff dizendo, em sua mente. Você ficaria surpreso, você ficaria surpreso, oh, sim, se um garoto dos anos cinqüenta descobria partículas que viajavam para trás no tempo, você ficaria surpreso ante o que seu genial sobrinho era capaz de fazer com um punhado de elementos rejeitados de um processador de palavras, e componentes elétricos. Ficaria tão surpreso, que julgaria estar enlouquecendo.
O cheiro do transformador agora era mais forte e intenso. Ele pôde ver fiapos de fumaça subindo das fendas no arcabouço da tela. O ruído do CPU também era mais alto.
Precisava desligar o aparelho — por mais esperto que Jon houvesse sido, aparentemente não tivera tempo de aperfeiçoar todas as engrenagens daquela coisa de loucos.
No entanto, Jon saberia que sua máquina fazia aquilo?
Sentindo-se uma ficção da própria imaginação, Richard tornou a sentar-se diante do teclado e datilografou:
A FOTO DE MINHA ESPOSA ESTÁ NA PAREDE.
Olhou para a frase por um instante, tornou a olhar para o teclado e então apertou a tecla EXECUTAR.
Olhou para a parede.
O retrato de Lina estava lá, no lugar onde sempre estivera.
— Meu Deus! — sussurrou ele. — Meu Deus do céu!
Esfregou a mão contra a face, olhou para a tela (agora vazia, exceto pelo cursor), e então datilografou:
NÃO HÁ NADA EM MEU PISO.
Tocou o botão INSERIR, depois datilografou:
EXCETO POR MIL DUZENTOS E VINTE DÓLARES EM MOEDAS DE OURO,
EM UM PEQUENO SACO DE ALGODÃO.
Apertou EXECUTAR.
Olhou para o chão, onde agora havia uma pequena sacola branca de algodão com a parte superior franzida por um cordão. As palavras WELLS FARGO estavam impressas na sacola, em desbotada tinta negra.
— Oh, Deus! — ele se ouviu dizendo, em uma voz que não era a sua. — Oh. Deus, Deus!
Teria continuado invocando o nome do Salvador por minutos ou horas, se o processador de palavras não começasse a emitir seu "bip" insistentemente para ele. No alto da tela, cintilava a palavra SOBRECARGA.
Richard desligou tudo apressadamente e saiu do estúdio como se os demônios do inferno o perseguissem.
Contudo, antes disso, ergueu o pequeno saco fechado por cordões e o enfiou no bolso da calça.
Quando ele ligou para Nordhoff aquela noite, um frio vento de novembro tocava desafinadas gaitas de foles nas árvores do exterior. O grupo de Seth estava no andar de baixo, assassinando uma canção de Bob Seger. Lina havia saído, estava jogando bingo na Igreja de Nossa Senhora das Dores Perpétuas.
— A máquina funciona? — perguntou Nordhoff.
— Funciona muito bem — respondeu Richard. Enfiou a mão no bolso e pegou uma moeda.
Era pesada — mais pesada do que um relógio Rolex. O severo perfil de uma águia salientava-se em um lado, juntamente com a data: 1871. — Funciona de uma forma que o senhor nem acreditaria.
— Eu acredito — replicou Nordhoff, tranqüilo. — Ele era um garoto muito inteligente e o queria muito, Sr. Hagstrom. Contudo, seja cauteloso. Um garoto é somente um garoto, inteligente ou não, e o amor pode ser mal orientado. Entende o que quero dizer?
Richard não entendeu nada. Sentia-se acalorado e febril. O jornal do dia registrava o preço atual do ouro no mercado a 514 dólares a onça. As moedas haviam pesado uma média de 4.5 onças cada uma, em sua balança de correspondência. A taxa corrente do mercado, o total chegava a 27.756 dólares. E ele imaginava que isso fosse apenas um quarto do que poderia conseguir por aquelas moedas, se as vendesse como moedas.
— Poderia vir até aqui, Sr. Nordhoff? Agora? Esta noite?
— Não — respondeu Nordhoff. — Acho que não devo ir, Sr. Hagstrom. Penso que isto deve ficar entre você e Jon apenas.
— Mas...
— Lembre-se apenas do que eu lhe disse. Por Deus, seja cauteloso.
Houve um ligeiro clique e a ligação foi desfeita.
Meia hora depois, Richard estava novamente em seu estúdio, olhando para o processador de palavras. Tocou o botão LIGA/DESLIGA, mas sem girá-lo. Ouvira o conselho de Nordhoff, da segunda vez em que o velho o dissera. Por Deus, seja cauteloso. Sim. Ele precisaria ser cauteloso. Uma máquina que podia fazer tais coisas...
Como podia uma máquina fazer tais coisas?
Ele não tinha idéia... mas de algum modo, isso fazia com que toda aquela loucura fosse aceita com mais facilidade. Ele era um professor de Inglês e escritor nas horas vagas, não um técnico. Possuía um longo histórico de ignorar como as coisas funcionavam: fonógrafos, motores a gasolina, telefones, televisões, o mecanismo de descarga de seu vaso sanitário. Sua vida tinha sido um histórico de entender operações, mais do que princípios. Haveria alguma diferença nisso, exceto em grau?
Richard ligou a máquina. Como antes, ela disse: FELIZ ANIVERSÁRIO, TIO RICHARD! JON. Ele pressionou EXECUTAR, e a mensagem de seu sobrinho desapareceu.
Esta máquina não funcionará por muito tempo, pensou subitamente. Tinha certeza de que Jon só estivera trabalhando nela pouco antes de morrer, confiando em que haveria tempo de sobra, porque o aniversário do Tio Richard, afinal de contas, só seria comemorado em mais três semanas...
No entanto, o tempo se esgotara para Jon, de maneira que seu totalmente espantoso processador de palavras, que parecia inserir novas coisas ou suprimir velhas coisas do mundo real, cheirava como urn transformador chamuscado de trem, começando a fumegar após poucos minutos. Jon não tivera chance de aperfeiçoá-lo. Ele estava...
Certo de que haveria tempo?
Isso, no entanto, era errado. Estava tudo errado. Richard sabia. O rosto quieto e vigilante de Jon, os olhos sóbrios por trás das espessas lentes dos óculos... ali não havia certeza, nenhuma crença na esperança do tempo. Que palavra lhe ocorrera, horas antes, nesse mesmo dia? Condenado. Esta não era apenas uma boa palavra para Jon; era a palavra certa. Aquele senso de predestinação pendera sobre o garoto, tão palpavelmente, que por vezes Richard sentira vontade de abraçá-lo, de dizer-lhe para animar-se um pouquinho, que costumava haver finais felizes e que os bons nem sempre morriam jovens.
Pensou então em Roger, atirando sua Bola-Oito Mágica na calçada, atirando-a com toda a força que podia: ouviu o plástico rachar e viu o fluido mágico da Bola-Oito — apenas água, afinal de contas — escorrer calçada abaixo. Este quadro se fundiu ao da caminhonete recauchutada de Roger, com os dizeres HAGSTROM — ENTREGAS A GRANEL, impressos em um lago, mergulhando por sobre a borda de uma poeirenta rampa que se desmoronava, batendo de frente no fundo do abismo, com um ruído que, como o próprio Roger, não era grande coisa. Ele viu — embora não querendo ver — o rosto da cunhada desintegrando-se em ossos e sangue. Viu Jon sendo carbonizado entre os destroços, gritando, enegrecendo.
Nenhuma certeza, nenhuma esperança real. Ele sempre transmitira um senso de tempo esgotando-se. E, no fim, provara que estava certo.
— O que significa isso? — murmurou Richard, olhando para a tela em branco.
Como a Bola-Oito Mágica responderia à questão? REPITA A PERGUNTA MAIS TARDE? O DESFECHO É OBSCURO? Ou talvez SERÁ MESMO?
O ruído expandindo-se do CPU voltava a ficar mais forte e mais rapidamente do que à tarde. Ele já podia sentir o cheiro do transformador do trem que Jon instalara no maquinismo atrás da tela, o qual começava a esquentar.
A máquina dos sonhos mágicos.
Seria isso? Isso mesmo que Jon pretendera dar ao tio como presente de aniversário? Na era espacial, o equivalente a uma lâmpada mágica ou a um poço dos desejos?
Ouviu a porta dos fundos de sua casa sendo aberta, depois as vozes de Seth e dos demais membros de sua banda. Vozes muito altas, estridentes. Certamente haviam estado bebendo ou fumando maconha.
— Onde está seu velho, Seth? — ouviu um deles perguntar.
— Acho que fazendo bobagens em seu estúdio, como de costume — replicou Seth. — Acho que ele...
O vento subiu novamente, levando consigo o resto da frase, mas sem apagar as debochadas risadas tribais. Richard ficou a ouvi-los, a cabeça ligeiramente de banda. De repente, datilografou:
MEU FILHO É SETH ROBERT HAGSTROM.
Seu dedo pairou sobre o botão SUPRIMA.
O que está fazendo? — sua mente gritou para ele. — Isto é sério: "Pretende assassinar seu próprio filho?
— Ele deve fazer alguma coisa lá dentro — falou um dos outros.
— O velho é um maldito imbecil — respondeu Seth. — Um dia, pergunte a minha mãe. Ela lhe dirá. Ele...
Não vou assassiná-lo. Vou... SUPRIMI-LO.
— ... nunca fez outra coisa, senão...
As palavras MEU FILHO É SETH ROBERT HAGSTROM desapareceram do vídeo.
No exterior, as palavras de Seth desapareceram com elas.
Lá fora, agora não havia outro som além do produzido pelo vento frio de novembro, soprando carrancudos prognósticos para o inverno.
Richard desligou o processador de palavras e saiu do estúdio. A entrada para carros estava vazia. Norm qualquer-coisa guitarrista líder do conjunto, dirigia uma monstruosa e, de certa forma, sinistra e velha caminhonete LTD, na qual o grupo transportava seu equipamento, ao seguir para seus pouco freqüentes compromissos musicais. Naquele momento, não estava mais estacionada na entrada de carros. Talvez estivesse em alguma parte do mundo, viajando por alguma auto-estrada ou parada no pátio de estacionamento de algum seboso estabelecimento de segunda para a venda de hamburgeres. Norm também estaria em algum ponto do mundo, como Davey, o baixista, cujos olhos eram aterradoramente apáticos e que usava um alfinete de segurança pendurado em um lóbulo de orelha, da mesma forma que o baterista, que não possuía os dentes da frente.
Seth havia sido SUPRIMIDO.
— Não tenho filho — murmurou Richard.
Quantas vezes lera essa melodramática frase em novelas ruins? Cem? Duzentas?
Aquelas palavras nunca lhe haviam soado verdadeiras. Aqui, no entanto, eram verdadeiras. Agora, eram verdadeiras. Oh, sim!
O vento aumentou de força e, de súbito, Richard foi tomado por uma dolorosa cãibra de estômago, que o fez dobrar-se em dois, ofegando. Expeliu uma explosiva ventosidade.
Quando a cãibra cedeu, ele entrou em casa.
A primeira coisa percebida foi que os surrados tênis de Seth — seu filho possuía quatro pares e recusava-se a jogar fora qualquer deles — haviam desaparecido do vestíbulo. Foi até o corrimão da escada e passou o polegar por um trecho dele. Aos dez anos (já com idade bastante para definir entre certo e errado, mas Lina não permitira que o marido batesse no filho, apesar disso), Seth esculpira profundamente suas iniciais na madeira daquele corrimão, uma madeira para a qual Richard trabalhara quase um verão inteiro. Ele havia lixado o lugar, emassara e tornara a envernizar, mas o fantasma daquelas iniciais permanecera.
Agora, elas haviam desaparecido.
Andar de cima. Quarto de Seth. Estava arrumado e limpo, desabitado, seco e desprovido de personalidade. Bem poderia ostentar um cartaz na maçaneta, dizendo QUARTO DE HÓSPEDES.
Andar de baixo. Foi onde Richard ficou mais tempo. Os enrolados de fios elétricos tinham desaparecido; amplificadores e microfones tinham desaparecido; a bagunça de peças de gravador que Seth "ia consertar", como vivia repetindo, havia desaparecido (ele não possuía as mãos e nem a concentração de Jon). Em vez disto, o lugar apresentava a profunda (se não particularmente agradável) marca da personalidade de Lina — móveis pesados e cheios de floreados, melosas tapeçarias de veludo (uma delas representando a última Ceia, na qual Cristo parecia Wayne Newton, outra mostrando uma corça contra o pôr do sol em um horizonte do Alaska), um berrante tapete, tão espaventoso como sangue arterial. Não havia mais o menor indício de que um garoto chamado Seth Hagstrom um dia houvesse ocupado aquele recinto. Aquele ou qualquer outro da casa.
Richard ainda estava parado ao pé da escada, olhando em tomo, quando ouviu um carro parar diante da casa.
Lina, pensou, e sentiu uma onda de quase frenética culpa. É Lina, voltando do bingo — e o que irá dizer, quando vir que Seth desapareceu? O que... o que...?
— Assassino! — ele a ouviu gritando. — Você assassinou o meu, filho!
Contudo, ele não assassinara Seth.
— Eu o SUPRIMI — murmurou, enquanto subia a escada do porão, para ir ao encontro dela na cozinha.
Lina estava mais gorda.
Enviara ao bingo uma mulher pesando uns noventa quilos. A mulher que voltava pesaria no mínimo cento e cinqüenta, talvez mais; ela precisava virar-se ligeiramente de banda para entrar pela porta dos fundos. Ancas elefantinas e coxa da mesma qualidade, tremelicavam em ondulados movimentos de maré por baixo das calças compridas de poliéster, cor de azeitona passando do ponto de maturidade. A pele de Lina, apenas pálida três horas antes, agora estava lívida e doentia. Embora não sendo médico, Richard decidiu que podia observar um sério risco de moléstia hepática ou incipiente doença cardíaca naquela pele. Os olhos empapuçados o fitaram com inflexível, idêntico desdém.
Ela carregava em uma das mãos rechonchudas o corpo congelado de um enorme peru.
Ele se torcia e virava dentro de seu envoltório de celofane, como o cadáver de um bizarro suicida.
— O que é que está olhando, Richard? — perguntou ela.
Você, Lina. É você que estou olhando. Porque foi nisto que você se transformou, em um mundo onde não tínhamos filhos. Nisto que você se transformou, em um mundo onde não havia nenhum objeto para o seu amor — por mais envenenado que seja esse amor. É essa aparência de Lina, em um mundo onde tudo entra e absolutamente nada sai. Você, Lina. É você que estou olhando. Você.
— Esse peru, Lina — conseguiu finalmente dizer. — É um dos maiores que já...
— Não vamos ficar aqui parados olhando para ele, idiota! Ajude-me com isto!
Ele pegou o peru e o colocou sobre o balcão, sentindo suas ondas de lúgubre friagem. Dava a impressão de um bloco de madeira.
— Aí, não! — gritou ela impacientemente, apontando para a despensa. — Não caberia! Coloque-o no freezer!
— Desculpe — murmurou ele.
Nunca haviam tido um freezer antes. Nunca, no mundo onde houvera um Seth. Richard levou o peru para a despensa, onde um comprido freezer Amana jazia sob a fria luz branca de tubos fluorescentes, como um gélido ataúde branco. Colocou-o ao lado de corpos criogenicamente preservados de outras aves e animais, depois retornou à cozinha. Lina tirara do armário os copos de manteiga de amendoim e os estava comendo metodicamente, um após outro.
— Foi o bingo do Dia de Graças — explicou ela. — Foi antecipado para esta semana, em vez de na próxima, porque o Padre Philipps será hospitalizado, para tirar a vesícula. Eu ganhei o primeiro prêmio.
Ela sorriu. Uma mistura castanha de chocolate e manteiga de amendoim pingou e escorreu de seus dentes.
— Lina — disse ele. — Nunca lamentou não termos tido filhos?
Ela o fitou como se ele houvesse ficado louco de todo.
— Em nome de Deus, para que eu quereria semelhantes trambolhos? — exclamou ela.
Enfiou no armário os copos de manteiga de amendoim, agora reduzidos à metade. — Vou para a cama. Você vem também ou volta lá para fora e fica brincando um pouco mais com sua máquina de escrever?
— Vou lá fora um pouco mais — disse ele, em voz surpreendentemente firme. — Não me demorarei.
— Aquela engenhoca funciona?
— De que está...
Richard compreendeu e tornou a sentir outro acesso de culpa. Ela sabia sobre o processador de palavras, claro que sabia. A SUPRESSÃO de Seth não afetara Roger.
Assim, permanecera a pista da família de seu irmão.
— Oh, claro que não. Não funciona de jeito nenhum.
Ela assentiu, satisfeita.
— Aquele seu sobrinho! Sempre com a cabeça nas nuvens. Como você, Richard. Se você não fosse tão tímido, eu me perguntaria se não a andou enfiando onde não devia, há quinze anos atrás.
Ela riu, um riso rouco, surpreendentemente forte — o riso de uma devassa cínica e envelhecida. Por um momento, Richard quase a esbofeteou. Então, sentiu um sorriso aflorar a seus próprios lábios — um sorriso tão leve, tão branco e frio, como o freezer Amana, que havia substituido Seth neste novo trajeto.
— Não me demoro — falou. — Quero apenas anotar algumas coisas.
— Por que não escreve um conto que mereça um Prêmio Nobel ou coisa assim? — perguntou ela, com ar indiferente. As tábuas do corredor chiaram e resmungaram, quando Lina movimentou seu volume em direção à escada. — Ainda estamos devendo a conta do oculista que fez meus óculos para ler, e atrasados em uma prestação do Betamax. Por que não nos consegue algum maldito dinheiro?
— Bem — disse Richard. — Eu não sei, Lina. Enfim, tenho algumas boas idéias esta noite.
Tenho mesmo.
Ela se virou para fitá-lo, pareceu prestes a dizer algo sarcástico — algo sobre como nenhuma das boas idéias dele os tinha levado a uma vida fácil, mas que, assim mesmo, ela continuara ao seu lado — porém nada falou. Talvez fosse impedida por qualquer coisa no sorriso dele. Lina foi para o andar de cima. Richard ficou embaixo, ouvindo as passadas estrondosas da esposa. Sentia a testa suada. Estava nauseado e eufórico ao mesmo tempo.
Dando meia volta, retornou a seu estúdio.
Desta vez, quando ele ligou a unidade, o CPU não zumbiu nem rugiu; começou a emitir um irregular som uivante. Aquele cheiro de transformador de trem aquecido chegou quase imediatamente, vindo do arcabouço por trás da tela, e assim que ele apertou o botão EXECUTAR, apagando o FELIZ ANIVERSÁRIO, TIO RICHARD! da mensagens de seu sobrinho, a unidade passou a fumegar.
Não resta muito tempo, pensou ele. Não... estou enganado. Não há mais tempo nenhum.
Jon sabia disso e agora eu também sei.
As opções reduziam-se a duas: trazer Seth de volta, com o botão INSERIR (tinha certeza de que poderia fazê-lo; seria tão fácil como havia sido a criação dos dobrões de ouro espanhóis) ou terminar o trabalho.
O cheiro ficava mais forte, mais urgente. Em pouquíssimos momentos, nada mais que isso, a tela começaria a piscar sua mensagem de SOBRECARREGADO.
Datilografou:
MINHA ESPOSA É ADELINA MABEL WARREN HAGSTROM.
Apertou o botão SUPRIMIR.
Datilografou:
SOU UM HOMEM QUE VIVE SÓ.
Agora, a palavra começou a piscar regularmente no canto superior direito da tela:
SOBRECARREGADO SOBRECARREGADO SOBRECARREGADO.
Por favor. Por favor, deixe-me terminar. Por favor, por favor, por favor...
A fumaça que saía pelas frestas no gabinete do vídeo, agora estava mais espessa e mais cinzenta. Richard baixou os olhos para o lamurioso CPU e viu que também saía fumaça de suas fendas... e abaixo daquela fumaça, pôde distinguir uma súbita faísca vermelha de fogo.
Bola-Oito, serei saudável, rico ou sábio? Ou viverei sozinho e talvez morra de tristeza?
Há tempo suficiente?
NÃO POSSO VER AGORA, REPITA MAIS TARDE.
Exceto que não haveria mais tarde.
Ele apertou o botão INSERIR e a tela escureceu, embora permanecesse a constante mensagem de SOBRECARREGADO, que agora piscava em um ritmo frenético, soluçante.
Datilografou:
EXCETO POR MINHA ESPOSA, BELINDA, E MEU FILHO, JONATHAN.
Por favor! Por favor!
Apertou o botão EXECUTAR.
A tela ficou vazia. Permaneceu vazia pelo que a ele pareceu uma eternidade, embora continuando com a palavra SOBRECARREGADO, agora piscando tão depressa que, se não fosse uma ligeira sombra, dava a impressão de permanecer constante, como um computador executando um laço fechado de comando. Algo dentro do CPU pipocou e chiou. Richard grunhiu.
As letras verdes surgiram na tela, flutuando misticamente sobre o negro:
SOU UM HOMEM QUE VIVE SÓ, EXCETO POR MINHA ESPOSA, BELINDA, E MEU FILHO, JONATHAN.
Ele apertou duas vezes o botão EXECUTAR.
Agora, pensou. Agora vou datilografar: TODOS OS DEFEITOS MECÂNICOS DESTE PROCESSADOR DE PALAVRAS FORAM TOTALMENTE ELIMINADOS ANTES QUE O SR. NORDHOFF O TROUXESSE PARA CÁ. Ou datilografarei: TENHO IDÉIAS PARA VINTE NOVELAS BEST-SELERS NO MÍNIMO Ou datilografarei: EU E MINHA FAMÍLIA VIVEREMOS FELIZES PARA SEMPRE. Ou datilografarei...
Contudo, ele nada datilografou. Seus dedos pairaram estupidamente acima das teclas, enquanto Richard sentia — sentia literalmente — todos os circuitos de seu cérebro emperrados, como carros encostados uns nos outros, no pior congestionamento de trânsito de Manhattan, na história da combustão interna.
A tela se encheu repentinamente com a palavra:
GADOSOBRECARREGADOSOBRECARREGADOSOBRECARREGA
Houve outro estouro, depois uma explosão no CPU. Chamas espicharam-se do gabinete, extinguindo-se em seguida. Richard recostou-se em sua cadeira, protegendo o rosto, para o caso da tela implodir. Ela não implodiu. Apenas ficou escura.
Ele continuou sentado, fitando o negror da tela.
NÃO POSSO RESPONDER COM CERTEZA, PERGUNTE MAIS TARDE.
— Papai?
Girou em sua cadeira, o coração batendo tão forte, que dava a impressão de realmente estar prestes a saltar do peito.
Jon estava ali, Jon Hagstrom, e seu rosto era o mesmo, porém de certo modo diferente — a diferença era sutil, mas perceptível. Talvez, pensou Richard. aquela fosse a diferença em paternidade entre dois irmãos. Ou talvez fosse porque, simplesmente, desaparecera dos olhos do garoto aquela expressão cautelosa e vigilante. Olhos ligeiramente ampliados por lentes espessas (os óculos agora tinham armação metálica, ele percebeu, não aquela feia armação industrial de plástico, que Roger sempre comprava para o garoto, porque era quinze pratas mais barata).
Talvez fosse algo até mais simples: aquele ar de condenado desaparecera dos olhos de Jon.
— Jon? — perguntou ele roucamente, perguntando-se se de fato, quisera algo mais do que isto. Quisera? Pareceu ridículo, mas supôs que sim. Supôs que as pessoas sempre queriam. — Jon, é você, não é?
— Quem mais poderia ser? — Jon apontou a cabeça para o processador de palavras. — Não se machucou, quando esse bichinho se foi para o paraíso dos dados, machucou?
Richard sorriu.
— Não, não me machuquei. Estou ótimo.
Jon assentiu.
— Sinto muito que ele não tenha funcionado. Não sei o que deu em mim, para usar todas essas peças desaparelhadas. — Meneou a cabeça. — Francamente, eu não sei. É como se tivesse que fazer isso. Coisas de criança.
— Bem — disse Richard, reunindo-se ao filho e passando um braço em torno de seus ombros, — talvez você faça um melhor, da próxima vez.
— É, talvez faça. Ou talvez eu tente uma outra coisa.
— Também seria formidável.
— Mamãe disse que fez chocolate para você, se quiser ir tomar.
— Eu quero — disse Richard.
Os dois caminharam juntos do estúdio para a casa, à qual não havia chegado nenhum peru congelado, ganho como prêmio em um torneio de bingo. — Neste momento exato, acho que uma xícara de chocolate seria excelente.
— Amanhã, vou retirar todas as peças daquela coisa que possam ser aproveitadas e jogar o resto fora — disse Jon.
Richard assentiu.
— Suprimi-a de nossas vidas — disse.
Então os dois entraram na casa, acolhidos pelo cheiro do chocolate quente, rindo juntos.
PARA OWEN
(For Owen)
"A caminho da escola, você me pergunta se as outras escolas têm graus.
Fui até a Rua das Frutas e seus olhos desviaram-se.
Enquanto caminhamos sob aquelas árvores amarelas, você tem uma marmita do exercito debaixo de um braço e suas pernas curtas, vestidas em calças militares, transformam sua sombra em uma tesoura que nada corta na calçada.
De repente, você me diz que todos os alunos são frutos.
Todos preferem as uvas-do-monte, por serem tão pequenas.
As bananas, diz você, são rapazes patrulheiros.
Em seus olhos, vejo punhados de laranjas, amontoados de maçãs.
Tudo, diz você, tem braços e pernas e as melancias geralmente são morosas.
Elas gingam e são gordas.
"Como eu", diz você.
Eu poderia dizer-lhe coisas, mas é melhor não dizer.
Crianças melancias não sabem amarrar os sapatos; as ameixas o fazem por elas.
Ou como roubar o seu rosto... roubá-lo, roubá-lo, usá-lo como meu.
Ele se gastaria logo sobre meu rosto.
Gastaria, por ficar estirado.
Eu poderia dizer-lhe que morrer é uma arte e estou aprendendo depressa.
Naquela escola, creio que você já pegou seu próprio lápis e começou a escrever o seu nome.
Entre o agora e o então, acho que podíamos um dia, você matar a aula e irmos à Rua das Frutas.
Eu estacionaria em uma chuva daquelas folhas de outubro e veríamos uma banana escoltar a última melancia morosa por aquelas portas altas."
PARANÓIDE: CANTO
(Paranoid: A Chant)
Não posso mais sair.
Há um homem junto à porta, com capa de chuva fumando um cigarro.
Mas, eu o registrei em meu diário e os envelopes estão todos alinhados sobre a cama, sangrando ao clarão de neon do bar vizinho.
Ele sabe que se eu morrer (ou mesmo desaparecer de vista) o diário será remetido e todos sabem que a CIA é na Virgínia.
500 envelopes comprados em 500 papelarias diferentes e 500 cadernetas com 500 páginas cada uma.
Estou preparado.
Posso vê-lo aqui de cima.
Seu cigarro assoma, logo acima da gola do impermeável e no metrô, em algum ponto há um homem sentado sob um anúncio e pensando em meu nome.
Homens me discutiram em salas dos fundos.
Se toca o telefone, ouve-se apenas um resfolegar.
No bar fronteiro, um revólver cano-curto trocou de mãos no banheiro dos homens.
Cada bala sua leva meu nome.
Meu nome está em arquivos secretos e trancado em arquivos de jornais.
Minha mãe tem sido investigada; felizmente está morta.
Eles têm amostras caligráficas e examinam laçadas de pês ou a barra dos tês.
Meu irmão está com eles, já lhes disse?
Sua esposa é russa e ele me instiga a preencher formulários.
Conto isso em meu diário.
Ouça...
ouça
ouça, por favor:
você deve ouvir.
Na chuva, na parada do ônibus, corvos negros, de negros guarda-chuvas, fingem olhar seus relógios, porém não está chovendo. Seus olhos são dólares de prata.
Alguns são eruditos, na folha do FBI mas em geral são estrangeiros, enxameando em nossas ruas. Eu os logrei, saltei do ônibus na Rua 25 com Lex, onde um motorista de táxi me espiou sobre seu jornal.
No quarto acima do meu, uma velha aplicou ao chão uma ventosa elétrica que envia raios através de meu lustre, e agora escrevo no escuro, ao clarão do neon do bar.
Eu lhe digo que sei.
Enviaram-me um cão de manchas castanhas e uma antena de rádio no focinho.
Afoguei-o na pia e anotei em minha pasta de papéis — GAMMA.
Não olho mais a caixa de correspondência.
Cartões de visita são cartas-bombas.
(Afastem-se! Malditos sejam! Afastem-se, conheço gente importante! Estou dizendo, conheço gente muito importante!)
A lanchonete foi feita com pisos falantes e a garçonete disse que era sal, mas eu conheço arsênico quando o põem à minha frente. E o sabor amarelo de mostarda mascara o amargo odor de amêndoas.
Tenho visto luzes estranhas no céu.
Noite passada, um homem escuro sem face rastejou nove milhas de esgotos e emergiu em minha privada, querendo ouvir telefonemas através da madeira barata com pegadores cromados.
Estou lhe dizendo, cara, eu ouço.
Vi a marca enlameado de suas mãos sujando a porcelana.
Não atendo mais o telefone, já lhe contei isso?
Eles planejam inundar a terra com imundícies.
Estão planejando invasões.
Eles conseguiram médicos que advogam estranhas posições sexuais.
Então colocando laxativos como aditivos e supositórios que queimam.
Sabem como explodir o sol usando zarabatanas.
Embalei-me em gelo — já lhe contei isso?
Assim, evito que me atinjam.
Conheço cantos e uso amuletos.
Você talvez pense que me pegou, mas posso destruí-lo agora, a qualquer momento.
Agora, a qualquer momento.
Agora, a qualquer momento.
Aceita um café, meu amor?
Já lhe disse que não posso mais sair?
Há um homem junto à porta com capa de chuva.
TIPO DE SOBREVIVENTE
Cedo ou tarde, a pergunta se apresenta a todo estudante de Medicina. Até que ponto o paciente suporta o choque de um trauma? Instrutores diferentes respondem à pergunta de diferentes maneiras mas, reduzida a seu nível básico, a resposta é sempre outra pergunta: Até que ponto o paciente deseja sobreviver?
26 de janeiro
Faz dois dias que a tempestade me derrotou. Esta manhã, medi a ilha a passos. Que ilha!
São 190 passos em sua parte mais larga e 267 de ponta a ponta.
Que me conste, nela nada existe para comer.
Meu nome é Richard Pine. Este é o meu diário. Se eu for encontrado (quando), poderei destruí-lo facilmente. Não há escassez de fósforos. De fósforos e de heroína. Há bastante de ambos. Nenhum deles vale nada por aqui, haha! Então, vou escrever. De qualquer modo, servirá para matar o tempo.
Se for para contar toda a verdade — e por que não? Sem dúvida, tempo não me falta! — devo começar dizendo que fui nascido Richard Pinzetti, na Pequena Itália de Nova York. Meu pai era um carcamano do Velho Mundo. Eu queria ser cirurgião. Meu pai riu, disse que eu era maluco e mandou que eu lhe levasse outro copo de vinho. Ele morreu de câncer, aos quarenta e seis anos. Fiquei contente.
Joguei futebol no ginásio. Fui o melhor jogador que minha escola já teve. Quarterback, o capitão do time. Nos meus dois últimos anos, fui o vencedor do torneio All-City. Eu odiava futebol. Entretanto, quando se é um pobre descendente de carcamano, precisando de iniciativa individual para entrar em uma universidade, a única saída são os esportes.
Assim, eu joguei e consegui minha bolsa-de-estudos por atletismo.
Na universidade, só joguei futebol até minhas notas serem boas o suficiente para me permitirem uma bolsa-de estudos acadêmica integral. Preparatório para Medicina. Meu pai morreu seis semanas antes de minha diplomação. Um bom negócio. Acham que eu queria cruzar aquele palco e receber meu diploma, depois olhar para baixo e ver aquela bola de gordura sentada lá? Uma galinha quer uma bandeira? Também entrei para uma fraternidade. Não era das melhores — nunca, tendo um sobrenome Pinzetti — mas ainda assim, era uma fraternidade.
Por que escrevo isto? Chega a ser quase engraçado. Não, retiro isto. É engraçado. O grande Dr. Pine, sentado em uma pedra com suas calças de pijama e uma camiseta, em uma ilha quase do tamanho de uma cusparada, escrevendo sua história. E estou com fome! Ora, não importa, escreverei a maldita história de minha vida, se quiser. Pelo menos, desviará minha mente do estômago. Mais ou menos isso.
Mudei meu sobrenome para Pine, antes de entrar para a faculdade de Medicina. Minha mãe disse que eu lhe partia o coração. Que coração? Um dia depois do meu velho estar debaixo da terra, ela já se embandeirava para o judeu da mercearia, no fim do quarteirão. Para alguém que tinha tanto amor ao nome, ela parecia com uma pressa dos diabos para trocá-lo por Steinbrunner.
Tudo quanto eu desejava era a cirurgia. Desde o ginásio. Já naquela época, ao envolver ataduras nas mãos antes de cada jogo e ao lavá-las depois. Quem quer ser um cirurgião, precisa proteger as mãos. Alguns colegas costumavam implicar comigo por causa disso, chamavam-me de covarde. Jamais lutei com eles. Jogar futebol já era risco suficiente.
Havia outros meios. Quem mais pegava no meu pé era Howie Plotsky, um imigrante grandalhão e idiota da Europa Central, com a cara coberta de espinhas. Eu entregava jornais e, juntamente com os jornais, também vendia o jogo dos números. Havia sempre uma pequena renda, brotando de vários lugares. Acaba-se conhecendo gente, compreendam, são feitas conexões. Não há outro jeito, quando se vive pelas ruas.
Qualquer filho da puta sabe como morrer. O negócio é aprender a sobreviver, entendem o que estou dizendo? Assim, paguei dez pratas ao cara mais corpulento da escola, Ricky Brazzi, para que ele fizesse a boca de Howie Plotsky desaparecer. Faça-a desaparecer, falei. Eu lhe pago um dólar para cada dente que me trouxer. Rico me trouxe três dentes, embrulhados em um guardanapo de papel. Ele deslocou duas articulações dos dedos, fazendo o trabalho, o que dá para ver em em que tipo de problema eu ia me meter.
Na faculdade de Medicina, enquanto os outros otários se matavam para continuar estudando — não houve intenção de fazer piada, ha-ha! — entre trabalhar como garçons, vender gravatas ou limpar assoalhos, eu continuava me virando. Apostas de futebol e basquete, alguns seguros. Eu permanecia em bons termos com a antiga vizinhança. E tudo correu às mil maravilhas durante a faculdade.
Só entrei no negócio ilegal de drogas, quando fazia minha residência. Eu trabalhava em um dos maiores hospitais da Cidade de Nova York. A princípio, foram apenas formulários de receitas em branco. Eu vendia um bloco com cem formulários a um sujeito da vizinhança e ele forjava os nomes de quarenta ou cinqüenta médicos diferentes, usando amostras caligráfïcas que eu também lhe vendia. O cara dava meia volta e distribuía os receituários na rua, a dez ou vinte dólares cada. Os viciados e adeptos das anfetaminas adoravam aquilo.
Depois de algum tempo, descobri a confusão que era a farmácia do hospital. Ninguém sabia o que entrava ou saía. Havia gente arrastando artigos a mancheias. Eu, não.
Sempre tive o máximo cuidado. Nunca me envolvi em problemas até ficar descuidado — e sem sorte. Contudo, vou aterrar em cima dos pés. Sempre aterro.
Não posso continuar escrevendo. Meu pulso está cansado e gastei a ponta do lápis.
Aliás, não sei por que me preocupo. Alguém logo estará me tirando daqui.
27 de janeiro
O barco saiu à deriva esta noite e afundou em três metros de água, ao norte da ilha. E daí? O fundo, afinal, estava mais furado do que queijo suíço, depois de bater nos recifes.
Eu já havia desembarcado tudo que representasse valor. Quatro galões de água. Um estojo de costura. Um estojo de pronto-socorro. Este livro no qual escrevo, que se presume deveria ser um registro de inspeção de barco salva vidas. Aí está a piada. Onde já se ouviu falar em um barco salva-vidas sem nenhuma COMIDA a bordo? O último registro aqui anotado, foi de 8 de agosto de 1970. Oh, sim, recolhi também duas facas, uma cega, a outra razoavelmente afiada, uma combinação de garfo e colher. Serão usados quando eu comer a minha ceia, esta noite. Pedra assada. Ha-ha! Bem, pelo menos, consegui fazer a ponta em meu lápis.
Quando der o fora desta pilha de rochas salpicadas de guano, vou processar a Paradise Lines, Inc., arrancar-lhe a pele. Vale a pena viver, nem que seja só para isso. Vou me livrar desta. Não tenham dúvidas a respeito. Vou sair daqui.
(mais tarde)
Quando fazia meu inventário, esqueci uma coisa: dois quilos de heroína pura, valendo cerca de 350.000 dólares, preço da rua, em Nova York. Aqui, seu valor é zero absoluto.
Não é engraçado? Ha-ha!
28 de janeiro
Bem, consegui comer — se aquilo se chama comer. Havia uma gaivota encarapitada em uma das rochas no centro da ilha. Naquele ponto, as rochas ficam amontoadas, em uma espécie de montanha em miniatura — todas elas também cobertas de bosta de aves.
Peguei uma pedra que se ajustava à minha mão e escalei as rochas. Até o mais próximo que ousei. A gaivota continuou lá, em cima de sua rocha, fitando-me com brilhantes olhos negros. Fiquei surpreso por não assustá-la com os roncos de meu estômago.
Atirei a pedra com quanta força pude e a atingi de lado. A gaivota soltou um grasnido alto e tentou fugir voando, mas eu lhe quebrara a asa direita. Subi dificultosamente o resto das rochas, mas ela escapou. Pude ver o sangue pontilhando suas penas brancas. A filha da mãe obrigou-me a uma verdadeira caçada; uma vez no outro lado do monte central de rochas, enfiei o pé na fenda entre duas pedras e quase fraturei o tornozelo.
A gaivota finalmente começou a ficar cansada e acabei agarrando-a no lado leste da ilha. Aliás, ela tentava entrar na água e ir embora nadando. Aferrei um punhado das penas de sua cauda, ela se virou e bicou-me. Então, peguei-a pelo pé. Pus a outra mão em torno de seu miserável pescoço e o torci. O som da fratura me encheu de satisfação.
O almoço está servido, ouviram? Ha-ha!
Levei-a para meu "acampamento", mas antes de depená-la e estripá-la, passei iodo na ferida produzida por sua bicada. Aves possuem todo tipo de micróbios transmissíveis e, no momento, o último de que preciso é uma infecção.
A operação na gaivota transcorreu normalmente. Não pude cozinhá-la, o que foi uma pena. Afinal, na ilha não existe qualquer tipo de vegetação ou madeira atirada pelas ondas, além do que, o bote afundou. Assim, comi a carne crua. Meu estômago queria expulsá-la em seguida. Eu compreendi, mas não permiti que o fizesse. Contei em ordem regressiva, até passar a náusea. Isto quase sempre funciona.
Podem imaginar aquela ave, quase me quebrando o tornozelo e depois me bicando? Se pegar outra amanhã, vou torturá-la. Deixei que esta escapasse da tortura fácil demais.
Agora enquanto escrevo, posso olhar para sua cabeça decepada, na areia. Os olhos negros, mesmo com o vidrado da morte, parecem zombar de mim.
Gaivotas terão alguma quantidade de cérebro?
Serão comíveis?
29 de janeiro
Nada para mascar hoje. Uma gaivota pousou perto do alto da pilha de rochas, mas fugiu voando, antes que eu chegasse perto o bastante para "dar-lhe uma rasteira", ha-ha!
Minha barba começa a crescer e coça como o diabo. Se a gaivota voltar e eu conseguir pegá-la, vou arrancar-lhe os olhos antes de comê-la.
Fui um danado de cirurgião, como creio já ter dito. Eles me botaram para fora.
Francamente, chega a ser engraçado; eles fazem qualquer sujeira, mas ficam revoltados, hipocritamente revoltados, quando alguém é apanhado fazendo o mesmo. Dane-se, Jack, desde que não seja eu! O Segundo Juramento de Hipócrates e Hipócritas.
Eu havia juntado o suficiente com minhas aventuras quando interno e residente (presume-se que o cara então seja como um dignitário e cavalheiro, segundo o Juramento de Hipócritas, mas não acreditam nisso), para poder instalar consultório em Park Avenue. Foi também uma boa coisa para mim; eu não tinha nenhum papai rico ou patrocinador estabelecido, como tantos de meus "colegas". Quando pude pregar minha tabuleta de profissional, fazia nove anos que meu pai estava na cova dos indigentes.
Minha mãe faleceu um ano antes de ser cassada a minha licença para clinicar.
Aquilo foi um atraso de vida. Eu me envolvera com meia dúzia de farmacêuticos do East Siei, com duas firmas fornecedoras de medicamentos e pelo menos vinte outros médicos. Os pacientes eram enviados para mim e eu enviava pacientes. Continuava operando e prescrevendo a correta medicação pós-operatório. Nem todas as cirurgias eram necessárias, porém jamais fiz uma só contra a vontade do paciente. E nunca tive um paciente que lesse o escrito no receituário e dissesse, "Não quero isto". Ouçam: se a gente permitir, elas têm uma histerectomia em 1965 ou uma tireóide parcial em 1970 e, cinco ou dez anos mais tarde, continuam tomando sedativos. Algumas vezes eu permitia. Não era o único, compreendam. Tais pacientes podem custear o hábito. Por outro lado, às vezes um paciente tem problemas para dormir, após uma cirurgia de pouca monta. Ou problemas para conseguir pílulas de dieta. Ou Librium. Tudo podia ser arranjado. Ha!
Claro! E, se não arranjassem comigo, arranjariam com alguém mais.
Então, o pessoal dos impostos chegou a Lowenthal. Aquele carneiro covarde. Jogaram-lhe cinco anos na cara e ele tossiu meia dúzia de nomes. Um deles era o meu. Vigiaram-me por algum tempo e, quando aterraram, eu valia muito mais do que cinco anos.
Existiam alguns outros envolvimentos, além dos formulários em branco, do qual eu não desistira por completo. É curioso, mas eu não precisava mais daquilo, porém se formara o hábito. É difícil abrir mão de uma grana extra.
Bem, eu conhecia algumas pessoas. Movi os cordões. E atirei dois sujeitos aos lobos.
Ninguém de quem eu gostasse, contudo. Os que entreguei aos federais eram verdadeiros filhos da mãe.
Céus, que fome estou sentindo!
30 de janeiro
Hoje não há gaivota. Isto me recorda os avisos que, às vezes, vemos nas carrocinhas lá no subúrbio. HOJE NÃO HÁ TOMATE. Entrei na água até a cintura, levando na mão a faca amolada. Fiquei absolutamente imóvel, no mesmo lugar, durante quatro horas com o sol batendo em mim. Por duas vezes, pensei que fosse desmaiar, mas contei retroativamente, até passar a sensação. Não vi peixe nenhum. Não havia um só para amostra.
31 de janeiro
Matei outra gaivota, da mesma forma que a primeira. Estava tão faminto, que não a torturei como havia premeditado. Tirei-lhe as tripas e a comi. Depois, espremi as tripas, que comi também. É estranho como sentimos a vitalidade renascendo. Eu começava a assustar-me. Deitado à sombra dá grande pilha central de rochas, pensava ouvir vozes.
A de meu pai. De minha mãe. De minha ex-esposa. E, pior que tudo, também do grande cara que me vendeu a heroína em Saigon. Ele tinha uma voz ciciante, possivelmente devido a uma fenda palatina parcial.
— Vamosss — dizia sua voz, vinda de nenhures. — Vamosss, dê uma sseirada. Assim, não perccceberá que essstá com tanta sssome. É uma belezzza...
Só que eu nunca me dopei, nem mesmo com pílulas para dormir.
Lowanthal se matou, ha contei? Aquele covarde. Enforcou-se no que era seu escritório.
Da maneira como penso, prestou um favor ao mundo.
Eu queria minha licença de volta. Algumas das pessoas com quem falei, achavam que seria possível — mas ia custar uma nota alta. Mais do que eu poderia imaginar. Eu tinha 40.000 em um cofre no banco. Decidi que precisaria correr o risco e modificar a situação. Dobrar ou triplicar aquela grana.
Então, procurei Ronnie Hanelli. Eu e Ronnie jogamos futebol juntos na universidade e, quando seu irmão menor se decidiu por medicina interna, ajudei-o a conseguir uma residência hospitalar. O próprio Ronnie fazia preparatórios para Direito, não é engraçado? Quando estávamos crescendo, no quarteirão costumávamos chamá-lo de Ronnie Legal, porque ele apitava todos os jogos de stickball e arbitrava o hóquei. Quem não gostasse de suas decisões, podia escolher — ficar de boca fechada ou comer socos. Os porto-riquenhos o chamavam de Ronniecarcamano. Tudo em uma só palavra. Ronniecarcamano. Isso o chateava. Pois esse cara fez faculdade, diplomou-se em leis e foi aprovado sem a menor dificuldade, da primeira vez em que se submeteu aos exames para advogar. Então, montou escritório na antiga vizinhança, bem em cima do Bar Aquário. Fecho os olhos, e ainda posso vê-lo cruzando o quarteirão naquele seu Continental branco. O maior tubarão da cidade, em questão de empréstimos.
Eu sabia que Ronnie tinha algo para mim.
— É perigoso — disse ele — mas você sempre pode cuidar de si mesmo. E se conseguir a licença de volta, eu o apresentarei a dois sujeitos. Um deles é um representante estadual.
Ele me forneceu dois nomes. Um deles era do grande china, Henry Li-Tsu. O outro era de um vietnamita chamado Solom Ngo. Um químico. Por um preço estipulado, testaria o produto do China. China era conhecido por suas "brincadeiras" eventuais. As "brincadeiras" eram sacos plásticos repletos de talco, de detergente em pó para limpar esgotos, de maisena. Ronnie dizia que, um dia, Li-Tsu ainda seria morto por causa de suas piadinhas.
l de fevereiro
Houve um avião. Voou diretamente em cima da ilha. Tentei subir ao monte de rochas e acenar para ele. Meu pé enfiou-se em um buraco. Aquele mesmo maldito buraco que me prendeu, no dia em que matei a primeira gaivota, presumo. Fraturei o tornozelo, fratura composta. Foi como um balanço. Uma dor indescritível. Gritei e perdi o equilíbrio, girando os braços como louco, mas acabei rolando até embaixo, bati com a cabeça e tudo ficou negro. Só acordei quando já era crepúsculo. Perdi algum sangue, onde bati com a cabeça. Meu tornozelo havia inchado como um pneu e, de quebra, tive um sério caso de queimadura por exposição ao sol. Acho que se houvesse uma hora a mais de sol, eu acabaria com bolhas na pele.
Arrastei-me até aqui e passei a última noite tiritando e chorando de frustração.
Desinfetei o ferimento da cabeça, logo acima do lobo temporal direito. Coloquei ataduras, o melhor que pude. Foi apenas um ferimento superficial do couro cabeludo, mais uma concussão secundária, suponho, porém meu tornozelo... Foi uma coisa feia, envolvendo dois lugares, talvez três.
Como vou poder perseguir as aves agora?
Só podia ser um avião em busca de sobreviventes do Callas. Com a escuridão e a tempestade, o barco salva-vidas pode ter sido levado para quilômetros e quilômetros de distância do local do naufrágio. É possível que nem voltem mais por aqui.
Céus, e com meu tornozelo doendo tanto!
2 de fevereiro
Fiz um sinal, na pequena praia de areia branca no lado sul da ilha, aonde o barco salva-vidas aportou. Levei o dia inteiro, com paradas para descansar na sombra.
Mesmo assim, perdi os sentidos duas vezes. Imagino que já tenha perdido uns doze, treze quilos, em especial pela desidratação. Agora, contudo, de onde estou sentado, posso ver as quatro letras que levei o dia inteiro escrevendo; rochas escuras contra a areia branca, dizendo HELP (Socorro), em letras de metro e meio de altura. Se outro avião passar, não me perderá.
Se houver outro avião.
Meu pé lateja constantemente. Continua inchado e muito vermelho em torno da fratura dupla. A vermelhidão parece ter aumentado. Amarrando apertadamente com minha camisa, alivio o pior da dor, porém ela continua forte, a ponto de eu antes perder os sentidos, do que dormir.
Comecei a pensar que talvez precise amputá-lo.
3 de fevereiro
A inchação e a vermelhidão estão piores. Vou esperar até amanhã. Se a operação se tornar necessária, acho que conseguirei levá-la a cabo. Tenho fósforos para esterilizar a faca amolada, além de agulha e linha do estojo de costura. Minha camisa servirá como atadura.
Para cúmulo, conto com dois quilos de "sedativo", embora dificilmente do tipo que eu receitaria. Contudo, as pessoas o tomariam, se pudessem consegui-lo. Podem apostar.
Aquelas velhas damas de cabelos azulados cheirariam qualquer coisa, se pensassem que isso as deixaria altas. Podem crer!
4 de fevereiro
Decidi amputar meu pé. Agora, há quatro dias que não como. Se esperar mais tempo, corro o risco de desmaiar, de choque e de fome no meio da operação, com uma hemorragia que me levará à morte. Afinal, embora esteja um trapo, eu quero viver.
Lembro-me do que Mockridge costumava dizer, em Anatomia Básica. Nós o chamávamos de Velho Mockie. Cedo ou tarde, a pergunta se apresenta a todo estudante de Medicina. Até que ponto o paciente suporta o choque de um trauma? Então, ele seguia o mapa do corpo humano com sua ponteira, indicando o fígado, os rins, o coração, o baço, os intestinos. Reduzida a seu nível básico, senhores, a resposta é sempre outra pergunta: Até que ponto o paciente deseja sobreviver?
Creio que posso ser bem sucedido.
Tenho certeza.
Acho que estou escrevendo para adiar o inevitável, mas ocorreu-me que ainda não terminei a história de como vim parar aqui. Talvez devesse preencher essa lacuna, para o caso da operação dar errado. Levarei apenas alguns minutos e estou certo de que sobrará claridade — luz do dia — suficiente para a operação, porque, segundo meu Pulsar, são apenas nove e nove da manhã. Ha!
Voei para Saigon como turista. Parece estranho? Pois não devia. Ainda existem milhares de visitantes para lá todos os anos, a despeito da guerra de Nixon. Há pessoas que também gostam de ver destroços de veículos e brigas de galo.
Meu amigo chinês tinha a mercadoria. Levei-a a Ngo, que a declarou material de pureza máxima. Ele me contou que Li-Tsu tinha feito uma de suas brincadeiras quatro meses atrás e que sua esposa voara em pedaços, ao ligar a ignição de seu Opel. Desde então, não houvera mais brincadeiras.
Fiquei três semanas em Saigon; havia comprado passagem de volta a São Francisco em um navio-cruzeiro, o Callas. Camarote de primeira classe. Não houve problemas para subir a bordo com a mercadoria. Por uma certa quantia, Ngo arranjou para que dois funcionários aduaneiros simplesmente me acenassem para ir em frente, após a vistoria em minhas malas. A mercadoria estava acondicionada em uma sacola de vôo, que eles nem se deram ao trabalho de verificar.
— Vai ser mais difícil passar pela alfândega dos Estados Unidos — disse-me Ngo. — Contudo, isso é problema seu.
Eu não pretendia fazer a mercadoria passar pela aduana americana. Ronnie Hanelli conseguira que um mergulhador fizesse um certo trabalhinho arriscado por 3.000 dólares. Eu deveria encontrá-lo (agora que penso nisso, seria há dois dias passados) em um cortiço de São Francisco, chamado Hotel São Regis. O plano era colocar a mercadoria em uma lata à prova d'água. Adaptados ao topo haveria um timer e um pacote de corante vermelho. Pouco antes de atracarmos, a lata seria atirada ao mar — mas não por mim, naturalmente.
Eu ainda procurava um cozinheiro ou camareiro que aceitasse uma nota extra e fosse esperto — ou estúpido o bastante — para ficar de boca fechada depois disso, quando o Callas afundou.
Não sei como e nem por quê. Havia uma tempestade, mas o navio parecia enfrentá-la perfeitamente. Por volta de oito da noite do dia 23, houve uma explosão em algum lugar, abaixo dos conveses. No momento, eu me encontrava no salão, e o Callas começou a adernar quase imediatamente. Para a esquerda... eles chamam de "bombordo" ou "estibordo"?
Pessoas gritavam e corriam para todos os lados. Garrafas caíam das prateleiras no fundo do bar e estilhaçavam-se no chão. Um homem irrompeu dos níveis mais baixos, cambaleando, com a camisa queimada e a pele transformada em churrasco. O alto falante começou a dizer às pessoas que se encaminhassem para os postos de barcos salva-vidas que lhes tinham sido designados durante o treinamento contra incêndio, no início do cruzeiro. Os passageiros continuaram correndo de um lado para outro. Bem poucos se tinham dado ao trabalho de comparecer ao treinamento. Eu, não só compareci, como cheguei cedo— queria estar na primeira fila, compreendam, de maneira a ter uma visão total de tudo. Sempre dedico a máxima atenção a tudo, quando se trata de conservar a pele.
Fui a meu camarote, peguei as sacolas de heroína e coloquei cada uma em meus bolsos da frente. Depois segui para o Posto de Barcos Salva-vidas 8. Quando subia a escada para o convés principal, houve mais duas explosões e o barco passou a inclinar-se ainda mais acentuadamente.
A confusão predominava no ambiente. Vi uma mulher gritando com um bebê nos braços, enquanto passava por mim. Então, ela escorregou no piso cada vez mais inclinado. Bateu com as coxas na amurada e caiu fora do barco. Ainda a vi girar duas vezes em pleno ar e iniciar um terceiro giro, antes de perdê-la de vista. Um homem de meia idade, sentado no centro do jogo de mareias, no tombadilho, arrancava os cabelos. Outro homem, em trajes de cozinheiro, horrivelmente queimado no rosto e mãos, cambaleava de um lugar para outro, gritando, "AJUDEM-ME! EU NÃO CONSIGO ENXERGAR! AJUDEM-ME! NÃO CONSIGO ENXERGAR!— O pânico era quase total! Transmitira-se dos passageiros à tripulação, como uma doença.
Lembrem-se de que o tempo decorrido entre a primeira explosão até o real afundamento do Callas, foi de somente vinte minutos. Alguns postos dos escaleres estavam apinhados de gente gritando, enquanto outros se encontravam absolutamente vazios. O meu, no lado do barco que adernava, estava quase deserto: apenas eu e um marinheiro comum, de rosto pálido e com espinhas.
— Vamos logo botar este filho da puta na água — disse ele, com os olhos girando loucamente nas órbitas. — Esta maldita banheira vai direto para o fundo.
Não há dificuldade em operar-se as engrenagens de um barco salva-vidas, mas em seu crescente nervosismo, o marinheiro emaranhou todo o seu lado da cordoalha. O barco desceu dois metros, depois ficou pendurado, a proa meio metro mais baixa do que a popa.
Eu ia aproximar-me para ajudá-lo, quando ele começou a gritar. Conseguiu desemaranhar a cordoalha e ficar com a mão presa, ao mesmo tempo. A corda que se desenrolava raspou firme sobre sua mão aberta, arrancando a pele, e ele foi expelido por sobre a borda.
Joguei a escada de cordas para baixo, desci por ela apressamente e soltei o escaler da cordoalha que o abaixava. Depois remei, algo que havia feito ocasionalmente por prazer, quando nas casas de veraneio dos amigos — algo que agora fazia para salvar minha vida. Sabia que, se não me afastasse o suficiente do agonizante Callas antes que ele afundasse, a sucção me levaria para o fundo com ele.
Apenas cinco minutos mais tarde, o Cállas afundou. Eu não escapara inteiramente à sucção; precisei remar como louco, apenas para ficar no mesmo lugar. O navio afundou rapidamente. Ainda havia pessoas aferradas à amurada da proa, aos gritos. Pareciam um bando de macacos.
A tempestade aumentou. Perdi um remo, porém consegui manter o outro. Passei toda aquela noite em uma espécie de sonho, primeiro esvaziando a água do fundo, depois agarrando o remo e remando furiosamente, para manter a proa do bote na direção da próxima onda que se avolumava.
Pouco antes do alvorecer do dia 24, as ondas começaram a ficar mais fortes atrás de mim. O barco arremeteu para diante. Eu estava aterrorizado, mas eufórico ao mesmo tempo. De repente, a maioria das tábuas do fundo foi arrancada de sob os meus pés.
Antes, entretanto, que o escaler pudesse afundar, foi atirado para este monte de rochas esquecido por Deus. Eu nem ao menos sabia onde estava; não tinha a menor idéia de minha localização. Navegar nunca foi o meu ponto alto, ha-ha!
Contudo, sei o que tenho a fazer. Este talvez seja o último registro neste livro, mas creio que terei êxito, de algum modo. Não o tive sempre? Por outro lado, hoje em dia fazem coisas espetaculares, em matéria de próteses. Posso me virar muitíssimo bem, com apenas um pé.
Chegou A hora de verificar se sou tão bom como imagino. Sorte!
5 de fevereiro
Já fiz.
A dor era a parte que mais me preocupava. Posso suportá-la, mas pensei que, em minha condição debilitada, uma mistura de fome e agonia poderia levar-me ao desfalecimento, antes que conseguisse terminar.
A heroína, no entanto, resolveu isto completamente.
Abri uma das sacolas e aspirei duas boas pitadas, sobre a superfície de uma rocha plana — primeiro a narina direita, depois a esquerda. Foi como aspirar algo gelado e maravilhosamente entorpecedor, que se espalhou pelo cérebro, de baixo para cima.
Aspirei a heroína, assim que terminei de escrever neste diário ontem, isso foi às 9:45.
Quando tornei a consultar meu relógio, as sombras se tinham movido, deixando-me parcialmente ao sol, e já eram 12:41. Eu havia cochilado. Nunca imaginei que isso poderia ser tão belo, não entendo por que era tão desdenhoso antes. A dor, o terror, a infelicidade... tudo desaparece, deixando apenas uma calma euforia.
Foi neste estado que operei.
Naturalmente, houve muita dor, a maioria dela na parte terrena da cirugia. Contudo, ela parecia desligada de mim, como se fosse a dor em outra pessoa. Isso me perturbou, porém foi algo muito interessante. Dá para entender? Talvez vocês entendam, se usarem uma forte medicação com base de morfina. Trata-se de algo mais do que a dor imprecisa. Induz a um estado de mente. A uma serenidade. Posso compreender porque as pessoas ficam viciadas, embora "viciado" me pareça uma palavra demasiado forte, mais comumente usada por aqueles que nunca experimentaram.
Embora sentida a meio, a dor começou a tornar-se uma coisa mais pessoal. Fui invadido por ondas de vertigem. Olhava ansiosamente para a sacola aberta do pó branco, mas me forçava a desviar os olhos. Se repetisse a dose, teria uma hemorragia fatal, tão certa como se perdesse os sentidos. Em vez disso, contei retroativamente, a partir de cem.
A perda de sangue era o fator mais crítico. Como cirurgião, eu estava vitalmente cônscio disso. Nem uma gota podia ser perdida desnecessariamente. Quando um paciente sofre uma hemorragia, durante uma cirurgia no hospital, podemos dar-lhe uma transfusão de sangue. Eu não dispunha de tais luxos. O que estava perdido — e quando terminei, a areia debaixo de minha perna estava escura de sangue — perdido estava, até que minha fábrica interna renovasse o suprimento. Eu não tinha pinça, hemostatos ou fio cirúrgico.
Iniciei a cirurgia exatamente às 12:45. Terminei-a às 13:50 e imediatamente mediquei-me com heroína, uma dose maior do que antes. Penetrei em um mundo cinza e indolor, lá permanecendo até quase as cinco da tarde. Quando saí dele, o sol aproximava-se do horizonte oeste, esbatendo uma trilha dourada através do Pacífico azul, até onde me encontrava. Nunca vi nada mais belo... toda a dor valeu por apenas aquele instante. Uma hora depois, cheirei uma pitada mais, apenas para saborear e apreciar melhor o pôr-do-sol.
Logo depois do escurecer, eu...
Eu...
Um momento. Já lhes contei que estou sem comer nada há quatro dias? E que a única ajuda de que me vali, na questão de reabastecer minha debilitada vitalidade foi meu próprio corpo? Acima de tudo, não lhes disse, incessantemente, que a sobrevivência é uma atividade da mente? Da mente superior? Não pretenderei justificar-me, alegando que vocês teriam feito o mesmo. Em primeiro lugar, o mais provável é que não sejam cirurgiões. Mesmo que estivesse a parda mecânica da amputação, poderiam manejar tão mal a situação, que de qualquer modo sangrariam até a morte. E, mesmo que suportassem a operação e o choque do traumatismo, talvez a idéia nunca penetrasse em suas mentes pré-condicionadas. Não faz diferença. Ninguém vai saber. Meu último ato, antes de deixar a ilha, será destruir este livro.
Fui muito cuidadoso.
Lavei-o minuciosamente, antes de comê-lo.
7 de fevereiro
A dor no coto foi terrível — lancinante de quando em quando. No entanto, creio que a arraigada comichão, à medida que se inicia o processo de cicatrização, tem sido o pior.
Esta tarde, fiquei pensando em todos os pacientes que se queixavam de não suportarem a terrível e não-coçável coceira da carne em falta. Eu sorria, dizia a eles que no dia seguinte se sentiriam melhor, pensando comigo mesmo como eram lamentosos e moles, aqueles bebês ingratos. Agora, posso compreender. Por várias vezes, estive perto de rasgar e arrancar as ataduras feitas com minha camisa e coçar, cravar os dedos na carne viva e macia, puxar as suturas rudes, deixar o sangue esguichar para a areia, qualquer coisa, tudo enfim, para ficar livre dessa enlouquecedora, horrível coceira.
Em tais momentos, eu contava regressivamente, começando em cem. E cheirava heroína.
Não faço idéia da quantidade que já lancei em meu organismo, porém sei que tenho ficado "dopado" quase continuamente, desde a operação. A heroína diminui a fome, como sabem. Mal tenho consciência de estar faminto. Existe um vago e distante vazio em meu estômago e isso é tudo. Poderia ser facilmente ignorado. Contudo, não posso fazer isso. A heroína não possui valor calórico mensurável. Estive me testando, rastejando de um lugar para outro, medindo minhas energias. Estão acabando.
Oh, Deus, espero que não, mas... talvez seja necessária outra cirurgia. (mais tarde)
Outro avião sobrevoou a ilha. Alto demais, para me ser útil; tudo quanto pude ver foi a esteira de vapor do jato, espichando-se no céu. Mesmo assim, acenei para ele. Acenei e gritei para ele. Depois que desapareceu, eu chorei.
Está ficando muito escuro para enxergar. Comida. Estive pensando em todos os tipos de comida. A lasanha de minha mãe. Pão de alho. Lagosta. Escargots. Filé mignon.
Pêssegos melba. Grelhado londrino. A enorme fatia de bolo inglês e a concha de creme de baunilha feito em casa, que nos dão por sobremesa no "Mother Crunch" da Primeira Avenida. Pãezinhos quentes, salmão defumado, Alaska defumado, presunto defumado com rodelas de abacaxi. Rodelas de cebola. Molho acebolado com batatas fritas, chá gelado em longos, longos goles, batatas fritas fazem a gente lamber os beiços.
100, 99, 98, 97, 96, 95, 94
Deus, Deus, Deus.
8 de fevereiro
Outra gaivota pousou no monte de rochas esta manhã. Uma das gordas. Eu estava sentado à sombra de minha rocha, o que considero meu acampamento, com o coto envolvido nas ataduras e bem apoiado. Comecei a salivar, assim que a gaivota pousou.
Exatamente como um dos cães de Pavlov. Babando impotentemente, como um bebê.
Igual a um bebê.
Peguei uma pedra, grande o bastante para ficar bem ajustada em minha mão, e comecei a engatinhar para a gaivota. Quarto quarter. Estamos agora reduzidos a três. Terceira e longa yardage. Pinzetti recua para o passe (Pine, quero dizer, Pine). Eu não tinha tanta esperança. Estava certo de que a gaivota voaria. Contudo, precisava tentar. Se pudesse apanhá-la, uma ave tão gorda e insolente como aquela, poderia adiar indefinidamente uma segunda operação. Rastejei para ela, com o coto batendo em uma rocha de quando em quando e enviando estrelas de dor por todo o meu corpo. Esperei que ela voasse.
Não voou. Apenas andou de um lado para outro, seu peito carnudo empinado, como o de algum general avícola, passando tropas em revista. De vez em quando olhava para mim com seus olhinhos astutos e eu ficava rígido como uma pedra, contava de trás para diante, começando de cem, até ela recomeçar a andar para cá e para lá. A cada vez que ela agitava as asas, meu estômago parecia encher-se de gelo. Continuei babando. Não era possível controlar-me. Estava babando como um bebê.
Não sei por quanto tempo a fiquei espreitando. Uma hora? Duas? E quanto mais perto eu chegava, mais meu coração disparava e mais saborosa me parecia a gaivota. Ela dava a impressão de zombar de mim. Comecei a acreditar que, tão logo eu chegasse à distância de tiro, ela voaria para fora de meu alcance. Meus braços e pernas tinham começado a tremer. Eu sentia a boca seca. O coto latejava de modo lancinante. Agora, penso que devia estar sentindo dores por falta da droga. Bem, mas tão cedo? Fazia menos de uma semana que eu a vinha usando!
Não importa. Eu precisava dela, preciso. Há muita heroína ainda, bastante. Se tiver que me submeter a um período de cura mais tarde, quando voltar aos States, interno-me na melhor clínica da Califórnia e tudo será como uma brincadeira. No momento, o problema não é este, certo?
Quando cheguei a uma boa distância para acertar, não quis atirar a pedra. Fiquei insanamente convicto de que erraria, provavelmente por mais de metro. Precisava chegar mais perto. Assim, continuei a rastejar para o alto do monte de rochas, a cabeça jogada para trás, o suor escorrendo de meu corpo debilitado de espantalho. Meus dentes haviam começado a cariar, já lhes contei? Se fosse um cara supersticioso, diria que era porque tinha comido...
Ha! Nós sabemos o que, não é mesmo?
Parei novamente. Estava muito mais perto dela do que o estivera das outras gaivotas.
Contudo, não conseguia forçar-me a jogar-lhe a pedra. Aferrei-a na mão até os dedos doerem, mas continuava sem atirá-la. Porque sabia exatamente o que ia acontecer, caso falhasse a pontaria.
Pouco me importo se usar toda a mercadoria! Processarei todos eles, até o fim! Ficarei numa boa pelo resto da vida! De minha longa vida!
Penso que teria rastejado até a gaivota, sem jogar a pedra, se ela finalmente não voasse.
Eu chegaria até o alto e a estrangularia. No entanto, a maldita bateu as asas e fugiu.
Gritei para ela, ergui-me nos joelhos e atirei a pedra, com todas as forças. E acertei!
A enorme ave soltou um grasnido estrangulado e caiu no outro lado do monte de rochas.
Rindo e falando incoerentemente, agora pouco ligando se batia com o coto em algum obstáculo ou abria a ferida, rastejei até o alto e para o outro lado. Perdi o equilíbrio e bati com a cabeça. Nem mesmo dei por isso, não no momento, embora houvesse se formado um galo enorme. Eu só conseguia pensar na gaivota e em como a tinha acertado, uma sorte fantástica, em pleno ar. Eu a acertara!
No outro lado da pilha de rochas, ela saltava desajeitadamente para a praia, uma asa quebrada, a parte inferior do corpo vermelha de sangue. Engatinhei o mais depressa que pude, porém ela era ainda mais rápida. Uma corrida de aleijados! Ha! Ha! Eu podia tê-la agarrado — a distância diminuía entre nós — se não fosse por minhas mãos. Preciso ser muito cuidadoso com elas. Posso vir a precisar das mãos novamente. A despeito de meus cuidados, as palmas estavam laceradas, quando alcancei a estreita faixa de praia, além de estilhaçar o mostrador de meu Pulsar contra a crista de uma pedra.
A gaivota saltou para a água, grasnindo repulsivamente, mas consegui alcançá-la.
Agarrei um punhado de penas de sua cauda, que ficou entre meus dedos. Depois caí, inalando água, fungando e asfixiando.
Rastejei mais. Inclusive, tentei nadar atrás dela. As ataduras me caíram do coto. Comecei a afundar. Pude apenas retornar à praia, trêmulo de exaustão, dilacerado pela dor, chorando e gritando, xingando a gaivota. Ela ficou flutuando por muito tempo, sempre cada vez mais distante. Tenho a impressão de que, a certa altura, eu lhe pedia que voltasse. No entanto, quando se foi, por sobre o recife, acho que estava morta.
Não é justo.
Levei quase uma hora engatinhando para meu acampamento. Cheirei uma boa dose de heroína mas, mesmo assim, continuo francamente furioso com a gaivota. Se eu não ia consegui-la, por que ela havia de zombar de mim? Por que não se limitou a fugir voando?
9 de fevereiro
Amputei meu pé esquerdo e o envolvi em ataduras feitas com minhas calças. Curioso.
Durante toda a cirurgia, eu fiquei babando. Babaaando. Do mesmo jeito de quando vi a gaivota. Babando irremediavelmente. Contudo, obriguei-me a esperar até depois do escurecer. Fiquei contando para trás, a partir de cem... vinte ou trinta vezes! Ha! Ha!
E então...
Fico repetindo para mim mesmo: rosbife frio. Rosbife frio. Rosbife frio.
11 (?) de fevereiro
Choveu nos dois últimos dias. Também ventou forte. Consegui mover algumas rochas da pilha central, suficientes para fazer um buraco onde pudesse abrigar-me. Encontrei uma aranha pequenina. Apertei-a entre os dedos, antes que pudesse fugir, depois a comi.
Muito gostosa. Suculenta. Refleti que as rochas acima de mim podem cair e sepultar-me vivo. Não me importo.
Passei dopado toda a tempestade. Talvez tenha chovido três dias, em vez de dois. Ou apenas um. Contudo, acho que escureceu duas vezes. Adoro desligar-me da realidade.
Então, não sinto dores nem comichões. Sei que sobreviverei a isto. Uma pessoa não passa por semelhante provação em troca de nada.
Quando eu era criança, havia um padre na Igreja da Sagrada Família, um sujeito tampinha, que adorava discorrer sobre o inferno e pecados mortais. De fato, aquilo era um verdadeiro hobby para ele. Seu conceito era de que não se pode anular um pecado mortal. Sonhei com ele esta noite, com o Padre Hailley em sua batina negra, seu nariz de beberrão, sacudindo o dedo para mim e dizendo, "Que vergonha, Richard Pinzetti... um pecado mortal... você vai para o inferno, garoto... vai para o inferno..."
Ri dele. Se este lugar não é o inferno, então o que é? E o único pecado mortal é desistir.
Metade do tempo estou delirando; na outra metade, meus cotos comicham e a umidade faz com que doam terrivelmente.
Ainda assim, eu não desisto. Juro. Isto não acontece por nada. Tudo isto não é em vão.
12 de fevereiro
O sol despontou novamente, faz um lindo dia. Espero que eles estejam congelando os traseiros, lá onde eu morava.
Foi um bom dia para mim, tão bom como é possível nesta ilha. A febre que tive durante a tempestade, parece ter caído. Eu estava fraco e tiritante quando rastejei para fora de meu abrigo, mas depois de jazer ao sol por duas ou três horas, quase comecei a sentir-me humano novamente.
Engatinhei para o lado sul e encontrei vários pedaços de madeira, lançados aqui pela tempestade, incluindo-se várias tábuas de meu barco salva-vidas. Havia algas e plantas marinhas em algumas das tábuas. Eu as comi. Tinham um gosto horrível. Era como comer uma cortina de plástico de chuveiro. Contudo, senti-me bem mais forte esta tarde.
Arrastei a madeira até o mais longe que pude, a fim de que seque. Ainda tenho um tubo inteiro de fósforos à prova d'água. A madeira dará um bom fogo para sinalização, caso alguém chegue logo. Ou talvez uma fogueira para cozinhar. Vou dar uma cheirada agora.
13 de fevereiro
Encontrei um caranguejo. Matei-o e o assei em uma pequena fogueira. Esta noite, quase voltei a acreditar em Deus.
14 de fevereiro
Só esta manhã percebi que a tempestade desarrumou a maioria das pedras que formavam o meu sinal de HELP. Ora, mas a tempestade terminou... há três dias? Terei ficado realmente tão dopado? Preciso cuidar disto, baixar a dosagem. E se aparecer um navio, enquanto eu estiver desligado?
Tornei a compor as letras, porém isso me tomou a maior parte do dia e agora estou exausto. Procurei um caranguejo onde encontrei o primeiro, mas nada. Cortei as mãos em várias rochas que usei para fazer o sinal, mas imediatamente as desinfetei com iodo, apesar de meu cansaço. Devo tomar cuidado com as mãos. Haja o que houver.
15 de fevereiro
Uma gaivota pousou no alto do monte de rochas, mas voou antes que eu chegasse ao alcance de tiro. Desejei que ela fosse para o inferno, onde poderia bicar os olhinhos injetados de sangue do Padre Hailley, por toda a eternidade.
Ha! Ha!
Ha! Ha!
Ha
17 (?) de fevereiro
Amputei minha perna esquerda na altura do joelho, mas perdi um bocado de sangue. A dor é lancinante, a despeito da heroína. O choque pelo traumatismo mataria um homem menor. Quero responder com uma pergunta: Até que ponto o paciente deseja sobreviver? Até que ponto o paciente deseja viver?
Minhas mãos tremem. Se elas me traírem, estou acabado. Elas não têm o direito de trair-me. O menor direito. Afinal, cuidei bem delas por toda a sua vida.
Papariquei-as. É melhor que não me traiam. Ou se arrependerão.
Pelo menos, não estou com fome.
Uma das tábuas do barco salva-vidas partiu-se ao meio e uma de suas extremidades formou uma ponta. Usei-a. Estava babando, mas me forcei a esperar. E então, fiquei pensando em... oh, nos churrascos que tínhamos. Pensei na casa de Will Hammersmith em Long Island, com uma churrasqueira grande o bastante para assar um porco inteiro.
Ficávamos sentados na varanda ao anoitecer, com generosos drinques nas mãos, falando sobre técnicas cirúrgicas, escores de golfe ou qualquer outra coisa. Então, armava-se uma brisa e trazia até nós o doce aroma do porco se tostando. Judas Iscariotes, o doce aroma do porco se tostando...
? de fevereiro
Tirei a outra perna à altura do joelho. Dormi o dia inteiro. "Esta operação era necessária, doutor?" Haha. Mãos trêmulas, como as de um velho. Eu as odeio. Sangue debaixo das unhas. Feridas. Alguém se lembra daquele modelo na faculdade de Medicina, com o ventre de vidro? É assim que me sinto. Só que não quero olhar. Nem me conte. Recordo que Dom costumava dizer isso. Vinha se bamboleando até a gente na esquina, com seu blusão do clube Proscritos da Rota. A gente perguntava, como se saiu com ela, Dom? E Dom respondia, nem me conte. O velho Dom. Eu gostaria de nunca ter saído de lá, do subúrbio. Isto soa tão falso, que até Dom diria, haha.
No entanto, fiquem sabendo que, com a terapia adequada e uma boa prótese, posso ficar novo em folha. Voltarei aqui e direi às pessoas " Isto. Foi onde. Aconteceu. "
Hahaha!
23 (?) de fevereiro
Não tenho coragem, mas é preciso. Contudo, de que jeito vou suturar a artéria femural, em um ponto tão alto? Neste local, ela é tão grande como uma auto estrada.
Vai ser preciso, de algum modo. Fiz a marcação através do topo da coxa, na parte que ainda está carnuda. Fiz a marcação com este lápis.
Eu desejaria parar de babar.
Fe
Você... merece... uma folga hoje... portanto, levante-se e vá... até o Mc Donald's... duas rodelas inteiras de pura carne... molho especial... alface... pickles... cebola... sobre um pãozinho com sementes de gergelim...
Tra-la... la-la-la... la-ri-la...
Fev
Hoje olhei para meu rosto na água. Nada mais que um crânio coberto de pele.
Já estarei insano? Devo estar. Agora sou um monstro, um fenômeno. Não sobrou mais nada das virilhas para baixo. Apenas um fenômeno. Uma cabeça presa a um torso, arrastando-se na areia, pelos cotovelos. Um caranguejo dopado. Não é como chamam a si mesmos agora? Ei, amigo, sou um pobre caranguejo dopado, pode me arranjar um níquel?
Hahahaha.
Dizem que somos o que comemos e, se for verdade, EU NÃO MUDEI EM ABSOLUTO! Santo Deus, o choque-traumático choque-traumático, NÃO EXISTE ISSO DE CHOQUE-TRAUMÁTICO HA
40 (?) fev
Sonhei com meu pai. Quando bebia, ele engrolava todo o seu inglês. Não que valesse grande coisa o que dizia. Fodido seboso. Fiquei tão feliz em ir embora de sua casa papai, seu monte fodido de toucinho seboso, nada nada zero zero. Eu sabia que conseguiria. Fugi de você, não foi? Fugi caminhando sobre minhas próprias mãos.
Só que não há nada mais sobrando para eles cortarem fora. Ontem tirei os lóbulos de minhas orelhas, mão esquerda lava a direta não deixe sua mão esquerda saber o que faz a direita uma batata duas batatas três batatas quatro nós temos uma geladeira com porta de prateleiras.
Hahaha.
E daí, quem se importa, esta mão ou aquela. Boa comida boa carne bom Deus vamos comer.
Dedos-de-dama eles têm exatamente o mesmo sabor que dedos-de-dama.
UM MUNDO DE PRAIA
Nave Fed ASN/29 caiu do céu e estatelou-se. Após algum tempo, dois homens esgueiraram-se de seu crânio espatifado, como se fossem miolos. Caminharam um curto trecho e então pararam, com os capacetes debaixo do braço, espiando o lugar em que haviam terminado.
Era uma praia, sem qualquer necessidade de mar — ela era seu próprio mar, um mar esculpido em areia, um mar de instantâneo-preto-e-branco, congelado para sempre em depressões e cristas, mais depressões e cristas.
Dunas.
Algumas rasas, outras íngremes, lisas ou enrugadas. Dunas com a crista de uma lâmina de faca, dunas de cristas planas, dunas de cristas irregulares, como dunas empilhadas umas sobre as outras — dunas-dominós.
Dunas. Mas sem mar.
Os vales que eram as depressões entre as dunas, serpenteavam como negros labirintos.
Se alguém olhasse por tempo suficiente para aquelas linhas torcidas, elas pareciam escrever palavras — palavras negras, pairando acima das dunas brancas.
— Porra! — exclamou Shapiro.
— Calma — disse Rand.
Shapiro começou a cuspir, depois parou. Vendo toda aquela areia, pensou melhor.
Aquele não era o momento de perder umidade. Semi-sepultado na areia, o ASN/29 não tinha mais a semelhança de um pássaro agonizante; parecia uma abóbora que se esborrachara, exibindo a podridão interna. Houvera incêndio. Todas as embocaduras de combustível a estibordo tinham explodido.
— Má sorte a de Grimes — disse Shapiro.
— Hã-hã.
Os olhos de Randy ainda perscrutavam o mar de areia, até a linha limite do horizonte, e tornavam a voltar.
Era mesmo má sorte a de Grimes. Ele estava morto. Grimes agora não passava de pedaços maiores e menores no compartimento de armazenagem da popa. Shapiro estivera espiando e havia pensado: É como se Deus tivesse decidido comer Grimes, mas achando o sabor ruim, o tinha cuspido fora. Aquilo tinha sido demais para o estômago de Shapiro. Aquilo e a visão dos dentes de Grimes, espalhados pelo chão do compartimento de armazenagem.
Agora, ele esperava que Rand dissesse algo inteligente, mas Rand estava calado. Seus olhos seguiam as dunas, seguiam as linhas entre elas, profundas, enroladas como molas de relógio.
— Ei! — finalmente exclamou Shapiro. — O que faremos agora? Grimes está morto, logo, é você que o substitui no comando. O que faremos?
— O que faremos? — repetiu Rand. Seus olhos se moveram de um lado para outro, indo e vindo, acima da imobilidade das dunas. Um vento firme e seco abanou a gola emborrachada do traje de Proteção Ambiental. — Se você não tiver uma bola de vôlei, eu não sei.
— De que está falando?
— Não é o que se presume fazer na praia? — perguntou Rand. — Jogar vôlei?
Shapiro estivera muitas vezes assustado no espaço e bem perto do pânico, quando o incêndio começara. Agora, olhando para Rand, ouvia um rumor de medo, grande demais para compreendê-lo.
— Grande — disse Rand, sonhadoramente. Por um momento, Shapiro pensou que se referia ao medo dele próprio, de Shapiro. — Um diabo de praia grande. Um negócio como este pode continuar para sempre. A gente anda duzentos quilômetros com a prancha de surf debaixo do braço e ainda está onde começou, praticamente, sem nada para trás, além de seis ou sete pegadas impressas. E, se ficarmos no mesmo lugar cinco minutos, as últimas seis ou sete também desaparecem.
— Fez uma varredura topográfica geral, antes de cairmos? — perguntou Shapiro. Decidiu que Rand estava em choque. Rand estava em choque, porém não era louco. Poderia dar-lhe uma pílula, se fosse preciso e, se ele continuasse agindo idioticamente, poderia dar-lhe um tiro. — Você deu uma espiada nos...
Rand olhou brevemente para ele.
— O quê?
Nos lugares verdejantes. Era o que ia dizer. Soava como uma citação dos Salmos, e ele não conseguiria dizê-lo. O vento repicou cristalinamente em sua boca.
— O quê? — Rand tornou a perguntar.
— Varredura topográfica! Varredura topográfica! — gritou Shapiro. Nunca ouviu falar em varredura topográfica, seu teleguiado? Como é este lugar? Onde está o mar, no fim desta porra de praia? Onde estão os lagos? Onde fica o cinturão verde mais próximo? Em que direção? Onde termina o areal?
— Onde termina? Oh, já entendi. Ele nunca termina. Não há cinturões verdes nem calotas geladas. Não há oceanos. Esta é uma praia em busca de mar, chapa. Dunas, dunas e dunas, que nunca têm fim.
— E o que faremos quanto à água?
— Não há nada que possamos fazer.
— A nave... não tem conserto!
— Não me diga, Sherlock!
Shapiro calou-se. Tampouco adiantava ficar histérico. Achava que — era quase certo — se ficasse histérico, seu companheiro ficaria contemplando as dunas, até ele dar um jeito na situação. Ou não dar jeito nenhum.
Que nome se dá a uma praia que não tem fim? Ora, nós a chamamos de deserto! O maior, mais maldito deserto do universo, não é mesmo?
Em sua cabeça, ouviu Rand responder: Não me diga, Sherlock!
Ficou algum tempo ao lado de Rand, esperando que ele despertasse, que fizesse alguma coisa. Após um longo momento, sua paciência esgotou-se. Ele começou a deslizar e tropeçar, descendo a duna à qual tinham subido para observar os arredores.
Sentia a areia sugando suas botas. Quero sugar você para baixo, Bill, sua mente imaginou a areia dizendo. Em seu cérebro, aquela era a voz seca e árida de uma velha, mas ainda terrivelmente forte. Quero sugar você, bem aqui, e dar-lhe uma grande... dentada... um grande... abraço...
Aquilo o fez recordar como costumavam revezar-se, deixando que outros os enterrassem até o pescoço na praia, quando era criança. Naquele tempo, era uma brincadeira divertida — agora, isso o assustava. Então, desligou aquela voz, aquele não era o momento para canais de recordação, por Deus, não era mesmo — e caminhou através da areia em passadas curtas, vivas e bem definidas, inconscientemente tentando desfigurar a perfeição daquela encosta, daquela superfície.
— Aonde é que você vai? — pela primeira vez, a voz de Rand mostrava um toque de lucidez e preocupação.
— O rádio — disse Shapiro. — Vou ligá-lo. Estamos em uma faixa mapeada de viagem. Ele será captado, vetorizado. É uma questão de tempo. Sei que as possibilidades são baixas, porém, talvez alguém apareça, antes que...
— O rádio ficou destroçado — disse Rand. — Aconteceu quando caímos.
— Talvez possa ser consertado — replicou Shapiro, por sobre o ombro.
Quando mergulhou pela escotilha, sentiu-se melhor, apesar dos odores — fios queimados e um jato acre de gás Freon. Disse para si mesmo que estava animado por ter pensado no rádio. Pouco importando o quão insignificante pudesse ser, o rádio oferecia alguma esperança. Contudo, não era o pensamento no rádio que lhe erguera o moral; se Rand dissera que estava quebrado, provavelmente devia estar mesmo quebrado. Só que, ali, ele deixava de ver as dunas — não veria mais aquela praia, a enorme extensão arenosa que não tinha fim.
Era isso que o fazia sentir-se melhor.
Quando tornou a atingir o topo da primeira duna, ofegando, as têmporas latejando com o calor seco, Rand continuava lá, ainda espiando, espiando e espiando.
Uma hora se passara. O Sol estava diretamente acima deles. O rosto de Rand estava molhado de suor. Como jóias, gotículas de transpiração aninhavam-se em suas sobrancelhas. Outras escorriam por suas faces, como lágrimas. Mais ainda deslizavam pelos músculos de seu pescoço e penetrava pela gola do traje de Proteção Ambiental (PA), como gotas de óleo incolor, correndo nas entranhas de um andróide em perfeito estado.
Eu o chamei de teleguiado, pensou Shapiro, com um leve estremecimento. Céus, pois ele não parecia outra coisa — não um andróide, mas um teleguiado, que acabou de levar uma injeção no pescoço, com uma agulha gigantesca.
E, afinal de contas, Rand estivera errado.
— Rand?
Nenhuma resposta.
— O rádio não estava quebrado.
Houve uma fagulha nos olhos de Rand. Depois eles ficaram novamente opacos, voltados para as montanhas de areia. Congeladas, foi o primeiro pensamento de Shapiro, mas supôs que se moviam. O vento era constante. Elas se moveriam. Em um período de décadas e séculos, elas acabariam movendo-se... bem, andariam. Não era assim que chamavam às dunas sobre uma praia? Dunas andantes? Ele pareceu recordar isso de sua infância. Ou da escola. Ou de qualquer lugar, diabo, que importância tinha?
Então, viu um delicado estremecer de areia deslizar pelo flanco de uma delas. Como se ouvisse (ouvisse o que eu pensava)
Suor fresco em sua nuca. Certo, estava ficando um tanto fantasioso. Quem não ficaria?
Estavam em um lugar difícil, muito difícil. E Rand parecia não saber disso... ou não se importar.
— Tinha alguma areia e o warbler estava rachado, mas na caixa de bugigangas de Grimes talvez houvesse uns sessenta deles.
Será que ele está me ouvindo?
— Não sei como a areia entrou lá — ele estava justamente onde devia, no compartimento de armazenagem, atrás do beliche, três postigos fechados até o exterior, mas...
— Oh, a areia se espalha. Penetra em tudo. Lembra-se de quando ia à praia em criança, Bill? Quando a gente voltava para casa, nossa mãe brigava conosco, porque havia areia por toda parte, hem? Areia no sofá, na mesa da cozinha, debaixo de nossa cama. A areia da praia é muito... — ele fez um gesto vago, e então um sorriso sonhador, perturbado, assomou-lhe aos lábios — ... ubíqua.
— ... mas não avariou nada — prosseguiu Shapiro. — O sistema out-put da corrente de emergência está tiquetaqueando e liguei o rádio nele. Coloquei os fones de ouvido por um minuto e pedi uma leitura de equivalência a cinqüenta parsecs. Soa como uma serra elétrica. É melhor do que podíamos esperar.
— Não virá ninguém. Nem mesmo os salva-vidas. O salva-vidas estão mortos há oito mil anos. Bem-vindo à Cidade do Surf, Bill. À Cidade do Surf sem ondas.
Shapiro se virou para as dunas. Perguntou-se por quanto tempo aquela areia estivera ali.
Um trilhão de anos? Um quintilhão? Houvera vida ali algum dia? Talvez algo com inteligência? Rios? Lugares com plantas? Oceanos, que tornariam o lugar uma praia real, em vez de um deserto?
Shapiro ficou parado ao lado de Rand e pensou a respeito. O vento firme agitou seus cabelos. E, de repente, teve certeza de que todas aquelas coisas tinham existido, podia imaginar como haviam terminado.
A lenta recuada das cidades, enquanto suas vias canalizadas e navegáveis eram primeiro pontilhadas, depois pulverizadas, finalmente desviadas e sufocadas pela areia rastejante.
Ele podia ver os cones aluviais de lama, em castanho brilhante, lisos como pele de foca a princípio, porém ficando mais e mais opacos em tonalidade, à medida que se espalhavam a partir da embocadura dos rios — estendendo-se mais e mais, até se encontrarem. Podia ver a lama untuosa como pele de foca, transformar-se em pântanos infestados de juncos, acinzentando-se em seguida, ainda saibrosos, para finalmente se tornarem areia branca.
Podia ver montanhas encurtando-se como lápis de pontas refeitas, sua neve derretendo-se, enquanto a areia em ascensão jogava quentes rajadas térmicas contra elas. Podia ver os últimos penhascos apontando para o céu como pontas dos dedos de homens sepultados vivos. Podia vê-los cobertos e imediatamente esquecidos pelas dunas profundamente idióticas.
Que nome Rand lhes dera?
Ubíquas.
Se você acabou de ter uma visão, Billyzinho, foi uma terrível e maldita visão.
Oh, não tinha sido bem assim. Ela não era terrível, mas pacífica. Tão quieta, como uma soneca em tarde de domingo. O que havia de mais pacífico do que uma praia?
Procurou afastar tais pensamentos. Então, tornou a olhar para a nave.
— Não haverá nenhuma cavalaria — disse Rand. — A areia nos cobrirá. Depois de algum tempo, seremos areia e a areia será nós. A Cidade do Surf sem ondas — pode pegar aquela onda, Bill?
E Shapiro ficou assustado, porque podia pegá-la. Não se podia ver todas aquelas dunas sem tal sensação.
— Maldito teleguiado cretino — disse.
Voltou para a nave. E escondeu-se da praia.
Finalmente o sol se pôs. Era a hora em que, na praia — qualquer praia de verdade — a gente vai encerrando o vôlei, vestindo os blusões e se preparando para as salsichas e cervejas. Ainda não é hora de transar com uma garota, mas quase. É hora de ficar pensando na transa.
Salsichas e cervejas não faziam parte do estoque de comestíveis do ASN/29.
Shapiro passou a tarde engarrafando cuidadosamente toda a água da nave. Usava um vácuo portátil para sugar o que quer que houvesse escorrido das artérias do sistema de suprimento da nave e empoçado no chão. Conseguiu captar até mesmo o pouquinho que restara no fundo do estraçalhado sistema hidráulico do tanque d'água. Não esqueceu nem mesmo o pequeno cilindro nas entranhas do sistema de purificação do ar, que fazia o ar circular nas áreas de armazenagem.
Por fim, foi até a cabine de Grimes.
Grimes mantinha peixes dourados em um tanque circular, construído especialmente para condições livres da ação da gravidade. O tanque havia sido construído em plástico transparente polymer, resistente ao impacto e suportara a queda sem dificuldade. Os peixes dourados — como seu dono — não eram resistentes ao impacto. Flutuavam em um frouxo monte alaranjado no topo da bola, a qual fora pousar debaixo do beliche de Grimes, juntamente com três pares de roupa de baixo imundos e meia dúzia de cubos holográficos pornô.
Ele segurou o aquário-globo por um momento, olhando fixamente para seu interior.
— Lá se foi o pobre Yorich... Eu o conhecia bem... — disse de repente e riu, uma risada estridente, angustiada.
Então, pegando a rede que Grimes guardava em seu armário da cabine, mergulhou-a no tanque. Removeu os peixes, perguntando-se o que fazer com eles. Após um momento, levou-os à cama de Grimes e ergueu seu travesseiro.
Havia areia debaixo deles.
Mesmo assim, deixou os peixes ali e, em seguida, despejou cautelosamente a água dentro do jerrican que usava como recipiente. Ela deveria ser totalmente purificada, mas ainda que os purificadores não estivessem funcionando, Shapiro refletiu que, em mais dois dias, pouco estaria ligando se precisasse beber água de aquário, apenas porque poderia conter algumas escamas soltas e vestígios de fezes de peixes dourados.
Purificou a água, dividiu-a e levou a parte que cabia a Rand até o alto, na encosta da duna. Rand continuava no mesmo lugar, como se não houvesse dado um só passo.
— Trouxe sua ração de água, Rand.
Shapiro abriu o zíper do bolso frontal no traje PA de Rand e enfiou em seu interior o frasco chato de plástico. Ia fechar o zíper, quando Rand empurrou sua mão e retirou o frasco. Na frente do frasco estava impresso: FRASCO CL — ESTOQUE DE SUPRIMENTOS DA NAVE CLASSE/ASN — N.° 23196755. ESTÉRIL QUANDO O SELO ESTIVER INTATO. O selo agora tinha sido rompido, é claro; Shapiro tivera que encher o frasco.
— Eu purifiquei...
Rand abriu os dedos. O frasco tombou na areia, com um plaft macio.
— Não quero.
— Não... Rand, o que há de errado com você? Céus, quer parar com isso?
Rand não deu resposta.
Abaixando-se, Shapiro recolheu o frasco n.° 23196755. Limpou a areia que aderira aos lados, como se fosse enormes e inchados micróbios.
— O que há de errado com você? — repetiu Shapiro. — Será choque? Acha que seja isso? Bem, eu posso dar-lhe uma pílula... ou uma injeção. Só que começa a irritar-me, se quer saber. Ver você aí parado, olhando para os próximos sessenta quilômetros de nada! É só areia! Nada mais que areia!
— É uma praia — disse Rand, sonhadoramente. — Quer fazer um castelo de areia?
— Tudo bem — suspirou Shapiro. — Vou pegar uma agulha e uma ampola de Yellowjack. Se quer agir como um maldito teleguiado, é assim que vou tratá-lo. Como a um teleguiado!
— Se tentar injetar-me alguma coisa, é bom ficar quieto, quando se esgueirar por trás de mim — disse Rand, em voz tranqüila. — Do contrário, vou quebrar seu braço.
Ele também podia fazer isso. Shapiro, o astrogador, pesava setenta quilos e media um e sessenta e dois. O combate físico não era sua especialidade. Grunhiu um xingamento e deu meia volta, começando a caminhar para a nave, com o frasco de Rand na mão.
— Eu acho que está viva — disse Rand. — Tenho absoluta certeza.
Shapiro olhou para trás, para Rand, depois para as dunas. O sol poente lhes emprestara uma filigrana dourada, desenhando-se sobre suas camadas lisas e ondulantes, uma filigrana que se matizava delicadamente para o ébano mais negro nas depressões; na duna seguinte, o ébano passava para dourado. De dourado a negro. De negro a dourado. De dourado a negro e de negro a dourado e de dourado a...
Shapiro piscou rapidamente e esfregou os olhos com a mão.
— Por várias vezes, senti esta duna se mover sob meus pés — disse-lhe Rand. — Ela se move com a maior graciosidade. É como sentir a maré. Posso farejar seu cheiro no ar e há sal nesse cheiro.
— Você está louco — disse Shapiro.
Estava tão aterrorizado, que tinha a sensação de que seus miolos se haviam transformando em vidro. Rand não respondeu. Seus olhos continuavam perscrutando as dunas, que iam de dourado a negro e de negro a dourado, naquele pôr-do-sol.
Shapiro retornou à neve.
Rand permaneceu sobre a duna a noite inteira e todo o dia seguinte.
Ao olhar para fora, Shapiro o viu. Rand despira seu traje PA e a areia quase cobrira a veste. Apenas uma manga ficara para fora, melancólica e suplicante. A areia acima e abaixo deu a Shapiro a impressão de dois lábios, sugando um bocado tenro com desdentada voracidade. Sentiu uma vontade louca de subir até o alto da duna e recolher o traje PA de Rand.
Acabou não indo.
Sentado em sua cabine, esperou pela nave de socorro. O Freon já se dissipara, agora substituído pelo cheiro ainda menos desejável da decomposição de Grimes.
A nave de socorro não apareceu naquele dia, naquela noite e nem no terceiro dia.
De alguma forma, a areia conseguiu penetrar na cabine de Shapiro, embora a escotilha estivesse fechada e o selo ainda aparentemente intato. Com o vácuo portátil, ele sugou os pequenos montículos de areia, como havia sugado as poças de água espalhadas, naquele primeiro dia.
Estava sedendo o tempo todo. Seu frasco já estava quase vazio.
Julgou começar a sentir o cheiro de sal no ar. Ao dormir, ouvia grasnido de gaivotas.
Também ouvia a areia.
O vento firme movia a primeira duna para mais perto da nave. Sua cabine continuava em ordem, — graças ao vácuo portátil — mas a areia começava a assenhorear-se do resto.
Dunas em miniatura haviam passado pelas fechaduras estouradas e invadiam a ASN/29.
A areia despejava-se em gavinhas e membranas através de aberturas. Havia um sedimento depositado em um dos tanques explodidos.
O rosto de Shapiro ficou emaciado e seixoso, com um sombreado de barba.
Perto do pôr-do-sol do terceiro dia, ele subiu à duna para observar Rand. Pensou em levar uma seringa hipodérmica, mas desistiu. Aquilo era muito mais do que choque, agora tinha certeza. Rand ficara insano. Seria melhor se ele morresse rapidamente, e tudo indicava ser isso mesmo o que ia acontecer.
Shapiro estava emaciado, Rand ficara descarnado. Seu corpo era um graveto esquelético. Suas pernas, antes fortes e grossas, com musculatura vigorosa, agora estavam frouxas e finas. A pele pendia delas como meias folgadas que estão sempre caindo. Ele usava apenas a cueca, de náilon vermelho, que tinha a absurda aparência de um frouxo calção de banho. Uma ligeira barba começara a surgir em seu rosto, cobrindo as faces encovadas e o queixo. A barba de Rand era cor de areia da praia. Seus cabelos, anteriormente exibindo um tom indefinido de castanho, haviam-se desbotado para quase louros. Agora, pendiam-lhe sobre a testa. Somente os olhos, espiando através da franja com viva intensidade azul, ainda pareciam totalmente animados. Eles estudavam a praia. (as dunas, as malditas DUNAS) incessantemente.
Nesse momento, Shapiro viu algo ruim. Aliás, muito ruim. Viu que o rosto de Rand transformava-se em uma duna de areia. Sua barba e cabelos combinavam com a pele.
— Você vai morrer — disse Shapiro. — Se não vier para a nave e beber, acabará morrendo, Rand nada disse. — É isso o que quer?
Nada. Houve o sibiliar vazio do vento e nada mais. Shapiro observou que as dobras no pescoço de Rand estavam se enchendo de areia.
— A única coisa que eu quero — disse Rand, em voz fraca, distante como o vento, — são as minhas fitas dos Beach Boys. Estão em minha cabine.
— Dane-se! — bufou Shapiro, furioso. — E quer saber o que eu espero? Espero que uma nave chegue antes de você morrer. Quero vê-lo esbravejar e gritar, quando o arrancarem para longe de sua preciosa e maldita praia. Quero ver o que então vai acontecer!
— A praia irá capturá-lo também — disse Rand. Sua voz era vazia e chocalhante, como vento dentro de uma abóbora partida — uma abóbora que fora deixada em um campo, no fim da última colheita de outubro. — Escute só, Bill. Escute a onda.
Rand ladeou a cabeça. Sua boca entreaberta mostrava a língua. Uma língua estorricada como esponja seca.
Shapiro ouviu algo.
Ouviu as dunas. Elas entoavam canções das tardes domingueiras na praia sonecas na praia, sem sonhos. Longas sonecas. Uma paz absoluta. O som de gaivotas grasnando. Partículas impensadas, à deriva. Dunas andantes. Ele ouviu... e foi atraído. Atraído para as dunas.
— Você ouviu — disse Rand.
Shapiro levou a mão ao nariz e fincou dois dedos, até fazê-lo sangrar. Então, pôde fechar os olhos; seus pensamentos voltaram, lentos e desajeitadamente ligados. Seu coração disparava.
Eu estava quase como Rand. Céus!... Quase fui apanhado!
Tornou a abrir os olhos e viu que Rand se transformara em uma concha, em uma praia há muito deserta, espichando-se em direção a todos os mistérios de um mar não-morto, olhando fixamente para dunas, dunas e dunas.
Já basta! gemeu Shapiro para si mesmo.
Oh, ouça só o rumor desta onda, sussurraram as dunas.
Contra a vontade, Shapiro ouviu.
E pensou: Eu ouviria melhor, se me sentasse.
Acomodou-se aos pés de Rand, os calcanhares sobre as coxas, como um índio yaqui, e ouviu.
Ouviu os Beach Boys, e eles cantavam sobre divertir-se, divertir-se, divertir-se. Ouviu-os cantar que as garotas da praia estavam todas ao alcance. Ouviu...
...um suspiro oco do vento, não em seus ouvidos, mas no desfiladeiro entre o cérebro direito e o esquerdo — ouviu aquele suspiro em algum ponto da escuridão cruzada apenas pela ponte suspensa do corpo caloso, que liga o pensamento consciente ao infinito.
Shapiro não sentia qualquer fome, sede, calor ou medo. Ouvia apenas a voz no vazio.
Então, apareceu uma nave.
Ela surgiu arremetendo do céu, sua combustão retardada riscando um comprido traço alaranjado, da direita para a esquerda. O estrondo contornou a topografia ondulada em delta e várias dunas desmoronaram, como um cérebro danificado pelo rastro de uma bala. Esse estrondo penetrou na cabeça de Billy Shapiro, fendeu-a e, por um momento, ele ficou dividido entre os dois lados, partida, cortado ao meio...
Então, estava de pé.
— Uma nave! — gritou. — Céus! Uma nave! Uma nave! UMA NAVE!
Tratava-se de uma nave mercante daquela faixa, suja e castigada por quinhentos anos — ou cinco mil — a serviço do clã. Ondulou através do ar, estrondeou cruamente na vertical e derrapou. O capitão acionou os jatos, fundindo a areia em vidro negro. Shapiro aplaudiu o ferimento.
Rand olhou em torno, como se despertasse de um sono profundo.
— Diga a ela para ir embora, Billy.
— Você não compreende? — Shapiro andava tropegamente em círculos, sacudindo os punhos no ar. — Você ficará bem...
Depois começou a correr para a suja mercante, em grandes passadas saltadas, como um canguru fugindo de um tiroteio rasante. A areia quis agarrá-lo, Shapiro a chutou. Dane-se, areia! Tenho uma garota, lá em Hansonville. Areia nunca teve nenhuma garota. Praia, nunca tiveram uma ereção.
A carcaça da mercante se abriu. Uma passarela saltou para fora, como uma língua. Um homem desceu por ela. atrás de três modelos de andróides e de um sujeito formado por placas rolantes, que certamente seria o capitão. De qualquer modo, usava um quepe com um símbolo de clã.
Um dos andróides agitou um tipo de bastão para ele. Shapiro o afastou de seu caminho.
Caiu de joelhos diante do capitão e abraçou os degraus rolantes que lhe substituíam as pernas mortas.
— As dunas... Rand... sem água... vivo... hipnotizaram-no... um mundo teleguiado... Eu... graças a Deus...
Um tentáculo de aço chicoteou o ar à sua volta e o puxou. arrastando-o deitado, por sobre a barriga. A areia seca cochichou debaixo dele, parecendo gargalhar.
— Tudo bem — disse o capitão. — Be Y-at shr!! Me. Me! Cat!
O andróide soltou Shapiro e afastou-se rangendo furiosamente consigo mesmo.
— Tudo isto por um maldito Fed! — exclamou o capitão, amargurado.
Shapiro chorou. Não era apenas a sua cabeça que doía. mas também o fígado.
— Dud!. Gee-vat! Agua-para-o-que-Chora!
O homem que viera a frente do grupo arremessou-lhe uma espécie de mamadeira para baixa gravidade, provida de bico. Shapiro recolheu-a no ar e sugou vorazmente, derramando água fria como cristal dentro da boca e pelo queixo, escorrendo em filetes que lhe escureciam a túnica. desbotada para a cor do osso. Ele se engasgou, vomitou, tornou a beber.
Dud e o capitão o observavam atentamente. Os andróides tilintaram.
Por fim, Shapiro enxugou a boca e sentou-se. Agora. sentia-se indisposto e bem ao mesmo tempo.
— Você Shapiro? — perguntou o capitão.
Shapiro assentiu.
— Afiliação de clã?
— Nenhuma.
— Número da ASN?
— 9.
— Tripulação?
— Três. Um está morto. O outro — Rand — está lá em cima — disse Shapiro, apontando, mas sem olhar.
O rosto do capitão não se alterou, mas sim o de Dud.
— A praia o capturou — explicou Shapiro. Notou os olhares velados e questionantes. — Talvez... esteja em choque. Ele parece hipnotizado. Fica falando sobre os... os Beach Boys... oh, não importa, vocês não compreendem. Não sabem quem são. Ele não quis comer nem beber. Está mal.
— Dud, leve um dos andróides e traga-o para baixo. — O capitão abanou a cabeça. — Céus, nave da Federação! Sem salvagem!
Dud assentiu. Momentos depois, ele subia dificultosamente uma encosta da duna, com um dos andróides. O andróide parecia um surfista de vinte anos, que poderia conseguir um dinheiro extra para drogas servindo a viúvas entediadas, porém seu andar o denunciava mais do que os tentáculos segmentados que lhe cresciam nas axilas. O andar, comum a todos os andróides, era o caminhar lento, reflexivo e quase doloroso de um velho mordomo inglês com hemorróidas.
Houve um zumbido no painel de instrumentos do capitão.
— Estou aqui.
— Fala Gomez, capitão. Estamos com um problema. A varredura topográfica e a telemetria de superfície indicam um solo muito instável. Não há leito rochoso para sustentar-nos. Estamos sustidos por nossas próprias reservas de empuxo e, neste exato momento, isso pode ser a coisa mais sólida em todo o planeta. O problema é que essas reservas começam a perigar.
— Recomendação?
— Devemos partir.
— Quando?
— Há cinco minutos.
— Você é um amotinador cômico, Gomez.
O capitão apertou um botão e a comunicação interrompeu-se. Os olhos de Shapiro giravam nas órbitas.
— Ouça, não se incomode com Rand. Ele está perdido!
— Vou levar os dois de volta — disse o capitão. — Não receberei nenhuma salvagem, mas a Federação certamente pagará algo por vocês... não que qualquer dos dois valha grande coisa, pelo que posso ver. Ele está maluco e você é insignificante.
— Não... você não compreende. Você...
Os astutos olhos amarelos do capitão cintilaram.
— Tem algum contrabando? — perguntou.
— Capitão... ouça... por favor...
— Porque se tem, não faz nenhum sentido deixá-lo aqui. Diga-me o que é e onde está. Racharemos, setenta-trinta. Honorário padrão para aquele que o recolhe. Não podia ser melhor do que isso, hem? Você...
A reserva de empuxo inclinou-se subitamente. Foi bastante visível a sua inclinação.
Uma buzina, em algum ponto no interior da nave mercante, começou a soar com abafada regularidade. O comunicador no painel de instrumentos do capitão interrompeu-se de novo.
— Aí está! — gritou Shapiro. — Viu agora o que tem pela frente? Ainda quer falar em contrabando? NÓS TEMOS É QUE SAIR DAQUI IMEDIATAMENTE!
— Cale a boca, simpático, ou farei com que um desses sujeitos lhe dê um sedativo — disse o capitão.
Sua voz era serena, mas os olhos haviam mudado. Ele apertou o botão do comunicador.
— Capitão, estou com dez graus de inclinação e a coisa está aumentando. O elevador está descendo, mas em ângulo. Ainda temos tempo, só que muito pouco. A nave acabará caindo.
— Os suportes a manterão.
— Não, senhor. Peço desculpas, capitão, mas será impossível.
— Comece a disparar seqüências, Gomez.
— Obrigado, senhor.
O alívio na voz de Gomez era indisfarçávei. Dud e o andróide vinham descendo a encosta da duna, porém Rand não estava com eles. O andróide foi ficando mais e mais atrasado e, então, aconteceu algo estranho. Ele caiu ao comprido, sobre o rosto. O capitão franziu o cenho. O andróide não caiu como se suporia que caísse, isto é, mais ou menos como um ser humano. Foi como se alguém empurrasse um manequim, em uma loja de departamentos. Ele caiu precisamente assim, de cara no chão. Houve um ploft! e uma pequena nuvem de areia se elevou à sua volta.
Dud recuou e ajoelhou-se perto dele. As pernas do andróide continuavam a agitar-se, como se ele — em seu 1,5 milhões de micro circuitos refrigerados a Freon que compunha sua mente — sonhasse que ainda caminhava. Contudo, os movimentos das pernas eram lentos e rangentes. Depois cessaram. A fumaça começou a brotar-lhe dos poros e seus tentáculos estremeceram na areia. Era tão horripilante, como ver um humano morrer.
Um profundo rangido brotou de suas entranhas: Graaaagggg!
— Está cheio de areia — sussurrou Shapiro. — Foi atacado pela religião dos Beach Boys.
O capitão olhou impacientemente para ele.
— Não seja ridículo, homem! Aquela coisa poderia caminhar através de uma tempestade de areia, sem que um só grão a penetrasse!
— Não neste mundo.
Os empuxos de reserva perigaram novamente. Agora, a nave mercante mostrava uma visível inclinação. Houve um ruído surdo, quando seus suportes receberam um peso maior.
— Deixe-o! — gritou o capitão para Dud. — Deixe-o, deixe-o! Geeyat! Come-me-for-Cry!
Dud aproximou-se, deixando que o andróide caminhasse de rosto contra a areia.
— Que confusão! — murmurou o capitão.
Ele e Dud iniciaram uma conversa inteiramente em rápido dialeto simplificado, que Shapiro conseguiu entenderem parte. Dud contou ao capitão que Rand se recusara a vir.
O andróide tentara agarrá-lo, porém sem muita força, já que se movia espasmodicamente e estranhos chiados brotavam de seu interior. Além disso, ele começara a recitar uma combinação das coordenadas na extração de carvão galáctico e de um catálogo das gravações de música folclórica do capitão. Então, o próprio Dud se aproximara de Rand, agarrando-o. Os dois lutaram brevemente. O capitão respondeu que, se Dud permitira que um homem, parado ao sol quente durante três dias, levasse a melhor sobre ele, então talvez devesse arranjar um outro Primeiro.
O rosto de Dud ensombreceu-se com seu constrangimento, mas persistiu a expressão grave, preocupada. Ele virou lentamente a cabeça, mostrando quatro profundas estrias em sua face. As estrias começavam a inchar.
— Him-gat big indics — disse Dud. — Strong-for-Cry. Him-gat for eomby.
— Umby-him.for Cry?
O capitão olhava consternado para Dud. Dud assentiu.
— Umby. Beyat shel. Umby-for-Cry.
Shapiro estivera franzindo o cenho, espremendo sua mente fatigada e com medo para entender aquela palavra. Então, recordou. Umby. Significava louco. Por Deus, ele é forte. Forte, porque está louco. Ele tem muitos expedientes, muita força. Porque está louco.
Muito expediente... ou talvez, isso significasse muitas ondas. Shapiro não tinha certeza.
De qualquer forma, dava tudo no mesmo.
Umby.
O solo deslizou sob eles novamente e a areia escorreu pelas botas de Shapiro.
De trás deles, veio o surdo ka-thud, ka-thnd, ka-thud, quando os tubos respiratórios se abriram. Shapiro o considerou um dos mais belos sons que já ouvira em sua vida.
O capitão parecia refletir intensamente, um estranho centauro, cuja metade inferior se compunha de degraus e placas, em vez de um cavalo. Depois, olhando para cima, ele pressionou o comunicador.
— Gomez, faça Excelente Montoya descer aqui com uma pistola tranqüilizante.
— Entendido.
O capitão olhou para Shapiro.
— E agora, para cúmulo, perdi um andróide valendo o seu salário pelos próximos dez anos! Não gostei disso. Quero levar o seu companheiro.
— Capitão...
Shapiro não pôde deixar de passar a língua pelos lábios. Sabia que era um gesto impróprio. Não queria parecer louco, histérico ou covarde mas, aparentemente, o capitão decidira que era as três coisas. Lamber os lábios daquela maneira, apenas acentuaria a impressão... mas não conseguira conter-se.
— Capitão — repetiu — não posso convencê-lo da imperiosa necessidade de sair deste mundo o mais depressa poss...
— Pode, teleguiado — disse o capitão, não sem gentileza.
Um grito fraco soou no alto da duna mais próxima.
— Não me toquem! Não cheguem perto de mim! Deixem-me em paz! Todos vocês!
— Big indics gat umby — disse Dud, em tom grave.
— Ma-him, yeah-mon — replicou o capitão, e então se virou para Shapiro. Ele está mesmo ruim, não está?
Shapiro estremeceu.
— Você não entende. Você apenas...
As reservas de empuxo tornaram a oscilar. Os suportes grunhiam mais alto do que nunca. O comunicador estalou. A voz de Gomez parecia distante, um pouco irregular.
— Temos que sair daqui agora. capitão!
— Está bem. — Um homem moreno apareceu na passarela. Empunhava uma comprida pistola na mão enluvada. O capitão apontou para Rand: — Ma-him, for-Cry. Can?
Excelente Montoya, inalterado pela terra inclinada que não era terra, mas apenas areia fundida em vidro (e Shapiro viu que agora havia profundas rachaduras cruzando aquele vidro), sem ligar para os suportes rangentes ou a visão fantástica de um andróide que agora parecia cavar a própria sepultura com os pés, estudou a figura esquelética de Rand por um momento.
— Can — respondeu ele.
— Gat! Gat-iÓr-Cry! — O capitão cuspiu a um lado. — Arranque-lhe o pau fora, que não me incomodo — disse. — Desde que continue respirando, quando embarcarmos.
Excelente Montoya ergueu a pistola. O gesto era aparentemente dois-terços causal e um-terço descuidado, mas mesmo em seu estado de quase pânico, Shapiro percebeu a maneira como Montoya inclinava a cabeça para um lado, ao erguer o cano da arma.
Como acontecia a muitos nos clãs, a pistola quase fazia parte dele, assemelhando-se a um prolongamento de seu próprio dedo.
Houve um fuit! surdo, quando ele apertou o gatilho e o dardo do tranqüilizante disparou pelo cano.
Uma mão se ergueu das dunas e agarrou o dardo.
Era uma grande mão marrom, ondulante, feita de areia. Ela simplesmente se ergueu, desafiando o vento e abatendo o brilho momentâneo do dardo. Em seguida, a areia caiu de volta ao lugar, com um pesado thrrrrap. Não houvera mão alguma. Era impossível acreditar que houvera. Contudo, todos a tinham visto.
— Giddy-hrímp — disse o capitão, quase como se conversasse.
Excelente Montoya caiu de joelhos.
— Aidy-May-/ór-Cry, bit-gat come! Saw-hoh got belly-gat-gor-Cry!...
Entorpecidos, Shapiro percebeu que Montoya rezava um rosário em dialeto. No alto da duna, Rand dava saltos, sacudindo os punhos para o céu, guinchando fracamente em triunfo.
Uma mão. Era uma MÃO. Ele tem razão; a areia está viva, viva, viva...
— lndic! — disse bruscamente o capitão a Montoya. — Cannit! Gat!
Montoya se calou. Seus olhos focalizaram a figura saltadora de Rand e depois se desviaram. Seu rosto estava tomado por supersticioso horror, quase medieval em qualidade.
— Muito bem — declarou o capitão. — Já chega para mim. Desisto! Vamos embora.
Apertou dois botões em seu painel de controle. O motor que deveria girá-lo perfeitamente, a fim de colocá-lo outra vez de frente para a passarela, não emitiu qualquer zumbido; apenas crepitou e chiou. O capitão praguejou. O empuxo de reserva tornou a oscilar.
— Capitão! — chamou Gomez, em pânico.
O capitão apertou rapidamente outro botão e os degraus rolantes de suas pernas começaram a girar em marcha à ré, subindo a passarela.
— Guie-me — disse ele a Shapiro. — Não tenho nenhum maldito espelho retrovisor. Aquilo foi uma mão, não foi?
— Foi.
— Quero dar o fora daqui — disse o capitão. — Há quatorze anos não tenho um pau mas, neste exato momento, tenho a sensação de que estou me mijando.
Thrrrap! Uma duna se desfez subitamente, caindo sobre a passarela. Só que não era um duna, mas um braço.
— Dane-se, oh, dane-se! — exclamou o capitão.
Em sua duna, Rand saltava e guinchava.
Agora, a fiação da metade inferior do capitão começou a crepitar. O minitanque, do qual sua cabeça e ombros eram a torrinha, pôs-se a rodar para trás.
— O quê...
Os degraus rolantes emperraram. A areia saltava de entre eles.
— Levantem-me! — berrou o capitão para os dois andróides remanescentes. — Agora! JÁ!
Os tentáculos dos andróides envolveram as rodas dentadas dos degraus que eram as pernas do capitão, quando o ergueram no alto — ele mostrava uma ridícula semelhança com um membro de universidade, prestes a ser arremessado em um lençol, por um bando de ruidosos rapazes de fraternidade. Ele apertava o comunicador.
— Gomez! Dispare a seqüência final! Agora! Agora!
A duna aos pés da passarela deslizou, modificou-se. Tornou-se uma mão. Uma grande mão marrom, que começou a subir pela passarela inclinada.
Com um grito agudo, Shapiro saltou de perto daquela mão.
Praguejando o capitão foi levado para longe dela.
A passarela foi içada. A mão descambou, virou areia novamente. A escotilha irizada se fechou. Os motores rugiam. Não havia tempo para uma poltrona; não havia tempo para nada semelhante. Shapiro caiu em~posição agachada sobre o anteparo e foi imediatamente achatado pela aceleração. Antes que a inconsciência o subjugasse, teve a impressão de sentir a areia arranhando a nave mercante, com musculosos braços marrons, tentando puxá-los para baixo...
Então, elevaram-se e afastaram-se dali.
Rand os espiou indo embora. Estava sentado. Quando a esteira dos jatos da nave mercante finalmente desapareceram do céu, ele voltou os olhos para o plácido infinito das dunas.
— "Temos um calhambeque 34, cujo nome é Horroroso — cantou casquinadamente para a areia vazia e móvel. — Não tem nada de pintoso; está idoso, mas é gostoso."
Lenta e deliberadamente, ele começou a enfiar na boca punhado após punhado de areia.
Engoliu... engoliu... engoliu. Em pouco, seu ventre era uma barrica inchada, a areia começou a amontoar-se sobre suas pernas.
VOVÓ
A mãe de George foi até a porta, vacilou, voltou de novo e acariciou os cabelos do filho.
— Não quero que fique preocupado — disse. — Você estará bem. Vovó também.
— Eu sei, vou ficar bem. Diga a Buddy para não esquentar.
— Como?
George sorriu.
— Para ir com calma.
— Oh! Muito interessante. — A mãe sorriu para ele, um sorriso distraído, voltado para seis direções ao mesmo tempo. — George, você tem certeza de que...
— Eu vou ficar ótimo.
Está bem certo disso? Tem certeza de que não sentirá medo, ao ficar sozinho com vovó?
Não era isso que ela ia perguntar?
Se era isso, a resposta é não. Afinal, já passara a época em que tinha seis anos, quando tinham ido para o Maine, a fim de cuidarem de vovó. Então, chorava aterrorizado a cada vez que ela lhe estendia os braços pesados, sentada em sua poltrona de vinil branco, que sempre tinha o cheiro dos ovos escaldados que vovó comia e do talco suave que a mãe de George lhe passava na pele frouxa e enrugada; ela estendia aqueles braços brancos e elefantinos, queria que ele se aproximasse, para ser apertado contra aquele enorme, pesado, velho e elefantino corpo branco. Buddy atendera, tinha sido envolvido no cego abraço de vovó e escapara vivo... mas Buddy era dois anos mais velho.
Agora, Buddy quebrara a perna e estava no Hospital C MG, em Lewiston.
— Você tem o número do médico, caso alguma coisa dê errado. Só que nada vai acontecer. Certo?
— Certo — disse ele, e engoliu algo seco na garganta.
George sorriu. Seu sorriso era tranqüilizador? Claro. Claro que era. Não sentia mais medo de vovó. Afinal, não tinha mais seis anos. Mamãe ia ao hospital ver Buddy e ele ia ficar em casa, sem esquentar a cabeça. Acompanhar vovó por algum tempo. Qual o problema?
Mamãe tornou a ir até a porta, vacilou de novo e voltou, exibindo o sorriso perturbado, voltado para seis direções ao mesmo tempo.
— Se ela acordar e quiser tomar chá...
— Eu já sei — respondeu George, percebendo o quanto ela estava assustada e preocupada, por trás do sorriso perturbado.
Ela estava preocupada com Buddy, Buddy e sua idiota Divisão Juvenil, o treinador tinha ligado para dizer que Buddy se ferira em um jogo pela conquista da taça, e George só ficara sabendo (acabara de chegar da escola e estava sentado à mesa, comendo biscoitos com um copo de Quik, da Nestlé) quando viu sua mãe ofegar, perguntando, Machucado? Buddy? É grave?
— Sei esse negócio todo, mamãe. Estou no controle. Transpiração negativa. Pode ir agora.
— Você é um bom garoto, George. Não tenha medo. Não sente mais medo da vovó, não é mesmo?
— Claro que não — disse George.
Ele sorriu. Era um sorriso despreocupado. O sorriso de um cara que estava ficando frio, com transpiração negativa na testa, o sorriso de um cara que estava no controle, o sorriso de um cara que, decididamente, não tinha mais seis anos. George engoliu em seco. Era um grande sorriso, mas por baixo dele, na escuridão por baixo do sorriso, havia uma garganta muito seca. Como se sua garganta estivesse forrada com lã.
— Diga a Buddy que sinto muito ele ter quebrado a perna.
— Eu direi — respondeu ela, e tornou a caminhar para a porta. O sol das quatro da tarde penetrou pela janela. — Graças a Deus, contamos com o seguro esportivo, Georgie. Não sei o que faríamos, se não houvesse o seguro.
— Diga a ele que espero que tenha dado o troco no otário.
Ela sorriu seu sorriso perturbado, uma mulher que mal fizera os cinqüenta, com dois filhos tardios, um de treze e outro de onze anos, sem nenhum homem. Desta vez, ele abriu a porta e uma fria brisa de outubro entrou pelo pórtico.
— E, lembre-se, o Dr. Arlinder...
— Está bem — disse ele. — É melhor ir logo ou a perna dele já estará boa, quando chegar lá.
— O mais provável é que ela durma o tempo todo — disse mamãe. — Eu o amo, Georgie. Você é um bom filho.
Ela fechou a porta, ao terminar de falar. George foi até a janela e a viu caminhar apressada para o velho Dodge 69 que queimava muito óleo e gasolina, tirando as chaves de dentro da bolsa. Agora que saíra da casa e ignorava que George a espiava, o sorriso perturbado desapareceu e ela apenas pareceu perturbada — perturbada e abatida pela preocupação com Buddy. George sentiu pena dela. Não desperdiçava quaisquer sentimentos similares com Buddy, que gostava de derrubá-lo e sentar em cima dele, com um joelho em cada um de seus ombros, batendo no meio de sua testa com uma colher, até quase enlouquecê-lo ( Buddy chamava a isso a Tortura da Colher dos Chinas Pagões, e ria como um louco, às vezes continuando com aquilo até que George chorasse), Buddy que, às vezes, dava-lhe o tratamento da Queimadura de Corda índia, amarrando-lhe uma corda no braço e o puxando com tanta força, que pequeninas gotas de sangue surgiam na pele ofendida de George, pontilhando seus poros como orvalho em talos de grama ao amanhecer. Buddy, que ouvira compreensivamente, quando certa noite George lhe sussurrara, no escuro do quarto de ambos, que gostava de Heather MacArdle, mas que, na manhã seguinte, cruzara o pátio da escola gritando GEORGE E HEATHER NAMORANDO, CO-CO-RI-CO-CO-RI-CÓ; E TAMBÉM BE-E-I-JOTA-A-ENE-DE-Ó! PRIMEIRO O AMOR E DEPOIS CASAMENTINHO! LÁ VEM A HEATHER COM UM BEBÊ NO SEU CARRINHO! como um carro do Corpo de Bombeiros. Pernas quebradas não mantém irmãos mais velhos, como Buddy, reprimidos por muito tempo, mas George preferia ficar quieto no seu canto, desde que Buddy ficasse também. Quero ver você me forçar à Tortura da Colher dos Chinas Pagãos com sua perna no gesso, Buddy. Isso mesmo, cara — TODOS os dias.
O Dodge saiu em marcha à ré da entrada de carros e parou, enquanto sua mãe espiava para os dois lados, embora nenhum carro estivesse à vista; eles nunca estavam. Sua mãe teria um trajeto de três quilômetros em estradas acidentadas e onduladas antes de chegar ao asfalto, quando então seriam mais trinta quilômetros até Lewiston.
Ela recuou por toda a entrada de carros e depois rodou em frente. Por um momento, a poeira ficou suspensa no brilhante ar da tarde de outubro, para depois começar a assentar-se.
Ele estava sozinho em casa.
Com vovó.
George engoliu em seco.
Ei! Transpiração negativa! Basta não esquentar, certo?
— Certo — disse George, em voz baixa.
Cruzou a pequena cozinha banhada de sol. Era um garoto simpático, de cabelos claros, com sardas salpicando o nariz e bochechas, uma expressão bem-humorada nos olhos cinza-escuros.
O acidente com Buddy ocorrera quando ele jogava pelo campeonato da Divisão Juvenil, naquele 5 de outubro. O time da Divisão Pee Wee (Dente de leite) em que George jogava — os Tigres — ficara fora do torneio logo no primeiro dia, dois sábados atrás "Que bando de bebês!" exultara Buddy, ao ver George sair do campo em lágrimas. "Que bando de MARICAS!"... e agora, Buddy tinha quebrado a perna. Se mamãe não estivesse tão preocupada e assustada, George ficaria quase feliz.
Havia um telefone de parede e perto dele, um quadro para anotações, com um lápis ensebado pendurado ao lado. Na parte superior do quadro, via-se uma alegre vovó camponesa, de bochechas rosadas, os cabelos brancos penteados em coque; o desenho mostrava a avó fazendo anotações no quadro. Um balão de histórias em quadrinhos saía da boca da alegre vovó camponesa, e ela dizia, "LEMBRE-SE DISTO, FILHO!"
Escrito no quadro, na letra espichada de sua mãe, estava o lembrete Dr. Arlinder, 681-4330. Mamãe não anotara o número nesse dia, só porque tinha de ir ver Buddy. Agora já fazia quase três semanas que o número estava ali, pois vovó vinha tendo seus "acessos" outra vez.
George tirou o telefone do gancho e ouviu.
— ... então, eu disse a ela, "Mabel, se ele a trata desse jeito..."
George recolocou o fone. Henrietta Dodd. Henrietta estava sempre ao telefone e, se fosse de tarde, podia-se ouvir uma novela de rádio soando ao fundo.
Certa noite, após ter bebido um copo de vinho com vovó (desde que ela começara a ter os "acessos" novamente, o Dr. Arlinder havia dito que vovó não devia tomar vinho ao jantar, de modo que mamãe também deixara de tomá-lo — George lamentava, porque o vinho deixava mamãe risonha e ela lhe contava histórias de quando era menina), mamãe tinha dito que a cada vez que Henrietta Dodd abria a boca, suas tripas saíam do alinhamento. Buddy e George tiveram ataques de riso, enquanto mamãe tapava a boca com a mão, dizendo NUNCA contem a ninguém que eu disse isso, e então ela começou a rir também, todos os três, sentados à mesa do jantar, riam sem parar e, por fim, a risadaria acordou vovó, que cada vez dormia mais, e ela começou a gritar Ruth! Ruth! RUU-UUUTH! naquela sua voz aguda e casquinada, e mamãe, parando de rir, fora ao quarto dela.
Hoje, no que dizia respeito a George, Henrietta Dodd podia falar o quanto quisesse. Ele só desejara certificar-se de que o telefone estava funcionando. Duas semanas antes houvera uma forte tempestade e, desde então, de vez em quando o aparelho emudecia.
George viu-se olhando novamente para o alegre desenho da avó e perguntou-se como seria ter uma avó como aquela. A sua era grande, gorda e cega; além disso, a hipertensão a tornara senil. As vezes, quando tinha seus "acessos" ela (segundo mamãe) "agia como caduca", chamando por pessoas que não existiam, mantendo conversas sem sentido, murmurando estranhas palavras que não tinham o menor significado. Certa ocasião, quando ela fazia este último, mamãe ficara pálida e lhe dissera para se calar, calar, calar! George se lembrava bem, não apenas por ser a única vez em que mamãe realmente gritara com vovó, mas também porque, no dia seguinte, alguém descobrira que o cemitério Birches, junto à estrada Maple Sugar, havia sido vandalizado — lousas derrubadas, arrombados os antigos portões do século dezenove e realmente escavadas uma ou duas das sepulturas — escavadas ou algo semelhante. Profanadas, tinha sido o termo empregado pelo Sr. Burdon, diretor da escola quando, no dia seguinte, reuniu todos os oito graus em assembléia e palestrou para toda a escola, discutindo o tema Travessuras Malévolas e falando sobre como certas coisas Nada Tinham de Engraçadas.
Ao voltar para casa nessa noite, George perguntara a Buddy o significado de profanar.
Buddy respondera que isso queria dizer escavar sepulturas e urinar nos caixões, mas George não acreditou nisso... ou acreditou, porque já era tarde. E estava escuro.
Vovó ficava barulhenta quando tinha seus "acessos", mas em geral apenas permanecia na cama que vinha ocupando durante os três últimos anos, uma velha gorda, usando calças de plástico e fraldas por baixo da camisola de flanela, o rosto percorrido por sulcos e rugas, os olhos vazios e cegos — as pupilas de um azul desbotado flutuando em córneas amareladas.
A princípio, vovó não era inteiramente cega. Contudo, estava ficando cega e precisava de uma pessoa a cada lado, para ajudá-la a andar de sua poltrona de vinil branco, cheirando a ovo e talco para bebê, até a cama ou ao banheiro. Naquela época, cinco anos antes, vovó pesava bem mais de cem quilos.
Ela estendera os braços para Buddy, então com oito anos, e ele se aproximara. George havia recuado. E chorado.
Agora não tenho mais medo, disse para si mesmo, movendo-se pela cozinha, calçado com seus tênis. Nem um pouquinho. Ela é apenas uma velha, que de vez em quando tem "acessos".
Encheu a chaleira com água e a pôs sobre um queimador apagado. Depois pegou uma xícara de chá e colocou dentro dela um dos saquitéis de ervas especiais para chá, pertencentes a vovó. Era para o caso dela querer uma xícara. Tinha a louca esperança de que ela não quisesse, porque então teria que erguer o estrado da cama hospitalar, sentar-se perto dela e dar-lhe o chá, um gole de cada vez, vendo a boca desdentada dobrar-se acima da borda da xícara, ouvindo os sons de sucção, enquanto ela empurrava o chá para suas tripas agonizantes e úmidas. Havia vezes em que ela escorregava, caía de banda na cama, sendo preciso colocá-la novamente na posição correta — e sua carne era mole,. era bamba, como se estivesse cheia de água quente. E os olhos cegos olhavam para a gente...
George umedeceu os lábios com a língua e caminhou novamente até a mesa da cozinha.
Seu último biscoito e meio copo de Quik ainda estavam ali, porém não os queria mais.
Olhou sem entusiasmo para seus livros escolares, encapados com os Onças de Castle Rock.
Devia ir lá dentro e ver como ela estava.
Ele não queria ir.
Engoliu em seco e sua garganta dava a impressão de ainda estar forrada com lã.
Não tenho medo de vovó, pensou. Se ela me estender os braços, eu me aproximarei e deixarei que me abrace, porque não passa de uma velha. Ela está senil, por isso é que tem "acessos". Nada mais. Vou deixar que me abrace e não vou chorar. Vou ser como Buddy.
Cruzou o pequeno corredor até o quarto de vovó, o rosto tenso, como se fosse tomar um remédio amargo, os lábios tão apertados, que estavam brancos. Olhou para o interior e lá estava ela, com os cabelos branco-amarelados estendidos em torno da cabeça como uma coroa, adormecida, a boca desdentada aberta, o peito se elevando sob a coberta, mas tão lentamente que quase não se percebia, tão lentamente que era preciso ficar olhando para ela durante algum tempo, para haver certeza de que não estava morta.
Oh. Deus, e se ela morrer aqui comigo, com mamãe no hospital?
Ela não vai morrer. Não vai.
Bem, mas e se morrer?
Ela não vai morrer, pare de ser maricas.
Uma das mãos amarelas de vovó, parecendo desbotada, moveu-se vagarosamente sobre a coberta: suas unhas crescidas riscaram o tecido e emitiram um som de arranhado.
George recuou rapidamente, com o coração disparado.
Fique frio, seu cabeça tonta, morou? Fique frio.
Ele voltou à cozinha, a fim de ver se sua mãe tinha saído apenas uma hora antes, ou talvez hora e meia — nesta última hipótese, já poderia começar a esperar, mais ou menos, que ela estivesse voltando. Olhou para o relógio e espantou-se ao constatar que não se tinham passado nem vinte minutos. Mamãe nem ao menos já estaria na cidade, quanto mais saindo dela! Ficou quieto, ouvindo o silêncio. Vagamente, percebeu o zumbido da geladeira e do relógio elétrico. O rogaçar da brisa da tarde pelas quinas da pequena casa. E depois — na própria borda da audibilidade — os vagos sussurros farfalhantes de pele sobre tecido... da mão enrugada e sebosa de vovó, movendo-se sobre a coberta.
George rezou, em um só jato de fôlego mental:
OhmeuDeusnãodeixeelaacordaratémamãevoltarparacasapeloamordeJesusAmém.
Sentou-se e terminou seu biscoito, bebeu seu Quik. Pensou em ligar a televisão e ver alguma coisa, mas temia que o som acordasse a avó e que a voz aguda, exigente, não admitindo negativas, começasse a chamar RUUUUTH! RUTH! TRAGA O MEU CHÁ! CHÁ! RUU-UUUUTH!
Passou a língua ressequida pelos lábios ainda mais secos e disse a si mesmo para não ser tão maricas. Ela só era uma velha presa à cama, não havia o risco de sair de lá e machucá-lo. Além disso, estava com oitenta e — três anos, não ia morrer logo naquela tarde.
Levantando-se, foi até o telefone e o tirou do gancho novamente.
— ...nesse mesmo dia! E nem sabia que ele era casado! Francamente, eu odeio esses conquistadores baratos de esquina, que se julgam tão espertos! Pois no Grange, eu dizia...
George dedudizu que Henrietta falava com Cora Simard. Henrietta pendurava-se ao telefone pela maior parte da tarde, de uma hora às seis, primeiro com A Esperança de Ryun, a seguir com Uma Vida para Viver, depois Todos os Meus Filhos, e então Enquanto o Mundo Gira, seguindo-se Em Busca do Amanhã e só Deus sabia mais que outras peças eram representadas ao fundo. Quanto a Cora Simard, era uma de suas mais fiéis correspondentes telefônicas, e muito do que diziam era sobre
1) quem estava para dar um chá de panela e quais seriam os refrescos tomados,
2) conquistadores baratos de esquina e
3) o que elas haviam conversado com várias pessoas em
3-a) no Grange,
3-b) na feira mensal da igreja ou
3-c) no Cavaleiros de Pítias Hall Beano.
— ...que se eu tornar a vê-la daquele jeito novamente, acho que bancaria a boa cidadã e chamaria...
Ele recolocou o fone no gancho. Ele e Buddy se divertiam à custa de Cora, quando passavam diante de sua casa, justamente como todos os outros garotos. Ela era gorda, piegas e fofoqueira. Eles cantarolavam Cora-Cora, de Bora-Bora, comeu bosta de cachorro e nem pediu socorro! e mamãe mataria eles dois se soubesse disso, mas agora George estava contente, por Cora e Henrietta Dodd estarem ao telefone. Que as duas conversassem a tarde inteira, ele pouco ligaria. Aliás, nada tinha contra Cora. Uma vez, perseguido por Buddy, caíra diante da casa dela e esfolara o joelho. Cora lhe pusera um Band-Aid na esfoladura e dera um biscoito a cada um, falando o tempo todo. George ficara envergonhado por todas as vezes em que havia cantarolado a rima sobre a bosta de cachorro e o restante.
George foi até o aparador e pegou seu livro de leitura. Segurou-o por um momento, depois o largou. Já havia lido todas as histórias ali contidas, embora só houvesse tido um mês de aulas. Lia melhor do que Buddy, ao passo que seu irmão era melhor nos esportes. Não será melhor durante algum tempo, pensou, com momentânea satisfação, não com uma perna quebrada.
Pegou seu livro de História, sentou-se à mesa da cozinha e começou a ler sobre como Cornwallis fora obrigado a capitular em Yorktown. Entretanto, seus pensamentos não se fixavam no que lia. Levantou-se, tornou a chegar ao corredor. A mão amarela continuava imóvel. Vovó dormia, seu rosto era um círculo bambo e acinzentado contra o travesseiro, um sol agonizante, circundado pela despenteada coroa branco-amarelada de seus cabelos. Para George, ela não tinha a menor semelhança com pessoas velhas e supostamente à beira da morte. Não tinha a tranqüilidade de um pôr-de-sol. Ela parecia louca e... (e perigosa)
... sim, isso mesmo, e perigosa — como uma ursa velhíssima, que pudesse ainda ter um bocado de força sobrando nas garras.
George se lembrava muito bem de como tinham chegado a Castle Rock para cuidar de vovó, quando vovô morrera. Até então, mamãe estivera trabalhando na Lavanderia Stratford, em Stratford, Connecticut. Vovô tinha três ou quatro anos menos que vovó, era carpinteiro de profissão e trabalhara até o próprio dia de sua morte. Ele sofrera um ataque cardíaco.
Já naquele tempo, vovó estava ficando senil, tinha seus "acessos". Sempre constituíra uma provação para a família, era o que vovó havia sido. Ela fora uma mulher vulcânica, que lecionara durante quinze anos, entre ter bebês e disputas com a Igreja Congregacional, que freqüentava com vovô e os nove filhos. Mamãe costumava contar que vovô e vovó haviam abandonado a Igreja Congregacional de Scarborough, na mesma época em que vovó desistira de lecionar. Contudo, um ano atrás, quando a tia Flo viera de sua casa em Salt Lake City para visitá-los, George e Buddy tinham ficado ouvindo, pelo cano condutor de calefação, enquanto mamãe e sua irmã conversavam, até noite avançada. O que ouviram foi uma história bem diferente. Vovô e vovó tinham sido expulsos da igreja e vovó despedida do emprego, porque fizera algo errado. Era qualquer coisa sobre livros. Por que ou como alguém podia ser mandado embora do emprego ou expulso da igreja, apenas por causa de livros, era uma coisa que George não entendia. Perguntou a Buddy, quando os dois se esgueiraram para seus beliches, debaixo do beiral.
— Há todo tipo de livros, Señor El-Burro —, sussurrou Buddy.
— Certo, mas de que tipo?
— Como é que vou saber? Por que não dorme logo?
Silêncio. George meditou no assunto.
— Buddy?
— O que é? — Um sibilo irritado.
— Por que mamãe nos disse que vovó deixou a igreja e o emprego?
— Porque é um esqueleto no armário, entendeu agora?
Contudo, ele não dormiu, ficou acordado muito tempo. Seus olhos ficavam observando a porta do armário, vagamente delineada ao luar. Perguntou-se o que faria, caso a porta se escancarasse, revelando um esqueleto lá dentro, com dentes risonhos à maneira de lousas de sepulturas, olhos que eram como poços nas órbitas e costelas como gaiolas; o luar branquicento pareceria fantástico e quase azul, sobre ossos mais brancos. Ele gritaria? O que Buddy teria querido dizer com um esqueleto no armário? O que esqueletos tinham a ver com livros? Por fim, acabou dormindo sem ao menos perceber.
Sonhou que tinha seis anos novamente e que vovó lhe estendia os braços, com os olhos cegos procurando-o; a voz esganiçada de vovó dizia, Onde está o pequenino, Ruth? Por que ele está chorando? Eu só queria botá-lo no armário... junto com o esqueleto.
George ficou intrigado com tudo aquilo por muito e muito tempo. Finalmente, cerca de um mês depois da partida da tia Flo, contou à mãe que a tinha ouvido conversando com a irmã. Então, já sabia o que significava um esqueleto no armário, porque perguntara à Sra. Redenbacher, na escola. Ela lhe explicara que isso queria dizer a existência de um escândalo na família — e um escândalo era algo sobre o que as pessoas falavam bastante.
— Falam bastante, assim como Cora Simard? — perguntara George. O rosto da Sra. Redenbacher assumira um ar estranho, seus lábios haviam tremido e ela respondera:
— Isso não é muito delicado, George, mas... bem, é algo semelhante.
Quando ele interrogou mamãe, o rosto dela havia ficado muito imóvel e suas mãos interromperam o solitário que fazia com cartas de baralho.
— Acha bonito o que esteve fazendo, George? Você e seu irmão agora costumam ficar ouvindo coisas no cano de calefação?
George, na época com apenas nove anos, baixara a cabeça.
— Nós gostamos de tia Flo, mamãe. Queríamos ficar escutando o que ela dizia.
E era verdade.
— Foi idéia de Buddy?
Tinha sido idéia de Buddy, mas George não contaria isso a ela. Não queria ficar caminhando com a cabeça virada para trás, algo que poderia acontecer, se Buddy descobrisse que o delatara.
Não, foi minha.
Mamãe ficara muito tempo calada, depois recomeçou lentamente a dispor suas cartas.
— Talvez já seja hora de você ficar sabendo —, havia dito. — Mentir é pior do que ouvir conversas alheias, acho eu, e todos nós mentimos a nossos filhos sobre vovó. E creio que mentimos para nós também. É o que fazemos, a maior parte do tempo...
Então ela falara, com uma súbita e rancorosa amargura, que era como ácido esguichando de entre seus dentes frontais — George sentiu aquelas palavras tão quentes, que teriam queimado seu rosto, se não houvesse recuado.
— ...exceto por mim. Tenho que morar com ela, não posso mais me dar ao luxo de mentir.
Assim, mamãe me contou que, após se casarem, vovô e vovó haviam tido um bebê que nascera morto. Um ano mais tarde, tiveram outro bebê, também nascido morto. Então, o médico disse a vovó que ela nunca poderia ter um bebê, que tudo quanto podia fazer era continuar tendo bebês já mortos ou que morreriam assim que respirassem. Ele disse que seria sempre assim, até que um bebê ficasse morto dentro dela por muito tempo, antes que seu corpo o expulsasse — esse bebê apodreceria lá e também a mataria.
O médico havia dito isso a ela.
Não muito depois é que os livros começaram.
Livros sobre como ter bebês?
Mamãe, no entanto, não disse — ou não quis dizer — que tipo de livros eram aqueles, onde vovó os conseguira ou como sabia consegui-los. O fato é que vovó tornou a engravidar e, desta vez, o bebê não nasceu morto e nem morreu, após uma ou duas respirações; desta vez, ele estava ótimo e se tornou o tio Larson de George. E, depois disso, vovó continuou engravidando e tendo bebês. Certa vez, contou mamãe, vovô tentara convencê-la a livrar-se dos livros, para ver se teriam filhos sem eles (ou se até não teriam mais porque, a essa altura, talvez ele achasse que já tinha filhos suficientes, de modo que podiam parar de vir ao mundo), mas vovó não quis. George perguntara à sua mãe por quê.
— Acho que, então, ter os livros era tão importante para ela como ter bebês — respondeu sua mãe.
— Não entendo — disse George.
— Bem — falou sua mãe — acho que nem eu entendo bem... Lembre-se, eu era ainda muito pequena. Sei apenas que aqueles livros eram uma segurança para ela. Sua avó disse que não se falaria mais no assunto e assim foi. Porque era ela que usava as calças compridas em nossa família.
George fechou seu livro de História com um golpe súbito. Olhou para o relógio e viu que eram quase cinco da tarde. Seu estômago grunhia maciamente. De repente, com algo parecido ao puro horror, percebeu que se mamãe não estivesse em casa às seis horas mais ou menos, vovó acordaria e começaria a gritar por seu jantar. Mamãe esquecera de dar-lhe instruções sobre isso, talvez por estar tão preocupada com a perna de Buddy. George supôs que poderia fazer para vovó um de seus jantares congelados especiais. Eram especiais, porque ela fazia uma dieta de sal. Também tomava mil espécies diferentes de pílulas.
Para ele próprio, poderia esquentar o macarrão com queijo que sobrara da noite anterior.
Se colocasse um pouco de catchup em cima, ficaria legal.
Ele tirou da geladeira o macarrão com queijo, usou uma colher para coloca-lo em uma panela e pousou a panela no queimador perto da chaleira, esta ainda esperando, para o caso de vovó acordar e querer o que às vezes chamava de "uma xica de chá". George começou a servir-se de um copo de leite, parou, tornou a pegar o telefone.
— ... e nem pude acreditar no que meus olhos viam, quando... — a voz de Henrietta Dodds interrrompeu-se, para depois soar estridentemente: — Eu gostaria de saber quem é que fica ouvindo nesta linha!
George recolocou apressadamente o fone no gancho, sentindo o rosto arder.
Ela não sabe que é você, seu burro. Há seis assinantes da linha!
Dava no mesmo, era errado escutar conversas alheias, inclusive quando apenas para ouvir outra voz, por estar sozinho em casa, sozinho, exceto por vovó, aquela coisa gorda que dormia no outro quarto, em uma cama de hospital; errado, mesmo quando parecia quase necessário ouvir outra voz humana, porque sua mãe estava em Lewinston, logo anoiteceria, vovó estava no outro quarto e ela parecia (sim, oh, sim, ela parecia) uma ursa que, em suas velhas garras engalfinhadas talvez só tivesse forças para mais uma patada assassina.
George foi para a cozinha e bebeu o leite.
Mamãe havia nascido em 1930, seguida por tia Flo em 1932 e pelo tio Franklin em 1934. Tio Franklin morrera em 1948, de apendicite supurada. Mamãe às vezes chorava por causa disso e carregava o retrato dele. Ela gostara mais de Frank do que de todos os outros irmãos, dizia que não havia necessidade daquela morte estúpida por peritonite.
Repetia que Deus não fora correto, ao levar Frank.
George espiou pela janela acima da pia. A claridade lá fora estava agora mais dourada, baixa acima da colina. A sombra do barracão dos fundos estirava-se em todo o comprimento, através do relvado. Se Buddy não tivesse quebrado aquela perna idiota, mamãe agora estaria aqui, fazendo chili ou qualquer outra coisa (mais o jantar sem sal de vovó), com todos eles conversando e rindo. Mais tarde, talvez até jogassem cartas.
George acendeu a luz da cozinha, embora ainda não estivesse escuro bastante para isso.
Depois girou o botão para FOGO BAIXO, sob seu macarrão. Os pensamentos continuavam voltando para vovó, sentada em sua poltrona branca de vinil, como um gordo e imenso verme em um vestido, a coroa desgrenhada dos cabelos despencando pelos ombros do quimono rosa de rayon, estendendo os braços para atraí-to, ele encolhendo-se contra a mãe e chorando.
— Mande o menino para mim, Ruth, eu quero abraçá-lo.
— Ele está um pouco amedrontado, mamãe. Com tempo, acabará indo. — Sua mãe, no entanto, também parecia amedrontada.
Amedrontada? Mamãe?
George parou, refletindo. Seria verdade? Buddy dizia que a memória costumava brincar com a gente. Teria ela realmente parecido amedrontada?
Sim, ela parecera amedrontada.
Então, a voz da avó se alteara peremptoriamente:
— Não mime o garoto, Ruth! Mande-o vir aqui; quero abraçá-lo.
— Não. Ele está chorando.
Vovó baixara os braços pesados, dos quais a carne pendia em grandes e pesados nacos.
Um sorriso tímido e senil espalhara-se em seu rosto e ela havia perguntado:
— Ele é mesmo parecido com Franklin, Ruth? Lembro-me de ouvi-la dizer que o menino se parecia com Frank.
Lentamente, George mexeu o macarrão com queijo e catchup. Não recordara um incidente com tanta clareza antes. Talvez conseguisse lembrar bem agora, por causa do silêncio.
Do silêncio e por estar sozinho com vovó.
— Então, vovó tivera seus bebês e lecionara na escola, os médicos ficaram adequadamente pasmos, vovô fizera sua carpintaria e ficara cada vez mais próspero, encontrando trabalho mesmo nas piores épocas da Depressão. Por fim —, disse mamãe —, as pessoas começaram a falar.
— O que elas falavam? perguntou George.
— Nada de importante —, disse mamãe, mas de repente reuniu as cartas do baralho. — Elas diziam que seu avô e sua avó tinham sorte demais para pessoas comuns, eis tudo. E foi logo depois disso, que encontraram os livros. — Mamãe nada mais acrescentou, exceto que a diretoria da escola encontrara alguns e que um homem contratado encontrara outros mais. Houve um grande escândalo. Vovô e vovó mudaram-se para Buxton e isso encerrou a questão.
Os filhos haviam crescido e tinham tido seus próprios filhos, formando tios e tias uns dos outros. Mamãe se casara, mudando-se para Nova York com papai (o qual George nem conseguia recordar). Depois do nascimento de Buddy, eles se tinham mudado para Stratford e, em 1969, nascia George. Em 1971, papai havia sido atropelado e morto por um carro dirigido pelo Bêbado Que Tinha de Ir para a Cadeia.
Quando vovô tivera seu ataque do coração, tios e tias trocaram muitas cartas entre si.
Não queriam colocar a avó em uma clínica para idosos. E ela não queria ir para uma.
Assim, como vovó não queria fazer semelhante coisa, melhor seria concordar com ela.
Ela preferia ficar com algum filho e viver o resto de seus anos com ele. Contudo, estavam todos casados e nenhum deles tinha esposas querendo partilhar seu lar com uma velha senil e geralmente intratável. Estavam todos casados, exceto Ruth.
As cartas continuaram fluindo de um lado para outro e, por fim, a mãe de George aquiescera. Deixou o emprego e foi para o Maine, tomar conta da velha senhora. Os outros cotizaram-se para a compra de uma casinha nos arredores de Castle View, onde era baixo o preço dos imóveis. Enviavam-lhe um cheque a cada mês, a fim de que ela "cuidasse" da velha e dos próprios filhos.
O que aconteceu é que meus irmãos e irmãs transformaram-me em ama parceira locadora, George recordava tê-la ouvido dizer certa vez. Ele ignorava o que queria dizer aquilo, porém ela parecera amarga ao comentar, como alguma piada que não provocava risos mas, em vez disso, ficava entalada na garganta, como um osso. George sabia (porque Buddy lhe contara), que mamãe finalmente acedera, porque todos da grande e espalhada família lhe haviam assegurado que, com toda certeza, vovó não duraria muito. Havia tanta coisa errada com ela — pressão alta, uremia, obesidade, palpitações cardíacas — que não podia durar muito. Talvez ainda chegasse aos oito meses, disseram tia Flo, tia Stephanie e tio George (de quem George recebera seu nome). Seria um ano, no máximo. Contudo, já tinham decorrido cinco anos e para George, isso significava durar muito.
Ela havia durado demais, sem dúvida. Como uma ursa hibernando e esperando... o quê? (você é quem melhor sabe lidar com ela, Ruth, você sabe fazê-la calar a boca)
A caminho da geladeira, para verificar as instruções impressas em um dos jantares sem sal de vovó, George parou. Ficou hirto. De onde tinha vindo aquilo? Aquela voz falando dentro de sua cabeça?
De repente, seu ventre e o peito ficaram arrepiados. Ele enfiou a mão dentro da camisa e tocou um dos mamilos. Parecia um pequeno seixo, e então recuou apressadamente com o dedo.
Tio George. O tio de quem levava o nome, que trabalhava para a Sperry Rand, em Nova York. Tinha sido a voz dele. Ele dissera aquilo, quando viera com sua família para o Natal, dois — não, três anos atrás.
— Ela é mais perigosa agora, porque está senil.
— Cale a boca, George. Os meninos andam por perto.
George havia parado junto à geladeira, com a mão pousada no puxador frio e cromado, pensando, recordando, espiando para a crescente escuridão lá fora. Buddy não andava por perto aquele dia. Buddy já estava lá fora, porque quisera o trenó melhor, eis o motivo; os dois iam deslizar na colina de Joe Camber e o outro trenó tinha um patim empenado. Assim, Buddy estava lá fora, enquanto George remexia na caixa de sapatos e meias da entrada, procurando um par de meias grossas que combinassem — e que culpa tinha, se sua mãe e o tio George conversavam na cozinha? Ele não se sentia culpado.
Era culpa sua se Deus não o tivesse ensurdecido ou, falhando essa medida extrema, pelo menos situasse a conversa em outro lugar da casa? George também não acreditava nisso. Como indicara sua mãe, em várias oportunidades (geralmente após um ou dois copos de vinho), Deus às vezes costumava fazer brincadeiras de mau gosto.
— Você entende o que quero dizer —, falara tio George.
A esposa dele e as três filhas tinham ido até Gates Falls, para algumas compras natalinas de última hora. Tio George já estava bem alto, exatamente como o Bêbado que Tinha de Ir para a Cadeia. George podia perceber isso, pela maneira como o tio enrolava as palavras.
— Você se lembra do que aconteceu a Franklin, quando ele a contrariou.
— Cale a boca, George, ou jogo o resto de sua cerveja na pia!
— Bem, de fato, ele não tinha intenção de fazer aquilo. Apenas falou o que não devia. A peritonite...
— Cale a boca, George!
— Talvez —, recordou George, pensando vagamente —, Deus não seja o único a fazer brincadeiras de mau gosto.
Agora, interrompendo aquelas antigas lembranças, ele olhou no freezer e apanhou um dos jantares de vovó. Vitela. Com ervilhas ao lado. O forno tinha que ser aquecido previamente e então a refeição permanecia lá dentro por quarenta minutos, a 160°.
Fácil. Ele sabia como fazer. O chá já estava pronto, em cima do fogão, se vovó o quisesse. Ele poderia prepará-lo ou aquecer o jantar em pouco tempo, caso vovó acordasse e gritasse por eles. Chá ou jantar — qualquer coisa que ela quisesse. O número do Dr. Arlinder estava no quadro de anotações, para o caso de uma emergência. Tudo em ordem. Então, por que ficava preocupado?
Ele nunca fora deixado sozinho com vovó, era isso que o preocupava.
— Mande o menino para mim, Ruth. Faça-o vir até aqui.
— Não. Ele está chorando.
— Ela está mais perigosa agora... você sabe o que quero dizer.
— Todos mentimos para nossos filhos sobre vovó.
Nem ele e nem Buddy. Nenhum dos dois fora deixado sozinho com vovó. Até agora.
De repente, George sentiu a boca seca. Foi até a pia e bebeu um pouco de água. Sentia-se... esquisito. Aqueles pensamentos. Aquelas recordações. Por que seu cérebro as jogava para o alto agora?
George se sentia como se alguém houvesse derrubado à sua frente todas as peças de um quebra-cabeças, que ele não conseguia pôr exatamente nos lugares certos. Aliás, talvez fosse bom não conseguir ajustá-los, porque uma vez pronto, o quadro poderia ser, bem, algo desagradável. Poderia...
Do outro quarto, onde vovó passava seus dias e noites, chegou até ele um repentino ruído sufocado, chocalhante, gorgolejante.
A respiração penetrou sibilante em seu peito, quando ele inalou. Virou-se para o quarto de vovó e descobriu que seus sapatos estavam como que firmemente pregados ao piso de linóleo. O coração virara uma pedra em seu peito. Os olhos estavam arregalados e salientes. Vamos, andem, dizia o cérebro aos pés. Os pés perfilavam-se e respondiam, De maneira alguma, senhor!
Vovó nunca tinha feito um barulho como aquele antes.
Vovó nunca tinha feito um barulho como aquele antes.
O barulho repetiu-se, um som amortecido, baixo e decrescente, até tornar-se como um zumbido de inseto, antes de desaparecer de todo. George finalmente conseguiu mover-se.
Caminhou até o pequeno corredor que separava a cozinha do quarto de vovó.
Cruzou-o e olhou para dentro do quarto, com o coração em disparada. Agora, sua garganta estava asfixiada por uma luva de lã; seria impossível engolir através de todo aquele bolo.
Vovó ainda dormia e estava tudo certo, foi seu primeiro pensamento; afinal, fora apenas um som estranho; talvez ela o fizesse o tempo todo, quando ele e Buddy estavam na escola. Apenas uma forma de ressonar. Vovó estava ótima. Dormindo.
Esse foi seu primeiro pensamento. Depois percebeu que a mão amarela que estivera sobre a coberta, agora pendia flacidamente sobre a borda da cama, as compridas unhas quase tocando o chão. E ela estava com a boca aberta, um orifício enrugado e escavado em uma fruta apodrecida.
Timidamente, vacilantemente, George aproximou-se dela.
Ficou ao lado da cama muito tempo, olhando para a velha, não ousando tocá-la. A subida e descida imperceptíveis da coberta pareciam ter cessado.
Pareciam.
Aquela era a palavra-chave. Pareciam.
Mas isto é só porque você está apavorado, Georgie. Está sendo apenas Señor El-Burro, como diz Buddy — é um jogo. Seu cérebro faz truques com seus olhos, a respiração dela está legal, ela está...
— Vovó? — perguntou, mas tudo que emitiu foi um sussurro. Pigarreou e saltou para trás, assustado com o som. Contudo, sua voz soou um pouquinho mais alto. — Vovó? Vai querer seu chá agora? Vovó?
Nada.
Os olhos estavam fechados.
A boca estava aberta.
A mão pendurada.
Lá fora, o sol que se punha brilhava em vermelho-dourado por entre as árvores. George a viu então em uma plentitude positava; viu-a com aquele olho infantil brilhantemente desalojado, de imaturo e incriado reflexo, não aqui, não agora, não na cama, mas estando ela sentada na poltrona branca de vinil, estendendo os braços, o rosto ao mesmo tempo estúpido e triunfante. Viu-se recordando um dos "acessos", quando vovó começava a gritar, como em língua estrangeira — Gyaagin! Gyaagin! Hastur degryon Yos-soth-oth! — e mamãe os tinha mandado para fora, tinha gritado "Saia. JÁ!" para Buddy, quando ele parou junto à caixa da entrada, a fim de procurar suas luvas. Budy olhara para trás, por sobre o ombro, tão assustado que seus olhos se arregalaram, porque a mãe de ambos nunca havia gritado. Então, os dois saíram e ficaram na entrada de carros, sem falar, as mãos enfiadas nos bolsos em busca de calor, perguntando-se o que estaria acontecendo.
Mais tarde, mamãe os chamara para jantar, como se nada houvesse ocorrido. (você sabe lidar com ela Ruth você sabe como fazê-la calar-se)
Até o dia presente, George não tornara a pensar mais naquele particular "acesso". Só agora, olhando para vovó, que dormia tão estranhamente em sua cama de hospital, com a cabeceira elevada pela manivela, ocorria a ele, com crescente horror, que no dia anterior haviam sabido que a Sra. Harham, residente mais acima na estrada e que por vezes vinha visitar vovó, tinha morrido aquela noite, durante o sono.
"Acessos".
Acessos. Esconjuros...
Presumia-se que feiticeiras pudessem lançar esconjuros. Não era isso que as tornava feiticeiras? Maçãs envenenadas. Príncipes transformados em sapos. Casas de chocolate.
Abracadabra. Abre-te sésamo. Esconjuros.
Eram peças soltas de um desconhecido quebra-cabeças, que voavam pela mente de George, encaixando-se entre si, como por magia.
Magia, pensou ele, e grunhiu.
Qual era o quadro formado? Vovó, naturalmente, vovó e seus livros, vovó que tinha sido expulsa da cidade, vovó que não podia ter bebês, mas que depois os tivera, vovó que fora expulsa da igreja, assim como da cidade. O quadro representava vovó, amarela, gorda, enrugada e indolente, a boca desdentada encurvando-se em um sorriso que afundava, seus olhos cegos e desbotados, de certo modo astugos e manhosos; e, em sua cabeça, havia um chapéu preto e cônico, salpicado de estrelas prateadas e cintilantes crescentes babilônicos; a seus pés, enroscavam-se gatos pretos de olhos tão amarelos como urina, enquanto os cheiros eram de porco e cegueira, de porco e coisas queimadas antigas estrelas e velas, tão escuras como a terra, na qual ataúdes jaziam; ele ouviu palavras ditas de livros antigos, e cada palavra era como uma pedra, cada sentença como uma cripta, erigida em algum ossuário fedorento, cada parágrafo como uma caravana de pesadelo, formada pelos que a praga matara, sendo levados a um local de queima; seu olho era o olho de uma criança mas, naquele momento, abriu-se desmesuradamente, em espantada compreensão sobre o negrume.
Vovó tinha sido uma feiticeira, exatamente como a Bruxa Má em O Mágico de Oz. E agora, ela estava morta. Aquele som borbulhante, pensou George, com crescente horror.
Aquele som ressonado e gargarejante, havia sido um... um... um "chocalhar da morte".
— Vovó? — chamou, em um sussurro.
Pensou, loucamente! Ding-dong, a feiticeira está morta! Não houve resposta. Manteve a mão em concha diante da boca de vovó. Não havia a menor brisa se movendo e que viesse de dentro dela. Era a morte calma e velas murchas, sem esteiras alargando-se atrás da quilha. Um pouco de seu medo diminuiu e ele tentou refletir. Recordou o tio Fred, mostrando-lhe como molhar um dedo e testar o vento; então, lambeu a palma inteira e a manteve diante da boca de vovó.
Ainda nada.
Começou a caminhar para o telefone, a fim de chamar o Dr. Arlinder, mas então parou.
E se chamasse o médico, sem ela de fato estar morta? Ficaria em apuros, na certa.
Tome-lhe o pulso.
Parou na soleira, olhando dubitativamente para aquela mão pendurada. A manga da camisola de vovó ficara suspensa, expondo-lhe o pulso. Só que o recurso era falho.
Certa vez, após uma visita do médico em que a enfermeira apertara os dedos em seu punho, para tomar-lhe o pulso, George a imitara, porém não fora capaz de encontrar nenhuma pulsação. Até onde seus dedos destreinados podiam dizer, ele estava morto.
Por outro lado, não sentia a menor vontade de... bem... de tocar vovó. Mesmo se ela estivesse morta. Especialmente se estivesse morta.
George parou no pequeno corredor diante da porta, olhando no corpo imóvel e deitado de vovó para o telefone na parede, ao lado do número do Dr. Arlinder. Tornou a olhar para vovó. Teria que chamar o médico. Era preciso... arranjar um espelho!
Claro! Quando a gente respira contra um espelho, ele fica embaciado. Vira um médico examinar uma pessoa sem sentidos dessa maneira, certa vez em um filme. Havia um banheiro dando para o quarto de vovó. George correu para ele e pegou o espelho de mão que ela possuía. Uma das faces era normal, a outra aumentava as coisas, de modo que se podia arrancar pêlos e coisas assim.
George levou o espelho à cama de vovó e manteve um lado dele até quase tocar a boca aberta, escancarada. Conservou-o na mesma posição enquanto contava até sessenta, observando vovó o tempo todo. Nada mudou. Estava certo de que ela havia morrido, antes mesmo de afastar-lhe o espelho da boca e observar a superfície, que estava perfeitamente clara e sem embaciamento.
Vovó estava morta.
Com alívio e alguma surpresa, George percebeu que agora conseguia lamentá-la. Talvez ela houvesse sido uma feiticeira. Talvez não. Talvez ele apenas a tivesse imaginado uma. Fosse como fosse, ela agora estava morta. Com um entendimento de adulto, ele percebeu que questões de realidade concreta, embora não perdendo a importância, ficam menos vitais se examinadas à muda face branda de restos mortais. Percebeu isto com um entendimento de adulto e foi com um alívio de adulto que o aceitou. Assim são todas as impressões adultas de uma criança; somente anos mais tarde, a criança compreende que estava sendo feita, que estava sendo formada, moldada por experiências ocasionais; tudo quanto permanece no instante além da pegada, é aquele acre cheiro de pólvora, que é a ignição de uma idéia além dos determinados anos de uma criança.
Ele tornou a levar o espelho para o banheiro, depois voltou ao quarto dela, observando o corpo enquanto isso. O sol poente pintara a velha face morta em barbáricos tons vermelho-alaranjados. George olhou rapidamente para outro lado.
Cruzou a porta e passou pela cozinha, em direção ao telefone, decidido a fazer tudo certo. Em sua mente, já via uma certa vantagem sobre Buddy; sempre que o irmão começasse a implicar, diria apenas: eu estava sozinho em casa quando vovó morreu, e fiz tudo certo.
Ligar para o Dr. Arlinder, era a primeira providência. Ligar para ele e dizer, "Minha avó acabou de morrer. Pode me dizer o que devo fazer? Cobri-la ou coisa assim?"
Não.
"Acho que minha avó acabou de morrer."
Sim. Sim, assim era melhor. Afinal, ninguém pensaria que um garoto de pouca idade saberia alguma coisa, portanto, assim era melhor.
Ou então!
"Tenho absoluta certeza de que minha avó acabou de morrer..."
Claro! Esta era a melhor escolha.
Também falaria sobre o espelho, o chocalho da morte, tudo enfim. E o médico viria em seguida, para dizer, enquanto examinasse vovó, "Eu a declaro morta, vovó". Depois diria a George, "Você foi extremamente calmo em uma situação difícil, George. Quero dar-lhe os meus parabéns." E George responderia com algo apropriadamente modesto.
Ele olhou para o número do Dr. Arlinder e fez duas respirações profundas, antes de pegar o fone. Seu coração batia depressa, mas aquela tremenda palpitação desaparecera.
Vovó estava morta. Acontecera o pior, mas enfim não era tão ruim como esperar que ela começasse a gritar com mamãe, para que lhe levasse o chá.
O telefone estava mudo.
Ele ouviu o vazio, sua boca ainda formada em torno das palavras Sinto muito, Sra. Dodd, mas aqui é George Bruckner e preciso chamar o médico para minha avó. Nada de vozes. Nada de sinal para discar. Apenas o vazio morto. Como aquela vacuidade morta na cama, lá no quarto.
Vovó está...
... está...
(oh, ela está)
Vovó está ficando fria.
Novamente a pela arrepidada, dolorida, entorpecida. Seus olhos se fixaram na chaleira Pyrex sobre o fogão, na xícara em cima do balcão, com o saquitel de chá de ervas em seu interior. Nada de chá para vovó. Nunca mais.
(ficando tão,fria)
George estremeceu.
Seu dedo moveu para cima e para baixo o dispositivo interruptor do telefone Princess, mas a linha estava morta. Tão morta como...
(e tão gelada como)
Bateu o gancho para baixo, com força, ouvindo a campainha tilintar fracamente no interior. Tornou a pegar rapidamente o fone, para ver se aquilo significava que, por meios mágicos, voltara a funcionar. Contudo, nada acontecera e, desta vez, ele o colocou lentamente no gancho.
Seu coração começara a bater mais forte novamente.
Estou sozinho em casa, com ela morta.
Cruzou a cozinha devagar, parou junto à mesa por um minuto e então ligou a luz. Estava ficando escuro ali dentro. Logo o sol desapareceria de todo e a noite estaria ali.
Esperar. É tudo que posso fazer. Apenas esperar, até que mamãe volte. De fato, é a melhor solução. Se o telefone ficou mudo, é melhor do que ela apenas ter morrido, em vez de ter um ataque ou coisa assim, espumando pela boca, talvez caindo da cama...
Ah, isso sim, seria terrível. Ele poderia ter agido com toda a correção, sem toda essa confusão.
Como ficar sozinho no escuro e pensar em coisas mortas que ainda viviam, ver formas nas sombras sobre as paredes e pensar na morte, pensar nos mortos, aquelas coisas, a maneira como federiam e a maneira como se moveriam em direção à gente, no escuro: pensando isto: pensando aquilo: pensando em insetos transformados em carne; escondendo-se na carne; olhos que se moviam no escuro. Sim. Isso antes de tudo. Pensando em olhos que se moviam no escuro e no rangido de tábuas do assoalho, como se alguma coisa cruzasse o aposento, através das tiras zebradas de sombras que vinham da luz lá de fora. Sim.
No escuro, os pensamentos tinham uma perfeita circularidade, pouco importando aquilo em que se quisesse pensar — flores, Jesus, beisebol ou ganhar a medalha de ouro nos 440, nas Olimpíadas — de certo modo, isso reconduzia à forma nas sombras, com as garras e os olhos imóveis.
— Droga! — sibilou George.
Bateu no rosto subitamente. Com força. Estava se deixando dominar por aqueles pensamentos horríveis, era tempo de parar com isso. Afinal, não estava mais com seis anos. Sua avó tinha morrido, isso era tudo. Morrido. Dentro dela, agora não havia mais pensamento do que em uma bola de gude, em uma tábua do assoalho, uma maçaneta, um botão de rádio, um...
Então, uma forte voz, estranha e súbita, talvez apenas a espontânea e inexorável voz da simples sobrevivência, exclamou dentro dele: Cale-se, George, e vá cuidar de suas malditas obrigações!
Sim, está bem. Está bem, mas...
Ele retornou à porta do quarto dela, para certificar-se.
Lá jazia vovó, uma mão caída para fora da cama e tocando o chão, a boca escancarada.
Vovó agora era parte do mobiliário. Podia-se colocar a mão dela na cama outra vez, puxar-lhe os cabelos, despejar um copo com água em sua boca ou colocar fones de ouvido em sua cabeça, tocando Chuck Berry a todo volume, que daria tudo no mesmo para ela. Como Buddy dizia às vezes, vovó estava em outra. Tinha dado no pé.
Um ruído repentino, baixo e ritmado, como de algo batendo, começou não muito distante da esquerda de George, arrancando-lhe um pequeno grito assustado. Era a porta contra tempestades, que Buddy havia colocado apenas na semana anterior. Nada mais que a porta contra tempestades, destrancada e batendo de lá para cá, à brisa refrescante.
George abriu a porta interna, inclinou-se para fora e agarrou a porta contra tempestades, quando ela bateu de volta. O vento — não era uma brisa, mas vento — passou por seus cabelos, desarrumando-os. Ele trancou a porta com firmeza e perguntou-se como o vento surgira tão de repente. Na hora em que mamãe saíra, havia a mais absoluta calmaria. Enfim, quando ela saíra, ainda era dia claro, agora estava quase anoitecendo.
George tornou a dar uma espiada em vovó. Depois voltou e experimentar o telefone.
Continuava mudo. Ele se sentou, levantou-se e começou a andar na cozinha, de um lado para outro, parando de quando em quando, procurando pensar.
Uma hora depois, era noite fechada.
O telefone continuava mudo. George supôs que o vento, agora adquirindo proporções de quase ventania, teria derrubado algumas linhas, talvez por perto do Pântano do Castor, onde as árvores cresciam por toda parte, em uma desordem de troncos abatidos e poças de água parada. O telefone tilintava ocasionalmente, fantasmagórico e distante, porém a linha permanecia muda. Lá fora, o vento uivava ao longo das calhas da pequena casa, e George admitiu que teria uma boa história para contar, na próxima reunião local de escoteiros... sentado em casa, sozinho com a avó morta, o telefone mudo e o vento empurrando montes de nuvens apressadamente pelo céu, nuvens que eram negras no topo e, por baixo, tendo a palidez da morte, a cor das mãos-garras de vovó.
Como Buddy também costumava dizer, isso era um Clássico.
George desejaria ouvi-lo dizendo isso agora, com a realidade da coisa seguramente para trás. Sentou-se à mesa da cozinha, tendo à frente aberto o livro de história, sobressaltando-se ao menor ruído... e agora que o vento se levantara, havia milhares de sons, quando a casa estalava em todas as suas juntas secretas, não oleadas e esquecidas.
Ela logo estará em casa. Estará em casa e tudo ficará legal. Tudo (você nem a cobriu) tudo estará (nem cobriu o rosto dela)
George saltou, como se alguém houvesse falado em voz alta, e arregalou os olhos, espiando o telefone inútil através da cozinha. Presumia-se que o lençol era puxado para sobre o rosto da pessoa morta. Era assim nos filmes.
Para o diabo com isso! Eu não vou entrar lá!
Não! E não havia motivo algum para que fosse lá! Mamãe podia cobrir-lhe o rosto, quando chegasse em casa! Ou o Dr. Arlinder, quando viesse! Ou o funerário!
Alguém, qualquer pessoa, menos ele.
Não havia motivo para que fizesse isso.
Não era da sua conta e nem da conta de vovó.
A voz de Buddy em sua cabeça:
Se não está com medo, por que não tem coragem de cobrir o rosto dela?
Não é da minha conta.
Droga!
Também não é da conta de vovó.
Droga, PORCA MISÉRIA! COVARDÃO!
Sentado à mesa, diante do livro de História que não lia, considerando a situação, George começou a perceber que, se não puxasse a coberta para cima do rosto de vovó, não poderia alegar que fizera tudo certo e, assim, Buddy teria um motivo para implicar com ele.
Agora, ele se via contando a história mal-assombrada da morte de vovó, em torno da fogueira no acampamento escoteiro, antes do toque de silêncio, mal chegando à confortadora conclusão em que os faróis de mamãe banham de luz a entrada para carros — o reaparecimento do adulto, não apenas restabelecendo, mas confirmando o conceito de Ordem — e, de repente, do meio das sombras, eleva-se uma figura sombria, um cone de pinheiro explode na fogueira, e George pode ver que é Buddy, lá nas sombras, dizendo: Se você foi tão corajoso, seu maricas, como é que não teve peito para cobrir O ROSTO DELA?
George levantou-se, recordando a si mesmo que vovó estava em outra, que vovó dera no pé, que vovó estava ficando gelada. Podia recolocar-lhe a mão na cama, enfiar-lhe um saquitel de chá pelo nariz, botar-lhe fones de ouvido com Chuck Berry tocando a todo volume, etc., etc., e nada disso faria a mínima diferença para vovó, porque isso era o que significava estar morto, nada disso faria diferença para uma pessoa morta, uma pessoa morta era um defunto consumado e frio, o resto não passava de sonhos, sonhos inevitáveis, apocalípticos e febris sobre portas fechadas que se abriam sozinhas na boca morta da meia-noite, apenas sonhos sobre o lugar banhando delirantemente os ossos de esqueletos desenterrados, apenas...
— Quer parar com isso? — sussurrou ele. — Pare de ser tão... (grosso)
George empertigou-se. Iria lá dentro e puxaria a coberta sobre o rosto dela, assim eliminando o último motivo para as implicâncias de Buddy. Levaria a cabo os poucos e simples rituais da morte de vovó. Com toda a perfeição. Cobriria seu rosto e então — seu rosto iluminou-se, ante o simbolismo daquilo — guardaria seu saquitel de chá não usado e também sua xícara não usada. Isso mesmo.
Começou a andar, cada passo, um ato consciente. O quarto de vovó estava escuro, o corpo dela era uma vaga protuberância na cama, e ele tateou loucamente pelo interruptor de luz, não o encontrando pelo que lhe pareceu uma eternidade. Por fim, moveu-o e o quarto inundou-se com a claridade amarelada que vinha, em fraca potência, do lustre em vidro lapidado.
Vovó jazia lá, a mão pendurada, a boca aberta. George a observou, mal percebendo que pequeninas pérolas de suor agora lhe surgiam na testa. Perguntou-se se sua responsabilidade no assunto se estenderia possivelmente a recolher aquela mão esfriando e recolocá-la na cama, com o resto de vovó. Decidiu pela negativa. A mão dela poderia ter escorregado a qualquer momento. Aquilo já era pedir demais. Ele não poderia tocá-la. Faria tudo, menos isso.
Lentamente, como que se movendo através de algum fluido espesso, em vez de ar, George aproximou-se da cama. Ficou parado junto dela, olhando para baixo. Vovó estava amarela. Parte do amarelado era devido à luz, filtrada através do velho lustre, mas não tudo.
Respirando pela boca, o hálito saindo audivelmente, ele agarrou a coberta e a puxou para cima do rosto de vovó. Soltou a coberta e ela escorregou ligeiramente, revelando a linha da raiz dos cabelos e o amarelado, franzido pergaminho de sua testa.
Empertigando-se, tornou a pegar a coberta, mantendo as mãos bem afastadas de um e de outro lado da cabeça dela, a fim de não tocá-la, mesmo através do tecido. Deixou a coberta cair novamente e agora ela ficou onde devia. Estava satisfatório. Parte do medo evaporou-se. Ele a sepultara. Sim, era por isso que se cobria uma pessoa morta, porque era o certo: era como sepultá-la. Era uma confirmação da morte.
George olhou para a mão pendurada, insepulta, e descobriu agora que podia tocá-la, podia enfiá-la debaixo da coberta, sepultá-la com o resto de vovó.
Abaixou-se, agarrou a mão fria e a ergueu.
A mão contorceu-se na sua e aferrou-lhe o pulso.
George gritou. Cambaleou para trás, gritando na casa vazia, gritando contra o som do vento ululante nas calhas, gritando contra o som das juntas rangentes da casa. Recuou, puxando o corpo de vovó, que ficou enviezado debaixo da coberta, e a mão caiu com um baque surdo, contorcendo-se, girando, agarrando o ar... para então relaxar-se, ficar novamente flácida.
Eu estou bem, aquilo não foi nada, nada, apenas um reflexo.
George assentiu, em perfeita compreensão. Então, tornou a recordar como a mão se virara, agarrando a sua, e encolheu-se. Seus olhos desorbitaram-se. Seu cabelo ficou em pé, perfeitamente ereto, formando um cone. Seu coração galopava desabaladamente dentro do peito. O mundo inclinou-se loucamente, tornou a nivelar-se e depois continuou movendo-se, até inclinar-se para o outro lado. A cada vez que o pensamento racional começava a voltar, o pânico o invadia de novo. Ele deu meia volta, desejando apenas sair dali para qualquer outro aposento até mesmo correr três ou quatro quilômetros pela estrada, se fosse preciso — onde poderia ter tudo sob controle. Assim, ele girou e correu, chocando-se contra a parede, porque errara a porta aberta por quase meio metro.
Ricocheteou e caiu ao chão, sua cabeça cantando com uma dor aguda e lancinante, que se insinuou francamente através do pânico. Tocou o nariz, e a mão saiu suja de sangue.
Novas gotas pingaram em sua camisa verde. Conseguiu ficar em pé e olhou em torno, desvairadamente.
A mão pendia contra o chão, como antes, mas o corpo de vovó não estava mais enviezado. Também ele se encontrava na posição anterior.
Ele havia imaginado a coisa toda. Entrara no quarto e tudo o que acontecera, havia sido apenas um filme mental.
Não.
A dor, no entanto, lhe clareara a cabeça. Pessoas mortas não agarram o pulso da gente.
Mortos estão mortos. Quando morremos, os outros podem usar-nos como cabide para chapéus, enfiar-nos dentro de um pneu de trator e empurrar-nos ladeira abaixo ou, etcétera, etcétera, etcétera, etcétera. Se uma pessoa está morta, ela poderia agir sobre (contra, digamos, meninos pequenos que querem recolocar mãos mortas e penduradas em cima da cama), porém seus dias de atuação — por assim dizer — terminaram.
A menos que se trate de uma feiticeira. A menos que a pessoa decida morrer quando não há mais ninguém por perto, além de um menino pequeno apenas, porque esta é a melhor maneira dela poder... poder...
Poder o quê?
Nada. Era idiotice. Ele imaginara a coisa toda porque estava com medo, e nada mais houvera além disso. George limpou o nariz com o braço e apertou os olhos com a dor.
Havia uma mancha ensangüentada na pele, na parte interna de seu braço.
Ele não ia mais chegar perto dela, de jeito nenhum. Realidade ou alucinação, não queria se meter com vovó. O brilhante lampejo do pânico se fora, mas ele continuava miseravelmente assustado, quase chorando, trêmulo à vista do próprio sangue, desejando apenas que sua mãe voltasse para casa e se incumbisse de tudo.
George saiu do quarto, cruzou o pequeno corredor e entrou na cozinha. Aspirou fundo e tremulamente, deixou o ar sair. Queria um trapo velho e molhado para o nariz, de repente teve a impressão de que ia vomitar. Debruçou-se na pia e deixou a água fria escorrer da torneira. Inclinando-se, pegou um pano velho na bacia debaixo da pia — o pedaço de uma das velhas fraldas de vovó — e o botou debaixo da torneira de água fria, fungando o sangue enquanto isso. Encharcou o velho e macio quadrado da fralda de algodão até sentir as mãos entorpecidas, depois fechou a torneira e torceu o pano.
Estava aplicando-o ao nariz, quando a voz dela soou no quarto.
— Venha cá, menino — chamou vovó, em voz monótona como um zumbido. — Venha cá — vovó quer abraçar você.
George quis gritar, mas não emitiu som algum. Nenhum som, em absoluto. Contudo, havia sons no outro quarto. Sons que ouvia quando mamãe estava em casa, dando o banho de esponja em vovó, erguendo seu corpo volumoso, deixando-o cair, virando-o, deixando-o cair novamente.
Agora, no entanto, tais sons pareciam ter um significado ligeiramente diverso e totalmente específico — era como se vovó estivesse tentando... sair da cama.
— Menino! Venha cá, menino! Já! AGORA! Ande depressa!
Com horror, ele viu que seus pés estavam respondendo àquela ordem. Disse a eles que parassem, mas ambos continuaram em frente, pé esquerdo, pé direito, arrastando-se como em uma dança, por sobre o linóleo; seu cérebro era um prisioneiro aterrorizado dentro de seu corpo — um refém em uma torre.
Ela é uma feiticeira, ela é uma feiticeira e está tendo um de seus "acessos", oh, sim, é bem um "esconjuro", uma coisa ruim, é REALMENTE ruim, oh, Deus, oh, Jesus, ajudem-me, ajudem-me, ajudem-me...
George caminhou através da cozinha, seguiu pelo pequeno corredor e, sim, ela não havia apenas tentado sair da cama, ela já saíra, agora estava sentada na poltrona branca de vinil, onde há quatro anos não se sentava mais, desde que ficara muito pesada para andar e demasiado caduca para saber onde se encontrava.
Agora, no entanto, vovó não parecia caduca.
Seu rosto continuava bambo e pastoso, mas a caduquice desaparecera — se é que um dia chegara a aparecer, não passando de uma máscara que ela procurava usar para tranqüilizar meninos pequenos e cansadas mulheres sem marido. Agora, o rosto de vovó irradiava absoluta inteligência — brilhava como uma velha e fedorenta vela de cera. Os olhos decaíam no rosto, mortos e sem brilho. Seu peito não se movia. A camisola subira, exibindo coxas elefantinas. A coberta de seu leito de morte tinha sido atirada a um lado.
Vovó estendeu para ele os braços volumosos.
— Quero abraçar você, Georgie — disse aquela voz monótona e zumbida. Não fique aí, como um bebezinho assustado. Deixe vovó abraçá-lo.
George recuou, tentando resistir àquele quase insuperável fascínio. Lá fora, o vento esganiçou-se e rugiu. O rosto de George estava espichado e contorcido, ante a enormidade de seu pavor; era uma face esculpida em madeira, capturada e trancada em um livro antigo.
Começou a caminhar para ela. Não tinha forças para resistir. Arrastou-se passo a passo, na direção daqueles braços estendidos. Mostraria a Buddy que também não tinha medo de vovó. Iria até ela e seria abraçado, porque não era um bebê-chorão covarde. Iria agora até vovó. Agora.
Estava quase dentro do círculo dos braços dela, quando a janela à sua esquerda se abriu para dentro e, subitamente, um galho atirado pelo vento estava no quarto com eles, tendo ainda presas suas folhas outonais. O rio de vento inundou o aposento, batendo sobre os quadros de vovó, fustigando-lhe a camisola e os cabelos.
George agora conseguiu gritar. Cambaleou para trás, afastando-se do alcance dela.
Vovó emitiu um decepcionado som sibilante, seus lábios arreganhando-se sobre velhas e macias gengivas; suas mãos gordas e enrugadas encontraram-se inutilmente sobre o ar que se movia.
Os pés de George emaranharam-se e ele caiu. Vovó começou a levantar-se da poltrona branca de vinil, uma tremelicante pilha de carne; ela cambaleou em sua direção. George percebeu que não podia levantar-se, que a força desertara de suas pernas. Começou a engatinhar para trás, choramingando. Vovó aproximou-se, lenta, mas incessantemente, morta, mas viva ao mesmo tempo e, de repente, George compreendeu o que significaria o abraço; o quebra-cabeças ficou completo em sua mente e, de algum modo, encontrou os pés no momento exato em que a mão de vovó se fechou em sua camisa. O tecido se rasgou no lado e, por um momento, George sentiu a carne fria contra sua pele, antes de fugir novamente para a cozinha.
Poderia correr para fora de casa, dentro da noite. Faria tudo, menos ser agarrado pela feiticeira, por sua avó. Porque quando sua mãe voltasse, encontraria vovó morta e ele vivo, oh, sim... mas George teria adquirido uma súbita predileção por chás de ervas.
Olhou para trás, por sobre o ombro, e viu a forma grotesca, deformada de vovó, subindo na parede, quando ela chegou ao pequeno corredor.
E, nesse momento, o telefone tocou, aguda e estridentemente.
George pegou o fone sem mesmo pensar e gritou nele; gritou para que viesse alguém, por favor, que viesse. Gritou essas coisas silenciosamente, porque nem um som escapou de sua garganta bloqueada.
— Ruth? — era a voz da tia Flo, quase perdida no assobiante túnel de vento de uma péssima ligação interurbana. — É você, Ruth?
Era a tia Flo, em Minnesota, a mais de três mil e duzentos quilômetros de distância.
Vovó entrou na cozinha em passos vacilantes, vestida com sua camisola rosa. Os cabelos branco-amarelados esvoaçavam selvagemente em volta de seu rosto e um de seus pentes de chifre pendia de banda, contra o pescoço franzido.
Vovó estava sorrindo.
— Socorro! — berrou George ao telefone.
No entanto, o que saiu foi um débil, sibilante assobio, como se houvesse soprado em uma harmônica de boca, cheia de palhetas avariadas.
Vovó cambaleou através do linóleo, os braços estendidos para ele. Suas mãos encontravam-se, uma batia na outra, tornavam a afastar-se, encontravam-se novamente.
Vovó queria o seu abraço; levara cinco anos esperando aquele abraço.
— Ruth, está me ouvindo? Há uma terrível tempestade aqui, começou há pouco, e eu... eu fiquei assustada. Ruth, não consigo ouvi-la...
— Vovó — gemeu George ao telefone.
Agora, ela já estava quase em cima dele.
— George? — a voz da tia Flo ficou subitamente aguda, era quase um guincho. — É você, George?
Ele começou a recuar de vovó e, de repente, percebeu que havia recuado estupidamente da porta, prestes a encurralar-se no canto formado pelos armários da cozinha e a pia. O horror foi completo. Quando a sombra dela caiu sobre ele, a paralisia interrompeu-se e George gritou ao fone, gritou para ele, vezes e vezes sem conta:
— Vovó! Vovó! Vovó!
As mãos frias de vovó tocaram sua garganta. Seus olhos lodosos e antigos fixaram-se nos seus, drenando-lhe a vontade.
Fracamente, indistintamente, como se através de muitos anos e também através de muitíssimos quilômetros, ele ouvia a tia Flo dizer:
— Diga a ela pare deitar-se, George, diga a ela para deitar-se e ficar quieta. Diga-lhe para fazer isso, em seu nome e no nome do pai dela. O nome de presumido pai dela é Hastur. Esse nome tem poder no ouvido dela, George — diga-lhe Deite-se, em Nome de Hastur — diga a ela...
A mão velha e enrugada arrancou o fone do pulso inerte de George. Houve um tenso estouro, quando o fio se soltou do fone. George arriou no canto e vovó inclinou-se, uma enorme montanha de carne acima dele, eclipsando a luz.
— Deite-se! — gritou George. — Fique quieta! Em nome de Hastur! Deite-se! Fique quieta!
As mãos dela se fecharam em torno de seu pescoço...
— Tem que obedecer! A tia Flo disse que obedeceria! Em meu nome! Pelo nome de "seu Pai! Deite-se! Fique qui —
... e apertaram.
Quando as luzes finalmente banharam a entrada de carros, uma hora mais tarde, George estava sentado à mesa, diante do livro de História que não lera. Levantou-se, foi até a porta dos fundos e a abriu. À sua esquerda, o fone Princess pendia em seu gancho, com o fio inútil enrolado em torno dele.
Sua mãe entrou, trazendo uma folha colada à gola do casaco.
— Que ventania — disse ela. — Correu tudo bem — George? George, o que aconteceu?
O sangue fugiu do rosto de mamãe, em um único e chocado jato, deixando-a com uma horrível brancura de palhaço.
— Vovó — respondeu ele. — Vovó morreu. Vovó morreu, mamãe.
E começou a chorar. Ela o enlaçou nos braços e então cambaleou contra a parede, como se este ato de abraçar lhe houvesse roubado as últimas forças.
— Aconteceu... aconteceu alguma coisa? — perguntou ela. — Diga, George, aconteceu mais alguma coisa?
— O vento derrubou um galho de árvore e o jogou pela janela de vovó — disse George.
Ela o afastou, perscrutou seu rosto chocado e apagado por um momento, e então correu para o quarto de vovó. Ficou lá talvez uns quatro minutos. Quando voltou, segurava um retalho de pano vermelho. Era um pedaço de camisa de George.
— Eu tirei isto da mão dela — sussurrou mamãe.
— Não quero falar nisso — respondeu George. — Ligue para a tia Flo, se quiser. Estou cansado. Quero ir para a cama.
Ela pareceu querer detê-lo, mas não o fez. George subiu para o quarto que partilhava com Buddy e abriu o registro do cano de calefação, a fim de ouvir o que sua mãe faria em seguida. Ela não iria ligar para a tia Flo, não aquela noite, porque o fio do telefone fora arrancado; também não amanhã, porque pouco antes de mamãe chegar em casa, George pronunciara uma curta série de palavras, algumas delas em latim espúrio, algumas apenas grunhidos pré-druídicos, e, a mais de três mil e duzentos quilômetros de distância, a tia Flo caíra morta, com uma hemorragia cerebral maciça. Era espantoso como aquelas palavras voltavam. Como tudo voltava.
George se despiu e deitou-se nu em sua cama. Colocou as mãos atrás da cabeça e ficou olhando a escuridão. Lenta, muito lentamente, um cavado e um tanto horrível sorriso emergiu em seu rosto.
De agora em diante, as coisas ali iam ser muito diferentes.
Muitíssimo diferentes.
Buddy, por exemplo. George mal podia esperar, até que Buddy voltasse do hospital para casa e recomeçasse a Tortura da Colher dos Chinas Pagãos ou uma Queimadura de Corda índia, quando não, qualquer coisa semelhante. George supôs que deixaria Buddy levar a melhor naquilo — pelo menos durante o dia, quando os outros podiam ver — mas quando a noite chegasse e os dois ficassem sozinhos naquele quarto, no escuro, com a porta fechada...
George começou a rir silenciosamente.
Como Buddy sempre dizia, ia ser um Clássico.
Stephen King
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