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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRISTANO MORRE / António Tabucchi
TRISTANO MORRE / António Tabucchi

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

               É difícil contradizer os mortos.

                           Ferruccio

 

... Rosamunda Rosamunda che magnifica serata sembra proprio preparata da una fata delicata mille luci mille voci mille cuori strafelici sono tutti in allegria oh ma che felicità Rosamunda se mi guardi tu Rosamunda non resisto piú...

Gostas?... coisas do meu tempo, e quando Rosamunda contemplava Tristano quanto mais ela o olhava tanto mais ele se embeiçava... Rosamunda se mi guardi tu non resisto piú... Rosamunda tutto il mio amore è per te Rosa-munda più ti guardo e più mi piaci Rosa-mu-u-u-u-undà 1...

 

 

 

 

Corações felicíssimos numa roda de alegria creio que não haveria tantos como isso, naquele tempo, na serra estava um frio de rachar, ou melhor, um gelo autêntico, tanto lá fora como cá dentro, depois explico-te, põe-te à vontade porque isto vai demorar um pouco, nada por aí além, sossega, cerca de um mês, à vista desarmada, antes do fim de Agosto

 

1 Excertos de uma canção dos anos 40: "Rosamunda Rosamunda que magnífico serão parece coisa engendrada por uma fada delicada são mil luzes são mil vozes mil corações felicíssimos numa roda de alegria ai tanta felicidade Rosamunda se me olhas não resisto Rosamunda... Rosamunda o meu amor é só para ti Rosa-munda quanto mais olho p'ra ti tanto mais gosto de ti Rosa-mu-u-u-u-undà". (N. do T.)

 

retiro-me, verás, fizeste boa viagem?... não é fácil dar com a estrada no meio destas colinas, eu pedi à Frau que te explicasse bem, esperava por ti mais cedo, mas tenho a certeza que ela fez tudo para te confundir, não porque não fale italiano, fala até melhor do que eu, já cá está há uma vida, mas quando não lhe apetece fazer certas coisas começa a germanicar, põe-se ruim. Ela que te dê o apartamento da Dafne, diz-lhe que mando eu.

...Sabes, ao fim e ao cabo, numa vida conta mais aquilo que não se recorda do que aquilo que se recorda... A Frau assomou à porta, nem sombra de vestígios na corrente onde em tempos nadaste com uma mulher, diz, e voltou a fechar a porta. Não sei se era a poesia dos domingos ou alguma sentença... a Frau é sentenciosa, quando tem que fazer. Mas que terá ela para fazer, já não há nada que fazer nesta casa, e hoje nem sequer é domingo, pois não?... Havíamos de ter memória de elefante, que é coisa que os homens não têm, talvez algum dia a inventem, electrónica, quem sabe, uma chapinha do tamanho de uma unha enfiada no cérebro, com o registo da nossa vida toda... A propósito de elefantes, de todos os rituais fúnebres que as criaturas deste mundo excogitaram, sempre admirei o dos elefantes, que têm uma estranha forma de morrer, sabias? Quando um elefante sente que chegou a sua hora afasta-se da manada, mas não o faz sozinho, escolhe um companheiro que vá com ele, e abalam. Avançam pela savana, muitas vezes a trote, depende da urgência do moribundo... e caminham, caminham, podem fazer quilómetros e quilómetros, até o moribundo decidir que é ali que ele quer morrer, então dá umas quantas voltas e traça um círculo, porque sabe que chegou a hora de morrer, leva a morte dentro de si mas tem de colocá-la no espaço, como se se tratasse de um encontro, como se quisesse olhar a morte de frente, fora dele, e lhe dissesse bom dia senhora morte, cheguei... trata-se de um círculo imaginário, naturalmente, mas precisa dele para geografizar a morte, por assim dizer... e só ele pode entrar naquele círculo, porque a morte é um assunto privado, muito privado, e ninguém lá pode entrar senão quem está a morrer... e aí chegado pede ao companheiro que o deixe, adeus e muito obrigado, e o outro regressa à manada... Li Pascal quando era novo, e gostava, nesse tempo, especialmente pelo seu jansenismo, tudo aquilo era ou branco ou preto, tudo muito reconhecível, hás-de perceber que nessa altura a vida era a preto e branco, lá na serra, tinham de se fazer escolhas precisas, ou com uns ou com outros, ou preto ou branco, até a vida se encarregar de introduzir o claro-escuro... Seja como for, sempre gostei daquela definição de Pascal, uma esfera cujo centro está em toda a parte e a circunferência em lado nenhum, lembra-me os elefantes... E de certa maneira isto tem a ver com aquilo de que te encarreguei... como te disse há pouco, vais precisar de paciência, porque a minha hora ainda está para chegar, mas foi por isso que acedeste de imediato a vir trotar comigo, para acompanhares o moribundo... Só eu conheço o meu círculo, sei quando há-de chegar o momento, é certo que quem nos escolhe é a hora, mas também é certo que se tem de concordar que ela nos escolha, a decisão é dela mas no fundo também tem de ser nossa, como se fosse nossa a escolha e nos limitássemos a capitular frente a ela... Por enquanto vamos trotando juntos, aparentemente seguimos em frente, embora na realidade estejamos a recuar, porque eu sou um elefante que te chamou para recuar, mas recuo para chegar ao meu círculo, que fica à minha frente. Tu entretanto ouve e escreve, quando chegar a hora da despedida eu digo.

Devo confessar-te uma coisa... depois de te chamar arrependi-me de te ter chamado. Não sei bem porquê, talvez por não acreditar na escrita, a escrita falseia tudo, vocês, os escritores, são uns falsários. Ou talvez porque a vida de cada um é para se levar para o túmulo. Refiro-me à verdadeira vida, àquela que se vive por dentro. Para deixar aos outros, basta a vida que se vive por fora, de tal modo é evidente, impositiva. E no entanto apetece-me escrever, isto é... falar... escrever por interposta pessoa, quem escreve és tu, mas afinal sou eu. É estranho, não é?

Gostaria de tentar começar pelo princípio, pressupondo que existe um princípio, porque... onde começa a história de uma vida?, quero eu dizer, como se escolhe o começo? Pode-se partir de um facto, é certo, e eu tenho de escolher esse facto, sobretudo um facto que diga respeito àquela minha vida que aqui vieste escrever. Por isso escolherei um facto. Mas um facto começa com um facto? Desculpa, estou confuso, não consigo explicar-me bem... quer dizer, uma pessoa faz uma coisa, e essa coisa determina o curso da sua vida, mas é difícil que essa acção nasça como por milagre, estava já dentro de quem a realizou, e vá-se lá saber como teria começado... Alguma recordação de infância, talvez, um rosto visto por acaso, um sonho que se teve há muito e se julgava esquecido, até que um dia o facto acontece, mas quanto à origem... sabe-se lá... Naquele dia, na Plaka, Tristano falava de Schubert, era Inverno, e na praça espectral uma fila de pessoas de tigela em punho esperavam pela sopa koinè, sabes?, essa aguadilha que aquela espécie de governo que havia na altura distribuía aos cidadãos gregos para não morrerem à fome, uma mistela quente onde sobrenadavam uns pedaços de couve e de batata... variações, disse Antheos, a quem Tristano porém chamava Marios, porque lhe recordava um amigo dos subúrbios de Turim, que era igualzinho a ele, um grande amigo que a partir do fim de trinta e nove se escondera num celeiro com a companheira, uma mulher excepcional, dissera acho melhor não e dera início a uma resistência antecipada, ou seja, anterior ao começo da própria Resistência, mas o teu romance não sabia disto... Às vezes, se calha pensar no que julgavas saber chego a sorrir, mas à parte isso gostei do teu livro, palavra, é o mais belo testemunho sobre aquele período heróico, o único período heróico que tivemos, aliás... Testemunho é uma forma de dizer, porque teria sido impossível lá estares, mas é como se lá tivesses estado, testemunha de um ambiente, de uma escolha, de uma posição ética... sem esqueceres porém os próprios factos, o oito de Setembro, a República de Saló propondo-se com insolente arrogância arbitrar mais uma vez os destinos da Itália e a recusa da definição de guerra civil, o que é uma tomada de posição forte, hoje em dia, talvez um pouco arriscada, sabes melhor do que eu que nesses anos se disparava contra uns e outros, inimigos e amigos, mas tudo isso é de importância relativa, o que me agradou no teu romance é a desassombrada análise da natureza do heroísmo, da fidelidade, da infidelidade, do prazer e dos sentimentos... Se fosses menos paciente, depois dos maus modos com que te recebi já te terias ido embora, já terias mandado tudo àquela parte, tanto o compromisso que assumiste como o livro que hás-de escrever em meu lugar, terias desistido de tudo e ter-me-ias dito aquilo que mereço... E no entanto continuas impávido, és um tipo fixe, escritor, não sei se és medroso ou se tens mais coragem do que eu e por isso me aturas... Parece-me ouvir o zumbido de uma varejeira, tu não a ouves?, há um zumbido neste quarto, um enorme zumbido, será a música das esferas?, mas o universo não zumbe assim, este cicio incómodo fazem-no os escritores arranhando a página com o aparo, e tu não arranhas a página, és daqueles que a amansam, como os domadores de feras no circo... a música das esferas de que te falo é uma grande música, tocam-na certos anjos que os pintores da minha Toscana imaginaram, e não obedece a uma partitura fixa, porque se trata sempre de variações... variações, respondeu nesse dia a Tristano aquele soldado grego magro e macilento sentado à sua frente à mesa daquele café da Plaka, enquanto o apocalipse pairava sobre eles... Variações, disse, por enquanto limito-me a introduzir variações, está a ver, não há mais música para tocar, a nós, pobres de Cristo, resta-nos apenas introduzir variações, pense por exemplo nos Improvisos para piano opus 142 de Schubert, lembra-se?, eu acho que encerram uma melancolia que aperta a alma como se a cercasse, parece esta vossa ocupação, este cerco que infligem à minha pátria, há qualquer coisa de obsessivo nessa música, qualquer coisa que talvez também obcecasse Schubert, um desses temas surge igualmente na música de cena a que deu o título de Rosamunde. E então Tristano apontou o Parténon num gesto cansado, como que a significar que também os deuses eram calcados pelas botas do invasor... e nessa altura desembocou do fundo da praça um rapaz que segurava uma velha bicicleta pelo guiador, um miúdo magro, pouco mais que uma criança, embrulhado num enorme capote militar que arrastava pelo chão, pendurada num cordel levava ao pescoço a gamela de alumínio, deu com os alemães a vigiar aquela fila de pessoas e pôs-se a assobiar uma canção, era a canção dos que tinham optado pela guerrilha, com um refrão lento e grave que o seu assobio tornava quase alegre, como uma marchinha... um alemão foi ao seu encontro e apontou-lhe a metralhadora, mas o rapazinho não parou, seguia em frente com galhardia, como numa brincadeira, com um ar de troça no rosto... todos o olhavam, sabiam o que estava para acontecer, mas ninguém se mexeu, ninguém esboçou um gesto, como se toda aquela gente estivesse enfeitiçada, o ruído metálico do carregador imitou o baque de uma pedra na calçada, o soldado disparou e o menino esmoreceu no chão com a bicicleta sobre ele... e então uma velha saiu da fila, deu um passo e a sua voz rompeu o silêncio gelado da Plaka e rogou uma praga, Tristano reconheceu-a, era uma maldição antiga que previa eterna maldição, os alemães ouviram-na, alinhados nas arcadas, e pelas palavras não a reconheceram, reconheceram-na pelo timbre, o soldado apontou a arma e voltou a disparar, o corpo da mulher abateu-se no lajedo, um vulto vestido de negro que agitava os braços em agonia, e Tristano, como por dádiva divina, melhor, por dádiva do serviço, porque trazia consigo a carabina de serviço, apontou ao peito do alemão e fulminou-o... e como por encanto a Plaka animou-se, e apareceram homens vindos do nada, porque Tristano, como um improvisado contra-regra, decidira que era chegado o momento de entrarem em cena as fúrias vingadoras da tragédia grega, nunca ele imaginara que fosse possível desencadear uma revolta com um gesto feito instintivamente, sem pensar nas suas consequências, mas foi como se aquela engrenagem tivesse começado a rodar sozinha, a morte reatava a vida, e tudo progredia agora a uma velocidade incontrolável, porque a vida é assim, e a história segue-a, nunca pensaste nisto, escritor?...

A Frau não podia instalar-te no apartamento da Dafne, não ficou lá nada, só as paredes. Não leves a mal, mas queria saber o que ela te responderia quando lho pedisses, embora eu o soubesse de antemão, pôs-te no meu escritório, aloja as visitas todas no meu escritório, venha quem vier, uma vez veio um ministro e a Frau perguntou-me à frente dele se devia alojá-lo no meu escritório, o tipo do protocolo fitou-a escandalizado, o senhor ministro regressa a Roma pela tardinha, respondeu picado... mas tu gostas de ficar no meu escritório, tenho a certeza, vieste cá em busca da verdade e é como se também ela morasse naquele quarto, no meio daquele bolor e daquela papelada... boa sorte. Sabes o que aconteceu à verdade? Morreu solteira.

A malícia da matéria, quem a conhece? Vocês, os escritores? Podem conhecer o mecanismo das coisas, mas o seu segredo ninguém conhece. Sabes, entre as coisas que existem há um acordo que não conhecemos, a lógica é outra... A força da gravidade não obedece àquilo que pensamos, nem tão-pouco as combinações químicas que tivemos de estudar na escola, em que uma molécula de oxigénio se liga a duas moléculas de hidrogénio para constituírem esse líquido a que chamamos água... Seria preciso conhecer a táctica do universo, porque o universo tem uma táctica própria, mas escapa aos laboratórios... O binómio de Newton é uma grande coisa, mas as matemáticas têm outros abismos, outros mistérios. Estou armado em filósofo? Desculpa lá, diz qualquer coisa, ou melhor, não digas, deixa isso comigo, posso filosofeirar? Vocês estão sempre com filosofices, vocês todos, as sumidades que nos explicam o mundo, não há quem não queira explicar-nos o mundo... Uma rosa é uma rosa é uma rosa. Não é nada. Sabes que a roseira e a pereira pertencem ambas à família das rosáceas? Estuda botânica, a pereira dá pêras e a roseira dá rosas, achas que é a mesma coisa?... Então deixa-me filosofar... de resto, já não duro muito, como vês... Não olhes para a minha perna, peço-te, espera, tapa-a com o lençol... Anda aí uma varejeira, não a ouves?, vai de encontro ao espelho, a estúpida, quer sair, pensa que o espelho é uma janela. Já te disse para não olhares para a minha perna, mete mesmo nojo, embora eu não a veja, deitaram-me de borco nas almofadas, foi assim que me puseram, o médico sentenciou que tem de amputar e eu respondi-lhe, se gosta mesmo de amputar vá amputar os seus tomates, eu levo a minha perna para o caixão, podre e tudo, com sua licença, assim como assim o resto também há-de apodrecer, sei que mete nojo, toda roída pela gangrena, já me chegou à virilha, não tarda rói-me todinho, mesmo aquele resto de homem que ainda tenho, se eu não morrer entretanto, de qualquer modo pouco mais há para roer, o escroto mirrou-se-me, o que também me dá o direito de filosofar quando quero e muito bem entendo, é a filosofia de uma criatura desprovida de humores, como as pedras... Já viste como ficou o mundo, pelo menos o nosso?, refiro-me ao lado de cá, ao lado onde vivemos... é tudo gordurento, oleoso, olha aqueles tipos de quem falava há pouco, as sumidades, cheios de humores a correr-lhes debaixo das banhas... triglicéridos, tudo aquilo é colesterol, eu em contrapartida sou quase um mineral, não vês?... as pedras nunca dizem nada... eu sou uma pedra que fala, um calhau à beira de uma torrente, ali sossegado a contemplar a água, vai, anda vai, irmã água, diz ele, corre, corre, sabe deus por quem te tomarás, eu fico-me por aqui à tua beira, quieto como um calhau, porque eu sou um calhau, o irmão calhau... a Frau deu-te um quarto bom? A Frau é assim, gosta de mim mas é embirrenta, gosta de fazer a sua maldadezinha, é o que lhe resta para a velhice, ser mazinha com o próximo, se não gostasse tanto de mim também havia de embirrar comigo, ou talvez embirre e eu não dê por nada, sabes, crescemos juntos, tem a minha idade mas está convencida que é a minha mãe, as mulheres são assim, acham sempre que são a tua mãe, mesmo que tenham a tua idade. Pede-lhe que ponha uma cama no apartamento que era da Dafne... quando ela cá vinha... veio cá tão pouco em toda a sua vida, agora estão os dois quartos vazios, eu espalhei a mobília pela casa, assim custa-me menos, mas para a Frau esses quartos são sagrados, invioláveis... sabes, acho que se a Dafne suportava este lugar é também porque havia a Frau, porque havia o bem que a Frau lhe quis... uma vez disse-me que graças à Frau se esquecera de odiar os alemães, que hei-de eu fazer para que ela perceba que não tem culpa de nada?, perguntou-me... Sabes, a Frau avalia as pessoas a olho, como se fossem galinhas, se vê alguém de monco caído mete-o na capoeira pior, e tu tens um ar tímido, fala mais alto, alça a crista, a Frau é sensível a essas coisas, insiste para ficares naqueles quartos voltados a sul, basta lá pôr uma cama e uma mesa-de-cabeceira, desse lado da casa vêem-se as torres da cidade, são bonitas, alguma vez as viste?, é como se pairassem no ar quando o calor as faz tremular pela base e as ceifa, ergue-as, puxa-as para cima... São torres antigas, parecem ansiar pelo céu, é natural, nunca reparaste?... fecha um pouco as persianas e vê se me enxotas essa varejeira, não a ouves?, a bater no espelho, é mesmo estúpida, julga que o espelho é uma saída... Contempla as torres da cidade, as colinas em volta, esta paisagem que eu vou deixar, contempla-as por mim. Para mais, desse lado da casa ouvem-se as cigarras, nas traseiras não se ouvem, ficam-se a cantar a tarde inteira, gosto daquele concerto, é uma espécie de música pobre, parecem címbalos, castanholas... Voltei aqui para partir, ao sítio onde nasci, para ouvir as minhas cigarras, as que eu escutava em menino certas tardes de Verão em que me mandavam fazer a sesta e eu conversava com as cigarras e lia os livros que haviam de explicar-me o mundo, como se fosse possível explicar o mundo nos livros... Sonhos... Por que foi que te chamei a ti? Porque gostei do teu livro, bem o sabes, a minha pessoa já uma vez serviu de pretexto para um romance, sabes isso melhor do que eu, mas foi tão em cima dos acontecimentos, era tudo tão realista que parecia falso, mas não te chamei para gravares a minha voz, não quero que a minha voz fique, além de que seria demasiado fácil, que escritor serias tu? Escreve, se conseguires, quero ficar em palavras escritas, e se não escreveres já grava ao menos na tua cabeça, mentalmente, e depois escreve com palavras tuas, já percebi que és capaz de o fazer, uma pessoa conta-te uma coisa e quando a escreves parece outra... Diz à Frau que venha injectar-me a morfina, e tu volta mais tarde, o efeito da outra dose já passou, a dor torna-me piegas e não estou para isso, fico deprimido... Alguma vez te falei na Vanda?, não me lembro...

Viram um cão, mas devia ser noutro dia, sabe-se lá quando, já tarde na vida deles, de qualquer modo. Chamava-se Vanda, não com V duplo, mas com um V simples, de animal miserável como era. O nome, esse o cão não o disse, nem poderia, porque perdera o fôlego, mas Rosamunda lembrava-se, pois reconheceu-o à distância. Olha, um cão, chama-se Vanda, lembras-te? Por pouco não lhe passou por cima, estava escuro no túnel, iam em plena curva. Esperaram por ela lá fora, na recta, não os fosse abalroar algum camião, que às vezes acontece. A Vanda aproximou-se, coxinha, de focinho caído, língua no asfalto, mas bem encostada à direita, para lá do risco branco. Tinha as tetas dependuradas, como que chupadas, parecia ter amamentado uma ninhada, embora não fosse possível, atendendo à idade que trazia nas beiças e nos dentes, vinte anos, pelo menos, se não mais, que assentam bem numa pessoa, mas sendo cadela é decrepitude. Fê-lo por filantropia, disse um deles, não me lembro quem, a Vanda é boa, um encanto de cadela, passou a vida enterrada até ao pescoço. Puseram-na no banco de trás, tinha as almofadas das patas reduzidas a carne viva, de tanto andar. Perceberam que fizera milhares de quilómetros para que fossem eles a encontrá-la, mas não o disseram, certas coisas não se dizem, um corpo tem de atravessar camadas e camadas de tempo agregando pacientemente em torno do núcleo todos os pertences necessários para ser corpo, até desembocar à superfície como criatura viva, mesmo que porventura já moribunda, como aquela Vanda, e é enganado à partida, porque julga estar para partir, mas já chegou. E afinal para quê, santo deus, perguntou ele. Pergunta retórica, porque não tem resposta... Era meio-dia e estava muito calor, e a luz cegava, e era mediterrânica, para mais. Quando acontecem coisas destas, está sempre muito calor, a luz cega e o Mediterrâneo é de obrigação, todos o sabem. Tanto assim, que se lhe pode dar crédito ou não, é à escolha. E caso se queira dar-lhe crédito, ele guiava devagar, a costa rochosa encarniçava e a faixa de mar era de um azul profundo. A Vanda parecia adormecida, mas não estava, pois tinha um olho fechado e outro aberto, e com este fixava o cinzeiro cheio de beatas na porta traseira como se assim lhe fosse concedido o seu pobre aleph e naquele seu universo de pontas de cigarro pudesse descobrir o deus doente que a fizera nascer e os duvidosos mistérios da sua religião. Ele, espreitando-a de soslaio, apercebeu-se da interrogação naquela pupila dilatada pelo terror e murmurou-lhe, tens por pai uma curva escura, por filho umas beatas esmagadas e por espírito santo um tempo que já passou, é esta a trindade de que dependes, querida Vanda, conforma-te, não há nada a fazer. Nunca quiseste filhos, replicou Rosamunda como se falasse para a neblina de canícula que bailava no horizonte, o teu esperma sempre sobre a barriga, anos a fio, deitado para ali, e agora nasceu a minha Vanda, mas é tarde, demasiado tarde. Vai morrer amanhã, respondeu ele, mas podes ficar com ela por uma noite, embalá-la como a um filho, dar-lhe o peito, até, se o entenderes, é melhor que nada, deitei fora o meu esperma porque mentias, por isso também eu mentia... Que estranha noite, no zimmer de aluguer de Taddeo. Pela moldura da janela deslizaram dois barcos iluminados, silenciosos como num sonho. Só mais tarde, já fora do enquadramento, uma golfada de vento trouxe um punhado de notas que se perdiam no ouvido mas que lhes pareceram uma valsa. Será que dançavam a bordo? Não é de excluir, porque é frequente dançar-se a bordo, e sem rebuço, especialmente quando se vai num cruzeiro, mesmo em cruzeiros de pobres como o que atravessa aqueles golfos de San Fruttato a San Zaccarino e que só dura um domingo. As pessoas, mal arranjam uma aberta, põem-se a dançar, tem de se aproveitar para a gente se divertir, sobretudo quando se pagou bilhete, não tarda é segunda-feira. Rosamunda tentou dar-lhe o peito, mas a Vanda não queria mamar. Ouviram a sua respiração frouxa quase até ao amanhecer, depois apagou-se. Sepultaram-na lá em baixo, na praia, numa enseada de seixos rolados com a largura de um lenço, no local onde o carreiro singra até à onda paciente que enxagua e torna a enxaguar os seixos século após século. Rosamunda, com conchas e pedrinhas, escreveu sobre o túmulo, Vanda zero zero zero zero, designando com aqueles zeros o dia do nascimento e o dia da morte, coisa que só Tristano podia entender, preenchendo-os com o tempo efectivamente decorrido desde o dia em que Rosamunda começara a desejar um filho, até àquele dia em que haviam dado sepultura a esses desejos sob a forma de uma cadela decrépita, porque os desejos também se vão, não que não vão, e têm de ser enterrados. Ficaram-se a ver nascer o sol sobre aquele horizonte entalado entre dois promontórios a que noutros tempos chegavam com a camioneta de carreira. Era um sol poderoso e, mudos, ambos o sabiam, porque tudo é velho debaixo do sol, e por vezes velhíssimo. O que não atenua o tormento de ninguém, nem tão-pouco o deles. Canta-me uma daquelas canções que me cantavas em tempos, disse ela baixinho. Quais canções?, perguntou ele. Aquelas de quando me levavas no varão da bicicleta, lá na serra, lembras-te?, eu encostava a cabeça no teu peito e com a tua voz chegava até mim o cheiro do alho, comia-se tanto alho na serra!, mas se calhar foi doutra vez, tínhamos comido caracóis à provençal, ainda assim oferecemo-nos algumas satisfações, por vezes comíamos caracóis à provençal, que também levam muito alho. Ele cantou, cai a azeitona, não lhe cai a folha, os teus encantos não caem nunca, és como o mar que cresce às ondas, cresce do vento mas da água nunca. Era uma canção de embalar. É difícil dizer se para embalar a Vanda a caminho do seu nada de nada, se a si próprios, ou aos sonhos, que não acabam nunca.

...Começa assim... espera, deixa ver se me lembro... diz, vi raparigas a gritar numa tempestade, o vento levava o que elas diziam e logo devolvia, eu ouvia assustado, não percebia, talvez avisassem que a mocidade morreu... começa assim mas nunca mais acaba, é uma daquelas coisas com que a Frau me atormenta aos domingos, vou dizê-la aos poucos, talvez, à medida que me for lembrando, até porque temos tempo... eu disse à Frau, Renate, tem paciência, não venhas ler-me coisas dessas, não vês o meu estado?, lê-me uma coisa ligeira, infantil, tipo os passarinhos fazem os ninhos com mil cuidados, coisas dessas, Renate, peço-te. Estamos em Agosto, diz ela, está um calor dos diabos nesta planície, estamos em Agosto, menino, que tem isso a ver com os ninhos dos passarinhos?

Chamava-se Dafne, mas ele também a tratava por Mavri Elià, por causa daqueles seus olhos enormes como duas azeitonas pretas. Aconteceu naquele dia, na Plaka, o oficial nazi jazia estendido no meio da praça, com as pernas afastadas, a poucos metros do rapaz e da mulher que ele matara, escorria-lhe da boca um fio de sangue, um grupo de alemães desembocou de uma viela que descia das Colunas de Zeus, tinham o quartel-general no Hotel Britannia, alguém começou a disparar das janelas que davam para a praça, guerrilheiros gregos, portanto, umas quantas balas lascaram a torre de Eolo, balas levadas pelo vento, Tristano despiu o blusão de soldado italiano e lançou-o ao chão, para junto do nazi morto, não queria que os guerrilheiros disparassem sobre ele, mas queria acima de tudo deixar de ser italiano, queria arrancar da pele aquele horrível pedaço de sarja de soldado invasor por ordem de um ceifeiro louco que pretendia partir a espinha à Grécia logo após o desembarque... Irrompeu de um portão verde, Tristano viu abrir-se uma pequena porta no meio daquele portão pesado, ela saiu como um animalzinho perdido, contemplando a praça com um olhar vago, avançou vazio adentro, deteve-se, viu Tristano a seu lado, fitou-o com aqueles enormes olhos negros. Sou um soldado italiano, disse ele, acabei de matar um oficial alemão. Ela não percebia, Tristano apontou então o dedo ao seu próprio peito e repetiu, italiano. E depois, com o polegar erguido e o indicador duro como uma pistola, mostrou o nazi estendido no chão e disse, pum, e soprou sobre o indicador. Ela recuou, e com a mão acenou-lhe para que passasse o portão. Por que te conto eu isto, escritor?... Não sei, um escritor como tu não precisa de episódios destes... ou talvez precise... és um escritor que não desdenha o lirismo quando o tem pela frente, por isso eu conto... Tristano entrou e ela voltou a fechar. Olhou-o com aqueles enormes olhos perdidos, incrédula, porventura assustada, tratava-se de um inimigo. Tristano disse o nome, o nome que lhe davam em menino, Ninototo. Ela disse em grego, chamo-me Dafne, e Tristano, sorrindo, como se já não pensasse em nada daquilo que o rodeava, disse em grego, com a invasão aprender um pouco de grego, só saber usar os verbos no infinitivo, mas eu chamar-te Mavri Elià porque os teus olhos ser azeitonas pretas. Ela fez-lhe sinal para que a acompanhasse, subiram velhas escadas, a casa tinha os tectos abobadados, havia ânforas cobertas de incrustações marinhas junto às paredes e, penduradas nas paredes, umas telas escuras que representavam homens circunspectos e barbudos. Levou-o por salas desertas que davam para um jardim interior. Seguiam em silêncio. Ele tremia de frio, ela disse qualquer coisa que ele não percebeu, entretanto o sol rompera o cinzento daquele dia e um feixe de luz chovia oblíquo naquelas salas silenciosas, ouviram-se tiros de pistola mas como que disparados de muito muito longe, chegaram a uma sala ampla, quase despida, onde havia apenas uma pequena cama com um ícone à cabeceira, um espelho e um piano. Ela falou-lhe em francês. Disse, este quarto meu, agora teu. E depois disse na sua língua, efraistò. E fez menção de deixá-lo. Obrigado porquê?, perguntou ele. Por me ter morto um inimigo, disse ela. Eu também sou um inimigo, disse Tris-tano. Ela sorriu, sentou-se na beira daquela caminha coberta com um xaile às flores e disse, nós dois, quem somos? Sorria, e os seus olhos eram de uma doçura que tu não podes imaginar, escritor, por muitas mulheres que tenhas descrito, mas àquela doçura não consegues tu chegar, até para Tristano era inconcebível, para aquele soldado invasor, para aquele italiano que sem saber bem porquê matara um oficial nazi, um aliado do seu país, e tudo aquilo lhe parecia insensato. Mas sabes uma coisa? Naquela altura, tudo era insensato, a verdade é esta. Tristano estava inquieto, o coração martelava-lhe o peito, emoções a mais, num só dia, para um jovem da sua idade, como podes imaginar, escritor, tu que brincas com as emoções dos outros. Aproximou-se cautelosamente da janela que dava para a praça, olhou através das cortinas de renda, no piso calcetado havia apenas os cadáveres da mulher e do rapaz, entretanto os alemães tinham conseguido arrastar o oficial morto para trás da Torre dos Ventos, mas não se via ninguém, não havia vivalma, como em certos momentos de suspense, como um teatro vazio, apenas uma moto com sidecar e um soldado imóvel, de capacete à banda, caído sobre o guiador, devia ser o primeiro desgraçado a quem tinha mandado resgatar o cadáver e algum atirador grego dera cabo dele. Ela deixou-o sozinho naquele quarto. Ele olhou-se ao espelho, Tristano era jovem, nessa altura, e achou-se velho. Viu a partitura em cima do piano e reparou que era uma música de Schubert. Deitou-se na cama, naquele quarto tão franciscano e que apesar de tudo pertencia a uma casa aristocrática, um quarto modesto, com um espelho manchado e uma cama onde muito se havia de amar... Mas isto não são palavras suas, digo-to eu, apenas porque a Frau me leu a sua enésima poesia. Não a conheces? Não, Tristano não a conhecia, mas percebeu que a sobriedade franciscana daquela sala era a única maneira de fazer frente à desolação da vida e do mundo, levantou-se como um sonâmbulo, de braços chegados à frente, como que a proteger-se do nojo que se abatera sobre o tempo que então vivia, sobre todas as coisas, abeirou-se daquele corredor escuro e gritou Mavri Elià! Mavri Elià, fujamos! Depois estendeu-se na cama e fechou os olhos. Ela chegou em bicos de pés, tanto que nem a sentiu, vous m'avez appelée?, perguntou. Tristano disse-lhe, por favor, toca-me aquela peça de Schubert que está em cima do piano. Ela sentou-se ao piano. Tristano interrompeu-a. Conheces o tema que Schubert também utilizou na música de cena para Rosamunde? Depois amaram-se durante toda a noite, como se de coisa justa e natural se tratasse, sem uma palavra. Pela manhã, enquanto ele a abraçava ela falou-lhe no rosto de um São Jorge de certo ícone bizantino que se encontra numa ilha do mar Egeu, não me lembro qual. Suponho que ele lhe terá falado de uma catedral românica do seu país, que tem uma rosácea enorme na fachada, e, meio a dormir, quase a delirar, falou-lhe de uma rosa-dos-ventos, dizendo que na vida só nos resta seguir os ventos, Eolo, dizia, Eolo... Amanhecia. Tristano levantou-se e, espiando pelas cortinas da janela, contemplou a praça da Plaka. Estava deserta. Junto ao Monumento dos Ventos havia apenas os cadáveres do rapaz e da mulher vestida de preto além do soldado alemão tombado sobre o guiador da sua moto com sidecar. Tristano voltou para junto dela e beijou-lhe os olhos fechados, falava-lhe ao ouvido, Mavri Elià, dizia, encontrei-te e não te deixarei, levo-te comigo, sabes o que vamos fazer?, amanhece, saímos agora, protegidos do frio com os reposteiros desta velha casa, tu sentas-te no sidecar, eu escancho-me na moto, havemos de chegar ao Pireu, estão lá os aliados, levam-nos daqui para fora, e havemos de chegar a minha casa, que é onde a serpente tem a cabeça, onde é preciso combater a serpente, esmagar-lhe a cabeça, caso contrário o seu veneno chegará a todo o lado, vou esmagar-lhe a cabeça e levo-te comigo, havemos de atravessar esta cidade sitiada até chegarmos ao mar, por que não?, nada disso é mais absurdo do que este absurdo em que estamos mergulhados... Ela abriu os olhos, talvez tivesse ouvido aquilo que Tristano lhe murmurava durante o sono, ou talvez não, e esboçou um sorriso como que perdido no vazio. Se conseguir, levo-te para outro Principado, disse Tristano, mas felizmente está moribundo, disseram-me que está moribundo, valha-nos ao menos trocar o pior pelo menos mau.

... Naturalmente, não foi isso que aconteceu, como terás percebido. Mas escreve tudo como se fosse verdade, porque para Tristano foi realmente verdade, e o importante é aquilo que ele imaginou durante toda a vida, a ponto de se transformar numa recordação. Claro que ele fulminou realmente o soldado nazi, e claro que Dafne lhe deu realmente abrigo naquela velha casa, e tocou Schubert para ele, e olhou-o, com aqueles seus enormes olhos negros. Mas nem ao de leve se tocaram, ela apenas lhe falou da sua Grécia violada e pela alvorada ajudou-o a sair furtivamente, encapotado num casacão do pai, nunca chegou ao Pireu, só regressou à Itália depois do oito de Setembro, dois amigos de Dafne levaram-no até Corinto, onde se juntou aos guerrilheiros gregos, nas montanhas do Peloponeso. E nessa manhã, quando se esgueirava pelo portão, disse-lhe num murmúrio, hei-de voltar, Dafne, juro, espera por mim, peço-te.

Não sei que é isto, esta tristeza assim, uma história de tempos idos ancorou dentro de mim... Era a poesia de ontem, em alemão, às vezes a Frau comporta-se como se voltássemos a ser crianças, a arteriosclerose já anda por aí. Menino, vamos à poesia dos domingos, diz ela. Cumpre o velho ritual, a Frau, respeita as ordens. As ordens do meu avô quando a contratou para que eu aprendesse a língua. O cerimonial era este, eu sentado numa poltrona da sala, um quarto de hora antes de a lição começar, porque os meninos é que esperam, cinco menos um quarto, o avô não transige em matéria de horários, quanto ao mais transigia em tudo, mas, como ele dizia, houve quem perdesse o vapor para Calatifimi por causa do horário, na mesinha a chocolateira a fumegar e duas chávenas, uma para mim, outra para a Frau, eu de calças de golfe, truz truz, e depois Guten Abend Herrchen, Entschuldigung, está na hora da poesia, era uma miúda da minha idade, sim Fraulein, nessa altura a Frau era tímida, e eu mais do que ela, ela atabalhoada a ler, eu obrigado a ouvi-la, ela a evitar olhar-me, eu a evitar olhá-la, gostou muito de mim, a Frau, apesar de implicar comigo e eu com ela, à minha maneira, como sabes não tenho mais ninguém, bem vistas as coisas passámos a vida evitando olharmos um para o outro, talvez porque quando éramos jovens nos apetecesse muito olhar um para o outro e nunca arranjássemos coragem para o fazer... Ich weiss nichtwas soll es bedeuten, Dass ich so traurig bin, Ein Mãrchen aus alten Zeiten... Sabes o que isto é? Na Alemanha as crianças aprendem isto na escola primária, é a história de uma sereia, de uma criatura loura sentada numa rocha do Reno, que seduz os marinheiros com o seu canto e os seus cabelos de ouro, levando-os a naufragar, chama-se Lorelei... Era sempre assim que a Frau começava, de cada vez que eu voltava, como se de nada fosse, como um ritual vazio que no entanto é preciso respeitar porque existe um contrato já antigo que a vida se encarregou de consolidar, embora a língua tenha mudado ao longo dos anos, outras poesias, outros idiomas, mas o ritual não, o invólucro manteve-se, a Frau sabe que se trata de um privilégio apenas seu, e dá-lhe uso, quem escolhe as poesias é ela, sempre foi ela, mas assim é que está certo, ela sabe, sabe imensas coisas, a Frau, conhece as horas da minha vida, dos dias da minha vida, como esses livros de horas que os frades usavam antigamente... a vida passa num ápice, sabes, mas como são lentas certas tardes de domingo, a Frau sempre soube escolher a poesia certa para o momento certo, quando eu cá vinha, obviamente, porque muitas vezes não aparecia, ou melhor, quase nunca lá estive, mas sabes o que ela me disse? Disse-me uma coisa que me deixou perturbado, quase comovido, é estranho, porque a comoção tem a ver com os humores de que somos feitos, e um mineral como eu já não tem humidade, e no entanto quando me disse isto com aquelas suas palavras tão avaras quanto ela, naquele italiano duro que sempre fingiu não ter aprendido capazmente nos mais de setenta anos que aqui passou, eu voltei a cara para as persianas para não deixar transparecer que esta pedra não secou completamente, e as ripas das persianas puseram-se a tremular, não pelo calor lá de fora, mas porque ela me disse com o seu ar desabrido que, mesmo quando eu estava longe, ou corria perigo, ou ela assim julgava, todos os domingos, às cinco menos um quarto, ela ia até à sala, imaginava que servia o chocolate e dizia de si para si, em alemão, menino está na hora da poesia. E lia o poema que em seu entender me assentaria melhor nesse dia, como um viático ou um livro de horas... Tantas horas, escritor, tantas horas realmente. Quantos domingos haverá em setenta anos, melhor dizendo, em oitenta, quase?, faz-lhe as contas. Alguns milhares, assim a olho... Dá-me um copo de água, mas primeiro despeja o copo, a Frau deita-lhe sempre umas gotas de lúpulo, que me deixam ainda mais tonto, vai enchê-lo à torneira da casa de banho, é aquela porta a seguir ao armário, desculpa lá fazer de ti meu enfermeiro, não, não é essa porta, isso é o quarto de vestir, é à direita, tens de forçar um pouco, às vezes o puxador prende, é a torneira com a bolinha vermelha, a da bola azul é a da água quente, o canalizador montou-as mal e nunca as mandei trocar, não me digas que estás a olhar para a fotografia do quarto de vestir... estás mesmo, dei-me conta disso porque não me respondeste, por favor, deixa-te de comiserações, não quero, fotografias dessas metem pena, ao fim de tanto tempo acabam por meter pena, mas aquele corpo foi verdadeiro apesar de imitar um quadro, era uma tentativa de imitar Courbet, tem uma mancha amarelada que quase lhe chegou ao umbigo, parece uma mão a devorá-lo aos poucos, como a minha gangrena, as fotografias são como nós, nós engelhamos e elas amarelecem, deterioram-se, têm uma epiderme como a nossa, sabes, a pele conserva aquele mar interior de que somos feitos, porque somos feitos de água, protege o corpo do calor exterior enquanto mantém o calor interior, eliminando-o quando se torna excessivo, com o tempo... e depois de o mar se ter evaporado fica um invólucro todo engelhado, inútil... Tirei-a com a Leika que cacei a um alemão, um oficial que ao lado da pistola levava no blusão a fotografia da família e a sua querida Leika, era afeiçoado à famelga mas massacrava as dos outros, é humano gostarmos da nossa família, deve ser uma foto de quarenta e oito, ou talvez um pouco anterior, de quando Tristano reencontrou a Guagliona, hoje apetece-me tratá-la assim, foram parar a uma espécie de pensão, ao acaso, tudo na vida acontece ao acaso, por vezes chego a pensar que até o livre arbítrio é fruto do acaso... coisa estranha, imagina que me lembro perfeitamente que comemos uma caldeirada e agora não consigo lembrar-me se fizemos amor, mas ele propôs-lhe posar como a origem do mundo, isso é inegável, prova-o aquela pobre fotografia, foi no fim de uma tarde de Verão, estava uma luz oblíqua admirável, Rosamunda, vamos fazer a origem do mundo, disse Tristano... mas não houve nenhuma origem do mundo entre ele e ela, não deram origem a coisíssima nenhuma, um amor estéril, diria eu, sem transmissão da carne... antes assim, aliás... A água está morna, bem te avisei que as torneiras ficaram trocadas, a da água fria é a da direita, e para a próxima vez traz-me a palhinha que está na mesa-de-cabeceira, se não encharco o lençol, não vês que não consigo engolir, não tenho uma língua esponjosa como os cães... Estava a contar-te da Frau, no domingo passado leu-me uma poesia, pareceu-me bonita... Esta noite também tive um sonho bonito, entrei na origem do mundo... de quem seria?... dá-me mais um gole de água, mas traz a palhinha... os sonhos são uns milagres miseráveis... nunca acreditei nos milagres verdadeiros... os verdadeiros são ilusões... são sonhos, sobretudo. Domingo deve ter sido anteontem, não?, nem sei a quantas ando, a Frau entra, batendo à porta de mansinho, tão de mansinho como há setenta e cinco anos, está na hora da poesia, menino. Senta-se, abre um livro... Domingo... A Frau entende os domingos, é daquelas pessoas que na vida entendem os domingos, tenta clarear a voz, tarefa impossível, parece um fole, quando fala assobia, é o enfisema, o médico foi categórico mas ela fez que não percebeu, a Frau é extraordinária, se lhe dizes alguma coisa que não lhe agrada finge que é uma alemã acabada de chegar, fuma o seu charuto às escondidas, refugiada no fundo da vinha, quem mo disse foi o neto do Agostino, aquele rapaz que brita os torrões que é inútil britar nesta vinha doente, senhor professor, diz-me ele, lá foi a senhora Frau sentar-se debaixo do salgueiro ao fundo da vinha para fumar três toscanos de seguida, é todos os dias o mesmo, das três às cinco, estou a dizer-lhe isto porque a mim faz-me espécie. E que faz ela enquanto fuma?, perguntei. Nada, diz o neto do Agostino, olha p'ra longe meia assombrada, passei-lhe à frente e nem sequer me viu, ou fez de conta. Há-de estar a pensar nos seus tempos de menina, disse eu, na sua Alemanha, tu nunca pensas nos teus tempos de menino?, claro que pensas, só que para ti é mais fácil porque estás na tua casa, na casa onde foste menino, por isso não te rales e deixa-a fumar quantos charutos quiser, mesmo quem não tem ninguém tem de pensar em alguém... ouvi um zumbido, passou-me uma coisa pela cara, deve ser a varejeira. Se deixares a janela entreaberta talvez consiga sair, mas abre só um pouquinho, está uma luz demasiado forte, com a luz parece que me dói mais a perna... A Frau leu-me uns versos de um poeta que eu não conheço, ou talvez sejam de uma poetisa, se um poeta for mulher diz-se poetisa, não é?, mas não tem importância, e diz-me ela então, menino, vamos à poesia dos domingos, e começa... esta poeira calma. Sei-a de cor, disse eu, é da americana, a que me provocou remorsos para a vida toda. Não, diz-me ela, esta é italiana, só o título é que é igual, mas já são cinco menos cinco, estamos com dez minutos de atraso... Renate, disse eu, não sejas assim, és mesmo terrível, já passou tanto tempo desde a nossa meninice, todo o tempo possível, com tudo aquilo que o tempo arrasta consigo, fome, guerra, carestia, e os desastres que provoca dentro de nós, e sobretudo os mortos, morreram todos, Renate, ficámos apenas tu e eu, e vens dizer-me que estamos com dez minutos de atraso, mas em relação a quê?, tem lá paciência. Em relação à morfina, responde ela sem hesitar, e embora mal consiga vê-la adivinho-lhe a expressão obstinada, com os cabelos brancos apanhados no alto da cabeça em jeito de auréola... Em relação à morfina, o médico mandou-me dar-te morfina de oito em oito horas, a próxima dose é daqui a cinco minutos, resta-nos por isso pouco tempo, e queria ler-te a poesia das cinco antes que deixes de perceber seja o que for. Então vá lá, Renate, lê. E ela, que faz o meu menino, que faz o meu cabritinho, três vezes voltará e não mais tornará. Renate, por favor, não me venhas com canções de embalar, disse eu. Mas isto são só os primeiros versos, diz ela, ouve e cala-te... os mortos, ao tocar-lhes, estão frios, mas os vivos são uma coisa completamente diferente, ao tocar no meu amor era feliz, ontem tive uma visão, vi meu amor no jardim, metade era um velho, metade um rapazinho... Não me lembro do resto, a Frau continuou a ler e enquanto lia injectou-me a morfina sem que eu me apercebesse, e achei-me assim no mundo dos sonhos, e entrei na origem do mundo, por vezes tem-se a sorte de sonhar com aquilo que se quer sonhar, mas é raro, um privilégio raro, pode ser que um dia te conte o meu sonho, se o gravar na memória, mas mais tarde, agora estou cansado. Que horas são?

Dizia Ferruccio que não se deve contar os sonhos, porque é como entregar a alma. Segui sempre o seu conselho, mas acho que contigo é diferente, vieste para ouvir uma vida, fizeste tantos quilómetros, deixaste tudo, mereces também os sonhos... queria falar-te de uma praia, não sei se foi sonho recente ou se fui sonhando com ela ao longo dos anos, mas isso pouca importância tem, depois explico-te, porque entretanto pareceu-me encontrar um fio lógico e não queria perdê-lo, é um fio tão ténue... Não sei como a Frau consegue acompanhá-lo. Repara, desde que regressei a esta casa retomou o ritual de quando éramos novos, de quando me ensinava alemão, a poesia dos domingos... como se tivesse sido ontem, como se entretanto a vida não tivesse passado...

... E entretanto os anos passaram, lentos, iguais, com bombas sempre iguais, nos comboios, nas praças, nos bancos... estou a queimar etapas, já cheguei ao fim, tomara eu ter chegado ao fim, mais ao fim do que isto, aliás... sempre a mesma coisa, dizia eu, e processos sempre iguais com réus sempre iguais, na medida em que não havia réus, havia processos mas não havia réus, é estranho, não é?, mas numa democracia importa o fora, não o dentro, o que conta é o ritual, lá por não haver réus vai uma pessoa ralar-se?... tudo igual, realmente, sorrisos sempre iguais, oh, os sorrisos rasgados sempre iguais à mesa das grandes potências a que também nós pertencíamos, ao que diziam... e eles inchados que nem uns perus, e as esposas de vestido comprido, que a cerimónia era a valer, nada de brincadeiras, lugares mais que selectos, tipo embaixadas, delegações, palacetes, propriedades... sobretudo propriedades, com este ministro e mais aquele e chefes de estado e membros do clero e empresários e enviados simples e especiais, domingueiros ou para todos os dias, e os banquetes... finérrimos, requintados, e banqueiros enforcados e por enforcar, envenenados e por envenenar, algum frade terrorista, de quando em quando um valente crac, crac-crac, era a chamada civilização a avançar com os seus dentinhos, como um bichinho teimoso enfiado nas tábuas de carvalho, crac-crac, meu deus, que século, diziam os ratos começando a roer o edifício... assim pensava Tristano, porventura tresvariando, mas como te dizia estou quase a acabar, e não seria justo acabar aqui, para que foi que te chamei, afinal, para que fosses tu a escrever o fim? Mas o certo é que quando Tristano e Dafne regressaram, depois de tudo aquilo ter acontecido, ele pôs-se a contemplar o passado do alto da sua Malafrasca, como chamava agora àquela colina em cujas encostas o olival amarelava enquanto a vinha se cobria de piolho... imaginava por vezes que ele próprio pegara a filoxera à vinha, chegou a confessá-lo a Dafne... não sejas injusto para contigo, murmurava Dafne passando junto a ele enquanto Tristano, de olhar perdido na planície, via o sol no horizonte, e acariciava-lhe o pescoço, como se aflorasse o teclado do seu piano, esquece o vinho doc e o azeite extra-virgem, a ideia da empresa agrícola que quiseste montar há tantos anos era uma boa ideia, tiveste excelentes ideias, mas para ti contavam pouco, não eram importantes, as nossas Folhas de Hypnos, essas sim, foram o teu verdadeiro sonho, agora existem, e hão-de ficar, foi ao nosso rapaz que confiaste a terra, tu amavas estes campos por interposta pessoa, querias que alguém os amasse em teu nome porque aqui foste nado e criado, é natural, querias que perdurasse, só que a vida foi madrasta e o ramo partiu-se, mas a tua Dafne continua a teu lado, não penses mais nestas vinhas, nestas oliveiras... Mas não era naqueles campos que Tristano pensava, fitava o horizonte para lá das copas das oliveiras doentes e pensava no país pelo qual pegara na espingarda, se teria valido a pena, e entretanto espraiava o olhar, recostado numa cadeira de lona, à realizador de cinema, que Dafne lhe oferecera por brincadeira num dia de anos, com a frase de Scarlett O'Hara escrita a marcador no espaldar, amanhã também é dia, para que ele não fosse o realizador do amargo cinemascope que se avistava do alpendre, mas se lembrasse que alguma coisa na vida há-de valer a pena quando a alma não é raquítica, e que é preciso lutar contra o raquitismo de certos dias, quando a nascente parece seca, porque de repente a fonte volta a brotar, já não contavas com isso, oh, prodígio, e és inundado por um jacto de água fresca que te robustece, te arrasta, donde vem esse rio cársico, quando a planície parecia tão árida, por que subterrâneos meandros atalhou para chegar junto de ti, para te dizer que amanhã também é dia? Mas entretanto contemplava aquela úbere planície em cinemascope, que parecia seca a seus olhos, as quintas, as vinhas, as companhias agrícolas e as explorações familiares, hectares a perder de vista, a maior parte dos quais pertença de americanos e alemães, com algumas excepções relativas à aristocracia local, só para salvaguardar a tradição, ou fazer de conta, e a quinta que mais o arreliava era a Pontormo, não tanto pela doc atribuída ao vinho, ilegítima em seu entender, mas por terem usurpado a efígie de um pintor que ele prezava acima de qualquer outro e por terem reproduzido no rótulo um dos seus quadros, numa versão pop à maneira daquele pintor americano de olhar sinistro... Estou a divagar, e estas coisas aliás não interessam, mas pensando bem nada interessa nesta história, excepto uma única coisa, talvez, que seria o busílis, só que não sei se estaria disposto a contar-te o busílis, tenho de pensar melhor, ao fim e ao cabo o busílis de Tristano contaste-o tu melhor do que eu, no teu livro é tudo tão claro, para que hei-de eu estragar-te a festa?... Seja como for agora estou cansado, e também tu estarás cansado, era capaz de fazer uma sestazinha, talvez te chame mais logo com esta campainha que mandei instalar, toca pela casa toda, mesmo aqui, queres ouvi-la?, faz rac-rac, parece um sapo, não é de propósito, foi por mero acaso, o electricista disse-me que é por causa do amplificador de celulóide, soltou-se e ficou rachado... conseguiste que a Frau te arranjasse um quarto bom, não foi?, eu avisei-te, nunca fiques no primeiro que ela te destinar, pede para mudar, a princípio ela nunca oferece o melhor, e não é por maldade, é assim por natureza, acho que anda por aí uma varejeira, não a ouves, ou será que me zumbem os ouvidos?

Pirimpipim, pirimpipim, pirimpipim, elle avait des yeux des yeux d'opale qui me fascinaient, il y avait l'ovale de son visage pâle de femme fatale qui me fut fatal... Não ouves os passarinhos a chilrear?, hoje também eu chilreio, sinto-me alegre, está um dia mais fresco, nota-se logo, levantou-se vento, on s'est connu, on s'est reconnu, on s'est perdu de vue, on s'est reperdu de vue, on s'est retrouvé, on s'est réchauffé, puis on s'est séparé... Em dias como este não há como ir a certa praia que eu conheço, escritor, despes a camisa enfunada, é o primeiro dia de suão, que ainda não sopra com força, chega às golfadas, deixa-te os cabelos revoltos, uns quantos passos até ao pinheiral e estás na areia, a maresia humedece-te o rosto, passas a língua pelos lábios, sabem a... o sol aperta, ah que vontade, bem a sentes nas virilhas, chega a doer, tanto calor, o sol queima tudo, a areia, a barriga, a praia está deserta, mas ela onde está?... Je me suis réveillé en sentant ses baisers sur mon front brulant, ses baisers sur mon front brulant, pirimpipim, pirimpipim... fitas o horizonte e semicerras os olhos por causa da luz, não há realmente ninguém, anda, despe-te, deixa na praia a roupa que te cobre, Giuditta! Chamas por ela e o pinheiral responde lá do fundo, Giudittaaaa! Sou eu, Giuditta! Sou eu, Guidittaaa! Quero-te, Giuditta! Quero-te, Giudittaaaa!... on s'est connu, on s'est reconnu, on s'est perdu de vue, on s'est reperdu de vue, on s'est séparé, puis on s'est réchauffé, pirimpipim, pirimpipim, pirimpipim, chacun por soi est reparti dans le tourbillon de la vie, pirimpipim, pirimpipim... os túbaros estão duros e mirrados como duas nozes, túbaros dum raio, não servem para nada, e ele duro que nem um pau, Giuditta!, apetece-te dançar, abres os braços... je l'ai revue un soir la-la-la, elle est retombée dans mes bras, elle est retombée dans mes bras... é enorme a pista de baile daquela praia, e tu tem-la de novo nos braços, voltou a cair-te nos braços, e tu a dançar e ela a dançar contigo, finalmente chegaste, minha pateta, eu já não podia mais, já não podia mesmo mais, tenho-o assim há uma hora, quase que dói, eu já não podia mais, vamos ali à aldeia da serra, diz ela, a Sassète, é a festa do pistou, quero lá saber do pistou, replicas, vamos antes para a choupana, para a rama fresca da choupana, ó rama, ó linda rama, pirimpipim, pirimpipim, mas aquela praia seria mesmo na Provença?, que te parece, escritor, seria uma praia da Provença?... talvez sim, talvez não, posso estar enganado, mas pouco importa, hoje sinto-me alegre como um passarinho, não ouves os passarinhos a chilrear? E entretanto chegam à choupana, nem sequer precisam de estender uma toalha, a areia está morna mas lá dentro está fresco, ah, Cary, Cary, diz ela. Abraça-se a ti. Pões-me doida, Cary. Giuditta, por onde andaste, minha pateta?, porque tardaste tanto em voltar?... on s'est connu, on s'est reconnu... porque me tratas por Cary, patetinha?, eu não sou Cary, Cary era o teu tio. Ah, tens razão, Clark, sempre quiseste que te tratasse por Tristano, sim, isso mesmo, Tristano, pára, não, sim, continua, pirimpipim, pirimpipim, quand on s'est connu, quand on s'est reconnu, pourquoi se perdre de vue?, et quand on s'est retrouvé, quand on s'est réchauffé, pourquoi se séparer?... Sabes porquê, escritor? Não sabes, nem eu sei, quanto mais tu, que de Tristano nada sabes, e sabes que aqui, precisamente aqui, eu sinto a mesma urgência daquele dia?, precisamente aqui, onde a gangrena morde, sim, aqui nas virilhas, é esse mesmo desejo... achas absurdo? Compreendo que aches absurdo, e no entanto não é absurdo, aqui o desejo é o mesmo de antigamente, tal e qual, quanto ao mais acabou-se, sumiu-se tudo com a carne que morreu, mas o desejo é o mesmo... ficou o desejo e a carne sumiu-se, são coisas que não podes perceber, que queres tu perceber, que sabes tu de outro corpo, do meu corpo?

... Que dia é hoje? Eu não morri, estava apenas de olhos fechados, mas não morri, terás de ter paciência... Hoje estou muito lúcido, a febre deve ter baixado, já não tenho pesadelos. Falei-te nos pesadelos? Se já o fiz, não deites nada fora, a vida, especialmente a vida dos heróis, é feita de mil coisas, nomeadamente de pesadelos... Estou com um pouco de pieira, não a ouves?, quando respiro assobia-me a garganta, mas sossega, não é para hoje, isto leva o seu tempo, vais precisar de paciência, e eu também. Que dia é hoje? Quando for dia 10 de Agosto avisa-me, não te esqueças, mas se calhar já passou. Dormi muito, devo ter dormido muito. Ou talvez não... às vezes, num minuto de sono há anos de permeio... A Frau está-me a cortar na morfina, é bera... ou se calhar julga que me faz mal, pobre coitada... Por vezes as recordações parecem feitas de gelatina, as coisas pegam-se umas às outras, como se as tivéssemos desossado, derretem-se, vês um rosto... espera, diz-te ele, cacei-te, não me reconheces, pateta?, sou eu, não vês?, sou eu, espera um momento... Sorri-te... Ah, reconheceste-me, diz ele, mas ela sorri com ar trocista, querias, meu lindo, querias, e pisca-te o olho... Tinha umas pestanas enormes, e a mesma malícia no sorriso, mas a boca mudou, estranha coisa, e o rosto também, como se fosse de cera quente e se moldasse sozinho, e já não é o mesmo. E que quer este agora? Ah, olha o Sirio, reconheceste-o, é o Sirio, que morreu com um cancro no cu... mas só por instantes continua a ser Sirio, já se transformou em Cary, aquele comandante americano que esteve contigo na serra, vê-lo perfeitamente, e também vês Tristano como se fosse outro, quando ele era o comandante Clark, ao fim e ao cabo eram a mesma pessoa, unha com carne, irmãos gémeos, tratavam-no assim por se parecer com um actor de cinema dessa época, com uma poupa a rebrilhar de brilhantina, só lhe falta o bigode. E ele, nesse tal dia, nessa lívida madrugada, espera escondido atrás de uma rocha, de metralhadora em riste, mas sorri como se estivesse à tua espera para te contar uma piada... e também tu sorris, é estranho encontrarem-se assim, passado tanto tempo, e ele sempre ali, no mesmo sítio, naquela lívida madrugada. Será possível que tivesse ali ficado? É possível. Os homens não se mexem, ficam como que encantados em momentos fixos, só que não o sabem, a gente imagina um fluir contínuo que aos poucos se evapora, mas não, algures no espaço esse momento mantém-se fixo no gesto e em tudo o mais, como por encantamento, numa fotografia sem chapa. É preciso saber vê-la, mas existe, digo-to eu.

... Olha, aconteceu o seguinte, avistou-a ao fundo do prado, em frente do casebre, de costas voltadas, ele pousou a luneta astronómica que trazia a tiracolo, porque chegara à serra sem arma, e pensou que era milagre. Vestia um par de calções de cabedal que lhe chegavam a meio da perna, umas botas, e levava às costas uma metralhadora cujo cano desaparecia nos cabelos pretos soltos sobre os ombros. Começou a tremer. Tremia de surpresa, de emoção, qualquer coisa que eu seria incapaz de descrever, como uma labareda que lhe rebentasse no peito, as fontes a latejar. Gritou, Dafne! Ela não se voltou. Estava a falar com alguém, um soldado do exército saboiano, pareceu-lhe. Voltou a gritar, Dafne!, e largou a correr. Ao sentir passos, ela voltou-se, alerta, já com a mão na coronha da metralhadora. Olhou para ele com os olhos esbugalhados de espanto, mas de um azul intenso, com uma expressão algo trocista, devido talvez a um ligeiro estrabismo. O meu nome é Marilyn, disse, que me queres? Não podia ter mais de vinte anos, e o tom de voz era o de quem estava habituada a comandar. Sou novo, balbuciou, venho da Grécia. Os contactos com os aliados é comigo, disse ela, sou americana, podes tratar-me por capitão, capitão Mary. Rosa-munda assentava-te melhor, disse ele. Deixa-te de graças, disse ela, quem é Rosamunda? É uma peça de Schubert, disse ele.

A Frau queria pôr-me o relógio de pêndulo na mesa-de-cabeceira, ao menos vês as horas, diz, basta voltares a cabeça, assim sempre te orientas durante o dia, estás constantemente a perguntar as horas. Respondi-lhe que o tique-taque me enerva, mas não se deu por vencida. Com a redoma de vidro não se ouve, diz, nem um tísico o ouviria. Um tísico não, mas eu sim, eu ouço tudo... de noite, o caruncho faz um ruído insuportável a roer o armário, parece uma voz numa caverna... é um armário de castanho, os carunchos adoram o castanho, e quanto mais seco estiver mais o apreciam, eu de caruncho sei umas coisas... disse-lhe mesmo assim, eu de caruncho sei umas coisas, Renate, é ver para crer, espreita aí a minha perna... e também sei umas coisas de ruídos, tenho uma ligação directa lá abaixo, a linha já funciona, até ouço os passos das formigas, que têm umas patinhas leves como cabelos. Estás a enfrascar-te em morfina, diz ela para picar, quais formigas qual quê, já te injectei três vezes desde ontem à noite, e se embirras com o relógio na mesa-de-cabeceira, paciência, mas já que tens agora alguém para te ouvir o dia todo, pergunta-lhe as horas a ele, que eu tenho mais que fazer. Mais que fazer... um mistério, aqueles afazeres, quem trata da lida da casa é a mulher do Agostino, e os fornecedores deixam-lhe tudo à porta... o que ela faz é dar ordens a quem apanha a jeito. Também te dá ordens a ti? De qualquer modo, se durante o dia não me oriento, à noite é mais fácil, tenho um avião, não sei se já o ouviste, se calhar não, à meia-noite és capaz de estar a dormir, e passa muito alto, faz um ronco sumido, é o avião da meia-noite, como lhe chamo...é pontual, talvez se atrase de vez em quando, mas coisa pouca, bate a meia-noite melhor do que aquele estúpido relógio que já não toca, só faz tique-taque... da janela do teu quarto consegues vê-lo, mas tens de pôr-te à coca, porque quando o ouves já ele passou, verás, são duas luzinhas azuis, paralelas... passa há uns dez anos, dei por ele precisamente na noite do nosso regresso definitivo a esta casa, estávamos cansadíssimos, como é natural, naquela tarde de Agosto tínhamos partido de uma praceta da Plaka onde a Dafne, por brincadeira, se pusera a flutuar à altura de um ramo de laranjeira, eu pedira-lhe que não me deixasse regressar sozinho, e foi assim que nos fizemos à estrada... nessa noite não consegui pregar olho, quando se está demasiado cansado acontece, pus-me à janela, sabes como é, um cigarro... É um avião que vem do sul e vai para ocidente, quando chega a este sítio, precisamente por cima da nossa casa, flecte em direcção à costa, e para ele é subitamente mar... imagino-o a sobrevoar a Sardenha, o viajante que pela janela avista umas luzinhas lá em baixo há-de perguntar quem habita aquelas luzes, quem estará naquela casa, naquela aldeia... nunca o saberá, tal como eu não sei quem é o viajante que se interroga, mas entretanto ambos damos largas à imaginação, eu e ele, e sem saber quem somos estivemos a pensar na mesma coisa... agora sobrevoa a Espanha... talvez passe até por Pancuervo, em Pancuervo também há-de haver quem esteja acordado à meia-noite e contemple aquele avião... e finalmente Portugal... e depois o oceano, pois é, não há outra solução, meu caro, tem de se atravessar o Atlântico... e não tarda estás na América, porque de avião chega-se à América num instante. A América... O meu pai sempre sonhou ir para a América, quem me falava disto era o meu avô, estava convencido que na América poderia prosseguir a sua investigação, na América tornar-se-ia um biólogo de fama mundial... a América... como havia de ser bonita, a América, no tempo em que o meu pai sonhava com ela! Sabia tudo a respeito das pradarias, dos índios Seminole, de Benjamin Franklin, de Charlie Chaplin, de Walt Whitman, do Empire State Building, da música... tudo coisas que o meu avô me contava, nessa altura lá em casa ninguém apreciava aquela música, achavam-na desafinada, era música de pretos... ignorantes... mas o meu pai tinha um fonógrafo, e recebia os discos directamente da América... quem me ensinou a gostar daquela música foi o meu avô, depois da morte do meu pai eu já não me entretinha com a sua espada de garibaldino, e ele inventou um jogo para as manhãs de domingo, entrávamos em bicos de pés no gabinete do meu pai, como se ele estivesse de olho colado ao microscópio e não pudéssemos distraí-lo, depois o meu avô punha o disco de um tipo que tocava trompete e entusiasmava-se, retorcia os bigodes brancos à batida do ritmo, ouve este músico, dizia, ouve como põe a vida a vibrar naquele trompete, a vida é sopro, rapaz, no princípio era o verbo, e sabe-se lá o que os padres entendiam por isso, mas o verbo é sopro, rapaz, respiração e mais nada... na vida tem de se amar a vida, nunca deixes de amar a vida, lembra-te disto, quem gosta da morte são os fascistas... Escritor, se fores à biblioteca, ao lado da mesa junto à janela verás o óculo do meu avô e o microscópio do meu pai... Repara como é estranho, com o microscópio, o meu pai estudava as vidas de muito perto, o meu avô buscava com a luneta vidas longínquas, ambos através das lentes. Mas a vida descobre-se a olho nu, nem demasiado longe, nem demasiado perto, à altura dos olhos... O meu pai gostava imenso de Nova Iorque e morreu sem lá ter ido... Também eu gostaria muito de ter ido a Nova Iorque, mas nunca lá estive, nunca se proporcionou. Conheces Nova Iorque, tu? Faço cada pergunta, quem é que não foi a Nova Iorque, nos tempos que correm, mais a mais no vosso meio... Sabes, uma noite destas gostaria mesmo de tomar aquele avião de que te falei, já faltou mais... Desculpa, não sei o que estava a dizer, acho que já não digo coisa com coisa, devia estar quase a dormir, quando se está cá e lá debitam-se coisas sem pés nem cabeça, é melhor continuarmos depois, tenho a impressão que já é tarde... Achas que consigo fumar um cigarrinho, nem que sejam só duas fumaças, sem que a Frau se dê conta? Assim como assim abre as persianas, com o calor que está.

Ouvi dizer que nunca quiseste ir ao blateleblá. Aí está uma coisa que te fica bem, parabéns, está sempre cheio de convencidos, o blateleblá, e é vê-los opinar com prosápia a respeito de tudo, aquilo que mais se usa este ano, se certo fulano do governo veste bem ou veste mal, se seria preferível votar mais aquém ou mais além, onde irá parar o buraco de ozono, se o mundo não será quadrado, quem sabe... já viste as vezes que te convidaram, sobretudo depois do prémio que o teu romance ganhou nos States, é típico, a princípio nem sequer olham para ti, mas se ganhas um prémio nos States viras famoso e não consegues escapar ao blateleblá... No teu romance, Tristano comporta-se como um autêntico herói, mas mostras que ele tem medo, e isso agradou-me, os heróis têm medo, que é uma coisa que os simplórios não sabem, mas ele vence o medo... no entanto há outro mas, e quanto a isto foste brilhante, será que ele consegue vencer o medo precisamente por ter sido vencido pelo medo?... resumindo, o herói vence o medo porque o medo o derrotou. Não é bem assim, mas o raciocínio é interessante... Tu és um tipo complicado, e está-se a ver que quem escreve um livro como o teu não embarca no blateleblá... além do mais tens qualquer coisa de um senador, desculpa lá chamar-te nomes, na medida em que tens modos austeros, cultivas bem o género, quando pensava em ti via-te de toga branca, como certos senadores romanos, um pouco à Séneca, por assim dizer, atendendo também ao estilo da tua escrita, mas Séneca se calhar nem era senador, não sei... Ouve, essa coisa de não ires ao blateleblá não é como se lá fosses, mas às avessas? Desculpa a maldade, mas assim toda a gente diz que te recusas a ir ao blateleblá, andas na boca de todos e ao fim e ao cabo não ir é como lá ter ido... porque isso do blateleblá é terrível, meu caro escritor, uma pessoa fode-se à mesma, quer vá quer não vá, nunca pensaste nisso? Sei o que disseram de ti num programa do blateleblá a que a Frau chama a purga catódica. Estou muito bem informado a respeito dessa engenhoca apesar de nem olhar para ela, a Frau fá-lo por mim. No mês passado, estava eu acamado há pouco, ela assoma à porta e diz, olha, menino, esta noite a purga catódica falou daquele escritor que estavas a ler ontem. Renate, explica-te bem, insisto. Hoje o tema do programa era a coragem de mudar de ideias, e depois de apresentar os convidados o condutor diz com um ar melado, convidámos também o conhecido e premiado autor de um romance sobre a coragem, mas infelizmente declinou o convite, esperamos que ele não tenha medo da nossa emissão, contamos consigo, ilustre escritor, olhe que somos gente de bem, venha daí... Já percebi, Renate, e então?, perguntei. Não me disseste que precisavas de alguém disposto a ouvir-te, mas que tinha de ser escritor? E voltou a fechar a porta sem me dar tempo para responder...

Hoje sinto-me bem, realmente bem, e vou contar-te tudo tintim por tintim, com lógica, porque é o ponto alto, vai ser o ponto alto do teu livro, ouve e escreve, escreve e cala-te, estás pronto?... É de madrugada. Tristano está só naquela maldita floresta, e tem medo. Porque os heróis também têm medo, como tu próprio disseste. E Tristano ainda não sabe que é um herói, está só, escondido atrás de uma rocha defronte ao refúgio do comandante, sabe que está só porque nessa noite todos os seus camaradas desceram até ao vale para uma operação, ordens do próprio comandante, é preciso assaltar um quartel, na aldeia há armas e munições, há repubblichini1 de sentinela, tem de se fazer uma surtida, por isso os camaradas desceram até ao vale, e Tristano está só naquela maldita madrugada daquela maldita floresta, uma madrugada que deveria ser azul e rosicler, suave, nunca feita para dias de tragédia, mas para amar, para enlaçar o corpo de uma mulher na cama, uma madrugada feita para o amor, não para se estar agachado atrás de uma rocha, a tremer de medo, e a madrugada tão gélida. Quantos serão? Costumam ser cautelosos, nunca fazem incursões com poucos homens, podem ser dez, vinte, um pelotão inteiro. Tristano ouviu os disparos, rajadas de Maschinen-pistolen, gritos, e agora um silêncio sepulcral na madrugada que desponta, uma madrugada perigosa, porque para Tristano o dia é um inimigo, ele sozinho atrás daquela rocha, eles uma matilha. Abateu-se o silêncio sobre a chacina. Mas por que demoram? Não saem porquê? Que fazem eles no refúgio? Talvez procurem papéis, mapas,

 

Militares da República de Salò, pequeno estado fantoche do norte da Itália, aliado dos nazis e criado por Mussolini depois da sua queda, a 8 de Setembro de 1943. (N. do T.)

 

documentos. Executaram um golpe de mestre, eliminaram o comandante mais perigoso de toda a região, um grande comandante, não um tipo qualquer, aquele comandante, não um improvisado guerrilheiro de boa vontade, isso não, trata-se de um militar da velha guarda, fez a grande guerra, em 1915 já era um oficial com um importante posto de comando, é um homem que sabe de estratégia, calmo, entendido, ponderado, decidido, temido pelos nazis, causou-lhes muitas baixas, a ordem de o eliminar partiu do alto comando alemão na Itália, o mais importante não são os homens da sua formação, é ele o homem a abater, esmagada a cabeça do rebelde o corpo não conta, não passará de uns quantos desgraçados sem um objectivo preciso na guerrilha, é urgente abatê-lo, e desta vez conseguiram. Mas alguém os guiou até ali, como poderiam eles alguma vez alcançar o refúgio? Tristano conhece o refúgio, que é também o quartel-general, há quatro divisões naquela casa abandonada, a cozinha no piso térreo, onde se fazem as reuniões, se discutem as acções, se preparam os planos e se recebem as ordens, e ao lado há um quarto, onde dormem os dois soldados do exército saboiano, dois jovens soldados, bons rapazes mas inexperientes, que é melhor não utilizar nas acções, fazem de sentinelas, são os guarda-costas do comandante, e no andar de cima há uma espécie de palheiro, onde os camponeses punham os figos e as castanhas a secar numas esteiras, e depois o quarto onde dorme o comandante. O tiroteio deu-se no andar de baixo. Tristano viu o clarão dos disparos no caixilho das duas janelinhas que ladeiam a porta de madeira desconjuntada daquela casita de fábula situada no limiar da floresta. Mas não saem porquê? Está frio. Uma madrugada fria. Tristano tem medo, atrás daquela rocha. Os heróis não têm medo, mas Tristano ainda não sabe que é um herói, é um homem só que aperta a metralhadora subtraída a um alemão morto, tem as mãos geladas, os pés gelados, acha que é incapaz de pensar, embora a sua cabeça pense a uma velocidade incrível, tem os olhos postos naquela porta desconjuntada, olha de vez em quando à sua volta, mas tão rapidamente que não vê nada da paisagem que o rodeia, sabe apenas que a luz está a aumentar de intensidade, não tarda é dia claro. Pensa, há quanto tempo ouvi os disparos, dez minutos, uma hora? Tristano dormiu naquele casebre no limiar da floresta onde os camponeses dantes criavam porcos, decidira dormir ali, nessa noite, e não lá em baixo, na gruta junto à levada onde costuma passar a noite com os camaradas. Porquê? Tristano não sabe dizer porquê. Porquê, porquê, porquê...

... porquê, porquê, porquê. Vieste até aqui para saber os porquês da vida de Tristano. Mas a vida não é feita de porquês, nunca to disseram?... escreves porquê... Ou és daqueles que procuram os porquês, que querem pôr todas as coisas no seu lugar?... Então ouve, um dos porquês foi ter encontrado a americana lá na serra, já te falei nela, a Marilyn, a quem logo de início chamou Rosamunda, e que por vezes também tratava por Guagliona, mas era raro, quando lhe puxava o cabelo junto à nuca, que ela usava entrançado durante o dia, e ele dizia-lhe desfaz a trança, Maria Madalena, desfaz a trança, Guagliona. Gostarias de saber mais porquês, por que foi para a serra, e como, e quando, e Dafne, que foi feito dela... És demasiado curioso, escritor, que tens tu com isso? Tu desculpa, mas era lógico, que querias tu que ele fizesse?, andava tresmalhado, era um refractário, regressou a casa quando Badoglio mandou toda a gente para casa, podia escolher entre esconder-se no palheiro, no meio do feno, visto que os alemães batiam a zona, ou juntar-se ao seu rei em Brindisi ou algures por aí... Esconder-se na palha não era com ele, e tu, no seu lugar, ter-te-ias acaso juntado a um rei que abandonara os italianos assim sem mais nem quê para ir comer massinha com grelos de nabo?... De certa maneira, ao optar pela resistência na serra a situação de Tristano seria semelhante, porque os nabos viriam mais tarde... mas digo isto com uma lucidez a posteriori, se há lucidez possível com a morfina que tomei... Sabes que a Frau deu-me uma dose dupla? A Frau é assim, nuns dias corta, noutros dobra, faz-lhe pena... é antipática, repara naquele ar duro, mas por dentro... em meu entender sempre chorou por dentro sem chorar por fora, não sei como aquilo é, se é feitio ou se é por ser alemã, às vezes parece-me que os alemães conseguem chorar por dentro sem chorar por fora, basta ler certas coisas que escreveram... nós somos diferentes, se calhar fartamo-nos de chorar por fora e cá por dentro fica tudo na mesma... é uma questão de hidráulica... já me perdi, onde é que eu ia?... querias saber da Dafne, o porquê e o como, porque ele afinal deixou-a na Grécia... tem lá paciência, havia de levá-la com ele para a serra, depois de tudo o que ela passara no seu país?... e que te importa a ti a Dafne? A Dafne é a única coisa bonita de toda esta história, o resto é um desastre... não acreditas?, então olha à tua volta, se não acreditas, e pergunta porquê, ou melhor, para quê, a que propósito é que Tristano foi para a serra com um óculo às costas?... ah, esta não sabias, nunca te passaria pela cabeça semelhante coisa, pois folgo muito em dizer-to, vocês, os escritores, gostam deste género de coisas para fazerem umas flores à volta delas... na serra, Tristano andava com uma metralhadora às costas, evidentemente, e foi com essa metralhadora que se tornou no herói que sabes, mas até essa altura andou com um óculo de cobre a que estava afeiçoado e que fora pertença de seu avô, em garoto descobrira o céu com aquela engenhoca, e levou-a consigo para contemplar as estrelas do alto dos montes, porque quanto mais alto se está mais nítidas são as estrelas... Um inglês que também escrevia livros disse que vivemos todos num esgoto mas que alguns de nós contemplam as estrelas, e talvez Tristano quisesse contemplar as estrelas porque o seu país era um autêntico esgoto... E que me dizes tu agora do teu? Gostas?

Estou a lembrar-me de mais um fragmento da poesia da Frau, é um longo poema que ela me debita às prestações, um autêntico suplício... Vi um sapo saltar uma altura de morro e levar consigo o que mais me valia, era algo hediondo e meigo, veludo, na mole algidez parecia roubar para me devolver, corroída de tanta babugem, uma velha medalha em que dorme o teu eco.

... As cigarras sossegaram... já deve ter escurecido, talvez estejas cansado de escrever. Mas foi ou não foi para isso que vieste? Também eu estou cansado de falar, mas foi para isso que te chamei, se a Frau vier interromper-nos diz-lhe que estamos quase a acabar, mais uns dez minutos, porque não sei se amanhã terei forças para contar o resto. E o resto é importante, sabes isso melhor do que eu, refizeste-o no teu livro, até ganhaste um prémio, ou estarei enganado? Se agora te mandasse embora havias de passar uma noite em branco, pior do que a minha, com medo que eu amanhã não retomasse o fio à meada, que grande chatice, não achas?, fizeste tantos quilómetros para aqui chegares e me ouvires no meio deste cheiro a fenol e a gangrena, e eu perco o fio à meada no melhor da festa... Descansa, que não perdi, porque a porta desconjuntada do casebre abre-se de repente, está escuro lá dentro, e Tristano não consegue ver nada. Despachem-se, pensa, saiam daí, bestas nojentas. Lá vem um, finalmente. Até o conhece, é o Stefano, sempre tão afável, o contínuo da escola da aldeia no fundo do vale, aquele que lhe dera a entender que se podia confiar nele. E agora aparece-lhe também vestido de preto, com a borla no barrete, o porco. Stefano olha apreensivo à sua volta, receia ser descoberto, certifica-se que está sozinho, acena para dentro de casa, sai um alemão, depois dois, três, quatro... Dispara, diz Tristano para consigo, não passam de quatro sacanas. O dedo preme com impaciência o gatilho da metralhadora mas Tristano detém-se, se houvesse mais alguém lá dentro lixava-se. E entretanto avançam os cinco pelo prado, vão-se aproximando, se o descobrem é um homem morto, que há-de ele fazer, esta espera é um póquer, Tristano mostra o jogo, dispara. E nesse momento ouve-se a voz de uma mulher a cantar, é uma voz melodiosa e entoa uma melopeia estranha com estranhas palavras, uma antiga canção de embalar, tão antiga como o timbre daquela voz, será possível que uma voz de mulher cante pela madrugada, numa floresta no alto da serra, depois de uma chacina? Será que aquela voz existe realmente? Tristano ouve-a, lembra-se do que leu em tempos nos padres da igreja, é uma voz interior, não pode vir de fora, só ele a ouve, os padres da igreja chamavam a essas vozes as vozes dos anjos, só pode ouvi-las quem puder ouvi-las ou quem quiser ouvir aquilo que anseia por ouvir, é uma voz muito antiga, que enfeitiça, diz... eu tinha um cavalinho malhado, contava os passos que a lua dava, tinha um bonito cavalinho preto e ele deixou-me, vê-se que não tenho sorte no amor... e percebe-se que está a ninar um berço, e nesse instante o prado, a serra, a floresta, tudo começa a ondear como um berço embalado pelas mãos de uma mulher que não se vê, ouve-se apenas o canto da sua voz, eu tinha um cavalinho sem cauda, trazia-o preso por uma corda, puxa que puxa embaraça-se a corda, assim faz o homem quando se apaixona... e tudo ondeia frente aos olhos de Tristano, e agora todos os alemães surgem finalmente a descoberto, reuniram-se num pequeno grupo atónito, enredados no feitiço de uma voz de mulher que embala toda a paisagem, dorme dorme, pequenino, que é da avó o meu menino... é esta a canção daquela voz de sereia, e todos os alemães se deixam enfeitiçar, entre o sono e o olvido, alinhados e imóveis como numa foto de família, como um monumento aos caídos. Tristano dispara a primeira rajada, a segunda, a terceira, dispara e vai cantando para acompanhar a voz que o salvou, dorme dorme, pequenino, que é da avó o meu menino, ó ó... a floresta devolve o eco das rajadas, um cacho de ecos em ricochete de costa a costa, do monte ao vale, e que se perde na distância como um trovão ribomba no horizonte, Tristano é o novo comandante da brigada de guerrilheiros, a patente do velho comandante massacrado pelos alemães passou para ele, mas ele ainda não o sabe, Tristano não sabe nada, continua de pé, a descoberto, ergueu-se detrás da rocha que o escondia, os raios de um sol acabado de nascer iluminam-no como nos filmes de heróis em technicolor. Vá, Tristano, aproxima-te das presas que abateste, calca-lhes o peito com o pé e ergue bem alto a tua metralhadora num gesto de triunfo, queremos recordar-te assim, trata-se das tuas memórias, estamos a escrever a tua biografia. E tu podes ir andando, escritor, deve ser tarde e por hoje basta, ouviste aquilo que querias ouvir.

A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge... ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são migalhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e este grão que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado... até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.

... Tenho de emendar uma coisa, aquilo do sonho que te contei, o sonho da praia, não foi com a Rosamunda, foi com a Dafne, posso garantir-te que foi porque tenho uma prova que não falha, estava a esquecer-me, a melancia... Nessa cabana há uma melancia aberta ao meio, uma soberba melancia vermelha pousada na prateleira de madeira onde se punham os fatos de banho, estou a vê-la como se fosse hoje, na estrada que conduzia à praia havia um homenzinho com uma bancada a vender peixe, melões e karpúzhi, ocorreu-me agora a palavra, e Dafne adorava karpúzhi, para ela karpúzhi significava a sua Grécia, na Grécia até fazem gelados de melancia, fica sabendo, lembro-me de um Verão em Creta, da primeira vez que lá fui com ela, e de uma praia enorme, branca, e da melancia coberta com gelo picado que o homenzinho levava naquela bancada com rodas, na estrada que conduzia à praia... certas tardes, naquela praia... fazia amor com a sua Dafne dentro da choupana, depois de jogarem ao apanha dentro de água, e lambiam a pele, cheios de sal... depois comiam uma talhada de melancia, os americanos não gostam de melancia, se calhar porque aquilo é só água, não tem vitaminas.

Ouvi o que a Frau te segredou... não escreva aquilo que ele conta sob o efeito da morfina. Não lhe dês ouvidos, escreve tudo, tudo, com morfina ou sem ela, recolhe tudo o que puderes, os fragmentos e também as migalhas, eu também sou o meu delírio...

... Conheces uma poesia que fala de uma mãe vestida de negro a chorar sobre o cadáver do filho que mataram na praça? Leu-ma a Frau esta manhã. A Frau tem o dom da adivinhação, antecipa-se a mim, lê-me sempre uma poesia que tem a ver com o episódio de que tenciono falar-te, entrou no quarto e pôs-se a ler, e hoje não é domingo, tenho a certeza, e então deu-me para achar que esta história que te conto, e que é capaz de te parecer descabelada, é como uma partitura onde de vez em quando há um instrumento que diz o que lhe apetece, faz ouvir a sua voz, e onde há uma batuta que dirige tudo, só que o maestro não se vê, e sabes quem rege a batuta?, a meu ver é a Frau.

... Tu nem sequer imaginas como podem acabar subitamente certos Agostos que esbarram contra um Setembro temporão, como um automóvel contra uma árvore, e se encarquilham, esmorecem como uma concertina sem fôlego. Tanta bazófia na canícula da Assunção ou quando o céu nocturno solta os fogos-de-artifício de São Lourenço e os sentidos parecem tão repletos e a vida uma caverna de abóbadas altíssimas, quatro gotas de chuva, porém, o tempo de um corisco, e basta um só dia para engolir esse mês inchado e convencido... A vida também é assim, é como Agosto, dás-te conta que se finou num abrir e fechar de olhos, quando menos esperavas, o elástico encolheu e nunca mais voltará a esticar e o corvo assoma a um canto para te dizer o seu nevermore... A casa vazia como uma abóbora seca, e ele ainda mais vazio, e as estações mortas, e o presente também ele escaveirado, tudo se conjurava para a mais absoluta ataraxia, na imobilidade do horizonte, algumas palavras ceceadas, apenas, dirigidas ao nada que te escuta. E um nevoeiro cerrado... Como se sente, perguntava-lhe o doutor Ziegler. Flocho, respondia Tristano, sinto-me flocho, à parte isso não estou mal, mas ando flocho. O doutor Ziegler não compreendia, pedia-lhe que se explicasse melhor, bitte, Herr Tristano, bitte. Flocho é como as couves ensopadas depois de um aguaceiro, doutor, está a ver aquelas folhas penduradas a roçar o lamaçal?, estão flochas... E acrescentava, é como se me tivesse dado um triângulomango, percebe? O doutor Ziegler começava a suspeitar do inconsciente como linguagem, mas com relutância, porque não era dessa escola... Mas que raio de palavras eram aquelas? Tristano tergiversava, misterioso. Sei lá, penso nelas à noite, ou melhor, elas é que me pensam a mim, assim é que é, sou pensado, são elas que me pensam, e picam-me, a bem dizer beliscam-me, são como estilhaços minúsculos de qualquer coisa que se fragmentou em mil pedaços, e chegam numa espécie de onda, na maré alta da noite... O doutor Ziegler, de mãos atrás das costas, tinha o queixo apontado ao peito. Tipo sonhos?, perguntava. Nada, não respondia. Entre sonhos, talvez? Isso, doutor, quase isso, mas não exactamente, uma espécie de recordações a boiar numa espumazinha, eu à beira das minhas noitadas, vêm umas e picam-me, outras, basta-me deixar balouçar o braço fora da cama para pescar umas quantas à toa. O doutor Ziegler andava de cá para lá como se quisesse abrir um sulco no chão, pouco lhe importava que Tristano estivesse esparramado numa poltrona debaixo do alpendre, para ele era como se estivesse na cama das suas insónias. Experimente pescar uma ao acaso, dizia, deixe-se levar, deixe balouçar o braço, feche os olhos, faça como se eu aqui não estivesse... Silêncio. O doutor Ziegler parava, chegava a conter a respiração. Só o campo respirava, a terra, sentia-se o cheiro do restolho lá em baixo, o zumbido das varejeiras, uma abelha, um cão a ladrar, mas longe, lá longe, além-mundo. Pesquei uma latinha de gambusinen, mas está aberta, com a chavinha enfiada na serpentina de lata enferrujada, murmurava Tristano como que em transe, nichts, absolut nichts, gambusinen kaputt. O doutor Ziegler contorcia as mãos atrás das costas. Gambusinen?, was bedeutet gambusinen, explique-me lá isso, Herr Tristano, concentre-se. Oh... oh... oh... Estaria Tristano à procura de qualquer coisa, ou seriam apenas anéis concêntricos de som saindo do gorgomil de quem já está no mundo dos sonhos? Ziegler esperava pacientemente, em silêncio. Teria de lhe falar das antigas tradições dos Schnabelewops, é antropologia arcaica, doutor, grunhia Tristano, é quase geologia, e lançava-se num voo rasante sobre territórios realmente incompreensíveis, certamente impossíveis de encontrar nas cartas geográficas, que porventura existiam apenas nos arquipélagos da sua imaginação, que é onde fica também a ilha da Utopia. O Schnabelewops era um principado, um pequeno lenço de terra entre coroas de montanhas, que também tinha vista para o mar, e esse mar era o mar grego de onde nasceu a virgem Vénus, já se sabe, país de picos inacessíveis mas também de suaves encostas, e prados, e soutos, e olivais, sulcado por uma miríade de ribeiros aprazíveis, de água muito pura e cristalina, apenas comparável à desse outro ribeiro em que Rolando baptizou a sua Durindana ou Amadis de Gaula fez um retemperador lava-pés ao fim de quilómetros de marcha, como afirma o hidalgo louco. E nesses ribeiros, durante as festas populares em louvor da espiga de trigo, assim como nos dias de canícula, que são frequentes no principado, a população local soía banhar-se em grande folguedo, muitas vezes entre os gritinhos das raparigas. E os ribeiros eram tantos que a gente de Schnabelewops nunca se dera ao trabalho de os contar para os pôr no mapa. E para quê, aliás? Não havia aldeia que não tivesse um ribeiro correndo a seu lado ou dividindo-a por vezes em duas partes, a ponto de provocar profundas diferenças culturais, que remontavam a costumes milenares, entre a comunidade que pertencia à margem direita e a que pertencia à margem esquerda, e um folclorista nórdico que andara de terra em terra a recolher velhos cantares registara trovas antiquíssimas em que a jovem noiva cantava a saudade da terra de seus pais, que abandonara ao casar, e atravessando o ribeiro para ir viver na casa em frente, em terra alheia, pusera o pé, molhara a meia... Depois do esforço, Tristano calava-se, de olhos fechados, com a mão pescadora balouçando caída da cadeira de lona. Talvez tivesse adormecido... O doutor Ziegler receava interferir no espaço onírico, que é um espaço sagrado para qualquer paciente e fundamental para qualquer terapeuta. O campo respirava lentamente. Era meio-dia. O doutor Ziegler deveria estar no seu consultório na cidade, mas cancelara evidentemente todas as consultas, estava por de mais interessado naquele paciente. Tristano recomeçara entretanto a falar, mas talvez estivesse de facto a navegar no seu espaço onírico, e dissertava a respeito dos gambusinen, criaturas aquáticas da sua suposta juventude, que pertenciam certamente àquela zoologia fantástica que é apanágio dos perturbados ou dos poetas que nunca escreveram poesias, e que se situavam, para quem ouvisse aquelas suas palavras semi-incompreensíveis, a meio-caminho entre os crustáceos e o peixe propriamente dito, quer dizer, com guelras e barbatanas. O doutor Ziegler pensava em animais antediluvianos, de épocas muito recuadas, quando tudo era devir, quando toda e qualquer taxinomia era impossível e não se sabia se uma coisa era flor ou fruto, se peixe ou pássaro, insecto ou mamífero... Repare, doutor, não sei se me faço entender, um animalzinho semelhante ao lagostim de água doce, rosado, mas sem a carapaça de ceratina, isto é, mole como um polvo, com uma cabecinha arredondada donde despontam quatro tentácu-los em miniatura, com cerca de um centímetro e meio a dois centímetros, não mais, e muito tenro, alimentam-se de uma ervinha semelhante ao musgo que cresce no leito dos ribeiros mais inacessíveis do Principado, os gambusinen são doidos por essa erva, que tem um sabor delicado e inefável e perdura na carne dos próprios gambusinen, como o paladar de uma trufa que tivesse o travo amargoso dos míscaros... O doutor Ziegler ouvia em silêncio. As cigarras pareciam ter enlouquecido, e o calor tórrido abatia-se sobre a pérgula. Era Agosto... Um Agosto como este, escritor, e Tristano não precisava da morfina para ficar fora de si, perdera a cabeça por conta própria. Gostaria de te ter contado isto mais tarde, mas lembrei-me agora e contei agora, tem lá paciência, estou certo que não tem cabimento no teu livro, deixa lá... Ouve, deve estar a anoitecer e a Frau vem aí com a morfina, mas eu hoje não quero. Estou com fome, diz-lhe que estou com fome, que quero uma chávena de caldo, uma chávena de caldo de galinha, se fosse antigamente pedia-lhe uma de gambusinen, mas já se extinguiram, restam apenas umas quantas latas vazias com a chavinha enfiada na serpentina ferrujenta... Diz à Frau que à falta de gambusinen me contento com uma chávena de caldo de galinha, verás que ela percebe.

Ferruccio dizia que vocês, os escritores, se contemplam sempre numa luz futura, como póstumos, e eu pensei no mecanismo que accionaste quando falaste na primeira pessoa, como se Tristano fosses tu... tinhas-te já entregue ao futuro, como uma lápide, e vias-te espelhado nela, porque essa lápide devolvia-te a imagem que em teu entender os vindouros teriam de ti... E no entanto eu vou distorcendo essa imagem nas tuas barbas, ou antes, deixo-a de pernas para o ar e cabeça para baixo, como naqueles espelhos das barracas de feira... Lamento muito, mas não sei aquilo que imaginavas quando vieste ao meu encontro, eu não estou aqui para confirmar, pelo contrário... nunca te fies nos espelhos, à primeira parecem reflectir a tua imagem, mas afinal distorcem-na, pior ainda, sugam-na, bebem tudo, sorvem-te também a ti... Os espelhos são porosos, escritor, e tu sem saber de nada.

Marios, de olhar perdido no vazio, não respondia, remexia com o dedo as borras de café no fundo do copo, parecia um adivinho falhado em busca de uma resposta inacessível, e calava-se... A mesma praceta da Plaka, um dia de sol frio, a Acrópole impassível sobre as suas cabeças... Sou eu, Marios, voltei, olha-me nos olhos, peço-te. E então Marios falou com voz neutra, como um médico lê um diagnóstico ou um juiz uma sentença... as montanhas são as mesmas, e as pedras, e as árvores, mas acabou-se tudo, já não há ninguém, morreram todos, eu também morri, o marechal Papagos, condottiero de coração negro e mente sinistra, deu à Grécia um novo duce e um novo rei, que são idênticos aos anteriores, os ingleses deram-lhe uma ajudinha, os americanos também, nomeadamente o general Skolby, grande estratego especializado em fuzilamentos em massa... os ingleses e seus primos têm duas democracias, uma boa, para consumo interno, e outra estragada, que ficou a ganhar bolor nos armazéns do tempo e se destina à exportação para os povos pobres, porque os pobres digerem tudo... e agora voltaste, Tristano, vejo que voltaste, e queres novas dos camaradas, da Dafne... os camaradas morreram, Dafne está longe, algures, com os seus concertos, porque a Grécia não precisa da sua música, o que os marechais querem é música patriótica para a oferecerem ao povo da sua nova Grécia... vejo que voltaste, estás aqui, como prometido, mas talvez não te tenhas dado conta que passaram dez anos, deixaste-nos em quarenta e três, assim que no meu país a besta morrer voltarei para junto de vós, disseste, suponho que a besta do teu país morreu há tempos, mas aqui está mais viva do que nunca, garanto-te, se tens saudade dos montes do Peloponeso vai lá de passeio, vai-me oxigenar esses pulmões... Tristano, podes regressar para donde vieste, volta para o teu país, se foi por nós que vieste chegaste terrivelmente fora de horas, se foi pela Dafne, volta para o ano, ou daqui a dois anos... Se tivesses sabido deste episódio, escritor, tê-lo-ias contado com o teu talento, o herói que comparece a um encontro com dez anos de atraso merece umas quantas páginas, uma paródia de Ulisses, de um Ulisses de entremez que toma o eléctrico errado e em vez de seguir para ítaca embarca para Pancuervo... Não sei o que teria o teu protagonista respondido a Marios se tivesses podido escrever aquilo que te contei, que desculpa arranjaria o teu Tristano. Perdoa-me se movo um processo de intenções, estou a tentar adivinhar... imagino um Tristano com ar solene e ferido no seu amor-próprio... fui condecorado com a cruz de guerra, diz com voz grave, sou um herói, Marios, hás-de compreender, a vida de um herói está recheada de compromissos, obrigações de representação, missões diplomáticas, embaixadas de paz e fraternidade, cerimónias, conferências... e um homem como Marios, que tinha combatido pela liberdade, embora se tivesse saído mal, tê-lo-ia compreendido, e tê-lo-ia abraçado. Mas Tristano deu uma desculpa de um género completamente diferente... não vim mais cedo por causa de um pormenor, disse convictamente, de um maldito pormenor. Tal e qual, uma desculpa ridícula, digna do cómico que tomou o eléctrico errado... E se algum dia escreveres a vida de Tristano, a verdade é esta, toda a verdade, só a verdade, juro-te... No entanto, escritor, se preferires escrever aquilo que terias entendido escrever caso tivesses sabido do episódio mais cedo, és livre de o fazer. Vá, escolhe, quem poderia desmentir-te?

Deus está nos pormenores, dizia um sábio judeu, acho que era filólogo. Mas o diabo também, provavelmente. Era um dia de Verão, um dia que Tristano recorda azul, como também a cidade era azul, recorda, embora fosse realmente uma cidade rosada, com casas cor-de-rosa e amarelas junto ao fosso ladeado de muralhas antigas que chegam ao mar. No casario popular que ladeia os bastiões há lençóis a enxugar às janelas, como bandeiras brancas estralejando ao vento, porque o dia é de mistral. E Tristano, quando ia visitar Taddeo, levava sempre a sua motorizada vermelha porque gostava daquele percurso junto à costa, mal saía da cidade a estrada descia em curvas apertadas sobre penhascos escarpados onde cresciam tamarizes e figueiras-da-índia e donde se desfrutava uma vista rasgada sobre um mar celeste, muitas vezes com velas no horizonte, e passadas umas quantas curvas avistava-se a pensão de Taddeo. Que a bem dizer não era uma pensão, chamava-se Taddeo Zimmer, um edifício baixo que Taddeo construíra com as suas próprias mãos, mesmo aos pés da falésia, à beira de uma praiinha de seixos. Oito pequenos quartos equipados com uma pequena cozinha e uma casa-de-banho, todos eles com um terraço separado dos demais por sebes de ligustros plantados em vasos de barro para transmitir aos alemães, a quem Taddeo chamava boches, a sensação de Mediterrâneo, como ele dizia. Boches de quem se tornara grande amigo, e eles seus afeiçoados clientes, porque a pensão de Taddeo era modesta e a maior parte da clientela eram operários do Ruhr que ao serão jogavam as cartas com Taddeo. Muitos alemães ele abatera, Taddeo. Contava-os num caderninho sebento, em alemão, onde anotava a hora e o lugar, ein, zwei, drei, vier, fiinf, sechs, sieben, e ao lado dos mortos de alta patente punha três estrelas como no Guia Michelin. Taddeo e Tristano tinham-se conhecido uns anos antes, naquelas montanhas lá atrás. Taddeo era um moço bravio de uma família de lenhadores exterminada pelos SS que os repubblichini tinham guiado até às florestas da região. Ele, que se encontrava no meio dos carvalhos de fronte da casa, assistira de longe à matança, com um olhar de fera dilacerada, e deixara-se ficar escondido entre a ramagem. Mas ao retirar-se o pelotão, um dos soldados nazis ficara para trás a sorver um ovo fresco no galinheiro, Taddeo esperou-o atrás de uma azinheira e à sua passagem desferiu-lhe um golpe na nuca com um tronco nodoso de que.se havia munido. Depois ficou-lhe com a Maschinen-pistole e foi serra acima juntar-se aos resistentes. Não que tivessem agora muito para dizer um ao outro, ele e Taddeo. Na verdade, ia até lá pelo prazer de percorrer na moto aquela estrada a pique sobre o mar, cheia de vento e de cheiros... Mas vamos ao pormenor. Em vez de ir de moto, Tristano naquele dia tomou a camioneta. Porquê? Não sei. Na praça que se abria atrás do fosso, entre o edifício mussoliniano dos correios e os primeiros paredões do porto, havia um pequeno mercado improvisado pelos pescadores, Tristano vagueava entre as caixas de peixe ainda vivo e de repente apeteceu-lhe encontrar-se com Taddeo, a paragem da carreira ficava a dois passos, foi assim. Comprou o peixe necessário para levar a Taddeo, para uma caldeirada, atravessou a estrada, pouco faltava para o meio-dia, tinha de esperar só dez minutos. Tristano recorda dois sons bens precisos, como se os ouvisse agora, os sinos do meio-dia e a buzina pontual da carreira anunciando a sua chegada. E depois uma voz que lhe murmurou ao ouvido, Glenn Miller é mais alegre do que Schubert. Tristano voltou-se e só conseguiu dizer, que fazes tu aqui, donde vens, por que não voltaste para a América? Fiquei à tua espera, respondeu Rosamunda... Não estou a inventar, escritor, disse mesmo assim, fiquei à tua espera, que é uma resposta insensata, porque nada daquilo fazia sentido, e depois acrescentou, vou contigo, preciso de te falar. No entanto não trocaram uma palavra durante o trajecto, depois desceram na segunda paragem, tomaram a estrada que levava da aldeia até à praia e chegaram à pensão de Taddeo. Tristano entregou o peixe a uma rapariga que era uma espécie de criada para todo o serviço, porque Taddeo ainda não tinha chegado. Marilyn disse-lhe que pedisse um quarto. Subiram. O Zimmer, como todos os outros Zimmer, era um quarto de paredes caiadas, cheias de papos, que lhe davam um ar mediterrânico, donde pendiam reproduções de fotografias antigas, pescadores sentados no chão, de calças arregaçadas, a consertar as redes. Uma portinha comunicava com a casa-de-banho, um cubículo com retrete, lavatório e um chuveiro avantajado, protegido por uma cortina de plástico, circular. A porta-janela, de vidros de correr, dava para o terracinho resguardado pelos vasos com os ligustros. Tristano foi para o terraço e acendeu um cigarro. Ainda não tinham trocado uma só palavra. Marilyn aproximou-se em bicos de pés e lançou-lhe os braços à volta dos ombros. Que é que queres?, perguntou-lhe ele. Quero-te a ti, disse Marilyn. Tristano voltou-se e segurou-lhe os pulsos para que o não abraçasse. Rosamunda, disse, tudo isto é grotesco, não podes fingir que não aconteceu nada, a nossa história acabou mal, temos de evitar que acabe pior. Encostado ao muro do terraço havia um banco de jardim pintado de verde. Marilyn sentou-se e cruzou as pernas. Não quero saber de mais nada, Clark, disse ela, juro-te, não quero saber de mais nada. Mas eu deixei de te amar, e já não me chamo Clark, melhor, nunca te amei, disse Tristano. Nem eu, disse Marilyn, mas os sentidos são outra coisa, e para ti também, eu sei, sei porque me recordo perfeitamente. Esquece, disse Tristano, faz um pequeno esforço, tu tens jeito para esquecer. Jantaram debaixo da caniçada da varanda que Taddeo adaptara a restaurante. Não havia quase ninguém. A época alta ainda não tinha começado. Taddeo serviu-os em silêncio, como se fossem clientes vulgares. Eles também continuavam calados, ouviam o marulhar das ondas calmas na prainha de calhaus rolados. Quando ele quebrou o silêncio o dia estava a nascer. Tenho de ir à Grécia, disse, há uma mulher à minha espera, apaixonei-me por ela. Marilyn afagou-lhe o peito. Se esperou por ti até agora, pode esperar mais um pouco, murmurou, e abraçou-o com força, primeiro vens tu comigo, tenho de ir a Espanha, acompanhas-me, há bocado menti-te, estou apaixonada por ti. Uma luz cruzou a moldura da janela, lá longe, devia ser uma traineira. Se calhar também eu estou, disse Tristano, mas só com os sentidos, agora deixa-me dormir, estou cansado.

... Faz-me um favor, chama a Frau, preciso da injecção, se ela te disser que já ma deu, dás-ma tu... Sempre hás-de fazer mais qualquer coisa para além de escreveres as palavras que te vou ditando, faz qualquer coisa de concreto para mereceres esta história, assim como assim quem vai contá-la és tu, serás tu o autor... mas agora faz-me esse favor, chama a Frau, preciso de uma injecção, tenho medo de me queixar e os heróis não podem queixar-se, quando muito invocam os deuses, ou então batem a bota e bico calado, basta acertar-lhes no calcanhar, deuses não tenho, e o meu calcanhar chega-me aos colhões, está a ratar-me, como viste... Despacha-te, chama a Frau, que eu depois conto-te uma coisa à maneira do velho Ernesto, desse estupor do Ernesto, que passou trinta por uma linha antes de apontar a caçadeira ao coração, tenho a certeza que vais gostar, escritor, gostas de literatura, é lógico, chama a Frau...

Pareces o Pinóquio com dores de barriga, e Tristano imitou-a, hi, hi. Marilyn soltou dois pequenos soluços, tu és bera, disse, é verdade que tive uma história paradoxal, porque o meu coração nunca se libertou do meu amor frustrado por ti, o espaço de que eu dispunha para uma companhia masculina era limitado, e essa situação paradoxal era, paradoxalmente, a única que me assentava bem, Clark. Não me chames Clark, replicou Tristano, já te disse, eu já não sou Clark, agora sou Tristano e não percebo a comparação, Guagliona, mas o certo é que o Cary fodia contigo até mais não, e se calhar para ti o amor é isso, Guagliona, tomaste o badalo pelo sino, e agora que queres tu de mim, um filho?, é tarde, deseja quanto quiseres, olha que o tempo da vida não acompanha a par e passo o tempo do desejo, num dia podem passar cem anos, seja como for procura outro, para Tristano o tempo foi-se.

... Acho que te prometi um episódio à maneira do velho Ernesto, não sei se é escritor do teu agrado, mas teria de começar por falar-te de Pancuervo. Perguntar-te-ás o que isso é. É um lugar perdido em Espanha, onde as rãs coaxam nos campos. E aonde ninguém vai. Mas que se cruzou com a vida de Tristano.

... vamos lá a ver quando é que ele passa, disse a rapariga, aqui em Espanha fecham a cancela como se o comboio passasse daí a cinco minutos e, calhando, só passa no dia seguinte, este país é assim. Devia haver um comboio para Pancuervo, respondeu o homem, mas talvez já não haja comboios para Pancuervo, kaputt, e se calhar Pancuervo não existe, é um lugar inventado por ti... O sol era implacável, mas dentro do café podia-se respirar. A cortina feita com caricas de cerveja ondulava na brisa quente, produzindo uma espécie de musiquinha oriental. Pediram de beber, o dono era um homenzinho barrigudo, com uns bigodes que pareciam um sobrolho triste. É curioso, diz ele, tem bigodes de barbeiro e faz de taberneiro, que coisa descabida. Porquê, perguntou a rapariga, há bigodes especiais? Ele debicou a cerveja, claro que há, disse, repara na fisionomia desta gente, é uma lição de antropologia. Desenhei na minha agenda as diversas categorias de bigodes, neste país os bigodes são um mundo, olha, os da Guardia Civil, por exemplo, são deste feitio. Fez um esboço rápido no guardanapo. Em contrapartida, os dos advogados são assim. Outro esboço. E os dos juizes, assim, quase iguais aos dos advogados, mas diferentes. Os dos professores universitários, assim, se forem a favor do regime, e assim, se forem contra. Os dos proprietários rurais são assim, aqui tens o bigode do latifundiário espanhol que apoia o Generalíssimo. O qual, por sua vez, tem um bigode assim, que na prática é igual aos outros, só que é do Generalíssimo e identifica-se logo... pensando bem, a história do nosso século é uma história de bigodes, o bigodinho truncado do alemão, a bigodeira rústica do russo... o duce era glabro, em tudo, como os italianos, nós somos peludos na alma, como eu, mas tu não sabes disso, minha menina, julgas que és mais peluda do que eu, e és uma colina sem um fio de erva. Gostava que também deixasses crescer o bigode, disse a rapariga, com a tua idade ficava-te bem. O homem sorriu. Era da maneira que ficava mais parecido com o Clark Gable, tenho muita pena mas não sou actor de cinema, já não sou o companheiro de guerrilha e já não me chamo Clark, não percebes?

Acenou ao dono do café, que dormitava atrás do balcão. Dos más, disse, apontando para a garrafinha de cerveja. De qualquer modo adivinhei que voltaria a encontrar-te, disse a rapariga, que voltaria a encontrar-te nesta noite de Verão que antevi na minha carta. Qual carta?, perguntou ele, nunca a recebi. A rapariga mostrava um ar vago e o olhar perdido de quem segue o voo das moscas. A minha carta não falava da noite de Junho, quando me levaste para a pensão, disse, aí não se tratou de um verdadeiro reencontro. Mas passei a noite a foder contigo, disse o homem, não que não foi reencontro... És um ordinário, disse ela. Ainda bem que és fina a valer, disse o homem, e daí? O verdadeiro reencontro foi esta noite, disse a rapariga, mas os homens nunca sabem o que é um verdadeiro reencontro, são coisas que os homens não percebem. Falta-nos metafísica, disse o homem. E pôs-se a rir baixinho, procurando conter-se. Clark, disse ela, por favor. Não me chames Clark, disse ele, eu já não sou Clark, já te disse, sou Tristano, apetece-me, agora chamo-me Tristano. Tristano é um nome falso, replicou a rapariga, um nome artificial, não gosto, é o nome de outra pessoa, se calhar é o teu irmão, sempre me disseste que tinhas um irmão e nunca me disseste como se chamava, se calhar é o teu irmão. O homem sorriu e desenhou com o indicador uns rabiscos na cacimba que crescera na parede do copo. Já percebeste tudo, disse, eu sou o meu irmão. Ela tentou pegar-lhe na mão, mas era difícil, ele queria desenhar no copo. Tristano, disse ela, ontem disseste-me que pode haver muitas formas e graus de uma pessoa se apaixonar, e que a culpa era mais leve se a partilhássemos a meias. Ele disse um palavrão. Deixa-te de ordinarices, disse a rapariga, ficam-te mal, sabes, o Cary nunca procurou reter-me, queria-me bem, isto é, queria o meu bem, ou aquilo que eu julgava que poderia ser o meu bem, deixou-se possuir por uma melancolia infinita, mas tu vês em tudo uma maquinação contra ti e vingas-te à tua maneira, e sobes a parada. O homem rebuscou nos bolsos e puxou de um papel. Leu em voz alta, porque o Cary nunca procurou reter-me ou voltar a ver-me, queria-me bem, isto é, queria o meu bem ou aquilo que eu julgava que poderia ser o meu bem... deixou-se possuir por uma melancolia infinita, pela dor que eu lhe causava, percebes? Ergueu a cabeça do papel. Desculpa, minha menina, disse, estás a repetir-te, essas palavras são as mesmíssimas que me escreveste nesta carta, estamos em Espanha, a passagem de nível está fechada, é provável que o comboio nunca chegue a passar e o nosso horário caducou, e tu, mesmo fora de horas, repetes-me ao altifalante o anúncio de um comboio que foi suprimido, porquê? Porque Cary era infeliz, disse ela, e então apaixonei-me mesmo, só por isso, para mim era como encontrar raízes que nunca tive, e ele certa noite telefonou-me, disse-me vem, por favor, preciso de ti, para mim era como encontrar raízes que nunca tive, sou uma pobre americana desgarrada que vem da East Coast, de uma família pequeno-bur-guesa, filha de pai notário e mãe idiota, nunca perceberás, Clark. Não me chames Clark, disse o homem, e deixa-te de tretas, o teu pai é um siciliano que emigrou para Brooklyn e que os americanos trouxeram de volta quando desembarcaram na Sicília, mandaram-vos a ambos em missão, cada qual com a sua tarefa, e quanto a Cary, beh, sei lá, é uma personagem sinistra, mas isso é contigo, a vida é tua. Era a minha única liberdade, disse a rapariga, e vida há só uma. O dono apareceu para limpar a mesa e enxutou as moscas com um trapo. O comboio passou, disse, parou e voltou a partir, os senhores não devem ter dado por isso, era o comboio para Pancuervo. Liberdade é uma palavra elástica disse o homem, sabes, Guagliona, pergunto-me se estamos a pensar na mesma palavra, se calhar estamos, mas a mesma palavra na boca deste ou na boca daquele tansforma-se noutra palavra. A rapariga consultou o relógio que trazia no pulso. Clark, perguntou, tu que liberdade defendes? O homem olhou pela janela. A paisagem era árida, as colinas lembravam-lhe elefantes brancos. Vamos a um déjà-vu, disse, quem tem de abortar não és tu, aliás o meu sémen nunca vingou, e seja como for é tarde, quem tem de abortar sou eu, sabes, começo a recear ter-me enganado a respeito da liberdade que defendi, mas se vim contigo foi para compreender melhor, porque tu estás a tentar envolver-me numa história obscura, vocês são muito elementares mas não menos perigosos, são tão elementares que pensam que quem não alinhou com o comunismo talvez se satisfaça com Francisco Franco, e eu quero mesmo perceber no que consiste o vosso plano Marshall, se é disso que se trata. Pessoalmente, para mim foi bom, disse Marilyn, encontrei um filantropo, o sémen vingou e não tenciono abortar de maneira nenhuma, desculpa lá mudar o fim da tua historieta à Hemingway. Tenho a certeza que é mais uma mentira, não tens os parafusos no sítio, disse Tristano. Pousou umas moedas na mesa. Estava capaz de voltar para casa, disse, não gosto nada desta farsa. Ela pegou-lhe na mão. Nunca percebes nada, disse, nos momentos importantes parece que fechas os olhos, claro que é mentira, mas eu preciso de ti, preciso que me protejas, por favor, Tristano, preciso que me protejas.

Que se passa contigo, Tristano, diz-me, perguntou a Guagliona contemplando o mar que trazia espelhado nos olhos. Tristano abraçou o horizonte num gesto largo e liberal. Eu devia defender a liberdade, respondeu, a liberdade que procurei e que tanto prezo, mas para ser sincero começo a ficar sem saber o que isso é, embarquei numa aventura que não me diz respeito, não sei porquê, quando andávamos na serra era tudo tão claro, ou pelo menos parecia, e agora não há nada que seja claro, e eu quero perceber... Desculpa, escritor, deixa-me abrir um parêntesis, havias de dizer à Frau que não quero morfina, por agora, preciso de ergotamina, estou a ficar com enxaqueca, ou talvez não passe de uma ameaça, procura em cima da cómoda, deve lá estar, são uns comprimidos... Se tivesse de te dizer onde foi a conversa que estava a contar-te, e sobretudo quando, havia de ser complicado, escritor. Mas a culpa não é tua, nunca me ajudas em nada, não dizes uma palavra, nunca fazes uma pergunta, é verdade que cumpres as instruções que recebeste quando te chamei, ouvir e calar, disse-te eu, chegas, escreves, e bico calado... mas agora obedeces de mais, quando perco o fio à meada tu deixas-te levar, eu já baralho os anos, e também os lugares, bastaria por vezes uma observação, uma pergunta, para eu me situar... ajuda-me... acho que fazes de propósito, por maldade, tu és mau à tua maneira, disseste para contigo, esta velha múmia cheia de arrogância trata-me com sobranceria, dá-me o privilégio de escrever a vida dele, mas trata-me como a um pobre diabo, pois bem, vejamos se às tantas não se rende, se não vai ser ele a pedir-me ajuda, talvez me peça uma mãozinha ou alguma luz para se orientar nas suas recordações... Foi isto que pensaste, não foi?, e agora julgas que vou choramingar... francamente... francamente, a traços largos até conheces a minha vida, digo a traços largos, quer dizer, onde é que eu estava em quarenta e nove ou em cinquenta e quatro, ou em sessenta e sete, ou em sessenta e nove, quando explodiu a primeira bomba e houve a primeira carnificina, e sendo assim, visto que tens estas coordenadas essenciais, de que eu já não disponho por estar confuso, dá-me uma mão. É isto que queres ouvir? Pois não to vou pedir... de ti não quero nada, não preciso da tua ajuda, desembaraço-me sozinho, o Tristano disse que tinha de ir à Grécia, e foi quando foi, que me importa a mim?, e a ti que te importa?, importa é que Rosamunda lhe propôs que fosse com ela até Espanha, disse-lhe, vem comigo. Ele pensou que a Guagliona estivesse a fazer-se engraçada, e então armou-se também em engraçado, claro que vou, vamos num carro de luxo, num Balilla todo branco, havemos de atravessar os Pire-néus, com um tempo fresco e maravilhoso e muitas curvas pela frente, e a dada altura hei-de parar num miradouro donde se contemplam serras ainda mais bonitas do que a Marmolada, onde o teu tio da América te levava a dar uns passeios românticos e dizia-te que te segurasses ao alpenstock que trazia preso às calças, e se me der na veneta falar-te-ei de um escritor francês genial e piolhoso. Mas o meu tio és tu, Clark, meu pateta, disse Rosamunda, continuas despistado, encontras-te aqui, e estás a contar-me tudo porque eu vim para te ouvir, estás com um febrão, meu pobre Clark, tens uma gangrena a roer-te a perna, tomas morfina, e não te apercebeste de que o meu tio és tu... desculpa se em circunstâncias destas me tomei pelo teu tio... que horas são, escritor?... estava a contar alguma coisa?... tem paciência, se calhar adormeci e pus-me a falar durante o sono, a Guagliona às vezes prega-me umas rasteiras, sabias?, faz-me perguntas traiçoeiras, julga que já não sei quem sou, como se eu não soubesse que sou aquele Tristano a quem chamavam comandante Clark e que se tornou um herói... só que eu perdi o tino por uns segundos e tomei-me pelo tio dela, estive quase para lhe perguntar como estava o tio da América, refiro-me ao galã do Cary, a quem eu chamo o tio da América, e eu sei a resposta de cor e salteado, percebes, a Guagliona responder-me-ia que está óptimo, que arranjou outra mulher, e lhe dedicou um poemazito que mandou aos parentes à laia de Christmas card com uma fotografia tirada com a polaróide... ah, escritor, parece que estou a vê-los no Balilla branco a rirem como dois tolinhos por o Tristano ter dito que o título daquela mensagem de Natal só podia ser mulher, ai ó mulher, ao que a Guagliona acrescentou, ajeita o caldeirão que eu já cacei o João Ratão... Mas não penses que rematou com uma gargalhada, nada disso, sabes, não é assim tão fácil, a Guagliona queria saber mais e insistia para que lhe dissesse quem era aquele escritor piolhoso de que ele lhe teria falado nos Pirenéus. Tristano não se descosia, dizendo que era um tipo que tinha viajado nas entranhas da noite, e a Guagliona, alarmada, não me digas que era a favor dos regimes totalitários! A Guagliona dava importância a essas coisas, quando a largaram de pára-quedas na nossa terra dizia que a primeira coisa que se vê quando se chega a Nova Iorque é a estátua da Liberdade... não me venhas com lições, Rosamunda, é evidente que há magnetismo entre nós dois, como se fôssemos ímanes, mas nada mais, tu és daquelas que dizem uma coisa mas à socapa fazem outra, sei isso perfeitamente porque daqui desta cama onde apodreço conheço o teu passado, que há-de ser o teu futuro que entretanto vou contando a este escritor, por isso não ligues, deixa-te de preciosismos, e quanto ao escritor a que chamei piolhoso tem calma e ouve o que te digo, é só uma questão de pontos de vista e é preciso abarcar todo o horizonte, como esta imensa paisagem que temos à nossa frente... Tem paciência, amigo, agora não me lembro mesmo de mais nada, palavra, é como se fosse tudo branco, mas preferia falar, porque quando falo distraio-me e não penso tanto na cefaleia... estou com cefaleia... Tenho disto há que tempos, destas coisas... desde que os Abdéritos começaram a dizer que Tristano perdera a cabeça... pois foi, perdera de tal maneira a cabeça que ela acabou por estoirar-lhe, a ele só lhe estoirou a cabeça, mas quem estoirou mesmo a sério foi o rapaz... nisto das cefaleias nunca se percebeu nada de nada, quanto aos sintomas sim, claro, e quanto às crises, à maneira de as combater e aliviar, mas quanto ao porquê da vasodilatação, isso continua a ser um mistério, parece que é uma questão neurovegetativa, ou psicossomática, como dizem hoje, quando eu era mais novo chegava a dar com a cabeça nas paredes... Ouve, vou inventar o resto da história, só para continuar a falar, como vês sou honesto, confesso que estou a inventar, suponhamos que Tristano pousou a merenda na mesa de pedra situada mesmo no meio do miradouro, à sombra de dois abetos, frente ao horizonte... Lembra-te que estamos nos Pirenéus... os franceses são geniais, quando o panorama é digno de se ver constróem uma esplanada para se poder estacionar, acrescentam-lhe uma cabana de troncos, duas toilettes para monsieur e madame, duas mesas de pedra para a merenda, e as famílias, felizes e contentes, param para comer e para contemplar aquele panorama francês, livre e republicano... Também Tristano se julgava feliz, apesar de não ter família, pôs uma toalha de papel e pratos de papel que comprara num supermercado de Saint-Jean-de-Luz, uns pratos que reproduziam frases de escritores célebres ou títulos de livros célebres, e os que ele comprara tinham escrito a toda à volta le meilleur des mondes possibles, no meio do prato estava desenhada a lápis a efígie do inventor dos pratos literários, um cavalheiro com um ar imbecil, a face apoiada numa das mãos e uma madeixa de cabelo que parecia uma peruca caída sobre a testa. No rebordo do prato, a marca dizia em letras pequeninas, se nourrir de littérature. Guagliona, disse Tristano, cheira-me que estamos adiantados no tempo. Quem está adiantado és tu, respondeu ela, não tens uma boa relação com o tempo, tanto voltas atrás como avanças aos solavancos, não és coerente. Tristano sorriu, porque a paisagem era amena e também parecia sorrir, sorria a quem quer que por ali passasse, o importante era dar-se por isso, Tristano deu por isso, e retribuiu-lhe o sorriso... A noite caía sobre aquele vale acolhedor dos Pirenéus e a luz azulava, e Tristano, aproveitando-se daquele ambiente sereno, disse que gostava daquele escritor cheio de piolhos porque o próprio escritor se fizera piolho e sugara o sangue dos homens e compreendera que é um sangue sujo e depois disse que afeiçoava a chegada da noite porque tinha um fraco por aquela poesia. A Guagliona anuiu porque evidentemente também ela afeiçoava a chegada da noite, e depois perguntou-lhe por que é que ele gostava daquele escritor a quem chamava piolho, sendo ele tão negativo e tão sem esperança. E então Tristano contemplou o seu prato de papel agora um tanto engordurado com as palavras de Voltaire, sabes, disse, é porque ele mergulhou na merda deste século que nos é dado viver, e para se mergulhar na merda é preciso coragem, ouve, quando chegarmos a Espanha hás-de viver um faz-de-conta, depois se quiseres podes lê-lo, mas comigo hás-de vivê-lo apenas como se estivéssemos dentro de uma página, verás, há uma passagem de nível, um comboio que nunca chega a passar, uma tarde imóvel e uma vida imóvel, e um homem e uma mulher que ficam por ali a beber uma cerveja e a olhar para as moscas, ambos abortaram, tanto ele como ela, cada qual a seu modo, e para lá das grades da passagem de nível há colinas que parecem elefantes brancos, um cemitério de elefantes com vitiligo...

...Desta memória eu quereria dizer... mas ficou tão longe, mal relembro os seus olhos... eram, suponho, azuis... diz assim o poeta grego... e acertava em cheio... escreveu poemas sobre a voz e afinal perdeu-a... morreu com um cancro na garganta... poemas grandiosos... gostava de homens... se Tristano o tivesse conhecido... se os seus tempos tivessem coincidido, se não tivesse amado exclusivamente as mulheres, se tivesse partilhado os seus gostos, teria amado um homem como ele, amá-lo-ia como aquele poeta queria ser amado, de tanto lhe querer bem... demasiados ses, e só se vive uma vez... Mas estava a falar dos olhos, felizmente tudo se transforma em cantiga quando se chega ao ponto de vista de quem apenas pode olhar para o tecto... j'ai la mémoire qui flanche, je ne me souviens plus très bien de quelle couleur étaient ses yeux, étaient-ils verts ou bleus?... Uma vez Tristano recebeu uma carta, pode ser que um dia eu conte isto melhor, que também metia a letra de uma cantiga, mas era uma carta feita de voz e mais nada, como aquelas vozes que o poeta grego ouvia... E lá longe, longe no tempo, talvez um dia encontres nos olhos de alguém um pouco dos meus olhos...

Tristano deu por isso logo no átrio. Está a ganir, disse, não o ouves, Rosamunda? Era um dia de canícula, um daqueles dias de Agosto, em Espanha, e a cidade estava deserta. É domingo, tudo desandou para longe daquela brasa que impregnava as pedras e o asfalto, uma cidade fantasma, o próprio museu era fantasmático, os primeiros quadros pareceram-lhe aparições sobrenadando num sonho. Ohó, disse ele baixinho. O corredor central repetiu ohóóóóó, com a hospitalidade dos corredores desertos. Veio-lhe à memória uma aldeia branca junto à costa, uma boda de casamento, a mãe que o segurava pela mão, o rosto sorridente do pároco e a mãe a dizer, espero que não leve a mal não nos casarmos pela igreja, don Velio, o Tristano quis assim, apesar de não ter nada contra os padres, só nos casamos agora porque ele esteve muito doente, estava preso na Áustria quando contraiu a espanhola, pensava que nunca havia de voltar, e no entanto regressou alguns anos depois do fim da guerra e foi assim que encontrou o filho já rapazinho, mas muito nos apraz tê-lo a almoçar, senhor prior, é muito simpático da sua parte... Um padre com um ar jovial foi ao seu encontro, só que era pintado, a sua gordura prazenteira derretera há séculos. Tristano chegou a boca ao ouvido da Guagliona, Rosamunda, eu nunca te disse isto, o meu pai chamava-se Tristano e eu não sou baptizado. Eu cá, sim, murmurou Rosamunda, na serra tomavas-me por uma combatente implacável, mas não era nada, porque sou uma cristã às direitas e sei que não se deve cobiçar a mulher do próximo. Compreendo que nunca a tenhas cobiçado, disse Tristano, no fundo és uma católica às direitas, apesar de seres protestante, sempre cobiçaste os homens das outras. Avançaram pela galeria deserta, Tristano seguia à frente como o guia de um grupo de turistas sem turistas, e tomou pelas escadas. Esquece o resto dos quadros, disse, não interessam, hoje pelo menos não interessam, pode ser que um dia visites este museu sozinha para contemplares a beleza, que será a tua primavera estiolada, mas hoje vamos ver o cão amarelo, não o ouves ganir?, deve estar a morrer de sede, vamos dar-lhe de beber, sabe deus quantas pessoas passam por ele durante o ano, olham-no com a indiferença de quem vê um cão e nem sequer lhe dão aquela gota de água de que ele estaria a precisar, mas hoje é o dia certo, não há vivalma, e é possível que o próprio guarda da sala tenha adormecido na sua cadeira, se eu fosse o director deste museu havia de exigir que à frente daquele cão houvesse sempre uma tigela de água fresca, mas os directores dos museus ignoram os desejos dos seus quadros, limitam-se a exercer a sua profissão, querem lá saber que o cão fique a sofrer eternamente, como o pintor pretendeu... O guarda estava a dormir, como Tristano previra. Entraram, e o cão olhou-os com o olhar suplicante de um cãozinho amarelo enterrado na areia até ao pescoço e posto ali a sofrer para que se saiba per saecula saeculorum do sofrimento das criaturas que não têm voz, que ao fim e ao cabo somos nós todos, ou quase. A Guagliona olhou para ele, depois deu meia volta, apoiou um braço na parede, e no braço apoiou a cabeça. É insuportável, disse, não se consegue olhar para isto. Está só a tomar um banho de areia, disse Tristano, o pintor receitou-lhe banhos de areia. Por favor não digas mais nada, disse ela. Julgas que os choques eléctricos dos manicómios custam menos?, disse ele, era um cãozinho perdido, algum enjeitado, um rafeiro, vagueava pelos subúrbios, levava uma mochila às costas, um naco de pão, dormia em caixas de cartão, nunca ia à tosquia, enfim, era out a valer, e foi assim que o pintor se lembrou de fazer alguma coisa de útil à sociedade e ao seu príncipe, caçou-o com o laço da paleta, deitou-lhe a mão e enterrou-o na areia até ao pescoço, é para que saibas, cão vadio, deixas de morder, o bairro fica em sossego, os cidadãos dormem em paz e o monarca fica feliz. Ele era mau, disse Rosamunda, o pintor era mau. Não, até era bom, emendou Tristano, ele só era mau para si próprio, era um cão sem dono. Respirava-se um ar pesado, naquela sala que cheirava a mofo e aos hálitos da véspera. Bem podiam ter ar condicionado, disse ela. Por amor de Deus, Rosamunda, disse Tristano, a Espanha dos dias de hoje é esta, o Caudilho não quer saber de moder-nices para nada, nem tão-pouco dos americanos, pois se ele anda tão entretido a defender o Ocidente do comunismo, e verás que alguém há-de dizer isto um dia, como queres tu que ele se rale com o ar condicionado?, basta-lhe o fresquinho das sacristias. Sentaram-se no chão.Tristano fitava o cão nos olhos, de vez em quando a Guagliona olhava-o de soslaio, Tristano não sabia o que dizer e perguntava a si próprio por que razão quisera mostrar-lhe aquele quadro... Sabes uma coisa, escritor, se Tristano tivesse o dom da adivinhação ter-lhe-ia dito que algum dia haviam de encontrar aquele cão, ter-lhe-ia dito, Rosamunda, algum dia hás-de reconhecer este cão, que além do mais não é cão, é uma cadela, é difícil adivinhar o sexo de um cão enterrado na areia, mas eu sei que é uma cadela... porém Tristano não tinha o dom da adivinhação, por isso estou a contar-te aquilo que eu deveria ter pressentido, porque certos sinais têm de ser compreendidos a tempo, não quando se está a morrer... Não te sentes bem?, perguntou Rosamunda. Estou exausto, respondeu ele, exausto. Ninguém diria, murmurou ela, estás com óptima cor e a seguir ao almoço tiveste coragem para três de seguida, depois de teres devorado uma travessa de tripas à madrilena. Tristano disse-lhe que ficasse onde estava, deixa-te estar aí quietinha, menina, foi colocar-se debaixo do cão amarelo, dobrou os braços e os joelhos como uma marioneta a quem tivessem cortado os fios, um dia num restaurante fora do espaço e do tempo serviram-me o amor como dobrada fria, disse delicadamente ao missionário da cozinha que a preferia quente, que a dobrada nunca se come fria, não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta e vim passear para toda a rua. Que estás tu para aí a dizer?, disse Rosamunda. É uma daquelas coisas que a Frau costuma ler-me, respondeu ele, estava a falar de um tempo futuro, não da noite passada. Depois levantou-se e pôs-se em sentido à frente do cão. Comandante Clark, disse, aqui tens a água que de estavas a precisar. Trazia uma cabaça á cintura, uma daquelas aboborinhas secas que os pastores de Castela usavam para guardar a água fresca, pousou-a à frente do quadro, recuou e fez a continência. Vamos embora, Guagliona, disse, está a fazer-se tarde e o guarda quer fechar este cemitério.

... Vamos esquecer que o tempo existe e perder a conta aos dias da vida, coisa que nunca se deve fazer quando se caiu na patetice de os não contar primeiro, Mavri, é como se eu acordasse agora, depois de um sonho, e me perguntasse onde estava, se era eu, se era o mesmo e porquê... mas não há porquês, as coisas têm uma vida própria, sem porquês, embora a responsabilidade comece nos sonhos, lá diz o velho ditado, fala-me da tua infância, Mavri, e também dos teus camaradas, daqueles que não acordaram como eu e agora jazem pelos montes em campas desconhecidas, pertencem ao povo dos sonhos, não sei falar com eles... gostaria que me tocasses a mesma melodia daquela noite, mas não há aqui nenhum piano e este pedido deixa-me embaraçado, embora eu ouça a melodia nos ciprestes, vamos ao cabo Sunion, quero ver o Egeu do alto do templo de Poseidon, os teus camaradas já não têm pálpebras, estão de órbitas vazias, deitados no meio da urze e alimentam as raízes dos castanheiros, chamaram demoradamente por mim sem que eu os ouvisse, Mavri, éramos pertença mútua sem o sabermos, são estas as minhas pedras, graças a elas compreendi, as pedras ensinam muita coisa, partirão talvez comigo um dia, mas agora faz com que eu fique, leva-me a Creta, quero ver a casa onde nasceste, não podes deixá-la abandonada, seria como se o teu pai e a tua mãe tivessem morrido duas vezes, eu próprio voltarei a abrir aquela porta, entrarás comigo, de tanto a imaginar conheço-a como se lá tivesse vivido, a chave está pendurada num prego do alpendre, debaixo de um ramo de louro seco, é uma chave grande e pesada, a fechadura levanta a lingueta de madeira do lado de lá da porta, a primeira divisão é espaçosa, era o lagar de azeite, as cadeiras são de palha, mas junto às janelas há uns poiais com almofadas forradas com tecidos de Creta, e no meio da sala a mesa onde comiam, uma enorme pedra circular que em tempos esmagava as azeitonas, assente noutra pedra... há-de ser a nossa oficina, onde desenharemos o mundo que quisermos, faremos os livros sobre aquela pedra... Mavri, eu não quero passar a minha vida nas salas de aula de uma universidade nem as minhas noites num observatório a perscrutar o céu, para quê, para descobrir outros mundos, não nos basta este e aquilo a que o reduzimos?... sei que terás de me deixar sozinho muitas vezes, mas quando regressares dos teus concertos encontrar-me-ás sentado à beira daquela pedra... Ouço uma pianola, tu não a ouves?... estava a falar contigo, escritor... desculpa, estava a sonhar e uma pianola acordou-me, mas talvez estivesse mesmo a sonhar com uma pianola e ela agora continua fora do sonho, é uma valsa, não a ouves?... Não me digas que é uma alucinação auditiva, vê se me compreendes, é uma valsa em lá maior, muito ao longe, mas quem quiser ouvi-la ouve-a perfeitamente... não, não é uma pianola, é um realejo, daqueles que os ciganos tocavam antigamente nas feiras, quando eu era criança... Nas fogueiras de S. João, na praça de San Nicolò, o cigano dava à manivela, o realejo começava a tocar e o povo punha-se a dançar... São histórias antigas que já não interessam a ninguém, mas louvado seja o modesto refrão que traz até nós os dias mortos do passado... aquele incansável relógio de pêndulo em cima da cómoda continua de olhos esbugalhados, não os fecha nem de noite, espia todos os segundos, como a aranha espia as moscas, e o universo está ali, qual galáxia qual quê qual anos-luz, segundo após segundo, tique-taque, e a hora chega ao fim... o cigano abala para outra feira, mas toca sempre a mesma música, não há mais um par para esta dança?... aqueles dois conheço-os eu, ela vem de sapatinho branco e saia azul às pregas, ele pousou o casaco no espaldar de uma cadeira e arregaçou as mangas da camisa, põe-na a dançar... põe-na a rir, rapaz, não vês o brilho que traz nos olhos, são as luzes da praça a estrelejar, balões de papel iluminados, chegou agora o tocador de buzuki, é um velhote entendido em namorados, quantos não viu dançar durante a vida!, sabe mesmo do assunto, o velhote, pôs-se a tocar Thaxanarthis... claro que hás-de voltar, diz ela, já voltaste, e ri, aconchega-lhe a mão ao pescoço e puxa-o para si, o povo aplaude, juntou-se numa roda à volta deles, ela passa-lhe a mão pelos cabelos, e depois beija-o, chegam mais músicos, a festa anima, tudo dança, há um velho a dançar sozinho, leva os braços erguidos como a agarrar o ar e deixa que só as pernas bailem, enfiadas numas botas de cabedal, eles imobilizaram-se no meio da multidão que continua a dançar, parecem uma estátua com dois corpos que o escultor soltou de uma só pedra, estão de olhos fechados, testas encostadas como se trocassem pensamentos, pensam na mesma coisa, que o barco para Creta parte amanhã de manhã pelas sete e o Pireu está em festa, para quê ir dormir à cidade... Conheço uma pensão no porto, disse Dafne, era onde se hospedava o meu avô quando andava a estudar em Atenas, agora é do Stratis, um homem lá da terra, gostava de o cumprimentar, conhece-me desde menina, acho que ficaria contente se me visse chegar contigo, Tristano.

Afinal não chegaste a enxotar a varejeira, és tão mentiroso como a Frau, não a ouves, ou julgas que me zumbem os ouvidos?, até podem zumbir, mas anda aí uma varejeira, tenho a certeza, enxota-a, deixa a janela entreaberta e verás que dá com a saída, a luz nem sequer me incomoda, basta fechar os olhos, que horas são, já passa do meio-dia? É de tarde, devem ser umas três, sim, sinto que é de tarde... é estranho, uma pessoa dá-se conta disso mesmo deitado nesta cama, a tarde entra-nos pelos ouvidos, tem uma respiração própria, e pelo olfacto, pelos ouvidos e pelo cheiro, e depois há um galo que se põe a cantar a meio da tarde, um galo tonto, cantar para quê, julga que é valente, mas de valente não tem nada, tonto e presunçoso é o que ele é, em tempos houve dois homens naquela serra, qual deles mais valente, que conduziam a mesma batalha mas discordavam quanto ao futuro do seu país, um deles era ele, estava atrás de uma rocha e fitava uma flor, as três brigadas oeste acabariam por ficar sob o seu comando, mas primeiro ele tinha de se tornar um herói, não é nada fácil ser-se um herói, um milímetro a mais para um lado e és um herói, um milímetro a mais para o outro e és um cobarde, é uma questão de milímetros, entretanto ele fitava uma flor, e a paisagem à sua frente era a sua arena, iria levá-la de vencida ou borrar-se todo?... por vezes acontece, estás quase a tornar-te herói e acaba tudo na merda... Entreabre as persianas, por favor, deve estar a anoitecer, já percebi, há pouco enganei-me... estás a escrever?... escreve tudo tintim por tintim, há coisas que és livre de escrever à tua maneira, mas isto aqui não, escreve com as minhas palavras... Abre um pouco as persianas, deixa entrar um pouco de ar fresco... os heroísmos acabam na merda muitas vezes, ou melhor, quase sempre, mas estas coisas não se dizem, não é assim que se educa a juventude, e além disso como é que conseguias levar a mão ao coração, porque depois do heroísmo é de preceito levar a mão ao coração, ali, defronte da bandeira, à espera de uma cruz no peito, com as autoridades alinhadas à tua frente... a cruz de guerra, não uma gaita qualquer... lá está o presidente da república com a esposa, ai que lindo par, Tristano vê-os, por sorte é um documentário, as Actualidades da Semana, a preto e branco, e a ausência de cor torna a cena menos horrível, no palanque todas as demais autoridades de circunstância, o ministro do interior, o da defesa, um general pendurado nas medalhas que traz ao peito, um cardeal, calhando podem ser dois, a banda com o penacho, na próximo domingo esta solene cerimónia do heroísmo pátrio será projectada em todos os cinemas da Itália, ou pelo menos nas grandes cidades, antes daquele comovente filme americano em que ela diz que amanhã também é dia sobre o fundo rubro de um pôr-do-sol... e o discurso das Actualidades da Semana é um discurso histórico porque as novas gerações têm de saber que o condecorado ali presente é efectivamente um herói nacional, e que foi mesmo ele o autor desse acto de heroísmo, só que ele não é ele, é como o soldado desconhecido, representa todos os italianos, representa-nos também a nós, presidentes e generais que não participámos na Resistência, representa-nos a todos porque o povo italiano nunca foi fascista, e nós reconhecemo-nos nele, o povo italiano sempre combateu o fascismo, sempre, onde é que o povo italiano foi alguma vez fascista... Afinal estava a sonhar, pensa Tristano, estava a combater contra ninguém, os fascistas nunca existiram, eram uma fantasia minha... o presidente empenado vem direito a ele acompanhado de um oficial superior que traz a cruz de guerra numa bandeja de prata, estão todos em formação cerrada, Tristano, não tens por onde fugir, pensa Tristano, agora fujo, naquela madrugada não fugi, continuei atrás da rocha com a metralhadora em punho, mas agora fujo, ou agora ou nunca, foge, Tristano, foge, ou não tarda serás o herói desta gente, igual a eles, e tudo estará irremediavelmente consumado... Abre a janela, escritor, deixa-a escancarada, quero sentir a frescura da noite, porque afeiçoo a chegada da noite, não te ensinaram isto na escola?, também tu hás-de ter tido algum professor que to ensinou, também Tristano havia de estar a precisar de um pouco de ar fresco, estava suado, sentia um calor insuportável, abre-me essa janela, escritor, deixa entrar a frescura da noite, ah, a noite, era a noite, qual entardecer qual quê, que se havia de celebrar, mas é preciso ter tomates para celebrar a noite, porque a noite arrasta consigo os sonhos, e sobretudo os pesadelos, e é difícil enfrentar os pesadelos, mais ainda do que enfrentar os nazis, por aí se vê realmente quem é herói, deixa-me só, por favor, quero ver se consigo dormir.

Reconheci-a, e ela nem chegava a ser uma figurinha no horizonte, um insecto, esse insecto que eu reconheci pelo desenho das ancas largas como uma ânfora onde eu pousara as mãos e o corpo, no alto da colina, à esquerda, havia duas colunas jónicas, eu sabia perfeitamente que na realidade eram as torres que se viam da janela, mas o pintor que apadrinhava aquela cena, aquele que desenha os sonhos, transformara-as em duas colunas jónicas, à medida que ela se aproximava também as suas pernas pareciam duas colunas, e a hera fresca amarinhava por elas até lhe cobrir a púbis e ele perguntou-se se ela não se teria transformado numa árvore capaz de se deslocar, ele no seu sudário, no meio daquele quarto escancarado sobre a paisagem, era uma ideia de quarto e dentro da ideia de quarto havia um olival que só podia ser o olival de Delfos, porque os troncos eram nodosos e antigos como só em Delfos podem ser, enquanto os lugares que tinham atravessado durante a vida dançavam com movimentos imemoráveis que não deixam rasto, ao som de uma flauta de cana que não ouvimos nunca e que comanda o nosso baile, ele cantarolou Thaxanarthis, ela espreitou de trás de uma oliveira e disse, claro que voltei, tinha de voltar, meu Tristano, julgava-te morto, procurei-te por todas as ilhas, escrevi-te uma carta e confiei-a ao vento, até que um vaga-lume que errava numa seara já ceifada me disse que estavas aqui e por isso aqui estou, Tristano. É verdade, disse ele, minha bem-amada Mavri, debulhado o trigo, os feixes amarelecem nos campos mas nunca é tarde para os caules reverdecerem. E dizendo isto ergueu-se do sudário, ela ficou a dois passos dele e ele murmurou cabisbaixo, vês, a gangrena está a roer-me a perna, tenho a carne ratada e o verme está no fruto, há muito que o verme está no fruto. Estava nu, trazia apenas um lenço ao pescoço à maneira dos ceifeiros das planícies. Tristano, disse ela, reconheço a tua gaita, não estás ainda completamente desfeito, talvez ainda haja tempo. Dafne, disse ele, vê como a vida dos homens é notarial, estou aqui in articulo mortis. Mas gosto de ti na mesma, disse ela, apesar dos vermes nas pernas o tronco continua são e no teu peito o coração ainda bate. Deitaram-se na paisagem que se transformou subitamente numa planície vasta e quente, sobre as colinas começou a desenhar-se a luz avermelhada do poente que projectou a sombra do templo jónico até junto dela, do ventre dela. Sabes, Dafne, disse ele, tinha-me esquecido daquele quebra-luz, daquela vela que eu tinha sempre acesa numa casa à beira-mar, e certa noite tu passaste-lhe pela frente como se caminhasses enquadrada na janela, é a recordação mais importante da minha vida e estava a esquecê-la, lembras-te daquela casa onde vivemos, das salas vazias, do piano no rés-do-chão, do quebrar das ondas, do cheiro das algas a que eu chamava o cheiro das aldas porque a mulher que nos tratava da casa se chamava Alda? Ela não respondeu, a sua respiração ofegava agora como um anseio junto ao ouvido de Tristano, aqui me tens, disse como dizia em certas ocasiões, aqui me tens, Tristano, aperta-me com força, e nesse mesmo instante acendeu-se o farol do outro lado da costa, estava escuro na planície, mas felizmente o farol estava aceso e não havia nada a recear.

... Conheces aquele poema em que uma mãe vestida de negro chora sobre o cadáver do filho assassinado na praça? Já alguma vez te perguntei isto? A Frau leu-mo no outro dia... partiste num dia de Maio, diz, a fonte secou, desejo-te uma água eterna... e a seguir diz que solta os seus cabelos brancos para cobrir a flor estiolada daquele rosto... Meia-noite e meia, as horas passaram a correr, mesmo que não seja meia-noite e meia, digo isto à toa, a Frau acendeu um candeeiro pelas nove, e eu para aqui fiquei, quieto e calado, com quem havia de falar, se agora vivo sozinho nesta casa... viste como este poema me assenta bem?... parece escrito de propósito para mim, como se quem o escreveu soubesse... mas não é verdade que eu já não tenha ninguém, posso falar contigo, embora te limites a ouvir, o que já é qualquer coisa, muito até... Obrigado.

Vês, escritor, ando tempo acima tempo abaixo, chama-se a isto vaguear, já não sei o que é o agora e o então, não os distingo, tanto assim que estou a lembrar-me do Papee, mas quem era o Papee, alguma vez o conheci? Talvez alguma personagem de um romance que eu li um dia, algum rapaz às direitas que combateu pela liberdade do seu país, no Burundi ou num sítio equivalente, e a memória arrasta tudo ao mesmo tempo, nas mesmas águas, mas tens uma vantagem a teu favor, estou a ensinar-te que o tempo do relógio não acompanha a par e passo o tempo da vida, e sempre que tiveres de falar sobre isto podes dizer que quem te ensinou esta verdade foi um velho que estava a morrer e que passeava a seu bel-prazer tempo acima tempo abaixo, e alguns verão nisto um truque, porque não estão interessados em compreender, hão-de julgar que é um simples artifício, e que a memória... são poucas as memórias que nos ficam, escritor, os comentários de César, as confissões de Agostinho, alguns de profundis, como o de Molly, que afinal é um de profundis do útero, embora escrito por um homem, e o meu, que também é um de profundis... sabes, escritor, gostaria tanto de ter um útero, agora, gostava de ser mulher, uma mulher jovem, bonita, fértil, com a linfa a percorrer-lhe o corpo, seria maravilhoso... e que sobe com a lua, como as marés, uma mulher que fosse a origem do mundo, e em vez disso tenho um par de tomates ressequidos que a gangrena vai roendo, e estou para aqui a vomitar vento.

Rosamunda, Rosamunda, que magnífico serão, parece coisa engendrada por uma fada delicada, são mil vozes, são mil luzes, mil corações felicíssimos numa roda de alegria, ai tanta fe-li-ci-da-de... Escritor, o meu coração é todo teu, só penso em ti... Sabes, é realmente estranho, chamei-te e só pensava em mim, não pensava de todo em ti, e desde que chegaste, embora não tenhas proferido uma só palavra, comecei a pensar em ti. Pelo simples facto de me estares a escrever. E parece-me por vezes que tu és um pouco de mim, tanto assim que pergunto a mim próprio se aquilo que eu te conto é meu porque sou eu quem o conta, ou se é teu porque és tu quem o escreve... As coisas pertencem a quem as diz ou a quem as escreve? Que te parece? Pensa nisso, que a mim pouco me há-de ralar, numa altura destas.

Temos de fazer um pacto, tu e eu. Pensei nisto toda a noite... na medida em que eu também tenho um pedido a fazer-te, bem vistas as coisas, trata-se afinal de um negócio. Mas primeiro tem de ficar tudo bem claro, porque não gostaria que te convencesses que fui eu quem te pediu para vires... foste tu, sabe-lo melhor do que eu, bastou-me assobiar e apareceste logo porque não estavas à espera de mais nada... ansiavas por isso... Desculpa lá dizer-to só hoje, os pactos deveriam fazer-se sem delongas, como um acordo de cavalheiros, um aperto de mãos e acabou-se, negócio fechado, mas pus-me para aqui a falar e acabei por ficar um pouco perdido, embora to quisesse dizer logo de início, acredita... Pois bem... gostaria de propor-te que, em troca, me dissesses uma coisa... faço questão em chegar a um acordo porque os escritores conheço eu bem, a dado momento são capazes de se deixar prender pela narrativa, a narrativa impõe-se, acham que coisas destas não têm nada a ver com o resto porque quebram o ritmo, e lixo com elas... Aqui quem conta a história sou eu mas és tu quem a escreve, e quem me garante que vais incluir no teu livro uma coisa que poderia parecer-te insignificante e que em teu entender não tem nada a ver com o resto?... E no entanto tem, tem e muito, e é por isso que temos de chegar a um acordo, eu conto-te aquilo que prometi contar, mas há um pormenor que tens de escrever, porque as coisas escritas ganham outro valor, dizem... e especifica claramente que o fazes a pedido de um herói nacional, não de um fulano qualquer, mas de alguém com a cruz de guerra ao peito, o que não deixará talvez de impressionar os ingleses, os ingleses apreciam o heroísmo, têm-no praticado sem reservas, e, se não fossem eles, quando Tristano estava na serra... isto podes escrever, que nessa ocasião Tristano admirou-os sinceramente... noutras ocasiões nem por isso, refiro-me a certas coisas que fizeram noutros sítios, e nem é preciso ir muito longe, basta pensar no país da sua Dafne, onde apoiaram o fascista do marechal Papagos, e deram aos gregos um novo duce e um novo rei, depois de Metaxas, é assim que os ingleses concebem a democracia em casa alheia... Mas vamos ao que interessa... pessoalmente, seria incapaz de achar a fórmula adequada, mas isso das palavras certas é contigo, requer tacto, diplomacia, se não, que diabo de escritor serias?... O problema estaria nos mármores do Parténon... é isto que Tristano gostaria que pedisses, os mármores do Parténon, que um lorde inglês, que era embaixador na Turquia quando os otomanos subjugavam a Grécia, mandou arrancar para os levar para a Grã-Bretanha, assim como quem encontrasse uma senhora inanimada numa estrada deserta e lhe arrancasse o colar para o levar à mulher... Tal e qual, arrancar, é o termo exacto, escritor, os serventes desse salteador trabalhavam de escopro e martelo... li há muitos anos a descrição pormenorizada de alguém que assistiu ao estupro, mas poupo-te a isso... É que não levaram nenhum quadro, repara, que fica sempre bem numa parede, roubaram uma paisagem... os defensores do roubo valem-se de certas teorias... sei lá, que no British Museum os frisos estão muitíssimo bem iluminados... como se o sol da Grécia fosse menos luminoso do que os néons ingleses... ou que os frisos que o lorde levou já não eram os do templo original, visto que os otomanos haviam feito dele uma mesquita... o raciocínio é brilhante, mas os otomanos tinham-se limitado a mudar o conteúdo, que é coisa de somenos, que importância tem trocar um deus por outro, sem alterar em nada o continente... são amorosos, muito gostaria eu de ver esses teóricos brilhantes quando dessem com os pináculos da abadia de Westminster no museu de Atenas... Chamava-se Elgin, o lorde em questão, Lord Elgin, anda, escreve, não vão os ingleses confundi-lo com outro lorde qualquer, ele há tanto lorde na Inglaterra... Vá, escreve que Tristano desejava que devolvessem esses mármores ao seu legítimo proprietário, que é um templo sublime, que se Atenas não o tivesse construído eles nem sequer teriam a câmara dos lordes, continuariam a dedicar-se à pastorícia... e bem podes recordar-lhes Byron, que morreu por estas coisas, talvez resulte, quem sabe... E, se quiseres, acrescenta que para além da diplomacia normal, que muito justamente os reivindica, esses mármores já haviam sido reclamados por um grande poeta que ninguém conhecia, porque vivia como um cidadão anónimo em quartos alugados, o senhor Kavafis, e que Tristano tomaria a liberdade de repetir o amável pedido feito por esse poeta já lá vai um século, tempo suficiente para ter chegado aos ouvidos dos ingleses... Pronto, a proposta é esta, eu conto-te aquilo que querias ouvir, e tu escreves-me o desejo de Tristano, em meu entender ficas a ganhar... Aceitas? Se aceitas confio em ti, é um acordo de cavalheiros, à moda antiga... um acordo verbal... mas entre nós tudo é verbal, tudo é feito de palavras, não achas?, um gentlemen's agreement, como diriam os ingleses... Se concordas, venham mais cinco, ainda tenho forças para um aperto de mão, e seria a primeira vez que me tocas.

Sabes o que significa cefaleia? Não me refiro à enxaqueca, ou à dor de cabeça, cefaleia é outra coisa, sabes, é outra coisa, é muitas coisas juntas, e não é fácil explicar o sentido de uma coisa que é muitas coisas juntas... Para já, é um leve ruído, porque é assim que começa, uma campainha esquisita que é como que um silvo ou um lamento agudo, um sonar, chega de muito longe, das profundezas, dás por ele, e de repente as coisas assumem contornos ameaçadores, como se aquele silvo se tivesse introduzido na vista, aguçando-a, distorcendo-a, e ficas com a sensação de ter um prisma no lugar dos olhos, porque os contornos, as arestas, os objectos ampliaram a sua existência no espaço, dilataram-se, mudaram de geometria, e ao mudarem deixam de significar aquilo que significavam, por exemplo, o armário ali ao fundo transforma-se num cubo, num simples cubo, perdeu o sentido de armário, e a partir daí tudo ondeia, o espaço cresce como uma maré e sobrevêm o enjoo da cefaleia, estás sentado numa espécie de fole que respira e ondeias, tens de continuar sentado, o chão liquefaz-se, e um pulmão que parece todo o universo respira à tua volta, ou melhor, dentro de ti, e tu estás em cima dele e ao mesmo tempo dentro dele, és um grão de pó a flutuar nos alvéolos de um pulmão monstruoso que se dilata e se comprime arfando, e tu apertas as têmporas tentando conter as ondas que se desencadearam dentro da tua cabeça como uma tempestade onde te afogas, uma cefaleia é isto... A primeira cefaleia teve-a Tristano num dia dez de Agosto, muitas coisas lhe aconteceram em Agosto, o mês de Agosto marcou-lhe a vida, há homens assim, ele é Urano, Saturno, tantas coisas, muitas delas já eu esqueci, mas esta não, é impossível, dez de Agosto é o dia de S. Lourenço, o das estrelas cadentes, talvez lhe tenha caído alguma mesmo em cima da cabeça, algum meteorito, mas não foi de noite, foi ao princípio da tarde, estava ele precisamente nesta casa a que regressara por regressar, debaixo da pérgula, e de olhos postos num cacho de uvas ainda verdes contava-lhe os bagos como se contasse os anos da sua vida, vai um bago, vai mais outro, três baguinhos já lá vão, dizia baixinho numa espécie de cantilena idiota, e o bagos já eram muitos, e nesse instante deu-se conta de um silvo estranho que nunca ouvira, o cacho de uvas deixou de ser um cacho de uvas, o ar abriu fenda por todos os lados, a náusea subiu-lhe à garganta, e vacilando como se o terraço fosse o convés de um navio fustigado pelas ondas foi até ao quarto, cerrou as portadas, deixou-se cair na cama e, agarrado ao travesseiro, iniciou a primeira daquelas malditas viagens que haveriam de acompanhá-lo durante muitos anos, e atravessou miasmas, nuvens de gafanhotos, numa extensão feita de nada, que encandeava e era igual em todas as direcções... Ele morrera na véspera, sabes, o seu rapaz fora pelos ares com os seus instrumentos de morte, ele, a quem queria mais que a um filho... maldito...

... Por vezes, ao princípio da noite, contemplava as luzes da planície e pensava nos tempos idos, naqueles dias em que o futuro do seu país se decidia na serra... todos contra os nazi-fas-cistas, não restavam dúvidas quanto a isso, mas o futuro era outra coisa. Futuros, sei-o agora melhor do que nunca, é o que mais há, e poderia haver muitos mais, como no espectro das cores, velaturas, aparentemente, é o que se julga, com uma simples velatura passa-se do azul ao anil, e depois ao violeta, e o azul é uma coisa e o violeta outra coisa, é o que se julga, mas experimenta viver numa velatura, verás como é intenso... Mas nessa altura ele via o mundo em termos binários, sabes, a natureza habituou-nos ao binário, e nós, estupidamente, deixámo-nos convencer, branco e preto, quente e frio, macho e fêmea. Enfim, ou assim ou assado. Mas por que havemos nós de julgar que a vida é assim ou assado, alguma vez pensaste nisto, escritor? Estou convencido que sim, e foi talvez por isso que te chamei. Mas nessa altura Tristano via o futuro partido ao meio, porque pensava que a história se dividia em duas partes, pobre coitado, não sabia que a história somos nós que a fazemos, que a construímos com as nossas mãos, que é invenção nossa, que poderia ser diferente desde que o quiséssemos, desde que não consentíssemos que a própria história nos convencesse que ela é assim ou assado, desde que fôssemos suficientemente fortes para lhe dizer, senhora história, você não é nada, não se faça arrogante, você é uma simples hipótese que eu levanto, e agora se não se importa vou inventá-la como eu bem entender. Mas para dizer isto é preciso ser-se velho, e inútil, quase um cadáver, como eu, quando se percebe que a história é uma ilusão, um fantasma, já não é possível fazê-la, já está feita. A história é como o amor, é uma música, e o músico és tu, e ao tocá-la revelas um enorme talento, és um intérprete que sopra a plenos pulmões no trompete ou faz deslizar arrebatadamente o arco sobre as cordas... admirável, uma execução perfeita, palmas. Mas não conheces a partitura. Só a decifras mais tarde, muito mais tarde, mas entretanto a música evaporou-se... Para ele, naquela altura, existiam apenas dois futuros possíveis. O primeiro conhecia-o ele demasiado bem, até, porque conhecia o país que o inventara, mas eram coisas que na Itália não se podiam dizer, um futuro feito de dias cinzentos, conduzido por um bureau político que concebia as pessoas não como indivíduos mas como peças de uma engrenagem que as ultrapassa, dentes minúsculos de minúsculas rodas insignificantes que trituravam para a grande roda, para uma sociedade sem classes onde todos haveríamos de ser iguais, com pensamentos iguais, e canseiras iguais e felicidades iguais e destinos iguais. Queres um pouco de felicidade, a tua quota-parte de felicidade, camarada?, trouxeste o cartão do partido?, o cartão de racionamento da felicidade colectiva?, muito bem, lá em casa quantos são?, quatro, ora vejamos... vejamos... quatro, tu, a tua companheira e dois filhos, muito bem, trouxeste o cartão da tua mulher?, muito bem, e os dos teus filhos?, ora então muito bem, creio que está tudo em ordem, camarada, tens direito a quatro avos de felicidade, assina aqui esta folha e deixa-me carimbar, és um camarada exemplar, e o grande camarada que nos acompanha a todos na conquista da felicidade gosta de camaradas como tu e deseja-te a felicidade necessária, a felicidade justa para o mundo justo que estamos a construir, um mundo justo para uma sociedade justa feita de camaradas como tu, caro camarada, foram estas as palavras do grande camarada no seu último discurso, por certo que as ouviste, palavras dirigidas aos bons camaradas como tu que trabalhando para uma sociedade justa merecem a justa quota-parte de felicidade, que mais queres tu, camarada?, com o carimbo do bureau político fica tudo em ordem, tudo em conformidade, volta para a tua laboriosa casa, leva aos camaradas teus familiares a saudação fraterna do grande camarada e não me fodas mais o juízo, que é que disseste?, ah, combateste na serra, abateste sozinho um pelotão de fascistas, és um herói, camarada, mas o teu heroísmo já te valeu uma medalha, salvo erro, também ficaste sem os dois dedos que entalaste na metralhadora, escusas de mostrar-me a mão, está aqui escrito no papel, esta folha é mais importante que a tua mão, camarada, mas não perdeste os tomates, caro camarada, desculpa lá este à-vontade, mas entre camaradas podemos falar assim, os camaradas com a tua coragem são homens de tomates, eu sei, eu sei, havia dois gladiadores na arena, um deles era forte, possante, agressivo, enquanto o outro se mantinha impávido, com um sorrizinho malandro que lembrava um actor americano, certos gladiadores são fortes mas estúpidos, camarada, pavoneiam-se com o peito cheio de ar e acabam por perder os tomates, porque são estúpidos, ao passo que tu és corajoso, camarada, e és astuto, astuto acima de tudo, mas não abuses da tua audácia, camarada, porque sabemos tudo a teu respeito, sabemos que foste viver para uma cidade cheia de arte, não serás um pouco esteta?, sabemos que tens uma excelente mulher, mas isso não te basta, camarada, dizes que prezas a justiça e a liberdade, mas não serás um pouco burguês?, desculpa lá a franqueza, mas pareces-me um pouco burguês, sabes, a ideologia libertária começou por ser revolucionária, mas praticada às escondidas tornou-se numa coisa pequeno-burguesa, e nós acreditamos sobretudo na família, porque a família é o núcleo revolucionário de uma sociedade revolucionária, camarada, não gostaria que afligisses o grande camarada, porque ele vela por nós todos, dorme apenas duas horas por noite, porque tem de tratar de nós todos, nas suas febricitantes noites de insónia, ele, da janela que domina a imensa praça aonde convocou a parada militar dedicada aos ex-combatentes que como tu salvaram a pátria, pois bem, camarada, do alto da sua janela ele vê-te, sabe que na madrugada desse dia crucial para a nossa pátria tu dizimaste um pelotão inimigo, sabe-o melhor do que tu, camarada, mas desculpa lá, camarada, quantas horas dormes tu por noite?, sete?, sete horas é muito, camarada, é uma noite inteira de repouso, ele dorme uma hora por noite, duas, no máximo, não queres certamente amargurar o grande camarada, camarada, sete horas de sono é muita coisa, soubemos que escreves poesia, e congratulamo-nos por isso, mas cautela com o intimismo, conhecemos os poetas intimistas, pertencem ao passado, vê lá não abuses do passado, camarada, podia subir-te à cabeça, e agora recolhe à tua laboriosa casinha onde te espera a tua companheira, vai em paz, camarada, e não chateies...

... e depois diz... vi outros enigmas como flores abertas no vazio, saias vazias que reclamavam corpos transmudados em ar, e vi o coração de uma rapariga esquecido numa jaula, excremento de leão, o circo ficava longe e o tempo era uma fortaleza resguardada por muralhas de pedra e espanto, e uma pomba cega pousara nessas muralhas, mas como decifrar aquilo que os heróis não contam, como desbravar o mar se a navegação é livre mas é proibido construir barcos?... Viera-me à lembrança o suplício da Frau, mas isso a ti pouco te importa. Importa-me a mim, mas eu preferia os ninhos que os passarinhos fazem com mil cuidados, só que estamos em Agosto, disse ela, e não há nada a fazer. E tem razão...

... Estou cansado mas ainda não acabei, deixa-me descansar um pouco mas não te vás embora, espera, ouve com atenção, é importante, porque havia outro futuro além daquele de que te falei e Tristano tinha de escolher. E no outro futuro havia tão-só a liberdade. Que não é coisa de somenos. Lá na serra, o panorama era este, percebes?... o bosque tem dois caminhos numa encruzilhada, e Tristano encontra-se no meio daquela paisagem, de espingarda apontada, mas a sua espingarda tem uma única mira, dispara numa única direcção, obedece às leis da balística, e a balística não é uma hipótese, porque depende da geometria, e contra a geometria, caro escritor, nada a fazer, se um ângulo é agudo é agudo, se é obtuso obtuso é, e nunca o teu desejo há-de modificar a abertura dos ângulos, e tratava-se realmente de uma bifurcação, e Tristano estava na encruzilhada, e o problema bifurcava-se precisamente na mira da sua espingarda, premindo o gatilho para um dos lados alinhas com a sociedade sem classes que sufoca a tua pessoa, premindo para o outro lado o mundo continuará a ser como sempre foi, uns passam bem, outros passam mal, paciência, mas alinhas pela liberdade... Trata-se de eliminar uma das duas, e Tristano tem de escolher. E tu sabes qual delas escolheu, porque sabes o que é a liberdade, és um intelectual liberal e prezas as tuas ideias, por isso te inspiraste na entrevista que um jornalista matreiro roubou um dia a Tristano, poucas palavras, mas fizeste delas um romancezito, desculpa, fugiu-me a palavra da boca, deveria dizer um pequeno romance, e claro que é estúpido medir os romances aos palmos, como se a quantidade valesse alguma coisa, vou ser sincero, valem mais as tuas oitenta páginas do que certos calhamaços que se vendem a peso, quase parece que tu também lá estavas naquele dia, na serra, ao lado de Tristano, ou melhor, que tu próprio apontas a espingarda, escolhes a direcção, corriges a pontaria, disparas. Pum. Escolheste a democracia. Parabéns. Fizeste a mesma escolha que Tristano, por isso vestiste tão bem a sua pele, mas que capacidade mimética, pareces mesmo o Tristano, em meu entender Tristano és tu, não sei porque hei-de eu falar-te dele, Tristano és tu, na tua narrativa escreves exactamente aquilo que ele fez, quem sofreu o seu dilema foste tu, sofreste-o na primeira pessoa, porque possuis o dom da escrita, por isso te chamei, nessas poucas páginas tu foste Tristano, um Tristano perfeito, um Tristano irrepreensível, um Tristano incontestável como nunca ele próprio conseguiu ser em toda a sua vida... É estranho, tu, em poucas páginas, conseguiste ser aquilo que uma pessoa verdadeira nunca conseguiu ser em toda a sua vida, foi por isso que o teu romance até ganhou um prémio, é justo que assim seja, a verdade tem de ser premiada, porque a verdade é concreta, como dizia aquele poeta com cabeça de espanador, e a verdade ainda é mais concreta quando se transforma em escrita, preto no branco, essa é que é verdadeira a valer, a verdade escreve-se e subscreve-se, tanto tu como Tristano sabiam qual era a liberdade que procuravam e que acabaram por encontrar, porque a liberdade é por de mais preciosa, e tu escreveste-a preto no branco, e aquelas palavras são tuas, a palavra é sagrada, por isso tem de ser livre, mas repara, caro amigo, há um pormenor que te escapa, um pormenor que tens de escrever, porque eu chamei-te expressamente à minha cabeceira, e tu, porque és curioso, vieste expressamente à minha cabeceira para escreveres a verdadeira vida de Tristano, e gostaria de te referir esse pormenor... Pois bem, se algum dia uma daquelas criaturas que tu vês na televisão em tua casa, uma daquelas criaturas reduzidas a pele e osso, com uma barriga que parece um tambor e uns olhos cheios de moscas, saísse do televisor e se materializasse à tua frente, sabes o que deverias dizer-lhe para mereceres realmente o prémio que ganhaste? Não sabes? Pois digo-to eu. Dir-lhe-ás, fala, amigo, fala, és um homem livre, a tua palavra é sagrada e ninguém pode destruir a tua palavra, é esta a verdadeira liberdade, é por ela que desde sempre todos nós temos lutado, os que amamos a liberdade, para que tu possas falar, para que tu possas exprimir livremente o teu pensamento, fala, a minha civilização permite que o faças, estás aqui para falar, tens de falar, abre a boca, enxota as moscas que a cobrem e fala, não me fites com esse olhar catatónico, peço-te, esquece por instantes que estás subalimentado, que sofres dessas estúpidas doenças, por favor, fala, esquece por um segundo que só tens um rim, toda a gente sabe do tráfico de órgãos... até porque um rim a menos não é nada comparado com a liberdade de expressão, não percas esta oportunidade... o teu país está reduzido ao mínimo, é um inferno, mas para nós é um paraíso fiscal... é um problema, não o nego... as nossas indústrias são uma autêntica pilhagem, roubam-vos todas as matérias-primas... que é outra questão que se põe ao mundo livre... o mundo livre apoia um ditador que massacrou milhares de cidadãos, ou melhor, foi o mundo livre quem o colocou no poder em substituição de um presidente democraticamente eleito... quanto a isto, nem todos, um dos quais sou eu, estamos totalmente de acordo, por isso mesmo te convido a falar, fala, foi para isso que vieste ao mundo, para falar, a palavra é sagrada, és livre de o fazer, acredita, eu sou escritor, não um tipo qualquer, e os escritores sabem perfeitamente o que significa a liberdade de expressão, és livre de falar como eu, quem to diz é alguém que escolheu a liberdade, que defendeu a liberdade, não te fiques pela tua subalimentação, fala, é uma oportunidade única, aproveita, talvez não tenhas mais oportunidades como esta, não penses que alguma vez te convidarão para aquele programa onde se estabelece o que é realmente a liberdade, para isso não te convidam eles, mas aqui estamos tu cá tu lá na sala da minha casa, eu me encarregarei de transmitir as tuas palavras, ou pelo menos uma palavra, e se não souberes dizê-la na tua língua, por ser talvez uma língua em que esta palavra não existe, di-la-ás em inglês, que assim toda a gente percebe, diz freedom, repete comigo, free-dom, entendido?... Diz-lhe isso, escritor. E agora vai-te deitar, por favor, que eu também preciso de dormir, estou cansado, fico contente por saber que a Frau te destinou um quarto com vista, é bonito ver aquelas torres enquadradas na janela, são torres antigas, já viste como levitam no calor da manhã, dir-se-ia que procuram arrancar-se à terra e que aspiram ao céu, são torres ambiciosas, construíram-nas na Idade Média, imagina, na Idade Média, quer dizer, numa idade situada a meio de qualquer coisa, em teu entender a meio de quê, daquilo que havia antes ou daquilo que somos hoje, haverá aí alguma coisa de permeio? A noite caiu, disto ainda me dou conta, porque ainda enxergo a luz e também os seus cambiantes, melhor diria que conheço os cambiantes da escuridão... E tu, conhece-los?

Hoje arranjei um tema novo, a respeito da transmissão da carne. Estou em maré de filosofia, escritor, sinto-me mesmo em forma, como filósofo. A transmissão da carne. Alguma vez a transmitiste? Estou certo que sim, e se calhar com mais de um útero, agora vocês, os escritores modernos, é como fazem, arranjam uma mulher, fazem-lhe um filho, dedicam-lhe um livro, porque uma mulher é uma mulher uma mulher... e depois se calhar arranjam outra... mais outro filho, outra dedicatória, tipo polinizadores... e entretanto dão trabalho às tipografias... e ao registo civil... porque não se pode deixar extinguir a espécie humana... a estirpe de Caim merece ser perpetuada... e também os livros que inventou, caso contrário, para quê este globo em rotação que nos passeia pelo espaço?... A transmissão da carne serve para dar sentido às rotações deste planetazinho de que somos condóminos, mas não te iludas, o mundo não gira, isso não passa de uma ideia de um cientista ateu que se fiou numa ilusão de óptica, está tudo parado, está tudo parado desde o princípio, na medida em que tudo continua tal e qual, Ptolomeu era um génio, está tudo imóvel, tal e qual como quando foi criado ou quando explodiu sozinho, tudo nasceu e tudo parou, nós é que passamos, convencidos que tudo acompanha a nossa deambulação, mas continua tudo parado desde tempos imemoriais, imóvel como este meio-dia, também ele imóvel desde tempos imemoriais, não ouves as cigarras, não sentes o calor que entra pelas persianas e aquela luz que nos convida a baixar as pálpebras para nos abandonarmos ao oceano imóvel que finge mover-se? Eppur si muove... Ilusão. Nada se move, o meio-dia mantém-se imóvel, já assim estava, sempre assim esteve e estará. Quantos dias passaram desde que chegaste para escrever esta minha voz, quantos dias deste Agosto? Deixa, esquece, não dura mais de um mês, disse o médico, foi precisamente isto que ele murmurou à Frau no corredor, eu ouvi, os moribundos têm um ouvido apurado, não dura mais de um mês... Foi em princípios de Agosto, num domingo, lembro-me perfeitamente porque foi quando começaram a dar-me morfina, a morfina é ptolomaica, conduz à imobilidade do todo, cristaliza, transforma o tempo em fruta cristalizada... Estou a chegar ao que interessa, Tristano não seguiu o percurso obrigatório da transmissão da carne, e não quis prolongar-se num outro, com Rosamunda derramava-lhe o sémen na barriga, e aquela a quem gostaria de o ter dado, o seu verdadeiro grande amor, a sua Mavri, essa abandonou-a numa ilha do Mar Egeu, metaforicamente falando, está claro, abandonou-a como Teseu abandonou Ariana, sem saber bem porquê, talvez por ser um imbecil, como Teseu, continuo a falar metaforicamente, o mito não o diz, mas digo-to eu, Teseu era um imbecil. E às vezes uma pessoa faz tal e qual o mesmo, faz e acabou-se, e depois passa a vida a remoer a consciência, a dar com a cabeça nas paredes ou no espeque de uma parreira, como aconteceu com Tristano...

... De noite saía para a fazenda, errava pelos campos e pela vinha, deitava-se na terra nua, cobria a testa com torrões em sinal de um luto só dele, e até levava à boca uma mancheia de terra, olhava o firmamento, lá no alto, ele estendido no meio dos campos, imóvel, cadavérico, mas por vezes erguia os braços à lua, lua, ó lua, uivava, estás a ouvir-me, lua, grácil lua, atende-me, tu que vagueias silente nos céus e depois declinas, escuta, lua, não há vaguejar que me console, pois o meu horizonte será doravante feito de horas intermináveis e o meu tempo ainda não chegou ao fim, lua, o meu tempo avelhentou, morrer não seria nada, ó lua, o meu ramo secou, passaram por mim as estações, e no entanto a flor morreu, porquê, lua, porquê?, tu que enches os caules de linfa e enfunas os oceanos, lua que levedas as criaturas que habitam a terra, lua pergaminho, lua violinista, lua de cristal e açafrão, lua, não podes operar um sortilégio, não haverá um lugar no mundo onde, invocando-te como os antigos sacerdotes te invocavam, possas fazer renascer o caule quebrado?, ó poderosa Prosérpina que dominas as margens dos infernos, restitui-me a vida que o teu marido coxo me roubou, fecha-o na tua forja, era alegre esse menino que eu levava às cavalitas para debaixo da latada, e ele colhia as uvas e ria, amava-o tanto, amava-o como a um filho, havia nele os dias que nunca haveriam de ser meus e não se me assemelhava na cor da pele, demasiado ambarina, nem nos cabelos negros que porventura herdou de desconhecidos antepassados da Andaluzia, mas teria prolongado o meu olhar, teria sido um pouco de mim, era tudo aquilo que me ficara dos combates que travara, e tu consentiste, ó lua, que esta terra lhe enchesse a boca de terra, nem sepultura lhe pude dar, que é feito do seu corpo despedaçado, dilacerado pelas fúrias, também ele era uma fúria, e eu não sabia, uma fera, uma fera, aquele jovem de semblante gentil, mas eu quero-o de volta, lua, peço-te, ensinar-lhe-ia aquilo que não soube ensinar-lhe, a culpa é minha, lua, quem errou fui eu, a falta foi minha, lua, e agora sinto a sua falta, posso voltar atrás?... Deixa-me reviver o tempo que desperdicei, eu não sabia, lua, cuidava saber tudo e não sabia nada...

... estava eu a dizer... tive de fazer uma pausa... mas agora estou melhor... estava a dizer-te qualquer coisa mas não me lembro o quê, tomaste nota ou também perdeste o fio à meada?, não percas o fio à meada, os escritores não podem perder o fio à meada, se não acabam por safar-se com um truque barato, neste passo da história há um salto, um vazio... mistério, dizem, é o mistério das coisas... ou então não chegam a concluir, porque não levam a meada até ao fim, e então... obra aberta, e o problema fica resolvido. Parabéns. Dá-me água, desculpa fazer de ti meu enfermeiro, traz-me o copo com a palhinha, se não molho-me todo, não chames a Frau, que nos interrompe, e ainda por cima quer que eu durma, depois de me dar a injecção diz que eu tenho de dormir... que chata, hei-de ter muito tempo para dormir, para mais a injecção produz o efeito contrário, dá-me a espertina e fico bem, fico óptimo, garanto-te, nunca estive tão bem, fico leve como uma pluma, fico uma autêntica pluma... sem dores, sem problemas de consciência, as pessoas querem lá saber se o Tristano se afligiu muito com o problema, o Tristano é um tonto, fixou-se naquilo, pôs-se a cismar, mas tu não percebes estas coisas, vocês resolvem o problema em dois tempos, um romance, um pequeno conto, vá lá, como o teu livro, onde o teu Tristano despacha aquilo em dois tempos... aquilo da liberdade... é fácil, tu bem sabes o que ele entendia por liberdade, desvias-lhe a pontaria uns quantos milímetros, e zás, encontrou a liberdade... mas receio que o problema não esteja na pontaria, sabes, em termos abstractos é uma coisa, em termos concretos outra coisa, coisa essa que tem de ser posta em prática, e como é que aquilo se põe em prática, tu que és escritor? Eu digo-te... à maneira da prova dos nove, ou daquela regrazinha da escola primária, numa multiplicação a ordem dos factores é arbitrária, é assim que pensam as pessoas como tu, se uma coisa é válida para determinada situação, também se aplica a todas as outras, porque a matemática é a matemática, li atentamente o teu romance sobre Tristano, gostei, a aplicação da regrazinha é genial, a verificação feita àquelas duas personagens, quando ele e ela estão na serra, se atraiçoam à vez e depois ficam mais unidas do que no princípio, é como que uma rodagem, digamos assim, é como que uma prova dos nove, mudaram a ordem dos factores e o produto não mudou. Ah, o amor, o amor... Mas não é assim, meu caro, vou dizer-te uma coisa que nem te passa pela cabeça... mudando a ordem dos factores o produto muda. Muda do dia para a noite. Porque a traição é transitiva. A verdade é esta. E sendo transitiva atinge os outros, contamina, circula, expande-se sem forma geométrica, a seu bel-prazer, sem desenho... a princípio sim, havia um desenho, mas a certa altura o desenho inicial liquefaz-se, desfia-se, deixas de poder medi-lo, era uma forma nítida, identificável, visível como todas as coisas que são visíveis, e a partir de certa altura torna-se invisível, uma sombra sem contornos, sem geometria, como quando uma nuvem encobre o sol e cria na paisagem um charco de sombra, não sei se me faço entender... Conseguirias medir o perímetro dessa sombra? Experimenta, poderás puxar pela cabeça, fazer cálculos complicadíssimos, a olho, mas entretanto a nuvem passou, é estranho, agora a sombra afastou-se um pouco mais, está naquele prado que ainda há pouco se enchia de sol, não, já não está no prado, chegou à encosta da colina, anda, corre atrás dela, vê se a agarras, não deixes fugir a sombra dessa nuvem... Assim pensava Tristano na altura em que começou a pensar na sombra, mas quando começou já era tarde, porque entretanto a sombra viajava por conta própria, transitava por onde bem entendia. E onde nascera? Como começara? Seria possível? Um sol tão brilhante, um autêntico esplendor, uma luz que acentuava todos os contornos, sem margem para erro, e de repente aquela sombra... e para mais as previsões anunciavam um tempo estável, ele próprio colaborara no boletim meteorológico, o próprio Tristano...

O dia deu em chuvoso... Não, não me refiro ao tempo, continua tórrido como ontem, isto são coisas da Frau, daquelas que ela costuma ler, diz que o dia deu em chuvoso, a manhã contudo estava bastante azul, e depois diz, bem sei que a penumbra da chuva é elegante, e que o sol oprime, por ser tão ordinário, e também sei que ser sensível às mudanças de luz não é elegante, mas quem disse que eu quero ser elegante? Hoje são todos tão finos, não achas, escritor?... já não há ninguém sensível às mudanças de luz, parece antiquado...

... Mas estava-se a falar de nuvens... Dizia eu como era possível aparecer de repente uma nuvem, donde vinha, como se atrevia? Cá está uma coisa que um escritor como tu, que avalia o clima através da prova dos nove, não sabe, embora também ele tenha porventura produzido alguma humidade, quanto mais não seja pelo simples facto de respirar, basta o hálito, por vezes, a atmosfera é tão sensível, um simples sopro e deste o teu modestíssimo contributo para a formação da nuvem, que por sua vez se encarrega de transportar a sombra, e a paisagem escurece subitamente, esta manhã o dia estava tão radioso, realmente promissor, e no entanto o tempo pôs-se feio, quem diria, coisas destas um escritor como tu não pode prever, percebo a tua história... metáforas... os dois protagonistas atraiçoaram à vez mas acabaram por reconhecer o erro e o facto de se terem traído mutuamente consolida ainda mais o seu grande amor, a música sobe de intensidade, ele e ela beijam-se apaixonadamente sobre o pano de fundo de um pôr do Sol, acendem-se as luzes, no ecrã aparece the end, os espectadores comoveram-se, houve até quem chorasse, são horas de jantar, o domingo já lá vai, é o regresso a casa. O teu Tristano bem merecia um filme destes, edificante... Pena é que assim não seja. Sabes qual é a verdadeira natureza da traição? É que ela própria atraiçoa, atraiçoa inclusivamente aquele que traiu, e não conhece limites, como a sombra na paisagem, começas por atraiçoar um amor, ou uma pai-xoneta, uma coisa de nada, tipo um gato, e acabas por chegar a ti próprio, mas tu não sabias que havias de chegar a ti próprio, caso contrário não terias feito o primeiro gesto, e afinal esse gesto, precisamente, uma coisa de nada, que te parecia tão insignificante, transformou-se numa catástrofe, é uma aluvião, a cheia arrasta-te, e tu a esbracejar, a esbracejar, mas numa cheia não se consegue nadar... Percebes? Claro que percebes, nestes últimos trinta anos tu também vivias neste país, tal como Tristano, e tu não és dos que se fizeram desentendidos, daqueles que se lá não estavam se deixaram adormecer ou contemplavam as torres de marfim, os louros da arte... Percebeste tudo tão bem como eu, alguém violara os pactos, é isso que eu quero dizer, não é verdade?, e violar um pacto significa trair. Eram estes os pensamentos de Tristano, mas no teu romance não o pões a pensar assim, és demasiado bom, e eu sei que foi por isso que acorreste à minha cabeceira mal chamei por ti, meu caro escritor, porque queres saber aquilo que te escapou...Mirone... desculpa apelidar-te assim, tanto mais que utilizas os ouvidos, mas tem lá paciência, afinal vai dar ao mesmo, queres saber como é que Tristano começou a pensar nisto, e sobretudo como é que procurava o porquê, um porquê que tu não procuraste, para quê, se o princípio era são e o ideal também? se o princípio era são e o ideal também, seria preciso matar pessoas? Fazê-las ir pelos ares? Reduzi-las em pedaços? Será a liberdade assim tão cara para ser paga a este preço?... Alguém escreveu, nous n'osons plus chanter les roses. Atreves-te ainda a cantá-las? Compreenderás que alguém como Tristano tenha pensado em ir a Delfos, uma solução sobremaneira idiota, solução não-solução... Mas que se há-de fazer quando tudo é cinza? Ele, que não acreditava em nenhum deus seu senhor, acabou por entregar-se a uma insensata peregrinação às origens... às origens de quê?, perguntarás. Sei lá... às origens daquela sua civilização pela qual empunhara a espingarda, ou que tomava como sua, coitado dele, coitado desse ex-soldado que foi para a guerra devidamente equipado com o capacete da liberdade, não fosse aleijar-se - e a civilização do Ocidente, escritor... descalça lá esta, não será acaso como a sombra na paisagem?... para lá do oceano, um outro Ocidente, com um archote numa das mãos e uma bomba atómica na outra, pretende que o verdadeiro Ocidente é ele, em que ficamos, afinal, de que lado se põe o sol? Pois é, pois é... Enfim... estou cansado... Sinto-me subitamente cansado, sentia-me tão arribado... há-de ser por causa desta história da liberdade e da igualdade... é como se me dissessem, cidadão escritor, aqui tens as cotações diárias da igualdade fornecidas a todos os ouvintes da nossa emissão livre da manhã graças aos dados do instituto nacional de avaliação da liberdade, o índice da bolsa de valores da igualdade sofreu hoje uma forte baixa, devido ao facto de um país situado um pouco a sul do nosso, povoado por gente pobre e ruim, precisar de uma lição de liberdade, razão pela qual toda a bolsa se deslocou para sul... caros ouvintes, informamos que a nossa bolsa livre abriu uma agência no estádio de futebol da capital desse país com uma elevada taxa de lucro, trata-se de um método concebido pela nossa nova geração de economistas, que retoma o velho sistema do produtor ao consumidor, em que cada índice da bolsa está ligado a um dos testículos desses clientes nefastos, sendo que a cada tentativa de subida da bolsa local é desferida uma forte descarga eléctrica, de que o consumidor desse país se apercebe inequivocamente... trata-se de um método personalizado... para os clientes do sexo feminino o índice da bolsa actua sobre a zona terminal dos ovários ou no próprio feto, em caso de gravidez... Escritor, o índice da liberdade, que é capilar, chega aos clientes de todo o mundo, a nossa pátria é o mundo inteiro, a nossa lei é a liberdade, e acalentamos dentro de nós um nobre pensamento... Vai descansar, estás a fazer uma noitada por minha causa. Ou talvez não seja tarde para ti, mas eu estou cansado. Espera, primeiro passa-me o urinol, pousa-o na mesa-de-cabeceira, chego-lhe facilmente. E enfio o coiso sozinho, não te assustes, não te chamei a minha casa para te humilhar.

Ferruccio costumava dizer que quem escreve para comentar a vida está convencido que o seu comentário é mais importante do que aquilo que comenta, embora não se aperceba disso. E a ti que te parece, tu que escreves sobre a vida?...

... desculpa-me aquilo ontem, se é que foi ontem. Foi ontem ou esta manhã? Creio que foi ontem, mas já não sei... desculpa... tens razão... não fui nada agradável, mas não é de esperar que uma pessoa nas minhas condições possa ser simpática... compreendo que quando se abordam certas coisas... está visto que aquele romance é importante para ti, escreveste-o tu, até ganhaste um prémio... a Frau disse-me hoje que não estavas bem... que te doía a cabeça... engraçou contigo... ó menino, não vês que estás a torturá-lo, diz-me ela, horas a fio a ouvir-te com este calor neste quarto abafado que tresanda a desinfectante... Mas quem tem dores de cabeça não és tu, sou eu, tu ficaste foi um pouco magoado... a respeito daquele comentário sobre a vida... Tem paciência... desculpa lá, estou a lembrar-me de uma frase, quando o Tristano está à espera que os alemães saiam do casebre, tu descreves a cara dele e dizes que se parece com um actor americano dessa época, e eu sempre me questionei como te ocorreu tal coisa, como é que podias saber disso... é impossível, aquilo era uma brincadeira só dele e da Marilyn, ninguém sabia disso, só a Marilyn é que o tratava por Clark, será coincidência? Tem mesmo de ser, tu ainda és muito novo, e os que o conheceram na serra já morreram todos... Não gosto daquela parte do teu romance... Clark estava há horas alapado atrás de uma rocha, imóvel, à espera, acontecera-lhe muitas vezes fazer de presa, mas também lhe coubera, como agora, o papel de caçador... Nem sequer parece escrito por ti, dir-se-ia que copiaste aquilo de alguém, tu fazes um uso bem mais sábio da escrita, exploras o claro-escuro, és um caçador de outro tipo, como certos perdigueiros da ambiguidade, tu até contigo próprio és demasiado cauteloso, e aqui cais num neo-realismo amanei-rado, como se a realidade fosse precisamente aquilo que se vê, será possível que acredites verdadeiramente que se pode encerrar a vida numa biografia? É uma ideia que não quadra contigo, é o princípio do registo civil... tu não acreditas nas biografias, sobretudo naquelas que interpretam e deduzem, sabes que são uma epiderme, preferes levantar um pedaço da pele e ver o que está por baixo, interessam-te os tecidos, há dois dias que não paro de pensar nisto... antes que te vás embora, isto é, antes que eu me vá embora, diz-me a verdade, se quiseres, eu gostava... A morfina de há pouco não me fez nada às dores, efeito zero, diz isto à Frau quando saíres, anda a dar-me água destilada... dê-lhe uma injecção de água destilada, verá que tem um efeito placebo... parece que estou a ouvi-lo, a esse doutorzeco que trata da minha morte segundo as normas da direccção regional de saúde... faz-me um favor, diz-lhe que me dê morfina da verdadeira, que deite morfina nesta minha clepsidra... uma clepsidra de morfina... gostas da ideia de uma clepsidra de morfina? Eu acredito na química, faz também por acreditar, ouve o que te digo, ou melhor, ouve o que te diz alguém que escreveu antes de ti e melhor do que tu, um escritor que compreendeu que também os sentimentos são combinações químicas, chamava-lhes afinidades electivas, equilíbrios predispostos pela natureza, percebes?, é uma questão de átomos, um átomo disto em simpatia com um átomo daquilo, de valências, feita a combinação ou amas alguém ou o detestas, é conforme... desculpa, começo a perder o fio à meada, estava a falar de... a falar de religiões? Tenho a impressão que a princípio estava a falar-te de religiões, ou talvez não estivesse, de qualquer modo queria dizer-te que Tristano não acreditava na fé, se assim posso exprimir-me, enfim, não tinha esse dom, como dizem os que têm fé, e Tristano não tinha esse dom, e por isso era vulnerável, e acontece que pessoas como ele, que não têm nada de inexistente em que acreditar, acabam por acreditar nos homens porque os homens existem, que é o pior que pode acontecer, mas há ainda um pior que o pior dos piores, porque Tristano julgava acreditar nos homens, mas tenho para mim que dentro dele não acreditava, que é o pior do pior dos piores, faço-me entender? E é por isso que quando estava nas lonas mantinha pela calada uma certa confiança naquelas religiões em que para se alcançar alguma fé os sacerdotes têm de tomar coisas do género da morfina que a Frau me dispensa com parcimónia, que apenas dura enquanto dura, e enquanto dura tudo bem, mas que não é o paraíso porque o paraíso deveria ser eterno, e o de Tristano era uma simples pensão paga à hora onde se pode sonhar um pouco. É por isso que a certa altura, como eu te dizia, pensou achar solução na romagem a um santuário abandonado, a umas ruínas frequentadas por turistas de calções, imaginando que o espírito de alguma defunta sacerdotisa pudesse ainda explicar-lhe o passado e o presente e as horas fugazes, e porventura o seu sentido... numa palavra, a vida, essa vida que estás a transformar em biografia, feita embora de retalhos... mas falar-te-ei dessa viagem noutra altura, porque amanhã lembrar-me-ei melhor... e amanhã ainda aqui estarei, sossega, e depois de amanhã também, quando o filme estiver para acabar eu aviso, estou mais dentro do assunto do que tu, e entretanto escreve a biografia de Tristano, o que puder ser, o que for possível... A vida... um romance lido uma única vez há muito tempo, disse um filósofo, não me lembro quem, algum alemão, só um alemão pode ser capaz de dizer uma coisa tão verdadeira e tão sinistra... a propósito de vidas e de romances, creio que não referi o terceiro tipo de biografias, as biografias romanceadas, desculpa insistir nisto, mas o livro que escreveste inspirando-te em Tristano para a tua personagem, alguém que escreve na primeira pessoa para escrever a vida de outro qualquer como se fosse a sua, bem feitas as contas tem a ver com este terceiro tipo. Por que me escreveste na primeira pessoa? Talvez te pareça normal, mas olha que não é. Por que te transformaste em Tristano? Por que te puseste no lugar dele? Para mais, trinta anos depois de tudo ter acontecido, quando Tristano já não era Tristano, sem qualquer razão além das tuas razões pessoais, se é que se pode falar de razões... Creio que nenhum escritor conseguiu alguma vez dizer porque escreve, seja como for, que tem a tua vida a ver com a de Tristano, porque foi que te identificaste precisamente com ele?... Porque escreves, ó escritor? Tens medo da morte? Gostavas de ser outro? Tens saudade do ventre materno? Precisas de um pai como se fosses ainda criança? A vida não te basta? E como te lembraste de escrever acerca de Tristano, lá na serra? Porque tu nunca estiveste na serra com uma metralhadora nas mãos, quando muito ias lá de férias, provavelmente para algum daqueles magníficos hotéis já antigos com o encanto da Mitteleuropa, porque em tempos o comboio do imperador Francisco José ia até lá, hotéis desses também eu conheço, frequentados por empresários, políticos, notáveis, pessoas influentes... será possível que no meio dessa gente te tenhas lembrado de escrever acerca de Tristano?, não viste por acaso aquele filme com o Alan Ladd que se chamava Shane? Foi por isso que encheste a cabeça do teu Tristano, nesses dias de guerra, com a praga dos tribunais soviéticos e dos processos de Moscovo, levando-o a tomar aquelas decisões de juiz supremo, em nome de um princípio sacrossanto, a condenação de toda e qualquer prepotência sobre a consciência individual, princípio sagrado que tinha de ser reconhecido por todos os que queriam criar uma sociedade livre? Mas como te atreveste a reduzir Tristano a esse ponto? Quem és tu, escritor, para teres os problemas de consciência de alguém que nunca conheceste? Tristano parece um paladino de Carlos Magno, o grande vingador das traições, o que era implacável com os traidores. Mas que sabes tu da verdadeira traição? Cheira-me que conheces apenas a periferia da traição, coisa pouca, coisa nenhuma, que se resolve com um queiram desculpar, uma confissão de cama, uma multa. Nunca poderás conhecer o âmago da traição... Chama a Frau, chama-a já, diz-lhe que também ela me atraiçoa, está a atraiçoar-me para meu bem ou para aquilo que ela considera como tal, o que é uma traição estúpida... injecta-me água destilada em vez de morfina, deve estar na hora da próxima injecção, pela luz percebo que hão-de ser umas cinco da tarde, seis, no máximo, basta ouvir as cigarras, é a hora em que elas cantam como que possessas, a las cinco de la tarde, porque temem que o macho que chamaram durante todo o dia já não apareça... aparece, há-de aparecer... O macho aparece sempre, nem que seja à última da hora, os machos fazem-se desejar, são maus, mas acaba por chegar e emprenha finalmente a cigarra, e para ela é o fim, atingiu o seu objectivo, o que a fazia cantar, pobre tonta, incha-lhe a barriga, põe os ovos e morre para dar vida a outra cigarra que há-de passar outro Verão a cantar chamando pelo macho que a emprenhe... Chama a Frau, continuamos mais tarde, a dor está a tornar-se demasiado forte, irrita-me... não vês que estou de mau humor?... e vai descansar tu também, dormita pálido e absorto, escritor, faz a sesta que mereces, ou então vai até à vinha apanhar um pouco de ar, já que a Frau diz que te trago prisioneiro neste quarto escuro que tresanda a desinfectante.

A Frau leu-me a poesia dos domingos, um antigo poeta persa, diz ela. Em meu entender não é domingo, há demasiados domingos neste Agosto, a Frau está a acrescentar-lhe uns quantos, talvez o faça porque é a sua maneira de me prolongar a vida, isto de acrescentar domingos... Menino, a poesia começa assim, diz ela, não penses na rotação da terra, Saki, pensa primeiro na minha cabeça... Saki é o criado do velho poeta persa, o que lhe estende as taças de vinho, meio-criado meio-filósofo, precisamente como a Frau... Oh, Saki, que é feito dos dias de antigamente?... Tristano continuaria o poema à sua maneira, por exemplo... eis-me deitado num leito de morte, Saki, enfiaram-me um catéter que eu arranco por pirraça, à parte a voz, de mim nada mais resta, ou quase nada, no travesseiro um perfil que parece uma navalha, e a respiração, que por vezes se transforma num estertor, aí tens o teu senhor, está deitado, caro Saki, para lá da janela adivinha-se um Agosto imóvel, onde só as cigarras enlouquecidas abrem fenda, quanto falta para amanhã, Saki, falta ainda muito?... por que há-de ser sempre hoje?... há um mês seguido que é hoje, manda vir o amanhã que me leve, anda por aí uma varejeira a bater contra o espelho em busca de saída, é uma varejeira tonta, está como eu, não dá com a saída, e precisa de morfina como eu, eu para aqui a falar, a falar, mas por que se há-de teimar em desenterrar os dias de antigamente, Saki... por favor não deixes entrar a nova enfermeira que a Frau arranjou, vem pôr-me o urinol para eu não mijar os lençóis, não suporto que ela me enfie delicadamente o coiso no vidro, como se fosse uma flor apodrecida... Foi num belo dia de Maio, Saki, zéfiro voltara e Tristano estava encostado à sua moto junto ao quiosque dos jornais, e parecia-lhe que a Itália estaria curada, e também o mundo, e cantarolava a nossa pátria é o mundo inteiro, a nossa lei é a liberdade, e também dentro dele a vida renascia... cheia de viço, depois de toda aquela adrenalina bélica, de tanto sangue e chacina, agora estava apoiado no selim da sua moto e dizia que maravilha. Estava-se em Maio de quarenta e cinco, lembro-me como se fosse agora.

Sabes afinal quando tudo se tornou claro a seus olhos? Quando tudo já parecia claro e chegara ao fim, no dia seis de Agosto de quarenta e cinco. Às oito e um quarto da manhã, se também queres saber a hora. Nesse dia Tristano compreendeu que o monstro finalmente derrotado começava a dar lugar à monstruosidade dos vencedores... era o segundo crime contra a humanidade deste século prazenteiro que está a chegar ao fim... nessa manhã a primeira bomba atómica utilizada como arma de destruição massiva abateu-se sobre uma cidade do nosso mundo aniquilando-a e reduzindo a cinzas duzentas mil pessoas. Digo duzentas mil e omito os milhares que viriam a morrer, e os nados mortos, e todos os cancros... e não eram soldados, eram cidadãos inermes que haviam cometido o crime de não terem culpa nenhuma... Em Hiroshima há um lugar chamado Gembaku Dom, é um pavilhão, significa Cúpula atómica, foi o epicentro da explosão, nesse lugar a temperatura no solo igualou o calor da calota solar, junto ao cenotáfio com a chama da paz está um bloco de pedra, é a soleira da porta de um edifício, uma banal soleira das nossas casas, onde pomos o capacho para limpar os pés. Dentro dessa pedra, de mármore, suponho, sugada como um mata-borrão chupa a tinta, está a marca de um corpo humano de braços abertos. É o que resta do corpo de um homem que se liquefez à porta de casa pelas oito e um quarto daquele dia seis de Agosto de quarenta e cinco... Se puderes, põe-te a caminho, vai vê-la, é uma visita instrutiva... houve quem dissesse que aquelas vítimas foram inúteis, a cabeça da serpente já havia sido esmagada em Dresden e em Berlim, e que para os americanos vergarem o Japão teriam bastado as armas convencionais. Enganam-se, não foram inúteis, foram até da maior utilidade para os vencedores, deram assim a entender ao mundo que os novos donos eram eles... a História é uma criatura glacial, não se compadece de nada nem de ninguém, esse filósofo alemão que se suicidou numa pensãozita de fronteira quando fugia de Franco e de Hitler e de todos, e porventura também de si próprio, reflectira demasiado nessa dama impiedosa que os homens em vão cortejam, de nada lhe terá servido... nas suas reflexões escreveu que frente ao inimigo, quando ele vence, nem os mortos ficam a salvo... seja qual for o inimigo, acrescentarei, mesmo o inimigo dos maus, porque não se pode ser inimigo dos maus e armar-se em bom, que te parece?... Compreendo a tua objecção, fui demasiado sintético, é evidente que se o mal tivesse vencido já não haveria remédio... mas quanto ao bem queria dizer que... enfim... o bem, o bem acabou por derrotar o mal, só que há um pouco de mal a mais nesse bem, e um pouco de imperfeição a mais nessa verdade... A verdade é imperfeita... Aquele jornalista que há uns anos me extorquiu uma entrevista simulando uma conversa à frente de um copo, escreveu a este propósito que Tristano admitia a existência de Deus mas considerava-a passageira. É uma pena que não tenhas aprofundado esta questão no teu romance, a deixa merecia alguma reflexão, sabes, Tristano foi interpretado um tanto simploriamente, como se quisesse dizer que os deuses também morrem, mas isso todos nós sabemos, Júpiter, por exemplo, levou um tempo muito razoável a ser substituído, e não foi isso que Tristano quis dizer. Sim, tudo envelhece, é certo, provavelmente Deus também, aquele no qual acreditamos, mas não irá morrer de morte natural para que outro o substitua. Receio que tenha à sua espera uma morte mais dolorosa, se as coisas mantiverem o andamento que levam, procura pensar nisso... certo dia... imagina um calor igual ao da superfície solar, mas não num único ponto, em todo o planeta, milhares de hiroshimas, hiroshimas por todo o lado... um estrondo enorme seguido de um enorme silêncio, um big bang ao contrário, não há vivalma, nem sequer um gato, morreu tudo... Não, ele continuará a existir, mas para quê, se deixará de haver quem acredite na sua existência... um Deus no desemprego... tê-lo-emos tornado inútil, sem sentido, que sentido terá Deus sem ninguém capaz de acreditar nele?... Como de costume, desviei-me do tema, hoje voltara a prometer a mim próprio falar-te das nossas Folhas de Hypnos, creio que sem nunca o confessarmos começámos a publicá-las para dar resposta àquele pensador que perguntava se ainda seria possível escrever poesia depois do indizível que acontecera. Não só era possível, era talvez a única coisa sensata que se podia fazer, porque se uma vez derrotado o monstro tu deixas de acreditar nos que venceram o monstro, nada mais resta senão acreditar nos teus próprios sonhos... a responsabilidade começa nos sonhos, estava eu a dizer-te, foi esta a frase que colocámos em epígrafe nos nossos volumezinhos, porque a nossa mão chega apenas até onde o braço alcança, mas o sonho vai muito mais além... é uma prótese, supera a prisão da existência. Creio que começámos em cinquenta e dois, publicávamos um por ano, fizemos trinta e seis, portanto, acabaram há onze anos, quando os outros morreram... Os poetas que não eram gregos foram todos eles traduzidos por nós, eu, a Dafne e os seus amigos Ioanna e Antheos, que no entanto assinava Marios, porque era como eu o tratava... Eram feitos manualmente, sabes, com uma prensa que arranjámos numa velha tipografia, uma máquina que imprimira cartazes contra os otomanos, disse-nos o cipriota que no-la vendeu, e era bem possível, uma autêntica bisarma, pesava uma tonelada... Porquê em Creta e não nesta casa, compreendo a tua pergunta, com um povo de santos, de navegadores e de poetas como o nosso... não digo que Creta fosse Paris, mas os cretenses têm garra, sabes aquilo que fizeram quando foram invadidos pelos alemães?, exterminaram um batalhão nazi inteirinho, bem armado à maneira nazi, e sabes como?, com as navalhas de podar as oliveiras, e a muitos deles estrangularam-nos com as próprias mãos... E a Itália dessa altura... não tens idade para isso, eras ainda uma criança... Pella, Tambroni, são nomes que te dirão pouco ou nada, os mutiladinhos de don Gnocchi, a cheia do Polesine, as procissões dos penitentes, as madonas peregrinas... Continuam a chorar? As nossas madonas são de lágrima fácil, e no que toca a santos e navegadores creio que estão a aumentar. Felizmente, continua também a haver poetas, mas devem sentir-se pouco à vontade em semelhante companhia... Tu és um bom escritor, pena é que escrevas em prosa... desculpa, estou a ser injusto, no que me diz respeito, deveria ficar-te grato por escreveres em prosa, se tivesses sido poeta não terias vindo recolher pacientemente todas estas ninharias que estou para aqui a contar, ter-me-ias talvez liquidado com uma elegia elegante ou com algum epigrama viperino, capaz de matar os próprios mortos... ou talvez com uma lengalenga, à maneira daqueles limericks em que os ingleses são exímios, tipo... deixa-me cá pensar... O decrépito herói de Malafrasca, Quisera os bolsos a abarrotar de sonhos, Mas perdera o viço, perdera a folha, Raminho encortiçado que nem rolha, O decrépito herói de Malafrasca.

Já deu a uma, como vocês dizem lá no norte? Disse-te que viesses às treze, não te disse que me acordasses, estava a dormir lindamente e acordaste-me, és atencioso, mas cumpres tudo demasiado à letra, se vires que estou a dormir não me acordes, por favor, dormi duas horas, cento e vinte minutos, poderia ter dormido duzentos, imagina, duzentos minutos a menos...

Foi em Agosto, já te disse que na vida de Tristano muitas coisas aconteceram em Agosto, é um dia de calor enevoado, nevoeiro na serra e nevoeiro no vale, e na planície também, e também dentro deles, um nevoeiro cerrado como algodão que envolve e amortece. Tristano espera que seja ela a falar, se veio até ali foi por alguma razão, fita aquela mulher que amou com arrebatada paixão e que traz o rosto marcado por umas olheiras profundas, quase roxas, como uma máscara, o foulard não esconde por completo a lanugem dos cabelos que recomeçaram a crescer-lhe nas fontes, é dez anos mais nova do que ele e parece vinte anos mais velha, e no entanto aquilo na serra foi só ontem, pensa Tristano, e também foi ontem que lhe mostrou um cão amarelo enterrado na areia, e a viagem a Espanha, interroga-se uma vez mais, porquê, porquê a Espanha? O meu trabalho em Espanha, dizia ela, os meus amigos em Espanha... Há nos seus olhos um fundo sombrio, uma espécie de medo, Tristano dá por isso, conhece bem aqueles olhos, e no entanto ela assumiu uma pose desenvolta, reclinada no sofá, de perna traçada. Continuam calados. Ouve-se a voz de um rapazinho ao fundo da casa, está a falar com a Frau, sabe Deus quanto não desejou um filho, a Frau. O mais que fizeste foi derramar o teu sémen sobre a minha barriga, eu queria um filho teu, mas tu derramavas-me o sémen sobre a barriga, sempre assim foi... Quem assim fala é Marilyn, são palavras suas, sempre assim falou, Tristano lembra-se, ela não tem uma noção exacta do peso das palavras em italiano, tanto parece um carroceiro a falar, como um pastor protestante. Tem quase doze anos, prossegue Marilyn é parecido contigo, já viste como se parece contigo? Eu não acho, diz Tristano, mas se tu achas que sim... Escolhi-o precisamente por se parecer contigo, continua Marilyn sem se interromper, vocês assemelham-se como duas gotas de água, eram muitos mas eu vi-o logo... O silêncio vai-se arrastando, difícil de quebrar. Marilyn acende uma cigarrilha, tosse ligeiramente, desculpa estar a chorar, diz. Mas na verdade não está a chorar, deve apenas imaginar que chora. Do fundo do corredor chega uma cantiguinha em alemão. A Frau canta raramente, só em ocasiões especiais. Rosamunda, diz Tristano, fala como deve ser, peço-te, que queres tu dizer com isso?... escolheste-o... eram muitos... Marilyn tortura a cigarrilha nos lábios, depois apaga-a na chávena de chá. Feitas as contas, diz ela, havia uma quantidade de desgraçados naquela desgraçada Espanha, os orfanatos estavam a abarrotar... e em parte ainda estão... adoptei-o, meteu-me pena... de facto não é nada parecido contigo, mas isso não tem importância nenhuma, é como se fosse teu filho, sempre imaginei que era o filho que nunca me quiseste dar, e agora confio-to a ti, fica com ele, faz-me esse favor, eu não posso criá-lo. Espera talvez que Tristano lhe pergunte porquê, mas Tristano mantém-se calado. Já não vou durar muito, acrescenta ela então. Arreda um pouco o lenço, descobrindo a cabeça por instantes. Tentei tudo o que podia tentar, mas o resultado é negativo, o médico foi claro, não há nada a fazer. Desinquieta a palma da mão com as unhas, mas nem dá por isso. No registo civil consta como Ignacio, acrescenta, mas chama-se Clark, sempre o tratei por Clark. Tira da mala de mão uma bonita carteira de camurça clara. Tens aqui os documentos, diz, pousando-os na mesa. Marilyn, diz Tristano, pensava que soubesses que eu só venho a esta casa de vez em quando, geralmente no Verão, para não deixar que a vinha e o olival se degradem, o Agostino não dá conta do recado sozinho, e depois há a Frau, esta casa também é dela, não tem para onde ir, no resto do ano vivo em Kritsá. É perto de Atenas?, pergunta Marilyn. É uma aldeia em Creta, diz Tristano. Viste como se abraçou a ti, diz Marilyn, ele gosta muito de ti, sempre lhe falei de ti, sabe tudo de nós dois, disse-lhe que o seu verdadeiro pai és tu. És louca, diz Tristano, Rosamunda, tu és louca, não regulas bem da cabeça, nunca regulaste, aliás. Tristano fala baixinho, como se falasse para si próprio. Marilyn não responde, revolve a carteira, procura durante muito tempo, despeja-a no divã, encontra finalmente uma fotografia quadrangular, pouco maior que um selo, é um homem novo, de madeixa caída na testa, capote militar e metralhadora ao ombro, ao fundo vê-se uma casinha e a mancha escura de uma floresta. Estende-a a Tristano. Concebemo-lo no dia em que te tirei esta fotografia, murmura. Esta fotografia tem quase vinte anos, diz Tristano, Rosamunda, tu não estás bem, não digas nada, não precisas de dizer mais nada. Lá para os meus lados há uma crença que vem da tribo dos Navajos, continua Marilyn como se o não tivesse ouvido, segundo a qual mais cedo ou mais tarde o espírito do homem que trazes no pensamento te dará um filho. A Frau assomou à porta, o Ignacio gostava de ver o baio, vamos à cavalariça, não demoramos, se a senhora quiser mais chá eu trago água quente. Marilyn volta a guardar a tralha na mala. Podias ficar com ele durante o Verão, diz apressada, três meses por ano já não é mau, serias um bom pai para ele, tanto mais que não tens filhos, se calhar és estéril, ofereço-te a possibilidade de teres um filho quase teu, praticamente teu, teu mesmo, vá, cria-o tu, Tristano, peço-te, já não tenho ninguém na América, morreram todos. E no resto do ano?, diz Tristano, desculpa, Rosamunda, quem olha por ele aqui nesta casa? Ela levanta-se e ao levantar-se vacila, tropeça na mesinha, parte do chá que enchia a chávena transborda. A tua Frau, diz... o Agostino... não os conheço, mas hão-de ser boas pessoas, e no Inverno as escolas funcionam, é sempre possível encontrar um colégio decente. E tu para onde vais?, pergunta Tristano. Volto para Espanha, diz ela, mas agora só há comboio para Irún amanhã de manhã, a estação fica longe, não quero guiar de noite, hei-de encontrar um hotelzinho qualquer junto à costa. Ata o lenço debaixo do queixo, hesita um segundo, depois esboça um gesto encostando um dedo aos lábios, não se sabe se para mandar um beijo ou convidar ao silêncio. O teu tio está a contar contigo?, pergunta Tristano. Agora estamos irremediavelmente ligados, diz ela, às vezes a vida é assim, mesmo que se não queira, nunca percebi porque lhe chamas meu tio, tem a tua idade. Porque o tio da América é ele, responde Tristano, é o clássico tio Sam, de chapéu alto às estrelas e às faixas e um dedo apontado que intima I want you, que tem ele a ver com o Ignacio? A mãe sou eu, diz Marilyn, e ele não tem nada a ver com a adopção, mas o Ignacio gosta dele, considera-o mesmo como tio... se quiser encontrar-se com ele não deves impedi-lo, mas vigia-o, a profissão do tio é perigosa, e a minha também era. Dirige-se para a porta e Tristano segue-a. Eu acompanho-te, Rosamunda, são muitos quilómetros, não quero que faças estas colinas todas sozinha... Como são as coisas... Tristano não sabia que nesse dia, na sua curta viagem com Marilyn, encontrariam uma cadela agonizante a que dariam o nome de Vanda como aquele cão amarelo que há muitos anos tinham visto num museu. Mas isto já tu sabes, escritor, porque eu contei-te esse episódio no próprio dia em que me lembrei dele, nem sei já quando... É estranho, já levas avanço sobre a vida de Tristano, por hoje podemos ficar-nos por aqui.

... Sim, quem fala?... Foi pelos ares?... Não percebo... Estou a dizer-te que o teu rapaz foi pelos ares, não percebes italiano?... Estou a falar com quem?... Esquece, fala uma pessoa que o conhecia ainda melhor do que tu, mas deixa-te de perguntas, ouve e cala-te, ouve bem, levava o engenho no saco e fê-lo explodir entre as pernas, o palerma, não valia grande coisa, esse teu rebento, muita conversa, quilos de filosofia, o declínio do Ocidente mais a decadência da nossa civilização, só que para fazer certos trabalhinhos é preciso cabeça, é preciso muita cabecinha, numa das vezes não se saiu mal, mas aquilo era só largar e pôr-se a andar, não era preciso manejar coisa nenhuma, e ainda por cima num sítio fácil, era largar o saco e desandar... ouve, minha besta, aqui há uns anos disparaste para cima de nós, mas estás perdoado, gostamos de ti na mesma, apreciamos-te à nossa maneira, pelo menos não foste para a índia fazer o trekking da transcendência... estás a ouvir-me?... sabemos que és um tipo duro, e além disso gostavas do teu rapaz, nós também gostávamos dele, destinámos-lhe o papel de S. Jorge para que matasse o dragão, essa besta democrática e comunistóide... ouve, quero pedir-te uma coisa, ele deve ter deixado imensas pistas, o rapaz era um tanto desarrumado, muito falador, e confiámos demasiado nele... estás a ouvir-me?... escuta, faz-me um favor, vai ao quarto dele e vasculha aquilo tudo, há-de lá ter agendas e blocos, junta tudo o que encontrares e pega-lhe fogo, e vê lá se encontras alguma coisa que se refira a um tal Papão, pp, em código, com dois pp de pulha, entendido?, junta tudo o que encontrares e pega-lhe fogo, não queres certamente abandalhar a memória do teu rico filhinho, bem basta ter-lhe estoirado um saco entre as pernas... vai por mim, faz o que te digo... clic... Tuuu tuuu tuuu... a chamada caiu, percebeste, escritor? Para Tristano, o telefonema ficou-se por aqui... Deixa aceso aquele candeeiro que está em cima da cómoda, o que tem o chuveiro de vidrinhos a toda a volta, e põe-lhe um lenço por cima, esta noite não estou para ficar às escuras, partindo do princípio que já é noite, se calhar é dia, mas isso é lá contigo, para mim é noite. Boa noite.

... e vi toda a minha vida contrair-se num insecto, num minúsculo e complexo instrumento feito para voar e hibernar, o zumbido da sua raiva, e o frágil bater dos élitros, as suas patas imundas, atirei tudo para a sarjeta, migalhas de borracha e o cheiro a rolha queimada é isso que me liga ao mundo... Sabes ao que me refiro, ao suplício da Frau, não foi por acaso que me lembrei disto mas porque Tristano começou a receber cartas, umas a seguir às outras, ininterruptamente. Mas agora não me apetece falar nisso, não me apetece dizer-te nada, mas deixa-te estar aqui, por favor, deixa-te estar que eu quero contar-te outras coisas... tem lá paciência. Tem paciência.

Explique-se melhor, dizia o doutor Ziegler, que pretende dizer ao referir que tem a sensação que tudo parou? Tristano estava estirado na poltrona de vime, tinha um braço caído, o outro sobre os olhos para se proteger da luz do meio-dia. É como esta hora, dizia, parou tudo, não vê?... parece levitar numa imobilidade que anulou o espaço e o tempo, como em certos quadros da Idade Média que mostram um santo em êxtase num arrebatamento místico, num instante eterno... então um ruído qualquer virá fender a redoma de vidro que protege a paisagem, o canto de um galo, um cão que ladra e o encanto há-de quebrar-se... aí tem, queria dizer que certos momentos em mim são como este meio-dia agora... tudo parou... e eu sinto-me parado no meio do tempo que parou, como se por momentos tivesse sido transportado para outro mundo. O próprio doutor Ziegler interrompera o seu vaivém no alpendre, estacara por detrás de Tristano, com as mãos atrás das costas, pensativo. Continue, Herr Tristano, continue... Ou então tenho outras sensações, prosseguia Tristano, é como se estivesse a sonhar mas estou acordado, e começam a chegar recordações esquecidas há muito... recordações que nem sequer sabia que tinha... brotam com uma rapidez incrível e passam-me à frente dos olhos como se assistisse a um filme projectado numa parede, e quem o projecta são os meus olhos. E que é que sente, murmurava o doutor Ziegler, consegue descrever aquilo que sente? Tristano calava-se. Ziegler esperava, pacientemente. Se lhe apetece suspirar, murmurava o doutor Ziegler, suspire... não respire, suspire, o suspiro é um estratagema que o nosso corpo inventou para expelir sob a forma de ar aquela espécie de angústia difusa e dissimulada a que os ingleses chamam spleen... e a função do bocejo é a mesma, a um nível inferior, para o vulgar tédio... mas o seu tédio é diferente... é o cansaço de ser... suspire, Herr Tristano, suspire. Tristano enchia o peito e soltava um suspiro frouxo e prolongado, como se libertasse humores malignos feitos de ar. Continue, dizia o doutor Ziegler. Referia-me à sensação de uma nostalgia muito intensa, continuava Tristano... demasiado intensa... devastadora... mas não se trata propriamente de nostalgia, é como que um tormento terrível e abstracto, porque a nostalgia pressupõe o objecto da nostalgia, e não é que eu tenha realmente nostalgia das imagens que de repente passam ante os meus olhos como num filme, trata-se muitas vezes de recordações insignificantes, de banalidades que ficaram sepultadas na memória porque banalidades, e por isso isentas de nostalgia... não, a nostalgia que eu sinto vem de fora, é alheia àquelas imagens, não sei como explicar, é como se não fossem elas a provocá-la mas aquilo fosse uma condição sem a qual eu não poderia vê-las... feitas as contas, não se trata propriamente de nostalgia, é uma espécie de inquietação vaga que acaba por tornar-se numa forma de medo, mesclada, porém, de um sentimento de absurdo, e esse sentimento de absurdo encerra um terror intenso que me aniquila, como se no meu corpo se desencadeasse uma crise pronta a desintegrá-lo, já deve ter visto no cinema como em certas grandes cidades se procede à demolição de edifícios velhos para se construírem outros no seu lugar, desabam sobre si próprios, afundam-se, implodem... é isso que eu sinto... o meu corpo implode, sinto um frio imenso, gelam-se-me os pés e as mãos e é nessa altura que se desencadeia a enxaqueca, feroz, insuportável. O doutor Ziegler fora sentar-se no murete junto aos vasos de alfazema, colhera um caule florido e garatujava na testa com a flor, cheirando-a de vez em quando. Angor mortis, murmurava o médico, era como os antigos lhe chamavam... acabou de me descrever os sintomas mais complexos da aura hemicrânica, Herr Tristano, cefaleias em cacho, provavelmente, e as cefaleias nunca surgem sozinhas, sempre que essas imperatrizes vão de visita fazem-se anunciar por uma embaixada composta pelas mais variadas criaturas, uma caravana de arautos, trombeteiros, cortesãos, bailarinas, pregoeiros, devoradores de fogo, funâmbulos... se tivesse de fazer um levantamento de todas as formas de aura que precedem as cefaleias ficaria aqui até à noite, forçá-lo-ia a convidar-me para jantar, Herr Tristano... Julgo que o jantar é coelho com rosmaninho, respondia Tristano, a mulher do Agostino prepara-o de maneira sublime, e pode ser que a Frau faça um bolo de chocolate. O doutor Ziegler despira a bata que envergava obrigatoriamente mesmo nas visitas domiciliárias e deixara-a pendurada num gancho da pérgula. O chocolate é contra-indicado para as cefaleias, rematava, mas é uma coisa que eu adoro e que você vai evitar, ao passo que o coelho é óptimo para os dois, é carne branca.

Vieste até aqui para recolher uma vida. Mas sabes aquilo que recolhes? Palavras. Ou melhor, ar, meu amigo, as palavras são sons feitos de ar. Ar. Ar é quanto recolhes.

De facto o coelho com rosmaninho estava óptimo, dizia o doutor Ziegler, mas este bolo de chocolate... lá para os meus lados fazem uma variante, mas este é imbatível, talvez leve amêndoa ralada... prove também um pouco, Herr Tristano, verá que não lhe faz mal.Tristano adivinhava o que o doutor Ziegler gostaria de lhe perguntar, e satisfazia-lhe a curiosidade evitando-lhe o embaraço. Convidei a Frau para jantar connosco, dizia, mas ela recusou alegando cansaço... na realidade não está cansada, e eu não queria que pensasse que a Frau prefere evitá-lo, doutor, nada disso, tem-lhe muita estima, se me confiei nas suas mãos foi precisamente a conselho da Frau, devo dizer... a verdadeira razão é que ela receava que nos puséssemos a falar alemão, teria sido natural, é a vossa língua, e eu até nem desgosto de falar alemão... está a ver, doutor, a Frau... eu compreendo-a, veio para cá ainda menina, e não é que tenha desaprendido a sua língua, mas teve de falar italiano a vida inteira... não sei qual será o mecanismo que a impede de falar alemão com um alemão, é como se tivesse de ultrapassar uma barreira, como se tivesse vergonha... em alemão, só fala comigo, e imagine que se calha aparecer algum importuno, alguma visita inesperada, enfim, alguém com quem não se contava, a Frau fala-lhe em alemão, havia de ouvi-la, e faz que não percebe italiano. Concedo-lhe mais um pedaço de bolo, Herr Tristano, dizia o doutor Ziegler, estou certo que esta noite dormirá melhor, não terá visitas indesejadas... mas eu tinha-lhe prometido uma digressão pelos sintomas que precedem a chegada da imperatriz, como eu lhe chamo, a casuística é interminável, procurarei ser sintético... para já, esse termo estranho, aura... provém de um médico da antiguidade, Pélope, o mestre de Galeno... foi ele quem primeiro observou um fenómeno físico que assinala habitualmente o início da crise, uma sensação que nasce numa mão ou num pé e que parece subir à cabeça. Um dos seus pacientes relatara-lhe a sensação de um vapor frio, e visto que nesse tempo se julgava que os vasos sanguíneos continham ar, ele pensou que o problema se devesse a um vapor que, vindo dos membros, subia pelas veias e chamou-lhe pneu-matikè aura, um vapor imaterial... Ouça, Herr Tristano, quando você me disse que naquela noite de Agosto lhe caiu uma estrela na cabeça, disse-me a verdade através de uma metáfora... essa estrela não se limitou a cair-lhe na cabeça, entrou-lhe por ela adentro, estou certo disso... debaixo das pálpebras, você começou a ver luzes intermitentes que o encandeavam, ziguezagues eléctricos, clarões que tomavam certamente a forma de mosaicos em constante metamorfose, como num caleidoscópio, ou estarei enganado? Tristano mantinha-se calado, anuindo quase impercepti-velmente. Trata-se da forma mais comum de aura, continuava Ziegler, são efeitos luminosos que parecem provir de luzes artificiais no interior dos olhos, e as próprias coisas, os próprios objectos ganham contornos luminosos, ou pelo menos brilhantes, não é assim?, como se os debruasse um fio eléctrico por onde se visse passar a corrente... mas os sintomas de aura que antecedem ou acompanham a visita da imperatriz são infinitos... alucinações sensoriais de vários tipos, perturbações emotivas com emoções muito intensas e todavia indefiníveis, impossíveis de descrever, de transmitir aos outros... têm qualquer coisa do êxtase, e poderão até agradar a algumas pessoas... talvez muitos místicos sofressem de cefaleias terríveis, quem sabe... e de perturbações da visão, da percepção dos objectos e das figuras com efeitos de distorsão ou de ampliação da imagem, por exemplo... você tem uma pessoa à sua frente e vê-a encolher, ou se calhar cresce, cresce a olho nu, num instante, como em certos documentários sobre botânica, que já deve ter visto, colocam uma objectiva diante de uma flor em botão durante uma semana e vê-se a corola abrir-se em poucos segundos, bastou aumentar a velocidade da imagem... Lewis Carroll sofria de enxaquecas terríveis e descreveu muitíssimo bem esses efeitos ópticos na sua Alice... era um matemático, aliás, e sabia de lógica, conseguia descrever com lógica os seus sintomas, embora nos pareça uma lógica fantástica... e depois há as alucinações auditivas... trata-se geralmente de ruídos, assobios, zumbidos, gargarejos de uma sonoridade mais ou menos cava ou cristalina, depende, tanto pode ser o ribombar de um trovão como o gorgolejar de uma fonte... mas também podem ser vozes, a irrupção de muitas vozes... a casuística mais frequente é a de vozes familiares, que fazem ou fizeram parte da nossa vida, ou que de qualquer modo ouvimos vezes suficientes para as armazenarmos no depósito das nossas recordações... tal como podem ser vozes que não conhecemos de todo, artificiais, inventadas pelo nosso cérebro, produzidas por ele. O doutor Ziegler fazia uma pausa. Trata-se de casos raros e complicados, Herr Tristano, não gostaria que ficasse preocupado, verificam-se habitualmente nas enxaquecas associadas à epilepsia, embora também possam surgir em pacientes não epilépticos, e são formas muito agudas que provocam crises convulsivas... existe aliás uma polémica científica sobre esta questão, visto que há quem defenda que não são as convulsões que provocam a enxaqueca mas precisamente o contrário... Tristano já ia na terceira fatia de bolo. Eu também estou convencido que o chocolate conta pouco, disse..., mas os sintomas que lhe descrevi esta tarde, as recordações que brotam do nada às golfadas, essas coisas vividas que passam diante de mim como num filme, doutor Ziegler, que me diz de tudo isso? Poderiam ser da ordem do déjà vu, respondia o doutor Ziegler, inclino-me a supor que são da ordem do déjà vu, num quadro clínico bem mais complexo, naturalmente, mas dessa família, em meu entender, um desfasamento temporal... a respeito deste fenómeno, que em termos muito modestos todos experimentámos, nem que fosse por um segundo, ou seja, desta impressão de viver pela segunda vez uma coisa que já vivemos, adiantaram-se teorias tanto de ordem fisiológica como de ordem psicológica... há como que um atraso entre a percepção de uma coisa e a transmissão dessa percepção ao nosso cérebro, um atraso de milionésimos de segundo, naturalmente, mas para o nosso cérebro é como se tivessem passado anos, aquilo foi coisa que ele já viveu, faço-me entender? Mas o porquê mantém-se misterioso... Um grande fisiologista definiu o déjà vu como uma alteração do processamento do tempo no sistema nervoso... uma excelente definição, realmente. Freud, em contrapartida, debruçou-se sobre o déjà vu nos seus estudos sobre o Unheimliche, aquilo que se designa correntemente por Inquietante Estranheza, porque de facto uma inquietante estranheza acompanha frequentemente o déjà vu, e é difícil dizer se o precede ou se lhe sucede... para Freud o déjà vu seria um regresso do recalcado, mas tão pela calada e sem motivo que provoca essas sensações... Para qual das teorias se inclina?, perguntava Tristano. O doutor Ziegler servia-se de mais uma fatia de bolo, e tinha a delicadeza de deixar a última para Tristano. Pelas janelas escancaradas entrava a frescura do campo. O doutor Ziegler preparava-se para se despedir. Desde que o conheço, concluía, desde que iniciei esta espécie de análise híbrida que está a fazer comigo, estou cada vez mais convencido que as duas teorias não se excluem mutuamente e que em pacientes como você podem até conjugar-se na perfeição...boa noite, Herr Tristano, veja se descansa.

... Devo ter sonhado, sonhei com Tristano... ou talvez fosse a recordação de um sonho... talvez o sonho de uma recordação... ou ambos, talvez... Ah, escritor, que charada... Não me digas que vens de gravador? Desculpa lá a pergunta, mas deu-me para desconfiar que podias trazer um gravador no bolso. Já to tinha perguntado? Se calhar já perguntei. Se trouxeste, desliga, não quero que a minha voz fique, além de que os sonhos não se gravam, ouvem-se e depois é que se escrevem, tu só tens de ouvir, apura bem o ouvido e depois escreve, é este o princípio da literatura, contar o sonho do outro, tenho a certeza que vais sair-te bem, hás-de trabalhá-lo com fantasia, e o ponto de vista também é contigo... vamos fazer assim, o ponto de vista é meu, ou melhor, do Tristano, porque quem viveu esta situação foi ele, no entanto eu sonhei com ela do meu ponto de vista e conto-ta a ti, mas depois irás tu contá-la, e por conseguinte... Conheces estes truques melhor do que eu, mas li em tempos um livro sobre o assunto, um manual, sempre gostei de manuais, o que talvez te surpreenda num homem que tomavas por um homem de acção, mas olha que li muitos manuais na minha vida... guia do perfeito bailarino, a aprendizagem da arte do xadrez, saber pintar a aguarela, a orientação pelas estrelas, a escalada dos picos alpinos... como falhar em tudo na vida sem dar por isso... Bem vistas as coisas, o ponto de vista pertence ao sonho, na medida em que o ponto de vista é o dele, não o meu nem o de Tristano, porque não se tem mão nos sonhos, é como o coração, temos de vivê-los como eles bem entendem, e este sonho queria que eu sonhasse com Tristano, e fez-me sonhar assim, Tristano está alapado entre as moitas, o verbo não me agrada, mas salvo erro é o que usas no teu romance, e à sua volta há um matagal cerrado que se estende até à floresta e às faldas da serra. Treme-lhe o dedo no gatilho da metralhadora, e a pupila direita fixa através da mira a porta do casebre, porque sabe que daquela porta hão-de sair os alemães e o traidor que os guiou até lá. O coração de Tristano bate com força, tum, tum, tum, e parece-lhe ouvi-lo ribombar pelas vertentes do vale... perdoa a palavra vertente, que é um termo alpino, muito feiinho, não achas?, espero que nunca o tenhas usado... Tristano tem a sensação de que lhe devolvem assim o eco ampliado das batidas do seu coração, tum, tum, tum... e na estranha lógica dos sonhos, tão verdadeira, porém, Tristano vê que o traidor, a que a bala da sua metralhadora montou espera, assoma à soleira da porta e com um sorriso convida-o a entrar. E Tristano, obedecendo à lógica implacável dos sonhos, levanta-se e vai ao seu encontro... e só ao atravessar o terreiro se apercebe de que o traidor não é o contínuo da escola da aldeia, mas tem rosto de mulher, e ele conhece aquela mulher, que no entanto enverga o uniforme alemão e traz uma madeixa caída sobre a testa à maneira de um rufia... É Marilyn, é mesmo Marilyn... Apetece-lhe gritar, Tristano puxa do punhal e brande-o bem alto, desenha um círculo no ar para apunhalar aquele traidor mascarado, executa o gesto em câmara lenta, como nos filmes, porque naquele momento a película do sonho de Tristano passa em câmara lenta, o gesto é lento, lentíssimo, move-se no ar centímetro a centímetro, suavemente, numa trajectória graciosa, há uma espécie de ternura, há como que uma dança graciosa naquela lâmina empunhada pela mão que há-de rasgar os pulmões do traidor dando-lhe a morte que merece, mas a mão de Tristano, na lógica dos sonhos, ao abater-se nas costas do traidor para o trespassar, deixa cair o punhal, pousa suavemente nos ombros nus de Rosa-munda e envolve-a num abraço, porque os sonhos são assim, escritor, levam-te para onde eles bem entendem, e ele põe-se a dançar com ela, aquele terreiro agreste na serra transformou-se numa sala inundada de música, das janelas da sala avista-se um jardim à italiana, ele continua a dançar abraçado a Rosamunda, que enverga uma farda de soldado alemão e lhe esfrega os seios contra o peito, de mamilos bicudos como pedras... ela enlaçou-lhe a nuca com os braços e acaricia-o, Clark, murmura, enquanto lhe perfura o ouvido com a língua, Clark, meu amor, nunca amei ninguém senão a ti, o resto foi depravação, a necessidade de uma companhia masculina que me sossegasse quando descias ao vale em missão... Tristano cingiu-a pelas ancas e enquanto a acaricia ela toma-lhe uma das mãos e fá-la deslizar pela barriga, e depois mais abaixo, junto à virilha, e nessa altura Tristano sente um objecto duro debaixo daquelas calças de soldado, é um sexo masculino, um sexo erecto, e ela quer que ele lho acaricie, enquanto lhe murmura ao ouvido com voz quente e sensual, Tristano, são ordens do comandante, ele não morreu, foi tudo a fingir, vem brincar connosco, querido, ele já não se aguenta, mas continua a amar-me, e para se aguentar precisa de contemplar um homem vigoroso como tu, ama-me, por favor, o pobre do comandante ficará satisfeito, deixei-o no casebre da montanha, parecia morto mas não estava, ficou por lá a envelhecer, está à nossa espera, vem connosco, faremos um belo trio, prometo. De repente anoitece, é estranho, no vale da montanha amanhecia e de repente anoitece, mas Tristano sorri à mulher que saiu do casebre, o punhal que levava na mão transformou-se numa flor silvestre, ela acena-lhe que entre, vai, Tristano, vai... Tristano atravessa a porta e volta a mergulhar no sonho que sonhava há instantes, para lá daquela porta não há uma casa rústica com os seus compartimentos, há pessoas a dançar num salão, e a seguir ao salão um jardim primoroso saído de uma villa toscana com ciprestes e sebes de buxo, e gente de copo na mão, e criados de libré branca, Tristano acha-se num garden-party com o oficial alemão que o acompanha como um lacaio, mas que deixou de ser Marilyn, é um senhor de idade com o rosto engelhado e a pele coberta com manchas de velhice, murmura um nome em alemão que Tristano não consegue fixar, tem um monóculo no olho direito e uma perna hirta, uma perna artificial, talvez. No sonho, Tristano pensa que muitos aristocratas alemães perderam as pernas na primeira guerra mundial, e depois pensa que talvez o outro se ponha a dançar em cima de uma mesa, mas se assim pensa é porque leu livros e viu filmes, e os sonhos também não são inocentes... e no entanto, com a surpresa sem surpresa dos sonhos, o barão alemão de monóculo diz I'm american, e depois murmura outras frases que se perdem no burburinho dos convivas, freedom... freedom... deixe-me apresentá-lo aos convidados, e tem uma voz metálica e gelada, que parece ranger como a sua perna artificial... Que pesadelo... embora não se trate a bem dizer de um pesadelo, porque eu agora estou acordado, não estava portanto a contar-te um sonho, estava a contar-te uma coisa de olhos abertos, por vezes essa coisa não me retém, fujo-lhe como agora fugi, mas depois volta a sugar-me como se estivesse a vivê-la realmente, repara que não estou a contar-te um pesadelo, estou a contar-te uma coisa viva, estou envolvido nela, deve ser da mistura destes remédios todos, e tenho a cabeça a rebentar, está mesmo a rebentar... Tristaninho... Tristano voltou-se e viu Marilyn no meio do jardim, vestida de menina, com laçarotes nas tranças, estava deitada na relva com as saias subidas até à barriga, de pernas abertas, atrás dela via-se um porto de mar onde estava escrito freedom harbour, e a seu lado um desconhecido um pouco calvo, sorridente, cara redonda, junta-te a nós, estamos a fazer a revolução, murmurava o homenzinho, mas Tristano não conseguia perceber... que estás tu a dizer? O gorduchinho perguntou-lhe se ele sabia disparar, precisamos de gente decidida como tu, não dês ouvidos a todos esses idiotas em festa, estamos a servir-nos deles, precisamos deles, porque quanto pior melhor, Rosamunda, explica tudo isto ao teu Tristano, mas que guerrilheiro vem ele a ser?, junta-te a nós, Tristano, é tempo para matar, ainda não percebeste?, vá, Marilyn, explica-lhe que é tempo para matar... e a sua voz prolongou-se como num eco, matááááááár. Sentiu tocarem-lhe no ombro.Era um homem alto, feio, com um nariz enorme e um sorriso oblíquo, gostaria de lhe apresentar o chefe do estado-maior da república submersa, murmurou o pencudo ao ouvido de Tristano, está em estreito contacto com todo o tipo de serviços, trate-o com o devido respeito, contam-se mais inimigos mortos na sua consciência do que bagos de uva numa vinha. O pencudo e o militar condecorado deram-lhe o braço, forçando-o a aproximar-se do enorme churrasco aceso no fundo do jardim, à volta do churrasco estavam uns dez velhinhos de sobrancelhas brancas e prato na mão a roer umas salsichas, respirava-se um ar completamente diferente naquele recanto do jardim, parecia uma festa de aldeia, tipo matança do porco, com uma musiquinha que Tristano julgou reconhecer mas não identificou logo, vinda de uma velha grafonola de pavilhão colocada junto ao braseiro. Excelentíssimos senhores presidentes clonados da futura república, gritou o pencudo, tenho a honra de vos apresentar um grande herói nacional, um homem que expulsou o invasor, aplaudi-o antes que ele vos corra a todos com um chuto no cu! Os dez velhinhos puseram-se a saltitar alegremente atirando as salsichas ao ar e acompanhando a musiquinha vinda da grafonola com as palavras si è cinto la testa, si è cinto la testa!1 Mas nesse mesmo instante saltou de umas moitas um tipo atarracado com ar de mastim, de casaco assertoado, aproximou-se de Tristano com arrogância e disse-lhe, compadre, não dês ouvidos aos revolucionários do proletariado, não dês ouvidos a esses velhos jarretas, ouve o que te digo, serei eu o futuro chefe, hei-de fundar a república do bla-teleblá, queres conduzir um programa de arromba? O tipo atarracado lambeu as beiças e desenrolando a língua como um camaleão lavou a cara de ponta a ponta. Eu sou o teu futuro, meu caro guerrilheiro, disse com a entoação de quem não admite réplicas, foi por mim que combateste na serra, ainda que o não soubesses, portanto escuta bem, só tenho uma coisa a dizer-te, porque o robalinho que a minha cozinheira me preparou está à

 

1 "Cingiu a cabeça, cingiu a cabeça", palavras do hino nacional italiano, numa alusão ao capacete de Cipião. (N. do T)

 

minha espera, tenho a dizer-te que Cristo trouxe Oriente a mais para a nossa terra, era um beduíno, andava de burro para nos provocar, a nós, senhores da civilização das máquinas...

Dizia Ferruccio que se te pões a vasculhar os recantos mais escondidos da sociedade, seja ela qual for, descobres a loucura. Mas aqueles que tiveram a coragem de o fazer eram loucos... Desculpa ter interrompido a narrativa do sonho de Tristano... mas também para mim ele se ficou por ali, parou a certa altura com um tipo a cavalo de um burro, suponho, e de repente adormeci mesmo, o efeito dos remédios deve ter acabado e por isso acabou também a alucinação, a Frau disse-me que não chegou a haver temporal, é que ela dá sempre as notícias em negativo, passou a vida a dar as notícias em negativo, entra e diz, olha menino, esta noite não houve o temporal que a tarde de ontem prometia, tanto assim que está mais calor, mas o teu quarto é o mais fresco da casa toda, por isso consola-te, a enfermeira tirou dois dias de férias, tem um filho com varicela, quem esteve de serviço esta noite fui eu e dormiste que nem um anjinho, sem um lamento, haviam de ser horas da morfina mas não ta dou, aquilo intoxica, não digo que não tenhas dores, mas tiveste uma vida melhor do que a minha, e eu nunca me queixei, alguma vez me ouviste um queixume, a mim?

Sabes por quem combateu Tristano, escritor? Se te esforçares... verás que sabes, mas não ligas... um dia Tristano deu por isso, assim, teve um rasgo de intuição, uma daquelas coisas... como lhe chamam vocês em literatura?... sabes, quando a realidade, que é maciça como cimento, quase por graça divina abre uma fresta por instantes, tu consegues vê-la por dentro e ficas a perceber... é uma espécie de pequeno milagre, fiz-me entender?

Enfim... esquece... Tristano percebeu por quem tinha lutado, por quem combatera, por quem matara, por quem arriscara a deixar-se matar... e porquê tanta dor, tantos sofrimentos e ideais. Pelo blateleblá. Chamo-lhe assim porque assim chamou Tristano àquela coisa, blateleblá, que não é apenas o aparelho, ou seja, a caixa, que é um objecto físico, a manifestação empírica, o visível. O blateleblá de que Tristano tomou consciência era uma espécie de divindade, só que era um deus totalmente novo, desconhecido, cuja religião era uma ausência de religião e que portanto nem substância tinha... e a sua extraordinária força residia nessa ausência... era superior a todo e qualquer ismo, cristianismo, judaísmo, budismo, islamismo, xintoísmo, taoísmo, podia participar de todos eles não sendo nenhum deles, e assim revelava uma natureza proteica e absoluta, sem ser tão-pouco puro espírito, porquanto era simultaneamente visível e ilusório, a projecção de si próprio e de toda a gente, dos sonhos e dos desejos, do todo e do nada, era feito de electrões, de energia, mas desprovido de moléculas... Curiosamente Tristano deu-se conta disso sem olhar para o blateleblá, porque ao olhar-se para ele não se vê a ele, mas à sua hipóstase, apenas... Tristano percebeu a essência do blateleblá numa noite de Verão, estando ele na varanda deste quarto, numa noite límpida, contemplava o céu estrelado, pensava nas teorias do doutor Ziegler e em vez da Ursa e de Orion que procurava noite fora, o seu olhar captou uma estrela em movimento, que nem estrela era, porquanto se deslocava e era demasiado brilhante, artificial, portanto, e pareceu-lhe captar o bip-bip que essa nova estrela emitia dos espaços siderais e que soou aos seus ouvidos como se lhe tivesse decifrado o código, e pareceu-lhe que dizia... não penseis, ó gentes, não penseis, lembrai-vos de não pensar, pensar cansa, é inútil, começastes a pensar para produzirdes um utensílio de sílex e depois um recipiente de cerâmica e a colher de pedreiro e o penico e o zyklon B e a bomba atómica, bonito serviço pensar, estais cansados de pensar, pensai-me só a mim e eu pensar-vos-ei a vós, sereis assim pensados, eu sou o blateleblá e protejo-vos do vosso próprio pensamento... Tristano espraiou os olhos pela planície, salpicada das luzes dos casais, e mais além, até ao clarão dourado da cidade que se espelhava no céu nocturno, e pareceu-lhe que todas aquelas luzes estariam ligadas à voz da estrela artificial, e todas aquelas luzes emitiram um ronco abafado como quando um terramoto sacode a terra, era um rugido, um brado a uma só voz, tinha algo de bíblico, como nas páginas do Apocalipse, e esse rugido dizia, nós pensamos o teu pensamento, bem hajas, blateleblá... Ah, era uma obsessão, e sobrevieram então os pesadelos nocturnos, a voz do blateleblá começou a visitar-lhe o próprio rem, que era como o doutor Ziegler designava o sono mais profundo, e falava-lhe com voz melíflua ou de falsete, lembrava-lhe o bichanar de um confessor prodigando conselhos através das grades do confessionário, não penses, lembra-te de não pensar, deixa-me pensar por ti, Tristano, combateste pela liberdade, aqui a tens, é ver-se livre do pensamento, é deixar de pensar... a verdadeira liberdade é ser-se pensado.

Conheces uma poesia que diz, sombras longas sobre o mar, o teu sorriso, amada, e as carícias, tudo prestes se resigna, como à noite as sombras... e depois continua com o horizonte, as ondas e outros tantos lugares-comuns? Conheces? Não me digas que conheces... não existe, nunca ninguém a escreveu, e quando a ouço não me soa, será melhor deixá-la por aqui.

... mas não se chora, não, não se deve chorar, ele não gostava de chorar. E havia de rir? Não há muito que rir, dizia o filósofo ridens, que se bem o dizia melhor ria... Aquele humor que não se libertava era uma dor frouxa que se transformava em bílis, e que mais lhe restava senão uivos loucos no nada, gritos roucos na vinha, quando o meio-dia é calor silente, arreganho de dentes e gemidos tão terríveis que as próprias cigarras emudeciam?... Ouve, ouve o diagnóstico que os Abdéritos lhe fizeram... Não sabes quem são? Era assim que ele lhes chamava, a esses médicos emproados... um diagnóstico com o carimbo do centro de saúde local, recheado de anamneses e descrições, ouve com atenção, o diagnóstico dizia... homem de aspecto macilento e barba comprida, olhar por vezes turvo como que embaciado por humores biliosos que amarelecem a córnea, pragueja frequentemente em voz baixa, não costuma responder nem mesmo às perguntas mais elementares, como se estivesse ausente, guarda por isso silêncio durante toda a consulta, e, sempre em silêncio, pega e vai-se embora sem olhar para trás, e se acaso se volta atira um gesto esquisito que mais parece desdém que despedida, recusa fármacos que restituíram o sorriso a milhões de pessoas e que o estado lhe dispensaria gratuitamente não sendo ele embora um indigente, aquando da primeira tentativa de exame psicológico declarou que, sic, é inútil foderem-lhe o juízo com a infância porque não houve infância mais feliz do que a sua, recorda um avô anticlerical apaixonado por astronomia, recorda a iniciação vivida aos quinze anos com uma qualquer camponesa da quinta, mulher já madura, e que foi uma maravilha, diz que o problema não está a montante mas a jusante, insistiu para que lhe receitassem láudano, que obviamente não receitámos, e à ponderada recusa médica respondeu com a altivez de um riso escarninho... Foi este o diagnóstico dos Abdéritos, com o aval científico do carimbo, caro Damageto... hoje sinto que és o meu Damageto, e era assim que me apetecia tratar-te, deves ter lido aquelas páginas que falam da loucura, porque era assim que Tristano estava, precisamente como Damageto escreve, entalado entre a hilaridade e a fúria, que são os extremos que a vida nos apresenta em certos momentos, o mesmo será dizer entre a espada e a parede, sem que haja um interstício entre os dois, porque aí estaria a virtus, que era coisa que Tristano não tinha, ou não achava. Interrogava-se acerca do tratamento que os antigos apontavam para os humores malignos, isto é, ou o pranto ou o riso, mas nenhum desses tratamentos era solução, porque a sua dor era uma dor surda, constante e sem boca, que lhe roía o peito e não achava voz, não achava palavras, como uma besta mugindo no fundo de um túnel... Não, não era ele dentro de um túnel, ele era o próprio túnel, ele transformara-se num túnel... E certo dia viu um sapo na vinha... e esse sapo transformou-se num cão... já te contei isto?... paciência, quando muito tornas a escrever... era um sapo amarelo que se transformou num cão amarelo com a cabeça a espreitar da terra onde estava enterrado, de boca aberta... viam-se-lhe as goelas porque sufocava, o sapo fez glog-glog, e depois pôs-se a falar com voz de cão, e mostrava os dentes estragados, alguns dos quais partidos, bu bu bu, disse, eu sou tu e tu és eu, faço-me entender?... O animal fazia-se entender, e Tristano compreendeu imediatamente que se tratava do seu irmão, ou melhor, do seu espelho. E o mundo começou a girar. Estava a mijar contra a vinha, mijou os pés e experimentou a embriaguez de quando se percebe subitamente uma coisa e se fica com vertigens, areia sobre areia, aquilo em que ele tinha acreditado, o seu contributo para a liberdade, uma liberdade enterrada na areia até ao pescoço, obrigado Tristano, foste um excelente cão de guarda, e agora ladra se puderes e se não puderes morde o vento... Tristano fitava o sapo nos olhos e estava tudo escrito naqueles olhos, e ele percebeu tudo, mas era demasiado tarde, as bombas tinham deflagrado, os mortos estavam mortos, os assassinos estavam de férias e a banda republicana tocava nas praças, porque era o dois de Junho, e a bandeira sagrada esvoaçava estralejando ao vento, um qualquer impedido destacado para saudar a bandeira saudava-a em sentido, tal como Tristano estava em sentido em frente da vinha a mijar os pés... Fez a continência ao sapo, às suas ordens senhor sapo, e o sapo meio cão e meio sapo emitiu um som agudo porventura semelhante à voz das sereias, nesse primeiro dia de canícula na planície, era uma voz que vinha dos montes, e era fresca porque descia dos picos cobertos de neve, e parecia um canto lânguido, atravessava camadas de tempo, mas nem por isso era menos aguda, e dizia-lhe, cai a azeitona, não lhe cai a folha, só teus encantos não caem nunca, és como o mar que cresce às ondas, faz ó-ó, traidor, faz ó-ó. Tristano deu meia volta e, cambaleando, procurou a sombra do seu quarto, atirou-se para cima da cama, tapou os ouvidos e tentou adormecer. O que era impossível, como podes calcular, escritor.

Pancuervo! Pancuervo! desatou ele a gritar um dia. A Frau assomou à porta para ver o que era aquilo, ele parecia dormitar na cadeira, frente à janela aberta do escritório, por onde entrava um ramo de cerejeira. Foi pelo fim de Maio, as cerejas já estavam gradas e vermelhas, ele ergueu-se num repente e gritou voltado para o campo, Pancuervo! A Frau estacou interdita, ele atravessou a porta do terraço, escancarada para o sol, desceu precipitadamente os degraus de pedra e começou a dançar à volta da cerejeira, e de vez em quando abraçava-se ao tronco e puxava por ele como se quisesse arrancá-lo, e jogando as pernas ao ar como um selvagem das florestas gritava cerejas rosadas na Primavera!... A Frau fora atrás dele e olhava-o estarrecida, assistia àquela dança desatinada acompanhada de palavras absurdas e pensava nalgum acesso de demência, pobre Frau, estava interdita, e nem quando ele largou a fugir pelos campos continuando a gritar, Pancuervooo! Pancuervooo!, ela se mexeu... Não se tratava de demência, não, acontece que ele percebera subitamente, como em certas revelações tardias, que tudo começara em Pancuervo muitos anos antes, e a ponta do rastilho que fizera com que o seu rapaz fosse pelos ares estava em Pancuervo, era aí que ele tinha de procurar, em Pancuervo... Mas Pancuervo existia realmente?... O comboio parara e retomara a sua marcha, mas ele não subira, deixara-se ficar num apeadeiro perdido em Castela, a olhar as colinas redondas e áridas, estranhas, umas colinas que pareciam elefantes brancos.

... Estava para aqui meio a dormir e lembrei-me de uma coisa... por que fazes tudo isto? Quero eu dizer, isto de suportares o meu mau feitio, e o resto... estou em crer que és um pouco manhoso, e, não desfazendo, se calhar nem te dás conta... sabes?... és demasiado paciente... por isso é que me ocorreu a palavra manhoso... Não te ofendas, eu sou bera, ou melhor, tornei-me bera, há-de ser por causa desta gangrena que anda a roer-me, acho que já me apanhou os testículos, faz-me um favor, passa-me aí o talco mentolado de cima da cómoda... desculpa atrever-me a intimidades destas, estou a falar-te de coisas tão íntimas, já não há segredos entre nós... Tenho reparado na solicitude com que acorres ao rac-rac da minha campainha, seja a que horas for, e às tantas ouves coisas desagradáveis como esta... Tens assim tanto apego à vida de Tristano?

Os Abdéritos diziam que Tristano delirava e eu também te disse que ele dava mostras de loucura, mas quanto a mim ele apenas se antecipava... as pessoas que se antecipam parecem loucas, têm o destino das cassandras, de cassandrinhas de meio vintém, talvez, mas os creontes de meio vintém temem-nas à mesma, por isso inventaram os manicómios, que são casas cheias de cassandras inócuas, os perigosos, esses continuam à solta, e mandam... Sabes o que vai suceder-vos, escritor?... Vou dizer-te no que andava Tristano a pensar quando descobriu a natureza do blateleblá, porque não tarda vai acontecer... o blateleblá, no seu solene propósito de abolir por completo da mente humana todo e qualquer tipo de pensamento que o afecte, por insignificante que seja, começara a expurgar gradualmente das suas caixas de vidro todas as imagens portadoras de pensamento, até à desabituação total da vossa parte e à eliminação absoluta de todo o signo significante, visto que a própria imagem, por mesquinha e miserável e repugnante que seja, como as que todas as noites vos instilam, é susceptível de induzir pensamento, e o pensamento é perigoso... pelo que vereis apenas a luz, aqueles traçados eléctricos que tremeluzem, por vezes um crepitar de pontinhos luminosos onde o pensamento se vos perderá e ser-vos-á doce naufragar em tal vislumbre... um nirvana moderno?, talvez o fatídico mu sobre o qual efabula o budismo, finalmente alcançado. É o que vos espera amanhã, escritor, porque amanhã também é dia, como dizia a Scarlett, estou a ver-vos a todos, ao serão, nas vossas cavernas alcatifadas, fitando enfeitiçados aquela fogueira eléctrica e murmurando em coro muuuu... deixo a essa fogueira a minha cruz de guerra, quinquilharias, porque ela será um dia o senhor vosso deus e não tereis outro deus senão ela... não quer isto dizer que as fogueiras eléctricas dos outros países sejam muito diferentes das do teu, o seu a seu dono... falo no teu país porque o meu está por um fio... e eu estou mais para lá do que para cá, flutuam-me os pés a meia altura, sou apátrida, não pertenço a ninguém, a alfândega que tenho de franquear não carece de passaporte, e não há quem consiga agarrar-me pelos pés e apear-me da laranjeira, como Tristano fez à sua Dafne, isso te garanto.

... dizia eu que ele começou a receber cartas. Ou melhor, eram vozes, chegavam até ele sob a forma de voz, embora ele as visse escritas, podia ler a caligrafia de cada uma delas no ar, caligrafias diferentes, porque cada voz tinha a sua própria caligrafia, que é o timbre da escrita, cada uma delas o seu tom, uma inflexão, a cor da voz que mandava as cartas. O doutor Ziegler dissera-lhe que são coisas que acontecem na cabeça de certas pessoas... os sons transformam-se em cores, é uma forma de aura... também a tinta-da-china variava de cor, com todas as velaturas do espectro cromático, sendo quase sempre negra, mas por vezes branca sobre fundo negro, e amarelos vários, e laranjas tipo pôr do Sol no Verão... vermelhos... poucos azuis... verdes com fartura, verde-garrafa, verde-bandeira, verde-veronese, e sobretudo certo verde-bexiga que puxava ao amarelo terroso. Esse verde entrava-lhe pelo pavilhão auricular como um silvo, porque o som que o propagava fazia ssssssssss... Eram cartas sibilantes, serpentinas, e o verde que lhe assobiava nos ouvidos transformava-se-lhe magicamente no palato num travo amargo, como se ele mascasse uma folha de cardo. Chamava a esse verde verde-fel. E muitas cartas lhe chegavam por dia, chegou a receber dez, vinte e mais, mesmo de noite, já ele finalmente adormecera, à custa de muito esforço, nem estava sequer a sonhar, estava apagado como quando se apaga uma telefonia, deixava de captar... mas não, bem podia convencer-se que desligara, tipo passo e desligo, nada disso, tinha passado mas não tinha desligado... aquilo começava com um rechinar, não sei como dizer, é precisamente como quando se roda o botão da telefonia e se ouve qualquer coisa a frigir, nessa altura acordava, soerguia-se nas almofadas, imóvel na escuridão do quarto, era uma carta a chegar, era o toque daquele estranho carteiro, insistia com um retinir que crepitava no escuro como uma grelha em brasa onde lhe tivessem posto as orelhas a assar, frrrrr, frrrrr, frrrrr, e não é que viessem todas escritas a negro ou verde-fel, podia acontecer serem azuis, até mesmo de um azul-cerúleo repassado de infância e recordações perdidas... Querido Ninototo, nas paredes das cavalariças escreveste a carvão por todo o lado Ninototo, Ninototo, e eu achei aquilo divertido, porque ninguém te ensinou a escrever, aprendeste sozinho, mas esta manhã dei com esses dizeres em toda a cerca murada da quinta, acompanhados de palavras que nunca ouvi da tua boca, e tive de chamar o Amilcare, que precisou de dois baldes de cal para apagar todos os dizeres, palavras daquelas, meu querido Ninototo, não se podem escrever porque escandalizam os camponeses como o Amilcare, eles vão à missa ao domingo e o prior repreende-os se dizem palavras daquelas, e vê-las escritas deixa-os confusos, são gente crente e respeitadora, e tem de se deixá-los acreditar em deus, e tu só podes dizer palavras dessas quando estamos juntos com o avô, se não o avô não te leva à feira da aldeia pelo São João como no ano passado, percebeste, Ninototo?... A voz do avô tinha uma caligrafia azul. O avô guardava no armário uma camisa vermelha porque tinha sido garibaldino, e, pousado sobre a camisa vermelha, um sabre que Ninototo podia contemplar aos sábados de manhã quando o avô o levava ao seu quarto. Mas apesar da camisa vermelha a voz do avô era de um azul-cerúleo, e Tristano, soerguendo-se nas almofadas, já com-pletamente acordado, num sobressalto, via perfeitamente a luz azul na escuridão do quarto. Avô, dizia, falando para a escuridão, porque me acordaste?, tinha pegado no sono, finalmente, tenho dormido tão mal nestes últimos tempos, ouve, avô, foi há tanto tempo, já nem sequer me lembrava, já lá vai tanto tempo, avô, estou velho como tu, ou melhor, mais do que tu, por favor, avô, descansa em paz e deixa-me também descansar, mas que foi que te passou pela cabeça para me mandares esta carta precisamente agora, custou-me tanto adormecer, sabes, agora estou só, não tenho mesmo mais ninguém, aquele filho que eu amei como se fora meu trazia a morte consigo... tão amável, tão delicado, será possível?... avô, eu errei em pequenino, compreendo que me repreendas, mas talvez queiras dizer-me que também errei já homem feito, é por isso que me escreves, avô?

... Mais uma carta, difícil atribuir-lhe cor, talvez a não tivesse. Meu amado Clark, doravante tratar-te-ei sempre assim, visto que aqui ninguém sabe como te chamas, deste dois ou três nomes mas só o comandante sabe qual deles é o verdadeiro, passo a chamar-te Clark porque com essa tua madeixa na testa e esse teu sorrizinho trocista pareces um actor do meu país de quem eu gosto muito, mas ainda gosto mais de ti, ai como gosto de ti quando à noite me apertas nos teus braços fortes, esta noite porém não vamos poder estar juntos, meu amado Clark, sei que tens de descer ao vale com o pelotão que te confiaram, eu irei com o pelotão Gesso, tu pela vertente leste, eu pela vertente oeste, o comandante mandou-me finalmente entrar em acção, por isso mesmo me lançaram de pára-quedas nestas montanhas, ele fica sozinho mas não tem nada a recear, os soldados saboianos ficarão de guarda, e amanhã à noite estarei de volta ao teu refúgio, prometo, julgo que depois desta operação me obedecerás como é teu dever e deixarás de me chamar Rosamunda, porque eu não gosto, eu chamo-me Marilyn, e tu como te chamas, Clark, importas-te de me dizer?... Mais outra, verde-fel.

Tristano, tu és mau, a tua proposta é indecente, eu tive uma história paradoxal e alheia à minha verdadeira vida porque o meu coração ficou desde sempre cativo do meu amor frustrado por ti, dispunha apenas de um espaço limitado para uma companhia masculina e essa situação paradoxal foi a única com que, paradoxalmente, eu me dei bem... quem te atraiçoou na serra não fui eu, tu é que entendeste que assim era, e sabes porquê, sabes como precisavas de imaginar que alguém te atraiçoava... Outra ainda, de cor garrida. Caro camarada, não te escrevo enquanto comandante, mas como camarada, seja-me permitido tratar-te assim, embora talvez não partilhes do sentido profundo desta palavra, apreciei muito as tuas posições e a honestidade com que me falaste das tuas ideias políticas, não gostaria que pensasses que te considero um intelectual burguês, como me acusaste de te classificar, nem gostaria que me tomasses por um filoproletário irredutível, como se depreendia das tuas palavras, palavras que não me ofenderam de todo, é bom que o saibas, porque eu respeito as tuas ideias e espero que respeites as minhas, és corajoso e eu tenho consideração por ti enquanto homem e enquanto combatente, mas falaremos calmamente das nossas ideias quando tudo isto tiver acabado, por agora temos de disparar contra o inimigo, não faz sentido dispararmos uns contra os outros... Mais outra, amarela. Tristano, dou-me conta de que no teu país ninguém quer assumir as suas próprias responsabilidades, como se tudo aquilo que aconteceu, aquilo que fez com que tivéssemos vindo libertar-vos não fosse culpa de ninguém, o que permite agora a uns quantos namorarem com os países comunistas, como se os totalitarismos continuassem de certa maneira a ser do vosso agrado, eu por enquanto fico em Espanha, não estou disposta a voltar à minha Cincinnati, Spain is different, realmente, e o fantasma do velho Ernest, que neste país está presente por todo o lado, é o meu amuleto... mas por que ficaste naquele apeadeiro perdido, não vieste comigo porquê, terias acaso medo de perceber? Outra, negra, de paramentos negros. Tristano, confiei-to a ti e não soubeste protegê-lo, e agora não és capaz de degolar a Medusa que o hipnotizou, és o mesmo cobarde de sempre.

... Perseu conseguiu degolar a Medusa, que tinha o poder de petrificar as pessoas com o olhar, graças a um espelho que trazia consigo, e quando segurou o trofeu nas mãos, pegando-lhe pela cabeleira feita de serpentes, pôde libertar Andrómeda, que fora aprisionada pelo monstro marinho, e casar com ela... A estrela principal da constelação de Perseu chama-se Algenib, ou Mirfak... nomes árabes... muito navegaram os árabes, sempre a sulcar os mares e a olhar as estrelas... Algenib, em árabe, significa situado à direita, e é a mais luminosa, vê-se perfeitamente mesmo a olho nu... é milhares de vezes mais luminosa do que o sol, mas Algole, que significa cabeça de dragão, é a mais conhecida, evidentemente, porque era a mais útil para os navegadores, não se sabe porquê... as Perseides são estrelas cadentes provenientes da constelação de Perseu, dizem os astrónomos que se trata de restos de cometas que sobrevivem, sobrevivem sabe-se lá desde quando, mostram-se pelo dia dez de Agosto, se chegares à janela talvez consigas vê-las, eu espreitava-as sempre, era como um encontro marcado para esse dia, mas de certeza que o dez de Agosto já passou há muito, nesta cama não sei a quantas ando.

Desembarquei nesta ilha pelo fim da tarde. Da amurada do ferry via aproximar-se o pequeno porto, com a cidadezinha branca alcandorada em torno do castelo veneziano e pensava: talvez seja aqui. E enquanto percorria as vielas em escadinhas que vão até à torre, com a minha mala que de dia para dia se vai tornando mais leve, repetia de degrau em degrau: talvez seja aqui. Na praceta aos pés do castelo, um terreiro donde se domina o porto, há um restaurante, com velhas mesas de ferro ao longo de um murete, dois canteiros com duas oliveiras e sardinheiras muito vermelhas em vasos rectangulares. Sentados no murete, os velhotes conversam baixinho, há crianças a correr à volta do busto de mármore de um capitão de farta bigodeira, herói das guerras balcânicas dos anos 20. Sentei-me a uma das mesas, pousei a minha mala no chão e pedi o prato típico da ilha, coelho com cebola e canela. Despontam os primeiros turistas, princípios de Junho. Caía a noite, uma noite transparente que transformou o cobalto do céu num violeta vivo; depois, a escuridão com laivos de anil. No mar brilhavam as luzes das aldeias de Paros, que parecia a dois passos. Ontem, em Paros, conheci um médico. É um homem do Sul, de Creta, suponho, embora não lho tenha perguntado. É um homem baixo e robusto, com pequenas veias no nariz. Eu contemplava o horizonte e ele perguntou-me se eu estava a contemplar o horizonte. Estou a contemplar o horizonte, respondi. A única linha que corta o horizonte é o arco-íris, disse ele, o engano de uma refracção da luz, uma ilusão pura. E falámos de ilusões, e sem querer falei de ti, disse o teu nome sem o dizer, e ele disse-me que se lembrava de ti porque te tinha suturado as veias num dia em que abriste os pulsos. Eu não sabia disso e fiquei comovida, e pensei que encontraria nele um pouco de ti, porque ele tinha conhecido o teu sangue. Acompanhei-o até à pensão, chamava-se Thalassa, ficava de facto à beira-mar, e era sórdida, povoada por estrangeiros de classe modesta que vêm à Grécia passar férias e detestam os gregos. Mas ele não era como os outros, era amável, despiu-se com pudor, e tinha um membro pequeno, ligeiramente arqueado, como certos sátiros de terracota do museu de Atenas. E não buscava tanto uma mulher mas sobretudo palavras de conforto, porque era infeliz, e eu fingi confortá-lo, por humana compaixão. Procurei-te, meu amor, em cada um dos teus átomos espalhados pelo universo. Recolhi quantos pude, na terra, no ar, no mar, nos olhares e nos gestos dos homens. Procurei-te até nos kouroi, nas longínquas montanhas de uma destas ilhas, só porque me disseste um dia que te sentaste nos joelhos de um kouros. A subida não foi fácil. A camioneta deixou-me em Sypouros, se é este o nome de uma aldeia que os próprios mapas ignoram, e ainda tive de fazer mais três quilómetros a pé, subi lentamente a estrada escavada em serpentina que mais adiante desce a caminho de um vale de oliveiras e cipestres. Encontrei um velho pastor à beira da estrada, e disse-lhe apenas a única palavra que importava: kouros. E acendeu-se-lhe nos olhos um brilho de cumplicidade como se tivesse entendido, como se soubesse quem eu era e quem procurava, que te procurava a ti, e sem proferir uma palavra estendeu-me uma das mãos e apontou-me o caminho, e eu recolhi o seu gesto que me guiou e aquele brilho que por um instante se lhe acendeu nos olhos e guardei-os no bolso, vê, tenho-os aqui, poderia pousá-los em cima da mesa desta esplanada onde estou a jantar, são mais duas pedrinhas deste fresco esboroado que vou recolhendo desesperadamente para te reconstruir, a acrescentar ao cheiro do homem com quem passei a noite, ao arco-íris no horizonte e a este mar azul que me angustia. Mas sobretudo a uma janela gradeada que descobri em Santorini, por onde amarinhava uma videira e donde se avistava o mar imenso e uma praceta. Eram quilómetros infinitos de mar, e a praceta escassos metros quadrados, e entretanto lembrava-me de poemas que falavam de mares e de praças, de um mar de telhas cintilantes que uma vez avistei contigo de um cemitério, e de uma praceta onde as pessoas que nela moravam tinha visto o teu rosto, e assim, mentalmente, eu buscava-te no bruxulear daquele mar, porque tu o tinhas visto, e nos olhos do retroseiro, do farmacêutico, do velhinho que vendia café gelado naquela praceta, porque eles te tinham visto. Também todas estas coisas eu guardei no bolso, neste bolso que sou eu própria e os meus olhos. Um pope saiu para o adro. Transpirava debaixo das vestes negras e recitava um canto litúrgico bizantino onde o kyrie como que tinha a tua cor. No horizonte, um barco deixa no azul uma faixa de espuma branca. Serás também aquela faixa? Talvez. Estava capaz de guardá-la no bolso. Mas entretanto uma turista estrangeira prematura, prematura para a época, porque a sua idade é quase venerável, telefona da cabine, exposta ao vento e aos transeuntes, frente ao mar, e diz, Here the weather is wonderful. I will remain very well. E esta frase é tua, reconheço-a apesar de proferida noutra língua, mas neste caso trata-se apenas da tradução feita por uma turista daquilo que já disseste, bem o sabemos. A Primavera já passou por nós, meu querido amigo, meu querido amor. E o Outono já chegou, com o amarelo actual das suas folhas. Está-se em pleno Inverno, aliás, neste Verão precoce amenizado pela brisa que esta noite sopra na esplanada debruçada sobre o porto de Naxos. Janelas, é disso que precisamos, disse-me uma vez um velho sábio num país longínquo, a vastidão do real é incompreensível, para o compreender é preciso encerrá-lo num rectângulo, a geometria opõe-se ao caos, por isso os homens inventaram as janelas, que são geométricas, e toda a geometria pressupõe ângulos rectos. Será que também a nossa vida se subordina aos ângulos rectos? Refiro-me àqueles itinerários complicados, feitos de segmentos, que todos nós temos de percorrer simplesmente para chegarmos ao nosso próprio fim. Talvez, mas se uma mulher como eu pensa nisso à mesa de uma esplanada escancarada sobre o mar Egeu, numa noite como esta, percebe que tudo aquilo que pensamos, que vivemos, agora e no passado, que imaginamos, que desejamos, não pode ser regido por geometrias. E que as janelas são apenas uma forma cobarde da geometria dos homens que temem o olhar circular, que tudo abarca sem sentido e sem remédio, como quando Tales observava as estrelas, que não cabem na moldura de uma janela. De ti, recolhi tudo, migalhas, fragmentos, poeiras, conjecturas, entoações que se demoram noutras vozes, alguns grãos de areia, uma concha, o teu passado imaginado por mim, o nosso suposto futuro, aquilo que eu quisera que me desses, aquilo que me havias prometido, os meus sonhos infantis, o enamoramento que em menina senti por meu pai, lengalengas rimadas da minha meninice, uma papoila na berma de uma estrada poeirenta. Também isso eu guardei no bolso, sabes?, a corola de uma papoila como aquelas papoilas que em Maio ia apanhar às colinas com o meu Volkswagen, enquanto tu ficavas em casa grávido dos teus projectos, debruçado sobre as complicadas receitas que a tua mãe te deixara num livrinho preto escrito em francês, e eu colhia para ti umas papoilas que tu não conseguias entender. Não sei se depositaste a tua semente dentro de mim, ou se fui eu a depositá-la em ti. Cada um de nós é apenas ele próprio, sem transmissão de carne futura, e eu sobretudo sem ninguém que recolha a minha angústia. Todas estas ilhas eu percorri, em todas te procurei. E esta é a última. Também eu cheguei ao fim. Depois de mim, acabou-se. Quem mais poderia procurar-te senão eu? Não se pode trair assim, cortando o fio. Sem que eu saiba sequer onde repousa o teu corpo. Entregaste-te ao teu Minos, que julgavas ter enganado mas que acabou por engolir-te. Por isso decifrei epígrafes em todos os cemitérios possíveis, em busca do teu nome bem-amado, onde ao menos pudesse chorar-te. Por duas vezes me traíste, e da segunda escondendo-me o teu corpo. E agora estou aqui, sentada a uma mesa desta esplanada, olhando inutilmente o mar e comendo coelho com canela. Um velho grego indolente mendiga entoando uma velha canção. Há gatos, crianças, dois ingleses da minha idade que falam de Virginia Woolf e um farol, lá longe, de que não se aperceberam. Eu levei-te a sair de um labirinto, e tu levaste-me a entrar nele sem saída possível para mim, nem sequer a saída extrema. Porque a minha vida passou, e tudo se me escapa sem possibilidade de um nexo que me restitua a mim própria ou ao cosmos. Estou aqui, a brisa acaricia-me os cabelos, e eu vou tacteando pela noite, porque perdi o meu fio, aquele fio que eu te dei, Teseu...

... gostas? Pensei nela a noite toda, voltei a redigi-la mentalmente palavra por palavra, mas estou certo que irás melhorá-la ao escrevê-la, torna-a dilacerante, se assim o entenderes... eu não sou muito dado a dilaceramentos, mas aqui tratava-se de isso mesmo, porque esta carta vinha mesmo do nada... Quem escrevera aquela carta a Tristano, e de que abismos emergia, como um cherne subindo inexoravelmente das profundezas do tempo, para desembocar um dia, arquejante, à flor da água? Estaria ainda viva essa mulher que procurava o seu túmulo? E para quê, para abrir acaso uma cova a seu lado? Dafne já partira, mas ficara a sua voz, daí a sua procura. Será possível sobrevivermos a nós próprios? Responda quem puder... De olhos bem abertos sob a canícula de Agosto, segurando nas mãos as palavras de uma carta sem carta, ectoplasma do remorso condensado no ar como um gás amoniacal libertado pela rotura de um cano, Tristano mantinha-se imóvel, encandeado pela brancura do meio-dia, nu e cru como um bicho, como quando fugira de casa perseguido pelas suas vozes, invocando espíritos que o invocavam... o caído membro flácido, norte de bússola inútil, assinalava um ponto não cardeal que ele percebeu que era a terra, e mais do que a terra o ínfero, e mais do que o ínfero o profundo, e o eterno... e o resplendor da luz transformou-se subitamente em trevas, ofuscadas trevas que engoliram tudo... Ergueu os braços como que a tactear e sentiu-se inquilino do nada, também ele feito nada. Teria acaso morrido? Responda quem puder, responda quem puder... Ninguém achará resposta, escritor, isto só eu sei, nem mesmo eu, talvez, porque não se morre apenas por fora, morre-se sobretudo por dentro.

Vou ser sincero, enquanto não chegaste estava convencido que te contaria tudo a respeito de Mavri Elià, nunca ninguém falou dela, e felizmente tu também a ignoras no teu livro... e dizia de mim para mim que voltaria a equilibrar as coisas. Que tolo, como se houvesse que reequilibrar fosse o que fosse na vida... e afinal já não me apetece, Mavri Elià pertence apenas a Tristano, por que havia eu de ta dar, tu não a mereces... quando muito dir-te-ei algumas coisas essenciais, limitar-me-ei aos chamados factos. Ao fim e ao cabo, o que é isso de factos?... mas vamos então aos factos... por exemplo, quando desapareceu... quando se finou, como diriam os que usam expressões tipo assiste-me o dever ou sentidos pêsames. Disparates, as pessoas não morrem, assiste-me o dever de informar, ficam encantadas, apenas... como disse um escritor que havias de conhecer, ficamos encantados por aqueles que nos amam, os que nos amam muito muito muito, e pairamos no ar a meia altura como uns balõezinhos mas ninguém nos vê, vêem-nos apenas aqueles que nos amam, mas aqueles que nos amam muito muito muito, e eles, erguendo-se em bicos de pés, com um ligeiro impulso, um pulo de nada, agarram-nos pelas pernas que entretanto já são feitas de ar e puxam-nos para baixo, não nos largam, para que não recomecemos a voar, a levitar, mas dando-nos o braço seguram-nos mais rente ao chão, tão rente ao chão quanto eles próprios, como se não tivesse acontecido nada, tal como em certos faz-de-conta da vida, por conveniência social, para não se fazer má figura à frente do dono da retrosaria ou da tabacaria, que te conhece desde sempre e diria coisa estranha este tipo a passear de braço dado com a mulher e ela a meia altura... E foi o que sucedeu a Tristano, era domingo, e mesmo que não fosse tanto faz porque eu decidi que as coisas importantes de Tristano aconteciam aos domingos, e se tu o escreveres no livro que hás-de escrever passa a ser verdade, porque depois de escritas as coisas tornam-se verdade... e estava-se em Agosto, porque eu decidi que as coisas importantes da vida de Tristano aconteceram num domingo de Agosto, e se tu o escreveres também isto passa a ser verdade, verás... ele deambulava pela Plaka deserta e pensava na melancolia de alguns dos seus olhares, na melancolia de certos serões em Malafrasca, Dafne pensativa frente às janelas escancaradas sobre a planície, os candeeiros de petróleo, e a sua voz que dizia com pronúncia cretense, Tristano, é um desejo que eu tenho, quando morrer não quero ser sepultada aqui, nesta planície que tem um cemitério cheio de nevoeiro, leva-me de volta a casa e manda-me cremar, e espalha as cinzas no meu mar, no meio das ilhas do Egeu, não com gestos dramáticos, peço-te, mas num jeito simples, irás aqui e além, de ilha em ilha, arranja uma barcaça de pescador, afasta-te um pouco da praia, não muito, vai a Sifnos, Naxos, Paros, e lança-me uma pitada aqui, outra além, e por favor deita-te nu em pêlo no fundo do barco, como quando dávamos aqueles passeios porque teimavas em ir à pesca dos gambusinen que nunca chegavas a pescar, e acabávamos por fazer amor e o barco oscilava perigosamente e tu a gritar, naufrágio à vista!... Tristano parou na retrosaria da Plaka, ela jazia numa capela bizantina ali ao lado, um calor... e ele achava que o retroseiro havia de arranjar maneira de a encontrar visto que a conhecia desde pequena, mas o retroseiro não se lembrava, então Tristano passou pelo quiosque das bebidas e perguntou ao homenzinho, lembra-se de uma senhora que em criança vinha aqui às vezes comprar rebuçados, chama-se Dafne, chamavam-lhe Phine, os amigos tratavam-na sempre assim, repousa deitada num caixão na capela da praceta aqui ao lado, não se lembra dela?, não arranjaria maneira de ma restituírem?, tenho ouvido dizer que por vezes há sortilégios desses, talvez eu tenha sorte... Mas o homenzinho do quiosque não se lembrava de Dafne, tenho muita pena, disse ele, mas há tantas Dafnes na Grécia... e Tristano interpelou então uma mulher sem pernas que vendia violetas, e a mulher sem pernas que vendia violetas lembrou-se logo, disse com certeza, pois com certeza, era uma menina que tinha uns olhos que pareciam duas azeitonas pretas, já lá vai muito tempo mas lembro-me bem, não penses que desapareceu no nada, está aqui a teu lado, à altura dos ramos desta laranjeira, basta agarrá-la pelas pernas e puxá-la para baixo... As magias são uma coisa estranha, escritor, porque meu dito meu feito, Tristano voltou-se, viu Mavri Elià pairando à altura de uma laranja e disse-lhe, que estupidez a minha, devo ter perdido a vista com a velhice, estavas mesmo aqui atrás de mim e eu sem dar por nada, ainda bem que graças a esta senhora que vende violetas eu me dei conta que isto não passava de um encantamento... Muito obrigado, minha senhora, disse ele à mulher sem pernas que vendia violetas, arrancou Dafne da árvore e puseram-se a passear pela Plaka, contrariamente ao que pensara era um dia de Inverno e Dafne dissera-lhe, resguarde-se no meu portão, estão a disparar, é perigoso, e você matou um oficial alemão.

Ferruccio costumava dizer que os organismos inferiores dispõem de mais vitalidade que os evoluídos. Deve ser a teoria de alguém que morreu novo, as pessoas que pensam desta maneira devem morrer novas, quanto mais não seja por coerência... Tinha uma história para te contar, um naco de apetite, que não passa pela cabeça de ninguém, mas agora estou cansado e suponho que a noite vai longa, preciso de dormir... contar-te-ei resumidamente, terás contudo de adorná-la um pouco, porque não é propriamente exaltante... mas agora preciso mesmo de dormir, quase não consigo respirar. Amanhã vem mais cedo, por favor, de madrugada, até, assim como assim estarei acordado, não vou durar muito mais, quero morrer antes do fim de Agosto, e Setembro está aí, bem o sinto.

Cheira-me que chegámos ao fim, digo isto porque esta noite pensei que entrava no círculo... quero eu dizer que de há uns tempos a esta parte ando a trotar de volta dele... cómico o verbo trotar, para quem tem uma perna neste estado, já reparaste?... eu já, tenta imaginar a cena, um velhote chupado, todo nu, embrulhado num lençol, arrastando a custo uma perna ratada, e a pular de roda num terreiro deserto... só de pensar nisto apetece torcer por ele... entra, vá, decide-te, força!... Há uma coisa que eu não tencionava dizer-te, fui adiando sempre, pensava comigo que feitas as contas não acrescenta nada, e que também não favorece por aí além a figura de Tristano... antes pelo contrário, e para mais acho que basta de maltratar essa tua personagem... maltratar não é a palavra exacta, mas... as misérias... sabes, o escritor inventa uma personagem e de certo modo purifica-a... não estou a explicar-me bem, não se trata de purificá-la, é que, dê lá por onde der, mesmo que a ponha a viver uma vida humana, e a vida dos homens está recheada de misérias, o homem é um animal cruel, mas é uma vida de papel, e no papel as misérias não largam cheiro... ao passo que se certas coisas são ditas por quem as viveu, e ainda por cima quem tas conta está ali a teu lado em carne e osso, e respira, e a sua carne talvez não esteja sequer em óptimo estado, essas misérias são menos assépticas, faço-me entender?... Porém, quando se chega ao fim... olha, pensei que graças a ti passarão a ser de papel, torná-las-ás assim mais abstractas. Mas nem misérias são... quem sabe, às vezes é tão difícil distinguir entre crueldade e justiça... matar... no sentido de assassinar... Tristano era um pacifista, sabes disso por aquela entrevista que ele deu há muito, antes de desaparecer sem deixar rasto, e sobretudo era contra a pena de morte, a pena de morte obtusa, burocrática, fornecida pelo estado, a morte em papel selado... claro, mas isso é um facto de princípio, seria válido se o mundo fosse perfeito, e se levasses esse princípio até às últimas consequências então terias de apertar num abraço aquele general chileno que assassinou milhares de pessoas nos estádios, anda, vai abraçá-lo e explica-lhe o que é o amor pelo próximo, talvez fiquem amigos... Infelizmente o mundo não é como Tolstoi imaginava, convencer o assassino com a força do amor e do perdão... seria uma bela utopia. Hitler prometera que o nazismo iria reinar na Europa por mil anos, achas que devíamos fazer-lhe a vontade em nome dos nossos princípios de amor e de fraternidade?... os nossos princípios excluem o homicídio, mas matar o tirano, ou seja, a Besta, essa mesmo que devoraria os nossos princípios, não contradiz os nossos princípios... De qualquer maneira o dilema agora é teu, a mim já não me diz respeito... Mas serei breve, não estou para perder tempo com pormenores, que nem fazem falta nesta história, basta que saibas que Tristano não estava só e que quem guiava o carro era Taddeo. Um pormenor, Tristano já não era muito novo, ou antes, já era velho e precisava de companhia... e também Taddeo era bastante velho, mas era a companhia certa... Não, ouve, mudei de ideias, afinal só vou contar os pormenores desta história, acho melhor, vou ignorar o essencial, que nem precisas que te expliquem... quer dizer, como foi que Tristano apanhou o fio à meada, como encontrou o local exacto, quem o ajudou nas buscas... não interessa. Taddeo guiava o carro e Tristano trauteava uma espécie de lengalenga, ai luna luna luna el niño la mira mira el niño la está mirando. Uma lenda gitana diz que a lua cheia leva os meninos, o menino que lhe levara já não era uma criança, mas para ele era ainda uma criança... Prosérpina cobre os defuntos com lençóis brancos, lua lua lua abre-nos o caminho... era uma estrada branca de poeira no meio do mato rasteiro, e os faróis tornavam-na ainda mais branca... Tristano já tinha escrito um postal a Rosamunda, mas ainda não o deitara no marco, guardara-o no porta-luvas... tinham-se ido todos embora da aldeia, parece que a transformaram numa aldeia turística, esclareceu o carabinero que lhes indicou o caminho, daquelas especiais, de elite, porque quem já lá estava instalado eram turistas culturais, foi assim que os definiu, aquilo era a modos que um centro de estudos, tudo gente sossegada, atilada, nada dessa juventude das discotecas nem dessas festas com música que só incomoda a vizinhança e depois acaba tudo bêbedo e obrigam-nos a intervir... E a casa era realmente bonita, vista de fora, uma casa rústica antiga, remodelada por um arquitecto inteligente, daqueles que sabem recuperar sem estragar a paisagem... E quem lá morava também era gente fina, um senhor de trato amável, que os recebeu amavelmente, até porque eles vinham como amigos, mas como arranjaram maneira de serem recebidos como amigos é que eu já não digo, porque não se trata de um pormenor... nem é pormenor a forma como se desenrolaram exactamente as coisas, estavam eles sentados naqueles belos sofás cobertos com xailes tradicionais de Castela e o senhor ofereceu-lhes um brandy da melhor qualidade, um Carlos Primero envelhecido, pormenor que vale a pena sublinhar, porque o brandy facilita a digestão, e, pormenor igualmente importante, porque tinham jantado lautamente, ele e Taddeo, importante não só pelo gaspacho e as angulas no forno, pratos que Taddeo nunca provara, mas porque quando acabaram de jantar já era noite, e bastante tarde... Um brandy que Taddeo apreciou a ponto de aceitar mais um, e depois outro, e quando já ia no terceiro disse, e cá está outro pormenor, que aquela noite estava mesmo a pedi-las, que precisava de qualquer coisa que lhe aquecesse um pouco as veias... E teríamos então chegado ao essencial, a que te pouparei como prometido... gostaria apenas de acrescentar que antes do essencial já Tristano pousara em cima da mesinha a fotografia de um rapaz sentado num cadeirão de vimes, sob uma pérgula, com um jarro de água à frente e um livro nas mãos, percebe-se que é Verão, e o rapaz tem o cabelo escuro e liso, um rosto alegre e o sorriso de quem tem a vida à sua espera... E ao mostrar aquela fotografia dissera... dissera... não me lembro, escritor, juro, seria incapaz de repetir as palavras exactas, mas visto que não se trata de um pormenor explico-te a ideia, supõe que ele teria dito que fazia questão em esclarecer que aquele rapaz era filho dele e que o amara muito... E nessa altura aquele senhor de trato amável percebeu tudo e tornou-se muito menos amável, como podes imaginar, Tristano não se ficou por aquelas palavras, porque já que ali estava tinha interesse em saber donde provinham as ordens dadas a pessoa tão amável... de que serviços, se dos outros, isto é, de além-Atlântico, se dos nossos. E sendo de origem nacional, dos que se tinham afastado do bom caminho ou dos que tinham achado o caminho certo? Mas tudo isto são pormenores que deixo à tua reflexão, escritor, aliás, se tiveres paciência, nos arquivos do parlamento da nossa república há um dossier de vários milhares de páginas... trata-se dos documentos de uma comissão com um nome singular, que não existe em mais nenhum país da Europa, proeza de que só nós podemos gabar-nos, e que dá pelo nome de comissão parlamentar para os massacres, documentos que qualquer cidadão pode consultar, se arranjares tempo passa os olhos por eles, deixo-tos com a mesma boa vontade com que deixo este século... E finalmente, quando as serpentes da cabeça da Medusa sossegaram, eles saíram para a noite, Taddeo retomou o volante, estava um luar magnífico, luna luna luna el niño la mira mira el niño la está mirando, quando passaram pelo largo da igreja Tristano reparou que havia um marco do correio no muro do campanário, e achou que era o marco mais indicado para o postal que escrevera a Rosamunda, Miss Marilyn-Rosamunda, Pancuervo Celeste, Cosmos. Era a morada... a morada que nenhum carteiro do mundo conseguiria localizar, mas Tristano gostou de fazer aquilo, era como se se tivesse libertado de um peso... In dreams begins responsability, fiz o que me pediste em sonhos, um adeus de Tristano.

Avistavam-se ao longe umas fogueiras nos montes, talvez pastores. Anoitecia e um anil pálido tingia de turquesa a barra da planície, lembrou-se de uma palavra sepultada pelos anos, turchinetto, esse líquido azulado que as mulheres acrescentavam à água da barrela... e entretanto a estrada corria direita à montanha, na encosta acendera-se um cacho de luzes, talvez uma aldeia, não, não é Tebas, disse Ghiannis, embora Tebas seja hoje uma aldeia, já por lá passámos mas não deste por isso, deve ser uma cidadezinha qualquer, mas prepara-te agora para um série de curvas, estamos a subir a caminho do Parnaso, que aparece nos livros como uma colina suave e afinal é um maciço montanhoso, podemos parar e comer qualquer coisa em Arachova... E Ghiannis pôs-se então a falar da guerra da Crimeia, sabe-se lá porquê, e Tristano voltou a lembrar-se da sua professora de instrução primária, muito gostava ela do livro de leitura, e naquele Parnaso de musas defuntas despontaram na noite rostos sem rosto, o general Lamarmora e os seus bersaglieri, e sobretudo uma voz que cantava eu tinha um cavalinho malhado... Mas a lua era um disco gelado, a estrada um deserto, um cão vadio especado à beira de uma curva parecia aguardar alguém, de pescoço esticado e cabeça erguida, como que a uivar... E com essa imagem chegou-lhe outra voz, uma daquelas vozes que se tinham alojado dentro dele, talvez sempre a mesma mas com timbres diferentes, e entoava um lamento como uma canção de embalar... Antheos, disse, se sabes aquele poema das vozes recita-mo em grego, por favor. Não me chamo Antheos, disse Ghiannis, chamo-me Ghiannis. Vai dar ao mesmo, respondeu Tristano, a tua voz é igualzinha à de um amigo que conheci na Plaka há muitos anos, mas eu tratava-o por Marios, falam-nos por vezes em sonhos, por vezes ecoam-nos no peito, ou no cérebro, se quiseres... Começaram a subir a encosta do monte, com o olival de Delfos estendido a seus pés, pararam em frente do onphalòs... ergueu os olhos. Era um céu baixo, com uma espessa camada de nevoeiro orvalhado, Tristano afagou a superfície circular da pedra e começou a subir em direcção ao templo de Apolo. Sob o pórtico do tesouro de Atenas, ao abrigo da chuva, estava um homenzinho mal vestido, tinha um buzuki pousado nos joelhos e mal o viu pôs-se a dedilhar as cordas do instrumento. Tristano deu-lhe uma moeda e o outro começou a cantarolar uma canção talvez antiga de que Tristano só a custo percebeu o estribilho, tram to teleftèo e depois um tlim-tlim... era uma música popular e triste... Pediu-lhe que pronunciasse melhor, não conseguia perceber... Essùrossa ki arghìsame, ma osso ke na fteo, perpàta na prolàvume, to tram to teleftèo... embebedei-me, fizemos uma noitada, sei que fiz mal, despacha-te, vem aí o último eléctrico, tlim-tlim toca a campainha na noite, tlim-tlim... o último eléctrico... Pediu a Ghiannis que esperasse por ele e retomou a subida para o templo de Apoio, equilibrando-se a custo no piso que a chuva deixara escorregadio. Apoiou a mão numa coluna quebrada e fez um gesto, lera algures que era assim que se invocava o oráculo. Sentou-se à chuva e acendeu um cigarro... De Pitonisas nem sombra, está bem de ver, tinham morrido todas há séculos. Sou mesmo idiota, disse para consigo, vir de tão longe para aqui chegar, bastava que te concentrasses a preceito, uma bela enxaqueca caseira e a Pitonisa aparecia-te em casa... Desatara a chover com força, levantou-se e foi descendo lentamente no escuro. Lá longe, no horizonte, viam-se as luzes da costa, Galaxidi... era um carreiro de luzes bruxuleantes, amareladas, só uma delas era branca, estranha aquela luz branca no meio de uma fiada de luzes amareladas, Tristano fixou-a e a luz veio ao seu encontro, aproximava-se a uma velocidade incrível até que o atingiu como um meteorito, e ele deu consigo numa praça fria e deserta, defronte a um oficial nazi estendido no chão, enquanto contemplava perplexo a sua espingarda e uma rapariga abria um portão e lhe fazia sinal para entrar... Não era este o enigma cuja explicação eu procurava, murmurou para consigo, tenho bem presente esse passado... Eu sei, respondeu o cipreste não foi por esse passado que aqui vieste... vieste para que seja a minha voz a contar o teu verdadeiro passado, porque tu não tens coragem para o fazer, confias em mim, que prevejo o futuro, para prever aquilo que pertencendo ao passado nunca poderá mudar... então ouve... um dia, já lá vão muitos anos, achar-te-ás num bosque, no meio das montanhas, a madrugada será lívida e fria, e estarás escondido atrás de um rochedo, de metralhadora em punho, à espera que os inimigos saiam de um casebre em ruínas... estarás impaciente, a tiritar de frio e de medo, porque terás de levar a cabo uma pesada tarefa e depende de ti o destino de todos os teus companheiros e do ideal por que decidiste lutar... e finalmente esses teus inimigos sairão, e haverás de matá-los a todos com rajadas certeiras... sobre aquela clareira no meio da serra abateu-se agora um silêncio sepulcral, e tu ergues-te triunfante, és o novo comandante daquele destacamento, és um herói, mataste-os a todos, vingaste inclusivamente o velho comandante massacrado pelos inimigos... mas nesse momento o inesperado acontece, há qualquer coisa que te faz latejar as fontes e te deixa gelado... uma mulher saiu do casebre, traz os cabelos em desalinho, como se não tivesse tido tempo de se arranjar pela manhã, e os olhos esbugalhados de espanto e terror... vê-te, estaca em pleno terreiro, no meio dos cadáveres dos soldados, como uma estátua, e grita, traidor!, andavas a espiar, és um traidor!... Gostarias de ir ao seu encontro, de lhe dizer que se tratava apenas de um velho comandante e que por um só homem eliminaste-os a todos... mas não dizes uma única palavra, como se o teu pensamento se congelasse no ar sem achar voz... será possível?... nessa noite ela deveria estar em missão no vale, e afinal... era ali que ela estava... agora apontaste-lhe a metralhadora, ela surge no centro da mira, um único disparo e estarás vingado e com ela desaparecerá a única testemunha daquilo que realmente acontecera, e serás um herói perfeito... Mas não irás disparar, a Pitonisa sabe-o, tal como tu... Sabias que ela passava as noites naquele casebre, ó peregrino? Foi por isso que andaste a espiar? Ou porque querias realmente eliminar o pelotão alemão? Ou porque aquele comandante lutava contra um inimigo comum, mas por acreditar num futuro diferente daquele em que tu acreditavas, também ele era teu inimigo?... Há três hipóteses na tua vida, peregrino, mas à Pitonisa não é dado conhecê-las, porquanto ela pode prever os acontecimentos, mas não as vontades que os provocaram, porque as Pitonisas podem conhecer aquilo que acontece fora dos homens, mas ler-lhes no pensamento não podem nunca.

... E afinal o mundo é feito de actos, de acções... de coisas concretas que acabam por passar, porém, porque a acção, escritor, verifica-se, acontece... e acontece apenas naquele preciso momento, e depois desaparece, deixa de existir, foi. E para ficar são precisas palavras que façam com que continue a ser, que testemunhem. Não é verdade que verba volant. Verba manent. De tudo aquilo que somos, de tudo aquilo que fomos, ficam as palavras que dissemos, as palavras que tu agora escreves, escritor, e não aquilo que eu fiz em determinado lugar e em determinado momento. Ficam as palavras... as minhas... sobretudo as tuas... as palavras que testemunham. No princípio não era o verbo, mas no fim, escritor. Mas quem testemunha pela testemunha? A questão é esta, ninguém testemunha pela testemunha... Feliz, infeliz, não é este o problema que me ponho, sabes, escritor, aquilo que me consola é que nessa grande adição, nessa vossa odiosa adição cheia de números, eu não apareço como uma unidade entre as demais, não me incluíram na soma, vês, queriam-me par e eu era ímpar, fiz com que errassem as contas... É a minha poesia das segundas-feiras, ou das terças... a dos domingos esqueci-a porque não gostava dela, e ofereço-te esta.

... Mas apesar do que te dizia há pouco, tenho uma vantagem em relação a ti, amigo, eu sou voz e a tua é mera escrita, a minha é voz... a escrita é surda... estes sons que ouves agora no ar sobre a tua página hão-de morrer, a escrita fixa-os e mata-os, como um fóssil cristalizado no quartzo... a escrita é uma voz fóssil, e já não tem vida, o espírito que possuía com aquelas ondas que vibravam no espaço desvaneceu-se... dentro em pouco a minha voz terá desaparecido, a tua escrita ficará... poderás gravá-la com o teu instrumento, é certo, mas estará morta, uma vez mais as palavras serão sempre as mesmas, imutáveis, infinitamente desprovidas de vontade, não uma voz, o simulacro de uma voz... ao passo que aquilo que eu te vou dizendo, apesar de o dizer a custo, com estas minhas cordas vocais esfaceladas, que rouquejam ofegantes, são palavras vivas, porque são a minha respiração, enquanto houver... a voz é respiração, escritor, põe-te à escuta, não ouves o pesado silêncio lá de fora quebrado pelo choro da cigarra? E a respiração opressiva do campo em Agosto... não a ouves?... respira como tu e como eu, e tudo respira ao redor, este globo que roda no espaço, nós que giramos sobre ele, e o espaço em que giramos, e o universo em que gira o espaço, e os universos em que o universo gira... mas não penses agora na rotação da terra, escritor, pensa antes na minha cabeça, estou a ficar com enxaqueca, precisamente agora, que me aproximo do fim, as enxaquecas são duras de morrer, mais duras do que nós, vê se me arranjas alguma coisa aí na cómoda, uma pastilha qualquer... e, se existe, deus também respira... há-de ter uns pulmões... cósmicos, se calhar, com alvéolos monstruosos que abrem e fecham como mandíbulas, numa respiração desmedida, mas respira... hoje é o meu último dia, ou o penúltimo, não sei bem ao certo, mas acredita naquilo que te digo, o meu sopro aproxima-se do fim, eu sinto, e portanto também a voz, esta voz que te contou uma vida como pôde, desculpa, gostaria de me ter saído melhor, mas espero que percebas... a vida não se conta, já to disse, a vida vive-se, e ao vivê-la perde-se, foge... tanto assim que aquilo que ouviste é um tempo ressuscitado, mas não o tempo da respiração que foi viva, essa é irrepetível, podemos tão-só contá-la, como uma grafonola... E depois repara, não te contei nada de novo, contei-te uma história antiga, uma história que a História contou de mil maneiras, pobre coitada, nem a ela nem a nós homens resta muito por onde escolher, como terá dito alguém... por isso há sempre quem tenha de sacrificar-se por uma boa causa... no princípio da nossa história tocou a Judas, e vê o desprezo que se lhe seguiu, deveria reflectir-se mais no sacrifício que ele fez, não é nada fácil fazer uma escolha daquelas, mesmo por uma boa causa, trata-se de uma escolha suprema, a escolha das escolhas, merecia ser reabilitado, visto que hoje se reabilitam certos tipos de alto lá com eles... há um teu colega argentino que enfrentou o enigma como poucos, li-o e reli-o... magnífico... mas acaba por fazer disso uma teoria, talvez conhecesse mal a vida, conhecia melhor os seus mecanismos, os chamados paradigmas... Mas ao escavarmos nos paradigmas, muitas vezes encontramos merda, e essa é difícil de solucionar, a merda não tem solução... Falas de um herói e se calhar encontras merda... e que fazes tu com ela, uma estátua? Por que não, afinal é essa a função das palavras impressas, também elas são para memória futura como as estátuas, memória e esquecimento ao mesmo tempo, porque o primeiro elemento acabará um dia por ser devorado pelo segundo... mas ainda que fosse tão-só esquecimento seria já muito, porque antes dele teria havido memória, que ao que dizem se refere à realidade, e receio que as palavras estejam convencidas que a captam... a meu ver descrevem apenas o seu mecanismo, e eis-nos de volta ao paradigma... Mas lá por baixo, a vida... a vida pulula como quando levantas uma pedra e descobres um formigueiro, e as formigas fogem em todas as direcções... chamamos-lhe formigueiro e damo-nos por satisfeitos, mas um formigueiro é feito de formigas, e entretanto elas fugiram todas. Fica-te o quê? Um buraco. Escava, continua a escavar.

Quem sabe como serás odiado por teres contado a minha história... e sobretudo no país em que te calhou viver... e no século em que estás a entrar. Sabes, se há alguém que os judas de meia-tigela, aqueles que atraiçoam por atraiçoar, odeiam sem tréguas, esse alguém é precisamente Judas, que traiu por fidelidade... mas não ligues a isso, tiveste um privilégio, ouviste a voz de Tristano, ouviste-a de viva voz, como se costuma dizer, depois mais ninguém a ouvirá porque terá morrido. Agora Tristano está realmente cansado, mal respira, não o ouves, apetecia-lhe dormir, não o sono breve de uma injecção, mas um sono longo, como há-de ser o sono que repare a canseira de ter vivido... É tempo de as pálpebras baixarem e estenderem por dentro uma sombra mais escura do que estas persianas... Nunca me dizes em que dia estamos, ou serei eu que me esqueço, mas ainda estamos em Agosto, a canícula aproxima-se do fim, já sinto por aí um cheirinho a Setembro, não sei bem quê, a Setembro, mas despachei-me primeiro, enganei-o... Sabes o que está Tristano a ver, debaixo das pálpebras? Vê uma noite de Agosto de há muitos anos, muitos mesmo, o menino sentado ao colo do avô é ele, estão na eira desta quinta e o avô conhece bem o céu e prometeu-lhe explicá-lo naquela noite, é um homem ríspido, o avô, desceu à Sicília para atirar aos Bourbons e guarda uma camisa vermelha numa cómoda que rescende a cânfora, todos o tratam por você, mas o menino pode tratá-lo por tu, e o avô farta-se de rir com ele, agora pegou-lhe na mão e ergue-a bem alto, para o céu estrelado, e diz-lhe que feche um olho como se apontasse um mosquete, um pouco mais a montante, diz, agora um pouco mais a jusante, estás a ver?, aquela é Orion, atrás de nós fica o setentrião, que é a montante, como diz o teu avô, percebeste, Ninototo? Agora o avô tem uma voz curiosa debaixo das pálpebras cerradas de Tristano, o avô e o menino com quem ele fala são a mesma pessoa, estranha coisa. Mas será mais estranha do que o céu, com todas as estrelas que existem desde sempre?... As coisas do mundo são tão velhas que à força de serem velhas rejuvenescem, como se estivessem cansadas de ser velhas. Vamos começar a poente, diz o avô, não, espera, vamos começar a sul, a jusante, como o teu avô lhe chama quando fala com os campinos da Toscana. Vamos começar a sul que é onde está o cavalinho, chama-se Pégaso, eu já to mostro, olha para o meu dedo, ouvi dizer que ao deitar a avó canta-te a canção do cavalinho malhado para te embalar, eu tinha um cavalinho malhado contava os passos que a lua dava... lá está ele, são aquelas estrelas ali, chama-se assim porque tem uma história, foi o cavalinho que Mercúrio ofereceu a um amigo, mas os gregos não lhe chamavam Mercúrio, chamavam-lhe Hermes, quem descobriu as estrelas foram os gregos, porque nasceram primeiro, mas as estrelas ainda nasceram antes deles, e ali fica o leste, o Oriente, de onde veio tudo, é de lá que tudo vem, desse Oriente magnífico e antigo onde os homens compreenderam as coisas em abstracto, nós estamos a jusante, Ninototo, não descobrimos nada apesar de nos julgarmos extraordinários, mas agora o meu discurso está a levar-me longe de mais, vamos lá continuar com calma, ao pé de Pégaso fica o Cisne e aquela ali é a estrela mais brilhante do Cisne, chama-se Albireu, com o meu óculo consegue-se ver-lhe a cor, é cor de laranja, e ao pé dela está Deneb, como lhe chamam os árabes, ou seja, a cauda... espera, enganei-me, Deneb é mais brilhante, e tem um companheiro, um companheiro estranho, porém, só se mostra de cinco em cinco anos, e houve um jovem que foi transformado naquela constelação ali, chamava-se Faetonte, fazia o mesmo que o Amilcare, que guia o carro dos bois, só que o Faetonte guiava o carro do sol, mas como era imprudente acabou numa ribanceira e os deuses transformaram-lhe o carro nas estrelas que estás a ver. Agora vamos para outro lado e tu segue o meu dedo, tens ali o Capricórnio e o Aquário, são umas estrelas fracas, parecem as lamparinas dos cemitérios, eu nem as vejo, precisava de um óculo, mas tu ainda vês bem... como é que eu sei isto tudo de cor?, é porque o céu é igual todos os verões, Nino-toto, sempre igual, e eu contemplei-o em todos os verões da minha vida...

Hoje toda a gente se trata por tu, já deves ter reparado, é uma forma despachada e falsamente confidencial. Eu não gosto, porque é inconveniente... Acho que quando duas pessoas se estimam devem tratar-se por você, é uma forma que revela civilidade e respeito pelo outro. E além disso marca aquela distância necessária para exprimirmos mutuamente que apesar de nos conhecermos bem, intimamente, até, e de sabermos os nossos respectivos segredos, continuamos a fazer de conta que não, que não sabemos certas coisas, e fazemo-lo para que o outro se sinta mais à-vontade, como quando alguém te confessou uma coisa importante que não diria a ninguém, mas era como se estivesses distraído, claro que não é bem assim, ouviste-o com muita atenção, mas... lá está, é como se já não estivesses a pensar nisso, guardaste aquilo num compartimento secreto do teu coração e fechaste-o à chave... Agora que chegou o momento de nos despedirmos, gostaria de tratar-te por você. Tenho a certeza que compreendes, é um pormenor que não deixa de ter importância... inclusivamente pelo que terás de escrever a meu respeito. Achas bem?

Parece-me que a varejeira ainda aí anda, enxote-a, não quero que venha pousar-me na boca quando a tiver fechado. Quando escrever esta história, fará dela um livro, no livro ponha o seu nome, o meu não quero, não quero ser aquele que conta, quero ser contado... Você escreveu certo dia que Tristano conheceu o medo, e eu confirmei. Mas o verdadeiro medo é outro, esse era de pouca monta, porque tinha o privilégio do aleatório, podia correr-lhe mal, mas também podia safar-se... O verdadeiro medo é quando se tem a hora marcada e se sabe que será inevitável... é um medo estranho, insólito, experimenta-se apenas uma vez na vida e nunca mais, é como uma vertigem, como se se escancarasse uma janela sobre o nada, onde o pensamento se afoga realmente, como que aniquilado. É este o verdadeiro medo... Daqui a pouco, quando deixar de ouvir a minha respiração, abra essa janela de par em par, deixe entrar a luz e os barulhos do mundo vivo, são seus, meu é o silêncio. E vá-se embora imediatamente, feche a porta e deixe ficar o cadáver, aquilo não sou eu, já dei instruções à Frau para o despachar sem delongas... Há um amor religioso pela morte que tem qualquer coisa de necrófilo, como se se amasse mais os cadáveres do que os vivos... Uma morte bonita... que disparate, a morte nunca pode ser bonita, a morte é feia, sempre, é a negação da vida... Dizem que a morte é um mistério, mas o facto de se ter existido é um mistério maior, aparentemente é banal, e no entanto é bem misterioso... Olhe, por exemplo, o facto de eu e você nos encontrarmos aqui, no mesmo quarto, neste preciso momento, é muito misterioso, ou de qualquer modo bastante singular, não lhe parece?... Bem haja... Gostaria de lhe dar outro presente, vê aquela fotografia em cima do toucador?, não, não é a que está em cima da cómoda, é a do móvel com o espelho, ao lado da redoma de vidro, onde os ponteiros do relógio continuam a girar, porque os ponteiros não param nem quando nós paramos, quem inventou os relógios fomos nós, mas obedecem a outro patrão... é a que está numa moldura de ébano com um homem de costas a caminhar à beira-mar... vê aquelas casas ao fundo?... era a aldeia onde vivia a minha mãe, o meu pai vai-se casar, por isso veste a rigor apesar de estar na praia, depois da cerimónia trará a minha mãe para aqui, para esta casa onde eu nasci e que não tarda estará à venda, pela morte da Frau... É uma fotografia bonita, ofereço-lha, ponha-a na capa do seu livro, não é Tristano mas não deixa de o ser, visto que é o pai dele... Volta-nos as costas como que a despedir-se, que afinal foi o que eu fiz consigo estes dias todos e faço agora pela última vez... Que horas são, aí no pêndulo? Pode parecer-lhe estúpido, mas quero saber as horas, é a última coisa que quero saber... De qualquer modo, amanhã também é dia, como se costuma dizer. 

 

                                                                                António Tabucchi  

 

 

                      

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