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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TUDO O QUE ELE SEMPRE QUIS / Anita Shreve
TUDO O QUE ELE SEMPRE QUIS / Anita Shreve

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O fogo começou na cozinha e propagou-se à sala de jantar do hotel. Sem aviso, ou talvez apenas como um grito de alarme abafado, uma bola de fogo (sim, uma autêntica bola) rolou através do vão em arco da porta de tabuinhas, a partir da cozinha, uma movediça esfera de cor tão extraordinária que foi como se contivesse vida e ameaça quando, naturalmente, não continha - quando, naturalmente, não passou de um facto da ciência ou da natureza e não de Deus. Por um momento, senti-me paralisado e recordo, com a maior nitidez, como a chama subiu pelos compridos reposteiros vermelhos, com a velocidade e agilidade de um esquilo, e como o fogo saltou literalmente de sanefa em sanefa, desintegrando o tecido e fazendo-o cair em cinzas sobre os comensais. Era quase impossível assistir a um acontecimento destes sem pensar que se havia abatido um cataclismo sobre os hóspedes pelos seus pecados, passados ou futuros.

Se o incêndio em si não penetrou de imediato na minha consciência, o calor da deflagração penetrou e não tardou a impelir-me da cadeira. À minha volta, tinha-se instalado uma confusão de mesas viradas, cadeiras tombadas, corpos lançados em direcção à porta da sala de jantar e dos ruídos de copos e pratos a quebrar. Felizmente as janelas que davam para a rua, grandes janelas através das quais um corpo passava, tinham sido abertas de par em par por alguém com presença de espírito. Recordo-me que rolei de lado através do caixilho de uma destas janelas, caindo sobre a neve, e que tive imediatamente a noção de que precisava de me afastar para permitir que outras pessoas aterrassem como eu - e foi nesse momento que o meu altruísmo finalmente despertou. Levantei-me e comecei a ajudar aqueles que haviam sofrido golpes e equimoses e tinham ossos partidos ou que haviam sido levemente esmagados no caos. O incêndio iluminou os comensais que escaparam com uma luz mais intensa do que qualquer outra que pudesse produzir-se à noite, de tal forma que pude ver claramente as expressões atordoadas das pessoas próximas de mim. Muitas tossiam, algumas choravam e todas pareciam ter recebido uma pancada na cabeça. Alguns homens encheram-se de heroísmo e tentaram reentrar no hotel para salvar os que ficaram para trás e creio que um estudante chegou mesmo a resgatar uma mulher idosa que tinha entrado em paralisia junto da mesa do bufete; mas, no geral, ninguém pensou em regressar ao edifício em chamas depois de ter escapado. Aliás, o calor era de tal modo intenso que nós, na multidão, tivemos de nos afastar cada vez mais para o outro lado da rua até nos encontrarmos no pátio da escola superior, rodeados de carvalhos e ulmeiros desfolhados e de imponentes sicómoros.

 

 

 

 

Mais tarde, viríamos a saber que o incêndio tinha começado com umas gotas de óleo entornadas sobre a chama do fogão e que a cozinheira auxiliar, que se encontrava perto deste, se sentira obrigada a extinguir o fogo, lançando sobre ele um jarro de água e depois, na sua aflição, abanando as chamas com um pano que tinha na mão. Cerca de vinte pessoas nos andares superiores do hotel ficaram presas nos quartos e morreram queimadas - uma delas foi Myles Chapin do Departamento de Química, mas sobre o que estava a fazer num quarto de hotel, quando a mulher e o filho estavam em casa em segurança, em Wheelock Street, não quero especular (talvez tivessem sido as circunstâncias comprometedoras em que se encontrava que levaram o homem a hesitar um segundo quando não devia ter hesitado). Surpreendentemente, só um dos trabalhadores da cozinha sucumbiu, graças ao facto de a porta das traseiras ter sido deixada aberta e o fogo, impelido pelas correntes de ar entre porta e janelas, ter avançado velozmente para a sala de jantar, permitindo que o resto do pessoal escapasse ileso, incluindo a infeliz cozinheira que desencadeara tudo com a sua atrapalhação.

O hotel situava-se directamente defronte da Escola Superior de Thrupp onde, na época, eu leccionava a cadeira de Literatura e Retórica Inglesas dedicada a Cornish. Thrupp era e é (ainda agora, quando escrevo a minha história) uma escola masculina de, digamos, modesta reputação. Os seus edifícios são um aglomerado heterogéneo, alguns verdadeiramente hediondos, erigidos no princípio do século passado por homens que projectaram um seminário mas, mais tarde, se contentaram com um pequeno enclave de investigação intelectual e educação clássica. Havia um edifício georgiano notável que albergava a administração, mas estava cercado por demasiadas estruturas sombrias em tijolo, com pequenas janelas e torreões em posições bizarras, que eram emblemáticos do período talvez mais atroz da arquitectura americana, ou seja, o gótico vitoriano primitivo. Alguns destes edifícios rodeavam o pátio quadrangular; os restantes estendiam-se pelas ruas de uma vila que era praticamente dominada pela escola. No entanto, como esta decidira preservar o sabor de uma pequena vila da Nova Inglaterra, as casas coloniais em madeira fasquiada que ladeavam Wheelock Street tinham permanecido intactas e funcionavam como residências para as figuras mais eminentes do corpo académico. Nos arredores da vila, antes de os montes graníticos começarem, situavam-se as herdades: empreendimentos que se debatiam com dificuldades e haviam sido testemunho de gerações de homens tentando ganhar a vida à custa do solo rochoso, um solo que sempre me recordou mulheres idosas e magras.

Nós, os comensais evacuados e, por isso mesmo, afortunados, encontrávamo-nos no centro deste universo, demasiado aturdidos ainda para começar a tiritar seriamente com o frio e a neve que nos encharcava as botas. Muitas pessoas semicerravam os olhos, voltadas para o clarão, ou tinham-nos tapado com os braços e recuavam a cambalear para escapar ao calor. Um pouco desnorteado, eu próprio comecei a circular ao acaso por entre a multidão, sem ter a presença de espírito de atravessar o pátio até Woram Hall onde poderia ter alcançado a minha cama. E foi assim que o meu olhar captou, no meio deste caos, a figura de uma mulher que estava de pé junto de um lampião.

Sempre fui um homem que, quando olha para uma mulher, repara em primeiro lugar na cara e depois na cintura (essas leves curvas que são inequívocos sinais de juventude e vitalidade) e, em terceiro lugar, no cabelo, avaliando numa fracção de segundo o seu brilho e comprimento. Sei que há homens com quem se passa o contrário ou homens cujo olhar fixa inevitavelmente o corpete de um vestido, esperando em seguida ter um vislumbre das pernas, mas nessa noite fui incapaz de analisar a mulher em questão de modo tão calculado simplesmente porque fiquei demasiado deslumbrado com o conjunto.

Não direi sem graça pois quem de nós é inteiramente sem graça na juventude? Mas também não direi bela pois havia no seu rosto e figura uma energia de cor e de traços que não a tornavam delicada nem dócil, atributos que eu achava até então imprescindíveis a qualquer definição da verdadeira beleza feminina. Ela tinha igualmente uma altura desmesurada, o que por vezes se torna desmotivador numa mulher. Mas possuía uma serenidade que era inegavelmente cativante. Se agora fechar os olhos, aqui neste compartimento ruidoso, consigo recuar no tempo mais de três décadas e ver a sua forma imóvel no meio da multidão quase histérica. E até o castanho dourado dos seus olhos, uma cor que complementava na perfeição o tom de topázio do seu vestido de um tecido cuja escolha era inspirada.

(Acontece que era um talento em que Etna não tinha rival - o de fazer condizer o vestuário e as jóias com os seus encantos característicos. )

A mulher tinha olhos amendoados e fartas pestanas castanhas escuras. As narinas e as maçãs do rosto eram proeminentes como se lhe corresse no sangue um elemento estrangeiro. Calculei que o seu cabelo cor de bolota Lhe daria, se solto, pela cinta. Tinha uma criança nos braços que imaginei pertencer-lhe. O meu desejo por esta mulher desconhecida foi tão imediato, intenso e impróprio que deveras me espantou; e muitas vezes me tenho interrogado se esse desejo violento, essa sensação de fogo dentro do corpo, essa necessidade ilícita de tocar a pele, não seriam simplesmente resultado das circunstâncias intensificadas pelo próprio incêndio. Teria ficado tão deslumbrado se tivesse visto Etna Bliss do outro lado da sala de jantar ou se me tivesse virado e a tivesse surpreendido atrás de mim na esquina de uma rua? Respondo à minha própria pergunta, como é inevitável que responda, com o conhecimento de que o lugar ou a data em que vi a mulher pela primeira vez não teriam feito qualquer diferença - a minha reacção teria sido igualmente fulminante e aterradora.

(Num outro aparte, gostava apenas de acrescentar que tenho observado, ao longo dos meus sessenta e quatro anos de vida, que a paixão corrói e fortalece em igual medida o carácter, não lenta mas instantaneamente e de tal modo que a personalidade entra em desequilíbrio e num desgoverno desesperado em ambos os sentidos. A corrosão é o resultado da vontade de fazer tudo o que for necessário para obter o objecto do nosso desejo, mesmo que signifique recorrer à mentira ou ao engano ou aviltar o que outrora se estimou. O fortalecimento é o resultado do conhecimento de que somos capazes de amar intensamente, de uma compreensão que, paradoxalmente, nos deixa uma sensação de gratidão e orgulho apesar da carnificina. )

(Mas, claro, na altura, nada sabia sobre isto. )

Depois de me ocupar, com uma certa impaciência e falta de atenção, de um homem que se tinha agarrado ao meu braço, um senhor de idade de olhos remelosos que andava à procura da mulher, voltei-me para o lugar onde a mulher e a criança estavam e vi que tinham desaparecido. Com uma sensação de pânico, que só posso descrever como absolutamente incaracterística e muito possivelmente demente - por sorte, uma tal agitação passou despercebida no meio de tanta gente - esquadrinhei o pátio como um pai que procura um filho perdido. Muitas pessoas tinham começado a dispersar em direcção a casa ou a táxis (facto que pouco ajudou a mitigar a minha ansiedade) enquanto outras tinham surgido das casas circundantes com cobertores e casacos, água e cacau e até bebidas alcoólicas para as vítimas do incêndio. Alguns dos que tinham estado na sala de jantar agasalhavam-se agora com peças de roupa que lhes ficavam demasiado grandes ou demasiado pequenas; tinham o ar de refugiados que haviam encalhado no pátio. Nesse momento, já os bombeiros tinham chegado e apontavam as mangueiras para o hotel. Não tenho conhecimento de que tivessem salvo uma única criatura nessa noite embora tivessem encharcado o edifício queimado com água que se transformou em sincelos antes de amanhecer.

Limpei as faces e a testa com o lenço. Estranhamente não me recordo de sentir frio. Caminhei por entre a multidão que dispersava com as ideias em desordem. Como é que estava em Thrupp há tanto tempo e nunca reparara nesta mulher? A vila não era afinal tão grande que as pessoas, de modo geral, não se conhecessem. E porque é que ela jantara no hotel? Teria estado sentada atrás de mim enquanto eu comia, solitário, o meu linguado cozido? A criança já estaria então com ela?

Continuei assim durante algum tempo até que comecei a abrandar o passo. Não foi porque o desejo se tivesse esvaecido mas porque me sentia acometido de fadiga. Tomei consciência de que sofrera um choque tremendo: os meus joelhos começaram a vacilar e as minhas mãos a tremer. Por fim, dei-me também conta do frio; deviam estar pelo menos quatro graus negativos nessa noite. Decidi procurar refúgio e ia novamente a atravessar o pátio, talvez pela quinta vez, quando ouvi um choro de criança. Voltei-me na direcção do som e avistei duas mulheres na escuridão. A mais alta das duas estava parcialmente escondida numa manta que tinha pelos ombros e na qual havia agasalhado a criança. Ao lado dela e agarrada ao seu braço, encontrava-se uma mulher mais velha que parecia estar em dificuldades. Tossia asperamente.

Quando me aproximei das três, notei que a serenidade que tinha observado na mulher de olhos castanhos dourados dera agora lugar à preocupação.

- Minha senhora - disse eu, avançando rapidamente (tão rapidamente como o próprio fogo? ) -, precisa de ajuda?

E se Etna Bliss me viu realmente nesse momento ou se só me viu no dia seguinte, não sei dizer, pois estava compreensivelmente perturbada.

- Por favor, tenho de levar a minha tia para casa - disse ela.

- Agradecia se nos arranjasse transporte pois ela inalou muito fumo e não é capaz de fazer a pé a distância necessária até casa mesmo em circunstâncias normais.

- Claro, certamente - respondi. - Esperam aqui?

- Sim - limitou-se ela a dizer, depositando assim uma absoluta confiança em mim e entregando talvez até o bem-estar da tia nas minhas mãos.

Descobri nessa noite que um homem nunca é tão competente e tão enérgico como quando ao serviço de uma mulher a quem espera agradar. Quase de imediato, vi-me na rua com notas de dólar na mão o que chamou a atenção do condutor de uma tipóia que já levava ocupantes mas que viu, sem dúvida, uma oportunidade para enfiar mais alguns corpos nos puídos bancos estofados. Pus fim às deliberações do homem, saltando para a carruagem e dando-lhe instruções imediatas.

- Isto é irregular, cavalheiro - disse ele, na expectativa da gorjeta adicional.

Mas eu, e com razão, passei-lhe uma descompostura. - Deu-se um desastre de proporções extremamente sérias e há muitas pessoas em todo o lado em grandes dificuldades. Devia estar a prestar ajuda a troco de nada - disse eu.

De forma surpreendente, já que entretanto eu tinha começado a duvidar da realidade do meu encontro com a fascinante mulher debaixo da árvore, as duas mulheres com a criança permaneciam onde eu as deixara. Ajudei em primeiro lugar a mulher mais idosa, que nesta altura já tiritava violentamente, a subir para a carruagem e depois estendi a mão à mulher com a criança - a sua mão extraordinariamente quente na minha mão gelada. Os outros passageiros mal conseguiram reprimir a irritação ao verem retardado o momento de tomarem os seus banhos quentes mas, mesmo assim, afastaram-se e deram lugar ao meu grupo.

- Preciso de uma morada, minha senhora - disse eu. A viagem não pode ter demorado mais de meia hora, apesar de o cocheiro ter levado primeiro a casa os outros passageiros. Sentei-me defronte da tia, que continuava a tossir, e do casal que possivelmente estaria a pensar nos seus haveres perdidos no vestiário (um casaco de pele de raposa tingido? Uma pasta de pele de crocodilo? ) mas a única coisa de que tinha consciência era uma leve pressão contra o meu cotovelo, uma pressão que aumentava ou diminuía consoante a mulher ao meu lado se ocupava da criança ou se debruçava para pôr a mão no braço da tia idosa. E só essa leve pressão, de que a mulher ao meu lado estava decerto absolutamente inconsciente, foi, creio, o momento mais intensamente físico de toda a minha vida até então - tanto assim foi que sou capaz de recriar a delicada promessa que anunciava e, sim, o seu erotismo, fechando simplesmente os olhos, aqui no meu compartimento em movimento, mesmo depois do que sucedeu mais tarde, de tudo o que, justificadamente, poderia ter apagado uma recordação tão terna.

Percorremos Wheelock Street até chegarmos a uma casa antiga de madeira fasquiada cor de cera. Era uma residência despretensiosa, como muitas das casas dessa rua. Preferia estas, de longe, ao estilo arrebicado, que se considera arquitectura, da adjacente Gill Street: estruturas enormes e incoerentes, com empenas e pórticos e aparentemente nenhuma simetria, se bem que estas casas mais recentes oferecessem melhores condições visto possuírem canalização interior pela qual é possível que se esteja disposto a trocar a estética. A casa dos Bliss tinha sete quartos, não contando com os quartos nas águas-furtadas para os criados, e dois salões, uma sala de jantar e um escritório. Tinha ainda, desde o ano anterior, aquecimento a vapor que sibilava e gorgolejava em radiadores prateados. Por vezes pensava que os aparelhos podiam explodir e que podíamos morrer escaldados quando jogávamos gamão ou tomávamos chá ou jantávamos à noite nessas salas excessivamente mobiladas com paredes revestidas de um papel espalhafatoso.

- Mas eu conheço esta casa, minha senhora - disse eu. - É a casa de William Bliss.

- É o meu tio.

Apercebi-me então de que a mulher sentada à minha frente não era de modo nenhum idosa mas a mulher de meia-idade do professor de Física, uma mulher com quem me cruzara, pelo menos em três ocasiões, na escola superior.

- Mrs. Bliss - disse eu, dirigindo-lhe a palavra -, queira desculpar-me. Não me apercebi.

Mas ela, incapaz de falar, dispensou o meu pedido de desculpas com um gesto nervoso.

Acompanhei as duas mulheres à porta de entrada que foi quase imediatamente aberta pelo próprio William Bliss.

- O que aconteceu, Van Tassel? - perguntou.

- Um incêndio no hotel - apressei-me a explicar. - Tivemos a felicidade de escapar com vida.

- Deus do Céu! - disse ele, abraçando a mulher e conduzindo-a para dentro de casa. - Bem estranhámos tantos sinos e buzinas.

Uma criada pegou na criança dos braços da mulher de olhos castanhos dourados que se voltou então na minha direcção, tirando simultaneamente a manta dos ombros e passando-ma para que me agasalhasse com ela.

- Ponha isto, por favor, para voltar para casa - disse ela. Eu e a minha tia estamos-Lhe profundamente gratas.

- Nicholas Van Tassel - disse eu.

- Etna Bliss.

Mais uma vez, ela pousou a sua mão quente na minha. - Está tão frio! - disse ela, baixando os olhos e retirando quase imediatamente a mão. - Entre um momento para se aquecer.

E, embora eu desejasse ardentemente entrar naquela casa, com a sua promessa de calor e a sua possibilidade de amor (a esperança leva a imaginação a avançar a passos de gigante num segundo, não é verdade? ), sabia que não seria conveniente dadas as circunstâncias.

- Agradeço muito, mas não - respondi. - Deve ir agora para dentro.

- Obrigada, Mr. Van Tassel - disse ela. E creio que o seu pensamento já estava na tia, na criança e no banho quente que a esperava pois, dito aquilo, fechou a porta.

Talvez se imponha aqui uma breve palavra sobre as minhas próprias circunstâncias nessa época, ou seja, Dezembro de 1899, pois julgo que é importante transmitir às gerações seguintes os factos da nossa hereditariedade, informação que é muitas vezes descurada com a necessidade de atender ao dia-a-dia e, em consequência, relegada para o éter do passado. O meu pai, Thomas Van Tassel, combateu na Guerra Entre os Estados com o 64º Regimento de Nova Iorque e perdeu uma perna nesse conflito, em Antietam, uma calamidade que, de modo algum, prejudicou a sua virilidade pois eu fui apenas um de onze filhos que ele subsequentemente procriou com uma sucessão de três mulheres. A minha mãe, a sua primeira mulher, morreu ao dar-me à luz e assim nunca a conheci, tendo apenas conhecido as outras duas. O meu pai, claramente um homem produtivo, era também empreendedor e criou três empresas consideráveis durante a sua vida: uma oficina gráfica em que trabalhei como aprendiz a partir de tenra idade; uma oficina de co ches; e mais tarde, quando os cavalos deram completamente lugar aos veículos motorizados, um stand de automóveis. As minhas recordações do meu pai remontam sobretudo à oficina gráfica pois mal o conheci fora dela. Muitas vezes procurava refúgio nessas salas de papel, tipos e tinta da minha casa excessivamente populosa em Tarrytown, Nova Iorque, com a segunda e a terceira mulheres: uma glacial, a outra melancólica, e nenhuma delas afectuosa para comigo, que tinha nascido da primeira mulher, a única que o meu pai alguma vez amou, facto que não se coibia de anunciar, a intervalos frequentes, apesar da indelicada natureza do sentimento e da subsequente tristeza e frigidez que o mesmo originava. No entanto, não me vi completamente privado de calor feminino durante a infância pois era chegado a uma das minhas irmãs, Meritable, a mesma irmã de cujo funeral vou neste momento a caminho.

Talvez por me encontrar tão envolvido no mundo da tinta e das folhas volantes, desenvolvi desde cedo um apetite apaixonado por aprender e, aos dezasseis anos, mandaram-me para Dartmouth College. Ainda recordo a suprema alegria com que descobri que teria um quarto só para mim já que fora sempre obrigado a partilhar um quarto com pelo menos três dos meus irmãos. Como a universidade tem uma reputação apreciável e é muito conhecida, não me alargarei aqui sobre ela, excepto para dizer que foi lá que, por um breve período, considerei abraçar o sacerdócio, tendo mais tarde abandonado essa ideia por falta de devoção.

Quando me licenciei, com vinte anos, viajei pelo estrangeiro durante dois anos e foi-me então oferecido o lugar, que aceitei, de professor associado de Literatura e Retórica Inglesas na Escola Superior de Thrupp, que está localizada a cerca de cinquenta e seis quilómetros a sudeste da universidade onde estudei. Aceitei esta posição com a ideia de que, numa instituição mais pequena e menos conhecida, poderia subir mais rapidamente na carreira e talvez, um dia, obter o lugar de Decano ou mesmo Director de Estudos, posições que provavelmente não me fossem acessíveis se ficasse em Dartmouth. Não me ocorrera aceitar um lugar fora da Nova Inglaterra, embora tivessem surgido oportunidades para tal, pois adoptara tão arreigadamente o comportamento e os hábitos de um nativo da Nova Inglaterra que já não me considerava um nova-iorquino. Aliás, uma ou outra vez dera-me ao trabalho de me fazer passar por um nativo da Nova Inglaterra, chegando mesmo, numa ocasião, confesso-o com algum pesar, a falsificar a minha história durante os meus primeiros meses em Dartmouth, presunção que tive extrema dificuldade em manter e da qual, por conseguinte, desisti antes de concluir o primeiro ano. (Foi em Dartmouth que abandonei o segundo "a" de Nicholaas. )

Como o meu pai, quando regressei da Europa, era um homem modestamente abastado, estaria financeiramente ao meu alcance dispor de casa própria na vila de Thrupp. No entanto, preferi alugar aposentos em Woram Hall, uma estrutura em estilo neoclássico, afectuosamente conhecida como Worms', pela razão de que não desejava especialmente viver em total solidão. Pensava também, um tanto equivocamente, que estar alojado próximo dos estudantes me

permitiria conhecê-los intimamente e que este facto, por seu turno me tornaria melhor professor. Na realidade, penso que se passou o contrário: uma grande proximidade, como descobri, ocasionava com frequência um antagonismo velado que por vezes me desconcertava. Os meus aposentos consistiam numa biblioteca, num quarto e numa sala de estar onde recebia visitas e conduzia sessões académicas. Adoptando os costumes da Nova Inglaterra, nascidos dois séculos antes na doutrina calvinista, tinha mobilado estas divisões com peças robustas mas despretensiosas - cinco cadeiras com espaldar de travessas, uma cama de dossel, um toucador, uma cómoda de cedro, um banco alto e uma escrivaninha onde guardava os meus papéis - evitando o mobiliário mais ornado e sobredimensionado, tão em voga na época, que abundava por todo o lado.

(Vêm-me agora à lembrança os aposentos de Moxon: uma pessoa quase não se podia mexer com tantos sofás, genuflexórios, secretárias inglesas, reposteiros de veludo, ornados relógios de mármore guarda-fogos e mesas de apoio em mogno. ) E, como a forma pode ditar o conteúdo, orientei os meus hábitos diários de acordo com o ambiente austero em que vivia, levantando-me cedo, fazendo exercício, chegando pontualmente às aulas, impondo a disciplina, quando necessário com mão de ferro, e exigindo muito dos meus alunos em termos de progresso intelectual. Embora não me agrade pensar que os meus alunos e colegas me consideravam severo, estou quase certo de que me consideravam firme. Penso agora, com a tolerância própria de uma reflexão feita em idade mais avançada, que exagerava muitas vezes nos meus esforços para me mostrar o filho espiritual, senão físico, dos meus antepassados de adopção, apesar de aquilo que, na minha imaginação, era a licenciosidade da minha herança nova-iorquina, evidenciada na excessiva fecundidade do meu pai, me ter ocasionalmente levado a desviar-me deste caminho probo e espartano, ainda que raramente em público e nunca em Thrupp. Buscando prazeres episódicos, viajava até Springfield, Massachusetts, como muitos dos meus colegas solteiros e não poucos dos casados. Recordo bem esses furtivos fins-de-semana, embarcando no comboio no entroncamento de White River e esperando não encontrar nenhum colega na carruagem-restaurante, quer na ida quer na volta, mas sempre preparado com uma desculpa inventada caso um encontro desses ocorresse. Com o tempo, em resultado destes encontros, talvez cinco ou sete ou dez, vi-me obrigado a criar uma irmã" em Springfield que tinha de visitar duas vezes por mês apesar de a dita irmã" residir de facto na Virgínia, antes de se mudar para a Flórida, e de me escrever de tempos a tempos, causando-me os envelopes com o remetente uma certa ansiedade. Não entrarei aqui em pormenores sobre as minhas actividades em Springfield embora possa afirmar que, até nessa cidade, mostrei ser, durante as minhas incursões aos seus bairros de pior fama, o mesmo homem de lealdades e hábitos que era dentro das salas de tijolo e granito de Thrupp.

Mais aturdido do que consciente, apanhei a tipóia de volta para o hotel, que começava agora a formar fantásticos sincelos em resultado dos jactos de água das mangueiras. No entanto, apenas me demorei aí breves momentos, mercê da conjunção de frio cortante e choque, que começara a fazer-me tiritar violentamente. Regressei aos meus aposentos em Worms onde dei instruções ao estudante encarregado das residências para que ateasse um bom fogo e pusesse a correr um banho quente.

Nessa época, Worms não tinha, nem tem agora, casas de banho privativas nos aposentos e, assim, fechei à chave a porta da casa de banho comum como era meu hábito. O vapor tinha formado uma nuvem sobre o espelho basculante e eu limpei um círculo de condensação para poder distinguir o meu rosto confuso. Tinha um arranhão ensanguentado na face em que não havia reparado. Não estava acostumado a passar tempo diante do espelho pois não me agradava pensar que era vaidoso, mesmo em privado, mas nessa noite tentei imaginar como eu, enquanto homem, podia surgir aos olhos de uma mulher que acabara de me conhecer. Nesse tempotinha trinta anos - possuía uma farta cabeleira castanha clara, de um tom banal (isto há-de surpreender o meu filho pois conhece-me há uma década como um homem calvo), e o que se chama correntemente um peito entroncado. Quero dizer, possuía força física, um corpo perfeitamente discordante das minhas ocupações sedentárias e intelectuais, uma força que eu não podia refinar mas com que, pelo contrário, aprendera a viver. Não sei se alguma vez me consideraram atraente, não obstante as minhas excursões a Springfield, pois os meus lábios eram um pouco grossos, na linha dos meus antepassados holandeses, e a estrutura óssea do meu rosto quase se perdia no interior da fleumática carne que me foi legada por gerações de burgueses. Para dissipar essa imagem algo desagradável e assumir uma aparência mais académica, tinha cultivado o uso de óculos de que, no fundo, não precisava.

Terminada a minha inspecção, que não me transmitiu nada que eu já não soubesse, excepto talvez que não se pode esconder a transparência das emoções como se desejaria, entrei para uma água tão quente que a minha pele submersa imediatamente tomou uma tonalidade rosa viva como se me tivesse escaldado. O estudante, que, como eu bem sabia, andava atrás de um A, em Lógica e Retórica, tinha preparado uma chávena de cacau quente e eu entreguei-me a estes inocentes prazeres enquanto via mentalmente a figura e o rosto de Etna Bliss e voltava a sentir a delicada pressão do seu braço contra o meu. Felizmente o banho, como acontece frequentemente com uma imersão quente, induziu em mim uma sonolência suficiente para me fazer deitar.

De manhã, acordei num estado de agitação e vi-me forçado a concluir a minha toilette à pressa e a faltar ao pequeno-almoço para não chegar atrasado à primeira aula do dia, Os Poetas Líricos Românticos, (Landon, Moore, Clare e por aí adiante). Quando cheguei à sala de aula, vi que o fogo na salamandra se tinha extinguido por falta de atenção e que os estudantes estavam sentados com os casacos ainda vestidos e os cachecóis em volta do pescoço. Apesar de fria, a minha sala de aula não era desagradável. Os lambris tinham sido recentemente pintados de branco, um apontamento inspirado que emprestava uma ilusão de luz e espaço, antes negada pelos apainelados em nogueira escura tão omnipresentes nestas salas. Sobre os lambris rasgavam-se amplas janelas que davam para os ulmeiros e sicómoros do pátio. Como só se podia admirar esta vista estando em pé, muitas vezes apoiava o braço nos largos peitoris e olhava pela janela enquanto os estudantes faziam os seus exercícios e testes. Claro que, nesse dia, a vista estava seriamente comprometida pela goela negra do incêndio do hotel e pela neve suja de fuligem; de qualquer modo, sentia-me demasiado perturbado para apreciar qualquer género de vista - bela ou não.

Tornou-se imediatamente evidente que a atenção dos estudantes também não estava na aula. Só se falava do incêndio que me tinha granjeado uma certa celebridade pelo facto de ter estado pessoalmente presente nessa malfadada sala de jantar; e, como todos os bons contadores de histórias, talvez tenha embelezado alguns incidentes e pormenores para enriquecer a narrativa. Descrevi a bola de fogo e a confusão que se seguiu.

- Havia muitas pessoas a precisar de ajuda - disse eu, adoptando uma pose incaracteristicamente relaxada, ao sentar-me na ponta da secretária. Sacudi um cisco de cotão das calças.

- E que ferimentos sofreram as pessoas, professor? Foi Edward Ferald quem fez a pergunta, um rapaz de queixo flácido e olhos estreitos, que estava sempre a procurar ganhar a minha simpatia mas que, nas minhas costas, como eu bem sabia, me chamava, como alguns dos outros estudantes, Escrofuloso", que deriva, claro, do latim, sus scrofa, que significa porco". Enfim, não propriamente porco mas varrasco. Javali, para ser mais preciso. Porquê, não sei, visto que não me considero parecido com um javali, mas não importa. Nesse tempo quase todo o corpo docente tinha alcunhas: John Runciel era KRâncido"; Benjamin Little, se bem me lembro, era o Homenzinho; Jonathan Whitley era Bronco, (Râncido, é decerto pior do que Escrofuloso, não? ) O prazer de Ferald não provinha de aprender mas de provocar um zelo incómodo nos professores que ele impavidamente incitava, fingindo não compreender. Assim, uma sessão académica com Ferald podia revelar-se um exercício terrível. Nas raras ocasiões em que tentei recorrer à astúcia para levar a melhor sobre ele, falhei redondamente, pois a agilidade verbal não é o meu forte.

- Muitos golpes e equimoses e ossos partidos - respondi. E inalação de fumo. Morreram vinte pessoas.

- E o professor? - perguntou Ferald num tom untuoso. Espero que não se tenha magoado.

- Não, não me magoei, estou muito feliz por poder dizê-lo. - Feliz, é a palavra - disse Ferald, pestanejando indolentemente.

- Morreram vinte pessoas queimadas, professor? - perguntou Nathan Foote, um jovem louro que tinha estampada no rosto uma expressão de genuíno horror ainda que o facto não pudesse ser novidade. A escola andava num alvoroço com esta estatística desde a noite anterior.

- Esperemos. - comecei. Mas nesse instante o tempo abrandou e suspendeu-se por completo e eu vi, através da janela, uma mulher com uma criança, uma visão tão vívida e visceral que receei estar a ter uma alucinação. Levei a mão à testa que estava transpirada apesar do ar frio da sala.

- Professor? - perguntou Foote, alarmado não apenas com a minha frase truncada mas com o meu aspecto.

Fiz um esforço para focar o seu rosto.

- Esperemos que as infelizes vítimas tenham falecido em resultado da inalação de fumo e não das próprias chamas - disse eu, debatendo- me para retomar a compostura.

Fez-se um prolongado silêncio na sala de aula.

- Acabo de me dar conta - apressei-me a dizer - que não é apropriado termos aula num dia em que devíamos estar a prestar tributo às infelizes pessoas que pereceram e por quem, aliás, a bandeira da nossa escola está a meia haste esta manhã. Determino assim que acabemos por hoje as aulas. Estão dispensados para irem para os vossos quartos e para a capela meditar sobre a brevidade da vida, a caprichosa mão do destino e a necessidade de estar em permanente estado de graça.

Alguns dos alunos mais enérgicos, Ferald entre outros, puseram-se imediatamente de pé, pressentindo a inesperada oportunidade de uma hora de lazer enquanto os outros ficaram sentados, momentaneamente estupefactos, antes de pegarem nos cadernos e nos livros. Quanto tempo a sala de aula demorou a esvaziar-se não sei porque, por essa altura, já eu me encaminhava num passo rápido para Wheelock Street.

(Interroguei-me algumas vezes se a minha alcunha latina não seria, afinal, um erro de tradução ou uma tentativa de humor homonímico. Teria o aluno que inventou o nome querido dizer chato? Um chato selvagem? )

A ruína de gelo do hotel começava agora a dissolver-se à luz intensa do sol do meio da manhã e, ao passar por esta estrutura desolada, o som contínuo do gotejar de um milhar de sincelos, uma chuva que reluzia e cintilava ao cair, tilintava como cristais finos. Vi dois rapazes novos, claramente a fazer gazeta da escola primária local, a esquadrinhar os escombros, possivelmente à cata de objectos de valor que tivessem escapado ao fogo. Gritei-lhes para que saíssem imediatamente dali pois qualquer idiota era capaz de perceber que todo o edifício estava em risco de ruir (e, três semanas mais tarde, acabaria mesmo por se desmoronar durante um nevão particularmente húmido e intenso).

A urgência que sentia dentro de mim para ver a mulher que tinha subjugado os meus pensamentos era tal que tive de me esforçar por caminhar num passo normal que não atraísse atenções indesejáveis. Queria chegar à casa colonial cor de cera o mais depressa possível pois consumia-me a apreensão (que veio a revelar-se injustificada) de que Etna Bliss já tivesse abandonado a residência para regressar ao lugar de onde viera. Não me parecia que ela vivesse com o professor Bliss. Se vivesse, raciocinei, eu teria com certeza ouvido falar da sua presença em casa dele ou, o que era mais provável, ter-me- ia encontrado com ela em alguma festa da escola. O corpo docente de Thrupp compreendia aproximadamente cinquenta professores que, na sua maioria, viviam em redomas de vidro, sujeitos ao mais severo escrutínio por parte dos alunos e dos colegas: tanto assim era que dava muitas vezes a sensação de que todos sabiam tudo quanto havia a saber sobre os outros, naquela escola e naquela vila, quando não era, naturalmente, esse o caso pois os segredos são os bens mais zelosamente guardados.

O meu passo abrandou um pouco ao aproximar-me da residência dos Bliss, despida em Dezembro, sem o seu toldo de ulmeiros. A decisão espontânea de visitar esta casa destoava bastante dos meus hábitos e senti-me, por isso, desconfortavelmente perturbado e imprudente. Mas, com um ímpeto que não podia facilmente explicar, fui impelido até à porta de entrada de William Bliss. Foi assim que levantei o batente e alterei o curso do destino.

Passaram alguns momentos até o meu toque ser atendido e, quando foi, abriu-me a porta Etna Bliss em pessoa.

Se tinha alimentado alguma dúvida, nas horas decorridas desde que a vira pela última vez, sobre a realidade do domínio que esta mulher exercia sobre mim, tal incerteza desvaneceu-se na sua presença. Embora ela se tivesse afastado para abrir a porta, emanava dela, como antes, uma tal serenidade que uma pessoa se sentia atraída por ela como alguém que atravessa um penhasco sente de tempos a tempos a perigosa vontade de se lançar no precipício. Trazia um vestido às riscas pretas e brônzeas com uma renda brônzea na gola e nos punhos, um vestido cujo corte apresentava os seus seios como que sobre uma espécie de prateleira, e que teve o efeito de constringir a respiração dentro do meu próprio peito. O seu rosto brilhava sob a luz do sol reflectida pela neve e via- se que acabara de lavar o cabelo que penteara em tranças enroladas que se desejava (eu desejei) desfazer. Estava a desfazer-me na presença dela.

- Miss Bliss - disse eu, tirando o chapéu.

- Professor Van Tassel - disse ela, olhando para mim sem acrescentar as amabilidades habituais.

E, nesse momento, senti. o quê? que ela já via através da minha frágil carapaça? Que já compreendia tudo o que havia a conhecer sobre mim? Que já sabia a razão da minha visita e o que eu faria, antes de eu próprio saber?

- Desculpe a intrusão - disse eu -, mas estava de passagem e não pude deixar de me interrogar se a sua tia já se teria restabelecido da aflição por que passou. Espero não estar a incomodá-la mas pensei hoje de manhã no choque da tragédia e de como a deve ter afectado. - Fiz uma pausa. - E a si também, naturalmente.

- Obrigada por perguntar - disse ela. - A minha tia foi examinada pelo médico - acrescentou. Estranhamente, não foi ela que me convidou a entrar, como exigiam decerto as boas maneiras, mas o próprio Bliss que surgiu no vestíbulo, com os óculos bifocais empoleirados na ponta do nariz.

- Pareceu-me ouvir uma voz conhecida - disse ele. – Van Tassel, entre, entre, para lhe poder agradecer devidamente ter trazido a minha mulher, a minha neta e a minha sobrinha sãs e salvas para casa ontem à noite. A minha mulher apanhou um susto terrível. E você também, claro.

- Não foi susto nenhum - disse eu -, embora tivesse sido certamente para outros e com toda a razão.

Transpus a soleira.

- Tem de ficar para tomar uma bebida quente - disse Bliss tirando os óculos e dobrando o jornal que tinha na mão. - Gostava de ouvir o relato do acidente, se estiver nessa disposição.

- Com certeza - respondi.

Etna Bliss hesitou um segundo antes de aceitar o meu chapéu e as minhas luvas? Sim, estou certo de que hesitou. Recordo distintamente a sensação de estender as minhas coisas e de, por um momento, não ter quem pegasse nelas. O que terá visto em mim que a fez quedar-se? A imensa sofreguidão que me abalara até à medula? E teria reconhecido essa sofreguidão por tê-la entrevisto antes nos rostos de outros homens ou seria simplesmente presciente, já intuitiva a respeito do desejo e da avidez humanos?

(E porquê, porquê, tenho muitas vezes perguntado a mim mesmo, esta mulher e não outra? Porquê a curva daquela maçã do rosto em particular e não outra? Porquê o dourado daqueles olhos e não o azul de outros? Vi ao longo da vida uma centena, não, um milhar, de mulheres belas - a levantar as saias para passar sobre montes de neve, a abanicar pescoços altos em restaurantes, a despir-se na difusa luz eléctrica de quartos alugados - mas nunca nenhuma teve sobre mim o efeito que Etna Bliss teve: uma sensação que escapa em absoluto ao que a ciência é capaz de explicar. )

Ela pegou no meu casaco e pendurou-o num bengaleiro ao canto. Virou-se ligeiramente para mim.

- Etna, importas-te de. - começou William Bliss, não num tom desagradável mas sugerindo talvez a natureza do lugar de Etna

na casa. Não houve necessidade de particularizar pois ela já se tinha encaminhado para a cozinha para instruir a cozinheira a preparar o chá.

Foi um alívio enorme para mim ver a sua figura a afastar-se. A pausa permitiu-me alguns momentos para cair em mim e falar com Bliss da forma a que estávamos acostumados, como homens que não se conhecem bem mas são considerados colegas e têm, assim, desde logo, um vocabulário comum que deve ser respeitado antes que qualquer antipatia ou simpatia se possa formar.

Não me cruzava com frequência com William Bliss na escola já que ele era casado e não estava, portanto, alojado nas residências académicas; tão-pouco tivemos qualquer oportunidade de trabalhar juntos pois pertencíamos a áreas disciplinares distintas. Além disso, Bliss era uns bons vinte anos mais velho do que eu e, como tal, encarava-o como um homem de outra geração. Ele conduziu-me ao salão da frente.

Não é demais frisar a sensação de claustrofobia que aquela sala suscitava, a claustrofobia de meses passados dentro de portas, de oxigénio aparentemente sugado do ar pela profusão de ornamentos e dezenas de objectos, cada um exigindo a atenção do olhar, de tal modo que uma pessoa não só se sentia oprimida e sem fôlego mas também como se estivesse a ponto de ter uma enxaqueca. Era uma sala que, com as suas espirais torneadas de pau-rosa e trifólios em carvalho lavrado, os seus espelhos dourados e mesas de tampo de mármore, as gavinhas serpenteantes das suas plantas demasiado crescidas e as candeias de ferro fundido, as suas listras estampadas e motivos florais, o seu papel de parede aveludado e os biombos de vidro, os seus tapetes orientais, jarrões chineses, toalhas de mesa franjadas e relógio de ferro - para não falar das dezenas de da guerreótipos com caixilhos marchetados em prata e madeira que pareciam cobrir todas as superfícies disponíveis - sorvia a vitali dade do corpo. (Do corpo de um homem, pelo menos, pois depreendia-se imediatamente que a sala reflectia um gosto feminino; até os aposentos de Moxon, no seu pior, podiam considerar-se sóbrios em comparação. ) Graças à abundância de plantas nas janelas, apenas entrava na sala uma luz difusa, e não sei como é que Bliss conseguia ler ali um jornal embora fosse possível que tivesse estado a ler no seu escritório. No mínimo, era prova de que William Bliss deve ter amado muito a mulher para suportar tal excesso.

- Sente-se, Van Tassel.

- Obrigado.

- Pode ser aí. Ah, deixe-me tirar isso.

- Não, eu tiro.

- Sabe, não tenho palavras para lhe agradecer. A minha muLher diz que foi um herói.

- De maneira nenhuma, não fiz mais do que qualquer outro homem teria feito.

- É demasiado modesto. A escola anda num frenesim?

- Penso que sim. Cancelei as minhas aulas.

- Cancelou? Que esplêndida ideia!

Por vezes, parece-me que a vida é uma luta para refrear os impulsos naturais do corpo e do espírito e que aquilo a que chamamos carácter representa apenas o grau em que somos bem-sucedidos nestes esforços. Nessa época da minha vida, quando era um homem mais novo, era muitas vezes uma luta desesperada fazer exercício quando não queria, abster-me de bater num estudante que merecia a bofetada, pôr de parte a pura ambição pessoal para servir os outros, dominar desejos desmedidos que, se não controlados, poderiam manifestar- se em comportamentos escandalosos, e, como acontece com todas as lutas, nem sempre saía vitorioso destas batalhas. Assim, receio que tenham ocorrido rupturas perturbantes na minha compostura como quando perdi a cabeça e repreendi duramente um aluno, dando satisfação à fúria que sentia em mim mas deixando o aluno aterrorizado; ou como quando fui incapaz de me abster de falar mal de um colega para obter a aprovação de outro; ou como quando a máscara de uma conduta decorosa me caiu por um momento, revelando a intensidade do desejo que escondia, como deve ter acontecido, por mais brevemente que tenha sido, durante o silêncio que se seguiu à entrada de Etna na sala em que eu e o tio dela estávamos sentados.

Eu e Bliss levantámo-nos delicadamente e eu senti-me de imediato tomado de ansiedade, não fosse trair-me a cor que sentia subir-me pelo pescoço até às faces (outro legado do sangue holandês dos meus antepassados). A minha boca tremeu, um frémito que procurei esconder pressionando o lábio superior com o nó de um dedo; e foi assim que descobri, para minha grande aflição, sentindo entretanto o rubor subir como uma maré enchente em noite de lua cheia, que não me tinha barbeado nessa manhã e que me cobria as faces e o maxilar uma áspera barba incipiente.

(Nunca me senti bem - embora muitas vezes radiante, nunca bem - na presença de Etna. )

Ela pousou a bandeja e fez sinal para que nos sentássemos.

- Professor Van Tassel, espero que não tenha sofrido em resultado da ajuda que prestou à nossa família - disse ela.

- Diz-me o Van Tassel que morreram vinte pessoas no incêndio - disse Bliss à sobrinha.

Etna aceitou esta notícia com extraordinária serenidade, ao contrário de muitas pessoas do seu sexo que poderiam ter considerado necessário expressar emoção perante o anúncio da desgraça.

- Infelizmente o nosso corpo de bombeiros mostrou-se muitíssimo incompetente a lidar com a situação - observei. - Estou certo de que haverá uma investigação.

- Gostava de saber quem teve a presença de espírito de abrir as janelas na sala de jantar - disse Etna, oferecendo-me uma chávena de chá. - Gostava de agradecer pessoalmente a essa pessoa.

E logo senti ciúmes deste homem imaginado - pois era decerto um homem, embora ainda ninguém se tivesse dado a conhecer

- por ser o alvo da gratidão de Etna. - Muitas vezes não se quer ser distinguido por cometer actos heróicos - disse eu tolamente.

Etna Bliss tinha o hábito, como viria a descobrir mais tarde, de sorrir ao de leve embora os olhos permanecessem inexpressivos, sugerindo assim uma reflexão interior sem parecer indelicada. Foi o que fez então; e devo dizer que, quando sorriu (sem apartar os lábios mas apenas revirando ligeiramente os cantos da boca), o seu rosto suavizou-se por completo ao ponto de parecer a mulher diminuta e dócil que se espera de uma amante, e outra coisa aindabonita até. Sim, embora não fosse bela, nesses momentos era bonita. Com o passar dos anos, tornar-se-ia por vezes um tormento para mim ver-me excluído dos pensamentos privados que originavam esse fugaz sorriso.

Os meus dedos deslizavam perigosamente pela asa da chávena fazendo com que tilintasse sobre o pires. Vi-me forçado a inclinar-me sobre o chá de um modo bastante rude. Fiquei tão desconcertado que pousei a chávena e juntei as mãos trémulas no regaço. Cruzei as pernas e reparei que o meu pé tremia em movimentos sacudidos.

- E a pequenina? - perguntei. - Já está recuperada?

- Estou em crer que, se não tivesse sido o frio, teria achado o que se passou emocionante - respondeu Etna. - Hoje de manhã, não falava de outra coisa.

Observei Etna a levar a chávena aos lábios e notei que os seus dedos compridos não tremiam.

- O Van Tassel ensina Literatura e Retórica Inglesas na escola - disse Bliss.

- Uma paixão aceitável - comentei, sorrindo na direcção dela. Ela não retribuiu o sorriso mas também não desviou os olhos e julgo que, nesse momento, me estudou por uns instantes. - E está em Thrupp numa visita prolongada? - perguntei, incapaz de conter a minha curiosidade por mais tempo.

- Sim, estou - disse ela. - Não gosta do chá?

- Gosto muito - respondi, levantando o pires e tentando mais uma vez, levar a chávena aos lábios.

- A minha sobrinha está cá - explicou Bliss - até decidir a vida dela, embora a sua companhia nos dê tanto prazer que espero que esse momento demore a chegar.

- A minha mãe faleceu recentemente - disse ela. - E infelizmente vi-me obrigada a pôr a casa dela à venda. Estou com a minha tia e o meu tio enquanto não for finalizada a execução do testamento.

- Lamento muito a morte da sua mãe - disse eu, mas como podia lamentar se essa ocorrência, sendo muito embora uma morte, tinha trazido Etna Bliss para Thrupp? - Espero que não tenha sido súbita.

- Não, estava doente há algum tempo.

- E o seu pai? - perguntei.

- O meu pai faleceu há vários anos - respondeu.

- Peço perdão - disse eu.

- Ora essa - disse ela. - Tenho ainda duas irmãs que são casadas.

- Compreendo. E onde ficava a sua casa?

- Em Exeter.

- A chegada da Etna foi uma felicidade - disse Bliss - já que a minha filha e o marido estão em São Francisco para passar o Natal com a família dele.

- Compreendo - repeti, recordando vagamente uma jovem mulher magra e elegantemente vestida que tinha uma vez ou outra acompanhado Bliss a eventos sociais na escola.

- Eu e a Evelyn ter-nos-íamos sentido muito sós sem a Etna e a minha neta cá em casa. Espero que ela fique ainda muito tempo depois de a minha filha regressar.

Estou certo de que foi nesse momento que vi, pela primeira vez, uma vaga expressão de alarme perpassar pelas feições da mulher sentada à minha frente e creio que compreendi imediatamente que a perspectiva de reclusão dentro daquelas salas atafulhadas de mobília não era do agrado de Etna. Talvez ela também sentisse o oxigénio a ser-lhe sugado do corpo pelas mesas de apoio e pelas trepadeiras espinhosas. Nesse momento, abriu-se dentro de mim uma porta.

Sentei-me na ponta da cadeira, já um suplicante.

- Tem decerto um guia excelente na pessoa do seu tio - disse eu -, mas teria imenso prazer em mostrar-lhe alguns dos modestos tesouros de Thrupp, designadamente a Biblioteca Metcalf e a Colecção Elliot. Já visitou alguma?

- Não, não visitei - respondeu ela e, mais uma vez, pressenti que a perspectiva de sair de casa talvez não lhe fosse inteiramente desagradável.

- A Etna tem ajudado muito com a minha neta, a Aurelia - disse Bliss em jeito de explicação. - Mas infelizmente temo-la impedido de se divertir com as pessoas da sua idade.

Interroguei-me sobre que idade Etna Bliss teria exactamente. Pelo menos vinte e quatro anos, sem dúvida, mas não mais do que vinte e oito. No princípio da curva descendente da idade de casar. Pareceu-me detectar também em Etna Bliss um modo ligeiramente diferente de me escrutinar que havia sido suscitado pelo meu ousado convite. Nesse momento, desejei ter dispensado os minutos necessários, nessa manhã, à minha toilette, de forma a apresentar uma aparência mais agradável e próspera, tanto aos olhos dela como aos de Bliss. Este não consideraria decerto o salário de um professor suficiente para manter uma família (e a verdade é que não era) e eu teria de informá-lo, quando o momento fosse oportuno, de que possuía de facto uma modesta fortuna e tinha meios para sustentar uma mulher. Estava entregue a estes fantasiosos devaneios quando Etna abruptamente se levantou.

- Receio ter deixado a minha tia demasiado tempo sozinha - declarou, estendendo a mão. - Adeus, professor Van Tassel.

Mais uma vez, senti a sua mão quente na minha. Não consegui evitar olhar para a exposição do seu peito, um encantador promontório que parecia clamar por ser admirado e, nesse momento, interroguei-me (com que rapidez pensamentos de posse levam o ciúme a desabrochar! ) se algum outro homem teria ali colocado a sua mão, se esta bela e imponente criatura diante de mim teria tido muitos amantes. Talvez este pensamento - e sem dúvida o meu olhar errático - me tenham traído pois ela levou a mão exactamente ao ponto que eu contemplava, como que a resguardar-se.

E nesse momento afastou-se.

Troquei mais algumas banalidades com Bliss, para não parecer rude, mas não pude levar mais longe o meu esforço para me demorar um momento mais nessa estufa pestilenta, ansiando como ansiava não só por um sopro de ar fresco mas também por uma oportunidade de pensar na pessoa de Etna Bliss e dilatar o meu pequeno tesouro de memórias que continuaria incessantemente a consumir na ausência dela: meia dúzia de frases, a tensão da seda negra e brônzea sobre um peito e um olhar de medo inteiramente explícito, ainda que fugaz, perante a perspectiva de clausura. Armado com esta preciosa, embora frágil, riqueza, fui em busca do pequeno-almoço.

A vista da minha janela tem-se degenerado a partir dos azuis suaves dos montes de Vermont e da fita azul-marinha do rio Connecticut, à medida que avançamos para sul desde que saímos do entroncamento de White River onde embarquei no comboio. Tive a felicidade de conseguir um compartimento nesta primeira etapa da minha viagem; e como disporei de um compartimento a partir de Nova Iorque, tenho esperança de continuar isolado, que foi o que desejei quando fiz a reserva. Confesso que me sinto um pouco nervoso com a perspectiva de uma visita ao Sul da Flórida pois ouvi histórias preocupantes sobre escorpiões, formigas-bravas e mosquitos-da-malária, assim como sobre o calor terrível. Por conseguinte, embalei entre os meus livros e documentos e a caixa metálica de Etna dois fatos de linho branco, várias camisas finas de algodão e um par de sapatos de lona novos. O meu único problema será o traje de luto que não posso evitar visto que terei de usá-lo no funeral da minha irmã, objectivo da minha viagem. Mandei entregar estas peças, há muito guardadas, directamente no meu alfaiate para brunir pois não suportava ter de olhar para elas, exalando, como deviam exalar, o odor não apenas da morte mas também de uma culpa quase devastadora - para não falar de um coração destroçado.

Estamos agora a passar pelas vilas fabris de Holyoke e Chicopee, no Massachusetts, nódoas na paisagem da Nova Inglaterra que, embora necessárias; me fazem sempre lembrar os ensaios mais lúgubres de Hazlitt e Carlyle. Mas descobri que, se estreitar os olhos o suficiente, consigo desfocar um pouco esta geografia e concentrar o meu olhar apenas nos atributos toleráveis destas cidades: as superfícies irregulares de vidro nas janelas das fiações abandonadas, por exemplo; ou um automóvel luzidio, preto e castanho-avermelhado, estacionado de modo intrigante ao fundo de uma rua deserta; ou uma mulher de saia curta e lenço, a avançar a custo contra o vento em direcção a uma igreja. E talvez seja este estratagema de turvar intencionalmente a visão mas, por vezes, apurá-la, ou o balanço do compartimento em andamento, ou a reconfortante chiadeira das rodas do comboio nos carris ou, o que é mais provável, a ideia de uma secretária (mais correctamente, uma mesa) na qual pousei a caneta e o caderno, dentro de um veículo móvel - a sensação de uma sala de estudo pessoal a grande velocidade - que agora me convida a dar início a uma narrativa pessoal que há muito desejo escrever mas para a qual sempre me faltou a força necessária. (e, durante esta elipse, acabo de me envolver num extenso debate comigo próprio sobre se hei-de revelar ou não, com total honestidade, os acontecimentos que desejo registar, e decidi que este documento será tão inútil como um fragmento de cinza flutuante se recorrer à ficção, ainda que seja ficção por omissão. Assim, narrarei toda a verdade nestas páginas mesmo que me cause a mais profunda dor - e causará, causará! )... (embora deva acrescentar, abrindo outro parêntesis, que tenho absoluta consciência de que posso mais tarde eliminar frases ofensivas, rever o texto e editar depois a narrativa se considerar a verdade resultante de leitura demasiado intolerável. E não se passará assim com todas as histórias que se escreve ou narra ao longo da vida? Como me será apresentada, por exemplo, a morte da minha irmã quando chegar ao meu destino? As histórias sobre o velório não se alterarão radicalmente conforme o narrador e os pormenores que foram omitidos, como as agonias físicas particulares que uma filha ou uma prima possam julgar demasiado impróprias para serem reveladas )

Compreendo um pouco os potenciais benefícios de passar ao papel pensamentos pessoais - e, neste caso, recordações - pois publiquei várias monografias e ensaios, no âmbito da minha especialidade, muito particularmente o meu célebre tratado sobre Marmion, de Scott, e a minha análise, menos conhecida mas nem por isso menos bem recebida pela crítica, sobre os Ensaios de Sir Roger de Coverley no Spectator. Naturalmente, este projecto em que agora me lanço, neste vigésimo dia de Setembro de 1933, está mais recheado de terror do que de recompensa imaginada pois desconheço as emoções que tal narrativa poderá evocar; mas estou determinado em fazê-lo pelo meu filho, Nicodemus, que quase seguramente um dia fará a pergunta cuja resposta exigirá toda a coragem do pai.

Tivemos uma certa excitação aqui, a bordo do comboio, e confesso que só agora começo a refazer-me do choque. Ao aproximarmo-nos de New Haven, ouviu-se uma enorme chiadeira seguida de um solavanco de proporções tremendas. A carruagem em que eu me encontrava descarrilou, ficando tudo tombado no meu compartimento, e eu colidi com bastante força contra a bagageira. Em resultado, fiquei com uma feia pisadura na testa, mas espero que tenha praticamente desaparecido quando chegar à Flórida.

Não vou escrever aqui sobre o susto que o acidente me causou mas, por um momento, cheguei a pensar que poderia morrer e, no instante seguinte (como a imaginação voa veloz), considerei o meu próprio funeral; mas comecei então a preocupar-me com quem estaria presente em tal ocasião e, assim, abandonei esta ordem de ideias. Encarei sim, enquanto os guarda-freios nos evacuavam da carruagem sinistrada, a perspectiva de não prosseguir viagem e regressar antes a New Hampshire. No entanto, ocorreu-me então que teria de fazê-lo de comboio e, sendo assim, qual seria a diferença entre essa viagem e a viagem até à Flórida, a não ser a duração? Por conseguinte, estou mais uma vez confortavelmente instalado no meu escritório rolante (num compartimento diferente, numa cuchete, aliás), os meus livros tendo escapado ilesos do acidente, embora a caixinha metálica onde se encontram as cartas de Etna tenha ficado tão seriamente amassada num canto que agora, pousada diante de mim no assento, se inclina bastante para um lado. (Numa atitude acusadora, parece-me. )

Tendo acabado de comer uma óptima refeição de lombo de porco assado com ameixas, acompanhada com um vinho frutado e seguida de uma gelatinosa sobremesa de creme de maçã, sinto-me extremamente satisfeito e posso, com absoluto contentamento, contemplar um serão agradável a escrever (pois esta parte da minha narrativa encerra não poucas alegrias) e depois uma boa noite de descanso em que o sono será, sem dúvida, rapidamente induzido pelo baloiçar cadenciado da carruagem.

Inspirado pela minha breve visita à residência dos Bliss, propus-me, com uma ambição sem paralelo em mim antes ou desde então, conquistar a mão da mulher cuja voz, cabelo e pele pareciam ter imbuído todas as membranas do meu corpo e violado todos os limites da minha alma. Um tal estado, tenho por vezes pensado, deve ser semelhante a esse êxtase que define a vida do místico religioso - a sensação do corpo repleto do espírito de Deus. Espero que não seja uma blasfémia fazer esta comparação, mas creio que nunca estive tão próximo de um estado de graça como nas semanas e meses em que cortejei Etna Bliss, um estado de graça que se manifestava no meu discurso, nos meus gestos e num sorriso quase irreprimível. Durante este período, as outras pessoas consideravam-me não só mais afável e mais indulgente, mas também mais atraente do que nunca do ponto de vista físico, o que talvez explique por que razão Miss Bliss não se sentiu inteiramente avessa a acompanhar-me em vários passeios.

Os estudantes comentavam a minha recente brandura e, se se aproveitavam dela, eu não me importava. Os colegas, pouco habituados a ver em mim outra coisa que não um semblante sério, pareceram inicialmente intrigados com a minha transformação e, mais tarde, receptivos a ela. Durante este período, fui convidado a chefiar uma comissão criada para examinar a possibilidade de reformar o currículo de Literatura Inglesa no ano lectivo seguinte. Fui também convidado para supervisionar o Baile de Inverno (recordo que fiquei deleitado e pensei de imediato que podia, naturalmente, convidar Etna a partilhar comigo esta aprazível incumbência). Noah Fitch, o decano de Literatura e Retórica Inglesas, convidou-me para passar o Natal com a família dele (embora secretamente tivesse procurado obter - mas não tivesse recebido - um convite para o jantar de Natal em casa dos Bliss) e John Birch Clark, meu antigo professor de Dartmouth, deu um sarau para o qual me convidou. Infelizmente, não podia convencer Etna a acompanhar-me nesta ocasião pois implicava pernoitar em Hanover, o que para mim, claro, era uma venturosa perspectiva. (Vou tentar abster-me de jogar constantemente com o patronímico de Etna, por mais tentador que seja embora, nessas semanas iniciais, esgotasse a palavra em pensamento como se estivesse a criar variações infinitas da frase musical de uma rapsódia. ) Durante este período, afreguesei-me num alfaiate e encomendei três fatos novos pois a minha roupa anterior ostentava a aparência algo maltrapilha do mestre-escola. Mal recordo o tempo que passei na escola nessa altura. Não tenho dúvida de que os testes dos meus alunos beneficiaram da minha exuberante disposição pois despi, nesses curtos meses, a enfadonha máscara do professor, em favor da conduta mais apaixonada do pretendente. Se os meus alunos aprenderam alguma coisa, nesse trimestre de Inverno de 1899, foi apenas que o amor é capaz de transformar a pessoa mais autodisciplinada e emocionalmente impermeável.

Quatro dias após o incêndio e três dias após o breve chá que tomámos juntos, enviei uma mensagem a Etna Bliss, perguntando se podia aparecer daí a quatro dias para a levar a passear. Parecia um pedido inofensivo, um pedido que ela poderia facilmente atender, pois permitir-lhe-ia escapar ao ambiente opressivo e abafado da residência dos Bliss enquanto, ao mesmo tempo, lhe permitiria não se afastar muito de casa como é necessariamente o caso com um passeio a pé. Na verdade, recebi uma resposta na volta do correio. (Durante os meses seguintes, esta breve missiva, sendo a primeira escrita pelo punho de Etna e, portanto, de enorme importância para mim, esteve afixada no espelho do meu toucador.)

 

' Bliss significa ventura, felicidade. (N. da T)

 

9 de Dezembro

Caro professor Van Tassel

Terei muito prazer em acompanhá-lo num breve passeio a pé, no dia doze de Dezembro, às três horas da tarde.

Os meus cumprimentos

Etna Bliss

Quis o acaso que tivéssemos tido, entretanto, outro nevão e depois, no dia do programado passeio, um degelo deveras espectacular que cobriu as ruas dessa mistura horrível de neve derretida, fuligem e lama a que nós, os nativos da Nova Inglaterra, chamamos slush. Vi-me num dilema, tendo comprado a minha primeira indu mentária nova, uma sobrecasaca de estambre inglês e um novo par de sapatos de couro da Brockton, que ficariam ambos arruinados se eu me aventurasse na rua com eles. Cheguei a um compromisso, vestindo o fato novo - resignado a sacrificar as dobras das calças - mas calçando as minhas botas velhas, fazendo assim uma concessão ao tempo. Acabei de me arranjar quase uma hora mais cedo e permaneci assim nos meus aposentos, andando de janela em janela, sentando-me na cama, relanceando para o espelho (como nos tornamos vaidosos quando perdidos de amor por alguém) e ignorando, entretanto, as ordenadas pilhas de cadernos na minha secretária, testes que devia ler e corrigir - todos testemunhos, já estava certo disso, das minhas aulas pretensiosas e um tanto áridas do Outono. Os cadernos dirigiam-me uma censura, durante as minhas deambulações, e contudo eu, por meu turno, zombava deles - pois haveria uma única frase, entre essas centenas de frases, que pudesse atestar a mais ínfima fracção da verdade que me subjugava? Passei por um fugidio momento de preocupação com a possibilidade de nunca mais conseguir retomar a minha conduta e rotina anteriores, preocupação que pus de lado no instante seguinte quando olhei para o relógio e reparei que o dia tinha chegado às tão ansiadas duas horas e quarenta minutos que indicavam que era agora razoável pôr-me a caminho para ir buscar Etna Bliss a casa do tio.

Ela estava sozinha quando cheguei, o que foi uma felicidade pois não tive, assim, de conversar com William Bliss, que poderia ter-me interrogado sobre as minhas intenções e me teria quase certamente encarado de modo diferente se as conhecesse. Etna tinha posto um vestido azul e dourado de um tecido refinado, o dourado comungando com os seus olhos como se lhes cantasse árias. Tinha arranjado o cabelo com algum cuidado, em intrincadas espirais que pareciam desaparecer como estradas que se somem num mapa. O vestido apresentava um corte bastante justo na cinta e eu não pude deixar de rejubilar com a visão da ampulheta do seu corpo que se abria generosamente nos dois sentidos a partir da linha delgada da cintura numa liberalidade modestamente disfarçada. Mas não disse eu que é no rosto que reparo em primeiro lugar numa mulher? E foi o que fiz, naturalmente, nesse dia, embora a sua expressão, devo registar, fosse menos do que generosa, evidenciando até circunspecção, aliás justificadamente. Eu era, afinal, um estranho.

Trocámos algumas banalidades, quase todas respeitantes ao tempo adverso, e eu inteirei-me, naturalmente, da saúde da tia e da sobrinha (ambas perfeitamente restabelecidas). Depois, observei por um momento (testemunha privilegiada) Miss Bliss a colocar na cabeça um toque de veludo dourado, que assentava num ângulo perfeito sobre a coroa da sua cabeça, proporcionando-me uma visão fascinante da sua nuca quando ajeitou o chapéu ao espelho do vestíbulo. Na realidade, fiquei tão hipnotizado por essa visão que demorei alguns momentos a aperceber-me de que ela estava à espera que eu lhe estendesse a capa e a ajudasse a vesti-la.

Pela primeira vez, Etna enfiou o braço no meu (foram tantas as primeiras vezes nesse Inverno) e percorremos o carreiro até Wheelock Street onde nos encaminhámos para leste de forma a afastarmo-nos mais do centro. Ainda não tínhamos dobrado a esquina e já as botas dela estavam molhadas. Desejei estender no chão o meu capote para que ela não sujasse os pés com a neve imunda, mas claro que não podia - não apenas pelo aparente excesso do gesto, que poderia ter intimidado qualquer mulher sensata, mas pela simples impraticabilidade de o fazer a intervalos contínuos. Sob a intensa luz do sol, via mais claramente do que nunca o rosto de Etna e penso ter detectado um leve relaxamento das suas feições quando saímos de casa e ela inalou o seu primeiro e profundo sopro de ar fresco.

- Está um dia maravilhoso, professor Van Tassel - disse ela subitamente e num tom encantador.

- Mais maravilhoso em cima do que em baixo, infelizmente.

- Não faz mal - disse ela. - É muito melhor que sejam as botas a secar da humidade do que o corpo e o espírito da falta de ar fresco e exercício.

- Absolutamente - respondi. - Tem-se sentido confinada?

- perguntei com alguma insinceridade (eu que a libertaria unicamente para a possuir).

- A minha tia e o meu tio têm sido extraordinariamente bondosos e eu não podia desejar melhor companhia mas, como acabo de chegar e ainda não tive ocasião de conhecer pessoas, tenho tido poucas oportunidades de sair.

- Lamento saber - assim respondi eu, não o lamentando.

Não andava muita gente na rua e a caminhada era suja e difícil. Senti então o leve embaraço que acompanha uma decisão tonta pois tínhamos por vezes de nos separar para nos aproximarmos outra vez. Em determinados pontos um trabalhador diligente tinha desimpedido o caminho da neve e, durante algum tempo, podíamos avançar com normalidade.

- É horrível - disse ela - contemplar o tormento por que passaram as vítimas do incêndio.

- É inimaginável - repliquei.

- Fiquei surpreendida com a velocidade do fogo. É de admirar como não morreram mais pessoas - observou ela.

- É de admirar, realmente.

- O choque provoca uma reacção estranha no corpo e na alma, não lhe parece? - perguntou. - Estava mais calma na noite do incêndio do que quando acordei na manhã seguinte. As minhas mãos tremiam e tive de me deitar outra vez.

- É normal - disse eu, distraído com a ideia de Etna Bliss na cama. Usaria uma camisa de dormir em seda? Amarrotaria os lençóis durante o sono? Ficaria com o cabelo em desalinho?

Ela parou de caminhar. - Professor Van Tassel - disse ela subitamente, imobilizando-se -, gostava de visitar o hotel.

- Está numa ruína desastrosa - disse eu.

- Mesmo assim.

Manteve-se firme e eu tive a distinta impressão de que nada a demoveria. Suavemente virei-a na direcção correcta e continuámos a caminhar num silêncio constrangido. Enquanto os meus pés pisavam com um ruído surdo os sulcos enlameados e a neve, Etna parecia deslizar acima da superfície, um jeito feminino de andar de que nenhum homem é capaz. Sugestivamente, ao passarmos pela casa dos Bliss, nenhum de nós olhou nessa direcção.

- Que disciplinas lecciona na universidade?

- Um pouco de tudo. Literatura Inglesa a partir de Chaucer.

- Então deve passar os seus dias na companhia de Spenser, Milton e Jonathan Swift - disse ela e, por este comentário, deduzi que Etna Bliss possuía uma certa educação (uma academia? Autodidacta? )

- Infelizmente passo os meus dias na companhia de demasiados estudantes desinteressantes e irrequietos - respondi.

- Oh, professor Van Tassel, não pode ser. Os alunos de Thrupp devem estar muito acima da média.

- Talvez sim, Miss Bliss. Talvez tenham sido apenas os professores que se tornaram desinteressantes e irrequietos.

- Tenho a certeza que nunca o considerariam desinteressante - redarguiu ela com cortesia; e o meu coração exultou com este primeiro cumprimento à minha pessoa, ainda que a sua resposta tenha sido ditada pelas boas maneiras.

- Espera uma execução rápida do testamento da sua mãe? perguntei enquanto avançávamos por Wheelock em direcção ao centro da vila e ao pátio da escola superior, eu próprio praticamente incapaz de pensar graças à pressão da sua mão enluvada sobre o meu braço, uma sensação sublime mesmo através das várias camadas de tecido.

- Não, acho que não. Tenho duas irmãs casadas cujos maridos são nesta matéria. como hei-de dizer? talvez excessivamente zelosos dos interesses financeiros das mulheres. - Entrevi nesta sincera resposta a sugestão de que ela própria era a única irmã solteira.

- Tem uma relação próxima com as suas irmãs? - perguntei.

- Tinha com a minha mãe - respondeu ela de forma indirecta.

- Não podia ter ficado em casa até à execução do testamento? - perguntei.

- O património está a ser liquidado para saldar dívidas. O maior credor, o marido da minha irmã, Josip Keep, ficou com a casa.

- Compreendo - disse eu, começando agora realmente a compreender. Afastei-a de uma carruagem que passava.

- Invejo a sua liberdade de viver sozinho, em aposentos próprios, de estudar a área de especialidade que escolheu e poder servir assim a sua comunidade através do ensino - disse ela subitamente.

Interroguei-me como saberia que eu tinha aposentos próprios. Teria pedido ao tio informações a meu respeito? E poderia eu interpretar isto como um sinal de interesse da sua parte?

- A felicidade, Miss Bliss, é inteiramente relativa. Há religiosos que acreditam, por exemplo, que a liberdade reside na obediência total.

- Como eu gostava, uma vez que fosse, de obedecer a mim mesma! - disse ela rapidamente ao jeito de alguém que exprimiu um pensamento antes de conseguir aperfeiçoá-lo. Devo admitir que fiquei surpreendido com esta declaração extraordinariamente franca.

- Então por que razão não o tem feito? - perguntei.

- Estive demasiado tempo sob a protecção extremosa da minha mãe e irmãs, e agora, como muitas pessoas do meu sexo, não possuo as capacidades necessárias para progredir sozinha.

- Progredir para onde, exactamente?

Ela levantou os olhos para mim, escrutinando-me com uma expressão penetrante. - A questão é precisamente essa, professor Van Tassel. Progredir para onde, de facto.

Desprendendo o seu braço do meu, permaneceu em silêncio durante algum tempo e, mais uma vez, tive de me habituar ao seu silêncio. Mas não sem antes vislumbrar, sob o exterior de seda azul e dourada do seu vestido, um desespero interior. Ou talvez fosse simplesmente o que eu esperava.

- Posso pedir-lhe que me trate por Nicholas? - perguntei, encorajado pela sua franqueza.

Fiquei imediatamente furioso comigo mesmo com a sofreguidão do meu avanço pois ela afastou-se de mim e começou a estudar a deprimente ruína do hotel. Era uma visão descoroçoante, a goela negra agora encharcada e a apodrecer. Pairava no ar um odor que eu não notara antes e estremeci ao imaginar a sua origem.

- Pensar que podíamos ter morrido naquela noite - disse ela num tom apavorado.

Retirei um lenço do bolso, sacudi-o e transpus o espaço que me separava de Etna Bliss. Ousadamente, encostei esse quadrado de linho belga ao seu nariz e à sua boca, tapando-a, abafando-a, por assim dizer, para que a pestilência do incêndio não penetrasse as suas narinas e conspurcasse os seus sentidos. Fiquei literalmente a tremer com a audácia do gesto.

Ela sobressaltou-se mas não recuou. Após um momento, a sua mão substituiu a minha. E após mais um momento, retirou o lenço.

- Claro que o trato por Nicholas - disse, virando-se para mim. E a dádiva ofertada desta desejada intimidade deixou-me praticamente sem fala.

- Miss Bliss - disse eu -, quer tomar uma chávena de cacau?

- Se vou tratá-lo por Nicholas, é perfeitamente apropriado que me trate por Etna - disse ela com naturalidade. - E sim, gostaria de tomar uma bebida quente. Este passeio fez-me bem.

- Pois seja - disse eu, incapaz de dizer mais nada.

Entrámos num pequeno salão de chá em Kimball Street, sendo imediatamente assaltados pelo calor do seu bulício, pelo cheiro a botas molhadas e pelo vapor que embaciava o vidro gravado. O fogo ardia na lareira e sobre o soalho enlameado viam-se vários cachecóis, mitenes, luvas, gorros de malha e até capas de criança que tinham sido abandonados debaixo de mesas e cadeiras e ocasionalmente largados em plena passagem, como se todos os ocupantes do salão tivessem despido as suas vestes em massa. Uma empregada, de tafetá preto e renda branca, com uma touca condizente na cabeça e o cabelo a encaracolar com o calor, indicou-nos uma mesa. Eu e Etna sentámo-nos. Ela pediu chá e bolo de maçã e eu pedi cacau quente. As faces dela ostentavam duas rodelas de cor que sugeriam exercício ao ar livre e uma considerável vivacidade. Tinha agora a aparência de uma mulher que transpirava saúde e até uma espécie de ânsia de viver como se um espírito inquieto, dormente durante todas as semanas passadas no fétido salão de Bliss, pudesse agora respirar e mover-se.

- Estas pessoas são todas da escola? - perguntou.

- A maioria deve ser - respondi, voltando-me para examinar a multidão. Havia os habituais grupos de alunos junto da janela e algumas senhoras que tinham andado nas compras, preparando-se para as férias que se avizinhavam, mulheres ou filhas de professores, imaginei. Depois, quando me esforçava por olhar para o canto avistei Moxon, sentado sozinho com um livro. E, por azar, ele levantou os olhos no preciso momento em que a minha cabeça rodou na sua direcção. Os nossos olhares cruzaram-se e ele cumprimentou-me com um vivo aceno, o que significava que ia com certeza levantar-se e apresentar-se à minha companheira e que, se eu não conseguisse de algum modo fazer-Lhe sinal em contrário, ia aceitar o quase certo convite de Etna para nos fazer companhia.

Moxon era um homem alto e magro de cabelo castanho claro e pele clara e era o meu colega mais chegado da escola, embora os nossos gostos fossem, como já disse, praticamente opostos (sendo Moxon o indivíduo que tem os ornados relógios de mármore e os guarda-fogos). Fazíamos amiúde companhia um ao outro na sala de jantar e conversávamos tranquilamente sobre complexas unidades de verso ou sobre a prosa austera de certos ensaístas (e ocasionalmente sobre estudantes indisciplinados que esperávamos controlar). Moxon nutria uma paixão pelas corridas de cavalos e estava continuamente em contacto com o seu corretor para fazer apostas e, ao contrário de mim, era um adepto fervoroso das actividades desportivas da escola mas, à parte estas diferenças, dávamo-nos tão bem que tínhamos jantado juntos em mais ocasiões do que era capaz de recordar.

- Tem um nome interessante - disse Etna. - É.

- Holandês - respondi com uma certa formalidade. - Van Tassel, quero eu dizer. Nicholas, naturalmente, é anglo-saxão.

(E ocorre-me agora que a minha velha alcunha poderá ter um significado inteiramente diferente. Poderia o estudante responsável pela sua invenção ter pretendido sugerir e"ild Boer? )'

- Quantos alunos frequentam a escola? - perguntou ela.

- Quase quatrocentos - respondi.

- E gosta de lá estar?

- Bastante. Espero um dia. bem, não devia dizer. E não gostaria que fosse repetido, claro.

- Claro que não.

- Mas um dia gostaria de obter uma posição melhor na escola.

 

' Mais uma vez é retomado o jogo de palavras homónimas, agora entre zerild boar (porco selvagem, javali) e zorild Boer (sendo que os Boers são os descendentes dos colonos holandeses que se instalaram, no século xvIi, na África do Sul). (N. da T)

 

O Noah Fitch, o professor de Literatura e Retórica Inglesas que rege a cadeira dedicada a Hitchcock, é capaz de assumir um cargo administrativo daqui a alguns anos, e eu tenho esperanças justificadas de vir a ocupar o lugar dele. Tenho muitas ideias que gostaria de pôr em prática.

- Creio que alguns anos não é muito tempo para esperar por uma coisa que não se tem a certeza de vir a obter, não acha? - disse ela.

- Não é verdade que a maioria das coisas por que vale a pena esperar exige paciência? - perguntei. - A Etna parece ter uma paciência extraordinária.

- Pareço? - Enquanto reflectia sobre o meu comentário, senti ao nosso lado um estranho esbracejar. Levantei o olhar e vi Moxon a vestir o sobretudo.

- Van Tassel, já analisou o seu Newman?

- Miss Bliss, deixe-me apresentar-lhe o meu colega, Gerard Moxon. Gerard, esta é Miss Bliss, sobrinha de William Bliss, o professor de Física.

Moxon ergueu as sobrancelhas. - Muito prazer em conhecê-la

- disse.

Com a sua pergunta, Moxon tinha querido saber se eu lera a obra de John Henry Newman, intitulada Ensaios e Discursos, que ainda no dia anterior se encontrava na mesa da minha sala de estar.

- Creio que conheço Newman suficientemente bem para o exigir a vinte e cinco alunos no próximo trimestre - respondi.

- Acha que vale a pena fazê-los perder tempo com Sobre os Santos e a Santidade?

- Com O Sentido Ilativo, certamente - respondi com uma certa impaciência, desejando apenas que o homem nos deixasse.

- Miss Bliss, é de Thrupp ou está de visita?

- Estou de visita, professor Moxon.

- Pois espero que esteja a gostar e que aqui o Nicholas não seja um chato insuportável.

Embora o comentário tivesse tido a intenção de uma piada, Moxon não o tinha proferido com humor; assim, o momento foi simplesmente penoso. Etna olhou para as mãos e eu implorei a Moxon com o olhar que nos deixasse. Ele leu sem dúvida este desejo na minha expressão pois começou a calçar as luvas.

- Espero que nos voltemos a encontrar - disse Moxon afavelmente a Etna e creio que falou seriamente. Ao vê-lo afastar-se, reflecti que Moxon, no fundo, não era má pessoa; aliás, penso que nunca teve um pensamento maldoso. Mesmo assim, sabia que não seria capaz de se abster de referir o nosso encontro a uma série de colegas nossos. Era raro verem-me na companhia de mulheres atraentes.

- O Sentido Ilativo não poderá ser demasiado difícil para os seus alunos? - perguntou Etna depois de Moxon sair.

Retraí-me de surpresa, um insulto reflexo que procurei imediatamente disfarçar, concentrando-me no cacau que chegara naquele momento.

- Leu Newman, então? - perguntei, tentando falar num tom casual.

- Sim, li.

- E. gosta de Newman?

- Vejo que ficou chocado. É perfeitamente compreensível. De facto, como é que um livro destes me foi parar às mãos e porque é que uma mulher da minha posição, que o mesmo é dizer posição nenhuma, há-de cansar a cabeça com estas dissertações próprias de homens?

- Não, não - repliquei, um pouco atrapalhado. - De maneira nenhuma.

Ela pareceu divertida.

- Sou promíscua nas minhas leituras, professor Van Tassel - disse ela (e com que rapidez pareceu ter esquecido a promessa de me tratar pelo meu primeiro nome). - Leio tudo o que consigo arranjar por todos os meios que me são acessíveis. bibliotecas, alfarrabistas, livros emprestados por parentes.

- Então é uma autodidacta.

Ela riu-se. - Se sou, é uma instrução pejada de falhas embora espero que continue por toda a vida. O meu pai, antes de falecer, era professor de Matemática na Phillips Exeter Academy.

- Uma família de académicos.

- Mas eu pessoalmente não entendo nada de matemática nem de ciência. Tenho a certeza que o meu tio William me considera desesperadamente desinteressante.

- Ah, duvido seriamente disso - disse eu, recuperando um pouco a compostura e ajustando o meu retrato de Etna Bliss por forma a incluir esta nova informação. Eram qualidades ligeiramente irritantes numa mulher mas, tornava-se-me claro, podiam revelar-se valiosas numa esposa.

Estendemos ao mesmo tempo o braço para o açucareiro de prata e as nossas mãos tocaram-se. Ela retirou a dela de imediato e instalou-se entre nós um silêncio constrangido. E, como não tardaria a descobrir, viria a ser esse o padrão das nossas breves saídas. Se falássemos de livros ou ideias, Etna animava-se como se não desfrutasse do prazer de uma conversa há muito tempo. Mas se eu tentasse falar com ela sobre assuntos pessoais ou se, inadvertidamente, a tocasse, ela afastava-se tão depressa que era como se uma nuvem tivesse encoberto o céu, a luz extinguindo-se-lhe no rosto desse modo veloz e absoluto. Tive, portanto, de aprender a conversar de forma a arrancá-la a si mesma e a não permitir que se refugiasse no silêncio. Fui, durante o resto dessa primeira saída, moderadamente bem-sucedido neste esforço, o suficiente para me encher de coragem quando ela disse, bastante abruptamente, que eram horas de regressar a casa do tio.

Levantou-se e eu levantei-me com ela. - Espero que me permita visitá-la novamente - disse eu.

Ela hesitou durante bastante tempo, levada decerto pelas boas maneiras, a pretexto de encontrar as luvas. Virou-se para mim.

- Sim, obrigada - limitou-se a dizer. Mas compreenderia Etna Bliss que a liberdade, tanto física como espiritual, por que ansiava poderia ter um preço.

A minha corte começou seriamente. Se o caminho para o coração de Etna passava pelos livros, então tornar-me-ia, decidi, uma extensa biblioteca. E creio que vi, logo no primeiro dia em que a visitei com As Minas de Salomão, de Rider Haggard, que Etna compreendeu a moeda de troca da minha pretensão. Embora deixasse transparecer muito pouco, era difícil não interpretar a sua aquiescência como algo mais do que aquiescência. Por outras palavras, insuflou-me esperança.

Estabeleci a regularidade de duas visitas por semana e não podem ter subsistido dúvidas naquela casa quanto às minhas intenções.

Aliás, teria sido considerado absolutamente desonesto se tivesse tomado a Etna tanto tempo sem ter em mente quaisquer perspectivas futuras. Tornava-se evidente que o próprio Bliss se sentia confuso, embora se tivesse tornado menos confuso, devo dizer, quando comecei a revelar, em fragmentos dispersos de conversa, a dimensão da minha modesta fortuna. Talvez, no fim, ele me tenha considerado como uma solução para um problema relativamente bicudo.

Com a frequência possível nesse Inverno, eu e Etna saíamos de casa dos Bliss e íamos passear, regressando do final desses passeios para tomar chá com Bliss ou com a mulher. Eu chegava pontualmente às três horas, num estado de quase desespero para ver Etna após uma ausência de três ou quatro dias. Depois de uma curta conversa de circunstância, Etna vestia a capa e punha o chapéu e, em seguida, dava-me o braço e eu sentia uma profunda excitação. Ansiava por esta sensação como um homem pelo seu láudano e parecia-me uma prova de que Etna Bliss era alguém para quem eu estava fadado, alguém que tinha sido destinado a amar. (Não posso, porém, deixar de me interrogar se não inventaremos o nosso próprio destino, se não traçaremos a nossa própria sorte, de acordo com as circunstâncias que vivemos. Até que ponto será o amor um truque da mente, um mero número de acrobacia verbal, para encaixar pessoas que se nos atravessam no caminho e que satisfazem as nossas necessidades num determinado momento? Nunca conheci a resposta a este enigma nem acho, aliás, possível determinar tal resposta pois, em qualquer dos casos, os efeitos físicos são igualmente profundos a ponto de turvar qualquer distinção entre o simplesmente conveniente e o verdadeiramente decretado. )

(Não é verdade que um raciocínio é um veículo descontrolado, correndo desenfreadamente de lugar em lugar, mais perigoso do que a minha própria carruagem descarrilada? )

Etna dava-me o braço e, juntos, avançávamos ao encontro dos elementos; alguma vez terá havido homem mais desejoso da chegada precoce da Primavera, não só para que houvesse mais dias agradáveis para as nossas saídas mas também para que, entre a mão de Etna e o meu braço, diminuíssem as camadas de tecido? A nossa con versa tendia a concentrar-se nos livros que lhe tinha levado na visita anterior. Ela lia vorazmente e, devo dizer, com bastante aplicação.

Confesso que tinha lido quase todas as obras, num ou noutro momento da minha vida passada, quer para as minhas aulas quer para o meu próprio estudo, e algumas, como o Haggard, enfadaram-me profundamente. Mas fingia interesse quando necessário, o que não era difícil pois o entusiasmo de Etna era contagioso. Por vezes, pensava até que ela própria poderia ter-se tornado uma esplêndida professora (muito possivelmente melhor do que eu, vejo-me obrigado a registar aqui) e que era um desperdício esta mulher não ter alguém a quem votar os seus dons extraordinários. Comecei a compreender que seria uma excelente mãe pois possuía uma grande ternura, que eu tinha ocasião de observar nas suas relações com a jovem prima, Aurelia, assim como um genuíno amor por aprender, o que não pode ser uma má qualidade numa mãe, sobretudo se for capaz de transmitir esse desejo aos filhos.

(Talvez pareça aqui oportunista, mas estas considerações são tecidas mais em retrospectiva do que o foram então quando eu me encontrava num tal estado de desamparada escravidão física que não poderia ter tomado decisões razoáveis ou mesmo calculadas. E embora muito se tenha passado mais tarde - embora eu tenha encontrado algum refrigério numa vida desprovida de paixão -, não posso senão dizer que sinto saudades dela.

Oh, quantas saudades! )

(Mas sentia afeição por Etna Bliss? Gostava realmente dela? Sem dúvida que ela possuía inúmeras qualidades encantadoras, como um talento para a paciência e um riso irreprimível, e tinha um jeito adorável de se baixar à altura de uma criança para lhe falar a que era delicioso assistir; mas, verdade seja dita, sentia-me sempre um pouco receoso dela, Etna causava-me um temor respeitoso como um benfeitor a um suplicante. Embora não pense que ela tenha alguma vez usado contra mim esse poder, creio que tinha consciência dele e compreendia este grande desequilíbrio entre nós. )

As semanas foram passando deste modo. Não posso dizer agradavelmente pois julgo que a palavra é demasiado insípida. Antes recordo esse tempo como recheado de uma certa espécie de perigo induzido pelo meu receio de fazer ou dizer alguma coisa que pudesse levar Etna a encarar-me com inquietação. Foi ainda um tempo de grande turbulência emocional, de incomparável júbilo espiritual e de uma comoção carnal que eu nunca havia experimentado.

E, se me é permitido dizê-lo, também no rosto de Etna perpassava, de quando em quando, uma centelha de felicidade. Recordo vividamente, por exemplo, uma tarde em Janeiro - o céu estava tão límpido que parecia artificial, de um azul que, juntamente com o branco da neve, era quase chocante na sua audácia e brilho adamantino - em que organizei um longo passeio de trenó pelo campo circundante que encantou Etna ao ponto de fazê-la perder por completo a sua reserva. Há um certo tempo que eu próprio não andava de trenó e tinha-me, por isso, esquecido da velocidade e da impetuosa deslocação de ar que este veículo pode produzir. Eu e Etna tínhamos no regaço esteatites que haviam sido aquecidas na lareira e ainda retinham um calor considerável. As mantas que nos cobriam criavam uma espécie de casulo. Apenas sentíamos o frio cortante nos rostos mas não nos importávamos pois o ar era revigorante. Enquanto avançávamos, as campainhas do trenó marcando o compasso com o movimento ritmado dos cavalos, o sol começou a pôr-se, conferindo às planícies cobertas de neve e aos ramos das árvores - incluindo os abetos - uma carregada mas vívida tonalidade rósea de forma que o mundo inteiro parecia resplandecer a partir do interior, imbuindo-nos de uma sensação de bem-estar. Quando esta estimulante cor atingiu o seu ponto alto, os cavalos, talvez pressentindo este momento de perfeição (ou, mais provavelmente, desejando regressar a um estábulo quente), dobraram uma curva com tal velocidade que o trenó se inclinou sobre um patim. Etna soltou um grito e agarrou-se à minha mão. Eu e ela continuámos agarrados um ao outro num aparente arroubo de deleite que imitava de perto, se é que não o era realmente, uma espécie de paixão. Depois, para minha surpresa e ventura (cá está ela de novo, essa palavra), ela não me largou a mão quando o trenó se endireitou. Pelo contrário, enlaçou os dedos enluvados nos meus, uma dádiva tão inesperada que a felicidade me paralisou. O condutor, um lavrador local que passava dificuldades, murmurou uma desculpa em nome dos buliçosos cavalos quando a minha vontade, naturalmente, era agradecer ao homem. Foi assim que eu e Etna atingimos esse maravilhoso ponto de viragem físico - o de dar afectuosa mente as mãos - permitindo-me fazer disto um hábito em ocasiões subsequentes.

Ocasionalmente, os nossos passeios divergiam deste modelo familiar. Recordo uma vez em particular em que Etna veio ter comigo - isto é, eu fui buscá-la mas ela veio à escola. Em Thrupp, aos domingos, o corpo docente estava autorizado a convidar pessoas para almoçar depois do serviço religioso. Estes convidados podiam ser familiares de fora da cidade ou colegas com quem se tinha assuntos a tratar no dia seguinte, ou a mulher e filhos de um professor que, por qualquer razão, tinham decidido não almoçar em casa. Por volta dos finais de Fevereiro, convidei Etna para um destes almoços de domingo. Fi-lo em parte para retribuir a sua hospitalidade (tinha participado em várias refeições em casa do tio) e em parte para a exibir aos meus colegas. Etna provocava sempre um pequeno alvoroço de atenções em público das quais por vezes me sentia absurdamente senhor como se ela tivesse sido uma criação minha.

Estava a nevar no dia em que fui buscá-la, uma neve gelada que feria a pele e, enquanto caminhava, o granizo caía na horizontal, batendo-me directamente no nariz e na boca. Tive de segurar no chapéu e de apertar o capote contra o corpo. Estava um dia francamente horrível e, se o meu desejo de estar com Etna não fosse tão ardente, teria certamente cancelado o nosso encontro.

Quando cheguei, ela abriu-me imediatamente a porta, como se tivesse estado a espreitar a minha chegada, e eu não pude deixar de me regozijar com isso.

- Etna - disse eu, sacudindo os efeitos do mau tempo do sobretudo e do chapéu. Prudentemente não disse então mais nada pois não desejava dar demasiada ênfase às inóspitas condições lá fora. Ainda alimentava a esperança de que a tarde decorresse como eu havia planeado.

Etna teve de se virar e de recuar contra a porta para a fechar contra o vento. - Pensei se se teria perdido - disse ela com uma inconfundível nota de alívio na voz. Estava corada como se tivesse febre. Levou os dedos à testa ao jeito de alguém que está com uma forte dor de cabeça.

Ocorreu-me outra ideia, uma ideia desalentadora. - Está doente? - perguntei. Se bem que preocupado com a sua saúde, confesso que também fiquei apreensivo com a perspectiva de ter de voltar para a escola sem ela.

- Não - respondeu, afastando os dedos da cara. - É só que.

Por vezes custa-me. - Estremeceu ligeiramente. - Está assim tão mau lá fora?

- Não está impossível - disse eu cautelosamente. - Desagradável, talvez, mas há-de estar a arder um bom fogo na sala de jantar e hoje o almoço é ganso.

Ela levantou o queixo. Reparei que tinha as mãos a tremer. Embora desejasse ardentemente acreditar que era por mim que tremia, sabia que não. Estava a respirar com dificuldade.

Avancei um passo na direcção dela mas ela estendeu a mão como que a deter-me. Se tivesse minimamente entrado no campo das possibilidades, teria percorrido a distância que nos separava e erguido o seu rosto para o meu. Teria enterrado a minha mão no fundo das suas costas para a apertar com força contra mim. Ter-lhe-ia levantado as saias e passado a mão pelas coxas e enfiado os dedos na meia. Teria feito tudo isto e é possível que ela se tenha apercebido porque se empertigou imediatamente como se tivesse mergulhado os pulsos em água gelada. Claro que não fiz nada mas não posso deixar de me interrogar sobre o que poderia ter acontecido entre nós se tivesse tido então a ousadia de a tocar.

Olhei para as minhas mãos estendidas. Para ocupá-las aproximei-as do bengaleiro e peguei na capa dela. Estendi-lha para a ajudar a vesti-la e ela agasalhou-se na lã. Talvez tenha deixado os meus braços à sua volta um momento mais do que seria decoroso. O seu cabelo estava lavado de fresco e cheirava a sabonete de azeite. Ela afastou-se e cobriu a cabeça com o capuz.

- É melhor irmos - apressou-se a dizer - antes que a minha tia nos impeça.

Não havia necessidade de dizer mais nada pois eu estava tão ansioso como ela para abandonar a casa.

(Que pactos - que pactos - obriguei Etna Bliss a fazer? ) A tempestade estava mais tormentosa. Etna levava o capuz descido sobre o rosto e tive de a conduzir no que esperei ser a direcção certa. Era uma loucura andar na rua num dia daqueles e senti-me dividido entre o embaraço de ter consentido uma saída tão imprudente e uma espécie de exaltação proporcionada pela aventura e pelo risco.

Quando chegámos à escola e entrámos no vestíbulo de Worms, a parte da frente das nossas capas estava coberta de gelo. A minha boca tinha-se petrificado num esgar e, nesses instantes iniciais, tive dificuldade em falar claramente. Um empregado da escola ajudou-nos a despir as capas e encorajou-nos mesmo a descalçar as botas molhadas, o que Etna recusou. Dirigimo-nos imediatamente à sala de jantar e detivemo-nos junto da lareira para nos aquecermos. As faces e o nariz de Etna estavam vermelhos do frio penetrante da neve - mas como o seu rosto era encantador, meu Deus! Ela não conseguiu reprimir um sorriso: tínhamos sobrevivido a uma tormenta. À medida que o calor lhe foi invadindo o corpo também as palavras lhe começaram a brotar dos lábios. Não me recordava de alguma vez a ter visto tão animada.

- Uma vez fui patinar no gelo com as minhas irmãs - disse ela. - Era muito pequena, acho que não tinha mais de seis ou sete anos, e enquanto lá estávamos rebentou de repente uma tempestade, muito semelhante a esta, por sinal, e já não me lembro exactamente porquê, mas a pessoa que estava a tomar conta de nós tinha desaparecido; talvez tivesse achado que a minha irmã Pippa podia olhar por nós. A tempestade rebentou tão subitamente que não conseguimos encontrar o caminho de volta e tivemos de nos abrigar numa espécie de caverna e não imagina a excitação que foi estarmos ali sozinhas! Lembro-me que a Pippa tinha levado num saco uma caneca de cacau embrulhada em panos de flanela. A Miriam estava demasiado ansiosa e não conseguiu beber muito mas eu bebi, bebi tudo de uma vez, e mais tarde fiquei tão maldisposta, meu Deus! Mas continua. continua a ser uma recordação maravilhosa.

Estava a esfregar as mãos sobre o fogo. As suas mãos eram grandes, quase tão grandes como as minhas.

- Como é que as encontraram? - perguntei.

- Lançaram uma busca. Temia-se que tivéssemos caído através do gelo. Não sei quanto tempo estivemos perdidas, não pode ter sido mais que uma hora ou duas, que pode ser uma eternidade na imaginação de uma criança, não é? Suponho que na de uma mãe também. Lembro-me de ter ficado muito desapontada por me terem encontrado.

Etna riu. O seu cabelo estava húmido e encaracolado em torno da testa e das faces. Passei os olhos pela sala de jantar que só estava parcialmente ocupada. Não se viam mais mulheres. Alguns homens que estavam a observar Etna desviaram relutantemente os olhos quando o meu pousou nos deles; outros acenaram com a cabeça e lançaram- me um sorriso cúmplice.

- Ah, é uma maravilha estar quente - disse ela. - Uma pessoa quase não dá valor a estes confortos quando os obtém sem esforço.- É melhor sentarmo-nos a almoçar - disse eu. - Deve estar com fome.

- Pois estou - disse ela, olhando em volta pela primeira vez.

- Estou esfomeada. - (Era outra característica de Etna; tinha um apetite extraordinário para uma mulher. )

Conversámos, conversámos sobre... quê? Já não me recordo. Como gostava de conseguir recordar cada palavra dessa tarde, dessa tarde de infantil conspiração, calor, boa comida e bom vinho. Talvez tenhamos falado de livros mas não creio. O dia parecia diferente de qualquer outro.

Demorámo-nos bastante mais tempo à mesa do que seria razoável. Sentia-me exaltado com as possibilidades. Eu, capaz de inventar uma vida inteira num instante, tive visões de Etna a passar a noite em aposentos da escola, de um abraço que me consentiria antes de entrar nesses aposentos, talvez até um beijo roubado num corredor às escuras. Imaginei-me a dormir no mesmo edifício que ela e a ir buscá-la para tomar o pequeno-almoço, uma refeição que nunca havíamos tomado juntos. (Intimidades deliciosas, eróticas na sua natureza, e muito estranhas pois haveríamos de tomar quase cinco mil pequenos- almoços juntos que nunca produziram sensações comparáveis. )

Quando a refeição se aproximava do fim e o pessoal se viu obrigado a retirar as toalhas e os talheres das outras mesas, vendo fugir a aprazível tarde (e talvez mercê das minhas ousadas fantasias que Etna não podia conhecer e certamente não partilhava, como tive mais tarde de recordar a mim mesmo), estendi o braço e agarrei-lhe na mão. Ela calou-se antes de acabar a frase que estava a proferir. Reparei que tinha sustido a respiração. Entrelacei os meus dedos nos dela.

- Etna - disse eu -, é tão bela. - Foi um prazer dizer simplesmente as palavras em voz alta. Ainda não o fizera.

- Professor - disse ela.

- Prometeu tratar-me por Nicholas.

- Estão mais pessoas na sala.

- Que me invejam - respondi.

Os seus dedos estavam paralisados nos meus. Não sei se tentou retirá-los; talvez se tenha apercebido de que nesse momento não podia. A serenidade que já observara nela apoderou-se-lhe do corpo e das feições como uma maré que avança e impregna a areia. Começou a respirar lentamente e o rubor abandonou-lhe as faces. Tive a distinta impressão (Deus me perdoe! ) de um animal num bosque, absolutamente imóvel para se tornar invisível. Etna evitava olhar para mim.

Mas, nesse dia, preferi, no estado inebriado em que me encontrava, interpretar o seu comportamento como sendo simplesmente de modéstia feminina e timidez física, ambas, como então pensei, qualidades cativantes e encantadoras numa mulher. Interroguei-me ainda se este receio das questões carnais indicaria que não tinha possuído outros amantes antes de mim, uma dúvida que me atormentava desde o dia em que visitara pela primeira vez a casa do tio.

Larguei-lhe a mão que ela imediatamente pousou no regaço.

- Foi a tarde mais maravilhosa da minha vida - disse eu com sinceridade.

Ela levantou o olhar em direcção ao meu. - Obrigada pelo almoço.

- Vai ser uma caminhada terrível no regresso - observei. Dá ideia que a tempestade não abrandou muito.

- Pois dá - disse ela, olhando através das amplas janelas da sala de jantar da escola.

- Podia passar aqui a noite - arrisquei. - Há alojamento para os convidados da escola. E depois eu levo-a a casa de manhã. Podemos mandar um mensageiro a casa do seu tio e da sua tia para eles não ficarem preocupados. Um rapaz desloca-se mais facilmente na neve do que nós.

- Era incapaz de mandar um rapaz à rua com um nevão destes por minha causa - respondeu ela. - Não, tenho de ir. Não trouxe nada comigo.

- Sim, claro - disse eu, levantando-me relutantemente com ela.

Um empregado da escola tinha secado as nossas capas e cachecóis ao pé do fogo. Dei-Lhe uma gorjeta e pedi um trenó que ele foi buscar. Durante a viagem até casa do tio, eu e Etna levámos uma manta sobre as cabeças, agasalhando-nos numa espécie de tenda. Sentia um bafo quente a envolver-me a cara. À porta de casa, ela convidou-me a entrar mas tive dó do rapaz e dos cavalos com o trenó e apercebi-me então do que antes me escapara: havia grandes montes de neve acumulada em que até um trenó podia ficar atolado.

- Apareço então na terça - disse eu à entrada de casa dela.

Ela anuiu mas pareceu-me distraída. Não podia deixá-la ficar na neve nem mais um momento.

- Vá para dentro - disse eu.

Ela anuiu novamente e entrou em casa. Olhou para mim de relance uma vez antes de fechar a porta. Voltei para o trenó, de súbito dolorosamente consciente da neve que me chegava agora bastante acima das botas.

Acontece que, no dia seguinte, Etna adoeceu com febre, uma ocorrência pela qual me censurei amargamente. Se a tivesse advertido o suficiente contra os perigos do temporal - como qualquer homem decente teria feito - ela não teria ficado doente. (Embora me tivesse ocorrido que o rubor extraordinário que lhe vira nas faces, no vestíbulo dos Bliss, poderia dever-se a um princípio de febre, mas paciência. ) Não descobri isto até terça-feira quando cheguei à hora habitual e Mrs. Bliss me informou, tendo-me visto depois obrigado a suportar uma interminável chávena de chá e uma intolerável conversa no salão (no qual, devo dizer, Mrs. Bliss parecia medrar como uma rara flor tropical, ou seria que também ela estava a chocar uma febre? ). Não era capaz de pensar em quase nada senão no facto de Etna poder estar na cama a menos de três metros da minha cabeça. Ela ficou doente durante uma semana, finda a qual pôde descer ao salão por breves intervalos, evidenciando a natureza contagiosa da enfermidade na tosse e no nariz avermelhado. Nas minhas visitas, levava rebuçados da padaria e flores de estufa e, numa ocasião, uma rara orquídea da estufa da escola que o professor de Biologia, Everett Tucker, me dera. E, claro, levava livros para Etna ler. Apesar destes presentes, as nossas conversas nesse salão (Etna instalava-se numa chaise longue e eu transpirava profusamente debaixo do casaco e do colete do fato) eram sempre desconexas e pouco convincentes - mas eu não sabia se isto era resultado da nossa reclusão naquela sala horrível ou do infeliz con traste com a viva animação que havíamos experimentado juntos na sala de jantar da escola. Escusado será dizer que foi com uma sensação de tremendo alívio que Etna decidiu que se sentia suficientemente bem para se aventurar a sair.

Durante o nosso namoro, fui pródigo em presentes, na maioria comprados no Johnston & Herrick's de Hanover. Recordo-me de um par de brincos de topázio de que Etna gostou especialmente. (Já referi os cuidados que Etna dedicava ao vestuário e aos acessórios? De uma forma modesta, naturalmente, mas com uma combinação cativante de habilidade e bom gosto. ) Ofereci-Lhe igualmente um colar de selenite e ainda hoje não esqueço o prazer de lhe apertar o fecho na nuca. Estaria enganado ao pensar que, se lhe oferecesse estas prendas (um alfinete de azeviche, um pente de turmalina) e ela as aceitasse, estaria a aceitar-me a mim e às minhas atenções, cada prenda oferecida e recebida representando uma entrada a meu favor na contabilidade do nosso namoro? E, assim, alimentava esperanças, sentia-me mesmo confiante, e comecei a pensar numa ocasião propícia para a pedir em casamento.

Aconteceu numa amena tarde de Março. Estava uma temperatura quente, pouco própria da estação, era aliás o primeiro dia agradável em várias semanas. Havia trilhos nos terrenos da escola que, antes dessa tarde, haviam estado cobertos de neve e pouco depois estariam demasiado enlameados para calcorrear, mas nesse dia, entre o Inverno e a Primavera, o solo estava suficientemente duro para permitir a caminhada.

Saímos da casa dos Bliss e eu conduzi Etna até ao princípio dos trilhos da escola, um percurso já de si mais longo do que qualquer outro que tivéssemos feito juntos. Eu estava num estado de consi derável ansiedade, como estaria qualquer pretendente prestes a fazer um pedido, mas senti-me encorajado ao ver que Etna não hesitou à entrada dos prados. Na verdade, julgo que ela nem reparou, tão exaltada se encontrava, como se o seu corpo estivesse imbuído da própria seiva que se elevava nos bordos que nos cercavam. O trilho por que enveredámos corria paralelo à água, o rio ruidoso nesse dia com correntes prematuramente formadas. Não só o ar estava ameno como também as cores - o céu de um suave azul leitoso, os nítidos contornos das árvores esbatidos pela doçura do ar. Etna segurava nas saias ao caminhar, mas mesmo assim não tardou a ficar com a bainha ensopada. Pareceu não se importar minimamente com isso. De facto, avançava a uma certa velocidade como se tivesse um destino. Nesse dia, usava uma saia pregueada azul, cinzenta e castanha, e uma capa curta a condizer com uma gola cinzenta de pele de coelho. Quando levantava as saias, eu tinha por vezes um vislumbre de camadas de pesados saiotes creme.

- As histórias de Upham não me agradam muito - estava ela a dizer. - Pensei que sim, mas não me agradam. São escritas com demasiadas minúcias e carregadas do género de floreados de estilo que acho de mau gosto.

- Precisamente - respondi, pois ela já me tinha exprimido este desagrado.

- Que perfume agradável. Sabe o que é?

Cheirei. Apenas me chegava o odor do rio.

- E qual foi a ideia dele ao criar um personagem tão fundamentalmente cego que nem compreende a verdadeira importância daquilo que diz? - perguntou.

- Julgo que é um artifício - disse eu.

- Com que finalidade?

- Retratar um personagem que se ilude a si próprio.

- Pois eu não acredito num artifício desses. Leva o leitor a desconfiar do narrador. Como é que podemos saber o que aconteceu realmente? E além disso ninguém se ilude a esse ponto.

- Acha que não? - perguntei.

- Acho que este prenúncio de Primavera lhe confundiu as ideias esta tarde, Nicholas. Está anormalmente distraído.

- Talvez sim - respondi.

Meia hora mais tarde, tínhamos atingido um lugar abrigado, um afloramento rochoso que criava uma concavidade sob a qual pudemos deter-nos por um momento a contemplar o cenário diante dos nossos olhos - uma vista agradável de ervas cor de ferrugem vergadas sob o peso da neve e do gelo que só recentemente as abandonara. Etna tinha-me seguido até ao abrigo de boa vontade; talvez precisasse de recobrar o fôlego. As suas pernas não podiam estar habituadas a tanto exercício. Aproximei-me dela um passo, com as mãos nos bolsos do casaco e o corpo coberto de suor por baixo do colete (tinha vestido demasiada roupa). Ela não se afastou permitindo-me esta proximidade enquanto observámos por um momento um bando de estorninhos que desciam num voo picado, de desenho complexo, sobre a margem do rio. Ela sorria e parecia satisfeita.

- Minha querida Etna - comecei, e deve ter transparecido um tom inadvertidamente reverente na minha voz pois ela virou-se para mim de imediato com uma expressão perplexa. Enfiou as mãos debaixo da capa. Entre a folhagem emaranhada ouvi a restolhada de algum animal da floresta: uma tâmia? Um esquilo?

- Tenho um assunto extremamente importante para discutir consigo - disse eu, fazendo uma pausa pois nada disto estava a correr conforme planeado; das minhas palavras já transparecia uma

nota de transacção comercial. - Quero dizer, desejo confessar-Lhe. - inspirei rapidamente - que a amo - concluí. Esta declaração não pode ter sido inteiramente inesperada (afinal que significado é que ela tinha atribuído aos brincos de topázio e ao alfinete de azeviche? ) e, no entanto, ela pareceu surpreendida, momentaneamente atónita. Suspeito que, nessa altura, a ideia de casamento andava muito longe dos seus pensamentos; o seu rosto corado era decerto resultado do esforço e não da expectativa.

Mas, como acontecia frequentemente com Etna em situações de medo ou surpresa, ficou perfeitamente imóvel. Até as suas pálpebras pareceram pestanejar mais devagar enquanto me fitava intensamente.

- Adoro-a - disse eu com um fervor que deve ter parecido bizarro em contraste com a sua quietude. - Não consigo dormir à noite a pensar em si. Quero que seja minha mulher.

(Quando recordo este momento, não posso deixar de ver a cena de uma peça em que um dos protagonistas exagera a representação, levado pelo nervosismo, enquanto o outro parece ter-se completamente esquecido do texto. )

Talvez Etna tenha ficado sinceramente alarmada com esta ousada declaração que imediatamente procurei suavizar. - Estou a dizer - continuei - que gostaria que fosse minha mulher se é uma perspectiva que lhe agrada. Estou a pedi-la em casamento. Sei que não pode ser repentino nem totalmente inesperado e, claro, deve demorar o tempo que quiser a decidir; mas digo-lhe desde já que faria de mim o homem mais feliz do mundo se aceitasse.

Durante muito tempo, Etna permaneceu silenciosa. Nunca tive a certeza do que pensou nesse momento mas creio que, embora a possibilidade do casamento lhe tivesse ocorrido e embora soubesse que tinha de acabar por aceitar se queria escapar à discreta tirania de uma vida de exilada, se recusara realmente a imaginá-la. Precavera-se contra ela, por assim dizer, e estava portanto desorientada sem saber que responder.

Tirei do bolso uma caixa que continha um anel que comprara recentemente no Johnston & Herrick's (por um preço considerável, posso informar o leitor; não vejo mal algum em mencioná-lo agora). - Desejo oferecer-lhe isto - disse eu - como penhor de... do meu compromisso. - Mas não consegui continuar. O loquaz e por vezes pedante Van Tassel tornou-se mudo como uma pedra. tão mudo como Etna Bliss. Segurei no anel, uma obra em esmeralda e ouro branco, na palma da mão.

Ela não pegou nele mas retirou as mãos da capa, talvez para esboçar um gesto, e eu, quase em desespero com medo de uma rejeição (possibilidade que, a cada momento que passava, se afigurava mais provável), agarrei numa dessas mãos enluvadas e pousei-a sobre a minha de forma que o anel ficou entre nós. Coloquei o braço livre em torno do seu longo dorso. Senti-a retesar-se, o corpo inflexível. Mas então, quando se tornou claro que eu não a largaria espontaneamente, ela relaxou o suficiente para permitir o abraço, se bem que não possa afirmar que tenha tido a menor reacção. Permaneceu imóvel, num estado de não dar nem receber. Talvez estivesse a pôr-se a si mesma à prova, atenta à sua própria reacção. (Estou convicto de que toda uma história, todo um casamento, ficaram escritos nesse abraço, embora não pudesse então tê-lo previsto. E, com base nessa experiência, aconselharia todos os jovens amantes a estarem tão atentos ao primeiro abraço à pessoa amada como estariam aos vaticínios de um profeta. )

No entanto, até a passividade de Etna era ventura (peço desculpa ao leitor mas nenhuma outra palavra serve): sentir a respiração dela no meu pescoço, sentir o peito dela a crescer e a decrescer perto da minha mão. Lentamente, para lhe dar a oportunidade de se afastar (mas não afastou! ), deixei a minha cara deslizar pela dela para poder beijá-la na boca, um ponto alto das minhas constantes fantasias. Tinha praticamente atingido o meu objectivo quando uma ave enorme apareceu a voejar pelo trilho, ave essa que era Moxon de sobretudo - com o cabelo, os braços e as abas do casaco a adejar vigorosamente. Eu e Etna separámo-nos instintivamente. Moxon estacou de forma abrupta.

- Van Tassel, que surpresa! - disse ele.

- Moxon - disse eu.

- Miss Bliss, é um prazer voltar a encontrá-la.

Etna virou-se ligeiramente na direcção dele mas manteve o olhar desviado.

Moxon pareceu indiferente à cena com que se deparara. Eu estava a tremer não apenas de raiva mas da expectativa frustrada.

- Estou a fazer exercício - disse Moxon, afirmando um facto perfeitamente evidente e enxugando a testa húmida com um lenço que tirou do casaco. - O meu médico diz que é o único antídoto para a comida da escola. Manter os intestinos em movimento e essa coisa toda.

Fiquei sem fala, chocado com o facto de o homem discutir assunto tão grosseiro na presença de Etna.

(Wild boor? )

- Ah, a propósito, foi uma sorte cruzar-me consigo - disse Moxon, voltando a enfiar o lenço húmido no bolso. - O Fitch tem andado à sua procura toda a tarde. Parece muito aflito e deixou recados em toda a parte para se apresentar no gabinete dele logo que puder.

- O Fitch? - disse eu distraidamente. - À minha procura?

Hoje?

- Sem dúvida.

- Porquê?

- Não faço ideia.

Etna estava tão quieta como um veado que ouviu o estalar de um ramo. Era uma qualidade que eu adorava nela: não disfarçar, não fingir que uma coisa era aceitável quando claramente não era.

- Tenho de ir andando - disse Moxon. - O meu médico diz que não posso deixar o sangue acalmar nestas caminhadas.

- Com certeza - disse eu, despedindo-me com um aceno.

Continuava com o anel de esmeraldas na mão, ansioso por entregá-lo à sua futura dona. Mas, quando me virei para Etna, compreendi que Moxon tinha destruído a sua disposição passiva.

- Sinto muito, Etna - disse eu.

- Não tem mal - disse ela. - Estou com frio agora, acho melhor voltar para casa. Não quero correr o risco de uma recaída.

- Não, claro que não - disse eu.

- Andámos muito.

- A mim pareceu-me pouco - respondi.

Em conversa desgarrada e (para mim) sombrio silêncio, regressámos a casa dos Bliss, a minha frustração e fúria apenas expressas por mudas imprecações. Quando chegámos à porta de Etna, ela voltou-se e estendeu a mão ao jeito habitual. Eu estava tomado de um tumulto interior, pois ansiava por lhe dar o anel, mas sentia-me relutante em fazê-lo numa situação tão pública, jà que temia que um momento inoportuno propiciasse quase certamente uma recusa. Não fui capaz de falar. Mas ela falou, acalmando de algum modo o meu coração inquieto.

- Professor Van Tassel - disse ela, usando o meu apelido, o que interpretei como um mau sinal -, eu sei que não é fácil fazer um pedido de casamento. - (Oh, mas foi, quis desesperadamente dizer; e talvez ela tenha pressentido isto pois levantou a mão para me impedir de falar. ) - Do mesmo modo, não é fácil aceitar um pedido dessa natureza, se ele for sincero - continuou. - Por isso, deve dar-me tempo para reflectir de forma a poder tomar uma decisão honesta e lúcida.

- Volto dentro de dois dias - disse eu, ansioso por estabelecer limites a esta tomada de decisão.

- Não, deixe passar uma semana até voltarmos a encontrar-nos. Preciso de tempo para considerar o meu futuro.

- Deseja sossego para pensar - disse eu.

- Sossego não, professor Van Tassel. Mas tempo para meditar. Não posso tomar precipitadamente uma decisão tão importante.

- Será melhor falar com o seu tio?

- Por enquanto não.

- Por favor - disse eu, incapaz de esconder o desespero na voz -, não demore muito tempo. Acho que não vou dormir descansado enquanto não conhecer a sua resposta.

E pareceu-me que essa simples confissão a comoveu um pouco pois assentiu com a cabeça - não de um modo divertido nem compassivo mas com verdadeira complacência, uma emoção em que Etna Bliss, como não demorei a descobrir, era pronta e generosamente pródiga.

O gabinete de Noah Fitch situava-se ao fundo de um longo corredor de pedra de forma que, para lá chegar, era necessário percorrê-lo, o eco das botas do visitante entre os painéis de mogno polido das paredes anunciando a sua chegada com grande antecedência. O prémio da caminhada resumia-se a um solitário busto branco de Franklin Pierce num plinto diante de uma ampla janela que dava para o pátio da escola. Familiarizado com o gabinete de Fitch (e um pouco sem fôlego do esforço e da ansiedade), bati com segurança à porta para dissipar qualquer aura de temor. Ouvir uma pancada receosa na porta, como eu bem sabia por ter muitas vezes estado do outro lado, suscitava um estado de espírito de desnecessária superioridade; e embora Fitch fosse, como detentor da cátedra de Hitchcock, o meu superior natural, não queria que ele me considerasse intimidado com a convocação.

Fitch era um homem com uma figura impressionante, cabelo cor de estanho, que as patilhas fartas completavam, e uma boca incongruente com dentes perfeitos - não sei se um atributo hereditário ou da dieta. Era um vegetariano afamado e não comia carne há vinte anos. Vestia formalmente em todas as ocasiões e possuía uma postura erecta - mesmo aos cinquenta e cinco anos - e muitas vezes suspeitei que foi a sua imponente e cativante presença física, tanto como a sua erudição, que Lhe valeu a posição que ocupa.

- Sim. Van Tassel. Entre.

Conduziu-me ao seu gabinete e talvez fossem os reposteiros corridos nas janelas o que emprestava a esse gabinete um ar tão sombrio, mesmo à luz do dia. Escusado será dizer que as paredes estavam cobertas de livros, embora a monotonia fosse quebrada aqui e ali por um objecto de estimação: uma gaiola para pássaros, um galo de chumbo, uma laranja cravejada de cravos-da-índia. Havia ainda um retrato bastante bom da mulher que haveria mais tarde de fazer parte da colecção Elliot.

Sentámo-nos defronte um do outro, separados por uma grande extensão de cerejeira. Diante dele estava uma pasta.

- Queria falar comigo?

- Sim, Van Tassel, queria.

Desviou momentaneamente o olhar como que a ordenar as ideias. A urgência de que Moxon tinha falado antes não era de todo patente. Tive nesse momento, como por vezes tivera no passado, a vaga impressão de que Fitch não gostava muito de mim - uma sensação, devo dizer, que ele se esforçava denodadamente por esconder - e tinha decidido há muito que a causa desta leve antipatia residia no facto de eu não ter nascido nem sido criado na Nova Inglaterra, a minha região adoptiva, e de, portanto, carecer de uma certa autenticidade.

- Trata-se de um assunto delicado - começou Fitch. Senti imediatamente o calor a assomar-me à cara. Que assunto tão delicado" poderia ser este? Ter-se-ia algum aluno queixado de um tratamento excessivamente severo? Teria eu, no meu actual estado de distracção, faltado a sessões académicas com os alunos? Teria sido injusto ao dar notas?

Ele afastou-se da secretária. Apercebi-me de que estava debruçado na cadeira na atitude de um suplicante e fiz, assim, uma tentativa para corrigir a minha postura.

- Como sabe - retomou -, partilhamos de um interesse pela obra de Sir Walter Scott.

- Sem dúvida - respondi.

- E estamos, como devemos estar, familiarizados com a literatura respeitante a este autor.

Anuí, resistindo ao impulso de uma reacção desdenhosa pois julgava-me mais erudito neste campo do que Fitch cujos interesses eram necessariamente mais alargados, o que lhe proporcionava menos oportunidades para aprofundar qualquer matéria.

- E foi assim que tive ocasião de ler a sua monografia sobre os primeiros romances de Sir Walter Scott.

(Terei então sentido um leve sobressalto de alarme no peito? Penso que não. Ainda não. )

- Professor - disse eu.

- E por simples coincidência tive também ocasião de ler uma monografia escrita por Alan Dudley Severence do Amherst College que é. como hei-de dizer? extraordinariamente semelhante à sua.

Permaneci em silêncio.

- E enfim, para ser franco, Van Tassel, põe-se aqui infelizmente uma questão de plágio.

A palavra feriu-me os ouvidos e secou- me a boca. - Não pode estar a sugerir, professor. - disse eu.

- Infelizmente, estou - redarguiu ele.

- Uma coisa dessas não pode ter acontecido - disse eu. Fitch brincou com a corrente de ouro do seu relógio de bolso.

- Há frases que parecem, digamos, extraordinariamente coincidentes.

- Mas a coincidência não é um crime.

- Não, se não for intencional.

- Não foi, professor. Não foi. Não compreendo. Tenho tido um impecável.

- Sim, sem dúvida que sim.

Fitch considerou-me durante algum tempo. O fogo na lareira estalou subitamente, sobressaltando-nos. Ele aproximou-se mais da secretária, apoiando os cotovelos nela.

- Confesso que fiquei extremamente surpreendido - declarou. - Afinal, você é um homem de uma disciplina extraordinária.

- Sou, professor.

- Possui uma erudição bastante acima da média.

- Obrigado, professor.

- Não devia haver necessidade.

- Não houve necessidade.

- Pois, enfim.

Fitch estudou-me demoradamente e eu esforcei-me por retribuir o seu escrutínio.

- Talvez queira levar esta monografia do Severence para os seus aposentos e analisar pessoalmente as coincidências - sugeriu ele. - Certas frases são, como verá. aqui, eu assinalei-as: um homem condenado, vivendo num remoto mundo de sofrimento. " E esta: narrativa veloz, competente e despreocupada. E ainda esta: impetuosa fatalidade que a dificuldade da invenção não quebra. " Quer que continue?

Demorei alguns segundos a recuperar a fala. - Mas, professor, não farão certas frases, como se admitirmos e não tomamos em suficiente consideração e àprimeira vista, parte do discurso corrente?

- Sim, com certeza, mas infelizmente não são estas.

- Mas o princípio é o mesmo, não é?

Fitch rodou na cadeira, quase ficando de costas para mim e, durante algum tempo, contemplou o fogo. Imaginei que estivesse a ponderar o seu dilema e a avaliar. Procurei desesperadamente um tópico que pudesse introduzir para o distrair do assunto em questão, mas as minhas ideias estavam demasiado confusas. Desejei uma janela aberta, uma réstia de luz naquela sala sombria. O silêncio era tão profundo que se ouvia o tiquetaque do relógio na prateleira do fogão de sala. Ao fim de algum tempo (uma eternidade agonizante, pareceu-me), Fitch voltou-se.

- Bem, Van Tassel.

- Professor.

Os nervos tinham emprestado à minha voz um timbre embaraçosamente agudo. Pigarreei.

Fitch suspirou uma vez. Tinha tomado uma decisão.

- Não me agradaria perdê-lo ao fim de todo este tempo - disse ele. - Mas ver-me-ei obrigado a isso se houver segunda transgressão.

- Não houve primeira transgressão.

- Parece firme no seu desmentido.

- Tenho de ser. Não houve crime nenhum.

- Terei de dar grande atenção ao seu trabalho.

- Espero que lhe tenha dado desde sempre - retorqui.

- Por agora ficamos por aqui - disse ele, escrevendo uma breve anotação numa folha de papel na pasta. Esforcei-me por ver o que ele tinha escrito mas, na penumbra da sala, não consegui.

- Muito bem, professor. - Procurei disfarçar o considerável alívio que sentia (para não falar das mãos trémulas) cruzando os braços e pigarreando mais uma vez.

Fitch entrelaçou os dedos debaixo do nariz e considerou-me durante algum tempo. Do outro lado da porta, ouvi um eco de botas a avançar pelo corredor.

- Soube que tem saído com uma senhora nova - disse ele.

- Não é uma senhora nova - disse eu estupidamente, irritado com a súbita mudança de assunto. - Tem vinte e cinco anos.

- Van Tassel, você às vezes parece-me excessivamente. rigoroso.

- Espero bem que sim, professor.

- Pois, eu conheço a pessoa em causa. Jantei com a Etna Bliss. É um felizardo.

- Jantou com ela?

- Jantei. Deve ter sido, deixe cá ver, há três semanas. O Bliss convidou alguns de nós para jantar.

Alguns de nós para jantar? Interroguei-me sobre quem seriam exactamente estes nós? E porque é que eu fora excluído? A ideia ficou a supurar.

- Uma mulher atraente, Van Tassel - observou.

- Obrigado - disse eu.

Fitch levantou-se. A entrevista estava terminada. Do outro lado da secretária, passou-me a monografia de Severence que não tive alternativa senão aceitar. - Julgo que dissemos tudo o que há a dizer sobre o tópico da coincidência - disse ele.

- Obrigado, professor.

- E só veria a necessidade de discutir o assunto com qualquer outra pessoa se estivesse absolutamente convicto de um delito deliberado e não cometido por incúria.

Sabia que Fitch era um homem de palavra. E talvez, nesse momento, tenha revelado um certo alívio porque ele fixou em mim o seu olhar como que numa última avaliação.

Soou uma pancada na porta, o meu sinal para partir. Estugando o passo, cruzei-me, grato por sair dali, com um estudante de ar preocupado.

Quando a porta se fechou, encostei-me à parede do corredor. Era a pior infracção de que alguma vez fora acusado. Pensei na inoportuna aparição de Moxon, na oportunidade perdida com Etna no trilho da escola e nas intoleráveis suspeitas de Fitch; e imaginei que o dia não poderia correr pior quando olhei para o relógio e me dei conta de que estava atrasado para a minha sessão com Edward Ferald.

Ferald esperava-me na minha sala de estar - encostado, numa pose lânguida, a um banco junto da janela, um pé no chão e o outro numa travessa, com as mãos despreocupadamente cruzadas sobre a coxa. Estava a admirar a vista e fez de conta que não reparou em mim quando entrei na sala.

- Sim, Ferald - disse eu -, peço desculpa pelo atraso. A minha respiração era superficial e tensa e estava a transpirar abundantemente, o que me colocava em desvantagem em relação ao extraordinariamente calmo Ferald; mas pouco podia fazer além de me sentar numa das poltronas de orelhas junto à lareira e de desamarrar o cachecol.

Ele voltou-se lentamente para mim.

Estava, como sempre, impecavelmente vestido com um fato de excelente corte e um comprido cachecol de seda branco-pérola. O peitilho da camisa era tão branco e estava tão engomado que decidi que devia ser nova. Ferald tinha também maneiras irrepreensíveis embora eu soubesse que não passavam de uma fachada que encobria uma natureza astuciosa.

- Não tem mal nenhum, professor.

O professor que eu acabara de usar minutos antes, num tom que esperava que denotasse sincera deferência para com Noah Fitch, soava levemente trocista nos lábios de Ferald.

- Está aqui há muito tempo? - perguntei.

- Desde as cinco.

Passavam agora vinte e cinco minutos das cinco.

- Então, teremos simplesmente de ficar para lá da hora - disse eu, abrindo a pasta.

- Lamento, professor, mas não posso. Combinei encontrar-me com o Merrit.

Tentei pensar. Merrit era um aluno do terceiro ano que, segundo constava, era corretor de apostas.

- Com que fim? - inquiri.

Ferald hesitou. - Não quero parecer rude, professor, mas é relevante? O importante, a meu ver, é que combinei.

- Leu A Noiva de Lammermoor? - perguntei abruptamente, mudando de assunto.

- Li, professor, mas estou com dificuldades na sua sétima pergunta. a do romance histórico em oposição à mistela turva da contemporaneidade", como diz. Não compreendo como uma obra que não é do nosso tempo permite separar o que é essencial do que é acessório. Parece-me um esforço inútil, já que o autor não pode conhecer o passado nem escrever sobre ele com autenticidade. Estamos a referir-nos, claro, a algo que sai um pouco do período de Scott. E que assume como verdadeira uma questão não provada, não concorda?

- Talvez não tenha lido o texto com atenção suficiente - sugeri.

- Fiz o trabalho - respondeu num tom agastado. - Mas estou simplesmente confuso e preciso da sua ajuda para aclarar isto tudo. Aliás, aguardo ansiosamente a sua interpretação. - Não teve a menor preocupação em disfarçar um leve sorriso. - Como sempre.

Que desplante, pensei.

- Muito bem - disse eu. - Pegue no texto.

O fingido interesse pedagógico e literário de Ferald irritou-me profundamente, sobretudo porque a sua necessidade de educação era mínima e eu duvidava que alguma vez viesse a usá-la. Sabia que em breve herdaria propriedades consideráveis na vizinhança e adoptaria, numa idade jovem, a vida de um agricultor rico.

Mandei Ferald sentar-se na cadeira defronte da minha. Fê-lo com um langor que, se não fosse meu aluno e se eu não estivesse impaciente para me ver livre dele, teria admirado. Reflecti então que haveria sempre um Ferald. O nome seria Wiles ou Mutterson ou simplesmente Box mas haveria sempre um rapaz que zombaria claramente dos professores, se bem que nunca abertamente, e que através do seu comportamento jogaria um labiríntico jogo mental um jogo que necessariamente o divertiria imenso e que quase certamente venceria.

Mas no jogo entre professores e estudantes, o professor terá sempre a última palavra; e devo confessar que, ali sentado a observar Ferald que pegava na caneta de vidro veneziano e no caderno de couro italiano (sem dúvida lembranças de viagens ao estrangeiro), comecei a considerar seriamente a ideia de ser incapaz de encontrar mérito suficiente no seu exame final e de me ver, assim, obrigado a reprovar o rapaz.

Quando Ferald se foi embora, pus-me a andar nos meus aposentos de um lado para o outro, num estado de exaustão emocional. A monografia que Fitch me dera estava na secretária mas eu ignorei-a, não sentindo qualquer desejo de a ler ou de a comparar com a minha, pois sabia perfeitamente o que iria encontrar. Não passava de um lapso de transcrição, disse comigo mesmo, consequência de andar preocupado e excessivamente fatigado e, por isso, um pouco desatento. E as frases não eram exactamente as mesmas, pois não? Se parecia existir uma semelhança acentuada de ideias, seriam estas propriedade exclusiva de uma mente, de uma voz? Um crítico brilhante não poderia chegar, no mesmo ano, à mesma conclusão que outro, em resultado da evolução normal num determinado campo de estudo? Além disso, não eram as passagens questionáveis, a que Fitch se referira, apenas uma ínfima parte do todo? No entanto, lembrei a mim mesmo, teria de me precaver futuramente contra a pressa e a distracção e de retomar a breve trecho os meus hábitos de disciplina.

A semana não melhorou. Etna enviou uma breve mensagem a lamentar profundamente não poder estar comigo na quarta-feira pois estaria comprometida com a visita inesperada da irmã e do cunhado, mas teria todo o gosto em estar comigo na semana seguinte. Isto significava que eu teria de esperar mais de uma semana pela resposta ao meu pedido, uma espera que me parecia agonizante. Sofri durante um fim-de-semana interminável, tentando pôr em dia todo o meu trabalho académico, que havia negligenciado bastante e foi um choque desagradável, na segunda-feira durante um almoço de todos os professores da escola, quando William Bliss me surpreendeu à mesa na sala de jantar.

- Van Tassel - disse ele ao passar pela minha mesa -, fico surpreendido ao vê-lo com tanto apetite considerando as nossas tristes notícias.

Não compreendi o homem. Reparei, no entanto, que ele não parecia triste.

- Que tristes notícias?

- A Etna não lhe escreveu? Não, talvez não. Foi muito repentino. A irmã e o cunhado vieram inesperadamente buscá-la para a levar para a casa da família em Exeter. Calculo que o Keep, o cunhado, achou mal ela estar a residir noutra casa apesar de se ter assenhoreado, ao que parece, da propriedade da família. Para ser franco, estou convencido de que o homem está com ideias de fazer dela preceptora dos filhos.

- A Etna partiu? - perguntei, estupefacto.

- Infelizmente partiu.

Levantei-me. - Não pode ser - disse eu num tom de voz suficientemente alto para que alguns colegas nossos levantassem o olhar dos pratos na nossa direcção.

Bliss pôs-me uma mão amigável no ombro. - Sinto muito, mas foi assim. Perdoe-me tê-lo informado num lugar público. Pensei que sabia.

Bliss tinha empalidecido. Era um cientista de modos delicados, pouco habituado a manifestações de emoção. - Vamos até lá fora um minuto? - sugeriu.

Fui como um novilho que é conduzido ao matadouro.

- Claro, nós próprios ficámos bastante consternados - acrescentou Bliss quando ficámos a sós fora do edifício. - Mas o Keep é tremendamente persuasivo. E a minha sobrinha, pelos vistos, levantou poucas objecções ou, se levantou, desconheço. Ficou contente, sem dúvida, por rever a irmã e talvez por regressar a casa dela, ainda que as circunstâncias sejam um pouco. - (hesitou) humilhantes.

Não conseguia absorver o golpe. - Qual é a morada? - perguntei. - Tenho de a visitar.

- Então, então - disse Bliss, usando mais uma vez a mão no meu ombro para me acalmar. - Não quero que fique demasiado preocupado com isto. Tenho a certeza que ela lhe há-de escrever oportunamente.

- Mas eu amo-a! - explodi. - Quero casar com ela! Não desejo mais nada!

- Oh, meu caro - disse Bliss, retirando a mão. - Você surpreende- me, Van Tassel. - Mas era claro que a única coisa que o surpreendia era o momento e a veemência da minha declaração, e não o seu conteúdo que sem dúvida previa. - A Etna retribuiu esse. esse amor? - perguntou com brandura.

- Não explicitamente - respondi. - Mas creio que não é hostil aos meus afectos.

- Falou-lhe do assunto?

- Há cinco dias - retorqui.

Rodei nos calcanhares, afastando-me dele com as mãos na cabeça. Mal conseguia pensar. Etna tinha partido? Etna tinha partido?

- Tem de se controlar - disse Bliss. - Estou certo que ela está a considerar o seu pedido com ponderação. Espere que a minha sobrinha lhe escreva a explicar pessoalmente a sua partida abrupta. Talvez essa carta contenha a resposta ao seu pedido.

Abanei a cabeça, demasiado confuso para responder.

- Agora vamos ao nosso almoço que já deve estar frio - disse ele. - Vou pedir um conhaque para lhe restaurar as cores.

Mas não fui capaz de entrar na sala de jantar nem conversar com mais ninguém e, assim, atravessei o relvado como uma flecha, deixando Bliss que ficou sem dúvida aliviado por voltar ao seu pudim de farinha de milho. Dirigi-me aos meus aposentos sem me cruzar com ninguém com quem me tivesse sentido obrigado a conversar. Subi as escadas, titubeante, desejando apenas privacidade. Na mesa do vestíbulo, à porta dos meus aposentos, tinha uma carta à minha espera.

25 de Março de 1900

Caro Nicholas

Perdoe-me esta carta inesperada e abrupta mas escrevo para informá- lo que deixei Thrupp e a casa dos meus bondosos tios para regressar à minha antiga casa de Exeter, pertencente agora ao meu cunhado, Mr Josip Keep. A partida foi súbita pois Mr Keep tinha assuntos urgentes a tratar em casa e só dispunha do fim-de-semana para me ir buscar. Digo-lhe sinceramente que, embora desconhecesse as intenções dele antes de chegar, a decisão de partirfoi exclusivamente minha.

Receio ter abusado da hospitalidade dos meus tios, embora possa garantir-lhe que, em momento nenhum, mo deram a entender E, como desejo tornar-me útil na vida e não viver na dependência da bondade dos outros, achei melhor fixar residência com a minha irmã de modo a poder ajudar a educar os filhos dela. A minha irmã, infelizmente, não tem grande amor pelo conhecimento.

Mas não pense que tomei esta decisão de ânimo leve. Apreciei a sua companhia. dei um grande valor à sua amizade. Foi sempre estimulante para mim e duvido que tivesse suportado o meu exílio com tão boa disposição se não tivesse vivido na expectativa das suas visitas e dos maravilhosos livros que me emprestou. (A propósito, deixei o Hardy com o meu tio. Ele prometeu mandá-lo entregar em sua casa. )

Quanto ao seu pedido de casamento, neste momento não posso considerá-lo, como deve certamente saber. Liberto-o de qualquer compromisso e compreenderei perfeitamente se entender que deve interpretar a minha partida como uma recusa. Não sei a que decisão teria chegado se tivesse permanecido em Thrupp; não dispus de tempo para reflectir sobre tão sério pedido nem sobre a igualmente séria responsabilidade de Lhe responder.

Sei que isto não será fácil para si mas também não deve pensar que foi fácil para mim. Vou sentir saudades da sua companhia. Espero que encontre consolação no seu trabalho e que o Senhor o proteja em todos os momentos da sua vida.

Creia-me, com cordialidade

Foi uma felicidade ter-me lembrado de levar a carta para os meus aposentos antes de a abrir pois, nesse momento, comportei-me de um modo pouco próprio que teria horrorizado qualquer observador. Não sei quanto tempo permaneci neste estado mas gradualmente acalmei-me e, embora fosse tomado de acessos intermitentes e breves de fúria e dor, consegui por fim recobrar a compostura. Não tinha chegado até aqui para me deixar vencer tão facilmente.

Talvez exista alguma verdade na ideia de que as estrelas colidem ou entram em desequilíbrio no universo e assim, desordenadas, exercem uma influência sobre os indivíduos na Terra. Digo isto por falta de outra explicação para a confluência de acontecimentos desagradáveis, nesse dia e no seguinte.

Fermentava na escola um conflito entre duas facções opostas e, um tanto inesperadamente, eu acabara como líder informal de uma delas. Talvez tenha sido consequência da recente confiança e popularidade que eu adquirira durante os meses de Inverno; mais provavelmente, devia-se às minhas convicções apaixonadas. Nesse tempo (como agora), não conseguia tolerar a ideia de um departamento de Educação Física numa instituição de ensino superior votada a estudos clássicos nem tão-pouco da atribuição de licenciaturas nesta não-disciplina a estudantes finalistas.

Conferir uma licenciatura a estudantes cuja ocupação principal, durante quatro anos, foi usar halteres de madeira e ferro em movimentos rítmicos ou correr em círculos num ginásio, gritando como Rebeldes, é simplesmente absurdo. Talvez haja lugar ao exercício físico na vida das pessoas - isto é, na vidaprivada das pessoas, para ser conduzido em privado, como outras funções corporaismas transformá-lo numa disciplina académica com os mesmos direitos e privilégios da Matemática ou da História e Interpretação Bíblicas, por exemplo, é uma ideia que teria sido risível se não tivesse sido proposta com tanta seriedade.

Na terça-feira que se seguiu à segunda em que recebi a hedionda notícia, estava previsto que eu falasse numa reunião de docentes e administradores da escola. Devia debater (e, em seguida, votar) uma proposta que permitiria ao professor Arthur Hallock (que possuía, devo dizer, uma licenciatura em Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Bowdoin, do Maine, e leccionava Anatomia e Fisiologia em Thrupp) criar um departamento de Educação Física que elevaria o seu estudo (que estudo, pergunto eu? ) ao estatuto da Literatura e da História. Pior ainda, todos os estudantes da escola seriam obrigados a ter aulas neste campo e a seguir um regime regular de exercício físico sob pena de não obterem os seus diplomas. Ainda hoje - nesta carruagem em andamento tão afastada do conflito - sou capaz de espumar de raiva com esta questão.

O corpo docente estava dividido nesta matéria; dois terços eram a favor de criar a nova disciplina e um terço era contra. A minha perspectiva era, infelizmente, minoritária e, por isso mesmo, tornava-se ainda mais necessário exibir a coragem das minhas convicções num discurso arrebatador perante a assembleia. Afirmar que não me encontrava em condições de o fazer é um eufemismo quase absurdo. Mal conseguia ter-me de pé e estava completamente incapaz de ingerir qualquer espécie de alimento, pois ainda me encontrava em estado de choque com a dolorosa notícia da súbita partida de Etna. Pior ainda, não era capaz de ordenar as ideias convenientemente. Tinha deixado a redacção da minha argumentação para o último minuto, um procedimento incaracteristicamente protelador da minha parte, embora, como disse, tivesse permitido, durante esse período, que um certo relaxamento minasse a minha disciplina habitualmente excelente. Assim, deparei-me com o horror de ter de compor um discurso em poucas horas depois de ter lido a carta de Etna. O facto de ter acabado por o conseguir atesta a minha considerável força de vontade, pois recordo que tive uma extrema dificuldade em concentrar-me. Além disso, estava constantemente a sucumbir a intensos acessos de desespero. Só consegui compor qualquer coisa que, pelo menos, se aproximava de uma argumentação porque fiquei acordado durante quase toda a noite.

Na manhã seguinte, o corpo docente reuniu-se no anfiteatro de Anatomia. Eu, Hallock e o presidente da escola, Isaac Phillips, sentámo-nos no palco. Por acordo mútuo, se bem que tácito, os professores tinham-se agrupado mais ou menos de acordo com as suas convicções - dois terços de um lado do teatro, o restante terço do outro lado, o que emprestou um pouco à sala o aspecto de uma assembleia legislativa. Como referi, não dormira muito nessa noite e sabia que a minha argumentação a favor da não inclusão da Educação Física no programa de estudos da escola era débil. Estava pálido, macilento até, e embora me tivesse esforçado imenso por imprimir ao meu semblante e ao meu corpo uma aparência mais viva, sentia-me envelhecido no âmago do meu ser.

Hallock, em contraste, irradiava boa saúde e parecia aguardar o debate com franco prazer. Era impossível não notar as suas costas incrivelmente erectas ou a forma como os seus braços musculosos quase lhe rompiam da sobrecasaca. Constava que, no seu tempo, fora possuidor de um excelente arremesso e treinava, por conseguinte, a incipiente e raramente vitoriosa Equipa de Lançamento de Thrupp.

Após uma apresentação pelo presidente Phillips, Hallock tomou a palavra. Começou por enumerar um impressionante conjunto de factos sobre a deterioração da saúde dos estudantes de Thrupp. Embora eu tivesse de simular cortesia no início da reunião, o discurso de Hallock foi gradualmente intensificando a minha agitação. Ele insistiu numa associação natural entre falta de saúde e inferioridade intelectual. Teve a audácia de invocar o ideal grego da palestra na sua ilustração das características físicas do estudante típico de Thrupp: isto é, braços e pernas deformados, uma postura relaxada, rostos pálidos e dificuldades de respiração causadas pela indiferença às questões do corpo. Chamou a atenção para casos de doença e debilidade e, em algumas situações, de morte prematura entre os estudantes. (Achei que o homem estava a ir um pouco longe de mais. ) Se todos os estudantes fossem obrigados a participar diariamente em exercícios físicos, insistiu, a saúde global da população estudantil melhoraria. Pior ainda, teve a desfaçatez de sugerir que os professores deviam ser obrigados a fazer exercício regular, argumentando que as suas práticas pedagógicas e relações com os alunos também sairiam beneficiadas. Para acolher tais actividades, Hallock propunha que a universidade construísse um ginásio.

Pus-me imediatamente em pé, embora tivesse de esperar alguns momentos para falar acima das aclamações da assembleia. O local proposto para este ginásio, informei a minha assistência, não era senão o muito amado Strout Park da escola, uma fatia especialmente tranquila de paisagem, aninhada entre os austeros montes de granito. Dever-se-ia desbaratar um recurso natural tão precioso para concretizar um projecto mais indicado para ser realizado em privado e nunca sob a égide da instituição? Dotar depois, afirmei, esta iniciativa de todas as sagradas prerrogativas de uma formação em Literatura e Retórica, por exemplo, era obsceno. Soaram risos sufocados que procurei ignorar apesar de temer que a minha causa estivesse perdida (a simples geometria da assembleia não me deixava dúvidas a este respeito).

No entanto, perseverei. Seria realmente um dever da escola, perguntei, encarregar-se da educação física de um homem? Não competiria mais justamente esta tarefa às forças armadas, que dependiam da boa forma física de um homem, ou ao médico cuja missão era preservar a saúde dos indivíduos? A escola pensaria seriamente que podia decretar a saúde e depois, acumulando absurdidade sobre absurdidade, conferir uma licenciatura nela? Deveriam gastar-se os recursos financeiros da instituição em instalações onde os jovens pudessem correr com bolas, ou não deveriam esses fundos ser mais correctamente utilizados para desenvolver a biblioteca, que necessitava desesperadamente de mais livros, ou para construir um observatório a fim de reforçarmos o nosso saber sobre o firmamento?

- Sem dúvida que os homens têm o direito à procura da saúde física - argumentei, suavizando um pouco o tom, como impõem as regras da retórica. - Sem dúvida que qualquer pessoa que goste de facto de lançar uma bola num campo é capaz de encontrar indivíduos de opinião idêntica com quem o fazer nos seus tempos livres. A essência da recreação é esta, por definição um acessório da educação e não o seu objectivo.

- Apoiado, apoiado - gritou alguém da minha facção.

- Balelas - bradou alguém da facção oposta.

O presidente Phillips teve de pedir ordem. William Bliss estava sentado à minha direita (parte dos dois terços a favor do ginásio) e eu não me atrevia a olhar para ele com receio de ficar completamente desorientado.

- Mas tornar esta actividade obrigatória - disse eu - ultrapassa os limites da razão. Não se pode decretar a saúde física do mesmo modo que não se pode decretar bons dentes ou boa educação. A escola corre o risco de resvalar para um domínio que não lhe compete e, mais, de se tornar motivo de chacota. Imaginaremos seriamente que pais avisados nos vão mandar os filhos? Não desejarão eles, a troco dos seus cento e cinquenta e cinco dólares anuais, mais do que esta despropositada aposta em fortalecer os corpos dos filhos?

Os gritos e comentários haviam atingido um nível tão incómodo que me vi obrigado a elevar a voz acima da algazarra.

- Que possível utilidade terá uma licenciatura em Educação Física? - perguntei, por esta altura já quase a berrar. - Não correremos o risco de escoar para o mundo estudantes sem outras competências para além das que poderão ser úteis nas forças armadas? A missão de uma instituição de ensino superior. - disse eu, logo me calando.

- A missão de uma instituição de ensino superior. - tentei. Não consegui terminar a frase. Uma estranha e desagradável sensação tinha- se-me apoderado da vista, fazendo a assistência diante de mim desdobrar-se numa centena. não, num milhar de pontinhos brilhantes em movimento.

- A missão de uma instituição de ensino superior. - reco mecei mas não me recordava do final que tencionava dar à frase.

A minha boca abriu-se e fechou-se e tenho a certeza de que devo ter- me encolhido pois estava sem dúvida a encolher-me interiormente com uma dor extraordinária. Senti-me tonto e agarrei-me à tribuna. Foi nesse momento que me senti aflitivamente indisposto a um ponto que não gostaria de pormenorizar aqui. Ao fim de algum tempo, senti uma mão no braço e levantei os olhos para o rosto de Arthur Hallock que, sendo médico, achou decerto necessário (e politicamente oportuno) atender à minha aflição. Afastei-o, humilhado pelos seus cuidados. - Saia daqui - creio que cheguei a dizer ao desfalecer e cair.

Recobrei os sentidos, momentos depois, no palco do anfiteatro. Ouvi Hallock dizer a Phillips que achava que eu tinha tido um ataque e, embora eu quisesse protestar contra este erro de diagnóstico, concluí que não era capaz; que perdera momentaneamente o uso da fala. Num estado de confusão e de profundo vexame, ajudaram-me a sentar e depois a levantar. Quando determinaram que eu me tinha de pé sozinho - se bem que, misteriosamente, continuasse sem conseguir falar - fui conduzido como uma criança para os meus aposentos.

Embora tivesse recuperado a fala antes do fim do dia, sentia-me demasiado exausto para me mexer ou comer - o meu desmaio, estou agora convencido, foi mais emocional do que físico. Tentei esforçadamente convencer disto o homem que se pretendia meu médico mas compreendi que os meus argumentos não o persuadiram mais do que o meu acalorado discurso no anfiteatro.

Permaneci vários dias nos meus aposentos. A votação da criação de um departamento de Educação Física foi adiada uma semana. O resultado era previsível. E, embora por essa altura o desfecho já não me interessasse, tenho pensado muitas vezes se teria sido mais persuasivo e saído até talvez vitorioso, se Etna não me tivesse abandonado e a minha voz tivesse denotado um entusiasmo natural e convincente pela minha causa, ou se não me tivesse apresentado em palco com uma aparência tão macilenta. Assim, ainda hoje não haveria um departamento de Educação Física na Escola Superior de Thrupp. O que me faz meditar sobre a natureza do destino e do acaso: um homem é empurrado um minuto mais cedo para o seu automóvel porque decide não parar para se despedir da mulher. Em consequência desta omissão, atravessa então uma ponte um minuto antes de ela se desmoronar, arrastando o tráfego e as almas condenadas que nela circulam para o turbilhão furibundo das profundezas em baixo. Indiferente e livre de perigo, o nosso homem segue viagem.

Esperei que a semana passasse numa disposição febril. No sábado, aluguei um coche para me levar a Exeter. Não anunciei antecipadamente a minha visita com medo que Etna ou o aparentemente temível cunhado pudesse proibi-la.

A viagem de Thrupp a Exeter podia realizar-se num longo dia e era, nesse tempo, uma viagem penosa pois não existiam estradas directas para essa zona do estado. Era necessário recorrer a estradas sinuosas e estreitas e a ruas de aldeia, numa paisagem rural que não era famosa pelo seu relevo simples. Assim, encontrava-me num certo desalinho quando cheguei a Exeter. Embora a minha necessidade de ver Etna fosse extrema, a prudência impôs-se; pedi ao extenuado cocheiro que me levasse antes a uma pensão.

Duvido que Exeter tenha mudado muito desde essa visita. É uma bonita vila académica com muitas belas moradias ao longo de High Street e Water Street. Enquanto o cocheiro me conduzia ao centro da vila, tentei imaginar em que casa Etna estaria prisioneira. Porque era assim que a via então - uma criada, uma escrava até, na posse do cunhado. Se já antes estava determinado em libertá-la da casa amiga mas asfixiante do tio, estava duplamente decidido então a libertá- la da exploração do homem que conspirara para lhe roubar todos os seus bens.

Passei uma noite agitada em casa de uma viúva que se vira obrigada a abrir a sua ampla moradia ao público. Com a distracção e a pressa, tinha-me esquecido de embalar os artigos essenciais e tive de pedir à dona da pensão que me emprestasse uma navalha de barba, uma camisa lavada e o mais, que prometi devolver assim que a minha missão estivesse concluída. Depois de um estranho jantar de chutney, batatas e couves-de- bruxelas, recolhi ao quarto, sentei-me numa cadeira e reflecti sobre o meu dilema e a minha missão. Era claro para mim, como desde sempre fora, que Etna não gostava de mim do mesmo modo que eu gostava dela. (Eu teria abandonado Etna em Thrupp? Nunca. ) Nesse tempo, atribuí este desequilíbrio às diferenças físicas e temperamentais entre homens e mulheres. Haveria alguma dúvida de que os homens eram capazes de maior paixão do que as mulheres? E assim, inevitavelmente, deveriam ser sempre os predadores. E não haveria um certo divertimento na perseguição? Não seria o meu papel perseguir Etna para onde quer que ela fosse? Nesse momento, já me tinha convencido de que ela tinha saído de Thrupp contra vontade, independentemente do que tivesse escrito na carta. Embora não conhecesse Josip Keep, imaginava-o uma presença intimidante, um homem habituado a que os seus desejos fossem obedecidos. E Etna não se teria sentido obrigada pelo dever a ajudar a irmã a tratar dos filhos? Sim, decerto que teria. Havia notado a relação dela com a jovem prima e já então admirara a disposição e paciência de que dera provas. Mas tudo isto não passava de vã especulação da minha parte. Ter-me-ia sido tão impossível desistir de Etna como de pôr termo à vida. Aliás, ela era agora a minha vida. Não conseguia encarar um futuro de que ela não fizesse parte.

E havia uma outra coisa que devo confessar aqui: não podia pôr fim à minha perseguição enquanto não conhecesse Etna Bliss. Digo isto no sentido em que será entendido. Não era um desejo que eu tivesse admitido livremente na altura, mas sentia em mim uma necessidade extrema de tocar e apreciar Etna Bliss, uma necessidade que havia reconhecido desde a primeira vez em que a vira na noite do incêndio, uma necessidade que apenas se agudizara com a passagem dos dias e das semanas. Sentirão todos os homens o mesmo quando conhecem a mulher amada? Não sei, pois nunca discuti este assunto com algum homem ou mulher. Apenas sei que a alternativa era para mim intolerável. Estava convicto de que, se não lutasse por Etna, seria toda a vida atormentado por um desejo ardente - um desejo que nenhuma outra mulher seria capaz de saciar. (E devo dizer que ainda hoje não sei se esta minha suposição não seria correcta. )

Nessa noite, enquanto dormia na pensão, fui assaltado nos meus sonhos por imagens de Etna: as saias dela ensarilhadas em ramos de árvore ao tentar voar, abrigando-se debaixo da saliência de uma rocha que subitamente se abatia sobre ela e depois levantando voo e saindo pela janela do gabinete de Noah Fitch como uma gaivota apanhada numa corrente de ar ascendente. Na manhã seguinte, informei-me sobre a morada de Keep e aprouve-me saber pela dona da pensão que a casa ainda era conhecida como a residência Bliss e seria por muitos anos pois os habitantes da vila preferiam prestar tributo aos ancestrais proprietários e não aos seus usurpadores. Percorri a não muito longa distância de um quilómetro e meio até à casa que procurava, naquele dia limpo e frio; e não foi a manhã esplendorosa que me fez picar o passo. Não, era a ideia de voltar a ver Etna que me enchia de vigor: a certeza de que, se fracassasse hoje, fracassaria provavelmente para a vida inteira.

Via-se imediatamente que a residência Keep (a residência Bliss) fora pintada de fresco e que as janelas haviam sido recentemente envidraçadas. Transpus um portão e aproximei-me de uma grande porta apainelada. Abriu-a um criado. Expliquei ao que vinha. Ele pediu-me que esperasse num salão.

Apesar dos nervos, não pude deixar de reparar que o salão estava bastante desarrumado. Por toda a sala havia escadas, panos, espátulas de betume e pincéis pousados em jornal; e havia um odor penetrante a aguarrás. Parecia evidente que Josip Keep, tendo fixado residência como o maior credor do património dos Bliss, estava agora a realizar obras que a falecida Mrs. Bliss não tivera recursos para fazer nos últimos anos de vida.

Ouvi passos nas escadas e virei-me.

- Professor Van Tassel, causa-me uma grande surpresa - disse Etna.

Estava com um vestido extraordinário, azul-marinho e creme, que destacava magnificamente a cor do seu cabelo, parecendo conferir-lhe nuances que eu nunca notara. Os seus olhos, sobre as pronunciadas maçãs do rosto, pareciam cautelosos. Tinha-a interrompido enquanto arranjava o cabelo, porquanto reparei que tinha anéis e caracóis suspensos de um nó, na parte de trás da cabeça, cuja visão me excitou enormemente pois nunca a vira com o cabelo caído.

- Não consegui ficar longe - disse imediatamente. - Preciso de falar consigo.

Ela não pareceu exactamente alarmada por me ver mas também não se mostrou satisfeita. Tive dificuldade em determinar ao certo como estava a aceitar a minha chegada.

- Daqui a pouco estamos de saída para a igreja - disse ela.

- Não tenho muito tempo - disse eu. - Tenho de estar de volta a Thrupp para as minhas aulas amanhã à tarde.

- Tem passado bem? - perguntou ela.

- Tão bem quanto seria de esperar.

- Porque é que veio?

- Deve saber porque é que vim.

Do corredor, atrás de Etna, ouvi um ruge-ruge nas escadas. Vi-a retesar-se perante a inevitável interrupção.

Uma mulher diminuta entrou na sala e Etna voltou-se com cortesia.

- Etna, tens uma visita - disse a mulher com uma certa surpresa. Depois acrescentou: - Não te penteaste.

- Miriam - disse Etna -, este é o professor Nicholas Van Tassel. Veio de Thrupp. Professor Van Tassel, apresento-lhe a minha irmã, Miriam Keep.

Parecia impossível que as duas mulheres à minha frente pudessem ser aparentadas. Enquanto uma era morena, a outra era loura; enquanto uma era alta, a outra era miudinha e de aparência delicada; enquanto uma tinha feições cativantes, a outra era verdadeiramente bela, de um modo mais convencional: isto é, possuía a beleza quase perfeita de uns grandes olhos verdes, lábios naturalmente rosados e uma pele tão luminosa que parecia ter o brilho do mármore. Exibia o porte de uma mulher que se servira da beleza em benefício próprio e eu concluí de imediato que fora a sua formosura que lhe valera um marido rico. Seria interessante, pensei, verificar se o homem seria merecedor de tão elevada soma.

- Veio de longe, então - disse Miriam, avançando um passo na sala.

- Sim - respondi.

- Para visitar a Etna ou veio tratar de assuntos profissionais

- Os meus assuntos dizem respeito à Etna - repliquei.

- Escolheu mal a altura. Estamos de saída para a igreja.

- Sim, peço desculpa. Não pensei - disse eu (que não tinha

feito outra coisa senão pensar).

- Etna - disse Miriam, inspeccionando o penteado de Etna

-, o Josip não há-de gostar de ficar à espera, sobretudo para ir à igreja, e o culto, como sabes, começa às dez em ponto. - Estremeci ao ouvir Etna ser interpelada neste tom.

- Miriam - disse Etna -, importas-te de entreter o meu convidado enquanto dou um salto lá acima. Não demoro nada. Compreendi que era a minha deixa para sair mas não fui capaz. Etna deixou-nos. se aliviada ou confusa, não percebi.

- Então, professor Van Tassel - disse Miriam, sentando-se na única cadeira destapada da sala -, o que é que o traz a nossa casa tão cedo numa manhã de domingo?

Detectei na pergunta mais uma débil censura por ter incomodado uma família no dia que ela dedica ao culto religioso.

- Tenho um assunto importante a discutir com a Etna - limitei-me a dizer.

- Ai tem? - disse ela, lançando-me um olhar frio. Tive a distinta sensação de estar na presença de um diamante mas de preferir a fulgência dourada da jóia inferior, o topázio.

- Não me vou intrometer - disse ela embora fosse claro que era o que desejava. - Infelizmente, receio que o reverendo Young não espere pela nossa chegada. Por mim, confesso que renunciava facilmente aos sermões desinteressantes do homem, mas o meu marido é muito devoto e tem um sentido apurado do dever religioso. E, embora tenha muitas qualidades excelentes, tem muito pouca paciência para a falta de pontualidade.

- Eu próprio aprecio a pontualidade - disse eu. - E peço mais uma vez desculpa por invadir a privacidade da sua família.

Se pudesse, teria esperado até amanhã, mas infelizmente tenho de regressar a Thrupp para as minhas aulas.

- Lecciona na escola superior?

- Sim.

- Deve ser um assunto urgente - disse ela, noutra tentativa para determinar a razão da minha visita.

Fiquei em silêncio.

- Estou certa de que a escola é um encanto, mas Thrupp é uma vilazinha monótona - observou.

- Julgo que uma vila é monótona ou não consoante os seus habitantes, Mrs. Keep - respondi. Miriam Keep mostrou-se agastada e eu apressei-me a corrigir o meu comentário. - Mas Thrupp não se compara com esta vila encantadora - acrescentei.

- Não - disse ela, sorrindo levemente. - Espero que a minha irmã redescubra em breve esse encanto - acrescentou.

- Pois eu tenho esperança de que ela não fique em Exeter tempo suficiente para testar esse encanto - contrapus audaciosamente.

- Sinceramente, professor Van Tassel - disse ela, surpreendida mas também intrigada -, até que enfim que se revela.

- É uma feliz revelação, garanto-lhe.

- Nutre uma forte afeição pela minha irmã? - perguntou.

- Das mais fortes.

- E ela sabe?

- Sabe.

- Então surpreende-me que não me tenha dito nada. Está ciente com certeza de que a Etna não pôs quaisquer objecções a sair de casa do tio?

A picardia destinava-se a magoar e magoou. - Talvez tenha considerado que era seu dever regressar consigo, por mais brevemente que fosse - respondi. - Ou talvez tenha pensado que uma mudança de ares a pudesse ajudar a dar um desfecho rápido e feliz às suas deliberações. - Depois apressei-me a acrescentar a fim de dissipar a leve tensão instalada entre nós: - E, naturalmente, estou certo de que sentia imensas saudades da irmã.

Miriam Keep não se rendeu ao cumprimento. - A minha irmã está a deliberar sobre um pedido? - perguntou. - Um pedido de casamento?

- Está.

- Que extraordinário - disse ela, examinando-me desta vez tão intensamente que chegou mesmo a semicerrar os olhos. Talvez fosse míope. - Não fazia ideia. E é duplamente extraordinário que tenha guardado segredo sobre o assunto. Bem, não posso dizer se lhe desejo ou não sucesso, professor Van Tassel, já que não o conheço de todo.

- Não.

- Mas garanto-lhe que desejo do fundo do coração a felicidade da minha irmã - disse ela.

- E por que razão a tua irmã não há-de ser feliz? - disse uma voz do corredor.

A súbita e maciça presença de Josip Keep à porta coadunava-se com a sua voz cheia de barítono. Deduzi que era um homem com cerca de quarenta anos. Possuía uma sedosa e ondulada cabeleira preta, penteada para trás com uma abundância de óleo a partir do contorno levemente reentrante da testa. Era um rosto atraente, um rosto habituado a impor obediência.

- Querido - disse Miriam, levantando-se de imediato, o que me pareceu uma estranha inversão de atitude -, este é o professor Van Tassel que veio visitar a Etna.

- A esta hora? Num domingo?

- Peço desculpa - disse eu.

- Estamos de saída para o culto - disse ele (num tom um pouco rude, pensei; nem sequer se tinha apresentado). Enfiou as luvas. - O senhor é um homem de fé?

- De alguma fé - respondi cautelosamente.

- E onde pratica o culto?

A verdade é que não era adepto da prática religiosa e não frequentava a igreja com a assiduidade com que devia. Por conseguinte, tinha-me ligado a uma paróquia presbiteriana a uns oito quilómetros da escola, com base no princípio de que poucos professores se sentiriam atraídos a um local tão fora de mão. (Embora, um dia, tivesse ficado surpreendido ao ver Moxon num banco do outro lado da coxia; mas uma vez que ele era tão pouco assíduo como eu e ainda mais avesso a revelar a sua falta de zelo, não nos cumprimentámos após o serviço religioso nem falámos desta coincidência, do mesmo modo que os homens que frequentaram o mesmo bordel evitam reconhecer-se num local de trabalho dias depois. )

- Sou presbiteriano - respondi.

- Compreendo. Nós somos unitários. - Numa atitude algo desdenhosa, Keep desviou de mim a sua atenção. O meu presbiterianismo não o tinha impressionado. - Miriam, onde está a tua irmã? Vamos chegar atrasados.

- Não demora nada, querido.

- Espero que isto não seja indicativo dos hábitos dela - observou ele.

- Não é com certeza - disse Miriam que parecia um pouco intimidada pelo marido.

- E as crianças?

- A Etna trá-las.

- O banco vai estar cheio - disse Keep. - Talvez a Etna se possa sentar com as crianças.

- Se achas absolutamente necessário - disse Miriam, lançando-me um olhar fugidio.

Percebi, nesse momento, que a situação de Etna devia ser intolerável - uma hóspede indesejável na casa da irmã (outrora a sua própria casa), uma preceptora, na melhor das hipóteses, dos filhos dela. Esta noção redobrou a minha determinação em insistir no meu pedido.

Etna entrou na sala, os encantadores anéis e caracóis do seu cabelo agora respeitosamente presos. Miriam convidou-me a almoçar com eles depois de regressarem da igreja e eu aceitei, embora Keep me tivesse lançado um olhar mal-humorado.

Mas Etna surpreendeu-nos a todos. - Desculpa, Miriam - disse ela -, mas hoje não vou acompanhá-los à igreja. O professor Van Tassel veio de muito longe e eu tenho de falar com ele agora.

Miriam mostrou-se contrariada mas não encontrou resposta. Não podia racionalmente insistir com a irmã para que a acompanhasse. Causou-me satisfação por Etna vê-la fazer frente à irmã mas compreendi também que, para Etna, a vida em Exeter poderia ter de representar uma série constante de negociações.

Nesse momento, apressaram-se alvoroçadamente os preparativos para sair enquanto eu e Etna esperávamos constrangidos, não pretendendo parecer rudes na nossa pressa de falarmos um com o outro. Durante este tempo, ocupei-me a compor frases que poderia usar na minha demanda. Impaciente para começar, iniciei a conversa antes de a carruagem dos Keep se ter sequer afastado.

- Ouça o que tenho a dizer - disse eu, erguendo a mão para silenciar qualquer protesto. - Ofereço-lhe uma vida como dona e senhora da sua própria casa, como mãe dos seus próprios filhos, como mulher de um homem que a adora. Embora a sua situação lhe possa parecer agora agradável, a sua vida aqui vai tornar-se in suportável. Até eu fui capaz de me aperceber disso no pouco tempo que aqui estive. Diz que pretende tornar-se preceptora dos filhos da sua irmã mas quem sabe qual será a sua posição quando estas crianças forem crescidas? E não prefere ser preceptora dos seus próprios filhos? Ofereço-lhe tudo o que um homem tem para dar a uma mulher, incluindo a alma e o coração e uma modesta fortuna. Recusa uma oferta destas?

Quanto mais eu falava, mais acalorado se tornava o meu tom. Não tinha ela consciência do seu próprio valor, perguntei-lhe. Estava assim tão disposta a resignar-se a uma vida daquelas? Era uma vida que não podia decerto corresponder à sua ideia de felicidade. Tinha abandonado todas as esperanças de se casar, de ter casa própria, de estar rodeada pelos seus próprios filhos? A minha fúria resultava de uma honesta indignação ainda que encaixasse lindamente nas minhas próprias esperanças para o futuro.

Deixei cair os braços, cerrando os punhos. O silêncio que se seguiu pareceu excessivamente longo e agonizante.

Finalmente, Etna falou. - Não posso rejeitar de ânimo leve uma proposta tão generosa, professor Van Tassel. Nicholas. Que mulher podia quando é feita com tanta sinceridade? E sinto admiração por si, acredite. E alguma afeição. E. - sorriu ligeiramente:

- apesar da sua seriedade, é muitas vezes divertido.

Fiquei sem saber muito bem como interpretar isto mas se a ideia levara um leve sorriso aos lábios de Etna, então o acinte valia decerto a pena.

- Mas - disse ela, calando-se. Diga-se em seu abono que não desviou os olhos - tenho de lhe dizer isto: não o amo.

Instalou-se um silêncio profundo na sala. O meu coração cessou de pulsar. Não consegui mexer-me nem falar. Não era por não ter já previsto uma resposta destas (aliás, tinha-a muitas vezes receado nas minhas fantasias); era porque ouvi-la em voz alta, expressa de modo tão simples, teve o efeito de um golpe desferido no âmago do meu ser. Tinha desejado ardentemente que não fosse verdade. Tinha de algum modo pensado que o meu próprio amor por ela pudesse ser contagioso. Tinha, no mínimo, esperado que, se um sentimento destes existisse, ela pudesse não o exprimir e que, com o tempo, desenvolvesse uma verdadeira afeição por mim.

- Compreende o que quero dizer - disse ela um pouco hesitante.

Talvez eu tenha assentido com a cabeça. Não sei. Só me recordo da minha incapacidade para falar.

- Acho que não posso. amá-lo. como uma mulher deve amar um marido - disse ela com grande dificuldade.

Permaneci imóvel por alguns momentos enquanto ela me observava. E então, para minha absoluta vergonha e horror, as lágrimas assomaram-me espontaneamente aos olhos. Pestanejei furiosamente para as dominar.

Ela estendeu a mão e tocou-me no braço.

- Nicholas - disse ela calmamente -, deixa-me comovida. Não consegui falar. Abanei a cabeça.

- Sou assim tão importante para si? - perguntou. Tirei o lenço do bolso. Não lhe respondi pois não era necessária qualquer resposta.

- Pobre de si - disse ela num tom de voz surpreendido mas terno.

Permanecemos nessa atitude durante algum tempo. No canto, ouvia-se o tiquetaque de um relógio. Do outro lado das elegantes janelas da sala, passou uma carruagem e o cocheiro interpelou um transeunte. Num quarto do andar de cima, soaram passos. Daqui a nada, pensei, uma criada vai interromper-nos a saber se queremos tomar chá.

Etna desviou-se e olhou através da janela. Só posso imaginar o que lhe ia no pensamento. Decorridos uns momentos, voltou a olhar para mim.

- Aceito o seu pedido - disse ela numa voz tão baixa que não tive a certeza de a ter ouvido bem. Mas não ousei pedir-lhe que repetisse as suas palavras. Mantive-me rígido, tomado do terror de ter ouvido mal e de descobrir daí a pouco que não era isso que ela pretendia dizer; e sabia que não seria capaz de aguentar uma segunda desilusão.

(Evidentemente que um homem honrado - um homem bon- rado - não teria consentido que uma mulher se sacrificasse a este ponto. )

Etna inclinou-se e beijou-me na face. - Não voltaremos a falar de amor - declarou -, seja da sua presença, seja da sua ausência.

Nesse momento, recuperei a fala, embora uma emoção que nunca até aí experimentara me tivesse alterado a voz. - Prometo-lhe uma vida de contentamento, senão de felicidade - disse eu.

- E a minha própria felicidade será tão intensa que mais do que bastará aos dois. - (Alguma vez terá um homem que presume possuir amor suficiente para duas pessoas pronunciado palavras mais tontas? ) Remexi no bolso do colete à procura do anel que quase lhe tinha oferecido onze dias antes. Enfiei-lho no dedo. E, uma vez o anel colocado... significando o quê? Uma prova do meu amor? Um símbolo de posse Ousei voltar a respirar e permiti-me sentir alguma da exultação a que tinha agora direito. O anel cintilava-lhe no dedo e eu peguei-lhe na mão. Mas, correndo novamente o perigo de me embaraçar com lágrimas, não ousei abraçá-la. Não desejei tão-pouco dissipar com mais palavras a adorável magia que pairava agora nessa sala com os seus panos, escadas e baldes de tinta.

- Não tenciono pedir autorização ao meu cunhado - afirmou Etna - porque tenho idade para tomar uma decisão destas sozinha. - Desviou o olhar. Já se teria arrependido da sua mo mentosa decisão? Estaria a tremer interiormente com a audácia das suas palavras?

- Não se há-de arrepender - disse eu desassombradamente. (Mas como podia um homem prometer tal coisa? Não podia, não podia.) - Amá-la-ei toda a vida - declarei.

Ela baixou o olhar para as nossas mãos entrelaçadas e levantou-os em seguida para mim.

- Eu sei - limitou-se a responder.

Vi perfeitamente que Keep ficou chocado, tendo reagido com uma ladainha inofensiva a que eu estava venturosamente (não conquistei neste ponto o direito de usar a palavra? ) imune. Miriam fingiu sentir regozijo mas creio que não sentiu, sem dúvida consi derando, como o marido, a inconveniência da partida de Etna. Hoje mal recordo o resto dessa tarde. Chegara com uma missão desesperada e obtivera sucesso, um facto que dificilmente conseguia compreender. De tempos a tempos, pegava na mão de Etna e quando, mais tarde nesse dia, ela me acompanhou ao vestíbulo para se despedir, beijei-a na boca, o meu desejo agora aguçado e estimulado pela boa sorte. Devo, todavia, revelar aqui que ela não reagiu com paixão. Na verdade, quase não reagiu. Mas a minha partida iminente transmitiu-me coragem e demorei alguns momentos a libertá-la. Depois a porta foi aberta e eu encontrei-me nos degraus da frente: desfeito, atormentado e radiante de felicidade.

Experimentei, nesse dia ou no seguinte, dúvidas? Senti que a minha sofreguidão de possuir se havia sobreposto ao meu discernimento? Não poderia outro homem, dominando melhor do que eu as suas faculdades, ter sido desencorajado pela declaração de que o seu amor não podia ser correspondido? Não, creio que não. Nessa altura, não. Uma reflexão destas surge com a experiência e em retrospectiva e não nos momentos de mais profunda alegria. Disse a mim mesmo que ensinaria Etna Bliss a amar-me, uma aula particular que aguardava com o maior prazer.

O camareiro acaba de aparecer para me preparar a cama e encher o jarro de água e, assim, acho que me vou agora retirar. Por vezes, quando estou a escrever, dá-me a impressão de que não estou a reviver os acontecimentos que aqui descrevo mas antes a vivê-los. Que não existe distância, tanto no espaço como no tempo, absolutamente distância nenhuma, e que não sei como terminará a minha história. É uma sensação extraordinária já que conheço muito bem, naturalmente, o seu desfecho.

O meu compartimento (já escrevi isto? ) contém os mecanismos mais intrigantes para o conforto do viajante. A mesa sobre a qual escrevinho pode, rodando uma alavanca, descer ao nível dos bancos estofados. Uma almofada escondida atrás de um espaldar encaixa, como a peça de um puzzle, entre os dois assentos, convertendo-os numa cama de tamanho razoável, capaz sem dúvida de acomodar um homem de grande estatura como eu. Sobre o lavatório está um espelho que rebate para tapar a bacia, transformando-a numa mesinha-de-cabeceira com um jarro de água, um copo e um pequeno candeeiro de leitura. Atrás do espaldar contrário existe um roupeiro onde é possível pendurar um casaco e arrumar as peúgas e a roupa interior. É tudo bastante engenhoso. Excluindo a sanita, que fica ao fundo do corredor, não tenho necessidade de mais nada. Trouxe comigo um exemplar do Académico Americano, de Emerson, que estou ansioso por ler antes de a chiadeira cadenciada das rodas do comboio me induzir no sono.

Não posso deixar de pensar nos recém- casados que muito apreciariam este universo isolado.

Estou agora no segundo dia da minha viagem para sul (depois E de perder grande parte do primeiro com o descarrilamento anteriormente mencionado) e sinto-me desalentado com algumas das vistas que tenho captado pela janela do meu compartimento. Já todos ouviram falar, naturalmente, da sopa dos pobres e de vagabundos sem-abrigo, mas assistir ao vivo à degradação e miséria na capital da nossa nação é assustador. Homens vestidos de andrajos em filas que se estendem por quarteirões, presumivelmente na esperança de um prato de sopa; mulheres com crianças pequenas sentadas nos passeios a estender latas de esmolas; dormitórios de papelão flanqueiam a linha férrea durante quilómetros e grupos de vagabundos concentram-se em redor de fogueiras. Por vezes, é demasiado para se digerir. Não pretendo vangloriar-me da minha New Hampshire mas não se pode deixar de registar que as sopas dos pobres são poucas e espaçadas nesse estado industrial e auto-suficiente. Claro que temos o nosso quinhão de pessoas que passam dificuldades - o decréscimo de inscrições na escola é apenas um exemplo; o arresto dos bens de Gerard Moxon é outro; e, agora que penso nisso, poder-se-á atribuir ao mau estado da economia os suicídios de Arthur Hallock e de Horace Ward Archer - mas nós, em New Hampshire, gostamos de pensar que deitamos a mão aos nossos. Perdi a conta ao número de vezes que a minha cozinheira, Mrs. O'Hara, deu de comer a pedintes sem eira nem beira, à porta das traseiras da cozinha; aliás, acho que ela cozinha mais do que o normal simplesmente para poder fazê-lo. Não posso objectar visto que a minha própria vida é folgada e relativamente confortável e eu sou a única boca a alimentar nessa casa cavernosa e percorrida por correntes de ar.

Mas chega de notícias deprimentes! Vou desviar os olhos da janela e concentrar-me antes no meu caderno porque não desejo manchar o meu relato com notícias do futuro. Na verdade, na época em que a minha história decorre, o ano de 1900, o estado de espírito do país, alcandorado como estava no precipício do século xx, era de optimismo ilimitado. Nunca, enquanto nação, havíamos conhecido tal prosperidade nem vivido um período de tal paz. A conturbação da guerra civil fazia há muito parte do passado e a quase constante aparição de novas comodidades e invenções, como o automóvel e o telefone, prometia uma vida de maior conforto e interesse do que aquela que até então conhecíamos. Era uma época gloriosa em que eu ocupava directamente um lugar no seu centro (ou melhor, no seu canto nordeste) e parecia uma época particularmente propícia para contrair matrimónio.

Eu e Etna casámo-nos no dia 28 de Maio, numa pequena cerimónia na capela da Escola Superior de Thrupp. Etna trajava um vestido de seda bege e levava um ramo de lilases, que acabavam de florir profusamente por todo o complexo académico e emprestavam ao dia, e até ao próprio casamento, uma fragrância tão adorável que ainda hoje, quando passo por acaso por um lilás e sou brindado com o seu perfume, me sinto transportado a essa manhã de Maio. Tinha havido um aguaceiro na noite anterior e, quando acordámos, a relva, os botões e as flores resplandeciam de frescura como se tivessem sido lavados para a ocasião. Os dias de bom tempo rareiam em New Hampshire na Primavera (a Primavera é a pior estação nos estados setentrionais da Nova Inglaterra - chega anormalmente tarde e é mais chuvosa do que se gostaria), mas esse dia foi uma dádiva rara e parecia, devo dizer, um bom augúrio. Ou, pelo menos, eu assim o desejava.

William Bliss, que se mostrou aliviado por ver o tumulto do último Inverno enterrado, conduziu Etna de uma porta lateral da capela até ao altar. Um dos muitos pastores da escola celebrou o matrimónio, numa liturgia simplificada, e mercê da considerável afeição pela família Bliss (e graças talvez à minha pequena parcela de celebridade), tivemos bastantes convidados na capela a desejar-nos felicidades e a despedir-se de nós. A boca de Etna tremeu no nosso primeiro beijo como marido e mulher, um leve frémito que poderia ter capturado o coração de qualquer noivo e, aliás, capturou o meu como se ela o tivesse fechado no punho.

A verdade é que raras vezes estivera com Etna desde o dia em Exeter em que a pedira em casamento. Enquanto eu regressara a Thrupp, ela continuara em casa da irmã. Embora me aborrecesse a sua ausência, estive tão ocupado durante essas semanas que a dor da separação foi um pouco mitigada pelos meus afazeres. A mais crucial das minhas tarefas foi arranjar uma casa em que pudéssemos residir depois da viagem de núpcias. Queria que ela fosse grandiosa, adequada à minha encantadora noiva, e que pudesse, naturalmente, a seu tempo albergar uma ninhada de filhos. Não havia muitas casas disponíveis no centro de Thrupp, nessa Primavera, pelo que fui obrigado a deslocar-me várias vezes aos arredores da vila para visitar propriedades. Em Abril, descobri uma candidata que me entusiasmou pelas suas potencialidades, embora o proprietário tivesse negligenciado a propriedade e a casa se encontrasse num certo estado de decrepitude. O terreno era o melhor com que me tinha deparado, com magníficos relvados em declive que desciam até a um lago de dimensão razoável, e vistas incomparáveis de modestos montes graníticos à distância. A casa era senhorial, uma estrutura característica da arquitectura federal, de quente tijolo vermelho com remates brancos, com três andares, um celeiro revestido a tabuinhas e uma cocheira na parte de trás. As divisões cornuns tinham um pé-direito alto, o que, como eu sabia, dificultaria o seu aquecimento, mas emprestava à casa uma imponência ausente em muitas das casas coloniais de Wheelock Street (a casa de Bliss, por exemplo). Havia uma sala de jantar formal, a todo o comprimento de um lado da casa, e eu comecei imediatamente a imaginar essa sala como cenário de jantares festivos ou até, ocasionalmente, de bailes de gala. Quando me mostraram os quartos no segundo andar, imaginei Etna e eu próprio a dormir numa enorme cama de dossel, com os nossos cinco ou seis filhos por perto, agasalhados debaixo dos seus próprios edredões. Bastou-me esta visão para fechar o negócio.

Paguei desde logo em dinheiro na condição de o dono e a família vagarem imediatamente a propriedade para que os carpinteiros, os pintores e os demais ofícios pudessem entrar na casa e dar início às obras que lhe devolveriam a sua anterior glória. (É difícil neste passo não pensar em Josip Keep, com as suas escadas e os seus panos). O indivíduo que contratei para orientar o restauro recebeu a incumbência de fazer horas extraordinárias de forma a concluir a obra até à terceira semana de Junho, data em que eu e Etna regressaríamos da nossa viagem de núpcias para fixar residência. Era uma missão assustadora mas o homem saiu-se admiravelmente e, embora fôssemos por vezes importunados por pintores e até canalizadores (a canalização interior foi inexplicavelmente complicada de instalar), não pude queixar-me perante a transformação que ele acabou por operar.

Foi igualmente extraordinário notar a transformação por que eu próprio passei - e, apesar de não pensar que seja inteiramente verdade dizer que o nosso carácter e espírito se dilatam e encolhem de modo a habitarmos o mundo que nos rodeia, senti de facto que comecei a assumir o papel do proprietário e a despir a fachada algo deprimente do professor confinado a uma residência académica. O meu humilhante desfalecimento no palco fazia parte do passado (aliás, consegui felicitar Arthur Hallock entusiasticamente, senão com sinceridade, no dia da votação da Educação Física) e, embora nunca mais tivesse readquirido a minha anterior e breve popularidade (era impossível apagar por completo a imagem desse pusilânime desmaio no anfiteatro de Anatomia), os meus colegas pareceram, na maioria, genuinamente satisfeitos com o meu casamento iminente.

Mas que posso dizer sobre Etna durante este período? Praticamente desconhecia a essência dos seus pensamentos e sentia-me pouco inclinado a extrair-lhos à força pois, devo confessar, receava que ela mudasse de ideias a respeito do casamento. Deixei que a nossa correspondência se mantivesse num plano agradável e equilibrado e, apesar de ser uma provação não dar, nas minhas cartas, livre curso à expressão do meu amor por ela, consolei-me pensando que em breve poderia dizer tudo o que quisesse. Ansiava por possuir Etna, desejo que sinceramente esperava fosse recíproco. Não sei se era desesperadamente ingénuo ou apenas ignorante em matéria dos receios de uma mulher jovem a respeito das suas impendentes responsabilidades físicas. Claro que nunca tínhamos conversado sobre estes assuntos (embora tivéssemos discutido uma vez em grande pormenor a ideia de paixão, dentro de um quadro de restrição, no romance de Hawthorne, A Letra Escarlate, uma empolgante conversa, se me é permitido dizê-lo, não apenas pelo seu rigor intelectual mas também pelo seu conteúdo erótico insuficientemente velado), mas depreendi que ela possuía algum conhecimento deles. No mínimo, presumi que questionaria a irmã sobre certos aspectos necessários à noite de núpcias.

(Por mais frequentemente que eu possa parecer oportunista nestas páginas, o meu amor por Etna Bliss era genuíno. Nunca havia até então experimentado um sentimento destes e nunca mais experimentei. Embora não conseguisse evitar as minhas fantasias - há algum homem que consiga? - os meus motivos eram os mais puros em relação ao meu casamento. Desejava, antes de tudo o mais, fazer Etna feliz, por mais sacrifícios que isso implicasse da minha parte. Penso que um homem que não nutra sentimentos semelhantes a respeito da futura noiva não deve alimentar a ideia do vínculo matrimonial. Um casamento contraído mesmo com a melhor das intenções pode revelar-se simultaneamente frustrante e penoso. Fazê-lo com motivos mais ignóbeis é inimaginável. )

(Note-se, no entanto, que eu não estava imune à agradável expectativa do amor físico. Não, não, pelo contrário, creio que des frutava o acto sexual mais do que a maioria dos homens, pois permitia-me essa rara oportunidade de escapar de mim mesmo, de me libertar de inibições constrangedoras e de entrar, ainda que por breves momentos, num universo inteiramente diferente em que deixava de ser um homem chamado Nicholas Van Tassel. )

Eu e Etna voltámos a pé, de braço dado (como marido e mulher), para casa de Wiliiam Bliss que generosamente se oferecera para dar um copo-d'água. Fiz esta breve viagem em silêncio e Etna também e, se não fosse a minha irmã Meritable, poderia ter sido uma caminhada francamente penosa. Mas Meritable, que se tinha deslocado da Virgínia especialmente para a ocasião, adorava conversár e tinha uma série de perguntas e declarações a fazer a ambos. Sendo ela fruto do segundo casamento do meu pai, éramos apenas meios-irmãos, mas a parecença entre os dois era extraordinária. In felizmente, as características físicas dos meus antepassados holandeses não contribuem, em regra, para a delicadeza de figura nem para a finura de traços fisionómicos nas mulheres e, neste aspecto, Meritable era profundamente holandesa. Era uma mulher fria, com um rosto largo e lábios um pouco grossos semelhantes aos meus. Tinha tendência para engordar, o que a obrigava a imprimir um ritmo vivo às pernas robustas para nos acompanhar e a fazer as suas perguntas num tom ofegante. Onde ficaríamos na primeira noite da nossa viagem de núpcias? Tínhamos alugado uma carruagem ou conduziríamos nós? Tinha-me eu debruçado sobre a questão de comprar a mobília de sala de jantar Roycroft em carvalho que ela tinha visto à venda no jornal? Achava eu que o presidente da escola estaria presente no copo-d'água pois queria imenso conhecê-lo? A minha irmã pontuava estas perguntas com novidades sobre a sua prole de sete filhos (filha prolífica de pai prolífico): Peter estava a tornar-se num perfeito jovem académico e Quincy, infelizmente, tinha partido uma perna. Depois desta notícia, Meritable fechou os olhos e rezou uma breve oração como tinha propensão para fazer sempre que mencionava qualquer desdita com os filhos (vivia no terror de perder um filho ou uma filha num acidente ou numa doença); e não posso deixar de acreditar no sucesso destas pequenas missivas enviadas aos céus pois os sete filhos de 1900 tornaram-se subsequentemente onze, hoje todos vivos e de boa saúde - uma estatística improvável, ainda que feliz.

- Gosto muito dela - declarou Meritable quando chegámos a casa de Bliss e nos encontrámos a sós num corredor. Etna tinha subido ao quarto para se pôr apresentável para o copo-d'água embora eu considerasse que ela já estava perfeitamente apresentável. Não me agradou que me tivesse deixado e ansiei pelo seu regresso. Meritable pôs-me a mão no braço. - Não dissimula, o que é uma coisa que eu admiro - disse a minha meia-irmã. - Embora o silêncio numa mulher possa por vezes ser uma provação.

- Acho que a Etna se sente um pouco tímida hoje - disse eu.

- Claro que sente - disse Meritable, ajeitando as volumosas saias do vestido e sacudindo um torrão de lama da bota com o pé. (Notei que as botas eram quase tão grandes como as minhas.)

E depois acrescentou, como se a explicação bastasse: - É o dia do casamento dela.

- Acho-me um homem de sorte - declarei.

- Ela é alta.

- Imponente, na minha opinião.

- Sim. E não é demasiado jovem, apraz-me constatar. Mas no que respeita aos filhos, deves começar já. Não há tempo a perder.

Não respondi.

- Vais começar esta noite, sem dúvida - disse ela, maliciosamente, e talvez tenha mesmo piscado o olho. - Espero que não vão viajar para longe.

- Nem por isso.

- Um filho concebido na noite de núpcias será inteligente e caridoso - disse Meritable com a segurança de uma mulher do campo.

- Prometo-te dar o meu melhor - disse eu e ela soltou uma gargalhada gutural que ameaçou raiar o mau gosto.

- Nicholas, às vezes és muito pomposo.

Talvez fosse a conversa sobre questões sexuais ou simplesmente o facto de me sentir privado da minha nova noiva, mas pedi licença e subi as escadas, esperando surpreender Etna e beijá-la rapidamente longe da vista da família dela e dos outros convidados. Fui encontrar a minha mulher no quarto da tia.

Estava diante do espelho numa atitude de absoluta imobilidade. As mãos de outra mulher talvez se agitassem em volta do corpo, corrigindo imperfeições imaginárias, acentuando preciosos encantos - beliscando as faces ou voltando a prender o cabelo, por exemplo - mas Etna estava completamente quieta. Tão intensa era a sua comunhão com a sua imagem que, a princípio, não se apercebeu da minha presença. Mas não era por vaidade que estava tão absorta ao ponto de não se sentir observada; não, a causa era outra, muito mais desalentadora.

Os olhos dourados a que eu atribuíra tanta beleza tinham assumido uma expressão de desespero. O lustro tinha-Lhe abandonado a pele e os lábios, essa boca encantadora que eu não desejava mais do que beijar, pareciam quase exangues. Era como se estivesse a ver Etna como ela poderia ser dentro de quarenta ou cinquenta anos: como uma mulher idosa que se resignara a viver sem alegria.

As minhas palavras são excessivamente melodramáticas? Oxalá fossem. Tive de morder os lábios para evitar interpelá-la e é possível que me tenha escapado um som porque Etna sobressaltou-se e rodou na minha direcção. Por um segundo, antes que ela pudesse recompor-se, experimentei a plena força desse desespero: insondável, sombrio e irreparável. E, apesar de ela ter esforçado um sorriso e imprimido (em minha intenção) algum calor aos seus olhos dourados e de ter ainda demonstrado, aparentemente com grande dificuldade, uma ponta de afeição por mim, a minha própria felicidade vacilou e, por um momento, dissipou-se demorando alguns instantes a refazer-se.

Etna atravessou o quarto.

- Marido - disse ela. Não sei se a palavra saiu deliberadamente ou não mas, mais tarde, considerei a sua escolha absolutamente brilhante; que outra saudação daria mais garantias de agradar?

- Mulher - respondi no mesmo espírito embora, dentro de mim, continuasse a sentir algo em desequilíbrio e a vacilar como uma escada mal assente.

Etna pôs-me a mão no braço. Instintivamente, os meus dedos fecharam-se sobre os dela.

- Os convidados estão a chegar - disse eu.

- Desço contigo.

- O reverendo Mr. Wilford fez um trabalho admirável.

- Foi uma cerimónia maravilhosa.

- O teu tio parece satisfeito.

- Gosto da tua irmã. É despretensiosa.

- Vamos ficar uma hora e depois partimos - declarei.

- Sim - respondeu, enlaçando o braço no meu.

- Etna - disse eu, numa voz rouca, a felicidade levantando-st agora a medo e ousando dar os primeiros passos.

(Devo explicar aqui a abrupta mudança de tinta. Assim que terminei a última frase, comecei a sentir-me mal. Reclinei-me no compartimento para repousar por um momento - pensei que talvez estivesse agoniado com o movimento - mas, depois, à medida que a distinta náusea que me acometia se agravou, lembrei-me dos croquetes de caranguejo que tínhamos comido horas antes no comboio.

Tinham um cheiro estranho e eu tinha pensado em deixá-los ficar mas, infelizmente, a fome sobrepusera-se ao bom senso. Rapidamente sucumbi a um violento acesso de náusea; na verdade, senti-me tão doente que o comboio teve de efectuar uma paragem não programada em Richmond para que entrasse a bordo um médico para me examinar. Receando uma intoxicação alimentar, apesar de a negar veementemente, o pessoal do comboio mostrou-se zeloso do meu bem-estar. Deram-me outro compartimento, mais luxuoso, com estofos de couro, uma mesa de mogno e até acessórios revestidos a ouro na banheira dissimulada que, segundo me disse o revisor, foi em tempos usada por Woodrow Wilson durante a sua campanha para a presidência. Infelizmente, a dado passo, durante a minha indisposição ou talvez durante a transferência para o meu salão rolante, perdi a caneta - ou foi roubada - e estou agora a usar uma que me deu o revisor. Estou desgostoso por ter perdido essa estimada caneta pois foi um presente de Etna quando fiz quarenta anos. Sinto também, por estranho que pareça, saudades do anterior compartimento que se ajustava ao meu temperamento e parecia propício à solidão e à memória. O luxo modificará a minha narrativa? Espero sinceramente que não. )

Tinha alugado uma carruagem para nos levar, a mim e a Etna, para norte e leste para uma estalagem nas Montanhas Brancas. Como é habitual na Primavera em New Hampshire, o dia arrefeceu abruptamente. Eu e Etna íamos lado a lado, mas poucas palavras trocámos. Pouco depois de partirmos, ela caiu no que parecia ser um sono profundo de que nem os solavancos causados pelos sulcos lamacentos a despertaram. A sua cabeça descaiu sobre o meu ombro e eu não me importei nada, enquanto a viagem durou, de Lhe servir de apoio. Pus o braço em redor da minha noiva e, embora ela não estivesse consciente, imaginei-a pelo menos contente. Apenas parámos uma vez para comer. O nosso condutor, familiarizado com o trajecto e atento ao facto de que éramos recém-casados, levou-nos a uma pequena estalagem. Tanto quanto me recordo, Etna comeu pouco enquanto eu, quase faminto, devorei costeletas de anho. Estavam mais alguns comensais no restaurante e a sua disposição ruidosa constituía uma agradável distracção permitindo que eu e Etna comêssemos em relativo silêncio. Embora a expectativa da noite que se aproximava me tivesse tornado praticamente mudo, ocorreu-me a ideia de anunciar aos presentes que nos tínhamos casado horas antes. Sempre que relanceava para Etna - para o seu semblante pensativo com as suas maçãs do rosto aparentemente estrangeiras (deve correr-lhe nas veias sangue índio, pensei) - sentia-me exultante, quase atordoado, à semelhança de um homem que ganhou inesperadamente uma avultada quantia num jogo de azar.

Quando saímos da estalagem, reparei numa loja de bugigangas do outro lado da rua. Ajudei Etna a subir para a carruagem e pedi-lhe que esperasse. Queria qualquer coisa - um presente palpável

- para oferecer à minha nova mulher para assinalar o dia. Fiquei desanimado, contudo, ao verificar que a loja apenas vendia artigos usados. Passei os dedos por um véu de renda e descobri um buraco da traça; olhei para uma escova de prata que podia ter servido mas tinha uma pequena nódoa no osso do cabo; depositei as minhas esperanças num estojo de escrita florentino mas, quando levantei a tampa, reparei que só estava presa por uma dobradiça. Estava pronto a desistir da minha ideia quando tirei um chapéu de veludo gasto de um expositor e vi, por baixo do vidro, um jogo de artigos condizentes para uma senhora usar na carteira: um pequeno espelho, uma caixa de comprimidos, uma caixa para cartões de visita. As peças eram de ouro com elaboradas tampas em madrepérola. As formas eram agradáveis - o espelho redondo, a caixa de comprimidos oval, a caixa para cartões rectangular - e pareciam tesouros que uma criança descobriria arrecadados no guarda-jóias de avó. O jogo era bastante antigo e eu exagerei os defeitos que consegui encontrar (o revestimento de prata do espelho começava a estalar) para baixar o preço se bem que acabei por concluir que valera a pena. A dona da loja parecia não saber o seu valor. Paguei o jogo, mandei-o embrulhar e levei-o para a carruagem.

- Mas eu não tenho nada para ti - disse Etna quando lhe pousei o embrulho no regaço.

- Claro que não - respondi. - Não passou de um impulso.

Bem, mais do que um impulso. Queria que tivesses qualquer coisa que assinalasse este dia.

Sustive a respiração enquanto ela o desembrulhava. Era o presente mais puro que eu já tinha oferecido. Senti, enquanto ela deixava a fita de seda deslizar-lhe através dos dedos, que o melhor de mim estava agora à sua disposição. Nunca como então desejara agradar tanto a outro ser humano. Aquelas dobras de papel de seda, creio, continham um mundo de esperança.

Ela abriu as pequenas caixas umas atrás das outras e depois passou as pontas dos dedos pelos embutidos em madrepérola. Obrigada, Nicholas - disse. - São muito belas.

- Ama-me - foi tudo quanto consegui dizer.

Não me recordo agora por que razão escolhi a Mountain Inn

para a nossa lua-de-mel. Suspeito que, em parte, a decisão se deveu às minhas finanças, praticamente esgotadas com a renovação da casa. Caso contrário, tê-la-íamos com certeza passado em Paris.

Ou até em Itália. No entanto, eu escolhera uma estalagem solitária alcandorada num cume granítico no coração das Montanhas Brancas que, nessa época do ano, ainda protagonizavam um Inverno inóspito. (Não sei como tive conhecimento do hotel. Devo tê-lo reservado por recomendação de algum colega. A culpa terá sido de Moxon? ) Ainda hoje, só a visão mental dessa monstruosa estalagem deixa em mim um vazio de desespero.

Tornou-se imediatamente claro que não contavam connosco,

que a pessoa a quem eu escrevera e de quem recebera uma resposta não se encontrava em lado algum. Contudo, disse o indivíduo jovem que veio finalmente abrir a porta, podia-se preparar um quarto. Não nos mandaria embora, afirmou, e a sua frase teve o inefeliz efeito de nos fazer sentir como refugiados indesejáveis. Fiquei mais encrespado do que pretendia; tive dificuldade em dominar a minha vontade de descompor o homem. Acho que Etna se sentiu embaraçada e procurou acalmar a minha irritação. - Não faz mal - dizia insistentemente. - Não faz mal.

- Faz, sim - disse-lhe eu num tom demasiado ríspido pois ela

virou a cabèça e não fez mais comentários.

Conduziram-nos a um quarto no segundo andar. A vista era sem qualquer dúvida, assombrosa, como fora prometido, mas eu estava demasiado perturbado e insensível para reparar então neste atributo. Uma rajada de vento tinha espalhado pelo soalho as cinzas de um fogo anterior na lareira e, da porta, era visível a cova no colchão. O quarto estava gélido e cheirava a bolor.

- Não tem mais nada? - perguntei.

- Estamos fora de época, é preciso não esquecer!

- Pode acender a lareira? - pedi ao paquete.

- Com certeza.

- E uma refeição, arranja-se?

- Querem então uma refeição?

- Claro que queremos uma refeição. Queremos muitas, aliás.

- Muitas?

- Com mil diabos, estamos em lua-de-mel!

Etna colocou-me uma mão no braço para me acalmar. O paquete sorriu, o que considerei uma insolência.

- Esqueça - disse eu bruscamente. - Acenda esse fogo.

Penso agora que um casamento nunca devia começar com uma viagem de núpcias pois o passeio coloca sobre o casal, em que ambos podem ser praticamente estranhos um ao outro, um fardo de expectativas demasiado pesado. À excepção das pessoas para quem o prazer físico é primordial e que se contentam em nunca abandonar a cama (e que não se importam que o estalajadeiro ou os outros hóspedes se apercebam do facto), a intimidade forçada – as intermináveis horas de intimidade - cria a premissa de uma felicidade permanente que é, de facto, uma impossibilidade. Seria preferível os casais recém-casados mergulharem nas responsabilidades do quotidiano, reunindo-se em momentos esporádicos durante o dia (e, naturalmente, durante a noite), a manterem a fachada o êxtase conjugal.

Eu e Etna sentámo-nos em silêncio no quarto enquanto o paquete acendia a lareira. Como já tinha começado a escurecer, um passeio ao ar livre estava fora de questão (praticamente fora questão também durante o dia em virtude do precipício da escarpa na borda do penhasco). Como o hotel não estava aquecido, exceptuando a sala de jantar e uma ou duas salas comuns, vaguear pelos corredores daquele edifício gelado era uma ideia igualmente desagradável. Enquanto estávamos ali sentados, uma sensação de claustrofobia ameaçava aniquilar por completo a minha disposição.

estranhamente, foi Etna quem quebrou o silêncio quando o rapaz acabou de acender o fogo e saiu do quarto (não pude deixar de notar o malicioso e sugestivo sorriso dele ao fechar a porta.)

- Nicholas, gostava de me deitar - disse ela.

- Sim, certamente - disse eu, levantando-me.

- Só por uns momentos. Para repousar.

- Eu vou dar uma volta.

Ela ficou em silêncio.

- Vou só lá abaixo tomar um chá.

- É boa ideia.

- Queres que te mande um chá cá acima?

Ela abanou a cabeça. - Não, não. Só preciso de repousar um pouco.

Com um certo alívio, saí do quarto e desci ao átrio. Ao sair para o alpendre, deparei-me com a magnífica vista no crepúsculo e compreendi como a estalagem podia ganhar vida nos meses mais quentes. Consciente de uma súbita sede (e a precisar de alguma coragem), fui em busca do insolente rapaz mas encontrei antes, na cozinha, uma cozinheira que concordou em mandar servir chá e xerez numa sala de estar. Dirigi-me à dita sala de estar onde fumei um cigarro mofento, disponível numa caixa de prata na mesa. O rapaz trouxe o chá e um decantador de xerez e pousou-os na mesa ao lado da poltrona de orelhas onde eu estava sentado. Dei-Lhe umas moedas de gorjeta. O xerez aqueceu-me quase de imediato. A sala escureceu, à excepção do fogo na lareira, que estalava e crepitava agradavelmente.

Enquanto fumava, comecei a pensar em Etna, lá em cima, a dormir na cama. Pensei se se teria despido. Claro que sim, concluí; uma mulher não dormiria de vestido de noiva, pois não? Devo confessar que, nesse momento da minha vida, a minha experiência com mulheres inábeis em questões sexuais era bastante reduzida. Aliás, julgo que é correcto dizer que raramente estivera com uma mulher que não fosse, em certo sentido, uma profissional. Sabia que a minha vida sexual com Etna seria muito diferente; seria eu o professor mais experiente, mais habilitado. Pela minha parte, dispensava perfeitamente esse pequeno livro intitulado O Que o Jovem Marido Deve Saber, supostamente útil ao noivo na noite de núpcias. (As criadas que limpavam as residências da escola, no final do trimestre, encontravam por rotina uma dezena ou mais de exemplares do livro, proibido pela instituição, quando os estudantes partiam para as férias de Verão. ) Depreendia que Etna seria virgem e sentia-me admito, um pouco preocupado com a minha capacidade para transpor a mais sagrada de todas as barreiras. Esperava não a magoar e esperava ainda outra coisa: que a crua carnalidade do acto não a assustasse e não tolhesse para sempre o prazer que talvez um dia lhe fosse proporcionado.

(Sempre me senti assombrado com o mundo secreto do sexo

do mesmo modo que sempre considerei um milagre a comum

O corrência do nascimento. Quase todos quantos atingem a idade adulta experienciam o acto sexual e, contudo, longe da ocorrência propriamente dita, parece inconcebível que os seres humanos se comportem da forma como comportam. Por vezes, durante um serviço religioso ou quando estou a tomar uma chávena de chá num salão apinhado de gente, passa-me pela cabeça que a maioria das pessoas perfeitamente compostas aí presentes tiveram relações sexuais, talvez até nesse mesmo dia. Olho para uma mulher de meia-idade, por exemplo, que está sentada, muito aprumada, com a carteira no regaço, mal disfarçando a sua impaciência com a empregada de mesa, e penso: que prazeres secretos experimentou esta mulher? Será recatada em locais públicos mas devassa em privado?

Prodigalizará arrebatamentos de deleite conjugal? Será adepta em privado de práticas que poderá sentir-se obrigada a condenar em público? A mulher, espartilhada e abotoada, no seu lugar a uma mesa no canto, com os embrulhos debaixo da cadeira, parece incapaz de actividades tão bestiais. E, no entanto, supõe-se - sabe-se, a não ser que a mulher pertença a essa rara espécie, a das solteironas sem qualquer experiência do amor - que ela se comportou, uma duas ou muitas vezes, diariamente até, de um modo que nós, na sociedade refinada, poderemos considerar escandaloso. Na minha juventude, quando era um homem de grandes apetites que procurava refrear com diferentes graus de sucesso, estes frívolos pensamentos e fantasias atormentavam-me a toda a hora; era um jog o predilecto meu, devo confessar, isolar numa sala a pessoa que tinha O ar mais puritano e inventar-lhe uma vida sexual voluptuosa. Na minha idade avançada, apraz-me dizer, estes pensamentos assaltam-me com maior raridade. )

Entrei no quarto apenas iluminado pelo fogo da lareira. Etna estava debaixo de um edredão acolchoado. Mexeu-se quando me aproximei dela e abriu os olhos. Descalcei as botas e despi a sobrecasaca e, quando abri o guarda-fatos, reparei que o vestido de noiva de seda bege já lá estava pendurado. A visão do vestido e a certeza de que Etna estava debaixo dos cobertores de roupa interior ou de camisa de dormir bastaram para me inflamar os sentidos e deixei imediatamente de recear não ser capaz de realizar o acto. Despi-me rapidamente, atravessei o quarto e enfiei-me entre os lençóis que Etna já aquecera. Como senti que hesitar um momento mais podia impossibilitar qualquer acção, abracei-a de imediato. O corpo dela estava quente e relaxado dentro da combinação; já tinha, descobri excitado, despido o espartilho, essa peça tentadora mas irritante.

- Mulher - disse-lhe apertando-a com força contra mim.

Corro agora a cortina como convém, e não se trata de um gesto de pudor. Faço-o a fim de poupar ao leitor desta narrativa a natureza absolutamente angustiante desse encontro. Revelarei apenas estes pormenores. Etna tremeu sob o peso do meu corpo e entregou-se-me apenas até onde os seus deveres conjugais lho impunham. Isto eu podia ter suportado. Isto eu podia ter alegremente suportado, contente na certeza de que, com uma orientação cuidadosa, os seus receios se dissipariam e de que a minha pupila não tardaria a desfrutar de intenso prazer e a proporcioná-lo em troca. Não, foi a outra coisa que me gelou o coração, que me perturbou de tal modo que quase fui incapaz de consumar o acto.

Embora nunca se possa estar absolutamente seguro de uma coisa destas, sendo a anatomia humana tão variável como é, tive a certeza de que a penetração no corpo da minha mulher fora facilitada por outro antes de mim. No próprio momento em que vivia esses momentos do mais intenso prazer físico que um homem pode conhecer, compunha perguntas que haveriam de me perseguir por muitos anos. Quem? gritei em silêncio. E quando? Estremeci do modo como todos os homens estremecem e separei-me dela, rolando de costas. Ao meu lado, Etna estava calada. Pensei na afirmação da boa Meritable, de que um filho concebido na noite de núpcias seria inteligente e caridoso. Não seria concebida qualquer vida esta noite. Pelo contrário, o acto daria à luz o ciúme - intenso, infrutífero e totalmente corrosivo. O amor, palavra que momentos antes havia considerado demasiado comezinha e branda para definir os meus sentimentos quase transcendentes por Etna, deu lugar a uma coisa para que nunca consegui encontrar um nome adequado: a impotência que nos acomete quando nos é roubado um objecto amado; a raiva que sentimos quando somos enganados.

Tenho-me interrogado muitas vezes, se tivesse nesse momento falado, se tivesse expressado a Etna todas as emoções que acabo de descrever, se não teríamos passado por uma ou duas horas desagradáveis (uma ou duas horas horríveis, imagino), que sempre recordaríamos com tristeza, mas esclarecido a situação e podido continuar com alguma intimidade.

Mas não fui capaz. Não, não, Nicholas Van Tassel não foi capaz de perguntar à mulher com quem acabara de casar por que razão o caminho para o seu corpo estava livre. Não foi capaz de se rebaixar dessa maneira. Preferiu continuar na cama, nas trevas da sua imaginação, com a mulher a respirar calmamente ao seu lado.

Efectuámos uma breve paragem, durante a qual desembarquei do comboio para desentorpecer as pernas. Fiquei na plataforma e observei o sol e o vapor criarem uma espécie de nevoeiro luminoso sob o tecto abobadado. Um enorme relógio, excentricamente modelado no feitio de um relógio de bolso, reluzia nesta neblina de que falo. Homens e mulheres (recordo, em particular, uma mulher de cabelo escuro com um casaco curto em tecido que olhava fixamente em frente e fumava um cigarro) eram formas indistintas nesta luz espectral. Esta nuvem inverosímil constituía uma visão simultaneamente etérea e vulgar: a plataforma suja de lixo e manchas de óleo, a cintilação tão bela que desejei possuir uma máquina fotográfica. Relutante em abandonar o meu oásis temporário (que era estranhamente tranquilo exceptuando o silvo da locomotiva a vapor), tive de correr para apanhar o comboio quando este começou a mover-se, um espectáculo certamente cómico para quem já tinha reocupado os seus lugares.

Retomo a minha narrativa numa manhã, catorze anos depois do dia das minhas núpcias. Eu e Etna estamos sentados na sala do pequeno-almoço, forrada a papel com rosas vermelhas e guarnecida com mogno escuro. É o ano de 1914 e, algures pela casa, andam duas crianças - crianças felizes, convém dizer - não na cama mas já a pé e a fazer barulho e, no caso de Clara, a mais velha, com treze anos, já a vestir-se para as aulas na Academia Feminina de Thrupp. Percorrem toda a casa sons que indicam actividade: uma gaveta a fechar, um sapato a cair, um tacho de ferro fundido a raspar contra o fogão. Na luz do sol filtrada pelas janelas de bandeira cintilam partículas de poeira contra a madeira escura. O aroma pungente do café estimula os sentidos.

Recordo tudo isto tão nitidamente como se tivesse acabado de transpor a porta. Mas quando olho para os anos que precederam esta recordação é como se o tempo tivesse passado do mesmo modo que as folhas de um livro apanhadas numa brisa: as páginas volteando tão rapidamente que, por vezes, é impossível vislumbrar mais do que uma expressão ou uma frase. Que palavras foram ditas? interrogo-me agora, debruçado sobre o meu diário. Que olhares foram trocados?

Sou capaz de evocar uma sensação de como foi o meu casamento - verdades mais sentidas do que expressas - mas não o seu conteúdo exacto. Ocasionalmente, apresentam-se cenas ou factos fora de contexto, flutuando no éter do tempo perdido. Tenho uma imagem de Nicodemus em bebé, a mamar ao peito de Etna, os seus olhos tão enrugados como os de um velho, o cabelo hirto com as substâncias do parto. Recordo um belo vestido de Clara, uma peça em veludo vermelho e crinolina que produzia um ruído de papel quando ela se movia. Recordo o primeiro dia em que Nicky começou a andar: avançou atabalhoadamente, tombou para a frente e caiu-me nos braços. E, naturalmente, os factos mais importantes da nossa vida em comum são suficientemente claros (não pretendo sugerir que sou um velho tonto e decrépito); é que, da perspectiva de um homem de sessenta e quatro anos, muitos pormenores se esbatem numa vida igualmente composta de contentamento diurno e angústia nocturna.

O contentamento diurno é fácil de explicar.

Depois de regressarmos da nossa viagem de núpcias, Etna começou a preparar-se para a maternidade, uma ocorrência que não se fez esperar se bem que eu não me tivesse revelado tão prolífico como o meu pai. Tivemos apenas dois filhos, com uma diferença de sete anos; Etna, para seu grande pesar, sofreu dois abortos espontâneos. Como eu previra, ela revelou-se uma mãe excelente e pudemos partilhar a felicidade considerável de que nos enchiam o nosso filho e a nossa filha. Etna era uma professora soberba e possuía uma habilidade para brincar de que nem todas as mães são dotadas (pelo menos, nenhuma das minhas era). Assim, era capaz de dar com ela no quarto de brinquedos, sentada no chão em cima das saias, a manipular com considerável destreza um par de marionetas perante o deleite de Nicky. Ou via-a, por vezes, com Clara no jardim, um esbelto par com os seus vestidos primaveris, correndo uma atrás da outra como duas colegiais. Etna possuía uma constituição forte, assim como um gosto invulgar pelas actividades ao ar livre, dois atributos que a tornavam uma esplêndida companheira de brincadeiras. Era com agrado que eu encarava este facto (e em nada me perturbava a sua falta de feminilidade neste aspecto) já que eu próprio, como não causará surpresa ao leitor, não sentia qualquer inclinação para o desporto. Etna insistiu para que Nicky e Clara aprendessem a jogar ténis e croquet e, com essa finalidade, tínhamos mandado instalar vários relvados e redes na propriedade. A minha mulher tinha sempre um ar encantador com o seu fato de ténis e era uma professora disciplinada, se bem que estimulante. Com o tempo, acabei por compreender que, nestes jogos com Clara e Nicodemus, a minha mulher encontrava um escape adequado para uma inquietação interior - uma inquietação que eu lhe captara fugidiamente na expressão quando ela vivia em casa do tio; uma inquietação, aliás, de que me podiam acusar de ter tirado partido.

Por vezes, esta inquietação tornava-se em algo mais: Etna sentia necessidade de se afastar. Em consequência, era sempre a primeira a querer partir de férias. No Verão, levávamos Clara e Nicodemus para uma pequena povoação litoral na costa de New Hampshire. Alugávamos aí uma casa por um mês ou quartos num hotel chamado Highland. Nas minhas recordações dessas férias, temos sempre areia nas botas e as crianças estão ligeiramente queimadas do sol. Etna tem o guarda-pó de linho vestido e a fita negra do chapéu de palha bate-lhe contra a nuca com o vento leste. Detém-se a contemplar o oceano ou está simplesmente a passear à beira-mar. Ou está a vadear na água com o seu fato-de-banho de angorá, o cabelo apanhado no turbante, as pernas e braços compridos deliciosamente brancos e nus.

Sempre que podia, fazia-lhe companhia na praia ou andava a pé com ela, pois também eu sentia prazer em afastar- me, Thrupp, concluíra há muito, era demasiado asfixiante. Permanecera na escola e ascendera à posição de professor de Literatura Inglesa, leccionando a cadeira dedicada a Hitchcock, quando Noah Fitch tinha assumido o cargo de director de Estudos quatro anos antes. (A palavra Retórica, para meu grande desgosto e antes de eu ocupar a posição de decano, fora abandonada. Considerava-se que os estudantes não a apreciavam. Eu, claro, achei tal concessão absolutamente detestável mas Fitch tinha argumentado, e com sucesso, que se podia certamente continuar a leccionar a disciplina, ainda que de modo dissimulado, e que de qualquer maneira, caso o volume de inscrições não aumentasse, deixaria de se leccionar muita coisa. Todas as disciplinas receberam instruções para melhorar" o respectivo currículo de forma a tornarem- se mais apetecíveis. Critérios duvidosos em toda a linha, disse eu. ) Era uma posição consentânea comigo pois era um administrador competente e tinha implementado algumas ideias no departamento, como por exemplo requisitos mais exigentes para uma licenciatura em Literatura Inglesa e a atribuição dos Prémios Kellogg para dissertações de alto nível.

Quando regressávamos da praia em Setembro, Etna voltava a encarregar-se da supervisão da educação dos nossos filhos, ensinando-lhes inicialmente ela própria os rudimentos da matemática e os princípios da leitura, de modo a prepará-los para a entrada na escola primária. Mais recentemente, porém, Etna havia também começado a praticar a caridade, numa instituição de beneficência, numa vila vizinha. A Baker House, em Norfolk Street, em Worthington, era um estabelecimento que dava abrigo a pobres e a doentes. Nós tínhamos Mary, a cozinheira, e Abigail, a criada, e como há muito que a casa não exigia atenções especiais (tendo Etna desencadeado em mim uma veia de decorador que eu desconhecia possuir) Etna pôde oferecer os seus serviços à instituição de caridade várias horas por semana. Aprendera mesmo a conduzir, no ano anterior, a fim de poder assumir tal compromisso. Eu comprara-lhe " um Cadillac Landaulet de duas portas, um dos primeiros automóveis equipados com ignição eléctrica, permitindo assim o seu uso por uma mulher. Era realmente um carrinho encantador, uma coisa atarracada verde com uma faixa dourada. Etna era uma de apenas quatro mulheres em Thrupp que sabiam conduzir um automóvel e devo dizer que criava uma imagem extremamente viva, sentada ao volante, com o seu bonito chapéu de condução. Por vezes, ao atravessar o pátio da escola a caminho das aulas, avistava-a a passar velozmente na rua. As pontas da sua écharpe esvoaçavam, o carro levantando uma nuvem de pó atrás, e eu pensava com enorme satisfação: É a minha mulher! É a mulher de Nicholas Van Tassel.

São estes os factos do dia-a-dia da vida de casados. Mas por detrás desta agradável narrativa existe outra história - a de um combate nocturno que eu não podia vencer.

Hoje procuro compreender. Poderia ter feito alguma coisa de forma diferente? Estava a ser castigado por me ter apoderado de mais do que merecia? Não sei dizer. Nunca vivi uma situação tão complexa e carregada de ansiedade como o é um casamento. O aluno mais exasperante ou a dissertação mais incoerente não são nada comparados com o desafio de contornar os obstáculos que as delicadas tréguas conjugais que forjamos e de acordo com as quais vivemos nos apresentam.

Quer isto dizer: embora Etna mostrasse ser uma excelente mãe e os nossos filhos nos enchessem de felicidade, as nossas relações, perfeitamente cordiais durante o dia, tornavam-se tensas com o aproximar da noite, o silêncio substituindo-se à conversa, os olhares tornando-se mais cautelosos e procurando-se desejadas distracções. Como era nosso hábito, passávamos o serão juntos no salão, uma pena que nenhum de nós estava disposto ou era capaz de comutar. Assim, eu lia, preparando-me para uma aula, e Etna debruçava-se sobre o bordado num tal silêncio e tranquilidade que eu ouvia mesmo a minha mulher engolir em seco do outro lado do tapete persa. Se ela se sentia aprisionada, eu também - duplamente

- não apenas pelo meu desejo dela, que parecia nunca diminuir, mas também pela tensão que latejava entre nós enquanto eu lia Dreiser e Etna bordava tiras para o aparador.

Não constituirá surpresa para o leitor que a causa deste considerável desconforto entre mim e Etna fosse o leito conjugal, uma monstruosidade em mogno que tínhamos comprado, num silêncio quase total, durante a nossa viagem de núpcias. Embora fosse raro rejeitar-me abertamente, Etna não sentia qualquer prazer com o acto. Noite após noite, enfiava-me dentro dos lençóis e abraçava uma mulher que ainda nessa manhã vira levantar o nosso filho do seu carrinho ou fazer tranças no cabelo da nossa filha, a mulher que horas antes me devolvera uma camisa que acabara de remendar ou que levantara os olhos do livro que lia, agradavelmente distraída, para responder a uma pergunta da nossa cozinheira, descobrindo que, na essência, me estava tão vedado o seu corpo como a sua alma. Embora ela fosse cumpridora do dever nessa cama de trifólios e medalhões de flores, Etna não conseguia amar-me. O tempo, que eu tinha imaginado ser meu aliado (não acaba uma mulher por descobrir, com paciência, as alegrias do amor carnal? Não pode a alquimia do tempo transformar o respeito em amor, o dever em paixão? ), passava, afinal, demasiado lentamente durante essas horas agonizantes antes de nos encontrarmos no quarto. Em consequência, tinha aprendido a refrear-me e tinha-se instalado uma frieza desnecessária, tornada ainda mais fria pelo facto de que, todas as noites, eu recordava a primeira, a minha hedionda certeza de que Etna não era virgem quando nos casámos. Assim, o ciúme renovava-se, reacendia-se, condenado a repetir-se. Era o meu companheiro constante durante a noite, mais fidedigno do que o amor, mais leal do que os meus votos.

Amaldiçoava-me por ter guardado o silêncio na nossa noite de núpcias. Mais tarde, tendo passado a oportunidade de um confronto desta natureza, nunca me deparei com um contexto apropriado para abordar este delicado assunto. Depois, à medida que as semanas decorriam e nós entrámos nas rotinas diárias da nossa vida de casados, a ideia de abordar tópico tão abominável tornou-se cada vez mais insuportável até se ter tornado impossível imaginar sequer questioná-la a esse respeito. (Um momento perdido é um momento perdido para sempre, não é assim? )

Uma noite, alguns meses depois de regressarmos da viagem de núpcias, levantei-me num impulso, atravessei a sala e ajoelhei-me diante da minha mulher. Há alguns minutos que Etna estava a tentar desembaraçar com a agulha um nó de linhas e talvez isso me tenha levado a pensar no nó do nosso casamento que cada vez se apertava mais porque lhe peguei na mão e exclamei que a amava do fundo do coração e apenas desejava a sua felicidade. Ela olhou-me com uma expressão atónita, talvez até alarmada. - Nicholas - disse ela. (Durante anos, a minha mulher manteve uma leve relutância em usar o meu nome de baptismo. Era como se tivesse estado prestes a tratar-me por professor Van Tassel mas se tivesse refreado a tempo. ) Ainda tinha a agulha numa mão; o bastidor tinha-lhe caído no regaço. Os seus olhos, normalmente belos, estavam raiados de rosa mercê da vista cansada (tinha de lhe arranjar um candeeiro melhor, pensei comigo mesmo) e antes de conseguir calar as palavras, exclamei: - Estás tão fria! - Senti a mão dela inesperadamente gelada na minha e não pude deixar de recordar a noite, depois do incêndio no hotel, quando levara Etna a casa de William Bliss e ela colocara a sua mão na minha e exclamara com espanto semelhante: Está tão frio! Era como se, nos meses decorridos desde o nosso casamento, eu tivesse expulso o calor do corpo da minha mulher.

Só numa outra ocasião falei a Etna de amor. Um dia, ao fim da tarde, estávamos a uma janela do segundo andar a observar juntos os nossos filhos que brincavam num pátio lateral. Era um momento como só os pais podem partilhar - o orgulho aliado à mais pura espécie de felicidade - e pareceu-me, nesse dia, que Etna não sorria apenas a Clara e Nicodemus mas também me sorria a mim; na verdade, senti-me tão encorajado por esse sorriso absolutamente espontâneo que disse num impulso, sobressaltando-a: - Ama-me, Etna. Por favor, ama-me. - Foi, sei-o agora, um puro brado no deserto e imediatamente compreendi que a assustara. Ela virou-se lentamente e afastou-se da janela, não de modo rude ou brusco, mas quase com relutância como se tivesse de boa vontade intimado o amor, caso estivesse em seu poder fazê-lo.

(E que dizer das nossas relações físicas? Eu era experiente, ainda que não necessariamente um perito, nas práticas mais exóticas das artes sexuais, um interesse que se revelou perpétuo. Embora nunca tivesse, em circunstância nenhuma, introduzido estes esotéricos actos no leito conjugal, nem conspurcado Etna com os meus consideráveis conhecimentos, possuía, ao contrário de muitos maridos recém-casados, algumas noções sobre o corpo feminino e as formas como podia sentir prazer. Etna não me rejeitava mas tão-pouco reagia; e, embora o insucesso em dar prazer a uma mulher não extinga a chama sexual num homem - infinitamente reacesa - pressupõe o exercício de um esforço adicional, de forma que as nossas relações se tornaram mais rotineiras do que inventivas.

Mas basta. Deus do Céu, basta!

Assim, eu e Etna estávamos sentados entre as cintilantes partículas de poeira, nessa manhã de Outubro, na sala do pequeno-almoço, um hábito a que eu nunca teria voluntariamente renunciado.

Embora fôssemos estranhos à noite, éramos mais uma vez, à luz da

manhã, marido e mulher, amigavelmente envolvidos no quotidiano. Enquanto tomávamos o nosso pequeno-almoço de pão torrado, ovos, carne e tudo o mais, analisávamos - sem nenhuma espécie de tensão - as próximas horas. Ela tinha ao lado do prato uma pena, um tinteiro e um caderno e, enquanto conversávamos enchia as páginas deste com anotações, tarefas a executar ou alimentos a comprar. Adorava observá-la nesta actividade, pois a idade tornara-a ainda mais encantadora e era, aos quarenta anos, mais bela do que quando a conhecera aos vinte e cinco. Estou convicto de que cada mulher tem uma idade particular em que a sua beleza atinge o auge. Com a maioria delas, esta ocorre aos quinze ou dezasseis anos de idade quando ainda são raparigas. Mas, embora estas criaturas perfeitas sejam adoráveis e encerrem infinitas promessas (quantas, contudo, mais tarde desiludem! ), não se pode tocar, digamos assim, nestes tesouros e, por conseguinte, a sua beleza não pode ser plenamente apreciada. Claro que nunca poderei saber que aspecto Etna tinha aos quinze anos (infelizmente, não existem fotografias dela nessa idade) mas posso afirmar com segurança que, aos quarenta, Etna estava no seu melhor.

- Fazes-me companhia na recepção logo à noite? - perguntei

à minha mulher que barrava a torrada com manteiga.

Referia-me a uma reunião que teria lugar nessa noite para apresentar ao corpo docente os homens que até então tinham sobrevivido ao que estava a revelar-se como uma penosa busca para encontrar um substituto para Noah Fitch. Fitch tinha ascendido à posição de director de Estudos, na qual se mantivera durante quatro anos até à sua morte alguns meses antes. Eu não fizera segredo da minha ambição e continuava a ser um dos candidatos finais (Contra todas as probabilidades, também o infeliz Moxon quase lá tinha chegado; era estimado e tinha obtido um sucesso considerável com a sua popular biografia de lorde Byron. ) Os meus dois outros rivais eram Arthur Hallock, o homem que introduzira a Educação Física em Thrupp, e Fisher Talcott Ames, um historiador de Bates College. Durante o Outono, o Conselho de Administradores da escola havia proposto outros candidatos - Atwater Hall, de Prin ceton, William Merriam Hatch, de Dartmouth, são dois de que me recordo - e, embora tivesse sido desconcertante ver pessoas que só podiam ser rivais a percorrer os corredores de Thrupp - sentia-me bastante confiante num desfecho positivo.

A recepção teria lugar em casa de Edward Ferald que rapidamente ascendera ao Conselho de Administradores por via da sua considerável fortuna. Thrupp só podia regozijar-se com a sua presença: antigo aluno e mecenas era uma combinação praticamente imbatível (constava que a fortuna de Ferald excedia os dois mi Ihões). Embora Ferald dispusesse de voto na eleição iminente (um voto que eu não contava granjear; a recordação da classificação negativa que lhe dera no módulo sobre Scott perdurava-lhe decerto na memória), seria apenas um entre sete votos e eu sentia-me razoavelmente seguro de, pelo menos, três deles.

- Aguardo-a com interesse - respondeu Etna, arregaçando a manga da funcional blusa branca que tinha vestida. Eu sabia sempre, pela roupa que a minha mulher trazia ao pequeno-almoço, o que tencionava fazer nesse dia; e, como estava com uma saia de gabardina e um par de botas, que não eram as melhores que tinha, deduzi que passaria uma parte do dia na instituição de beneficência. Exercia aí funções administrativas e era muito apreciada pelas suas competências de secretária. A instituição de beneficência apenas acolhia mulheres, raparigas e crianças indigentes, o que me tranquilizava já que me desagradaria ver a minha mulher exposta ao género de homem que as circunstâncias teriam forçado a recorrer à caridade. Já assim era terrível que Etna tivesse de conviver com os horrores que se abatiam sobre raparigas de baixa índole moral mas consolava-me, imaginando que a minha mulher não se pouparia a esforços para garantir que a nossa filha, Clara, nunca corresse tais perigos. - É para jantar? - perguntou ela.

O telefone tocou na cozinha e eu esperei que não fosse para mim. Não gostava que os meus interlúdios matinais com Etna fossem interrompidos sob nenhum pretexto. - Julgo que sim - disse eu.

- Então vou dispensar a Mary depois de ela preparar o jantar das crianças. Hoje não vamos jantar em casa e nenhum de nós vem almoçar.

- Não, tens razão - disse eu, distraído com a parangona do

dia: WILSON APELA À NAÇÃO PARA QUE REZE PELA PAZ.

- Embora ela pudesse ir às compras - disse Etna mais a si mesma do que a mim.

- A recepção destina-se a apresentar ao corpo docente os restantes candidatos ao lugar de director - disse eu.

A minha mulher levantou o olhar da sua lista. - O lugar devia ser teu.

- Julgo que sou um forte candidato - respondi. - Se não fossem os regulamentos que atam as mãos aos administradores, talvez o lugar já fosse meu. - Falei com equanimidade mas, sob a minha fachada serena, sentia-me irritado com a necessidade de a universidade considerar candidatos externos.

- Quando é a votação?

- Quatro de Dezembro.

- Porquê uma espera tão longa?

- A data é estipulada em regulamento. Tem de ocorrer precisamente quatro meses depois de iniciada a procura.

- Talvez seja um bom dia para chamar o pintor para acabar o corredor - disse Etna, encostando a ponta da caneta ao queixo. Podia trabalhar à vontade pela tarde fora e até à noite.

- Sim - disse eu -, é uma boa ideia.

E depois ela disse, baixando a voz: - Vou precisar de mais dinheiro, Nicholas.

Levantei o olhar para ela. - Para.

- Gasolina para o carro - respondeu. - E tenho outras despesas. Mais pessoais.

- Sim, com certeza - respondi, não querendo insistir no que poderiam ser estas despesas mais pessoais.

- E a Clara está com tosse - acrescentou.

- A Clara não está com tosse - retorqui, relanceando para as cartas que Mary tinha acabado de pousar ao lado do meu prato.

- Ouviste-a hoje de manhã - disse Etna.

- Na minha opinião - disse eu, abrindo o primeiro envelope do maço -, a nossa filha é uma actriz extremamente talentosa quando lhe convém.

- A nossa filha não mente.

- Adoro-a do fundo do coração, Etna, mas acontece que sei que a Clara tem um exame particularmente odioso a Geometria logo à tarde e que é capaz de recorrer a qualquer estratagema para se furtar. Não me digas que lhe disseste que podia ficar em casa.

- Receio bem que sim - disse a minha mulher.

- És demasiado branda - disse eu, com bondade. Levantei-me, dirigindo-me ao corredor, e chamei para o cimo das escadas.

- Clara, chega aqui abaixo, por favor - disse eu, lendo o que afinal não era uma carta mas uma factura. - Isto deve ser engano - observei.

- O que é? - perguntou Etna.

- É a conta de um candelabro - respondi, virando-me para ela. - Ferro branco, seis castiçais. Do March's em Hanover. Encomendámos algum candelabro?

- Deixa-me ver - disse Etna. Ao fim de um momento, acrescentou no que me pareceu um tom irritado: - Devolvi-o. Não percebo porque é que nos mandaram a factura.

- Então sempre encomendámos um candelabro?

- Fui eu que encomendei - explicou ela. - Achei que podia ficar bem na entrada lateral. Mas era demasiado grande e eu devolvi-o.

- Vou telefonar ao homem a lembrar-lhe.

- Eu trato disso - disse Etna. - Tu tens muito que fazer. É um artigo doméstico, deixa comigo.

Não sei se continuámos ou não a discutir o assunto porque Clara, cuja presença era sempre enérgica (mesmo quando se fingia doente), desceu as escadas e entrou na sala. Nascera um ano e dois dias depois de casarmos e estava a transformar-se numa graciosa rapariga. Durante algum tempo, tinha pensado que ela seria uma criança frágil e franzina pois não conseguia ganhar peso, mas ultimamente tinha-se tornado mais robusta. Clara herdara a altura de Etna e o tom louro e olhos azuis dos meus antepassados holandeses (se bem que eu próprio tivesse cabelo castanho) e possuía uma pele de uma textura refinada. Tive de reprimir um sorriso quando ela entrou na sala pois abotoara mal o casaco de lã que usava sobre o uniforme.

- Estás doente, Clara? - perguntei. - Aviso-te que deves dizer-me a verdade.

A nossa filha abriu a boca para responder, mas alguma coisa na minha voz, ou talvez no meu rosto, levou- a a hesitar. Tinha entrado na sala com um aspecto pálido que disfarçava deficientemente as suas cores saudáveis. Parecia agora mais confusa do que afectada pela tosse.

- Minha querida - disse eu, suavizando o tom -, achas que podes fazer um esforço sério para ir hoje à escola dada a importância do exame de Geometria?

Ela ponderou este pedido e olhou de relance para a mãe.

- Concordo com o teu pai, Clara - disse Etna. - Talvez já te estejas a sentir melhor.

Clara tossiu debilmente mas até ela percebia que o jogo estava perdido. E, uma vez perdido, não havia agora qualquer razão para simular falta de apetite. Contemplou avidamente o festim sobre o aparador. - Hoje há compota com pão? - perguntou.

Parti a pé para a universidade, como era meu hábito durante a semana sempre que o tempo o permitia, embora tentasse fazer a caminhada mesmo em condições inclementes. Esta caminhada era a minha única forma de exercício. Como provavelmente mencionei, não fazia exercício, como muitos dos meus colegas, por prazer. Não andava a cavalo, por exemplo, nem jogava boling ou baseball. Mas, não obstante, o meu andamento era vivo, instigado pela tonalidade quase transparente das folhas outonais - em tons de ocre dourado e vermelho tulipa, entremeadas com tons verdes de relva. O solo, o ar e a água da Nova Inglaterra produziam estas cores vibrantes e, por mais que as esperássemos, eram sempre uma surpresa (e essa surpresa constituía outra surpresa já que eu habitava a Nova Inglaterra há bem mais de vinte anos). A memória esquecia, durante a alvura do Inverno e a humidade do Verão, como a Natureza podia ser brilhante. De facto, as cores, assim como o azul do céu, eram quase inacreditáveis e eu pensei como era raro encontrar descrições correctas da Natureza na literatura. (Woodsworth possivelmente, embora mais uma vez tivesse sido mais a ideia da Natureza do que a própria Natureza que tanto havia cativado esse poeta. ) Era o suficiente para evocar o Criador (sendo o Outono na Nova Inglaterra uma das melhores criações de Deus), apesar da minha morna familiaridade com Deus - a quem, contudo, agradecia com frequência o milagre dos meus filhos e o milagre mais inconcebível do meu casamento de catorze anos com Etna Bliss.

A minha caminhada, nessa manhã, levou-me a passar por duas explorações leiteiras, nenhuma delas pitoresca, depois pelos arredores da vila onde as casas modestas não eram agradáveis à vista (as casas do pessoal da escola, dos comerciantes locais e por aí adiante) e por fim ao início de Wheelock, resplandecente com um toldo de folhagem, formando um túnel exuberante que se desejava ardentemente atravessar. Recordei então os meus passeios outonais com Clara, não muitos anos antes, e a forma como ela batia palmas e a sua boca desenhava um O" de espanto. Corria à minha frente apanhando as manchas de cor mais deslumbrantes – vermelho tangerina, amarelo manteiga - de modo que, quando chegávamos a casa, os nossos bolsos restolhavam com folhas secas. (Como eu adorava esses passeios e agora a recordação deles! )

Percorri em passos largos Wheelock Street com um pouco mais de decoro do que Clara a teria percorrido. Embora o mundo tivesse mudado consideravelmente desde 1899, as casas nessa rua não. Detive-me diante da casa de William Bliss que até há pouco tempo fora visita frequente da nossa casa; os nossos filhos tratavam-no por vovô" como se trataria um avô bem-querido. Mas tragicamente agora, fora-lhe diagnosticado um cancro e eu sabia que ele estava a repousar num quarto no andar de cima. Etna e William tinham-se tornado mais próximos com o tempo e ela visitava-o várias vezes por semana. Creio que o considerava como um pai, papel que ele desempenhava com prazer. Eu próprio o visitava muitas vezes e pensei em fazê-lo nesse dia mas, após uns instantes de reflexão, decidi continuar, relutante em entrar, numa manhã tão gloriosa, na sombria câmara da morte. E como acontece com quase todas as decisões egoístas, dei comigo, enquanto me encaminhava para a escola, a pensar na única coisa que tinha esperado evitar, que era a morte, a de Bliss e, um dia, a minha. E o curso dos meus pensamentos levou quase de imediato a uma ideia intempestiva, capaz de fazer suster bruscamente a respiração: se eu morresse antes do final do semestre (que era o tempo de vida dado a Bliss), qual seria o meu legado? Em que é que Nicholas Van Tassel teria deixado a sua marca?

Entreguei-me a uma atitude de contemplação e reflexão sobre o ambicioso Van Tassel que chegara a Thrupp tantos anos antes. Outros homens da escola tinham escrito obras melhores do que as minhas, tinham publicado mais, tinham recebido mais distinções e prémios. As trajectórias das suas carreiras tinham sido mais rápidas, a ascensão mais galopante. A minha não fora uma carreira totalmente insignificante - ensinara centenas de alunos e inspirara talvez até um ou dois; e dera provas de ser um administrador capaz (era, aliás, a supervisão eficaz do que era agora um departamento de Inglês plenamente desenvolvido que falava, melhor do que qualquer outra coisa, a favor da minha ascensão ao lugar de director de Estudos) - mas, mesmo assim, estes pequenos sucessos não equivaliam à grandeza. Não, pensei ali parado no pátio, se alguma vez na vida aflorara a grandeza, fora no amor pela mulher com quem casara. Sabia que poucos homens das minhas relações teriam afirmado que se podia atingir a grandeza simplesmente por amar outra pessoa: era demasiado simples, demasiado banal, demasiado iluxório, teriam sem dúvida argumentado. Na verdade, raramente ouvira um homem falar de amor; subentendia-se que era um discurso exclusivamente reservado às mulheres e aos poetas. No entanto, eu sabia, ali parado, que tocara, ao amar Etna, em algo de extraordinário em mim mesmo. Era a única ocupação que absorvera todo o meu ser: os meus sentidos, o meu intelecto e as minhas emoções.

Avancei um passo e continuei a andar, mas então estaquei abruptamente, assaltado por um novo e perturbante pensamento. Não seria necessário que esse extraordinário amor fosse correspondido para atingir a verdadeira grandeza? Etna nunca me falara de amor e eu sentira relutância, depois desses dois (angustiantes) con frontos anteriores, em pressioná-la a esse respeito. Ela nutria agora mais afeição por mim do que no início do nosso casamento - estava plenamente certo disto - mas amar-me-ia? É com uma certa angústia - ainda agora, depois destes anos todos, mesmo depois do que ainda estava para acontecer - que tenho de escrever aqui que não amava. Não como eu a amava a ela. Era este o acordo que tínhamos celebrado, não era? Ela concordara em ser minha mulher a troco da liberdade de ser mãe e senhora da sua própria casa e, mais recentemente, de se deslocar de automóvel para um lugar onde colhia alguma satisfação em praticar a caridade. Por um longo momento, enquanto observava os estudantes a atravessarem o relvado do pátio - essa viva geometria outonal - senti tristeza, em perfeita discórdia com o esplendor do dia. Mas então recordei a mim mesmo que Etna Bliss era realmente minha mulher. Não seriam essas questões irrelevantes perante uma verdade tão imensa? Sacudi a melancolia passageira que me assaltara e dirigi-me para a sala de aula.

Ouvi as vozes ainda antes de ter dobrado a esquina. O tom arrastado e enfatuado de Ferald e as perguntas feitas numa voz aguda por Moxon (a própria voz da sinceridade) eram inconfundíveis, embora houvesse uma terceira voz que não consegui identificar, uma voz com um sotaque britânico que talvez se tivesse diluído ao longo dos anos. Pensei em esgueirar-me, sem ser visto, para uma sala de aula, pois não desejava encontrar-me com Edward Ferald em circunstância alguma mas já era demasiado tarde. Aliás, se não me tivesse apertado contra a parede, talvez tivéssemos colidido.

- Van Tassel - disse Ferald, a saudação não evitando a alusão a todo um universo: uma hierarquia, um leve divertimento e, naturalmente, desdém -, quero apresentar-lhe o Phillip Asher, ultimamente de Yale.

Asher era uma boa cabeça mais alto do que eu e tinha uma constituição mais seca. Trazia um fato de estambre cinzento que condizia com os olhos (embora talvez fosse ao contrário e os olhos tivessem adquirido a coloração do tecido). Sorriu levemente mas, ao contrário do sorriso de Ferald, o de Asher não continha qualquer malícia ou ruindade. Usava o cabelo claro um pouco comprido e completamente penteado para trás a partir de uma testa de rapaz. Possuía uma aparência agradável - poder-se-ia mesmo dizer atraente - e irradiava, além de uma decência geral, uma viva inteligência. Não me custou nada a crer que fosse de Yale.

- O que o traz a Thrupp? - perguntei.

- O professor Asher vai proferir as Palestras Kitchner - Ferald respondeu por ele.

- Parabéns - disse eu.

As Palestras Kitchner eram uma série de colóquios estruturados em torno do eterno conflito entre o bem comum e o ganho privado. Os alunos finalistas dos departamentos de Filosofia, História e Literatura Inglesa eram obrigados a assistir, embora todos os estudantes e professores fossem convidados. Em regra, as palestras eram proferidas por um distinto homem de letras e conferiam à escola um certo prestígio. Como seria de esperar, suscitavam também muitas vezes um intenso e generalizado debate.

- O Asher é um homem de muitos talentos - disse Ferald. Além de professor de Filosofia, é especialista em Milton, economista e poeta.

- Deveras? - disse eu.

- Creio que conheço o seu trabalho - disse Asher. - A sua especialidade é Scott?

Não pude deixar de sentir agrado com o facto de o meu trabalho ter chegado ao conhecimento de Asher. No entanto, não fui capaz - com grande desalento - de ligar o nome de Asher a nenhuma obra crítica de que me lembrasse. Foi Moxon quem acorreu em meu auxílio.

- A especialidade do Asher é Nietzsche - esclareceu. Pensei por um momento.

- Infelizmente, não nos desembaraçámos de Deus - citei, o pedante em mim vindo ao de cima - porque continuamos a ter fé na gramática.

Ferald até riu. - Van Tassel, a sua erudição assombra-nos. Com o tempo, Ferald tornara-se simplesmente mais insuportável, se é que tal é possível. O que em Ferald era, aos dezanove anos, incipiente, aos trinta e quatro estava plenamente maduro. Desen volvera uma elegância apenas comparável à sua presunção. A roupa, importada de Inglaterra, era da melhor que se confeccionava na época. Cultivara um tom de voz arrastado e irónico que, na minha opinião, lhe tinha contorcido bastante a forma da boca que, em repouso, parecia esboçar um sorriso escarninho. Detestava o homem - a sua ostentosa riqueza perante tantos ilustres académicos sem recursos, a sua imerecida autoridade (embora inteligente, fora um aluno fraco - orgulhava-se mesmo do facto), a sua interferência indiscreta nos assuntos académicos (era partidário da introdução de um departamento de Medicina, proposta a que eu me opunha violentamente pois esgotaria os já débeis recursos da escola). Mas sobretudo odiava o seu olhar semicerrado, um olhar que ele fixou em mim enquanto estávamos naquele corredor.

- Tenciona deslocar-se entre Yale e Thrupp? - perguntei a Asher.

- Estou de licença sabática - respondeu. - Por sinal encontro-me hospedado no Hotel Thrupp.

Ao nosso lado, Moxon era uma coreografia de tiques nervosos, passando os dedos pelo cabelo, metendo e tirando as mãos dos bolsos, sacudindo cotão da lapela. Até Ferald parecia ansioso por seguir caminho.

- Professor Asher - disse Ferald, impelindo o convidado dele em frente -, não convém demorar mais o professor Van Tassel.

Asher estendeu a mão. - Muito prazer em conhecê-lo, professor

- Igualmente - retribuí.

Devo parar agora pois doem-me os olhos do esforço de tentar escrever num veículo em andamento. A temperatura subiu bastante no meu compartimento mas há sempre água potável arrefecida automaticamente, disponível em borbulhadores, para não falar de um jarro de chá gelado a pedido e, assim, vou-me sentindo o mais confortavelmente possível no calor da Carolina do Norte. (Não fazia ideia de que o mês de Setembro pudesse ser tão húmido. ) Esta manhã, fui em busca de algum refrigério até à carruagem-salão panorâmica, que é a última carruagem, onde me sentei no convés de trás com vários outros passageiros a admirar a paisagem. O cenário fugia de mim impetuosamente enquanto circulávamos a quase cem quilómetros por hora e não pude deixar de pensar que era uma sensação semelhante à de escrever um livro de memórias: procura-se escrever, avançando no tempo e respeitando uma certa cronologia, mas tentando ao mesmo tempo agarrar o passado que desfila veloz e reflui na distância - desaparecendo por fim no ponto de fuga.

Fui ao encontro de Etna ao fundo das escadas e, mais uma vez, ocorreu-me como ela se tornara atraente ao longo dos anos. Já não parecia tão alta como na época em que a conheci. (Terá sido realmente possível? Não, claro que não. Era simplesmente o facto de já não me parecer tão temível como outrora). Nessa noite, envergava um vestido de noite em cetim, de gola subida e de um tom de cobre polido, atrevidamente curto (embora lhe ficasse apenas a sete ou oito centímetros acima dos sapatos de cerimónia, não sendo tão audaciosamente curto como as saias dos dias de hoje; impudicamente, penso por vezes, apesar de nunca ter sido indiferente aos encantos femininos). Trazia umas meias de seda de uma tonalidade condizente com a do vestido e não tive dúvida de que todos os homens na recepção admirariam aqueles fortes tornozelos acobreados. Tinha ainda posto o extravagante chapéu de condução, um objecto preto e castanho de aba larga, com um véu e duas fitas com que era atado por baixo do queixo. Eu adorava aquele chapéu e tinha-lho dito vezes sem conta; era, por esta altura, um elemento característico e familiar em nossa casa.

Ajudei-a a vestir o casaco. - Queres que conduza? - perguntei.

- Não, de maneira nenhuma - disse ela. - És um condutor demasiado nervoso, Nicholas. Conduzo eu, se não te importas.

Ela tinha razão. Eu era um péssimo condutor, curvando-me sobre o volante e agarrando-me a ele com tal força que os meus dedos ficavam perros durante alguns minutos depois de chegar ao meu destino. Não conseguia apanhar-Lhe o jeito e nunca descontraía. - Não me importo nada - respondi.

Segui Etna pela porta lateral e ao longo de um caminho no jardim que levava à cocheira. Tinha havido, meia hora antes, uma trovoada violenta, mas agora o sol estava a pôr-se dentro de uma faixa limpa por baixo de um manto de nuvens. Já quase não havia luz, mas ainda se via o jardim, ou antes, os seus resíduos outonais. Havia flor em flor (como adorava a sua fragrância; já tenho pensado em restaurar o jardim simplesmente para voltar a tê-lo, mas seria apenas eu a desfrutá-lo e, como certamente me encheria de melancolia, não acho aconselhável). O jardim fora concebido por Etna e dava-lhe prazer trabalhar nele de manhã. Punha um avental de jardineiro, um chapéu de palha e um par de botas, ficando com um aspecto cómico e enternecedor. Possuía uma arte extraordinária a tratar das rosas que ainda persistiam e continuariam a persistir até as queimar uma geada. Aliás, tínhamo-las normalmente em abundância, na mesa do vestíbulo, até meados de Outubro.

- Se for eleito director - disse nas esplêndidas costas de Etna -, vou dar duas festas por ano: uma no Outono só para os docentes. uma coisa exclusivamente masculina com charutos e conhaque e o mais. e, na Primavera, uma festa familiar no jardim. Em Maio, talvez. Há-de agradar-me ver o jardim cheio de crianças.

- É uma ideia maravilhosa - observou Etna.

Como acontece por vezes no seu último sopro, o sol iluminou nesse momento os caules das roseiras e do flox, a vedação de estacas que Etna insistira em instalar, os relvados, as árvores de fruto e até a minha adorável mulher, com o seu chapéu exuberante, com uma tal fulgência que me inspirou temor (e ainda agora inspira quando a recordo). O mundo tomou, por esse breve instante, uma tonalidade de salmão e tornou-se cintilante. No céu, contra a nuvem escura que refluía, um arco-íris, uma visão bastante rara, ergueu-se a partir do campo vizinho do nosso.

- Olha, Etna - disse eu.

A minha mulher parou e observámos juntos o fenómeno e eu não pude deixar de pensar que a minha vida e tudo quanto eu possuía estavam a receber uma benção pagã. Era um homem afortunado, não era? Exceptuando a minha inquietação nocturna que, com aquela luz rósea, estava mais que preparado para ignorar, eu e Etna tínhamos um bom casamento, muito melhor do que a maioria. Nunca discutíamos nem desdenhávamos um do outro, uma atitude que tenho frequentemente presenciado noutros casais. Como sou afortunado pensei, em transe, no caminho do jardim. A felicidade, que me escapara toda a vida, parecia de tal modo ao meu alcance que não hesitei em invocá-la. - Sou tão feliz - disse.

- Meu querido - disse Etna.

- Vou apreciar esta noite - acrescentei.

- Claro que vais - respondeu Etna.

A casa de Ferald era ostensivamente majestosa e destoava por completo da modéstia generalizada da Nova Inglaterra rural. A sua construção era de estilo georgiano, em pedra calcária inglesa importada para o efeito. (Nem consigo imaginar o custo - e com granito de New Hampshire por todo o lado! ) Tinha um pórtico maciço com pilares de dois andares de altura. As janelas sem adornos eram igualmente amplas e suponho, se descontarmos os excessos, que a casa se poderia chamar senhorial, comentário que foi amiúde avançado nessa noite por homens ansiosos por cair nas boas graças de Ferald. (A referida casa, tenho o prazer de informar é hoje uma escola para invisuais. )

- Meu Deus - exclamou Etna quando subimos a rampa de acesso circular.

- Fogo de vista, se queres saber.

- Mas ainda assim é absolutamente extraordinária.

- Há homens que são capazes de tudo para alardear uma opulência que, na minha opinião, não merece ser alardeada.

- Não gostas muito dele, pois não? - disse ela.

- Sou obrigado a ser cortês com o homem - respondi.

- Achas prudente ser simplesmente cortês? Dadas as circunstâncias?

- O voto dele não passa de um entre sete. Nem mais, nem menos. E estou pelo menos seguro de três dos outros. Felizmente para mim o conselho é democrático.

Ao entrarmos em casa de Ferald, este cumprimentou-nos com um leve sorriso. - Professor Van Tassel, deixe-me apresentar-lhe a minha mulher, Millicent.

Como nunca fora convidado para jantar com os Ferald, não conhecia a mulher com quem ele se casara há menos de um ano, uma criatura insubstancial e exuberante, de casaco de renda e tiara cravejada de jóias. Tinha feições esbeltas e delicadas, o cabelo quase tão claro como a pele. Possuía, contudo, um ar um pouco desorientado como quem está continuamente aturdido. Sugeria que a mulher de Ferald talvez não estivesse à altura do astucioso marido, o que inspirava instantaneamente uma espécie de piedade.

- Como está? - disse eu, apertando-Lhe a mão. - Esta é a minha mulher, Etna.

(Como nós, homens, adoramos os nossos pronomes possessivos. )

Etna sorriu à mulher mais nova. Bastante nova, mesmo; Millicent Ferald não podia ter mais de vinte anos. - Tem uma casa muito bonita - disse Etna.

- Ah, acha que sim?

- Sim, é grandiosa.

- Não acha demasiado grande?

- Não, de maneira nenhuma. Deve dar muitas festas.

- É o que me põe tão nervosa - disse Millicent Ferald. - Receber tantos convidados!

Ferald, mal podendo disfarçar a sua impaciência com esta reveladora troca de palavras, debruçou-se contundentemente pelo lado de Etna para apertar a mão do homem que estava atrás dela. Era um insulto que procurei esconder da minha mulher, afastando-a da en trada. Felizmente, fomos quase de imediato abordados por Moxon que parecia todo braços e pernas com o fato que lhe assentava mal, as calças demasiado curtas para a sua considerável altura. Pensei como era possível que o tivessem sugerido para o lugar de director apesar do êxito da sua popular biografia. Não dizia coisa com coisa, era incapaz de cativar uma audiência e vestia-se, apesar de um salário decente, como um comerciante. Nessa noite, ostentava um colete às riscas vermelhas que, noutra pessoa qualquer, teria sido vulgar mas em Moxon era simplesmente exótico.

- Viva, viva - disse ele na sua voz estridente, o tom e o sorriso rasgado no rosto evidenciando o seu prazer em ver um amigo (tanto quanto eu ou Moxon tínhamos amigos). - E Etna. Está esplendorosa.

Moxon, o eterno infeliz, estivera noivo da filha de um pastor metodista local e fora praticamente abandonado no altar quando a rapariga caiu em si e partiu para o Simmons College, em Boston. Tendo lido a biografia de Moxon de lorde Byron e tendo-se con vencido de que Moxon e Byron eram uma e a mesma pessoa, durante algum tempo a mulher estivera sob a influência de um fascínio romântico. Eu sabia, sem sombra de dúvida, que Moxon ficara devastado com a rejeição, embora tivesse enfrentado a situação com coragem. A noite seria difícil para ele pois quase todos os professores eram casados - com excepção do ascético Erling Morse

um homem prematuramente mirrado que leccionava vários cursos fastidiosos de História Antiga.

- Obrigada - disse Etna, aceitando o beijo dele. - Que colete interessante!

- Horrendo - disse Moxon com jovial auto- reprovação. Tenho de arranjar um alfaiate. Estou sempre a dizer. Aqui o Nicholas tem um excelente alfaiate. Não tem, Nicholas? Exuberante, não é?

Etna olhou para o tecto ornamentado e bodejado por uma moldura dourada.

- Quem é que inventa estes ornatos? - interroguei-me em voz alta, olhando para as paredes forradas a seda.

- A casa tem piscina - disse Moxon.

- Não consigo imaginar o Ferald a fazer exercício - comentei.

- Uma piscina - disse Etna. - Que divertido! Estava tão distraído a imaginar Etna de fato-de-banho a entrar para a água de uma piscina interior (não sei porquê, mas vieram-me à cabeça uma toga e um cacho de uvas) que demorei alguns momentos a perceber que tínhamos passado à sala de estar onde a maioria dos convidados estava a beber champanhe (uma extravagância desnecessária, pensei, típica de Ferald; afinal, a nossa missão era educativa e não recreativa). No entanto, reparei que a bebida começara a entontecer os presentes, a sua efervescência transformando-se em vozes musicais. Ouviam-se muitas gargalhadas, o que não era de todo desejável. Na verdade, algumas pessoas recordariam mais tarde a festa de Ferald como um dos serões mais animados na história recente da escola.

Foram servidos canapés. Bebeu-se mais champanhe. Moxon perdeu-se no meio da multidão. Pus a mão nas costas de Etna mas como um barco a remos que por vezes se afasta à deriva das suas amarras, várias cotoveladas e saudações separaram-na de mim. Tive uma breve conversa com Arthur Hallock sobre o estado de saúde de William Bliss (mau) e, durante a mesma, reparei que Eliphalet Stone, um dos administradores, estava próximo de mim. Encarando a sua presença como uma excelente oportunidade para promover um pouco mais a minha candidatura, quanto mais não fosse travando conversa com ele, encaminhei-me na sua direcção.

- Vamos ter lagosta - disse quando cheguei junto dele. Stone, com oitenta anos, pelo menos, não devia ter sequer um metro e cinquenta de altura e eu tive de me inclinar para me fazer ouvir por sobre a ruidosa animação.

- O que disse? - perguntou ele, pondo a mão em concha no ouvido.

- Lagosta! - respondi quase a gritar.

- Lagosta - disse ele com visível desagrado. - Não como pesca de fundo.

- Ai não? - disse eu. - Pois, talvez não.

- Estive a falar com o sujeito de Bates - disse Stone, indo direito ao assunto. - O que quer o seu lugar.

- Refere-se ao Fisher Talcott Ames?

- Um nada insípido - disse Stone, o que achei um comentário interessante, vindo de um homem que não era conhecido pela sua conversa nem pelo seu humor. - Já sabe que voto em si - acrescentou Stone como se fizesse uma declaração triste. - Detesto a mudança.

- Sim - disse eu afavelmente. - Ninguém gosta.

- Onde está a sua bonita mulher? - perguntou Stone. Virei-me para apresentar a minha bonita mulher e apercebi-me então de que a tinha perdido.

- Se me dá licença - disse eu a Stone, pensando que Etna era sempre um trunfo e que não devia deixar passar a oportunidade de ela falar com Stone. - Vou ver se a encontro.

Mas onde estava a minha mulher? Não estava no salão nem na sala de jantar. Fiquei claramente preocupado. Ter-se-ia sentido mal?

Escapei da festa e entrei num corredor com algumas obras de arte de qualidade (alguns mestres holandeses, notei com agrado).

O burburinho geral da reunião foi diminuindo à medida que me afastei. O pavimento era ladrilhado e levava, não tardei a descobrir, à piscina coberta. Entrei na sala húmida, revestida a azulejos azuis. A piscina não era tão impressionante como fora dado a entender; o espaço parecia exíguo para um nadador exuberante.

- Para que é que achas que serve? - perguntou Etna, sobressaltando-me. Estava imediatamente à direita da porta quando entrei e eu não a vira de imediato.

- Etna - disse eu com uma certa surpresa -, estava preocupado contigo.

- Queria ver a piscina.

- Devias ter-me dito alguma coisa.

- Estavas a falar com Mr. Stone. Não quis interromper.

- Estamos a invadir propriedade alheia - observei. Ela sorriu: um sorriso deliciosamente maroto. - E achas que vamos ser castigados? Mandados para casa sem jantar?

Se a casa fosse de outra pessoa que não Ferald, teria insistido para que voltássemos imediatamente para a festa. Mas, como já tinha bebido duas taças de champanhe, considerei sedutora a ideia de violar a propriedade de Ferald.

- Imagino que o Ferald e a mulher nadam aqui - disse eu. Nesse momento, tive uma fugaz e desagradável visão de Ferald sentado numa das espreguiçadeiras, à beira da piscina, a observar a mulher, Millicent, a cabriolar nua para sua exclusiva recreação - uma imagem que procurei de imediato banir, não apenas pela sua lascívia mas também porque substituíra a imagem mais feliz de Etna com a toga e as uvas. Ferald possuía realmente um certo ar venal - poder-se-ia dizer abjecto e moralmente corrupto - e reparo, ao tentar evocar essa noite e passar ao papel as minhas recordações, que a imagem desse rosto está sempre a interpor-se na minha narrativa.

Etna baixou-se para tocar na água que emitia reflexos das luzes eléctricas em cima. Passou os dedos pela superfície, perdida por alguns momentos num devaneio próprio. Talvez estivesse a recordar alguma viagem agradável que tivéssemos feito ao litoral. Observei-a com prazer.

- Estás a ter uma boa recordação - disse eu, passado algum tempo.

Ela levantou os olhos para mim.

- Tu - disse eu. - Agora mesmo. Parecia que estavas a lembrar-te de alguma coisa agradável.

- Tenho muitas recordações boas, Nicholas - disse ela.

- Espero que algumas delas sejam comigo - disse eu. Ela levantou- se e sacudiu a água dos dedos. - Tenho boas recordações com a família, sem dúvida - disse ela cautelosamente.

Contornou a borda azulejada da piscina e sentou-se numa cadeira de vime. Com o movimento levantou-se-lhe a saia. Atraído pela visão dos seus tornozelos acobreados, fui sentar-me numa cadeira adjacente. Ao longo da parede do lado oposto, havia muitas plantas que pareciam medrar na humidade do compartimento. O cabelo de Etna tinha começado a encaracolar-lhe nas têmporas. Estendi o braço e peguei-lhe na mão.

- É muito importante para ti? - perguntou ela.

- A tua felicidade?

- Não, referia-me ao lugar. De director.

- É, penso que sim- respondi. - Sou ambicioso.

- Não excessivamente.

- É uma coisa que já desejo há alguns anos.

- Vais ficar mais sobrecarregado de trabalho.

- Encaro isso como um desafio.

- Sim, claro - disse ela, sorrindo-me.

- A que é que achas graça? - perguntei.

- Estava a recordar a primeira vez que tomámos chá no centro da vila, em Kimball Street. Disseste que estavas disposto a esperar anos para obter a posição do Noah Fitch. Eu fiquei impressionada com a tua paciência.

- Parece que foi há uma eternidade - disse, pensando nesse agradável passeio. - Lembro-me que falaste de Newman.

- Ficaste surpreendido por eu ter sequer ouvido falar dele - disse Etna.

- Pois fiquei, sim. Sei agora que não devia ter ficado. Falaste de liberdade.

- Falei?

Ela retirou a mão. - Talvez seja melhor voltarmos. Vão sentir a nossa falta.

- Deixa-te estar mais um pouco - disse eu, não desejando ainda largá-la e devolvê- la aos outros.

Havia uma coisa que eu queria dizer à minha mulher. Agora, ao fim destes anos todos. A ondulação da água, aliada a um elemento de risco, insuflavam-me coragem. E, embora tivesse consciência de uma voz mais severa, mais sensata a gritar-me não na cabeça, sentia-me terrivelmente tentado a ser aventuroso.

- Gostava. - disse eu.

Etna voltou a cara para mim. Esperou. - Do que é que gostavas, Nicholas? - perguntou decorridos alguns momentos.

Tentei formular a pergunta a que desejava desesperadamente que a minha mulher respondesse. Abri a boca e voltei a fechá-la. Como havia de a frasear exactamente? Devia começar com uma desculpa? Devia começar por dizer que sabia que a pergunta podia ser ofensiva mas que esperava há muito tempo por uma resposta? Tinha demonstrado paciência, não tinha? Não era uma resposta a que um homem, um marido, tinha direito?

Tornei a abrir a boca. Talvez me tenha debruçado. Talvez Etna também se tenha debruçado. Tive a sensação de que se instalou um prolongado silêncio entre nós.

- Gostava de poder apagar a recordação da nossa viagem de núpcias! - disse num impulso, sentindo-me frustrado.

Etna retraiu-se ligeiramente - atónita, creio, ante a ferocidade da minha declaração. Continuou sentada na atitude de imobilidade que tantas vezes a vira adoptar em situações de medo ou confusão. Nunca estivéramos tão perto de discutir o que se passara na nossa noite de núpcias e, naquele momento, senti-me perfeitamente horrorizado por ter perdido o controlo da fala.

- É só que. - disse eu, procurando suavizar e explicar. Parece ter. - Apercebi-me, naturalmente, de que não podia dar voz às minhas ansiedades dessa noite. Não podia perguntar-lhe se tivera outros amantes antes de mim. O bom senso vencera o arrojo.

- Não sei bem - disse eu, impotente.

Etna abanou a cabeça. - O que é que se passa, Nicholas? perguntou ela. - Estás a portar-te de um modo muito estranho esta noite.

- Não se passa nada - respondi. - É só que. - Mas fui incapaz de continuar. Ela compreendeu, tenho a certeza, pois pousou a mão dela sobre a minha num gesto de ternura e com uma bondade que, ainda agora ao recordá-la, me corta a respiração.

- Nicholas, às vezes dás-me vontade de rir. És tão sério e esforças-te tanto - disse ela.

- Todos nos esforçamos dentro das nossas limitações - redargui.

- Ouvi dizer que havia uma estufa - disse ela, levantando-se.

- Uma estufa - disse eu, seguindo-Lhe o exemplo. - Outra afectação inglesa. Se o Ferald está tão enamorado da Inglaterra, talvez o melhor fosse mudar-se para lá.

- E isso fazia-te feliz? - perguntou Etna.

Puxei para baixo o colete que me tinha subido acima da volumosa barriga. - Eu já sou feliz - insisti.

Saímos da piscina coberta. Enquanto andávamos de sala em sala, ouvi o murmúrio das vozes que chegava das divisões comuns da casa. Acabámos por encontrar a estufa envidraçada através da qual se viam as estrelas. Descobrimos ainda uma cozinha extremamente moderna, equipada com as últimas comodidades: uma torradeira, um frigorífico, um fogão eléctrico. Eu e Etna percorremos, ofegantes, uma copa que parecia quase tão comprida como o limite sul da nossa casa que já era relativamente grande. Voltámos para junto dos convivas como crianças que cometeram uma asneira terrível e imaginam que escaparam incólumes.

Um criado apresentou um tabuleiro com taças de champanhe. Eu e Etna pegámos numa cada um e brindámos. A batida estridente de uma faca de prata num copo de vinho cortou cerce o nosso momento de cumplicidade. As cabeças voltaram-se à procura da origem da interrupção.

Depois de conseguir a atenção de todos os presentes, Edward Ferald afastou o copo e à faca. - Bem-vindos, colegas e belas esposas - começou ele, o cumprimento provocando risinhos discretos que percorreram a assembleia. No entanto, era impossível não reparar que o próprio Ferald não estava acompanhado pela sua bela esposa mas por Phillip Asher, ultimamente de Yale.

- Agradeço a todos terem vindo a minha casa nesta bonita noite de Outubro - continuou Ferald. - Já os deixo ir jantar, mas antes quero apresentar àqueles que não tiveram a oportunidade de o conhecer o meu convidado muito especial, Phillip Asher, professor de Filosofia em Yale. O professor Asher aceitou amavelmente proferir as Palestras Kitchner na nossa escola.

Ouviram-se alguns murmúrios e até alguns aplausos.

- O professor Asher, formado pela Universidade de Harvard, nasceu em Londres, imigrou para este país aos seis anos e foi criado aqui em New Hampshire. Além de ser um teórico moral e um poeta, o professor Asher é uma espécie de explorador, tendo regressado recentemente de uma expedição à Nova Guiné - prosseguiu Ferald. - Actualmente encontra-se de licença sabática até ao fim do trimestre. A não ser, claro. - (e aqui Ferald piscou o olho, um gesto particularmente bajulador, e passou o braço em volta do ombro de Asher de um modo possessivo) - que possamos convencê-lo a ficar mais algum tempo.

O olhar de Asher, que, embaraçado procurava um ponto onde se fixar, cruzou-se com o meu e foi nesse momento que me ocorreu o óbvio.

Asher era candidato. Era absolutamente claro.

Horrorizado com esta nova e absoluta certeza, estudei o homem. Ele era tudo o que eu não era. Um genuíno nativo da Nova Inglaterra ao lado da minha fleuma holandesa-americana. (Não, melhor do que isso, um genuíno inglês tornado nativo da Nova Inglaterra. ) Um académico aparentemente brilhante ao lado da minha insipidez de mestre-escola. Um poeta ao lado do meu pedantismo. Pensei nos administradores da escola capazes de considerar Asher fascinante - o reverendo Frederic Stimson, actualmente pastor da escola (um homem que quase de certeza se sentiria cativado com a ideia de um teórico moral como director); Howard Yates, banqueiro de uma antiga família da Nova Inglaterra; Clark Price, um anglófilo confesso; para não falar do omnipresente Ferald que, como eu bem sabia, me desprezava. Poderiam um consciencioso trabalho administrativo e uma perseverante erudição competir com um intelecto abrangente e um temperamento artístico de Yale?

Asher não tirou os olhos dos meus e eu percebi perfeitamente o que estava a ver: um homem cada vez mais gordo com os anos, moldado pela sua profissão sedentária; entradas no cabelo que se acentuavam à mesma velocidade a que a barriga crescia. Saberia que eu também era candidato? Ferald tê-lo-ia posto ao corrente deste facto ou ele seria capaz de intuir a ambição noutro homem?

No momento em que, pela primeira vez, vira Etna Bliss na noite do incêndio, sentira um desejo incontrolável. Esse momento tinha mudado por completo a minha vida. Na realidade, há muito que me habituara a dividir a minha vida em dois: antes de Etna e depois de Etna. Senti o mesmo ao ver Ferald tomar Asher sob a sua protecção. O ciúme desenrolou-se e estendeu o seu corpo sinuoso e eu compreendi que ainda não conhecia a profundidade do seu ardor, nem sequer nas minhas fantasias, deitado ao lado de Etna no nosso leito conjugal. Em comparação, essa fora uma espécie de inveja cerebral que se dissipava facilmente à luz do sol da sala do pequeno-almoço. Mas isto. isto era outra coisa: a zona vulnerável da admiração; o lado mais sinistro do amor.

(Ocorre-me agora, uns vinte anos depois dos acontecimentos que descrevo, que a paixão ou o ciúme intensos se podem reduzir a um entendimento dos químicos no cérebro, químicos que são repetidamente produzidos sempre que é recuperada a memória da ocorrência inicial. Sendo assim, que profusão de químicos o meu cérebro deve estar a produzir durante a escrita destas memóriasuma espécie de sopa química! )

(Há químicos no cérebro? Terei de questionar o professor de Química sobre este assunto quando regressar a Thrupp. )

Nessa noite, tive um sono sobressaltado, praticamente não dormi, e de tempos a tempos senti ao meu lado, em Etna, um estado de vigília de que normalmente não me apercebia. Atribuí a sua inquietação ao facto de ela ter suscitado alguma atenção não desejada na festa. Etna desculpara-se perante o nosso anfitrião, depois de ter deixado cair uma taça de champanhe - o que, infelizmente, aconteceu durante a pausa momentânea que se seguiu à apresentação de Asher por Ferald e se tornou, assim, ainda mais notório naquela sala apinhada de académicos e respectivas mulheres - invocando como razão os dedos húmidos da condensação na taça. Quanto à minha própria agitação, de cada vez que abria os olhos via com a maior clareza as feições aristocráticas de Phillip Asher ultimamente de Yale. Assim, eu e Etna, dois pequenos barcos, baloiçámos nas tempestuosas ondas da insónia, um visível e logo desaparecendo, o outro surgindo de uma depressão e afundando-se de novo, até à hora em que a nossa criada, Abigail, nos despertou. A minha mulher, como se estivesse à espera da chamada há horas, saiu da cama tão depressa que não tive um momento para falar com ela.

Encontrámo-nos, como habitualmente após as nossas respecti vas toilettes, na sala do pequeno-almoço. Apercebi-me de que o alívio que normalmente sentia, - alívio da tensão conjugal nocturna entre nós, não estava presente nessa manhã. Cumprimentámo-nos, não como bons amigos (se bem me lembro, não nos beijámos) mas como colegas exaustos e preocupados, cada um absorto em mudos diálogos com outras pessoas. Como desconheço os pensamentos de Etna (na altura imaginei que estivesse a compor mais desculpas a Millicent Ferald), só posso registar os meus que eram extraordinariamente ansiosos e profundamente políticos.

Passei em revista tudo quanto fora dito no dia anterior - tanto no corredor de Chandler como na recepção de Ferald - e, como sucede com quase todos nós depois do facto, compus respostas sensatas, contundentes ou mesmo espirituosas, respostas que me atormentavam com a sua subtileza, pois nunca poderiam ser proferidas na realidade. Como desejei recuar no tempo para poder assumir a aparência do professor confiante e liberal que, em lugar de sucumbir à ideia de um desafio sério à sua candidatura, antes abria os braços ao seu rival, o encorajava até, como é mister dos homens de carácter generoso. Mas como nunca fui um homem generoso e como as observações de Ferald me haviam apanhado desprevenido, sentia o espírito a fervilhar com pensamentos confusos que me repugnaria exprimir na presença de Etna.

O apetite e a paz de espírito pareciam ter-me sido arrebatados e fui espetando a gema viscosa e repelente do meu ovo ao jeito de uma criança. Decidi que teria de procurar Asher. Teria de falar com ele para determinar a que ponto o homem constituía uma verdadeira ameaça. Sabia que Eliphalet Stone (o homem que detestava pesca de fundo) não veria com bons olhos um homem de fora para o lugar. Stone acreditava, e com razão, que só um homem saído das fileiras da escola seria capaz de compreender as necessidades especiais de Thrupp, típicas de uma instituição de província. Mais importante ainda, não era a favor da expansão. Se o Latim, a Retórica e a Interpretação Bíblica se haviam adequado à educação da geração deles, tal currículo, como argumentavam, também era perfeitamente apropriado às gerações seguintes. Eu não era tão conservador, embora defendesse a canalização de fundos para a biblioteca e não para mais departamentos de ciência - com as minhas desculpas ao enfermo William Bliss que, afinal, não estava mais interessado neste debate do que Mary que levantou o meu prato quase intacto com uma expressão de censura.

Pelo canto do olho, vi Etna estender a mão para o açucareiro. Tomei consciência da minha grosseria e procurei de imediato rectificar a situação.

- A recepção de ontem foi agradável - observei, quebrando o silêncio instalado entre nós.

- Foi - disse ela.

- Estás talvez preocupada com a taça de champanhe que partiste - disse eu.

- Como?

- A que deixaste cair.

- Sim - disse ela, servindo-se de duas colheres de açúcar (normalmente só se servia de uma).

- Desculpaste-te como convinha - disse eu. - Acho que não deves pensar mais nisso.

Olhei de relance para a cara dela, que estava decididamente pálida, o que me levou a questioná-la sobre a sua saúde. - Estás indisposta? - perguntei. - Reparei que puseste duas colheres de açúcar.

- Pus?

Nesse momento, fez um esforço para comer um pouco de pão torrado e devia ser do que estava a precisar pois dirigiu-me um sorriso.

- Hoje à tarde vou estar em Baker House e sou capaz de não voltar antes das cinco - disse ela.

- Ai vais? - disse eu. - Não te vestiste para isso. Na verdade, Etna tinha posto uma blusa de seda rosa, nada indicada, na minha opinião, para o convívio com os pobres.

- Não tinha planeado ir hoje, mas agora sinto que preciso de ir - disse ela, o que espicaçou ainda mais a minha curiosidade. Foi a expressão da necessidade, assim como a rapidez com que falou que aguçaram o meu interesse. Era raro presenciar qualquer espécie de desejo na minha mulher e comecei a reflectir que a caridade apesar de generosa, não era inteiramente altruísta, satisfazendo tanto quem a dispensa como quem a recebe.

- Vens almoçar a casa? - perguntei.

- Certamente - respondeu ela, tomando um apontamento no caderno ao lado do talher.

Estudei o perfil da minha mulher inclinada a escrever. (Etna era, na minha perspectiva, míope embora se recusasse a admiti-lo - uma inofensiva vaidade que eu compreendia bem e tolerava numa mulher; mas era uma circunstância estranha pois há muito que eu usava óculos embora não tivesse necessidade deles mesmo aos quarenta e cinco anos. ) A luz de uma janela de bandeira definia os planos do seu rosto - as proeminentes maçãs do rosto, as pestanas lisas e castanhas escuras que emolduravam os seus olhos amendoados, o contorno inclinado do cabelo na têmpora, o pescoço alto apenas levemente enrugado. Ela escrevia com uma letra enorme e erecta e eu estiquei-me para ler a lista mas, tirando as palavras anho e fenol, não distingui nada.

Nesse momento, a alegre chegada dos nossos filhos distraiu-me. Clara, tendo superado com sucesso o exame de Geometria estava consideravelmente mais bem-disposta do que no dia anterior e, em resultado disso, atacou de imediato a papa de aveia (como eu apreciava o seu apetite voraz), enquanto Nicodemus sempre esquisito com a comida, olhou para a tigela, desconfiado.

- É só papa de aveia, Nicky - disse Etna.

- Quero açúcar amarelo e uvas passas - disse ele e Etna, que

lhe fazia muitas vezes a vontade, fez sinal a Mary que estava à porta. Só tínhamos três criados - Mary; a criada de sala, Abigail; e Warren, o jardineiro. Não eram muitos para a época, penso eu.

Nada comparado, por exemplo, com os treze de Ferald ou os sete de Moxon. (Muitas vezes me interroguei sobre o que fariam todo o dia. Moxon nem sequer era casado. Já referi que Moxon tivera um êxito inesperado com a sua biografia de Byron, uma obra popular que lhe valeu uma pequena fortuna? Sim, talvez já tenha. Invejava eu Moxon pelo seu sucesso? Sim, talvez invejasse. )

- Estás com muito bom aspecto hoje - disse eu a Clara. Notara, nos últimos meses, que Clara, pele e osso antes, estava agora a engordar admiravelmente, a crescer e a desenvolver um corpo de mulher. Era com agrado que a via abandonar alguns dos seus maneirismos de maria-rapaz (os joelhos desalinhados quando se sentava, uma propensão para correr quando devia caminhar, uma desnecessária irrequietude quando devia estar sossegada, como na igreja, por exemplo) e a sua postura era claramente mais graciosa e fluida. No entanto, ainda era uma criança e mais ainda na presença do irmão que fazia sobressair o que ela tinha de pior.

- O Nicky escreveu o nome dele na parte de trás da porta do quarto - anunciou Clara com satisfação indisfarçável, para horror de Nicodemus.

- Não escrevi nada! - replicou ele, embora as suas lágrimas incipientes nos dissessem o contrário. Aos seis anos, Nicky não sabia mentir (e, apraz-me registar, ainda hoje não sabe).

- Escreveste, sim - insistiu Clara. - N-I-C-O-D-E-M-A-S.

Nem sequer o escreveu como deve ser.

- É verdade? - perguntou Etna a Nicky.

As lágrimas que tinham ameaçado brotar rolaram em abundância pelas faces de Nicky, pondo-o ainda mais zangado consigo próprio.

- Com que é que escreveste o teu nome? - perguntou Etna ternamente.

- Escreveu com carvão do meu estojo de desenho - respondeu imediatamente Clara. - E estragou o lápis!

Por esta altura, já estávamos com pena do pequeno Nicodemus cujo crime, afinal, se tinha limitado a exercer o direito de posse sobre a porta do seu quarto (não tinha dúvida de que o carvão sairia facilmente com água), ao passo que Clara tinha cometido o pecado mais grave de denunciar. São estas as alegrias da paternidade tal como se apresentam no dia-a-dia: separar o comportamento inocente do que não é inteiramente inocente.

- Nicky - disse Etna calmamente -, depois de tomares o pequeno- almoço, vais lavar o teu nome da porta do teu quarto e tens de pagar o lápis de carvão à Clara.

- Mas como é que lhe vou pagar? - perguntou Nicodemus.

- Com dinheiro do teu mealheiro - respondeu-lhe a mãe.

- Quanto é que custa um lápis de carvão?

- Dez centavos - disse Clara sem hesitar.

Percebi que esta disputa, se confiada a Clara e a Nicky, não teria qualquer desfecho satisfatório e, assim, determinei de modo arbitrário que Nicodemus pagaria um centavo à irmã, solução que irritou Clara que considerava o lápis de carvão mais caro, mas que agradou a Nicky simplesmente porque punha termo à discussão.

As crianças concentraram-se novamente no pequeno-almoço e, no breve silêncio que se seguiu, a minha preocupação com Asher reinstalou-se. Não ouvi o resto da conversa do pequeno-almoço, se é que se conversou, nem assimilei uma palavra do que li no jornal. Só conseguia ver o semblante calmo e confiante do homem de Yale.

As excelentes credenciais de Asher e as maquinações de Ferald não fariam pender o conselho a favor de Asher? Por um momento comecei a considerar a ideia de poder não ser, afinal, eleito para o cargo. Tenho de fazer alguma coisa, pensei, mas o quê?

- Minha querida - disse eu, levantando-me e baixando-me para beijar Etna no cimo da cabeça. - Tenho de ir. Estou atrasado. - Estás? - perguntou ela, levantando o olhar. - Uma reunião - respondi. - Quase me esquecia.

- Queres boleia?

- Não, não, não é necessário. Vou a pé. O exercício faz-me bem.

Não queria que Etna me levasse à escola porque a verdade é que não ia para a escola mas sim ao Hotel Thrupp. Não sabia exactamente o que faria quando lá chegasse; achava simplesmente que era onde devia estar.

O hotel fora reconstruído depois do incêndio de 1899 e mobilado no estilo de uma estalagem colonial da Nova Inglaterra, o que me agradava; como talvez já tenha mencionado, não apreciava a decoração do século xIx. Soalhos de madeira com bons tapetes persas, papel de parede claro com lambris brancos e peças simples de mogno e cerejeira compunham o átrio do hotel por onde me demorei na esperança de que Asher passasse. Nesse momento, podia fingir um encontro casual e entabular conversa com ele. Estava profundamente interessado em falar com o homem longe dos olhos curiosos de Ferald e dos amigos. Mais importante ainda, não queria que me vissem visitar Asher na escola. Já um encontro na vila, palavra puxa palavra: nada de anormal nisso.

Sentei-me numa cadeira ao canto e pus-me a ler a Thrupp Gazette e, pela segunda vez nesse dia, não consegui absorver qualquer notícia. Demorei o tempo que leva a um homem a leitura de um jornal regional e estava prestes a abandonar o hotel para ir para o meu gabinete na escola (o gabinete de Noah Fitch era agora meu; o leitor há-de gostar de saber que mandei instalar luz eléctrica) quando me lembrei que Asher podia estar a tomar o pequeno-almoço no hotel. Encaminhei-me para a sala de jantar e avistei de imediato, no canto, a minha presa.

Um empregado perguntou se eu desejava tomar o pequeno-almoço e, aproveitando uma oportunidade que não previra, respondi afirmativamente. Ao ser conduzido a uma mesa, passei pela de Phillip Asher.

- Professor Asher - disse eu, soando (esperei) devidamente surpreendido. - Bom-dia.

- Van Tassel - disse Asher, segurando um guardanapo de linho branco contra o regaço ao levantar-se. Pareceu momentaneamente atrapalhado por ser apanhado desprevenido.

- Espero que esteja a desfrutar a sua estadia em Thruppdisse eu.

- Muito mesmo.

- A recepção de ontem à noite foi muito agradável.

- Sim, foi - disse ele, usando o guardanapo para limpar uma partícula de ovo do bigode.

- Por favor, não se incomode por minha causa - disse eu, indicando o prato dele com um gesto.

Asher ficou em silêncio por um momento, como que a considerar diversas respostas, e eu tive o prazer de verificar que o homem talvez não fosse tão rápido de raciocínio como eu inicialmente imaginara.

- Também vai tomar aqui o pequeno-almoço? - perguntou finalmente.

- Tomo muitas vezes. uma ou duas vezes por semana - respondi, inventando novos hábitos para mim mesmo. Debrucei-me numa atitude conspirativa. - A nossa cozinheira volta e meia faz uma papa de aveia intragável que eu faço de conta que como.

Olhei de relance para a segunda cadeira, um olhar que não pode ter deixado margem para dúvidas.

- Quer acompanhar-me? - perguntou Asher. E antes de Phillip Asher poder informar-me que tinha praticamente terminado o pequeno- almoço, aceitei o seu convite não inteiramente sincero (como foi possível? Tinha imposto a minha presença ao homem).

- Excelente - disse eu, dispensando o homem que estava à espera para me levar à mesa. - Não posso deixar passar a oportu nidade de discutir consigo a sua série de palestras que aguardo com muito interesse. Começam na quinta-feira?

Instalei-me à mesa. Como raramente comia no hotel, não conhecia bem o menu do pequeno-almoço. Pedi ovos, carne, pão torrado e compota de laranja quando o empregado reapareceu.

- Começam - respondeu Asher. Parecia ter perdido o apetite ou talvez estivesse simplesmente saciado pois sentou-se na ponta da cadeira, com os pulsos pousados sobre a mesa e olhou de mim para a janela e novamente para mim antes de falar. O seu rosto, já pálido por natureza, exibia uma tonalidade excessivamente clara nessa manhã. - Espero que não sejam muito enfadonhas.

- Não pense nisso - respondi. - Mas deve sentir saudades de New Haven.

- Dá-me prazer assistir ao Outono da Nova Inglaterra em New Hampshire. Cuanto mais para norte, mais exuberantes são as cores.

- Até certo ponto - observei. - Ouvi dizer que no Canadá são tristonhas.

- Sim, pois - disse Asher. - Referia-me à Nova Inglaterra.

- Mas Thrupp não pode entusiasmar muito alguém habituado à erudição de Yale - disse eu. - Sinto inveja de si.

- Sente?

- Sinto inveja de qualquer pessoa que tenha a oportunidade de conversar vivamente com homens de opinião afim sobre a obra de Bertrand Russell ou Hilaire Belloc ou, já agora, Ben Jonson.

- Infelizmente não sou versado em Jonson - declarou Asher.

- Completamente fora da minha área. - Fez uma breve pausa, como se não se recordasse de qual era a sua área e reparei que estava a estudar atentamente a minha cara, uma cara que não merecia certamente tal exame.

- Um poeta menor - disse eu, entregando-me ao meu próprio escrutínio. O rosto de Asher era forte, as maçãs do rosto proeminentes, os olhos francamente cinzentos. O homem era indiscutivelmente bem- parecido, o que me desconcertou pois sabia perfeitamente que a beleza num homem podia propender os outros em seu favor. Conhecia também o inverso deste truísmo: a minha falta de beleza constituíra algumas vezes um obstáculo ao meu avanço. (Embora, distorcendo um pouco a cronologia, refira desde já que eu e Asher nos encontrámos perfeitamente por acaso, mais de uma década mais tarde, em Newbury Street, em Boston, e que fiquei chocado ao ver como os anos o haviam maltratado. A sua chama havia-se pura e simplesmente apagado neste meio tempo. Tinha o cabelo branco e as sobrancelhas eram tão claras que quase não se viam. Não era verdade, disse-lhe eu nessa encantadora rua de Boston. Asher assentiu com a cabeça, momentaneamente sem fala. )

- Receio bem que vá achar Thrupp um lugar muito desinteressante - disse eu na sala de jantar.

- Até agora não achei.

- Mas vai cansar-se dentro em breve, garanto-lhe. Admito que existem cabeças brilhantes nas várias disciplinas, mas o problema é que não há praticamente nada parafazer em Thrupp - disse eu. Não há teatro nem música dignos de nota.

- Não há? - perguntou. - Fui levado a crer que valia a pena assistir aos concertos de Cushing.

- Mas têm lugar na Primavera - esclareci.

- Sim - disse ele.

- E nessa altura já estará de volta a New Haven - disse eu.

- A minha licença sabática dura até ao fim do ano - disse ele.

- É verdade, é verdade - disse eu. - Tem família? - perguntei.

- Não sou casado, se é o que quer saber.

- Estudou em Harvard.

- Estudei.

- E não gostou de Cambridge? - perguntei.

- Não é que tenha desgostado de Cambridge - respondeu Asher cautelosamente. - Mas na época considerei que New Haven era o lugar que me convinha.

- De Londres foi para Cambridge e New Haven e agora veio para Thrupp, professor Asher. É um nómada. A deambular na direcção errada, se me permite que acrescente.

- Ou na direcção certa dependendo do ponto de vista - disse ele calmamente.

- Pois - disse eu, concentrando-me no pequeno-almoço. Perdoe-me a pergunta, mas que idade tem?

- Trinta e quatro anos.

- Tão novo!

Asher não disse nada.

- Mas, seja como for, uma idade para pensar em constituir família - observei.

- Talvez.

- Embora não convenha limitar-se a Thrupp.

- Não? - perguntou ele.

- Não há nenhumas - exclamei.

- Custa-me a crer - disse Asher.

- Bem, há a Sarah Griggs que tem uma lamentável voz aguda que não se consegue suportar mais de uns minutos de cada vez. É a filha do supervisor. E há a Julia Phipps, filha do professor de Sâns crito. Deve estar quase nos trinta. Calculo que anda à procura de marido há anos. E depois, claro, pode-se tentar a imponente Frederica Hesse cujo sangue alemão é tão evidente na sua postura como na expressão frígida, para não falar nos dentes de cima salientes. Asher olhou pela janela. (Hoje estremeço ao pensar nesta con versa abertamente transparente. )

- Espero que lhe tenham dado um escritório para preparar as suas palestras - disse eu. - Ou relegaram-no para a biblioteca? - Os administradores têm sido generosos. Tenho de facto um escritório.

- Óptimo - disse eu. - Mais uma vez peço desculpa por me intrometer na sua vida privada mas, se não estou enganado, está a ser considerado para o lugar de director de Estudos - Asher reclinou-se na cadeira. - Como o senhor, segundo fui

informado.

E, assim, estavam finalmente postas na mesa do pequeno-almoço as nossas cartas.

- Candidatou-se ao lugar? - perguntei.

- Fui convidado a candidatar-me.

Interroguei-me como é que tal se teria processado. Edward Ferald teria escrito pessoalmente a Asher? Mas como é que Ferald teria tido conhecimento da existência desta sumidade? Ou a responsabilidade pela chegada do professor de Yale a Thrupp pertenceria a outros?

- Somos uma instituição extremamente remota - disse eu. Só a viagem de comboio para Boston demora um dia quase inteiro.

Asher olhou ostensivamente para o relógio. - Infelizmente tenho de ir andando - disse ele, pondo-se de pé. - Tenho um encontro.

Levantei-me também como exigiam as boas maneiras. - Bem, não posso dizer que lhe desejo sorte - disse eu.

- Não - disse ele, estendendo-me a mão. - Mas espero que sejamos bons colegas.

- Os melhores - respondi. Asher tinha um aperto de mão forte, inteiramente masculino, que me apanhou de surpresa pois havia qualquer coisa de distintamente refinado nas suas feições.

- Professor Asher - disse eu.

- Trate-me por Phillip, por favor - disse ele.

- Pois sim, Phillip então. Gostaria de o convidar a jantar em minha casa. Eu e a minha mulher, Etna, teríamos muito gosto em recebê- lo. A comida do hotel e da escola não deve ser muito do seu agrado.

Por um breve momento, Asher abriu muito os olhos, alarmado, ou com uma expressão que interpretei assim; talvez fosse apenas surpresa: um rival convidaria outro para sua casa? (Sim, poderia ter-lhe respondido, eu convidaria para melhor avaliar o meu concorrente. ) Achei que Etna não se importaria, embora pudesse decidir que era estranho eu ter convidado um colega para nossa casa, pois raramente o fazia. Contudo, também ela estivera na recepção de Ferald e não podia ter deixado de compreender a importância

do abraço público de Ferald a Asher.

- Obrigado, Van Tassel - disse Asher.

- Nicholas.

- Nicholas.

- Sexta à noite?

Ele pareceu reflectir um momento. - Infelizmente.

- Domingo ao almoço, então.

Asher assentiu lentamente com a cabeça.

- Pronto - disse eu, não deixando mais uma vez escapar o momento -, está combinado. Deixe-me só escrever-lhe a morada. Uma hora, convém-lhe? Para lhe dar tempo de voltar da igreja ao hotel e tudo isso?

Asher não respondeu.

- Precisa de transporte?

- Não, tenho automóvel.

- Tem? - perguntei. - Que marca?

- Um Ford.

- Veio de carro de New Haven?

- Vim. - Ele olhou em redor, parecendo ansioso por se ir embora.

- E achou as estradas aceitáveis? - perguntei.

- Há uma estrada directa - disse ele distraidamente.

- Estou a demorá-lo - disse eu. - Podemos discutir estes

assuntos no domingo em minha casa.

E, sem me dar hipótese de o reter um minuto mais, afastou-se

da mesa. - Fico na expectativa do almoço - declarou.

Sentei-me diante do meu pequeno-almoço frio e observei a

figura dele que se distanciava. Sentia-me melhor do que depois dos nossos dois encontros anteriores. Tinha vislumbrado uma fraqueza passageira em Phillip Asher, sinal de que o homem possivelmente temia a minha própria candidatura. Talvez nem tudo estivesse perdido afinal.

Acontece que Asher não almoçou connosco nesse domingo nem no domingo seguinte, pois William Bliss faleceu na sexta-feira que se seguiu ao nosso pequeno-almoço no Hotel Thrupp, e eu e Etna fomos obrigados a observar um período de luto. Etna ficou compreensivelmente abalada e eu não pude afastar-me muito de casa, durante quase toda a semana, de forma a poder reconfortá-la.

A irmã, Miriam, que veio de Exeter para o funeral, proporcionou-lhe alguma consolação. (Pippa, a outra irmã de Etna, estava de visita à família do marido em Chicago e não compareceu. ) Keep, o marido de Miriam, veio com a mulher e, naturalmente, o casal ficou hospedado em nossa casa. Eu não simpatizava com Josip Keep mas, em circunstâncias destas, é-se mais generoso de espírito do que se seria noutra situação. Além disso, via com bons olhos a oportunidade de dissipar a imagem da minha intromissão rude e imponderada em casa deles, nesse distante domingo de manhã. Embora Miriam nos visitasse uma vez por ano, passando um fim-de-semana connosco, Josip Keep nunca a acompanhara a Thrupp; e, embora eu não tivesse ilusões a respeito da sua opinião da vila (Horrorosa, pronunciou à chegada), pensei que poderia, pelo menos, ficar mais bem impressionado com a nossa casa. (Afinal não ficou: Não sei como não situou a casa de maneira a evitar a vista deprimente dessas montanhas graníticas, Van Tassel, disse ele.

Já estava situada, respondi, irritado. )

O funeral foi comovente com o reverendo Mr. Frederick Stimson a proferir uma homilia pessoal e tocante sobre o talento excepcional e a bondade do nosso professor de Física. Etna chorou copiosamente (a irmã, Miriam, não chorou; aliás, parecia que mal tinha conhecido o tio) e eu também senti o nó na garganta que se forma num homem quando as lágrimas não ficam bem. Estava comovido com a evidente dor de Etna, com a minha afeição por William Bliss (perfeitamente genuína; fora, afinal, em sua casa que eu conhecera Etna) e com a recordação do nosso casamento, catorze anos antes, naquela mesma capela, uma recordação ainda mais reforçada pela lembrança desse primeiro beijo alvoroçado à minha mulher. A capela estava a transbordar de participantes. Não fazia ideia de que Bliss granjeasse tantos afectos embora devesse ter calculado; ele era um homem afável com um intelecto sagaz numa área complexa. Depois da cerimónia, houve um almoço volante em casa de Evelyn Bliss que parecia visivelmente exausta do esforço de tra tar do marido, durante a sua doença, e ter depois de assistir à sua

morte.

Eu e Etna ficámos no vestíbulo da residência dos Bliss a receber os participantes que vinham partilhar da refeição (um costume bizarro, sempre me pareceu: como é possível ter vontade de comer após uma morte que inevitavelmente nos leva à desditosa contemplação da nossa? ). Ocasionalmente, Etna saía de ao pé de mim quando novos rios de lágrimas ameaçavam embaraçá-la e foi depois de uma ausência excepcionalmente longa que fui em busca dela.

Procurei no meio das pessoas e, não conseguindo avistá-la, subi as escadas. Ouvi um ruído vindo de um dos quartos. Aproximando-me, hesitei um instante à porta pois a recordação de ter surpreendido Etna, no dia das nossas núpcias, emergiu através de catorze anos de casados. Falo da visão da minha mulher diante do espelho, menos de uma hora depois de casarmos, e do reflexo de desânimo e devastação emitido por esse espelho, uma expressão que nunca vira no rosto de outro ser humano. Expulsei esta visão do espírito e, num ímpeto, transpus a soleira, deparando-me com a visão agudamente pungente da minha mulher sentada na cama, os olhos vermelhos e inflamados. Ela tomou fôlego e levantou a cabeça.

- Minha querida - disse eu -, estava preocupado contigo.

- Devia ter vindo visitar o tio William com mais frequência - disse ela.

- Vieste sempre que possível.

- Não foi o suficiente. Ele estava em sofrimento. Fui demasiado egoísta.

- Que disparate, Etna! Ninguém podia ter sido mais cumpridora.

- Só pensei em mim.

Apesar de surpreendido com a explosão da minha mulher, fui compreensivo; no fundo, era a segunda vez que perdia um pai. Etna, não te compreendo - disse eu. - Tu pensas em toda a gente menos em ti. Olhas pelas crianças e por mim com o maior desvelo.

- Estás enganado a meu respeito, Nicholas. Julgas-me virtuosa quando, no fundo, pouco me importa a virtude. Julgas-me altruísta quando, no fundo, guardo tudo para mim própria. - Por um momento, Etna estudou-me. - Eu não olhei por ti, Nicholas. De maneira nenhuma. Tenho sido frígida nos meus deveres de mulher e lamento imenso. Lamento imenso.

Toquei-lhe no ombro. - Não tens sido nada frígida - disse eu.

- Mas não te tenho amado! - disse ela.

Os meus dedos imobilizaram-se sobre o vestido dela. Senti uma paralisia como a que acomete uma pessoa em momentos de choque extremo (estou a pensar na mulher que ficou paralisada junto do bufete durante o incêndio do hotel e teve de ser transportada em peso da sala). Eu sabia - claro que sabia - que a minha mulher não me amava. Mas ouvi-lo da boca dela. Ouvi-lo da boca dela!

- Nicholas - disse ela -, perdoa-me. Não foi isso que quis

dizer.

- Foi sim.

- Magoei-te.

- Não tem importância.

- Olha para mim, Nicholas - ordenou. Obedeci.

- Por favor, senta-te.

Mais uma vez, fiz o que ela me pediu.

- Tens-me amado do fundo do teu coração - disse ela.

- Sim, tenho.

 

- É um tesouro. Ser capaz de amar assim alguém. Tão absolutamente. Tão incondicionalmente. Compreendes? Sabes que valor isso tem?

Devo ter-me mostrado espantado. Abanei a cabeça, indicando que não.

- Sim, sim, Nicholas. Sinto inveja de ti! - repetiu a minha mulher.

A ferocidade da sua declaração deixou-me atónito. Era uma atitude perfeitamente incaracterística de Etna. Durante muito tempo, nenhum de nós se moveu.

E que devo dizer do que aconteceu a seguir? Que da morte nasce a vida? Que, nas horas mais sombrias, a dor dá liberdade ao corpo? Já conheci esta espécie de dor e a emergência progressiva do desejo que se segue, um desejo que pode rapidamente transformar-se num agudo apetite pela vida (uma barreira, muitas vezes penso, contra a aniquilação). Assim foi que, nesse dia ali na cama, quando Etna se voltou para mim, me tomou o rosto nas mãos e perscrutou o meu semblante à procura. de que estava ela tão desesperadamente à procura? Não sei, mas recordo claramente o beijo que se seguiu, um beijo que simultaneamente me comoveu e me excitou. Foi a primeira prova de verdadeira paixão que alguma vez tivera da minha mulher e, como tal, causou-me uma felicidade que a espera tornou ainda mais doce.

Hesito em repisar aqui a mais privada das memórias mas, como faz parte da minha narrativa e parte das minhas tentativas para compreender Etna, passá-la-ei ao papel. Etna beijou-me os olhos e as faces. Encontrou de novo o caminho para a minha boca. Tocou-me suavemente no pescoço. Enfiou os dedos atrás do nó da minha gravata e desapertou-o com um movimento surpreendentemente ágil. Tendo metido as duas mãos por baixo da lapela do meu casaco, fê-lo deslizar-me pelos ombros e pelos braços. Comecei a ajudá-la, quase incapaz de acreditar na minha sorte.

Etna tocou-me de um modo que nunca tocara antes (a mim, Nicholas Van Tassel) e, durante essa meia hora, experimentei uma tal ventura (creio que William não se importaria com a utilização do seu nome desta maneira; sempre me pareceu um homem que conhecera a felicidade nos assuntos do sexo) que hoje parece um sonho. Fechei a porta com um pontapé e deixei a minha mulher despir-me. Pela primeira vez no nosso casamento, Etna fez amor comigo.

Não precisei de nenhum talento para lhe dar prazer. Na verdade, não fiz esforço nenhum, foi sublime. E recordo que pensei, enquanto estávamos num estado de considerável desalinho a seguir, que era assim que devia ser: marido e mulher, entrelaçados e saciados, sem barreiras a separá-los.

Quem me dera que este momento pudesse ter continuado indefinidamente.

Ouvi vozes do lado de fora da porta e acotovelei Etna que havia adormecido. Estremunhada, ela sentou-se e, para minha consternação, começou imediatamente a ajeitar a roupa e o cabelo. Quis

mandá-la parar mas sabia que ela se sentiria envergonhada se fosse surpreendida em tal desalinho por alguém. Quanto a mim, apoderara-se-me do corpo uma profunda lassidão a ponto de mal conseguir apertar os botões da camisa, botões que, apenas meia hora antes, haviam sido deliciosamente desapertados pela minha mulher.

- Perdoa-me, Nicholas - disse Etna, de costas para mim. Estava a prender as madeixas de cabelo que tinham caído pelos ombros. Ajustei a minha posição na cama de forma a ver-lhe o rosto.

- Não há nada a perdoar - respondi. - Pelo contrário, Etna, estou a celebrar.

- Não estou em mim.

- Estás deliciosamente em ti.

- Nicholas.

- É assim que um marido e uma mulher devem ser - protestei. - Aliás, tu própria o disseste.

Etna levou os dedos às têmporas e depois passou-os pelo cabelo. Cruzou os braços sobre a cabeça como que a esconder-se.

- Etna - disse eu.

Ela deixou cair os braços. Estudou-se ao espelho e notou que tinha despenteado o cabelo tão pacientemente apanhado e que teria de recomeçar.

- Minha querida - disse eu -, espero que não estejas a sentir-te envergonhada.

- Envergonhada?

- Então o que é? - perguntei, odiando a distância que ela já estava a criar entre nós. Sentia a minha mulher a afastar-se. Ou talvez o afastamento já estivesse consumado pois ela virou-se para mim e lançou-me o meio sorriso que tantas vezes lhe vira - o que ela me dirigia por bondade, ou às crianças em todos os momentos, ou mesmo a Mary quando a elogiava. Um sorriso que era metade de nada. Nada! Preferia, nesse momento, ter vislumbrado o desespero ou até um profundo tormento a este retrocesso indecentemente rápido à mulher que eu conhecia há mais de uma década. Senti-me excluído e espero não cometer aqui nenhuma blasfémia ao afirmar que foi uma sensação semelhante à que certos místicos religiosos descrevem de serem excluídos da luz do Céu. Não desejava o regresso da minha anterior mulher; desejava a que se me tinha revelado em todo o seu sensual esplendor.

Etna voltou-se, tocou-me no tornozelo (eu nem sequer descalçara os sapatos) e depois desapareceu.

Assim abruptamente. Assim depressa.

Deixei-me ficar estendido como um homem esgotado que apenas deseja dormir (e que o deseja ainda mais quando não é possível). Gradualmente arranjei forças para acabar de abotoar a camisa e apertar as calças. Raciocinei que, se as circunstâncias haviam despertado tal paixão em Etna, talvez voltassem a despertar, o caminho tendo sido aberto e o percurso facilitado. Talvez tivesse de a espicaçar ou talvez tivesse de estar atento a momentos de vulnerabilidade, mas o que acontecera uma vez podia repetir-se, não é verdade?

Deste modo consegui uma espécie de equilíbrio que era necessário para regressar à companhia dos convidados lá em baixo.

 

Não me recordo muito bem do almoço que se seguiu ao funeral, à excepção de uma estranha conversa com Josip Keep que eu tinha procurado evitar. Quase no fim da reunião, enquanto eu observava Etna a despedir-se de Arthur Hallock do outro lado da sala, Keep surgiu inesperadamente ao meu lado. Talvez o meu cunhado ainda se sentisse desautorizado desde essa distante manhã de domingo, na sua casa de Exeter. Fosse qual fosse o motivo, escolheu aquele momento para fazer uma pergunta que me espantou.

- Ela vendeu o quadro? - perguntou Keep numa voz de barítono que os anos haviam aprofundado ainda mais.

- Que quadro? - perguntei, voltando-me para ele. O contorno do cabelo preto e sedoso de Keep na testa havia agora recuado quase a perder de vista. A sua avantajada constituição era um pouco menos imponente e o atraente rosto - esse rosto tão acostumado a impor obediência - suavizara-se um pouco com a idade.

- Ah, então estou enganado - disse Keep. - Tinha a impressão de que a Etna tinha vendido um quadro que herdou.

- Um quadro de quê? - perguntei.

Keep bebericou xerez por um cálice. - Meu caro, se você não sabe, como é que eu hei- de saber?

- A Etna não vendeu quadro nenhum - retorqui. - Se tivesse vendido, eu sabia com certeza.

- Claro - disse Keep.

- Não percebo o que o levou a pensar que ela tinha herdado

um quadro - disse eu. - Temos muitos quadros mas nenhum que ela tenha herdado.

- Pois claro - disse Keep, sorvendo outro gole de xerez (um amontillado que eu próprio comprara para a ocasião).

- Sabe quem é o artista? - perguntei.

- Não pode haver artista se não há quadro - respondeu Keep com evidente impaciência.

- Não há, de facto.

- Julgo que já me disse isso.

Emiti um som irritado. - Francamente, Keep, onde é que foi buscar essa estranha ideia?

- Talvez um Claude Legny?

- Um Legny, não há dúvida - disse eu, levemente divertido. Podia ter continuado a insistir no meu desmentido, nestes termos um tanto insanos, se a palavra Legny não tivesse subitamente desencadeado uma recordação: a recordação de uma conversa com William Bliss que eu tivera no final do Verão quando ele adoecera e estava a tomar morfina para as dores. (Acabaria mais tarde por abandonar a droga, invocando que lhe confundia as ideias. ) Tinha acabado de tomar a substância e talvez tivesse calculado mal a dose pois o seu discurso era um pouco desarrazoado. Começou a fazer perguntas e afirmações que não faziam qualquer sentido. Ocasionalmente, eu dizia sim, sim ou pronto, pronto, mas a verdade é que estava a prestar muito pouca atenção às suas declarações incoerentes. Mas de súbito lembrei-me, ali na sala de jantar de William Bliss, no dia do seu funeral, com Josip Keep ao meu lado, que Bliss pronunciara a palavra Legny no mesmo fôlego da palavra Etna. Foi uma combinação de nomes que, por norma, se acantoa inocentemente no cérebro e aí pode permanecer até se decompor no túmulo, a não ser que seja evocada por uma confluência semelhante de palavras numa data posterior.

Legny. Etna.

- Nunca houve quadro nenhum - declarei.

- Não, claro que não - disse Keep. - Não sei onde fui buscar tal ideia.

- Tenho de ir ter com a minha mulher.

- Esteja à vontade - disse Keep.

O homem ao meu lado na carruagem-restaurante vai espetando o garfo no pernil assado ao mesmo tempo que discute a questão do novo chanceler alemão com o senhor sentado à sua frente. Calculo que são estranhos. Mais adiante na carruagem, um indivíduo de idade está a ler o jornal, uma tarefa já de si difícil e quase impossível num comboio em andamento com o almoço servido em

frente. EMPRESÁRIO QUE COMEU A SUA PRóPRIA POMADA MORRE AOS 96 ANOS, diz o cabeçalho. (Creio que o artigo se refere ao inventor da vaselina.) E mais à frente ainda, vejo um homem cuja cara me é familiar. Não consigo identificá-la exactamente; é uma cara que associo ao desporto. A julgar pelos seus modos deficientes à mesa, sou capaz de ter razão. (Esvaziou o conteúdo do nariz no guardanapo branco, um gesto grosseiro que não tolero num homem. ) Na sua companhia está um clérigo a ler uma obra de Thoreau. Demoro-me à mesa enquanto escrevo isto, esperando voltar a encontrar Mrs. Hazzard, uma viúva de Holyoke, Massachusetts, que parece ter herdado do marido meia dúzia de fiações de dimensão razoável, uma das quais fica na Carolina do Sul, para onde viaja. Fizemos companhia um ao outro hoje ao pequeno-almoço. Duas numerosas famílias - cada uma com sete filhos, pelo menos - ocuparam os outros lugares quase todos, fazendo um barulho descomedido, de modo que eu e a viúva tivemos de nos debruçar sobre as omeletas (com geleia de goiaba) para nos conseguirmos ouvir, circunstância que deu origem, pelo menos em mim, a uma espécie de afeição incipiente ao ponto de eu desejar voltar a encontrá-la. Não tenho estado totalmente privado de companhia feminina, durante todos estes anos, mas as mulheres com quem estive raramente me agradaram e, por isso, dá-me prazer conversar com uma mulher enérgica e inteligente. Disse-me que estava determinada em não ser uma figura de proa meramente nominal nas empresas do marido, mas em aprender tudo o que necessitava de saber para assumir o seu controlo. Na realidade, parecia razoavelmente entendida em teares, balanços e empréstimos comerciais, assuntos sobre os quais eu próprio nada sei. Não a censurei por nunca ter ouvido falar de Thrupp. Tem um riso encantador e, embora calculasse que andaria perto dos cinquenta anos, possui igualmente uma figura apreciável. Mas ainda que eu seja uma pessoa que vê o futuro num instante e é capaz de imaginar uma vida inteira num rosto, não alimentei ideias de casar.

Não voltarei a casar-me. É uma penitência a que serei sempre fiel.

Esta noite jantei com Mrs. Hazzard e a sua companhia encheu -me de prazer. Conversámos amigavelmente, diante do nosso guisado de vaca, sobre o marido dela e eu fiquei a saber, entre outras coisas, que ele não era apenas um entusiasta do cinema mas também coleccionador de automóveis. Houve ainda a sugestão de que era um conquistador embora a viúva Hazzard não parecesse particularmente magoada com o facto. Após uma pausa, durante a qual talvez tivesse sido de bom-tom adiantar alguma informação sobre a minha própria vida, Mrs. Hazzard (Betty, como ela insiste que eu a trate) perguntou há quanto tempo eu era viúvo. Respondi educadamente, mas desviei então a conversa para o tópico mais seguro do meu filho, pois não tolerava a ideia de discutir Etna Bliss Van Tassel com uma estranha, mesmo uma estranha encantadora como Betty Hazzard. E, como por vezes acontece, Mrs. Hazzard falou demoradamente (mas não de modo enfadonho) sobre os filhos por quem nutre grande afeição. Foi assim evitado o delicado precipício da verdade.

Mrs. Hazzard censurou-me afavelmente o meu estilo pomposo (que, infelizmente, se tem acentuado com a passagem dos anos), interrompendo- me uma vez quando usei a palavra antanho. Antanho, Mr. Van Tassel? perguntou ela. E, embora antanho possa não ser uma palavra especialmente defensável, argumentei que, como professor de Literatura Inglesa, tinha de condenar a linguagem mais simples (e, aos meus ouvidos, despojada) do discurso dos nossos dias, pois limitava o vocabulário e não permitia a análise do momento - a dissecação do momento, digamos - com oração após oração após oração (caixas dentro de caixas dentro de caixas, como muitas vezes penso). Ela reflectiu um pouco sobre isto e depois declarou que, mesmo assim, gostava de conversar comigo e que me achava encantadoramente divertido. Como já passou muito tempo desde que uma mulher me chamou encantador ou divertido, creio que corei (o sangue dos meus antepassados holandeses tão capaz de me trair numa idade avançada como na juventude), o que pareceu agradar-lhe ainda mais pois inclinou a cabeça e sorriu, um sorriso que bem gostaria de poder guardar para usar quando me sentisse desalentado. Demorámo-nos a tomar café e eu descobri que estava ansioso com a iminente partida dela pois sabia que desembarcaria em Charleston. Convidou-me a visitá-la caso tivesse oportunidade de conhecer essa cidade no regresso. Eu sei que as pessoas fazem estes convites por uma questão de cortesia, não esperando seriamente que a pessoa convidada apareça mas, durante algum tempo depois de abandonarmos a carruagem-restaurante e regressarmos aos nossos compartimentos separados, permiti-me contemplár uma visita a essa cidade sulista, uma estadia agradável com Mrs. Hazzard e, possivelmente, até uma amizade mais ou menos prolongada.

 

Os dias que imediatamente se seguiram ao funeral de Bliss foram angustiantes para Etna que recolheu ao quarto, ignorando não só o seu trabalho social como a família. Eu, Nicky e Clara tentámos arrancá-la a essa clausura mas rapidamente se tornou claro que Etna se refugiara num lugar privado de onde era impossível arrebatá-la. Esta situação prolongou-se por algumas semanas até ao princípio de Novembro e eu já estava preparado para chamar o médico, pois o sofrimento de Etna começava a tornar-se desproporcionado em relação à sua causa. Talvez ela tenha compreendido que eu começava a sentir-me assustado porque uma manhã fui encontrá-la à mesa do pequeno-almoço, com um aspecto quase normal e sem os olhos inflamados. Procurou sorrir e eu tive a impressão de que foi um esforço claramente hercúleo (minerviano ) da sua parte.

- Etna - disse eu -, fico tão feliz por te ver a pé e a mexer.

- Estou a pé mas não inteiramente a mexer - respondeu ela.

- Mesmo assim - disse eu.

- Não tem sido bom para as crianças.

- Não - concordei.

- Passei um período Inspirou profundamente mas não sem que eu antes me tivesse apercebido de um ligeiro tremor no seu lábio inferior - difícil - disse ela.

Tornou-se-me claro que teria de avançar cautelosamente e tentar manter um certo equilíbrio na conversa, evitando temas como a morte ou a tristeza.

- Estás muito bonita esta manhã - disse eu, e era verdade. Pusera uma blusa de seda de gola subida cor de anil e um colar comprido de contas de azeviche que condizia com os botões decorativos da blusa e com os delicados pingentes.

- Obrigada - disse ela.

- Queres uma chávena de café?

- Não, já tomei. Já desci há bastante tempo.

- Estás a fazer a tua lista - disse eu, desdobrando o guardanapo no regaço. Estudei o pequeno-almoço. Parecia haver carne. Rins, possivelmente. Ou fígado. Tinha um aspecto escuro e demasiado cozido.

- Sim - disse ela. - Tenciono fazer as compras hoje na vila. Precisas de alguma coisa?

- Preciso de um novo pincel da barba - disse eu a Etna. - E graxa. E tinta para a secretária. Mas posso comprar estas coisas quando for à vila.

- Deixa que eu compro - respondeu. - Faz-me bem estar ocupada.

- Bem, nesse caso, gostava muito que trouxesses dessa compota de amora que comemos no mês passado. Por sinal, não me importava nada de a comer agora. Que carne é esta?

Etna olhou para o meu prato. Crispou o nariz. - Vou ter uma conversa com a Mary - disse ela entre dentes pois era claro que, sem a vigilância da patroa, a nossa cozinheira se tornara consideravelmente desleixada.

Etna tomou nota no bloco de apontamentos ao lado da pilha da correspondência, na maioria, imaginei, cartas de pêsames. – Não tenho a certeza se a compota está disponível nesta altura do ano - observou.

E eu, a quem enchia de satisfação ouvir a minha mulher falar de assuntos banais, limitei-me a sorrir. Pousei a minha mão sobre a dela. - Estou muito feliz por estares de volta - disse eu.

 

O tempo foi passando do modo habitual. Durante essas semanas de meados de Novembro, levantava-me, tomava o pequeno- almoço, contornava habilidosamente qualquer tópico que pudesse perturbar Etna. Dirigia- me às minhas aulas, leccionava os meus alunos. Lia intermináveis cadernos de dissertações desinteressantes. Mas andava num estado de ansiedade praticamente todo o tempo: cauteloso na presença de Etna, preocupado com a votação iminente e sem dormir a pensar em Phillip Asher, cujas palestras foram tão brilhantes quanto anunciado. Comecei a denegrir Asher junto dos meus colegas. O homem não entende nada de Jonson", dizia eu e, por vezes, vislumbrava uma expressão de prudência ou piedade nos rostos dos meus colegas. Era assim tão transparente? Tinham detectado o clima de rivalidade e talvez achassem a situação engraçada, já que também pareciam divertidos.

Uma tarde tive ocasião de visitar Chandler Hall pois precisava de devolver um livro a Moxon. Encaminhei-me pelo corredor, passando pela porta fechada do gabinete de Phillip Asher. Sabia que o homem de Yale estava no Recitation Hall àquela hora a proferir uma palestra sobre a natureza do bem e do mal em O Paraiso Perdido (um tópico dificilmente estimulante). Ultrapassei a porta e depois fingi ter-me esquecido de qualquer coisa. Arrepiei caminho e voltei a passar por ela, desta vez incapaz de resistir à tentação de entrar. Não sabia muito bem o que procurava; sentia simplesmente que tinha de me aproximar das coisas dele - como se, ao fazê-lo, pudesse ficar a saber mais sobre o meu rival. Entrei na sala e fechei a porta.

Asher tinha a secretária desarrumada e o armário de arquivo aberto (realmente por que razão há-de um homem fechar à chave o seu génio? ) e a primeira impressão era de desordem - de livros, de publicações académicas e de uma profusão de objectos pessoais na secretária que depreendi tratarem-se de recordações das suas viagens: borboletas prensadas dentro de uma caixa de vidro, uma pequena escultura de esteatite, um intrincado mosaico indiano, um bloco de impressão em cobre com a gravura de uma vaca, um estranho monóculo que permitia ver para o lado e não em frente. Junto da máquina de escrever, descobri um porta-retratos de prata com a fotografia de uma jovem mulher. Era loura e de aparência escandinava, por sinal muito bonita. Comecei imediatamente a imaginar uma noiva numa cidade distante - Oslo, possivelmente. Encorajado com esta descoberta, atrevi-me a examinar de perto os diversos documentos de Asher espalhados pelo gabinete. Recordo- me de um tratado apresentado à Academia de Artes e Letras sobre o papel da fotografia no registo histórico. Havia ainda alguma correspondência com um professor da Universidade da Virgínia sobre uma história pré- bíblica do Dilúvio e uma carta à Real Sociedade Geográfica a pedir para acompanhar uma expedição ao Árctico em busca do explorador desaparecido Vilhjalmur Stefansson. Encontrei uma minuciosa comunicação científica proferida perante a Faculdade de Medicina do Maine, em Bowdoin, na última Primavera, sobre a descoberta do Dr. Gaston Odin do micróbio do cancro e como a mesma poderia prenunciar uma vacina, assim como um ensaio na revista Atlantic Nlonthly em defesa do pacifismo. Recostei-me na cadeira giratória em carvalho de Asher e contemplei uma série de xilogravuras, encaixilhadas em grandes molduras brancas, numa das paredes. Como é que um homem tão novo tinha publicado tanto? A vastidão dos seus talentos e interesses era extraordinária.

Talvez fosse chegada a altura de me resignar à possibilidade muito real de não ser eleito para o cargo, pensei enquanto rodava na cadeira de Asher. Seria assim tão terrível? Sim, seria. No entanto, convinha ser realista. Convinha estar preparado.

 

Suspirei e levantei-me e estava prestes a sair do gabinete quando o meu olhar se deteve sobre uma pasta em acordeão, atada com uma fita de tecido e pousada no chão fora do alcance da secretária. Baixei-me e apanhei-a e, o mais delicadamente possível, desatei a fita. No interior havia cartas de um professor de Jesus College, em Oxford, propondo a Asher o lugar de leitor convidado dessa faculdade. Li nas cópias das próprias cartas de Asher que ele tinha, pelo menos, pensado em aceitar. Com a correspondência lida ilicitamente na mão, comecei a reflectir seriamente: se eu ficara desanimado ao descobrir que Phillip Asher, ultimamente de Yale, era efectivamente uma raridade, um grande homem, não poderia animar-me com a possibilidade de um homem destes não aceitar um lugar em Thrupp se recebesse uma proposta melhor de outro lado? Encarei uma nova linha de ataque na minha estratégia de angariar votos. Podia sugerir aos meus colegas que Asher era demasiado bom para Thrupp, que um homem assim se cansaria quase de certeza de uma escola de província e, como tal, poderia deixar-se tentar por um convite de uma instituição mais conhecida depois de o conselho se ter dado ao trabalho de o eleger. Ao passo que eu, Nicholas Van Tassel, estava para ficar. Era um homem de lealdades. Tinha dedicado a minha vida a Thrupp, ou não tinha?

Sim, sim, pensei, saindo desse gabinete sombrio com as informações roubadas e tendo tido o cuidado de preservar o estado de desarrumação em que tinha encontrado a sala, era um excelente raciocínio e devia ser transmitido o mais cedo possível, com toda a subtileza, ao conselho. A partir dessa soalheira tarde de Novembro, faltavam apenas catorze dias para a eleição.

Pouco antes do dia de Acção de Graças, Etna retomou o seu trabalho humanitário. Baker House precisava dela, declarou uma manhã quando observei que estava vestida como se fosse para a instituição de beneficência. Usava um fato de riscas finas com uma gola alta dobrada. Ia, disse ela; era altura. Concordei vigorosamente pois estava ansioso por ver a minha mulher restabelecer-se por completo. Afinal a vida tinha de continuar. As crianças não podiam ser indefinidamente reprimidas, como os pobres e destituídos não deixariam de ser pobres e destituídos.

- Óptimo - respondi.

Como não tinha aulas nesse dia, decidi passar a manhã na minha biblioteca rodeado pelos meus livros. Tinha muito que fazer (esses intermináveis cadernos) mas, à medida que a manhã foi passando, descobri que não me sentia capaz de lhes dar atenção. Pus-me à janela a olhar para o jardim das traseiras - apenas caules e flores secas, agora - e, depois, dirigi-me à cozinha para pedir a Mary uma chávena de chá. Voltei para a biblioteca e andei de roda da minha secretária de nogueira, sem a ver mas vendo, pelo contrário, o rosto de Phillip Asher atrás de uma tribuna a proferir o seu primeiro discurso ao corpo académico como director de Estudos de Thrupp. Vagueei entre a secretária e as estantes e entre as estantes e a secretária, sacudindo de tempos a tempos a minha preocupação que apenas momentos mais tarde se instalava novamente. Em resultado de toda esta reflexão, sentia-me bastante exausto.

Decidi que precisava de um passeio. Iria até à vila e almoçaria lá. Sim, sim, boa ideia, pensei. Talvez Moxon estivesse disponível. Precisava da companhia despreocupada de um homem, de alguém que me distraísse de mim mesmo. Possivelmente estava a ficar doente. Ouvia-se falar de vários tipos de histeria nas mulheres, claro, mas não era agradável pensar que um estado desses pudesse afectar um homem; aliás, por definição, uma histeria não podia afectar um homem pois era uma doença inteiramente feminina. Mas, de qualquer modo, preocupava-me o facto de estar a perder-me um pouco de mais nos meus devaneios. Telefonei a Moxon e sugeri que se encontrasse comigo na sala de jantar do hotel. Ele aceitou com entusiasmo. (Pobre Moxon, creio que estava sempre sozinho. )

Ao meio-dia, a sala de jantar estava apinhada e Moxon já estava sentado quando eu cheguei. Saudou-me com um agitar dos braços que me evocou o gesto de um homem que é encontrado ao fim de várias noites perdido no cume de uma montanha. Envergava um fato de lã às riscas que tinha um aspecto estrangeiro (não estrangeiro de Saville Row, mas mais estrangeiro da Bulgária) e não faço ideia onde tinha arranjado a coisa. Moxon tinha muitas vezes o ar de quem se vestira às escuras.

- Nicholas - disse ele quando me sentei. - Como está a Etna?

- Melhor - respondi. - Retomou o trabalho social. - Consultei o menu escrito à mão. A especialidade do dia era jarrete de vitela. Por coincidência apreciava bastante jarrete de vitela.

- Estava pálida quando os visitei na semana passada - disse Moxon.

- Passou por um período muito difícil - disse eu, bebendo um gole de água.

- O empregado recomenda o pastelão de carne.

- Já me decidi pelo jarrete de vitela - disse eu, pondo de lado o menu.

- Não tem aulas hoje? - perguntou Moxon.

- Não. Que tal está a correr a sua licença sabática?

- Sinto saudades dos alunos - respondeu Moxon.

- Ai sim? - perguntei, bastante surpreendido. Uma licença sabática longe dos alunos era habitualmente considerada um privilégio.

- Está com um ar tão pálido como a Etna - observou

Moxon.

- Tenho andado a dormir mal - expliquei.

- Acho que se está a deixar afectar pela eleição - disse Moxon. Atrás do seu exterior desajeitado, Moxon era um homem capaz de compaixão.

- É o meu futuro - disse eu.

- Corre o rumor que o Asher tem uma noiva - disse Moxon, procurando dar apoio.

- Uma noiva? - perguntei inocentemente. - Onde é que a arranjou?

- No estrangeiro. Talvez na Escandinávia? Não gosta de mostrar o jogo, pois não?

- Não. É um homem reservado - disse eu. - Não me parece grande qualidade num director.

- Vou começar a praticar esqui na neve - anunciou Moxon abruptamente, da mesma forma que era dado a gestos abruptos.

- Isso é uma novidade - disse eu.

- Esta tarde parto para o Quebeque.

- Vai divertir-se com certeza - disse eu, imaginando por momentos Moxon a esquiar numa encosta de montanha. Apesar desta imagem extremamente cómica e da indistinta conversa que se seguiu, mal consegui comer o jarrete de vitela que encomendara. Inspeccionei a sala apinhada, com os empregados a transportar habilmente bandejas da cozinha para as mesas e destas para a cozinha, à procura de Phillip Asher que podia muito bem estar igualmente a almoçar no hotel. Quando não estava ocupado desta maneira ou a tentar dar atenção à garrulice amena, ainda que interminável, de Moxon, estava a pensar em Etna e na sua primeira tentativa para ir trabalhar depois da morte do tio. - Moxon - disse eu, pousando o garfo -, preciso de lhe pedir um grande favor.

- O que quiser - disse ele com a boca aflitivamente cheia.

- Pode emprestar-me o seu carro?

- Naturalmente - respondeu. - O seu está a consertar?

- Não, a Etna anda com ele. Levou-o para Baker House. Mas eu estou preocupado com ela. É o primeiro dia em que sai e ainda está bastante abalada. Pensei em dar um salto à instituição de beneficência para ver se ela está bem.

- Esteja à vontade, leve o meu carro. Leve-o. - Esbracejou excitadamente. - Podemos ir daqui à garagem. Eu nunca o uso. Nunca tenho onde ir.

Era impossível não gostar de Moxon tanto pela sua honestidade como pela falta de pretensão. Qualquer outro homem na posi ção de Moxon - o que equivale a dizer uma posição quase nula - poderia ter achado necessário inventar uma vida apenas para salvar publicamente a face.

Estava um dia de cortar a respiração (digo isto no sentido literal, o ar tão frio que feria os pulmões ao entrar) enquanto caminhávamos juntos até casa de Moxon. Tive alguns problemas a adaptar-me ao carro de Moxon, um Stevens-Duryea amarelo que exigia uma certa azáfama com um iniciador e um estrangulador de ar para pegar o motor. Moxon conduziu durante as primeiras voltas ao pátio dele coberto de gelo até eu me sentir capaz de passar para o banco da direita para me sentar ao volante e me aventurar na rua. Emprestou-me o seu casaco de pele de doninha para a viagem pois estava quase tão frio dentro do carro como fora.

Ao longo dos anos tinha visitado a instituição de beneficência em várias ocasiões, talvez cinco ou seis, para chás e recepções, e por isso conhecia o caminho. No entanto, a estrada de terra batida estava cheia de sulcos e tive de me adaptar ao deslize e derrapagem das rodas. Senti-me satisfeito por andarem poucas pessoas na rua pois a minha condução era insegura e teria sido terrível ter batido contra outro carro pelo caminho. Conduzir o Stevens-Duryea dava um pouco a sensação de montar um cavalo irrequieto e indisciplinado.

A casa situava-se no 18 de Norfolk Street, em Worthington. Em 1880, as duas irmãs Baker tinham aberto a sua casa aos pobres e aos doentes da vizinhança. Como as instalações desse tipo rareavam nessa parte de New Hampshire, a casa fora ampliada para albergar os indigentes de uma série de vilas do condado, incluindo Thrupp. O exterior da moradia contradizia o seu uso. Era, de facto, uma encantadora casa em madeira fasquiada amarela, em estilo colonial, com portadas verdes-escuras. Havia duas portas de entrada (nunca soube bem porquê) e vários ulmeiros majestosos que delimitavam o estreito pátio. Tinha uma vedação em ferro forjado bastante bonita que acompanhava a rua e um alpendre largo onde, nos dias de bom tempo, meia dúzia de mulheres e crianças costumavam apanhar sol. Era apenas pela indumentária e comportamento destas desgraçadas que se via que esta elegante moradia era um albergue para pobres e não a residência de uma respeitável família de Worthington.

Estacionei do outro lado da rua. No caminho de acesso estavam três automóveis, um dos quais era o nosso Cadillac de duas portas. Atravessei a rua, segurando o chapéu contra a brisa de Novembro, destranquei o portão de ferro e encontrava-me no pavimento de laje quando Etna abriu uma das portas.

Inicialmente não me viu pois ainda estava a falar com alguém que se encontrava dentro da casa. Tinha o casaco de lã com gola de raposa vestido e o chapéu de condução na cabeça e levava na mão um pequeno saco de viagem onde eu sabia que transportava coisas de nossa casa para Baker House (roupa usada das crianças ou alimentos que não tínhamos consumido).

- Etna - chamei.

Ela teve um leve sobressalto e virou-se ao mesmo tempo. Não estou a exagerar a sua surpresa; foi o calafrio de um choque repentino. Abriu a boca e arregalou os olhos (gostava de saber por que razão o corpo reage assim, para assimilar melhor aquilo que causa alarme? ) e perpassou-lhe pelos ombros um levíssimo tremor. Observei a sua boca que tremeu por um momento e depois firmou os lábios. Procurou sorrir.

Tudo isto ocorreu durante um instante.

- Nicholas - foi tudo quanto conseguiu dizer.

- Minha querida - disse eu -, assustei- te.

- Sim, assustaste - disse ela. - O que estás aqui a fazer?

- Estava preocupado contigo. Peço desculpa. Queria ter a certeza que estavas bem. Achei-te abatida esta manhã.

Nesse momento, ela endireitou-se completamente. O choque tinha passado e ela parecia composta. - Ia agora para casa.

- Sais cedo hoje - observei.

- Como disseste, não me sinto bem.

- Claro que não. É de admirar que tenhas sequer vindo.

- Fez-me bem - disse ela, aconchegando a gola de pele ao queixo.

- Pois é - disse eu -, agora temos dois carros.

- Em qual vieste?

- No do Gerard Moxon.

Ela estudou o Stevens-Duryea do outro lado da rua. - Detestas conduzir - disse ela.

- Até foi divertido - disse eu.

- Foi?

Etna tinha o hábito de baixar a aba do chapéu para esconder os olhos - um gesto feminino relativamente comum. Enquanto um homem tem de olhar os outros nos olhos senão arrisca-se a ser considerado uma pessoa indigna de confiança, uma mulher pode sempre relancear modestamente para o lado ou para os pés.

- Segues-me tu até casa? - perguntei. - Ou sigo-te eu?

- Que maçada - disse ela de repente, descendo do alpendre.

- Pois é. Mas insignificante, não?

Ela tocou-me no braço. - Foste um amor em teres vindo ao meu encontro - disse ela.

- Obrigado - respondi. - Etna? - chamei seguindo-a.

- Sim?

- Estava a pensar em convidar o Phillip Asher a jantar lá em casa.

A minha mulher estacou e virou-se. - Lá em casa? - perguntou.

- Bem. sim.

Ela abanou a cabeça. - Não.

- É demasiado cedo - disse eu imediatamente.

- É - disse ela com evidente alívio.

- Então podia convidá-lo para umas bebidas. um charuto e um conhaque, esse género de coisa.

Etna, de saco na mão, ficou em silêncio.

- Não precisas de entretê-lo - continuei. - Nem sequer precisas de descer.

Ela desviou os olhos de mim e olhou para o Cadillac. - Se achas que tens de convidar - respondeu. Virou-se novamente para mim. - O que é que tens vestido?

Olhei para o casaco de doninha, uma peça que, apesar de quente, nada tinha de belo. - Também é do Moxon - respondi.

Etna sorriu.

- Devia conhecer melhor o homem - observei.

- O Moxon? - perguntou ela.

Tirei-lhe o saco de viagem da mão e contornei o carro. Pousei o saco no tapete cor de cacau do chão. Fechei a porta e olhei para a minha mulher por sobre o capô. As fitas do chapéu dela, ainda por atar, esvoaçavam na brisa.

- O Asher - respondi.

Na manhã seguinte, enviei uma mensagem ao hotel de Asher a convidá-lo para umas bebidas nessa tarde em nossa casa. Mandei Mary colocar um tabuleiro na biblioteca. A sala era pequena mas havia duas confortáveis poltronas que lhe davam um toque masculino. hora marcada, fui esperar para a biblioteca, simulando estar a trabalhar. Não tinha a certeza se Asher apareceria, pois não tinha recebido qualquer resposta ao meu convite, mas pouco antes das cinco e meia ouvi a campainha. Embora soubesse que Abigail estava em casa, pensei que seria um gesto mais cordial se fosse receber Asher pessoalmente.

Asher estava nos degraus da frente. Embora mais novo do que eu, não se podia deixar de notar um aglomerado de rugas no canto de cada olho, um legado, pensei, da sua exposição aos elementos durante as expedições que fez à Nova Guiné ou onde quer que tivesse sido. Debaixo do sobretudo, trazia um colarinho de cerimónia e uma gravata de seda às pintas vermelhas. A sua boca estava fixa e séria.

- Entre, entre - disse eu, dando-lhe passagem, e ele entrou no vestíbulo deixando entrar ao mesmo tempo uma baforada de ar frio. Fechei rapidamente a porta. O relógio bateu a meia hora e eu registei a sua pontualidade. Nesse momento, Abigail chegou e pegou-lhe no chapéu e no casaco.

Asher ajeitou o cabelo. - É muita amabilidade sua - disse ele enquanto nos demorávamos, um pouco sem jeito, no vestíbulo.

- Ora essa - disse eu.

- Gostava de transmitir os meus pêsames à sua família pela morte de William Bliss - disse ele.

- Obrigado - respondi. - A minha mulher ficou muito abalada. Considerava o William Bliss como um pai.

- Então gostaria de lhe transmitir as minhas condolências em particular - disse Asher.

- Obrigada, professor Asher - disse Etna do cimo das escadas.

Creio que fiquei ainda mais surpreendido do que Asher ao ver a minha mulher descer as escadas. Moveu-se numa passada vagarosa e imponente, a saia do vestido formando atrás dela um regato ondulante. Trazia um vestido branco-marfim com uma capa curta de renda pelos ombros. Tinha contas cor de ameixa entrançadas nos caracóis do cabelo e apertadas na nuca. Os pingentes baloiçavam com o andar.

- Etna - disse eu -, deixa-me apresentar-te o Phillip Asher. Deves lembrar-te que foi apresentado na festa do Edward Ferald.

- Sim - disse ela, chegando ao último degrau. - Boa-tarde, professor Asher.

Asher hesitou momentaneamente antes de avançar para lhe tomar a mão. Nesse momento, estou agora convicto, ele estava a tomar uma decisão crítica. - Conhecia o meu irmão - disse ele a Etna. - O Samuel.

Etna assentiu. - Sim, conhecia - disse ela, e eu percebi que não se tratava de uma novidade. - E como está Mr. Asher? perguntou Etna.

Observei Phillip Asher largar a mão de Etna. Embora os modos dela fossem frios, os dedos tremeram. Notei que Asher também reparou.

- Vive no Canadá - respondeu Phillip Asher. - Mas agora está em Londres. No Almirantado britânico.

Etna pestanejou e voltou a acenar com a cabeça.

- Por causa da guerra - acrescentou Asher.

- Então conhecem-se - disse eu, um pouco perplexo com esta troca de palavras.

- Não muito bem - disse Etna. - Conheci o irmão do professor Asher quando vivia em Exeter. Era amigo da família.

- Compreendo - disse eu. - É uma pessoa de quem nunca falaste.

Esta afirmação foi rude e ligeiramente insultuosa para Phillip Asher e para o irmão.

- Ia mesmo a sair para ir buscar as crianças - disse Etna. Foram visitar a tia.

- Pois sim - disse eu, ainda um pouco confuso.

- Adeus, professor Asher - disse Etna. - Espero ter mais tempo para lhe fazer companhia da próxima vez que nos visitar.

- Seria um prazer - disse Asher.

- As bebidas estão à espera - disse eu com efusivo entusiasmo a Asher, enquanto Etna punha o chapéu, e deu-me ideia de que o homem saiu do vestíbulo com relutância.

Conduzi Asher ao meu escritório. Arranjara os livros e os papéis na secretária de modo a sugerir que estivera a escrever um ensaio. Ele olhou de relance para a desordem e depois sentou-se numa das poltronas de couro. - Que é que toma? - perguntei. Conhaque?

- Sim, por favor - disse ele.

- Com soda? - perguntei com a garrafa de água mineral na mão.

- Não, obrigado.

- Muito bem - disse eu, servindo também uma bebida para mim. Sentei-me defronte dele. Peguei numa caixa de prata da minha secretária. - Um cigarro? - perguntei. - Ou fuma cachimbo?

- Nem um nem outro, por sinal.

Ambos bebemos um trago dos respectivos copos. Asher tinha cruzado as pernas, pondo em clara evidência o seu comprimento. Mas, embora a sua postura sugerisse uma elegância natural, notei que parecia ter perdido um pouco da sua pose algures entre o vestíbulo e o escritório. De vez em quando, sacudia o pé.

- As suas palestras têm sido extraordinárias - observei. - A escola anda numa excitação com elas.

- Acha que sim? - perguntou.

- Os seus comentários têm suscitado pequenas discussões, como fogos rápidos, nos lugares mais inverosímeis. É o que se pretende que aconteça com a série de palestras, podemos por isso dizer que tem tido um sucesso estrondoso.

- Ainda me falta uma - disse ele.

- E depois tenciona regressar a New Haven?

- Não tenho a certeza - disse ele, descruzando as pernas. Há a eleição.

- Continua então a ser candidato?

- Creio que sim - respondeu, bebendo um pouco mais de conhaque. Eu criara no escritório uma iluminação difusa. Estalou um ramo na lareira.

- Admira-me - disse eu, fazendo rodar o líquido oleoso no copo - que não tenha considerado um lugar numa instituição mais distinta. Oxford, por exemplo.

Asher levantou bruscamente o olhar para mim e eu só podia conjecturar sobre o que lhe ia no pensamento. Estaria a interrogar-se se eu saberia que tinha recebido uma proposta de Jesus College Ou partiria do princípio de que eu atirara simplesmente o nome à sorte?

- Não é um momento particularmente propício para ir para o estrangeiro - disse Asher cautelosamente.

- Não, suponho que não - respondi. (Afinal de contas, combatia-se uma guerra. )

Asher olhou para a bebida.

- Deparei-me com um artigo na revista Atlantic Monthly que escreveu sobre o pacifismo - disse eu.

- Ai sim? - perguntou ele, muito surpreendido.

- Se fosse chamado a combater pelo seu país, recusava-se?

- Já sou demasiado velho - declarou.

- Então a sua argumentação é teórica. Não o afecta directamente.

- Não - disse ele, mexendo-se na cadeira. - Mas não é menos sentida por isso, acredite. Defendo-a firmemente.

- É ateu, professor Asher?

- Não - redarguiu -, não sou.

- Extraordinário - observei.

- Extraordinário?

- Bem, o Nietzsche.

- Não passa de um campo de estudo.

- Precisamente. É então um quacre? - perguntei.

- Não, não sou.

- Então o que é, se não se importa que pergunte?

Era uma pergunta grosseira, decerto, e ainda hoje não sei por que razão insisti com ele. E Asher hesitou? Tenho a certeza que

sim. Não com medo mas para se preparar para a reacção que a sua resposta provocaria. Desviou momentaneamente o olhar, voltando-o novamente para mim.

- Sou judeu - respondeu.

Continuei perfeitamente imóvel na cadeira e o copo na minha mão ficou suspenso no seu trajecto até à minha boca. Duvido que Asher me pudesse ter dito alguma coisa que me tivesse surpreendido mais. Sou chinês. Sou um xamã. Sou um cigano.

- Ai sim? - disse eu, bebendo finalmente um gole. Asher, que soava tão plausivelmente inglês, seria de facto um

nome hebraico. O Conselho de Administradores saberia que estava a considerar um judeu para o lugar de director de Estudos da Escola Superior de Thrupp, uma instituição que, tanto quanto eu sabia, nunca contratara um homem da religião judaica? A inexplicável descida de Londres para Cambridge, New Haven e Thrupp começava finalmente a fazer mais sentido aos meus olhos.

(Estremeço agora ao recordar e registar estes pensamentos oportunistas. A minha única defesa, tanto quanto uma defesa é sequer concebível, é que nessa época os académicos judaicos eram raros fora da Europa e praticamente inauditos numa escola como Thrupp. Hoje em dia, claro, é inteiramente diferente. Só na nossa instituição, conto pelo menos três académicos judaicos que foram considerados para certos lugares: Isaiah Gordon, Robert Newman e Jerome Sills. Nenhum deles, no entanto, devo frisar, foi contratado. )

- Nós, os pacifistas, somos muitos - disse Asher.

- Em Thrupp não, posso garantir-lhe - disse eu depois de recuperar o meu equilíbrio. - Nesta terra a convicção é precisamente a inversa.

Asher olhou em volta para as estantes com livros e para um pequeno desenho de Sargent que eu tinha na parede. Estendeu o braço e tocou na base de um Mercúrio alado em bronze na secretária.

Eu estava quase a tremer com as notícias e mal conseguia pensar.

- Que coincidência extraordinária o seu irmão conhecer a minha mulher - observei.

- Realmente - respondeu.

- Como é que se conheceram?

- Creio que o meu irmão conhecia o pai de Mrs. Van Tassel esclareceu. - Eram ambos professores na Academia Phillips em Exeter.

- Uma escola tolerante - disse eu, deliciado.

Asher olhou para mim mas não disse nada.

- O seu irmão pertence à geração do pai da minha mulher? perguntei.

- À geração intermédia, julgo eu - disse Asher. - O meu irmão é dez anos mais velho do que eu.

- Da minha idade, então.

- Sim, imagino que sim.

- E diz que ele emigrou para o Canadá?

- Para Toronto. Sim. De facto, já se tinha adaptado quando o chamaram a Londres.

- Óptimo, óptimo - disse eu.

Asher olhou para mim com uma expressão estranha.

- Mas decerto que sente saudades dele - apressei-me a dizer.

- Não éramos muito chegados - disse Asher. - Havia a diferença de idades. Quando fiz dez anos já o meu irmão tinha saído de casa.

- Compreendo. Então nunca conheceu pessoalmente a minha mulher, professor Asher?

- Por sinal, conheci. Estive com ela uma ou duas vezes, de passagem.

- Posso servir-lhe um pouco mais de conhaque? - perguntei, agora numa disposição intoleravelmente expansiva.

- Sim, obrigado. - Asher mexeu-se na cadeira, o rangido do couro traindo o desconforto. Um homem verdadeiramente senhor de si, reflecti, seria capaz de estar sentado durante horas sem parecer mover uma perna.

- Calculo que a minha mulher vai jantar em casa da tia - disse eu: - Podemos até comer qualquer coisa juntos, mais tarde. Na vila, talvez?

- Teria muito gosto - disse Phillip Asher -, mas tenho um compromisso com o Eliphalet Stone.

- Com o Stone, é?

- Sim - respondeu Asher.

Não se alargou mais. Mas também não tinha necessidade. Só havia uma razão para Eliphalet Stone convidar Phillip Asher para sua casa. Stone saberia que Asher era judeu Certamente não, pensei.

- Bem, fica para outra ocasião, talvez - disse eu.

- Sim, noutra ocasião - disse Asher relanceando para o relógio por cima da lareira. - Já são quase seis horas.

- O relógio está adiantado - respondi.

O desejo evidente de Asher de sair dali raiava a falta de educação.

- A Grã-Bretanha sofreu baixas pesadas - comentei.

- Não sem infligir danos consideráveis.

- Dentro em breve vai estar sob fogo aéreo - disse eu.

- Sim - concordou ele -, é inevitável.

- A notícia sobre o Haze"ke foi terrível - disse eu, referindo-me ao cruzador britânico torpedeado ao largo da costa da Escócia.

- Devastadora.

Falámos um pouco mais sobre a guerra na Europa. Enquanto eu tomava outro conhaque, Asher ainda ia no primeiro.

- Posso fazer-Lhe uma pergunta, professor Asher? - (Asher deve ter estranhado isto já que eu não tinha estado a fazer mais nada; aliás, a nossa pequena conversa de homens raiava um interrogatório. )

- Sim, com certeza.

- Porquê Thrupp?

Asher pigarreou. - Vejo uma oportunidade de elevar uma escola superior de província ao estatuto de uma universidade - respondeu ele.

- Criaria então escolas para estudos de pós-graduação?

- Seria o meu objectivo, sim.

- E como faria isso? Em termos financeiros, digo eu.

- Teria de me dedicar à angariação de financiamentos - respondeu.

- Compreendo. Esse trabalho não se ajustará melhor a um presidente do que a um director de Estudos cuja função é o mais das vezes a de disciplinador?

- Discordo - disse Asher, pousando a bebida. - As funções de um director compreendem decerto mais do que a disciplina. Há a correcta supervisão do corpo docente, a planificação do currículo...

- Alargaria então o âmbito do cargo? - perguntei, a minha voz elevando-se quase a uma risadinha.

- Explorá-lo-ia ao máximo. Certamente.

- Receio que a nossa pequena e pouco atraente escola vacile e sucumba sob o peso da sua ambição - disse eu, procurando controlar a voz.

Asher olhou para mim com a sombra fugaz de uma expressão que pareceu divertimento. - Não seremos todos ambiciosos? perguntou.

- Suponho que sim - respondi.

Ele consultou o relógio de bolso. - Tenho mesmo de me ir embora - disse, pondo-se em pé. - Foi muito amável. Obrigado pela bebida.

- Onde vai passar as férias de Acção de Graças? - perguntei, levantando-me também.

- Mr. Ferald teve a gentileza de.

- Compreendo - respondi, mais do que compreendendo. (Mas duvidei que Ferald recebesse um judeu em casa se soubesse. Uma coisa dessas era inimaginável. ) - É pena o seu irmão não poder fazer-lhe companhia.

- Rezaremos para que regresse são e salvo.

Acompanhei Asher ao vestíbulo. Chamei Abigail que entregou o sobretudo e o chapéu a Asher. - Quer uma boleia para o centro?

- perguntei. - Tenho um segundo carro durante esta semana.

- Aprecio a oferta mas não, obrigado - respondeu Asher. Tenho carro próprio.

- Pois tem, pois tem - disse eu.

- Espero poder retribuir-Lhe a hospitalidade um dia destes no hotel - disse ele com cortesia.

- Terei todo o gosto - disse eu, abrindo a porta.

Asher saiu para a noite estrelada. Observei-o a calçar as luvas.

- Não deve brincar com os administradores - aconselhei. Ele levantou os olhos para mim, o rosto iluminado pela luz artificial. - Como disse? - perguntou.

- Não creio que se aguente em Thrupp muito tempo - disse eu. - É um homem com demasiadas ambições e demasiados talentos. Thrupp é uma escola remota de reduzido interesse para si a longo prazo. Mas os administradores levam esta eleição muito a sério. É em princípio um posto vitalício. Duvido que o venha a ocupar até ao fim da vida.

Asher ficou calado por um momento como que a ponderar cuidadosamente as suas palavras. - Esse problema é meu - respondeu.

- E meu também - retorqui.

- Boa-noite - disse Asher. Dando meia- volta, encaminhou-se para o carro.

- Não tivessem o teu orgulho E a tua desmedida vaidade, quando menos estava seguro Rejeitado a minha advertência - citei nas costas dele, sabendo perfeitamente que, se havia homem capaz de reconhecer Milton, seria Asher.

Fechei a porta. Sorri. Não me pareceu que voltasse a receber em minha casa o homem de Yale.

Mal dormi nessa noite, agitado e animado com a deliciosa novidade que possuía. Considerei vários cenários. Poderia mencionar casualmente a Ferald em conversa a crença religiosa de Asher? Qual seria a melhor forma de o fazer? Devia arranjar maneira de me cruzar com o homem, pensei. Sim, faria isso. Haveria algum assunto que justificasse uma visita plausível?

O dia de Acção de Graças foi sobretudo passado na igreja, com uma refeição à tarde em casa da viúva de Bliss, durante a qual os nossos pensamentos expressos estiveram com o ausente William. Nicky e Clara aligeiraram a reunião com uma pantomima que haviam preparado. Nicodemus interpretou um índio, quase inebriado por lhe consentirmos um machado de guerra e uma faca de escalpar. Clara era uma quacre, a única sobrevivente do massacre de uma família. Brilhou no papel, especialmente durante a parte em que pôde demonstrar a sua bondade cristã, convertendo o miserável Nicky que teve de trocar a bonita túnica de couro por um par de calças.

Durante um curto intervalo, pensei na questão do quadro que Keep mencionara e no estado de confusão de William, induzido pela droga, e inclinei-me para interrogar Etna sobre o quadro. Perguntei-lhe se alguma vez possuíra um Legny.

- Um quê? - disse ela.

- Um artista da Nova Inglaterra, de renome nacional. Pinta paisagens impressionistas. Alguns retratos. Sabes com certeza quem é Claude Legny, Etna.

- Sei - disse ela distraidamente.

- Então, alguma vez possuíste um?

- Se possuí um quadro meu?

- Sim. Um Legny. Teu.

- Que pergunta espantosa! - redarguiu.

- E estava aqui a pensar - apressei-me a acrescentar, já que Nicky e Clara estavam prestes a recomeçar a sua pequena peça de teatro - como é que não me disseste que conhecias o Phillip Asher. sobretudo depois de saberes que ele ia a nossa casa?

- Não tinha a certeza se era a mesma família - disse Etna, pouco concentrada na conversa. Não tirava os olhos dos filhos no palco improvisado. - E o Phillip Asher está quase irreconhecível agora em relação ao rapaz que era quando o meu pai conheceu a família - acrescentou.

E foi tudo quanto pudemos dizer sobre o assunto porque Nicky e Clara estavam de novo a exigir a nossa atenção.

 

Nessa noite, Etna sofreu uma breve recaída e passou o resto do fim-de-semana na cama. Na segunda-feira seguinte, porém, Mary comunicou ao pequeno-almoço que a minha mulher saíra particularmente cedo nesse dia para a instituição de beneficência. Fiquei satisfeito com esta notícia pois significava que Etna se restabelecera. Pouco antes do almoço, ao atravessar o vestíbulo lateral, apercebi-me de que Etna afinal talvez não estivesse completamente restabelecida. Deixara o saco de viagem ao fundo das escadas. Abri-o e notei que estava cheio de alimentos - queijo, pão e pastéis de carne, sobras sem dúvida do fim-de-semana de Acção de Graças. Se o conteúdo do saco tivesse apenas consistido em roupa, tê-lo-ia deixado ficar. Mas como estava cheio de comida decidi, nesse mo mento, pegar no carro de Moxon, que ainda estava estacionado à nossa porta, e ir-lho lá levar. Apreciara bastante a condução, na minha anterior visita, e a verdade é que só me fazia bem praticar.

O dia estava péssimo e chuvoso, mas congratulei-me por conseguir recostar-me no banco, durante quase todo o trajecto, sem agarrar o volante como se fosse uma bóia de salvação. Cheguei a Norfolk Street antes da uma hora e aproximava-me da instituição de beneficência quando avistei Etna à distância a sair por uma das portas da frente. Não há dúvida, pensei, o meu sentido de oportunidade foi impecável!

O bservei Etna a levantar o guarda-chuva e a abri-lo. Estendeu um pouco os braços e desceu os degraus em direcção ao carro no pátio. Parei o meu próprio carro e saí, chamando por ela, mas com o tamborilar da chuva e o ruído do motor dela, não me ouviu. Com os gestos parcimoniosos de quem está habituado a uma máquina daquelas, Etna saiu do pátio em marcha atrás e virou.

No entanto, não virou na minha direcção mas no sentido contrário. Não se apercebera sequer da presença do carro de turismo de Moxon.

Pensei se Etna teria algumas voltas para dar. Estaria a tomar um atalho para casa?

Após um primeiro momento de surpresa, voltei a entrar para o

Stevens-Duryea e tentei seguir a minha mulher. A estrada estava molhada e escorregadia e a chuva criava uma confusão de formas no pára-brisas. Carreguei um pouco mais no acelerador na esperança de apanhar Etna mas, como era um condutor menos apto do que ela, não parecia capaz de ganhar velocidade suficiente sem derrapar. Nem sequer sabia se era o carro de Etna que estava a seguir ou o de outra pessoa porque fora ultrapassado por uma carruage pouco depois de arrancar e tive de esperar que Etna tivesse sido também ultrapassada. A certa altura, tive a vaga noção de ter chegado a outra vila, Drury talvez. Carreguei com mais força ainda no acelerador, assustando-me com o ruído do motor em esforço (conduzia a cinquenta quilómetros por hora, o que nesse tempo parecia uma velocidade excessiva). Ao cabo de quinze minutos desta loucura, fui recompensado com um vislumbre de verde através da chuva. Decidi ultrapassar Etna para lhe acenar e levá-la assim a parar o carro.

Mas enquanto traçava este plano, Etna guinou para a esquerda, entrando num caminho de acesso. Fez a viragem demasiado depressa para eu a seguir e, assim, passei pelo desvio e parei o carro mais à frente numa zona desimpedida. Estava trémulo por ter conduzido a tal velocidade, se bem que aliviado por não ter sofrido nenhum acidente. Fiquei sentado durante alguns minutos até o batimento do meu coração abrandar. Saí do carro de Moxon e caminhei até ao ponto em que Etna tinha virado. Pensei que teria de repreender a minha mulher pela sua forma de conduzir. Francamente, pensei, podia ter-se matado àquela velocidade e com uma chuvada destas!

Parei à entrada do que claramente parecia ser uma vasta propriedade. Logo a seguir à casa principal - uma mansão branca de vários andares com maciços pilares até ao telhado - estava uma pequena cocheira. Etna estacionara o Cadillac diante dessa construção mais pequena.

Talvez a minha mulher tivesse ido buscar uma encomenda a outra instituição de caridade, pensei. Nesse tempo, havia poucas mulheres que conduzissem e Etna podia ter oferecido os seus serviços a alguém conhecido. No entanto, ao aproximar-me da casa principal, reparei que estava fechada, como uma casa de férias no Inverno. As portadas do primeiro andar estavam trancadas e as cortinas dos andares superiores corridas. Se a casa não estava habitada, pensei, que estava Etna a fazer ali?

Levantando a gola, passei pela casa principal e encaminhei-me para o Cadillac. A propriedade possuía bonitos jardins, ondulantes e agradáveis, mesmo em Novembro. O terreno, tanto quanto me era dado ver, estava delimitado por um encantador muro de pedra. Havia pomares e canteiros de rosas dormentes e, nas traseiras, uma vinha. Contudo, o que me parecera uma cocheira era, de facto, uma simples moradia sem adornos, com uma porta de entrada que não admitia qualquer automóvel ou carruagem. A estrutura fez-me lembrar uma escola e, por um momento, ocorreu-me a ideia de que Etna aceitara o lugar de preceptora em casa de alguma família e eu não tomara simplesmente conhecimento da informação. A casa era de madeira fasquiada branca com janelas sem portadas e tinha um telhado inclinado, rematado com uma pequena torre. Os jardins imediatamente circundantes tinham aspecto de terem sido cultivados e depois limpos para o Inverno. Não havia sinais de actividade nem automóveis ou carruagens nas imediações. Aproximei-me de uma janela e espreitei lá para dentro.

 

Vi uma única divisão que não era sala de estar nem de jantar nem cozinha mas antes um espaço que combinava as três à maneira dos casebres mais miseráveis. As paredes estavam pintadas de branco e o reboco descamado em alguns pontos. Nas janelas, as cortinas de linho claro estavam atadas mesmo por baixo dos peitoris e, na parede, directamente por cima de um sofá, estava suspensa a moldura de uma janela gótica como a de uma pequena capela. Descoloridos esboços florais franceses tinham sido presos às paredes com alfinetes de chapéu e, num canto da sala, encontrava-se um armário alto de medicamentos de cor creme. Sobre o armário estava uma caixa metálica com um desenho verde em relevo na porta da frente com tranqueta. Havia um jarro branco com flores secas na única mesa. A luz da sala era difusa como se fosse filtrada.

No centro da sala, um candelabro branco pendia do tecto. O desenho do candelabro, excessivamente grande para a sala, era de um ramo de flores de ferro brancas, com zonas de ferrugem a surgir que emprestavam aos botões um toque de decrepitude.

Através deste matagal de flores - umas margaridas, outras rosas com pétalas pontiagudas - estendiam-se os seis castiçais da peça como braços abertos. Por todo o candelabro, suspensas dos caules folhas e gavinhas dos castiçais, havia dezenas de cristais.

Próximo de uma janela e de costas para mim, Etna estava sentada numa cadeira de madeira de espaldar direito. Estava debruçada sobre o que parecia ser uma obra de costura.

Afastei-me da janela e comprimi-me contra a madeira fasquiada, a chuva batendo-me na cara. Não sei por que razão reagi daquela maneira, por que razão não bati simplesmente à janela para chamar a atenção da minha mulher, por que razão, o que seria mais apropriado, não bati à porta. Creio que foi o choque de ver a minha mulher tão serenamente inclinada sobre o seu lavor, na tranquilidade desmaiada dessa sala estranha, que me confundiu.

Assaltavam-me as perguntas. O que estava Etna ali a fazer?

A quem pertencia a cabana? Seria a cabana de uma modista? Etna teria aceitado alguns trabalhos de costura para ganhar mais algum dinheiro?

Voltei-me de novo para a janela, consciente agora da minha atitude furtiva. Observei-a a costurar. Vi-a colocar um alfinete entre os lábios. Levantou o tecido em que estava a trabalhar, ajeitou-o e estendeu-o no regaço. O seu chapéu de condução e o casaco com gola de raposa estavam no sofá, como que arremessados para ali à pressa. O guarda-chuva aberto formava um charco num canto.

Estudei a minha mulher nessa pose talvez durante meia hora, relanceando ocasionalmente para a estrada com receio de que alguém que passasse estranhasse o facto de um homem estar a espreitar pela janela de uma cabana. Enquanto ali permaneci, registei mais pormenores da sala - um minúsculo lava-loiça de porcelana, um fogão, um genuflexório sobre o qual estava um prato com pêras douradas - mas os meus olhos eram constantemente atraídos pelo candelabro branco, cuja imagem se dissolvia e recriava nas vidraças alagadas pela chuva. Recordei-me da factura de um candelabro branco que abrira inadvertidamente e que Etna justificara, insistindo que tinha devolvido a peça. Ferro branco com seis castiçais. Etna levantou-se e voltou-se na minha direcção como se me tivesse surpreendido. Mas limitou-se a retirar com um puxão um pedaço de seda de uma caixa aberta numa prateleira. Tornou a sentar-se na cadeira.

 

A cada momento que passava, a ideia de bater a uma janela ou à porta tornava-se mais difícil de imaginar. E, para ser inteiramente sincero, observar a minha mulher através de uma vidraça causava-me uma certa excitação. Era como se eu fosse um espectador desinteressado a assistir a uma peça cujo sentido era crucial para a minha existência. Parecia que a minha mulher não era a minha mulher mas antes uma coisa separada de mim. Não podia atingi-la, tocá-la nem chamar por ela. Existia num universo à parte daquele que eu habitava.

Etna ajoelhou-se no soalho de madeira e estendeu o tecido à sua frente, os contornos da seda deslizando com a chuva na vidraça. Prendeu um molde de papel à seda e começou a cortar em volta. Nesse momento, levantou-se e levou a peça que já tinha costurado para o sofá-cama onde a alisou. Contemplou-a por alguns momentos (creio que era uma camisa de dormir); com os dedos cruzados por baixo do queixo. Inclinou a cabeça e franziu levemente o sobrolho e depois pôs as mãos nas ancas e olhou em redor. Apanhou os pedaços de seda do chão e colocou-os num cesto de costura.

Observei-a a dirigir-se ao fogão, a pôr uma chaleira ao lume e a tirar um bule, uma chávena e um pires de um armário. Deteve-se por uns instantes a olhar por uma pequena janela por cima do lava-loiça (não na minha direcção, felizmente) até que o silvo da chaleira se tornou audível mesmo para mim. Deitou chá num bule e dirigiu-se a outro armário. Pegou num estojo de escrita e pousou-o numa mesa. Esperou que o chá abrisse e, em seguida, serviu uma chávena que colocou na mesa ao lado do estojo de escrita. Tive a distinta impressão de que a mesa baloiçava. Retirou do estojo uma pena, um frasco de tinta e uma folha de papel. Começou a escrever, bebericando de vez em quando um pouco de chá.

Eram actos perfeitamente normais, a que não teria prestado a mais pequena atenção se tivesse visto Etna executá- los em nossa casa. Mas observá-la pela janela era completamente diferente. Exerciam em mim uma espécie de fascínio ao mesmo tempo que martelavam insistentemente o mistério crucial: que estava a minha mulher a fazer naquela cabana?

Não sou agora capaz de recordar quanto tempo estive naquela janela com a chuva a correr-me pelo pescoço e a encharcar-me os fundilhos das calças. Não me mexi nem emiti um som. Ao fim de algum tempo, Etna pousou a pena e arrumou o estojo de escrita. Lavou a chávena, o pires e o bule no lava-loiça. Sacudiu a água da chávena, enxugou-a com um pano e voltou a guardá-la no armário. Sacudiu igualmente as mãos e depois limpou-as ao pano húmido. Inspeccionou a sala e dirigiu-se ao sofá. Quando começou a enfiar os braços no casaco, contornei a esquina até ao lado arborizado da casa para que ela não me visse. Ouvi-a sair pela porta principal, puxando-a duas vezes para a fechar como se não tivesse ficado fechada à primeira. Minutos mais tarde, ouvi o arranque do motor.

Deixei-me deslizar pela parede até ao chão como se tivesse momentaneamente perdido a força nas pernas. Nunca me sentira tão perplexo. Por que razão teria a minha mulher, Etna Bliss Van Tassel, conduzido até Drury, New Hampshire, para se sentar numa cabana estranha a costurar, quando podia perfeitamente costurar - e fizera-o quase todos os serões da nossa vida conjugal - em casa?

 

Conduzi à deriva e virei várias vezes na direcção errada. Pior ainda, deixei acabar a gasolina e tive de esperar que um automobilista que passasse me emprestasse o suficiente para chegar a casa. Uma vez aí, reparei que o carro de Etna estava estacionado à porta. Em desalinho e molhado até aos ossos, entrei em casa e subi directamente ao quarto de vestir de Etna onde ela se encontrava com a camisola do espartilho e um vestido na mão que tencionava pôr para o jantar.

- Nicholas - disse ela, apertando o vestido contra o peito

- Onde é que estiveste?

- O que queres dizer?

- Onde é que estiveste? - gritei. Não tinha sequer tirado o sobretudo molhado e o chapéu que pingavam como chuva no tapete. Sabia que estava a amedrontar a minha mulher mas não liguei.

- Estive na instituição de beneficência - disse ela. – Acabo de chegar a casa.

- Eu fui à instituição de beneficência - retorqui - e tu não estavas lá!

- Já devia ter saído - respondeu. - Nicholas, que vem a ser isto tudo? - Fingiu-se surpreendida e irritada com as minhas perguntas mas os seus modos não eram tão seguros e inocentes como certamente desejava.

- Estive lá à uma e meia - declarei.

- Estiveste? - Fez de conta que pensava. - Bem, não sei a que horas saí mas tinha umas voltas para dar.

- Onde? Que voltas?

- Tive de ir a Drury comprar tecido - respondeu. - Francamente, Nicholas, pára de gritar comigo. Este interrogatório é ofensivo. Peço-te que saias do meu quarto.

Imobilizei-me, à beira da acusação, uma acusação que os espelhos do quarto de vestir teriam reflectido quatro vezes. Talvez tenha aberto a boca. Durante um longo momento, fomos marido e mulher separados por um abismo de silêncio. Estaria ela pronta a confessar a visita à cabana? Estaria eu pronto a admitir que a observara durante quase uma hora através de uma janela sem ter anunciado a minha presença? Estaria com medo de aflorar um tópico que, uma vez mencionado, seria irreversível? Não sei. Apenas sei que o silêncio entre nós era tão profundo que nem eu nem ela com preendemos a princípio o sentido dos gritos de Mary em baixo.

- A Mary está a gritar - disse Etna.

- O quê?

- A Mary está a gritar.

Aproximei-me do cimo das escadas. - O que foi, Mary? perguntei, irritado.

- A máquina, senhor, a máquina! - exclamou Mary, gesticulando freneticamente. - Está a andar ao contrário pelo caminho abaixo!

 

Dirigi-me à janela, vendo que o Stevens- Duryea estava efectivamente a ganhar velocidade pelo caminho de cascalho abaixo. Pior ainda, apercebi-me então da razão da histeria de Mary: Clara estava sentada no banco do condutor, agarrada ao volante de madeira numa espécie de paralisia.

Desci as escadas a correr e saí de casa, gritando pelo nome da minha filha. Apercebi-me de que, na minha pressa para confrontar Etna, deixara o motor ligado. A roupa molhada dificultava-me a corrida e embora me conte, como o leitor certamente já compreendeu, entre as menos atléticas das pessoas, julgo que é correcto afirmar que um pai é capaz de prodigiosas façanhas físicas quando um filho corre perigo. Persegui o errante automóvel pelo caminho todo, gritando a Clara que carregasse no pedal do travão – a Clara, que não sabia distinguir o pedal de um travão de uma alavanca de velocidades. Quando alcancei o veículo saltei para o estribo. Agarrei-me à porta, o meu súbito impulso fazendo o carro dar

um solavanco. Receei então que as rodas do veículo ficassem presas na vala ao lado do caminho e o carro capotasse. Gritei a Clara que se chegasse para o lado. Aterrada, ela deitou-se no chão. Com a habilidade de um contorcionista, abri a porta do condutor e lancei-me para dentro. Após várias pancadas com o pé no travão, parei finalmente o Stevens-Duryea a centímetros de um muro de pedra que delimitava a propriedade defronte da nossa.

Sem fôlego, levantei os olhos e vi que Nicky, Abigail e Mary tinham saído de casa para assistir à perseguição. Etna, com as mãos na boca, estava a observar de uma janela no andar de cima. Peguei na trémula Clara do chão e apertei-a contra o peito.

Espero que nos tenhamos consolado um ao outro.

 

Nessa noite, nem Etna nem Clara desceram para jantar. No caso de Clara, compreendia perfeitamente, mas não no caso da minha mulher. Abigail informou que Etna se fora deitar, sem comer, no quarto de hóspedes pois não desejava incomodar-me.

Incomodar-me? pensei mas não o disse pois estava à mesa com Nicky que ainda tremia do incidente anterior. Incomodar-me a que propósito, gostava de saber. (Nicky muito possivelmente estava a tremer de excitação; para um rapaz de seis anos, a descida desenfreada do automóvel teria sido certamente empolgante. ) Considerei a minha mulher uma cobarde e decidi acordá-la depois do jantar para lho dizer; e talvez o tivesse feito se não tivesse recebido uma chamada durante o creme de tomate.

O tom de Ferald era profissional. Queria falar comigo em casa dele logo pela manhã. Podia aparecer às nove horas? Sim, disse eu, com o maior prazer.

 

Desliguei e quase tropecei na cadeira do vestíbulo. O que quereria Ferald? Falara num tom frio mas Ferald também não era conhecido pelo seu entusiasmo. Queria falar comigo para me dizer que eu era retirado da corrida ao lugar? Não, não, não me parecia; para quê dar-se ao trabalho quando faltavam apenas alguns dias para a votação? Foi então que tive outra ideia, uma ideia mais agradável. Seria possível que Ferald tivesse tido conhecimento, por qualquer outro meio, de que Asher era judeu? E, assim sendo, poderia dar-se o caso de Ferald, falando em nome do conselho, se preparar para oferecer a Nicholas Van Tassel o cargo de director de Estudos da Escola Superior de Thrupp?

Não dormi bem nessa noite. Que homem poderia ter dormido? Quando não estava a pensar por que razão a minha mulher me mentira a respeito de ter estado numa casa estranha (mas ter-me-ia mentido? Tentei recordar exactamente a sequência de perguntas e respostas), estava a pensar no diálogo que em breve teria lugar entre mim e Edward Ferald. Imaginei a conversa, a minha grata modéstia (modesta gratidão) e a solenidade com que aceitaria o cargo. Parecia provável, com base na experiência passada, que Ferald não conseguisse abster-se de me transmitir que eu não era a sua primeira escolha. Mas, depois de todo este tempo, não seria capaz de enterrar o machado e de me felicitar como um patrono felicitaria um académico? Não importa. Mesmo que não fosse capaz da nobreza de um gesto de cortesia, o resultado continuaria a ser o mesmo. Deixaria a casa dele a tempo da minha aula das dez como novo director de Estudos da Escola Superior de Thrupp.

Vesti-me cuidadosamente, envergando o meu melhor fato de estambre e gravata de seda listrada. Espetei nesta um alfinete de diamante, um presente de Etna, ornamento que só usava nas ocasiões mais importantes. Procurei arranjar-me o melhor possível. Como talvez tenha mencionado, o meu cabelo começava a rarear, deixando-me um semicírculo calvo no topo da cabeça como se alguém tivesse arrancado um pedaço à dentada. Barbeei-me com cuidado e respinguei repetidamente a cara com água fria numa tentativa de reduzir os papos em torno dos olhos, resultado do meu estado de nervosismo.

Fiquei satisfeito por ter o Stevens- Duryea, pois considerei que causaria melhor impressão chegando no carro de Moxon do que a pé. Procurei conduzir com calma e manter a minha serenidade mental, afastando as imagens de Etna na cabana. Não queria estar preocupado nem distraído nesta ocasião importantíssima. Estacionei diante da porta de Edward Ferald, enquanto as minhas impressões sobre a mansão se atenuavam. Talvez a pedra calcária inglesa e as colunas gregas não fossem tão pretensiosas como eu pensara. Porque é que um homem não há-de construir uma casa de acordo com as suas fantasiosas extravagâncias?

Saí vivamente do automóvel e julgo que, ao bater à porta de Ferald, a minha aparência era de confiança e serenidade. Atendeu um mordomo (sim, um mordomo genuíno em Thrupp, New Hampshire, mas adiante), que me pegou no casaco, no chapéu e nas luvas e disse que Mr. Ferald estava à minha espera.

Segui o homem a uma certa distância até a uma maciça porta dupla que não recordava da visita anterior à casa; os puxadores de porcelana davam quase pelo queixo. O mordomo mandou-me entrar para uma sala espaçosa e bem iluminada, em cujo centro estava uma mesa oval extraordinariamente polida. Sugeriu que eu me sentasse próximo do centro da mesa e eu assim fiz.

 

Cruzei as mãos e o mordomo informou-me que Mr. Ferald não demoraria. Em redor da mesa havia estantes com livros que subiam até a uma galeria elevada que continha mais obras (mas o homem nem sequer lê, protestei silenciosamente). Os peitoris fundos das janelas e a carpete de pêlo alto tornavam a sala tão silenciosa que conseguia ouvir o tiquetaque do meu relógio no bolso. Esperei o que me pareceu uma eternidade, relanceando de tempos a tempos para o dito relógio. Nove e dez. Nove e vinte. Se Ferald não aparecesse em breve, pensei, chegaria tarde à minha aula. Não importa, disse comigo mesmo; nesse momento já seria director e não tardaria muito a ser dispensado de leccionar - uma aprazível perspectiva para não dizer mais.

O estalido do trinco da porta maciça fez-se ouvir precisamente às nove e meia. Edward Ferald, com um casaco verde-musgo, a barba cortada em ponta, entrou na sala. Debaixo do braço trazia uma pasta velha e gasta do género que se usava na escola há muitos anos. Levantei-me mas ele mandou-me sentar com um gesto. Sentou-se diante de mim à mesa.

- Chamei-o aqui hoje - começou Ferald (sem a mais breve saudação; as maneiras do homem eram deploráveis) - porque há um assunto que chegou ao meu conhecimento.

- Que assunto? - perguntei, pronunciando as primeiras palavras da nossa conversa.

Ferald consultou a pasta. - O Noah Fitch mantinha ficheiros sobre as pessoas que trabalhavam directamente sob a sua orientação quando leccionava a cadeira de Hitchcock - disse Ferald. Achei sensato procurar o seu nos arquivos já que é candidato ao lugar de director da Escola Superior de Thrupp. Nessa época era professor associado.

- Era necessário? - perguntei, subitamente consciente de uma tira de suor sobre o lábio superior. Porque é que Ferald mantinha a sala tão aquecida? Precisava do lenço, mas por nada deste mundo ia tirá-lo na presença de Ferald.

- E quando li a sua ficha - começou Ferald - descobri. como hei-de dizer? um comentário perturbante.

- Sim? - perguntei.

- Parece - disse ele - que houve em tempos um problema deplágio.

Ferald pronunciou a palavra com evidente repugnância. Uma monografia sobre as primeiras obras de Sir Walter Scott? perguntou. - Recorda-se do assunto?

A transpiração que me rebentara no lábio superior parecia desabrochar agora de todos os poros do meu corpo, incluindo a minha careca. - Nem por isso - respondi.

Não tive alternativa senão pegar no lenço e limpar a cabeça, a cara e o pescoço. Ferald sorriu pacientemente, esperando que eu guardasse o lenço de linho molhado antes de retomar a conversa.

- Falou com o Noah Fitch a respeito da sua dissertação, não falou?

- É possível que sim - repliquei. - Não espera decerto que eu recorde uma conversa que teve lugar. quando disse que foi?

- Em Março de 1900.

- Há catorze anos.

- Mesmo assim. - Ferald fez uma pausa. - Trata-se de uma acusação de plágio, um crime muito sério.

- Se bem me recordo, o Noah Fitch pediu-me desculpa por abordar o assunto comigo - expliquei. - Sim, tenho a certeza que pediu.

- Então sempre se recorda da conversa? - disse Ferald.

- É possível - disse eu, fazendo um gesto com a mão como que a descartar o assunto.

Edward Ferald bebeu um grande gole de água de uma garrafa de cristal sobre a mesa. Tinha lábios finos e uma língua pontuda que se enrolou dentro do copo. - Água? - ofereceu.

- Não, obrigado - respondi.

- Aparentemente - continuou Ferald, saciada a sede -, o Fitch não considerou que se tratasse de um assunto sem importância. A julgar pelos comentários dele.

- Como assim?

- Para ser mais exacto - começou Ferald -, esta nota aqui pelo punho do Fitch. e infelizmente não pode estar em dúvida sua autenticidade. diz em parte. - Ferald pigarreou. - Ele nega a acusação deplágio respeitante à sua monografia sobre Scott. a sua surpreendente semelhança com a de Alan Dudley do Amherst College. Deixei passar o assunto com uma severa advertência pois ele é um professor de Retórica valioso, ainda que pouco inspirado, e duvido que possamos de um momento para o outro arranjar um substituto até ao final do trimestre. No entanto, a prestação académica de VT será analisada com a maior atenção no futuro. Talvez sejustifique uma avaliação formal?

- Eu. não houve avaliação nenhuma - retorqui, com a expressão pouco inspirado a aferroar-me os ouvidos.

- Não, pois não - disse Ferald, bebendo mais água. - Há uma série de frases anexas a este documento, também escritas pelo punho do Fitch, que parecem extraordinariamente semelhantes a frases da monografia de Severance, publicada vários anos antes da sua própria dissertação, e que, a propósito, eu li. - Ferald olhou para mim e sorriu. - Quer ver estes aditamentos?

- Não - respondi -, não quero. Na altura neguei vigorosamente a acusação - acrescentei - e faço o mesmo agora.

- Sim, sim. Sem dúvida.

- É um assunto muito antigo - disse eu. - Sem importância nenhuma.

Ferald recostou-se na cadeira. Cruzou as mãos e pô-las debaixo do queixo. - Ah, mas nesse ponto, Van Tassel, discordo de si, compreende? - Notei que o peitilho da camisa dele estava, como sempre, tão branco que parecia novo. Mandaria fazer camisas às dúzias e só as usaria uma vez? - Foi mesmo por essa razão que o chamei aqui hoje. É que qualquer homem que elejamos para o cargo de director deve estar acima de qualquer suspeita - acrescentou Ferald. - Não deve ter a mais pequena nódoa no currículo.

- Não há quaisquer nódoas.

- Digamos que há um pequeno deslustre.

-Eu...

- E, se me permite que o diga, Van Tassel, quer-me parecer que o Fitch deixou passar o assunto por razões pragmáticas e não por duvidar da sua veracidade.

- Razões pragmáticas? - perguntei. - Isso é uma interpretação completamente errada e insultuosa do incidente.

- Acho que sou bastante bom a interpretar - disse Ferald.

- Nas aulas não era! - disse eu antes de me conseguir dominar.

Ferald sorriu. - Não, é verdade - disse. - Uma debilidade pela qual, se bem me lembro, fui severamente punido. Com uma nota negativa. Um F, O que me obrigou a repetir o segundo trimestre do meu terceiro ano.

- Um aluno deve aceitar as consequências das suas falhas - observei.

- E um professor também - disse Ferald, fechando a pasta.

- Se não retirar a sua candidatura, Van Tassel - (Tinha agora abandonado o professor) -, comunicarei esta indiscrição aos administradores.

- Não pode.

- Mas, se retirar, ninguém ficará a saber disto e pode continuar na escola.

Pestanejei. Continuar na escola? - O que quer dizer? - perguntei.

- Quero dizer que não perde o emprego - retorquiu ele. Uma linha vertical formou-se-lhe na testa. - Não implica que não possamos querer uma avaliação posterior da sua aptidão para chefiar o seu departamento.

Abanei a cabeça. Precisava de tempo para pensar. Desabotoei o casaco do fato. - Isto é monstruoso - observei.

Ferald encolheu os ombros como que a dizer: Isso não tem qualquer importância.

- E tudo porque uma vez o reprovei no módulo sobre Scott?

- perguntei.

Ferald levantou-se. - Vou anunciar a sua renúncia na reunião

de quatro de Dezembro - disse ele, enfiando a pasta velha debaixo do braço. Durante uns momentos, estudou-me.

Ter-me-ia também levantado mas não fui imediatamente capaz.

Tremiam-me os braços com o choque e a minha boca estava seca.

- Gostou da sua visita? - perguntou ele.

- Visita? - perguntei, incapaz de pensar. - Que visita?

- A minha casa.

Quis desapertar o colarinho. - Não sei do que está a falar - redargui.

- Da noite da minha festa, Van Tassel. Um criado, de que

não duvido, disse-me que fez uma visita à minha casa.

-Eu...

- A piscina? - sugeriu.

Voltei a tirar o lenço do bolso e limpei a testa.

- A estufa? - perguntou Ferald. - Na noite da recepção?

- Tinha. tinha ido à procura da minha mulher - gaguejei. Ferald sorriu. - Não me diga - disse ele.

Pus-me de pé a custo embora tivesse de me apoiar na mesa para me equilibrar. Pigarreei.

- Presumo que tem conhecimento de que o Phillip Asher é judeu - disse eu, como um homem que joga o seu trunfo muito depois de os outros jogadores terem abandonado a sala.

Por um momento, Ferald ficou em silêncio.

- Judeu - repeti.

Ferald olhou para mim com curiosidade. - Bom-dia, Van Tassel - disse.

Mal me recordo de ter conduzido até à escola. Estacionei o carro no relvado e encaminhei-me para a minha aula em Chandler Hall. Entrei na populosa sala (estava atrasado) e sentei-me sem forças à secretária. Decorridos uns momentos, olhei para os rostos expectantes dos jovens à minha frente.

Não reconheci ninguém, nem uma das atónitas fisionomias.

Fiquei sentado durante algum tempo, numa atitude de perplexidade, com os confusos estudantes à espera de uma declaração. Não me ocorriam quaisquer palavras para lhes dirigir. Pensei se não teria sofrido uma síncope. Teria sido a obstrução de um vaso sanguíneo que me provocava este horrendo lapso de memória, este tremor das pernas?

Uma figura surgiu à porta e eu virei a cabeça. Era Owen Ellington, um jovem membro do corpo académico. Tinha na mão uma chávena de chá e também ele parecia um tanto perplexo embora numa atitude cordial.

- Professor Van Tassel - disse ele -, que prazer. Precisa de alguma coisa?

Talvez o tenha cumprimentado. Levantei-me e peguei na pasta. Ellington afastou-se e eu saí para o corredor. Num momento de hesitação, não soube para que lado me virar.

Com passadas deliberadamente cautelosas, fui à procura da minha sala de aula. A única coisa que me ocupava o pensamento era a cena humilhante por que acabara de passar em casa de Ferald.

Que meios estavam à minha disposição? Não poderia apresentar recurso? Sim, pensei, era possível. Fá-lo-ia imediatamente. Não tinha dúvidas de que era mais respeitado do que Ferald pelos professores. E contudo. contudo. levar uma tal acusação ao conhecimento geral podia acabar em catástrofe para mim. Encostei-me a uma parede. Sabia perfeitamente o que uma revelação destas poderia fazer à minha carreira.

Encontrei a minha sala e entrei. Dirigi- me à secretária e sentei-me na cadeira. Levantei o olhar para os meus alunos inquietos e impacientes que sem dúvida se interrogavam como era possível que o professor Van Tassel tivesse envelhecido tanto desde a semana anterior.

Enquanto me dirigia de carro à instituição de beneficência, sentia-me estranhamente calmo. Familiarizado com o Stevens-Duryea e com a estrada, tive a sensação de ter chegado a Norfolk Street num abrir e fechar de olhos. No entanto, não fazia tenções de entrar em Baker House nem de anunciar a minha presença. Nesse dia, o que pretendia era invisibilidade.

Estacionei numa clareira atrás de um renque de carvalhos que ainda não tinham perdido as folhas. Estava convencido de que não me podiam ver da casa pois eu próprio mal conseguia distinguir o edifício; tão-pouco me parecia que me pudessem detectar da estrada. Não queria que Etna soubesse que estava ali.

Um rapaz de bicicleta e um homem com um grosseiro sobretudo de tweed e uma boina de tecido passaram sem me ver. Além destas duas criaturas, não me apercebi de mais ninguém durante a hora ou mais em que esperei na clareira. Exausto dos acontecimentos da manhã, assim como da minha noite de vigília, creio que devo ter passado momentaneamente pelas brasas. Sobressaltei-me quando ouvi um leve som: uma voz, duas vozes, uma das quais reconheci:

Endireitando-me, reparei que Etna tinha saído por uma das portas principais. Vi-a despedir-se de alguém que permaneceu escondido e encaminhar-se depois para o carro.

Não tinha planeado nada a partir daqui nem sabia que atitude

tomar. Ia agora seguir a minha mulher como um vulgar detective?

E como ia consegui-lo sem ela se aperceber? A absurdidade dessa ideia assaltou-me e quase saltei do carro para a chamar quando a vi fazer inversão de marcha para sair do caminho de acesso. A estranha cabana já não tinha importância, pensei. Precisava simplesmente de falar com a minha mulher. Ela saberia o que eu devia fazer quanto a Edward Ferald e ao cargo. No mínimo, consolar-me-ia.

Contudo, quase imediatamente, perdi Etna de vista. Estava confiante de que conseguia encontrar novamente a cabana mas neste ponto enganei- me. Ao segui-la à chuva no dia anterior, fizera aparentemente duas viragens de que não me recordava bem. Assim, dei comigo numa estrada desconhecida, numa zona densamente arborizada. Parei o carro e saí para inspeccionar, pensando que com uma tarde limpa talvez encontrasse algum indício. Não havia nada e não tive outra alternativa senão continuar, esperando cruzar-me com algum agricultor que me dissesse onde estava. Continuei durante mais vinte minutos até chegar a uma pequena casa um pouco recuada em relação à estrada. Bati à porta de entrada e uma mulher ligeiramente surpresa informou-me que estava em Vermont. Vermont! Quando é que tinha atravessado o rio Connecticut? A mulher não estava muito segura do caminho para a estrada nacional mas indicou-me uma loja onde me deram mais informações. Com os nervos em franja a ponto de se desintegrarem, voltei a atravessar o rio e tomei a direcção de Drury, a vila onde vira Etna na cabana.

Demorei quase mais meia hora a encontrar a propriedade. Decidi que tinha de comprar um mapa rodoviário. Estacionei como no dia anterior e aproximei-me da casa, caminhando com menos arrojo e rasando a orla da floresta. Em silêncio, encaminhei-me para a cabana, em plena vista se Etna por acaso olhasse pela janela. Mas não olhou.

Mais uma vez, estava sentada à pequena mesa instável, desta vez a ler um livro que abrira sobre o tampo da mesa. Estava com um vestido de seda preto com uma gola cor-de-rosa e tinha um colar de contas de vidro rosa ao pescoço. Estava debruçada sobre o livro com as mãos juntas no regaço. Enquanto eu a observava, pousou o cotovelo na mesa e apoiou a testa na mão, um gesto característico de Clara quando estudava para os exames. Etna virou a página e pousou o queixo na palma da mão. Mexeu-se ligeiramente na cadeira de espaldar de travessas em que estava sentada (não podia ser confortável) e cruzou a perna pelo joelho, um gesto que nunca teria feito em público nem na minha presença no salão. Mais uma vez, tive a sensação de estar a observar uma coisa separada, alguém que nada tinha a ver comigo. Ela esticou os braços sobre a cabeça.

Avancei para a porta principal e entrei na sala.

Ela levantou-se e embateu na mesa, deitando um pires ao chão.

- Nicholas - disse ela.

- O que estás a fazer aqui? - perguntei, abrindo os braços. Ela deslocou-se, deixando a cadeira de espaldar de travessas entre nós. - É minha - respondeu.

- É tua, como? - perguntei avançando mais um passo. Ela pôs as mãos na travessa superior da cadeira. Um rubor intenso, rivalizando com a gola cor-de-rosa, assomou-lhe às faces.

- É minha.

- Etna - disse eu -, não te estou a entender.

- Esta casa é minha - disse ela.

Esta casa era dela? Não era simplesmente possível. Avancei um passo na sua direcção. Ela agarrou-se à travessa da cadeira mas não arredou pé. - Do que é que estás a falar? - perguntei.

- Comprei-a - disse ela.

Ouvi como se se tratasse de uma língua estrangeira que tivesse negligenciado estudar.

- Com quê?

Uma súbita, se bem que quase imperceptível, película de suor rebentou-lhe na testa. - Herdei um quadro - explicou.

- Então sempre havia um quadro - observei.

- Havia.

- Mentiste-me.

- Como é que me encontraste? - perguntou.

- Segui-te - disse eu. - Ontem. - Atirei o chapéu pelo ar, indiferente ao lugar onde aterrasse. - Nunca vi nenhum Claude Legny.

- Estava nas águas-furtadas de casa da minha irmã - disse Etna. - Ela trouxe-mo no ano passado, a meu pedido.

- No ano passado? Há quanto tempo tens esta casa?

- Desde Janeiro. Tentei pensar. Tinha sido há onze meses! - E durante esse

tempo todo tens vindo para aqui?

192

Ela não respondeu mas não era necessário. A resposta era mais do que evidente no ambiente doméstico criado, no jardim tratado na parte lateral da casa. Viera para aqui no Inverno, quando a neve cobria tudo, e na Primavera quando alguém plantara flox ao lado da casa. Viera para aqui durante todo o Verão e no princípio do Outono quando eu caminhava debaixo do resplandecente toldo de folhagem de Wheelock Street. As crianças estavam ao corrente? Alguma vez tinham estado aqui?

Penetrei ainda mais numa sala que teria talvez seis metros de comprimento e nove de largura. Ao fazê-lo, reparei em objectos que me tinham escapado no dia anterior: o manequim de costura no canto, livros em prateleiras debaixo da janela, uma cadeira de rami. Sob o candelabro, havia um pequeno tapete persa. Uma área junto da cozinha estava coberta com linóleo. Na prateleira por cima do lava-loiça, estava um açucareiro de vidro. Olhei para o tecto.

- O candelabro - disse eu. - Também mentiste sobre ele. No dia em que a factura chegou.

Etna agarrou a cadeira com mais força.

- És minha mulher - disse eu.

- Tenho sido uma boa mulher - retorquiu.

- Uma boa mulher com um segredo.

 

Ela baixou-se para apanhar os cacos do pires. - Não te prejudicou - respondeu.

- Não me prejudicou? - perguntei, incrédulo. - Não me prejudicou?

Ela endireitou-se com os pedaços de louça na mão.

- O que é que fazes aqui? - perguntei, varrendo com um gesto toda a sala.

- Faço. - correu os olhos em volta. - Leio. Costuro. Escrevo.

- Mais alguém sabe disto?

- Não - respondeu.

- Alguém vem aqui? Um amante?

- Não - repetiu, aparentemente chocada com a sugestão. Claro que não.

Levei a mão à testa como se o gesto me ajudasse a pensar. Como é que eu posso acreditar no que dizes?

193

Mas a verdade é que acreditava. Acreditava, e ainda acredito, que nesse dia ela me contou toda a verdade; que, na realidade, a experiência era comparável a uma súbita torrente de lágrimas, libertadora para ela e carregada de alívio.

- Tiveste-me todos estes anos - disse Etna calmamente. Tiveste as crianças. Dei-te uma família. Tenho sido fiel. Tenho cumprido o meu dever.

- Dever - disse eu. - Tens sido frígida.

- Sim, tenho. E já disse que o lamentava. Mas isso não tem nada a ver com isto.

Aproximei-me do armário de medicamentos e toquei na caixa metálica branca. Etna susteve a respiração.

- Quando me pedias dinheiro à mesa do pequeno-almoço, era para isto? - perguntei.

- Tinha dinheiro do quadro. - Pousou os cacos do pires partido no escorredouro ao lado do lava-loiça. - Rendeu mais do que

imaginei.

- Isto é uma loucura - disse eu.

- É o meu preço - disse ela calmamente.

- O teu quê? - perguntei, certo de que não a tinha ouvido

bem.

Ela ergueu o queixo. - O meu preço - repetiu.

- O teu preço por quê? Não conheço nenhuma mulher que exija um preço ao marido.

- Talvez as outras mulheres não exijam - respondeu.

Abanei a cabeça. - Tem sido assim tão doloroso estares casada com Nicholas Van Tassel que tenhas de exigir um preço? - perguntei. - Tem sido tão angustiante que precisaste de um sítio onde te esconderes?

- Eu não me escondo - limitou-se a dizer.

- Então porque é que não falaste disto ao teu marido?

- Porque deixaria de ser minha - respondeu.

- Não percebo a tua lógica, Etna.

E, para ser franco, não percebia. Se fosse um homem que tivesse uma casa à parte, possivelmente teria compreendido. Uma casa para a amante, talvez. Poder-se-ia condenar o acto mas, pelo menos, entendia-se a ideia. Mas uma mulher ter uma casa separada! Era inconcebível.

- Não é para ter lógica nenhuma, Nicholas.

- Tiveste um amante antes de mim! - disse eu explosivamente, já não conseguindo guardar esta acusação para mim mesmo.

 

No silêncio que se instalou entre nós, ouvi gansos a gritar no céu. Um carro na estrada. Etna desviou os olhos de mim. Respirou profundamente e é possível que a tenha percorrido um leve arrepio.

- Quem foi? - perguntei, preparando-me ao mesmo tempo para a resposta.

Ela encostou-se à borda do lava-loiça de porcelana. - Não tem importância - disse.

- Exijo saber - disse eu, invocando todo o poder putativo de um marido.

Ela virou-se e olhou pela pequena janela por cima da torneira.

- E eu não te digo - respondeu.

O meu olhar percorreu mais uma vez a sala, pousando em objectos agora familiares: a caixa metálica, a moldura da janela gótica, o candelabro. Abri completamente os braços. - Porquê? perguntei.

Ela voltou-se novamente para mim. - Isto é uma coisa à parte, Nicholas. É separada. Não tem nada a ver contigo.

- Não pode haver nada separado numa união - protestei.

- Se fosses sensato - disse ela -, acabavas com essas perguntas.

- Tínhamos um acordo - disse eu.

- Sim. E eu cumpri a minha parte.

Sentei-me pesadamente na cadeira de espaldar de travessas. Etna afastou-se do lava-loiça. - Tens um amante agora? - perguntei.

- Não, não tenho.

- Por que outra razão há-de uma mulher querer uma casa de que o marido não sabe nada? - perguntei. - É o que toda a gente vai pensar.

- Ninguém pensa nada se não souber.

Pousei os braços na mesa instável. - Queres que eu seja cúmplice do teu logro?

Ela pareceu reflectir por um momento. - Não, não quero; disse por fim.

Indiquei com um gesto a casa maior. - Quem vive ali? - perguntei, apontando.

- A mulher que me vendeu a casa.

- A propriedade não é dela?

- O caminho divide as duas propriedades.

Levantei-me, aproximei-me da janela e vislumbrei o que, no dia anterior, a chuva não deixara ver: a casa estava delimitada por uma vedação baixa. - Como é que descobriste isto?

- Vi um anúncio no jornal.

Dirigi-me a um guarda-fatos de carvalho, de um dos lados da entrada, e abri-o. No interior estavam dois vestidos, um guarda-pó e um chapéu de abas largas. A visão dos vestidos e do chapéu transtornou-me, eu que estava como uma porta prestes a soltar-se dos gonzos. Passei o braço violentamente pelo guarda-fatos e varri as roupas dos cabides. Como um porco selvagem, também eu estrebuchei. Afastei-me do guarda-fatos e arranquei uma cortina de linho da janela.

- Nicholas - disse Etna.

Dei um pontapé ao balde de esmalte, espalhando as hortênsias secas pelo chão. Arranquei um pequeno quadro do gancho na parede. Etna, a centímetros do meu alcance, fugiu de mim.

- Pára, Nicholas! - gritou.

 

Teria batido na minha mulher? Não, creio que não. Apenas desejava destruir aquela sala. Abri um armário e tirei um prato que arremessei contra uma parede. Etna emitiu um som e eu voltei-me. A sua expressão era de um terror tal que me fez cair em mim. Avancei aos tropeções e deixei-me cair no sofá, espantado por este ter aguentado com o meu peso violento.

Enterrei a cabeça nas mãos. Tinha sido traído por uma casa.

- Não vou conseguir o lugar - disse eu.

- Disparate - disse Etna.

- Já me disseram.

- Quando?

- Hoje de manhã. O Edward Ferald.

- Nicholas - disse ela, aproximando-se de mim.

- Não - disse eu, levantando uma mão. Não queria a compaixão dela. Com a frieza ainda podia aguentar. Mas com a piedade? Nunca mais, disse a mim mesmo. Nunca mais.

Etna deteve-se e cruzou os braços sobre o peito. - Sinto muito!

- Diz-me que o teu amante não foi o Phillip Asher.

- Não foi.

- Mas conhecia-lo.

- Muito mal. Já te disse.

Sentei-me na ponta do sofá. - Então foi o irmão. O Samuel. O teu amante foi ele.

Etna fechou momentaneamente os olhos. Quando os abriu, reparei que estava a chorar.

- Sabias que o Phillip Asher vinha para Thrupp? - perguntei. Ela abanou a cabeça. - Não sabia de nada até ouvir o nome dele na recepção.

- Na recepção do Ferald.

- Sim.

- Foi por isso que deixaste cair a taça de champanhe.

- Foi - respondeu.

- Foi por isso que te fechaste durante aquelas semanas todas. Não estiveste a sofrer pelo teu tio; foi por outra pessoa.

- Essa acusação é monstruosa - disse ela.

- Casaste comigo com base numa mentira - disse eu. Etna tirou um gancho do cabelo. Fazia isto por vezes, em momentos de angústia privada. - Não casei - disse ela. - Nunca me questionaste sobre a minha vida antes de ti.

- Subentende-se que essas coisas se confessam antes do casamento - disse eu, um pouco distraído com a visão da cascata de cabelo cor de bolota que caiu do nó desfeito.

- E tu não tiveste amantes antes de mim? - perguntou ela, sacudindo o cabelo ao longo dos ombros.

- Não sejas absurda, Etna. A questão não é essa.

- É essa, sim - disse ela. - Tu tiveste a tua liberdade.

- Eu não quero a minha liberdade - gritei com toda a sinceridade. - Desde o dia em que te conheci que nunca mais quis liberdade.

- Mas eu quis a minha!

Levantei-me em pânico, tal a indecisão que sentia. - Onde é que vão dar? - perguntei, apontando para um estreito lanço de escadas.

- A outra divisão. Um sótão - respondeu ela enquanto eu a afastava para passar. - Mas não há lá nada.

As escadas eram tão íngremes que tive de usar as mãos. Quando cheguei ao topo, olhei em redor e vi um sótão com paredes triangulares onde só no vértice da divisão podia pôr-me de pé. Estava escassamente mobilado embora as duas janelas em cada um dos extremos tivessem cortinas. Havia uma cama de ferro branca, com um colchão, e uma máquina de costura. Aos pés da cama de ferro estava um baú de cedro. Abri-o e vi um edredão dobrado. Reconheci o edredão como já tendo estado na nossa cama matrimonial.

Caí de joelhos e levei as mãos à cabeça.

Ao fim de algum tempo, desci novamente as escadas. Etna continuava junto do lava-loiça.

- Presumo que saibas que o Phillip Asher é judeu - disse eu. Ela pestanejou. - Sim, certamente - respondeu depois de uma pausa.

- Foste amante de um judeu?

Ela abriu a boca e tornou a fechá-la. - Não te rebaixes, Nicholas - disse.

- Estou espantado, Etna. Não te julgava capaz de uma coisa

dessas.

Neste momento, ela enfureceu-se. - Como podes pensar que o meu coração e a minha razão não são capazes de aceitar um judeu? - perguntou, elevando a voz. - De o amar?

- O coração pode amar mas a razão não - disse eu tolamente.

- O coração não tem razão e a razão não tem coração. São dois órgãos separados, muitas vezes em guerra um com o outro.

- Estás enganado - disse ela. - A tua razão é que está carente.

- Carente está o meu coração, e falo num sentido inteiramente diferente. Sabias que o Phillip Asher era judeu e, no entanto, nada disseste quando sabias que podia ter ajudado a minha candidatura? - perguntei.

- Acaba com isto! - exclamou ela. - És um idiota, Nicholas.

- Isto é motivo para o divórcio - declarei.

A sala caiu num silêncio sepulcral como que atemorizada da declaração.

- Tu não te divorciavas de mim - disse Etna.

- Divorciava, sim - respondi.

(Mas não sabia por que razão dissera tal coisa. Não queria divorciar-me. Não, não, era a última coisa que eu queria. )

- Estás a ser demasiado irreflectido - disse Etna e eu notei que Lhe tremiam as mãos.

- Tu é que foste irreflectida.

Ela recuou um passo e sentou-se na cadeira de rami. As forças tinham- lhe finalmente abandonado as pernas.

- Há onze meses que vens secretamente para aqui - disse eu.

- Isso foi irreflectido. Mentiste ao teu marido. Isso foi irreflectido. Etna abanou a cabeça.

- Um divórcio é um acto muito triste - disse eu, baixando-me para apanhar o chapéu do chão.

 

Etna emitiu um som e, se foi uma súplica, não sei, porque eu tinha aberto a porta, saído para o frio e começado a descer o caminho. Dei com o carro como um cego que avança para uma casa onde não quer entrar. Abri a porta e sentei-me. Agarrei-me ao volante e tê-lo-ia arrancado do encaixe aos abanões se tivesse forças. Atirei-me contra as costas de couro acolchoado do assento e, nesse momento, uma citação de O ParaÍso Perdido elevou-se desde as profundezas da terra, trespassando o automóvel e escarnecendo de mim com a sua precisão.

Porém, se aqui terminar

A desventura, mereci-a, e suportarei

Os meuspróprios merecimentos.

(Livro X, II. 725-727; Adão a falar; em desespero ante o glorioso mundo perdido; sabendo que os seus descendentes o amaldiçoarão; apenas desejando a morte. Dos melhores versos de Milton, na minha opinião. )

 

Cara Mrs. Van Tassel

Escrevo-lhe a respeito de um assunto delicado e perdoe-me se presumo infelicidade onde ela não existe mas, depois de ter visto a sua expressão esta noite, no vestíbulo de casa de Mr Ferald, enquanto esperávamos pelas nossas carruagens e automóveis, não posso senão pensar que ficou chocada ao encontrar-me nessa casa. Já tinha travado conhecimento com o professor Van Tassel nesse dia mas desconhecia que fosse seu marido. Na verdade, não sabia que tinha casado. Escrevo para Lhe dizer que, por mais agradável que tenha sido revê-la, nunca foi minha intenção causar, quer a si quer ao seu marido, qualquer angústia com a minha aparição em Thrupp. Se soubesse que residia aqui, garanto- Lhe que não teria aceite o amável convite da escola para proferir as Palestras Kitchner.

No entanto, tendo-me comprometido com estas conferências, ficarei em Thrupp até final do trimestre. Pior ainda, aparentemente eu e o seu marido fomos convidados a candidatar-nos ao lugar de director de Estudos da Escola Superior de Thrupp. Depois de a ter visto esta noite, estou determinado em retirar a minha candidatura e regressar a New Haven assim que as palestras terminarem.

Com as mais calorosas expressões de cordialidade

Phillip Asher, Holyoke Street

 

20 de Outubro de 1914

Caro professor Asher

Agradeço-lhe a sua amável carta de 19 de Outubro. É uma atitude generosa da sua parte oferecer-se para retirar a sua candidatura ao lugar de director de Estudos da Escola Superior de Thrupp, mas peço-lhe que compreenda que, se estivesse nas minhas mãos fazê-lo, em circunstância alguma o consentiria. Na realidade, con sideraria um insulto se deixasse Thrupp por minha causa. Embora esteja convicta de que o meu marido é o melhor candidato ao lugar, a sua candidatura e êxito final seriam manchados caso o seu opositor tivesse partido mercê do facto de ter conhecido a mulher num passado distante. Por favor, garanta-me na primeira oportunidade que não fará uma coisa dessas.

Com todo o respeito

Etna

Hotel Thrupp

 

21 de Outubro de 1914

Cara Mrs. van Tassel

Agradeço-lhe a sua imediata resposta à minha carta de 19 de Outubro. Honrarei o seu pedido embora não esteja de modo algum seguro de que se trate do caminho correcto. (Dá a impressão de que o orador das Palestras Kitchner sobre a natureza do ganho privado em oposição ao bem comum não é mais capaz de responder a uma simples questão de decência básica do que um estudante.) Desde essa noite na recepção de Ferald que tenho desejado nunca ter ouvido falar nas Palestras Kitchner. A minha familia causou-lhe angústia suficiente e eu não quero, de modo nenhum, contribuir mais para ela.

Tive ocasião, na manhã seguinte à recepçção de Mr Ferald, de encontrar o seu marido no Hotel Thrupp. Tivemos uma conversa agradável e, como não recebi da parte dele qualquer indicação de que estava a par das dificuldades passadas entre si e a minha familia, sei que não lhe disse nada na altura. Foi, todavia, uma situação embaraçosa que pode vir a causar uma quebra de confiança num futuro próximo. Fui convidado para jantar em sua casa no domingo. Uma vez que a decisão sobre como devo agir nesta matéria lhe cabe inteiramente a si, aguardo a sua resposta.

Com toda a amizade, Phillip Asher

 

Holyoke Street

22 de Outubro de 1914

Caro professor Asher

Em resposta à sua carta de 21 de Outubro, gostaria simplesmente de dizer que não foi a sua família que me causou angústia. Nem foi o seu irmão. A angústia que sofri foi inteiramente minha e só eu sou responsável por ela. Tinha idade suficiente para compreender as consequências das minhas acções e para as aceitar. Na verdade, tenho razões para estar grata ao seu irmão e grata pelas circunstâncias em que o deixei. O casamento com Mr. Bass de Brockton teria sido desastroso a vários níveis. A minha relação com o seu irmão Samuel pôs um fim necessário, se bem que difícil, a esse noivado, fim com o qual sempre sentirei regozijo.

Quanto à questão do meu marido e da confiança futura, não vejo qualquer razão para discutir com ele um incidente já tão antigo. Espero que venha a nossa casa no domingo e que tanto eu como o meu marido venhamos a conhecê-lo como o Phillip Asher que chegou recentemente a Thrupp.

Com todo o meu respeito

Etna Van Tassel

 

Hotel Thrupp

30 de Outubro de 1914

Cara Mrs. van Tassel

Desejo expressar as minhas sentidas condolências pela morte do seu tio, William Bliss. Embora, infelizmente, não o conhecesse pessoal mente, a alta estima em que toda a comunidade da Escola Superior de Thrupp o tinha é por de mais evidente. Se puder ajudá-la, seja no que for, durante este período dificil, por favor não hesite em informar- me.

Ao seu inteiro dispor, Philli Asher

 

Holyoke Street

14 de Novembro de 1914

Caro professor Asher

Perdoe-me por ter demorado tanto tempo a agradecer a sua carta de pêsames. O meu tio William era um marido extremoso, um pai dedicado e um professor estimado. A sua falta será profundamente sentida. Lamento também que não tenha podido conhecê-lo. Estou certa de que teriam ambos apreciado a companhia um do

outro.

Com a humilde expressão da minha amizade

Etna Van Tassel

 

Hotel Thrupp

16 de Novembro de 1914

Cara Mrs. Van Tassel

Não desejo incomodá-la durante o seu luto excepto para dizer que lamento não ter comparecido ao funeral de Jilliam Bliss. Achei, dadas as circunstâncias, que seria melhor manter- me afastado.

Com sentido respeito pela sua perda

Philli Asher

Holyoke Street

 

18 de Novembro de 1914

Caro Mr. Asher, Garanto-Lhe que não nos sentimos ofendidos com a sua ausência no funeral do meu tio. Estavam presentes muitas pessoas para lhe prestar um último tributo, incluindo um número razoável de antigos alunos dele, o que nos encheu de satisfação. Constituiu, creio, um testemunho eloquente do seu sucesso como professor de Física.

Não sei quando será possível que eu e o meu marido o convidemos para jantar em nossa casa. A morte do meu tio afectou-me duramente de modo inesperado. Não sei porquê, pois há muito que contava com ela. Parece ter aberto uma veia de emoções que julgava ter estancado com sucesso. O meu pai faleceu pouco depois do triste incidente com o seu irmão e penso que essas duas ocorrências e esta estão associadas no meu coração.

Espero que o seu irmão se encontre bem. Agradar-me-ia saber notícias dele.

Com afecto, Etna Bliss Van Tassel

 

Hotel Thrupp

20 de Novembro de 1914

Cara Mrs. van Tassel

O meu irmão encontra-se em Londres, tendo sido destacado para o Almirantado enquanto durar a guerra na Europa. A única coisa que nos pode dizer sobre o seu trabalho é que está ligado à astronomia e à navegação, que eram, como deve lembrar-se, as suas áreas de especialização quando leccionava em Exeter. O meu irmão emigrou para Torontopouco depois de a relação dele consigo ter terminado. Era professor de Astronomia e Navegação em Toronto desde 1897. Ardith, a mulher do Samuel, e os quatro filhos de ambos continuarão naquela cidade até que seja seguro viajar até Londres. Todos rezamos por um desfecho rápido e justo do conflito na Europa.

Devo dizer-Lhe que a recordação da sua chegada a casa dos meus pais, naquela manhã nevada de Janeiro, é uma das mais importantes do início da minha idade adulta. Foi nesse dia que vislumbrei, pela primeira vez, a ferocidade do amor que se esconde atrás do véu de uma conduta civil. Foi um momento terrivel para todas as pessoas envolvidas, mas cuja lembrança me acompanha há muitos anos. Não posso aprovar nem perdoar inteiramente o comportamento do meu irmão nesse dia e nunca o compreendi. Na verdade, demorámos anos a conseguir conversar ou corresponder-nos com sinceridade.

Creia-me afectuosament, Phil lip Asher

 

Holyoke Street

23 de Novembro de 1914

Caro Mr. Asher

Lamento profundamente saber que fui, ainda que acidentalmente, a causa de uma discórdia entre si e o seu irmão. Espero que essa discórdia esteja completamente sanada. Eu e o Samuel vivíamos uma situação difícil, para não dizer impossível, e ele fez o que considerou absolutamente necessário. Com o tempo, acabei por compreender essa decisão e aceitá-la. O Samuel possuía muitas qualidades excelentes e eu amava-o profundamente. O que viu na minha expressão nesse dia era genuíno.

Não me recordo de o ver nessa casa, nessa manhã de neve. Julgo que a minha missão e a minha subsequente infelicidade me tornaram cega à presença de todos excepto o seu irmão. Contudo, lembro-me de uma partida de ténis no campo da escola. Recordo que bateu a bola muito por cima da vedação e que ela aterrou na rua.

Espero que passe um agradável dia de Acção de Graças em Thrupp, se bem que deva sentir a falta da sua família em Exeter.

Com a humilde expressão da minha amizade

Etna Van Tassel

 

Hotel Trupp

24 de Novembro de 1914

Cara Mrs. Van Tassel

Sinto-me agradavelmente embaraçado ao pensar que recorda essa terrível jogada em que a bola foi parar à rua. Confesso que nunca tive qualquer aptidão para jogar ténis.

O seu marido acaba de me enviar uma mensagem a convidar-me a tomar uma bebida em sua casa, esta tarde às cinco e meia. Sinto que não posso recusar mas gostaria de poder conversar consigo sobre o assunto antes de ir. Espero ansiosamente vê-la se estiver em casa logo à tarde.

Quanto à questão sobre que temos falado nas nossas cartas anteriores, deixe-me apenas dizer que a visão do seu rosto naquela manhã tão longinqua permaneceu para mim um modelo pelo qual avalio a minha própria afeição por qualquer mulher com quem forje uma relação íntima e a afeição de qualquer mulher por mim. Conto-a entre as mais felizes das pessoas por ter experimentado um sentimento tão forte por outro ser humano, por mais trágico que o seu desfecho tenha sido. Não é esse o objectivo da nossa existência?

Afectuosamente

Phillip Asher

Hotel Thrupp

 

25 de Novembro de 1914

Cara Mrs. Van Tassel

Sinto dificuldade em decidir o que lhe hei-de escrever esta manhã. Embora o seu marido não seja de modo nenhum hostil, tornou-se claro para mim ontem à tarde que a minha presença em Thrupp o incomoda bastante. Na verdade, fez-me o que só posso considerar um ultimato. Levou-me a compreender a que ponto é impróprio que eu continue a escrever-lhe. Causa-me uma profunda tristeza ter de dizer isto, mas penso que não podemos continuar esta correspondência, por mais inocente que tenha sido.

Foi um prazer vê-la - ainda que por breves minutos - ontem à tarde em sua casa. Permita-me que Lhe diga que os anos a tornaram ainda mais encantadora.

Afectuosamente

Phillip Asher

 

Holyoke Street

27 de Novembro de 1914

Caro Mr. Asher

Lamento imenso que o encontro com o meu marido, Nicholas, tenha sido desagradável. Não posso entrar nessa discussão nem desejo ouvir falar mais dela. Embora possa ter razão quanto ao facto de o meu marido ficar aborrecido se descobrir esta correspondência, julgo-me capaz de decidir por mim se ela deve ou não continuar.

Cordialmente

Etna Van Tassel

 

Hotel Thrupp

29 de Novembro de 1914

Cara Mrs. Van Tassel

Nãofoi minha intenção insultar a sua independência ou discernimento. Perdoe-me se ofiz. Mas não pode ter deixado de notar que conhecemos factos que o seu marido desconhece. Embora esta correspondência tenha sido, como referi, perfeitamente inocente, a sua existência, à luz dos sentimentos dele a meu respeito, recentemente revelados, não pode ser inteiramente irrepreensível. No entanto, deixar-me-ei guiar por si nesta matéria pois não posso arrogar-me conhecer tão bem o seu marido nem o vosso casamento. Aliás, não conheço absolutamente nada sobre um e o outro.

Passei quase todas asférias de Acção de Graças a ler e a passear. Mr Ferald e a mulher tiveram a gentileza de me convidar a partilhar com eles a refeição do dia de Acção de Graças. Embora só estivéssemos eu, Edward e Millicent, sentámo-nos a uma mesa farta e partilhámos um banquete como creio que nunca vi. Não quero parecer ingrato pela hospitalidade deles, mas senti, por vezes, afalta do alarido buliçoso de uma refeição em Exeter, à nossa populosa mesa, e desejei ter-me dado ao trabalho de fazer a viagem de ida e volta até lá durante estasférias.

Não tem mal. As aulas recomeçam amanhã e eu devo proferir a quinta e última Palestra Kitchner na quarta feira. Regresso agora aos meus apontamentos.

Com toda a consideração

Phillip Asher

Hotel Thrupp

 

6 de Dezembro de 1914

Cara Mrs. Van Tassel

Não sei se esta carta Lhe chegará às mãos. Tive ocasião de falar esta manhã com Gerard Moxon que me disse que tinha regressado a Exeter. Minha cara Mrs. van Tassel, o que aconteceu? O seu marido disse publicamente que a sua irmã se encontra gravemente doente e que partiu com os seus filhos para cuidar dela. Se assim foi, só posso dizer-lhe que lamento profundamente. Mas devo dizer-lhe que Mr Moxon me sugeriu confidencialmente ser outro o motivo. (Garanto-lhe que não partilharei esta confidência com ninguém embora não possa responder por Mr Moxon; penso que é um homem inocentemente incapaz de guardar um segredo. ) Mrs. van Tassel, sinto-me muito triste por si se aquilo que Mr Moxon diz é verdade. Por favor, escreva-me a dizer se tanto eu como ele estamos enganados. Não desejo de modo nenhum intrometer-me e estou certo de que as suas razões para sair de Thrupp são excelentes, mas se tiver havido uma ruptura conjugal, insto-a a repará-la a todo o custo. Não pode ser bom para si nem para os seus filhos ter sido forçada a abandonar a sua residência familiar.

A minha afeição a seu respeito é exacerbada pelo facto de o seu marido ter retirado a sua candidatura à posição de director de Estudos da Escola Superior de Thrupp e de eu ter sido, há dois dias, eleito para o cargo. Tenho até ao dia onze de Dezembro para apresentar a minha decisão. Sinto que preciso de ter noticias suas antes disso. Só peço que não tenha sido, de algum modo, responsável por uma desavença entre si e o professor Van Tassel nem a razão por que ele mudou de ideias. Por favor, tranquilize-me a este respeito e diga-me ainda se deseja que eu não aceite o cargo, manchado como está pelo infeliz facto da renúncia do seu marido. Não pretendo aproveitar-me da adversidade de outro homem.

O professor Van Tassel enviou uma nota a quem de direito informando da sua desistência da candidatura ao lugar de director, de forma a dedicar-se mais intensamente aos seus deveres de director de departamento. Tenho dificuldade em acreditar nestas razões, não apenas por se tratar de uma posição para que o seu marido parecia naturalmente talhado mas também porque sei como desejava ardentemente o cargo de director de Estudos.

O seu amigo leal e preocupado

PhIlip Asher

 

Hotel Thrupp

11 de Dezembro de 1914

Cara Mrs. Van Tassel

Escrevo para a informar que, na ausência de noticias suas, aceitei o cargo de director de Estudos da Escola Superior de Thrupp. Entro oficialmente em funções no início do próximo trimestre. Em breve abandonarei o hotel para residir numa casa alugada em Gill Street, 14, mas se me escrever até 10 de Janeiro pode fazê-lo para o hotel que toda a correspondência me será reencaminhada. Espero que esteja bem, assim como os seusfilhos. Com o maior respeito

Phill ip Asher

14 Gill Street

 

6 de Janeiro de 1915

Cara Mrs. Van Tassel

Escrevo para a informar que mudei de residência do Hotel

Thrupp para Gill Street, 14e, caso deseje responder a esta carta ou qualquer uma das anteriores, pode fazê-lo para a última morada.

Aluguei já uma pequena casa, antes do começo das minhas novas funções em Thrupp.

Espero que tenha passado um feliz Natal, assim como os seus filhos, na companhia da sua irmã e dafamilia desta.

Cordialmente

Phillip Asher

 

Exeter

15 de Janeiro de 1915

Caro Mr. Asher

Perdoe o meu silêncio.

Etna Van Tassel

14 Gill Street

18 de Janeiro de 1915

Cara Mrs. Van Tassel

Não precisa do meu perdão para o seu silêncio. É perfeitamente compreensível. Desejo um desfecho rápido e satisfatório para a situação difícil em que se encontra.

Phillip Asher

 

Exeter

22 de Janeiro de 1915

Caro Mr. Asher

Coloco-lhe estas questões na sua qualidade de teórico moral. Uma mulher, casada e com filhos, tem o direito de reservar uma parte da sua vida para seu uso exclusivo? Pode esta mulher, se decidir que ao fazê-lo não prejudica os filhos nem o marido, retirar-se para um lugar inviolável, um lugar ao qual só ela tem acesso, no qual só ela reside, com a finalidade pacífica e inocente de se educar e recrear, o que poderá incluir actividades como ler, costurar e possivelmente escrever cartas ou poesia? Não se reconhece a um homem de uma certa educação, sem obstáculos da parte de alguém, o direito a um retiro pessoal inviolável, em que nem a mulher nem os filhos são bem-vindos, onde pode ler, fumar, escrever, dedicar-se à contemplação ou mesmo receber amigos e colegas, um espaço a que normalmente se dá o nome de sala de estudo, escritório ou biblioteca? E sendo assim, por que razão não tem uma mulher - casada e com filhos - direito a um refúgio semelhante? E, se esta mulher descobrir que não pode encontrar esse refúgio na sua própria casa, mercê do movimento das crianças, dos criados e até do próprio marido, que não considera uma violação entrar em tal refúgio nem nutre qualquer respeito por tal espaço de reclusão, não tem ela então o direito de procurar um refúgio noutro lugar, como uma residencial, uma pensão ou uma casa rural, fora da vila, a alguns quilómetros da moradia familiar, cuja localização os parentes desconhecem?

Aguardo a sua resposta a estas perguntas pois é com elas que luto a todos os momentos do dia e são elas que constituem o pomo daquilo que correctamente chegou aos seus ouvidos como sendo uma considerável discórdia conjugal.

 

Com respeito pela sua opinião

Etna Bliss Van Tassel

14 Gill Street

27 deJaneiro de 1915

Cara Mrs. van Tassel

Dá-me uma grande honra ao confidenciar-me os pormenores

da sua desavença conjugal e ao julgar-me capaz de a ajudar a responder a tão complexas questões. Mas devo dizer-Lhe qe sou apenas um académico e não um supremo juiz do comportamento humano ou conjugal. Não sou casado nem nunca fui. O casamento é um dominio particular cujos consortes têm acesso a um conhecimento e linguagem próprios, acesso esse não alcançável por outro meio que não o casamento. (É por esta razão que sempre considerei os clérigos e os magistrados celibatários conselheiros especialmente maus para quem procura a reparação de agravos conjugais. ) , sendo um académico, colocar-lhe-ei, se mo permite, questões cuja resposta talvez lhe proporcione uma maior percepção das suas próprias dificuldades:

Não é o retiro pessoal desse suposto marido de que fala - o refúgio inviolável dentro da casa a que normalmente chamamos a sala de estudo ou a biblioteca - acordado, na essência, entre ambos os cônjuges quando se estabelecem nessa mesma residência, sendo então uma sala designada para esse efeito Ou, por outras palavras, pode um refúgio não acordado entre ambos os cônjuges, ou mesmo desconhecido de um deles, merecer o mesmo respeito? Não poderia uma esposa ter razões para perder a confiança no marido se descobrisse que ele tinha secretamente alugado uma sala, ainda que tencionasse usá-la unicamente para ler, escrever e pensar? Não poderia a descoberta desse espaço comprometer em demasia o frágil laço da confiança conjugal entre um homem e a sua mulher?

Mrs. Van Tassel, não posso mais do que conjecturar sobre as cir cunstâncias em que se encontra já que não as conheço. Mais importante ainda, nada sei sobre a sua saúde ou bem-estar. As perguntas que me faz são sérias, de natureza perturbante, mais perturbantes ainda pelo facto de que estou em posição de ver diariamente o seu marido; e devo dizer- Lhe, a título unicamente informativo, que ele não se encontra em estado de leccionar uma turma de jovens. Dispensei-o em duas ocasiões para que ele pudesse viajar até Exeter e sugeri-lhe uma licença sabática, pois sem dúvida que a merece. No entanto, creio que o seu marido é um homem orgulhoso e recusou esta proposta. É opinião geral de que se encontra num estado de extrema tensão que deixa muitos colegas e amigos preocupados.

Não sei como terminará a vossa infeliz história mas suplico-Lhe que considere regressar a Thrupp com os seus filhos e repare, com paciência e sacrificio, a união com a qual se comprometeu.

O seu humilde amigo

Phillip Asher

 

Exeter

3 de Fevereiro de 1915

Caro Mr. Asher

Escreve-me como homem e não como amigo. Não preciso que me digam para regressar a Thrupp para reparar um casamento desfeito. Sou mais do que capaz de ajuizar por mim própria. Contava que pudesse, apenas como amigo, prestar-me orientação quanto às questões éticas em causa.

Cordialmente

Etna Bliss Van Tassel

 

Gill Street

7 de Fevereiro de 1915

Cara Mrs. Van Tassel

Julgo que é perfeitamente defensável a ideia de que um casamento poderia ganhar muito se tanto o marido como a mulher dispusessem de um lugar privado onde se refugiarem em busca da contemplação - solitária - de problemas que o bulício quotidiano da vida impossibilita. Mas as questões do bem e do mal apenas podem existir dentro de um quadro de convenção, cujas circunstâncias devem ser aceites por qualquer sociedade. Na nossa sociedade, neste momento, nem o homem nem a mulher casados podem alugar ou possuir refúgio à parte e privado sobre o qual o outro cônjuge nada sabe. Não falo das implicações legais de tal acto (suspeito que não é ilegal possuir ou alugar tal espaço) mas antes das morais. Sem confiança, não pode existir união e um segredo dessa envergadura abala consideravelmente essa confiança.

Mrs. van Tassel, estou numa posição delicada. Desejo ser seu amigo e prestar-Lhe toda a orientação qe estiver ao meu alcance prestar-Lhe. Mas conheço muito pouco sobre a sua situação particular para além dos efeitos observáveis no seu marido. Tanto quanto sei, o seu filho regressou a Thrupp mas a senhora e a sua filha não. A presença do seu filho parece ter produzido um efeito benéfico e salutar sobre o professor Van Tassel. De momento, pelo menos, parece ter recuperado em larga medida a serenidade.

Cordialmente, Phillip Asher

 

Exeter

11 de Fevereiro de 1915

Caro Mr. Asher

Estou-lhe grata por me dar a conhecer as melhorias do estado do meu marido. Foram, porém, conseguidas com grande custo para mim. Vejo-me agora envolvida numa batalha pela guarda e custódia do meu filho, Nicodemus, que ainda não tem idade para compreender por que razão foi separado da mãe. As questões teóricas a respeito de privacidade e solidão, no seio de um casamento, desapareceram perante a questão muito real da custódia de um filho, na qual emprego agora todas as minhas faculdades e pela qual rezo constantemente.

Perdoe-me por não o ter informado dos pormenores da nossa desavença conjugal e perdoe-me ainda por não ter a força necessária para o fazer agora. Agradeço-lhe a sua compreensão e lamento que esteja na delicada posição de conhecer os pensamentos da mulher ao mesmo tempo que é supervisor do marido. Coloquei-o numa posição difícil da qual o liberto agora. Apercebi-me de que é impróprio em extremo escrever-lhe nos termos em que escrevi e, com profunda gratidão pela sua paciência e solicitude, vou portanto deixar de o fazer.

Com a maior consideração

Etna Bliss Van Tassel

 

Gill Street

15 de Fevereiro de 1915

Cara Mrs. van Tassel

A minha constituição e faculdades são, julgo eu, suficientemente fortes para ler as suas cartas e supervisionar o seu marido que, em qualquer caso, não necessita de qualquer espécie de supervisão da minha parte. Entristece-me pensar que lhe possa ter dado minimamente a entender que a nossa correspondência deveria acabar em virtude de algum constrangimento que pudesse causar-me. Se puder ser-Lhe útil, quanto mais não seja para sondar as minhas reacções relativamente a alguma questão, peço-lhe que me permita sê-lo.

Embora não deseje que eu mencione a anterior questão respeitante à minha família, não sou capaz de a esquecer, e poder ajudá-la, se desejar a minha ajuda, apazigua a minha consciência familiar.

Creia-me sempre seu amigo

Phill ip Asher

 

Exeter

20 de Fevereiro de 1915

Caro Mr. Asher

Agradeço-lhe a sua carta de 15 de Fevereiro. Apercebi-me de que, durante todas estas semanas, apenas falámos de mim e eu não lhe fiz uma única pergunta sobre a sua nova vida. Perdoe-me. Lamento ter estado demasiado centrada em mim própria para pensar nos outros e não Lhe ter perguntado como se está a adaptar a um lugar que, continuo disso convicta, devia ter pertencido ao meu marido. Embora o recente comportamento que ele tem tido comigo seja extremamente censurável e eu tenha sido alvo da sua fúria declarada e inqualificável, sinto pesar pelas possibilidades que perdeu. Por favor, fale-me de si. Já está completamente instalado em Gill Street?

Já que o véu do comportamento civil foi abandonado há tantos anos, não lhe parece mais apropriado tratar-me por Etna? Foi afinal como Etna que me conheceu quando jogámos ténis com o seu irmão e o seu pai. Afectuosamente

Gill Street

3 de Março de 1915

Cara Etna

Lá está outra vez a recordar-me essa horrívelpartida de ténis.

Deu-me muito prazer ao convidar-me a tratá-la por Etna e assim o farei. Obrigado também por mostrar interesse pela minha vida que, embora academicamente satisfatória, é intensamente monótona no plano pessoal. E é melhor assim, penso eu, pois vejo-me obrigado a dedicar todas as minhas energias ao meu novo cargo. Nesse aspecto, Gill Street é uma boa casa. Está confortavelmente mobilada, é bem governada e, para uma vila académica, a cozinheira é extraordinariamente competente (a minha cozinheira em New Haven era assustadora); como tal, não tenho razões de queixa.

No entanto, é dificil escrever sobre a minha nova vida quando a sua está em tal desassossego. Os jantares em que participo e a escassa vida social que Thrupp tem para oferecer (o seu marido, aliás, advertiu-me a este respeito) perdem toda a importância perante a luta em que está envolvida.

Este Inverno, a conselho de Gerard Moxon, comecei a praticar esqui na neve, o que foi no minimo uma tentativa extremamente grotesca.

Com afecto

Phillip

 

Exeter

9 de Março de 1915

Caro Phillip

Não tenho palavras para exprimir a minha angústia e perturbação com o afastamento do meu filho da minha guarda. Não é apenas a tristeza pessoal que me assalta tantas vezes durante o dia - uma espécie de esvaziamento do gosto pela vida a que se segue uma enchente, como se se tratasse de um poço, de pesar - mas a certeza de que o meu Nicodemus está sob custódia do pai que revelou uma disposição tão violenta e ficou tão transtornado com a nossa situação conjugal que temo que seja, na melhor das hipóteses, um pai desatento e, na pior, um pai aterrador. É esta a vingança por eu ter desejado o refrigério ocasional da solidão? Uma vingança veloz e devastadora, se o é, e não posso deixar de considerá-la desproporcionada em relação ao crime.

É pois com alguma ansiedade, suscitada pelo amor maternal e pela necessidade, que vou regressar a Thrupp para poder estar mais perto do meu filho. Tenho esperança de ser autorizada a vê-lo numa base frequente, para não dizer regular, até poder recuperar a sua custódia. Não lhe posso comunicar o meu futuro endereço mas, como saio de Exeter antes do final da semana, penso que não é prudente voltar a escrever-me enquanto não tiver notícias minhas.

Com respeito, Etna

 

20 de Abril de 1915

Meu caríssimo Phillip

Importa-se de ir ter comigo ao mercado de Payne Street em Worthington, às dez horas da manhã da próxima quinta- feira? Há uma coisa que lhe quero mostrar.

Um casamento é sempre o cruzamento de duas histórias. Apenas posso contar a minha. Quanto à história dela (quanto à história deles), não a conheci, à excepção das cartas que viria a encontrar na caixa de metal de Etna, cartas que aqui junto com um clipe, com uma certa relutância, não apenas pelo seu conteúdo revelador (e, para mim, acabrunhante), mas também porque destroem o volume fino e bonito que o meu diário de couro fazia, como se a sua capa elaboradamente trabalhada pudesse conter uma vida.

Etna era, por natureza, uma pessoa reticente, pouco dada a manifestações verbais de emoção e, por conseguinte, pouco susceptível de me ter posto ao corrente da sua relação com Phillip Asher. Se eu não tivesse descoberto por acidente a correspondência entre Etna e Asher (a minha mão tamborilando, nervosa, sobre a caixa de metal e desengatando assim a tranqueta que a fechava), talvez nunca tivesse tido conhecimento dela, pois quase certamente teria sido destruída no incêndio. Não posso dizer que o enigma que era a minha mulher me seja inteiramente revelado aqui, mas algumas perguntas encontram resposta.

Fiquei a saber pela carta de Etna de 22 de Outubro que ela estivera, em tempos, noiva de um certo Mr. Bass de Brockton mas que o noivado fora rompido. É inconcebível que este facto me tenha sido ocultado, que William Bliss, com toda a inocência, não o tenha revelado, ou que Keep, já menos inocentemente, não tenha procurado ferir-me (ou antes, aguilhoar-me) com esta informação. Nesse tempo, um noivado era um assunto sério e quase tão difícil de desfazer como um casamento. Só posso concluir que William Bliss, depois de me ter visto num estado de desintegração total à notícia da partida de Etna para Exeter para se tornar preceptora dos filhos de Keep, achou por bem não me perturbar com factos que, afinal, não lhe competia a ele divulgar. Na realidade, tanto Bliss como Keep podiam perfeitamente ter imaginado que Etna já falara sobre o assunto comigo. A maioria das mulheres tê-lo-ia feito mas, como vimos, Etna não era como a maioria das mulheres. Etna era uma mulher de segredos.

Pois que devia eu pensar do que é claramente revelado na correspondência como tendo sido um romance apaixonado entre Etna e Samuel Asher? Para ser franco, esta revelação não foi tão angustiante como eu teria imaginado - eu que me mostrei perfeitamente capaz de angústia numa série de ocasiões. Na realidade, este conhecimento quase constituiu um alívio porque, de algum modo, eu sempre soubera. Recordo-me de ter conjecturado, logo no primeiro dia em que conheci Etna, se ela teria tido um ou mais amantes antes de mim. Uma mulher que conheceu o amor possui uma aura de quem foi - como hei-de descrever isto? Não desejo ser indelicado aqui - espoliada é a única palavra que me ocorre, e não a considero desajustada nestas circunstâncias. Etna fora espoliada, corpo e alma, ainda que de forma consentida, por Samuel Asher. Não vou agora demorar-me nas imagens que este raciocínio suscita; basta dizer que os sentidos possuem uma inteligência que pode ser sonegada à mente consciente, e que os meus sentidos correctamente detectaram, na minha desagradável noite de núpcias, mais do que apenas o desfloramento anterior da minha mulher. Etna fora plenamente amada.

Nunca poderei conhecer a natureza e duração desse romance. Não é uma pergunta que possa agora fazer a alguém - nem a Phillip Asher que, de qualquer modo, não terá provavelmente sabido muito sobre ele (não passava de um rapaz de dezassete anos na altura); nem certamente a Samuel Asher que pode ou não estar vivo à data em que escrevo. Tudo o que tenho são frases da correspondência, mais reveladoras da parte de Phillip Asher do que de Etna.

Embora Etna afirme que o seu amor era genuíno, é Asher quem fala de paixão. A ferocidade do amor que se esconde atrás do véu de uma conduta civil", escreve ele. E mais: A visão do seu rosto naquela manhã tão longínqua permaneceu para mim um modelo pelo qual avalio a minha própria afeição por qualquer mulher com quem forje uma relação íntima e a afeição de qualquer mulher por mim. Conto-a entre as mais felizes das pessoas por ter experimentado um sentimento tão forte por outro ser humano, por mais trágico que o seu desfecho tenha sido. Não é esse o objectivo da nossa existência? (O itálico é meu. )

Apenas podemos conjecturar sobre o que aconteceu nessa manhã nevada" em Exeter. Etna tinha ido à casa confrontar Samuel?

Dizer-lhe que rompera o noivado com o homem de Brockton?

E por que razão foi necessário procurar Samuel em casa dele? Ele já pusera fim à relação? Estava prestes a partir para o Canadá? Estava noivo de outra? E qual foi exactamente a natureza do triste incidente, na populosa casa de Exeter? Terá havido declarações de amor? Terá havido lágrimas? E por que razão, anos mais tarde Phillip Asher considera necessário desculpar-se pelo comportamento da família? Ou quando diz família referir-se-á apenas ao irmão?

Imaginei o acontecimento em pormenor. (Não são por vezes os acontecimentos imaginados mais reais do que os vividos? ) É o Verão de 1896. Etna, com apenas vinte e três anos, está noiva de um certo Mr. Bass de Brockton, Massachusetts, um certo Mr. Josia Bass, digamos, um homem mais velho, talvez de trinta e seis ou trinta e oito anos. É um homem que Etna não ama mas cuja fortuna, ganha na indústria do calçado, lhe promete alguma independência que, como sabemos agora, é de suprema importância para Etn a Bliss, ainda que ela própria ainda não o compreenda então.

Entretanto, um certo Mr. Samuel Asher, alto como o irmão, vinte e sete anos, um académico com - aqui estou apenas a conjecturar - uma testa alta (talvez ligeiras entradas no cabelo? ), barba loura e de ombros descaídos, teve recentemente ocasião de visitar o pai de Etna, irmão de William, Thomas Bliss, um homem culto e tolerante que não teria relutância em convidar um judeu para sua casa- sobretudo um judeu inglês. (Ou será que Bliss desconhece simplesmente este facto sobre Samuel Asher que, durante anos, pode muito bem ter passado por um adepto da Igreja Episcopal? )

Tratar-se-ia de um curso de Matemática da navegação? Um projecto de investigação? Uma comissão directiva de dois homens? Não temos forma de saber. Etna e Samuel encontraram-se a sós duas ou três vezes na sala de estar de Bliss enquanto Thomas se ocupava de outros assuntos, e descobriram afinidades entre ambos. Jogaram ténis, pelo menos uma vez, com o pai de Samuel e o irmão mais novo, Phillip. (Discutem astronomia? Não, provavelmente não. ) Samuel e Etna aguardam ansiosamente os seus encontros e fazem tudo para que aconteçam. Samuel Asher, perdidamente atraído por esta deslumbrante filha de Thomas Bliss, apesar de noivo de Ardith Silver de Toronto, Ontário, mulher que conheceu quando a família dela residia em Exeter antes de se mudar para essa cidade canadiana, arranja maneira de visitar a casa de Bliss mesmo sabendo (embora se faça de esquecido) que Thomas Bliss está ausente. (Não atribuiremos a Samuel o ignóbil motivo da

necessidade de companhia feminina enquanto a sua noiva está longe. ) Um conhecimento de Verão transforma-se numa amizade de Outono e, depois, rapidamente, em algo que raia a paixão, antes do Natal.

Na verdade, Samuel Asher visita a família Bliss na véspera de Natal para Lhe desejar festas felizes. Thomas, que ainda não suspeita da afeição secreta do amigo comprometido pela filha comprometida, acolhe Samuel em casa. Etna está no salão com a mãe e Miriam (Pippa já casara e reside em Massachusetts), dando os últimos retoques numa impressionante árvore de Natal que será acendida dentro de uma hora. No aparador está uma taça de ponche em cristal lapidado, liberalmente regado com rum. Etna tem um vestido de veludo cor de ameixa, talvez com um decote levemente revelador, e a sua aparência é, nessa ocasião, quase bela. Samuel, as faces avermelhadas pelo clima e pela expectativa, cumprimenta a mãe de Etna, depois Miriam e, por fim, observadas todas as outras formalidades, Etna cujas faces estão tão vermelhas como as dele. (Não poderia Thomas, se estivesse atento a inclinações românticas, ter detectado algo de anormal no facto de Samuel ter cumprimentado Miriam antes de Etna? Talvez não. ) Thomas menciona as saudades que Samuel deve sentir da noiva nesta quadra festiva. Samuel concorda delicadamente ao mesmo tempo que nota o leve estremecimento dos bonitos ombros brancos de Etna.

(E onde está Josiah Bass, o noivo de Etna? Ausente. Está simplesmente ausente. )

Como vai Samuel contornar este difícil momento? É que ele leva um presente que deseja oferecer a Etna. Não lho pode dar diante da mãe e da irmã porque não comprou presentes para elas. Nem pode dar-Lho sob o escrutínio de Thomas porque Thomas, apesar de cientista, detectaria sem dúvida um favoritismo fora do normal no diferente tratamento dado a Etna. Forja-se pois um passeio - casual e educadamente, Samuel convida Mrs. Bliss, em primeiro lugar, esperando que ela recuse. Ela recusa; está demasiado frio para ela. Etna aceita prontamente, falando do prazer em ver o fumo a sair das outras casas e em encontrar cantores de Natal pelo caminho. Miriam invoca cansaço e milagrosamente declina.

Quase incapaz de disfarçar o alívio que sente, Samuel dirige-se com Etna ao vestíbulo onde se agasalham para o frio, cada um evitando cuidadosamente o olhar do outro. Partilham ambos, neste ponto, um sentimento de conspiração, embora nenhum deles dê nada a entender.

O par caminha em silêncio durante algum tempo - por sinal, não em direcção às casas onde as lareiras ardem mas no sentido contrário. Alcançam um dos muitos campos de jogos da escola pré-universitária masculina. Juntos olham para a extensão coberta de neve, iluminada por uma lua natalícia.

- Etna - diz Samuel.

Entrega a Etna o embrulho que ela segura na mão enluvada antes de abrir. (Dói-me ter de imaginar que ela fica consideravelmente mais entusiasmada com este presente por abrir do que ficou com o meu no trilho da escola, mas o que se há-de fazer? ) Etna desata a fita com dificuldade pois os seus dedos estão rígidos. A prata cintila ao luar. Samuel pega na mão de Etna, descalça-lhe a luva e enfia-lhe a pulseira no braço, quase tão branco como a lua. Intencionalmente não lhe larga o pulso.

- Tinha de lhe oferecer alguma coisa - diz ele.

- Não posso aceitar - diz ela.

- Tem de aceitar. Pode usá-la em privado.

- Estou noiva e vou-me casar - diz Etna, afirmando o que é

óbvio.

- Como eu - diz Samuel.

Nesse momento, Samuel beija Etna de um modo, penso que podemos seguramente afirmar, como Etna nunca antes foi beijada, não o foi decerto por Josiah Bass para quem inventaremos dentes imperfeitos e um hálito ligeiramente metálico. O beijo de Asher desencadeia em Etna uma reacção física até então desconhecida e, por alguns momentos, ela fica alheada do mundo, extasiada e indiferente: nada mais existe além de Samuel por quem se sente irracional e poderosamente atraída. Não compreende inteiramente o que lhe está a acontecer (não como Samuel compreende, por exemplo) e, assim, chama amor ao alvoroço que sente no ventre e à pulsação irregular do seu coração e atribui-lhe uma qualidade imortal. Começa imediatamente a imaginar uma fuga secreta, o sacrifício da sua honra.

Samuel declara o seu amor. Diz-lhe, ao luar, que a ama. Implora- lhe que volte a encontrar-se com ele - desta vez em segredo - no dia a seguir ao Natal. Tem aposentos na escola, diz, quase desertos agora graças ao período de férias. Etna, com toda a calma, concorda.

O feriado passa. Etna e Samuel encontram-se nos aposentos dele, no dia 26, como combinado. Etna despe o casaco. Samuel arregaça-lhe a manga do vestido, revelando a pulseira. Beija-lhe a parte de baixo do pulso. Etna fecha os olhos. Há um momento, vamos imaginar, em que nenhum deles se mexe. Depois a prudência é abandonada.

(O leitor deve imaginar por si os pormenores do subsequente desfloramento de Etna. Falta-me o alento para os descrever. )

Mais tarde, deitada numa manta na sala de estudo de Asher, Etna diz-Lhe que vai deixar o infeliz Mr. Bass. Asher diz a Etna que não o deve fazer. No rescaldo da paixão, dos dois, é ele quem tem a cabeça mais fria, deixando que um volátil sentido de honra se imponha. Diz-Lhe que não pode permitir que ela se desgrace assim. Não há futuro, insiste. Apenas existe o momento que agora partilham.

Etna, levemente desconcertada, concorda com o seu novo amante.

Etna e Asher encontram-se três vezes, nessa semana, nos aposentos de Samuel, descobrindo mutuamente uma compatibilidade sexual tão intensa que é quase assustadora. No quarto encontro, imediatamente antes do recomeço do trimestre, Etna declara mais uma vez que vai romper o noivado. Samuel alterna a fúria com a aflição. Só falta um mês para o seu próprio casamento. Tem um emprego e uma noiva à sua espera em Toronto. Diz então a Etna que é judeu.

Etna está tão inebriada que ignora a importância da revelação ou então, filha fiel de um pai tolerante, diz a Samuel que a informação não faz a menor diferença. Aliás, ama-o ainda mais por isso.

Fazem novamente amor (Furiosamente? Apaixonadamente? Melancolicamente? ), desta vez interrompidos por um ruído de um quarto próximo. Um estudante regressou mais cedo, conclui Samuel. Etna veste-se e instala-se alguma ansiedade (talvez um episódio cómico neste ponto? ) enquanto Asher a leva secretamente da residência. Despedindo-se à pressa, ambos reiteram o seu amor.

Chegamos agora à manhã de domingo em Janeiro (o domingo anterior ao recomeço do período escolar), varrido por um violento nevão com origem no Canadá (enviado pela própria Ardith? ). Os Asher - devem ser muitos para constituir uma casa populosa e feliz - estão em casa. Phillip, com apenas dezassete anos, está a ler na sala de estar e ouve Samuel ser chamado à porta. Phillip, querendo saber quem pode ter aparecido lá em casa com um tempo tão medonho, muda de posição no sofá para poder ver melhor o que se passa no vestíbulo.

Uma mulher invulgarmente alta e atraente, com uma capa molhada e botas, está diante de Samuel. Phillip reconhece a mulher com quem jogou ténis uma vez. Fragmentos de uma conversa ansiosa insinuam-se na sala de estar. Phillip, intrigado, levanta-se e aproxima-se de uma mesa de leitura. Nesse momento, Etna ergue o rosto e Phillip vê nele. o quê? A ferocidade do amor, como virá a escrever mais tarde. Etna suplica a Samuel. Está a chorar. Talvez ponha as mãos avermelhadas nos braços de Samuel. Samuel tenta acalmá-la mas ela não se deixa acalmar. Anuncia que rompeu o noivado. Não pode casar com outro homem. Só ama Samuel, Samuel que não pode casar com Ardith. Que não pode partir para Toronto. Que não a pode abandonar.

O que deve um homem fazer? Samuel tenta conduzir Etna para outra sala mais privada para falar com ela mas Etna, agora à beira do desespero, recusa-se a ir. Samuel propõe chamar uma carruagem para a levar a casa. Etna abana a cabeça. Samuel diz-lhe finalmente que não pode romper o seu noivado, que a sua honra não lho consente. (Poderá ter dito isto realmente? Suponho que sim. Nesse tempo, a honra era um conceito mais poderoso do que é hoje. ) Talvez lhe diga outra verdade - que a sua família nunca lhe permitiria que rompesse o noivado. Ardith é, afinal, de uma boa família judia de académicos como a sua. Phillip avança para a porta e talvez Etna levante o olhar, captando o do jovem. O pai de Phillip, tendo ouvido o alvoroço, apareceu no vestíbulo. Que alarido é este? pergunta ao filho.

Samuel tenta dar ao pai uma resposta respeitosa que o faça voltar para o escritório. Torna-se claro que Etna, que já não consegue controlar as emoções, está demasiado perturbada para assumir a responsabilidade dos seus actos. O Asher mais velho vai buscar a mulher que fica inicialmente surpreendida com esta manifestação melodramática. Imediatamente intui o motivo da visita e das lágrimas e anuncia, num tom gélido, que se ocupará ela da jovem (a frieza desnecessária pois também ela esteve a chorar no quarto contemplando a partida do filho predilecto). Etna, apercebendo-se de súbito da horrível situação em que se encontra, da sua total humilhação, vira-se e abre a porta. Samuel, temporariamente intimidado (o que lhe vale o eterno desprezo do irmão mais novo), nada diz e deixa Etna partir. Phillip, a princípio estupefacto e depois impelido a ajudar a deslumbrante, se bem que não inteiramente bela mulher, corre para a porta e sai para a rua. Quando chega ao fundo do caminho, Etna Bliss desapareceu.

Como disse, são simplesmente conjecturas.

Mas como estas cartas são, em última instância, irritantes Embora inicialmente se admire Phillip Asher (cerca de dezoito anos mais tarde) por se ter oferecido para renunciar à sua candidatura ao lugar em Thrupp por causa de Etna - tamanho cavalheirismo -, depois concorda com a maior das facilidades com a rejeição de Etna à sua atitude (embora ela tivesse toda a razão em recusar que ele o fizesse). Já na carta de 21 de Outubro, vemos os germes da traição: Asher revela que me encontrou no hotel mas que me escondeu a informação de que já conhecia a minha mulher. A 22 de Outubro, na mesma carta em que ficamos a saber que Etna estava noiva, Etna permite que este logro continue: Não vejo qualquer razão para discutir com ele (referindo-se a mim, ) um incidente já tão antigo. Não se pode deixar de imaginar a permissividade que esta afirmação terá dado ao homem de Yale, como o terá levado a raciocinar em termos de um futuro com uma mulher que, afinal de contas, o intrigara durante muitos anos. Que espantoso que esta misteriosa mulher que ele perseguiu em vão em Exeter tivesse subitamente aparecido na festa de Edward Ferald. (A coincidência não é assim tão extraordinária como isso, poderão dizer. Ambos pertenciam, afinal, a famílias de académicos e Thrupp era uma vila académica. )

A troca de cartas de pêsames que se segue é perfeitamente aceitável, conforma-se aos limites da etiqueta mais básica, embora se possa estranhar por que razão Phillip terá sentido a necessidade de se desculpar por não ter comparecido no funeral. Parece um pretexto por de mais evidente para continuar a correspondência. E note-se como, na carta de 18 de Novembro, Etna solicita, de modo semelhante, uma resposta de Asher. Agradar-me-ia saber notícias (do seu irmão). Assina esta carta Etna Bliss Van Tassel. Porquê? Para recordar a Asher a jovem mulher que outrora foi?

E por que razão, a 24 de Novembro, Asher considera importante receber uma resposta de Etna antes de aceitar o meu convite para tomar uma bebida? Para decidir como dar continuidade ao logro? (Sinto-me ofendido com a palavra ultimato. Detesto o exagero seja em quem for. Acho que a minha citação de Milton foi, quando muito, um simples aviso. )

Ninguém que leia estas cartas pode negar que qualquer coisa que excedia a amizade comum estava a desenvolver-se entre a minha mulher e Phillip Asher. Não demora muito a sentir-se a infusão de galanteios decorosos nas entrelinhas da correspondência de Asher: Os anos tornaram-na ainda mais encantadora. Que necessidade havia de fazer tal elogio E isto na mesma carta em que ele declara que é impróprio continuar a escrever-lhe! É evidente que o homem não quer que a correspondência acabe de todo; está simplesmente à espera que Etna assuma a responsabilidade por ela. No entanto, não deixa de ser compreensivo o desejo de Etna, na sua carta de 27 de Novembro, de não receber ordens do irmão mais novo do antigo amante; embora Asher esteja correcto, na sua carta de 29 de Novembro, quando sugere que, com a correspondência trocada entre ambos, estão a pisar um risco, senão moral, pelo menos conjugal. Não se pode mais do que imaginar o intolerável jantar do infeliz em casa de Ferald, no dia de Acção de Graças. Ferald tinha estatuto social mas nunca dizia algo que valesse a pena ouvir. Quanto à mulher, Millicent - enfim, causa arrepios imaginar.

Na carta de 6 de Dezembro, Asher persegue Etna (em termos epistolares) até Exeter com a notícia da sua eleição. Em seguida, coloca a aceitação do cargo de director nas mãos dela. Não será esta prova da sua afeição tão palpável como um alfinete de azeviche? E quando não obtém resposta? Aceita o lugar, como soube desde sempre que aceitaria.

Não pretendo falar em nome de qualquer outro leitor desta correspondência mas não posso deixar de chamar a atenção para o modo como ambos ultrapassam os limites da amizade normal com o diálogo ligeiramente febril de 15 e 18 de Janeiro: Perdoe o meu silêncio. " Não precisa do meu perdão. Note-se que nenhuma des tas cartas contém qualquer saudação cortês, emprestando a esta troca de palavras a sôfrega qualidade de um diálogo entre amantes. Tanto Phillip como Etna continuam a falar da impropriedade da correspondência mas nenhum deles parece disposto a pôr-lhe fim. Aliás, Etna aprofunda o laço entre ambos na sua carta das questões de ordem moral, As perguntas são absurdas e não se pode deixar de sentir alguma piedade por Asher cujo desconforto é perfeitamente evidente na resposta. (Claro que não é ético alugar um espaço de que se guarda segredo ao outro cônjuge; o que é que Asher havia de dizer? ) A sintaxe de Etna na carta é confusa, como se as suas ideias tivessem turvado a gramática. As perguntas são quase impossíveis de acompanhar e, sinceramente, até dói editar esta missiva. A prosa dela evidencia ainda uma certa falta de fluidez e. como dizer? de rigor intelectual.

Embora a resposta de Asher e as perguntas que, por seu turno, faz sejam perfeitamente razoáveis, dadas as circunstâncias, considero execrável a sua descrição presunçosa do meu comportamento nos primeiros meses de 1915. É escusado dizer que acho de uma falsidade extrema quando ele declara, a 15 de Fevereiro, que deseja apaziguar a sua consciência familiar. Isto não passa de afectação, na minha opinião, e pior ainda - é uma forma de desculpar o seu já indesculpável comportamento.

Naturalmente, amargurou-me constatar que, a 20 de Fevereiro Etna convida Asher a tratá-la pelo nome de baptismo - com uma certa coquetaria, devo acrescentar. E não posso alegar que não me tenha sentido dolorosamente ferido com a última carta de 20 de Abril. Meu carissimo Phillip, escreve Etna (saltam-se semanas de intimidade num único tratamento afectuoso! ) O que aconteceu entre a febril carta de 9 de Março e a curta missiva de 10 de Abril a convidar Asher para se encontrar com ela? Presumo que seja a cabana que ela pretende mostrar-lhe. Terá havido mais cartas que não foram guardadas? Ter-se-iam encontrado neste meio tempo?

Embora a descoberta desta correspondência me tivesse magoado, particularmente a última carta afectuosa, na altura dessa descoberta já eu era um animal com muitas feridas. Nicholas Van Tassel avançava aos tropeções como um maníaco, crivado de flechas por todos os lados e derramando sangue nas pradarias.

Um homem faz uma declaração irreflectida e depois passa o resto da vida a lamentá-la. Na cabana, falei de divórcio. Desejava punir, afirmar a minha autoridade. Quis pôr fim ao casamento com uma palavra. Quis humilhar a minha mulher. Uma declaração irresponsável de um homem irresponsável. Deu-me algum prazer chocar Etna com a minha deliberação? Deu-me prazer ver o seu rosto pálido, ver como as forças lhe abandonaram as pernas? Por um momento, talvez tenha sentido alguma satisfação. Mas com que propósito fizera eu aquilo? Para me privar da mulher por quem vivera obcecado durante quinze anos? A única mulher que amara?

Não sei como consegui conduzir o Stevens- Duryea nem para onde me dirigi pois já estava escuro quando entrei em Thrupp. Há muito que acendera os faróis do automóvel, que iluminavam o piso da estrada mas nada mais para além da circunferência de luz artifi cial, e, assim, foi como se conduzisse às cegas através de uma paisagem que me era estranha. Porém, como um cavalo cansado que procura o estábulo, o Stevens-Duryea acabou por encontrar o caminho para casa de Moxon. Estacionei-o no pátio frontal. Um criado atendeu as minhas pancadas frenéticas. - Professor Van Tassel - disse Jackson (primeiro ou segundo du nome, nunca soube) -, o professor Moxon não está. Só chega na quinta-feira.

- Eu espero por ele.

Entrei numa sala de estar e estendi-me no sofá. Jackson foi bondoso comigo nessa noite, pelo que lhe estarei sempre grato. Deixou-me dormir, serviu-me uma sopa, deixou-me dormir mais e teve a sensatez de não me fazer perguntas. Quando por fim me levantei, tarde na manhã seguinte, ele conduziu-me a uma casa de banho onde me lavei e barbeei. Comi um pequeno-almoço de ovos e pão torrado e deixei-me ficar algum tempo sentado à mesa. Não pensei em nada enquanto estive assim; em casa de Moxon não se formaram quaisquer pensamentos coerentes. Decorrido algum tempo, levantei-me, encaminhei-me para o carro e afastei-me.

Não sei o que aconteceu nesse dia aos meus alunos porque não me dirigi à escola mas para casa onde não estava nenhuma das pessoas que me eram queridas. Mrs. Van Tassel tinha partido, comunicou-me Abigail, aturdida. Para Exeter. Tinha levado as crianças com ela. Assenti com a cabeça, já não me surpreendendo com nada. Nas últimas vinte e quatro horas, fora obrigado a retirar a minha candidatura a um lugar que ambicionara ardentemente, descobrira que a minha mulher possuía uma residência separada, onde se refugiava em segredo há quase um ano, e declarara que pretendia divorciar-me - nada disto, estaria pronto a jurar, teria sido remotamente possível uma semana antes.

- Está uma carta na mesa do pequeno-almoço - anunciou Abigail.

Abri a carta como se fosse uma conta que não tinha a menor intenção de pagar. Querido Nicholas, dizia.

Levei as crianças para Exeter. Por favor, não me sigas. Pensemos nas coisas que dissemos um ao outro.

A tua dedicada Etna.

A minha dedicada Etna.

Saí da sala de jantar, deixando cair a carta no chão do vestíbulo. Subi ao meu quarto e deitei-me. Creio que ainda não tivera um único pensamento coerente. Nem o tive no dia seguinte nem no outro a seguir. Recordo-me de um telefonema da escola a perguntar-me se estava doente. Sim, respondi, e estaria ausente das aulas durante uma semana. Lembro-me da visita de Moxon e de uma bizarra conversa na sala de estar, desconexa da minha parte, excitada da parte dele. Etna deixou-me, declarei perante o horror de Moxon. Numa extrema agitação, ele não parava de gesticular, solidário com a minha desventura. Fique com o carro, disse, fique com o carro, como se um automóvel pudesse ajudar-me a mitigar o sofrimento de uma declaração impensada.

Nos dias que se seguiram, deixei crescer suíças e foi preciso a criada mandar-me fazer a barba. Comi repetidamente queijo e ovos como se tivesse regressado à infância. Na sexta-feira, Phillip Asher foi eleito para o lugar de director.

No sábado, viajei de carro para Exeter, recordando aquela primeira viagem, quinze anos antes, quando toda a minha vida estava dependente de um único pedido. Pelo caminho, ensaiei as palavras da minha segunda petição a Etna Bliss Van Tassel.

Não penses no divórcio, diria. Foram palavras de um homem irado que não merecem mais respeito do que os desvarios de um lunático. Dá antes ouvidos ao marido de quinze anos que deseja ter a mulher e os filhos em casa. A ausência deles é desnecessária. No calor do momento, dizem-se muitas vezes palavras irreflectidas, não é assim? Um casamento é decerto suficientemente maleável para as permitir sem destruir a união. Quanto à outra questão, a casa separada, discuti-la-íamos assim que ela regressasse a Thrupp. Talvez me demitisse da escola, diria, talvez escrevesse um livro.

Mas Etna tinha uma ideia diferente que me comunicou assim que eu cheguei.

- Concordo com o divórcio - disse ela no mesmo salão onde anunciara uma vez que casaria comigo. Entrou na sala como se me aguardasse há muito tempo, como se já se tivesse armado, construído à sua volta um fosso e uma fortaleza.

Ficámos frente a frente separados por um tapete persa. Tive uma vaga percepção de damasco, cristal, pau-rosa e seda, o resultado final de todas aquelas escadas e panos de há tantos anos atrás. O rosto de Etna tinha um aspecto cansado e notei que emagrecera; talvez fosse essa expressão e postura severas que lhe conferiam o esplendor de uma rainha.

- Não, não - disse eu, abanando a cabeça, certo de que a irmã Miriam estava à escuta atrás da porta apainelada. - Não falei a sério. Fui irreflectido. Estava encolerizado. Etna, ouve-me.

Ela não se deixou demover e ficou tão imóvel como o ancestral Keep no retrato a óleo atrás dela. O seu olhar era firme e inflexível.

Estudei-a e mais uma vez pensei, como em tantas ocasiões passa; das, que devia correr-Lhe sangue estrangeiro nas veias, talvez de uma raça superior que dera origem aos olhos amendoados e às maçãs do rosto proeminentes, à pose absoluta que parecia dispen sar a respiração. Tive então uma ideia espantosa, tão extraordinária que, por momentos, não fui capaz de continuar a conversa. Por que razão Phillip Asher me confidenciara num impulso - e logo a mim - que era judeu? Teria simplesmente presumido que eu sabia porque Etna conhecera outrora a família? Ou, mais importante ainda, seria a minha mulher também judia?

Examinei-a como pela primeira vez.

- És judia? - perguntei.

A pergunta surpreendeu Etna. Abanou a cabeça. - Não sei - respondeu.

- Não sabes, como?

- A minha mãe não conheceu o pai dela.

- Não compreendo.

- A mãe da minha mãe era criada e ficou grávida de um homem que mais tarde não quis ou não soube identificar.

Isto era novidade para mim. Partira simplesmente do princípio de que a minha mulher era de descendência anglo-saxónica do lado da mãe. - Então porque é que pensas que és judia? - perguntei.

- Posso ser muita coisa - disse ela.

- O meu filho pode ser judeu? - perguntei, incrédulo.

- Isso tem alguma importância? - perguntou ela.

- Não sei - retorqui com sinceridade.

- Não posso continuar a ser tua mulher - disse Etna numa voz tão baixa que não tive a certeza de ter ouvido bem. Ou talvez fosse apenas por não querer ter ouvido bem. Lá fora ouviu-se um alvoroço como se tivesse havido um acidente envolvendo automóveis. Não podia ser mais grave, pensei, do que o choque que ocorria no salão.

- Isso não é razão - disse eu, acrescentando a jactância à imprudência como se conhecesse a lei. Desperdiçar uma frase preciosa quando simples palavras de amor teriam sido mais eficazes.

- Terá de bastar - respondeu ela com a hesitante autoridade de quem acaba de ser coroado.

Etna saiu da sala, deixando o marido a balbuciar, o marido que foi impedido de a seguir pelas escadas acima. Sacudi a surpreenden temente tenaz mão de Miriam do braço mas foram trazidos homens ao vestibulo. Fui obrigado a partir, Josip Keep apregoando presunçosamente que o casamento era uma provação.

Conduzi até Salisbury, uma vila costeira de má fama. Descobri um bordel, o meu primeiro lapso de natureza sexual em quinze anos de vida conjugal. Depois de um encontro de que não me recordo, dirigi-me a um bar junto à praia e bebi uma garrafa de whisky. Deixaram-me a tartamudear num reservado revestido a couro. Pela manhã, regressei a Thrupp.

Apareci em algumas aulas e ignorei outras. A minha mulher tivera de se ausentar, dizia eu a quem parecesse prestes a inquirir. A irmã estava gravemente doente, acrescentava, atribuindo alegremente uma doença fatal a Miriam. Os meus colegas assentiam e, se duvidavam de mim, era-me indiferente. Afastava-me antes que pudessem formar-se expressões de piedade ou desagrado. Era um homem de poucas falas e ainda menos paciência. Pressupunha-se que andava desnorteado.

Em Janeiro, Phillip Asher, que ocupara o gabinete do director de Estudos, chamou-me. (Dava a ideia de que todos, incluindo o próprio Asher, haviam fechado de bom grado os olhos ao seu judaísmo. ) Fui com relutância e saí sem abrir a boca antes de a proposta de uma licença sabática ser completamente formulada. Era um paliativo a um rival derrotado, pensei revoltado, desconhecendo na altura a correspondência dele com a minha mulher. Apenas sabia que ele e Etna se haviam conhecido muitos anos antes. Fosse como fosse, pensei, teriam chegado aos ouvidos de Asher os rumores de um casamento que se desfazia. Aos seus olhos, eu seria um homem duplamente derrotado, um reformado académico e conjugal.

Uma semana mais tarde, regressei a Exeter, quase me perdendo no meio de uma tempestade pardacenta, com o Ford preto que havia recentemente comprado. Etna, mais pálida ainda, foi chamada ao salão. A sala estava banhada pela luz baça e monótona da neve invernosa. Ela usava um vestido azul-claro que revelava a recente angulosidade do seu corpo e eu comecei de imediato a imaginar como iria cuidar dela, como instruiria Mary a alimentá-la com uma dieta nutritiva. A minha mulher estava a definhar em Exeter.

Esforcei-me por manter a serenidade. Não supliquei nem bajulei mas apresentei os meus argumentos.

Tinha feito uma declaração irreflectida, invoquei. Era o dever de uma mulher perdoar os desvarios de um marido momentaneamente transtornado. Qualquer homem poderia ter dito o mesmo, argumentei. Quanto à questão da cabana, estava pronto a considerar o assunto de modo mais calmo e estava certo de que seria possível chegar a um acordo.

- Que acordo? - perguntou ela, instalando-se numa cadeira estofada a seda amarela. Movia-se como se os seus ossos se tivessem tornado frágeis e eu senti-me de súbito preocupado com os meus filhos. Keep não estava a alimentar bem a minha família exilada?

- Um acordo - respondi, embora, para ser franco, não tivesse pensado seriamente em qualquer acordo. Aliás, não conseguia sequer pensar na cabana. Só a visão dela na minha imaginação, ou a visão dela na realidade (pois tinha-me lá deslocado várias vezes para olhar para ela, a porta trancada, o ladrão relutante em partir uma janela pois acreditava numa reconciliação iminente), provocava uma onda que me inundava o cérebro como um rubor que, de súbito, assoma às faces.

Etna cruzou as mãos no regaço. - Ias decretar quando eu lá podia ir - disse.

- Não necessariamente - disse eu, avançando com cuidado.

- Mas havias de querer saber quando, por quanto tempo e exactamente o que lá ia fazer - disse ela. - Se me encontrava lá com alguém.

Etna não estava talhada para a reclusão, pensei eu. Nunca estivera. - Como estão as crianças? - perguntei.

- Estão bem - respondeu.

- Quero saber notícias delas. Quero vê-las.

- Não estão cá - disse ela.

- Onde estão?

- Foram com a Miriam. Estão de visita à Pippa no Massachusetts.

- Não podes privar-me dos meus filhos - insisti.

- Nicholas - disse ela com uma ponta de preocupação conjugal -, tu não estás em condições de estar com crianças, tuas ou de quem quer que sejam.

- E tu estás? - contrapus.

- Tenho a ajuda de muita gente - respondeu.

- Porquê, Etna? - perguntei, sentando- me na ponta da cadeira. - Porque é que estás a fazer isto?

- Dei-te quinze anos - disse ela.

- Eu ter-te-ia dado a minha vida inteira! - disse eu.

- Dizes isso - continuou ela calmamente - mas recusas-te a dar-me uma hora de verdadeira liberdade.

Finalmente supliquei. - Etna, por favor. Volta, para bem das crianças que só desejam ver-nos juntos.

Observei-a a debater-se com essa velha emoção, a piedade. E sinto vergonha em escrever aqui que, por um momento, a teria aceitado de bom grado.

- Quero o divórcio - disse ela.

- Com que fundamento? - perguntei, agora furioso.

- Nunca te amei - disse ela, como se bastasse.

E talvez tivesse bastado. Bastou sem dúvida para me silenciar. Com dificuldade, levantei-me, as minhas pernas tão fracas como as de um homem alquebrado. - Comunicaremos através dos advogados - disse eu, numa voz rouca saída do lugar cavernoso para onde a minha mulher me desterrara.

- Sim - limitou-se a dizer.

Encontrei forças para me encaminhar para a porta. Saí. A minha mulher não fez qualquer tentativa para me impedir.

O processo de divórcio ia avançando ao ritmo do tribunal, o que equivale a dizer que ia avançando com grande lentidão. Vi-me mergulhado em estruturas frásicas legais e gramática ultrajante.

Pode-se provar que o matrimónio da relatora foi um sacrifício, em consequência da sua relutância em furtar- se a um compromisso erradamente assumido para o qual ela se havia deixado arrastar de modo imprevidente e o qual posteriormente respeitou sob influência de um erróneo sentido do dever; que ela não o teria assim respeitado nem contraído matrimónio com o demandado se este não lhe tivesse asseverado que os seus desejos não seriam contrariados em aspectos que ela considerava vitais para a sua felicidade e bem-estar, desejos esses que ao tempo ele não considerou absurdos.

Mandei um advogado buscar Nicodemus. Chamava-se Tucker e tinha instruções rigorosas.

- Ele deixa-a ficar com a rapariga - anunciou Tucker a Etna, no vestíbulo da casa de Josip Keep. - Mas quer o rapaz. Se não concordar, ele tira-Lhe os dois filhos. Nas presentes circunstâncias, o mais certo é conseguir.

- Que circunstâncias? - perguntou Etna.

- O tribunal considera que uma mãe que cometeu um acto imoral corrompe a moral de um filho.

- E de uma filha não?

- O tribunal não perfilha a ideia de subtrair uma filha à guarda da mãe.

- Isso é absurdo - disse Etna.

- Seja como for.

- Que acto imoral? - perguntou Etna.

- Uma residência secreta para possíveis fins imorais - respondeu Tucker, entregando a Etna o mais recente fraseado jurídico. Tucker levantou-se e esperou. Tinha instruções para não partir sem o rapaz.

Depois de consultar o seu advogado, Etna obedeceu com relutância.

A minha mulher teve de regressar a Thrupp, como eu soube desde sempre que o faria. Se o nosso filho estivesse comigo, Etna teria de estar perto dele. Instalou-se na cabana.

Eu tinha o rapaz e Etna tinha Clara que dormia com ela na pequena cama, no quarto afunilado das águas-furtadas. Clara retomou os estudos na Academia Feminina de Thrupp e Nicky prosseguiu os seus na escola primária local. Aos fins-de-semana, Abigail, a criada, tornava-se um correio, indo buscar Clara para a trazer para casa ao mesmo tempo que deixava Nicky para a refeição de domingo.

Comecei a observar Etna e Clara através das janelas da cabana - esse interminável filme de humilde domesticidade. Dirigia-me até lá à noite quando a lua do meu rosto era invisível à janela. Cultivei a dissimulação e tornei-me mais proficiente neste ofício do que alguma vez fora em Retórica.

Deixava Nicky a dormir, Nicky cujo rosto eu escrutinava diariamente à procura de indícios da sua identidade ancestral, Nicky que todas as noites perguntava pela mãe. Ia de carro até Drury onde tinha descoberto uma clareira para estacionar o Ford preto. Caminhava os quatrocentos metros até à cabana e posicionava-me de maneira a não ser visto à luz do candelabro branco, uma extravagância tão discordante da rude cabana que era como se uma velha aristocrata tivesse entrado na choupana de um pescador. Na luz fragmentada que emitia, examinava a pele luminosa de Clara, as suas sobrancelhas claras e os olhos azuis-claros que me recordavam os das minhas irmãs. Em contraste com a mãe, que cada vez mais adquiria um aspecto transparente, apesar das suas feições morenas, Clara era uma eflorescência exuberante de formosura holandesa.

Etna, uma mãe extremosa, penteava o cabelo da filha, inconsciente do espectador atrás do vidro. O rosto da minha mulher era sereno mas pálido e eu apercebia-me da pele tensa sobre as maçãs do rosto proeminentes, do nervosismo nos olhos cor de topázio, das rugas nos cantos da boca.

Era capaz de ficar horas na escuridão e ao frio, observando Clara a estudar e Etna a costurar. Observava Etna a lavar a louça como uma vulgar ajudante de cozinha. Não parecia importar-se com estas tarefas, algumas das quais verdadeiramente detestáveis - despejar restos, lavar e brunir roupa que gelava na corda nas traseiras da casa, limpar a sanita exterior. Clara, chamada a ajudar, protestava como uma menina mimada e eu sentia por vezes vontade de intervir para a repreender. Noutras ocasiões, mal conseguia refrear o impulso de irromper pela casa dentro e abraçar a minha filha que estava a crescer longe de mim.

Em pé na escuridão, considerava a questão dos antepassados maternos de Etna, a ascendência desconhecida. O homem que engravidara a criada e depois a abandonara podia ter sido tudo, raciocinava eu. Judeu, talvez. Mais provavelmente um nortista comum com feições marcadas. Mas também podia ter sido turco ou índio ou russo. Todas as noites estudava as maçãs do rosto e os olhos da minha mulher e pensava: seria grega? Italiana? Cigana?

Ponderava igualmente sobre a natureza do destino e das circunstâncias. Se não tivesse sido o incêndio, duvido que alguma vez tivesse vindo a conhecer Etna Bliss. Desejava agora que essas poucas gotas de óleo na cozinha do hotel não tivessem caído na chama do fogão? Poderia ter comido o meu salmão cozido solitariamente sem sequer reparar na jovem mulher vestida de seda topázio, sentada atrás de mim, escapando assim à felicidade e à angústia dos quinze anos seguintes e conhecendo dois meses mais tarde, digamos, a filha de um negociante em livros raros de Thrupp com quem me casaria? Poderia nunca ter encontrado Etna Bliss mas ter antes avistado, três dias mais tarde, uma mulher a sair de um eléctrico que teria perseguido e de quem acabaria por ficar noivo? Ou ter sido apresentado, numa festa da escola, à mulher de um colega (não, nunca; é impensável completar a frase pois eu nunca teria descido tão baixo). ou conhecido acidentalmente, vinte anos mais tarde, tendo permanecido solteiro durante décadas, uma viúva para quem as minhas credenciais académicas, para não falar da minha modesta fortuna, pudessem ter constituído motivo de atracção?

Ou, por outro lado ainda, poderia ter tido uma sorte pior do que aquela que me coube? Poderia ter casado com a filha de um médico e ter tido dela um filho que viria a morrer mais tarde devido à negligência da minha mulher? Há histórias mais terríveis do que a minha. Compreendo isso. Mas não é verdade que a influência das circunstâncias sobre o destino de um homem é considerável?

As minhas visitas nocturnas àquela cabana tornaram-se cada vez mais frequentes e transformaram-se numa rotina. Depois de estar à janela durante mais ou menos uma hora, dirigia-me ao bosque para comer um pouco de queijo e pão e beber o Whisky que levava comigo. Para ser franco, por essa altura comecei a beber consideravelmente e por vezes tinha dificuldade em levar o Ford até à garagem às primeiras horas da madrugada. Dormia até tarde e com frequência chegava atrasado ou faltava mesmo às aulas, às quais praticamente não dava atenção. Os meus colegas, primeiro preocupados e depois alarmados e aborrecidos, evitavam-me quando se adivinhava um encontro, o que não me perturbava pois só desejava silêncio e anonimato, ambos difíceis de conseguir nessa escola de rapazes medíocres e indisciplinados. Disse a mim mesmo, com grato alívio, que apresentaria a minha demissão no Verão.

De todas as ocasiões em que fui espiar a minha mulher à cabana, só numa estive perto de ser apanhado. Tinha ido ao bosque urinar e devo ter feito inadvertidamente um ruído porque quando acabei e me virei para regressar à casa, vi que Etna estava à janela a olhar directamente para mim. Como inclinou a cabeça de um lado ao outro, não me pareceu que me tivesse detectado. Vi-a afastar-se da janela e depois ouvi a porta abrir. Ela saiu, a tiritar e a apertar um xaile contra os braços, deixando delicadas pegadas no relvado coberto de neve do fim de Março.

- Quem está aí? - gritou, perscrutando a escuridão. Permaneci atrás de uma árvore e observei o seu rosto, desejando revelar-me e interrogando-me como as coisas tinham chegado ao ponto de eu, Nicholas Van Tassel, me dissimular atrás de uma árvore num bosque, o vapor da minha urina ainda a subir atrás de mim, escondendo-me da única mulher que alguma vez amara.

A rotina tornou-se uma obsessão. (O que é exactamente uma obsessão? O meu bem manuseado dicionário diz-me que é um estado de compulsiva preocupação com uma ideia fixa ou um sentimento ou emoção não desejados. palavra específica, pelo que foi quase sempre um filme mudo a que assisti em todas essas noites), conseguia ouvir os acordes do exercício musical. Etna costurava no sofá e era como se Phillip Asher fosse um irmão ou um primo que interrompera uma cena doméstica simplesmente para dizer olá. Olhei para o lava-loiça e vi os restos por limpar de uma refeição. Fiz um esforço para contar os pratos e os talheres pois queria saber se Asher tinha jantado com a minha filha e a minha mulher.

Etna ter-me-ia mentido? Teria sido amante de Phillip Asher desde o princípio? (Não se podia esperar que eu vigiasse a cabana durante o dia. ) Ele teria ali passado a tarde enquanto Clara estava na escola, tendo-se simplesmente demorado mais do que o habitual para desfrutar a agradável companhia de uma mulher fascinante e da sua filha? Mas tive então uma ideia verdadeiramente terrível: teria sido eu, com as minhas decisões impensadas, que aproximara Etna e Asher depois de me separar da minha mulher? Sim, pensei, tinha sido. Asher, a pretexto de estar preocupado com o meu bem-estar e na sua posição de director de Estudos, teria ido à cabana discutir o assunto, não teria?

Nessa noite, exerci um autocontrolo supremo pois a única coisa que desejava era entrar naquela sala, arrancar de lá o homem e mandá-lo de rastos pelo caminho abaixo. Como se atrevia ele a sentar-se em tão grande proximidade da minha filha? Como ousava insinuar-se junto da minha família?

Asher sorveu outro gole de chá, que devia ter arrefecido enquanto esteve sobre a mesa; há quase meia hora que eu observava esta acolhedora cena doméstica. Clara pousou a flauta e fez uma pergunta à mãe. Percebi pelo delicado mas firme gesto negativo de Etna que não atendia o pedido de Clara para deixar de praticar mais cedo. Clara, com uma expressão magoada, continuou e mais uma vez ouvi os esforçados acordes de uma flauta mal tocada. Observei a minha filha a esticar as pernas numa postura indecorosa, um gesto que imediatamente captou o olhar vigilante da mãe. Asher inclinou-se na cadeira, como que a salientar algum ponto na conversa que estava a ter com a minha mulher. (A minha mulher. ) Apoiou os cotovelos nos joelhos e parecia insidiosamente relaxado.

Receei que as minhas furiosas e fumegantes baforadas de ar na noite fria se tornassem visíveis na janela.

Para me acalmar, desviei o olhar. Volvi o olhar, através dos pinheiros altos, na direcção das estrelas, pensando por que razão os deuses me estavam a maltratar assim. Nunca me tinha sentido tão violentado. O homem tinha ficado com o meu lugar e agora ia ficar-me com a mulher?

Virei-me de novo para a janela e, nesse momento, Asher e Etna levantaram-se em simultâneo.

Passei e repassei esta cena um sem- número de vezes na memória e estou convencido de que, nos momentos iniciais, o levantar simultâneo foi pura coincidência. Talvez Etna tencionasse aproximar-se de Clara; Asher possivelmente estava apenas a desentorpecer as pernas. Como que em câmara lenta e com um leve sorriso a pairar-lhes nos lábios, foram arrastados no ímpeto que os fizera levantar, primeiro dois e a seguir três passos que os levaram a encarar- se directamente por baixo do candelabro branco, essa extravagante monstruosidade. Ergueram as mãos - ela a direita, ele a esquerda - que rápida e levemente se entrelaçaram como que transportadas pelo mesmo impulso que faz as pessoas que pronunciam as mesmas palavras em simultâneo sorrir uma à outra, divertidas.

Isto ainda poderia ter suportado. As mãos dadas poderia ter tolerado e esquecido. Afinal, todo o incidente não durou mais do que um segundo, dois talvez. Mas, durante esses instantes, vislumbrei outra coisa, uma coisa que nunca mais me abandonou durante todos estes anos, que por vezes é para mim mais vívida do que a memória das feições dos meus filhos. Foi a expressão no rosto de Etna, uma expressão que era - como posso descrevê-la? Radiosa é a palavra que devo usar. Estonteante de deleite. Uma expressão extática de felicidade que, aparentemente, exigia a participação de todo o corpo como se este avançasse a toda a velocidade. Era uma expressão que eu só vira no rosto de Etna uma vez, no trenó naquela tarde de fim de Inverno, há muitos anos, quando os cavalos, quase descontrolados, tinham galopado velozmente em direcção ao estábulo. Ela pegara-me na mão e a felicidade paralisara-me. Asher e Etna oscilaram um pouco. O momento dissolveu-se em gargalhadas. Do canto, Clara observava, com um olhar cauteloso e sério. Os meus próprios olhos estavam secos de cólera. Desejei ardentemente arrancar a minha filha àquela cena.

Na manhã seguinte, enviei uma mensagem a Etna. Iria buscar Clara ao fim da tarde para jantarmos juntos. Passaria a noite comigo e com Nicodemus e, na manhã seguinte, levá-la-ia à escola. Etna devia preparar uma mala para Clara com um uniforme lavado e uma camisa de dormir. Apareceria a buscar a minha filha às cinco horas. Subiria o caminho de acesso no Ford mas não entraria na cabana. Agradecia-lhe a gentileza de mandar Clara ter comigo. Cordialmente, et cetera, et cetera.

Ao instalar-se no Ford, Clara mostrou-se igualmente intimidada e furiosa - intimidada com esta quebra de rotina, furiosa porque queria culpar alguém pela dissolução da família. Não procurei defender-me. Ela ainda era uma criança, demasiado nova para com preender acordos e paixão não correspondida.

Estacionei em Wheelock Street e encaminhámo-nos, como nos velhos tempos, Clara de braço dado comigo, para o pátio da escola superior. Falámos das aulas e das lições de música dela e, ocasional mente, agora que estava a crescer, de tópicos externos ao círculo imediato da sua vida, como o desejo de ver o Yosemite, por exemplo, de que muito lhe falara a sua nova amiga Rosemary. Dirigimo-nos para o hotel, onde lhe dissera que íamos jantar, terminando - com uma chávena de chocolate quente para os dois. Gradualmente ela relaxou e recordou- se do amor que sentia pelo pai e, de tempos a tempos, éramos simplesmente um pai e uma filha a tomar uma refeição no Hotel Thrupp. Quem seria capaz de dizer que não poderíamos regressar à nossa casa em Holyoke Street para encontrar Etna a dar banho a Nicky e que a vida não continuaria como antes?

Bonita ideia mas, por baixo deste feliz desígnio, eu tinha outro. Em três ocasiões durante a conversa, referi o nome de Phillip Asher. (Director Asher, foi exactamente como o mencionei, para o caso de ele ter sido assim apresentado a Clara. ) À terceira menção quando já não conseguia suportar o silêncio ou reticência dela a este respeito, perguntei, com a maior naturalidade possível: - Conheces o director Asher? - E Clara, após uma hesitação inicial, respondeu afirmativamente. Eu, agora consciente de um súbito calor que me subira às faces, deixei passar uns segundos e perguntei, como se me tivesse quase esquecido do tópico: - E onde é que o conheceste?

Clara respondeu que o professor Asher era amigo da mãe e por vezes aparecia na cabana. No entanto, o diálogo provou ser mais do que a sua tenra sensibilidade era capaz de aguentar - não era um assunto que achasse que devia discutir (também ela vira as mãos dadas debaixo do candelabro) - e começou a chorar.

- Clara, minha querida - disse eu -, não foi minha intenção perturbar-te.

- Porque é que o pai e a mãe me estão a fazer isto? - perguntou, chorando agora como uma criança, ou seja, com grande aparato.

- Nós não te estamos a fazer isto a ti - disse eu. - É só que por agora decidimos viver separados.

- Isso não é verdade! - disse ela com a sabedoria do observador atento. - É a mãe que está a fazer isto. O pai quer-nos outra vez juntos, eu sei que quer.

- Sim - disse eu. - Quero muito.

- Então porque é que mandou buscar o Nicky e me deixou ficar? - exclamou ela.

Eu sabia que era esta a causa do ressentimento de Clara. - O Nicky é mais novo - respondi, debatendo-me para encontrar uma resposta.

- Ama-o mais do que a mim! - acusou.

- Não, Clara, não amo - disse eu com sinceridade. - Amo os dois de forma igual.

Estendi o braço e peguei-lhe na mão pois não podia facilmente abraçá-la naquele lugar público. Como o contacto da minha mão a consolou um pouco, senti relutância em largá-la. Nesse momento, um homem que estava a entrar na sala de jantar, um homem que eu nunca vira, talvez um homem que pretendia simplesmente jantar, passou pela nossa mesa e olhou para Clara.

Foi um olhar subtil, essencialmente inofensivo pela sua brevidade. Mas quando me voltei para Clara vi o que ele tinha visto. Os lábios carnudos. Um peito a desabrochar sob o corpete do uniforme. A cintura esbelta e os tornozelos delicados. Foi a primeira vez que vi a minha filha como os homens durante anos a veriam.

- Pai - disse ela depois de assoar o nariz ao meu lenço -, porque é que está a olhar assim para mim?

Esforcei-me por desviar o olhar. Estudei o estranho, que se sentara, indiferente à trama que havia desencadeado.

Desenrolava-se um plano. Uma narrativa começava a ganhar forma naquela sala de jantar.

- Clara - disse eu -, acho que sei de uma maneira de convencer a tua mãe a voltar para casa.

A minha filha levantou o seu olhar para mim, as lágrimas formando-lhe ainda pequenos discos brilhantes nos olhos.

De manhã, entreguei três cartas. Uma à minha mulher. Uma ao reitor da escola. E uma ao chefe da polícia de Thrupp.

A minha filha, Clara, trouxe algo de muito perturbante à minha atenção", escrevi.

O comboio embala-me, provocando-me uma espécie de torpor. É o calor. Informaram-me que atravessámos a fronteira com a Flórida e acredito perfeitamente que seja verdade pois está abafado no meu compartimento mesmo com a parte superior da janela aberta (não é permitido abri-la mais; deve ser para impedir as pessoas de saltar do comboio). De manhã, parámos em Yemassee, onde todos assistimos ao estranho espectáculo de um grupo de negros a carregar grandes cachos de bananas aos ombros até a um comboio de mercadorias estacionado ao nosso lado. Tinham um ar simultaneamente exausto e resignado sob o calor infausto.

Por todo o comboio, os homens libertam-se de peças de vestuário como rapazes que vão tomar banho. Primeiro, um casaco é pousado numa cadeira. Depois, é tirada uma gravata e, em seguida os punhos da camisa são desabotoados e arregaçados. Vi um homem com os suspensórios desapertados. Dá ideia de que as maneiras estão a ser abandonadas com a roupa pois as disposições hoje estão claramente mais irritadiças do que em toda a viagem. Um homem vociferou contra um camareiro por ter servido uma bebida sem gelo (pelos vistos, o gelo derreteu na Geórgia). Tentei dormir um pouco mas acordei pouco depois com a máscara de dormir em seda molhada de suor e lágrimas.

A minha filha aparecerá no funeral se eu lá estiver? É uma pergunta que me perturba profundamente. E se aparecer, falará comigo? Em princípio, direi que não pois já vive com a tia há dezoito anos e, durante todo este tempo, não me falou nem escreveu. Mas o coração humano é um órgão misterioso, não é, e talvez Clara me tenha perdoado.

Como é possível que a vida continue quando tantas pessoas foram injustiçadas?

Só resta uma parte da minha história para narrar, e ainda bem porque em breve chegaremos a West Palm Beach, o destino da minha viagem. Esta demorou um pouco mais do que imaginei (mais de três dias graças ao descarrilamento próximo de New Haven e à intoxicação alimentar em Richmond; devia ter durado trinta horas) e apercebi-me de que, felizmente, vou chegar a tempo ao funeral; já foi adiado, respeitando os desejos da minha irmã, para que eu possa estar presente. A declaração de Meritable a este propósito comoveu-me quando recebi o telegrama de Berthe, uma das nossas irmãs, e motivou-me mesmo a fazer a viagem que, de outro modo, talvez não tivesse feito. Encheu-me de satisfação ver que Meritable ainda nutria por mim algum afecto apesar do que só pode ter sido uma profunda lealdade para com Clara durante todos estes anos. Talvez a intenção de Meritable fosse juntar-nos, a mim e a Clara, depois de morta, para que pudéssemos reparar a dissensão que nos divide.

Gostaria de ter ido à carruagem-salão, esta manhã depois do pequeno-almoço, em particular à sala dos periódicos, pois sinto, no meu casulo móvel de metal, que tenho andado alheado do mundo. Tenho estado a escrever praticamente sem interrupção desde que embarquei no comboio, no entroncamento de White River há três dias, embora tenha viajado através de sessenta e quatro anos de história pessoal.

Como esta aventura tem sido angustiante, mais perigosa do que alguma vez imaginei.

Assim que Etna recebeu a carta dela - a mesma carta que eu escrevera e entregara a Frank Goodspeed, o presidente da escola, e Merrill Gates, o chefe da polícia - meteu-se no carro e dirigiu-se à casa.

Eu, Etna e Clara reunimo-nos na sala de estar. Etna, porém, recusou sentar-se apesar dos vários pedidos da minha parte para que o fizesse. Tinha a carta na mão como se não a tivesse largado desde Drury. Eu, pela minha parte, exultara ao ver o Landaulet verde e dourado estacionar no caminho de acesso como sabia que ia acontecer. (Adivinhara a hora da chegada dela com uma margem de erro de quinze minutos. )

- Isto é verdade? - perguntou a uma trémula Clara que tinha, como eu e a minha filha havíamos planeado, regressado a Holyoke Street depois das aulas.

Clara, que apenas desejava que a família voltasse a estar unida, disse que sim, que era verdade, Mr. Asher tinha-a tocado.

- Tocou-te como? - perguntou Etna, com a voz e a expressão cortantes como a ponta de um espinho.

Observei atentamente a minha filha. Seria o teste mais real a que Clara seria sujeita, o seu exame mais difícil. Por um prolongado momento, permanecemos os três num infeliz triângulo, respirando lentamente em uníssono, Nicky fechado algures com Abigail em segurança. Clara levou a mão ao peito, passando três dedos pelo lado do seio, de um modo quase obsceno, contra a blusa branca do uniforme escolar. Foi um gesto de cortar a respiração, não apenas pelas suas implicações mas também pela própria imagem - a de uma rapariguinha, que provavelmente nunca se tocara daquela maneira, a fazê-lo em público. A expressão de Etna petrificou-se. Numa imitação inconsciente, Etna passou os dedos pelo seu próprio seio como se desejasse sentir (ou precisasse de sentir) o que Clara sentira.

Clara corou. Deve ter ansiado, como numa brincadeira de crianças, por gritar: Faz-de-conta! Gritar aos companheiros de brincadeira: Quem se livra és tu! " Mas estava comprometida com o seu papel de actriz, as réplicas ensaiadas, o impensável gesto executado. Desistir agora equivaleria a perder tudo.

- Quando é que ele te tocou? - perguntou Etna tão em surdina que mal se ouviu. Tirou o chapéu de condução e largou-o no chão.

- Depois das aulas - respondeu ela -, quando a mãe foi às compras.

- Uma vez?

- Três vezes - disse Clara, traçando a sorte de Asher com um número. Um número escolhido por mim tanto pelo seu potencial condenatório como pela sua improvável plausibilidade.

- Três vezes - Etna repetiu, claramente com dificuldade em compreender. - Quando foram as outras vezes?

Clara, espelho de um espelho, tapou os olhos com as mãos. Uma coisa era inventar um diálogo e uma cena, outra muito diferente era assistir à inesperada incredulidade que causava na mãe.

Mas Etna, mãe inflexível, afastou as mãos de Clara. - Olha para mim - ordenou à filha. - Olha para mim. Quando foram as outras vezes?

- Uma vez quando chegou tarde de Baker House - respondeu Clara numa voz trémula, proferindo a sua quarta e última réplica - e outra quando estava no jardim.

Como era seu hábito frequente, quando confrontada com um facto perturbante, Etna ficou completamente imóvel. Eu e Clara, testemunhas desta imobilidade maternal, apenas podíamos esperar. Etna estava dividida entre dirigir-se à criança que fora molestada e reservar julgamento, o seu instinto maternal detectando um registo dissimulado (afinal de contas, a verdade).

Etna colocou uma mão sobre o ventre e deu meia-volta, virando-nos as costas. Clara começou a chorar, o estratagema desesperado de uma actriz sem treino que precisa de recorrer às lágrimas para convencer a audiência. Etna, interpretando isto erradamente (como seria de esperar) voltou-se e abraçou a filha contra o peito. Pôs uma mão atrás da cabeça de Clara e apertou-a contra si. – Chiu - disse -, pronto, pronto.

Observei com uma espécie de horror vertiginoso.

- Clara, tenho de te perguntar - disse Etna. - Tens a certeza absoluta disto? É uma acusação muito séria.

Clara afastou a cabeça e assentiu e eu aplaudi secretamente a falta de hesitação da minha filha.

- Meu Deus - disse Etna.

A minha mulher vacilou e fechou momentaneamente os olhos. Pensei que ia talvez desfalecer e cair com a criança. Avancei um passo.

- Foi horrível - choramingou Clara. - Por favor, vamos ser outra vez uma família - conseguiu dizer por entre os soluços, agarrando-se ao corpo delicado da mãe.

(Cuidado, Clara, pensei. )

Mas nenhuma mãe podia resistir a tal pedido. - Sim - disse Etna, consolando a filha. - Chiu, pronto, pronto.

O meu alívio foi de tal modo visceral que receei se tornasse visível.

- Não deves contar isto a ninguém - disse Etna a Clara. Eu pigarreei e proferi a minha única (e claramente devastadora) réplica. - A escola e a polícia já foram informadas - declarei.

Etna pareceu ter sido esbofeteada. - Contaste à escola? sussurrou, a voz abandonando-a.

- Naturalmente - respondi. - O homem não pode continuar numa posição de responsabilidade. Vai ter de ser apresentada uma queixa-crime.

- Oh, meu Deus - exclamou Etna.

Não me atrevi a olhar para Clara, a minha cúmplice, com receio de lhe ver no rosto uma expressão vitoriosa que poria em risco todo o plano. Desviei o olhar, abalado mas exultante. O meu triunfo fora total, não fora? A minha mulher e Clara regressariam a casa. A família voltaria a estar unida. Phillip Asher seria afastado do cargo com a reputação em farrapos.

Nicky, que estivera à espera nos bastidores, libertou-se dos braços de Abigail e entrou disparado na sala de estar onde se lançou contra as saias da mãe. Também ele começou a suplicar.

- Não se vá embora, não se vá embora - entoou, num coro a que juntei os meus próprios versos mudos.

Etna não devia regressar à cabana, disse eu, assumindo o comando de uma cena que exigia um actor principal. Abigail iria de táxi buscar as coisas de que Etna precisasse. Eu trataria de pôr a casa à venda. Etna, demasiado aturdida para responder ou sequer para pensar, não pôs objecções. Calculei que não tivesse agora qualquer desejo de ver essa cabana nem tão-pouco de mostrar a cara em Thrupp. Disse a mim mesmo que, com o tempo, esta vergonha se dissiparia, que com o tempo seríamos de novo uma família normal.

Quanto a Phillip Asher, foi confrontado com a acusação, no seu gabinete, na tarde desse dia, pelo chefe da polícia Gates e pelo presidente Goodspeed, um par insólito e estranho. Soube que Asher se riu quando ouviu pela primeira vez a acusação informal, considerando tratar-se de pura invenção da parte de um rival derrotado e ressentido, facilmente refutável. Mas, quando foi informado de que não fora eu mas Clara quem fizera a denúncia, a cor abandonou-lhe as faces, o que convenceu Goodspeed, pelo menos, da sua culpa.

Asher escreveu imediatamente a Etna, insistindo que a imputação era falsa, que talvez Clara tivesse interpretado mal um gesto inteiramente inocente, embora não se recordasse de nenhum momento em que tivesse estado numa tal proximidade dela. Nunca faria uma coisa dessas, nunca. Podia visitar Etna? Podia por favor falar com ela? Interceptei a carta como, evidentemente, qualquer marido dedicado faria, embora tivesse generosamente deixado Etna ler a missiva. Ela pô-la de lado. Em quem devia uma mãe acreditar: na própria filha ou num futuro amante?

(Porque não tenho qualquer dúvida agora de que Asher e Etna em breve se tornariam amantes. Não havia outra leitura possível da expressão de puro deleite no rosto de Etna, sob o candelabro branco. E, em anos subsequentes, quando assaltado pelas visões que por vezes perseguem um homem culpado, confortava-me com o facto de que, pelo menos, havia impedido essa consumação. )

Asher foi informado de que, se desejasse, seria pedida uma acusação por escrito a Clara. Podia, efectivamente, levar o caso a tribunal. Mas eu apostara no facto de Asher ser um homem honrado, incapaz de pôr uma criança no banco das testemunhas ou de causar a uma mulher por quem sentia um profundo respeito - e talvez mesmo amor - uma segunda humilhação às mãos da sua família. Antes de a semana chegar ao fim, depois de repetidas tentativas falhadas para comunicar com Etna por telefone, correio e até pessoalmente (Abigail mandou-o gelidamente embora por ordem minha), Asher demitiu-se do cargo e deixou a casa em Gill Street. Sem julgamento, o homem de Yale não tinha qualquer futuro em Thrupp pois nunca poderia refutar a acusação de que fora alvo.

No final de Junho, para meu grande espanto e deleite, a presença de Asher já tinha sido tão milagrosamente obliterada da vila - o seu nome nunca sendo mencionado publicamente - que era como se nunca tivesse existido. Qualquer sombra de escândalo é sempre desastrosa para uma escola que precisa desesperadamente das pro pinas dos alunos.

O processo de divórcio foi, naturalmente, abandonado. (Desejo chegar a uma conclusão amigável e discreta das deliberações legais, escrevi. ) Pus à venda a cabana de Drury. Fixei um preço alto com a ideia de guardar para mim alguma coisa como compensação pela quase ruína da minha família. Uma semana depois de Asher ter partido com destino desconhecido, fui chamado à escola, não por Ferald, cujo cavalo tinha sido desqualificado, mas por Frank Goodspeed, o mesmo presidente que comunicara a calamitosa notícia a um Asher sem cor. Perguntou se eu aceitaria o lugar de director de Estudos de Thrupp. Ficou por dizer a verdade óbvia de que eu era a segunda escolha, um candidato derrotado, um director nomeado por defeito. Subentendido também ficou o facto de que ninguém tinha ânimo para desencadear outra pesquisa.

Sim, respondi com toda a dignidade que julguei que a cena exigia. Sim, ajudaria o colégio nesta matéria com o maior prazer.

- Obrigado - disse Goodspeed com alívio evidente. - Vou fazer discretamente o anúncio.

Nicholas Van Tassel não tinha direito a fanfarra.

- Como está a sua mulher? - perguntou Goodspeed, quase como se só então se lembrasse.

- O melhor possível, dadas as circunstâncias - respondi.

- Procurámos abafar o incidente - acrescentou Goodspeed -, mas estou certo de que passou por uma situação muito difícil.

- Sem dúvida - concordei.

- E a pequena? A sua filha?

- Está a tentar esquecer o assunto - disse eu.

- Os jovens são muito fortes - disse Goodspeed. Mas a verdade é que Clara não foi tão forte como eu esperara. Nos dias que se seguiram ao regresso de Etna, a minha filha foi alternando uma falsa alegria com uma disposição taciturna como se, tendo estado à beira de descobrir quem era, tivesse percebido, para sua consternação, que não era de modo algum essa pessoa. Nunca falámos, eu e ela, do drama que havíamos escrito e representado; ela parecia tão ansiosa por esquecer o incidente como o pai. Mas notei que Clara se apoquentava mais do que o habitual e resistia a quaisquer tentativas para animá-la. Enquanto antes pressionava constantemente para que a deixássemos visitar uma ou duas amigas íntimas, agora nunca saía de casa excepto para termi nar as aulas. Acabou o ano com um mau relatório escolar, as suas notas tendo decaído vertiginosamente no último mês do período. Eu sabia que se tratava de uma consequência de todo o Sturm und Drang de Maio e depositei esperanças em melhores hábitos de estudo no Outono.

Durante as primeiras semanas desse Verão anormalmente quente, Etna não saiu de casa, uma presença fantasmática que executava os seus deveres como que a uma grande distância. Havia dias em que não saía do quarto e os tabuleiros de comida eram devolvidos à cozinha praticamente intactos. Quando descia, costurava obsessivamente como se o capataz de uma fiação Lhe tivesse estabelecido um prazo de entrega. Sentava-se no salão, na sua antiga cadeira, os dedos a voar, os dentes a cortar furiosamente a linha, as mãos a sacudir bruscamente a seda ou o linho no regaço. Costurava tiras de aparador, fronhas, vestidos de criança e camisolas de espartilho. Fez individuais de mesa e cortinas para uma sala inexistente. Bordou iniciais entrelaçadas e grinaldas com minúsculos nós amarelos. Fez uma capa para Clara e um vestido solto de cinta larga, presumivelmente para si própria, embora nunca o tivesse vestido. Conheço esta lista de cor porque ficou num baú de cedro aos pés da cama de Etna durante todos estes anos, o dono da casa não tendo a coragem ou a vontade de o mandar para uma instituição de caridade, lugar para onde o estranho enxoval devia ir.

Certamente que o interesse do leitor terá sido espicaçado com a frase a cama de Etna. Em silêncio e discretamente, Etna instalou-se no quarto de hóspedes, apressando-se a retirar tudo o que fosse de carácter pessoal do nosso quarto. Dormia numa cama branca, alta e estreita, de frugalidade ascética, substituindo imediatamente o edredão colorido por uma colcha em chenille branca. Por vezes, nas noites quentes desse Verão abafado, deixava uma nesga da porta aberta para deixar entrar uma brisa. Eu passava a caminho da casa de banho e via-a a dormir, o cabelo emaranhado sobre o travesseiro, os braços levantados acima da cabeça numa postura incaracteristicamente pouco feminina. Observava-a, hipnotizado com esta visão, pois subentendia-se que estava proibido de entrar neste quarto como de entrar na cama da minha mulher. Era a visão mais próxima que tinha de Etna Bliss Van Tassel em paz. Como nos dias em que observava a minha mulher através de uma vidraça, contemplava a subida e a descida do seu peito sob o lençol fino, a curva do seu pescoço levemente enrugado ao arquear-se no travesseiro, a tremura das suas pálpebras ao sonhar. (Com quê? Com quem? Com Phillip Asher? Com Samuel? ) Por vezes, roía-me um nó de desejo, refreando-me com dificuldade para não transpor aquela nesga de porta e não me enfiar na cama ao lado da minha mulher adormecida. Mas não transpunha. Um acto destes seria impensável nas presentes circunstâncias. Mesmo o desejo carnal de um marido era uma questão inadmissível naquela casa. Rezava, tanto quanto era capaz de rezar (os nossos pecados são muros entre nós e Deus, não é verdade? ) para que, com o tempo, esta repugnância passasse e pudéssemos, mais uma vez, ser marido e mulher.

Este estado de coisas prolongou-se por mais de oito semanas.

Em Agosto, abatera-se uma mortalha maligna sobre a nossa casa e até sobre toda a vila de Thrupp que, nos meses estivais sem os estudantes, sempre pareceu espectral, ainda que agradavelmente vazia. Dia após dia, acordávamos com um céu sujo e opaco que não despejava chuva. O nosso jardim do lado da casa estava a secar por falta de água e carinho, o nosso jardineiro relutante ou incapaz de recriar a sua extravagante beleza sem as instruções da ama. Só Nicky parecia indiferente ao ambiente de recriminação e resignação que reinava naquela casa. Como um cachorro que busca a afeição mesmo de um dono apático, espetando o nariz numa perna ou lambendo uma mão recalcitrante, até aquele o afagar distraidamente debaixo do queixo, Nicky, de tempos a tempos, suscitava em nós sentimentos próximos do afecto. Apenas Clara, fingindo ler, reagia violentamente quando Nicky se aproximava de mais. Era severamente repreendida por estas censuráveis explosões e, em seguida, retirava-se ainda mais da família. Eu trabalhava horas a fio no meu escritório, saindo ocasionalmente para atender às minhas novas funções. Em Setembro, proferiria uma comunicação formal perante o corpo docente, discurso que escrevi e rescrevi uma dezena de vezes.

E Etna. Onde estava Etna então? Para onde fora a minha muLher de quinze anos? No princípio de Agosto, sugeri uma viagem até ao Highland Hotel, umas férias à beira-mar para bem da família. Etna nem quis ouvir falar. (Mencionei que raramente falávamos um com o outro? ) Ela estava a ficar assustadoramente magra, resultado de uma crescente falta de apetite e de uma espécie de vida doméstica febril e sem atractivos. Era como se tivesse de estar sempre em movimento para afugentar as imagens que a filha lhe havia plantado no espírito - Etna, uma mulher cuja serenidade definira no passado a sua maneira de ser.

Sonharia com a cabana? Interrogar-se-ia para onde Phillip Asher teria ido? Censurar-se-ia por lhe ter aberto as portas de casa? Não sei. Comecei a beber cada vez mais, começando cedo, num esforço para me anestesiar contra a dor do frígido silêncio de Etna, projecto em que o meu fracasso se acentuava de dia para dia.

Uma tarde, no final de Agosto, depois de ter acabado quase meia garrafa de vinho doce, sentindo uma dor de cabeça que nenhum tónico mitigava (o ar estava tão parado e sufocante naquela casa tristonha que não conseguia respirar em condições), dei com Etna sentada numa cadeira de vime num alpendre lateral. Não tinha com ela qualquer trabalho de costura, o que interpretei como um sinal de saúde. Antes de me aproximar dela (sem ter sido convidado), observei-a por um momento em repouso. Com o corpo e o rosto de perfil, parecia estar a contemplar qualquer coisa para lá do resguardo. Usava uma blusa larga sem mangas e uma saia de linho, e os seus ombros e braços compridos estavam brancos e nus, uma visão que, nesses dias, raramente me era dado contemplar. Coçou a protuberância da clavícula como se tivesse sido mordida por um insecto. Os seus braços estavam terrivelmente descarnados e, sem a sua robusta figura, parecia ter envelhecido consideravelmente desde a Primavera. Esta imagem comoveu-me. Avancei no alpendre, sentei-me no balancé e baloicei para a frente e para trás na esperança de simular uma brisa. Etna olhou na minha direcção sem me cumprimentar. Sentia-me desejoso dos dias mais frescos do Outono pois estava certo de que poriam rapidamente fim à febre que nos contaminara a todos.

- Talvez não fosse má ideia levarmos as crianças até às montanhas - disse eu a Etna. - Há-de estar mais fresco. Estou certo que consigo arranjar quartos num hotel.

- Que montanhas? - perguntou ela sem rodeios. Nas semanas desde que voltara para casa, perdera o dom de conversar com elegância.

- Não sei, as Montanhas Brancas - disse eu, não me ocorrendo quaisquer outras montanhas. No entanto, assim que as mencionei, arrependi-me da referência ao local da nossa viagem de núpcias.

- Não é coisa que me entusiasme - respondeu.

- Há alguma coisa que te entusiasme? - perguntei.

- Vai tu - disse ela - e leva as crianças.

- Não me agrada deixar-te sozinha - disse eu, bastante irritado com as objecções dela a tudo. Não devíamos, para bem das crianças, retomar uma vida normal?

Etna olhou através do resguardo para a filigrana castanha da cenoura-brava que começara a brotar no jardim maninho. E, como por vezes sucede quando sob a influência do álcool e de uma dor de cabeça a uma hora tão prematura do dia, assaltou-me um ímpeto de raiva.

- O Asher está na Argonne - disse eu, indicando a mais mortal geografia no planeta.

Etna voltou lentamente a cabeça na minha direcção. Finalmente alguma coisa suscitara a atenção da minha mulher.

- O Phillip em França? - perguntou.

O Phillip.

- Soube de fonte segura que o professor Asher se alistou na Cruz Vermelha britânica - anunciei.

- Não é possível - disse ela.

- Aceitam homens praticamente de todas as idades - disse eu. - Claro que é um gesto muito corajoso da parte dele. Na minha opinião, quer reparar, de um modo estranho, o crime que cometeu. A taxa de mortalidade entre os médicos é de quase setenta por cento. Sabias que o Asher é um pacifista?

Os olhos de Etna estavam inflamados. Não de chorar, imaginei (parecia demasiado seca para ser capaz de lágrimas), mas de malnu trição. Estava a tornar-se esquelética por baixo dos vestidos feitos em casa.

- O Phillip em França - repetiu Etna.

- Na Argonne.

- Está a dizer que ele partiu de vez?

Retraí-me e olhei para encarar quem falara. Clara estava à porta atrás de mim.

- Quer dizer que ele partiu de vez? - perguntou novamente a minha filha.

Transpôs a soleira, com uma escova de prata de mão. Precisava de lavar o cabelo e as altas meias brancas estavam sujas. Olhou para mim e para a mãe e novamente para mim. - O professor Asher partiu? Clara voltou a perguntar.

Levantei-me, pressentindo o rumo perigoso que a conversa poderia levar. - Clara, eu e a tua mãe estamos a conversar em privado - disse eu. - Deves aprender a só falar quando te dirigem a palavra.

- Para muito longe? - perguntou Clara como se não tivesse ouvido a minha admoestação.

- Sim, muito longe - respondi. - Vamos ver onde está o teu irmão - acrescentei, aproximando-me dela.

- Então já posso contar? - perguntou Clara.

Sustive a respiração desejando que o momento passasse sem incidentes. Os olhos azuis-claros de Clara olharam directamente para os meus. A sua pergunta, apercebi-me então, não era inocente.

Seria um acto maldoso, causado por longas horas de ócio? Uma forma de chamar mais uma vez a atenção sobre si mesma? Pretendia apaziguar uma consciência culposa? Ou, pior ainda, seria trai ção dirigida contra mim?

- Contar o quê? - perguntou Etna.

- Está calada - disse entre dentes a Clara, imprimindo toda a ameaça de que fui capaz na minha ordem quase inaudível.

- Contar o quê? - perguntou Etna, levantando-se da cadeira de vime verde. - Nicholas, o que vem a ser isto?

- Não é nada - respondi, fazendo um gesto desdenhoso.

- Nada. Clara, anda comigo.

Peguei no braço da minha filha, preparado para arrastá-la em peso do alpendre, mas ela libertou-se de mim e correu para a mãe.

A princípio, o olhar de Etna era de curiosidade, não vendo o marido nem a filha mas antes uma cena a que assistira quatro meses antes na sala de estar quando Clara passara os dedos pelo peito.

Etna abanou rapidamente a cabeça, incrédula.

Clara abraçou a mãe, cujos braços compridos e brancos ainda não estavam prontos a cingir as costas da filha. A minha mulher parecia, aliás, tomada de paralisia.

- Não foi por querer - disse Clara, a sua voz nervosa sumindo-se num gemido. - Mãe, pensei que assim voltava para casa.

Observei Etna a rememorar essa cena anterior, os seus olhos pousando nos meus. Vi neles a expressão vazia do aturdimento e depois a nitidez intensa da certeza.

- Como foste capaz? - disse-me por cima da cabeça de Clara.

- Não sei do que estás a falar - retorqui.

- Sabes, sim - disse Etna. - Estou a ver muito bem que sabes.

- Não faço a mais pequena ideia - disse eu.

- Clara, diz-me a verdade - pediu Etna, segurando na filha à distância dos braços. - A verdade absoluta.

Mas eu afastei-me antes que a verdade fosse confessada. Saí do alpendre e atravessei a casa até ao meu escritório.

O que importava agora? pensei ao fechar a porta atrás de mim. A mãe nunca abandonaria a família. Sacrificar-se- ia pela felicidade dos filhos.

Eu triunfara, não triunfara? Tinha Etna. Tinha as crianças. Era director de Estudos da Escola Superior de Thrupp.

Então porque estava tão assustado?

Etna dirigiu-se ao quarto de hóspedes e bateu com a porta com tanta força que as paredes abanaram. De tempos a tempos, podíamos todos ouvir manifestações espaçadas de incredulidade intempestivas e ofegantes como se ela estivesse a ouvir repetidamente a verdade pela primeira vez. Clara refugiou-se no quarto dela e Nicky não saía de ao pé de Abigail. A certa altura, vi-o passar com os ouvidos tapados para não ouvir inadvertidamente as tempestuosas rajadas provenientes do quarto de hóspedes. Quanto a mim, permaneci no escritório onde bebi xerez para me alimentar e conhaque para me suster. Sentei-me, andei de um lado para o outro e bebi, tão amedrontado como Nicky com os gritos intermitentes que chegavam lá de cima.

Disse a mim mesmo que era uma tempestade passageira. Nenhuma mulher, nenhum ser humano, podia fisicamente aguentar a intensidade de tais explosões. Abigail apareceu à porta mas eu mandei-a embora peremptoriamente. Não sei se era eu, por esta altura bastante embriagado, o alvo da sua solicitude ou a patroa cuja angústia apenas podia imaginar. Estaria Etna a pensar como a sua família prejudicara Phillip Asher (um estranho ajuste de contas por um crime de família, poder-se-ia dizer), como se recusara até a dar ouvidos ao homem? Como ele partira em desgraça e corria agora perigo na Europa? Poderiam as maquinações do marido e da filha causar a morte desse amável académico que era, no mínimo, seu amigo? Um homem que ela poderia um dia ter amado? E sobre quem colocaria Etna o fardo da culpa? Sobre mim por ter arquitec tado o plano? Sobre a filha desleal que talvez nunca se refizesse de ter prejudicado tanto outra pessoa numa idade tão tenra (de ter feito, quanto mais não fosse, com que ele perdesse o emprego)? Ou sobre ela própria por me ter incitado a um comportamento reprovável com a sua reprovável busca de liberdade?

Ou a culpa de Etna iria ainda mais longe, ao dia em que, numa sala em obras em Exeter, New Hampshire, permitiu que a piedade dominasse o seu discernimento? Ou pensaria a minha mulher, como eu de tempos a tempos, na misteriosa conjunção entre circunstância e destino? O que aconteceria se não tivesse aceitado a oferta de uma boleia na noite do incêndio? O que aconteceria se ela e a tia tivessem ficado em casa nessa noite e não tivessem decidido jantar no hotel? Podia desfiar-se assim uma vida até aos primórdios do pensamento consciente.

 

Uma tarde soturna deu lugar a uma noite abafada. As explosões de dor acalmaram e Nicky destapou os ouvidos. Clara saiu do quarto em busca de uma refeição. Descobri os meus filhos a comerem tarte na cozinha, na mesa de esmalte branco. Clara levantou-se sem dizer uma palavra, a boca cheia de pêssegos e massa, e saiu antes de eu ter oportunidade de falar, o que aliás não fazia parte das minhas intenções. Abigail, que chamei, pegou em Nicky e levou o rapaz adormecido para a cama. Demorei-me na cozinha à procura de conhaque e, não encontrando nenhum, saí para o relvado das traseiras.

Tirei o casaco e fiquei em mangas de camisa e suspensórios, a contemplar o céu, demasiado barrento nessa noite para deixar ver as estrelas. À minha volta ouvia-se uma sinfonia de insectos, zunindo e arranhando, afinando os seus instrumentos nocturnos. Tinha a camisa colada ao corpo e o ar nocturno não proporcionava qualquer alívio. Estávamos no auge de uma onda de calor de proporções extraordinárias; não me recordava da última vez em que o termómetro registara uma temperatura inferior a 32a C. Aproximei-me do limite do pátio e olhei para trás, para a casa que albergava a dorida família Van Tassel. Vi a luz do quarto de Nicky apagar-se e depois a de Clara. Momentos depois, vi um candeeiro acender-se no terceiro andar. (O calor nos quartos dos criados devia ser inimaginável. ) Essa luz apagou- se também pouco depois até que os únicos candeeiros que ficaram acesos eram o do meu escritório, que eu deixara inadvertidamente ligado, e o do quarto de hóspedes.

Esperei por algum sinal de Etna, uma sombra a passar atrás da cortina de renda, mas não vi nada. Pus-me em cima de um muro de pedra para ver melhor, mas apenas distinguia a cómoda branca com o respectivo espelho. Talvez a minha mulher estivesse a escrever a Phillip Asher, pensei. A ideia começou a roer-me o espírito e afastei-a. Preferi pensar que talvez Etna tivesse adormecido com a luz acesa e, nesse caso, poderia entrar sorrateiramente no quarto dela e apagá-la - um gesto perfeitamente próprio de um marido. Não a acordaria, decidi; limitar-me-ia a contemplá-la por um momento a dormir. Sentar-me- ia possivelmente à secretária desse quarto de hóspedes e escrever-lhe-ia eu - uma ideia original! – procurando explicar os acontecimentos dos últimos meses. Convencê-la-ia do meu amor. Pedir-lhe-ia perdão.

Quanto mais deixava os meus pensamentos vogar nesta direcção absurda (ou antes, quanto mais o álcool se me infiltrava no corpo), mais clara se tornava a ideia, a ideia premente, de que devia ir falar com Etna imediatamente. Devia convencê-la de que, com o tempo, a nossa pequena família recuperaria a harmonia. Devia persuadi-la de que o incidente podia ser esquecido. Iria ter com ela, cingi-la-ia nos braços, deixá-la-ia chorar e dir-lhe-ia, como quem fala com uma criança, que tudo ficaria bem. De manhã, acordaríamos Clara e ajudaríamos a nossa filha a superar a confusão emocional e moral em que eu a mergulhara. Partiríamos para a frescura das montanhas e exorcizaríamos as tristes recordações que associávamos a essa paisagem. E quando voltássemos seria Outono e poderíamos todos continuar a nossa vida como no Inverno passado. Tínhamos estado doentes, diria à minha mulher, mas agora recuperaríamos a saúde e a presença de espírito e entregar-nos-íamos mais uma vez à rotina e à normalidade.

Oh, homem louco. Oh, homem louco, louco.

Por vezes, penso que o incidente que vou agora narrar não sucedeu de todo, que de facto encontrei a porta de Etna fechada à chave e que ela se recusou a abrir-ma. Que, de facto, não passou de um sonho motivado pela noite febril.

 

Neste sonho, subo as escadas sem qualquer reserva, anunciando as minhas intenções com um passo firme. Avanço pelo corredor até ao quarto e detenho-me à porta. Penso em bater mas depois decido que esse gesto remete para Etna o fardo da decisão: abrir ou não a porta, deixar-me ou não entrar. Após deliberar por uns momentos, rodo o puxador.

A minha mulher está sentada na beira da cama. Levanta bruscamente a cabeça quando me revelo. Tem o rosto manchado de lágrimas, a blusa parcialmente desapertada. Olho de relance para a secretária e, como receava, vejo nela uma carta. Tinta cor de alfazema num envelope cor de alfazema. Um nome, mas sem morada. Morada desconhecida. Nas trincheiras, talvez. A escutar uma sinfonia inteiramente diferente.

A expressão de Etna é fria e dura. O seu cabelo é uma disforme corda entrançada que lhe cai pelas costas. Vejo novamente a blusa desabotoada, a carta na secretária, as cortinas imóveis no ar nocturno.

- És um monstro - diz Etna num tom neutro quando me aproximo da cama.

Avanço directamente para ela e, antes que ela possa retrair-se, encosto-lhe a cara ao meu enorme ventre. Ela tenta libertar a cabeça mas não consegue.

- Não sou nenhum monstro - digo.

Empurro-a para cima da cama.

- Sou o teu marido - digo.

- Eu não sou a tua mulher - diz Etna.

Tapo-lhe a boca com a mão e ela abre muito os olhos, como é de esperar.

- Não fales - digo.

Neste meu sonho, ou visão (que pode ou não, como digo, ser real), retiro a mão que lhe pressiona os lábios e beijo-a. Etna imobiliza-se, submete-se até, como que receosa de acordar as crianças que poderão aparecer no quarto para saber por que razão a mãe está a gritar. Com suavidade e delicadeza, desenrolo-Lhe uma meia até ao joelho, sentindo a penugem da sua perna. Levanto-Lhe a saia e encontro a abertura da camisola do espartilho. Neste dia quente, ela não vestiu o espartilho propriamente dito, o que é uma dádiva para os meus dedos indiscretos. Desaperto os botões da blusa. Toco a minha mulher em todos os pontos a que um marido tem um direito legítimo conferido por Deus. Ao fim de algum tempo, faço Etna rolar de tal modo que ela fica por cima de mim, ambos virados para o tecto. Assim deitados, sinto-a como uma extensão de mim mesmo, como se fôssemos a mesma pessoa. Assim deitados, não consigo ver-lhe a cara que, em todo o caso, poderia destroçar-me o coração. Etna emite um som e tenta levantar-se mas eu tapo-lhe mais uma vez a boca e aperto-a contra mim. Toco-a como um ins trumento, um violoncelo, talvez, até se consumar a violação.

Quando acabo, caio num profundo fosso, aos tombos como num sonho dentro de um sonho. Caio até pensar que não posso tombar mais e depois continuo a cair.

 

Imediatamente antes do nascer do dia, ouvi um som que me acordou por breves instantes. Se não tivesse bebido tanto na noite anterior, talvez me tivesse levantado. Ouvi uma porta a fechar. Passos. Outra porta a fechar. Ou apenas imagino isto em retrospectiva? Dormitei, meio anestesiado, sentindo que devia recobrar a consciência, que devia tentar despertar. Quando finalmente acordei, sentei-me num repelão. O sol já se anunciava num padrão de filigrana no soalho de madeira. Friccionei os olhos e depois as têmporas pois sentia a dor de cabeça surda e persistente de um degenerado físico e moral.

Os objectos no quarto foram gradualmente ganhando forma. Onde é que eu estava? Na minha cama, claro, mas onde estava Etna? Estava a dormir no quarto de hóspedes. Lembrei-me então, com uma lucidez abrupta e brutal, dos acontecimentos da noite anterior. Recordei os sons que me acordaram ao princípio da manhã. Levantei-me, dirigi-me à janela e olhei para a cocheira. A porta estava aberta e o Landaulet desaparecera.

Saí de casa sem casaco nem chapéu, ainda com a roupa com que tinha dormido. Um sentido de urgência impelia-me em frente. Pus o Ford a trabalhar, o som do motor sobressaltando-me no silêncio da manhã. Incapaz de virar a cabeça sem uma dor considerável, confiei na sorte ao descer o caminho de marcha atrás. Dei a volta e apontei o carro para a vila.

Percorri Wheelock Street demasiado depressa, passando pela casa da viúva Bliss. Passei a toda a velocidade pelo Hotel Thrupp que não exibia qualquer vestígio de cataclismo, infernal ou não. Dobrei a esquina no pátio da escola, onde as folhas dos sicómoros se acastanhavam e enrolavam com o calor de Agosto. Parecia que um vapor matinal exalava da relva ressequida e quase se conseguia ver, em leves depressões, os antigos trilhos dos alunos. Conduzi velozmente o Ford pela arquitectura heterogénea dessa escola banal, pela casa vitoriana de Moxon, pelo caminho de acesso à mansão em pedra calcária de Ferald. Virei para Drury. Dava-me a sensação de viajar num tempo irreal, incapaz de avançar com a velocidade necessária. Enquanto conduzia, imaginei em grande por menor o que ia encontrar.

O corpo estaria estendido parcialmente no tapete persa e parcialmente no linóleo como se, nos seus momentos finais, ela tivesse tentado deitar a mão a qualquer coisa junto do lava-loiça. Teria uma horrível roseta, uma roseta malsã, na garganta, a mais conspícua mancha de cor naquela sala de ferro branco e hortênsias secas. Eu soltaria um grito e depois desviaria o olhar, não sem antes ter reparado na postura pouco natural do corpo e no pedaço de vidro da lâmpada partida do candelabro arremessado contra uma cadeira.

Aproximar-me-ia a cambalear do lava- loiça, abriria a torneira e molharia a cara na água corrente. Endireitar-me-ia e abanaria a cabeça como um cão que sacode a água do corpo. Aturdido, procuraria qualquer coisa que suportasse o peso do meu corpo, tentando ao mesmo tempo evitar uma distinta sensação de náusea.

Olharia mais uma vez para a minha mulher.

O seu rosto contorcido seria grotesco, coberto do sangue que se lhe derramara do nariz e da boca. (Creio que, do ponto de vista clínico, se poderia dizer que morrera afogada. ) Baixaria a cabeça para a sua blusa de linho, passaria os dedos pelo seu braço fino e branco. Tocar-lhe-ia na maçã do rosto e no cabelo cor de bolota.

Não, não, disse comigo mesmo, abanando vigorosamente a cabeça. Era demasiado melodramático. Não seria assim.

 

Virei à esquerda para o caminho de acesso e estacionei o carro à porta da cabana. Não havia sinal do Landaulet mas a porta da cabana estava aberta.

Saí do Ford e aproximei-me da soleira, espreitando a medo lá para dentro. Chamei por Etna e respondeu-me o silêncio. Os meus olhos inspeccionaram o chão que precisava de ser varrido mas que, de resto, estava despido. Olhei para o candelabro, essa monstruosidade de ferro branco, e as lâmpadas estavam intactas. Entrei na cabana. À excepção do ar bafiento, que nem a porta aberta conseguira dissipar, e uma obscuridade causada pelas cortinas corridas nas janelas, a cabana estava praticamente como quando eu a fechara no final da Primavera. (Não me ocorrera que Etna pudesse ter uma segunda chave. ) Abri as cortinas, as janelas e as portadas, deixando entrar ar e luz na sala mofenta. Olhei em redor para me certificar de que Etna não estava em nenhum lado, relutante em mostrar-se. Subi as escadas estreitas para inspeccionar o quarto das águas-furtadas mas tive de voltar a descer imediatamente: mal se podia respirar naquele sótão afunilado.

 

Etna, chamei novamente.

Passei revista ao recheio da cabana mas, tirando o estojo de escrita de Etna, não dei pela falta de nada. Sentindo a dor de cabeça a impor-se de novo, encostei-me ao armário dos medicamentos. A minha mão roçou a parte frontal da caixa de metal branca. A abertura soltou-se com um baque, revelando um leque de envelopes azuis, brancos e cor de alfazema que se espalharam pelo chão. Apanhei-os e estudei os endereços.

Mrs. Etna Van Tassel, Holyoke Street, Thrupp, New Hampshire Mr Phillip Asher, Hotel Thrupp

Mrs. Etna van Tassel, Exeter, New Hampshire

Mr Phillip Asher, 14 Gill Street

Deixei-me cair na cadeira de espaldar de travessas. Ao fim de algum tempo, pousei as cartas na mesa e ordenei-as. (Claro, Nicholas Van Tassel tinha de ler qualquer série de cartas pela ordem correcta. ) Li-as todas uma vez e outra vez ainda. Arranjei-as numa pilha perfeita.

Etna e Phillip Asher, a minha mulher e o homem de Yale, tinham casado as suas cartas - um casamento, pelos vistos, mais duradouro do que o meu.

Lancei a cabeça para trás e soltei um uivo, um grito gutural e fantasmagórico, que poderia ter assustado qualquer homem ou mulher em seu perfeito juízo.

A minha mulher estivera ali e partira. Compreendi então que não voltaria. Desprendera o ferrolho da sua jaula e libertara-se.

Libertara-se de mim.

O que começou com fogo acabaria com fogo, decidi. Terá sido uma tentativa de catarse da minha parte ou simplesmente o resultado de uma eterna preocupação com a metáfora? Não sei. O que sei é que é consideravelmente mais difícil atear um fogo do que se possa imaginar. Por falta de ideias, mantive um pano de cozinha por cima do fogão, tentando acender uma chama, para a ver simplesmente atear-se e extinguir-se no tecido saturado de humidade. Por fim, depois de muito abanar o pano, consegui uma chama incipiente mas razoável. Coloquei-a debaixo de uma cortina.

 

Peguei na caixa metálica com o seu recheio e, impulsivamente, no manequim de costura, para o qual não via qualquer utilidade mas que era, afinal, o fantasma de arame da minha Etna, com a sua altura e dimensões. Meti-os no Ford. Apressando-me então, entrei para o carro, meti marcha atrás e recuei pelo caminho abaixo, mal ousando olhar quando uma cortina e depois uma secção de parede se tornaram laranja. No fundo do caminho, precisamente quando virava na direcção de Thrupp, vi uma labareda de fogo mostrar-se através da porta aberta e, em seguida, deu-se uma deflagração de proporções dramáticas quando a cabana inteira começou a arder. Era um espectáculo hipnótico. O fogo é realmente uma coisa muito bela.

O incêndio propagou-se, produzindo um calor que, mesmo ao fundo do caminho, era impressionante. Foi nesse momento, enquanto observava as chamas, que me ocorreu uma ideia inteiramente nova que me intrigou profundamente: se Etna Bliss se libertara, não decorreria daí que eu estava livre também?

A ideia era atordoante. Comecei a explorá-la, sentindo o vacilante alívio de alguém que descobre que uma tragédia traz uma benesse inesperada. Seria possível que eu estivesse livre da obsessão que tinha sido Etna Bliss Van Tassel? A obsessão que me perseguira durante quase dezasseis anos?

Talvez. Talvez.

Testei o meu coração e a minha mente como um homem que perde os sentidos no campo de batalha e, quando acorda, apalpa os braços e as pernas para ver se continuam intactos - a minha sensação de alívio não menos exultante do que a do soldado que descobre que ainda está vivo.

Podia ter ficado sentado ao fundo do caminho a manhã toda, tentando assimilar esta ideia, mas comecei a ficar preocupado porque o fogo se alastrava. Não era minha intenção que a mansão vizinha ardesse também. Afastei-me rapidamente e parei na primeira casa por onde passei. Disse ao homem atónito que abriu a porta que estava a arder uma casa mais à frente na estrada e que devia chamar os bombeiros. Soube mais tarde que a cabana de Etna estava quase totalmente destruída quando o carro dos bombeiros chegou, mas a casa maior, apesar do calor e do tempo seco, poucos danos sofreu.

- A casa pertencia à sua mulher - disse um polícia que apareceu em minha casa mais tarde, nesse dia.

- Sim - respondi.

- Foi uma sorte ela não estar lá - observou.

- Não foi?

- Posso falar com a sua mulher?

- Está a dormir.

- Compreendo.

- Está bastante transtornada.

- Deve estar, claro. Para que é que ela a queria, afinal?

- Como disse?

- A casa. O que é que ela fazia lá?

- Costura - disse eu sem hesitar.

- Costura?

- Dava aulas aos pobres - respondi.

- Dava?

- Sim.

- Uma injustiça, então, não é?

- Injustiça?

- Ter ficado sem a casa assim.

- É - concordei. - Uma grande injustiça.

Se experimentara alguma sugestão de liberdade, nos momentos em que observei a cabana a arder, tive de a pôr de lado quando regressei a casa pois tive de explicar aos meus filhos, Clara e Nicodemus, que a mãe tinha partido para fazer uma cura de repouso. Nicky chorou e Clara não acreditou em mim. - Foi o pai que a fez ir-se embora - acusou e, para ser franco, era uma acusação difícil de refutar.

No princípio de Novembro, tive de chamar Meritable pois estava desorientado sem saber como criar uma filha que não se coibia de anunciar a intervalos frequentes que me odiava.

- O pai matou a nossa mãe - ouvi acidentalmente Clara dizer a um Nicky horrorizado, ao passar pelo quarto do meu filho, menos de uma semana depois de o fogo ter destruído a cabana.

- Não matou nada! - protestou Nicky, defendendo o único pai que lhe restava. - A mãe está a repousar.

- A repousar no cemitério, só se for - murmurou Clara entre dentes. - O pai é um assassino - disse ela, pronunciando a palavra com evidente deleite.

- Clara, vai para o teu quarto - gritei à entrada. Meritable, que até então eu julgara incapaz de se deixar perturbar com o comportamento de uma rapariga, ficou impressionada com a intransigência de Clara. Talvez fosse melhor, sugeriu amavelmente a minha irmã, se Clara ficasse com ela durante algum tempo para se restabelecer". E foi assim que, chegado o Natal, éramos só nós os dois, eu e Nicky, naquela casa cavernosa, uma situação que não se alterou até ele ter ingressado na Universidade de Bowdoin aos dezassete anos.

Julgo que fui um bom pai para Nicodemus, mais atento do que a maioria, e não acho que ele tenha sofrido de excesso de afeição. Tentei ser, como o leitor pode imaginar, pai, mãe e irmã e, embora não pudesse ser tudo para o meu filho, passámos bons momentos juntos, eu e o meu rapaz.

No Outono, contratei um detective que me informou (no decurso de uma conversa absolutamente horrível no meu escritório) que Etna partira para Londres.

- Bem, senhor doutor - começou o homem baixo e de faces arroxeadas de Boston -, infelizmente as notícias não são boas.

- Claro que não são boas - retorqui com impaciência. Diga lá.

- Etna Van Tassel, a sua mulher, está a residir em Londres.

- Londres?

- Instalou-se nesta morada. - Passou um pedaço de papel por cima da secretária. Só tinha escrito o nome de uma rua e o número. - É a morada de um senhor - acrescentou ele.

- Que senhor? - perguntei, preparando-me para ouvir o nome de Phillip Asher.

- Um senhor de nome Samuel Asher - disse o detective. Estremeci com a surpresa, reacção que o homem de Boston parecia esperar. (Os detectives são como os polícias a dar notícias terríveis, não são? São homens endurecidos? Ou simplesmente testemunhas concupiscentes dos extremos do comportamento humano? )

- Ela está a residir aí? - perguntei.

- Tristemente, sim - respondeu ele.

- A minha mulher vive triste? - perguntei.

- Não, eu é que lho digo com tristeza.

- E não é caso para menos - retorqui.

(Como é que se terá dado o encontro entre Samuel e Etna? Etna ter-se-á imediatamente dirigido a casa de Samuel, tendo abandonado a vergonha em New Hampshire? Samuel, ao ver o rosto de Etna, ter-se- à apercebido da plena força de um amor que conhecera um dia e a que depois renunciara? Ter-se-ão regozijado com esta segunda oportunidade? Ele ter-lhe-á falado do seu casamento pouco feliz? Terão imediatamente retomado a sua relação física de intenso prazer e algo extraordinária? Alguma vez terão pensado nos seis filhos que prejudicaram? )

A verdade é que nada sei sobre o reatar do romance entre ambos e o leitor perdoar-me-á se não me alongo aqui a tentar imaginá-lo. No entanto, interrogo-me muitas vezes se não terei sido uma espécie de interregno para Etna Bliss. O pai dos seus filhos, sem dúvida. Legalmente o seu marido. Um homem que tristemente ela nunca amou. Mas, sobretudo, penso que fui um homem com quem ela viveu entre o primeiro e o segundo episódios de Samuel Asher. E quando me torturo, como ocasionalmente acontece, penso nas palavras de Etna no quarto dos Bliss, imediatamente antes dessa assombrosa revelação da paixão de que era capaz, quando insistiu que era um tesouro conseguir amar tão absolutamente, tão incondicionalmente.

(E se eu fui um interregno, o que foi Phillip Asher? Um interregno dentro do interregno? Um simples eco de um antigo amor? Phillip e Samuel terão voltado a falar um com o outro? Não sei. )

Em Junho, reformar-me-ei da Escola Superior de Thrupp que, infelizmente, não mudou tanto quanto devia ter mudado em relação à escola que foi em 1899 e 1915. Durante o meu mandato como director de Estudos, contratei cerca de trinta docentes, aumentei o número de alunos de quatrocentos para setecentos, reduzi os três períodos escolares a dois e instituí o ensino do Romance Contemporâneo Americano, um passo radical que surpreendeu toda a gente.

Há três anos, fui informado através de um telegrama oficial de que Etna falecera, vitimada pela influenza. Tinha cinquenta e seis anos quando morreu. Estranhamente, a irmã Miriam fez aturadas diligências para trazer o corpo de Etna de Inglaterra a fim de ser enterrado no jazigo da família em Exeter; talvez Miriam sentisse remorsos pela forma superior como tratara a irmã tantos anos antes. Mais estranhamente ainda, eu fui convidado para o funeral. Fui, apreensivo, com receio de encontrar Phillip ou Samuel Asher. Não precisava de me ter preocupado pois nenhum deles estava presente, Samuel tendo aparentemente decidido, por razões que só ele conhecia, não acompanhar o corpo na travessia. O funeral propriamente dito foi uma cerimónia deprimente, a que poucas pessoas assistiram, como seria de esperar: afinal, Etna vivera quinze anos fora do país. O pastor, que não a conhecera, referiu- se repetidamente à defunta como Edna, um deslize que perturbou um pouco a estranhamente reconfortante imersão na dor.

Sim, é verdade, senti então dor. E ainda sinto.

 

Deixei praticamente de tentar imaginar como terá sido a vida de Etna com Samuel em Inglaterra. Embora tivessem vivido juntos até à sua morte, nunca casaram. Foi opção de Etna? Ou de Samuel? Ela terá sofrido com a perda dos filhos? Julgo que sim. Julgo que a minha mulher terá vivido uma vida composta em partes iguais de felicidade partilhada e de infortúnio privado.

Até hoje, Nicodemus tem sentido relutância em inteirar-se da razão por que a mãe partiu para viver em Londres, abandonando-o quando tinha apenas sete anos, e da razão por que cresceu sem a irmã; mas agora que ele próprio está prestes a tornar-se pai, suspeito que fará em breve estas perguntas. No entanto, ao reler estas memórias, apercebo-me de que revelei mais do que pretendia, tanto ao leitor como a mim próprio, e de que talvez não sejam revelações apropriadas para transmitir a um filho. Parece-me ainda uma narrativa melodramática, a história de um homem levemente ridículo, de pouco interesse seja para quem for; mas, por outro lado, grande parte da vida (a felicidade, a angústia, as palavras de recriminação os nossos estranhos acessos de paixão) é tristemente melodramática, na sua natureza, e pouco artificiosa.

Estamos a aproximar-nos da estação, pois sinto o abrandar da pulsação deste comboio abafado, um animal exausto que quer acabar o dia de trabalho e repousar. Daqui a pouco, desembarcarei na plataforma e escrutinarei em vão a multidão à procura da minha filha que não vejo há quase vinte anos. É possível que, ao apear-me leve os olhos marejados de lágrimas, ou talvez fique apenas encandeado com a luz, desorientado com o calor, um velho a debater-se com um princípio de insolação na Flórida.

Mas continuarei. E, quando a minha cabeça desanuviar, chamarei um táxi para me conduzir à morada da minha irmã onde saudarei as minhas irmãs, irmãos e primos na esperança de uma palavra da minha filha. Quando o funeral terminar, farei a viagem de regresso, talvez com uma curta paragem em Charleston para visitar Betty Hazzard. Em Thrupp, passarei o resto dos meus dias sentado num escritório, onde constantemente ordeno e reordeno os meus livros como se, ao pôr ordem numa biblioteca, se pudesse pôr

Ordem numa vida. Quanto ao que farei com este caótico diário penso que talvez o enfie ao lado de Palamon and Arcite de Dryden já que não é provável que venha tão cedo a desejar qualquer uma destas obras.

Qual foi o meu crime? Ensinei uma criança a mentir, mas os meus pecados foram muito mais graves.

Por agora, escrevi mais do que o suficiente e, em resultado sinto-me completamente vazio e desesperado por uma bebida fresca. Neste documento, com a sua prosa fragmentada e descosida tenho a prova de uma vida um dia vivida, prova de que passei por aqui uma vez e julguei possuir amor, compreensão, paixão e indulgência, senão derradeiramente por mim, então pela condição de tudo quanto é natural no corpo e no coração que é sempre generoso, faminto e carente.

Nicholas Van Tassel West Palm Beach, Flórida

23 de Setembro de 1933.

 

 

                                                                  Anita Shreve

 

 

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