Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
TRÓPICO DE CÂNCER
ESTOU VIVENDO NA VILLA BORGHESE. Não há um resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos.
Ontem à noite, Bóris descobriu que estava com chatos. Tive de raspar-lhe as axilas e mesmo depois disso a coceira não passou. Como pode alguém adquirir chatos num lugar bonito como este? Mas isso não tem importância. Talvez nunca nos tivéssemos conhecido tão intimamente, Bóris e eu, se não fossem os chatos.
Bóris acaba de oferecer-me uma síntese de suas idéias. É um profeta meteorológico. O tempo continuará ruim, diz ele. Haverá mais calamidades, mais morte, mais desespero.
Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando. O herói, então, não é o Tempo, mas a Ausência de Tempo. Precisamos acertar o passo, em ritmo acelerado, em direção à prisão da morte. O tempo não vai mudar.
Estamos no outono do meu segundo ano em Paris. Mandaram-me para cá por uma razão que ainda não consegui compreender.
Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso.
Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.
E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo...
Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.
É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito.
Estamos em vinte e tantos de outubro. Não acompanho mais as datas. Que diz você? Meu sonho de 14 de novembro do ano passado?
Há intervalos, mas ficam entre sonhos e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo.
O mundo é um câncer que está comendo a si próprio... Estou pensando que, quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo, o caos será restabelecido, e o caos é a página sobre a qual a realidade está escrita. Você, Tânia, é o meu caos.
É por isso que canto. Não sou nem eu, é o mundo morrendo, deixando cair a pele do tempo. Eu ainda estou vivo, dando pontapés em seu útero, uma realidade sobre a qual escrever.
Adormecendo. A fisiologia do amor. A baleia com seu pênis de um metro e oitenta, em repouso. O morcego - pênis libre. Animais com um osso no pênis. Daí, um osso espetado... "Felizmente", diz Gourmont, "a estrutura óssea está perdida no homem".
Felizmente? Sim, felizmente. Imagine-se a espécie humana andando de um lado para outro com um osso espetado. O canguru tem pênis duplo: um para os dias úteis e outro para os feriados. Adormecendo. Uma carta de fêmea perguntando se encontrei um título para meu livro. Título? Certamente:
"Adoráveis Lésbias".
Sua vida anedótica! Uma frase do Senhor Borowski. É nas quartas-feiras que almoço com Borowski. Sua esposa, que é uma vaca seca, preside. Ela agora está estudando inglês e sua palavra favorita é "filthy". Isso permite ver imediatamente como são chatos os Borowski. Mas espere... Borowski usa ternos de tecido aveludado e toca harmônica. Combinação insuperável, especialmente se considerarmos que ele não é mau artista. Faz-se passar por polonês, mas naturalmente não é. É judeu, esse Borowski, e seu pai era um filatelista. Na verdade, quase todo Montparnasse é judeu ou meio-judeu, o que é ainda pior. Há Carl e Paula, Cronstadt e Bóris, Tânia e Sylvester, e Moldorf e Lucille. Todos, com exceção de Fillmore. Henry Jordan Oswald também acabou revelando-se judeu. Louis Nichols é judeu. Até mesmo Van Norden e Chérie são judeus. Francês Blake é judeu ou judia. Titus é judeu. Os judeus estão caindo sobre mim como neve. Estou escrevendo isto para meu amigo Carl, cujo pai é judeu. É importante compreender tudo isto.
De todos os judeus, a mais adorável é Tânia, e por ela eu também ficaria judeu. Por que não? Já falo como um judeu. E sou feio como um judeu. Além disso, quem odeia os judeus mais do que o judeu?
Hora do crepúsculo. Azul indiano, água de vidro, árvores reluzentes e liquescentes. Os trilhos desaparecem no canal em Jaurés. A comprida lagarta com os lados esmaltados mergulha qual montanha russa. Não é Paris. Não é Coney Island. É uma mistura crepuscular de todas as cidades da Europa e América Central. Os pátios ferroviários embaixo de mim, os trilhos pretos e trançados, não ordenados pelo engenheiro, mas de desenho cataclísmico, como aquelas sombrias fendas no gelo polar que a câmera registra em tons de preto.
Comida é uma das coisas de que gosto tremendamente. E nesta bela Villa Borghese raramente há indícios de comida. É positivamente pavoroso às vezes. Repetidamente pedi a Bóris que encomendasse pão para o desjejum, mas ele sempre se esquece. Parece que faz seu desjejum fora. E quando volta está pautando os dentes e há um pouco de ovo pendurado em seu cavanhaque. Come no restaurante, por consideração a mim. Diz que lhe dói comer uma grande refeição enquanto olho.
Gosto de Van Norden, mas não partilho de sua opinião a respeito de si próprio. Não concordo, por exemplo, em que ele seja filósofo ou pensador. É obcecado por fêmeas, nada mais. E nunca será um escritor. Sylvester também jamais será um escritor, embora seu nome cintile em lâmpadas vermelhas de 50.000 velas. Os únicos escritores ao meu redor pelos quais tenho algum respeito, atualmente, são Carl e Bóris. São possessos. Brilham por dentro com uma chama branca. Estão mortos e surdos aos tons musicais. São sofredores.
Por outro lado, Moldorf, que também sofre à sua maneira, não é louco. Tem a embriaguez da palavra. Não tem veias ou vasos sangüíneos, nem coração ou rins.
É um armário portátil com inúmeras gavetas e nas gavetas há etiquetas escritas com tinta branca, marrom, vermelha, azul, escarlate, cor de açafrão, cor de malva, castanho-avermelhado, damasco, turquesa, ônix, Anjou, arenque, Corona, verdigris, gorgonzola...
Mudei a máquina de escrever para o aposento ao lado onde posso ver-me no espelho enquanto escrevo.
Tânia é como Irene. Espera cartas gordas. Mas existe outra Tânia, uma Tânia semelhante a uma grande semente, que espalha pólen por toda parte - ou, digamos, um pouco de Tolstói, uma cena de estábulo na qual o feto é desenterrado. Tânia é uma febre também - les voies urinaires. Café de la Liberté, Place des Vosses, gravatas brilhantes no Boulevard de Montparnasse, banheiros escuros. Porto Sec, cigarros Abdullah, sonata patética em adágio, amplificadores auditivos, sessões de anedotas, peitos castanho-avermelhados queimados, ligas pesadas, que horas são, faisões dourados recheados com castanhas, dedos de tafetá, crepúsculos vaporosos transformando-se em azinheiras, acromegalia, câncer e delírio, véus quentes, fichas de pôquer, tapetes de sangue e coxas macias. Tânia diz para que todos ouçam: "Eu o amo!" E, enquanto Bóris se queima com uísque, ela diz: "Sente-se aqui! ó Bóris... Rússia... que farei? Estou estourando!"
À noite, quando olho o cavanhaque de Bóris estendido sobre o travesseiro, fico histérico, ó Tânia, onde estão agora aquela sua boceta quente, aquelas ligas gordas e pesadas, aquelas coxas macias e arredondadas?
Em meu membro há um osso de quinze centímetros de comprimento. Tânia, alisarei todas as pregas de sua vulva, cheia de semente.
Mandá-la-ei de volta para seu Sylvester com a barriga doendo e o útero virado. Seu Sylvester! Sim, ele sabe acender um fogo, mas eu sei inflamar uma vagina. Enfiarei pregos quentes em você, Tânia. Deixarei seus ovários incandescentes. Seu Sylvester agora está um pouco ciumento? Ele sente alguma coisa, não sente? Sente os remanescentes de meu grande membro. Deixei as margens um pouco mais largas. Alisei as pregas. Depois de mim, você pode receber garanhões, touros, carneiros, cisnes e São Bernardos. Pode enfiar pelo reto sapos, morcegos, lagartos. Você pode defecar arpejos ou amarrar uma citara sobre o umbigo. Eu estou fedendo, Tânia, para que você fique fornicada.
E se tem medo de ser fornicada em público, eu fornicarei privativamente. Arrancarei alguns pêlos de sua vulva e os grudarei no queixo de Bóris. Morderei seu clitóris e cuspirei moedas de dois francos...
Céu de anil limpo de onde foram varridas as nuvens felpudas, árvores magras infinitamente estendidas, com seus galhos pretos a gesticular como um sonâmbulo. Arvores sombrias e espectrais, de troncos pálidos como cinza de charuto. Silêncio supremo e absolutamente europeu. Venezianas cerradas, lojas fechadas. Um brilho vermelho aqui e acolá para marcar encontro. Fachadas bruscas, quase proibitivas; imaculadas, não fossem as manchas de sombra que as árvores lançam. Passando pela Orangerie, lembrei-me de outra Paris, a Paris de Maugham, de Gauguin, a Paris de George Moore.
Penso naquele terrível espanhol que então espantava o mundo com seus saltos acrobáticos de um estilo para outro. Penso em Spengler e seus terríveis pronunciamentos e pergunto se o estilo, o estilo à grande maneira, morreu. Digo que meu espírito está ocupado com esses pensamentos, mas não é verdade; somente mais tarde, depois de ter atravessado o Sena, depois de ter deixado para trás o carnaval de luzes, é que permito a meu espírito brincar com essas idéias. No momento, não posso pensar em nada - exceto em que sou um ser senciente ferido pelo milagre destas águas que refletem um mundo esquecido. Ao longo de toda a extensão das margens, as árvores curvam-se pesadamente sobre o espelho embaçado; quando o vento se ergue e as enche de um murmúrio farfalhante, elas derramam algumas lágrimas e estremecem sobre a água rodopiante que passa. Estou sufocado por isto. Ninguém a quem possa comunicar sequer uma fração de meus sentimentos...
O mal de Irene é ter uma valise em lugar de vulva. Quer cartas gordas para enfiar na valise. Imensa, avec de choses inoüíes.
Agora, Llona tem uma boceta. Sei disso porque ela nos mandou alguns pêlos arrancados bem do fundo. Llona - uma égua selvagem cheirando prazer no vento. Em todo monte alto ela fez o papel de puta - e às vezes também em cabinas telefônicas e lavatórios. Ela comprou uma cama para o Rei Carol e um púcaro para sabão de barba com as iniciais dele. Deitava-se em Tottenham Court Road com o vestido levantado e fazia com os próprios dedos. Usava velas, velas romanas, e trincos de porta. Não havia na terra membro tão grande que lhe servisse... nenhum. Homens entravam nela e fraquejavam. Ela os queria com extensão, foguetes explosivos, óleo fervente feito de cera e creosoto. Cortaria o seu e o conservaria dentro dela, se você lhe desse permissão. Uma boceta como não se encontra em um milhão, Llona! Uma vagina de laboratório, sem papel de tornassol que pudesse tomar-lhe a cor. Era uma mentirosa também, essa Llona. Jamais comprou uma cama para o seu Rei Carol. Coroou-o com uma garrafa de uísque e sua língua estava cheia de chatos e amanhãs. Pobre Carol, dentro dela ele só poderia fraquejar e morrer. Uma chupada, e ele caiu para fora - qual morta lesma.
Cartas enormes e gordas, avec dês choses inouies. Uma valise sem alças. Um buraco sem chave. Ela tinha boca alemã, orelhas francesas, bunda russa. Vagina internacional.
Quando hasteava a bandeira, era vermelha em toda a extensão até a garganta. Você entrava no Boulevard Jules-Ferry e saía na Porte de Ia Villette. Você jogava seu pâncreas em carrinhos de mão - carrinhos de mão vermelhos, com duas rodas, naturalmente. Na confluência do Ourca e Marne, onde a água escorre através dos diques e pára como vidro sob as pontes. Llona lá jaz agora e o canal está cheio de vidro e de lascas; as mimosas choram e há sobre as vidraças um peido úmido e nevoento.
Uma vulva como não se encontra em um milhão, era Llona! Só vulva, e um traseiro de vidro no qual se podia ler a história da Idade Média.
É a caricatura de um homem o que Moldorf apresenta a princípio. Olhos de tireóide. Lábios Michelin. Voz como sopa de ervilha.
Por baixo do colete, leva uma pequena pêra. Todavia, olhando-o, a gente sempre vê o mesmo panorama: caixinha de rape enfeitada, cabo de marfim, peça de xadrez, leque, motivo de igreja. Já fermentou durante tanto tempo, que é amorfo. Fermento privado de suas vitaminas. Vaso sem a sua planta de borracha.
As fêmeas eram cobertas duas vezes no século IX e também durante a Renascença. Ele foi levado durante as grandes dispersões sob barrigas amarelas e brancas. Muito tempo antes do Êxodo, um tártaro cuspiu-lhe no sangue.
Seu dilema é o de um anão, com o olho pineal enxerga em silhueta projetada sobre tela de incomensurável tamanho. Sua voz, sincronizada com a sombra de uma cabeça de alfinete, intoxica-o. Ele ouve um rugido onde outros ouvem apenas um rangido.
Há sua mente. É um anfiteatro onde o ator tem atuação protéica. Moldorf, multiforme e impecável, vai através de seus papéis - palhaço, prestidigitador, contorcionista, padre, devasso, saltimbanco. O anfiteatro é excessivamente pequeno. Ele põe-lhe dinamite no interior. A platéia está entorpecida. Ele machuca-a.
Estou tentando inutilmente aproximar-me de Moldorf. É o mesmo que tentar aproximar-me de Deus, pois Moldorf é Deus - nunca foi outra coisa. Estou simplesmente registrando palavras.
Tive sobre ele opiniões que abandonei; tive outras, que estou reexaminando. Fixei-o apenas para descobrir que não era um besouro de estéreo que tinha nas mãos, mas uma libélula. Ele me ofendeu com sua brutalidade e depois me dominou com sua delicadeza. Mostrou-se volúvel até a sufocação e depois calmo como o Jordão.
Quando o vejo avançando a trote para cumprimentar-me, patinhas estendidas, olhos transpirando, sinto que estou encontrando...
Não, esta não é maneira de tratar caso!
"Comme un oeuf dansant sur un jet d"eau"
Ele tem apenas uma bengala, uma bengala medíocre. Em seu bolso há pedaços de papel com receitas para Weltschmerz. Agora está curado e a mocinha alemã que lhe lavava os pés está desolada. É como o Senhor Nulidade, folheando seu dicionário Gujurati em toda parte. "Inevitável para todos" - querendo dizer, sem dúvida, indispensável.
Borowski acharia isto tudo incompreensível. Borowski tem uma bengala diferente para cada dia da semana, e outra para a Páscoa.
Temos tantos pontos em comum que é como se eu visse minha própria imagem em um espelho rachado.
Estive olhando meus manuscritos, páginas rabiscadas com correções. Páginas de literatura. Isto me assusta um pouco. É tão parecido com Moldorf! Só que sou um gentio e os gentios têm modo diferente de sofrer. Sofrem sem neuroses e, como diz Sylvester, um homem que nunca foi afligido por neurose não sabe o que significa sofrer.
Recordo-me distintamente de como eu sentia prazer com meu sofrimento. Era como levar um filhote de fera para a cama com a gente. De vez em quando ele arranha - e então se fica realmente assustado. Normalmente, não se tem medo - podemos soltá-lo a qualquer momento ou cortar-lhe a cabeça.
Há pessoas que não podem resistir ao desejo de entrar em uma jaula contendo animais ferozes e ser lanhadas. Entram mesmo sem revólver ou chicote. O medo torna-as destemidas... Para o judeu o mundo é uma jaula cheia de animais ferozes. A porta está trancada e ele ali está sem chicote ou revólver. Sua coragem é tão grande que nem sequer sente o cheiro do estrume no canto. Os espectadores aplaudem, mas ele não ouve. O drama, pensa, está-se desenvolvendo dentro da jaula. A jaula, pensa, é o mundo. Ali em pé, sozinho e indefeso, porta trancada, ele descobre que os leões não compreendem sua língua. Nenhum leão até hoje ouviu falar em Spinoza. Spinoza?
Mas os leões não podem sequer fincar os dentes nele. "Dê-nos carne!" rugem os leões, enquanto ele ali permanece petrificado, com as idéias congeladas, com seu Weltanschauung como um trapézio fora do alcance. Uma simples patada do leão e sua cosmogonia estará esmagada.
Os leões também estão decepcionados. Esperavam sangue, ossos, cartilagem, nervos. Mastigam e mastigam, mas as palavras são chiclé, e chiclé é indigerível. Chiclé é uma base sobre a qual se polvilha açúcar, pepsina, tomilho, alcaçuz. O chiclé, quando colhido por chicleros, é muito bom. Os chicleros apareceram na orla de um continente afundado. Trouxeram consigo uma linguagem algébrica. No deserto do Arizona encontraram-se com os mongóis do Norte, vidrados como berinjela. Pouco tempo depois de a terra ter assumido sua inclinação giroscópica - quando o Gulf Stream se estava separando da corrente japonesa.
No coração do solo eles encontraram tufo calcário. Enfeitaram as próprias entranhas da terra com sua linguagem. Comeram as vísceras uns aos outros e a floresta fechou-se sobre eles, sobre seus ossos e crânios, sobre seu tufo rendado. Sua língua perdeu-se. Aqui e acolá ainda se encontram os remanescentes de uma coleção de feras, uma placa de cérebro coberta de números.
Que tem isto tudo a ver com você, Moldorf? A palavra em sua boca é anarquia. Diga-o, Moldorf, estou esperando. Ninguém sabe, quando apertamos as mãos, os rios que correm através de nosso suor. Enquanto você está articulando suas palavras, com os lábios entreabertos, a saliva borbulhando na boca, salto através de metade da
Ásia. Se eu tivesse apanhado sua bengala, apesar de medíocre, e aberto com ela um pequeno buraco em seu lado, poderia ter colhido material suficiente para encher o Museu Britânico. Ficamos em pé cinco minutos e devoramos séculos. Você é o crivo através do qual minha anarquia se filtra, converte-se em palavras. Por trás da palavra há o caos. Cada palavra é uma listra, um traço, mas não há e nunca haverá traços suficientes para fazer a trama.
Em minha ausência, colocaram as cortinas na janela. Têm aparência de toalhas de mesa tirolesas, molhadas em lisol. O quarto resplandece. Sento-me na cama atordoado, pensando no homem antes de seu nascimento. De repente, sinos começam a dobrar, música fantástica, sobrenatural, como se eu tivesse sido transportado para as estepes da Ásia Central. Alguns retinem num ritmo longo e demorado, outros ressoam bêbedamente, chorosamente. Agora tudo está quieto de novo, a não ser por uma última nota que mal corta o silêncio da noite - apenas uma fraca e aguda batida abafada como uma chama.
Fiz comigo mesmo um pacto silencioso de não alterar uma linha do que escrevo. Não estou interessado em aperfeiçoar meus pensamentos, nem minhas ações. Ao lado da perfeição de Turgeniev coloco a de Dostoiévski. (Existe algo mais perfeito que "O Eterno Marido"?) Aqui, portanto, no mesmo meio, temos duas espécies de perfeição.
Nas cartas de Van Gogh, porém, existe uma perfeição que vai além dessas duas. É a vitória do indivíduo sobre a arte.
Uma única coisa interessa-me vitalmente agora, e é registrar tudo quanto está omitido nos livros. Ninguém, pelo que posso ver, fez uso daqueles elementos, existentes no ar, que dão direção e motivação a nossas vidas. Somente os assassinos parecem extrair da vida certa medida satisfatória daquilo que nela põem. A época exige violência, mas estamos tendo apenas explosões abortivas.
As revoluções são abafadas no nascedouro ou ocorrem muito depressa. A paixão esgota-se rapidamente. Os homens voltam a idéias, comme d'habitude. Nada se propõe que possa durar mais do que vinte e quatro horas. Estamos vivendo um milhão de vidas no espaço de uma geração. No estudo da entomologia, da vida no fundo do mar ou da atividade celular, conseguimos mais...
O telefone interrompe este pensamento que eu nunca teria sido capaz de completar. Alguém vem vindo para alugar o apartamento...
Parece que isto está acabado, a minha vida na Villa Borghese. Bem, apanharei estas páginas e mudar-me-ei. Acontecerão coisas em outros lugares. Sempre estão acontecendo coisas. Parece que onde quer que eu vá existe drama. As pessoas são como chatos - penetram na pele da gente e enterram-se lá. A gente coça e coça até sair sangue, mas não pode livrar-se permanentemente dos chatos. Em toda parte onde vou, as pessoas estão fazendo uma trapalhada em suas vidas. Todos têm sua tragédia particular. Está no sangue agora - infortúnio, tédio, aflição, suicídio. A atmosfera está saturada de desastre, frustração, futilidade. Coça-se e coça-se - até não restar mais pele. Todavia, o efeito sobre mim é estimulante. Em vez de ficar desencorajado ou deprimido, divirto-me. Estou clamando por mais e mais desastres, maiores calamidades, malogres piores. Quero que todo o mundo se desmantele, quero que todos se cocem até morrer.
Sou agora forçado a viver tão rápida e furiosamente que mal há tempo para escrever até mesmo estas notas fragmentárias. Depois do telefonema, chegaram um cavalheiro e sua esposa. Subi para deitar-me enquanto durasse a transação. Fiquei deitado pensando qual seria meu movimento seguinte.
Certamente não seria voltar para a cama do veado e virar a noite inteira de um lado para outro afastando migalhas de pão com a ponta dos pés. Aquele nojento bastardinho! Se há algo pior do que ser veado, é ser sovina. Um patifezinho tímido e covarde que vivia no constante temor de ficar sem dinheiro um dia - talvez em 18 de março ou precisamente em 25 de maio. Café sem leite ou açúcar. Pão sem manteiga. Carne sem molho ou nada de carne. Sem isto e sem aquilo! O pequeno e sujo sovina!
Um dia abri a gaveta do armário e encontrei dinheiro escondido em uma meia. Mais de dois mil francos - e cheques que ele nem sequer havia descontado. Nem isso me teria aborrecido tanto se não fosse haver sempre borra de café em minha boina e lixo no chão, para não mencionar os potes de creme, as toalhas engorduradas e o ralo sempre entupido. Ainda mais, o pequeno bastardo cheirava mal - exceto quando se ensopava com água de colônia. Suas orelhas eram sujas, os olhos eram sujos, a bunda era suja. Ele era molóide, asmático, piolhento, desprezível, mórbido. Poderia ter-lhe perdoado tudo se pelo menos me tivesse dado um desjejum decente! Mas um homem que tem dois mil francos escondidos numa meia suja e se recusa a usar camisa limpa ou passar um pouco de manteiga em seu pão, não é apenas um veado, não é nem mesmo apenas um sovina - é um imbecil!
Mas isso do veado não quer dizer nada. Estou com os ouvidos voltados para o que acontece lá embaixo. Um Senhor Wren e sua esposa vieram ver o apartamento. Estão falando em ficar com ele. Só falando, graças a Deus. A Senhora Wren tem uma risada solta, complicações à vista. Agora o Senhor Wren está falando. Sua voz é rouca, rangente, retumbante, como uma arma pesada e sem corte que abre caminho através de carne, osso e cartilagem.
Bóris chamou-me para ser apresentado. Esfrega as mãos, como um agiota. Estão falando sobre uma história que o Senhor Wren escreveu, uma história a respeito de um cavalo doente.
"Mas eu pensei que o Senhor Wren fosse pintor!"
"Claro", diz Bóris, com um brilho nos olhos - "mas no inverno ele escreve. E escreve bem... notavelmente bem."
Procuro induzir o Senhor Wren a falar, a dizer alguma coisa, qualquer coisa, a falar sobre o cavalo doente, se necessário.
Mas o Senhor Wren é quase inarticulado.
Quando tenta falar sobre aqueles sombrios meses que passou com a pena na mão, torna-se ininteligível. Leva meses e meses para pôr uma palavra no papel. (E há apenas três meses de inverno!) De que cogita ele durante todos aqueles meses e meses de inverno? Valha-me Deus, mas não posso ver neste sujeito um escritor. Todavia, a Senhora Wren diz que, quando ele se senta para escrever, a coisa jorra sozinha.
A conversa desenvolve-se sem rumo. É difícil acompanhar a mente do Senhor Wren porque ele nada diz. Ele pensa à medida que avança - é como fala a Senhora Wren, que coloca sob luz encantadora tudo quanto se refere ao Senhor Wren. "Ele pensa à medida que avança" - muito encantador, realmente encantador, como diria Borowski, mas na verdade muito penoso, particularmente quando o pensador não é senão um cavalo doente.
Bóris dá-me dinheiro para comprar bebida. Só de buscar a bebida, já estou embriagado. Sei exatamente como começarei quando voltar para casa. Descendo a rua, a coisa começa, o grandioso discurso, borbulhando dentro de mim como a risada solta da Senhora Wren. Parece-me que ela já está um pouco excitada. Ouve maravilhosamente quando bêbeda. Saindo da loja de vinhos, ouço o urinol borbulhar. Tudo está solto e esparramado. Quero que a Senhora Wren ouça...
Bóris esfrega as mãos de novo. O Senhor Wren ainda está balbuciando e gaguejando. Tenho uma garrafa entre as pernas e estou enfiando o saca-rolhas. A Senhora Wren está com a boca aberta, expectantemente. O vinho derrama-se entre minhas pernas, o sol derrama-se através da janela e dentro de minhas veias borbulham e esparramam-se milhares de coisas loucas, que começam agora a jorrar para fora de mim em confusão. Estou dizendo a eles tudo quanto me vem à cabeça, tudo quanto estava fechado dentro de mim e que a risada solta da Senhora Wren libertou de uma maneira qualquer. A garrafa entre as pernas, e o sol derramando-se através da janela, experimento mais uma vez o esplendor daqueles dias miseráveis em que cheguei a Paris, indivíduo desorientado e ferido pela pobreza, a rondar pelas ruas como fantasma num banquete.
Tudo me volta num jato: os lavatórios que não funcionavam, o príncipe que engraxou meus sapatos, o Cinema Splendid onde dormi sobre o capote do "patron", as grades na janela, a sensação de sufocação, as baratas gordas, as bebedeiras que aconteciam de tempos a tempos, Rose Cannaque e Nápoles morrendo sob o sol. Dançando nas ruas com a barriga vazia e de vez em quando procurando pessoas estranhas - Madame Delorme, por exemplo. Como cheguei até Madame Delorme, não consigo mais imaginar.
Mas cheguei lá, entrei de um jeito qualquer, passei pelo mordomo, passei pela criada de aventalzinho branco, cheguei bem dentro do palácio, com minhas calças aveludadas e minha jaqueta de caça - e sem um botão na braguilha. Ainda agora posso sentir novamente o gosto do ambiente dourado daquela sala onde Madame Delorme ficava sentada num trono em seus trajes masculinos, os peixes dourados nos aquários, os mapas do mundo antigo e os livros belamente encadernados; posso sentir-lhe de novo a mão pesada descansando sobre meu ombro, assustando-me um pouco com seu forte ar lésbico. Mais confortável lá embaixo com aquele grosso cozido derramando-se para dentro da Gare Saint Lazare, as putas nas portas, garrafas de "seltzer" em todas as mesas; espessa onda de sêmen inundando as sarjetas. Nada melhor, entre as cinco e as sete, do que ser empurrado de um lado para outro no meio daquela multidão, seguindo uma perna ou um busto bonito, avançando com a maré, e com tudo girando na cabeça. Uma espécie fantástica de contentamento naqueles dias. Nenhum encontro marcado, nenhum convite para jantar, nenhum programa, nenhum dinheiro. O período dourado, quando eu não tinha um único amigo. Toda manhã a sombria caminhada até o American Express e toda manhã a inevitável resposta do funcionário. Correndo de um lado para outro como um percevejo, apanhando tocos de cigarro de vez em quando, às vezes furtivamente, outras vezes descaradamente; sentando num banco e apertando a barriga para que parasse de roer, ou caminhando através do Jardin dês Tuileries e tendo uma ereção ao olhar para as estátuas mudas. Ou vagueando ao longo do Sena à noite, vagueando e vagueando, enlouquecendo com a beleza do rio, as árvores inclinadas sobre ele, as imagens quebradas na água, o sussurrar da corrente sob as luzes sangrentas das pontes, as mulheres dormindo em vãos de porta, dormindo sobre jornais, dormindo sob a chuva; por toda parte, os pórticos embolorados das catedrais, mendigos, piolhos e velhas megeras com dança de São Vito; carrocinhas amontoadas como barris de vinho nas ruas transversais, o cheiro de frutas no mercado e a velha igreja cercada de hortaliças e lâmpadas azuis, as sarjetas que o lixo tornava escorregadias, e mulheres de sapatos de cetim cambaleando no meio da sujeira e da gentalha ao fim de uma farra que durou a noite inteira.
A Place Saint Sulpice, tão quieta e deserta, onde toda noite, lá pela meia-noite, surge a mulher com a sombrinha quebrada e o véu maluco; toda noite ela dorme lá num banco, embaixo de sua sombrinha rasgada; as varetas penduradas, o vestido ficando verde, os dedos ossudos e o cheiro de podridão desprendendo-se de seu corpo; e, de manhã, eu estava sentado lá, tirando uma sossegada soneca sob o sol, praguejando contra os malditos pombos que recolhem migalhas por toda parte. Saint Sulpice!
Os gordos campanários, os avisos berrantes na porta, as velas ardendo lá dentro. A praça tão querida de Anatole France, com o zunzum e o zumbido do altar, o jorro de água da fonte, os pombos arrulando, as migalhas desaparecendo como mágica e apenas um surdo ronco no oco da barriga. Ali eu me sentava dia após dia, pensando em Germaine e naquela suja ruazinha perto da Bastille onde ela vivia, e aquele zunzum lá atrás do altar, os ônibus passando zumbindo, o sol batendo até dentro do asfalto e o asfalto penetrando em mim e em Germaine, dentro do asfalto, e toda Paris dentro dos grandes e gordos campanários.
E era pela Rue Bonaparte que apenas um ano antes Mona e eu costumávamos caminhar toda noite, depois de têrmo-nos despedido de Borowski. Saint Sulpice então não significava muito para mim, nem qualquer outra coisa em Paris. Cheio de conversa. Enjoado de rostos. Cansado de catedrais, e praças e jardins zoológicos, e não sei que mais.
Apanhando um livro no quarto vermelho, e a incômoda cadeira de vime; cansado de sentar-me sobre a bunda o dia inteiro, cansado do papel de parede vermelho, cansado de ver tanta gente tagarelando sobre coisa nenhuma. O quarto vermelho e o baú sempre aberto; seus vestidos espalhados num delírio de desordem. O quarto vermelho com minhas galochas e bengalas, os cadernos de notas que nunca toquei, os manuscritos abandonados, frios e mortos. Paris!
Significando o Café Select, o Dome, o Mercado de Pulgas, o American Express. Paris! Significando as bengalas de Borowski, os chapéus de Borowski, os guaches de Borowski, o peixe pré-histórico de Borowski - e piadas pré-históricas. Daquela Paris de 28 somente uma noite permanece em minha memória - a noite anterior à partida para a América. Uma noite rara, Borowski ligeiramente embriagado e um pouco desgostoso comigo por eu dançar com toda sirigaita que encontrava. Mas nós vamos partir amanhã cedo! É isso que digo a toda vulva que consigo agarrar - partir amanhã cedo! É isso que estou dizendo à loura de olhos cor de ágata. E, enquanto digo isso, ela toma minha mão e enfia-a entre suas pernas. No lavatório, fico em pé diante da pia com uma ereção terrível; parece leve e pesado ao mesmo tempo, como um pedaço de chumbo com asas. E enquanto estou ali em pé, entram duas bocetas - americanas. Cumprimento-as cordialmente, de membro na mão. Dão-me uma piscada e passam.
No vestíbulo, enquanto abotôo a braguilha, reparo em que uma delas está esperando a amiga sair da privada. A música ainda está tocando e talvez Mona venha buscar-me, ou Borowski com sua bengala de cabo de ouro, mas agora estou nos braços dela, ela me agarra e não me importa quem venha ou o que aconteça. Entramos contorcendo-nos na privada e lá eu a ergo, encosto-a à parede e tento penetrá-la, mas não dá certo. Por isso, sentamo-nos na bacia e tentamos desse jeito, mas também não dá certo. De todo jeito que tentamos, não dá certo. E todo o tempo ela segura meu membro, agarra-se a ele como a um salva-vidas, mas não adianta, estamos muito excitados, muito ansiosos.
A música ainda está tocando e saímos dançando da privada para o vestíbulo. Enquanto estamos dançando ali no lavatório, eu descarrego tudo sobre seu belo vestido e ela fica louca de raiva. Volto cambaleando para a mesa e lá estão Borowski com seu rosto corado e Mona com seu olhar desaprovador.
E Borowski diz: - Vamos todos a Bruxelas amanhã.
Todos concordamos e quando voltamos para o hotel eu vomito por toda parte, na cama, na bacia, sobre os ternos e vestidos, nas galochas e bengalas, nos cadernos de notas que nunca toquei e nos manuscritos abandonados, frios e mortos.
Alguns meses mais tarde. O mesmo hotel, o mesmo quarto. Olhamos para o pátio lá fora, onde há bicicletas estacionadas, e lá em cima, abaixo do sótão, fica o quartinho onde um jovem sabido tocava o fonógrafo o dia inteiro e repetia coisinhas engraçadas com o máximo de sua voz. Digo "nós", mas estou exagerando, pois Mona foi-se embora há muito tempo e é só hoje que vou encontrar-me com ela na Gare Saint Lazare. Ao anoitecer, lá estou com o rosto apertado contra as grades, mas não há Mona alguma, e leio e releio o cabograma, mas de nada adianta. Volto para o Quartier e apesar de tudo faço uma copiosa refeição.
Caminhando ao léu diante do Dome um pouco mais tarde, vejo de repente um rosto pálido e pesado, com olhos ardentes - e o vestidinho de veludo que sempre adorei porque embaixo do veludo macio sempre houve uns seios quentes e as pernas de mármore, frias, firmes, musculares. Ela se ergue do mar de rostos e abraça-me, abraça-me apaixonadamente - milhares de olhos, narizes, garrafas, janelas, bolsas, pires, tudo nos fitando e nós, um nos braços do outro, esquecidos. Sento-me ao seu lado e ela fala - uma torrente de palavras. Notas selvagens e consumptivas de histeria, perversão, lepra. Não ouço uma só palavra porque ela é bela, eu a amo e agora estou feliz e desejando morrer.
Descemos a Rue du Château, à procura de Eugene. Atravessamos a ponte ferroviária onde eu ficava observando os trens passarem e sentindo-me todo doente por dentro, ao imaginar onde, diabo, ela poderia estar. Tudo macio e encantador, enquanto caminhamos na ponte. Fumaça subindo entre nossas pernas, os trilhos rangendo, semáforos em nosso sangue. Sinto-lhe o corpo perto do meu - todo meu agora - e paro para esfregar as mãos sobre o veludo quente. Tudo à nossa volta está ruindo, ruindo eo corpo cálido, sob o veludo quente, ansiando por mim...
De volta ao mesmo quarto e com cinqüenta francos de sobra, graças a Eugene. Olho para o pátio lá fora, mas o fonógrafo está silencioso. O baú, aberto e coisas dela espalhadas por toda parte como antes. Ela se deita vestida na cama. Uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes...
Tenho medo de que ela fique louca... na cama, sob as cobertas, como é bom sentir-lhe novamente o corpo! Mas por quanto tempo? Durará desta vez? Já tenho um pressentimento de que não durará.
Ela fala comigo febrilmente - como se não houvesse amanhã. (Fique quieta, Mona! Olhe apenas para mim... não fale!) Finalmente adormece e eu puxo meu braço debaixo dela. Meus olhos fecham-se. Seu corpo está ali ao meu lado... estará ali até amanhã, sem dúvida... Foi em fevereiro que saí da baía sob uma nevada cegante. A última visão que tive dela foi acenando-me adeus, na janela. Um homem estava em pé do outro lado da rua, na esquina, chapéu puxado sobre os olhos, as bochechas repousando sobre as lapelas do capote. Um feto observando-me. Um feto de charuto na boca. Mona acenando-me adeus, na janela. Rosto branco e pesado, cabelos caindo selvagemente.
Agora, um quarto abafado, respirando regularmente através das guelras, o líquido ainda escorrendo entre as pernas dela, um odor quente e felino, e seus cabelos na minha boca. Meus olhos estão fechados. Respiramos calidamente um na boca do outro. Bem juntos, a América a três mil milhas de distância. Nunca mais quero ver a América.
Tê-la aqui na cama comigo, respirando sobre mim, com seus cabelos em minha boca - considero isso um milagre. Nada pode acontecer agora até amanhã cedo...
Acordo de sono profundo, para olhá-la. Uma luz pálida está entrando. Olho seus belos cabelos soltos. Sinto algo rastejando pelo meu pescoço. Olho-a de novo, bem de perto. Seus cabelos são vivos! Puxo o lençol - mais cabelos. Estão enxameando sobre o travesseiro.
É um pouco depois do amanhecer. Arrumamos nossas coisas às pressas e saímos furtivamente do hotel. Os cafés ainda estão fechados. Caminhamos e, enquanto caminhamos, coçamo-nos. O dia abre-se em leitosa brancura, traços de céu rosa-salmão, lêsmas deixando suas conchas. Paris. Paris. Tudo acontece aqui. Velhas paredes ruindo e o barulho agradável da água correndo nos mictórios. Homens lambendo os bigodes no bar. Venezianas erguendo-se com estrondo e pequenas correntes sussurrando nas sarjetas.
Amer Picon em enormes letras escarlates. Zigzag. Para que lado iremos e por que ou onde ou o quê?
Mona está com fome e seu vestido é fino. Nada, a não ser agasalhos para noite, vidros de perfume, brincos bárbaros, pulseiras, depilatórios. Sentamo-nos em um salão de bilhar na Avenue du Maine e pedimos café quente. O lavatório não está funcionando. Teremos de ficar sentados algum tempo antes de podermos ir para outro hotel.
Entrementes, cada um de nós cata percevejos nos cabelos do outro. Nervosa, Mona está perdendo a calma. Precisa tomar um banho. Precisa disto. Precisa daquilo. Precisa, precisa, precisa...
- Quanto dinheiro ainda lhe resta?
Dinheiro! Havia-me esquecido disso.
Hotel dês Stats-Unis. Um elevador. Vamos para a cama em plena luz do dia. Quando nos levantamos já está escuro e a primeira coisa a fazer é arranjar dinheiro para mandar um cabograma à América. Um cabograma para o feto com o comprido e suculento charuto na boca. Entrementes, há a espanhola no Boulevard Raspail - ela está sempre disposta a servir uma refeição quente. Amanhã cedo alguma coisa há de acontecer. Pelo menos, vamos dormir juntos. Agora não há mais percevejos.
A estação das chuvas começou. Os lençóis são imaculados...
VIDA NOVA ABRE-SE PARA MIM NA Villa Borghese. São apenas dez horas, e já tomamos o desjejum e saímos a passeio. Agora temos uma Elza aqui conosco. Pise macio durante alguns dias, recomenda Bóris.
O dia começa gloriosamente: céu brilhante, vento fresco, casas caiadas de novo. A caminho do correio, Bóris e eu discutimos o livro. O Ultimo Livro - que vai ser escrito anonimamente.
Novo dia está começando. Sinto-o esta manhã, enquanto observamos uma das cintilantes telas de Dufresne, uma espécie de "déjeuner intime" no século XIII, sans vin.
Um belo e carnudo nu, sólido, vibrante, róseo como uma unha, com fulgurantes ondas de carne; todas as características secundárias e algumas das primárias. Um corpo que canta, que tem a umidade da madrugada. Uma natureza morta, só que ali nada está parado, nada está morto. A mesa range sob o peso da comida; é tão pesada que escorrega para fora da moldura. Um repasto do século XIII - com todas as notas florestais que ele registrou tão bem. Uma família de gazelas e zebras mordiscando as frondes das palmeiras.
E agora temos Elza. Estava tocando esta manhã para nós, ainda deitados na cama. Pise macio durante alguns dias... Ótimo!
Elza é a criada e eu o hóspede. E Bóris é o patrão.
Novo drama começa. Rio-me sozinho enquanto escrevo isto. Ele sabe o que vai acontecer, aquele lince, que é Bóris. Ele sente também o cheiro das coisas. Pise macio...
Bóris está pisando em ovos. A qualquer momento sua esposa pode entrar em cena. Pesa bem mais de noventa quilos, essa esposa.
E Bóris é pequeno. Esta é a situação.
Ele tenta explicar-me quando voltamos para casa à noite. É tão trágica, e tão ridícula ao mesmo tempo, que sou obrigado a parar de vez em quando e rir-lhe na cara.
- Por que ri assim?, diz ele delicadamente e depois continua, com aquela nota chorosa e histérica na voz, como um miserável impotente ao perceber de súbito que, por mais sobrecasacas que vista, nunca será um homem. Quer fugir, adotar novo nome. - Ela pode ficar com tudo, aquela vaca, desde que me deixe em paz, choraminga ele. Mas primeiro é preciso alugar o apartamento, assinar os contratos e cuidar de mil outros pormenores para os quais sua sobrecasaca será muito útil. Mas o tamanho dela! - isso é que realmente o preocupa. Se a encontrássemos de repente em pé à porta, ao chegarmos, ele desmaiaria - tanto o respeito que tem por ela!
Por isso temos de ir devagar com Elza durante algum tempo. Elza está lá apenas para preparar o desjejum - e mostrar o apartamento.
Mas Elza já me está enfraquecendo. Aquele sangue alemão. Aquelas canções melancólicas. Descendo a escada esta manhã, com o cheiro do café fresco nas narinas, eu cantarolava suavemente... "Eswaer" só schoen gewesen." Isso para o desjejum. E pouco depois o rapaz lá em cima com seu Bach.
Como diz Elza, "ele está precisando de uma mulher". E Elza também está precisando de alguma coisa. Posso sentir isso. Nada digo a Bóris, mas enquanto ele lavava os dentes esta manhã, Elza ouvia-me atenciosamente falar sobre Berlim, sobre as mulheres que parecem tão atraentes por trás, mas, quando se viram, - ufa, sífilis!
Parece-me que Elza me olha um pouco ansiosa. Alguma coisa que sobrou da mesa do desjejum. Esta tarde estávamos escrevendo, de costas um para o outro, no estúdio.
Ela havia começado uma carta para seu amante na Itália. A máquina enguiçou. Bóris saíra para ver um quarto barato com o qual ficará assim que o apartamento for alugado. Não restava outra coisa senão manter relações amorosas com Elza. Ela estava querendo. Apesar disso, sentia-me um pouco triste por Elza. Havia escrito apenas a primeira linha para o amante - li-a com o canto dos olhos quando me inclinei sobre ela. Mas não era possível evitar. Aquela maldita música alemã, tão melancólica, tão sentimental. Enfraqueceu-me. E depois seus olhinhos de conta, tão quentes e tristes ao mesmo tempo.
Depois de tudo acabado, pedi-lhe que me tocasse alguma coisa. Elza é musicista, embora soe como panelas quebradas e crânios batendo-se. Chorava também, enquanto tocava. Não a culpo por isso. Em toda parte é a mesma coisa, diz ela. Em toda parte é um homem, depois ela tem de sair, depois há um aborto, depois novo emprego, depois novo homem e ninguém liga para ela a não ser para usá-la. Tudo isso enquanto tocava Schumann para mim... Schumann, aquele bastardo alemão baboso e sentimental!
Não sei por que me senti triste como o diabo por ela, e no entanto não estou dando a menor importância a isso. Uma vulva que sabe tocar assim devia ter mais juízo e não ser trepada por qualquer cara de pau grande que apareça. Mas aquele Schumann entra no meu sangue. Elza ainda choraminga mas meu espírito está muito longe.
Penso em Tânia e em como arranha em seu adágio. Penso em muita coisa que está morta e enterrada. Penso em uma tarde de verão em Greenpoint, quando os alemães avançavam através da Bélgica e ainda não havíamos perdido tanto dinheiro que desse para preocupar-nos com a violação de um país neutro.
Época em que ainda éramos tão inocentes que ouvíamos poetas e sentávamos ao redor de uma mesa ao crepúsculo invocando espíritos partidos. Durante toda a tarde e a noite, a atmosfera está saturada de música alemã; a vizinhança inteira é alemã, mais alemã mesmo do que a Alemanha. Fomos criados com Schumann e Hugo Wolf, com Sauerkraut, Kümmel e bolinhos de batata. Ao anoitecer, estamos sentados ao redor de uma grande mesa com as cortinas corridas e uma louraça tola invocando Jesus Cristo.
Estamos de mãos dadas por baixo da mesa e a mulher ao meu lado tem dois dedos em minha braguilha. Finalmente nos deitamos no chão, por trás do piano, enquanto alguém canta uma canção lúgubre. O ar está sufocante e o hálito dela cheira a álcool. O pedal sobe e desce, inflexivelmente, automaticamente, num movimento louco e fútil, como uma torre de estéreo que leve vinte e sete anos para ser erguida, porém marque perfeitamente o tempo. Puxo-a sobre mim com o tampo harmônico em meus ouvidos; o aposento está escuro e o tapete está grudento do Kümmel derramado. De repente, parece-me que a madrugada está chegando: é como a água sussurrando sobre o gelo, e o gelo é azul, com um nevoeiro que se levanta, geleiras afundadas em verde esmeralda, camurça e antílope, garoupas douradas, vacas-marinhas vogando e os peixes tropicais coloridos saltando sobre a orla do Ártico...
Elza está sentada no meu colo. Seus olhos são como pequenos umbigos. Contemplo-lhe a grande boca, tão úmida e brilhante, e cubro-a. Agora ela está cantarolando...
"Es waer só schoen gewesen..." Ah, Elza, você não sabe ainda o que isso significa para mim, seu Trompeter von Sâckingen.
Sociedades alemãs de Canto, Schwaben Hall, o Turnverein... links um, rechts um... e depois uma batida na bunda com a ponta de uma corda.
Ah, os alemães! Eles nos engolfam por inteiro, como um ônibus. Dão-nos indigestão. Numa noite só não é possível visitar o necrotério, a enfermaria, o jardim zoológico, os signos do zodíaco, os limbos da filosofia, as cavernas da epistemologia, os arcanos de Freud e Stekel... No carrossel não se chega a parte alguma, ao passo que com os alemães a gente pode ir de Vega a Lope de Vega, tudo numa noite só, e acabar tão tolo quanto Parsifal.
Como disse, o dia começou gloriosamente. Foi só esta manhã que fiquei de novo consciente desta Paris física da qual eu não tivera consciência durante semanas. Talvez seja porque o livro começou a crescer dentro de mim. Levo-o comigo a toda parte. Caminho pelas ruas prenhe da criança e os guardas me ajudam a atravessar a rua.
Mulheres levantam-se para oferecer-me seus lugares. Ninguém mais me empurra rudemente. Estou grávido. Bamboleio-me desajeitadamente, a grande barriga apertada contra o peso do mundo.
Foi esta manhã, quando íamos ao correio, que demos ao livro seu imprimatur final. Desenvolvemos uma nova cosmogonia de literatura, Bóris e eu. Vai ser uma nova Bíblia - O Último Livro. Todos aqueles que têm alguma coisa a dizer, dirão aqui - anonimamente. Vamos esgotar a idade. Depois de nós nenhum outro livro - pelo menos durante uma geração. Até agora, vínhamos cavando no escuro, sem nada, a não ser o instinto, para orientar-nos. Agora teremos um vaso no qual derramar o líquido vital, uma bomba que, quando a lançarmos, explodirá o mundo. Poremos nele o bastante para dar aos escritores de amanhã seus argumentos, seus dramas, seus poemas, seus mitos, suas ciências. O mundo poderá alimentar-se nele durante mil anos no futuro. É colossal em sua presunção. A idéia dele quase nos esmaga.
Há cem anos ou mais o mundo, nosso mundo, vem morrendo. E nem um só homem, nestes últimos cem anos mais ou menos, foi tão louco que colocasse uma bomba no olho do eu da criação e a detonasse. O mundo está apodrecendo, morrendo aos poucos.
Mas precisa do coup de grâce, precisa ser reduzido a pedacinhos por uma explosão. Nenhum de nós está intacto e, no entanto, temos em nós todos os continentes, e os mares entre os continentes, e os pássaros no ar. Vamos acabar com isso - com a evolução deste mundo que morreu, mas não foi enterrado. Estamos nadando sobre a face do tempo e tudo o mais se afogou, está-se afogando ou se afogará. Será enorme, o Livro. Haverá oceanos de espaço no qual nos movimentarmos, perambularmos, cantarmos, dançarmos, subirmos, banhar-nos, darmos cambalhotas, choramingarmos, estuprarmos, assassinarmos. Uma catedral, uma verdadeira catedral, em cuja construção ajudarão todos os que perderam a identidade. Haverá missas para os mortos, orações, confissões, hinos, um lamento e uma tagarelice, uma espécie de criminosa indiferença; haverá vidraças róseas e gárgulas e acólitos e carregadores de esquife. Você poderá fazer seus cavalos galoparem através das naves. Você poderá bater com a cabeça contra as paredes - elas não cederão. Você poderá rezar em qualquer língua que escolher ou enrodilhar-se do lado de fora e dormir. Durará mil anos, pelo menos, essa catedral e não haverá reproduções, pois os construtores estarão mortos e a fórmula também. Mandaremos fazer cartões-postais e organizaremos excursões. Construiremos uma cidade ao redor dela e instalaremos uma comuna livre. Não temos necessidade de gênio - o gênio está morto. Temos necessidade de mãos fortes, de espíritos que estejam dispostos a abandonar o fantasma e criar carne.
O dia está avançando num belo ritmo. Estou aqui em cima no balcão, na casa de Tânia. O drama desenvolve-se lá embaixo na sala-de-estar. O dramaturgo está com enjôo e, visto do alto, seu couro cabeludo parece mais escamoso do que nunca. Seu cabelo é feito de palha. Suas idéias são de palha. Sua mulher também é de palha, embora ainda um pouco úmida. Toda a casa é feita de palha. Aqui estou eu, no balcão, esperando Bóris chegar. Meu último problema - desjejum - acabou-se. Simplifiquei tudo.
Se houver problemas novos, poderei levá-los na mochila, junto com a roupa suja. Estou jogando fora todos os meus sous. Que necessidade tenho de dinheiro? Sou máquina de escrever. O último parafuso foi colocado. A coisa corre. Entre mim e a máquina não há diferença. Eu sou a máquina...
Não me disseram ainda sobre o que é o novo drama, porém posso senti-lo. Estão tentando livrar-se de mim. No entanto, aqui estou para o meu jantar, até um pouco mais cedo do que esperavam. Informei-lhes onde sentar, o que fazer. Perguntei-lhes delicadamente se os estaria incomodando, mas o que realmente quis dizer, e eles sabem muito bem disso, é: estarão vocês me incomodando? Não, felizes baratas, vocês não me estão incomodando. Vocês estão me alimentando.
Vejo-os sentados aí bem juntos e sei que há um abismo entre vocês. Sua proximidade é a proximidade de planetas. Sou o vazio entre vocês. Se eu me retirar, não haverá vazio onde vocês nadarem.
Tânia está com uma disposição hostil - posso senti-lo. Ressente-se de eu estar sendo cheio de outra coisa que não ela própria.
Sabe pelo próprio calibre de minha excitação que seu valor está reduzido a zero. Sabe que não vim esta noite para fertilizá-la. Sabe que, germinando dentro de mim, algo existe que a destruirá. Demora para perceber, mas vai percebendo...
Sylvester parece mais contente. Ele a abraçará esta noite na mesa de jantar. Ainda agora está lendo meu manuscrito, preparando-se para exaltar meu ego, para lançá-lo contra o dela.
Será uma estranha reunião a desta noite. O palco está sendo preparado. Ouço o tinir dos copos. Vão trazendo o vinho. Haverá taças cheias abandonadas e Sylvester, que está doente, sairá de sua doença.
Foi só na noite passada, na casa de Cronstadt, que projetamos este cenário. Ordenaram que as mulheres devem sofrer, que fora do palco haja mais terror e violência, mais desastres, mais sofrimento, mais aflição e mais miséria.
Não é o acaso que traz gente como nós a Paris. Paris é simplesmente um palco artificial, um palco giratório que permite ao espectador entrever todas as fases do conflito. Por si só, Paris não inicia drama algum. Os dramas começam em outro lugar qualquer. Paris é simplesmente um instrumento obstétrico que arranca o embrião vivo do útero e coloca-o na incubadora. Paris é o berço de nascimentos artificiais. Balançando-se aqui no berço, cada um escorrega de volta para sua terra: sonha-se em voltar para Berlim, Nova York, Chicago, Viena, Minsk. Viena nunca é mais Viena do que em Paris. Tudo é elevado à apoteose.
O berço entrega os bebês e outros novos ocupam seus lugares. Pode-se ler aqui nas paredes onde viveu Zola, Balzac, Dante e Strindberg e toda gente que foi alguma coisa.
Todos viveram aqui em uma ocasião ou outra. Ninguém morre aqui...
Estão conversando lá embaixo. A linguagem deles é simbólica. Nela entra a palavra "luta". Sylvester, o dramaturgo doente, está dizendo: "Estou lendo agora o Manifesto".
E Tânia diz: "De quem?" Sim, Tânia, ouço-a. Estou aqui em cima escrevendo sobre você e você adivinha certo. Fale mais, para que eu possa registrar você. Pois quando formos para a mesa não poderei tomar notas... De repente, Tânia observa: "Não há um "hall" proeminente neste lugar." Que significará isso, se é que significa alguma coisa?
Estão pregando quadros agora. Isso também é para impressionar-me. Veja, eles querem dizer: aqui estamos em casa, vivendo a vida conjugal. Tornando o lar atraente.
Até discutiremos um pouco sobre os quadros, para seu proveito. E Tânia observa de novo: "Como os olhos enganam!" Ah, Tânia, que coisas você diz! Continue, leve um pouco mais longe esta farsa. Estou aqui para o jantar que você me prometeu. Esta comédia diverte-me tremendamente. E agora
Sylvester toma a palavra. Está tentando explicar um dos guaches de Borowski. "Venha aqui, está vendo? Um deles está tocando o violão; o outro está segurando a moça no colo." É verdade, Sylvester. Muita verdade. Borowski e seus violões! As moças em seu colo! Só que a gente nunca sabe bem o que ele tem no colo ou se é realmente um homem tocando violão...
Logo Moldorf virá trotando de quatro e Bóris com aquela sua risadinha impotente. Haverá faisão dourado no jantar, e Anjou e charutos curtos e gordos. E Cronstadt, quando receber as últimas notícias, viverá um pouco mais vigorosamente, um pouco mais brilhantemente, durante cinco minutos; depois cairá de novo no humo da sua ideologia e talvez nasça um poema, um poema com um grande sino dourado sem badalo.
Tive de sair durante uma hora, mais ou menos. Outro candidato para ver o apartamento. Lá em cima o maldito inglês está praticando seu Bach. Agora, quando alguém vem ver o apartamento, é imperativo subir correndo e pedir ao pianista que pare um pouco.
Elza telefona para o verdureiro. O encanador está pondo novo assento na bacia da privada. Sempre que a campainha da porta toca, Bóris perde o equilíbrio. Na excitação,deixou cair os óculos; está abaixado sobre as mãos e os joelhos, a sobrecasaca arrastando-se no chão. Há um pouco de semelhança com o Grand Guignol - o poeta esfomeado chega para dar aulas à filha do açougueiro. Toda vez que o telefone toca, a boca do poeta enche-se de água. Mallarmé soa como um bife de lombo, Vitor Hugo como foie de veau. Elza está encomendando um pequeno e delicado almoço para Bóris - "uma costeletinha de porco bem suculenta", diz ela. Vejo toda uma coleção de presuntos róseos jazendo frios sobre o mármore, maravilhosos presuntos acolchoados em banha branca. Sinto uma fome terrível, embora tenhamos tomado o desjejum apenas há poucos minutos. É por causa do almoço que terei de perder. É somente nas quartas-feiras que almoço graças a Borowski. Elza ainda está telefonando - esqueceu-se de encomendar um pedaço de lombo defumado. "Sim, um belo pedacinho de lombo defumado, sem muita gordura", diz ela... Zut alors! Jogue dentro alguns pâncreas, jogue dentro algumas ostras e alguns mariscos! Jogue dentro um pouco de liverwurst frito, já que está com a mão na massa. Eu seria capaz de devorar as mil e quinhentas peças de Lope de Vega de uma assentada.
É uma bela mulher quem veio ver o apartamento. Uma americana, naturalmente. Fico em pé diante da janela, as costas voltadas para ela, observando um pardal que bica excremento fresco. Espantoso como é fácil para o pardal sustentar-se. Está chovendo um pouco e as gotas são muito grandes. Antigamente eu pensava que um pássaro não pudesse voar se suas asas ficassem molhadas. Espantoso como essas mulheres ricas vêm a Paris e encontram todos os belos estúdios. Um pouco de talento e uma bolsa gorda. Se chove, elas têm oportunidade de exibir suas capas novas em folha. A comida não importa: às vezes ficam tão ocupadas, vagabundeando de um lado para outro, que não têm tempo de almoçar. Só um pequeno sanduíche, um wafer, no Café de Ia Paix ou Ritz Bar. "Só para as filhas de gente de posição", é o que se diz no velho estúdio de Puvis de Chavannes. Passei lá por acaso outro dia. Ricas bocetas americanas com caixas de pintura penduradas do ombro. Um pouco de talento e uma bolsa gorda.
O pardal está saltando frenèticamente de uma pedra do calçamento para outra. Esforços realmente hercúleos, se pararmos para examinar de perto. Em toda parte há alimento caído - na sarjeta, quero dizer. A bela americana está fazendo perguntas sobre o banheiro. O banheiro! Permita-me que lhe mostre, gazela de focinho aveludado! Obanheiro, diz você? Par ici, Madame. N'oubliez pas que les places numérotées sont reservées aux mutilés de la guerre.
Bóris esfrega as mãos - está dando os toques finais no negócio. Os cães latem no pátio; latem como lobos. Lá em cima, a Senhora Melverness está empurrando um móvel.
Ela não teve nada que fazer o dia inteiro. Aborrece-se. Se encontra um pouquinho de sujeira, em algum lugar, limpa a casa inteira. Há um cacho de uvas verdes sobre a mesa e uma garrafa de vinho - vin de choíx, 10 graus. "Sim", diz Bóris, "eu poderia mandar instalar uma pia para você. Por favor, venha ver aqui. Sim, este é o banheiro. Há também outro lá em cima, naturalmente. Sim, mil francos por mês. Você disse que não se interessa muito por Utrillo, não é? Não, é aqui. Precisa apenas de uma nova pia, mais nada..."
Ela vai embora dentro de um minuto. Bóris nem me apresentou desta vez. O filho da puta! Sempre que é uma vulva rica, ele se esquece de apresentar-me. Dentro de alguns minutos, poderei sentar-me de novo e escrever. Não sei por que, não me sinto mais com disposição para isso hoje. Meu espírito está vagueando. É possível que ela volte dentro de meia hora e tire a cadeira debaixo de meu assento. Como, diabo, pode um homem escrever quando não sabe onde vai sentar-se na próxima meia hora? Se essa rica bastarda ficar com o apartamento, não terei sequer um lugar para dormir. Quando a gente está em tal situação, é difícil saber o que é pior - não ter um lugar para dormir ou não ter um lugar para trabalhar. A gente pode dormir quase em qualquer lugar, mas precisa ter um lugar para trabalhar. Ainda que não seja uma obra-prima o que se está fazendo. Até um mau romance exige uma cadeira para a gente sentar-se e um pouco de sossego. Essas bocetas ricas nunca pensam em coisas assim.
Sempre que querem abaixar seus traseiros macios há uma cadeira esperando por eles...
Na noite passada, deixamos Sylvester e seu Deus sentados juntos diante da lareira. Sylvester com seu pijama e Moldorf com um charuto entre os lábios. Sylvester está descascando uma laranja. Põe a casca sobre o sofá. Moldorf aproxima-se mais dele. Pede permissão para ler de novo aquela brilhante paródia "As Portas do Céu".
Estamo-nos preparando para sair, Bóris e eu. Estamos muito alegres para esta atmosfera de quarto de doente. Tânia vai conosco. Está alegre porque vai escapar. Bóris sente-se alegre porque o Deus em Moldorf está morto. Eu estou alegre porque é outro ato que vamos representar.
A voz de Moldorf é reverente. "Posso ficar com você, Sylvester, até ir deitar-se?" Ele está ficando com Sylvester há seis dias, comprando remédios, servindo de mensageiro para Tânia, confortando, consolando, guardando as portas contra intrusos malévolos como Bóris e seus cupinchas.
É como um selvagem que tivesse descoberto que seu ídolo foi mutilado durante a noite. Fica lá sentado, aos pés do ídolo, com fruta-pão, graxa e rezas de feitiçaria. Sua voz sai untuosamente. Seus membros já estão paralisados, com Tânia, fala como se ela fosse uma sacerdotiza que houvesse violado os votos. "Você precisa tornar-se digna. Sylvester é o seu Deus". E enquanto Sylvester está lá em cima sofrendo (ele tem um pequeno chiado no peito) o sacerdote e a sacerdotiza devoram a comida. "Você se está poluindo", diz ele, o molho escorrendo dos lábios.
Ele tem a capacidade de comer e sofrer simultaneamente. Ao mesmo tempo que afasta os perigosos, estende sua patinha gorda e acaricia os cabelos de Tânia. "Estou começando a apaixonar-me por você. Você é como a minha Fanny."
Sob outros aspectos, foi um belo dia para Moldorf. Uma carta chegou da América. Moe está tirando as melhores notas em tudo.
Murray está aprendendo a andar de bicicleta.
A vitrola foi consertada. A gente pode ver, pela expressão de seu rosto, que havia na carta outras coisas além de boletins escolares e velocípedes. Pode-se ter certeza disso porque esta tarde ele comprou 325 francos de jóias para sua Fanny. Além disso, escreveu-lhe uma carta de vinte páginas.
O garçom levou-lhe página após página, encheu-lhe a caneta-tinteiro, serviu-lhe café e charutos, abanou-o um pouco quando ele transpirou, escovou as migalhas da mesa, acendeu o charuto quando se apagou, comprou selos para ele, dançou sobre ele, piruetou, fez salamaleques... por pouco não quebrou a espinha. A gorjeta foi gorda.
Maior e mais gorda do que um Corona Corona. Moldorf provavelmente a mencionou em seu diário. Foi por causa de Fanny. A pulseira e os brincos valem todo o dinheiro que ele gastou. Melhor gastá-lo com Fanny do que desperdiçá-lo com putinhas como Germaine e Odette. Sim, ele disse isso a Tânia. Mostrou-lhe sua mala. Está cheia de presentes - para Fanny e para Moee Murray.
"Minha Fanny é a mulher mais inteligente do mundo. Tenho procurado e procurado encontrar um defeito nela - mas não existe nenhum... Ela é perfeita. Vou-lhe dizer o que Fanny sabe fazer. Joga bridge como profissional; interessa-se pelo Sionismo; dê-lhe um chapéu velho, por exemplo, e verá o que ela é capaz de fazer com ele.
Um cordão aqui, uma fita ali, e voilà quelque chose de beau! Você sabe o que é felicidade perfeita? Sentar-se ao lado de Fanny, depois de Moe e Murray terem ido para a cama, e ouvir rádio. Ela fica lá sentada tão pacificamente! Sinto-me recompensado de todas as minhas lutas e dores de cabeça só com observá-la. Ela ouve com inteligência. Quando penso em seu mal-cheiroso Montmartre e depois em minhas noites em Bay Ridge, com Fanny, em seguida a uma grande refeição, garanto-lhe que não há comparação. Uma coisa simples, como comida, as crianças, as lâmpadas suaves e Fanny sentada lá, um pouco cansada, mas alegre, contente, cheia de pão... lá ficamos sentados durante horas sem dizer uma palavra. Isto é felicidade!
"Hoje ela me escreve uma carta - não daquelas cartas maçantes como relatórios. Escreve-me com o coração, em linguagem que até mesmo meu pequeno Murray poderia compreender.
Fanny é delicada em tudo. Diz que as crianças precisam continuar os estudos, mas que as despesas a preocupam. Vai custar mil dólares mandar o pequeno Murray à escola. Moe, naturalmente, obterá uma bolsa de estudo. Mas o pequeno Murray, aquele geniozinho, Murray, que vamos fazer com ele?
Escrevi a Fanny para não preocupar-se.
Mande Murray à escola, disse eu. Que são mais mil dólares? vou ganhar mais dinheiro este ano do que nunca antes. Farei isso pelo pequeno Murray - porque ele é um gênio, aquele menino."
Gostaria de estar lá quando Fanny abrir a mala. "Veja, Fanny, isto é o que comprei em Budapeste de um velho judeu... Isto é o que usam na Bulgária - pura lã... Isto pertenceu ao Duque disto ou daquilo - não, isto a gente não areja, põe no sol... Isto quero que você use, Fanny, quando formos à ópera... use-o com aquele pente que lhe mostrei... E isto, Fanny, é uma coisa que Tânia escolheu para você... ela é um pouco do seu tipo..."
E Fanny está sentada no sofá, exatamente como estava na oleografia, com Moe de um lado e o pequeno Murray, Murray, o gênio, do outro lado. Tão curtas, suas pernas gordas não chegam ao chão. Seus olhos têm brilho baço de permanganato. Seios, como repolhos maduros e vermelhos; balançam um pouco quando ela se inclina para a frente.
Mas o que há de triste nela é que o suco acabou. Está lá sentada como uma bateria descarregada; o rosto está fora de prumo - precisa de um pouco de animação, um repentino jato de suco para pô-lo de novo em foco. Moldorf salta diante dela como um sapo gordo. Sua carne treme. Escorrega e lhe é difícil rolar de novo sobre a barriga. Ela cutuca-o com os grossos dedos do pé.
Os olhos dele saltam um pouco mais. "Dê-me um pontapé de novo, Fanny, isso foi bom!" Desta vez, ela dá uma boa cutucada, que lhe deixa marca permanente na pança. O rosto dele está perto do tapete; a papada sacode sobre os pêlos do tapete. Ele se anima um pouco, movimenta-se de um lado para outro, salta de móvel para móvel. "Fanny, você é maravilhosa!" Agora ele está sentado sobre o ombro dela. Morde-lhe um pedacinho da orelha, apenas uma pontinha do lóbulo onde não dói.
Porém ela ainda está morta - só bateria, suco nenhum. Ele cai-lhe no colo e lá fica latejando como dor de dente. Agora está todo quente e indefeso. Sua barriga brilha como um sapato de verniz. Nas órbitas de seus olhos há um par de botões de fantasia de colete. "Desabotoe meus olhos, Fanny, quero ver você melhor!" Fanny leva-o para a cama e derrama-lhe um pouco de cera quente sobre os olhos. Põe-lhe anéis ao redor do umbigo e um termômetro no ânus. Aperta-o, e ele lateja de novo. De repente, ele diminui, encolhe completamente, até desaparecer. Ela rebusca tudo à procura dele, seus próprios intestinos, tudo. Algo lhe está fazendo cócegas - ela não sabe exatamente onde. A cama está cheia de sapos e de botões de fantasia de colete. "Fanny, onde está você?" Algo lhe está fazendo cócegas, ela não sabe dizer onde. Os botões estão caindo da cama. Os sapos estão subindo pelas paredes. Uma cócega e uma cócega. "Fanny, tire a cera dos meus olhos! Quero olhar para você!" Mas Fanny está rindo, torcendo-se de rir. Há alguma coisa dentro dela, fazendo cócega e fazendo cócega. Morrerá de rir se não encontrar a coisa. "Fanny, a mala está cheia de coisas bonitas. Fanny, está me ouvindo?" Fanny está rindo, rindo como gorda minhoca. Sua barriga está inchada de rir.
As pernas estão ficando azuis. "Ó Deus, Morris, alguma coisa está-me fazendo cócega... Não posso resistir!"
DOMINGO! SAÍ DA VILLA BORGHESE pouco antes do meio-dia, exatamente quando Bóris se preparava para almoçar. Saí por um senso de delicadeza, porque realmente aflige Bóris ver-me sentado lá no estúdio com a barriga vazia. Por que não me convida para almoçar com ele, é coisa que não sei. Diz que não pode gastar assim, mas isso não é desculpa. Seja como for, sou delicado nesse ponto. Se lhe causa pena comer sozinho na minha presença, provavelmente lhe causaria ainda mais pena partilhar a refeição comigo. Não é minha função sondar-lhe os negócios secretos.
Passei pela casa dos Cronstadts e eles também estavam comendo. Franguinho novo com arroz. Menti que já havia comido, mas seria capaz de arrancar o frango das mãos da criança. Isto não é apenas falsa modéstia - é uma espécie de perversão, penso. Por duas vezes me convidaram para comer com eles. Não! Não! Não aceitei sequer uma xícara de café depois da refeição. Sou delicado, sou mesmo! Ao sair, lancei um olhar comprido sobre os ossos que estavam no prato da criança - ainda havia carne neles.
Vagueando sem rumo. Um dia bonito - até agora. A Rue de Buci está viva, fervilhante. Os bares todos abertos e as esquinas cheias de bicicletas. Todos os mercados de carne e hortaliças em pleno funcionamento.
Braços carregados de hortaliças embrulhadas em jornais. Um belo Domingo Católico - na manhã, pelo menos. Meio-dia em ponto e aqui estou eu em pé com a barriga vazia, na confluência de todas estas ruas tortuosas que rescendem cheiro de comida. Diante de mim está o Hotel de Louisiane. Uma velha e sombria hospedaria conhecida dos maus rapazes da Rue de Buci nos bons velhos tempos. Hotéis e comida, e eu caminhando de um lado para outro como um leproso, enquanto caranguejos vão me roendo as entranhas. Nas manhãs de domingo há uma febre nas ruas. Nada como isto existe em outro lugar, exceto talvez no East Side ou lá embaixo em roda de Chatham Square. A Rue de 1'Echaudé está fervilhante. As ruas torcem e viram, tendo em cada ângulo novo burburinho de atividade. Longas filas de pessoas com hortaliças sob os braços, virando aqui e acolá com firme e vivo apetite. Nada senão comida, comida, comida. É de deixar uma pessoa delirante.
Passo pela praça de Furstemberg. Parece diferente agora, ao meio-dia. Outra noite, quando passei por ela, estava deserta, desolada, espectral. No meio da praça quatro árvores pretas que ainda não começaram a florir. Árvores intelectuais, alimentadas pelas pedras do calçamento. Como verso de T. S. Eliot. Aqui, por Deus, se Marie Laurencin alguma vez trouxesse suas lésbias para o claro, seria o lugar para elas comungarem. Três lesbienne ici. Estéril, híbrido, seco como o coração de Bóris.
No pequeno jardim ao lado da Eglise Saint Germain há algumas gárgulas desmontadas. Monstros que se projetam para a frente com impulso aterrorizador. Nos bancos outros monstros - velhos, idiotas, aleijados, epilépticos. Cochilando ali quietamente, esperando que toque a sinêta do jantar.
Na Galerie Zak, do outro lado, algum imbecil fez um retrato do cosmo - em perspectiva. Um cosmo de pintor! Cheio de bugigangas, bricabraque. No canto esquerdo, embaixo, há porém uma âncora - e uma sinêta de jantar. Salve! Salve, ó Cosmo!
Ainda vagueando. Meio da tarde. A barriga retinindo. Está começando a chover agora. Notre-Dame ergue-se da água como um túmulo. As gárgulas inclinam-se bem para fora sobre a fachada rendilhada. Penduram-se lá como uma idéia fixa na mente de um monomaníaco. Um velho de suíças amarelas aproxima-se de mim. Tem na mão algum absurdode Jaworski. Chega-se a mim com a cabeça jogada para trás, e a chuva jorrando-lhe no rosto transforma a areia dourada em lama. Livraria com alguns dos desenhos de Raoul Dufy na vitrina. Desenhos de criadas domésticas com roseiras entre as pernas. Um tratado sobre a filosofia de John Miro. A filosofia, veja você!
Na mesma vitrina: Um Homem Cortado em Fatias! Capítulo primeiro: o homem aos olhos de sua família. Capítulo segundo: idem, aos olhos de sua amante. Capítulo terceiro:
Não há capítulo terceiro. É preciso voltar amanhã para ver os capítulos terceiro e quarto. Diariamente o arrumador da vitrina vira uma página nova.
Um homem cortado em fatias... Pode imaginar como fiquei furioso por não ter pensado em um título assim! Onde está esse cara que escreve "idem, aos olhos de sua amante... idem, aos olhos de... idem..."? Onde está esse sujeito? Quem é ele? Quero abraçá-lo. Por Deus, gostaria de ter tido cérebro suficiente para imaginar um título como aquele - em lugar de Pênis Maluco e das outras coisas tolas que inventei. Bem, foda-se! Congratulo-me com ele do mesmo jeito.
Desejo-lhe sorte com seu belo título. Aqui está outra fatia para você - para seu próximo livro! Telefone-me um dia qualquer.
Estou vivendo na Villa Borghese. Estamos todos mortos, morrendo ou na iminência de morrer. Precisamos de bons títulos. Precisamos de carne - fatias e fatias de carne - lombos suculentos, bife de lombinho, ostras, pâncreas. Algum dia, quando estiver em pé na esquina da rua 42 com Broadway, vou-me lembrar desse título e registrar tudo quanto se passa em meu cérebro - caviar, gotas de chuva, graxa de eixo, vermicelli, liverwurst - fatias e fatias disso. E não direi a ninguém por que, depois de ter registrado tudo, fui de repente para casa e cortei o bebê em pedaços. Un acte gratuit pour vous, cher monsieur si bien coupé en tranches!
Como um homem pode vaguear o dia inteiro com a barriga vazia e ainda assim ter uma ereção de vez em quando é um desses mistérios que são explicados com excessiva facilidade pelos "anatomistas da alma". Numa tarde de domingo, quando as venezianas estão fechadas e o proletariado possui a rua numa espécie de mudo torpor, há certas vias públicas que fazem lembrar nada menos que um grande pênis canceroso aberto longitudinalmente. E são exatamente essas ruas - como a Rue Saint Denis, por exemplo, ou o Faubourg du Temple - que atraem a gente irresistivelmente, como antigamente, ao redor da Union Square ou na parte alta do Bowery, a gente era arrastada para os museus baratos onde se viam nas vitrinas reproduções de vários órgãos do corpo comidos pela sífilis e outras doenças venéreas. A cidade brota como um enorme doente em toda parte, sendo as belas avenidas apenas um pouco menos repelentes porque foram drenadas de seu pus.
Na Cite Nortier, perto da Place du Combat, paro alguns minutos para beber na plena esqualidez da cena. É um pátio retangular como muitos outros que a gente entrevê através das passagens baixas que flanqueiam as velhas artérias de Paris. No meio do pátio há um bloco de edifícios decrépitos que apodreceram a ponto de ruir uns sobre os outros e formar uma espécie de abraço intestinal. O terreno é desigual, o calçamento escorregadio por causa do lodo. Espécie de monte de detritos humanos que foi enchido com cinzas e lixo seco. O sol vai-se pondo depressa. As cores morrem. Mudam de púrpura para sangue seco, de nácar para bistre, de cinzentos frios e mortos para excremento de pombos. Aqui e acolá um monstro torto permanece na janela piscando como uma coruja. Há a gritaria aguda de crianças de rostos pálidos e membros ossudos, molequinhos raquíticos marcados pelo fórceps. Odor fétido desprende-se das paredes, o odor de um colchão embolorado. Europa - medieval, grotesca, monstruosa: uma sinfonia em si bemol. Diretamente do outro lado da rua, o Ciné Combat oferece Metropolis a sua distinta clientela.
Desviando-se disso minha mente volta a um livro que eu estava lendo ainda outro dia. "A cidade era um matadouro; cadáveres, retalhados por açougueiros e desnudados por saqueadores, jaziam aos montes nas ruas; lobos vinham furtivamente dos subúrbios para comê-los; a morte negra e outras pestes avançavam de rastos para fazer-lhes companhia e os ingleses chegavam marchando; entrementes, a danse macabre rodopiava ao redor dos túmulos em todos os cemitérios..."
Paris durante os dias de Carlos, o Tolo! Um livro encantador! Reconfortante, apetitoso. Sobre os campeões e os pródromos da Renascença conheço pouca coisa, mas Madame Pimpernel, la belle boulangère, e Maitre Jehan Crapotte, l'orfèvre, esses ainda ocupam meus pensamentos ociosos. Sem esquecer Rodin, o perverso gênio de
O Judeu Errante, que se dedicou às suas nefandas práticas "até o dia em que foi excitado e ludibriado pela oitavona Cecília". Sentado na praça du Temple, meditando sobre os feitos dos matadores de cavalos dirigidos por Jean Caboche, pensei demorada e pesarosamente no triste fim de Carlos, o Tolo. Um débil mental, que rondava pelos salões de seu Hotel Saint Paul, vestido com os mais sujos andrajos, devorado por úlceras e vermes, roendo um osso, quando lhe jogavam algum, como cão sarnento.
Na Rue dês Lions procurei as pedras da velha casa de animais onde ele antigamente alimentava seus bichos de estimação. Sua única diversão, pobre imbecil, afora aqueles jogos de cartas com sua "companheira de nascimento humilde", Odette de Champsdivers.
Foi numa tarde de domingo, muito parecida com esta, que encontrei Germaine pela primeira vez. Estava andando pelo Boulevard Beaumarchais, enriquecido por uns cem francos que minha mulher remetera da América freneticamente por meio de cabograma. Havia um toque de primavera no ar, uma primavera venenosa e maléfica que parecia irromper das bocas de esgoto. Noite após noite, eu voltava a esse trecho, atraído por certas ruas leprosas que só revelavam seu sinistro esplendor quando a luz do sol se esvaía e as prostitutas começavam a ocupar seus postos. A Rue Pasteur Wagner é uma que lembro particularmente, na esquina da Rue Amelot, que se esconde por trás de um bulevar, como sonolento lagarto. Aqui, no gargalo da garrafa, por assim dizer, havia sempre um bando de abutres que grasnavam e batiam as asas sujas, que estendiam as garras afiadas e nos empurravam para uma porta. Demônios joviais e vorazes que nem davam tempo de abotoar as calças depois de acabar. Levavam-nos para um quartinho ao lado da rua, geralmente um quarto sem janela, e, sentando-se na beirada da cama, com a saia erguida, faziam-nos uma rápida inspeção, cuspiam-nos no membro colocavam-no no lugar. Enquanto um se lavava, outro estava em pé na porta, e ela, segurando a vítima pela mão, observava indiferentemente o que dava os toques finais na toalete.
Germaine era diferente. Em sua aparência nada me dizia isso. Nada a distinguia das outras prostitutas que se reuniam à tarde e à noitinha no Café de L'Eléphant.
Como disse, era um dia de primavera e os poucos francos que minha mulher conseguira juntar para mandar-me pelo cabograma tiniam-me no bolso. Eu tinha uma vaga premonição de que não chegaria à Bastille sem ter sido arrastado por uma daquelas aves de rapina. Caminhando ao longo do bulevar, eu a notara convergindo em minha direção, com aquele curioso ar vadio da prostituta, os saltos gastos dos sapatos, as jóias baratas e a aparência macilenta do seu tipo, que o ruge só consegue acentuar.
Não foi difícil chegar a acordo com ela. Sentamo-nos no fundo do pequeno tabac chamado L'Eléphant e conversamos rapidamente. Poucos minutos depois, estávamos em um quarto de cinco francos na Rue Amelot, as cortinas fechadas e as cobertas puxadas para o fundo da cama. Germaine não fazia as coisas com pressa. Sentou-se no bidê, ensaboando-se e falando-me amavelmente sobre isto e aquilo; havia gostado dos "knickerbockers" que eu vestia. Três chic! pensava ela. Haviam sido antigamente, mas eu já lhes gastara os fundilhos. Felizmente, o paletó me cobria a bunda. Quando se levantou para enxugar-se, ainda falando amavelmente comigo, deixou cair de repente a toalha e, avançando devagar em minha direção, começou a esfregar a vagina afetuosamente, segurando-a com as duas mãos, dando-lhe palmadinhas, acariciando-a, acariciando-a.
Em sua eloqüência naquele momento e na maneira como jogava aquela roseira sob meu nariz, havia algo que permanece inesquecível; falava dela como se fosse um objeto estranho, um objeto que adquirira por alto preço, um objeto cujo valor aumentara com o tempo e que agora prezava acima de tudo no mundo. Suas palavras impregnavam-na de uma fragrância peculiar; não era mais apenas seu órgão privado, mas um tesouro, um tesouro mágico e potente, uma coisa dada por Deus - nada perdendo por negociá-la dia após dia em troca de algumas moedas de prata. Quando se jogou na cama, com as pernas bem abertas, pôs as mãos em concha sobre ela e deu-lhe mais algumas palmadinhas, murmurando todo o tempo, com aquela sua voz rouca e dissonante, que era boa, bonita, um tesouro, um pequeno tesouro. E era boa, aquela sua vaginazinha! Naquela tarde de domingo, com seu hálito venenoso de primavera no ar, tudo voltou de novo a correr bem. Quando saímos do hotel, olhei-a outra vez sob a luz clara do dia e vi claramente que puta ela era - os dentes de ouro, o gerânio no chapéu, os saltos gastos etc., etc. Nem mesmo por haver conseguido arrancar-me um jantar, cigarros e táxi, exerceu efeito perturbador sobre mim. Na verdade eu a encorajei. Gostei tanto dela que, depois do jantar, voltamos ao hotel e fizemos outra vez. "No amor", desta vez. E de novo aquela sua coisa grande e cabeluda mostrou florescência e magia. Ela começava a ter uma existência independente - para mim também. Havia Germaine e havia aquela sua roseira. Eu gostava das duas separadamente e gostava delas juntas.
Como disse, Germaine era diferente. Mais tarde, quando descobriu as verdadeiras circunstâncias em que eu vivia, tratou-me com nobreza - pagou-me bebidas, deu-me crédito, empenhou minhas coisas, apresentou-me a seus amigos e assim por diante. Chegou mesmo a pedir desculpas por não me emprestar dinheiro, o que compreendi muito bem depois que me apontaram seu maquereau. Noite após noite, eu descia o Boulevard Beaumarchais até o pequeno tabac onde todas elas se reuniam e esperava que ela chegasse e me desse alguns minutos de seu precioso tempo.
Quando, algum tempo depois, vim a escrever sobre Claude, não era em Claude que eu pensava, mas em Germaine... "Todos os homens com que ela esteve e agora você, precisamente você, e barcas passando, mastros e cascos, toda a maldita corrente da vida fluindo através de você, através dela, através de todos os caras antes de você e depois de você, as flores e os pássaros e o sol fluindo, e a fragrância disso sufocando-o, aniquilando-o." Isso foi para Germaine! Claude não era a mesma coisa, embora eu a admirasse tremendamente - embora tivesse mesmo pensado durante algum tempo que a amava. Claude tinha uma alma e uma consciência; tinha também refinamento, o que é ruim - numa puta. Claude sempre dava impressão de tristeza; deixava a impressão, sem querer, naturalmente, de que você era apenas mais um acrescentado à corrente que o destino criara para destrui-la. Sem querer, digo eu, porque Claude seria a última pessoa no mundo a criar conscientemente tal imagem no espírito da gente. Era excessivamente delicada, excessivamente sensível para isso. No fundo, Claude era apenas uma boa moça francesa, de criação e inteligência medianas, a quem a vida enganara de uma maneira qualquer; havia nela algo que não era bastante forte para resistir ao choque da experiência cotidiana. Para ela eram destinadas aquelas terríveis palavras de Louis-Philippe: "E chega uma noite em que tudo está acabado, em que tantas mandíbulas se fecharam sobre nós que não temos mais força para resistir e nossa carne pende sobre nossos corpos, como se mastigada por todas as bocas". Germaine, por outro lado, era uma puta desde o berço; estava plenamente satisfeita com seu papel, gostava realmente dele, exceto quando o estômago lhe doía ou seus sapatos acabavam, pequenas coisas superficiais sem importância, nada que lhe devorasse a alma, nada que criasse tormento. Ennui! Era o que já sentira de pior. Havia dias, sem dúvida, em que se enchia, como dizemos mas nada mais do que isso! Na maior parte do tempo gostava daquilo - ou dava a ilusão de gostar. Fazia diferença, naturalmente, com quem ela ia - ou vinha. Mas o principal era um homem. Um homem! Isso é o que ela queria. Um homem tendo entre as pernas alguma coisa que pudesse deleitá-la, que pudesse fazê-la contorcer-se em êxtase, que a fizesse agarrar aquela sua vulva cabeluda com ambas as mãos e esfregá-la alegremente, jactanciosamente, orgulhosamente, com um senso de conexão, um senso de vida. Esse era o único lugar onde ela experimentava alguma vida - ali embaixo, onde segurava com ambas as mãos.
Germaine era uma puta de alto a baixo, até mesmo em seu bom coração, seu coração de puta que não era realmente um bom coração, mas um coração preguiçoso, indiferente e flácido, capaz de comover-se por um momento, um coração sem referência a qualquer ponto fixo dentro, um grande e flácido coração de puta que podia destacar-se por um momento de seu verdadeiro centro. Entretanto, por mais vil e circunscrito que fosse aquele mundo que ela criara para si própria, funcionava nele soberbamente.
E isso por si só é uma coisa tônica. Quando, depois que já nos havíamos tornado bem conhecidos, suas companheiras me censuravam, dizendo que eu estava amando Germaine (situação quase inconcebível para elas), eu dizia: "Claro! Claro que a amo! E, ainda mais, vou ser fiel a ela!" Mentira, naturalmente, pois eu não poderia pensar em amar Germaine mais do que poderia pensar em amar uma aranha; e, se era fiel, não era a Germaine, mas àquela coisa cabeluda que ela tinha entre as pernas. Sempre que olhava para outra mulher pensava imediatamente em Germaine, naquela touceira ardente que ela deixara em minha mente e que parecia imperecível. Causava-me prazer sentar no ferrasse do pequeno tabac e observá-la em seu ofício, observá-la recorrer com os outros aos mesmos trejeitos, aos mesmos truques, que usara comigo. "Ela está no seu trabalho!" era como me sentia em relação àquilo e era com aprovação que lhe acompanhava as transações. Posteriormente, quando me liguei a Claude e a via noite após noite sentada em seu lugar de costume, o traseirinho redondo roliçamente acomodado no assento de pelúcia, eu sentia uma espécie de inexpressível revolta contra ela; uma puta, pensava eu, não tinha o direito de sentar-se ali como uma dama, esperando timidamente que alguém se aproximasse, e o tempo todo a sorver abstemiamente seu chocolate. Germaine era uma pessoa ativa. Não esperava que alguém chegasse até ela - saía e agarrava-o. Lembro-me tão bem dos furos de suas meias e dos sapatos tortos e rasgados. Lembro-me de como ficava em pé no bar e, com cega e corajosa determinação, lançava uma bebida forte no estômago e marchava para fora de novo.
Uma pessoa ativa! Talvez não fosse agradável cheirar-lhe o hálito de bebida, aquele hálito composto de café fraco, conhaque, apéritifs, pernods e todas as outras coisas que ela engolia nos intervalos, tanto para aquecer-se como para reunir força e coragem, mas o fogo delas penetrava-a, descia-lhe ardendo entre as pernas, onde as mulheres devem arder, e lá estabelecia aquele circuito que nos faz sentir de novo a terra sob os pés. Quando ficava lá deitada com as pernas abertas e gemendo, ainda que gemesse daquele jeito para todo mundo, era bom, era uma demonstração apropriada de sentimento. Não fitava o forro com ar vazio, nem contava os percevejos no papel da parede; conservava a mente em seu negócio, falava sobre as coisas que um homem deseja ouvir quando está trepando em uma mulher. Ao passo que Claude - bem, com Claude sempre havia certa delicadeza, mesmo quando estava com alguém embaixo das cobertas. E sua delicadeza me ofendia. Quem quer uma puta delicada? Claude chegava a pedir que você virasse o rosto quando ela se agachava sobre o bidê. Tudo errado! Um homem, quando ardendo de paixão, quer ver coisas; quer ver tudo, até mesmo com elas vertem água. E, embora seja muito bonito saber que uma mulher tem uma mente, literatura vinda do cadáver frio de uma puta é a última coisa que se pode servir na cama. Germaine tinha a idéia certa: era ignorante e sadia, punha o coração e a alma em seu trabalho. Puta de alto a baixo - e essa era a sua virtude.
A PÁSCOA CHEGOU COMO UMA LEBRE gelada - mas sua cama estava bem quente. Hoje está um dia bonito de novo e ao longo dos Champs-Elysées, ao anoitecer, é como um serralho ao ar livre cheio de huris de olhos pretos. As árvores têm toda a folhagem e seu verde é tão puro, tão rico, que parecem ainda estar úmidas e brilhantes de orvalho. Do Falais du Louvre até a Etoile é como uma peça de música para piano. Durante cinco dias não toquei a máquina de escrever nem olhei um livro; nem tive uma única idéia em minha cabeça, a não ser a de ir ao American Express. Às nove da manhã de hoje, eu lá estava, exatamente quando as portas se abriam, e de novo à uma hora da tarde. Nenhuma notícia.
Às quatro e meia saio correndo do hotel, resolvido a fazer uma tentativa de último minuto. Justamente quando viro a esquina, passo raspando em Walter Pach. Como ele não me reconhece e como nada tenho a dizer-lhe, não faço a menor tentativa de detê-lo. Mais tarde, quando estou estirando as pernas nas Tuileries, sua figura me volta à mente. Ele estava um pouco curvado, pensativo, tendo no rosto uma espécie de sorriso sereno, mas reservado. Enquanto ergo os olhos para este céu suavemente esmaltado, tão fracamente pintado, que não se enche hoje de pesadas nuvens de chuva, mas sorri como uma peça de porcelana antiga, imagino o que se passa na mente desse homem que traduziu os quatro grossos volumes da História da Arte quando recebe este cosmo jubiloso através de seus olhos baixos.
Ao longo dos Champs-Elisées, as idéias brotam de mim como suor. Eu devia ser muito rico para ter um secretário a quem pudesse ditar enquanto caminho, pois meus melhores pensamentos sempre vêm quando estou longe da máquina.
Caminhando ao longo dos Champs-Elisées, vou pensando em minha saúde realmente maravilhosa. Quando digo "saúde" quero dizer otimismo, para ser sincero. Otimista incurável!
Ainda com um pé no século XIX. Sou um pouco retardado, como a maioria dos americanos. Carl acha desagradável esse otimismo.
"Basta eu falar em uma refeição", diz ele, "e você já está radiante!" É um fato. A simples idéia de uma refeição - mais uma refeição - rejuvenesce-me. Uma refeição! Isso representa algo com que continuar algumas sólidas horas de trabalho, possivelmente uma ereção. Não nego. Tenho saúde, boa, sólida saúde animal. A única coisa que se ergue entre mim e o futuro é uma refeição, mais uma refeição.
Quanto a Carl, não está sendo ele próprio estes dias. Agitado, nervos abalados. Diz que está doente, e acredito nele, mas não me sinto mal por isso.
Não posso. De fato, faz-me rir. E isso o ofende, naturalmente. Tudo o machuca - minha risada, minha fome, minha persistência, minha indiferença, tudo. Ele deseja estourar um dia os miolos porque não pode mais suportar este sujo buraco da Europa; no dia seguinte, fala em ir para o Arizona, "onde olham a gente nos olhos".
"Faça-o!" digo eu. "Faça uma coisa ou outra, seu bastardo, mas não procure nublar meu olho sadio com seu hálito melancólico!"
Mas é assim mesmo! Na Europa, você se acostuma a não fazer nada. Você se senta sobre a própria bunda e choraminga o dia inteiro. Você fica contaminado. Apodrece. Fundamentalmente, Carl é um esnobe, um pistolinha aristocrático que vive num reino de demência precoce só seu. "Odeio Paris!" choraminga ele. "Todas essas estúpidas pessoas jogando cartas o dia inteiro... veja-as! E este negócio de escrever! De que adianta juntar palavras? Posso ser escritor sem escrever, não posso? O que prova, escrever um livro? Afinal, para que queremos livros? Já existem livros demais..."
Que coisa! Mas eu já passei por tudo isso - há anos e anos. Vivi minha mocidade melancólica. Não dou mais nada pelo que existe atrás de mim ou à minha frente. Sou sadio. Incurávelmente sadio.
Nem tristezas, nem remorsos. Nenhum passado, nenhum futuro. O presente é bastante para mim. Dia a dia. Hoje! Lê bel aujour tfhui! Carl tem um dia de folga por semana e nesse dia sente-se mais infeliz, se é possível imaginar tal coisa, do que em qualquer outro dia da semana. Embora proclame que despreza comida, o único meio pelo qual parece divertir-se em seu dia de folga é tomar uma grande refeição. Talvez o faça para benefício meu - não sei e não pergunto. Se prefere acrescentar o martírio à sua lista de vícios, isso é com ele - para mim está muito bem. Seja como for, na última terça-feira, depois de esbanjar o que tinha em uma grande refeição, levou-me ao Dome, o último lugar do mundo que eu procuraria em meu dia de folga. Mas aqui a gente não fica apenas indulgente - fica indiferente.
Em pé no bar do Dome está Marlowe, encharcado até as orelhas. Esteve numa farra, como diz, durante os cinco últimos dias. Isso quer dizer uma bebedeira contínua, uma peregrinação de bar em bar, dia e noite sem interrupção, e finalmente uma estada no Hospital Americano. O rosto ossudo e amaciado de Marlowe não é senão um crânio perfurado por duas órbitas profundas nas quais está enterrado um par de lêsmas mortas. Suas costas estão cobertas de serragem - ele acaba de tirar uma soneca na privada. No bolso de seu paletó estão as provas do próximo número de sua revista, pois estava a caminho da oficina de impressão com as provas, segundo parece, quando alguém o atraiu para tomar um gole. Fala sobre isso como se tivesse acontecido há meses. Tira as provas do bolso e estende-as sobre o bar; acham-se cheias de manchas de café e cuspo seco. Tenta ler um poema que escreveu em grego, mas as provas estão indecifráveis. Então decide proferir um discurso, em francês, mas o gérant faz que pare. Marlowe ofende-se: sua única ambição é falar um francês que até mesmo o garçom compreenda. No francês antigo, é mestre; dos surrealistas, fez excelentes traduções; mas dizer uma coisa simples - como "vá para o inferno, seu brocha!" - está fora do seu alcance. Ninguém compreende o francês de Marlowe, nem mesmo as putas. Na verdade, já é bem difícil compreender-lhe o inglês quando está com a cara cheia. Tartamudeia e cospe como um gago declarado... não há seqüência em suas frases. "Você paga!" essa é uma das coisas que consegue dizer claramente.
Mesmo que não mais possa parar em pé, algum belo instinto de conservação sempre adverte Marlowe quando é o momento de representar.
Se há em seu espírito alguma dúvida sobre como vão ser pagas as bebidas, ele sempre encena um ato. O costumeiro é fingir que está ficando cego. Carl agora já conhece todos os seus truques e, assim, quando Marlowe põe as mãos nas têmporas de repente e começa a representar, Carl dá-lhe um pontapé na bunda e diz:
"Deixa disso, seu trouxa! Não precisa fazer isso comigo!"
Se é uma astuciosa peça de vingança ou não, ignoro, mas, seja como for, Marlowe está pagando Carl em boa moeda. Inclinando-se confidencialmente em nossa direção, conta com voz rouca e crocitante um boato que ouviu no decurso de suas peregrinações de bar em bar. Carl olha espantado.
Está pálido por baixo da papada. Marlowe repete a história com variações. Cada vez Carl encolhe-se um pouco mais. "Mas isso é impossível!" exclama ele finalmente.
"Não, não é!" crocita Marlowe. "Você vai perder o emprego... Soube disso com certeza." Carl olha desesperado para mim. "Está-me enganando, esse bastardo?" murmura-me ao ouvido. E, depois, em voz alta: "Que vou fazer agora? Nunca encontrarei outro emprego. Levei um ano para arranjar esse." Isso, aparentemente, era tudo quanto Marlowe esperava ouvir. Finalmente encontrou alguém em pior situação que a sua. "Serão tempos difíceis", crocita, enquanto seu crânio ossudo brilha com um fogo elétrico frio.
Deixando o Dome, Marlowe explica, entre soluços, que tem de voltar para São Francisco. Parece agora genuinamente comovido pelo desamparo de Carl. Propõe que Carl e eu cuidemos da revista durante a ausência dele. "Posso confiar em você, Carl", diz. Depois, de repente, sofre um ataque, verdadeiro desta vez. Quase cai na sarjeta.
Arrastamo-lo até um bistrot no Boulevard Edgar Quinet e fazemo-lo sentar-se. Desta vez, apanhou-a realmente uma dor de cabeça cegante que o faz guinchar e grunhir, virando-se de um lado para outro como um animal estúpido atingido por um malho. Derramamos uma duas doses de Fernet-Brancas em sua garganta, deitamo-lo sobre o banco e cobrimos seus olhos com o cachecol. Fica lá deitado a gemer. Pouco depois, ouvimo-lo roncar.
"Que acha da proposta dele?" pergunta Carl. "Devemos aceitála? Diz que me dará mil francos quando voltar. Sei que não dará, mas que acha você?" Olha para Marlowe estendido no banco, ergue de seus olhos o cachecol e torna a colocá-lo no lugar. De repente, um sorriso malicioso ilumina-lhe o rosto. "Escute, Joe", diz ele, acenando para que me aproxime mais, "vamos aceitar a proposta. Ficaremos com sua suja revista e vamos fodê-lo direitinho".
"Que quer dizer com isso?"
"Ora, dispensaremos todos os outros colaboradores e encheremos a revista com nossa própria droga... só isso!"
"Bem, mas que espécie de droga?"
"Qualquer espécie... Ele não poderá fazer nada para impedi-lo. Vamos fornicá-lo direitinho. Um bom número e depois disso a revista estará liquidada. Você topa, Joe?"
Reprimindo o riso, levantamos Marlowe e carregamo-lo até o quarto de Carl. Quando acendemos a luz, há uma mulher na cama esperando Carl. "Esqueci-me dela", diz Carl.
Mandamos a boceta embora e jogamos Marlowe na cama. Mais ou menos um minuto depois, uma batida na porta. É Van Norden. Todo agitado. Perdeu uma chapa da dentadura - no Bal Nègre, acredita ele. Finalmente, vamos para a cama, nós quatro. Marlowe fede como um peixe defumado.
De manhã, Marlowe e Van Norden saem à procura da dentadura postiça. Marlowe está chorando. Imagina que são os seus dentes.
É O MEU ÚLTIMO JANTAR EM CASA do dramaturgo. Acabaram de alugar um piano novo, um grande piano de concerto. Encontrei Sylvester saindo da floricultura com uma planta nos braços. Pede-me que a carregue para ele, enquanto vai buscar os charutos. Uma a uma, livrei-me de todas essas refeições gratuitas que eu havia planejado tão cuidadosamente. Um a um, voltaram-se contra mim os maridos ou as mulheres. Enquanto caminho com a planta nos braços, penso naquela noite, há alguns meses, quando a idéia me ocorreu pela primeira vez. Estava sentado em um banco perto da Coupole, brincando com a aliança que tentara empenhar a um garçom no Dome.
Oferecera-me seis francos por ela e eu estava furioso por isso. Mas a barriga reclamava. Desde que deixara Mona, usava a aliança no dedo. Era tão parte de mim que nunca me ocorrera vendê-la. Era uma dessas coisas de flores de laranjeira em ouro branco. Valia um dólar e meio, talvez mais. Durante três anos ficamos sem aliança e, depois, certo dia, quando eu ia ao cais esperar Mona, passei ocasionalmente por uma vitrina de joalheria na Maiden Lane, e a vitrina toda estava cheia de alianças. Quando cheguei ao cais, não vi Mona. Esperei até o último passageiro descer pela prancha de desembarque, mas não vi Mona. Finalmente pedi que me mostrassem a lista de passageiros.
Seu nome não constava. Enfiei a aliança no dedo e lá ficou ela. Certa vez esqueci-a em um banho público, mas voltei a buscá-la. Uma das flores de laranjeira caíra. Seja como for, eu estava lá sentado no banco, cabisbaixo, brincando com a aliança, quando de repente alguém me deu um tapa nas costas. Para encurtar a história, consegui uma refeição e ainda por cima alguns francos. Ocorreu-me então, como um relâmpago, que ninguém recusaria refeição a um homem, desde que ele tivesse a coragem de pedi-la. Fui imediatamente a um café e escrevi uma dúzia de cartas. "Permitiria que eu jantasse com o senhor uma vez por semana? Diga-me que dia lhe seria mais conveniente." Funcionou como por encanto. Não fui apenas alimentado... Fui festejado. Toda noite voltava para casa bêbedo. Tudo quanto faziam por mim parecia pouco àquelas generosas almas de uma vez por semana. O que acontecia comigo nos intervalos era coisa que não precisavam saber. De vez em quando, os atenciosos presenteavam-me com cigarros ou um pouco de dinheiro. Sentiam-se evidentemente aliviados quando pensavam que me veriam apenas uma vez por semana.
E sentiam-se ainda mais aliviados quando eu dizia: "Não é mais necessário." Nunca me perguntavam por quê. Felicitavam-me, e era tudo. Muitas vezes, a razão era eu ter encontrado um anfitrião melhor; podia dar-me o luxo de dispensar os que eram chatos. Mas essa idéia nunca lhes ocorreu.
Finalmente, tive um programa firme e sólido - um esquema fixo. Eu sabia que nas terças-feiras seria esta espécie de refeição, e nas sextas aquela outra. Cronstadt, sabia eu, tinha para mim champanha e torta de maçã feita em casa. E Carl levava-me a jantar fora, cada vez a um restaurante diferente, pedia vinhos raros, convidava-me para ir depois ao teatro ou ao Cirque Medrano. Eles se sentiam curiosos a respeito uns dos outros, os meus anfitriões. Perguntavam-me de que lugar eu gostava mais, quem servia a melhor comida etc. Acho que eu gostava mais da casa de Cronstadt, quiçá porque toda vez ele marcava a refeição com giz na parede. Não que me aliviasse a consciência ver o que lhe devia, pois não tinha a menor intenção de pagá-lo, nem ele tinha ilusão alguma de receber retribuição. Não, eram os números-estranhos que me intrigavam. Ele costumava calcular até o último centavo. Se fosse pagar-lhe tudo, teria de trocar um "sou". Sua esposa era uma cozinheira maravilhosa e não dava a menor importância àqueles centavos que Cronstadt somava. Ela me fazia pagar em cópias a carbono. Verdade! Se eu não tivesse novos carbonos para ela quando me apresentava, ficava abatida.
E por isso eu teria de levar a meninazinha ao Luxemburgo no dia seguinte, brincar com ela duas ou três horas, tarefa que me deixava maluco porque só falava húngaro e francês. De maneira geral, eram uma gente engraçada, os meus anfitriões...
Na casa de Tânia, olho do balcão para a extensão embaixo. Moldorf está lá, sentado ao lado de seu ídolo. Aquece os pés na lareira, com um monstruoso ar de gratidão nos olhos úmidos. Tânia está tocando o adágio. O adágio diz mui distintamente: não mais palavras de amor! Estou de novo na fonte, observando as tartarugas mijarem leite verde. Sylvester acaba de voltar da Broadway com o coração cheio de amor.
Durante toda a noite, fiquei deitado em um banco ao lado da alameda enquanto o globo era borrifado com mijo quente de tartaruga e os cavalos, entesados com fúria priápica, galopavam como loucos sem nunca tocar o solo. Durante toda a noite senti o cheiro dos lilases no quartinho escuro onde ela está despenteando os cabelos, os lilases que comprei para ela quando foi encontrar-se com Sylvester. Ele voltou com o coração cheio de amor, disse ela, e os lilases estão em seus cabelos, em sua boca, enchendo-lhe as axilas. O quarto está inundado de amor, e mijo de tartaruga e lilases quentes, e os cavalos galopam como loucos.
De manhã, dentes sujos e escuma nos vidros da janela; fechado, o pequeno portão que leva à alameda. Gente indo para o trabalho e as venezianas retinindo como cotas de malha. Na livraria diante da fonte há a história do lago Tchad, os lagartos silenciosos, os deslumbrantes matizes amarelo-dourados. Todas as cartas que mandei a ela, cartas bêbedas escritas com tocos de lápis sem ponta, cartas loucas escritas com pedaços de carvão, pequenas peças de banco em banco, bombinhas, guardanapos, tutü-frutti; eles as estão lendo agora, juntos, e ele me felicitará um dia. Dirá, sacudindo a cinza do charuto: "Realmente, você escreve muito bem. Vejamos, você é surrealista, não é?" Voz seca e irritante, dentes cheios de sujeira, solo para plexo solar, g de gagá.
Em cima o balcão, com a planta de borracha, e o adágio lá embaixo. As teclas são pretas e brancas, depois pretas, depois brancas, depois brancas e pretas. E você quer saber se pode tocar alguma coisa para mim. Sim, toque alguma coisa com esses seus grandes polegares. Toque o adágio, pois é a única e maldita coisa que você sabe. Toque-o e depois corte esses grandes polegares.
O adágio! Não sei por que insiste em tocá-lo o tempo todo. O velho piano já não lhe parecia bom; precisou alugar um grande piano de concerto - para o adágio! Quando vejo seus grandes polegares apertando o teclado e aquela estúpida planta ao meu lado, sinto-me como aquele louco do Norte que jogou fora as roupas e, sentado nu nos galhos invernosos, lançava nozes no mar congelado. Há algo exasperante nesse movimento, algo abortivamente melancólico, como se tivesse sido escrito em lava, como se tivesse a cor de chumbo e leite misturados. E Sylvester, com a cabeça pendida para um lado como um leiloeiro, Sylvester diz: "Toque aquele outro que você estava praticando hoje."
É lindo ter um "fumoir", um bom charuto e uma esposa que toca piano. Tão repousante. Tão calmante. Entre os números, você sai para fumar e tomar um pouco de ar fresco. Sim, seus dedos são muito flexíveis, extraordinariamente flexíveis. Ela faz trabalhos de batik também. Quer experimentar um cigarro búlgaro? Pergunto, peito de pomba, qual é aquele outro movimento de que gosto tanto? O scherzo! Ah, sim, o scherzo! Excelente, o scherzo! Aqui fala o Conde Waldemar von Schwisseneinzug.
Olhos frios e remelentos. Halitose. Meias vistosas. E crotons na sopa de ervilha, por favor. Sempre tomamos sopa de ervilha nas sextas-feiras à noite. Quer experimentar um pouco de vinho tinto? O vinho tinto vai bem com a carne, sabe? Voz seca e firme. Quer um cigarro? Sim, gosto do meu trabalho, mas não lhe atribuo importância alguma. Minha próxima peça envolverá uma concepção pluralística do universo. Tambores giratórios com luzes de cálcio. O'Neill está morto. Penso, querida, que você devia tirar o pé do pedal com mais freqüência. Sim, essa parte é muito bonita... muito bonita, não acha? Sim, os personagens vão de um lado para outro com microfones nas calças. O local é na Ásia, porque as condições atmosféricas são mais condizentes. Quer experimentar um pouco de Anjou? Compramo-lo especialmente para você...
Durante toda a refeição essa tagarelice continua. Tem-se a impressão exata de que ele tirou para fora o seu membro circuncizado e mija em nós. Tânia está estourando do esforço. Desde que ele voltou com o coração cheio de amor, este monólogo vem continuando. Fala enquanto se despe, contou-me ela - um firme jorro de mijo quente, como se a bexiga tivesse sido perfurada. Quando penso em Tânia rastejando para a cama com essa bexiga estourada, fico furioso.
Pensar que um pobre bastardo mirrado com aquelas suas peças baratas da Broadway escondidas no bolso do colete está mijando na mulher que amo. Pedindo vinho tinto e tambores giratórios e crotons em sua sopa de ervilha! O atrevimento dele! Pensar que pode deitar-se ao lado daquela fornalha que acendi para ele e não fazer outra coisa senão verter água! Meu Deus, homem, você devia cair de joelhos e agradecer-me.
Não vê que tem uma mulher em sua casa agora? Não pode ver que ela está estourando? Você está me dizendo com aquelas suas adenóides estranguladas: "Bem, agora, vou dizer-lhe uma coisa... há duas maneiras de encarar isso..." Fodam-se as suas duas maneiras de encarar as coisas! Fodam-se o seu universo pluralístico e a sua acústica asiática! Não me dê seu vinho tinto ou seu Anjou... dê-me ela... ela me pertence! Vá sentar-se você ao lado da fonte e deixe eu cheirar os lilases! Tire a remela dos olhos... e pegue aquele maldito adágio e embrulhe-o num par de calças de flanela! E o outro movimentozinho também... todos os movimentozinhos que você faz com sua bexiga fraca. Você sorri para mim tão confiantemente, tão calculadoramente. Eu o estou tapeando, não percebe? Enquanto ouço as bobagens que você diz, ela põe a mão em mim - mas você não vê isso.
Pensa que eu gosto de sofrer - esse é o meu papel, diz você. Muito bem. Pergunte a ela! Ela lhe dirá como eu sofro. "Você é câncer e delírio", disse-me ela pelo telefone outro dia. Agora ela pegou o câncer e o delírio, e logo você terá de ficar com as crostas das feridas. As veias dela estão estourando, é o que lhe digo, e a conversa sua é só serragem. Por mais que você mije, nunca encherá os buracos. Que foi que disse a Senhora Wren? Palavras são solidão. Deixei umas duas palavras para você sobre a toalha na noite passada - você as cobriu com os cotovelos.
Ele ergueu uma cerca ao redor dela, como se ela fosse um sujo e fedorento osso de santo. Se pelo menos tivesse a coragem de dizer "Fique com ela!" talvez acontecesse um milagre. Só isso! Fique com ela! e juro que tudo correria bem. Ademais, talvez eu não ficasse com ela - se é que isso já lhe ocorreu, penso eu. Ou talvez ficasse com ela durante algum tempo e a devolvesse, melhorada. Mas erguer uma cerca ao redor dela, isso não adianta. Não se pode erguer uma cerca ao redor de um ser humano.
Isso não se faz mais... Você pensa, pobre e minado bastardo, que não sirvo para ela, que poderia poluí-la, profaná-la. Não sabe como é saborosa uma mulher poluída, como uma troca de sêmen pode fazer uma mulher florescer! Pensa que um coração cheio de amor é o bastante, e talvez seja para a mulher certa, mas você não tem mais coração nenhum... você não passa de uma grande bexiga vazia. Está afiando os dentes e cultivando a rosnadura. Corre atrás dela como um cão de guarda e mija em toda parte.
Ela não o tomou por um cão de guarda... tomou-o por um poeta. Você era poeta antigamente, disse ela. E agora que é você?
Coragem, Sylvester, coragem! Tire o microfone de suas calças. Abaixe a perna traseira e deixe de mijar em toda parte. Coragem, digo eu, porque ela já o largou. Ela está contaminada, digo-lhe eu, e você bem poderia retirar a cerca. Não adianta perguntar-me delicadamente se o café não tem gosto de ácido fênico. Isso não me assusta. Ponha veneno de rato no café e um pouco de vidro moído. Prepare um pouco de urina fervente e jogue algumas nozes-moscadas dentro...
Ê uma vida comunal a que venho levando nas últimas semanas. Tive de partilhar-me com outros, principalmente com alguns russos malucos, um holandês bêbedo e uma grande mulher búlgara chamada Olga. Dos russos, há principalmente Eugene e Anatole.
Faz apenas alguns dias que Olga saiu do hospital, onde lhe arrancaram as trompas e a fizeram perder um pouco de peso excessivo.
Todavia, não parece ter sofrido muito. Pesa quase tanto quanto uma locomotiva, pinga de suor, tem halitose e ainda usa a peruca circassiana que parece feita de maravalhas. Tem no queixo duas grandes verrugas nas quais cresce um monte de pêlos curtos; está começando a ter bigode.
No dia em que lhe deram alta no hospital, Olga começou de novo a fazer sapatos. Às seis da manhã, senta-se em sua banca; martela dois pares de sapatos por dia. Eugene queixa-se de que Olga é um peso, mas a verdade é que ela sustenta Eugene e sua mulher com os dois pares de sapatos por dia.
Quando Olga não trabalha, não há comida.
Por isso, todos se esforçam para fazer Olga deitar-se na hora, dar-lhe comida suficiente para que continue trabalhando etc.
Toda refeição começa com sopa. Seja de cebola, de tomate, de legumes ou qualquer outra coisa, a sopa sempre tem o mesmo gosto. No mais das vezes, seu gosto dá a impressão de que cozeram nela um pano de enxugar pratos - levemente rançosa, embolorada, escumosa. Veio Eugene escondê-la na cômoda depois da refeição. Fica lá, apodrecendo, até a refeição seguinte. A manteiga também é escondida na cômoda; depois de três dias, tem o gosto do dedão do pé de um cadáver.
O cheiro de manteiga rançosa frigindo não é particularmente apetitoso, especialmente quando a comida é feita num aposento em que não há a menor ventilação. Tão logo abro a porta, sinto-me mal. Mas Eugene, assim que me ouve chegar, geralmente abre as venezianas e puxa a colcha, pendurada como uma rede de pesca para impedir a entrada da luz solar. Pobre Eugene! Olha ao longo do quarto para as poucas peças de mobiliário, para as colchas sujas e a bacia ainda com água suja dentro, e diz: "Sou um escravo!" Todo dia diz isso, não uma vez, mas uma dúzia de vezes. Depois, tira da parede o violão e canta.
Mas, quanto ao cheiro de manteiga rançosa... Há também boas associações. Quando penso nessa manteiga rançosa, vejo-me em pé num pequeno pátio do Velho Mundo, um pátio muito malcheiroso e sombrio. Estranhas figuras espreitam-se pelas frestas das venezianas... mulheres velhas com xales, anões, gigolôs de cara de rato, judeus curvados, midinettes, idiotas barbudos. Saem tropeçando para o pátio a fim de buscar água ou lavar os baldes de despejo.
Um dia Eugene pediu-me que lhe esvaziasse o balde. Levei-o até o canto do pátio. Havia um buraco no chão e, ao redor dele, alguns papéis sujos. O pequeno poço estava pegajoso de excremento. Virei o balde e houve um nojento e gorgulhante "plafe", seguido por outro e inesperado plafe. Quando voltei a sopa estava servida. Durante toda a refeição pensei em minha escova de dente - está-se tornando velha e as cerdas ficam presas nos meus dentes.
Quando me sento para comer sempre fico perto da janela. Temo sentar-me do outro lado da mesa - fica muito perto da cama, e a cama está fervilhando. Posso ver manchas de sangue nos lençóis cinzentos se olhar daquele lado, mas procuro não olhar para lá. Olho para fora, para o pátio, onde estão lavando os baldes de despejo.
A refeição nunca é completa sem música. Logo que servem o queijo, Eugene levanta-se de um salto e apanha o violão que fica pendurado sobre a cama. Sempre a mesma canção. Ele diz que tem quinze ou dezesseis canções em seu repertório, mas nunca ouvi mais de três. Sua favorita é Charmant poème âamour. Cheia de angoisse e tristesse.
À tarde, vamos ao cinema, que é frio e escuro. Eugene senta-se ao piano no grande poço da orquestra e eu me sento em uma poltrona bem na frente. A casa está vazia, mas Eugene canta como se tivesse a ouvi-lo todas as cabeças coroadas da Europa. A porta do jardim acha-se aberta e o cheiro de folhas úmidas entra, e a chuva mistura-se com a angoisse e tristesse de Eugene.
À meia-noite, após os espectadores terem saturado o salão com suor e mau hálito, volto para dormir em uma poltrona. A luz da saída, flutuando em um halo de fumaça de tabaco, lança débil clarão sobre o canto inferior da cortina de amianto; fecho os olhos toda noite com um olho artificial...
Em pé no pátio, com um olho de vidro; só metade do mundo inteligível. As pedras são úmidas e musgosas, e nas fendas há sapos pretos. Uma grande porta barra a entrada do porão; os degraus são escorregadios e sujos de excremento de morcegos. A porta arqueia-se e dobra-se, as dobradiças estão caindo, mas há nela uma tabuleta envernizada, em perfeito estado, que diz: "Tenha o cuidado de fechar a porta." Por que fechar a porta? Não posso compreender. Olho de novo para a tabuleta, mas foi retirada; em seu lugar há um painel de vidro colorido. Tiro meu olho artificial, cuspo sobre ele e lustro-o com o lenço. Uma mulher está sentada sobre um estrado por cima de imensa mesa lavrada; tem uma cobra enrolada no pescoço. Todo o aposento acha-se forrado de livros e há estranhos peixes nadando em globos coloridos; mapas e cartas nas paredes, mapas de Paris antes da peste, mapas do mundo antigo, de Cnosso e Cartago, de Cartago antes e depois da salgação.
Em um canto do aposento vejo uma cama de ferro e sobre ela um cadáver; a mulher levanta-se enfastiadamente, retira o cadáver da cama e joga-o descuidadamente pela janela. Volta à enorme mesa lavrada, tira um peixe dourado do boião e engole-o. Vagarosamente o aposento começa a girar e, um a um, os continentes deslizam para o mar; só resta a mulher, mas seu corpo é massa de geografia. Inclino-me pela janela e a torre Eiffel borbulha champanha, construída inteiramente de números e envolta em renda negra. Os esgotos estão gorgolando furiosamente. Não há outra coisa senão telhados por toda parte, dispostos com execrável habilidade geométrica.
Fui lançado para fora do mundo como uma bala. Um nevoeiro denso caiu, a terra está lambuzada de graxa congelada. Posso sentir a cidade palpitando, como se fosse um coração recémretirado de um corpo quente. As janelas do meu hotel estão apodrecendo e há um cheiro forte e acre, como o de substâncias químicas queimando. Olhando para o Sena vejo lama e desolação, luzes da rua afundando-se, homens e mulheres morrendo sufocados, as pontes cobertas de casas, matadouros de amor. Um homem de pé, encostado à parede com uma harmônica amarrada na barriga; suas mãos foram cortadas nos pulsos, mas a harmônica contorce-se como um saco de cobras. O universo encolheu; tem apenas o comprimento de um quarteirão e não há estrelas, nem árvores, nem rios. A gente que vive aqui está morta; faz cadeiras em que outras pessoas se sentam em seus sonhos. No meio da rua há uma roda, e no centro desta acha-se instalada uma forca. Pessoas já mortas tentam frenèticamente subir na forca, mas a roda gira muito depressa...
Alguma coisa era necessária para fazer-me ficar bem comigo mesmo. Ontem à noite descobri-o: Papini. Não me importa que ele seja um chauvinista, um pequeno hipócrita ou um pedante míope. Como fracasso, é maravilhoso...
Os livros que leu... aos dezoito anos! Não só Homero, Dante, Goethe, não só Aristóteles, Platão, Epiteto, não só Rabelais, Cervantes, Swift, não só Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Baudelaire, Villon, Carducci, Manzoni, Lope de Vega, não só Nietzsche, Schopenhauer, Kant, Hegel, Darwin, Spencer, Huxley - não só esses, mas toda a arraia miúda que fica entre eles. Isso na página 18. Alors, na página 232, ele sucumbe e confessa. Nada sei, admite. Conheço os títulos, compilei biografias, escrevi ensaios críticos, caluniei e difamei... Posso falar durante cinco minutos ou durante cinco dias, mas depois esgoto-me, fico seco.
Segue-se isto: 'Todos querem ver-me. Todos insistem em falar comigo. Pessoas infernizam-me e infernizam outros com perguntas sobre o que estou fazendo. Como estou eu? Estou de novo perfeitamente bem? Ainda dou meus passeios pelo campo? Estou trabalhando? Terminei meu livro? Começarei outro logo?
"Um macaco magricela, um alemão, quer que eu lhe traduza as obras. Uma moça russa de olhos selvagens quer que eu escreva um relato de minha vida para ela. Uma senhora americana deseja as ultimíssimas notícias a meu respeito. Um cavalheiro americano mandará sua carruagem buscar-me para jantar - apenas uma conversa íntima e confidencial, sabe? Um velho colega de escola e amigo meu, de há dez anos, quer que eu lhe leia tudo quanto escrevo tão depressa quanto escrevo. Um pintor amigo, que conheço, espera que pose para ele por hora. Um jornalista deseja meu atual endereço. Um conhecido, um místico, pergunta sobre o estado de minha alma; outro, mais prático, sobre o estado de minha bolsa. O presidente de meu clube indaga se farei um discurso para os rapazes! Uma dama, de inclinações espiritualistas, espera que eu vá à sua casa tomar chá o mais freqüentemente possível. Deseja ouvir minha opinião sobre Jesus Cristo e... que penso eu daquele novo médium?...
"Santos Deus! Em que me transformei? Que direito têm vocês de atrapalhar minha vida, roubar meu tempo, sondar minha alma, sugar meus pensamentos, ter-me como seu companheiro, confidente e departamento de informações? Por quem me tomam? Sou um artista assalariado, obrigado a interpretar toda noite uma farsa intelectual sob seus estúpidos narizes? Sou um escravo, comprado e pago para rastejar sobre a barriga diante de vocês, ociosos, e depor a seus pés tudo quanto faço e tudo quanto sei? Sou meretriz em um bordel, chamada a erguer a saia ou tirar a combinação ao aceno do primeiro homem de terno feito que chegue?
"Sou um homem que gostaria de viver uma vida heróica e tornar o mundo mais suportável à sua própria vista. Se, em algum momento de fraqueza, relaxamento, necessidade, solto vapor um pouco de raiva aquecida ao rubro e resfriada em palavras um sonho apaixonado embrulhado e amarrado em imagens - bem, aceitem-no ou recusem-no... mas não me aborreçam!
"Sou um homem livre - e preciso de minha liberdade. Preciso estar sozinho. Preciso meditar na minha vergonha e no meu desespero em retiro; preciso da luz do sol e das pedras do calçamento das ruas sem companheiros, sem conversação, frente a frente comigo, apenas com a música do meu coração como companhia. Que querem vocês de mim? Quando tenho algo a dizer, ponho-o em letra de fôrma. Quando tenho algo a dar, dou-o. Sua curiosidade indiscreta faz virar meu estômago! Seus cumprimentos humilham-me! Seu chá envenena-me! Nada devo a ninguém. Seria responsável somente perante Deus - se Ele existisse!"
Parece-me que Papini deixa algo de lado por um fio de cabelo quando fala da necessidade de estar sozinho. Não é difícil estar sozinho quando se é pobre e fracassado.
Um artista está sempre sozinho - se é artista. Não, o que o artista precisa é de solidão. O artista, é como eu me chamo. Seja assim, portanto. Uma bela soneca esta tarde introduziu veludo entre minhas vértebras. Gerou idéias suficientes para três dias.
A máquina cheia de energia, e nada para fazer com ela. Decido dar um passeio. Na rua mudo de idéia. Decido ir ao cinema.
Não posso ir ao cinema faltam-me alguns
"sous". Um passeio, então. Diante de cada cinema paro e olho os cartazes, depois a lista de preços. Bem baratas, essas casas de ópio, mas me faltam alguns "sous". Se não fosse tão tarde eu poderia voltar e vender uma garrafa vazia.
Quando chego à Rue Amélie já me esqueci completamente do cinema. A Rue Amélie é uma das minhas favoritas. Uma daquelas ruas que por sorte a municipalidade se esqueceu de asfaltar. Enormes pedras estendem-se convexamente de um lado ao outro da rua. Só um quarteirão comprido e estreito. O Hotel Pretty fica nessa rua. Há também uma pequena igreja na Rue Amélie. Dá a impressão de feita especialmente para o presidente da República e sua família privada.
É bom ver ocasionalmente uma modesta igrejinha. Paris está cheia de catedrais pomposas. Ponte Alexandre III. Um grande espaço batido pelo vento nas proximidades da ponte. Árvores descarnadas e nuas matematicamente fixadas em suas grades de ferro; a melancolia dos Invalides fluindo da cúpula e invadindo as ruas escuras adjacentes à praça. O necrotério da poesia. Eles agora o têm lá onde o queriam, o grande guerreiro, o último grande homem da Europa. Dorme pesadamente em sua cama de granito. Não temem que se vire no túmulo. As portas estão bem aferrolhadas, a tampa hermeticamente fechada. Durma, Napoleão! Não eram suas idéias que eles queriam, era só o seu cadáver!
O rio ainda está inchado, lodoso, riscado de luzes. Não sei o que sobe em mim à vista desta corrente escura e rápida, mas uma grande exultação me anima, afirma o profundo desejo que existe em mim de jamais deixar esta terra. Lembro-me de ter passado por aqui outro dia de manhã a caminho do American Express, sabendo antecipadamente que não haveria correspondência para mim, nem cheque, nem cabograma, nada, nada. Um carro das Galeries Lafayette vai rodando sobre a ponte. A chuva parou e o sol, atravessando as nuvens ensaboadas, tocou o reluzente amontoado de telhados com um fogo frio. Lembro-me agora de como o motorista se inclinou para fora e olhou rio acima na direção de Passy. Um olhar tão sadio, simples, aprovador, como se ele estivesse dizendo consigo mesmo: "Ah, a primavera está chegando!" E, sabe Deus, quando a primavera chega a Paris o mais humilde dos mortais vivos deve sentir que mora no paraíso. Mas não foi só isso - foi a intimidade com que seus olhos repousaram sobre a cena. Era a sua Paris. Um homem não precisa ser rico, nem mesmo precisa ser um cidadão, para sentir-se dessa maneira com relação a Paris. Paris está cheia de gente pobre - o mais orgulhoso e sujo bando de mendigos que já caminhou sobre a terra, segundo me parece. E, apesar disso, eles dão a impressão de estarem em casa. É isso que distingue o parisiense de todas as outras almas metropolitanas.
Quando penso em Nova York tenho sensação muito diferente. Nova York faz até mesmo o homem rico sentir sua falta de importância. Nova York é fria, resplandecente, maligna. Há uma espécie de frenesi atômico na atividade que lá existe; quanto mais furioso o ritmo, mais minguado o espírito. Um fermento constante, mas que poderia do mesmo modo estar atuando em um tubo de ensaio. Ninguém sabe por que está acontecendo aquilo tudo. Ninguém dirige a energia.
Estupendo. Bizarro. Desconcertante. Um tremendo ímpeto reativo, mas absolutamente descoordenado. Quando penso nessa cidade onde nasci e me criei, nessa Manhattan que Whitman cantou, uma raiva cega e branca devora minhas entranhas. Nova York! As prisões brancas, as calçadas fervilhando de vermes, as filas do pão, as casas de ópio construídas como palácios, os judeus que lá existem, os leprosos, os bandidos e acima de tudo o ennui, a monotonia dos rostos, ruas, pernas, casas, arranha-céus, refeições, cartazes, empregos, crimes, amores... Toda uma cidade erigida sobre um poço vazio de nada. Sem sentido. Absolutamente sem sentido. E a Rua Quarenta e Dois? O topo do mundo, dizem eles. Onde fica o fundo, então? Você pode caminhar de mão estendida e eles lhe põem cinzas no chapéu. Ricos ou pobres, caminham com a cabeça caída para trás e quase quebram o pescoço olhando para o alto, para suas belas prisões brancas. Caminham como gansos cegos, e em seus rostos vazios os holofotes borrifam manchas de êxtase.
"A VIDA", DIZ EMERSON, CONSISTE naquilo que um homem está pensando o dia inteiro." Se isso é verdade, então minha vida nada mais é que um grande intestino. Eu não só penso em comida o dia inteiro, mas também sonho com ela durante a noite.
Contudo, não peço voltar à América, para ser posto de novo em duplos arreios, para trabalhar na rotina. Não, prefiro ser um homem pobre na Europa. Deus sabe que sou bastante pobre; resta apenas o suficiente para ser um homem. Na semana passada, pensei que o problema de viver estava para resolver-se, pensei que eu estava para tornar-me capaz de sustentar a mim mesmo. Aconteceu que encontrei outro russo - Serge é o seu nome. Vive em Suresnes, onde há uma pequena colônia de emigres e artistas fracassados. Antes da revolução, Serge era capitão da Guarda Imperial; tem um metro e noventa de altura só de meias e bebe vodca como um peixe. Seu pai era almirante ou coisa semelhante, no encouraçado Potemkin.
Conheci Serge em circunstâncias muito peculiares. Farejando comida encontrei-me outro dia, aí pelo meio-dia, nas proximidades do Folies Bergères - na porta dos fundos, isto é, no pequeno e estreito beco com portão de ferro numa extremidade. Eu estava zanzando diante da porta de entrada dos artistas, esperando vagamente um encontro casual com uma das mariposas, quando um caminhão aberto parou ao lado da calçada.
Vendo-me ali de pé, mãos nos bolsos, o motorista, que era Serge, perguntou-me se queria ajudá-lo a descarregar as barricas de ferro. Quando soube que eu era americano e que estava quebrado, quase chorou de alegria. Parecia procurar desesperadamente um professor de inglês. Ajudei-o a rolar as barricas de inseticida para dentro e olhei até fartar-me as mariposas que esvoaçavam pelos bastidores. O incidente assume proporções estranhas para mim - a casa vazia, as bonecas de serragem saltando nos bastidores, as barricas de germicida, o encouraçado Potemkin - e, acima de tudo, a delicadeza de Serge. Ele é grande e terno, um homem até ao último fio de cabelo, mas com um coração de mulher.
No café vizinho - Café dês Artistes - ele propõe imediatamente acolher-me; diz que colocará um colchão no corredor. Em troca das lições, diz que me dará uma refeição por dia, uma grande refeição russa, ou cinco francos, se a refeição faltar por qualquer razão. Parece-me maravilhoso - maravilhoso.
A única dúvida é como virei todo dia de Suresnes até o American Express. Serge insiste em que comecemos imediatamente - dá-me o dinheiro da passagem para eu ir a Suresnes ao anoitecer. Chego pouco antes do jantar, com a mochila, pronto para dar uma lição a Serge. Já estão presentes alguns convidados - dir-se-ia que sempre comem em uma multidão, todos se intrometendo.
Somos oito à mesa - e três cães. Os cães comem primeiro. Comem aveia. Depois começamos nós. Comemos aveia também - como hors-d'oeuvre. "Chez nous", diz Serge, piscando um olho, "c'est pour lês chiens, lês Quaker Oats. lei pour lê gentleman.
Ca vá". Depois da aveia, sopa de cogumelos e legumes; depois, omeleta de bacon, frutas, vinho tinto, vodca, café, cigarros. Nada ruim, a refeição russa.
Todos falam com a boca cheia. Quase no fim, a esposa de Serge, que é uma preguiçosa cadela armênia, deixa-se cair no sofá e começa a mordiscar bombons. Pesca na caixa com seus dedos gordos, morde um minúsculo pedaço para ver se há algum suco dentro e depois joga-o no chão para os cães.
Terminada a refeição, os convidados saem correndo. Correm apressadamente para fora, como se temessem uma peste. Serge e eu ficamos com os cães - sua esposa adormeceu no sofá. Serge anda de um lado para outro despreocupadamente, juntando os restos para os cães. "Cães gostam muito", diz ele. "Muito bom para cães.
Cão pequeno tem solitárias... ele muito pequeno ainda." Curva-se para examinar alguns vermes brancos que estão sobre o tapete entre as patas do cão.
Tenta dar-me explicação sobre os vermes em inglês, mas seu vocabulário é falho. "Ah", diz ele, olhando-me exultantemente, "tape-worms!" Minha reação evidentemente não é muito inteligente. Serge fica confuso. Abaixa-se apoiado nas mãos e nos joelhos para examiná-los melhor. Apanha um dos vermes e coloca-o sobre a mesa ao lado da fruta. "Uh, não é muito grande", resmunga. "Próxima lição, você me ensina vermes, não? Você é bom professor. Faço progresso com você..."
Deitado no colchão, no corredor, o cheiro de germicida sufoca-me. Um cheiro pungente e acre que parece invadir-me todos os poros do corpo. A comida começa a repetir-se em mim - a aveia quaker, os cogumelos, o bacon, as maçãs fritas. Vejo a pequena solitária ao lado da fruta e todas as variedades de vermes que Serge colocou sobre a toalha para explicar o que tem o cão. Vejo o poço da orquestra vazio do Folies Bergère e em todas as fendas há baratas, piolhos e percevejos; vejo pessoas coçando-se frenèticamente, coçando-se e coçando-se até sair sangue. Vejo os vermes rastejando sobre o cenário como um exército de formigas vermelhas, devorando tudo quanto enxergam. Vejo as coristas despindo as túnicas de gaze e correndo nuas pelos bastidores. Vejo os espectadores na platéia tirando também as roupas e coçando-se uns aos outros como macacos.
Procuro acalmar-me. Afinal, este é um lar que encontrei e há uma refeição esperando por mim todo dia. E Serge é um grande sujeito, quanto a isso não há dúvida. Mas não posso dormir. É como dormir em necrotério. O colchão está ensopado de líquido de embalsamar. Necrotério de piolhos, percevejos, baratas, solitárias. Não posso suportar. Não suportarei! Afinal, sou homem, não um piolho.
De manhã, espero Serge carregar o caminhão. Peço-lhe que meleve a Paris. Não tenho coragem de contar-lhe que vou embora.
Deixo a mochila, com as poucas coisas que me restavam. Quando chegamos à Place Pereire, desço. Nenhuma razão particular para eu descer aqui. Nenhuma razão particular para coisa alguma. Sou livre – isso é que é importante...
Leve como um pássaro, esvoaço de um quarteirão para outro. É como se tivesse sido solto da prisão. Encaro o mundo com olhos novos. Tudo me interessa profundamente. Até mesmo bobagens.
Na Rue du Faubourg Poissonière paro diante da vitrina de um estabelecimento de cultura física. Há fotografias mostrando espécimes de masculinidade "antes e depois". Todos rãs. Alguns estão nus, exceto quanto a um pince-nez ou uma barba. Não posso compreender como esses pássaros caem por barras paralelas e halteres.
Uma rã deveria ter um pouquinho de pança, como o Baron de Charlus, que usava barba e pince-nez, mas jamais se deixaria fotografar nu. Usava botinas de verniz cintilantes e no bolso do peito do paletó-saco havia um lenço branco que ficava com cerca de dois centímetros para fora. Se possível, levava uma fita vermelha na lapela, através da botoeira. Usava pijamas ao ir para a cama.
Aproximando-me da Place Clichy ao anoitecer, passo ao lado da pequena prostituta com coto de pau que fica todos os dias diante do Gaumont Palace. Ela não aparenta mais de dezoito anos. Tem fregueses regulares, suponho. Depois da meia-noite, fica lá com suas roupas pretas enraizada no lugar. Atrás dela há a pequena viela que flameja como um inferno. Passando-lhe à frente com o coração leve, ela me faz lembrar não sei por que um ganso amarrado em uma estaca, um ganso com o fígado doente, para que o mundo possa ter seu paté de foie gras. Deve ser estranho levar com a gente para a cama aquele coto de pau. A
gente imagina toda espécie de coisas - lascas etc. Mas, cada homem com seu gosto.
Descendo a Rue dês Dames encontro-me com Peckover, outro pobre diabo que trabalha no jornal. Queixa-se de dormir apenas três ou quatro horas por noite - precisa levantar-se às oito da manhã para trabalhar no consultório de um dentista. Não é por dinheiro que faz isso, explica - é para poder comprar uma dentadura postiça.
"É difícil ler provas quando se está caindo de sono", diz ele. "A patroa acha que tenho uma mamata. Que faríamos se você perdesse o emprego? pergunta ela". Mas Peckover não dá a menor importância ao emprego, que não lhe rende sequer dinheiro para pequenas despesas. Precisa guardar seus tocos de cigarro e usá-los como fumo para cachimbo.
O paletó é preso por alfinetes. Ele tem halitose e suas mãos suam. E somente três horas de sono por noite. "E aquele meu chefe, grita tanto que me faz mijar quando perco um ponto e vírgula." Falando da esposa, acrescenta: "Aquela minha mulher, não tem a menor gratidão, é o que lhe digo."
Ao despedir-me, consigo arrancar-lhe um franco e cinqüenta. Tento arrancar-lhe outros cinqüenta centavos, mas é impossível.
Seja como for, tenho o suficiente para um café e croissants. Perto da Gare Saint Lazare há um bar com preços reduzidos.
Por uma sorte danada, encontro no lavabo uma entrada para um concerto. Leve como uma pluma, vou agora para a Salle Gaveau. O indicador de lugares parece desolado porque deixei de dar-lhe sua gorjetinha. Toda vez que passa por mim olha-me interrogativamente, como se eu talvez pudesse lembrar-me de repente.
Tanto tempo faz que não me sento em companhia de pessoas bem vestidas, que me sinto um pouco tomado de pânico. Ainda me vem o cheiro de formaldeído. Talvez Serge faça entregas aqui também. Mas ninguém se está coçando, graças a Deus. Um fraco odor de perfume. .. muito fraco. Mesmo antes de começar a música há aquela expressão de enfado no rosto das pessoas. O concerto é uma forma polida de tortura auto-imposta. Por um momento, quando o regente bate a varinha, há um tenso espasmo de concentração seguido quase imediatamente por um colapso geral, uma espécie quieta e vegetal de repouso produzido pelo firme e ininterrupto chuvisco da orquestra. Minha mente está curiosamente alerta; é como se meu crânio tivesse dentro mil espelhos. Meus nervos estão tensos, vibrantes! As notas são como bolas de vidro dançando sobre um milhão de jatos de água. Nunca antes estive em um concerto com a barriga tão vazia. Nada me escapa, nem sequer o menor alfinete caindo. É como se eu não tivesse roupas e cada poro do meu corpo fosse uma janela, e todas as janelas abertas, e a luz inundando minhas entranhas. Posso sentir a luz curvando-se sob a abóbada de minhas costelas, e minhas costelas lá penduradas sobre uma nave oca, trêmula de reverberações. Não faço a menor idéia de quanto tempo dura isso; perdi toda noção de tempo e espaço. Depois do que parece uma eternidade segue-se um intervalo de semiconsciência equilibrado por uma tal calma que sinto um grande lago dentro de mim, um lago de lustro indecente, frio como geléia; e, sobre esse lago, erguendo-se em grandes e amplas espirais, emergem grandes bandos de pássaros, enormes pássaros migradores com longas e finas pernas e brilhante plumagem. Bando após bando ergue-se da superfície fria e parada do lago e, passando por baixo de minhas clavículas, perde-se no mar branco do espaço. E depois devagar, muito devagar, como se uma mulher velha de touca branca estivesse dando a volta pelo meu corpo, vagarosamente as janelas se fecham e meus órgãos caem de novo no lugar. De repente, as luzes acendem-se e o homem no camarote branco que eu havia tomado por um oficial turco, revela-se como mulher com um vaso de flores na cabeça.
Há agora um zumbido, e todos que desejam tossir tossem à vontade. Há o barulho de pés mexendo-se e cadeiras batendo, o ruído firme e disperso de pessoas movendo-se a esmo, de pessoas sacudindo os programas e fingindo ler, e depois jogando no chão os programas e arrastando os pés embaixo das cadeiras, gratas até mesmo ao mais ligeiro acidente que as impeça de perguntar a si próprias o que estavam pensando, porque se souberem que não estavam pensando em nada ficarão loucas. Sob o forte clarão das luzes olham-se vaziamente, e é com estranha tensão que se fitam. E, no momento em que o regente bate de novo, voltam a cair em estado cataléptico - coçam-se inconscientemente ou lembram-se de súbito de uma vitrina na qual se achava exposta uma estola ou um chapéu; lembram-se de todos os detalhes daquela vitrina com espantosa clareza, mas de onde estava ela exatamente não conseguem lembrar-se; e isso as preocupa, as conserva bem despertas, inquietas; e elas ouvem agora com redobrada atenção porque estão bem despertas e, por mais maravilhosa que seja a música, não perdem a consciência daquela vitrina e daquela estola que lá estava pendurada, ou do chapéu.
E essa feroz atenção transmite-se; até mesmo a orquestra parece galvanizada em extraordinária vigilância. O segundo número passa como um relâmpago - tão depressa que quando de repente a música cessa e as luzes se acendem, alguns estão enterrados em suas cadeiras como cenouras, os maxilares trabalhando convulsamente, e se de repente alguém lhes gritasse nos ouvidos Brahms, Beethoven, Mendeleieff, Herzegovina, responderiam sem pensar - 4, 967, 289.
Quando chegamos ao número de Debussy a atmosfera está completamente envenenada. Surpreendo-me imaginando como a gente se sentiria, durante a cópula, sendo mulher - se o prazer é mais agudo etc. Tento imaginar algo a penetrar-me o ventre, mas tenho apenas uma vaga sensação de dor. Busco concentrar-me, mas a música é muito fugidia.
Não consigo pensar em nada, a não ser em um vaso girando devagar e as figuras caindo no espaço. Finalmente há apenas luz virando, e como vira a luz? pergunto a mim mesmo. O homem perto de mim está dormindo pesadamente. Parece um corretor, com sua grande pança e seu bigode cuidado.
Gosto dele assim. Gosto especialmente daquela grande pança e de tudo quanto entrou em sua feitura. Por que não deveria ele dormir pesadamente? Se quiser ouvir sempre poderá gastar o preço de uma entrada. Observo que quanto mais bem vestidos, mais pesadamente dormem.
Têm consciência leve, os ricos. Se um homem pobre cochila, ainda que por alguns segundos, sente-se angustiado; imagina que cometeu um crime contra o compositor.
No número espanhol a casa ficou eletrizada. Todos se sentaram na beirada da cadeira - os tambores acordaram-nos. Quando os tambores começaram, pensei que continuariam para sempre. Esperava ver pessoas caírem dos camarotes ou arremessarem os chapéus. Havia algo de heróico naquilo e ele, Ravel, poderia ter-nos levado à loucura furiosa, se quisesse. Mas Ravel não é assim. De repente, tudo morreu. Como se ele se tivesse lembrado, no meio de suas piruetas, de que estava de fraque. Deteve-se. Um grande erro, em minha humilde opinião. A arte consiste em ir ao extremo. Se a gente começa com tambores tem de acabar com dinamite ou TNT. Ravel sacrificou alguma coisa pela forma, por um legume que as pessoas precisam digerir antes de ir para a cama.
Meus pensamentos vão se espalhando. A música está fugindo de mim, agora que os tambores silenciaram. Em toda parte as pessoas acham-se compostas sob medida. Sob a luz da saída há um Werther afundado em desespero; está inclinado sobre os dois cotovelos, olhos vidrados. Perto da porta, embrulhado numa grande capa, um espanhol com chapéu de abas largas na mão. Parece posar para o Balzac de Rodin. Do pescoço para cima, sugere Buffàlo Bill. Na galeria, à minha frente, na primeira fila, senta-se uma mulher com as pernas completamente abertas; parece estar com trismo, pescoço jogado para trás e deslocado.
A mulher de chapéu vermelho que cochila sobre o peitoril... seria maravilhoso se tivesse uma hemorragia! Se de repente lançasse uma baldada sobre aqueles sujeitos de camisa engomada embaixo. Imagine esses malditos inúteis indo do concerto para casa com sangue no peitilho da camisa!
O sono é a nota principal. Ninguém mais ouve. Impossível pensar e ouvir. Impossível até mesmo sonhar quando a própria música não passa de sonho. Uma mulher de luvas brancas segura um cisne ao colo. Diz a lenda que, fecundada, Leda gerou gêmeos. Todos estão dando à luz algo - todos, menos a lésbica da fileira de cima. Sua cabeça está inclinada, a garganta completamente aberta; ela está toda alerta e vibrando com a chuva de faíscas que jorra da sinfonia de radium.
Júpiter belisca-lhe as orelhas. Pequenas frases da Califórnia, baleias com grandes barbatanas, Zanzibar, o Alcazar. Quando ao longo do Guadalquivir havia mil mesquitas cintilantes. Afundando nos icebergs e os dias todos lilás. A Rua do Dinheiro com dois postes brancos. As gárgulas... o homem com o absurdo de Jaworski... as luzes do rio... as...
NA AMÉRICA TIVE DIVERSOS AMIGOS hindus, alguns bons, alguns maus, alguns indiferentes. As circunstâncias haviam-me colocado em uma posição na qual felizmente podia ajudá-los; arranjei empregos para eles, abriguei-os e alimentei-os quando necessário. Ficaram muito gratos, devo dizer, tanto que, na realidade, tornaram miserável minha vida com suas atenções.
Dois deles eram santos, se é que sei o que seja um santo; particularmente Gupte, encontrado certa manhã com a garganta cortada de uma orelha à outra. Na pequena pensão em Greenwich Village acharam-no certa manhã estendido na cama, completamente nu, com sua flauta ao lado e a garganta aberta, como já disse, de uma orelha à outra. Mas isso nada tem com a história...
Estou pensando na cadeia de circunstâncias que me levaram finalmente à casa de Nanantatee. Pensando em como é estranho que eu me tivesse esquecido completamente de Nanantatee até outro dia quando estava deitado em um miserável quarto de hotel na Rue Cels. Estava lá deitado na cama de ferro, pensando em como eu me tornara um zero, um algarismo, um nada, quando - pimba! - estoura a palavra: NULIDADE. Era assim que eu o chamava em Nova York: Nulidade. Senhor Nulidade.
Estou agora deitado no soalho, naquele grandioso conjunto de aposentos de que ele se vangloriava quando em Nova York. Nanantatee está bancando o bom samaritano; deu-me um par de prudentes cobertores, cobertores de cavalo é o que são, nos quais me enrolo sobre o soalho empoeirado.
Há pequenos serviços a fazer em todas as horas do dia - isto é, quando sou tão tolo que fico em casa. De manhã ele me acorda rudemente a fim de que lhe prepare as verduras para seu almoço: cebolas, alhos, feijões etc. Seu amigo, Kepi, aconselha-me a não comer - diz que é ruim. Ruim ou boa, que diferença faz? Comida! É só isso que importa. Por um pouco de comida estou perfeitamente disposto a varrer-lhe os tapetes com uma vassoura quebrada, a lavar-lhe as roupas e a catar as migalhas do chão assim que ele acaba de comer. Ele se tornou absolutamente limpo desde minha chegada; agora tudo tem de ser espanado, as cadeiras precisam estar arrumadas de certa maneira, o relógio precisa bater as horas, a privada precisa dar descarga direitinho... Um hindu louco, se é que já houve algum assim! E sovina como uma vagem vou rir muito disto tudo quando me livrar de suas garras, mas por enquanto sou um prisioneiro, um homem sem casta, um intocável...
Se deixo de voltar à noite e enrolar-me nos cobertores de cavalo, ele diz ao ver-me chegar: "Oh, então você não morreu, hem? Pensei que tivesse morrido." E embora saiba que estou absolutamente sem dinheiro, todo dia me fala de algum quarto barato que acabou de descobrir nas vizinhanças.
"Mas não posso alugar um quarto ainda, você sabe disso", respondo. Então, piscando os olhos como um chinês, retruca maciamente: "Oh, sim, esqueci-me de que você não tem dinheiro. Estou sempre me esquecendo,
Endri... Mas quando o cabograma chegar... quando dona Mona mandar seu dinheiro, você irá comigo procurar um quarto, não?"
E logo em seguida insiste comigo para que fique quanto tempo quiser - "seis meses... sete meses, Endri... você é muito bom para mim aqui."
Nanantatee é um dos hindus para os quais nunca fiz coisa alguma na América. Apresentou-se a mim como rico comerciante, um negociante de pérolas, dono de luxuoso conjunto de aposentos na Rue Lafayette, em Paris, uma vila em Bombaim, um bangalô em Darjeeling. Pude perceber à primeira vista que era um débil mental, mas os débeis mentais às vezes têm gênio para juntar fortuna. Não sabia que ele pagara sua conta de hotel em Nova York deixando nas mãos do proprietário um par de gordas pérolas.
Parece-me engraçado agora que esse patinho antigamente se pavoneasse no saguão daquele hotel em Nova York com uma bengala de ébano, mandando nos criados, pedindo almoços para seus convidados, chamando o porteiro para comprar-lhe entradas de teatro, alugando um táxi para o dia inteiro etc. etc. tudo sem um níquel no bolso.
Apenas uma fileira de gordas pérolas enrolada no pescoço, que ia vendendo uma a uma com o passar do tempo. E a maneira imbecil com que me batia nas costas e me agradecia por ser tão bom para os rapazes hindus - "todos eles são rapazes muito inteligentes, Endri... muito inteligentes!"
Dizendo-me que o bom senhor-isto-e-aquilo me pagaria por minha bondade. Agora está explicado por que costumavam rir tanto, aqueles inteligentes rapazes hindus, quando eu sugeria que pedissem cinco dólares a Nanantatee.
Curioso como agora o bom senhor-isto-e-aquilo está-me pagando por minha benevolência. Não passo de um escravo deste patinho gordo. Estou constantemente à sua disposição.
Precisa de mim aqui - e diz isso na minha cara. Quando vai à privada, grita: "Endri, traga-me uma jarra de água, por favor.
Preciso lavar-me." Ele, Nanantatee, não pensaria em usar papel higiênico. Deve ser contra sua religião. Não, pede uma jarra de água e um trapo. É delicado, o patinho gordo. Às vezes, quando estou bebendo uma xícara de chá fraco na qual ele jogou uma folha de rosa, chega ao meu lado e solta um alto arroto, bem na minha cara.
Nunca diz: "Desculpe-me." A palavra deve faltar em seu dicionário Gujurati.
No dia em que cheguei ao apartamento de Nanantatee ele estava fazendo as abluções, isto é, achava-se em pé diante de uma bacia suja, tentando curvar o braço torto para alcançar a nuca. Ao lado da bacia havia uma taça de bronze que ele usava para trocar a água. Pediu-me que ficasse em silêncio durante a cerimônia. Permaneci sentado em silêncio, como me fora pedido, e observei-o enquanto cantava, rezava e cuspia de vez em quando dentro da bacia.
Então este é o maravilhoso conjunto de aposentos sobre o qual ele falava em Nova York! A Rue Lafayette! Soava como uma rua importante para mim, lá em Nova York.
Eu pensava que só milionários e negociantesde pérolas moravam nessa rua. Soa maravilhosamente, a Rue Lafayette, quando se está do outro lado do mar. O mesmo acontece com a Quinta Avenida, quando se está aqui. Não se pode imaginar que chiqueiros existem nessas ruas elegantes. Seja como for, aqui estou eu finalmente, sentado no grandioso conjunto de aposentos na Rue Lafayette. E este pato maluco executa com o braço torto o ritual de lavar-se.
A cadeira em que me sento está quebrada, a cama caindo aos pedaços, o papel da parede em frangalhos, embaixo da cama uma valise aberta cheia de roupa suja. Daqui onde estou sentado posso entrever o miserável pátio lá embaixo, onde a aristocracia da Rue Lafayette se senta e fuma cachimbos de argila. Penso agora, enquanto ele canta a doxologia, como será aquele bangalô em Darjeeling. Intermináveis, seu canto e sua reza.
Explica-me que é obrigado a lavar-se de uma certa maneira prescrita - sua religião exige isso. Mas nos domingos toma banho na banheira de latão - o Grande EU sou fecha os olhos a isso, diz ele. Depois de vestir-se, vai até o armário, ajoelha-se diante de um pequeno ídolo na terceira prateleira e repete a rezação. Se você rezar desse jeito todo dia, diz ele, nada lhe acontece. O bom senhor cujo nome não sei, nunca se esquece de um servo obediente.
Depois mostra-me o braço torto, que ficou assim em um acidente de trânsito, sem dúvida num dia em que se descuidou de executar todo o canto e a dança. Seu braço parece um compasso quebrado; não é mais um braço, mas uma junta de osso com uma tíbia presa a ela. Depois de consertado o braço, ele adquiriu um par de gânglios inchados na axila - gânglios pequenos e gordos, exatamente iguais aos testículos de um cachorro. Enquanto lamenta sua sorte, lembra de repente que o médico recomendou dieta mais liberal. Pede logo que me sente e prepare um cardápio com bastante peixe e carne. "E que acha de ostras, Endri – para le petit frère?" Mas tudo isso é apenas para causar-me impressão.
Não tem a menor intenção de comprar para si próprio ostras, carne ou peixe. Não, pelo menos enquanto eu estiver aqui. Por enquanto vai alimentar-nos com lentilhas e arroz, e toda a comida em pó que tem guardada no sótão. E a manteiga que comprou na semana passada também não vai ser desperdiçada. Quando começa a curar a manteiga, o cheiro é insuportável. A princípio, eu costumava sair correndo, quando ele começava a frigir a manteiga, mas agora resisto. Ele ficaria muito contente se pudesse fazer-me vomitar a refeição - seria mais uma coisa para guardar no armário junto com o pão seco, o queijo embolorado e os bolinhos gordurosos que ele próprio faz com o leite azedo e a manteiga rançosa.
Durante os últimos cinco anos, segundo me parece, ele não fez trabalho algum, não ganhou um níquel. O negócio foi à ruína.
Fala-me sobre pérolas no Oceano Índico - pérolas grandes e gordas com as quais se pode passar a vida inteira. Os árabes estão arruinando o negócio, diz. Mas, enquanto isso, reza todo o dia para o senhor-isto-e-aquilo, o que o conforta. Goza de um prestígio maravilhoso junto à divindade: sabe adulá-la, arrancar alguns níqueis dela. É uma relação puramente comercial. Em troca daquela frioleira que faz todos os dias diante do armário obtém sua ração de feijões e alho, para não falar nos testículos inchados embaixo do braço. Confia em que tudo sairá bem no fim. As pérolas voltarão a ser vendidas um dia, talvez daqui a cinco anos, talvez daqui a vinte - quando o Senhor Boomaroom quiser. "E quando o negócio andar, Endri, você terá dez por cento - para escrever as cartas. Mas primeiro, Endri, você precisa escrever a carta para descobrir se podemos obter crédito na índia.
Levará uns seis meses para vir resposta, talvez sete... os barcos não andam depressa na índia." Ele absolutamente não tem idéia de tempo, o patinho. Quando lhe pergunto se dormiu bem, diz: "Ah, sim, Endri, durmo muito bem... Às vezes durmo noventa e duas horas em três dias."
De manhã geralmente está tão fraco que não pode fazer qualquer trabalho. Seu braço! Aquele pobre braço quebrado! Às vezes, quando o vejo torcendo o braço por trás da nuca, fico pensando como conseguirá fazê-lo voltar ao lugar. Se não fosse a pequena pança que tem, far-me-ia lembrar um daqueles contorsionistas do Cirque Medrano.
Só precisaria quebrar uma perna. Quando me vê varrendo o tapete, quando vê a nuvem de poeira que ergo, começa a cacarejar como um pigmeu: "bom! Muito bom, Endri.
E agora apanharei os nós." com isso quer dizer que eu não percebi alguns grãos de poeira; é uma maneira polida que tem de ser sarcástico.
À tarde sempre aparecem alguns companheiros do mercado de pérolas para fazer-lhe visita. São todos uns bastardos muito macios, de língua de manteiga, com olhos suaves como os de corça; sentam-se ao redor da mesa bebendo o chá perfumado com um barulho alto e sibilante, enquanto Nanantatee salta para cima e para baixo como um boneco de mola, ou aponta para uma migalha no chão e diz com sua voz macia e untuosa: "Quer fazer o favor de apanhar aquilo, Endri?" Quando os convidados chegam, vai cerimoniosamente até o armário e tira as migalhas secas de pão que torrou talvez uma semana antes, e que agora têm o gosto forte da madeira embolorada. Nenhuma é jogada fora. Se o pão fica muito azedo, leva-o lá embaixo para a zeladora que, segundo diz, foi muito bondosa para ele. Diz que ela fica encantada em receber o pão velho - faz pudim de pão com ele. Um dia meu amigo Anatole veio ver-me. Nanantatee ficou encantado. Insistiu para que Anatole ficasse para o chá. Insistiu para que experimentasse os bolinhos gordurosos e o pão velho. "Você precisa vir todos os dias", diz ele, "e ensinar-me russo. Bela língua, o russo... Quero falá-la. Como é que você diz isso, Endri... borscht?
Escreva para mim, por favor, Endri..." E tenho de escrever à máquina, nada menos, para que ele possa observar minha técnica. Comprou a máquina de escrever, depois de ter ficado com o braço ruim, porque o médico a recomendou como bom exercício. Mas se cansou da máquina de escrever em pouco tempo - era uma máquina inglesa.
Quando soube que Anatole tocava bandolim, disse: "Muito bom! Você precisa vir todos os dias e ensinar-me música. vou comprar um bandolim logo que o negócio melhorar.
É bom para o meu braço." No dia seguinte tomou emprestado um fonógrafo da zeladora. "Quer fazer o favor de ensinar-me a dançar, Endri? Meu estômago é grande demais."
Estou esperando que um dia compre um bife de lombo para que eu possa dizer-lhe: "Quer fazer o favor de mordê-lo para mim, Mister Nulidade? Meus dentes não são fortes."
Como disse há um momento, desde que cheguei ele se tornou extraordinariamente meticuloso. "Ontem", diz, "você cometeu três erros, Endri. Primeiro, esqueceu-se de fechar a porta do banheiro e por isso ela fez bum-bum a noite inteira; segundo, esqueceu aberta a janela da cozinha e por isso ela está rachada esta manhã. E você se esqueceu de recolher a garrafa de leite! Por favor, recolha sempre a garrafa de leite, antes de ir para a cama, e de manhã, por favor, traga o pão para dentro."
Todo dia seu amigo Kepi aparece para ver se chegou algum visitante da índia. Espera que Nanantatee saia e depois corre até o armário e devora os pedaços de pão escondidos em uma jarra de vidro. A comida não é boa, insiste, mas devora-a como um rato. Kepi é um parasito, uma espécie de carrapato humano que se agarra ao couro até mesmo do mais pobre compatriota. Por um charuto de Manilha ou o preço de uma bebida, lambe o cu de qualquer hindu.
De um hindu, vejam bem, mas não de um inglês. Tem o endereço e os preços de todos os bordéis de Paris. Até das casas de dez francos ele recebe sua pequena comissão. E conhece o caminho mais curto para qualquer lugar a que se queira ir. Pergunta primeiro se queremos ir de táxi; se a resposta é negativa, sugere o ônibus e, se isso também for muito caro, o bonde ou o metrô. Ou se oferece para levá-lo a pé até lá e economizar um ou dois francos, sabendo muito bem que será necessário passar por um tabac no caminho e que você terá a bondade de comprar-lhe um charutinho.
Kepi é interessante, em certo sentido, porque absolutamente não tem ambição, a não ser dar uma foda toda noite. Todo níquel que ganha, e são terrivelmente poucos, desperdiça nos salões de dança. Tem uma esposa e oito filhos em Bombaim, mas isso não impede que proponha casamento a toda pequena femme de chambre que seja suficientemente estúpida e crédula para deixar-se levar por ele. Tem um quartinho na Rue Condorcet pelo qual paga sessenta francos mensais.
Foi ele próprio quem forrou todas as paredes com papel. Tem muito orgulho disso, também. Usa em sua caneta-tinteiro tinta cor de violeta porque dura mais. Engraxa os próprios sapatos, passa as próprias calças e lava sua própria roupa. Em troca de um charutinho, por favor, acompanha você através de toda Paris. Se você se detém para olhar uma camisa ou um botão de colarinho, os olhos dele brilham. "Não compre aqui", diz. "Cobram demais. vou mostrar-lhe um lugar mais barato." E antes que você tenha tempo de pensar, arrasta-o para longe e deposita-o diante de outra vitrina onde há as mesmas gravatas, camisas e botões de colarinho - talvez seja exatamente a mesma loja, mas você não percebe a diferença! Quando Kepi ouve dizer que você quer comprar alguma coisa, sua alma fica animada. Faz tantas perguntas e arrasta-o até tantos lugares que você fatalmente fica com sede e convida-o para beber alguma coisa, ocasião em que descobre com espanto que se encontra de novo em pé dentro de um tabac - talvez o mesmo tabac - e Kepi está dizendo com aquela sua vozinha untuosa: "Por favor, quer ter a bondade de comprar-me um charutinho?" Não importa o que você pretenda fazer, mesmo que seja apenas dar a volta ao quarteirão, Kepi economizará em seu favor. Kepi mostra o caminho mais curto, o lugar mais barato, o prato maior, porque, seja qual for a coisa que você tenha a fazer, precisa passar por um tabac e, haja uma revolução, um "lock-out" ou uma quarentena, Kepi precisa estar no Moulin Rouge, no Olympia ou no Ange Rouge quando a música começa.
Outro dia ele me trouxe um livro para ler. Era sobre uma famosa pendência entre um homem santo e o diretor de um jornal indiano. Parece que o diretor havia acusado abertamente o homem santo de levar uma vida escandalosa; foi ainda mais longe e acusou o homem santo de estar doente. Kepi diz que deve ter sido a grande sífilis, mas Nanantatee afirma que era gonorréia. Para Nanantatee tudo tem de ser um pouco exagerado. Seja como for, Nanantatee diz alegremente: "Quer ter a bondade de ler para mim o que diz, Endri? Não posso ler o livro... dói-me o braço". Depois, como para encorajar-me: "É um belo livro sobre fornicação, Endri. Kepi trouxe-o para você. Só pensa nas garotas. São tantas as garotas que fode... exatamente como Krishna. Nós não acreditamos nesse negócio, Endri..."
Pouco mais tarde, leva-me até lá em cima no sótão, que está cheio de latas e quinquilharias da índia embrulhadas em estôpa e papel velho. "Aqui é que eu trago as garotas", diz. E depois, muito melancólico: "Não sou um fodedor muito bom, Endri. Não trepo mais nas garotas. Seguro-as nos braços e digo as palavras. Agora só gosto de dizer as palavras." Não é necessário ouvir mais: sei que vai falar-me de seu braço. Posso vê-lo ali deitado com aquele engonço quebrado pendurado do lado da cama. Mas, para minha surpresa, acrescenta: "Eu não sou bom para foder, Endri. Nunca fui um fornicador muito bom. Meu irmão, sim, é bom! Três vezes por dia, todo dia! E Kepi também é bom - exatamente como Krishna."
Sua mente está agora fixada no "negócio de foder". Embaixo, no quartinho onde se ajoelha diante do armário aberto, explica-me como corriam as coisas quando era rico e a esposa e os filhos estavam aqui. Nos feriados, levava a esposa à Casa de Todas as Nações e alugava um quarto para a noite. Cada quarto era arrumado em estilo diferente. Sua esposa gostava muito de lá. "Um lugar maravilhoso para foder, Endri. Conheço todos os quartos..."
As paredes do quartinho onde estávamos sentados são cobertas de fotografias. Todo ramo da família está representado; é como um corte transversal do império indiano.
A maior parte dos membros dessa árvore genealógica parece folhas secas: as mulheres são frágeis e há um ar de espanto e susto em seus olhos; os homens têm ar vivo e inteligente, como chimpanzés educados. Estão todos ali, cerca de noventa, com seus bois brancos, seus bolos de estrume, suas pernas magras, seus óculos antiquados; no fundo, de vez em quando, vêem-se de relance o solo ressecado, um frontão em ruínas, um ídolo de braços tortos, uma espécie de centopéia humana. Há nesta galeria algo de tão fantástico, tão incongruente, que leva a gente inevitavelmente a lembrar-se da grande proliferação de templos que se estendem desde o Himalaia até a ponta do Ceilão, uma vasta confusão de arquitetura, de beleza estonteante, mas ao mesmo tempo monstruosa, horrivelmente monstruosa porque a fecundidade que ferve e fermenta nas infinitas ramificações de desenho parece ter esgotado o próprio solo da índia. Olhando o fervilhante enxame de figuras que se amontoam nas fachadas dos templos, a gente fica esmagada pela potência dessas pessoas escuras e formosas que misturaram suas misteriosas correntes num abraço sexual que durou trinta séculos ou mais.
Esses homens e mulheres frágeis, de olhos penetrantes, que nos fitam das fotografias, parecem as sombras macilentas daquelas figuras viris e maciças que se encarnaram na pedra e no afrêsco de uma a outra extremidade da índia a fim de que os mitos heróicos das raças que ali se misturaram, ficassem para sempre entrelaçados nos corações de seus conterrâneos. Quando olho um simples fragmento desses espaçosos sonhos de pedra, desses desmoronantes e indolentes edifícios cravejados de gemas, coagulados com esperma humano, sinto-me esmagado pelo ofuscante esplendor daqueles vôos imaginativos que permitiram a meio bilhão de pessoas de origens diversas encarnar assim as mais fugitivas expressões de seu anseio.
É uma estranha e inexplicável mistura de sentimentos que me assalta agora enquanto Nanantatee tagarela a respeito da irmã que morreu no parto. Ali está ela na parede, uma coisa frágil e tímida de doze ou treze anos grudada ao braço de um velho. Aos dez anos de idade deram-na em casamento a esse velho devasso que já havia enterrado cinco esposas. Teve sete filhos, dos quais só um lhe sobreviveu. Foi entregue ao gorila idoso a fim de conservar as pérolas na família. Quando estava morrendo, conta
Nanantatee, sussurrou ao médico: "Estou cansada dessa fornicação... Não quero mais fornicar, doutor." Enquanto me conta isso, ele coça a cabeça solenemente com o braço seco. "O negócio de foder é ruim, Endri", diz ele. "Mas vou dar-lhe uma palavra que sempre fará você feliz; precisa dizê-la todo dia, vezes e vezes, um milhão de vezes você precisa dizê-la. É a melhor palavra que existe, Endri... diga-a agora... OOMAHARUMOOMA!"
"OOMARAMBOO..."
"Não, Endri... assim... OOMAHARUMOOMA!"
"OOMAMAMBOOMBA..."
"Não, Endri... assim...
"... e com a luz pálida, a impressão ruim, a capa esfrangalhada, a página retalhada, os dedos tateantes, as pulgas fox-trotantes, os percevejos fervilhantes, a espuma em sua língua, o peso da bebida em seus olhos, o nó em sua garganta, a bebida em sua garrafa, a coceira na palma de sua mão, o gemido de seus gases, a dor de sua respiração, o nevoeiro em seu cansaço cerebral, o tique de sua consciência, o auge de sua raiva, o jorro de seu traseiro, o fogo de sua barriga, o comichão de seu rabo, os ratos em seu sótão, o alarido e a poeira em seus ouvidos, pois levou um mês para obter uma vantagem sem ser percebido, era-lhe difícil decorar mais de uma palavra por semana."
Suponho que eu nunca teria escapado das garras da Nanantatee se o destino não tivesse interferido. Certa noite, por sorte, Kepi perguntou se eu não queria levar um de seus clientes a um bordel próximo. O jovem acabara de chegar da índia e não tinha muito dinheiro para gastar. Era um dos homens de Gândi, um dos membros daquele pequeno grupo que fez a histórica marcha até o mar durante a encrenca do sal. Um discípulo de Gândi muito alegre, devo dizer, apesar dos votos de abstinência que fizera. Evidentemente não olhava para uma mulher havia séculos. O mais que pude fazer foi levá-lo até a Rue Laferrière; ele parecia um cão com a língua de fora.
Além disso, era um diabinho pomposo e vaidoso. Arrumara-se com um terno de tecido aveludado, uma boina, uma bengala e uma gravata Windsor; comprara duas canetas-tinteiro, uma câmara fotográfica e umas roupas de baixo engraçadas. O dinheiro que estava gastando fora presente dos comerciantes de bombaim, que o haviam mandado à Inglaterra para difundir o evangelho de Gândi.
Uma vez dentro da casa de Miss Hamilton começou a perder o sang-froid. Quando se viu de repente cercado por um bando de mulheres nuas, olhou para mim consternado.
"Escolha uma", disse eu. "Pode escolher à vontade." Ficara tão desconcertado que mal podia olhar para as mulheres. "Escolha em meu lugar", murmurou, enrubescendo violentamente. Olhei-as friamente e escolhi uma puta moça e gorduchinha que parecia cheia de animação. Sentamo-nos na sala de recepção e aguardamos as bebidas. A madama quis saber por que eu também não pegara uma mulher. "Sim, você pega uma também", disse o jovem hindu. "Não quero ficar sozinho com ela." Trouxeram as mulheres e escolhi uma para mim, uma bem alta e magra, de olhos melancólicos. Deixaram-nos sozinhos, nós quatro, na sala de recepção. Depois de alguns momentos, meu jovem Gândi inclinou-se e segredou-me algo no ouvido. "Claro, se você gosta mais dela, fique com ela", disse eu. Bastante desajeitado e consideravelmente embaraçado, expliquei às mulheres que gostaríamos de trocar de par. Percebi imediatamente que havíamos dado um faux pas, mas a essa altura meu jovem amigo já estava alegre e lúbrico, e nada mais havia a fazer senão subir depressa e acabar com tudo.
Ficamos em quartos vizinhos ligados por uma porta. Pensei que meu companheiro tinha em mente fazer outra troca depois de satisfazer sua intensa e torturante fome.
Assim que as mulheres deixam o quarto para preparar-se, ouço-o bater na porta. "Onde é a privada, por favor?" pergunta ele.
Pensando que não fosse coisa séria, recomendo-lhe que faça no bidê. As mulheres voltam com toalhas nas mãos. Ouço-o dando risadinhas no quarto vizinho.
Quando estou vestindo a calça, ouço de repente uma comoção no quarto vizinho. A mulher está pondo-o para fora aos gritos, chamando-o de porco, porquinho sujo. Não posso imaginar o que fez para provocar tal explosão. Estou ali com um pé dentro da calça ouvindo atentamente. Ele tenta explicar em inglês à mulher, erguendo a voz cada vez mais até ela transformar-se num grito agudo.
Ouço uma porta bater e, um momento depois, a madama irrompe no meu quarto, com o rosto vermelho como uma beterraba, os braços gesticulando furiosamente. "Você devia ter vergonha de si próprio", grita ela, "trazer um homem como esse à minha casa! É um bárbaro... um porco... é um...!" Meu companheiro está em pé por trás dela, à porta, com uma expressão de completo embaraço no rosto. "Que foi que você fez?" pergunto.
"Que foi que ele fez?" grita a madama. "Eu já lhe mostro... Venha cá!" E, agarrando-me pelo braço, arrasta-me para o quarto vizinho. "Ali! Ali!" berra ela, apontando para o bidê.
"Vamos, vamos embora", diz o rapaz hindu.
"Espere um minuto, vocês não podem ir saindo assim."
A madama está em pé ao lado do bidê, chispando e fumegando. As mulheres estão também ali em pé, com toalhas nas mãos.
Nós cinco estamos ali em pé olhando para o bidê. Há dois enormes troços flutuando na água. A madama curva-se e cobre-os com uma toalha. "Horrível! Horrível!" geme. "Nunca tinha visto coisa igual! Um porco! Um porquinho sujo!"
O rapaz hindu olha-me com ar de censura. "Você devia ter-me dito!" diz ele. "Eu não sabia que não descia. Perguntei-lhe onde devia fazer e você me disse para usar aquilo." Está quase em lágrimas.
Finalmente, a madama chama-me de lado. Torna-se agora um pouco mais tratável. Afinal, foi um equívoco. Talvez os cavalheiros queiram ir lá embaixo e pedir outra bebida - para as moças. Foi um grande choque para elas. Não estão acostumadas com essas coisas. E se o bondoso cavalheiro tivesse a gentileza de lembrar-se da femme de chambre... Não é agradável para a femme de chambre - aquela porcaria, aquela feia porcaria. Encolhe os ombros e pisca um olho. Um lamentável incidente. Mas foi um acidente. Se os cavalheiros esperarem aqui alguns momentos a criada trará as bebidas. Os cavalheiros gostariam de tomar um pouco de champanha? Sim?
"Eu gostaria de ir embora daqui", diz o rapaz hindu com voz fraca.
"Não fique tão aborrecido com isso", diz a madama. "Tudo já passou. Equívocos acontecem de vez em quando. Da próxima vez, pergunte pela privada." Ela continua a falar sobre a privada. Uma em cada andar, ao que parece. E um banheiro também. "Tenho muitos clientes ingleses", diz ela. "Todos são cavalheiros. O cavalheiro é hindu? Gente encantadora, os hindus. Tão inteligentes. Tão simpáticos."
Quando saímos para a rua, o jovem e encantador cavalheiro está quase chorando. Lamenta agora ter comprado um terno de tecido aveludado, a bengala e as canetas-tinteiro.
Fala sobre os oito votos que fez, o controle dos sentidos etc. Na marcha até Gândi era proibido tomar até mesmo uma taça de sorvete. Fala-me sobre a roda de fiar - como a pequena mão dos satyagrahistas imitava a devoção de seu mestre. Relata com orgulho como caminhava ao lado do mestre e conversava com ele. Tenho a ilusão de estar na presença de um dos doze apóstolos.
Nos dias seguintes, encontramo-nos com muita freqüência; há entrevista a arrumar com os jornalistas e palestras a proferir para os hindus de Paris. É espantoso ver como esses demônios sem espinha mandam um no outro; espantoso também ver como são ineficientes em tudo quanto se refere a questões práticas. E a inveja e as intrigas, as mesquinhas e sórdidas rivalidades.
Onde haja dez hindus juntos está a índia com suas seitas e seus cismas, seus antagonismos raciais, lingüísticos, religiosos e políticos. Na pessoa de Gândi estão experimentando por um breve momento o milagre da unidade, mas quando ele partir haverá um choque, uma recaída completa naquela luta e naquele caos tão característicos do povo indiano.
O jovem hindu, naturalmente, é otimista. Esteve na América e contaminou-se com o idealismo barato dos americanos, contaminou-se com a banheira onipresente, a loja de bricabraque de cinco e dez centavos, a afobação, a eficiência, a maquinaria, os salários altos, as bibliotecas gratuitas etc., etc. Seu ideal seria americanizar a índia. Não está nada satisfeito com a mania retrocessiva de Gândi. Avante, diz ele, exatamente como um homem da Associação Cristã de Moços. Enquanto ouço suas histórias sobre a América, vejo como é absurdo esperar de Gândi aquele milagre que desvie a tendência do destino. O inimigo da índia não é a Inglaterra, mas a América.
O inimigo da índia é o espírito do tempo, o ponteiro que não pode ser virado para trás. Nada servirá para vencer este vírus que está envenenando o mundo inteiro.
A América é a própria encarnação da ruína. Arrastará o mundo inteiro para o poço sem fundo.
Ele pensa que os americanos são gente muito ingênua. Fala-me sobre as almas crédulas que lá o socorreram - os Quakers, os Unitaristas, os Teosofistas, os Novos Pensadores, os Adventistas do Sétimo Dia etc. Sabe onde ancorar seu barco, este brilhante jovem. Sabe como fazer as lágrimas afluírem aos olhos no momento certo; sabe como fazer uma coleta, como apelar à esposa do ministro, como cortejar mãe e filha ao mesmo tempo. Olhando-o, você pensaria que é um santo. E é um santo, à moda moderna; um santo contaminado que fala de um só fôlego em amor, fraternidade, banheiras, sanitarismo, eficiência etc.
A última noite de sua estada em Paris é dedicada ao "negócio de foder". Ele teve um programa cheio o dia inteiro: conferências, cabogramas, entrevistas, fotografias para os jornais, despedidas afetuosas, conselhos aos fiéis etc., etc. Na hora do jantar, resolve pôr de lado as preocupações.
Pede champanha com a refeição, estala os dedos para o garçom e comporta-se em geral como o rústico camponezinho que é. E como já se fartou de todos os bons lugares sugere agora que eu lhe mostre algo mais primitivo. Gostaria de ir a um lugar muito barato, pedir duas ou três mulheres ao mesmo tempo. Conduzo-o pelo Boulevard de Ia Chapelle, aconselhando-o constantemente a ter cuidado com a carteira. Ao redor de Aubervilliers, enfiamo-nos em um lugarzinho barato e imediatamente estamos com um bando delas nas mãos. Alguns minutos depois ele dança com uma puta nua, uma enorme loura com dobras no pescoço. Posso ver-lhe a bunda nua refletida uma dúzia de vezes nos espelhos que forram o aposento - e aqueles seus dedos escuros e ossudos agarrando-a tenazmente. A mesa está cheia de garrafas de cerveja, a pianola chia e arqueja. As mulheres desocupadas ficam sentadas plàcidamente nos bancos de couro, coçando-se pacificamente como uma família de chimpanzés. Há uma espécie de pandemônio abafado no ar, uma nota de violência reprimida, como se a esperada explosão exigisse o advento de algum detalhe absolutamente insignificante, algo microscópico, mas inteiramente impremeditado, completamente inesperado.
Naquela espécie de semi-devaneio que permite a alguém participar de um acontecimento e, apesar disso, permanecer absolutamente ausente, o pequeno detalhe que estava faltando começa obscuramente, mas insistentemente, a coagular-se, a assumir forma caprichosa e cristalina, como o gelo que se forma na vidraça da janela. E, como aqueles padrões de gelo que parecem tão caprichosos, tão absolutamente livres e fantásticos em seu desenho, mas que apesar disso são determinados pelas mais rígidas leis, assim esta sensação que começou a tomar forma dentro de mim parecia também estar prestando obediência a leis inelutáveis.
Todo meu ser estava reagindo aos ditames de um ambiente que nunca antes experimentara; aquilo que podia chamar de "eu" parecia estar-se contraindo, condensando, recuando das velhas e costumeiras fronteiras da carne cujo perímetro conhecia apenas as modulações das extremidades dos nervos.
E quanto mais substancial, quanto mais sólido se tornava o meu núcleo, mais delicada e extravagante parecia a realidade próxima e palpável para fora da qual eu estava sendo espremido. Na mesma proporção em que me tornava cada vez mais metálico, a cena diante de meus olhos tornava-se inflada.
O estado de tensão era tão finamente traçado agora, que a introdução de uma única partícula estranha, até mesmo uma partícula microscópica, como disse, teria destroçado tudo. Por uma fração de segundo experimentei talvez aquela completa clareza que, segundo afirmam, é dado ao epiléptico conhecer. Naquele momento, perdi completamente a ilusão de tempo e espaço: o mundo desdobrou seu drama simultaneamente ao longo de um meridiano que não tinha eixo. Nessa espécie de eternidade de fácil disparo senti que tudo era justificado, supremamente justificado; senti as guerras que haviam deixado dentro de mim esta polpa e esta ruína; senti os crimes que lá estavam fervendo para emergir amanhã em gritantes manchetes; senti a miséria que se estava moendo com pilão e almofariz, a longa e monótona miséria que escorre em lenços sujos. No meridiano do tempo não há injustiça: há apenas a poesia do movimento criando a ilusão de verdade e drama. Se a qualquer momento e em qualquer lugar encararmos frente a frente o absoluto, desaparece aquela grande simpatia que fez homens como Gautama e Jesus parecerem divinos; o monstruoso não é que homens tenham criado rosas com este monte de estéreo, mas que, por uma ou outra razão, tenham desejado rosas. Por uma ou outra razão o homem procura o milagre e, para realizá-lo, chafurda no sangue.
Corrompe-se com idéias, reduz-se a uma sombra, se por um único segundo de sua vida pode fechar os olhos à hediondez da realidade. Tudo se suporta, desgraça, humilhação, pobreza, guerra, crime, ennui - na crença de que, da noite para o dia, algo acontecerá, um milagre, que tornará a vida tolerável. E durante todo o tempo um medidor está correndo lá dentro e não há mão que possa alcançá-lo lá e fazê-lo parar. Durante todo o tempo alguém está comendo o pão da vida e bebendo o vinho, algum padre sujo e gordo como uma barata que se esconde na adega para emborcá-lo, enquanto lá em cima, na luz da rua, uma hóstia fantástica toca os lábios, e o sangue é pálido como a água. E do interminável tormento e miséria nenhum milagre surge, nenhum vestígio microscópico sequer de alívio. Só idéias, pálidas, e atenuadas idéias que precisam ser engordadas por carnificina; idéias que saem como bílis, como as entranhas de um porco quando se abre a carcaça.
E assim penso que milagre não seria se este milagre que o homem espera eternamente, nada mais viesse a ser do que aqueles dois enormes troços que o fiel discípulo lançou no bidê. Se no último momento, quando a mesa do banquete estiver arrumada e os címbalos soarem, aparecer de repente e absolutamente sem aviso, uma salva de prata na qual até mesmo os cegos possam ver que há nada mais nada menos que dois enormes montes de bosta. Isso, creio eu, seria mais milagroso do que tudo quanto o homem tem esperado. Seria milagroso porque seria o não sonhado. Seria mais milagroso do que o sonho mais louco porque qualquer um podia imaginar a possibilidade, mas ninguém jamais a imaginou, e provavelmente ninguém jamais a imaginará.
Por uma razão qualquer, a compreensão de que nada havia a esperar teve salutar efeito sobre mim. Durante semanas e meses, durante, na realidade, toda minha vida, eu vinha esperando que acontecesse algo, algum fato extrínseco que alterasse minha vida; e agora, de repente, inspirado pela absoluta desesperança de tudo, sentia-me aliviado, sentia como se tivessem arrancado um grande peso de meus ombros. Ao amanhecer, separei-me do jovem hindu, depois de lhe ter tomado alguns francos, o suficiente para um quarto. Caminhando em direção a Montparnasse, decidi deixar-me arrastar pela maré, não opor a menor resistência ao destino, fosse qual fosse a forma sob a qual se apresentasse. Nada do que me acontecera até então fora suficiente para destruir-me; nada fora destruído, exceto minhas ilusões. Eu mesmo estava intacto.
O mundo estava intacto. Amanhã talvez houvesse uma revolução, uma epidemia, um terremoto; amanhã talvez não restasse uma única alma a quem se pudesse recorrer para obter simpatia, auxílio, fé. Pareceu-me que a grande calamidade já se manifestara, que eu não poderia ficar mais verdadeiramente sozinho do que naquele próprio momento.
Decidi que não me apegaria a nada, que não esperaria nada, que a partir de então viveria como um animal, como uma fera carnívora, um nômade, um rapinante. Mesmo que declarassem a guerra e fosse meu destino partir, eu agarraria a baioneta e a enterraria, a enterraria até o punho. E se o estupro for a ordem do dia, então estuprarei, e com uma vingança. Nesse próprio momento, no quieto alvorecer de um novo dia, não estava a terra tonta com crime e miséria?
Algum único elemento da natureza do homem teria sido alterado, vitalmente, fundamentalmente alterado, pela incessante marcha da história? Pelo que ele chama de melhor parte de sua natureza, o homem foi traído, só isso. Nos extremos limites de seu ser espiritual o homem se encontra de novo nu como um selvagem. Quando encontra Deus, por assim dizer, ele está bem arrumado: é um esqueleto. A gente precisa afundar-se de novo na vida a fim de ganhar carne. O verbo precisa fazer-se carne; a alma tem sede. Qualquer migalha em que meus olhos pousem, agarrarei e devorarei. Se viver é a coisa suprema, então viverei, mesmo que precise tornar-me canibal. Até agora eu vinha tentando salvar meu precioso couro, preservar os poucos pedaços de carne que escondem meus ossos. Estou cheio disso. Atingi os limites da resistência. Minhas costas estão contra a parede; não posso recuar mais. No que tange à história, estou morto. Se existe algo além terei de saltar para trás. Encontrei Deus, mas ele é insuficiente. Só espiritualmente é que estou morto. Fisicamente estou vivo. Moralmente estou livre. O mundo que abandonei é uma jaula. A aurora está nascendo sobre um mundo novo, um mundo de selva no qual os espíritos descarnados rondam com garras afiadas. Se sou uma hiena, sou uma hiena descarnada e faminta: avanço para engordar-me.
À UMA E MEIA CHEGUEI À CASA de Van Nordem, como ficara combinado. Avisara-me que, se não atendesse, era por estar dormindo com alguém, provavelmente a sua boceta chamada Geórgia.
Mas lá estava ele, confortavelmente aconchegado sob as cobertas, embora com ar de tédio, como de hábito. Levanta-se, praguejando contra si próprio, praguejando contra o emprego, praguejando contra a vida. Levanta-se absolutamente entediado e contrariado, aborrecido por pensar que não morreu durante a noite.
Sento-me ao lado da janela e ofereço-lhe o encorajamento que posso. Trabalho enfadonho. A gente precisa realmente arrancá-lo da cama. Nas manhãs - ele entende por manhã qualquer hora entre uma e cinco da tarde - nas manhãs, como disse, ele se dedica a devaneios. A maioria de seus sonhos é sobre o passado. Sobre suas "bocetas".
Esforça-se por lembrar como elas se sentiam, o que lhe disseram em certos momentos críticos, onde as fodeu e assim por diante.
E enquanto fica lá deitado, rindo e praguejando, manipula os dedos naquela sua maneira curiosa e entediada, como para dar a impressão de que seu desgosto é tão grande que não pode expressar-se em palavras. Sobre a armação da cama pende um regador que conserva para emergências - para as virgens que procura como um detetive.
Mesmo depois de ter dormido com uma dessas criaturas míticas ainda se refere a ela como virgem e quase nunca pelo nome.
"Minha virgem", diz ele, do mesmo modo como diz "minha boceta chamada Geórgia". Quando se encaminha para o banheiro, diz: "Se minha boceta chamada Geórgia chamar, diga-lhe que espere. Diga-lhe que eu falei isso. E, ouça, pode usá-la se quiser. Estou cansado dela." Dá uma olhada no tempo e solta profundo suspiro. Se está chovendo, diz: "Maldito clima fodido, deixa a gente mórbida." E se o sol está claro e brilhante diz: "Maldito sol fodido, deixa a gente cega." Quando começa a fazer a barba, lembra-se de repente de que não há toalha limpa. "Maldito hotel fodido, são tão sovinas que não dão à gente uma toalha limpa cada dia!" O que quer que faça ou onde quer que vá, as coisas estão fora de ordem. Ou é o país fodido ou o emprego fodido, ou então é alguma fêmea fodida que o deixou em dificuldades.
"Meus dentes estão todos podres", diz, gargarejando. "É o pão fodido que dão para a gente comer aqui." Abre bem a boca e puxa para baixo o lábio inferior. "Está vendo? Extraí seis dentes ontem. Logo terei de pôr outra ponte. Isso é o que a gente ganha em trabalhar para viver. Quando eu vivia de esmolas tinha todos os meus dentes, meus olhos eram brilhantes e claros. Veja-me agora! É um milagre ainda poder trepar numa fêmea. Jesus, o que eu queria era encontrar uma fêmea rica - como aquele pistolinha esperto, o Carl. Já mostrou a você as cartas que ela lhe escreve? Quem é ela, você sabe? Ele não quis dizer-me o nome, o bastardo... tem medo de que eu possa tomá-la dele." Gargareja de novo e depois olha demoradamente as cáries. "Você tem sorte", diz tristemente.
"Tem amigos, pelo menos. Eu não tenho ninguém, exceto aquele pistolinha esperto que vive me enchendo com sua fêmea rica."
"Escute", diz ele, "por acaso você conhece uma fêmea chamada Norma? Fica rodeando o Dome o dia inteiro. Para mim ela não regula. Estive com ela aqui em cima ontem, acariciando-lhe a bunda. Ela não me deixou fazer nada. Deitei-a na cama... Cheguei mesmo a tirar-lhe as calças... e depois fiquei enjoado. Jesus, não posso mais ter o trabalho de lutar daquele jeito. Não vale a pena. Ou elas dão ou não dão... é tolice perder tempo lutando com elas. Enquanto a gente está lutando com uma putinha como aquela talvez haja no ferrasse uma dúzia de fêmeas loucas por ser fodidas. É um fato. Todas vêm aqui para ser fodidas. Pensam que aqui é pecado... as pobres imbecis! Algumas dessas professoras primárias do Oeste são virgens realmente. Palavra! Ficam sentadas sobre a bunda o dia inteiro pensando nisso.
Você não precisa fazer muita força com elas. Estão morrendo por isso. Tive outro dia aqui uma mulher casada que me disse que não dava uma trepada havia seis meses.
Pode imaginar isso? Jesus, como ela era quente! Pensei que ia arrancar-me o pau. E gemendo o tempo todo. "Você gosta? Você gosta?" Ficava dizendo isso o tempo todo, como se estivesse louca. E sabe o que a cadela queria fazer? Queria mudar-se para cá. Imagine! Perguntando-me se eu a amava.
Eu nem sequer lhe sabia o nome. Nunca sei o nome delas... Não quero saber. As casadas! Cristo, se você visse todas as bocetas casadas que trago aqui em cima, nunca mais teria ilusões. São piores que as virgens, as casadas. Não esperam que você comece as coisas - elas próprias tiram o negócio para você. E falam em amor depois. É nojento. Estou realmente começando a odiar fêmeas!"
Olha de novo pela janela. Está chuviscando. Está chuviscando desse jeito há cinco dias.
"Vamos ao Dome, Joe?" Eu o chamo de Joe porque ele me chama de Joe. Quando Carl está conosco, é Joe também. Todo mundo é Joe porque fica mais fácil desse jeito.
É também uma agradável lembrança para que a gente não se leve muito a sério. Mas Joe não quer ir ao Dome... está devendo muito dinheiro lá. Quer ir ao Coupole. Quer dar primeiro um pequeno passeio em roda do quarteirão.
"Mas está chovendo, Joe."
"Sei disso, mas que diabo! Tenho de dar meu passeio higiênico. Tenho de lavar a sujeira da minha barriga." Quando diz isso tenho a impressão de que o mundo inteiro está embrulhado dentro de sua barriga e lá apodrecendo.
Quando está vestindo a roupa volta a cair em um estado semicomatoso. Fica parado com um braço enfiado na manga do paletó e o chapéu caído para trás, e começa a sonhar em voz alta sobre a Riviera, sobre o sol, sobre levar a vida na maciota. "Tudo quanto peço da vida", diz ele, "é um punhado de livros, um punhado de sonhos e um punhado de vulvas". Enquanto resmunga isso pensativamente, olha para mim com o mais suave, o mais insidioso sorriso.
"Você gosta deste sorriso?" diz ele. E, em seguida, desgostoso: "Jesus, se eu pelo menos pudesse encontrar uma fêmea rica para quem sorrir deste jeito!"
"Somente uma fêmea rica pode salvar-me agora", diz ele com um ar do mais absoluto cansaço. "A gente fica cansada de perseguir novas fêmeas o tempo todo. Torna-se mecânico. O mal, como você vê, é que não posso apaixonar-me. Sou muito egotista. As mulheres só me ajudam a sonhar, mais nada. É como um vício, como beber ou tomar ópio. Preciso ter uma nova cada dia; senão fico mórbido. Penso demais. Às vezes fico espantado comigo mesmo, com a rapidez com que arranjo isso - e como tem realmente pouca significação. Faço-o como se fosse automaticamente. Às vezes não estou absolutamente pensando em mulher, mas de repente percebo uma mulher olhando para mim e - bumba! começa tudo de novo. Antes de saber o que estou fazendo já me acho com ela lá em cima no quarto. Nem me lembro do que lhes digo. Levo-as lá em cima no quarto, dou-lhes uma palmada na bunda e, antes de saber o que está acontecendo, já acabou tudo. É como um sonho... Compreende o que quero dizer?"
Ele não tem muito o que fazer com as garotas francesas. Não pode suportá-las. "Ou querem dinheiro ou querem que você se case com elas. No fundo são todas umas putas. Prefiro lutar com uma virgem", diz ele. "As virgens dão à gente um pouco de ilusão. Oferecem resistência, pelo menos."
Apesar disso tudo, olhando pelo ferrasse, dificilmente vemos uma puta que ele não tenha fodido uma vez ou outra. Em pé ao lado do bar, aponta-as para mim, uma a uma, analisa-as anatomicamente, descreve-lhes os pontos bons e os maus. "São todas frias", diz. E depois começa a amoldar as mãos, pensando nas boas e suculentas virgens que estão morrendo por aquilo.
No meio de seus devaneios, de repente se interrompe e, agarrando meu braço excitadamente, aponta para uma baleia de mulher que se está deixando cair sobre um banco.
"Lá está minha fêmea dinamarquesa", resmunga ele. "Está vendo aquela bunda? Dinamarquesa! Como aquela mulher gosta do negócio! Implora por ele. Venha até aqui...
Olhe-a agora, de lado! Olhe aquela bunda, está vendo? É enorme. Palavra, quando ela trepa sobre mim mal consigo estender os braços ao redor dela. Faz desaparecer o mundo inteiro. Faz-me sentir como um pequeno percevejo rastejando dentro dela. Não sei por que caio por ela - acho que é aquele traseiro. É tão incongruente. E as pregas que há nele! Você não pode esquecer um traseiro como aquele. É um fato, um fato sólido. As outras podem aborrecê-lo ou podem dar-lhe um momento de ilusão, mas esta - com seu traseiro! - puxa, você não pode eliminá-la... é como ir para a cama com um monumento por cima de você."
A fêmea dinamarquesa parece tê-lo eletrizado. Agora perdeu toda a apatia. Os olhos estão saltando para fora das órbitas.
E naturalmente uma coisa faz com que se lembre de outra. Quer sair do fodido hotel, porque o barulho o incomoda. Quer também escrever um livro para ter algo em que ocupar a mente. Mas há o maldito emprego para atrapalhar. "Liquida a gente, aquele fodido emprego! Eu não quero escrever sobre Montparnasse... Quero escrever minha vida, meus pensamentos. Quero tirar a sujeira da minha barriga... Escute, pegue aquela lá! Estive com ela há muito tempo. Costumava andar lá por perto de Lês Halles. Uma puta engraçada. Deitou-se na beirada da cama e puxou o vestido para cima. Já experimentou desse jeito? Não é ruim. Ela também não me apressou. Ficou deitada de costas e brincou com o chapéu enquanto eu a penetrava. E quando me afastei, disse com uma espécie de ar de enfado: Acabou? Como se isso não fizesse absolutamente diferença. Naturalmente, não faz diferença nenhuma, sei muito bem disso... mas a maneira calma com que ela... quase gostei... era fascinante, sabe? Quando se foi limpar, começou a cantar. Saindo do hotel, ainda estava cantando. Não disse sequer Au revoir! Afastou-se balançando o chapéu e cantarolando. Isso é o que eu chamo de puta! Mas uma boa trepada. Acho que gostei mais dela que de minha virgem. Há algo de depravado em foder uma mulher que não dá a menor importância à coisa. Esquenta o sangue da gente..." E em seguida, depois de um momento de meditação: "Você pode imaginar como seria ela, se tivesse algum sentimento?"
"Escute", diz, "quero que vá comigo ao Clube amanhã à tarde... vai haver um baile."
"Amanhã, não posso, Joe. Prometi ajudar Carl..."
"Escute, esqueça-se daquele pistola! Quero que você me faça um favor. O negócio é este" - ele começa de novo a amoldar as mãos. "Arranjei uma fêmea... prometeu ficar comigo na minha noite de folga. Mas ainda não estou certo quanto a ela. Tem uma mãe, sabe?... uma merda de pintora, que me morde a orelha toda vez que a encontro.
Penso que a verdade é que a mãe tem ciúme. Acho que não se importaria tanto se eu desse uma trepada nela primeiro. Você sabe como é... Seja como for, pensei que talvez você não se incomodasse de ficar com a mãe... ela não é tão ruim... se não tivesse visto a filha eu mesmo talvez tivesse pensado nela.
A filha é boa e jovem, assim fresca, você sabe o que eu quero dizer, não? Há nela um cheiro de limpeza..." "Escute, Joe, é melhor você arranjar um outro..." "Ora, não leve as coisas assim! Sei como você se sente. É só um pequeno favor que lhe estou pedindo. Não sei como livrar-me da galinha velha. Primeiro pensei: embebedo-a e largo-a por aí - mas acho que a moça não gostaria disso. Elas são sentimentais. Vieram de Minnesota ou um lugar assim. Seja como for, apareça amanhã e me acorde, sim? Senão vou dormir demais. Além disso, quero que me ajude a procurar um quarto. Você sabe que nisso eu sou um inútil. Encontre-me um quarto numa rua quieta, aqui por perto.
Preciso ficar por aqui... Aqui tenho crédito. Escute, prometa-me que fará isso para mim. Eu lhe pagarei uma refeição de vez em quando. Venha de qualquer jeito, porque fico louco conversando com essas fêmeas idiotas. Quero conversar com você sobre Havelock Ellis. Jesus, tirei o livro há três semanas e nem olhei para ele. A gente aqui apodrece. Acredita que nunca fui ao Louvre nem à Comédie Française? Vale a pena ir a esses lugares? Mas faz a gente esquecer um pouco as coisas, acho. Que é que você faz o dia inteiro? Não se aborrece? Que é que faz para arrumar uma foda? Escute... venha cá! Não se vá embora correndo ainda... Eu me sinto sozinho. Sabe de uma coisa?... se isto continuar por mais um ano fico louco. Tenho de sair deste fodido país. Não existe nada para mim aqui. Sei que está uma merda agora, lá na
América, mas assim mesmo... A gente fica gira aqui... todos esses bestas baratos sentados sobre a bunda o dia inteiro, contando vantagem sobre seu trabalho e nenhum deles vale uma merda. São todos fracassados - por isso é que vieram para cá. Escute, Joe, você nunca sente saudade? Você é um cara engraçado... parece gostar disto aqui. Que é que vê nisto...? Gostaria que me dissesse. Por Cristo, eu queria poder parar de pensar em mim. Estou todo embrulhado por dentro... é como se houvesse um nó aqui... Escute, sei que lhe estou enchendo o saco, mas preciso falar com alguém. Não posso falar com aqueles caras lá em cima... você sabe como são aqueles bastardos... Todos têm outro emprego. E Carl, aquele pistolinha, é tão desgraçadamente egoísta. Eu sou egotista, mas não sou egoísta. Há uma diferença. Eu sou um neurótico, acho. Não posso parar de pensar em mim. Não é que eu pense que sou tão importante... Simplesmente não posso pensar em outra coisa, só isso. Se pudesse apaixonar-me por uma mulher, isso talvez ajudasse um pouco. Mas não consigo encontrar uma mulher que me interesse. Estou numa embrulhada, você percebe isso, não? Que me aconselha a fazer? Que faria no meu lugar? Escute, não quero segurá-lo mais, mas me acorde amanhã - à uma e meia - está bem? Eu lhe darei algo extra se me engraxar os sapatos. E, escute, se tiver uma camisa sobrando, limpa, traga-a consigo, sim? Merda, estou gastando o saco naquele emprego e não me rende nem uma camisa limpa. Eles nos têm aqui como uma tropa de negros. Ah, que merda! vou dar uma volta... limpar a sujeira da minha barriga. Não se esqueça, amanhã!"
Vem continuando há seis meses ou mais, esta correspondência com Irene, a fêmea rica. Ultimamente tenho procurado Carl todos os dias a fim de levar o negócio a uma conclusão, pois por Irene esta coisa poderia continuar indefinidamente. Nos últimos dias, houve perfeita avalancha de cartas trocadas; a última que remetemos tinha quase quarenta páginas e era escrita em três línguas. Era um pot-pourri, essa última carta - pedaços de romances velhos, trechos do suplemento dominical, versões reconstruídas de cartas velhas de Llona e Tânia, citações truncadas de Rabelais e Petrônio - em suma, nós nos esgotamos. Finalmente Irene decide sair de sua concha. Finalmente chega uma carta marcando um encontro em seu hotel. Carl está mijando nas calças.
Uma coisa é escrever cartas para uma mulher que não se conhece; coisa inteiramente diferente é visitá-la e fazer-lhe amor.
No último momento, ele está tremendo tanto que quase temo precisar substituí-lo. Quando descemos do táxi diante do hotel, está tremendo tanto que preciso fazê-lo primeiro dar uma volta ao redor do quarteirão.
Já tomou dois Pernods, mas não lhe fizeram o menor efeito. A vista do próprio hotel basta para esmagá-lo: é um edifício pretensioso com um daqueles saguões enormes e vazios nos quais inglesas ficam sentadas durante horas com um olhar sem expressão. Para ter certeza de que não fugirá, fico ao lado dele enquanto o porteiro telefona para anunciá-lo. Irene está à sua espera. Quando entra no elevador lança-me um último olhar desesperado, um daqueles apelos mudos que um cão faz quando a gente lhe põe um laço ao redor do pescoço. Passando pela porta giratória, penso em Van Norden...
Volto para o hotel e fico esperando um telefonema. Ele só tem uma hora e prometeu contar-me os resultados antes de ir trabalhar. Olho as cópias das cartas que mandamos para ela.
Tento imaginar a situação como é na realidade, mas isso está fora do meu alcance. Suas cartas são muito melhores que as nossas - são sinceras, isso é claro. A esta altura eles já formaram opinião um sobre o outro. Imagino se ele ainda estará mijando nas calças.
O telefone toca. Sua voz soa estranha, aguda, como se estivesse assustado e jubiloso ao mesmo tempo. Pede-me substituí-lo no serviço. "Diga qualquer coisa ao bastardo! Diga-lhe que estou morrendo..."
"Escute, Carl... pode dizer-me...?"
"Alô! É Henry Miller?" Voz de mulher. Irene. Está-me dizendo alô. Sua voz soa linda pelo telefone... linda. Por um momento fico em absoluto pânico. Não sei o que dizer. Gostaria de dizer: "Escute, Irene, acho você linda... acho você maravilhosa." Gostaria de dizer-lhe uma coisa verdadeira, por mais tola que parecesse, pois agora que lhe ouvi a voz tudo está mudado. Mas antes que eu possa recuperar o juízo Carl surge de novo no telefone e, falando naquela voz estranha e aguda: "Ela gosta de você, Joe. Falei-lhe a seu respeito..."
No jornal tenho de fazer a revisão com Van Norden. Quando chega a hora do descanso, ele me chama de lado. Parece deprimido e desolado.
"Então ele está morrendo, não está, o pistolinha? Escute, que aconteceu de verdade?"
"Acho que foi ver sua fêmea rica", respondo calmamente.
"O quê? Quer dizer que ele a visitou?" Parece fora de si. "Escute, onde mora ela? Como se chama?" Finjo ignorar. "Escute", diz ele, "você é um cara decente. Por que, diabo, não me deixa entrar nesse negócio?"
A fim de acalmá-lo prometo finalmente contar-lhe tudo logo que obtenha os detalhes de Carl. Eu próprio mal posso esperar até ver Carl.
Lá pelo meio-dia do dia seguinte bato-lhe à porta. Já está levantado e ensaboando a barba. Nada posso perceber pela expressão de seu rosto. Não posso sequer saber se vai contar-me a verdade. O sol entra pela janela aberta, os pássaros chilreiam e, apesar disso, não sei por que, o quarto parece mais vazio e pobre do que nunca.
O chão acha-se coberto de espuma e no cabide há duas toalhas sujas que nunca são mudadas. E de alguma maneira Carl também não está mudado, o que me intriga mais do que tudo.
Esta manhã o mundo inteiro devia ser mudado, para mal ou para bem, mas mudado, radicalmente mudado. No entanto, Carl ali está em pé, ensaboando o rosto, e nem um único detalhe se alterou.
"Sente-se... sente-se ali na cama", diz. "Você vai ouvir tudo... mas primeiro espere... espere um pouco." Começa de novo a ensaboar o rosto e depois a afiar a navalha. Faz até observações sobre a água... não há água quente outra vez.
"Escute, Carl, estou sobre brasas. Pode torturar-me depois, se quiser, mas diga-me agora, diga-me uma coisa... foi bom ou ruim?"
Desvia o rosto do espelho, com o pincel na mão, e dá-me um estranho sorriso. "Espere! vou contar-lhe tudo..."
"Quer dizer que foi um fracasso."
"Não", diz, pronunciando com esforço as palavras. "Não foi um fracasso e não foi também um sucesso... A propósito, você arranjou tudo para mim no jornal? Que disse a eles?"
Compreendo que não adianta tentar arrancar-lhe alguma coisa. Quando estiver preparado, ele me contará. Antes não. Fico deitado de costas na cama, silencioso como uma ostra. Ele continua a barbear-se.
De repente, a propósito de nada, começa a falar - desconexamente a princípio e depois cada vez mais claramente, enfaticamente, resolutamente. É uma luta para fazer sair, mas ele parece decidido a contar tudo; age como se estivesse tirando alguma coisa da consciência. Faz-me até lembrar do olhar que me deu quando estava subindo no elevador. Estende-se sobre aquilo demoradamente, como para sugerir que tudo se continha naquele último momento, como para dizer que, se tivesse o poder de alterar coisas, nunca teria posto os pés fora do elevador.
Ela vestia penteador quando chegou. Havia um balde de champanha sobre a camiseira. O quarto estava bem escuro e a voz dela era encantadora. Ele me dá todos os detalhes sobre o quarto, o champanha, como o garçom o abriu, o barulho que fez, a maneira como o penteador rugiu quando ela se adiantou para cumprimentá-lo - conta-me tudo, menos o que desejo saber.
Eram cerca de oito horas quando chegou. Às oito e meia estava nervoso, pensando no emprego. "Eram mais ou menos nove horas quando o chamei, não eram?" diz.
"Sim, mais ou menos isso..."
"Eu estava nervoso, compreende..."
"Sei disso. Continue..."
Não sei se acredito ou não nele, especialmente depois daquelas cartas que fabricamos. Não sei sequer se o ouvi com exatidão, pois o que me está contando parece absolutamente fantástico. E apesar disso parece também verdadeiro, dada a espécie de cara que ele é. E então me lembro de sua voz no telefone, aquela estranha mistura de susto e júbilo. Mas por que não está mais jubiloso agora? Fica sorrindo o tempo todo, sorrindo como um rosado percevejinho que tenha comido bem. "Eram nove horas", diz ele mais uma vez, "quando o chamei, não eram?" Concordo com um aceno de cabeça aborrecidamente. Sim, eram nove horas.
Ele agora tem certeza de que eram nove horas porque se lembra de ter olhado seu relógio. Seja como for, quando olhou de novo o relógio, eram dez horas. Às dez ela estava deitada no divã com os seios nas mãos. É assim que ele me conta... em gotas. Às onze horas estava tudo resolvido; iam fugir, para Bornéu. O marido que se fomentasse! Ela nunca o amara mesmo.
Nunca teria escrito a primeira carta se o marido não fosse velho e sem paixão. E depois ela disse: "Mas escute, querido como posso saber que você não vai cansar-se de mim?"
Nesse ponto desandei a rir. Isso me parece absurdo, não posso evitá-lo.
"E que disse você?"
"Que esperava? Disse: como poderia alguém ficar cansado de você?"
Em seguida, descreve-me o que aconteceu depois, como se inclinou e lhe beijou os seios, e como, depois de tê-los beijado fervorosamente, enfiou-os de novo no corpete ou seja lá como chamam essas coisas. E depois disso outra coupe de champanha.
Lá pela meia-noite o garçom chega com cerveja e sanduíches - sanduíches de caviar. E durante todo o tempo, é o que diz, estava morrendo de vontade de dar uma mijada. Teve uma ereção, mas passou. Durante todo o tempo sua bexiga está a ponto de estourar, mas ele imagina, pistolinha sabido como é, que a situação exige delicadeza.
À uma e meia ela está disposta a alugar um carro e passear pelo Bois. Ele só tem uma idéia na cabeça - como dar uma mijada? "Eu a amo... Eu a adoro", diz ele. "Irei com você para onde quiser... Istambul, Singapura, Honolulu. Só que agora preciso ir... Está ficando tarde."
Conta-me isso tudo em seu quartinho sujo, o sol entrando em jorros e os pássaros chilreando como loucos.
Não sei ainda se ela era bonita ou não. Ele próprio não sabe, o imbecil. Pensa que não era. O quarto estava escuro c depois havia o champanha e seus nervos todo esfrangalhados.
"Mas você devia saber alguma coisa sobre ela... se isso tudo não é uma maldita mentira!"
"Espere um minuto", diz. "Espere... deixe-me pensar! Não, ela não era bonita. Agora tenho certeza disso. Tinha mecha de cabelos grisalhos sobre a testa... Lembro-me.
Mas isso não seria tão mau - quase me esqueci, viu? Não, foram seus braços eram finos... eram finos e frágeis." Começa a andar para frente e para trás. De repente, pára. "Se ela fosse apenas dez anos mais nova!" exclama. "Se fosse dez anos mais nova eu talvez me esquecesse da mecha de cabelos grisalhos... e até mesmo dos braços frágeis. Mas é muito velha. Veja, para uma fêmea como aquela cada ano agora tem importância. No ano que vem ela não será apenas um ano mais velha - será dez anos mais velha. Depois de outro ano será vinte anos mais velha. E eu estarei ficando sempre com a aparência cada vez mais moça - pelo menos por mais cinco anos..."
"Mas como acabou?" interrompo eu.
"É precisamente isso... não acabou. Prometi encontrá-la terça-feira lá pelas cinco horas. Isso é que é ruim, sabe? Havia em seu rosto rugas que ficarão muito piores à luz do dia. Acho que ela quer que eu trepe nela na terça-feira. Trepar de dia - a gente não faz isso com uma fêmea como aquela. Especialmente num hotel como aquele.
Preferiria fazê-lo em minha noite de folga... mas terça-feira não é minha noite de folga. E não é só isso. Prometi mandar-lhe uma carta nesse meio tempo. Como vou escrever-lhe uma carta agora? Nada tenho a dizer... Merda! Se ela fosse pelo menos dez anos mais nova. Você acha que devo ir com ela... para Bornéu ou onde quer que ela queira levar-me? Que faria eu com uma fêmea rica como aquela nas mãos? Não sei aturar. Tenho medo de espingardas e toda essa espécie de coisas. Além disso, ela ia querer que eu a fodesse dia e noite... nada além de caçar e foder o tempo todo... Não posso fazer isso!"
"Talvez não fosse tão ruim como você pensa. Ela lhe compraria gravatas e toda espécie de coisas..."
"Talvez você fosse conosco, hem? Eu contei a ela tudo a seu respeito..."
"Disse-lhe que sou pobre? Disse que preciso de coisas?"
"Contei tudo. Merda! Tudo seria ótimo, se ela fosse pelo menos alguns anos mais nova. Disse que está virando os quarenta.
Quer dizer que tem cinqüenta ou sessenta.
É como fornicar com a própria mãe... a gente não pode fazer isso... é impossível".
"Ela deve ter alguma atração... você estava beijando os seios dela, não disse?"
"Beijando os seios dela... que significa? Além disso, estava escuro, já disse."
Enquanto veste as calças, cai um botão. "Olhe isto, está vendo? Caindo aos pedaços, o maldito terno. Usei-o durante sete anos... Nunca o paguei também. Era um bom terno antigamente, mas agora até fede. E aquela fêmea podia comprar-me ternos também, tudo quanto eu mais quisesse. Mas isso é que não quero, ter uma mulher me sustentando.
Nunca fiz isso em minha vida. A idéia é sua. Prefiro viver sozinho. Merda, este é um bom quarto, não é? Que há de ruim nele?
Tem aparência muito melhor que o dela, não tem? Não gosto do seu belo hotel. Sou contra hotéis como aquele. Disse-lhe isso. Ela respondeu que não fazia questão de viver em qualquer lugar... disse que viria viver comigo se eu quisesse. Pode imaginá-la mudando-se para cá com suas grandes malas, suas caixas de chapéu e toda aquela badulaqueira que carrega de um lado para outro? Ela tem coisas demais - vestidos demais e garrafas e tudo o resto. É como uma clínica, o seu quarto. Se ela faz um arranhão no dedo é grave. Depois, precisa submeter-se a massagens, o cabelo precisa ser ondulado, não pode comer isto e não pode comer aquilo. Escute, Joe, ela seria muito boa se fosse um pouco mais nova. A gente pode perdoar tudo a uma fêmea nova. Uma fêmea nova não precisa ter cérebro. São melhores sem cérebro. Mas numa fêmea velha, mesmo que seja brilhante, mesmo que seja a mulher mais encantadora do mundo, nada faz diferença. Uma fêmea nova é um investimento; uma fêmea velha é um prejuízo total. Tudo quanto pode fazer é comprar coisas para a gente. Mas isso não põe carne em seus braços nem suco entre suas pernas. Irene não é ruim. De fato, acho que você gostaria dela. com você é diferente. Você não teria de trepá-la. Pode dar-se ao luxo de gostar dela. Talvez não gostasse de todos aqueles vestidos, das garrafas e do resto, mas poderia ser tolerante. Ela não o aborreceria, posso garantir-lhe. Ela é até mesmo interessante, posso dizer. Mas é murcha. Seus seios ainda são bons... mas os braços! Disse-lhe que vou levar você lá um dia destes. Falei-lhe muito de você...
Eu não sabia o que dizer. Talvez você goste dela, especialmente quando vestida. Não sei..."
"Escute, ela é rica, não disse? Eu gostarei dela! Não me importa que idade tenha, desde que não seja uma megera..."
"Não é uma megera! Que está falando? Ela é encantadora, afirmo. Fala bem. Tem também boa aparência... só que os braços..."
"Está bem, se é assim, eu a foderei - se você não quer. Diga-lhe isso. Mas seja sutil. com uma mulher como aquela a gente precisa fazer as coisas devagar. Você me leva lá e deixa as coisas correrem. Esculhambe comigo. Finja que está com ciúme... Que merda, talvez nós façamos a festa juntos... e iremos a outros lugares e comeremos juntos... andaremos de automóvel, caçaremos e usaremos coisas bonitas. Se ela quer ir a Bornéu, que nos leve juntos. Também não sei atirar, mas isso não tem importância. Ela não se importa também com isso. Só quer ser fornicada, mais nada. Você está falando sobre os braços dela o tempo todo. Não precisa ficar olhando para os braços dela o tempo todo, precisa? Olhe essa cama! Olhe o espelho! Você chama a isso viver? Quer continuar sendo delicado e viver como um piolho a vida inteira? Não pode sequer pagar a conta do hotel... e tem um emprego também. Isso não é maneira de viver. Não me importa que ela tenha setenta anos... é melhor do que isto..."
"Escute, Joe, você trepa por mim... então tudo correrá bem. Talvez eu também trepe de vez em quando... em minha noite de folga. Faz quatro dias que não dou uma boa cagada. Há alguma coisa grudando em mim, como uvas..."
"Você está com hemorróidas, mais nada."
"Meus cabelos estão caindo também... e eu precisava ir ao dentista. Sinto-me como se estivesse caindo aos pedaços. Contei a ela que bom sujeito você é... Você fará isso por mim, hem? Você é muito delicado, hem? Se formos para Bornéu não terei mais hemorróidas. Talvez adquira alguma outra coisa... alguma coisa pior... febre talvez... ou cólera. Que merda, é melhor morrer de uma boa doença como essa do que estragar a vida em um jornal com uvas subindo pelo ânus e botões caindo das calças.
Gostaria de ser rico, ainda que fosse só por uma semana, e depois ir para um hospital com uma doença, uma doença fatal, e ter flores no quarto, enfermeiras dançando em roda e telegramas chegando. Cuidam bem de nós quando somos ricos. Lavam-nos com chumaços de algodão e penteiam-nos os cabelos. Conheço isso tudo, que merda. Talvez eu tivesse sorte e não morresse. Talvez ficasse aleijado para o resto da vida... talvez ficasse paralítico e tivesse de permanecer sentado numa cadeira de rodas. Mas então cuidariam de mim do mesmo jeito... ainda que não tivesse mais dinheiro. Quando se é inválido - inválido de verdade - não nos deixam morrer de fome. E a gente tem uma cama limpa para dormir... e trocam as toalhas todos os dias. Deste jeito ninguém dá nada pela gente, especialmente quando se é empregado. Pensam que um homem deve ser feliz porque tem um emprego. Que é que você preferiria... ser aleijado para o resto da vida, ter um emprego... ou casar-se com uma fêmea rica? Preferiria casar-se com uma fêmea rica, disso sei eu.
Você só pensa em comida. Mas suponha que se casasse com ela e depois não pudesse mais ter uma ereção - isso às vezes acontece - que faria então? Ficaria à mercê dela. Teria de comer na mão dela, como um cachorrinho. Gostaria disso, gostaria? Ou talvez não pense nessas coisas? Eu penso em tudo. Penso nos ternos que escolheria e nos lugares onde iria, mas penso também na outra coisa. Isso é que é importante. De que adiantariam gravatas bonitas e ternos alinhados se você não pudesse mais ter uma ereção? Não poderia nem traí-la... porque ela estaria constantemente atrás de você. Não, o melhor seria casar-se com ela e depois ter imediatamente uma doença. Sífilis, não. Cólera, digamos, ou febre amarela. De modo que, se acontecesse um milagre e sua vida fosse poupada, você ficaria aleijado para o resto de seus dias.
Então não precisaria mais preocupar-se em fornicá-la e também não precisaria preocupar-se com o aluguel. Ela provavelmente lhe compraria uma bela cadeira de rodas, com pneumáticos de borracha, toda espécie de alavancas e tudo o mais. Você talvez pudesse até usar as mãos - quero dizer, o suficiente para escrever. Ou poderia ter uma secretária, para isso. É isso... essa é a melhor solução para um escritor. Para que um cara quer braços e pernas? Não precisa de braços e pernas para escrever. Precisa de segurança... paz... proteção.
Todos esses heróis que desfilam em cadeiras de rodas - é uma pena que não sejam escritores. Se a gente pudesse ter certeza, quando vai para a guerra, de que só teria as pernas arrancadas... se a gente pudesse ter certeza disso, eu lhe diria, que venha uma guerra amanhã. Não daria uma merda pelas medalhas... eles podiam ficar com as medalhas. Tudo quanto eu queria era uma boa cadeira de rodas e três refeições por dia. Então daria a eles alguma coisa para ler, àqueles pistolas!"
No dia seguinte, à uma e meia, procuro Van Norden. É seu dia de folga, ou melhor, sua noite de folga. Deixou um recado com Carl para que eu vá ajudá-lo a mudar-se hoje.
Encontro-o em estado de extraordinária depressão. Não fechou os olhos a noite inteira, conta-me. Há algo em sua mente, algo que o está devorando. Não demoro muito a descobrir o que é, estava impacientemente esperando-me chegar a fim de pôr tudo para fora.
"Aquele cara", começa, referindo-se a Carl, "aquele cara é um artista. Descreve todo detalhe minuciosamente. Contou-me tudo com tal precisão que sei que tudo é uma maldita mentira... mas não posso afastar isso da mente. Você sabe como funciona minha mente."
Interrompe-se para perguntar se Carl me contou toda a história. Não há em sua mente a menor suspeita de que possa ter contado uma história a mim e outra a ele. Parece pensar que a história foi inventada expressamente para torturá-lo. Parece não incomodar-lhe tanto que seja uma invencionice.
São as "imagens", diz ele, deixadas por Carl em sua mente, que o infernizam. As imagens são reais, ainda que toda a história seja falsa. Além disso, é inegável haver realmente em cena uma fêmea rica e Carl ter-lhe feito realmente uma visita. O que aconteceu efetivamente é secundário: ele tem como certo que Carl trepou nela. Mas o que o deixa desesperado é a idéia de ser talvez possível o que Carl lhe descreveu.
"É bem daquele cara", diz, "contar-me que meteu-lhe seis ou sete vezes. Sei que é pura mentira e não me importa tanto, mas quando me diz que ela alugou um carro e o levou a passear no Bois e que os dois usaram o capote de pele do marido como cobertor, isso é demais. Suponho que lhe tenha falado do chofer que esperava respeitosamente... e, escute, ele lhe falou do motor que roncava o tempo todo? Jesus, ele criou isso maravilhosamente. É próprio dele pensar em um detalhe assim... é um desses pequenos detalhes que tornam uma coisa psicologicamente real... a gente não consegue tirá-lo da cabeça depois. E conta isso tão maciamente, tão naturalmente... Terá inventado isso antecipadamente, ou saiu de sua cabeça assim, espontaneamente? É um mentiroso tão sabidinho que a gente não pode fugir-lhe... é como se estivesse escrevendo uma carta à gente, um daqueles vasos de flores que ele faz da noite para o dia. Não compreendo como um cara pode escrever cartas assim... Não entendo a mentalidade que há por trás disso... é uma forma de masturbação... que acha?
Mas antes que tenha oportunidade de aventurar uma opinião ou mesmo de rir-lhe na cara, Van Norden continua seu monólogo.
"Escute, acho que ele lhe contou tudo... contou-lhe como ficou lá no balcão sob o luar e a beijou? Isso soa banal quando a gente repete, mas a maneira como aquele cara descreve... Posso até mesmo ver o pistolinha lá, em pé com a mulher nos braços, e ele já está escrevendo outra carta a ela, outro vaso de flores sobre os telhados e toda aquela baboseira que rouba de seus escritores franceses. Aquele cara nunca diz uma coisa que seja original, já descobri isso. A gente precisa ter um indício... descobrir quem ele andou lendo ultimamente... e isso é difícil porque é danadamente reservado. Escute, se eu não soubesse que você foi lá com ele, não acreditaria que a mulher existisse. Um cara como aquele é capaz de escrever cartas a si próprio. E no entanto tem sorte... é tão danadamente pequeno, tão frágil, de aparência tão romântica, que as mulheres caem por ele de vez em quando... como que o adotam... sentem pena dele, acho.
E algumas fêmeas gostam de receber vasos de flores... isso faz que se sintam importantes... Mas esta mulher é inteligente, segundo ele diz. Você deve saber... você viu as cartas dela. Que acha que uma mulher como aquela viu nele? Posso compreender que caísse pelas cartas... mas que acha você que ela sentiu quando o viu?
"Ah, escute, isso tudo foge ao assunto. Aonde quero chegar é à maneira como me contou isso. Você sabe como ele enfeita as coisas... bem, depois daquela cena no balcão - ele me ofereceu aquilo como um hors-d'oeuvre, sabe? - depois daquilo, assim diz ele, os dois entraram e ele desabotoou o pijama dela. Por que está sorrindo? Ele me enganou nisso?"
"Não, não! Você está-me contando exatamente como ele me narrou. Continue..." "Depois" - aqui o próprio Van Norden tem de sorrir "depois daquilo, veja bem, ele me conta como se sentou ela na poltrona com as pernas erguidas... sem roupa nenhuma... e ele ficou sentado no chão olhando-a, dizendo-lhe como ela parecia bonita... disse-lhe que ela parecia um Matisse... ?
Espere um minuto... Gostaria de lembrar-me exatamente do que disse. Disse uma frasezinha sabida sobre uma odalisca... que diabo é uma odalisca, afinal? Disse em francês, por isso é que é difícil lembrar a maldita coisa... mas soava bem. Soava exatamente como a espécie de coisa que ele poderia ter dito. E ela provavelmente pensou que era original dele... Acho que ela pensa ser ele poeta, ou coisa semelhante. Mas, escute, isto tudo não é nada... Desconto a imaginação dele. O que aconteceu depois é que me deixa maluco. A noite inteira fiquei virando na cama, jogando com essas imagens que ele deixou em minha mente. Não posso tirar isso da cabeça. Parece tão real que, se não aconteceu, eu seria capaz de estrangular o bastardo. Um cara não tem o direito de inventar coisas assim. Ou então é doente...
"Estou chegando ao momento em que, conforme contou, ele se ajoelhou e com aqueles seus dois dedos magrelas abriu-lhe a vagina. Lembra-se? Disse que ela estava sentada com as pernas penduradas sobre os braços da poltrona e de repente, é o que disse, ele teve uma inspiração. Foi depois de já lhe ter dado umas duas trepadas... depois de ter largado aquela frasezinha a respeito de Matisse... Ajoelha-se - perceba isto! - e com os dois dedos... apenas as pontas dos dedos, veja bem... abre as pequenas pétalas... chip-chip... assim mesmo. Um barulhinho pegajoso... quase inaudível. Chip-chip! Santo Deus, fiquei ouvindo isso a noite inteira! E depois ele diz - como se aquilo não fosse bastante para mim - depois ele conta que enterrou a cabeça em seu regalo. E quando fez isso, que Cristo me ajude, ela passou-lhe as pernas ao redor do pescoço e prendeu-o lá. Isso me liquidou! Imagine! Imagine! Imagine uma mulher fina e sensível como aquela passando as pernas ao redor do pescoço dele! Há algo de venenoso nisso. É tão fantástico que parece convincente. Se me tivesse falado só do champanha, do passeio no Bois e até mesmo daquela cena no balcão, eu poderia ter posto tudo de lado. Mas esta coisa é tão incrível que a história não parece mais uma mentira... Não posso acreditar que ele tenha lido alguma coisa assim em qualquer lugar e não posso ver como poderia ter posto a idéia na cabeça a menos que haja nisso alguma verdade, com um pistolinha como aquele, você sabe, tudo pode acontecer. Talvez nem tenha trepado nela, mas ela pode tê-lo deixado chupá-la... nunca se sabe o que essas fêmeas ricas esperam que a gente faça..."
Quando finalmente ele sai da cama e começa a fazer a barba, a tarde já está bem avançada. Consigo finalmente desviar seu espírito para outras coisas, para a mudança principalmente. A criada vem ver se ele já está pronto - devia ter desocupado o quarto até o meio-dia. Está exatamente no ato de vestir a calça. Fico um pouco surpreendido por não desculpar-se ou virar para o outro lado. Ao vê-lo ali de pé, abotoando despreocupadamente a braguilha, ao mesmo tempo que lhe dá ordens, começo a rir disfarçadamente. "Não se incomode com ela", diz, lançando-lhe um olhar de supremo desprezo, "é apenas uma grande porca. Dê-lhe um beliscão na bunda, se quiser. Ela não dirá nada." Depois, dirigindo-se a ela, em inglês, diz: "Venha cá, sua cadela, ponha a mão nisto!" Diante disso não posso mais conter-me. Desando a rir, um acesso de riso histérico, que contagia também a criada, embora não saiba do que se trata. A criada começa a tirar os quadros e fotografias, a maioria dele próprio, que forram as paredes. "Você", diz ele, sacudindo o polegar, "venha cá! Aqui está uma coisa para que se lembre de mim" - arrancando uma fotografia da parede - "quando eu for embora você pode limpar a bunda com isto. Viu?", diz ele, virando-se para mim, "é uma cadela estúpida. Não pareceria mais inteligente se eu tivesse falado
em francês." A criada fica ali em pé com a boca aberta; evidentemente está convencida de que ele é maluco. "Hei!" grita ele, como se ela fosse surda. "Hei, você! Sim, você! Assim...!" e toma a fotografia, sua própria fotografia, e limpa a bunda com ela. "Commeça! Entendeu? A gente precisa pintar quadros para ela", diz, estendendo o lábio inferior para a frente com absoluta repugnância.
Observa-a inermemente enquanto ela joga suas coisas nas grandes valises. "Olhe, ponha isto também", diz, entregando-lhe uma escova de dentes e o regador. Metade de seus pertences estão caídos no chão. As valises estão completamente cheias e não há onde pôr as pinturas, os livros e as garrafas meio vazias. "Sente-se um minuto", diz ele. "Temos muito tempo. Precisamos pensar bem nisto. Se você não tivesse aparecido eu nunca teria saído daqui. Você vê como sou inútil. Não me deixe esquecer de tirar as lâmpadas... são minhas. Aquele cesto de papel também é meu. Esperam que a gente viva como porcos, esses bastardos."
A criada desceu para buscar um pouco de barbante... "Espere para ver... ela me cobrará o barbante ainda que seja apenas três sous. Aqui não pregam um botão na calça da gente sem cobrar. Os nojentos e sujos ladrões!" Apanha uma garrafa de Calvados em cima da lareira e faz-me sinal para que apanhe a outra. "Não adianta levar isto para o novo quarto. Vamos acabá-las agora. Mas não dê um gole a ela! Àquela bastarda, eu não deixaria um pedaço de papel higiênico. Gostaria de arruinar a casa antes de partir. Escute... mije no chão, se quiser. Gostaria de poder obrar na gaveta da escrivaninha." Sente-se tão completamente enjoado de si próprio e de tudo o mais, que não sabe o que fazer para desabafar os sentimentos. Caminha até a cama com a garrafa nas mãos e, puxando as cobertas, derrama Calvados sobre o colchão. Não contente com isso, enterra os saltos dos sapatos no colchão. Infelizmente não há lama nos saltos. Finalmente tira o lençol e limpa os sapatos com ele. "Isso lhes dará alguma coisa que fazer", resmunga vingativamente. Depois, tomando um bom gole, joga a cabeça para trás e gargareja. Após ter gargarejado bastante, cospe no espelho. "Pronto, seus bastardos imundos! Limpem isso quando eu for embora!" Caminha de um lado para outro resmungando consigo mesmo. Vendo as meias furadas caídas no chão, apanha-as e rasga-as em pedaços. As pinturas também o enfurecem. Levanta uma delas - um retrato dele próprio feito por uma lésbia que conheceu - e enfia o pé através dela.
"Aquela cachorra! Sabe o que teve a coragem de pedir-me? Que lhe passasse minhas fêmeas depois de cansar-me delas. Nunca me deu um sou por escrever-lhe elogios.
Pensava que eu admirava sinceramente seu trabalho. Eu não teria conseguido tomar-lhe esta pintura se não tivesse prometido arranjar-lhe as. coisas com aquela fêmea de Minnesota. Andava louca por ela... costumava seguir-nos por toda parte como um cão no cio... não conseguíamos livrar-nos da cadela! Transformou minha vida num inferno. Fiquei de tal maneira que tinha quase medo de trazer uma fêmea aqui, temendo que ela avançasse em cima de mim.
Subia até aqui sorrateiramente como um ladrão e fechava a porta logo que entrava... Ela e aquela fêmea chamada Geórgia... deixam-me maluco. Uma está sempre no cio e a outra sempre com fome. Odeio foder mulher que está com fome. É o mesmo que pôr alimento dentro dela e depois tirá-lo de novo... Isso me faz lembrar uma coisa... onde pus aquele ungüento azul? É importante.
Você já teve dessas coisas? E pior do que uma gonorréia. E não sei também onde peguei. Trouxe tantas mulheres aqui em cima, na semana passada, que perdi a conta.
Engraçado também, porque todas tinham um cheiro tão fresco. Mas você sabe como é isso..."
A criada empilhou todas as coisas dele na calçada. O patron olha com ar de irritação. Depois de tudo colocado no táxi, mal resta lugar para um de nós dentro dele.
Logo que começamos a rodar, Van Norden tira um jornal e começa a embrulhar as panelas e caçarolas; no novo quarto é expressamente proibido cozinhar. Quando chegamos ao destino, sua bagagem se desfaz; não seria tão embaraçoso se a senhoria não tivesse posto a cabeça para fora da porta exatamente quando chegamos. "Meu Deus!" exclama ela, "que diabo é isto tudo? Que significa isto?" Van Norden está tão intimidado que não pode pensar em outra coisa para dizer, senão: "C'est mói... c'est mói, madame!" E virando-se para mim, resmunga selvagemente: "Essa idiota! Reparou na cara dela? Vai me tornar as coisas difíceis."
O hotel fica numa passagem suja e forma um retângulo muito de acordo com o padrão de uma penitenciária moderna. O escritório é grande e escuro, apesar dos brilhantes reflexos das paredes de ladrilho. Há gaiolas de pássaros penduradas nas janelas e pequenos quadros esmaltados por toda parte, pedindo aos hóspedes, em linguagem obsoleta, que não façam isto e não se esqueçam daquilo. É quase imaculadamente limpo, mas absolutamente pobre, miserável, desolado. As poltronas estofadas são seguras com tiras de arame; fazem lembrar desagradavelmente a cadeira elétrica. O quarto que ele vai ocupar fica no quinto andar.
Enquanto subimos a escada, Van Norden informa que Maupassant viveu ali antigamente. E ao mesmo tempo observa que há um odor peculiar no hall. No quinto andar faltam algumas vidraças na janela; ficamos um momento olhando os inquilinos do outro lado do pátio. Aproxima-se a hora do jantar e as pessoas voltam sozinhas para os quartos com aquele ar cansado e abatido de quem ganha honestamente a vida. A maioria das janelas está aberta de par em par: os quartos encardidos têm a aparência de bocas bocejando. Os ocupantes dos quartos também estão bocejando, ou melhor, coçando-se. Movimentam-se de um lado para outro apàticamente e, ao que parece, sem muito propósito; poderiam muito bem ser lunáticos.
Quando viramos o corredor em direção ao quarto 57, uma porta abre-se de repente à nossa frente e uma velha megera de cabelos emaranhados e olhos de maníaco espia para fora. Assusta-nos tanto que ficamos paralisados. Durante um minuto inteiro nós três ficamos ali incapazes de mover-nos ou mesmo de fazer um gesto inteligente.
Por trás da velha megera posso ver uma mesa de cozinha, sobre a qual está deitado um bebê todo despido, um pirralhinho franzino não maior do que um frango depenado.
Finalmente a velha apanha um balde de despejos ao seu lado e esboça um movimento para a frente. Saímos de lado para deixá-la passar e, quando a porta se fecha por trás dela, o bebê solta um grito agudo. É o quarto número 56, e entre o 56 e o 57 fica o banheiro onde a velha megera está esvaziando seus despejos.
Desde que subimos a escada, Van Norden conservou-se silencioso. Mas suas expressões são eloqüentes. Quando abre a porta do 57 tenho por um fugidio momento a impressão de enlouquecer. Um enorme espelho coberto de gaze verde e inclinado em ângulo de 45 graus pende bem diante da entrada, sobre um carrinho de bebê cheio de livros.
Van Norden nem sequer mostra um sorriso; caminha descuidoso até o carrinho de bebê e, apanhando um livro, começa a folheá-lo, como um homem que entrasse na biblioteca pública e fosse sem pensar até a estante mais próxima. E isso talvez não me parecesse tão ridículo se não tivesse avistado ao mesmo tempo um guidão de bicicleta caído no canto. Parecia tão absolutamente pacífico e satisfeito, como se ali estivesse cochilando há anos, que me deu a impressão de estarmos naquele quarto, exatamente nessa posição, há um tempo incalculàvelmente longo, como se fosse uma pose feita em um sonho do qual nunca saímos, um sonho que o menor gesto, até mesmo o piscar de um olho, destruirá. Mas ainda mais notável é a lembrança que de repente surge de um sonho verdadeiro que tive ainda ontem à noite, um sonho no qual vi Van Norden exatamente naquele canto agora ocupado pelo guidão, mas no qual, em lugar deste, havia uma mulher agachada com as pernas erguidas. Vejo-o por cima da mulher com aquela expressão alerta e ansiosa que lhe aparece nos olhos quando ele quer muito alguma coisa. A rua onde isso acontece está nublada - só o ângulo feito pelas duas paredes é claro, e a figura agachada da mulher. Posso vê-lo avançando para ela com aquele jeito rápido e animal, indiferente ao que se lhe passa ao redor, decidido apenas a fazer o que quer. E uma expressão em seus olhos parece dizer: "Você pode matar-me depois, mas deixe-me enfiá-lo... Tenho de enfiá-lo!" E ei-lo ali, curvado sobre ela, as cabeças batendo contra a parede, e tem uma ereção tão tremenda que é simplesmente impossível enfiar o membro nela. De repente, com aquele ar enojado que sabe fazer tão bem, levanta-se e arruma a roupa. Vai-se afastando quando percebe de repente que seu pênis está caído na calça. É mais ou menos do tamanho de um cabo de vassoura serrado. Apanha-o descuidadamente e coloca-o embaixo do braço. Quando se afasta, noto dois enormes bulbos, como bulbos de tulipa, pendendo da ponta do cabo de vassoura, e posso ouvi-lo resmungando consigo mesmo "vasos de flores... vasos de flores."
O garçom chega arquejando e suando. Van Norden olha-o sem compreender. A senhoria agora entra e, caminhando diretamente até Van Norden, tira-lhe o livro da mão, joga-o dentro do carrinho de bebê e, sem dizer palavra, roda o carrinho para o hall,
"Isto é uma casa de loucos", diz Van Norden, sorrindo contristado. É um sorriso tão fraco e indescritível que por um momento volta a sensação de sonho, e parece-me que estamos em pé na ponta de um longo corredor em cuja extremidade há um espelho corrugado. E descendo esse corredor, balançando sua consternação como uma lanterna encardida, Van Norden cambaleia, cambaleia para dentro e para fora à medida que aqui e acolá uma porta se abre e uma mão o puxa, ou um casco o empurra para fora.
E quanto mais ele vagueia, mais lúgubre se torna sua consternação; usa-a como uma lanterna que o ciclista segura entre os dentes numa noite em que o calçamento está úmido e escorregadio. Entrando e saindo dos quartos sujos, cambaleia e, quando se senta, a cadeira desmonta, quando abre sua valise, dentro só existe uma escova de dentes. Em cada quarto há um espelho diante do qual ele se posta atentamente e mastiga sua raiva, e, com o constante mastigar, murmurar e resmungar, rezingar e praguejar, seus maxilares deslocam-se e caem feiamente, e, quando esfrega a barba, pedaços do maxilar desprendem-se e ele fica tão desgostoso consigo mesmo que pisa em seu próprio maxilar, o reduz a pedaços com os grandes saltos do sapato.
Entrementes, a bagagem está sendo transportada para dentro. E as coisas começam a parecer ainda mais loucas do que antes - particularmente quando ele prende seu aparelho de ginástica na cama e começa seus exercícios Sandow. "Gosto deste lugar", diz ele, sorrindo para o garçom. Tira o paletó e o colete. O garçom observa-o com ar de perplexidade; tem uma valise em uma mão e o regador na outra. Fico à parte em pé na saleta, segurando o espelho com a gaze verde. Nem um único objeto parece ter utilidade prática. A própria saleta parece inútil, uma espécie de vestíbulo de estrebaria. É exatamente a mesma espécie de sensação que tenho quando entro na Comédie Française ou no Falais Royal Theatre; é um mundo de bricabraque, de portas falsas, de braços e bustos, de soalhos encerados, de candelabros e homens em armadura, de estátuas sem olhos e cartas de amor guardadas em vitrinas de vidro. Algo está acontecendo, mas não tem sentido; é como acabar com a garrafa meio-vazia de Calvados porque não há lugar na valise.
Subindo a escada, como disse há um momento, ele mencionou haver Maupassant vivido aqui. A coincidência parece ter-lhe causado impressão. Ele gostaria de acreditar que foi neste próprio quarto que Maupassant criou algumas daquelas histórias horrendas em que se baseia sua reputação.
"Viviam como porcos, aqueles pobres bastardos", diz. Estamos sentados à mesa redonda em um par de velhas e confortáveis poltronas que foram reforçadas com cintas e correias; a cama fica bem ao nosso lado, tão perto que nem podemos pôr os pés sobre ela. O armoire fica em um canto por trás de nós, também convenientemente próximo.
Van Norden esvazia sua roupa suja sobre a mesa; estamos ali sentados, com pés afundados em suas meias e camisas sujas, e fumamos satisfeitos. A sordidez do lugar parece tê-lo fascinado; está contente aqui. Quando me levanto para acender a luz, sugere que joguemos uma partida de cartas antes de sairmos para comer. E assim nos sentamos ao lado da janela, a roupa suja espalhada pelo chão e o aparelho de ginástica Sandow pendurado no candelabro, e jogamos algumas mãos de pinocle a dois.
Van Norden põe de lado o cachimbo e enfia um naco de fumo por dentro de seu lábio inferior. De vez em quando cospe pela janela, grandes e saudáveis cusparadas de suco marrom que vão estalar na calçada lá embaixo. Parece contente agora.
"Na América", diz, "a gente nem sonharia em viver num lugar como este. Mesmo quando vivia de esmolas, eu dormia em quartos melhores do que este. Mas aqui parece natural - é como os livros que se lêem. Se voltar um dia para lá vou-me esquecer de tudo sobre esta vida, como a gente se esquece de um sonho ruim. Provavelmente recomeçarei a velha vida exatamente onde a deixei... se um dia voltar. Às vezes fico na cama sonhando com o passado, e é tão vívido para mim, que tenho de sacudir-me para perceber onde estou. Especialmente quando tenho uma mulher ao meu lado; uma mulher pode pôr-me a sonhar melhor do que tudo. É só isso que quero delas - esquecer-me.
Às vezes fico tão perdido em meus devaneios que não consigo lembrar-me do nome da fêmea ou de onde a encontrei. Engraçado, não é? É bom ter um corpo novo e quente ao lado, quando se acorda pela manhã. Dá à gente uma sensação de limpeza. A gente fica espiritual... Até quando elas começam a soltar aquela baboseira piegas sobre amor etcetera. Por que todas essas fêmeas falam tanto em amor, pode explicar-me? Parece que uma boa foda não basta para elas... querem a alma da gente também..."
Essa palavra alma, que aparece freqüentemente nos solilóquios de Van Norden, costumava a princípio ter um efeito engraçado sobre mim.
Sempre que ouvia a palavra alma sair de seus lábios, ficava histérico: não sei como, parecia uma moeda falsa, particularmente porque era geralmente acompanhada por uma cusparada de suco marrom que lhe deixava uma esteira no canto da boca. E como eu nunca hesitava em rir na sua cara, acontecia invariavelmente que quando essa palavrinha saía, Van Norden fazia uma pausa que desse para que eu estourasse numa risada e depois, como se nada tivesse acontecido, recomeçava seu monólogo, repetindo a palavra cada vez mais freqüentemente e cada vez com ênfase mais cariciosa. Era a alma dele que aquelas mulheres estavam tentando possuir - isso ele me tornava claro. Explicou-o vezes e vezes, mas volta a isso de novo sempre, como um paranóico à sua obsessão. Em certo sentido, Van Norden é louco, disso estou convencido. Seu único medo é que o deixem sozinho e esse medo é tão profundo e persistente que ainda mesmo quando está por cima de uma mulher, mesmo quando está fundido a ela, não pode fugir da prisão que criou para si próprio. "Experimento toda espécie de coisas", explica-me. "As vezes chego a contar, ou começo a pensar em um problema de filosofia, mas não dá certo. É como se eu fosse duas pessoas e uma delas me estivesse observando o tempo todo. Fico tão louco comigo que seria capaz de matar-me.. . e, em certo sentido, isso é o que faço cada vez que tenho um orgasmo. Por um segundo eu me elimino.
Não há nem mesmo um de mim, então... não há nada... nem mesmo a fêmea. É como receber a comunhão. Sinceramente, estou falando sério. Por alguns segundos depois tenho um belo ardor espiritual... e talvez continuasse desse jeito indefinidamente como posso dizer-lhe? - se não houvesse uma mulher ao meu lado e depois o regador e a água correndo... todos esses pequenos detalhes que deixam a gente desesperadamente constrangido, desesperadamente solitário. E por aquele único momento de liberdade a gente tem de ouvir toda a baboseira sobre amor... isso me deixa maluco às vezes... Quero pô-las para fora a pontapés imediatamente. .. De vez em quando o faço.
Mas isso não as conserva afastadas. Elas gostam disso, na realidade. Quanto menos importância lhes damos, mais nos perseguem. Há algo de perverso nas mulheres... no íntimo, todas são masoquistas."
"Mas, então, que quer você de uma mulher?" perguntei.
Ele começa a amoldar as mãos; seu lábio inferior cai. Parece completamente frustrado. Quando ocasionalmente consegue gaguejar algumas frases estropiadas é com a convicção de que por trás de suas palavras existe esmagadora futilidade. "Gostaria de poder entregar-me a uma mulher", diz impulsivamente. "Desejo que ela me tire de mim. Mas para fazê-lo precisa ser melhor do que eu; precisa ter uma mente, não ser apenas uma bunda. Tem de fazer-me acreditar que preciso dela, que tem de ser fiel a mim. Não isso...
Mas tem de fazer-me acreditar que preciso dela, que não posso viver sem ela. Encontre-me uma fêmea assim, quer? Se conseguir eu lhe darei meu emprego. Não me importaria então o que me acontecesse; não precisaria de emprego, de amigos, de livros, de nada. Se pelo menos ela pudesse fazer-me acreditar que há na terra algo mais importante do que eu. Jesus, como me odeio! Mas odeio essas fêmeas bastardas ainda mais - porque nenhuma delas presta."
"Você pensa que gosto de mim", continua ele. "Isso mostra como me conhece pouco. Sei que sou um grande sujeito... Não teria estes problemas se não houvesse alguma coisa em mim. Mas o que me mata é não poder expressar-me. Os outros pensam que sou um caçador de vulvas. São assim superficiais, esses intelectuais que ficam o dia inteiro sentados no ferrasse ruminando a comida psicológica... Não está mau isso, hem... ? Comida psicológica. Anote para mim. vou usá-lo em minha coluna na próxima semana... A propósito, você já leu Stekel? Presta? Para mim não parece senão casos médicos. Por Cristo, gostaria de poder juntar coragem para consultar um psicanalista... um bom, quero dizer. Não quero ver esses charlatões de barbicha e sobrecasaca, como seu amigo Bóris. Como consegue tolerar esses caras? Não o matam de aborrecimento?
Você conversa com qualquer um, tenho notado. Não dá a mínima importância. Talvez tenha razão. Gostaria de não ser tão infernalmente crítico. Mas esses judeuzinhos sujos que rondam pelo Dome, Jesus, dão-me calafrios. Parecem livros didáticos. Se eu pudesse conversar com você todo dia, talvez desabafasse o que tenho dentro do peito. Você é um bom ouvinte. Sei que não me dá a menor importância, mas é paciente. E não tem teorias para explorar. Suponho que depois anota tudo isto naquele seu caderninho. Escute, não me importa o que você diga a meu respeito, mas não me apresente como um caçador de vulvas - é simples demais. Algum dia escreverei um livro sobre mim mesmo, sobre meus pensamentos. Não quero dizer uma peça de análise introspectiva. Quero dizer que me deitarei na mesa de operação e exporei todas as minhas entranhas, toda a maldita coisa.
Alguém já fez isso antes?... Por que diabo está sorrindo? Parece ingenuidade?" Estou sorrindo porque sempre que ele toca na questão desse livro que vai escrever um dia, as coisas assumem aspecto incongruente.
Basta dizer "meu livro" e imediatamente o mundo se reduz às dimensões privadas de Van Norden e Cia. O livro precisa ser absolutamente original, absolutamente perfeito. Por isso, entre outras coisas, torna-se-lhe impossível começar a escrevê-lo. Logo que tem uma idéia começa a pô-la em dúvida. Lembra-se de que Dostoiévski a utilizou, ou Hamsun ou algum outro. "Não estou dizendo que quero ser melhor do que eles, mas quero ser diferente", explica. E assim, ao invés de cuidar de seu livro, lê escritor após escritor a fim de ter absoluta certeza de que não vai invadir a propriedade privada deles. E quanto mais lê, mais desdenhoso se torna. Nenhum deles é satisfatório; nenhum chegou àquele grau de perfeição que ele impôs a si próprio. E esquecendo completamente que não escreveu sequer um capítulo, fala a respeito deles com condescendência, como se existisse uma estante de livros exibindo seu nome, livros com que todos estão familiarizados e cujos títulos é portanto supérfluo mencionar. Embora nunca tenha mentido abertamente sobre esse fato, é evidente que as pessoas com quem conversa a fim de arejar sua filosofia privada, suas críticas e suas queixas têm como certo que por trás de suas observações imprecisas ergue-se um sólido conjunto de obras. Especialmente as virgens jovens e tolas que atrai a seu quarto com o pretexto de ler-lhes seus poemas, ou o pretexto ainda melhor de pedir-lhes conselhos. Sem o menor sentimento de culpa ou constrangimento entrega-lhes um pedaço de papel sujo no qual rabiscou algumas linhas - a base de um novo poema, como diz - e com absoluta seriedade pede-lhes sincera opinião. Como em geral elas nada têm a apresentar a título de comentário, absolutamente desnorteadas pela completa falta de sentido das linhas, Van Norden aproveita a ocasião para expor-lhes sua opinião sobre a arte, opinião, é desnecessário dizer, criada espontaneamente para adaptar-se à circunstância. Tão especialista ele se tornou nesse papel, que a transição dos cantos de Ezra Pound para a cama é feita com tanta simplicidade e naturalidade quanto a modulação de uma clave para outra; com efeito, se não fosse feito assim, haveria dissonância, o que acontece às vezes quando ele comete um erro no referente àquelas imbecis a que chama de "canja". Naturalmente, sendo como é, só com relutância se refere a esses fatais erros de julgamento.
Mas quando chega a confessar um erro dessa espécie, é com absoluta franqueza; de fato, parece ter um prazer perverso em discorrer sobre sua inaptidão. Há uma mulher, por exemplo, que vem tentando possuir há quase dez anos - primeiro na América e finalmente aqui em Paris. É a única pessoa do sexo oposto com quem mantém cordiais relações amistosas. Os dois parecem não só gostar, mas compreender um ao outro. A princípio pareceu-me que se ele pudesse realmente possuir essa criatura, seu problema talvez estivesse resolvido. Todos os elementos de uma união bem sucedida estavam lá - exceto o fundamental. Bessie era quase tão incomum à sua maneira quanto ele.
Preocupava-se tão pouco com entregar-se a um homem quanto com a sobremesa que se segue à refeição. Geralmente selecionava o objeto de sua escolha e fazia ela própria a proposta. Não era feia, nem se podia dizer que fosse bonita. Tinha um belo corpo, isso era a coisa principal - e gostava do negócio, como dizem.
Eram tão íntimos, aqueles dois, que às vezes, a fim de satisfazer a curiosidade dela (e também na vã esperança de inspirá-la com sua proeza), Van Norden a escondia em seu armário durante uma de suas sessões. Depois de tudo acabado, Bessie saía do esconderijo e os dois discutiam casualmente o assunto, isto é, com uma indiferença total por tudo, exceto a "técnica". Técnica era um dos termos favoritos dela, pelo menos nas discussões a que tive o privilégio de assistir. "Que há de errado na minha técnica?" dizia ele. E Bessie respondia: "Você é muito grosseiro. Se espera possuir-me um dia, tem de tornar-se mais sutil."
Havia tão perfeita compreensão entre eles, como disse, que muitas vezes, quando visitava Van Norden à uma e meia, encontrava Bessie sentada na cama, as cobertas puxadas para trás, e Van Norden convidando-a a bater-lhe no pênis... "apenas algumas batidinhas delicadas", dizia ele, "para que eu tenha coragem de levantar-me".
Ou então instigava-a a soprá-lo ou, falhando isso, ele próprio o agarrava e sacudia como uma sinêta de jantar, com os dois quase morrendo de rir. "Nunca possuirei essa cadela", dizia ele. "Ela não tem respeito por mim. Foi isso o que ganhei em tomá-la na minha confiança." E depois acrescentava abruptamente: "Que acha daquela loura que lhe mostrei ontem?” Dirigindo-se a Bessie, naturalmente. E Bessie zombava dele, dizendo-lhe que não tinha gosto nenhum. "Ah, não me venha com essa", dizia ele. E depois, em tom de brincadeira, talvez pela milésima vez, pois isso então já se tornara uma piada constante entre eles: "Escute, Bessie, que tal uma trepada rápida? Apenas uma trepadinha... não". Feito isso, da maneira habitual, ele acrescentava, no mesmo tom: "Bem, e ele? Por quenão dá uma trepadinha com ele?"
O que havia com Bessie é que ela não podia ou não queria considerar-se apenas como uma cópula. Falava em paixão, como se fosse uma palavra absolutamente nova. Era apaixonada em relação às coisas, mesmo uma coisinha como uma trepada. Tinha de pôr a alma nela.
"Eu também às vezes fico apaixonado", dizia Van Norden.
"Oh, você", dizia Bessie. "Você é apenas um sátiro gasto. Não sabe o significado de paixão. Quando tem uma ereção, pensa que está apaixonado."
"Muito bem, talvez isso não seja paixão... mas não se pode ficar apaixonado sem ter uma ereção, não é verdade?" Tudo isto a respeito de Bessie e das outras mulheres que ele arrasta para seu quarto dia após dia, ocupa meus pensamentos enquanto caminhamos para o restaurante.
Ajustei-me tão bem aos seus monólogos que, sem interromper meus próprios devaneios, faço automaticamente todo comentário necessário, no momento em que ouço silenciar sua voz. É um dueto e, além disso, semelhante à maioria dos duetos porque a gente só ouve com atenção o sinal que anuncia a entrada da própria voz. Como é sua noite de folga e como prometi fazer-lhe companhia, já me ensurdeci para suas perguntas. Sei que antes de terminar a noite estarei completamente exausto; se tiver sorte, isto é, se conseguir arrancar-lhe alguns francos sob um pretexto ou outro, largarei dele no momento em que for ao lavatório.
Mas ele conhece minha propensão a fugir e, em vez de ficar ofendido, simplesmente se previne contra a possibilidade guardando seus sous. Se lhe peço dinheiro para comprar cigarros, insiste em ir comigo buscá-los. Não quer ficar sozinho, nem por um segundo. Mesmo quando consegue agarrar uma mulher, aterroriza-o ser deixado sozinho com ela. Se possível, farme - ia permanecer sentado no quarto enquanto executa o ato. Seria como pedir-me para esperar enquanto faz a barba.
Em suas noites de folga Van Norden geralmente consegue ter pelo menos cinqüenta francos no bolso, circunstância que não o impede de dar um golpe sempre que encontra alguém promissor. "Alô", diz ele, "dá-me vinte francos... Estou precisando". Tem uma maneira de parecer tomado de pânico quando diz isso. Se recebe uma recusa, torna-se insultante. "Bem, você pode pelo menos pagar um gole."
E depois de tomar o gole diz mais cortesmente: "Escute, então me dê cinco francos... me dê dois francos ..." Vamos de bar em bar procurando um pouco de excitação e sempre acumulando mais alguns francos.
No Coupole damos com um bêbedo do jornal. Um dos caras lá de cima. Acaba de ocorrer um acidente no jornal, informa-nos ele.
Um dos revisores caiu no poço do elevador. Não se espera que viva. A princípio Van Norden fica chocado, profundamente chocado. Mas quando fica sabendo que foi Peckover, o Inglês, parece aliviado.
"O pobre bastardo", diz, "está melhor morto do que vivo. E ele pôs dentadura postiça ainda no outro dia..."
A alusão à dentadura postiça comove até as lágrimas o homem lá de cima. Relata de maneira babosa um pequeno fato relacionado com o acidente. Está perturbado pelo incidente, mais perturbado por esse pequeno incidente do que pela própria catástrofe. Parece que Peckover, quando bateu no fundo do poço, recuperou a consciência antes que alguém pudesse alcançá-lo. Embora suas pernas estivessem quebradas e as costelas partidas, conseguiu pôr-se de quatro e tatear à procura da dentadura postiça.
Na ambulância, em seu delírio, chorava a perda da dentadura. O incidente era patético e ridículo ao mesmo tempo. O cara lá de cima não sabia se rir ou chorar, ao contá-lo. Foi um momento delicado porque com um bêbedo como aquele basta um passo em falso para que nos arrebente uma garrafa na cabeça. Ele nunca fora particularmente amigo de Peckover - na realidade, raramente havia posto os pés no departamento de revisão; há uma muralha invisível entre os caras lá de cima e os aqui debaixo.
Mas agora, como sentira o toque da morte, queria exibir sua camaradagem. Desejava chorar, se possível, para mostrar que era um cara direito. E Joe e eu, que conhecíamos bem Peckover e sabíamos que ele não valia uma boa praga, nem mesmo algumas lágrimas, sentimo-nos aborrecido com seu sentimentalismo borracho. Queríamos também dizer-lhe isso, mas com um cara como aquele não se pode ser honesto; precisa-se comprar uma coroa e ir ao funeral, fingindo-se desolado.
E a gente tem de felicitá-lo pelo delicado necrológio que escreveu. Ele continuará levando consigo seu delicado necrologiozinho durante meses, elogiando-se ao máximo pela maneira como manobrou a situação. Sentimos isso tudo, Joe e eu, sem trocarmos palavra. Limitamo-nos a ficar ali em pé e ouvir com um desprezo mortal e silencioso. E assim que podemos, damos o fora; deixamo-lo lá no bar falando sozinho entre soluços sobre seu Pernod.
Uma vez fora de suas vistas, começamos a rir histèricamente. A dentadura postiça! Por mais que falássemos sobre o pobre diabo, e falamos também algumas coisas boas dele, sempre voltávamos à dentadura postiça. Há pessoas neste mundo que formam uma figura tão grotesca que até a morte as torna ridículas. E quanto mais horrível a morte, mais ridículas elas parecem. Não adianta tentar impor ao fim um pouco de dignidade - precisa-se ser mentiroso ou hipócrita para descobrir algo de trágico em sua partida. E como não precisávamos apresentar uma fachada falsa, podíamos rir à vontade do incidente. Rimos dele a noite inteira e, nos intervalos, desabafamos nosso desprezo e nojo pelos caras lá de cima, os palermas que estavam sem dúvida tentando convencer-se de que Peckover era um bom rapaz e sua morte fora uma catástrofe.
Toda espécie de lembranças engraçadas vieram-nos ao espírito - os pontos e vírgulas que ele deixava passar e pelos quais gritavam com ele até fazê-lo mijar. Tornaram-lhe a vida miserável com seus fedidos pontos e vírgulas e as frações que ele sempre deixava erradas. Iam mesmo despedi-lo uma vez, porque chegou ao serviço com hálito de álcool. Desprezavam-no porque sempre parecera tão miserável e porque tinha eczema e caspa. Era apenas um ninguém, no que lhes concernia, mas, agora que estava morto, iam todos interferir avidamente, comprar-lhe enorme coroa e pôr-lhe o nome em tipo grande na coluna de necrologia.
Tudo para lançar um pouco de reflexo sobre eles próprios; transformá-lo-iam numa grande merda, se pudessem. Mas infelizmente, a respeito de Peckover, era pouco o que pudessem inventar. Ele era um zero, e mesmo estar morto não lhe acrescentaria um algarismo ao nome.
"Só há um bom aspecto nisso", diz Joe. "Você talvez consiga o emprego dele. E, se tiver sorte, talvez caia também no poço do elevador e quebre o pescoço. Nós lhe compraremos uma bela coroa, isso eu prometo."
Lá pelo amanhecer estávamos sentados no ferrasse do Dome. Havia muito esquecêramos o pobre Peckover. Tivéramos um pouco de excitação no Bal Nègre e a mente de Joe escorregara de novo para a eterna preocupação: partes genitais. É nesta hora, quando sua noite está quase encerrada, que sua inquietação atinge um auge febril. Pensa nas mulheres a cujo lado passou antes, ao anoitecer, e naquelas que bastaria pedir para ter possuído, se não estivesse cheio delas. Lembra-se inevitavelmente de sua fêmea chamada Geórgia - ela o vem perseguindo ultimamente, implorando-lhe que a receba em seu quarto, pelo menos até poder encontrar um emprego. "Não me importa dar-lhe
comida de vez em quando", diz ele, "mas não posso tomá-la como coisa firme... arruinaria meus negócios com as outras bocetas." O que o irrita mais nela é que não engorda. "É como levar um esqueleto para a cama com a gente", diz ele. "Outra noite eu a peguei - por piedade - e que pensa que aquela cadela maluca havia feito?
Havia raspado tudo... não tinha nem um pêlo no lugar! Você já possuiu uma mulher que tivesse raspado a vulva? É repelente, não é? E é engraçado também. Uma espécie de coisa de louco. Não parece mais uma boceta; é como uma lêsma morta ou coisa semelhante." Descreve-me como, despertada sua curiosidade, saiu da cama e foi procurar a lanterna. "Fiz que a abrisse bem e focalizei a lanterna sobre ela. Você precisava ter-me visto... era cômico. Fiquei tão ocupado com aquilo que me esqueci completamente dela. Nunca em minha vida eu olhara uma vagina tão seriamente. Você teria imaginado que nunca vira uma, antes. E quanto mais eu a olhava, menos interessante ela se tornava. Isso só serve para mostrar que nada há nela, afinal, especialmente quando raspada. São os pêlos que a tornam misteriosa. É por isso que uma estátua deixa a gente fria. Só uma vez vi uma verdadeira vulva numa estátua - essa era de Rodin. Você precisava vê-la uma vez... tinha as pernas bem abertas... Acho que não havia cabeça nela. Só uma boceta, pode-se dizer. Meu Deus, parecia horrível. A coisa é essa - todas elas parecem iguais. Quando olhamos para elas cobertas com suas roupas imaginamos toda espécie de coisas: damos-lhes uma individualidade, que elas não têm, naturalmente. Há apenas uma racha lá entre as pernas e ficamos todos excitados por ela - nem mesmo olhamos para ela na metade das vezes. Sabemos que está lá, e a única coisa em que pensamos é em meter a vara dentro; é como se o pênis pensasse por nós. É como ilusão! Ficamos todos inflamados por nada... por uma racha com pêlos em cima ou sem pêlos. É tão absolutamente sem sentido, que me fascinou olhá-la. Devo tê-la estudado por uns dez minutos ou mais. Quando a olhamos desse jeito, com uma espécie de desprendimento, ficamos com noções engraçadas na cabeça. Todo aquele mistério sobre o sexo, e depois descobrimos que não é nada - apenas um vazio.
Não seria engraçado se encontrássemos uma harmônica dentro... ou uma folhinha? Mas não há nada lá... absolutamente nada. É nojento. Quase me deixou louco... Escute, sabe o que fiz em seguida? Dei-lhe uma trepada rápida e depois virei-lhe as costas. Sim, apanhei um livro e li. A gente pode aproveitar alguma coisa de um livro, mesmo um livro ruim... mas uma boceta é pura perda de tempo...
Aconteceu que quando ele estava concluindo esse discurso, uma puta deu-nos uma olhada. Sem a mais ligeira transição ele me diz abruptamente: "Gostaria de dar-lhe uma trepada? Não custará muito... ela ficará com os dois." E sem esperar por uma resposta levanta-se cambaleante e vai em direção dela. Alguns minutos depois volta.
"Está tudo arrumado", diz. "Acabe sua cerveja. Ela está com fome. Não há nada mais a fazer a esta hora... ficará com os dois por quinze francos. Iremos ao meu quarto... será mais barato."
A caminho do hotel a mulher está tremendo tanto que precisamos parar e pagar-lhe um café. É uma criatura de tipo delicado e nada ruim de olhar. Evidentemente conhece Van Norden e sabe que nada pode esperar dele, além dos quinze francos. "Você não tem dinheiro nenhum", diz ele, resmungando para mim junto com seu hálito. Como não tenho um centavo no bolso não percebo o sentido daquilo, até ele estourar. "Pelo amor de Deus, lembre-se de que estamos quebrados. Não vá ficar de coração mole quando chegarmos lá em cima. Ela vai pedir-lhe um pouco mais... Conheço essa fêmea! Poderia tê-la arranjado por dez francos, se quisesse. Não há vantagem em estragá-las com mimos..."
"Il est méchant, celui-là", diz ela, apanhando com seu ar estúpido o sentido das observações dele.
"Non, il riest pás méchant, il est très gentil."
Ela sacode a cabeça, rindo, "lê lê connais bien, cê type." E depois começa uma história triste, sobre o hospital, o aluguel atrasado e a criança no campo. Mas não exagera. Sabe que nossos ouvidos estão tapados; a miséria está dentro dela, como uma pedra, e não há lugar para outros pensamentos.
Não está tentando fazer um apelo à nossa simpatia - está apenas mudando de um lugar para outro esse grande peso em seu interior. Quase gosto dela. Por Deus, espero que não tenha uma doença...
No quarto ela faz os preparativos mecanicamente. "Há uma migalha de pão aqui por acaso?" pergunta, enquanto se agacha sobre o bidê.
Van Norden ri ao ouvir isso. "Aqui está, tome um gole", diz ele, empurrando-lhe uma garrafa. Ela não quer nada de beber; o estômago já está ruim, queixa-se.
"Isso é apenas uma tática", diz Van Norden. "Não deixe que afete suas simpatias. Ainda assim, gostaria que falasse sobre outra coisa. Como diabo se pode ter qualquer paixão quando se tem uma fêmea faminta nas mãos?"
Precisamente! Nenhum de nós tem paixão alguma. E quanto a ela, seria mais fácil esperar que apresentasse um colar de diamantes do que mostrar uma centelha de paixão.
Mas há os quinze francos e alguma coisa precisa ser feita quanto a isso. É como um estado de guerra: no momento em que a condição é precipitada, ninguém pensa em outra coisa senão em paz, em acabar com aquilo. E no entanto ninguém tem a coragem de depor as armas, para dizer: "Estou cheio disto... Parei." Não, há em algum lugar quinze francos, aos quais ninguém mais dá a mínima importância e que ninguém vai mesmo receber no fim, mas os quinze francos são como a causa primária das coisas e, em lugar de ouvir a própria voz, em lugar de abandonar a causa primária, a gente se entrega à situação, a gente continua matando, e quanto mais covarde a gente se sente, mais heroicamente se comporta, até o dia em que o fundo cai e de repente todas as armas silenciam e os padioleiros apanham os heróis mutilados e ensangüentados e pregam-lhes medalhas no peito. Depois a gente tem o resto da vida para pensar nos quinze francos. A gente não tem olhos, nem braços, nem pernas, mas o consolo de sonhar pelo resto de seus dias com os quinze francos que todos esqueceram.
É exatamente como um estado de guerra - não posso tirar isso da cabeça. A maneira como age sobre mim, para atear em mim uma centelha de paixão, faz-me pensar que soldado infernalmente ruim eu seria se cometesse um dia a tolice de deixar-me apanhar assim e ser arrastado para a linha de frente. Eu, de minha parte, sei que entregaria tudo, inclusive a honra, a fim de sair da encrenca. Não tenho estômago para isso, e é só. Ela, porém, está com a mente fixada nos quinze francos e, se não quero lutar por eles, vai-me fazer lutar. Mas não se pode pôr luta no íntimo de um homem se ele não tem luta nenhuma em si. Somos tão covardes, alguns de nós, que não nos podem sequer fazer heróis, nem mesmo se nos matarem de susto. Sabemos demais, talvez. Há alguns de nós que não vivem no momento, que vivem um pouco à frente ou um pouco atrás. Minha mente está voltada para o tratado de paz o tempo todo. Não posso esquecer que foram os quinze francos que começaram toda a encrenca. Quinze francos! Que significam quinze francos para mim, particularmente se não são meus?
Van Norden parece ter uma atitude mais normal em relação a isso. Ele também agora não se incomoda absolutamente com os quinze francos; é a própria situação que o intriga. Parece exigir uma exibição de vigor - sua virilidade está em jogo. Os quinze francos estão perdidos, vençamos ou não. Existe mais alguma coisa em jogo - não apenas a virilidade talvez, mas a vontade. É como um homem nas trincheiras novamente: ele não sabe mais por que deve continuar vivendo, pois se escapar agora será apanhado mais tarde, mas continua assim mesmo e, ainda que tenha a alma de uma barata e em seu íntimo haja admitido tal coisa, dêem-lhe um revólver, uma faca ou mesmo apenas suas unhas limpas, e ele continuará matando e matando, matará um milhão de homens em vez de parar e perguntar a si mesmo por quê.
Enquanto observo Van Norden atacá-la, parece-me que estou olhando uma máquina cujos dentes escaparam. Entregues a si próprios, eles poderiam continuar desse jeito para sempre, pegando e escapando, sem que nunca acontecesse coisa alguma. Até que uma mão desligue o motor. A vista deles ligados como um par de cabras sem a menor centelha de paixão, raspando e raspando sem razão alguma a não ser os quinze francos, faz-me perder toda parcela de sentimento que tenho, exceto o sentimento desumano de satisfazer minha curiosidade. A mulher está deitada na beirada da cama; e Van Norden curvado sobre ela, como um sátiro com os dois pés sòlidamente plantados no chão. Estou sentado numa cadeira por trás dele, observando os movimentos de ambos com desprendimento frio e científico; não me importa que isto dure eternamente.
É como observar uma daquelas máquinas loucas que jogam para fora os jornais, milhões, bilhões e trilhões deles com suas manchetes sem significação. A máquina, louca como é, parece mais sensata do que os seres humanos e os acontecimentos que a produziram. Meu interesse por Van Norden e a mulher é nulo; se pudesse sentar-me assim e observar cada um dos atos isolados que estão sendo praticados neste minuto em todo o mundo, meu interesse seria ainda menos do que nulo. Eu não seria capaz de fazer diferença entre este fenômeno e a chuva caindo ou um vulcão em erupção. Enquanto estiver faltando aquela centelha de paixão, não há significação humana no ato. A máquina é melhor de observar.
E esses dois são como uma máquina cujos dentes escaparam. É necessário o toque de uma mão humana para consertá-la. É preciso um mecânico.
Ajoelho-me por trás de Van Norden e examino a máquina mais atentamente. A mulher joga a cabeça para um lado e lança-me um olhar desesperado. "Não adianta", diz ela.
"É impossível". Em face do quê, Van Norden põe-se a trabalhar com renovada energia, exatamente como um velho bode. Ele é um diabo tão obstinado que quebrará os chifres antes de desistir. E está ficando bravo agora porque estou cutucando-lhe a bunda.
"Pelo amor de Deus, Joe, desista disso! "Você vai matar a pobre moça."
"Deixe-me em paz", rosna ele. "Eu quase consegui desta vez."
A postura e a maneira decidida com que diz isso trazem-me de repente ao espírito, pela segunda vez, a lembrança do meu sonho.
Só que agora parece que o cabo de vassoura, tão descuidadamente posto embaixo do braço por ele, ao afastar-se, está perdido para sempre. É como a seqüência do sonho - o mesmo Van Norden, mas sem a causa primária. Ele é como um herói de volta da guerra, um pobre bastardo mutilado, vivendo da realidade de seus sonhos.
Onde quer que se sente, a cadeira desmonta-se; seja qual for a porta em que entre, o aposento está vazio; tudo quanto põe na boca deixa mau gosto. Tudo é exatamente igual ao que era antes; os elementos estão inalterados, o sonho não é diferente da realidade. Só que, entre o tempo em que ele foi dormir e o em que acordou, seu corpo foi roubado. É como uma máquina jogando jornais para fora, milhões e bilhões deles todos os dias, e a primeira página está cheia de catástrofes, com distúrbios, homicídios, explosões, colisões, mas ele não sente nada. Se alguém não desligar a chave nunca saberá o que significa morrer; você não pode morrer se seu próprio corpo foi roubado. Pode foder uma fêmea e trabalhar como um bode até a eternidade; pode ir para as trincheiras e ser reduzido a pedaços por uma explosão; nada criará aquela centelha de paixão se não houver a intervenção de uma mão humana. Alguém tem de pôr a mão na máquina e desaparafusá-la para que os dentes voltem a engrenar-se.
Alguém tem de fazer isso sem esperança de recompensa, sem preocupar-se com os quinze francos; alguém cujo peito seja tão fino que uma medalha o deixe corcunda.
E alguém tem de introduzir um alimento numa vulva esfomeada, sem medo de retirá-lo de novo. Caso contrário, este espetáculo continuará para sempre. Não há jeito de sair da encrenca...
Depois de lamber a bunda do chefe uma semana inteira - é o que se tem de fazer aqui - consegui ficar com o emprego de Peckover.
Ele morreu mesmo, o pobre diabo, algumas horas depois de bater no fundo do poço. E, exatamente como eu previa, fizeram-lhe um belo funeral, com missa solene, coroas enormes e tudo o mais. Tout compris. E depois das cerimônias, regalaram-se, os caras lá de cima, em um bistrot. Foi uma pena Peckover não ter podido participar pelo menos um pouquinho - ele apreciaria tanto sentar-se com os homens lá de cima e ouvir o próprio nome mencionado com tanta freqüência.
Devo dizer, logo de início, que não tenho de que me queixar. É como estar em um asilo de lunáticos, com permissão de masturbar-se pelo resto da vida. Trazem o mundo até bem embaixo de meu nariz e tudo quanto me pedem é pontuar as calamidades. Não há coisa alguma em que aqueles espertos caras lá de cima deixem de pôr os dedos: nenhuma alegria e nenhuma miséria passa sem notícia. Eles vivem entre os fatos duros da vida, a realidade, como a chamam.
É a realidade de um pântano e eles são como rãs que não têm coisa melhor a fazer do que coaxar. Quanto mais coaxam, mais real a vida se torna. O advogado, o padre, o médico, o político, o jornalista - esses são os charlatões que têm os dedos no pulso do mundo. Uma constante atmosfera de calamidade. É maravilhoso. É como se o barômetro nunca mudasse, como se a bandeira estivesse sempre a meio-pau. Pode-se ver agora como a idéia do céu toma conta da consciência dos homens, como ganha terreno mesmo retiradas todas as escoras de baixo dela. Deve haver outro mundo além deste pântano no qual tudo se joga em confusão. É difícil imaginar como possa ser esse céu com que os homens sonham.
Um céu de rã, sem dúvida alguma. Miasmas, escuma, nenúfares, água estagnada. Sentar-se numa folha flutuante sem ser molestado e coaxar o dia inteiro. Algo assim, imagino eu.
Exercem um efeito terapêutico maravilhoso sobre mim essas catástrofes cuja revisão faço. Imaginem um estado de perfeita imunidade, uma existência encantada, uma vida de absoluta segurança no meio de bacilos venenosos. Nada me toca, nem terremotos, nem explosões, nem distúrbios, nem fome, nem colisões, nem guerras, nem revoluções.
Estou vacinado contra toda doença, toda calamidade, toda tristeza e miséria.
É a culminância de uma vida de fortaleza.
Sentado em meu pequeno nicho, todos os venenos que o mundo solta diariamente passam por minhas mãos. Nem sequer a unha de um dedo fica manchada.
Estou absolutamente imunizado. Estou melhor do que um assistente de laboratório, porque aqui não há maus cheiros, apenas o do chumbo queimando. O mundo pode estourar - estarei aqui do mesmo jeito para pôr uma vírgula ou um ponto e vírgula. Talvez até mesmo ganhe um pequeno extraordinário, pois com um acontecimento como esse haverá fatalmente uma edição extra final. Quando o mundo estourar e a edição final for para a rotativa, os revisores reunirão quietamente todas as vírgulas, pontos e vírgulas, hífens, asteriscos, colchetes, parênteses, pontos finais, pontos de exclamação etc. e os porão em uma pequena caixa sobre a mesa do redator-chefe. Cotnme ca tout tout est réglé...
Nenhum de meus companheiros parece compreender por que aparento estar tão contente. Resmungam o tempo inteiro, têm ambições, querem mostrar seu orgulho e sua melancolia.
Um bom revisor não tem ambições, nem orgulho, nem melancolia. Um bom revisor é um pouco como Deus Todo-Poderoso, está no mundo mas não pertence a ele. É só para os domingos. Domingo é sua noite de folga. Nos domingos desce de seu pedestal e mostra a bunda aos fiéis. Uma vez por semana ouve todo sofrimento e toda miséria privados do mundo; é o bastante para o resto da semana. No resto da semana permanece nos gelados pântanos hibernais um absoluto, um impecável absoluto, apenas com uma marca de vacina para distingui-lo do imenso vazio.
A maior calamidade para um revisor é a ameaça de perder o emprego. Quando nos reunimos na hora do descanso, a pergunta que faz correr um calafrio pela nossa espinha é esta: que fará você se perder o emprego? Para o homem do padoque, cuja função é varrer o estéreo, o supremo terror é a possibilidade de um mundo sem cavalos. Dizer-lhe que é nojento passar a vida amontoando troços quentes é uma imbecilidade. Um homem pode chegar a amar a merda se seu sustento depender dela, se sua felicidade estiver em jogo.
Esta vida que, fosse eu ainda um homem com orgulho, honra, ambição e assim por diante, pareceria a última escala da degradação, recebo-a agora com satisfação, como um inválido recebe a morte. É uma realidade negativa, exatamente como a morte uma espécie de céu sem o sofrimento e o terror de morrer. Neste mundo cotidiano a única coisa importante é ortografia e pontuação.
Não importa qual a natureza da calamidade, mas apenas se esta escrito certo. Tudo fica no mesmo nível, seja a última moda de vestidos para noite, um novo encouraçado, uma epidemia, um alto explosivo, uma descoberta astronômica, uma corrida nos bancos, um desastre ferroviário, um mercado em alta, uma aposta maluca, uma execução, um assalto, um assassínio ou o que quer que seja. Nada escapa ao olho do revisor, mas nada penetra seu colete à prova de bala. Ao hindu Agha Mir, Madame Scheer (antes Senhorita Esteve) escreve dizendo-se absolutamente satisfeita com o trabalho dele. "Casei-me em 6 de junho e agradeço ao senhor. Somos muito felizes e espero que, graças ao seu poder, isso durará para sempre. Estou-lhe remetendo por ordem telegráfica a importância de... para recompensá-lo..." O hindu Agha Mir prevê o futuro e lê todos os nossos pensamentos de maneira precisa e inexplicável. Ele o aconselhará, o livrará de todas as suas preocupações e dificuldades de qualquer espécie etc.
Procure-o pessoalmente ou escreva para Avenue Mac-Mahon, 20, Paris.
Lê todos os pensamentos de maneira maravilhosa! Entendo que isso significa sem exceção, desde os pensamentos mais triviais até os mais vergonhosos. Deve ter muito tempo à sua disposição, esse Agha Mir. Ou se concentrará apenas nos pensamentos daqueles que mandam dinheiro por ordem telegráfica?
Na mesma edição noto um título anunciando que "o universo está se expandindo tão depressa que poderá estourar", e por baixo dela vem a fotografia de uma violenta dor de cabeça. E em seguida há uma história sobre a pérola, assinada por Tecla. A ostra produz ambas, informa ele a todo o mundo. Tanto a pérola "selvagem" ou oriental como a pérola "cultivada".
No mesmo dia, na Catedral de Trier, os alemães estão exibindo o Manto de Cristo; é a primeira vez que o tiram da naftalina nos últimos quarenta e dois anos. Não se fala coisa alguma sobre as calças e o colete. Em Salzburgo, também no mesmo dia, dois camundongos nasceram no estômago de um homem, acreditem ou não. Mostram uma famosa atriz cinematográfica, com as pernas cruzadas: repousa em Hyde Park, e embaixo um conhecido pintor observa: "Confesso que a Senhora Coolidge tem tal encantoe personalidade que seria uma das doze americanas famosas, ainda que seu marido não fosse presidente". De uma entrevista com Mister Humhal, de Viena, extraio o seguinte:
"Antes de concluir", disse Mister Humhal, 'gostaria de dizer que não bastam corte e ajustamento impecáveis; a prova do bom trabalho de alfaiate se vê no vestir.
Um terno deve curvar-se com o corpo, mas conservar sua linha quando quem o usa está andando ou está sentado." E quando há uma explosão numa mina de carvão - uma mina de carvão britânica - é favor reparar em que o Rei e a Rainha sempre mandam suas condolências prontamente - pelo telégrafo. E eles sempre comparecem às corridas importantes, embora outro dia, segundo o original, no Derby, creio eu, "chuva pesada começou a cair, para grande surpresa do Rei e da Rainha."
Mais comovedor, porém, é um tópico como este: "Afirma-se na Itália que as perseguições não são contra a Igreja, mas apesar disso são realizadas contra as partes mais primorosas da Igreja. Afirma-se que não são contra o Papa, mas contra o próprio coração e os olhos do Papa."
Tive de viajar precisamente à volta do mundo inteiro para encontrar um nicho tão confortável e agradável como este. Quase parece incrível. Como poderia eu ter previsto, na América, com todos aqueles foguetes que enfiam no rabo da gente para dar ânimo e coragem, que a posição ideal para um homem de meu temperamento era procurar erros ortográficos? Lá a gente não pensa em outra coisa senão tornar-se um dia Presidente dos Estados Unidos. Potencialmente todo homem é feito de madeira presidencial.
Aqui é diferente. Todo homem é potencialmente um zero. Se você se torna alguma coisa, ou alguém, é por acidente, um milagre.
Há mil probabilidades contra uma de você jamais sair de sua aldeia natal. Há mil probabilidades contra uma de você ter as pernas arrancadas por um tiro ou seus olhos vazados por uma explosão. A menos que aconteça o milagre e você se veja transformado em general ou contra-almirante.
Mas é exatamente porque as probabilidades são todas contra você, precisamente porque há tão pouca esperança, que a vida aqui é deliciosa. Dia a dia. Nada de ontem e nada de amanhã. O barômetro nunca muda, a bandeira está sempre a meio-pau. Você usa uma tira de crepe preto no braço, tem uma fitinha na botoeira e, se tiver a sorte de poder dar-se a esse luxo, compra para si próprio um par de membros artificiais bem leves, preferivelmente de alumínio.
O que não o impede de saborear um apéritif ou olhar os animais no zoológico ou flertar com os abutres que sobem e descem os boulevards sempre à procura de carniça nova. O tempo passa. Se você é estrangeiro e seus documentos estão em ordem, pode expor-se à infecção sem temor de ser contaminado. É melhor, se possível, ter um emprego de revisor.
Commeça, tout s'arrange. Isso quer dizer que, se por acaso você estiver voltando para casa a pé, devagar, às três da madrugada e for interceptado pelos policiais, pode estalar desdenhosamente os dedos para eles. De manhã, quando o mercado está funcionando, você pode comprar ovos belgas, a cinqüenta centavos cada um. Um revisor geralmente não se levanta antes do meio-dia ou pouco mais tarde. É bom escolher hotel perto de um cinema porque, se você tem tendência para dormir demais, as campainhas o acordarão a tempo para a matinê. Ou, se não puder encontrar hotel perto de um cinema, escolha perto de um cemitério, que vem a dar na mesma coisa. Acima de tudo, nunca desespere. Il ne faut jamais désespérer. É o que tento pôr na cabeça de Carl e Van Norden toda noite. Um mundo sem esperança, mas nenhum desespero. É como se me tivesse convertido a uma nova religião, como se estivesse fazendo uma novena anual toda noite a Nossa Senhora do Consolo. Não posso imaginar o que teria a ganhar se fosse elevado a diretor do jornal ou mesmo a Presidente dos Estados Unidos. Estou num beco sem saída, e é cômodo e confortável. com um pedaço de original na mão ouço a música ao redor de mim, o sussurrar e o zumbir das vozes, o tilintar das linotipos, como se houvesse um milhar de pulseiras de prata passando por um espremedor de roupa; de vez em quando um rato passa correndo a nossos pés ou uma barata desce pela parede à nossa frente, movimentando-se ágil e cautelosamente sobre suas delicadas pernas. Os acontecimentos do dia são enfiados debaixo do nosso nariz, silenciosamente, discretamente, com uma assinatura, de vez em quando, para marcar a presença de uma mão humana, um ego, um toque de vaidade. A procissão passa serenamente, como um cortejo entrando pelos portões do cemitério. O papel embaixo da mesa de revisão é tão grosso que dá quase a sensação de um tapete com pêlos macios. Embaixo da mesa de Van Norden há manchas de suco marrom. Lá pelas onze horas chega o vendedor de amendoim, um armênio débil mental que também está contente com sua sorte na vida.
De vez em quando recebo um cabograma de Mona, dizendo que chegará no próximo navio. "Segue carta", diz sempre. Isso vem vindo assim há nove meses, mas nunca vi o nome dela na lista de passageiros dos navios que chegam, nem o garçom me traz uma carta em salva de prata. Não tenho mais esperanças também nesse sentido. Se ela chegar um dia, poderá procurar-me lá embaixo, logo atrás do lavatório. Provavelmente me dirá logo de início que isto é anti-higiênico.
É a primeira coisa que impressiona uma mulher americana na Europa - que é anti-higiênico. É impossível para elas conceber um Paraíso sem encanamento moderno. Se encontram um percevejo querem escrever imediatamente uma carta à Câmara de Comércio. Como vou explicar a ela que estou contente aqui? Dirá que me tornei um degenerado.
Conheço-lhe a tática do começo ao fim. Desejará procurar um estúdio com jardim ao lado - e uma banheira, sem a menor dúvida. Quer ser pobre de maneira romântica. Eu a conheço. Mas estou preparado para ela desta vez.
Há dias, porém, em que o sol brilha e eu me afasto do caminho trilhado e penso nela esfomeadamente. De vez em quando, apesar de minha sombria satisfação, começo a pensar em outro modo de vida, começo a imaginar se faria alguma diferença ter uma criatura jovem e irrequieta ao meu lado.
O mal é que quase não consigo lembrar-me da aparência dela, nem mesmo de como é a sensação de ter meus braços ao redor de seu corpo. Tudo quanto pertence ao passado parece ter caído no mar; tenho lembranças, mas as imagens perderam nitidez, parecem mortas e vagas, como múmias mordidas pelo tempo e afundadas num atoleiro. Se tento recordar minha vida em Nova York, obtenho alguns fragmentos lascados, apavorantes e cobertos de azinhavre. Parece que minha própria existência chegou ao fim em algum lugar, que não posso descobrir exatamente onde é. Não sou mais um americano nem um nova-yorkino, e ainda menos um europeu ou um parisiense. Não tenho obrigação de lealdade, responsabilidades, ódios, preocupações, preconceitos, paixão. Não sou a favor nem contra. Sou neutro.
Quando caminhamos de volta para casa à noite, nós três, freqüentemente acontece, depois dos primeiros espasmos de nojo, começarmos a falar sobre o estado de coisas com aquele entusiasmo que só podem mostrar os que não têm parte ativa na vida. O que me parece estranho às vezes, quando entro rastejando na cama, é que todo esse entusiasmo nasça apenas para matar tempo, apenas para aniquilar os três quartos de hora de caminhada entre o jornal e Montparnasse.
Poderíamos ter as idéias mais brilhantes e mais exeqüíveis para melhorar isto ou aquilo, mas não há veículo para onde encaminhá-las. E o mais estranho é que a ausência de qualquer relação entre idéias e vida não nos causa nenhuma angústia, nenhum desconforto. Ficamos tão ajustados que, se amanhã recebêssemos ordem de andar sobre as mãos, o faríamos sem o mais ligeiro protesto. Desde que, naturalmente, o jornal saísse como de hábito.
E que recebêssemos regularmente o pagamento. Fora isso, nada importa. Nada. Ficamos orientalizados. Tornamo-nos cules, cules de colarinho branco, silenciados por um punhado de arroz cada dia. Um aspecto especial dos crânios americanos, lia eu outro dia, é a presença do osso epactal, ou os Incae, no occipício. Deve-se a presença desse osso, continuava dizendo o sábio, à persistência da sutura occipital transversal, que em geral se fecha na vida fetal.
Daí ser sinal de desenvolvimento retardado e indicativo de uma raça inferior. "A capacidade cúbica média do crânio americano", continuava ele, "fica abaixo da raça branca e ergue-se acima da preta. Tomando-se ambos os sexos, os parisienses de hoje têm capacidade craniana de 1.448 centímetros cúbicos; os negros, 1.344 centímetros; os índios americanos, 1.476".
De tudo isso nada deduzo porque sou americano e não sou índio. Mas é engenhoso explicar as coisas desse jeito, por um osso, um os Incae, por exemplo. Absolutamente não perturba sua teoria admitir que exemplares isolados de crânios de índios apresentaram a extraordinária capacidade craniana de 1.920 centímetros cúbicos, não ultrapassada em qualquer outra raça. O que noto com satisfação é que os parisienses, de ambos os sexos, parecem ter capacidade craniana normal. A sutura occipital transversal evidentemente não é tão persistente neles. Eles sabem como saborear um apéritif e não se preocupam se as casas estão sem pintar. Nada há de extraordinário em seus crânios, no que tange aos índices cranianos. Deve haver alguma outra explicação para a arte de viver que eles levaram a tal grau de perfeição.
No Monsieur Paul's, o bistrot que fica no caminho, há nos fundos uma sala reservada para os jornalistas, onde podemos comer fiado. Salinha agradável, com serragem no chão e moscas na época certa e fora dela. Quando digo que é reservada para os jornalistas não pretendo dar a entender que comemos sozinhos; pelo contrário, quero dizer que temos o privilégio de associar-nos às putas e gigolôs que formam o elemento mais substancial da clientèle do Monsieur Paul's. O arranjo serve maravilhosamente aos caras lá de cima, pois estão sempre atrás de mulher e mesmo aqueles que têm uma garotinha francesa firme, não são avessos a uma mudança de vez em quando. O principal é não apanhar gonorréia; às vezes parece que uma epidemia varreu o jornal, ou talvez isso possa ser explicado por dormirem todos eles com a mesma mulher. Seja como, for, é agradável observar como conseguem parecer miseráveis quando obrigados a sentar-se ao lado de um gigolô que, apesar das pequenas dificuldades de sua profissão, tem, em comparação, uma vida luxuosa.
Estou pensando agora, particularmente, num sujeito alto e louro que entrega os despachos da Havas de bicicleta. Chega sempre um pouco atrasado para a refeição, sempre transpirando profusamente e com o rosto coberto de sujeira. Tem curiosa e desajeitada maneira de entrar, saudando todo mundo com dois dedos e avançando diretamente
para a pia, que fica entre a privada e a cozinha. Enquanto enxuga o rosto faz rápida inspeção nos comestíveis; se vê um belo bife sobre o balcão, apanha-o e cheira-o, ou então mergulha a concha no grande caldeirão e prova um bocado de sopa. É como um belo cão de caça, com o nariz no chão o tempo todo. Terminados os preliminares, tendo feito xixi e assoado vigorosamente o nariz, caminha descuidadamente até sua mulher e dá-lhe um grande beijo estalado, juntamente com um afetuoso tapa no traseiro.
Ela, a mulher, nunca vi senão imaculada mesmo às três horas da madrugada depois de uma noite de trabalho. Dá exatamente a impressão de ter saído de um Banho Turco.
É um prazer olhar para brutos tão sadios, ver tanto repouso, tanta afeição, tanto apetite como eles demonstram. É da refeição da noitinha que estou falando agora, da pequena merenda que ela toma antes de iniciar seus deveres. Daqui a pouco será obrigada a despedir-se de seu grande bruto louro, sentar-se em um lugar qualquer no boulevard e bebericar seu digestif. Se o trabalho é desagradável, cansativo ou exaustivo, ela certamente não o demonstra.
Quando o rapagão chega, esfomeado como um lobo, abraça-o e beija-o avidamente - seus olhos, nariz, faces, cabelos, nuca... beijar-lhe-ia a bunda se isso pudesse ser feito em público. É grata a ele, isso é evidente. Não é escrava do salário. Durante toda a refeição ri convulsamente. Dir-se-ia que não tem preocupação no mundo.
E de vez em quando, à guisa de afeição, dá-lhe um sonoro tapa no rosto, uma pancada tal que faria um revisor ficar rodopiando.
Eles não parecem tomar conhecimento de outra coisa a não ser de si próprios e do alimento que ingerem às pás. Contentamento tão perfeito, tanta harmonia, tanta compreensão mútua fazem com que Van Norden fique louco por observá-los. Especialmente quando ela escorrega a mão até a braguilha do rapagão e o acaricia, ao que ele geralmente corresponde agarrando-lhe o seio e apertando-o com ar de brincadeira.
Há outro casal que chega em geral mais ou menos à mesma hora e se comporta exatamente como duas pessoas casadas. Armam suas brigas, lavam sua roupa suja em público e, depois de tornar as coisas desagradáveis para si próprios e para todos os outros, depois de ameaças e pragas, de reproches e recriminações, compensam acariciando-se e arrulhando, como um par de rolas. Lucienne, como ele a chama, é uma loura pesada e platinada de ar cruel e saturnino.
Tem o lábio inferior cheio, que mastiga rancorosamente quando fica furiosa. E olhos frios e redondos, de uma espécie de azul desbotado, que o fazem suar quando os fixa nele. Mas é uma boa pessoa, Lucienne, apesar do perfil de condor que nos apresenta quando começa a briga. Sua bolsa está sempre cheia da nota e, se lida com ela cautelosamente, é apenas porque não deseja encorajá-lo em seus maus hábitos. Ele tem um caráter fraco; isto é, se levarmos a sério as tiradas de Lucienne. Gasta cinqüenta francos por noite enquanto espera que ela termine o trabalho. Quando a garçonete vem tomar o pedido, não tem apetite. "Ah, você está sem fome de novo!" ruge Luciene. "Hum! Suponho que esteve esperando por mim no Faubourg Montmartre. Espero que se tenha divertido bastante enquanto eu me escravizava por você. Fale, imbecil, onde é que você esteve?"
Quando ela estoura assim, enfurecendo-se, ele ergue os olhos timidamente na direção dela e depois, como se tivesse decidido que o silêncio é a melhor saída, deixa cair a cabeça e brinca com o guardanapo. Mas esse pequeno gesto, que ela conhece tão bem e que naturalmente lhe é secretamente agradável porque está agora convencida de que ele é culpado, só aumenta a raiva de Lucienne. "Fale, imbecil!" grita ela. E com uma vozinha esganiçada e tímida ele explica lastimosamente que, enquanto esperava por ela, ficou com tanta fome que foi obrigado a comer um sanduíche e tomar um copo de cerveja. Isso bastou para arruinar-lhe o apetite diz desconsolado, embora seja evidente que o alimento agora é a menor de suas preocupações. "Mas" - e ele tenta fazer a voz soar de maneira mais convincente - "eu estava esperando por você o tempo todo", diz impulsivamente.
"Mentiroso!" grita ela. "Mentiroso! Ah, felizmente, eu também sou mentirosa... uma boa mentirosa. Você me deixa doente com suas miseráveis mentirinhas. Por que não me conta uma mentira grande?"
Ele pende a cabeça de novo e distraidamente recolhe algumas migalhas e as põe na boca. Ela dá-lhe um tapa na mão.
"Não faça isso! Você me aborrece. Você é tão imbecil. Mentiroso! Mas espere um pouco! Tenho mais coisas a dizer. Também sou mentirosa, mas não sou imbecil."
Dali a pouco, porém, estão sentados muito juntos, de mãos dadas, e ela murmura maciamente: "Ah, meu coelhinho, é duro deixá-lo agora. Venha aqui, beije-me! Que é que você vai fazer esta noite? Conte-me a verdade, meu pequenino... Sinto muito ter um gênio tão ruim." Ele a beija com timidez, exatamente como um coelhinho de compridas orelhas côr-de-rosa; dá-lhe uma pequena mordida nos lábios como se estivesse mordiscando uma folha de couve. E ao mesmo tempo seus olhos brilhantes e redondos pousam carinhosamente na bolsa dela, aberta ao seu lado, no banco. Apenas espera o momento em que possa dar cortesmente o fora; está ansioso por dar o fora, por sentar-se em algum sossegado café na Rue du Faubourg-Montmartre.
Conheço-o, o inocente diabinho, com seus redondos e assustados olhos de coelho. E sei que diabo de rua é a Faubourg-Montmartre com placas de bronze e artigos de borracha, as luzes piscando a noite inteira e sexo correndo através dela como esgoto. Caminhar da Rue Lafayette até o boulevard é como ser passado pelas varas; elas grudam na gente como sarna, comem a gente como formigas, lisonjeiam, adulam, agradam, imploram, suplicam, tentam em alemão, inglês, espanhol, mostram seus corações dilacerados e seus sapatos furados, e muito depois de ter-se libertado dos tentáculos, muito depois de terem cessado o borbulhar e o chiado, a fragrância do lavabo agarra-se ao nariz da gente - é o odor do Parfum de Dansé, cuja eficiência é garantida só para uma distância de vinte centímetros.
Seria possível perder uma vida inteira naquele pequeno trecho entre o boulevard e a Rue Lafayette. Todo bar está vivo, latejante, os dados chumbados; os caixas estão pendurados como abutres em suas banquetas altas e o dinheiro que manejam tem fedor humano. Não há no Banque de France equivalente para o dinheiro de sangue que aqui circula, o dinheiro que brilha de suor humano, que passa como um incêndio florestal de mão em mão e deixa atrás de si fumaça e mau cheiro. Um homem capaz de caminhar através do Faubourg-Montmartre à noite sem arquejar ou suar, sem uma prece ou uma maldição nos lábios, um homem assim não tem testículos e, se tem, então devia ser castrado.
Supondo-se que o tímido coelhinho gaste cinqüenta francos por noite enquanto espera sua Lucienne? Supondo-se que sinta fome e compre um sanduíche e um copo de cerveja ou pare para conversar com a mulher de algum outro? Você pensa que ele devia estar cansado dessa ronda noite após noite? Pensa que isso devia pesar sobre ele, oprimi-lo, matá-lo de tédio? Suponho que você não pensa que um gigolô é desumano. Um gigolô tem também seu sofrimento e miséria privadas, não se esqueça disso. Talvez ele não achasse nada melhor do que ficar em pé na esquina a noite inteira com um par de cães brancos e observá-los mijar. Talvez lhe agradasse, ao abrir a porta, vê-la lendo o Paris-Soir, com os olhos já um pouco pesados de sono. Talvez não seja tão maravilhoso, quando se inclina sobre sua Lucienne, sentir o gosto do hálito de outro homem.
Talvez ter apenas três francos no bolso e um par de cães brancos que mijam na esquina fosse melhor do que sentir o gosto daqueles lábios machucados. Quando ela o aperta bem, quando lhe implora aquele pouquinho de amor que só ele sabe dar, aposto que ele luta como mil demônios para fazê-lo levantar, para apagar aquele regimento que marchou entre as pernas dela. Quando toma o corpo dela e pratica uma nova toada, talvez nem tudo nele seja paixão e curiosidade, mas uma luta no escuro, uma luta singular contra o exército que rompeu os portões, o exército que caminhou sobre ela, pisou-a e deixou-a com uma fome tão devoradora que nem mesmo um Rodolfo Valentino poderia satisfazê-la. Quando ouço os reproches erguidos contra uma moça como Lucienne, quando a ouço denegrida e desprezada por ser fria e mercenária, por ser muito mecânica, por ter muita pressa ou por isto ou aquilo, digo comigo mesmo: vamos parar por aí, velho, não vamos tão depressa! Lembre-se de que você está bem no fim da procissão; lembre-se de que todo um corpo de exército lhe deu cerco, de que ela foi devastada, saqueada, pilhada. Digo comigo mesmo: escute, velho, não chore os cinqüenta francos que lhe deu, por saber que seu gigolô os está desperdiçando no Faubourg Montmartre. O dinheiro é dela e o gigolô é dela. É dinheiro de sangue. Dinheiro que nunca será tirado da circulação porque não existe no Banque de France nada que possa resgatá-lo.
É assim que penso muitas vezes quando estou sentado em meu pequeno nicho, embrulhando as notícias da Havas ou deslindando os cabogramas de Chicago, Londres e Montreal.
Entre os mercados da borracha e da seda e os cereais de Winnipeg ressumbra um pouco do borbulhar e do chiado do Faubourg Montmartre. Quando as debêntures ficam fracas e instáveis, as preferenciais caem e as obrigações vacilam, quando o mercado de cereais entra em baixa e os altistas começam a rugir, quando toda fodida calamidade, todo anúncio, toda nota de esporte e todo artigo de moda, toda chegada de navio, toda reportagem de viagem, todo mexerico foram pontuados, conferidos, revisados, prendidos e enfiados nos braceletes de prata, quando vejo a primeira página sendo arrumada a marteladas e vejo as rãs dançando em volta como pasquineiros bêbedos, penso em Lucienne descendo o boulevard com suas asas estendidas, um enorme condor prateado suspenso sobre a preguiçosa maré do tráfego, um pássaro estranho dos picos dos Andes, de barriga rosa e branca e cabecinha obstinada. Às vezes volto a pé para casa sozinho e sigo-a através das ruas escuras, sigo-a através do pátio do Louvre, ao longo da Pont dês Arts, através da arcada, através das fendas e das brechas, sonolência, brancura narcotizada, grade do Luxembourg, galhos entrelaçados, roncos e gemidos, persianas verdes, marteladas e tinidos, pontas das estrelas, lantejoulas, beirais, toldos listrados de azul e branco que ela raspou com as pontas das asas.
No azul de uma alvorada elétrica as cascas de amendoim parecem descoradas e amassadas; ao longo da praia em Montparnasse os nenúfares curvam-se e quebram-se. Quando a maré está baixa e só umas raras sereias sifilíticas restam perdidas na lama, o Dome parece uma galeria de tiro ao alvo atingida por um ciclone. Tudo vai escorrendo vagarosamente de volta para o esgoto. Por cerca de meia hora há uma calma mortal durante a qual se lava o vômito. De repente as árvores começam a gritar. De uma ponta à outra do boulevard ergue-se uma canção demente. É como o sinal que anuncia o encerramento da Bolsa. As esperanças que restavam foram varridas. Chegou o momento de esvaziar o último balde de urina. O dia está chegando furtivamente, como um leproso.
Uma das coisas que você precisa evitar quando trabalha à noite é fugir ao seu método; se não vai para a cama antes que os pássaros comecem a gritar, é absolutamente inútil ir para a cama. Esta manhã, nada tendo a fazer de melhor, visitei o Jardin dês Plantes. Há ali maravilhosos pelicanos de Chapultepec e pavões de leques tachonados que fitam olhos estúpidos na gente. De repente começou a chover.
Voltando a Montparnasse no ônibus notei à minha frente uma mulherzinha francesa que se sentava muito rija e ereta, dando a impressão de estar-se preparando para alisar suas plumas. Sentava-se na beirada do banco como se tivesse medo de amassar seu deslumbrante rabo.
Maravilhoso, pensei, se de repente ela se sacudisse e de seu derrière saltasse aberto um enorme leque tachonado com longas plumas sedosas.
No Café de l'Avenue, onde me detenho para comer alguma coisa, uma mulher de barriga inchada procura interessar-me por seu estado. Gostaria que eu fosse a um quarto com ela e passasse uma ou duas horas. É a primeira vez que uma mulher grávida me faz uma proposta: estou quase tentado a experimentar. Logo que o bebê nascer e for entregue às autoridades, voltará a seu ofício, diz ela. Confecciona chapéus. Observando que meu interesse vai desaparecendo toma-me a mão e coloca-a sobre seu abdôme. Sinto algo mexendo dentro. Isso me tira o apetite.
Nunca vi um lugar como Paris para variedades de alimento sexual. Assim que a mulher perde um dente da frente, um olho ou uma perna, cai na farra. Na América, morreria de fome se não tivesse outra coisa a recomendá-la além de uma mutilação. Aqui é diferente. A falta de um dente, um nariz comido ou um útero caído, qualquer infortúnio que agrave a feiúra natural da fêmea, parece ser considerado como condimento, um estimulante para o esgotado apetite do macho.
Estou falando naturalmente daquele mundo peculiar às grandes cidades, o mundo dos homens e mulheres cuja última gota de suco foi espremida pela máquina - os mártires do progresso moderno. É nessa massa de ossos e botões de colarinho que o pintor acha tão difícil colocar carne.
É somente mais tarde, durante o dia, quando me encontro numa galeria de arte na Rue de Sèze, cercado pelos homens e mulheres de Matisse, que sou novamente arrastado de volta para os limites apropriados do mundo humano. No limiar daquele grande salão cujas paredes estão agora em chamas, paro por um momento para recuperar-me do choque que se experimenta quando o habitual cinzento do mundo é rasgado e a cor da vida salta para a frente em canto e poema.
Encontro-me em um mundo tão natural, tão completo, que fico perdido. Tenho a sensação de estar mergulhado no próprio plexo da vida, no ponto focal seja qual for o lugar, posição ou atitude em que me coloque. Perdido como quando me afundei no centro de um bosque em formação e, sentado na sala de jantar daquele enorme mundo de Balbec, compreendi pela primeira vez a profunda significação daquelas quietudes interiores que manifestam sua presença através do exorcismo da vista e do tato. Em pé no limiar do mundo que Matisse criou, voltei a experimentar a força da revelação que permitiu a Proust deformar tanto o quadro da vida, que somente aqueles que, como ele próprio, são sensíveis à alquimia do som e do sentido, são capazes de transformar a realidade negativa da vida nos contornos substanciais e significativos da arte. Só os que são capazes de admitir a luz em suas entranhas podem traduzir o que há no coração. Vividamente recordo agora como o brilho e o clarão da luz, partindo dos maciços candelabros, estilhaçaram-se e correram como sangue, manchando a crista das ondas que batem monòtonamente sobre o ouro baço fora das janelas. Na praia, mastros e chaminés entrelaçados e como sombra fuliginosa, a figura de Albertine deslizando através da arrebentação, fundindo-se no misterioso centro e prisma de um reino protoplásmico, unindo sua sombra ao sonho, mensageiro da morte. com o cair do dia, a dor ergue-se da terra como um nevoeiro, a tristeza apertando, tapando a vista sem fim do mar e do céu. Duas mãos de cera pousadas lânguidamente sobre a colcha e, ao longo das veias pálidas, o murmúrio suave de uma concha a repetir a lenda de seu nascimento.
Em todo poema de Matisse há a história de uma partícula de carne humana que rejeitou a consumação da morte. Toda a extensão de carne, dos cabelos às unhas, expressa o milagre da respiração, como se o olho interior, em sua sede de maior realidade, tivesse transformado os poros da carne em famintas bocas videntes. Por qualquer visão que se passe há o cheiro e o barulho de viagem. É impossível fitar mesmo um canto de seus sonhos sem sentir a elevação da onda e o frio dos borrifos no ar.
Ele se mantém no leme perscrutando com firmes olhos azuis a pasta do tempo. Em que cantos distantes não lançou seu longo e enviezado olhar? Olhando do vasto promontório do seu nariz para baixo, contemplou tudo - as Cordilheiras caindo no Pacífico, a história da diáspora escrita em papel velino, venezianas estriando o frufru da praia, o piano curvando-se como uma concha, corolas emitindo diapasões de luz, camaleões serpeando embaixo da prensa de livros, serralhos extinguindo-se em oceanos de poeira, música saindo como fogo da cromosfera oculta da dor, espórios e madréporas frutificando a terra, umbigos vomitando sua brilhante semente de angústia... Ele é um sábio brilhante, um vidente dançarino que, com um golpe do pincel, remove o feio patíbulo a que o corpo do homem está acorrentado pelos fatos incontroversos da vida. É ele quem, se algum homem hoje possui esse dom, sabe onde dissolver a figura humana, tem a coragem de sacrificar a linha harmoniosa a fim de captar o ritmo e o murmúrio do sangue, toma a luz que se refratou em seu interior, e deixa-a inundar o teclado de cor.
Por trás das minúcias, do caos, da irrisão da vida ele percebe o padrão invisível; anuncia suas descobertas no pigmento metafísico do espaço. Nenhuma procura de fórmulas, nenhuma crucifixão de idéias, nenhuma compulsão a não ser a de criar. Mesmo quando o mundo se desmorona existe um homem que permanece no centro, que se torna mais sòlidamente fixado e ancorado, mais centrífugo à medida que se acelera o processo de dissolução.
Cada vez mais o mundo se assemelha a um sonho de entomologista. A terra está-se movendo para fora de sua órbita; o eixo desviou-se; do norte a neve sopra para baixo em enormes massas azuladas. Nova idade do gelo está-se firmando, as suturas transversais estão-se fechando e em toda parte, no cinturão do milho, o mundo fetal está morrendo, transformando-se em mastóide morto. Centímetro a centímetro os deltas estão secando e os leitos dos rios estão lisos como vidro. Novo dia vai nascendo, um dia metalúrgico, no qual a terra tilintará com chuvas de minério amarelo brilhante. À medida que o termômetro cai, a forma do mundo fica borrada; osmose ainda existe, e aqui e acolá há articulação, mas na periferia as veias estão todas varicosas, na periferia as ondas de luz curvam-se e o sol sangra como um reto rompido.
No próprio centro dessa roda que se está desfazendo, fica Matisse. E ele continuará rolando até que tudo quanto entrou na feitura da roda se tenha desintegrado.
Já rolou sobre considerável porção do globo, sobre a Pérsia, a índia e a China, e como um ímã atraiu a si partículas microscópicas do Curdistão, Beluchistão, Timbuctu, Somalilândia, Angkor, Terra do Fogo. As odaliscas, cravejou-as com malaquita e jaspe, sua carne coberta por milhares de olhos, olhos perfumados mergulhados no esperma de baleias. Onde quer que uma brisa sopre há seios tão frios como geléia, pombos brancos vêm esvoaçar e fecundar-se nas veias azul-gêlo dos Himalaias.
O papel de parede com que os homens de ciência cobriram o mundo da realidade está caindo aos pedaços. O grande prostíbulo em que eles transformaram a vida não exige decoração; é essencial apenas que o esgoto funcione convenientemente. A beleza, aquela beleza felina que na América nos segura pelos testículos, está acabada. Para compreender a nova realidade é necessário primeiro desmantelar o esgoto, abrir os canos gangrenados de que se compõe o sistema gênito-urinário que fornece os excretes da arte.
O cheiro do dia é permanganato e formaldeído. O esgoto está entupido por embriões estrangulados.
O mundo de Matisse é ainda belo, à maneira antiquada de um quarto de dormir. Não há um mancal à vista, nem uma chapa de caldeira, nem um pistão, nem uma chave inglesa.
É o mesmo velho mundo que ia alegremente ao Bois nos dias pastorais do vinho e fornicação. Acho calmante e refrescante mover-me entre essas criaturas que vivem e respiram pelos poros, com fundo sólido e estável como a própria luz. Sinto-o pungentemente quando caminho ao longo do Boulevard de La Madeleine e as prostitutas roçagam ao meu lado, quando apenas olhar para elas já me faz tremer. É por que são exóticas ou bem nutridas? Não, é raro encontrar uma mulher bonita ao longo do Boulevard de La Madeleine. Mas em Matisse, na exploração de seu pincel, há a trêmula cintilação de um mundo que exige apenas a presença da fêmea para cristalizar as mais fugitivas aspirações. Encontrar uma mulher oferecendo-se diante de um mictório, onde se anunciam papéis de cigarro, rum, acróbatas, corridas de cavalos, onde a folhagem pesada das árvores rompe a massa pesada das paredes e telhados, é uma experiência que começa onde terminam as fronteiras do mundo conhecido. À noitinha, de vez em quando, caminhando ao longo das paredes do cemitério, topo com as odaliscas fantásticas de Matisse amarradas em árvores, ensopadas de seiva as cabeleiras emaranhadas. A alguns passos de distância, transportado pelos incalculáveis éons do tempo, jaz o fantasma prostrado de Baudelaire enfaixado como múmia. Nos cantos escuros de cafés há homens e mulheres de mãos dadas, os rins cobertos de espuma; perto está o garçom com o avental cheio de sous, esperando pacientemente o entreato a fim de cair sobre sua esposa e atacá-la. Mesmo quando o mundo cai aos pedaços, a Paris que pertence a Matisse estremece com brilhantes e ofegantes orgasmos, o próprio ar está cheio de esperma estagnado, as árvores emaranhadas como cabelos. Em seu eixo vacilante a roda gira firmemente monte abaixo; não há freios, nem rolamentos de esferas, nem pneumáticos-balão. A roda está-se desfazendo, mas a revolução permanece intacta...
INTEIRAMENTE DE SURPRESA CHEGA UM dia uma carta de Bóris, que eu não via há meses e meses. É um documento estranho, e não afirmo que tenha compreendido claramente todo ele. "O que aconteceu entre nós - pelo menos, no que se refere a mim - é que você me tocou, tocou minha vida, isto é, o ponto onde eu ainda estou vivo: minha morte. Pelo fluxo emocional eu passei por outra imersão. Vivi de novo, vivo. Não mais pela reminiscência, como faço com os outros, mas vivo."
É assim que começa. Nenhuma palavra de saudação, nem data, nem endereço. Escrita em rabiscos finos e pomposos sobre papel pautado arrancado de um caderno. "É por isso que, quer goste de mim ou não - bem no fundo penso que me odeia - você está muito próximo de mim. Por você sei como morri: vejo-me morrendo de novo: estou morrendo.
Isso é alguma coisa. Mais do que estar simplesmente morto. Talvez seja essa a razão pela qual tenho tanto medo de vê-lo: você talvez me tenha pregado uma peça e morrido. As coisas acontecem tão depressa hoje em dia."
Estou lendo-a, linha por linha, em pé ao lado das pedras. Parece-me maluco, todo este palavreado sobre vida e morte e coisas acontecendo tão depressa. Nada está acontecendo que eu possa ver, exceto as habituais calamidades na primeira página.
Ele tem vivido completamente afastado nos últimos seis meses, enterrado em um quartinho barato - provavelmente mantendo comunicação telepática com Cronstadt. Fala sobre a linha que recua, o setor evacuado e assim por diante, como se estivesse enterrado em uma trincheira e escrevendo relatório para o quartel-general. Provavelmente vestia sua sobrecasaca quando se sentou para escrever esta missiva e provavelmente esfregou as mãos algumas vezes como costumava fazer quando um pretendente aparecia para alugar o apartamento. "A razão pela qual eu queria que você se suicidasse..." começa de novo. Diante disso desando a rir. Ele costumava andar de um lado para outro com uma mão enfiada na aba traseira da sobrecasaca na Villa Borghese ou na casa de Cronstadt - onde quer que houvesse espaço de convés, por assim dizer - e soltar à vontade suas tolices sobre vida e morte. Nunca compreendi uma palavra disso, devo confessar, mas era um bom espetáculo e, sendo um Gentio, eu estava naturalmente interessado pelo que se passava no jardim zoológico de seu crânio. As vezes se deitava de comprido no sofá, esgotado pelo surto de idéias que irrompia através de seus miolos. Seus pés mal raspavam a estante de livros onde guardava seu Platão e Spinoza - ele não conseguia compreender por que não me interessavam.
Devo dizer que os fazia parecerem interessantes, embora eu não tivesse a menor idéia do que fosse tudo aquilo. Às vezes corria furtivamente os olhos por um volume, a fim de verificar essas idéias malucas que ele lhes imputava mas a relação era frágil, tênue. Ele tinha uma linguagem toda própria. Refiro-me a Bóris, quando estava sozinho comigo; mas quando eu ouvia Cronstadt parecia-me que Bóris lhe havia plagiado as maravilhosas idéias. Conversavam numa espécie de alta matemática, esses dois. Nada de carne e sangue jamais entrava naquilo; era sobrenatural, fantástico, vampirescamente abstrato. Quando entravam no negócio de morrer parecia um pouco mais concreto: afinal, um cutelo ou uma machadinha precisa ter um cabo. Eu apreciava imensamente essas sessões. Era a primeira vez em minha vida que a morte me parecia fascinante - todas aquelas mortes abstratas que envolviam uma espécie de agonia sem sangue. De vez em quando me cumprimentavam por estar vivo, mas de tal maneira que eu me sentia embaraçado. Faziam-me sentir que eu estava vivo no século XIX, como uma espécie de remanescente atávico, um fragmento romântico, um espiritual Pithecanthropus erectus. Bóris especialmente parecia sentir grande prazer em tocar-me: queria que eu estivesse vivo para que ele pudesse morrer à vontade. Poder-se-ia pensar que todos aqueles milhões de pessoas nas ruas nada mais fossem do que vacas mortas pela maneira como me olhavam e tocavam. Mas a carta... Estou-me esquecendo da carta...
"A razão pela qual eu queria que você se suicidasse aquela noite na casa de Cronstadt, quando Moldorf se tornou Deus, era que eu estava então muito próximo de você.
Talvez mais próximo do que jamais estarei. E estava com medo, terrivelmente com medo, de que um dia você se voltasse para mim, morresse em minhas mãos. E ficaria encalhada comigo minha idéia de você simplesmente, sem nada para sustentá-la. Nunca lhe perdoaria isso."
Talvez você possa imaginá-lo dizendo uma coisa como essa! Eu não vejo claro que idéia fazia de mim, ou pelo menos, é evidente que eu era apenas uma idéia pura, uma idéia que se mantinha viva sem alimento. Ele, Bóris, nunca deu muita importância ao problema alimentar. Tentava alimentar-me com idéias. Tudo era idéia. Mesmo assim, quando estava empenhado em alugar o apartamento, não se esquecia de pôr uma pia nova no banheiro. Seja como for, não queria que eu lhe morresse nas mãos. "Você precisa ser vida para mim até o fim", escreve. "Essa é a única maneira pela qual pode sustentar minha idéia de você. Por que você ficou, como vê, preso a algo tão vital para mim, a ponto de eu pensar que nunca me desembaraçarei de você. Nem quero isso. Quero que viva cada dia mais vitalmente, como estou morto. É por isso que, quando falo de você a outros, fico um pouco envergonhado. É difícil falar de si próprio tão intimamente".
Você imaginaria talvez que ele se sentia ansioso por ver-me ou que gostaria de saber como eu estava - mas, não, nem uma linha sobre o concreto ou o pessoal, exceto nessa linguagem de vivo-morto, nada além dessa pequena mensagem das trincheiras, dessa baforada de gás venenoso para anunciar a todo o mundo que a guerra ainda continuava.
Às vezes pergunto a mim mesmo por que só atraio indivíduos malucos, neurastênicos, neuróticos, psicopatas - e especialmente judeus. Deve haver em um sadio Gentio algo que excita a mente judaica, como quando ele vê pão preto azedo. Havia Moldorf, por exemplo, que se fizera Deus, de acordo com Bóris e Cronstadt. Positivamente me odiava, a viborazinha - no entanto não podia ficar longe de mim. Aparecia regularmente para receber sua pequena dose de insultos - era como um tônico para ele.
A princípio, é verdade, eu era indulgente com ele; afinal, estava-me pagando para ouvi-lo. E embora eu nunca demonstrasse muita simpatia, sabia ficar silencioso quando se achava em jogo uma refeição e um dinheirinho. Depois de algum tempo, porém, vendo que masoquista ele era, eu me permitia rir na sua cara de vez em quando; isso era como uma chicotada para ele, fazia a aflição e a agonia jorrarem para fora com renovado vigor. E talvez tudo houvesse corrido suavemente entre nós se ele não tivesse considerado seu dever proteger Tânia. Mas sendo Tânia uma judia, isso levantava uma questão moral. Ele desejava que me apegasse a Mademoiselle. Claude por quem, devo reconhecer, eu tinha genuína afeição. Chegava a dar-me dinheiro de vez em quando para dormir com ela. Até ter percebido que eu era um libertino sem esperança.
Menciono Tânia agora porque ela acaba de voltar da Rússia - havia poucos dias. Sylvester ficou lá para ver se arranjava um emprego. Abandonou completamente a literatura. Dedicou-se à nova Utopia. Tânia quer que eu volte para lá com ela, para a Criméia preferivelmente, e comece vida nova. Tomamos bela bebedeira outro dia no quarto de Carl, discutindo as possibilidades. Eu queria saber o que poderia fazer para ganhar a vida lá - se poderia ser revisor, por exemplo. Ela disse que não precisava preocupar-me com o que iria fazer - eles me arranjariam um emprego desde que eu fosse sério e sincero. Tentei parecer sério, mas apenas consegui parecer patético. Eles não querem ver caras tristes, na Rússia; querem que você seja alegre, entusiástico, sereno, otimista. Para mim pareceu muito semelhante à América. Não nasci com essa espécie de entusiasmo. Não lhe disse isso, naturalmente, mas secretamente estava rezando para que me deixassem em paz, a fim de voltar ao meu pequeno nicho e lá ficar até estourar a guerra. Toda essa conversa a respeito da Rússia perturba-me um pouco. Tânia ficou tão excitada que liquidamos quase meia dúzia de garrafas de vin ordinaire. Carl pulava como uma barata. Ele tem exatamente o suficiente de judeu para perder a cabeça por uma idéia como a Rússia. Nada o satisfaria senão casar-nos imediatamente.
"Anime-se!" diz ele. "Você nada tem a perder!"
E depois fingiu que precisava ir fazer alguma coisa a fim de oferecer-nos a oportunidade de uma brincadeira rápida. E embora Tânia bem que quisesse, aquele negócio da Rússia estava tão solidamente plantado em seu crânio que desperdiçou o intervalo mordendo minha orelha, o que me deixou um tanto irritado e encabulado. Seja como for, tínhamos de pensar em comer e ir até o jornal, por isso nos amontoamos em um táxi no Boulevard Edgar-Quinet, a pequena distância do cemitério, e partimos. Era uma bela hora para rodar através de Paris em um carro aberto, enquanto o vinho rolado em nossa barriga fazia aquilo parecer ainda mais adorável que de hábito. Carl estava sentado à nossa frente, no strapontin, rosto vermelho como uma beterraba. Estava feliz, o pobre bastardo, pensando que nova e gloriosa vida ia levar do outro lado da Europa. E ao mesmo tempo sentia-se também um pouco triste eu podia perceber isso. Tanto quanto eu, ele não queria realmente deixar Paris. Paris não tinha sido boa para ele, não mais do que para mim ou para qualquer outro, nesse sentido, mas quando você sofreu e suportou as coisas aqui, é então que Paris toma conta de você, agarra-o pelos testículos, pode-se dizer, como uma cadela apaixonada que prefere morrer a deixá-lo fugir de suas mãos. Era assim que lhe parecia, eu podia percebê-lo. Rodando sobre o Sena ele tinha um grande e estúpido sorriso no rosto e olhava em volta para os edifícios e as estátuas como se os estivesse vendo em um sonho. Para mim também era como um sonho; eu tinha a mão sobre o peito de Tânia, apertava-lhe os seios com toda a força, observava a água sob a ponte, as barcas e Notre Dame lá embaixo, exatamente como mostram os cartões-postais, e ia pensando embriagadamente que é assim que a gente se fode, mas eu era também ardiloso quanto a isso e sabia que jamais trocaria todo este turbilhão em minha cabeça pela Rússia, pelo céu ou por qualquer coisa na terra. Era uma bela tarde, pensava comigo mesmo, e logo estaríamos empurrando alguma comida para a barriga - que poderíamos pedir como petisco especial? - e algum bom vinho que lavasse todo esse negócio de Rússia. Mulheres como Tânia, cheias de seiva e tudo o mais, não dão a menor importância ao que acontece com você depois de terem posto uma idéia na cabeça. Deixe-as ir longe demais e elas lhe tirarão as calças mesmo no táxi. Era esplêndido, porém, rodar através do tráfego, com nossos rostos todo manchados de rouge e o vinho gorgulhando como um bueiro dentro de nós, especialmente quando entramos na Rue Laffitte, que tem a largura exatamente suficiente para enquadrar o pequeno templo na ponta da rua e, sobre ele, o Sacré-Coeur, uma espécie de mixórdia exótica de arquitetura, uma lúcida idéia francesa que penetra diretamente através de sua bebedeira e faz você nadar desamparadamente no passado, em um sonho fluido que deixa você plenamente desperto mas apesar disso não fere seus nervos com Tânia de volta à cena, um emprego firme, a conversa bêbeda sobre a Rússia, as caminhadas até em casa à noite, e Paris em pleno verão, a vida parece erguer um pouco mais a cabeça. Talvez por isso, uma carta como a que Bóris mandou parece-me absolutamente maluca. Quase todos os dias encontro-me com Tânia aí pelas cinco horas, para tomarmos um Porto, como diz ela. Deixo-a levar-me a lugares que nunca vira antes, bares elegantes ao redor dos Champs-Elysées, onde o som do jazz e vozes infantis cantando parecem penetrar diretamente através dos lambris de mogno. Mesmo quando se vai ao lavatório, essas notas suaves e moles perseguem a gente, entram flutuando no gabinete através dos ventiladores e tornam a vida toda um sabão mole e bolhas indecentes. E seja porque Sylvester está longe e ela agora se sente livre ou seja pelo que for, Tânia procura sem dúvida comportar-se como um anjo. "Você me tratou miseravelmente pouco antes de eu ir-me embora", diz-me ela um dia. "Por que agiu daquele jeito? Nunca fiz nada para feri-lo, fiz?" Estávamos ficando sentimentais, com as luzes suaves e aquela música cremosa de mogno que impregnava todo o lugar. Já era quase hora de eu ir trabalhar e ainda não tínhamos comido. As notas de despesa estavam diante de nós - seis francos, quatro e cinqüenta, sete francos, dois e cinqüenta - e eu as contava mecanicamente, imaginando ao mesmo tempo se não gostaria mais de ser um garçom de bar.
Muitas vezes assim, quando ela estava falando comigo, discursando sobre a Rússia, o futuro, o amor e toda essa baboseira, eu ficava pensando nas coisas mais irrelevantes, em engraxar sapatos ou ser atendente de lavatório, particularmente, suponho, porque eram tão confortáveis aqueles lugares para onde ela me arrastava, que nunca me ocorria a possibilidade de ficar perfeitamente sóbrio e talvez velho e curvado... não, eu imaginava sempre que o futuro, por mais modesto que fosse, seria exatamente nessa espécie de ambiente, com as mesmas melodias soando em minha cabeça, os copos tilintando e atrás de toda bunda bem torneada uma esteira de perfume de um metro de largura que tiraria o mau cheiro da vida, mesmo lá embaixo no lavabo.
O estranho é que trotar assim com ela pelos bares elegantes nunca me acostumava mal. Era duro deixá-la, sem dúvida. Costumava levá-la até o pórtico de uma igreja perto do jornal e em pé lá no escuro dávamos o último abraço, sussurrando-me ela: "Jesus, que vou fazer agora?" Queria que deixasse o emprego para podermos amar dia e noite; não se importava mais sequer com a Rússia, desde que estivéssemos juntos. Mas no momento em que eu a deixava, minha cabeça clareava. Era outra espécie de música, não tão melodiosa, mas boa assim mesmo, que saudava minhas orelhas quando eu entrava pela porta de vaivém. E outra espécie de perfume, não com um metro apenas de largura, mas onipresente, uma espécie de suor e patchuli que parecia vir das máquinas. Entrando de cara cheia, como eu geralmente fazia, era o mesmo que cair de repente para baixa altitude. Em geral eu ia diretamente para a privada - o que me revigorava bastante. Era um pouco mais fresco lá ou assim parecia por causa do som da água correndo.
Era sempre uma ducha fria, a privada. Era real. Antes de entrar tinha-se de passar por uma fileira de franceses que se despiam. Ufa! como fediam, aqueles diabos!
E eram ainda bem pagos para isso. Mas eles estavam lá, despidos, alguns com ceroulas compridas, outros com barbas, a maioria ratos pálidos e magricelas com chumbo nas veias. Dentro da privada a gente podia fazer um inventário dos pensamentos ociosos deles. As paredes estavam cobertas de desenhos e epítetos, todos jocosamente obscenos, fáceis de compreender e em geral muito alegres e simpáticos. Precisar-se-ia de escada para atingir certos lugares, mas acho que valeria a pena fazer isso, embora para olhá-los só do ponto de vista psicológico. Às vezes, enquanto estava lá em pé dando uma mijada, eu ficava imaginando que impressão isso daria àquelas elegantes damas que observava entrar e sair dos belos lavatórios nos Champs-Elysées. Imaginava se elas ergueriam tanto seus rabos se pudessem ver o que se pensava de uma bunda ali. Em seu mundo, sem dúvida, tudo era gaze e veludo - ou elas nos faziam pensar assim com os belos odores que desprendiam, ao passar zunindo ao nosso lado. Algumas também nem sempre haviam sido damas tão finas; umas zuniam para baixo e para cima daquele jeito apenas para anunciar seu negócio. E talvez, quando estivessem sozinhas consigo mesmas, quando falassem em voz alta na intimidade de seus boudoirs, talvez algumas coisas estranhas caíssem de suas bocas também; porque naquele mundo, exatamente como em qualquer mundo, a maior parte do que acontece é apenas lama e sujeira, sórdidas como pode ser qualquer lixo, só que elas tinham a sorte de poder colocar tampas sobre a lata.
Como disse, aquela vida vespertina com Tânia nunca tinha efeitos maus sobre mim. De vez em quando eu enchia a cara demais e tinha de enfiar o dedo na garganta - porque é difícil ler provas quando a gente absolutamente não está com a atenção no serviço. Exige mais concentração perceber uma vírgula que está faltando do que resumir toda a filosofia de Nietzsche. Você pode ser brilhante às vezes, quando está bêbedo, mas o brilho fica fora de lugar na revisão. Datas, frações, pontos e vírgulas - essas são as coisas que importam. E são as mais difíceis de apanhar quando se tem a mente toda em chamas. De vez em quando eu cometia alguns erros graves e, se não fosse ter aprendido a lamber a bunda do chefe, teria sido despedido, sem dúvida nenhuma. Cheguei mesmo certo dia a receber uma carta do grande figurão lá de cima, um cara com quem nunca sequer me encontrei, tão alto ele estava, e entre algumas frases sarcásticas sobre minha inteligência mais que ordinária, ele insinuava bem claramente que eu faria melhor em pôr-me no meu lugar e obedecer as ordens, ou iria ver uma coisa. Francamente, aquilo me fez cagar de medo. Depois disso nunca mais usei uma palavra polissilábica em conversa; de fato, mal abria a boca a noite inteira. Agia como o idiota de alta categoria, que é o que eles querem de nós. De vez em quando, assim para adular o chefe, ia até ele e perguntava-lhe delicadamente o que significava esta ou aquela palavra. Ele gostava disso. Era uma espécie de dicionário e horário, aquele cara. Por mais cerveja que engolisse durante o período de descanso - tirava seus descansos particulares também, uma vez que estava dirigindo o espetáculo - jamais conseguíamos surpreendê-lo em erro quanto a uma data ou uma definição. Nascera para o cargo. Meu único pesar era saber demais. Deixava transparecer isso de vez em quando, apesar de todas as precauções que tomava. Se por acaso chegava ao serviço com um livro embaixo do braço esse nosso chefe notava-o e, se fosse um bom livro, ficava furioso.
Mas nunca fiz coisa alguma intencionalmente para desagradá-lo; gostava tanto do emprego que não iria pôr um laço no meu próprio pescoço. Ainda assim é difícil falar com um homem quando você nada tem em comum com ele; você se trai, ainda que use apenas monossílabos. Ele sabia muito bem, o chefe, que eu não tomava o mínimo interesse pelas suas proezas; e apesar disso, explique-o como quiser, dava-lhe prazer arrancar-me dos meus sonhos e encher-me com datas e acontecimentos históricos. Era sua maneira de vingar-se, suponho.
O resultado foi que adquiri um pouco de neurose. Logo que saía para o ar livre, tornava-me extravagante. Fosse qual fosse o assunto da conversa, quando voltávamosa Montparnasse de madrugada, eu logo virava contra ele a mangueira de bombeiro e o apagava, a fim de soltar meus sonhos pervertidos. Gostava mais de falar sobre aquelas coisas a cujo respeito nenhum de nós sabia nada. Eu cultivava uma espécie branda de insanidade, ecolalia, acho que é o nome. Todas as miuçalhas de uma noite de leitura de provas dançavam-me na ponta da língua. Dalmácia - eu lera a prova de um anúncio sobre essa bela e rica estância. Muito bem, Dalmácia. Você toma um trem e de manhã seus poros estão transpirando e as uvas estourando em suas cascas. Eu podia discorrer sobre Dalmácia desde o grand bmilevard até o palácio do Cardinal Mazarin, ou ainda mais, se quisesse. Nem mesmo sei onde isso fica no mapa e nunca vou querer saber, mas às três da madrugada com todo aquele chumbo nas veias e as roupas saturadas de suor e patchuli, o tilintar dos braceletes passando pelo secador e todas aquelas histórias cheirando a cerveja que me animavam, pequenas coisas como geografia, costume, língua, arquitetura nada significam. A Dalmácia pertence a certa hora da noite quando aquelas campainhas estridentes silenciam e o pátio do Louvre parece tão maravilhosamente ridículo que se sente vontade de chorar sem razão nenhuma, apenas porque é tão belamente silencioso, tão vazio, tão totalmente diferente da primeira página e dos caras lá em cima jogando dados com aquela pequena peça de Dalmácia pousando sobre meus nervos latejantes como a lâmina fria de uma faca, eu podia experimentar as mais maravilhosas sensações de viagem. E o engraçado é que podia viajar à volta do globo inteiro, mas a América nunca entrava em minha mente; estava mais perdida ainda do que um continente perdido, porque com os continentes perdidos sinto certa ligação misteriosa, ao passo que com a América nada sinto, absolutamente nada. De vez em quando, é verdade, penso em Mona, não como uma pessoa em uma aura definida de tempo e espaço, mas separadamente, destacada, como se ela tivesse crescido numa grande forma semelhante a nuvem que apagasse o passado. Eu não podia deixar-me pensar muito tempo a seu respeito; se o fizesse teria saltado da ponte. É estranho. Reconciliara-me tanto com esta vida sem ela e, ainda assim, pensar nela apenas um minuto era o suficiente para perfurar o osso e a medula de meu contentamento e jogar-me de volta na agonizante sarjeta de meu miserável passado.
Durante sete anos andei, dia e noite, só com uma coisa na mente: ela. Se houvesse um cristão tão fiel a seu Deus quanto eu a ela, nós todos hoje seríamos Jesus Cristos. Dia e noite pensava nela, mesmo quando a estava enganando. E agora às vezes, bem no meio das coisas, quando sinto que estou absolutamente livre disso tudo, de repente, ao virar uma esquina talvez, surge uma pequena praça, algumas árvores e um banco, um lugar deserto onde ficamos em pé e discutimos, onde nos deixamos mutuamente loucos com ferozes cenas de ciúmes. Sempre algum lugar deserto, como a Place de l'Estrapade, por exemplo, ou aquelas ruas sujas e lúgubres perto da Mesquita ou ao longo daquele túmulo aberto que é a Avenue de Breteuil, a qual às dez horas da manhã é tão silenciosa, tão morta, que faz a gente pensar em homicídio e suicídio, qualquer coisa que possa criar um vestígio de drama humano. Quando percebo que ela partiu, talvez para sempre, um grande vazio se abre e sinto que estou caindo, caindo, caindo no espaço profundo e negro. E isto é pior do que lágrimas, mais profundo que o pesar, a dor ou a tristeza; é o abismo em que lançaram Satã. Não há meio de subir de volta, não há raio de luz, nem som de voz humana ou toque de mão humana.
Quantas mil vezes, caminhando pelas ruas à noite, perguntei a mim mesmo se não voltaria jamais o dia em que ela estivesse ao meu lado: todos aqueles olhares ansiosos que lancei aos edifícios e estátuas... olhava para eles tão esfomeadamente, tão desesperadamente, que agora meus pensamentos devem ter-se tornado parte dos próprios edifícios e estátuas, que devem estar saturados pela minha angústia. Eu não podia também deixar de refletir que quando caminhávamos lado a lado por essas ruas lúgubres e sujas, agora tão penetradas por meu sonho e minha saudade, ela não observara nada, não sentira nada: eram como quaisquer outras ruas para ela, um pouco mais sórdidas talvez, mais nada. Ela não se lembraria de que em certa esquina parei para apanhar o seu grampo de cabelo ou que, quando me abaixei para amarrar os cordões de seus sapatos, observei o lugar em que seu pé havia pousado, e que aquilo ali ficaria eternamente, mesmo após as catedrais terem sido demolidas e toda a civilização latina ter sido arrasada para sempre.
Descendo a Rue Lhomond certa noite, num acesso de extraordinária angústia e desolação, algumas coisas se me revelaram com pungente clareza. Não sei se foi por eu ter tantas vezes caminhado por essa rua em amargura e desespero, ou a lembrança de uma frase que ela disse uma noite, quando estávamos na Place Lucien Herr. "Porque não me mostra aquela Paris", disse ela, "sobre a qual você escreveu?" Uma coisa eu sei, que à lembrança daquelas palavras percebi de repente a impossibilidade de revelar-lhe a Paris que eu chegara a conhecer, a Paris cujos arrondissements são indefinidos, uma Paris que nunca existiu a não ser em virtude de minha solidão, de minha fome por ela. Uma Paris tão vasta! Demoraria uma vida inteira para explorá-la de novo. Esta Paris, cuja chave só eu possuo, não se presta bem a uma excursão, mesmo com a melhor das intenções; é uma Paris que tem de ser vivida, que tem de ser experimentada cada dia em mil formas diferentes de tortura, uma Paris que cresce dentro da gente como um câncer, e cresce e cresce até nos devorar.
Cambaleando Rue Mouffetard abaixo, agitado o cérebro por essas reflexões, recordei outro estranho trecho do passado, saído daquele guia cujas folhas ela me pedira que virasse mas que, por serem tão pesadas as capas, achei impossível abrir. Absolutamente sem razão alguma - pois naquele momento meus pensamentos estavam ocupados com Salavin cujos sagrados domínios eu percorria então ao acaso - absolutamente sem razão alguma, como disse, veio-me à mente a recordação de um dia em que, inspirado pela placa diante da qual passava dia após dia, impulsivamente entrei na Pension Orfila e pedi para ver o quarto que Strindberg havia ocupado. Até aquela ocasião nada de muito terrível me acontecera, embora já tivesse perdido todos os meus bens mundanos e conhecido o que é andar pelas ruas com fome e com medo da polícia.
Até então eu não havia encontrado um único amigo em Paris, circunstância que não era tão deprimente quanto desnorteante, pois onde quer que eu tenha andado por este mundo, a coisa mais fácil de descobrir sempre foi um amigo. Mas na realidade nada de muito terrível me acontecera ainda. A gente pode viver sem amigos, como sem amor ou mesmo sem dinheiro, aquele suposto sine qua non. A gente pode viver em Paris - isso descobri! - apenas de dor e angústia. Um alimento amargo - talvez o melhor que existe para certas pessoas. Seja como for, eu não tinha ainda chegado ao fim da minha corda. Estava apenas flertando com o desastre. Tinha tempo e sentimento de sobra para espiar as vidas de outras pessoas, para distrair-me com a matéria morta de romance que, por mais mórbida que seja, quando está embrulhada entre as capas de um livro, parece deliciosamente remota e anônima. Quando saía daquele lugar, tive consciência de um irônico sorriso pairando sobre meus lábios, como se estivesse dizendo comigo mesmo: "Ainda não, a Pension Orfila!"
Desde então, naturalmente, aprendi o que todo louco em Paris descobre mais cedo ou mais tarde: que não há infernos já feitos para os atormentados.
Parece-me que compreendo um pouco melhor agora por que ela sentia tão enorme prazer em ler Strindberg. Posso vê-la erguendo os olhos de seu livro depois de ler uma passagem deliciosa e, o riso fazendo correr-lhe lágrimas dos olhos, dizer-me: "Você é tão louco quanto ele... você deseja ser castigado!" Que delícia deve ser para a sádica quando ela descobre o seu próprio masoquista! Quando ela morde a si própria, por assim dizer, a fim de experimentar o gume de seus dentes. Naqueles dias, quando a conheci, ela estava saturada de Strindberg. Aquele selvagem carnaval de vermes em que ele se regalava, aquele eterno duelo dos sexos, aquela aranhosa ferocidade que o tornava querido dos pálidos idiotas das terras do norte, foi isso que nos aproximou. Juntamo-nos numa dança de morte, e tão rapidamente fui sugado para o vórtex que, quando voltei à superfície, não pude reconhecer o mundo. Quando me vi solto, a música havia cessado; o carnaval terminara e eu estava liquidado.
Depois de deixar a Pension Orfila naquela tarde fui à biblioteca e lá, após banhar-me no Ganges e meditar sobre os signos do zodíaco, comecei a refletir na significação do inferno que Strindberg retratara tão impiedosamente. E, enquanto ruminava, começou a tornar-se claro para mim o mistério de sua peregrinação, o vôo que o poeta faz sobre a face da terra e depois, como se tivesse recebido ordem para representar de novo um drama perdido, a descida heróica às próprias entranhas da terra, a escura e medonha estada no ventre da baleia, a sangrenta luta para libertar-se e emergir limpo do passado, brilhante e ensangüentado deus-sol lançado em praia estranha.
Não era mais mistério para mim por que ele e outros (Dante, Rabelais, Van Gogh etc., etc.) haviam feito sua peregrinação a Paris. Compreendi então por que Paris atrai os torturados, os alucinados, os grandes maníacos do amor. compreendi porque aqui, no próprio eixo da roda, a gente pode abraçar as mais fantásticas, as mais impossíveis teorias, sem achá-las sequer estranhas; é aqui que a gente lê de novo os livros da mocidade e que os enigmas adquirem novas significações, uma para cada cabelo branco. Você caminha pelas ruas sabendo que está louco, possesso, porque é evidente demais que esses rostos frios e indiferentes são as fisionomias dos seus guardas. Aqui todas as fronteiras desaparecem e o mundo se revela como o louco matadouro que é. A tortura dos prisioneiros estende-se até o infinito, as comportas estão hermèticamente fechadas, a lógica corre desenfreadamente, brandindo seu sangrento cutelo. O ar é frio e estagnado, a linguagem apocalíptica. Nenhuma indicação de saída em parte alguma; nenhuma saída senão a morte. Um beco sem saída em cuja extremidade existe um patíbulo.
Uma cidade eterna, Paris! Mais eterna que Roma, mais esplendorosa que Nínive. O próprio umbigo do mundo para o qual, como um idiota cego e trôpego, a gente volta rastejando sobre as mãos e os joelhos. E como uma rolha finalmente arrastada para o próprio centro do oceano, a gente flutua sobre a escuma e os destroços dos mares, apática, desesperada, desatenta até mesmo à passagem de um Colombo. Os berços da civilização são as cloacas pútridas do mundo, os cemitérios aos quais úteros fétidos confiam seus pacotes sangrentos de carne e osso.
As ruas eram meu refúgio. E nenhum homem pode compreender o encanto das ruas até ser obrigado a procurar refúgio nelas, até ter-se tornado uma palha jogada para cá e para lá pelo próprio zéfiro que sopra. Passa-se ao longo de uma rua num dia invernoso e, vendo um cão à venda, fica-se comovido até às lágrimas. Enquanto do outro lado, alegre como um cemitério, ergue-se uma miserável cabana que se intitula "Hotel du Tombeau des Lapins". Isso faz a gente rir, rir quase até morrer. Até a gente notar que há hotéis por toda parte, para coelhos, cães, piolhos, imperadores, ministros de gabinete, agiotas, abatedores de cavalos e assim por diante. E quase um em cada dois se chama "Hotel de L'Avenir". O que deixa a gente ainda mais histérica. Tantos hotéis do futuro! Nada de hotéis no particípio passado, nada de modos subjuntivos, nada de conjuntivites. Tudo está esbranquiçado, grisalho, eriçado de alegria, inchado de futuro, como um abscesso. Embriagado com esse lúbrico eczema do futuro, cambaleio até a Place Violei, as cores todas malva e ardósia, as portas tão baixas que só anões e duendes poderiam entrar; sobre o crânio fosco de Zola as chaminés lançam puro coque, enquanto a Madona de Sanduíches ouve com orelhas de couve o borbulhar dos tanques de gás, aqueles belos sapos inchados que se acocoram à beira da estrada.
Por que me lembro de repente da Passage dês Thermopyles? Porque naquele dia uma mulher se dirigiu à sua cadelinha na linguagem apocalíptica do matadouro e a cadelinha compreendeu o que aquela untuosa e suja parteira lhe dizia. Como isso me deprimiu! Mais ainda do que a vista daqueles vira-latas lamurientos que eram vendidos na Rue Brancion, porque não eram os cães que me enchiam tanto de piedade, mas a enorme grade de ferro, aquelas hastes enferrujadas que pareciam ficar entre mim e minha vida legítima. Na agradável ruazinha perto do Abattoir de Vaugirard (Abattoir Hippophagique), que é chamada de Rue des Périchaux, notei aqui e acolá sinais de sangue. Assim como Strindberg em sua loucura reconhecera augúrios e presságios no próprio lajeado da Pension Orfila, enquanto eu caminhava sem rumo por aquela enlameada ruela salpicada de sangue, fragmentos do passado também se destacavam e flutuavam languidamente diante dos meus olhos, insultando-me com os mais horrendos presságios. Vi meu próprio sangue derramado, o lamacento caminho manchado por ele, até o passado mais distante de que pude lembrar-me, sem dúvida desde o próprio começo. A gente é lançada no mundo como uma pequena e suja múmia; as estradas estão lisas de sangue e ninguém sabe por que deve ser assim. Cada um percorre seu próprio caminho e, embora a terra esteja cheia de boas coisas, não há tempo para colher os frutos; a procissão amontoa-se em direção à saída e há tal pânico lá, tal luta para fugir, que os fracos e desamparados são pisados na lama e seus gritos não são ouvidos.
Meu mundo de seres humanos perecera; eu estava completamente sozinho no mundo e por amigos tinha as ruas, e as ruas falavam-me naquela linguagem amarga e triste composta de miséria humana, aspiração, remorso, fracasso, esforço desperdiçado. Caminhando sob o viaduto ao longo da Rue Broca, uma noite depois de ter sido informado de que Mona estava doente e passando fome, recordei de repente que fora ali na sordidez e tristeza desta rua afundada, aterrorizada talvez por uma premonição do futuro, que Mona se agarrara a mim e com voz trêmula me implorara que prometesse jamais abandoná-la, jamais, acontecesse o que acontecesse. E, apenas alguns dias depois, eu me encontrava em pé na Gare Saint Lazare e observava o trem partir, o trem que a levava para longe; ela estava debruçada na janela, exatamente como se debruçara na janela quando eu a deixara em Nova York, e havia em seu rosto aquele mesmo sorriso triste e inescrutável, aquele olhar de último minuto que se destina a transmitir tanta coisa, mas que é apenas máscara contorcida por vago sorriso. Apenas alguns dias antes ela se agarrara a mim desesperadamente e depois acontecera alguma coisa, alguma coisa que agora não é clara nem mesmo para mim, e ela por sua própria vontade tomara o trem e olhava-me de novo com aquele sorriso triste e enigmático que zomba de mim, que é injusto, inatural, de que eu desconfio com toda minha alma. E agora sou eu, em pé na sombra do viaduto, que me estendo em direção a ela, que me agarro a ela desesperadamente, e há em meus lábios aquele mesmo sorriso inexplicável, a máscara que eu abaixei sobre minha dor. Posso ficar aqui a sorrir vaziamente, e por mais fervorosas que sejam minhas preces, por mais desesperadora que seja minha saudade, há um oceano entre nós; lá ela ficará, passando fome, e aqui eu caminharei de uma rua para a seguinte, com as lágrimas quentes queimando meu rosto.
É essa espécie de crueldade que está encravada nas ruas; e é isso que olha das paredes e nos aterroriza quando de repente reagimos a um medo inominável, quando de repente nossas almas são invadidas por um pânico doentio. É isso que dá aos postes de iluminação suas contorções vampirescas, que faz com que eles nos chamem e nos atraiam para seu abraço estrangulador; é isso que faz certas casas parecerem as guardiães de crimes secretos e suas janelas escuras parecerem as órbitas vazias de olhos que viram demais. É essa espécie de coisa, escrita na fisionomia humana das ruas, que me faz fugir quando no alto vejo de repente escrito "Impasse Satan".
É isso que me faz tremer quando na própria entrada da Mesquita observo escrito: "Segundas e quintas-feiras, tuberculose; quartas e sextas-feiras, sífilis". Na própria estação do Metrô há crânios sorridentes que nos saúdam com "Défendez-vous contre Ia syphilis!" Onde quer que haja paredes, há cartazes com brilhantes e peçonhentos
caranguejos saudando a aproximação do câncer. Não importa onde se vá, não importa o que se toque, há câncer e sífilis. Está escrito no céu; flameja e dança, como mau presságio. Comeu nossas almas e nós nada somos senão uma coisa morta como a lua.
PENSO QUE FOI NO QUATRO DE Julho que me tiraram de novo a cadeira debaixo da bunda. Nenhuma palavra de aviso. Um dos grandes figurões do outro lado do mar decidira fazer economias; cortar revisores e pequenas e desamparadas datilógrafas permitia-lhe pagar as despesas de suas viagens de ida e volta e os aposentos palacianos que ocupava no Ritz. Depois de saldar as pequenas dívidas que acumulara entre os linotipistas e oferecer um símbolo de boa vontade ao bistrot da frente, a fim de preservar meu crédito, quase nada restou de meu pagamento final. Tive de comunicar ao patron do hotel que ia sair; não lhe disse por que, pois ele ficaria preocupado com seus miseráveis duzentos francos.
"Que fará você se perder o emprego?" Esta era a frase que soava em meus ouvidos continuamente. Ca y est maintenant! Ausgespielt! Nada a fazer senão descer de novo para a rua, caminhar, rodear, sentar-se em bancos, matar tempo. A essa altura, naturalmente, minha fisionomia era conhecida em Montparnasse; durante algum tempo poderia fingir que ainda estava trabalhando no jornal. Isso tornaria um pouco mais fácil cavar um desjejum ou um jantar. Era verão e os turistas chegavam em quantidade.
Eu tinha planos preparados para tomar-lhes dinheiro. "Que fará você?"
Bem, eu não morreria de fome, isso era certo. Se não fizesse outra coisa senão concentrar-me na comida, evitaria cair aos pedaços. Durante uma ou duas semanas ainda poderia ir ao Monsieur Paul e tomar uma refeição completa toda noite; ele não podia saber se eu estava ou não trabalhando. O principal é comer. Quanto ao resto, confiar na Providência!
Naturalmente, conservo os ouvidos abertos para tudo quanto possa soar como um pouco de dinheiro. E cultivei todo um novo círculo de relações - chatos que eu evitava diligentemente até agora, bêbedos que eu odiava, artistas que tinham um pouco de dinheiro, homens com prêmios Guggenheim etc. Não é difícil fazer amigos quando se fica sentado em um ferrasse doze horas por dia. Fica-se conhecendo todo bêbedo de Montparnasse. Eles se agarram a nós como chatos, ainda que só tenhamos a oferecer-lhes os ouvidos.
Agora que perdera meu emprego, Carl e Van Norden tinham uma nova frase para mim: "E se sua esposa chegasse agora?" Bem, e daí? Duas bocas para alimentar em lugar de uma. Eu teria uma companheira na miséria. E, se ela não tivesse perdido sua bela aparência, eu provavelmente conseguiria mais aos dois do que sozinho: o mundo nunca permite que uma mulher bonita passe fome. Quanto a Tânia, não podia confiar que fizesse muita coisa por mim; estava mandando dinheiro a Sylvester. Eu pensara a princípio que talvez me deixasse partilhar de seu quarto; mas tinha medo de comprometer-se; além disso, precisava ser boazinha com o patrão.
As primeiras pessoas a procurar quando se está muito ruim são os judeus. Tive três deles nas mãos quase imediatamente. Almas simpáticas. Um deles era um negociante de peles aposentado que ansiava por ter o nome nos jornais; propôs-me escrever uma série de artigos em seu nome para um diário judaico de Nova York. Tive de fazer exploração ao redor do Dome e do Coupole à procura de judeus proeminentes. O primeiro homem que apanhei era um célebre matemático; não sabia falar uma palavra de inglês. Eu tinha de escrever sobre a teoria do choque com base nos diagramas que ele deixava sobre os guardanapos de papel; tinha de descrever os movimentos dos corpos astrais e demolir as concepções einsteinianas ao mesmo tempo. Tudo por vinte e cinco francos. Quando vi meus artigos no jornal não consegui lê-los; mas pareceram-me impressionantes, apesar disso, especialmente com o pseudônimo do negociante de peles.
Escrevi muito sob pseudônimo durante esse período. Quando se abriu o novo e grande bordel no Boulevard Edgar-Quinet, consegui alguma coisa escrevendo os panfletos.
Quero dizer, uma garrafa de champanha e uma fornicada grátis em um dos quartos egípcios. Se conseguisse levar um cliente receberia minha comissão, exatamente como Kepi recebia as suas nos velhos tempos. Certa noite levei Van Norden; ele ia deixar-me ganhar um dinheirinho divertindo-se lá em cima. Mas quando a Madame soube que era jornalista não quis ouvir falar em receber dinheiro dele; foi também uma garrafa de champanha e uma foda grátis. Não recebi nada disso. com efeito, ainda tive de escrever-lhe a história, porque ele não conseguia imaginar como contornar o assunto sem mencionar que espécie de lugar era. Uma coisa depois de outra assim.
Eu estava mesmo fodendo-me.
O pior de todos os trabalhos foi uma tese que me comprometi a escrever para um psicólogo surdo e mudo. Um tratado sobre como cuidar de crianças aleijadas. Minha cabeça estava cheia de doenças e aparelhos, de teorias sobre bancas de trabalho e ar livre; levei cerca de seis semanas para acabar e depois, para liquidar o caso, tive de fazer a revisão do maldito negócio. Era em francês, um francês como nunca eu vira ou ouvira em minha vida. Mas rendeu-me um bom desjejum por dia, um desjejum americano, com suco de laranja, aveia, creme, café e, de vez em quando, ovos com presunto para variar. Foi o único período de meus dias em Paris no qual pude ter um desjejum decente, graças às crianças aleijadas de Rockaway Beach, do East Side e de todas as angras e enseadas que margeiam esses pontos chaguentos.
Depois um dia topei com um fotógrafo; estava fazendo uma coleção dos bordéis baratos de Paris para algum degenerado de Munique. Queria que eu posasse para ele com as calças abaixadas e em outras posições. Pensei naqueles anõezinhos magricelas, parecidos com "boys" e mensageiros, que a gente vê ocasionalmente em cartões-postais pornográficos nas vitrinas de lojinhas, os misteriosos fantasmas que habitam a Rue de Ia Lune e outras áreas malcheirosas da cidade. Não gostei muito da idéia de anunciar minha cara em companhia dessa elite. Mas, como me garantiram que as fotografias eram para uma coleção estritamente particular e destinadas a Munique, dei meu consentimento. Quando não estamos em nossa cidade podemos permitir-nos pequenas liberdades, particularmente por motivo tão digno como o de ganhar o pão cotidiano.
Afinal, pensando bem, eu não havia sido tão escrupuloso nem mesmo em Nova York.
Havia noite em que eu ficava tão infernalmente desesperado, lá em Nova York, que tinha de sair mendigando mesmo no meu próprio bairro.
Não íamos aos locais de diversões conhecidos pelos turistas, mas a pequenos estabelecimentos cuja atmosfera era mais agradável, onde podíamos jogar uma partida de cartas à tarde antes de iniciarmos o trabalho. Era um bom companheiro, o fotógrafo. Conhecia a cidade de alto a baixo, os muros particularmente. Falava-me com freqüência sobre Goethe, sobre os dias do Hohenstaufen e o massacre dos judeus durante o remado da Peste Negra. Assuntos interessantes e sempre relacionados de alguma maneira obscura com as coisas que ele estava fazendo. Tinha idéias para cenários, também, idéias espantosas, mas ninguém sentia coragem de executá-las. A vista de um cavalo aberto de par em par, como uma porta de bar, inspirava-o a falar de Dante, Leonardo da Vinci ou Rembrandt; do matadouro de Villette saltava em um carro e levava-me correndo ao Museu Trocadéro, a fim de mostrar o crânio de uma múmia que o fascinava. Exploramos inteiramente o 5.°, o 13.°, o 19.° e o 20.° arrondissements.
Nossos lugares de repouso favoritos eram àreazinhas lúgubres como Place Nationale, Place dês Peupliers, Place Contrescarpe, Place Paul-Verlaine. Muitos desses lugares já me eram familiares, mas agora eu os via todos sob luz diferente, dado o raro sabor de sua conversa. Se hoje eu descesse casualmente a Rue du Château-des-Rentiers, por exemplo, aspirando o cheiro fétido dos leitos de hospital que o 13.° anondissement exala, minhas narinas sem dúvida abrir-se-iam de prazer, porque, misturado com aquele cheiro de mijo velho e formaldeído, haveria os odores de nossas viagens imaginárias através do matadouro da Europa que a Peste Negra criara.
Por intermédio dele fiquei conhecendo um indivíduo de mentalidade espiritual chamado Kruger, que era escultor e pintor. Kruger gostou de mim por alguma razão; tornou-se impossível livrarme dele após haver descoberto que eu estava disposto a ouvir suas histórias "esotéricas". Há pessoas, neste mundo, para as quais a palavra "esotérica" parece atuar como licor divino. Como "estabelecido", para Herr Peeperkorn de "A Montanha Mágica". Kruger era um desses santos que se desencaminharam, um masoquista, um tipo anal cuja lei é o escrúpulo, a retidão e a consciência, mas que num mau dia faz um homem engolir os próprios dentes com um soco sem o menor escrúpulo. Parecia pensar que eu estava maduro para passar a outro plano, "um plano mais alto", como ele dizia,
Eu estava pronto a passar para qualquer plano que designasse, desde que não se comesse ou se bebesse menos. Enchia-me a cabeça com "o fio da alma", o "corpo causal", "a ablação", os Upanishads, Plotinus, Krishnamurti, "a vestidura cármica da alma", "a consciência nirvânica", todas essas baboseiras que sopram do Oriente como o hálito da peste. Às vezes entrava em transe e falava sobre suas encarnações anteriores, ou, pelo menos, como imaginava que haviam sido. Ou relatava seus sonhos que, até onde eu podia ver, eram absolutamente insípidos, prosaicos, mal merecendo a atenção de um freudiano, mas, para ele, ocultavam em suas profundezas vastas maravilhas esotéricas que eu tinha de ajudá-lo a decifrar. Ele se virará de dentro para fora, como um paletó cujo tecido está gasto.
Pouco a pouco, à medida que lhe conquistava a confiança, abri caminho até seu coração. Cheguei a tal ponto que ele vinha correndo atrás de mim, na rua, para perguntar se podia emprestar-me alguns francos. Queria conservar-me inteiro a fim de sobreviver à transição para um plano mais alto. Eu agia como uma pêra que amadurece na árvore. De vez em quando tinha recaídas e confessava minha necessidade de mais alimento terreno - uma visita ao Sphinx ou à Rue Saint Apoline, onde sabia que ele se restaurava nos momentos de fraqueza quando as exigências da carne se tornavam muito fortes.
Como pintor era nulo; como escultor, menos que nulo. Era um bom dono de casa, o que digo em seu favor. E econômico ao máximo. Nada era desperdiçado, nem mesmo o papel em que a carne vinha embrulhada. Nas sextas-feiras abria seu estúdio aos colegas artistas; havia sempre abundância de bebidas e bons sanduíches, e se por acaso restava alguma coisa, eu aparecia no dia seguinte para liquidar com ela.
Por trás do Bal Bullier havia outro estúdio que adquiri o hábito de freqüentar - o estúdio de Mark Swift. Se não era um gênio, sem dúvida era um excêntrico, esse cáustico irlandês. Tinha por modelo uma judia com a qual vivia havia anos; estava agora cansado dela e procurando um pretexto para livrar-se dela. Mas como havia comido o dote que ela trouxera inicialmente, sentia-se confuso quanto à maneira de desembaraçar-se sem fazer a restituição. A coisa mais simples era hostilizá-la tanto que ela preferisse a fome a suportar-lhe as crueldades.
Sua amante era uma pessoa muito fina; o pior que se poderia dizer contra ela é que perdera sua forma e sua capacidade de continuar a sustentá-lo. Era também pintora e, entre aqueles que proclamavam entender do assunto, dizia-se que tinha muito mais talento do que ele. Mas por mais miserável que ele tornasse sua vida, ela era justa; nunca permitia que alguém dissesse não ser ele um grande pintor. Por ser realmente um gênio, dizia, é que era um indivíduo tão ruim. Suas telas nunca eram vistas na parede - só as dele. Suas coisas ficavam escondidas na cozinha. Aconteceu uma vez, na minha presença, insistir alguém em ver os trabalhos dela. O resultado foi doloroso. "Está vendo esta figura?", disse Swift apontando com seu grande pé para um dos quadros dela. "O homem em pé ali na porta vai sair para dar uma mijada. Não conseguirá encontrar o caminho de volta porque sua cabeça está colocada errada... Agora veja este nu aqui... Estava muito bom até quando ela começou a pintar a boceta. Não sei o que estava pensando, mas fê-la tão grande que o pincel escorregou para dentro e ela não conseguiu mais tirá-lo."
Para mostrar-nos como devia ser um nu apanhou uma enorme tela que terminara pouco antes. Era um retrato dela, uma esplêndida obra de vingança inspirada por uma consciência culpada. O trabalho de um louco - perverso, mesquinho, maligno, brilhante. Tinha-se a impressão de que a havia espiado através do buraco da fechadura, que a havia surpreendido num mau momento, quando ela distraídamente cutucava o nariz ou coçava o traseiro. Ela estava sentada no sofá de crina, em um aposento sem ventilação, um aposento enorme sem uma única janela; poderia muito bem ter sido o lóbulo anterior da glândula pineal. Atrás dela corriam as escadas em ziguezague que levavam ao balcão; estavam cobertas com um tapete verde-bilioso, um verde como só poderia sair de um universo que se houvesse arrebentado. A coisa mais proeminente era a bunda dela, torta e cheia de feridas; ela parecia ter erguido ligeiramente o assento do sofá, como se fosse soltar um peido forte. O rosto, ele o idealizara: parecia suave e virginal, puro como uma pastilha contra tosse. Mas o peito estava distendido, inchado de gás de fossa; ela parecia nadar em um mar menstrual, um feto ampliado com a expressão estúpida e xaroposa de um anjo.
Apesar de tudo, a gente não podia deixar de gostar dele. Era um trabalhador incansável, um homem que não tinha na cachola um único pensamento que não fosse paraa pintura. E esperto como um lince. Foi ele quem me pôs na cabeça a idéia de cultivar a amizade de Fillmore, jovem do serviço diplomático que se introduzira no pequeno grupo que cercava Kruger e Swift. "Deixe ajudá-lo", disse-me. "Ele não sabe o que fazer com o seu dinheiro."
Quando alguém gasta o que tem consigo mesmo, quando alguém leva uma boa vida com seu dinheiro, tendem a dizer que "ele não sabe o que fazer com o dinheiro". Quanto a mim, não vejo melhor uso para o dinheiro. De tais indivíduos não se pode dizer que sejam generosos ou sovinas. Põem o dinheiro em circulação - isso é o principal. Fillmore sabia que seus dias na França eram limitados; estava decidido a aproveitá-los. E como a gente sempre se diverte melhor em companhia de um amigo, era muito natural que se voltasse para alguém como eu, que tinha muito tempo à sua disposição, a fim de obter a companhia de que precisava. Diziam que era chato, e era mesmo, penso eu, mas quando você tem necessidade de comida pode tolerar coisas piores do que ser chateado. Afinal, embora falasse incessantemente e em geral sobre si próprio ou sobre os escritores que admirava servilmente - pássaros como Anatole France e Joseph Conrad - ainda assim tornava minhas noites interessantes de outras maneiras. Gostava de dançar, gostava de bons vinhos e gostava de mulheres. Que gostasse também de Byron e de Vítor Hugo era coisa que se podia perdoar; saíra apenas alguns anos antes do colégio e tinha à sua frente muito tempo para curar-se desses gostos. O que me agradava nele era seu senso de aventura.
Ficamos mais conhecidos, mais íntimos, eu poderia dizer, por um incidente peculiar ocorrido durante minha breve estada na casa de Kruger. Aconteceu pouco depois da chegada de Collins, um marinheiro que Fillmore conhecera durante a viagem, quando viera da América. Nós três costumávamos reunir-nos regularmente no ferrasse do Rotonde antes de ir jantar. Era sempre Pernod, uma bebida que deixava Collins de bom humor e criava uma base, por assim dizer, para o vinho, a cerveja e as fines etc., que tinham de ser engolidos depois. Durante toda a permanência de Collins em Paris vivi como um duque; não havia outra coisa senão aves, vinhos de boas safras e sobremesas das quais eu nem sequer ouvira falar antes. Um mês nesse regime e eu seria obrigado a ir para Baden-Baden, Vichy ou Aix-les-Bains. Entrementes Kruger estava procurando espantar-me do estúdio. Eu ia ficando incômodo porque nunca chegava antes das três horas da madrugada e era difícil arrancar-me da cama antes do meio-dia. Abertamente Kruger nunca proferiu uma palavra de censura, mas suas maneiras indicavam bem claramente que eu estava sendo um filante.
Um dia fiquei doente. A rica dieta produzia efeito em mim. Não sei o que me fez mal, mas não pude levantar-me da cama. Perdera todo o ânimo e com ele toda a coragem que possuía. Kruger teve de cuidar de mim, de preparar-me caldos e assim por diante. Foi um período duro para ele, mais particularmente porque em vésperas de fazer uma exposição importante em seu estúdio, uma exibição privada para alguns connoisseurs ricos, dos quais esperava auxílio. O catre em que eu me deitava ficava no estúdio; não havia outro aposento onde pôr-me.
Na manhã do dia em que devia fazer a exposição, Kruger acordou completamente indisposto. Se eu houvesse podido ficar em pé, sei que me teria dado um soco no queixo e me chutado para fora. Mas eu estava prostrado e fraco como um gato. Tentou convencer-me a sair da cama, com a idéia de fechar-me na cozinha quando chegassem os visitantes. Percebi que estava atrapalhando a vida dele. As pessoas não podem olhar quadros e estátuas com entusiasmo quando há um homem morrendo diante de seus olhos. Kruger pensava sinceramente que eu estava morrendo. Eu também pensava. É por isso que, apesar de meu sentimento de culpa, não pude entusiasmar-me quando propôs chamar a ambulância e mandar-me para o American Hospital. Queria morrer ali, confortàvelmente, no estúdio mesmo; não queria ser obrigado a levantarme e procurar um lugar melhor para morrer. Não me importava onde morresse retalmente, desde que não fosse necessário levantar-me.
Quando me viu falar desse jeito Kruger ficou alarmado. Pior do que ter um homem doente em seu estúdio quando chegassem os visitantes, seria ter um homem morto. Isso lhe arruinaria completamente as perspectivas, já tão frágeis. Não me explicou as coisas assim, naturalmente, mas pude ver por sua agitação que era o que o preocupava.
E isso me fez ficar teimoso. Recusei permitir que chamasse o hospital. Recusei deixar que chamasse um médico. Recusei tudo.
Ficou tão bravo comigo, finalmente, que, apesar de meus protestos, começou a vestir-me. Eu estava tão fraco que não poderia resistir. Tudo quanto consegui fazer foi murmurar dèbilmente: "Seu bastardo!" Embora lá fora estivesse quente, eu tremia como um cão. Depois de ter-me vestido completamente, jogou um sobretudo sobremim e saiu para telefonar. "Não irei! Não irei!" continuava dizendo eu, mas ele simplesmente bateu-me a porta na cara. Voltou alguns minutos depois e, sem dirigir-me uma palavra, começou a fazer coisas no estúdio. Preparativos de última hora. Pouco depois, houve uma batida à porta. Era Fillmore. Collins estava esperando embaixo, informou-me ele.
Fillmore e Kruger enfiaram os braços por baixo de mim e puseram-me em pé. Enquanto me arrastavam para o elevador, Kruger amoleceu. "É para seu próprio bem", disse ele. "E, além disso, não seria justo para comigo. Você sabe a luta que venho tendo todos esses anos. Você devia pensar também em mim." Estava realmente a ponto de derramar lágrimas.
Apesar de me sentir desditoso e miserável, suas palavras quase me fizeram sorrir. Ele era consideravelmente mais velho que eu e, ainda que fosse um pintor ordinário, um artista ordinário de alto a baixo, merecia uma oportunidade - pelo menos uma vez na vida.
"Eu não culpo você", murmurei.
"Compreendo como é." "Sabe que sempre gostei de você", respondeu ele.
"Quando ficar melhor pode voltar para cá... pode ficar quanto tempo quiser."
"Claro, eu sei... Não vou esticar ainda", consegui dizer.
Não sei por que, quando vi Collins lá embaixo meu ânimo reviveu. Se já houve alguém que parecesse inteiramente vivo, sadio, alegre, magnânimo, foi ele. Segurou-me como se eu fosse uma boneca e colocou-me no banco do carro - delicadamente também, o que eu apreciei depois da brutalidade com que Kruger me tratara.
Quando chegamos ao hotel - o hotel onde Collins se hospedava - houve uma pequena discussão com o proprietário, durante a qual fiquei deitado no sofá na portaria.
Podia ouvir Collins dizendo ao patron que não era nada... apenas um pouco de esgotamento... estará bom em alguns dias. Vi-o pôr uma nota enrugada nas mãos do homem e depois, virando-se rápida e flexivelmente, voltou para onde eu estava e disse: "Vamos, anime-se! Não o deixe pensar que você está esticando." E em seguida pôs-me em pé com um puxão e, amparando-me com um braço, levou-me até o elevador.
Não o deixe pensar que você está esticando! Evidentemente era de mau gosto morrer nas mãos dos outros. A gente deve morrer no seio de sua família, na intimidade, por assim dizer. Suas palavras eram encorajadoras. Comecei a encarar aquilo tudo como uma piada de mau gosto. Em cima, fechada a porta, despiram-me e puseram-meentre as cobertas. "Você não pode morrer agora, que diabo!" disse Collins animadamente. "Você me deixaria num buraco...
Além disso, que há com você? Não pode suportar a vida boa? Mantenha a cabeça erguida! Você estará comendo um lombinho daqui a um ou dois dias. Você pensa que está doente! Espere até apanhar uma dose de sífilis! Então terá motivo para preocupar-se..." E começou a relatar, de maneira humorística, sua viagem Yangtsze-Kiang abaixo, cabelos caindo e dentes apodrecendo. No fraco estado em que me encontrava, a história que contava teve sobre mim um efeito extraordinariamente calmante.
Tirou-me completamente de mim mesmo. Tinha tutano, aquele cara. Talvez estivesse exagerando um pouco, para meu benefício, mas no momento eu não o ouvia com espírito crítico. Eu era todo ouvidos e olhos. Via a suja embocadura amarela do rio, as luzes subindo em Hankow, o mar de rostos amarelos, as sampanas descendo velozmente através das gargantas e corredeiras que flamejavam com o hálito sulfuroso do dragão. Que história! Os cules enxameando ao redor do barco diariamente, saltando n’água para apanhar o lixo jogado de bordo. Tom Slattery levantando-se do leito de morte para lançar um último olhar às luzes de Hankow, a bela eurasiana que se deitou num quarto escuro e encheu as veias de veneno, a monotonia dos blusões azuis e rostos amarelos, milhões e milhões deles encovados pela fome, devastados pela doença, alimentando-se de ratos, cães e raízes, mastigando o capim arrancado da terra, devorando os próprios filhos. Era difícil imaginar que o corpo desse homem tivesse sido outrora uma massa de feridas, que ele tivesse sido evitado como leproso; sua voz era tão calma e delicada, era como se seu espírito tivesse sido limpado por todo o sofrimento que experimentara. Quando estendeu a mão para apanhar a bebida, seu rosto tornou-se cada vez mais suave e sua voz pareceu realmente acariciar-me.
E o tempo todo a China pairando sobre nós como o próprio Destino. Uma China que apodrecia, desmanchava-se em poeira como um enorme dinossauro, mas preservava até o fim o fascínio, o encanto, o mistério, a crueldade de suas veneráveis lendas.
Eu não podia mais seguir-lhe a história; minha mente escorregara de volta ao Quatro de Julho em que comprara meu primeiro pacote de bombinhas e com ele os compridos pedaços de isca que se quebravam tão facilmente, a isca que se soprava para obter um belo brilho vermelho, a isca cujo cheiro se nos apegava aos dedos durante dias e nos fazia sonhar com coisas estranhas. No Quatro de Julho as ruas estão cobertas de brilhante papel vermelho com figuras pretas e douradas e por toda parte há minúsculas bombinhas que têm os mais curiosos intestinos; pacotes e pacotes delas, todas unidas pelas suas tripinhas finas e chatas, da cor dos miolos humanos. Durante o dia todo há o cheiro de pólvora e isca, e a poeira dourada dos brilhantes envoltórios vermelhos prende-senos aos dedos, a gente nunca pensa na China, mas ela está lá o tempo todo, nas pontas dos nossos dedos e faz coçar-nos o nariz; e muito tempo depois, quando quase já se esqueceu do cheiro de uma bombinha, a gente acorda um dia com uma folha de ouro a sufocar-nos, os pedaços quebrados de isca trazem de volta seu pungente odor e os brilhantes envoltórios vermelhos dão saudade de um povo e um solo que nunca conhecemos, mas que está em nosso sangue, misteriosamente ali em nosso sangue, como a noção de tempo ou espaço, um valor fugidio e constante para o qual a gente se volta cada vez mais à medida que envelhece, que a gente tenta apreender com o espírito, mas inutilmente, porque em tudo que é chinês há sabedoria e mistério, e nunca podemos apanhá-lo com duas mãos ou com o espírito, mas precisamos deixá-lo desvanecer-se, deixá-lo apegar-se a nossos dedos, deixá-lo infiltrar-se vagarosamente em nossas veias.
Algumas semanas mais tarde, após receber insistente convite de Collins, que havia regressado ao Havre, Fillmore e eu tomamos o trem uma manhã, preparados para passar o fim de semana com ele. Era a primeira vez que saía de Paris desde minha chegada aqui. Estávamos com ótima disposição, bebendo Anjou durante toda a viagem até o litoral. Collins dera-nos o endereço de um bar onde deveríamos encontrá-lo; um lugar chamado Jimmie's Bar, que toda gente no Havre devia conhecer.
Na estação tomamos uma carruagem aberta e partimos a trote rápido para o local do encontro; havia ainda meia garrafa de Anjou, que esvaziamos enquanto rodávamos.
O Havre parecia alegre, ensolarado; o ar era estimulante, com aquele forte cheiro salgado que quase me fez sentir saudades de Nova York. Por toda parte surgiam mastros e cascos, pedaços brilhantes de bandeira, grandes praças abertas e cafés de forros altos como só se vêem nas províncias. Uma bela impressão de imediato; a cidade recebia-nos de braços abertos.
Antes de chegarmos ao bar vimos Collins descendo à rua depressa, dirigindo-se para a estação, sem dúvida, e um pouco atrasado como de costume. Fillmore imediatamente sugeriu um Pernod; dávamos tapas nas costas um do outro, ríamos e cuspíamos, já bêbedos do sol e do ar marinho salgado. Collins pareceu a princípio indeciso quanto ao Pernod. Estava com uma pequena dose de gonorréia, informou-nos. Nada de muito sério - "um simples corrimento" muito provavelmente. Mostrou-nos uma garrafa que tinha no bolso -
"Vénitienne" chamava-se, se me lembro bem. O remédio de marinheiro para gonorréia.
Paramos em um restaurante para comer alguma coisinha antes de partirmos para o Jimmie's Bar. Era uma taberna enorme com grandes e enfumaçadas vigas e mesas rangendo sob o peso de comida. Bebemos copiosamente dos vinhos que Collins recomendava. Depois nos sentamos no ferrasse e tomamos café e licores. Collins falava sobre o Baron de Charlus, um homem à procura de seu próprio coração, dizia. Fazia quase um ano que estava no Havre, gastando o dinheiro que acumulara em seu tempo de contrabandista de bebidas. Seus gostos eram simples: comida, bebida, mulheres e livros. E um banheiro privativo! Disso fazia questão.
Falávamos ainda sobre o Baron de Charlus quando chegamos ao Jimmie's Bar. Era de tardezinha e o estabelecimento começava a encher-se. Jimmie estava lá, rosto vermelho como beterraba, e tinha ao lado sua esposa, bela e rosada francesa de olhos cintilantes. Tivemos recepção maravilhosa em todo o sentido. Havia Pernods novamente à nossa frente, o gramofone gania, pessoas tagarelavam em inglês, francês, holandês, norueguês e espanhol, e Jimmie e a esposa, ambos parecendo muito vivos e animados, trocavam tapas e beijos cordialmente, erguiam seus copos e fazia-mnos tilintar - no todo tal barulheira de alegria que a gente sentia vontade de tirar a roupa e fazer uma dança de guerra. As mulheres do bar haviam-se juntado como moscas. Se éramos amigos de Collins devíamos ser ricos. Não importava que tivéssemos vindo com roupas velhas; todo Anglais veste-se assim. Eu não tinha um sou no bolso, o que não importava, naturalmente, pois era o convidado de honra. Apesar disso, sentia-me um tanto embaraçado com duas prostitutas de aparência desnorteante penduradas nos meus braços, esperando que eu pedisse alguma coisa. Decidi pegar o touro pelos chifres.
Ninguém podia mais saber quais bebidas eram por conta da casa e quais teriam de ser pagas. Eu precisava ser um gentleman, embora não tivesse um sou no bôüso. Yvette - essa era a mulher de Jimmie - mostrava-se extraordinariamente gentil e amistosa conosco. Estava preparando um pequeno banquete em nossa homenagem. Ia demorar ainda um pouco.
Não devíamos ficar muito bêbedos - queria que apreciássemos a refeição. O gramofone tocava como louco e Fillmore começara a dançar com uma bela mulata cujo vestido de veludo justo revelava todos os seus encantos. Collins aproximou-se de mim e segredou-me algumas palavras sobre a mulher ao meu lado. "A madame o convidará para jantar", disse, "se você quiser ficar com ela". Era uma ex-prostituta que possuía bela casa nos subúrbios da cidade. Amante, agora, de um capitão da marinha. Ele estava viajando e nada havia a temer. "Se gostar de você, convidá-lo-á para ficar com ela", acrescentou.
Era o bastante para mim. Voltei-me imediatamente para Marcelle e comecei a fazer tudo para agradá-la. Ficamos em pé no canto do bar, fingindo dançar, e nos esfregamos ferozmente. Jimmie deu-me uma grande piscada e sacudiu a cabeça em sinal de aprovação. Era uma cadela lasciva, essa Marcelle, e agradável ao mesmo tempo. Observei que logo se livrou da outra mulher com quem estava e depois nos instalamos para uma longa e íntima conversa, infelizmente interrompida pela notícia de que o jantar estava pronto.
Éramos uns vinte à mesa. Marcelle e eu fomos colocados numa ponta, diante de Jimmie e sua esposa. Começou o espocar das rolhas de champanha e seguiram-se rapidamente discursos de bêbedos, no decorrer dos quais Marcelle e eu brincávamos um com o outro por baixo da mesa. Quando chegou a minha vez de levantar-me para proferir algumas palavras, precisei segurar o guardanapo na minha frente. Era penoso e estimulante ao mesmo tempo. Tive de proferir um discurso muito curto porque Marcelle ficou o tempo todo fazendo-me cócegas no saco.
O jantar prolongou-se até quase meia-noite. Eu esperava passar a noite com Marcelle naquela bela casa no alto do rochedo. Mas tal não ia acontecer. Collins planejara exibir-nos e eu não poderia recusar. "Não se preocupe com ela", disse. "Você se fartará antes de ir-se embora. Diga-lhe para esperar aqui até voltarmos."
Marcelle ficou um pouco agastada com isso, mas animou-se quando lhe informamos que tínhamos vários dias à nossa frente. Quando saímos, Fillmore tomou-nos muito solenemente pelo braço e disse que tinha uma pequena confissão a fazer. Parecia pálido e aborrecido.
"Bem, que é?", disse Collins jovialmente. "Solta logo!" Fillmore não podia soltá-lo assim, imediatamente. Hesitou algum tempo e finalmente deixou escapar de maneira impulsiva: "Bem, quando fui à privada agora há pouco, notei uma coisa..."
"Então você pegou!" gritou Collins triunfante, ao mesmo tempo que exibia a garrafa de Vénitienne. "Não procure médico", acrescentou maldosamente. "Eles lhe chupariam o sangue, os bastardos gananciosos. E não deixe de beber também. Isso tudo é bobagem. Tome isto duas vezes por dia... agite bem antes de usar. E não há coisa pior do que preocupar-se, compreende? Agora, vamos. Eu lhe darei uma seringa e um pouco de permanganato quando voltarmos."
E assim saímos para a noite, descendo para o cais onde havia o som de música, gritos e pragas de bêbedos. Collins falava sossegadamente o tempo todo sobre isto e aquilo, sobre um menino pelo qual ele se apaixonara e a dificuldade dos diabos que tivera para sair da encrenca quando os pais ficaram sabendo. Disso voltou para o Baron de Charlus e depois para Kurtz, que subira o rio e se perdera. Seu tema favorito. Eu gostava da maneira como Collins se movia continuamente contra esse fundo de literatura; era como um milionário que nunca descesse de seu Rolls Royce. Não havia para ele reino intermediário entre a realidade e as idéias. Quando entramos no bordel do Qual Voltaire, depois de ter-se jogado no divã e pedido mulheres e bebidas, ele ainda remava rio acima com Kurtz, e só quando as garotas se amontoaram na cama ao seu lado e encheram-lhe a boca de beijos é que cessou suas divagações. Então, como se tivesse percebido de repente onde estava, voltou-se para a velha que dirigia a casa e fez-lhe um eloqüente discurso sobre seus dois amigos que tinham vindo expressamente de Paris para visitar o estabelecimento. Havia uma meia dúzia de garotas na sala, todas nuas e todas bonitas de olhar, devo dizer. Saltitavam como pássaros enquanto nós três procurávamos manter palestra com a vovó. Finalmente esta pediu licença e disse-nos que ficássemos à vontade como se estivéssemos em casa. Fiquei completamente conquistado por essa velha, tão suave e amável era ela, tão absolutamente gentil e maternal. E que maneiras! Se fosse um pouco mais moça eu lhe teria feito propostas. Certamente ninguém pensaria que estávamos em um "antro do vício", como se diz.
Seja como for, lá permanecemos mais ou menos uma hora e, como eu era o único que estava em condições de gozar dos privilégios da casa, Collins e Fillmore ficaram embaixo conversando com as garotas. Quando voltei encontrei os dois estendidos na cama; as garotas haviam formado um semicírculo em roda da cama e cantavam com as mais angélicas vozes o coro de "Roses in Picardy". Estávamos sentimentalmente deprimidos quando deixamos a casa - particularmente Fillmore. Collins levou-nos rapidamente para um lugar turbulento, cheio de marinheiros bêbedos de licença em terra, e lá nos sentamos durante algum tempo apreciando o ajuntamento homossexual em pleno andamento. Quando saímos tivemos de atravessar a zona de luz vermelha onde havia outras vovós com xales no pescoço sentadas nos degraus, abanando-se e acenando agradavelmente para os passantes. Todas elas almas tão bonitas e bondosas, como se estivessem tomando conta de um berçário.
Pequenos grupos de marinheiros vinham cambaleando e abriam caminho ruidosamente para o interior das espalhafatosas casas. Sexo por toda parte: derramava-se uma maré de águas mortas que varria as escoras embaixo da cidade. Vagueamos pela margem da enseada onde tudo estava misturado e embrulhado; a gente tinha a impressão de que todos aqueles navios, aqueles barcos de pesca, iates, escunas e barcaças, haviam sido soprados para terra por violenta tempestade.
No espaço de quarenta e oito horas tantas coisas haviam acontecido que parecia estarmos no Havre havia um mês ou mais. Pretendíamos partir segunda-feira cedo, pois Fillmore tinha de voltar ao emprego. Passamos o domingo bebendo e farreando, com gonorréia ou sem gonorréia. Naquela tarde Collins confidenciou-nos que pensava em voltar para sua fazenda em Idaho; fazia oito anos que não voltava para casa e desejava dar de novo uma olhada nas montanhas antes de fazer outra viagem ao Oriente.
Estávamos sentados em um bordel na ocasião, esperando que aparecesse uma garota, a quem ele prometera um pouco de cocaína. Achava-se cheio do Havre, contou-nos.
Havia muitos abutres pairando sobre seu pescoço. Além disso, a esposa de Jimmie apaixonara-se por ele e criava-lhe dificuldades com seus acessos de ciúmes. Fazia uma cena quase toda noite. Conservara-se comportada desde que havíamos chegado, mas isso não duraria, garantiu-nos. Ela sentia particularmente ciúmes de uma garota russa que aparecia no bar às vezes, quando ficava bêbeda. Uma encrenqueira. Por cima de tudo ele estava desesperadamente apaixonado por aquele menino do qual nos falarano primeiro dia. "Um menino pode esfacelar o coração da gente", disse. "Ele é tão infernalmente belo! E tão cruel!"
Tivemos de rir ao ouvir isso. Parecia absurdo. Mas Collins falava sério.
Lá pela meia-noite de domingo Fillmore e eu nos retiramos; haviam-nos dado um quarto em cima, sobre o bar. Estava quente como o diabo, sem um sopro de ar. Através das janelas abertas podíamos ouvi-los gritando lá embaixo, e o gramofone tocando continuamente. E de repente caiu uma tempestade - uma boa chuvarada. E entre o ribombar dos trovões e as rajadas de água que batiam nas vidraças, chegou-nos ao ouvido o barulho de outra tempestade estourando lá embaixo no bar. Parecia assustadoramente próxima e sinistra; as mulheres gritavam a plenos pulmões, garrafas quebravam-se, mesas eram viradas e havia aquela pancada familiar e repugnante que o corpo humano faz quando cai no chão.
Cerca de seis horas Collins enfiou a cabeça pela porta. Tinha o rosto todo coberto de esparadrapo e um braço enfiado numa tipóia. Havia um grande sorriso em seu rosto.
"Exatamente como lhes disse", falou. "Ela desembestou ontem à noite. Acho que vocês ouviram a bagunça!"
Vestimo-nos rapidamente e descemos para dizer adeus a Jimmie. O bar estava completamente demolido, sem que restasse uma garrafa em pé, sem uma cadeira que não estivesse quebrada. O espelho e a vitrina reduzidos a pedaços. Jimmie preparava uma gemada para si próprio.
A caminho da estação fomos reconstituindo a história. A garota russa aparecera depois de termos ido para a cama e Yvette insultara-a prontamente, sem esperar sequer por um pretexto. Haviam começado a puxar os cabelos uma da outra e, no meio disso, um grande sueco intrometera-se e dera um bom tapa na cara da garota russa - para fazê-la recuperar o juízo. Isso deu início ao foguetório. Collins quis saber que direito tinha aquele grandalhão de meter-se numa briga particular. Levou como resposta um soco no queixo, um bom soco que o fez voar até a outra extremidade do bar. "Bem feito para você!" gritou Yvette, aproveitando a ocasião para descer uma garrafa sobre a cabeça da garota russa. E nesse momento desencadeou-se a tempestade. Durante algum tempo houve um verdadeiro pandemônio, as mulheres todas histéricas e ansiosas por aproveitar a oportunidade para dar vazão a rancores particulares. Nada tão bom quanto uma briga de bar... tão fácil enfiar uma faca nas costas de um homem ou dar-lhe uma garrafada enquanto ele está caído embaixo da mesa.
O pobre sueco viu-se no meio de um cacho de marimbondos; todos os presentes o odiavam, particularmente seus colegas de navio. Queriam vê-lo liquidado. Por isso fecharam a porta e, empurrando as mesas para os lados abriram um pequeno espaço, diante do bar, onde os dois pudessem resolver suas diferenças. E resolveram mesmo! Precisaram levar o pobre diabo para o hospital depois de tudo acabado. Collins saíra-se da encrenca com muita sorte - nada além de um pulso deslocado e um par de dedos fora do lugar, nariz sangrando e olho preto. Apenas alguns arranhões, como dizia. Mas se voltasse a encontrar aquele sueco ia assassiná-lo. O caso não estava ainda liquidado.
Prometia. E isso não foi o fim da bagunça. Depois Yvette ainda saíra e enchera a cara em outro bar. Fora insultada e ia levar as coisas até o fim. Alugou um táxi e mandou o motorista tocar até a beira do rochedo que fica sobre a água. Matar-se, eis o que ia fazer. Mas estava tão bêbeda que, quando desceu aos trambolhões do carro, começou a chorar e antes que alguém pudesse impedi-la, passou a tirar as roupas. O motorista levou-a para casa desse jeito, seminua. Quando Jimmie viu o estado em que estava ficou tão furioso que apanhou a tira de couro de amolar a navalha e bateu nela até fazê-la mijar, e ela gostou, a cadela. "Bata mais um pouco!" implorava, de joelhos como estava e agarrando as pernas dele com os dois braços. Mas Jimmie já estava cheio. "Você é uma porca velha!" disse, e deu-lhe um empurrão na barriga que lhe tirou o entusiasmo e - também um pouco de suas bobagens sexuais.
Já era tempo de partirmos. A cidade parecia diferente à luz da madrugada. A última coisa de que falamos, enquanto esperávamos que o trem partisse, foi Idaho. Nós três éramos americanos. Cada um de nós provinha de um lugar diferente, mas tínhamos alguma coisa em comum - muita coisa, poderia dizer. Estávamos ficando sentimentais, como ficam os americanos quando chega a hora de partir. Estávamos ficando muito bobos com conversas de vacas, carneiros e os grandes espaços abertos onde os homens são homens e toda aquela baboseira. Se tivesse encostado um navio, em lugar do trem, nós teríamos saltado para bordo e dito adeus a tudo aquilo. Mas Collins nunca voltaria a ver a América, como eu soube depois; e Fillmore... bem, Fillmore também teria de receber seu castigo, de uma maneira que nenhum de nós poderia suspeitar então. É melhor deixar a América assim, sempre no fundo, uma espécie de retrato de cartão-postal que a gente olha num momento de fraqueza. Assim, a gente a imagina sempre lá, esperando, inalterada, intacta, um grande e patriótico espaço aberto com vacas, carneiros e homens de bom coração prontos a enrabar tudo quanto apareça, homem, mulher ou bicho. Não existe, a América. É nome que a gente dá a uma idéia abstrata...
PARIS É COMO UMA PUTA. A DISTÂNCIA parece arrebatadora e você mal pode esperar até tê-la nos braços. E cinco minutos depois você está vazio, desgostoso consigo mesmo. Sente-se logrado.
Voltei a Paris com dinheiro - algumas centenas de francos, que Collins me enfiara no bolso quando eu estava subindo no trem. Era o bastante para pagar um quarto e pelo menos uma semana de boas rações. Era mais do que eu havia tido nas mãos de uma só vez durante vários anos. Sentia-me animado, como se talvez uma vida nova se estivesse abrindo à minha frente. Queria conservá-lo também, por isso procurei um hotel barato em cima de uma padaria na Rue du Château, perto da Rue de Vanves, lugar que Eugène me mostrara certa vez. A alguns passos ficava a ponte que atravessa a linha de Montparnasse. Bairro familiar.
Eu poderia arranjar um quarto ali por cem francos ao mês, um quarto sem nenhuma comodidade, é claro - sem uma janela sequer - e talvez tivesse ficado com ele, apenas para ter um lugar certo onde descansar um pouco, se para chegar a ele não precisasse atravessar primeiro o quarto de um cego. A idéia de passar ao lado de sua cama toda noite teve sobre mim um efeito muito deprimente. Decidi procurar em outro lugar. Fui até a Rue Cels, logo atrás do cemitério, e olhei uma espécie de ratoeira com balcões, estendendo-se em roda de um pátio. Havia gaiolas de passarinhos penduradas no balcão, ao longo da fileira inferior. Uma vista alegre talvez, mas pareceu-me a enfermaria pública em um hospital. O proprietário também não parecia ter juízo perfeito.
Decidi esperar até a noite, a fim de dar uma boa olhada em roda e depois escolher algum lugarzinho atraente numa sossegada rua lateral.
Na hora do jantar gastei quinze francos numa refeição, cerca do dobro da importância que eu planejara despender. Isso me deixou tão infeliz que fiz questão de não sentar-me para tomar um café, embora estivesse começando a chuviscar. Não, andaria um pouco e depois iria sossegadamente para a cama, em uma hora razoável. Eu já estava miserável, tentando economizar meus recursos desse jeito. Nunca havia feito isso em minha vida; não era de minha natureza.
Finalmente começou a chover forte. Fiquei satisfeito. Era a desculpa de que precisava para esconder-me em algum lugar e esticar as pernas. Era ainda muito cedo para buscar a cama. Comecei a estugar o passo, rumando de volta para o Boulevard Raspail. De repente, uma mulher surgiu à minha frente e deteve-me, bem no meio da chuva torrencial. Queria saber que horas eram. Disse-lhe que não tinha relógio. E então estourou, mais ou menos assim: "Oh, meu bom senhor, por acaso fala inglês?" Acenei afirmativamente com a cabeça. Agora estava chovendo em torrentes. "Talvez, meu bom homem, o senhor tivesse a bondade de levar-me a um café. Está chovendo tanto e não tenho dinheiro para sentarme em lugar nenhum. Desculpe-me, meu caro, mas o senhor tem um rosto tão bondoso... Percebi imediatamente que o senhor era inglês."
E dizendo isso sorriu para mim, um sorriso estranho, meio-insano. "Talvez pudesse dar-me um pouco de conselho, caro senhor. Estou absolutamente sozinha no mundo... meu Deus, é terrível não ter dinheiro!"
Aqueles "caro senhor", "bom senhor" e "meu bom homem" etc. deixaram-me à beira do histerismo. Sentia pena dela e apesar disso precisava rir. Ri. Ri bem na sua cara. E então ela riu também, uma risada esquisita e aguda, desafinada, uma gargalhada absolutamente inesperada. Segurei-a pelo braço e demos uma corrida até o café mais próximo. Ela ainda estava rindo quando entramos no bistrot. "Meu caro e bom senhor", começou de novo, "talvez pense que não lhe estou dizendo a verdade. Sou uma moça direita...
Venho de boa família. Só" - e aqui ela me deu novamente aquele sorriso doentio e irregular - "só que sou muito desventurada por não ter um lugar onde sentar-me". E ao dizer isso começou a rir de novo. Não pude evitar - as frases que empregava, o sotaque estranho, o chapéu maluco que usava, aquele sorriso insano...
"Escute", interrompi, "de que nacionalidade você é?"
"Inglesa", respondeu. "Isto é, nasci na Polônia, mas meu pai é irlandês."
"E por isso é inglesa?"
"Sim", disse ela e começou a rir de novo, acanhadamente e com um fingimento de modéstia.
"Suponho que você conhece um belo hotelzinho para onde levar-me?" disse eu, não porque tivesse a intenção de ir com ela, mas apenas para poupar-lhe os habituais preliminares.
"Oh, meu caro senhor", respondeu, como se eu tivesse cometido o mais grave erro. "Estou certa de que o senhor não quer dizer isso! Não sou moça dessa espécie. O senhor está brincando comigo, percebo. O senhor é tão bom... tem um rosto tão bondoso. Eu não me atreveria a falar com um francês como fiz com o senhor. Eles insultam a gente logo de início..."
Continuou nesse tom durante algum tempo. Queria livrar-me dela. Ela, porém, não queria ficar sozinha. Tinha medo - seus documentos não estavam em ordem. Teria eu a bondade de levá-la até seu hotel? Talvez pudesse "emprestar-lhe" quinze ou vinte francos, para acalmar o patron? Levei-a até o hotel onde disse estar hospedada, e pus-lhe uma nota de cinqüenta francos na mão. Ela era muito esperta ou muito inocente - às vezes é difícil dizer mas, seja como for, queria que eu esperasse até ir correndo ao bistrot, trocar o dinheiro. Disse-lhe que não se incomodasse. E então ela tomou minha mão impulsivamente e levou-a aos lábios. Fiquei estupefato.
Fiquei com vontade de dar-lhe toda a maldita grana que tinha. Aquilo me comoveu, aquele pequeno gesto maluco. Pensei comigo mesmo: é bom ser rico de vez em quando, apenas para ter uma nova emoção como esta. Ainda assim, não perdi a cabeça. Cinqüenta francos! Mais que o suficiente para esbanjar em uma noite de chuva. Quando me afastava, ela acenou com aquele gorrinho maluco que não sabia usar. Era como se fôssemos velhos companheiros. Senti-me estúpido e atordoado. "Meu caro e bom senhor... o senhor tem um rosto tão bondoso... o senhor é tão bom etc." Senti-me como um santo.
Quando a gente se sente todo envaidecido por dentro não é tão fácil ir diretamente para a cama. A gente se sente como se devesse corresponder a tão inesperadas manifestações de bondade. Passando pelo Jungle vi de relance a pista de dança; mulheres com as costas nuas e cordões de pérolas estrangulando-as - ou assim parecia - sacudiam os belos traseiros para mim. Caminhei diretamente para o bar e pedi uma coupe de champanha. Quando a música cessou, uma bela loura - parecia norueguesa - veio sentar-se bem ao meu lado. O lugar não estava tão cheio ou tão alegre como me parecera de fora. Havia apenas uma meia dúzia de pares - deviam ter estado todos dançando ao mesmo tempo. Pedi outra coupe de champanha a fim de não deixar minha coragem desaparecer.
Quando me levantei para dançar com a loura não havia ninguém na pista de dança além de nós. Em qualquer outra ocasião eu teria ficado embaraçado, mas o champanha e a maneira como se agarrava ela a mim, as luzes fracas e a sólida sensação de segurança que as poucas centenas de francos me davam, bem... Dançamos mais uma vez juntos, uma espécie de exibição particular, e depois começamos a conversar. Ela se pôs a chorar - foi assim que começou. Pensei que talvez tivesse bebido demais, por isso fingi não me incomodar. E enquanto isso olhava em roda para ver se havia algum outro material disponível. Mas o lugar estava completamente deserto.
A coisa a fazer quando se está preso na armadilha, é dar o fora - imediatamente. Senão, estamos perdidos. O que me releve, por estranho que pareça, foi a idéia de pagar uma segunda vez para guardar o chapéu. A gente sempre se enterra por causa de uma porcaria.
A razão pela qual estava chorando, logo descobri, era ter acabado de enterrar o filho. Não era também norueguesa, mas francesa, e parteira ainda por cima. Uma parteira chique, digo, mesmo com as lágrimas correndo pelo rosto. Perguntei-lhe se um traguinho não ajudaria a consolá-la, em face do que prontamente pediu um uísque e engoliu-o no piscar de um olho. "Quer outro?" sugeri delicadamente. Ela achava que sim, estava-se sentindo tão infeliz, tão terrivelmente abatida. Achava que queria também um maço de "Camels". "Não, espere um pouco", disse ela, "Acho que prefiro lês Pall Mall." Peça o que quiser, pensei eu, mas pare de chorar, pelo amor de Deus, que isso me deixa nervoso. Fiz que se levantasse de novo para outra contradança. Em pé parecia outra pessoa.
Talvez o pesar deixe a gente mais lasciva, não sei. Murmurei alguma coisa sobre ir embora. "Para onde?" perguntou ansiosamente. "Oh, qualquer lugar.
Algum lugar sossegado onde possamos conversar."
Fui ao lavatório e contei o dinheiro de novo. Escondi as notas de cem francos no bolsinho do relógio e deixei uma nota de cinqüenta francos e o troco miúdo no bolso da calça. Voltei para o bar decidido a falar francamente.
Ela própria tornou as coisas mais fáceis para mim, introduzindo o assunto. Estava em dificuldades. Não era só o ter perdido o filho, mas sua mãe estava com ela, doente, muito doente, e havia o médico a pagar, remédios a comprar, e isto e mais aquilo. Não acreditei uma única palavra, é claro. E como tinha de encontrar um hotel para mim, sugeri que fosse comigo e passasse a noite. Há um pouco de economia assim, pensei comigo mesmo. Mas não quis. Insistiu em ir para sua casa, disse que tinha um apartamento só seu - e além disso precisava cuidar da mãe. Refletindo melhor achei que seria ainda mais barato dormir em sua casa, disse sim e partimos imediatamente. Antes de partir, porém, decidi que seria melhor fazê-la saber exatamente em que pé eu estava, a fim de não haver gritaria no último minuto. Pensei que fosse desmaiar quando lhe disse quanto tinha no bolso. "Se é possível!" exclamou ela. Estava profundamente ofendida. Pensei que ia haver uma cena... Impávido, porém, defendi o terreno. "Muito bem, então, vou deixá-la", disse serenamente. "Talvez eu tenha cometido um engano."
"Garanto-lhe que cometeu!" exclamou ela, mas segurando-me ao mesmo tempo pela manga do paletó. "Ecoute, chéri... mis raisonnable!" Quando ouvi isso toda minha confiança voltou. Sabia que seria apenas uma questão de prometer-lhe um pequeno extra e tudo estaria O.K. "Está bem", disse com ar de enfado, "serei bonzinho com você, vai ver."
"Então estava mentindo para mim?", disse ela. "Sim", respondi sorrindo, "estava apenas mentindo..." Antes que tivesse posto o chapéu ela já havia chamado um carro.
Ouvi-a dar um endereço no Boulevard de Clichy. Era mais que o preço do quarto, pensei comigo mesmo. Oh, bem, ainda há tempo.. . veremos. Não sei mais como começou, mas em pouco ela estava falando entusiàsticamente de Henry Bordeaux. (Ainda não encontrei uma puta que não conhecesse Henry Bordeaux!) Mas essa era genuinamente inspirada; sua linguagem agora era bela, tão terna, tão compreensiva, que eu discutia comigo mesmo quanto lhe daria. Pareceu-me que a ouvi dizer - "quand il ríy aura plus de temps". Soou assim, pelo menos. No estado em que eu me encontrava, uma frase dessas valia cem francos. Fiquei pensando se seria dela mesma ou se teria tirado de Henry Bordeaux. Pouco importava.
Era exatamente a frase certa para a gente subir até o sopé de Montmartre. "Boa noite, mamãe", dizia eu comigo mesmo, "a filhinha e eu cuidaremos de você - quand il ríy aura plus de temps!" Ela ia mostrar-me também seu diploma, lembrei-me.
Ficou toda nervosa assim que a porta se fechou atrás de nós. Distraída. Torcendo as mãos e fazendo poses de Sarah Bèrnhardt, meio despida também, e parando de vez em quando a fim de pedir que me apressasse, que me despisse, que fizesse isto ou aquilo. Finalmente, quando se despiu e estava andando de um lado para outro com uma combinação na mão, à procura de seu quimono, agarrei-a e dei-lhe um bom apertão. Tinha uma expressão de angústia no rosto, quando a soltei. "Meu Deus! Meu Deus! Preciso ir lá embaixo e dar uma olhada em mamãe!" exclamou. "Você pode tomar um banho, se quiser, chéri. Ali. Voltarei dentro de alguns minutos."
Na porta abracei-a de novo. Estava de cuecas e tive uma tremenda ereção. Não sei por que toda essa angústia e excitação, toda a aflição e a representação dramática, só aguçavam meu apetite. Talvez ela tivesse ido lá embaixo sossegar seu maquereaii. Eu tinha a impressão de que algo incomum estava acontecendo, alguma espécie de drama a cujo respeito eu poderia ler no jornal da manhã. Examinei rapidamente o apartamento. Havia dois quartos e um banheiro, não mal mobiliados. Bastante coquete.
Havia seu diploma na parede - "primeira classe", como dizem todos. E havia a fotografia de uma criança, uma meninazinha de bela cabeleira, sobre a camiseira. Preparei a água para um banho e depois mudei de idéia. Se alguma coisa acontecesse e eu fosse encontrado na banheira... Não me agradava a idéia. Caminhei de um lado para outro, ficando cada vez mais inquieto à medida que passavam os minutos.
Quando voltou estava ainda mais agitada do que antes. "Ela vai morrer... ela vai morrer!" choramingava. Por um momento estive quase a ponto de ir embora. Como diabo se pode trepar numa mulher cuja mãe está morrendo lá embaixo, talvez exatamente embaixo da gente? Abracei-a, um pouco por solidariedade e um pouco pela decisão de obter o que eu fora procurar.
Enquanto estávamos assim em pé ela murmurou, como se estivesse realmente aflita, a respeito do dinheiro que eu lhe prometera. Era para "mamãe". Merda, eu não tive coragem de discutir por causa de alguns francos naquele momento. Fui até a cadeira onde estavam minhas roupas e tirei uma nota de cem francos do bolsinho do relógio, conservando cuidadosamente minhas costas voltadas para ela apesar de tudo. E, como maior precaução, coloquei a calça do lado da cama onde eu sabia que ia deitar-me. Os cem francos não foram absolutamente satisfatórios para ela, mas pela maneira débil com que protestou pude ver que eram suficientes. Depois, com uma energia que me espantou, arrancou o quimono e saltou para a cama. Logo que pus os braços ao seu redor e a puxei em minha direção, ela estendeu a mão para o interruptor e as luzes apagaram-se.
Abraçava-me apaixonadamente e gemia como fazem todas as fêmeas francesas quando apanham a gente na cama. Ia me deixando tremendamente excitado com seu modo de agir; aquele negócio de apagar as luzes era novidade para mim... parecia coisa genuína. Mas eu estava suspeitando também e, assim que pude movimentar-me convenientemente, estendi a mão para fora, a ver se a calça ainda estava sobre a cadeira.
Pensei que estivéssemos instalados para a noite inteira. A cama era muito confortável, mais macia que a cama média de hotel - e os lençóis eram limpos, notara-o.
Se pelo menos ela não ficasse me apertando! Dava a impressão de que não dormia com um homem havia um mês. Eu queria aproveitar bem os meus cem francos. Ela, porém, murmurava toda espécie de coisas naquela maluca linguagem de cama que faz o sangue da gente ferver ainda mais depressa quando é no escuro. Eu resistia ao máximo, mas era impossível com seus gemidos e arquejos, e seus murmúrios: "Vite, chéri! Vite, chéri! Oh, c'est bon! Oh, oh! Vite, vite, chéri!" Tentei cortar mas era como um alarma contra incêndio disparando. "Vite, chéri!" e desta vez ela deu um tremor arquejante que... bumba! Ouvi as estrelas bimbalharem e lá se foram meus cem francos, além dos cinqüenta de que eu me havia esquecido completamente, e as luzes acenderam-se de novo e, com a mesma vivacidade com que havia saltado para a cama, ela estava pulando de novo para fora, resmungando e queixando-se como uma porca velha. Fiquei deitado de costas e fumei um cigarro, olhando tristemente para minha calça; estava terrivelmente amassada. Um momento depois estava de volta, embrulhando-se no quimono e dizendo-me daquela maneira agitada que me irritava os nervos, que eu podia ficar à vontade como se estivesse em casa. "vou lá embaixo ver mamãe", disse ela. "Mais faltes comme chez vous, chérí. Je reviens tout de suite."
Depois de passar um quarto de hora comecei a sentir-me extremamente inquieto. Entrei no outro aposento e li inteiramente uma carta que estava sobre a mesa. Não era da minha conta uma carta de amor. No banheiro examinei todos os vidros na estante; tinha de tudo quanto uma mulher precisa para ficar com cheiro gostoso. Ainda estava esperando que ela voltasse e me desse algo que valesse os outros cinqüenta francos. Mas o tempo passava e não havia sinal dela. Comecei a ficar alarmado.
Talvez houvesse alguém morrendo lá embaixo. Distraidamente, acho que por puro instinto de conservação comecei a vestir-me. Quando estava prendendo a cinta, voltou-me à memória, num lampejo, a maneira como enfiara ela a nota de cem francos na bolsa. Na excitação do momento jogara a bolsa no guarda-roupa, na prateleira de cima.
Lembrei-me do gesto que fizera - em pé nas pontas dos pés e esticando a mão para alcançar a prateleira. Não levei mais de um minuto para abrir o guarda-roupa e procurar a bolsa. Ainda estava lá. Abri-a apressadamente e vi minha nota de cem francos dobradinha entre as divisões de seda. Tornei a pôr a bolsa onde estava, vesti o paletó, calcei os sapatos, fui até o patamar da escada e fiquei ouvindo atentamente. Não consegui ouvir um som. Onde fora ela, só Cristo sabia. Num instante voltei ao guarda-roupa e apanhei a bolsa. Embolsei os cem francos e mais todo o troco miúdo. Depois, fechando a porta silenciosamente, desci a escada na ponta dos pés e, quando cheguei à rua, caminhei o mais depressa que minhas pernas podiam levar-me. No Café Boudon parei para comer alguma coisa. As putas passavam momentos divertidos aborrecendo um homem gordo que adormecera sobre a comida. Dormia pesado; roncava, mesmo, e apesar disso seus maxilares trabalhavam automaticamente. O lugar estava em tumulto.
Havia gritos de "Todos a bordo!" e depois batidas ritmadas de facas e garfos. O homem abriu os olhos por um momento, piscando estupidamente, e depois sua cabeça rolou de novo para a frente sobre o peito. Pus a nota de cem francos cuidadosamente no bolsinho do relógio e contei o troco. O barulho ao redor aumentava, e eu encontrava dificuldade para recordar exatamente se vira ou não "primeira classe" em seu diploma. Isso me preocupava. Quanto à sua mãe, eu não dava a mínima importância. Esperava que a essa altura já tivesse esticado. Seria estranho se o que ela me dissera fosse verdade. Tão bom que não se acreditaria. Vite, chérí... Vite, vite! E aquela outra débil mental com seus "meu bom senhor" e "o senhor tem um rosto tão bondoso"! Fiquei pensando se ela realmente teria tomado um quarto naquele hotel diante do qual paramos.
FOI QUANDO SE APROXIMAVA O FIM do verão que Fillmore me convidou para morar com ele. Tinha um estúdio que dava para os quartéis da cavalaria, a pequena distância da Place Dupleix. Havíamo-nos encontrado com muita freqüência desde a pequena viagem ao Havre. Se não fosse Fillmore, não sei onde eu estaria hoje - morto, muito provavelmente.
"Teria convidado você há muito tempo", disse, "se não fosse aquela cadelinha, Jackie. Não sabia como livrar-me dela."
Não pude deixar de sorrir. Fillmore era sempre assim. Tinha um gênio para atrair cadelas desamparadas. Seja como for, Jackie finalmente fora embora por sua própria vontade.
A estação das chuvas vinha chegando, um longo período de graxa, nevoeiro e jorros de chuva que deixa a gente úmida e miserável. Paris é um lugar execrável no inverno!
Clima que come a alma da gente, que deixa a gente vazia como o litoral do Labrador. Notei com certa ansiedade que o único meio de aquecimento do apartamento era um pequeno fogão no estúdio. Entretanto, ainda assim era confortável. E a vista da janela do estúdio era soberba.
Pela manhã, Fillmore sacudia-me rudemente e deixava uma nota de dez francos sobre o travesseiro. Assim que saía, voltava a deitar-me para uma soneca final. Às vezes, ficava na cama até o meio-dia. Nada de urgente, a não ser terminar o livro, e isto não me preocupava muito, pois já estava convencido de que ninguém o aceitaria mesmo. Apesar disso, Fillmore estava muito impressionado por ele. Quando chegava à tarde com uma garrafa embaixo do braço a primeira coisa que fazia era ir até a mesa e ver quantas páginas eu havia produzido. A princípio eu apreciava essa demonstração de entusiasmo, mas depois, quando já estava secando, ficava infernalmente inquieto ao vê-lo fuçando de um lado para outro, procurando as páginas que deviam ter escorrido de mim como água de uma torneira. Quando nada havia para mostrar sentia-me exatamente como alguma cadela que ele tivesse abrigado. Lembrome que ele costumava dizer a respeito de Jackie:
"Estaria tudo muito bem se pelo menos ela me virasse o cu de vez em quando". Se fosse mulher, eu ficaria muito satisfeito em virar-lhe o cu: seria bem mais fácil do que fornecer-lhe as páginas que ele esperava.
Todavia, procurava deixar-me à vontade. Havia sempre abundância de comida e vinho, e de vez em quando ele insistia para que eu o acompanhasse a um dancing. Gostava de ir a um lugar de negros na Rue d'Odessa onde havia uma mulata bem aparentada que de vez em quando voltava para casa conosco. A única coisa que o aborrecia era não conseguir encontrar uma mulher francesa que gostasse de beber. Eram todas sóbrias demais para satisfazê-lo... Gostava de levar uma mulher para o estúdio e encher a cara com ela antes de entrar no negócio. Gostava também de fazê-la pensar que era um artista. Como o homem de quem alugara o apartamento era pintor, não se tornava difícil criar uma impressão; as telas que encontrou no armoire foram logo pregadas nas paredes e as não acabadas foram ostensivamente montadas sobre cavaletes. Infelizmente todas tinham caráter surrealista e a impressão que causavam era em geral desfavorável. Entre uma puta, uma concierge e um ministro de gabinete existe muita diferença de gosto no que se refere a pinturas. Foi motivo de grande alívio para Fillmore quando Mark Swift começou a visitar-nos regularmente com a intenção de fazer meu retrato. Fillmore tinha grande admiração por Swift. Era um gênio, dizia ele. E embora houvesse algo de violento em tudo quanto fazia, quando pintava um homem ou um objeto a gente podia reconhecer o que era.
A pedido de Swift, eu começara a deixar crescer a barba. O formato de meu crânio, afirmava, exigia uma barba. Tinha de sentar-me ao lado da janela, a Torre Eiffel por trás de mim, porque ele queria também a Torre Eiffel no quadro. Queria igualmente a máquina de escrever no quadro. Kruger adquiriu também o hábito de aparecer mais ou menos nessa época; sustentava que Swift nada entendia de pintura. Exasperava-o ver coisas fora de proporção. Acreditava nas leis da Natureza, implicitamente; Swift não dava a menor importância à Natureza; queria pintar o que havia dentro de sua cabeça. Seja como for, havia agora o meu retrato de Swift pendurado no cavalete e, embora tudo estivesse fora de proporção, até mesmo um ministro de gabinete podia ver que era uma cabeça humana, um homem com barba. A concierge começou, realmente, a tomar grande interesse pelo quadro; achava a semelhança impressionante. E gostava da idéia de mostrar a Torre Eiffel no fundo.
As coisas correram assim pacificamente durante um mês ou mais. A vizinhança agradava-me, particularmente à noite quando sua esqualidez e lugubridade se faziam sentir. A pequena Place, tão encantadora e tranqüila ao crepúsculo, assumia o mais desolador e sinistro aspecto quando caía a escuridão. Havia aquele comprido e alto muro fechando um dos lados do quartel, contra o qual sempre se via um casal abraçando-se furtivamente - muitas vezes sob a chuva. Cena deprimente, ver dois amantes apertados contra um muro de prisão sob melancólica luz de rua; como se tivessem sido levados até os últimos limites. O que se passava dentro dos muros era também deprimente.
Nos dias de chuva, eu costumava ficar em pé ao lado da janela e olhar a atividade lá embaixo, como se fosse algo que se passasse em outro planeta. Parecia-me incompreensível.
Tudo feito de acordo com um programa, mas um programa que devia ter sido traçado por um lunático. Lá estavam eles, chapinhando na lama, os clarins tocando, os cavalos investindo - tudo dentro de quatro paredes. Uma batalha simulada. Uma porção de soldadinhos de chumbo que não tinham o mínimo interesse em aprender a matar ou a engraxar as botas ou escovar os cavalos. Tudo absolutamente ridículo, mas parte do plano das coisas. Quando nada tinham a fazer pareciam ainda mais ridículos; coçavam-se, andavam de um lado para outro com as mãos nos bolsos, erguiam os olhos para o céu. E quando aparecia um oficial, batiam os calcanhares e faziam continência. Uma casa de loucos, parecia-me. Até os cavalos pareciam tolos. E às vezes a artilharia era arrastada para fora, eles desciam ruidosamente a rua em desfile e os transeuntes permaneciam em pé boquiabertos, admirando os belos uniformes. Para mim davam sempre a impressão de um corpo de exército em retirada; tendo algo de esfarrapado, sujo, abatido, com uniformes grandes demais para seus corpos, perdida toda a vivacidade que possuíra em tão alto grau como indivíduos.
Quando o sol aparecia, porém, as coisas ficavam diferentes. Havia um raio de esperança em seus olhos, caminhavam mais elàsticamente, demonstravam um pouco de entusiasmo.
Então o colorido das coisas surgia graciosamente e havia aquela agitação tão característica dos franceses; no bistrot da esquina, tagarelavam alegremente enquanto bebiam e os oficiais pareciam mais humanos, mais franceses, poder-se-ia dizer. Quando sai o sol, qualquer lugar em Paris pode parecer bonito; e se há um bistrot com um toldo baixado, algumas mesas na calçada e bebidas coloridas nos copos, então as pessoas parecem completamente humanas. E são humanas - são a gente melhor do mundo quando brilha o sol! Tão inteligente, tão indolente, tão descuidada! É um crime arrebanhar gente assim em quartéis, submetê-las a exercícios, classificá-la em praças, sargentos, coronéis e não sei que mais.
Como disse, as coisas corriam suavemente. De vez em quando, Carl aparecia com um trabalho para mim, artigos de viagem que ele próprio odiava escrever. Pagavam apenas cinqüenta francos por peça, mas era fácil fazer porque eu precisava apenas consultar os números atrasados e refazer os artigos velhos. As pessoas só lêem essas coisas quando estão sentadas numa privada ou matando tempo numa ala de espera. O principal era manter os adjetivos bem atualizados - o resto era uma questão de datas e estatísticas. Quando era um artigo importante o próprio chefe do departamento assinava-o; era um débil mental que não sabia falar bem língua alguma, mas sabia encontrar defeitos. Se achava um parágrafo que lhe parecia bem escrito, dizia: "É assim que quero que escreva. Isto está bonito. Você tem minha permissão para usá-lo em seu livro." Esses parágrafos bonitos, tirávamos às vezes da enciclopédia ou de um guia antigo. Alguns deles Carl incluía em seu livro - tinham um caráter surrealista.
Uma noite, depois de ter dado um passeio, abri a porta e uma mulher saltou para fora do quarto de dormir. "Então você é o escritor!" exclamou imediatamente e olhou para minha barba como para confirmar sua impressão. "Que barba horrível!" disse. "Acho que vocês aqui devem ser loucos." Fillmore estava atrás dela com um cobertor na mão. "É uma princesa", disse, estalando os lábios, como se tivesse acabado de provar algum raro caviar.
Os dois estavam vestidos para rua; não pude compreender o que faziam com as roupas de cama. Ocorreu-me então imediatamente que Fillmore deveria tê-la arrastado para o dormitório a fim de mostrar-lhe seu saco de roupa suja. Sempre fazia isso com uma mulher nova, especialmente se fosse uma française. "Sem dinheiro, não há roupa!" era o que estava bordado no saco de roupa suja, e Fillmore tinha obsessão de explicar esse lema a toda fêmea que chegava. Mas esta dama não era uma française - isto ele me tornou claro imediatamente. Era russa - e nada menos que uma princesa.
Fillmore borbulhava de excitação, como uma criança que acaba de encontrar um brinquedo novo. "Ela fala cinco línguas!" disse, evidentemente esmagado por tanto talento.
"Não, quatro!" corrigiu ela prontamente.
"Bem, quatro então... De qualquer maneira, é diabòlicamente inteligente. Você precisa vê-la falar."
A princesa estava nervosa. Coçava a coxa e esfregava o nariz. "Por que quer ele arrumar a cama agora?" perguntou-me abruptamente. "Pensa que vai conquistar-me desse jeito? É uma criança grande. Comporta-se vergonhosamente. Levei-o a um restaurante russo e ele dançou como um negro." Sacudiu o traseiro para ilustrar. "E fala demais.
Muito alto. Fala bobagem." Ela corria pelo aposento, examinando as pinturas e os livros, conservando o queixo bem erguido o tempo todo, mas coçando-se intermitentemente.
De vez em quando virava como navio de guerra e descarregava uma bordada. Fillmore continuava a segui-la com uma garrafa numa mão e um copo na outra. "Pare de seguir-me desse jeito!" exclamou ela. "E não tem outra coisa de beber senão isto? Não pode arranjar uma garrafa de champanha? Preciso tomar um pouco de champanha. Meus nervos! Meus nervos!"
Fillmore tentou segredar algumas palavras em meu ouvido. "Uma artista... uma estrela de cinema... um sujeito qualquer enganou-a e ela não consegue esquecer-se disso... vou fazê-la encher a cara..."
"Então vou dar o fora", estava eu dizendo, quando a princesa nos interrompeu com um grito. "Por que estão cochichando assim?" gritou, batendo o pé. "Não sabem que isso não é delicado? E você, pensei que fosse sair comigo! Preciso ficar bêbeda esta noite, já lhe disse."
"Sim, sim", dise Fillmore, "iremos daqui a um minuto. Quero apenas mais um gole."
"Você é um porco!" gritou ela. "Mas é também um bom rapaz. Só que é espalhafatoso. Não tem boas maneiras." Virou-se em minha direção. "Posso confiar em que ele se comporte? Preciso ficar bêbeda esta noite, mas não quero que ele me envergonhe. Talvez volte aqui depois. Gostaria de falar-lhe. Você parece mais inteligente."
Quando iam saindo, a princesa apertou-me a mão cordialmente e prometeu voltar uma noite para jantar - "quando eu estiver sóbria", disse.
"Ótimo!" disse eu. "Traga junto outra princesa - ou uma condessa pelo menos. Trocamos a roupa de cama todo sábado."
Pelas três da madrugada Fillmore entra cambaleante... sozinho. Impetuoso como um transatlântico e fazendo barulho como um cego com sua bengala rachada. Tap, tap, tap, pelo monótono caminho abaixo... "vou direto para a cama", diz, quando passa marchando ao meu lado. "Conto-lhe tudo amanhã". Entra no quarto e joga para trás as cobertas. Ouço-o resmungando: "Que mulher! Que mulher!" Um segundo depois, sai de novo, de chapéu e com a bengala rachada na mão. "Eu sabia que alguma coisa assim ia acontecer. Ela é louca!"
Rebusca um pouco na cozinha e depois volta para o estúdio com uma garrafa de Anjou. Tenho de sentar-me e tomar um copo com ele.
Pelo que pude perceber da história, tudo começou no RondPoint dês Champs Elysées, onde ele parou para tomar um trago a caminho de casa. Como de costume, naquela hora o ferrasse estava cheio de aves de rapina. Ela estava sentada bem no corredor com uma pilha de pratinhos à frente; embebedava-se sossegadamente sozinha quando
Fillmore passou por acaso e atraiu seu olhar. "Estou bêbeda", disse ela, dando risadinhas, "não quer sentar-se?" E depois, como se fosse a coisa mais natural do mundo, começou imediatamente a contar a história de seu diretor cinematográfico, como ele lhe dera o fora, como se jogara ela no Sena e assim por diante. Não se lembrava mais em que ponte fora, mas só que havia uma multidão em roda quando a pescaram da água. Além disso, não via que diferença faria saber de que ponte se jogara - por que fazia ele tais perguntas? Ria histèricamente e, de repente, teve vontade de sair - queria dançar. Vendo-o hesitar, abriu impulsivamente a bolsa e tirou uma nota de cem francos.
Um momento depois, porém, decidiu que cem francos não bastavam. 'Tem algum dinheiro?" perguntou. Não, não tinha muito no bolso, mas tinha um talão de cheques em casa. Por isso, correram em busca do talão de cheques e então eu apareci exatamente quando ele explicava a ela o negócio do "Sem dinheiro, não há roupa."
No caminho haviam parado no Poisson d'Or para comer qualquer coisa, que ela fez descer com alguns vodcas. Lá se sentia em seu elemento, beijando-lhe todos a mão e murmurando Príncesse, Princesse. Apesar de bêbeda, conseguia manter a dignidade. "Não balance o traseiro desse jeito", repetia, enquanto dançavam.
Era idéia de Fillmore, quando a levou para o estúdio, ficar lá. Contudo, como era uma garota tão inteligente e tão extravagante, resolvera concordar com seus caprichos e adiar o grande acontecimento. Imaginara mesmo a perspectiva de topar com outra princesa e trazer as duas de volta. Quando saíram de novo, ele estava de bom humor e disposto, se necessário, a gastar algumas centenas de francos com ela. Afinal, não se encontra uma princesa todo dia.
Desta vez, ela o arrastou para outro lugar, um lugar onde era ainda mais conhecida e onde não haveria dificuldade em descontar um cheque, segundo afirmou. Todos estavam vestidos a rigor e houve mais bobagens de curvatura e beija-mão, enquanto o garçom os levava até uma mesa.
No meio de uma dança ela deixou de repente a pista com lágrimas nos olhos. "Que aconteceu?" disse ele, "que fiz eu desta vez?" E instintivamente pôs a mão no traseiro, pensando que talvez ele ainda estivesse balançando. "Não foi nada", disse ela. "Você não fez nada. Vamos, você é um bom rapaz." E com isso arrastou-o de novo para a pista e começou a dançar com abandono. "Mas que houve com você?", murmurou ele. "Não foi nada", repetiu ela. "Vi alguém, só isso." E depois, com um repentino ímpeto de cólera: "Por que me faz ficar bêbeda? Não sabe que isso me deixa louca?"
"Tem um cheque?" disse ela. "Precisamos sair daqui". Chamou o garçom e segredou-lhe algo em russo. "É um cheque bom?" perguntou, depois que o garçom desapareceu.
E, em seguida, impulsivamente: "Espere-me lá embaixo no vestiário. Preciso telefonar para alguém."
Após o garçom ter trazido o troco, Fillmore desceu vagarosamente até o vestiário para esperá-la. Ficou andando de um lado para outro, cantarolando ou assobiando baixinho, e estalando os lábios na antecipação do esperado caviar. Passaram cinco minutos. Dez minutos. Ainda assobiando baixinho.
Quando passaram vinte minutos e nenhuma princesa apareceu, começou a ficar desconfiado. O atendente do vestiário informou que fazia muito tempo que ela havia saído.
Correu para fora. Havia lá um negro de libré com um grande sorriso no rosto. Sabia o negro para onde ela havia ido? Sabia. O negro disse: "Ouvi Coupole, só isso, senhor!"
No Coupole, encontrou-a sentada diante de um coquetel, tendo no rosto uma expressão sonhadora, como se estivesse em transe. Sorriu quando o viu.
"É decente fazer uma coisa dessas", diz ele, "fugir desse jeito? Você poderia ter dito que não gostava de mim..."
Diante disso ela se inflama e fica teatral. E depois de um jorro de palavras exaltadas, começa a choramingar e gemer. "Sou louca", soluça. "E você também é louco.
Quer dormir comigo e eu não quero dormir com você." Depois começa a falar desvairadamente sobre seu amante, o diretor cinematográfico que viu na pista de dança.
É por isso que precisou fugir do lugar. É por isso que toma entorpecentes e fica bêbeda toda noite. É por isso que se jogou no Sena. Balbucia desse jeito, fala como é louca e depois, de repente, tem uma idéia. "Vamos ao Bricktop's!" Havia lá um homem que ela conhecia... prometera-lhe um emprego antigamente. Tinha certeza de que ele a ajudaria.
"Quanto vai custar isso?" pergunta Fillmore cautelosamente. Ia custar muito, reconheceu ela imediatamente. "Mas, escute, se me levar ao Bricktop's, prometo ir para casa com você." Ela foi suficientemente honesta para acrescentar que ia custar-lhe quinhentos ou seiscentos francos. "Mas eu valho isso! Você não sabe que mulher eu sou. Não há outra como eu em toda a Paris..."
"Isso é o que pensa!" Seu sangue ianque estava começando a subir. "Mas não vejo por quê. Não vejo por que você vale alguma coisa. É apenas uma pobre filha da puta maluca. Francamente, prefiro dar cinqüenta francos a alguma pobre mulher francesa; pelo menos elas dão à gente alguma coisa em troca."
Ela subiu a serra quando ele mencionou as mulheres francesas. "Não me fale nessas mulheres! Odeio-as! São estúpidas... são feias... são mercenárias. Pare com isso, estou-lhe dizendo!"
Um momento depois ela se acalmou de novo. Entrou em novo rumo, "Querido", murmurou, "você não sabe que aparência tenho quando despida. Sou linda!" E segurou os seios com as duas mãos.
Mas Fillmore permaneceu impassível. "Você é uma cadela!" disse friamente. "Não me importaria gastar algumas centenas de francos com você, mas você é louca. Nem sequer lavou a cara. Seu hálito fede. Pouco se me dá que seja princesa ou não... Nada quero dessa sua variedade de russo de bunda empinada. Você devia sair para a rua e oferecer-se. Não é melhor que qualquer francesinha. Nem é sequer tão boa. Eu não gastaria mais um único sou com você. Você devia ir para a América... lá é o lugar para uma sanguessuga como você..."
Ela absolutamente não pareceu ter ficado desconcertada com esse discurso. "Acho que você está com um pouco de medo de mim", disse.
"Medo de você? De você?"
"Você é,apenas um meninozinho", disse ela. "Não tem boas maneiras. Quando me conhecer melhor falará diferente... Por que não procura ser bonzinho? Se não quer ir comigo esta noite, muito bem. Estarei no Rond-Point amanhã entre cinco e sete. Gosto de você."
"Não pretendo ir ao Ron-Point amanhã, nem qualquer outra tarde. Não quero mais ver você... nunca. Estou cheio de você. vou sair e arranjar uma bela francesinha.
Pode ir para o inferno!"
Ela o olhou e sorriu com um ar de tédio. "Isso é o que diz agora. Mas espere só! Espere até ter dormido comigo. Você não sabe que lindo corpo eu tenho. Pensa que as mulheres francesas sabem amar... espere! Deixarei você louco por mim. Gosto de você. Só que não é civilizado. Não passa de um menino. Fala demais..."
"Você é louca", disse Fillmore. "Eu não cairia por você ainda que fosse a última mulher sobre a terra. Vá para casa lavar a cara". E afastou-se sem pagar as bebidas.
Alguns dias depois, porém, a princesa estava instalada. Era uma princesa genuína, disso tínhamos certeza. Mas estava com gonorréia. Seja como for, a vida nada tem de monótono aqui. Fillmore tem bronquite, a princesa, como estava dizendo, tem gonorréia e eu tenho hemorróidas. Ainda agora troquei seis garrafas vazias na épicerie russa do outro lado da rua. Nenhuma gota desceu pela minha goela. Nada de carne, nada de vinho, nada de pratos ricos, nada de mulheres. Só fruta e óleo de parafina, gotas de arnica e ungüento de adrenalina. E nenhuma cadeira, neste lugar, que seja bastante confortável. Ainda agora, olhando para a princesa, estou esticado como um paxá. Paxá! Isso me faz lembrar o nome dela: Macha. Não me soa tão diabòlicamente aristocrático. Faz-me lembrar do "Cadáver Vivo".
A princípio pensei que um ménage à trois ia ser embaraçoso, mas absolutamente não. Quando a vi mudar-se, pensei que tudo estava novamente acabado para mim, que teria de procurar outro lugar, mas Fillmore logo me deu a entender que estava apenas erguendo-a até que ela se sustentasse sobre seus próprios pés. com uma mulher como aquela não sei o que significa tal expressão; pelo que posso ver, tem conservado a cabeça erguida a vida inteira. Diz que a revolução a expulsou da Rússia, mas tenho certeza de que, se não fosse a revolução, seria alguma outra coisa. Ela tem a impressão de ser uma grande atriz; nunca a contradizemos em coisa alguma porque é tempo perdido. Fillmore acha-a divertida. Quando sai para o serviço pela manhã, joga dez francos sobre o travesseiro dela e dez sobre o meu; à noite nós três vamos a um restaurante russo lá embaixo. A vizinhança está cheia de russos e Macha já encontrou um lugar onde gastar um pouco a crédito. Naturalmente, dez francos por dia nada são para uma princesa; ela deseja caviar de vez em quando e champanha, e precisa de um novo e completo guarda-roupa a fim de arranjar outro emprego no cinema. Não tem agora outra coisa a fazer senão matar o tempo. Está engordando.
Esta manhã levei um bom susto. Depois de ter lavado o rosto, apanhei a toalha dela por engano. Parece que não conseguimos ensiná-la a pôr a toalha no cabide certo.
E quando gritei com ela por causa disso, respondeu-me maciamente: "Meu caro, se alguém pudesse ficar cego por causa disso, eu estaria cega há anos."
E depois há a privada, que todos nós temos de usar. Procuro falar-lhe em tom paternal sobre o assento da privada. "Oh, zut!" diz ela. "Se tem tanto medo, vou a um café." Mas não é necessário fazer isso, explico. Basta tomar precauções comuns. "Tut tut!" diz ela. "Então não me sento... Fico em pé."
Tudo está atrapalhado com ela aqui. Primeiro não queria dar porque estava incomodada. Durou oito dias isso. Começamos a pensar que estivesse fingindo. Mas não, não estava fingindo. Um dia, quando tentava pôr as coisas em ordem, encontrei um chumaço de algodão embaixo da cama, manchado de sangue. Ela joga tudo embaixo da cama: cascas de laranja, chumaços de algodão, rolhas, garrafas vazias, tesoura, camisinhas usadas, livros, travesseiros...
Só arruma a cama na hora de dormir. Fica a maior parte do tempo deitada na cama lendo seus jornais russos. "Meu caro", diz-me, "se não fosse por meus jornais, absolutamente não sairia da cama." É isso exatamente! Nada senão jornais russos. Nem um pedacinho de papel higiênico por aqui - nada senão jornais russos para limpar a bunda. Seja como for, falando de suas idiossincrasias, depois de terminado o fluxo menstrual, depois de ter descansado convenientemente e acumulado uma boa camada de banha na cintura, ela ainda não queria dar. Alegava que só gostava de mulheres. Para ficar com um homem tinha de ser primeiro convenientemente estimulada. Queria que a levássemos a um prostíbulo onde apresentassem o número do cão e o homem. Ou melhor ainda, dizia, Leda e o cisne: o bater das asas excitava-a terrivelmente.
Certa noite, para submetê-la a prova, fomos com ela a um lugar que sugeriu. Antes, porém, que tivéssemos tido oportunidade de tocar no assunto com a madama, um inglês bêbedo, que se achava sentado à mesa ao lado, entabulou conversa conosco. Já estivera lá em cima duas vezes, mas queria ir mais uma. Tinha apenas vinte francos no bolso e, não sabendo francês, pediu-nos que o ajudássemos a pechinchar com a mulher em que estava de olho. Aconteceu que era uma negra, uma vigorosa puta da Martinica, bela como uma pantera. Tinha também um temperamento encantador. A fim de convencê-la a aceitar os restantes sous do inglês, Fillmore teve de prometer que iria também com ela assim que se desocupasse do inglês. A princesa olhou, ouviu tudo quanto foi dito e depois assumiu ares de importância. Estava ofendida.
"Bem", disse Fillmore, "se deseja algo de excitante, pode observar-me fazendo o negócio!" Ela não queria observá-lo... queria observar um cisne. "Bem, por Jesus", disse ele, "sou tão bom quanto um cisne em qualquer dia... talvez um pouco melhor." Assim, uma palavra puxou outra e finalmente o único meio que encontramos para a paziguá-la foi chamar uma das mulheres e deixar que as duas se acariciassem... Quando Fillmore voltou com a negra, os olhos dela estavam faiscantes. Pelo jeito como Fillmore a olhava, pude ver que ela devia ter tido uma atuação excepcional e comecei a sentir-me também excitado. Fillmore deve ter percebido como me sentia e que provação era ficar sentado olhando a noite inteira, pois de repente puxou do bolso uma nota de cem francos e, colocando-a à minha frente, disse: "Escute aqui, você provavelmente está precisando de uma foda mais que qualquer de nós.
Tome isto e escolha alguém." Não sei por que esse gesto me levou a estimá-lo mais do que tudo quanto já havia feito por mim, e havia feito coisas consideráveis.
Aceitei o dinheiro no espírito em que foi dado e prontamente fiz sinal à negra para preparar-se para outra foda. Isso pareceu enfurecer a princesa mais do que qualquer outra coisa. Queria saber se não havia ali alguém suficientemente boa para nós a não ser aquela negra. Respondi-lhe rudemente NÃO. E tinha razão - a negra era a rainha do harém. Bastava olhar para ela para ter uma ereção. Seus olhos pareciam nadar em esperma. Estava bêbeda com tantos pedidos que lhe faziam. Não podia mais andar direito - pelo menos, foi o que me pareceu. Subindo a estreita escada de caracol não pude resistir à tentação de enfiar-lhe a mão no vão das pernas; continuamos a subir a escada desse jeito, ela voltando a cabeça para olhar-me com um sorriso alegre e sacudindo um pouco a bunda quando sentia muita cócega.
Foi uma boa sessão em todos os sentidos. Todos estavam felizes. Macha também parecia com boa disposição. Por isso, na noite seguinte, após ela haver tomado sua ração de champanha e caviar, após ter-nos contado outro capítulo da história da sua vida, Fillmore começou a trabalhar com ela. Parecia que finalmente ia obter a recompensa. Ela deixara de resistir. Ficou deitada com as pernas abertas e deixou que ele mexesse à vontade. Depois, quando subia sobre ela, exatamente quando começava a enfiar, informou-o indiferentemente de que estava com gonorréia. Ele rolou de cima dela como uma tora. Ouvi-o andando na cozinha à procura do sabão preto que usava em ocasiões especiais e, alguns momentos depois, estava em pé ao lado da minha cama com uma toalha nas mãos, dizendo: "Pode imaginar uma coisa dessas?
Aquela princesa filha da puta está com gonorréia!" Parecia bastante assustado. Enquanto isso, a princesa mastigava uma maçã e pedia seus jornais russos. Para ela aquilo era uma boa piada. "Há coisas piores do que isso", disse, deitada lá na cama e falando conosco através da porta aberta. Finalmente, Fillmore começou também a considerar o caso como uma piada e, abrindo outra garrafa de Ahjou, despejou um gole e emborcou-o. Não passava de uma hora da madrugada mais ou menos, e por isso ficamos sentados conversando durante algum tempo. Não ia desistir por causa de uma coisa daquelas, disse-me. Naturalmente, precisava ter cuidado... havia a velha dose que apanhara no Havre. Não conseguia mais lembrar-se de como acontecera aquilo. Às vezes, quando ficava bêbedo, esquecia de lavar-se. Não era coisa muito terrível, mas nunca se podia saber o que ia acontecer posteriormente. Não queria que alguém lhe fizesse massagem na próstata. Não, disso não gostava. A primeira dose que apanhara, fora no colégio. Não sabia se a garota lha havia passado ou se ele é que contaminara a garota; acontecia tanta coisa engraçada no colégio, que nunca se sabia em quem acreditar. Quase todas as meninas haviam ficado grávidas uma vez ou outra. Muito ignorantes... os próprios professores eram ignorantes. Correra o boato de que um dos professores se castrara...
Seja como for, na noite seguinte decidiu arriscar-se... com uma camisinha. Não há muito risco assim, a não ser que ela se rasgue. Comprara algumas do tipo especial de escama de peixe - eram as mais seguras, afirmou-me. Mas também não deu certo. Era muito apertada. "Jesus, em mim nada há de anormal", disse. "Que acha você disso? Alguém meteu nela para dar-lhe aquela dose. Deve ter sido anormalmente pequeno."
Assim, falhando uma coisa após outra, ele desistiu completamente. Agora ficam deitados como irmão e irmã, com sonhos incestuosos. Macha diz, com sua maneira filosófica:
"Na Rússia acontece muitas vezes um homem dormir com uma mulher sem tocá-la. Podem continuar assim semanas e semanas, sem nunca pensarem nisso. Até que - paf! - uma vez que ele a toca... paf! paf! Depois disso é paf, paf, paf!"
Todos os esforços agora estão concentrados em deixar Macha em forma. Fillmore acha que, se a curar da gonorréia, ela talvez fique mais larga. Uma idéia estranha.
Por isso, comprou-lhe um regador, um estoque de permanganato, uma seringa e outras pequenas coisas recomendadas por um médico húngaro, um pequeno charlatão abortador perto da Place d'Aligre. Parece que o patrão dele engravidou certa vez uma garota de dezesseis anos e ela o apresentou ao húngaro; e depois o patrão teve um belo cancro e foi ao húngaro de novo. É assim que se fazem relações em Paris: amizades genito-urinárias. Seja como for, sob nossa rigorosa supervisão, Macha está se tratando.
Na noite passada, porém, houve confusão durante algum tempo. Ela enfiou o supositório e depois não conseguia encontrar o cordel preso a ele. "Meu Deus!" gritava.
"Onde está esse cordel? Meu Deus! Não consigo encontrar o cordel!"
"Já procurou embaixo da cama?" perguntou Fillmore.
Finalmente se acalmou. Mas só por alguns minutos. Em seguida, disse: "Meu Deus! Estou sangrando de novo. Acabo de ter o incômodo e agora há gouttes de novo. Deve ser aquele champanha barato que você compra. Meu Deus, você quer que eu sangre até morrer?" Sai do quarto vestida com um quimono e com uma toalha enfiada entre as pernas, tentando parecer tão majestosa como sempre. "Toda a minha vida tem sido isso", diz ela. "Sou uma neurastênica. O dia inteiro correndo de um lado para outro e à noite, bêbada de novo. Quando vim para Paris ainda era uma mocinha inocente. Só lia Villon e Beaudelaire. Mas tinha então 300.000 francos suíços no banco e estava louca por divertir-me, porque na Rússia sempre haviam sido severos comigo. E como era ainda mais bela do que hoje, todos os homens caíam-me aos pés." Nesse ponto ergueu a banha que se formara na cintura. "Não devem pensar que eu tinha um estômago assim, quando vim para cá... isso foi de todo o veneno que me deram para beber... aqueles horríveis apéritifs que os franceses são loucos por beber... Depois conheci meu diretor cinematográfico e ele quis que eu desempenhasse um papel. Dizia que eu era a criatura mais deslumbrante do mundo e implorava-me para dormir com ele toda noite. Eu era uma jovem e tola virgem, por isso uma noite deixei que me violentasse. Desejava ser uma grande atriz e não sabia que ele estava cheio de veneno. Passou-me a gonorréia... e agora gostaria que ele a tivesse pegado de novo. Foi só por culpa dele que me suicidei no Sena... Por que estão rindo? Não acreditam que eu me suicidei? Posso mostrar-lhes os jornais... há meu retrato em todos eles. vou mostrar-lhes um dia os jornais russos... escreveram coisas maravilhosas a meu respeito... Mas, querido, você sabe que antes preciso ter um vestido novo. Não posso conquistar aquele homem com os trapos que visto. Além disso, ainda devo à minha costureira 12.000 francos..."
Daí por diante é uma longa história sobre a herança que ela está tentando receber. Tem um jovem advogado, um francês, que parece bastante tímido e está tentando recuperar sua fortuna. De tempos a tempos, costumava dar-lhe uns cem francos por conta. "É miserável, como todos os franceses", diz ela. "E eu era tão bela que ele não conseguia desviar os olhos de mim. Implorava-me sempre para foder com ele. Fiquei tão enjoada e cansada de ouvi-lo que uma noite disse sim, só para que ficasse quieto e também para não perder meus cem francos de vez em quando".
Interrompeu-se por um momento para rir historicamente. "Meu caro", continuou, "o que aconteceu com ele foi tão engraçado que não cabe em palavras. Chamou-me um dia pelo telefone e disse: "Preciso vê-la imediatamente... é muito importante." E quando me encontrei com ele mostrou-me o papel do médico - e era gonorréia! Meu caro, ri na cara dele. Como poderia eu saber que ainda tinha gonorréia? "Você queria foder-me, fui eu que o fodi!" Isso fez que ele ficasse quieto. É assim que acontece na vida... a gente de nada suspeita e, então, de repente, paf, paf, paf! Era tão tolo que se apaixonou de novo por mim. Mas pediu que me comportasse e não corresse por Montparnasse a noite inteira bebendo e fodendo. Disse que eu o estava deixando louco. Queria casar-se comigo, mas então sua família ouviu falar a meu respeito e convenceu-o a ir para a Indochina..."
Daí Macha passa calmamente para o caso que teve com uma lésbica. "Foi muito engraçado, meu caro, a maneira como me pegou certa noite. Eu estava no "Fétiche" e bêbeda como de hábito. Ela me levou de um lugar para outro e me acariciou a noite inteira embaixo da mesa até eu não poder suportar mais. Depois, levou-me para seu apartamento e, por duzentos francos, deixei que me chupasse. Queria que eu vivesse com ela, mas eu não ia deixá-la chupar-me toda noite... enfraquece muito a gente. Além disso, posso dizer-lhe que não ligo mais tanto para lésbicas como ligava. Prefiro dormir com um homem, embora me machuque. Quando fico terrivelmente excitada, não posso conter-me mais... três, quatro, cinco vezes... assim mesmo! Paf, paf, paf! E depois sangro e isso me faz muito mal porque tenho tendência a anemia. É por isso que de vez em quando preciso deixar-me chupar por uma lésbica..."
QUANDO O FRIO CHEGOU A PRINCESA desapareceu. Estava ficando desconfortável o estúdio, com apenas um pequeno fogão a carvão; o quarto de dormir era como uma geladeira e a cozinha não parecia melhor. Havia só um pequeno espaço, ao redor do fogão, onde fazia realmente calor. Por isso Macha encontrou um escultor que era castrado. Falou-nos sobre ele antes de ir-se embora. Alguns dias depois, tentou voltar, mas Fillmore não quis saber disso. Ela se queixava de que o escultor a conservava acordada a noite inteira beijando-a.
Além disso, não havia água quente para suas duchas. Mas finalmente concluiu que fora bom não ter voltado. "Não quero mais aquele castiçal ao meu lado", disse ela.
"Sempre aquele castiçal... deixava-me nervosa. Se pelo menos você fosse veado, eu teria ficado com você..."
Depois que Macha foi embora, nossas noites assumiram caráter diferente. Muitas vezes ficávamos sentados ao lado do fogo bebendo ponche quente e conversando sobre a vida lá nos Estados Unidos. Falávamos sobre isso como se nunca esperássemos voltar para lá. Fillmore tinha um mapa da cidade de Nova York, que havia pregado na parede; costumávamos passar noites inteiras discutindo as virtudes relativas de Paris e Nova York. E inevitavelmente sempre se introduzia em nossas discussões a figura de Whitman, aquela figura solitária que a América produziu no curso de sua breve vida. Em Whitman toda a cena americana se torna viva, seu passado e seu futuro, seu nascimento e sua morte. Tudo quanto tem valor na América Whitman expressou e nada mais resta a dizer. O futuro pertence à máquina, aos robôs. Ele, Whitman, foi o Poeta do Corpo e da Alma. O primeiro e o último poeta. Hoje é quase indecifrável, um monumento coberto de grosseiros hieróglifos para os quais não há chave. Quase parece estranho mencionar-lhe o nome aqui. Não há nas línguas da Europa equivalente para o espírito que ele imortalizou. A Europa está saturada de arte, seu solo está cheio de ossos mortos e seus museus estão estourando de tesouros roubados, mas o que a Europa nunca teve é um espírito livre e sadio, aquilo que se pudesse chamar de HOMEM. Goethe foi o que mais se aproximou, mas Goethe era um medalhão, em comparação. Goethe era um cidadão respeitável, um pedante, um maçante, um espírito universal, mas estampado com a marca de fábrica alemã, com a águia de duas cabeças. A serenidade de Goethe, sua atitude calma e olímpica, nada mais é que o letárgico estupor de uma deidade burguesa alemã. Goethe é um fim de alguma coisa, Whitman é um começo.
Depois de uma discussão dessa espécie eu às vezes me vestia e saía para um passeio, embrulhado em um suéter, um paletó de primavera de Fillmore e uma capa por cima.
Fazia frio borrascoso e úmido contra o qual não havia proteção a não ser um espírito forte. Dizem que a América é um país de extremos, e é verdade, que o termômetro registra graus de frio praticamente desconhecidos aqui; mas o frio do inverno de Paris é um frio desconhecido na América, é um frio psicológico, um frio tanto interior como exterior. Se nunca há gelo aqui, também nunca há degelo. Assim como se protegem contra a invasão de sua vida privada, com seus altos muros, seus ferrolhos e venezianas, suas "concierges" resmungonas, xingadoras e desleixadas, as pessoas também aprenderam a proteger-se contra o frio e o calor de um clima estimulante e vigoroso. Fortificaram-se. Proteção é a palavra-chave. Proteção e segurança. Para poderem apodrecer confortavelmente. Em uma noite úmida de inverno não é necessário olhar um mapa para descobrir a latitude de Paris. É uma cidade do norte, posto avançado construído sobre um pântano cheio de crânios e ossos. Ao longo dos bulevares há uma fria imitação elétrica de calor. Tout Vá Bien em raios ultravioletas que fazem os fregueses dos cafés Dupont parecerem cadáveres gangrenados. Tout Vá Bien!
Esse é o lema que alimenta os desconsolados mendigos que andam para cima e para baixo a noite inteira sob o chuvisco dos raios ultravioletas. Onde há luz há um pouco de calor. A gente esquenta-se olhando os bastardos gordos e seguros que engolem seus grogues, seus cafés pretos fervendo. Onde há luz há gente nas calçadas, acotovelando-se, emitindo um pouco de calor animal através de sua roupa de baixo suja e de seu hálito fétido e praguejante. É possível que numa extensão de oito ou dez quarteirões haja uma aparência de alegria, mas depois volta a noite, a noite lúgubre, sórdida e preta como gordura gelada numa terrina de sopa. Quarteirões e quarteirões de prédios de apartamentos irregulares, com toda janela hermèticamente fechada, toda frente de loja fechada e trancada. Quilômetros e quilômetros de prisões de pedra sem o mais débil brilho de calor; os cães e os gatos estão todos dentro com os canários. As baratas e os percevejos também estão seguramente encarcerados. Tout Vá Bien. Se você não tem um sou, por que não apanha simplesmente alguns jornais velhos e não faz uma cama na escadaria de uma catedral? As portas estão bem trancadas e não há correntes de vento para incomodá-lo. Melhor ainda é dormir diante das portas do metrô; lá terá companhia. Observe-os em uma noite chuvosa, lá deitados imóveis como colchões - homens, mulheres, piolhos, todos amontoados juntos e protegidos pelos jornais contra cuspidas e contra os vermes que caminham sem pernas. Observe-os sob as pontes ou sob os alpendres do mercado. Como parecem nojentos em comparação com as hortaliças limpas e brilhantes empilhadas como jóias. Até mesmo as carcaças de cavalos, vacas e carneiros penduradas nos gordurosos ganchos parecem mais convidativas. Pelo menos, essas nós vamos comer amanhã e seus próprios intestinos servirão a um propósito. Mas esses imundos mendigos deitados na chuva, a que propósito servem? Que bem nos podem fazer? Eles nos fazem sangrar durante cinco minutos, mais nada.
Oh, sim, estes são pensamentos noturnos produzidos pela caminhada sob a chuva depois de dois mil anos de Cristianismo. Agora pelo menos os pássaros estão bem sustentados, assim como os gatos e cães. Toda vez que passo pela janela da "concierge" e recebo o pleno e gelado impacto de seu olhar, tenho desejo insano de esganar todos os pássaros de criação. No fundo de todo coração gelado há uma ou duas gotas de amor - apenas o suficiente para alimentar os pássaros.
Apesar disso não posso expulsar do espírito a discrepância que existe entre idéias e vida. Uma deslocação permanente, embora tentemos encobrir as duas com um toldo brilhante. E não adianta. É preciso unir idéias a ação: se não há sexo, não há vitalidade nelas, não há ação. As idéias não podem existir sozinhas no vácuo da mente.
Estão relacionadas com vida: idéias biliares, idéias renais, idéias intersticiais etc. Se fosse apenas por amor a uma idéia, Copérnico não teria destruído o macrocosmo existente e Colombo teria naufragado no mar dos Sargaços. A estética da idéia cria vasos de flores, e vasos de flores a gente põe no peitoril da janela. Mas se não há chuva ou sol de que adianta pôr vasos de flores do lado de fora da janela?
Fillmore está cheio de idéias sobre ouro. O "mito" do ouro, diz ele. Gosto de "mitos" e gosto da idéia do ouro, mas não sou obcecado pelo assunto e não vejo por que devemos fazer vasos de flores, mesmo de ouro. Ele me diz que os franceses estão entesourando seu ouro em um compartimento hermèticamente fechado bem no fundo da superfície da terra; conta-me que há uma pequena locomotiva que corre por essas galerias e corredores subterrâneos. Aprecio enormemente a idéia. Um profundo e ininterrupto silêncio no qual o ouro dormita suavemente a uma temperatura de 17 1/4 graus centígrados. Diz que um exército trabalhando 46 dias e 37 horas não seria suficiente para contar todo o ouro enterrado embaixo do Banco da França, e que há um suprimento de reserva de dentaduras postiças, pulseiras, alianças etc. Comida suficiente também para durar oito dias e um lago por cima da pilha de ouro para resistir ao choque de altos explosivos. O ouro, diz ele, tende a tornar-se cada vez mais invisível, um mito, e nada mais de desvalorização. Excelente! Estou imaginando o que acontecerá ao mundo quando abandonarmos o padrão ouro em idéias, roupas, moral etc. O padrão ouro do amor!
Até o momento, minha idéia de colaborar comigo mesmo tem sido abandonar o padrão ouro da literatura. Minha idéia em síntese tem sido a de apresentar uma ressurreição de emoções, retratar a conduta de um ser humano na estratosfera de idéias, isto é, nas garras do delírio. Pintar um ser pré-socrático, criatura em parte bode e em parte titã. Em suma, construir um mundo sobre a base do omphalos, não sobre uma idéia abstrata pregada numa cruz. Aqui e acolá talvez você encontre estátuas esquecidas, oásis inexplorados, moinhos de vento ignorados por Cervantes, rios que correm encosta acima, mulheres com cinco ou seis seios estendidos longitudinalmente ao longo do torso. (Escrevendo a Gauguin, Strindberg disse: "J'ai vu dês arbres que ne retrouverait aucun botaniste, dês animaux que Cuvier n'a jamais supçonnés e dês hommes que vous seul avez pu créer.")
Quando Rembrandt chegou ao par foi escondido com as barras de ouro, a carne seca e as camas portáteis. Ouro é uma palavra noturna que pertence à mente ctoniana: tem em si sonho e mito. Estamos voltando à alquimia, àquela falsa sabedoria alexandrina que produziu nossos símbolos bombásticos. A verdadeira sabedoria está sendo armazenada nos subterrâneos pelos avaros do conhecimento. Está chegando o dia em que eles girarão no ar com ímãs; para encontrar um pedaço de minério você terá de subir dez mil pés com um par de instrumentos - em uma latitude fria de preferência - e estabelecer comunicação telepática com as entranhas da terra e as sombras dos mortos. Não mais Klondikes. Não mais ricas minas. Você terá de aprender a cantar e cabriolar um pouco, a ler o zodíaco e estudar suas próprias vísceras. Todo o ouro que está sendo enfiado nos bolsos da terra terá de ser extraído de novo; todo esse simbolismo terá de ser arrancado de novo dos intestinos do homem. Mas primeiro é preciso aperfeiçoar os instrumentos. Primeiro é necessário inventar aeroplanos melhores, distinguir de onde provém o ruído e não ficar doido apenas porque ouviu uma explosão embaixo da bunda. E em segundo lugar será necessário adaptar-se às frias camadas da estratosfera, tornar-se um peixe, de sangue frio, do ar. Nada de reverência. Nada de piedade. Nada de saudade. Nada de remorso. Nada de histeria. Acima e tudo, como diz Philipe Datz: "NADA DE DESÂNIMO!"
Esses são pensamentos ensolarados inspirados por um Vermouth Cassis na Place de Ia Trinité. Uma tarde de sábado e um livro "falhado" nas minhas mãos. Tudo nadando em um divino mucopus. A bebida deixa um gosto amargo de erva na minha boca, as fezes de nossa grande civilização ocidental, apodrecendo agora como as unhas dos pés dos santos. Mulheres passam - regimentos delas - todas balançando a bunda diante de mim; os sinos tocam e os ônibus sobem na calçada e colidem. O garçom limpa a mesa com um trapo sujo enquanto a patronne faz tinir a caixa registradora com diabólica alegria. Um olhar de vacuidade em meu rosto, inexpressivo, pobre de acuidade, mordendo as bundas que passam raspando em mim. No campanário em frente um corcunda bate com um malho dourado e os pombos dão alarma aos gritos.
Abro o livro - o livro que Nietzsche chamava "o melhor livro alemão que existe" - e lá diz:
"Os homens tornar-se-ão mais inteligentes e mais perspicazes; mas não melhores, mais felizes e mais fortes na ação - ou, pelo menos, só em certas épocas. Prevejo o tempo em que Deus não encontrará mais alegria neles, mas destruirá tudo para uma criação renovada. Estou certo de que tudo está planejado para esse fim, e que o tempo e a hora no futuro distante para a ocorrência dessa época renovadora já estão fixados. Mas muito tempo passará primeiro e nós poderemos ainda por milhares e milhares de anos divertir-nos sobre esta velha e querida superfície."
Excelente! Pelo menos há cem anos existia um homem cuja visão era suficiente para ver que o mundo estava liquidado. Nosso mundo ocidental! Quando vejo as figuras de homens e mulheres movendo-se apàticamente por trás de suas paredes de prisão, abrigados, isolados por algumas poucas horas, fico espantado com as potencialidades de drama ainda contidas nesses fracos corpos. Por trás das paredes cinzentas há faíscas humanas e apesar disso nunca ocorre uma conflagração. São homens e mulheres, pergunto a mim mesmo, ou são sombras, sombras de fantoches pendurados por invisíveis cordéis? Eles se movem aparentemente em liberdade, mas não têm para onde ir.
Só em um reino são livres e lá talvez possam vaguear à vontade - mas ainda não aprenderam a levantar vôo. Até agora não houve sonhos que tivessem levantado vôo.
Nenhum homem nasceu suficientemente leve, suficientemente alegre, para deixar a terra! As águias que bateram suas poderosas asas por algum tempo, vieram cair pesadamente na terra. Deixaram-nos estonteados com o bater e o ruflar de suas asas. Fiquem na terra, águias do futuro! Os céus foram explorados e estão vazios. E o que fica embaixo da terra também é vazio, cheio de ossos e sombras. Fiquem na terra e nadem por mais algumas centenas de milhares de anos!
E agora são três horas da madrugada e temos aqui um par de prostitutas dando saltos mortais sobre o chão nu. Fillmore caminha nu de um lado para outro com um copo na mão e sua pança está esticada como tambor, dura como fístula. Todo o Pernod, o champanha, o conhaque e o Anjou que engoliu a partir das três da tarde está gorgulhando em sua barriga como um esgoto.
As mulheres põem os ouvidos na barriga dele como se fosse uma caixa de música. Abrem-lhe a boca com uma abotoadeira e enfiam um trago de bebida na fenda. Quando o esgoto gorgulha ouço os morcegos voando para fora do campanário, e o sonho desliza para o artifício.
As mulheres despiram-se e nós estamos examinando o soalho para ter certeza de que elas não receberão lascas na bunda. Ainda estão com os sapatos de saltos altos.
Mas a bunda! A bunda é gasta, raspada, lixada, lisa, dura, brilhante como uma bola de bilhar ou o crânio de um leproso. Na parede está o retrato de Mona: voltada para nordeste, em linha com Cracóvia escrita em tinta verde. A sua esquerda, o Dordogne, circulado por lápis vermelho. De repente vejo à minha frente uma racha escura e cabeluda colocada numa bola de bilhar brilhante e polida; as pernas seguram-me como uma tesoura. Um olhar para aquela ferida escura e não suturada, e abre-se em meu cérebro uma profunda fenda: todas as imagens e lembranças que foram trabalhosa ou descuidadamente reunidas, rotuladas, documentadas, arquivadas, seladas e carimbadas, irrompem para fora tumultuàriamente como formigas saindo de uma fenda na calçada; o mundo deixa de girar, o tempo pára e o próprio nexo de meu sonho é rompido e dissolvido, minhas tripas espirram para fora em um grande jorro esquizofrênico, uma evacuação que me deixa frente a frente com o Absoluto. Vejo de novo as grandes mães escarrapachadas de Picasso, seios cobertos de aranhas, sua lenda escondida bem fundo no labirinto. E Molly Bloom deitada sobre um colchão sujo para a eternidade. Na porta da privada membros pintados com lápis vermelho e a madona soltando o diapasão da desgraça. Ouço uma risada selvagem e histérica, um quarto cheio de trismo, e o corpo que era preto brilha como fósforo. Risada selvagem, selvagem, absolutamente incontrolável, e aquela racha rindo também para mim, rindo através das suíças musgosas, um riso que enruga a superfície brilhante e polida da bola de bilhar. Grande puta e mãe do homem com gim nas veias. Mãe de todas as putas, aranha que nos rola em seu túmulo logarítmico, insaciável, demônio cuja risada me despedaça! Olho para dentro daquela cratera funda, mundo perdido sem deixar traços, e ouço os sinos repicando, duas freiras no Palace Stanislas com cheiro de manteiga rançosa sob as vestes, manifesto nunca impresso porque estava chovendo, guerra travada para fomentar a causa da cirurgia plástica, os Príncipes de Gales voando ao redor do mundo e condecorando os túmulos de heróis desconhecidos. Todo morcego voando para fora do campanário numa causa perdida, toda exclamação um gemido, pelo rádio, partido das valas privadas dos danados.
Daquela ferida preta e não suturada, daquela cloaca de abominações, daquele berço de cidades apinhadas onde a música de idéias é afogada em gordura fria, daquelas utopias estranguladas nasce um palhaço, um ser dividido entre beleza e feiúra, entre luz e caos, um palhaço que quando olha para baixo e de esguelha é o próprio Satã, e quando olha para cima vê um anjo amanteigado, uma lêsma de asas.
Quando olho para dentro daquela racha vejo um sinal de equação, o mundo com sinal de "igual", um mundo reduzido a zero e nenhum traço do restante. Não o zero em que Van Norden focalizou sua lanterna, não a racha vazia do homem prematuramente desiludido, mas antes um zero árabe, o sinal do qual surgem intermináveis mundos matemáticos, o fulcro que equilibra as estrelas, os sonhos de luz, as máquinas mais leves que o ar, os membros artificiais leves e os explosivos que os produziram.
Naquela racha eu gostaria de penetrar e subir até os olhos, fazê-los menear ferozmente, olhos queridos, loucos, metalúrgicos. Quando os olhos meneiam ouço de novo as palavras de Dostoiévski, ouço-as rolando página após página, com a mais minuciosa observação, com a mais louca introspecção, com todos os meios-tons de miséria ora tocados ligeira e graciosamente, ora crescendo como uma nota de órgão até o coração estourar e nada mais restar senão uma luz cegante e causticante, a luz radiante que leva as sementes fecundas das estrelas. A história da arte cujas raízes estão no massacre.
Quando olho para dentro dessa boceta fodida de puta sinto o mundo inteiro embaixo de mim, um mundo vacilante e desmoronante, um mundo gasto e polido como um crânio de leproso. Se houvesse um homem que ousasse dizer tudo quanto pensa deste mundo, não lhe restaria um palmo quadrado de terra onde ficar. Quando um homem aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos demais, humanidade supurada demais para que o homem possa florescer. A superestrutura é uma mentira e o alicerce é um medo enorme e trêmulo. Se com intervalos de séculos aparece um homem de olhar desesperado e faminto, um homem que vira o mundo de cabeça para baixo a fim de criar uma nova raça, o amor que ele traz ao mundo é transformado em fel e ele se torna um flagelo. Se de vez em quando encontramos páginas que explodem, páginas que ferem e queimam, que arrancam gemidos, lágrimas e pragas, sabemos que elas provêm de um homem com as costas na parede, um homem cuja única defesa restante são suas palavras, e suas palavras são sempre mais fortes que o peso mentiroso e esmagador do mundo, mais fortes que todos os ecúleos e rodas que os covardes inventam para esmagar o milagre da personalidade. Se algum homem ousasse traduzir tudo quanto há em seu coração, expressar o que é realmente sua experiência, o que é realmente sua verdade, penso que o mundo se despedaçaria, que se reduziria a pedacinhos e nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais reunir novamente os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na formação do mundo.
Nos quatrocentos anos transcorridos desde que apareceu a última alma devoradora, o último homem a conhecer a significação do êxtase, houve um constante e firme declínio do homem na arte, no pensamento, na ação. O mundo está esgotado: não resta um peido seco. Quem, dotado de um olho desesperado e faminto, pode ter o mais ligeiro respeito por esses governos existentes, essas leis, códigos, princípios, ideais, idéias, totens e tabus? Se alguém soubesse o que significa ler o enigma daquela coisa que hoje é chamada de "racha" ou "buraco", se alguém tivesse o menor sentimento de mistério sobre os fenômenos que são qualificados de "obscenos", este mundo partir-se-ia em pedaços. É o horror obsceno, o aspecto seco e fodido das coisas que faz esta civilização insensata parecer uma cratera. É este grande e escancarado abismo do nada que os espíritos criadores e as mães da raça levam entre as pernas. Quando um espírito faminto e desesperado aparece e faz as cobaias guincharem é porque ele sabe onde pôr o fio ligado do sexo, porque ele sabe que embaixo da dura carapaça da indiferença existe oculto o feio corte, a ferida que nunca cicatriza.
E ele põe o fio ligado bem entre as pernas; bate abaixo da cintura, queima as próprias entranhas. Não adianta calçar luvas de borracha; tudo o que pode ser fria e intelectualmente manejado pertence à carapaça e o homem que está concentrado na criação sempre mergulha para baixo, até a ferida aberta, até o pustulento e obsceno horror. Ele liga seu dínamo às partes mais tenras; ainda que só jorre sangue e pus, já é alguma coisa. A cratera seca e fodida é obscena. Mais obscena que tudo é a inércia. Mais blasfema que o mais violento juramento é a paralisia. Se restar apenas uma ferida escancarada, então ela deve golfar, ainda que não produza senão sapos, morcegos e homúnculos.
Tudo está contido em um segundo que é consumido ou não consumido. A terra não é planalto árido de saúde e conforto, mas uma grande fêmea escarrapachada com torso de veludo que cresce e se levanta com os vagalhões de oceano; ela se contorce por baixo de um diadema de suor e angústia. Nua e sexuada, rola entre as nuvens sob a luz violeta das estrelas. Toda ela, desde os generosos seios até as coxas luzentes, inflama-se com furioso ardor. Ela se move entre as estações e os anos com um grande impulso que sacode o torso com fúria paroxísmica, que sacode as teias de aranha para fora do céu; ela se deixa cair em suas órbitas pivotais com tremores vulcânicos. Ela é como uma corça às vezes, corça que caiu na armadilha e fica deitada esperando, com o coração batendo, que os címbalos soem e os cães ladrem. Amor e ódio, desespero, piedade, cólera, nojo - que são essas coisas no meio das fornicações dos planetas? Que é a guerra, a doença, a crueldade, o terror, quando a noite apresenta o êxtase de miríades de resplandecentes sóis? Que é essa bobagem que mastigamos em nosso sono senão a lembrança da picada dos dentes da serpente e do amontoado de estrelas?
Ela, Mona, costumava dizer-me, em seus acessos de exaltação, "você é um grande ser humano" e embora me tenha deixado aqui para perecer, embora tenha posto embaixo de meus pés um grande poço uivante de vazio, as palavras que jazem no fundo de minha alma saltam para frente e iluminam as sombras por baixo de mim. Sou alguém que se perdeu na multidão, alguém a quem as luzes esfuziantes deixaram estonteado, um zero que viu tudo ao seu redor reduzido a escárnio. Passam por mim homens e mulheres com enxofre, porteiros em libré de cálcio abrindo as fauces do inferno, fama caminhando sobre muletas, amesquinhada pelos arranha-céus, mastigada e esfrangalhada pela boca pontiaguda das máquinas. Eu caminhava entre os altos edifícios em direção ao frescor do rio e via as luzes subirem entre as costelas dos esqueletos como foguetes. Se eu fosse verdadeiramente um grande ser humano, como dizia ela, então qual seria a significação desta escravizante idiotia que me cerca? Eu era um homem com corpo e alma, eu tinha um coração que não estava protegido por uma cúpula de aço. Eu tinha momentos de êxtase e cantava com centelhas ardentes. Eu cantava o Equador, as pernas dela vestidas de vermelho e as ilhas perdendo-se de vista. Mas ninguém ouvia. Um tiro disparado através do Pacífico perde-se no espaço porque a terra é redonda e os pombos voam de cabeça para baixo. Vi-a olhando-lhe através da mesa com olhos cheios de pesar; a tristeza, aprofundando-se, achatava-lhe o nariz contra a espinha; a medula batida pela piedade tornara-se líquida. Ela era leve como um cadáver que flutua no mar Morto. Seus dedos sangravam com angústia e o sangue transformava-se em baba. com a madrugada úmida veio o dobrar dos sinos e ao longo das fibras dos meus nervos os sinos tocaram incessantemente e seus badalos bateram em meu coração e retiniram com maldade de ferro. Estranho que os sinos dobrassem assim, mas ainda mais estranho o corpo estourando, esta mulher voltada para a noite e suas palavras verminosas roendo através do colchão. Movimentei-me por baixo do Equador, ouvi a hedionda risada da hiena de fauces verdes, vi o chacal de rabo sedoso e o leopardo malhado, tudo deixado no Jardim do Éden. E depois sua tristeza alargou-se, como a proa de um couraçado, e o peso de seu afundamento inundou minhas orelhas. Lodo e safiras escorrendo, derramando-se entre os alegres neurônios, e o espectro entrançado e as amuradas afundando. Macios como patas de leão eu ouço os carros dos canhões virarem, vejo-os vomitarem e babarem: o firmamento verga e todas as estrelas ficam pretas. Oceano negro sangrando e as estrelas chocas criando nacos de carne recém-inchadas enquanto no alto os pássaros esvoaçam e do céu alucinado cai a balança com o almofariz e a mão, e os olhos vendados da justiça. Tudo o que está aqui relacionado move-se com pés imaginários ao longo dos paralelos de orbes mortas; tudo o que é visto com as órbitas vazias rebenta como capim florescente. Do nada ergue-se o sinal de infinito; debaixo das espirais sempre ascendentes afunda-se vagarosamente o buraco escancarado. A terra e a água fazem números em conjunto, um poema escrito com carne e mais forte que o aço ou granito.
Através da noite interminável a terra rodopia em direção a uma criação desconhecida...
Hoje acordei de um sono pesado com pragas alegres em meus lábios, com palavras desconexas em minha língua, repetindo para mim mesmo uma litania - "Fay ce que vouldras!... fay ce que vouldras!" Faça qualquer coisa, mas que produza alegria. Faça qualquer coisa, mas que cause êxtase. Tantas multidões dentro de minha cabeça quando digo isto para mim mesmo: imagens, alegres, terríveis, enlouquecedoras, o lobo e o bode, a aranha, o caranguejo, a sífilis com suas asas estendidas e a porta do útero sempre destrancada, sempre aberta, sempre preparada com o túmulo. Luxúria, crime, santidade: as vidas dos meus adorados, os fracassos dos meus adorados, as palavras que deixaram atrás de si, as palavras que deixaram inacabadas; o bem que arrastaram atrás de si e o mal, a tristeza, a discórdia, o rancor, a luta que criaram. Mas, acima de tudo, o êxtase!
Coisas, certas coisas em meus ídolos trazem-me lágrimas aos olhos: as interrupções, a desordem, a violência, acima de tudo, o ódio que despertaram. Quando penso em suas deformidades, nos monstruosos estilos que escolheram, em seus trabalhos pretensiosos e tediosos, em todo o caos e confusão em que chafurdaram, nos obstáculos que amontoaram ao seu redor, sinto uma exaltação. Todos eles estavam atolados em sua própria merda. Todos, homens que capricharam demais. Tanto isto é verdade que me sinto quase tentado a dizer: "Mostrem-me um homem que caprichou demais e eu lhes mostrarei um grande homem!" O que chamam de seu "excesso de capricho" é o que aprecio: é o sinal da luta, é a própria luta com todas as fibras presas a ela, a própria aura e ambiência do espírito discordante. E quando me mostram um homem que se expressa com perfeição não digo que ele não é grande, mas digo que não me sinto atraído... sinto falta das qualidades saturantes. Quando penso que a tarefa implicitamente imposta a si próprio pelo artista é derrubar os valores existentes, fazer do caos que o cerca uma ordem que seja sua própria, semear discórdias e fermento para que pela descarga emocional aqueles que estão mortos possam ser trazidos de volta à vida, então é que corro com alegria para os grandes e imperfeitos, sua confusão alimenta-me, seu gaguejar é como música divina para meus ouvidos. Nas páginas belamente inchadas que se seguem às interrupções vejo as rasuras de mesquinhas intrusões, as pegadas sujas, como se fossem de covardes, mentirosos, ladrões, vândalos e caluniadores. Vejo nos músculos inchados de suas líricas gargantas o atordoante esforço que precisa ser feito para virar a roda, para apanhar o ritmo onde ele foi deixado. Vejo que por trás dos aborrecimentos e intrusões cotidianos, por trás da barata e coruscante malícia dos fracos e inertes, ergue-se o símbolo do poder frustrador da vida, e que quem cria a ordem, quem semeia a luta e a discórdia, porque está imbuído de vontade, esse homem deve ir e tornar a ir à fogueira e ao patíbulo. Vejo que por trás da nobreza de seus gestos se esconde o espectro do ridículo daquilo tudo - que ele é não apenas sublime, mas absurdo.
Outrora eu pensava que ser humano era o mais alto objetivo que um homem podia ter, mas vejo agora que isso se destinava a destruir-me. Hoje sinto orgulho em dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com crenças e princípios. Nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade - eu pertenço à terra!
Digo isto deitado em meu travesseiro e posso sentir os chifres nascendo em minhas têmporas. Posso ver ao redor de mim todos aqueles meus malucos antepassados dançando em roda da cama, consolando-me, estimulando-me, vergastando-me com suas línguas de serpente, arreganhando os dentes e olhando-me de soslaio com seus crânios esquivos.
SOM inumano! Digo isso com um riso louco e alucinado, e continuarei a dizê-lo ainda que chovam crocodilos. Por trás de minhas palavras estão todos aqueles crânios esquivos arreganhando os dentes e olhando de soslaio, alguns arreganhando os dentes como se tivessem trismo, outros arreganhando os dentes no esgar de uma risada, cujo ante-gôzo e cujas conseqüências estão sempre continuando. Mais claro que tudo vejo meu próprio crânio de dentes arreganhados, vejo o esqueleto dançando no vento, serpentes saindo da língua apodrecida e as páginas inchadas de êxtase enlameadas de excremento. E junto minha lama, meu excremento, minha loucura, meu êxtase ao grande circuito que flui através das galerias subterrâneas da carne. Todo esse vômito de bêbedo, não pedido, não desejado, continuará a fluir interminavelmente através das mentes daqueles que virão no inesgotável vaso que ontem a história da raça. Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida de humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e o pão em vinho, e o vinho em canção.
Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça para baixo, os pés sempre se movendo em sangue e lágrimas, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe rói as entranhas. Vejo que quando eles arrancam os próprios cabelos no esforço de compreender, de capturar esse eterno inalcançável, que quando eles berram como bestas enlouquecidas, rasgam com as presas e ferem com os chifres, isso está certo, que não há outro caminho a seguir. Um homem que pertence a essa raça precisa ficar em pé no lugar alto, com palavras desconexas na boca, e arrancar as próprias entranhas. É certo e justo, porque ele precisa! E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. O resto é falsificação. O resto é humano. O resto pertence à vida e à ausência de vida.
Quando penso em Stavrogin, por exemplo, penso em algum monstro divino em pé num lugar alto e lançando para nós suas vísceras laceradas. Nos possessos a terra treme: não é a catástrofe que sobrevém ao indivíduo imaginativo, mas um cataclisma no qual grande porção da humanidade é enterrada, destruída para sempre. Stavrogin era Dostoiévski, e Dostoiévski era a soma de todas aquelas contradições que paralisam um homem ou o levam ao apogeu. Não havia mundo baixo demais para ele entrar, nem lugar alto demais em que ele temesse subir. Ele percorria toda a escala, dos abismos às estrelas. É uma pena que nunca mais voltamos a ter a oportunidade de ver um homem colocado no próprio centro do mistério e, por seus lampejos, iluminando para nós a profundeza e a imensidão das trevas.
Hoje estou cônscio de minha linhagem. Não tenho necessidade de consultar meu horóscopo ou minha carta genealógica. Nada sei do que está escrito nas estrelas ou em meu sangue. Sei que provenho dos fundadores mitológicos da raça. O homem que leva a garrafa sagrada aos lábios, o criminoso que se ajoelha na praça do mercado, o inocente que descobre que todos os cadáveres fedem, o louco que dança com o raio na mão, o frade que ergue a saia para mijar sobre o mundo, o fanático que rebusca bibliotecas para encontrar o Verbo - todos esses estão fundidos em mim, todos esses fazem minha confusão, meu êxtase. Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa pobre, triste, miserável, limitada pelos sentidos, restringida pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos. Eu derramo o suco da uva na minha garganta e encontro nele sabedoria, mas minha sabedoria não nasce da uva, minha embriaguez nada deve ao vinho.. .
Desejo dar uma volta por aquelas altas e áridas cordilheiras de montanhas onde se morre de sede e frio, por aquela história "extratemporal", aquele absoluto de tempo e espaço onde não existe homem, nem fera, nem vegetação, onde se fica louco de solidão, com linguagem que é de meras palavras, onde tudo é desenganchado, desengrenado, sem articulação com os tempos. Desejo um mundo de homens e mulheres, de árvores que não falem (porque já existe conversa demais no mundo!), de rios que levem a gente a lugares, não rios que sejam lendas, mas rios que ponham a gente em contato com outros homens e mulheres, com arquitetura, religião, plantas, animais - rios que tenham barcos e nos quais os homens se afoguem, mas se afoguem não no mito e na lenda e nos livros e na poeira do passado, mas no tempo e no espaço e na história. Desejo rios que façam oceanos como Shakespeare e Dante, rios que não se sequem no vazio do passado. Oceanos, sim! Tenhamos mais oceanos, novos oceanos que apaguem o passado, oceanos que criem novas formações geológicas, novas vistas topográficas e continentes estranhos, aterrorizadores, oceanos que destruam e preservem ao mesmo tempo, oceanos nos quais possamos navegar, partir para novas descobertas, novos horizontes. Tenhamos mais oceanos, mais convulsões, mais guerras, mais holocaustos. Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucura, um mundo que produza êxtase e não peidos secos. Creio que hoje mais do que nunca é preciso procurar um livro ainda que ele tenha só uma grande página: precisamos procurar fragmentos, lascas, unhas dos dedos dos pés, tudo quanto contenha minério, tudo quanto seja capaz de ressuscitar o corpo e a alma.
É possível que estejamos condenados, que não haja esperança para nós, para nenhum de nós, mas se assim for soltemos então um último e torturante uivo capaz de gelar o sangue nas veias, um berro de desafio, um grito de guerra! Fora as lamentações! Fora elegias e réquiens! Fora biografias e histórias, e bibliotecas e museus! Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós, os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança!
"Amo tudo quanto flui", diz o grande Milton cego de nosso tempo. Pensava nele esta manhã quando acordei com um grande e furioso grito de alegria: pensava em seus rios e árvores e em todo aquele mundo da noite que ele está explorando. Sim, disse comigo mesmo, eu amo tudo quanto flui: rios, esgotos, lava, sêmen, sangue, bílis, palavras, sentenças. Amo o líquido aniótico quando escorre da bolsa. Amo o rim com seus cálculos dolorosos, suas pedras e não sei que mais; amo a urina que escorre escaldante e a gonorréia que corre sem parar; amo as palavras de histerismo e as sentenças que correm como disenteria e refletem todas as imagens doentes da alma; amo os grandes rios como o Amazonas e o Orenoco, onde homens malucos como Moravagine flutuam através do sonho e da lenda em um barco aberto e se afogam nas cegas embocaduras do rio. Amo tudo quanto flui, até mesmo o fluxo menstrual que leva embora a semente não fecundada. Amo tudo quanto flui, tudo quanto tem em si tempo e gênese, que nos leva de volta para o princípio onde nunca há fim: a violência dos profetas, a obscenidade que é êxtase, a sabedoria do fanático, o padre com sua elástica litania, os palavrões da puta, o cuspe que corre na sarjeta, o leite do seio e o mel amargo que escorre do útero, tudo quanto é fluido, derretido, dissolvido e dissolvente, todo o pus e sujeira que ao fluir se purifica, que perde seu senso de origem, que faz o grande circuito em direção à morte e à dissolução. O grande desejo incestuoso é continuar fluindo, unido com o tempo, fundir a grande imagem do além com o aqui e o agora. Um desejo insensato e suicida, que é constipado por palavras e paralisado pelo pensamento.
ERA QUASE MADRUGADA DO DIA DE Natal, quando voltamos da Rue d'Odessa para casa com duas negras da companhia telefônica. O fogo estava apagado e todos nós nos sentíamos tão cansados que entramos na cama vestidos. A que estava comigo, que fora como um ágil leopardo a noite inteira, adormeceu pesadamente enquanto eu trepava nela. Durante algum tempo trabalhei sobre ela, como se trabalhasse sobre uma pessoa afogada ou asfixiada. Depois desisti e também caí pesadamente no sono.
Durante todos os feriados havíamos tomado champanha de manhã, à tarde e à noite - o mais barato e o melhor champanha. No começo do ano eu devia partir para Dijon onde me haviam oferecido um insignificante cargo como professor de inglês de intercâmbio, um daqueles arranjos de amizade franco-americanos que se supõe promover compreensão e boa vontade entre repúblicas irmãs. Fillmore estava mais entusiasmado do que eu pela perspectiva - tinha boa razão para estar. Para mim era apenas a transferência de um purgatório para outro. Não havia futuro à minha frente; não havia sequer salário correspondente ao emprego. A gente devia considerar-se feliz por gozar do privilégio de difundir o evangelho da amizade franco-americana. Era emprego para filho de homem rico.
Na noite antes de minha partida divertimo-nos muito. Lá pelo amanhecer começou a nevar: caminhamos de um quarteirão para outro, dando uma última olhada em Paris.
Passando pela Rue Saint Dominique topamos de repente com uma pequena praça e lá estava a Eglise Ste. Clotilde. Gente indo à missa. Fillmore, cuja cabeça ainda estava um pouco nebulosa, fez questão de ir também à missa. "Pelo divertimento!" como disse. Eu me sentia um pouco inquieto; em primeiro lugar, nunca assistira a uma missa e, em segundo lugar, estava com uma aparência andrajosa e me sentia andrajoso. Fillmore também parecia muito desarrumado, ainda mais vergonhoso do que eu; seu grande chapéu desabado caía para trás e o sobretudo ainda estava cheio da serragem do último bar em que estivéramos. Todavia, entramos. O pior que podiam fazer, era jogar-nos para fora.
Fiquei tão assombrado pela vista que se apresentou aos meus olhos que perdi toda inquietação. Demorei um pouco para acostumar-me à luz fraca. Segui cambaleante Fillmore, segurando-lhe a manga. Um fantástico e sobrenatural ruído penetrou-me nos ouvidos, uma espécie de zumbido oco que subiu do lajeado frio. Um túmulo enorme e lúgubre com carpideiras entrando e saindo. Uma espécie de antecâmara do mundo lá embaixo. Temperatura de uns 55 ou 60 graus Fahrenheit. Música nenhuma, exceto aquele indefinível lamento fabricado no subterrâneo - como um milhão de cabeças de couve-flor chorando no escuro. Pessoas em mortalhas saíam ruminando com aquele ar desesperado e desanimado de mendigos que estendem as mãos em transe e murmuram ininteligível apelo.
Eu bem sabia da existência dessa espécie de coisa, mas a gente sabe também que existem matadouros, necrotérios e salas de dissecação. E instintivamente evita esses lugares. Na rua eu passara muitas vezes ao lado de um padre com o livrinho de orações na mão, decorando trabalhosamente suas linhas. Idiota, dizia com meus botões, e deixava por isso mesmo. Na rua a gente se encontra com todas as formas de demência, e o padre de maneira nenhuma é o mais impressionante. Dois mil anos disso amorteceram-nos para sua idiotice. Entretanto, quando de repente transportado exatamente para o meio do reino dele, quando vê o pequeno mundo em que o padre funciona como um despertador, você é capaz de ter sensações inteiramente diversas.
Por um momento todo aquele babar e crispar de lábios quase chegou a ter significação. Algo estava acontecendo, uma espécie de pantomima que, não me deixando inteiramente estupefato, mantinha-me fascinado. Em todo o mundo, onde há esses túmulos mal iluminados, tem-se este incrível espetáculo - a mesma temperatura desagradável, o mesmo rubor crepuscular, o mesmo murmúrio e zumbido. Em toda a Cristandade, em certas horas estipuladas, pessoas de preto prostram-se diante do altar onde o padre permanece em pé com livrinho numa das mãos e sinêta de mesa de jantar, ou vaporizador, na outra e murmura para elas numa linguagem que, ainda que fosse compreensível, não contém mais um traço de significação. Abençoando-as, muito provavelmente. Abençoando o país, abençoando o governante, abençoando as armas de fogo, os couraçados, a munição e as granadas de mão. Cercando-o no altar há menininhos vestidos como anjos do Senhor que cantam com voz de contralto e soprano. Inocentes cordeiros.
Todos de saia, assexuados, como o próprio padre que geralmente tem pé chato e além do mais é míope. Um belo charivari epiceno. Sexo em suspensório, ao som de mi bemol.
Eu procurava ver tudo quanto podia sob a luz fraca. Fascinante e estupefaciente ao mesmo tempo. Em todo o mundo civilizado, pensava comigo mesmo. No mundo inteiro.
Maravilhoso, com chuva ou sol, granizo, geada, neve, trovão, relâmpago, guerra, fome, peste - não faz a menor diferença. Sempre a mesma temperatura abafada, a mesma pantomima, os mesmos sapatos com fitas, e os anjinhos do Senhor cantando em soprano e contralto. Perto da saída uma caixinha com fenda - para manter em andamento o trabalho celeste. Para que a bênção de Deus possa chover sobre o rei e o país, os couraçados e os altos explosivos, os tanques e os aeroplanos, para que o trabalhador possa ter mais força nos braços, força para abater cavalos, vacas e carneiros, força para abrir orifícios em vigas de ferro, força para costurar botões nas calças alheias, força para vender cenouras, máquinas de costura e automóveis, força para exterminar insetos, limpar estábulos, descarregar lixo e esfregar latrinas, força para escrever manchetes e picotar bilhetes no metrô. Força... força. Todo aquele morder de lábios e aquela embromação apenas para fornecer um pouco de força!
Andamos de um lado para outro, examinando a cena com aquela lucidez que sobrevém depois de uma noite inteira de farra. Devíamos ter-nos tornado muito evidentes trançando daquele jeito com as golas do paletó levantadas, sem fazermos o sinal da cruz uma só vez e sem mover nunca os lábios, exceto para sussurrar alguma observação impiedosa. Talvez tudo tivesse passado despercebido se Fillmore não insistisse em atravessar diante do altar no meio da cerimônia. Estava procurando a saída e, suponho eu, pensava que, já que ali estava, devia dar uma boa olhada no "sancta sanctorum", fazer um "close-up" dele, por assim dizer. Atravessamos em segurança e estávamos avançando em direção a uma brecha de luz que devia ser o caminho para fora, quando um padre surgiu de repente do escuro e interceptou nossa passagem. Queria saber aonde íamos e o que estávamos fazendo. Dissemos-lhe com bastante delicadeza que estávamos procurando a saída. Dissemos "exit" porque, no momento, estávamos tão espantados que não conseguimos lembrar o vocábulo francês correspondente. Sem uma palavra de resposta, ele nos tomou firmemente pelo braço e, abrindo uma porta - era uma porta lateral - deu-nos um empurrão e nós saímos cambaleantes para a luz cegante do dia. Aconteceu tão de repente e inesperadamente, que quando chegamos à calçada estávamos ofuscados pela luz. Demos alguns passos, piscando os olhos, e depois instintivamente ambos nos viramos; o padre ainda estava em pé nos degraus, pálido como um fantasma e carrancudo como o demônio. Devia ter ficado furioso como o diabo. Mais tarde, relembrando as coisas, não pude culpá-lo por isso. Naquele momento, porém, vendo-o com a saia comprida e o pequeno barrete sobre o crânio, parecia tão ridículo que estourei numa risada. Olhei para Fillmore e ele começou também a rir. Durante um minuto inteiro, lá ficamos rindo bem na cara do pobre coitado. Ele ficou tão desnorteado, suponho, que por um momento não soube o que fazer; de repente, porém, começou a descer correndo os degraus, sacudindo os punhos em nossa direção, como se estivesse realmente decidido. Quando saiu do terreno murado, estava galopando. A essa altura algum instinto de conservação aconselhou-me a dar o fora. Agarrei Fillmore pela manga do paletó e comecei a correr. Ele dizia, como um idiota: "Não, não! Não quero correr!" "Vamos!" gritei eu. "É melhor darmos o fora. Esse cara está completamente louco." E saímos correndo, desaparecendo o mais depressa que nos permitiram as pernas.
A caminho de Dijon, ainda rindo do caso, meus pensamentos voltaram-se para um incidente ridículo, de natureza mais ou menos semelhante, que ocorrera durante minha breve estada na Flórida. Foi durante o célebre surto de desenvolvimento quando, como milhares de outros, fui apanhado com as calças na mão. Tentando safar-me, fiquei preso, junto com um amigo meu, no próprio gargalo da garrafa. Jacksonville, onde ficamos abandonados durante cerca de seis semanas, estava praticamente em estado de sítio. Todos os vagabundos da terra e muitos caras que nunca antes haviam sido vagabundos, pareciam ter sido arrastados para Jacksonville. A Associação Cristã de Moços, o Exército de Salvação, as estações de bombeiros e os postos policiais, os hotéis, as casas de cômodos, tudo estava completamente cheio. Absolutamente completo, e por toda parte cartazes dizendo isso. Os habitantes de Jacksonville haviam ficado tão endurecidos que me parecia estarem andando de um lado para outro com cotas de malha. Era o velho negócio de comida novamente. Comida e um lugar para encostar o corpo. A comida vinha do sul em trens carregados - laranjas, grapefruits e toda espécie de sucos comestíveis. Costumávamos passar pelos depósitos de carga procurando frutas podres - mas mesmo isso era escasso.
Certa noite, desesperado, arrastei meu amigo Joe para uma sinagoga, durante o ofício religioso. Era uma congregação reformada e o rabino impressionou-me favoravelmente.
A música conquistou-me também - aquela penetrante lamentação dos judeus. Logo que terminou o serviço dirigi-me ao escritório do rabino e pedi uma entrevista com ele. Recebeu-me decentemente - até quando esclareci minha missão. Então ficou absolutamente assustado. Eu lhe pedira apenas um auxílio em nome de meu amigo Joe e no meu próprio. Pela maneira como me olhou, poder-se-ia pensar que eu pedira para alugar a sinagoga a fim de transformá-la numa quadra de boliche. Para arrematar tudo, de repente me perguntou à queima-roupa se eu era judeu ou não. Quando respondi que não, pareceu absolutamente ofendido. Por que, então, fora pedir auxílio a um pastor judeu? Disse-lhe ingenuamente que sempre tivera mais fé nos judeus que nos gentios. Disse isso modestamente, como se fosse um de meus defeitos peculiares.
Era verdade também. Mas ele não ficou lisonjeado. Não, senhor. Estava horrorizado. Para ver-se livre de mim escreveu um bilhete ao pessoal do Exército de Salvação.
"Este é o lugar para onde você deve dirigir-se", disse, afastando-se depois bruscamente para cuidar de seu rebanho.
O Exército de Salvação, naturalmente, nada tinha a oferecer-nos. Se tivéssemos 25 centavos cada um, poderíamos alugar um colchão no chão. Mas nós dois juntos não tínhamos um níquel.
Fomos para o parque e estendemo-nos sobre um banco. Chovia e por isso nos cobrimos com jornais. Não passara mais de meia hora, creio, quando um guarda se aproximou e, sem uma palavra de advertência, deu-nos tão sólida pancadaria que nós nos pusemos de pé em um abrir e fechar de olhos, dançando também, um pouco, embora não estivéssemos com disposição alguma para dançar. Senti-me tão ofendido e miserável, tão abatido, tão desprezível, após ser golpeado na bunda por aquele bastardo débil mental, que teria sido capaz de fazer voar pelos ares a Prefeitura.
Na manhã seguinte, a fim de nos equilibrarmos entre aqueles hospitaleiros filhos da puta, apresentamo-nos bem cedo à porta de um padre católico. Desta vez deixei que Joe passasse a conversa. Ele era irlandês e tinha um pouco de sotaque. Tinha também olhos azuis, muito suaves, e conseguia fazer correr deles um pouco de água quando queria. Uma irmã vestida de preto abriu-nos a porta; não nos convidou para entrar, porém. Devíamos esperar no vestíbulo até que fosse chamar o bom padre.
Alguns minutos depois chegou ele, o bom padre, fumegando como locomotiva. E que desejávamos nós para incomodá-lo assim a essa hora da manhã? Alguma coisa para comer e um lugar para descansar, respondemos inocentemente. De onde viéramos?, quis saber imediatamente o bom padre. De Nova York. De Nova York, hem? Então, o melhor que têm a fazer é voltar para lá o mais depressa possível, meus rapazes. E sem outra palavra o grande e enfatuado bastardo de cara de nabo fechou-nos a porta no nariz.
Uma hora mais tarde aproximadamente, vagueando desanimados como um par de bêbedos, passamos de novo por acaso diante da reitoria. Que Deus me ajude se o grande nabo de aparência lasciva não estava saindo da alameda em uma limusine! Quando passou por nós lançou uma nuvem de fumaça em nossos olhos. Como se dissesse: "Isto é para vocês!" Era uma bela limusine, com um par de pneus sobressalentes atrás, e o bom padre sentado à direção com um grande charuto na boca. Devia ser um Corona Corona, tão gordo e cheiroso era. Bem montado estava ele e não havia como duvidar disso. Não pude ver se estava de saia ou não. Só pude ver o molho escorrendo de seus lábios - e o grande charuto com aquele aroma de cinqüenta centavos.
Durante toda a viagem até Dijon fui lembrando o passado. Pensei em todas as coisas que poderia ter dito e feito, mas não disse nem fiz, nos momentos amargos e humilhantes em que basta pedir uma migalha de pão para tornar-se menor do que um verme. Sóbrio, ainda sentia a dor daqueles velhos insultos e injúrias. Podia sentir ainda as pancadas que o guarda me dera na bunda no parque embora isso fosse uma simples bagatela, uma pequena lição de dança, poder-se-ia dizer. Vagueei por todos os Estados, e pelo Canadá e México. A mesma história em toda parte. Se quer um pedaço de pão, precisa entrar no arreio, acertar o passo. Em toda a terra um deserto cinzento, um tapete de aço e cimento. Produção! Mais porcas e parafusos, mais arame farpado, mais biscoitos para cães, mais cortadores de grama, mais rolamentos de esfera, mais altos explosivos, mais tanques, mais gás venenoso, mais sabão, mais dentifrício, mais jornais, mais educação, mais igrejas, mais bibliotecas, mais museus. Avante! O tempo urge. O embrião está-se esforçando para passar através do colo do útero e não há sequer um pouco de cuspo para facilitar a passagem. Um parto seco e estrangulador. Nem um gemido, nem um pio. Salut ou monde! Salva de doze tiros estourando pelo reto.
"Eu uso meu chapéu como quero, dentro ou fora de casa", dizia Walt. Isso foi em um tempo no qual você ainda podia usar um chapéu que servisse na cabeça. Mas o tempo passa. Agora para ter um chapéu que sirva você precisa caminhar até a cadeira elétrica. Eles lhe dão um barrete. Muito justo, não é? Mas não importa! Serve.
Você precisa estar em um país estranho como a França, caminhando sobre o meridiano que separa os hemisférios da vida e da morte, para saber que vistas incalculáveis se escancaram à frente. O corpo elétrico! A alma democrática! Maré enchente! Santa Mãe de Deus, que significa essa baboseira? A terra está ressecada e rachada. Homens e mulheres vêm juntos como bandos de abutres sobre uma carcaça fedorenta, para acasalar-se e voar separados de novo. Abutres que caem das nuvens como pesadas pedras.
Garras e bico, isso é o que somos! Um enorme aparelho intestinal com um nariz para carne morta. Avante! Avante sem piedade, sem compaixão, sem amor, sem perdão.
Não pedir quartel e não dar quartel! Mais couraçados, mais gás venenoso, mais altos explosivos! Mais gonococos! Mais estreptococos! Mais máquinas de bombardear!
Mais e mais disso - até que a fodida fábrica seja reduzida a pedaços por uma explosão, e a terra com ela!
Desembarcando do trem, percebi imediatamente que cometera um erro fatal. O Lycée ficava a pequena distância da estação; desci caminhando pela rua principal no crepúsculo prematuro do inverno, tateando para encontrar o caminho até meu destino. Caía uma ligeira nevada e as árvores cintilavam de neve.
Passei por dois enormes e vazios cafés que pareciam desoladas salas de espera. Obscuridade silenciosa e vazia - foi como aquilo me impressionou. Uma cidade de ramal ferroviário sem esperanças, onde se produz mostarda às carradas, em tinas, toneis, barricas, potes e vidrinhos bonitos.
O primeiro olhar para o Lycée fez um calafrio correr pelo meu corpo. Senti-me tão indeciso que, na entrada, parei para decidir se entraria ou não. Mas como não tinha dinheiro para a passagem de volta, não havia muita utilidade em debater a questão. Pensei por um momento em mandar um telegrama a Fillmore, mas depois fiquei sem saber que desculpa apresentar. A única coisa que tinha a fazer era entrar com os olhos fechados.
Aconteceu que M. le Proviseur estava fora - era seu dia de folga, segundo me disseram. Um pequeno corcunda apareceu e ofereceu-se para acompanhar-me até o escritório de M. le Censeur, a segunda autoridade. Caminhei um pouco atrás dele, fascinado pela maneira grotesca como avançava coxeando. Era um pequeno monstro, como os que podem ser vistos sobre o pórtico de qualquer catedral medíocre na Europa.
O escritório de M. le Censeur era grande e mal mobiliado. Sentei-me em uma cadeira dura para esperar enquanto o corcunda ia às pressas procurá-lo. Senti-me quase à vontade. A atmosfera do lugar fazia lembrar vividamente certas instituições de caridade lá nos Estados Unidos, onde eu costumava sentar-me durante horas esperando que algum bastardo de fala macia viesse interrogar-me.
De repente a porta abriu-se e, com um andar requebrado, M. le Censeur entrou saltitante. Fiz tudo quanto pude para conter uma risada. Ele vestia uma sobrecasaca igual à que Bóris usava, e sobre sua testa pendia mecha de cabelo úmido e lustroso, como Smerdiakov poderia ter usado. Circunspecto e irritável, com um olhar de lince, não desperdiçou palavras de boas-vindas comigo. Imediatamente apresentou as folhas em que estavam escritos os nomes dos estudantes, os horários, as aulas etc., tudo meticulosamente escrito a mão. Disse-me quanto carvão e lenha eu poderia receber e, depois, informou-me prontamente de que eu tinha liberdade de fazer o que quisesse em minhas horas de folga. Esta foi a primeira coisa de bom que o ouvi dizer. Pareceu-me tão tranqüilizadora que fiz apressadamente uma oração pela França - pelo exército e pela marinha, pelo sistema educacional, pelos bistrots, por toda a maldita fábrica.
Concluída essa frioleira, ele tocou uma pequena campainha, ao que o corcunda apareceu prontamente para escoltar-me até o escritório de M. L'Econome. Aqui a atmosfera era um pouco diferente. Mais semelhante a uma estação de carga, com conhecimentos de embarque e carimbos de borracha por toda parte, e funcionários de caras pastosas rabiscando com penas quebradas em enormes e incômodos livros. Separada minha cota de carvão e madeira, marchamos, o corcunda e eu, com um carrinho de mão, para o dormitório. Eu devia ter um quarto no último andar, na mesma ala que os pions. A situação estava assumindo aspecto humorístico. Eu não sabia que diabo esperar em seguida. Talvez uma escarradeira. A coisa toda assemelhava-se muito aos preparativos de uma campanha; as únicas coisas que faltavam eram mochila e fuzil e uma placa de identidade.
O quarto que me destinaram era grande, com um pequeno fogão ao qual estava ligado um cano torto que descrevia uma curva exatamente por cima da cama de ferro. Perto da porta, erguia-se grande armário para o carvão e a madeira. As janelas davam para uma fileira de desoladas casinhas, feitas de pedra, nas quais viviam o merceeiro, o padeiro, o sapateiro, o açougueiro etc. - todos labregos de aparência imbecil. Olhei sobre os telhados em direção aos montes nus, onde um trem avançava ruidosamente.
O apito da locomotiva soou lutuosa e histèricamente.
Após o corcunda ter-me acendido o fogo, perguntei pelo grude. Ainda não era hora do jantar. Deitei-me na cama, de capote, e puxei as cobertas sobre mim. Ao meu lado estava a eterna e raquítica mesa de cabeceira na qual fica escondido o urinol. Coloquei o despertador sobre a mesa e observei os minutos passarem. Sobre a parede do quarto uma luz azulada filtrava-se da rua. Ouvi os caminhões passarem ruidosamente enquanto olhava distraído para o cano do fogão, no cotovelo onde era seguro por fios de arame. O depósito de carvão intrigava-me. Nunca na minha vida havia ocupado um quarto com depósito de carvão. Nunca também em minha vida havia trabalhado sem pagamento. Senti-me livre e acorrentado ao mesmo tempo - como a gente se sente imediatamente antes da eleição, quando todos os crápulas já foram indicados como candidatos e nos apelam para que votemos no homem certo. Senti-me como um homem assalariado, como um pau para toda obra, como um caçador, como um pirata, como um escravo de galé, como um pedagogo, como um verme e um piolho. Era livre, porém meus membros estavam acorrentados. Uma alma democrática, com um vale para refeição grátis, mas sem poder de locomoção, sem voz. Senti-me como medusa pregada numa prancha. Acima de tudo, sentia fome. Os ponteiros moviam-se vagarosamente.
Tinha ainda dez minutos para matar antes que o alarma de incêndio disparasse. As sombras no quarto aprofundavam-se. Ficou assustadoramente silencioso, uma quietude tensa que me esticava os nervos. Pequenos flocos de neve grudavam-se aos vidros da janela. Muito longe uma locomotiva soltou um grito agudo. Depois, novamente o silêncio mortal. O fogão começara a brilhar, mas dele não vinha calor. Comecei a ter medo de cochilar e perder o jantar. Isso significaria ficar a noite inteira acordado de barriga vazia. Dominou-me o pânico.
Um momento antes de o gongo tocar, saltei da cama e, fechando a porta às minhas costas, desci correndo para o pátio. Lá me perdi. Um quadrângulo após outro, uma escada após outra. Entrei e saí dos edifícios ao acaso, procurando frenèticamente o refeitório. Cruzei com uma longa fila de jovens marchando em coluna para Deus sabe onde; avançavam como uma leva de forçados, com um condutor de escravos à testa da coluna. Finalmente avistei um indivíduo de aparência enérgica, de chapéu de coco, caminhando em minha direção. Parei-o para perguntar-lhe o caminho do refeitório. Aconteceu que parei o homem certo. Era M. le Proviseur, que parecia encantado por ter topado comigo. Queria saber imediatamente se eu estava instalado com conforto, se havia mais alguma coisa que pudesse fazer por mim. Disse-lhe que estava tudo bem. Só que era um pouco frio, atrevi-me a acrescentar. Garantiu-me que aquele tempo era muito incomum. De vez em quando vinham nevoeiros e um pouco de neve, depois o tempo ficava desagradável por um período, e assim por diante, e assim por diante. O tempo todo ele me segurava pelo braço, guiando-me em direção ao refeitório.
Parecia sujeito muito decente. Cara legal, pensei comigo mesmo. Cheguei a ponto de imaginar que poderia fazer camaradagem com ele mais tarde, que ele me convidaria a ir ao seu quarto em uma noite muito fria e me prepararia um grogue quente. Imaginei todas as espécies de coisas amistosas nos poucos momentos necessários para chegarmos à porta do refeitório. Ali, o espírito correndo a toda velocidade, ele me apertou a mão de repente e, tirando o chapéu, deu boa noite. Fiquei tão espantado que também tirei o chapéu. Era a coisa certa a fazer, como logo verifiquei. Sempre que se passava ao lado de um professor ou mesmo de M. l'Econome, tirava-se o chapéu. Podia-se passar ao lado do mesmo sujeito uma dúzia de vezes por dia. Não fazia diferença. Era preciso fazer a saudação, ainda que o chapéu da gente já estivesse gasto. Era uma delicadeza que se impunha.
Afinal, encontrei o refeitório. Era como uma clínica de East Side, com paredes azulejadas, luz fraca e mesas de mármore. E, naturalmente, um grande fogão com um cano dobrado. O jantar ainda não fora servido. Um aleijado entrava e saía correndo, com pratos, facas, garfos e garrafas de vinho. Em um canto, vários jovens conversavam animadamente. Aproximei-me deles e apresentei-me. Deram-me uma recepção muito cordial. De fato, quase cordial demais. Absolutamente não pude compreender. Num instante o aposento começou a encher-se; fui apresentado de um para outro rapidamente. Em seguida formaram um círculo ao meu redor e, enchendo os copos, começaram a cantar.
L'autre soir l'idée m'est venue
Cré nom de Zeus d'enculer um pendu;
Le vent se lève sur la potence,
Voilà mon pendu qui se balance,
J'ai du l'enculer en sautant,
Cré nom de Zeus, on n'est jamais content.
Baiser dans un con trop petit,
Cré nom de Zeus, on s'écorche le vit;
Baiser dans un con trop large,
On ne sait pas où l'on décharge;
Se branler étant bien emmerdant,
Cré nom de Zeus, on n'est jamais content.
com isto, Quasímodo anunciou o jantar.
Formavam um grupo alegre, "les surveillants". Havia Kora que arrotava como um porco e sempre soltava um alto peido quando se sentava à mesa. Era capaz de peidar treze vezes em seguida, segundo me informaram. Mantinha o recorde. Depois havia Monsieur lê Prince, atleta que gostava de usar "smoking" à noite quando ia à cidade; tinha uma bela cútis, como de moça, e nunca tocava o vinho nem lia coisa alguma que pudesse sobrecarregar o cérebro. Ao lado dele sentava-se Petit Paul, do Midi, que não pensava em outra coisa senão fêmea o tempo todo; costumava dizer todo dia: "à partir de jeudi, je ne parlerai plus de femmes". Ele e Monsieur lê Prince eram inseparáveis. Havia depois Passeleau, um verdadeiro tratante, que estudava medicina e tomava dinheiro emprestado a torto e a direito: falava incessantemente em Ronsard, Villon e Rabelais. Diante de mim sentava-se Mollesse, agitador e organizador dos "pions", que insistia em pesar a carne para ver se não faltavam alguns gramas. Ocupava um pequeno quarto na enfermaria. Seu supremo inimigo era Monsieur 1'Econome, o que em nada lhe aumentava particularmente o mérito, pois todos odiavam esse indivíduo. Como companhia, Mollesse tinha um certo Lê Pénible, indivíduo de cara sombria com perfil de gavião que praticava a mais estrita economia e agia como agiota. Assemelhava-se a uma gravura de Albrecht Durer - uma mistura de todos os demônios sombrios, irascíveis, taciturnos, rancorosos, infelizes, infortunados e introspectivos que formam o panteão dos cavaleiros medievais da Alemanha. Um judeu, sem dúvida. Seja como for, morreu em um desastre de automóvel pouco depois de minha chegada, circunstância que me deu um lucro de vinte e três francos com exceção de Renaud, que se sentava ao meu lado, os outros desvaneceram-se de minha memória; pertenciam àquela categoria de indivíduos descoloridos que formam o mundo dos engenheiros, arquitetos, dentistas, farmacêuticos, professores etc. Nada os distinguia dos torrões de terra sobre os quais esfregariam as botas mais tarde. Eram zeros em todo o sentido da palavra, cifras que formam o núcleo de uma cidadania respeitável e lamentável. Comiam de cabeça baixa e eram sempre os primeiros a reclamar um segundo prato. Dormiam pesadamente e nunca se queixavam; não eram alegres nem miseráveis. Os indiferentes que Dante colocou no vestíbulo do Inferno. A alta sociedade.
Era costume depois do jantar ir imediatamente à cidade, a menos que se tivesse serviço nos dormitórios. No centro da cidade ficavam os cafés - enormes e lúgubres salões onde os sonolentos comerciantes de Dijon se reuniam para jogar cartas e ouvir música. Fazia calor no interior dos cafés - isso é o melhor que posso dizer sobre eles. Os bancos eram também confortáveis. E havia sempre algumas putas que, por um copo de cerveja ou uma xícara de café, se sentavam e conversavam com a gente. A música, por outro lado, era atroz. Que música! Numa noite de inverno, em um buraco sujo como Dijon, nada podia ser mais atormentante e irritante do que o som de uma orquestra francesa. Particularmente uma daquelas lúgubres orquestras femininas das quais tudo sai em guinchos e peidos, com um ritmo seco e algébrico, e a higiênica consistência da pasta de dentes. Chiado e rangido executado a tantos francos por hora - e para o diabo quem ficar atrasado! A melancolia daquilo! Como se o velho Euclides ficasse em pé sobre as patas traseiras e engolisse ácido prússico. Todo o reino da Idéia tão completamente explorado pela razão que dele nada resta com que fazer música exceto as fasquias da harmônica, através das quais o vento assobia e rasga o ar em pedaços. Todavia, falar de música em relação a este posto avançado é o mesmo que sonhar com champanha quando se está na cela da morte. A música era a menor de minhas preocupações. Eu nem sequer pensava em boceta, tão melancólico, tão frio, tão estúpido, tão cinzento era aquilo tudo. Ao voltar para casa na primeira noite notei na porta de um café uma inscrição extraída de "Gargântua". Dentro o café era como um necrotério. Apesar disso, avante!
Tinha muito tempo à minha disposição e nenhum sou para gastar. Duas ou três horas de aulas de conversação por dia, e mais nada. E de que adiantava isso, ensinar inglês àqueles pobres bastardos? Deles, sentia uma pena dos diabos. A manhã inteira trabalhando no "John Gilpin's Ride" e à tarde procurando-me para praticar uma língua morta. Eu pensava no bom tempo que havia desperdiçado lendo Virgílio ou avançando com dificuldade através de um absurdo incompreensível como "Hermann und Dorotea". A insanidade disso! Cultura, o cesto de pão vazio! Pensei em Carl, que é capaz de recitar "Fausto" de trás para diante, que nunca escreve um livro sem encher de elogios seu imortal e incorruptível Goethe. E contudo não tem senso suficiente para agarrar uma fêmea rica e conseguir uma muda de roupas de baixo. Há algo de obsceno nesse amor pelo passado que acaba em filas de pão e trincheiras. Algo de obsceno nessa vigarice espiritual que permite a um cretino borrifar água benta sobre Grandes Berthas, couraçados e altos explosivos. Todo homem com a barriga cheia de clássicos é um inimigo da raça humana.
Ali estava eu, supostamente para difundir o evangelho da amizade franco-americana - emissário de um cadáver que, depois de ter saqueado de todo lado, depois de ter causado imenso sofrimento e miséria, sonhava em estabelecer a paz universal. Puf! Sobre o que esperavam que eu falasse, era o que gostaria de saber. Sobre "Leaves of Grass", sobre as barreiras alfandegárias, sobre a Declaração da Independência, sobre a última guerra de "gangsters"? O quê? Era só isso o que gostaria de saber.
Bem, vou contar-lhe nunca mencionei essas coisas. Comecei de cara com uma lição sobre a fisiologia do amor. Como os elefantes fazem amor - foi isso! Pegou como fogo. Depois do primeiro dia não havia mais carteiras vazias. Depois da primeira lição de inglês eles ficavam na porta esperando por mim. Nós nos demos muito bem juntos.
Faziam toda espécie de perguntas, como se nunca tivessem aprendido uma coisa maldita. Eu os deixava disparar à vontade. Ensinei-os a fazer perguntas ainda mais delicadas. Perguntem qualquer coisa! - era o meu lema. Estou aqui como plenipotenciário do reino dos espíritos livres. Estou aqui para criar uma febre e um fermento.
"Em certo sentido", diz um eminente astrônomo, "o universo material parece estar morrendo, como uma lenda que se contou, dissolvendo-se no nada como uma visão".
Essa parece ser a impressão geral por baixo do cesto de pão vazio da cultura. Quanto a mim, não acredito nisso. Não acredito em nenhuma das fodidas coisas que esses bastardos tentam fazer-nos engolir.
Entre as aulas, se não tinha um livro para ler, eu subia até o dormitório e conversava com os pions. Eram deliciosamente ignorantes de tudo quanto acontecia - especialmente no mundo da arte. Quase tão ignorantes quanto os próprios estudantes. Era como se eu houvesse entrado num pequeno manicômio particular sem indicações de saída. Às vezes espiava por baixo das arcadas, observando os moleques marcharem com enormes nacos de pão enfiados nas bocas sujas. Eu também estava sempre com fome, pois era-me impossível tomar o desjejum, servido numa hora pavorosa da manhã, exatamente quando a cama começava a ficar gostosa. Enormes tigelas de café azul com pedaços de pão branco sem manteiga. No almoço, feijão ou lentilhas com pedacinhos de carne jogados dentro para dar-lhe aparência apetitosa. Comida boa para forçados, para britadores de pedra. Até o vinho era ruim. As coisas eram diluídas ou inchadas. Havia calorias, mas não arte culinária. M. L'Econome era responsável por tudo isso.
Assim diziam. Não acredito nisso também. Ele era pago para conservar nossas cabeças exatamente acima da linha de água. Não queria saber se estávamos sofrendo de hemorróidas ou furúnculos; não perguntava se tínhamos paladares delicados ou intestinos de lobo. Por que o faria? Era contratado para fornecer tantas gramas por prato a fim de produzir tantos quilowatts de energia. Tudo em termos de cavalo vapor. Tudo era cuidadosamente calculado nos gordos livros de escrita em que os funcionários de cara pastosa rabiscavam de manhã, à tarde e à noite. Débito e crédito, com uma linha vermelha no meio da página.
Rondando pelo quadrângulo, barriga vazia na maior parte do tempo, cheguei a sentir-me ligeiramente louco. Como Carlos, o Tolo, aquele pobre diabo - só que eu não tinha Odette Champsdiver com quem brincar de apalpa-apalpa. Metade do tempo tinha de filar cigarros dos estudantes e durante as lições às vezes mastigava um pedaço de pão seco com eles. Como o fogo estava sempre apagando, logo consumi minha cota de lenha. Era um trabalho dos diabos arrancar um pouco de lenha dos funcionários da contabilidade. Finalmente, fiquei tão irritado com isso que saía para a rua à procura de lenha, como um árabe. Espantoso como se encontra pouca lenha nas ruas de Dijon. Todavia, essas pequenas expedições de pilhagem levavam-me a lugares estranhos. Fiquei conhecendo uma ruazinha com o nome de um tal M. Philibert Papillon - um músico morto, creio eu - onde havia um amontoado de bordéis. Era sempre mais alegre naquelas redondezas; havia cheiro de comida e roupa lavada, estendida para secar. De vez em quando eu via de relance as pobres idiotas que vadiavam lá dentro. Estavam melhor que as coitadas do centro da cidade com as quais me encontrava sempre que atravessava uma grande loja. Eu fazia isso freqüentemente para aquecer-me. Elas o faziam pela mesma razão, acho eu. Procurando alguém que lhes pagasse um café. Pareciam um pouco malucas, com o frio e a solidão. Toda a cidade parecia um pouco maluca quando sobre ela caía o azul do anoitecer. Podia-se andar para cima e para baixo na rua principal todas as quintas-feiras até o dia do juízo final sem nunca encontrar uma alma expansiva. Sessenta ou setenta mil pessoas - talvez mais - embrulhadas em roupas de baixo de lã e nenhum lugar aonde ir e nada que fazer. Produzindo mostarda às carradas. Orquestras femininas moendo a Viúva Alegre.
Serviço de prata nos grandes hotéis. O palácio ducal apodrecendo, pedra a pedra, membro após membro. As árvores gemendo sob a geada. Um incessante bater de tamancos de madeira. A Universidade celebrando a morte de Goethe, ou o nascimento, não me lembro mais. (Geralmente é a morte que se celebra.) Coisa idiota, de qualquer maneira.
Todos bocejando e espreguiçando-se.
Quando atravessava a alameda para entrar no quadrângulo, sempre me dominava uma sensação de abismal futilidade. Fora, desolado e vazio; dentro, desolado e vazio.
Uma escumosa esterilidade pairando sobre a cidade, um nevoeiro de cultura livresca. Escória e cinzas do passado. Ao redor dos pátios interiores enfileiravam-se as salas de aula, pequenas cabanas como se poderiam encontrar nas florestas do Norte, onde os pedagogos davam rédea livre a seus vícios. No quadro-negro os fúteis abracadabras que os futuros cidadãos da república teriam de passar a vida esquecendo. De vez em quando, os pais eram recebidos no grande salão de recepção ao lado da alameda, onde havia bustos de Molière, Racine, Corneille, Voltaire etc., todos os espantalhos que os ministros de gabinete mencionam com lábios úmidos sempre que se acrescenta um imortal ao museu de cera. (Nenhum busto de Villon, nenhum busto de Rabelais, nenhum busto de Rimbaud.) Seja como for, reuniam-se ali, em solene conclave, os pais e os medalhões que o Estado contrata para dobrar a mente dos jovens. Sempre esse processo de dobrar, essa jardinagem paisagística para tornar a mente mais atraente. E os jovens também iam, ocasionalmente - os pequenos girassóis que logo seriam transplantados do viveiro a fim de enfeitar os gramados municipais. Alguns deles eram apenas plantas de borracha cuja poeira podia ser facilmente tirada como uma combinação rasgada. Todos correndo aos empurrões para a querida vida nos dormitórios logo que chegava a noite. Os dormitórios! Onde brilhavam luzes vermelhas, onde a sinêta tocava como um alarma contra incêndio, onde os degraus estavam gastos pela corrida para chegar às células educacionais.
Havia depois os professores! Durante os primeiros dias cheguei a trocar apertos de mão com alguns deles e naturalmente sempre havia os cumprimentos de chapéu quando nos cruzávamos sob as arcadas. Mas quanto a uma conversa íntima, quanto a ir até um canto e tomar uma bebida juntos, nada disso. Era simplesmente inconcebível. Em sua maioria davam a impressão de que os haviam feito mijar de susto. Seja como for, eu pertencia a outra hierarquia. Eles não partilhariam sequer um piolho com alguém como eu. Irritava-me tanto só de olhar para eles, que os xingava baixinho quando os via aproximar-se. Eu costumava ficar em pé, encostado a um pilar, cigarro no canto da boca e o chapéu caído sobre os olhos. Quando um deles chegava à distância de um cumprimento, eu dava uma boa cusparada e erguia o chapéu. Nem sequer abria a boca para cumprimentá-los. À meia voz, simplesmente dizia: "Foda-se, Jack!" e deixava as coisas por isso mesmo.
Depois de uma semana, eu tinha a impressão de haver passado ali a vida inteira. Era como um maldito e fodido pesadelo de que não se podia libertar. Costumava cair em estado de coma pensando nisso. Chegara apenas alguns dias antes. Cai a noite. Pessoas correm para casa como ratos sob as luzes nubladas. As árvores brilham com malignidade de diamante. Pensei em tudo isso, mil vezes ou mais. Da estação até o Licél era como um passeio através do Corredor de Dantzig, com as orlas mal aparadas, cheio de fendas, coberto de nervos. Uma alameda de ossos mortos, de figuras tortas e agachadas enterradas em mortalhas. Espinhas feitas de ossos de sardinha. O próprio Licél parecia erguer-se de um lago de neve fina, uma montanha invertida que apontava para baixo em direção ao centro da terra onde Deus ou o Diabo trabalha em uma camisa de força, moendo grãos para aquele paraíso que é sempre um sonho acompanhado de ejaculação. Se o sol alguma vez brilhou, não me lembro. Não me lembro senão dos frios e gordurosos nevoeiros que sopravam dos pântanos gelados lá longe, onde os trilhos ferroviários se enfiavam nos montes escuros. Lá embaixo, perto da estação, havia um canal, ou talvez fosse um rio, escondido sob um céu amarelo, com pequenas choças coladas contra a encosta ascendente das margens. Havia também um quartel em algum lugar, segundo percebi, pois de vez em quando me encontrava com homenzinhos amarelos da Cochinchina - anões deformados, com cara de ópio, emergindo de seus uniformes largos como esqueletos tingidos acondicionados em serragem.
Todo o maldito medievalismo do lugar era infernalmente instável e irrequieto, balançando-se para trás e para frente com gemidos baixos, saltando dos beirais diante da gente, pendendo das gárgulas como criminosos enforcados. Eu olhava para trás o tempo todo, andava como um caranguejo que se cutuca com um garfo sujo. Todos aqueles monstrinhos gordos, aquelas efígies achatadas coladas na fachada da Eglise Saint Michel, seguiam-me pelas ruas tortuosas e ao redor das esquinas. Toda a fachada de Saint Michel parecia abrirse como álbum à noite, deixando a gente frente a frente com os horrores da página impressa. Quando as luzes se apagavam e as figuras desapareciam chatas e mortas como palavras, então a fachada ficava absolutamente magnífica; em cada fenda da velha e áspera fachada havia o canto cavernoso do vento da noite e sobre a pedra rendilhada de vestimentos frios e rígidos havia uma baba nebulosa de nevoeiro e gelo semelhante a absinto.
Ali, onde se erguia a igreja, tudo parecia virado de trás para diante. A própria igreja devia ter sido torcida para fora de sua base por séculos de progresso na chuva e na neve. Ficava na Place Edgar-Quinet, agachada contra o vento, como uma mula morta. Através da Rue de La Monnaie o vento corria como cabelos brancos ondeando soltos; girava em torno dos postes brancos que obstruíam a passagem dos ônibus e das tropas de mulas. Quando passava por essa saída nas primeiras horas da manhã às vezes topava com Monsieur Renaud, que, embrulhado em seu capuz qual monge glutão, conversava comigo na língua do século XVI.
Acertando o passo com Monsieur Renaud, a lua caindo através do céu gorduroso como um balão furado, eu entrava imediatamente no reino do transcendental. M. Renaud tinha uma fala precisa, seca como damasco, com uma pesada base de Brandenburger. Costumava investir sobre mim a toda a brida, de Goethe e Fichte, com notas básicas profundas que ribombavam nas esquinas ventosas da Place como estrondos do trovão do ano passado. Homens de Yucatan, homens de Zanzibar, homens da Terra do Fogo, salvem-me deste porco glauco! O Setentrião cai sobre mim, os fiordes glaciais, espinhas de ponta azul, as luzes malucas, os obscenos cânticos cristãos que se propagam como avalancha do Etna ao Egeu. Tudo gelado como escuma, a mente fechada e cercada de gelo, e através dos melancólicos fardos de prosa sábia o estrangulado gargarejar de santos comidos de piolho. Branco eu sou e embrulhado em lã, enfaixado, acorrentado, estropiado, mas nisto não tenho participação. Branco até o osso, mas com uma fria base de álcali, com dedos de pontas de açafrão. Branco, sim, mas não irmão de cultura, não coração católico. Branco e impiedoso, como os homens que antes de mim partiram do Elba. Olho para o mar, para o céu, para o que é ininteligível e distantemente perto.
A neve sob o pé espalha-se diante do vento, voa, faz cócegas, pica, escapa ciciando, gira no ar, cai abundantemente, estilha-se, borrifa para baixo. Não há sol, nem rugido de rebentação, nem encapelar de ondas. O frio vento do norte com setas farpadas, gelado, perverso, voraz, crestante, paralisante. As ruas viram-se em seus cotovelos tortos; afastam-se da vista apressada, do olhar severo. Descem cambaleando ao longo das gelosias que deslizam, virando a igreja de trás para diante, destruindo estátuas, achatando os monumentos, arrancando as árvores, endurecendo a grama, sugando a fragrância da terra. Folhas foscas como cimento; folhas que nenhum orvalho fará brilhar de novo. Nenhuma lua jamais prateará seu apático estado. As estações entram em uma parada estagnada, as árvores embranquecem e murcham, os carros rodam nos sulcos de mica com resvalantes batidas semelhantes a harpa. Entre os montes de picos brancos, dormita a lúgubre e invertebrada Dijon. Nenhum homem vivo e caminhando através da noite, exceto os espíritos inquietos que se movem para o sul em direção às grades de safira. Apesar disso estou em pé e a caminho, fantasma que anda, homem branco aterrorizado pela fria sanidade desta geometria de matadouro. Quem sou eu? Que estou fazendo aqui? Caio entre as frias muralhas da malevolência, humana, figura branca batendo as asas, afundando no lago frio, com uma montanha de crânios por cima de mim. Instalo-me nas frias latitudes, sobre os degraus brancos lavados de anil. A terra em seus escuros corredores conhece meu passo, sente um pé em movimento, uma asa que se agita, um arquejo e um tremor. Ouço o saber ser alvo de caçoada e irrisão, as figuras subindo, sujeira de morcego gotejando do alto e movendo-se com asas douradas de papelão; ouço os trens colidindo, as correntes retinindo, as locomotivas resfolegando, roncando, fungando, fumegando e mijando. Todas as coisas chegam até mim através do nevoeiro claro com o odor da repetição, com ressacas amarelas e pragas e xingações. No centro morto, bem abaixo de Dijon, bem abaixo das regiões hiperbóreas, encontra-se o Deus Ajax, com os ombros amarrados à roda do moinho, as azeitonas triturando-se, à água do pântano verde cheia de rãs coaxantes.
O nevoeiro e a neve, a latitude fria, a cultura pesada, o café azul, o pão sem manteiga, a sopa de lentilhas, os feijões indigestos, o queijo rançoso, o cozido esponjoso, o vinho ruim deixaram toda a penitenciária em estado de constipação. E exatamente quando todos ficaram cheios de merda os canos da privada congelaram. A merda amontoa-se como cupinzeiros; a gente tem de descer dos pequenos pedestais e soltá-la no chão. Fica lá dura e congelada, esperando o degelo. Nas quintas-feiras, o corcunda vem com o carrinho de mão, empurra os troços frios e duros com uma vassoura e uma pá, e vai-se embora arrastando a perna seca. Os corredores estão cobertos de papel higiênico; gruda nos pés da gente como papel pega-môsca. Quando o tempo melhora o cheiro fica maduro; pode ser sentido em Winchester a quarenta quilômetros de distância.
Em pé sobre aquela bosta madura pela manhã, com uma escova de dente, o cheiro é tão forte que faz a cabeça da gente girar. Ficamos em roda com camisas de flanela vermelha, esperando para vomitar no buraco; é como uma ária de uma das óperas de Verdi - um coro de bigorna com polias e seringas. Durante a noite, quando fico apertado, corro para o lavatório privado de M. le Censeur, ao lado da alameda. Minhas fezes estão sempre cheias de sangue. Essa privada também não dá descarga, mas pelo menos há o prazer de sentar. Deixo meu montinho para ele como uma prova de estima.
Toda noite, quando se aproxima o final da refeição, o veilleur de nuit aparece para tomar seu gole. Este é em toda a instituição o único ser humano pelo qual sinto afinidade. É um ninguém.
Carrega uma lanterna e um molho de chaves. Faz as rondas durante a noite, rígido como um autômato. Mais ou menos no momento em que servem o queijo rançoso, ele aparece para tomar seu copo de vinho. Fica ali em pé, pata estendida, cabelos duros e espetados, como os de um mastim, faces coradas, bigode brilhando da neve. Resmunga
uma ou duas palavras e Quasímodo traz-lhe a garrafa. Então, os pés sòlidamente plantados, joga a cabeça para trás e deixa escorrer, vagarosamente em um único e demorado gole. Para mim é como se estivesse derramando rubis garganta abaixo. Há algo em seu gesto que me agarra pelos cabelos. É quase como se estivesse bebendo as borras da simpatia humana, como se todo o amor e toda a compaixão do mundo pudessem ser bebidos daquele jeito, de um gole - como se aquilo fosse tudo quanto se poderia espremer da seqüência dos dias. Um pouco menos que um coelho é o que haviam feito dele. No plano das coisas, ele não vale a salmoura usada para curar um arenque.
É apenas um pouco de estéreo vivo. E sabe disso. Quando olha em roda depois de beber e sorri para nós, o mundo parece estar caindo aos pedaços. Todo o fedorento mundo civilizado jaz como atoleiro no fundo de um poço e, sobre ele, qual miragem, paira esse sorriso hesitante.
Era o mesmo sorriso que me saudava à noite quando eu voltava de meus passeios. Lembro-me de uma noite quando, em pé na porta esperando que o velho terminasse a ronda, experimentei tal sensação de bem-estar que poderia ter esperado assim para sempre. Tive de esperar talvez uma hora antes que ele abrisse a porta. Olhei ao redor calma e descansadamente, bebendo tudo com o olhar, a árvore morta diante da escola com os galhos retorcidos, as casas do outro lado da rua que haviam mudado de cor durante a noite e que se curvavam agora mais sensivelmente, o barulho de um trem rodando através das solidões siberianas, as grades pintadas por Utrillo, o céu, os profundos sulcos de carro. De repente, surgindo do nada, apareceram dois amantes; de poucos em poucos passos paravam e abraçavam-se. Quando não pude mais segui-los com os olhos segui o som de seus passos, ouvi a parada abrupta e depois o andar lento e serpeante. Podia sentir o abandono de seus corpos quando se encostavam a uma cerca, ouvir-lhes os sapatos rangerem quando os músculos se retesavam para o abraço. Atravessaram a cidade andando ao acaso, atravessaram as ruas tortuosas, em direção ao canal vidrado onde a água corre preta como carvão.
Havia algo fenomenal nisso. Em toda Dijon não se encontravam outros dois como eles. Enquanto isso, o velho fazia a ronda. Eu podia ouvir o tinir de suas chaves, o bater de suas botas, o passo firme e automático. Finalmente ouvi-o avançar através da alameda para abrir a grande porta, um monstruoso portão arqueado como um fosso na frente. Ouvi-o mexendo na fechadura, com as mãos duras e a mente entorpecida.
Quando a porta se abriu, vi sobre sua cabeça uma constelação brilhante coroando a capela. Toda porta estava trancada, toda cela aferrolhada. Os livros, fechados.
A noite pendia fechada, com ponta de punhal, bêbeda como um maníaco. Ali estava, o infinito do vazio. Sobre a capela, qual a mitra de um bispo, pairava a constelação; toda noite, durante os meses de inverno, pairava baixo sobre a capela. Baixo e brilhante, um punhado de pontas de punhal, um deslumbramento de vazio puro. O velho seguiu-me até a curva do caminho. A porta fechou-se silenciosamente. Quando lhe disse boa noite, surpreendi de novo aquele sorriso desesperado, como um lampejo meteórico sobre a orla de um mundo perdido. E de novo o vi em pé no refeitório, cabeça jogada para trás e rubis escorrendo garganta abaixo. Todo o Mediterrâneo parecia afundado dentro dele - os laranjais, os ciprestes, as estátuas aladas, os templos de madeira, o mar azul, as máscaras rígidas, os números místicos, os pássaros mitológicos, os céus de safira, os filhotes de águia, os recôncavos ensolarados, os bardos cegos, os heróis barbudos. Tudo isso perdido. Afundado por baixo da avalancha do Norte.
Enterrado, morto para sempre. Uma lembrança. Uma esperança vã. Por um momento deixo-me ficar na alameda. A mortalha, o pano mortuário, o indescritível e dominador vazio de tudo. Depois avanço rapidamente ao longo do caminho de cascalho próximo à parede, passo pelos arcos e pelas colunas, pela escada de ferro, de um quadrângulo para o outro. Tudo hermèticamente fechado. Fechado para o inverno. Encontro a arcada que leva ao dormitório. Uma luz doentia cai das janelas sujas e geladas sobre a escada. Em toda parte, a pintura descascando. As pedras estão escavadas, o corrimão range. Um suor úmido desprende-se do lajeado e forma aura pálida e vaga perfurada pela fraca luz vermelha no topo da escada. Subo o último lanço, com suor e terror. Na escuridão completa caminho às apalpadelas pelo corredor deserto, com todo quarto vazio, fechado, esfarelando-se. Minha mão desliza ao longo da parede procurando o buraco da fechadura. O pânico domina-me quando agarro o trinco. Há sempre uma mão no meu colarinho, pronta a puxar-me para trás. Depois de entrar no quarto, tranco a porta. É um milagre que faço toda noite, o milagre de entrar sem ser estrangulado, sem ser abatido por um machado. Posso ouvir os ratos correndo pelo corredor, roendo sobre minha cabeça entre as grossas vigas. A luz brilha como enxofre ardente e há o cheiro doce e doentio de quarto que nunca é ventilado. No canto, o caixão de carvão, exatamente como o deixei.
O fogo está apagado. Um silêncio tão intenso que soa em meus ouvidos como a catarata do Niágara.
Sozinho, com tremenda e vazia ânsia e pavor. O quarto inteiro para meus pensamentos. Nada senão eu mesmo e o que penso, o que temo. Poderia ter os pensamentos mais fantásticos, poderia dançar, cuspir, fazer caretas, praguejar, chorar - ninguém jamais saberia, ninguém jamais ouviria. A idéia de isolamento tão absoluto basta para deixar-me louco. É como ao nascer. Tudo cortado. Separado, nu, sozinho. Contentamento e agonia simultaneamente. O tempo em suas mãos. Cada segundo pesando sobre você como uma montanha. Você se afoga nele. Desertos, mares, lagos, oceanos. O tempo afastando-se às batidas como um machado de açougue. Nada. O mundo. O eu e o não-eu. Oomaharamooma. Tudo precisa ser aprendido, testado, experimentado. Faltes comme chez vous, chêri.
O silêncio desce em quedas vulcânicas. Longe, nos montes nus, rodando para a frente em direção às grandes regiões metalúrgicas, as locomotivas puxam seus produtos comerciais. Sobre leitos de aço e ferro, elas rodam, o chão coberto de lava e cinzas e minério púrpura. No vagão de carga, travessas, talas de junção de trilhos, varas de ferro, dormentes, rolos de arame, chapas e folhas, artigos laminados, aros forjados a quente, carros de argamassa, e minério de Zorès. As rodas de U-80 milímetros ou mais. Passam por esplêndidos exemplares de arquitetura anglo-normanda, passam por pedestres e pederastas, fornalhas abertas, usinas Bessemer, dínamos e transformadores, peças de ferro gusa e lingotes de aço. O público em geral, pedestres e pederastas, peixinhos dourados e palmeiras de vidro, asnos soluçando, tudo circulando livremente através de aléias quincunciais. Na Place du Brésil um olho de alfazema.
Relembro de relance as mulheres que conheci. É como uma cadeia que eu tivesse forjado com minha própria miséria. Cada elo está preso ao outro. Um medo de viver separado, de permanecer nascido.
A porta do útero sempre destrancada. Medo e anseio. No fundo do sangue o puxão do Paraíso. O além. Sempre o além. Tudo precisa ter começado com o umbigo. Cortam o cordão umbilical, dão-lhe um tapa na bunda e - pronto - você está aqui fora no mundo, desgovernado, um navio sem leme. Olha para as estrelas, e depois para o umbigo. Olhos crescem em você por toda parte - nas axilas, entre os lábios, nas raízes dos cabelos, nas solas dos pés. O que é distante torna-se próximo, o que é próximo torna-se distante. Para dentro e para fora, um fluxo constante, um soltar de peles, um virar de dentro para fora. Você vagueia assim anos e anos, até encontrar-se no centro morto e lá vagarosamente apodrece, vagarosamente se reduz a pedaços, dispersa-se de novo. Só o seu nome permanece.
JÁ ERA PRIMAVERA QUANDO CONSEGUI fugir da penitenciária, e assim mesmo só por um golpe de sorte. Um telegrama de Carl informou-me certo dia de que havia uma vaga "lá em cima". Dizia que mandaria o dinheiro para a passagem de volta se eu decidisse aceitar. Respondi imediatamente ao telegrama e logo que o dinheiro chegou toquei para a estação. Nenhuma palavra a M. le Proviseur ou a qualquer outra pessoa. Despedida à francesa, como dizem.
Segui imediatamente para o hotel no l bis, onde Carl estava hospedado. Ele veio abrir a porta completamente nu. Era sua noite de folga e havia uma boceta na cama, como de hábito. "Não se incomode com ela", disse, "está dormindo. Se está precisando dar uma foda, pode pegá-la. Ela não é ruim." Puxou as cobertas para trás a fim de mostrar-me como era. Todavia, eu não estava pensando em fornicação naquele momento. Estava excitado demais. Era como um homem que tivesse acabado de fugir da cadeia. Queria apenas ver e ouvir coisas. Sair da estação fora como um longo sonho. Sentia-me como se tivesse ficado anos ausente.
Só depois de ter-me sentado e dado uma boa olhada no quarto é que percebi que estava de volta a Paris. Era o quarto de Carl e não havia como confundi-lo. Como uma gaiola de esquilo e uma latrina, combinadas. Mal havia espaço sobre a mesa para a máquina portátil que ele usava. Era sempre assim, tivesse ou não uma fêmea com ele. Sempre um dicionário aberto sobre um volume do Faust de lombada dourada, sempre uma bolsa de tabaco, uma boina, uma garrafa de vin rouge, cartas, manuscritos, jornais velhos, aquarelas, chaleira, meias sujas, palitos de dentes, sais de Kruschen, camisas-de-vênus etc. No bidê havia cascas de laranja e os restos de um sanduíche de presunto.
"Há um pouco de comida no armário", disse ele. "Sirva-se! Eu ia fazer uma lavagem."
Encontrei o sanduíche de que falava, e ao lado um pedaço de queijo que ele havia mordiscado. Enquanto ele ficava sentado na beirada da cama, aplicando seu argirol, fiz descer o sanduíche e o queijo com o auxílio de um pouco de vinho.
"Gostei daquela carta que você me escreveu sobre Goethe", disse ele, enxugando o membro com uma cueca suja. "vou mostrar-lhe a resposta dentro de um minuto - estou incluindo-a em meu livro. O mal de você é não ser alemão. É preciso ser alemão para compreender Goethe. Que merda, não vou explicar-lhe isso agora. Pus tudo no livro...
A propósito, tenho agora uma nova fêmea.. . não esta... esta é idiota. Pelo menos tinha, até alguns dias atrás. Agora não garanto se ela vai voltar ou não. Viveu aqui comigo durante todo o tempo em que você esteve fora. Outro dia seus pais apareceram e levaram-na embora. Disseram que tinha apenas quinze anos. Pode imaginar uma coisa dessas? Fizeram-me também cagar de medo..."
Comecei a rir. Era bem próprio de Carl meter-se numa encrenca assim.
"De que está rindo?" perguntou. "Posso ir para a prisão por causa disso. Felizmente, não a engravidei. E isso também foi engraçado porque ela nunca tomou a menor precaução. Mas sabe o que me salvou? É o que penso, pelo menos. Foi Faust. Isso mesmo! Seu velho viu por acaso o livro sobre a mesa. Perguntoume se sabia alemão.
Uma coisa puxou outra e, antes que eu percebesse, ele estava examinando meus livros. Aconteceu que felizmente o Shakespeare também estava aberto. Isso o impressionou como os diabos. Disse que eu era evidentemente um "rapaz sério".
"E a garota... que disse ela?"
"Estava morta de susto. Você compreende, ela tinha um relòginho quando chegou; na excitação, não conseguimos encontrar o relógio e a mãe insistiu em que ele fosse encontrado, caso contrário chamaria a polícia. Você vê como são as coisas aqui. Virei tudo de cabeça para baixo - mas não pude encontrar o maldito relógio. A mãe ficou furiosa. Gostei dela também, apesar de tudo. Tinha mesmo aparência melhor que a filha. Veja... vou mostrar-lhe uma carta que comecei a escrever-lhe. Estou apaixonado por ela..."
"Pela mãe?"
"Claro. Por que não? Se tivesse visto a mãe primeiro, nunca teria olhado para a filha. Como poderia eu saber que tinha só quinze anos? Você não pergunta a uma fêmea que idade tem antes de fodê-la, pergunta?
"Joe, há algo engraçado nisto. Você não está brincando comigo, está?"
"Brincando com você? Olhe... veja isto!" E mostrou-me as aquarelas que a garota pintara - coisas bonitinhas - uma faca e um filão de pão, a mesa e a chaleira, tudo subindo. "Ela estava apaixonada por mim", disse. "Era como uma criança. Eu tinha de dizer-lhe quando escovar os dentes e como pôr o chapéu. Olhe.. . veja os pirulitos!
Eu comprava-lhe uns pirulitos todo dia - ela gostava muito."
"Bem, que fez ela quando os pais vieram buscá-la? Não armou uma briga?"
"Chorou um pouco, mais nada. Que podia fazer? Ela é menor de idade... Precisei prometer nunca vê-la de novo e nunca escrever-lhe também. Isso é o que estou esperando ver agora - se ela fica longe ou não. Era virgem quando chegou aqui. O negócio é saber quanto tempo poderá passar sem fornicação. Quando estava aqui não se contentava nunca. Quase me gastou."
A essa altura aquela que estava na cama acordou e começou a esfregar os olhos. Também me pareceu bem jovem. Não tinha má aparência, mas era estúpida como os diabos.
Quis saber imediatamente o que estávamos falando.
"Ela mora aqui no hotel", disse Carl. "No terceiro andar. Quer ir para o quarto dela? Arranjo para você."
Eu não sabia se queria ou não, mas quando vi Carl mexendo com ela de novo, decidi que queria. Perguntei-lhe primeiro se estava muito cansada. Pergunta inútil. Uma puta nunca está cansada demais para abrir as pernas. Algumas conseguem adormecer enquanto você fornica. Seja como for, decidi que iríamos para seu quarto. Assim, eu não teria de pagar a dormida ao patron.
De manhã aluguei um quarto que dava para o pequeno parque embaixo, onde os homens-sanduíches sempre iam tomar lanche. Ao meio-dia procurei Carl para tomar o desjejum com ele. Em minha ausência, ele e Van Norden haviam adquirido um novo hábito iam todos os dias tomar o desjejum no Coupole. "Por que o Coupole?" perguntei. "Por que o Coupole?", disse Carl. "Porque o Coupole serve caldo a qualquer hora, e caldo faz a gente cagar". "Compreendo", disse eu.
Assim, tudo outra vez exatamente como antes. Nós três indo e voltando a pé para o trabalho. Pequenas dissensões, pequenas rivalidades. Van Norden ainda preocupado com suas fêmeas e com lavar a sujeira de sua barriga. Só que agora encontrou nova diversão. Descobriu que é menos aborrecido masturbar-se. Fiquei espantado quando me deu a notícia. Não achava possível um cara como aquele encontrar prazer em masturbar-se. Fiquei ainda mais espantado quando me explicou como fazia. Inventara um novo processo. "Você toma uma maçã", disse ele, "e tira a parte do centro. Depois esfrega um pouco de creme para pele na parte de dentro, para que não derreta muito depressa. Experimente uma vez. Deixará você louco a princípio. Seja como for, é barato e você não precisa perder muito tempo."
"A propósito", diz, mudando de assunto, "aquele seu amigo Fillmore acha-se no hospital. Penso que está louco. Pelo menos, foi o que me disse a garota dele. Arranjou uma garota francesa - sabe? - enquanto você estava fora. Brigavam como o diabo. Ela é uma cadela grande e sadia, um pouco selvagem. Eu não me incomodaria em dar-lhe uma cantada, mas tenho medo de que me arranque os olhos com as unhas. Ele andava sempre com o rosto e as mãos arranhadas. Ela também aparece machucada de vez em quando - ou aparecia.
Você sabe como são essas fêmeas francesas - quando amam, perdem a cabeça."
Evidentemente, haviam acontecido coisas enquanto eu estivera fora. Fiquei triste ao saber de Fillmore. Fora infernalmente bom comigo. Quando deixei Van Norden, saltei para um ônibus e fui direto ao hospital.
Ainda não haviam decidido se ele estava completamente desregulado ou não, suponho, pois encontrei-o no andar superior em quarto particular, gozando de todas as liberdades dos pacientes normais. Saíra do banho quando cheguei. Mal me avistou explodiu em lágrimas. "Está tudo acabado", disse imediatamente. "Dizem que estou louco - e talvez esteja também com sífilis.
Dizem que tenho delírios de grandeza." Caiu sobre a cama e chorou baixinho. Depois de ter chorado algum tempo, ergueu a cabeça e sorriu - exatamente como pássaro saindo de uma soneca. "Por que me puseram em um quarto tão caro?" disse. "Por que não me puseram na enfermaria - ou no manicômio? Não tenho recursos para pagar isto. Estou reduzido aos meus últimos quinhentos dólares."
"É por isso que o deixam aqui", disse eu. "Transferirão você bem depressa quando seu dinheiro acabar. Não se preocupe."
Minhas palavras devem tê-lo impressionado, pois mal acabei de falar entregou-me o relógio com a corrente, a carteira, o distintivo etc. "Fique com eles", disse.
"Estes bastardos roubarão tudo quanto tenho." E depois começou a rir de repente, uma daquelas risadas esquisitas e tristes que fazem a gente acreditar na maluquice do cara, esteja ou não louco. "Sei que você pensa que estou doido", disse ele, "mas quero reparar o que diz. Quero casar-me. Você compreende, eu não sabia que estava com gonorréia. Passeilhe a gonorréia e depois a engravidei. Disse ao médico que não me preocupa o que vai acontecer-me, mas que ele primeiro me deixe casar. Ele fica dizendo para eu esperar até melhorar, mas sei que nunca vou melhorar. Isto é o fim."
Não pude deixar de rir, ouvindo-o falar desse jeito. Não podia compreender o que lhe acontecera. Seja como for, precisei prometer-lhe que veria a garota e lhe explicaria as coisas. Queria que eu ficasse ao lado dela, que a confortasse. Disse-lhe que podia confiar em mim etc. Respondi sim a tudo a fim de acalmá-lo. Não me pareceu exatamente maluco apenas um pouco abalado. Típica crise anglo-saxônica. Uma erupção de moral. Achava-me curioso por ver a garota, para conhecer os fundamentos da coisa toda.
No dia seguinte procurei-a. Estava morando no Quarteirão Latino. Logo que percebeu quem eu era, tornou-se excessivamente cordial. Chamava-se Ginette. Grande, magra, sadia, o tipo da camponesa com um dente da frente meio cariado. Cheia de vitalidade e com uma espécie de fogo maluco nos olhos. A primeira coisa que fez foi chorar.
Depois, vendo que eu era velho amigo de seu Jô-Jô - assim o chamava - desceu a escada correndo e voltou com duas garrafas de vinho branco. Eu tinha de ficar para jantar - insistia nisso. À medida que bebia, tornava-se alternadamente alegre e chorosa. Não precisei fazer-lhe perguntas - ela funcionava como uma máquina que desse corda em si própria.
O que a preocupava principalmente era isto: ele teria de novo o emprego quando saísse do hospital? Disse que seus pais eram abastados, mas estavam descontentes com ela. Não lhe aprovavam as extravagâncias. Particularmente, não o aprovavam - ele não tinha modos e era americano. Implorou-me que lhe assegurasse que teria seu emprego de novo, o que fiz sem hesitação. Depois imploroume que lhe dissesse se podia acreditar no que ele lhe falara - que ia casar-se com ela. Porque agora, com uma criança na barriga, e uma dose de gonorréia ainda por cima, não estava em condições de casar-se - pelo menos com um francês. Isso era claro, não? Naturalmente, assegurei-lhe. Para mim era claro como o diabo - só que, em nome de Cristo, como pudera Fillmore cair por ela? Contudo, uma coisa de cada vez. Era meu dever agora confortá-la e por isso limitei-me a impingir-lhe uma porção de baboseiras, disse-lhe que tudo sairia bem e que eu seria padrinho da criança etc. Depois, de repente, pareceu-me estranho que ela viesse a ter criança - especialmente porque era provável que nascesse cega. Disse-lhe isto com o maior tato possível. "Não faz diferença", respondeu. "Quero ter um filho dele."
"Mesmo que seja cego?" perguntei.
"Mon Dieu, ne dites pas ça!", gemeu. "Ne dites pa ça!"
Ainda assim, achei que me cumpria dizer. Ela ficou histérica e começou a chorar como uma vaca-marinha. Pôs mais vinho no copo. Alguns momentos depois ria ruidosamente.
Ria de pensar como costumavam lutar quando iam para a cama. "Gostava de que eu lutasse com ele", contou. "Era um bruto."
Quando nos sentamos para comer, chegou uma amiga dela - uma putinha que vivia no fim do hall. Ginette imediatamente me mandou descer para buscar mais um pouco de vinho. Quando voltei, as duas haviam evidentemente tido uma boa conversa. A amiga, Yvette, trabalhava no departamento de polícia. Uma alcagüeta, pelo que pude perceber. Pelo menos era isso que estava tentando fazer-me acreditar. Tornava-se evidente que não passava de uma putinha. Mas tinha obsessão pela polícia e seus feitos. Durante toda a refeição ficaram insistindo para que eu as acompanhasse a um bal musete. Queriam divertir-se - Ginette sentia-se tão solitária com Jô-Jô no hospital. Disse-lhes que precisava trabalhar, mas que em minha noite de folga voltaria e sairia com elas. Deixei claro também que não tinha grana para gastar com elas. Ginette, que na realidade ficou aterrada ao ouvir-me dizer isso, fingiu que não tinha a menor importância. De fato, apenas para mostrar como tinha espírito esportivo, insistiu em levar-me de carro até o emprego. Fazia isso porque eu era amigo de Jô-Jô. E portanto era amigo dela.
"E também", pensei comigo mesmo, "se acontecer alguma coisa de mal ao seu Jô-Jô você me procurará bem depressa. Verá então que amigo sou capaz de ser!" Quando descemos do carro diante do jornal, deixei que me convencessem a tomarmos juntos um último Pernod. Yvette queria saber se podia procurar-me depois do serviço. Tinha muita coisa para contar-me confidencialmente, disse ela. Consegui, porém, recusar sem ferirlhe os sentimentos. Infelizmente tive a fraqueza de dar-lhe meu endereço.
Infelizmente, digo eu. Na verdade, porém, fico até satisfeito quando me lembro disso. Porque logo no dia seguinte começaram a acontecer as coisas. Logo no dia seguinte, antes de levantar-me da cama, as duas me procuraram. Jô-Jô fora transferido do hospital - tinham-no encarcerado em um pequeno castelo no campo, a apenas alguns quilômetros de Paris. O chateou, era como o chamavam. Uma maneira delicada de dizer "o manicômio". Queriam que eu me vestisse imediatamente e fosse com elas. Estavam em pânico.
Talvez sozinho eu tivesse ido - mas não podia decidir-me a ir com aquelas duas. Pedi-lhes que esperassem embaixo, enquanto me vestia, pensando que assim teria tempo de inventar alguma desculpa para não ir. Mas não quiseram sair do quarto. Ficaram lá sentadas olhando-me, enquanto eu me lavava e me vestia, como se fosse coisa de todo dia. No meio disso tudo, apareceu Carl. Expus-lhe brevemente a situação, em inglês, e depois inventamos uma desculpa no sentido de que eu tinha um trabalho importante a fazer. Todavia, para amaciar as coisas, trouxemos mais um pouco de vinho e começamos a diverti-las, mostrando-lhes um livro de desenhos sujos. Yvette já havia perdido todo o desejo de ir ao castelo. Ela e Carl estavam-se dando maravilhosamente bem. Quando chegou a hora de ir, Carl decidiu acompanhá-las até o castelo.
Achou que seria engraçado ver Fillmore andando de um lado para outro com uma porção de loucos. Queria ver como era o hospício. E assim foram, um tanto embriagados e no melhor humor.
Durante todo o tempo em que Fillmore esteve no castelo nunca fui vê-lo. Não era necessário, pois Ginette visitava-o regularmente e dava-me todas as notícias. Tinhamesperança de consertá-lo em alguns meses, segundo me disse ela. Achavam que era intoxicação alcoólica - nada mais. Naturalmente, ele estava com gonorréia, mas isso não era difícil curar. Pelo que tinham podido ver, não estava com sífilis. Já era alguma coisa. Assim, para começar, aplicaram-lhe lavagens no estômago.
Ele ficou tão fraco durante algum tempo, que não podia deixar a cama. Achava-se também deprimido. Dizia que não queria ser curado - queria morrer. E continuava repetindo essa tolice com tanta insistência que finalmente ficaram alarmados. Suponho que não lhes seria uma recomendação muito boa se ele se suicidasse. Seja como for, começaram a aplicar-lhe tratamento mental. E nos intervalos arrancaram-lhe os dentes, cada vez mais, até não lhe restar um único na boca. Devia sentir-se melhor depois disso, mas estranhamente não se sentiu. Ficou mais abatido do que nunca. E então seus cabelos começaram a cair. Finalmente apresentou traços paranóicos começou a acusá-los de toda espécie de coisas, exigiu que lhe dissessem com que direito estava sendo detido e o que havia feito para ficar preso etc. Depois de um terrível acesso de desânimo, tornava-se de repente enérgico e ameaçava arrebentar tudo, se não o soltassem. Para tornar as coisas ainda piores, no que se referia a Ginette, alterou completamente sua idéia de desposá-la. Disse-lhe abertamente que não tinha intenção de casar e que, se ela era tão louca que seria capaz de ter um filho, então que o sustentasse.
Os médicos interpretaram isso tudo como bom sinal. Diziam que ele estava recuperando-se. Ginette, naturalmente, achava que ele estava mais louco do que nunca, mas rezava para que o soltassem a fim de poder levá-lo para o campo, onde haveria calma e paz, e ele recuperaria o juízo. Entrementes, os pais dela haviam chegado a Paris para uma visita e até visitaram o futuro genro no castelo. com sua mentalidade astuciosa provavelmente haviam pensado que era melhor para a filha ter um marido louco do que não ter marido algum. O pai achava que poderia encontrar alguma coisa para Fillmore fazer na fazenda. Disse que Fillmore afinal não era um sujeito tão ruim. Quando soube por Ginette que os pais de Fillmore tinham dinheiro, tornou-se ainda mais indulgente, mais compreensivo.
O negócio estava-se resolvendo magnificamente. Ginette voltou para a província a fim de passar algum tempo com os pais. Yvette vinha regularmente ao hotel visitar Carl. Pensava que ele era o diretor do jornal. E pouco a pouco tornou-se mais confidencial. Um dia, quando bem bêbeda, informou-nos que Ginette nunca passara de uma puta, que Ginette era uma sanguessuga, que nunca estivera grávida nem estava agora. Quanto às outras acusações, não tínhamos muita dúvida, Carl e eu, mas quanto a não estar grávida, disso não nos sentíamos muito certos.
"Então como é que ela ficou com a barriga grande daquele jeito?" perguntou Carl.
Yvette riu. "Talvez use uma bomba de bicicleta", disse, "Não, seriamente", acrescentou, "a barriga é de beber. Ginette bebe como uma vaca. Quando voltar do campo, verão, estará ainda mais inchada. O pai é bêbedo. Ginette é bêbeda. É possível que tenha gonorréia, isso sim - mas não está grávida."
"Mas por que quer casar-se com ele? Está realmente apaixonada?"
"Apaixonada? Puf! Ginette não tem coração. Quer alguém que cuide dela. Nenhum francês se casaria com ela - tem ficha na polícia. Não, ela o quer porque ele é tão estúpido que não descobrirá coisa alguma a seu respeito. Os pais dela também não a querem mais - é uma vergonha para eles. Mas se conseguir casar-se com um americano rico, tudo estará bem... Vocês talvez pensem que ela o ama um pouco, hem? Não a conhecem. Quando viviam juntos no hotel, ela recebia homens em seu quarto, enquanto ele trabalhava. Dizia que ele não lhe dava dinheiro suficiente para gastar. Era sovina. Aquela pele que usa - disse que ganhou dos pais, não contou? Bobo inocente!
Cheguei a vê-la levar um homem para o hotel mesmo quando ele estava lá. Levou o homem para o andar de baixo. Vi com meus próprios olhos. E que homem! Um velho brocha!
Não conseguia sequer ficar duro!"
Se Fillmore, quando foi solto do castelo, voltasse a Paris, talvez eu lhe tivesse feito algumas insinuações sobre Ginette. Enquanto ainda estava em observação, achei que não convinha perturbá-lo envenenando-lhe o espírito com as calúnias de Yvette. Aconteceu, porém, que ele foi diretamente do castelo para a casa dos pais de Ginette. Lá, a contragosto, foi induzido a tornar público seu noivado. Publicaram os proclamas nos periódicos locais e ofereceram recepção aos amigos da família.
Fillmore aproveitou-se da situação para entregar-se a toda espécie de leviandades. Embora soubesse muito bem o que estava fazendo, fingia ser ainda um pouco maluco.
Tomava emprestado o carro do sogro, por exemplo, e rodava pelo campo sozinho; quando via uma cidade de que gostava, detinha-se e divertia-se até Ginette aparecer à sua procura. Às vezes, o sogro e ele saíam juntos - para uma pescaria, presumivelmente - e não davam notícias durante dias.
Tornou-se exasperadamente caprichoso e exigente. Suponho que tenha pensado em tirar o que pudesse daquilo.
Quando voltou a Paris com Ginette tinha um completo guarda-roupa novo e o bolso cheio da grana. Parecia alegre e sadio, e tinha a pele bronzeada. De aparência forte como um touro. Contudo, assim que se afastou de Ginette, abriu-se. Perdera o emprego e todo seu dinheiro acabara. Dentro de um mês mais ou menos iam casar-se. Enquanto isso, os pais iam fornecendo a grana. "Depois de me terem convenientemente em suas garras", disse "não serei senão um escravo deles. O pai pensa em abrir uma papelaria para mim. Ginette cuidará dos fregueses, receberá o dinheiro etc., enquanto eu me sentarei no fundo da loja e escreverei - ou coisa que o valha. Pode imaginar-me sentado no fundo de uma papelaria pelo resto da vida? Ginette acha que é uma idéia excelente. Gosta de lidar com dinheiro. Prefiro voltar ao castelo a submeter-me a esse plano."
No momento, naturalmente, estava fingindo que tudo corria muito bem. Tentei convencê-lo a voltar para a América, mas não quis ouvir falar nisso. Não permitiria que um bando de camponeses ignorantes o expulsassem da França. Tinha a idéia de desaparecer por algum tempo e depois instalar-se em algum lugar da periferia da cidade, onde não fosse provável encontrar-se com ela. Mas logo decidimos que tal era impossível: não pode a gente esconder-se na França como na América.
"Você poderia ir para a Bélgica por algum tempo", sugeri.
"Mas onde vou arranjar dinheiro?" respondeu prontamente. "Não se consegue arranjar emprego nestes malditos países".
"Por que não se casa com ela e depois se divorcia?" perguntei.
"E enquanto isso ela terá um filho. Quem vai cuidar da criança, hem?"
"Como é que você sabe que ela vai ter um filho?" disse eu, decidindo que chegara o momento de falar claro.
"Como é que sei?" disse, parecendo não perceber o que eu insinuava... Fiz algumas alusões ao que Yvette dissera. Ouviu-me absolutamente perplexo. Afinal, interrompeu-me. "Não adianta continuar com isso", disse. "Sei muito bem que ela vai ter um bebê. Senti-o dando pontapés lá dentro. Yvette é uma putinha muito suja. Você compreende, não queria contar-lhe, mas até quando fui para o hospital eu sustentava Yvette também. Depois, quando houve o choque, não pude fazer mais nada por ela.
Achei que já havia feito o suficiente pelas duas.. . Resolvi cuidar de mim primeiro. Isso deixou Yvette irritada. Disse a Ginette que ia acertar as contas comigo... Não, eu gostaria de que fosse verdade o que ela disse. Então poderia sair mais facilmente deste negócio. Agora estou numa armadilha. Prometi casar-me com ela e terei de ir até o fim. Depois não sei o que será de mim. Agora eles me têm seguro pelos testículos."
Como ele tomara um quarto no mesmo hotel que eu, via-me obrigado a encontrá-los freqüentemente, quisesse ou não. Quase toda noite, jantava com eles, precedido, naturalmente, de alguns Pernods. Durante toda a refeição os dois brigavam ruidosamente. Era embaraçoso porque às vezes eu tinha de tomar partido de um lado, e algumas vezes do outro. Um domingo à tarde, por exemplo, depois de termos almoçado juntos, fomos a um café na esquina do Boulevard Edgar-Quinet. As coisas corriam excepcionalmente bem dessa vez. Sentamo-nos no café a uma pequena mesa, um ao lado do outro, com as costas para um espelho. Ginette devia estar excitada ou coisa semelhante, pois de repente ficou com uma disposição sentimental e pôs-se a agradá-lo e beijá-lo na frente de todos, como os franceses fazem tão naturalmente. Haviam saído de um longo abraço quando Fillmore disse, a respeito de seus pais, alguma coisa que ela interpretou como um insulto. Imediatamente ficou com as faces rubras de raiva.
Tentamos acalmá-la dizendo que havia entendido mal a observação e depois, à meia voz, Fillmore disse-me algo em inglês - algo a respeito de fazer-lhe uns agradinhos.
Foi o bastante para que ela ficasse completamente descontrolada. Falou que estávamos caçoando dela. Eu lhe disse alguma coisa ríspida que a encolerizou ainda mais, e então Fillmore tentou intervir. "Você se irrita muito facilmente", disse ele e tentou dar-lhe um tapinha no rosto. Ela, porém, supondo que Fillmore tivesse levantado a mão para esbofeteá-la, deu-lhe um sólido murro no queixo com aquela sua grande mão de camponesa. Por um momento ele ficou estonteado. Não esperava um murro como aquele, e isso o melindrou. Vi-o ficar branco e num momento ele se levantou e, com a palma da mão, deu-lhe tal bofetada que ela quase caiu do banco. "Pronto! Isso a ensinará a comportar-se!" disse ele, em seu francês ruim. Por um momento houve um silêncio mortal. Depois, como uma tempestade estourando, ela apanhou o copo de conhaque que tinha à sua frente e arremessou-o com toda a força contra Fillmore. O copo quebrou-se contra o espelho atrás de nós. Fillmore já a havia agarrado pelo braço, mas com a mão livre ela apanhou o copo de café e quebrou-o contra o chão. Debatia-se como uma maníaca. Tudo quanto podíamos fazer era segurá-la. O patron, naturalmente, viera correndo e ordenara que déssemos o fora. "Vagabundos!" chamou-nos ele. "Sim, vagabundos. É isso!" gritou Ginette. "Estrangeiros sujos! Bandidos! Gangsters! Batendo numa mulher grávida!" Recebíamos olhares ferozes de todos os lados. Uma pobre mulher francesa com dois desordeiros americanos. Gangsters. Eu estava pensando como, diabo, conseguiríamos sair do lugar sem uma briga. Fillmore, a essa altura, estava silencioso como uma ostra. Ginette corria porta afora, deixando-nos para enfrentar o tranco. Quando saía, voltou-se com o punho erguido e gritou: "Você me pagará por isso, bruto! Você vai ver! Nenhum estrangeiro pode tratar uma francesa decente desse jeito! Ah, não! Assim, não!"
Ouvindo isso o patron, que então já fora pago pelas bebidas e pelos copos quebrados, achou de seu dever demonstrar galantaria para com uma esplêndida representante da maternidade francesa como Ginette e, assim, sem mais nem menos, cuspiu em nossos pés e empurrou-nos porta afora. "Vão à merda, vagabundos sujos!" disse ele, ou delicadeza semelhante.
Uma vez na rua e sem pessoa alguma jogando coisas atrás de nós, comecei a ver o lado engraçado da história. Seria uma excelente idéia, pensei comigo mesmo, se todo o negócio fosse ventilado na justiça. Todo o negócio! com as històriazinhas de Yvette como um prato à parte. Afinal, os franceses têm senso de humor. Talvez o juiz, depois de ouvir a versão de Fillmore, o dispensasse do casamento.
Entrementes, Ginette estava do outro lado da rua, brandindo o punho e gritando com toda a força de seus pulmões. Pessoas detinham-se para ouvir, para tomar partido, como fazem em brigas de rua. Fillmore não sabia o que fazer - se afastar-se dela ou se ir até ela e tentar acalmá-la. Estava em pé no meio da rua, braços estendidos, tentando intercalar uma palavra. E Ginette continuava gritando: "Gangster! Brute! Tu v erras, salaud!" e outras coisas lisonjeiras. Finalmente, Fillmore fez um movimento em sua direção e ela, provavelmente pensando que ele lhe ia dar outro bom safanão, saiu correndo rua abaixo. Fillmore voltou para onde eu estava e disse: "Venha, vamos segui-la quietamente." Começamos a andar com uma pequena multidão de desocupados atrás de nós. De vez em quando ela se voltava em nossa direção e brandia o punho. Não tentamos alcançá-la, mas apenas a seguimos descansadamente pela rua, para ver o que ia fazer. Finalmente, ela atrasou o passo e nós passamos para o outro lado da rua. Estava quieta agora. Continuamos andando atrás dela, aproximando-nos cada vez mais. Agora havia atrás de nós apenas umas doze pessoas - as outras tinham perdido o interesse. Quando chegamos perto da esquina ela parou de repente e esperou que nos aproximássemos. "Deixe que eu fale", disse Fillmore. "Sei lidar com ela."
Quando nos aproximamos, corriam lágrimas pelo seu rosto. Quanto a mim, não sabia o que esperar dela. Fiquei um tanto surpreendido quando Fillmore se chegou a ela e disse com voz magoada: "Foi bonito o que você fez? Por que agiu assim?" Diante disso, ela lançou os braços ao redor do pescoço de Fillmore e começou a chorar como criança, chamando-o de seu isto e seu aquilo. Depois se voltou para mim, implorante. "Você viu como ele me bateu", disse. "É assim que se faz com uma mulher?"
Eu estava a ponto de dizer que sim, quando Fillmore a tomou pelo braço e começou a levá-la embora. "Vamos parar com isso", disse ele. "Se começar de novo arrebento-a aqui mesmo na rua."
Pensei que ia começar tudo de novo. Ela tinha fogo nos olhos. Evidentemente, porém, estava um pouco acovardada, pois submeteu-se depressa. Todavia, quando nos sentamos no café disse em voz baixa e sombria que ele não devia pensar que seria perdoado tão prontamente; ainda ouviria alguma coisa mais tarde... talvez naquela mesma noite.
Sem dúvida, cumpriu sua palavra. Quando o encontrei no dia seguinte tinha o rosto e as mãos arranhados. Parece que ela esperara até ele ir para cama e depois, sem uma palavra, dirigira-se ao guarda-roupa e, jogando no chão as coisas dele, apanhara-as uma por uma e as rasgara todas em tiras. Como isso já acontecera diversas vezes antes e porque ela sempre as costurava depois, ele não protestara muito, o que a deixou mais furiosa do que nunca. O que queria era enfiar as unhas nele, e isso ela fez, com o máximo de sua habilidade. Estando grávida levava certa vantagem sobre ele.
Pobre Fillmore! Não era caso para rir. Ela o aterrorizara. Se ele ameaçava fugir, replicava com a ameaça de matá-lo. E dizia-o como se pretendesse mesmo fazer.
"Se você for para a América", afirmava, "eu o seguirei! Você não escapará de mim. Uma moça francesa sabe sempre tirar vingança." E no momento seguinte estava agradando-o, dizendo-lhe para ser "razoável", para ser "sage" etc. A vida seria tão boa quando tivessem a papelaria.
Ele não teria nem um pouquinho de trabalho. Ela faria tudo. Poderia ficar no fundo da loja e escrever - ou fazer o que quisesse.
E isso continuou assim, para a frente e para trás, como uma gangorra, durante algumas semanas. Eu os evitava o mais possível, enjoado da história e desgostoso com os dois. Um belo dia de verão, quando estava passando pelo Credit Lyonnais, quem vejo descendo a escada, senão Fillmore? Cumprimentei-o calorosamente, sentindo-me um pouco culpado por tê-lo evitado durante tanto tempo. Perguntei-lhe, com mais que curiosidade comum, como iam as coisas. Respondeu-me vagamente e com uma nota de desespero na voz.
"Consegui permissão para ir ao banco", disse, de uma maneira peculiar, entrecortada e abjeta. "Tenho meia hora, não mais. Ela me vigia". E agarrou-me pelo braço como se quisesse levar-me depressa para longe daquele lugar.
Caminhamos em direção à Rue de Rivoli. Era um belo dia, quente, claro, ensolarado - um daqueles dias em que Paris está em seu melhor estado. Soprava agradável e suave brisa, suficiente apenas para afastar das narinas o odor estagnado. Fillmore estava sem chapéu. Exteriormente parecia a imagem da saúde - como o turista americano médio que vagueia com dinheiro tilintando no bolso.
"Não sei mais o que fazer", disse em voz baixa. "Você tem de fazer alguma coisa por mim. Eu sou incapaz. Não posso reagir. Se ao menos pudesse ficar longe dela por algum tempo, talvez me recuperasse. Mas não me perde de vista. Consegui permissão para correr até o banco - precisava tirar um pouco de dinheiro. vou andar um pouco com você e depois precisarei voltar correndo ela estará esperando-me com o almoço.
Ouvi-o silenciosamente pensando comigo mesmo que ele sem dúvida precisava de alguém que o tirasse do buraco onde se encontrava. Estava completamente liquidado, não lhe restava mais um átomo de coragem. Era como uma criança - uma criança que é espancada todo dia e não sabe mais como comportar-se, a não ser agachar-se e encolher-se.
Quando virávamos sob a colunata da Rue de Rivoli ele se lançou numa longa diatribe contra a França. Estava cheio dos franceses. "Eu costumava entusiasmar-me com eles", disse, "mas era tudo literatura. Agora os conheço... Sei como são realmente. Cruéis e mercenários. A princípio, parece maravilhoso, porque você tem a sensação de estar livre. Depois de algum tempo você se enche. Por baixo está tudo morto: não há sentimento, nem simpatia, nem amizade. São egoístas até o fundo. O povo mais egoísta da terra! Não pensam senão em dinheiro, dinheiro, dinheiro. E tão infernalmente respeitáveis, tão burgueses! Isso é que me deixa louco. Quando a vejo remendando minhas camisas tenho vontade de dar-lhe uma paulada. Sempre remendando, remendando.
Economizando, economizando. Faut faire dês économies! Isso é o que a ouço dizer o dia inteiro. É o que você ouve por toda parte. Sois raisonnable, mon chéri! Sois raisonnable! Não quero ser razoável e lógico. Odeio isso! Quero ficar solto, quero divertir-me. Quero fazer alguma coisa. Não quero ficar sentado num café conversando o dia inteiro. Jesus, temos nossos defeitos - mas temos entusiasmo. É melhor cometer erros do que não fazer coisa alguma. Prefiro ser um vagabundo na América a ficar sentado aqui tranqüilamente. Talvez porque sou ianque. Nasci na Nova Inglaterra e'acho que meu lugar é lá. Ninguém pode tornar-se europeu da noite para o dia. Existe no sangue alguma coisa que nos torna diferentes. É o clima - e tudo. Vemos as ciosas com olhos diferentes. Não podemos reformar-nos, por mais que admiremos os franceses.
Somos americanos e temos de continuar americanos. É claro que odeio aqueles patifes puritanos lá na pátria - odeio-os com todo meu ser. Mas sou um deles. Meu lugar não é aqui. Estou cheio disto."
Ao longo de toda a arcada continuou assim. Eu não dizia uma palavra. Deixei-o pôr tudo para fora - era bom desabafar. Ainda assim, eu pensava como era estranho que esse mesmo sujeito, um ano antes, estaria batendo no peito como um gorila e dizendo: "Que dia maravilhoso! Que país! Que povo!" E se por acaso um americano passasse e dissesse uma palavra contra a França, Filmore achatar-lhe-ia o nariz. Teria morrido pela França - um ano antes. Nunca vi um homem tão apaixonado por um país, tão feliz sob um céu estrangeiro. Era natural. Quando dizia France queria dizer vinho, mulheres, dinheiro no bolso, assim como vem, vai. Queria dizer ser um mau menino, estar de férias. E depois, quando levou seu coice, quando a coberta da tenda foi arrancada e ele deu um bom olhar para o céu, viu que não era apenas um circo, mas uma arena, como qualquer outro lugar. E uma arena infernalmente cruel. Muitas vezes, quando o ouvia trombetear a respeito da França, a respeito da liberdade e toda aquela baboseira, eu pensava como isso soaria para um operário francês, se ele pudesse compreender as palavras de Fillmore. Não é de admirar que pensem que todos nós somos loucos. Somos loucos para eles.
Somos apenas um bando de crianças. Idiotas senis. O que chamamos de vida é um romance de loja americana. Aquele entusiasmo que fica por baixo - que é ele? Aquele otimismo barato que vira o estômago de qualquer europeu comum? É ilusão. Não, ilusão é uma palavra boa demais para isso. Ilusão significa alguma coisa. Não,
não é isso - é delírio. É puro delírio, isso sim. Somos como um rebanho de cavalos selvagens com tapas nos olhos. Em disparada. Estourados. Sobre o precipício.
Upa! Tudo quanto alimente violência e confusão. Para a frente! Para a frente! Não importa aonde. E espumando nos lábios o tempo todo. Gritando Aleluia! Aleluia!
Por quê? Só Deus sabe. Está no sangue. É o clima. É uma porção de coisas. É o fim também. Estamos puxando todo o mundo para baixo conosco. Não sabemos por quê. É nosso destino. O resto é pura merda...
No Palais Royal sugeri que parássemos para tomar um gole. Ele hesitou por um momento. Vi que estava preocupado com ela, com o almoço, com o sermão que ia ter de ouvir.
"Pelo amor de Deus", disse eu, "esqueça-se dela por algum tempo. vou pedir alguma coisa para beber e quero que você beba. Não se preocupe, vou tirá-lo dessa fodida encrenca." Pedi dois uísques puros.
Quando viu os uísques chegando, sorriu para mim novamente como uma criança.
"Beba!" disse eu. "E vamos tomar outro. Isto vai fazer-lhe bem. Não importa o que diga o médico - desta vez tudo correrá bem. Vamos, beba!"
Ele bebeu mesmo e, enquanto o garçom desaparecia para buscar outra rodada, olhou-me com os olhos brilhando de alegria, como se eu fosse o último amigo no mundo.
Seus lábios estavam também tremendo um pouco. Havia algo que queria dizer-me, e não sabia como começar. Olhei-o calmamente, como se ignorasse o apelo, e empurrando os pires para o lado inclinei-me sobre os cotovelos e disse seriamente: "Escute aqui, Fillmore, que deseja realmente fazer? Conte-me!"
As lágrimas jorraram e ele falou impulsivamente: "Gostaria de estar em casa com a minha gente. Gostaria de ouvir falar inglês." As lágrimas corriam-lhe pelas faces.
Não fez esforço algum para enxugá-las. Deixou simplesmente que tudo jorrasse para fora. Jesus, pensei comigo mesmo, é ótimo ter um desabafo como esse. Ótimo ser um completo covarde pelo menos uma vez na vida. Abandonar-se desse jeito. Grande! Grande! Fêz-me tanto bem vê-lo abater-se daquele jeito, que me senti como se fosse capaz de resolver qualquer problema. Senti-me corajoso e decidido. Tive imediatamente mil idéias.
"Escute", disse, inclinando-me ainda mais para perto dele, "se fala sério, por que não faz isso? Por que não vai? Sabe o que eu faria, se fosse você? Iria hoje. Sim, por Deus, estou falando sério... Iria já, sem sequer dizer adeus a ela. Na realidade essa é a única maneira como você pode ir - ela nunca o deixaria dizer adeus. Você sabe disso."
O garçom chegou com os uísques. Vi-o estender a mão para a frente com desesperada ansiedade e erguer o copo até os lábios. Vi-lhe um brilho de esperança nos olhos - distante, feroz, desesperado. Provavelmente se via nadando através do Atlântico. Para mim parecia fácil, simples como rolar uma tora. Tudo se estava formando rapidamente em meu espírito. Eu sabia exatamente como seria cada passo. Claro como um sino, pensei.
"De quem é o dinheiro que está no banco?" perguntei. "É do pai dela ou é seu?"
"É meu!" exclamou. "Minha mãe mandou-o para mim. Não quero nada do maldito dinheiro dela."
"Ótimo!" disse eu. "Ouça, suponha que tomemos um carro e vamos até lá. Tiramos até o último centavo. Depois você procura o Consulado Britânico e arranja um visto.
Vai embarcar no trem de Londres esta tarde. Estou dizendo isso porque assim você não precisa preocupar-se com a possibilidade de ser seguido por ela. Ela nunca suspeitará que você foi por Londres. Se o procurar, naturalmente irá ao Havre primeiro ou a Cherbourg... E eis aqui outra coisa - você não vai voltar para buscar suas coisas. Vai deixar tudo lá. Ela que fique com tudo. com aquela sua mentalidade francesa nunca imaginará que você deu o fora sem mala ou bagagem. É incrível.
Um francês nunca sonharia em fazer uma coisa dessas... a menos que estivesse maluco como você."
"Tem razão!" exclamou. "Nunca pensei nisso. Ademais, você poderia mandar as coisas depois - se ela as entregasse! Mas agora isso não tem importância. Jesus, eu não tenho nem chapéu!"
"Para que precisa de chapéu? Quando chegar a Londres poderá comprar tudo quanto necessitar. Agora só precisa de pressa. Vamos ver quando parte o trem."
"Escute", disse ele, apanhando a carteira. "vou deixar tudo por sua conta. Fique com isto e faça o que for necessário. Estou muito fraco... Tonto."
Tomei a carteira e esvaziei-a das notas que ele acabara de retirar do banco. Um carro estava parado na esquina. Saltamos para ele. Um trem deixava a Gare du Nord às quatro horas mais ou menos. Eu estava pensando - o banco, o Consulado, o American Express, a estação. Ótimo! Era o tempo certo.
"Agora anime-se!" disse eu. "E conserve a cabeça erguida. Que merda, dentro de algumas horas você estará atravessando o canal. Hoje à noite estará passeando em Londres e encherá a barriga de inglês. Amanhã, estará em alto mar - e então, por Cristo, será um homem livre e não precisará pensar mais no que acontece. Quando chegar a Nova York, isto não será mais que um sonho mau."
Isso o deixou tão excitado que seus pés se moveram convulsamente, como se tentasse correr dentro do carro. No banco sua mão tremia tanto que mal conseguiu assinar o nome. Era uma coisa que eu não podia fazer por ele - assinar-lhe o nome. Penso, porém, que se fosse necessário, eu seria capaz de fazê-lo sentar na privada e limpar-lhe a bunda. Estava decidido a despachá-lo, ainda que tivesse de dobrá-lo e colocá-lo numa valise.
Era hora do almoço quando chegamos ao Consulado Britânico. O prédio estava fechado, Queria isso dizer que teríamos de esperar até as duas horas. Não pude pensar em coisa melhor, a fim de matar o tempo, do que comer. Fillmore, naturalmente, não estava com fome. Queria comer um sanduíche. "Foda-se!" disse eu. "Você vai pagar-me um bom almoço. É a última refeição completa que toma aqui - talvez por muito tempo." Levei-o para um pequeno e confortável restaurante e pedi uma boa refeição.
Encomendei o melhor vinho do cardápio, sem pensar no preço ou no sabor. Estava com todo o dinheiro em meu bolso - montes de dinheiro, segundo me parecia. Sem dúvida nunca antes tivera tanto em minhas mãos, de uma só vez. Foi um prazer trocar uma nota de mil francos. Ergui-a contra a luz primeiro, a fim de observar a bela marca de água. Dinheiro bonito! Uma das poucas coisas que os franceses fazem em escala grandiosa. Artisticamente feito também, como se dedicassem profunda afeição até mesmo ao símbolo.
Terminada a refeição, fomos a um café. Pedi Chartreuse com o café. Por que não? E troquei mais uma nota - uma nota de quinhentos francos desta vez. Era uma nota limpa, nova, estalando. Um prazer manusear tal dinheiro. O garçom devolveu-me, um punhado de notas sujas e velhas remendadas com tiras de papel colante; eu tinha um monte de notas de cinco e dez francos e um punhado de miúdo. Dinheiro chinês, com buracos. Não sabia mais em que bolso enfiar o dinheiro.
Minha calça estava estourando de moedas e cédulas. Carregar toda aquela grana em público deixava-me ligeiramente sem conforto. Temia que nos tomassem por um par de gatunos.
Quando chegamos ao American Express não restava mais muito tempo. Os britânicos, com aquela sua maneira atrapalhada e peidorrenta, haviam-nos deixado pisando em ovos. Aqui todos deslizavam sobre óleo de rícino. Foram tão rápidos que precisamos fazer tudo duas vezes. Depois de todos os cheques estarem assinados e presos por clipes em um montinho bem arrumado, descobriu-se que ele havia assinado no lugar errado. Não havia outro recurso senão começar tudo de novo. Fiquei ao seu lado, com o olho no relógio, e vigiei cada penada. Doeu devolver a grana. Não toda, graças a Deus - mas boa parte dela. Eu tinha cerca de 2.500 francos no bolso. Mais ou menos, digo eu. Não estava mais contando francos. Cem ou duzentos a mais ou a menos nada significavam para mim. Quanto a ele, fazia toda a transação estonteado.
Não sabia quanto dinheiro tinha. Tudo quanto sabia é que tinha de reservar algo para Ginette. Não sabia ainda ao certo quanto - íamos resolver isso no caminho da estação.
Na excitação esquecemo-nos de trocar todo o dinheiro. Já estávamos no carro, porém, e não havia tempo a perder. O importante era verificar em que pé estávamos. Esvaziamos rapidamente os bolsos e começamos a separá-lo. Uma parte estava caída no chão, uma parte estava sobre o banco. Era estonteante. Havia dinheiro francês, americano e inglês. E ainda todo aquele miúdo. Senti vontade de apanhar as moedas e jogá-las pela janela - só para simplificar as coisas. Finalmente separamos tudo; ele ficou com o dinheiro inglês e americano, eu com o dinheiro francês.
Tínhamos de decidir rapidamente o que fazer com Ginette quanto dar-lhe, o que dizer-lhe etc. Ele estava tentando inventar uma história para eu contar a ela – não queria que ela ficasse desolada, e assim por diante. Tive de interrompê-lo bruscamente.
"Não se preocupe com o que lhe dizer", falei eu. "Deixe isso por minha conta. Quanto vai dar-lhe? Isso é que importa. Por que dar-lhe alguma coisa?"
Foi o mesmo que lhe pôr uma bomba embaixo da bunda. Explodiu em lágrimas. Que lágrimas! Foi pior do que antes. Pensei que fosse desmaiar nas minhas mãos. Sem parar para pensar, exclamei:
"Está bem, dê-lhe todo este dinheiro francês. Isto deverá durar algum tempo."
"Quanto é?", perguntou fracamente.
"Não sei - uns 2.000 francos mais ou menos. Mais do q»e ela merece, afinal de contas."
"Cristo! Não diga isso!" implorou. "Afinal, é um golpe desgraçado que lhe estou dando. Sua gente nunca a aceitará de volta. Não, dê isso a ela. Dê-lhe todo esse maldito dinheiro... Não me importa quanto seja."
Puxou um lenço para enxugar as lágrimas. "Não posso evitar", explicou. "É demais para mim". Eu não disse nada. De repente, estirou-se todo - pensei que estivesse tendo um ataque, ou coisa semelhante, e disse: "Jesus, acho que eu devia voltar. Devia voltar e enfrentar o tranco. Se alguma coisa acontecer a ela, jamais me perdoarei."
Foi um rude golpe para mim. "Cristo!", gritei. "Você não pode fazer isso! Agora não. É muito tarde. Vai tomar o trem e eu vou cuidar dela. vou procurá-la logo que você parta. Escute, seu bobo, se ela imaginar que você tentou fugir, matá-lo-á, não percebe? Você não pode voltar mais. Está decidido."
Afinal, que poderia acontecer de mal?, perguntei a mim mesmo. Suicidar-se ela? Tant mieux.
Quando chegamos à estação ainda tínhamos uns doze minutos para matar. Não me atrevi ainda a dizer-lhe adeus. No último minuto, aturdido como estava, eu poderia vê-lo saltar do trem e voltar correndo para ela. Qualquer coisa poderia desviá-lo. Uma palha. Por isso arrastei-o através da rua até um bar e disse: "Agora você vai tomar um Pernod... seu último Pernod, e sou eu que vou pagar... com sua grana."
Algo nesta observação fez que ele me olhasse apreensivamente. Tomou um grande gole do Pernod e depois, voltando-se para mim como um cão machucado, disse: "Sei que não devia confiar-lhe todo esse dinheiro... mas... mas... Ora, faça o que achar melhor. Não quero que ela se mate, só isso."
"Matar-se?", disse eu. "Não ela! Você deve imaginar-se muito importante se é capaz de acreditar numa coisa assim. Quanto ao dinheiro, embora odeie dá-lo a ela, prometo-lhe que irei direto ao correio e mandar-lhe-ei por telegrama. Não ficarei com ele um minuto mais que o necessário." Enquanto dizia isso, olhei uni maço de cartões-postais em uma prateleira giratória. Agarrei um deles - era um retrato da Torre Eiffel - e fiz com que ele escrevesse algumas palavras. "Diga-lhe que está partindo agora. Diga-me que a ama e que mandará buscá-la assim que chegar... Eu o remeterei pelo pneumático quando for ao correio. E hoje à noite irei vê-la. Tudo correrá bem, vai ver."
Depois atravessamos a rua em direção à estação. Faltavam apenas dois minutos. Sentia-me seguro agora. No portão dei-lhe um tapa nas costas e apontei-lhe o trem.
Não lhe apertei a mão - ele se teria desmanchado todo por cima de mim. Disse apenas: "Corra! Vai partir dentro de um minuto." E com isso virei nos calcanhares e afastei-me. Nem sequer olhei para trás a fim de ver se estava tomando o trem. Tive medo de olhar.
Enquanto me estava esforçando para fazê-lo partir, não pensei realmente no que faria depois de ver-me livre dele. Tinha prometido muita coisa - mas isso fora apenas para conservá-lo calmo. Quanto a enfrentar Ginette, eu tinha tão pouca coragem quanto ele. Estava-me deixando também dominar pelo pânico. Tudo acontecera tão depressa que era impossível compreender plenamente a natureza da situação. Afastei-me da estação em uma espécie de delicioso torpor - com o cartão-postal na mão. Fiquei parado ao lado de um poste de iluminação e li-o. Parecia absurdo. Li-o de novo, para ter certeza de que não estava sonhando, e depois rasguei-o e joguei-o na sarjeta.
Olhei em volta inquietamente, quase esperando ver Ginette avançar contra mim com um machado de índio. Ninguém me seguia. Comecei a caminhar descansadamente em direção à Place Lafayette. Era um belo dia, como já observei antes. Nuvens leves e fofas no alto, vogando com o vento. Os toldos balouçando-se. Paris nunca me parecera tão boa; quase senti pena de ter embarcado o pobre patife. Na Place Lafayette sentei-me diante da igreja e fitei a torre do relógio; não é uma peça de arquitetura tão maravilhosa, mas aquele azul do mostrador sempre me fascinou. Estava agora mais azul do que nunca. Não podia desviar meus olhos dele.
A menos que ele estivesse suficientemente louco para escreverlhe uma carta explicando tudo, Ginette jamais precisaria saber do que acontecera. E mesmo que ficasse sabendo que ele lhe deixara uns 2.500 francos, não poderia prová-lo. Eu sempre poderia dizer que era imaginação dele. Um sujeito que, de tão louco, partira sem levarsequer um chapéu, é capaz de inventar 2.500 francos ou seja quanto for.
Quanto era, afinal?, fiquei pensando. Meus bolsos estavam afundando com o peso do dinheiro. Tirei tudo e contei cuidadosamente. Havia exatamente 2.875 francos e 35 centavos. Mais do que eu pensara. Precisava livrar-me dos 75 francos e 35 centavos. Eu queria uma soma redonda - 2.800 franco» exatamente. Nesse momento vi um carro parando na esquina. Uma mulher desceu com um cãozinho branco nas mãos; o cão mijava-lhe no vestido de seda. A idéia de passear de carro um cão me irritou. Sou tão bom quanto seu cão, pensei comigo mesmo, e com isso fiz um sinal ao motorista e disse-lhe para levar-me através do Bois. Ele quis saber exatamente aonde. "Em qualquer lugar", disse eu. "Atravesse o Bois, dê toda a volta ao redor dele - e vá devagar, não estou com pressa." Afundei-me e deixei as casas passarem zunindo, os telhados denteados, os canos de chaminé, as paredes coloridas, os mictórios, os cruzamentos estonteantes. Ao passar pela Rond-Point pensei em descer e dar uma mijada. Ninguém sabe o que poderia acontecer lá embaixo. Disse ao motorista para esperar. Era a primeira vez em minha vida que deixava um carro esperando enquanto ia dar uma mijada. Quanto se pode desperdiçar dessa maneira? Não muito. com o que tinha no bolso eu poderia fazer dois táxis esperarem por mim.
Dei uma boa olhada em roda, mas nada vi que valesse a pena. O que eu desejava era algo fresco e não usado - algo do Alasca ou das ilhas Virgens. Uma pele limpa e fresca com sua fragrância natural. Não é preciso dizer que nada parecido com isso andava por ali. Não fiquei terrivelmente desapontado. Absolutamente não me importava encontrar alguma coisa ou não. O importante é nunca ficar muito ansioso. Tudo vem no devido tempo. Passamos diante do Arco do Triunfo. Alguns turistas estavam vadiando em roda dos restos do Soldado Desconhecido. Atravessando o Bois, olhei todas as fêmeas ricas que passeavam em suas limusines. Passavam velozes como se tivessem algum destino. Fazer isso, sem dúvida, parece importante - mostrar ao mundo como funcionam macios seus Rolls Royces e seus Hispano Suizas. Dentro de mim as coisas funcionavam mais macias do que até hoje funcionou qualquer Rolls Royce. Era exatamente como veludo por dentro. Córtex de veludo e vértebras de veludo. E graxa de eixo de veludo, ora! É uma coisa maravilhosa, por meia hora, ter dinheiro no bolso e jogá-lo fora como um marinheiro bêbedo. VOCÊ sente como se o mundo fosse seu. E a melhor parte disso é que você não sabe o que fazer dele. Pode sentar-se e deixar o taxímetro correr, pode deixar o vento soprar através de seus cabelos, pode parar e tomar um drinque, pode dar uma grande gorjeta e pode afastar-se emproado como se aquilo fosse uma ocorrência cotidiana. Mas você não pode criar uma revolução. Não pode lavar toda a sujeira da barriga. Quando chegamos à Porte d'Auteuil mandei-o rumar para o Sena. Na Pont de Sèvres desci e comecei a andar ao longo do rio, em direção ao viaduto Auteuil. Ele tem mais ou menos o tamanho de um riacho nesse ponto, e as árvores descem até a sua margem. A água estava verde e vidrada, especialmente perto do outro lado. De vez em quando passava uma chata. Banhistas de maio estavam em pé na grama, tomando sol. Tudo próximo e palpitante, e vibrante com a luz forte.
Passando pelo jardim de uma cervejaria vi um grupo de ciclistas sentados a uma mesa. Ocupei uma mesa vizinha e pedi um demi. Ouvindo-os tagarelar pensei por um momento em Ginette. Vi-a batendo os pés de um lado para outro do quarto, arrancando os cabelos, soluçando e choramingando daquela sua maneira selvagem. Vi o chapéu no cabide. Pensei se as roupas dele me serviriam. Ele tinha um raglan de qe eu gostava particularmente. Bem, a essa hora ele já estava a caminho. Dentro de pouco tempo o barco estaria balouçando embaixo dele. Inglês! Ele queria ouvir falar inglês! Que idéia! De repente ocorreu-me que, se quisesse, eu também poderia ir para a América. Era a primeira vez que a oportunidade me surgia. Perguntei a mim mesmo: "Quer ir?" Não houve resposta. Meus pensamentos vaguearam, em direção ao mar, em direção ao outro lado onde, dando uma última olhada para trás, eu vira os arranha-céus desaparecerem num torvelinho de flocos de neve. Vios de novo erguendo-se indistintamente, daquela mesma maneira fantástica de quando eu partira. Vi as luzes filtrando-se através de suas costelas. Vi toda a cidade estendida, do Harlem ao Battery, as ruas cheias de formigas, o trem elevado passando velozmente, os teatros esvaziando-se. Pensei de maneira vaga no que teria acontecido à minha esposa.
Depois de tudo ter sido quietamente peneirado através de minha cabeça, sobreveio-me uma grande paz. Aqui, onde o rio serpenteia delicadamente através do cinturão de colinas, existe um solo tão saturado do passado que, por mais que a mente vagueie para trás, a gente nunca pode separá-lo de seu fundo humano. Cristo, diante de meus olhos brilha uma paz tão dourada que só um neurótico poderia sonhar em desviar a cabeça. Tão quietamente corre o Sena, que a gente mal lhe nota a presença. Está sempre ali, manso e discreto, como uma grande artéria correndo através do corpo humano. Na paz maravilhosa que caiu sobre mim, pareceu-me ter subido ao topo de uma alta montanha. Por algum tempo eu seria capaz de olhar ao meu redor, absorver o sentido da paisagem.
Os seres humanos formam estranha fauna e flora. À distância parecem insignificantes; de perto tendem a parecer feios e maliciosos. Mais do que tudo precisam estar cercados de suficiente espaço - espaço, ainda mais do que tempo.
O sol descamba. Sinto este rio correndo através de mim, eu passado, seu solo antigo, o clima mutável. As colinas cercam-no delicadamente: seu curso é fixo.
Henry Miller
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