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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRONO DE OURO E CINZAS / Leigh Bardugo
TRONO DE OURO E CINZAS / Leigh Bardugo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

DIMA OUVIU AS PORTAS DO CELEIRO baterem antes de todos os outros. Na pequena casa de fazenda, a cozinha borbulhava como uma panela no fogão, com suas janelas trancadas firmemente contra a tempestade e o ar no cômodo quente e úmido. As paredes sacudiam com a balbúrdia, enquanto os irmãos de Dima falavam um mais alto que o outro e sua mãe cantarolava e batia o pé ao ritmo de uma canção que Dima não conhecia. Ela segurava a manga rasgada de uma das camisas do pai dele sobre o colo e, com a agulha, perfurava o tecido com o ritmo irregular de um pardal diligente, uma meada de lã escorrendo entre seus dedos como uma minhoca.
Dima era o mais novo de seis garotos, o bebê que tinha chegado tarde, bem depois que o médico, que passava todo verão pelo vilarejo, dissera à mãe que não haveria mais crianças. Uma bênção inesperada, mamãe gostava de dizer, abraçando Dima apertado e paparicando-o enquanto os outros estavam ocupados com seus afazeres. Uma boca indesejada para alimentar, desdenhava o irmão Pyotr.
Como Dima era muito pequeno, com frequência era excluído das piadas dos irmãos e esquecido nas discussões barulhentas da família, e foi por isso que, naquela noite de outono, em pé diante da bacia, ensaboando a última panela que os irmãos tinham feito questão de deixar para ele, só ele ouviu o pam! alarmante das portas do celeiro. Dima esfregou com mais força, determinado a concluir o serviço e ir para a cama antes que alguém pudesse cogitar enviá-lo para a escuridão. Podia ouvir a cadela da família, Molniya, ganindo nos degraus fora da cozinha, implorando por sobras e, conforme o vento se erguia em uivos raivosos, por um canto quente para dormir.
Ramos de árvores fustigavam as janelas. Mamãe ergueu a cabeça, os sulcos sombrios ao redor da boca se aprofundando. Ela franziu o cenho como se pudesse mandar o vento para a cama sem jantar.
— O inverno sempre chega cedo e fica tempo demais.
— Hmm — comentou papai —, como sua mãe. — Mamãe o chutou com a bota.

 


 


Ela havia deixado um copinho de kvas atrás do fogão naquela noite, um presente para os fantasmas da casa que cuidavam da fazenda e dormiam atrás do velho fogão de ferro para se manterem aquecidos. Pelo menos era o que ela dizia – papai só revirava os olhos e reclamava que era um desperdício de um bom kvas.

Dima sabia que, quando todos tivessem ido dormir, Pyotr tomaria a bebida e devoraria a fatia de bolo de mel que mamãe tinha deixado embrulhada em tecido. “O fantasma da bisa vai assombrar você”, Dima avisava às vezes. Mas Pyotr só enxugava o queixo com a manga e dizia: “Não existem fantasmas, seu idiota. Baba Galina virou almoço dos vermes do cemitério. E a mesma coisa vai acontecer com você, se não mantiver a boca fechada”.

Pyotr se inclinou e acotovelou Dima com força. Dima se perguntava muitas vezes se o irmão fazia algum exercício especial para tornar seus cotovelos mais pontudos.

— Ouviu isso? — perguntou Pyotr.

— Não tem nada pra ouvir — disse Dima, sentindo o coração pesar. A porta do celeiro...

— Tem alguma coisa lá fora, voando na tempestade.

Então o irmão só estava tentando assustá-lo.

— Não seja idiota — retrucou Dima, mas estava aliviado.

— Escute — insistiu Pyotr, e, conforme o vento sacudia o teto da casa e o fogo crepitava na lareira, Dima pensou ter ouvido algo além da tempestade: um grito alto e distante, como o uivo de um animal faminto ou o lamento de uma criança. — Quando o vento sopra pelo cemitério, acorda os espíritos de todos os bebês que morreram antes de receber o nome do seu Santo. Malenchki. Eles saem à procura de almas para roubar e trocar pela entrada no paraíso. — Pyotr se inclinou e cutucou o ombro de Dima. — E sempre pegam o mais novo.

Dima tinha oito anos, sendo velho o bastante para saber que era só uma história, mas seus olhos vagaram para as janelas escuras e o curral iluminado pelo luar, onde as árvores se curvavam e balançavam ao vento. Ele se encolheu. Poderia jurar... Só por um momento, poderia jurar ter visto uma sombra correndo lá fora, um borrão escuro muito maior que um pássaro.

Pyotr riu e espirrou água ensaboada nele.

— Juro que você fica mais burro a cada dia. Quem iria querer essa sua alminha de nada?

Pyotr só tem raiva porque, antes de você, ele era o caçula, mamãe sempre dizia a Dima. Você deve tentar ser gentil com o seu irmão, mesmo que ele seja mais velho e não mais sábio. Dima tentava, realmente tentava. Mas às vezes queria empurrar Pyotr de bunda no chão e ver se ele iria gostar de se sentir pequeno.

O vento amainou e, no instante súbito de silêncio, não havia como ignorar o baque pesado que ecoou através do curral.

— Quem deixou as portas do celeiro abertas? — perguntou papai.

— Dima estava encarregado do celeiro hoje — respondeu Pyotr virtuosamente, e os irmãos, reunidos ao redor da mesa, soltaram risinhos como galinhas agitadas.

— Eu fechei — protestou Dima. — Desci a barra!

Papai se recostou na cadeira.

— Então eu imaginei aquele som?

— Ele provavelmente acha que foi um fantasma — disse Pyotr.

Mamãe ergueu os olhos dos remendos.

— Dima, vá fechar as portas e baixar as barras.

— Eu vou — anunciou Pyotr com um suspiro resignado. — Todo mundo sabe que Dima tem medo do escuro.

Mas Dima sentiu que aquilo era um teste. Papai esperaria que ele se responsabilizasse.

— Eu não tenho medo — ele disse. — É claro que vou fechar as portas.

Dima ignorou o olhar satisfeito de Pyotr; enxugou as mãos e pôs o casaco e o chapéu. Mamãe estendeu-lhe um lampião.

— Vá depressa — ela pediu, erguendo o colarinho para manter o pescoço dele aquecido. — Volte correndo e eu coloco você na cama e te conto uma história.

— Uma história nova?

— Sim, e muito boa, sobre as sereias do norte.

— Tem magia nela?

— Um monte. Agora, vá.

Dima olhou de relance para o ícone de Sankt Feliks na parede, ao lado da porta. O Santo tinha o rosto iluminado pelas chamas tremeluzentes das velas e seu olhar era cheio de compaixão, como se soubesse quão frio estava lá fora. Feliks havia sido empalado em um espeto de ramos de macieira e cozinhado vivo poucas horas após realizar o milagre dos pomares. Não tinha gritado nem chorado, só sugerido que os aldeãos o virassem para que as chamas pudessem atingir o outro lado do corpo. Feliks não teria sentido medo de uma tempestade.

Assim que abriu a porta da cozinha, o vento tentou roubá-la de suas mãos. Dima a bateu atrás de si e ouviu o trinco se fechar do outro lado. Sabia que era temporário, uma necessidade, mas ainda assim sentiu que estava sendo punido. Olhou de volta para as janelas iluminadas enquanto forçava os pés a descerem para a grama seca do curral, e teve a sensação terrível de que, assim que deixara o calor da cozinha, sua família o esquecera — e que, se ele nunca retornasse, ninguém gritaria por ele ou soaria o alarme. O vento apagaria Dima da memória de todos.

Ele avaliou a longa extensão, iluminada pelo luar, que teria que percorrer, passando pelo viveiro das galinhas e o galpão dos gansos até chegar ao celeiro, onde a família abrigava seu velho cavalo, Gerasim, e a vaca Mathilde.

— Munido com lâminas serrilhadas de aço — ele sussurrou, correndo a mão sobre o novo arado enquanto passava, como se fosse um talismã de sorte. Ele não sabia bem por que as lâminas eram melhores, mas, quando o arado chegara, o pai tinha repetido aquelas palavras orgulhosamente para os vizinhos, e Dima gostava de como soavam. Houvera longas discussões na mesa da cozinha sobre o arado, assim como sobre todas as reformas agrícolas do rei e quais problemas ou esperanças elas trariam.

— Seguimos rumo a outra guerra civil — mamãe tinha resmungado. — O rei é precipitado demais.

Mas papai estava contente.

— Como pode se preocupar tendo a barriga cheia e o telhado consertado com piche novo? Esse foi o primeiro ano em que a colheita rendeu o suficiente pra vendermos no mercado em vez de só alimentarmos a nós mesmos.

— Porque o rei reduziu drasticamente os tributos que o duque Radimov recebia! — mamãe exclamou.

— E deveríamos ficar tristes com isso?

— Ficaremos quando o duque e seus amigos nobres assassinarem o rei na cama dele.

— O rei Nikolai é um herói de guerra! — argumentara papai, abanando a mão como se os problemas pudessem ser banidos como fumaça de charuto. — Não haverá golpe sem o apoio do exército.

Eles discutiam sem chegar a lugar algum, debatendo as mesmas coisas noite após noite. Dima não entendia a maior parte das conversas; só sabia que deveria lembrar do jovem rei em suas preces.

Os gansos grasnaram e se remexeram no galpão, agitados pelo vento ou pelos passos nervosos de Dima. À sua frente, viu as grandes portas de madeira do celeiro abrindo-se e fechando-se como se o prédio estivesse suspirando, como se a abertura fosse uma boca que poderia sugá-lo para dentro com uma única inspiração. Ele gostava do celeiro durante o dia, quando a luz do sol entrava através das ripas do telhado, tudo tinha cheiro de feno e os únicos sons eram o resfolegar de Gerasim e os mugidos desaprovadores de Mathilde. Mas à noite o celeiro tornava-se uma concha oca, esperando que alguma criatura terrível a ocupasse – alguma coisa astuciosa que poderia deixar as portas se abrirem para atrair um garoto tolo para fora de casa. Porque Dima sabia que tinha fechado aquelas portas. Estava certo disso, e não podia deixar de pensar nos malenchki de Pyotr, fantasminhas caçando uma alma para roubar.

Pare com isso, Dima se repreendeu. Pyotr destrancou as portas só pra você ter que sair no frio ou se envergonhar ao recusar. Mas Dima tinha mostrado aos irmãos e ao pai que podia ser corajoso, e a ideia o aqueceu enquanto erguia o colarinho até as orelhas e tremia com o vento cortante. Só então ele percebeu que não conseguia mais ouvir os latidos de Molniya. Ele não a vira do lado de fora da porta, tentando entrar na cozinha, quando saiu da casa.

— Molniya? — ele chamou. O vento tomou sua voz e a lançou para longe. — Molniya! — repetiu, só um pouco mais alto, para o caso de alguma coisa além da sua cadela estar ouvindo.

Passo a passo ele cruzou o curral, onde as sombras das árvores debatiam-se e estremeciam no chão. Além do bosque, podia ver a faixa larga que era a estrada. Ela levava até a cidade, até o cemitério. Dima não deixou seus olhos seguirem o caminho. Era fácil demais imaginar um corpo desengonçado e vestido em trapos viajando por aquela estrada, arrastando consigo torrões de terra do cemitério.

Ele ouviu um ganido baixinho em algum lugar entre as árvores e soltou um gritinho. Olhos amarelos o encaravam do escuro. O brilho do lampião caiu sobre patas pretas, pelo eriçado e dentes expostos.

— Molniya! — ele disse, com um suspiro aliviado. Ficou grato pelo gemido da tempestade. A ideia de que os irmãos ouviriam seu gritinho agudo e vergonhoso e correriam para fora só para encontrar a pobre cadela se encolhendo nas moitas era horrível demais para contemplar. — Venha, garota — ele chamou. Molniya tinha pressionado a barriga contra o chão e achatado as orelhas contra a cabeça. Não se mexeu.

Dima olhou para o celeiro outra vez. A barra que deveria estar fechando as portas, mantendo-as trancadas, estava esmigalhada no chão. Vindo de dentro, ele ouviu algumas fungadas baixas e úmidas. Será que um animal ferido tinha ido parar lá dentro? Ou um lobo?

A luz dourada das janelas da casa parecia impossivelmente distante. Talvez ele devesse voltar e chamar ajuda. Certamente não esperariam que enfrentasse um lobo sozinho. Mas e se não tivesse nada lá dentro? Ou algum gato inofensivo que Molniya tinha atacado? Todos os irmãos iam morrer de rir, não só Pyotr.

Dima se aproximou relutante, mantendo a lanterna esticada ao máximo. Esperou que a tempestade se aquietasse e agarrou a porta pesada pela borda, para que não batesse nele enquanto entrava.

O celeiro estava escuro, quase intocado pelas ripas de luar. Dima avançou pé ante pé na escuridão. Pensou nos olhos gentis de Sankt Feliks, nos ramos de macieira espinhosos perfurando seu coração. Então, como se a tempestade estivesse só reunindo fôlego, o vento ficou mais forte. As portas atrás de Dima se fecharam com um estrépito e a luz fraca do lampião tremeluziu e se apagou.

Lá fora a tempestade rugia, mas o celeiro estava silencioso. Os animais tinham se calado como se esperassem alguma coisa, e ele podia sentir o cheiro azedo do seu medo sobre a doçura do feno – e mais alguma coisa. Dima conhecia aquele cheiro de quando eles mataram os gansos para um dia de festa: o travo quente e cobreado de sangue.

Volte, ele disse a si mesmo.

Na escuridão, alguma coisa se mexeu. Dima viu um lampejo de luar, o brilho do que poderiam ter sido olhos. E então foi como se um pedaço de sombra se afastasse da parede e deslizasse pelo celeiro.

Dima recuou um passo, apertando o lampião inútil contra o peito. A sombra vestia os resquícios esfarrapados do que poderiam ter sido roupas elegantes, e, por um momento esperançoso, ele pensou que um viajante tinha encontrado o celeiro e decidido dormir para esperar a tempestade passar. Mas a coisa não se movia como um homem. Era graciosa demais, silenciosa demais, desenrolando devagar o corpo agachado. Dima começou a choramingar enquanto a sombra se aproximava. Seus olhos eram completamente pretos e veias escuras se espalhavam das pontas de dedos com garras, como se suas mãos tivessem sido mergulhadas em tinta. As gavinhas de sombra que revestiam sua pele pareciam pulsar.

Corra, Dima disse a si mesmo. Grite. Ele pensou em como os gansos tinham ido até Pyotr com tanta confiança, como não fizeram qualquer som de protesto nos poucos segundos antes de o irmão quebrar o pescoço deles. Estúpidos, Dima pensara na época, mas agora entendia.

A coisa se endireitou: uma silhueta preta com duas vastas asas que se desdobraram das costas, suas bordas se enrodilhando como fumaça.

— Papai! — Dima tentou gritar, mas a palavra saiu apenas como uma exalação.

A coisa pausou como se o som fosse, de alguma forma, familiar. Ficou ouvindo com a cabeça inclinada para o lado, e Dima recuou mais um passo, então outro.

Os olhos do monstro se desviaram abruptamente para ele e, de repente, a criatura estava a poucos centímetros do seu rosto, assomando sobre ele. Com o corpo iluminado pelo luar cinzento, Dima podia ver que as manchas escuras ao redor da boca e do peito eram sangue.

A criatura se inclinou para a frente, inalando profundamente. De perto, tinha as feições de um jovem – até que seus lábios se abriram, os cantos de sua boca recuando para revelar longas presas pretas.

Estava sorrindo. O monstro estava sorrindo – porque sabia que logo estaria bem alimentado. Dima sentiu algo quente escorrer pela perna e percebeu que tinha molhado as calças.

O monstro saltou.

As portas atrás de Dima se escancararam quando a tempestade exigiu passagem. Um crac alto soou quando a lufada de vento fez a criatura tropeçar nos pés com garras e lançou seu corpo alado contra a parede dos fundos. As vigas de madeira se estilhaçaram com a força do baque, e a coisa caiu em uma pilha de membros.

Uma figura usando um casaco cinza simples entrou no celeiro, um vento estranho sacudindo seu longo cabelo preto. A lua iluminou suas feições e Dima chorou ainda mais alto, porque ela era bonita demais para ser uma pessoa comum, e isso significava que deveria ser uma Santa. Ele tinha morrido e ela viera para acompanhá-lo até as terras iluminadas.

Mas ela não se agachou para tomá-lo nos braços ou lhe sussurrar preces ou palavras de conforto. Em vez disso, aproximou-se do monstro com as mãos estendidas. Era uma Santa guerreira, então, como Sankt Juris, como Sankta Alina da Dobra.

— Cuidado — Dima conseguiu sussurrar, com medo de que ela se ferisse. — Ele tem... dentes enormes.

Mas a Santa dele não tinha medo. Ela cutucou o monstro com a ponta da bota e o rolou para o lado. A criatura rosnou enquanto acordava, e Dima apertou o lampião com mais força, como se pudesse ser um escudo.

Com alguns movimentos ligeiros, a Santa prendeu as mãos afiadas da criatura em grilhões pesados. Ela puxou a corrente com força, obrigando o monstro a se erguer. Ele rangeu os dentes para ela, mas ela não gritou nem se encolheu: só deu um tapa no nariz da criatura como fosse um bicho de estimação malcomportado.

A coisa sibilou, puxando suas correntes em vão. Suas asas bateram uma, duas vezes, tentando levantar a Santa do chão, mas ela apertou a corrente no punho e estendeu a mão livre. Outra lufada de vento atingiu o monstro e o lançou contra a parede do celeiro. Ele caiu de joelhos no chão e ergueu-se cambaleante, ziguezagueando sem equilíbrio, de um jeito que o tornava estranhamente humano, como o pai dele quando ficava tempo demais na taverna. A Santa puxou a corrente, murmurou alguma coisa e a criatura sibilou de novo enquanto o vento redemoinhava ao redor deles.

Não é uma Santa, Dima percebeu. Grisha. Uma soldada do Segundo Exército. Uma Aeros capaz de controlar o vento.

Ela tirou o xale dos ombros e a jogou sobre a cabeça e os ombros da criatura, passando por Dima com sua presa capturada, enquanto o monstro ainda se retorcia e batia os dentes.

Ela jogou uma moeda de prata para Dima.

— Para cobrir os danos — ela disse, os olhos reluzindo como joias ao luar. — Você não viu nada hoje, entendido? Mantenha a boca fechada ou da próxima vez não vou deixá-lo na coleira.

Dima assentiu, sentindo novas lágrimas escorrerem pelas bochechas. A Grisha ergueu uma sobrancelha. Ele nunca tinha visto um rosto como o dela, mais belo que qualquer ícone pintado, olhos azuis como as águas mais profundas de um rio. Ela jogou outra moeda para ele, e ele mal conseguiu pegá-la no ar.

— Essa é para você. Não a divida com seus irmãos.

Dima a olhou atravessar as portas do celeiro e forçou os pés a se moverem. Queria voltar para casa, encontrar a mãe e se enterrar nas saias dela, mas estava desesperado para dar uma última olhada na Grisha e no monstro dela. Seguiu-os o mais silenciosamente possível. Nas sombras da estrada iluminada pelo ar, uma grande carruagem esperava, o cocheiro oculto por uma capa preta. Um homem pulou para o chão e tomou a corrente, ajudando a puxar a criatura para dentro.

Dima sabia que devia estar sonhando, apesar do peso frio da prata em sua palma, porque o homem não olhou para o monstro e disse Entre, sua besta! ou Você nunca mais vai incomodar essas pessoas!, como um herói em uma história de aventuras.

Em vez disso, nas sombras profundas projetadas pelos pinheiros balouçantes, Dima achou que o ouviu dizer:

— Cuidado com a cabeça, Alteza.


O FEDOR DE SANGUE empesteava a carruagem. Zoya apertou a manga contra o nariz para afastar o cheiro, mas o odor bolorento de lã suja não era muito melhor.

Asqueroso. Já era ruim ela ter que disparar pelo interior de Ravka na calada da noite em uma carruagem emprestada e sacolejante, mas fazer isso naquelas roupas? Inaceitável. Ela tirou o casaco. Por baixo dele, o fedor ainda se agarrava à seda de seu kefta azul bordado, mas agora ela se sentia um pouco mais como si mesma.

Eles estavam a quinze quilômetros de Ivets e a quase cento e sessenta quilômetros da segurança da capital, correndo por estradas estreitas que os levariam de volta à propriedade do seu anfitrião, o duque Radimov, para o encontro de comércio. Zoya não era muito de rezar, então só podia torcer para que ninguém tivesse visto Nikolai escapar de seus aposentos e alçar voo. Se eles ainda estivessem em casa, em Os Alta, aquilo nunca teria acontecido. Ela pensava que eles haviam tomado precauções suficientes, mas não poderia estar mais errada.

Os cascos dos cavalos trovejaram, as rodas da carruagem quicando e chacoalhando, e, ao lado dela, o rei de Ravka rangia os dentes tão afiados quanto agulhas e debatia-se contra suas correntes.

Zoya manteve distância. Ela já vira o que uma mordida de Nikolai podia fazer quando ele estava nesse estado, e não estava interessada em perder um membro ou coisa pior. Parte dela ficara tentada a pedir a Tolya ou Tamar, os irmãos que serviam como guardas pessoais do rei, que esperassem na carruagem com ela até Nikolai reassumir a forma humana. O pai deles fora um mercenário shu que os treinara nas armas, a mãe uma Grisha de quem ambos herdaram a habilidade de Sangradores. A presença de qualquer um dos gêmeos teria sido bem-vinda. Mas o orgulho a impedira, e ela também sabia o que isso custaria ao rei. Uma testemunha ao seu tormento já era ruim o bastante.

Do lado de fora, o vento uivava. Eram menos os uivos de uma fera do que a risada alta e selvagem de um velho amigo que os impelia adiante. O vento fazia o que ela queria desde que ela era criança. No entanto, em noites como aquela, não podia deixar de sentir que ele não era seu criado, e sim seu aliado: uma tempestade que se erguia para abafar os rosnados de uma criatura, para esconder os sons de luta em um celeiro dilapidado, para criar problemas nas ruas e tavernas de um vilarejo. Esse era o vento ocidental, Adezku, o encrenqueiro, um companheiro valioso. Mesmo se o garoto contasse a todos em Ivets o que vira, os aldeãos culpariam Adezku, o vento malandro que levava as mulheres para a cama dos vizinhos e fazia pensamentos loucos girarem na cabeça dos homens, como redemoinhos de folhas mortas.

Após um quilômetro, os rosnados na carruagem tinham se aquietado. O tilintar das correntes diminuiu à medida que a criatura parecia afundar cada vez mais nas sombras do assento. Por fim, uma voz rouca e cansada perguntou:

— Você não teria me trazido uma camisa limpa, teria?

Zoya pegou a sacola do chão da carruagem e tirou uma camisa branca lavada e um casaco forrado de pele, ambos elegantes mas completamente amassados – trajes apropriados para um membro da realeza que passara a noite farreando.

Sem dizer nada, Nikolai ergueu os pulsos acorrentados. As garras tinham se retraído, mas suas mãos continuavam marcadas pelas cicatrizes pretas finas que ele exibia desde o fim da guerra civil três anos antes. O rei, com frequência, usava luvas para escondê-las, mas Zoya achava que isso era um erro. As cicatrizes eram um lembrete da tortura que ele tinha sofrido nas mãos do Darkling – e do preço que ele pagara junto ao seu país. É claro, isso era só parte da história, mas era a parte que o povo ravkano estava mais apto a compreender.

Zoya destrancou as correntes com a chave pesada que usava ao redor do pescoço. Esperava que fosse só sua imaginação, mas as cicatrizes nas mãos de Nikolai pareciam mais escuras ultimamente, como se estivessem determinadas a não esmaecer.

Quando suas mãos estavam livres, o rei tirou do corpo a camisa em frangalhos. Usou o pedaço de linho e a água da garrafa que ela lhe estendeu para lavar o sangue do peito e da boca, então borrifou mais um pouco sobre as mãos e as correu pelo cabelo. A água escorreu pelo seu pescoço e ombros. Ele tremia violentamente, mas parecia Nikolai de novo – os olhos castanhos desanuviados, o cabelo dourado molhado empurrado para trás da testa.

— Onde me encontrou dessa vez? — ele perguntou, controlando a maior parte do tremor na voz.

Zoya torceu o nariz com a lembrança.

— Uma fazenda de gansos.

— Espero que tenha sido uma das fazendas de gansos mais elegantes. — Ele se atrapalhou com os botões da camisa limpa, os dedos ainda trêmulos. — Sabemos o que eu matei?

Ou quem? A questão pairou implícita no ar.

Zoya afastou com um tapa as mãos trêmulas de Nikolai e fechou os botões pessoalmente. Através do algodão fino, ela podia sentir como a noite tinha deixado a pele dele fria.

— Que pajem excelente você é — ele murmurou. Mas ela sabia que ele odiava se submeter a esses pequenos cuidados, odiava ficar tão fraco a ponto de precisar deles.

Sentir pena dele só pioraria as coisas, então ela manteve o tom brusco.

— Presumo que você tenha matado um monte de gansos. Possivelmente um pônei. — Mas será que fora só isso? Zoya não podia saber o que o monstro tinha aprontado antes que o encontrassem. — Lembra-se de alguma coisa?

— Só lampejos.

Eles teriam que esperar por quaisquer relatos de morte ou mutilação que surgissem nos dias seguintes.

O problema tinha começado seis meses antes, quando Nikolai acordara em um campo a quase cinquenta quilômetros de Os Alta, ensanguentado e coberto de hematomas, sem qualquer lembrança de como saíra do palácio ou do que fizera à noite. Parece que virei sonâmbulo, ele declarara casualmente a Zoya e ao resto do Triunvirato Grisha quando chegou atrasado à reunião matinal deles, com um longo arranhão descendo pela bochecha.

Eles tinham ficado preocupados, mas principalmente perplexos. Tolya e Tamar dificilmente deixariam Nikolai escapulir. Como você passou por eles?, Zoya havia perguntado enquanto Genya dava um jeito no arranhão o arranhão e David discursava sobre sonambulismo. Mas, se Nikolai estava apreensivo, não tinha demonstrado. Eu me distingo na maioria das coisas, ele havia dito. Por que não em fugas improváveis também? Ele mandara instalar novas trancas nas portas do seu quarto e insistira que eles passassem à pauta do dia e aos relatos de um estranho terremoto em Ryevost que tinha expelido milhares de beija-flores prateados de uma fissura na terra.

Pouco mais de um mês depois, Tolya estava lendo, numa cadeira perto dos aposentos do rei, quando ouviu o som de vidro quebrando e escancarou a porta só para ver Nikolai saltar do peitoril da janela, suas costas fendidas por asas de sombras espiraladas. Tolya foi chamar Zoya e os dois rastrearam o rei até o telhado de um celeiro a mais de vinte quilômetros dali.

Depois disso, eles começaram a amarrar o rei à sua cama – uma solução eficaz, mas possível apenas porque os criados de Nikolai não tinham permissão para entrar em seu quarto no palácio. O rei era um herói de guerra, afinal, e sabia-se que sofria de pesadelos. Desde então, Zoya o trancava toda noite e o soltava toda manhã, e assim eles haviam mantido o segredo de Nikolai. Somente Tolya, Tamar e o Triunvirato sabiam da verdade. Se alguém descobrisse que o rei de Ravka passava as noites amarrado com correntes, ele seria o alvo perfeito para um assassinato ou um golpe, para não mencionar motivo de deboche.

Era isso que tornava viagens tão perigosas – mas Nikolai não podia ficar isolado atrás dos muros de Os Alta para sempre.

— Um rei não pode ficar trancado em seu próprio castelo — ele tinha declarado quando eles decidiram retomar as viagens. — Ou arrisca se parecer menos com um monarca e mais com um refém.

— Você tem emissários para cuidar de questões de Estado — Zoya tinha argumentado. — Embaixadores, subalternos.

— O povo pode esquecer como sou bonito.

— Improvável. Seu rosto está impresso em nosso dinheiro.

Nikolai se recusara a ceder, e Zoya tinha de admitir que ele não estava inteiramente errado. O pai cometera o erro de deixar outras pessoas conduzirem o governo do país, e isso lhe tinha custado caro. Era preciso estabelecer um equilíbrio, ela supôs, entre cautela e ousadia, por mais cansativo que esse meio-termo tendesse a ser. A vida simplesmente corria com mais suavidade quando as pessoas faziam as coisas do seu jeito.

Como Nikolai e Zoya não podiam viajar com um baú cheio de correntes que criados curiosos pudessem encontrar, sempre que se afastavam da segurança do palácio, dependiam de um sedativo potente para manter Nikolai em sua cama e o monstro sob controle.

— Genya vai ter que aumentar a dose do meu tônico — ele disse naquele momento, vestindo o casaco.

— Ou você poderia ficar na capital e parar de correr riscos desnecessários.

Até agora o monstro se contentara em atacar animais, limitando suas mortes a ovelhas estripadas e gado drenado de sangue. Mas ambos sabiam que era questão de tempo. O que quer que o poder do Darkling tivesse deixado fervilhando dentro de Nikolai, ansiava por mais do que carne animal.

— O último incidente foi só há uma semana. — Ele esfregou o rosto. — Pensei que eu tivesse mais tempo.

— Está piorando.

— Eu gosto de manter você alerta, Nazyalensky. A ansiedade constante é uma maravilha para a pele.

— Mandarei um cartão de agradecimento.

— Não vá esquecer. Você está praticamente brilhando.

Ele está bem pior do que demonstra, pensou Zoya. Nikolai era sempre mais liberal com elogios quando estava exausto. Era verdade que ela estava deslumbrante, mesmo após uma noite penosa, mas Zoya sabia que o rei não podia se importar menos com sua aparência.

Eles ouviram um apito estridente do lado de fora enquanto a carruagem reduzia a velocidade.

— Estamos nos aproximando da ponte — disse Zoya.

O encontro de comércio em Ivets era essencial para as negociações com as nações de Kerch e Noyi Zem, mas o debate sobre tarifas e impostos também tinha fornecido uma desculpa para a verdadeira missão deles: uma visita ao local do mais recente suposto milagre de Ravka.

Uma semana antes, os aldeãos de Ivets haviam seguido a carruagem do duque Radimov, decorada com laços para celebrar o Festival de Sankt Grigori, batendo tambores e tocando pequenas harpas em imitação ao instrumento que Grigori tinha criado para apaziguar as feras da floresta antes de seu martírio. No entanto, quando chegaram a Obol, a ponte de madeira que cruzava o desfiladeiro sobre o rio tinha cedido. Antes que o duque e seus vassalos despencassem na água revolta, outra ponte aparecera abaixo deles, parecendo florescer dos muros do precipício e das rochas pontiagudas do fundo do cânion. Pelo menos era o que os relatos alegavam. Zoya tinha dado pouco crédito às histórias, considerando-as exageradas, talvez até alucinações em massa – até ver a ponte com os próprios olhos.

Ela espiou pela janela da carruagem enquanto eles faziam a curva na estrada e a construção entrava à vista, com seus pilares altos e finos e as longas vigas cintilando brancas ao luar. Embora já a tivesse visto e percorrido sua extensão com o rei, a visão ainda era assombrosa. A distância, parecia algo entalhado em alabastro. Só quando a pessoa se aproximava ficava claro que a ponte não era de pedra.

Nikolai balançou a cabeça.

— Sendo um homem que regularmente se transforma num monstro, sei que não deveria fazer julgamentos sobre estabilidade, mas temos certeza de que isso é seguro?

— De forma alguma — admitiu Zoya, tentando ignorar o frio na barriga. Quando a cruzara com os gêmeos, mais cedo naquela noite, estivera concentrada demais em encontrar Nikolai para se preocupar com a firmeza da ponte. — Mas é o único jeito de cruzar o desfiladeiro.

— Eu devia ter lembrado de fazer minhas preces.

O som das rodas mudou quando a carruagem passou sobre a ponte, do sacolejar da estrada para um tump-tump-tump constante. A ponte que tinha milagrosamente surgido do nada não era feita de pedra ou tijolo ou madeira. Suas vigas e traves brancas eram feitas de osso e tendão, seus contrafortes e pilares unidos com cordas torcidas de cartilagem. Eles caminhavam sobre uma espinha.

— Não gosto desse som — disse Zoya.

— Nem eu. Um milagre deveria soar mais grandioso. Sinos repicando, talvez, ou um coro de vozes celestiais.

— Não o chame assim — disparou Zoya.

— De coro?

— De milagre.

Zoya sussurrara preces fúteis suficientes na infância para saber que os Santos nunca respondiam. A ponte tinha que ser obra de um Grisha, e havia uma explicação racional para o seu surgimento – uma explicação que ela pretendia encontrar.

— Como você chamaria uma ponte de ossos que apareceu bem a tempo de salvar da morte uma cidade inteira? — indagou Nikolai.

— Não foi uma cidade inteira.

— Meia cidade — ele corrigiu.

— Um acontecimento inesperado.

— As pessoas talvez sintam que essa descrição não dá conta dessa maravilha.

E era mesmo uma maravilha – ao mesmo tempo elegante e grotesca, uma massa de vigas entrecruzadas e arcos elevados. Desde que aparecera, peregrinos vinham acampando nas duas extremidades, mantendo vigília dia e noite. Não ergueram a cabeça quando a carruagem passou por eles.

— Como você chamaria o terremoto em Ryevost? — continuou Nikolai. — Ou a estátua de Sankta Anastasia que chora lágrimas de sangue perto de Tsemna?

— Problemas — respondeu Zoya.

— Ainda acha que é a obra de Grishas usando parem?

— De que outro jeito alguém criaria uma ponte ou um terremoto quando quisesse?

Jurda parem. Zoya gostaria de nunca ter ouvido as palavras. A droga era o resultado de experimentos feitos em um laboratório shu e podia transformar o poder de um Grisha em algo inteiramente novo e inteiramente perigoso, mas o custo daquele breve momento de glória era o vício e, por fim, a morte. O parem permitia que um Fabricador rebelde sacudisse a terra ou que um Corporalki criasse uma ponte a partir de um corpo. Mas com que propósito? Será que os shu estavam usando Grishas escravizados para desestabilizar Ravka? Será que o Apparat, o suposto conselheiro espiritual da coroa, estaria envolvido? Até agora ele só tinha declarado que vinha rezando em busca de esclarecimento sobre os incidentes e que planejava uma peregrinação até os locais. Zoya nunca confiara no sacerdote e não tinha dúvidas de que, se pudesse encontrar um jeito de forjar um milagre, também conseguiria encontrar um jeito de usar o espetáculo em vantagem própria.

Mas a verdadeira questão, a questão que os levara a Ivets, era se esses acontecimentos estranhos por toda Ravka estavam ligados ao poder sombrio que residia em Nikolai. As ocorrências começaram na mesma época das excursões noturnas do rei. Podia ser coincidência, mas eles tinham vindo a Ivets na esperança de achar alguma pista, alguma conexão que os ajudasse a libertar Nikolai da vontade do monstro.

Chegaram ao outro lado da ponte e o sacolejar comum e tranquilizador da estrada de terra encheu a carruagem novamente. Era como se um feitiço tivesse sido desfeito.

— Teremos que deixar o palácio do duque Radimov hoje — disse Nikolai. — E torcer pra ninguém me ter visto voando pela propriedade.

Zoya queria concordar, mas, já que eles tinham ido até ali...

— Posso dobrar sua dose do tônico de Genya. Ainda temos um dia de negociações.

— Deixe Ulyashin cuidar delas. Quero voltar à capital. Temos amostras da ponte para David; talvez ele consiga descobrir algo que possamos usar para lidar com o meu...

— Problema?

— Convidado indesejado.

Zoya revirou os olhos. Ele falava como se estivesse sendo perturbado por uma tia irascível. E havia um motivo importante para ficarem em Ivets. Ela estivera cautelosa quanto à viagem, cética quanto à ponte e temerosa quanto aos riscos, mas também sabia que o encontro representava uma boa oportunidade – na forma de um certo Hiram Schenck e suas duas filhas solteiras.

Ela bateu um dedo contra o assento de veludo, sem saber como prosseguir. Tinha a esperança de orquestrar um encontro entre Nikolai e as garotas Schenck sem que ele percebesse que ela estava se intrometendo. O rei não gostava de ser conduzido e, quando sentia que estava sendo pressionado, podia ser tão teimoso quanto... bem, quanto a própria Zoya.

— Desembuche, Nazyalensky. Quando faz esse biquinho, parece ter feito amor com um limão.

— Sorte do limão — retrucou Zoya, com uma fungada. Alisou o tecido do kefta sobre o colo. — A família de Hiram Schenck o acompanhou até Ivets.

— E?

— Ele tem duas filhas.

Nikolai riu.

— Foi por isso que concordou com essa viagem? Para tentar achar uma noiva para mim?

— Eu concordei porque alguém tem que garantir que você não devore ninguém quando seu convidado indesejado quiser beliscar alguma coisa no meio da noite. E não sou uma mãe intrometida que quer ver seu amado filho casado; estou tentando proteger seu trono. Hiram Schenck é um membro sênior do Conselho Mercantil. Ele poderia praticamente garantir uma moratória nos empréstimos que Ravka tomou de Kerch, pra não falar da imensa fortuna que suas belas filhas vão herdar.

— Quão belas?

— Quem se importa?

— Eu não, com certeza. Mas esses dois anos trabalhando com você feriram meu orgulho. Quero garantir que não vou passar minha vida olhando outros homens babando sobre a minha esposa.

— Se fizerem isso, você sempre pode decapitar alguém.

— Os homens ou minha esposa? — perguntou Nikolai.

— Ambos. Só se certifique de assegurar o dote dela primeiro.

— Implacável.

— Pragmática. Se ficarmos mais uma noite...

— Zoya, não posso cortejar uma noiva se há uma chance de que eu a transforme em meu jantar.

— Você é um rei, não tem que cortejar ninguém. É pra isso que servem o trono e as joias e o título. E, uma vez que estiver casado, a rainha se tornará sua aliada.

— Ou poderá sair correndo da nossa cama conjugal e contar ao pai que comecei a mordiscar sua orelha e então tentei abocanhá-la de fato. Ela poderia deflagrar uma guerra.

— Mas não fará isso, Nikolai. Porque, antes de falarem seus votos, você já a terá encantado e feito se apaixonar, e então você será problema dela.

— Até mesmo o meu charme tem limites, Zoya.

Se era o caso, ela ainda não os encontrara. Zoya deu um olhar cético para o rei.

— Um belo marido-monstro que colocou uma coroa na cabeça dela? É o conto de fadas perfeito para vender a uma garota deslumbrada. Ela pode trancafiá-lo à noite e beijá-lo com doçura pela manhã, e Ravka estará segura.

— Por que você não me beija com doçura pela manhã, Zoya?

— Não faço nada com doçura, Alteza. — Ela sacudiu as mangas. — Por que está hesitando? Até se casar, até ter um herdeiro, Ravka continuará vulnerável.

Nikolai abandonou a atitude despreocupada.

— Não posso me casar enquanto estiver neste estado. Não posso forjar um casamento baseado em mentiras.

— A maioria deles não é?

— Você é sempre romântica.

— Sou sempre prática.

— Deixando de lado as noivas potenciais de Kerch, precisamos escapar antes que Schenck possa me questionar mais a fundo sobre os izmars’ya.

Zoya praguejou.

— Então os gêmeos tinham razão... houve um vazamento no nosso velho laboratório. — Os izmars’ya eram navios que viajavam sob a superfície da água. Seriam fundamentais à sobrevivência de Ravka à medida que a frota fjerdana crescia, especialmente se Nikolai conseguisse armá-los como planejava.

— Parece que sim. Mas os kerches não sabem a quantas anda o projeto, pelo menos não ainda.

Essas palavras não foram um grande alívio para Zoya. Os kerches já tinham vantagens suficientes sobre Ravka, e Schenck não teria levantado o tópico dos izmars’ya com o rei levianamente. O que ele pretendia fazer com essa nova informação?

Outro apito agudo soou fora da carruagem, duas notas breves – o sinal de Tolya para avisar que estavam se aproximando dos portões.

Zoya sabia que haveria certa confusão entre os guardas. Ninguém vira a carruagem partir e ela não trazia o selo real. Tolya e Tamar a deixaram a postos a uma boa distância da propriedade do duque, para o caso de Nikolai escapar da coleira. Ela fora encontrá-los assim que percebera que Nikolai tinha sumido.

Naquela noite, eles tiveram sorte: tinham encontrado o rei antes que ele vagasse para longe demais. Quando Nikolai voava, Zoya podia senti-lo se movendo nos ventos e usar a perturbação nas correntes para rastrear seus movimentos. Porém, se ela não tivesse chegado àquela fazenda naquele exato instante, o que teria acontecido? Será que Nikolai teria matado o garoto? A coisa dentro dele não era só um animal faminto, mas algo muito pior, e ela tinha certeza absoluta de que ansiava por presas humanas.

— Não podemos continuar assim, Nikolai. — Em algum momento eles seriam pegos. Em algum momento, aquelas caçadas noturnas e noites insones seriam demais para eles. — Todos devemos fazer o necessário.

Nikolai suspirou e abriu os braços para ela conforme a carruagem parava com um tranco.

— Então venha cá, Zoya, e me beije com doçura, como faria uma noiva.

E lá se vai o decoro. Devido às visitas de Zoya tarde da noite para certificar-se de que o rei estivesse seguramente contido em seus aposentos, as fofocas já corriam soltas dando conta de que o relacionamento deles não era apenas político. Reis tinham amantes, e coisas piores já haviam sido ditas sobre líderes. Zoya só torcia para que as moças Schenck tivessem a mente aberta. A reputação do rei sobreviveria a um pouco de escândalo, mas não à verdade.

Zoya tirou um segundo frasco da sacola e borrifou uísque nos pulsos, como perfume, antes de estendê-lo a Nikolai, que tomou um longo gole e então verteu o resto sobre o casaco. Zoya bagunçou o cabelo, deixou o kefta deslizar de um ombro e se acomodou nos braços do rei. A farsa era necessária, e era um papel fácil de interpretar – às vezes, fácil demais.

Ele enterrou o rosto no cabelo dela, inalando profundamente.

— Como é que eu cheiro a merda de ganso e uísque barato e você como se tivesse corrido por um campo de flores silvestres?

— É a implacabilidade.

Ele inspirou de novo.

— O que é esse aroma? Me lembra algo, mas não sei o quê.

— A última criança que você tentou devorar?

— Deve ser isso.

A porta da carruagem se abriu de repente.

— Alteza, não tínhamos percebido que saiu esta noite.

Zoya não conseguia ver o rosto do guarda, mas ouviu a desconfiança em sua voz.

— O rei não tem o hábito de pedir nada, muito menos a sua permissão — disse Nikolai, a voz arrastada, mas com a nota de desdém de um monarca que não conhecia nada além da satisfação imediata de seus desejos.

— É claro, é claro — disse o guarda. — Só tínhamos a sua segurança em mente, meu rei.

Zoya duvidava disso. Ravka Oeste vinha sentindo o peso dos novos impostos e leis criados com a unificação. Aqueles guardas poderiam ostentar a águia dupla, mas sua lealdade estava com o duque que comandava aquela propriedade e que se opusera ao governo de Nikolai sempre que possível. Sem dúvida, o patrão deles ficaria encantado em descobrir os segredos do rei.

Zoya evocou seu tom mais queixoso e perguntou:

— Por que não estamos nos movendo?

Ela sentiu uma mudança no interesse dele.

— A noite foi boa, então? — perguntou o guarda, e ela quase podia senti-lo espiando o interior da carruagem para dar uma olhada melhor.

Zoya jogou o longo cabelo preto para trás e disse, com a voz sonolenta e desgrenhada de uma mulher que tinha deitado e rolado:

— Muito boa.

— Ela só brinca com a realeza? — quis saber o guarda. — Parece uma companhia divertida.

Zoya sentiu Nikolai ficar tenso e se viu tanto tocada como irritada por ele pensar que ela se importava com as palavras de um bufão qualquer, mas não havia necessidade de interpretar o cavalheiro naquela noite.

Ela lançou um olhar demorado ao guarda e disse:

— Você não faz ideia.

Ele deu uma risada e acenou para deixá-los passar.

Enquanto a carruagem seguia caminho, Zoya sentiu o leve tremor da transformação de Nikolai ainda ecoando através dele e sua própria exaustão tomando-a aos poucos. Seria fácil demais deixar seus olhos fecharem, repousar a cabeça contra o peito dele e ceder à ilusão de conforto – mas o preço da autoindulgência seria muito alto.

— Em algum momento as pessoas vão descobrir sobre o monstro — ela disse. — Não tivemos sorte em encontrar a cura ou sequer a pista da cura. Case-se. Forje uma aliança. Tenha um herdeiro. Assegure o trono e o futuro de Ravka.

— Farei isso — ele respondeu, com a voz cansada. — Farei tudo isso. Mas não hoje. Hoje, vamos fingir ser um velho casal.

Se qualquer outro homem tivesse dito algo assim, ela o teria socado na mandíbula – ou possivelmente o levado para a cama por algumas horas.

— E o que isso implica?

— Vamos mentir um para o outro, como fazem as pessoas casadas. Será uma brincadeira divertida. Vamos lá, esposa. Me diga que sou um cara bonito que nunca envelhece e que vai morrer com todos os dentes na boca. Me faça acreditar nisso.

— Não.

— Entendo. Você nunca teve talento para a dissimulação.

Zoya sabia que ele estava provocando, mas seu orgulho foi ferido mesmo assim.

— Como pode ter tanta certeza? Talvez a lista dos meus talentos seja tão longa que você não tenha chegado ao fim dela.

— Então vamos ver, Nazyalensky.

— Queridíssimo marido — ela começou, adocicando a voz —, você sabia que as mulheres da minha família podem ver o futuro nas estrelas?

Ele bufou, rindo.

— Não sabia.

— Podem, sim. E eu vi o seu destino nas constelações. Você se tornará velho, gordo e feliz, será o pai de muitas crianças malcomportadas, e as futuras gerações contarão sua história em canções e lendas.

— Muito convincente — disse Nikolai. — Você é boa nessa brincadeira. — Um longo silêncio se seguiu, preenchido apenas pelo chacoalhar das rodas da carruagem. — Agora me diga que vou achar um modo de sair dessa. Me diga que tudo ficará bem.

O tom era animado e provocador, mas Zoya o conhecia bem demais.

— Vai ficar tudo bem — ela afirmou, com toda a convicção de que era capaz. — Vamos resolver esse problema como resolvemos todos os anteriores. — Ela ergueu a cabeça para olhá-lo. Os olhos dele estavam fechados; uma ruga maculava sua testa. — Acredita em mim?

— Sim.

Ela se afastou dele e alisou a roupa. Mentiras eram inevitáveis, talvez até necessárias, entre marido e esposa. Uma general e seu rei não podiam permiti-las.

— Viu? — ela disse. — Você também é bom nessa brincadeira.


NINA APERTOU A FACA e tentou ignorar a carnificina que a cercava. Baixou os olhos para sua vítima, outro corpo indefeso esticado diante dela.

— Perdão, amigo — ela murmurou em fjerdano. Enfiou a lâmina na barriga do peixe e a puxou até a cabeça, então juntou a bagunça de vísceras rosadas gosmentas e as jogou nas ripas imundas onde elas seriam descartadas com um jato de mangueira. A carcaça limpa, ela jogou num barril à esquerda, de onde seria levada por um dos empregados para ser embalada. Ou processada. Ou metida em salmoura. Nina não fazia ideia, na verdade, do que acontecia de fato com os peixes, e não se importava muito com isso. Depois de duas semanas trabalhando em uma fábrica de conservas com vista para o porto de Elling, não pretendia comer nada que tivesse escamas ou barbatanas pelo resto da vida.

Imagine-se em um banho quente com uma tigela de caramelos. Talvez ela só enchesse uma banheira com caramelos e criasse uma cena realmente decadente. Podia se tornar a nova moda: banhos de caramelo e esponjas de waffle.

Nina sacudiu a cabeça. Aquele lugar a estava enlouquecendo. Suas mãos ficavam permanentemente enrugadas, a pele coberta de pequenos cortes devido à sua falta de jeito com a faca de desossar; o fedor dos peixes nunca deixava seu cabelo; e suas costas doíam por ficar em pé na fábrica do alvorecer ao crepúsculo, fizesse chuva ou fizesse sol, à mercê dos elementos exceto por um toldo de metal corrugado. Mas não havia muitos trabalhos para mulheres solteiras em Fjerda, então Nina – sob o nome Mila Jandersdat – tinha aceitado o emprego de bom grado. O trabalho era extenuante, mas sua posição privilegiada entre os barris de peixe lhe oferecia uma vista perfeita dos guardas que patrulhavam o porto.

Havia muitos deles hoje, fazendo a ronda pelas docas em seus uniformes azuis. Kalfisk, era como os moradores locais os chamavam – lulas –, porque eles metiam seus tentáculos em tudo. Elling ficava no ponto em que o rio Stelge encontrava o Isenvee, e era um dos poucos portos na costa noroeste rochosa de Fjerda com acesso fácil ao mar para embarcações grandes. O porto era conhecido por duas coisas: contrabando e peixe. Escamudo, tamboril, hadoque; salmão e esturjão das cidades ribeirinhas ao leste; peixe-batata e cavala-real prateada das águas profundas do oceano.

Nina trabalhava ao lado de duas mulheres – uma viúva Hedjut chamada Annabelle e Marta, uma solteirona de Djerholm tão magra quanto uma rachadura entre as tábuas do piso, que constantemente sacudia a cabeça como se tudo a desagradasse. As conversas delas ajudavam a manter Nina distraída e eram uma boa fonte de fofocas e informações legítimas, embora pudesse ser difícil diferenciar entre as duas.

— Dizem que o capitão Birgir tem uma nova amante — começou Annabelle.

Marta fez um muxoxo.

— Com os subornos que ele cobra, deve ser fácil sustentar a mulher.

— Eles vêm aumentando as patrulhas desde que aqueles clandestinos foram pegos nos navios.

Marta emitiu um estalo com a língua.

— Significa mais empregos, e provavelmente mais encrenca.

— Mais homens chegaram de Gäfvalle hoje. O rio ficou podre lá para as bandas do velho forte.

A cabeça de Marte balançou de um lado a outro como o rabo de um cão contente.

— Um sinal da desaprovação de Djel. Alguém devia mandar um sacerdote fazer umas preces lá.

Gävfalle – uma das cidades ribeirinhas. Nina nunca estivera lá, nunca nem ouvira falar do local até chegar com Adrik e Leoni dois meses antes sob as ordens do rei Nikolai, mas o nome sempre a deixava desconfortável, o som acompanhado por um tipo de sussurro dentro dela, como se fosse menos uma palavra do que o início de um encantamento.

Marta bateu a base da faca contra o topo de madeira da mesa de trabalho.

— O chefe está vindo.

Hilbrand, o supervisor de rosto severo, se movia entre as fileiras de mesas, chamando rapazes para retirar os baldes de peixe.

— Seu ritmo está errado de novo — ele rosnou para Nina. — Parece que nunca limpou peixe antes.

Imagine só uma coisa dessas.

— Sinto muito, senhor — ela disse. — Vou melhorar.

Ele abanou a mão.

— É lenta demais. O carregamento que estávamos esperando chegou. Vou mandar você lá para baixo, para a sala de embalagens.

— Sim, senhor — respondeu Nina com tristeza. Ela deixou os ombros caírem e abaixou a cabeça quando, na verdade, queria irromper em uma canção. O salário para a sala de embalagens era consideravelmente mais baixo, então ela precisava passar a imagem de derrotada, mas tinha entendido a real mensagem de Hilbrand: os últimos fugitivos Grishas que eles estavam esperando finalmente chegaram ao esconderijo de Elling. Agora cabia a Nina, Adrik e Leoni colocar os sete recém-chegados a bordo do Verstoten.

Ela seguiu Hilbrand de perto enquanto ele a conduzia ao seu novo posto.

— Vocês vão ter que agir depressa — ele disse sem olhar para ela. — Há boatos de uma inspeção surpresa esta noite.

— Certo. — Um obstáculo, mas nada com que não pudessem lidar.

— Não é só isso — ele prosseguiu. — Birgir está trabalhando hoje.

Claro que está. Sem dúvida a inspeção surpresa tinha sido ideia do capitão Birgir. De todos os kalfisk, ele era o mais corrupto, mas também o mais astuto e observador. Se a pessoa queria que um carregamento legal passasse pelo porto sem ficar preso para sempre na alfândega – ou se queria que uma carga ilegal passasse despercebida –, então o custo era um suborno para Birgir.

Um homem sem honra, acusou a voz de Matthias na cabeça dela. Ele deveria ter vergonha.

Nina bufou. Se os homens sentissem vergonha quando deveriam, não sobraria tempo para mais nada.

— Eu disse algo engraçado? — perguntou Hilbrand.

— Estou gripada — ela mentiu.

Mas mesmo o jeito grosseiro de Hilbrand a fez sentir uma pontada no coração. Com seus ombros largos e nenhum senso de humor, ele a lembrava dolorosamente de Matthias.

Ele não é como eu coisa nenhuma. Como você é preconceituosa, Nina Zenik. Nem todos os fjerdanos são parecidos.

— Você sabe o que Birgir fez com aquelas clandestinas — continuou Hilbrand. — Não preciso dizer para tomar cuidado.

— Não, não precisa — ela respondeu, mais bruscamente do que pretendia. Mas era boa em seu trabalho e sabia exatamente o que estava em jogo. Na primeira manhã trabalhando nas docas, tinha visto Birgir e um dos capangas favoritos dele, Casper, arrastar de um baleeiro com destino a Novyi Zem uma mãe e sua filha, e espancá-las cruelmente. O capitão tinha amarrado correntes pesadas ao redor do pescoço delas, com placas que traziam a palavra drüsje – bruxa. Então tinha jogado uma mistura de dejetos e vísceras de peixe das fábricas sobre as duas e as amarrado no cais sob o sol escaldante. Enquanto os homens dele observavam, aos risos, o fedor, a promessa de comida atraiu as gaivotas. Nina passara seu turno assistindo à mulher tentar proteger o corpo da filha com o seu e ouvindo as prisioneiras gritarem em agonia conforme as gaivotas bicavam e arranhavam seus corpos. Sua mente tinha tecido mil fantasias sobre assassinar os guardas de Birgir ali mesmo e arrastar mãe e filha para um lugar seguro. Ela podia roubar um barco. Podia forçar um capitão a levá-las para longe. Podia fazer alguma coisa.

Mas então se lembrara com clareza do aviso de Zoya ao rei Nikolai sobre a adequação de Nina para uma missão de infiltração: “Ela não tem um único osso sutil no corpo. Pedir a Nina para não atrair atenção é como pedir para a água não correr colina abaixo”.

O rei tinha apostado em Nina, e ela não desperdiçaria a oportunidade. Não poria a missão em risco. Não comprometeria seu disfarce, nem colocaria Adrik e Leoni em perigo. Pelo menos não à luz do dia. Assim que o sol tinha se posto, ela se esgueirara até o porto para libertar as prisioneiras. Elas não estavam mais lá – mas aonde tinham sido levadas? E para quais horrores? Ela não acreditava mais que o pior terror à espera de Grishas, nas mãos dos soldados fjerdanos, fosse a morte. Jarl Brum e seus caçadores de bruxas a tinham ensinado essa lição bem demais.

Enquanto seguia Hilbrand para dentro da fábrica, os estrépitos do maquinário faziam seu crânio chacoalhar, e ela foi engolfada pelo fedor de bacalhau. Não ficaria triste de deixar Elling por um tempo. O porão do Verstoten estava cheio de Grishas que a sua equipe – a equipe de Adrik, na verdade – tinha ajudado a resgatar e trazer a Elling. Desde o fim da guerra civil, o rei Nikolai desviara fundos e recursos para apoiar uma rede subterrânea de informantes que existira por anos em Fjerda, com a meta de ajudar os Grishas que moravam em segredo ali a fugir do país. Eles se chamavam de Hringsa, a árvore da vida, inspirados no grande freixo sagrado de Djel. Nina sabia que Adrik já tinha recebido novas informações do grupo e, uma vez que o Verstoten estivesse a caminho de Ravka sã e salvo, ela e os outros ficariam livres para ir ao interior do país e localizar mais Grishas.

Hilbrand a levou ao seu escritório, fechou a porta atrás deles e então correu os dedos pela parede dos fundos. Houve um clique e uma porta secreta se abriu para a Fiskstrahd, a rua movimentada onde os vendedores de peixe tinham suas tendas e onde uma garota sozinha poderia evitar a atenção da polícia do porto simplesmente desaparecendo entre a multidão.

— Obrigada — disse Nina. — Vamos mandar mais gente para você em breve.

— Espere. — Hilbrand puxou o braço dela antes que Nina pudesse sair ao sol. Ele hesitou, mas por fim balbuciou: — Você é ela mesmo? A garota que derrotou Jarl Brum e o deixou sangrando numa doca de Djerholm?

Nina se desvencilhou dele. Ela havia feito o necessário para libertar seus amigos e manter o segredo do jurda parem longe de mãos fjerdanas. Mas tinha sido a droga que tornara a vitória possível, e ela havia cobrado um preço terrível, mudando o rumo da vida de Nina e a própria natureza do seu poder Grisha.

Se nunca tivéssemos ido à Corte de Gelo, Matthias ainda estaria vivo? Meu coração ainda estaria intacto? Perguntas inúteis. Não havia resposta que o traria de volta à vida.

Nina fixou em Hilbrand o olhar enregelante que tinha aprendido com a própria Zoya Nazyalensky.

— Eu sou Mila Jandersdat, uma jovem viúva que aceita qualquer trabalho para pagar as contas e espera conseguir um emprego como tradutora. Que tipo de imbecil compraria uma briga com o comandante Jarl Brum? — Hilbrand abriu a boca, mas Nina continuou: — E que tipo de idiota arriscaria comprometer o disfarce de uma agente quando há tantas vidas em jogo?

Nina deu as costas para ele e se jogou na maré humana. Perigoso. Um homem que vivia profundamente infiltrado não devia ser tão descuidado. Mas Nina sabia que a solidão podia deixar as pessoas imprudentes, ansiosas para falar algo além de mentiras. Hilbrand tinha perdido a esposa para os homens de Brum, os implacáveis drüskelle, treinados para caçar e matar Grishas. Desde então, se tornara um dos agentes mais confiáveis do rei Nikolai em Fjerda. Nina não duvidava de sua lealdade – e a própria segurança do homem dependia de sua discrição.

Ela levou menos de dez minutos para chegar ao endereço que Hilbrand tinha passado, outra fábrica de conservas idêntica aos prédios que a flanqueavam – exceto pelo mural do lado ocidental. À primeira vista, parecia uma cena agradável na boca de Stelge: um grupo de pescadores lançando as redes no mar enquanto aldeãos felizes observavam sob o pôr do sol. Mas, se a pessoa soubesse o que procurar, notaria a garota de cabelo branco na multidão, seu perfil emoldurado pelo sol como se fosse um halo. Sankta Alina. A Conjuradora do Sol. Um sinal de que aquele armazém era um refúgio.

Os Santos nunca haviam sido populares entre o povo do norte – até que Alina Starkov tinha destruído a Dobra. Então altares para ela tinham começado a surgir em países muito distantes de Ravka. As autoridades fjerdanas fizeram o máximo para esmagar o culto da Santa do Sol, considerando-a uma religião de influência estrangeira, mas pequenos bolsões de fiéis haviam brotado, jardins cuidados em segredo. As histórias dos Santos, seus milagres e martírios, tornaram-se um código para pessoas solidárias aos Grishas. Uma rosa para Sankta Lizabeta. Um sol para Sankta Alina. Um cavaleiro espetando um dragão com sua lança poderia ser Dagr, o Ousado, saído de algum conto infantil – ou Sankt Juris, que matara uma grande fera e fora consumido pelas chamas. Até as tatuagens que cobriam os antebraços de Hilbrand eram mais do que aparentavam – chifres entrelaçados, muitas vezes usados pelos caçadores do norte, mas dispostos em bandas circulares para simbolizar o poderoso amplificador usado por Sankta Alina.

Nina bateu na porta lateral da fábrica e ela se abriu um momento depois. Adrik a puxou para dentro, seu rosto deprimido se mostrando pálido sob as sardas. Suas feições eram até bonitas, mas ele mantinha uma atitude incessantemente derrotada que passava a impressão de uma vela derretida. Instantaneamente, os olhos de Nina começaram a marejar.

— Eu sei — disse Adrik, infeliz. — Elling. Se o frio não te mata, o cheiro termina o serviço.

— Nenhum peixe cheira assim. Meus olhos estão queimando.

— É soda cáustica. Várias e várias tinas de soda cáustica. Parece que eles preservam o peixe nela, como um tipo de especialidade local.

Ela quase podia ouvir o protesto indignado de Matthias: É delicioso. Comemos com torrada. Santos, como ela sentia saudade dele. A dor da ausência era como um gancho alojado em seu coração. Estava sempre lá, mas em momentos como aquele era como se alguém tivesse agarrado e puxado a linha.

Nina respirou fundo. Matthias iria querer que ela se concentrasse na missão.

— Eles estão aqui?

— Estão. Mas temos um problema.

Ela pensou mesmo que Adrik parecia mais sombrio do que o normal – o que não era fácil.

Nina viu Leoni primeiro, inclinada sobre uma mesa que fora improvisada com um caixote colocado ao lado de uma fileira de tonéis, um lampião perto do cotovelo e, o rosto que geralmente estava alegre, tenso, suas feições rijas de determinação. Seus cachos estavam trançados no estilo zemeni, e sua pele marrom-escura reluzia de suor. No chão ao seu lado estava seu kit aberto – frascos de tinta e pigmentos em pó, rolos de papel e pergaminhos. Mas isso não fazia sentido. Os documentos de emigração já deveriam estar terminados havia tempos.

Ela compreendeu quando seus olhos se ajustaram à penumbra e viu as figuras encolhidas nas sombras – um homem barbado usando um casaco cor de rato-almiscarado e um bem mais velho com uma farta cabeleira branca. Dois garotinhos espiavam de trás deles, os olhos arregalados e assustados. Quatro fugitivos. Deveria haver sete.

Leoni ergueu os olhos para Nina e então se virou aos Grishas fugitivos, oferecendo-lhes um sorriso caloroso.

— Ela é uma amiga. Não se preocupem.

Eles não pareceram muito tranquilizados.

— Jormanen end denam danne näskelle — disse Nina, o cumprimento fjerdano tradicional para viajantes. Seja bem-vindo e espere a tempestade passar. Não era inteiramente apropriado à situação, mas era o melhor que ela podia oferecer. Os homens pareceram relaxar com as palavras, embora as crianças ainda se mostrassem aterrorizadas.

— Grannem end kerjenning grante jut onter kelholm — disse o senhor mais velho, a resposta tradicional. Eu agradeço e trago apenas gratidão ao seu lar. Nina esperava que não fosse verdade. Ravka não precisava de gratidão; precisava de mais Grishas. Precisava de soldados. Ela só podia imaginar o que Zoya acharia daqueles recrutas.

— Onde estão as outras três? — Nina perguntou a Adrik.

— Não encontraram o intermediário.

— Capturadas?

— Provavelmente.

— Talvez tenham mudado de ideia — sugeriu Leoni, abrindo um frasco de algo azul. Eles sempre podiam contar com ela para imaginar um resultado positivo, por mais improvável que fosse. — Não é fácil abandonar tudo que você ama.

— É sim, quando tudo que você ama cheira a peixe e desespero — resmungou Adrik.

— E os papéis da emigração? — Nina perguntou a Leoni o mais gentilmente possível.

— Estou fazendo o que posso — respondeu a outra. — Você disse que mulheres não viajam sozinhas, então escrevi os contratos de serviço para famílias e agora estamos com duas esposas e uma filha a menos.

Nada bom. Especialmente com kalfisk espreitando nas docas. Mas Leoni era uma das Fabricadoras mais talentosas que Nina já conhecera.

Nos últimos anos, o governo fjerdano tinha começado a vigiar suas fronteiras mais atentamente e a proibir seus cidadãos de viajar. As autoridades estavam atentas para Grishas tentando fugir, mas também queriam conter a maré de pessoas atravessando o Mar Real até Noyi Zem em busca de melhores empregos e de um clima mais quente, pessoas dispostas a enfrentar um mundo novo para viver livres da ameaça da guerra. Muitos ravkanos faziam o mesmo.

Os governantes de Fjerda não gostavam especialmente de deixar homens sadios e possíveis soldados emigrarem, e tinham tornado a documentação necessária quase impossível de forjar. Era por isso que Leoni estava ali. Ela não era uma falsificadora comum, e sim uma Fabricadora, capaz de recriar tintas e papel em nível molecular.

Nina tirou um lencinho do bolso e enxugou a testa de Leoni.

— Você consegue.

Ela balançou a cabeça.

— Preciso de mais tempo.

— Não temos. — Nina gostaria de não precisar informá-la disso.

— Talvez tenhamos — disse Leoni, esperançosa. Ela passara a maior parte da vida em Novyi Zem antes de ir a Ravka para treinar e, como muitos Fabricadores, nunca havia visto combate. Os Fabricadores nem aprendiam a lutar até Alina Starkov se tornar a comandante do Segundo Exército. — Podemos mandar uma mensagem ao Verstoten, pedir que esperem até que...

— Não adianta — interrompeu Nina. — O navio tem que zarpar ao pôr do sol. O capitão Birgir está planejando uma de suas inspeções surpresa esta noite.

Leoni soltou um longo suspiro, então apontou o queixo para o homem no casaco cinza.

— Nina, você vai ter que ir como esposa dele.

Não era ideal. Nina já trabalhava no porto havia semanas e poderia ser reconhecida. Mas o risco valia a pena.

— Qual é o seu nome? — ela perguntou ao homem.

— Enok.

— Esses são os seus filhos?

Ele assentiu.

— E esse é meu pai.

— Vocês são todos Grishas?

— Só eu e os meninos.

— Bem, hoje é seu dia de sorte, Enok. Está prestes a me ganhar como esposa. Eu gosto de longas sonecas e noivados breves, e prefiro o lado esquerdo da cama.

Enok a encarou boquiaberto, e o pai pareceu absolutamente escandalizado. Genya tinha esculpido Nina para parecer o mais fjerdana possível, mas os modos recatados das mulheres do norte eram muito mais cansativos de dominar.

Nina tentou não se remexer demais enquanto Leoni trabalhava e Adrik conversava em voz baixa com os fugitivos. O que tinha acontecido com as três outras Grishas? Ela pegou os documentos de emigração descartados, papéis de valor inestimável que jamais seriam usados. Duas mulheres e uma garota de dezesseis anos. Será que tinham decidido que viver escondidas era melhor que um futuro incerto em uma terra estrangeira? Ou teriam sido tomadas como prisioneiras? Estariam assustadas e sozinhas em algum lugar? Nina franziu o cenho para os papéis.

— Essas mulheres eram realmente de Kejerut?

Leoni assentiu.

— Pareceu mais simples manter o nome da cidade.

O pai de Enok desenhou um símbolo de proteção no ar. Era um velho gesto feito para repelir pensamentos malignos com a força das águas de Djel.

— Garotas somem em Kejerut.

Nina estremeceu conforme os estranhos sussurros encheram sua cabeça outra vez. Kejerut ficava a poucos quilômetros de Gäfvalle. Mas podia não significar nada.

Ela esfregou os braços, tentando afastar o frio súbito que a invadiu. Queria que Hilbrand não tivesse mencionado Jarl Brum. Apesar de tudo pelo que ela havia passado, o nome ainda exercia poder sobre ela. Nina o derrotara, assim como a seus homens. Os amigos dela tinham explodido o laboratório secreto de Brum em pedacinhos e levado seu refém mais valioso. Ele deveria ter caído em desgraça. Aquilo deveria ter sido o fim do seu comando dos drüskelle e de seus experimentos brutais com jurda parem e os prisioneiros Grishas. No entanto, de alguma forma, Brum havia sobrevivido e continuado a prosperar no topo da hierarquia do exército fjerdano. Eu deveria ter matado ele quando tive a chance.

Você mostrou misericórdia, Nina. Nunca se arrependa disso.

Mas a misericórdia era um luxo a que Matthias podia se dar. Afinal, ele estava morto.

É um pouco rude mencionar esse detalhe, meu amor.

O que você espera de uma ravkana? Além do mais, Brum e eu ainda temos questões pendentes.

É por isso que você está aqui?

Estou aqui para enterrar você, Matthias, ela pensou, e a voz em sua cabeça se calou, como sempre fazia quando ela se permitia recordar o que tinha perdido.

Nina tentou afastar a imagem do corpo de Matthias, preservado por arte Fabricadora, amarrado em cordas e lona como um lastro, escondido sob cobertores e caixotes no trenó que aguardava na pensão deles. Ela jurara que o levaria para casa, que enterraria seu corpo na terra que ele amava, para que pudesse encontrar o caminho até o seu deus. E por quase dois meses eles haviam viajado com aquele corpo, arrastando o fardo lúgubre de uma cidade a outra. Ela tivera inúmeras oportunidades de enterrá-lo e despedir-se. Então por que não as tinha aproveitado? Nina sabia que Leoni e Adrik não queriam abordar o assunto com ela, mas não podiam estar muito felizes de participar de uma procissão funérea que já durava meses.

Tem que ser o lugar certo, meu amor. Você vai saber quando o vir.

Mas ela saberia mesmo? Ou só continuaria marchando, incapaz de separar-se dele?

Em algum lugar distante, um sino tocou para sinalizar o fim do expediente.

— Estamos sem tempo — avisou Adrik.

Leoni não protestou, só se alongou e disse:

— Venha secar a tinta.

Adrik abanou a mão, dirigindo uma lufada de ar quente de Aeros sobre os documentos.

— É bom ser útil.

— Tenho certeza de que vai vir a calhar quando precisarmos empinar pipas.

Eles trocaram sorrisos. Nina sentiu uma pontada de irritação, então logo se recriminou por ser tão injusta. Só porque ela estava infeliz, não significava que todo mundo tivesse de estar.

No entanto, assim que todos partiram em direção às docas com os fugitivos a reboque, Adrik começou a lhes dar instruções e Nina sentiu sua irritação aumentar outra vez. Embora ele fosse o seu comandante, ela havia perdido o hábito de obedecer a ordens durante seu tempo em Ketterdam.

Leoni e Adrik os conduziram até o Verstoten. Eles chamavam atenção, mas de um jeito que combinava com o tumulto do porto – uma mulher zemeni e o marido, um casal de mercadores com negócios nas docas. Nina deu o braço a Enok e caminhou um pouco atrás com sua nova família, mantendo uma distância cuidadosa.

Ela relaxou os ombros, tentando se concentrar, mas isso só aguçou sua tensão. Seu corpo parecia errado. Em Os Alta, Genya Safin a tinha esculpido até o limite de suas habilidades. O novo cabelo de Nina era liso, lustroso e branco, quase translúcido; seus olhos eram mais estreitos, o verde das íris mudando para o azul-pálido de uma geleira do norte. Suas maçãs do rosto eram mais altas, suas sobrancelhas mais baixas, sua boca mais larga.

— Eu pareço crua — ela reclamara ao ver o tom leitoso de seu novo rosto.

Genya não se perturbou.

— Você parece fjerdana.

As coxas de Nina ainda eram sólidas e sua cintura ainda maciça, mas Genya tinha empurrado as orelhas para trás, achatado os seios e até mudado a curva dos seus ombros. O processo fora doloroso às vezes, quando ossos eram alterados, mas Nina não se importou. Ela não queria mais ser a garota que fora, a garota que Matthias tinha amado. Se Genya pudesse torná-la uma nova mulher por fora, talvez o coração de Nina fizesse o favor de bater com um novo ritmo também. É claro, não tinha funcionado. Os fjerdanos viam Mila Jandersdat, mas ela ainda era Nina Zeik, Grisha lendária e assassina impenitente. Ainda era a garota que desejava waffles e chorava toda noite até cair no sono quando estendia a mão em busca de Matthias e não encontrava ninguém ao seu lado.

O braço de Enok enrijeceu sob os dedos dela, que viu que dois membros da polícia do porto esperavam na prancha que conduzia ao Verstoten.

— Vai ficar tudo bem — murmurou Nina. — Vamos acompanhar vocês até o navio.

— E depois? — perguntou Enok, com a voz trêmula.

— Quando nos afastarmos da baía, eu vou tomar um bote de volta para a costa com os outros. Você e sua família vão continuar até Ravka, onde estarão livres para viver sem medo.

— Eles vão levar meus garotos? Vão levá-los para aquela escola especial?

— Só se vocês desejarem — disse Nina. — Não somos monstros. Não mais do que vocês são. Agora, quieto.

Mas parte dela quis dar meia-volta e retornar direto para o esconderijo quando viu que um dos guardas era o capanga campeão de Birgir, Casper. Ela escondeu o rosto no colarinho do casaco.

— Zemenis? — perguntou Casper, olhando para Leoni. Ela assentiu em resposta.

Casper indicou o braço faltante de Adrik.

— Onde perdeu?

— Acidente na fazenda — Adrik respondeu em fjerdano. Ele não sabia muito da língua, mas podia falar um pouquinho sem um sotaque ravkano, e já tinha contado aquela mentira específica muitas vezes. Quase todos que o encontravam perguntavam sobre o braço assim que viam a manga presa. Tivera que deixar na capital o braço mecânico que David Kostyk tinha criado para ele, porque era reconhecível demais como obra Grisha.

Os guardas fizeram as perguntas de costume – Havia quanto tempo estavam no país? O que tinham visitado durante sua estadia? Eles conheciam agentes estrangeiros trabalhando dentro das fronteiras de Fjerda? – e então pediram que avançassem com um gesto sem muita cerimônia.

Agora era a vez de Enok. Ela deu um apertãozinho no braço dele e ele deu um passo adiante. Nina podia ver o suor brotando em suas têmporas e sentir o leve tremor em suas mãos. Se ela pudesse ter arrancado os documentos de sua mão e os entregado aos guardas pessoalmente, teria feito isso. Mas esposas fjerdanas sempre se submetiam ao marido.

— A família Grahn. — Casper estudou os documentos por um momento desconfortavelmente longo. — Contratos de serviço? Onde vão trabalhar?

— Uma fazenda de jurda perto de Cofton — disse Enok.

— É um trabalho duro. Duro demais para o vovô ali.

— Ele vai ficar na casa principal com os meninos — respondeu Enok. — Tem talento com fio e agulha, e os meninos vão servir de mensageiros até terem idade para os campos.

Nina ficou impressionada com a facilidade com que Enok mentiu, mas, se ele tinha passado a vida se escondendo como Grisha, devia ter muita experiência.

— É difícil conseguir um contrato — comentou Casper.

— Meu tio conseguiu para a gente.

— E por que uma vida extenuante em Novyi Zem é tão preferível a fazer um trabalho honesto em Fjerda?

— Eu viveria e morreria no gelo, se pudesse — respondeu Enok, com tanto fervor que Nina soube que ele estava dizendo a verdade. — Mas há pouco trabalho disponível e os pulmões do meu filho não gostam do frio.

— Tempos difíceis para todos. — O guarda se virou para Nina. — E o que você vai fazer em Cofton?

— Costurar, se puder, trabalhar nos campos, se precisar. — Ela abaixou a cabeça. Diabos, podia ser sutil, ao contrário do que Zoya pensava. — O que meu marido desejar.

Casper continuou analisando os papéis, esperando, e Nina cutucou Enok com o cotovelo. Parecendo prestes a vomitar sobre as docas, Enok enfiou a mão no bolso e tirou um pacote volumoso com dinheiro fjerdano.

Ele o entregou a Casper, que ergueu uma sobrancelha. Então o rosto do guarda abriu-se num sorriso satisfeito. Nina se lembrava dele assistindo às gaivotas rasgarem as Grishas acorrentadas ao sol, seus bicos ensanguentados com pedacinhos de pele e cabelo.

Casper acenou para que passassem.

— Que Djel os proteja.

Mas eles mal tinham pisado na prancha quando Nina ouviu uma voz dizer:

— Só um momento.

Birgir. Eles não podiam ter um pouquinho de sorte? O sol nem tinha se posto. Ainda devia haver tempo. O pai de Enok hesitou na prancha ao lado de Leoni, e Adrik sacudiu a cabeça minimamente para Nina. A mensagem era clara: Não arranje encrenca. Nina pensou nos outros fugitivos Grishas entulhados no porão do navio e segurou a língua.

Birgir parou entre Casper e o outro guarda. Ele era baixo para um fjerdano, seus ombros com o formato dos de um touro, e o corte de seu uniforme era tão impecável que Nina suspeitou que tinha sido feito sob medida.

Ela ficou atrás de Enok e sussurrou aos garotos:

— Vão com seu avô. — Mas eles não se mexeram.

— Foi um longo dia de viagem para todos nós — disse Enok a Birgir, amigavelmente. — Os garotos estão ansiosos para se acomodarem.

— Verei seus documentos primeiro.

— Acabamos de mostrar ao seu homem.

— Os olhos de Casper não são tão bons quanto os meus.

— Mas o dinheiro... — protestou Enok.

— Que dinheiro foi esse?

Casper e o outro guarda deram de ombros.

— Não sei de dinheiro nenhum.

Relutante, Enok entregou os documentos.

— Talvez — disse o pai dele — possamos chegar a outro acordo?

— Fiquem onde estão — ordenou Birgir.

— Mas nosso navio está para partir — Nina tentou de trás do ombro de Enok.

Birgir olhou de relance para o Verstoten, depois para os garotos puxando incessantemente as mãos do pai.

— Eles vão dar trabalho, confinados numa jornada pelo mar. — Então ele olhou para Enok e Nina. — Engraçado como se agarram ao pai e não à mãe.

— Eles estão com medo — argumentou Nina. — O senhor os está assustando.

Os olhos frios de Birgir percorreram Adrik e Leoni da cabeça aos pés. Ele bateu os documentos do contrato contra a mão enluvada.

— Esse navio não vai a lugar nenhum. Não até revistarmos cada centímetro dele. — Ele fez um gesto para Casper. — Tem algo errado aqui. Avise os outros.

Casper foi pegar seu apito, mas, antes que pudesse puxar fôlego para soprar, Nina estendeu o braço. Duas lascas finas de osso voaram das bainhas costuradas nas mangas do seu casaco – tudo que ela usava estava revestido com elas. Os dardos se alojaram na traqueia de Casper e um arquejo agudo escapou da boca dele. Nina torceu os dedos e as lascas de osso rotacionaram. O guarda caiu na doca, arranhando o pescoço.

— Casper!

Birgir e o outro guarda sacaram as armas. Nina empurrou Enok e as crianças para trás de si.

— Leve-os a bordo — ela rosnou. Não arranje encrenca. Ela não tinha começado aquilo, mas pretendia terminar.

— Eu conheço você — disse Birgir, apontando a arma para ela, seus olhos duros e reluzentes como os seixos de um rio.

— É uma afirmação ousada.

— Você trabalha na fábrica de salmão. É uma das garotas dos barris. Eu sabia que tinha algo errado com você.

Nina não conseguiu evitar um sorriso.

— Muitas coisas.

— Mila — chamou Adrik em tom de aviso, usando seu nome falso. Como se importasse agora. O momento para subornos e negociações tinha passado. Ela gostava mais de momentos assim, quando os segredos eram revelados.

Nina girou os dedos. As lascas de osso voaram da traqueia de Casper e deslizaram de volta para as bainhas ocultas em seu braço. Ele caiu no chão, os lábios úmidos de sangue, os olhos revirando enquanto lutava para puxar o ar.

— Drüsje — sibilou Birgir. Bruxa.

— Não gosto dessa palavra — disse Nina, avançando. — Me chame de Grisha. Me chame de zowa. Me chame de morte, se quiser.

Birgir riu.

— Duas armas estão apontadas para você. Acha que consegue matar nós dois antes de um de nós acertar?

— Mas você já está morrendo, capitão — ela afirmou em uma voz gentil e melódica. A armadura de osso que os Fabricadores tinham feito para ela em Os Alta era um conforto e se provara útil mais vezes do que ela podia contar. Mas em certas ocasiões ela podia pressentir a morte já enraizada em seus alvos, como agora, naquele homem diante dela com o queixo empinado e os botões de bronze do seu elegante uniforme reluzindo. Ele era mais jovem do que parecia, com buracos na barba dourada no queixo, como se não conseguisse fazê-la crescer uniforme. Ela deveria sentir pena dele? Não sentia.

Nina. A voz de Matthias, recriminadora e decepcionada. Talvez ela estivesse fadada a assassinar fjerdanos em docas. Havia destinos piores.

— Você sabe disso, não é? — ela continuou. — Em algum lugar aí dentro. Seu corpo sabe. — Ela se aproximou. — Aquela tosse de que não consegue se livrar. A dor que se convenceu ser uma costela machucada. O modo como a comida perdeu o sabor. — Na luz evanescente do dia, ela viu o medo tomar o rosto de Birgir, uma sombra caindo sobre ele. Aquilo a alimentou, e o estranho murmúrio dentro dela aumentou, um coro sussurrante que se ergueu, como se a encorajasse, ao mesmo tempo que a voz de Matthias recuava.

— Você trabalha num porto — ela continuou. — Sabe como é fácil para os ratos entrarem nas paredes e devorarem um lugar por dentro. — A mão com que Birgir segurava a pistola se abaixou de leve. Ele a estava observando atentamente agora. Não com o olhar afiado de um policial, mas com o olhar de um homem que não queria ouvir, mas sentia-se obrigado a fazê-lo, precisando saber o fim da história. — O inimigo já está dentro de você, as células ruins devorando as outras lentamente, bem ali nos seus pulmões. É raro num homem tão jovem. Você está morrendo, capitão Birgir — ela disse suavemente, quase com gentileza. — Só vou ajudá-lo a chegar lá.

O capitão pareceu despertar de um transe. Ergueu a pistola, mas foi lento demais. O poder de Nina já tinha agarrado aquele aglomerado de células doentes dentro dele e a morte se desdobrou numa terrível multiplicação. Ele poderia ter vivido mais um ano ou dois, mas agora as células se tornaram uma maré negra, destruindo tudo em seu caminho. O capitão Birgir emitiu um gemido baixo e caiu. Antes que o outro guarda pudesse reagir, Nina girou os dedos e mandou uma lasca de osso perfurar seu coração.

As docas estavam curiosamente imóveis. Ela podia ouvir as ondas batendo contra o casco do Verstoten, os chamados altos das aves marinhas. Em seu interior, o coro sussurrante ficou mais alto, seu som quase jubiloso.

Então um dos garotos de Enok começou a chorar.

Por um momento, Nina se encontrou sozinha com a morte nas docas: dois viajantes exaustos, companheiros de longa data. Mas agora via o modo como os outros a observavam – os fugitivos Grishas, Adrik e Leoni, até o capitão do navio e sua tripulação inclinada sobre a amurada. Talvez ela devesse ter se importado; talvez parte dela se importasse. O poder de Nina era assustador, uma corruptela do poder Sangrador com que ela nascera, deturpado pelo parem. Ainda assim se tornara algo caro a ela. Matthias aceitara a coisa sombria em seu interior e a incentivara a fazer o mesmo – mas o que Nina sentia não era aceitação. Era amor.

Adrik suspirou.

— Não vou sentir falta desta cidade. — Ele se virou para a tripulação do navio. — Parem de encarar e nos ajudem a levar os corpos a bordo. Vamos jogá-los em alto-mar.

Alguns homens merecem sua misericórdia, Nina.

É claro, Matthias. Nina observou Enok e o pai erguerem o corpo de Birgir. Eu conto a você quando encontrar um deles.


Adrik segurou a língua até estarem no bote, a caminho da costa. Eles atracariam em uma das enseadas ao norte de Elling e voltariam a pé até suas acomodações para recuperar seus pertences.

— Vão fazer perguntas quando descobrirem que aqueles homens sumiram — ele disse.

Nina sentia-se como uma criança recebendo uma bronca e não gostava nada disso.

— Que bom que já teremos partido a essa altura.

— Não vamos mais poder operar a partir deste porto — acrescentou Leoni. — Eles vão reforçar a segurança.

— Não fique do lado dele.

— Não estou do lado de ninguém — defendeu-se Leoni. — Só estou fazendo uma observação.

— Vocês prefeririam que levassem o navio todo? Prefeririam entregar os Grishas no porão?

Adrik ajustou o leme.

— Nina, não estou bravo com você. Estou tentando pensar no que fazer agora.

Ela puxou seus remos com mais força.

— Você está um pouco bravo comigo.

— Ninguém está bravo — garantiu Leoni, acompanhando o ritmo de Nina. — Nós libertamos um navio cheio de Grishas daquele lugar horrível. E não é como se Birgir e seus capangas kalfisk não tivessem um monte de inimigos nas docas. Eles poderiam ter se atracado com qualquer pessoa durante sua inspeção surpresa. Eu chamo isso de vitória.

— Claro que chama — disse Adrik. — Se você consegue encontrar uma luz no fim do túnel, vai encontrá-la.

Era verdade. Leoni era um raio de sol numa garrafa – e nem mesmo os meses em Fjerda tinham diminuído seu brilho.

— Você está cantarolando? — Adrik perguntara uma vez, incrédulo, quando eles tinham sido forçados a passar uma hora cavando o trenó que ficara preso na lama. — Como pode ser tão incansavelmente otimista? Não é saudável.

Leoni tinha parado de cantarolar para dedicar toda a sua atenção à pergunta enquanto tentava convencer o cavalo deles a puxar o trenó.

— Acho que é porque eu quase morri quando criança. Quando os deuses dão outra chance a você, é melhor aproveitar.

Adrik mal erguera uma sobrancelha.

— Eu já levei tiros, fui esfaqueado e baionetado e tive meu braço arrancado por um demônio das sombras. Não melhorou meu humor em nada.

Era verdade. Se Leoni era um sol ambulante, Adrik era uma nuvem de chuva tristonha e sobrecarregada demais para fazer chover de fato.

Naquele momento, conforme guinava o barco a remo para o litoral, ele voltou os olhos para as estrelas salpicadas no céu.

— O Verstoten terá que ganhar outra pintura, uma nova documentação e uma nova história. Vamos ter que mudar nossas operações para outro porto. Talvez Hjar.

Nina apertou os remos. O rei Nikolai já mandara o Verstoten atracar e fazer negócios em Elling quase um ano antes de a equipe de Adrik começar sua missão. Era uma embarcação familiar que atraía pouca atenção. Um disfarce perfeito. Será que ela havia sido precipitada? O capitão Birgir era um homem ganancioso, não virtuoso. Talvez ela só quisesse vê-lo morto. Mas era assim que se encontrava desde a morte de Matthias – num momento estava bem, no seguinte pronta para rosnar e morder como uma criatura selvagem.

Não, como um animal ferido. E, como um animal ferido, ela hibernara por um tempo. Passara meses no Pequeno Palácio, reatando velhas amizades, comendo comida a que estava habituada, sentada junto à lareira no salão abobadado, tentando se lembrar quem havia sido antes de Matthias, antes que um fjerdano de olhar sombrio tivesse interrompido sua vida com sua honra inesperada, antes que ela soubesse que um caçador de bruxas podia se libertar de seu ódio e medo e se tornar o homem que ela amava. Antes de ele ser tomado dela. Mas, se havia um jeito de voltar a ser a garota que ela fora, ainda não o tinha encontrado. E agora estava ali, no país de Matthias, um lugar frio e hostil.

— Vamos para o sul — Leoni estava dizendo. — Só vai ficar mais frio. Podemos ir arranjando trabalho e voltar para cá daqui a alguns meses, quando o bom e velho capitão Birgir já tiver sido esquecido.

Era um plano razoável, mas o coro sussurrante na mente de Nina ficou mais alto e ela se viu dizendo:

— Deveríamos ir a Kejerut, a Gäfvalle. As fugitivas que não chegaram ao esconderijo não mudaram de ideia simplesmente.

— Você sabe que elas provavelmente foram capturadas — observou Adrik.

Conte a verdade a eles, meu amor.

— Sim, eu sei — disse Nina. — Mas você ouviu o que o velho falou. Garotas desaparecem em Kejerut.

Conte a eles que você ouviu os mortos chamando.

Você não sabe disso, Matthias.

Uma coisa era ouvir a voz do amante morto, outra era alegar que ela podia sentir... o quê, exatamente? Ela não sabia. Mas não achava que os sussurros em sua mente eram só imaginação. Algo a estava atraindo para o leste, para as cidades ribeirinhas.

— Tem mais uma coisa — continuou Nina. — As mulheres com quem eu trabalhava contaram que o rio perto de Gäfvalle tinha estragado, que a cidade estava amaldiçoada.

Isso atraiu a atenção de Adrik. O que ela dissera uma vez a Jesper, em Ketterdam? Sabe o melhor jeito de encontrar Grishas que não querem ser encontrados? Procure milagres e escute histórias de ninar. Contos de bruxas e acontecimentos milagrosos, alertas sobre lugares amaldiçoados – tudo isso eram indícios de coisas que pessoas comuns não entendiam. Às vezes eram pouco mais que causos locais. Mas em certas ocasiões havia Grishas escondidos nesses locais, disfarçando seus poderes, vivendo com medo. Grishas que eles podiam ajudar.

Conte a verdade a eles, Nina.

Nina esfregou os braços. Você é como um cão com um osso, Matthias.

Um lobo. Eu já te contei sobre como Trassel destruía minhas botas se eu não as amarrasse num galho, fora do alcance dele?

Sim, ele tinha contado. Matthias contara todo tipo de história para mantê-la distraída quando ela estivera se recuperando dos efeitos do parem. Ele a mantivera viva. Por que ela não fora capaz de fazer o mesmo por ele?

— Maldições, rios estragados — insistiu Nina. — Se não for nada, vamos para o sul e eu pago um belo jantar para você.

— Em Fjerda? — disse Adrik. — Não vou cobrar a dívida.

— Mas se eu estiver certa...

— Tudo bem — concordou Adrik. — Vou mandar uma mensagem a Ravka avisando que precisamos estabelecer um novo porto, e nós vamos para Gäfvalle.

Os sussurros se aquietaram, tornando-se um murmúrio gentil.

— Nina... — Leoni hesitou. — Há campos abertos lá. É uma terra linda. Você poderia encontrar um lugar para ele.

Nina olhou para as águas escuras, para as luzes cintilando na margem. Encontrar um lugar para ele. Como se Matthias fosse um armário velho ou uma planta que precisasse da quantidade exata de luz do sol. O lugar dele é comigo. Mas isso não era mais verdade. Matthias tinha partido. Seu corpo era tudo que restava, e, sem a preservação cuidadosa de Leoni, já teria apodrecido havia muito. Nina sentiu um nó na garganta. Ela não ia chorar. Eles passaram dois meses em Fjerda e tinham ajudado quase quarenta Grishas a escapar do controle fjerdano. Tinham percorrido centenas de quilômetros de campos estéreis e planícies nevadas, passando por muitos locais onde Matthias podia repousar. Agora precisava ser feito. Seria feito. E uma das promessas que ela fizera a ele estaria cumprida.

— Farei isso — ela disse.

— Mais uma coisa — prosseguiu Adrik, e sua voz soou autoritária, muito diferente do tom deprimido de costume. — Nossa função é encontrar recrutas e refugiados. O que quer que descubramos em Gäfvalle, não vamos para lá começar uma guerra. Vamos reunir informações, abrir um canal de comunicação, oferecer uma rota de fuga para aqueles que desejarem, e só.

— É o plano — concordou Nina. Ela tocou nos espinhos de osso em suas luvas.

Mas os planos podiam mudar.


APESAR DOS PROTESTOS DE ZOYA, Nikolai tinha se recusado a permanecer em Ivets. As sementes de um plano haviam se formado em sua cabeça, e ele não queria perder mais um dia definhando em um encontro de comércio. Não estava interessado em Hiram Schenck nem em suas filhas solteiras, e a próxima vez que conversasse com um membro do Conselho Mercantil de Kerch seria em seus próprios termos.

Com esse fim, embora muitos assuntos o esperassem para ser resolvidos na capital, sua primeira parada teria que ser na propriedade do conde Kirigin. Ele precisava coletar algumas informações sobre sua Fabricadora mais valiosa – e, via de regra, se alguém tinha a oportunidade de visitar um palácio de prazeres, deveria aproveitá-la. Especialmente se o palácio em questão servisse de fachada para um laboratório secreto.

O conde Kirigin mais velho era um mercador de Ravka Oeste que reunira uma vasta fortuna negociando armas e informações – e qualquer outra coisa que não estivesse pregada no chão – com os inimigos de Ravka. Mas o filho dele tinha servido com Nikolai em Halmhend e, em troca de manter sua fortuna considerável, assim como de evitar a desgraça de perder seu título e ver o pai jogado na cadeia pelo resto da vida por traição, o Kirigin mais jovem oferecera dinheiro e lealdade à coroa. Uma troca mais do que razoável.

As demandas de Nikolai tinham sido incomuns: Kirigin já era um tanto devasso, mas agora deveria viver em total decadência, gastando loucamente e cultivando uma reputação de notório libertino e alpinista social. O jovem conde assumira o papel com entusiasmo, organizando festas elaboradas e famosamente depravadas e fazendo o seu melhor para comprar acesso aos lares de nobres ravkanos que possuíam títulos mais ilustres e fortunas mais antigas – ainda que menos vastas. Ele se vestia absurdamente, bebia em excesso e se pavoneava pela sociedade com um bom humor tão constante que seu nome se tornara sinônimo de riqueza e fanfarrice: Ah, o filho dos Gritzkis é um terror e não deve se tornar grande coisa, mas pelo menos não é um Kirigin.

Foi por isso que, quando Kirigin comprou uma enorme faixa de terra logo a leste de Os Alta, ninguém achou estranho. É claro que Kirigin quer estar perto da capital, as pessoas sussurraram em salas de visita e salões de festa. Está tentando granjear o favor do rei e das velhas famílias, sem dúvida. Mas que homem de juízo e berço deixaria a filha se aproximar daquele arrivista? E, quando Kirigin contratou um gênio zemeni para projetar um complexo de prazeres diferente de tudo já visto em solo ravkano – incluindo uma terraplenagem que exigiu a contratação de milhares de homens para cavar um vale onde antes não existia um, uma adega que diziam se estender por mais de um quilômetro sob a terra e um vasto lago preenchido por Hidros e que levava dias para cruzar de barco? Bem, ninguém ficou chocado. As pessoas balançaram a cabeça quando Kirigin começou a voar em balões de ar quente e colocaram as mãos na frente da boca para rir quando os campos de onde ele lançava suas excursões ficavam frequentemente enevoados. Esbanjador, grotesco, obsceno, era o coro das vozes. E todos esperavam um convite para uma das festas espetaculares do conde.

Kirigin nomeou seu complexo magnífico de Lazlayon, o Vale de Ouro – embora estivesse oculto pela névoa e a umidade com tanta frequência que geralmente era chamado de Pântano de Ouro –, e as festas que promovia lá eram, de fato, lendárias. Mas também eram parte de uma grande mentira, uma mentira essencial ao futuro de Ravka.

Na verdade, a adega de Kirigin se estendia por oito quilômetros, não um, e não era bem uma adega, e sim um bunker subterrâneo dedicado ao desenvolvimento de armas. O lago era usado para abrigar protótipos de veículos subterrâneos e as novas invenções para a guerra naval de Nikolai. A névoa densa que encobria o vale recebia a ajuda frequente de Aeros que o ocultavam de olhos curiosos e da vigilância aérea fjerdana. O campo de balões, na realidade, era um campo de aviação; os jardins elaborados escondiam duas longas pistas retas para testar aeronaves experimentais; e os espetáculos frequentes de fogos de artifício que Kirigin encenava disfarçavam o som de tiros de rifle e bombardeios.

Não havia, é claro, nenhum arquiteto zemeni misterioso. Nikolai tinha projetado o Pântano de Ouro pessoalmente – embora a fortuna do jovem conde Kirigin tivesse pagado por sua construção. O rei o visitava ocasionalmente, como um convidado de honra, para cavalgar ou caçar ou beber os excelentes vinhos de Kirigin. Mas era mais comum chegar em segredo através de uma das entradas privadas e seguir imediatamente para conferir o progresso de suas empreitadas mais recentes.

Nikolai sempre sentia um arrepio de empolgação quando entrava no Pântano de Ouro. O palácio em Os Alta estava cheio de fantasmas: os crimes do pai, as fraquezas da mãe, as lembranças do corpo do irmão sangrando no chão enquanto os soldados de sombras do Darkling quebravam as janelas do Ninho da Águia. Mas Lazlayon era uma criação de Nikolai. Ali, por um curto período, o demônio que governava suas noites e atormentava seus sonhos recuava, afastado pela lógica, pela esperança de progresso e pela alegria de passar o tempo construindo coisas gigantes feitas para explodir. Mas o Pântano de Ouro não era só um parquinho para suas invenções – era também onde as forças do Primeiro e do Segundo Exércitos, dos armamentos tradicionais e do poder Grisha seriam reforjadas e se tornariam algo novo.

Com sorte, pensou Nikolai enquanto ele e Tolya subiam os degraus de entrada da casa principal. Ou vai ser onde eu vou gastar o que restou das reservas de guerra de Ravka, sem ter nada para mostrar em retorno exceto uma pilha de hélices enferrujadas e um lago gelado medíocre para navegação.

Ravka era muitas coisas para ele: uma grande dama que exigia galanteios constantes, uma criança teimosa que não queria se erguer sozinha e, mais frequentemente, um homem se afogando – e, quanto mais Nikolai tentava salvá-lo, mais ele se debatia. Mas, com a ajuda dos cientistas e soldados no Pântano de Ouro, talvez ele ainda pudesse arrastar seu país para a margem.

— Alteza! — cumprimentou Kirigin enquanto descia as escadas para recepcionar Nikolai. Seu cabelo laranja estava arrumado em um penteado elegante, e ele vestia um casaco violeta com brocado dourado, inteiramente inapropriado para a hora. Ao lado de Tolya, usando um casaco verde-oliva sem graça e montado no seu imponente cavalo, Kirigin parecia um ator que tropeçara na peça errada. — Como posso providenciar os melhores entretenimentos se Vossa Alteza não me avisa de sua chegada?

— Ah, Kirigin — disse Nikolai, ignorando a formalidade da mesura do conde e o abraçando com tapinhas nas costas. — Sei que você gosta de improvisar.

— Uma visita à adega é o lugar perfeito para começar. Entrem, por favor.

— Tolya e eu preferiríamos fazer um passeio pelo terreno. Você está criando animais para a estação de caça?

— É claro, Alteza. Teremos esporte para nos manter aquecidos no inverno, e, se não tivermos, as trezentas garrafas de brandy kerch em que coloquei as mãos vão ser um bom substituto.

Pelo amor dos Santos. Às vezes Nikolai se preocupava que Kirigin estivesse interpretando seu papel de depravado com um entusiasmo excessivo.

— Só não deixe todo o meu gabinete bêbado — ele disse. — Preciso de alguns ministros que ainda falem coisa com coisa.

— É claro, é claro — concordou Kirigin, espiando o caminho de acesso a casa, a esperança clara em seu rosto. Pobre idiota.

— Zoya seguiu diretamente para a capital.

Kirigin pigarreou.

— Ah, eu não me importo. Só me perguntei se deveria pegar aquele licor que ela aprecia. A comandante Nazyalensky está bem?

— Tão linda quanto um quadro e transbordando de desprezo.

— Ela é maravilhosa, não é? — devaneou Kirigin, com ar sonhador. — Vou deixá-los ao seu passeio, então. E se puder... mande meus cumprimentos a ela.

— Por todos os Santos — resmungou Tolya. — Ela te comeria no café da manhã.

O conde abriu um sorriso.

— Não seria um jeito ruim de morrer, hein?

— Kirigin, meu velho amigo — disse Nikolai —, você é um bom sujeito. Por que não encontra uma garota gentil que goste de caçar e possa sentir afeto por um vadio?

Kirigin se remexeu no lugar como um adolescente.

— É só que eu sinto que a atitude gélida da comandante Nazyalensky esconde um espírito doce.

Tolya bufou.

— Ela vai espremer e beber seu coração.

Kirigin pareceu chocado, mas Nikolai suspeitava de que Tolya tivesse razão. Ele passara a reconhecer o fenômeno bizarro da beleza de Zoya, o modo como os homens amavam criar histórias sobre ela. Diziam que ela era cruel porque tinha sido ferida no passado. Alegavam que ela era fria porque não conhecera o sujeito certo para aquecê-la. Qualquer coisa para suavizar seus ângulos e adoçar sua personalidade – mas onde estava a diversão nisso? A companhia de Zoya era como uma bebida forte. Fortificante – e era melhor se abster se você não conseguia aguentar o tranco.

Nikolai subiu de volta à sela.

— O exterior gélido da comandante Nazyalensky esconde um interior ainda mais gélido, mas certamente vou avisá-la de que você deseja a sua boa saúde.

Ele impeliu o cavalo a um trote e Tolya o seguiu. Eles percorreram o caminho de cascalho branco que corria paralelo ao lado oeste da casa principal. Através das janelas, Nikolai ouviu música vinda dos salões e das salas de jogos. Vislumbrou corpos cobertos de seda e joias e viu um homem, que não usava nada além de um chapéu de almirante, batendo uma panela grande com uma colher enquanto corria por um corredor.

A ruga na testa de Tolya era funda o bastante para semear sementes.

— A coroa não devia se associar com esses comportamentos.

— Talvez não — admitiu Nikolai. — Mas o povo ravkano gosta que seus líderes sejam um pouquinho inapropriados. Não confiam em um homem virtuoso demais.

Tolya estreitou os olhos dourados.

— E você realmente confia em um homem tão pouco virtuoso?

— Sei que não aprova, mas Kirigin interpretou o papel que eu pedi a ele. Pode não ser o sujeito mais esperto, mas é leal.

— Ele não pode achar mesmo que Zoya gastaria um minuto do seu tempo com ele.

— Vamos rezar para que nunca faça isso. O pobre Kirigin teria mais sorte tentando valsar com um urso.

Mesmo assim, Nikolai achava que nem Zoya nem Tolya davam ao jovem conde o devido crédito. A afabilidade e a falta de ambição de Kirigin escondiam um bom coração. Ele era um homem honrado, com ideias românticas sobre seu dever ao país e uma vergonha profunda pelo modo como seu pai agira – algo com que Nikolai era capaz de simpatizar. Nikolai estava agudamente ciente da reputação do próprio pai. Era um dos muitos motivos pelos quais fazia o mínimo de visitas públicas possíveis a Lazlayon. Desde o momento em que contemplara assumir o trono, ele soube que teria que ser um homem melhor do que seu pai e um rei melhor do que seu irmão jamais poderia ter sido. Vasily fora morto pelo Darkling, e Nikolai fizera o seu melhor para lamentá-lo, mas a verdade era que a morte prematura do irmão se provara muito oportuna.

Ele ficou contente ao ver dois jardineiros emergirem das sebes assim que ele e Tolya saíram do caminho de cascalho. A criadagem toda de Kirigin, desde a serviçal na cozinha até o cavalariço e a governanta-chefe, era composta de espiões do rei.

— Algum falcão nos céus? — perguntou Nikolai, usando o código que lhes permitiria passar sem ativar nenhum protocolo de segurança.

— Não, mas ouvimos que há raposas nos bosques — respondeu um dos homens, e então eles voltaram ao trabalho.

Os códigos mudavam toda semana e eram apenas um dos modos como eles protegiam os reais objetivos do Pântano de Ouro.

A costa sul do lago estava encoberta por uma névoa pesada e nada natural, e só quando ele e Tolya a atravessaram viram as docas movimentadas com engenheiros, tanto Grishas como do Primeiro Exército. As águas estavam repletas com os protótipos mais recentes da frota de hidrofólio de Nikolai. A frota verdadeira seria construída em uma base secreta na costa de Ravka — pequenos navios de guerra e enormes navios de transporte que carregariam tudo, desde tropas até aeronaves. Presumindo, é claro, que Nikolai conseguisse encontrar o dinheiro para financiar o projeto. Nem mesmo Kirigin era rico o suficiente para modernizar uma marinha inteira.

Nikolai teria gostado de ficar para assistir aos testes, mas tinha outras prioridades naquele dia. Ele e Tolya amarraram os cavalos na entrada de uma das grutas cobertas de musgo e entraram nas cavernas. O ar deveria ser úmido ali, mas a gruta não era real, e a umidade nos laboratórios e passagens em seu interior era estritamente regulada pelos Aeros. Nikolai encontrou a ranhura certa na rocha ao lado de um tufo de lírios-de-sal falsos e apertou o dedão na fenda. A pedra se moveu, revelando uma câmara de bronze. Ele puxou uma alavanca, a porta se fechou com um estrépito de metal, e ele e Tolya começaram a descer, descer, descer, seis andares para dentro da terra até a infame “adega” de Kirigin. Ela podia ser alcançada por elevadores ocultos espalhados pela propriedade.

— Eu odeio esta parte — comentou Tolya. — É como ser enterrado.

Nikolai sabia que Tolya quase fora morto em um desmoronamento de terra durante o tempo que passara com a Conjuradora do Sol.

— Você devia esperar na superfície. Assista aos testes pelos motores novos; eu gostaria de ter um relatório sobre o progresso deles.

Tolya apertou o nó que segurava seu longo cabelo preto e cruzou os enormes braços tatuados.

— Tamar diz que os medos são como ervas daninhas: crescem descontrolados se não são podados.

O que estava ótimo para Tamar – a gêmea de Tolya praticamente não temia nada.

— Então se forçar a descer no subterrâneo é a sua jardinagem?

Tolya cerrou os dentes.

— Se eu não enfrentar isso, nunca vou superar.

Nikolai decidiu segurar a língua. Se o suor na testa enorme de Tolya e sua mandíbula cerrada fossem qualquer indicação, aqueles passeios sob a terra não o estavam ajudando em nada. Mas a guerra havia deixado todos eles com feridas, e Tolya tinha o direito de tratar das suas como achasse melhor. Nikolai contraiu os dedos nas luvas e pensou nas cicatrizes pretas que os cruzavam. Eu teria a coragem de olhar o monstro nos olhos? Ele realmente não sabia.

Quando as portas do elevador se abriram, eles saíram em outra câmara de bronze, cuja passagem era bloqueada por uma porta de aço grossa. Nikolai começou a abrir as fechaduras de combinação Schuyler, que conhecera por meio de certo ladrão experiente em Ketterdam. Um momento depois, a porta se abriu e ele estava em casa.

Os laboratórios eram separados em quatro divisões principais, embora todas trabalhassem em conjunto quando necessário: artilharia e armaduras, guerra naval, guerra aérea e os laboratórios dedicados a tentar desenvolver tanto um antídoto ao jurda parem como uma cepa da droga que permitisse aos Grishas aumentarem seus poderes sem ficar viciados. Sua primeira parada eram sempre os laboratórios. Ele conversou rapidamente com seus Alquimistas para confirmar o que suspeitara em relação ao antídoto, com base no último relatório deles, e coletou um frasco do negócio para mostrar ao Triunvirato. Nikolai queria algo concreto para balançar diante dos seus conselheiros, dado o que pretendia propor.

Eles demoraram para encontrar David Kostyk, uma vez que o Fabricador trabalhava em todas as divisões do laboratório. Mas, por fim, o descobriram curvado sobre uma série de esquemas, ao lado dos enormes tanques onde versões em miniatura dos últimos protótipos dos novos submersíveis estavam sendo construídas. As mangas do seu kefta roxo de Fabricador estavam puídas, e seu cabelo mal cortado lhe dava a aparência de um cachorro felpudo perdido em pensamentos.

Através do vidro, Nikolai viu a versão mais recente dos seus izmars’ya, que compunham sua frota subterrânea. Em terra, eles pareciam desajeitados: largos, chatos e desengonçados, como se alguém tivesse pegado um pedaço de metal de qualidade e o martelado até virar uma panqueca alada. Mas sob a água eles se tornavam seres elegantes – predadores sinuosos que deslizavam pelas profundezas, seus movimentos guiados por Hidros, suas tripulações recebendo ar respirável através de uma combinação de poder Aero e um filtro que Nikolai e David levaram a maior parte de um ano para aperfeiçoar. O verdadeiro desafio seria armar a frota. Só então seus navios se tornariam um verdadeiro cardume de tubarões. E depois disso? Não importaria quantos navios de guerra os inimigos de Ravka construíssem. Os izmars’ya seriam capazes de se mover pelos oceanos do mundo sem ser vistos e atacar sem sequer emergir. Eles mudariam a face do combate naval.

David ergueu os olhos de onde estava confabulando com Nadia Zhabin sobre o sistema de pêndulo e válvulas que estavam desenvolvendo para a orientação dos mísseis.

— Eles estão testando os motores de superfície hoje — ele informou.

— Um bom dia para você também, David.

— Já é dia?

— O alvorecer foi a primeira pista — disse Nikolai. — Como estão os novos mísseis?

— Ainda estamos tentando fazê-los manter o curso — respondeu Nadia, suas feições pálidas e bem definidas tingidas de azul pela luz que refletia do tanque. Ela era uma Aeros que tinha lutado, ao lado da Conjuradora do Sol, com seu irmão mais novo, Adrik, mas mostrara seu verdadeiro potencial no desenho de armas. Tinha sido fundamental no desenvolvimento dos izmars’ya. — Acho que estamos perto.

Embora o lado inventor de Nikolai estivesse exultante com a notícia, seu entusiasmo foi contido pela conversa que tivera com Hiram Schenck em Ivets. Ele praticamente podia sentir os kerches fungando em seu cangote, e não gostava da sensação.

Nikolai tinha duas regras para seus Nolniki, os cientistas e soldados que trabalhavam no Pântano de Ouro, seus Zeros que não pertenciam nem ao Primeiro nem ao Segundo Exército, mas a ambos: acima de tudo, sejam ladrões. Tomem o trabalho de seus inimigos e o usem contra eles. Não importava se Ravka criasse a tecnologia primeiro, contanto que encontrasse modos de aperfeiçoá-la. Os fjerdanos tinham desenvolvido um motor para impulsionar trens e tanques encouraçados, então os ravkanos o tornaram poderoso o suficiente para movimentar enormes navios. Os fjerdanos haviam construído voadores de aço que não exigiam a habilidade de Aeros para serem pilotadas, então os Fabricadores de Ravka roubaram o projeto e construíram naves mais ágeis em alumínio, mais seguro e mais leve. A segunda regra? Sejam rápidos. Fjerda dera saltos enormes na tecnologia militar no ano anterior – como, ele ainda não sabia –, e Ravka tinha que encontrar um jeito de acompanhar o ritmo deles.

Nikolai bateu um dedo nos esquemas sobre a mesa.

— Se os testes de combustível para os motores de superfície derem certo, quanto tempo até os izmars’ya estarem operacionais?

— Questão de semanas — respondeu Nadia.

— Excelente.

— Mas não podemos colocar mais nada em produção sem mais aço.

— Vocês o terão — prometeu Nikolai. Só podia torcer para estar falando a verdade.

— Obrigada, Alteza — disse Nadia, com um sorriso e uma mesura.

Por algum motivo, ela ainda tinha fé em seu rei, mas Nikolai não sabia se achava essa confiança reconfortante ou preocupante. Ele sempre encontrara um modo de manter a máquina enferrujada e dilapidada que era Ravka em funcionamento – encontrando dinheiro extra quando mais precisavam, fazendo a aliança certa na hora certa, improvisando alguma invenção que tornaria o exército páreo para as vastas forças comandadas pelos inimigos nas fronteiras deles. Para Nikolai, um problema sempre apresentara uma oportunidade igual à oferecida por um motor fjerdano. Você o quebrava em pedaços, descobria como ele funcionava e usava aqueles pedaços para construir algo que agisse a seu favor, em vez de contra você.

O demônio discordava. O demônio não estava interessado na resolução de problemas ou em diplomacia ou no futuro. Não tinha nada além de fome, a necessidade do momento, o que podia ser morto e consumido.

Eu vou achar um jeito. A vida toda, Nikolai acreditara nisso. Sua força de vontade fora suficiente para moldar não só seu destino, mas sua própria identidade. Ele tinha escolhido o que queria que as pessoas vissem – o filho obediente, o malandro irresponsável, o soldado capaz, o político confiante. O monstro ameaçava tudo isso. E eles não estavam mais próximos de achar um modo de expulsar a criatura do que estavam seis meses antes. O que ele podia fazer exceto seguir em frente? Animais pequenos ganiam e se debatiam quando eram presos numa armadilha, mas a raposa encontrava uma saída.

— David, você dormiu aqui ontem? — perguntou Nikolai.

O Fabricador franziu o cenho.

— Acho que não.

— Ele passou a noite aqui — esclareceu Nadia. — Mas não dormiu.

— Você dormiu? — quis saber Nikolai.

— Eu... cochilei um pouco — respondeu Nadia, evasiva.

— Vou levar você para casa para ver Tamar.

— Mas preciso dela para os testes de combustível — protestou David.

— E vou levar você para casa para ver Genya — acrescentou Nikolai.

— Mas...

— Não discuta, David. Isso me dá vontade de explodir alguma coisa para impor minha autoridade. Eu preciso do Triunvirato unido. E vou precisar que você e Nadia comecem a trabalhar em um novo protótipo de izmars’ya.

Nadia afastou o cabelo loiro dos olhos.

— Posso começar agora, Alteza.

— Não saia correndo para exibir sua competência excessiva tão depressa. Quero que vocês garantam que esse protótipo em particular não funcione.

David começou a enrolar seus esquemas, cuidadosamente organizando suas canetas e instrumentos.

— Eu não gosto quando ele fala coisas sem sentido.

Nadia ergueu as sobrancelhas.

— Presumo que Vossa Alteza tenha um motivo.

Sempre tenho. Ele arrastaria o homem que estava se afogando para a margem, mesmo com ele gritando e chutando, se fosse preciso – não importava o que o demônio exigisse.

— Vou encenar uma pequena peça — disse Nikolai, já imaginando um lago iluminado pelo luar e todo o caos glorioso que pretendia incitar ali. — O que significa que preciso dos adereços de cena apropriados.


GÄFVALLE.

Quanto mais se aproximavam da cidade, mais difícil era ignorar os sussurros farfalhando em sua cabeça. Às vezes, Nina podia jurar que ouvia vozes, as formas vagas de palavras só um pouquinho além de sua compreensão. Outras vezes, o som reduzia-se ao sopro do vento através de bambus.

Conte a eles, meu amor.

Mas o que havia para contar? O som poderia não ser nada. Poderia ser uma alucinação auditória, algum efeito colateral remanescente da sua luta com o parem.

Ou poderiam ser os mortos que a chamavam.

A cidade ficava à sombra de uma cordilheira baixa, sob uma construção vasta que já fora um forte e depois uma fábrica de munições, encaixada na lateral de um desfiladeiro muito acima dela. Não era difícil perceber que a velha fábrica tinha sido reaproveitada para algum novo propósito – o tráfego de carroças e homens entrando e saindo da instalação deixava isso claro –, mas qual seria?

Não havia pousadas ali, só uma taverna com dois quartos de hóspedes, que já estavam ocupados. O dono disse a eles que o convento, no alto da colina, às vezes aceitava hóspedes.

— As irmãs no convento lavam as roupas dos soldados — ele contou. — Então apreciam ter algumas mãos extras para ajudar nas tarefas.

— Deve estar movimentado por aqui ultimamente, com a velha fábrica funcionando — comentou Nina em fjerdano. — Bom para os negócios.

O dono balançou a cabeça.

— Os soldados chegaram há cerca de um ano, mas não contrataram ninguém da região. Só despejaram sua imundície no rio.

— Você não sabe disso — disse uma mulher corpulenta que descascava vagens no bar. — O rio estava cheio dos resíduos das minas antes que os soldados voltassem a usar as chaminés. — Ela deu um olhar demorado para Nina e os outros. — Não vale a pena meter o bedelho em encrenca.

Eles captaram a mensagem e saíram para a rua principal. Era uma cidadezinha surpreendentemente bonita, com prédios baixos e apertados uns contra os outros, telhados com frontão triangular e as portas pintadas de cores brilhantes – amarelo, rosa e azul.

Leoni contemplou a montanha onde a velha fábrica assomava, seus prédios grandes e quadrados pontilhados por janelas escuras.

— Eles podem só estar fabricando rifles ou munição.

A expressão de Adrik estava mais sombria que de costume.

— Ou talvez algum daqueles novos tanques de guerra de que gostam tanto.

— Se for o caso, teremos alguma informação para transmitir à capital — disse Nina, mas esperava que não fosse só isso que encontrariam.

Ela ficou surpresa ao ver sinais dos Santos ali, em locais que ela sabia não serem ocupados pela rede Hringsa. Ela os tinha visto na estrada também – altares com o símbolo de Sankta Alina em vez do freixo sagrado de Djel, um ícone de Sankt Demyan da Geada sobre uma vitrine de loja, dois ramos espinhentos cruzados acima de uma porta para indicar a bênção de Sankt Feliks. Corriam boatos de milagres e estranhos acontecimentos por toda Ravka, e parecia que um novo fervor pelos Santos tomara Fjerda também. Era arriscado proclamar sua heresia tão publicamente com soldados por perto, mas talvez aqueles fossem pequenos atos de rebelião para os moradores que se ressentiam do exército vigilante na fábrica.

O convento ficava nas cercanias ao norte da cidade, quase diretamente abaixo do declive da fábrica. Era uma construção circular de pedra branca como leite, com torreões no alto que faziam o prédio parecer uma torre em busca de um castelo. A grande capela adjacente era construída com troncos fortes e rústicos, e sua entrada era composta por ramos de freixo trançados em nós complicados.

Eles deixaram o trenó nos estábulos e tocaram o sino na porta lateral do convento. Quem a abriu foi uma moça usando o vestido azul-claro bordado de noviça, e um momento depois eles estavam se encontrando com a Madre Superiora da Nascente. A mulher mais velha usava lã azul-escura e tinha uma cara arredondada, com maçãs do rosto altas e uma pele profundamente vincada, como se tivesse sido dobrada nas pregas pálidas e ordenadas, em vez de enrugada pela idade.

Nina fez as apresentações, explicando que estava servindo como tradutora para um casal de comerciantes que vendiam suas mercadorias, e perguntou se eles poderiam se alojar em algum lugar na propriedade enquanto exploravam a área.

— Eles sabem falar alguma coisa em fjerdano?

— Bine — disse Adrik. Um pouco.

— De forenen — acrescentou Leoni com um sorriso. Estamos aprendendo.

— E onde está o seu marido? — a Madre Superiora perguntou a Nina.

— Foi às águas — ela respondeu, abaixando os olhos para o anel prateado em sua mão. — Que Djel o tenha.

— Não era um soldado, então?

— Um pescador.

— Ah, certo — ela respondeu, como se estivesse decepcionada com uma morte tão pouco sangrenta. — Posso deixar você e a mulher zemeni ficarem em quartos no piso inferior, perto das cozinhas. Mas o marido dela vai ter que ficar nos estábulos. Duvido que ele seja um grande perigo às garotas — ela disse, olhando de relance para a manga presa no casaco de Adrik —, mas mesmo assim.

Era o tipo de comentário grosseiro que as pessoas faziam perto de Adrik o tempo todo, mas ele se limitou a sorrir amavelmente e estendeu, com a mão restante, o pagamento pela semana.

A Madre Superiora os instruiu quanto à rotina do convento enquanto os levava através do salão de jantar e depois aos estábulos.

— As portas são fechadas às dez badaladas toda noite e só abrem de novo pela manhã. Pedimos que se atenham a ler ou meditar em silêncio depois desse horário para não perturbar os estudos das garotas.

— Todas elas são noviças? — perguntou Nina.

— Algumas se tornarão Donzelas da Nascente. Outras estão aqui para receber instrução até retornarem às famílias ou ao marido. O que estão transportando aí embaixo, afinal? — perguntou a Madre Superiora, erguendo o canto da lona preso ao trenó.

O instinto de Nina foi afastar a mão dela com um tapa. Em vez disso, ela deu um passo à frente com avidez e estendeu as mãos para os nós que mantinham a lona amarrada.

— O casal inventou uma nova forma de carregador de rifles.

Aproveitando a deixa, Leoni tirou um panfleto colorido do casaco.

— O preço é acessível e estamos projetando grandes vendas no próximo ano — ela disse. — Estamos em busca de alguns investidores menores. Se quiser uma demonstração...

— Não, não — recusou a Madre Superiora rapidamente. — Tenho certeza de que são muito impressionantes, mas temo que as finanças do convento sejam limitadas demais para, hã... empreitadas especulativas.

Nunca falhava.

— Servimos as refeições às seis badaladas após as preces da manhã, que vocês, é claro, estão convidados a fazer conosco, e à noite novamente às seis. Pão e sal ficam disponíveis na cozinha. A água é racionada.

— Racionada? — perguntou Nina.

— Sim, tiramos do poço em Felsted, o que exige uma longa caminhada.

— Gjela não é mais perto?

Os lábios cheios da Madre Superiora se contraíram.

— Há muitos modos pelos quais mostramos serviço a Djel. A caminhada fornece uma boa oportunidade para contemplação silenciosa.

O rio estragou lá perto do velho forte. Então a Madre Superiora não queria que suas garotas bebessem daquele tributário do rio, mas também não estava aberta a discutir a questão. Era possível que as Donzelas estivessem só lavando os uniformes dos soldados, mas também provável que soubessem o que estava acontecendo na fábrica.

Assim que a mulher se foi, Adrik disse:

— Vamos andar um pouco.

Nina conferiu se a lona estava bem amarrada e eles subiram a encosta, estabelecendo um ritmo tranquilo e fazendo questão de conversar alto em zemeni. Eles andaram paralelamente à estrada que levava à fábrica, mas pararam para apontar pássaros e observar as vistas do vale. Três turistas fazendo um passeio e nada mais.

— Você vai ficar bem nos estábulos? — Leoni perguntou enquanto eles atravessaram um pequeno bosque de pinheiros.

— Vou sobreviver — disse Adrik. — Um libertino de um braço só ainda pode assediar os cavalos. Aposto que a Madre Superiora não pensou nisso.

Leoni riu.

— São os lobos que não se veem que comem mais ovelhas.

Adrik bufou, mas pareceu quase satisfeito.

Atrás deles, Nina revirou os olhos. Se fosse obrigada a continuar a missão com duas pessoas começando aquela dança de elogios hesitantes e faces subitamente ruborizadas, talvez morresse. Uma coisa era encontrar a felicidade e perdê-la, outra era ter a felicidade dos outros esfregada na sua cara como uma segunda fatia de bolo indesejada. Mas, é claro, ela nunca tinha recusado uma segunda fatia de bolo. Isso vai ser bom para mim, ela tentou se convencer. É como comer verduras e ter aulas de aritmética. E provavelmente tão prazeroso quanto.

Por fim, eles se dirigiram a uma abertura entre as árvores, com vista para a entrada da fábrica. À visão, o farfalhar de vozes aumentou em sua mente, ficando mais alto que o vento que balançava os pinheiros. Dois soldados estavam postados de cada lado de enormes portas duplas e havia outros espalhados pelos parapeitos.

— Era um forte antes de ser uma fábrica — disse Nina, apontando para o que pareciam ser velhos nichos entalhados nos muros de pedra. Havia um grande reservatório atrás do prédio principal, e ela se perguntou se a água era usada para esfriar quaisquer máquinas que operassem lá dentro.

— É uma boa vantagem estratégica, suponho — comentou Adrik em sua voz monótona. — Terreno alto. Um lugar seguro para se abrigar de um ataque ou quando o rio transborda nas margens.

O poder de Djel, pensou Nina. A nascente, a ira do rio.

Duas chaminés expeliam fumaça cinza-azulada para o céu de fim de tarde enquanto eles observavam uma carroça coberta avançar até o portão. Era impossível dizer o que se passava entre os guardas e o cocheiro.

— O que acham que tem naquela carroça? — perguntou Adrik.

— Pode ser qualquer coisa — disse Leoni. — Minério das minas. Peixes. Feixes de jurda.

Nina correu as mãos pelos braços e espiou a chaminé.

— Não é jurda. Eu teria sentido o cheiro. — Pequenas doses de jurda comum a tinham ajudado a sobreviver ao seu suplício com o parem, mas a deixaram com uma sensibilidade aguda à planta. — O que você acha? — ela perguntou a Adrik. — Ficamos?

— Eu gostaria de uma olhada dentro daquele forte, mas me contentarei em saber o que diabos eles verteram na água.

— Pode ser refugo das minas — disse Leoni.

— Se fosse das minas, os pescadores teriam se rebelado e exigido que fossem fechadas. O medo está mantendo os moradores calados.

— Vamos pegar amostras da água — sugeriu Leoni. — Se pudermos isolar os poluentes, talvez possamos descobrir o que eles estão fazendo dentro do forte.

— Você tem o equipamento para isso? — perguntou Adrik.

— Não exatamente. Eu vim preparada para forjar documentos, não testar venenos. Mas é bem provável que eu consiga dar um jeitinho.

— Se eu dissesse que precisamos de pó mágico para me fazer vomitar balas de menta, você provavelmente diria que poderia dar um jeitinho.

— Provavelmente — respondeu Leoni com um sorrisinho. — Só teria que tentar.

Adrik sacudiu a cabeça, perplexo.

— Estou cansado só de imaginar.

— Mas vou precisar de tempo — continuou Leoni, e Nina viu uma sombra de preocupação cruzar o rosto dela. — Venenos são um trabalho delicado.

— Não podemos ficar muito tempo aqui sem atrair suspeitas — disse Adrik. — Não há comércio suficiente passando pela cidade para justificar nossa presença. E não quero ficar preso aqui se cair uma tempestade de neve.

— Eu sei — disse Nina. Ela havia insistido para que eles viessem, e esperava que encontrassem mais do que uma fábrica de munições reaproveitada. — Nos dê uma semana.

Um silêncio se seguiu, e Nina sentiu a preocupação compartilhada que passou entre Leoni e Adrik.

Leoni tocou a mão dela delicadamente.

— Nina... — ela começou, e Nina sabia o que ela ia dizer.

Os sussurros se ergueram em sua mente de novo, mas Nina os ignorou. Em vez disso, ela olhou para o vale, a densa floresta, o tributário cintilante serpeando entre as árvores como uma corrente brilhante numa caixa de joias, a cidadezinha ordenada dividida pela estrada. Não parecia território inimigo. Parecia um lugar tranquilo aonde as pessoas vinham para construir uma casa e tentar construir uma vida, onde questões de soldados e guerras eram apenas uma intrusão.

Em outra vida, ela e Matthias poderiam ter construído sua casa em um lugar como esse. Teriam discutido sobre quão próximos de uma cidade deveriam viver: Nina teria preferido pessoas e agitação; Matthias teria resmungado e preferido sossego. Eles teriam encontrado um meio-termo. Teriam discutido e feito as pazes com um beijo. Mas onde eles teriam se sentido a salvo juntos? Em Fjerda? Em Ravka? Haveria algum lugar em que teriam sido verdadeiramente livres e felizes? Outra vida, outro mundo.

É a hora, Nina. Devolva-me ao meu deus.

Nina inspirou profundamente.

— Vou precisar de dois dias para levá-lo aonde a água for limpa.

Ao dizer as palavras, ela sentiu seu coração se partir – o golpe pesado do machado, a lâmina afundando além da casca para a madeira macia e branca do tronco.

— Não devia ir sozinha — disse Adrik, sem entusiasmo. Ele parecia estar contemplando colocar um par de meias molhadas.

— Eu não preciso de...

Um barulho soou algum lugar abaixo. Eles congelaram, os corpos tensos de expectativa. Silêncio – e então um grito.

— Veio da clareira — sussurrou Nina.

Adrik se virou para descer a colina e gesticulou para que elas seguissem, seu desânimo desaparecendo em um segundo enquanto o guerreiro calejado emergia. Eles se mantiveram nas sombras, movendo-se com cuidado e esgueirando-se para mais perto.

— Soldados — sibilou Leoni, espiando através dos galhos.

Um grupo de jovens usando uniformes fjerdanos cinza estava reunido junto ao riacho, gritando uns para os outros. Dois estavam montados; os outros tinham apeado e estavam tentando acalmar um cavalo que, por algum motivo, se assustara e derrubara seu cavaleiro. Nina podia ver que a bota do soldado ficara presa nos estribos e ele estava sendo arrastado pelo riacho à medida que o cavalo dava coices nas águas rasas, por pouco não acertando a cabeça do soldado com os cascos. Um único golpe pesado e o crânio do rapaz seria esmagado.

— Deveríamos ajudar — disse Leoni.

— Deveríamos voltar à segurança da cidade — corrigiu Adrik. — Eles vão dar um jeito.

— E é um soldado fjerdano a menos pra nos perseguir — sussurrou Nina baixinho.

Nina.

Adrik e Leoni a encararam. Adrik parecia um enlutado em busca de um velório, e até o rosto radiante de Leoni ficou anuviado de preocupação.

Ela não aprovava. Adrik não aprovava. Diabos, em seu coração, nem Nina aprovava.

Mas desde que Matthias a deixara – desde que fora tomado dela – Nina havia perdido a parte de si que se importava. Qual era o sentido de tudo aquilo? Você salvava uma vida só para ver outra ser tomada. Os bons pereciam. E os maus? Nina olhou os jovens fjerdanos de uniforme, futuros assassinos. Que direito eles tinham de sobreviver quando o Matthias dela, seu lindo bárbaro, estava morto?

Nina.

Ela queria poder tapar os ouvidos e dizer a ele que a deixasse em paz. Mas essa era a última coisa que ela queria.

Você tem que insistir para que eu permaneça humana?, ela reclamou em silêncio.

Eu sei como você é forte, Nina. Minha morte não será o que te derrotará.

— O que a gente poderia fazer? — Nina perguntou.

— Eu sei lidar com cavalos — insistiu Leoni, já abrindo caminho entre as árvores. — E seria bom fazer amizade com uns soldados.

— Amizade com soldados? — Nina perguntou, incrédula.

— Vamos — disse Adrik. — Se deixarmos Leoni sozinha, é capaz que ela os convide para uma festa do pijama.

— Gedrenen — gritou um dos soldados quando eles surgiram na clareira. Estranhos. Ele tinha uma voz de criança.

— Podemos ajudar? — Nina chamou em fjerdano.

— Não! — ele gritou da margem. — Fiquem onde estão!

Foi aí que Nina percebeu que eles não eram homens – eram jovens mulheres vestidas como soldados fjerdanos.

Nina ergueu as mãos em um gesto pacificador.

— Deixe-nos ajudar sua colega. Minha amiga zemeni é boa com cavalos. — Ela realmente esperava que fosse o caso, e não só Leoni sendo otimista porque uma vez afagara um pônei.

Leoni foi até a beira do riacho, fazendo sons de relincho baixos e murmurando em zemeni. Ela se moveu lentamente para a esquerda, depois para a direita, com os braços estendidos.

— Preciso de corda — ela disse em voz baixa, sem desviar o olhar do cavalo.

Uma das mulheres avançou até eles. Ela devia ter um metro e oitenta e era esguia e musculosa. Sua pele tinha o tom marrom-dourado cálido que geralmente indicava ascendência hedjut, naquelas regiões mais ao norte, e alguns tufos de cabelo castanho-avermelhado estavam visíveis sob o boné do exército. Agora que estavam mais perto, Nina podia ver que os uniformes eram todos grandes demais e não serviam direito nas moças. Roubados.

A garota alta empinou o queixo. Ela parecia ter a idade de Nina e, se tinha qualquer medo de ser descoberta, estava escondendo bem. Jogou a corda para Nina, que a passou a Leoni, mantendo distância. O que aquelas garotas estavam fazendo? Mulheres não serviam no exército fjerdano. Elas não costumavam cavalgar e, quando o faziam, com certeza não era com uma perna de cada lado. Nem usavam calças, só saias pesadas, em nome da decência.

A garota presa nos estribos gemeu, debatendo-se e tentando erguer-se com dificuldade acima da água. Seu cabelo loiro cor de palha tinha se soltado ao redor dos ombros, e um corte na testa sangrava profusamente. No entanto, ela estava viva e seu crânio ainda estava intacto – por enquanto.

Leoni manteve os olhos fixos no cavalo enquanto transformava a corda em um laço. Ela o girou com movimentos gentis e preguiçosos, continuando aqueles murmúrios baixos e apaziguantes enquanto todos assistiam. Então, sem interromper o ritmo, ela atirou o laço em um arco suave. Ele pousou perfeitamente sobre a cabeça do cavalo e o animal empinou com um relincho alto. Leoni se moveu para a esquerda e a direita de novo, virando a corda, inclinando-se para trás, usando a força, mas sem lutar. Finalmente, o cavalo se aquietou.

A garota alta que dera a corda a Nina deu um passo à frente, mas Leoni balançou a cabeça rapidamente.

— Espere — murmurou Nina. Um rubor forte se espalhou pelo rosto afiado da garota.

Leoni se aproximou do cavalo lentamente e apoiou a mão em seu pescoço, afagando a crina até o garrote.

— Alguma coisa o assustou? — ela perguntou em zemeni, cuidadosamente contornando o flanco do cavalo. Curvou-se para o estribo, mas gesticulou à garota com os olhos vítreos na água, para que não se mexesse. Ela não queria arriscar que o cavalo empinasse de novo. Nina esperava que a garota estivesse consciente o bastante para entender. — Não tem por que se preocupar — murmurou Leoni.

Ela liberou a bota da garota do estribo, então rapidamente deu um puxão na corda e conduziu o cavalo para longe.

Por um longo momento, a garota caída ficou imóvel na água – então soltou um soluço e se sentou. As companheiras correram até ela e a puxaram do riacho.

Leoni levou o cavalo até onde Nina estava esperando com a garota alta.

— Alguma ideia do que o assustou? — ela perguntou em zemeni.

Nina traduziu, mas a garota alta não respondeu – só estreitou os olhos acobreados.

— O que vocês estão fazendo aqui?

— Além de salvar a vida da sua amiga? — respondeu Nina calmamente.

— Dificilmente ela teria morrido.

— É mesmo? Só teria sangrado até desmaiar de uma concussão ou até o cavalo pisoteá-la e a colocar num coma?

— Tínhamos a situação sob controle — a outra insistiu. Então ergueu os olhos para as árvores. — Vocês vieram dos bosques ao norte. Não tem nada lá em cima.

— Rapidamente descobrimos isso. Acabamos de chegar à cidade. Explorar a região é considerado um crime em Gäfvalle?

— Tem uma vista da fábrica naquele lado.

— Ah! — disse Nina, e virou-se para Adrik e Leoni. — O prédio que vimos era algum tipo de fábrica. — Melhor se ater à farsa caso alguma daquelas mulheres falasse zemeni. Ela se virou à garota alta. — Pensamos que parecia um forte. O que eles produzem lá? — ela perguntou inocentemente.

— Não é problema meu e duvido que seja seu. Vocês estão hospedados no convento?

Quanto exatamente aquela garota sabia, e por que era tão hostil? Talvez fosse irmã de um soldado, criada para ser desconfiada. As mãos de Nina estremeceram e ela sentiu as lascas de osso se remexerem. Não queria ferir a garota, mas faria isso se necessário. A última coisa de que precisavam era que alguém corresse para casa e falasse sobre os estranhos no bosque, que estavam de olho na fábrica. Então a garota alta fechou os punhos e disse:

— Eu... vocês não vão contar à Madre Superiora da Nascente que nos viram aqui?

De repente, a atitude defensiva da garota fazia mais sentido. Os uniformes roubados, a excursão no bosque no meio do dia: ela havia partido na ofensiva, mas estava, na verdade, com medo de ser descoberta.

— Vocês são noviças? — perguntou Nina.

— Todas estamos sendo educadas no convento. Algumas vão se casar. Algumas vão se tornar Donzelas da Nascente e dedicar a vida a Djel. — Não parecia que qualquer uma das opções a atraísse muito.

Nina adotou uma expressão mais séria e percebeu que estava imitando o jeito de Matthias.

— Cavalgar, usar calças, ficar de brincadeira no bosque sem uma acompanhante... seria irresponsável da nossa parte não dizer algo à Madre Superiora, especialmente dada a generosidade das nossas anfitriãs.

A garota alta empalideceu e Nina sentiu uma pontada de culpa. Se tinha mais ou menos a sua idade, então era velha demais para ser noviça. Todas elas eram. Seriam essas as excluídas, então? As garotas que não foram escolhidas como noivas? O que acontecia às mulheres fjerdanas que não encontravam um lugar como esposas ou mães? Ravka estava longe de ser um reino perfeito, mas pelo menos Nina tivera permissão para treinar como soldada e se tornar o que estava destinada a ser.

Livre para lutar e morrer ao lado dos homens?

Sim, Matthias. Livre.

O que ele teria achado daqueles uniformes?

— Onde arranjaram esses uniformes? — perguntou Nina.

— Na lavanderia. Os soldados mandam suas roupas ao convento para serem lavadas.

— Então vocês são ladras também — disse Nina. Ela podia ter pena daquelas garotas, mas não ia arriscar o disfarce do grupo por elas.

— Só pegamos emprestado! Era uma brincadeira. Não vamos fazer de novo.

Nina duvidava disso. Não seria a última vez que aquelas garotas “emprestariam” uniformes ou cavalos. A distância podiam manter a farsa de que eram soldados em treinamento e perambular pelos campos com uma liberdade que jamais experimentariam de outra forma. Mas qual seria o risco? Nina não podia imaginar a punição se elas fossem descobertas.

— O que acha, Adrik? — perguntou Nina, submetendo-se à decisão do homem do grupo como uma garota fjerdana obediente faria, ainda que ele fosse estrangeiro.

Adrik lançou um olhar crítico para as noviças, fingindo considerar.

— Muito bem. Não vamos falar deste dia.

Nina assentiu à garota alta, cujos ombros caíram de alívio. As outras também pareceram aliviadas enquanto puxavam a amiga ferida para uma sela.

— Levem-na para casa e cuidem dela — ordenou Nina com a superioridade empertigada de uma estudante que nunca, jamais desobedecera às regras. — Vocês deveriam agradecer Djel em suas preces esta noite por ele tolerar tal imprudência em suas devotas.

A garota alta fez uma mesura.

— Djel jerendem. — Ela montou no cavalo.

— E é melhor não vermos vocês por aqui de novo! — exclamou Adrik em um fjerdano desajeitado.

— Sim, senhor, claro — disse a garota, mas, quando ela se virou, Nina vislumbrou uma centelha de desafio em seus olhos acobreados. As outras poderiam estar intimidadas, mas ela não estava. Ela tinha um coração diferente. Ela cavalgaria. Ela caçaria. Ela lutaria quando pudesse. E era assim que permaneceria viva.

Quando as noviças tinham deixado a clareira, Nina ponderou:

— Elas não vão falar.

— Não — concordou Adrik. — Claramente estavam aterrorizadas com a possibilidade de que nós contaríamos à Madre Superiora. Vamos encher nossos cantis. Podemos levar as amostras de volta aos estábulos.

Mas Nina não estava pronta para sair da montanha. Os sussurros tinham começado de novo, e ela não ia ignorá-los desta vez.

— Quero dar outra olhada na fábrica.

— Por quê?

Como responder?

— Eu... eu só acho que pode haver algo mais para ver. — O coro dentro dela se aquietou.

Adrik parecia cético.

— Vá, mas tome cuidado. E não aja sozinha, entendido? — Nina assentiu, mas aparentemente Adrik viu algo de que não gostou em sua expressão. — Nina, não faça nada. Se for pega, vai colocar todas as nossas operações em Fjerda em risco. Isso é uma ordem, não um pedido.

— Sim, senhor — disse Nina, e conseguiu falar sem dar qualquer sinal da frustração que sentia. A obediência nunca fora um de seus pontos fortes, e ela havia tomado suas próprias decisões por muito tempo. Mas queria ser uma soldada e lutar por Ravka, e isso significava reaprender a obedecer às ordens que recebia.

Trassel não gostava de seguir as minhas ordens. Eu o subornava com pedaços de bife.

Sério, Matthias? Será que devo só tentar morder Adrik da próxima vez que me irritar? Eu não sou um lobo. Sou uma dama criada com elegância... embora um bife fosse cair bem.

— Leoni e eu vamos pegar amostras aqui e do tributário mais próximo da cidade — anunciou Adrik, e Nina ficou feliz por ele não conseguir ler a sua mente. — Volte antes de escurecer.

Nina se embrenhou nas árvores, dando algumas voltas antes de retornar à fábrica para o caso improvável de estar sendo observada. Ela não seguiu a estrada dessa vez. Em vez disso, ouviu os sussurros, e não achou que estivesse imaginando a empolgação nas vozes conforme escalava a montanha, deixando-as guiá-la mais para o leste. A expectativa delas impeliu suas pernas conforme o farfalhar ficava mais alto, o som de uma plateia conversando empolgada antes do início de uma peça. Ou talvez uma execução.

Era quase o pôr do sol quando ela finalmente avistou o forte. Por que a aventura sempre envolve tanta caminhada?, ela se perguntou. De alguma forma, ela seguira até a parte de trás da construção, chegando ao lado mais distante, mais próximo à ala leste. Daquele ângulo, podia ver uma estrada de terra que levava a outro portão, vigiado por dois guardas de aspecto entediado. Aquela parte da fábrica parecia dilapidada. Algumas das janelas estavam quebradas e ela não viu sinais de ocupação.

Também teve uma vista melhor do reservatório, seu muro retentor entalhado na forma de um freixo gigante, com os ramos e raízes irradiando em massas grossas e retorcidas de pedra lavrada. Sem dúvida fora abençoado na época em que a barragem fora construída. Onde quer que água fosse usada ou contida, os fjerdanos faziam preces – em moinhos e portos, nas grandes minas ao norte, onde palavras sacras eram entalhadas no gelo toda estação. Uma comporta redonda ficava na base da represa, e Nina podia ver dejetos na lama que a cercava. Poluir as águas de Djel era um crime punível de morte em Fjerda. Talvez aqueles soldados não fossem particularmente religiosos.

Não havia nada para ver ali, mas os sussurros na cabeça de Nina tinham se tornado um clamor, e agora ela reconhecia que as vozes não estavam empolgadas – e sim angustiadas.

Nina estendeu seu poder, a coisa que o parem tinha criado dentro dela, e sentiu o fluxo do rio invisível que nenhum homem poderia conter. Era a morte, uma maré fria e inevitável, e, quando se concentrou, ela pôde sentir para onde fluía e onde redemoinhava. Deixou sua mente mergulhar na água fria, buscando aquelas vozes.

Quem são vocês?, ela perguntou à escuridão. Quem são vocês?

Ela arquejou quando a corrente a agarrou como se quisesse arrastá-la, puxá-la para as profundezas. Os lamentos em seu interior cresceram como uma terrível enchente. A morte queria reivindicá-la, ela podia sentir. E será que parte dela queria se deixar levar?

Nina, volte.

A água não parecia mais fria.

Parecia gentil. Como se lhe desse as boas-vindas.

Nina, não ceda à maré.

Os olhos de Nina se abriram abruptamente. O mundo dos vivos a envolveu de novo – o gorjeio dos pássaros, o aroma úmido da terra sob suas botas, o som de pequenas criaturas se movendo pelos arbustos.

Ela olhou para a grande silhueta da fábrica e sentiu um gelo profundo afundar em seus ossos. As vozes tinham recuado, mas ela ainda podia ouvi-las chorando. Sabia quem elas eram. Mulheres e garotas, centenas delas. Todas mortas.

Ali, no cimo daquela montanha, Nina estava cercada por covas.


NIKOLAI E TOLYA LEVARAM DAVID e Nadia de volta à capital por meio do túnel subterrâneo que se estendia do Pântano de Ouro até os terrenos do Grande Palácio – cerca de vinte e cinco quilômetros de viagem muito abaixo da superfície da terra. O pobre Tolya ficou murmurando consigo mesmo o trajeto inteiro. Em versos.

Nikolai teria gostado de poupar Tolya – e seus próprios ouvidos – do trauma da jornada, mas seu chefe de segurança insistira que estava bem. Além disso, Nikolai havia sido informado de que a multidão de peregrinos acampados fora dos muros da cidade tinha crescido nos últimos dias, e que alguns estavam exigindo uma audiência com o rei. A última coisa que ele queria era que algum fanático se lançasse sob os cascos de um cavalo real. Nikolai não pretendia criar nenhum mártir naquele dia.

Eles emergiram atrás de uma barulhenta cascata artificial perto dos estábulos reais, o caminho até ela monitorado por dois dos guardas do palácio, aqueles em quem Nikolai mais confiava. Vestindo seus uniformes brancos e dourados, com o cabelo escuro repartido perfeitamente, ambos os rostos demonstrando o desinteresse solene de soldados em posição de sentido. Os guardas poderiam ser irmãos, mas não podiam ser menos parecidos quanto à personalidade. Trukhin estava sempre rindo e se gabando; Isaak era tão tímido que muitas vezes tinha dificuldade para manter contato visual.

Os dois não demonstraram surpresa quando o grupo de Nikolai emergiu dentre as sebes.

— Trukhin — cumprimentou Nikolai. — Que emoções eu perdi enquanto estava viajando?

A expressão severa de Trukhin imediatamente se abriu num sorriso simpático.

— Bem-vindo, Alteza. Não há muito a relatar, exceto que um Infernal ateou fogo aos bosques atrás do lago.

Isso é a cara de Kuwei. Nikolai admirava o dom do garoto shu para fomentar o caos, especialmente porque o jovem Infernal era um problema para Zoya resolver.

— Não parece tão ruim.

O sorriso de Trukhin diminuiu um pouco.

— Acredito que o ministro da defesa tenha sido pego no incêndio, mas ele não ficou ferido.

— Contanto que ninguém tenha ateado fogo ao ministro das finanças. Cav anenye? — Nikolai perguntou a Isaak em zemeni. Durante seu tempo servindo em Halmhend, ele tinha descoberto o dom do guarda para línguas e incentivara Isaak a desenvolver esses talentos.

Isaak fez uma leve mesura.

— Seu sotaque está melhorando, Vossa Majestade.

— Não me trate como uma criança, Isaak.

O guarda pigarreou.

— Bem, a palavra zemeni para dia é can, não cav. A não ser que o senhor esteja perguntando como vai o meu burro.

— Desejo o melhor ao seu burro, mas sinta-se livre para me corrigir quando eu cometer erros.

— Pois não, Alteza — respondeu Isaak, desconfortável.

— Não se preocupe — acrescentou Nikolai quando eles deram as costas aos jardins e se dirigiram ao Grande Palácio. — Não acontece com frequência.

Palavras fáceis. Palavras antigas. A cada dia se tornava mais difícil se provarem verdadeiras.

Através das árvores, Nikolai vislumbrou as varandas douradas do Grande Palácio, empilhadas como as camadas de cobertura do bolo mais caro do mundo. Seus ancestrais tinham desfrutado de tudo em excesso – menos de bom gosto. Mas ele não pararia ali ainda. Guinou para a esquerda, em direção ao Pequeno Palácio, passando pelos bosques até conseguir ver seus domos dourados e o lago azul cintilante com uma minúscula ilha em seu centro, logo além.

Nikolai tinha passado muito tempo ali, mas algo sobre aquele lugar – as torres altas, as antigas paredes de madeira incrustradas com madrepérola e todo tipo de flores e feras entalhadas – sempre o fazia sentir que estava se aventurando em território estrangeiro, deixando o novo mundo para trás e entrando em um lugar onde barganhas sombrias poderiam ser feitas. Provavelmente deveria parar de ler romances.

Grishas estavam por todo canto em seus keftas de cores fortes – uniformes que Tolya e Tamar haviam terminantemente se recusado a usar, optando pelos casacos verde-oliva dos soldados do Primeiro Exército. Os gêmeos mantinham os braços expostos, sua pele de um tom bronze escuro tatuada com as marcas da Santa do Sol.

Zoya e Genya já esperavam na sala de guerra.

— Você está atrasado — disse Zoya.

— Eu sou o rei — retrucou Nikolai. — Isso significa que você está adiantada.

Para a maior parte das questões de Estado, o Triunvirato Grisha recebia Nikolai no Grande Palácio, no mesmo salão onde ele se encontrava com seus ministros e governadores. Mas quando precisavam conversar – conversar de verdade, sem medo de serem ouvidos – era ali que eles iam, às câmaras que o Darkling construíra. O homem tinha sido um mestre em manter segredos; a sala de guerra não tinha janelas e possuía apenas uma entrada, que não era acessível sem que antes se entrasse no próprio palácio. As paredes eram revestidas com mapas de Ravka desenhados no estilo antigo. Eles teriam encantado Nikolai quando criança – se ele tivesse tido permissão para sequer chegar perto do lugar.

— Temos problemas — anunciou Nikolai sem preâmbulos, se acomodando na cabeceira da mesa com uma xícara de chá apoiada no joelho.

— Dizer que temos problemas é como dizer que Tolya tem fome — respondeu Zoya, ignorando o olhar irritado de Tolya e servindo chá do samovar para si mesma. — Eu deveria ficar surpresa?

Ela estava usando o kefta de lã azul que a maioria dos Etherealki portava no frio, com bordados prateados nos punhos das mangas e na bainha, e pele de raposa cinza no colarinho. Não mostrava sinais de fadiga apesar dos dias e noites de viagem até chegarem a Os Alta. Zoya parecia sempre uma general, e sua aparência impecável era parte de sua armadura. Nikolai deu um olhar às suas próprias botas perfeitamente polidas. Era um hábito que ele respeitava.

— Mas esses problemas são particularmente deliciosos — ele disse.

— Ah, não — resmungou Genya. — Quando você fala assim, as coisas estão sempre prestes a dar horrivelmente errado. — O kefta dela era do vermelho dos Corporalki, só um tom mais escuro que seu cabelo, com os punhos das mangas bordados de azul-escuro: uma combinação usada apenas por Genya e seu regimento de Artesãos. Mas os punhos e a bainha do kefta de Genya também traziam detalhes em fio dourado para combinar com o sol que adornava seu tapa-olho, em memória de Alina Starkov. Nikolai havia acrescentado o sol ascendente ao seu próprio emblema Lantsov, um gesto que ele admitiria ter sido impelido tanto pela necessidade de apaziguar a opinião pública quanto por seus sentimentos pessoais. Mesmo assim, ele ainda tinha a impressão que Alina os seguia de uma sala a outra, sua presença tão tangível quanto o calor do sol de verão, embora a garota tivesse partido havia muito tempo.

Nikolai bateu a colher contra sua xícara.

— David e Nadia estão quase terminando o sistema de armamentos dos izmars’ya.

David não se deu ao trabalho de erguer os olhos da leitura que trouxera – um tratado sobre filtros osmóticos que Nikolai tinha achado muito útil.

— Você tem razão, Genya. Devem ser problemas gravíssimos.

Genya inclinou a cabeça.

— Por que diz isso?

— Ele está começando com as boas notícias.

Nikolai e Zoya trocaram um olhar, e Zoya anunciou:

— Hiram Schenck abordou o rei no encontro de comércio em Ivets. O Conselho Mercantil de Kerch sabe sobre nossa frota subterrânea.

Frustrado, Tamar empurrou a cadeira para trás.

— Inferno, eu sabia que tínhamos um vazamento nas velhas instalações! Devíamos ter nos mudado para Lazlayon mais cedo.

— Eles iam descobrir cedo ou tarde — disse Tolya.

— Há usos pacíficos para submersíveis — murmurou David. — Pesquisa, exploração.

Ele nunca gostara de pensar em si mesmo como um fabricante de armas, mas eles não podiam se dar ao luxo de ser ingênuos.

Tamar se inclinou contra a parede e apoiou o calcanhar nela.

— Não vamos fingir não saber como os kerches pretendem empregar nossos tubarões.

Hiram Schenck e os mercadores do Conselho de Kerch alegavam que queriam os izmars’ya como uma medida defensiva contra seus vizinhos shu e a possibilidade de bloqueios fjerdanos. Mas Nikolai sabia a verdade. Todos eles sabiam. Os kerches já tinham um alvo em mente: navios zemenis.

Os zemenis vinham aperfeiçoando sua marinha e estabelecendo suas próprias rotas de comércio. Não precisavam mais de portos ou navios kerches, e esse povo poderoso que governara sem competição os mares e o comércio mundial por tanto tempo agora tinha que se preocupar, pela primeira vez, com concorrentes. E não era só isso: os zemenis contavam com vantagens que os kerches não podiam obter – extensas terras aráveis, madeira e minas próprias. Se Nikolai fosse sincero, tinha inveja de como o jovem país prosperara. Era isso que uma nação podia fazer sem inimigos em suas fronteiras e livre do fardo da ameaça constante de guerra.

No entanto, se o Conselho Mercantil de Kerch tinha obtido os planos para a frota de tubarões de Ravka, não haveria trégua para os navios zemenis. Eles seriam atacados em qualquer lugar, e os kerches recuperariam seu monopólio dos mares – um monopólio que os tornara uma das nações mais ricas e poderosas do mundo, apesar do seu pequeno território.

— Os zemenis têm sido aliados fortes — disse Tolya. — Eles nos forneceram auxílio e ficaram do nosso lado quando ninguém mais ficaria.

Tamar cruzou os braços.

— Mas não podem perdoar nossas dívidas. Os kerches controlam a dívida de Ravka. Eles poderiam nos prejudicar seriamente com um golpe de caneta.

Nikolai estudou o mapa à sua frente. Shu Han ao sul. Fjerda ao norte. Ravka presa entre os dois. Se Ravka não conseguisse proteger suas fronteiras, a nação dele se tornaria pouco mais que um campo de batalha entre duas grandes potências – e Nikolai havia prometido paz ao povo, uma chance para reconstruir. Tanto os fjerdanos como os shu possuíam um enorme exército permanente, enquanto o de Ravka tinha se reduzido após anos guerreando em dois fronts. Quando Nikolai assumira o comando das forças ravkanas após a guerra civil, soube que não podiam se equiparar aos números do inimigo. Ravka só sobreviveria usando inovações para manter-se um passo à frente. Seu país não queria entrar em guerra outra vez. Ele não queria entrar em guerra outra vez. Mas, para construir navios, armas ou voadores em uma quantidade que fizesse a diferença, eles precisavam de dinheiro e acesso a recursos que só empréstimos kerches poderiam fornecer. A decisão tinha parecido simples – exceto que decisão alguma jamais era simples, mesmo se a pessoa estivesse disposta a pôr a honra e seus aliados de lado.

— Vocês dois têm razão — disse Nikolai. — Precisamos dos zemenis e precisamos dos kerches. Mas não podemos escolher dois pares para essa dança.

— Certo — respondeu Zoya. — Com quem queremos ir para casa quando a música acabar?

Tamar bateu o calcanhar contra a parede.

— Têm que ser os kerches.

— Não vamos tomar uma decisão precipitada — recomendou Nikolai. — Se escolhermos o par errado, podemos ter uma noite decepcionante.

Ele tirou do bolso um frasco de líquido verde enevoado e o apoiou na mesa.

Zoya arquejou rispidamente e Genya e se inclinou para a frente.

— Isso é o que estou pensando? — perguntou Zoya.

Nikolai assentiu.

— Graças às informações que obtivemos de Kuwei Yul-Bo, nossos Alquimistas estão próximos de criar um antídoto para o parem.

Genya apertou as mãos. Havia lágrimas em seu único olho âmbar.

— Então...

Nikolai odiava ter que esmagar suas esperanças, mas todos precisavam entender a realidade da situação.

— Infelizmente, a fórmula para o antídoto exige quantidades enormes de caules de jurda. Dez vezes o número de plantas que seria preciso para criar poucas gotas de jurda parem.

Zoya apanhou o frasco e o girou nas mãos.

— A jurda só cresce em Novyi Zem. Não sobrevive em nenhum outro clima.

— Precisamos de um antídoto — disse Tamar. — Todos os nossos informantes apontam que os shu e os fjerdanos estão perto de desenvolver uma cepa funcional de parem.

— Mais Grishas escravizados — lamentou Zoya. — Mais Grishas usados como armas contra Ravka. Mais Grishas mortos. — Ela pôs o frasco de volta na mesa. — Se dermos o projeto dos izmars’ya aos kerches, perderemos Novyi Zem como aliado e a chance de proteger nossos Grishas, talvez os Grishas de todo o mundo, do parem. — Com uma batidinha, ela fez o frasco sair girando em um círculo lento. — Se rejeitarmos os kerches, não teremos a verba para armar e equipar o Primeiro Exército adequadamente. De um jeito ou de outro, nós perdemos.

Genya se virou para Nikolai.

— Faça uma viagem diplomática, então. Visite os kerches, visite os zemenis. Faça aquela coisa de usar palavras demais para dizer algo simples e deixe todo mundo confuso.

— Não há nada de que eu gostaria mais do que uma oportunidade de falar — disse Nikolai. — Mas infelizmente as más notícias não acabaram.

Genya afundou na cadeira.

— Não?

— Isso é Ravka — observou Zoya. — As más notícias nunca acabam.

Nikolai sabia que esse momento ia chegar, mas ainda queria dar algum tipo de desculpa para concluir a reunião. Sinto muito, amigos. Precisam de mim na estufa para uma questão de segurança nacional. Ninguém mais pode podar as peônias. Embora todos ali soubessem o que estava acontecendo com ele, ainda parecia um segredinho sujo. Ele não queria receber o demônio naquela sala, mas aquilo precisava ser dito.

— Enquanto Zoya e eu estávamos viajando, o monstro me dominou outra vez. Eu escapei da propriedade do duque e fiz um passeio muito agradável a uma fazenda local de gansos.

— Mas o tônico sonífero... — começou Genya.

— O monstro está ficando mais forte. — Pronto. Dito. Sem qualquer tremor na voz, sem nem mesmo a mais ínfima nota de preocupação, embora ele quisesse engasgar nas palavras.

Genya estremeceu. Ela entendia mais do que todos a escuridão vivendo dentro de Nikolai, pois estava ligada aos nichevo’ya, os monstros que a tinham aterrorizado. O Darkling mandara seus soldados de sombras para cima dela quando ela o traíra. Ela havia perdido um olho para as criaturas, e as mordidas delas deixaram seu corpo coberto de cicatrizes das quais não poderia se livrar mesmo com os poderes de um Artesão. O Darkling sabia que Genya valorizava sua beleza como um escudo, então a havia tirado dela. Ele sabia que Nikolai dependia de sua mente, do seu talento para achar uma saída de qualquer situação, então deixara o demônio roubar a sua habilidade de falar e pensar racionalmente. O Darkling poderia ter matado os dois, mas, em vez disso, quisera puni-los. Podia ser uma criatura antiga e poderosa, mas certamente tinha um lado mesquinho.

— David — disse Genya, pálida sob as cicatrizes. — Isso é possível? Ele pode estar se fortalecendo?

David afastou dos olhos o cabelo castanho desgrenhado.

— Não deveria — ele respondeu. — Não depois de ficar dormente por tanto tempo. Mas o poder que criou a presença dentro do rei não era um poder Grisha comum. Era merzost.

— Abominação — murmurou Tolya.

— Vamos chamá-lo de “presença” agora? — perguntou Nikolai. — Eu prefiro “monstro”. Ou “demônio”. Até “espírito das trevas” tem uma sonoridade interessante. — O monstro sou eu e eu sou o monstro. Se Nikolai não risse da situação, estava certo que enlouqueceria.

— Podemos chamá-lo de Maribel, se você quiser — replicou Zoya, afastando sua xícara vazia. — Não importa do que o chamamos, só o que ele pode fazer.

— Importa se entendemos errado a natureza dele — apontou David. — Você já leu teoria grisha, os jornais de Morozova. O poder Grisha não pode criar vida nem animar matéria, só a manipular. Toda vez que esses limites são ultrapassados, há repercussões.

— A Dobra das Sombras — disse Nikolai. A expansão escura fervilhando de monstros que dividira Ravka em duas partes até que Alina Starkov a tinha destruído na guerra civil. Mas a ferida permanecera: um deserto de areia morta onde nenhuma planta vingava, como se o poder do Darkling tivesse sugado a própria vida da terra. O merzost havia criado a Dobra e as criaturas dentro dela, assim como os soldados de sombras do Darkling – e era o mesmo poder que o Darkling tinha usado para infectar Nikolai.

David deu de ombros.

— Esse poder é imprevisível.

— Não sabemos o que pode acontecer a seguir — continuou Nikolai. — O que geralmente é uma perspectiva empolgante, mas um pouco menos quando um demônio pode tomar o controle da minha consciência e tentar governar Ravka mastigando meus súditos. — Como as palavras vinham tão fácil, mesmo enquanto ele contemplava perder sua mente e sua vontade? Porque elas sempre vinham. E ele precisava delas. Precisava de um muro de palavras e piadas e raciocínio para manter a fera afastada, para se lembrar de quem era.

Para se livrar do monstro, Nikolai tinha se submetido a calor e frio extremos. Tinha trazido Conjuradores do Sol, perplexos, para usar seu poder nele, sem qualquer resultado discernível exceto pela sensação de que estava sendo gentilmente assado de dentro para fora. Seus agentes tinham vasculhado bibliotecas em todo o mundo e recuperado os diários do lendário Ilya Morozova após meses de escavação nos destroços do Zodíaco – e voltaram sem nada além de frustração. Essa frustração o levara a Ivets, à ponte de ossos, em uma tentativa vã de estabelecer uma conexão entre a escuridão em seu interior e os estranhos acontecimentos em Ravka. Talvez ele estivesse esperando que os Santos lhe presenteassem com um milagre. Mas, até então, a intervenção divina estava em falta.

— Então vocês entendem o problema — ele continuou. — Não posso viajar sem arriscar me expor, mas não posso ficar escondido na capital sem atrair suspeitas e ameaçar as relações futuras de Ravka com os zemenis e os kerches. Eu não prometi que os problemas seriam particularmente deliciosos?

— Perdão — cortou Genya. — O que exatamente é delicioso neles?

— O modo como vamos nos livrar deles. — Nikolai se reclinou preguiçosamente na cadeira e estendeu as pernas, cruzando-as nos tornozelos. — Vamos dar uma festa.

— Entendo — disse Zoya. — Quão bêbada eu devo ficar até que a situação comece a parecer melhor?

— Temo que não haja vinho suficiente em todas as adegas de Kirigin — admitiu Nikolai. — E sinto dizer que precisaremos estar sóbrios durante o evento. Os kerches, os zemenis, os fjerdanos e os shu: vamos trazer todos para cá. Vamos encenar um pequeno espetáculo para que eles saibam que Ravka e seu rei estão em perfeita saúde.

— Só isso? — perguntou Zoya. — Você vai aprender a fazer malabarismo também?

— Não seja ridícula — retrucou Nikolai. — Eu já sei fazer malabarismo, literal e figurativamente. Vamos renovar nossa aliança com os zemenis...

— Mas os kerches... — protestou Genya.

— E vamos permitir que os kerches deem uma espiada no nosso protótipo dos izmars’ya.

— Vamos? — perguntou David.

— Vai ser uma completa catástrofe, é claro. Talvez ocorra uma bela explosãozinha, com direito a metal voando. Talvez possamos fingir afogar alguns marinheiros. Qualquer coisa para convencer os kerches de que nossos tubarões não são navegáveis e garantir mais um tempo para nós. — Nikolai quase conseguia sentir o demônio recuar, retraindo suas garras, rechaçado pela perspectiva de um curso de ação. — Vamos reunir todos aqueles diplomatas e mercadores e políticos sob o nosso teto. Vamos fazer todo mundo conversar, e então vamos ouvi-los. Zoya, vamos precisar que seus Aeros criem um mapa acústico para termos ouvidos em todo lugar.

— Não gosto disso — disse Tolya.

— Eu sabia que não ia gostar — admitiu Nikolai.

— Não é ético espiar nossos próprios convidados.

— E é por isso que sua irmã é a chefe da minha rede de inteligência. Reis precisam de espiões, e espiões não podem se dar ao luxo de se importar com a ética. Tem alguma objeção a supervisionar uma campanha de espionagem, Tamar?

— Nenhuma.

— Então está decidido.

Tamar considerou por um momento.

— Gosto da ideia de lidar com todos de uma vez, mas que possível razão poderíamos ter para trazer nossos inimigos e aliados para este lugar e que não vá atrair ainda mais suspeitas?

— Podemos celebrar o dia do seu Santo — sugeriu Genya, animada. — Trazer trenós, construir fogueiras...

— Não — rebateu Nikolai. — Não quero esperar o festival de Sankt Nikolai. — Ele certamente não podia contar com o demônio para esperar todo esse tempo. — A festa será daqui a seis semanas. Vamos chamá-la de... de Festival de Qualquer Coisa Outonal ou algo assim. Celebrará o equinócio, uma colheita bem-sucedida, tudo muito simbólico.

— Seis semanas? — exclamou Genya. — Nunca vamos conseguir organizar um evento dessa magnitude em um tempo tão curto. Só as medidas de segurança...

Nikolai deu uma piscadela para ela.

— Se eu tivesse alguém além de Genya Safin no comando, poderia estar preocupado.

Zoya revirou os olhos.

— Ela não precisa da sua bajulação. A opinião que tem de si mesma já é elevada o suficiente.

— Deixe-o continuar — retrucou Genya. — David nunca me faz elogios floreados.

— Não faço? — perguntou David. Ele apalpou o bolso distraidamente. — Eu tenho aquela lista das suas qualidades que você me deu em algum lugar.

— Entendem o que eu tenho que aguentar?

— Preciso manter Genya feliz — explicou Nikolai — ou ela pode me trair.

— Eu posso te trair — replicou Zoya.

— Ah, isso é inevitável. Mas você é imune a elogios.

Zoya ergueu os ombros.

— Então sugiro joias e dinheiro. — Ela se ergueu e ele podia ver sua mente trabalhando, a general contemplando seu ataque. Ela caminhou devagar na frente do mapa, fazendo a Dobra aparecer e desaparecer atrás dela. — Se vamos trazer essas potências para cá, precisamos de um motivo melhor do que um festival de abóboras e feixes de trigo.

— Zoya — alertou Nikolai. Ele sabia exatamente o que ela estava pensando.

— Essa é a oportunidade perfeita para você encontrar uma noiva.

— De jeito nenhum.

Mas Zoya tinha o olhar satisfeito de uma mulher que venceu uma briga antes que ela tivesse sequer começado.

— Você mesmo disse que não pode mais viajar, então é essencial que as noivas em potencial venham até você.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não posso ficar noivo. Os riscos são grandes demais.

— É exatamente por isso que precisa ficar — insistiu Zoya. — Podemos reunir todas essas potências, e até acredito que você tem o charme e a astúcia para enganar nossos inimigos... mas quanto tempo pode nos manter assim? Seis meses? Um ano? E depois, Alteza?

— Seria um motivo ideal para trazer todos aqui — considerou Genya.

Nikolai fez uma careta.

— Eu sabia que você ia me trair. Só não achei que seria tão cedo.

— Nikolai — Zoya argumentou em voz baixa —, você disse que o monstro está ficando mais forte. Se isso é verdade, essa pode ser sua melhor chance.

Sua única chance. As palavras pairaram implícitas.

Ravka precisava de uma rainha. Nikolai precisava de um herdeiro.

No entanto, cada parte do seu ser se revoltava contra a ideia de casamento. Ele não tinha tempo para fazer a corte a alguém adequadamente, com tantos problemas para serem resolvidos. Não queria se casar com alguém que mal conhecia. Não ousava revelar seus segredos a uma desconhecida. O perigo à mulher que escolhesse seria enorme. Todas eram boas razões. Todas eram desculpas convincentes. Mas o monstro tinha acelerado o relógio.

Nikolai olhou ao redor da sala. Aquelas pessoas o conheciam melhor que ninguém. Confiavam nele. Mas o demônio espreitando dentro dele poderia mudar tudo isso. E se ficasse mais forte e continuasse a erodir o controle dele, a consumir a vontade que o guiara por tanto tempo? Abominação. Ele lembrou como Genya tinha estremecido. E se ele fosse o homem se afogando e era Ravka que iria arrastar consigo para as profundezas?

Nikolai respirou fundo. Por que adiar o inevitável? Certamente enfrentar o pelotão de fuzilamento era preferível a uma tortura prolongada.

— Vamos precisar compor uma lista de candidatas.

Zoya sorriu.

— Feito. — Ela realmente estava ansiosa para se livrar dele.

— Você vai coordenar isso como uma campanha militar, não vai?

— É uma campanha militar.

— Meus ministros e embaixadores também terão sugestões.

— Vamos convidar todas — prometeu Genya, puxando caneta e tinta, sem conseguir disfarçar sua empolgação. — Podemos receber todos no palácio. Imagine todos os jantares e chás e danças.

— Imagine todos os jantares e chás e danças — repetiu David, deprimido.

Genya apoiou a caneta e tomou as mãos dele.

— Prometo que deixo você se esconder em sua oficina. Só me dê cinco eventos e um banquete.

— Três eventos e um banquete.

— Quatro.

— Tudo bem.

— Você é um negociador terrível — acusou Nikolai. — Ela teria aceitado dois.

David franziu o cenho.

— Teria?

— De modo algum — disse Genya. — E cale a boca, Alteza.

— Vamos precisar aumentar as verificações de segurança em todo o palácio — Nikolai orientou Tolya. — Antecipar cada criado, cada guarda, cada dama de companhia como um potencial espião ou assassino.

— Falando nisso — disse Tamar —, Dunyasha Lazareva está morta.

A pretendente Lantsov.

— Quem a pegou?

— Nenhum dos nossos. Só sei que a encontraram esparramada sobre as pedras da rua perto da Igreja da Permuta, depois do leilão.

Preocupante. Será que ela estava em Ketterdam para caçá-lo? Ela não era a única pretendente ao trono Lantsov. De meses em meses, alguém novo emergia para se declarar um herdeiro Lantsov perdido, alguém que insistia ter escapado do massacre da família real realizado pelo Darkling, ou que alegava ser um filho ilegítimo do pai de Nikolai – o que, dado o comportamento do velho rei, era inteiramente plausível. É claro, Nikolai poderia muito bem ter menos direito ao trono ravkano do que metade deles. Ele era o maior impostor de todos.

— Haverá outros — acrescentou Zoya. — Mais alguém reivindicando o nome Lantsov. Ainda mais motivos para produzir um herdeiro e assegurar o trono.

— Eu disse que escolheria uma noiva e farei isso — afirmou Nikolai, tentando não soar tão petulante quanto se sentia. — Até me ajoelharei e recitarei poemas de amor, se você quiser.

— Eu posso selecionar alguns — disse Tolya, parecendo genuinamente feliz pela primeira vez desde que eles desceram ao subterrâneo do Pântano de Ouro.

— Excelente ideia. Escolha uns curtos e garanta que rimem.

Nikolai olhou de novo para o velho mapa de Ravka – violento, irremediável e com necessidades constantes impossíveis de satisfazer. Ravka era seu primeiro amor, uma paixão que começara na infância solitária e que só se aprofundara com a idade. O que quer que lhe exigisse, ele sabia que iria dar. Tinha sido imprudente com o país que ele alegava amar, e não podia mais deixar seus temores ditarem o futuro de Ravka.

— Enviem os convites — ele ordenou. — Que comece o grande romance real.


Ele passou o resto do dia em reuniões com ministros, fazendo planos para estradas e aquedutos que eles não tinham como pagar, escrevendo cartas aos kerches para pedir extensões de prazo dos empréstimos e lendo as cartas de todo mundo: do atual marechal da Ilha Errante aos almirantes da sua marinha pedindo fundos para consertos na atual frota ravkana. Tudo isso exigia concentração, sutileza e paciência infinitas – e tudo isso era menos oneroso do que o trabalho de encontrar uma rainha. Mas por fim chegou a noite, e Nikolai foi forçado a enfrentar Zoya e seu exército de noivas em potencial.

Nikolai e sua general trabalhavam sozinhos na sala de visitas dele, com o fogo crepitando na lareira azulejada. A câmara ainda ostentava o emblema do seu pai – a águia dupla em ouro trabalhado, os tapetes pesados, as cortinas tão cheias de brocado que parecia possível derretê-las e transformá-las em moedas.

A lista de Zoya não acabava mais. Moça após moça, era uma marcha de donzelas à disposição.

— As noivas serão uma desculpa para as nossas reuniões com os kerches e os zemenis — ele disse. — Talvez possamos fazer disso um estratagema, menos um noivado do que um prelúdio a um noivado.

Zoya alisou os papéis diante de si.

— Dois coelhos com uma cajadada, Alteza. É questão de eficiência. E expectativa. Você precisa de uma noiva e, por enquanto, ainda é um pretendente digno.

— Por enquanto?

— Ainda é jovem. Tem todos os dentes. E o exército de Ravka ainda não foi completamente esmagado. Essa hesitação é distintamente indigna de um rei. E muito atípica para você.

Era verdade. Ele era excelente em tomar decisões. Gostava de tomá-las. Era como limpar as folhas no chão de uma floresta para ver a trilha aberta. Exceto que, quando ele pensava em escolher uma esposa, os ramos se fechavam ao seu redor e Nikolai se via feliz de ser deixado sozinho no escuro. Talvez não sozinho, precisamente. Gostava profundamente do silêncio daquela sala, do calor do fogo, e da harpia com coluna de aço sentada à sua frente.

Zoya sacudiu o papel que estava segurando, para atrair a atenção dele.

— A princesa Ehri Kir-Taban.

— A segunda na linha de sucessão shu, certo?

— Certo. É uma das candidatas mais ideais: jovem, simpática e incrivelmente popular entre seu próprio povo. Muito talentosa com o khatuur.

— Doze cordas ou dezoito?

— O que importa?

— É importante ter critérios, Nazyalensky. Tem certeza de que os shu vão enviá-la?

— O convite será enviado à família real. Mas, considerando como o povo ama a princesa Ehri, suspeito que a irmã mais velha não ficará triste de vê-la fora do país. Se eles mandarem uma das irmãs mais novas... — Ela deu de ombros. — Saberemos que não estão levando essa aliança a sério. Mas uma noiva shu nos pouparia a necessidade de ouro kerch.

— E quanto tempo você supõe que Ravka continuaria independente depois de um casamento desses? Os shu não precisariam invadir, estaríamos convidando-os pessoalmente.

— Não existe escolha perfeita — apontou Zoya.

— Quem é a próxima?

Ela suspirou e entregou outro dossiê para ele.

— Elke Marie Smit.

Nikolai examinou o arquivo.

— Ela mal completou dezesseis anos!

— Ela vem de uma das famílias mais poderosas de Kerch. Além disso, Alina só era alguns anos mais velha quando você desperdiçou a esmeralda Lantsov com ela.

— Eu também era na época. — Pensar em Alina sempre o magoava. Ele sabia que tinha sido um tolo por pedi-la em casamento, mas na época precisava mais de uma amiga do que uma aliada política. Pelo menos sentira que sim.

Zoya se reclinou e lhe deu um olhar demorado.

— Não me diga que ainda está lamentando a perda da nossa cara Conjuradora do Sol?

Claro que estava. Ele gostava de Alina, talvez até tivesse começado a amá-la. E talvez alguma parte arrogante dele simplesmente acreditasse que ela ia aceitar. Ele era um rei, afinal, e um dançarino razoável. Mas ela conhecera o Darkling melhor do que ninguém; talvez tivesse pressentido o que o envenenava por dentro. Já haviam se passado anos, mas a rejeição ainda era difícil de engolir.

— Nunca tive o dom de sofrer por amor — disse Nikolai. — Mas gosto de exibir meu perfil enquanto olho tristemente pelas janelas.

— Os pais de Elke Marie Smit vão querer arranjar um marido para ela, provavelmente algum mercador. Tenho certeza de que ela preferiria um rei.

— Não. Próxima?

— Natasha Beritrova — recitou Zoya.

— A baronesa Beritrova?

Zoya estudava o papel com atenção.

— Ela mesma.

— Ela tem cinquenta anos.

— É uma viúva abastada, com terras perto de Caryeva que poderiam se provar essenciais em uma campanha ao sul.

— Não, Zoya.

Zoya revirou os olhos, mas apanhou outro papel.

— Linnea Opjer.

— Não.

— Por todos os Santos e seus sofrimentos, Nikolai. Agora você só está sendo do contra. Ela tem vinte e três anos e, de acordo com todos os relatos, é linda, calma, talentosa em matemática...

Nikolai deu um peteleco num fiapo em sua manga.

— Eu não esperaria nada menos da minha meia-irmã.

Zoya congelou. Ela reluzia como um ícone pintado em seu kefta, e a luz do fogo se agarrava a ela, cercando-a como um halo. Ele jurava que nunca tinha visto uma mulher ficar tão bem de azul.

— Então é verdade?

— Tão verdade quanto qualquer história — disse Nikolai. Os boatos sobre sua ilegitimidade haviam circulado bem antes de seu nascimento, e ele tentara ao máximo ficar em paz com eles. Mas só tinha falado sobre a verdade acerca de sua ascendência a uma pessoa: Alina Starkov. Por que estava contando a Zoya agora? Quando ele contara a Alina, ela o tinha reconfortado e dito que ele ainda seria um grande rei. Zoya não ofereceria tais gentilezas. Mesmo assim, ele destrancou o tampo da escrivaninha e pegou a miniatura que a mãe tinha lhe dado antes de ser forçada ao exílio, quando revelara a ele quem era seu pai verdadeiro: um magnata do comércio fjerdano que já servira como emissário no Grande Palácio.

— Santos — suspirou Zoya, encarando o retrato. — A semelhança...

— É impressionante, eu sei. — Só os olhos eram diferentes, pequenos pontos azuis em vez de castanhos, e a barba, é claro. Mas olhar na miniatura era como contemplar o futuro, um Nikolai um pouco mais velho, um pouco mais sério, com rugas nos cantos dos olhos.

Zoya jogou o retrato no fogo.

— Zoya! — gritou Nikolai, pulando em direção à lareira.

— Você é idiota? — ela cuspiu.

Ele estendeu a mão, mas as chamas estavam altas demais e ele teve de recuar, sua raiva se inflamando à visão da pequena tela derretendo em sua moldura.

Ele se virou para ela bruscamente.

— Você esquece o seu lugar.

— Aquele retrato era a mesma coisa que uma arma carregada apontada para o seu coração. — Ela cutucou o peito dele com um dedo. — Para o coração de Ravka. E você arriscaria isso pelo quê? Sentimentalismo estúpido?

Ele agarrou a mão dela antes que ela pudesse cutucá-lo de novo.

— Não sou um dos seus rapazes para você debochar ou passar um sermão. Eu sou o seu rei.

Os olhos azuis de Zoya cintilaram. Ela ergueu o queixo como se dissesse: O que é um rei mortal diante de uma rainha que pode convocar tempestades?

— Você é o meu rei. E quero que continue sendo meu rei. Mesmo se for idiota demais para proteger seu direito ao trono.

Talvez, mas ele não queria ouvir aquilo.

— Você não tinha o direito.

— Eu fiz um juramento de que o protegeria. De que protegeria este reino. Eu tinha todo o direito. — Ela puxou a mão da dele. — E se Magnus Opjer viesse a esse palácio? Ou fosse convidado a um banquete com você em Kerch? Um único olhar e as pessoas saberiam...

— Elas já sabem — disse Nikolai, sentindo-se subitamente exausto. — Ou já adivinharam. Corriam boatos mesmo antes que eu nascesse.

— Deveríamos considerar eliminá-los.

Ele apertou os punhos.

— Zoya, você não fará nada do gênero. Eu proíbo. E, se descobrir que você agiu sem meu consentimento, vai perder sua posição e pode passar o resto dos seus dias ensinando crianças Grishas a fazer animais de nuvem.

Por um momento ela pareceu prestes a erguer as mãos e chamar uma tempestade que derrubaria o palácio inteiro – mas então fez uma mesura perfeita que, de alguma forma, transmitiu todo o seu desdém.

— É claro, moi tsar.

— Você é realmente tão cruel, Zoya? Ele é um homem inocente. Seu único crime foi amar minha mãe.

— Não, o crime dele foi dormir com a sua mãe.

Nikolai sacudiu a cabeça. É claro que Zoya iria direto ao ponto. É claro, ele não tinha como saber se sua mãe e seu pai verdadeiro se amaram, mas esperava que eles tivessem tido algo além de luxúria e arrependimentos.

Ele pegou a taça de vinho da bandeja de jantar ignorada e a virou.

— Um dia você vai passar do limite e eu não serei tão compreensivo.

— Nesse dia, você pode me prender em grilhões e me jogar em suas masmorras. — Ela cruzou a sala, tomou a taça das mãos dele e a depositou na escrivaninha. — Mas hoje à noite é você que usará as correntes.

A voz dela era quase gentil.

Nikolai soltou um suspiro.

— Depois dos trabalhos de hoje, será um alívio.

Ele abriu o seu quarto de dormir. Os criados só tinham acesso a ele para limpeza sob a supervisão de Tolya e Tamar, e só uma vez por semana. Ele não tinha um criado pessoal e preparava seu próprio banho.

Embora tivesse se tornado sua prisão noturna, o quarto em si era um santuário, o único lugar no palácio que realmente parecia pertencer a ele. As paredes estavam pintadas do azul profundo do mar, e o mapa acima da cornija fora tirado da cabine que ele já ocupara como Sturmhond, quando tinha se disfarçado de corsário e velejado pelos oceanos do mundo a bordo do Volkvolny. Uma longa luneta estava apoiada num tripé perto das janelas. Ele não podia ver muito através dela – as estrelas, as casas da cidade alta –, mas mesmo tê-la ali lhe dava um senso de paz, como se um dia ele pudesse encostar o olho nela e observar os ombros arquejantes de um grande mar cinzento.

— Água salgada nas veias — um dos tripulantes dissera uma vez. — A gente ia ficar doido se passasse tempo demais em terra. — Nikolai não enlouqueceria, pelo menos não por estar cercado por terra. Ele tinha nascido para ser um rei, mesmo que seu sangue contasse outra história, e levaria seu país à vitória de novo. Mas primeiro precisava sobreviver à noite.

Ele sentou-se na margem da cama, tirou as botas e fechou os grilhões de ferro ao redor dos tornozelos antes de se deitar. Zoya esperou e ele ficou grato por isso. Era só um detalhe, acorrentar-se pessoalmente, mas assim podia manter o controle por um tempinho a mais. Só quando tinha fechado a algema em seu pulso esquerdo ela se aproximou.

— Pronto?

Ele assentiu. Naqueles momentos, a implacabilidade dela tornava a situação um pouco mais suportável. Zoya jamais o mimaria, e jamais o envergonharia demonstrando pena.

Ela deu um puxão na fechadura especial que David tinha adaptado. Com um zunido súbito de metal, e três correntes voaram sobre o corpo dele, acima dos joelhos, do torso e dos ombros. Quando a fera tomava o controle, ele ficava forte e eles não podiam arriscar. Ele sabia disso e deveria estar acostumado à experiência de ficar preso, mas tudo o que queria era se debater.

Em vez disso, manteve a expressão tranquila e ofereceu seu pulso direito para Zoya.

— E quais são seus planos para esta noite, minha querida carcereira? Tem algum encontro secreto programado?

Zoya bufou, emburrada, enquanto se inclinava para fechar a última algema e verificar a solidez das trancas.

— Como se eu tivesse tempo para isso.

— Eu sei que você vai a algum lugar na calada da noite, Zoya — ele provocou. Estava curioso, mas também ansiava por uma distração. — Você foi vista fora do palácio, embora ninguém pareça saber aonde vai.

— Eu vou a muitos lugares, Alteza. E, se continuar se intrometendo em minha vida pessoal, tenho algumas sugestões sobre aonde você pode ir.

— Por que manter segredo sobre seu amante? Tem vergonha dele?

Nikolai flexionou os dedos, tentando regular sua respiração. Zoya virou a cabeça e a luz da lamparina refletiu no crescente da sua maçã do rosto, dourando as ondas escuras do seu cabelo. Ele nunca tinha conseguido ficar imune à beleza dela, e ficou feliz por seus braços estarem acorrentados à cama ou teria ficado tentado a tocá-la.

— Não se mexa — ela disparou. — Você é pior que uma criança que comeu bolos demais.

Que os Santos abençoassem a língua envenenada dela.

— Você poderia ficar, Zoya. Me entretenha com histórias divertidas da sua infância. Acho sua maldade muito reconfortante.

— Por que não peço a Tolya que o reconforte recitando poesia?

— Aí está. Tão afiada, tão mordaz. Melhor que qualquer canção de ninar. — Quando a última tranca se fechou com um clique, a manga dela deslizou e revelou a pulseira de prata que cercava seu pulso, com pedaços de osso ou algo que poderiam ser dentes fundidos com o metal. Ele nunca a vira sem ela, nem sabia se podia ser removida. Conhecia um pouco sobre amplificadores. Tinha ajudado Alina a obter as escamas do açoite do mar, o segundo dos lendários amplificadores de Morozova. Mas precisava admitir que havia todo um universo que não conhecia. — Me diga uma coisa, Nazyalensky. David disse que ir além dos limites do poder Grisha tem repercussões. Mas amplificadores não fazem exatamente isso? Como o parem é diferente?

Zoya correu os dedos sobre o metal, pensativa.

— Não tenho certeza se o parem é tão diferente do merzost. Como o merzost, a droga exige um sacrifício terrível pelo poder que concede: a vontade da Grisha. Até mesmo a vida dela. Mas amplificadores são outra coisa. São criaturas raras, conectadas à criação no coração do mundo, a fonte de tudo que existe. Quando um amplificador cede sua vida, esse é o sacrifício que o universo demanda. O elo é forjado para sempre com o Grisha que desfere o golpe fatal. É uma coisa terrível, mas bela também. O merzost é...

— Uma abominação. Eu sei. Ainda bem que sou muito afeiçoado a mim mesmo.

— Todos os Grishas sentem a atração pelo merzost, a fome de ver o que poderíamos fazer se não tivéssemos limites.

— Até mesmo você?

Um sorrisinho curvou os lábios de Zoya.

— Especialmente eu. Poder é proteção. — Antes que Nikolai pudesse perguntar o que ela queria dizer, ela acrescentou: — Mas o preço para esse tipo de poder em particular é alto demais. Quando o Darkling tentou criar seus próprios amplificadores, o resultado foi a Dobra. — Ela ergueu o braço, a pulseira reluzindo à luz da lamparina. — Isto é suficiente para mim.

— Os dentes de tubarão usados pelos gêmeos — listou Nikolai. — Os dentes de falcão de Genya. Eu ouvi as histórias por trás de todos eles. Mas você nunca me contou a história do seu amplificador.

Zoya ergueu uma sobrancelha. No espaço de uma inspiração, a garota contemplativa se fora e a general impessoal retornara.

— O aço tem que ser conquistado, Alteza. As histórias também. — Ela se ergueu. — E acredito que você esteja protelando.

— Você me pegou. — Ele ficou triste ao vê-la partir, qualquer que fosse a máscara que usasse. — Boa noite, comandante.

— Boa noite, rei Patético.

Ele não imploraria a Zoya que ficasse. Não era de seu feitio implorar a ninguém, e não era esse o pacto que eles compartilhavam. Eles não procuravam um ao outro por conforto – e sim mantinham um ao outro em marcha. Mantinham um ao outro fortes. Então ele não iria procurar outra desculpa para fazê-la falar de novo. Não diria a ela que sentia medo de ficar sozinho com a coisa que poderia se tornar, e não pediria a ela que deixasse a lamparina acesa, como uma criança que busca uma magia que a proteja do escuro.

Mas ficou aliviado quando ela o deixou mesmo assim.


ZOYA SE LEVANTOU QUANDO O CÉU ainda estava escuro, decidindo cuidar dos afazeres da manhã antes de fazer a caminhada ao Grande Palácio, para soltar Nikolai. Tinha se passado uma semana desde que ela voltara à capital e, para seu alívio, o monstro do rei não fizera mais nenhuma aparição.

Tamar e Nadia já esperavam na área comum fora dos aposentos dela, sentadas à mesa redonda que já pertencera à guarda pessoal do Darkling. Nadia ainda estava usando seu vestido azul, mas Tamar portava seu uniforme, com os braços nus e os machados cintilando nos quadris.

— Tivemos relatos de mais dois ataques de khergud — anunciou Tamar, erguendo um maço de papéis recobertos com uma letra apertada.

— Preciso de chá — disse Zoya. Como o mundo podia estar desmoronando antes do alvorecer? Não era civilizado. Ela serviu-se de uma xícara do samovar e tomou os documentos da mão de Tamar. Havia mais deles espalhados pela mesa. — Onde eles atacaram dessa vez?

— Três Grishas foram levados de Sikursk e mais oito ao sul de Caryeva.

Zoya sentou-se pesadamente.

— Tudo isso? — Os shu tinham usado seus estoques de jurda parem para desenvolver um novo tipo de guerreiro: soldados esculpidos por Fabricadores Grisha, aperfeiçoados para ter uma força maior, asas, punhos mais pesados, ossos inquebráveis e sentidos aguçados. Eles os chamavam de khergud.

— Conte o resto para ela — pediu Nadia.

Zoya fixou o olhar em Tamar.

— Tem mais?

— Isso é Ravka — disse Tamar. — Os Grishas perto de Sikursk estavam viajando disfarçados. Então, ou os shu sabiam sobre a missão...

— Ou Nina tinha razão e esses novos soldados realmente conseguem identificar Grishas — concluiu Nadia.

— Nina nos avisou — observou Tamar.

— Avisou mesmo, não é? — concordou Zoya, amargamente. — Que ótimo, então, nosso bom rei ter enviado nossa principal fonte de informações sobre esses soldados shu a milhares de quilômetros de distância.

— Era a hora — argumentou Tamar. — Nina estava perdida no luto. Para ela, vai ser bom se sentir útil.

— Que consolo isso trará quando ela for capturada e executada — retrucou Zoya, apertando o osso do nariz. — Os shu estão nos testando, avançando cada vez mais em nosso território. Temos que rechaçá-los.

— Com o quê? — perguntou Nadia. — Um aviso severo?

— Seria uma coisa se pudéssemos caçá-los em casa — acrescentou Tamar. — Mas minhas fontes não conseguiram descobrir os locais onde eles estão criando e treinando os soldados khergud.

O estômago de Zoya revirou quando ela pensou naquelas bases, nos “voluntários” Grishas que os shu tinham viciado em parem para criar aquelas monstruosidades. Ela pegou outro arquivo.

— Essas são as dissecações?

Tamar assentiu. Os corpos de dois soldados khergud foram recuperados em Ketterdam e trazidos ao Pequeno Palácio para serem estudados. Tolya protestara, alegando que era errado “profanar” o corpo de um soldado caído. Mas Zoya não tinha paciência para sentimentalismos quando o povo deles estava sendo raptado dentro das próprias fronteiras.

— Esse metal — disse Zoya, apontando para as notas que David tinha feito ao lado de uma das ilustrações anatômicas detalhadas feitas pelos Corporalki. — O que eles estão usando para recobrir os ossos. Não é aço grisha.

— É uma liga — explicou Nadia. — Eles estão combinando aço grisha com rutênio. É menos maleável, mas mais resistente.

— Nunca ouvi falar disso antes.

— É extremamente raro. Pelo que sabemos, existem só alguns depósitos em todo o mundo.

Tamar se inclinou para a frente.

— Mas os shu estão tirando de algum lugar.

Zoya bateu um dedo no arquivo.

— Encontrem a fonte. Rastreiem os carregamentos. É assim que vamos descobrir como os khergud estão sendo feitos.

Tamar correu os dedões sobre os machados.

— Quando descobrirmos, eu vou liderar o ataque.

Zoya assentiu.

— Estarei ao seu lado.

Nadia sorriu.

— E eu estarei protegendo vocês.

Zoya torcia para que isso acontecesse em breve. Ela estava ansiosa por uma luta. Olhou para o relógio na cornija da lareira – era hora de acordar o rei.

Uma névoa fria tinha se esgueirado sobre a propriedade durante a noite, cobrindo as árvores e as trilhas de pedra em um véu enevoado. Ela atravessou os bosques sob uma copa de ramos retorcidos. Quando a primavera chegasse, flores brancas iriam desabrochar ali, depois rosa, depois vermelhas como sangue, mas por enquanto havia só madeira cinza e espinhos. Ela emergiu nas sebes aparadas e nos jardins extensos que cercavam o Grande Palácio, lampiões projetando luz sobre terrenos ainda escuros como halos turvos. O palácio parecia uma noiva antes do seu casamento, com suas varandas de pedra branca e estátuas douradas envoltas em névoa. Deveria ter sido uma visão serena, naquela hora cinzenta antes do alvorecer, mas ela só conseguia pensar nos khergud, nos zemenis, nos fjerdanos, nos kerches.

Todo dia, ela trabalhava com novos recrutas no Pequeno Palácio e administrava o Segundo Exército. Ele crescera sob seu comando, lentamente se recuperando do golpe que o Darkling tinha desferido – um golpe quase fatal. Como ele pôde fazer isso?, ela ainda se perguntava. O Darkling tinha construído a força do Segundo Exército ao longo de gerações, aumentando o número de soldados, melhorando seu treinamento, solidificando sua própria influência. Ele tinha cultivado os talentos de jovens Grishas e os ajudado a desenvolver suas habilidades, criando-os como filhos. E quando seus filhos tinham desobedecido a suas ordens? Quando sua tentativa de golpe falhara e alguns Grishas ousaram apoiar Alina Starkov contra ele? Ele os assassinara – sem hesitação nem remorso. Zoya os observara cair. Quase estivera entre eles.

Quase, ela se recordou enquanto subia os degraus para o palácio. Mas eu sobrevivi para liderar o exército que ele construiu e quase destruiu. Zoya tinha jurado tornar o Segundo Exército uma força a ser temida novamente. Tinha avançado mais fundo além das fronteiras de Fjerda e Shu Han, vasculhado o litoral da Ilha Errante e as fronteiras de Novyi Zem em busca de Grishas que quisessem aprender a lutar e pudessem jurar lealdade a Ravka. Estava determinada a aproveitar ao máximo aquele crescimento, a reunir uma força ainda maior do que a do Darkling. Mas isso não seria o bastante. Ela pretendia encontrar um jeito de proteger os Grishas em todo o mundo, para que ninguém jamais tivesse que viver com medo ou esconder seus dons novamente – criando uma organização com representantes de todas as nações para responsabilizar os países, uma garantia de direitos e de punições para qualquer um que tentasse prender ou ferir o povo dela. Para que esse sonho fosse algo mais que uma fantasia agradável, Ravka teria que ser forte – e seu rei também.

Enquanto atravessava os corredores do Grande Palácio até os aposentos de Nikolai, Zoya viu duas criadas se demorando do lado de fora da porta dele. Com um olhar, ela as fez se encolher contra a parede como anêmonas aterrorizadas.

Ela sabia como elas suspiravam pelo rei. Ele nunca foi o mesmo desde a guerra, elas sussurravam, emocionadas e enxugando os olhos sempre que ele estava por perto. Ela não podia culpá-las. Nikolai era rico, bonito e atormentado por um passado trágico: inspiração perfeita para se sonhar acordada. Mas, com a sorte dela, o rei ignoraria as candidatas ideais que ela havia encontrado, se apaixonaria por uma criada qualquer e insistiria em se casar por amor. Era o tipo de bobagem romântica que ele tendia a fazer só para ser do contra.

Ela cumprimentou Tolya, pediu uma bandeja de café da manhã, entrou no quarto do rei e escancarou as cortinas. A luz matinal tinha se tornado rosa-clara.

Jogado entre os travesseiros, Nikolai a espiou.

— Você está atrasada.

— E você está acorrentado a uma cama. Talvez não seja a melhor hora para críticas.

— É cedo demais para ameaçar um rei — ele disse, emburrado.

Ela afundou ao lado dele e começou a libertá-lo das correntes.

— Fico mais homicida quando estou de estômago vazio.

Zoya gostava daquela troca de farpas. Eram palavras irrelevantes, mas preenchiam o silêncio do quarto. Eles tinham retomado a rotina fácil após o desastre evitado em Ivets, mas ela não conseguia se acostumar com aquela intimidade – o silêncio da aurora, os lençóis amarrotados, o cabelo desgrenhado que fazia Nikolai parecer menos um rei que um rapaz precisando de uns beijos.

Me entretenha com histórias divertidas de sua infância, ele dissera a ela. Zoya duvidava que o rei ficaria entretido por suas histórias. Devo contar sobre o velho com quem minha mãe queria me casar quando eu tinha nove anos? Devo contar sobre o que aconteceu no dia do meu casamento? O que eles tentaram fazer comigo? A destruição que eu deixei para trás?

Zoya por fim o soltou dos grilhões, tomando cuidado para tocar a pele aquecida durante a noite o menos possível, e em seguida deixou o rei se lavar e se vestir.

Um momento depois, soou uma batida na porta da sala de estar e um criado entrou com chá quente e uma bandeja de pratos cobertos. Zoya não deixou de ver o olhar furtivo que ele mandou em sua direção enquanto se afastava depressa. Talvez simplesmente devesse aceitar o boato de que era a amante de Nikolai e deixar as pessoas fofocarem. Pelo menos assim poderia se poupar da caminhada de madrugada desde o Pequeno Palácio e dormir ali mesmo.

Nikolai voltou com seu passo relaxado, o cabelo dourado perfeitamente penteado, as botas lustrosas e as roupas impecáveis, como sempre.

— Você parece ter descansado bem — ela disse amargamente.

— Eu mal dormi e acordei com câimbra nas costas, como se Tolya tivesse jogado tênis na minha coluna. Mas um rei não se curva, Zoya, minha cara Zoya. Está comendo meu arenque?

Ela enfiou o último bocado na boca.

— Não, eu já comi o seu arenque. Agora...

Antes que Zoya pudesse abordar os assuntos do dia, a porta se escancarou e Tamar entrou, seguida pelo irmão – os olhos dourados reluzindo –, ambos armados até os dentes.

— Digam — ordenou Nikolai, perdendo todo o ar brincalhão.

— Temos problemas com os peregrinos acampados fora dos muros da cidade. O Apparat não gosta de nada que esse novo culto tem a dizer e levou a Guarda Sacerdotal para a cidade baixa.

Zoya se levantou num instante. O Apparat deveria servir como conselheiro espiritual ao rei, mas era um traidor e um encrenqueiro da cabeça aos pés.

Nikolai bebeu um gole rápido de chá e se levantou.

— Nosso pessoal está em posição?

Tolya assentiu.

— Temos Sangradores em roupas comuns espalhados pela multidão e atiradores em posição nos muros e na colina mais próxima. Mas não há muita cobertura.

— Você sabia que isso ia acontecer? — Zoya perguntou a Nikolai enquanto seguia o rei e os gêmeos pelos corredores do palácio.

— Tive um pressentimento.

— E não fez nada para impedi-lo?

— Como? — perguntou Nikolai. — Barricando-o na capela?

— Já ouvi ideias piores. Ele não tem status aqui.

— Mas tem os meios, e sabe que não vou desafiá-lo abertamente com forças armadas.

Zoya fez uma careta.

— A Guarda Sacerdotal deveria ter sido debandada muito tempo atrás. — Eles eram monges guerreiros, tanto estudiosos como soldados, e não havia dúvida de que sua lealdade residia com o Apparat, não o rei.

— Infelizmente, isso teria causado um tumulto entre as massas, e eu não gosto de tumultos. A não ser que envolvam dança, mas acredito que aí são geralmente chamados de festas. Que tipo de festa é essa, Tamar?

— Fizemos nosso pessoal circular entre os peregrinos todo dia e relatar o que descobriram. Pela maior parte, são inofensivos. Mas esta manhã um dos pregadores deles ficou agitado, e o Apparat não deve ter gostado do que ouviu.

Os soldados do rei esperavam perto da fonte da águia dupla com cavalos adicionais.

— Nenhum soldado de uniforme deve cruzar o muro inferior sem as minhas ordens — comandou Nikolai. — Os Grishas só estão aqui para controlar a multidão, a não ser que eu dê o sinal. Mantenham os atiradores em posição, mas absolutamente ninguém deve agir sem minhas ordens diretas, entendido?

O rei tinha o direito de comandar suas forças como julgava melhor, e Zoya estava certa de que os gêmeos fariam o melhor uso possível de seus Sangradores para proteger a coroa, mas ainda se irritava com o fato de que haviam sido colocados nessa posição. Nikolai gostava demais de fazer acordos. O Apparat tinha traído todo mundo que já fora tolo o bastante para confiar nele. O homem era uma serpente, e, se ela estivesse no controle, ele e seus lacaios da Guarda Sacerdotal teriam tido só duas opções após a guerra civil: execução ou exílio.

Eles montaram e estavam cruzando os portões quando Nikolai disse:

— Preciso que você fique calma, Zoya. O Apparat já não gosta muito do Triunvirato Grisha...

— Que dó.

— E hostilidade aberta da sua parte não vai ajudar. Sei que não gosta de saber que ele teve permissão para ficar na capital.

— É claro que ele deveria ficar aqui. De preferência empalhado sobre a minha lareira.

— Seria um bom tópico de conversação, sem dúvida, mas não podemos nos dar ao luxo de transformá-lo em mártir. Ele tem influência demais entre o povo.

Zoya cerrou os dentes.

— Ele é um mentiroso e um traidor. Teve um papel central na deposição do seu pai. Tentou manter Alina e eu presas no subterrâneo. Nunca apoiou você na guerra.

— Tudo verdade. Se eu precisar estudar para uma prova de história, sei quem devo consultar.

Por que ele se recusava a escutar?

— O sacerdote é perigoso, Nikolai.

— Ele é mais perigoso se eu não puder ver o que está fazendo. Sua rede é abrangente e sua influência sobre o povo é algo que não posso combater diretamente.

Eles passaram pelos portões e saíram nas ruas da cidade alta.

— Deveríamos ter tido um julgamento após a guerra — insistiu Zoya — e tornado os crimes dele públicos.

— Acha que teria feito diferença? A própria Alina Starkov podia ter ascendido da Dobra envolta em luz para denunciá-lo e o Apparat ainda encontraria um modo de sobreviver. É o talento dele. Agora, vista sua máscara mais beata, Zoya. Você é uma linda herege, mas preciso que pareça devota.

Zoya ajeitou suas feições em uma imitação de calma, mas a perspectiva de lidar com o Apparat sempre a deixava presa entre a raiva e a frustração.

Nikolai tinha reconstruído a capela real no palácio após a guerra e fizera o próprio Apparat consagrá-la – um gesto de reconciliação. Fora o local da coroação dele, onde a coroa Lantsov tinha sido colocada sobre sua cabeça e onde a pele de urso surrada, mas supostamente sagrada, de Sankt Grigori fora depositada sobre seus ombros. Os painéis pintados do tríptico dos Santos foram resgatados dos destroços e restaurados, o ouro em seus halos ardendo forte – Ilya em Correntes, Lizabeta das Rosas. Alina se juntara a eles, com seu cabelo branco e o colar do cervo, de modo que agora catorze Santos presidiam o altar, reunidos como um coral sereno.

Zoya quase não suportara a coroação. Ela não conseguia afastar as lembranças da noite em que a velha capela tinha caído, quando o Darkling tinha massacrado a maior parte do Segundo Exército, os mesmos Grishas que ele passara a vida prometendo proteger. Se não fosse por Tolya e Tamar, a guerra teria terminado naquela noite. E Zoya admitiria que as forças do Apparat haviam ajudado também, guerreiros sagrados conhecidos como os Soldat Sol, rapazes e moças dedicados à adoração da Santa do Sol, muitos dos quais receberam o poder dela na batalha final com o Darkling, na Dobra das Sombras. Esse pequeno milagre cimentara o legado de Alina – e infelizmente reforçado o poder do Apparat também. Era difícil não suspeitar que ele tinha algo a ver com a ponte de ossos em Ivets e a série de acontecimentos estranhos por toda Ravka.

Quando eles passaram pela ponte e saíram nas ruas da cidade baixa, Zoya pôde ouvir a multidão do lado de fora dos muros duplos, mas só quando eles apearam e atingiram o topo das ameias ela deu uma boa olhada nas pessoas reunidas abaixo. Ouviu seu próprio arquejo e sentiu o choque atravessá-la como um tapa. Aqueles não eram os peregrinos normais que viajavam pelo país para prestar homenagem a seus Santos; não era o culto do sol que se desenvolvera ao redor de Alina Starkov e que às vezes vinha aos muros do palácio para homenageá-la. Aquelas pessoas usavam preto. Os estandartes que erguiam estavam gravados com o eclipse do sol — o símbolo do Darkling.

Eles tinham vindo ali para venerar o homem que havia estraçalhado a vida de Zoya.

Um jovem clérigo estava em pé numa rocha. Ele tinha o cabelo longo e solto da Guarda Sacerdotal, mas usava preto, não marrom. Era alto e esquelético, e ela duvidava que tivesse mais que vinte anos.

— Começamos na escuridão — ele entoava à multidão que balançava às palavras —, e à escuridão retornamos. Onde mais o homem rico e o homem pobre são iguais? Onde mais alguém é julgado apenas pela pureza de sua alma?

— Que disparate é esse? — ela quis saber.

Nikolai suspirou.

— Esse é o culto do Santo Sem Estrelas.

— Eles veneram...

— O Darkling.

— E quantos seguidores têm exatamente?

— Não temos certeza — disse Tamar. — Ouvimos boatos sobre um novo culto, mas nada dessa dimensão.

O Apparat avistou o rei e começou a avançar pelas ameias. Zoya podia ver os guardas sacerdotais enfileirados atrás dele, usando vestes com o sol dourado de Alina – e armados com rifles de repetição.

— Só melhora — resmungou Zoya.

— Majestade. — O Apparat fez uma mesura baixa. — Estou honrado que tenha usado seu tempo para demonstrar seu apoio a nós. Raramente o vejo na capela. Às vezes temo que tenha esquecido como rezar.

— De forma alguma — respondeu Nikolai. — Só não gosto muito de me ajoelhar. É tortura nas articulações. Você trouxe homens armados aos muros da cidade.

— E Vossa Alteza pode ver por quê. Ouve essas blasfêmias? Essa heresia vil? Eles querem que a igreja reconheça o Darkling como um Santo!

— Quem é esse novo clérigo? — perguntou Zoya, lutando para manter a voz calma. — Era um membro da Guarda Sacerdotal?

— Ele é o tipo mais vil de traidor.

Você saberia, ela pensou sombriamente.

— Isso é um sim?

— Ele é um monge — confirmou Tamar. — Yuri Vedenen. Deixou a Guarda Sacerdotal um ano atrás, mas minhas fontes não sabem por quê.

— Podemos discutir as origens do rapaz em outro momento — disse Nikolai. — Se mandar a Guarda Sacerdotal contra essas pessoas, arrisca causar um banho de sangue e criar toda uma série de novos mártires, que só vão validar a causa deles.

— Você não pode me pedir para permitir essa heresia...

A voz de Nikolai estava fria.

— Eu não peço nada.

O rosto já pálido do Apparat ficou ainda mais branco.

— Perdoe-me, Alteza. Mas deve entender que essa não é uma questão para reis decidirem. É uma batalha pela própria alma de Ravka.

— Diga a seus homens para baixarem as armas, sacerdote. Não quero mais sangue derramado na capital. — Nikolai não esperou a resposta do Apparat e começou a descer das ameias. — Abram os portões! — ele ordenou. — O rei está passando.

— Tem certeza de que é uma escolha sábia? — murmurou Tamar. — Ouvi as conversas neste acampamento. Os peregrinos não gostam de você.

— Talvez só não me conheçam ainda. Fiquem por perto. Tolya, certifique-se de que a Guarda Sacerdotal não faça gracinhas. Tente mantê-los separados dos meus soldados. Não precisamos criar outro tumulto.

— Eu vou com você — disse Zoya.

Nikolai deu um olhar demorado para ela.

— Eu apoio escolhas imprudentes, Zoya, mas essa é uma questão delicada. Você terá que morder a língua.

— Até que sangre. — Ela queria examinar mais de perto as pessoas embelezando a memória do Darkling. Queria se lembrar do rosto de cada uma delas.

O portão se ergueu e o silêncio caiu conforme o rei cavalgava até a multidão. Os peregrinos podiam não gostar do jovem governante de Ravka, mas muitas pessoas tinham vindo à capital por outros motivos – como fazer negócios ou visitar a cidade baixa. Para eles, Nikolai Lantsov não era só um rei ou um herói de guerra. Ele era o homem que havia restaurado a ordem após o caos da guerra civil, que lhes concedera anos de paz, que lhes prometera prosperidade e trabalhava para cumprir essa promessa. Eles caíram de joelhos.

Re’b Ravka, gritavam. Korol Rezni. Filho de Ravka. Rei das cicatrizes.

Nikolai ergueu uma mão em cumprimento, seu rosto sereno, sua postura ereta, transitando entre o papel de comandante e o de aristocrata em um piscar de olhos.

Alguns dos peregrinos vestidos de preto se ajoelharam com o resto da multidão, mas outros permaneceram de pé, reunidos ao redor do seu profeta magricelo, que esperava desafiadoramente sobre um afloramento de rocha.

— Traidor! — ele gritou quando Nikolai se aproximou. — Impostor! Ladrão! Assassino! — Mas sua voz tremia.

— Certamente estive ocupado — comentou Nikolai. Eles se aproximaram, forçando os peregrinos a abrir caminho até que o monge estivesse encarando Nikolai sozinho sobre a rocha.

Talvez tenha menos de vinte anos, pensou Zoya. O peito magro do monge subia e descia rapidamente. Seu rosto era longo, sua pele pálida exceto por duas manchas rosadas nas faces, que lhe davam a aparência de um garoto com febre. Seus olhos eram de um verde melancólico que destoava do fervor que carregavam.

— O que é isso no queixo dele? — Zoya sussurrou para Tamar.

— Creio que seja uma tentativa de barba.

Ela espiou o rosto longo do garoto.

— Ele teria mais sorte se tentasse fazer despontar um chifre no meio da testa.

O monge abanou suas mangas pretas como um corvo prestes a alçar voo.

— Diga a seu falso sacerdote que faça a coisa certa e reconheça o Sem Estrelas como um Santo.

— Vou pensar no seu caso — Nikolai respondeu calmamente. — Mas primeiro devo pedir que se junte a mim para o café da manhã.

— Eu não serei conquistado! Não serei subornado!

— Sim, mas prefere chá ou café? — Risinhos se ergueram da multidão, em uma sutil suavização da tensão.

O garoto ergueu as mãos para os céus.

— A Era dos Santos chegou! Os sinais aparecem do permafrost aos Sikurzoi! Acha que serei persuadido por palavras levianas e uma atitude amigável?

— Não — respondeu Nikolai com gentileza, apeando do cavalo. Zoya e Tamar se entreolharam. Se aquilo fosse alguma tentativa de assassinato elaborada, o rei estava interpretando bem o seu papel. — Posso me juntar a você?

O jovem monge piscou, corando ainda mais.

— Eu... acho que sim.

Nikolai se ergueu para a rocha.

— Eu não espero que você seja conquistado ou subornado ou persuadido pelo meu charme, por maior que seja — ele disse tão baixinho que só o monge, Zoya e Tamar puderam ouvir. — Mas talvez seja persuadido por aquele atirador postado atrás daquela colina suave... aquela ali, está vendo? É um excelente local para um piquenique. Ele tem ordens de estourar sua cabeça como um melão se eu erguer a minha mão direita. — Nikolai levantou a mão e o garoto se encolheu, mas o rei só ajustou a lapela do casaco.

— Será uma honra ser martirizado por...

— Você não será martirizado... Yuri, não é? Você será um erro. A bala vai raspar no meu ombro e eu vou fazer questão de cair de um jeito muito dramático. O atirador vai confessar que era um assassino que desejava assassinar o rei Lantsov. Talvez até diga que era leal à causa do Santo Sem Estrelas.

— Mas isso... isso é absurdo — balbuciou o monge.

— É mais absurdo do que o rei de Ravka se colocar no caminho da bala de um atirador a fim de livrar o reino de um monge arrivista? Porque isso, meu amigo, é uma história e tanto. — Nikolai estendeu a mão. — Venha tomar o café da manhã comigo. Minha cozinheira prepara um lombo de porco maravilhoso.

— Eu não como carne.

— Claro que não come — disse Zoya. — Você é contra matar animais, não pessoas.

— O Darkling...

— Poupe-me dos seus sermões — ela sibilou. — Apenas minha lealdade ao rei está me impedindo de puxar o ar do seu peito e esmagar seus pulmões como abóboras ocas.

— Eu já a vi fazer isso — acrescentou Nikolai. — Faz um barulho engraçado.

— Como um estalo? — perguntou Tamar.

— Mais úmido — disse Nikolai. — Como uma bota pisando na lama.

— Eu vou — concedeu o monge. — Mas, se não retornar a meus seguidores são e salvo, haverá sangue nas ruas. Haverá...

— Me deixe explodi-lo, vai — pediu Zoya. — Ninguém vai sentir falta dele.

— Não seja boba — retrucou Nikolai. — Tenho certeza de que ele tem uma mãe. Não é, Yuri? Uma mulher muito gentil. Mora em Valchenko, acredito?

Yuri levou a mão ao peito como se o rei o tivesse estapeado. Aparentemente, os espiões de Tamar tinham reunido muitas informações sobre aquele garoto.

— Eu sei — disse Nikolai, dando um tapinha no ombro do monge. — É desconcertante perceber que você está apostando com a vida dos outros e não só a sua. Vamos?

Yuri assentiu e Nikolai se virou para a multidão.

— Nós vamos conversar — ele declarou, com a voz trovejante. — Vamos debater. — Ele deu de ombros. — Talvez até discutir. Mas ravkanos não precisam concordar sobre nada além de chá.

Uma onda de risadas varreu as pessoas ainda ajoelhadas, mas agora gratas – aliviadas. Tamar deu o seu cavalo ao monge e eles voltaram através dos portões.

Assim que estavam dentro, o Apparat veio em disparada, flanqueado por seus guardas.

— Vamos levá-lo em custódia. Eu tenho muitas perguntas para esse hereg...

— Yuri Vedenen é meu convidado — declarou Nikolai, com ar tranquilo.

— Insisto em estar presente para o interrogatório.

— Que nome peculiar para o café da manhã.

— Vossa Alteza não pode estar seriamente cogitando...

— Tolya — cortou Nikolai —, leve nosso convidado à Suíte Íris e certifique-se de que ele tenha comida e bebida suficientes. Me juntarei a vocês em breve. — Eles esperaram o monge ser escoltado. O Apparat claramente estava desesperado para falar, mas, antes que pudesse abrir a boca, Nikolai apeou do cavalo. — Sacerdote — ele começou, e agora sua voz continha o vibrar baixo e raivoso de um temperamento contido com dificuldade. — Não pense que, só porque deixei que vivesse até aqui, não posso mudar de ideia. Acidentes acontecem. Até com homens de fé.

— Perdoe-me, Alteza. Mas... mas não se pode confiar numa criatura dessas.

— Por favor, continue — pediu Zoya. — Eu gostaria de ver se excesso de ironia pode matar um homem.

— Por que o monge abandonou a Guarda Sacerdotal? — perguntou Nikolai.

— Não sei — admitiu o Apparat. — Ele era um estudioso... e era bom. Um dos melhores. Suas teorias não eram convencionais, mas eram brilhantes. Então, um ano atrás ele sumiu sem explicação, até que reapareceu aqui pregando esse evangelho absurdo.

— Sabemos onde o culto se originou?

— Não — respondeu o Apparat com um suspiro. — Mas acho que era inevitável que as pessoas tentassem transformar o Darkling num Santo.

— Por quê? — perguntou Zoya. — As massas não morriam de amores por ele.

— Em vida, não. Na morte, um homem pode se tornar qualquer coisa. Ele possuía grande poder e morreu de forma grandiosa. Às vezes isso basta.

Não deveria, depois de tudo o que ele fez.

— Muito bem — disse Nikolai. — Vamos conceder uma audiência ao monge e ver o que ele tem a dizer.

Os olhos do Apparat projetaram-se quase comicamente da cabeça.

— Vossa Alteza não pode falar com ele e dar credibilidade a sua causa! É o auge da imprudência!

Embora, no fundo, Zoya concordasse com o sacerdote, ainda queria agarrar suas vestimentas imundas e sacudi-lo até ele reconhecer que estava falando com o rei e não com um suplicante qualquer. Não que ela fosse particularmente submissa em relação a Nikolai, mas era uma questão de princípios.

Nikolai permaneceu imperturbável, sua irritação de antes esquecida.

— Acalme-se, sacerdote. Eu não tenho nenhuma intenção de ver o Darkling chamado de Santo. Mas, se pudermos tornar esse garoto um amigo, devemos tentar. E pretendo tirar todas as informações que eu puder no processo.

— Meus seguidores não vão gostar disso — disse o Apparat, com falso pesar. — Eu, é claro, entendo a necessidade de diplomacia, mas eles podem temer a corrupção espiritual do seu rei.

— Isso seria trágico. Talvez haja um modo de apaziguá-los e compensá-lo por esse dia difícil.

O Apparat ficou indignado.

— Os Santos não precisam de ouro.

Nikolai pareceu escandalizado.

— Nada tão vulgar quanto isso.

— Bem — disse o Apparat, fingindo refletir profundamente. — Ulyosk e Ryevost precisam de novas igrejas. O povo precisa saber que o rei compartilha sua fé, e tal gesto ajudaria a fortalecer a fé deles em seu governante.

Após um longo momento, Nikolai assentiu.

— Você terá suas igrejas.

— São as igrejas dos Santos, Alteza.

— Então por favor informe os Santos.

— Um rei se curva tão facilmente a um homem sem título? — Zoya perguntou enquanto eles se afastavam. Ela prometera morder a língua e o tinha feito, mas estava fervilhando de raiva. — Você está ajudando o Apparat a construir sua rede de espiões. Está fortalecendo-o.

— Em algum momento, talvez você possa considerar me tratar como algo além de um imbecil. Confie em mim, Zoya. Talvez você até goste disso.

— Foi isso que Tamar disse sobre o absinto.

— E?

— Ainda tem gosto de açúcar com querosene.

Zoya lançou um olhar sobre o ombro e viu o sacerdote observando-os dos portões da cidade, seus olhos tão escuros quanto poços. Nikolai podia fazer todas as piadas que quisesse, mas cada concessão que eles faziam ao Apparat parecia um erro para ela. O velho rei, o Darkling, Alina Starkov – todos eles tinham barganhado com o sacerdote, e todos tinham pagado com sangue.


Zoya passou o resto do dia supervisionando um novo esquadrão de Aeros e mandando ordens aos postos avançados ao longo da fronteira sul. Ela esperava que as forças grishas ali conseguissem se proteger contra um potencial ataque shu. Jantou no Salão do Domo Dourado com Genya e David, escutando distraída os planos de Genya para a chegada dos convidados estrangeiros enquanto folheava um resumo do trabalho de David com Kuwei Yul-Bo. O jovem Infernal estava sentado a uma mesa cercado por outros jovens Grishas. Seu falecido pai tinha criado o parem, e Kuwei fizera o máximo para dividir tudo que sabia desse trabalho com David e os outros Fabricadores em uma tentativa de alterar os efeitos colaterais viciantes da droga. Mas ele era menos um cientista e mais um soldado. Embora Genya o tivesse esculpido de leve, os dons de Kuwei como Infernal eram seu maior disfarce; ninguém em Shu Han soubera de suas habilidades. Ele escolhera um novo nome quando chegara ao Pequeno Palácio: Nhaban. Significava “fênix ascendente” em shu. O garoto tinha tanta pretensão quanto talento.

Depois do jantar, ela conseguiu trabalhar por mais uma hora antes de ir ao Grande Palácio para trancafiar Nikolai para a noite, e por fim se permitiu retirar-se a seus aposentos. Eles já haviam pertencido ao Darkling. Genya e David os tinham recusado ao assumir suas funções no Triunvirato, mas Zoya ficou contente de ocupar os aposentos. Sentia-se feliz em tomar qualquer coisa que já fora dele, e havia empunhado o primeiro martelo quando chegou a hora de derrubar a antiga decoração e recriar o espaço ao seu próprio gosto. Foi um gesto simbólico – não ia deixar suas mãos adquirirem calos e tinha deixado o esforço real aos trabalhadores. Levara longos meses e considerável arte Fabricadora para deixar os aposentos como ela queria, mas agora o teto abobadado mostrava um céu espesso com nuvens, e as paredes haviam sido tratadas para parecer um mar revolto de tempestade. Poucas pessoas notavam o pequeno barco que tinha sido pintado em um dos seis cantos ou a bandeira com duas estrelinhas. E ninguém que notasse entenderia o que significavam.

Zoya tomou banho e se preparou para dormir. Houvera um tempo em que ela fora capaz de dormir profundamente sob os domos do Pequeno Palácio, mas isso fora antes do golpe do Darkling. Ele abalara a sua crença de que nada podia tocar aquele lugar, aquele lar que já fora um refúgio. Agora ela tinha sono leve – e acordou imediatamente ao som de uma batida na porta do quarto.

O monge, ela pensou. Sabia que não devíamos ter deixado ele entrar no palácio.

Mas, assim que Zoya deslizou a tranca e abriu a porta, Tamar disse:

— Nikolai escapou.

— Impossível — protestou Zoya, embora já estivesse pegando as botas.

As sobrancelhas de Tamar se ergueram quando ela jogou um casaco sobre a camisola de seda prateada, parecendo teias de aranha que cintilavam como raios em uma nuvem de tempestade, quando a luz das lamparinas atingia o tecido translúcido do jeito certo.

— Para quem você se vestiu hoje? — ela perguntou.

— Para mim mesma — disparou Zoya. — Sabemos aonde ele está indo?

— Tolya o viu voar para oeste, em direção a Balakirev.

— Mais alguém?

— Acho que não. Não soou nenhum alarme, mas não podemos ter certeza. Temos sorte que isso não aconteceu no verão.

Quando o sol nunca se punha inteiramente e qualquer um poderia ver o monstro nos céus.

— Como isso aconteceu? — perguntou Zoya enquanto empurrava um painel na parede, que se afastou para revelar um longo lance de escadas. Quando ela reformara os aposentos, tinha mandado cavarem um túnel que os conectasse à rede de passagens sob Os Alta. — Aquelas correntes são reforçadas com aço Grisha. Se ele ficou mais forte...

— Elas não foram quebradas — respondeu Tamar atrás dela. — Foram destrancadas.

Zoya tropeçou e quase saiu rolando pelas escadas. Destrancadas? Então alguém conhecia o segredo de Nikolai e tinha tentado sabotar os esforços deles para protegê-lo? As implicações eram devastadoras.

Longos momentos depois, elas entraram no porão do convento de Sankta Lizabeta. Tolya aguardava nos jardins com três cavalos.

— Fale — ordenou Zoya enquanto ela e Tamar montavam.

— Ouvi vidro quebrando — respondeu Tolya. — Quando corri para dentro, vi o rei alçando voo do batente da janela. Ninguém tinha saído ou entrado pela porta.

Diabos. Então o monstro de alguma forma aprendera a abrir as trancas? Zoya chutou o cavalo a um galope. Ela pensou em milhares de perguntas, mas depois de encontrá-lo eles podiam se preocupar com o modo como Nikolai se libertara.

Eles cavalgaram velozes sobre a ponte e através das ruas da cidade baixa. A um sinal dos guardas, passaram trovejando pelos portões e os famosos muros duplos de Os Alta. Quão longe Nikolai tinha ido? Quão longe iria? Melhor que ele se afastasse da cidade ou de qualquer lugar densamente povoado. Zoya estendeu os sentidos para as correntes invisíveis que flutuavam ao redor deles, cada vez mais alto, procurando no vento a perturbação que indicaria a posição de Nikolai. Não só o peso e o tamanho dele, mas também aquela sensação de algo errado, roçaram contra o seu poder. Merzost. Abominação. A poluição de algo monstruoso em seu sangue.

— Ele ainda está seguindo para oeste — ela disse, sentindo a presença dele sangrar pelos seus sentidos. — Está em Balakirev. — Um lugarzinho agradável. Um dos lugares preferidos dos Grishas para fazer passeios de trenó e promover festivais em épocas melhores.

Eles reduziram a velocidade dos cavalos quando se aproximaram das cercanias da cidade e as estradas de terra deram lugar a ruas de paralelepípedos. Balakirev dormia, suas janelas escuras e suas casas silenciosas. Cá ou lá, Zoya via uma lanterna acesa através do vidro, uma mãe acalmando uma criança agitada, um lojista trabalhando até as últimas horas antes do amanhecer. Ela voltou sua consciência aos céus e gesticulou para que os gêmeos se aproximassem. Nikolai estava se movendo em direção ao centro da cidade.

A praça principal estava silenciosa, delimitada pelo tribunal de justiça, a prefeitura e os grandes escritórios do governador local. Caminhos de pedra se irradiavam a partir de uma grande fonte, onde Zoya sabia que as mulheres iam lavar suas roupas. Havia uma estátua de Sankt Juris no centro; sua lança perfurava o coração de um grande dragão conforme a água escorria pelas asas da besta. Zoya odiava aquela história específica. O grande guerreiro Juris parecia um horrível opressor.

— O telhado — ela sussurrou, apontando para o prédio da prefeitura. — Vou vigiar o perímetro.

Tamar e Tolya apearam silenciosamente com as correntes em mãos e desapareceram dentro do prédio. Se Nikolai alçasse voo, ela tentaria derrubá-lo ou pelo menos rastreá-lo. Mas a aurora se aproximava; eles teriam que agir depressa.

Ela esperou nas sombras, os olhos fixos nos pináculos da prefeitura. A noite ainda parecia imóvel demais. Zoya tinha a sensação desconfortável de que estava sendo observada, mas as lojas e prédios ao redor da praça não mostravam sinais de vida. Bem acima, o perfil do telhado da prefeitura pareceu mudar. Uma sombra se separou do telhado, as asas abertas contra o céu iluminado pelo luar. Zoya ergueu as mãos e preparou-se para derrubar Nikolai, mas ele deu uma volta no ar e se acomodou no pináculo alto do campanário da igreja.

— Diabos.

Tolya e Tamar subiriam correndo as escadas da prefeitura só para descobrir que sua presa escapara. Se Zoya tentasse subir as escadas da igreja, Nikolai poderia muito bem dar outro salto e desaparecer muito antes de ela chegar ao topo. O céu já se tornava cinza, e, se ele alcançasse os campos abertos, talvez eles nunca o capturassem. Não havia tempo para hesitar.

Ela examinou as ranhuras na pedra do campanário. Mesmo com seu amplificador, ela nunca conseguira o controle necessário para voar. Só Grishas sob os efeitos do jurda parem poderiam realizar tal feito.

— Isso vai doer — ela murmurou. Girou as mãos em círculos contidos, convocando a corrente, e então arqueou os braços. A lufada a atingiu por trás, arremessando-a para cima. Ela precisou de toda a sua força de vontade para resistir ao impulso de girar os braços e deixar o vento levá-la mais alto. Esticou a mão e a rajada de vento a jogou em direção à fissura na pedra – com força demais, rápido demais. Não houve tempo para ajustar sua mira.

Zoya cobriu a cabeça e o rosto, resmungando quando seu ombro bateu contra a borda de uma coluna. Ela caiu rolando no chão do campanário em um amontoado de membros desajeitado e rolou de costas, tentando se situar.

Ali, bem acima, empoleirado nos beirais, ela captou um lampejo dos olhos do monstro no escuro. Mal conseguia distinguir sua forma. Seu peito estava nu, suas calças rasgadas pendiam baixas nos quadris. Seus pés com garras se curvavam sobre as vigas do campanário.

Ela ouviu um rosnado baixo, que pareceu reverberar pelas tábuas do assoalho. Alguma coisa estava diferente naquela noite. Ele estava diferente.

Oh, Santos, ela percebeu. Ele está com fome.

No passado, Zoya tinha demorado mais para encontrar Nikolai, localizando-o após ele ter caçado e se alimentado. Ele nunca matou uma pessoa antes, ela se lembrou. Em seguida, emendou: Que a gente saiba. Mas ela sentiu, no fundo dos ossos, que naquela noite ela era a presa.

Até parece.

Ela se ergueu num salto e sibilou quando o ombro latejou de dor. Ela o tinha deslocado, talvez quebrado o osso. A dor a atravessou em uma onda que fez seu estômago revirar. Seu braço direito estava imobilizado. Ela só teria o esquerdo para conjurar, mas, se Adrik conseguia, ela também teria que conseguir.

— Nikolai — ela chamou severamente.

O rosnado parou e em seguida recomeçou, mais grave e mais alto do que antes. Uma gavinha de medo se desdobrou na barriga dela. Então era assim que criaturas pequenas se sentiam ao ser encurraladas na floresta?

— Nikolai — ela insistiu, não permitindo que o terror transparecesse na voz. Suspeitava que seria péssimo se ele soubesse que ela estava com medo. — Desça aqui.

O rosnado ondulou numa bufada. Quase como uma risada.

Antes que ela conseguisse interpretar o som, ele saltou sobre ela.

Zoya ergueu a mão e uma rajada de vento atingiu a criatura, mas a tentativa só tinha metade da força de sua conjuração normal. Ela o repeliu e o jogou contra a parede, mas não foi o suficiente.

Ela viu o monstro perceber o seu ferimento, a sua fraqueza. Ele puxou um longo fôlego, tensionando os músculos. Quantas noites ela o proibira de se divertir? Por quanto tempo ele esperara uma chance de machucá-la? Ela precisava de ajuda.

— Tolya! — ela berrou. — Tamar! — Mas será que eles podiam ouvir àquela distância? Zoya espiou o sino.

O monstro pulou sobre ela. Zoya mergulhou para a direita e gritou quando o ombro ferido bateu nas tábuas de madeira, mas ergueu seu outro braço com toda a força que pôde reunir, implorando à tempestade que respondesse. O vento agarrou o sino e fez a enorme casca de metal balançar. O badalo bateu com um som reverberante que fez seu crânio vibrar e o monstro rosnar. O sino tocou uma segunda vez, bem mais fraco, antes de reduzir seu arco.

Agora ela estava suando, a dor escurecendo as margens de sua visão. Ela se arrastou até a parede.

Nikolai – o monstro – estava se esgueirando em direção a ela, agachado, os pés com garras se movendo silenciosamente sobre o assoalho, o movimento sinistro e desumano. Era Nikolai, mas ao mesmo tempo não era. As feições elegantes do seu rosto eram as mesmas, mas os olhos estavam pretos como tinta. As sombras de suas asas pareciam pulsar e fervilhar.

— Nikolai — ela repetiu. — Vou ficar furiosa se você tentar me devorar. E você sabe como eu fico quando estou brava.

Os lábios dele se afastaram em um sorriso – não havia outra palavra para aquilo –, revelando presas afiadas como agulhas que reluziam como lascas de obsidiana.

O que quer que a estivesse caçando não era o seu rei.

— Capitão — ela tentou. — Sturmhound. — Nada. Ele se aproximou. — Sobachka — ela disse. Filhote, o apelido de infância dele, que ela nunca usara antes. — Pare com isso.

Em algum lugar muito abaixo, ela ouviu uma porta bater. Tolya? Tamar? Não importava. Eles não iam chegar a tempo. Zoya podia conjurar um raio, mas, sem ambos os braços para controlar a corrente, ela o mataria.

Zoya ergueu o braço de novo. A rajada rechaçou a criatura, mas suas garras se fincaram no assoalho de madeira e ele se lançou para a frente, com as asas rentes ao corpo e o olhar sombrio cravado nela.

Ele estapeou o braço bom dela para o lado, com tanta força que ela suspeitou ter quebrado aquele osso também. O vento morreu e as asas do monstro se abriram em toda a sua extensão.

Ele abriu a boca – e falou.

— Zoya.

Ela se encolheu. O monstro não falava – não podia falar. Mas não foi nem o choque de ouvir uma palavra sair dos lábios da criatura que a assustou tanto. Aquela não era a voz de Nikolai; era suave, fria como vidro e familiar.

Não. Não era possível. O medo estava anuviando sua mente.

Os lábios da criatura se afastaram. Seus dentes cintilaram. Ele agarrou o cabelo dela e puxou sua cabeça para trás enquanto ela se debatia. Ia rasgar sua garganta. Seus lábios roçaram a pele no pescoço dela.

Mil pensamentos cruzaram sua mente. Ela devia ter trazido uma arma. Não devia ter contado só com o seu poder. Não devia ter acreditado que não tinha medo de morrer. Não devia ter acreditado que Nikolai não a machucaria.

A porta do campanário se escancarou e Tamar surgiu, seguida por Tolya. Os machados de Tamar voaram. Um se alojou no ombro da criatura, o outro em uma de suas asas. A coisa se virou para eles, rosnando, e Tolya esticou as mãos.

Zoya observou, dividida entre terror remanescente e fascínio, as pernas da criatura fraquejarem. Ele grunhiu, mas foi se silenciando conforme Tolya reduzia as batidas do seu coração e o deixava inconsciente.

Zoya se ergueu, abraçando o braço deslocado, e olhou para a coisa no assoalho à medida que suas garras recuavam, as veias escuras se retraindo e esmaecendo, as asas se dissolvendo em fiapos de sombra. O rei de Ravka jazia no chão do campanário, com o cabelo dourado desgrenhado e seu rosto de garoto ensanguentado.

— Você está bem? — perguntou Tamar.

— Sim — mentiu Zoya.

Zoya. O som da voz dele naquele momento, suave como vidro, nem humano nem desumano. Isso significaria que o que quer que estivesse dentro dele não era o monstro irracional que eles imaginavam? Não estivera só faminto; havia algo vingativo em seu anseio. Será que Nikolai teria acordado com o sangue dela nos lábios?

— Você sabe o que isso significa — disse Tamar.

Eles não podiam controlá-lo. O palácio não era mais seguro, e Nikolai não estava mais seguro lá dentro. E, naquele exato momento, embaixadores, dignitários, nobres e mercadores ricos estavam colocando suas melhores roupas na mala e se preparando para viajar para Os Alta – isso sem falar das princesas solteiras e das aristocratas esperançosas que os acompanhavam.

— Convidamos emissários de todos os países para presenciar esse horror — lamentou Tolya. Para assistir a Nikolai ceder à sede de sangue, para testemunhar enquanto o rei se tornava mais monstro que homem.

Zoya tinha dedicado sua vida ao Segundo Exército, ao sonho de que eles podiam construir algo melhor. Tinha acreditado que, se o seu país fosse forte o suficiente, o mundo poderia mudar para pessoas como ela. Agora esse sonho estava desmoronando. Ela pensou nas histórias que Nina contara a eles sobre a prisão na Corte de Gelo. Pensou nos khergud emergindo dos céus para raptar Grishas da segurança de suas terras. Lembrou-se de corpos espalhados pelo chão do Pequeno Palácio na noite do ataque do Darkling. Ela não deixaria isso acontecer de novo. Recusava-se.

Zoya respirou fundo e retornou o ombro ao lugar com um golpe, ignorando a onda de náusea que acompanhou a dor.

— Precisamos encontrar a cura — ela disse. — Ou será o fim de Ravka.


— NÃO GOSTO DE DEIXAR LEONI PARA TRÁS — disse Adrik, sua voz solene como o badalar de um sino particularmente deprimido. — As mulheres não são muito amigáveis no convento, e ela não fala a língua.

Nina e Adrik tinham saído do vale com o trenó puxado por seus dois cavalos e um vento cortante às costas. Nina cavalgava com as pernas do mesmo lado, as saias pesadas amarrotadas atrás do corpo. Não era uma ótima cavaleira para começo de conversa, e aquela concessão às sensibilidades fjerdanas era um dos aspectos mais desafiadores do seu disfarce.

À medida que se afastavam da cidade, os sussurros se ergueram em sua cabeça como que em protesto. Agora que ela sabia que as mortas a tinham trazido a Gäfvalle, o som parecia ter ficado mais nítido, as vozes altas e doces das mortas cutucando sua mente. Ela ainda não contara a Adrik e a Leoni sobre as covas na fábrica. O incidente no portão leste a deixara abalada demais.

— Leoni vai ficar bem — ela assegurou, voltando sua atenção para Adrik. — Ela é esperta e sabe como não chamar a atenção. Além disso, estaremos de volta amanhã ao meio-dia. — Adrik não disse nada e ela acrescentou: — Você não vai ganhar pontos por cercá-la de mimos.

O frio tinha deixado a pele de Adrik rosada sob as sardas, e ele parecia um pouco com um ator emburrado cujas faces foram maquiadas para uma peça.

— Ela é um soldado sob meu comando. Eu jamais desrespeitaria esse limite.

— Ela não vai estar sob seu comando quando esta missão acabar, Adrik, e é óbvio que gosta de você.

— É? — Ele parecia inconsolável com a notícia, mas não enganou Nina.

Ela ajustou as alças da mochila.

— Para meu enorme espanto.

— Você também gosta de mim, Zenik. Deve ser minha atitude positiva.

— Adrik, se a escolha é entre aceitar ordens suas ou de Zoya Nazyalensky, você sempre vai ganhar.

O fôlego dele formou uma nuvem no ar frio.

— Eu era completamente apaixonado por ela.

— Não éramos todos? Mesmo quando ela está te cortando ao meio com meia dúzia de palavras bem escolhidas, é difícil se concentrar em qualquer coisa exceto como ela fica linda fazendo isso.

— É horrível — comentou Adrik. — Uma vez vi um estudante atear fogo ao próprio cabelo porque se distraiu encarando Zoya. Ela nem olhou para ele.

Nina fixou um olhar desdenhoso nele, e, com a melhor imitação da voz arrastada e arrogante de Zoya, disse:

— Alguém jogue um balde naquele idiota antes que ele queime o palácio.

Ele estremeceu.

— Isso foi convincente demais. — Ele consultou o mapa quando eles chegaram a uma encruzilhada. — É verdade que Zoya era agradável de olhar — ele continuou enquanto os guiava mais para o oeste —, mas havia algo a mais. Ela foi a única que continuou me tratando igual depois que perdi meu braço.

— De um jeito horrível?

— Ela não poderia ter demonstrado mais desdém. Seus insultos eram muito mais fáceis de suportar que o estardalhaço constante de Nadia.

— Irmãs são assim... imagino. Você também agiu como uma mãe superprotetora quando todos voltamos da Dobra. — Ambos haviam sido crianças, na verdade. Nina era uma estudante da escola Grisha quando eles foram todos evacuados ao orfanato de Keramzin, mas Adrik tinha implorado para ir com a irmã e lutar ao lado da Conjuradora do Sol. Ele não estivera lá quando o Darkling pegou Nina e os outros estudantes como reféns.

— Eu não estava preocupado com vocês — disse Adrik. — Mas se todos morressem e eu fosse o único a escapar da escola, imagine como seria cansativo lidar com a culpa pelo resto da vida?

Nina obrigou-se a rir, mas ela conhecia aquela culpa bem demais. Muitas vezes se perguntara por que tinha sobrevivido a tanta coisa – a captura pelos drüskelle, o naufrágio, os planos loucos de Kaz Brekker e o suplício do parem. Ela era a única Grisha conhecida a ter sobrevivido a uma dose da droga. O que tornara aquilo possível? Será que era aquela cepa particular de jurda parem? Seria seu desejo de se vingar de Jarm Brum e seus caçadores de bruxas ao ficar viva? Acaso, sorte, destino. Ela não sabia que nome dar àquilo. Às vezes parecia que Matthias a tinha mantido no mundo por pura força de vontade.

Eu falhei com você, Matthias. Não fui forte o bastante para salvá-lo.

Passarinho vermelho, todo dia você escolhe o trabalho de viver. Todo dia escolhe seguir em frente. Não há nenhum fracasso aqui, Nina.

— Zoya é uma líder melhor do que eu esperava — admitiu Adrik. — Mesmo que eu nunca vá dizer isso a ela.

— Consegue imaginar? Seria o mesmo que a convidar para um chameguinho. A general Zoya Nazyalensky não precisa da nossa aprovação, nem a deseja.

Eles caíram em silêncio enquanto o sol se erguia mais alto no céu, o trenó trovejando sobre o terreno. Se nevasse, teriam que trocar as rodas, mas com sorte estariam de volta a Gäfvalle antes que o tempo mudasse. Era um cortejo fúnebre muito modesto, e Nina não podia deixar de pensar que Matthias merecia mais. Algo cheio de pompa e cerimônia, um funeral digno de um herói mesmo que seu povo acreditasse que ele era um traidor.

Eu fui feito para proteger você. Mesmo na morte vou encontrar um jeito.

A voz dele estava clara demais agora, forte demais. Porque aquela era a despedida final deles. Porque, uma vez que Matthias estivesse na terra, ele pertenceria a Djel.

Ela não sabia se conseguiria fazer aquilo. Não conseguia suportar a ideia de abandonar o corpo dele à terra gelada, à escuridão.

Deixe-me ir ao encontro do meu deus.

Ela queria que Inej estivesse ali ao lado dela, que a Espectro estivesse em algum lugar em todo aquele silêncio. Nina ansiava por sua calma e gentileza. Ela estava grata pela presença de Adrik, mas ele nunca conhecera Matthias. E ele não conhecia Nina também. Não mais.

Quando por fim eles chegaram à bifurcação do rio, montaram acampamento com uma tenda de lona simples forrada com peles de animais, para se proteger do frio. Fizeram uma fogueira, deram de beber aos cavalos e sentaram-se para fazer uma refeição simples de chá e bacalhau, que Nina teve que se forçar a engolir. Se alguém passasse por ali, Adrik e Nina planejavam dizer que estavam a caminho de Malsk para exibir suas mercadorias. O trenó tinha um estoque suficiente de carregadores de rifles. Mas Nina duvidava que eles teriam que oferecer quaisquer explicações. Como grande parte de Fjerda, aquelas bandas eram vazias e desoladas, as cidadezinhas como flores, botões improváveis na neve.

Adrik tirou um frasco do bolso, serviu uma pequena quantidade de fluido preto numa xícara de cobre e a contemplou com ceticismo.

— O que exatamente é isso?

— Só sei que é destilado de alcatrão de pinho. Um dos pescadores disse que era bom para afastar o frio. — Ele deu um gole e imediatamente começou a tossir e bater no peito. — Santos, que nojo.

— Talvez ele quisesse dizer que o negócio te mata, então você não tem mais que se preocupar com o frio.

— Ou talvez eles só gostem de vender sofrimento a um alto preço aos turistas. — Ele ofereceu o frasco a ela, mas Nina rapidamente recusou. Por um tempo, eles ficaram sentados encarando as águas do rio fluindo. Por fim ele disse: — Você nunca me contou como ele morreu.

Nina não sabia bem o que dizer... nem se queria dizer algo. A maioria das pessoas em Ravka, incluindo Grishas, não conhecia os detalhes do leilão de Ketterdam, e Nina duvidava que Adrik ficaria feliz em descobrir que ela estivera envolvida com uma gangue de criminosos.

— Eu não sei, na verdade. Nós... trabalhávamos juntos em Ketterdam. A pior parte da missão tinha acabado. Pensamos que estávamos todos a salvo. Mas então Matthias apareceu sangrando. Ele levara um tiro. — Ele havia conseguido voltar para ela, apesar da ferida mortal, apesar da dor que estava sentindo. Para um último beijo, para uma despedida final. — Havia drüskelle na cidade, e eles tinham bons motivos para querer matá-lo. Mas todos tínhamos um preço na cabeça. As pessoas estavam sedentas pelo nosso sangue e as ruas estavam uma confusão dos infernos.

Ela ainda conseguia sentir o sangue manchando sua blusa, sentir o cabelo curto na nuca dele sob a ponta dos dedos. O cabelo dele estava apenas começando a crescer direito, espesso e dourado.

— Ele não quis me contar quem foi o responsável — ela disse. Matthias não quisera pôr esse peso nas costas dela. Sabia que ela atacaria na dor do luto. Mas devia ter entendido que o mistério de sua morte a atormentaria ainda mais. Ela pensara que sua nova missão trabalhando com os Hringsa em Fjerda, levando Grishas para a liberdade, teria ajudado a suavizar o luto e a culpa, mas não se sentia melhor do que no início de tudo. — Não consigo parar de pensar nisso.

— Conheço a sensação. — Adrik deu outro gole do frasco e estremeceu com o gosto. — A vingança era tudo que me impulsionava no final da guerra. Eu queria que o Darkling pagasse pelo meu braço, pela vida dos meus amigos. Eu queria vê-lo morto.

— E realizou seu desejo.

— Mas meu braço não cresceu de volta. E nenhum dos meus amigos voltou à vida.

— Eu poderia ajudar com isso — disse Nina, e ficou aliviada quando Adrik deu sua risadinha seca e relutante. Alguns Grishas empalideciam a qualquer menção do seu novo poder. Ela já fora uma Sangradora, capaz de sentir o pulso do mundo batendo junto do seu próprio coração, mas o parem a tinha mudado. Nina sentia-se como uma fraude, sentada sob o domo dourado do Pequeno Palácio, usando seu kefta vermelho. Ela não podia mais manipular os seres vivos, ouvir o fluxo do seu sangue ou a canção de suas células. Mas os mortos a obedeciam – e, pensando bem, ela também obedecia a eles. Tinha vindo a Gäfvalle, afinal.

Nina terminou seu chá. Podia sentir Adrik esperando. Sabia que era a hora. Talvez conceder o repouso final a Matthias seria o ato que aliviaria seu coração daquele fardo. Ela só sabia que não podia continuar daquele jeito.

Levantou-se.

— Estou pronta — ela anunciou, embora soubesse que não era verdade.

Eles se afastaram do acampamento a cavalo, seguindo o rio.

Conte-me uma história, Matthias. Ela precisava ouvi-lo agora, saber que alguma parte dele permaneceria com ela. Conte-me sobre sua família.

Conte-me sobre a sua, Nina. Por que nunca fala deles?

Porque nunca os conhecera. Ela crescera em um lar de órfãos não muito diferente do orfanato em Keramzin. Não havia registros dos seus pais. Ela era só mais uma criança que tinha chegado sem documentos ou história. Keletchka, como eles chamavam – do caixote de frutas. Tinha recebido o nome de uma das benfeitoras do lar, e ganhara roupas doadas que chegaram em grandes sacos e cheiravam às substâncias químicas nas quais eram fervidas para garantir que estivessem livres de piolhos.

Você era infeliz lá, Nina?

Não, Matthias.

Não era da sua natureza, até essa época.

É agora, ela pensou. Qualquer que fosse a centelha que ardia nela antes, não era páreo para o seu luto.

Mas, na época, ela não fora infeliz, apesar das tarefas domésticas e das aulas entediantes e das refeições que eram quase todas couve. Sempre havia barulho e companhia e brincadeiras. Ela havia se autointitulado a anfitriã oficial do lar, e apresentava-se aos recém-chegados, ajudava a dar nomes aos bebês novos e oferecia sua boneca de pano, Feodora, a qualquer um que precisasse de um amigo na sua primeira noite nos dormitórios.

Além disso, a equipe sempre a tratava com gentileza. Vamos, pequena Nina, conte-nos as novidades, dizia Baba Inessa, fazendo Nina se sentar em um banquinho na cozinha, onde ela podia mordiscar uma casca de pão e observar as mulheres trabalhando.

Nina só tinha sete anos quando conheceu seu primeiro tirano. O nome dele era Tomek e ele mudou tudo no lar de órfãos. Não era o mais alto ou mais forte, apenas o mais cruel, e estava disposto a bater até nos órfãos mais novos e mordê-los. Se alguém tivesse um brinquedo, ele o quebrava. Quando uma criança estava dormindo profundamente, ele a acordava com um beliscão. Ele era todo bons modos e sorrisinhos quando os adultos estavam por perto, mas assim que eles saíam o Tomek cruel retornava.

Como se estivessem apenas esperando por um líder, um grupo de valentões se formou ao redor dele – garotos e garotas que sempre tinham parecido gentis, até que adquiriram gosto pelas lágrimas dos outros. Nina fazia o máximo para evitá-los, mas parecia que Tomek podia farejar sua felicidade como fumaça vinda da cozinha.

Uma manhã, logo após o Festival de Sankt Nikolai, Baba Inessa deu uma laranja para Nina dividir com as outras crianças. Nina avisou-as para não fazer estardalhaço, mas elas tinham rido e comemorado até que, claro, Tomek viera investigar e arrancara a fruta de suas mãos.

Devolva!, ela havia gritado enquanto ele fincava os dedões na casca da fruta. É para todo mundo!

Mas Tomek e seus amigos tinham rido. Você já é gorda o bastante, ele tinha dito com um empurrão que a fez cair sobre o traseiro.

Tomek tinha enfiado a laranja inteira na boca, rindo enquanto a polpa e o suco escorriam por seu queixo. Ele riu ainda mais alto quando, para grande vergonha de Nina, ela começou a chorar.

— Olha como você tá vermelha — disse Tomek, a boca ainda cheia. — Parece uma maçã podre.

Ele e os amigos cercaram Nina e começaram a cutucar sua barriga, seus braços, suas pernas.

— Olha como ela é podre!

Nina estava com medo, mas, acima de tudo, com raiva. Enrodilhada no chão, ela sentiu algo em seu interior mudar, estendendo-se num movimento longo e agradável, como um gato que se alonga em direção a um raio de sol. Sua falta de fôlego e seu medo sumiram, e foi como se ela pudesse sentir os pulmões de Tomek se expandirem e contraírem. Ela fechou os punhos com força.

— Olha como... — Tomek soluçou. Depois seus amigos soluçaram. Foi engraçado. No começo. Eles pararam de cutucar Nina. Olharam uns para os outros e riram, o som interrompido por pequenos arquejos assustados.

Eles continuaram a soluçar.

— Dói — disse um deles, esfregando o peito.

— Não consigo parar — confessou outro, dobrando o corpo na metade.

Eles continuaram assim, todos soluçando e gemendo até tarde da noite, como uma assembleia de sapos descontentes.

Nina descobriu que conseguia fazer todo tipo de coisa. Conseguia apaziguar um bebê agitado. Conseguia parar a própria dor de barriga. Podia fazer o nariz de Tomek escorrer e escorrer até que a camisa inteira dele estivesse molhada de ranho. Às vezes tinha que se impedir de fazer algo muito terrível – ela não queria ser uma tirana também. Poucos meses depois, os examinadores Grisha foram ao lar e Nina foi mandada ao Pequeno Palácio.

— Adeus! — ela gritara enquanto corria pelos corredores, se despedindo. — Adeus! Escrevam cartas para mim, por favor! E seja bonzinho — ela avisou Tomek.

— Ela é uma criança feliz — Baba Inessa tinha dito à Grisha de kefta vermelho. — Tentem não tirar isso dela.

Ninguém tirou, Nina. Ninguém jamais vai tirar.

Não tenho tanta certeza, Matthias. A guerra não conseguira, nem a prisão ou a tortura. Mas a perda era diferente, porque ela não via um fim, só o horizonte distante se estendendo infinitamente.

Nina soube que era o ponto certo assim que o viu – um pequeno bosque à margem do rio, um lugar onde viajantes poderiam descansar e onde a água redemoinhava como se o rio também estivesse descansando. Aqui, ela disse a si mesma enquanto apeava e desamarrava uma pá e uma picareta do trenó. Aqui.

Ela levou horas para cavar. Adrik não podia ajudá-la na tarefa, mas usou seu poder para impedir o vento de rasgar suas roupas e proteger a lamparina quando o céu começou a escurecer.

Nina não sabia bem quão fundo cavar, mas continuou até estar suando em seu casaco, até as mãos ficarem com bolhas e as bolhas estourarem. Quando ela parou, ofegante, Adrik não esperou seu sinal e começou a desatar a lona do trenó. Nina se obrigou a ajudá-lo, forçando-se a mover as caixas e o equipamento que escondiam sua carga real. Aqui.

Matthias estava embrulhado em linho especialmente tratado pelos Fabricadores do Pequeno Palácio para impedir a decomposição, reforçado pela arte de Leoni. Nina pensou em afastar o linho e vislumbrar o rosto querido uma última vez. Mas não conseguia aguentar a ideia de ver as feições imóveis e frias, a pele cinza. Já era ruim que ela teria a lembrança do sangue dele nas mãos para sempre, o ferimento sob as suas palmas, o coração dele parando. A morte devia ser sua amiga e aliada, mas o levara mesmo assim. Ela pelo menos podia tentar se lembrar dele como ele tinha sido.

Com um esforço, Nina e Adrik rolaram o corpo dele da borda da carroça. Era enorme e pesado. Ele despencou na cova com um baque horrível.

Nina cobriu o rosto com as mãos. Nunca se sentira tão grata pelo silêncio de Adrik.

Deitado no buraco, o corpo de Matthias parecia uma crisálida, como se ele estivesse no começo de algo em vez de no fim. Ele e Nina nunca trocaram presentes ou anéis; não compartilhavam nenhuma posse. Tinham sido soldados errantes. Mesmo assim, ela não podia deixá-lo partir sem nada. Do bolso, tirou um raminho de freixo e o deixou flutuar até a cova, depois polvilhou pétalas vermelhas murchas das tulipas que os seus compatriotas tinham disposto sobre o peito dele ao despedir-se em Ketterdam.

— Sei que você nunca gostou de doces. — A voz dela estava embargada enquanto ela abria a mão que segurava um punhado de caramelos. Eles caíram com um tamborilar oco. — Mas assim eu estarei com você, e você pode guardá-los para mim até eu te encontrar. Sei que não vai comê-los.

Ela sabia o que vinha em seguida. Uma pá de terra, seguida por outra. Eu te amo, ela disse a ele, tentando não pensar no som grosseiro do solo, como o chacoalhar de metal, como uma tempestade súbita. Eu te amo.

Sua visão ficou turva pelas lágrimas. Ela não podia mais vê-lo. A terra ficava mais alta. Nevaria em breve, talvez até naquela noite. A neve cobriria o trabalho dela, como uma mortalha branca e imaculada. E, quando a primavera chegasse, a neve derreteria e escorreria pelo solo e carregaria o espírito de Matthias ao rio, até Djel. Ele estaria junto ao seu deus, por fim.

— Você pode levar o trenó até o acampamento? — ela pediu a Adrik. Ainda havia coisas que ela queria dizer, mas só a Matthias.

Adrik assentiu e ergueu os olhos para o céu que escurecia.

— Só não demore demais. Uma tempestade está chegando.

Bom, ela pensou. Que a neve caia logo. Que cubra nosso trabalho aqui.

Nina se ajoelhou no chão duro, ouvindo o som dos cascos do cavalo de Adrik diminuir. Ela podia escutar a corrente do rio, sentir a umidade da terra através da lã pesada das saias. A água escuta e entende. O gelo não perdoa. Palavras fjerdanas. As palavras de Djel.

— Matthias — ela sussurrou, então limpou a garganta e tentou de novo. — Matthias — ela disse, mais alto. Queria que ele a ouvisse, queria acreditar que podia ouvir. — Ah, Santos, não quero te deixar aqui. Não quero te deixar nunca. — Mas aquele não era o tributo de herói que ele merecia. Ela podia fazer isso por ele. Nina inspirou fundo, tremulamente. — Matthias Helvar foi um soldado e um herói. Ele me salvou quando estava me afogando. Manteve nós dois vivos no gelo. Aguentou um ano na pior prisão do mundo por um crime que não cometeu. Perdoou-me por traí-lo. Lutou ao meu lado e, quando podia ter me abandonado, escolheu dar as costas ao único país que já conhecera. Por isso foi tachado como traidor. Mas não era. Ele acreditava que seu país podia ser mais do que era. Ele viveu com honra e morreu com honra também. — Sua voz falhou e ela se obrigou a engolir e ir em frente. Queria manter a dignidade naquele momento. Queria dar isso a ele. — Não foi sempre um bom homem, mas tinha um bom coração. Um coração grande e forte que ainda devia ter batido por muitos anos.

Passarinho vermelho, deixe-me ir.

Ela enxugou as lágrimas. A primeira metade de sua dívida estava paga. Ela o tinha trazido para casa, para o lar que ele amava. Deveria haver algo para marcar o momento – o badalar de um sino, os hinos de um coral, algo para que ela soubesse que era hora de dar seu último adeus.

Mas seu trabalho ainda não acabou, meu amor.

— Você e seu senso de responsabilidade — ela disse, com uma risada amarga.

Os sussurros se ergueram em sua mente. Ela não queria ouvi-los, não ali.

Ouça, Nina.

Ela não queria, mas sabia que não podia mais esconder-se delas – das vozes das mortas, chamando-a montanha abaixo, através da cidade, sobre o gelo. As vozes de mulheres e garotas com corações angustiados. Algo tinha acontecido com elas no topo daquela colina.

Ajude-nos, elas suplicavam. Ouça-nos enfim.

As palavras ficavam mais nítidas e abafavam a voz de Matthias. Pare, ela disse a elas. Deixem-nos em paz. Deixem-me em paz.

Mas as mortas não davam trégua. Justiça, elas clamavam, justiça.

Aquilo não era uma alucinação e também não era loucura. O coro era real, e elas a tinham trazido ali por um motivo. Nina tivera a esperança de que sua missão com Adrik e Leoni seria suficiente para começar a sarar. Não fora. Mas as garotas na montanha não aceitariam uma recusa.

Justiça. Elas a tinham trazido até aqui – e precisavam que ela ouvisse as suas vozes, não o eco de um amor a que ela não podia mais se segurar.

Então Nina encostou uma mão no coração quando a dor dentro dela explodiu, fazendo o gelo ceder. Por baixo havia apenas água escura, a dor terrível de saber que ele tinha realmente partido, a horrível compreensão de que ela jamais ouviria a voz dele de novo.

Porque o coro era real.

Mas a voz de Matthias não era. Nunca fora.

— Você nunca esteve aqui — ela sussurrou, as lágrimas escorrendo com força agora. — Você nunca esteve aqui. — Todo aquele tempo, ela quisera acreditar que ele ainda estivera com ela, mas fora a sua própria voz o tempo todo, conversando consigo mesma no silêncio, forçando-se a fazer o trabalho de viver quando ela só queria desistir.

Adeus, Matthias.

Ninguém respondeu. Ela estava sozinha no silêncio.


— PODEMOS RECOLHER OS CONVITES — disse Genya, andando de um lado para outro na frente da lareira. — Não é tarde demais. É só enviar mensageiros e dizer às garotas e suas famílias que houve uma mudança de planos.

Eles estavam reunidos na sala de guerra naquela manhã, e Nikolai pedira café em vez de chá. Ele adquirira o gosto pela bebida em seus dias na universidade, em Ketterdam. No entanto, dada sua exaustão e a dor de cabeça que o atormentava desde o incidente em Balakirev, na noite anterior, ele teria gostado de algo um pouco mais forte em sua xícara.

O incidente. Que expressão generosa. Tolya o tinha informado de cada detalhe sombrio da sua ceninha no campanário. Ele quase assassinara uma de suas generais mais estimadas, uma de suas poucas amigas de verdade, a pessoa que o tinha ajudado a guiar, por dois anos, o navio amaldiçoado que era aquele país, que protegera os seus segredos e em quem ele tinha confiado para fazer isso sem hesitação. Ele quase havia matado Zoya.

— Podemos dizer que o rei não está bem... — continuou Genya.

— Essa é a última coisa que devemos dizer — cortou Tamar.

— Então dizemos que houve um surto de cólera ou um enorme vazamento de esgoto — disse Tolya.

Tamar jogou as mãos para o alto.

— Então nossas escolhas são parecer indecisos, fracos ou sugerir que a capital está inundada de excrementos?

Zoya não tinha falado até então, parada perto do samovar com os braços cruzados. Mantendo distância. Ele sabia que precisava se desculpar com ela, mas – pela primeira vez em sua vida ridícula – não sabia o que dizer. E, antes que pudesse lidar com aquele fracasso em particular, havia o problema da festa que ele tinha planejado com tanta esperteza – a festa em que o demônio dentro dele parecia querer entrar de penetra.

Nikolai bebeu outro gole do café amargo, esperando que desanuviasse sua mente.

— Acho que podemos ter um recurso que não tínhamos antes.

Como se pudesse ler seus pensamentos, o olhar de Zoya disparou para ele.

— Se estiver falando daquele monge esquelético horrendo, eu vou...

— Se maravilhar com a minha criatividade? Tascar um beijo carinhoso na minha bochecha? Instalar uma placa comemorativa à minha genialidade?

— Vou pôr uma placa nos muros do palácio comemorando essa data como a manhã em que Nikolai Lantsov perdeu completamente o juízo. O garoto é um lunático, um fanático. Ele venera um homem que iniciou uma guerra civil e matou metade do Segundo Exército.

— Ele venera um ideal. Todos já fomos culpados disso vez ou outra.

Zoya se virou, mas ele vislumbrou a mágoa em seu rosto. Zoya Nazyalensky não se encolhia, mas sua dor era evidente. Nikolai queria interromper a reunião e só... ele não sabia bem o quê, exatamente, mas sabia que a resposta correta para quase matar alguém não era tentar vencer uma batalha verbal na manhã seguinte.

— Então não seja por isso — respondeu Zoya. — Vamos receber um ex-membro da Guarda Sacerdotal na sala de guerra e pôr o nosso futuro nas mãozinhas imundas dele.

— Ela não fica linda quando concorda comigo? — perguntou Nikolai, saboreando a careta de Zoya. Era muito melhor que ver aquele olhar duro e magoado e saber que ele o causara. Mas, um momento depois, ele quis se bater quando viu Tolya trazer o monge para a sala de guerra, e a expressão sombria de Zoya se tornou distante.

— Alteza — disse Yuri rigidamente. Ele era tão alto que teve que se curvar para entrar na sala, e tão magro que parecia capaz de tombar e ser arrastado por uma brisa. — Fui alertado quanto a sua língua afiada. Vossa Alteza fala de dividir o pão, mas passei a noite confinado no que é essencialmente uma cela...

— A Suíte Íris? Minha tia Ludmilla a decorou pessoalmente. Ela amava a cor púrpura, mas cela parece meio exagerado.

— A cor não é o problema. Foram os guardas armados que ofenderam minha sensibilidade. É assim que Vossa Alteza recebe todos os seus convidados?

— Tolya — sussurrou Nikolai. — Acho que ele está lhe chamando de má companhia. — Ele se reclinou e apoiou os cotovelos nos braços da cadeira. — Yuri, você tem inimigos. Aqueles guardas estavam lá para a sua proteção.

Yuri bufou.

— Meus seguidores não vão aceitar que eu seja tratado assim.

E foi por isso que Nikolai tinha mandado pão, bacalhau defumado e um pouco de kvas de excelente qualidade à multidão acampada fora da cidade, cortesia da coroa: homens de barriga cheia reclamavam menos. Na verdade, Nikolai pretendia ver Yuri no dia anterior, mas os compromissos da tarde tinham ocupado todo o seu tempo. Quanto à noite, bem, ela também o mantivera ocupado.

— Yuri, permita-me apresentar...

— Não permito. Eu desejo abordar a questão do Sem Estrelas e... — Abruptamente, Yuri se empertigou. Seus olhos se arregalaram e seu queixo caiu enquanto ele olhava ao redor da sala e parecia, finalmente, perceber onde estava. Ele uniu as mãos como um soprano prestes a cantar. — Ah — arquejou o monge. — Ah. São vocês. São todos vocês. — Ele se virou para os membros do Triunvirato e fez uma mesura baixa. — Moi soverenye, é uma honra. — Ele fez outra mesura. — Uma honra inexprimível. — Lá foi ele de novo. — Um sonho, na verdade.

Nikolai suprimiu um grunhido. No que exatamente ele tinha se metido? Zoya e Genya trocaram um olhar perplexo, e até David ergueu os olhos do trabalho para franzir o cenho em confusão.

— Pare com isso — disse Zoya. — Você parece um guindaste.

— Comandante Zoya Nazyalensky — anunciou Yuri, quase engasgando. — Ontem... eu não percebi. Pensei que era só...

— Uma das lacaias do rei? — Zoya ignorou os protestos de Yuri: — Você está ciente de que todos os membros deste Triunvirato lutaram contra o seu amado Santo Sem Estrelas na guerra civil?

— Sim, sim, é claro. — O monge empurrou seus óculos de aro sobre o osso do longo nariz. — Eu sei. Mas, bem, David Kostyk foi o grande Fabricador que forjou o primeiro amplificador usado por Sankta Alina em pessoa. — David retornou um olhar impassível e voltou à sua leitura. — Zoya Nazyalensky era uma dos preferidas do Darkling. — Zoya torceu os lábios. — E, é claro, Genya Safin, a Primeira Artesã, que traz as marcas da bênção do Darkling.

Genya se encolheu.

— Bênção?

— Como é? — perguntou Zoya, já erguendo as mãos para conjurar uma tempestade ou estrangular Yuri. Tamar levou as mãos aos machados. Tolya chegou a rosnar.

Nikolai bateu os nós dos dedos contra a mesa.

— Basta. Acalmem-se, todos. Yuri, você está se aventurando num território que não pode nem começar a entender.

Apesar da altura, o monge mais parecia uma criança desajeitada que tinha quebrado o vaso favorito da mãe.

— Eu... perdoe-me. Não queria ofender.

Lentamente, Genya se ergueu e o silêncio caiu ao redor dela.

— Quantos anos tem, Yuri?

— Dezoito, moi soverenyi.

— Quando eu tinha um ano a mais que você, o Darkling soltou seus monstros sobre mim, criaturas nascidas do poder que você tanto venera. Eles gostavam do sabor da carne humana. Ele teve que forçá-los a parar.

— Então ele não foi tão crue...

Genya ergueu uma mão e Nikolai ficou feliz em ver que Yuri se calou.

— O Darkling não queria que eu morresse. Ele queria que eu vivesse... que eu vivesse assim.

— Pior para ele — disse Nikolai em voz baixa. — Deixar uma soldada como você sobreviver.

Genya deu um aceno mínimo.

— Pense duas vezes antes de usar a palavra bênção, monge. — Ela sentou-se e uniu as mãos. — Prossigam.

— Espere só um momento. — David plantou um dedo na página para marcar seu lugar no livro. — Qual é o seu nome mesmo?

— Yuri Vedenen, moi soverenyi.

— Yuri Vedenen, se aborrecer minha esposa de novo, eu vou matá-lo sem hesitação.

O monge engoliu em seco.

— Ah, David! — suspirou Genya, tomando a mão dele. — Você nunca ameaçou matar ninguém por mim antes!

— Não? — ele murmurou, distraído, dando um beijo nas costas da mão dela e retomando sua leitura.

— Eu... perdoem-me, tudo isso é demais. — Yuri sentou-se, depois se levantou de novo, como se não pudesse evitar. — Pensar que estou numa sala construída pelo próprio Sem Estrelas. — Ele tocou as bordas pretas que marcavam a Dobra das Sombras no mapa. — É... é glorioso demais para contemplar. Isso é couro de vaca?

— De rena, acredito — disse Nikolai.

— Incrível!

— Espere — interrompeu Zoya, estreitando os olhos. — Você disse pelo próprio Sem Estrelas. Não os ancestrais dele.

Yuri se virou do mapa com um sorriso presunçoso.

— Sim, eu disse. Eu sei que só houve um Darkling, um único homem de grande poder que forjou sua morte muitas vezes. Uma precaução contra mentes pequenas que poderiam ter temido seu poder extraordinário e sua longa vida.

— E como você chegou a essa teoria? — perguntou Nikolai.

Yuri pareceu confuso.

— Não é uma teoria. Eu sei. O Darkling me revelou o fato numa visão.

As sobrancelhas de Zoya se ergueram e Nikolai teve que lutar contra o impulso de revirar os olhos. Em vez disso, ele juntou os dedos e declarou:

— Entendo.

Mas o sorriso de Yuri só ficou mais largo.

— Sei que acham que sou louco, mas eu vi milagres.

E foi exatamente por isso que Nikolai o tinha trazido ali.

— No outro dia, você disse que a Era dos Santos é iminente. O que quis dizer?

— De que outra forma vocês explicam os milagres que acontecem em Ravka?

— Lá vem — murmurou Zoya.

— Ouvimos as histórias — declarou Nikolai tranquilamente. — Mas há explicações racionais para esses eventos. São tempos difíceis, e é inevitável que as pessoas procurem milagres.

Para surpresa de Nikolai, o jovem monge sentou-se à mesa e se inclinou sobre ela, com a expressão sincera.

— Alteza, sei que não é um homem de fé. Mas as pessoas acreditam que esses eventos não são só fenômenos esperando para serem explicados. Acreditam que são a obra de Santos.

— Eles são a obra de Grishas — retrucou Zoya. — Possivelmente dos shu. Possivelmente do seu querido amigo Apparat.

— Ah — disse Yuri. — Mas algumas pessoas acreditam que todos os antigos milagres eram obra de Grishas.

— Então os chame de Pequena Ciência e deixe de lado toda essa superstição.

— Seria mais fácil aceitar a divindade assim? — perguntou Yuri, seus óculos refletindo a luz. — Ajudaria se eu chamasse essas obras de “criação no coração do mundo”? Eu também estudei teoria Grisha.

Os olhos de Zoya estavam duros como pedras preciosas.

— Não estou aqui para debater teologia com um cabo de vassoura.

Yuri se reclinou, sua expressão beatífica.

— Os Santos estão retornando a Ravka. E o Sem Estrelas estará entre eles.

— O Darkling está morto — disse Genya, e Nikolai não deixou de ver os nós brancos em seus dedos unidos. — Eu vi o corpo dele queimar.

Yuri lançou um olhar ansioso para David.

— Alguns acreditam que o Darkling não morreu na Dobra e está apenas esperando uma chance para retornar.

— Eu também estava lá, monge — disse Zoya. — Eu o vi arder até virar cinzas em uma pira alimentada pelas chamas de Infernais.

O monge fechou os olhos brevemente, como se sentisse dor.

— Sim, é claro. Esse foi o martírio dele, e seu corpo foi destruído. Mas o poder do Darkling era extraordinário. Antigo. Pode ter desaparecido, mas também pode ainda viver no mundo, junto com o espírito dele.

Zoya comprimiu os lábios, cruzando os braços apertado, como se quisesse combater o frio.

Nikolai não gostava de nada daquela história. Um resquício daquele antigo poder ainda residia em seu próprio corpo – e, se a noite anterior fosse alguma indicação, ficava mais forte a cada dia.

— Você acha que todos esses incidentes separados, esses supostos milagres, estão relacionados ao Darkling? — ele perguntou.

— Não! — exclamou o monge, inclinando-se ainda mais para a frente. Mais um momento e seu queixo bateria na mesa. — Eu sei que estão. — Ele se levantou e gesticulou para o mapa atrás de si. — Posso? — Ele olhou ao redor, movendo-se para a direita e a esquerda, as vestes abanando como as asas de um pássaro ensandecido.

— É assim que os acólitos do Darkling são hoje? — sussurrou Zoya. — Se tivéssemos deixado um corpo, ele estaria se revirando no túmulo.

— A-há! — exclamou Yuri, encontrando as bandeirinhas de tecido que seriam presas no couro. Os mapas estavam cheios de buraquinhos nos locais em que antigos líderes tinham planejado campanhas militares.

— O terremoto em Ryevost, a estátua em Tsemna, o telhado de mirra em Arkesk, as paredes sangrando em Udova, as rosas em Udena. — Um após o outro, ele listou os supostos milagres enquanto colocava alfinetes no mapa. Daí recuou. — Eles começaram aqui, mais longe, no litoral e nas montanhas e nas fronteiras, mas dia a dia as ocorrências se tornam mais frequentes e se aproximam...

— Da Dobra — completou Nikolai. O padrão estava claro: uma estrela radiante com seu coração bem no centro do Não Mar.

— Santos — sussurrou Zoya.

— Foi aí que...? — começou Genya.

— Sim — disse Nikolai, embora não lembrasse muito da batalha final. Ele já estivera infectado com o monstro, lutando com ele pelo controle de sua consciência... e vencendo bem mais do que agora. Tinha longos períodos de lucidez, até quando se transformava, e buscara a ajuda de Alina. Até tentara ajudar as forças deles no último confronto.

Os locais de milagres estavam se fechando no mesmo ponto central, o local que já contivera a Dobra, onde o Darkling oferecera sua última resistência – onde ele tinha enfrentado Alina Starkov e morrido nas mãos dela. Vitória. Pelo menos era o que parecera na época – um país unido, a chance de paz, e Nikolai súbita e rapidamente livre do demônio que tinha lutado por controle com ele. Ele acreditara que a escuridão dentro de si fora derrotada no momento da morte do Darkling. Acreditara que a guerra havia acabado.

No entanto, o monstro tinha se erguido para controlá-lo outra vez. Será que o demônio sempre estivera lá, atormentando seus sonhos, um companheiro constante que aguardava seu momento? Ou algo o tinha despertado?

Nikolai olhou para os alfinetes espalhados sobre o mapa. Havia um padrão ou Yuri estava vendo o que queria? E será que aquele fanático aparentemente inocente estaria jogando um jogo mais intricado?

— Perdoe-me, Yuri — disse Nikolai. — Mas a sua meta é ter o Darkling reconhecido como um Santo pela igreja ravkana. Você tem um bom motivo para atribuir essas ocorrências ao Sem Estrelas.

— Não tenho motivo para mentir — protestou Yuri. — Poucos dias atrás, um sinal apareceu na Dobra, um lago de rocha preta, um eclipse do sol.

Zoya exalou, exasperada.

— Ou uma anomalia geológica.

Yuri bateu um dedo ossudo no mapa.

— Esse lugar não é somente onde o Sem Estrelas passou dessa vida. É um lugar de poder antigo, o ponto exato onde o Darkling quebrou o mundo pela primeira vez e criou a Dobra.

— Você não pode saber disso — desdenhou Zoya, abanando a mão.

— Foi o tema dos meus estudos na Guarda Sacerdotal. Está tudo nos textos.

— Quais textos? — ela quis saber, e Nikolai se perguntou se estava deliberadamente tentando provocar o monge.

— O livro de Alyosha. Os salmos sikurianos. Está ilustrado no Istorii Sankt’ya.

— Um livro infantil?

— Era um local sagrado — insistiu Yuri. — O local onde Sankt Feliks foi perfurado pelos ramos da macieira, um local antigo de cura e poder glorioso aonde os homens iam para serem purificados.

Nikolai se endireitou.

— Purificados do quê, exatamente?

Yuri abriu a boca e a fechou em seguida.

— Eu não quis dizer...

— Não, não quis — disse Tolya. — Ele está falando do obisbaya. Não é, monge?

— Eu... eu...

— Odeio admitir minha ignorância — declarou Nikolai. — É muito mais divertido deixar as pessoas a descobrirem por si sós. Mas o que exatamente é o obis... obisbilho?

— Não faço ideia — disse Zoya. Genya deu de ombros e até David balançou a cabeça.

Para surpresa de Nikolai, foi Tamar quem respondeu.

— Obisbaya — ela repetiu. — O Ritual do Espinho Ardente. Vocês sabem como a Guarda Sacerdotal surgiu originalmente?

— Isso são histórias de ninar — desdenhou Zoya.

— Possivelmente — admitiu Tolya.

— Então me conte uma história — pediu Nikolai.

Tamar cruzou os braços.

— Não quer fazer as honras, monge?

Yuri hesitou, mas começou a falar.

— Tudo começa com o primeiro rei Lantsov, Yaromir, o Determinado. — Ele fechou os olhos e sua voz assumiu uma cadência mais firme e confiante. — Antes dele, o território que se tornaria Ravka era pouco mais que uma coleção de províncias governadas por reis briguentos que guerreavam entre si. Ele as conquistou e as uniu sob o estandarte da águia dupla. Mas as invasões de Fjerda, ao norte, e Shu Han, ao sul, não cessavam, e deixaram o reino em um estado de guerra constante.

— Parece familiar. — Nikolai aprendera a história em suas próprias aulas na infância. Ele sempre tinha achado desanimador o fato de que Ravka estava em guerra desde seu nascimento.

— Não havia Segundo Exército na época — continuou Yuri. — Os soldados de Ravka lutavam e morriam como todos os outros homens. Mas reza a lenda que Yaromir construiu um altar sobre uma colina em Os Alta...

— O local da primeira capela real — disse Tolya.

Yuri assentiu.

— O jovem rei rezou a todos os Santos que pudessem ouvi-lo, e no dia seguinte um grupo de monges bateu à sua porta e se ofereceu para lutar ao seu lado. Eles não eram monges comuns. Quando entravam na batalha, assumiam a forma de feras. Lutavam não como homens, mas como todo tipo de criatura: lobo, dragão, gavião, urso. O rei tinha ouvido boatos sobre eles, mas não tinha acreditado até ver os milagres com os próprios olhos.

— Sempre os milagres — resmungou Zoya.

— Sim — rebateu Yuri, abrindo olhos em que o fervor ardia como um ferro em brasa. — Sempre. Os monges concordaram em lutar pelo rei. Em troca, não pediram ouro nem terras, só que sempre pudessem continuar ao lado do rei para que Ravka permanecesse dedicada à veneração dos Santos. Os monges se lançaram na batalha e repeliram os inimigos de Ravka, criando fronteiras que se manteriam por alguns milhares de anos. — Yuri ergueu a voz, arrebatado pelo seu relato, toda hesitação sumindo. — Mas a batalha levou tanto tempo que, quando acabou e era a hora de eles retornarem a suas formas humanas, não conseguiam mais. Seu líder os levou ao local de um antigo bosque de espinheiros, e lá eles passaram por um ritual perigoso: o obisbaya. Aqueles que sobreviveram se tornaram homens novamente e seu líder assumiu o seu lugar ao lado de Yaromir. Por fim, o sacerdote que tinha o cargo mais próximo do rei recebeu o título de Apparat, e os soldados devotos que o cercavam se tornaram a Guarda Sacerdotal.

— Alguns alegam que os primeiros membros eram Grishas — acrescentou Tolya.

Tamar levou os dedos aos dentes de tubarão no pescoço.

— Nessa versão, os animais que eles eram se tornaram os primeiros amplificadores. Seus espíritos fortaleceram os poderes dos monges.

Nikolai estudou Yuri. A história era estranha, sem dúvida, e provavelmente mais ficção que fato. Mesmo assim...

— Um ritual para expurgar uma fera de um homem. No que consistia exatamente?

Yuri empurrou os óculos pelo nariz, o estudioso confiante desaparecendo com um único gesto.

— Não tenho certeza. Os textos são... contraditórios.

— Você não é um encrenqueiro de verdade, é, Yuri?

Um sorriso tocou os lábios do monge.

— Acho que não.

— Mesmo assim acabou diante dos meus portões, me chamando de traidor e ladrão. — Yuri pelo menos teve a decência de parecer desconfortável. — O que o trouxe aqui?

— Os Santos. Eu acredito nisso.

Nikolai tinha lá suas dúvidas.

— Me conte sobre esse ritual.

— Por quê? — perguntou Yuri, franzindo o cenho.

— Eu sou um rei. Quero ser entretido.

O monge cofiou a barba rala.

— Não sei os detalhes. Os relatos nos textos são contraditórios, e eu não... não tenho mais permissão para...

— São textos religiosos, não é? — perguntou Nikolai. — Da biblioteca da Guarda Sacerdotal. Você não tem mais acesso a eles.

— Não. — A dor era palpável em sua voz. Nikolai entendia; houve um tempo em que as palavras foram o único lugar em que ele encontrava conforto. Nenhum livro jamais perdeu a paciência com ele ou o mandou sentar quieto. Quando seus tutores jogavam as mãos para o alto em frustração, era a biblioteca que ensinava a Nikolai história militar, estratégia, química e astronomia. Cada lombada tinha sido como uma porta aberta sussurrando: Entre, entre. Aqui há terras que você nunca viu. Aqui há um lugar para se esconder quando estiver assustado, para brincar quando estiver entediado, para descansar quando o mundo parecer cruel. Yuri conhecia aquele conforto. Ele já fora um estudioso. Talvez quisesse ser novamente.

Nikolai se ergueu.

— Obrigado, Yuri. Você ajudou muito.

O monge se levantou devagar.

— Ajudei? Então vai apoiar nossa causa, Alteza? O Apparat não pode ignorar a voz do rei. Se Vossa Alteza ordenar a ele que...

— Vou pensar a respeito, Yuri. Você fez argumentos interessantes. Por enquanto, vou pedir a alguém que o acompanhe a seus aposentos.

— Então ainda sou um prisioneiro?

— Você é um convidado bem-vindo que eu não gostaria de ver vagando muito longe. E talvez eu lhe consiga acesso a alguns materiais de leitura.

Yuri hesitou, como se não tivesse certeza de ter ouvido corretamente.

— Meus... livros?

— Talvez.

— Isso seria... Não, eu devo voltar aos outros devotos fora da cidade. Vocês não podem me manter...

— E você vai voltar. Mas temos que pedir que desfrute de nossa hospitalidade um pouco mais, enquanto consideramos os méritos do seu caso.

Yuri empinou o queixo.

— Pelo Sem Estrelas, eu posso esperar uma eternidade. Mas não faça joguinhos comigo, Alteza. Não vim à capital para ser ridicularizado nem pra ficar perdendo tempo com frivolidades.

— Ficar, sim; frivolidades, não — disse Nikolai. — Larguei as frivolidades na juventude.

Zoya revirou os olhos e Tolya acompanhou Yuri para fora, deixando-o aos cuidados de dois guardas do palácio.

Depois que Yuri saiu, Nikolai se levantou para examinar mais de perto os alfinetes no mapa. Sem o monge, o silêncio na sala parecia pesado, como se outra presença tivesse entrado na câmara: algo antigo e inominável.

— O garoto é louco — afirmou Zoya.

— Ele é devoto — retrucou Tolya. — Não é a mesma coisa.

— E eu prefiro um fiel de verdade a um homem como o Apparat — acrescentou Genya.

— Como pode dizer isso? — perguntou Zoya. — Ele venera um tirano, um assassino, o homem que torturou você.

Genya suspirou.

— Pode culpá-lo por sentir a atração da força do Darkling? Todos nós éramos assim.

— Não sabíamos o que ele era naquela época.

— Não? — Genya ajeitou o tapa-olho. — Yuri é um garoto assustado procurando algo maior que si mesmo para dar sentido à sua existência. Há pessoas como ele por toda Ravka.

— É isso que me preocupa.

Tolya se sentou ao lado da irmã, e Nikolai captou o olhar que passou entre eles. Aquele não era o momento para começar a guardar segredos.

— O que foi?

Tolya ergueu os ombros largos.

— Pode haver um pouco de verdade na história de Yuri. A Guarda Sacerdotal não foi sempre composta só de lacaios do Apparat. Eles eram guerreiros devotos que serviram à coroa também. Quando eu era mais novo, queria ser um deles mais que tudo.

— O que o impediu? — perguntou Nikolai. Ele não estava particularmente surpreso. Tolya e Tamar tiveram uma criação religiosa, e ele estava muito ciente de que, se Alina Starkov não tivesse dado sua bênção a Nikolai para ser rei, os gêmeos nunca teriam aceitado ser seus guardas.

— Eles não me deixaram entrar — disse Tamar. — Mulheres não são admitidas.

Tolya assentiu.

— E eu tive que questionar uma ordem sagrada que alegava querer guerreiros, mas recusava uma lutadora como Tamar.

Tamar apoiou as mãos nos machados.

— Os Santos tinham um plano diferente para nós.

— Ah — disse Nikolai. — Mas o que os Santos estão planejando agora? Zoya, quando eu escapei do palácio do duque Radimov em Ivets, onde você me encontrou?

— Numa fazenda de gansos na estrada para Varena.

Nikolai encostou um dedo no mapa.

— Uma rota a nordeste. No entanto, toda vez que eu fugi do palácio, me dirigi para o noroeste. Toda vez tomei o mesmo rumo, só fui um pouco mais longe. E se a criatura está tentando nos levar àquele ponto na Dobra? E se quer se livrar de mim tanto quanto eu quero me livrar dela?

— E se esses supostos milagres são um plano para levar você para longe do palácio? — retrucou Zoya.

— Até a Dobra? Para quê?

Zoya jogou as mãos para o alto.

— Não sei.

— Os “milagres” começaram quando o demônio acordou dentro de mim. Ele pode estar conectado ao poder do Darkling, ou Yuri pode estar completamente errado, mas o padrão é real. Alguma coisa está acontecendo, e está relacionada a esse ponto na Dobra das Sombras.

— Não é seguro deixar o palácio — protestou Zoya.

— Não existem lugares seguros. Não mais. — Ele tinha provado esse fato pessoalmente, na noite anterior. — Genya vai preparar um tônico mais forte. David vai forjar correntes mais firmes. Eu vou sair em peregrinação.

— Para um bosque de espinheiros místico? — perguntou Zoya. — Mesmo que tenha existido, a Dobra aniquilou tudo em seu caminho. Não há mais nada lá.

Tolya entoou uma longa sequência de palavras, só algumas das quais Nikolai reconheceu. Então ele disse:

— A fé perdida são as raízes de um bosque esquecido, esperando para crescer novamente.

Zoya estreitou os olhos.

— Concordamos que não haveria mais recitação de poesia nas reuniões.

— É ravkano litúrgico — objetou Tolya. — Do Livro de Alyosha, que você conheceria se fosse à igreja de vez em quando.

— É incrível eu ter sobrevivido até hoje sem tais conhecimentos.

— Tolya — interrompeu Nikolai. — Preciso que você encontre quaisquer textos que falem do obisbaya e tudo que esteja conectado com ele. Não quero que Yuri seja o único estudioso com quem eu posso contar.

— Eu não sou um estudioso — protestou Tolya.

— Poderia ter sido, em outra vida — disse Nikolai.

— Como assim, o único estudioso? — perguntou Zoya. — Você não pode estar falando de viajar com o monge.

Genya se remexeu no lugar.

— Vai parecer que você está apoiando o culto do Sem Estrelas. Não gosto da mensagem que isso transmite.

— Vamos fazer Yuri ir bem disfarçado, e não pretendo tomar uma rota direta para a Dobra — disse Nikolai. — Podemos aprender alguma coisa nos outros locais de milagres, e visitá-los me dará uma oportunidade de andar entre meus súditos antes de escolher uma noiva. Temos exércitos se reunindo nas duas fronteiras, novos impostores Lantsov surgindo para reivindicar o trono. Nossos cofres estão vazios e temos poucos aliados. Não posso me dar ao luxo de perder o apoio do povo. Vamos precisar dele nos dias por vir.

— E se tudo isso não der em nada? — perguntou Genya. — E se o Darkling o deixou com essa maldição e não houver respostas a serem encontradas?

Zoya estendeu os dedos na mesa.

— E se Yuri descobrir a verdade sobre o monstro?

— Nesse caso, torcemos para que eu possa silenciá-lo e manter esse segredo por tempo suficiente para assegurar o futuro de Ravka. Mesmo sem um herdeiro, pode haver um modo de manter o trono a salvo e garantir que o país não fique vulnerável.

— E que modo seria esse? — perguntou Zoya.

— Tem certeza de que não quer tentar confiar em mim, Zoya? É uma experiência revigorante. — Ele tivera a ideia na semana anterior, quando chegaram do palácio do conde Kirigin e foram recepcionados por Trukhin e Isaak.

Zoya comprimiu os lábios.

— Não gosto de nada disso. Há uma margem grande demais para um desastre.

Nikolai sabia disso. Eles estavam ficando sem tempo, e aquela jornada à Dobra fedia a desespero. Ele não podia negar o medo que se agarrava a ele e a dúvida que semeara em seu coração. E se ele perdesse a cabeça, e com ela, sua vontade? E se atacasse um dos seus amigos de novo e não houvesse ninguém lá para impedi-lo? Que danos ele poderia causar às pessoas que ele amava – ou ao mundo?

Nikolai não podia negar esses temores, mas recusava-se a ceder a eles. Não entregaria a vitória, de mão beijada, ao monstro.

Ele se virou para as pessoas reunidas diante dele – seus conselheiros, seus soldados, sua família. Precisava que eles acreditassem – se não nas histórias de Yuri, no próprio Nikolai, na pessoa que ele fora antes do Darkling e da guerra. Endireitou as lapelas do casaco de veludo e deu uma piscadela.

— Não é empolgante se nada puder dar errado.

Ele sentiu o monstro recuar. Ação. Decisão. Em momentos como aquele, quase se sentia como ele mesmo. Se a criatura queria reivindicar sua alma, Nikolai pretendia montar uma oposição ferrenha – e a batalha começava ali, naquele momento, com uma recusa a entregar qualquer parte de seu espírito ao terror tentando arrastá-lo para a escuridão. Ele faria o que sempre tinha feito: avançaria sem hesitar e rezaria para que a esperança os aguardasse como as raízes do bosque de espinheiros – logo adiante, apenas fora da vista.


JÁ ERA NOITE QUANDO ELA FINALMENTE SE LEVANTOU.

O céu parecia mais cinza que púrpura, da cor de um hematoma profundo, e o ar estava úmido contra suas faces. A neve começara a cair suavemente.

Não permaneceu assim por muito tempo.

Nina nunca vira uma tempestade surgir tão rápido. O vento soprava forte e a neve deixara o mundo todo branco. Gruzeburya. Até os ravkanos tinham um nome para esse vento: O Bruto. Não pelo frio que trazia, mas pelo modo como cegava a pessoa, como um brutamontes numa luta suja. Nina considerou seguir o som do rio para voltar ao acampamento, mas ao mesmo tempo temia se aproximar demais das margens e cair nele.

Ela seguiu em frente com passos pesados, apertando os olhos contra a brancura da neve. Em certo momento pensou ter ouvido a voz de Adrik chamando-a e pegou um vislumbre da bandeira amarelo-vivo que eles tinham erguido acima da tenda, mas um momento depois ela sumiu.

Idiota, idiota, idiota. Ela nascera para ficar em tais lugares. Não sobreviveria uma noite sem abrigo naquele tempo. Não tinha escolha exceto seguir em frente.

Então, como um milagre, o vento amainou, as cortinas de neve pareceram se apartar e ela viu uma forma escura a distância. O acampamento.

— Adrik! — ela gritou.

Mas, quando se aproximou, não viu a bandeira nem a tenda, só os corpos oscilantes de um pequeno bosque – e, na neve diante deles, uma leve saliência. Tinha andado em círculos e retornado ao túmulo de Matthias.

— Ótimo trabalho, Zenik — ela suspirou. Só tinha dezoito anos, por que se sentia tão cansada? Por que tudo atrás dela parecia tão radiante e tudo à sua frente, tão deprimente? Talvez ela não tivesse ido ali para enterrar Matthias e encontrar um novo propósito. Talvez tivesse ido ao gelo, àquele lugar frio e inclemente, para morrer.

Não haveria nenhum Santo esperando para recebê-la em um litoral mais luminoso. Os Grishas não acreditam na vida após a morte. Quando morrem, retornam à criação no coração do mundo. O pensamento não era muito reconfortante.

Nina virou para tentar voltar ao acampamento; não tinha o que fazer exceto recomeçar a marcha. No entanto, antes que pudesse dar um passo, ela os viu – cinco formas grandes na neve. Lobos.

— É claro — ela disse. — Matthias, a merda deste seu país acaba com a minha paciência Grisha.

Os lobos rondavam em círculo, cercando-a e bloqueando qualquer rota de fuga. Rosnados baixos saíam de seus peitos. Aqueles animais eram sagrados para os drüskelle; talvez tivessem sentido a presença de Matthias. Ou talvez tivessem sentido Nina, uma Grisha, uma inimiga. Ou talvez tivessem simplesmente farejado uma refeição suculenta.

— Vão embora — ela ordenou em fjerdano. — Não quero ferir vocês. — Não quero morrer.

Matthias fora obrigado a lutar com lobos durante seu ano em Hellgate. Djel tinha um senso de humor esquisito. Nina flexionou os dedos, sentindo as adagas de osso prontas para serem chamadas. Elas funcionariam tão bem em animais quanto em humanos. Ela jogou a capa para trás, sentindo o frio morder sua pele, mas liberando a armadura de lascas de osso às costas. Era uma Santa cercada por suas relíquias.

Dois lobos saltaram. Nina estendeu as mãos e as lascas voaram com mira perfeita, perfurando o corpo dos animais em dois golpes limpos e fortes. Os lobos ganiram e caíram na neve, imóveis. O som partiu seu coração. Pelo menos foram mortes limpas. No fim, talvez fosse só isso que as pessoas podiam esperar.

Mas os outros já estavam se aproximando. Havia algo estranho no modo como se moviam: seus olhos brilhantes eram quase laranja, eles andavam curvados e tinham pequenos espasmos, como se estivessem sendo impelidos por algo além da fome. Qual era o problema deles? Mas ela não tinha tempo para pensar.

Eles pularam e Nina os golpeou. Dessa vez, sua mira foi menos certeira. Um lobo caiu, mas o outro saltou sobre ela, seu peso fazendo-a tombar na neve.

A mandíbula do animal se fechou ao redor do seu antebraço e uma pontada de dor a atravessou. O lobo tinha um cheiro estranho. Ela gritou.

Nina ouviu um rosnado alto e soube que estava prestes a morrer. Todas aquelas palavras bonitas por Matthias. Quem vai falar por mim?

Então, em um borrão, algo se bateu contra o corpo do lobo, liberando-a do seu peso. Nina rolou, apertando o braço ensanguentado contra o peito e lutando para recuperar o fôlego. Enfiou o braço na neve e tentou limpar o ferimento. Seu corpo começou a tremer, como se a mordida do lobo estivesse envenenada. Ela sentiu uma corrente eletrizante atravessá-la. Viu morte por todo lado – o corpo de Matthias abaixo da terra, um cemitério mais ao norte, um surto de peste além, a entropia da terra, a putrefação inerente a tudo. O coro berrava em sua cabeça.

Ela jogou neve contra as bochechas, tremendo e tentando desanuviar os pensamentos, mas, quando abriu os olhos, se perguntou se o veneno tinha danificado sua mente. Dois lobos estavam lutando na neve – um cinza, o outro branco e bem maior. Eles rolaram, e o lobo branco fechou a mandíbula na garganta do cinza, mas não mordeu. Por fim, o cinza parou de lutar e soltou um ganido baixo. O lobo branco soltou o menor, que se encolheu e escapuliu com o rabo entre as pernas.

O lobo branco se voltou para Nina. Seu focinho estava ensanguentado, ele era enorme e vagava sozinho, mas não se retorcia ou sofria espasmos como os cinza. Eles tinham sido infectados por alguma coisa, algo que havia entrado na corrente sanguínea de Nina, mas essa criatura se movia com a graciosidade natural e infalível das coisas selvagens.

O lobo branco se aproximou devagar. Nina empurrou-se de joelhos, estendendo as mãos para afastá-lo e procurando outra lasca de osso com o seu poder.

Então ela viu a cicatriz que atravessava o olho amarelo dele.

— Trassel?

As orelhas do lobo estremeceram.

O lobo de Matthias? Impossível. Uma vez ele dissera a ela que, quando um drüskelle morria, seus irmãos devolviam o seu isenulf à natureza. Será que Trassel tinha vindo encontrar o garoto que amava, reunir-se com ele até na morte?

— Trassel — ela chamou gentilmente. O lobo inclinou a cabeça grande para o lado.

Nina ouviu cascos de cavalo. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, uma garota entrou galopando na clareira.

— Afaste-se! — ela exclamou, posicionando o cavalo entre Nina e o lobo branco.

Nina levou um momento para entender o que estava vendo – era a garota alta do convento. Dessa vez ela usava calças de couro e peles, e seu cabelo longo, castanho-avermelhado, caía pelas costas, preso em duas tranças longas que o mantinham afastado do rosto. Ela parecia uma rainha guerreira – uma sílfide do gelo, saída diretamente de uma lenda fjerdana.

Ela ergueu o rifle.

Trassel recuou, rosnando.

— Não! — gritou Nina. Ela lançou uma lasca de osso na garota, atingindo o seu ombro, e a jovem errou o tiro. — Corra! — Nina gritou para Trassel, em fjerdano. O lobo mordeu a mandíbula como se quisesse discutir. — Djel commenden! — berrou Nina. Palavras de drüskelle. Trassel deu uma bufada, mas virou-se e saiu em disparada na tempestade, dando um último olhar magoado para ela como se não conseguisse acreditar que ela lhe pedira para desistir de uma luta.

— O que você está fazendo? — perguntou a garota alta, arrancando o dardo de osso do ombro e jogando-o na neve.

Nina uivou de raiva. O lobo de Matthias, o encrenqueiro dele, o Trassel dele, tinha de alguma forma a encontrado, e aquela desastrada maldita o tinha afugentado. Ela agarrou a perna da garota e a puxou da sela.

— Ei! — A garota tentou empurrar Nina para longe, claramente surpresa com a força dela. Só que Nina recebera um treinamento de soldado: podia não ter o físico de uma guerreira fjerdana, mas ainda era forte.

— Você o afugentou!

— Aquilo era um lobo! — A garota gritou de volta para ela. — Sabe disso, não é? Ele já te mordeu uma vez. Só porque obedeceu a algumas ordens suas...

— Ele não me mordeu, sua imbecil. Foi o outro lobo!

— O outro... você está louca? E como sabe comandos de drüskelle?

Nina viu-se com lágrimas quentes escorrendo pelas bochechas. Talvez nunca visse Trassel de novo. E se Matthias o tivesse enviado a ela? E se o tivesse chamado para ajudá-la?

— Você não tinha o direito!

— Eu não quis...

— Não importa o que quis ou não quis! — Nina avançou até ela. — Descuidada, idiota, egoísta. — Ela não sabia mais se estava falando com a garota ou consigo mesma, e não se importava. Tudo aquilo era mais do que podia suportar.

Ela empurrou a outra com força, varrendo a perna dela por trás do tornozelo.

— Pare com isso! — rosnou a outra quando tombou.

Mas Nina não conseguia parar. Queria levar um soco. Queria dar um soco de volta. Ela agarrou o colarinho da garota.

Nina grunhiu quando uma dor repentina comprimiu seu peito. Era como um punho ao redor do seu coração. A garota tinha erguido as mãos, algo entre terror e exaltação em seus olhos acobreados. Nina sentiu o corpo ficar pesado e sua visão se turvar. Ela conhecia a sensação graças a seu treinamento como Corporalnik: a outra garota estava reduzindo as batidas do seu coração.

— Grisha — arquejou ela.

— Eu não... não sou.

Nina empurrou seu próprio poder contra a garota, sentindo sua força vivente e vibrante vacilar. Com seu último resquício de força, girou os dedos e uma lasca de osso voou da bainha em sua coxa. O osso atingiu a garota no lado do corpo, sem força – e logo caiu na neve. Mas foi o suficiente para interromper a concentração dela.

Nina recuou aos tropeços, tentando recuperar o fôlego, apertando o esterno. Ninguém usava um poder Sangrador contra ela havia anos – ela havia esquecido como podia ser assustador.

— Você é Grisha — ela disse.

A garota se ergueu num salto, sacando uma faca.

— Não sou.

Interessante, pensou Nina. Ela tem poder, mas não sabe controlá-lo. Confia mais na lâmina.

Nina ergueu as palmas num gesto de paz.

— Não vou machucar você.

Agora a garota não mostrava mais qualquer sinal de hesitação. Seu corpo estava solto, relaxado, como se ela se sentisse mais à vontade com aço nas mãos.

— Você parecia querer me machucar pra valer um segundo atrás.

— Bem, sim, mas agora recuperei o juízo.

— Eu estava tentando salvar a sua vida! Por que se importa com um lobo, afinal? É pior que os drüskelle.

Bem, isso era algo que ela nunca esperava ouvir.

— Aquele lobo me salvou de um ataque, não sei por quê. Eu não queria que você o ferisse. — Aquela garota era Grisha e Nina quase a tinha matado. — Eu... exagerei um pouco.

A garota alta enfiou a faca de volta na bainha.

— Exagerar um pouco é fazer um escândalo quando alguém come a última rosquinha. — Ela apontou um dedo acusatório para Nina. — Você estava com sangue nos olhos!

— Verdade seja dita, eu já considerei matar alguém pela última rosquinha.

— Onde está seu casaco?

— Acho que o tirei — disse Nina, procurando uma explicação para ter arrancado o casaco que não envolvesse revelar sua armadura de osso. — Acho que peguei a loucura da neve.

— Isso existe?

Nina encontrou o casaco, quase enterrado em flocos de neve brancos e úmidos.

— Com certeza. Pelo menos no meu vilarejo.

A outra garota esfregou o músculo da coxa.

— E o que você jogou em mim?

— Um dardo.

— Você jogou um dardo em mim? — ela perguntou, incrédula. — Isso é ridículo.

— Funcionou, não funcionou? — Era um dardo feito de osso humano, mas era melhor evitar alguns detalhes e estava na hora de sair na ofensiva. Nina enfiou o casaco molhado. — Você pôs os guardas para dormir no convento. Foi assim que vocês saíram sem serem vistas.

Toda a confiança da garota se dissolveu, o medo apagando o fogo dela como uma onda súbita.

— Eu não feri ninguém.

— Mas podia ter ferido. Essa habilidade exige muita delicadeza, na verdade. Você poderia colocar alguém em coma.

A garota congelou enquanto o vento uivava ao redor delas.

— Como você sabe disso?

Mas Nina não tinha falado sem pensar. O poder Grisha era o mesmo que uma pena de morte, ou pior, naquele país.

— Minha irmã era Grisha — ela mentiu.

— O que... o que aconteceu com ela?

— Isso não é uma história para contar no meio de uma tempestade.

A garota apertou os punhos. Santos, ela era alta – mas tinha o físico de uma dançarina, esguio e musculoso.

— Você não pode contar a ninguém o que eu sou — ela disse. — Eles vão me matar.

— Eu não vou machucar você e não vou ajudar ninguém a machucar você. — A expressão da outra ainda era cautelosa. O vento se ergueu num lamento. — Mas nada disso vai importar se ambas morrermos aqui.

A garota alta olhou para Nina como se ela tivesse mesmo a loucura da neve.

— Não seja boba.

— Está dizendo que consegue achar o caminho no meio disso?

— Não — ela disse, dando tapinhas no flanco do cavalo. — Mas Helmut consegue. Há um chalé de caça perto daqui. — Ela hesitou novamente, e Nina pôde adivinhar os seus pensamentos.

— Você está considerando me deixar à mercê da neve — ela observou. A garota desviou os olhos com uma expressão culpada. Então ela tinha um lado implacável. Por algum motivo, isso fez Nina gostar mais dela. — Eu posso não sobreviver, mas talvez sobreviva. E daí pode ter certeza de que vou contar ao primeiro que encontrar sobre a Sangradora Grisha vivendo escondida entre as Mulheres da Nascente.

— Eu não sou Grisha.

— Faz uma imitação impecável.

A garota passou a mão enluvada na crina do cavalo.

— Você consegue cavalgar?

— Se eu for obrigada.

— É cavalgar ou dormir na neve.

— Consigo cavalgar.

A garota montou com um único movimento gracioso. Ela ofereceu uma mão a Nina, que se deixou ser puxada para as costas do cavalo.

— Você não gosta de pular refeições, não é? — perguntou a garota com um grunhido.

— Não se puder evitar.

Nina acomodou as mãos ao redor da cintura da garota e logo elas estavam atravessando as rajadas de neve cada vez mais intensas.

— Você pode ser açoitada por usar aquelas ordens, sabia? — disse a garota. — Djel commenden. É considerado blasfêmia dizê-lo se você não for drüskelle.

— Vou fazer preces a mais esta noite.

— Você não chegou a dizer como conhece aqueles comandos.

Mais mentiras, então.

— Um garoto da nossa cidade serviu nas fileiras deles.

— Qual o nome dele?

Nina se lembrou da luta na Corte de Gelo.

— Lars. Acredito que ele tenha morrido recentemente. — E ninguém o quer de volta. Ele tinha enrolado um chicote nela e a posto de joelhos antes de Kaz Brekker chegar.

O mundo branco se estendia, congelado e indistinto. Agora que não estava mais andando, Nina sentia o frio mais profundamente, seu peso se assentando sobre ela. Assim que começou a se perguntar se a garota sabia aonde estava indo, Nina viu uma forma escura em meio à neve e o cavalo parou. A garota desceu da sela.

Nina seguiu com as pernas entorpecidas de dor, e as duas conduziram Helmut a um abrigo coberto ao lado do chalé.

— Parece que não fomos as únicas que tiveram essa ideia — ela disse. Havia luzes acesas nas janelas do pequeno chalé, e ela podia ouvir vozes altas no interior.

A outra garota torceu as rédeas, tirando uma luva para afagar o focinho do cavalo.

— Não sabia que tantas pessoas conheciam este lugar. Provavelmente há homens lá dentro esperando a tempestade passar. Não estaremos seguras aqui.

Nina pensou por um momento.

— Você tem saias nesse alforje?

A garota puxou um cinto retorcido na cintura e as dobras do casaco se soltaram, tornando-se uma saia que cobriu suas calças. Nina teve que admitir que era impressionante.

— Tem outros truques na manga? Ou nas saias, no caso?

Um sorrisinho cruzou o rosto da outra.

— Alguns.

A porta do abrigo foi escancarada e a silhueta de um homem com uma arma surgiu contra a luz.

— Quem está aí?

— Siga meu exemplo — murmurou Nina, então gritou: — Ah, graças a Djel! Estávamos com medo de que não houvesse ninguém aqui. Corre, Inger!

— Inger? — falou em voz baixa a garota.

Nina seguiu com confiança até a porta, ignorando a arma apontada para ela e esperando que o homem que a segurava não estivesse bêbado ou irritado o bastante para atirar numa garota desarmada – ou que aparentava estar desarmada.

Ela subiu os degraus e sorriu docemente para o homenzarrão enquanto a outra garota a seguia.

— Graças a Djel encontramos um abrigo para a noite. — Ela olhou por cima do ombro dele para o chalé. A sala estava lotada de homens, pelo menos dez, todos ao redor de uma fogueira. Nina sentiu uma pontada de tensão. Naquele momento ela teria ficado feliz de encontrar drüskelle, que não bebiam e mantinham um código de comportamento rígido em relação às mulheres. Mas não havia nada a fazer exceto seguir com ousadia. — E cavalheiros para nos proteger!

— Quem são vocês? — perguntou o homem, desconfiado.

Nina passou por ele como se fosse a dona do lugar.

— Não temos sorte, Inger? Vamos descansar perto da fogueira. E feche a porta... — Ela apoiou uma mão no peito do homem. — Perdão, qual o seu nome?

Ele hesitou.

— Anders.

— Faça um favorzinho e feche a porta, Anders.

Elas entraram arrastando os pés e ela encarou os homens, que as olharam com um sorriso.

— Eu sabia que Djel guiaria nosso caminho, Inger. Certamente seu pai terá uma bela recompensa aguardando esses bons cavalheiros.

Por um momento a garota pareceu confusa. Nina pensou que tudo estaria perdido, mas aí o rosto dela clareou.

— Sim! Sim, sem dúvida! Meu pai é muito generoso quando se trata da minha segurança.

— E agora que você está noiva do homem mais rico de Overüt... — Nina deu uma piscadela aos homens reunidos ao redor da fogueira. — Bem, acho que Djel concedeu um pouco de sorte a vocês também, cavalheiros. Agora, qual de vocês vai manter guarda por nós?

— Manter guarda? — perguntou um homem com sobrancelhas laranja desgrenhadas perto do fogo.

— Durante a noite.

— Querida, acho que você está confusa...

— O pai de lady Inger é muito generoso, mas vocês não podem esperar que ele entregue dez mil kryda a cada um, então devem escolher quem será o beneficiário.

— Dez mil kryda?

— Foi o valor da última vez, não foi? Quando ficamos perdidas naquele lugarzinho charmoso ao sul? Mas suponho que agora que você está noiva do homem mais rico de Overüt o valor pode dobrar.

— Quem é esse noivo que mencionou? — perguntou o homem barbado.

— Já ouviu falar de Bernhard Bolle, que fez sua fortuna com truta defumada? E Ingvar Hals, que é dono de florestas de Enbjen a Isenvee? Bem, Lennart Bjord é maior que todos eles.

— Lennart Bjord? — repetiu o homem barbado.

— Soa familiar — disse alguém perto da lareira. Nina duvidava seriamente disso, uma vez que tinha inventado o sujeito poucos segundos antes.

— Eu fui o primeiro a falar com elas — afirmou o homenzarrão com o rifle. — É justo que eu receba a recompensa.

— Como assim é justo? Você só estava na porta por acaso!

— Não precisam brigar — disse Nina com um tsk de professora quando os homens começaram a debater quem manteria vigília. — Lennart Bjord terá um pouco para todos.

Nina e “Inger” se acomodaram num canto, com as costas para a parede, enquanto os homens discutiam.

— Isso foi patético — a garota sussurrou, furiosa, apoiando os cotovelos nos joelhos e puxando a saia sobre os dedos das botas.

— Como é?

— Você nos fez parecer fracas. Toda vez que nos comportamos assim, fica mais fácil para os homens nos verem apenas como delicadas.

— Não há nada de errado em ser delicada — disse Nina, com os nervos à flor da pele. Estava exausta e com frio, e tinha aberto a cova do homem que amava naquela noite. — No momento, eles estão nos olhando como duas bolsonas de dinheiro em vez de duas garotas vulneráveis e sozinhas.

— Não estávamos vulneráveis. Eu tenho minha arma e minha faca. Você tem aqueles dardos ridículos.

— Você também tem doze braços escondidos nesse casaco? Estamos em desvantagem. — Nina suspeitava que conseguiria lidar com todos eles, mas só se revelasse seu verdadeiro poder, o que significaria também enterrar aquela garota.

— Eles estão bêbados. Teríamos conseguido.

— Você não deve entrar numa briga que não pode ganhar — retrucou Nina, irritada. — Imagino que teve que treinar em segredo e provavelmente nunca teve um instrutor de combate real. Ser forte não significa ser imprudente.

A garota esguia apertou mais o casaco ao redor do corpo.

— Odeio isso. Odeio como eles nos veem. Meu pai é igual. Ele acha que uma mulher querer lutar ou caçar ou cuidar de si mesma não é natural, e nega aos homens a chance de serem protetores.

Nina bufou.

— Que tragédia para eles. O que sua mãe pensa?

— Minha mãe é a esposa perfeita, exceto por não ter dado filhos ao meu pai. Ela faz o que ele manda. — A garota suspirou. De repente, ela pareceu exausta à medida que a emoção da luta e da tempestade se dissipava. Seu cabelo, daquela cor extraordinária como os bosques no outono, castanho, ruivo e dourado, estava molhado e grudado nas bochechas marrons. — Não posso culpá-la. O mundo funciona assim. Ela tem medo que eu seja rejeitada pela sociedade.

— Então eles te mandaram para um convento no meio do nada?

— Onde eu não podia me meter em encrencas ou envergonhá-los na frente dos amigos deles. Não finja que não pensa igual. Vi como você me olhou quando nos ajudou na clareira.

— Vocês estavam vestidas como soldados. Eu tinha o direito de ficar um pouco surpresa. — E ela estivera concentrada em manter seu disfarce, não fazer amizade com uma Grisha... uma Grisha que poderia ajudá-la a se aproximar da fábrica. — Caso não tenha percebido, viajo e me sustento sozinha.

— É diferente. Você é viúva.

— Não precisa soar tão invejosa.

A garota esfregou a testa.

— Desculpe. Isso foi rude.

Nina a examinou. Havia algo implacável em suas feições – suas maçãs do rosto eram afiadas, seu nariz, rigorosamente reto. Só os lábios cheios davam qualquer sinal de suavidade. Era um rosto desafiador, com linhas teimosas. Belo.

— Não somos tão diferentes quanto você pode imaginar. — Nina inclinou a cabeça para os homens, que agora disputavam uma queda de braço pelo direito a uma recompensa generosa que nenhum deles jamais veria. — É o medo que faz seu pai agir assim, que faz os homens escreverem regras tolas que dizem que você não pode viajar sozinha ou cavalgar como deseja.

A outra abafou uma risada.

— Por que eles teriam medo? O mundo pertence a eles.

— Mas pense em tudo que poderíamos realizar se pudéssemos fazer tudo que eles fazem.

— Se eles realmente sentissem medo, a gente não teria que ficar sorrindo e se embelezando.

Nina deu uma piscadela.

— Você me viu sorrir. Se um dia eu decidir me embelezar, vai precisar sentar.

A garota bufou baixinho.

— Eu sou Hanne.

— Prazer em conhecê-la — disse Nina. — Eu sou Mila. — Ela contara inúmeras mentiras naquela noite, mas de alguma forma parecia errado dar um nome falso à garota.

— Você não espera que nós durmamos de fato, não é, Mila? — A expressão de Hanne era astuta.

— De jeito nenhum. Você vai manter sua mão na adaga e eu vou pegar o primeiro turno.

Nina tocou a manga, sentindo a presença reconfortante dos ossos forrando o tecido. Observou o fogo tremeluzente.

— Descanse — ela disse a Hanne, e percebeu que estava sorrindo pela primeira vez em meses.


O ESTAFE DO REI PRECISOU DE DIAS para planejar os preparativos para a grande turnê de Nikolai pelos locais de milagres. Suprimentos tinham que ser assegurados, veículos preparados para se adequar à mudança de tempo, roupas apropriadas embrulhadas e cartas enviadas a nobres e governadores das cidades que eles pretendiam visitar. Zoya se viu respondendo bruscamente a todos, ainda mais que de costume. Ela sabia que as más línguas diziam que estava em um dos seus “humores”, mas os privilégios de governar incluíam a permissão para não lambuzar suas palavras em mel. Ela fazia o seu trabalho – e o fazia bem. Se os estudantes e criados e seus colegas Grishas não conseguiam aguentar algumas palavras ríspidas em troca, estavam na droga de país errado.

Talvez ela pudesse ter relaxado se todo mundo não se movesse tão devagar. Mas, por fim, as carroças estavam carregadas, a carruagem pronta, e batedores foram enviados na frente para investigar a condição das estradas antes da passagem da procissão real. O itinerário específico para a viagem seria mantido em segredo, mas logo o povo de Nikolai saberia que seu rei estava viajando e sairia em massa para ver seu herói de guerra dourado.

Zoya não sabia o que pensar das histórias do monge sobre o bosque de espinheiros, ou da conversa dos gêmeos sobre a Guarda Sacerdotal e o obisbaya. Parte dela pensava que era tolice depositar suas esperanças em uma missão como aquela, nos delírios de um fanático que claramente acreditava nos Santos e em toda a pompa e baboseira que os acompanhava.

Ela disse a si mesma que a viagem seria boa para a coroa e a popularidade de Nikolai, independentemente do que encontrasse. Disse a si mesma que, se no fim fosse tudo em vão, eles encontrariam outro jeito de suportar os próximos meses, apaziguar seus aliados e conter seus inimigos. Disse a si mesma que o verdadeiro Nikolai ainda estava no controle, não o monstro que ela vira naquela noite no campanário.

Mas Zoya havia sobrevivido até então sendo honesta consigo mesma, e ela precisava reconhecer que havia outro medo que a espreitava – por baixo das ansiedades que acompanhavam os preparativos para a jornada, por baixo do suplício de olhar nos olhos do demônio e ver a sua fome. Ela tinha medo do que eles podiam encontrar na Dobra. E se aqueles palermas cheios de genuflexões, que veneravam o Sem Estrelas, na verdade estivessem certos e aqueles acontecimentos bizarros prenunciassem o retorno do Darkling? E se ele tivesse, de alguma forma, encontrado um modo de retornar?

— Desta vez estarei pronta para ele. — Zoya sussurrou as palavras no escuro, sob o teto dos aposentos que o Darkling já ocupara, no palácio que ele tinha construído a partir do nada. Ela não era mais uma garota ingênua desesperadamente tentando se provar a toda oportunidade. Era uma general, com uma longa lista de mortes e uma memória ainda mais longa.

O medo é uma fênix. Palavras que Liliyana tinha dito a ela anos antes, e que Zoya repetira a outras pessoas muitas vezes. Você pode vê-lo queimar mil vezes e mesmo assim ele retorna. Ela se recusava a ser governada por seu medo. Não tinha esse luxo. Talvez, ela pensou, mas isso não me impediu de evitar Nikolai desde aquela noite no campanário. Ela odiava aquela fragilidade em si mesma, odiava o fato de agora manter Tolya ou Tamar por perto quando ia acorrentar o rei à sua cama toda noite, o fato de mesmo nas salas de reunião ela se ver em alerta, como se esperasse olhar através de uma mesa de negociações e ver seus olhos castanhos cintilarem pretos. O medo que sentia era inútil e infrutífero – e ela suspeitava que fosse algo que o monstro gostaria de ver.

Quando a manhã da partida finalmente chegou, ela preparou um baú pequeno. Ao contrário da bagagem que os criados tinham arrumado para o seu kefta e as roupas de viagem, esse ficaria trancado. Continha as correntes de Nikolai, duplamente reforçadas e com uma nova tranca que ela levara horas para aprender a manusear. Seu peso era reconfortante, mas, ainda assim, ela se sentiu mais tranquila quando Genya e David chegaram aos seus aposentos.

Zoya espiou a garrafinha que Genya estendeu, fechada com uma rolha de vidro.

— Isso é suficiente?

— Mais que suficiente — respondeu Genya. — Dê uma gota a ele logo antes de dormir, e uma segunda se tiver problemas. Mais do que isso, há uma boa chance de o matar.

— Bom saber. Regicídio não está na minha lista de crimes preferidos.

Os lábios de Genya se curvaram num sorriso.

— Está dizendo que nunca quis matar Nikolai?

— Ah, claro que já quis. Só não quero que ele esteja dormindo quando eu fizer isso.

Genya estendeu outra garrafa, esta redonda e vermelha.

— Use isso para acordá-lo de manhã. Basta tirar a rolha e colocar embaixo do nariz dele.

— O que é, exatamente?

— Uma destilação de jurda e amônia. Basicamente um estimulante de ação rápida.

— Não é só isso — disse David. — Também inclui...

Zoya ergueu uma mão.

— Já é o suficiente.

Genya correu os dedos sobre a superfície entalhada do baú.

— O processo não será fácil para ele. Vai ser um pouco como se afogar toda noite e ser revivido pela manhã.

Zoya embrulhou as garrafas com algodão e depositou-as gentilmente no baú, mas, quando foi trancá-lo, Genya apoiou uma mão sobre a dela.

— Fizemos os sedativos o mais forte possível — ela disse. — Mas não entendemos de fato o que estamos tentando controlar. Zoya, você pode não estar a salvo com ele.

Zoya sabia disso melhor que qualquer um. Ela vira o horror que espreitava dentro de Nikolai – perto demais para negar o fato.

— O que você sugere que eu faça?

Para surpresa dela, Genya respondeu:

— Eu posso ir com vocês.

David apertou os lábios em uma linha fina, e Zoya soube que eles tinham discutido a questão e que Genya estava sendo sincera. Um nó inoportuno se ergueu em sua garganta, mas ela só levantou uma sobrancelha.

— Porque você é tão boa numa briga? Nikolai precisa de guerreiros ao seu lado.

— Os nichevo’ya deixaram sua marca em mim também, Zoya. Eu entendo a força dessa escuridão.

Zoya balançou a cabeça e puxou a mão, guardando a chave no bolso.

— Você não está preparada para esse tipo de luta.

Houve uma batida e eles se viraram para ver o corpo enorme de Tolya ocupando a porta da área comum.

— A carruagem está pronta. — Ele se virou para trás. — E Tamar está atrasada!

— Não estou atrasada — protestou Tamar atrás dele. — Minha esposa só está fazendo birra.

Zoya espiou além do ombro de Tolya e viu Tamar segurando a mão de Nadia, claramente tentando apaziguar a tristeza dela.

— Eu tenho todo o direito a fazer birra — disse Nadia. — Você está partindo. Meu irmão está em algum lugar em Fjerda, e me pediram para construir o protótipo de um submersível que não funciona para uma festa a que eu não quero comparecer.

— Estarei de volta antes que você se dê conta — argumentou Tamar. — E vou trazer um presente para você.

— É bom que sejam óculos de proteção novos — disse Nadia.

— Eu estava pensando em algo mais romântico.

David franziu o cenho.

— O que é mais romântico que óculos de proteção?

— Estamos prontos — assegurou Zoya, entregando o baú a Tolya. — Genya, me envie relatórios frequentes sobre as respostas que recebermos das candidatas e os preparativos de segurança. Eu enviarei mensagens através da nossa rede na estrada. — Ela hesitou. Sentiu uma vontade terrível de abraçar Genya... e, pela primeira vez, cedeu.

Ela sentiu o olhar espantado de Tolya e percebeu Genya ficar rígida de surpresa, mas então a outra a abraçou de volta.

— Fique bem — sussurrou Zoya. Fique bem. Como se aquelas palavras pudessem lançar algum tipo de feitiço.

— O único perigo que enfrentarei será um excesso de planejamento de cardápios — disse Genya com uma risada. Ela se afastou e Zoya ficou tanto horrorizada como comovida ao ver lágrimas em seus olhos âmbar. — Você acredita que é possível encontrar a cura?

— Tenho que acreditar. Ravka não vai aguentar outra luta pelo poder, outro golpe, outra guerra. Nikolai é insuportável, mas é a única opção que temos.

— Ele é um bom rei — afirmou Genya. — Eu sei ver a diferença. Nos devolva-o inteiro.

— Devolverei — prometeu Zoya, embora fosse uma promessa que ela não sabia se conseguiria manter.

— E tome cuidado, Zoya. Ravka também precisa de você.

Zoya sentiu um formigamento suspeito atrás dos olhos e saiu depressa antes que a situação se tornasse mais sentimental do que ela poderia suportar.


Eles viajaram luxuosamente, cercados por batedores e soldados portando a bandeira da águia dupla. Yuri foi mantido na carruagem, encerrado com Tolya enquanto eles perscrutavam antigos pergaminhos e textos religiosos em busca de informações sobre o obisbaya. Outra carruagem fora destinada aos livros que eles tinham reunido das bibliotecas do Grande Palácio e do Pequeno Palácio – e alguns que Tamar obtivera furtivamente das catacumbas da Guarda Sacerdotal. Havia tratados acadêmicos com encadernação de couro, hinários se esfarelando e até velhos livros infantis, com ilustrações do que podia ser um bosque de espinheiros se enrodilhando nas margens das páginas amareladas.

Embora Yuri tivesse torcido as mãos e protestado em um tom rabugento, fora enfim convencido a trocar as vestes pretas pelas roupas de tecido marrom grosseiro de um monge comum, a fim de viajar com eles anonimamente. Ele tinha cedido razoavelmente rápido. Yuri acreditava que o propósito secreto daquela viagem – as visitas aos locais de milagre e à Dobra – era determinar se o Sem Estrelas deveria ser declarado um Santo e se uma igreja seria construída no lugar do seu martírio.

— Mas, para isso acontecer — Nikolai tinha avisado —, preciso saber tudo que você conseguir encontrar sobre o obisbaya: o ritual, a localização do bosque de espinheiros, toda essa história de purificação.

Os olhos de Yuri tinham se iluminado àquela última palavra.

— Purificação — ele repetiu. — Um retorno à crença verdadeira. A fé do povo restaurada.

Nikolai esperava, Zoya sabia, que a pesquisa do monge os levasse a um ritual que pudesse livrá-lo do monstro, mas, mesmo se – contra todas as expectativas – eles tivessem sucesso, ela se perguntava onde tudo aquilo ia acabar.

— O que você vai fazer com ele depois de tudo isso? — ela havia perguntado a Nikolai. — As pessoas vão se rebelar abertamente se você tentar transformar o Darkling num Santo. Você corre o risco de começar uma guerra santa e dar ao Apparat a chance perfeita para te desafiar, o que ele fará sob o estandarte de Alina.

— Vamos chegar a um acordo — Nikolai tinha dito. — Vamos achar um mosteiro bonito e confortável onde Yuri possa preparar um tratado sobre os grandes feitos do Darkling, com todos os livros que ele quiser. Vamos dizer a ele que a questão será posta ao povo. Vamos mandá-lo à Ilha Errante para espalhar o evangelho do Sem Estrelas.

— Isso soa terrivelmente parecido com exílio.

— Você diz exílio, eu digo férias estendidas.

— Devíamos mandá-lo a Ketterdam para pregar a Kaz Brekker e o resto daqueles trapaceiros — sugeriu Zoya.

Nikolai se encolheu.

— Aí, sim, ele teria seu desejo de martírio realizado.

O rei não viajava pelo país desde logo após a derrota do Darkling, quando tinha ocupado a lacuna deixada por seus pais exilados e subido ao trono. Em vez de permanecer na capital como a aristocracia esperava, Nikolai se lançara às estradas e aos céus, viajando sem descanso. Zoya mal conhecia o rei nessa época, e com certeza não confiava nele. Entendia que ele era a melhor esperança de sobrevivência daquele país fraturado, e estava disposta a admitir que ele tinha demonstrado astúcia durante a guerra civil, mas ele também era um Lantsov e seu pai só causara infortúnios a Ravka. Pelo que ela sabia na época, o novo rei podia não ser muito mais que um charlatão bonito que causaria uma catástrofe.

Mas Nikolai fizera o que tantos homens não tinham conseguido fazer: ele a surpreendera. Havia fortalecido as fronteiras de Ravka, negociado novos empréstimos com os kerches, restabelecido os postos militares avançados e usado a frota que ele construíra em sua vida secreta como corsário Sturmhond para bloquear os fjerdanos no mar. Tinha visitado vilas e cidades, distribuindo comida, conversando com os líderes locais e a nobreza, dispondo de cada gota do seu charme para ganhar o apoio deles e cimentar a opinião pública em seu favor após a destruição da Dobra. Quando finalmente voltou a Os Alta, criou uma nova bandeira com o sol ascendente atrás da águia dupla dos Lantsov e foi coroado pelo Apparat na capela real recém-construída. Zoya sentira um princípio do que podia ter sido esperança.

Ela estivera empenhada no trabalho com o Triunvirato, tentando reagrupar o Segundo Exército e fazer planos para o futuro dele. Alguns dias, sentia-se orgulhosa e empolgada, mas em outros como uma criança interpretando o papel de líder. Tinha sido angustiante e entusiasmante saber que todos estavam em pé diante do precipício de algo novo.

Mas agora, enquanto viajavam de uma cidade para outra, Zoya entendia que a tarefa de unificar Ravka e construir uma nova fundação para o Segundo Exército fora a parte fácil. Arrastar o país para o futuro se provava mais complicado. Nikolai tinha passado a vida aguardando a hora de governar e aprendendo a fazê-lo, mas, embora ele ansiasse por mudanças, Ravka resistia. Suas reformas às leis de tributos e propriedade de terras inspiraram resmungos entre a nobreza. É claro que os servos deveriam ter direitos, eles protestaram. Um dia. O rei ia longe demais, movia-se rápido demais.

Zoya sabia que Nikolai estava ciente da resistência crescente contra ele e que pretendia usar aquela viagem para ajudar a esmagá-la. Eles passavam os dias viajando e ganhando o apoio das massas por meio de espetáculos e presentes na forma de dinheiro ou comida. À noite, o séquito se alojava nos lares de nobres e governadores locais e participava de grandes banquetes que se estendiam até altas horas. Após as refeições, Nikolai se recolhia com o chefe da casa para discutir reformas, requisitar auxílio e acalmar os ânimos inflamados pelo perigo da mudança. Às vezes ele pedia a Zoya que o acompanhasse, quando o que ela queria era só cair na cama.

— Por que me dar ao trabalho? — ela resmungou na dacha do barão Levkin em Kelink. — Seu charme é suficiente para conseguir o que quer.

— Eles precisam ver a minha general — ele respondeu.

Era verdade. Os nobres ainda se empolgavam com histórias da guerra e da força do Segundo Exército. Mas Zoya também sabia que sua presença – apesar de sua língua mordaz e amarga – mudava a atmosfera na sala, fazendo a conversa parecer menos uma negociação e mais um bate-papo entre amigos. Era outro motivo pelo qual Nikolai desesperadamente precisava de uma rainha. Então ela fazia o seu melhor para estampar um sorriso no rosto e ser agradável, ocasionalmente oferecendo algumas palavras sobre as forças Grishas se alguém perguntasse. Era exaustivo.

— Como você aguenta? — ela cuspiu para Nikolai uma noite, depois que eles saíram de uma reunião particularmente produtiva com um duque em Grevyakin. Ele tinha começado a conversa determinado a rejeitar a sugestão de Nikolai de usar seus campos para cultivar algodão, reivindicando um retorno às tradições. Sua casa inteira estava decorada com esculturas de madeira campesinas e têxteis feitos à mão, os acessórios de uma época mais simples na qual se podia contar com os servos para criar objetos bonitos para o seu mestre e educadamente passar fome em silêncio. Mas, duas horas e várias taças de licores fortes depois, o velho duque estava gargalhando com as piadas de Nikolai e concordando em converter mais duas fazendas para o algodão. Mais uma hora e ele prometeu que permitiria a construção de um novo moinho e descaroçador de algodão em suas terras. — Como você os faz mudar de ideia e agradecê-lo pela experiência?

Nikolai deu de ombros.

— Ele tem o desdém de um aristocrata pelo comércio, mas gosta de ver a si mesmo como um grande benfeitor. Então só apontei que, com todo o tempo e dinheiro que seus trabalhadores vão economizar, eles terão mais horas para devotar aos ornamentos que ele tanto ama. A propriedade dele pode se tornar um centro de referência para artistas e artesãos... o novo mundo sustentando o antigo, em vez de substituí-lo.

— Você realmente acredita nisso?

— De forma alguma. Os servos deles vão adquirir um gosto por dinheiro e educação e começar a pensar em construir vidas e negócios próprios em vez de suplicar pelo patronato dele. Mas a essa altura será tarde demais. O progresso é um rio; não pode ser refreado depois que transborda suas margens.

— Não foi isso que eu quis dizer — retrucou Zoya, enquanto Tolya os conduzia aos aposentos onde acomodaram Nikolai. — Como você faz isso? — Ela apontou para ele, da coroa em sua cabeça dourada às botas perfeitamente polidas. — Dias na estrada, poucas horas de sono. — Ela baixou a voz a um sussurro. — Ser dopado toda noite e servir como o receptáculo de um mal imortal. Mesmo assim consegue parecer revigorado e contente. Aposto que, se o duque tivesse pedido, você teria passado outra hora jogando cartas e contando histórias de guerra.

— É o que o trabalho exige, Zoya. Governar não se trata apenas de vitórias militares. Não se trata nem de criar leis justas e garantir que sejam aplicadas. Trata-se desses momentos, dos homens e mulheres que escolhem pôr a sua vida e o seu sustento em nossas mãos.

— Só admita que você precisa ser amado tanto quanto eles precisam amar você.

— Por sorte, eu sou muito amável.

— Fica menos a cada momento. Você não parece nem remotamente fatigado. Não é normal.

— Acho que a fadiga cai bem em você, Zoya. A palidez. As olheiras. Você parece uma heroína em um romance.

— Pareço com uma mulher prestes a pisar no seu pé.

— Vamos, vamos. Você está se virando incrivelmente bem. E ainda não morreu por dar uns sorrisos.

— Ainda.

Tamar estava esperando na porta dos aposentos de Nikolai.

— Algum problema esta noite? — Nikolai perguntou a ela. Na parada anterior, Tamar tinha pegado uma criada se esgueirando nos aposentos do rei e fuçando em seus pertences, presumivelmente sob as ordens do patrão.

— Nada — ela disse. — Mas vou revistar a casa outra vez, só para garantir, e dar uma olhada no escritório do duque mais tarde.

O velho duque parecia ter sido conquistado, mas, se ele tivesse tido contato com os oponentes de Nikolai em Ravka Oeste, ou com um dos impostores Lantsov, eles precisavam saber.

Quando Nikolai tinha tirado as botas e se acomodado na cama sob uma pintura grotesca de Sankta Anastasia curando a praga da tísica, Zoya puxou a garrafinha do bolso.

Nikolai estremeceu.

— O que quer que David e Genya inventaram, parece menos uma noite de sono e mais com levar um soco na mandíbula.

Zoya não respondeu. Os sedativos que eles davam a ele no passado eram simples poções que o deixavam gentilmente sonolento e muitas vezes roncando antes que Zoya deixasse o quarto. Mas, com essa nova infusão, Nikolai caía inconsciente no espaço de um respiro – e não parecia estar dormindo. Sua imobilidade era tão completa que ela se via pressionando os dedos na cavidade sob a mandíbula dele, procurando a batida do seu pulso, que agora era lenta como melaço. Administrar a dose era como observá-lo morrer toda noite.

— Só sei que é forte o bastante para fazer você calar a boca — ela disse. Ergueu a garrafa, mas a manteve fora de alcance. — Me diga como você aguenta isso. Como suporta ficar de sorrisos o tempo todo e nessa atuação sem fim?

— Você faz a mesma coisa todo dia no Pequeno Palácio, Zoya. Apesar de toda a sua bravata, sei que não se sente sempre inteligente ou forte, mas consegue manter bem as aparências.

Zoya jogou o cabelo sobre um ombro.

— Talvez. Mas eu sou sempre eu. Você muda como a luz sobre a água. Esses momentos, essas interações, só parecem revigorá-lo. Qual é o seu segredo?

— O segredo... — considerou Nikolai. Ele estendeu a mão e ela depositou o frasco prateado em sua palma. — Suponho que o segredo seja que eu não aguento ficar sozinho. — Ele puxou a rolha do frasco. — Mas há alguns lugares aonde ninguém pode ir conosco.

Ele levou a garrafa à língua, e Zoya a agarrou de sua mão quando ele caiu para trás, mergulhando na escuridão antes que sua cabeça tocasse o travesseiro.


Zoya viajava na frente com os batedores. Às vezes Nikolai ia na carruagem com Tolya e Yuri, mas na maior parte do tempo ele seguia montado em um de seus cavalos brancos, flanqueado pelos guardas e seguido por Tamar a uma distância discreta. Ele não usava o uniforme militar de gala completo, com faixa, que o pai adorava; em vez disso, portava o casaco oliva padrão para soldados do Primeiro Exército. Tinha ganhado o respeito do exército servindo na infantaria antes de se tornar um oficial, e as medalhas presas em seu peito não eram cerimoniais, e sim conquistadas em batalhas.

Em cada vilarejo e cidade, Zoya observava o rei realizar seu tipo específico de magia. Até o modo como ele montava no cavalo dependia da multidão que o recepcionava. Às vezes ficava relaxado e à vontade na sela, o sol dourando seu cabelo e reluzindo em suas botas perfeitamente polidas enquanto ele sorria e acenava a seus amados súditos. Às vezes ele parecia sério e heroico, em pé sobre estrados e galerias para se dirigir a multidões que rezavam em suas igrejas e se reuniam nas praças das cidades. Embora ele e Zoya se esforçassem para esconder a urgência de sua missão, se moviam depressa todo dia e nunca passavam mais que uma única noite em qualquer lugar. Tinham separado três semanas para aquela viagem. O que quer que eles descobrissem ou não descobrissem na Dobra, estariam de volta à capital com tempo de sobra para se preparar para o Festival.

Em Ryevost, onde ocorrera o grande terremoto, Nikolai arregaçou as mangas para trabalhar lado a lado com os homens da cidade, retirando destroços e erguendo traves. Foi ao local onde o grande emblema de pedra de Sankt Lubov havia se partido, expelindo uma maré de pequenos beija-flores prateados que tinham, em uma nuvem sibilante, cercado a praça da cidade por uma quinzena antes de se dispersar. Ele prometeu construir uma nova igreja ali com dinheiro dos Lantsov.

— E de onde o dinheiro vai sair de fato? — Zoya perguntou naquela noite.

— Dos kerches? Da minha nova e rica noiva? Talvez o Apparat possa vender um retábulo requintado.

Mas agora ela via o que ele pretendera quando aquiesceu ao pedido do Apparat para erguer novas igrejas. O Apparat ganharia novas casas de adoração, mais lugares para alojar seus espiões e apoiadores, mas o povo não pensaria no sacerdote quando dissesse suas preces e ouvisse o badalar dos sinos – eles pensariam em seu rei dourado e sussurrariam sobre o dia em que ele visitara seu vilarejo.

— Eu cresci num lugar assim — comentou Zoya quando eles entraram no próximo fim de mundo desolador. — Miserável. Faminto. O desespero leva as pessoas a fazerem coisas feias, e são sempre as garotas que sofrem primeiro.

— É por isso que você insiste tanto para construirmos novas fábricas?

Zoya deu de ombros muito de leve.

— É preciso ter costas largas para erguer um machado ou mover uma pedra, mas puxar uma alavanca ou apertar um botão não requer força.

Ela podia sentir o escrutínio de Nikolai.

— Eu nunca soube que você tinha tanta solidariedade pelo povo comum.

Eu já fui comum o bastante no passado. Liliyana e Lada eram comuns.

— Não tem nada a ver com solidariedade. Para os Grishas prosperarem, precisamos de uma Ravka forte.

— Ah, então você só está sendo prática, é claro.

Ela podia ouvir o ceticismo em sua voz e não o apreciava nem um pouco. Mas era difícil não olhar para aquelas ruas enlameadas, para as casas cinzentas com seus telhados empenados e alpendres inclinados, para o pináculo enviesado da igreja, e não pensar em Pachina, a cidade que ela deixara para trás. Ela se recusava a chamá-la de lar.

— Você sabe o que mudou tudo no meu vilarejo? — Ela manteve os olhos na estrada, cheia de buracos e pedras quebradas depois da chuva da noite anterior. — O recrutamento. Quando a guerra ficou tão calamitosa que a coroa foi obrigada a levar garotas além de garotos para lutar.

— Eu achava que o recrutamento era visto como uma maldição.

— Por alguns — admitiu Zoya. — Mas para outros ofereceu uma fuga, uma chance de ser algo além da esposa de alguém e morrer no parto. Quando eu era pequena, antes que meus poderes se manifestassem, eu sonhava em ser soldada.

— A pequena Zoya com sua baioneta?

Zoya bufou.

— Eu nasci para ser general. — Mas a mãe dela só tinha visto valor na beleza da filha. O rosto de Zoya já era o seu dote na tenra idade de nove anos. Se não fosse por Liliyana, ela teria sido vendida como um bezerro. Mas será que podia culpar a mãe? Ela se lembrava das mãos esfoladas de Sabina, de seus olhos cansados, do contorno macilento do seu corpo – eternamente exausto e desesperançado. No entanto, mesmo depois de tantos anos, Zoya não encontrava nenhum pingo de perdão por sua mãe desesperada ou seu pai fraco. Eles que se danassem. Ela agitou as rédeas.

Zoya e o resto do séquito de Nikolai atravessaram campos de cevada e inspecionaram a nova fábrica de armamentos, suportaram a apresentação de um coral infantil e, por fim, tomaram chá com o conselho local e o mestre de coro.

— Você devia envenenar o homem por infligir aquela atrocidade a nós — resmungou Zoya.

— As crianças eram fofas.

— Erraram o tom.

Zoya foi obrigada a fazer uma breve demonstração de conjuração para o grupo de mulheres local e resistiu à vontade de soprar a peruca do juiz local para longe.

Finalmente, eles saíram a cavalo com o governador e examinaram a grande extensão de floresta que tinha supostamente sido cortada em uma única noite. Era uma visão sinistra. O cheiro de seiva pairava espesso no ar, e as árvores haviam caído em linhas perfeitas até o cume de uma colina – com vista para uma minúscula capela dedicada a Sankt Ilya em Correntes. As árvores jaziam todas na mesma direção, como corpos enterrados, apontando para oeste em direção à Dobra. Eles tinham deixado Yuri emergir da carruagem para esticar as pernas e ver o suposto local de milagre, com Tolya assomando sobre ele como a única árvore que se recusara a cair. De acordo com Tolya, eles haviam começado a recuperar um texto que tinha boas chances de ser a descrição original do obisbaya.

— Já lhe ocorreu — perguntou Zoya, observando o monge magrelo conversar animadamente com um Tolya encurralado — que tudo isso é uma armação? Que o Apparat e o monge não são inimigos? Que ambos queriam afastá-lo da segurança da capital e que conseguiram exatamente isso como recompensa por suas tramoias?

— Claro que sim — respondeu Nikolai. — Mas tais demonstrações estão além até mesmo do alcance considerável do Apparat. Por mais que fira meu orgulho admitir isso, pode haver algo acontecendo aqui que seja maior que nós dois.

— Fale por si — ela retrucou. Mas, olhando para as árvores derrubadas, ela sentiu como se uma mão invisível os guiasse, e não gostava daquilo. — Não confio nele — disse Zoya. — Em nenhum dos dois.

— O Apparat é um homem ambicioso, o que significa que pode ser controlado.

— E nosso amigo monge? Yuri também é facilmente controlável?

— Yuri é um devoto de verdade. Ou então é o melhor ator de todos os tempos, o que eu sei que não é verdade.

— Como pode ter tanta certeza?

— Porque eu consegui sorrir ao longo daquele concerto inteiro, então claramente eu sou o melhor ator de todos os tempos. — Nikolai cutucou o cavalo com os calcanhares. — Para a próxima cidade, Nazyalensky. Sem esperança, caímos.


Zoya ficou grata quando entraram em Adena, a última parada antes da Dobra. Logo eles teriam respostas ou voltariam para casa – pelo menos ela se livraria da expectativa e do medo do que poderiam encontrar quando chegassem ao Não Mar.

Aquele vilarejo era como todos os outros, exceto pela vista para um bonito lago. Dessa vez eles foram recebidos por uma banda desafinada e um desfile de rebanhos e enormes legumes.

— Aquela abóbora é tão larga quanto eu sou alto — murmurou Nikolai enquanto sorria e acenava.

— E duas vezes mais atraente.

— Só metade — ele protestou.

— Ah — disse Zoya. — Mas a abóbora não fala.

Por fim eles se levantaram dos assentos no coreto e se dirigiram à igreja. Pela primeira vez os habitantes locais não os seguiram. Zoya, Nikolai, Yuri e os gêmeos percorreram a estrada que saía da cidade, com apenas o sacerdote local como companhia.

— Não há peregrinos? — Tolya perguntou a ele enquanto saíam das cercanias da cidade.

— Os peregrinos são mantidos dentro do vilarejo — respondeu o sacerdote. Era um homem mais velho com uma barba branca bem aparada e óculos muito parecidos com os de Yuri. — Os visitantes só têm permissão para acessar o local com supervisão e a certas horas. A catedral está sendo reformada, e desejamos preservar a obra de Sankta Lizabeta.

— É tão frágil assim? — perguntou Yuri.

— É extraordinária, e não deve ser despedaçada para virar lembrancinhas.

Zoya sentiu um calafrio. Havia alguma coisa diferente no ar daquele lugar. Os insetos tinham se aquietado. Ela não ouvia o trinado de pássaros nas árvores circundantes conforme eles se moviam sob as sombras frescas do bosque e se afastavam da cidade. Encontrou o olhar de Tamar e elas assentiram uma para a outra. Mesmo em um lugar supostamente sagrado, o rei podia sofrer uma tentativa de assassinato.

Eles emergiram no topo de uma colina alta, ao lado de uma catedral envolta em andaimes, seus domos dourados cintilando ao sol do fim de tarde. Uma estátua de Sankta Lizabeta se erguia diante da entrada. Uma profusão de rosas vermelhas tinha irrompido através da pedra, rachando o crânio velado da Santa. As flores jorravam sobre a estátua em abundância e sem controle, cercando as saias de mármore em um círculo largo como uma poça de sangue. Seu aroma doce pulsava em uma onda espessa como xarope que parecia brilhar com o calor de verão.

A expressão de Yuri era extasiada.

— Eu queria acreditar. Eu acreditava, mas isso...

Zoya percebeu que ele estava chorando.

— Quieto — ela disparou. — Ou vou te enfiar na carroça pessoalmente.

— Olhem — disse Tolya, e ela ouviu uma nota de reverência nova em sua voz.

Lágrimas negras escorriam dos olhos de Lizabeta. Elas cintilavam com a firmeza da obsidiana, como se tivessem congelado ali ou sido fundidas em pedra também.

No vale abaixo, Zoya mal podia distinguir a extensão de Kribirsk a distância e o cintilar das areias brancas mortas, que já foram a Dobra das Sombras, mais além. Eles estavam perto.

Nikolai puxou o ar bruscamente e Zoya lhe deu um olhar afiado. Os outros estavam concentrados na estátua, mas, antes que Nikolai pudesse puxar o punho da luva de volta no lugar, Zoya viu as veias escuras em seu pulso vibrarem pretas, como se... como se o que quer que estivesse dentro dele tivesse reconhecido algo familiar ali e despertado. Parte dela queria recuar, temendo ver o demônio emergir, mas ela era uma soldada e não vacilou.

— Qual era a história de Lizabeta? — perguntou Nikolai. Sua voz estava tensa, mas os outros não pareceram reparar.

— É tanto bela como trágica — disse Yuri, entusiasmado.

Zoya queria empurrá-lo nas rosas.

— Os martírios não são todos construídos para parecerem assim?

Mas Yuri a ignorou ou simplesmente não a escutou.

— Ela só tinha dezoito anos quando saqueadores chegaram à costa de Ravka ocidental, pilhando e queimando todo vilarejo que encontravam. Enquanto os homens de sua cidade se acovardaram, Lizabeta enfrentou os soldados em um campo de rosas brancas e implorou a eles que demonstrassem misericórdia. Quando eles a atacaram, ela caiu de joelhos em prece e as abelhas responderam, erguendo-se das flores para atacar os soldados em um enxame. A cidade de Lizabeta foi salva.

Zoya cruzou os braços.

— Agora conte ao nosso rei como as pessoas recompensaram Lizabeta por esse milagre.

— Bem — disse Yuri, torcendo um fiapo solto na manga. — Os aldeãos ao norte exigiram que Lizabeta repetisse o milagre e salvasse a cidade deles também, mas ela não conseguiu. — Ele limpou a garganta. — Eles a amarraram em cavalos e a esquartejaram. Dizem que as rosas ficaram vermelhas com o sangue dela.

— E essa é a mulher que supostamente está respondendo às preces do povo. — Zoya arrancou uma rosa de seu caule, ignorando o arquejo horrorizado do sacerdote local. O aroma era enjoativo. Tudo naquele lugar a deixava com os nervos à flor da pele. Era como se algo a observasse dos domos da catedral, da sombra das árvores. — Por que todos os Santos devem sofrer um martírio?

Yuri pareceu confuso.

— Porque... porque demonstra uma disposição ao sacrifício.

— Você acha que Lizabeta estava disposta a ser esquartejada? E Demyan, apedrejado até a morte? Ou Ilya, acorrentado e jogado em um rio para se afogar? — Ela estava cansada daqueles milagres, cansada do terror que cavalgava com ela diariamente, e completamente farta de histórias que terminavam em sofrimento para aqueles que ousavam ser corajosos ou estranhos ou fortes. — Se eu fosse Lizabeta, não perderia meu tempo ouvindo as reclamações de...

Um movimento no telhado da catedral captou a atenção dela. Zoya ergueu os olhos a tempo de ver algo enorme disparando em sua direção. A coisa bateu na estátua de Lizabeta, fazendo pétalas e lascas de pedra saírem voando. Mãos enormes agarraram os ombros dela, fincando-se em sua pele e erguendo-a do chão. Zoya chutou, sentindo a terrível sensação de não ter nada sob os pés.

E gritou enquanto era puxada para o céu, ainda apertando a rosa na mão.


— ZOYA!

Alguma coisa a tinha agarrado – alguma criatura alada, e por um momento Nikolai se perguntou se o demônio havia, de alguma forma, saltado da sua própria pele. Mas não, as asas do captor dela eram largas maravilhas mecânicas de engenharia que agitavam o céu enquanto batiam para levá-los mais alto.

Outro soldado alado disparou contra Nikolai – esta era mulher, com o cabelo preto amarrado no alto e os bíceps protegidos por faixas de metal cinza. Khergud. Os shu tinham ousado atacar o séquito real.

Tolya e Tamar entraram na frente de Nikolai, mas o alvo da soldada não era o rei – ela tinha vindo atrás dos guardas Sangradores dele. Eles estavam ali para caçar Grishas. Em um único movimento, a khergud lançou uma rede metálica que cintilou no ar e desabou sobre os gêmeos com força suficiente para derrubá-los no chão. A khergud os arrastou sobre a terra, ganhando velocidade a fim de erguê-los para o céu.

Nikolai não hesitou. Havia momentos para sutileza e momentos em que não havia o que fazer exceto atacar. Ele correu direto para a khergud, impulsionando-se nos corpos de Tolya e Tamar, que lutavam para se soltar e grunhiram quando ele os pisoteou com as botas. Ele abriu fogo com as duas pistolas.

A khergud mal se encolheu graças à pele fortalecida com aquela liga maravilhosamente eficaz de aço Grisha e rutênio. Nikolai resolveria esse problema depois.

Ele jogou as armas de lado, mas não perdeu o ritmo. Sacou a adaga e se lançou contra as costas da khergud. A soldada se debateu com a força de um cavalo selvagem. Nikolai tinha lido os relatórios – ele sabia que força e poder de fogo não eram páreo para aquele tipo de poder. Então teria que confiar na precisão.

— Espero que alguma parte de você ainda seja de carne e osso — ele rosnou. Agarrou o colarinho da khergud e virou a adaga para o espaço entre a mandíbula e a garganta dela, rezando por uma mira certeira ao golpear com a lâmina.

A khergud tropeçou, perdendo ímpeto e tentando puxar a adaga. Nikolai não cedeu, girando a lâmina mais fundo e sentindo sangue quente verter sobre sua mão. Por fim, a soldada desabou.

Ele não esperou para ver Tolya e Tamar se libertarem; já perscrutava os céus em busca de Zoya e seu captor.

Eles estavam engajados em uma luta muito acima da terra conforme Zoya chutava e se debatia contra o khergud que a agarrara. O soldado tinha envolvido um braço enorme ao redor da garganta dela: pretendia estrangulá-la para fazê-la se submeter.

Subitamente, Zoya ficou imóvel – mas era cedo demais para ela ter perdido a consciência. Nikolai sentiu o ar ao seu redor crepitar. O khergud tinha presumido que Zoya era como os outros Grishas, que não conseguiam conjurar com os braços presos. Mas Zoya Nazyalensky não era uma Aeros comum.

Raios estalaram sobre as asas de metal do soldado shu. Ele estremeceu e se sacudiu, então seu corpo ficou flácido, e ele e Zoya começaram a despencar para o chão. Não, não, não. Nikolai correu até eles, sua mente criando e descartando planos. Inútil. Impossível. Não havia como alcançá-la a tempo. Um rosnado emergiu do seu peito. Ele pulou, o ar açoitando seu rosto, e então a tinha nos braços. Impossível. A física não permitiria...

Nikolai viu a própria sombra sob si – muito abaixo dele, uma mancha escura emoldurada por asas que se desdobravam de suas próprias costas. O monstro sou eu e eu sou o monstro. Ele se encolheu, como se pudesse de alguma forma escapar de si mesmo, e viu a sombra do monstro se contrair lá embaixo.

— Nikolai? — Zoya estava olhando para ele, e tudo que ele via em seu rosto era terror.

— Sou eu — ele tentou dizer, mas só saiu um rosnado. No próximo segundo, um choque estava percorrendo seu corpo: o poder de Zoya vibrando em seus ossos. Ele gritou, o som um grunhido rouco, e sentiu as asas se curvarem para dentro, desaparecendo.

Ele estava caindo. Ambos iam morrer.

Zoya estendeu o braço livre e uma almofada de ar surgiu abaixo deles, reduzindo a velocidade com um tranco. Eles rolaram dela e caíram no chão em uma pilha de membros deselegante. Em um instante, ela estava se afastando às presas dele, com os braços erguidos e os olhos azuis arregalados.

Ele ergueu as mãos em um gesto de rendição.

— Sou eu — ele repetiu, e, quando ouviu as palavras emergirem dos seus lábios, humanas e inteligíveis, quis chorar de gratidão. Nunca experimentara nada tão doce quanto a linguagem retornando à sua boca.

As narinas de Zoya se alargaram. Ela voltou sua atenção ao soldado khergud que a tinha atacado, parando sobre o corpo dele em busca de um lugar para descarregar seu medo. A queda deveria tê-lo matado, mas ele já estava se erguendo com um empurrão. Zoya virou as palmas para cima e um trovão ribombou, raios faiscando na ponta dos seus dedos. As mechas do seu cabelo se contorciam como um halo de serpentes ao redor do rosto. Ela bateu as mãos com força no peito do soldado, e ele teve espasmos conforme sua pele ficava vermelha e fumaça se erguia do seu torso, seu corpo pegando fogo enquanto queimava de dentro para fora.

— Zoya! — gritou Nikolai. Ele se ergueu num salto, mas não ousava tocá-la enquanto aquele tipo de corrente a atravessava. — Zoya, inferno, olhe para mim!

Ela ergueu a cabeça. Estava pálida, seus olhos tomados pela raiva. Por um momento, não pareceu reconhecê-lo. Mas, enfim, seus lábios se apartaram e seus ombros caíram. Zoya afastou as mãos e o corpo carbonizado do khergud desabou. Ela se reclinou nos calcanhares e inspirou devagar.

O cheiro emanando do corpo queimado do khergud era nauseantemente adocicado. Lá se fora a chance de um interrogatório.

Tolya e Tamar tinham se libertado da rede. Eles esperavam com Yuri, que tremia tanto que Nikolai pensou que podia estar tendo algum tipo de convulsão. Será que o rapaz já participara de um combate? Tinha sido um confronto brutal, mas breve, e não era como se ele tivesse sido o alvo. Então Nikolai se deu conta...

— Você... ele... — balbuciou Yuri.

— Alteza — disse Tolya.

Nikolai olhou para as mãos. Seus dedos ainda estavam manchados de preto e terminavam em garras. Elas tinham atravessado as luvas. Nikolai respirou fundo. Um longo momento se passou, depois outro. Por fim, as garras se retraíram.

— Eu sei, Yuri — ele respondeu, com toda a calma que conseguiu. — É um truque de mágica e tanto. Você vai desmaiar?

— Não. Talvez. Não sei.

— Você vai ficar bem. Todos vamos ficar. — As palavras eram tão obviamente falsas que Nikolai teve que conter uma gargalhada. — Preciso que você mantenha segredo sobre isso. Tolya, Tamar, estão bem? — Ambos assentiram. Nikolai se obrigou a olhar para Zoya. — Você não está ferida?

Ela puxou o ar, trêmula, e assentiu, flexionando os dedos.

— Tenho alguns arranhões. Mas o sacerdote... — Ela apontou o queixo para onde o homem jazia, com sangue jorrando da têmpora para a barba nevada. Ele tinha sido atingido por um pedaço do véu de pedra de Lizabeta.

Nikolai se ajoelhou ao lado dele. O pulso do homem estava firme, mas ele provavelmente tinha uma concussão séria.

— Não houve gritos do vilarejo — disse Tamar, enquanto usava seu poder para conferir os sinais vitais do sacerdote. — Nenhum alarme. Se alguém tivesse visto o khergud, teria vindo correndo.

Com sorte, o ataque tinha ocorrido a uma distância suficiente da cidade para evitar chamar a atenção.

— Não quero tentar explicar soldados com asas mecânicas — declarou Nikolai. — Vamos ter que esconder os corpos.

— Vamos colocá-los nas rosas — propôs Tamar. — Vou mandar dois soldados pegá-los após o pôr do sol.

Quando os corpos estavam ocultos sob a profusão de rosas vermelhas de Lizabeta, eles arrumaram a área ao redor da estátua até ficarem satisfeitos, e Tamar reviveu o sacerdote. Como sempre, entrar em ação ajudou a suavizar a tensão que pulsava por Nikolai. Mas ele sabia que não podia confiar naquela ilusão de controle. Era um bálsamo, não uma cura. O monstro tinha surgido em plena luz do dia – e tinha permitido que ele salvasse Zoya. Nikolai não sabia o que isso significava. Ele não havia comandado o demônio; a criatura simplesmente assumira o controle. Pelo menos era o que ele achava. E se acontecer de novo? Sua mente parecia ser território inimigo.

O sacerdote despertou com um sobressalto e então gemeu, erguendo os dedos para tocar o galo crescente em sua têmpora.

— Você levou um belo golpe na cabeça — disse Nikolai gentilmente.

— Soldados! — arquejou o sacerdote. — No céu! — Nikolai e Tamar trocaram um olhar de preocupação fingida. — Um homem... ele veio das nuvens. Tinha asas! E outro desceu do teto da catedral.

— Temo que o senhor tenha sofrido uma concussão — informou Nikolai, ajudando o sacerdote a se levantar.

— Eu o vi! A estátua... Escute, ele destruiu a estátua, a nossa estátua de Sankta Lizabeta!

— Não — rebateu Nikolai, e apontou para a viga que eles conseguiram soltar das obras da catedral. — Não está vendo a viga quebrada? Ela caiu dos andaimes e atingiu o senhor e a estátua. Tem sorte de não ter morrido.

— Um milagre — celebrou Zoya, secamente.

— Irmão — o sacerdote implorou a Yuri. — Diga que não viu o mesmo que eu!

Yuri cofiou sua barba rala e Nikolai aguardou. O monge não tinha parado de encará-lo desde o ataque do khergud. Por fim, ele falou:

— Eu... eu não vi nada sem explicação.

O sacerdote soltou uma bufada impotente e perplexa, e Nikolai sentiu uma pontada de culpa.

— Vamos — ele encorajou. — Se não está com dor de cabeça, logo estará. Vamos achar ajuda.

Eles voltaram a pé pela trilha da floresta até a cidade, onde muitos habitantes ainda celebravam na praça, e deixaram o sacerdote aos seus cuidados.

— Não gosto de mentir para um sacerdote — resmungou Tolya enquanto eles montavam nos cavalos para ir ao presbitério onde passariam a noite.

— Nem eu — acrescentou Yuri em voz baixa.

— A verdade teria sido mais difícil de suportar — disse Tamar. — Pense em como ele sofreria ao ficar constantemente alerta, temendo que alguma coisa estivesse para emergir do céu e agarrá-lo do chão como um gavião capturando um arminho.

— Ainda é uma mentira — disse Tolya.

— Então você pode pagar algum tipo de penitência — replicou Nikolai, cada vez mais exasperado. Ele era grato a Tolya. Respeitava a fé dos gêmeos e a importância que tinha para eles, mas não podia se preocupar com a consciência dele enquanto sua mente tentava lidar com um ataque shu no séquito real e um demônio que não queria mais esperar o cair da noite.

— Você pode começar massageando meus pés. — Zoya olhou para o monge.

— Isso não é exatamente um ato de contrição pia — rebateu Yuri.

— Você nunca viu os pés dela — disse Nikolai.

Zoya jogou o cabelo sobre o ombro.

— Um homem uma vez me ofereceu a escritura de sua casa de verão em Polvost se eu o deixasse assistir enquanto eu pisoteava uma pilha de mirtilos.

— E você aceitou? — perguntou Tamar.

— Claro que não. Polvost é uma pocilga.

— O sacerdote ficará bem — Nikolai garantiu a Yuri. — E eu aprecio seu tato.

— Eu fiz o que eu achava ser certo — afirmou o monge, mais quieto e contido que nunca, a mandíbula inclinada em um ângulo teimoso. — Mas espero uma explicação, Alteza.

— Bem — disse Zoya enquanto eles observavam Yuri sair na frente do grupo —, e agora?

— Quer dizer agora que você cozinhou uma fonte inestimável de informações de dentro para fora? — Havia uma rispidez em sua voz de que ele não se arrependia inteiramente. Zoya não costumava cometer aquele tipo de erro.

Zoya se empertigou.

— É possível que eu não estivesse inteiramente sob controle. Suspeito que você esteja familiarizado com a sensação.

Porque não tinha sido só o ataque do khergud que a abalara, mas também a lembrança daquela noite no campanário, de outro monstro alado – um monstro que exibira suas garras outra vez naquele dia.

— Por alto — ele murmurou.

— E eu não estava falando sobre o khergud — disse Zoya, superando a frieza súbita entre eles. — O que você vai fazer em relação ao monge?

— Eu tenho algumas horas para decidir o que dizer. Vou pensar em algo.

— Você tem mesmo um talento para o absurdo. — Zoya chutou o cavalo para partir a galope. — E este maldito país inteiro parece ter começado a gostar disso.


O sol tinha se posto havia muito quando Nikolai enfim pôde se retirar do jantar e juntar-se aos outros nos aposentos que o governador local providenciara para eles.

O quarto era claramente o melhor da casa, e para todo canto que Nikolai olhava havia homenagens a Sankta Lizabeta – os azulejos do piso na forma de favos de mel, rosas entalhadas na cornija da lareira, até as paredes do cômodo escavadas em nichos para parecer uma grande colmeia. Um fogo ardia na grade, banhando as paredes de arenito com uma luz dourada, e o brilho alegre parecia de alguma forma inapropriado diante dos eventos catastróficos do dia.

Tamar tinha voltado à catedral logo ao cair da noite para recuperar os corpos dos kherguds e providenciar seu transporte à capital, para estudo. A relutância de Tolya em profanar o corpo de um soldado caído fora consideravelmente reduzida pela emboscada, e Nikolai não tinha quaisquer ressalvas. Seus guardas tinham sido atacados. Zoya quase fora levada. Além disso, parte dele sempre seria um corsário. Se os shu quisessem guerrear daquela forma, que lidassem com as consequências.

Tolya recebeu ordens de vigiar o monge e certificar-se de que ele não enviasse mensagens a seus seguidores sobre o que vira. Agora Yuri estava sentado diante do fogo, ainda parecendo abalado. Tolya e Tamar jogavam xadrez em uma mesa baixa e Zoya estava sentada no peitoril da janela, emoldurada pelo batente como se fosse ela que estivesse prestes a alçar voo.

Nikolai fechou a porta, sem saber por onde começar. Ele pensou no corpo do soldado shu aberto numa mesa. Tinha visto os relatórios de dissecação, os desenhos detalhados feitos por Fabricadores e Corporalki. Seria isso que esse problema exigia? Que alguém o cortasse e desmontasse? Eu aceitaria de bom grado, ele pensou. Se essa coisa puder ser isolada e removida como um tumor, eu me deitaria sob o bisturi e guiaria a mão do cirurgião pessoalmente.

Mas o monstro era mais ardiloso que isso.

Foi Yuri que falou primeiro, do seu lugar no chão.

— Ele fez isso com você, não é?

— Sim — Nikolai respondeu simplesmente. Ele tinha pensado em quais mentiras poderia fabricar para apaziguar o medo e a curiosidade do monge. Mas, no fim, entendeu que a verdade, ou pelo menos parte dela, seria a melhor estratégia. Yuri queria acreditar em Santos, e Santos precisavam de um martírio.

Mas, agora que chegara a hora de falar, Nikolai não queria contar essa história. Ele não queria que fosse a sua história. Pensava que a guerra tivesse ficado no passado, mas ela se recusava a permanecer lá.

Ele pegou uma garrafa de licor do aparador, escolheu uma cadeira e estendeu as pernas na frente do fogo. Era uma pose de serenidade e confiança que ele tinha assumido muitas vezes. Naquele momento, parecia falsa.

— Durante a guerra — ele começou, tirando as luvas —, eu fui capturado pelo Darkling. Sem dúvida você ouviu dizer que eu fui torturado pelo seu Santo Sem Estrelas.

Os olhos de Yuri baixaram para o rendilhado de linhas pretas que se espalhava sobre os dedos de Nikolai.

— Korol Rezni — ele disse em voz baixa. — O rei das cicatrizes. Eu ouvi as histórias.

— E as dispensou como propaganda da realeza? Uma campanha para caluniar um herói caído?

Yuri tossiu.

— Bem...

— Me dê esse licor — exigiu Zoya. — Sóbria eu não consigo tolerar esse nível de estupidez.

Nikolai se serviu antes de entregar a garrafa, mas sabia que debochar de Yuri não ajudaria em nada. Falar a verdade não deveria ser libertador? Um tipo de tônico para a alma? Na experiência de Nikolai, a honestidade era muito parecida com um chá: algo que pessoas bem-intencionadas recomendavam quando não havia opções melhores.

— O Darkling tinha um talento para infligir sofrimento — ele continuou. — Ele sabia que dor ou encarceramento seriam fáceis demais para eu suportar. Então usou seu poder para me infectar com sua escuridão viva. É o que eu recebi por ter ajudado a Conjuradora do Sol a escapar das garras dele. Eu me tornei... eu não sei exatamente o que me tornei. Parte monstro, parte homem. Eu ansiava por carne humana. Fiquei quase insano de fome. Quase. Uma parte suficiente da minha própria consciência ainda estava viva e eu consegui combater os impulsos do monstro e até chamei os volcras para enfrentar o Darkling na Dobra.

Na época, Nikolai não sabia se havia sentido em continuar lutando, se ele jamais voltaria a ser quem era. Ele nem soubera se o Darkling podia ser morto. Mas Alina tinha conseguido, armada com uma lâmina de sombras envolta no próprio poder do Darkling e molhada com o sangue de seu próprio descendente.

— Antes de morrer, a Conjuradora do Sol matou o Darkling, e a escuridão dentro de mim pereceu com ele. — Nikolai tomou um longo gole de licor. — Pelo menos era o que eu pensava. — Ele tinha despencado e teria morrido se Zoya não tivesse usado o vento para amortecer sua queda, assim como fizera naquele dia. — Vários meses atrás, alguma coisa começou a controlar minha mente inconsciente. Algumas noites eu durmo tão bem quanto pode ser esperado... só um monarca preguiçoso repousa tranquilamente. Mas, em outras, eu me transformo no monstro. Ele me controla completamente.

— Não completamente — disse Zoya. — Você não tomou nenhuma vida humana.

Nikolai sentiu uma onda de gratidão por ter sido ela a falar aquelas palavras, mas forçou-se a acrescentar:

— Que nós saibamos. Os ataques estão piorando e aumentando em frequência. Os tônicos, e até as correntes que usei para impedi-los, são soluções temporárias. Pode ser só uma questão de tempo até minha mente ceder à fera e à sua fome. É possível... — Agora as palavras lutavam contra ele, veneno em sua boca. — É possível que a criatura me domine completamente e que eu nunca seja capaz de retornar à forma humana.

O silêncio preencheu o quarto, a quietude de um funeral. Por que não jogar mais uma pá de terra no caixão?

— Hoje o monstro se impôs em plena luz do dia, enquanto eu ainda estava acordado. Isso nunca aconteceu antes.

— Foi deliberado? — perguntou Yuri. — Você escolheu...?

— Eu não escolhi nada. Simplesmente aconteceu. Acho que o choque que Zoya mandou pelo meu corpo permitiu que eu voltasse a mim. — Ele deu um gole demorado. — Não posso permitir que essa coisa me controle no campo de batalha ou no meio de um evento de governo. A posição de Ravka é precária, e a minha também. O povo está apenas começando a se recuperar da guerra. As pessoas querem estabilidade e liderança, não um monstro saído de pesadelos.

Paz. Uma chance de se recuperar, de construir uma vida sem o medo constante de batalhas e a ameaça da fome. Naquela jornada, Nikolai vira o progresso de Ravka com os próprios olhos. Seu país não sobreviveria a outra guerra, e ele fizera tudo que podia para garantir que não tivessem que fazê-lo. Mas se o monstro emergisse, se Nikolai revelasse essa presença sombria, ele poderia ser precisamente o elemento que colocaria seu país de volta no caminho da violência.

— Talvez você não dê crédito suficiente ao povo — disse Yuri.

— Não? — rebateu Zoya do seu lugar na janela. — O povo que ainda chama Grishas de bruxas apesar de todos os anos que mantiveram este país a salvo? Que os proíbe de ser donos de propriedade em suas cidades...

— Isso é ilegal — observou Nikolai.

Zoya ergueu a taça em um brinde afetado.

— Vou informá-los disso na próxima vez que uma família Grisha for expulsa da própria casa na calada da noite.

— As pessoas estão sempre procurando alguém para culpar pelos seus sofrimentos — Yuri interveio com sinceridade. — Ravka passou por tantos sofrimentos. É natural que...

Não havia nada de natural nisso.

— Yuri — interrompeu Nikolai. — Podemos debater os preconceitos de Ravka em outro momento. Eu disse a você que viemos nesta jornada para investigar os locais de milagre e considerar a canonização do Darkling.

— Alguma parte disso era verdade?

Nikolai não pretendia responder a essa questão diretamente.

— O Darkling pode merecer um lugar entre os Santos, mas isso não pode acontecer até eu me livrar deste mal.

Yuri assentiu, depois assentiu de novo. Ele olhou para as mãos esqueléticas.

— Mas é algo de que se livrar?

Zoya bufou amargamente.

— Ele acha que você foi abençoado pelo Santo Sem Estrelas.

Yuri empurrou os óculos mais alto no nariz comprido.

— Bênção e maldição são palavras diferentes para a mesma coisa.

— Você pode ter razão — aquiesceu Nikolai, obrigando-se a encontrar a diplomacia que sempre o ajudara. Ouvindo as palavras de um homem, era possível entender os desejos dele. O segredo era olhar em seu coração e descobrir suas necessidades. — Mas, Yuri, o Darkling não pode ser considerado um Santo até seu martírio estar completo. — Zoya estreitou os olhos. Nikolai a ignorou. Ele diria o que tinha que dizer, e faria o que precisava para se livrar daquela enfermidade. — Não foi o acaso que o trouxe aos portões do palácio. Estava escrito que você seria testemunha do último resquício do poder do Darkling. Você estava destinado a nos levar ao bosque de espinheiros. Estava destinado a libertar nós dois.

— Eu? — perguntou Yuri, sua voz praticamente uma exalação, e Nikolai podia ver que ele queria acreditar. Não é o que todos queremos? Quem não queria pensar que o destino tinha um plano para ele, que seus sofrimentos e fracassos eram só o prólogo de uma história mais grandiosa? Um monge se tornando um guerreiro sagrado. Um bastardo se tornando rei. — Eu — repetiu Yuri.

Atrás dele, Zoya revirou os olhos. Tolya e Tamar não pareciam felizes.

— Só você pode completar o martírio do Darkling — disse Nikolai. — Vai me ajudar? Vai ajudar a ele?

— Vou — respondeu Yuri. — Claro que vou. Vou levá-lo ao bosque de espinheiros. Vou construir uma pira sagrada.

— Espere só um minuto — interveio Zoya, da janela. — Está dizendo que quer colocar o rei de Ravka em uma pira funerária?

Yuri hesitou.

— Quer dizer, esperamos que seja só uma pira?

— Uma distinção reconfortante e essencial — disse Nikolai, embora não pudesse dizer que estava muito contente com a possibilidade. — É isso que o obisbaya exige?

Tolya pegou uma torre e a girou na mão.

— Não está inteiramente claro, mas parece ser o que a maioria dos textos sugere.

— Sim — confirmou Yuri, ávido. — Há algumas insinuações de que Sankt Feliks pode ter sido um membro da Guarda Sacerdotal, e há um texto para um ritual que deve ser lido durante o processo. Tolya e eu estamos tentando confirmar se a linguagem está intacta.

As sobrancelhas de Nikolai se ergueram.

— Sankt Feliks? Ele não foi espetado num galho e cozinhado até a morte como um kebob sagrado?

Tolya abaixou a peça de xadrez.

— O tempo e as traduções podem ter turvado os fatos.

— Vamos torcer para que eles tenham sido muito turvados — disse Nikolai. — Possivelmente escondidos atrás de um nevoeiro.

Mas agora Tamar pegou a torre.

— Os ramos de Feliks sempre são retratados cheios de espinhos, diferentes do que se vê num ramo de macieira, então pode fazer sentido — ela refletiu. — Se estamos certos sobre o local do bosque de espinheiros.

— Se alguma parte dele ainda sobrevive — acrescentou Zoya.

— Se conseguirmos encontrar o suficiente para construir a pira — disse Tolya.

— E então há a pequena questão de sobreviver às chamas — apontou Zoya.

— Ele vai sobreviver — garantiu Yuri. — Vai sobreviver e o Sem Estrelas terá o seu verdadeiro martírio.

— Partimos para a Dobra amanhã — resolveu Nikolai.

— Vamos, Tolya — chamou Yuri, se erguendo com o rosto brilhando de fervor. — Tenho algumas ideias sobre a tradução da terceira passagem. Temos que estar preparados.

Tolya deu de ombros e desdobrou seu enorme corpo.

— É um tipo de poema.

Nikolai virou o resto da sua bebida.

— Tudo não é?

Tamar fez menção de segui-los, mas antes de sair se virou para Nikolai. À luz do fogo, seus braços marrons brilharam como bronze, as linhas pretas das tatuagens do sol nítidas contra a pele.

— Sei que você disse aquelas coisas por causa do efeito que teriam no monge, mas Tolya e eu nunca acreditamos em coincidências — ela explicou. — Aconteceu coisa demais na nossa vida para pensarmos que a fé e o destino não tiveram o seu papel. Eles podem ter um papel agora também. — Ela fez uma mesura. — Boa noite, Alteza.

Zoya saltou do seu posto, preparada para administrar o tônico, e ele ficou horrorizado ao perceber que, depois dos eventos do dia, ansiava por uma dose de esquecimento.

— Destino — disse Nikolai quando abriu a porta do quarto. — Fé. Temo que estamos em território desconhecido, Nazyalensky. Achei que você protestaria mais à perspectiva de me cozinhar num espeto.

— Por que eu objetaria? — perguntou Zoya, reorganizando as peças de xadrez que os gêmeos tinham deixado espalhadas. — Se o bosque de espinheiros se foi, nossas esperanças desmoronam, retornamos ao palácio de mãos vazias e sobrevivemos a essa festa ou encontro, ou como quer que você queira chamá-lo, com o máximo de nossas habilidades.

Nikolai sentou-se na beirada da cama e tirou as botas.

— E se ainda existir? Se o destino nos guiou esse tempo todo?

Zoya arqueou uma sobrancelha.

— Então é bom torcer para que o destino ache que você seria um bom rei.

Nikolai já ouvira que nutrir esperanças era perigoso – fora alertado disso muitas vezes, mas nunca tinha acreditado. A esperança era o vento que vinha inflar suas velas e levá-lo para casa. Fosse o destino ou puro desespero que os guiava adiante, pelo menos, quando eles chegassem à Dobra, ele teria respostas.

— Vamos mandar uma segunda carruagem para Keramzin — ele avisou — e viajar disfarçados. Se realmente pretendemos acender uma fogueira no meio da Dobra, não quero fazer isso sob a bandeira Lantsov.

— Você acha que os shu sabiam quem éramos? Um ataque contra o rei...

— Seria um ato de guerra — concluiu Nikolai. — Mas eles não estavam atrás de mim. Acho que não faziam ideia de quem somos. Estavam caçando Grishas e encontraram vocês três.

— Tão longe das fronteiras — refletiu Zoya, demorando-se na porta do quarto. — Sinto que estão nos provocando.

Nikolai deixou as botas ao lado da cama.

— Devo desculpas a você.

— Me deve muitas. Por que começar agora?

— Quero dizer pela outra noite, em Balakirev. Pelo campanário. — Ele devia ter dito algo antes, mas a vergonha de feri-la tinha cortado mais fundo do que imaginara. — Zoya, sinto muito pelo que eu fiz...

— Não foi você — ela rebateu, dispensando as desculpas com um gesto. — Não seja idiota. — Mas ela continuou parada na porta.

— Não podemos trabalhar lado a lado se você tiver medo de mim.

— Eu não tenho medo de você, Nikolai.

Mas por quanto tempo ele permaneceria sendo ele mesmo?

Zoya foi até a cama e sentou-se na beirada. Seus dedos elegantes alisaram uma prega na seda azul do seu kefta.

— Antes eu perguntei como você aguentava tudo isso, mas nunca perguntei por quê.

Nikolai se acomodou contra a cabeceira e esticou as pernas, estudando o perfil dela.

— Suspeito que pelos mesmos motivos que você.

— Duvido seriamente disso.

Ele esfregou o rosto, tentando dissipar a fadiga. Fora um dia de muitas revelações, mas, se Zoya estava disposta a se sentar com ele ali sozinha, no silêncio daquele quarto, e se o que ele dissesse pudesse abarcar o abismo entre eles, ele não iria desperdiçar a oportunidade.

Mas como responder? Por que ele se importava com o futuro de Ravka? Ravka – quebrada, carente, frustrante. A grande dama. A criança chorosa. O homem se afogando que preferia arrastá-lo para as profundezas a ser salvo. O país que tirava tanto e não dava nada em troca. Talvez porque ele soubesse que ele e seu país eram iguais. Nikolai sempre quisera mais. Mais atenção, mais afeto, mais novidades. Tinha sido demais para seus tutores, suas babás, seus criados, sua mãe. Ninguém sabia direito o que fazer com ele. Não importava como argumentassem ou quais punições inventassem, ele não conseguia ficar parado. Eles lhe davam livros e ele os lia em uma noite. Ele aguentava sentado uma aula de física e daí tentava lançar uma bola de canhão do telhado do palácio. Ele desmontava um relógio ormolu inestimável e o juntava de novo como um dispositivo medonho que zumbia e apitava sem parar, e, quando a mãe chorou pela relíquia arruinada, Nikolai tinha olhado para ela com seus olhos castanhos confusos e dito: “Mas... agora ele diz a data além da hora!”.

A única pessoa capaz de fazer o jovem príncipe se comportar era o irmão mais velho. Nikolai venerava Vasily, que sabia cavalgar e usar um sabre, e tinha permissão para permanecer em cerimônias de estado bem depois que Nikolai era mandado para a cama. Vasily era importante. Vasily um dia seria rei.

Tudo que o irmão fazia, Nikolai queria fazer também. Se Vasily cavalgava, Nikolai queria cavalgar. Quando Vasily começou a fazer aulas de esgrima, Nikolai implorou sem parar até poder se juntar a ele. Como Vasily devia estudar diplomacia e geografia e história militar, Nikolai insistiu que também estava pronto para aquelas aulas. Nikolai só queria que o irmão prestasse atenção nele. Mas, para Vasily, Nikolai não era nada além de uma craca tagarela com o cabelo desgrenhado, que insistia em se agarrar ao casco do seu navio real. Quando Vasily lhe concedia um sorriso ou um pouco de atenção, tudo era calmaria. Mas, quanto mais Vasily ignorava o irmãozinho, mais Nikolai aprontava.

Seus tutores aceitavam empregos nos ermos de Tsibeya. Meus nervos, eles diziam. O silêncio será bom para eles. As babás cediam a posição para cuidar das mães doentes no litoral. Meus pulmões, elas explicavam. O ar marítimo será um tônico. Os criados choravam, o rei se enfurecia, a rainha ia dormir com pós medicinais para dor de cabeça.

Uma manhã, quando tinha nove anos, Nikolai chegou à sala de aula muito animado com o rato que levava numa jarra e pretendia soltar na bolsa do seu tutor, e descobriu que outra cadeira e mesa haviam sido dispostas e outro garoto estava sentado nelas.

— Venha conhecer Dominik — disse o tutor quando o garoto de cabelo escuro se ergueu e fez uma mesura profunda. — Ele vai ter aulas com você.

Nikolai ficou surpreso mas encantado, uma vez que não tinha companheiros da sua própria idade no palácio – embora tivesse ficado cada vez mais frustrado quando viu que Dominik se encolhia toda vez que Nikolai tentava falar com ele.

— Você não precisa ficar tão nervoso — sussurrou Nikolai. — Mitkin não é muito divertido, mas às vezes conta histórias boas sobre os velhos reis e não deixa as partes sangrentas de fora.

— Sim, moi tsarevich.

— Pode me chamar de Nikolai, se quiser. Ou podemos criar nossos próprios nomes. Você pode ser Dominik, o... não sei. Já realizou algum feito heroico?

— Não, moi tsarevich.

— Nikolai.

— Silêncio, garotos — disse Mitkin, e Dominik pulou de novo.

Pela primeira vez, Nikolai ficou quieto. Estava ocupado bolando um modo de fazer Dominik falar mais.

Quando Mitkin saiu da sala para pegar um globo mais detalhado, Nikolai disparou para a frente da sala e colocou o rato, que tinha encontrado vagando na ala leste, sob o chapéu de pele que Mitkin deixara na mesa.

Dominik pareceu completamente aterrorizado, mas Nikolai estava empolgado demais para notar.

— Espere só até ouvir o guincho de Mitkin — anunciou Nikolai. — Ele parece uma chaleira escandalizada.

O tutor Mitkin de fato guinchou, e Nikolai, que pretendera continuar impassível, não conseguiu conter a própria risada – até que Mitkin mandou Dominik ir à frente da sala e esticar as mãos.

O tutor pegou uma vara de bétula da mesa e, sob o olhar horrorizado de Nikolai, bateu nas palmas de Dominik. O garoto soltou um pequeno gemido.

— O que está fazendo? — gritou Nikolai. — Pare agora mesmo!

Nikolai chamou os guardas e saiu no corredor gritando por ajuda, mas Mitkin não parou. Ele bateu a vara contra as mãos e antebraços de Dominik dez vezes, até que a pele do garoto era uma massa de bolhas vermelhas e seu rosto estava torcido e úmido de lágrimas.

Mitkin pôs de lado a vara.

— Toda vez que você se comportar mal, Dominik vai ser punido.

— Isso não é certo! Não é justo! A punição deve ser minha! — Mas ninguém ousaria erguer a mão para um príncipe.

Nikolai protestou com a mãe, o pai, qualquer um que ouvisse. Ninguém parecia se importar.

— Se você fizer tudo que o tutor Mitkin mandar, não haverá mais problemas — garantiu o rei.

— Ouvi aquele filhote ganindo — disse Vasily. — São só umas batidinhas. Não sei por que você está fazendo um escândalo.

No dia seguinte, Nikolai ficou sentado em silêncio na cadeira. Rompeu esse silêncio só uma vez, quando Mitkin saiu da sala.

— Sinto muito pelo que aconteceu ontem — ele desculpou-se com Dominik. — Nunca deixarei acontecer de novo.

— É para isso que estou aqui, moi tsarevish. Não se sinta mal, por favor.

— Você está aqui para aprender a ler e escrever e fazer contas, só isso — disse Nikolai. — Eu serei melhor. Prometo.

Nikolai manteve a promessa. Ficou em silêncio todos os dias depois disso. Não se esgueirava até a cozinha para roubar pasta de amêndoas. Não desmontava nada valioso, não corria pela galeria de retratos nem começava incêndios. Todos ficaram maravilhados com as mudanças ocorridas no jovem príncipe e elogiaram o tutor Mitkin por sua astúcia.

O que eles não sabiam era que, em meio a todo o silêncio e a calma, Nikolai e Dominik, de alguma forma, se tornaram amigos. Eles inventaram um código para se comunicar por meio dos livros e construíam barcos de brinquedo com velas funcionais que lançavam no jardim aquático abandonado, onde ninguém jamais se aventurava. Davam títulos um ao outro que mudavam todo dia, alguns grandiosos – Dominik, o Ousado; Nikolai, o Justo – e alguns menos – Dominik, o Peidorrento; Nikolai, o Assustado com Aranhas. Descobriram que, contanto que não perturbassem a calma do palácio, ninguém se importava com o que faziam e, se parecessem se esforçar nos estudos, ninguém se dava ao trabalho de checar se estavam decorando datas ou tentando entender como construir uma bomba.

Aos doze anos, Nikolai pediu mais leituras de química e história kaelish e se retirava para a biblioteca toda tarde para horas de estudo silencioso. Na verdade, as leituras e redações exigiam pouquíssimo tempo, e assim que terminava de fazê-las ele se vestia em roupas rústicas de camponês e escapulia do palácio para visitar a família de Dominik. Trabalhou nos campos, aprendeu a consertar carrinhos de mão e equipamentos de fazenda, a ordenhar vacas e éguas gentis, e, quando tinha treze anos, levou para casa seu primeiro trago de destilado artesanal em um caneco de metal batido.

Toda noite ele caía na cama exausto, feliz por manter-se ocupado pela primeira vez na vida, e pelas manhãs apresentava a seus professores um trabalho impecável que os fazia se perguntar se ele não se tornara um grande estudioso. Na verdade, o príncipe não era uma criança má; só não tinha talento para permanecer ocioso.

Ele era feliz, mas não era alheio à realidade. A família de Dominik recebia privilégios especiais graças à posição do filho no palácio, e ainda assim mal subsistia com as safras que colhia na fazenda. Ele via como os vizinhos deles sofriam sob os onerosos impostos do rei e dos duques que eram os donos das terras. Ouviu a mãe de Dominik chorar quando o filho mais velho foi levado pelo recrutamento, e, durante um inverno particularmente ruim, escutou os boatos sussurrados sobre o filho desaparecido da vizinha Lusha.

— O que aconteceu com o bebê de Lusha? — perguntou Dominik.

— Um khitka o pegou — a mãe respondeu. Mas Nikolai e Dominik não eram mais crianças, e sabiam que as histórias sobre espíritos malignos da floresta não eram verdade.

— Ela mesma afogou o bebê — Dominik contou a Nikolai no dia seguinte. — Parou de produzir leite porque a família está passando fome.

Mesmo assim, as coisas poderiam ter continuado daquele jeito se Vasily não tivesse visto Nikolai entrando de fininho no palácio uma noite. Ele tinha quinze anos nessa época, e anos se safando com aquelas escapadas o haviam deixado descuidado.

— Já está rolando com as camponesas — Vasily tinha dito com desdém. — Você é pior que o pai.

— Por favor — implorou Nikolai. — Não conte a ninguém. Dominik vai ser punido no meu lugar. Pode até ser mandado embora daqui.

Mas Vasily não segurou a língua e, no dia seguinte, novos guardas foram postados em cada porta e Dominik foi banido do palácio em desgraça.

Nikolai tinha encurralado Vasily na sala lápis-lazúli.

— Você tem noção do que fez? — ele perguntou, furioso.

O irmão deu de ombros.

— Seu amigo não vai mais estudar com os seus superiores e você não vai poder ficar vagabundeando nos campos como um plebeu. Fiz um favor a ambos.

— A família dele vai perder o estipêndio! Talvez não consigam mais se alimentar. — Ele podia ver seu próprio rosto furioso refletido em painéis azuis cintilantes com veios dourados. — Dominik não vai escapar do recrutamento ano que vem.

— Ótimo. A coroa precisa de soldados. Talvez ele aprenda o seu lugar.

Nikolai olhou para o irmão que já tinha adorado, que tentara emular em tudo.

— Você devia se envergonhar.

Vasily ainda era mais alto e mais pesado que Nikolai. Ele bateu um dedo no peito do irmão e disse:

— Você não diz para mim o que eu devo ou não devo fazer, Sobachka. Eu serei rei e você sempre será Nikolai Nada.

Mas, enquanto Vasily lutava com instrutores que nunca o forçavam demais e sempre se certificavam de deixar o futuro rei ganhar, Nikolai passava seus dias brigando com camponeses que não sabiam de quem era o nariz que quebravam.

Ele agarrou o dedo de Vasily e o torceu. O irmão ganiu e caiu ao chão, parecendo impossivelmente pequeno.

— Um rei nunca se ajoelha, irmão.

Ele deixou Vasily segurando o dedo torcido e o orgulho ferido.

Outra vez, Nikolai jurou compensar Dominik, mas dessa vez seria mais difícil. Ele começou bolando modos de enviar dinheiro à família do amigo. Mas para fazer mais ele precisaria de influência, algo que o irmão possuía simplesmente em virtude de ter nascido primeiro.

Dado que Nikolai não podia ser importante, ele dedicou sua inteligência à tarefa de ser charmoso. A mãe era vaidosa, então ele fazia elogios a ela. Vestia-se impecavelmente em cores que se adequavam aos gostos dela e, sempre que a visitava, não deixava de levar um presentinho – uma caixa de doces ou orquídeas da estufa. Ele divertia as amigas dela com fofocas engraçadas, recitava poesia ruim e imitava os ministros do pai com precisão surpreendente. Tornou-se um favorito nos salões da rainha e, quando não comparecia, as damas dela sempre exclamavam: “Onde está aquele garoto querido?”.

Com o pai, Nikolai falava de caça e cavalos, assuntos sobre os quais não se importava nem um pouco, mas que o pai amava. Ele elogiava os comentários espirituosos do pai e suas observações astutas, e desenvolveu um talento para fazer o rei sentir-se tanto sábio como experiente.

E não parou com os pais. Nikolai se apresentou aos membros do gabinete do pai e fazia perguntas lisonjeiras a eles sobre diplomacia e finanças. Escrevia a comandantes militares para elogiá-los após vitórias e perguntar sobre as estratégias que eles tinham empregado. Correspondia-se com armeiros e construtores navais e se esforçou para aprender línguas – a única matéria na qual não era particularmente hábil – para poder falar com eles em seu próprio idioma. Quando o irmão mais velho de Dominik foi enviado ao front, Nikolai usou toda a sua influência para fazê-lo ser transferido a um lugar em que ocorriam poucas lutas. E, naquela época, sua influência era considerável.

Ele fazia isso porque gostava de desvendar o quebra-cabeça de cada pessoa. Fazia isso porque era bom sentir sua influência e compreensão crescerem. Mas, acima de tudo, fazia porque sabia que precisava salvar seu país. Nikolai precisava salvar Ravka da própria família.

Como era tradicional entre os nobres, Vasily aceitou seu título de oficial e tratou o serviço militar como simbólico. Nikolai se alistou na infantaria. Suportou o treinamento básico com Dominik em Poliznaya e eles viajaram juntos para a primeira missão. Dominik estava lá quando Nikolai levou seu primeiro tiro, e Nikolai estava com Dominik quando ele caiu em Halmhend, para jamais se levantar de novo.

Naquele campo de batalha, empesteado de fumaça negra e o aroma acre de pólvora, Nikolai tinha berrado por um médico, um curandeiro Grisha, qualquer um que pudesse ajudar. Mas ninguém veio. Ali ele não era o filho do rei, só mais uma voz gritando em meio à carnificina.

Dominik fez Nikolai prometer que cuidaria da sua família e contaria à mãe que ele tinha morrido bem, e depois perguntou:

— Você conhece a história de Andrei Zhirov?

— O revolucionário?

Zhirov fora um radical da época do avô de Nikolai.

Um sorriso cruzou os lábios ensanguentados de Dominik.

— Quando eles tentaram enforcá-lo por traição, a corda se rompeu e ele rolou no buraco que os soldados tinham cavado para ser sua cova.

Nikolai tentou sorrir.

— Nunca ouvi essa história.

Dominik assentiu.

— Esse país, Zhirov gritou, não consegue nem enforcar um homem direito.

Nikolai sacudiu a cabeça.

— Isso aconteceu mesmo?

— Não sei — disse Dominik. Um chiado úmido saiu do peito dele enquanto lutava para respirar. — Só sei que atiraram nele mesmo assim.

Soldados não choravam. Príncipes não lamentavam. Nikolai sabia disso – mas as lágrimas caíram mesmo assim.

— Dominik, o Corajoso. Aguente mais um pouquinho.

Dominik apertou a mão de Nikolai.

— Esse país mata você no final, irmão. Não esqueça.

— Nós não — ele disse, mas Dominik já havia partido. — Eu serei melhor — Nikolai prometeu, como tinha feito tantos anos antes na aula de Mitkin. — Vou achar um jeito.

Desde então, ele testemunhara milhares de mortes e seus pesadelos eram atormentados por inúmeros outros campos de batalha. No entanto, era aquela promessa a Dominik que assombrava os seus dias. Mas como ele explicaria tudo aquilo a Zoya, ainda sentada pacientemente na beirada da cama, ainda mantendo distância?

Ele olhou para o teto de favos de mel e soltou vagarosamente o ar.

— Eu acho que consigo consertar as coisas — ele disse, por fim. — Sempre soube que Ravka está quebrada e vi como quebra as pessoas, por sua vez. As guerras nunca param. Os problemas nunca terminam. Mas não consigo deixar de acreditar que, de alguma forma, eu vou achar um jeito de ser mais esperto que todos os reis anteriores e endireitar este país. — Ele sacudiu a cabeça e riu. — É o cúmulo da arrogância.

— Eu não esperaria nada menos de você — afirmou Zoya, mas seu tom não era cruel. — Por que mandou Nina embora?

— Quê? — A pergunta o pegou de surpresa, ainda mais pela urgência com que Zoya a tinha sussurrado, como se forçasse as palavras a saírem dos lábios.

Ela não olhava para ele.

— Quase a perdemos antes. Ela mal voltou e você já a mandou para o perigo outra vez.

— Ela é uma soldada — ele disse. — Você a tornou uma soldada. Ficar à toa no palácio sem nada além do luto para ocupar sua mente não era bom para ela.

— Mas ela estava segura.

— E toda aquela segurança a estava matando. — Nikolai observou Zoya cuidadosamente. — Pode me perdoar por mandá-la embora?

— Não sei.

— Não vou pedir que me perdoe pelo que aconteceu no campanário.

— Você falou — ela pronunciou devagar. — Naquela noite em Balakirev. Você disse meu nome.

— Mas... — Nikolai se endireitou na cama. A fera nunca tinha falado antes, não quando ele fora infectado durante a guerra, e, até onde ele sabia, não desde que o monstro retornara. Quando o Darkling o infectara, até nos momentos em que Nikolai era capaz de reassumir o controle, ele não conseguira ler nem se comunicar. Era um dos aspectos mais dolorosos da sua transformação. — Talvez isso seja bom. Talvez minha consciência esteja tentando encontrar uma saída. Hoje...

Ela balançou a cabeça.

— Você não soou como você.

— Bem, naquela forma...

— Você soou como ele.

Ele fez uma pausa.

— Estou tentado a dizer que foi o medo ou que sua imaginação levou a melhor... — Ela lhe deu um olhar gélido. — Mas prefiro não levar um tapa.

— Eu sei que não faz sentido. Pode ter sido o medo ou a luta, mas realmente acreditei que você queria me matar. Você não estava só faminto, estava ávido. — Zoya fechou as mãos em punhos sobre as coxas. — Você gostou de me assustar.

Ele queria dizer que não a teria ferido, que teria impedido a coisa em seu interior antes de machucá-la. Mas se recusava a desonrar a ambos com aquela mentira.

— Isso é possível? — ele perguntou em vez disso. — A consciência do Darkling poderia ter, de alguma forma, sobrevivido com esse poder?

— Espero que não. — Ela abriu as mãos. — Espero que haja um bosque de espinheiros aguardando sob as areias da Dobra. Espero que toda essa conversa de rituais mágicos e sacerdotes guerreiros acabe sendo mais do que uma história fantasiosa. Mas, se não houver cura e se essa coisa em você for mais do que só uma maldição que o Darkling deixou para trás, se ele estiver tentando usar você para encontrar um jeito de voltar a este mundo... — Ela olhou para ele, seus olhos azuis fervorosos à luz da lamparina. Ele sentiu a profundidade da perda dentro dela, a dor que ela se esforçava tanto para esconder. — Eu vou pôr uma bala no seu cérebro antes de deixar isso acontecer, Nikolai.

Os homens que governavam Ravka tinham amado o poder mais do que jamais amaram o seu povo. Era uma doença. Nikolai sabia disso, e tinha jurado que não seria esse tipo de líder, que não sucumbiria. No entanto, nunca tivera certeza de que, quando a hora chegasse, ele seria capaz de ficar de lado e abdicar do trono – a coisa que ele lutara por tanto tempo e com tanto afinco para conquistar. E, se ele se deixasse se tornar mais monstro que homem, significaria que tinha fracassado. Então deixaria de lado as dúvidas e os desejos. Tentaria ser melhor. E a mulher diante dele garantiria que ele protegeria Ravka – mesmo de si mesmo.

Ele tomou a mão dela e beijou os nós dos seus dedos.

— Minha implacável Zoya, eu mesmo vou carregar a arma.


NINA E HANNE SE REVEZARAM para tirar uma soneca, os ombros apertados uma contra a outra, fingindo dormir enquanto os “guardas” delas mantinham vigília. Quando ambas estavam correndo o risco de ceder à exaustão, começaram a fazer perguntas: doce preferido, livro preferido, passatempo preferido. Nina descobriu que Hanne amava pães recheados com creme de baunilha; tinha um gosto secreto por romances policiais, populares em Ketterdam, quanto mais sangrentos melhor, embora traduções fossem difíceis de achar; e que gostava de... costurar.

— Costurar? — Nina sussurrara, incrédula, lembrando-se do modo como Hanne tinha entrado na clareira na noite anterior, montada e com o rifle na mão. — Achei que gostasse de caçar e brigar e... — Ela torceu o nariz. — Da natureza.

— É uma habilidade útil — defendeu-se Hanne. — Quem cosia as meias do seu marido?

— Eu, é claro — mentiu Nina. Embora soldados devessem aprender a usar agulha e linha, ela nunca tinha conseguido. Simplesmente aprendera a viver com buracos nas meias. — Mas eu não gostava disso. A Madre Superiora deve aprovar.

Hanne encostou a cabeça contra a parede. Seu cabelo tinha secado em ondas espessas, castanho-rosadas.

— Acho que ela aprovaria mesmo. Mas aparentemente bordado é coisa de damas nobres, e a costura deveria ser deixada para as criadas. Assim como tricotar e cozinhar.

— Você sabe cozinhar? — perguntou Nina. — Isso me interessa.

Pela manhã, Nina abriu um sorriso largo para os homens espremidos no quarto e insistiu que eles visitassem a casa de Lennart Bjord a caminho de Overüt.

— Por que não podemos escoltar vocês agora? — perguntou o homem barbudo.

— Seria um prazer, é claro — disse Nina, através de dentes cerrados.

Para a surpresa dela, Hanne interveio:

— Achamos que vocês não iriam querer parar conosco para cumprir a penitência com as Mulheres da Nascente. Mas que ótimo! Pelo que sei, as irmãs ficam contentes de realizar o skad em qualquer visitante masculino por uma pequena taxa. — Nina tinha lido sobre o skad. Suportá-lo era uma prova de masculinidade fjerdana, mas ocasionalmente também uma pena de morte. Exigia um voto de celibato de três meses e uma purificação ritual com soda cáustica para purgar o espírito.

O homem barbudo empalideceu.

— Levaremos vocês até os arredores de Gäfvalle, mas depois temos compromissos... hã... em outro lugar.

— Sim — acrescentou o homem das sobrancelhas desgrenhadas. — Muitos compromissos.

— Onde exatamente vamos encontrar a casa de Lennart Bjord? — outro perguntou enquanto eles as seguiam para fora. Uma camada espessa de neve tinha coberto a terra, mas Nina já podia ver parte dela derretendo ao sol nascente. O vento cortante amainara e agora era uma brisa suave. O Bruto deveria ter se exaurido.

— É só ir até a praça principal em Overüt — disse Nina. — É a maior casa do bulevar.

— Procure aquela com as maiores cumeeiras — acrescentou Hanne. — A mais pontuda da cidade.

— Este é o seu cavalo? — ele perguntou. — Onde está sua sela feminina?

— Deve ter caído na neve — sugeriu Nina, feliz por Hanne cavalgar em pelo e pelo fato de elas não terem que explicar a presença de uma sela masculina. — Vamos levá-lo a pé até Gäfvalle.

Quando estava fora da vista do chalé, montaram no cavalo de Hanne.

— O skad? — perguntou Nina, apoiando as mãos de leve na cintura magra de Hanne enquanto as coxas delas se encaixavam.

Hanne olhou por sobre o ombro e deu um sorriso surpreendentemente malicioso para Nina.

— Minha educação religiosa tem que servir para alguma coisa.

Elas voltaram ao acampamento e, agora que a neve tinha parado de cair, não tiveram dificuldade em avistar a bandeira amarela e a tenda de Adrik.

Ele acenou, e Nina sabia que seu alívio por ter sobrevivido à tempestade era real, apesar da indignação exagerada sobre as calças de Hanne.

— Achei que os zemenis não se importassem com coisas assim — resmungou Hanne.

— A esposa dele é zemeni. Ele é kaelish, e quer saber por que você estava por aí sozinha. Na verdade... o que você estava fazendo aqui ontem?

Hanne ergueu o rosto para o céu, fechando os olhos.

— Eu precisava cavalgar. Quando o tempo está prestes a mudar é o melhor momento. Os campos ficam vazios.

— Você não vai se meter em encrenca por passar uma noite longe do convento?

— Eu me voluntariei para coletar água fresca. A Madre Superiora vai ficar feliz por não ter que informar meu pai de que a filha morreu de frio no meio de uma tempestade.

— E suas amigas? Não vieram com você?

Hanne manteve o olhar no horizonte branco.

— É só uma brincadeira para elas. Fantasiar-se como crianças, uma chance de serem ousadas. Para mim... — Ela deu de ombros.

Era questão de sobrevivência. Hanne tinha um ar solitário. Nina não podia fingir que realmente entendia. Ela amava companhia, barulho, a agitação de um salão lotado. Mas para uma garota como aquela? Ficar eternamente presa em um convento, vigiada pelas irmãs e sendo constantemente obrigada a comportar-se como uma fjerdana devota? A ideia era medonha. Mesmo assim, a presença de Hanne no convento significava que ela podia ser uma fonte de informação sobre a fábrica. Embora fosse apenas uma noviça, tinha que ter ouvido sobre as visitas das Donzelas da Nascente à montanha.

— Fique com a gente mais um pouco — Nina disse a ela enquanto montava no próprio cavalo.

Hanne parecia ansiosa para escapar, mas Nina sabia que a outra garota não queria arriscar ofendê-la quando ainda estava desesperada para garantir seu silêncio.

— Vamos — Nina incentivou gentilmente. — Não vai demorar.

Elas estabeleceram um ritmo moderado, com Adrik seguindo no trenó.

— Quantos anos você tem, afinal? — perguntou Nina.

Hanne cerrou a mandíbula, seu perfil nítido contra o céu prateado.

— Dezenove. Sim, sou velha para uma noviça.

Então Nina estava certa; elas tinham quase a mesma idade.

— Você não está pronta para fazer os votos. — Hanne balançou a cabeça numa negação breve. — Mas não pode voltar para casa. — Outra negativa. — Então, o que vai fazer?

Hanne não disse nada, olhando fixamente para a neve. Ela não queria falar – ou talvez sentisse que já tinha falado demais.

Nina deu um olhar de soslaio para ela.

— Posso ver que está ansiosa para uma última chance de cavalgar antes de voltar.

— É tão óbvio?

— Está claro no modo como seus olhos se perdem no horizonte, no jeito como segura as rédeas. — Nina hesitou, daí complementou: — O truque de atuar é também acreditar na mentira, pelo menos um pouquinho. A atuação começa no corpo. Se você quer convencer alguém de algo, tem que começar com o jeito como o corpo se move. Ele conta mil histórias antes que você sequer abra a boca.

— E que histórias estou contando?

— Tem certeza de que quer saber? — Uma coisa era ver a verdade sobre uma pessoa, outra era falar sobre isso para ela.

— Vá em frente — disse Hanne, mas suas mãos apertavam as rédeas com força.

— Você é forte, mas tem medo de que alguém perceba isso, então se curva e tenta parecer menor. Só fica à vontade quando pensa que ninguém está olhando. Mas aí... — Ela estendeu uma mão e bateu na coxa de Hanne. — Aí você é gloriosa.

Hanne deu um olhar desconfiado para ela.

— Eu conheço minha aparência.

Conhece? Nina teria gostado de dizer a Hanne que ela podia entrar em Os Alta, com seu metro e oitenta, seu cabelo castanho mergulhado em xarope de morango e seus olhos de moeda de cobre, que mil cortesãos ravkanos escreveriam canções em homenagem à sua beleza. Nina poderia ser a primeira. Mas isso inspiraria algumas perguntas.

Pelo menos ela podia oferecer algo à garota.

— Não vou contar a ninguém o que você é.

Os olhos de Hanne ficaram duros.

— Por quê? Você ganharia uma recompensa. A denúncia de Grishas é recompensada com prata. Por que seria tão gentil?

Não estou sendo gentil, estou ganhando sua confiança. Mas não vou condená-la à morte, se puder.

— Porque você veio correndo para salvar minha vida quando poderia ter passado reto — respondeu Nina, depois arriscou. — E porque eu não acredito que o poder Grisha torne a pessoa má.

— É um pecado — sussurrou Hanne. — É veneno. Se eu pudesse, me livraria dele.

— Eu entendo — disse Nina, embora todo o seu ser quisesse protestar. — Mas não pode fazer isso. Então, a questão é se você quer odiar o que é, aumentando o risco de ser descoberta, ou prefere aceitar a coisa dentro de você e aprender a controlá-la. — Ou abandonar esse país miserável de uma vez.

— Mas e se... e se eu só deixar aquilo mais forte?

— Acho que não funciona assim — contestou Nina. — Mas sei que, se os Grishas não usam seu poder, eles começam a adoecer.

Hanne engoliu em seco.

— Eu gosto de usar. Me odeio toda vez que uso, mas então só quero fazer de novo.

— Algumas pessoas — Nina disse cautelosamente — acreditam que esse poder é uma dádiva de Djel, e não uma calamidade.

— Isso são os sussurros de hereges e pagãos. — Quando Nina não respondeu, Hanne lançou: — Você não me contou o que aconteceu com a sua irmã.

— Ela aprendeu a conter seu poder e encontrou a felicidade. Agora está casada e mora na fronteira com Ravka, com o marido bonitão.

— Sério?

Não. Qualquer irmã minha seria uma Sangradora lutando uma guerra contra o seu governo ignorante e preconceituoso.

— Sério — mentiu Nina. — Lembro-me bastante das aulas que ela recebeu. Havia certa preocupação de que eu poderia ter uma... corrupção latente, então aprendi junto com ela. Talvez eu possa ajudar você a controlar seu poder também.

— Por que assumiria esse risco?

Porque pretendo tirar o máximo de informações possível enquanto faço isso e colocar algum juízo na sua cabeça ao mesmo tempo. Afinal, Nina tinha conseguido mudar as opiniões de um fjerdano cabeça-dura. Talvez ela tivesse um talento para a coisa.

— Porque alguém fez o mesmo pela minha irmã um dia — ela respondeu. — Porque é o mínimo que posso fazer. Mas vamos precisar de um pretexto para passar um tempo juntas no convento. O que você acha de aprender zemeni?

— Meus pais prefeririam que eu continuasse trabalhando no meu kerch.

— Não falo kerch — mentiu Nina.

— Não quero ficar em dívida com você — protestou Hanne.

Ela tem medo do poder, pensou Nina. Mas posso livrá-la desse medo.

— Vamos encontrar um jeito de você me compensar — ela disse. — Prometo. Agora vá, dê uma última volta antes que a neve volte a cair.

Hanne pareceu espantada, quase chocada. Mas então bateu os calcanhares nos flancos do cavalo e partiu num galope intenso, o corpo abaixado e o rosto voltado ao vento, como se ela e o animal fossem um só ser, uma criatura híbrida nascida da natureza selvagem. Quão pouca gentileza ela tinha recebido na vida para ficar surpresa com aquela pequena generosidade?

Tirando o fato de que você não está sendo generosa, Nina se lembrou enquanto impelia a própria montaria adiante. Você não está sendo gentil. Ela ia usar Hanne. Se pudesse ajudá-la no processo, melhor. Mas o dever de Nina era com as garotas perdidas na montanha, as mulheres em suas covas. Justiça.

Tudo o que ela podia fazer era jogar uma corda para aquela garota. Hanne teria que a agarrar sozinha.


Uma hora depois, Nina e Adrik entraram nos estábulos do convento. Eles tinham passado só uma noite fora, mas para Nina parecia ter sido uma longa estação. Sua mente estava sobrecarregada com emoções e novas informações. Matthias. Trassel. Hanne. As mulheres enterradas na fábrica. As perfurações pulsando em seu antebraço. Ela fora atacada por lobos, pelo amor dos Santos. Precisava de um banho quente, um prato de waffles e cerca de doze horas de sono.

Leoni acenou quando os viu. Ela estava sentada em um banquinho baixo em um canto escuro dos estábulos, alguns dos caixotes que Nina e Adrik tinham deixado para trás a escondendo dos olhos curiosos de passantes. Montara um um pequeno fogareiro, e ao seu redor espalhavam-se panelas e garrafas de vidro que ela devia estar usando para testar as amostras de água.

— Achei que voltariam mais cedo — ela disse com um sorriso.

Adrik levou seu cavalo até uma baia.

— Nina decidiu ter uma aventura.

— E foi boa? — perguntou Leoni.

— Foi informativa — disse Nina. — Há quanto tempo está aqui?

— A noite toda — admitiu Leoni. Não estava com uma aparência muito boa.

— Vamos à cidade para almoçar — sugeriu Nina. — Não aguento mais essa gororoba do convento.

Leoni se levantou, então apoiou uma mão na parede.

— Eu... — Seus olhos reviraram e ela cambaleou violentamente.

— Leoni! — exclamou Nina enquanto ela e Adrik corriam em sua direção, conseguindo alcançá-la um segundo antes de desabar. Eles a deitaram gentilmente ao lado do fogareiro. Ela estava encharcada de suor e sua pele ardia como fogo.

Os olhos de Leoni tremularam.

— Isso foi inesperado. — E teve a audácia de sorrir.

— Não é hora de estar de bom humor — censurou Adrik. — Sua pulsação está acelerada e você está queimando.

— Mas não estou morta.

— Pare de ver o lado positivo das coisas e me conte como isso começou.

— Acho que fiz besteira no teste — admitiu Leoni, em uma voz fraca. — Estava tentando extrair os poluentes das amostras, isolá-los. Talvez tenha absorvido alguns no corpo. Disse a vocês que mexer com venenos é um trabalho delicado.

— Vou te levar de volta aos dormitórios — ofereceu Nina. — Posso pegar água limpa...

— Não. Não quero que as Donzelas da Nascente fiquem desconfiadas.

— Podemos cuidar dela aqui — disse Adrik. — Acomode-a atrás do trenó. Posso fazer uma fogueira e ferver água limpa para o chá.

— Tem uma infusão de carvão no meu kit — avisou Leoni. — Use algumas gotas. Vão absorver as toxinas.

Nina arrumou uma cama de cobertores para Leoni, fora de vista do pátio principal, e tentou deixá-la confortável.

— Tem mais uma coisa — continuou Leoni enquanto se deitava.

Nina não gostava do tom cinzento da sua pele nem do modo como suas pálpebras tremulavam.

— Só descanse. Isso pode esperar.

— A Madre Superiora veio falar comigo.

— O que aconteceu? — perguntou Adrik, ajoelhando-se ao lado dela com uma xícara de chá fumegante. — Aqui, tente tomar um gole. Uma das noviças falou sobre ter visto Nina e eu no bosque?

— Não, uma delas morreu.

Nina congelou.

— A garota que caiu do cavalo?

— Não percebi que os ferimentos eram tão sérios — disse Adrik.

— Não eram — garantiu Leoni, bebericando devagar. — Acho que foi o rio. Ela ficou um tempo na água e estava com uma ferida aberta.

— Por todos os Santos — suspirou Adrik. — Que diabos eles estão fazendo naquela fábrica?

— Não sei, mas... — Nina hesitou, mas se obrigou a continuar. — Mas há covas por toda a montanha. Atrás do reservatório, nos terrenos da fábrica. Eu as senti por todo lado.

— Quê? — disse Adrik. — Por que não contou antes? Como sabe disso?

Os olhos de Leoni tinham se fechado. Sua pulsação acelerada parecia ter reduzido um pouco, o que era um bom sinal.

— Temos mais água limpa? — perguntou Nina. — Devíamos tentar baixar a febre. E você pode ver se tem carbólico no kit dela?

— Por quê? — Adrik perguntou enquanto pegava seu cantil e o desinfetante. — Ela está ferida?

— Não, eu que estou. Fui mordida por um lobo ontem à noite.

— Claro que foi.

Nina tirou o casaco, revelando sua manga rasgada e ensanguentada.

— Espere — disse Adrik. — Está falando sério? — Ele se sentou ao lado de Leoni e esfregou as têmporas. — Uma soldada envenenada, outra atacada por lobos. A missão está indo maravilhosamente bem.

Nina puxou um pedaço de tecido do trenó e o rasgou no meio. Usou uma metade para fazer uma compressa para Leoni e a outra para limpar e atar o ferimento no próprio braço.

— Então aquela garota, Hanne, salvou você de um ataque de lobo? — perguntou Adrik.

— Algo do gênero. — Nina não estava pronta para falar sobre Trassel. A última coisa que precisava era do ceticismo de Adrik. — Acho que podia haver parem na mordida.

— O quê?

Nina olhou de relance para Leoni, cujas pálpebras tremularam de novo.

— Não tenho certeza, mas os lobos não estão se comportando normalmente. Parecia com o parem.

— Então seu vício...

Nina sacudiu a cabeça.

— Estou bem por enquanto. — Isso não era inteiramente verdade. Até a mera sugestão do parem já a fez sentir os resquícios de uma fome animal. Mas o desejo parecia mais embotado do que ela teria esperado.

— Santos — suspirou Adrik, inclinando-se para a frente. — Se está na água e Leoni o absorveu...

— Leoni não está agindo como uma Grisha exposta ao parem. Ela estaria subindo pelas paredes, desesperada por outra dose. — Nina sabia bem demais disso. — Mas seus outros sintomas combinam com a exposição, e parem suficiente poderia matar alguém sem poderes Grisha, como a noviça.

— Não foi parem — murmurou Leoni. — Eu acho.

— Pensei que estivesse dormindo.

— Estou — disse Leoni. — Tem algo corrosivo na água.

— Consegue beber mais chá? — perguntou Adrik.

Ela assentiu e se empurrou com dificuldade sobre os cotovelos.

— Ainda não isolei. Por que não nos contou sobre as covas quando as descobriu, Nina?

— Tem certeza de que não quer voltar a dormir? — Nina perguntou, suspirando em seguida. Ela olhou para a compressa dobrada nas mãos. — Não sei por quê. Eu acho... elas me levaram à entrada leste.

— Quem te levou?

Nina limpou a garganta e cobriu a testa de Leoni delicadamente com o tecido.

— Eu ouvi as mortas... falarem. Já as ouvia em Elling.

— Certo — respondeu Leoni, cautelosamente. — O que exatamente elas disseram?

— Elas precisam da nossa ajuda. — Da minha ajuda.

— As mortas — repetiu Adrik — precisam da nossa ajuda.

— Sei que pareço ter enlouquecido, mas precisamos entrar naquela fábrica. E acho que conheço alguém que pode ajudar.

Nina acompanhou Leoni de volta aos dormitórios, antes do anoitecer, e a pôs na cama. A febre tinha baixado e ela já estava se sentindo melhor – mais uma prova de que o que quer que encontrara na água não era parem. Então qual era o problema daqueles lobos e o que havia na sua mordida? E o que tinha matado a noviça?

Ela levou um prato de sobras ao bosque e o deixou na base de uma árvore na esperança boba de que Trassel pudesse encontrá-la de novo. A comida provavelmente seria levada por algum roedor ingrato.

Parada na orla da floresta, Nina olhou para a fábrica acima, suas luzes brilhando douradas ao crepúsculo, as janelas da ala oeste escuras. Ela pensou nas raízes do freixo de Djel, entalhadas nos muros do reservatório.

Há veneno neste lugar. Ela quase conseguia sentir o gosto amargo na língua. Mas quão fundo ele vai?


Na manhã seguinte, Nina ficou feliz ao ver que uma convocação ao escritório da Madre Superiora tinha sido enfiada por baixo da porta. Nina deveria se encontrar com ela e Hanne após as preces matinais para discutir a possibilidade de dar aulas de idioma. Então Hanne queria mesmo aprender mais sobre suas habilidades Grisha – mesmo se fosse só para controlá-las.

É claro, Adrik tinha questionado o plano.

— Seria melhor usar nosso tempo para reunir informações aqui e nas cidades vizinhas — ele reclamou. — Fjerda está se preparando para alguma coisa. Com as informações certas, nossas forças podem ser capazes de emboscar uma carroça ou carregamento, ou fechar este lugar de vez, mas não se os fjerdanos ficarem sabendo de nossas atividades e transferirem suas operações para outro lugar. Você não sabe como é fácil revelar sua identidade, Nina. Esse jogo é perigoso.

Nina queria gritar. Ela tinha sido espiã sob as ordens de Zoya Nazyalensky na Ilha Errante. Passara um ano sozinha em Ketterdam trabalhando para Kaz Brekker. Tinha se infiltrado na Corte de Gelo como uma garota da Menagerie. Podia ser nova naquele jogo particular, mas fizera muitas apostas altas.

— Eu consigo, Adrik — ela disse, com toda a calma que conseguiu reunir. — Você sabe que ela é nosso melhor recurso. Nós podemos descobrir o que está acontecendo naquela fábrica. Não precisamos que outra pessoa faça isso.

— O que sabemos de verdade sobre essa garota?

— Ela é Grisha e está infeliz. Não estamos aqui para salvar pessoas exatamente como ela?

— Pelo que você me disse, ela não quer ser salva.

— Talvez eu a faça mudar de ideia. E, nesse meio-tempo, posso conseguir acesso ao resto do convento. — Nina e Leoni estavam restritas a um quarto adjacente às cozinhas e não podiam circular na maior parte do convento e dos dormitórios. — As Donzelas da Nascente são as únicas moradoras locais com permissão para entrar na fábrica. Eu posso até conseguir nos colocar lá dentro.

— Você não vai fazer nada sem que eu aprove primeiro — disse Adrik. — E, antes de tudo, tem que passar pela Madre Superiora.

Nina deixou Adrik e Leoni nos estábulos e cruzou o pátio até a capela, atravessando a porta pesada coberta com nós intrincados de ramos de freixo. O aroma doce e argiloso das paredes de madeira a envolveu, e ela levou um momento para deixar seus olhos se ajustarem à escuridão. O ar estava frio e estagnado, os bancos iluminados pelo brilho de lamparinas e pela luz fraca do sol que entrava por janelas estreitas dispostas bem alto no transepto. Não havia altar nem cenas pintadas retratando os Santos – em vez disso, uma árvore enorme se espalhava pela abside da capela, suas raízes estendendo-se até a primeira fileira de bancos. O freixo de Djel, alimentado pela Nascente.

Quais preces você escuta? Nina se perguntou. Ouve as palavras dos soldados? Dos Grishas fjerdanos trancados nas celas de Jarl Brum? Os sussurros em sua cabeça pareceram suspirar – de arrependimento? De saudade? Ela não sabia. Alisou as saias e se apressou pela nave lateral até o escritório da Madre Superiora.

— Enke Jandersdat — cumprimentou a mulher mais velha quando Nina entrou, usando o título de viúva. — Hanne me disse que você está disposta a oferecer aulas de zemeni. Espero que esteja ciente de que o convento não pode pagar as taxas de uma tutora.

Hanne permaneceu em silêncio, usando seu vestido salopete azul-claro e uma blusa branca imaculada, com os olhos nos sapatinhos de feltro nada práticos. Seu cabelo castanho-avermelhado tinha sido cuidadosamente trançado, torcido e preso em uma coroa apertada na cabeça. O uniforme não caía bem nela. Nina sentiu uma vontade súbita de arrancar os alfinetes das tranças e ver aquele cabelo glorioso solto outra vez.

— É claro — disse Nina. — Não espero pagamento. Só peço que nos permita desfrutar de sua hospitalidade um pouco mais e, se tiver uma panela de cobre, que meus empregadores possam pegá-la emprestado. — Leoni estava confiante de que podia continuar seus experimentos em segurança agora que sabia com o que estava lidando, mas instrumentos de cobre seriam uma ajuda.

— Parece uma oferta generosa demais. — A Madre Superiora comprimiu os lábios em uma linha desconfiada.

— A senhora me pegou. — Nina viu os olhos de Hanne se arregalarem. Santos, se ela pretendia continuar vivendo naquele país horrendo, ia precisar de aulas de enganação. Talvez um estágio em Ketterdam. Nina não fora pega coisa nenhuma, mas podia ver que a Madre Superiora pensava que ela estava com segundas intenções, então pretendia revelar um plano a ela. — A verdade é que não posso continuar meu trabalho como guia por muito tempo. As viagens são cansativas, e em algum momento eu preciso encontrar uma posição mais permanente para me sustentar.

— Nós não contratamos pessoas de fora da ordem...

— Ah, não, claro. Eu entendo. Mas uma recomendação da Madre Superiora de Gäfvalle teria peso junto a outros fjerdanos buscando uma professora para seus filhos.

A Madre Superiora se aprumou, erguendo o queixo. A piedade era uma defesa fraca contra a lisonja.

— Bem, entendo como isso poderia ser vantajoso. Veremos o quanto você consegue fazer com a nossa Hanne. É um pouco tarde para ela começar uma língua nova, mas, para ser franca, é um alívio vê-la interessada em qualquer coisa que não envolva se sujar nos bosques.

A Madre Superiora as acompanhou até uma sala de aula vazia e disse que elas tinham permissão para estudar ali até a hora do almoço.

— Espero que você não descuide de suas outras tarefas, Hanne. Seu pai não vai gostar se você se tornar um fardo para esta instituição.

— Sim, Madre Superiora — ela respondeu, obedientemente. Mas, assim que a mulher mais velha partiu, Hanne lançou um olhar sombrio para a porta e se jogou em uma das carteiras.

— Ela concordou com as aulas — comemorou Nina. — Podia ser pior.

— Ela me considera um dos fracassos dela. Solteira aos dezenove anos, sem perspectiva e com nenhum sinal de uma vocação verdadeira à adoração de Djel.

— Todas as Donzelas da Nascente devem ter a vocação? — Nina perguntou enquanto pegava um pedaço de giz e começava a conjugar um verbo zemeni no quadro que cobria a maior parte de uma parede.

— Não sei. Algumas dizem que são e alegam ter visões. Mas não sei se Djel está interessado em garotas como eu. Você realmente pretende abandonar a vida de guia?

— Não — respondeu Nina, tentando manter as letras de giz retas. — Ainda não estou pronta para viver em um só lugar. — Só quando ela disse as palavras percebeu que podiam ser verdade. Ela se sentira inquieta em Ravka, e agora se perguntou se o sentimento persistiria em qualquer lugar em que tentasse se fixar.

Nina tirou do bolso um maço de folhas.

— Essa são lições rudimentares de zemeni. Você precisa copiá-las no caderno para parecer que estamos praticando.

— Quer dizer que vou ter que aprender zemeni?

— Um pouco. Não precisa ficar boa. — Ela gesticulou para o quadro. — Vamos começar com este verbo: bes adawa. — Ela ergueu as mãos e posicionou as pernas na primeira postura que todo Grisha aprendia. — Lutar.


A aula durou duas horas. Nina começou como a sua própria instrução tinha iniciado no Pequeno Palácio: ensinando Hanne a usar seu poder Sangrador em si mesma.

— Já tentou? — perguntou Nina.

— Não... não tenho certeza. Às vezes, quando não consigo dormir, imagino as batidas do meu coração reduzindo...

Nina se encolheu.

— Teve sorte de não se colocar em coma.

Nina explicou técnicas de respiração rudimentares e posturas de luta básicas. Ela fez Hanne reduzir as batidas do próprio coração, depois acelerá-las. Falou só brevemente sobre teoria Grisha e como amplificadores funcionavam, e evitou qualquer menção ao jurda parem.

— Como você sabe tudo isso? — perguntou Hanne. Suas faces estavam coradas após usar o poder, e o cabelo tinha escapado das tranças e se curvava nas têmporas. — Aprendeu mesmo com o professor da sua irmã?

Nina se virou para apagar o quadro e esconder sua expressão. Era possível que ela tivesse se empolgado um pouco demais. Você não sabe como é fácil revelar sua identidade, Nina. Ela podia imaginar a voz de Adrik cantarolando: Eu não avisei?

— Sim. Eu prestei atenção. Mas você tem um talento natural. Está aprendendo bem depressa. — Isso pelo menos era verdade. Hanne tinha uma facilidade especial com seu poder. Mas o rosto da garota estava perturbado. — O que é? — perguntou Nina.

— Essa palavra. Natural. — Hanne correu um dedo sobre as folhas onde tinha rabiscado a conjugação de outro verbo zemeni. Sua letra era trágica. — Quando eu era mais nova, meu pai me levava para todo lado. Para cavalgar. Caçar. Não era o costume, mas ele queria um filho e acho que ele pensava que não fazia nenhum mal. Eu amava tudo aquilo. Lutar, cavalgar, correr livremente. Mas, quando eu fiquei mais velha e chegou a hora de me apresentar na corte... eu não conseguia me livrar de tudo aquilo.

E por que teria que fazer isso?, pensou Nina. Ela não amava muito os cavalos e preferia não correr a lugar algum a não ser que estivesse sendo perseguida, mas pelo menos tinha essas oportunidades.

Hanne cruzou os braços, encurvando os ombros como se quisesse sumir.

— Não era natural, eles diziam. O corpo de uma mulher devia ser macio, mas o meu era duro. Uma dama deveria dar passos pequenos e graciosos, mas eu dava passos largos. Eu era motivo de chacota. — Hanne ergueu os olhos para o teto. — Meu pai se culpava por ter me corrompido. Eu não sabia cantar ou pintar, mas sabia estripar um cervo e usar um arco. Sabia construir um abrigo. Eu só queria fugir para os bosques. Dormir sob as estrelas.

— Isso parece... bem, parece horrível — admitiu Nina. — Mas acho que entendo o apelo.

— Eu tentei mudar, juro. — Hanne deu de ombros. — Mas fracassei. Se fracassar de novo...

O olhar dela era sombrio, e Nina se perguntou que futuro nefasto ela estava vendo.

— O que acontece se fracassar de novo?

— A escola deveria me tornar apresentável. Uma esposa ideal. Se a Madre Superiora não conseguir me consertar, nunca vou poder voltar para casa e ser apresentada na corte. Isso já devia ter acontecido dois anos atrás.

— Seria tão ruim não voltar?

— E nunca mais ver meus pais? Viver como uma exilada?

— Essas são as únicas escolhas?

— Eu tenho que achar um jeito de me adequar à sociedade, senão terei que fazer os votos e passar o resto da vida aqui, em serviço a Djel entre as Mulheres da Nascente. — Ela fez uma careta. — Eu queria ser uma Infernal em vez de uma Sangradora.

— Isso é ridículo — rebateu Nina sem pensar, com o orgulho ferido. Como alguém poderia querer ser uma Conjuradora em vez de Corporalki? Todo mundo sabe que somos a melhor Ordem. — Quer dizer... por que alguém iria querer ser um Infernal?

Os olhos brilhantes de Hanne cintilaram como que em desafio.

— Para poder derreter a Corte de Gelo de dentro para fora, até o negócio inteiro ser levado para o mar.

Palavras perigosas. Talvez Nina devesse ter fingido estar escandalizada. Em vez disso, ela sorriu.

— A maior poça do mundo.

— Exatamente — disse Hanne, retribuindo o sorriso, um toque de ousadia curvando seus lábios.

De repente, Nina queria contar tudo a ela. Meus amigos e eu abrimos um buraco no muro da Corte de Gelo! Roubamos um tanque fjerdano! Por todos os Santos, será que ela queria se gabar? Nina sacudiu a cabeça. Essa é uma chance de ganhar a confiança dela, disse a si mesma. Aproveite.

Ela se sentou na carteira ao lado de Hanne.

— Se você pudesse ir a qualquer lugar, fazer qualquer coisa, o que escolheria?

— Novyi Zem — Hanne respondeu imediatamente. — Eu arranjaria um emprego, ganharia meu próprio dinheiro e venderia meus serviços como atiradora.

— É boa a esse ponto?

— Sim — afirmou Hanne, sem um segundo de hesitação. — Penso nisso toda vez que saio para cavalgar. Só desaparecer. Deixar todo mundo acreditar que eu me perdi numa tempestade ou fui carregada pelo rio.

Que ideia horrorosa. Venha para Ravka.

— Então por que não faz isso? Por que não vai, simplesmente?

Hanne a encarou, chocada.

— Eu não poderia fazer isso com os meus pais. Não poderia envergonhá-los desse jeito.

Por pouco Nina não revirou os olhos. Fjerdanos e sua honra.

— Claro que não — ela respondeu depressa. Mas não conseguia evitar a lembrança de Hanne entrando naquela clareira com o rifle erguido, as tranças soltas, uma guerreira nata. Havia ouro nela, Nina podia ver; o brilho tinha se embotado após anos ouvindo que havia algo errado em ser como ela era. Aqueles vislumbres da Hanne real, da Hanne que ela deveria ser, eram uma distração. Você não está aqui para fazer amigos, Zenik, ela se repreendeu. Está aqui para conseguir informações.

— E se a Madre Superiora te expulsar? — ela perguntou.

— Não vai. Meu pai é um benfeitor generoso.

— E se ela te pegar saracoteando por aí em calças de homem? — insistiu Nina.

— Não vai.

— Se meus amigos e eu fôssemos menos generosos, ela poderia ter pegado.

Agora Hanne se reclinou e sorriu com confiança. Aí está você, pensou Nina.

— Teria sido sua palavra contra a minha. Eu teria estado de volta no meu vestido e dentro dos muros do convento antes de você bater na porta da Madre Superiora.

Interessante. Nina imbuiu a voz de toda a condescendência que conseguiu e disse:

— Claro que estaria.

Hanne se endireitou e bateu um dedo na superfície da carteira.

— Eu conheço cada tábua que range neste lugar. Sei onde a cozinheira guarda a chave da porta da cozinha oeste, e tenho vestidos e trocas de roupa escondidos em cada canto do convento, da capela ao telhado. Ninguém vai me pegar.

Nina ergueu as mãos num gesto de paz.

— Só acho que você podia considerar tomar mais cuidado.

— Diz a garota que ensina habilidades Grisha nos salões de Djel.

— Talvez eu tenha menos a perder do que você.

Hanne ergueu uma sobrancelha.

— Ou talvez só ache que é mais ousada.

Quer apostar?, pensou Nina. Mas só disse:

— De volta ao trabalho, então. Vamos ver se você consegue fazer meu coração bater mais forte.


ZOYA TINHA PASSADO POUCO TEMPO em Kribirsk desde a guerra. Não havia muitos motivos para visitar, e o lugar lhe evocava muitas memórias desagradáveis. Na época em que Ravka esteve separada do seu litoral ocidental pela Dobra das Sombras, Kribirsk tinha servido como o último abrigo, uma cidade onde mercadores e viajantes intrépidos se preparavam para a jornada e onde soldados poderiam passar uma última noite bebendo para afastar o terror ou pagando para se reconfortar nos braços de uma amante antes de embarcar num esquife de areia e serem lançados na escuridão sintética da Dobra. Muitos nunca voltavam.

Kribirsk já fora um porto, mas agora o território sombrio conhecido como o Não Mar não existia mais e o lugar era só mais uma cidadezinha sem muito a oferecer, salvo uma história triste.

Vestígios da antiga glória da cidade sobreviviam – a cadeia e as casernas, o prédio que já abrigara os oficiais do Primeiro Exército e onde o Triunvirato tinha conhecido o novo rei de Ravka. Mas o extenso acampamento de tendas, cavalos e soldados não existia mais. Dizia-se que ainda era possível encontrar balas remanescentes no chão e, ocasionalmente, faixas de seda do pavilhão preto onde o Darkling já recebera os seus seguidores.

Embora a escuridão da Dobra e os monstros que a povoavam não estivessem mais lá, as areias permaneciam, e o terreno oscilante às vezes apresentava dificuldades para as carroças. Mercadores que atravessavam Ravka ainda seguiam até as docas secas para reservar passagem em esquifes de areia, mas agora guardas eram contratados para proteger as cargas de saqueadores e ladrões, em vez da ameaça dos volcras comedores de carne que costumavam aterrorizar os viajantes. Os monstros tinham sumido e tudo o que restava era uma extensão longa e estéril de areia cinza, tão vazia que era sinistra. Nada conseguia crescer no terreno sem vida que o poder do Darkling deixara para trás.

Os negócios de Kribirsk eram os mesmos de sempre – pousadas, bordéis, vendedores de equipamentos –, apenas havia menos deles. Só a igreja tinha mudado. O prédio simples caiado de branco, com seu domo azul, já fora consagrado a Sankt Vladimir. Agora um sol dourado brilhante pendia sobre a entrada, um sinal de que o prédio fora reconsagrado a Sankta Alina da Dobra.

Zoya tinha levado um bom tempo para pensar em Alina como qualquer coisa além de uma rival. Ela havia se ressentido dos dons da órfã e invejado sua posição ao lado do Darkling. Na época não entendia o que o poder significava, nem o preço que todos seriam obrigados a pagar por ele. Depois da guerra, Alina escolhera uma vida de paz e anonimato, comprada com a farsa da sua morte, mas seu nome e fama só tinham crescido. Zoya ficou surpresa ao ver que gostava de ver o nome de Alina em igrejas, de ouvi-lo ser falado em preces. Ravka havia dado um amor excessivo a homens como o Darkling, o Apparat e até os reis Lantsov. Eles deviam um pouco a uma órfã sem senso de estilo.

Embora o símbolo coroando a entrada da igreja tivesse mudado, suas paredes exteriores continuavam iguais. Estavam cobertas com os nomes dos mortos, vítimas do massacre do Darkling em Novokribirsk, a cidade irmã de Kribirsk, a cidade que já se localizara diretamente do outro lado da Dobra das Sobras. O sol e o tempo tinham desbotado as letras pintadas de modo que estavam quase ilegíveis a alguém que não levasse os nomes dos mortos no coração.

Um dia essas palavras vão sumir completamente, pensou Zoya. As pessoas que lamentavam os mortos também. Quando eu partir, quem vai se lembrar deles? Zoya sabia que, se caminhasse ao canto sudoeste, encontraria os nomes de Liliyana Garin e sua protegida. Mas ela não faria essa caminhada e não correria os dedos sobre aquelas letras desajeitadas.

Depois de todo esse tempo, ela ainda não encontrara um fim para seu luto. Era um poço escuro, uma caverna ecoante na qual ela já lançara uma pedra, certa de que atingiria o fundo e que sua dor cessaria. Em vez disso, a pedra só continuou caindo. Ela esquecia a pedra, esquecia o poço; às vezes até esquecia por dias ou semanas inteiras. Então se lembrava do nome de Liliyana, ou seu olhar pousava no barquinho pintado na parede do seu quarto, na bandeira de duas estrelas congelada no vento. Ela se sentava para escrever uma carta e percebia que não tinha para quem escrever, e o silêncio que a cercava se tornava o silêncio do poço, da pedra em queda livre.

Não, ela não ia virar naquela esquina da igreja. Não levaria os dedos àqueles nomes. Hoje, não. Zoya bateu com os calcanhares nos flancos do cavalo e virou sua montaria de volta à cidade.

Ela, Tamar e Nikolai se alojaram em uma pensão com o nome agourento de Destroços, que tinha sido construída para parecer um grande navio naufragado. Zoya se lembrava do local em seu auge, cheio de soldados e comerciantes, e do terrível acordeonista que tocava desde manhãzinha até a noite nos degraus da frente para atrair viajantes da estrada. Pelo menos ele não estava mais lá.

Tolya estava acomodado do outro lado da rua, com o monge. Juntos, os gêmeos chamavam atenção demais, e aquela parada específica do itinerário real estava sendo mantida em segredo. Eles tinham enviado a grande carruagem dourada e seus batedores chamativos para Keramzin. Lá o grupo seria recebido pelo casal que dirigia o orfanato e a quem eles podiam confiar os segredos da coroa.

Zoya achou o banho morno e a refeição de esquilo e nabo cozido insossa, mas estava cansada demais para reclamar. Ela dormiu e sonhou com monstros.

Pela manhã, acordou Nikolai com a garrafa vermelha de estimulante, e eles se acomodaram na sala dele para lidar com as tarefas do dia. Mais tarde poderiam encontrar um antigo bosque de espinheiros enterrado nas areias, mas Ravka exigia atenção constante, e, naquela manhã, isso significava que questões de Estado não podiam esperar.

Zoya passou algumas horas lendo e respondendo a correspondências. Mandou a Genya e David uma missiva, em código, com os detalhes essenciais do ataque dos khergud e instruções para dobrar as patrulhas nos céus ao redor de Os Alta. A capital estava exposta, e ela nem queria imaginar o que poderia acontecer se os khergud atacassem a escola Grisha. Qualquer ataque ao Pequeno Palácio seria considerado um ato de guerra, então ela duvidava que os shu seriam tão ousados, mas não pretendia correr qualquer risco.

Ela mandou missivas parecidas aos Grishas postados por toda Ravka, com instruções para ficarem vigilantes noite e dia e pedidos para que seus intermediários do Primeiro Exército postassem soldados adicionais nas torres e guaritas altas. Teria sido mais eficiente se os Grishas nos postos avançados fizessem os pedidos diretamente, mas protocolo era protocolo. Uma parte dela sempre se ressentiria daquela dança, mas gestos como aquele existiam para preservar a dignidade das pessoas envolvidas. Os Grishas não queriam ser vulneráveis, e o Primeiro Exército queria manter sua autoridade.

Depois que Nikolai tomou o café da manhã, eles trabalharam lado a lado, pela maior parte em silêncio, só ocasionalmente se consultando.

— Uma das fontes de Tamar alega que há boatos sobre um membro da guarda real shu que quer desertar — disse Zoya, lendo o arquivo que Tamar deixara para ela.

— Um membro da Tavgharad? Isso seria um trunfo e tanto.

Zoya assentiu.

— A festa será a oportunidade perfeita para estabelecer contato.

— Está dizendo que meu Festival de Qualquer Coisa Outonal foi uma ideia genial, no fim das contas?

— Não disse nada disso. Mas vamos garantir que você tenha tempo suficiente para flertar com a princesa shu e que Tolya e Tamar tenham uma chance de interagir com a guarda real.

— Pela perspectiva de informações desse nível, certamente posso desenvolver uma paixão pelo khatuur.

— E se for só o de doze cordas e não o de dezoito?

— Farei o máximo para esconder meu desdém.

Zoya deixou o arquivo de lado e pediu:

— Pode mandar Pensky fazer um requerimento por mais soldados em Arkesk para manter guarda? — Ele era o general do Primeiro Exército com quem Zoya mais lidava. — Acho que podem estar especialmente vulneráveis a um ataque de khergud.

— Por que não escreve diretamente para ele?

— Porque já lhe enviei dois pedidos de tropas no mês passado, então seria melhor se esse viesse de você.

Nikolai grunhiu com uma caneta entre os dentes, então a puxou e disse:

— Vou escrever a Pensky. Mas isso significa que deveríamos transferir os Grishas perto de Halmhend? E pode me fazer um requerimento por um guardanapo? Derrubei chá nesse recado para o embaixador kaelish.

Zoya mandou dois guardanapos flutuando sobre o aparador e os deixou cair em um montinho ao lado do cotovelo de Nikolai. Estava grata pelo silêncio naquela manhã, pelo retorno confortável à rotina.

Em momentos como aquele, quando eles trabalhavam lado a lado, o ritmo entre os dois era tão confortável que sua mente a traía. Ela olhava para a cabeça dourada e desgrenhada de Nikolai, inclinada sobre a correspondência, ou para seus longos dedos rasgando um pãozinho, e se perguntava como seria quando ele finalmente se casasse, quando pertencesse a outra pessoa e ela perdesse aqueles instantes de paz.

Zoya ainda seria a general de Nikolai, mas sabia que seria diferente. Ele teria outra pessoa para provocar e em quem se apoiar e com quem discutir sobre o arenque. Ela já tinha feito homens se apaixonarem por ela antes, quando era jovem e cruel e gostava de testar o seu poder. Zoya não desejava – ela era desejada. E gostava que as coisas fossem assim. Era irritante admitir que não estava nem um pouco confiante de que poderia fazer Nikolai desejá-la, e ainda mais irritante pensar que parte dela ansiava por tentar, para ver se ele era tão imune à sua beleza quanto parecia, para saber se alguém como ele, cheio de esperança e luz e esforços otimistas, poderia amar alguém como ela.

Contudo, mesmo enquanto sua mente fazia aqueles jogos cruéis, Zoya sabia que não podia levá-los longe demais. Suas relações cuidadosas com o Primeiro Exército e seu monitoramento de questões Grisha por toda Ravka deixaram perfeitamente claro que – mesmo se Nikolai a visse como algo mais do que uma comandante hábil – Ravka nunca aceitaria uma rainha Grisha. Alina fora diferente, uma Santa adorada pelo povo, um símbolo de esperança para o futuro. Mas, para o povo comum de Ravka, Zoya sempre seria a bruxa de cabelos negros como um corvo, que controlava as tempestades. Perigosa. Indigna de confiança. Eles jamais cederiam seu filho dourado a uma garota nascida de raio e trovão e sangue comum. E eu nem gostaria que o fizessem. Uma coroa era uma bela coisa, e o sentimentalismo criava melodramas comoventes, mas Zoya tinha aprendido o poder do medo muito tempo antes.

Uma batida dura na porta a arrancou dos seus devaneios, e ela encontrou Tamar e Tolya no corredor – seus uniformes ocultos sob casacos pesados e simples –, um de cada lado de Yuri, o rosto sincero do rapaz semiobscurecido por um cachecol. Eles iriam até a Dobra disfarçados: com casacos de colarinho alto e capas de tecido camponês grosseiro.

— Por que nunca podemos nos disfarçar de gente rica? — reclamou Zoya, pegando a capa horrorosa que Tamar lhe trouxera e prendendo-a sobre o kefta.

— Um mercador de seda e sua modelo glamorosa? — perguntou Nikolai.

— Sim. Eu até faria o papel do mercador. Você pode ser minha musa atraente.

— Zoya, você me chamou de atraente?

— É tudo parte da encenação, Alteza.

Ele apertou o coração em desespero fingido e se virou para os outros.

— Vamos fazer a primeira viagem lentamente. Você sabe exatamente aonde estamos indo? A Dobra não tem marcos.

— Os seguidores do Santo Sem Estrelas estarão esperando — disse o monge, praticamente fazendo uma dancinha. — Eles sabem onde ele caiu. Eles se lembram.

— Sabem? — retorquiu Zoya. — Porque eu não me lembro de ter visto nenhum deles lá. Se estivessem presentes, se lembrariam dos nomes de todos os mortos, não só do seu precioso Darkling.

— Eu estava nas docas secas mais cedo — interveio Tamar rapidamente. — Há boatos de um novo acampamento cerca de quinze quilômetros a oeste.

— Eu falei — afirmou Yuri.

Nikolai deve ter sentido o desejo de Zoya de quebrar cada osso no corpo do monge, porque se colocou entre os dois e declarou:

— Então nós começaremos por aí. Yuri, você vai ficar conosco e não vai interagir com os peregrinos.

— Mas...

— Eu não quero que seja reconhecido. Não quero que nenhum de nós seja reconhecido. Mantenha em mente o que está em jogo aqui. — Ele apoiou uma mão no ombro de Yuri e acrescentou, sem um pingo de vergonha: — A própria alma de uma nação.

Se Zoya vomitasse, pelo menos seria naquela capa horrorosa.

Um esquife tinha sido preparado para eles nas docas secas – uma embarcação larga e chata em uma estrutura de trenó robusta feita para suportar o peso de cargas sobre a areia. Os antigos veículos eram construídos priorizando o silêncio, já que sons arriscavam atrair a atenção dos volcras – e eram baratos, já que costumavam ser destruídos com muita frequência. O esquife era pouco mais que uma plataforma com uma vela.

Dois Aeros juniores estavam a postos perto do mastro, parecendo ávidos e ridiculamente jovens em seus keftas azuis. Era um serviço fácil para alunos prestes a se formar – longe de lutas, mas onde podiam praticar várias línguas e pegar o jeito para seguir ordens. Tolya parou na proa. Na popa, Zoya e Yuri flanqueavam Nikolai. Tamar mantinha guarda do outro lado do monge, para o caso de ele ficar tentado a ir comungar com seus colegas fanáticos.

Zoya manteve o xale erguido, mas observou os Aeros com atenção enquanto eles erguiam os braços e conjuravam correntes de ar para inflar as velas. Era difícil não pensar em seus primeiros dias no Segundo Exército, no terror da sua primeira travessia, cercada pela escuridão, segurando o fôlego e esperando para ouvir o guincho dos volcras e o abanar de suas asas conforme eles vinham em busca de presas.

— Eles estão adernando para a esquerda — ela murmurou para Nikolai enquanto o esquife avançava aos trancos pela areia.

— Estão fazendo o melhor que podem, Zoya.

O melhor que podem não vai mantê-los vivos, ela quis rosnar.

— Eu vi meus amigos morrerem nestas areias. O mínimo que esses jovens tapados podem fazer é aprender a pilotar um esquife meio vazio.

Santos, ela odiava estar ali. Quase três anos tinham se passado desde a destruição da Dobra, mas um estranho silêncio resistia nas bordas, a imobilidade de um campo de batalha onde bons soldados haviam caído. Os esquifes de vidro que o Darkling usara para entrar na Dobra tinham sido saqueados e desmontados muito tempo antes, mas os destroços de outras embarcações se espalhavam pelos muitos quilômetros da Dobra. Algumas pessoas tratavam os mastros quebrados e os cascos destruídos como santuários aos mortos. Mas outras tinham pilhado tudo que puderam deles – lenha, lona, qualquer carga que os esquifes perdidos carregassem.

No entanto, enquanto avançavam nas areias cinzentas, Zoya se perguntou se o silêncio reverente às margens do Não Mar fora pura imaginação, os fantasmas do passado anuviando sua visão. Porque, à medida que se moviam para oeste, a Dobra ficava cheia de vida. Para onde quer que olhasse, ela via altares dedicados à Santa do Sol. Negócios improvisados tinham brotado como uma praga nas areias: pousadas e restaurantes, capelas, mascates vendendo curas abençoadas, pedaços dos ossos de Alina, pérolas do kokoshnik dela, trapos do seu kefta. A visão fez Zoya se arrepiar.

— Eles sempre gostaram mais de nós mortos — ela declarou. — Ninguém sabe o que fazer com um Santo vivo.

Mas o olhar de Nikolai estava fixo no horizonte.

— O que é aquilo?

Bem à frente, Zoya viu uma mancha escura. Parecia uma sombra projetada por uma massa de nuvens pesadas, embora que o céu estivesse limpo.

— Um lago?

— Não — falou Yuri. — Um milagre.

Zoya considerou jogá-lo sobre a amurada.

— Se eu apontasse para uma torneira vazando, você diria que é um milagre.

Mas, à medida que se aproximavam, Zoya viu que a forma no horizonte não era um corpo d’água, e sim um disco preto de pedra reluzente, com pelo menos um quilômetro e meio de diâmetro, perfeitamente redondo e brilhante como um espelho.

Um vilarejo improvisado, com tendas e abrigos feitos às pressas, tinha surgido ao redor do círculo de pedra. Não havia sinais da Santa do Sol ali, nenhum ícone ou imagem de Alina com seu cabelo branco e colar de cervo. Zoya só viu estandartes pretos pintados com os dois círculos representando o eclipse do sol – o símbolo do Darkling.

— Esse é o local onde o Sem Estrelas caiu — informou Yuri, com a voz cheia de reverência.

Seria mesmo? Zoya não tinha certeza. A batalha era uma lembrança de chamas violetas e medo. Harshaw sangrando no chão, os céus cheios de volcras.

— Séculos atrás — continuou Yuri —, o Sem Estrelas veio a este exato local e desafiou as regras que controlam o universo. Só ele ousou recriar os experimentos do Artesão de Ossos, Ilya Morozova. Só ele olhou para as estrelas e exigiu mais.

— Ele ousou — admitiu Zoya. — E o resultado de seu fracasso foi um rasgo no mundo.

— A Dobra das Sombras — disse Nikolai. — O único lugar onde o poder dele se tornava inútil. Os Santos amam uma ironia dramática.

Zoya fez um gesto de irritação.

— Não foram os Santos. Aquilo não foi punição divina.

Yuri fixou os olhos suplicantes nela.

— Como pode ter certeza? Como sabe que a Dobra não foi um desafio que os Santos propuseram ao Darkling?

— Você mesmo disse: ele desafiou as regras que controlam o universo e governam o nosso poder. Ele violou a ordem natural.

— Mas quem criou a ordem natural? — insistiu Yuri. — Quem é responsável pela criação no coração do mundo?

Como ela invejava a certeza daquele garoto, suas visões, sua crença ridícula de que havia um propósito na dor, de que os Santos tinham algum tipo de plano.

— Por que alguém precisaria ter feito isso? — perguntou Zoya. — Talvez seja simplesmente assim que o mundo funciona. O que importa é que, quando os Grishas ultrapassam os limites do seu poder, há um custo. Essa lição está embutida em todas as nossas histórias, até nos contos contados a criancinhas otkazat’sya como você.

Yuri balançou a cabeça, teimoso.

— O Herege Negro escolheu esse local com cuidado. Tem que haver um motivo.

— Talvez ele gostasse da vista — ela retrucou.

— Ainda assim... — começou Nikolai.

Ela apoiou as mãos nos quadris.

— Você também não.

— Há lugares como esse por toda Ravka — ele disse, em tom apaziguador. — Lugares que serviram aos deuses antigos e a Santos novos, que foram construídos, destruídos e reconstruídos, porque as pessoas retornavam a eles repetidamente para orar. — Nikolai deu de ombros. — Talvez elas fossem atraídas pelo poder.

— Ou pelo tempo bom ou por materiais de construção baratos. — Zoya estava exasperada. Ela já tinha ouvido o suficiente. Assim que o esquife parou, saltou sobre a amurada.

— Mantenham Yuri aqui — ela ouviu Nikolai instruir os gêmeos antes de pular atrás dela.

— Bem-vindos, peregrinos! — cumprimentou um homem usando vestes pretas e um sorriso beatífico.

— Ora, obrigada — agradeceu Zoya. Nikolai lhe lançou um olhar de alerta que ela ignorou alegremente. — Você está no comando aqui?

— Sou só mais um fiel entre fiéis.

— E colocou sua fé no Darkling?

— No Santo que é sem Estrelas. — O peregrino gesticulou para o disco de pedra. Não havia nenhuma imperfeição nele, era mais escuro que a noite. — Contemplem o sinal do retorno dele.

Zoya ignorou o calafrio que percorreu sua coluna.

— E pode me dizer por que o venera?

O homem sorriu de novo, claramente encantado com a oportunidade.

— Ele amava Ravka. Só queria nos tornar fortes e nos salvar de reis fracos.

— Reis fracos — considerou Nikolai. — Quase tão irritantes quanto chá aguado.

Mas Zoya não estava no clima para brincadeiras.

— Ele amava Ravka — ela repetiu. — E o que é Ravka? Quem é Ravka?

— Todos nós. Camponeses e príncipes.

— É claro. O Darkling também amava minha tia, que morreu junto a inúmeros civis inocentes em Novokribirsk para que ele pudesse demonstrar seu poder ao mundo?

— Não faça isso — murmurou Nikolai, apoiando uma mão no seu braço.

Ela se desvencilhou dele.

— Ele amava a garota que obrigou a cometer aqueles assassinatos? E a garota que jogou na cama do antigo rei para seus próprios propósitos e depois mutilou quando ela ousou desafiá-lo? Ou a mulher que ele cegou por não dedicar devoção inabalável a ele? — Quem falaria por Liliyana, por Genya e Alina e Baghra se ela não falasse? Quem vai falar por mim?

Mas o peregrino continuou calmo, seu sorriso firme, gentil, enlouquecedor.

— Grandes homens com frequência são vítimas das mentiras contadas por seus inimigos. Que Santo caminhou entre nós e não enfrentou tribulações na vida? Fomos ensinados a temer a escuridão...

— Uma lição que você não aprendeu.

— Mas no escuro somos todos iguais — concluiu o peregrino. — Tanto o homem rico como o pobre.

— Um homem rico pode se dar ao luxo de acender as luzes — disse Nikolai calmamente. Ele deu um puxão no braço de Zoya, arrastando-a de volta ao esquife e afastando-a dos peregrinos.

— Me solte — ela disparou, fervilhando de raiva. — Onde está o altar para a minha tia? Para Santa Harshaw? Para Sergei ou Marie ou Fedyor? Quem vai venerá-los e acender velas no nome deles? — Ela sentiu o formigamento indesejável de lágrimas na garganta e as engoliu. Aquelas pessoas não mereciam suas lágrimas, só sua raiva.

— Zoya — sussurrou Nikolai. — Se continuar atraindo a atenção, podemos ser reconhecidos.

Ele estava certo; ela sabia disso. Mas aquele lugar, ver aquele símbolo nos estandartes... era demais. Ela girou rápida como um raio para Nikolai.

— Por que eles o amam?

— Eles amam a força — ele respondeu. — Por muito tempo, viver em Ravka era viver com medo. Ele deu esperança às pessoas.

— Então nós temos que dar alguma coisa melhor a elas.

— E vamos dar, Zoya. — Ele inclinou a cabeça. — Não gosto quando você me olha desse jeito. Como se tivesse deixado de acreditar.

— Todas aquelas vidas perdidas, tudo pelo que trabalhamos, e esses imbecis estão dispostos a reescrever a história. — Ela balançou a cabeça, querendo expulsar as memórias e desenraizá-las para sempre. — Você não sabe como foi, Nikolai. A batalha no Zodíaco. Ver o braço de Adrik arrancado do corpo. O sangue dele encharcou o convés. Não conseguimos limpar. As pessoas que perdemos naquelas areias. Você não se lembra. Era o demônio naquela hora. Mas eu me lembro de tudo.

— Eu lembro o suficiente — ele disse, e havia uma tensão em sua voz que ela nunca ouvira antes. Ele apoiou as mãos nos ombros dela e apertou forte. — Eu lembro, Zoya, e prometo que não vou deixar o mundo esquecer. Mas preciso que você volte para mim. Preciso da minha general ao meu lado.

Zoya puxou o ar, trêmula, tentando atingir alguma calma, bloquear as imagens. Não olhe para trás. Não olhe para mim. Ela viu a xícara de Liliyana no balcão da loja dela, sentiu o aroma cálido da bergamota.

Ela não conseguia respirar. Sua cabeça parecia pesada e anuviada enquanto deixava Nikolai puxá-la para o esquife. Os Aeros juniores já tinham saído do seu posto para dar uma olhada melhor na pedra preta – uma completa falta de disciplina.

Nikolai fez um gesto para os gêmeos.

— Tolya, Tamar, encontrem aqueles Aeros e os arrastem de volta para cá. Depois vão para lados opostos desse negócio reluzente horroroso e percorram o perímetro. Descubram o que puderem sobre quando ele apareceu e quantas pessoas visitam este lugar todos os dias. Vamos precisar lidar com elas se quisermos cavar aqui perto. Zoya e eu vamos levar o esquife mais para oeste, com Yuri. Nos reunimos para decidir os próximos passos daqui a uma hora.

— Eu posso ajudar — protestou Yuri, observando Tolya e Tamar saltarem para as areias. — Posso falar com os peregrinos...

— Você vai ficar com a gente. Vamos avançar um pouco mais e decidir o que fazer. Não sei como vamos cavar aqui sem envolver essas pessoas.

Yuri empurrou os óculos pelo nariz longo, e Zoya sentiu vontade de quebrá-los no meio.

— Talvez devêssemos envolvê-las — ele disse. — Ou podemos alegar estar procurando relíquias da batalha para um museu...

— Isso pode só enfurecê-las — argumentou Nikolai. — Elas vão alegar que o lugar é sagrado e não deve ser tocado ou vão querer cavar pessoalmente tentando localizar objetos para seus altares.

Zoya não se importava com os desejos dos peregrinos. Se tivesse que olhar para eles e seus estandartes pretos por mais um minuto, achou que perderia a cabeça.

Ela ergueu as mangas, sentindo o peso do amplificador no pulso.

— Chega de politicagem. Chega de diplomacia. Eles querem escuridão? Vou atender ao seu desejo.

— Zoya... — avisou Nikolai.

Mas a raiva dela tinha escapado da coleira, e ela podia sentir a tempestade se erguer. Só precisou dar um giro mínimo dos pulsos e as areias se remexeram, formando ondulações, depois dunas que se ergueram cada vez mais alto. Ela viu Genya encolhida em seu xale negro, seus braços cobertos de cicatrizes. Viu Harshaw morto na areia, o cabelo ruivo como uma bandeira caída. As narinas de Zoya estavam cheias do aroma de bergamota e sangue. O vento uivou, como se expressasse a sua fúria.

— Zoya, pare com isso — sibilou Nikolai.

Os peregrinos gritaram uns para os outros, procurando abrigo, encolhendo-se. Ela gostou de ver o seu medo. Deixou a areia assumir formas, um sol brilhante, o rosto de uma mulher – o rosto de Liliyana, embora ninguém ali soubesse disso. O vento gritava e as areias se ergueram em uma onda gigantesca, bloqueando o sol e mergulhando o acampamento na escuridão.

Os peregrinos debandaram em fuga.

— Aí está o seu Santo — ela disse, com satisfação sombria.

— Basta, Zoya — ordenou Nikolai, na sombra profunda que o poder dela tinha projetado. — Isso é uma ordem.

Ela deixou as areias descerem. Uma onda de tontura a atingiu e, por um momento, o mundo pareceu tremeluzir e se deformar. Seus joelhos bambearam e ela caiu com força no convés do esquife, assustada pela onda de náusea que a tinha tomado.

Nikolai apertou o braço dela.

— Você está...?

E então ele pareceu tropeçar também, seus olhos se revirando na cabeça.

— Nikolai?

Yuri vomitava sobre a amurada.

— O que aconteceu? — ela perguntou, erguendo-se. — Por que...? — Mas as palavras morreram em seus lábios.

Zoya se virou em um círculo lento. O acampamento de peregrinos, com as tendas e a pedra reluzente, tinha sumido. O céu azul havia dado lugar a um crepúsculo cinzento.

— Onde estão Tolya e Tamar? — quis saber Nikolai.

Tolya, Tamar, os Aeros – todo mundo que estivera perto do esquife tinha sumido também.

— Onde está todo mundo? — perguntou Yuri. — O que aconteceu com eles? O que você fez?

— Eu não fiz nada! — protestou Zoya. — Foi só uma tempestadezinha. Ninguém estava em perigo.

— Estou tendo algum tipo de acesso? — perguntou Nikolai, encarando a distância. — Ou vocês estão vendo isso também?

Zoya se virou para oeste. Acima deles assomava um palácio feito com a mesma areia cor de ossos que a Dobra. Mas era menos um palácio e mais uma cidade, uma estrutura gigantesca que se erguia em arcos e picos, com nuvens girando ao redor dos pináculos mais altos. Havia algo na construção, em sua escala gigantesca, que a lembrou da ponte em Ivets.

Um guincho soou em algum lugar distante. Volcras, pensou Zoya, embora soubesse que era impossível.

— É um milagre — disse Yuri, caindo de joelhos.

Mais um guincho soou, seguido por outro, e um ressoar de trovão seguiu enquanto formas escuras começaram a se separar do palácio, movendo-se em direção a eles a uma velocidade incrível.

— Não é um milagre. — Nikolai pegou os seus revólveres. — É uma armadilha.


A Bruxa no Bosque


NIKOLAI JÁ VIRA MUITAS COISAS ESPANTOSAS – os pôneis de névoa na fronteira zemeni, considerados tão velozes que, quando corriam, se tornavam invisíveis; uma serpente marítima abrindo caminho pelo gelo do norte; o mundo se desenrolando diante dele conforme cavalgava os ventos com as asas de um monstro às suas costas – mas seus olhos não conseguiam entender o que via mergulhando em direção a ele no céu.

Yuri estava de joelhos, rezando. Zoya tinha erguido os braços e Nikolai já podia sentir a areia se revolvendo ao redor do esquife à medida que ela chamava o vento em defesa deles.

Assim que tinha ouvido aquele guincho no ar, Nikolai sacara os revólveres e se preparara para enfrentar os volcras. Ele tinha esperado monstros de sombra ou alguma nova encarnação do poder do Darkling. Inferno, talvez parte dele até esperasse o próprio Darkling, o Santo Sem Estrelas ressuscitado, retornando para assombrar a todos com carisma e más intenções.

Em vez disso ele viu... abelhas, uma longa extensão de abelhas movendo-se através de um céu da cor de mingau, aglomerando-se para assumir uma forma que poderia ter sido a de uma mulher. Atrás do enxame, um monstro galopava sobre a areia, com um corpo enorme que se formava e reformava sem parar – primeiro com duas cabeças, depois três; mil braços; costas corcundas com uma coluna que se retorcia em sulcos sinuosos; dez, vinte, trinta longas pernas longas e finas movendo-se em conjunto. As formas eram humanas em um momento e animais no seguinte – cobertas de pelo e com dentes cerrados. E ali, dando voltas bem alto, havia uma terceira monstruosidade, com as asas abertas e as escamas cintilando...

— Zoya, diga algo maldoso.

— Por quê? — ela perguntou, em uma voz débil.

— Porque tenho bastante certeza de que estou alucinando e nos meus sonhos você é muito mais gentil.

— Você é um idiota, Nikolai.

— Você pode fazer melhor que isso.

— Sinto muito por não oferecer uma troca de farpas melhor no momento. Pareço estar paralisada de medo.

A voz dela tremia – e, se a implacável e inabalável Zoya estava assustada, então tudo o que ele via era real: as abelhas, o monstro e, sim, por mais impossível que fosse, o dragão, com seu tamanho enorme, suas asas arqueadas coriáceas, suas escamas luzindo pretas, verdes, azuis e douradas na luz cinza opaca.

— Zoya, o que quer que tenha feito para nos trazer aqui, essa seria a hora para desfazê-lo.

— Se eu pudesse, desfaria — ela rosnou, então ergueu subitamente um muro de vento.

As abelhas bateram contra ele, como água fendendo-se ao redor de uma rocha em um riacho, seu zumbido alto enchendo os ouvidos de Nikolai.

— Faça alguma coisa! — exclamou Zoya.

— Tipo o quê?

— Você tem armas!

— Eu não vou atirar em abelhas.

— Então atire naquela coisa.

Nikolai abriu fogo contra o monstro. As balas atingiram seu corpo cambiante – uma cabeça, um braço, outro braço, um peito distendido. Agora que a coisa estava mais próxima, ele distinguia garras, uma boca cheia de caninos, o pelo marrom que parecia ser de um urso. Todas as balas foram absorvidas no corpo da criatura e emergiram um segundo depois, como se a pele que se contorcia as tivesse simplesmente cuspido para fora.

Bem no alto, o dragão rugiu e estendeu suas asas enormes. Uma rajada de chamas irrompeu da boca da fera e lançou-se em direção a eles.

As mãos de Zoya se ergueram num instante e um domo de ar se formou sobre a cabeça deles. As chamas bateram contra a barreira. Nikolai conseguiu sentir o calor chamuscando suas sobrancelhas.

A rajada cedeu e o dragão guinchou de novo, girando acima.

— Acho que podemos dizer que estamos em desvantagem — observou Nikolai.

— Abaixem as armas — disse o monstro, em um coro de vozes com cem bocas.

— Logo mais — respondeu Nikolai. — No momento estou achando-as muito reconfortantes. Yuri, diabos, erga-se e pelo menos tente parecer que pode lutar.

— Você não entende. — Yuri tinha os olhos marejados.

— Isso está inteiramente correto.

— Eu vou erguer as areias de novo — afirmou Zoya. — Se trouxer uma tempestade grande o suficiente, teremos cobertura para chegar a... a algum lugar. Você vai precisar manejar as velas; não vou poder controlar a tempestade e dirigir o esquife.

— Faça isso — concordou Nikolai, olhando para o cordame. Era primitivo, no melhor dos casos, mas ele tinha navegado mares mais revoltos que aquele.

Ele abriu fogo, tentando fornecer cobertura a Zoya enquanto ela esticava os braços e as areias da Dobra – ou o que quer que fossem – se erguiam com um sibilo. Não havia sutileza agora, nenhuma necessidade de disfarçar suas ações para enganar os peregrinos. Em vez disso, a tempestade surgiu com ímpeto, como um homem que acordava de um pesadelo, um muro súbito de força que rechaçou as criaturas enquanto as areias formavam uma parede em turbilhão para esconder a fuga do esquife.

Nikolai guardou os revólveres e agarrou as cordas, liberando a vela. A lona estalou, inflando-se, e levou para o leste e na direção do que ele esperava ainda serem as fronteiras da Dobra. O que quer que fossem aquelas criaturas, seu poder tinha que estar conectado àquele lugar.

Subitamente, o terreno sob eles pareceu despencar. O esquife adernou precariamente para estibordo quando uma das lâminas se soltou do casco. Zoya e Yuri perderam o equilíbrio, mas Zoya não vacilou. Mesmo de costas, ela manteve os ventos em movimento. Nikolai segurou as cordas com força, tentando usar a tempestade para ajudar a endireitar o esquife, mas o chão pinoteava como um animal selvagem, como se as próprias areias estivessem vivas.

O esquife se inclinou mais para cima, apoiado em uma única lâmina.

— Vamos tombar! — gritou Nikolai. Ele teve a sensação sinistra de que uma mão gigante estava deliberadamente derrubando-os nas areias.

Eles aterrissaram bruscamente em um monte. Nikolai se ergueu num segundo, agarrando Zoya e Yuri para rolá-los para a segurança. Mas o esquife caiu para o outro lado tranquilamente e as areias se acalmaram de imediato.

Sem a tempestade violenta de Zoya, os céus estavam limpos de novo. Uma forma emergiu da areia diante deles, depois outra e mais uma – um regimento de soldados de areia. Não tinham rosto, mas seus uniformes eram intricadamente detalhados. Pareciam as pinturas de antigos soldados ravkanos, o exército de Yaromir, o Determinado, vestindo peles e bronze – mas tudo forjado em areia. Zoya ergueu as mãos e mandou uma rajada intensa de vento contra as fileiras de soldados, mas eles continuaram firmes e imóveis.

— O que é isso? — perguntou Zoya.

Os soldados continuaram a emergir em uma onda, um exército que se estendia até o horizonte, onde o castelo ainda assomava.

— Acho que eles estão nos mostrando como estamos em desvantagem numérica — respondeu Nikolai.

— Eles quem?

Em conjunto, os soldados de areia deram um passo para a frente, o som como um tiro de espingarda. Zoya e Nikolai estavam de costas um para o outro, cercados. Ao lado deles, Yuri permanecia de joelhos, seu rosto iluminado em uma espécie de júbilo maníaco.

— Não sei lutar contra isso — disse Zoya. De alguma forma, sua voz estava firme, mas ele conseguiu ouvir o medo dela mesmo assim. — Essa é a parte em que morremos com coragem?

O dragão circulava acima. Se aquelas criaturas queriam Nikolai morto, tinham escolhido um modo elaborado de fazê-lo, então alguma outra coisa devia estar acontecendo – com sorte, algo que permitiria a ele negociar a segurança de Zoya e Yuri.

— Não, essa é a parte em que o rei de Ravka se rende e o amor que nunca tivemos sobrevive em baladas e canções.

— Nikolai — disparou Zoya —, nem pense nisso.

— Me dê outra opção, Nazyalensky. Um de nós precisa sobreviver a isso. — Então ele abaixou a voz. — Volte à capital e reúna os Grishas. — Presumindo que ela conseguisse voltar para Os Alta.

Ele jogou os revólveres na areia e ergueu as mãos, perscrutando as fileiras de soldados de areia, as figuras no céu, o corpo gigantesco do monstro pairando atrás do exército.

— Não sei bem para quem estou me rendendo...

O dragão se virou bruscamente no ar e mergulhou em direção a eles. Talvez pretendesse mesmo matá-los, no fim das contas.

— Zoya, se abaixe! — gritou Nikolai, pulando em direção a ela.

— Até parece — ela murmurou, empurrando-o para a areia e se posicionando diante dele com os pés firmes e os braços levantados.

O dragão cuspiu seu fogo e Zoya soltou a tempestade. Por um momento eles pareceram páreo um para o outro – uma cascata dourada de chamas contra um muro de vento. Então Zoya girou os braços em círculos e os esticou para os lados, como um maestro concluindo uma sinfonia. Nikolai não entendeu, mas no momento seguinte as chamas se apagaram. O dragão recuou, um arquejo engasgado emergindo de sua garganta. Zoya tinha roubado o seu fôlego; tinha banido o ar, privando o fogo do seu combustível, e deixara o dragão ofegando.

Nikolai pulou em direção às armas, pronto para aproveitar a oportunidade que ela oferecia – mas, antes que pudesse sequer mirar, o dragão soltou um rugido ensurdecedor. Suas mandíbulas se abriram e jorraram fogo. Dessa vez a chama ardia azul, mais forte e mais quente que antes, quente o bastante para derreter rocha – ou areia.

— Zoya! — berrou Nikolai, mas Zoya tinha fechado os punhos e os erguido de novo, contrapondo um vento gelado ao ataque do dragão.

Fogo azul iluminou o rosto dela. Seu cabelo sacudia como um corvo preto ao redor da cabeça e seus olhos faiscaram com um brilho cobalto, como se ela também ardesse com o fogo do dragão.

Zoya gritou quando as chamas do dragão golpearam o seu poder. Ela cerrou os dentes e Nikolai viu gotas de suor brotarem em sua testa. Ele abriu fogo contra o dragão, mas suas balas pareciam derreter antes de sequer se aproximarem das escamas da criatura. Gelo se cristalizou no esquife tombado, cobrindo as mãos de Nikolai e as fileiras de soldados de areia que os cercavam.

E então Zoya desabou. Ela caiu de joelhos e a tempestade de inverno evaporou, não deixando nada em seu encalço além de uma geada fina derretendo-se.

Nikolai se ergueu e foi até ela aos tropeços, certo de que estava prestes a vê-la ser consumida pelas chamas. Mas o dragão tinha contido seu fogo. Ele pairava no ar, observando.

— Zoya — chamou Nikolai quando caiu de joelhos ao lado dela, pegando-a nos braços antes que ela desabasse. A pele dela estava iluminada com a luz do poder Grisha, mas seu nariz estava sangrando e ela tremia.

O dragão aterrissou diante deles, dobrando suas vastas asas. Talvez quisesse brincar com sua comida.

— Não se aproxime — ordenou Nikolai, embora não tivesse meios de evitar o avanço da fera. Suas armas eram o mesmo que brinquedos. Yuri ainda estava de joelhos, oscilando como um bêbado que não conseguia decidir se valia a pena se levantar.

— O rei menino — disse o dragão, se aproximando como um predador, açoitando o rabo no ar. Sua voz era um rugido baixo, como um trovão em um pico distante. — O herói de guerra. O príncipe com um demônio enrodilhado no coração. — Nikolai não sabia se estava mais espantado porque a criatura podia falar ou pelo fato de saber o que tinha inspirado aquela viagem amaldiçoada.

O dragão se inclinou para a frente. Seus olhos eram grandes e prateados; suas pupilas, fissuras negras.

— Se eu quisesse feri-la ela já seria cinzas, garoto. Vocês todos seriam.

— Bem que parecia que você queria feri-la — disse Nikolai. — Ou é assim que a sua espécie diz um oi amigável?

O dragão bufou o que poderia ter sido uma risada.

— Eu queria ver do que ela era capaz.

Zoya soltou um uivo de pura angústia. Era um som tão desesperado, tão vulnerável, que Nikolai mal podia acreditar ter saído da boca da sua general.

— O que foi? — ele implorou, apertando o braço ao redor dela enquanto examinava seu corpo em busca de ferimentos ou sangue.

Mas ela se desvencilhou dele e começou a vasculhar a areia, outro lamento de raiva e dor arrancado do seu peito.

— Pelo amor dos Santos, Zoya, o que aconteceu?

Ela pegou algo que reluziu em sua mão e o apertou contra o peito, seus soluços diferentes de tudo que ele já ouvira. Ele levou um momento para forçar os dedos dela a se abrirem. Em sua palma, ele viu as metades quebradas da sua pulseira prateada. O amplificador dela tinha se estilhaçado.

— Não — ela soluçou. — Não.

— Sim — sibilou o dragão.

— Juris, pare com isso — disse uma mulher, emergindo dentre as fileiras de soldados. Ela usava um vestido de rosas desabrochadas que brotavam e morriam em vinhas enrodilhadas ao redor do seu corpo. Seu cabelo dourado era uma massa de abelhas que zuniam, enxameando e se aglomerando ao redor de seu rosto radiante. — Você teve a batalha que queria. Eles sabem o que estão enfrentando.

— É a primeira coisa emocionante que ocorre em anos, Elizaveta, e você parece determinada a me negar um pouco de diversão. Muito bem.

O dragão ergueu e baixou os ombros e então, diante dos olhos pasmos de Nikolai, pareceu encolher, tornando-se um homem imponente em uma cota de malha belamente forjada que reluzia como escamas pretas. Os soldados de areia se apartaram para revelar o monstro, cujo corpo ainda mudava de forma e agora estava coberto de olhos como se quisesse analisar cada centímetro deles.

— O que é isso? — exigiu Nikolai. — Quem são vocês?

— As pessoas não rezam pelos Santos? — perguntou o homem chamado Juris.

— Finalmente — choramingou Yuri, ainda ajoelhado. — Finalmente.

— Venham. — Elizaveta estendeu uma mão, as abelhas zumbindo gentilmente ao seu redor com um som que era quase reconfortante. — Vamos explicar tudo.

Mas a mente de Nikolai já saltara por um abismo até um território absurdo. Sankta Lizabeta, que tinha sido martirizada em um campo de rosas. Sankt Juris, que...

— Você matou o dragão — disse Nikolai. — Está... está em todas as histórias.

— Às vezes as histórias erram nos detalhes. — Juris abriu um sorriso reluzente. — Venha, rei menino. É hora de conversarmos.


ISAAK ESTAVA FAZENDO o seu melhor para não suar dentro do uniforme, mas o esforço só o fazia suar ainda mais. Não era tanto a dor da transformação que o incomodava, mas sim a proximidade de Genya Safin enquanto movia os dedos sobre o seu nariz e testa. Ele passara quase dois dias trancado com ela em uma sala de treinamento geralmente ocupada pelos Corporalki. O local não tinha janelas, e a única porta era vigiada por um dos gêmeos Bataar. A luz para o trabalho cuidadoso de Genya vinha da vasta claraboia acima, o vidro tão transparente que só podia ter sido feito por Grishas.

Isaak tinha pouco a fazer exceto ficar tão imóvel quanto possível, encarar Genya e deixar a mente vagar pelo caminho que o levara àquela situação incompreensível. Será que começara com a morte do pai? Com o recrutamento? Teria começado durante a campanha no norte, quando ele servira sob Nikolai Lantsov? Seu príncipe tinha acabado de completar dezoito anos, sendo apenas alguns meses mais velho que o próprio Isaak. Ele passara a admirar seu comandante, não só pela coragem, mas pelo modo como conseguia achar uma solução para qualquer aperto. Ele nunca se esquecia de um nome, nunca deixava de perguntar sobre um parente enfermo ou o estado de um ferimento.

Depois da batalha de Halmhend, o príncipe tinha visitado a enfermaria para falar com os feridos. Passara horas lá, papeando junto à cama de cada soldado, encantando cada enfermeira, animando os espíritos. Quando se sentou ao lado do catre de Isaak, encheu seu copo de água e até mesmo o ergueu aos lábios dele para que pudesse beber, Isaak ficou tão pasmo que teve que se lembrar como é que se fazia para engolir água.

Eles tinham falado sobre a infância de Isaak e suas irmãs, e ele se viu contando ao príncipe tudo sobre o seu pai, que trabalhara como tutor na casa do barão Velchik. Isaak não falava da morte do pai havia anos e nunca contara a ninguém sobre como sua vida mudara após a tragédia, como sua família fora obrigada a deixar a propriedade do barão e se estabelecer em um quartinho alugado acima da loja de uma costureira, onde a mãe fizera o seu melhor, com serviços de costura, para alimentar e vestir Isaak e suas irmãs.

O príncipe tinha elogiado o dom de Isaak com línguas e sugerido que ele cultivasse esse talento agora que estava para deixar o front.

— Não sei se minha família consegue sustentar meus estudos — admitiu, um pouco envergonhado. — Mas certamente vou considerar, Alteza.

Ele tinha voltado para casa e começado a procurar trabalho assim que possível. Meses se passaram enquanto Isaak aceitava todo tipo de bico e esperava seu corpo sarar para poder voltar à ativa e ao salário de que a família tão desesperadamente precisava. Então, uma noite, chegou em casa e viu a mãe esperando por ele com uma carta. Ele tinha passado um longo dia jogando esterco com uma pá, trabalho pelo qual recebera o total de seis ovos, que carregara para casa com todo o cuidado nas dobras da camisa. Quase derrubou todos eles quando viu que a carta que a mãe segurava tinha o selo de cera azul-claro da águia dupla do príncipe.

Caro Isaak,

Estou felicíssimo ao ver que ambos sobrevivemos à minha liderança. Se estiver disposto a deixar seu vilarejo e empreender a jornada árdua até Os Alta, há uma posição esperando por você na guarda real no Grande Palácio. Você terá que passar muito tempo em pé, não parecer entediado ao longo de alguns dos eventos mais enfadonhos já inventados pela humanidade, abrir portas e manter seus botões polidos, então eu não o culparia se preferisse literalmente qualquer outra profissão. Mas, se tiver a coragem de enfrentar tais horrores, também encontrará meus próprios tutores felizes em ensinar-lhe as línguas de sua escolha. Espero que escolha shu, kerch e zemeni, dado que são as línguas que mais bem serviriam a um príncipe ou rei, mas você é certamente livre para saborear a poesia kaelish. Eu fiz isso, e meu estômago ainda não parou de doer.

Com apreço,

Nikolai Lantsov,

Grande duque de Udova,

Príncipe de Ravka etc.

A mãe e as irmãs de Isaak tinham se reunido para tocar o papel caro e grosso e apertar os dedos contra os traços do selo de cera. A mãe havia chorado – tanto porque o filho estava partindo como porque o príncipe lhes concedera aquela enorme honra. Posições na guarda do palácio eram geralmente reservadas para heróis de guerra e filhos da baixa aristocracia.

Quanto a Isaak, passou o resto da semana cobrindo buracos no telhado que o proprietário da casa se recusava a consertar e, quando acabou o trabalho, beijou a mãe e as irmãs mais novas e prometeu que escreveria sempre que pudesse. Calçou as botas do exército, vestiu seu casaco cheio de remendos e partiu para a capital.

Isaak gostava do seu trabalho no palácio, da paz de Os Alta após o caos da guerra e das privações em casa, do prazer de aprender línguas nas horas vagas. Com o salário que mandava para casa todo mês, sua família pôde se mudar para um chalé confortável, com um jardim grande o bastante para cultivar vegetais e uma janela voltada para o norte, onde a mãe podia costurar ao sol.

Nem sempre era fácil. Ele não conhecia nada além dos confins da sua cidadezinha natal e da rotina do exército, e não tinha certeza do que achava mais intimidador: os pratos com filigrana dourada, as damas com suas joias, ou simplesmente a visão dos soldados do Segundo Exército com seus keftas vermelhos, azuis ou roxos vagando pela propriedade. Mas, com o tempo, tinha encontrado o seu lugar e se adaptado aos ritmos e exigências da vida palaciana. Quando o Darkling atacou o trono, Isaak pegara em armas para apoiar o nome Lantsov. E, quando o príncipe Nikolai se tornara o rei Nikolai, ele ficara em posição de sentido na capela recém-construída e observara, orgulhoso, seu rei ser coroado.

A vida seguiu em frente. Isaak se tornou fluente em shu, zemeni, kerch e suli. Ganhava um dinheiro extra trabalhando como tradutor para a coroa e, apesar dos alertas do rei, desenvolveu um gosto por poesia de todos os tipos.

Então viera a convocação. Isaak estava de guarda na entrada da ala sul quando Tamar Kir-Bataar chegou para procurá-lo. Ficou confuso e bastante assustado. Não era todo dia que alguém era chamado diante do Triunvirato Grisha – embora ele tivesse ficado aliviado ao descobrir que Zoya Nazyalensky ainda estava viajando com o rei, então pelo menos ele poderia evitar o seu olhar de desdém fulminante. Ela era capaz de murchar os colhões de um sujeito só erguendo uma sobrancelha.

Ele tinha passado pouco tempo no Pequeno Palácio e nunca se aventurara além do Salão do Domo Dourado, mas Tamar o conduziu através das portas duplas com o emblema do feixe de flechas do Triunvirato e por corredores sinuosos até uma salinha, recoberta com elaborados mapas de Ravka e do mundo.

Genya Safin e David Kostyk estavam lá, junto com o gêmeo de Tamar, Tolya, que era tão alto que sua cabeça quase tocava o teto, e com quem Isaak ocasionalmente trocava volumes de poesia. Ele ficou surpreso ao ver ambos os gêmeos – em geral, um deles sempre podia ser encontrado na companhia do rei.

— Capitão Andreyev, não quer se sentar? — Genya Safin tinha perguntado. Para seu espanto, ela lhe servira chá e perguntara sobre a sua saúde, e só então dissera as palavras que mudariam o rumo da sua vida: — O rei está desaparecido.

A história que se seguiu de fato era estranha, e Isaak sabia que estava ouvindo apenas as informações estritamente necessárias: o rei Nikolai e a comandante Nazyalensky estavam viajando com os Bataars quando desapareceram nas areias do Não Mar. Embora os gêmeos tivessem procurado tão extensivamente quanto a discrição permitia, não tinham encontrado nenhum sinal deles.

— Não sabemos se o rei precisa de resgate ou se está além disso — disse Genya. — Mas sabemos que, se nossos inimigos descobrirem sobre o desaparecimento, certamente tirarão vantagem da nossa vulnerabilidade. Não há uma linha de sucessão clara para o trono de Ravka, e é essencial que ninguém descubra que estamos sem um governante até que o rei possa ser encontrado ou uma estratégia posta em prática.

— É claro — murmurou Isaak, pensando no pânico que isso criaria entre o povo.

Genya respirou fundo.

— Acontece que, daqui a duas semanas, dezessete princesas, aristocratas e damas refinadas vão chegar a Os Alta, acompanhadas por seus criados e cortesãos, todas esperando encontrar Nikolai Lantsov e se tornar a rainha de Ravka. Infelizmente, estamos com um monarca a menos. E é aí que você entra.

— Eu?

— Precisamos que interprete o papel do rei.

Isaak sorriu porque não conseguiu pensar em outra resposta. Embora não entendesse a piada, estava disposto a fingir. Mas Genya Safin não retribuiu o sorriso.

— Era um plano de contingência que o próprio rei concebeu para o caso de estar ferido ou... incapacitado — ela disse gentilmente. — Mas não tínhamos motivo para crer que precisaríamos usá-lo tão cedo, ou com tão pouca preparação. Você estava na lista de candidatos. Tem a altura aproximadamente certa. Sabe falar várias línguas. Acredito que posso esculpi-lo o suficiente para se parecer com o rei a ponto de enganar os guardas que o protegem há anos.

— Sentado, pelo menos — ponderou Tolya.

— Correto — confirmou Genya. — Parecer com Nikolai só será o primeiro desafio. Falar como ele, andar como ele e todo o resto... bem, isso dependeria de você.

— Eu... vocês não podem querer mesmo que eu finja ser ele — protestou Isaak. Era impensável. Absurdo.

— Podemos — disse Tolya, com os braços enormes cruzados. — E queremos.

— Com certeza o evento pode ser adiado. Se o rei deve escolher uma rainha...

— A escolha da noiva pode ser adiada — afirmou Tamar. — Mas há questões de segurança que não podem. Recebemos informações sugerindo que uma guarda da Tavgharad pode estar pronta para desertar. Essa pode ser nossa única chance de estabelecer contato com ela e descobrir a localização de importantes instalações militares shu.

Tavgharad. A tradução literal era “punho de pedra”, mas Isaak sabia que a palavra se referia às soldadas de elite que protegiam e serviam a família real shu. Se uma delas estava disposta a traí-los, ele nem imaginava as informações que poderiam ser obtidas.

Tamar Kir-Bataar tinha olhado para ele com olhos dourados severos:

— O seu país precisa de você.

Mas tinha sido Genya, com sua boca com cicatrizes, que o convencera ao acrescentar:

— E o seu rei também.

Isaak tinha dito sim. É claro que tinha dito sim. Era seu dever como soldado e o mínimo que podia fazer pelo rei que fizera tanto por ele e sua família.

E foi assim que tudo começou – as aulas de comportamento, elocução, como se sentar e se levantar corretamente. Isaak não tinha apenas que fingir ser um homem de fortuna e meios; tinha que fingir ser um rei. E não qualquer rei, mas um rei menino que se tornara uma lenda. Nikolai era tudo que Isaak não era. Confiante, seguro, cosmopolita. O único dom de Isaak era a facilidade com línguas – e até isso era uma desvantagem, dado que ele falava shu melhor que o rei e tinha um sotaque zemeni menos evidente.

Mas a parte mais estranha de todo o processo foi o tempo que ele passara ali embaixo, sob aquele domo de vidro, suando dentro das roupas na presença de Genya Safin – com seu único olho cor de âmbar e seu cabelo da cor do pôr do sol. Mesmo que soubesse que ela só estava cumprindo o seu dever, era difícil não sentir que ela o estava estudando e cobrindo-o de atenções, e ele se viu se apaixonando um pouquinho por ela. Era uma paixonite boba. Ela estava claramente apaixonada por David Kostyk, o Fabricador genial que ficava sentado em silêncio ao longo de muitas daquelas sessões, lendo pilhas de documentos e rabiscando em um bloco de desenho gigante. Mas o fato de ela preferir homens modestos só o fez gostar mais dela. Uma de suas cicatrizes curvava o canto esquerdo da boca um pouquinho para baixo, e ele se pegava sonhando acordado em beijá-la ali, antes de ser rapidamente trazido de volta à realidade por um cutucão duro no ombro.

— Sente-se reto, Isaak — ela dizia, ou: — Você está bloqueando a luz, Isaak.

Às vezes outras pessoas vinham ler para ele livros sobre história kerch ou questioná-lo sobre rotas de comércio enquanto Genya trabalhava. Outras vezes eles falavam de estratégia, e ele tinha que ficar sentado como um punhado de argila.

— Podemos tirá-lo discretamente do palácio através dos túneis quando anoitecer — disse Tamar, girando um dos seus machados de um jeito que fez Isaak suar ainda mais —, e então encenar o rei voltando da sua peregrinação, na manhã seguinte. Vai parecer que ele só fez uma parada na propriedade do conde Kirigin.

— Como explicamos a ausência de Zoya? — perguntou Tolya.

Genya se reclinou para examinar o trabalho que estava fazendo no queixo de Isaak.

— Dizemos que ela ficou para trás e foi para Os Kervo. — Ela esfregou os olhos e pegou sua xícara de chá. — Eu não entendo. Ninguém simplesmente desaparece.

— Conte com Nikolai para fazer o impossível — disse Tolya.

— Talvez ele só quisesse umas férias — acrescentou Tamar.

Tolya grunhiu.

— Talvez Zoya tenha finalmente se cansado dele e o enterrado sob uma duna de areia.

Mas Genya não riu.

— Ou talvez tenha sido o Apparat, que retomou o hábito de promover golpes de Estado.

— Se for o caso — ponderou David —, ele logo virá atrás de nós.

— Obrigada, amor. Isso é muito encorajador.

Tamar parou de girar o machado.

— Se o Apparat estivesse por trás disso, a esta altura imagino que já teria agido para expor o desaparecimento do rei.

— De qualquer forma — observou Tolya —, teremos que mantê-lo longe de Isaak. O sacerdote é astuto demais para não perceber que o rei... não é ele mesmo.

Genya afundou numa cadeira e enterrou a cabeça nas mãos. Isaak nunca a vira tão derrotada, e seu coração se apertou.

— A quem nós queremos enganar? Isso não vai funcionar.

— Claro que vai — disse Tamar. — Tem que funcionar.

— Ele já está quase idêntico ao rei — garantiu David, examinando o rosto de Isaak. — Eu diria que é o seu melhor trabalho.

Genya dispensou os elogios com um gesto.

— O problema não são as feições. É o modo como Nikolai as habita, a curva da sua boca, a inclinação de sua cabeça. Podemos enganar os convidados, talvez até alguns cortesãos, mas os criados? Os ministros reais? Pessoas que o veem todo dia, que jantaram com ele e dançaram com ele? Esqueçam. Não temos chance.

— Sinto muito — desculpou-se Isaak. Ele odiava pensar que estava decepcionando seu país e seu rei, assim como a garota talentosa diante dele.

Genya jogou as mãos para o alto.

— É disso que estou falando. Nikolai jamais abaixaria a cabeça desse jeito ou se desculparia com tanta sinceridade.

— Sinto muito — Isaak lamentou de novo, sem pensar, então se encolheu.

— Não temos outra opção — avaliou Tamar. — Podemos cancelar a festa e arriscar que a ausência de Nikolai se torne pública ou assumir o risco.

— E se formos descobertos? — perguntou Tolya.

— Nem sei do que seríamos culpados — refletiu David. — Imitar um rei é considerado traição se você está fazendo em prol do próprio rei?

Isaak engoliu em seco. Traição. Ele nem tinha pensado nisso.

— Podemos estar oferecendo ao Apparat um jeito fácil de eliminar toda a liderança Grisha com um único golpe — enunciou Tamar.

Genya suspirou.

— Isaak, sei que você está fazendo o seu melhor, mas pedimos demais de você. A ideia era loucura desde o começo.

Isaak odiava ver aquelas pessoas corajosas perderem a esperança. Ele se lembrou de Nikolai Lantsov sentado ao lado da sua cama na enfermaria, pensou no sorriso da mãe e nas faces rechonchudas das irmãs da última vez que voltara para casa.

Ele se reclinou, apoiando um braço no topo da cadeira, e disse com toda a arrogância natural e preguiçosa que pôde reunir:

— Genya, minha querida, peça um licor. Vocês não podem esperar que eu suporte uma catástrofe inevitável sóbrio desse jeito.

Eles o encararam.

David bateu nos lábios um dedo manchado de tinta.

— Melhor.

— Melhor? — exclamou Genya, batendo palmas com alegria. — Foi perfeito! Faça de novo!

Isaak sentiu uma pontada de pânico, mas então arqueou uma sobrancelha.

— Está me dando ordens agora? Espero que isso signifique que posso tirar uma soneca real.

Tamar sorriu largo. Tolya soltou um grito de comemoração. Genya se inclinou e estalou um beijo na bochecha de Isaak – e Isaak fez algo que Nikolai Lantsov jamais teria feito.

Ele corou.


O ESQUIFE FOI ABANDONADO e as areias carregaram Nikolai, Zoya e Yuri para o palácio gigante, as dunas deslizando sob os pés deles de um jeito que fazia o estômago de Nikolai revirar. Ele se orgulhava por sua facilidade de adaptação, mas uma coisa era implementar uma nova tecnologia, adotar um novo combustível ou ousar vestir uma camisa sem colete para o jantar. Agora, ver seu entendimento do mundo natural estraçalhado em uma única tarde, era uma história completamente diferente.

— Você não parece muito bem, rei menino — ribombou Juris, que tinha reassumido a forma de dragão.

— É um meio de transporte incomum. Suponho que você não consideraria nos levar nas costas.

O dragão bufou.

— Só se você retribuir o favor.

Nikolai teve que inclinar o pescoço para observar o palácio quando eles se aproximavam. Nunca tinha visto uma estrutura tão vasta. Teria sido preciso um regimento de engenheiros trabalhando por mil anos para imaginar uma criação como aquela, que dirá construí-la. Os palácios e torres estavam aglomerados ao redor de três pináculos principais: um de pedra preta, um do que parecia ser âmbar brilhante e um do que só podiam ser ossos. Mas havia algo errado no lugar. Ele não viu sinais de vida, nenhum pássaro sobrevoando, nenhum movimento nas muitas janelas, nenhuma figura cruzando as inúmeras pontes. Tinha a forma de uma cidade, mas passava a impressão de uma tumba.

— Não há mais ninguém aqui? — ele perguntou.

— Ninguém — respondeu o monstro cambiante, em um coro de vozes de barítono pontuadas pelo rosnado de um urso. — Por quase quatrocentos anos.

Quatrocentos anos? Nikolai olhou para Zoya, mas o olhar dela estava perdido a distância, sua mão fechada ao redor do pulso esquerdo nu.

A areia se ergueu, levando-os mais para o alto, e Nikolai viu que os três pináculos cercavam uma estrutura com domo: uma série de varandas e palácios e cascatas de areia que tremeluziam no crepúsculo cinzento.

Eles passaram sob um arco grande até uma câmara circular ampla, cujas paredes cintilavam com mica. A areia abaixo se tornou pedra e uma mesa redonda se ergueu do chão, seu centro, um geodo leitoso. Elizaveta gesticulou para que eles se sentassem nas cadeiras de pedra que emergiram ao lado dela.

— Infelizmente não temos comida ou bebida a oferecer — ela informou.

— Aceitaremos respostas — rebateu Nikolai.

Yuri se ajoelhou no chão de pedra, curvando a cabeça e murmurando no que Nikolai achava ser ravkano litúrgico, dado que só conseguia entender uma ou outra palavra – prometido, prenunciado, escuridão.

— Por favor, pare com isso — pediu Elizaveta, com as abelhas zumbindo aflitas. — E por favor, sente-se.

— Deixe-o; ele gosta de se humilhar — avisou Juris. Ele dobrou as asas e se acomodou no chão a uma boa distância de Yuri. — Por onde começar?

— O mais tradicional seria dizer quem diabos são vocês.

— Achei que isso já estava estabelecido.

— Sim. Mas a santidade requer um martírio, e vocês parecem todos muito vivos. A não ser que isto seja o além-vida, e nesse caso estou muito malvestido. Ou muito bem-vestido. Suponho que dependa da sua ideia de paraíso.

— Ele sempre fala tanto assim? — Juris perguntou a Zoya, mas ela não disse nada e só ergueu os olhos para a faixa extensa de céu sem cor acima deles.

— Todos nós morremos em algum momento e depois renascemos — explicou Elizaveta. — Às vezes não exatamente como éramos. Você pode nos chamar como quiser, Grishas, Santos...

— Relíquias — sugeriu Juris.

Elizaveta apertou os lábios.

— Não gosto nem um pouco desse termo.

Yuri soltou um pequeno soluço extasiado.

— É tudo como foi prometido — ele balbuciava. — Tudo que eu deveria esperar...

Elizaveta enviou uma videira para se enrodilhar no ombro dele como um braço tranquilizador.

— Basta — ela disse gentilmente. — Você está aqui agora e deve se acalmar.

Yuri apertou a videira e escondeu o rosto nas folhas, chorando. O grande estudioso não tinha aguentado muito.

— Onde estamos, exatamente? — perguntou Nikolai.

— Na Dobra das Sombras — respondeu uma das bocas do monstro, que havia se apresentado como Grigori. Sankt Grigori. Pelo que Nikolai se lembrava, ele tinha sido destroçado por ursos, embora isso não explicasse exatamente sua forma atual. — Uma versão dela, da qual não podemos escapar.

— Alguma parte de tudo isso importa? — perguntou Zoya, entorpecida. — Por que nos trouxeram aqui? O que vocês querem?

Juris voltou os olhos de fenda para ela, seu rabo longo e sinuoso arranhando o chão.

— Veja como a bruxinha se lamenta. Como se ela soubesse o que perdeu ou o que pode ganhar.

Nikolai esperava ver os olhos de Zoya arderem de raiva, mas ela só continuou a contemplar o céu passivamente. Vê-la assim, sem a energia mordaz e perigosa de sempre, era mais perturbador do que qualquer uma das visões bizarras que eles tinham encontrado. O que acontecera com ela? O amplificador significava tanto assim? Ela ainda era forte sem ele. Ela seria forte com os dois braços amarrados às costas e carregando bolas de chumbo.

— Gostaria de ter trazido vocês a outro lugar, jovem Zoya — disse Elizaveta. — Já tínhamos poder antes que a palavra Grisha sequer fosse sussurrada, quando o extraordinário ainda era chamado de milagre e magia. Vivemos vidas tão longas que fazem a história de Ravka parecer um instante fugaz. Mas este lugar, este ponto específico da Dobra, sempre foi sagrado, um lugar onde nosso poder atingia seu ápice e onde estávamos mais profundamente conectados com a criação no coração do mundo. Aqui, qualquer coisa era possível. E aqui fomos presos quando o Darkling criou a Dobra.

— O quê? — perguntou Zoya, uma faísca de interesse, enfim, entrando em seus olhos.

— Estamos entrelaçados no tecido do mundo de um modo que nenhum outro Grisha está, os fios apertados pelos anos e pelo uso do nosso poder. Fomos atraídos para cá quando o Darkling desafiou a ordem natural do mundo, e, quando o experimento dele com o merzost fracassou, ficamos presos dentro das fronteiras da Dobra.

— Não podemos sair daqui — explicou Grigori. — Não podemos assumir a forma física em outro lugar.

— Forma física — desdenhou Juris, batendo o rabo no chão. — Nós não comemos. Não dormimos. Eu não me lembro mais o que é suar ou ter fome ou sonhar. Cortaria minha asa esquerda só para ouvir meu estômago roncar ou sentir o gosto de vinho de novo, ou mijar por uma janela.

— Você tem que ser tão vulgar? — perguntou Elizaveta, com um ar cansado.

— Sim — retrucou Juris. — Aborrecer você é meu único entretenimento.

Grigori se acomodou na forma do que pareciam ser três cabeças de urso encimando o corpo de um único homem gigante, e cruzou dois pares de braços.

— Nós suportamos esse crepúsculo sem fim porque acreditávamos que nosso purgatório terminaria com a morte do Darkling. Ele tinha muitos inimigos, e esperávamos que tivesse vida curta. Mas ele viveu por muito tempo...

— Tempo demais — resmungou Juris.

— Sobreviveu e se tornou quase tão poderoso quanto um de nós — concluiu Grigori.

O dragão bufou.

— Não exagere.

— Bem, quanto um de nós em nossa juventude — emendou Elizaveta. — Então, por fim, chegou o momento em que a Dobra foi destruída e o Darkling foi morto. No entanto, nossos vínculos não se romperam. Permanecemos prisioneiros. Porque o poder do Darkling continua vivo... em você.

Nikolai arqueou as sobrancelhas.

— Então naturalmente eu tenho que morrer. Isto é tudo muito civilizado, mas, se queriam me assassinar, por que não fizeram isso durante a batalha?

Juris bufou de novo, expelindo vapor das enormes narinas.

— Aquilo mal pode ser chamado de batalha.

— Então durante aquele coquetel delicioso em que vocês nos perseguiram e tentaram atear fogo ao meu cabelo.

— Não podemos matá-lo, rei menino. Primeiro, sabemos da instabilidade que isso causaria em seu país, e não desejamos ver mais pessoas morrerem se não for necessário. Além disso, mesmo que você morresse, o poder poderia muito bem sobreviver. Não, a maldição do Darkling deve ser extraída por fogo.

— Obisbaya — pronunciou Nikolai. — O Espinho Ardente.

Elizaveta assentiu.

— Então você conhece o velho ritual.

— Então é verdade — exclamou Yuri. — É tudo verdade! Esse é o local do bosque de espinheiros para onde os primeiros membros da Guarda Sacerdotal vieram.

— Parabéns, Yuri — disse Nikolai. — Parece que você vai poder me queimar numa pira, no fim das contas.

— Pira? — perguntou Grigori.

— Não haverá pira — retrucou Elizaveta. — O bosque de espinheiros é mais velho que todos nós, mais antigo que a própria magia. Essa é a madeira como os primeiros altares foram feitos e as paredes do Pequeno Palácio construídas. Eu posso erguê-lo a partir das raízes sobreviventes sob a Dobra, para começar o ritual, mas então você precisaria chamar o monstro em seu interior e matá-lo.

— Vocês criaram aqueles milagres — disse Zoya. — A ponte, as rosas, o terremoto, as estátuas sangrando, o disco preto, todos eles, só para nos trazer aqui.

— A Era dos Santos — declarou Yuri. — Assim como ele prometeu.

A videira de Elizaveta se apertou um pouco mais ao redor dos ombros do monge.

— Nosso poder ainda é capaz de se estender além dos limites da Dobra, mas só em locais onde somos venerados.

— O poder de um Grisha não depende da fé — retrucou Zoya, com raiva.

— Tem certeza disso, bruxinha? — perguntou Juris.

Zoya olhou diretamente para ele com uma expressão inabalável, e Nikolai sabia que ela estava planejando mil punições para o dragão. Ele sentiu uma pontada de alívio com a promessa de retribuição nos olhos dela.

Mas não podia se dar ao luxo de ficar debatendo os detalhes técnicos do poder Grisha.

— Você diz que querem que eu chame o monstro, mas a coisa dentro de mim não segue ordens.

— Então você deve ensiná-la a fazer isso — disse Juris.

Elizaveta bateu palmas e rosas desabrocharam em seus pulsos e envolveram os seus dedos.

— Depois que os espinhos se erguerem, eles vão perfurar seu corpo. Se você não derrotar a sombra dentro de si, eles vão queimá-lo de dentro para fora.

Um pouco como Sankt Feliks dos Ramos de Macieira, afinal. De repente, a pira não parecia tão ruim.

— Ainda bem que não sinto cócegas.

— Quais são as chances de ele sobreviver? — perguntou Zoya.

Rosas desabrocharam nos ombros de Elizaveta.

— Como Juris explicou, não temos nenhum desejo de desestabilizar Ravka.

— Isso não é uma resposta.

— Vai ser... perigoso — admitiu Elizaveta. — Há modos de prepará-lo para a provação, mas não posso prometer que ele vai emergir incólume.

— Ou que sequer vai emergir — disse Juris.

Elizaveta suspirou.

— É mesmo necessário considerar o pior cenário possível?

— Eles têm que saber.

Nikolai se remexeu na cadeira de pedra. Não tinha sido feita pensando em conforto.

— Então, depois que vocês me espetarem e assarem e eu lutar contra meus demônios literais, o que acontece?

— O poder do Darkling será erradicado de uma vez por todas. As fronteiras do Não Mar vão se romper. A vida retornará à Dobra e nós seremos livres.

— Livres para fazer o quê, exatamente? — perguntou Zoya. Era a pergunta certa. Ela podia estar em luto pelo amplificador perdido, mas era sempre uma general. E talvez Nikolai estivesse desesperado demais pela cura para pensar como um rei. Talvez um poder como o que eles tinham acabado de presenciar devesse ser contido.

— Você não sabia, bruxinha? — disse Juris. — Grandes poderes sempre têm um preço.

Elizaveta deu um aceno curto.

— Quando deixarmos os limites da Dobra, seremos mortais outra vez.

— Mortais? — perguntou Zoya.

— Otkazat’sya, vocês diriam. Sem poder Grisha. Humanos que viverão vidas breves e morrerão mortes permanentes.

Zoya estreitou os olhos.

— Por que vocês abdicariam de um poder desses?

— Não pense que foi uma escolha fácil — garantiu Elizaveta, com uma nota de amargura na voz. — Passamos centenas de anos debatendo a questão. Mas não podemos continuar assim. É isso que o universo demanda pela liberdade desta meia vida.

— Uma eternidade é o suficiente — disse Juris. — Eu quero andar pelo mundo outra vez. Retornar à costa da minha terra natal. Talvez me apaixonar de novo. Quero nadar no mar e me deitar ao sol. Quero envelhecer e passar para domínios que nunca explorei.

— Você precisar entender — acrescentou Grigori — que não é só a sua vida que corre risco, mas o seu país também. Se fracassarmos, se você não conseguir suportar o ritual, podemos abrir outro rasgo no mundo e fazer este lugar transbordar além das margens.

— Mas isso pode acontecer de qualquer forma — disse Elizaveta. — Tudo está conectado, atado à criação no coração do mundo. À medida que o poder dentro de você for se fortalecendo, não há como saber que tipo de reação em cadeia ele vai despertar.

— Vocês podem discutir a questão — declarou Grigori. — Mas tomem uma decisão depressa. O merzost é imprevisível, e a cada dia o controle do monstro fica mais forte.

— Não há nada para discutir — garantiu Nikolai. Eles tinham as respostas que buscavam, e o tempo era curto. — Quando começamos?


NAQUELA NOITE, NINA FICOU ACORDADA enquanto a respiração de Leoni se tornava profunda e regular. Seus olhos pesavam, mas ela trançou o cabelo no escuro e esperou, atentando para sons de movimento fora da janela estreita acima da cama. Como esperado, logo após a meia-noite ela ouviu vozes baixas e uma carroça sendo carregada. Levantou na ponta dos pés e viu lampiões acesos na lavanderia, e as Donzelas da Nascente carregando sacos que ela presumiu serem roupas embrulhadas com papel e corda.

Então seguiu depressa até o refeitório do convento – um lugar com horários restritos, que Hanne tinha certeza de encontrar vazio em determinados momentos. Se uma noviça infeliz estivesse procurando um lugar seguro para esconder roupas, aquele seria um lugar óbvio. Ela se pôs de joelhos no perímetro do salão, onde bateu de leve os nós dos dedos nos azulejos de ardósia do chão. Tinha quase perdido as esperanças quando suas batidas foram respondidas por um tunk estranho e ecoante. Oco.

Ela enfiou os dedos sob o azulejo e o ergueu. Botas, calças do exército, dois chapéus, um cinto de armas e – graças aos Santos – um longo vestido azul-claro com uma blusa branca do convento. Nina os vestiu sobre as roupas, prendeu as tranças em uma coroa desajeitada e se esgueirou para a cozinha – onde uma longa busca revelou, sob uma lata de farinha, a chave da cozinheira. Quando ela destrancou a porta da cozinha e emergiu no pátio, as Donzelas da Nascente estavam fechando as portas da carroça para partir.

Nina sabia aonde elas se dirigiam, então não se deu ao trabalho de tomar a estrada, cortando caminho entre as árvores e pegando uma rota mais direta para a entrada principal do velho forte. Também sabia que estava sendo imprudente. Deveria ter contado seus planos a Adrik e Leoni. Deveria ter esperado até eles investigarem melhor o local. Mas a realidade era que eles não podiam ficar muito mais tempo em Gäfvalle sem atrair suspeitas, as Mulheres da Nascente podiam perder seu acesso ao forte a qualquer momento e, se Nina fosse sincera consigo mesma, ela precisava agir. Precisava saber por que aqueles sussurros a trouxeram àquele lugar e o que tinha acontecido naquela colina. As mortas não haviam falado com Adrik ou Leoni. Elas tinham chamado por Nina – e ela pretendia responder.

Ela seguiu em ritmo acelerado, abrindo caminho entre as árvores e conferindo, pelas luzes da fábrica a distância, a direção para a qual se movia.

Apesar da tristeza e da raiva que carregara consigo para Fjerda, podia admitir que gostava de viajar no país. Gostava de ver o desenrolar das vidas fjerdanas comuns e lembrar que eles eram pessoas, e não monstros, que a maioria deles ansiava por prosperidade e paz, uma boa refeição e uma cama quente para dormir à noite. Mas também conhecia os preconceitos que muitos deles nutriam e sabia que ainda acreditavam que Grishas deveriam ser queimados na fogueira. E nunca se esqueceria do que o governo fjerdano era capaz, do sofrimento que ela suportara nas mãos dos drüskelle que a fizeram passar fome no porão de um navio, e do pesadelo que eram as celas Grishas na Corte de Gelo, onde Jarl Brum tinha tentado transformar o povo dela em armas contra si mesmos.

Nina alcançou as rochas com vista para a entrada principal a tempo de ver a carroça do convento chegar e os portões se abrirem. Aos tropeços, desceu o declive até a estrada, deslizando nos saltos e quase perdendo o equilíbrio completamente. O corpo que Genya lhe dera ainda parecia estranho, e ela nunca tivera talento para se mover furtivamente.

Esgueirando-se sob as sombras das árvores que flanqueavam a estrada, ela viu a última Donzela da Nascente passar pelas portas, com seu fardo de roupas. Só então emergiu na estrada e foi correndo até as portas, sem fôlego.

— Sinto muito — ela disse. — Fiquei para trás.

— Problema seu — disparou o guarda. — Sabe como essas portas são pesadas? Você pode esperar aqui pelas suas irmãs.

— Mas... mas... o senhor não entende... eu tive que... tive que fazer minhas necessidades — Nina sussurrou em tons de grande agonia.

— O quê?

— Eu tive que... me aliviar. — O guarda pareceu imediatamente consternado. Abençoados fossem os fjerdanos e seu puritanismo peculiar. — Tive que urinar. — Nina enfatizou a palavra. — Nas árvores.

— Isso... não é problema meu — ele balbuciou.

Nina forçou os olhos a marejarem.

— Mas eu precisava taaaaanto — ela choramingou. — E elas vão ficar tão br-bravas!

— Ah, em nome de Djel, não chore!

— Eu si-sinto muito — soluçou Nina. — Só não quero que gri-gritem comigo outra vez.

— Vai, vai! — disse o guarda, depressa, abrindo os ferrolhos e empurrando a porta para ela entrar. — Só pare com isso!

— Obrigada, obrigada — ela se desmanchou, fazendo uma mesura e fungando até que a porta se fechou atrás dela. A fábrica estava silenciosa, já fechada para a noite. Em algum lugar, ela sabia que haveria homens jogando cartas e se acomodando para dormir. Outros manteriam guarda.

Nina cruzou depressa a entrada que levava a uma câmara central imensa, cheia de maquinários pesados, suas formas grandes e silenciosas sob o luar aquoso que entrava das janelas. A sala seguinte revelou enormes tinas, mas era impossível dizer o que elas continham. Ela apoiou a mão contra a lateral de uma. Ainda estava quente. Será que estavam fundindo metais ali? Misturando corantes?

A sala seguinte trazia a resposta: pilhas infinitas de cilindros atarracados em formato de balas e do tamanho de abóboras – fileira após fileira de munição para tanques. Será que estavam apenas produzindo munições ali? Os venenos no rio seriam algum subproduto corrosivo das linhas de montagem? Mas, se fosse o caso, por que a mordida do lobo tinha atravessado o sangue dela como um raio? Não fazia sentido.

Nina não sabia bem aonde ir em seguida. A fábrica parecia muito maior agora que estava lá dentro. Ela desejou ter o dom de Inej como espiã, ou o talento de Kaz para tramoias, mas parecia só ter o dom de Jesper para tomar decisões ruins. Sabia que a ala leste estava desocupada e abandonada, então as Donzelas da Nascente tinham provavelmente se dirigido para a ala oeste, o coração doméstico do forte, onde os soldados comeriam, receberiam suas ordens e treinariam quando não estivessem operando a fábrica. Se ela fosse Inej, poderia subir nos beirais e provavelmente obter informações excelentes. Mas ela não era uma sombra minúscula e silenciosa com talento para empunhar facas.

Não era tarde demais para voltar. Ela tinha confirmado que aquilo era uma fábrica de munição, um alvo militar para os bombardeios de Ravka em caso de guerra. Mas os sussurros não cessaram de farfalhar e não queriam que ela fosse embora. Ela fechou os olhos e ouviu, deixando-os guiarem seus passos para a direita, para dentro do silêncio escuro da ala leste abandonada.

Todos os seus instintos protestavam que ela estava perdendo tempo enquanto percorria o corredor. Aquela ala estava deserta. Ela não vira luzes acesas nas janelas ao crepúsculo, e o teto do canto mais distante estava torto após ceder à neve ou ao tempo, e nunca fora consertado. Mas as vozes a impeliram adiante. Mais perto, elas sussurraram, vozes jovens e mais velhas. Tinham adquirido uma qualidade diversa agora – estavam mais nítidas, mais altas, a memória da dor vibrando em cada palavra.

A escuridão era tão profunda que ela teve que tatear as paredes, correndo os dedos sobre tijolos irregulares e torcendo para não tropeçar em algum maquinário abandonado e cair sobre o traseiro. Ela pensou no telhado caído. Será que acontecera algum tipo de acidente na fábrica, que os levara a abandonar aquela ala? Será que eram aquelas covas que ela tinha pressentido? As mulheres teriam trabalhado na linha de montagem e sido enterradas na montanha? Se fosse o caso, ela não encontraria nada naquele lugar, exceto uma tragédia antiga.

Então ela escutou um som – um choro alto e fino que arrepiou os pelos dos seus braços. Por um momento, não teve certeza se o som estava em sua cabeça ou se tinha vindo de algum lugar mais fundo na ala leste. Ela estava familiarizada demais com os mortos para acreditar em fantasmas.

Interessa de onde está vindo?, ela pensou, com o coração acelerado. O que um bebê estaria fazendo na ala abandonada de uma velha fábrica? Ela se obrigou a continuar se movendo junto à parede, atentando para os sons e ignorando a própria respiração irregular.

Por fim, viu uma faixa tênue de luz sob uma porta à frente. Parou. Se houvesse soldados do outro lado da porta, ela não teria como justificar sua presença ali. Estava longe demais do corpo principal do prédio para fingir que tinha simplesmente se perdido.

Ouviu um barulho atrás de si e viu o círculo oscilante de um lampião se aproximando. Espremeu-se contra a parede, esperando ver um soldado de uniforme, mas a luz do lampião revelou o perfil de uma mulher usando as roupas de uma Donzela da Nascente, com as tranças enroladas no topo da cabeça. O que ela estava fazendo tão longe das outras?

Quando a Donzela atravessou a porta, Nina vislumbrou outro corredor escuro, as trevas entrecortadas por lampiões dispostos a longos intervalos. Ela reuniu sua coragem e foi atrás da Donzela. Seguiu-a o mais perto que ousou, o coração martelando no peito conforme sons começavam a flutuar a partir da escuridão adiante – os murmúrios baixos de vozes femininas, alguém cantando o que parecia uma canção de ninar, e então um som doce e agudo de alegria. O riso de um bebê.

Os sussurros na cabeça dela se ergueram de novo, agora menos raivosos que saudosos. Quietinho, elas diziam, quietinho.

A Donzela da Nascente atravessou uma arcada até um... dormitório. Nina se escondeu nas sombras ao lado do arco, sem acreditar no que via à sua frente.

Mulheres e garotas estavam deitadas em camas estreitas enquanto as Donzelas da Nascente se moviam entre elas. Para além delas, Nina avistou uma fileira de berços de vime. Exceto por isso, a sala não tinha mobília; os equipamentos haviam sido levados da ruína empoeirada que era aquela ala da fábrica. As janelas tinham sido revestidas com papel preto – para evitar que a luz dos lampiões vazasse para fora e inspirasse perguntas.

Uma garota, que não podia ter mais que dezesseis anos, estava sendo acompanhada ao longo do corredor por uma Donzela da Nascente. Ela estava descalça e usava uma fina camisola cinza que se esticava sobre a barriga protuberante.

— Não consigo — ela gemeu. Parecia inexprimivelmente frágil, o estômago saliente contrastando com os caroços e ângulos afiados dos ossos.

— Consegue — incentivou a Donzela da Nascente, a voz firme enquanto conduzia a garota pelo cotovelo.

— Ela precisa comer — disse outra mulher do convento. — Não tomou o café da manhã.

A Donzela da Nascente soltou um tsk.

— Você sabe que não deve fazer isso.

— Não tenho fome — resfolegou a garota.

— Você pode caminhar para ajudar o bebê a chegar, ou eu posso dar semla para você. O açúcar vai te dar energia durante o parto.

A garota começou a chorar.

— Eu não preciso de açúcar. Você sabe do que eu preciso.

Um tremor atravessou Nina quando ela compreendeu. Ela reconhecia aquele desespero, aquela fome que fincava os dentes profundamente em alguém até transformá-la em puro desejo. Ela conhecia o anseio que transformava tudo com que a pessoa já se importara – amigos, comida, amor – em cinzas, até que ela só conseguia se lembrar do seu desejo pela droga. O corpo definhado, as olheiras fundas – aquela garota estava viciada em parem. E isso significava que ela devia ser Grisha.

Nina examinou a fileira de camas, olhando para as mulheres e garotas. A mais jovem parecia ter cerca de quinze anos, a mais velha talvez tivesse mais de trinta, mas a droga as arrasara tanto que era difícil avaliar. Algumas apresentavam barrigas um pouco salientes sob os cobertores finos, outras se curvavam sobre estômagos altos e protuberantes. Algumas podiam não estar grávidas – ou isso só não era visível ainda.

Nina sentiu o corpo tremer, com o trovejar do coração nos ouvidos. O que era aquele lugar? Quem eram aquelas mulheres?

Ajude-nos. Aquelas poderiam ser as vozes que ela ouvira? Mas nenhuma das mulheres olhava para Nina. Eram as mortas que a tinham chamado. Justiça.

A porta atrás de Nina se abriu de novo e, em conjunto, as pacientes nas camas viraram a cabeça, como flores buscando o sol.

— Ela chegou! — exclamou uma delas quando a Madre Superiora entrou. Estava empurrando um carrinho. As mulheres começaram a se erguer das camas, mas a Madre Superiora rosnou um “Quietas!” e elas afundaram obedientemente de volta nos travesseiros.

— Não quero pressa nem empurrões. Vocês vão receber sua injeção quando chegar a sua vez.

Nina estudou as fileiras de seringas no carrinho e o líquido rosado dentro delas. Ela nem tinha certeza se era parem, mas sentiu a atração da droga e podia jurar que o cheiro dela estava no ar. Um ano antes, ela teria aberto caminho com unhas e dentes até aquelas seringas sem pensar duas vezes sobre revelar sua identidade. Ela tinha sofrido muito para se livrar do vício e aprendera que usar seu novo poder a ajudava. Então se concentrou naquele poder, na corrente daquele rio frio e silencioso. Precisava de todo o raciocínio e calma que pudesse reunir, porque nada do que ela via fazia sentido.

Grishas sob a influência do parem eram mais que poderosos: podiam realizar coisas que seriam inimagináveis até com o amplificador mais extraordinário. Jarl Brum tinha feito experimentos com Grishas drogados na esperança de transformá-los em armas para usar contra Ravka – mas sempre sob condições cuidadosamente controladas. Seus prisioneiros Grishas ficavam confinados em celas especialmente construídas, que os proibiam de usar o seu poder, e o parem era misturado com um sedativo para tentar deixar os prisioneiros mais submissos.

Aquelas mulheres não estavam nem amarradas.

A Madre Superiora se moveu pela fileira, entregando seringas às irmãs, que injetaram o líquido laranja em braços estendidos. Nina ouviu alguns soluços, um grunhido baixo e prazeroso, um murmúrio de “Ela sempre começa naquela ponta, não é justo”.

A garota grávida que andava pelo corredor suplicou:

— Por favor. Só um pouquinho.

— Não agora que o bebê está para chegar. Pode colocar vocês dois em risco.

A garota começou a chorar.

— Mas você nunca dá para as mães depois que os bebês nascem.

— Então você só vai ter que engravidar de novo, não é?

A garota chorou mais alto, e Nina não sabia se era a fome pela droga ou o terror pelo que a Donzela da Nascente estava sugerindo que a fez esconder o rosto e soluçar.

As mulheres se reclinaram nas camas, flexionando os dedos do lado do corpo. O fogo nas lamparinas tremeluzia. Uma rajada de vento agitou uma pilha de lençóis. Névoa se reunia sobre a cama de uma garota – ela devia ser uma Hidro. Mas estavam todas dóceis, sem dar qualquer sinal de desafio. Grishas sob o parem não se comportavam assim. A droga era um estimulante. Será que fora combinada com outra substância? Seria isso que tinha envenenado os lobos? Se Nina conseguisse, de alguma forma, roubar uma seringa, seria Leoni capaz de desvendar qual nova atrocidade os fjerdanos tinham concebido? E como as garotas haviam sobrevivido por tempo suficiente sob a droga para completar uma gestação, talvez mais de uma?

Um bebê começou a chorar em um dos bercinhos. Uma Donzela da Nascente pegou uma seringa do fundo do carrinho e segurou a criança, aquietando-a.

— Pronto, queridinho — ela o consolou.

Nina se espremeu ainda mais contra a parede, temendo que as pernas cedessem. Não podia ser verdade. Se as mães estavam ingerindo parem... os bebês também estariam. Nasceriam viciados na droga. Seriam perfeitos escravos Grishas.

Nina estremeceu. Aquilo seria obra de Brum? De outra pessoa? Haveria outras bases dedicadas àqueles experimentos? Por que eu achei que esses pesadelos estariam limitados à Corte de Gelo? Como pude ser tão ingênua?

O olhar dela recaiu em uma mulher deitada em transe, o rosto quase tão pálido quanto o travesseiro. Uma jovem estava deitada na cama ao lado dela. Nina agarrou a parede para não desabar. Ela as reconheceu: eram a mãe e filha das docas de Elling. Birgir as mandara para lá. Nina desejou ter matado o homem mais lentamente.

Era isso que acontecia com as mulheres Grishas que não chegavam ao esconderijo em Elling? Elas estavam naquela sala? Garotas desaparecem em Kejerut. E não quaisquer garotas – Grishas.

Um sino tocou em algum lugar na fábrica. A Madre Superiora bateu palmas e várias Donzelas da Nascente se reuniram para segui-la.

— Boa noite, Marit — ela disse a uma das mulheres de uniforme enquanto saía. — Vamos assumir um turno para rendê-la amanhã à noite.

Nina se juntou a elas enquanto deixavam o dormitório. Ateve-se às sombras, tentando se firmar e pensar em sua tarefa seguinte – sair da fábrica. Mas sua mente estava fraturada e descontrolada, repleta das visões daquela sala.

Ajude-nos. As vozes das mortas. A dor das vivas.

À frente, ela podia ver as Donzelas da Nascente se aproximando dos guardas na porta principal.

— A atrasada encontrou vocês? — ela ouviu um dos guardas perguntar à Madre Superiora.

— Que atrasada?

— Sabe, com as tranças, de vestidinho. Igual a vocês.

— Do que está falando? Estamos todas muito cansadas e...

— Formem uma fila para contagem.

— Isso é estritamente necessário?

— Formem uma fila.

Nina não esperou para ouvir o resto. Deu meia-volta depressa, voltando pelo corredor em direção à ala leste, tentando manter os passos leves. A entrada principal não era mais uma opção. Se os guardas descobrissem o que uma Donzela da Nascente inesperada tinha...

Ela ouviu um sino diferente do anterior, alto e berrante. Um alarme.

Luzes se acenderam por toda a sua volta, cegando-a com seu brilho súbito.

Ela não ia conseguir alcançar o dormitório até o portão leste.

Nina se escondeu atrás de uma máquina empoeirada enquanto dois guardas passavam batendo os pés e empunhando as armas.

Ela ergueu os olhos. Várias janelas ali estavam quebradas, mas como alcançá-las? E o que haveria do outro lado?

Ela não tinha tempo para debater a questão. Àquela altura, os guardas e a Madre Superiora sabiam que uma Donzela da Nascente rebelde, ou alguém usando um vestido do convento, havia se infiltrado na fábrica. Nina precisava descer a montanha e estar de volta ao convento antes que alguém encontrasse sua cama vazia. Desajeitadamente, ela escalou o equipamento velho e estendeu as mãos para o peitoril da janela, fazendo força para se puxar. Conseguiu enfiar o pé entre dois tijolos e impulsionar o corpo para o peitoril de pedra.

Através do vidro quebrado, ela viu as luzes da cidade piscando a distância e montinhos de neve no chão da floresta lá embaixo, distante.

Ouviu passos e viu outro esquadrão de soldados armados avançando pela ala leste, com botas pesadas.

— Tranquem o perímetro — um deles estava dizendo. — Vamos revistar por área antes de voltar para o salão central.

— Como sabemos que sequer há alguém aqui? — reclamou outro.

Se eles olhassem para cima...

Mas eles seguiram em frente e suas vozes esvaneceram.

— Sem luto — ela sussurrou, então se jogou através do vidro quebrado.

Ela caiu e atingiu o chão com tudo. Seu ombro e quadril gritaram com a força do impacto, mas Nina abafou todos os sons enquanto rolava pela encosta, incapaz de frear seu ímpeto. Topou com a orla das árvores, bateu na base de um pinheiro e se obrigou a levantar-se com um empurrão.

Tirou um momento para se situar e então saiu correndo, desviando das árvores, mantendo as mãos erguidas para afastar galhos afiados e tentando ignorar a dor na lateral do corpo. Tinha que estar de volta ao convento e dentro do quarto antes que a Madre Superiora retornasse. Se não, Leoni e Adrik seriam pegos de surpresa e o disfarce de todos estaria comprometido.

Ela chegou a um córrego e o atravessou direto, os sapatos chapinhando na água rasa, e então se lançou numa corrida desabalada colina abaixo.

Ali, o convento – as janelas ainda estavam escuras, embora ela pudesse ver as lamparinas nos estábulos, no pátio da capela, e o prato de sobras que deixara para Trassel.

Nina correu, perdeu o equilíbrio e se endireitou, quase rolando enquanto tentava descer a montanha. Reduziu o passo quando chegou à orla das árvores, virando para o sul para evitar os estábulos.

Ela ouviu o som de cascos de cavalo e perscrutou o caminho. Viu a carroça, o cocheiro chicoteando os cavalos com força. A Madre Superiora estava voltando da fábrica, e Nina sabia que elas estariam revistando os quartos dali a um minuto.

Nina tirou os sapatos enlameados e se esgueirou para a cozinha, trancou a porta e enfiou a chave sob a lata de farinha. Voltou correndo para o quarto, já puxando as roupas sujas pela cabeça.

— O que está acontecendo? — perguntou Leoni, sonolenta, quando Nina entrou no quarto aos tropeços e fechou a porta com pressa.

— Nada — sussurrou Nina. — Finja estar dormindo.

— Por quê?

Nina ouviu portas batendo e vozes na entrada do convento. Ela arrancou o resto das roupas, limpou o rosto e as mãos com a parte interna da blusa e enfiou o vestido e a blusa sujos e molhados no baú ao pé da cama.

— Eu estive aqui a noite toda.

— Ah, Nina — gemeu Leoni. — Por favor, diga que só estava fazendo um lanchinho noturno.

— Isso mesmo. — Nina enfiou-se em um camisolão. — Um lanchinho bem enlameado.

Nina se lançou sob as cobertas um segundo antes que a porta se escancarasse e a luz do corredor enchesse o quarto.

Ela fingiu acordar com um susto.

— O que foi?

Duas Donzelas da Nascente entraram pisando forte, seus vestidos farfalhando. Nina podia ouvir vozes nos dormitórios acima delas, o estrondo de portas se abrindo e garotas sendo despertadas. Pelo menos não somos as únicas sob suspeita, pensou Nina. Talvez eles pensem que uma aluna escapou para visitar um soldado nas casernas.

— O que está acontecendo? — perguntou Leoni.

— Fique quieta — disparou uma das Donzelas da Nascente. Ela ergueu a lanterna para examinar o quarto.

Nina viu no mesmo momento que a Donzela da Nascente: um pingo de lama no chão, perto da base da cama dela.

A Donzela da Nascente entregou a lanterna à sua companheira e abriu o baú, fuçando lá dentro. Ela tirou o vestido e a blusa imundos de lá.

— Por que você tem o uniforme de uma noviça? — quis saber a Donzela da Nascente. — E por que eles estão cobertos de lama? Vou chamar a Madre Superiora.

— Não há necessidade. — A Madre Superiora estava na porta, o rosto arredondado severo, as mãos unidas diante da lã azul-escura do vestido. — Explique-se, Enke Jandersdat.

Nina abriu a boca – mas, antes que pudesse dizer uma palavra, Hanne apareceu atrás da Madre Superiora.

— As roupas são minhas.

— O quê?

— São minhas — repetiu Hanne, parecendo pálida e desnorteada, o cabelo solto flutuando em ondas espessas e castanho-avermelhadas sobre os ombros. — Eu fui cavalgar quando não deveria e caí do cavalo.

A Madre Superiora estreitou os olhos.

— Por que as esconderia aqui?

— Eu sabia que seriam descobertas no meu quarto, então pretendia lavá-las pessoalmente.

— E de alguma forma a viúva Jandersdat não notou uma pilha de roupas enlameadas em seu baú?

— Mila disse que as esconderia por mim até eu poder cuidar disso.

A Madre Superiora examinou o vestido imundo.

— A lama parece fresca.

— Eu saí esta manhã. Veja, as roupas são do meu tamanho, são grandes demais para Mila. É culpa minha, não dela.

— Isso é verdade? — a Madre Superiora perguntou a Nina.

Nina olhou para Hanne.

— É verdade? — insistiu a Madre Superiora.

Nina assentiu.

A Madre Superiora bufou, frustrada.

— Termine a revista — ela instruiu as Donzelas da Nascente. — Hanne, não sei como expressar minha decepção. Terei que escrever ao seu pai imediatamente.

— Eu entendo, Madre Superiora — disse Hanne, claramente infeliz. Não era fingimento. Ela arriscara seu futuro no convento para salvar Nina.

— E você, Enke Jandersdat — censurou a Madre Superiora. — Seu papel aqui era instruir Hanne na língua zemeni, não incentivar os comportamentos desordeiros dela. Terei que reconsiderar todo o nosso combinado.

— Sim, Madre Superiora — disse Nina, contrita, e observou a mulher conduzir Hanne por um corredor após fechar a porta atrás de si.

Leoni caiu de volta nos travesseiros.

— Por favor, diga que o que quer que você tenha descoberto na fábrica valeu a pena.

Nina se reclinou, o corpo ainda pulsando de adrenalina.

— Valeu a pena.

Mas ela tinha visto a expressão de Hanne enquanto a Madre Superiora a levava. Ela ia querer respostas.

Nina pensou na punição que Hanne enfrentaria, no que uma carta para o pai poderia significar. Ela devia muito à garota – talvez sua vida. Certamente lhe devia a verdade.

Ajude-nos.

Só que essa era a única coisa que não podia oferecer.


ZOYA PENSOU QUE ELES SERIAM ALOJADOS em novos aposentos. Em vez disso, Juris e Grigori partiram e, com um gesto de Elizaveta, a mesa e as cadeiras sumiram no piso. Um momento depois, novas paredes se ergueram ao redor deles. A areia se retorceu e arqueou, formando três portas ao redor de uma câmara central – todas feitas com a cor inerte e esvanecida de osso antigo.

Zoya não sabia quanto mais conseguiria suportar. O mundo parecia ter sido estraçalhado.

— Queria poder oferecer acomodações mais confortáveis — disse Elizaveta. — Mas este lugar tem parcos confortos. Descansem, se conseguirem.

O quarto de Zoya parecia pertencer a um antigo castelo: janelas pontiagudas, poltronas pesadas com estofamento de couro diante de uma lareira larga, uma cama com dossel enorme e cortinas de veludo. No entanto, não havia vidro nas janelas. Não havia couro nem veludo. Era tudo feito de areia fina, cada item, cada superfície forjada no mesmo tom de um tronco que o mar arrastou para a praia. O fogo que queimava atrás da grade da lareira tremeluzia azul como as chamas daquele dragão horrível. Era um quarto fantasma. A mão de Zoya voou para seu pulso. Precisava falar com Nikolai.

Ela abriu a porta – embora fosse difícil pensar naquilo como uma porta dado que não existia momentos antes.

Nikolai estava parado na entrada de um quarto idêntico ao dela.

— É como olhar para o rascunho de um projeto grandioso — ele comentou, virando-se lentamente para observar seus novos aposentos. Ele correu uma mão pela cornija da lareira de areia cinza. — Luxuoso nos detalhes, mas sem nada que faria você querer ficar aqui de fato.

— Isso é um erro — disse Zoya. Sua cabeça doía. Seu coração doía. Ela tinha que se controlar para não ficar apalpando o pulso repetidamente. Mas precisava pensar com clareza. Havia questões maiores em jogo do que aquilo que ela perdera. Sempre havia.

— Onde está Yuri? — ele perguntou.

— Provavelmente fazendo genuflexões em algum canto. Nikolai, tem certeza de que queremos fazer esse acordo?

— Viemos aqui em busca da cura e eles nos ofereceram uma.

— Você pode morrer.

— Um risco que sempre estivemos dispostos a correr. Na verdade, acredito que você tenha se voluntariado para enfiar uma bala na minha cabeça pouco tempo atrás.

— Temos menos de três semanas antes da festa em Os Alta — ela protestou.

— Então eu terei que domar o monstro nesse tempo.

— Você viu o que eles podem fazer. E se estilhaçarmos as fronteiras do Não Mar e os deixarmos à solta em Ravka? Está disposto a fazer essa aposta?

Nikolai correu as mãos pelo cabelo.

— Não sei.

— E mesmo assim aceitou dançar ao primeiro convite, como um rapaz num baile do interior.

— Sim.

E ele não parecia nem remotamente arrependido disso.

— Não podemos confiar neles. Nem sabemos quem são de fato.

— Eu entendo, assim como você entende que essa é a escolha que precisamos fazer. Por que está resistindo, Zoya?

Zoya inclinou a cabeça contra o batente da janela e seu olhar vagou ao longe, sem foco. Será que os Santos passaram centenas de anos encarando aquela paisagem vazia?

— Se esses são os Santos — ela disse —, para quem rezamos todo esse tempo?

— Você reza? — Nikolai não conseguiu conter a surpresa.

— Rezava, quando era mais nova. Eles nunca responderam.

— Vamos arranjar outro para você.

— Outro...? — Ela levou um momento para entender do que ele estava falando. Sem perceber, Zoya deixara a mão retornar ao lugar onde o amplificador estivera. Ela se obrigou a soltar o pulso. — Você não pode me arranjar outro — ela rebateu, sua voz pingando desdém. Ótimo. Melhor que a autocomiseração. — Não é assim que funciona. Eu uso aquela pulseira, aqueles ossos, desde os treze anos.

— Zoya, eu não acredito em milagres. Não sei quem esses Santos são de fato. Só sei que são nossa última esperança.

Ela fechou os olhos com força. Elizaveta podia ser tão cortês quanto quisesse, mas isso não mudava o fato de que eles tinham sido sequestrados.

— Somos prisioneiros aqui, Nikolai. Não sabemos o que eles podem pedir de nós.

— A primeira coisa será deixar de lado seu orgulho.

Nikolai e Zoya deram um pulo – Juris estava parado na porta. Usava sua forma humana, mas a forma do dragão parecia pairar sobre seu corpo.

— Venha, Zoya Nazyalensky, bruxinha da tempestade. É hora.

— Hora de quê? — rosnou Zoya, sentindo a raiva inflamar dentro de si: uma raiva familiar, bem-vinda, muito mais útil que o luto.

— Para a sua primeira aula — ele disse. — O rei menino não é o único que tem algo a aprender.


Zoya não queria acompanhar o dragão, mas se obrigou a segui-lo pelos corredores sinuosos daquele palácio insano. Disse a si mesma que seria capaz de aprender mais sobre o ritual que Nikolai deveria enfrentar e determinar as verdadeiras motivações dos Santos. A voz que falava mais alto dentro dela apontava que, se ela conhecesse Juris, poderia encontrar um modo de puni-lo pelo que ele lhe tirara. Ela estava profundamente consciente dos próprios batimentos sob o pulso nu. Parecia vulnerável e completamente errado.

Entretanto, por mais que quisesse dirigir seus pensamentos para a vingança, o rumo que eles estavam tomando exigiria toda a sua atenção. O palácio era vasto, e, embora alguns quartos parecessem ter características específicas, a maioria dos corredores, escadas e passagens era feita da mesma areia cintilante e incolor. Não ajudava o fato de que, não importava onde ela se encontrasse dentro da imensa estrutura, a vista era sempre a mesma: uma extensão vasta e cinza de nada.

— Posso sentir a sua raiva, bruxa da tempestade — afirmou Juris. — Ela faz o ar estalar.

— Essa palavra é ofensiva — retrucou Zoya enquanto andava atrás dele, reconfortada pela ideia de empurrá-lo escada abaixo.

— Eu posso chamá-la do que quiser. Na minha época, bruxa era a palavra que os homens usavam para mulheres de quem deveriam manter distância. Acho que isso a descreve muito bem.

— Então talvez você devesse acatar seu próprio conselho e me evitar.

— Acho que não — discordou Juris. — Uma das poucas alegrias que me restam é cortejar o perigo, e a Dobra oferece poucas oportunidades para isso.

Será que ele sairia rolando se ela o empurrasse ou só estenderia as asas e flutuaria gentilmente até o pé das escadas?

— Quantos anos você tem, afinal?

— Já esqueci há muito tempo.

Juris aparentava ter cerca de quarenta anos. Era tão alto quanto Tolya, talvez mais, e Zoya supôs que ele teria sido uma figura intimidadora, com uma espada na mão. Ela podia ver o traçado de escamas em sua cabeça raspada, como se as feições do dragão tivessem se insinuado em seu corpo humano.

A curiosidade venceu.

— Você prefere a forma humana?

— Não tenho preferência. Sou tanto humano como dragão a cada momento. Quando desejo ler, discutir ou beber vinho, assumo a forma de um homem. Quando desejo voar e me livrar dos incômodos humanos, sou um dragão.

— E quando você luta?

Ele olhou por cima do ombro e seus olhos cintilaram prateados, as pupilas se estreitando conforme ele sorria, os dentes um pouquinho longos e predatórios demais para a boca humana.

— Eu posso derrotá-la em qualquer forma.

— Duvido disso — ela rebateu, com mais confiança que sentia de fato. Se ainda tivesse seu amplificador, não teria havido qualquer hesitação.

— Não se esqueça de que eu fui um guerreiro na minha primeira vida.

Zoya ergueu uma sobrancelha, sem se impressionar.

— Sankt Juris, que matou o dragão, na verdade era um Grisha que o transformou em seu amplificador? — Ela conhecia bem a história; toda criança ravkana a ouvia: o guerreiro que fora vencido por uma fera e lutara contra ela três vezes antes de finalmente vencer. Mas agora ela se perguntava quanto era lenda e quanto era fato.

Juris fez uma careta e prosseguiu escada abaixo.

— Amplificador. Como aquela bugiganga patética a que você se agarrava desesperadamente? Quando matei o dragão, eu tomei a forma dele e ele tomou a minha. Nós nos tornamos um só. Nos velhos tempos, era assim que funcionava. O que vocês praticam agora é uma corrupção, a forma mais fraca da criação no coração do mundo.

Nos velhos tempos. Haveria um cerne de verdade, então, nas histórias sobre o Espinho Ardente? Será que aqueles monges não eram homens comuns, e sim Grishas que tinham assumido a forma de feras para guerrear melhor contra os inimigos de Ravka? Será que tanto os teóricos Grishas quanto os acadêmicos religiosos estavam completamente errados? Zoya não sabia. Sua mente exausta e sobrecarregada não conseguia entender nada daquilo.

Eles entraram num cômodo enorme que parecia, ao mesmo tempo, uma caverna e o salão principal de uma antiga fortaleza. Era feito de pedra preta, e um brasão pendia em uma parede alta, acima de uma lareira tão grande que Zoya poderia ficar de pé dentro dela. O brasão mostrava três estrelas de seis pontas e era do tipo que as famílias kaelish usavam, embora Zoya não conhecesse a iconografia deles bem o bastante para identificar qual nome Juris poderia ter reivindicado. Uma parede fora deixada inteiramente aberta aos elementos, o horizonte vasto da areia morta se fazendo visível afora. A plataforma que se projetava dali fez Zoya sentir como se estivesse olhando para o mundo através da boca de uma caverna – ou a boca de uma fera em cuja barriga ela cometera o erro de entrar.

— O que você quer comigo? — ela perguntou.

— Quando eu passar para o mundo mortal, minha magia partirá comigo, mas meu conhecimento não precisa morrer. Você o portará.

— Que honra — ela disse, sem entusiasmo.

— Todas as regras que os Grishas criaram, as regras pelas quais vocês vivem, as cores que usam... Você acha que esteve treinando para se tornar mais forte, quando na verdade esteve treinando para limitar o seu poder.

Zoya sacudiu a cabeça. Primeiro aquele lagarto que crescera demais a tinha privado do amplificador que ela ganhara com seu próprio sangue, e agora estava insultando o treinamento ao qual ela dedicara sua vida. Ela levara a sério a instrução recebida no Pequeno Palácio, as teorias que lera na biblioteca, as posturas e técnicas que aprendera na cabana de Bahra, junto ao lago. Tinha praticado e aperfeiçoado suas habilidades, forçando seu talento inato em algo mais. Havia outros Etherealki que começaram com mais habilidade natural, mas nenhum se esforçara tanto quanto ela.

— Pode falar o que quiser, mas eu sei que o treinamento me tornou uma Aeros melhor.

— Sim, mas ele a tornou uma Grisha melhor?

— Não foi o que eu disse?

— Não exatamente. Mas quando comecei eu era tão profundamente ignorante quanto você, e, como você, não tinha nada além do vento selvagem na ponta dos dedos.

— Você era um Aeros? — perguntou Zoya, surpresa.

— Não havia um nome para o que eu era.

— Mas conseguia conjurar? — ela insistiu.

— Sim. Eu conjurava. Era mais uma arma em meu arsenal.

— Em qual guerra?

— Em inúmeras guerras. Eu era um herói para alguns. Outros teriam me chamado de invasor, bárbaro, saqueador de templos. Eu tentei ser um homem bom. Pelo menos é assim que lembro.

Como os homens gostavam de contar suas façanhas.

— Nem todos são afeitos à nobreza tão bem quanto seu rei.

Zoya percorreu o perímetro da sala. Não havia muito o que ver. Além das armas reunidas na parede, tudo era feito de pedra preta – a cornija da grande lareira onde chamas azuis saltavam e dançavam, as decorações em cima dela, o brasão na parede.

— Se você espera que eu condene Nikolai pelo seu bom caráter, é melhor esperar sentado.

— E se eu disser que Ravka precisa de um governante mais implacável?

— Eu diria que isso parece a desculpa de um homem implacável.

— Quem falou qualquer coisa sobre homens?

Era esse o jogo da criatura?

— Você quer que eu roube o trono do meu rei? Está equivocado sobre as minhas ambições.

Juris deu uma risada retumbante.

— Não estou equivocado sobre nada. Você acredita realmente que está destinada a passar a vida servindo aos outros? Não pode dizer que jamais contemplou o que significaria ser uma rainha.

Zoya apanhou um cavalinho de ágata na cornija, parte de um rebanho do que poderiam ser centenas flutuando sobre a pedra. Era assim que Juris passava a eternidade? Usando fogo para entalhar pequenos lembretes de outra vida?

— Como se uma rainha também não passasse a vida servindo aos outros. Eu sirvo aos Grishas. Eu sirvo a Ravka.

— Ravka. — Ele rolou o R em um rosnado. — Você serve uma nação de fantasmas. Todos aqueles com quem falhou. Todos aqueles com quem continuará falhando até se tornar o que deveria ser.

Todos aqueles com quem falhou. O que ele podia saber sobre isso? Zoya devolveu o cavalo ao lugar e esfregou os braços. Não gostava do jeito como o dragão falava. As palavras dele chacoalhavam dentro dela, fazendo-a pensar naquela pedra que caía, no poço oco, no vazio infinito. Não olhe para trás, Liliyana a avisara uma vez. Não olhe para mim. Na época Zoya não tinha ouvido, mas aprendera a acatar essas palavras.

— Termine sua história, velhote, ou me deixe em paz para encontrar uma taça de vinho e uma soneca.

— Você não vai encontrar vinho aqui, bruxinha. Sono também não. Não há nenhuma trégua do esquecimento.

Zoya fez um gesto desdenhoso.

— Então me deixe em paz para encontrar uma companhia mais interessante.

Juris deu de ombros.

— Não há muito mais o que contar. Uma besta faminta veio à nossa terra, queimando tudo em seu caminho e devorando aqueles que ousaram resistir.

Distraída, Zoya tocou a bola de metal de uma clava na parede. Juris devia estar levando as armas quando eles foram presos na Dobra.

— Sempre achei que o dragão fosse uma metáfora.

Juris quase pareceu ofendido.

— Para o quê?

— Religiões heréticas, invasores estrangeiros, os perigos do mundo moderno.

— Às vezes um dragão é só um dragão, Zoya Nazyalensky, e posso garantir a você que nenhuma metáfora já assassinou tanta gente.

— É que você nunca ouviu Tolya recitar poesia. Então o corajoso guerreiro foi encontrar o dragão em seu covil?

— Exatamente. Consegue imaginar o meu terror?

— Posso ter uma ideia. — Ela nunca se esqueceria da primeira vez que viu Juris com as vastas asas abertas e queria saber como ele derrotara a fera. — O que você fez?

— O que todos os homens assustados fazem. Na noite antes de encontrar o dragão, eu caí de joelhos e rezei.

— Para quem um Santo reza?

— Nunca aleguei ser um Santo, Zoya. Esse é só o nome que um mundo desesperado me deu. Naquela noite eu não era nada além de um homem amedrontado; um garoto, na verdade, mal completara dezoito anos. Rezei ao deus do céu que tinha protegido minha família e ao deus das tempestades que molhava os campos e se alimentava de marinheiros descuidados. Talvez seja esse deus que ainda me protege. Tudo que sei é que alguma coisa respondeu. Quando enfrentei o dragão e ele respirou fogo, os ventos se ergueram ao meu comando. Eu consegui tirar o fôlego dele, como você tentou fazer comigo. Combatemos duas vezes, e duas vezes recuamos para cuidar de nossos ferimentos. Mas, no terceiro encontro, eu desferi um golpe fatal.

— Juris em triunfo. — Ela não lhe faria a cortesia de soar impressionada.

Mas ele a surpreendeu dizendo:

— Talvez eu devesse ter me sentido triunfante. Era o que esperava. Mas, quando o dragão caiu, eu só estava arrependido.

— Por quê? — ela perguntou, embora sempre tivesse sentido pena do dragão na história de Juris, uma fera que não podia evitar sua natureza.

Juris reclinou o corpo grande contra a parede de basalto.

— O dragão foi o primeiro desafio verdadeiro que eu tive como guerreiro, a única criatura capaz de me enfrentar em pé de igualdade no campo. Eu tinha que respeitá-lo. Quando ele cravou os dentes em mim, sabia que ele se sentia da mesma forma. O dragão e eu éramos iguais, conectados ao coração da criação, nascidos dos elementos e diferentes de todos os outros seres.

— Os iguais se reconhecem — ela disse baixinho. Conhecia aquela sensação de afinidade, de ferocidade. Se fechasse os olhos, sentiria o gelo nas bochechas e veria o sangue na neve. — Mas, no fim, você o matou.

— Ambos morremos naquele dia, Zoya. Eu tenho as memórias dele e ele tem as minhas. Nós vivemos mil vidas juntos. Foi o mesmo com Grigori e o grande urso, com Elizaveta e suas abelhas. Você nunca parou para se perguntar como é possível que alguns Grishas sejam, eles mesmos, amplificadores?

Na verdade, não. Grishas que eram amplificadores inatos eram raros e com frequência serviam como Examinadores, usando suas habilidades para detectar a presença do poder Grisha em crianças. O próprio Darkling fora um amplificador, assim como a mãe dele. Era uma das teorias que explicavam o seu grande poder.

— Não — ela admitiu.

— Eles estão conectados à criação no coração do mundo. Antes que a palavra Grisha jamais tivesse sido pronunciada, os limites que nos dividiam de outras criaturas eram menos firmes. Nós não tomávamos simplesmente a vida de um animal, mas cedíamos uma parte de nós mesmos em troca. Porém, em algum momento, os Grishas começaram a matar, reivindicando uma parte do poder da criação sem ceder nada de si em troca. Essa é a tradição patética dos seus amplificadores.

— Eu deveria me envergonhar de ter obtido um amplificador? — perguntou Zoya. Ele não tinha o direito de julgá-la. Quantas vezes Zoya havia chorado? Quantas preces vãs havia feito, incapaz de se livrar daquela crença teimosa e idiota de que alguém responderia? — Deve ser fácil ponderar o universo aqui, a salvo em seu palácio, longe dos atos mesquinhos e brutais dos homens. Talvez você não se lembre de como é ser impotente. Mas eu sim.

— Talvez — disse Juris. — Mas você ainda chorou pelo tigre.

Zoya congelou. Ele não podia saber. Ninguém sabia o que ela fizera naquela noite, o que ela vira.

— O que quer dizer?

— Quando se está conectado a todas as coisas, não há limites ao que você pode saber. No instante em que aquele bracelete caiu do seu pulso, eu vi tudo. A jovem Zoya sangrando na neve, seu coração valoroso. Zoya da cidade perdida. Zoya do jardim. Você não pôde protegê-los então, e não pode protegê-los agora, nem a si mesma nem ao seu rei monstro.

Não olhe de volta para mim. O poço dentro dela não tinha fundo. Ela jogou uma pedra na escuridão e caiu com ela, caiu sem parar. Precisava sair daquela sala, se afastar de Juris.

— Já acabou?

— Nem começamos ainda. Diga-me, bruxa da tempestade, quando matou o tigre, não sentiu o espírito dele se movendo através de você, tomando a forma da sua raiva?

Zoya não queria falar daquela noite. O dragão falava sobre coisas que não podia saber. Ela forçou uma risada.

— Está dizendo que eu poderia ter me tornado o tigre?

— Talvez. Mas você é fraca, então como pode saber?

Zoya retorceu os lábios. Manteve-se calma, embora a raiva fervilhasse dentro dela.

— Está querendo me provocar? Vai ser necessário mais que as ofensas de um velho.

— Você mostrou coragem quando lutamos, bravura e engenhosidade. E mesmo assim perdeu. Vai continuar a perder até abrir a porta.

Ele se virou subitamente e saltou em direção a ela, o corpo aumentando, ofuscando a luz conforme suas asas se abriam. A enorme boca se abriu e chamas jorraram de algum lugar dentro dele.

Zoya ergueu os braços para proteger a cabeça, encolhendo-se.

Abruptamente, as chamas se apagaram e Juris parou, olhando-a em sua forma humana.

— Eu escolhi uma fracote? — ele perguntou, enojado.

Mas agora foi a vez de Zoya sorrir.

— Ou talvez só uma garota que saiba aparentar ser fraca.

Zoya se ergueu e esticou as mãos. A tempestade trovejou em direção a ele, uma rajada direta de vento e ira que derrubou Juris e o fez rolar para trás, deslizando pelo chão de pedra liso e para fora da boca da caverna. Fraca. Era só uma fração da força que ela tinha comandado com o seu amplificador. Mas ele rolou pela beirada e desapareceu, a surpresa em seu rosto como um bálsamo para o coração de Zoya.

Um momento depois, o dragão se ergueu em asas gigantes.

— Eu quebrei sua força de vontade junto com aquela bugiganga tola?

Será? Sem o amplificador, reunir seu poder era como tentar alcançar alguma coisa e errar a distância, sentindo os dedos se fecharem no ar. Ela sempre fora poderosa, mas tinha sido a vida do tigre que lhe dera a força verdadeira. E agora seu amplificador não existia mais. O que era ela – quem era ela sem ele? Se ela se saísse daquele lugar um dia, como deveria retomar seu comando?

— Escolha uma arma — ordenou Juris.

— Estou cansada demais para isso.

— Dê-me uma luta digna e então poderá se esconder onde quiser. Escolha uma arma.

— Eu sou a arma. — Ou já tinha sido. — Não preciso de um cassetete ou lâmina.

— Pois bem — disse Juris, mudando para a forma humana com um movimento fluido. — Escolherei uma para você. — Ele agarrou uma espada da parede e a jogou para ela.

Zoya a pegou sem jeito com as duas mãos. Era pesada demais. Mas ela não teve tempo para pensar – ele já estava correndo em sua direção com uma espada gigante nas mãos.

— Qual é o propósito disso? — ela perguntou quando ele deu um golpe em sua lâmina, que reverberou pelos seus braços. — Nunca fui boa em lutar com espadas.

— Você passou a vida escolhendo só os caminhos em que sabia que poderia se destacar. Isso a tornou preguiçosa.

Zoya fez uma careta e se defendeu, tentando se lembrar de suas aulas, muito tempo antes, com Botkin Yul-Erdene. Eles tinham usado facas e rapieiras e até feito treino de tiro com pistolas. Zoya gostava de tudo, particularmente do combate corpo a corpo, mas tivera poucos motivos para praticar essas habilidades desde então. Por que usar os punhos quando ela podia comandar uma tempestade?

— Nada mal — ele disse quando ela conseguiu desviar de uma de suas estocadas. — Usar seu poder se tornou fácil demais para você. Quando você luta desta forma, tem que se concentrar inteiramente na sobrevivência até parar de pensar sobre qualquer outra coisa. Não pode ficar se preocupando com o que veio antes ou o que acontecerá em seguida, o que foi perdido ou o que pode ganhar. Há apenas este momento.

— Que possível vantagem há nisso? — perguntou Zoya. — Não é melhor prever o que vai acontecer em seguida?

— Quando sua mente está livre, a porta se abre.

— Que porta?

— A porta para a criação no coração do mundo.

Zoya fez uma finta para a direita e se aproximou um passo, para negar a Juris a vantagem do alcance maior.

— Eu já faço isso ao conjurar. — O suor começava a brotar da testa dela. — É isso que todos os Grishas fazem quando usam o seu poder.

— É mesmo? — ele perguntou, descendo a espada outra vez. O choque de metal contra metal encheu os ouvidos dela. — A tempestade ainda está fora de você. É algo que você recebe alegremente e contra o que se protege, ao mesmo tempo. Ela uiva do lado de fora da porta. Chacoalha as janelas. Quer que você a deixe entrar.

— Isso não faz sentido.

— Deixe a tempestade entrar, Zoya. Não conjure. Não tente alcançá-la. Deixe-a vir a você. Deixe-a guiar seus movimentos. Me dê uma luta verdadeira.

Zoya grunhiu quando a espada dele bateu na sua. Já estava sem fôlego, os braços doloridos devido ao peso da arma.

— Eu não sou forte o bastante para derrotar você sem usar o meu poder.

— Você não usa o seu poder. Você é o poder. A tempestade está em seus ossos.

— Pare. De Falar. Coisas. Sem sentido — ela rosnou. Não era justo. Ele estava forçando-a a participar de um jogo que ela não podia vencer. E Zoya sempre vencia.

Muito bem. Se ele queria que ela lutasse sem conjurar, ela faria isso e ainda por cima venceria. E então Juris poderia abaixar sua cabeçona idiota de tanta vergonha. Ela avançou contra ele, entregando-se à adrenalina da luta, ao desafio, ignorando a dor que subia por seus braços enquanto a lâmina dele repetidamente encontrava a sua. Ela era menor e mais leve, então se movia na planta dos pés e permanecia tão perto dele quanto possível.

A lâmina do dragão sibilou contra o braço dela, e Zoya sentiu uma dor ardente. Sabia que estava sangrando, mas não se importava. Só queria descobrir se ele podia sangrar também.

Estocada. Defesa. Ataque. Reação. Reação. Reação. O coração trovejava em seu peito. No sangue, ela sentiu o rugido do vento. Seu corpo se movia antes que ela ordenasse, o ar passando por ela e através dela. Seu sangue eletrizado com raios. Ela desceu a espada e sentiu, no golpe, a força de um furacão que desenraíza árvores, imbatível.

A lâmina de Juris se estilhaçou.

— Agora sim — ele disse com seu sorriso de dragão.

Zoya parou, tremendo, com os olhos arregalados. Ela tinha sentido sua força dobrar, triplicar, como se tivesse a energia de um turbilhão nos membros. Não deveria ter sido possível, mas ela não conseguia negar o que sentira – ou o que fizera. A prova era a arma quebrada que jazia aos seus pés. Ela flexionou a mão no cabo da espada. A tempestade está em seus ossos.

— Vejo que finalmente tenho a sua atenção — comemorou o dragão.

Ela olhou para ele. Ele tinha destruído seu amplificador e quebrado alguma parte dela. Zoya daria o troco por isso – e ele a ajudaria a aprender como fazê-lo.

— Tem mais? — ela perguntou.

— Muito mais — respondeu Juris.

Zoya reassumiu a postura de luta e ergueu a lâmina, leve como ar em suas mãos.

— Então é melhor você pegar outra espada.


ADRIK ESTAVA FURIOSO – ainda infeliz, mas furioso. Era como receber uma bronca de uma toalha molhada.

— O que você estava pensando? — ele perguntou, aos gritos, na manhã seguinte. Eles haviam caminhado até a parte sul da cidade com Leoni, e arrastando o trenó ostensivamente para tentar vender seus produtos a caçadores locais. Mas tinham parado perto de um velho galpão de curtir couro onde Adrik teria a privacidade necessária para informar a Nina quão desastroso fora seu comportamento. — Eu dei ordens objetivas. Você não deveria agir, muito menos sozinha. E se tivesse sido capturada?

— Não fui.

Leoni se reclinou contra o trenó.

— Se Hanne não tivesse ajudado, teria sido. Agora você tem uma dívida com aquela garota.

— Eu já tinha uma dívida com ela. E esqueceu que ela é Grisha? Ela não vai falar, senão colocaria a si mesma em risco.

Adrik ergueu os olhos para a fábrica que assomava sobre o vale.

— Deveríamos destruir esse lugar. Seria misericordioso.

— Não — disse Nina. — Tem que haver um jeito de tirar as garotas de lá.

Adrik a encarou com o abatimento de uma vela derretida.

— Você sabe o que o parem faz. Elas não vão se recuperar disso. Já estão praticamente mortas.

— Pare de ser tão pessimista — retrucou Nina. — Eu me recuperei.

— De uma dose. Você disse que essas garotas estão recebendo doses há meses.

— Não com parem normal. Os fjerdanos estão tentando algo novo, algo diferente. É por isso que Leoni adoeceu, mas não teve uma reação séria. É por isso que meu próprio vício não foi despertado.

— Nina...

Ela agarrou o braço dele.

— O Segundo Exército sabe mais hoje do que sabíamos quando eu tomei o parem, Adrik. Eles fizeram avanços na busca por um antídoto. É possível que os Fabricadores e Curandeiros no Pequeno Palácio possam ajudá-las.

Adirk se desvencilhou dela.

— Você entende o que fez, Nina? Mesmo se eles decidirem que não aconteceu nada ontem à noite além de uma falha de comunicação, vão aumentar a segurança naquela fábrica. Podem relatar a invasão aos seus superiores. Precisamos sair desta cidade enquanto ainda é possível ou arriscamos comprometer toda a rede Hringsa e qualquer chance que Ravka tenha de agir em relação ao que você descobriu. Você nem mesmo obteve uma amostra da droga que eles desenvolveram.

Ela não tivera a chance – e estivera abalada demais para pensar com clareza. Mas não ia fazer as garotas na montanha pagarem pelo seu erro.

— Não vou embora, Adrik. Você pode me deixar aqui. Diga ao rei que eu desertei.

— Aquelas mulheres vão morrer. Você pode inventar o final feliz que quiser, mas sabe que é verdade. Não me peça para sacrificar a esperança dos vivos pelo conforto dos mortos.

— Não estamos aqui só para recrutar soldados...

O olhar azul de Adrik ficou mais afiado.

— Estamos aqui sob ordens do rei. Estamos aqui para salvar o futuro do nosso povo. Ravka não vai sobreviver sem mais soldados, e os Grishas não vão sobreviver sem Ravka. Eu vi o Segundo Exército ser dizimado pelo Darkling. Eu sei o que perdemos e quanto mais ainda podemos perder. Temos que preservar a rede. Devemos isso a todos os Grishas que vivem com medo.

— Não podemos abandoná-las, Adrik. Eu não farei isso. — Elas me trouxeram aqui. Eram o motivo pelo qual ela finalmente conseguira se despedir de Matthias. As vozes das mortas a tinham devolvido à vida com suas súplicas, e ela não as decepcionaria. — Leoni — ela implorou. — Se você estivesse lá em cima, se fosse alguém que você amasse...

Leoni sentou-se num tronco caído e olhou para o forte acima.

— Leoni — argumentou Adrik —, nós temos uma missão. Não podemos comprometê-la.

— Quietos, vocês dois — repreendeu Leoni. — Não vão me convencer só porque estão pedindo. — Ela fechou os olhos e virou o rosto para o sol invernal. Após um longo momento, disse: — Eu contei a vocês que quase morri quando era criança, mas não contei que foi porque bebi água de um poço que estava envenenado. A curandeira zowa que me ajudou morreu para salvar a minha vida. Morreu tirando o veneno do meu corpo. — Leoni abriu os olhos; um sorriso triste tocava seus lábios. — Como expliquei a vocês, venenos são um trabalho delicado. Então agora eu uso duas joias. — Ela tocou as gemas douradas entrelaçadas nos cachos do cabelo, à esquerda. — Topázio para força, pela minha mãe que me deu a vida e me criou para ser uma guerreira. — Ela virou a cabeça de leve e a luz refletiu nas três gemas roxas nos cachos à direita. — E ametista por Aditi Hilli, a Fabricadora que me devolveu a minha vida quando fui descuidada e quase a perdi.

— Hilli? — perguntou Adrik. — Vocês eram parentes?

— Não. Eu assumi o sobrenome dela e jurei que honraria o seu sacrifício e faria algo digno com a vida que ela me deu. — Ela apontou o queixo para a fábrica. — Se não estamos aqui pelas garotas naquela ala, então o que estamos fazendo?

Adrik suspirou.

— Você sabe que eu sou o oficial em comando. Não colocamos as coisas em votação.

Leoni sorriu, aquele sorriso brilhante como mil sóis. Adrik inspirou bruscamente como se tivesse recebido um soco no estômago.

— Eu sei — ela falou. — Mas também sei que você lutou ao lado de Alina Starkov. Seu braço foi arrancado por um demônio das sombras e você continuou lutando. Você não veio até este país para evitar riscos, Adrik.

— Leoni — interrompeu Nina. — Você já comeu waffles kerch?

Leoni arqueou as sobrancelhas.

— Não.

— Bem, vou te fazer uma pilha tão alta que você vai ter que a escalar.

— Não sabia que você sabia cozinhar.

— Não sei. Nem um pouco. Mas sou ótima em convencer as pessoas a cozinhar para mim.

Adrik ajeitou a manga presa.

— Vocês duas são impossíveis. E culpadas de insubordinação.

Leoni se limitou a sorrir mais largo.

— Somos maravilhosas e você sabe disso.

— Tudo bem — bufou Adrik. — Já que ambas estão tão determinadas a comprometer nossa missão, como exatamente vamos tirar um monte de bebês e mulheres grávidas desta cidade trágica e levá-las a um porto no meio da noite?

Nina ergueu os olhos para a montanha, onde a estrada que levava à fábrica se curvava como uma língua longa e ávida, e para a guarita na base – a primeira linha de segurança para os soldados que trabalhavam acima. Lembrou-se das lições que aprendera em Ketterdam, quando ela não se relacionava com soldados restritos pela honra, e sim com mentirosos, brutamontes e ladrões. Sempre ataque onde o alvo não está olhando.

— Fácil — ela respondeu. — Fazemos isso em pleno dia. E nos certificamos de que eles nos vejam chegando.


Nina não tinha certeza se Hanne apareceria na próxima aula delas – fosse porque a Madre Superiora poderia proibi-la ou porque ela não queria mais falar com Nina. Mas ela decidiu aparecer na sala mesmo assim.

No caminho, parou nas cozinhas para pegar mais algumas sobras e foi ao bosque deixar outro prato para Trassel. Ali, tirou um momento para organizar seus pensamentos, grata pelo silêncio das árvores, e inspirou o aroma de seiva, o ar frio ainda fresco da neve caída. Ela estava disposta a admitir que sua aventura na fábrica fora uma catástrofe, mas isso não mudava o que estava acontecendo na montanha nem a oportunidade que recebera. Sentia como se estivesse no início de alguma coisa maior que os horrores naquela colina, que havia algo mais que ela deveria fazer.

— Mas o quê? — ela murmurou.

— Enke Jandersdat?

Nina quase pulou no arbusto mais próximo. Uma jovem estava parada na orla das árvores, repuxando nervosamente a saia do seu vestido azul-claro. Nina levou um longo momento para perceber que já vira a noviça – vestida como um soldado fjerdano, nas margens do rio. Será que ela tinha ouvido Nina falar ravkano?

— Sim? — ela perguntou.

— Não quis assustá-la.

— Um pouco de emoção é bom para mim — garantiu Nina, como se não tivesse recentemente pulado de uma janela e fugido por uma montanha para salvar a própria vida. A garota tinha o cabelo loiro e a pele da cor de um pêssego maduro. Não parecia desconfiada, só ansiosa.

— Eu queria agradecê-la, e aos comerciantes zemeni, por não dizer nada sobre... sobre o que viram no rio. Mesmo depois do que aconteceu com Grette.

Grette... devia ser a garota que morrera após ser exposta às águas.

— Já basta de tragédias — atestou Nina.

A garota estremeceu, como se a morte tivesse se aproximado demais.

— A mãe dela veio levar o corpo. Foi terrível. Mas, se a família soubesse como ela se machucou, a vergonha...

— Eu entendo. — Nina então arriscou: — Você vai sair para cavalgar de novo?

— Claro que não — respondeu a garota, com sinceridade quase suplicante. — Nunca mais.

Nina acreditou nela.

— Me diga — começou Nina —, foi ideia de Hanne roubar os uniformes? — Hanne era essencial ao plano de Nina. Quanto mais a entendesse, melhor. E, a bem da verdade, ela estava curiosa também.

A garota mordiscou o lábio inferior.

— Eu... ela...

— Eu não vou contar para a Madre Superiora. Se eu falasse agora, ela perguntaria por que eu fiquei calada por tanto tempo. Isso não ajudaria ninguém.

O argumento pareceu tranquilizar a garota.

— Hanne... Hanne assume riscos que não deveria. — Um sorrisinho puxou os lábios dela. — Mas, às vezes, é difícil não querer segui-la.

— Você sai para cavalgar com ela com frequência?

— Só quando ela nos deixa.

— Estão correndo sérios riscos por um pouco de liberdade.

— Não é só isso — disse a garota. — Hanne... às vezes as pessoas pedem ajuda ao convento, e a Madre Superiora não lhes concede... por motivos bons e justos, é claro.

— É claro. Que tipo de pessoas?

— Famílias que não podem pagar por mais um par de mãos quando alguém adoece. — As faces da garota coraram. — Mulheres solteiras que se... se encontram em dificuldades.

— E Hanne vai até elas? — perguntou Nina, surpresa. Aquela garota selvagem e esguia com um rifle nas costas e uma adaga no quadril? Era difícil imaginar.

— Ah, sim — garantiu a garota. — Ela tem talento para isso. Já curou mais de uma pessoa que estava na beira da morte e até ajudou a parir um bebê que tinha virado na barriga da mãe.

Ela é uma Curandeira, percebeu Nina. Está usando seu poder e nem sabe disso. Lembrou-se do que Hanne dissera sobre as outras noviças: É só uma brincadeira para elas. Fantasiar-se como crianças, uma chance de serem ousadas. Nina achou que tinha entendido, mas não tinha de fato.

— Se você tivesse nos dedurado — continuou a garota —, Hanne teria que parar. A Madre Superiora...

— Não direi nada — garantiu Nina. — Acho que Djel não se oporia a tais gentilezas.

— Não — concordou a garota, pensativa. — Também acho que não.

— Sinto muito por sua amiga Grette.

— Eu também. — A garota arrancou um tufo de agulhas de um pinheiro. — Às vezes... acho que Gäfvalle não nos quer aqui.

— No convento?

Ela balançou a cabeça, os olhos distantes.

— As garotas... qualquer uma de nós.

Nina queria continuar a conversa, mas um sino começou a tocar na capela.

A jovem fez uma mesura breve.

— Que Djel a proteja, Enke Jandersdat.

Nina também voltou depressa. Se Hanne decidisse aparecer na aula, ela não queria se atrasar. Adrik já tinha contatado a rede Hringsa para garantir que um navio estaria esperando – presumindo que eles arranjassem um jeito de tirar as mulheres da fábrica. Mas, se Hanne não viesse à aula, Nina teria que procurá-la e achar um modo de voltar às graças dela. Precisava de Hanne para o plano que tinha em mente, e, se fosse sincera consigo mesma, não gostava da ideia de ter a garota brava com ela.

Ela escrevera metade do vocabulário zemeni para aula do dia na lousa – e estava começando a sentir que aquele esforço todo era inútil – quando Hanne apareceu na porta da sala. Nina não estava inteiramente preparada para a raiva que irradiava dela. A garota ficou parada, em fúria e silêncio, enquanto Nina apertava o giz na mão e tentava pensar em algo conciliatório para dizer. Os olhos cor de cobre de Hanne pareciam centelhas vívidas contra as suas bochechas, mas Nina sabia, por experiência, que Você fica linda quando está brava nunca era um bom lugar para começar.

— Achei que não viria — ela começou.

— A Madre Superiora disse que eu posso continuar com as aulas, já que não quer que eu fique à toa.

— Isso é óti...

— Eu não disse que eu queria continuar — sussurrou Hanne, furiosa. — O que você estava fazendo na fábrica? Eu quero a verdade.

E eu gostaria de poder contá-la. Contar tudo. Mas – apesar do que descobrira sobre a garota no bosque – não confiava em Hanne a esse ponto. Ainda não.

Nina gesticulou para que ela entrasse e fechou a porta, depois se reclinou contra ela. Passara a noite anterior pensando sobre como responder às perguntas de Hanne.

— Lembra-se da irmã sobre quem eu falei? — perguntou Nina. — A que se casou e mora no sul? — Hanne assentiu. — Ela foi pega.

Hanne fechou os punhos.

— Mas você disse...

— Não sei como aconteceu, mas ela foi pega usando o poder Grisha e foi levada pelos drüskelle.

— E o marido dela?

— Também foi levado e executado por guardar os segredos dela. Acho que eles trouxeram Thyra para cá.

— Eles trouxeram Thyra para uma fábrica de munições?

— A fábrica é só parte da história. Os soldados estão mantendo garotas Grishas na ala abandonada do forte e fazendo experimentos com elas. A Madre Superiora está ajudando, assim como algumas das Donzelas da Nascente.

Hanne cruzou os braços.

— Eles não fariam isso. Grishas descobertas são levadas à Corte de Gelo para julgamento.

Julgamentos em que nunca eram declaradas inocentes e nos quais eram sempre sentenciadas à morte. Mas as penas eram raramente aplicadas. Em vez disso, Jarl Brum vinha secretamente encarcerando aquelas Grishas e submetendo-as a doses de parem.

— Não cubra os ouvidos e finja que não sabe do que os homens são capazes, Hanne. Diga-me uma coisa: garotas e mulheres vêm desaparecendo de Kejerut? De Gäfvalle? Das cidades ribeirinhas?

— Desaparecendo? — desdenhou Hanne.

— Como eles explicam os sumiços? — insistiu Nina. — Doença? Uma decisão súbita de viajar? Animais selvagens? Salteadores?

— Todas essas coisas acontecem. Viver aqui é assim. Fjerda é um país duro. — A voz dela era defensiva, mas também orgulhosa.

Mesmo assim, Nina não tinha imaginado a leve hesitação, o lampejo fugaz de medo no rosto de Hanne.

— Você viu a Corte de Gelo, Hanne.

— O que isso tem a ver?

— Acredita mesmo que foi construída por mãos humanas? E se fosse arte Grisha? E se Fjerda precisar dos Grishas tanto quanto os odeia? — Assim que Nina disse aquilo, pensou nas novas armas que o exército fjerdano estava desenvolvendo e no salto súbito em seu progresso. Como se eles estivessem trabalhando com Fabricadores. Talvez não tivessem conseguido transformar o parem em uma arma, mas certamente encontraram novas formas de explorar escravos Grishas.

Hanne mordeu o lábio e olhou pela janela da sala. Ela tinha um borrifo de sardas na ponte do nariz, não douradas como as de Adrik, mas rosadas, da cor de um caqui maduro.

— Havia uma garota aqui — ela disse com hesitação. — Ellinor, uma noviça. Ela era quieta, na dela. Um dia, simplesmente sumiu. As irmãs disseram que ela tinha recebido uma oferta de casamento e ido para Djerholm. Mas, quando fugi para cavalgar no bosque naquele dia, eu vi a Madre Superiora. Ela estava queimando as coisas de Ellinor.

Nina estremeceu. Será que Ellinor estava naquela ala? Ou já estava numa cova na montanha?

— E uma mulher que vivia a meio caminho entre aqui e Kejerut — continuou Hanne devagar, como se tivesse dificuldade para dizer as palavras. — Sylvi Winther. Ela... ela tinha acabado de se recuperar de uma doença grave. Estava indo bem. Ela e o marido simplesmente fizeram as malas e foram embora.

Será que essa era uma das mulheres de quem Hanne cuidara em segredo? Será que ela saiu a cavalo numa tarde fria e bateu na porta deles, só para descobrir que Sylvi e o marido tinham sumido?

— Eu sei que você foi ensinada a odiar os Grishas, Hanne... a odiar a si mesma. Mas o que a Madre Superiora e aqueles soldados estão fazendo com aquelas mulheres é imperdoável.

Hanne não parecia mais brava – apenas enojada e assustada.

— E o que deveríamos fazer a respeito disso?

Nina pensou em Matthias, sangrando em seus braços. Pensou nas garotas enfileiradas como bonecas disformes na penumbra do velho forte. Pensou em como Hanne curvava os ombros como se pudesse, de alguma forma, se tornar invisível.

— Nós salvamos essas pessoas — disse Nina. — Todas elas.


ISAAK ESTAVA SENTADO NO TRONO RAVKANO – criado pelo lendário Fabricador Eldeni Duda, com ouro tsibeyano, coroado por uma águia dupla intimidadora, e anfitrião dos traseiros de incontáveis gerações de Lantsovs. Tudo o que conseguia pensar era no quanto precisava ir ao banheiro.

Já tinham passado duas horas desde que começaram as apresentações, discursos e entregas de presentes das delegações recém-chegadas. Ele podia ver que muitos na sala do trono superaquecida pareciam cansados, fracos depois de ficar em pé e entediados pela solenidade. Mas Isaak estaria completamente desperto mesmo sem as presenças ameaçadoras de Tolya Yul-Bataar à sua esquerda e de Tamar Kir-Bataar à sua direita.

Ele não tinha que fazer muito mais que dizer “obrigado” quando lhe entregavam um par elegante de novos revólveres, de Novyi Zem, ou um baú de lápis-lazúli cheio de pássaros entalhados em pedras preciosas, de Kerch. Mas, apesar da farsa de presentes e cortejo de noivas, Isaak sabia que inimigos espreitavam naquela sala cheia de aliados. Quem era uma vantagem potencial ao rei? Quem desejava feri-lo?

Isaak sorriu para a delegação fjerdana – todos altos, loiros e majestosos, com os corpos esguios vestidos de branco cintilante e cinza-claro, como se tivessem saído do gelo. Aceitou os presentes de pérolas marítimas e lembrou-se das balas fjerdanas que foram tiradas da sua coxa após Halmhend. Os fjerdanos tinham apoiado o Darkling na guerra civil e sido parcialmente responsáveis pela morte do irmão mais velho do rei, Vasily. Cada membro de cada delegação fora investigado e aprovado, mas ainda havia riscos. Pelo menos o trabalho de Isaak como guarda o tinha preparado para aquelas ameaças.

A delegação shu era toda composta de mulheres. A princesa Ehri Kir-Taban usava sedas esmeralda bordadas com folhas de prata, e seu longo cabelo escuro estava preso com pentes incrustados de joias. Ela era conhecida como a menos bonita, mas a mais amada das cinco irmãs reais. A Tavgharad marchava atrás de sua protegida, os rostos congelados naquele olhar duro e vazio que Isaak tinha aprendido durante seu próprio tempo como guarda no palácio. Mas aquelas não eram soldadas comuns. Eram guerreiras de elite, treinadas desde a infância para servir à dinastia Taban. Usavam uniformes pretos, com o bico de um falcão gritando entalhado em granada na dragona esquerda, e boinas pretas quadradas inclinadas sobre o cabelo firmemente preso. Tamar dissera que uma delas pretendia desertar. Mas qual?, perguntou-se Isaak, examinando os rostos. Elas pareciam falcões, com a boca rígida e os olhos dourados reluzentes. Por que uma delas daria as costas ao seu país e trairia as mulheres que tinha sido treinada para proteger? Será que uma delas realmente pretendia desertar ou aquilo era algum tipo de armadilha para o rei? A princesa cambaleou levemente ao fazer sua reverência, uma leve camada de suor no lábio superior, e Isaak viu o rosto da guarda diretamente atrás dela ficar ainda mais duro. Não deveria, mas teve pena da princesa enquanto ela se erguia da mesura e lhe abria um sorriso trêmulo. Ele mal tivera um gostinho do que era ser um membro da realeza e já não gostava nem um pouco disso.

Isaak não tinha realmente entendido o que significaria usar o rosto do rei e estar na sua pele. Tolya e Tamar o tiraram escondido do palácio na noite anterior e o levaram até a propriedade do notório conde Kirigin. Ele teria gostado de conhecer o infame Pântano de Ouro, mas, ao alvorecer, vestido no casaco verde-oliva simples que o rei Nikolai gostava de usar, eles o haviam feito montar em um belo cavalo branco e o grupo tinha dado meia-volta para entrar na capital, em um desfile encenado. A eles se juntaram um grupo de guardas e soldados em uniforme militar – o séquito do rei –, e isso fora o primeiro teste de Isaak. Mas ninguém fizera nada além de mesuras ou continências. Ele ficara seguramente flanqueado pelos gêmeos Bataar e um destacamento de soldados Grishas, incluindo a esposa de Tamar, Nadia, enquanto percorriam o interior até entrar novamente na cidade baixa.

Ele se lembrava da primeira vez que vira Os Alta, como tinha ficado impressionado com o seu tamanho e agitação. Não era diferente agora que a via através dos olhos de um rei.

— Pare com isso — sussurrou Tolya.

— Com o quê?

— Ficar encarando tudo como um caipira de olhos arregalados — disse Tamar. — Você deve olhar para o mundo como se fosse o dono dele.

— Porque é o rei e é o dono dele — acrescentou Tolya.

— Como se eu fosse o dono dele — repetiu Isaak.

— Você poderia ordenar que esta cidade e cada construção nela fossem queimadas.

Isso o deveria fazer se sentir melhor?

— Alguém me impediria, com certeza?

— Alguém poderia tentar — sugeriu Tamar. — E provavelmente seria enforcado por isso.

Isaak estremeceu.

— Pelo menos ele sabe montar bem — resmungou Tolya.

Mas até nisso Isaak tinha conseguido errar, porque um rei não pulava do seu cavalo e levava sua montaria aos estábulos; ele esperava o cavalariço. Um rei jogava as rédeas para ele com um sorriso e um aceno da cabeça e um “Muito obrigado, Kimint” ou “Como vai a sua tosse, Lyov?”, porque é claro que Nikolai Lantsov sabia o nome de cada criado no palácio. Se ele fosse um monarca mais preguiçoso, aquilo poderia ser mais fácil.

O modo como todos o encaravam assustava Isaak. Ele costumava ser um ninguém, um soldado raso no Primeiro Exército e, depois, um guarda do palácio. Na cidade baixa, as pessoas se dirigiam a ele com respeito ou ressentimento quando viam seu uniforme. Ele se lembrava do orgulho que sentira ao vestir as roupas brancas e douradas pela primeira vez, e da experiência bizarra de ver as pessoas saírem do seu caminho ou lhe oferecerem um copo de kvas por conta da casa, enquanto outras cuspiam na rua e xingavam baixinho quando o viam passar com seus colegas. Mas não era nada comparado com aquilo. Será que ele olhava para o rei do mesmo jeito que aquelas pessoas olhavam – cheias de gratidão e admiração escancaradas? E os outros, que olhavam para o rei com suspeita e, às vezes, medo evidente?

— Por que eles encaram tanto? — ele sussurrou. — O que esperam ver?

— Você não é mais um único homem — disse Tamar. — Você é um exército. É a águia dupla. É toda Ravka. É claro que as pessoas encaram.

— E elas? — perguntou Isaak, inclinando a cabeça em direção a uma das janelas onde garotas estavam debruçadas, usando seus melhores vestidos, com o cabelo cacheado e as bochechas e lábios rosados. — O rei não... não costuma se relacionar com plebeias, não é?

— Não — esclareceu Tolya. — Nikolai não é o tipo de homem que tira vantagem da sua posição.

— Então o que elas esperam obter com isso?

Tamar riu.

— Você já deve ter lido as antigas histórias de príncipes que se apaixonam por plebeias e de reis que se casam com camponesas. Nikolai ainda não tem uma noiva. Pode culpá-las por ter esperança de que uma delas vá atrair a atenção dele? Que ele possa se apaixonar imediata e inequivocamente pela beleza de uma garota ou a curva do seu pescoço ou seu cabelo castanho, como os reis nas histórias costumam fazer?

— Você não precisa analisar tão minuciosamente tudo que a cidade baixa tem a oferecer — disse Nadia, acidamente.

Tamar não se desculpou, só abriu um sorriso malicioso que fez as bochechas de Nadia ficarem vermelhas.

— Eu posso examinar as mercadorias chamativas, mas reconheço qualidade quando a vejo.

Agora Isaak olhava para a sala do trono abarrotada e se perguntava se poderia dar uma corridinha de volta aos estábulos, montar naquele belo cavalo branco e sair galopando até ser capturado ou derrubado com um tiro.

Tolya empurrou o trono muito de leve com a ponta do pé, e Isaak percebeu que era sua hora de falar.

Ele se ergueu.

— Meus amigos... — Sua voz falhou e ele viu Genya fechar os olhos como se estivesse com dor. Limpou a garganta e tentou de novo. — Meus amigos — começou em ravkano, repetindo-se em shu, zemeni e fjerdano. — Eu lhes dou as boas-vindas a Ravka e os agradeço por dar esse pequeno passo em direção a uma paz que espero será lucrativa e frutífera para todos nós. Neste momento, não somos nações; somos amigos que vão comer juntos... — Aqui Isaak fez uma pausa como fora instruído e deixou o sorriso malandro de Nikolai tocar seus lábios. — E beber juntos. Que esta noite marque o início de uma nova era. — E que eu sobreviva ao jantar sem engasgar com uma costeleta ou causar uma guerra.

Isaak assentiu, as portas de cada lado do trono se abriram e a multidão se afastou para deixá-lo passar.

Ele sequer conseguiu entrar na sala de jantar antes que outro desastre acontecesse. Os criados abriram as portas e Isaak, pensando em como suas mãos estavam suando nas luvas, fez o que fora treinado para fazer e tinha feito por anos – deu um passo para o lado e assumiu posição de sentido, com aquele olhar distante que aprendeu com os veteranos, junto com o método de polir as botas e a técnica adequada para costurar um botão, já que “nenhum criado precisa perder tempo fazendo isso por nós”.

Os guardas sempre cediam passagem para aqueles de status superior, e, em um palácio, quase todos tinham status superior – incluindo muitos dos criados mais estimados. Mas ninguém tinha um status maior que o rei de Ravka.

Isaak sentiu mais do que ouviu os arquejos ao redor, e teve uma vertigem súbita como se o piso tivesse se dissolvido sob seus pés, como se fosse cair e continuar caindo até atingir o chão duro. Nesse momento, Genya surgiria acima dele e o chutaria com a ponta do sapato.

— Alteza? — perguntou a princesa shu, que entraria na sala de jantar primeiro, uma vez que a delegação dela tinha se apresentado por último. Ela parecia quase tão apavorada quanto ele se sentia.

O primeiro impulso de Isaak foi olhar ao redor da sala em busca de alguém, qualquer um, que o ajudasse e lhe dissesse o que fazer. Não entre em pânico. Reis não entram em pânico. Mas você não é um rei; ainda há tempo para pular de uma janela.

Ele fez uma mesura leve e usou os segundos que ganhou para estampar um sorriso confiante no rosto.

— Esta noite eu sou primeiro um anfitrião e depois um rei.

— É claro — disse a princesa, embora parecesse completamente atônita.

O resto dos convidados passou em fila, alguns parecendo entretidos, outros satisfeitos, outros desaprovadores. Isaak continuou ali e manteve o sorriso no rosto e o queixo erguido como se tudo aquilo fosse um teste para a próxima rainha de Ravka.

Quando o último dignitário estrangeiro entrou no salão, chegou a vez de Genya e David. Genya parecia serena, mas ele podia ver a tensão ao redor da sua boca. David parecia distraído, como sempre.

— Não se preocupe — disse Genya. — Você está indo maravilhosamente bem.

David franziu o cenho, pensativo.

— Então quando você disse Isso é um fiasco...

— Era apenas maneira de dizer.

— Mas...

— Quieto, David.

— Tão ruim assim? — sussurrou Isaak, infeliz.

Genya abriu um sorriso frágil, que era quase genuíno.

— No melhor dos casos, os visitantes acham que Nikolai é excêntrico, e, no pior dos casos, insano.

Tudo isso por uma pequena quebra de etiqueta? Isaak fez o seu melhor para não demonstrar angústia quando se sentou e a refeição começou. Havia milhares de regras para se lembrar em jantares formais, mas eles tinham evitado muitas delas naquela primeira noite, servindo aos convidados um típico banquete camponês ravkano, com direito a tocadores de rabeca e danças.

A noite passou sem problemas, e Isaak agradeceu a todos os seus Santos por isso, embora tenha passado outro momento tenso quando o embaixador fjerdano perguntou sobre a extradição de Nina Zenik.

Genya rapidamente respondeu que a jovem Grisha estava numa missão comercial em Kerch havia quase dois anos.

— Uma história improvável — resmungou o embaixador, com teimosia.

Genya cutucou Isaak sob a mesa e ele sorriu amavelmente para o homem.

— Meu estômago está cheio demais para digerir diplomacia. Pelo menos espere a sobremesa.

Em certo momento, Tolya inclinou a cabeça para o ouvido de Isaak e murmurou:

— Coma, Alteza.

— Tudo tem gosto de desgraça — ele sussurrou.

— Então ponha sal.

Isaak conseguiu mastigar e engolir alguns bocados, e em pouco tempo, para o seu grande espanto, o jantar terminou.

Os convidados se retiraram para seus aposentos, e Tolya e Tamar o escoltaram pelo corredor, através das passagens dos fundos reservadas para o rei, até os aposentos reais.

Mas, assim que estavam prestes a entrar, Tolya apoiou a mão enorme no peito de Isaak.

— Espere. — Ele cheirou o ar. — Estão sentindo esse odor?

Tamar empinou o nariz, cuidadosamente se aproximando da porta.

— Alho — ela disse. — Gás arsina. — Ela gesticulou para um guarda. — Chamem um Aeros e David Kostyk. Puseram uma armadilha nessa porta.

— Gás arsina? — perguntou Isaak enquanto os gêmeos o levavam para longe dos aposentos do rei.

Tolya bateu nas costas dele.

— Parabéns. — Ele deu um sorriso sombrio. — Você deve ter sido bem convincente se alguém já está tentando matá-lo.


NIKOLAI ESTAVA ACHANDO DIFÍCIL se habituar aos seus aposentos, com aquela mistura estranha de areia e pedra. Eles poderiam ter sido quartos bem equipados, ainda que antiquados, do seu próprio palácio, não fossem a falta de cor e a textura uniforme. Era um lugar visto ao longe, através da névoa. A exceção era a cama gigante e absurdamente romântica, de rosas vermelhas, que ele supôs ser obra de Elizaveta. Deitou-se, determinado a descansar, mas não conseguia dormir. Se dormisse, será que o monstro emergiria? Tentaria caçar naquele lugar estéril?

Ele estava profundamente cansado, mas era como se o seu corpo tivesse perdido qualquer noção de tempo. A manhã já havia avançado nas horas quando eles partiram para a Dobra, mas, naquele crepúsculo permanente, ele não sabia se dias ou horas haviam passado. Tinha a sensação de que o tempo escapava entre os dedos. Nós não comemos. Não dormimos. Não me lembro o que é suar ou ter fome ou sonhar. Os Santos – ou quem quer que fossem – passaram centenas de anos presos ali. Como não haviam enlouquecido?

Nikolai fechou os olhos. Mesmo se não conseguisse dormir, poderia tentar organizar seus pensamentos. O demônio roía constantemente o seu senso de controle, e a experiência bizarra de ser arrancado de sua realidade e jogado naquela não havia ajudado. Mas ele era um rei e tinha o futuro de um país para considerar.

Tolya e Tamar tinham visto Nikolai e Zoya sumirem com Yuri na tempestade de areia. O que eles fariam? Conduziriam uma busca, depois inventariam alguma desculpa e enfiariam aqueles Aeros juniores em algum lugar onde não pudessem ficar contando histórias. Os gêmeos relatariam o desaparecimento a Genya e David... mas, depois disso, sua imaginação não conseguia prosseguir. Que curso de ação eles escolheriam? Se apenas ele tivesse tido a chance de trabalhar com Isaak ou algum dos outros candidatos para sósia, eles poderiam ter uma opção. Mas tentar algo assim com tão pouco tempo de preparação? Bem, Nikolai talvez fosse insano o bastante para tentar, mas Genya e os outros eram sensatos demais para cortejar essa espécie de desastre.

Ainda haveria tempo de salvar o festival, a influência deles sobre os kerches, tudo – se os Santos cumprissem suas promessas. E se Nikolai sobrevivesse ao Espinho Ardente. E, aí, pelo menos ele poderia oferecer a Ravka alguma esperança. Seria ele mesmo outra vez; sua mente não pertenceria a mais ninguém.

Ele teria que encontrar uma noiva imediatamente e fazer a aliança pela qual Zoya tanto insistia. Casar-se com uma desconhecida. Uma farsa de civilidade sem qualquer companheirismo real. Ele interpretaria um papel pelo resto da vida. Suspirou – aquele lugar o estava deixando melancólico.

Então se endireitou. Ouviu um barulho lá fora, fungadas suaves. Quando abriu a porta, não viu nada – até que abaixou os olhos para onde um filhote de urso estava puxando suas calças gentilmente, com garrinhas brilhantes. Seu pelo era espesso e lustroso, e onde deveriam haver suas pernas traseiras ele tinha duas rodas, cujos raios pareciam definitivamente com ossos de dedos. O efeito era tanto encantador quanto bizarro.

O filhote puxou de novo e Nikolai o seguiu até a câmara central. Foi só então que viu Grigori, encolhendo o corpo enorme e cambiante contra a parede.

— Perdoe-me — disse Grigori. Três bocas falaram daquela vez, aparecendo em rostos vagos e então se dissolvendo. — Estamos sozinhos aqui há muito tempo, e não consigo ficar confortável em espaços fechados.

Nikolai gesticulou para as paredes de areia cinza.

— Não poderia simplesmente alterá-las?

— Estes são os seus aposentos agora. Isso parece... grosseiro.

O urso se impulsionou sobre as rodinhas pelo perímetro da sala, fungando e batendo contra as portas de Zoya e de Yuri.

— Seu lacaio é adorável.

— Eu acho a criação muito reconfortante, e sei que é mais fácil para os otkazat’sya presenciarem o monstruoso em formas específicas.

Nikolai hesitou, sem saber qual era o protocolo esperado na presença de um Santo.

— É por isso que está encolhido aí no canto?

— Sim.

— Por favor, não se dê ao trabalho por minha causa. Reza a lenda que eu mesmo tenho um lado monstruoso.

As muitas cabeças de Grigori riram suavemente como um júri divertido.

— Eu não consigo mais controlar a forma que assumo. Já fui apenas eu mesmo e o urso, mas agora um pensamento cruza minha mente e meu corpo dispara na frente para encontrá-lo. É exaustivo.

Grigori se encolheu e, por um momento, Nikolai vislumbrou a forma de um homem com olhos gentis e cabelo escuro encaracolado. Ele usava a pele de um urso nos ombros e sua cabeça como um manto... mas então o urso se moveu, e foi como se homem e animal fossem uma só pessoa parada no mesmo lugar.

— Não sei se deveria mencionar isso — começou Nikolai —, mas me disseram que a pele do urso que o matou está no subterrâneo da capela real em Os Alta. Eu a usei na minha coroação.

— Temo que seus sacerdotes tenham comprado uma falsificação — disse Grigori, a imagem do manto aparecendo e desaparecendo sobre os ombros outra vez. — Aquele urso nunca morreu, da mesma forma que eu nunca morri verdadeiramente.

— Ele se tornou seu amplificador?

— É mais complicado que isso — ponderou Grigori enquanto se dividia novamente em um corpo maior, uma maré de pernas e braços.

— Acho que me lembro da sua história. Você era um curandeiro. — Um jovem curandeiro, renomado por resolver os casos mais impossíveis. Ele tinha curado o filho de um nobre acometido por alguma peste, e o médico do nobre, provavelmente com medo de perder o emprego, acusou Grigori de mexer com magia das trevas. Grigori foi enviado aos bosques para ser destroçado por feras, mas criou uma lira com os ossos daqueles que haviam se aventurado no bosque e tocou uma canção tão reconfortante que os ursos da floresta tinham se deitado aos seus pés. No dia seguinte, quando Grigori emergiu ileso dos bosques, os soldados do nobre amarraram suas mãos e o enviaram de volta à floresta. Incapaz de tocar a lira, Grigori foi destroçado por um dos ursos que tinham dormido aos seus pés na noite anterior. Era um conto sangrento para um jovem príncipe – era impressionante que Nikolai sequer conseguira dormir quando criança.

— Eu era um curandeiro — confirmou Grigori, e suas múltiplas pernas se dobraram nos joelhos, como se ele pretendesse apoiar múltiplos queixos neles. — Mas fiz coisas que talvez não devesse ter feito. Criei bebês para mães que não os tinham. Criei noivas para homens que as desejavam. Criei um grande soldado, com mais de três metros e punhos duros como pedras, para proteger o castelo de um conde.

— Coisas saídas de histórias infantis — refletiu Nikolai, lembrando-se dos contos de suas babás sobre bruxas e golens de pão de mel.

— Agora, sim. Na época... eu não me importava com os limites que governavam meu poder. O merzost era sedutor demais. Eu nunca pensava se deveria fazer uma coisa, apenas se podia fazê-la.

— Esse tipo de poder é imprevisível — disse Nikolai, citando David.

Grigori riu baixo de novo; o som foi triste e murmurante, conforme um novo grupo de cabeças se juntou, suas expressões pesarosas.

— A morte é fácil. Mas o nascimento? A ressurreição? O trabalho de criação é prerrogativa do Primeiro Criador. Eu empreguei o merzost e perdi o controle da minha própria forma. Então me tornei um eremita, pelo menos por um tempo. Uma hora, é claro, as pessoas vieram me procurar, ávidas para aprender meus segredos, por mais que ficassem perturbadas com a minha aparência. Nós somos sempre atraídos pelo poder, não importa o custo. Eles me chamaram de Criador de Corpos, e eu aceitei centenas de alunos ao longo do tempo. Ensinei-os a usar seus talentos para a cura e para o combate. Eles saíram no mundo e todos assumiram meu nome, ou uma forma dele.

— Grisha. — Nikolai estava surpreso. Grigori tinha treinado os primeiros Curandeiros e Sangradores, os primeiros Corporalki. — Foi aí que tudo começou?

— Talvez — respondeu Grigori. — Ou talvez isso seja só outra história. Foi há tanto tempo. — Todo o seu corpo pareceu se curvar como um urso adormecido, um homem cansado, o fardo do encarceramento se assentando sobre ele. — Você não me verá muito na sua estadia aqui. Não gosto que olhem para mim, e acho difícil mudar meus hábitos de eremita. Mas, se houver algo de que precise, não hesite em vir à minha torre. Sei que não é um lugar convidativo, mas garanto que será bem-vindo.

— Obrigado — agradeceu Nikolai, embora realmente não tivesse muita vontade de entrar numa torre feita de ossos e cartilagem.

— Elizaveta pode ser uma professora severa, mas espero que você não se desvie da sua meta. Seu sucesso vai determinar muita coisa. Para todos nós.

— O que você vai fazer quando se libertar da Dobra?

— Está tão confiante assim que vai sobreviver ao teste?

— Gosto de apostar em mim mesmo sempre que possível. Mas geralmente com o dinheiro dos outros.

A forma desolada de Grigori pareceu recuperar parte de sua estrutura, e uma coluna curvada e uma série de braços cruzados brotaram dele. Parecia uma estranha árvore, inclinando-se em direção ao sol.

— Quando meu poder se for e eu me tornar mortal novamente, terei uma forma estável outra vez. Ou talvez eu morra. De qualquer modo, serei livre.

— Então farei o meu melhor por todos nós.

Agora Grigori se inclinou para a frente, um coro de cabeças humanas com olhos escuros e bocas como focinhos, cheias de dentes pontiagudos. Nikolai teve que se obrigar a não recuar.

— Tem que fazer, meu amigo. Tudo está conectado. O mundo está mudando e o poder Grisha também. Se a Dobra continuar a existir, não permanecerá igual.

Nikolai também sentia aquele ímpeto de mudança. As fronteiras estavam se alterando; as armas estavam evoluindo. Era impossível saber o que viria em seguida.

— Yuri alega que estamos para entrar numa Era dos Santos.

Grigori suspirou, e o sopro percorreu a câmara como uma rajada de vento.

— Você sabe por que o monstro dentro de você despertou? Por que o poder do Darkling emergiu após todo esse tempo? Começou com a droga, o parem. Ela tornou possíveis coisas que não deveriam jamais sê-lo. Alterou os limites do poder Grisha.

— O parem?

— Se a droga tivesse sido erradicada...

— Nós tentamos.

Os dentes nas muitas bocas de Grigori ficaram mais longos.

— Não tentaram. Vocês tentaram modificá-la, dobrá-la à sua vontade. Essa é a atração do poder.

Nikolai não podia negar. Ele sabia que, se eles não encontrassem um modo de empregar o poder do parem, uma hora ou outra algum outro país o faria, mesmo sem os conhecimentos de Kuwei para guiá-los. Mas então os experimentos de Ravka...

— Eu ajudei a despertar o demônio.

As cabeças de Grigori assentiram.

— Estamos todos conectados, rei Nikolai. Os Grishas, a Dobra, o poder em seu interior. A Dobra é uma ferida que pode nunca sarar... mas talvez não estivesse destinada a fazê-lo. Lembre-se disso quando enfrentar seu teste.

Nikolai sentia que devia dizer algo profundo, tocar o coração, fazer um juramento solene. Ele foi poupado de tal demonstração por Yuri, que entrou na câmara pelo corredor. Então o monge não estivera murmurando salmos em seu quarto.

— Sankt Grigori. — Ele fez uma reverência profunda, os óculos brilhando como moedas. — Perdoe-me. Não quis interromper.

— De forma alguma — contemporizou o Criador de Corpos, mas Nikolai já podia vê-lo se encolher, mãos emergindo do torso para puxá-lo até o corredor, como se quisesse proteger a si mesmo de olhos curiosos. — Eu lhe desejo sorte, rei Nikolai. — E se foi.

— Eu... eu não quis ofender — balbuciou Yuri.

— Acho que ele pensa que ele é quem ofende.

— A forma dele é desconcertante, sim, mas ele é um Santo, um ser divino.

— Nós somos treinados para entender o que é comum e temer a diferença, mesmo se essa diferença for divina. — Nikolai bateu as palmas. — Agora, estamos prontos para descobrir como me matar?

— Ah, Alteza, não, não. De jeito nenhum. Mas tenho algumas ideias sobre o ritual, e Elizaveta... — Ele hesitou ao falar o nome, como se até mesmo proferi-lo fosse um rito sagrado. — Elizaveta deseja começar o seu treinamento.

— Ela falou isso para você?

— Eu devo acompanhá-lo — disse Yuri, orgulhosamente.

— Muito bem. — Nikolai ajeitou os punhos da manga. — Vamos chamar Zoya.

Yuri limpou a garganta.

— A comandante Nazyalensky não foi requisitada.

— Ela raramente é, mas eu gostaria que estivesse presente mesmo assim. — Yuri franziu a testa, mas Nikolai sabia que ele não ia contrariar seu rei. — Agora só temos que descobrir onde ela está.

Ele sentiu um puxão na perna e olhou para baixo. O filhote de urso com as rodas de osso estava ali. Yuri deu um gritinho.

— Ele é amigável — disse Nikolai. — Espero que seja, pelo menos.

Nikolai e Yuri seguiram o urso pelo corredor e, conforme caminhavam, as paredes pareciam ondular como que em resposta à sua passagem. Novamente, Nikolai teve a sensação de estar diante de algo parecido com um ser vivo, mas sem vida. Não havia o que fazer, exceto seguir em frente. O mundo tinha mergulhado na estranheza; ou ele se adaptava ou enlouqueceria.

Eles atravessaram corredores sinuosos e saíram numa ponte longa e estreita que os levava a outro dos enormes pináculos – o domínio de Juris. O pináculo era talhado em rocha preta afiada e o lembrou das ruínas do velho castelo que ele vira na Ilha Errante – era pontilhado por cavernas e seu pico que parecia uma garra arranhava o céu.

Ele podia ver que Yuri estava desconfortável enquanto atravessavam a ponte.

— É porque não gosta de altura ou porque não aprova a comandante Nazyalensky?

— Alteza, eu não disse que não aprovo.

— Não precisa dizer mais nada. Por que não gosta dela, então? — Zoya não aspirava a ser simpática. Era uma das suas qualidades mais amáveis. Mesmo assim, ele queria saber.

— Aquelas coisas que ela disse aos peregrinos... — Yuri sacudiu a cabeça. — Eu não entendo a raiva dela. O Darkling cometeu muitos crimes, mas ela era uma das favoritas dele.

Não era algo que Zoya gostava de discutir. Ela gostaria de queimar seu passado como um pavio de dinamite.

— O que você acha que alimenta a raiva dela? — perguntou Nikolai.

— Ódio?

— De certo tipo. Todos os combustíveis queimam diferente. Alguns mais rápido, outros de forma mais quente. O ódio é um tipo de combustível. Mas o ódio que começou como devoção... ele cria outro tipo de chama.

Yuri correu a mão esquelética sobre as vestes de tecido grosseiro.

— Eu li as histórias. Sei que ele fez coisas ruins, mas...

— Os livros não contam a história toda.

— Eu sei, é claro, sim. Sim. Mas acho... acho que não discordo inteiramente dos motivos dele.

— E quanto aos métodos dele?

— Eram extremos — admitiu Yuri. — Mas talvez... talvez em alguns casos necessários?

— Yuri, se deseja manter a cabeça ligada ao corpo, recomendo que nunca diga isso onde a comandante Nazyalensky puder escutar. Mas você não está inteiramente errado.

Yuri pareceu surpreso.

— Não?

— O Darkling queria paz. Uma Ravka mais forte. Um refúgio para os Grishas. São todas coisas que eu gostaria de realizar em meu governo.

— Sim! — concordou Yuri. — Exatamente. Ele não era um homem bom, mas era um homem de visão...

Nikolai ergueu a mão. Duvidava que Yuri fosse mudar de ideia, mas, se ele venerava o Darkling, deveria fazê-lo com os olhos abertos – e havia um limite para quão imparcial Nikolai podia ser.

— Há uma diferença entre visão e ilusão. O Darkling alegava servir a Ravka, mas isso deixou de ser verdade quando Ravka deixou de servi-lo. Ele alegava amar os Grishas, mas esse amor se dissolveu quando eles não o escolheram como seu mestre. Ele quebrou suas próprias regras e, no processo, quase quebrou uma nação.

Yuri mordiscou o lábio.

— Fale — pediu Nikolai. — Vejo que tem mais a dizer.

Yuri empurrou os óculos para cima.

— Se o seu pai... se o antigo rei não tivesse sido tão...

— Fraco? Ganancioso? Incompetente?

— Bem...

— Eu não sinto prazer em admitir os erros do meu pai. Ou do pai dele. Ou do pai dele antes disso. Houve bons e maus reis Lantsov. O rei Anastas deu a Ravka suas estradas, mas executou quase dois mil homens por heresia. Ivan, o Dourado, construiu escolas e museus, mas não conseguiu proteger os Sikurzoi contra os shu. Meu pai... eu gostaria de ter orgulho dele. Dizem que a linhagem Lantsov descendeu do pássaro de fogo, mas somos apenas homens e, muitas vezes, homens muito fracos. Eu não posso mudar o que meus ancestrais fizeram. Só posso tentar reparar parte dos danos e nos colocar em um caminho diferente.

— E o seu filho?

Nikolai deu um sorriso malandro.

— Eu posso ter tido uma juventude desregrada, mas também fui cuidadoso.

Yuri corou.

— Eu quis dizer seus futuros filhos e filhas. Tem tanta certeza de que eles estarão aptos a governar?

Nikolai riu enquanto eles passavam sob um arco e entravam no pináculo de Juris.

— Então você não é só um herege, mas também um radical?

— Claro que não, Alteza!

— Não tem problema, Yuri — ele disse. — Eu fortaleci os governadores locais e deixei mais poder nas mãos das assembleias por um motivo. Talvez Ravka não precise de um monarca para sempre. Mas mudanças levam tempo.

E podem não ser possíveis. Ele fora sincero quando dissera a Zoya: os ravkanos eram atraídos por figuras poderosas, pela força. Eles nunca tiveram permissão de aprender modos de governar-se por si mesmos porque as decisões sempre foram tiradas de suas mãos por reis, Darklings, generais e sacerdotes. Com o tempo, isso poderia mudar. Ou talvez eu morra nesse ritual e o país mergulhe no caos.

Ele tinha deixado Ravka imperdoavelmente vulnerável. Havia ministros que poderiam governar em seu lugar, mas ele não deixara nenhuma ordem de sucessão clara. Não tinha um herdeiro. Não tinha uma esposa que pudesse se apresentar como um símbolo para mobilizar o povo. E quem a protegeria, de toda forma – essa jovem imaginária com quem ele se casaria? A resposta era óbvia: Zoya Nazyalensky poderia fazer o serviço. Presumindo que ela conseguisse escapar daquele purgatório.

Ele a tornaria sua Primeira-ministra e Protetora do Reino, não só comandante das forças Grishas. Se Nikolai morresse antes de seu herdeiro atingir a maioridade, ela estaria lá para proteger Ravka e a linha de sucessão. O povo passara a confiar nela – na medida em que conseguia confiar numa Grisha. E, apesar dos humores sombrios e de seu coração vingativo, ele tinha passado a confiar nela. Ela estava se tornando uma líder firme e confiante.

Ou não, ele pensou quando o ursinho os levou até o santuário interno de Juris, onde dois lutadores estavam engajados em combate. Os dentes de Zoya estavam trincados e ela empunhava machados gêmeos como os que Tamar gostava de usar, embora aqueles parecessem mais velhos e menos refinados. Juris a atacava com uma espada enorme.

Yuri cofiou nervosamente a barba fina.

— Isso não parece seguro.

— Para nenhum dos dois.

Nuvens de tempestade se juntavam ao redor dos lutadores, e trovões sacudiam o chão. O urso rolou para longe, segurando as patinhas sobre as orelhas como se quisesse fugir do som.

Por um momento, por mais improvável que fosse, eles pareciam estar equiparados. Mas ele sabia que o talento de Zoya não estava naquele tipo de combate – e, como esperado, quando Juris fez uma finta para a direita, Zoya cometeu o erro de tentar se mover com ele.

— Proteja seu flanco! — gritou Nikolai.

Juris se virou bruscamente e desceu a espada em um arco amplo. Zoya ergueu os machados e eles pareceram brilhar com fogo azul. Quando as lâminas se encontraram a estocada da espada de Juris, raios estalaram dos machados e o grande guerreiro rugiu, com fumaça se erguendo da armadura de escamas pretas.

O que Zoya tinha feito? E como suportara a força do golpe de Juris?

— Bom! — disse Juris quando se separaram. Ele relaxou os ombros como se ser quase cozido vivo fosse uma experiência normal. Talvez, para um dragão antiquíssimo, fosse mesmo.

O cabelo de Zoya estava úmido de suor, sua camisa agarrava-se ao corpo e seu sorriso era jubilante – um sorriso que ele nunca vira no rosto dela. Nikolai viu seu bom humor amargando.

Ele pigarreou.

— Se já terminou de tentar cortar minha general ao meio, eu preciso dela.

Zoya se virou rapidamente para eles, enxugando o suor da testa com a manga.

— O que houve? — Os olhos dela estavam tão azuis que pareciam brilhar.

— Fomos chamados para falar com Elizaveta. Quero você lá para aprender sobre o ritual.

O dragão bufou.

— O tempo dela é mais bem aproveitado comigo. O bosque de espinheiros é um caminho que você deverá percorrer sozinho, rei menino.

— Mas é um caminho árduo — apontou Nikolai. — Quem vai carregar meus lanchinhos?

Juris virou a cabeça para Zoya, que já tinha pendurado os machados na parede.

— Você perde seu tempo com ninharias.

— O futuro do meu país não é uma ninharia.

— Rei e país não são a mesma coisa.

Zoya desdobrou as mangas e fechou os botões no pulso.

— São quase.

As asas de Juris se abriram à medida que seu corpo inflava para a forma de dragão. Nikolai se obrigou a manter uma expressão calma, apesar do terror primitivo que a visão inspirou nele. Era assim que os outros se sentiam quando o monstro despertava?

Juris bufou de novo, dessa vez do enorme focinho e com força suficiente para criar um turbilhão na sala.

— Você entenderá com o tempo. Quando ele envelhecer e você só ficar mais poderosa.

Zoya deu de ombros, sem demonstrar interesse.

— E você já será pó na terra há muito tempo, então nem estará aqui para tripudiar.

O dragão saiu voando, emburrado. Nikolai lhe deu um aceno alegre, mas as palavras de Juris atormentaram seus pensamentos enquanto ele voltava pelos corredores junto de Zoya e Yuri. Ele temeu que fossem se perder, mas as ondulações das paredes pareciam sempre os conduzir, e logo eles se encontraram em outra ponte – e Nikolai esperou que essa levasse ao pináculo de Elizaveta.

Ele sabia que os Grishas tinham vidas longas e que, quanto maior seu poder, mais tempo eles viviam. Quantos anos Zoya ainda poderia viver para proteger Ravka e a linhagem dos Lantsovs? Ela guiaria Ravka com sabedoria, ou sucumbiria à loucura da eternidade, como o Darkling? E o povo ravkano a aceitaria? Ou, com o tempo, a julgariam sobrenatural? Ele já estaria morto a essa altura, aqueles problemas muito além da sua ajuda ou do seu controle, mas isso não era um pensamento reconfortante.

Yuri estacou tão abruptamente que Nikolai quase esbarrou nele.

— Ah... — fez ele. — Ah.

O pináculo de Elizaveta erguia-se diante deles, seus painéis cor de âmbar brilhando dourados na luz baça e estranha da Dobra. Nikolai podia ver as formas de insetos gigantes congelados em cada um deles, e a estrutura toda parecia zumbir como uma grande colmeia.

— Sankta — sussurrou Yuri, exultante.

Ele não demonstrara tanta veneração pelo dragão, Nikolai notou, mas o pináculo de Juris passava a impressão do covil de uma fera. Já aquele lugar parecia um templo, atemorizante e sagrado.

— Você estava errado sobre a pira — Zoya disse a Yuri. — Sabemos mesmo alguma coisa sobre o que esse ritual exige?

— Só que é perigoso — respondeu Yuri.

— Não diga. Pensei que o rei só teria que comer doces e representar um monólogo.

— Já selecionei alguns — rebateu Nikolai.

À medida que se aproximavam, os painéis se mexeram e rearranjaram para criar uma entrada. Lá dentro, o ar cheirava a rosas e mel, e tudo cintilava com a luz amanteigada da hora dourada que antecedia o pôr do sol. Entretanto, não havia pôr do sol ali.

A própria Elizaveta parecia ter sido fundida em ouro, cercada por abelhas e libélulas, as rosas em seu vestido brotando e morrendo e brotando novamente.

— Bem-vindos — ela cumprimentou calorosamente. Se estava surpresa ou contrariada por ver Zoya ali, não deu sinal disso. Pelo contrário, sorriu para todos. — Meu rei, que tal vermos se conseguimos chamar o monstro?

Nikolai fez uma mesura a Elizaveta gesticulou para uma mesa onde havia um vasinho de argila.

— Na hora do ritual, eu vou erguer o bosque de espinheiros das areias da Dobra. — Enquanto falava, ela agitou os dedos, e um galho espinhoso cor de ferro emergiu do solo do vasinho. — Quando ele crescer, seus espinhos serão tão longos quanto um sabre. Você chamará o monstro e, quando ele emergir, vai cravar um espinho através do coração de ambos.

— E como exatamente ele deveria sobreviver a isso? — questionou Zoya.

O pequeno espinheiro pareceu crescer, seus espinhos se alongando.

— Isso cabe ao rei descobrir. Podemos ajudá-lo a convocar e controlar o monstro, mas a luta será apenas dele. Se a força de vontade dele for grande o bastante, ele vai sobreviver. Se não, o monstro vai assumir o controle.

Nikolai se viu esfregando a mão sobre o peito e se obrigou a parar.

— Minha força de vontade?

— O teste é tanto físico quanto mental, com o objetivo de separar o homem da fera e a fera do homem. A dor será diferente de tudo o que você já experimentou, mas ainda pior será enfrentar o monstro.

— O que ele é, exatamente? — perguntou Nikolai.

Dessa vez o sorriso de Elizaveta era compassivo, como se ela pudesse sentir o medo que Nikolai carregava dentro de si, a raiva e confusão que o atormentavam desde que o demônio o tinha tomado.

— Um resquício do poder do Darkling. Uma lasca de suas próprias intenções e ambições. Fora isso, não tenho certeza. O monstro não quer ser expurgado. Vai tentar te confundir para impedi-lo de completar o ritual e usar o espinheiro. Se isso acontecer, ele o controlará por completo. Acha que consegue vencer? — ela perguntou gentilmente.

— Já derrotamos o Darkling uma vez.

— Alina o derrotou — corrigiu Zoya.

Uma pontada de aversão cruzou o rosto de Elizaveta.

— A Santa do Sol — ela desdenhou. — Como as pessoas estão desesperadas por milagres. Como se rebaixam. — Nikolai viu os olhos de Zoya se estreitarem e apoiou uma mão no braço dela. Eles não estavam ali para defender o legado de Alina. — Mas não é o Darkling que você enfrentará — continuou Elizaveta. O espinheiro se esticou ainda mais, e o vaso rachou quando as raízes quebraram a argila com suas gavinhas exploradoras. — Não exatamente. Essa é uma criatura animada pela vontade do Darkling, a qual também animou os soldados de sombra dele, os nichevo’ya. Mas ela viveu dentro de você por mais de três anos. Compartilhou seus pensamentos e desejos, e vai usá-los contra você. Vai lutar pela vida dela com o mesmo empenho com que você está lutando pela sua.

Nikolai supôs que deveria estar intimidado. Um homem sábio provavelmente pensaria duas vezes antes de se espetar num espinho gigante, mas ele não sentia nada exceto expectativa. A ideia de que aquilo era algo que ele podia enfrentar e conquistar – e até ser destruído por ele – era muito mais fácil de aceitar do que um pesadelo que ele teria que suportar para sempre. Ele começara a acreditar que aquela coisa nunca o deixaria. Havia partes de si mesmo que ele desprezava – a ambição desmedida, a veia egoísta que Alina tinha apontado com tanta exatidão –, e, se Elizaveta estivesse certa, o monstro empregaria essas armas, e outras piores, na luta contra ele. Mas tudo bem. Ele sabia que seu desejo pela vida se provaria maior, no fim das contas.

— Quando chegar a hora — ele jurou —, eu estarei pronto.

O espinheiro subitamente saltou da mesa, seu caule largo e pulsante, seus espinhos como adagas de ferro. Ele disparou pela sala e parou a um centímetro do peito de Nikolai, a ponta letal de um longo espinho apontada diretamente sobre o coração dele.

— Espero que sim — disse Elizaveta. — Nós esperamos uma eternidade por você, Nikolai Lantsov. Seria uma pena se nos decepcionasse agora.

Nikolai trocou um olhar com Zoya. Yuri encarava Elizaveta com adoração escancarada – útil como sempre.

— Tenho quase certeza de que você está tentando me assustar — disse Nikolai, estendendo um dedo para tocar a ponta do espinho. — Não sei bem por quê, mas posso sugerir uma aranha usando um terno?

— Por que um terno? — perguntou Zoya, franzindo o cenho. — Por que não só uma aranha?

— Onde ela arranjou o terno? Como fechou os botões? Por que sentiu a necessidade de se vestir para a ocasião?

Elizaveta os estudava. Ela mexeu os dedos e o espinheiro recuou.

— Eu pretendia torturar o monge para forçar sua escuridão a emergir — ela disse, contemplativa. — Mas é melhor ir logo ao ponto.

Ela ergueu a mão e o chão se ergueu ao redor de Zoya, encerrando-a em painéis âmbar reluzentes.

Zoya gritou, parecendo alarmada e assustada antes que seus instintos tomassem conta. Ela esticou as mãos, golpeando as paredes luminosas com o seu poder. Mas uma substância dourada começou a se erguer do chão, preenchendo a câmara.

Nikolai saltou em direção a ela, mas o bosque de espinheiros cresceu entre eles em um emaranhado selvagem e impenetrável. Havia espinhos por todo lado, um muro de espetos cinza mortais.

— Pare com isso, Elizaveta! — ele gritou, embora não conseguisse mais ver a Santa.

Ele ouviu Zoya gritar.

— Eu sei que você não vai matá-la — ele continuou, embora não tivesse certeza, de forma alguma. — Juris precisa dela.

Elizaveta apareceu do matagal, cercada por uma profusão de rosas.

— Acha que eu me importo com o que Juris precisa? É a liberdade que eu desejo. E, se perdê-la vai impeli-lo a agir, parece um preço pequeno.

Nikolai avançou contra ela, mas Elizaveta desapareceu no bosque de espinheiros. Ele pulou entre os espinhos, ignorando a dor quando eles perfuraram suas roupas. Eram terrivelmente afiados, afundando em sua pele como dentes.

— Você terá que voar, meu rei — veio a voz de Elizaveta. — Ou nunca será livre, e nós também não.

Os gritos de Zoya ficaram mais altos.

De algum lugar no matagal, Yuri exclamou:

— Oh, não! Por favor, não faça isso! Eu imploro!

Nikolai fechou os olhos. Vamos, seu desgraçado, ele implorou ao monstro. Quer estender as asas? Essa é a sua chance. Até deixo você mordiscar aquela suposta Santa como agradecimento.

Mas, se o monstro estava ouvindo, deveria estar rindo também. O que quer que fosse a criatura sombria que residia nele, não estava interessada naquele jogo.

A Santa não vai feri-la, Nikolai disse a si mesmo. É só um truque.

Então os gritos de Zoya pararam.

Yuri estava soluçando.

— Zoya? — Nikolai berrou. — Zoya!

Ele se jogou contra os espinhos afiados.

— Zoya! — berrou, mas o nome emergiu como um rosnado.

Dessa vez ele sentiu a criatura dentro de si se arrastar para a superfície como se garras estivessem arranhando sua caixa torácica.

Não. Ele não queria aquilo, não queria ceder controle ao monstro.

Mas outra voz dentro dele sibilou: Sim.

Lembre-se, ele disse a si mesmo, lembre-se de quem é.

Ele sentiu as garras emergirem, sentiu os dedos se alongarem.

Eu sou Nikolai Lantsov, corsário e rei.

Ele gritou quando as asas brotaram em suas costas e então subiu acima do bosque de espinheiros, até o teto alto como uma caverna da torre. Lembre-se de quem é.

Elizaveta ergueu os olhos para ele, seu rosto triunfante. Yuri chorava. Ao lado deles, Zoya flutuava em um sarcófago dourado, como um anjo preso em âmbar. Seus olhos estavam fechados e seu corpo, imóvel.

Ele não reconheceu o som que foi arrancado da sua garganta quando jogou seu corpo contra a prisão de Zoya. Bateu nela com um baque de quebrar ossos, mas nada aconteceu.

Então se virou para Elizaveta, rosnando. Eu sou o monstro e o monstro sou eu. Podia sentir o demônio se esforçando para assumir o controle ao mesmo tempo que lhe concedia força. Mas Elizaveta apenas sorria, gentil e benevolente. Com um gesto, as paredes de âmbar que seguravam Zoya desabaram e o bosque de espinheiros murchou e sumiu no chão.

Ele pegou o corpo flácido de Zoya antes que ela caísse. Estava coberta de seiva dourada. Elizaveta fechou o punho e Zoya começou a tossir. Ela abriu os olhos, os cílios sob uma camada de resina, piscou confusamente e, então, seu rosto foi inundado de terror e ela começou a se debater nos braços dele.

Ele queria tranquilizá-la. Queria... o cheiro do medo dela se mesclou com a seiva e o fez sentir-se bêbado. Sentir-se faminto.

Tudo o que ele queria era fincar as garras na pele dela. Tudo o que queria era consumi-la.

Lembre-se, ele exigiu. Lembre-se de quem é.

Nikolai Lantsov. Governante de Ravka. Corsário. Soldado. Segundo filho de um rei caído em desgraça.

Um rosnado de puro apetite o percorreu quando Zoya tentou desesperadamente se afastar, seus movimentos dificultados pelo peso da seiva.

Lembre-se de quem ela é. Zoya sentada ao lado dele escrevendo cartas. Zoya lançando um olhar gélido para um novo grupo de estudantes. Zoya segurando-o no interior de uma carruagem enquanto ele tremia e tremia e esperava o monstro ir embora.

Ele se aferrou à memória daquela sensação, daqueles tremores terríveis. Vá embora, ordenou. Vá embora.

Lenta e relutantemente, o monstro afundou de volta para o lugar sombrio onde residia, deixando o gosto acre de alguma coisa queimando na boca de Nikolai.

Ele desabou de joelhos, tremendo.

Não conseguia suportar a ideia de olhar para Zoya e ver o asco em seu rosto. Não haveria volta depois daquilo. Ele sentiu as mãos dela nos ombros e se obrigou a encontrar o seu olhar.

Ela estava sorrindo largo.

— Você conseguiu — ela comemorou. — Chamou-o e mandou-o dar no pé.

— Você quase morreu. — Ele estava pasmo.

Ela sorriu ainda mais largo.

— Mas não morri.

Elizaveta bateu na mesa.

— Então estou perdoada, Aeros?

— Depende de quão difícil vai ser tirar esse negócio do meu cabelo.

Elizaveta ergueu as mãos e a seiva deslizou de Zoya em regatos dourados, retornando ao chão e se solidificando.

Yuri enxugou as lágrimas do rosto.

— A... a comandante Nazyalensky vai ter que enfrentar esse suplício toda vez?

— Eu aguento, se for preciso.

Elizaveta deu de ombros.

— Esperamos que não seja.

Zoya estendeu a mão para ela.

— Você abriu a porta.

Nikolai a deixou ajudá-lo a se erguer e se obrigou a comemorar com os outros. Mas ele tinha sentido a força de vontade do monstro e se perguntou se, quando chegasse a hora, estaria à altura da sua ferocidade.

Ele tinha aberto a porta.

Mas duvidava que seria tão fácil fechá-la da próxima vez.


ELE TINHA SOBREVIVIDO a três dias de festas, jantares e reuniões sem que ninguém tentasse assassiná-lo outra vez. Era um pouco como estar numa frente de batalha. A pessoa sobrevivia por uma hora, depois mais uma. Torcia para chegar ao final do dia. À noite, Isaak caía na cama e ficava deitado encarando o teto, com o coração martelando, pensando nas muitas coisas que tinha feito errado e nas muitas outras coisas que estava fadado a errar no dia seguinte.

Naquele dia, os planos eram passear de barco no lago junto ao Pequeno Palácio e, então, fazer um piquenique nas margens.

— Organizamos um encontro com a princesa shu antes do almoço — informou Tamar.

— E eu... faço o quê com ela?

— Seja charmoso. Pergunte a ela sobre suas guardas e há quanto tempo as conhece. Obtenha qualquer informação que conseguir.

— Você e Tolya não podem só fazer amizade com a Tavgharad, rememorando sua infância ou algo assim?

Os gêmeos tinham se entreolhado.

— Somos piores que ravkanos para elas — disse Tamar. — Nosso pai era shu, mas usamos as tatuagens da Santa do Sol e servimos a um rei estrangeiro.

— Por que escolheram o serviço a Ravka, aliás?

— Não escolhemos — replicou Tamar.

Tolya pôs a mão sobre o coração.

— Escolhemos Alina. Escolhemos Nikolai. Tudo isso — ele gesticulou para o palácio — não significa nada.

Isaak não sabia como responder. Considerava-se um patriota, mas podia admitir que, ao contrário do rei, Ravka nunca fora particularmente gentil com ele.

— Converse com a princesa Ehri — pediu Tamar. — Faça-a falar.

— Hipoteticamente, se eu não possuísse carisma natural e um talento para a conversação, como eu faria isso?

Tamar revirou os olhos, mas Tolya o instruiu:

— Elogie-a. Expresse sua admiração pela cultura shu. Considere recitar um...

— Ah, pelo amor dos Santos, Tolya, isso é a última coisa que ele deveria fazer. — Tamar se ajoelhou na frente de Isaak. — Só escute. Faça perguntas para ela. Mulheres não querem ser seduzidas; querem que alguém as veja e as escute. Você não pode fazer nenhuma dessas coisas se estiver bolando estratégias para conquistá-la... ou recitando o Quarto Épico de Kregi.

— Não existe o Quarto Épico de Kregi — resmungou Tolya. — O terceiro foi deixado inacabado pelo poeta Elaan.

— Então é definitivamente esse que ele deveria recitar.

Por que a ideia de uma simples conversa fazia o coração de Isaak disparar? Possivelmente porque ele nunca tinha sido bom em conversar com garotas – exceto suas irmãs. Mas discutir com Belka e Petya sobre o preço de laços era muito diferente de jogar conversa fora com membros de famílias reais. E como ele deveria tirar informações de uma princesa? Ele tentou se lembrar de que agora era bonito – um fato que o surpreendia toda vez que pegava um vislumbre de si mesmo num espelho. Ele não era feio antes, só comum – cabelo castanho curto que ficava cacheado se ele deixava crescer demais, feições bastante regulares, os dentes de baixo um pouco tortos. A mãe dizia a ele que era bonito, mas ela também dizia à irmã que ela cantava bem, o que definitivamente não era verdade.

Agora Isaak tentava parecer à vontade enquanto se reclinava em um divã acolchoado na barcaça real, almejando a sua melhor aproximação da postura relaxada de Nikolai. Tinha passado anos demais em posição de sentido. À sua frente, chalupas e outras barcaças elegantemente decoradas pontilhavam o lago como vitórias-régias, estandartes estalando e toldos listrados com o azul e dourado de Ravka.

O lago estava frio demais para nadar, mas os Hidros tinham aquecido a superfície para que uma névoa se erguesse da água em nuvens densas, que os Aeros então manipulavam para criar os símbolos de vários países e famílias importantes. Isaak se permitiu dar alguns goles de vinho de damasco em uma tacinha na forma de sino para tentar acalmar os nervos, mas ainda permaneceu alerta e escutou um embaixador fjerdano perguntar se poderia visitar a escola Grisha.

— É claro — disse Genya. — Seria um enorme prazer.

Isaak não achava que tinha imaginado a corrente de empolgação que passou entre o embaixador e outro membro da sua delegação.

Genya alisou as saias e acrescentou:

— Mas temo que a visita será enfadonha. Os alunos estão viajando com seus professores no momento, como parte de sua instrução.

— Todos eles?

— Sim — respondeu Genya. — Acreditamos que o trabalho de campo é muito benéfico para a educação das crianças. E devo admitir que não estou triste com a paz e calmaria. Jovens Grishas podem ser muito entusiasmados, como os senhores certamente podem imaginar. Não queríamos que ficassem correndo por aí com tantos amigos novos e importantes nos visitando.

Isaak nunca tinha visto os estudantes Grishas “correndo por ali”. Eles se mantinham ocupados, e a escola era isolada o suficiente do resto do palácio para que não pudessem ir a lugar nenhum sem atrair atenção. Não, eles tinham sido transferidos por segurança – e os fjerdanos sabiam disso.

— Vocês evacuaram todos eles? — o embaixador perguntou friamente.

— Evacuar? — disse Genya com uma risada divertida. — Isso sugeriria que haveria algum tipo de ameaça. — Ela deu um tapinha brincalhão no joelho do embaixador. — Uma ameaça! Contra um grupo de crianças que poderia atear fogo a essa barcaça e parar o coração de todos nela com um único gesto! — Ela enxugou os olhos. — Ah, é muito engraçado.

Isaak se virou para Genya quando os fjerdanos foram até a amurada para desfrutar a vista e possivelmente fervilhar de raiva.

— Vocês mandaram os alunos para longe para protegê-los?

— É claro — revelou Genya, todo o bom humor evaporando. — Acha que manteríamos um dos maiores recursos de Ravka onde uma bomba ou gás venenoso poderia eliminar uma nova geração inteira de Grishas em momentos? Mas um fjerdano amedrontado fica menos propenso a agir, e eu adoro a ideia de que eles terão pesadelos com um grupo de crianças.

Isaak balançou a cabeça.

— Ouvir você falar é como ver um marinheiro que conhece a forma secreta de uma baía, todos os lugares onde caem tempestades e os pontos rochosos onde os navios naufragam. Você navega por essas águas com tanta confiança.

Genya ficou quieta por um longo momento.

— Eu fui jogada na água cedo — ela disse. — O Darkling me deu à rainha de Ravka como presente quando eu era só uma garotinha, uma coisinha bonita que poderia servi-la.

— Então você conhecia o rei quando garoto?

— Eu via ele e o irmão de passagem. Era uma criada estimada, mas ainda uma criada. Eles falavam muito alto. — Ela brincou com um dos brincos de topázio. — Os criados costumavam chamá-los de As Duas Enxaquecas. Como eu os invejava... a liberdade que tinham para correr e brincar e aprontar.

— Mas ser uma favorita da rainha deve ter sido uma grande honra — observou Isaak.

Genya jogou uma ameixa na boca.

— Por um tempo, eu fui a boneca da rainha. Ela me vestia em roupas bonitinhas e escovava meu cabelo e me deixava dormir ao pé da sua cama e sentar-me ao seu lado nas refeições. Eu observava os tubarões e aprendia. Quando fiquei mais velha e tive a infelicidade de atrair a atenção do antigo rei... — Genya enxugou os dedos devagar em um guardanapo de linho, manchando o tecido com o suco da ameixa. — Eu me convenci de que o sofrimento que aguentava era uma honra porque eu era a soldada e a espiã do Darkling. Ele confiava em mim acima de todos os outros, e um dia todos saberiam como eu o ajudara. Ele não teria conseguido dar o seu golpe tão facilmente sem as informações que eu passei para ele.

Isaak a encarou.

— Você está confessando traição — ele sussurrou.

— Isaak, querido — ela disse com um sorriso. — Nikolai Lantsov me perdoou há muito tempo, e naquele momento ganhou minha lealdade para sempre. O Darkling me jogou na água e assistiu enquanto eu me afogava, para servir a seus próprios interesses.

— Então ele era tão cruel quanto dizem as histórias?

— Cruel? Ah, com certeza. Mas ele não me deixou à mercê das investidas do rei para me punir. Nunca sequer considerou meu sofrimento. O que era a angústia de uma garota se podia ajudá-lo a conquistar um império? Ele estava jogando um jogo longo e complicado. Foi só quando eu ousei pensar por mim mesma, quando interferi no seu grande plano, que ele soltou seus monstros sobre mim e...

Um splash alto soou em algum ponto do lago. Eles se ergueram a tempo de ver um esvoaçar de seda amarela afundando sob a superfície perto de uma barcaça cheia de membros da delegação kerch. Uma das filhas dos comerciantes tinha caído na água e estava afundando depressa.

— Pule — sussurrou Genya com urgência. — Salve-a.

— Temos Grishas...

— Nikolai não esperaria um Grisha.

Ela tinha razão, mas...

— Eu não sei nadar.

— Por favor me diga que está falando metaforicamente.

— Infelizmente não — ele respondeu, seu pânico aumentando.

— Por que não me contou?

— O assunto nunca surgiu!

— Simplesmente pule — disse Genya. — E não ouse se debater. Afunde o mais rápido que puder e nós faremos o resto.

Isaak não acreditava que ela estava falando sério, mas um olhar para a sua expressão deixou claro que não era piada. Bem, ele pensou ao saltar pela amurada e se lançar na água com o que esperava ser um mínimo de elegância, pelo menos, se eu me afogar, não vou ter que aguentar o jantar.

A água estava terrivelmente fria, e, enquanto afundava, o corpo inteiro de Isaak gritava para que ele se movesse, lutasse, fizesse alguma coisa para retornar ao calor e ao ar. Não se debata. Ele ficou parado, a dor crescendo nos pulmões enquanto o pânico começava a dominá-lo. Ergueu os olhos e acima, muito acima, viu o brilho baço da superfície. Parecia impossivelmente distante, o lago escuro e silencioso ao redor deles, um céu infinito e sem estrelas. Um lugar horrível para morrer. Esse é o fim?, ele se perguntou. Vou mesmo me afogar para preservar a reputação do rei como um herói?

Então Nadia tomou o braço dele. Ela estava cercada por uma bolha de ar que tinha criado e que os dois Hidros ao seu lado impeliam para a frente. Puxou-o para o círculo e ele inspirou o ar, devagar e tremendo.

— Vamos — ela disse. Ele sentiu a corrente se mover ao redor dele, arrastando-os como um rio veloz.

Um embrulho de seda amarela afundava lentamente na água adiante. A garota – Birgitta Schenck – não estava se movendo. Seus olhos estavam fechados e seu cabelo flutuava ao redor do rosto como uma coroa. Oh, Santos. Será que ela estava morta?

— Agarre ela — ordenou Nadia, e, assim que a mão dele se fechou no pulso da jovem, eles dispararam pela água de novo.

Emergiram do lado oposto da ilhazinha no centro do lago, longe das embarcações de lazer. Tolya e Tamar estavam esperando. Eles puxaram Birgitta para os degraus de um dos pavilhões de treino e começaram a tentar reanimá-la.

— Por favor, digam que ela está viva — pediu Isaak.

— Há pulsação — respondeu Tolya —, mas ela tem água nos pulmões.

Um momento depois, Birgitta tossiu e a água do lago jorrou dos seus lábios.

— Fora, todo mundo — ordenou Tolya.

— Seja charmoso — disse Tamar enquanto desaparecia com os outros na névoa. — Você é um herói.

Isaak se inclinou sobre a garota, tentando se lembrar de que ela veria o rosto do rei.

— Srta. Schenck? — ele chamou. — Birgitta? Está bem?

Ela bateu os longos cílios, olhou para ele com os olhos verdes atordoados e irrompeu em lágrimas.

Bem. Talvez a beleza não fosse a cura para tudo.

— Você quase se afogou — ele enfatizou. — Tem motivos para estar emotiva. Venha, precisamos aquecê-la.

Isaak também estava exausto e congelando, mas se obrigou a fazer o que pensou que passaria a melhor impressão. Enfiou o braço sob as pernas da garota e a ergueu nos braços. Pelos Santos, ela era pesada. Toda aquela seda era necessária?

Ela encostou a cabeça no peito dele e Isaak atravessou a ilha, com os dentes batendo e as botas chapinhando, até que os dois emergiram dentre as árvores na margem oposta.

Todos estavam perscrutando a água enquanto aspirantes a salvadores nadavam ao redor do barco kerch e Hidros abriam espaço no lago, erguendo a água para que pairasse acima da superfície.

Alguém avistou Isaak e Birgitta e gritou:

— Lá estão eles!

— Ela está perfeitamente bem! — exclamou Isaak. — Só encharcada. Agradeceríamos algumas roupas secas e chá quente.

A multidão irrompeu em aplausos. Isaak abaixou Birgitta antes que seus braços cedessem, depositando-a na areia como uma pilha de roupas molhadas. Fez uma reverência e conseguiu impedir os dentes de bater por tempo suficiente para beijar a mão dela.

Ele tinha passado de pequenas quebras de etiqueta para quase morrer e matar alguém no processo. Talvez no dia seguinte encontrasse um jeito de atear foto ao palácio.


Birgitta Schenck e Isaak foram levados para a barcaça real, onde foram embrulhados em cobertores e tomaram licor quente enquanto criados esfregavam suas mãos. Mas foi só quando estava de volta aos aposentos de Nikolai – e submerso em um banho fumegante na enorme banheira do rei – que Isaak finalmente começou a sentir que se esquentava outra vez.

Genya e os outros estavam intensamente envolvidos numa discussão na sala de visitas e deixaram Isaak ficar de molho em paz. Ele ia sentir falta daquela banheira quando o rei voltasse – quanto ao resto, poderia viver sem.

Ele ficou ali até que a água esfriou e sua pele começou a enrugar. Sobretudo, não queria enfrentar as pessoas esperando ao lado, mas se obrigou a sair da banheira e se secou com uma das compridas toalhas de linho.

Nikolai não tinha um criado pessoal, o que fora um alívio para Isaak; ninguém o ajudava a se vestir desde que ele era criança. Ele vestiu as calças macias do rei e calçou as botas, colocando a camisa, os suspensórios e o casaco justo, bordado com a águia Lantsov. Precisava admitir que as roupas não eram nada mal também. Tinham sido feitas meticulosamente e eram tão confortáveis quanto elegantes. Enquanto ajeitava o casaco, seus dedos encontraram algo no bolso direito. Ele vivia encontrando coisinhas escondidas nos bolsos do rei – um bilhete que ele rabiscara para si mesmo, um rascunho do que poderia ser uma nova invenção, contas prateadas. Dessa vez, puxou um pequeno nó de arame do casaco. Tinha sido dobrado na forma de um barco a vela, e ele o deixou na penteadeira do rei.

— Estávamos pensando que pode ter sido bom — disse Tamar quando Isaak entrou na sala de estar.

Ele se juntou aos outros perto do fogo, contente pelo calor.

— Então devo tentar me afogar mais vezes?

— Não foi ideal — ponderou Genya, servindo uma xicara de chá para ele. — Você perdeu a chance de conversar com a princesa Ehri. Mas aproveitamos ao máximo, e o rei pareceu um herói.

— Foi um belo toque carregá-la — disse Tamar.

— Muito heroico — concordou Tolya —, como um príncipe num poema épico. E assim Ivan dos Cabelos Dourados a levou através da...

— Pare de recitar poesia ou vou pessoalmente afogar você no lago — disparou Tamar.

Tolya fez uma careta e murmurou “É um clássico”, para o seu chá.

Isaak não concordava, mas duvidava que fosse a hora para debater poesia.

Genya cutucou David, que ergueu os olhos do tratado que estava lendo.

— Rastreamos o dispositivo instalado na porta do rei para disparar o gás arsina. Provavelmente é fjerdano.

— Eles serão presos? — perguntou Isaak.

Tamar pareceu quase confusa.

— Claro que não. Não podemos provar, e, de certa forma, é uma boa notícia.

— É claro — disse Isaak, coçando a orelha. — Como exatamente é uma boa notícia?

— Já suspeitávamos que os fjerdanos não tinham vindo de boa-fé. Se fossem os kerches ou shu, teríamos motivos para nos preocupar. Mas isso significa que os shu ainda estão abertos a uma aliança. Estávamos curiosos para ver quem poderia atentar contra a vida do rei.

— Sem arriscar o rei? — perguntou Isaak, surpreso com a amargura em sua voz.

Tolya apoiou uma mão gigante em seu ombro.

— Nunca deixaríamos você se ferir, Isaak.

— Eu sei — ele disse. Mas sabia mesmo? E tinha direito de reclamar? Ser descartável era a sina de um soldado. A função de um guarda era se colocar entre seu governante e o perigo. Não era o que ele estava fazendo agora?

Tamar se reclinou na cadeira e cruzou as longas pernas.

— Eu revistei os aposentos das guardas shu.

— Elas são nossas convidadas — protestou Tolya.

— Elas são nossas inimigas — disse Tamar.

— E potenciais aliadas — complementou Genya. — Não seria bom irritá-las.

— Tomamos cuidado, mas não havia muito para descobrir. Os poucos diários que encontrei estavam escritos em código, e duvido que alguma guarda da Tavgharad seria tola o suficiente para colocar detalhes comprometedores no papel.

— E os kerches tentaram invadir os laboratórios — informou Tolya.

David ergueu os olhos da leitura, assustado.

— E conseguiram?

— Deixamos que chegassem até as oficinas dos Fabricadores.

— Ah — fez David, perdendo o interesse.

— Não estamos preocupados com isso? — perguntou Isaak.

— O trabalho de verdade acontece em outro lugar — explicou Tamar. — Até plantamos alguns projetos falsos para eles encontrarem. Tudo isso deve preparar o terreno para nosso espetáculo no Pântano de Ouro.

— Nós vamos para o Pântano de Ouro? — perguntou Isaak, sem conseguir esconder a animação.

— Infelizmente — disse Tolya.

Genya enfiou os pés, calçados em sandálias, sob o corpo.

— Vamos usar o lago do conde Kirigin para mostrar aos kerches nosso protótipo de izmars’ya. — Os outros trocaram um olhar que Isaak não entendeu, mas isso não era nada novo. Ele presumiu que alguém contaria a ele o que exatamente era um izmars’ya para que ele pudesse assentir com um ar sagaz quando o assunto surgisse.

— Você vai para trabalhar — acrescentou Tamar. — Não para experimentar os entretenimentos de Kirigin.

— É claro — concordou Isaak. Mas pelo menos poderia ter um vislumbre para entender todo o estardalhaço sobre o lugar.

Genya empurrou um maço de papéis para ele.

— Essas são as anotações para o jantar de hoje. Ninguém espera um discurso, mas será uma ocasião mais formal, então você vai precisar fazer o seu melhor para parecer à vontade. Amanhã é a caçada.

— Sei caçar, pelo menos — disse Isaak, aliviado.

— Não como um cavalheiro. Mas Nikolai nunca se dedicou muito ao esporte mesmo, ele gosta de raposas. A caçada é só uma desculpa para cavalgar e conhecer as candidatas. Lembre-se de conversar igualmente com todas elas. Vamos repassar os detalhes hoje à noite, depois do jantar.

Eles saíram em fila, e Isaak deixou sua cabeça pender para trás e encarou o teto dourado. Sentia-se, ao mesmo tempo, cansado e inquieto. Olhou de relance para as notas sobre o uso de talheres e sobre como comer ostras, e as jogou para o lado. Precisava limpar a mente.

Assim que abriu a porta, Tolya estava lá.

— Aconteceu alguma coisa?

— Só queria dar uma volta.

Tolya se manteve alguns passos atrás enquanto Isaak percorria o corredor, mas ainda era perturbador saber que ele estava sendo observado. Havia boatos de que Nikolai tinha fugido da universidade para ter uma vida de aventuras em alto-mar sob o codinome corsário Sturmhond. Era uma história ridícula, mas Isaak conseguia entender o impulso. Quem não escolheria aquele tipo de liberdade em vez daquela constante encenação? Ele passou pela galeria de retratos, ignorando as pinturas de incontáveis reis e rainhas Lantsov, e entrou no conservatório.

Era o lugar preferido de Isaak no Grande Palácio. A sala de pé-direito alto ocupava metade da extensão da ala sul. A luz do sol entrava por paredes feitas inteiramente de painéis de vidro, e tubos de vapor aqueciam o chão de azulejos vermelhos. Os caminhos sinuosos do conservatório eram ladeados por árvores frutíferas e palmeiras altas em vasos, arbustos florescentes que invadiam as passarelas e sebes podadas na forma de arcos e treliças. Um riacho artificial atravessava o centro da sala, estreitando-se e alargando-se para formar laguinhos de lírios e piscinas refletoras.

Uma garota estava sentada perto de um dos laguinhos – não, não era uma garota, era uma princesa. Ehri Kir-Taban. Filha do Paraíso. Os shu geralmente recebiam o nome de um ou de ambos os pais, mas a família real toda levava o nome da primeira rainha shu e fundadora da dinastia Taban. Havia guardas ravkanos e da Tavgharad postados no perímetro da sala. Ele devia ter reparado antes, mas estava preocupado demais. A distração era um luxo a que nem um guarda nem um rei podiam se dar.

Então aquela era a chance dele. Podia compensar por seu encontro perdido com a princesa e tentar obter as informações que Genya e os outros queriam. Seja charmoso. Certo. Charmoso.

Contudo, antes que ele pudesse se decidir por uma boa frase de abertura, a princesa ergueu a cabeça.

Ela rapidamente se levantou e fez uma mesura.

— Alteza.

— Não quis interromper o seu descanso — ele disse em shu.

— Eu sou uma convidada aqui. Não pode haver interrupção. — Ela olhou de soslaio para os guardas. — Alteza... gostaria de se sentar e conversar um pouco?

Pronto. Nem tive que perguntar. Ele ainda queria dar meia-volta e sair correndo pela porta, mas recusar agora seria visto como um insulto. Além disso, Tolya poderia muito bem bloquear a entrada e recusar-se a deixá-lo passar.

Isaak sentou-se ao lado dela na pedra larga adjacente ao laguinho. O ar estava doce com o cheiro dos botões das flores de laranjeira que desabrochavam, e o som baixinho de peixes brincando na água era reconfortante. Poderia ter sido um lugar agradável para repousar, não fossem os guardas de olhar hostil nas portas. Isaak jurou que, quando tivesse seu rosto de volta e voltasse à ativa, tentaria parecer um pouco mais simpático.

— Obrigada por me fazer companhia — disse Ehri.

— O prazer é meu.

— Dificilmente — ela murmurou com um sorrisinho. — Sem dúvida veio aqui para ficar sozinho... tão sozinho quanto podemos ficar... assim como eu.

— Se queria ficar sozinha, por que me convidou para sentar?

— Eu tenho que aparentar fazer um esforço, senão os guardas vão me dedurar para a minha irmã, e aí ela nunca vai me deixar em paz.

— Sua irmã?

— Makhi Kir-Taban, Nascida do Paraíso, nossa princesa celestial que vai herdar a coroa e governar sábia e justamente por muitos anos.

— E o que você fará? — perguntou Isaak. Mulheres querem que alguém as escute.

— Vou me casar com você, é claro.

— É claro — respondeu Isaak, obrigando-se a não se encolher. — Mas e se não se casasse comigo?

Com isso, ela pareceu quase entrar em pânico, como se a pergunta não constasse do roteiro preparado para ela e ela não soubesse quão honesta deveria ser. Isaak podia empatizar.

— Por favor — ele disse gentilmente, para deixá-la à vontade, mas também porque se viu genuinamente curioso. — Eu gostaria de saber.

Ela correu o dedão sobre o vestido de seda.

— Acho que, se eu não tivesse nascido uma Taban, gostaria de ser soldada... talvez até membro do Tavgharad.

— É mesmo? — Ele não conseguiu evitar uma risada. Era absurdo demais pensar que ele era um guarda fingindo ser um príncipe que estava falando com uma princesa que queria ser uma guarda real.

Ela franziu o cenho de leve.

— Não é gentil rir.

Isaak ficou sério imediatamente.

— Não quis ofendê-la, só fiquei surpreso. Servir na guarda real é um chamado muito nobre. E lhe permitiria ter um pouco de liberdade, embora mesmo guardas tenham deveres.

— Sim, mas elas não são obrigadas a posar e se exibir só para serem vendidas como gado. — Ela empalideceu, percebendo o que dissera. — Perdoe-me, eu não... seria a maior honra ser...

— Não se desculpe, por favor. Eu pedi honestidade. Não espero que toda mulher que conheça esteja ansiosa para casar comigo.

Uma ruga apareceu entre as sobrancelhas dela.

— Não?

Diabos. Outro passo em falso. Isaak piscou.

— Não a princípio. — Era uma resposta bem mais típica de Nikolai, embora a princesa parecesse levemente decepcionada.

— Você pode me compensar por isso — disse Ehri. — Eu fui sincera com você, então talvez queira compartilhar um segredo comigo. É justo.

Eu não sou o rei de Ravka, só um soldado raso tentando não suar nestas roupas chiques. Não, definitivamente não era a resposta certa. Isaak supôs que deveria tentar flertar, mas não sabia quais segredos pertenciam a ele e quais pertenciam ao rei.

— Muito bem. Meu segredo é que eu de fato queria ficar sozinho, mas ainda estou gostando da sua companhia. Foi uma manhã difícil.

— Foi?

— Uma garota quase se afogou.

Ehri bufou de um jeito nada apropriado a uma princesa.

— É culpa dela por se jogar no lago.

— Perdão?

— Eu apostaria meu melhor machado que não houve nada acidental naquele mergulho na água.

— Seu melhor machado?

Ehri enfiou uma mecha de cabelo escuro atrás da orelha.

— Eu sou uma colecionadora ávida.

Uma princesa que queria ser guarda de palácio e gostava de armas. Pelo menos era interessante.

— Como pode ter certeza de que a garota Schenck pulou? — ele perguntou.

— Porque meus dois conselheiros sugeriram que eu fizesse a mesma coisa ontem à noite.

Isaak a encarou.

— Está dizendo que ela arriscou a própria vida só para...

— Atrair a atenção do rei e dar a ele uma chance de bancar o herói o herói? — Ehri bufou e alisou a seda do vestido. — É uma aposta razoável, mas eu não estava disposta a fazer o mesmo.

Ele a estudou.

— Não quando poderia simplesmente esperar um rei pensativo passar e encontrá-la parecendo com uma pintura, vestida em seda verde com flores no cabelo? — Ela desviou os olhos dourados com ar culpado. — Quanto tempo ficou esperando, torcendo que eu passasse?

Ela mordeu o lábio.

— Duas horas e doze minutos. Mais ou menos.

Ele ficou, ao mesmo tempo, irritado e satisfeito por ela ter sido sincera.

— Essa pedra não pode ser muito confortável.

— Sinto dizer, mas não consigo mais sentir minhas nádegas.

Com isso, Isaak irrompeu numa risada, mas logo se calou. Aquela não era a risada de Nikolai. Ele viu um dos guardas do palácio inclinar a cabeça para o lado. Trukhin. Isaak cumprira incontáveis turnos com ele no palácio. Ele tinha todos os motivos para reconhecer a risada de Isaak.

Por todos os Santos, Isaak já estava cheio daquela farsa. Mas a princesa lhe dera uma abertura.

— Se não aguenta um tempinho sentada numa pedra, não vejo como pretende cumprir o papel de guarda, parada em posição de atenção por horas.

— Então, graças à deusa eu nasci na família real.

— Confesso que sei pouco sobre a Tavgharad — disse Isaak, torcendo para que sua voz soasse natural. — Elas são tiradas de famílias nobres?

— Elas não são tiradas de lugar nenhum — rebateu Ehri, com um tom surpreendentemente ríspido. — Elas vêm de todas as cidades e todos os vilarejos, onde são testadas e treinam e esperam ser escolhidas. Não existe honra maior.

— Do que defender você? — Ele não conseguiu esconder o humor na voz.

Ehri mordeu o lábio.

— A linhagem Taban. Eu sou uma das joias menos brilhantes da coroa.

Isaak achava isso difícil de acreditar. Ela era extremamente bonita – ele não conseguia imaginar como seriam as irmãs, se ela era a mais comum.

Ele insistiu.

— Deve ser uma vida difícil, mesmo que seja recompensadora. Elas deixam as famílias para trás, como os Grishas?

Ela ficou levemente tensa.

— Elas ficam felizes de fazer isso. — Correu uma mão na água. — Acho que é mais difícil para as gêmeas.

— Gêmeas?

— Gêmeos são muito comuns entre nosso povo. — Ela inclinou a cabeça em direção a Tolya. — Como os Keb-Bataar.

— É uma palavra interessante, kebben. Não temos um equivalente em ravkano. — Poderia significar parente ou gêmeo, mas também alguém ligado ao coração da pessoa.

Ehri fechou os olhos e recitou:

— Todos lamentam a primeira flor. Quem chora por aquelas que caem?

Isaak não conseguiu evitar um sorriso. Parecia que o conselho de Tolya seria útil, no fim das contas.

— Eu ficarei para cantar por ti, muito depois que a primavera se for.

— Vossa Alteza conhece o poema? — Ehri perguntou, surpresa.

— Aprendi quando estava estudando shu. — Era intitulado simplesmente “Kebben’a”, e havia um debate considerável sobre se o título deveria ser traduzido como Meu querido ou Meu irmão ou Meu único amor.

— É um poema velho e saiu de moda há muito tempo, mas descreve bem a ideia de kebben.

— Acredito que o tenham musicado — refletiu Isaak. — Me disseram que você toca o khatuur.

Ela agarrou a seda com as duas mãos, sua expressão ficando tensa outra vez.

— Sim — respondeu simplesmente. O que ele tinha feito de errado?

— Eu descobri... — Ele hesitou, com medo de estar prestes a causar um desastre e estragar tudo. — Descobri que esta posição, esta vida de encenações, me faz perder o gosto por muitas coisas que eu já desfrutei.

Por um momento Ehri pareceu surpresa, até assustada, mas então algo cintilou em seus olhos e ela se inclinou para a frente.

— Eu sei — ela sussurrou. — Pelo menos, se fôssemos guardas, poderíamos passar o dia fazendo algo mais empolgante.

— Poderíamos cavalgar.

— Comer com os dedos. — Ehri abaixou o queixo e sussurrou: — Arrotar.

— Com fervor.

— Poderíamos... oh, céus — disse ela. — Acho que temos companhia.

E de fato, pelos dois caminhos do jardim, ele viu as candidatas e suas acompanhantes se aproximando como um bando de aves de rapina belamente vestidas.

— Alguém deve ter relatado nossa conversa privada.

— Talvez elas se joguem na lagoa para chamar sua atenção — sussurrou Ehri, e Isaak teve que conter a vontade de rir de novo.

— O que tanto diverte o rei? — perguntou a princesa fjerdana quando se aproximou, com seu leque elegante na forma de um floco de neve.

— Muitas coisas, devo confessar — declarou Isaak. — O rei é um homem simples.

Não era verdade, mas pouca coisa era naqueles dias.


NINA SABIA QUE TIRAR AS MULHERES DO FORTE seria um desafio considerável. A segurança estaria mais rigorosa depois do que ela aprontara, mas ao menos eles podiam torcer para que os soldados pensassem que a falha de segurança tinha sido só uma noviça tentando fazer uma pegadinha ou se encontrar com um soldado, e não obra de uma espiã ravkana.

Quando Nina se reuniu com Leoni e Adrik para planejar, eles discutiram em zemeni e se certificaram de conversar bem longe do convento, sob o pretexto de sair em uma de suas excursões para vender os carregadores de rifles. Tinham chegado a vender alguns a pescadores locais que estavam tentando caçar animais por pele e carne, agora que os peixes pareciam estar morrendo. Em breve teriam que repor o estoque.

Naquela manhã, Nina tinha visto um lampejo de pelo branco aparecendo e desaparecendo através das árvores enquanto eles saíam da cidade. Ela se afastou de Adrik e Leoni e abriu caminho pelo bosque o mais silenciosamente possível, onde avistara Trassel espreitando na margem oposta do rio. Um nó cresceu em sua garganta quando ela viu as outras formas no bosque – lobos cinza. Mas aqueles animais não pareciam ter olhos laranja e corpos esqueléticos como os que ela encontrara no gelo. Toda vez que um deles se movia em direção à água, Trassel batia os dentes e os lobos cinza recuavam devagar para as árvores.

Ele está arrebanhando os outros, ela percebeu. Está mantendo-os longe do rio envenenado.

Ela queria ficar e observar, ver se ele a deixaria chegar perto – ou até mesmo se continuaria esnobando as sobras da cozinha. Mas Adrik e Leoni estavam esperando, assim como as garotas no topo da montanha. Relutante, ela deixou Trassel e voltou ao trenó.

O plano parecia simples: tirar as mulheres e seus bebês, e passar pelo posto de controle na base da colina, antes que alguém descobrisse que as prisioneiras tinham sumido.

Leoni não ficou contente ao saber que eles precisariam de explosivos.

— Eu quase não tive treinamento com pólvora — ela disse enquanto eles guardavam suas mercadorias —, e pavios longos são sempre perigosos.

— Precisamos de uma distração — explicou Nina. — Depois que a gente sair, as bombas vão começar um incêndio na parte funcional da fábrica, que vai se espalhar para a ala da maternidade. Quando o apagarem e perceberem que não há corpos a serem encontrados, as garotas já estarão a caminho de Hjar. — Lá, um baleeiro contratado pelos membros da Hringsa estaria esperando para levá-las a Ravka. Na verdade, a tripulação estaria esperando fugitivos Grisha, não um bando de jovens mulheres e bebês viciados no que Leoni suspeitava ser parem sintético ou algo parecido com isso. Mas Nina explicaria, de alguma forma. — Não podemos contar às garotas quem somos, se queremos que elas fiquem dóceis.

Leoni pareceu desconfortável.

— Elas não deviam ter uma escolha?

— O parem tira a sua capacidade de escolha. Elas só estarão pensando na próxima dose. Se quisermos que cooperem, elas não podem saber que as estamos levando para longe do seu suprimento. Seria bom tentarmos achar um pouco de jurda para elas também. Pode ajudar com a abstinência.

Adrik estreitou os olhos e examinou a estrada.

— O que vai acontecer quando elas perceberem que a próxima dose não vai chegar?

— Leoni, você consegue criar um sedativo fraco o suficiente para mantê-las sob controle, mas seguro para gestantes?

— Estamos mesmo considerando sedar mulheres grávidas? — perguntou Adrik. — E se errarmos a dose?

— Eu também não gosto da ideia, mas sei como é estar sob aquele desejo.

— Eu consigo — disse Leoni. — Acho. Mas... — Ela abaixou os olhos para o nó que estava amarrando. — E se elas não se recuperarem? Podemos estar condenando essas garotas a uma viagem horrível, talvez até à morte.

Nina se lembrava bem demais de sua agonia com o parem. Ela havia implorado pela morte, rezado por ela. Sem Matthias, não sabia se teria suportado. E essa tinha sido apenas sua primeira luta. O que ela teria feito sem Inej para lhe dar um propósito? Ou Jesper para fazê-la rir? Até aquele desgraçado do Kaz tinha feito a sua parte, implacável até o fim. Ela havia precisado de todos eles para continuar vivendo naqueles dias longos e horrendos enquanto lutava para encontrar o caminho de volta a si. Aquelas mulheres estariam sem família ou amigos em uma terra estrangeira. Teriam que se apoiar umas nas outras. Se sobrevivessem.

Nina olhou para Leoni e Adrik.

— Não vou fingir que estou sendo objetiva. Ver aquelas mulheres, aquelas garotas daquele jeito... eu entendo o que o parem faz. Já lutei essa guerra. Sei o que eu escolheria.

— E está disposta a fazer essa escolha por elas? — perguntou Adrik.

— Todos temos que estar dispostos.

Leoni respirou fundo.

— Eu não ia querer viver sob o controle de outra pessoa. Não iria querer condenar meu filho a uma vida assim.

— Adrik? — perguntou Nina.

— Eu já disse o que penso, Nina. Estamos arriscando nossas vidas e a vida de outros Grishas para entregar a Ravka o que eu suspeito que será um navio cheio de cadáveres. Mas não vou dar as costas a elas. No mínimo, vou ter um novo motivo para reclamar pelo resto dos meus dias.

— De nada — retrucou Nina.

Adrik fez uma pequena mesura emburrada.

— Mas como vamos convencer as mães ou os guardas de que um homem e duas mulheres armadas têm motivo para estar lá?

— Podemos conseguir um uniforme para você e encher a sua manga. Leoni e eu nos vestiremos como Donzelas da Nascente.

— E você acha que eles não vão reparar que eu mal falo fjerdano e estou tentando conduzir uma parelha de cavalos com uma mão?

— Hanne vai ajudar.

— Tem certeza? — perguntou Leoni. — Eu vi a cara dela na outra noite. Ela passou muito tempo sob o controle da Madre Superiora.

Não só da Madre Superiora. Dos pais dela. De toda Fjerda. E mesmo assim mentira por Nina. Tinha desafiado as regras do convento para ajudar pessoas que precisavam dela. Ainda conseguira manter viva a parte valente do seu coração, mesmo naquele lugar miserável.

Adrik se reclinou contra o trenó.

— Se ela descobrir que somos Grishas...

— Ela é Grisha.

— E se odeia. Não pense que não vai voltar esse ódio contra nós. Mesmo se sobrevivermos a isso sem revelar quem somos de verdade, vai ser ela quem terá que enfrentar as consequências quando partirmos. — Nina se remexeu, desconfortável, e as sobrancelhas de Adrik se arquearam. — Você acha que ela vai vir com a gente. Ah, Zenik. Pensei que Leoni fosse a otimista incurável.

— Hanne não pertence a este lugar. — Mesmo se conseguisse esconder seus poderes, Fjerda uma hora quebraria o espírito de Hanne. Nina não achava que conseguiria suportar aquela perda específica na guerra que estavam travando.

Adrik a estudou.

— Não nos torne a única opção, Nina. Hanne não vai perdoá-la por isso.

Ela pode não me perdoar, pensou Nina, mas pelo menos vai sobreviver.


Quando Nina chegou à sala de aula no dia seguinte, ficou surpresa ao ver não só Hanne esperando, mas também uma das Donzelas da Nascente.

— Kori da Nascente também gostaria de aprender — disse Hanne em um tom monótono.

Nina tentou parecer encantada.

— Outra aluna! Excelente. Você tem algum conhecimento de zemeni?

— Não. — Kori estava emburrada. Claramente não ficara muito feliz por aquela tarefa ter sobrado para ela. E claramente a Madre Superiora achava que Nina e Hanne não deviam passar tempo sozinhas.

— Então vamos começar do começo. Vamos ver o verbo rezar.

Hanne revirou os olhos e Nina achou difícil conter o riso. Se aquele fosse o pior desafio que elas enfrentariam nos próximos dias, ela as consideraria muito sortudas.

No entanto, enquanto ensinava algumas palavras básicas a Hanne e Kori – cadeira, mês, janela, céu, garota, nuvem –, soou uma batida e uma noviça enfiou a cabeça para dentro. Era a garota de bochechas como pêssegos, que abordara Nina no bosque – uma das noviças que tinham saído com Hanne disfarçadas como soldados fjerdanos.

A garota fez uma mesura para Kori, que perguntou:

— O que foi?

— A Madre Superiora pediu que eu chamasse você, Hanne — disse a noviça. — Seu pai está aqui.

O corpo inteiro de Hanne pareceu desabar como uma flor murchando numa geada repentina. Nina já a vira assustada e furiosa, mas aquilo era novo. Ela não gostou de ver – era como se todo o fogo que a animava tivesse se apagado abruptamente.

Até mesmo Kori pareceu preocupada:

— Vá lá, então.

Hanne fechou o caderno de exercícios e se levantou. Nina sabia que não deveria, mas, quando Hanne passou por ela, agarrou sua mão e a apertou com força. Hanne olhou para a Donzela da Nascente, que as observava com os olhos estreitados, e apertou de volta.

— Vai ficar tudo bem — sussurrou Nina. — Adawe. — O primeiro verbo que ela ensinara a Hanne. Lute.

A coluna de Hanne se endireitou minimamente. Ela soltou a mão de Nina, mas a noviça acrescentou:

— Ele deseja conhecê-la também, Enke Jandersdat.

Ótimo. Se o pai de Hanne desejava conhecer a professora da filha, ela faria o seu melhor para apaziguá-lo. Talvez pudesse ajudar Hanne a superar aquele incidente. Ela se levantou.

— Adawesi — disse Hanne, os lábios se curvando num sorriso. Nós lutamos.

Quando elas chegaram à capela, a noviça as levou por um longo corredor, e Nina percebeu que estavam se dirigindo ao mesmo escritório onde ela e Hanne tinham se encontrado com a Madre Superiora para discutir as aulas de língua.

A Madre Superiora aguardava à mesa, como antes, e um homem alto com postura militar estava parado junto à janela, as mãos unidas às costas. Uma espessa cicatriz vermelha descia pela base do seu crânio pálido. Nina sentiu algo gélido se desdobrar na barriga.

— Madre Superiora — cumprimentou Hanne, com uma reverência baixa. — Min fadder.

Nina sabia quem seria antes que ele se virasse. Mas não havia nada que pudesse fazer para conter o terror que a dominou quando encarou novamente os olhos azuis e frios de Jarl Brum.

A última vez que tinha encontrado Jarl Brum, ele tentara prendê-la e escravizá-la. Ela estivera nas garras dos efeitos de sua primeira e única dose de jurda parem quando enfrentara ele e seus drüskelle no porto de Djerholm. Quisera assassiná-lo e poderia ter feito isso quase sem pensar duas vezes. Mas Matthias lhe implorara que demonstrasse misericórdia, e ela tinha aquiescido. Deixara Brum e seus homens vivos, embora, num último ato mesquinho, tivesse arrancado o couro cabeludo dele. Aparentemente, alguém o costurara de volta.

Nina afundou em uma mesura baixa, fixando os olhos no chão, tentando tirar um momento para se recobrar e esconder o medo. Controle-se, Zenik, ela ordenou a si mesma. Brum não se deixara iludir pelo disfarce desajeitado que ela usara ao encontrá-lo na Corte de Gelo, mas agora ela fora esculpida pela mestre Genya Safin. Seus próprios ossos e corpo tinham sido alterados, e ela sabia que seu domínio da língua fjerdana era impecável. Lembrava-se do que dissera a Hanne – que uma atuação começava no corpo – e agora precisava performar sua obra prima. Em vez de esconder seu medo, ela o usaria. Era o ódio que ela precisava enterrar.

Quando se ergueu da mesura, não era Nina Zenik: era Mila Jandersdat, uma jovem cuja subsistência poderia depender da generosidade de Jarl Brum.

Mas o foco de Brum estava em Hanne. O rosto dele se suavizou ao olhar para a filha.

— Hanne — ele disse, dando um passo à frente e abraçando-a. — Você parece... sadia.

Hanne se curvou um pouco mais.

— Obrigada, papai.

— Sua forma ficaria mais suave se deixasse de cavalgar tanto.

— Sinto muito, papai.

Ele suspirou.

— Sei que sente. — Seu olhar se transferiu para Nina, que curvou a cabeça e abaixou os olhos para o chão, modestamente. — E essa é a sua nova professora? Ela é jovem o bastante para ser uma aluna aqui.

— Ela está servindo de guia para os comerciantes zemeni que chegaram na semana passada — disse Hanne.

— A Madre Superiora me informou. — Brum aproximou-se de Nina lentamente. — Uma desconhecida chega com dois estrangeiros, e dois dias depois a fábrica apresenta uma falha de segurança. Uma coincidência improvável.

Nina olhou para ele com o que esperava ser horror e perplexidade. Brum agarrou a ponta do queixo dela e ergueu o seu rosto.

Quem quer que tivesse costurado a pele de volta na cabeça dele tinha habilidade considerável, mas o cabelo dourado se fora e não havia como esconder a cicatriz que rodeava o crânio como o rabo gordo e rosado de um rato. Um Curandeiro ou Artesão poderia tê-la feito esvanecer, mas para isso ele teria que deixar um deles perto da sua cabeça. Nina queria retribuir o olhar incisivo dele com a mesma intensidade. Em vez disso, deixou seus olhos se encherem de lágrimas.

Brum franziu o cenho.

— Quantos anos você tem?

— Dezoito, senhor.

— Ficou viúva cedo.

— Fui desafortunada.

O lábio dele se curvou de leve.

— Por que você treme tanto?

— Não tive muitas oportunidades de estar na presença de grandes homens.

As sobrancelhas de Brum se ergueram, mas ela não perdeu o lampejo de satisfação nos olhos dele. Então era daquilo que o comandante Brum gostava – lisonja, timidez, medo. Quando ela o encontrara da última vez, tinha agido com ousadia e tentado flertar. Agora entendia o seu erro.

— Onde aprendeu zemeni? — ele perguntou.

— Meu marido tinha um pequeno estabelecimento de exportação de alimentos congelados e peixes. Ele comerciava com os zemeni com frequência. Eu tinha um talento para a língua e cuidava do contato com os clientes.

— E como ele morreu?

— Perdeu-se nas águas. — Uma lágrima rolou pela bochecha dela. Nina não podia ter pedido um momento melhor.

Os olhos de Brum acompanharam o progresso da lágrima pelo seu rosto, quase com avidez.

— Que pena. — Ele soltou o queixo de Nina e recuou um passo. — Vou querer interrogar os comerciantes zemenis — ele disse à Madre Superiora.

— E as minhas aulas, papai? — perguntou Hanne.

— Suas aulas — repetiu Brum, pensativo. — Bem, acho que a influência de uma jovem com modos do campo pode ser boa para você, Hanne. Pode continuar com elas.

Nina mergulhou em outra mesura.

— Obrigada, senhor. — Ela o encarou com os cílios molhados. — É uma honra.

Quando Brum e Hanne deixaram a sala para conversar em particular, Nina fez uma mesura para a Madre Superiora e se virou para sair.

— Eu sei o que você está planejando — disse a Madre Superiora.

Nina congelou com a mão na maçaneta.

— Do que está falando?

— O comandante Brum é casado com uma mulher de família nobre e está muito feliz com ela.

Nina a encarou confusa e quase irrompeu numa gargalhada.

— Por que isso seria do meu interesse?

Os olhos da Madre Superiora viraram fissuras estreitas.

— Duvido que seja do seu interesse. Eu sabia que você tinha pretensões mais altas que um simples cargo de professora.

— Eu só quero ganhar a vida.

A Madre Superiora estalou a língua, cética.

— Você pretende arranjar um marido rico que a sustente. Pode ter enganado o bom comandante com seus olhos arregalados e lábios trêmulos, mas não é uma mulher honesta.

E você é o pior tipo de hipócrita, pensou Nina, sentindo a raiva crescer. Aquela mulher tinha administrado parem – ou algo equivalente – a jovens e mulheres. Ela colocava seu vestidinho devoto e percorria os corredores daquela fábrica com sua droga amaldiçoada, ajudando os soldados a produzir escravos. Quando aquelas garotas sumirem, vou me certificar de que Jarl Brum culpe você. Quero só ver se vai gostar da atenção do bom comandante.

Mas tudo o que ela disse foi:

— O comandante Brum tem idade para ser meu pai.

— E sabedoria suficiente para resistir à sua sedução desajeitada, eu garanto. Mas ficarei de olho em você.

Nina balançou a cabeça com falsa preocupação.

— A senhora esteve enclausurada aqui por tempo demais, Madre Superiora, que os seus pensamentos se voltam tão rapidamente para o pecado.

— Como ousa...

Nina ajeitou as saias sobre os dedos do pé com um gesto afetado.

— Não sei se é uma atmosfera inteiramente apropriada para uma garota como Hanne. Uma pena — disse Nina, virando-se para sair. — Mas eu rezarei pela senhora.

Ela deixou a Madre Superiora corada e cuspindo de raiva.

Por mais que Nina gostasse de provocar a mulher, ficou feliz com as suspeitas dela. Qual é o modo mais fácil de roubar a carteira de um homem?, Kaz Brekker explicara uma vez. Diga a ele que vai roubar o seu relógio. Se aquela megera amarga pensava que a meta de Nina era se tornar a amante de um homem rico, isso a distrairia do verdadeiro plano dela.

E se Brum estiver blefando? E se souber exatamente quem eu sou? Nina já fora enganada por Brum uma vez e quase perdera a vida no processo. Daquela vez, seria mais cautelosa. Quando lutasse com Jarl Brum de novo, não pretendia deixá-lo de pé.

Mas não estava preparada para a tempestade que a aguardava na sala de aula.

— O que foi aquilo? — rosnou Hanne. Kori não estava em lugar nenhum, e Hanne andava de um lado para o outro, inflando o vestido atrás de si. — Tremendo como uma folha numa tempestade. Chorando como uma criancinha assustada. Aquela não era você.

Nina sentiu uma fisgada súbita de raiva. O que ela vira no forte, o choque de encontrar Brum de novo, os crimes da Madre Superiora – era tudo demais.

— Você mal me conhece — ela disparou.

— Eu sei que você é corajosa o suficiente para querer ajudar sua irmã e imprudente o bastante para invadir um forte militar para tanto. Sei que é esperta a ponto de enganar um chalé cheio de caçadores bêbados e generosa a ponto de ajudar uma amiga desesperada. Ou tudo aquilo foi uma farsa também?

Nina apertou os punhos.

— Estou tentando garantir a minha sobrevivência e a sua. O seu pai... eu conheço a reputação dele. É um homem implacável.

— Teve que ser.

Nina queria gritar. Como poderia a valente Hanne, com seu espírito livre, ser filha de Brum? E por que ela não conseguia ver o que ele era?

— Se ele soubesse que você é Grisha, o que faria?

Hanne se virou para a janela.

— Não sei.

— E se soubesse que eu estou tentando ajudar você?

Hanne deu de ombros.

— Não sei — repetiu.

Você sabe, pensou Nina. Sabe o que aquele desgraçado preconceituoso faria, mas tem medo de admitir.

Nina queria agarrá-la pelos ombros e sacudi-la. Queria arrastar Hanne para um cavalo e cavalgar até chegarem ao litoral. Mas não podia ficar pensando naquilo se pretendia libertar as garotas no forte. Adawesi. Nós lutamos. E Nina sabia que lutar significava usar todas as ferramentas à sua disposição – até a culpa de Hanne.

— Você deve a seu pai manter isso em segredo. — Nina sentiu ânsia ao dizer as palavras, ciente do efeito que elas teriam. Hanne não devia nada a Brum, mas se obrigou a continuar. — Se ele soubesse que você é Grisha, isso o colocaria em uma posição impossível. A reputação e a carreira dele correriam um enorme risco.

Hanne afundou na carteira e escondeu o rosto nas mãos.

— Acha que eu não sei disso?

Nina se agachou diante dela.

— Hanne, olhe para mim. — Nina esperou, até que por fim Hanne ergueu os olhos. Seus olhos vivazes estavam secos, mas angustiados, e Nina sabia que a dor não era por si mesma, e sim pela vergonha que ela causaria ao pai. — Este país... este país faz coisas terríveis com suas mulheres e com seus homens. Seu pai pensa do jeito que pensa porque foi criado assim. Eu não posso ajudá-lo. Não posso consertá-lo. Mas posso ajudar minha irmã. Posso ajudar você. E farei o que for preciso para tornar isso possível. Se isso significa bater os cílios para o seu pai e convencê-lo de que sou o modelo de mulher fjerdana, farei isso.

— É nojento. Você olhou para o meu pai como se ele fosse a encarnação de Djel.

— Olhei para o seu pai como ele quer ser olhado: como um herói.

Hanne correu o dedão calejado pelo comprimento da carteira de madeira antiga.

— É isso que faz comigo?

— Não — respondeu Nina, e pelo menos isso era verdade. Ela contara inumeráveis mentiras a Hanne, mas nunca a tinha lisonjeado ou manipulado daquela forma. — Quando disse que você é talentosa, estava sendo sincera. Quando disse que era gloriosa, também estava. — Hanne encontrou o olhar dela, e, por um momento, Nina sentiu que elas não estavam presas naquela sala de aula nem naquele país. Elas estavam em algum lugar melhor. Algum lugar livre. — Nosso primeiro dever é sempre sobreviver — lembrou ela. — Não vou me desculpar por isso.

Os lábios de Hanne se curvaram de leve.

— Você sempre foi confiante assim?

Nina deu de ombros.

— Sim.

— E seu marido não reclamava?

— Ele reclamava — revelou Nina. E de repente teve que desviar o rosto, porque não foi algum mercador fictício que lhe veio à mente, e sim Matthias, com seu senso de decoro rígido e seu olhar desaprovador e seu coração amoroso e generoso. — Ele reclamava o tempo todo.

— Ele se enfurecia fácil? — perguntou Hanne.

Nina sacudiu a cabeça e apertou as palmas contra os olhos, sem conseguir impedir as lágrimas... nem querendo fazê-lo. Santos, estava cansada.

— Não. A gente nem sempre concordava. — Ela sorriu, sentindo o gosto de sal nos lábios. — Na verdade, quase nunca concordávamos. Mas ele me amava. E eu o amava.

Hanne esticou a mão sobre a carteira e roçou os dedos pela mão de Nina.

— Eu não tinha o direito de perguntar.

— Não tem problema — disse Nina. — A dor ainda me pega de surpresa. É uma coisinha sorrateira.

Hanne se reclinou, estudando-a.

— Nunca conheci ninguém como você.

Nina sabia que deveria abaixar a cabeça, fazer algum comentário sobre conter seu atrevimento e demonstrar que se importava com a moral fjerdana. Em vez disso, fungou, e declarou:

— Claro que não. Eu sou espetacular.

Hanne riu.

— Eu cortaria um dedão por um pingo da sua confiança.

Nina enxugou as lágrimas e apertou a mão de Hanne, sentindo a pressão da palma quente e os calos em seus dedos. Eram mãos que sabiam costurar. Atirar com um arco. Acalmar uma criança doente. Era bom obter um pouquinho de conforto – mesmo que ela se sentisse como uma ladra.

— Fico feliz por ter conhecido você, Hanne.

— De verdade?

Ela assentiu, surpresa ao ver que era mesmo. Hanne podia não falar alto nem ser imprudente com as palavras, podia curvar a cabeça para o pai e a Madre Superiora, mas nunca deixara Fjerda quebrá-la. Apesar das mesuras e de todo aquele discurso sobre honra familiar, ela continuava desafiadora.

Hanne suspirou.

— Que bom. Porque meu pai quer que você se junte a nós para o jantar depois que ele fizer um passeio pela fábrica.

— Quando ele volta à capital?

— Amanhã de manhã. — O olhar de Hanne estava firme e astuto. — Você está planejando alguma coisa.

— Sim — admitiu Nina. — Você sabia que eu iria. Não vou agir até ele ir embora, mas precisarei da sua ajuda.

— O que quer que eu faça?

Muita coisa. E nenhuma parte será fácil.

— Quero que se torne quem seu pai sempre quis que fosse.


NIKOLAI PASSOU A CHAMAR O MONSTRO com mais facilidade, mas seu humor parecia estar ficando mais taciturno. Ele permanecia cada vez mais calado e distante após cada sessão com Elizaveta, embora fosse Zoya que tivesse que enfrentar um afogamento. Àquela altura eles não acreditavam mais que Elizaveta tivesse qualquer intenção real de matá-la, mas o monstro ainda parecia crer que a ameaça era real – um fato que Zoya achava difícil de engolir. Graças às suas aulas com Juris, suspeitava que conseguiria quebrar as paredes de âmbar que a Santa erigia ao seu redor, e, quando a seiva começava a se erguer ao redor das pernas, era difícil não tentar. Mas ela não estava lá para provar sua força, só para ajudar Nikolai a fazer o monstro emergir.

De general do exército Grisha a isca de monstro. Não era uma posição agradável, e só o progresso que fazia no covil de Juris a impedia de ceder ao mau humor.

Naquele dia, ela chegara mais cedo ao pináculo de Elizaveta. Yuri e Nikolai ainda não tinham aparecido, e a própria Santa não estava em lugar nenhum. Ou estaria? A grande câmara dourada estava cheia do zumbido de insetos. Se Juris estivesse falando a verdade, eram todos ela.

A câmara tinha seis lados. Cada painel âmbar que compunha suas paredes altas tinha seis lados também. Era por isso que o Pequeno Palácio fora construído em um plano hexagonal? Zoya vira a forma repetida nos prédios Grishas, em suas tumbas e locais de treinamento. Será que tudo começara com a colmeia de Elizaveta? Havia túneis saindo de cada uma das seis paredes. Zoya se perguntou aonde eles levariam.

— Você era uma das alunas dele, não era?

Zoya pulou ao ouvir a voz de Elizaveta. A Santa estava parada perto da mesa onde o espinheiro que ela fizera crescer ainda se espalhava sobre a superfície.

Zoya sabia que Elizaveta estava falando do Darkling, embora aluna não fosse a palavra certa. Adoradora ou acólita talvez fossem mais precisas.

— Eu servi no Segundo Exército sob o comando dele.

Elizaveta lhe deu um olhar enviesado.

— Não precisa ser evasiva comigo, Zoya. Eu também o conheci. — A surpresa de Zoya deve ter ficado evidente, porque Elizaveta complementou: — Ah, sim, todos nós cruzamos o caminho dele uma vez ou outra. Eu o conheci quando ele tinha acabado de começar a servir os reis ravkanos. Quando eu ainda era jovem.

Zoya sentiu um arrepio ao pensar em como Elizaveta deveria ser antiga. A conexão dela com a criação no coração do mundo lhe concedera a eternidade. Ela estaria realmente pronta para rejeitá-la?

— Ele sabia quem você era? — ela perguntou, em vez disso. — O que podia fazer?

— Não — respondeu Elizaveta. — Eu mesma mal sabia. Mas ele sabia que eu tinha um grande poder e foi atraído por isso.

Ele sempre foi. O Darkling priorizava o poder acima de qualquer outro atributo. Zoya às vezes temia ser igual a ele nesse sentido.

— Considere-se sortuda — ela replicou. — Se ele soubesse a extensão de suas dádivas, teria perseguido você até poder usá-las para si mesmo.

Elizaveta riu.

— Você me subestima, jovem Zoya.

— Ou você o subestimava.

A Santa deu um aceno um pouco cético.

— Talvez.

— Como ele era? — Zoya não resistiu à pergunta.

— Arrogante. Idealista. Lindo. — Elizaveta deu um sorriso triste, correndo os dedos pelo caule do espinheiro. Ele se curvou contra ela como um gato arqueando as costas. — Eu o encontrei muitas vezes ao longo dos anos, e ele adotou muitos disfarces para esconder sua identidade. Mas os rostos que escolhia eram sempre belos. Ele era vaidoso.

— Ou esperto. As pessoas valorizam a beleza. Não conseguem evitar reagir a ela.

— Você saberia bem disso — disse Elizaveta. — Os contos de fadas não contam a verdade, contam? Prometem que a bondade ou a gentileza tornarão a pessoa bela, mas você não é nem boa nem gentil.

Zoya deu de ombros.

— Deveria almejar ser?

— Seu rei valoriza tais coisas.

E Zoya deveria buscar a aprovação dele? Fingir ser algo que não era?

— Meu rei valoriza minha lealdade e minha habilidade para liderar um exército. Ele terá sua esposa para dar sorrisos afetados e abraçar órfãos.

— Você desistiria dele tão facilmente?

As sobrancelhas de Zoya se ergueram de surpresa.

— Ele não é meu para mantê-lo.

— Há um motivo para eu usar você e não o monge para provocar o demônio dele.

— O rei lutaria para salvar qualquer um, princesa ou camponês.

— E é só isso? Eu vejo como os olhos dele a seguem.

Será que alguma parte de Zoya ficou satisfeita com isso? Uma parte tola e orgulhosa?

— Os homens me observaram por toda a minha vida. Eu nem reparo mais.

— Cuidado, jovem Zoya. Uma coisa é ser encarada por um homem qualquer, outra bem diferente é atrair a atenção de um rei.

A atenção era fácil de ganhar. Os homens olhavam para ela e queriam acreditar que viam bondade sob sua armadura – uma garota generosa, uma garota gentil que emergiria se tivesse a chance. Mas o mundo era cruel com garotas gentis, e ela sempre apreciara o fato de Nikolai não exigir isso dela. E por que exigiria? Nikolai falava sobre parcerias e aliados, mas no fundo era um romântico. Queria amor de um tipo que Zoya não poderia dar e nunca receberia. Talvez a ideia magoasse, mas aquela fisgada de dor, a sensação desconfortável de que algo fora perdido, pertencia a uma garota e não a uma soldada.

Zoya olhou para um dos túneis. Parecia mais escuro que os outros. O cheiro de mel e seiva que emanava dele não era exatamente certo, a doçura entremeada pelo odor de podridão. Podia ser imaginação dela, mas as abelhas soavam diferentes ali – era menos o zumbido de insetos agitados que o zunido preguiçoso e empanturrado de moscas que se saciaram com os mortos num campo de batalha.

— O que tem lá embaixo? — perguntou Zoya. — Qual é o problema delas?

— As abelhas são todas parte de mim — disse Elizaveta. — Cada triunfo, cada tristeza. Esta parte da colmeia está exausta. Cansou da vida. Essa amargura vai se espalhar pelo resto da colmeia até que toda a existência perca o seu sabor. É por isso que devo deixar a Dobra e adotar uma vida mortal.

— Está mesmo disposta a abdicar do seu poder? — Zoya mal conseguia acreditar.

Elizaveta assentiu para a câmara escura.

— A maioria de nós consegue esconder nossos maiores sofrimentos e desejos... é assim que sobrevivemos dia a dia. Fingimos que a dor não está lá, que somos feitos de cicatrizes em vez de feridas. A colmeia não me permite o luxo dessa mentira. Eu não posso continuar assim. Nenhum de nós pode.

Na videira espinhenta que se curvava sob a mão de Elizaveta, subitamente brotaram flores brancas que se tornaram cor-de-rosa e então vermelho-sangue diante dos olhos de Zoya.

— Marmeleiro? — ela perguntou, pensando nos contos sobre feras e donzelas que ouvira quando criança, de Sankt Feliks e suas macieiras. O que Juris tinha dito? Às vezes as histórias erram nos detalhes.

Elizaveta assentiu.

— A maioria das mulheres suporta os espinhos em prol das flores, mas nós que empunhamos o poder nos enfeitamos com flores para esconder a fisgada dos nossos espinhos.

Seja mais doce. Seja mais gentil. Sorria quando estiver sofrendo. Zoya tinha ignorado essas lições e muitas vezes pagara por isso. Ela era toda feita de espinhos.

— Seu rei está atrasado — apontou Elizaveta.

Zoya percebeu que não se incomodava com isso. Não queria se afogar hoje.


Juris captou seu humor quando ela entrou na caverna.

— Você estava com Elizaveta — ele disse, deixando de lado o cavalinho de obsidiana que estivera entalhando para acrescentar ao seu rebanho. — Posso sentir o cheiro dela em você.

Zoya assentiu, pegando os machados que se tornaram seus preferidos. Ela gostava do seu peso e equilíbrio, e eles a lembravam de Tamar. Será que estava com saudade de casa? Tinha perdido a noção do tempo ali. Não havia comida. Não havia descanso. As horas sangravam e se transformavam em dias.

— Todo mundo está tão preocupado em nomear e cuidar de suas feridas — ela disse. — É cansativo.

Juris deu um resmungo vago.

— Sem armas hoje.

Zoya fez uma careta. Ela estava animada para superar a melancolia com um pouco de combate.

— Então o que faremos?

— Eu esperava que, a esta altura, você já estivesse mais avançada.

Zoya apoiou os punhos nos quadris.

— Meu progresso é brilhante.

— Você só consegue conjurar o vento. A água e o fogo também deveriam estar sob o seu controle.

— O poder Grisha não funciona assim.

— Você acha que um dragão não consegue controlar o fogo?

Então Juris estava alegando ser um Infernal além de um Aeros?

— E suponho que você seja um Hidro também.

— A água é meu elemento mais fraco, confesso. Eu venho de uma ilha muito úmida e nunca gostei de chuva.

— Está dizendo que eu poderia conjurar como todas as ordens?

— O que estivemos fazendo até agora, se essa não é a sua meta?

Não parecia possível, mas, em um curto período, Juris tinha mostrado a ela que os limites do poder Grisha eram mais flexíveis do que ela jamais acreditara. Nós não somos todas as coisas? Ela se lembrava daquelas palavras muito antigas dos escritos de Ilya Morozova, um dos Grishas mais poderosos de todos os tempos. Ele havia teorizado que não deveriam existir ordens Grisha, nenhuma divisão entre poderes – se a ciência fosse pequena o suficiente. Se toda a matéria podia ser decomposta nas mesmas pequenas partes, então um Grisha talentoso o bastante deveria ser capaz de manipular aquelas partes. Morozova tinha esperado que criar e combinar amplificadores era o caminho para atingir um poder Grisha maior. Mas e se houvesse outro modo?

— Me mostre.

O corpo de Juris mudou, os ossos estalando e reformando enquanto ele assumia a forma de dragão.

— Suba. — Zoya hesitou, encarando a fera imensa diante dela. — Não é uma oferta que eu faço para qualquer um, bruxa da tempestade.

— E se você ficar mal-humorado e decidir me lançar das suas costas? — perguntou Zoya enquanto levava as mãos às escamas no pescoço dele. Eram afiadas e frias.

— Então eu a deixei forte o bastante para sobreviver à queda.

— Que alívio. — Ela pressionou a bota no flanco dele e se puxou para a crista do pescoço. Não era confortável; dragões não eram feitos para servirem de montaria.

— Segure firme — ele disse.

— Ah, é isso que eu devo fa... — Zoya ofegou e se segurou com firmeza quando as asas de Juris bateram uma, duas vezes, e ele alçou voo para o céu desbotado.

O vento açoitou o rosto dela, erguendo seu cabelo e fazendo seus olhos marejarem. Ela já tinha voado nas máquinas de Nikolai, mas aquilo era completamente diferente. Zoya conseguia sentir cada mudança que Juris causava às correntes conforme acompanhava o vento, o movimento dos músculos sob as escamas, até o modo como os pulmões dele se expandiam a cada respiração. Conseguia sentir a força de uma debandada de animais no corpo sob ela, o poder ondeante de um mar revolto.

Não havia nada a ser visto na Dobra dos Santos. Era tudo terra estéril e horizonte plano. Talvez Juris achasse aquilo enlouquecedor – voar por quilômetros e não ir a lugar algum –, mas Zoya não se importava. Ela poderia ficar daquele jeito para sempre, cercada por nada além de céu e areia. Ela riu, o coração dando saltos. Aquela era a magia que fora prometida a ela quando criança, o sonho que todos os contos de fada haviam oferecido e nunca cumprido. Ela queria que a garota que ela tinha sido pudesse ter vivido aquela experiência.

— Abra a porta, Zoya. — As palavras do dragão ressoaram através do corpo dele. — Abra os olhos.

— Não há nada para ver! — Mas isso não era inteiramente verdade. Adiante, ela avistou uma mancha pontiaguda na paisagem e soube imediatamente o que era. — Vire-se — ela exigiu. — Eu quero voltar.

— Você sabe que não pode.

— Volte. — A força da tempestade encheu os ossos dela e ela tentou mexer a cabeça do dragão.

— Zoya da cidade perdida — ele disse. — Abra a porta.

O dragão mergulhou em direção às ruínas de Novokribirsk.

Era como cair. Zoya era a pedra e não havia fundo no poço, não havia fim ao vazio dentro dela. Não olhe para trás.

O passado voltou numa torrente. Por que agora? Por causa das palavras de Elizaveta sobre feridas? Das provocações de Juris? Do tormento de ser afogada todo dia à medida que Nikolai se tornava mais distante? Ela não queria pensar em Liliyana nem em tudo o que tinha perdido. Só havia vento e escuridão diante dela, o céu cinza morto acima e as ruínas de uma cidade perdida abaixo.

No entanto, foi a lembrança do rosto da mãe que surgiu na mente de Zoya.

Sabina tinha uma beleza estonteante, do tipo que fazia homens e mulheres pararem na rua. Mas fez um mau negócio. Havia se casado por amor – com um rapaz suli bonito, de ombros largos e poucas perspectivas de sucesso. Por um tempo ele foram pobres, mas felizes – e depois foram apenas pobres. Conforme passavam fome e dificuldades, o afeto entre eles definhou também. Longos dias de trabalho e longos meses de inverno desgastaram a beleza e o espírito de Sabina. Ela tinha pouco amor para dar à filha que gerou.

Zoya se esforçava muito para merecer o afeto da mãe. Era sempre a melhor aluna da turma e certificava-se de comer só metade da janta e dar o resto a Sabina. Ficava quieta quando a mãe reclamava de dores de cabeça e roubava pêssegos para Sabina, dos pomares do duque.

— Você pode ser açoitada por isso — censurava a mãe. Mas comia os pêssegos, um após o outro, suspirando contente, até que seu estômago se revoltava e ela vomitava tudo ao lado da pilha de lenha.

Tudo mudou quando Zoya atraiu a atenção de Valentin Grankin, um rico fabricante de carruagens, de Stelt. Ele era o homem mais rico em cento e cinquenta quilômetros, já duas vezes viúvo, e tinha sessenta e três anos de idade.

Zoya tinha nove anos. Não queria ficar noiva, mas não queria desagradar a mãe, que passou a afagá-la e paparicá-la como nunca antes. Pela primeira vez, Sabina parecia feliz. Ela cantava na cozinha e preparava refeições elaboradas com a carne e os vegetais que Valentin Grankin enviava de presente.

Na noite anterior ao casamento, Sabina fez bolos de laranja e dispôs o kokoshnik de pérolas ornamentado e o vestidinho de renda dourado que o noivo de Zoya tinha fornecido. Zoya não queria chorar, mas não conseguia parar.

A tia Liliyana viera de Novokribirsk para a cerimônia. Ou pelo menos era o que Zoya pensava, até ouvir a tia implorar com Sabina para reconsiderar.

Liliyana era mais jovem que a irmã e raramente mencionada. Ela tinha saído de casa com pouco alarde e enfrentado a jornada mortífera através da Dobra das Sombras para construir uma vida para si mesma, na cidade árdua de Novokribirsk. Era um bom lugar para uma mulher sozinha, onde propriedades baratas podiam ser encontradas e os empregadores estavam tão desesperados por mão de obra que estavam dispostos a oferecer às mulheres cargos que geralmente seriam reservados aos homens.

— Ele não vai feri-la, Liliyana — garantiu Sabina, impaciente, enquanto Zoya se sentava na mesa da cozinha, os pés nus roçando nas tábuas de madeira do chão, o círculo perfeito do bolo de laranja intocado no prato diante dela. — Ele disse que esperaria que ela sangrasse.

— E eu devo aplaudi-lo? — disparou Liliyana. — Como vai protegê-la se ele mudar de ideia? Você está vendendo sua própria filha!

— Somos todas compradas e vendidas. Pelo menos Zoya vai obter um valor que vai dar uma vida fácil a ela.

— Logo ela terá idade para servir no exército...

— E então o quê? Vamos viver com o salário miserável dela? Ela vai servir até ser morta ou ferida, para que possa viver sozinha e na pobreza como você?

— Eu vivo bem o bastante.

— Acha que não vejo seus sapatos amarrados com corda?

— Melhor ser uma mulher sozinha do que amarrada a um velho que não consegue arranjar uma esposa da sua própria idade. E foi minha própria escolha. Em alguns anos, Zoya terá idade para tomar suas próprias decisões.

— Em alguns anos, Valentin Grankin terá encontrado alguma outra garota bonita para se interessar.

— Ótimo! — retrucou Liliyana.

— Saia da minha casa — ordenou Sabina, fervilhando de raiva. — Não quero ver você perto da igreja amanhã. Volte para os seus cômodos solitários e suas latas de chá vazias, e deixe minha filha em paz.

Liliyana fora embora e Zoya tinha corrido para o quarto e enterrado o rosto nos cobertores, tentando não pensar nas palavras da mãe ou nas imagens que ela conjurara, rezando com todo o fervor no coração para que Liliyana voltasse ou que os Santos a salvassem, enquanto encharcava o travesseiro com lágrimas.

Na manhã seguinte, Sabina tinha resmungado raivosa sobre o rosto inchado de Zoya, enquanto a enfiava no vestidinho dourado e os convidados vinham para acompanhar a noiva até a igreja.

Mas tia Liliyana estava esperando no altar ao lado de um sacerdote atordoado, e se recusava a se mover.

— Alguém faça algo sobre essa doida! — gritara Sabina. — Ela não é minha irmã!

Os homens de Valentin Grankin tinham arrastado Liliyana pela nave.

— Depravado! — berrara Liliyana para Grankin. — Cafetina! — ela gritara para a irmã. Então voltou os olhos para o povo da cidade reunido. — Vocês são todos testemunhas disso! Ela é uma criança!

— Fique quieta — rosnou Valentin Grankin, e, quando Liliyana se recusou, ele tomou sua bengala pesada e a desceu no crânio dela.

Liliyana cuspiu no rosto dele.

Ele bateu nela de novo. Dessa vez os olhos dela reviraram para trás.

— Pare! — berrou Zoya, debatendo-se nos braços da mãe. — Pare!

— Criminoso — ofegou Liliyana. — Imundo!

Grankin ergueu a bengala de novo. Naquele momento, Zoya entendeu que a tia seria assassinada diante do altar da igreja e que ninguém ia se opor – porque Valentin Grankin era um homem rico e respeitado, porque Liliyana Garin não era ninguém.

Zoya gritou. O som explodiu dela como o uivo de um animal. Uma lufada de vento violenta bateu em Valentin Grankin, derrubando-o no chão. A bengala dele caiu e deslizou pelo piso. Zoya fechou as mãos em punhos, seu medo e raiva jorrando em uma torrente. Um muro revolto de vento irrompeu ao redor dela e explodiu nos beirais da igreja, descolando o telhado das vigas de sustentação com um crack ensurdecedor. Trovões retumbaram em um céu sem nuvens.

Os convidados gritaram, aterrorizados. A mãe de Zoya encarou a filha com olhos cheios de medo, apertando o banco da igreja trás de si como se fosse desabar sem o apoio.

Liliyana, pressionando uma mão na cabeça ensanguentada, gritou:

— Você não pode vendê-la agora! Ela é Grisha! É contra a lei! Ela é propriedade do rei e vai treinar na escola deles!

Mas ninguém estava olhando para Liliyana – todos encaravam Zoya.

Ela correu até a tia. Não sabia bem o que fizera ou o que isso significava, só que queria estar o mais longe possível daquela igreja e daquelas pessoas e do homem abominável que estava no chão.

— Nos deixem em paz! — ela gritou para ninguém e para todos. — Nos deixem partir!

Valentin Grankin gemeu quando Zoya e Liliyana passaram correndo por ele na nave da igreja. Zoya olhou para ele e rosnou.


Foi Liliyana que levou Zoya, ainda usando o elegante vestido de casamento, para Os Alta. Elas não tinham dinheiro para hospedagem, então dormiam em valas e enrodilhadas em matagais, tremendo de frio.

— Imagine que estamos num navio — disse Liliyana uma noite — e as ondas estão embalando nosso sono. Consegue ouvir os mastros estalando? Podemos usar as estrelas para navegar.

— Para onde estamos velejando? — perguntara Zoya, certa de que ouvira um farfalhar no bosque.

— Para uma ilha coberta de flores, onde a água nos riachos é doce como mel. Siga aquelas duas estrelas e nos conduza para o porto.

Toda noite, elas viajavam para um lugar novo: um litoral onde focas prateadas gritavam na costa, uma gruta com veios de gemas preciosas onde eram recebidas pelo senhor dos mares com suas guelras verdes – até que, enfim, chegaram à capital e empreenderam a longa caminhada até os portões do palácio.

Naquela altura, elas estavam imundas, com o cabelo emaranhado e o vestido dourado de casamento de Zoya rasgado e sujo da estrada. Liliyana ignorou o desdém dos guardas quando fez seu pedido e manteve as costas eretas enquanto esperava com Zoya fora dos portões. Elas esperaram, esperaram e esperaram mais um pouco, tremendo no frio, até que enfim um homem num kefta roxo e uma mulher mais velha, vestida de vermelho, saíram pelos portões.

— De que vilarejo vocês vêm? — perguntou a mulher.

— Pachina — respondeu Liliyana.

Os desconhecidos confabularam entre si por um momento, murmurando algo sobre testes e quando os últimos Examinadores tinham passado por aquelas bandas. Então a mulher ergueu a manga de Zoya e apoiou a palma na pele nua do braço dela. Zoya sentiu uma corrente de poder disparar por ela. O vento chacoalhou os portões do palácio e açoitou as árvores.

— Ah. — A mulher soltou um longo suspiro. — Que dádiva chegou à nossa porta toda desalinhada? Venha, vamos alimentar e aquecer você.

Zoya tinha agarrado a mão de Liliyana, pronta para começar a nova aventura delas juntas, mas a tia se ajoelhou e disse gentilmente:

— Não posso mais acompanhar você, querida Zoya.

— Por que não?

— Preciso voltar para casa e cuidar das minhas galinhas. Você não quer que elas passem frio, quer? Além disso — ela acrescentou, afastando o cabelo do rosto da sobrinha —, o seu lugar é aqui. Aqui eles verão a joia que você é por dentro, não só seus olhos bonitos.

— Pelo seu transtorno — anunciou o rapaz, jogando uma moeda na palma de Liliyana.

— Você vai ficar bem? — perguntou Zoya.

— É claro. E vou ficar ainda melhor sabendo que você está a salvo. Agora vá, já consigo ouvir as galinhas cacarejando. Elas estão muito bravas comigo. — Liliyana beijou suas bochechas. — Não olhe para trás, Zoya. Não olhe para mim nem para sua mãe nem para Pachina. O seu futuro a aguarda.

Zoya olhou para trás mesmo assim, torcendo por um último vislumbre da tia acenando através dos portões imponentes. Mas as árvores obscureciam o caminho. Se Liliyana estava lá, Zoya não conseguiu vê-la.

O treinamento tinha começado no mesmo dia. Ela recebeu um quarto no Pequeno Palácio, começou aulas de língua e leitura, começou a aprender shu, estudou com a infeliz carrancuda, conhecida apenas como Baghra, na cabana do lago. Escrevia toda semana para a tia e toda semana recebia de volta uma carta longa cheia de notícias, com desenhos de galinhas nos cantos e histórias sobre os viajantes interessantes que passavam por Novokribirsk.

Por lei, os pais de estudantes Grishas recebiam um estipêndio, de um valor alto o bastante mantê-los em conforto. Quando Zoya descobriu isso, solicitou ao tesoureiro que mandasse o dinheiro à tia em Novokribirsk.

— Liliyana Garin é minha guardiã — ela revelara a ele.

— Seus pais estão mortos, então?

Zoya lhe dera um olhar demorado e respondera:

— Ainda não.

Mesmo aos dez anos, seus olhos eram tão frios e autoritários que ele apenas levou a caneta ao papel e disse:

— Vou precisar de um endereço e do nome completo dela.

Passariam seis anos até Zoya fazer sua primeira travessia da Dobra das Sombras, como uma Aeros júnior no Segundo Exército. Os Grishas ao redor dela tremiam, alguns até choramingaram quando entraram na escuridão, mas Zoya não demonstrara medo – nem na escuridão, onde ninguém a veria tremer. Quando chegaram a Novokribirsk, ela saiu do esquife, jogou os cabelos sobre os ombros e disse:

— Vou procurar um banho quente e uma refeição decente.

Só quando deixou as docas e saiu da vista dos companheiros, ela saiu correndo, com o coração transbordando de alegria, carregando-a sobre pés leves nos paralelepípedos até a lojinha de esquina de Liliyana.

Irrompeu pela porta, alarmando o único cliente, e a tia emergiu da sala dos fundos, enxugando as mãos no avental e dizendo:

— O que é todo esse alvoroço...?

Quando viu Zoya, pressionou as mãos no coração como se ele pudesse saltar do peito.

— Minha garota — ela disse. — Minha garota brilhante. — Então Zoya envolveu a tia num abraço apertado.

Elas fecharam a loja e Liliyana preparou o jantar, e apresentou Zoya à menina que adotara depois que os pais não tinham voltado da última travessia – uma garotinha magricela de nariz arrebitado, chamada Lada, que exigiu que Zoya a ajudasse a desenhar o Pequeno Palácio nos mínimos detalhes. Elas descascaram avelãs ao lado do fogo e discutiram as personalidades das galinhas e todas as fofocas da vizinhança. Zoya contou à tia sobre os professores, os amigos, os aposentos. Deu presentes a Liliyana: botas de couro, luvas forradas de pele e um caro espelho dourado.

— O que eu vou fazer com isso? Olhar o meu rosto velho? — perguntou Liliyana. — Mande para sua mãe como uma oferta de paz.

— É um presente para você — respondeu Zoya. — Para que possa olhar nele todo dia e ver a pessoa mais linda que eu já conheci.


Quando o Darkling usara Alina para controlar e expandir a Dobra, tinha destruído Novokribirsk, para mostrar seu poder aos inimigos. A escuridão consumira a cidade, transformando seus prédios em pó e as pessoas em presas dos monstros sobrenaturais que espreitavam suas profundezas.

Após o desastre, todas as travessias cessaram e levou semanas até a notícia do massacre atingir Kribirsk. O Segundo Exército estava em caos, a Conjuradora do Sol tinha desaparecido ou estava morta, e diziam que o Darkling emergira em algum lugar em Ravka Oeste. Mas Zoya não se importava. Só conseguia pensar em Liliyana. Ela vai estar sentada na lojinha com Lada e as galinhas, disse a si mesma. Tudo ficará bem. Zoya esperou e rezou para todos os Santos, voltando às docas de Kribirsk dia após dia e implorando por notícias. Finalmente, quando não havia ninguém para ajudá-la, alugou sozinha um pequeno esquife e entrou na Dobra sem ninguém para protegê-la.

Ela sabia que, se os volcras a encontrassem, ela morreria. Não tinha luz nem fogo para combatê-los. Não tinha armas, exceto o seu poder. Mas ela subiu na pequena embarcação e entrou sozinha na escuridão, em silêncio. Viajou longos quilômetros até os destroços de Novokribirsk. Metade da cidade havia sumido, engolida pela escuridão que chegava até a fonte na praça principal.

Zoya correra até a loja da tia e não encontrara ninguém lá. A porta estava destrancada. As galinhas cacarejavam no jardim. Uma xícara de chá de bergamota – o favorito de Liliyana – estava apoiada no balcão, fria havia muito tempo.

O resto da cidade estava silencioso. Um cão latiu em algum lugar, uma criança chorou. Ela não conseguiu descobrir nada sobre Liliyana ou a garota até que, por fim, avistou o mesmo cliente que vira naquele dia distante, na loja da tia.

— Liliyana Garin? Você a viu? Ela está viva?

O rosto do velho empalideceu.

— Eu... ela tentou me ajudar quando a escuridão veio. Ela me empurrou para longe para eu poder fugir. Se não fosse por ela...

Zoya soltou um soluço, não querendo ouvir mais. A corajosa Liliyana – é claro que tinha corrido na direção das docas quando os gritos começaram, pronta para ajudar. Por que não podia ter sido covarde só dessa vez? Zoya não conseguia parar de imaginar a mancha escura da Dobra se estendendo sobre a cidade, os monstros mergulhando com seus dentes e garras, guinchando enquanto estraçalhavam a tia. Toda a gentileza dela – sua generosidade, seu coração amoroso – não significara nada. Ela teria sido apenas carne para eles. E tudo aquilo significara ainda menos para o Darkling, o homem que tinha libertado seus monstros só para exibir a sua força, o homem que ela havia praticamente venerado.

— Ela devia ter deixado você morrer — cuspiu Zoya para o idoso, dando as costas para ele. Encontrou uma rua quieta, se encolheu contra um muro baixo e chorou como não chorava desde criança.

— Sorria, moça bonita — disse um estranho que estava de passagem. — Ainda estamos vivos! Ainda há esperança!

Ela puxou o ar dos pulmões dele e o fez cair de joelhos.

— Sorria — ela ordenou quando os olhos dele ficaram marejados e seu rosto ficou vermelho. — Sorria para mim. Me fale sobre a esperança.

Zoya o deixou arfando no chão.

Ela fez a travessia em seu esquife outra vez, silenciosa e sem atrair atenção, e voltou a Kribirsk e aos resquícios do acampamento Grisha. Lá descobriu que o Darkling alçara seu estandarte e convocara os Grishas leais a ele. Membros do Segundo Exército estavam desertando para junto do Darkling ou voltando a Os Alta, para tentar organizar uma campanha contra ele.

Zoya roubou um cavalo e cavalgou a noite toda até a capital. Ela encontraria o Darkling. Ela o destruiria. Ela acabaria com o sonho dele de governar Ravka mesmo se tivesse que comandar o Segundo Exército pessoalmente.

Zoya nunca contou a Alina por que exatamente tinha escolhido lutar com ela, por que dera às costas ao homem que já venerara. Não importava. Ela tinha ficado lado a lado com a Santa do Sol. Elas haviam lutado e vencido. Elas tinham visto o Darkling queimar.

— E a ferida ainda sangra — disse o dragão. — Você nunca será verdadeiramente forte até ela sarar.

— Eu não quero que sare. — Zoya estava com raiva, o rosto molhado de lágrimas. Abaixo, viu a versão de Novokribirsk que existia naquele mundo crepuscular, uma cicatriz preta cortando as areias. — Eu preciso dela.

A ferida era um lembrete da sua estupidez, de como ela estivera disposta a depositar sua fé na promessa de força e segurança do Darkling, de como ela pusera o seu poder à disposição dele – e de como ninguém precisara obrigá-la a atravessar a nave da igreja para isso. Ela o fizera de bom grado. Você e eu vamos mudar o mundo, ele dissera a ela. E ela tinha sido idiota a ponto de acreditar.

— Zoya da cidade perdida. Zoya do coração partido. Você podia ser muito mais.

— Por que vocês não vieram? — ela soluçou, surpresa com as novas lágrimas que brotavam em seus olhos. Ela acreditava que tinham secado havia muito tempo. — Por que não salvaram ela? Todos eles?

— Não sabíamos o que ele pretendia fazer.

— Deviam ter tentado!

Ela sempre seria aquela garota chorando no travesseiro, sussurrando preces que ninguém responderia. Sempre seria aquela criança no vestido dourado, conduzida como um animal para o matadouro. Foi o poder que a tinha salvado naquele dia na igreja, e foi nele que aprendera a confiar e a cultivar. Mas não fora o bastante para salvar Liliyana. Depois da guerra, ela partira em busca de Lada, esperando que a criança tivesse sobrevivido, mas não encontrou nenhum sinal dela. Zoya nunca saberia o que tinha acontecido com a garota de olhos brilhantes e nariz arrebitado.

— Você consegue nos perdoar? — perguntou Juris. — Por sermos tolos? Por sermos frágeis? Por sermos falíveis apesar dos grandes poderes? Consegue perdoar a si mesma?

Por amar o Darking. Por segui-lo. Por não conseguir salvar Liliyana. Por não conseguir proteger o Segundo Exército. A lista dos crimes dela era muito longa.

Zoya, o dragão retumbou. Foi menos uma palavra que um pensamento entrando em sua cabeça, uma sensação de eternidade. Abra a porta. Conecte seu passado ao seu futuro.

Zoya apoiou a cabeça no pescoço do dragão e sentiu a força fluir dentro de si. Ouviu seu coração batendo no ritmo do dele, lento e incessante, e, por baixo, um som mais profundo, mais baixo, um som que tocava tudo, o som do universo, da criação no coração do mundo. Ela queria ser forte o bastante para aquilo, mas não sabia como alcançar o que quer que Juris desejava dela.

Você é o canal, Zoya. Vai levar os Grishas de volta ao que eles deveriam ser antes que o tempo e a tragédia corrompessem o poder deles. Mas só se abrir a porta.

Por que eu?, ela perguntou.

Porque escolheu esse caminho. Porque o seu rei confia em você. Juris inclinou a asa e girou de volta ao palácio. Porque é forte o bastante para sobreviver à queda.


ISAAK TRANSMITIU AS INFORMAÇÕES que obtivera na conversa com Ehri, embora parte dele se sentisse meio suja por isso. Ele compartilhou cada detalhe que ouvira sobre a Tavgharad, e as fontes de Tamar logo descobriram que uma delas, uma jovem recruta chamada Mayu Kir-Kaat, tinha realmente um irmão gêmeo que também servia no exército shu.

— Ele estava postado com um regimento em Koba — informou Tamar. — Mas ninguém parece conseguir localizá-lo.

— Isso é bom ou ruim? — quis saber Isaak.

— Bom para nós, ruim para a nossa guarda — respondeu Tamar. — Nós rastreamos carregamentos de rutênio até Koba. Se o irmão dela foi recrutado para o programa de khergud, talvez ela não tenha ficado feliz com isso. Muitos candidatos não sobrevivem e, mesmo aqueles que conseguem, acabam muito mudados.

Isaak não sabia muito sobre os soldados khergud, só que havia boatos de que eram algo entre um ser humano e uma máquina de matar.

— Então, se essa guarda Mayu for a desertora, vocês vão abordá-la?

— Não vai ser fácil — disse Tolya. — As guardas shu raramente ficam sozinhas. Mas deixe que a gente se concentre nisso.

Tamar concordou.

— Precisamos do seu melhor para a reunião com os kerches.

No entanto, nenhum treino poderia ter preparado Isaak para o seu encontro desastroso com Hiram Schenck.

Isaak começou a noite empolgado com a visita ao Pântano de Ouro, perguntando-se que tipo de libertinagem desenfreada poderia presenciar e se conseguiria um vislumbre das adegas do conde Kirigin. Eles saíram a cavalo com apenas alguns soldados, os gêmeos, Hiram Schenck e os guardas dele. Apesar da noite fria, Schenck estava animado.

— Isso é muito empolgante, Alteza — ele disse. — Um momento fortuito para nossos países. — Ele tinha a mesma compleição corada e o cabelo castanho das filhas.

— Realmente — respondeu Isaak. Era uma palavra muito útil.

O conde os recebeu nos jardins de sua mansão cintilante, vestido num casaco carmesim vibrante, com as lapelas cravejadas com rubis do tamanho de ovos.

— É um prazer recebê-los! — cumprimentou ele em ravkano. — Bem-vindos ao meu pequeno refúgio!

— Agradeço a sua hospitalidade — disse Isaak, como fora instruído. — Sabíamos que podíamos contar com a sua discrição.

— Sempre — respondeu Kirigin. — Ela é necessária tanto para a política como para a sedução. Mandei todos os outros hóspedes embora e a propriedade é dos senhores. Quando se fartarem de divertimentos, espero que venham se recobrar junto à minha humilde lareira e dividir uma xícara de algo quente. — Então ele limpou a garganta e abaixou a voz. — Eu mandei um convite para minhas comemorações outonais na semana que vem à comandante Nazyalensky. Estava me perguntando se Vossa Alteza poderia incentivá-la a vir.

— É claro — disse Isaak. — No momento ela não está na capital, mas tenho certeza de que ficaria feliz de se juntar à diversão.

Kirigin ficou pasmo.

— Ficaria?

— Talvez seja melhor irmos, Alteza — interveio Tolya, afastando Isaak do conde, que o olhava estranhamente. — Estarão nos esperando no lago.

— Eu falei algo errado? — ele sussurrou a Tolya enquanto os dois percorriam, a cavalo, um caminho de cascalho iluminado por tochas.

— Zoya Nazyalensky não ficaria feliz de se juntar ao conde Kirigin para nada — explicou Tolya.

Tamar estalou as rédeas.

— Muito menos diversão.

Genya e David estavam esperando nas margens de um lago sem quaisquer atrativos. Eles embarcaram num pequeno barco a vela, com um membro da marinha real ravkana no leme. Era uma noite sem vento, então um Aeros foi até o mastro, ergueu as mãos e enfunou a vela. Acima deles, o céu noturno estava iluminado por fogos de artifício lançados de algum ponto na propriedade de Kirigin. Isaak se perguntou para quem eles seriam, se todos os convidados tinham partido, mas criavam uma bela atmosfera.

Enfim, o barco parou e ficou boiando suavemente. Ele podia ver várias outras embarcações atracadas não muito longe, suas velas iluminadas por lanternas. Não parecia haver ninguém a bordo.

— Como o senhor sabe — falou Isaak em kerch, recitando o discurso que Genya e Tolya haviam preparado para ele —, eu nunca me contentei em ficar confinado a terra. Eu viajei pelos céus. Viajei pelos mares. Mas então comecei a me perguntar: por que a fronteira sob as ondas que eu tanto amo deveria estar fechada a nós? E assim nasceram — ele gesticulou dramaticamente para o porto — os izmars’ya!

A água ao lado do veleiro começou a espumar e erguer-se. O que parecia o lombo de uma fera prateada irrompeu pela superfície. Isaak conteve um arquejo, desejando que os outros o tivessem preparado para o tamanho da coisa. Perto dela, o barquinho a vela parecia minúsculo.

Schenck agarrou a amurada, tentando absorver a visão.

— Incrível. E pensar que estava abaixo de nós esse tempo todo. Agora, vamos ver o que se pode fazer.

— É claro — disse Isaak, e ergueu a mão para dar o sinal.

Os izmars’ya submergiram outra vez, desaparecendo sob a superfície. Tudo ficou em silêncio e o único som eram os estouros dos fogos de artifício que salpicavam o céu com cascatas de luz.

Então um boom alto veio de algum lugar muito próximo. A água ao lado do barco que estava mais perto deles explodiu numa enorme coluna. A escuna esguia tombou para estibordo e as chamas das lanternas caíram sobre as velas, incendiando-as. A embarcação começou a afundar, acumulando água a uma taxa alarmante, como se alguém tivesse completamente rasgado seu casco.

Boom. Outro barco desabou – este, um velho galeão. Outro – um veleiro bonito. Mesmo se essas embarcações tivessem uma tripulação que tentasse montar algum tipo de defesa, não havia nada no que atirar. Não havia qualquer sinal do izmars’ya, apenas a superfície calma do lago.

Um arrepio percorreu Isaak, sem qualquer relação com a noite fria ou a névoa sombria nas margens do lago. Então era por isso que os kerches queriam tanto aquelas embarcações submarinas. Com elas, poderiam atacar a qualquer momento sem risco para si mesmos – um inimigo invisível. Era uma ideia assustadora.

Schenck estava batendo palmas e comemorando.

— Estupendo! Melhor do que eu tinha imaginado. O Conselho ficará encantado. Qual é o alcance deles? Os mísseis conseguem perfurar um casco de aço? De que tipo de combustível vamos precisar?

Isaak não sabia responder. Ninguém o tinha preparado para aquele tipo de interrogatório. Ele pensou que só ofereceriam uma demonstração e então se retirariam à casa do conde Kirigin para se aquecer.

— Tudo no seu devido tempo — disse Isaak... ou teria dito. Mas ele mal tinha pronunciado a primeira palavra quando o izmars’ya emergiu das águas perto do barco a vela com um rugido ensurdecedor. Seu flanco de metal bateu no barco, derrubando Isaak e os outros no convés. Hiram Schenck gritou.

O casco do izmars’ya tinha rachado, e o interior da embarcação estava visível – e se enchendo de água enquanto a tripulação gritava e tentava se içar pelas paredes de metal. Houve outra explosão forte quando seus tanques de combustível explodiram, expelindo enormes nuvens de chamas. Isaak ouviu um sibilar alto, seguido por outros, conforme os mísseis do izmars’ya se lançavam no céu noturno, juntando-se aos fogos de artifício de Kirigin.

Um míssil descontrolado roçou num dos mastros do barco a vela quebrando-o em dois. Isaak empurrou Hiram Schenck para o lado antes que pudesse desabar sobre o mercador.

— Nos tire daqui! — gritou o capitão, e o Aeros encheu as velas remanescentes com vento, rapidamente levando-os para a margem.

O resto do desastre foi um borrão: soldados encharcados, Hiram Schenck histérico, o conde Kirigin perguntando “Então vocês não vão ficar para o jantar?” da escada da casa, enquanto o grupo fazia uma retirada às pressas para o palácio.

Quando finalmente entraram na sala de estar do rei e Isaak tirou o casaco molhado, estava preparado para uma longa noite de estratégias e recriminações. Em vez disso, Tamar se jogou no sofá e irrompeu em gargalhadas. Tolya ergueu David com um braço e Genya no outro e girou os dois no ar.

— Brilhante! — ofegou Genya, batendo no ombro de Tolya para que a pusesse no chão. — Uma encenação digna da raposa esperta em pessoa.

— O jeito como Schenck gritou — disse Tamar aos risos. — Acho que pode ter se molhado.

— Eu quase fiz o mesmo — admitiu Tolya. — Era para o míssil atingir o mastro mesmo?

— Claro que sim — replicou David, severamente. — Vocês disseram que queriam um espetáculo.

Genya plantou um beijo na bochecha dele e repetiu:

— Brilhante.

Isaak os encarou.

— Então... não foi um desastre?

— Foi um triunfo — afirmou Tamar.

— Entendo — disse Isaak.

— Ah, Isaak — suspirou Genya. — Sinto muito. Só não sabíamos se você conseguiria fingir surpresa real.

— Precisávamos que sua reação fosse natural — declarou Tamar.

Tolya parecia penitente.

— Só tínhamos uma chance de acertar.

Isaak sentou-se no sofá.

— Droga.

— Sentimos muito — lamentou Genya, agachando-se sobre um joelho e olhando para ele em súplica. — De verdade.

— Pode nos perdoar? — perguntou Tolya.

— É que eu estava tão animado — queixou-se Isaak. Ele tirou a bota esquerda e viu o que parecia ser meio lago vazar no tapete. — Finalmente algo deu errado e eu não tive nada a ver com isso.


NA NOITE ANTERIOR AO RITUAL, Nikolai sentou-se com Zoya na frente da lareira em seus aposentos. Yuri se retirou cedo para rezar.

O fogo era inteiramente desnecessário. A Dobra não era nem quente nem fria – o tempo atmosférico teria exigido alguma mudança na monotonia penosa daquele lugar. Mas as chamas eram o único entretenimento disponível a eles, e Nikolai precisava desesperadamente de distrações.

Ele insistira que estava pronto para o ritual. Elizaveta queria esperar mais alguns dias para que ele pudesse solidificar o seu controle, mas Nikolai não queria arriscar. Precisava voltar à capital. E era mais que isso: conseguia sentir o monstro ficando mais forte a cada dia e suspeitava que estava mais fácil chamar o demônio porque ele queria esticar suas asas. Podia sentir o gostinho da liberdade ao alcance.

— Só mais um pouco — dissera Elizaveta.

Mas Nikolai tinha se mantido firme.

— Amanhã — ele respondera. Ou o que quer que se passasse por “amanhã” naquele lugar amaldiçoado.

Ele nunca quis tanto dormir ou ter algum alívio dos pensamentos sobre o desafio iminente. Podia sentir o monstro esperando. De alguma forma, sabia que eles se enfrentariam no dia seguinte – e estava pronto para isso. Sua expectativa era mais assustadora do que o fato de que Nikolai teria que fincar um espinho no peito em questão de horas. Ele ansiava desesperadamente por uma taça de vinho. Não, esqueça a taça – ele beberia diretamente da garrafa.

Mas não havia vinho. Não havia comida para encher um prato. Ele estava faminto, mas seu estômago nunca roncava. Estava sedento, mas sua boca nunca secava.

Nikolai observou Zoya, que olhava para as chamas. Ela contraiu os dedos e as centelhas saltaram. Ele não conseguia nem imaginar o que Juris tinha ensinado a ela naquele curto período. Ela usava as mesmas roupas da manhã em que eles desapareceram, embora a capa de tecido grosseiro já tivesse sido descartada havia muito. Ele ficou grato pela familiaridade da seda azul-escura do kefta dela.

Ela estava sentada com um joelho erguido e uma bochecha encostada nele. Nikolai percebeu que nunca a vira tão à vontade. Na corte, Zoya sempre se movia com elegância, seus passos suaves, seu olhar tão afiado e inclemente quanto a lâmina de uma faca. Mas agora ele percebia que era a graciosidade de uma atriz no palco. Ela estava sempre atuando, sempre em alerta. Até com ele.

Nikolai soltou uma risada surpresa e ela olhou para ele.

— O que foi?

Ele balançou a cabeça.

— Acho que estou com ciúme.

— Do quê?

— De um dragão.

— Não deixe Juris ouvir isso. Ele já se acha demais.

— E deveria. Consegue voar e soprar fogo, e provavelmente tem pilhas de ouro escondidas em algum lugar.

— Isso é um clichê injusto. Podem muito bem ser joias.

— E ele fez você ficar assim.

Zoya ergueu uma sobrancelha.

— Assim como, exatamente?

— Confortável.

Zoya endireitou as costas e ele se arrependeu profundamente ao ver a armadura dela voltar para o lugar.

Depois de um minuto, ela perguntou:

— O que você acha que vai acontecer quando sairmos daqui?

— Com sorte, não encontraremos muitas coisas pegando fogo.

Zoya suspirou.

— David e Kuwei foram deixados sem supervisão por tempo demais. Pelo que sabemos, eles já explodiram metade da capital.

— Isso é preocupantemente plausível — admitiu Nikolai. Ele esfregou a cabeça. Vinho tinto. Vinho branco. Aquela bebida feita com cerejas fermentadas que ele experimentara no Crow Club. Ele daria qualquer coisa por uma trégua, uma noite de descanso real. Nem a poção do sono de Genya funcionava ali, e a falta de sono o deixava letárgico. — Não sei o que encontraremos. Nem sei quem serei amanhã.

— Você vai ser quem sempre esteve destinado a ser: o rei de Ravka.

Talvez, ele pensou. Ou talvez você tenha que consertar Ravka no meu lugar.

Ele tirou um documento dobrado do bolso e o deixou ao lado da mão dela.

Ela o pegou e virou, franzindo o cenho para o selo de cera que ele tinha gravado com o anel sinete.

— O que é isso?

— Não se preocupe, não escrevi uma carta de amor para você. — Ela virou o rosto para o fogo. Será que até a menção de amor era demais para as sensibilidades implacáveis de Zoya? — Isso é uma ordem real nomeando-a protetora de Ravka e tornando-a comandante do Primeiro e do Segundo Exércitos.

Ela o encarou.

— Você perdeu completamente o juízo?

— Estou tentando fazer a coisa responsável. Acho que está me dando indigestão.

Zoya jogou a carta ao chão como se o papel tivesse chamuscado seus dedos.

— Você não acha que vai sobreviver ao teste.

— As esperanças de Ravka não deveriam viver e morrer comigo.

— Então vai jogá-las no meu colo?

— Você é uma das Grishas mais poderosas que o mundo já conheceu, Zoya. Se existe alguém que pode proteger Ravka, é você.

— E se eu disser que não quero o trabalho?

— Ambos sabemos que isso não é verdade. E eu mencionei que o cargo vem com algumas safiras realmente espetaculares? — Nikolai apoiou as mãos nos joelhos. — Se os gêmeos e o Triunvirato não conseguiram esconder nosso desaparecimento, Ravka já pode estar em polvorosa. Ambos sabemos que é possível que eu não sobreviva ao ritual, e alguém terá que restaurar a ordem. Cada homem e mulher que alega ter um pingo de sangue Lantsov vai tentar conquistar o trono, e nossos inimigos vão aproveitar a oportunidade para destroçar o país. Escolha um dos pretendentes para apoiar, o mais inteligente ou mais charmoso ou...

— O mais facilmente controlável?

— Está vendo? Você nasceu para isso. Reúna os Grishas. Tente salvar nosso povo.

Zoya olhou para o fogo com a expressão conturbada.

— Por que é tão fácil para você contemplar a sua morte?

— Eu prefiro olhar diretamente para uma coisa a deixá-la me pegar de surpresa. — Ele abriu um sorriso largo. — Não me diga que sentiria saudade.

Zoya afastou o olhar de novo.

— Suponho que o mundo seria menos interessante sem você nele. Eu não me deixaria ser afogada em âmbar por qualquer um, sabe?

— Estou comovido — ele respondeu. E estava mesmo. Era a coisa mais próxima de um elogio que ela já lhe dissera.

Ela levou a mão à corrente fina debaixo da gola do kefta e a puxou sobre a cabeça. Era a chave que usava para destrancar as correntes dele. Ela a girou no dedo.

— Não precisaremos mais disso depois de amanhã.

Ele a pegou das mãos dela, sentindo o seu peso na palma. O metal estava quente pelo contato com a pele de Zoya. Ele não sentia falta da cerimônia noturna deles, mas sentia a falta de uma desculpa para falar com ela toda noite e toda manhã. Supôs que isso também estava prestes a acabar.

Nikolai hesitou. Não queria arruinar o bom humor dela.

— O seu amplificador... — A mão de Zoya se contraiu, e ele sabia que ela estava resistindo à vontade de tocar o pulso nu. — Você me contaria como o conseguiu?

— Por que isso importa?

— Acho que não importa. — Mas ele queria saber. Queria sentar-se ali e ouvi-la falar. Apesar de todo o tempo que passaram juntos, Zoya ainda era um mistério para ele. Aquela poderia ser sua última chance de desvendá-la.

Ela alisou a seda do kefta sobre os joelhos. Ele achou que ela talvez não falasse, que só ficaria sentada ali, calada como uma pedra até que ele desistisse de esperar. Zoya era perfeitamente capaz disso. Mas, por fim, ela começou:

— Eu tinha treze anos. Estava no Pequeno Palácio fazia quase cinco. O Darkling levou um grupo de Grishas para Tsibeya. Ouviam-se boatos de que os tigres brancos de Ilmisk tinham retornado, e ele suspeitava que pelo menos um era um amplificador.

— Perto do permafrost?

— Um pouco mais para o sul. Eu era a mais nova do grupo e estava muito orgulhosa por ter sido escolhida para ir. Já estava meio apaixonada por ele. Vivia pelos raros momentos em que ele aparecia na escola. — Ela balançou a cabeça. — Eu era a melhor e queria que ele visse isso... Os Grishas mais velhos estavam todos disputando o amplificador. Cabia a eles rastrear os tigres e ver quem ganharia o direito de matar o animal. Eles seguiram uma fêmea por quase uma semana e a encurralaram nos bosques perto de Chernast, mas de alguma forma ela escapou.

Zoya abraçou as pernas.

— Ela deixou seus filhotes. Abandonou os três. Os homens do Darkling os prenderam numa jaula para que os Grishas pudessem brigar para ver quem merecia mais os dentes deles. A noite toda, podíamos ouvir a mãe rondando pelo perímetro do acampamento, rosnando e uivando. Meus amigos consideraram sair no escuro para caçá-la. Eu sabia que era só bravata, mas não conseguia parar de pensar nos filhotes. Então, quando todos no acampamento estavam dormindo, criei uma distração para os guardas derrubando uma das tendas, com uma rajada de vento, e raptei os filhotes da jaula. Eram tão pequenos — ela contou com um sorrisinho. — Não conseguiam correr, só rolar um pouco, tropeçar e se endireitar. Eu só os empurrei até que saíssem do acampamento. Santos, como estava com medo. — Os olhos dela ficaram vagos, como se olhasse para aquela noite longínqua. — Ainda estávamos à vista das tochas quando percebi que eu não estava sozinha.

— A mãe?

Ela balançou a cabeça.

— Era um macho. Não sei por quê, mas ele saltou diretamente para os filhotes. Entrei em pânico. Devia ter lutado, usado meu poder, mas só consegui pensar em proteger os corpos deles com o meu. Quando o macho atacou, as garras dele rasgaram meu casaco e meu kefta até a pele das costas. — Zoya apertou os punhos. — Mas eu protegi aqueles filhotes. Eu lembro... eu lembro que tinha os olhos fechados com força, e quando os abri a neve parecia preta sob o luar. — Ela virou o rosto para o fogo. — Estava manchada com o meu sangue. Eu podia sentir os filhotes se debatendo contra mim, uivando de terror, as garrinhas afiadas como agulhas. Foi isso que me trouxe de volta, aquelas alfinetadas ardidas. Eu reuni o que restava da minha força e conjurei a rajada mais poderosa que pude. Abri os braços e fiz o macho voar para longe. Foi aí que o Darkling e os guardas dele chegaram correndo. Acho que eu estava gritando.

— Eles mataram o tigre?

— Ele já estava morto. Tinha batido numa árvore quando eu o joguei e quebrou o pescoço. Os filhotes escaparam.

Zoya se ergueu. Ela se virou para ele e, para o espanto de Nikolai, deixou a seda do kefta deslizar dos ombros e se amontoar nos quadris. Uma pontada de desejo que ele não queria sentir o percorreu, e então ele viu – na pele macia das costas dela, havia oito longas cicatrizes enrugadas.

— Os outros Grishas ficaram furiosos — ela disse —, mas eu tinha matado o tigre branco. O amplificador só podia pertencer a mim. Então eles costuraram minhas feridas e eu reivindiquei os dentes do tigre para o meu pulso. Ele me deixou com isto.

A luz do fogo refletiu na superfície perolada das cicatrizes. Era um milagre ela ter sobrevivido.

— E você nunca as tratou ou pediu que fossem esculpidas?

Ela puxou o kefta de volta para os ombros e prendeu os fechos.

— Ele deixou sua marca em mim e eu nele. Fizemos danos um ao outro. Isso merece ser relembrado.

— E o Darkling não se recusou a dar o amplificador a você, apesar do que fez?

— Teria sido uma punição justa, mas não. Um amplificador tão poderoso era raro demais para ser desperdiçado. Eles colocaram a pulseira em mim e fixaram os dentes do velho felino com prata para que eu nunca pudesse removê-la. É assim que os amplificadores mais poderosos são feitos.

Ela olhou pela janela aberta, observando a extensão de céu cinza.

— Quando acabou, o Darkling me levou à sua tenda e disse: “Então, Zoya, você libertou os filhotes de tigre. Fez a coisa altruísta. No entanto, foi você que terminou o dia com um enorme poder. Mais do que qualquer um dos seus superiores, que pacientemente esperaram a vez deles. O que diz sobre isso?”. A desaprovação dele era mais dolorosa que qualquer arranhão das garras de um tigre. Uma parte de mim sempre temeu que ele me mandaria embora, que me baniria do Pequeno Palácio. Eu disse a ele que sentia muito. Mas o Darkling me entendia claramente mesmo então. “É isso mesmo que você deseja dizer?”, ele perguntou.

Zoya enfiou uma mecha escura de cabelo atrás da orelha.

— Então eu disse a verdade para ele. Empinei o queixo e falei: “Eles que se danem. Era o meu sangue na neve”.

Nikolai conteve uma risada, e um sorriso brincou nos lábios de Zoya. Mas desapareceu quase imediatamente, substituído por uma expressão perturbada.

— Isso o agradou. Ele me disse que eu tinha feito um bom trabalho. E depois disse... “Cuidado com o poder, Zoya. Não há o suficiente dele que vá fazer as pessoas amarem você”.

O peso das palavras cobriu Nikolai. É isso que estamos todos procurando? Seria isso que ele caçara naqueles livros na biblioteca? Em suas viagens incessantes? Em sua busca sem fim para conquistar e manter o trono?

— Era amor que você queria, Zoya?

Ela balançou a cabeça lentamente.

— Acho que não. Eu queria... força. Segurança. Queria nunca mais me sentir impotente.

— Nunca mais? — Era impossível imaginar Zoya não sendo poderosa.

Mas tudo o que ela disse foi:

— Quando Juris quebrou aquela pulseira, foi como se tivesse arrancado um membro do meu corpo. Você não pode nem imaginar.

Não podia, de fato. E não imaginava quais palavras poderiam reconfortá-la.

— E quanto aos filhotes?

Zoya correu o dedo pelo peitoril da janela, fazendo areia cair dela em uma cascata cintilante.

— Ele me disse... o Darkling disse que, como eles tinham meu cheiro neles, a mãe não os criaria. — A voz dela ficou embargada de leve. — Ele disse que eu os condenei com tanta certeza como se tivesse levado uma faca à garganta deles. Que ela os deixaria para morrer na neve. Mas eu não acredito nisso, você acredita?

O rosto dela estava tranquilo, mas seus olhos continham uma súplica. Nikolai sentiu que estava olhando para a garotinha que ela fora naquela noite fria e sangrenta.

— Não — ele respondeu. — Eu não acredito nisso.

— Bom — ela continuou. — Bom... — Ela deu um puxão firme no punho das mangas, parecendo voltar a si. — Todo amante que já tive perguntou sobre essas cicatrizes. Eu invento uma história nova para cada um deles.

Ele percebeu que não queria pensar nos amantes de Zoya.

— E o que eu fiz para merecer a verdade?

— Me ofereceu um país e enfrentou a morte iminente?

— É importante ter padrões altos, Nazyalensky.

Zoya apontou o queixo para a ordem selada que ainda estava no chão.

— Não é tarde demais para queimar isso.

Nikolai pensou nas costas suaves dela, cortadas por aquelas cicatrizes enrugadas. Pensou no ângulo teimoso do queixo dela. Imaginou-a encolhida na neve, arriscando sua posição com o mentor que ela venerava, arriscando a própria vida para salvar aqueles filhotes.

— Quanto mais eu conheço você — ele disse —, mais tenho certeza de que é exatamente o que Ravka precisa.

Naquele momento, ele desejou que as coisas pudessem ser diferentes. Que ele pudesse não morrer no dia seguinte. Que pudesse seguir seu coração em vez do dever.

Porque Zoya não era gentil e não era fácil.

Mas ela já era uma rainha.


NINA NUNCA SUPORTARA um jantar mais longo ou esquisito. Uma refeição privada tinha sido servida em uma das salas mais bonitas junto à capela para Brum, a filha dele e a nova professora de línguas dela. A comida era notavelmente superior às refeições simples do convento: perca assada servida com mexilhões, repolho e creme, enguia defumada, cogumelos em conserva e alho-poró refogado. Nina escondeu dois ovinhos de codorna na saia para o caso de Trassel gostar de coisas mais refinadas, e começou a se perguntar se talvez eles terminariam com biscoitos de amêndoas açucarados. Era possível planejar espionagem e esperar ansiosamente pela sobremesa ao mesmo tempo.

Brum interrogara Adrik e Leoni naquela tarde e, aparentemente, as respostas dele o tinham satisfeito. Nina esperava que Adrik se recusasse a continuar com o plano agora que eles estavam enfrentando o escrutínio do comandante dos drüskelle, mas ele a havia surpreendido.

— Sempre imaginei que morreria jovem — ele disse, desolado como sempre. — Por que não fazer isso enfiando a bota no traseiro daquele assassino?

Naquela noite, ela era Nina Zenik, sentada diante de seu maior inimigo – o antigo mentor de Matthias e o arquiteto de alguns dos piores crimes cometidos contra o povo dela. Mas também era Mila Jandersdat, uma moça pobre jantando com pessoas acima de sua posição, enquanto assistia ao sofrimento da sua amiga.

E Hanne era sua amiga. Ela pensou na garota escapulindo do convento para realizar o parto de uma criança indesejada. Pensou nela debruçada sobre o cavalo, correndo pelos campos, em pé na sala de aula, com as mãos erguidas em uma postura de luta, com as bochechas coradas. Uma guerreira inata. Ela tinha uma veia selvagem e generosa que poderia desabrochar em algo mágico se tivesse permissão para florescer. Isso poderia acontecer em Ravka – mas definitivamente não ia acontecer naquela mesa.

Brum submeteu a filha a perguntas infinitas sobre suas aulas de boas maneiras e seus planos para o ano seguinte.

— Sua mãe e eu sentimos sua falta, Hanne. Você saiu de Djerholm há tempo demais.

— Também sinto saudade de vocês, papai.

— Se só pudesse abandonar essas atitudes inapropriadas e se dedicar, sei que seria bem recebida na corte. Só pense como seria bom estarmos todos juntos de novo.

— Sim, papai.

— Não gosto de deixar você aqui, especialmente com as influências estrangeiras que invadem essas cidadezinhas. A Madre Superiora me contou que uma noviça foi pega com um ícone de algum Santo pagão enfiado sob o travesseiro. O seu lugar é na Corte de Gelo.

— Sim, papai.

As tentativas de Hanne de discutir os seus estudos foram dispensadas com um aceno.

— Você sempre foi inteligente, Hanne. Mas isso não vai te garantir um marido poderoso.

— Ele não iria desejar uma esposa com quem pode discutir política e questões de Estado?

Brum suspirou.

— Um homem que passa o dia comandando o país não quer conversar sobre tais assuntos com a esposa. Ele deseja ser tranquilizado, entretido, lembrado das coisas mais gentis neste mundo, das coisas que lutamos tanto para proteger.

Nina sentiu ânsia. Não sabia se ia conseguir digerir o seu excelente jantar.

Enquanto a discussão entre Hanne e o pai se acalorava, ela discretamente pediu licença. Brum estava hospedado na fábrica e eles adiariam o ataque até que ele partisse pela manhã.

Nina foi ao toalete, depois fuçou os bolsos do casaco que Brum tinha deixado dobrado na cadeira da sala de estar. Ela encontrou uma carta que falava sobre “o pequeno Lantsov” e alguém chamado Vadik Demidov. Fez o melhor possível para memorizar o resto das informações, mas não podia ficar muito tempo longe da mesa.

Ela apagou a vela e saiu da sala de estar. Jarl Brum estava parado no corredor mal iluminado.

— Ah! — exclamou ela, deixando a mão voar nervosamente até o decote do vestido. — O senhor me assustou.

— Você se perdeu voltando do toalete?

— Não, senhor — ela respondeu, deixando as palavras saírem entrecortadas. — Eu vi que as velas estavam quase esgotadas e parei para apagá-las.

— Isso não é o trabalho dos criados, Enke Jandersdat?

— Por favor, me chame de Mila.

Brum a perscrutou na penumbra.

— Isso não seria inteiramente apropriado.

Como os fjerdanos amavam seu senso de decoro! Mas ela começara a se perguntar se eles gostavam de criar tantas regras só pela emoção de quebrá-las.

— Perdoe-me — ela disse, caindo numa mesura desnecessariamente baixa. — Eu não quis ofender. Temo que meus modos do campo tenham desagradado o senhor.

Brum colocou o dedo sob o queixo dela, mas foi gentil dessa vez quando a fez se levantar e ergueu o rosto dela.

— De modo algum. Eu os acho revigorantes. Você aprenderá a se comportar na presença de seus superiores.

Nina abaixou os olhos.

— Se eu tiver a sorte de ter chances para isso.

Brum a estudou.

— Eu vou embora pela manhã, mas passo com frequência por Gäfvalle para verificar se a fábrica de munições está funcionando adequadamente. — E para conferir os seus experimentos, pensou Nina, com uma pontada de raiva. — Estou interessado em ver o progresso de Hanne em suas aulas.

— Eu não tenho uma posição permanente aqui — argumentou Nina, torcendo as mãos. — Não sei por quanto tempo a Madre Superiora vai tolerar a minha presença.

Brum colocou a mão sobre as dela. Nina ficou imóvel.

— Que coisinha mais tensa. A Madre Superiora sempre terá um lugar para você se eu mandar que tenha.

Nina ergueu os olhos para ele com toda a veneração que conseguiu reunir.

— Obrigada, senhor — ela disse fervorosamente. — Obrigada.

Eles se juntaram a Hanne na sala de jantar para as despedidas.

Assim que o pai partiu, Hanne desabou contra a parede, de alívio.

— Graças a Djel, acabou. Você conseguiu o que queria?

Nina ergueu uma bolota de cera de vela quente que tinha pressionado contra o anel sinete de Brum para formar uma impressão perfeita do selo dele.

— Sim. O resto é com você.


Adrik tinha razão sobre o problema de entrar na fábrica. Mesmo com o sinete de Brum em uma ordem militar, os guardas na entrada leste jamais deixariam as mulheres e garotas passarem sem um soldado fjerdano convincente no comando.

Hanne não saiu da cama no dia seguinte, alegando que a comida requintada do jantar da noite anterior não tinha caído bem.

A Madre Superiora não foi muito paciente.

— Nossos deveres não incluem cuidar de uma garota mimada com o estômago sensível.

— É claro, Madre Superiora — concordou Hanne. — Enke Jandersdat pode cuidar de mim. — Então se debruçara ao lado da cama e vomitara.

A Madre Superiora levou a manga ao nariz para se proteger do cheiro.

— Tudo bem. Deixe que ela esvazie sua bacia e limpe a sua bagunça.

— Talvez o emético de Leoni tenha funcionado um pouco bem demais — disse Nina assim que estavam sozinhas, com a porta firmemente fechada.

Hanne gemeu e afundou nos travesseiros, parecendo profundamente nauseada. Nina sentou-se na cama e levou um frasquinho de líquido efervescente aos lábios dela.

— Pronto, isso vai ajudar. Leoni é tão boa com tônicos quanto é com eméticos.

— Espero que sim — suspirou Hanne.

Nina limpou o quarto enquanto Hanne descansava, depois a fez comer pão branco e um ovo.

— Você vai precisar da sua força.

Hanne se empurrou para sentar na cama, enfiando um travesseiro atrás das costas. Ela tinha deixado o cabelo solto em uma cascata castanha rosada ao redor dos ombros, e Nina teve a vontade súbita de enrolar uma das mechas espessas no dedo.

— Não sei se consigo fazer isso — disse Hanne. — Nunca tentei esculpir nada antes.

Nina abriu as cortinas para deixar entrar o máximo de luz do sol. O quarto de Hanne ficava no segundo andar, então elas não teriam que se preocupar com olhares intrometidos.

— É só outro modo de manipular o corpo.

— Você já viu alguém ser esculpido?

— Só uma vez — mentiu Nina. Seu rosto e corpo inteiros tinham sido esculpidos até ficarem completamente irreconhecíveis. Ela até tentara uma vez.

— E se eu não conseguir voltar depois?

— Então acharemos alguém que consiga — ela prometeu. Mesmo que eu tenha que arrastar você até Ravka para isso. — Mas não acho que será um problema. Você só vai fazer mudanças muito pequenas. — Nina sentou-se diante de Hanne e ergueu um espelho que tinha polido à perfeição.

Hanne encarou seu reflexo.

— Por onde começo?

— Vamos tentar a mandíbula. Vamos mexer com o nariz depois que você pegar o jeito. Não quero que acidentalmente feche uma passagem respiratória. — Os olhos de Hanne se arregalaram. — Estou brincando! — disse Nina. Mais ou menos.

Hanne acalmou a respiração e pressionou os dedos gentilmente ao lado esquerdo da própria mandíbula.

— Concentre-se nas células da pele — instruiu Nina. — Pense na direção em que você quer que elas se movam.

— Isso é assustador — sussurrou Hanne quando a linha da sua mandíbula lentamente começou a mudar.

— Mais assustador do que a Madre Superiora quando ela pega alguém se divertindo?

Um sorrisinho curvou os lábios de Hanne, e ela pareceu relaxar um pouco.

— Nem de longe.

O trabalho levou horas enquanto Hanne fortalecia sua mandíbula, deixando-a mais quadrada, depois acrescentava peso à testa e finalmente alargava o nariz. Nina ficou sentada, enrodilhada ao lado de Hanne na cama estreita, observando seu progresso no espelho, oferecendo sugestões e incentivo. Periodicamente ela saía do quarto para pegar xícaras de caldo e fingir esvaziar bacias, mantendo a ilusão de que Hanne ainda estava doente.

Então chegou a hora do toque final.

— Tem certeza? — perguntou Nina, segurando as tranças grossas e castanho-avermelhadas de Hanne. Elas eram entremeadas de ouro e frias e sedosas em suas mãos, como água corrente. — Podemos só enfiar embaixo da boina.

— Não vou pôr o plano todo em risco só pela minha vaidade. — Ela fechou os olhos com força. — Corte.

Parecia um crime fazer aquilo com um cabelo tão magnífico, mas Nina pegou as tesouras e cortou as mechas espessas. Concluiu o trabalho com uma navalha, deixando o cabelo de Hanne próximo ao crânio no estilo do exército fjerdano. Só drüskelle mantinham o cabelo longo. Quando Hanne esculpisse o rosto de volta ao estado original, diria que havia raspado o cabelo como uma penitência a Djel.

Nina arrumou o cabelo, reunindo-o em uma bacia, e então o jogou no lixo, certificando-se de que estava bem escondido. Quando voltou, encontrou Hanne sentada na cama, encarando o espelho com lágrimas nos olhos.

— Não chore. — Nina fechou a porta e correu até o lado dela. — Vai crescer de volta. Prometo.

— Não é isso — disse Hanne, observando seu rosto. Um garoto a olhava de volta: a mandíbula, a testa, o nariz, a pele mais áspera das bochechas para fazer parecer que ela tinha feito a barba. Eram mudanças pequenas, mas o efeito era espantoso. — Se eu tivesse sido um garoto... Se tivesse sido o filho que meu pai queria...

Nina apertou os ombros de Hanne.

— Você é perfeita, Hanne. O fato de seu pai não poder valorizar suas forças é só um sinal das fraquezas dele.

Hanne olhou de volta para o espelho, piscando para enxugar as lágrimas.

— Os lábios ainda estão carnudos demais.

— Não mexa nos lábios — disse Nina bruscamente, então se ergueu para esconder o rosto corado. — Eles estão perfeitos assim.


DEPOIS DO CAOS da demonstração no Pântano de Ouro, Isaak não deveria ter ficado nervoso ao entrar em uma reunião de comércio no dia seguinte. Mas não havia motivos para o Triunvirato estar ali, então caberia a ele enfrentar os kerches, kaelish e zemenis sem ninguém, exceto os ministros de finanças de Nikolai. Ele estava com medo que descobrissem a farsa. Estava com medo de fazer o rei parecer um idiota. Estava com medo de destruir a economia ravkana se coçasse o nariz do jeito errado.

Antes de a reunião começar, ele fez o que Genya e os outros tinham sugerido e se encontrou em particular com os ministros.

— Eu preferiria que você conduzisse o encontro, Ulyashin — ele disse. — Confio que vai fazer a coisa certa.

O ministro do comércio tinha um sorriso largo e passou a reunião alegremente debatendo tarifas e impostos de importação, enquanto desviava com elegância do espectro ameaçador dos empréstimos de Ravka. Isaak sentiu uma torrente arrebatadora de gratidão por Ulyashin. Talvez pudesse lhe presentear com um barco ou título ou o que quer que reis fizessem para dizer obrigado.

A reunião terminou no que parecia ser uma nota positiva, e Isaak já estava suspirando de alívio quando se levantou e apertou a mão dos participantes. Mas, justo quando achava que faria sua retirada, Hiram Schenck o encurralou e sussurrou furiosamente:

— Acha que pode continuar fazendo joguinhos conosco?

Genya tinha dito que, se ele fosse pego de surpresa em qualquer situação, a melhor abordagem era falar “Perdão?” com o máximo de arrogância altiva possível.

Isaak empregou essa estratégia naquele momento, empinando o nariz com desdém feroz.

— Perdão? Não fui eu que arrastei sua filha encharcada para fora de um lago recentemente?

Schenck não foi desencorajado.

— Acha mesmo que seríamos enganados por aquele teatrinho ontem à noite? Vocês estavam quase terminando de aperfeiçoar os submersíveis e o sistema de mísseis quando recebemos nossas informações meses atrás, e todos sabem que você não descansa até suas invenções estarem perfeitas. Não pode continuar flertando como uma debutante num baile. Teremos nosso protótipo ou o seu país será tratado como o mendigo que é.

Nikolai Lantsov nunca teria tolerado um insulto daqueles. Ele teria respondido com as palavras perfeitas para fazer Schenck tremer de medo e desejar nunca ter aberto a boca.

— Com licença — disse Isaak firmemente, passando por Schenck até a segurança da porta aberta.

Ele saiu da sala às pressas, com as entranhas revirando, e encontrou os gêmeos esperando no corredor para escoltá-lo para o próximo obstáculo em que ele tropeçaria.

— Os kerches não acreditaram no espetáculo de ontem — ele comunicou, enquanto seguiam pelo corredor.

— Estamos cientes — respondeu Tamar. — Estávamos escutando.

— Talvez os mísseis descontrolados tenham sido um pouco demais — disse Tolya.

Isaak ajeitou o casaco cor de ameixa.

— O que fazemos agora?

— Não sei — admitiu Tamar. — Vamos só sobreviver a esta tarde.

Só mais alguns dias, Isaak disse a si mesmo. Mais algumas festas. Eu consigo fazer isso.

Mas onde estava o rei?

Na noite anterior, depois que ele foi vestir roupas secas, tinha entreouvido os outros conversando na sala de visitas.

— Só temos que superar o baile de encerramento — ponderou Tamar, enquanto punha os braços ao redor de Genya. — Daí tomaremos uma decisão.

— Como pode não haver nenhum rastro deles? — perguntou Genya com uma fungada leve. — Já se passaram três semanas. Pessoas não desaparecem sem mais nem menos. Nunca achei que diria isso, mas estou com saudades de Zoya.

— Eu também — disse Tolya. — Embora saiba que ela me chutaria por perder tempo me preocupando com ela.

— Eu acho que o Apparat sabe de algo — observou Tamar. — Ele pediu uma audiência com o rei para ouvir sobre a peregrinação e exigiu informações sobre Yuri. O sacerdote não vai aceitar nossas evasivas para sempre e tem passado tempo demais longe da cidade para o meu gosto. Tem seu próprio labirinto de túneis que entram e saem da capital. Há muitos lugares em que pode se esconder.

— Poderíamos envolvê-lo mais com os convidados — sugeriu Tolya. — Pedir que reze uma missa...

Mas Tamar o interrompera.

— Não podemos deixar o homem perto de Isaak. Ele é astuto demais.

— Talvez devêssemos matá-lo — opinou David.

Genya tinha irrompido em lágrimas outra vez.

— Quando você fala assim, só tenho mais saudades de Zoya.

O que acontece depois?, Isaak se perguntou. Ele poderia sobreviver à tarde, poderia até sobreviver a todas aquelas festas e pompa sem incitar mais desastres. Mas isso não significava que seria capaz de governar um país ou mesmo servir como alguma espécie de testa de ferro enquanto Genya e os outros governavam o país de fato.

Ele virou em um canto até a galeria de retratos e deparou-se com a princesa Ehri e várias das guardas dela – do jeito que o espião dos gêmeos disse que faria. Isaak fez o seu melhor para fingir surpresa enquanto cumprimentava a princesa e conversava casualmente sobre os entretenimentos da manhã.

— Achamos que está frio demais para uma festa ao ar livre — explicou Ehri. — Então pensamos em visitar a galeria.

— O que acha das pinturas?

— São todas muito severas.

Só não olhe com muita atenção, pensou Isaak.

— Quem sabe eu possa guiá-la por essa ala do palácio? — Ele poderia jurar que sentiu a aprovação das guardas. Elas realmente deviam relatar os sucessos e fracassos de Ehri para a irmã dela.

Eles passaram pelo esplendor azul da sala lápis-lazúli e do salão de concertos, e então por algumas partes mais modestas do palácio: a sala de troféus bolorenta, com suas paredes abarrotadas de galhadas de cervos e cabeças de animais grandes; a armaria, com suas selas e espadas antiquadas; e, por fim, as salas de treinamento.

— Venha, vamos dar uma olhada — ele sugeriu. As palavras soaram desajeitadas e ensaiadas aos seus ouvidos, mas pelo menos ele sabia que ela gostava de machados.

— É aqui que os seus guardas treinam?

— Sim — respondeu Isaak. Ele mesmo tinha treinado ali e até lutado com o rei. — Tamar, não quer fazer uma demonstração para nós?

Tamar tirou dois machados, sem corte, da parede.

— Você — ela disse, apontando para uma das guardas da Tavgharad. Ela era jovem, com um rosto sério e o queixo distintamente pontudo. Tinha que ser Mayu Kir-Kaat, cujo irmão gêmeo havia desaparecido e que talvez tivesse se cansado do serviço à coroa shu.

Uma das mulheres mais velhas deu um passo à frente.

— Eu ficaria feliz em lutar com você. — Ela tinha uma longa cicatriz que descia pelo nariz elegante.

Tamar inclinou a cabeça.

— Só há uma leoa nesta alcateia?

— Eu luto com ela — retrucou a garota de queixo pontudo.

— Mayu — avisou outra guarda baixinho.

No entanto, Mayu deu um passo à frente, destemida – ou talvez ansiosa para aceitar o convite.

Uma corrente de ar desconfortável percorreu a sala.

— Talvez devêssemos treinar também — disse Isaak. Os gêmeos queriam que a Tavgharad observasse Ehri, não Tamar e Mayu. Ele tirou uma espada de madeira da parede.

— Eu não tenho muito talento para o combate — declarou Ehri, com nervosismo.

— Pensei que toda a família Taban fosse treinada para se defender.

— É claro. Mas minhas irmãs são guerreiras melhores.

— Talvez eu possa ensinar alguma coisinha para você. — Isaak não queria forçá-la, mas sabia que Tamar estava confiando nele para criar uma distração enquanto tentava falar com Mayu. Uma conversa amigável no meio de uma luta não era ideal, mas não havia outro jeito de conseguir um momento a sós com uma guarda da Tavgharad.

Isaak jogou uma espada de treino para Ehri, que ela pegou no ar com facilidade. Ele ouviu um murmúrio de desaprovação da Tavgharad.

— Princesa... — começou a mulher mais velha.

Mas Ehri já partira para o ataque.

Ela havia minimizado radicalmente sua habilidade. Era uma espadachim talentosa e se movia sem qualquer hesitação. A distância, ele ouviu os grunhidos das outras lutadoras e arriscou um olhar de soslaio para elas. Viu Tamar rapidamente bater no traseiro de Mayu e se inclinou baixo para ajudar a garota a se levantar. Ele só podia torcer para que estivessem trocando as palavras necessárias... presumindo que Mayu fosse mesmo a guarda que desejava desertar.

Então a face plana da espada de Ehri o atingiu no estômago e ele perdeu o fôlego com um uugh alto.

Ehri ergueu uma sobrancelha.

— O rei de Ravka não tem foco.

— Como alguém poderia não se distrair com a sua beleza? — Uma réplica fraca, para dizer o mínimo.

Ehri se limitou a rir. Ele nunca a vira tão relaxada.

— Você tem um estilo de luta diferente do que eu esperava — ela disse. Provavelmente porque você esperava um rei treinado desde o nascimento para empunhar uma espada, pensou Isaak. Em vez disso, estava lutando com o filho de um tutor que não tocara numa lâmina até ser recrutado.

— Eu poderia dizer o mesmo — ele respondeu sinceramente. Tinha a sensação de que ela estava se contendo, embora não pudesse ter certeza. Será que todas as princesas shu eram treinadas para usar uma espada tão bem? Ele não ensinaria nada a ela.

Isaak ouviu um grito sobre o ombro, e tanto ele como Ehri se voltaram para ver Mayu curvada e arquejando.

— Basta! — disse a guarda shu mais velha, rispidamente.

— Peço desculpas. — Tamar fez uma profunda reverência.

— Eu também — acrescentou Isaak. O que tinha acontecido? Será que Tamar obtivera as informações que procurava? Tudo aquilo seria parte do plano? — Posso levá-la a nossa enfermaria. Nós...

— Não — ofegou Mayu Kir-Kaat. — Ficarei bem.

— Por favor — começou Isaak. — Odiaria pensar que uma das minhas convidadas foi ferida no que deveria ser só uma competição amigável.

— Foi um acidente — argumentou a princesa Ehri. — Todos sabemos disso.

Por um momento, a sala estalou de tensão como se a hostilidade estivesse passando de uma mente a outra, esperando um lugar onde se fixar.

— Se me permite, princesa — Mayu endireitou-se. — Entre os shus, uma compensação seria exigida.

Tamar franziu o cenho.

— O que tem em mente?

A guarda trocou um olhar com Ehri.

— Talvez um jantar privado?

Tamar balançou a cabeça.

— Isso seria visto pelas outras candidatas como sinal de favoritismo.

Ehri pareceu desconfortável.

— Não queremos causar problemas ao rei.

— Certamente as outras não precisariam saber — disse Isaak antes de pensar melhor.

Tamar franziu o cenho ainda mais.

— É claro, Alteza.

Quando Ehri e suas guardas partiram, a careta de Tamar sumiu. Ela lhe deu um soquinho no braço.

— Boa ideia. Outra oportunidade para obter informações. — Mas a expressão deles devia ter mostrado sua decepção, porque Tamar recuou. — Ah, não. Isaak, sua besta. Você gosta dela, não gosta?

— Não seja ridícula — ele disse, sentindo o rosto esquentar. — Eu sei que jogo estamos jogando aqui. O que descobriu com Mayu?

— Nada. — Tamar pareceu pensativa. — Falei que ouvi dizer que ela era keb e perguntei sobre o gêmeo dela, mas ela ofereceu muito pouco. Só disse que eles eram da província de Bol.

— Talvez não seja ela.

— Talvez. Mas ela estava com medo de alguma coisa e não luta tão bem quanto eu esperava. Eu não quis feri-la, mas julguei errado seu tempo de reação. Ela é jovem e nova nas fileiras, então é natural que seja uma guerreira menos experiente que as outras. Mas se está falhando no treinamento, talvez queira sair antes que eles a expulsem.

— Ela não entraria só no exército regular?

— Depois de testemunhar a família Taban em seus momentos mais vulneráveis? De forma alguma. Ela seria exilada pelo fracasso. Nunca veria o irmão ou o resto da família de novo. — Tamar devolveu a espada à parede. — Ou pode ser outra pessoa. Ou pode não ser ninguém. Nossas redes de informantes em Shu não são o que deveriam ser. Vou tentar conseguir um tempo a sós com cada guarda da Tavgharad durante o seu interlúdio romântico com a princesa. Coma devagar.

— Se não tenho escolha.

— Yuyeh sesh, Isaak — disse Tamar quando gesticulou para que um criado organizasse a sala de treino de novo.

Despreze seu coração. Um ditado shu. Faça o que tem que ser feito. Ele sabia como deveria responder, o modo como um soldado shu responderia, talvez o modo como um rei responderia: Niweh sesh. Eu não tenho coração. Mas as palavras que vieram à sua mente em vez disso pertenciam ao “Kebben’a” e falavam da queda das primeiras flores.

Ele não era um guerreiro shu e não era um rei ravkano. Era só um camponês que queria jantar com uma garota que fora gentil com ele.

Isaak deixou a sala em silêncio.


Quando Isaak encontrou Genya, David e os gêmeos naquela noite, na sala de visitas, esperava que estivessem animados com a perspectiva de um jantar secreto com Ehri. Em vez disso, foi como se tivesse entrado em um velório.

— O que foi? — ele perguntou. — Notícias do rei?

Tolya parecia sombrio, a expressão de Tamar era homicida e Genya parecia ter envelhecido vinte anos. Até David tinha deixado seus livros de lado e parecia – se não como se o mundo estivesse acabando –, pelo menos, levemente preocupado.

— Recebemos notícias de Fjerda — disse Tamar. — Eles estão se preparando para marchar até Ravka. Pode levar uma semana ou um mês, mas a guerra está a caminho.

Isaak sentou-se pesadamente. Guerra. Eles mal tiveram três anos de paz.

— E piora — acrescentou Tolya. — Eles estão marchando sob o estandarte Lantsov.

Isaak ergueu os olhos para ele.

— Não entendo.

— Os governantes deles declararam apoio a Vadiv Demidov.

— Quem?

— Ele diz que é um primo Lantsov e o legítimo herdeiro ao trono de Ravka.

— Mas isso é absurdo. Mesmo se for um Lantsov...

— A alegação dele é apoiada por um homem chamado Magnus Opjer — revelou Genya —, um magnata dos negócios fjerdano.

— Ele já foi um emissário em Ravka — continuou Tamar. — Opjer alega que teve um caso com a rainha ravkana e que é o pai verdadeiro de Nikolai.

— Não pode ser — protestou Isaak. — É só propaganda fjerdana.

— Ele tem as cartas dela — disse Genya em voz baixa. — Se elas puderem ser autenticadas...

— Mesmo se não puderem — cortou Tamar. — É um pretexto suficiente para os fjerdanos.

— Não. — Isaak se levantou sem nem saber por quê. — Ravka ama o seu rei. O povo vai ficar ao lado dele.

— Talvez — considerou Tolya. — Eu me sentiria melhor se pudéssemos localizar o Apparat. Ele e a maior parte da Guarda Sacerdotal se entocaram em algum canto. Se ele apoiar a causa do pretendente...

David girou o livro em seu colo.

— Provavelmente deveríamos tê-lo matado.

Tamar esfregou o rosto.

— Vamos ter que fazer um acordo com os kerches.

— Precisamos dos zemenis no mar — afirmou Tolya. — Nossa marinha não é páreo para os fjerdanos.

— Não sem dinheiro kerch — argumentou Tamar.

— Mesmo assim, precisaremos de tempo para construir os navios.

Isaak não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Ele abriu a boca para falar e ficou horrorizado quando uma risada levemente histérica escapou dos seus lábios.

— Vocês enlouqueceram? — Todos o encararam. — Eu não sou Nikolai Lantsov. Não posso conduzir uma nação em guerra. Essa farsa tem que acabar.

Por um longo momento houve apenas silêncio.

Por fim, Genya perguntou:

— A delegação fjerdana ainda está aqui?

— Sim — respondeu Tamar. — Tenho espiões na Corte de Gelo, mas nada disso é de conhecimento geral, mesmo entre a maioria dos funcionários do governo deles.

— Muito bem. Vamos continuar assim até o fim da semana e o último baile. Quando os convidados se forem, vamos fazer um plano. — Ela olhou para Isaak. — Um plano que todos possam aceitar.


A expectativa de Isaak por seu jantar com Ehri levou um golpe mortal com as notícias de Fjerda. Se o rei nunca retornasse, será que eles podiam realmente pedir a ele que vivesse como Nikolai para sempre? Talvez ele devesse ficar contente com a ideia de ser rico e bem cuidado. Não era o que as histórias prometiam a garotos humildes de bom coração? Mas Isaak sabia que não era nenhum herói de conto. Era um menino tímido e um soldado mediano, que atraíra a atenção do rei por acaso – um golpe de sorte pelo qual poderia pagar com a própria identidade.

Uma mesa foi posta nos bosques, na ilha no centro do lago, longe do Grande Palácio e de olhos curiosos. As árvores circundantes estavam decoradas com lanternas e, em algum lugar nas sombras, ele podia ouvir a música suave de uma balalaica. Era um cenário muito romântico – e forneceria várias oportunidades para Tamar abordar as guardas da Tavgharad que estariam postadas no bosque.

Isaak fora levado para a ilha num barco a remo, oculto pela escuridão. Estava vestindo um casaco de veludo verde-azulado, que combinava particularmente bem com a compleição do rei. Tinha achado mais contas prateadas no bolso dele.

Foi ficando cada vez mais ansioso enquanto esperava. Estava cansado de luxo e roupas finas. Continuava a escrever cartas para casa, fingindo que tudo estava certo no palácio, mas tudo o que queria era se sentar na pequena cozinha da mãe e olhar para o jardim e jogar cartas com as irmãzinhas. Ele queria estar com pessoas que realmente o conheciam.

Mas será que elas saberiam conhecê-lo? Certamente não o reconheceriam. Todo dia ele passava pelos outros guardas do palácio, homens que conhecia havia anos, e havia momentos que queria gritar: Sou eu! Isaak Andreyev! O capitão dele tinha sido informado de que precisavam de Isaak em Os Kervo para servir como tradutor, e foi isso. Havia sido fácil simplesmente fazê-lo desaparecer.

Por fim, Tolya disse:

— Ela está chegando.

Ehri entrou lentamente na clareira. Estava envolta em seda verde-grama bordada e com um adereço de cabeça dourado, cravejado com esmeraldas do tamanho do dedão dele.

— Quanto isso pesa? — ele sussurrou quando eles se sentaram e o primeiro prato foi servido.

— Não tenho certeza — respondeu Ehri. — Mas parece que há um rebanho de animais de carga sentados na minha cabeça, então algo entre dois e doze bois?

— Eles fazem você treinar os músculos do pescoço?

— Claro que não. As mulheres da linhagem Taban nascem com pescoços fortes. É uma dádiva de propósito divino.

— É claro.

Ele se sentiu relaxar. Era simplesmente mais fácil conversar com Ehri do que com... todos os outros. Os gêmeos, Genya, David, certamente as outras candidatas. As outras possíveis noivas pareciam escolher suas palavras cuidadosamente, dizendo as coisas que Isaak – ou melhor, Nikolai – iria querer ouvir. Mas Ehri não parecia se importar muito sobre ser escolhida como a noiva dele. Era um pensamento que tanto o confortava como atormentava. Ele não tinha dúvidas de que ela teria ficado encantada pelo Nikolai real, e isso o deixava com ciúme de um homem que ela nunca conhecera.

Ehri olhou para o prato.

— O que seu chef nos serviu hoje?

— Alguma coisa em gelatina. Ele parece acreditar que, se você pode transformar algo em musse, deve fazer isso.

— Qual é a sua comida preferida?

— Os rolinhos de repolho da minha mãe.

— A rainha cozinhava?

Diabos.

— Bem, os criados preparavam, mas minha mãe me servia quando eu estava doente. — Ele não fazia ideia se algo assim era provável, mas soava plausível. — E você? — perguntou depressa.

Ela pensou por um longo momento.

— Há um prato que só comemos uma vez ao ano durante os festivais de primavera: pudim de leite moldado na forma da lua, com um gostinho de água de rosas. Sei que não parece muito bom, mas temos uma tradição para comer. Sentamos com toda a família e contamos histórias e assistimos aos fogos de artifício, tentando fazer o pudim durar a noite toda.

— Até a família real faz isso?

Ela assentiu devagar.

— Sim, embora faça um bom tempo desde que todos estávamos juntos. Eu me pergunto se alguma vez estaremos de novo.

— Você quer dizer, no caso de se casar e viver em Ravka?

Ela piscou para conter lágrimas cintilantes.

— Sim.

Isaak sentiu uma pontada de pânico ao ver a infelicidade dela.

— Eu... eu a deixaria visitar sempre que quisesse, é claro. — Ele não fazia ideia se um rei poderia manter aquela promessa.

— Não vamos pensar sobre isso — disse Ehri, enxugando as lágrimas com o guardanapo. — Estamos aqui agora e devemos tentar ter uma noite agradável. — Ela deu uma mordida e ele viu seu rosto se contorcer numa careta enquanto engolia.

Com um olhar para os guardas na orla das árvores, Isaak discretamente inclinou seu prato e deixou a bola de gelatina deslizar para o chão da floresta, cutucando-a sob a mesa com a bota.

Ehri sorriu e o imitou.

Juntos, eles suportaram vários pratos e muitas gelatinas, celebraram o bife de carne de veado sólido e altamente reconhecível, e concordaram que o negócio cinza – o que quer que fosse – era delicioso.

— É difícil, não é? — ela perguntou enfim. — Sentar aqui e fingir que nossos países não são inimigos.

— Eles têm que ser? — perguntou Isaak. As palavras soavam desajeitadas e ingênuas. Ou perigosamente parecidas com uma proposta.

— Não cabe a mim decidir — ela disse. — Eu não sou uma rainha. Não sou ninguém.

— Você é uma princesa! — exclamou Isaak.

Ehri tocou o adereço de cabeça.

— Mas você nunca se sente como... bem, como uma fraude?

Todos os dias. Mas o que Nikolai diria? Isaak subitamente não se importava mais.

— Sim. O tempo todo.

Ehri se inclinou para a frente.

— Se as pessoas não se curvassem para mim, se não me vestissem em sedas e beijassem a bainha do meu vestido, eu ainda seria uma princesa? Ou só uma garota com um escorredor chique na cabeça?

Isaak riu.

— É uma boa pergunta. Só sei que não me sinto como um rei.

— Como você se sente, então?

— Cansado — ele disse sinceramente. — Pronto para um rolinho de repolho.

— Acabamos de comer sete pratos.

— Você está satisfeita?

— De jeito nenhum. Talvez a sobremesa seja outro bife?

Isaak riu de novo. Ele tomou um gole do vinho gelado que fora servido com o último prato e fez para Ehri a mesma pergunta que vinha fazendo a si mesmo.

— Se você estivesse destinada a ser rainha, em vez da sua irmã... — Ehri ergueu as sobrancelhas e Isaak soube que estava pisando em terreno delicado. Monarcas não faziam especulações à toa. — Como governaria os shu?

Ehri brincou com a base da taça. Isaak teve o impulso de tomar a mão dela, mas sabia que não era permitido. Era estranho que um rei pudesse comandar um exército, mas não pudesse segurar a mão da garota de quem gostava. E ele gostava de Ehri. Tinha ficado encantado com Genya, arrebatado pelo status dela e pela ideia de que uma mulher como ela pudesse notá-lo. Ehri era diferente. Era verdade que ele mal a conhecia. Ela era uma princesa com sangue real antigo. Estava sentada diante dele usando esmeraldas suficientes para comprar e vender toda a cidade natal de Isaak. Mas ela o surpreendia a cada momento. Era calorosa e empática e parecia gostar de fingimento tão pouco quanto ele. Se eles fossem duas pessoas comuns, se tivessem se conhecido em um baile em seu vilarejo, em vez de um salão cercado por cortesãos... Isaak riu de si mesmo. Como se você fosse ter a coragem de falar com uma garota como essa. Mas quem sabe Ehri – a gentil e engraçada Ehri – tivesse se apiedado dele e lhe concedido uma dança.

— Como eu governaria? — refletiu Ehri, erguendo a taça aos lábios.

— Com certeza já deve ter considerado.

— São pensamentos perigosos para alguém como eu. — Ehri balançou a cabeça devagar, as esmeraldas reluzindo no cabelo. — As coisas que imagino, as coisas que eu espero, não são as ideias de uma rainha.

— De uma princesa, então.

Ehri sorriu.

— Mais para uma garota ingênua. O fim da guerra. A chance para as pessoas comuns escolherem seus futuros. Um mundo em que as famílias não sejam separadas por adversidades... ou pelo dever. Eu devo parecer muito boba para você.

— De modo algum — respondeu Isaak. — Se nós não sonharmos, quem vai?

Ehri assentiu, mas seu sorriso estava cheio de tristeza.

— Se nós não sonharmos, quem vai?

O último prato foi servido. Logo os guardas viriam escoltá-los. Por mais ansioso que estivesse, Isaak descobriu que estava triste pela noite estar para terminar.

— Você vai voltar para casa imediatamente após o baile, no final da semana? — ele perguntou.

— Sim.

Ele achava que não podia imaginar a tristeza nos olhos dela.

— Me encontre no conservatório durante o baile — ele disse, antes de conseguir se impedir. — Senão nunca teremos um momento real sozinhos. — Ele ficou chocado ao ouvir as palavras saírem da sua boca.

E ficou ainda mais chocado quando ela disse sim.


ELES ESPERAVAM SOB UM CÉU CINZA MONÓTONO. Poderia ser a aurora. Poderia ser o crepúsculo. Coisas mágicas aconteciam nos momentos de transição. Os amplificadores sagrados de Morozova tinham aparecido ao crepúsculo. O cervo. O açoite do mar. O pássaro de fogo. Talvez com os Santos fosse igual.

Nikolai estava em pé na areia, acompanhado por Zoya e Yuri, acima do ponto onde os sacerdotes guerreiros um dia foram transformados, onde o Darkling tinha rasgado o mundo e criado a Dobra, e onde, anos depois, havia sido finalmente derrotado. Se existia poder naquele lugar, Nikolai só podia torcer para que fosse benévolo e o ajudasse a destruir os resquícios da maldição que o Darkling deixara para trás.

O vestido de rosas de Elizaveta florescia vermelho-escuro ao redor dela, e um colarinho alto de flores e botões emoldurava o seu rosto enquanto as abelhas zumbiam em seu cabelo. O corpo gigante de Grigori se dobrava e desdobrava em uma massa delirante de membros. Nikolai se perguntou qual forma ele escolheria para a sua breve vida mortal.

Juris não estava em lugar algum.

— O dragão não se deu ao trabalho de vir? — ele sussurrou para Zoya.

— Ele quer isso mais do que todos — ela respondeu, erguendo os olhos para o pináculo de pedra preta a distância. — Não tenho dúvida de que está assistindo.

Elizaveta assentiu para ambos conforme seus insetos zuniam e estalavam.

— Está pronto, meu rei? — ela perguntou a Nikolai. — Não podemos sequer conceber a possibilidade de fracasso.

— Uma pena — murmurou Nikolai. — Meus fracassos são tão divertidos. — Ele ergueu a voz. — Estou pronto.

Yuri estava parado ao lado de Zoya, seu corpo vibrando com tensão ou fervor. Nas mãos trêmulas ele segurava as páginas de texto que tinha continuado a traduzir sem a ajuda de Tolya. Elizaveta insistira que ele permanecesse com Nikolai e recitasse a cerimônia.

— Isso é estritamente necessário? — Zoya tinha questionado.

— As palavras são sagradas — respondera Elizaveta. — Devem ser faladas como eram ditas no passado. Yuri também tem um papel a interpretar aqui.

O monge pressionava as páginas ao peito agora. Seus olhos estavam arregalados e atônitos atrás das lentes dos óculos.

— Agora percebo que... não sei pelo que rezar.

Nikolai deu um apertãozinho encorajador em seu ombro.

— Então reze por Ravka.

O monge assentiu.

— Vossa Alteza é um bom homem. Posso ter fé no Sem Estrelas e nisso também.

— Obrigado — disse Nikolai. Ele não ia gostar de decepcionar Yuri. Mas, quer Nikolai vivesse ou morresse naquele dia, não haveria canonização para o Darkling. Ele teria que encontrar algum outro modo de apaziguar o monge. Yuri era um rapaz em busca de uma causa, e pelo menos isso Nikolai entendia. Ele se virou para Zoya. — Você está com a ordem? Se o monstro me tomar...

— Eu sei o que fazer.

— Não precisa parecer tão ansiosa.

Para surpresa dele, Zoya segurou a sua mão.

— Volte — ela pediu. — Prometa que vai voltar para nós.

Como ele provavelmente estava prestes a morrer, permitiu-se segurar na mão o rosto extraordinário dela. A pele dela estava fria contra seus dedos.

— É claro que vou voltar — ele afirmou. — Não confio em mais ninguém para escrever meu discurso fúnebre.

Um sorriso curvou os lábios dela.

— Já o escreveu?

— É muito bom. Você ficaria surpresa ao ver quantos sinônimos existem para lindo.

Zoya fechou os olhos. Ela virou o rosto, deixando a bochecha se apoiar contra a palma dele.

— Nikolai...

O zumbido dos insetos de Elizaveta se ergueu.

— É hora — ela anunciou, erguendo as mãos. — Nikolai Lantsov, prepare-se.

Zoya largou a mão dele e recuou um passo. Ele desesperadamente queria puxá-la de volta para os seus braços e perguntar o que pretendia dizer.

Isso não é um adeus, ele disse a si mesmo. Mas com certeza parecia.

Trovões ressoaram no céu cinza. Um momento depois, Nikolai percebeu que o som não vinha de cima, e sim de baixo. O chão começou a tremer e um estrondo, como os cascos de cavalos distantes, se ergueu de algum ponto profundo na terra. Ele cresceu, uma debandada se aproximando dele e sacudindo a areia. Elizaveta contraiu o rosto, sua testa reluzindo de suor.

Ela soltou um grito e o bosque de espinheiros irrompeu da areia. As hastes cercaram Nikolai e Zoya, torcendo e enroscando-se, o matagal crescendo ao redor deles como se entrelaçado em um fiar invisível. Yuri começou seu cântico.

— Você já parou para pensar no poder dos bosques? — perguntou Elizaveta, seu rosto brilhando conforme ela erguia os galhos mais alto. — A magia no coração de tantas histórias. A fisgada de um espinho? A magia que uma única rosa consegue conter? Essas árvores são mais velhas do que qualquer outra coisa no mundo. Elas brotaram na primeira criação, antes das pessoas e dos animais e de tudo o mais. São tão antigas quanto as estrelas e pertencem a mim.

Ouro parecia pingar das hastes dos espinheiros, empoçando-se na base das plantas e, então, fluindo em rios sinuosos em direção a Zoya. A seiva formou uma esfera ao redor dela e endureceu até virar âmbar. Nikolai a viu apertar as mãos aos lados da esfera conforme o líquido começava a subir sobre os seus tornozelos. As hastes ao redor deles rangeram, entrelaçando-se umas nas outras, o som mesclando-se com as sílabas entrecortadas de ravkano antigo.

Salve-a. O impulso era sempre o mesmo, algo em que ele e a coisa sombria em seu interior podiam concordar. Talvez porque o Darkling já tivesse valorizado Zoya e cultivado o seu poder. Mas Nikolai sabia que não seria difícil chamar a fera dessa vez. Ela estava esperando, ansiosa para se libertar, rangendo os dentes.

— Saque sua espada, meu rei! — exclamou Elizaveta.

Nikolai sacou o sabre do lado do corpo e sentiu o monstro se erguer. Lembre-se de quem é. Garras se esticaram em suas mãos e ele rugiu quando asas brotaram em suas costas.

A fome do demônio o preencheu, o desejo de rasgar carne, de se alimentar, mais forte do que jamais fora. Antes que Nikolai pudesse sucumbir e perder todos os sentidos, ele golpeou o galho mais próximo com a espada, cortando um espinho de sua haste. Era quase tão longo quanto o sabre. Ele embainhou a lâmina e pegou o espinho nas mãos, que agora tinham garras. Poderia mesmo fazer aquilo? Fincá-lo no próprio coração?

No coração de ambos. Matar o monstro para libertar a si mesmo.

Ele ouviu a criatura guinchar como se entendesse sua intenção. Só um de nós sobreviverá a isso, Nikolai jurou. É hora de você conhecer a força de vontade de um rei.

Que rei?, perguntou uma voz sombria dentro dele. É um bastardo que eu vim matar.

Era a mão dele que segurava a lâmina de espinho? Ou era o monstro que a mantinha pairando sobre o coração dele?

Nikolai Nada, disse a voz. Mentiroso. Fraude. Herdeiro de ninguém. Impostor do trono. Eu vejo quem você é.

Mas Nikolai conhecia aquelas palavras cruéis. Ele as tinha suportado a vida toda. É preciso mais que sangue para criar um rei.

Diga-me o que é preciso para governar, pediu a coisa em sua voz provocadora. Coragem? Virtude? Amor pelo povo?

Tudo isso. Nikolai fortaleceu o aperto. Podia sentir o peso do espinho em sua palma. E um bom senso de estilo.

Mas as pessoas não o amam, bastardo. Apesar de suas incessantes tentativas. A voz soava diferente agora. Fria, familiar, lisa como vidro. Há quanto tempo você vem implorando pelo amor delas? O pequeno Nikolai Lantsov agindo como um palhaço para a mãe, como um bajulador para o pai, como um cortesão charmoso para Alina? Ela era uma órfã, uma camponesa, e nem ela o quis. Mas você continua implorando por sobras, como o plebeu que é.

Nikolai conseguiu rir, mas não foi fácil. Eu já conheci plebeus e reis suficientes para não encarar isso como um insulto.

O que acha que eles viram em você que o torna tão indigno? Todas aquelas medalhas que ganhou, sua frota de navios, seus feitos heroicos, suas reformas bem-intencionadas. Você sabe que nunca será o suficiente. Algumas crianças nascem impossíveis de amar. As mães não as amamentam. Elas são abandonadas para morrer na floresta. E cá está você, vindo chorar, por fim, sozinho no bosque de espinheiros.

Eu não estou sozinho. Ele tinha Zoya, até Yuri, e Grigori e Elizaveta supervisionando-o. Estou em ótima companhia.

Agora a voz sombria riu, um riso longo e baixo, o divertimento transbordando em uma maré negra. Então vá em frente. Enfie o espinho em seu peito. Acha mesmo que vai importar? Acha mesmo que alguma coisa pode transformá-lo no homem que era antes?

Antes da guerra. Antes de o Darkling jogar a sua maldição sobre ele. Antes do assassinato de Vasily, da revelação dos crimes do pai dele, da emboscada no Zodíaco, das incontáveis batalhas que custaram tantas vidas.

Como você acha que fui capaz de controlar seu coração e me enterrar tão fundo? Você me deu um solo fértil e eu me enraizei ali. Você nunca será o que já foi. A podridão se espalhou demais.

Isso é mentira. Elizaveta tinha avisado Nikolai de que o demônio tentaria enganá-lo. Então por que as palavras soavam verdadeiras?

Ah, você atua bem. Concessões, paciência, uma eterna farsa de bons feitos para provar que ainda é o príncipe confiante, o corsário ousado, inteiro e feliz e destemido. Todo aquele esforço para esconder o demônio. Por quê?

O povo... O povo se aferrava às superstições. Temia tudo que era estranho. Ravka não podia se dar ao luxo de outra crise, outro rei fraco.

Outro rei fraco. A voz soava compreensiva, quase piedosa. Você mesmo disse.

Eu não sou o meu pai.

Claro que não. Você não tem pai. Eu vou lhe dizer por que esconde o demônio, porque se esconde atrás de concessões e diplomacia e charme exagerado e desesperado. É porque você sabe que, se eles o vissem como é de verdade, lhe dariam as costas. Veriam os pesadelos que o acordam de noite, as dúvidas que o atormentam. Veriam como é extremamente fraco e dariam as costas a você. Use o espinho, me expulse. Ainda será um homem quebrado – com ou sem demônio.

Será que aquele era o verdadeiro medo que o atormentara naqueles longos meses? Que ele não encontraria a cura porque a doença não era o demônio? Que a escuridão dentro dele não pertencia a alguma outra coisa, mas apenas a ele? Como tinha sido idiota. Tudo o que suportara na guerra, as escolhas que fizera, as vidas a que pusera fim com balas e espadas e bombas – não havia magia que pudesse extirpar aquilo dele. Ele havia sido humano na época e não tinha nenhum demônio a quem culpar. Poderia extrair o monstro do corpo, mas todo aquele nó de vergonha e arrependimento permaneceria. E o que aconteceria quando a luta recomeçasse? A ideia o fez se sentir impossivelmente cansado.

A guerra deveria ter terminado.

A risada do demônio o cobriu. Não para você, disse a voz. Não para Ravka. Nunca.

Nikolai sabia que tinha ido até ali com um propósito. Expulsar o monstro. Salvar o seu país. Salvar a si mesmo. Mas tudo aquilo não era necessariamente a mesma coisa. Ele não podia voltar no tempo. Não podia se curar. Não podia recuperar a parte de si que fora perdida. Então como poderia liderar os outros?

Abaixe o espinho.

O espinho? Nikolai não podia mais senti-lo em sua mão.

Abaixe o espinho. Nem todo dia pode terminar em vitória. Nem todo soldado pode ser salvo. Esse país não vai sobreviver com um rei quebrado.

Nikolai sempre pensara que ele e Ravka eram iguais. Só não tinha entendido em que sentido: ele não era a criança chorando nem o homem se afogando. Era o eterno soldado, eternamente em guerra, incapaz de abaixar suas armas e sarar.

Abaixe o espinho, rei menino. Você não merece um descanso? Não está cansado?

Estava. Santos, como estava. Achava que tinha se acostumado com suas cicatrizes, mas nunca entendera quanta força de vontade seria necessária para escondê-las. Ele havia lutado e sacrificado e sangrado. Tinha passado longos dias sem repouso e longas noites sem conforto. Tudo por Ravka, tudo por um ideal que ele nunca poderia obter e um país que nunca se importaria.

Um pouco de paz, sussurrou o demônio. Você tem o direito.

O direito de lavar as mãos daquela luta sem fim e parar de fingir que ele era de alguma forma melhor que o pai, mais digno que o irmão. Ele merecia pelo menos isso, não merecia?

Sim, cantarolou o demônio. Eu guiarei Ravka até a segurança da costa.

Zoya nunca o perdoaria, mas ela continuaria marchando em frente, com perdas e ferimentos próprios. Zoya não descansaria.

O aço tem que ser conquistado, Alteza, ela dissera. A sua general implacável.

O que ele tinha merecido? O que deviam a ele? O que era dele por direito?

Ele sabia o que Zoya responderia: Ninguém te deve nada.

O aço tem que ser conquistado. Lembre-se de quem é.

Bastardo, sibilou o demônio.

Eu sou Nikolai Lantsov. Não tenho direito ao meu nome.

Impostor, uivou a voz sombria.

Eu sou Nikolai Lantsov. Não tenho direito à minha coroa.

No entanto, dia após dia, ele poderia se esforçar para merecê-la. Se soubesse continuar com aquela ferida no coração. Se ousasse ser o homem que era em vez de rezar para recuperar o homem que já fora.

Talvez tudo o que o monstro tinha dito fosse verdade. Tudo que Nikolai tinha feito ou ainda faria pelo seu povo poderia não ser suficiente. Uma parte dele poderia sempre permanecer além de qualquer cura. Ele talvez nunca fosse um homem verdadeiramente nobre ou um rei verdadeiramente digno. No fim, poderia não ter nada além de uma bela cabeleira e de talento para enganar os outros.

Mas sabia de uma coisa: não descansaria até o seu país também poder descansar.

E nunca, nunca daria as costas a um homem ferido – mesmo se esse homem fosse ele mesmo.

Nikolai Nada, rosnou o demônio. Ravka nunca será sua.

Talvez não. Mas, quando você amava algo, o trabalho nunca terminava. Lembre-se de quem você é.

Nikolai sabia: ele era um rei que só começara a cometer erros. Era um soldado para quem a guerra jamais terminaria. Era um bastardo abandonado no bosque. E não tinha medo de morrer naquele dia.

Ele apertou o espinho e o cravou no coração.

O monstro guinchou, mas Nikolai não sentiu nenhuma dor – só calor, como se uma fogueira tivesse acendido em seu peito. Por um segundo, pensou que poderia ter morrido, mas quando abriu os olhos o mundo continuava ali – o bosque de espinheiros, o céu crepuscular, a esfera dourada. Ele teve um breve momento para se perguntar por que Elizaveta ainda não tinha libertado Zoya. E então viu o monstro.

Era uma forma de pura sombra que pairava diante dele como se suspensa em um espelho. As asas batiam gentilmente no ar. No lugar onde o coração da criatura estaria, um caco fino de luz brilhava: o espinho. Então aquele era o demônio. O ser das trevas que o tinha impelido adiante, que havia brincado com ele e roubado sua força de vontade. Eu sou o monstro e o monstro sou eu. Eles não estavam tão separados quanto ele teria gostado de fingir, mas se lembrava das palavras de Elizaveta: Só um de vocês sobreviverá.

Era hora de matar o demônio e pôr fim àquilo. Ele tentou pegar a espada.

Mas não conseguia mover os braços, não conseguia mover as pernas. O bosque de espinheiro o tinha agarrado, suas hastes apertando-se com força contra os seus membros, e os espinhos enterrando-se em sua pele.

A seiva ainda preenchia a esfera dourada ao redor de Zoya, apesar de ele já ter chamado o monstro. Ela gritava e batia os punhos contra os lados da prisão.

Algo estava muito errado.

Ele gritou quando uma fisgada de dor súbita e abrasadora atravessou sua mão. Olhou para a esquerda e viu um espinho atravessar sua palma. Outro seguiu em sua mão direita e, então, em cada uma das suas pernas.

— Eu sei que a dor é forte — disse Elizaveta enquanto flutuava pelo bosque. — Mas os espinhos o impedirão de forçar a escuridão a recuar.

— O que está fazendo? — ofegou Nikolai. A dor o perfurava enquanto ele tentava se libertar.

— Eu esperava que você simplesmente deixasse o monstro controlá-lo e que o demônio vencesse. Teria tornado tudo isso mais fácil.

A mente de Nikolai lutava para compreender o que Elizaveta estava dizendo.

— Você é uma prisioneira — lembrou Nikolai. — Depois de tudo isso, não pode querer ficar aqui!

— Claro que não. As fronteiras da Dobra vão permanecer intactas, e aqui meus irmãos continuaram presos. Mas eu serei livre porque estarei conectada a ele.

Nikolai não precisava perguntar de quem ela estava falando.

— O Darkling.

Ela assentiu uma vez.

— O verdadeiro rei de Ravka. Seu espírito sobreviveu junto com o seu poder. Só precisa de um receptáculo.

O matagal se abriu e Nikolai viu um corpo pálido carregado em um esquife de galhos.

Impossível. Ele estivera nas magens da Dobra e vira o Darkling queimar – mas lá estava o corpo dele, inteiro e conservado. Tinha que ser algum tipo de ilusão ou uma brilhante réplica.

Yuri estava em pé ao lado do esquife, as páginas de ravkano litúrgico descartadas. Ele usava vestes de rosas pretas com o símbolo do eclipse do sol.

— Perdoe-me — ele disse, com uma expressão penitente. — Queria que não tivesse que ser assim. Queria que vocês dois pudessem sobreviver a esse dia. Mas o Sem Estrelas é a maior esperança de Ravka. Ele deve retornar. — Agora percebo que não sei pelo que rezar.

— Vá em frente, Yuri — pediu Elizaveta. — A honra é sua.

Nikolai lembrava-se dos balbucios do monge quando eles tinham chegado à Dobra dos Santos pela primeira vez. É tudo como foi prometido. Pensou na videira que Elizaveta havia enrolado de um modo tão suave sobre os ombros de Yuri. Ela não estivera tentando reconfortá-lo: tinha medo do que mais ele poderia dizer. Yuri tem um papel a interpretar também. Ele dissera que havia falado com o Darkling em uma visão.

Yuri se aproximou da criatura de sombras e estendeu a mão para o caco reluzente encaixado no coração dela. Nikolai soube com uma certeza fulminante que, se ele puxasse o espinho do peito do monstro, seria o fim de tudo.

— Yuri, não. — Ele não gostava do tom suplicante de sua voz. Não era apropriado a um rei. — Não faça isso.

— Você é um bom homem — disse Yuri. — Mas Ravka precisa de mais que um homem. — Ele estendeu a mão e pegou o espinho.

Não. Nikolai não permitiria. Ele tinha aberto a porta – era hora de atravessá-la. O monstro não era o Darkling, ainda não; era alguma outra coisa, algo que ansiava por sua própria vida, que tinha seus próprios apetites, que vivera junto dele por três anos.

Por que você esconde o demônio? Porque ele era furioso, faminto, cheio de anseios animais. E, embora Nikolai não gostasse disso, aquelas coisas ainda eram parte dele. Os semelhantes se atraem. Ele lutara contra o demônio – agora o alimentaria.

Nikolai fechou os olhos e fez o que a voz sombria lhe dissera para fazer: abriu mão do príncipe perfeito, do bom rei, e alcançou as coisas feias e vergonhosas que achara que tinha que esconder. Naquele momento, não era gentil, nem misericordioso, nem justo. Era um monstro.

Ele deixou seu corpo mortal para trás.

Quando abriu os olhos, estava olhando para Yuri de um ângulo diferente – perto o bastante para ver as manchas nos óculos dele, os pelos eriçados da sua barba por fazer. Nikolai sentiu suas asas baterem no ar e seu coração de demônio acelerar. Soltou um rosnado e se lançou sobre o monge.


O MOMENTO TINHA QUE SER EXATO. A Madre Superiora e suas Donzelas da Nascente iriam cuidar das prisioneiras na fábrica e retornariam após a meia-noite. Nina não queria correr o risco de cruzar com elas, mas também precisava garantir que tivessem tempo para tirar as garotas, distribuir os explosivos e passar pelo posto de controle na estrada que levava à cidade. Se os guardas ali suspeitassem de que havia algo errado na fábrica, poderiam muito bem decidir investigar os veículos que passassem. E, se isso acontecesse, não haveria onde se esconder.

Duas horas antes do alvorecer, Hanne atou os seios e colocou um vestido do convento por cima de um dos seus uniformes militares roubados. Ela manteve a cabeça envolta com um xale.

Ela e Nina escapuliram pela cozinha e foram encontrar Leoni e Adrik no galpão de curtir couro abandonado, onde eles esperavam com a carroça fechada que tinham obtido. Elas ajudaram Adrik a entrar no uniforme e encheram sua manga solta com algodão, prendendo a ponta no bolso para disfarçar a mão que faltava. Hanne tirou o vestido do convento e sentou-se no lugar do cocheiro, com Adrik ao seu lado, enquanto Nina e Leoni, ambas vestidas como Donzelas da Nascente, subiram na traseira.

Eles mantiveram silêncio enquanto seguiam no escuro. Nina tinha forrado suas mangas com lascas de osso, e estendeu seu poder para senti-las, ansiando pela paz que elas transmitiam. Ela entendia os riscos que havia pedido às pessoas ao seu redor para assumir, o perigo em que estava colocando todos.

Quando pararam, Nina sabia que haviam alcançado o posto de controle na base da colina. Espiou através das ripas da carroça e viu Hanne mostrar para os homens na guarita a ordem que eles tinham forjado – a ordem que portava o selo de Brum. Nina segurou o fôlego, esperando. Um momento depois, ouviu um estalo das rédeas e eles estavam se movendo novamente.

A estrada levando à entrada leste era reta, mas irregular, e Nina sentiu o coração martelar junto com os cascos dos cavalos enquanto faziam um lento progresso colina acima. Agora não havia mais volta. Ela não tinha mentido apenas a Hanne, mas também a Adrik e Leoni, sobre o que pretendia realizar naquele dia. A ideia lhe ocorrera durante o longo jantar com Jarl Brum. Talvez fosse loucura. Poderia fracassar espetacularmente, mas Nina começara a se perguntar se eles vinham tentando consertar Fjerda com a ferramenta errada.

Finalmente, os cavalos reduziram o passo e Nina ouviu as vozes dos guardas. A carroça parou de novo. Eles tinham chegado à entrada leste do forte. Os sussurros em sua mente cresceram, impelindo-a adiante. Nina, chamou o coro. Ela estremeceu. As mortas sabiam o seu nome.

Justiça, elas exigiam. Ela pensou nas covas que cercavam aquele lugar, em todas as mulheres e garotas e crianças perdidas ali.

Vocês serão as últimas, ela prometeu.

Matthias implorara a ela, uma vez, que reservasse um pouco de misericórdia ao seu país, e ela tinha jurado que o faria. Mas as garotas naquela ala eram fjerdanas. Seus filhos eram fjerdanos. Eles eram cidadãos de Gäfvalle e Gjela e Kejerut. O povo daquele país precisava ser lembrado disso.

Os guardas estavam analisando a ordem com toda a calma.

— Diga para irem logo — sussurrou Adrik.

— Sedjet! — rosnou Hanne. Apressem-se. Ela deixou a voz mais grave e, por um momento, soou assustadoramente parecida com o pai.

— Qual é a pressa? — perguntou um dos guardas. — Por que precisam transferir as prisioneiras agora?

— Nem todo mundo conhece o trabalho que o comandante Brum autorizou aqui — disse Hanne, seguindo o roteiro que Nina criara para ela. — Ficamos sabendo que os governadores locais virão à fábrica investigar reclamações sobre venenos no rio. Não precisamos de mais problemas.

— Burocratas — resmungou o guarda. — Provavelmente só querem mais suborno.

Mais suborno? Isso significava que o governo local tinha sido pago para fazer vista grossa sobre a poluição no rio – e as garotas na ala abandonada?

Um momento depois, o portão se abriu com um rangido.

— Deixe assim — disse Hanne. — Temos pouco tempo.

— Espere um minuto — exigiu o guarda. Ele abriu a porta de trás da carroça e espiou Leoni e Nina usando os vestidos do convento. — O que essas duas estão fazendo aqui?

— Pelo amor de Djel, acha que vou cuidar de um bando de mulheres choradeiras e bebês cagões? — perguntou Hanne. — Talvez você gostaria de vir junto e limpar o traseiro deles?

Santos, ela tinha talento para a coisa.

O guarda pareceu absolutamente horrorizado.

— Não, obrigado.

Ele fechou a porta com um baque e um segundo depois estavam passando pelo portão e entrando no que já fora a doca leste para carregamentos da fábrica.

— Vamos — disse Adrik, conduzindo-as até as grandes portas duplas. — Tudo isso demorou mais que o previsto.

Leoni pingou ácido nas fechaduras e elas se abriram com um sibilo e um clique de metal.

Nina abriu as portas com delicadeza. Eles avançaram pelo corredor escuro em direção ao brilho baço de uma lamparina. Ela conseguia sentir o odor de corpos, o travo de leite azedo, de fraldas sujas, os velhos cheiros industriais de graxa e carvão.

A ala estava repleta dos sons confusos de sono, roncos suaves, o gemido de uma mulher virando na cama. Uma garota usando uma camisola fina estava acordada perto da lamparina, seus olhos encovados e os braços magrinhos segurando a barriga como uma pérola gigante.

Quando viu Nina e Leoni, seu rosto se abriu num sorriso feliz e esperançoso.

— Vocês chegaram cedo! — ela exclamou. — Têm a minha dose?

— Cadê a minha? — perguntou outra, erguendo-se dos cobertores.

— Santos — murmurou Adrik quando lamparinas se acenderam na fileira de camas e o horror da ala ficou à vista.

Adrik pareceu nauseado. Os olhos de Leoni marejaram.

Hanne levou uma mão à boca. Balançava a cabeça.

— Hanne? — murmurou Nina.

— Não. — Ela sacudiu a cabeça com força. — Não. Ele não fez isso. Não pode ter feito. Não podia saber.

Um bebê começou a chorar. A realidade da necessidade das garotas, de seus corpos desajeitados e de suas expressões esperançosas, era demais. Por que Nina acreditara que eles podiam se safar com aquilo? Mas ela escolhera aquele caminho – para todos eles.

— Sylvi — disse Hanne com um soluço.

Sylvi Winther, Nina lembrou-se, uma das pessoas que Hanne tinha tratado em segredo.

A garota de olhos encovados ergueu o rosto, mas não havia reconhecimento em seus olhos. Hanne foi até ela, mas a jovem recuou, confusa.

— Eu sou... — começou Hanne. — Eu... — Então ela se lembrou do uniforme e do rosto alterado. — Eu... eu sinto muito.

— Vamos — chamou Nina. — Precisamos nos apressar. — Do bolso, ela tirou o sedativo que Leoni tinha preparado. Era de um branco leitoso, feito com os caules fervidos de jurda, em vez das folhas.

— Isso não parece minha dose — disse a garota ao lado da lanterna, franzindo o cenho.

— É algo novo — explicou Nina, em tom tranquilizador. — Vamos levar todas vocês para uma nova base.

— Todas nós? — uma das garotas perguntou. — Os bebês também?

— Sim.

— A nova base tem janelas? — perguntou Sylvi.

— Sim — disse Hanne, com a voz rouca. — E comida fresca e a brisa do mar. Vai ser uma viagem longa, mas deixaremos vocês o mais confortável possível. — Pelo menos isso era verdade.

Uma por vez, elas administraram as doses às garotas e começaram a levá-las à carroça.

Adrik consultou o relógio.

— Rápido.

Ele ergueu o braço, e os ouvidos de Nina estalaram quando ele reduziu a pressão na fábrica para criar um lençol acústico e abafar os movimentos deles.

Nina conhecia melhor a planta da fábrica, então levaria Leoni para armar os explosivos, enquanto Adrik e Hanne terminavam de acomodar as prisioneiras e seus bebês. Ela ajudou Leoni a acomodar as bombas improvisadas em uma cesta sob uma pilha de toalhas de linho sujas, e elas avançaram furtivamente para o coração do forte. Por sorte, estava tudo quieto: o dia ainda não começara e, graças a Adrik, os passos delas não faziam nenhum som que cortasse o silêncio.

Nina foi na frente até o corpo principal da fábrica e entrou na ala oeste, o mais próximo que ousou das casernas e cozinhas. Não queria arriscar topar com nenhuma patrulha. Na volta, ela instalou os pequenos explosivos ao longo da parede, todos eles conectados por um longo pavio.

Tinha acabado de plantar a última bomba quando ouviu um grito. Leoni. Ela correu de volta ao salão principal com passos silenciosos. Quando entrou, ouviu vozes e se encolheu contra uma tina empoeirada, espiando pelo canto.

Leoni estava de costas para Nina, com os braços erguidos. Jarl Brum tinha uma pistola apontada para ela. Nina agarrou-se à tina, ficando tão imóvel quanto possível.

— Quem mandou você? — ele exigiu. — Vai me dar respostas ou eu devo extraí-las com sangue?

— Você me enoja — disse Leoni, em zemeni.

As vozes deles soavam estranhas e abafadas. Será que Brum percebia a diferença? Saberia que havia poder Grisha atuando ali? Lentamente, Nina se esgueirou pela fileira de maquinários. Se conseguisse chegar atrás de Brum, poderia desarmá-lo.

— Eu não falo a sua língua horrível — ele retrucou. — E sei que você entende mais do que finge.

Leoni sorriu, a expressão surpreendentemente bela.

— E você entende menos do que jamais saberá.

— Eu sabia que não eram só comerciantes. Onde está seu compatriota? E a guia, Mila Jandersdat? Ela sabe que vocês são espiões?

— Você é tão careca — disse Leoni, ainda em zemeni. — Isso não será a pior coisa que Mila Jandersdat fará a você.

— Ela faz parte disso? — Brum rosnou de frustração.

— Quantas garotas? — perguntou Leoni, passando para um fjerdano desajeitado. — Quantas você feriu?

— Elas não são mulheres — desdenhou Brum. — São Grishas, e eu darei a sua primeira dose pessoalmente. O poder de Fjerda está prestes a cair sobre você.

Ele estendeu a mão para uma alavanca na parede e Nina sabia que um alarme ia soar.

— Espere! — ela gritou, sem saber o que pretendia com isso.

E, naquele momento, Jarl Brum desabou no chão.

Hanne estava atrás dele segurando uma chave de boca e respirando pesadamente.

— Ele sabia. — A voz dela falhou. — Ele sabia. — Então ela caiu de joelhos ao lado dele e segurou a cabeça ensanguentada. — Papai — ela chamou, lágrimas escorrendo pelas bochechas. — Como pôde?

— Vamos — chamou Nina. — Temos que pegar as garotas e sair daqui.

Hanne enxugou os olhos com a manga.

— Não podemos deixá-lo aqui para morrer.

— Você viu pelo que ele é responsável.

— Pelo que o governo é responsável — corrigiu Hanne. — Meu pai é um soldado. Você mesma disse, este país o deixou assim.

Nina não sabia se queria rir ou chorar. Jarl Brum era o comandante dos drüskelle, a mente por trás da tortura de incontáveis Grisha. Ele não era só um soldado. Reserve um pouco de misericórdia para o meu povo.

— Precisamos ir — disse Leoni. — Se não acendermos o primeiro pavio logo, as bombas não vão explodir na hora certa. Presumindo que sequer vão explodir.

— Ele é meu pai. — Os olhos de Hanne tinham aquela determinação feroz que Nina tanto amava. — Não vou deixá-lo.

Nina jogou as mãos para o alto, exasperada.

— Está bem, me ajude a erguê-lo.

Elas carregaram o corpo de Brum pelo corredor e através da ala. O homem era enorme e Nina estava tentada a derrubá-lo só para sentir o prazer.

— Então o comandante Brum não saiu da cidade? — perguntou Adrik, deixando o braço cair ao lado do corpo. Os ouvidos de Nina estalaram e o som voltou para a ala.

— Acho que queria se despedir — ela murmurou enquanto eles o arrastavam para os fundos da carroça. As garotas o olharam com um interesse vago. O sedativo tinha definitivamente funcionado.

— E a sua irmã? — perguntou Hanne.

— Não está aqui — disse Nina. — Deve ter sido transferida.

— Como pode ter certeza?

— Precisamos ir — insistiu Nina. Ela saltou para o chão e correu de volta à ala para acender os pavios.

Tinha acendido o último e estava prestes a se reunir com os outros na doca de carregamento quando uma voz gritou:

— Pare!

Nina se virou. A Madre Superiora vinha correndo pela ala, flanqueada por soldados armados com rifles. É claro que Brum não estivera sozinho.

— Você! — cuspiu a Madre Superiora, o rosto vermelho de raiva. — Como ousa se vestir como uma Donzela da Nascente? Onde estão as prisioneiras? Onde está o comandante Brum?

— Já partiram — mentiu Nina. — Estão além do seu alcance.

— Agarrem ela! — ordenou a Madre Superiora, mas Nina já estava erguendo as mãos.

— Eu não faria isso — ela disse, e os soldados hesitaram, confusos.

Ao seu redor, Nina sentiu a maré fria do rio, revirando em turbilhões fundos – as covas das anônimas abandonadas, enterradas sem cerimônia, mulheres e garotas trazidas em segredo para aquele lugar, onde tinham sofrido e morrido e sido deixadas no escuro, sem ninguém para lamentá-las.

Venham a mim, ordenou Nina.

— Ela é só uma garota — disparou a Madre Superiora. — Que tipo de covardes são vocês?

— Não só uma garota — rebateu Nina. Os sussurros se ergueram nela. Mulheres fjerdanas. Garotas fjerdanas clamando por justiça, gritando no silêncio da terra. Ela abriu a boca e deixou-as falar.

— Eu sou Petra Toft. — As palavras saíram dos lábios de Nina, mas ela não reconheceu a própria voz. — Você me cortou e tirou a criança do meu útero. Me deixou sangrar até morrer enquanto eu implorava por ajuda.

“Eu sou Siv Engman. Contei a você que tive um aborto espontâneo e não poderia gerar uma criança, mas você me fez engravidar vez após vez. Eu segurei cada natimorto nos braços. Dei um nome a cada um.

“Eu sou Ellinor Berglund. Era sua aluna, deixada aos seus cuidados. Confiei em você. Eu a chamava de Madre Superiora. Implorei pela sua misericórdia quando você descobriu meus poderes. Morri implorando por outra dose.”

— O que é isso? — perguntou a Madre Superiora, as mãos apertadas contra o coração. Estava tremendo, os olhos arregalados como luas.

Uma mulher após a outra, uma garota após a outra, Nina falou o nome delas e as chamou. Venham a mim. Subindo pela terra, arranhando o solo, elas vieram, uma massa de membros podres e ossos quebrados. E algumas delas rastejaram.

As portas da ala se escancararam e as mortas entraram numa torrente. Elas se moviam com velocidade impossível – horrores silenciosos que tiraram os rifles dos soldados fjerdanos enquanto eles tentavam abrir fogo. Algumas estavam inteiras. Outras não eram nada além de ossos e trapos.

A Madre Superiora recuou, seu rosto, uma máscara de terror. Ela tropeçou no vestido e caiu ao chão de pedra. Um bebê puxou-se engatinhando em direção a ela. Seus membros gorduchos ainda estavam intactos, apesar dos lábios azuis e dos olhos vazios.

As mortas derrotaram os guardas rapidamente, deixando-os sangrando em pilhas silenciosas. Agora elas avançavam em direção à Madre Superiora. Nina se virou.

— Não me deixe aqui — implorou a Madre Superiora quando o bebê agarrou as suas saias.

— Eu disse que rezaria por você — lembrou Nina quando fechou a porta e deu o último comando às suas soldadas: Deem a ela a misericórdia que merece.

Então deu as costas aos gritos da Madre Superiora.


— Vão! — ordenou ela, subindo nos fundos da carroça. A hora para sutilezas tinha passado. Eles saíram numa corrida desabalada pela entrada leste até a estrada. Nina virou-se, imaginando que veria os guardas erguendo os rifles para atirar neles. Em vez disso, viu dois corpos ensanguentados na neve e uma trilha de patas que ia até as árvores.

Trassel. A mente dela dizia que era uma tola por pensar assim, mas seu coração sabia a verdade. Agora ela entendia por que ele nunca aceitara a comida que ela deixava para ele. O lobo de Matthias gostava de caçar suas presas. De algum lugar no topo da montanha, ela ouviu um uivo longo e lamuriante, então um coro de respostas ecoando no vale. Os lobos cinza que ele tinha salvado? Talvez Trassel tivesse que ficar sozinho mais um tempo. Talvez ele finalmente tivesse feito suas despedidas também.

Leoni encarou Nina enquanto elas se afastavam depressa da fábrica. Ela segurava um bebê nos braços.

— Lembre-me de nunca a irritar, Zenik — ela disse sobre o estrondo das rodas da carroça.

Nina deu de ombros.

— Só não faça isso perto de um cemitério.

— O que está acontecendo? — perguntou uma das garotas, sonolenta.

— Nada — respondeu Nina. — Feche os olhos. Descanse. Você receberá outra dose logo.

Um momento depois, o ar se encheu com o clamor de sinos – alguém na fábrica tinha soado o alarme. Eles jamais conseguiriam passar pelo posto, mas não podiam parar agora.

Então dispararam colina abaixo. Brum estava deitado sob um cobertor e seu corpo rolou de um lado para o outro quando a carroça quicou ao passar por uma vala.

Nina se inclinou para a frente e puxou a jaqueta de Hanne para chamar a atenção dela.

— Devagar! — ela gritou. — Não podemos parecer estar fugindo.

Hanne puxou as rédeas e olhou sobre os ombros para Nina.

— O que você é? — Ela não parecia assustada, só furiosa.

— Nada bom — disse Nina, afundando em seu assento na carroça. Explicações e desculpas teriam que esperar.

A carroça reduziu o ritmo e ela espiou pelas ripas. Estavam chegando ao posto de controle. Ela sabia que o momento teria que ser exato, e agora...

— Parem!

A carroça reduziu até parar. Através das ripas, Nina viu um grupo de soldados fjerdanos empunhando rifles. Atrás deles, um pouco adiante na colina, uma longa fila de homens e garotas estavam se dirigindo à pescaria para trabalhar. Eles carregavam os almoços e conversavam alegremente, só olhando de relance para os guardas e a carroça.

— Estamos operando sob ordens do comandante Brum — disse Hanne, ríspida. — Deixe-nos passar!

— Saiam ou vamos abrir fogo.

— Estamos transportando...

— O comandante Brum passou aqui quase uma hora atrás. Deixou claro que ninguém deveria passar sem ordens diretas dele. — Ele se virou para outro guarda: — Mande alguém para a fábrica descobrir o que está acontecendo.

Então desapareceu da vista. Um momento depois, as portas da carroça foram abertas.

— Djel em toda a sua glória — disse o soldado enquanto o sol da manhã iluminava as mulheres na carroça. — Agarrem os cocheiros! E levem essas prisioneiras de volta para a montanha.

O bebê nos braços de Leoni começou a chorar.


ZOYA NÃO GRITOU. Ela conteve o pânico conforme a seiva cobria suas costelas e parou de bater contra a esfera dourada. Não conseguia compreender o que via. Três anos antes, tinha assistido ao corpo do Darkling queimar até virar cinzas. Tinha sussurrado o nome da tia enquanto ele desaparecia no calor das chamas de Infernais ao lado do corpo de Sankta Alina.

Mas não era Alina Starkov que jazia ali, só uma garota esculpida para parecer com ela. Será que os apoiadores do Darkling haviam usado o mesmo truque?

Ela não entendia a extensão dos planos de Elizaveta, só sabia que Nikolai não sobreviveria a eles – e que Yuri os tinha traído, aquele desgraçadozinho devoto. Você sempre soube quem ele era, ela se repreendeu. Sabia em que altar ele escolhera venerar. Mas ela o ignorara, considerando-o inofensivo, porque nunca o vira realmente como uma ameaça. E talvez porque não quisesse ver o próprio idealismo tolo refletido nos olhos fervorosos do monge.

Ela viu Yuri se aproximar da criatura de sombras, que pairava como um estranho fantasma diante de Nikolai. Tinha sentido a presença do Darkling naquela noite na torre do sino, mas não quisera acreditar que ele podia retornar.

Cega. Ingênua. Egoísta. Zoya prendeu o fôlego quando Yuri estendeu a mão para o espinho brilhante – mas, de repente, o monstro atacou o monge. Ela olhou para o corpo de Nikolai, caído contra o bosque de espinheiros como um inseto preso a uma folha de papel. Os olhos dele estavam fechados. Será que estava controlando a criatura?

Não havia tempo para reflexões. Zoya tentou quebrar a esfera com o poder da tempestade, mas foi em vão. Então se concentrou na seiva que compunha suas paredes, sentindo as partes pequenas que a compunham, o modo como a matéria era formada. Ela não era uma Hidro. Antes de Juris, aquilo estaria além das suas capacidades. Mas agora... nós não somos todas as coisas? Ela se concentrou em forçar aquelas pequenas partículas a vibrar mais rápido, elevando a temperatura da seiva, fraturando a estrutura da esfera. Suor brotava em sua testa conforme o calor aumentava e ela teve medo de cozinhar na própria pele.

Em um único instante, a estrutura da esfera cedeu. Zoya empurrou o líquido escaldante para longe, com uma lufada de ar, antes que pudesse queimar sua pele e, no segundo seguinte, estava correndo, deixando o vento carregá-la sobre as areias até o palácio.

Para o que está correndo, bruxinha? Para Juris. Para pedir ajuda. Mas e se o dragão já soubesse o que Elizaveta pretendia fazer? E se a estivesse observando agora mesmo, em seu pináculo preto, e rindo da ingenuidade dela?

O vento vacilou. Zoya reduziu o ritmo. Ergueu os olhos para a rocha preta. Quanto tempo Nikolai conseguiria usar a forma do monstro para conter Yuri e a Santa? Zoya estava correndo em direção a um aliado ou entrando numa armadilha, desperdiçando tempo valioso? Outra traição... ela não sabia se conseguiria suportá-la. Mas teria que fazê-lo. Não era poderosa o bastante para enfrentar Elizaveta sozinha. Precisava da ira do dragão.

Não havia tempo para se preocupar com as passagens sinuosas do palácio, e ela duvidava que conseguiria se localizar lá dentro. Em vez disso, deixou a tempestade içá-la para o alto, até a boca da caverna de Juris.

A sala estava vazia. O fogo na lareira estava apagado.

Foi aí que ela viu o corpo. Juris estava deitado no chão em sua forma humana, a espada largada ao seu lado. O brilho de sua armadura de escamas pretas parecia opaco no crepúsculo indistinto.

— Juris! — ela gritou, caindo de joelhos ao lado dele.

Ele abriu os olhos. Houve um lampejo prateado e as pupilas dele viraram fendas.

— Aquela Elizaveta — ele disse, num chiado arquejante. — Uma atriz e tanto.

— O que aconteceu? O que ela fez com você?

Ele soltou um som que poderia ser uma risada ou um gemido.

— Me ofereceu vinho... depois de centenas de anos. Hidromel feito de frutas nascidas das suas videiras. Ela disse que estava guardando. Era doce, mas não era vinho.

Ela olhou para os lábios chamuscados, a língua enegrecida, e entendeu.

— Era combustível.

— Só o nosso próprio poder pode nos destruir. Minhas chamas queimaram por dentro.

— Não — disse Zoya. — Não. — O coração dela estava pesado de tantas perdas. — Eu vou chamar Grigori. Ele pode curá-lo.

— É tarde demais. — Juris agarrou o punho dela com força surpreendente. — Escute. Pensávamos ter convencido Elizaveta a abdicar do seu poder, mas essa nunca foi a intenção dela. Se ela se libertar dos confins da Dobra, nada será capaz de controlá-la. Você tem que impedi-la.

— Como? — perguntou Zoya, suplicante.

— Você sabe o que tem que fazer, Zoya. Use meus ossos. — Ela recuou, mas ele não soltou o aperto. — Mate-me. Pegue minhas escamas.

Zoya balançou a cabeça. Só conseguia pensar no rosto resoluto da tia. Zoya fora responsável pela morte dela – poderia ter impedido o Darkling, se ela tivesse olhado com mais atenção, se tivesse entendido, se não estivesse consumida por sua própria ambição.

— Ele não vai levar você de mim também.

— Eu não sou a sua tia — rosnou Juris. — Sou o seu professor. Você foi uma aluna apta. Prove para mim que é uma grande aluna.

Ela não conseguiria.

— Você disse que era uma corrupção.

— Só se você não der nada de si em troca.

Ela entendeu aquela verdade e percebeu que estava com medo.

— Um pouco de fé, Zoya. É tudo de que você precisa.

Uma risada amarga escapou dela.

— Eu não tenho.

— Não há limites para o poder que você pode obter. A criação no coração do mundo não tem limites. Ela não enfraquece. Ela não se cansa. Mas você deve ir ao encontro dela.

— E se eu estragar tudo de novo? — E se falhasse com Juris como falhara com os outros? A vida dela já tinha fantasmas demais.

— Pare de se punir por ter um coração. Você não pode se proteger do sofrimento. Viver é chorar as perdas. Você não está se protegendo ao se isolar do mundo. Está se limitando, assim como fez com o seu treinamento.

— Por favor — disse Zoya. Ela era a coisa que sempre temera se tornar: uma garota perdida e impotente, levada pela nave da capela em Pachina. — Não me deixe. Você também não.

Ele empurrou a espada com uma mão.

— Zoya da cidade perdida. Zoya do jardim. Zoya sangrando na neve. Você é forte o suficiente para sobreviver à queda.

Juris soltou um som que começou como um grito e se tornou um rugido conforme seu corpo se transformava de homem para dragão, os ossos estalando e as escamas se alargando até que cada uma fosse quase do tamanho da palma dela.

Ele a envolveu nas asas com muita gentileza.

— Agora, Zoya. Não aguento mais.

Zoya soluçou. Viver é chorar as perdas. Ela era uma garota perdida – e uma general também. Empunhou a espada e, com o poder da tempestade nas palmas, enfiou a lâmina no coração dele.

No mesmo instante, Zoya sentiu as garras do dragão perfurarem o seu peito. Ela gritou, a dor rasgando-a como a bifurcação de um raio. Sentiu o próprio sangue encharcar a seda contra o corpo, um sacrifício. Juris soltou um suspiro pesado e fechou os olhos brilhantes. Zoya pressionou o rosto nas escamas dele, ouvindo as batidas pesadas do coração, do seu próprio. Era isso a morte, então? Ela chorou por ambos quando o ritmo das batidas começou a reduzir.

Passou-se um momento. Uma eternidade. As garras de Juris se retraíram. Ela só conseguia ouvir uma batida agora – a sua.

Zoya não sentia dor. Quando olhou para baixo, viu que o kefta estava rasgado, mas o sangue não fluía mais. Tocou a pele. As feridas que Juris fizera já tinham sarado.

Não havia tempo para chorar pelo morto – não se o sacrifício de Juris significaria alguma coisa, não se ela tinha qualquer esperança de salvar Nikolai e impedir Elizaveta. Zoya teria sua vingança. Salvaria o seu rei.

Ela pegou uma adaga da parede. Antes que suas lágrimas pudessem começar a fluir, arrancou as escamas da crista que se estendia pelas costas de Juris.

Mas o que ela faria agora? Não era uma Fabricadora. Aquele era o dom de Elizaveta.

Nós não somos todas as coisas?

Zoya tinha superado os limites dentro de sua própria ordem, mas será que ousaria desafiar os limites das ordens em si?

Tudo que valha a pena fazer começa como uma má ideia. Palavras de Nikolai. Um conselho terrível. Mas talvez fosse a hora de acatá-lo. Ela se concentrou nas escamas em suas mãos e sentiu as suas bordas, as partículas que as compunham. A sensação era estranha, errada, e ela soube imediatamente que aquele trabalho nunca seria natural para ela, mas, naquele momento, sua habilidade parca teria que ser suficiente. Zoya deixou as escamas guiarem-na. Podia sentir a forma que elas queriam assumir, podia vê-las queimando claramente na mente como uma roda preta – não, uma coroa. Juris. Insistente até o fim. Ela afastou a imagem e forçou as escamas a formarem duas pulseiras ao redor do seu pulso.

Assim que as escamas tocaram sua pele, selando o vínculo, ela sentiu a força de Juris fluir por ela. Mas não era como tinha sido com o tigre. Abra a porta. Ela podia sentir o passado dele, as eras que ele e o dragão viveram agora fluindo nela como uma enchente, ameaçando sobrecarregar o grão de poeira que era a vida dela.

Tome-a, então, ela disse a ele. Eu sou forte o suficiente para sobreviver à queda.

Ela sentiu o comedimento de Juris, sentiu-o se afastar, protegendo-a e guiando-a como fizera nas semanas anteriores. Como ele sempre faria.

O dragão estava com ela – e eles lutariam.


SOBRE O OMBRO DOS GUARDAS, Nina viu os pescadores virarem as cabeças na direção do choro de um bebê.

O guarda tentou bater as portas depressa.

— Socorro! — gritou Nina. — Nos ajudem!

— O que está acontecendo aí? — perguntou um dos homens.

Bendita fosse Fjerda e sua crença em garotinhas indefesas. Os homens eram ensinados desde criança a proteger os fracos, especialmente as mulheres. Aquela gentileza geralmente não se estendia aos Grishas, mas as mortas tinham falado e Nina pretendia continuar deixando que falassem.

Outro bebê começou a chorar.

— Isso mesmo, garoto — sussurrou Nina. — Abra o berreiro.

Agora os pescadores estavam subindo a colina em direção ao posto de controle.

— Isso não é problema seu — disse o guarda, finalmente conseguindo fechar a porta da carroça.

— O que vocês têm aí? — perguntou uma voz.

Nina espiou através das ripas. Hanne e Adrik tinham sido puxados da carroça e estavam cercados por homens armados. O grupo de moradores locais ao redor da carroça crescia.

— É só um carregamento para a fábrica — explicou o guarda.

— Então por que estão descendo a montanha?

— Vire essa carroça e subam — rosnou um dos guardas aos soldados que agora estavam no assento do motorista. As rédeas estalaram e os cavalos deram alguns passos hesitantes, mas os pescadores tinham se movido para bloquear o caminho da carroça.

— Mostre o que tem aí atrás — disse um homem alto usando um boné vermelho.

Outro deu um passo à frente, as mãos abertas num gesto pacificador.

— Podemos ouvir bebês chorando. Por que estão tentando levá-los a uma fábrica de munições?

— Eu deixei claro que isso não é problema seu. Não respondemos a vocês, e, se insistirem em interferir nas operações do exército fjerdano, estamos autorizados a fazer uso da força.

Uma nova voz falou de algum lugar que Nina não conseguia ver.

— Vocês vão mesmo abrir fogo contra esses homens?

Nina foi ao lado da carroça e viu que mais habitantes tinham se reunido, atraídos pela comoção no posto de controle.

— Por que não atirariam? — perguntou uma mulher. — Já envenenaram nosso rio.

— Silêncio — sibilou um soldado.

— Ela tem razão — interveio o dono da taverna, que Nina conheceu em seu primeiro dia na cidade. — Mataram aquela garota lá no convento. Mataram o gado de Gerit.

— Se querem atirar na gente, podem tentar — disse alguém. — Não acho que têm balas suficientes para todos nós.

— Para trás! — exclamou o guarda, mas Nina não ouviu o som de tiros.

Um momento depois, as portas da carroça foram abertas de novo.

— O que é isso? — perguntou o homem de boné vermelho. — Quem são essas mulheres? O que tem de errado com elas?

— Elas... estão doentes — argumentou o guarda. — Foram mantidas em quarentena para o seu próprio bem.

— Não há nenhuma doença — afirmou Nina, das sombras da carroça. — Os soldados estão fazendo experimentos com essas garotas.

— Mas todas elas estão... estão grávidas?

Nina deixou o silêncio pairar no ar, sentindo o humor da multidão passar de suspeita para raiva escancarada.

— Você é do convento? — perguntou o homem, e Nina assentiu. Pelo menos aquele vestido feioso e aquelas tranças loiras horríveis podiam lhe emprestar um pouco de credibilidade.

— Essas prisioneiras não são mulheres — cuspiu o guarda. — Elas são Grishas. São ameaças potenciais a Fjerda, e vocês não têm o direito de interferir.

— Prisioneiras? — repetiu o homem de boné vermelho, com uma expressão preocupada. — Grishas?

A multidão se moveu para a frente para observar as mulheres e garotas. Nina conhecia o poder dos preconceitos que eles nutriam. Ela os vira em Matthias, sentira a sua influência. Mas ela também vira aquele fardo ser movido, aquela rocha aparentemente inamovível erodida pela compreensão. Se aquilo podia acontecer com um soldado drüskelle que aprendera desde criança a odiar o povo dela, ela tinha que acreditar que podia acontecer com aquelas pessoas também. As garotas naquela carroça não eram bruxas poderosas promovendo destruição. Não eram soldados inimigos anônimos. Eram garotas fjerdanas arrancadas de suas vidas e torturadas. Se pessoas comuns não conseguiam ver a diferença, não havia esperança para ninguém.

— Cille? — perguntou um jovem pescador, abrindo caminho pela multidão. — Cille, é você?

Uma garota frágil com pele amarelada abriu os olhos.

— Liv? — ela chamou debilmente.

— Cille — disse ele, lágrimas enchendo seus olhos enquanto subia na carroça, batendo a cabeça no teto. — Cille, achei que você tinha morrido. — Ele se ajoelhou e a abraçou.

— Desça daí imediatamente — ordenou o guarda.

— O que você fez com ela? — rosnou o jovem pescador, com as bochechas úmidas e o rosto quase roxo de fúria.

— Ela é Grisha e uma prisioneira do...

— Ela é minha irmã — ele rugiu.

— Aquela é Idony Ahlgren? — perguntou o homem de boné vermelho, inclinando o pescoço para ver.

— Achei que ela tivesse ido a Djerholm para trabalhar de governanta — comentou uma mulher.

Nina olhou para a fábrica. Quanto tempo tinha se passado?

— Ellinor Berglund — ela disse. — Petra Toft. Siv Engman. Jannike Fisker. Sylvi Winther. Lena Askel.

— Eles levaram Cille! — chorou o jovem pescador. — Levaram todas elas!

Um tiro soou. O guarda do posto de controle estava em pé, com o rifle erguido.

— Basta! Vocês vão desbloquear a estrada ou vamos...

Boom. A primeira explosão sacudiu a montanha.

Todos os olhos se viraram para a fábrica.

— Isso pareceu bem maior do que deveria — disse Leoni.

Boom. Outra explosão. E mais uma. Bem na hora.

— Doce Djel — exclamou o homem de boné vermelho, apontando para o forte. — A barragem.

— Oh, Santos — disse Leoni. — Algo está errado. Devo ter errado as proporções, eu...

Outro boom soou, seguido por um rugido aterrorizante. De repente, as pessoas começaram a gritar e descer a colina correndo. O jovem pescador tomou a irmã nos braços e pulou da traseira da carroça.

— Temos que sair daqui! — ele gritou.

— Não há tempo — alarmou-se o homem de boné vermelho.

Nina e Leoni saíram da carroça às pressas. Bem acima, colunas escuras de fumaça se erguiam das chamas na fábrica. Mas muito mais assustador era o muro de água descendo em direção a eles. A represa tinha se estilhaçado e uma onda turbilhonante espumava ao escorrer pela montanha, desenraizando árvores e esmagando tudo em seu caminho.

— Talvez perca a força — disse o pescador, abraçando a irmã.

— Corram! — berrou Leoni. — Aquela água está cheia de veneno! Qualquer um que tocar nela vai morrer!

A culpa e o medo no rosto dela perfuraram o coração de Nina, mas tinha de ser assim. Fjerda não precisava de misericórdia – precisava de milagres.

— Nós fizemos isso — disse Hanne. — Temos que impedi-la!

Alguns dos habitantes escalavam os lados da colina, mas a onda vinha rápido demais.

— Fiquem atrás de mim! — Adrik gritou para a multidão.

— Agora! — ordenou Nina em fjerdano, quando as pessoas hesitaram.

— Leoni — chamou Adrik enquanto as pessoas se aglomeravam, formando uma cunha atrás dele. — Você consegue?

Ela assentiu, determinada, tocando as joias em seus cabelos, os lábios sussurrando uma prece. Nina conseguia ouvir o aviso dela na cabeça: Venenos são um trabalho delicado.

A onda se aproximou rugindo, um turbilhão de espuma e escombros, tão alta e larga que parecia bloquear o sol.

— Prepare-se! — gritou Adrik.

Leoni abriu os braços.

Adrik esticou a mão e a onda se bifurcou, clivada pela força da rajada que ele conjurou, passando ao redor das pessoas em uma torrente violenta.

Enquanto a água passava, Leoni ergueu as mãos e Nina viu uma nuvem amarelada aparecer no ar ao seu redor. Ela estava extraindo o veneno da água.

Grishas. Nina ouviu a palavra se erguer da multidão. Drüsjen. Bruxas.

A nuvem de veneno cresceu acima deles conforme a água escorria pela colina. Por fim, a maré se exauriu, mas Leoni continuou a extrair o veneno até que a torrente se reduzisse a um fio de água.

Ela ficou parada com os braços erguidos no silêncio súbito, enquanto a multidão encarava a massa letal de pó amarelo enlameado pairando acima da cabeça deles.

— Pestijla! — eles exclamaram. — Morden! — Veneno. Morte.

— Não — murmurou Nina. — Oportunidade. — Ela estendeu seu poder até as águas da inundação, procurando os materiais de que precisava, seu poder tocando os ossos das garotas perdidas no escuro. Ela os agarrou.

Os braços de Leoni estavam tremendo, seus lábios retraídos numa careta. Adrik girou, concentrando-se no o vento, então formou um pequeno ciclone, reuniu o veneno e o lançou para a guarita vazia. Com um giro do pulso, a porta se fechou. Ele segurou Leoni contra si antes que ela desabasse.

No novo silêncio, Nina conseguia ouvir os bebês berrando, as pessoas chorando. Não sabia quantos danos a água poderia ter causado aos prédios abaixo.

A multidão estava encarando Adrik e Leoni. Os soldados ergueram seus rifles. Nina se preparou para chamar os cadáveres da fábrica para protegê-los. Mas ela esperava, esperava que...

— Olhem! — exclamou o homem de boné vermelho.

Onde a água tinha passado, um grande freixo se erguia no centro da estrada, seus galhos brancos esticando-se para o céu, suas raízes grossas espraiando-se na lama.

— Djel e todas as suas águas — sussurrou o homem da taverna, começando a chorar baixinho. — É feito de ossos.

Os ossos das garotas perdidas à montanha, forjando algo novo com o poder de Nina.

— Glória a Djel — disse o jovem pescador, caindo de joelhos.

Nina estava feliz agora por não poder ouvir a voz de Matthias, por ele não presenciar o modo como ela usara o deus dele. O truque que ela empregara não era o ato honrado de uma soldada. Era um pouco de teatralidade, a ilusão vil usada por trapaceiros e ladrões.

Mas ela não se arrependia. O trabalho que ela, Adrik e Leoni vinham fazendo, o trabalho da Hringsa, não era suficiente. Não importava quantos Grishas eles salvassem, sempre haveria mais que não conseguiriam ajudar. Fjerda sempre estaria ali com seus tanques e fogueiras, e homens como Jarl Brum para acender o fósforo. A não ser que Nina encontrasse um modo de mudar tudo aquilo.

— Abaixem as armas — disse o homem de boné vermelho enquanto o vilarejo de Gäfvalle se colocava de joelhos. — Hoje nós vimos milagres.

— Glória a Djel! — gritou Nina. Ela se ajoelhou diante de Adrik e Leoni em seu vestido de Donzela da Nascente. — E glória aos novos Santos!


ZOYA DISPAROU PELAS AREIAS, rezando para não ser tarde demais. No passado, ela pensava que só Grishas que tomaram parem poderiam voar. Agora chegava à tempestade, carregada por nuvens de trovoadas. Quase conseguia sentir Juris sob ela.

A visão que encontrou era horripilante.

Grigori tinha se esticado sobre o bosque de espinheiros na forma de um grande domo, construído e reconstruído de tendões, tentando manter Elizaveta e Yuri longe de Nikolai e do seu eu de sombras. Zoya viu os espinhos de Elizaveta apunhalarem a pele do Santo, suas hastes se debatendo como serpentes, esticando-se para perfurá-lo repetidamente.

Mas, quando o Criador de Corpos começou a gritar, Zoya percebeu que não eram os espinhos que o tinham liquidado, e sim os insetos que Elizaveta lançara sobre o seu corpo. Buraquinhos e sulcos começavam a aparecer na pele dele à medida que insetos se embrenhavam em sua carne e o consumiam. O corpo dele se desintegrava, tentando escapar de si mesmo. Ele tremeu e sacudiu até, por fim, abrir mil bocas para gritar enquanto era devorado.

Yuri estava parado atrás de Elizaveta, como uma criança escondida atrás das saias da mãe, apertando as mãos contra os lábios como se tentasse conter o próprio terror. Garoto idiota. Ele não sabia o que Elizaveta pretendia libertar no mundo? O Santo Sem Estrelas dele prometera menos derramamento de sangue ou o fanático não se importava com isso?

O Criador de Corpos estremeceu e desabou. Elizaveta deu um grito de triunfo e mergulhou sobre os corpos presos de Nikolai e da criatura de sombras, ambos firmemente contidos pelos galhos do bosque de espinheiros.

Zoya tirou da manga dois pedaços quebrados de obsidiana e os bateu um no outro. A faísca foi tudo de que ela precisou: um jato de chamas voou na direção de Elizaveta, que recuou surpresa.

Então os lábios da Santa se curvaram de divertimento.

— Achei que era sábia o bastante para fugir, Zoya. Você está atrasada. O espírito do Darkling logo vai reentrar no corpo dele. Não há motivo para você ser uma baixa nessa batalha.

— Meu rei está sangrando. Eu sou sua súdita e soldada, e venho lutar por ele.

— Você é Grisha, Zoya Nazyalensky. Não precisa se submeter a nada e ninguém.

Zoya conseguia sentir a atração do poder mesmo então. Aquela fome por mais sempre estaria com ela, mas ela já conhecera tiranos antes.

— Ninguém exceto você? O Darkling?

Elizaveta riu.

— Não seremos governantes. Seremos deuses. Se é uma coroa que deseja, tome-a. Sente-se no trono ravkano. Nós teremos domínio sobre o mundo.

— Eu vi o corpo dele na pira. Eu o vi queimar.

— Eu o roubei das areias da Dobra e deixei uma réplica no lugar. Estava perfeitamente dentro das minhas capacidades. — Assim como Zoya tinha suspeitado. E ela não se importava com os detalhes; só queria manter Elizaveta falando.

— Você preservou o corpo dele?

— Na esperança de que pudesse ser ressuscitado. Eu o conservei nas minhas colmeias. Sim, sei que você estava disposta a crer na minha historinha sobre as feridas, meu cansaço. Mas você não percorreu aquele corredor escuro, não é? Ninguém quer olhar perto demais para a dor de outra pessoa. Você realmente acreditou que eu sacrificaria uma era de conhecimento e poder para me tornar mortal? Você faria isso, Zoya?

Não. Nunca. Mas o poder ao qual ela estava ligada agora não precisava ser tomado ou roubado.

— E o que você fará com o mundo quando o dominar?

— É aqui que eu apresento minha visão grandiosa de paz? De um império unificado sem fronteiras ou bandeiras? — Elizaveta deu de ombros. — Eu poderia fazer esse discurso. Talvez o Sem Estrelas torne essa a nossa meta. Só sei que quero ficar livre e sentir meu poder novamente.

Era uma necessidade que Zoya entendia, e ela sabia quais perguntas fazer – as mesmas perguntas que fazia a si mesma quando a escuridão se acercava dela.

— Você não consegue se satisfazer com o que tem? — perguntou ela, movendo-se devagar no perímetro do bosque. O peito da criatura de sombras não brilhava mais, então alguém conseguira remover o espinho. A forma dele estava lentamente sendo sugada para o corpo supino do Darkling. Nikolai estava morrendo, empalado no espinheiro enquanto seu sangue escorria para o solo.

— O que é o poder sem alguém para empunhá-lo? Eu vivi em esplendor isolado por vidas demais. O que é ser um deus sem adoração? Uma rainha sem súditos? Eu era a bruxa no bosque, a rainha no trono, a deusa em seu templo. Serei tudo isso novamente. Vou saborear o medo e o desejo e o assombro novamente.

— Não terá nada disso de mim — afirmou Zoya. Ergueu as mãos e suas mangas caíram. Escamas pretas reluziram no crepúsculo.

Elizaveta deu um suspiro cansado.

— Eu devia saber que Juris aguentaria o suficiente para fazer algo nobre e equivocado. Bem, velho amigo — ela disse —, não importa. — Com um movimento do braço, duas hastes cor de ferro voaram na direção de Zoya, os espinhos brilhando como o rabo farpado de uma criatura do mar.

Zoya ergueu as mãos e um turbilhão feroz apanhou as hastes, torcendo-as uma na outra e arrancando-as do bosque pela raiz. Zoya as lançou de volta para Elizaveta.

— Como você é feroz — apontou a Santa. — Juris estava certo em torná-la sua aluna. É uma pena que o conhecimento dele vai morrer com você.

Dessa vez metade do bosque pareceu se erguer, uma massa revolta de hastes gordas e espinhosas. Zoya extraiu a umidade do ar em uma onda fria, cobrindo as hastes com geada e congelando a seiva de dentro para fora. Com uma rajada de vento retumbante, ela as estilhaçou.

— Quanto poder. Mas você não pode me derrotar, Zoya. Eu tenho a vantagem da eternidade.

— Eu me contento com a vantagem da surpresa.

Zoya ergueu as areias para se esconder e deixou-se mergulhar num instante no bosque de espinheiro. Enquanto Elizaveta falava, ela tinha flutuado até o lado oposto do círculo, onde o esquife no qual o corpo perfeitamente preservado do Darkling repousava. Tirou um momento brevíssimo para contemplar o lindo rosto e as mãos elegantes dele. Zoya o tinha amado com toda a adoração gananciosa do seu coração de garota. Acreditara que ele a estimava, que se importava com ela. Teria feito qualquer coisa por ele, lutado e morrido por ele. E ele soubera disso. Cultivara o sentimento como havia cultivado seu próprio ar de mistério, como tinha nutrido a solidão de Alina Starkov e o desejo de pertencimento de Genya. Ele usou todos nós, como está usando Elizaveta agora. E eu deixei isso acontecer.

Ela não deixaria acontecer de novo. Ergueu os braços.

— Não! — gritou Elizaveta.

— Queime como você deveria ter queimado — sussurrou Zoya. Ela baixou o braço e, com a facilidade com que conjuraria uma brisa suave, um raio fluiu em um estalo preciso e ensurdecedor, atingindo o esquife em uma explosão de faíscas e desabrochando em chamas. Zoya viu uma sombra emergir do fogo como se tentasse fugir do calor.

— O que você fez? — gritou Elizaveta, lançando-se para o Darkling enquanto o bosque tentava erguê-lo para a segurança, longe do fogo.

Mas Zoya focou o calor de suas chamas até que elas queimassem azuis, como o fogo de Juris. O bosque de espinheiros começou a desmoronar.

Hastes cercaram os tornozelos de Zoya, mas ela reuniu suas faíscas e as queimou, chamuscando a si mesma no processo. Usar fogo exigiria mais treino.

Elizabeta tinha se jogado na pira para tentar recuperar o que restara do corpo do Darkling. Zoya sabia que, embora as chamas pudessem causar dor à Santa, não a conteriam. Só o próprio poder de Elizaveta, virado contra ela mesma, seria o bastante para derrotar uma Grisha tão antiga. Zoya tinha poucos minutos para agir.

Ela encontrou Yuri fugindo das chamas e arrancou o espinho brilhante das mãos dele.

— Eu lido com você depois — ela rosnou, erguendo duas dunas para que o cercassem em uma lufada forte. Elas o enterraram até o pescoço.

Os resquícios da criatura de sombras pairavam entre Nikolai e o fogo do esquife do Darkling, como se estivessem hesitantes. Ela mal estava visível agora, suas asas rasgadas, as mãos com garras pendendo flácidas ao lado do corpo. Ela enfiou o espinho brilhante de volta no lugar onde o coração dele deveria estar.

Nikolai recobrou a consciência com um arquejo.

— Tire-o de mim — ele disse roucamente, abaixando a cabeça para o peito, onde o espinho real estava alojado. — Mate-o.

E se eu matar você também? Não havia tempo para hesitar. Zoya arrancou o espinho. Nikolai uivou enquanto sangue negro vertia do seu peito. Zoya foi jogada para trás pelo golpe de um tronco de árvore.

Por todo lado ao seu redor, o bosque de espinheiros desabrochava enquanto Elizaveta se erguia com gritos estridentes da derradeira pira funerária do Darkling. Ela era um enxame de abelhas. Era um campo florescente. Era uma mulher enlouquecida pelo luto. Os espinhos se envolveram ao redor dos punhos de Zoya, prendendo-a firmemente enquanto Elizaveta disparava contra ela, gafanhotos jorrando de sua boca, as mãos estendidas para a garganta de Zoya.

Tudo bem, pensou Zoya. Eu salvei Nikolai. Mantive Elizaveta confinada na Dobra. Ela tinha enfim derrubado o Darkling – que Elizaveta levasse o seu coração. Mas a voz de Juris rugiu dentro dela, e ela quase podia ver a sua expressão de desdém: Eu cedi minhas escamas para isso? Nós somos o dragão. Não nos deitamos para esperar a morte.

Zoya sentiu os galhos apertarem mais forte. O bosque era a criação de Elizaveta, mas a seiva dentro dele fluía como sangue, como um rio movido pelas marés.

Elizaveta gritou de raiva e o zumbido de insetos encheu os ouvidos de Zoya.

Ela se concentrou na seiva fluindo pelos galhos do espinheiro, a seiva que a afogara vez após vez, e puxou.

As hastes se viraram, seus espinhos afiados esticando-se na direção de Elizaveta rápido demais para que ela mudasse de rumo ou de forma. Seu corpo atingiu as lanças com um baque oco e úmido. Ela ficou pendendo a meros centímetros de Zoya, empalada nas garras de sua própria criação.

Zoya girou os espinhos e viu a luz desaparecer dos olhos de Elizaveta. Ela podia jurar que ouviu um rosnado de aprovação do dragão.

Ravka poderia cair. Os Grishas e o Segundo Exército poderiam debandar. Mas o mundo estaria a salvo de Elizaveta e do Sem Estrelas.

Ela pensou nos filhotes na neve, em Liliyana descascando avelãs ao lado do fogo, no Salão do Domo Dourado, no Pequeno Palácio, abarrotado de Grishas, risos ecoando de suas paredes antes que o Darkling atacasse. Pensou em Nikolai enfrentando o demônio, o espinho como uma adaga em suas mãos.

Dessa vez eu salvei você, ela pensou enquanto desabava. Dessa vez eu fiz tudo certo.


NÃO SERIA SEGURO PARA AS GRISHAS E SEUS FILHOS – ou para Adrik e Leoni – permanecerem em Gäfvalle, independentemente de como os moradores da cidade se sentiam. Os soldados sobreviventes na fábrica se reagrupariam. Tropas seriam enviadas para impor ordem após o desastre. Todos tinham que estar longe dali antes disso.

No caos, Hanne voltou ao convento para restaurar suas feições e pôr seu vestido, fingindo estar tão surpresa quanto os outros com os terrores que acometeram a cidade. Ninguém conseguia encontrar a Madre Superiora, então foi fácil para Hanne sair novamente e voltar à encruzilhada, onde encontrou Nina instruindo um jovem pescador que concordara em levar a carroça até o porto.

Nina sabia que aquele acerto de contas chegaria, e, assim que o pescador foi acomodar a irmã na carroça, virou-se para enfrentar a raiva de Hanne.

Mas Hanne estava calma. Sua voz estava firme.

— Eu não estava fazendo as perguntas certas, não é? Eu perguntei o que você era, não quem.

Nina tinha se trocado e agora usava novamente um dos vestidos de Mila. Ela alisou as saias pesadas.

— Eu acho que você sabe.

— Nina Zenik. — Os olhos cor de cobre de Hanne estavam duros. — A garota que mutilou meu pai. A Bruxa dos Cadáveres.

— É assim que os fjerdanos me chamam agora?

— Entre outras coisas.

— Eu sou uma agente trabalhando para o governo ravkano. Vim a este país para libertar pessoas como você, pessoas com poder Grisha vivendo com medo.

— Por que meu pai não reconheceu você? — perguntou Nina.

— Eu fui esculpida antes de vir para cá. Isto — disse Nina, gesticulando para si mesma — não sou eu.

— Alguma coisa sobre você é real?

— As habilidades que eu ensinei a você. Tudo que eu lhe disse sobre o modo como este país funciona, sobre a corrupção no cerne dele. — Nina respirou fundo e levou a mão ao coração. — Isso é real, Hanne.

Hanne desviou o olhar.

— Você me usou.

— Sim — admitiu Nina. — Não vou negar.

Hanne voltou-se para ela de novo, cruzando os braços.

— Você nem está arrependida, está?

— Me arrependo da dor que causei. Me arrependo por ter perdido sua confiança. Mas nós somos soldados, Hanne, desde que nascemos. E fazemos o que precisa ser feito. Havia vidas em risco. Ainda há. Eu não acredito que este seja o único local onde os homens do seu pai estão fazendo experimentos com Grishas.

Hanne engoliu em seco, e Nina sabia que ela estava se lembrando das garotas em suas camas na ala, dos bebês nos berços, do sofrimento deles.

— Tem mais?

— Mais bases. Mais fábricas. Mais laboratórios. Não vou fingir que todos os Grishas são bons... nem todos os ravkanos. Eles não são. Talvez eu não seja também. Só sei que o que o seu pai e os homens dele estão fazendo é errado. Eles têm que ser impedidos. — Ela apoiou a mão no ombro de Hanne, temendo que a garota se desvencilhasse. — Nós podemos impedi-los.

Hanne ergueu os olhos para a fábrica, para a carroça cheia de prisioneiras, para o grande freixo assomando sobre a estrada, com seus galhos de ossos. Ela correu a mão sobre a cabeça raspada, as linhas teimosas do seu rosto mais salientes sem a nuvem espessa de cabelo para suavizá-las. Quando se virou novamente para Nina, havia um novo fervor em seus olhos.

— Vamos salvar todos eles — ela disse.

Apesar das dores e dos perigos do dia, apesar dos desafios que esperavam, Nina sentiu uma nova leveza.

— Vamos salvar todos eles.

— Mas Nina — disse Hanne. — Chega de mentiras.

— Chega de mentiras — ela concordou, desejando, com todo o coração, que isso pudesse ser verdade.

— O que fazemos primeiro? — perguntou Hanne.

— Cuidamos do seu pai.

— Eu não vou matá-lo.

Nina sentiu um sorriso curvar seus lábios.

— Essa é a última coisa que eu pediria a você para fazer.


Quando Hanne foi arrastar Brum, ainda inconsciente, colina acima até o bosque, Adrik se virou para Nina.

— Chega de mentiras? — perguntou.

— Escutando a conversa dos outros, Adrik? — Ela olhou por cima do ombro. — Leoni está na carroça? Está bem?

— Está, mas não graças a você. Leoni não cometeu nenhum erro com os pavios; você causou aquele acidente — ele disse. — Modificou aqueles explosivos para estourar a barragem. Colocou eu, Leoni e inúmeros inocentes em risco.

Era verdade. Ela tinha feito uma coisa desprezível. Então por que não se arrependia?

— Sabe o que eu aprendi em Ketterdam? — perguntou Nina, contemplando a árvore de ossos que tinha construído. — Ninguém é inocente. Você virou a maré hoje, Adrik. Não só segurou as águas, você mudou o modo como essas pessoas veem os Grishas. Realizou um milagre.

— Não foi um milagre. Foi habilidade, sorte e um acessório de cena elaborado que você construiu com partes de corpos.

Nina deu de ombros.

— Os fjerdanos não vão nos aceitar como pessoas, então é hora de nos verem como Santos. E vamos fazer isso assim, cidade por cidade, milagre por milagre. Eles já estão sussurrando seu nome aqui, assim como sussurram o nome de Sankta Alina. Garanto que amanhã haverá santuários dedicados a você ao longo desta estrada. — Ela arqueou uma sobrancelha. — Mas você talvez não goste de como estão chamando-o.

— Eu não gosto de nenhuma parte disso — ele disse, mas a curiosidade venceu. — Diga.

— Sankta Leoni das Águas. — Ela fez uma pausa. — E Sankt Adrik, o Desigual.

Adrik revirou os olhos.

— Precisamos ir, Nina. Não temos muito tempo.

— Há mais uma coisa — disse Nina, embora soubesse que Adrik nunca perdoaria o que ela estava para contar. — Eu não compartilhei com vocês todas as informações na carta de Brum.

Adrik ficou absolutamente imóvel.

— O que você fez, Nina?

— Havia algo sobre um plano de assassinar o rei.

— Um plano dos fjerdanos?

— Não estava claro. Só dizia que Lantsov não seria um problema para alguém chamado Demidov. Que os espiões dele acreditavam que a situação se resolveria sem interferência, em breve.

Adrik xingou.

— Temos que chegar a Hjar o quanto antes. Como pôde esconder uma ameaça à vida do rei?

Que diferença poderia fazer? Sempre havia ameaças à vida do rei. Nikolai tinha Tolya e Tamar cuidando dele, e Adrik teria insistido em cancelar o plano para que eles pudessem ir até Hjar e localizar um membro da rede com acesso a um voador que pudesse alertar a capital. O rei de Ravka tinha muitas pessoas para protegê-lo. As garotas na montanha só tinham Nina.

— Seria um dia perdido — ela argumentou. — Ainda há tempo para avisar o rei.

— Não cabia a você tomar essa decisão. Mas não vou debater isso com você agora. Pode responder pelo que fez quando voltarmos para Ravka.

— Eu não vou com vocês.

— Nina...

— Eu sei o que preciso fazer, Adrik, e não vou conseguir outra chance como essa. Ravka me tornou uma soldada. Ketterdam me tornou uma espiã. Hanne pode me ajudar a ser algo completamente diferente.

— Nina, você não pode estar falando sério...

— Estou.

— Não teremos como contatá-la aqui. Você não terá aliados, não terá recursos. Se as coisas derem errado, não terá como fugir.

Nina ergueu os olhos para os destroços fumegantes da fábrica.

— Então terei que explodir um buraco na parede.


O BOSQUE DE ESPINHEIROS ESTAVA SANGRANDO. A seiva que fluía dos troncos das árvores não era mais dourada, e sim vermelha, como se tivesse morrido junto com Elizaveta. Os caules começaram a encolher, os espinhos a murchar. Nikolai se desvencilhou deles, e o sangue de suas mãos e pernas pingou na areia. Seu peito pulsava, mas o único sinal de que ele cravara um espinho em si mesmo era uma cicatriz na forma de estrela. Mais uma para acrescentar à coleção.

A distância, ele podia ver o grande palácio desmoronando, seus pináculos desabando. O que vai restar?, ele se perguntou. E como ele e Zoya escapariam daquele lugar?

Ele cambaleou até ela. Estava deitada em uma cama de espinheiros e flores de marmeleiro vermelhas murchas, com o cabelo espalhado ao redor do rosto. Diante dela, uma pilha escura de abelhas mortas se erguia entre os galhos. Sankta Elizaveta. A poucos passos de distância, ele viu uma pilha de ossos, tanto de urso como de homem, desintegrando-se e sendo levada pela brisa. Será que aquele mundo inteiro viraria poeira?

Ele se ajoelhou ao lado de Zoya e conferiu sua pulsação. Estava firme. Ficou surpreso ao ver duas pulseiras de escamas pretas nos pulsos dela.

— Zoya — ele chamou, sacudindo-a gentilmente. — Comandante Nazyalensky.

Os cílios dela tremularam e ela olhou para ele. Nikolai recuou bruscamente. Por um momento, achou que tinha visto... Não, era impossível. Zoya o encarou com olhos azuis brilhantes.

— Você está bem? — ele perguntou.

— Sim — ela respondeu.

— Tem certeza?

— Qual de nós terá o prazer de matar o monge?

— Você está bem.

Ele a ajudou a se levantar e eles foram para onde Yuri estava enterrado, até o pescoço, em areia. Em algum momento o traidor tinha desmaiado. Sangue pingava do seu nariz.

Nikolai suspirou.

— Odeio dizer isso, mas vamos ter que deixá-lo vivo. Preciso de todas as informações que pudermos obter sobre o Culto do Sem Estrelas e como os Santos nos trouxeram para cá. Acho que pode ter sido Elizaveta que abriu minhas correntes na noite em que escapei do palácio.

— Como?

— Ela disse que o poder deles podia se estender além da Dobra, mas só para onde a fé das pessoas era mais forte. Yuri estava no palácio naquela noite. Talvez Elizaveta o tenha usado para fazer suas videiras ou insetos passarem pelos meus guardas.

Zoya bufou.

— Foi você que o convidou.

— Você pode escolher o convidado para o próximo jantar. Eu quero respostas, então o monge fica vivo. Por enquanto.

— Que tal uma tortura leve, então? Ou você pode só me deixar chutar a cabeça dele pela próxima hora.

— Não há nada que eu apreciaria mais, mas já me senti melhor e prefiro não morrer nestas roupas. Precisamos ver se conseguimos achar um jeito de sair daqui.

Zoya tirou as dunas que cobriam Yuri e eles o arrastaram de costas. Amarraram as mãos dele com faixas de tecido do kefta de Zoya e o amordaçaram, por precaução.

— Nikolai — disse Zoya, apoiando uma mão no braço dele enquanto conjurava um catre de ar para carregar o monge. — Pelo menos funcionou? Você está livre?

Nikolai deu uma piscadela.

— Tão livre quanto jamais estarei.

Ele não teve coragem de contar a ela que ainda podia sentir o monstro em algum lugar dentro de si – enfraquecido, lambendo as feridas, mas esperando a oportunidade de se erguer de novo.


Qualquer que fosse o poder que os aprisionava em um crepúsculo permanente tinha morrido com os Santos. Nikolai e Zoya estavam caminhando havia menos de uma hora quando viram as primeiras estrelas cintilando.

Seguiram em frente, apesar dos ferimentos e da fadiga,, até que viram luzes a distância e, por fim, o cinza morto das areias da Dobra deu lugar a campos suaves. Por mais que Nikolai tivesse adorado se aproveitar da hospitalidade de um fazendeiro, eles não podiam arriscar ser descobertos, então se abrigaram em um velho galpão de equipamentos. Era úmido e desconfortável, mas era isso ou repousar sob os galhos de um pomar de ameixas, e Nikolai não tinha a mínima vontade de estar perto de uma árvore.

Foi um prazer fechar os olhos e sentir o sono dominá-lo. Ele nunca mais menosprezaria aquela experiência.

Zoya partiu para Kribirsk antes do alvorecer e voltou mais rápido que o esperado, com cavalos, um embrulho cheio de roupas de viagem e um jovem Curandeiro Grisha para tratar das feridas de Nikolai.

— Sinto muito, Alteza — desculpou-se o rapaz enquanto fechava os buracos nas mãos de Nikolai. — Provavelmente vai deixar uma cicatriz. Ainda estou em treinamento.

— Uma cicatriz charmosa? — perguntou Nikolai.

— Bem... uma profunda?

— Serve também.

Quando ele terminou, Zoya o mandou embora.

— Fale disso com qualquer um e eu considerarei traição. — Ela fixou o olhar duro no rapaz e acrescentou: — E traição é punida com enforcamento.

Ele recuou pela porta aos tropeços.

— Sim, comandante. É claro, comandante.

Zoya franziu o cenho e sacudiu a cabeça.

— Eu juro, eles saem do treinamento cada vez mais moles. Um olharzinho e ele estava prestes a pedir seus sais aromáticos.

Nikolai não disse nada. Dessa vez, não se equivocara. Quando Zoya tinha olhado para o garoto, seus olhos cintilaram prateados e suas pupilas se transformaram em fendas. Por um momento, ele estivera olhando para os olhos do dragão. O que exatamente ela fizera para libertá-los? Essa questão teria que esperar até estarem novamente a salvo, no palácio.

Eles ignoraram a exaustão e cavalgaram depressa pelo resto do dia. Ocasionalmente, Nikolai sentia uma pontada no peito, como se o espinho ainda estivesse alojado ali. Yuri permaneceu sentado, silencioso e trêmulo em suas amarras, o capuz abaixado sobre o rosto.

Eles logo descobriram que o que quer que tivesse acontecido no Não Mar tinha sido sentido por toda Ravka, talvez até além. Terremotos foram relatados tão ao norte quanto Ulensk e tão ao sul quanto Dva Stolba. Nikolai sabia que haveria outras consequências. Três dos Grishas mais poderosos do mundo haviam morrido e o ritual definitivamente não ocorrera como planejado.

Antes de entrarem em Os Alta, Zoya atou as mãos de Nikolai e amarrou cordas às rédeas dos cavalos dele e de Yuri para que parecessem prisioneiros enquanto ela os conduzia pela cidade baixa, através do grande canal e pelas largas avenidas que os levariam numa elevação suave até os portões dourados do palácio. Ela não viu estandartes de luto, nenhuma bandeira a meio mastro. Ninguém estava quebrando coisas nas ruas. Ou Nikolai era decididamente menos popular do que esperava ou, de alguma forma, Genya e David tinham conseguido manter segredo sobre o desaparecimento.

Nikolai estava dividido entre expectativa e temor. Quando Zoya fora a Kribirsk, ele havia tirado a mordaça do monge e rapidamente entendido que, por pior que as coisas estivessem, elas iam piorar muito mais. Abra a porta. Ele tinha aberto – e algo terrível a atravessara.

No entanto, ao primeiro vislumbre da águia dupla coroada nos portões e do telhado dourado do Grande Palácio a distância, seu coração ficou mais leve. Ele estava em casa. Tinha sobrevivido e, mesmo que não estivesse curado, de alguma forma ele, Zoya e os outros encontrariam um modo de seguir em frente. O demônio dentro dele o conhecia bem, mas agora Nikolai conhecia o demônio também.

Zoya foi até os guardas de vigia, jogou o capuz para trás e ordenou:

— Abram para a sua comandante.

Os guardas imediatamente se empertigaram.

— Moi soverenyi.

— Estou cansada e tenho prisioneiros para apresentar aos outros membros do Triunvirato.

— Há ordens para trazê-los?

— Eu me responsabilizarei por eles. Mas, se quiser me fazer esperar mais tempo por um banho quente, também assumirei a responsabilidade pela sua morte lenta.

O guarda pigarreou e fez uma mesura.

— Bem-vinda, comandante.

Os portões se abriram.


Estava óbvio que alguma festa grande estava ocorrendo. As passarelas estavam iluminadas com lanternas, e música fluía das janelas cintilantes do Grande Palácio.

— É possível eles terem seguido em frente com o plano? — perguntou Zoya, perplexa.

— Como eles podem dar um baile para um rei que não está aqui? — perguntou Nikolai. Não poderiam ter tentado esculpir alguém para tomar o lugar dele, poderiam? Não haveria tempo para treiná-lo, especialmente para um evento que determinaria tanta coisa.

— Talvez eles tenham vestido um espantalho e colocado sua coroa na cabeça dele — disse Zoya.

— Eu deveria adotar essa estratégia para as reuniões do conselho.

Eles não sabiam o que poderia aguardar no interior, então verificaram se as amarras do monge estavam firmes e lhe deram uma gota da poção de sono de Genya, por segurança. Deixaram-no atrás de uma sebe e concordaram em se separar até encontrar um membro do Triunvirato ou alguém com quem pudessem falar sem causar um rebuliço.

Nikolai seguiu até o flanco sul do palácio, atendo-se às sombras enquanto a música flutuava da festa lá dentro. Ele captou movimento no conservatório. Um casal num encontro secreto? Ele os deixaria em paz. Apressou-se pela parede de vidro pontilhada com laranjeiras em miniatura e estava prestes a virar o canto quando viu... ele mesmo.

Uma pontada de pânico o abalou, sua mente disparando com pensamentos confusos. E se ele não fosse mais Nikolai? E se fosse só o monstro? E se ainda estivesse na Dobra crepuscular e aquilo fosse tudo um sonho? Ele olhou para as mãos – tinham cicatrizes, mas eram humanas, sem garras. Eu sou Nikolai Lantsov. Estou aqui. Estou em casa.

Ele olhou de volta através do vidro. O outro ele estava parado entre as árvores frutíferas e as fontes do conservatório, as medalhas reluzindo na faixa azul-clara em seu peito. Então era por isso que não houvera pânico no campo ou nas cidades, nenhuma bandeira de luto hasteada: eles tinham usado o plano dele. Genya esculpira algum pobre coitado para interpretar o papel do rei.

Nikolai ficou simultaneamente encantado e insultado. Pensar que alguém poderia tomar o seu lugar tão facilmente, bem – um homem mais mesquinho teria se sentido diminuído. No entanto, sua mente não conseguia parar de contemplar as possibilidades. Ele poderia fazer aquele ator aguentar jantares de governo e a inauguração de orfanatos e salas de concerto. Nikolai poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Mas o que o seu novo gêmeo estava fazendo longe dos outros convidados?

A resposta se apresentou usando um vestido verde elaborado e esmeraldas – uma jovem. Uma jovem muito bonita usando o que pareciam ser joias muito caras. Seria a princesa Ehri Kir-Taban? Não havia acompanhantes à vista.

O substituto dele estava andando de um lado para o outro, falando rapidamente. Nikolai não conseguia ouvir o que ele dizia, mas, para o seu grande horror, parecia uma declaração de amor. No que aquele pretendente os estava metendo? E será que Genya e David tinham sancionado aquilo? Aquele era o momento ideal para uma interrupção, mas como exatamente ele poderia fazer isso sem acabar com toda a farsa?

Talvez eu esteja errado e eles estejam discutindo questões de Estado, pensou Nikolai, esperançoso.

Naquele momento, o casal foi em direção um ao outro. O falso rei de Ravka tomou a princesa nos braços. Ela ergueu o rosto para o dele, fechando os olhos e abrindo os lábios. Foi aí que Nikolai viu a faca em suas mãos.


AS PALMAS DE ISAAK ESTAVAM SUADAS. Não fora fácil se livrar de Tolya e Tamar. Os gêmeos eram mercenários experientes com um dom para aparecer onde eram menos desejados.

No entanto, assim que viu Ehri no conservatório, ele soube que teria alegremente se esquivado de mil soldados treinados para estar ali agora. Ele não fazia ideia de como ela escapara dos guardas ou de quanto tempo teria com ela antes de serem descobertos. Só sabia que queria olhá-la para sempre. O vestido dela tinha a cor de peras verdes, suas dobras elaboradas bordadas com falcões. Pentes de esmeralda cintilavam na cascata escura do seu cabelo.

— Nikolai? — ela chamou, espiando no conservatório mal iluminado.

Isaak, ele queria implorar a ela que dissesse. Como seria ouvi-la chamá-lo pelo seu nome verdadeiro?

— Estou aqui — ele sussurrou. Ela se virou e sorriu, e foi como um soco no peito. — Não tinha certeza se você viria.

— Não tinha certeza se eu conseguiria. Minhas damas de companhia não me dão um minuto de sossego desde a aurora. Não achei que encontraria um segundo para escapar delas.

— Estou feliz por ter feito isso. — Era uma declaração absurda, mas ele não conseguia pensar em mais nada.

Ela deu um passo em sua direção e, sem pensar, ele recuou um passo, mantendo a distância entre eles. Ele viu a mágoa no rosto dela e sentiu-se como o pior tipo de idiota.

— Sinto muito — ele disse depressa, embora soubesse que reis não costumavam se desculpar.

Ela apertou as mãos diante do corpo.

— Eu... eu entendi errado?

— Não — ele respondeu. — Não. Mas há algo que preciso contar a você. — Isaak girou nos calcanhares e começou a andar diante das laranjeiras, as flores de aroma doce perfumando o ar. Pensara em incontáveis coisas para dizer, mas nenhuma delas parecia certa no momento. Ele era um garoto pobre de uma pequena cidade. Era um guarda de palácio. Achava que era feliz. Tinha sido feliz até tudo aquilo começar. Mas agora?

Isaak desejava tomá-la nos braços e beijá-la, mas não podia fazer isso quando cada palavra que já dissera a ela era mentira. Ao mesmo tempo, não podia contar a verdade – não quando isso poderia colocar uma nação inteira em risco.

— Ehri... — ele começou. — Se eu não fosse um rei... — Ele hesitou. O que estava tentando perguntar a ela, exatamente? Tentou de novo. — O que você gosta sobre mim?

Ela riu, e o fôlego dele deixou seu peito em uma torrente de gratidão.

— Isso é um teste? Ou seu orgulho só precisa de um afago?

— Meu orgulho sempre precisa de tenros cuidados — ele disse, então xingou baixinho. Aquele era Nikolai falando, e ele não queria ser Nikolai naquela noite. — Espere. Eu direi o que gosto em você. Sua coragem. Sua habilidade com uma espada de treino. O fato de você sempre falar o que está pensando. Como contar histórias da sua casa junto ao lago.

Ela inclinou a cabeça e, por um momento, uma expressão de tristeza absoluta cruzou o rosto dela.

— O que foi? — ele perguntou, querendo só apagar da cabeça dela o que quer que tivesse causado aquela dor.

— Nada — ela disse. — Eu só queria que este momento pudesse durar.

Ele queria dizer a ela que podia, mas não sabia se era verdade. Ele não tinha nada a oferecer. E o problema real era este: ele não fazia ideia do que o Triunvirato queria dele de fato. Será que pediriam a Isaak que interpretasse o papel para sempre enquanto eles governavam Ravka? Ele tinha pensado que nunca poderia ser o rei de que eles precisavam, mas quando jantara com Ehri começara a se perguntar se talvez, com ela ao seu lado, poderia. Será que Genya e os outros permitiriam que a cortejasse? Se eles recusassem, ele teria coragem de impor a sua vontade? E pior, o pensamento que o mantinha insone desde aquela noite feliz na ilha: e se o rei de verdade voltasse e escolhesse Ehri como noiva? Isaak teria que assisti-lo cortejá-la e se casar com ela? Manteria guarda na capela durante o casamento real? Ehri um dia perceberia que o homem com que se casara não era o homem parado naquele conservatório, naquela noite, com o coração doendo de amor?

— Eu queria que pudesse durar também — ele disse. — Queria que não houvesse ninguém no mundo exceto você e eu, que não houvesse países, reis e rainhas.

Ele deu um passo em sua direção e ela se encaixou no círculo dos braços dele. Era ágil, o corpo esguio. Era perfeita.

— Ehri — ele perguntou enquanto se aproximava, enquanto ela inclinava o belo rosto ao convite dele. — Você poderia me amar se eu não fosse um rei?

— Sim — ela respondeu, e ele não entendeu por que seus olhos estavam subitamente marejados. — Eu sei que poderia.

— Qual é o problema? — Ele tomou a bochecha dela nas mãos, enxugando as lágrimas com o dedão.

— Nada — ela sussurrou.

Ele sentiu um tranco, como se ela o tivesse empurrado, e olhou para baixo. Algo estava fincado em seu peito. A mente dele entendeu a forma do objeto enquanto a dor o atingia. Uma adaga. Havia um lobo entalhado no cabo branco. Ele ouviu batidas furiosas contra o vidro, como se um pássaro estivesse tentando entrar no conservatório.

— Por quê? — ele perguntou enquanto deslizava para o chão.

Ela caiu com ele, caindo de joelhos, suas lágrimas fluindo livremente agora.

— Pelo meu país — ela disse, chorando. — Pelo meu irmão. Pela minha rainha.

— Você não entende — ele tentou dizer. Uma risada emergiu dos seus lábios, mas soava errada, como uma bolha estourando.

— Perdoe-me — ela suplicou e arrancou a adaga do corpo dele.

A dor o inundou enquanto ele sentia o jorro quente de sangue do seu ferimento.

Ela deu um beijo suave nos lábios dele.

— Meu único conforto é saber que você jamais poderia ter sido meu. Mas eu sei que teria ficado feliz em ser sua.

— Ehri — ele gemeu enquanto o mundo começava a escurecer.

— Não sou Ehri.

De algum lugar ele pôde ouvir gritos, o som de passos apressados correndo até eles.

— Todos lamentam a primeira flor — ela recitou suavemente.

Quem chora pelas outras que caem?

Isaak assistiu, impotente, enquanto ela virava a adaga e a cravava no próprio coração.


NINA SE VESTIU COM CUIDADO. O vestido era lilás claríssimo, com um corte modesto, perfeitamente adaptado à compleição e figura farta de Mila Jandersdat. Ela não usou joias. Que gemas preciosas uma pobre viúva teria? Mas o maior adorno de uma mulher fjerdana era a sua virtude. Nina sorriu para a garota no espelho, com sua expressão doce e inocente.

Ela trançou o cabelo loiro e o prendeu em uma coroa que teria deixado a Madre Superiora orgulhosa, então se dirigiu para o solário. As grandes janelas de vidro estavam cobertas de geada, e através delas via-se o fosso de gelo e, além dele, os pináculos reluzentes da Ilha Branca. A Corte de Gelo estava tão deslumbrante quanto ela se recordava.

Ela ouviu passos atrás de si e se virou para ver Jarl Brum aproximando-se de braço dado com a esposa. Eles formavam um casal notavelmente bonito, altos e esbeltos.

— Enke Jandersdat — ele cumprimentou calorosamente. — Minha salvadora. Por favor, permita-me apresentar-lhe à minha esposa, Ylva.

Nina fez uma mesura.

— É uma grande honra.

A esposa de Brum tomou a mão de Nina. Seu cabelo castanho espesso caía quase até a cintura, e ela usava um vestido de seda dourado que fazia sua pele marrom brilhar como o outono. Nina conseguia ver de onde Hanne tinha herdado sua beleza.

— A honra é toda minha — disse Ylva. — Fui informada de que meu marido deve a vida a você.

Quando a carroça já estava afastada o suficiente, Nina e Hanne haviam acordado Brum. Elas contaram que tinham vindo correndo depois da explosão e encontrado o corpo dele jogado ao lado da estrada. Ele teve sorte de escapar das águas e do desastre na fábrica com pouco mais que um galo na cabeça. Quaisquer suspeitas que Brum tivesse em relação a Mila Jandersdat tinham sido anuladas pelo fato de que ela permanecera em Gäfvalle quando o casal zemeni e as prisioneiras Grisha fugiram.

Nina e Hanne esperaram pacientemente no convento enquanto Brum voltava à fábrica para ver quem tinha sobrevivido e organizar tudo o que pudesse – e, Nina suspeitava, para certificar-se de que não haveria prova de seus fracassos. Um acidente industrial que resultara na morte de prisioneiras valiosas era uma coisa, mas uma fuga de Grishas bem-sucedida após a humilhação dele na Corte de Gelo no ano anterior teria sido desastrosa para a sua carreira. E era muito importante para Nina que Jarl Brum não perdesse sua posição vantajosa na hierarquia fjerdana. Para o plano que ela tinha em mente, precisaria de cada uma das conexões dele e cada oportunidade de acesso a burocratas influentes, comandantes militares e aristocratas.

— Eu não fiz nada — Nina disse a Ylva. — Foi Hanne quem demonstrou verdadeira coragem.

— E essa é outra dívida que temos com você — afirmou Ylva. — Jarl me diz que você é responsável pela mudança notável em nossa filha.

— Não posso aceitar o crédito! Atribuo isso à sua própria influência e à tutela firme da Madre Superiora, que Djel a tenha.

Os Brums assentiram solenemente, então o rosto de Ylva abriu-se num sorriso largo.

— Hanne! — ela exclamou quando a filha entrou na sala.

A verdade era que Nina merecia muito crédito pela transformação de Hanne. Ela ensinara a garota a vestir-se de modo a favorecer seu corpo alto e esguio; ensinara a ela como se portar com os ombros para trás e caminhar com a graça de uma dama; e, é claro, a ensinara a atuar. Quanto à confiança de Hanne, ela encontraria um modo de merecê-la e, talvez, até de ser digna dela. De alguma forma.

Ylva abraçou a filha enquanto Brum dizia a Nina:

— Hanne me diz que está enfim preparada a deixar de lado seus caprichos tolos e encontrar um marido. Não sei que magia realizou com ela, mas sou grato. Ela está muito mudada.

Ela era perfeita antes, pensou Nina. Ou teria sido, se você não a tivesse podado e puxado como um jardineiro tentando moldar uma moita rebelde.

Nina sorriu.

— Acho que era só questão de tempo até Hanne descobrir quem ela estava destinada a ser.

— Você precisa aprender a aceitar um elogio, Mila. — Ele deu um beijo nas costas da mão dela. — Espero que o faça, com o tempo. — Ele bateu as mãos uma vez. — Vamos jantar?

Hanne virou-se para o pai, o rosto feliz e sereno. Seu vestido era castanho-escuro avermelhado e suas sardas pareciam pólen nas bochechas. Seu cabelo ainda estava rente à cabeça.

— Temo que diversos generais tenham vindo discutir questões de guerra enfadonhas. Vadik Demidov em pessoa logo chegará à capital — informou Brum. Nina esperava que sim. Ela pretendia descobrir tudo que pudesse sobre o pretendente Lantsov e os planos de guerra de Fjerda. — Vamos tentar não entediar as damas.

— Ficaremos felizes em conversar entre nós, papai — disse Hanne. — Há novos vestidos de Gedringe para discutir.

Ele deu um sorriso indulgente para ela e tomou o braço da esposa.

Assim que tinha virado as costas, Hanne deu uma piscadela para Nina com uma chama no olhar.

— Vamos? — ela perguntou.

Nina tomou a mão de Hanne e elas seguiram Ylva e Jarl Brum para o jantar.

Elas construiriam um mundo novo juntas.

Mas primeiro teriam que queimar o antigo.


ZOYA OUVIU O ALVOROÇO e correu em sua direção. Ela tinha sentido que algo estava errado naquela noite mesmo antes de ouvir o grito de Tolya. Era algo no ar, como se o estalido de raios que ela controlava com tanta facilidade agora estivesse por todo canto, por tudo. Era assim desde que ela reivindicara as escamas de Juris. Ele estava com ela, todas as vidas dele, tudo o que aprendera, os crimes que cometera, os milagres que realizara. Seu coração batia junto ao dela – seu coração de dragão – e ela conseguia sentir aquele ritmo conectando-a a tudo. A criação no coração do mundo. Será que ela havia acreditado antes? Talvez. Mas não tinha se importado. Poder significava proteção – e obtê-lo e aperfeiçoá-lo era a única defesa possível contra toda a dor que ela já sentira. Agora era algo a mais.

Tudo estava diferente. Sua visão parecia mais afiada, como se a luz delineasse cada objeto. Ela conseguia cheirar a grama verde lá fora, a fumaça de lenha no ar, até o mármore – nunca havia percebido que o mármore tinha um aroma. Naquele momento, correndo pelos corredores familiares em direção ao clamor no conservatório, ela não sentia medo, só um senso de urgência por resolver, de alguma forma, os problemas que sabia que encontraria.

Mas jamais teria antecipado o caos que a esperava. Fechou as portas do conservatório e anuviou o vidro com névoa para o caso de alguém passar. A segurança tinha desmoronado sem ela ali – o que não era nenhuma surpresa.

Tamar estava ajoelhada ao lado de uma jovem shu com uma adaga no peito. Genya estava chorando. Tolya, David e Nikolai, ainda usando as roupas de prisioneiro, estavam parados ao redor de outro corpo – um cadáver surpreendentemente parecido com o rei. Todos estavam gritando ao mesmo tempo.

Zoya os silenciou com uma trovoada.

Em conjunto, o grupo se virou para ela – e imediatamente ergueu as mãos, prontos para lutar.

— Como sabemos que é mesmo você? — perguntou Genya.

— É mesmo ela — disse Nikolai.

— Como sabemos que é mesmo você? — rosnou Tamar, sem interromper o trabalho que fazia na garota shu. Parecia um esforço vão. O rosto da garota ainda tinha cor, mas a adaga parecia ter perfurado seu coração. Zoya se recusou a olhar com mais atenção para o outro corpo. Era difícil não pensar em Nikolai empalado no bosque de espinheiros, seu sangue molhando as areias da Dobra.

— Genya — respondeu Zoya calmamente. — Uma vez eu fiquei bêbada e insisti que você me deixasse loira.

— Intrigante! — surpreendeu-se Nikolai. — Como foi o resultado?

— Ela ficou um espetáculo — garantiu Genya.

Zoya limpou poeira da manga.

— Ficou vulgar.

Genya abaixou as mãos.

— Acalmem-se. É ela. — E no momento seguinte, ela abraçou Zoya com força enquanto Tolya tomava Nikolai nos braços enormes e o erguia do chão. — Onde diabos estavam?

— É uma longa história — disse Nikolai, pedindo que Tolya o abaixasse.

Zoya queria se aferrar a Genya, sentir o aroma de flores em seu cabelo, fazer mil perguntas. Em vez disso, se afastou e indagou:

— O que aconteceu aqui?

— A adaga é fjerdana — explicou Tolya.

— Talvez — disse Nikolai. — Mas foi empunhada por uma garota shu.

— O que está dizendo? — perguntou Tamar enquanto trabalhava freneticamente para recuperar a pulsação da garota. — Ela também foi atacada.

— No coração? — perguntou Zoya.

— Não — respondeu Tamar. — Isso estaria além das minhas habilidades. A adaga acertou um pouco para a direita.

— Consegue salvá-la? — perguntou Genya.

— Não sei. Só estou tentando estabilizá-la. O resto vai depender dos nossos Curandeiros.

— Eu vi tudo acontecer — disse Nikolai. — Ela o atacou... me atacou? Atacou ele. Então virou a lâmina para si.

— Então os shu estão tentando culpar Fjerda? — perguntou Tolya.

As lágrimas de Genya recomeçaram a escorrer. Ela se ajoelhou e tocou a bochecha do impostor.

— Isaak — murmurou.

— Quem? — perguntou Zoya.

— Isaak Andreyev — sussurrou Nikolai, ajoelhando-se ao lado do corpo. — Soldado de primeira classe. Filho de um professor e de uma costureira.

Tolya passou uma mão sobre os olhos.

— Ele não queria nada disso.

— Você consegue restaurar as feições dele? — perguntou Nikolai.

— É mais difícil sem um fluxo sanguíneo — disse Genya. — Mas eu posso tentar.

— Devemos pelo menos isso à mãe dele. — Nikolai balançou a cabeça. — Ele sobreviveu ao front. Não deveria mais correr perigo.

Genya conteve um soluço.

— Nós... nós sabíamos que estávamos colocando-o em risco. Achamos que estávamos fazendo a coisa certa.

— A princesa está respirando — anunciou Tamar. — Precisamos levá-la aos Corporalki no Pequeno Palácio.

— Isso não faz sentido — disse Genya. — Por que não assassinar só o rei... ou o homem que ela acreditava ser o rei? Por que tentar se matar também? E por que uma princesa se sacrificaria para fazer o serviço?

— Ela não se sacrificou — interveio Nikolai. — Me arranje roupas novas. Vou voltar à festa e encerrar os trabalhos. Eu quero ter uma palavrinha com Hiram Schenck. Ele é o membro de mais alto escalão do Conselho Mercador Kerch presente aqui, não é?

— Sim — disse Genya. — Mas não está feliz com você.

— Está prestes a ficar. Por um tempo. Mantenha as portas do conservatório fechadas e deixe o corpo de Isaak aqui.

— Não deveríamos... — começou Tolya, mas Nikolai ergueu uma mão.

— Só por enquanto. Prometo que ele terá o enterro que merece. Leve a delegação shu aos aposentos do meu pai daqui a uma hora.

— E se as guardas da princesa Ehri soarem o alarme? — perguntou Genya.

— Não vão — disse Zoya. — Não antes de saber que o plano delas foi bem-sucedido e que o rei está morto.

Nikolai se ergueu, como se suas feridas não o incomodassem mais, como se os horrores dos dias anteriores não tivessem ocorrido, como se o demônio dentro dele tivesse sido, enfim, conquistado.

— Então, vida longa ao rei.


Duas horas depois, as festividades haviam se reduzido a alguns bêbados alegres cantando na fonte da águia dupla. A maioria dos convidados tinha ido dormir para se recuperar de todos os prazeres da noite ou escapado para algum canto sossegado dos jardins, a fim de experimentar mais alguns.

Zoya e os outros haviam retornado ao conservatório, e, quando Nikolai entrou, arrastava consigo uma guarda shu com uma expressão aterrorizada. Ela tinha um rosto magro e comum e usava o uniforme da Tavgharad, seu longo cabelo preto amarrado no topo da cabeça.

— Mayu Kir-Kaat — disse Tamar. — O que ela está fazendo aqui?

Ao ver o corpo no chão ao lado dos limoeiros, a guarda começou a tremer.

— Mas ele... — Ela olhou para o rei morto e, então, de volta para Nikolai. — Mas você... onde está a princesa?

— Que pergunta fascinante — disse Nikolai. — Presumo que se refira à garota que encontramos com uma adaga no peito a um centímetro da aorta... Se foi graças à sorte ou à falta de determinação, julgue por si mesma. No momento ela está se recuperando com os nossos Curandeiros.

— Você deve devolver a princesa real aos nossos cuidados — cuspiu a guarda.

— Ela não é princesa coisa nenhuma — disparou Nikolai, ríspido. — E a hora para essas encenações já passou. Um homem inocente morreu esta noite, só para vocês conseguirem começar uma guerra.

— Ele vai explicar alguma coisa? — sussurrou Genya. Zoya se perguntava a mesma coisa.

— Com todo o prazer — respondeu Nikolai, gesticulando para a guarda. — Gostaria que todos conhecessem a princesa real Ehri Kir-Taban, a filha favorita dos shu, segunda na linha de sucessão.

— Isso é mentira — sibilou a guarda.

Nikolai agarrou a mão dela.

— Primeiro, nenhuma guarda da Tavgharad permitiria que um homem tomasse o seu punho como a última ameixa açucarada. — A guarda deu um puxão atrasado para tentar soltar a mão. — Segundo, onde estão os calos dela? Uma soldada os teria na base das palmas, como Isaak. Em vez disso, estão na ponta dos dedos. Esses são calos que se adquire tocando...

— O khatuur — completou Zoya. — Dezoito cordas. A princesa Ehri é uma instrumentista proficiente.

— Então eles plantaram uma assassina no lugar da princesa para se aproximar do rei — disse Tamar. — Mas por que ela tentaria se matar também?

— Para lançar mais suspeitas sobre os fjerdanos? — perguntou Genya.

— Sim — respondeu Nikolai —, e para dar aos shu um motivo para declarar guerra. O monarca de Ravka morto e um membro da família real shu assassinado... Os shu teriam todo o pretexto necessário para marchar seus exércitos sobre o nosso país sem líder e usá-lo como base para atacar a fronteira sul de Fjerda. Chegariam em massa, sem qualquer intenção de partir.

Agora a guarda – ou melhor, a princesa – fechou os olhos como se admitisse derrota. Mas ela não chorou e não estremeceu.

— O que você ia fazer, princesa? — perguntou Nikolai, soltando a mão dela.

— Eu teria um novo nome, uma nova vida no interior — ela respondeu suavemente. — Nunca gostei de política ou da vida na corte. Eu ficaria livre para tocar música e me apaixonar por quem quisesse.

— Que bela cena você pinta — disse Nikolai. — Se não fosse um perigo ao futuro do meu país, sua falta de astúcia seria charmosa. Acredita mesmo que sua irmã ia deixá-la viver em algum vilarejo de montanha? Pensou de fato que sobreviveria a essa conspiração?

— Eu nunca desejei a coroa! Não sou uma ameaça à minha irmã!

— Pense — disparou Zoya, perdendo a paciência. — Você é popular, adorada, a filha que todos querem no trono. Sua morte é o estopim que levaria uma nação inteira para a guerra. Como sua irmã poderia deixá-la viva e arriscar que a verdade fosse descoberta? Você não seria nada exceto um risco.

A princesa empinou o queixo pontudo.

— Não acredito nisso.

— Suas guardas foram presas — disse Zoya. — Suspeito que uma delas tinha ordens para fazê-la desaparecer antes de sequer chegar ao seu retiro pastoral. Pode interrogá-las pessoalmente.

Ehri conseguiu, de alguma forma, empinar o queixo ainda mais alto.

— Eu terei um julgamento ou serei simplesmente executada?

— Não terá essa sorte — garantiu Nikolai. — Não, eu tenho um destino muito pior em mente para você.

— Serei sua refém?

— Não gosto muito de apelidos carinhosos, mas pode chamar assim se quiser.

— Realmente pretende me manter aqui?

— Ah, sim. Não como minha prisioneira, mas como minha rainha.

Zoya ficou surpresa ao ver como as palavras causaram uma pontada em seu... o quê? Coração? Orgulho? Ela sempre soubera que aquele fim era inevitável. Era o objetivo pelo qual ela lutara e insistira. Então por que ela sentia como se tivesse deixado seu flanco aberto outra vez?

— Nosso noivado vai me render um dote glorioso — disse Nikolai — e a sua popularidade entre seu povo impedirá sua irmã de invadir nossas fronteiras.

— Eu não aceito isso — protestou Ehri, com uma expressão feroz: o semblante de uma rainha.

— É isso ou a execução, minha pombinha. Pense assim: você não será enforcada, mas o custo é uma vida de luxo e a minha companhia cintilante.

— Sugiro considerar a forca — disse Zoya. — Mais rápida e menos dolorosa. — Era bom falar assim, provocá-lo enquanto ela ainda podia.

Nikolai assentiu para Tolya e Tamar.

— Levem-na de volta a seus aposentos e fiquem de olho nela. Até anunciarmos o noivado real, há uma boa chance de que ela tente fugir ou se matar.

— O que faremos com a garota ferida? — perguntou Genya depois que a princesa fora escoltada do conservatório e os gêmeos tinham retornado.

— Mantenha-a sob guarda pesada no Pequeno Palácio. Mesmo ferida, ela é um membro da Tavgharad. Não podemos nos esquecer disso.

— A Mayu de verdade chegou a querer desertar?

— Acho que sim — respondeu Tamar. — Ela tem um irmão gêmeo. Acho que ele ia ser treinado para se tornar khergud. Talvez ela tivesse esperança de tirar os dois de Shu Han.

— Kebben — disse Tolya, apoiando uma mão no ombro da irmã. Zoya não conhecia a palavra. — Se descobriram suas intenções, podem ter usado a vida dela para barganhar pela liberdade do irmão.

— Devemos ter uma conversa interessante quando ela recobrar a consciência — comentou Nikolai. Ele se ajoelhou ao lado de Isaak outra vez. — Vou escrever uma carta para a mãe dele amanhã. Podemos ao menos dar uma pensão de herói e garantir que não falte nada à família.

— E o corpo? — perguntou Tolya em voz baixa.

— Leve-o pelos túneis até Lazlayon.

Genya roçou os dedos na lapela de Isaak.

— Vou começar o trabalho nele imediatamente. Ele... ele não hesitou. Quando explicamos o que estava em jogo...

Tolya ergueu o corpo de Isaak cuidadosamente em seus braços enormes.

— Ele tinha o coração de um rei.

— O que você disse a Hiram Schenck? — perguntou Genya, enxugando lágrimas frescas do seu rosto marcado por cicatrizes. — O sorriso dele estava largo como uma casca de melão.

— Eu dei a ele os planos para nossos submersíveis.

— Os izmars’ya? — perguntou Tamar.

— Armados? — indagou Tolya, com uma expressão preocupada.

— Temo que sim. Pelo que entendi — continuou Nikolai —, o Apparat desapareceu e Fjerda está marchando em apoio a um impostor Lantsov. Ele é bonito?

Tamar franziu o cenho.

— O Apparat?

— O impostor Lantsov. Acho que não importa. Mas, sim, eu dei os planos reais a Schenck. Nós vamos entrar em guerra; teremos extrema necessidade de fundos kerches, assim como dos nossos amigos shu.

— Os zemeni... — protestou Tolya.

— Não se preocupem — disse Nikolai. — Eu dei a Schenck o que ele queria, mas ele vai descobrir que não é o que precisa. Às vezes temos que alimentar o demônio.

— O que isso significa? — quis saber Genya. — E vocês vão contar aonde foram?

— Ou se encontraram a cura? — perguntou Tamar.

— Encontramos — respondeu Nikolai. — Mas não durou muito tempo.

— Então o monge não ajudou em nada? — perguntou Tolya.

Nikolai encontrou o olhar de Zoya. Ela respirou fundo, então assentiu. Era hora de informar os outros.

— Temos más notícias.

— Mais? — perguntou Genya.

— É Ravka — Nikolai e Zoya responderam em uníssono.

— Há sempre mais — ela o ouviu terminar enquanto ia à antecâmara para recuperar o prisioneiro, cujas mãos estavam firmemente atadas. Ela o tinha acordado com a garrafa vermelha de Genya e gostara do modo como ele se assustou, a breve confusão em seus olhos.

— Yuri? — disse Genya. — O que ele fez? Entediou alguém até a morte?

Zoya deu um puxão na corda e o monge deu um passo à frente, entrando inteiramente no alcance da luz. Seu capuz caiu para trás.

Genya arquejou e recuou, a mão voando para o tapa-olho que cobria seu olho perdido.

— Não. Não pode ser. Não.

Nikolai colocou uma mão tranquilizadora em seu ombro.

O monge ainda era alto e magro demais, mas se movia com uma nova graciosidade. Seu rosto era liso e os óculos tinham sido descartados. Seu cabelo estava mais escuro, afastado da testa, e suas próprias feições pareciam ter sido alteradas – os ossos aparados criavam linhas mais afiadas e elegantes. Seus olhos cintilaram cinza, da cor de quartzo.

Tamar entrou na frente de Genya como se quisesse protegê-la.

— Impossível.

— Improvável — corrigiu Nikolai gentilmente.

Quando Zoya destruíra o receptáculo que Elizaveta tinha tão amorosamente preservado, ela vira uma sombra sair do fogo, mas não entendera o que isso significara no momento. O poder do Darkling tinha se fraturado – parte dele permanecia no soldado de sombras ferido que o ritual quase tinha destruído e que ainda vivia dentro de Nikolai. Mas o resto, o espírito que começara a sangrar daquele soldado e a entrar no corpo que Elizaveta havia preparado... Zoya deveria saber que o Darkling não perderia uma chance de conquistar sua liberdade.

Yuri realizara seu desejo: ajudara seu Santo a retornar. Será que o jovem monge cedera o corpo de bom grado? Alegremente? Ou, naqueles momentos finais de fogo e terror, tinha implorado para preservar a vida? Zoya sabia que não haveria misericórdia do Santo Sem Estrelas. O Darkling não atendia a preces.

Nikolai tinha feito a descoberta no galpão onde eles se abrigaram, nas horas em que Zoya estivera a caminho de Kribirsk.

— Deixe-me matá-lo — ela dissera a Nikolai quando ele lhe mostrara. — Podemos enterrar o corpo dele aqui. Ninguém tem que saber que ele... — Ela tinha tropeçado nas palavras. Ele voltara. Não conseguia dizê-las. Recusava-se.

— Se o matarmos, eu nunca estarei livre do demônio dentro de mim — argumentara Nikolai. — E estamos prestes a entrar em guerra. Pretendo usar cada recurso que tivermos.

Eles o mantiveram amordaçado ao longo da jornada de volta a Os Alta, mas o divertimento que transparecia naqueles olhos cinza familiares eram o suficiente para fazê-la querer torcer o seu pescoço.

Nikolai insistiu que havia um modo de usar o poder dele. Zoya só queria vê-lo queimar outra vez.

Então ela esperaria. Ela podia ser paciente. A fera dentro dela conhecia a eternidade.

Agora Zoya olhou para Genya, que apertava suas mãos com cicatrizes contra a boca, para a fúria de Tolya, para Tamar com os machados empunhados. Olhou para o seu rei e a mulher que logo seria a esposa dele.

Nós somos o dragão e esperaremos o tempo necessário.

— Tantos dos meus velhos amigos reunidos em um só lugar — disse o Darkling, através da boca de um rapaz leal e ingênuo, outro tolo que o amara. — É bom voltar para casa.

 

 

                                                                  Leigh Bardugo

 

 

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