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Levei tudo o que eu tinha. Meu não era. Ou tinha outra função ou pertencia a outra pessoa. A mala de couro de porco era a pequena caixa de um gramofone. O guarda-pó pertencera ao meu pai. O sobretudo com gola de veludo, ao meu avô. A calça bufante, ao meu tio Edwin. As polainas de couro, ao vizinho, o sr. Carp. As luvas de lã verde, à minha tia Fini. Apenas o cachecol de seda vermelho-vinho e a nécessaire eram meus, presentes dos últimos natais.
A guerra ainda não terminara em janeiro de 1945. Apavorados com o fato de que, em pleno inverno, os russos me obrigassem a ir sabe-se lá para onde, todos queriam me dar alguma coisa que talvez fosse útil, já que nada poderia ajudar. Porque nada no mundo poderia ajudar. Como eu estava definitivamente na lista dos russos, cada um me deu alguma coisa, guardando para si os seus próprios pensamentos. E eu aceitei, pensando, com meus dezessete anos, que essa viagem vinha na hora certa. Não deveria ser por causa da lista dos russos; mas, se a situação não ficar muito ruim, para mim será até bom. Eu queria ir embora daquele dedal de cidade onde até as pedras tinham olhos. Em vez de medo eu sentia uma impaciência encoberta. E certa culpa, já que a lista que fazia meus parentes desesperarem-se era para mim uma circunstância aceitável. Eles temiam que algo pudesse acontecer comigo longe de casa. Eu queria partir, para um lugar que não me conhecesse.
Algo já havia acontecido comigo. Algo proibido. Era estranho, sujo, desavergonhado e belo. Aconteceu no Erlenpark, bem lá atrás, depois do morro de grama baixa. Voltando para casa, fui até o centro do parque, até o caramanchão redondo onde as orquestras se apresentavam nos dias festivos. Fiquei algum tempo ali sentado. A luz entrava pela madeira finamente talhada. Eu via o medo dos círculos, quadrados e trapézios vazios, unidos por arabescos brancos com garras. Era o desenho do meu desvio. E o desenho do desgosto da minha mãe. Naquele caramanchão, eu jurei para mim mesmo: nunca mais volto a este parque.
Quanto mais eu evitava, mais rapidamente eu voltava ali — dois dias mais tarde. Para um rendez-vous, era como chamavam aquilo no parque.
Eu fui para o segundo rendez-vous com o mesmo primeiro homem. Ele se chamava A ANDORINHA. O segundo era um novo, chamava-se O PINHEIRO. O terceiro se chamava A ORELHA. Depois veio A LINHA. Depois O PAPA-FIGOS e O BOINA. Mais tarde O COELHO, O GATO, A GAIVOTA. Então A PÉROLA. Somente nós sabíamos a quem pertencia cada nome. Era um troca-troca no parque, eu me deixava passar de mão em mão. E era verão, e as bétulas tinham a pele branca, no matagal de jasmins e sabugueiros crescia a parede verde feita de impenetrável folhagem.
O amor tem suas estações. O outono dava um fim ao parque. A madeira ficava nua. Os rendez-vous se mudavam conosco para as termas Netuno. Pendurado, ao lado do portão de ferro, o emblema oval com o cisne. Todas as semanas eu me encontrava com aquele que tinha o dobro da minha idade. Ele era romeno. Ele era casado. Não direi como ele se chamava, nem como eu me chamava. Chegávamos separados, a mulher do caixa, na janela selada a chumbo de seu cubículo, o chão de pedras espelhado, a coluna redonda central, os azulejos das paredes decorados de nenúfares, as escadas de madeira talhada não deveriam sequer suspeitar que havíamos marcado um encontro. Íamos até a piscina nadar com os outros. Somente nas saunas é que nos encontrávamos.
Na época, pouco antes do campo de trabalho, assim como após a minha volta, até 1968, quando deixei o país, cada rendez-vous poderia ter me levado à prisão. No mínimo cinco anos, se me tivessem descoberto. Alguns foram pegos. Saíam diretamente do parque ou das termas para a prisão, depois de interrogatórios brutais. Dali para o campo penitenciário junto ao canal. Hoje eu sei: do canal não se voltava. E quem retornava, mesmo assim, o fazia transformado num cadáver ambulante. Envelhecido e arruinado, inservível para qualquer tipo de amor neste mundo.
E na época do campo de trabalho — se tivesse sido pego, estaria morto.
Depois dos cinco anos no campo de trabalho eu vagava dia após dia pelo tumulto das ruas, ensaiando mentalmente as melhores frases para o caso de ser preso: PEGO EM FLAGRANTE — pensei em mais de mil desculpas e álibis para essa acusação. Levo comigo uma bagagem silenciosa. Fechei-me tão profundamente e por tanto tempo no silêncio que nunca consigo abrir-me através das palavras. Apenas me fecho de outras formas quando falo.
No último verão de rendez-vous, para prolongar o caminho de volta do Erlenpark até em casa, entrei por acaso na igreja da Santíssima Trindade da Großer Ring. Esse acaso atuou como destino. Eu vi os tempos que estavam por vir. Ao lado do altar lateral, numa coluna, estava o santo com seu manto cinza, e levava à guisa de gola um cordeiro na nuca. Esse cordeiro na nuca é o silêncio. Há coisas sobre as quais não falamos. Mas eu sei do que estou falando quando digo, o silêncio na nuca é diferente do silêncio na boca. Antes, durante e depois do meu tempo no campo de trabalho, durante vinte e cinco anos vivi com medo, do Estado e da família. Da dupla queda: que o Estado me encarcerasse como um criminoso e que a família me repudiasse como uma desonra. No meio da multidão nas ruas, me vi no reflexo das vitrines, das janelas dos bondes e das casas, nos chafarizes e poças, pensando incrédulo que talvez eu fosse mesmo transparente.
Meu pai era professor de desenho. E eu, com as termas Netuno na cabeça, me encolhia como se me tivessem dado um chute quando ele usava a palavra AQUARELA. A palavra sabia o quão longe eu havia ido. Minha mãe dizia à mesa: Não parta a batata com o garfo, ela vai se desfazer; use a colher, o garfo se usa para a carne. Minhas têmporas latejavam. Por que ela fala de carne se se trata de batata e um garfo. De que carne ela está falando. Os rendez-vous me haviam virado a carne do avesso. Eu era o meu próprio ladrão, as palavras caíam inesperadamente e me atingiam.
Minha mãe e, principalmente, meu pai, como todos os alemães na pequena cidade, acreditavam na beleza das tranças louras, das meias brancas até o joelho. No quadrado preto do bigode de Hitler e nos saxões de Siebenbürgen como raça ariana. Meu segredo, visto sob o aspecto puramente físico, já era altamente execrável. Sendo com um romeno, acrescentava-se o crime de “desonra da raça”.
Eu queria ir para longe da família, mesmo que fosse para o campo de trabalho. Tinha, porém, pena de minha mãe, que igno- rava o pouco que me conhecia. Que, quando eu estiver longe, pensará mais em mim do que eu nela.
Ao lado do santo com o cordeiro do silêncio na nuca, eu vira na igreja o nicho branco da parede com a inscrição: O CÉU PÕE O TEMPO EM MARCHA. Ao fazer minha mala, pensei: o nicho branco funcionou. Este é o tempo posto em marcha. Além disso, eu estava feliz de não ter que ir para a guerra, para a neve no front. Fui fazer as malas com resignação e burra valentia. Eu não me defendia de nada. Polainas de couro com cadarços, calças bufantes, um sobretudo com gola de veludo — nada me servia. Tratava-se do tempo posto em marcha, não das roupas. Seja com essas coisas, ou com outras, nos tornamos adultos de qualquer forma. O mundo não é nenhum baile à fantasia, pensei, mas ninguém que tenha de ir à Rússia em pleno inverno pode ser considerado ridículo.
Uma patrulha de dois policiais, um romeno e um russo, ia com a lista de casa em casa. Eu já não sei se a patrulha pronunciou a expressão CAMPO DE TRABALHO em nossa casa. E se não o fez, que outra palavra além de RÚSSIA. E se o fez, então a expressão campo de trabalho não me assustou. Apesar dos tempos de guerra e do silêncio dos meus rendez-vous na nuca, eu continuava afundado com meus dezessete anos numa infância extremamente ingênua. A mim atingiram as palavras aquarela e carne. Para a expressão CAMPO DE TRABALHO, meu cérebro estava surdo.
Na época, à mesa, com a batata e o garfo, quando minha mãe me pegou de surpresa com a palavra carne, lembrei-me também de que uma vez, quando criança, estava brincando no pátio lá embaixo e minha mãe gritou da janela da varanda: Se você não vier se sentar à mesa imediatamente, se eu tiver que te chamar mais uma vez, é melhor ficar aí onde está. E como eu continuei mais algum tempo lá embaixo, quando subi ela disse:
Agora você pode arrumar a sua mochila e sair pelo mundo e fazer o que bem entender. Ao falar isso, puxou-me para o quarto, pegou a pequena mochila e enfiou meu boné de lã e meu casaco lá dentro. Perguntei: Mas para onde eu vou, se afinal eu sou seu filho.
Muitas pessoas acham que fazer a mala é uma questão de treino, aprende-se fazendo, como cantar ou rezar. Nós não tínhamos treino, tampouco tínhamos malas. Quando meu pai teve que ir para o front juntar-se aos soldados romenos, não havia nada para levar. Como soldado recebe-se tudo, faz parte do uniforme. Para a viagem, para o frio; fora isso, não sabíamos para que fazíamos as malas. O adequado não se tem, improvisa-se. O errado torna-se o necessário. O necessário é então a única coisa adequada, porque é o que temos.
Minha mãe trouxe o gramofone da sala de estar e colocou-o sobre a mesa da cozinha. Com uma chave de fenda, transformei a pequena caixa do gramofone em mala. Tirei primeiramente o mecanismo de rotação e o prato do disco. Depois fechei com uma rolha o buraco onde havia estado a manivela. O forro interno ficou lá, de um cetim avermelhado. Tampouco desmontei a placa triangular com o cão diante do funil HIS MASTER’S VOICE. Coloquei quatro livros no fundo da mala: o Fausto em encadernação de linho, o Zaratustra, o fino Weinheber e a coleção Oito Séculos de Poesia. Nenhum romance, que estes se leem somente uma vez e nunca mais. Sobre os livros coloquei a nécessaire. Dentro dela havia: 1 frasco de eau de toilette, 1 frasco de loção de barbear TARR, 1 sabonete de barbear, 1 lâmina de barbear, 1 pincel de barbear, 1 pedra-ume, 1 sabonete, 1 tesoura de unhas. Ao lado da nécessaire coloquei 1 par de meias de lã (marrons, já remendadas), 1 par de meias até o joelho, 1 camisa de flanela quadriculada vermelha e branca, 2 cuecas de reps. Por cima de tudo, o novo cachecol de seda, para que não amassasse. Era quadriculado vermelho-vinho, às vezes brilhante, às vezes opaco. Com isso a mala estava cheia.
Então o embrulho: 1 cobertor (de lã, quadriculado em azul-claro e bege, um volume enorme — mas não aquecia). E enrolado lá dentro: 1 guarda-pó (sal e pimenta, já bastante usado) e 1 par de polainas de couro (velhíssimas, da Primeira Guerra, amarelo-melão com tirinhas).
Então o saco de pão com: 1 presunto em conserva marca Scandia, 4 sanduíches, alguns biscoitos que haviam sobrado do Natal, 1 cantil com água e uma caneca.
Então minha avó colocou a mala de gramofone, o embrulho e o saco de pão junto à porta. Os dois policiais haviam anunciado a sua chegada para a meia-noite, então iriam buscar-me. A bagagem estava pronta ao lado da porta.
Então eu me vesti: 1 ceroula comprida, 1 camisa de flanela (quadriculada bege e verde), 1 calça bufante (cinza, como disse, do tio Edwin), 1 casaco com mangas de malha, 1 par de meias de lã e 1 par de coturnos. As luvas verdes da tia Fini estavam à mão sobre a mesa. Ao amarrar meus coturnos, lembrei-me de que minha mãe, havia muitos anos, nas férias de verão no Wench, usara uma roupa de marinheiro feita por ela mesma. Na metade do passeio pelo campo ela se deixou cair na grama alta, fingindo- se de morta. Eu tinha oito anos na época. Esse horror, o céu despencou sobre a grama. Eu fechei os olhos para não ver como ele me engolia. Minha mãe levantou-se num salto, me sacudiu e disse: Como você gosta de mim, olha só, eu ainda estou viva.
Já havia amarrado os coturnos. Sentei-me à mesa e esperei pela meia-noite. E a meia-noite veio, mas a patrulha estava atrasada. Tiveram que se passar três horas, era quase insuportável. Então eles chegaram. A mãe segurou para mim o sobretudo com a gola de veludo negro. Vesti-o. Ela chorou. Eu pus as luvas verdes. No corredor de madeira, bem ao lado do medidor de gás, minha avó disse: EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR.
Não guardei essa frase intencionalmente. Levei-a distraído para o campo de trabalho. Eu não tinha a menor ideia de que ela me acompanhava. Mas uma frase assim é algo autônomo. Ela teve efeito sobre mim, mais do que os livros que eu levara. EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR tornou-se cúmplice da pá de coração e adversário do Anjo da Fome. Como voltei, posso dizer: uma frase assim nos mantém vivos.
Eram três horas da madrugada de 15 de janeiro de 1945 quando a patrulha me levou. O frio se instalava, fazia quinze graus negativos. Atravessamos a cidade vazia num caminhão coberto com toldo até o pavilhão. Era o salão de festas dos saxões. Agora transformado em campo de agrupamento. No pavilhão se espremiam cerca de trezentas pessoas. No chão havia colchões e sacos de palha. Os carros continuaram a chegar durante toda a noite, inclusive dos vilarejos próximos, descarregando as pessoas que haviam sido recolhidas. Quando amanheceu eram por volta de quinhentas. Naquela noite, qualquer cálculo teria sido em vão, não se tinha uma visão do conjunto. A luz do pavilhão se manteve acesa durante toda a noite. As pessoas perambulavam de um lado a outro procurando por conhecidos. Dizia-se que na estação de trens haviam requisitado carpinteiros que pregassem leitos de madeira fresca nos vagões para transporte de animais. E outros obreiros construíam estufas de ferro nos trens. Outros serravam buracos sanitários no chão. Com olhos bem abertos, falava-se muito e em voz baixa e, com olhos apertados, chorava-se muito e baixo. O ar tinha cheiro de lã velha, medo suado e carne assada gordurosa, biscoitos de baunilha e aguardente. Uma mulher tirou o lenço que usava na cabeça. Era com certeza de algum vilarejo, sua trança dava duas voltas, presa com um pente feito de chifre no alto da cabeça. Os dentes do pente de chifre desapareciam por entre os cabelos; da sua borda ondulada, viam-se apenas as extremidades, como pequenas orelhas pontudas. Com as orelhas e a grossa trança, a parte de trás da cabeça parecia um gato sentado. Eu estava ali, sentado feito um espectador entre pernas e montes de bagagens. Por alguns minutos o sono me anestesiou e sonhei:
Minha mãe e eu estamos no cemitério diante de uma sepultura recém-fechada. Bem no meio cresce uma planta com folhas peludas, tem metade da minha altura. Na haste há uma cápsula com uma alça de couro, uma pequena mala. A cápsula está semiaberta, acolchoada com veludo avermelhado. Não sabemos quem morreu. Minha mãe diz: Pegue o giz no bolso do seu sobretudo. Eu não trouxe, digo. Quando ponho a mão no bolso, encontro um pedaço de giz de alfaiate. Minha mãe diz: Temos que escrever um nome curto na mala. Vamos escrever MARTA, ninguém que conhecemos se chama assim. Eu escrevo MORTE.
No sonho, era claro que eu havia morrido, mas não queria contar para minha mãe ainda. Acordei num sobressalto, um homem velho com um guarda-chuva se sentou ao meu lado sobre o saco de palha e disse ao meu ouvido: Meu cunhado ainda quer vir, mas o pavilhão está sendo vigiado por todos os lados. Eles não o deixam entrar. Ainda estamos na cidade e ele não pode vir para cá e eu não posso voltar para casa. De cada um dos botões de prata de seu paletó voava um pássaro, um pato selvagem, ou mais provavelmente um albatroz. Ao me inclinar ainda mais, a cruz da insígnia que trazia no peito transformou-se numa âncora. O guarda-chuva permanecia, feito uma bengala de passeio, entre mim e ele. Perguntei: Vai levá-lo consigo. Lá parece que neva ainda mais do que aqui, disse ele.
Não nos disseram quando nem como teríamos que ir do pavilhão até a estação de trens. Poderíamos, prefiro dizer, porque eu queria finalmente ir para a Rússia, mesmo num vagão de transporte de animais, com caixa de gramofone e gola de veludo no pescoço. Eu já não lembro como chegamos até a estação. Os vagões para animais eram altos. Também o procedimento de embarque eu esqueci: é que passamos tão longos dias e noites nos vagões de animais, como se estivéssemos ali desde sempre. Também não sei mais quanto tempo durou a viagem. Eu era da opinião de que viagens longas significavam viagens para longe. Enquanto estivermos viajando, nada pode nos acontecer. Enquanto viajamos, está tudo bem.
Homens e mulheres, jovens e velhos, com as malas na cabeceira dos leitos de madeira. Falam e silenciam, comem e dormem. Garrafas de aguardente passavam de mão em mão. Quando a viagem já se havia tornado cotidiano, começaram aqui e ali algumas carícias furtivas. Observava-se com um olho e, com o outro, desviava-se o olhar.
Eu estava sentado ao lado da Trudi Pelikan e disse: Tenho a impressão de estar numa excursão de esqui nos Cárpatos, na cabana do lago Bâlea, onde metade de uma turma de colégio foi engolida pela avalanche. Isso não vai acontecer com a gente, afirmou ela, não trouxemos equipamento de esqui. Com uma caixa de gramofone é possível “cavalgar, cavalgar, pelo dia, pela noite, pelo dia”, você conhece Rilke, não conhece, disse Trudi Pelikan com seu sobretudo evasê, com punhos de pele que chegavam quase até os cotovelos. Punhos de pelo marrom como duas metades de um cãozinho. Às vezes Trudi Pelikan colocava as duas mãos cruzadas dentro das mangas, e as duas metades de cão se transformavam num cãozinho inteiro. Naquela época eu ainda não havia visto as estepes, senão teria pensado em esquilos da terra. Trudi Pelikan cheirava a pêssegos quentes, até mesmo pela boca, até mesmo no terceiro, quarto dia no vagão de animais. Com seu sobretudo, ela parecia uma dama no bonde a caminho do escritório e me contava que durante quatro dias ela se escondera num buraco na terra no jardim dos vizinhos, atrás do galpão. Mas então veio a neve, cada passo entre a casa, o galpão e o buraco na terra ficava à vista. Sua mãe já não podia trazer-lhe comida em segredo. Podiam-se ver as pegadas por todo o jardim. A neve a denunciava, teve que abandonar voluntariamente seu esconderijo, voluntariamente obrigada pela neve. Eu nunca perdoarei a neve por isso, disse Trudi. Não é possível reproduzir a neve recém-caída, não é possível ajeitar a neve de modo que ela pareça intocada. Pode-se ajeitar a terra, ela disse, a areia também, e até a grama, se nos dedicarmos. E a água se ajeita sozinha, porque ela engole tudo e se fecha novamente ao engolir. E o ar já está sempre ajeitado porque não podemos enxergá-lo. Tudo teria silenciado, com exceção da neve, disse Trudi Pelikan. Que a neve grossa carregava consigo a culpa principal. Que ela caíra precisamente sobre a cidade como se soubesse onde se encontrava, como se estivesse em casa. Mas que imediatamente se pusera a serviço dos russos. Por causa da traição da neve eu estou aqui, disse Trudi Pelikan.
O trem seguiu por doze ou catorze dias, incontáveis horas, sem parar. Então parou por incontáveis horas, sem seguir. Onde estávamos não sabíamos. Com exceção de quando alguém, em cima do leito mais alto, conseguiu ler através de uma fenda na pequena janela uma placa da estação de trens: BUZA?U. A estufa de ferro no meio do vagão se agitava. As garrafas de aguardente circulavam. Todos estavam levemente embriagados, alguns da bebida, outros da incerteza. Ou de ambos.
O que poderia haver nas palavras DEPORTADO PELOS RUSSOS passava pelas nossas cabeças, mas não pelo espírito. Para o paredão eles só poderiam mandar-nos quando chegássemos, e ainda estávamos em trânsito. Que ainda não nos houvessem mandado para o paredão e nos executado, como conhecíamos da propaganda nazista, era algo que nos deixava quase despreocupados. Os homens aprenderam, no vagão de animais, a beber despropositadamente. As mulheres aprenderam a cantar despropositadamente:
No bosque a dafne floresce
Na sepultura ainda há neve
E agora me entristece
A cartinha, que você me escreveu.
Sempre a mesma canção, até não se saber mais se estavam cantando de verdade ou não, porque o ar cantava. A canção se agitava em nossas cabeças adaptando-se ao ritmo do trem — um blues de vagão de animais e uma canção quilométrica do tempo posto em marcha. Tornou-se a canção mais longa da minha vida, as mulheres a cantaram durante cinco anos, tornando-a tão nostálgica como todos nós. A porta do vagão havia sido selada por fora. Ela foi aberta quatro vezes, uma porta corrediça. Ainda estávamos em território romeno quando, por duas vezes, meia cabra, nua e serrada na transversal, foi jogada dentro do vagão. Ela estava congelada, dura, e ressoou ao bater no chão. A primeira cabra usamos como lenha para o fogo. Nós a quebramos em pedaços e os queimamos. Ela era tão seca que quase não tinha cheiro, queimava bem. Na segunda cabra, a palavra PASTRAMI ficou dando voltas, carne curada ao ar livre. Queimamos também a nossa segunda cabra, e rimos. Ela era tão dura e lívida como a primeira, um horrível amontoado de ossos. Rimos cedo demais, fomos arrogantes demais e desdenhamos as duas caritativas cabras romenas.
A confiança crescia com a extensão do tempo. Na estreiteza sucediam os pequenos acontecimentos, sentar-se, levantar-se. Remexer nas malas, tirar coisas da mala, arrumar coisas na mala. Ir até o buraco sanitário atrás de dois cobertores pendurados. Cada minúcia trazia outra consigo. Em um vagão de animais desaparece qualquer singularidade. Está-se mais entre outros do que consigo mesmo. Também não eram necessárias cerimônias. Apoiávamo-nos mutuamente como em casa. Talvez eu fale apenas de mim mesmo, quando relato isto hoje. Talvez nem de mim mesmo. Talvez a estreiteza no vagão de animais tenha me amansado, porque eu queria ir embora de qualquer jeito, e na mala ainda havia comida suficiente. Não tínhamos a menor ideia de que em breve a fome selvagem cairia sobre nós. Quantas vezes, nos cinco anos que se seguiriam, quando o Anjo da Fome nos visitasse, nos pareceríamos com essas cabras lívidas e duras. E quanto lamentaríamos tê-las perdido.
Havíamos entrado na noite russa, a Romênia ficara para trás. Durante uma parada de uma hora sentimos fortes sacudidas. Nos eixos dos vagões, as rodas foram adaptadas aos trilhos mais largos dos russos, à largura das estepes. Tanta neve iluminava a noite lá fora. Naquela noite, fizemos a terceira parada num campo aberto. Os sentinelas russos gritaram: UBORNAJA. Todas as portas de todos os vagões foram abertas. Tombamos um atrás do outro no terreno nevado sob nós e afundamos até os joelhos. Compreendemos, sem entender: Ubornaja significava fazer coletivamente nossas necessidades. Lá em cima, bem lá em cima, a lua redonda. Diante dos nossos rostos, a respiração voava branca e cintilante como a neve sob nossos pés. Em volta, as pistolas apontadas em nossa direção. E agora: Abaixem as calças.
Esse embaraço, a vergonha do mundo inteiro. Que bom que aquele território nevado estava tão solitário ali conosco que ninguém viu quando nos obrigaram a fazer o mesmo, tão perto um do outro. Eu não tinha vontade de ir ao banheiro, mas abaixei as calças e me agachei. Como era cruel e silencioso aquele território noturno, como ele nos ridicularizava em nossas necessidades. À minha esquerda, Trudi Pelikan erguia o seu sobretudo evasê até as axilas e descia as calças até o tornozelo, e se ouvia o sussurro entre seus sapatos. Atrás de mim o advogado Paul Gast gemia ao fazer pressão; o intestino de sua mulher, Heidrun Gast, grasnava por causa da diarreia. Como o vapor pestilento e quente à nossa volta congelava instantaneamente, cintilante no ar. Como aquele território nevado nos aplicava um tratamento de choque, e nos deixava solitários, com os traseiros nus e os ruídos de nossos ventres. Que miseráveis se tornaram nossas tripas naquela comunhão.
Talvez naquela noite, não eu, mas o horror em mim tenha se tornado adulto de repente. Talvez a unidade só se torne real dessa forma. Pois todos, sem exceção, ao fazer nossas necessidades, dirigíamos nossos rostos automaticamente em direção ao leito do trem. Todos tínhamos a lua nas costas, não tirávamos os olhos da porta aberta do vagão de animais, dependíamos dela como da porta de um quarto. Tínhamos o medo insano de que a porta se fechasse e o trem partisse sem nós.
Um de nós gritou na ampla noite: Aqui temos o povo saxão a cagar, todos amontoados. Quando se vai ladeira abaixo, não é só a ladeira que vai abaixo. Não é verdade, todos vocês têm amor à vida. Ele riu vazio feito latão. Todos se afastaram dele. Ele teve então espaço e fez uma reverência diante de nós, como um ator, repetindo em tom alto e solene: Não é verdade, todos vocês têm amor à vida.
Em sua voz ressoou um eco. Alguns começaram a chorar, o ar ficou parado, vítreo. Seu rosto estava submerso na loucura. A baba em seu paletó congelara. Então eu vi a insígnia no peito: era o homem com os botões de albatroz. Ele estava totalmente só e soluçava com uma voz infantil. Ao seu lado ficou apenas a neve imunda. E atrás dele o mundo congelado com a lua feito uma radiografia.
A locomotiva apitou um único som abafado. O UUUH mais grave que eu já ouvi. Todos correram para a sua porta. Embarcamos e seguimos viagem.
Aquele homem eu teria reconhecido mesmo sem insígnia no peito. Eu nunca o vi no campo de trabalho.
Erva-armoles
Nada do que recebemos aqui no campo de trabalho tinha botões. As camisetas e as ceroulas tinham cada uma duas cordinhas para amarrar. O travesseiro tinha duas vezes duas cordinhas. À noite, o travesseiro era um travesseiro. De dia, o travesseiro era um saco de pano, que levávamos conosco para o que fosse, ou seja, para roubar e mendigar.
Roubávamos antes, durante e depois do trabalho, só não o fazíamos ao mendigar — que chamávamos de comércio ambulante — e nunca do vizinho de alojamento. Também não se considerava roubo quando, depois do trabalho, voltando para casa, íamos até os montes de entulho colher ervas até encher o travesseiro. Ainda em março, as mulheres da vila haviam descoberto que as ervas daninhas com as folhas dentadas se chamavam LOBODA?. Que na primavera nós também costumávamos comê-las, como espinafre selvagem, e que se chamam ERVA-ARMOLES. Colhíamos também a grama com penugem nas folhas, era endro silvestre. Sal era o pré-requisito. Conseguia-se no bazar através de negociações de troca. Era cinza e grosso feito cascalho, e tínhamos que triturá-lo antes. O sal valia uma fortuna. Tínhamos duas receitas para preparar a erva-armoles:
É possível comer as folhas da erva-armoles cruas, com sal, é claro, feito mache. Rasga-se então o endro selvagem e espalha-se por cima. Ou se cozinham os caules inteiros de erva-armoles em água e sal. Tirados da água com uma colher, eles se transformam num inebriante falso espinafre. Bebe-se o caldo também, como uma leve sopa ou feito chá verde.
Na primavera a erva-armoles é tenra, a planta tem a altura de um dedo apenas e é de um verde-prateado. No início do verão, ela chega à altura do joelho. Cada uma de suas folhas, como dedos de luvas variadas, pode ter aspecto diferente; mais para baixo, há sempre um polegar. A erva-armoles verde-prateada é uma planta fresca, uma refeição de primavera. No verão é preciso ter cuidado: a erva-armoles cresce rapidamente, ramifica-se, os caules tornam-se duros e fibrosos. O gosto é amargo feito lama. A planta chega à altura do quadril e em volta do seu caule central cresce um mato solto. No alto verão, folhas e caules se tingem, primeiramente de rosa, depois se tornam vermelho-sangue e depois vermelho-azulado; no outono escurecem até chegar ao índigo profundo. Todas as pontas dos ramos adquirem cadeias de panículas com pequenas bolinhas, como acontece com a urtiga. Porém, no caso da erva-armoles as panículas não ficam penduradas, elas crescem para cima. E também se tingem, do rosa ao índigo.
É estranho: justamente quando ela começa a se tingir, tendo se tornado há muito incomestível, é que a erva-armoles realmente fica bonita. Então ela se mantém na beira do caminho, protegida pela própria beleza. A época da erva-armoles já acabou. Mas não a fome, sempre maior do que nós mesmos.
O que se pode dizer sobre a fome crônica. Pode-se dizer: existe uma fome que te deixa doente de fome. Que se soma, ainda mais fome, à fome que já se tinha. A fome sempre renovada, que cresce insaciável, e que salta para dentro da eterna e tão trabalhosamente amansada antiga fome. Como se anda pelo mundo quando não se tem nada mais a dizer sobre si mesmo, além do fato de estar com fome. Quando não se consegue pensar em mais nada. E o céu da boca é maior do que a cabeça: uma cúpula, alta e sonora até o crânio. Quando a fome fica insuportável, ela se estende até o céu da boca, como se tivessem colocado uma pele de coelho fresca para secar atrás do seu rosto. As faces murcham e se cobrem com uma pálida penugem.
Eu nunca soube, deve-se acusar a amarga erva-armoles por não podermos mais comê-la, ao tornar-se fibrosa e se recusar. Será que a erva-armoles sabe que não serve mais a nós e à nossa fome, mas ao Anjo da Fome. As cadeias de panículas vermelhas são uma joia em volta da garganta do Anjo da Fome. A partir do início do outono, quando vinha a primeira geada, a erva-armoles se enfeitava cada dia mais, até congelar. Eram cores belas e venenosas que furavam o globo ocular. As panículas, incontáveis fileiras de colares vermelhos à beira de estrada, enfeitavam o Anjo da Fome. Ele carregava suas joias. E nós carregávamos um céu da boca tão alto que, ao caminhar, o eco dos nossos passos se precipitava em nossa boca. Certa transparência no crânio, como se houvéssemos engolido uma luz ofuscante. Uma luz que contempla a si mesma na boca, que se esgueira docemente pela úvula até que esta inche invadindo o cérebro. Até que em nossa cabeça não reste mais cérebro, apenas o eco da fome. Não há palavra apropriada para o sofrimento que a fome causa. Ainda hoje, devo mostrar à fome que consegui escapar dela. Desde que deixei de passar fome, eu me alimento da própria vida, literalmente. Quando como, estou preso ao sabor da comida. Desde a minha volta do campo de trabalho há sessenta anos, eu como lutando para não morrer de fome.
Eu olhava para a erva-armoles que já não servia como alimento e tentava pensar em outra coisa. No último e desgastado calor do final do verão, antes que chegasse o gélido inverno. Em vez disso eu pensava nas batatas que não existiam. E nas mulheres que moravam nos colcozes e provavelmente recebiam novas batatas para colocar na sopa de repolho de todos os dias. Fora isso, não havia motivo para invejá-las. Elas moravam em buracos na terra e tinham de trabalhar todos os dias por muito mais tempo, do nascer até o pôr do sol.
Primavera no campo de trabalho significava cozinhar erva-armoles, para nós que saíamos em sua busca pelos montes de entulho. O nome ERVA-ARMOLES é um pedaço robusto e não diz nada. ARMOLES era para nós uma palavra sem outras nuances, uma palavra que nos deixava em paz. Não significava ARMA, não era uma erva de chamada, mas uma palavra da beira do caminho. De qualquer forma, era uma palavra pós-chamada noturna, uma erva pós-chamada, de modo algum uma erva de chamada. Muitas vezes esperávamos inquietos para cozinhar a erva-armoles, porque a chamada de recontagem vinha em primeiro lugar e demorava, não tinha fim, porque os números nunca batiam.
Havia cinco BRs — BATALHÕES RABOTSCHI em nosso campo de trabalho, cinco batalhões de trabalho. Cada um se chamava BTO — Batalhão de Trabalho Odelna e compreendia entre quinhentos e oitocentos internos. Meu batalhão era o de número 1009, meu número de trabalho era 756.
Dispunham-se em filas simétricas — estranha expressão para designar esses cinco regimentos de miseráveis, com seus olhos inchados, narizes enormes, faces fundas. Os ventres e pernas bombeados com água distrófica. Sob frio gélido ou calor abrasador, passavam-se noites inteiras na imobilidade. Em nós, apenas os piolhos tinham permissão para se mexer. Durante as infinitas recontagens, eles podiam embebedar-se e trilhar longos caminhos sobre nossa carne miserável, rastejando durante horas desde nossas cabeças até os pelos púbicos. Na maioria das vezes, os piolhos já se haviam embebedado até não poder mais e adormecido nas costuras dos trajes de algodão, e nós continuávamos ali, imóveis. O comandante do campo de trabalho, Schischtwanjonow, continuava gritando. Não sabíamos o seu primeiro nome. Ele se chamava apenas towarischtsch Schischtwanjonow. Era longo o suficiente para se gaguejar de medo ao pronunciá-lo. O nome towarischtsch Schischtwanjonow me lembrava sempre o murmúrio da locomotiva de deportação. E o nicho branco da igreja em minha cidade, O CÉU PÕE O TEMPO EM MARCHA. Talvez tivéssemos que ficar parados horas e horas diante do nicho branco. Os ossos tornavam-se pesados como ferro. Quando a carne desaparece do corpo, os ossos tornam-se uma carga que nos puxa para dentro da terra.
Durante a chamada eu treinava formas de me esquecer de mim mesmo, não distinguir entre inspirar e expirar. E erguer os olhos sem levantar a cabeça. E procurar no céu um canto de nuvem onde fosse possível pendurar os ossos. Quando eu conseguia esquecer-me de mim mesmo e encontrava o gancho celeste, ele me segurava. Muitas vezes não havia nuvens, apenas o azul uniforme, como água aberta.
Muitas vezes havia apenas um cobertor de nuvens fechadas, um cinza uniforme.
Muitas vezes as nuvens se moviam, e não havia gancho que ficasse quieto.
Muitas vezes a chuva queimava os olhos e colava minha roupa na pele.
Muitas vezes o frio me devorava as vísceras a dentadas.
Em dias assim o céu me virava os olhos, e a chamada os trazia de volta — os ossos só tinham apoio em mim mesmo.
O kapo Tur Prikulitsch caminhava a passos largos entre nós e o comandante Schischtwanjonow, as listas escorregavam entre seus dedos, amassadas de tanto folheá-las. Todas as vezes em que ele chamava um número, seu peito se mexia como o de um galo. Ele ainda tinha mãos de criança. Minhas mãos haviam crescido no campo de trabalho, quadradas, duras e planas como duas tábuas.
Caso um de nós, depois da chamada, conseguisse reunir toda a sua coragem e perguntar a um dos natschalniks ou até mesmo ao comandante do campo de trabalho, Schischtwanjonow, quando poderíamos ir para casa, eles diziam de forma breve: SKORO DOMOJ. Significava: Vocês irão em breve.
Esse EM BREVE russo nos roubava o tempo mais longo do mundo. Quando ia ao barbeiro Oswald Enyeter, Tur Prikulitsch mandava que este lhe aparasse também os pelos do nariz e as unhas. O barbeiro e Tur Prikulitsch eram compatriotas da Tríplice Fronteira dos Cárpatos-Ucrânia. Perguntei se era costume na Tríplice Fronteira aparar as unhas dos melhores clientes nas barbearias. O barbeiro disse: Não, na Tríplice Fronteira não é assim. Isso vem do Tur, não é costume na região. Na região, o quinto vem depois do nono. O que significa isso, perguntei. O barbeiro disse: Um pouco de balamuk. O que isso significa, perguntei. Ele disse: Um pouco de confusão.
Tur Prikulitsch não era russo como Schischtwanjonow. Apesar de falar alemão e russo, pertencia aos russos, não a nós. Ele era, é verdade, um interno, mas tratava-se do ajudante administrativo da chefia do campo de trabalho. Ele nos dividia no papel em batalhões de trabalho e traduzia as ordens dos russos. E acrescentava as suas em alemão. No papel, para conseguir uma visão geral, ele ordenava os nossos nomes e números de trabalho conforme o número do batalhão. Todos deviam ter sempre em mente o seu número, dia e noite, e saber que éramos números, não indivíduos.
Tur Prikulitsch escrevia nas rubricas ao lado dos nossos nomes: colcozes, fábrica, entulheiras, transporte de areia, trechos de linha de trem, canteiro de obra, transporte de carvão, garagem, bateria de coque, escórias, porão. Tudo dependia do que estava escrito ao lado do nome. Se ficaríamos cansados, muito cansados ou mortos de cansados. Se depois do trabalho teríamos tempo e forças para o comércio ambulante. Se poderíamos revolver despercebidos o lixo da cozinha atrás do refeitório.
Tur Prikulitsch nunca trabalha, em nenhum batalhão, em nenhuma brigada, em nenhum turno. Ele manda, nisso é ágil e depreciador. Quando sorri, trata-se de uma cilada. Se sorrimos de volta, o que somos obrigados a fazer, caímos no ridículo. Ele sorri porque anotou algo novo ao lado do nome na rubrica, algo pior. Entre os alojamentos na rua principal do campo de trabalho, eu me desvio dele, prefiro preservar uma distância que permita manter-me em silêncio. Ele caminha pela calçada erguendo os sapatos brilhantes como duas bolsas envernizadas, como se o tempo vazio saísse dele através das solas. Ele percebe tudo. Dizem que até o que ele esquece se torna uma ordem.
Na barbearia, Tur Prikulitsch é superior a mim. Ele diz o que tem vontade, nada é arriscado. Aliás, é até melhor quando nos ofende. Ele sabe que deve manter-nos submissos para que as coisas continuem como estão. Estende o pescoço e fala sempre para baixo. Tem o dia inteiro para agradar a si mesmo. A mim ele também agrada. Possui uma constituição atlética. Olhos amarelo-latão e um olhar gorduroso, pequenas orelhas como dois broches, um queixo de porcelana, as narinas rosadas feito flores de tabaco, o pescoço como cera. Sua sorte é que nunca se suja. E sua sorte o torna mais belo do que merece. Quem não conhece o Anjo da Fome pode dar ordens no pátio da chamada, caminhar a passos largos na rua principal do campo de trabalho, esgueirar-se sorrindo pela barbearia. Mas participar da conversa ele não pode. Eu sei mais sobre Tur Prikulitsch do que ele gostaria, conheço bem Bea Zakel. Ela é a amante dele.
As ordens em russo soavam como o nome do comandante do campo de trabalho, towarischtsch Schischtwanjonow, um ranger e grasnar de ch, sch, tsch schtsch. O conteúdo do comando nós não compreendíamos mesmo, mas sim o desprezo. Ao desprezo a gente se acostuma. Com o tempo, as ordens soavam como um constante pigarrear, tossir, espirrar, assoar, cuspir — um expelir de mucosidades. Trudi Pelikan dizia: O russo é um idioma encatarrado.
Enquanto todos os outros sofriam imóveis durante a chamada noturna, os trabalhadores de turno excluídos da convocação já haviam acendido sua pequena fogueira num canto do campo de trabalho, atrás do poço. No fogo, já estava a panela com erva-armoles ou outras coisas estranhas que precisavam de uma tampa para que ninguém as visse. Nabos, batatas, até mesmo painço, caso se tivesse feito um bom negócio naquele dia — dez nabos em troca de uma jaqueta, três medidas de painço em troca de um pulôver, meia medida de açúcar ou sal em troca de um par de meias de lã de ovelha.
Para uma refeição extra, a panela precisava de uma tampa. Não havia tampas. Talvez um pedaço de latão e talvez apenas em pensamentos. Não importa como, inventava-se uma tampa, cada vez de um material diferente. E dizia-se teimosamente: é necessária uma tampa. Apesar de nunca haver uma tampa, somente a tampa como forma de expressão ainda permanecia. Talvez a memória fique tampada quando não se sabe mais de que material era feita a tampa, e se houve ou não uma tampa, qualquer que fosse seu material.
Seja como for, ao anoitecer num canto do campo de trabalho, atrás do poço, tremulavam de quinze a vinte fogueirinhas entre dois tijolos. Todos os outros não tinham nada para comer, além da gororoba do refeitório. O carvão fazia fumaça, os donos das panelas faziam guarda com a colher na mão. Carvão não faltava. As panelas eram as do refeitório, miseráveis utensílios de cozinha da indústria local. Vasilhas de latão esmaltadas em marrom-acinzentado, cheias de crostas e afundamentos. Sobre o fogo no quintal eram panelas; nas mesas do refeitório, viravam pratos. Quando um terminava de cozinhar, já esperava outro dono de panela para assumir o fogo.
Quando eu não tinha nada para cozinhar, sentia a fumaça serpentear pela minha boca. Eu recolhia a língua e mastigava o vazio. Comia saliva com fumaça noturna e pensava em salsichas. Quando eu não tinha nada para cozinhar, ia até o poço, como se fosse escovar os dentes antes de dormir, e me aproximava das panelas. E realmente, antes de enfiar a escova de dentes na boca, eu comia duas vezes. Com a fome do olho eu comia o fogo amarelo e com a fome do céu da boca, a fumaça. Enquanto eu comia, ao meu redor ficava tudo em silêncio, e das instalações da fábrica em frente os solavancos das baterias de coque atravessavam a penumbra. Quanto mais rapidamente eu tentava afastar-me do poço, mais lento eu ficava. Eu tinha que me tirar à força de perto das fogueiras. Ouvia o ranger do estômago em meio aos solavancos das baterias de coque, a paisagem noturna inteira tinha fome. O céu caía negro sobre a terra, e eu cambaleava até o alojamento sob a luz amarela e regulamentar das lâmpadas.
Também era possível escovar os dentes sem pasta. A que eu trouxera de casa acabara havia tempo. E o sal era valioso demais, não o teríamos cuspido, custava uma fortuna. Posso lembrar-me bem do sal e seu valor. Já da escova de dente, nada. Eu levara uma na nécessaire. Mas não pode ter durado quatro anos. E uma nova escova de dentes eu só fui comprar, se é que o fiz, no quinto e último ano, quando recebíamos dinheiro na mão, dinheiro vivo pelo nosso trabalho. Sim, não consigo lembrar-me nem mesmo da nova escova de dentes, caso ela tenha existido. Talvez com o meu dinheiro eu tivesse preferido comprar roupas novas em vez de uma escova de dentes. Com certeza, minha primeira pasta de dentes, que eu trouxera de casa, chamava-se CHLORODONT. Um nome que consegue lembrar-se de mim. As escovas de dentes, tanto a primeira, que certamente existiu, como a segunda, com sua possível existência, me esqueceram. Assim também é com o meu pente. Devo ter possuído algum. Posso recordar-me da palavra BAKELIT. Ao final da guerra todos os pentes em nossa casa eram pentes Bakelit.
É possível que eu tenha esquecido mais facilmente as coisas trazidas de casa do que aquelas adquiridas no campo de trabalho. E se for, é porque eu as havia trazido comigo. Porque elas me pertenciam e eu as continuei usando até que se gastassem e até depois de gastas, como se eu não estivesse com elas em outro lugar, mas continuasse em casa. Pode ser que eu me lembre melhor dos objetos que pertenciam a outras pessoas, porque eu tinha de pedi-los emprestados.
Lembro-me bem dos pentes de latão do campo de trabalho. Apareceram na época dos piolhos. Os torneiros e metalúrgicos os faziam nas fábricas e os davam de presente às mulheres. Eram feitos de chapa de alumínio com dentes entalhados e pareciam úmidos ao contato com a mão ou com o couro cabeludo, tinham um alento frio. Ao serem usados, absorviam rapidamente o calor do corpo, então exalavam um cheiro amargo como rábano. Um cheiro que permanecia na mão, mesmo muito tempo depois de se ter largado o pente. Os cabelos se enredavam neles feito ninhos, era necessário puxar e tirar. Nos pentes, ficavam mais cabelos que piolhos.
Mas, para tirar os piolhos, utilizavam-se também pentes de chifre, quadrados, com dentes de ambos os lados. As moças dos vilarejos os haviam trazido de casa. De um lado, dentes grossos para fazer a risca e separar os cabelos; do outro lado, dentes finíssimos para tirar os piolhos. Os pentes de chifre eram sólidos, pesavam nas mãos. Os cabelos deixavam-se pentear e permaneciam lisos. Era possível conseguir com as moças dos vilarejos os pentes de chifre emprestados.
Há sessenta anos, tento lembrar-me à noite dos objetos do campo de trabalho. Eles são o conteúdo da minha mala noturna. Desde que voltei do campo de trabalho a insônia tem sido uma mala de couro preto. E essa mala está em minha testa. Apenas não sei, há sessenta anos, se não consigo dormir porque tento recordar-me desses objetos, ou se é o contrário: se me debato com eles porque não consigo mesmo dormir. De uma forma ou de outra, a noite faz a sua mala negra contra a minha vontade, isso eu devo ressaltar. Tenho que me lembrar contra a minha vontade. E mesmo quando não é uma obrigação, e sim um desejo, preferiria não desejar.
Às vezes os objetos do campo de trabalho em vez de me assaltarem, um após o outro, chegam em bandos. Por isso sei que os objetos que me visitam não pretendem, ao menos exclusivamente, que eu os recorde: trata-se de me atormentar. Basta pensar que havia levado utensílios de costura na nécessaire, para que se misture ali uma toalha, cuja aparência eu desconheço. Acrescenta-se uma escova de unhas que não sei se eu tinha. Acrescenta-se um espelho de bolso, que existia ou não. E um relógio de bolso, que não sei onde foi parar, caso eu o tenha levado comigo. Sou procurado por objetos que talvez não tenham nada a ver comigo. Eles chegam à noite e querem deportar-me, levar-me para o campo de trabalho, é o que eles querem. Como vêm em bandos, não ficam apenas na cabeça. Sinto um peso no estômago que sobe até o céu da boca. O balanço da respiração faz uma pirueta, eu arfo. Esse espelho-tesoura-agulha-pente-escova-de-dentes é um monstro, assim como a fome é um monstro também. E não haveria a visita dos objetos se a fome não tivesse sido um objeto também.
Quando, à noite, os objetos me visitam e me estrangulam, abro a janela e ponho a cabeça para fora. No céu há uma lua como um copo de leite frio, com ele lavo meus olhos. Minha respiração encontra novamente seu ritmo. Engulo o ar frio até não estar mais no campo de trabalho. Então fecho a janela e me deito outra vez. Os lençóis não sabem de nada e me aquecem. O ar no quarto olha para mim e tem cheiro de farinha quente.
Cimento
O cimento nunca bastava. O carvão era mais do que suficiente. Os blocos de escória, entulho e areia também eram suficientes. O cimento, porém, sempre acabava. Ele se extinguia sozinho. Era necessário tomar cuidado com o cimento, ele podia tornar-se um pesadelo. Não somente a partir de si mesmo, mas também em si mesmo, o cimento podia desaparecer. E então tudo ficava cheio de cimento, e já não sobrava mais cimento algum.
O comandante gritava: É necessário ter cuidado com o cimento.
O contramestre gritava: É necessário ser econômico com o cimento.
E quando ventava: O cimento não pode sair voando.
E quando chovia ou nevava: O cimento não pode ficar molhado.
Os sacos de cimento são feitos de papel. O papel do saco de cimento é fino demais para um saco cheio. Seja carregando-o sozinho ou em duplas, apoiado na barriga, ou segurando-o pe- las quatro pontas — ele rasga. Com um saco rasgado não é mais possível economizar cimento. Com um saco de cimento seco rasgado, escorre a metade para o chão. Com um saco de cimento rasgado e úmido, fica a metade grudada no papel. Não é possível mudar isso, quanto mais cimento se economiza, mais cimento se gasta. O cimento é uma fraude, como poeira de estrada, névoa e fumaça — ele voa pelo ar, rasteja para dentro da terra, gruda na pele. É possível vê-lo por todos os lados, e impossível pegá-lo.
É necessário economizar cimento, mas, com o cimento, é necessário cuidar de si mesmo. Carrega-se o saco com cuidado; mesmo assim, o cimento diminui sempre. Xingam-nos de parasitas da economia, fascistas, sabotadores e ladrões de cimento. Tropeçamos na gritaria e nos fingimos de surdos. Empurramos os carrinhos de argamassa por uma tábua inclinada sobre o andaime até os pedreiros. A tábua oscila, nós nos seguramos nos carrinhos. Com a oscilação, poderíamos voar até o céu, pois o estômago vazio nos sobe à cabeça.
O que pretendem os guardiões do cimento com suas suspeitas. Como trabalhador forçado, não se tem mais do que uma pufoaika, um traje de algodão, no corpo, e, no alojamento, uma mala e uma cama. Para que alguém iria roubar cimento. Algo que não se leva como produto de um roubo, mas como sujeira inoportuna. Todos os dias carregamos nossa fome cega, mas não é possível comer cimento. Tem-se frio ou calor, mas o cimento não esquenta nem refresca. Ele atiça as suspeitas, pois voa e se esgueira e gruda, e desaparece sem razão, de um cinza-lebre, aveludado e amorfo.
O canteiro de obras ficava atrás do campo de trabalho, ao lado das estrebarias, onde fazia muito não havia mais cavalo, apenas as manjedouras. Foram construídas seis vivendas para os russos, seis casas, cada uma para duas famílias, disseram-nos. Cada casa tinha três quartos. Porém, em cada uma morariam ao menos cinco famílias, pensávamos nós, porque durante nosso comércio ambulante víamos a pobreza das pessoas e as crianças magras. Tanto as meninas como os garotos, todos com a cabeça raspada, todos em suas roupas azul-claras com mangas bufantes. Sempre aos pares, de mãos dadas, caminhando em fila e entoando canções heroicas pela lama junto ao canteiro de obras. Tanto atrás como na frente, a passos largos, uma madame, redonda e silenciosa, olhando mal-humorada e balançando o traseiro como um navio.
No canteiro de obras havia oito brigadas. Elas cavavam alicerces, carregavam blocos de escória e sacos de cimento, misturavam o leite de cal e o concreto que despejavam nos alicerces, faziam argamassa para os pedreiros, carregavam-na com a maca, empurravam-na com o carrinho de mão até o andaime e faziam o reboco das paredes. As seis casas foram feitas simultaneamente, correndo de lá para cá, tudo virava uma confusão, e não acontecia quase nada. Víamos os pedreiros, a argamassa e os tijolos sobre o andaime, mas não víamos os muros crescerem. É o ruim numa construção — se olhamos para ela o dia inteiro, não vemos como as paredes crescem. Depois de três semanas, de um momento para outro elas estão ali, devem ter crescido de alguma forma. Talvez durante a noite, autônomas como a lua. Da mesma forma incompreensível como o cimento desaparece, aparecem as paredes. Obedecemos a ordens, começamos alguma coisa e somos enxotados. Esbofeteiam-nos, pisam-nos. Por dentro, tornamo-nos teimosos e melancólicos e, por fora, caninos e covardes. O cimento corrói gengivas. Ao abrirmos a boca, os lábios se rasgam como o papel dos sacos de cimento. Calamos a boca e obedecemos.
Mais alto do que qualquer parede, cresce a desconfiança. Nessa melancolia do canteiro de obras, cada um suspeita que o outro carrega o lado mais leve do saco de cimento, que o outro se aproveita poupando-se a si mesmo. Todos são humilhados pelos gritos, ludibriados pelo cimento, enganados pelo canteiro de obras. No máximo, quando alguém morre, diz o contramestre: Schalko, otschin schalko, é uma pena. E, em seguida, muda o tom e diz: Wnimanije, cuidado.
Nós nos matamos de trabalhar e ouvimos as batidas no nosso próprio coração, e: É necessário economizar cimento, é necessário ter cuidado com o cimento, o cimento não deve ficar molhado, o cimento não deve sair voando. Mas o cimento se dispersa, é esbanjador consigo mesmo, e, conosco, é avarento até não poder mais. Vivemos de acordo com a vontade do cimento. Ele é um ladrão, ele nos roubou, não nós a ele. E não apenas isso, o cimento nos torna malevolentes. O cimento semeia a desconfiança ao se dispersar, o cimento é um conspirador.
Todas as tardes, a caminho de casa, à distância necessária do cimento, de costas para o canteiro de obras, eu sabia que não éramos nós que nos enganávamos mutuamente, mas que todos éramos enganados pelos russos e seu cimento. Porém, no dia seguinte, surgia novamente a suspeita, contra a minha convicção e contra todos. E todos percebiam. E todos contra mim. E eu percebia. O cimento e o Anjo da Fome são cúmplices. A fome abre nossos poros e rasteja para dentro de nós. Quando ela está instalada, o cimento a encerra, somos cimentados.
Na torre de cimento, o cimento pode tornar-se mortal. Ela tem quarenta metros de altura, sem janelas, vazia. Quase vazia, mas é possível afogar-se ali dentro. Considerando o tamanho da torre, são pequenos restos, mas eles ficam soltos, em vez de dentro dos sacos. Nós os raspamos com nossas próprias mãos e os colocamos no balde. É um cimento velho, porém cruel e alerta. Ele é rápido e vivo, e nos espreita, escorrega cinzento e mudo em nossa direção, antes que sejamos capazes de nos levantar e fugir. O cimento pode fluir, e ele então escorre mais rápido do que água, e mais liso. O cimento pode apoderar-se de nós e afogar-nos.
Fiquei doente de cimento. Durante semanas, por todos os lugares eu só via cimento: o céu claro era uma camada lisa de cimento, o céu nublado, cheio de montes de cimento. A chuva ligava o céu e a terra com seus fios de cimento. Minha tigela de latão salpicado de cinza era de cimento. Os cães de guarda tinham uma pelagem de cimento, assim como as ratazanas no lixo da cozinha atrás do refeitório. Os licranços rastejavam entre os alojamentos num lamaçal de cimento. As amoreiras, encerradas em casulos, eram funis de seda e cimento. Quando o sol se tornava forte, eu queria limpá-los dos meus olhos, mas eles não estavam lá. E no pátio da chamada, na beira do poço, pousava à noite um pássaro de cimento. Seu canto era áspero, uma canção de cimento. O advogado Paul Gast conhecia o pássaro de casa, uma calhandra-real. Eu perguntei: As nossas também são feitas de cimento. Ele hesitou, antes de dizer: As nossas vêm do sul.
O resto eu não lhe perguntei, porque era possível ver nas imagens nas salas do escritório e ouvir nos alto-falantes: Os pômulos do rosto de Stálin e sua voz eram de ferro fundido, seu bigode, porém, de cimento puro. No campo de trabalho estávamos sempre sujos de todo tipo de trabalho. Mas nenhuma sujeira era tão inoportuna como o cimento. O cimento é inevitável como a poeira da terra, não vemos de onde vem, ele já está ali. Com exceção da fome, na cabeça das pessoas somente a nostalgia é tão rápida como o cimento. E ela nos rouba da mesma forma, e podemos afogar-nos nela também. Parece-me que na cabeça das pessoas apenas uma coisa é mais rápida do que o cimento — o medo. Somente assim posso explicar-me que, ainda no início do verão no canteiro de obras, eu tenha anotado em segredo num pedaço de saco de cimento, fino e marrom:
SOL ALTO VELADO
MILHO AMARELO, NÃO HÁ TEMPO.
Não escrevi mais, pois é necessário economizar cimento. Na realidade, eu queria anotar algo muito diferente:
Profunda e inclinada e rubra, à espreita,
A meia-lua no céu
Já em seu ocaso.
Dei a mim mesmo de presente, eu o disse em silêncio dentro da boca. Quebrou-se imediatamente, o cimento rangeu em meus dentes. Então calei.
É necessário economizar papel também. E escondê-lo muito bem. Quem for pego com papéis escritos é mandado para o calabouço — um poço de concreto, onze degraus debaixo da terra, tão estreito que só é possível ficar ali em pé. Fétido de excrementos e cheio de insetos. Na parte de cima, fechado com uma grade de ferro.
À noite, arrastando os pés de volta para casa, tantas vezes disse a mim mesmo: O cimento diminui cada vez mais, ele pode desaparecer por si só. Eu também sou feito de cimento e diminuo cada vez mais. Por que não consigo desaparecer?
As mulheres de cal
Uma das oito brigadas no canteiro de obras é composta pelas mulheres de cal. Elas puxam o carro de cavalos com blocos de cal, primeiro subindo a íngreme encosta ao lado do estábulo, depois descendo pela beira do campo de obras, até onde fica a fossa de descarga. O carro é uma enorme caixa de madeira em forma de trapézio. As mulheres, cinco de cada lado do timão, têm correias de couro presas aos ombros e à cintura. Um sentinela as acompanha. Enquanto puxam, têm os olhos inchados e úmidos, e a boca entreaberta por causa do esforço.
Uma das mulheres de cal é Trudi Pelikan.
Quando a chuva se esquece da estepe semanas a fio e a lama em volta da fossa da descarga seca feito uma pelagem florida, as moscas da lama se tornam insistentes. Trudi Pelikan diz: As moscas da lama sentem o cheiro do sal nos olhos e o adocicado do céu da boca. E quanto mais fraco se está, mais intensamente lacrimejam os olhos, e mais doce se torna a saliva. Trudi Pelikan foi colocada bem atrás, já estava fraca demais para ficar à frente. As moscas da lama já não pousavam no canto dos seus olhos, mas nos olhos, na pupila, e não mais sobre os lábios, mas dentro da boca. Trudi Pelikan começou a cambalear. Quando ela caiu, o carro passou sobre os dedos de seus pés.
A sociedade entrelopo
Trudi Pelikan e eu, Leopold Auberg, éramos de Hermannstadt. Antes de sermos obrigados a subir no vagão de animais, não nos conhecíamos. Artur Prikulitsch e Beatrice Zakel, ou seja, Tur e Bea, se conheciam desde crianças. Eles eram de Lugi, uma aldeia nas montanhas situada na Tríplice Fronteira dos Cárpatos ucranianos. Dessa mesma região, de Rakhiv, vinha o barbeiro Oswald Enyeter. Também o acordeonista Konrad Fonn vinha da Tríplice Fronteira, da pequena Sucholol. Meu companheiro de caminhão, Karli Halmen, era de Kleinbetschkerek, e Albert Gion, com quem mais tarde estive no porão de escória, era de Arad. Sarah Kaunz, aquela com a penugem de seda nas mãos, provinha de Wurmloch, a outra Sarah, Sarah Wandschneider, a da verruga no dedo anular, de Kastenholz. Elas não se conheciam antes do campo de trabalho, mas pareciam ser irmãs. No campo de trabalho eram conhecidas apenas como as duas Zirri. Irma Pfeifer era da pequena cidade de Deta; a surda Mitzi, ou seja, Annamarie Berg, de Mediasch. O advogado Paul Gast e sua mulher, Heidrun Gast, eram de Oberwischau. O percussionista Kowatsch Anton vinha da região montanhosa do Banato, da pequena cidade de Karansebesch. Katharina Seidel, a quem chamávamos de Kati-Plantão, era de Bakowa. Deficiente mental, passou os cinco anos sem saber onde estava. Peter Schiel, mecânico que morreu por beber aguardente de hulha, era de Bogarosch. Ilona Mich, a Loni cantora, de Lugosch. O sr. Reusch, o alfaiate, de Guttenbrunn. Etc.
Éramos todos alemães e haviam ido buscar-nos em casa. Com exceção de Corina Marcu, que chegara ao campo de trabalho com os cabelos cacheados e usando um casaco de pele, sapatos de verniz e um broche de gato em seu vestido de veludo. Ela era romena e fora presa de noite em Buza?u, na estação de trens, por um dos guardas de nosso transporte, e jogada num dos vagões de animais. Provavelmente deveria substituir alguém da lista, um morto, alguém que morrera durante a viagem. Ela morreu de frio no terceiro ano, enquanto limpava a neve em um trecho da via ferroviária. E David Lommer, conhecido como Lommer da cítara porque tocava o instrumento, era judeu. Como lhe haviam desapropriado a alfaiataria, andava pelo país como mestre-alfaiate, indo às melhores casas. Ele não sabia por que motivo fora parar na lista dos russos como alemão. Era de Bukowina, em Dorohoi. Seus pais e sua mulher, com os quatro filhos, haviam fugido dos fascistas. Para onde, ele não sabia, e a família ignorava seu paradeiro, antes mesmo da deportação. Estava em Großpold costurando um tailleur de lã para a mulher de um oficial, quando foram buscá-lo.
Nenhum de nós estivera na guerra; mas, para os russos, todos os alemães eram culpados dos crimes de Hitler. Inclusive o Lommer da cítara. Ele teve que passar três anos e meio no campo de trabalho. Uma manhã, parou diante do canteiro de obras um carro preto. Desceram dois desconhecidos usando elegantes gorros de caracul e conversaram com o contramestre. Levaram Lommer da cítara no carro com eles. A partir desse dia, a cama de Lommer no alojamento ficou vazia. Provavelmente, Bea Zakel e Tur Prikulitsch venderam sua mala e sua cítara no bazar.
Bea Zakel disse que os gorros de caracul eram altos funcionários do partido em Kiev. Eles devem ter levado Lommer da cítara para Odessa, e de lá o colocaram num navio com destino à Romênia.
Como compatriota, o barbeiro Oswald Enyeter podia permitir-se perguntar a Tur Prikulitsch: Por que para Odessa. Tur disse: Lommer não tinha nada que estar aqui, de lá ele pode ir para onde quiser. Eu disse ao barbeiro, em vez de dizer a Tur: Para onde ele vai querer ir, se ele não tem mais ninguém em casa. Tur Prikulitsch reteve a respiração para não se mexer. O barbeiro aparava-lhe os pelos do nariz com uma tesoura enferrujada. Quando terminou na segunda narina, limpou-lhe com a escova os pelos soltos do queixo, como se fossem formigas, e virou-se afastando-se um pouco do espelho para que Prikulitsch não visse que piscava um olho. Está satisfeito, perguntou. Tur disse: Com meu nariz, sim.
Lá fora, no pátio, havia parado de chover. Na entrada, o carrinho de pães tilintava pelas poças. Todos os dias, o mesmo homem empurrava o carrinho com o pão de forma, atravessava o portão do campo de trabalho e seguia até o pátio traseiro do refeitório. O pão estava sempre coberto com um pano branco, como se se tratasse de um monte de cadáveres. Perguntei qual era o grau militar do homem do pão. O barbeiro disse: Nenhum, o uniforme ele herdou ou roubou. Com todo aquele pão e toda aquela fome, ele precisava de um uniforme para que o respeitassem.
O carrinho tinha duas rodas altas e dois longos braços de madeira. Era do mesmo tamanho do carrinho de mão com o qual os afiadores de tesouras percorriam ruas, de um lugar para o outro, durante todo o verão. O homem dos pães mancava quando se afastava um pouco do carrinho. Uma de suas pernas era de madeira, feita de pedaços de cabos de enxada pregados uns nos outros, disse o barbeiro. Eu sentia inveja do homem dos pães; ele tinha uma perna a menos, é verdade, mas pão ele possuía de sobra. O barbeiro também acompanhava o carrinho de pães com o olhar. Ele conhecia apenas a meia-fome, talvez negociasse com o homem dos pães de vez em quando. Até mesmo Tur Prikulitsch, que tinha o estômago cheio, seguia o homem dos pães com os olhos, talvez para controlá-lo, ou de forma automática. Não sei por que, mas eu tinha a impressão de que o barbeiro tentava desviar a atenção de Tur Prikulitsch do carrinho de pães. Não vejo outra explicação para ele dizer, justamente quando eu acabara de me sentar no banco: Mas que sociedade entrelopo somos nós aqui no campo de trabalho. Gente de tudo quanto é lugar, como num hotel, onde se mora por um período.
Era na época do canteiro de obras. O que teriam a ver conosco expressões como SOCIEDADE ENTRELOPO, HOTEL E PERÍODO. O barbeiro não era cúmplice da direção do campo de trabalho, mas tinha privilégios. Ele tinha permissão para morar em sua barbearia. Nós, com nossos alojamentos e o cimento, não tínhamos mais cabeça para piadas. Durante o dia, é verdade, Oswald Enyeter não possuía a barbearia somente para si: nós entrávamos e saíamos. Ele devia barbear e cortar o cabelo de todos os miseráveis. Alguns homens choravam ao se olharem no espelho. Mês após mês, ele era obrigado a ver como entrávamos pela porta cada vez mais degradados. Durante todos aqueles cinco anos, ele soube exatamente quem ainda aparecia, mesmo que lembrasse uma figura de cera. E quem não aparecia mais, porque estava exausto do trabalho, ou doente de saudade de casa, ou morto. Eu não gostaria de ter que suportar tudo isso. Por outro lado, Oswald Enyeter não tinha que suportar nenhuma brigada, nem os malditos dias de cimento. Nem turnos da noite no porão. Ele era assediado pela nossa degradação, porém não era enganado ilimitadamente pelo cimento. Ele se via obrigado a nos consolar, e nós o usávamos porque não tínhamos opção. Porque estávamos cegos de fome e doentes de nostalgia, afastados do tempo e de nós mesmos, e sem querer saber do mundo. E o mundo de nós.
Naquele dia, dei um salto da cadeira e gritei que eu, ao contrário dele, possuía apenas sacos de cimentos, não um hotel. E dando um chute no banco, que quase caiu, disse: Aqui, dono de hotel é o senhor, senhor Enyeter, não eu.
Leo, sente-se, disse ele, eu pensei que não precisávamos tratar-nos de senhor. Você se engana: o proprietário chama-se Tur Prikulitsch. E Tur, deixando entrever a ponta rosada da língua num canto da boca, concordou. Ele era tão idiota que se sentiu envaidecido, penteou-se diante do espelho, soprou o pente. Colocou o pente sobre a mesa, a tesoura sobre o pente, depois a tesoura ao lado do pente e o pente sobre a tesoura. Então foi embora. Quando Tur Prikulitsch saiu, Oswald Enyeter falou: Você viu, o proprietário é ele, ele nos mantém em xeque, não eu. Sente-se aí novamente, você pode ficar em silêncio entre os sacos de cimento, eu preciso conversar com todo mundo. Alegre-se, ao menos você ainda sabe o que é isso, um hotel. Para a maioria, tudo o que eles ainda sabem é, faz tempo, algo bem diferente. Tudo, com exceção do campo de trabalho, disse eu.
Naquele dia, não voltei a me sentar no banco. Permaneci inabalável e fui embora. Naquela época eu não teria admitido, mas eu era tão vaidoso como Tur Prikulitsch. Envaideceu-me que Enyeter, não tendo necessidade disso, tentasse fazer as pazes. Quanto mais ele me pedia, mais decidido eu fui embora sem ter feito a barba. Com tufos de barba no rosto, o cimento tornava-se ainda mais incômodo. Voltei lá somente quatro dias depois, sentei-me no banco como se nada houvesse acontecido. Eu estava tão cansado por causa do canteiro de obras, seu hotel não me importava. O barbeiro também não voltou a tocar no assunto.
Semanas mais tarde, quando o homem dos pães puxava o carrinho vazio em direção ao portão do campo de trabalho, lembrei-me novamente da palavra HOTEL. Gostei dela então. Precisava dela contra o tédio. Eu acabara de descarregar cimento no turno da noite, trotando como um bezerro no frescor da manhã. No alojamento ainda dormiam três. Deitei-me na cama sujo como estava, e disse a mim mesmo: ninguém precisa de chave neste hotel. Não há recepção, moramos com portas abertas, condições como na Suécia. Meu alojamento e minha mala estão sempre abertos. Minhas riquezas são açúcar e sal. Debaixo do meu travesseiro está o pão seco que economizei da minha boca. É uma fortuna, e toma conta de si mesma. Sou um bezerro na Suécia, e o bezerro faz sempre o mesmo quando chega a seu quarto de hotel — antes de qualquer coisa, olha debaixo do travesseiro e confere se o pão ainda está ali.
Durante a metade do verão trabalhei com o cimento e fui bezerro na Suécia: eu vinha no turno do dia ou da noite, e fingia estar num hotel. Em alguns dias isso me fazia rir. Outros o HOTEL ruía com força dentro de si, ou seja, dentro de mim, e me vinham as lágrimas. Queria erguer-me, mas eu não me reconhecia. A maldita palavra HOTEL. Durante cinco anos vivemos amontoados — numa CHAMADA.
Madeira e algodão
Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe; somente a sola era de madeira, uma pequena tábua com dois dedos de espessura. A parte de cima era um saco cinza com uma fina tira de couro em volta. O pano era preso à sola com pregos ao longo da tira de couro. Como o pano era frágil demais para os pregos, sempre acabava rasgando, primeiro no calcanhar. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para amarrar, mas não havia cadarços. Passávamos um arame fino, que virávamos girando as pontas em volta de si mesmas. Nos ilhoses, o pano também rasgava após alguns dias.
Com os sapatos de madeira, não é possível dobrar os dedos. Não levantávamos os pés do chão, arrastávamos as pernas. De tanto arrastar os pés, os joelhos ficavam duros. Era um alívio quando os sapatos de madeira rasgavam nos calcanhares: os dedos ficavam um pouco mais livres e podíamos dobrar melhor os joelhos.
Os sapatos de madeira não tinham um pé direito e um esquerdo, e havia apenas três tamanhos: diminutos, gigantes e, muito raramente, médios. Na lavanderia procurávamos, no meio de um monte de madeira com lona, dois sapatos do mesmo tamanho. Bea Zakel era a amante de Tur Prikulitsch e a senhora das nossas roupas. Alguns ela ajudava na busca de um par com pregos bem firmes. Em outros casos, apenas aproximava sua cadeira do monte de sapatos, sem se inclinar, e vigiava para que nada fosse roubado. Ela mesma usava bons sapatos de couro e, quando fazia muito frio, botas de feltro. Quando tinha de caminhar no meio da sujeira, calçava galochas de borracha sobre elas.
Segundo o planejamento da administração do campo de trabalho, os sapatos de madeira deveriam durar meio ano. Contudo, após três, quatro dias, o pano já estava rasgado nos calcanhares. Todos tentavam, através de trocas, conseguir um par extra de galochas de borracha. Elas eram flexíveis e leves, um palmo maior do que o pé. Sobrava espaço suficiente para os vários panos que usávamos em vez de meias. Para que os pés não saíssem das galochas ao caminhar, nós as prendíamos por baixo da sola com um pedaço de arame, que atávamos na altura do peito do pé. Esse ponto do peito do pé, onde ficava o arame, era o ponto nevrálgico: estava sempre ferido. E na ferida surgia a primeira frieira. Tanto os sapatos de madeira como as galochas passavam o inverno inteiro congelados e aderidos aos trapos que envolviam os pés. E os trapos à pele. As galochas de borracha eram ainda mais frias que os sapatos de madeira, mas duravam meses.
A roupa de trabalho, aliás, não havia outra roupa, ou seja, a roupa do campo de trabalho, o uniforme dos internos, era distribuída uma vez por semestre. Não existia diferença entre as roupas dos homens e das mulheres. Além dos sapatos de madeira e das galochas de borracha, a roupa de trabalho incluía roupa íntima, traje de algodão, luvas de trabalho, panos para os pés, roupa de cama, uma toalha e um pedaço de barra de sabão com forte cheiro de sódio. Queimava na pele, e o melhor era mantê-lo longe das feridas.
A roupa íntima era de tecido não branqueado: uma ceroula comprida, com cordões nos tornozelos, e na frente, na barriga, uma ceroula curta com cordões, uma camiseta com cordões, que era tudo ao mesmo tempo, camisetaecamisadiae
noiteinvernoeverão.
O traje de algodão chamava-se pufoaika, um traje acolchoado com linhas verticais. A calça da pufoaika tinha uma nesga para barrigas protuberantes e amarras apertadas com cordões nos calcanhares. Apenas na frente, na barriga, havia um botão, e, de cada lado, um bolso. O casaco da pufoaika tinha forma de saco, uma gola levantada chamada gola rubaschka, punhos com um botão na manga, uma linha de botões na frente e bolsos quadrados nas laterais. Para cobrir a cabeça, tanto homens como mulheres usavam gorros-pufoaika com abas cobrindo as orelhas e cordões para amarrar.
As cores da pufoaika eram azul-acinzentado e verde-acinzentado, dependendo do resultado do tingimento. De qualquer forma, depois de uma semana o traje já estava duro de tão sujo e marrom por causa do trabalho. As pufoaikas eram algo bom, a roupa mais quente que tínhamos para o seco inverno, quando o frio brilhava e a respiração se congelava no rosto. E, no verão escaldante, largas o suficiente para que o ar circulasse, secando o suor. Porém, em caso de tempo chuvoso, as pufoaikas se tornavam uma praga. O algodão absorvia a chuva e a neve, permanecendo molhado durante semanas. Batíamos os dentes e ficávamos gelados até de noite. No alojamento, com os sessenta e oito leitos e sessenta e oito internos com seus sessenta e oito uniformes de algodão, sessenta e oito gorros, sessenta e oito pares de panos para os pés e sessenta e oito pares de sapatos, fumegava um ar turvo. E nós ficávamos deitados, acordados, olhando para a luz amarela regulamentar, como se ali houvesse um degelo. E no degelo o cheiro fétido da noite, que nos cobria com a terra da floresta e folhas apodrecidas.
Tempos emocionantes
Depois de trabalhar, em vez de mendigar pelo campo de trabalho, fui ao vilarejo russo. A porta do UNIVERMAG estava aberta, a loja vazia. A vendedora se inclinava diante de um espelho para barbear pendurado sobre o balcão, procurando piolhos na cabeça. Ao lado do espelho para barbear, a vitrola tocava tatatataaa. Isso eu conhecia do rádio de casa: Beethoven com as notícias extraordinárias da guerra.
Em 1936, por ocasião dos jogos olímpicos em Berlim, meu pai já havia comprado o rádio Blaupunkt com o olho verde de gato. Nestes tempos emocionantes, dissera ele. O Blaupunkt foi uma boa compra, depois os tempos se tornariam mais emocionantes ainda. Três anos depois, início de setembro e novamente época de salada fria de pepino na sombra da varanda. Sobre a mesinha num canto, o Blaupunkt; na parede ao lado, o grande mapa da Europa. Do Blaupunkt soou o tatatataaa, notícia extraordinária. Meu pai se inclinou na cadeira até que seu braço alcançasse o rádio, e aumentou o volume. Todos pararam de falar e de fazer barulho com os talheres. Até o vento escutava pela janela da varanda. Meu pai chamava aquilo que começara no dia 1º- de setembro de Blitzkrieg. Minha mãe chamava de campanha da Polônia. Meu avô que, saindo de Pula, dera a volta ao mundo como grumete, era um cético. Ele tinha constante interesse no que os ingleses diziam sobre o assunto. Em relação à Polônia, ele preferia mais uma colher de salada de pepino e calar. Minha avó disse que as refeições eram assuntos de família e que não combinavam com a política no rádio.
No cinzeiro ao lado do Blaupunkt, meu pai, professor de desenho, usando alfinetes com cabeças coloridas havia montado bandeirinhas da vitória, triangulares e vermelhas: durante dezoito dias meu pai moveu suas bandeirinhas para o leste do mapa. Até que acabou, acabou a Polônia, disse meu avô. E o verão. Minha avó tirou as bandeirinhas do mapa da Europa e dos alfinetes, que guardou novamente em sua caixa de costura. E o Blaupunkt foi transladado para o dormitório dos meus pais. Através de três paredes, eu ouvia muito cedo o sinal de despertar da Rádio Munique. O programa se chamava Ginástica matinal, e o chão começava a vibrar ritmicamente. Meus pais faziam ginástica seguindo as instruções do professor no Blaupunkt. E a mim, por estar rechonchudo demais e precisar tornar-me parecido com um soldado, meus pais me mandavam uma vez por semana à aula particular de ginástica, a ginástica para aleijados.
Ontem, um oficial com um gorro verde, vindo especialmente para isso, fez um discurso no pátio da chamada. Era um discurso sobre a paz e sobre a CULTURA DOS PÉS. E Tur Prikulitsch, que não podia interrompê-lo, ficou ao seu lado, devoto como um acólito, e resumiu mais tarde o conteúdo da palestra: A cultura dos pés fortalece nossos corações. E em nossos corações bate o coração das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A cultura dos pés reflete a força da classe trabalhadora: Através da cultu- ra dos pés a União Soviética floresce na força do Partido Comunista e na felicidade do povo e da paz. O acordeonista, Konrad Fonn, compatriota de Tur Prikulitsch, me explicou que o Y em russo equivale ao U, que se tratava da cultura FÍSICA* e sua força, ou seja, da cultura da ginástica em cirílico. E que o oficial havia entendido mal a palavra, e que Tur não se atrevia a corrigi-lo.
A CULTURA DOS PÉS eu conhecia das aulas de ginástica para aleijados e da escola, das quintas patrióticas. Como alunos do ginásio, tínhamos de comparecer, todas as quintas, à tarde patriótica. No pátio do colégio recebíamos treinamento: deitar, levantar, passar pela cerca, agachar, deitar, fazer flexões, levantar. Esquerda, direita, marchar, cantar. Odin, vikings, baladas germânicas. Aos sábados ou domingos marchávamos em filas para fora da cidade. Nos arbustos dos morros, treinávamos camuflagem com galhos na cabeça, sentido de orientação com vozes de corujas ou de cães, e fazíamos jogos de guerra com fios de lã vermelhos ou azuis amarrados no braço. Quem arrancasse o fio do inimigo o havia matado. Quem conseguisse o maior número de fios de lã era condecorado como herói com uma coroa de rosas silvestres vermelho-sangue.
Uma vez, simplesmente não compareci à quinta patriótica. Fácil não era. Na noite anterior ocorrera um grande terremoto. Em Bucareste um prédio grande havia caído, soterrando muitos. Na nossa cidade, tinham sido apenas algumas chaminés, e, em nossa casa, apenas dois canos da estufa caíram no chão. Usei isso como pretexto. O professor de ginástica não perguntou nada, mas na minha cabeça a ginástica para aleijados já estava surtindo efeito. Eu via nessa insubordinação a prova de que eu era realmente um aleijado.
Nesses tempos emocionantes, meu pai fotografava moças saxônicas com roupas típicas ou fazendo ginástica. Ele chegara inclusive a comprar uma Leica para isso. E tornou-se um caçador dominical. Nas segundas-feiras eu o observava tirar a pele das lebres abatidas. Assim, nuas, duras, azuladas e esticadas, as lebres se assemelhavam às moças saxônicas fazendo ginástica nas barras. As lebres serviam de alimento. Suas peles eram fixadas com pregos na parede da cabana e, depois de secas, colocadas numa arca de metal no sótão. A cada seis meses o sr. Fränkel vinha buscá-las. Um dia ele não voltou mais. Ninguém quis saber nada além disso. Ele era judeu, de um louro avermelhado, grande, esguio, quase como uma lebre. Também o pequeno Ferdi Reich e sua mãe, que moravam em nosso prédio, não estavam mais lá. Ninguém queria saber nada além disso.
Era fácil não saber. Apareciam fugitivos da Bessarábia e da Transnistria, era-lhes dado alojamento, ficavam um período e iam embora novamente. Também vinham soldados alemães do Reich, era-lhes dado alojamento, ficavam um período e iam embora novamente. E vizinhos e parentes e professores iam lutar na guerra com fascistas romenos ou com Hitler. Alguns apareciam durante as férias do front, outros não. E havia os agitadores, que se esquivavam do front, mas em casa incentivavam e iam de uniforme aos bailes dançantes e aos cafés.
Também o professor de ciências naturais usava botas e uniforme enquanto nos explicou que o Cypripedium calceolus era uma espécie de musgo. E o edelvais. O edelvais era mais do que uma planta: era uma moda. Todos usavam distintivos e broches com tipos de tanques e aviões, armas do exército, edelvais e gentiana como talismã. Eu colecionava distintivos, trocava-os e aprendia a hierarquia de cor. Os meus preferidos eram os soldados e terceiro sargento.** Eu achava que os cabos eram pretendentes, galãs de hierarquia superior e inferior. Isso porque na nossa casa se alojava o Dietrich, terceiro-sargento do Reich. Minha mãe tomava sol no telhado do alpendre, e Dietrich a observava com um binóculo pela claraboia. Meu pai, que o observava da varanda, arrastou-o até o pátio e destroçou seu binóculo a marteladas sobre o chão do pátio ao lado do alpendre. Minha mãe mudou-se por dois dias com uma sacolinha de roupas para a casa de minha tia Fini. Uma semana antes disso, Dietrich havia lhe dado de presente de aniversário duas xícaras de café. Tinha sido culpa minha: eu lhe dissera que ela colecionava xícaras de café e o acompanhei à loja de porcelanas. Ali indiquei ao Dietrich duas xícaras, que seriam com certeza do agrado de minha mãe. Elas eram de um rosa pálido, parecendo uma fina cartilagem, tinham a borda prateada e uma gota de prata no alto, na asa. Meu segundo distintivo preferido era de baquelite, um edelvais com fósforo, que à noite brilhava como o despertador.
O professor de ciências naturais foi para a guerra e não voltou. O professor de latim veio da guerra, de férias do front, e visitou o colégio. Sentou-se na cátedra e deu uma aula de latim. Esta acabou rapidamente, e muito antes do que ele havia planejado. Um aluno, que já fora muitas vezes condecorado com a coroa de rosas silvestres, pediu logo no início: Senhor professor, conte-nos como é no front. O professor mordeu os lábios e disse: Não é como vocês pensam. Então a expressão do seu rosto congelou, e suas mãos começaram a tremer, como nunca o havíamos visto. Não é como vocês pensam, repetiu. Então ele colocou a cabeça sobre a mesa, os braços caídos como um boneco de trapo, e começou a chorar.
O vilarejo russo é pequeno. Quando se vai mendigar por lá, espera-se não encontrar nenhum outro mendigo do campo de trabalho. Todos mendigam com carvão. Um mendigo de verdade esconde suas mãos. Nós carregamos nosso pedaço de carvão envolto num trapo, como uma criança adormecida nos braços. Batemos numa porta e, se ela se abre, erguemos o trapo mostrando o que temos. De maio a setembro, um pedaço de carvão não oferece boas perspectivas. Mas carvão é o único que temos.
Vi petúnias no jardim de uma casa, uma vitrine inteira repleta de pequenas xícaras rosa pálido com borda prateada. Ao continuar andando, fechei os olhos e disse: XÍCARA DE CAFÉ; contei as letras mentalmente: doze. Então contei doze passos, depois vinte e quatro para as duas xícaras. Onde parei não havia casa alguma: contei até cento e vinte para todas as dez xícaras de café que minha mãe guardava na vitrine de casa, havia avançado três casas mais. Não existiam petúnias no jardim. Bati na primeira porta.
* Em alemão, Fusskultur (cultura dos pés) e Physische Kultur (cultura física). (N. T.)
** Gefreite, Untergefreite e Obergefreite (correspondentes a "cabo", "soldado" e "terceiro sargento") são classificações do Exército alemão. (N. T.)
Sobre as viagens
Viajar sempre era uma sorte.
Primeiro: enquanto viajamos, ainda não chegamos. Enquanto não chegamos, ainda não temos que trabalhar. A viagem é um momento de resguardo.
Segundo: quando viajamos, chegamos a uma região que não se importa conosco. Uma árvore não pode gritar conosco ou dar-nos uma surra. Debaixo de uma árvore sim, mas não é culpa dela.
O único ponto de referência que tínhamos ao chegar ao campo de trabalho era NOWO-GORLOWKA. Talvez fosse o nome do campo de trabalho ou de uma cidade, ou de toda aquela região. O nome da fábrica não podia ser, pois ela se chamava KOKSOCHIM-SAWOD. E no pátio do campo de trabalho, ao lado da torneira, havia uma tampa de esgoto de ferro fundido com letras cirílicas. Recorrendo ao grego que aprendera na escola, decifrei DNJEPROPETROWSK, e isso poderia ser uma cidade ali perto ou apenas uma fundição do outro lado da Rússia. Quando saíamos do campo de trabalho, víamos, em vez de letras, a ampla estepe e os lugares habitados nessa estepe. Também por causa disso, viajar era uma sorte.
O pessoal do transporte era distribuído todas as manhãs, na maioria das vezes de dois em dois, pelos caminhões da garagem atrás do campo de trabalho. Karli Halmen e eu ficamos com um LANCIA de quatro toneladas, um modelo dos anos 30. Conhecíamos todos os cinco caminhões da garagem, suas vantagens e desvantagens. O Lancia era bom, não muito alto e todo de chapa, nada de madeira. Pior era o MAN de cinco toneladas, cujas rodas chegavam à altura do peito. E ao melhor Lancia estava destinado também o chofer Kobelian, com sua boca torta. Ele era uma boa pessoa.
Quando Kobelian dizia KIRPITSCH, nós entendíamos: Hoje iremos buscar tijolos vermelhos e passaremos com o caminhão pela estepe sem fim. Quando havia chovido na noite anterior, surgia nas poças o reflexo dos restos dos carros queimados e dos tanques transformados em ferro-velho. Os esquilos da terra fugiam das rodas. Karli Halmen ia sentado ao lado de Kobelian na cabine. Eu preferia ir lá atrás, na caçamba, e me segurava no teto da cabine. Ao longe, via-se uma caserna de sete andares, feita de tijolos vermelhos com buracos vazios nas janelas e sem teto. Quase uma ruína, solitária na região, mas moderníssima. Talvez fosse o primeiro bloco habitacional de uma parte nova da cidade, cuja construção fora interrompida de um dia para o outro. Talvez a guerra houvesse chegado pouco antes do teto.
A estrada era desigual, mas o Lancia passava sacolejando pelos sítios espalhados por ali. Em alguns cresciam urtigas que chegavam até a cintura, e ali havia leitos de ferro, sobre os quais repousavam algumas galinhas brancas, magras como pedaços de nuvens. A urtiga só cresce onde vivem pessoas, dizia minha avó, e a bardana, só onde há ovelhas.
Nunca vi ninguém nos sítios. Eu queria ver pessoas que não morassem no campo de trabalho, que tivessem um lar, uma cerca, um quintal, um quarto e um tapete, talvez até um batedor de tapete. Em lugares onde se batem tapetes, eu pensava, é possível confiar na paz, ali há uma vida civil, ali as pessoas são deixadas em paz.
Na primeira viagem de caminhão com Kobelian, vi num quintal uma barra para tapete. Tinha um rolamento que permitia puxar o tapete para lá e para cá ao batê-lo. E ao lado da barra para tapete, havia uma jarra d’água esmaltada, grande e branca. Parecia um cisne com seu bico, seu pescoço fino e a barriga pesada. Tão bela, que, sempre que saíamos com o caminhão, mesmo no meio do vento da estepe vazia, eu sempre procurava uma barra para tapete. Nunca mais voltei a ver uma barra para tapete ou um cisne.
Atrás dos sítios afastados, começava uma pequena cidade de casas cor ocre com partes desmoronando e telhados de metal enferrujado. Entre os restos de asfalto escondiam-se os trilhos do bonde. Sobre os trilhos, de vez em quando, cavalos puxavam carroças de duas rodas, vindas da fábrica de pães. Todas iam cobertas por um pano branco, como o carrinho no campo de trabalho. Mas os cavalos meio esfomeados me faziam desconfiar se aquilo que havia debaixo do pano branco, em vez de pães, não eram os corpos daqueles que tinham morrido de fome.
Kobelian disse: A cidade chama-se Nowo-Gorlowka. A cidade tem o mesmo nome que o campo de trabalho, perguntei. Ele disse: Não, o campo de trabalho é que tem o nome da cidade. Não havia placas em lugar nenhum. Quem chegava até lá dirigindo, ou seja, Kobelian e o Lancia, conhecia o nome do lugar. Quem não conhecia o lugar fazia perguntas, como Karli Halmen e eu. E quem não tinha a quem perguntar não conseguiria chegar, mas tampouco teria algo a fazer por lá.
Buscávamos tijolos atrás da cidade. O carregamento, quando se estava em dupla e se conseguia chegar bem perto dos tijolos com o caminhão, demorava uma hora e meia. Pegam-se quatro pedras de uma vez, carregando-as entulhadas umas nas outras como um acordeão. Três é muito pouco e cinco demais. Seria possível carregar cinco, porém a do meio escorrega para fora. Seria necessária uma terceira mão para segurá-la. Colocamos os tijolos sem amontoá-los em todo o espaço da caçamba, um do lado do outro, formando de três a quatro camadas. Os tijolos têm uma ressonância aguda, cada um soa um pouco diferente. A poeira vermelha é sempre igual e fica grudada na roupa, mas é seca. O pó de tijolo não te enlouquece tanto como o pó de cimento, e não é grudento como o pó de carvão. O pó de tijolo me fazia pensar em pimentões vermelhos e doces, apesar de não ter cheiro.
No caminho de volta, o Lancia nunca sacolejava, ia pesado demais para isso. Passávamos novamente pela pequena cidade de Nowo-Gorlowka, pelos trilhos do bonde, novamente pelos sítios dos subúrbios, pela estrada sob os fragmentos de nuvens da estepe até o campo de trabalho. E logo passávamos por ele até o canteiro de obras.
Descarregar era mais rápido do que carregar. Cumpria dispor os tijolos em camadas, mas não com tanta exatidão, pois com frequência, já no dia seguinte, seriam colocados no andaime para uso dos pedreiros.
Incluindo o caminho de ida e o de volta, carregar e descarregar o caminhão, conseguíamos fazer duas viagens por dia. Então chegava a noite. Às vezes, Kobelian realizava mais uma viagem sem dizer nada. Karli e eu sabíamos que se tratava de uma viagem particular. Carregávamos apenas uma camada de tijolos na metade da caçamba. No caminho de volta, virávamos atrás do prédio de sete andares em ruínas, numa descida. Ali cresciam fileiras de álamos ao redor das casas. Nessa hora do dia, as nuvens também tinham o tom avermelhado dos tijolos. Entre a cerca e a cabana de madeira, entrávamos no sítio de Kobelian. O caminhão parava com uma freada, e eu me achava até o quadril no meio de uma árvore frutífera sem folhas, talvez ressequida, cheia de esferas enrugadas do último ou antepenúltimo verão. Karli subia até onde eu estava. Essa última luz do dia nos pendurava frutas diante do rosto, e Kobelian deixava que nós as colhêssemos antes de descarregar o caminhão.
As esferas estavam secas como madeira, era necessário sugá-las e chupá-las até sentir gosto de ginja. Se mastigássemos bastante, o caroço tornava-se bem liso e quente na língua. Essas ginjas noturnas eram uma sorte, entretanto aumentavam a fome ainda mais.
No caminho de volta, a noite era feita de tinta. Era bom chegar tarde ao campo de trabalho. A chamada já acabara, o jantar começara havia tempo. A sopa rala de cima da panela já tinha sido distribuída. A possibilidade de conseguir o espesso do fundo era maior.
Mas chegar tarde demais ao campo de trabalho era ruim: a sopa já havia acabado. Então não restava nada além da grande noite vazia com os piolhos.
Sobre as pessoas severas
Bea Zakel acaba de lavar as mãos no poço e vem agora pela rua principal. Senta-se ao meu lado no banco com encosto. Seus olhos deslizam obliquamente, parecendo míopes. Ela não é míope, coloca nessa virada de olhos certa demora, porque sabe que isso a torna original. Tão original que me sinto preso a ela. Começa a falar, a falar simplesmente. Fala tão rápido como Tur Prikulitsch, apenas não tão caprichosamente. Seu olhar escorregadio vira-se para a fábrica ao longe, observa a nuvem que sai da torre de refrigeração e fala das montanhas da Tríplice Fronteira, onde se juntam a Ucrânia, a Bessarábia e a Eslováquia.
Ao se recordar das montanhas de sua região, o ritmo diminui: o Baixo Tatra, os Beskides, que vão dar nos Cárpatos, no curso superior do Tisza. Minha aldeia se chama Lugi, diz Bea, uma aldeia pobre e escondida perto de Košice. Ali as montanhas nos olham por sobre as nossas cabeças até a morte. Quem fica ali torna-se melancólico, muitos vão embora. Por isso eu também me mudei para Praga, para o conservatório.
A enorme torre de refrigeração é uma matrona, usa seu envoltório de madeira escura como um corpete nos quadris. Assim compelidas, saem dia e noite nuvens brancas da sua boca. E elas também vão embora, como os moradores das montanhas de Bea Zakel.
Falo a Bea das montanhas de Siebenbürgen, ainda nos Cárpatos, especifico. Mas ali as montanhas têm lagos redondos e profundos. Dizem que são olhos do mar, tão profundos que o fundo se comunica com o mar Negro. Ao admirar um desses lagos, está-se com a planta dos pés nas montanhas e com os olhos junto ao mar. Meu avô dizia que os Cárpatos carregam o mar Negro em seus braços subterrâneos.
Bea fala então sobre Artur Prikulitsch, conta que ele pertence à sua infância. Veio da mesma aldeia e morava na mesma rua que ela, inclusive dividiram a mesma carteira escolar. Nas brincadeiras com Tur, ela tinha de ser o cavalo, e Tur o cocheiro. E ela caiu e quebrou o pé, mas isso só se percebeu depois. Tur bateu-lhe com o chicote, dizendo que ela estava fingindo porque não queria mais ser o cavalo. A rua era íngreme, ela contou, Tur sempre foi um sádico quando brincávamos com ele. Já eu falava da brincadeira da centopeia. As crianças se dividiam em duas centopeias. Uma devia puxar a outra para o seu campo, marcado por uma linha de giz, e assim poder comê-la. Em cada uma das centopeias, as crianças tinham de segurar na barriga da outra e puxar com toda a força. Éramos quase desmembrados, fiquei com hematomas nos quadris e um ombro deslocado.
Eu não sou um cavalo, e você não é uma centopeia, diz Bea. Se nos tornamos aquilo que fingimos ser, somos castigados por isso, como uma lei. E não se pode fugir de uma lei, mesmo que nos mudemos para Praga. Ou para o campo de trabalho, falei. Sim, porque Tur vem junto, diz Bea. Ele também foi estudar: queria ser missionário, e não conseguiu. Mas ficou em Praga, passou a estudar administração de negócios. Você sabe: as leis da pequena aldeia, até mesmo as de Praga, são severas, insiste Bea, não é possível fugir delas, são feitas por pessoas severas.
Então, Bea concentra novamente a tal demora no olhar escorregadio e diz:
Eu amo pessoas severas.
Uma delas... Penso e me contenho num arrepio, porque Bea vive dessa severidade e, por causa de certa pessoa severa, tem um bom lugar na lavanderia, ao contrário de mim. Ela reclama de Tur Prikulitsch, quer ser um de nós, mas viver como ele. Quando fala rápido, chega às vezes bem perto de negar a diferença entre nós e ela. Porém, antes que isso aconteça, recai novamente em sua segurança. Pode ser que, devido a tal segurança, seus olhos, com esse olhar escorregadio, se tornem assim tão alongados. Pode ser que sua vantagem lhe dê o que pensar enquanto está comigo. E que ela fale tão rápido porque precisa de um pouco de liberdade para além da pessoa severa, uma liberdade da qual ele não saiba. Pode ser que ela tente arrancar-me da minha reserva, que conte a ele tudo o que conversou conosco.
Bea, eu falo, a canção da minha infância diz assim:
O sol alto velado,
Milho amarelo,
Não há tempo.
Pois o cheiro mais poderoso da minha infância é o fedor putrefato das espigas de milho germinadas. Nas férias longas íamos ao lago Wench e lá ficávamos durante oito semanas. Voltávamos das férias: o milho havia germinado no monte de areia no quintal. Quando eu o puxava para fora da areia, apareciam os fios brancos das raízes e, pendurada na lateral, a velha espiga amarela-fedorenta.
Bea repete: “Milho amarelo,/ Não há tempo”. Ela chupa o dedo e diz: É bom crescer.
Bea Zakel é meia cabeça mais alta do que eu. Usa as tranças enroladas em volta da cabeça, um cordão de seda da grossura de um braço. Talvez sua cabeça pareça tão orgulhosa não apenas porque ela trabalha na lavanderia, mas também porque tem de carregar esse cabelo pesado. Talvez desde criança ela já tivesse esse cabelo pesado, para que, na pobre aldeia escondida, as montanhas não a olhassem por sobre a cabeça, até a morte.
Mas aqui no campo de trabalho ela não vai morrer. Tur Prikulitsch cuidará disso.
Umagotadesorteemdemasia
para Irma Pfeifer
Era final de outubro e choviam pregos de gelo. Os guardas de escolta e o supervisor explicaram-nos o regulamento, voltando imediatamente para suas salas aquecidas do campo de trabalho. No canteiro de obras começou um dia silencioso, sem medo da gritaria dos comandos.
Porém, em meio a esse dia silencioso, Irma Pfeifer gritou. Talvez SOCORROSOCORRO ou EUNÃOAGUENTOMAIS — não foi possível ouvir direito. Corremos com pás e ripas de madeira até o fosso de argamassa, mas não rápido o suficiente: o mestre de obras já estava lá. Deixamos cair tudo o que tínhamos nas mãos. Ruki na sad, mãos nas costas — com a pá levantada nos obrigou a contemplar imóveis a argamassa.
Irma Pfeifer jazia com o rosto voltado para baixo. A argamassa fazia bolhas: primeiro, engoliu seus braços, depois o cobertor cinza a cobriu até os tornozelos. Durante uma eternidade, alguns segundos, a argamassa esperou com um rufo espiralado. Então a cobriu de uma vez só até a cintura. A massa oscilava entre a cabeça e o gorro. A cabeça afundou e o gorro ficou na superfície. Com suas orelheiras abertas, o gorro foi arrastado lentamente até a beirada, como um pombo eriçado. A nuca raspada, com as crostas das mordidas dos piolhos, manteve-se ainda na superfície como a metade de um melão. Quando também a cabeça foi engolida, e apenas as costas ficaram para fora, o mestre de obras disse: Schalko, otschin Schalko.
Então, empurrou-nos com a pá até a beira da obra, em direção à mulher de cal, todos amontoados, e gritou: Wnimanje liudej. O acordeonista Konrad Fonn precisou traduzir: Atenção, todos vocês, se um sabotador prefere a morte, é o que vai ter. Ela pulou aí dentro. Os pedreiros viram dos andaimes lá em cima.
Tivemos de entrar em formação e marchar até o pátio do campo de trabalho. Houve chamada cedo naquela manhã. Continuava a chuva de pregos de gelo, e nós estávamos lá, monstruosamente silenciosos em nosso horror, por dentro e por fora. Schischtwanjonow saiu correndo de sua sala e gritou. Espumava pela boca como um cavalo acalorado. Jogou suas luvas de couro em nossa direção. Onde elas caíssem, um de nós tinha de se agachar e devolvê-las lá na frente. Uma e outra vez. Então ele nos deixou com Tur Prikulitsch. Este vestia um impermeável de lona encerada e botas de borracha. Mandou contar, dar um passo para a frente, dar um passo para trás, contar, dar um passo para a frente, um passo para trás, até que chegasse a noite.
Ninguém sabe quando Irma Pfeifer foi retirada da fossa de argamassa, nem onde a enterraram. Na manhã seguinte o sol brilhava frio e reluzente. Havia argamassa fresca na fossa, como sempre. Ninguém falou a respeito do dia anterior. Com certeza mais de um pensou em Irma Pfeifer, e no seu gorro e no bom traje de algodão, porque provavelmente Irma Pfeifer foi para debaixo da terra vestida, e os mortos não precisam de roupas quando os vivos morrem de frio.
Irma Pfeifer quis pegar um atalho, e, por causa do saco de cimento junto à barriga, não viu por onde pisava. O saco, inchado com a chuva gelada, foi o primeiro a afundar. Por isso não pudemos vê-lo quando nos aproximamos do fosso de argamassa. Era o que presumia o acordeonista Konrad Fonn. Conjecturar, podíamos conjecturar qualquer coisa. Mas não tínhamos como saber.
Álamos negros
Era a noite de 31 de dezembro para 1º- de janeiro, noite de Ano-Novo em nosso segundo ano. No meio da noite, o alto-falante ordenou que nos apresentássemos no pátio da chamada. Flanqueados por oito soldados com seus fuzis e cães, arrastamo-nos pela estrada do campo de trabalho. Um caminhão ia atrás de nós. Na neve alta na parte de trás da fábrica, onde começava o terreno baldio, tivemos de nos dispor em fila diante da cerca e esperar. Pensamos: É a noite do fuzilamento.
Avancei aos empurrões até a fila dianteira, para estar entre os primeiros, não tivesse eu ainda de carregar antes os cadáveres — pois o caminhão esperava na beira da estrada. Schischtwanjonow e Tur Prikulitsch haviam se fechado na cabine com o motor ligado, por causa do frio. Os soldados andavam de um lado para o outro. Os cães os acompanhavam, a friagem fazia fecharem-se seus olhos. De vez em quando levantavam as patas para não congelar.
Lá estávamos nós, os rostos envelhecidos, as sobrancelhas cobertas de orvalho. Os lábios de algumas mulheres tremiam, não apenas de frio, mas das rezas que murmuravam. Eu dizia a mim mesmo: Agora tudo isso terá fim. A despedida de minha avó fora: Eu sei que você vai voltar. Aquilo também havia acontecido, é verdade, no meio da noite, porém no meio do mundo. Agora em casa eles haviam comemorado o Ano-Novo, à meia-noite talvez tenham feito um brinde por mim, para que eu estivesse vivo. Tomara que tenham pensado em mim durante as primeiras horas do Ano-Novo, e depois se deitado na cama quente. Sobre a mesinha de cabeceira da minha avó, já estará a aliança de casamento que ela tira todas as noites porque lhe aperta. E eu estou em pé e espero o fuzilamento. Eu nos via a todos parados dentro de uma enorme caixa. Sua tampa feita de céu era tingida de preto pela noite e enfeitada com estrelas finamente talhadas. E o chão da caixa estava forrado com algodão até a altura dos joelhos, para que a queda fosse macia. E as paredes da caixa eram decoradas com um brocado duro de gelo, um emaranhado de franjas sedosas e rendas. Sobre o muro do campo de trabalho, entre as torres de vigilância, a neve era um catafalco. Em cima dele, um beliche da altura de uma torre até o céu, caixão de muitos andares, no qual tínhamos, todos amortalhados, nosso lugar, como nos leitos do alojamento. Sobre o último andar ficava a tampa tingida de preto. Nas torres de vigilância, na cabeceira e aos pés do catafalco, dois membros da guarda de honra vestidos de negro velavam os mortos. Na cabeceira, em direção ao pátio do campo de trabalho, a iluminação da vigilância do pátio tremeluzia feito um candelabro. Aos pés, na extremidade escura, erguia-se a coroa da amoreira coberta de neve, como um ostentoso feixe de flores com todos os nomes em incontáveis tiras de papel. A neve amortece, pensei: os tiros mal serão ouvidos. Nossos parentes dormem no meio do mundo, levemente bêbados, ingênuos e cansados da noite de Réveillon. Talvez sonhem com nosso enterro encantado de Ano-Novo.
Eu já não queria mais sair da caixa com o caixão de vários andares. Quando se tenta vencer o medo da morte, mas não se consegue fugir dele, este se transforma em fascínio. Inclusive o frio gélido, que nos mantém imóveis, anestesia o horror. No transe causado pelo frio extremo, eu me entreguei ao fuzilamento.
Contudo, nesse momento, dois russos embuçados nos jogaram pás desde o reboque do carro. Tur Prikulitsch e um dos embuçados estenderam, entre a escuridão e a claridade da neve, quatro cordões amarrados juntos paralelamente ao muro da fábrica. O comandante Schischtwanjonow adormecera sentado dentro da cabine. Talvez estivesse bêbado. Ele dormia com o queixo junto ao peito, como um viajante esquecido no vagão na última estação de trem. Ele dormia enquanto nós cavávamos. Não, nós cavávamos enquanto ele dormia, porque Tur Prikulitsch tinha de esperar pelas suas ordens. Ele dormia enquanto nós limpávamos dois corredores entre os cordões, para o nosso fuzilamento. Não me lembro por quanto tempo, até que o céu adquiriu um tom acinzentado. Enquanto isso, o ritmo da pá me repetia: EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR. De tanto cavar, eu já estava sóbrio novamente e preferia continuar passando fome, frio, e trabalhando para os russos, a ser fuzilado. Dei razão à minha avó: Eu vou voltar; porém, contra-argumentei: Sim, mas você sabe o quão difícil isso é.
Então, Schischtwanjonow saiu da cabine, coçou o queixo e sacudiu as pernas, talvez porque estivessem dormentes. Chamou os embuçados com um aceno. Estes abriram a comporta de carga e descarga e jogaram ao chão picaretas e pés-de-cabra. Schischtwanjonow, gesticulando com o dedo indicador, falou curto e em voz baixa, o que era incomum. Subiu novamente na cabine, e o caminhão vazio foi embora com ele.
Tur precisava dar ao murmúrio um tom de mando, e gritou: Cavem buracos para as árvores.
Começamos a procurar as ferramentas na neve, como se fossem presentes. A terra estava congelada e dura como ossos. As picaretas ricocheteavam, os pés-de-cabra soavam como gelo batendo em gelo. Pedaços do tamanho de uma noz saltavam em nossos rostos. Eu suava no frio e congelava no suor. Eu desmoronava numa metade fervente e gelada. O tronco queimava, curvava-se mecanicamente e em brasa, temendo as regras. O ventre estava congelado, as pernas se encolhiam frias como a morte, empurrando as tripas.
À tarde, as mãos sangravam; os buracos para as árvores, porém, mal alcançavam um palmo de profundidade. E assim permaneceram.
Somente no final da primavera acabamos de cavar os buracos e plantamos duas longas fileiras de árvores. A alameda cresceu rápido. Essas árvores não existiam nem na estepe, nem na aldeia dos russos, nem nas redondezas. Durante todo esse ano, ninguém no campo de trabalho soube que árvores eram aquelas. Quanto mais elas cresciam, mais brancos ficavam o tronco e os galhos. Não filigranado e branco como cera cortada ao meio, feito as bétulas, mas de crescimento imponente e com uma casca opaca como pasta de gesso.
No primeiro verão que passei em casa, ao sair de lá, vi essas árvores branco-gesso do campo de trabalho no Erlenpark, antigas e enormes. O dicionário de árvores do meu tio Edwin dizia: árvore de crescimento rápido, atinge até trinta e cinco metros de altura. O tronco proporciona firmeza à árvore, que pode chegar a dois metros de diâmetro e alcançar uma idade de duzentos anos.
Meu tio Edwin não imaginava como era verdadeira, ou, melhor dizendo, exata aquela descrição, ao ler para mim a palavra ATINGIR. Ele disse: Essa árvore é pouco exigente e belíssima. Mas é uma mentira majestosa. Como é possível que ela, com seu tronco branco, se chame ÁLAMO NEGRO.
Eu não o contradisse. Apenas pensei comigo mesmo: Quem alguma vez, sob um céu tingido de negro, esperou metade da noite pelo seu fuzilamento sabe que o nome não é um engano.
Lenço e ratos
No campo de trabalho havia panos em abundância. A vida ia de um pano a outro. Do pano de envolver os pés à toalha, do pano que cobria o pão, passando pela fronha com erva-armoles, o pano para venda ambulante e para mendigar, até os lenços de bolso, se é que se tinha algum.
Os russos não precisavam de lenços: pressionavam uma narina com o indicador e assoavam o catarro pela outra, que escorria feito massa até o chão. Então pressionavam a narina limpa, e o catarro brotava pela outra. Eu pratiquei, mas meu catarro não saltava longe. Ninguém no campo de trabalho usava lenço para assoar o nariz. Quem tinha um usava-o como saco para açúcar e sal; quando estava totalmente rasgado, como papel higiênico. Certa ocasião, uma russa me deu um lenço de presente. Fazia muito frio. A fome me impulsionava. Depois do trabalho, fui novamente vender de porta em porta na aldeia dos russos, levando um pedaço de carvão de antracito, que se usava naquela época do ano para o aquecimento. Bati à porta. Uma velha russa a abriu, pegou o carvão e me mandou entrar. O quarto era baixo, a janela ficava na altura do meu joelho. Sobre um banco estavam duas galinhas magras e cinzentas. Uma das galinhas tinha a crista caída sobre os olhos, balançava a cabeça feito uma pessoa sem mãos com o cabelo caído sobre o rosto.
A anciã continuava falando. Eu entendia somente aqui e ali alguma palavra; sabia, porém, do que se tratava. Que ela sentia medo dos vizinhos, fazia tempo estava ali só com as duas galinhas, mas preferia falar com as galinhas a falar com os vizinhos. Tinha um filho da minha idade, Boris, e que estava tão longe de casa como eu, na outra direção, num campo de trabalho na Sibéria, num batalhão disciplinar, porque um vizinho o denunciara. Talvez vocês tenham sorte, você e meu filho Boris, disse ela, e possam voltar para casa em breve. Ela apontou a cadeira, e eu me sentei a um canto da mesa. Tirou o gorro da minha cabeça e deixou-o sobre a mesa. Pôs uma colher de madeira ao lado do gorro. Depois, foi até o fogão, tirou da panela sopa de batata e a despejou numa vasilha de metal. Era certamente um litro de sopa. Tomei-a às colheradas; ela, ao meu lado, me observava. A sopa estava quente, eu sorvia e a olhava com olhos vesgos. E ela balançava a cabeça em aprovação. Eu queria comer devagar, aproveitar aquela sopa por mais tempo. No entanto, minha fome sentara-se como um cão diante do prato e a devorava. As duas galinhas haviam encolhido os pés e dormiam sobre a barriga. A sopa me esquentou até os dedos dos pés. Meu nariz escorria. Abadschij, espere, disse a russa, e me trouxe do quarto ao lado um lenço branco como a neve. Ela o colocou na minha mão e apertou os meus dedos, indicando que eu ficasse com ele. Era um presente. Mas eu não tinha coragem de assoar o nariz. O que sucedia ali ia muito além de uma venda ambulante, de mim, dela e de um lenço: tinha a ver com o seu filho. E me fazia bem, ou talvez não, ela ou eu ou nós havíamos ido longe demais. Ela necessitava fazer algo pelo seu filho, porque eu estava lá e ele estava tão longe de casa como eu. Eu me compadecia de estar ali e não ser ele. E de que ela sentisse o mesmo e precisasse ignorar porque já não suportava mais a preocupação. E não aguentei mais ter de ser duas pessoas, dois sequestrados; era demais para mim, aquilo não era tão simples como as duas galinhas no banco, uma ao lado da outra. Eu já era uma carga pesada demais para mim mesmo.
Mais tarde, na rua, usei meu pano do carvão tosco e sujo como lenço para assoar o nariz. Depois, amarrei-o em volta do pescoço, era meu lenço do pescoço. Muitas vezes sequei os olhos com as pontas desse lenço, brevemente, enquanto caminhava, para que ninguém percebesse. Mesmo que ninguém me observasse, eu queria que a mim também passasse despercebido. Eu sabia muito bem, há uma lei interna segundo a qual não se deve começar a chorar quando se tem razões demais para isso. Eu fingia para mim mesmo que as lágrimas eram por causa do frio, e acreditava.
O lenço, branco como a neve, da mais fina batista, era antigo, um belo exemplar da época do tsar. A beira era bordada à mão em à jour, com festões de fio de seda. Os espaços entre os festões eram costurados com esmero, e nas pontas havia pequenas rosas de seda. Fazia muito tempo eu não via algo tão bonito. A beleza dos utensílios normais nunca tivera importância na minha casa. No campo de trabalho, é melhor esquecê-la. Naquele lenço de bolso, ela me pegou desprevenido. A beleza me doía. Será que o filho da velha russa, que era ele e eu em um só, voltaria algum dia para casa. Comecei a cantar para afastar esse pensamento. Cantei por nós dois o blues do vagão de animais:
No bosque a dafne floresce
Na sepultura ainda há neve
E agora me entristece
A cartinha, que você me escreveu.
O céu se movia, nuvens com seus travesseiros cheios. Então a lua nova me olhou com o rosto da minha mãe. As nuvens puseram-lhe um travesseiro debaixo do queixo e outro atrás da face direita, que depois saiu pela face esquerda. E eu perguntava para a lua: Estaria minha mãe assim tão fraca. Estaria ela doente. Haveria ainda a nossa casa. Será que ela ainda morava lá, ou estaria também em um campo de trabalho. Será que ainda estava viva. Saberia ela que ainda estou vivo ou estará chorando por um morto ao pensar em mim.
Já no segundo inverno no campo de trabalho não podíamos mais enviar cartas para casa, nenhum sinal de vida. Na aldeia dos russos as bétulas estavam nuas, embaixo havia telhados cobertos de neve como camas retorcidas em barracos de ar. Nesse início de crepúsculo, a casca das bétulas tinha uma palidez diferente da que apresentava durante o dia, e um branco diferente da neve. Vi nadar o vento flexível entre os galhos. Pelo caminho trilhado junto às cercas feitas de trigo entrelaçado, veio em minha direção um cãozinho de cor madeira. Sua cabeça era triangular, as pernas longas, finas como baquetas de tambor. Um alento branco saía de sua boca, como se estivesse comendo meu lenço de bolso e ao mesmo tempo tocando um tambor com as pernas. O cãozinho passou por mim como se eu fosse somente a sombra da cerca. Ele tinha razão: nesse caminho de volta ao campo de trabalho eu não passava de um utensílio russo ao crepúsculo.
O lenço branco de batista nunca havia sido usado. Eu também nunca o usei, mas o guardei na mala até o último dia, como uma espécie de relíquia de uma mãe e um filho. E o levei comigo para casa.
Um lenço desses não tinha préstimo num campo de trabalho. Durante todos aqueles anos eu poderia tê-lo trocado no bazar por algo comestível. Obteria açúcar ou sal por ele, talvez até painço. A tentação existia, a fome era cega o suficiente. O que me detinha: eu acreditava que o lenço representava o meu destino. Quando nos escapa o controle do destino, estamos perdidos. Eu tinha certeza de que a frase de despedida da minha avó — EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR — se transformara num lenço de bolso. Não sinto vergonha de dizer que o lenço era a única pessoa no campo de trabalho que se preocupava comigo. Tenho certeza disso até hoje.
Às vezes os objetos adquirem certa delicadeza, monstruosidade que não esperamos deles.
Na cabeceira da cama, atrás do travesseiro, estava a mala; e debaixo do travesseiro, no pano de pão, um pão incrivelmente valioso, que se economizou da própria boca. E ali onde o ouvido descansava sobre o travesseiro, um dia ouviu-se um barulhinho. Ergui a cabeça e me surpreendi: entre o pano do pão e o travesseiro mexia-se um novelo rosa-claro, do tamanho da minha própria orelha. Seis ratos sem olhos, todos menores que o dedo de uma criança. A pele era como meias de seda, eles estremeciam porque feitos de carne. Ratos nascidos do nada, um presente sem razão. E de repente eu estava orgulhoso deles, como se eles também tivessem orgulho de mim. Orgulhoso porque a minha orelha havia parido; porque, apesar das sessenta e oito camas no alojamento, eles haviam nascido na minha e escolhido logo a mim como pai. Estavam ali sozinhos, a mãe eu não vi. Envergonhava-me diante deles por confiarem tão cegamente em mim. Senti na mesma hora que os amava e deveria livrar-me deles, e de imediato, antes que comessem o pão e antes que os outros acordassem e percebessem alguma coisa.
Peguei o novilho de ratos com o pano do pão, pus os dedos como um ninho para não machucá-los. Esgueirei-me para fora do alojamento, atravessei o pátio segurando o ninho. Meus pés tremiam devido à pressa, ao medo de que algum guarda me visse, algum cão sentisse meu cheiro. Contudo, eu não tirava os olhos do pano, que não caísse um dos ratos. Então, parei em frente à latrina e sacudi o lenço no buraco. Os ratos baquearam na cova. Nem um pio. Apenas respirei fundo, uma vez; pronto.
Quando eu tinha nove anos, encontrei sobre um velho tapete num canto escondido da lavanderia um gatinho recém-nascido, de um cinza-esverdeado, com os olhos fechados. Peguei-o na mão e acariciei-lhe a barriga. Ele rosnou e mordeu meu dedo mindinho, e não soltou. Aí eu vi o sangue. Então, apertei-o com o polegar e o indicador — acho que apertei com toda a força, e no pescoço. Meu coração batia como depois de um duelo. O gatinho, que estava morto agora, me pegara matando. O fato de não ter sido intencional apenas tornava as coisas piores. A delicadeza monstruosa se enreda de forma diferente na culpa, em comparação com a crueldade intencional. Mais fundo. E mais lentamente.
O que o gatinho e os ratos tinham em comum:
Nem um pio.
E o que diferenciava o gatinho dos ratos:
No caso dos ratos, foi intencional e houve compaixão. Com o gatinho, a amargura de querer acariciar e receber uma mordida. Essa foi uma. A outra foi a incapacidade de parar. Quando se começa a apertar, não há volta.
Sobre a pá de coração
Há muitas pás. Mas a minha preferida é a pá de coração. Somente a ela eu dei um nome. Com a pá de coração pode-se carregar ou descarregar somente carvão, e somente carvão solto.
A pá de coração possui uma lâmina, tão grande, do tamanho de duas cabeças juntas. Tem forma de coração e um côncavo profundo, onde caberiam até cinco quilos de carvão ou o traseiro inteiro do Anjo da Fome. A lâmina tem um longo pescoço com uma soldadura. Em comparação com a grande lâmina, o cabo da pá de coração é curto e termina numa trave de madeira.
Com uma mão segura-se o pescoço, e com a outra a trave na parte superior do cabo. Mas eu diria que é a parte inferior. Já que para mim a pá de coração está em cima e o cabo é um acessório, ou seja, está do lado ou embaixo. Enfim, pego a lâmina de coração em cima, pelo pescoço, e a trave embaixo, no cabo. Mantenho o equilíbrio, a pá de coração transforma-se num balanço em minhas mãos, como o balanço da respiração dentro do peito.
A pá de coração exige treinamento até que a lâmina esteja brilhando, até que a soldadura se encaixe em nossa mão como uma cicatriz — e toda a pá se transforme num contrapeso externo.
Descarregar carvão com a pá de coração é bem diferente de carregar tijolos. Ao carregar tijolos, conta-se apenas com as próprias mãos, o que importa é a logística. Porém, ao descarregar carvão, a ferramenta, a pá de coração, transforma a logística em acrobacia. Carregamento de carvão: trata-se do mais elegante dos esportes, superior ao hipismo, ao salto ornamental, até ao requintado tênis. É como patinação no gelo. Eu e a pá somos um par de patinação artística, poderíamos dizer. Quem alguma vez teve sua pá de coração é conduzido por ela.
O descarregamento de carvão começa assim: depois que a parede lateral do caminhão se abre com estrondo, você se situa acima, à esquerda, e crava o canto inclinado, até chegar ao chão da caixa, enquanto pisa a lâmina de coração como uma espátula. Assim que consegue espaço para dois pés na beira do caminhão, de modo que esteja pisando o chão de madeira, você começa a cavar. Num ritmo balançante como num embalo, todos os músculos participam. Com a mão esquerda você segura a trave e com a direita o longo pescoço, de forma que os dedos pousem sobre o pequeno nó da soldadura. Então, lá de cima, pela esquerda, você enterra a pá no meio do carvão e a retira fazendo uma curva até a borda, e depois, aproveitando o impulso, para fora da borda, empurra-a para a profundeza. Ou seja, deixa a mão direita deslizar agora pelo cabo, quase até a trave — sendo que o peso do corpo se translada para a panturrilha direita, chegando até os dedos dos pés. Então, traz-se a pá vazia de volta pela esquerda. E novamente o impulso e a pá outra vez cheia por baixo à direita.
Quando a maior parte do carvão já foi descarregada e a distância até a borda se tornou grande demais, não é mais possível trabalhar com um impulso em forma de arco. É necessário adotar a posição de esgrima: o pé direito graciosamente na frente, o esquerdo como eixo de apoio para trás, os dedos do pé levemente dobrados para cima. Então, a mão esquerda na trave, a mão direita desta vez não na parte inferior do pescoço, mas bem solta, deslizando pelo cabo, para cima e para baixo, de modo a equilibrar o peso. Você afunda a pá com a ajuda do joelho direito, depois tira a pá e, com um giro habilidoso, transfere o peso para o pé esquerdo, de modo que não caia nenhum pedacinho de carvão da lâmina de coração, e faz mais um giro, ou seja, um passo para trás com o pé direito, sendo que a parte superior do corpo e o rosto se viram também. Em seguida, você transfere o peso para um terceiro e novo ponto de apoio para o pé, atrás à direita, o pé esquerdo agora permanece gracioso, com o calcanhar levemente levantado, como numa dança, apenas em volta do dedão é que ainda há aderência ao solo — e então você joga o carvão com um grande impulso, da lâmina de coração para as nuvens, de forma que a pá fique reta na horizontal, no ar, ou seja, segurando-a apenas com a mão esquerda pela trave. É belo como um tango, ângulos agudos num mesmo ritmo. E a partir da posição de esgrima, quando o carvão tem de continuar seu voo, ele flui continuamente nos humores da valsa, sendo que a transferência do peso ocorre num grande triângulo, a inclinação do corpo de até quarenta e cinco graus, e, na distância de arremesso, o carvão voa como um bando de pássaros. E o Anjo da Fome voa junto. Ele está no carvão, na pá de coração, nas articulações. Ele sabe que nada pode aquecer mais do que cavar, que ocupa o corpo todo. Mas ele sabe também que a fome devora quase toda a acrobacia.
Para descarregar, éramos sempre dois ou três. Sem contar o Anjo da Fome, pois não estávamos seguros se havia um Anjo da Fome para todos nós ou se cada um tinha o seu. Mas ele se aproximava de todos sem limite algum. Ele sabia que onde era feito um descarregamento podia haver também um carregamento. Pensando matematicamente, o final seria horrível: Se cada um tem seu próprio Anjo da Fome, então, cada vez que um morre, fica livre um Anjo da Fome. Assim, mais tarde haveria apenas Anjos da Fome abandonados, pás de coração abandonadas, carvão abandonado.
Sobre o Anjo da Fome
A fome está sempre ali.
Como está ali, ela vem quando e como quer.
O princípio de causalidade é o trabalho ignóbil do Anjo da Fome.
Quando ele chega, chega com força.
É claríssimo:
1 movimento completo com a pá = 1 grama de pão.
Eu não precisaria da pá de coração. Entretanto, minha fome depende dela. Eu gostaria que a pá de coração fosse a minha ferramenta. Mas ela é o meu senhor. A ferramenta sou eu. Ela manda, eu me submeto. Porém, mesmo assim ela é a minha pá preferida. Eu me obriguei a gostar dela. Sou submisso, porque ela é melhor senhor para mim quando eu simplesmente obedeço e não a odeio. Tenho de agradecer-lhe porque, quando trabalho com ela em troca de pão, me esqueço da fome. Como a fome não vai embora, a pá cuida para que o trabalho venha antes da fome. Ao se trabalhar com a pá, o trabalho com a pá deve vir em primeiro lugar, senão o corpo não aguenta.
O carvão é descarregado, mas nunca diminui. Ele chega, por sorte, todos os dias, de Jasinowataja, é o que está escrito nos vagões. Todos os dias a cabeça se concentra no trabalho de descarregar. O corpo inteiro, controlado pela cabeça, é a ferramenta. Mais nada.
Descarregar é difícil. Ter de descarregar e não poder é uma coisa. Querer descarregar e não poder é um desespero duplo, curvar-se como uma reverência diante do carvão. Não tenho medo de trabalhar com a pá, mas de mim mesmo. Ou seja, medo de, enquanto trabalho com a pá, pensar em mais alguma coisa além do trabalho com a pá. Isso acontecia algumas vezes comigo no começo. Isso devora as forças que precisamos para o trabalho. A pá de coração percebe no mesmo instante quando não estou inteiramente ali. E um pânico sutil me aperta a garganta. Nas têmporas bate nu o duplo compasso. Ele transforma o pulso numa orquestra de buzinas. Estou a ponto de desfalecer, sinto a úvula inchar-se no céu da boca adocicado. E o Anjo da Fome se pendura bem dentro da minha boca, no meu véu palatino. É a sua balança. Ele abre os meus olhos e a pá de coração se desequilibra, vejo o carvão embaçado. O Anjo da Fome coloca meu rosto sobre seu queixo. Embala minha respiração. O balanço da respiração é um delírio, e que delírio. Levanto o olhar: lá em cima, um verão estático de algodão, o bordado das nuvens. Meu cérebro estremece: preso ao céu com um alfinete, possui apenas esse único ponto fixo. E ele tece fantasias com comida. Logo vejo no ar a mesa coberta com uma toalha branca, e o cascalho range sob meus pés. E o sol entra agudo, atravessando o centro da glândula pineal. O Anjo da Fome examina a sua balança e diz:
Você ainda não está leve o suficiente, por que não facilita as coisas.
Eu digo: Tu me enganas com a minha carne. Ela sucumbe em tuas mãos. Mas eu não sou a minha carne. Sou outra coisa e não vou facilitar as coisas. Não se trata mais de quem eu sou, mas não vou te dizer o que eu sou. Isso que eu sou engana a tua balança.
Foi assim muitas vezes durante o segundo inverno no campo de trabalho. No início da manhã, chego do turno da noite, morto de cansaço. Agora que tenho tempo livre, preciso dormir, deito-me e não consigo. No alojamento, as sessenta e oito camas estão vazias, todo mundo está trabalhando. Sinto-me atraído para fora pela tarde de pátios vazios. O vento joga a sua neve fina, ele crepita em minha nuca. Exibindo a fome, o Anjo me acompanha até o monte de lixo atrás do refeitório. Cambaleio um trecho atrás dele, pendurado de viés pelo meu palato. Passo a passo, vou seguindo os meus pés, se é que não são os dele. A fome é a minha direção, se é que não é a dele. O Anjo me deixa ir na frente. Não que ele fique tímido, apenas não quer ser visto comigo. Então eu curvo as costas, se é que não são as dele. Minha avidez é brutal; minhas mãos, selvagens. As mãos são minhas, o Anjo não toca no lixo. Empurro as cascas de batata para dentro da boca e fecho os olhos para sentir melhor as cascas de batata congeladas, doces e vítreas.
O Anjo da Fome procura pegadas impossíveis de apagar, e apaga pegadas impossíveis de manter. Pela minha mente passam as plantações de batatas, os lotes íngremes entre prados de feno no lago Wench, batatas das montanhas da minha região. As primeiras batatas, redondas, pálidas, as batatas tardias, irregulares e de um azul-vítreo, as batatas farinhentas, do tamanho de um punho, a casca feito couro, e de um amarelo-doce, as batatas cor-de-rosa, elegantes, lisas e ovais e firmes ao cozinhá-las. E como florescem no verão, com seus feixes branco-amarelados, rosa-acinzentados ou lilases, sobre plantas verde-amargas com caules angulosos.
E com que rapidez eu comi então, com o lábio levantado, todas as cascas de batata congeladas. Empurrando uma casca atrás da outra para dentro da boca, sem intervalos, como a fome. Sem parar, todas de uma vez são uma única e longa fita de casca de batata.
Todas, todas, todas.
E chega a noite. E todos chegam do trabalho. E todos entram na fome. É como uma cama, quando um esfomeado olha para o outro. Mas se trata de um engano, eu sinto em mim, é a fome que entra em nós. Somos a cama para a fome. Todos nós comemos com olhos fechados. Alimentamos a fome durante a noite inteira. Nós a cevamos, no alto da pá.
Alimento-me de um sono rápido, então acordo e abocanho o próximo sono, igualmente rápido. Um sonho é como o outro, serve de alimento. Existe uma compaixão por causa da compulsão por comida durante o sonho, e é uma tortura. Eu me alimento de sopa e pão, pimentões recheados e pão, torta. Então acordo, olho através da luz regulamentar, amarelada, do alojamento, adormeço novamente e me alimento de sopa de couve-rábano e pão, coelho ao molho ácido e pão, sorvete de morango em taça de prata. Depois pasta de nozes e pão doce. E depois Klausenburger Kraut* e pão, torta de rum. Então Kessel, ensopado de cabeça de porco com molho de rábano picante e pão. Por último, eu teria comido uma coxa de corça com pão e geleia de damasco, porém o alto-falante berrou no meio do sonho, havia amanhecido. O sono continua delgado, por mais que eu coma, e a fome não se cansa nunca.
Quando os três primeiros de nós morreram de fome, eu sabia exatamente quem eles eram e a sequência das mortes. Pensei em cada um deles por alguns longos dias. Mas o número três nunca permanece o número três do início. Cada número tem derivações. E endurece. Quando se é apenas pele e osso, e não nos sentimos mais fisicamente bem, tenta-se manter os mortos o mais longe possível. Pois, no rastro da matemática, em março do quarto ano, já eram trezentos e trinta mortos. Então já não é possível dar-se ao luxo de ter sentimentos muito detalhados. Pensa-se neles brevemente apenas.
A atmosfera insípida tinha de ser dissipada. A chegada de um luto amolecedor precisava ser espantada antes mesmo que surgisse. A morte torna-se enorme e sente falta de todos. Não se deve chegar perto dela. É necessário escorraçá-la como a um cão inoportuno.
Nunca mais mostrei tanta decisão contra a morte como nesses cinco anos no campo de trabalho. Contra a morte, não é necessário ter uma vida própria, apenas uma que ainda não tenha acabado totalmente.
Mas os três primeiros mortos no campo de trabalho foram:
Mitzi, a surda, esmagada entre dois vagões.
Kati Meyer, sepultada na torre de cimento.
Irma Pfeifer, asfixiada na argamassa.
E, no meu alojamento, o primeiro morto foi o mecânico Peter Schiel, envenenado com aguardente de alcatrão.
A causa da morte teve um diagnóstico diferente em cada caso, mas ela sempre vinha acompanhada da fome.
No rastro da matemática, um dia, na barbearia de Oswald Enyeter, eu disse diante do espelho: Tudo o que é fácil é simples resultado, e um véu palatino todos têm. O Anjo da Fome pesa cada um, e pula da pá de coração sempre que alguém facilita as coisas. Esse é o seu princípio de causalidade e sua lei de equilíbrio.
Ambos os casos não são para desprezar, mas também não precisa consumir-se, disse o barbeiro. Isso também é uma lei.
Eu calei em frente ao espelho.
Teu couro cabeludo está cheio de florzinhas de pus, disse o barbeiro, só mesmo a máquina zero dá jeito nisso.
Que tipo de florzinhas, perguntei.
Foi um alívio quando ele começou a me tosar.
Uma coisa é certa, pensei comigo, o Anjo da Fome conhece os seus cúmplices. Ele os acarinha, e depois os deixa cair. E então eles se despedaçam. E ele junto. Pois é feito da mesma carne que ele engana. Também essa é sua lei do equilíbrio. Que mais posso dizer sobre isso agora. Tudo o que acontece é sempre o mais simples. Sua sequência, quando dura, obedece a um princípio. E se dura cinco anos, torna-se insondável e não é mais levada em conta. E, me parece, quando se quer falar sobre isso mais tarde, não resta nada que não permita acréscimos: o Anjo da Fome está certo em seu pensamento, não falta nunca, não vai embora, mas volta sempre, tem sua direção e conhece meus limites, conhece minha origem e seu efeito, anda de olhos abertos e unilateralmente, reconhece a sua existência, é nau- seantemente pessoal, tem um sono transparente, é especialista em erva-armoles, açúcar e sal, piolhos e nostalgia, tem a barriga e as pernas cheias d’água. Não há nada a fazer além de enumerar.
Se você não facilitar as coisas, você pensa, não vai ser tão ruim assim. Até hoje, o Anjo da Fome fala de dentro de você. Não importa o que diz, ele é sempre muito claro:
1 movimento completo com a pá = 1 grama de pão.
Porém, não se deve falar sobre a fome quando se tem fome. A fome não é uma cama; se fosse, teria medidas. A fome não é um objeto.
* Arroz, carne moída e chucrute assados no forno, prato típico de Siebenbürgen. (N. T.)
Aguardente de alcatrão
Numa noite agitada, na qual era impensável dormir, e nem mesmo a compulsão por comida vinha afligir-nos pois as pulgas nos torturavam ininterruptamente, numa noite assim, Peter Schiel percebeu que eu também não dormia. Eu me sentara na cama; bem em frente, ele também se sentara na sua e perguntou:
O que significa dar e receber.
Eu disse: Dormir.
Deitei-me novamente. Ele permaneceu sentado, e eu ouvi o gorgolejo. No bazar, Bea Zakel havia trocado o pulôver de lã dele por aguardente de alcatrão. Ele bebeu. E não perguntou mais nada. Na manhã seguinte, Karli Halmen contou: Ele ainda perguntou algumas vezes o que significava dar e receber. Mas você dormia profundamente.
Zepelim
Ali, onde não há baterias de coque, exaustores e canos soltando vapor, onde se veem no alto apenas as nuvens da torre de refrigeração voando em direção à ampla estepe, onde terminam os últimos trilhos, e nós, ao descarregar o carvão do Jama, só enxergamos a erva daninha florescente sobre a montanha de entulho, ou seja, ali onde, atrás da fábrica, a paisagem se faz mais nua e miserável, antes de tornar-se selvagem, cruzam-se algumas trilhas. E elas levam até um tubo enorme e enferrujado, um tubo Mannesmann de antes da guerra. Com sete a oito metros de comprimento e dois metros de altura. Uma das extremidades, a da cabeceira, em direção ao Jama, está soldada como uma cisterna. A outra, o pé, em direção ao terreno baldio, permanece aberta. Um tubo imponente, ninguém sabe como chegou ali. Mas, desde que chegamos ao campo de trabalho, ao menos sabemos para que serve. Todos o chamam de ZEPELIM.
O zepelim não flutua prateado pelo céu, mas dá asas à razão. Ele é um hotel de alta rotatividade, tolerado pela administração do campo de trabalho e pelos natschalniks. No zepelim, as mulheres do campo de trabalho se encontram com os prisioneiros de guerra alemães, que retiram o entulho das redondezas do terreno baldio ou das fábricas bombardeadas. Kowatsch Anton diz: Eles vêm para um casamento de gatos com nossas mulheres. É só você abrir os olhos quando for descarregar o carvão.
Ainda no verão de Stálingrado, nesse último verão na varanda de casa, ouviu-se no rádio uma voz voluptuosa de mulher alemã do Reich:
Toda mulher alemã dará um filho ao Führer.
Minha tia Fini perguntou à minha mãe: Como é que vai ser feito isso, o Führer vem agora cada noite deitar com cada uma de nós aqui em Siebenbürgen, ou vamos todas, em fila, ao Reich nos encontrar com ele.
Havia lebre ao molho ácido, minha mãe lambeu o molho de uma folha de louro, passando-a lentamente pela boca. Quando terminou de limpar a folha, prendeu-a na botoeira. Pensei comigo mesmo: Elas riem dele, mas é da boca para fora. O brilho dos seus olhos denunciava que bem que elas gostariam que isso acontecesse realmente. Meu pai também percebeu, franziu a testa e, por um momento se esqueceu de mastigar. E minha avó disse: Pensei que vocês não gostassem de homens de bigode. Mandem um telegrama ao Führer dizendo para ele tirar o bigode antes.
Como o Jama ficava esquecido depois do trabalho, e o sol ainda brilhava claro sobre a relva, peguei a trilha em direção ao zepelim e inspecionei seu interior. Na entrada, estendia-se uma sombra pelo interior do tubo; no meio, ficava mais escuro; e, bem ao fundo, escuro como a noite. No dia seguinte, fiquei com os olhos bem abertos ao descarregar o carvão. No fim da tarde seguinte, vi homens de três em três ou de quatro em quatro atravessando as ervas daninhas. As jaquetas da pufoaika que eles usavam eram listradas, diferentes das nossas. Pouco antes de chegarem ao zepelim, sentaram-se, sumindo até o pescoço no meio da grama. Logo surgiu na entrada do tubo uma fronha rasgada, amarrada num pedaço de pau, um sinal de ocupado. Pouco depois, a pequena bandeira havia sumido. Logo surgiu novamente e voltou a desaparecer. Assim que os primeiros homens foram embora, vieram os próximos três ou quatro e afundaram na grama.
Vi também como brigadas inteiras de mulheres acobertavam o casamento de gatos. Enquanto três, quatro mulheres iam até as ervas daninhas, outras envolviam o natschalnik numa conversa. E quando ele perguntava o paradeiro das demais, explicavam que, por causa das cólicas e da diarreia, as outras mulheres haviam desaparecido entre as ervas daninhas. Isso em alguns casos era verdade, mas em quantos ele não tinha como saber. O natschalnik mordeu os lábios, ouviu com atenção por um tempo, mas virando a cabeça cada vez com mais frequência em direção ao zepelim. A partir desse momento, percebi que as mulheres precisavam interferir, sussurraram algo para nossa cantora Loni Mich, e ela começou a assobiar enganadoramente, um ruído mais alto do que o descarregar do carvão:
Em todo canto paira o silêncio noturno
Apenas no vale o rouxinol.
Nisso, as desaparecidas estavam de volta. Elas se misturavam entre nós e continuavam a descarregar carvão, como se nada tivesse acontecido.
Eu gostava do nome zepelim: combinava com o esquecimento prateado de nossa miséria, com o acasalamento apressado dos gatos. Compreendia que esses alemães desconhecidos tinham tudo o que faltava aos nossos homens. O Führer os havia enviado ao mundo na idade adequada, não imberbes ou velhos demais como os nossos homens. Pobres e humilhados como nós, mas antes disso haviam lutado na guerra. Para as nossas mulheres, eram heróis, algo melhor do que o amor noturno com um trabalhador forçado atrás de um cobertor, numa cama no alojamento. O amor noturno continuou irrenunciável. Porém, para as nossas mulheres, ele tinha o cheiro de seus próprios cansaços, do mesmo carvão e da mesma saudade. E as remetia sempre ao dar e receber do cotidiano. O homem se encarregava da comida; a mulher, dos lençóis e do consolo. No zepelim, o amor, além de içar e recolher a bandeira branca, não tinha outras preocupações.
Kowatsch Anton não imaginava que eu não invejava o zepelim das mulheres. Que eu conhecera a mesma trilha, que, iniciado, conhecera, do Erlenpark e da sauna Netuno, a excitação das roupas fora do lugar, o prazer vadio e a felicidade por alguns instantes aprisionada. Que eu repassasse o lugar do rendez-vous, agora com mais frequência, ninguém acreditaria. A ANDORINHA, O PINHEIRO, A ORELHA, A LINHA, o PAPA-FIGOS, O BOINA, O COELHO, O GATO, A GAIVOTA. Então, A PÉROLA. Que eu carregasse esses pseudônimos na cabeça, e tanto silêncio na nuca, ninguém acreditaria.
Também no zepelim, o amor tinha as suas estações. No segundo ano, o inverno deu-lhe um fim. Depois a fome. Quando o Anjo da Fome começou a andar histérico a nossa volta, quando chegou a estação de peleeosso, quando já não era mais possível diferenciar entre macho e fêmea, continuou-se descarregando carvão do Jama. Somente as trilhas entre as ervas daninhas se fecharam. E a ervilhaca crescia lilás entre o milefólio e a erva-armoles avermelhada, a bardana azul florescia e o cardo também. O zepelim dormia e pertencia à ferrugem, assim como o carvão pertencia ao campo de trabalho, a relva à estepe, e nós à fome.
Sobre o membro fantasma
do relógio cuco
Uma noite de verão no segundo ano, acima do balde de metal com água potável, bem ao lado da porta, apareceu um relógio cuco pendurado na parede. Não houve jeito de saber como tinha ido parar lá. Sendo assim, pertencia ao alojamento e ao prego que o segurava, a mais ninguém. Mas na verdade ele nos perturbava a todos juntos e a cada um em separado. Na tarde vazia, o tique-taque escutava com atenção se alguém chegava, saía ou dormia. Ou se estava apenas ali deitado na cama, fechado em si mesmo, ou à espera, esfomeado demais para conseguir dormir ou fraco demais para levantar. Porém, depois da espera não havia nada além do tique-taque no céu da boca, duplicado pelo tique-taque do relógio.
Para que precisaríamos aqui de um relógio cuco. Para medir o tempo, não precisamos de um. Não tínhamos nada para medir, o hino que vinha dos alto-falantes no pátio nos acordava de manhã. E à noite nos mandava para a cama. Sempre que precisavam de nós, vinham buscar-nos e nos tiravam do pátio, do refeitório, do meio do sono. Igualmente as sirenes da fábrica funcionavam como um relógio, e também as nuvens brancas da torre de refrigeração e as sinetas das baterias de coque.
Provavelmente o percussionista, Kowatsch Anton, o trouxera consigo. Apesar de ele jurar que nada tinha que ver com isso, dava-lhe corda todos os dias. Já que está ali, é melhor que funcione, dizia.
Tratava-se de um relógio cuco normal, mas o pássaro cuco não regulava. Ele saía depois de três quartos de hora e avisava a meia-hora, um quarto, a hora completa. À hora em ponto, esquecia tudo ou avisava a hora errada, duplicando o horário ou dividindo-o por dois. Kowatsch Anton dizia que as chamadas do cuco se referiam aos horários de outras partes do mundo. Estava apaixonado pelo relógio, pelo cuco, pelos dois pesos de ferro em forma de pinha e pelo pêndulo inquieto. Por ele, o cuco passaria a noite inteira anunciando o horário de outras regiões do mundo. Mas os demais no alojamento não se interessavam por essas outras regiões do cuco, nem para dormirem, nem para ficarem acordados.
Kowatsch Anton era torneiro na fábrica e, na orquestra do campo de trabalho, baterista e percussionista da “Paloma”, que se dançava a dois. Ele mesmo construíra seus instrumentos no torno da oficina da metalurgia, era um faz-tudo. Queria regular o cuco cosmopolita adaptando-o à disciplina dos dias e noites russas. Através de um estreitamento da glote do mecanismo do cuco, planejava dar-lhe um tom mais curto e grave à noite, uma oitava mais baixa, assim como um canto mais agudo e longo durante o dia. Contudo, antes que chegasse a compreender seu funcionamento, alguém arrancou o cuco de dentro do relógio. A portinha pendia torta na charneira. E quando o mecanismo do relógio queria incitar o cuco a cantar, a portinha se abria, ainda que pela metade, mas, em vez do cuco, aparecia um pedaço de borracha, como uma minhoca saindo do seu esconderijo. O pedaço de borracha vibrava e ouvia-se um lamentável tilintar, que se assemelhava aos tossidos, pigarreios, roncos, peidos e suspiros que se produziam durante o sono. Assim, a minhoca de borracha protegia nosso descanso noturno.
Kowatsch Anton ficou tão entusiasmado com a minhoca como com o cuco. Ele não era apenas um faz-tudo, também sofria por não ter um parceiro de swing na orquestra do campo de trabalho, como antes em sua Big Band em Karansebesch. À noite, quando o hino que saía dos alto-falantes nos impingia para o alojamento, Anton, com a ajuda de um arame dobrado, regulava o pedaço de borracha para o tilintar noturno. Todas as vezes, ainda permanecia alguns instantes junto ao relógio, observando seu rosto no balde com água, esperando, como hipnotizado, o primeiro tilintar. Quando a pequena porta se abria, ele se encurvava um pouco, e seu olho esquerdo, que era um pouco menor que o direito, cintilava com absoluta precisão. Uma vez, depois do tilintar, ele disse, dirigindo-se mais a si mesmo do que a mim: Hehe, a minhoca herdou um membro fantasma do cuco.
Eu gostava do relógio.
Eu não gostava do cuco enlouquecido, nem da minhoca, nem do incessante pêndulo. Mas apreciava os dois pesos, as duas pinhas. Eram feitas de um ferro pesado e lento, mas mesmo assim eu via nelas as florestas de abetos das montanhas próximas de casa. Altas, acima das nossas cabeças, as coníferas constituíam espesso manto verde-escuro. Abaixo, logo adiante, até onde o olhar alcançava, dispunham-se rigorosamente os troncos, feito pernas de madeira, que param quando você para e andam quando você anda, e correm quando você corre. Porém, de uma forma bem diferente da sua, como um exército. Assim, quando o coração pulsa de puro medo dentro da boca, você percebe sob seus pés o brilhante tapete de coníferas, essa calma luminosa com pinhas espalhadas. E você se agacha e pega duas delas: guarda uma no bolso da calça; conserva a outra na mão, e pronto, já não está sozinho. Ela o traz de volta à razão, e você percebe que o exército nada mais é do que uma floresta, e o desamparo dentro dela apenas uma caminhada.
Meu pai se esforçou muito para me ensinar a assobiar, a interpretar a procedência do eco quando alguém que se perdeu na floresta assobia, e a encontrá-lo ao assobiar de volta. A importância do assobio entendi, mas não sei assoprar o ar num bico para fora da boca. Eu inspirava de forma errada, o peito se estufava em vez de ouvir-se um som dos meus lábios. Nunca aprendi a assobiar. Por mais que ele me mostrasse como fazê-lo, eu só pensava nisso que via, que nos homens os lábios brilhavam por dentro, como quartzo rosa. Ele dizia: Você ainda vai ver, um dia precisará disso. Ele se referia a assobiar. Mas eu pensava na pele vítrea dos lábios.
Na realidade, o relógio cuco pertencia ao Anjo da Fome. Porque, no campo de trabalho, não se tratava de um tempo nosso, mas apenas de uma pergunta: Cuco, quanto tempo ainda me resta.
Kati-Plantão
Katharina Seidel, a Kati-Plantão, era do Banato, de Bakowa. Ou alguém do seu vilarejo pagou para ser tirado da lista, e um canalha a pegou como substituta; ou o canalha era um sádico, e ela estava na lista desde o início. Nascera deficiente mental, e durante os cinco anos não soube onde estava. Ela era uma mulher corpulenta em miniatura, uma criança pela metade, que para cima não crescera mais, apenas para os lados. Usava uma trança longa e castanha, e uma coroa de cabelos crespos em volta da testa e da nuca. Nos primeiros tempos, as mulheres a penteavam diariamente; mas, depois que começou a praga de piolhos, somente a cada dois ou três dias.
Kati-Plantão não servia para trabalho nenhum. Não entendia o que era uma norma, uma ordem ou um castigo. Atrapalhava-se com o decurso dos turnos. Para que se ocupasse de alguma coisa, no segundo inverno inventaram o serviço de plantão. Ela devia montar guarda durante a noite, alternando-se diante de cada um dos alojamentos.
Durante um tempo, ela entrava no nosso alojamento, sentava-se à pequena mesa, cruzava os braços, apertava os olhos e mirava a luz perfurante da lâmpada de serviço. A cadeira era alta demais, seus pés não alcançavam o chão. Quando o tédio se apoderava dela, segurava-se com as mãos na beira da mesa balançando-se para frente e para trás. Não chegava a passar uma hora e ia para outro alojamento.
No verão Kati somente entrava em nosso alojamento e ficava ali a noite toda, por causa do relógio cuco. Não sabia ler os ponteiros. Sentava-se sob a lâmpada de serviço, cruzava os braços e esperava que a minhoca de borracha aparecesse pela portinha. Quando esta vibrava, ela abria a boca, como se tilintasse também, porém continuava muda. Quando a minhoca de borracha aparecia pela segunda vez, Kati já havia adormecido com o rosto sobre a mesa. Antes de adormecer, pegava a trança, punha-a sobre a mesa e dormia segurando-a com a mão a noite toda. Talvez assim ela não se sentisse tão sozinha. Talvez tivesse medo, naquela floresta de sessenta e oito camas masculinas. Talvez a trança a ajudasse, como a mim a pinha na floresta. Ou ela apenas queria ter certeza, ao segurar a trança, de que não a roubariam.
A trança foi roubada, mas não por nós. Castigo por haver adormecido, Tur Prikulitsch levou Kati-Plantão para a enfermaria do campo. A auxiliar sanitária raspou-lhe a cabeça. Naquela noite, Kati-Plantão apareceu no refeitório com a trança cortada pendurada no pescoço e a colocou sobre a mesa como se fosse uma cobra. Mergulhava uma das extremidades da trança na sopa e a segurava rente à cabeça raspada, para que voltasse a crescer. Alimentava também a outra extremidade da trança, e chorava. Heidrun Gast tirou-lhe a trança das mãos e disse que seria melhor que ela a esquecesse. Depois do jantar, jogou a trança numa pequena fogueira no pátio, e Kati-Plantão viu-a queimar sem dizer uma única palavra.
Mesmo com a cabeça raspada, Kati-Plantão continuava gostando do relógio cuco, e mesmo com a cabeça raspada continuava adormecendo depois do primeiro tilintar da minhoca de borracha, mantendo a mão fechada, como se segurasse a trança. E mesmo depois de os cabelos haverem crescido novamente, ela continuou adormecendo, a mão fechada durante o sono, apesar de os cabelos terem apenas alguns dedos de comprimento. Durante meses, Kati-Plantão adormeceu, até que lhe raspassem a cabeça novamente e os cabelos crescessem, tão ralos que se viam, antes deles, as mordidas dos piolhos. Ela continuou dormindo, até Tur Prikulitsch compreender, enfim, que era possível disciplinar qualquer miserável, mas não havia como amansar a debilidade mental. Acabou-se então o serviço de plantão.
Antes de rasparem-lhe a cabeça, durante a chamada Kati-Plantão costumava sentar-se entre as fileiras na neve, sobre seu gorro de lã. Schischtwanjonow gritava: Fascista, levante-se. Tur Prikulitsch a erguia pela trança, mas, quando a soltava, ela se sentava novamente. Chutava-a nos rins até que ela se contorcesse no chão e ficasse ali jogada, a trança na mão e a mão dentro da boca. A extremidade da trança ficava pendurada para fora, como se ela tivesse mordido a metade de um pequeno pássaro castanho. Ela permanecia assim, caída, até que, depois da chamada, um de nós a ajudasse a se levantar e a levasse até o refeitório.
Tur Prikulitsch podia dispor de nós, mas com Kati-Plantão só conseguia expor sua brutalidade. E quando até assim ele fracassava, restava-lhe somente a compaixão. Incorrigível e desamparada, Kati-Plantão conseguia tirar seu senhor do sério. Para não se expor ao ridículo, Tur Prikulitsch acabou apaziguando-se. Durante a chamada, Kati-Plantão agora só precisava ficar sentada no chão, bem na frente, ao seu lado. Durante horas, permanecia sentada sobre seu gorro de lã olhando surpresa para ele, como uma boneca de armar. Depois da chamada, seu gorro já havia congelado e grudado na neve, tínhamos de arrancá-lo com força.
Num verão, Kati-Plantão perturbou a chamada durante três tardes seguidas. Por algum tempo ficou quieta ao lado de Prikulitsch, mas em seguida arrastou-se para perto de seus pés e começou a polir seu sapato com o gorro. Ele pisou na mão dela. Ela tirou a mão e começou a polir o outro sapato. Ele pisou-lhe novamente a mão. Quando ele levantou o pé, Kati-Plantão deu um salto e saiu correndo com os braços abertos pelas fileiras da chamada, arrulhando como um pombo. Todos prenderam a respiração, e Tur deu um riso oco, grasnindo como um peru. Por três vezes Kati-Plantão conseguiu polir os sapatos dele e transformar-se num pombo. Depois, foi proibida de aparecer durante a chamada: incumbiram-lhe de lavar nesse momento o chão dos alojamentos. Ela buscava água no poço com o balde, torcia o pano de chão, envolvia a vassoura com ele e, a cada alojamento, trocava a água suja no poço. Na sua cabeça, não havia inseguranças que pudessem perturbar o procedimento. O chão estava mais limpo do que nunca. Ela limpava com minúcia e sem pressa, talvez por estar acostumada a fazê-lo em casa.
Tão louca ela não era. Em vez de chamada, dizia CAMADA. Quando um sino tocava nas baterias de coque, falava que estava começando a missa na igreja. Ela com certeza não fazia essas trocas de propósito, já que sua cabeça não estava aqui. Seu comportamento não se adaptava à ordem do campo de trabalho, mas aos acontecimentos. Havia nela algo elementar, que invejávamos. Nem mesmo o Anjo da Fome conhecia a fundo os seus instintos. Ele a assediava como a todos nós, porém não lhe chegava ao cérebro. Ela fazia o mais fácil sem duvidar, deixava-se à mercê do acaso. Sobreviveu ao campo de trabalho sem ter que vender de porta em porta. Nunca foi vista atrás do refeitório revirando o lixo da cozinha. Ela comia o que encontrava no pátio e na área da fábrica. Flores, folhas e sementes no meio das ervas daninhas. E todo tipo de bicho, minhocas e lagartas, larvas e besouros, caracóis e aranhas. E no pátio nevado do campo de trabalho, as fezes congeladas dos cães de guarda. Nós nos surpreendíamos de ver como os cães confiavam nela, como se essa criatura cambaleante com o gorro de orelheiras fosse um deles.
A loucura de Kati-Plantão mantinha-se sempre na esfera do desculpável. Ela não era carinhosa nem ausente. Durante todos aqueles anos, manteve no campo de trabalho a naturalidade de um animal de estimação. Não tinha nada fora do comum. Gostávamos dela.
Numa tarde de setembro, meu turno acabara e o sol ainda brilhava, ardente. Eu me perdi pelas trilhas atrás do Jama. Em meio à erva-armoles avermelhada, que havia muito tempo deixara de ser comestível, ondulava a aveia selvagem abrasada pelo verão. Suas espigas brilhavam como espinhas de peixe. Dentro da casaca endurecida, os grãos ainda leitosos. Comi. No caminho de volta, não quis mais continuar submerso em meio às ervas daninhas e segui pelo caminho sem vegetação em volta. Ao lado do zepelim estava Kati-Plantão. As mãos sobre um formigueiro fervilhavam enegrecidas. Ela as lambia e comia. Eu perguntei: Kati, o que você está fazendo.
Estou fazendo luvas para mim, elas fazem cócegas, disse.
Você está com frio, eu perguntei.
Ela disse: Hoje não, amanhã. Minha mãe fez croissants com semente de papoula para mim, ainda estão quentes. Não ande por cima deles, você pode esperar; afinal, você não é um caçador. Quando os croissants acabarem, os soldados serão contados em camadas. E então iremos para casa.
Nisso, suas mãos tornaram-se novamente de um negro fervilhante. Antes de lamber as formigas, ela perguntou: Quando a guerra vai acabar.
Eu disse: A guerra já acabou há dois anos. Vem, vamos voltar para o campo de trabalho.
Ela disse: Você não está vendo, agora não tenho tempo.
O caso do crime do pão
Fenja nunca usava o casaco da roupa de trabalho, mas um jaleco branco e, sobre ele, seus casacos de tricô, sempre um diferente. Um era marrom-noz, o outro lilás-sujo como beterrabas sem descascar, outro amarelo-lama, e um deles, salpicado de branco e cinza. Todos tinham mangas longas demais e apertavam na barriga. Nunca sabíamos que casaco era destinado para que dia e por que Fenja os vestia sobre o jaleco. Aquecer não aqueciam, tinham buracos demais e lã de menos. Lã de antes da guerra, já muitas vezes tricotada e desfeita, mas ainda servia para tricô. Talvez a lã dos casacos aposentados de toda uma família, ou dos casacos herdados de todos os mortos dessa família. Sobre a família de Fenja não sabíamos nada, nem mesmo se tivera uma, antes ou depois da guerra. Nenhum de nós se interessava pela pessoa de Fenja. Mas todos estávamos entregues a ela, pois distribuía o pão. Ela era a senhora do pão, e nós comíamos da sua mão todos os dias.
Nossos olhos ficavam presos a ela, como se fosse inventar o pão especialmente para nós. Nossa fome observava cada minúcia em Fenja. Suas sobrancelhas como duas escovas de dente, o rosto com o queixo proeminente, seus lábios de cavalo levantados demais, e que não cobriam a gengiva por completo, as unhas acinzentadas com a enorme faca para a divisão exata das porções, sua balança de cozinha com os dois pratos em forma de bico. E, principalmente, seus olhos pesados, sem vida, como as contas de madeira do ábaco que ela quase nunca usava. Que Fenja era repugnantemente feia não devíamos confessar nem a nós mesmos. Tínhamos medo de que ela pudesse ler nossos pensamentos.
Logo que os bicos de sua balança começavam a se mover para cima e para baixo, eu passava a segui-los com os olhos. Assim como os bicos, minha língua subia e descia dentro da boca, eu trincava os dentes. A boca eu deixava aberta para que Fenja visse meus dentes sorrirem. Sorria-se por obrigação e por princípio, ao mesmo tempo falsa e verdadeiramente, desprotegida e traiçoeiramente, para não perder a benevolência de Fenja. Para não arriscar a justiça dela; ao contrário, para estimulá-la se possível, e assim aumentar a justiça em um par de gramas.
De nada servia, Fenja permanecia mal-humorada mesmo assim. E tinha o pé direito curto demais. Ela cambaleava tanto até a estante de pães que a dizíamos entrevada. O pé era tão mais curto que chegava a puxar o canto da boca para baixo, o esquerdo sempre, o direito, de vez em quando. E sempre como se o mau humor viesse do pão escuro, não do pé mais curto. Por causa do movimento da boca, o lado direito do seu rosto adquiria um aspecto compungido.
Sendo a responsável pelo pão, o fato de mancar e as torturas em seu rosto tinham algo de fatídico para nós, como o andar cambaleante da história. Fenja trazia algo de santidade comunista. Ela era com certeza uma fiel militar da chefia do campo de trabalho, uma oficial do pão: não fosse assim, jamais teria alcançado o posto de senhora do pão e cúmplice do Anjo da Fome.
Lá estava ela, totalmente sozinha com a enorme faca atrás do balcão, em sua câmara branca, entre a balança de cozinha e o ábaco. Ela deveria conhecer as listas de cabeça. Sabia com exatidão quem deveria receber a ração de seiscentos gramas, quem a de oitocentos gramas e quem a de mil gramas.
Eu havia sucumbido à feiura de Fenja. Com o tempo passei a enxergar nela uma beleza do avesso, que se transformava em adoração. A repulsa poderia endurecer-me, e seria arriscado diante dos bicos da balança. Eu me curvava, e me achava repugnante, mas somente depois de ter saboreado o seu pão e me sentir minimamente satisfeito por alguns minutos.
Hoje, acredito que Fenja distribuía todos os três tipos de pão que eu conhecia na época. O primeiro era o pão cotidiano de Siebenbürgen, desde sempre o pão do Deus evangélico, ácido do suor de seu rosto. O segundo tipo era o pão integral do Reich, das espigas douradas de Hitler. E o terceiro era a ração de chleb na balança russa. E acho que o Anjo da Fome conhecia essa trindade do pão e se aproveitava dela. A fábrica de pão fazia o primeiro envio ao amanhecer. Quando chegávamos ao refeitório, entre seis e sete horas, Fenja acabara de pesar as rações. Diante de cada um de nós, ela punha a ração correspondente outra vez na balança, contrabalançava-a, acrescentava um pedaço ou cortava um canto fora. Então, apontava com a faca para os bicos, mantendo o queixo de cavalo torto com um olhar estranho como se, depois de quatrocentos dias, me visse a cada manhã pela primeira vez.
Já meio ano antes, por ocasião do caso do crime do pão, eu pensara comigo mesmo: a fome nos torna capazes de matar, porque a fria santidade de Fenja se havia infiltrado no pão. Com sua exatidão ao repesar o pão, Fenja nos mostrava a sua justiça. As rações recém-pesadas eram dispostas sob panos brancos nas estantes. A cada ração, ela as cobria e descobria um pouco, assim como os mendigos com experiência o faziam ao vender de porta em porta os pedaços de carvão. Em sua câmara branca de cal, em seu jaleco branco, nos panos brancos, Fenja celebrava a higiene dos pães enquanto cultura do campo de trabalho. Como uma cultura universal. As moscas tinham de pousar nos panos e não no pão. O pão elas só alcançavam quando este passava a nossas mãos. Se elas não se afastassem com rapidez, comíamos sua fome junto com nosso pão. Nunca pensara sobre a fome das moscas, nem mesmo sobre a higiene encenada dos panos brancos.
A justiça de Fenja tornava-me submisso às regras, esse acasalamento entre a boca torta e a precisão da balança. Em Fenja o repugnante era a perfeição. Fenja não era boa nem má, ela não era uma pessoa, mas uma lei usando casacos de tricô. Nunca me passaria pela cabeça compará-la com outras mulheres, porque nenhuma outra exibia disciplina tão torturante e feiura tão imaculada. Ela era como o pão de forma, desejado, horrivelmente úmido, grudento, vergonhosamente nutritivo, e racionado.
Recebíamos de manhã a ração de pão para o dia inteiro. Como a maioria, eu pertencia aos candidatos dos oitocentos gramas, a ração normal. Seiscentos gramas destinavam-se aos que faziam o trabalho leve no campo de trabalho: encher as cisternas com as fezes das latrinas, varrer a neve, fazer a limpeza de outono e primavera, alvejar o meio-fio da rua principal. Mil gramas eram poucos os que recebiam, uma exceção, no caso do trabalho mais pesado. Já seiscentos gramas pareciam muito, mas o pão era tão pesado, que mesmo oitocentos gramas correspondiam a apenas uma fatia da grossura do polegar, se tivesse sido tirada do meio do pão. Se tivéssemos sorte, recebendo a beirada do pão com a crosta angulosa e ressecada, a fatia possuía então dois polegares de grossura.
A primeira decisão do dia era: serei tão firme hoje que não comerei já no café da manhã toda a ração com a sopa de repolho. Posso, em meio a minha fome, guardar um pedaço para a noite. Ao meio-dia não havia nada, estávamos em meio ao trabalho e não precisávamos tomar decisão alguma. À noite, caso eu tivesse resistido durante o café da manhã, vinha a segunda decisão: serei tão firme a ponto de só mexer debaixo do travesseiro para assegurar-me se o pão que economizei continua lá. Posso esperar até que a chamada noturna tenha terminado e só comê-lo no refeitório. Isso poderia demorar ainda duas horas. Se a chamada não terminasse, ainda mais.
Se eu não havia conseguido manter-me firme de manhã, à noite não existia nenhum resto de pão, nem mesmo algo para decidir. Eu enchia a colher somente pela metade, sorvia profundamente. Aprendera a comer devagar, a engolir saliva após cada colherada de sopa. O Anjo da Fome dizia: A saliva prolonga a sopa, e ir dormir cedo encurta a fome.
Eu ia dormir cedo, porém acordava com frequência, porque a úvula inchava e começava a pulsar. Não importava se eu fechava os olhos ou os mantinha abertos, se me revirava ou olhava fixo para a lâmpada de serviço, se alguém roncava como a afogar-se, ou se a minhoca de borracha do relógio cuco ressoava — a noite era incomensuravelmente longa, e, nela, os panos de Fenja infinitamente brancos, e debaixo deles jazia o pão, abundante e inacessível.
De manhã, depois do hino, a fome me apressava em direção ao café da manhã, em direção à Fenja. Em direção a essa primeira decisão sobre-humana: hoje serei firme, eu posso guardar um pedacinho de pão para a noite... e assim por diante.
Até quando.
Todo dia o Anjo da Fome me devorava o cérebro. E um dia ele ergueu a minha mão. E com essa mão estive a ponto de matar Karli Halmen — é o caso do crime do pão.
Karli Halmen tinha o dia inteiro livre e de manhã já terminara o seu pão. Todos estavam trabalhando. Karli Halmen tinha o alojamento para si até a noite. À noite, o pão que Albert Gion guardara havia sumido; Gion se mantivera firme durante cinco dias seguidos e economizara cinco pedacinhos, o equivalente a uma ração diária. Ele passou o dia inteiro no turno conosco e, como todos aqueles que haviam economizado, o dia inteiro pensando na sopa da noite com o pão. E ao voltar do seu turno, assim como todos nós, a primeira coisa que fez foi olhar debaixo do travesseiro. O pão não estava mais lá.
O pão não estava mais lá, e Karli Halmen sentado em sua cama, usando apenas roupa de baixo. Albert Gion postou-se diante dele e, sem dizer palavra, deu-lhe três socos na boca. Karli Halmen cuspiu dois dentes sobre a cama sem dizer uma palavra. O acordeonista levou Karli preso pela nuca até o balde e afundou sua cabeça na água. Ele borbulhou pela boca e pelo nariz, depois estertorou, depois silenciou. O percussionista puxou a sua cabeça para fora d’água e começou a apertar-lhe o pescoço, até que a boca de Karli se contraísse de maneira tão horrível como a de Fenja. Afastei o percussionista com um empurrão, mas, antes disso, tirei um dos sapatos de madeira. E minha mão se ergueu de tal forma, que estive a ponto de matar o ladrão de pães. O advogado Paul Gast, que até então se limitara a assistir a tudo lá de cima da sua cama, pulou nas minhas costas, arrancou o sapato da minha mão e jogou-o contra a parede. Karli Halmen ficou estendido no chão ao lado do balde, havia se mijado e vomitava uma massa de baba e pão.
O desejo de matar devorara-me a razão. Não só a mim, éramos uma matilha. Arrastamos Karli no meio da noite, com sua roupa de baixo cheia de sangue e mijo, para fora do alojamento. Era fevereiro. Nós o apoiamos na parede do alojamento, ele cambaleou e caiu. Sem haver combinado nada, o percussionista e eu abrimos a calça, depois Albert Gion, e depois todos os outros. E como já estava próxima a hora de ir dormir, urinamos, um depois do outro, no rosto de Karli Halmen. Inclusive o advogado Paul Gast. Dois cães de guarda latiram, e em seguida chegou correndo um dos sentinelas. Os cães sentiram o cheiro do sangue e começaram a rosnar, o sentinela praguejou. O advogado e o sentinela carregaram Karli até a enfermaria. Nós os acompanhávamos com os olhos enquanto limpávamos com a neve o sangue das mãos. Voltamos todos mudos para o alojamento e rastejamos até nossas camas. Eu tinha uma mancha de sangue no pulso, virei-o em direção à luz e pensei em como brilhava o sangue de Karli, como um lacre; graças a Deus, sangue da veia e não da artéria. No alojamento não se ouvia uma mosca. E eu ouvia a minhoca de borracha do relógio cuco tilintar como se estivesse dentro da minha cabeça. Eu não pensava mais em Karli Halmen, tampouco no pano infinitamente branco de Fenja, nem mesmo no pão inalcançável. Caí num sono profundo e tranquilo.
Na manhã seguinte a cama de Karli Halmen estava vazia. Fomos para o refeitório como sempre. Também a neve estava vazia, o vermelho havia sumido por baixo da neve que voltara a cair. Karli Halmen ficou dois dias na enfermaria do campo. Depois, com feridas purulentas, olhos fechados pelo inchaço e lábios azuis, ele voltou a sentar-se entre nós no refeitório. O problema com o pão fora resolvido, todos agiam normalmente. Nunca acusamos Karli Halmen de roubo. Ele nunca nos censurou pelo castigo. Sabia que o havia merecido. O tribunal do pão não negocia: pune. A tolerância zero não conhece parágrafos, não precisa de leis. Ela existe porque o Anjo da Fome também é um ladrão, um ladrão que nos rouba o cérebro. O tribunal do pão não conhece preâmbulos ou perorações: vive apenas o momento presente. Totalmente transparente ou totalmente misterioso. De qualquer forma, a violência do tribunal do pão é diferente da violência sem fome. Não é possível apresentar-se diante dele com a moralidade de todos os dias.
O tribunal do pão foi em fevereiro. Em abril, Karli Halmen estava sentado numa cadeira na barbearia de Oswald Enyeter, suas feridas haviam cicatrizado, a barba crescera feito grama pisada. E por ser o próximo, eu esperava atrás dele no espelho, assim como Tur Prikulitsch costumava ficar atrás de mim. O barbeiro colocou suas mãos peludas no ombro de Karli e perguntou: Desde quando perdemos os dois dentes da frente. Sem dirigir-se a mim ou ao barbeiro, apenas às mãos peludas, Karli Halmen disse: Desde o caso do crime do pão.
Depois de ele haver sido barbeado, sentei-me na cadeira. Foi a única vez em que Oswald Enyeter assobiou uma espécie de serenata enquanto me barbeava, e na espuma surgiu uma mancha de sangue. Não de um vermelho brilhante como um selo, mas num tom escuro, como uma framboesa na neve.
A Madona do Quarto Crescente
Quando a fome é grande demais, falamos da infância e de comida. As mulheres são mais detalhistas que os homens ao falar de comida. E são as mulheres dos vilarejos as que se utilizam de mais pormenores. Para elas, cada receita de cozinha tem ao menos três atos, como uma peça teatral. A excitação cresce por causa das divergências quanto aos ingredientes. Divergências que podem aumentar rapidamente, caso ao recheio de toucinho, pão e ovo, seja necessário acrescentar uma cebola inteira, jamais meia cebola, e não apenas quatro, mas seis dentes de alho, e se torne imprescindível que as cebolas e o alho sejam ralados, e não cortados em pedacinhos. E caso seja melhor usar migalhas de um pãozinho do que de um pão normal, e cominho romano melhor do que pimenta do reino, e manjericão, de qualquer forma, o melhor tempero, melhor até do que estragão, sim, combina com peixe sim, com pato é que não combina. E a encenação teatral alcança o seu clímax quando se discute se o recheio deve introduzir-se entre a carne e a pele, para que a gordura possa penetrar o cozimento, ou tem de ser inserido necessariamente na abertura da barriga, para que, ao assar, não se misture com a gordura. Às vezes, o pato com recheio evangélico é que tem razão; noutras, ganha o pato com recheio católico.
E quando as mulheres dos vilarejos preparam verbalmente macarrão para a sopa, levam com certeza uma meia hora até chegarem a um acordo sobre quantos ovos se usam, ou se é melhor misturar com a colher ou amassar com a mão até que a massa do macarrão fique fina e vítrea, mas sem rasgar, e seja posta para secar sobre a mesa. Até que ela seja enrolada e cortada e as tiras de macarrão saiam da mesa da cozinha para a sopa, e até que a sopa cozinhe, lenta ou calma ou rapidamente ou até levantar fervura, até que seja servida, acompanhada de uma boa mão ou só de uma pitada de salsinha recém-picada, até que esteja tudo pronto, leva-se mais um quarto de hora.
As mulheres da cidade não discutem sobre a quantidade de ovos para a massa de macarrão, mas sobre a melhor forma de fazer economia. E como elas economizam tudo o tempo inteiro, suas receitas não servem nem mesmo para o prólogo de uma peça de teatro.
Narrar uma receita de cozinha é uma arte ainda maior do que contar piadas. É necessário que surta efeito, apesar de não ser engraçado. Aqui no campo de trabalho, a piada já começa com: PEGA-SE. O efeito vem de não haver nada para se pegar. Mas ninguém fala abertamente sobre isso. As receitas de cozinha são as piadas do Anjo da Fome. É preciso passar por uma série de olhos curiosos e hostis, até chegar ao alojamento das mulheres. Ao entrar, cumpre dizer, antes mesmo que perguntem, com quem a gente quer falar. O melhor é perguntar logo: A Trudi está. Ao falar, o melhor é já se dirigir à esquerda, terceira fileira, até a cama de Trudi Pelikan. As camas são beliches de ferro, como nos alojamentos dos homens. De algumas camas pende uma cortina de cobertores para o amor noturno. Eu nunca tenho interesse em me esgueirar por trás das cobertas, quero apenas as receitas de cozinha. As mulheres acham que sou demasiado tímido, porque já me viram com livros uma vez. Consideram que ler torna os homens delicados.
Nunca li os livros que trouxe para o campo de trabalho. O papel é algo expressamente proibido; no primeiro ano, escondi durante a metade do verão meus livros atrás do alojamento, debaixo de alguns tijolos. Depois os vendi por quase nada. Por cinquenta páginas de papel para cigarro, de Zaratustra recebi uma medida de sal; por setenta páginas, inclusive uma medida de açúcar. Pelo Fausto inteiro, Peter Schiel me fabricou um pente de latão para piolhos. A coleção Oito Séculos de Poesia eu consumi em forma de farinha de milho e banha de porco, e o pequeno Weinheber transformei em painço. Isso não torna nenhum homem delicado, apenas o deixa mais discreto.
Depois do trabalho, observo discretamente os jovens russos de serviço durante a ducha. Com tanta discrição que já nem eu mesmo sei por quê. Eles me matariam se eu soubesse.
Mais uma vez, não fui firme. Comera todo o meu pão no café da manhã. Mais uma vez, estou sentado no alojamento das mulheres, num canto da cama, ao lado de Trudi Pelikan. As duas Zirri se juntaram a nós, sentando-se uma em frente à outra na cama de Corina Marcu. Há semanas ela está no colcoz. Olho os pelinhos louros e a verruga escura nos dedos magros das duas Zirri e, para não falar logo de comida, conto de minha infância.
Todos os verões, passávamos as férias no campo. Nós: isso significava minha mãe, eu e Lodo, a empregada. Nossa casa de veraneio situava-se no lago Wench, e a montanha em frente era o Schnürleibl. Ficávamos oito semanas. Durante as oito semanas fazíamos todos os dias um passeio a Schäßburg, a cidade mais próxima. Pegávamos o trem lá embaixo, no vale. A estação chamava-se Hétur, em húngaro; Siebenmänner, em alemão. No telhado da guarita, o sino tocava avisando que o trem partia então de Danesch. Chegaria em cinco minutos. Não havia uma estação de trens. Quando o trem chegava, a escada alcançava a altura do meu peito. Antes de embarcarmos, eu observava a parte inferior do vagão — as rodas negras com seu movimento reluzente, as correntes, os ganchos e para-choques. A partir daí, passávamos pelos balneários, pela casa de Toma e pelo campo do velho Zacarias. Ele recebia mensalmente dois pacotes de tabaco a título de pedágio, já que precisávamos passar pela sua plantação de cevada quando íamos tomar banho no lago. Depois vinha a ponte de ferro, debaixo dela corria a água amarelada. Mais ao longe ficavam os penhascos erodidos e a Villa Franca sobre eles. E já estávamos em Schäßburg. A primeira coisa que fazíamos era ir imediatamente ao elegante Café Martini, na praça do mercado. Chamávamos a atenção entre os clientes por estarmos vestidos com demasiada informalidade — minha mãe com saia-calça e eu com calças curtas e meias cinza até o joelho, que não sujavam tão rápido. Somente Lodo usava o seu vestido de domingo, a blusa branca das aldeãs e, na cabeça, o lenço negro com a beirada de rosas e franjas de seda verde. Rosas avermelhadas, do tamanho de uma maçã, talvez maiores do que uma rosa normal. Nesse dia, podíamos comer tudo o que quiséssemos e quanto conseguíssemos. Podíamos escolher entre trufas de marzipã, merengues e savarins, tortinhas de creme, rocambole de nozes, rocambole de creme e biscoitos Ischler, croquetes de avelã, chapéu de Napoleão, nougat e torta Do- bosch. Depois disso, sorvete: sorvete de morango em taça de prata ou sorvete de baunilha em taça de vidro ou sorvete de chocolate em tigelinhas de porcelana, sempre com creme batido. E, para terminar, se ainda conseguíssemos, torta Weichsel com geleia. Eu sentia nos braços o mármore frio da mesa e na parte posterior dos joelhos o veludo da cadeira. E lá em cima, sobre o negro bufê, com seu longo vestido vermelho ao vento do ventilador, balançava-se na ponta dos pés, sobre uma tira de lua, a Madona do Quarto Crescente.
Ao dizer isso, o estômago de todos nós começou a balançar no canto da cama. Trudi Pelikan esticou o braço atrás de mim e apanhou seu pedaço economizado de pão. Todos pegaram sua tigela de latão e enfiaram a colher no casaco. Eu já trouxera meus utensílios, fomos juntos até o refeitório. Dispusemo-nos na fila da sopa. Sentamos todos em torno da longa mesa. Cada um com seu próprio método de colheradas, de modo a estender a sopa. Todos em silêncio. Da ponta da mesa, Trudi Pelikan perguntou, em meio ao barulho do metal: Leo, como se chama o Café.
Eu disse em voz alta: Café Martini.
Duas, três colheradas depois, ela perguntou: E como se chama a mulher na ponta dos pés. Respondi em voz alta: A Madona do Quarto Crescente.
Do próprio pão ao pão da face
Todos caem na armadilha do pão.
Na armadilha de manter-se firme durante o café da manhã, na armadilha da troca de pães durante o jantar, na armadilha da noite com o pão economizado debaixo do travesseiro. A pior armadilha do Anjo da Fome é a da firmeza: Ter fome e ter pão, porém não comê-lo. Ser mais duro consigo mesmo do que a terra congelada. Todas as manhãs o Anjo da Fome nos fala: Pense na noite.
À noite, antes da sopa de repolho, é a hora da troca de pães, já que o pão próprio sempre parece menor que o dos outros. E isso acontece com os outros também.
Antes da troca há um momento de vertigem no cérebro e, depois da troca, imediatamente a dúvida. Depois da troca, na mão do outro, o pão do qual acabo de me desfazer torna-se maior do que era antes, na minha. E o que recebi encolhe em minhas mãos. O outro se vira rapidamente: tem olhos melhores que os meus, saiu ganhando. Preciso trocar novamente. No entanto, o mesmo acontece com o outro: ele imagina que saí ganhando e também busca uma segunda troca. E novamente o pão encolhe em minha mão. Procuro um terceiro para mais uma troca. Outros já começaram a comer. Se a fome aguentar um pouco mais, haverá ainda quarta, quinta trocas. E quando nada mais ajuda, há a possibilidade de desfazer a troca. Assim, volto a ter o meu próprio pão.
A troca do pão é sempre necessária. Sempre acaba mal, e com rapidez. O pão te engana, assim como o cimento. Da mesma forma que ficamos doentes por causa do cimento, podemos ficar doentes de trocar pão. A troca de pães é o burburinho noturno, um comércio que faz os olhos brilharem e os dedos tremerem. De manhã, são os bicos que tateiam as balanças; à noite, os olhos. Para a troca de pães, não se procura somente o pedaço de pão ideal, mas também o rosto ideal. Avalia-se nos outros a abertura da boca. O melhor é que seja estreita e longa como a extremidade de uma foice. Avalia-se o pelo da fome, nas faces encovadas: se os pelos brancos são longos e grossos o suficiente. Antes que a fome dê seu golpe mortal, surge uma espécie de lebre no rosto. Então, calcula-se que nesse caso o pão será desperdiçado, que nesse caso alimentar-se já não compensa, porque em breve a lebre branca terá tomado o seu rosto. Por isso, o pão trocado com estes é chamado de pão da face.
De manhã não dá tempo, mas também não há nada para ser trocado. O pão recém-cortado parece sempre igual. À noite, cada fatia terá secado de uma forma diferente: reta e angulosa ou curva formando uma barriga. Pela óptica do ressecamento, surge a sensação de que o pão te engana. É algo que todos sentem, mesmo os que não fazem trocas. E as trocas estimulam ainda mais esse sentimento. Passa-se de um engano óptico para outro. Depois, continuamos enganados, porém exaustos. A troca do pão próprio pelo pão da face acaba como começa, de repente. O burburinho desaparece, o olhar se fixa na sopa. Numa das mãos segura-se o pão, na outra a colher.
Seguindo a manada, cada um começa automaticamente a prolongar a sopa. As colheres também são uma forma de manada, e os pratos de latão, e os sorvos e o arrastar de pés debaixo da mesa. A sopa esquenta, ela vive na garganta. Eu sorvo ruidosamente, tenho a necessidade de ouvir a sopa. Obrigo-me a não contar as colheradas. Sem contá-las, elas aumentam para mais de dezesseis ou dezenove. Necessito esquecer os números.
Uma noite, o acordeonista Konrad Fonn fez uma troca com Kati-Plantão. Ela lhe deu seu pedaço de pão, contudo ele entregou-lhe um pedaço quadrado de madeira. Ela deu uma mordida, surpreendeu-se e engoliu o vazio. Ninguém além do acordeonista riu. Karli Halmen tirou a pequena tábua de madeira das mãos de Kati-Plantão e a afundou na sopa de repolho do acordeonista. E devolveu a Kati-Plantão o que lhe pertencia.
Todos caem na armadilha do pão. Porém ninguém tem o direito de apoderar-se do pão da face de Kati-Plantão. Essa também é uma lei do pão. No campo de trabalho aprendemos a lidar com os mortos sem horrorizar-nos. Nós os desvestimos antes que endureçam: precisamos de suas roupas para não morrer de frio. E comemos o pão que eles haviam economizado. Após o último alento, a morte transforma-se num ganho para nós. No entanto, Kati-Plantão está viva, mesmo que não saiba onde se encontra. Mas nós sabemos e a tratamos como nossa propriedade. Com ela podemos reparar o que fazemos uns aos outros. Enquanto ela viver entre nós, pode-se dizer que somos capazes de qualquer coisa, mas não de tudo. Esse fato talvez seja mais valioso do que a própria Kati-Plantão.
Sobre o carvão
Há tanto carvão como há terra, mais do que suficiente.
A HULHA vem de Petrovka, cheia de pedregulhos acinzentados, pesada, úmida e grudenta. Tem um cheiro azedo de queimada, seus pedaços são porosos como o grafite. Ao ser moída no Molina e lavada no Moika, sobram muitos resíduos.
O CARVÃO SULFUROSO chega de Kramatorsk, quase sempre por volta de meio-dia. Debaixo do Jama está o silo de carvão, um buraco enorme debaixo da terra, e sobre ele, uma grade. Os vagões são posicionados um a um sobre a grade. Cada vagão é um Pullman de sessenta toneladas e tem cinco portas na parte inferior. Elas são abertas com a ajuda de martelos, cinco vezes, como os gongos do cinema, isso se elas se abrem logo na primeira tentativa. Se funciona logo no início, não é necessário subir no vagão, o carvão escorre todo de uma vez só. A poeira escurece a vista, o sol torna-se cinza como uma tigela de latão grudada no céu. Respira-se mais poeira do que ar, os dentes rangem. Em quinze minutos descarregam-se sessenta toneladas. Sobre o Jama restam apenas alguns pedaços grandes demais e poeira. O carvão sulfuroso é leve, poroso e seco. Brilha, cristalino como mica; é feito de fragmentos e poeira. Não tem grãos. Contém enxofre, mas não exala cheiro. O enxofre do carvão só aparece bem depois, como um resíduo amarelo nas poças no pátio da fábrica. Ou à noite, onde ficam os blocos de escória, quando a entulheira acende seus olhos amarelos e brilha, como se a habitassem pequenos fragmentos de lua.
O CARVÃO-MARKA-K vem da mina Rudnij, bem perto daqui. Não é gorduroso nem seco, não é pedregoso, nem arenoso, nem granulado. Ele é tudo e nada ao mesmo tempo e, de qualquer forma, miserável. Tem muito antracito, com certeza, porém nenhum caráter. Dizem que é o carvão mais precioso. O antracito nunca foi meu amigo, nem mesmo um amigo incômodo. Ele era traiçoeiro, difícil de descarregar, como se enterrássemos a pá num novelo ou num raizame.
O Jama é como uma estação de trens, semicoberto e exposto à intempérie. Um vento cortante, o frio que penetra no corpo, os dias curtos, a luz elétrica já ao meio-dia. A poeira do carvão misturando-se com a poeira da neve. Ou então, vento e chuva atravessados no rosto e, pelo teto, gotas ainda mais grossas. Ou um calor abrasador e longos dias acompanhados pelo sol e pelo carvão até desmaiar. E tão difícil como descarregá-lo é o nome desse carvão. Carvão-Marka-K é algo que a gente só consegue gaguejar; nunca um sussurro, como é o nome do carvão de gás: Hasoweh.*
O CARVÃO DE GÁS é ágil. Ele vem de Jasinovataja. O natschalnik chama o carvão de gás, quase num sussurro, de HASOWEH. Lembra uma lebre ferida. Por isso, gosto dele. Cada vagão contém nozes, avelãs, milho e ervilhas. As cinco portas se abrem com facilidade, nós as abrimos, por assim dizer, com luvas, e elas se destampam. O Hasoweh dá cinco murmúrios, solto, acinzentado, apenas ele mesmo, sem resíduos. Observamos e pensamos: O Hasoweh tem um coração brando. Ele é descarregado, e as grades se mostram tão vazias, como se nada houvesse passado através delas. Nós ficamos lá em cima, sobre as grades. Lá embaixo, na barriga do Jama, deve haver cadeias de montanhas e vales de carvão. Aqui o Hasoweh também constrói seu armazém.
Também em nossas cabeças há um armazém. Sobre o Jama, o ar de verão treme como em casa, e o céu está acetinado como em casa. No entanto, em casa, ninguém sabe que ainda estou vivo. Em casa, neste momento, meu avô come salada fria de pepino na varanda e acha que estou morto. Minha avó chama as galinhas, com sons cacarejantes, para a sombra do tamanho de um quarto ao lado do alpendre, dá-lhes de comer e pensa que estou morto. Minha mãe e meu pai talvez estejam no Wench. Minha mãe, deitada na grama, usando o traje de marinheiro que ela mesma costurou, crê que já estou no céu. E eu não posso sacudi-la e dizer: Você gosta de mim, ainda estou vivo. E meu pai está sentado à mesa na cozinha, enchendo aos poucos os cartuchos, as pequenas bolinhas de metal que servirão para caçar lebres no outono que se aproxima. Hasoweh.
* Criação poética da autora, remete às palavras Hase (lebre) e Weh, weh (dor, dolorido). (N. T.)
Como os segundos se estendem
Estive caçando.
Kobelian não estava, e na estepe, no segundo outono que se aproximava, eu matei com a minha pá um esquilo da terra. Ele soltou um assobio curto como um trem. Como os segundos se estendem quando a testa se abre na diagonal sobre o focinho. Hasoweh.
Eu queria comê-lo.
Aqui há apenas grama. E com grama não é possível pregar coisa nenhuma, e com a pá não é possível tirar a pele de nada. Eu não tinha as ferramentas, nem a coragem. Nem tempo, Kobelian havia voltado e o viu. Eu o deixei então ali estendido, como os segundos se estendem quando a testa se abre na diagonal sobre o focinho. Hasoweh.
Pai, uma vez você quis ensinar-me a assobiar quando alguém se perde.
Sobre a areia amarela
A areia amarela pode apresentar todas as tonalidades: desde o louro oxigenado até o amarelo-canário, inclusive se aproximando de algumas nuances do rosé. É delicada, e dá pena ver quando a misturam com o cimento acinzentado.
Tarde da noite, Kobelian transportava com Karli Halmen e comigo um novo carregamento particular de areia amarela. Desta vez ele disse: Vamos até a minha casa. Não estou construindo nada, mas o feriado já está aí e, afinal, temos cultura.
Karli Halmen e eu entendemos: a areia amarela era cultura. Utilizavam-na também como enfeite nas calçadas, no pátio do campo de trabalho e na fábrica, depois da limpeza de primavera e de outono. Era a decoração primaveril, por ocasião do final da guerra, e outonal, por ocasião da Revolução de Outubro. Dia 9 de maio, completava-se um ano de paz. Contudo, mais uma vez, ela não nos serviu de nada: foi nosso segundo ano no campo de trabalho. E chegou o mês de outubro. A decoração primaveril feita com areia amarela fora arrastada, havia muito, pelo vento dos dias secos e pela força das chuvas. Agora, nova areia amarela decorava o outono no campo de trabalho como cristais de açúcar. Bela areia para o grande outubro, mas de forma alguma um sinal de que poderíamos voltar para casa.
Tampouco nossos carregamentos eram feitos por causa da sua beleza. Trazíamos toneladas de areia amarela, alimento para os canteiros de obras. O areal chamava-se CARJERA. Era inesgotável: ao menos trezentos metros de comprimento e de vinte a trinta metros de profundidade; por todo lado, somente areia. Uma arena de areia numa extração a céu aberto de areia. Suficiente para abastecer toda a região. E quanto mais areia se extraía, maior ficava a arena, mais ela se infiltrava no solo.
Se éramos chitrij, espertos, levávamos o caminhão até dentro do areal, de modo que o movimento com a pá não fosse muito para cima, mas na nossa altura, ou até comodamente para baixo.
O carjera era impressionante, parecia a marca de um dedão do pé. Areia pura, nenhum grão de terra. Camadas retilíneas e horizontais, brancas como cera, pálidas como a pele, de um amarelo-claro, um amarelo forte, ocre e rosé sobrepostos. Fria e úmida. Ao ser tirada com a pá, a areia grudava em pequenos flocos, e secava ao voar pelos ares. A pá trabalhava sozinha. O caminhão se enchia depressa. E se descarregava automaticamente, um basculante. Karli Halmen e eu esperávamos no areal até que Kobelian voltasse.
Até mesmo Kobelian deixava-se cair na areia e ficava ali deitado, enquanto nós terminávamos o carregamento. Chegava a fechar os olhos, talvez dormisse. Quando o caminhão estava cheio, batíamos de leve com a ponta da pá no seu sapato. Ele levantava de um pulo e se dirigia a passos largos até a cabine, como um feixe de músculos. Na areia ficava a marca do seu corpo, como se Kobelian estivesse presente duas vezes: uma, deitado naquela forma côncava; e outra, em pé ao lado da cabine, com os fundilhos das calças úmidos. Antes de subir, ele cuspia duas vezes na areia, segurava o volante com uma mão e esfregava os olhos com a outra. Então ele partia.
Agora Karli e eu nos deixamos cair na areia e escutamos como ela se move para adaptar-se ao corpo, não fazemos nada além disso. O céu se curvava lá em cima. Entre o céu e a areia, uma cicatriz de grama se estendia à guisa de linha zero. O tempo silencioso e liso, uma centelha microscópica ao redor. A distância se infiltrava em nossas cabeças, como se tivéssemos fugido e pertencêssemos a qualquer areia em qualquer lugar no mundo, e não a dos trabalhos forçados daqui. Era como fugir deitado. Eu girava os olhos, eu tinha escapado sob o horizonte, sem perigos nem consequências. A areia me segurava por baixo, pelas costas, e o céu elevava o meu rosto em sua direção. Logo depois o céu ficou cego, e meus olhos o puxavam para baixo, os globos oculares e as têmporas repletas de céu, totalmente imóveis e azuis. Coberto de céu, ninguém sabia onde estou. Nem mesmo a nostalgia. Na areia, o céu não punha o tempo em marcha, mas tampouco podia fazê-lo voltar, assim como a areia amarela não podia modificar a paz, nem a terceira, nem a quarta. Mesmo após a quarta paz, continuávamos no campo de trabalho.
Karli Halmen estava ali deitado, de boca para baixo em seu côncavo. As cicatrizes do seu roubo de pão brilhavam feito rasgos de cera através do seu cabelo curto. Na orelha, cintilava a seda vermelha das pequenas veias. Pensei no meu último rendez-vous no Erlenpark e nas termas Netuno, com aquele romeno casado e que tinha o dobro da minha idade. Por quanto tempo teria ele me esperado quando, pela primeira vez, não apareci. E quantas vezes, até entender que eu não voltaria na vez seguinte, nem nunca mais. Kobelian demoraria ao menos meia hora para voltar.
E mais uma vez minha mão se ergueu, na intenção de acariciar Karli Halmen. Por sorte, ele me ajudou a abandonar a tentação. Afastou o rosto da areia, havia comido areia. Ele a mastigava e rangia em sua boca, e engoliu. Eu fiquei paralisado, e ele encheu a boca pela segunda vez. Os grãos de areia escorriam das suas faces ao mastigar. E suas marcas eram uma peneira sobre as faces e o nariz e a testa. E as lágrimas em ambas as faces eram um cordão marrom-claro.
Quando criança, eu mordia os pêssegos e os deixava cair com a mordida para baixo, disse ele. Então eu os pegava e mordia a parte cheia de areia, e novamente os deixava cair, até que restasse apenas o caroço. Meu pai me levou ao médico, porque não era normal que eu gostasse de comer areia. Agora tenho tanta areia, mas não sei mais como é o aspecto de um pêssego.
Eu disse: Amarelo, com uma suave pelagem e uma leve seda vermelha em volta do caroço.
Ouvimos o caminhão que chegava e nos levantamos.
Karli Halmen pegou a pá e começou a trabalhar. Enquanto enchia a pá, as lágrimas escorriam. Quando fez voar a areia, elas se esgueiraram pelo lado esquerdo da boca e pelo direito na orelha.
Os russos também têm
seus truques
Karli Halmen e eu voltamos a atravessar a estepe no Lancia. Os esquilos da terra corriam em todas as direções. Por todos os lados havia marcas de rodas, tufos de grama aplainados e envernizados de marrom-carmim com sangue seco. Por toda parte a procissão de nuvens de moscas sobre a pele arrebentada com os intestinos para fora. Muitos brilhavam ainda frescos, branco-azulados, enroscados como colares de pérolas amontoados. Outros eram de um azul-avermelhado e meio podres, ou já tão ressequidos como flores secas. E mais além das marcas de rodas estavam os esquilos da terra que haviam sido lançados para longe, como se as rodas não os tivessem atingido, como se dormissem. Karli Halmen disse: Mortos parecem tábuas de passar. Surpreendia-me que ele pensasse em algo assim, eu já tinha esquecido essa palavra.
Havia dias em que os esquilos da terra tinham muito pouco medo das rodas. Talvez nesses dias o vento tivesse um rugido semelhante ao barulho do caminhão e confundisse seus instintos. Quando as rodas se aproximavam, eles corriam, porém aturdidos, de forma alguma a ponto de salvarem a própria vida. Eu tinha certeza de que Kobelian nunca se dava ao trabalho de desviar de um esquilo da terra. E igualmente, tinha certeza de que nunca atropelara um deles, nenhum deles tinha chiado sob as rodas. De qualquer forma, o assovio agudo não teria sido ouvido, pois o Lancia era barulhento demais.
Mesmo assim, sei como é o chiado de um esquilo da terra debaixo de um caminhão, porque ressoa em minha cabeça a cada viagem. É um chiado breve, de rasgar o coração, três sílabas sucessivas: Hasoweh. Como quando você o mata com a pá, igual, porque ocorre com idêntica rapidez. E sei também como nesse lugar a terra se apavora e vibra em círculos, como quando uma pedra grande cai na água. E sei também como o lábio arde logo depois, porque o mordemos ao atingir o animal de um golpe e com toda a força.
Desde que o deixei estendido no chão, tento convencer-me de que esquilos da terra não são comestíveis, mesmo que não se tenha o menor rastro de compaixão pelos vivos, nem um pouco de asco dos mortos. Se eu os tivesse, o asco e a compaixão não se voltariam para os esquilos da terra, mas para mim mesmo. Seria apenas o asco por causa da minha hesitação compassiva, não por causa dos esquilos da terra.
Mas se Karli e eu tivéssemos tempo da próxima vez, se pudéssemos descer até que Kobelian houvesse enchido os seus três ou quatro sacos com grama nova para as suas cabras, se tivéssemos tempo suficiente... Acho que Karli Halmen não o faria, por causa da minha presença. Eu teria de perder tempo e ser convincente, até que fosse quase tarde demais, quando tivéssemos tempo da próxima vez. Não é preciso sentir vergonha de um esquilo da terra, eu argumentaria, nem da estepe. Acho que ele se envergonharia de si mesmo, de qualquer forma, mais do que eu de mim. E mais do que eu de Kobelian. Talvez eu devesse perguntar-lhe por que fazer de Kobelian uma medida. Tenho certeza disto e precisaria dizer: se Kobelian estivesse tão longe de casa como nós, ele comeria esquilos da terra.
Às vezes havia na estepe apenas tufos de grama marrom-carmim aplainados, de um dia para o outro. E todas as nuvens haviam derretido de um dia para o outro. Restavam apenas as esquálidas gralhas no alto do céu e as selvagens e gordas moscas azuis sobre a terra. Mas sequer um único esquilo da terra morto na grama.
Onde estão eles, eu perguntaria a Karli. Olhe: os russos, por que tantos deles vão a pé pela estepe e se agacham. Ficam sentados por um tempo. Você presume que descansam, que todos estão fatigados. Eles também possuem um ninho no crânio, como nós, o mesmo estômago vazio. Os russos também têm seus truques. E mais tempo do que nós, e aqui na estepe eles estão em casa. Kobelian não se opõe. Por que na cabine há sempre, ao lado do freio, uma pá de cabo curto, se ele arranca a grama com as mãos. Quando não estamos presentes, ele não desce do caminhão apenas em busca de grama para as cabras, eu diria para Karli e sem precisar mentir, já que desconheço a verdade. E mesmo se a conhecesse, seria apenas uma das verdades, e o oposto seria a outra. Também você e eu somos uma coisa com Kobelian e outra sem ele, eu acrescentaria. Eu também sou diferente sem você. Só você imagina ser sempre igual. Mas ao roubar o pão você foi diferente, e eu fui diferente e todos foram — mas isso eu não falaria jamais, porque seria uma acusação.
O pelo fede ao queimar. Eu tiro a pele, você acende o fogo rapidamente, eu sugeriria, se Karli Halmen decidisse por fim participar.
Karli Halmen e eu atravessávamos frequentemente com Kobelian a estepe. Uma semana depois estávamos lá em cima no Lancia. O ar era pálido, a grama alaranjada, o sol empurrava a estepe em direção ao final do outono. O orvalho cobrira de açúcar os esquilos da terra atropelados. Passamos por um homem velho. Ele estava no meio do redemoinho de poeira e acenou para nós com a pá, que possuía um cabo curto. Do seu ombro pendia um saco, estava cheio só até a quarta parte e pesava. Karli afirmou: Esse não está colhendo grama. Se tivéssemos tempo da próxima vez, se pudéssemos descer... Kobelian não se opunha, mas você quer ser sensível, nunca participaria.
Não é à toa que se usa a expressão fome cega. Karli Halmen e eu não sabíamos muito um do outro. Passávamos demasiado tempo juntos. E Kobelian não sabia nada de nós, nem nós nada dele. Todos éramos diferentes do que somos.
Sobre os abetos
Um dia, pouco antes do Natal, eu estava sentado com Kobelian na cabine do caminhão. Embora já escurecesse, fizemos mais uma viagem clandestina até a casa do seu irmão. Tínhamos um carregamento de carvão.
A estação em ruínas e os paralelepípedos indicavam que começava uma cidade. Viramos numa sinuosa e esburacada rua periférica. No céu ainda se via uma linha de claridade, atrás de uma cerca de ferro fundido estavam os abetos — negros como a noite, esbeltos e pontiagudos, era possível avistá-los, acima de todo o resto. Kobelian parou três casas adiante.
Quando comecei a descarregar, ele agitou a mão flácida, o que significava: Não tão rápido, temos tempo. Ele entrou numa casa provavelmente branca, mas amarelada sob a luz dos faróis.
Larguei o casaco sobre o teto da cabine e comecei a trabalhar com a pá, o mais devagar possível. Porém a pá era meu senhor e ditava o tempo, cabia-me obedecer-lhe. Depois ela se sentia orgulhosa de mim. Havia anos o trabalho com a pá era o único que ainda me permitia um resto de orgulho. Logo o caminhão ficou vazio, e Kobelian continuava na casa do seu irmão.
Às vezes um plano amadurece lentamente, mas é eletrizante quando se toma uma rápida decisão e, antes de confiar nela, se é assaltado por sua inesperabilidade. Eu já havia vestido o casaco. Enquanto eu me dizia que o roubo traz consigo o cárcere, mais meus pés corriam em direção aos abetos. O portão de grades não estava trancado. Devia ser um parque abandonado ou um cemitério. Parti todos os ramos inferiores, depois tirei o casaco e os envolvi com ele. Deixei o portão aberto e me apressei em voltar à casa do irmão de Kobelian. Esta agora se mostrava branca e à espreita na escuridão; os faróis não brilhavam mais, Kobelian havia fechado também a porta do carregamento. De meu feixe de ramos emanava um cheiro forte de resina e medo quando o joguei por cima da minha cabeça no caminhão. Kobelian estava na cabine e fedia a vodca. É o que digo hoje, mas naquele instante pensei: ele cheira a vodca. Não costuma beber e só toma vodca para acompanhar pratos gordurosos, ponderei. Ele podia muito bem ter pensado um pouco em mim.
Quando fica tão tarde, nunca se sabe o que pode acontecer na porta do campo de trabalho. Três cães de guarda latiram. O guarda, num empurrão, arrancou com o fuzil o feixe dos meus braços. Os ramos caíram no chão, sobre o casaco com a gola de veludo. Os cães farejaram os ramos e depois o casaco. E o mais forte deles, talvez o cão dominante naquele grupo, arrastou o casaco em seu focinho como um cadáver pela metade do pátio, até o local da chamada. Fui atrás dele e consegui salvar o casaco, mas somente porque ele o soltou.
Dois dias depois, o homem dos pães passou por mim com seu carrinho de mão. E sobre o pano branco havia uma nova vassoura, fabricada com um cabo de pá e meus ramos de abetos. Faltavam três dias para o Natal — uma palavra que pede abetos verdes nos cômodos. Restavam-me na mala apenas as luvas rasgadas de lã verde de minha tia Fini. Havia duas semanas, o advogado Paul Gast trabalhava como mecânico numa fábrica. Encomendei-lhe arame. Ele me trouxe um feixe de arames cortados com um palmo de comprimento, amarrados numa das extremidades como uma borla. Construí uma árvore de arame, desfiz as luvas e amarrei os fios verdes de lã, tão espessos como agulhas, nas ramas.
A árvore de Natal foi colocada sobre a mesinha debaixo do relógio cuco. O advogado Paul Gast pendurou nela duas bolas escuras de pão. Na ocasião não me perguntei como ele tinha pão de sobra para usar de enfeite, porque eu estava certo de que ele comeria as bolas de pão no dia seguinte e porque, ao amassá-las, ele falou sobre o período de Natal em sua casa.
Durante a época de Advento, em nossa escola em Oberwischau, todas as manhãs antes da primeira aula se acendia a coroa de Advento. Ficava pendurada sobre a mesa do professor. Nosso professor de geografia se chamava Leonida e estava completamente careca. As velas queimavam e nós cantávamos Oh Tannenbaum, oh Tannenbaum, wie grün sind deine Blä... Paramos de cantar na mesma hora ao ouvir o grito de Leonida: AI. Havia pingado cera cor-de-rosa sobre a sua careca. Leonida gritou: Apaguem as velas. Cambaleou até o respaldo da cadeira e tirou do paletó uma faca dobrável de alumínio; era um peixe prateado. Venha cá, chamou Leonida e, abrindo a faca, se inclinou. Raspei-lhe com a faca a cera da calva. Não o cortei. No entanto, quando voltei para minha carteira, ele veio direto em minha direção e me deu uma bofetada. Quando eu quis secar as lágrimas dos olhos, ele gritou: Mãos para trás.
Dez rublos
Bea Zakel conseguira para mim um propusk de Tur Prikulitsch, um passe para o bazar. Não se deve falar a um esfomeado sobre a perspectiva de dar uma volta ao ar livre. Não contei a ninguém. Peguei minha fronha e as polainas de couro do sr. Carp; tratava-se como sempre das manobras de troca de calorias. Saí às onze horas; saímos minha fome e eu.
Ainda persistia a neblina da chuva. Na lama havia vendedores de parafusos enferrujados e de rodas dentadas e mulheres enrugadas com faqueiros de alumínio e pequenos montes de tinta azul para as casas. Em volta das tintas, as poças eram azuis. E ao lado havia montes de açúcar e sal, ameixas secas, farinha de milho, painço, cevada e ervilhas. Até bolo de milho com purê de beterraba sobre folhas verdes de rábanos picantes. Mulheres sem dentes com leite espesso e coalhado em bidões de latão e um garoto de uma só perna com uma muleta e um balde cheio de aguardente de framboesa. Ágeis vagabundos perambulavam por ali com facas, garfos e anzóis escondidos. Nas latas de conservas americanas, pequenos peixes prateados nadavam rapidamente como alfinetes de segurança vivos.
Com minhas polainas de couro no braço, embrenhei-me pela multidão. Diante de um velho uniformizado, com entradas nos cabelos e um peitoral com dezenas de condecorações de guerra, estavam dois livros, um sobre o Popokatepetl e outro com duas pulgas gordas na capa. Folheei o livro das pulgas, que tinha muitas ilustrações. Duas pulgas num balanço, ao lado a mão do domador com um pequeníssimo chicote; uma pulga sobre o respaldo de uma cadeira de balanço, uma pulga arreada a uma carruagem de casamento feita com uma casca de noz; o peito de um jovem com duas pulgas entre os mamilos e, simetricamente até o umbigo, duas correntes iguais de mordidas de pulgas.
O uniformizado arrancou as polainas de couro do meu braço, ergueu-as diante do peito e depois as colocou sobre o ombro. Indiquei-lhe que eram para as pernas. Ele soltou uma gargalhada oca da barriga, como fazia Tur Prikulitsch às vezes durante a chamada, como gritam os perus grandes. Seu lábio superior ficava sempre na linha dos dentes. O vendedor ao lado se aproximou, friccionou os cordões de couro das polainas entre os dedos. Então veio um com facas na mão, guardou sua mercadoria no bolso do paletó e colocou as polainas à esquerda e à direita sobre o quadril, e depois no traseiro, enquanto pulava feito um palhaço. O uniformizado banguela o acompanhava simulando peidos com a boca. Nisso se aproximou outro, com o pescoço envolto em panos e uma muleta, cujo apoio era uma gadanha quebrada, envolta em trapos. Ele enfiou a muleta numa das polainas e a jogou pelos ares. Eu corri para buscá-la. Um pouco mais adiante veio voando minha segunda polaina. Quando me agachei para pegá-la, havia, além da polaina, uma cédula amassada na lama.
Alguém a perdera, tomara que ainda não tenha dado falta dela, pensei. Talvez já a esteja procurando, talvez alguém daquela horda já tenha visto a cédula enquanto me ridicularizavam, ou precisamente agora, ao me abaixar, e está esperando para ver o que eu faço. A horda continuava rindo de mim e das minhas polainas, mas eu já tinha o dinheiro apertado no punho.
Eu precisava desaparecer o mais rápido possível e me perdi na multidão. Apertei as polainas debaixo do braço e alisei a cédula, eram dez rublos.
Dez rublos eram uma fortuna. Nada de cálculos, apenas comer, pensei, e o que eu não conseguir comer irá para a fronha. Já não tinha mais tempo para as polainas de couro, essa vergonhosa mercadoria de outro planeta só servia para chamar a atenção sobre mim. Deixei que elas escorregassem da axila até o chão e me apressei com meus dez rublos na direção contrária, como um pequeno peixe prateado.
Minha garganta pulsava, estava banhado em suor, de medo; comprei por dois rublos dois copos de aguardente de framboesa e bebi tudo de um só gole. Comprei então dois bolos de milho com purê de beterraba e comi até as folhas de rábanos picantes; amargas, certamente fariam bem para o estômago, como um remédio. A seguir, comprei quatro panquecas russas com recheio de queijo. Duas para a fronha, duas comi ali mesmo. Então, bebi uma caneca de leite espesso e coalhado. Comprei, ainda, dois pedaços de bolo de girassol e os devorei. Depois, avistei o garoto de uma perna só e tomei mais uma caneca de aguardente de framboesa. Contei então meu dinheiro: um rublo e seis copeques. Não dava mais para o açúcar, nem mesmo para o sal. Enquanto eu contava, a mulher das ameixas secas me observava com seu olho marrom e com o outro, totalmente branco, sem pupila, como um feijão. Mostrei-lhe o dinheiro em minha mão. Ela o empurrou para longe, disse não e agitou os braços como se espantasse moscas. Fiquei paralisado e continuei mostrando-lhe o dinheiro. Comecei a tremer, fiz o sinal da cruz e murmurei, como se rezasse: Pai Nosso, ajude-me diante desta horrível tartaruga amaldiçoada por Deus. Deixe-a cair em tentação, meu Senhor, e livre-me de todo o mal, eu murmurava isso pensando na fria santidade de Fenja e finalizei o murmúrio com um duro e claro AMÉM, para dar um formato às minhas preces. Comovida, a mulher me olhou fixamente com seu olho de feijão. Depois pegou meu dinheiro e encheu um gorro cossaco, verde e velho, com ameixas secas. Metade guardei na fronha, o resto pus no meu gorro de algodão, para comê-las ali mesmo. E quando as ameixas do gorro acabaram, comi as duas panquecas que sobravam na fronha. Com exceção das ameixas secas restantes, não havia mais nada na fronha.
O vento soprava cálido entre as acácias, a lama secava e descascava nas poças como xícaras cinzentas. Na trilha ao lado da estrada que conduzia ao campo de trabalho, uma cabra caminhava em círculos. Seu pescoço estava ferido de tanto que ela forçava a corda. Esta se enrolara de tal forma ao poste, que o animal não alcançava mais a grama. Tinha o olhar desviante e alongado e verdoso de Bea Zakel e o ar atormentado de Fenja. Ela queria ir atrás de mim. Lembrei-me das cabras azuis congeladas, partidas ao meio, que havíamos queimado no vagão de animais. Eu estava ainda na metade do caminho de volta, ficara tarde e, ainda por cima, chegaria ao portão do campo de trabalho com ameixas secas. Para conservá-las a salvo do guarda, enfiei a mão na fronha e as comi. Através dos álamos atrás do vilarejo russo, avistava-se a torre de refrigeração da fábrica. Por cima da sua nuvem branca, o sol se tornou quadrado e escorregou para dentro da minha boca. Meu céu da boca estava como que fechado por um muro, arquejava. Sentia pontadas no estômago, os intestinos estrepitavam e se reviravam feito uma cimitarra em minha barriga. Eu revirava os olhos, a torre de refrigeração começou a girar. Ao apoiar-me numa amoreira, a terra debaixo dela passou a girar. Um caminhão começou a se agitar pela estrada. Na calçada três vira-latas se fundiam uns nos outros. Vomitei na árvore e senti tanta pena por causa da comida tão cara, que eu vomitava e chorava.
Depois estava tudo ali, brilhando junto à amoreira.
Tudo, tudo, tudo.
Apoiei a cabeça no tronco e olhei para o brilho mastigado, como se pudesse voltar a comê-lo com os olhos. Passei pelo vento oco da primeira torre de vigilância, com a fronha e o estômago vazios. Eu era o mesmo de antes, só que sem as polainas de couro. Polainas de vida. Da torre de vigilância, o guarda cuspia cascas de sementes de girassol, elas voavam pelo ar feito moscas. O vazio dentro de mim era amargo como fel, sentia-me péssimo. Porém, durante os primeiros passos pelo pátio do campo de trabalho, voltava a pensar se restaria ainda sopa de repolho no refeitório. Este já havia fechado. E no compasso barulhento dos meus sapatos de madeira, eu me dizia:
Existe a matrona com sua nuvem branca. Minha pá existe, e um lugar no alojamento, e certamente também um espaço entre a fome e morrer de fome. Tenho apenas que achá-lo, porque a comida é mais forte do que eu. A fria santidade da paralisante Fenja está certa. Ela é justa e me distribui a comida. Para que o bazar. O campo de trabalho me mantém preso para o meu próprio bem, só podem ridicularizar-me em lugares aos quais não pertenço. No campo de trabalho estou em casa, o guarda da manhã me reconheceu, agitou o braço mandando-me passar. E seu cão de guarda continuou deitado sobre o chão quente, ele também me conhece. E o pátio da chamada me conhece, e posso encontrar o caminho para meu alojamento até com os olhos fechados. Não preciso de nenhum passe: tenho o campo de trabalho e o campo de trabalho me tem. Preciso apenas de uma cama e do pão de Fenja e da minha tigela de latão. Não preciso nem mesmo do Leo Auberg.
Sobre o Anjo da Fome
O Anjo da Fome é um objeto.
O Anjo me subiu ao cérebro.
O Anjo da Fome não pensa. Ele pensa corretamente.
Ele nunca falha.
Ele conhece meus limites e sabe a sua direção.
Ele sabe minha procedência e conhece seu efeito.
Ele já o sabia antes de me encontrar e conhece meu futuro.
Ele adere como mercúrio a todos os capilares. Algo doce no céu da boca. Ali a pressão atmosférica comprimiu o estômago e o tórax. É demais o medo.
Tudo se tornou leve.
O Anjo da Fome caminha unilateral com um olho aberto. Vacilante, descreve círculos estreitos e oscila no balanço da respiração. Ele conhece a nostalgia no cérebro, e no ar os becos sem saída.
Por outro lado, o Anjo do ar caminha com a fome aberta.
Ele sussurra a si mesmo e no meu ouvido: Onde se carrega também se pode descarregar. Ele é feito da mesma carne que ele engana. A que terá enganado.
Ele conhece o pão próprio e o pão da face e envia antes a lebre branca.
Ele diz que voltará, mas fica ali.
Quando vem, ele o faz com força.
A clareza é grande:
1 movimento com a pá = 1 grama de pão.
A fome é um objeto.
Os segredos latinos
Depois de comer, arrastávamos as longas mesas de madeira e os bancos do refeitório até a parede. De vez em quando tínhamos permissão para dançar até quinze para a meia-noite de sábado. Depois voltávamos a arrumar tudo novamente em seu lugar. Às doze em ponto surge do alto-falante do pátio o hino russo, nessa hora cada um já deve estar em seu alojamento. Aos sábados os guardas estão de bom humor por causa da aguardente de beterraba, e é fácil que lhes escape um tiro. Quando no domingo pela manhã há alguém estendido no pátio, significa: tentativa de fuga. O fato de ele precisar atravessar o pátio correndo e de ceroula, porque seu intestino doído não consegue mais digerir a sopa de repolho, não é desculpa. Apesar disso, de vez em quando nos permitimos um tango no refeitório. Ao dançar vivemos na ponta dos pés, como a Madona do Quarto Crescente no Café Martini, do mundo de onde viemos. Em um salão de dança com guirlandas e lampiões, com vestidos de baile, broches, gravatas, lenços de bolso e abotoaduras, minha mãe, com dois cachos espiralados na face e um coque parecendo um cestinho de vime, dança com sandálias bege de salto alto e finas tiras como cascas de pera nos calcanhares. Ela usa um vestido verde de seda rasa e, bem em cima do coração, um broche com quatro esmeraldas, um trevo da sorte. E meu pai veste o terno cinza-areia com um lenço branco e um cravo branco na jaqueta.
Eu, porém, danço como trabalhador forçado e uso piolhos na pufoaika e panos fedidos para os pés nas galochas de borracha e me sinto enjoado com o salão de dança da minha terra e o vazio no estômago. Danço com uma das duas Zirri, com Zirri Kaunz, que tem a pelagem sedosa nas mãos. A outra, com a verruga do tamanho de uma azeitona debaixo do dedo anular, chama-se Zirri Wandschneider. Durante a dança, Zirri Kaunz me assegura que é de Kastenholz, e não de Wurmloch como a outra. E que sua mãe foi criada em Agneteln e seu pai em Wolkendorf. Que seus pais, antes de ela vir ao mundo, se mudaram para Kastenholz, onde seu pai comprara um grande vinhedo. Há também um povoado, Liebling, eu digo, e uma cidade que se chama Großscham, mas não em Siebenbürgen, e sim no Banato. Sobre o Banato nada sei, diz Zirri, não conheço. Eu também não, digo, girando com minha pufoaika suada em volta de Zirri, e sua pufoaika suada gira ao meu redor. O refeitório inteiro gira. Quando tudo gira, não é preciso entender nada. Nem mesmo as casas de madeira atrás do campo de trabalho, digo; elas se chamam casas finlandesas, mas nelas moram russos ucranianos.
Depois da pausa soa um tango. Danço com a outra Zirri. Nossa cantora, Loni Mich, está a meio passo diante dos músicos. Na “Paloma”* ela se adianta mais meio passo, quer a música toda para si. Mantém braços e pernas rígidos, as pupilas desaparecem, a cabeça balança. Seu bócio incipiente treme, a voz torna-se rouca como a ressaca das águas profundas:
E rapidamente um navio afunda
Cedo ou tarde chega
A hora de cada um
Aos marinheiros adeus
Um dia tudo acaba
Um dia nos levam as águas
E o mar não traz
Ninguém de volta
Durante a “Paloma”, que se dança a dois, todos se calam. Perde-se a fala e pensa-se no que se tem de pensar, mesmo que não se queira. Ali, cada um empurra a sua nostalgia como uma pesada caixa. Zirri arrasta os pés, eu a seguro na altura dos rins até que ela encontre novamente o ritmo. Faz algum tempo ela virou a cabeça para o outro lado para que eu não lhe veja o rosto. Suas costas tremem, percebo que está chorando. O arrastar dos pés é alto o suficiente, não falo nada. O que eu poderia dizer além de “Não chore”.
Como não se pode dançar sem os dedos dos pés, Trudi Pelikan está sentada na beira do banco, e eu sento ao lado dela. Seus dedos congelaram no primeiro inverno. No verão foram esmagados pelo caminhão de cal. No outono foram amputados porque apareceram vermes debaixo das bandagens. Desde então, Trudi Pelikan caminha nos calcanhares, põe os ombros para a frente e se inclina para trás. Isso a deixa encurvada, e seus braços, duros como cabos de pá. Como ela já não servia para trabalhar no canteiro de obras ou na fábrica, ou como ajudante na garagem, no segundo inverno tornou-se auxiliar na enfermaria do campo.
Falamos da enfermaria: não passa de um lugar para moribundos. Trudi Pelikan diz: Não temos nada para ajudá-los, somente ictiol para esfregar. A auxiliar sanitária, russa, é da opinião de que os alemães morrem em ondas. A onda de inverno é a maior. A de verão a segunda maior, por causa das epidemias. No outono, quando amadurece o tabaco, chega outra onda. Eles se envenenam com água de tabaco: é mais barata que aguardente de hulha. Cortar as veias com cacos de vidro é completamente inútil, assim como cortar a mão ou o pé. E igualmente inútil, apesar de mais difícil, é bater com a cabeça contra o muro até desmaiar, diz Trudi Pelikan.
A maioria eu só conhecia de vista, ou da chamada, ou do refeitório. Eu sabia que muitos já não existiam. Porém, enquanto não tombassem diante dos meus olhos, não os considerava mortos. Abstive-me de perguntar onde estavam eles agora. Quando há tanto material ilustrativo de outros que desistem antes de nós mesmos, o medo se torna poderoso. Com o tempo, poderoso demais, ou seja, tão parecido com a indiferença, que é possível confundi-los. De que outra forma poderíamos ser vivos ao descobrir primeiro o morto. É necessário despi-lo rapidamente, enquanto ele ainda se mantém flexível e antes que outro leve a sua roupa. É necessário tirar do travesseiro o pão economizado, antes que outro apareça por lá. A coleta é nossa forma de luto. Quando a maca chega ao alojamento, os dirigentes do campo de trabalho não devem ter nada para levar embora, além do próprio cadáver.
Quando o morto não é nenhum conhecido, vê-se apenas o ganho. A colheita não é nada ruim; se fosse ao contrário, o cadáver faria o mesmo conosco, e permitiríamos. O campo de trabalho é um mundo prático. Não podemos dar-nos ao luxo de sentir vergonha ou horror. Atua-se com uma estável indiferença, talvez uma acovardada satisfação. Nada tem a ver com sentir prazer na desgraça alheia. Julgo que quanto menor o medo aos mortos, mais apego se tem à vida. Mais se está disponível para qualquer tipo de mentira. Convencemo-nos de que os ausentes foram transferidos para outro campo. O que se sabe não conta, acredita-se no oposto. Como no tribunal do pão, a colheita conhece apenas o presente, mas não age com violência. Tudo acontece de maneira objetiva e tranquila.
Diante da minha casa paterna há uma tília
Diante da minha casa paterna há um banco
E se alguma vez eu os encontro novamente
Então ficarei o resto da vida por lá.
É o que canta Loni Mich, nossa cantora, com gotas de suor na testa. E Lommer da cítara está com seu instrumento sobre os joelhos, seu anel de metal no polegar. Depois de cada verso, ele toca um novo acorde e canta junto. E Kowatsch Anton empurra o tambor algumas vezes para a frente, até que seja possível observar de esguelha o rosto de Loni entre as baquetas. Os casais dançam atravessando a música e pulam como pássaros ao pousar quando surge um vento forte. Trudi Pelikan diz: De qualquer modo, não conseguimos mais caminhar, só nos resta dançar, somos algodão grosso cheio d’água e ossos barulhentos a se balançar, mais fracos que o bater do tambor. Como motivo para isso, ela enumera seus segredos latinos da enfermaria do campo.
Poliartrites, miocardites, dermatites, hepatites, encefalites, pelagra. Distrofia, com a boca torta, chamada cara de mico morto. Distrofia com mãos frias e rígidas, chamada garra de galo. Demência. Tétano. Tifo. Eczema. Ciática. Tuberculose. Então vem disenteria com sangue claro ao evacuar, furúnculo, úlcera, atrofia muscular, pele ressecada com gretas, periodontite com perda de dentes, dentes podres. Trudi Pelikan não menciona os congelamentos. Nem mesmo os faciais, a pele vermelho-tijolo e manchas brancas e angulosas que adquirem uma tonalidade marrom-escura com os primeiros calores da primavera, como se tingem agora os rostos dos que dançam. E como não digo nem pergunto nada, absolutamente nada, Trudi Pelikan me dá um forte beliscão no braço e diz:
Sério, Leo, não morra no inverno.
E o percussionista canta em duo com Loni:
Marinheiro, esqueça o sonho.
Não pense mais na sua terra.
No meio da música, Trudi relata que, durante todo o inverno, os mortos permanecem amontoados e cobertos de neve no pátio de trás, por algumas noites, até ficarem congelados o suficiente. Aponta que os coveiros são uns patifes preguiçosos: cortam os mortos em pedaços para não precisarem cavar uma cova, mas apenas um buraco.
Eu ouvira com atenção o que dissera Trudi Pelikan e sentira um pouco de cada um dos segredos latinos em mim. A música dá ânimo à morte, sabe balançar-se no seu ritmo.
Fujo da música em direção ao alojamento. Nas duas torres de vigilância situadas na fachada do pátio do campo de trabalho, os guardas permanecem magros e imóveis como se tivessem acabado de chegar da Lua. Das lanternas de vigilância flui leite, do quarto de vigilância na entrada do campo de trabalho saem risadas que chegam até o pátio, embebedam-se outra vez com aguardente de beterraba. E na rua principal do campo está deitado um cão de guarda. Ele tem um fogo verde nos olhos, há um osso entre suas patas. Parece-me que é um osso de galinha, eu o invejo. Ele percebe e rosna. Devo fazer algo para que ele não pule em cima de mim, e digo: Wanja.
Certamente esse não é o seu nome, porém ele olha para mim como se também pudesse dizer o meu nome, se quisesse. Preciso ir embora antes que ele o faça, caminho a passos largos e viro a cabeça algumas vezes para ter certeza de que ele não veio atrás de mim. Ao chegar à porta do alojamento, vejo que ainda não se inclinou para pegar o osso. Ele continua seguindo-me com os olhos ou seguindo a minha voz e o Wanja. Também a memória de um cão de guarda vai embora e volta. E a fome não vai embora, e volta. E a solidão é como ela. Talvez a solidão russa se chame Wanja.
Deito na cama vestido do jeito que estou. Como sempre, acima da mesa de madeira queima a luz de serviço. Como sempre, quando não consigo dormir, olho fixamente para o cano da estufa com suas pregas negras no joelho e as duas pinhas de ferro do relógio cuco. Então, vejo-me criança novamente.
Estou em casa, na porta da varanda, tenho os cabelos cacheados e negros e sequer alcanço a maçaneta da porta. Seguro meu bicho de pelúcia nos braços, um cão marrom. Seu nome é Mopi. Pelo corredor de madeira, meus pais chegam da cidade. Minha mãe enrolara a corrente de sua bolsinha vermelha de verniz ao redor da mão, para não fazer barulho ao subir as escadas. Meu pai leva o chapéu branco de palha na mão. Ele vai para o quarto. Minha mãe se detém, arruma o cabelo que me caía sobre a testa e tira meu bicho de pelúcia. Deixa-o sobre a mesa da varanda, a corrente da bolsinha de verniz faz barulho, e eu falo:
Quero Mopi de volta, senão ficarei sozinho.
Ela ri: Você tem a mim.
Eu digo: Você pode morrer, Mopi não.
Ouço a minha voz infantil entre o leve rouquejar dos fracos que já não podem ir ao baile. Ela é tão aveludada que me causa calafrios. BICHO DE PELÚCIA: que expressão para um cachorro de pano, recheado com serragem. E agora, no campo de trabalho, nada além do SHHHH, ou como quer que se chame o calar por medo. E KUSCHET** significa comida em russo. Mas agora não quero começar a pensar em comida. Adormeço e sonho.
Cavalgo um porco branco pelo céu, a caminho de casa. Lá de cima, distingue-se bem a Terra, os contornos coincidem, é possível ver até as cercas. Contudo, na Terra há por todo lado malas sem dono, e entre elas pastam ovelhas sem dono. Elas têm pinhas penduradas no pescoço; estas, porém, soam como sinetas. Pergunto-me:
Isso é um grande aprisco com malas ou uma grande estação de trens com ovelhas. Ali não mora mais ninguém; para onde irei agora.
O Anjo da Fome me olha ali no céu e responde: Cavalgue de volta.
Eu digo: Assim, eu morro.
Se você morrer, farei que tudo se torne laranja, e você não sentirá dor, promete.
Cavalgo de volta, e ele mantém sua palavra. Enquanto morro, o céu sobre todas as torres de vigilância é laranja, e não dói.
Então, acordo e limpo os cantos da boca com o travesseiro. Durante a noite, os percevejos adoram esse lugar.
* "La Paloma" é uma canção popular com versões em diversos idiomas, originalmente em espanhol. (N. T.)
** No original: Kuscheltier (bicho de pelúcia), que vem de kuscheln, "aconchegar-se", "aninhar-se"; já kuschen significa "vergar-se", "submeter-se". (N. T.)
Blocos de escória
Os blocos de escória são pedras de cantaria feitas com escória, cimento e leite de cal. Eram mesclados numa betoneira, comprimidos numa prensa compactadora manual. A fábrica de tijolos ficava atrás da planta de coque, do outro lado do Jama, junto às entulheiras. Ali havia lugar suficiente para secar milhares de blocos recém-prensados. Eles eram colocados na terra em fileiras estreitas, um ao lado do outro, como lápides num cemitério militar. Nos lugares em que o terreno apresentava arqueamentos e depressões, as fileiras se ondulavam. Além disso, cada um colocava seus blocos de forma um pouco diferente. Todos os carregavam com as mãos, sobre uma pequena tábua. Por causa dos muitos blocos molhados, as tábuas também estavam inchadas, com gretas e buracos.
Carregar os blocos era um demorado ato de equilíbrio, quarenta metros de trajeto da prensa até o areal de secagem. As fileiras ficavam tortas, porque cada um se equilibrava de um jeito. E porque o caminho se transformava a cada bloco depositado, deslocando-se para diante, para trás ou bem no meio da fileira; também porque um bloco mal finalizado devia ser substituído, ou porque o espaço não fora bem aproveitado na fila de secagem no dia anterior.
Um bloco recém-prensado pesava dez quilos e se desfazia feito areia molhada. Era necessário apoiar a pequena tábua na barriga e carregá-la, numa espécie de dança, coordenando língua, ombros, cotovelos, quadris, abdômen e joelhos com a flexão dos dedos dos pés. Os dez quilos ainda não se haviam transformado em pedra, não deviam perceber que estavam sendo carregados. Era preciso enganá-los, balançá-los em movimentos regulares, sem que oscilassem, e, ao chegar ao areal de secagem, empurrá-los num único movimento para fora da tábua. Um gesto rápido e regular, para que caíssem ao chão num suave sobressalto, sem sacudidas. Era necessário agachar-se, mantendo os joelhos dobrados até que a pequena tábua chegasse à altura do queixo; então, abriam-se os cotovelos como asas e deixava-se cair a pedra com precisão. Era a única forma de colocá-los um junto ao outro, sem danificar as beiradas do próprio bloco ou do bloco vizinho. Um único movimento em falso durante a dança, e o bloco se desmantelava feito barro.
O rosto se contraía ao carregá-los e principalmente ao colocá-los no chão. Era necessário manter a língua reta e os olhos fixos. Se desse errado, não se podia nem mesmo praguejar de raiva. Após cada turno de blocos de escória, de tanto mantê-los imóveis, acabávamos com olhos e lábios tão quadrados quanto eles. Nisso tudo, também entrava em jogo o cimento. Ele queria expandir-se, voar pelos ares. Havia mais cimento grudado em nós, na betoneira e na prensa do que nos tijolos. Ao prensar cada bloco, colocava-se primeiro a pequena tábua no molde. Depois, com a ajuda da pá despejava-se a mistura, que era prensada utilizando a manivela, até que o bloco, juntamente com a tábua, fosse pressionado para cima no molde. Então, devia-se pegar a pequena tábua pelos dois lados e transportá-la, dançando e equilibrando-a até o areal de secagem.
Os blocos de escória eram fabricados dia e noite. Nas primeiras horas da manhã, o molde de prensagem ainda estava frio e embaçado, os pés ainda leves, e o sol ainda não alcançava o areal. Mas já ardia sobre os cumes das entulheiras. Ao meio-dia, o calor era insuportável. Os pés perdiam o ritmo dos passos, nas panturrilhas cada nervo cozinhava a fogo lento, os joelhos tremiam. Os dedos perdiam a sensibilidade. Já não era possível manter a língua reta ao depositar os blocos. Muitos acabavam defeituosos, e recebíamos muitas pauladas nas costas por isso. À noite, o projetor lançava um cone de luz sobre o cenário. A betoneira e a prensa pareciam máquinas peludas sob a luz forte, mariposas voejavam ao redor. Elas não procuravam somente a luz, o cheiro úmido da mistura as atraía como flores noturnas. Mesmo estando o areal de secagem quase no escuro, pousavam e tocavam levemente os blocos com suas trombas e suas patas de arame. Pousavam sobre o bloco que transportávamos, desviando nossa atenção na hora de manter o equilíbrio. Via-se a pelugem da cabeça, os anéis que lhe enfeitavam o abdômen e sentia-se o cheiro do crepitar de suas asas, como se o bloco estivesse vivo. Às vezes chegavam duas, três de uma vez e ficavam ali como se tivessem surgido de dentro do bloco. Como se a mistura úmida sobre a tábua não fosse feita de escória, cimento e leite de cal, mas um pedaço quadrado de larvas prensadas do qual surgiam mariposas. Elas se deixavam levar da prensa até o areal de secagem, da luz do projetor até as múltiplas sombras. As sombras eram irregulares e perigosas, deformavam os contornos da pedra e deslocavam as proporções entre as fileiras. O próprio bloco sobre a pequena tábua já não se sabia mais que aspecto tinha. Ficávamos inseguros, não se podiam confundir suas bordas com as bordas das sombras. Também das entulheiras à frente vinham umas sacudidas desencontradas e enganosas. Elas ardiam nos mais diversos pontos, a exibir seus olhos amarelos, como animais noturnos que geram sua própria luz iluminando ou queimando sua falta de sono. Os olhos ardentes das entulheiras tinham um cheiro forte de enxofre.
Ao amanhecer refrescava, um céu de opala. Os pés adquiriam leveza, ao menos na imaginação, quando a troca de turno se aproximava e desejava-se esquecer o cansaço. Até o projetor mostrava-se cansado, pálido e ofuscado pela luz do dia. Sobre nosso cemitério militar irreal pairava um ar azul, idêntico, sobre todas as fileiras, sobre todas as lápides. Uma justiça silenciosa tomava corpo, a única que existia por ali.
O bloco de escória estava satisfeito, nossos mortos não tinham nem fileiras nem lápides. Era melhor não pensar nisso, senão não seríamos capazes de dançar e manter o equilíbrio. Quando se pensava um pouco nisso, o resultado era muitos blocos defeituosos e muitas pauladas nas costas.
O frasco crédulo e o frasco cético
Era a época de peleeosso, a eternidade da sopa de repolho. Kapusta de manhã ao acordar, kapusta à noite após a chamada. KAPUSTA significa repolho, em russo, e sopa de repolho russa significa muitas vezes que não há nenhum pedaço de repolho ali dentro. Kapusta, sem russo e sem sopa, é uma palavra formada de duas coisas que não têm nada em comum, além dessa palavra. CAP é a cabeça romena, PUSTA é a planície húngara. Pensa-se nisso em alemão, e o campo de trabalho é russo como a sopa de repolho. Com esse tipo de bobagem pretende-se ser astuto. Mas a palavra desmembrada KAPUSTA não serve como palavra da fo- me. O vocabulário da fome é um mapa: em vez de nomes de paí- ses, pronunciamos nomes de pratos em nossa mente. Sopa de bo- das, picadinho, costeleta de porco, joelho de porco, coelho assado, almôndegas de fígado, perna de veado, coelho azedo etc.
Cada palavra da fome é uma palavra de comida, têm-se a imagem da comida diante dos olhos e o sabor no palato. Palavras da fome ou palavras de comida alimentam a fantasia. Elas devoram a si mesmas, e gostam. Não ficamos saciados, mas ao menos se está presente enquanto elas comem. Todo aquele que sofre de fome crônica tem suas preferências: raras, frequentes e permanentes palavras da fome. Cada um prefere uma palavra diferente. Assim como kapusta, a erva-armoles não servia como palavra de comida, porque era o que comíamos de verdade. Ou porque tínhamos de comê-la.
Parece-me que, na fome, cegueira e visão são a mesma coisa: a fome cega é quem melhor enxerga a fome. Há palavras de fome mudas e outras barulhentas, assim como na própria fome existe o secreto e o público. Palavras de fome, ou seja, palavras de comida dominam as conversas, no entanto continuamos sozinhos. Cada um come suas próprias palavras. Os outros comensais o fazem também para si mesmos. A participação na fome do outro é nula, não há como ser um cofaminto. Como alimento principal, a sopa de repolho era a causa de se perder a carne do corpo e a razão da cabeça. O Anjo da Fome corria histericamente em volta. Ele perdia qualquer medida, crescia em um dia mais do que qualquer grama num verão ou neve num inverno inteiro. Talvez tanto quanto uma árvore grande e esbelta é capaz de crescer durante a vida inteira. Eu tinha a impressão de que o Anjo da Fome não só aumentava, mas também se reproduzia. Ele cuidava que cada um tivesse seu tormento particular, apesar de que todos nos parecíamos. Já que na trindade de pele, ossos e água distrófica não é possível diferenciar entre homens e mulheres, as diferenças entre os sexos ficam em suspenso. Conti- nuamos dizendo ELE ou ELA, como falamos o pente ou a barraca. E assim como estes, os semimortos-de-fome não são masculino ou feminino, e sim objetivamente neutros, como objetos, mais prováveis do gênero neutro.
Independentemente de onde eu estivesse, na minha cama, entre os alojamentos, no turno do dia ou da noite no Jama, ou com Kobelian na estepe, ou na torre de refrigeração, ou depois do turno na Banja, ou vendendo de porta em porta, tudo o que eu fazia tinha fome. Cada objeto se assemelhava em extensão, largura, altura e cor à medida da minha fome. Entre o teto do céu lá em cima e o pó da terra, todo lugar tinha cheiro de uma comida diferente. A rua principal do campo de trabalho cheirava a caramelo; a entrada do campo, a pão recém-feito; o cruzamento entre a estrada do campo e a fábrica, a damascos quentes; a cerca de madeira da fábrica, a nozes confeitadas; a entrada da fábrica, a ovos mexidos; o Jama, a pimentões recheados; a escória das entulheiras, a sopa de tomate; a torre de refrigeração, a berinjelas assadas; o labirinto dos tubos fumegantes, a strudel de baunilha. Os pedaços de alcatrão entre as ervas daninhas tinham cheiro de compota de marmelo, e as baterias de coque recendiam a melão. Era magia e tormento. Até mesmo o vento alimentava a fome, tecia alimentos visíveis, de forma alguma abstratos.
Desde que nos havíamos transformado em homenzinhos e mulherzinhas de ossos, tornando-nos assexuados uns para os outros, o Anjo da Fome se unia a todos, e enganava até mesmo a carne que ele já nos roubara, e levava cada vez mais piolhos e percevejos para as nossas camas. A época de peleeosso era a temporada das grandes paradas de despiolhamento semanais no pátio do campo depois do trabalho. Todos e também todos os objetos deviam apresentar-se para o despiolhamento — a mala, a roupa, a cama e nós.
Era o terceiro verão, as acácias floresciam, o vento noturno tinha aroma de café com leite. Eu havia levado tudo para fora. Então chegou Tur Prikulitsch com o towarischtsch Schischtwanjonow, de dentes verdes. Ele carregava uma vareta de vime recém-descascada, com o dobro do tamanho de uma flauta, flexível para o castigo e afiada na extremidade para esquadrinhar. Enojado com a nossa miséria, ele espetava os objetos que tínhamos na mala e os atirava ao chão. Eu me posicionara, dentro do possível, bem no meio da parada de despiolhamento, porque as inspeções no início e ao final eram implacáveis. Porém, desta vez Schischtwanjonow resolveu mostrar-se minucioso no centro da formação. Sua vareta cavou na minha mala de gramofone e fincou minha nécessaire debaixo das roupas. Deixou então a vareta de lado, abriu a nécessaire e descobriu minha sopa de repolho secreta. Havia três semanas, eu guardava a sopa de repolho nos dois belos frascos que não queria jogar fora só por estarem vazios. Por estarem vazios, enchi-os de sopa de repolho. Um dos frascos era de cristal estriado, com a base redonda e um fecho de rosca; o outro era plano, com a boca mais larga, para a qual eu havia até talhado uma tampa de madeira sob medida. Para que a sopa de repolho não estragasse, selei-os hermeticamente, como faziam com as conservas de frutas em minha casa. Pinguei a estearina em volta da rolha, Trudi Pelikan me emprestara uma vela da enfermaria.
Schto eto, perguntou Schischtwanjonow.
Sopa de repolho.
Para quê.
Ele agitou os frascos, até que a sopa fizesse espuma.
Pamjat, eu disse.
Lembrança, eu havia aprendido com Kobelian, era para os russos uma boa palavra, por isso a pronunciei. Porém Schischtwanjonow provavelmente se perguntou para quem eu guardava aquela lembrança. Ninguém poderia ser tão idiota a ponto de precisar de sopa de repolho em frascos para se lembrar da sopa de repolho aqui, onde há sopa de repolho duas vezes ao dia. Para casa, ele perguntou.
Concordei com a cabeça. Isso foi o pior, que eu quisesse levar sopa de repolho em frascos para casa. Eu não me importaria com os golpes, mas ele estava na metade da inspeção e não quis perder tempo me batendo. Confiscou meus frascos e ordenou que eu me apresentasse em sua sala.
Na manhã seguinte, Tur Prikulitsch me levou do refeitório até a sala de oficiais. Ele caminhava feito um frenético pela estrada, e eu feito um condenado atrás dele. Perguntei-lhe o que eu deveria dizer. Sem virar-se, ele fez um gesto de desdém, algo como: “Não vou me meter nisso”. Schischtwanjonow rugia. Tur poderia ter-se poupado a tradução, eu já sabia aquilo tudo de cor: que eu era um fascista, um espião, um sabotador e um parasita, que não tinha cultura e que, com minha sopa de repolho roubada, estava traindo o campo de trabalho, o poder soviético e o povo soviético.
No campo de trabalho a sopa de repolho era aguada, porém a dos frascos, como eles tinham uma boca tão estreita, era vazia. Os restos de repolho nos frascos significavam para Schischtwanjonow uma clara denúncia. Minha situação era precária. Mas foi quando Tur esticou o seu dedo mindinho e teve uma ideia: remédio. Remédio era para os russos uma palavra mais ou menos boa. Tur percebeu a tempo, girou o dedo indicador sobre a testa, como se quisesse fazer um buraco, e disse maliciosamente: Obskurantjism.
Era convincente. Eu estava fazia somente três anos no campo de trabalho e ainda não havia sido reeducado, ainda acreditava em poções mágicas contra doenças. Tur explicou: o frasco com fecho de rosca era contra diarreia; o outro, com a tampa de madeira, servia contra prisão de ventre. Schischtwanjonow ficou pensativo, não somente acreditara no que Tur lhe dissera, como também que se obskurantjism não era bom no campo de trabalho, na vida não era de todo ruim. Observou novamente os dois frascos, agitou-os até que a espuma alcançasse a boca; depois, empurrou o que tinha o fecho de rosca um pouco para a direita, o outro, com a tampa de madeira, igualmente para a esquerda, de modo que os frascos ficassem bem juntos e encostassem um no outro. Schischtwanjonow, de tanto olhar para os frascos, trazia agora a boca mole e um olhar suave. Tur, mais uma vez, teve uma boa intuição e disse:
Vai agora, desaparece.
Talvez, por motivos inexplicáveis, ou até explicáveis, Schischtwanjonow nem tenha jogado fora os frascos.
O que são motivos. Até hoje não sei por que enchi os frascos com sopa de repolho. Talvez fosse por causa da frase de minha avó: Eu sei que você vai voltar. Terei sido realmente tão ingênuo a ponto de achar que voltaria e presentearia a família em casa com minha sopa de repolho, dois frasquinhos de vida no campo de trabalho. Ou será que, apesar do Anjo da Fome, eu conservava a ideia de que se deve trazer um souvenir de uma viagem. De Constantinopla, minha avó me trouxe, de sua viagem de navio, uma pantufa turca azul-celeste, do tamanho de um polegar. Essa, porém, era a outra avó, que não disse nada sobre eu voltar, morava em outra casa e sequer esteve presente na despedida. Seriam os frascos minhas testemunhas em casa. Ou teria eu preparado um frasco crédulo e outro cético. Teria eu engarrafado, sob o fecho de rosca, a volta para casa e, sob a tampa de madeira, fechada hermeticamente, a permanência aqui para sempre. Talvez se tratasse da mesma antinomia entre diarreia e prisão de ventre. Tur Prikulitsch sabia demais sobre mim. Haviam sido úteis as conversas com Bea Zakel.
Haveria realmente antinomia entre voltar para casa e ficar aqui. Talvez eu quisesse estar à altura de ambas as possibilidades, da forma como ocorresse. Talvez eu quisesse, a partir de então, não mais deixar que a vida daqui, a vida em geral, dependesse do desejo diário de voltar para casa e não poder. Quanto mais eu queria voltar, mais eu tentava não o desejar com tanta força, para isso não me destruir se nunca me fosse permitido. O desejo de voltar para casa nunca desapareceria; porém, a fim de possuir algo além dele, eu me dizia: Se eles nos mantiverem aqui para sempre, será então esta a minha vida. Os russos também vivem. Não quero resistir a assentar-me aqui, apenas preciso conti- nuar exatamente como estou agora, metade com o frasco fechado hermeticamente. Posso reeducar-me, ainda não sei como, mas a estepe dará um jeito. O Anjo da Fome havia tomado conta de mim de tal forma, que meu couro cabeludo esvoaçava, acabava então de ter a cabeça raspada por causa dos piolhos.
Uma vez, no verão passado, Kobelian desabotoou a camisa sob o céu aberto e, quando ela começou a esvoaçar, comentou sobre a alma do pasto da estepe e seus sentimentos em relação aos Urais. No meu peito isso também é possível, pensei comigo mesmo.
Sobre o envenenamento
por luz diurna
O sol nasceu bem cedo aquela manhã: um balão vermelho, tão inchado que o céu sobre a planta de coque parecia plano demais.
Quando o turno começou, era noite. Estávamos sob o cone de luz do projetor no depósito-PEK, um tanque de dois metros de profundidade, o comprimento e a largura de dois alojamentos. O tanque estava revestido com uma antiquíssima camada de piche petrificado, de um metro de espessura. Devíamos limpá-lo com pés-de-cabra e picaretas, retirar o piche pedaço por pedaço e depositá-lo nos carrinhos de mão. A seguir, empurrar os carrinhos para fora do tanque através de uma ponte de tábuas balançantes, ir até os trilhos, subir ao vagão com a ajuda de outra tábua e ali descarregar o piche.
Picávamos vidro negro; pedaços estriados, abaulados e pontudos voavam sobre nossas cabeças. Não se via poeira alguma. Com o carrinho de mão vazio pela ponte balançante, somente ao voltar da noite negra para o foco de luz branca, brilhava no ar um manto de organza feito de pó de vidro. Assim que o projetor oscilava ao vento, o manto desaparecia, para reaparecer flutuando novamente no mesmo lugar, como um viveiro cromado.
Às seis horas terminava o turno, e fazia uma hora já era dia claro. O sol havia encolhido, mas raivoso, sua esfera compacta como uma abóbora. Meus olhos ardiam, todas as suturas do crânio latejavam. No caminho de volta ao campo de trabalho, tudo me ofuscava. As veias do pescoço tiquetaqueavam até quase explodir, os globos oculares ferviam sob a testa, o coração ressoava no peito, as orelhas estalavam. O pescoço inchava feito massa quente até enrijecer. A cabeça e o pescoço tornavam-se uma coisa só. O inchaço chegava até os ombros; pescoço e tronco tornavam-se uma coisa só. A luz me perfurava, eu necessitava refugiar-me rapidamente no escuro do alojamento. Contudo, teria de ser escuro como o breu: até a luz da janela era mortal. Vesti a fronha na cabeça. À noite veio o alívio, mas junto com ele o turno da noite. Ao escurecer, eu deveria voltar para debaixo do projetor no depósito-PEK. No segundo turno da noite, chegou o natschalnik com um balde contendo uma pasta granulosa de cor rosa-acinzentada. Antes de entrarmos no tanque, besuntamos com ela o rosto e o pescoço. Ela secou imediatamente e começou a descascar.
Pela manhã, com o nascer do sol, o alcatrão fazia estragos ainda piores na minha cabeça. Fui tateando até o campo de trabalho como um gato moribundo, dessa vez diretamente para a enfermaria. Trudi Pelikan acariciou-me a testa. A auxiliar sanitária desenhou com as mãos no ar uma cabeça ainda maior e disse: SONZE e SWET e BOLID. E Trudi Pelikan chorou e me explicou algo sobre reações fotoquímicas das mucosas.
O que é isso.
Envenenamento por luz diurna.
Deu-me sobre uma folha de rábano picante um punhado de unguento que ela mesma fizera com calêndula e banha de porco, para que eu aplicasse na pele ferida e esta não arrebentasse. A auxiliar sanitária disse que eu era delicado demais para o depósito-PEK, ela me daria três dias de licença médica e talvez falasse com Tur Prikulitsch.
Fiquei três dias de cama. Meio adormecido, meio acordado, as ondas de febre me arrastavam para casa, para o frescor do verão no Wench. Atrás dos abetos o sol nasce bem cedo, feito um balão vermelho. Eu olho através da abertura da porta, meus pais ainda dormem. Vou até a cozinha, sobre a mesa há um espelho de barbear apoiado na jarra de leite. Minha tia Fini, magra como um quebra-nozes, vai e vem entre o fogão e o espelho com o ferro de ondular. Usando seu vestido branco de organza, ela ondula o cabelo. Depois me penteia com os dedos e amansa com saliva meus cabelos arrepiados. Ela me pega pela mão, vamos colher margaridas para a mesa do café da manhã.
A grama, úmida de orvalho, chega até minhas axilas, estala e zumbe; está repleta de margaridas brancas e campânulas azuis. Eu colho somente tanchagens, aqui chamadas ervas atiradoras, porque se pode fazer um laço com seu talo e disparar longe as cápsulas das sementes. Eu disparo contra o vestido de organza, de um branco ostentoso. Mas então, entre a organza e a anágua igualmente branca que envolve o ventre de tia Fini, aparece de repente um tubo pardo feito de gafanhotos presos pelas garras. Ela deixa cair seu ramo de margaridas, abre os braços, esticando-os, e fica paralisada. Eu me enfio por baixo do seu vestido e retiro os gafanhotos com as mãos, cada vez com mais pressa. Eles são frios e pesados como parafusos molhados. Eles mordiscam, sinto horror. Acima de mim já não é a minha tia Fini com cabelos ondulados, mas um colosso de gafanhotos sobre duas pernas finas.
Debaixo do vestido de organza, foi a primeira vez que tive de afastar algo com as mãos. Agora eu estava ali no alojamento e tinha de me esfregar com o unguento de calêndula. Todos os outros continuaram indo ao depósito-PEK. Somente eu, por ser muito delicado, a partir de então seria mandado por Tur Prikulitsch para o porão de escória.
E ali fiquei.
Cada turno é uma obra de arte
Albert Gion e eu somos dois trabalhadores do porão, localizado embaixo das caldeiras a vapor da fábrica. No alojamento, Albert Gion deixa-se levar pela cólera. No porão escuro, é circunspecto, mas também determinado, como são os melancólicos. Talvez ele não fosse assim antes, e no porão tenha se tornado desse jeito, como o porão. Havia tempo ele trabalhava ali. Quase não falamos um com o outro, apenas o necessário.
Albert Gion diz: Eu viro três carros, depois você outros três.
Eu digo: Depois eu limpo os resíduos.
Ele diz: Sim, depois você empurra.
O turno transcorre entre virar e empurrar, até que se chegue à metade, quando Albert Giron diz:
Vamos dormir meia hora debaixo da prancha, a sétima, ali é tranquilo.
E então começa a segunda parte.
Albert Gion diz: Eu viro três carros, depois você outros três.
Eu digo: Depois eu limpo os resíduos.
Ele diz: Sim, depois você empurra.
Eu digo: Quando o nono estiver cheio, vou e empurro.
Ele diz: Não, você vira agora, eu vou e empurro, o bunker está cheio também.
Ao término do turno, dizemos eu ou ele: Limpemos, é necessário entregar o porão limpo.
Após uma semana trabalhando no porão, Tur Prikulitsch aparece novamente atrás de mim no espelho da barbearia. Eu estava barbeado pela metade, ele levantou o olhar oleoso e os dedos limpos e perguntou:
Como vai o trabalho de vocês no porão.
Agradável, eu disse, cada turno é uma obra de arte.
Ele sorriu por cima do ombro do barbeiro, mas não tinha a menor ideia de que era verdade. Ouvia-se o ódio fino em seu tom de voz; suas narinas brilhavam, rosáceas; em suas têmporas, pequenas veias de mármore.
Como seu rosto estava sujo ontem, disse ele, e suas entranhas saíam por todos os buracos do seu gorro.
Não importa, eu disse, o pó de carvão é aveludado e tem a grossura de um dedo. Mas após cada turno o porão fica limpo, porque cada turno é uma obra de arte.
Quando um cisne canta
Depois do meu primeiro dia no porão, disse Trudi no refeitório: Agora você não terá mais azar, você não acha bem mais bonito debaixo da terra.
A seguir, ela me contou quantas vezes, durante o primeiro ano no campo de trabalho, havia fechado os olhos e sonhado enquanto empurrava o carro de cal. E agora, ao levar os mortos nus do quarto dos moribundos e colocá-los no chão do pátio traseiro, como madeira recém-cortada, ela disse que, também agora, quando leva os mortos pela porta, frequentemente fecha os olhos e sonha o mesmo que então, quando empurrava o carrinho de cal com os arreios.
O quê, perguntei.
Que um americano rico, bonito e jovem — não precisa ser bonito e jovem, ela diz —, fabricante de carne de porco em conserva, se apaixona por mim — não precisa estar apaixonado, ela diz, mas rico o suficiente para comprar a minha liberdade e me tirar daqui para se casar comigo. Seria mesmo uma sorte, ela diz. E se, além disso, ele tivesse uma irmã para você.
Ela não precisa ser bonita e jovem, não precisa estar apaixonada, repeti. Trudi Pelikan riu então, exaltada. E o canto direito de sua boca começou a esvoaçar e abandonou o rosto, como se houvesse arrebentado a linha que amarra o riso à pele.
Por isso, contei a Trudi Pelikan sobre meu sonho recorrente de voltar para casa cavalgando um porco branco, apenas um resumo. Apenas uma frase, e sem o porco branco:
Imagina, eu disse, frequentemente sonho que volto para casa cavalgando um cão cinza pelo céu.
Ela perguntou: É um dos cães de guarda.
Não, um cão do vilarejo, eu disse.
Trudi disse: Por que cavalgar, voar é mais rápido. Somente sonho quando estou acordada. Quando deposito os cadáveres no pátio traseiro, quero sair voando daqui, como um cisne até a América.
Talvez ela também conhecesse o cisne na placa oval das termas Netuno. Não perguntei, mas disse: Quando um cisne canta, está sempre rouco, ouve-se a úvula inchada.
Sobre a escória
No verão, vi no meio da estepe um dique de escória branca e me lembrei dos cumes nevados dos Cárpatos. Kobelian falou que o dique viraria uma estrada algum dia. A escória branca estava compactada, tinha uma estrutura granulosa, feito borbulhas de cal e areia de conchas. Em áreas dispersas, o branco se tingia de rosa, muitas vezes com tanta intensidade, que as bordas adquiriam um tom acinzentado. Não sei por que o rosa envelhecido em cinza é tão suave e possessivamente belo, não mais mineral, mas tristemente cansado, como as pessoas. Terá a nostalgia uma cor.
A outra escória branca jazia em montes da altura de um homem, como uma cadeia de montanhas ao lado do Jama. Não havia sido compactada, a grama crescia nos cantos. Quando retirávamos o carvão com a pá e começava a chover forte, nós nos refugiávamos ali. Abríamos buracos na escória branca. Ela começava a escorrer e nos envolvia. E no inverno a neve fumegava por cima dela e nos aquecíamos nos buracos, e estávamos triplamente escondidos: sob o teto de neve, na escória e dentro do uniforme pufoaika. Sentia-se um cheiro familiar de enxofre, o vapor atravessava tudo. Ficávamos dentro dos buracos até acima do pescoço, o nariz acima da terra feito cebolas prematuramente germinadas, com uma camada de neve derretendo junto à boca. E, ao nos arrastarmos para fora da escória, nossas roupas estavam cheias de buracos, por causa dos pedacinhos de brasa; o forro saía por todos os lados.
Devido à carga e à descarga, conheço a escória vermelho-escura pulverizada dos fornos altos. Ela não tem nada a ver com a escória branca: é feita de um pó marrom avermelhado que, a cada movimento da pá, vagueia pelo ar e vai aterrissando aos poucos, feito um manto drapeado. Por ser seca como o calor do verão e completamente asséptica, a escória vermelho-escura dos fornos não provoca nostalgia.
Há também a escória marrom-esverdeada, compactada sobre a pradaria silvestre no terreno baldio atrás da fábrica. Ficava feito pedaços de sal lambidos sob as ervas daninhas. Não tínhamos nada a dizer um ao outro, ela me deixava passar e não suscitava em mim nenhum tipo de pensamento.
Mas meu tudo, minha escória de cada dia e escória de cada turno, fosse diurno ou noturno, era a escória de caldeira a vapor dos fornos de carvão, a escória quente e a fria do porão. Os fornos ficavam no mundo da superfície, cinco, um atrás do outro, altos como edifícios. Eles esquentavam cinco caldeiras, produziam vapor para a fábrica inteira e, para nós no porão, a escória quente e a fria. E todo o trabalho, a fase quente e a fase fria de cada turno.
A escória fria se origina a partir da quente, ela é apenas o pó frio da escória quente. A escória fria precisa ser esvaziada apenas uma vez por turno; a quente, porém, o tempo todo. É necessário tirá-la com a pá e colocá-la em incontáveis carrinhos ao ritmo dos fornos, empurrá-la morro acima e descarregá-la ao final dos trilhos.
A escória quente pode ser diferente a cada dia. Ela muda de acordo com a mistura do carvão. Pode-se falar da bondade e da perfídia da mistura. Se a mistura de carvão é boa, chegam à grelha de transporte placas incandescentes de quatro a cinco centímetros. Ao perder seu calor, tornam-se quebradiças e se partem, secas, em pedaços que caem soltos como pão torrado da portinhola. O Anjo da Fome se espanta: mesmo que o trabalho com a pá perca força, o carrinho se enche rapidamente. Porém, se a mistura for ruim, a escória chega viscosa feito lava, de um branco incandescente e pegajosa. Ela não cai por si só através da grelha: agarra-se entre as portinholas do forno. Com o atiçador, arrancam-se pedaços, que se esticam feito massa. O forno não se esvazia nunca, o carrinho não se enche. É um trabalho angustiante, que rouba muito tempo.
E se a mistura for catastrófica, o forno sofre verdadeira diarreia. A diarreia de escória não espera a portinhola abrir-se: já flui pela portinhola entreaberta, como se se cagassem grãos de milho. Ela é vermelha e de um branco incandescente, mas preferiríamos não olhá-la. Perigosa, enfia-se em qualquer abertura das nossas roupas. Como não podemos controlá-la, o carrinho transborda e acaba enterrado debaixo da escória. Temos de fechar a portinhola, sabe-se lá como, proteger as pernas, os coturnos e os panos dos pés da inundação de brasas, apagá-las com a mangueira de água, liberar com a pá o carrinho, empurrá-lo morro acima e limpar o lugar da avaria — tudo ao mesmo tempo. E se isso acontece perto do final do turno, é um verdadeiro desastre. Perde-se um tempo infinito, e os outros quatro fornos não esperam, deviam ter sido esvaziados havia tempo. O ritmo se acelera vertiginosamente, os olhos nadam, as mãos voam, as pernas tremem. Odeio a diarreia de escória até hoje.
Mas a escória-de-uma-vez-por-turno, a escória fria, essa eu amo. Ela é decente conosco, paciente e previsível. Albert Gion e eu precisávamos um do outro somente para a escória quente. A fria, cada um a queria só para si. A escória fria é dócil e crédula, quase carente — um pó arenoso cor violeta, com quem se pode estar a sós sem perturbações. Ela ficava na fileira de fornos ao fundo do porão, tinha suas próprias portinholas e um carrinho próprio com barriga de alumínio, sem grades.
O Anjo da Fome sabia o quanto eu gostava de estar a sós com a escória fria. Na realidade ela não era fria, mas morna, e recendia a lilás ou a pêssegos silvestres com penugem e damascos de verões tardios. Porém, na maioria das vezes cheirava a dia de trabalho terminado, porque em quinze minutos o turno acabaria e nenhum desastre mais seria possível. Tinha cheiro de regresso do porão, de sopa no refeitório e descanso. Até mesmo de vida civil, o que me deixava louco de alegria. Eu imaginava que, em vez de sair do porão vestindo uniforme e me dirigir ao alojamento, eu ia elegante, usando chapéu borsalino, sobretudo de pele de camelo e cachecol de seda vermelho-vinho, a um café em Bucareste ou Viena, onde me sentaria a uma mesinha de mármore. Tão generosa a escória fria: presenteava-nos com o autoengano que nos permitia imaginar-nos de volta à vida. Bêbado de veneno, era possível ser feliz com ela, mortalmente feliz.
Não à toa Tur Prikulitsch esperava que eu reclamasse. Por isso, perguntava a cada dois dias na barbearia: Então, como é lá no porão.
Como vão as coisas no porão.
Como vai o porão.
Tudo bem no porão.
Ou apenas: E no porão.
E como eu queria desencorajá-lo, dava-lhe sempre a mesma resposta: Cada turno é uma obra de arte.
Se ele supusesse minimamente o que era a mistura de gases de carvão e fome, deveria ter perguntado onde é que eu me enfiava lá no sótão. E eu haveria respondido: Entre as cinzas volantes. É que elas também são uma espécie de escória fria: perambulam por todos os lados e revestem o porão inteiro com uma pele. Também com elas é possível ser feliz. Não são venenosas e borboleteiam. De cor cinza, aveludadas e sem cheiro, as cinzas volantes são compostas de finíssimas lâminas, ínfimas escamas. Perambulam de um lado para outro o tempo todo e grudam em tudo, feito cristais de orvalho. Cobrem de pele qualquer superfície. Na luz, transformam o protetor metálico da lâmpada em uma jaula de circo cheia de piolhos, percevejos e cupins. Os cupins fazem voo nupcial, aprendi no colégio. Aprendi inclusive que os cupins moram em campos de trabalho. Eles têm um rei, uma rainha e soldados. E os soldados possuem cabeças grandes. Há soldados com grandes mandíbulas, soldados-nariz e soldados-secretores. Todos são alimentados pelos operários. E a rainha é trinta vezes maior do que os operários. Parece-me que é essa também a proporção entre o Anjo da Fome e eu, ou entre Bea Zakel e eu. Ou entre Tur Prikulitsch e eu.
Em combinação com a água, não é a água o que flui, mas as cinzas volantes. Ela incha até surgirem estalagmites e estalactites e muito mais, até formar crianças de cimento que comem maçãs acinzentadas. Em combinação com a água, as cinzas volantes podem fazer mágicas.
Sem luz e sem água, a cinza volante se espalha morta por aí, pelas paredes do porão, como uma pele genuína, como pele sintética nos gorros de algodão, como tampões de borracha nas fossas nasais. Não é possível ver o rosto de Albert Gion, negro como o porão, apenas o branco de seus olhos, que flutua pelo ar, e seus dentes. No caso de Albert Gion, nunca sei se ele se mantém circunspecto ou se está triste. Se lhe pergunto, ele diz: Nunca penso sobre isso. Somos duas baratas de porão, falo sério.
Quando termina o turno, vamos tomar banho na Banja, junto ao portal da fábrica. Ensaboamos três vezes a cabeça, o pescoço, as mãos, porém as cinzas volantes continuam acinzentadas e a escória fria, violeta. As cores do porão estavam incrustadas na pele. A mim não incomodava, sentia até um pouco de orgulho; eram também as cores do autoengano.
Bea Zakel tinha pena de mim, pensou por um instante em como dizê-lo de forma cuidadosa, mas sabia que me ofendia ao falar: Você parece saído de um filme mudo, parece o Valentino.
Ela acabara de lavar o cabelo, sua trança de seda estava recém-feita e ainda úmida. Suas faces bem alimentadas enrubesceram como morangos.
Quando criança, enquanto minha mãe e a tia Fini tomavam café, eu corria pelo jardim. Ao ver pela primeira vez um morango grande e maduro, gritei: Venham aqui, tem um sapo que queima e brilha.
Do campo de trabalho levei para casa, na canela direita, um pedacinho de escória do porão, brilhante e quente. Ela esfriou dentro de mim, transformando-se em escória fria. Brilha através da pele como uma tatuagem.
O cachecol de seda
vermelho-vinho
Meu companheiro de porão, Albert Gion, havia dito ao voltar do turno da noite: Agora que faz calor, se não há nada para comer, ao menos se pode esquentar a fome ao sol. Eu não tinha nada para comer e fui até o pátio do campo esquentar minha fome. A grama ainda estava marrom, esmagada e queimada pelo frio intenso. O sol de março tinha franjas pálidas. Sobre o vilarejo russo, o céu era de água ondulada e o sol se deixava arrastar. E a mim, o Anjo da Fome arrastava para o lixo atrás do refeitório. Lá possivelmente haveria cascas de batata, se ninguém tivesse ido ali antes, e a maioria ainda estava trabalhando. Ao ver Fenja conversando com Bea Zakel ao lado do refeitório, tirei as mãos dos bolsos e diminuí o passo. Não podia ir até o lixo agora. Fenja usava seu casaco de crochê lilás, e me lembrei de meu cachecol de seda vermelho-vinho. Após o fiasco com as polainas, eu não queria mais ir ao bazar. Quem falava tão bem, como Bea Zakel, seria também um bom negociador e poderia trocar meu cachecol por açúcar e sal. Fenja, mancando com ar atormentado, foi cuidar do seu pão no refeitório. Mal havia chegado junto a Bea, perguntei: Quando você irá ao bazar. Ela disse: Talvez amanhã.
Bea podia sair sempre que quisesse e recebia passes de Tur, caso precisasse deles. Ela aguardou no banco da rua principal do campo de trabalho, e fui buscar o cachecol. Encontrava-se bem no fundo da mala, ao lado do meu lenço branco de batista. Havia meses eu não o tocava, era macio como pele. Veio-me uma sensação desagradável, senti-me envergonhado diante de seu quadriculado difuso, eu estava completamente abandonado, enquanto ele continuava macio, com seus cubos alternadamente opacos e brilhantes. Ele não se transformara no campo de trabalho, mantivera no desenho de quadros a ordem tranquila de antes. Ele já não era para mim; assim, eu já não era para ele.
Quando entreguei o cachecol a Bea, seus olhos mostraram mais uma vez aquele volteio titubeante, como uma espécie de estrabismo. Seus olhos eram enigmáticos, a única beleza nela. Pôs o cachecol em volta do pescoço e não pôde resistir a cruzar os braços e acariciá-lo com ambas as mãos. Seus ombros eram estreitos; os braços, finas varetas. Mas os quadris e o traseiro eram fortes, um alicerce de ossos maciços. Com um tronco gracioso e um ventre massudo, Bea Zakel era a junção de duas figuras.
Bea levou o cachecol vermelho-vinho para trocá-lo. Porém, no dia seguinte, Tur Prikulitsch o estava usando no pescoço durante a chamada. E durante toda a semana que se seguiu. Ele convertera meu cachecol de seda vermelho-vinho num farrapo de chamada. A partir de então, toda chamada transformou-se na pantomima do meu cachecol. E ficava bem nele. Meus ossos pesavam como chumbo; inspirar e expirar continuamente, virar os olhos para cima e encontrar um gancho na beira de uma nuvem não funcionava. Meu cachecol no pescoço de Tur Prikulitsch não o permitia.
Fazendo das tripas coração, fui até Tur Prikulitsch depois da chamada e perguntei de onde era aquele cachecol. Ele disse sem vacilar: Trouxe-o de casa, tenho-o desde sempre.
Ele não mencionou Bea Zakel, haviam se passado duas semanas. Bea Zakel ainda não me dera um único grão de açúcar ou sal. Será que os dois bem alimentados faziam ideia do quão gravemente haviam defraudado a minha fome. Não foram eles mesmos que me deixaram tão miserável, a ponto de meu próprio cachecol não mais me servir. Não sabiam que continuava sendo minha propriedade, enquanto eu não recebesse nada em troca. Passou um mês inteiro, o sol não se manteve tão insosso. Voltaram a crescer a erva-armoles verde-prateada e o aneto silvestre com suas folhas pinadas. Eu saía do porão e enchia o travesseiro com minha colheita. Ao me agachar, a luz desaparecia de um giro, eu via apenas um sol negro diante dos olhos. Eu cozinhava minha erva-armoles, com gosto de lama, eu continuava sem ter sal. E Tur Prikulitsch continuava usando meu cachecol, e eu continuava indo para o turno da noite no porão e depois, nas tardes vazias, para o lixo atrás do refeitório, que tinha mais sabor do que meu falso espinafre sem sal ou a sopa de erva-armoles sem sal.
A caminho do lixo encontrei Bea Zakel, e dessa vez ela novamente começou a falar dos Beskides que desembocavam nos Cárpatos. E de quando ela saiu de Lugi, seu pequeno vilarejo, e se mudou para Praga, e Tur tinha trocado as missões pelo comércio. Eu a interrompi e perguntei-lhe:
Bea, você presenteou Tur com meu cachecol.
Ela disse: Ele simplesmente o levou. Ele é assim.
Assim como, perguntei.
Assim, ela disse. Com certeza ele lhe dará algo em troca, talvez um dia livre.
Em seus olhos não brilhava o sol, porém o medo.
Mas não de mim, medo de Tur.
Bea, o que vou fazer com um dia livre, eu disse, preciso de açúcar e sal.
Sobre as substâncias químicas
Com as substâncias químicas acontece o mesmo que com a escória. Quem sabe o que exalam as entulheiras, a madeira apodrecida, a ferrugem e entulho de tijolo. E não se trata apenas dos odores. Quando chegamos ao campo de trabalho, nossos olhos se horrorizaram: a planta de coque estava totalmente destruída. Não conseguíamos acreditar que havia sido apenas a guerra. A putrefação, a ferrugem, o mofo, o desmoronamento eram de antes da guerra, tão antigos quanto a indiferença das pessoas e o veneno das substâncias químicas. Via-se que as próprias substâncias químicas haviam contribuído para transformar a fábrica em ruínas. Devem ter ocorrido avarias e explosões no ferro dos tubos e das máquinas. A fábrica havia sido muito moderna em sua época, a mais nova tecnologia dos anos 1920, 30, na indústria alemã. Nos restos de sucata ainda era possível ler nomes como FOERSTER e MANNESMANN.
Precisávamos procurar nomes na sucata e encontrar na cabeça palavras agradáveis contra o veneno, porque sentíamos que aquelas substâncias continuavam seus ataques e que seu complô também se dirigia contra nós, internos. E contra nosso trabalho forçado. Para o trabalho forçado, os russos e romenos também já haviam encontrado, em sua pátria, uma palavra agradável para a sua lista: RECONSTRUÇÃO. Era uma palavra livre de veneno. Já que se tratava de CONSTRUÇÃO, então devia chamar-se CONSTRUÇÃO FORÇADA.
Como eu não podia escapar das substâncias químicas — estava entregue a elas, que corroíam nossos sapatos, roupas, a pele das nossas mãos e mucosas —, havia decidido reinterpretar os cheiros da fábrica em meu favor. Imaginei ruas de aromas e me acostumei a inventar, para cada via do terreno, algo sedutor: naftalina, graxa para calçados, cera para móveis, crisântemos, sabonete de glicerina, alcanfor, resina de coníferas, alume, flor de limoeiro. Consegui criar um vício agradável, porque não queria ficar à disposição do veneno das substâncias. Um vício agradável não significa que eu tenha feito as pazes com elas. Era agradável que, assim como existiam palavras de fome e de comida, houvesse também palavras de escape das substâncias químicas. E também essas palavras eram para mim essenciais e necessárias. Necessárias e uma tortura, porque eu acreditava nelas, apesar de saber para que precisava delas.
No caminho para o Jama, a água escorria pelo exterior da torre quadrada de refrigeração, era uma torre-cachoeira. Eu a batizei PAGODE. Embaixo havia um depósito, que, mesmo no verão, cheirava a sobretudo de inverno, de naftalina. Um cheiro branco e redondo como as bolas antitraça do armário da minha casa. Aqui no pagode a naftalina tinha um cheiro anguloso e negro. Quando eu me afastava do pagode, ele se tornava novamente redondo e branco. Lembrei-me da minha infância. Íamos de trem passar as férias de verão no Wench. Em Kleinkopisch, pela janela do trem, vejo queimar a sonda de gás natural. Desprende-se dela uma chama acobreada, e fico impressionado com seu tamanho diminuto e que, mesmo assim, acabe com os milharais no vale inteiro, acinzentados como no fim do outono. Eram campos velhos em pleno verão. Sabia-se pelos jornais: a sonda. Péssima palavra, significava que a sonda ardia novamente e ninguém podia apagá-la. Minha mãe diz: Eles agora querem trazer sangue de búfalo do matadouro, cinco mil litros. Esperam que coagule rapidamente e estanque. A sonda cheira como nossos sobretudos de inverno no armário, observo. E minha mãe concorda: Sim, sim, naftalina.
Gordura da terra, os russos a chamam de NEFT. Às vezes se pode ler essa palavra nos vagões-cisternas. É petróleo, e penso imediatamente na naftalina. Em nenhum lugar o sol arde tanto como aqui, na esquina do Moika, na ruína de oito andares do lavadouro de carvão. O sol absorve a gordura da terra do asfalto, o cheiro é gorduroso e picante, amargo e salgado, como uma gigantesca caixa de graxa para sapato. No calor do meio-dia, meu pai se deitava no divã para a sua hora de sono e minha mãe engraxava seus sapatos enquanto isso. Na ruína de oito andares junto ao Moika, todos os dias, a qualquer hora que eu passe por lá, é sempre o meio-dia da minha casa.
As cinquenta e oito baterias de coque estão numeradas e se erguem verticais numa longa fila, como ataúdes abertos. Por fora são feitas de tijolos e, por dentro, revestidas com argila refratária que se destroça. Penso em ARGILOSAS TRAÇAS REVESTIDAS. No chão brilham poças de óleo, a argila destroçada cristaliza-se feito uma crosta amarela. O aroma lembra os arbustos de crisântemos amarelos do quintal do sr. Carp. Mas aqui a grama cresce pálida e tóxica. O meio-dia se mistura ao vento quente, a pouca grama está subnutrida como nós, arrasta seu próprio peso e carrega talos encurvados.
Albert Gion e eu estamos no turno da noite. Ao escurecer, vou até o porão e passo diante dos tubos, alguns envoltos em fibra de vidro, outros nus e enferrujados. Alguns à altura do joelho, outros chegando acima da cabeça. Ao menos uma vez eu teria de atravessar um tubo, em ambas as direções. Ao menos uma vez eu teria de saber de onde vem um tubo e para onde vai. Mesmo assim, ainda não saberia o que transporta, supondo que transportasse alguma coisa. Ao menos uma vez eu precisaria percorrer um tubo do qual saísse um vapor branco, porque esse ao menos transportaria vapor branco, vapor de naftalina. Devia haver alguém que ao menos uma vez me explicasse o funcionamento da planta de coque. Por um lado, gostaria de saber o que acontece aqui. Por outro lado, não sei se os procedimentos técnicos, que têm suas próprias palavras, não iriam perturbar minhas palavras de escape. Seria eu capaz de lembrar ao menos dos nomes de todos os esqueletos nas trilhas e clareiras. Da ventilação contínua saindo o vapor branco, percebe-se uma vibração subterrânea. Lá em cima soa a campainha que avisa o quarto de hora na bateria de ferro, e logo soará a segunda campainha. Os exaustores exibem suas costelas de ferro saindo de degraus e escadas. E atrás dos exaustores, a lua caminha pela estepe. Nessas noites vejo os pináculos da pequena cidade de onde vim, a ponte das mentiras, a escada diminuta e, ao lado, a casa de penhores CAIXINHA DE JOIAS. E vejo também Muspilli, o professor de química.
No emaranhado de tubos, as válvulas são MANANCIAIS DE NAFTALINA, gotejam. À noite percebe-se como estão brancas as torneiras das válvulas. Não como a neve, mas de um branco fluido. E as torres são de um negro diferente da noite, um negro pontiagudo. E a lua tem aqui uma vida, e outra em casa, sobre os pináculos da pequena cidade. E tanto aqui como lá possui um pátio onde a luz permanece acesa durante toda a noite, iluminando seu antiquíssimo inventário — uma poltrona de tecido felpudo e uma máquina de costura. A poltrona cheira a flores de limoeiro; a máquina de costura, a cera para móveis.
A torre parabólica, a MATRONA, a grandiosa torre de refrigeração, certamente com cem metros de altura, merecia toda a minha admiração. Seu corpete impregnado de negro recendia a resina de coníferas. Sua nuvem branca sobre a torre de refrigeração, sempre igual, era feita de vapor d’água. O vapor d’água não tem cheiro, mas estimula as mucosas nasais e potencializa todos os cheiros existentes e a invenção de palavras de escape. Só o Anjo da Fome era capaz de enganar tão bem como a Matrona. Ao lado da torre parabólica havia uma montanha de adubo químico, adubo-químico-de-antes-da-guerra. Adubo químico, dissera Kobelian, é também um derivado do carvão. DERIVADO soava consolador. De longe, o adubo-químico-de-antes-da-guerra brilhava feito sabonete de glicerina envolto em celofane. Vi-me aos onze anos no verão de Bucareste, em 1938, no Calea Victoriei, pela primeira vez numa loja de departamentos moderna, na seção de doces, longa como uma rua. O cheiro doce no nariz, o celofane estalando entre os dedos. Sou tomado por calafrios, o calor me inunda por dentro e por fora. Tive minha primeira ereção. E ainda mais a loja de departamentos se chamava Sora — irmã. O adubo de antes da guerra era aglomerado em camadas, amarelo transparente, verde-mostarda e cinza. Bem de perto cheirava a alume. Na pedra de alume eu tinha de confiar, ela estancava o sangue. Algumas plantas cresciam aqui e se alimentavam apenas de alume, floresciam lilases como sangue parado e depois exibiam frutos de um marrom envernizado, como o sangue seco dos esquilos da terra na grama da estepe.
Entre as substâncias químicas, havia também o antraceno. Estava por todos os caminhos e corroía as galochas. Antraceno é uma areia oleosa ou um óleo cristalizado em areia. Ao pisar nele, converte-se imediatamente em óleo outra vez, azul-tinta, verde-prateado, como cogumelos pisados. O antraceno tinha cheiro de alcanfor.
E às vezes, apesar das ruas aromáticas e das palavras de escape, surgia o odor do depósito-PEK com seu alcatrão de hulha. Eu o temia desde o meu envenenamento pela luz do dia e me alegrava que existisse o porão.
Contudo, deve haver no porão substâncias invisíveis, inodoras e insípidas. São as mais traiçoeiras. Como não é possível percebê-las, não podemos dar-lhes nomes de escape. Elas se escondem de mim e enviam primeiro o leite saudável. Uma vez ao mês, Albert Gion e eu recebemos leite saudável depois do expediente, para combater as substâncias invisíveis, para que nos envenenemos mais lentamente do que Jurij, o russo, com quem Albert Gion trabalhava no porão antes do meu envenenamento pela luz do dia. Para que resistamos mais tempo, recebemos uma vez por mês, na casinha do porteiro da fábrica, meio litro de leite saudável em uma lata de alumínio. É uma oferenda do outro mundo. Tem sabor para quem pudesse permanecer, se não estivesse na companhia do Anjo da Fome. Eu acredito nele, que ele ajuda meus pulmões. Que cada gole dilui o veneno, como neve pura, superior a tudo.
A tudo, tudo, tudo.
E todos os dias espero que seu efeito dure o mês inteiro e me proteja. Mesmo não me atrevendo, digo: Espero que o leite fresco seja a irmã desconhecida do meu lenço branco. E do desejo fluido da minha avó. Eu sei que você vai voltar.
Quem trocou o país
Durante três noites me visitou o mesmo sonho. Eu cavalgava novamente um porco branco através das nuvens a caminho de casa. Contudo, visto lá de cima, o país apresentava agora outra forma. Já não tinha fronteira com o mar. E não havia montanhas no meio, os Cárpatos não existiam. Uma terra plana, sem um único local. Por onde fosse, apenas aveia silvestre já amarelada pelo outono.
Quem trocou o país, perguntei.
O Anjo da Fome, olhando-me lá do céu, disse: A América.
E onde fica Siebenbürgen, perguntei.
Ele disse: Na América.
E para onde foram as pessoas, perguntei.
Ele não disse mais nada.
Na segunda noite, tampouco falou sobre o paradeiro das pessoas. Na terceira, também não. Isso não me deixou em paz no dia seguinte. Albert Gion me mandou para o outro alojamento dos homens, falar com o Lommer da cítara. Era conhecido por saber interpretar sonhos. Ele agitou treze feijões brancos e grossos no meu gorro de algodão, despejou-os sobre o tampo da mala e estudou as treze distâncias entre eles. Depois, observou os buracos, hilos e arranhões de cada feijão. Entre o terceiro e o nono feijão há uma estrada, e o sétimo é a sua mãe, disse ele. E o segundo, quarto, sexto e oitavo são rodas, porém pequenas. O veículo é um carrinho de bebê. Um carrinho branco de bebê. Argumentei que não tínhamos mais um carrinho de bebê em casa porque meu pai, logo que aprendi a andar, o transformou em carrinho de compras. O Lommer da cítara perguntou se o carrinho transformado era branco, e mostrou-me, no feijão de número nove, que no carrinho havia até uma cabeça com um gorro azul, talvez um menino. Vesti novamente meu gorro e perguntei o que mais ele via. Ele disse: Além disso, nada. Eu trazia um pedaço de pão economizado na jaqueta. Ele não pedia nada, porque era a primeira vez, esclareceu. Mas creio que disse isso por me ver tão abatido.
Voltei para meu alojamento. Fiquei sem saber nada sobre Siebenbürgen e o paradeiro das pessoas. Também nada sobre mim mesmo. Pensei: Pobres feijões, talvez estejam gastos com tantos sonhos aqui no campo de trabalho. Podia-se fazer uma boa sopa com eles.
Sempre tento convencer-me de que sou pouco sensível. Se levo algo a sério, afeta-me apenas moderadamente. Quase nunca choro. Não sou mais forte do que os de olhos úmidos, e sim mais fraco. Eles se atrevem. Quando se é apenas pele e osso, os sentimentos são valentes. Prefiro ser covarde. A diferença é mínima, eu uso minha força para não chorar. E se me permito algum sentimento, transformo-o numa história que insista, seca, na ausência de nostalgia. Por exemplo, o aroma das castanhas, ou seja, sim, nostalgia. Mas então se tomam apenas as castanhas imperiais e reais com cheiro de couro fresco, das quais meu avô me havia falado. Como marinheiro no porto de Pula, ele havia descascado e comido castanhas antes de partir para a volta ao mundo no veleiro Donau. Sendo assim, minha ausência de nostalgia passa a ser a nostalgia narrada pelo meu avô, com a qual domestico a nostalgia daqui. Ou seja, se tenho alguma vez um sentimento, trata-se de um aroma. O aroma-palavra da castanha ou do marinheiro. Com o tempo, o aroma-palavra torna-se surdo, como os feijões do Lommer da cítara. Podemos transformar-nos num monstro quando deixamos de chorar. O que me impede, caso eu não o seja já faz tempo, não é muito; no máximo, a frase: Eu sei que você vai voltar.
Faz tempo ensinei à minha nostalgia como manter os olhos secos. E agora quero que, além disso, ela deixe de ter dono. Assim, não perceberia mais minha situação aqui e não perguntaria pelos de casa. Assim, na minha cabeça, não haveria mais pessoas em casa, apenas objetos. Então, eu os moveria de um lado para o outro sobre o ponto frágil, como se movem os pés durante a “Paloma”. Os objetos são grandes ou pequenos, alguns talvez pesados demais, mas eles têm uma medida.
Se conseguir isso tudo, minha nostalgia já não se deixará atingir pela saudade. Então, minha nostalgia será apenas a fome do lugar onde antes me senti saciado.
O homem-batata
Durante dois meses, além da gororoba do refeitório, comi batata. Durante dois meses, batatas cozidas com rigorosa divisão, às vezes como entrada, outras como prato principal, outras como sobremesa.
Como entrada, eram batatas descascadas, cozidas com sal e temperadas com aneto silvestre. As cascas eu guardava, assim no dia seguinte haveria como prato principal cubos de batatas com macarrão. As cascas do dia anterior acrescidas das novas eram o meu macarrão. E como sobremesa havia, no terceiro dia, batatas com casca, cortadas em fatias e assadas no fogo, e polvilhadas com grãos de aveia tostados e um pouco de açúcar.
Trudi Pelikan me emprestara meia medida de açúcar e meia medida de sal. Como todos nós, ela também acreditava que, depois da terceira paz, logo voltaríamos para casa. Bea Zakel havia trocado para ela, no bazar, o sobretudo modelo sino com os belos punhos de pele por cinco medidas de açúcar e cinco de sal. O negócio com o sobretudo feminino fora mais bem-sucedido que a troca do meu cachecol de seda. Tur Prikulitsch ainda o usava durante a chamada. Nem sempre. Com o calor do verão, deixou de vesti-lo; desde a chegada do outono, voltou a usá-lo a cada dois dias. E eu perguntava a Bea Zakel, a cada dois dias, quando é que eu receberia dela ou de Tur algo em troca.
Depois da chamada noturna, sem o cachecol de seda, Tur Prikulitsch mandou que nos apresentássemos em seu escritório eu, meu colega de porão Albert Gion e o advogado Paul Gast. Tur fedia a aguardente de beterraba. Não apenas seus olhos, mas sua boca também tinha um aspecto oleoso. Riscou colunas na lista, preencheu outras com nossos nomes e anunciou que nem Albert Gion nem eu iríamos no dia seguinte ao porão, nem o advogado à fábrica. Acabara de escrever outra coisa em suas colunas. Estávamos confundidos uns nos outros. Tur começou do início e explicou novamente que, no dia seguinte, Albert Gion iria como sempre ao porão, mas não comigo, e sim com o advogado. Quando perguntei por que não comigo, ele semicerrou as pálpebras e disse: Porque amanhã cedo, às seis em ponto, você irá para o colcoz. Sem bagagem, à noite você estará de volta. Quando perguntei como, ele disse: Como vai ser. A pé. Você passará por três entulheiras à direita. À esquerda começa o colcoz.
Eu tinha certeza de que não seria por apenas um dia. No colcoz morria-se mais rapidamente, vivia-se em buracos feitos na terra, cinco, seis degraus abaixo, o teto de galhos secos e grama. Em cima entrava a chuva, por baixo a água subterrânea. Dispunha-se de um litro de água por dia, para beber e lavar-se. Não se morria de fome, mas de sede no calor; a sujeira e os insetos provocavam feridas purulentas e tétano. Todos no campo de trabalho temiam o colcoz. Eu tinha certeza de que, em vez de me pagar pelo cachecol, Tur Prikulitsch pretendia acabar comigo no colcoz, assim o cachecol seria uma herança.
Às seis da manhã pus-me a caminho, com minha fronha na jaqueta caso houvesse algo para roubar no colcoz. O vento assobiava pelos campos de repolhos e nabos, a grama ondulava, alaranjada, fazendo brilhar o orvalho. Ali crescia a erva-armoles de fogo. O vento soprava de frente, a estepe inteira entrava em mim e queria que eu desmoronasse, porque eu era fraco e ela ávida. Atrás de um campo de repolhos e de um trecho estreito de bosque de acácias, surgiu a primeira entulheira, depois prados, mais atrás um milharal. Então vinha a segunda entulheira. Esquilos da terra espreitavam por cima da grama, apoiando nas patas traseiras seu dorso de pele parda, com rabos de um dedo de comprimento e barrigas pálidas. Com a cabeça inclinada, suas patas dianteiras ficavam unidas como mãos humanas ao rezar. Também as orelhas sobressaíam das laterais da cabeça, como nos seres humanos. As cabeças se inclinaram por mais um segundo, depois a grama vazia balançou sobre os buracos na terra, mas de uma forma bem diferente de quando a balançava o vento.
Só agora me dou conta de que os esquilos da terra sentem que caminho só e desprotegido pela estepe. Esquilos da terra têm os instintos aguçados, eles rezam pela fuga, pensei. Seria possível fugir agora, mas para onde. Talvez eles quisessem advertir-me, provavelmente estou fugindo já há algum tempo. Olho em volta, para verificar se alguém me seguia. Bem atrás vinham duas silhuetas, pareciam um homem e uma criança; carregavam duas pás de cabo curto, nenhum fuzil. O céu era como uma rede azul estendida sobre a estepe e unida à terra ao longe, sem nenhuma abertura por onde escorrer.
Já tinha havido três tentativas de fuga do campo de trabalho.Todos os três eram ucranianos dos Cárpatos, compatriotas de Tur Prikulitsch. Falavam bem russo e mesmo assim foram pegos, todos os três, e exibidos durante a chamada, desfigurados pelos golpes. E depois nunca mais vistos, enviados para um campo especial, ou para a tumba.
Agora avistei, à minha esquerda, um barraco de madeira e um guarda com uma pistola no cinturão, um rapaz magro, meia cabeça mais baixo do que eu. Esperava por mim e acenou. Eu mal tive tempo de chegar, ele tinha pressa, caminhamos ao longo dos campos de repolho. Ele mastigava sementes de girassol, enfiava duas ao mesmo tempo na boca e, após um movimento brusco, cuspia as cascas por um canto da boca, enquanto com o outro canto pegava a seguinte, e voltavam a voar cascas vazias. Caminhávamos rapidamente, ao ritmo dos seus movimentos com a boca. Eu pensava: Talvez ele seja mudo. Ele não falava, não suava, sua acrobacia bucal nunca saía do ritmo. Ele andava, como se o vento o arrastasse sobre rodas. Ele calava e comia como uma descascadeira. Então me puxou pelo braço e nos detivemos. Havia cerca de vinte mulheres espalhadas pelo campo. Elas não tinham ferramentas, arrancavam as batatas da terra com as mãos. O guarda me indicou uma fileira. O sol pairava feito um pedaço de brasa no meio do céu. Comecei a cavar com as mãos, o chão era duro. A pele se abriu, nas feridas a sujeira queimava. Ao levantar a cabeça, enxames de pontos cintilantes voavam diante dos meus olhos. O sangue se detinha no cérebro. No campo estava esse rapaz com a pistola; além de guarda, era também natschalnik, comandante de brigada, capataz e inspetor, tudo ao mesmo tempo. Se ele surpreendia as mulheres conversando, chicoteava seus rostos com ramas de batata, ou enfiava batatas podres em suas bocas. E não era mudo. O que ele gritava nessas ocasiões eu não entendia. Não eram insultos de carvão, insultos de obras, ou palavras de porão.
Aos poucos compreendi outra coisa, que Tur Prikulitsch havia feito um trato com ele: fazer-me trabalhar o dia inteiro para só me fuzilar à noite, por tentativa de fuga. Ou, quando anoitecesse, depositar-me num buraco na terra, um bastante particular, porque eu era o único homem ali. Ou não apenas aquela noite, mas todas as noites a partir de então, de modo a que eu nunca mais voltasse para o campo de trabalho.
Quando anoiteceu, o rapaz, além de guarda, natschalnik, comandante de brigada, capataz, inspetor, também era comandante do campo. As mulheres se dispuseram em fila para a chamada, disseram seus nomes e números, viraram do avesso os bolsos das pufoaikas e mostraram duas batatas em cada mão. Tinham direito a quatro batatas médias. Se uma fosse grande demais, era trocada. Eu era o último da fila e mostrei a minha fronha. Guardava vinte e sete batatas: sete médias e vinte grandes. Também eu tinha direito a quatro batatas médias, precisei devolver as outras. O homem da pistola perguntou meu nome. Respondi: Leo Auberg. Como se tivesse algo que ver com meu nome, ele pegou uma batata média e a chutou por cima do meu ombro. Encolhi a cabeça. A próxima não será com um chute, ele a jogará na minha cabeça e a acertará com um tiro durante o voo, fazendo-a em pedaços junto com meu cérebro. Enquanto eu pensava aquilo, ele me via guardar a fronha no bolso da calça. Então, puxou-me pelo braço para fora da fila e apontou, como se tivesse ficado mudo novamente, para a noite na estepe, para o lugar de onde eu viera pela manhã. Deixou-me ali parado. Deu a ordem de marcha para as mulheres e foi embora atrás da brigada, na direção oposta. Fiquei ali, na beira do terreno, vendo-o marchar para longe com as mulheres e tinha certeza de que em breve ele deixaria a sua brigada sozinha e voltaria. E sem testemunhas se ouviria um estrondo, que significaria: fuzilado ao tentar fugir.
A brigada marchava ao longe como uma serpente marrom, cada vez menor. Permaneci imóvel diante do monte de batatas e comecei a pensar que o acordo não era entre Tur Prikulitsch e o guarda, mas entre Tur Prikulitsch e eu. Que o monte de batatas era um trato. Que Tur me pagava o cachecol de seda com as batatas.
Eu me enchi de batatas de todos os tamanhos até debaixo do gorro. Contei duzentas e setenta e três batatas. O Anjo da Fome me ajudava; afinal, ele era um notório ladrão. Porém, após me auxiliar, transformou-se novamente num notório carrasco e me deixou sozinho durante o longo caminho de volta.
Comecei a caminhar. Logo o corpo inteiro estava coçando, o piolho da cabeça, o piolho do pescoço e da nuca, o piolho das axilas, o piolho do peito, o chato dos pelos púbicos. De toda forma: até entre os dedos, dentro dos panos nas galochas. Para me coçar, precisaria levantar o braço, o que era impossível com as mangas repletas. Ao caminhar, teria de dobrar os joelhos, o que era impossível com as pernas da calça repletas. Passei pela primeira entulheira arrastando os pés. A segunda apareceu e não apareceu, ou não percebi quando passei por ela. As batatas pesavam mais do que eu. Para a terceira entulheira já estava escuro demais. O céu inteiro se cravejara de estrelas. A Via Láctea vai do sul para o norte, dissera o barbeiro Oswald Enyeter quando o segundo de seus compatriotas foi exibido na praça do campo de trabalho após uma fuga malsucedida. Para ir em direção a oeste, ele explicara: É necessário atravessar a Via Láctea e dobrar à direita, então seguir sempre em frente, ou seja, mantendo-se sempre à esquerda da Ursa Maior. Eu, porém, sequer encontrei a segunda e a terceira entulheiras, que agora no caminho de volta deveriam aparecer à minha esquerda. Era preferível que me vigiassem por todos os lados a estar perdido por todos os lados. As acácias, o milharal, até meus passos se perdiam atrás de um véu negro. Os repolhos me seguiam com o olhar como cabeças humanas, exibiam diversos penteados e gorros. Somente a lua usava uma touca branca e me apalpava o rosto como uma enfermeira. Eu pensava: Talvez eu nem precise mais das batatas, talvez esteja morrendo, envenenado pelo porão, e ainda não saiba. Ouvi gritos entrecortados de pássaros, vindos das árvores, e um balbucio lamurioso ao longe. As silhuetas noturnas podiam fluir. Não devo ter medo, pensei, senão me afogarei. Falei comigo mesmo para não rezar:
As coisas duradouras não se desfazem, não precisam de nada além de uma única relação com o mundo, eternamente igual. A relação da estepe com o mundo se faz através da espreita, a da lua através da iluminação, a dos esquilos da terra através da fuga, a da grama através do balançar. E minha relação com o mundo se dá através da comida.
O vento murmurava, ouvi a voz da minha mãe. No último verão em casa, à mesa, minha mãe não deveria ter dito “Não espete as batatas com o garfo, elas se desfazem; o garfo se usa para a carne”. Ela não podia imaginar que a estepe conhece a sua voz, que as batatas alguma vez, à noite, me puxariam para dentro da terra e que todas as estrelas lá em cima me espetariam. Que eu me arrastaria feito um armário pelos campos e prados, até o portão do campo de trabalho, é algo que naquela época ninguém imaginaria. Nem que apenas três anos depois, sozinho na noite, eu me tornaria um homem-batata, chamando de “volta para casa” o trajeto de regresso ao campo de trabalho.
No portão do campo de trabalho, latiam os cães com essas vozes noturnas de soprano sempre tão parecidas com o choro. Talvez Tur Prikulitsch tivesse também um acordo com os guardas, pois acenaram mandando-me entrar, não fui controlado. E os ouvi rirem atrás de mim, sapateando no chão. Carregado do jeito que eu estava, não tinha como me virar, provavelmente algum deles imitava meu passo estirado.
No dia seguinte, no turno da noite, levei para Albert Gion três batatas médias. Talvez ele as queira assar ao fogo, lá atrás, no cestinho de ferro. Não, ele não quer. Olha uma por uma e as guarda em seu gorro. Pergunta: Por que precisamente duzentas e setenta e três batatas.
Porque duzentos e setenta e três graus Celsius negativos é o ponto zero absoluto, eu digo, mais frio é impossível.
Hoje você está com mania de ciência, observa ele, você com certeza contou errado.
Não posso ter contado errado, eu digo, o número duzentos e setenta e três cuida de si mesmo, ele é um postulado.
Postulado, pergunta Albert Gion, você devia ter pensado em outra coisa. Homem, Leo, você podia ter fugido.
Dei vinte batatas a Trudi Pelikan, pagando com isso o sal e o açúcar. Dois meses mais tarde, pouco antes do Natal, as duzentas e setenta e três batatas haviam acabado. As últimas tinham olhos azul-esverdeados tão escorregadios como os de Bea Zakel. Fiquei pensando se eu deveria dizer isso a ela algum dia.
Céu embaixo, terra em cima
Na casa de campo no Wench, no meio do pomar, havia um banco de madeira sem encosto. Chamava-se tio Hermann. Tinha esse nome porque não conhecíamos ninguém que se chamasse assim. Tio Hermann possuía, cravadas no chão, duas pernas redondas feitas de troncos de árvore. Seu assento só havia sido polido na parte de cima, na de baixo a madeira conservava a casca. No sol escaldante, tio Hermann suava gotas de resina. Se as arrancávamos, no dia seguinte tinham surgido novamente.
Mais acima, na colina de relva, ficava a tia Luia. Possuía encosto e quatro pernas, era menor e mais esbelta do que tio Hermann, e mais velha do que ele. Tio Hermann viera depois dela. Eu rolava colina abaixo diante de tia Luia. Céu embaixo, terra em cima e, no meio, grama. Esta sempre me segurava pelos pés para que eu não caísse no céu. Eu sempre via o ventre cinza de tia Luia.
Uma noite, minha mãe estava sentada sobre a tia Luia, e eu deitado a seus pés, de costas na grama. Olhávamos para cima, as estrelas estavam todas lá. E minha mãe puxou a gola de seu casaco de tricô sobre o queixo, até que a gola tivesse lábios. Até que não ela, mas a gola dissesse:
O céu e a terra são o mundo. O céu é tão grande, porque ali está pendurado um sobretudo para cada pessoa. E a terra é tão grande por causa das distâncias até os dedos dos pés do mundo. Até ali é, porém, tão longe que é melhor parar de pensar, porque se sente a distância como um vazio mal-estar no estômago.
Perguntei: Onde fica o mais longe do mundo.
Onde ele termina.
Nos dedos dos pés.
Sim.
Também são dez.
Acho que sim.
Você sabe qual sobretudo é o seu.
Só quando eu estiver no céu.
Estão ali os mortos.
Sim.
Como chegam lá.
Caminham com a alma.
A alma também tem dedos dos pés.
Não, asas.
Os sobretudos têm mangas.
Sim.
São as mangas as suas asas.
Sim.
São tio Hermann e tia Luia um casal.
Se a madeira se casa, então sim.
Então, minha mãe se levantou e foi para casa. E eu me sentei sobre tia Luia, exatamente onde ela estivera sentada. Ali, a madeira era quente. No pomar, o vento negro tremia.
Sobre os vários tipos de tédio
Hoje não estou no turno da manhã, nem no turno da tarde, nem no turno da noite. Depois do último turno da noite vem sempre a longa quarta-feira. Ela é o meu domingo e não termina até quinta às duas da tarde. Tenho ar livre demais ao meu redor. Eu deveria cortar as unhas, mas da última vez me pareceu que outra pessoa as cortava em meus dedos. Não sabia quem.
Através da janela do alojamento, vê-se a rua principal até o refeitório. Ali vêm as duas Ziris com um balde: deve ser com carvão, parece pesado. Passaram pelo primeiro banco, sentam-se no segundo porque ele tem um respaldo. Eu poderia abrir a janela e acenar ou ir lá fora. Calço as galochas, e logo permaneço sentado na cama com as galochas calçadas.
Há o entediante delírio de grandeza da minhoca de goma no relógio cuco, o joelho negro no cano da estufa. No chão, a sombra da mesinha de madeira deteriorada. Quando o sol gira, sua sombra se renova. Há o tédio do espelho d’água no balde de metal e da água em minhas pernas inchadas. Há o tédio da costura rasgada de minha camisa e da agulha de costura emprestada e há o trêmulo tédio ao costurá-la, o cérebro escorrendo por cima dos olhos, e o tédio da linha ao cortá-la com os dentes.
Entre os homens há o tédio das depressões dissimuladas em meio a seus rabugentos jogos de cartas sem a mais mínima paixão. Tendo-se boas cartas, deve-se querer ganhar, mas os homens interrompem o jogo antes que haja um vencedor ou um perdedor. E entre as mulheres existe o tédio da cantoria, suas canções nostálgicas ao catar piolhos no tédio dos sólidos pentes para despiolhar feitos de chifre e baquelita. E há o tédio dos pentes de latão entalhados, que não servem para nada. O tédio de ter a cabeça raspada, e o tédio dos crânios como latas de porcelana, decoradas com florzinhas de pus e guirlandas de picadas frescas de piolhos que vão desaparecendo pouco a pouco. Há também o tédio mudo de Kati-Plantão. Ela não canta nunca. Perguntei-lhe: Kati, você não sabe cantar. Ela disse: Eu já me penteei. Está vendo, sem cabelos o pente arranha.
O pátio do campo de trabalho é um vilarejo vazio ao sol, as pontas das nuvens são fogo. Minha tia Fini, na pradaria da montanha, apontou para o pôr do sol. Uma corrente de vento havia levantado seu cabelo feito um ninho de pássaros, dividindo a parte posterior de sua cabeça com uma linha branca. E ela disse: O menino Jesus está assando um bolo. Perguntei: Agora mesmo. Agora mesmo, ela disse.
Há o tédio das conversas desperdiçadas, para não dizer ocasiões. Para um simples desejo gastam-se muitas palavras, e talvez nenhuma delas permaneça. Com frequência evito conversas, e, se as busco, temo-as, principalmente as conversas com Bea Zakel. Talvez eu não espere nada de Bea Zakel quando falo com ela. Talvez afunde nos olhos rasgados dela, esperando a clemência de Tur. No fundo, falo com todos mais do que gostaria, para me sentir menos sozinho. Como se fosse possível estar sozinho no campo de trabalho. É impossível, mesmo quando o campo se torna um vilarejo vazio ao sol.
É sempre a mesma coisa: deito-me porque mais tarde, quando os outros chegarem do trabalho, já não terei a mesma tranquilidade de agora. Quem trabalha no turno da noite não dorme por muito tempo de uma só vez; após quatro horas de sono obrigatório, eu acordo. Poderia calcular quanto tempo falta até que chegue ao campo de trabalho outra primavera entediante, com a próxima paz absurda e os rumores de que logo poderemos voltar para casa. E estou deitado nessa nova paz, na grama nova, e carrego a terra inteira nas costas. Sim, seremos transferidos daqui para outro campo de trabalho, mais a oeste, para um campo de lenhadores. E arrumo meus objetos do porão na mala de gramofone, arrumo e arrumo e não acabo nunca. Os outros me esperam. A locomotiva apita, e pulo no estribo no último minuto. Passamos por vários bosques de abetos. Os abetos pulam para o lado e se distanciam dos trilhos e, quando o trem já passou, saltam novamente de volta a seus lugares. Chegamos e desembarcamos, primeiro o comandante Schischtwanjonow. Não tenho pressa e espero que ninguém perceba que, dentro da minha mala de gramofone, não trago nem serra nem machado, somente objetos do porão e meu lenço branco. O comandante trocara de roupa logo após o desembarque, seu uniforme tem botões de chifre e dragonas com folhas de carvalho, apesar de estarmos numa floresta de abetos. Torna-se impaciente: Dawaj, anda logo, ele me diz, serras e machados temos de sobra por aqui. Eu desço do trem e ele me entrega um saco marrom de papel. Cimento outra vez, eu penso. Contudo, o saco está rasgado numa ponta e escorre farinha branca. Agradeço o presente, seguro o saco debaixo do braço esquerdo e, com o direito, faço uma saudação. Schischtwanjonow diz: Descanse, nestas montanhas é necessário explodir também. Então, compreendo: A farinha branca é dinamite.
Em vez de ficar pensando nisso, eu poderia ler alguma coisa. Mas faz tempo vendi, como papel de cigarro, para acalmar um pouco a fome, o terrível Zaratustra, o grosso Fausto e o Weinheber impresso em papel-bíblia. Na minha quarta-feira livre anterior, imaginei que não embarcávamos no trem. Que o barraco sem rodas viaja conosco para leste e, ao viajar, estica-se como um acordeão. Que não sacode, que lá fora desfilam acácias arranhando as janelas com seus galhos, e eu, sentado ao lado de Kobelian, pergunto: Como estamos viajando se não temos rodas. E Kobelian diz: Viajamos sobre um rolamento.
Estou cansado e não tenho vontade de sentir muita falta de seja lá o que for. Há todo tipo de tédio, os que se adiantam com pressa e os que chegam depois, atrasados. Se eu os tratar bem, eles não fazem nada comigo e são todos os dias minha propriedade. Sobre o vilarejo russo há, durante o ano inteiro, o tédio da lua delgada; seu pescoço lembra uma flor de pepino ou uma trombeta com pistões de cor cinza. Alguns dias depois, cresce até se transformar numa meia-lua, feito uma viseira pendurada. E, nos dias que se seguem, olha-nos, lá de cima no céu, o tédio de uma esfera de lua completa, cheia até transbordar. Todos os dias há o tédio do arame farpado sobre o muro do campo de trabalho, o tédio dos guardas nas torres, os bicos brilhantes dos sapatos de Tur Prikulitsch e o tédio das próprias galochas rasgadas. Há o tédio da nuvem branca da torre de refrigeração, assim como o tédio dos panos brancos que cobrem os pães. E há o tédio das chapas de amianto onduladas, das espessas nuvens de alcatrão e de velhas poças de óleo.
Há o tédio do sol quando a madeira seca e a terra se torna mais fina do que a razão em nossas cabeças, quando os cães de guarda dormem em vez de latir. E, antes que a grama morra de sede, o céu se fecha, e então vem o tédio nas pontas dos fios de chuva, até que a madeira inche e os sapatos grudem na lama e as roupas na pele. O verão tortura as folhagens, o outono, as cores, e o inverno, a nós.
Há o tédio da neve fresca com pó de carvão e da neve velha com pó de carvão, o tédio da neve velha com cascas de batata e da neve fresca sem cascas de batata. O tédio da neve com rugas de cimento e manchas de alcatrão, a lã enfarinhada sobre os cães de guarda e seus latidos graves de metal ou agudos de soprano. Há o tédio dos canos que gotejam, seus sincelos como rábanos de vidro, e o tédio da neve feito um móvel aveludado sobre as escadas do porão. Há também o fio do gelo e seu desgelo, como uma rede de pelos sobre a argila esmigalhada das baterias de coque. Há também o tédio da neve que gruda nas pessoas, deixando-nos com olhos vítreos e faces abrasadas.
Sobre as largas vias russas há a neve das traves de madeira, da coroa de óxido dos parafusos, todos muito juntos, dois, três, até cinco, qual dragonas de diversas hierarquias. E no terrapleno ferroviário, quando alguém cai, há o tédio da neve com o cadáver e sua pá. Mal o retiramos e já esquecemos o cadáver, porque na neve grossa não se vê o contorno dos magros cadáveres. Apenas o tédio de uma pá abandonada. Não se deve ficar perto da pá. Quando sopra um vento fraco, voa uma alma enfeitada com plumas. Quando é forte, ela é arrastada em ondas. Não somente com ela, com cada cadáver por certo há um Anjo da Fome que fica livre e procura nova hospedaria. Porém nenhum de nós é capaz de alimentar dois Anjos da Fome.
Trudi Pelikan me contou que ela e a auxiliar sanitária russa acompanharam Kobelian até o leito ferroviário e colocaram a congelada Corina Marcu no caminhão. Trudi subiu na caçamba para desvestir o cadáver antes que fosse enterrado, e a auxiliar sanitária, porém, disse: Façamos isso depois. A auxiliar sanitária foi com Kobelian, na cabine, e Trudi lá em cima, com o cadáver. Kobelian não se dirigiu ao cemitério, mas ao campo de trabalho, onde Bea Zakel esperava na enfermaria e, mal ouviu o zumbido do caminhão, saiu pela porta com o filho nos braços. Kobelian carregou a defunta Corina Marcu sobre o ombro e, por indicação da auxiliar sanitária, não a levou para a câmara mortuária nem para a sala de tratamento, mas para o quarto privado da au- xiliar sanitária. Ao chegar lá, não sabia onde a pôr, porque a auxiliar sanitária disse: Espere. A morta foi ficando pesada demais sobre seu ombro, e ele a deixou escorregar até o chão. Apoiou-a em si mesmo até que a auxiliar sanitária transferisse para um balde as latas de conservas e a mesa ficasse livre. Sem dizer palavra, Kobelian deitou a morta sobre a mesa. Trudi Pelikan começou a desabotoar a jaqueta da defunta, porque julgava que Bea Zakel estivesse esperando pelas roupas. A auxiliar sanitária disse: Primeiro os cabelos. Bea Zakel trancou seu filho junto com as outras crianças atrás do alpendre de madeira. Ele se pôs a chutar a parede de madeira e a gritar, até que as outras crianças passaram também a gritar ainda mais forte, como cães quando um começa a latir. Bea Zakel puxou a morta pela cabeça para a beira da mesa, até seus cabelos ficarem pendurados. Quase por milagre, Corina Marcu não tivera a cabeça raspada, e, agora, a auxiliar sanitária cortou-lhe o cabelo com máquina zero. Bea Zakel o guardou cuidadosamente numa caixa de madeira. Trudi quis saber para que aquilo servia, e a auxiliar sanitária disse: Almofadas para as janelas. Trudi Pelikan perguntou: Para quem, e Bea Zakel disse: Para a alfaiataria, o senhor Reusch costura almofadas para as janelas, o cabelo não deixa passarem as correntes de ar. A auxiliar sanitária lavou as mãos com sabão e disse: Tenho medo de me entediar quando estiver morta. Bea Zakel comentou, com voz atipicamente alta: Com razão. Bea Za- kel arrancou, então, duas folhas em branco do registro de doentes e fechou a tampa de madeira. Com a caixinha debaixo do braço, parecia haver comprado algum produto perecível numa loja do vilarejo russo. Em vez de esperar pelas roupas, desapareceu com a caixa antes que tivessem terminado de desvestir a morta. Kobelian foi até seu caminhão. Ele demorou, até que a morta estivesse nua, porque Trudi não queria cortar o bom traje pufoaika. Ao puxar daqui e dali, caiu do bolso do casaco da morta, no chão junto ao balde, um broche de gato. Trudi Pelikan se agachou para pegá-lo e soletrou as palavras impressas numa das latas de conserva, brilhantes: CORNED BEEF. Não acreditou no que seus olhos viam: a auxiliar sanitária, enquanto ela ainda soletrava, se abaixou e pegou o broche de gato. O tempo todo, o caminhão estava grunhindo lá fora, sem partir nunca. A auxiliar sanitária saiu com o broche na mão, voltou com a mão vazia e disse: Kobelian está sentado ao volante e não para de repetir “Santo Deus” e de chorar.
O tédio é a paciência do medo. Ele não quer exagerar. Só às vezes, e por isso tem muito interesse, quer saber como estou.
Eu podia comer o pedaço de pão economizado da fronha, com um pouco de açúcar ou de sal. Ou secar, sobre o encosto da cadeira junto à estufa, meus panos molhados para os pés. A mesinha de madeira projeta uma sombra comprida: o sol girou. Na primavera, na próxima primavera, quem sabe consigo dois pedaços de borracha da fita rolante da fábrica ou de um pneu da garagem. Então os levo ao sapateiro.
Bea Zakel foi a primeira no campo de trabalho a usar ballettki,* ainda no verão anterior. Fui vê-la na câmara de roupas, eu precisava de sapatos de madeira. Procurei-os no monte de sapatos, e Bea Zakel disse: Só tenho números muito grandes ou muito pequenos, navios ou dedais, os de tamanho médio já acabaram. Experimentei vários, para ficar ali mais tempo. Primeiro me decidi por uns pequenos, depois perguntei quando chegariam os médios novamente. Depois, fiquei com dois grandes. Bea Zakel disse: Veste logo esses, deixa os velhos aqui. Olha só o que eu tenho: Ballettki.
Pergunto: De onde.
Ela diz: Do sapateiro. Olha, eles são flexíveis, como estar descalço.
Quanto custam, pergunto.
Ela diz: Isso você tem de perguntar ao Tur.
Os pedaços de borracha talvez Kobelian me dê de graça. Devem ter ao menos o tamanho de duas pás. Para o sapateiro, precisaria de dinheiro. Necessitaria vender carvão enquanto ainda faz frio. No verão, no próximo verão, o tédio talvez tire os panos dos pés e vista os ballettki. Então, caminhará como se estivesse descalço.
* Ballettki: "sapatos tipo bailarina". (N. T.)
Irmão substituto
Era início de novembro quando Tur Prikulitsch me chamou ao seu escritório.
Tenho correspondência de casa.
O céu da boca palpita de felicidade, não consigo fechá-la. Tur vasculha numa caixa dentro do armário entreaberto. Na parte fechada do armário há uma foto de Stálin: pômulos altos e cinzentos como duas entulheiras, o nariz imponente feito uma ponte de ferro, seu bigode como uma andorinha. Ao lado da mesa, brama a estufa de carvão, sobre ela murmura uma panela de alumínio destampada com chá preto. Junto à estufa há um balde com carvão de antracito. Tur diz: Jogue mais um pouco de carvão enquanto procuro a sua carta.
Procuro no balde três pedaços adequados, a chama salta como uma lebre branca saída de uma lebre amarela. Em seguida o amarelo atravessa o branco, as lebres se rasgam entre si e assoviam a duas vozes: Hasoweh. O fogo sopra calor no meu rosto e a espera, medo. Fecho a pequena porta da estufa, e Tur fecha a porta do armário. Ele me entrega um cartão-postal da Cruz Vermelha.
No cartão vem costurada com linha branca uma foto, cuidadosamente pespontada com máquina de costura. Na foto, vê-se uma criança. Tur olha para meu rosto e eu olho para o postal, e a criança costurada no postal olha para meu rosto, e da porta do armário Stálin olha para o rosto de todos nós.
Debaixo da foto está escrito:
Robert, nasc. em 17 de abril de 1947.
É a letra da minha mãe. A criança na foto usa um gorro de tricô e um laço debaixo do pescoço. Leio novamente: Robert, nasc. em 17 de abril de 1947. Nada mais, além disso. A letra manuscrita me dá uma punhalada: o pensamento prático de minha mãe, economizar espaço com a abreviatura NASC. em vez de nascido. Meu pulso lateja no postal, não na mão com a qual eu o seguro. Tur põe sobre a mesa, diante de mim, a lista de correio e um lápis, devo procurar meu nome e assinar. Ele vai até a estufa, estica as mãos e escuta o murmúrio da água do chá e os assobios das lebres no fogo. Primeiro as colunas embaçam diante dos olhos, depois as letras. Ajoelho-me junto à mesa, deixo as mãos caírem sobre ela, o rosto nas mãos, e choro.
Quer chá, pergunta Tur. Quer aguardente. Pensei que você ficaria contente.
Sim, estou contente porque ainda temos a velha máquina de costura em casa.
Bebo com Tur Prikulitsch um copo de aguardente e mais um. Para pessoas peleeosso é demasiado. A aguardente queima em meu estômago e as lágrimas no rosto. Fazia uma eternidade que eu não chorava, ensinara à minha nostalgia manter os olhos secos. Eu até fizera com que minha nostalgia não tivesse mais senhor. Tur põe o lápis em minha mão e indica a fileira correta. Escrevo com mão trêmula: Leopold. Preciso do seu nome completo, diz Tur. Escreva você, não consigo.
Então, saio para o exterior nevado com a criança costurada na jaqueta da pufoaika. De fora, vejo na janela do escritório a almofada contra correntes de ar, da qual falara Trudi Pelikan. Havia sido cuidadosamente costurada e recheada. Os cabelos de Corina Marcu certamente não foram suficientes, há com certeza outros lá dentro. Das lâmpadas fluem funis brancos, a torre de vigilância ao fundo oscila no céu. Por todo o pátio nevado estão espalhados os feijões brancos do Lommer da cítara. A neve desliza com o muro do campo de trabalho cada vez mais para longe. Porém, na rua principal por onde vou, ela sobe pelo meu pescoço. O vento possui uma foice afiada. Não tenho pés, caminho sobre as faces e em breve não terei nem faces. Tenho apenas a criança costurada, ele é o meu irmão substituto. Meus pais fizeram um filho porque não contam mais comigo. Assim como a minha mãe abrevia nascido com NASC., ela também abreviaria morto com MOR. Ela já o fez. Minha mãe não se envergonha, com seu cuidadoso pesponto de linha branca, de que eu tenha de ler sob a linha:
Por mim, você pode morrer aí onde está, economizaria lugar em casa.
No espaço em branco sob a linha
O cartão da Cruz Vermelha de minha mãe chegou em novembro ao campo de trabalho. Uma viagem de sete meses. Fora enviado em abril. Nessa época, a criança costurada já estava no mundo havia nove meses.
Guardei o postal com o irmão substituto bem no fundo da mala, debaixo do lenço branco. No postal havia somente uma linha, e nela sequer uma palavra sobre mim. Nem mesmo no espaço em branco sob a linha.
No vilarejo russo eu aprendera a mendigar por comida. Mendigar junto à minha mãe por uma alusão eu não queria. Nos dois anos restantes, obriguei-me a não responder o postal. Nos dois anos anteriores, o Anjo da Fome me ensinara a mendigar. Nos dois anos restantes, o Anjo da Fome me ensinou o orgulho árduo. Era tão árduo como resistir diante do pão. Ele me torturava cruelmente. Todos os dias o Anjo da Fome me mostrava minha mãe, como ela alimentava seu filho substituto ao longo da minha vida. Limpo e saciado, ele empurrava o carrinho branco para lá e para cá em minha cabeça. E eu a observava de todos os lugares onde eu não aparecia, nem mesmo no espaço em branco sob a linha.
A corda de Minkowski
Aqui cada um tem o seu presente. Cada um aqui toca o chão com suas galochas de borracha ou com seus sapatos de madeira, seja a doze metros debaixo da terra no porão, seja na tábua do silêncio. Quando Albert Gion e eu não estamos trabalhando, nos sentamos num banco feito de duas pedras e uma tábua. Na rede de arame queima a lâmpada; no cesto de ferro, um fogo de coque. Descansamos e calamos. Com frequência me pergunto se ainda sei contar. Se estamos agora no quarto ano e na terceira paz, também aqui no porão deve haver existido a primeira e a segunda paz, assim como deve ter existido uma paz anterior, sem mim. E aqui no porão deve ter tantos turnos da noite e da manhã como camadas de terra. E meus turnos com Albert Gion, precisaria tê-los contado; mas será que ainda sei contar.
Saberei ler ainda. De Natal ganhei do meu pai um livro: Você e a física. Nele, dizia-se que cada pessoa e cada acontecimento têm seu próprio lugar e seu próprio tempo. É uma lei da natureza. E por isso todos e tudo possuem sua própria legitimação neste mundo. E para tudo o que existe, sua própria corda, a CORDA DE MINKOWSKI. Enquanto estou aqui sentado, há sobre minha cabeça a corda de Minkowski, reta para cima. E quando me mexo, ela se dobra como eu e acompanha meu movimento. Ou seja, não estou só.
Da mesma forma, cada canto no porão tem sua corda e cada um no campo de trabalho. E nenhuma corda toca a outra. Há uma floresta de cordas minuciosamente ordenada sobre todas as cabeças. Cada um respira em seu lugar com sua corda. A torre de refrigeração respira duplamente, já que a nuvem da torre de refrigeração tem com certeza sua própria corda. O livro não conhece muito bem a aplicação a um campo de trabalho. Também o Anjo da Fome tem sua corda Minkowski. Mas no livro não havia nada sobre se um Anjo da Fome deixa sempre conosco sua corda de Minkowski e por isso não vai embora quando diz que voltará. Talvez o Anjo da Fome nutrisse respeito pelo livro, eu deveria tê-lo trazido.
Quase sempre me calo sentado no banco do porão, observando o interior da minha mente como através de uma luminosa fresta da porta. No livro lia-se também que todos, o tempo inteiro e em qualquer lugar, repassam seu próprio filme. Em cada mente a bobina projeta dezesseis imagens por segundo. PROBABILIDADE DE PRESENÇA era também um desses termos em Você e a física. Como se não fosse evidente que estou aqui, e que não teria que querer ir embora para não estar aqui. E isso é assim porque, enquanto corpo em um lugar, ou seja, no porão, sou uma partícula, mas, por causa da minha corda Minkowski, sou ao mesmo tempo uma onda. E enquanto onda posso estar também em outro lugar, e alguém que não esteja aqui pode estar comigo. Posso escolher quem. Uma pessoa não, melhor um objeto que combine com as camadas de terra no porão. Por exemplo, um SÁURIO. O elegante ônibus de viagem, vermelho-escuro com para-choques cromados, que fazia o trajeto entre Hermannstadt e Salzburg, chamava-se Sáurio. No verão, minha mãe e minha tia Fini iam de Sáurio até o balneário de Ocna-Ba?i, a dez quilômetros de Hermannstadt. Quando voltavam, permitiam-me lamber seus braços, para que eu comprovasse como os banhos eram salgados. E falavam das escamas peroladas das pequenas lâminas de sal entre as folhas lanceoladas nos prados. Através da luminosa fresta da porta em minha mente, dei partida ao ônibus Sáurio entre mim e o porão. Ele também possui sua fresta luminosa e sua corda Minkowski. Nossas cordas nunca se tocam, mas nossas frestas luminosas se encontram debaixo da lâmpada, onde as cinzas volantes redemoinham com sua corda Minkowski. Ao meu lado no banco, Albert Gion silencia com sua corda Minkowski. E o banco é a tábua do silêncio, porque Albert Gion não tem como me dizer em que filme está neste momento, da mesma forma que eu também não posso dizer-lhe que tenho aqui, no porão, um ônibus vermelho-escuro com para-choques cromados. Cada turno é uma obra de arte. Mas sua corda Minkowski é só uma corda de metal com carrinhos circulantes. E cada carrinho com sua corda é apenas um carregamento de escória doze metros debaixo da terra.
Às vezes penso que já morri há cem anos e minhas solas dos pés são transparentes. Quando olho através da fresta luminosa em minha mente, no fundo me interessa apenas essa insistente e tímida esperança de que alguém pense em mim, em algum momento, em algum lugar. Mesmo que não tenha como saber onde estou neste momento. Talvez eu seja um velho sem o dente superior da esquerda, numa fotografia de casamento que não existe, e ao mesmo tempo uma criança magra no pátio de um colégio, que também não existe. E, da mesma forma, sou o rival e o irmão de um irmão substituto que é meu rival, porque os dois existimos ao mesmo tempo. Mas também em tempos desiguais, porque nunca nos vimos, isto é, em tempo algum.
E ao mesmo tempo, sei que aquilo que o Anjo da Fome considera a minha morte, por enquanto, ainda não aconteceu.
Cães negros
Saio do porão para a neve da manhã: ela ofusca. Nas torres de vigilância, há quatro estátuas de escória negra. As estátuas não são soldados, mas quatro cães negros. A primeira e a terceira estátuas, porém, mexem a cabeça; a segunda e a quarta permanecem imóveis. Então, o primeiro cão mexe a perna e o quarto, o fuzil; o segundo e o terceiro permanecem imóveis.
A neve sobre o teto do refeitório é um lençol branco. Por que Fenja colocou o lençol dos pães no telhado.
A nuvem da torre de refrigeração é um carrinho de bebê branco, ele se dirige ao vilarejo russo onde estão as bétulas brancas. Quando meu lenço branco de batista completou o terceiro inverno dentro da mala, um dia, mendigando, bati na porta da velha russa. Um homem da minha idade abriu a porta. Perguntei se ele se chamava Boris. Ele disse: NJET. Se ali morava uma senhora de idade, eu perguntei. Ele disse: NJET.
Em breve chegará o pão ao refeitório. Um dia, quando es- tiver sozinho diante do despacho de pão, criarei coragem e perguntarei a Fenja: Quando irei para casa, já sou quase uma estátua de escória negra. Fenja dirá: Você tem trilhos no porão e uma montanha. Os carrinhos partem para casa o tempo todo, vá com eles. Antes você adorava ir de trem para as montanhas. Mas então eu ainda estava em casa, direi. Está vendo, Fenja dirá, assim será novamente.
Porém, agora passo pela porta do refeitório e me coloco na fila, diante da distribuição. O pão está coberto com a neve branca do telhado. Eu poderia ir para o fim da fila, assim ficaria sozinho com Fenja no despacho, quando recebesse meu pão. Mas não tenho coragem, pois Fenja, como todos os dias, em sua fria santidade, tem três narizes diante do rosto, dois deles são os pratos da balança.
Uma colherada a mais,
uma a menos
Era novamente época de Advento. Fiquei perplexo: no alojamento, sobre a pequena mesa, estava minha arvorezinha de arame com a lã verde de abeto. O advogado Paul Gast a guardara em sua mala e este ano a enfeitara com três bolas de pão. Porque este é o terceiro ano, ele disse. Ele imagina não sabermos que dispõe de bolas de pão porque o rouba de sua mulher.
Esta, Heidrun Gast, morava no alojamento das mulheres: casais não podiam viver juntos. Heidrun Gast já estava com o rosto de macaquinho morto: a boca rasgada de orelha a orelha, a lebre branca nas concavidades das faces e os olhos inchados. Desde o verão, trabalhava na garagem, cabia-lhe carregar as baterias dos carros. Por causa da causticidade do ácido sulfúrico, seu rosto tinha mais buracos que sua pufoaika.
No refeitório, via-se dia a dia o que o Anjo da Fome faz com o casamento. O advogado procurava sua mulher como um guarda. Se já estivesse sentada à mesa, ao lado de outras pessoas, ele a puxava pelo braço e punha a sopa dela ao seu lado. Quando ela desviava a vista por um instante, ele afundava sua colher no prato dela. Se a mulher percebia, Paul Gast dizia: Afinal, uma colherada a mais, uma a menos...
A arvorezinha com as bolas de pão continuava sobre a mesa, e Heidrun Gast morrera ainda no início do mês de janeiro. As bolas de pão ainda estavam penduradas na arvorezinha, e Paul Gast já usava o sobretudo de sua mulher, com a gola redonda e os bolsos de pele de coelho puída. E ia à barbearia com mais frequência do que antes.
Em meados de janeiro, quem usava o sobretudo era nossa cantora Ilona Mich. E o advogado podia visitá-la atrás do cobertor. Nessa época, o barbeiro perguntou: Vocês têm filhos em casa.
O advogado disse: Eu tenho.
Quantos, perguntou o barbeiro.
Três, disse o advogado.
Seus olhos gelados, envoltos pela espuma de barbear, olhavam fixamente para a porta. Ali, pendurado de um gancho, meu gorro de algodão com orelheiras, como um pato abatido por um tiro. O advogado deu um suspiro tão profundo, que, do dorso da mão do barbeiro, caiu no chão um pouco de espuma. E ali, onde pousou, entre as pernas da cadeira, estavam, quase na ponta dos pés, as galochas de borracha do advogado. Amarradas aos tornozelos por baixo da sola com uma corda de cobre brilhante, totalmente nova.
Um dia meu Anjo da
Fome foi advogado
Não conte nunca isso ao meu marido, dissera Heidrun Gast. Foi um dia em que ela pôde sentar-se entre mim e Trudi Pelikan, porque o advogado Paul Gast não fora jantar, seus dentes estavam soltando pus. Nesse dia Heidrun Gast pôde falar também.
Ela contou que no teto, entre a oficina mecânica e o galpão da fábrica bombardeada, há um buraco do tamanho de uma copa de árvore. Lá em cima, no galpão da fábrica, a escória é ordenada; às vezes, lá embaixo, no chão da oficina, há uma batata que um homem joga lá de cima para Heidrun. Sempre o mesmo homem. Heindrun Gast olha para ele lá em cima, e ele olha para baixo. Conversar não podem, lá em cima ele é tão vigiado quanto ela na oficina. O homem usa uma pufoaika listrada, é um prisioneiro de guerra alemão. Da última vez surgiu uma batata muito pequena entre as caixas de ferramentas. Pode ser que Heidrun não a tenha visto e que já estivesse lá havia um ou dois dias. Talvez o homem tenha precisado jogá-la mais rápido do que de costume, ou, por ser muito pequena, havia rolado para mais longe do que o habitual. Talvez ele a tenha querido jogar de propósito em outro lugar. Num primeiro momento, Heidrun Gast não teve certeza se ela era realmente do homem lá de cima, e não arranjada pelo natschalnik como armadilha. Ela empurrou a batata com a ponta do sapato para baixo da escada, de modo que só fosse possível vê-la se se soubesse onde estava. Ela queria esperar para assegurar-se de que o natschalnik não a espionava. Somente pouco antes de terminar seu trabalho, pegou a batata e sentiu, ao levantá-la, que a amarrava um fio ao seu redor. Como sempre, naquele dia Heidrun Gast havia olhado o quanto pôde pelo buraco para cima, mas não vira mais o homem. À noite, quando voltou para o alojamento, arrebentou o fio com os dentes. A batata estava cortada ao meio. Entre as metades da batata havia um pedaço de pano. ELFRIEDE RO estava escrito nele, RU, ENSBU e, bem embaixo, LEMANH. As outras letras haviam sido devoradas pela fécula. Quando o advogado voltou para seu alojamento, após a gororoba do refeitório, Heidrun Gast jogou o pedaço de pano numa fogueirinha tardia do pátio e assou as duas metades da batata. Eu sei, ela disse, que comi uma mensagem, isso foi há sessenta e um dias. Com certeza ele não obteve permissão para voltar para casa, mas certamente não morreu, ainda estava saudável. Ele desapareceu da face da terra, ela disse, como a batata em minha boca. Sinto falta dele.
Em seus olhos tremeu uma fina pele de gelo. As concavidades de sua face com a penugem branca grudavam nos ossos. Não deveria ser nenhum segredo para seu Anjo da Fome: não havia nada mais a tirar dali. Eu me senti mal, como se seu Anjo da Fome estivesse disposto a deixá-la com mais rapidez quanto mais ela confiasse em mim. Como se ele fosse mudar-se para dentro de mim.
Somente o Anjo da Fome poderia proibir que Paul Gast roubasse a comida de sua mulher. Mas o Anjo da Fome é ele mesmo um ladrão. Todos os Anjos da Fome se conhecem entre si, pensei, assim como nós nos conhecemos. Todos exercem nossas profissões. O Anjo da Fome de Paul Gast é advogado, como ele. E o de Heidrun Gast é apenas o cúmplice do Anjo da Fome de seu marido. O meu também é cúmplice, sabe-se lá de quem.
Eu lhe disse: Heidrun, coma a sopa.
Não consigo, respondeu.
Peguei a sopa. Também Trudi Pelikan a olhava, de esguelha. Também Albert Gion, bem diretamente. Comecei a comer às colheradas, não as contei. Nem mesmo sorvia, já que demoraria mais. Comi apenas para mim, sem Heidrun Gast nem Trudi Pelikan nem Albert Gion. Esqueci tudo em volta, o refeitório inteiro. Puxei a sopa até o coração. Diante desse prato, meu Anjo da Fome não era um cúmplice, mas um advogado.
Empurrei o prato vazio de volta para Heidrun Gast, junto à sua mão esquerda, até que tocou seu dedo mindinho. Ela lambeu sua colher sem usar e a secou na jaqueta, como se tivesse comido, e não eu. Ou ela já não mais sabia se comia ou apenas assistia. Ou queria fazer de conta que havia comido. Fosse como fosse, via-se seu Anjo da Fome esticado no sulco da sua boca: por fora, de uma palidez compassiva; por dentro, de um azul-escuro. Não se devia descartar que ele estivesse inclusive na horizontal. E certamente, na água com tiras da sopa de repolho, ele contava os dias que restavam a ela. Pode ser também que ele tenha esquecido Heidrun Gast e ajustasse com mais precisão a balança da minha úvula. Que, durante a comida, calculasse quanto poderia tirar de mim, e em que momento.
Tenho um plano
Quando o Anjo da Fome me pesar, enganarei a sua balança.
Serei tão leve como o pão que economizei. E igualmente difícil de morder.
Você vai ver, digo a mim mesmo, é um plano curto de longa duração.
O beijo de latão
Depois do jantar, eu tinha turno da noite no porão. No céu havia certa claridade. Do vilarejo russo, um bando de pássaros voava feito um colar cinza em direção ao campo de trabalho. Não sei se os pássaros gritavam acima, na zona clara, ou em minha boca, no véu palatino. Também não sei se eles gritavam com os bicos, esfregavam as patas umas nas outras, ou se tinham nas asas velhos ossos sem cartilagem.
De repente rompeu-se uma conta do colar, dividiu-se em bigodes. Três deles voaram diante do soldado da torre de vigilância ao fundo, na testa por baixo do gorro. Ficaram um longo tempo por lá. Somente quando me virei outra vez no portão da fábrica é que eles saíram voando de debaixo do gorro pela nuca. Seu fuzil oscilou, o sentinela, porém, se manteve imóvel. Pensei: Ele é feito de madeira; e o fuzil, de carne.
Eu não queria trocar de lugar com o sentinela da torre, nem com o colar de pássaros. Também não queria ser aquele que trabalha com escória, que, noite após noite, desce os mesmos sessenta e quatro degraus até o porão. Mas eu queria a troca. Acho que desejava ser o fuzil.
No turno da noite, virei, como de costume, um carrinho depois do outro, e Albert Gion se dedicou a empurrar. Então trocamos. A escória quente nos envolvia em névoa. Os pedaços incandescentes cheiravam a resina de abeto, e meu pescoço, suado, a chá de mel. O branco dos olhos de Albert Gion balançava como dois ovos descascados, e seus dentes como um pente para piolhos. E seu rosto negro não estava com ele no porão.
Durante a pausa, na tábua do silêncio, o pequeno fogo de coque iluminava nossos sapatos até o joelho. Albert Gion abotoou a jaqueta e perguntou: Terá Heidrun Gast mais saudades do alemão ou das batatas. Ela com certeza mordeu a linha outras vezes; quem sabe o que estava escrito nos outros pedaços de pano. O advogado está certo de roubar-lhe a comida. Casamento antigo dá fome. Infidelidade sacia. Albert Gion tocou de leve o meu joelho. Como sinal de que a pausa acabara, pensei. Mas ele disse: Amanhã a sopa será para mim; o que sua corda de Minkowski pensa disso. Minha corda de Minkowski ficou em silêncio. Ficamos ainda um tempo ali sentados em silêncio. Sobre o banco não se via minha mão negra. A dele também não.
No dia seguinte, apesar de seus dentes purulentos, Paul Gast estava de volta, ao lado de sua mulher no refeitório. Ele podia comer novamente, e sua mulher podia calar novamente. Minha corda de Minkowski achava que eu estava decepcionado, como muitas outras vezes. E que Albert Gion parecia mais odioso do que nunca. Ele queria estragar a comida do advogado e estava procurando briga. Jogou-lhe na cara seu ronco insuportavelmente alto. Então eu me tornei odioso e assegurei a Albert Gion que ele roncava ainda mais alto que o advogado. Fora de si porque eu lhe tivesse estragado a briga, levantou a mão em minha direção, e seu rosto ossudo se assemelhou à cabeça de um cavalo. Enquanto discutíamos, o advogado há muito afundava sua colher no prato da esposa. A colher dela afundava cada vez menos e a dele cada vez mais. Ele sorvia e ela começou a tossir, para fazer algo com a boca. E ao tossir, tampava a boca, esticando como uma dama o dedo mindinho corroído pelo ácido sulfúrico e tão sujo pelo óleo lubrificante como os nossos no refeitório. O único que tinha as mãos limpas era o barbeiro Oswald Enyeter, porém tão escuras quanto as nossas cobertas de sujeira, pois eram peludas, como se emprestadas aos esquilos da terra. Também Trudi Pelikan tinha as mãos limpas, desde que se tornara enfermeira. Sim, limpas, mas tingidas de um marrom-amarelado, de tanto esfregar os doentes com ictiol.
Enquanto eu meditava sobre o dedo esticado de Heidrun Gast e o estado de nossas mãos, veio Karli Halmen querendo trocar o pão comigo. Sem cabeça para uma troca de pães, recusei e mantive meu próprio pão. Ele trocou então com Albert Gion. Lamentei-me: o pedaço de pão que Albert Gion mordia agora pareceu-me um terço maior do que o meu.
Ao redor, o latão tilintava em todas as mesas. Cada colherada de sopa é um beijo de latão, pensei. E a própria fome exerce sobre todos um poder desconhecido. Soube disso tão bem naquele momento, e com que rapidez voltei a esquecer.
O desenrolar das coisas
A verdade nua e crua é que o advogado Paul Gast roubou a sopa do prato de sua mulher Heidrun Gast até que ela não mais se levantou e morreu, porque ela não conseguiu fazer outra coisa, assim como ele roubou a sua sopa porque sua fome não conseguiu fazer outra coisa, assim como ele não conseguiu fazer outra coisa além de usar seu sobretudo de gola redonda e bolsos de pele de coelho puída, e não teve culpa por ela ter morrido, assim como ela não teve culpa de não haver conseguido levantar, assim como nossa cantora Loni Mich passou a usar o sobretudo e não teve culpa de que, com a morte da mulher do advogado, ficasse livre um sobretudo, assim como o advogado não teve culpa de também ficar livre com a morte de sua mulher, assim como não teve culpa de querer substituí-la pela Loni Mich, assim como Loni Mich também não teve culpa de querer um homem atrás do seu cobertor, ou um sobretudo, ou que não se pudesse separar um do outro, assim como o inverno não teve culpa de que o frio se tornasse implacável, e o sobretudo não teve culpa de aquecer bem, assim como os dias não tiveram culpa de ser uma cadeia de causas e efeitos, assim como as causas e os efeitos não tiveram culpa de ser a verdade nua e crua, apesar de que se tratava de um sobretudo.
Assim foi o desenrolar das coisas: como ninguém teve culpa, ninguém pôde fazer nada.
A lebre branca
Pai, a lebre branca nos expulsa da vida. Cada vez cresce em mais rostos, nas cavidades das faces.
Ainda que não seja adulta, contempla minha carne desde dentro, porque também é a sua carne. Hasoweh.
Seus olhos são carvões; seu focinho, uma tigela de latão; suas patas, atiçadores; sua barriga, um carrinho no porão; seu caminho, uma trilha íngreme subindo em direção à montanha.
Ela ainda está dentro de mim, rosada, sem pele, e aguarda com sua própria faca, que é também a faca do pão de Fenja.
Nostalgia. Como se eu
precisasse dela
Os sete anos após minha volta a casa se transformaram em sete anos sem nostalgia. Porém, quando vi, na vitrine da livraria do Großer Ring, O velho e o mar, de Hemingway, li O velho e o lar. Por isso comprei o livro, e me pus a caminho de casa, do lar.
Há palavras que fazem o que bem querem comigo. Elas são muito diferentes de mim e pensam de maneira diferente do que são. Surgem na minha mente para que eu pense que há coisas primeiras que já esperam a segunda, mesmo que eu não queira. Lar. Como se eu precisasse dele.
Há palavras que me têm como alvo, como se feitas exclusivamente para a recaída no campo de trabalho, com exceção da própria palavra RECAÍDA. Essa palavra permanecerá inservível quando me vier a recaída. Inservível é também a palavra LEMBRANÇA. Tampouco a palavra DANIFICAÇÃO serve para o caso de uma recaída. Nem a palavra EXPERIÊNCIA. Quando tenho de lidar com essas palavras inservíveis, sou obrigado a me fazer de bobo, mais do que sou. Elas, porém, a cada encontro se tornam mais duras comigo.
Temos piolhos na cabeça, nas sobrancelhas, na nuca, nas axilas, nos pelos pubianos. Temos percevejos na cama. Temos fome. Porém, não dizemos: Tenho piolhos e percevejos e fome. Dizemos: Temos saudades de casa. Como se precisássemos disso.
Alguns dizem e cantam e calam e andam e sentam e dormem sua saudade, tão inútil e insistentemente. Alguns observam: A nostalgia perde seu conteúdo com o tempo, arde a fogo lento e torna-se realmente devoradora, porque não tem mais relação com o lar concreto. Faço parte dos que pensam assim.
Sei que no mundo dos piolhos existem três tipos de nostalgia: o piolho da cabeça, o piolho do púbis e o piolho das roupas. O piolho da cabeça se arrasta e coça no couro cabeludo, atrás das orelhas, nas sobrancelhas, nos cabelos da nuca. Quando a coceira é na nuca, pode ser também o piolho da roupa na gola da camisa.
O piolho da roupa não se arrasta. Ele se aloja nas costuras do tecido. Chama-se piolho da roupa, mas não se alimenta de tecido. O piolho do púbis se arrasta até os pelos púbicos e coça. A expressão pelos púbicos não é pronunciada. Dizemos: Está coçando lá embaixo.
O tamanho dos piolhos varia, mas são todos brancos e parecem pequenos caranguejos. Quando os esmagamos entre as unhas dos polegares, produzem um estampido seco. Numa das unhas fica a mancha aquosa do piolho, e na outra uma mancha grudenta de sangue. Os ovos dos piolhos se alinham, incolores, como um rosário de vidro ou ervilhas transparentes dentro da vagem. Somente quando portadores de febre exantemática ou tifo, os piolhos tornam-se perigosos. Se não, pode-se viver com eles. Nós nos acostumamos a sentir coceira por todo lado. Seria possível pensar que os piolhos passavam de uma cabeça a outra na barbearia, através do pente. Porém, não precisavam disso: arrastavam-se de uma cama para a outra no alojamento. Mergulhávamos os pés das camas em latas de conserva com água, a fim de interditar a circulação dos piolhos. Contudo, tão esfomeados quanto nós, eles encontravam caminhos alternativos. Durante a chamada, na fila, na janela da comida, na longa mesa do refeitório, durante o trabalho de carregar e descarregar, ao nos agacharmos fumando durante a pausa, também durante o tango, espalhavam-se os piolhos.
Tosavam nossas cabeças com máquina zero: aos homens, Oswald Enyeter na barbearia; às mulheres, a auxiliar sanitária russa em um alpendre de tábuas junto à enfermaria do campo. Ao terem o cabelo tosado pela primeira vez, as mulheres podiam levar suas tranças consigo e guardá-las na mala como lembrança de si mesmas.
Não sei por que os homens não tiravam os piolhos uns dos outros. Diariamente, as mulheres juntavam suas cabeças, falavam e cantavam enquanto tiravam piolhos umas das outras.
O Lommer da cítara, já no primeiro inverno, aprendeu a tirar os piolhos do pulôver de lã. Ao anoitecer, numa temperatura de no mínimo zero grau Celsius, cava-se na terra um buraco de trinta centímetros de profundidade, enfia-se o pulôver lá dentro, deixa-se uma ponta de um dedo de comprimento para fora, e se fecha o buraco deixando a terra solta. Durante a noite, os piolhos abandonam o pulôver; com as primeiras luzes da manhã, amontoam-se formando um grumo branco na ponta. Então, podem-se esmagar todos de uma vez com o pé.
Quando março chegou e a terra já não estava mais tão profundamente congelada, cavávamos buracos entre os alojamentos. As pontas dos pulôveres apontavam para fora da terra, como um jardim de tricô. Ao amanhecer, floresciam com uma espuma branca, feito uma couve-flor. Esmagávamos os piolhos e arrancávamos os pulôveres da terra. Eles voltavam a aquecer-nos, e Lommer da cítara dizia: As roupas nunca morrem, mesmo que as enterremos.
Sete anos depois de minha volta para casa foram sete anos sem piolhos. Mas quando deparo com couve-flor no meu prato, há sessenta anos como os piolhos da ponta do pulôver nas primeiras luzes da manhã. Até hoje, creme batido não é uma cobertura de creme.
A partir do segundo ano o despiolhamento era feito ao lado da ducha, na ETUBA — uma câmara de ar quente a mais de cem graus Celsius. Pendurávamos nossas roupas em ganchos de ferro que circulavam em roldanas, como os guindastes no frigorífico de um matadouro. O cozimento das roupas demorava por volta de uma hora e meia, mais tempo do que nos permitiam nossa ducha e a água quente. Depois do banho, esperávamos nus na antessala. Sarnentas figuras encurvadas, sem roupa parecíamos animais de trabalho inservíveis. Ninguém se envergonhava. Envergonhar-se do que, quando já não se tem um corpo. Mas por causa dele estávamos no campo de trabalho, para o trabalho físico. Quanto menos corpo se tinha, mais ele nos castigava. O invólucro pertencia aos russos. Eu nunca tinha vergonha dos outros, só de mim mesmo, que me conhecia de antes, com a pele lisa nas termas Netuno, onde o vapor de lavanda e a felicidade arfante me perturbavam. Onde eu jamais haveria pensado em inservíveis animais de trabalho de duas patas.
Quando as roupas saíam da etuba, tinham um cheiro quente e salgado. O tecido ficava chamuscado e quebradiço. Mas após dois ou três despiolhamentos, começaram a ser contrabandeadas beterrabas que se transformavam em frutas caramelizadas na etuba. Eu nunca tive beterrabas na etuba. Eu tinha uma pá de coração, carvão, cimento, areia, blocos de escória e escória do porão. Passei um dia de horror com as batatas, mas nunca um dia com as beterrabas no campo. Só os homens que carregavam e descarregavam beterraba no colcoz tinham frutas caramelizadas na etuba. De casa eu lembrava como são as frutas caramelizadas: verde-vítreas, vermelho-framboesa, amarelo-limão. Es- condiam-se como pedras preciosas no bolo de rosca e entre os dentes depois de comer. As beterrabas caramelizadas eram de um marrom-terra; descascadas, pareciam punhos cristalizados. Ao ver os outros comerem, a nostalgia devorava o bolo de rosca, e o estômago se contraía.
Na noite de Réveillon do quarto ano, no alojamento das mulheres, eu também comi beterrabas caramelizadas — uma torta. Em vez de assada, foi edificada por Trudi Pelikan; em vez de frutas caramelizadas, beterrabas caramelizadas; em vez de nozes, sementes de girassol; em vez de farinha, milho moído; em vez de pratos de sobremesa para servi-la, azulejos da câmara mortuária da enfermaria. Além disso, para cada um, um cigarro LUCKY STRIKE trazido do bazar. Dei duas tragadas e me embebedei. A cabeça se separou dos meus ombros e saiu flutuando, misturando-se com os demais rostos; os leitos davam voltas. Cantamos e, de braços dados, nos balançamos ao ritmo do blues do vagão de animais:
No bosque a dafne floresce
Na sepultura ainda há neve
E agora me entristece
A cartinha, que você me escreveu.
Kati-Plantão estava sentada junto à mesinha sob a lâmpada de serviço, com seu pedaço de torta sobre o azulejo. Ela olhava para nós sem tomar parte. Mas quando a canção terminou, balançou-se na cadeira e fez: UUUH, UUUH.
Esse UUUH profundo reproduziu o som surdo da locomotiva de deportação durante a última parada da noite nevada de quatro anos antes. Eu fiquei petrificado, alguns choravam. Trudi Pelikan não conseguiu conter-se. Kati-Plantão contemplava o choro enquanto comia sua torta. Via-se que estava gostando.
Existem palavras que fazem o que bem entendem comigo. Já não sei mais se a palavra russa WOSCH refere-se aos percevejos ou aos piolhos. Eu me refiro com wosch tanto aos percevejos quanto aos piolhos. Talvez a palavra não conheça seus bichos. Eu sim.
Os percevejos sobem pelas paredes e do teto raso deixam-se cair sobre as camas na escuridão. Não sei se não o fazem quando está claro ou se apenas não os vemos. Também como proteção contra os percevejos, a luz de serviço fica acesa durante a noite toda no alojamento.
Nossos leitos são de ferro. Barras enferrujadas unidas por ásperas soldaduras. Nelas os percevejos se multiplicam, assim como nas tábuas sem polimento debaixo do saco de palha. Quando proliferam demais, somos obrigados a tirar, quase sempre no fim de semana, as camas para o pátio. Os homens da fábrica fizeram escovas de arame. As camas e as tábuas de madeira adquirem uma tonalidade marrom-avermelhada com o sangue dos percevejos esmagados. Somos ambiciosos nesse extermínio de percevejos. Queremos limpar nossas camas e descansar à noite. Agrada-nos a visão do sangue dos percevejos, porque é o nosso. Quanto mais sangue, mais gostamos da escovação. Todo o ódio é atraído para fora de nós. Escovamos os percevejos até a morte e nos sentimos orgulhosos, como se eles fossem os russos.
Depois, o cansaço cai como um golpe sobre nossas cabeças. Um orgulho cansado nos torna tristes. Escovou-se até se encolher, até a próxima vez. Conscientes da inutilidade, levamos as camas livres de percevejos de volta para o alojamento. Com uma modéstia piolhenta, no sentido literal do termo, dizemos: A noite já pode cair.
E sessenta anos depois eu sonhei:
Fui deportado pela segunda, terceira, às vezes até sétima vez. Ponho minha mala de gramofone junto à fonte e caminho de um lado para o outro pelo pátio da chamada. Aqui não há brigada, nem natschalnik. Não tenho trabalho. Esquecido pelo mundo e pela nova direção do campo de trabalho, apelo para minha experiência de veterano. Afinal, tenho minha pá de coração; meus turnos do dia e da noite sempre foram uma obra de arte, explico. Não sou um vagabundo, tenho experiência. Conheço o porão e a escória. Da minha primeira deportação carrego, na canela, um pedaço de escória negro-azulado do tamanho de um besouro. Mostro o lugar na canela como se fosse uma condecoração. Não sei onde devo dormir, aqui é tudo novo. Onde estão os alojamentos, pergunto. Onde está Bea Zakel, onde Tur Prikulitsch. A manca Fenja usa em cada sonho um casaco de tricô diferente, e por cima sempre a mesma echarpe feita do pano branco do pão. Ela diz: Não há direção no campo de trabalho. Sinto-me desamparada. Ninguém me quer aqui, e não posso ir embora de forma alguma.
Em que campo de trabalho terá ido parar o sonho. Terá o sonho algum interesse na existência real da pá de coração e do porão de escória. Que para mim os cinco anos sejam suficientes. O sonho quer deportar-me eternamente, para sequer me deixar trabalhar no sétimo campo de trabalho. Sinto-me verdadeiramente ofendido. Não posso fazer objeções ao sonho, não importa quantas vezes ele me deporte e em que campo de trabalho eu esteja neste momento.
Caso tivesse de ser deportado novamente nesta vida, eu saberia: Há coisas primeiras que já querem a segunda, mesmo que a gente não queira. O que me leva a esse apego. Por que à noite quero ter direito à minha desgraça. Por que não posso ser livre. Por que obrigo o campo de trabalho a me pertencer. Nostalgia. Como se eu precisasse dela.
Um momento de lucidez
Uma tarde, Kati-Plantão estava sentada, sabe-se lá desde quando, à mesa de madeira no alojamento. Provavelmente por causa do relógio cuco. Quando entrei, ela perguntou: Você mora aqui.
Eu disse: Sim.
Eu também, disse ela, mas atrás da igreja. Na primavera nos mudamos para a casa nova. Então meu irmão menor morreu. Ele era velho.
Eu disse: Mas ele era mais novo que você.
Ele estava doente, e se você está doente está velho, disse ela. Então calcei seus sapatos de antílope e fui até a casa velha. Ali havia um homem no pátio, que me perguntou: Como você chegou até aqui. Mostrei-lhe os sapatos de antílope. E ele disse: Da próxima vez, venha com a cabeça.
E o que você fez então, eu perguntei.
Fui até a igreja.
Perguntei: Como se chamava seu irmão menor.
Ela disse: Piold, como você.
Mas eu me chamo Leo, eu disse.
Talvez em casa, mas aqui você se chama Piold, disse ela.
Que momento de lucidez, pensei. Dentro do nome Piold há um piolho. Piold vem de Leopold.
Kati-Plantão levantou-se, encurvou-se e, antes de chegar até a porta, olhou mais uma vez para o relógio cuco. Mas seu olho direito me observava de esguelha, como quando se vira seda velha do avesso. Ela levantou o indicador e disse:
Sabe de uma coisa, não acene mais para mim na igreja.
Leviano como feno
No verão podíamos dançar do lado de fora, no pátio da chamada. As andorinhas voavam seguindo sua fome pouco antes do cair da noite, as árvores já com recortes escuros, as nuvens injetadas de vermelho. Mais tarde, sobre o refeitório, uma lua fina como um dedo. O tambor de Kowatsch Anton atravessava o vento, os pares de bailarinos se balançavam como arbustos na praça da chamada. A pequena campainha das baterias de coque tilintava em intervalos. Logo depois, do terreno da fábrica em frente, chegava o resplendor do fogo e iluminava o céu até aqui. E até que o brilho se extinguisse, podia-se ver a cabeça trêmula de Loni cantando e os olhos pesados do acordeonista Konrad Fonn, sempre olhando para o lado, onde não havia nada nem ninguém.
Havia algo animalesco na forma como Konrad Fonn abria e fechava o acordeão, esticando e apertando suas costelas. Suas pálpebras teriam sido pesadas o suficiente para a lascívia, mas o vazio em seus olhos era frio demais. A música não lhe tocava a alma. Ele espantava as canções para longe de si, elas se arrastavam para dentro de nós. Seu acordeão soava bronco e forçado. Desde que o Lommer da cítara fora embarcado para Odessa, para casa, segundo disseram, faltavam na orquestra os tons cálidos e claros. Talvez o acordeão estivesse tão desafinado como o músico e tivesse dúvidas se poderia chamar-se de dança aqueles deportados balançando em pares feito arbustos na praça da chamada.
Sentada no banco, Kati-Plantão balançava os pés no ritmo da música. De vez em quando dançava com alguma das mulheres, esticando o pescoço e olhando para o céu. Ao trocar de passo, não perdia o ritmo, deveria estar acostumada a dançar de antes. Quando ficava sentada no banco e percebia que os pares se aproximavam demais, atirava-lhes pequenas pedras. Não era uma brincadeira, seu rosto mantinha-se sério. Albert Gion diz que a maioria esquece que está no pátio da chamada e chega a dizer que está dançando numa rotunda. Ele não dançaria mais com Zirri Wandschneider, ela grudava feito carrapato e se insinuava para ele o tempo todo. Mas era a música o que seduzia ali na escuridão, não ele. Na “Paloma” de inverno, os sentimentos ficavam dobrados como as costelas do acordeão, trancados no refeitório. A dança de verão agitava por cima da tristeza uma leviandade de feno. As janelas do alojamento cintilavam tênues, nós nos pressentíamos mais do que nos enxergávamos. Trudi Pelikan achava que, na rotunda, a nostalgia sai da cabeça e cai em gotas na barriga. Os pares variavam a cada hora, eram pares de nostalgia.
Acho que as misturas de bondade e perfídia que surgiam das formações de pares eram provavelmente tão diferentes e tão miseráveis como as misturas de carvão. Mas só podíamos misturar o que tínhamos. Não se tratava de poder, mas de dever. Assim como eu devia manter-me fora de todas as misturas e cuidar para que ninguém suspeitasse o motivo disso.
O acordeonista talvez suspeitasse, ele demonstrava certa frieza. Isso me ofendia, mesmo que eu o julgasse repelente. Eu tinha de olhá-lo no rosto todas as vezes, por tanto tempo e com tanta frequência como o resplendor do fogo da fábrica atravessava o céu. A cada quinze minutos eu via, por cima do acordeão, seu pescoço e sua cabeça de cão, e os assustadores olhos brancos de pedra que se desviavam. E o céu tornava-se novamente noite escura. E eu esperava quinze minutos até que a cabeça de cão tivesse a sua feiura novamente iluminada. Era todas as vezes a mesma coisa durante a “Paloma” de verão no pátio da chamada. Só no final de setembro, em uma das últimas noites dançantes ao ar livre, é que aconteceu algo diferente.
Como tantas outras vezes, eu estava sentado com os pés em cima do banco de madeira e os joelhos encolhidos debaixo do queixo. O advogado Paul Gast fez uma pausa na dança e se sentou perto das pontas dos meus pés, sem dizer nada. Talvez ele ainda pensasse de vez em quando em sua mulher morta, em Heidrun Gast. Então, no momento em que apoiou as costas, caiu uma estrela sobre o vilarejo russo. Ele disse:
Leo, você precisa desejar rapidamente alguma coisa.
O vilarejo russo engoliu a estrela, todas as outras cintilavam como sal grosso.
Não soube o que desejar, ele falou. E você.
Eu disse: Que continuemos vivos.
Eu mentira, leviano como feno. Desejara que meu irmão substituto não vivesse mais. Eu queria causar sofrimento à minha mãe; ele, eu não conhecia.
Sobre a sorte do campo
de trabalho
Sorte é algo repentino.
Conheço a sorte da boca e a sorte da cabeça.
A sorte da boca vem com a comida e é mais breve do que a boca, até mesmo mais breve do que a palavra boca. Quando a pronunciamos, não tem tempo de subir à cabeça. A sorte da boca não quer que se fale sobre ela. Quando falo sobre a sorte da boca, preciso dizer antes de cada frase: DE REPENTE. E depois de cada frase: NÃO DIGA A NINGUÉM, PORQUE TODOS TÊM FOME.
Direi apenas uma vez: De repente você puxa o galho para baixo, colhe flores de acácia e as come. Não diz a ninguém, porque todos têm fome. Você colhe azedas na beira do caminho e as come. Colhe tomilho silvestre entre os tubos e o come. Colhe camomila ao lado da porta do porão e a come. Colhe alho silvestre junto à cerca e o come. Você puxa o galho para baixo, colhe amoras e as come. Colhe aveia silvestre no terreno baldio e a come. Você não acha uma única casca de batata atrás do refeitório, mas um talo de ervas, e o come.
No inverno, você não colhe nada. Segue diretamente do seu turno para o alojamento, e não sabe em que lugar a neve terá melhor gosto. Deve levar logo um punhado da escada do porão ou tirar nos montes de carvão nevado junto ao portão do campo de trabalho. Sem decidir-se, você pega um punhado do gorro branco que cobre a estaca da cerca e refresca seu pulso, a boca e a garganta até chegar ao coração. De repente você não sente mais o cansaço. Não diz a ninguém, porque todos estão cansados.
Se não acontece nenhum acidente, um dia é igual ao outro. Você deseja que um dia seja igual ao outro. O quinto vem depois do nono, diz o barbeiro Oswald Enyeter — segundo sua lei, ter sorte é um pouco balamuk. Eu devo ter sorte porque minha avó disse: Eu sei que você vai voltar. Tampouco isso eu conto a alguém, porque todos querem voltar. Para ter sorte, é necessário um objetivo. Preciso procurar um objetivo, mesmo que seja apenas a neve sobre a estaca da cerca.
Mais fácil do que falar da sorte da boca é falar da sorte da cabeça.
A sorte da boca quer ficar sozinha, é muda e cresce para dentro. Mas a sorte da cabeça é sociável e precisa de outras pessoas. É uma sorte errante, e também retardatária. Dura mais do que você é capaz de suportar. A sorte da cabeça é fragmentada e difícil de classificar, mistura-se como quer e rapidamente se transforma de
luminosa para
escura
borrada
cega
invejosa
oculta
esvoaçada
hesitante
precipitada
impertinente
vacilante
caída
abandonada
empilhada
desfiada
enganada
gasta
esmigalhada
confusa
à espreita
espinhosa
incômoda
recorrente
descarada
roubada
jogada fora
restante
uma sorte fracassada por um fio.
A sorte da cabeça pode ter os olhos úmidos, o pescoço torcido ou os dedos trêmulos. Mas todas elas se agitam como um sapo numa lata.
O máximo da sorte é umagotadesorteemdemasia. Vem com a morte. Ainda me lembro de que, quando Irma Pfeifer morreu no fosso de argamassa, Trudi Pelikan estalou os lábios, fazendo um grande zero com a boca, e disse, numa só palavra:
Umagotadesorteemdemasia.
Dei razão a ela, porque, ao retirar os mortos, se lhes via o alívio de que o ninho rígido na cabeça, o balanço vertiginoso da respiração, a bomba obcecada pelo compasso no peito e a sala de espera vazia na barriga finalmente os tivessem deixado em paz.
A pura sorte da cabeça nunca existiu, porque em todas as bocas habitava a fome.
Para mim, mesmo sessenta anos depois do campo de trabalho, a comida continua causando grande excitação. Eu como com todos os poros. Quando como com outras pessoas, torno-me desagradável. Como obstinadamente. Os outros não conhecem a sorte da boca, comem sociáveis e educados. Mas é justamente ao comer que me vem à cabeça umagotadesorteemdemasia, que cedo ou tarde alcançará a todos nós, assim como estamos aqui sentados, e teremos que devolver o ninho à cabeça, o balanço à respiração, a bomba ao peito, a sala de espera à barriga. Gosto tanto de comer que não quero morrer, porque então já não poderia comer. Há sessenta anos eu sei que minha volta para casa não é capaz de amansar a sorte do campo de trabalho. Com sua fome, arranca ainda hoje, de uma mordida, a metade de qualquer outro sentimento. No meio de mim há um vazio.
Desde que voltei, todo sentimento traz todos os dias sua própria fome e faz exigências de reciprocidade que não satisfaço. Ninguém mais pode agarrar-se a mim. Fui educado pela fome e sou inalcançável, por humildade, não por orgulho.
Vive-se. Vive-se somente uma vez
Na época de peleeosso, eu não tinha mais nada no cérebro além da eterna ladainha repetindo dia e noite: o frio corta, a fome engana, o cansaço pesa, a nostalgia consome, percevejos e piolhos picam. Eu queria negociar uma troca com as coisas que, sem viver, não estavam mortas. Eu queria combinar um intercâmbio de salvação entre meu corpo e a linha do horizonte, acima, e as estradas de poeira na terra, abaixo. Eu queria pegar emprestada a sua tenacidade e existir sem meu corpo e, quando o grosso passasse, entrar novamente em meu corpo e aparecer usando o traje de algodão. Não tinha nada a ver com a morte, era o contrário.
O ponto zero é o indizível. Estamos de acordo o ponto zero e eu: não se pode falar sobre ele, no máximo em torno dele. A boca escancarada do zero pode comer, não falar. O zero nos encerra em sua asfixiante ternura. O intercâmbio de salvação não aceita comparações. Ele é autoritário e direto como: 1 movimento com a pá = 1 grama de pão.
Na época de peleeosso, devo realmente ter conseguido fazer o intercâmbio de salvação. De vez em quando, devo ter tido a tenacidade da linha do horizonte e das estradas de poeira. Somente com pele e osso no traje de algodão, eu não teria conseguido manter-me vivo.
A nutrição do corpo é até hoje um mistério para mim. No corpo, derruba-se e se constrói como num canteiro de obras. Você vê a si mesmo e aos outros todos os dias, porém nunca percebe o quanto desmorona ou é construído dentro de você a cada dia. Permanece um enigma como as calorias tomam ou dão tudo. Como elas apagam as pistas em você quando as tomam, e as injetam novamente quando as dão. Você não sabe quando acende, mas tem forças novamente.
No último ano no campo de trabalho, recebemos dinheiro vivo pelo nosso trabalho. Podíamos fazer compras no bazar. Comíamos ameixas secas, peixe, panquecas russas com queijo doce ou salgado, bacon e banha, bolo de milho com purê de beterraba, pasta doce de semente de girassol. Em poucas semanas, voltamos a alimentar-nos normalmente. Gordos e fofos, os russos dizem BAMSTI. Voltamos a ser homens e mulheres, como numa segunda puberdade.
A nova vaidade começou pelas mulheres, enquanto os homens ainda arrastavam os pés com sua armadura de algodão durante o dia. Eles ainda se sentiam belos o suficiente, e só faziam proporcionar às mulheres o material para a vaidade. O Anjo da Fome desenvolveu uma sensibilidade para a roupa, para a nova moda do campo de trabalho. Os homens traziam da fábrica pedaços de um metro de comprimento de corda de algodão, de um branco imaculado e da grossura de um braço. As mulheres desfaziam as cordas, davam nós nos fios e, com agulhas de ferro, tricotavam sutiãs, calcinhas, blusas e corpetes. Ao tricotar, os nós eram voltados para dentro; quando as peças ficavam prontas, não se via nenhum deles. Tricotavam inclusive fitas para o cabelo e broches. Trudi Pelikan usava um broche com um nenúfar, feito uma xícara de café pendurada ao peito; uma das Zirri, um broche de lírio com dedais brancos presos num arame; Loni Mich, uma dália tingida com pó vermelho de tijolo. Nessa primeira fase da transferência de algodão, eu ainda me sentia belo o suficiente. Mas logo quis ter um novo enxoval. Num longo trabalho manual, confeccionei, com o puído sobretudo de gola de veludo, um gorro com viseira. Eu tinha na cabeça o plano de execução da obra, uma difícil construção com muitos refinamentos. Reveste-se de tecido uma peça de borracha de pneu, grande o bastante para que seja possível pôr o gorro de lado sobre a orelha. Na viseira, um cartão, a parte superior ovalada, reforçada com papel de saco de cimento, e todo o gorro forrado por dentro com pedaços aproveitáveis de uma camiseta rasgada. O forro interior era importante para mim: era a antiga vaidade de antes, de querer estar bonito para mim mesmo, inclusive nos lugares que os outros não viam. O gorro era um gorro de esperança, um gorro para tempos melhores.
Para acompanhar a moda feminina tricotada do campo de trabalho, podiam ser comprados, na loja da aldeia russa, sabonete, pó de arroz e batom. Tudo da mesma marca KRANSNYI MAK, papoula vermelha. A maquiagem, rosa, exalava um aroma doce e penetrante. O Anjo da Fome estava espantado.
A última moda eram os sapatos de sair, os BALLETTKI. Levei meio pneu para o sapateiro, outros conseguiam nas fábricas tecido engomado das fitas transportadoras. O sapateiro fazia sapatos leves de verão, com solas muito finas e flexíveis, sob medida para cada pé. Com forma trabalhada, eram muito elegantes. Usavam-nos tanto homens como mulheres. O Anjo da Fome passou a ter pés ágeis. A “Paloma” havia saído da gaiola, todos iam dançar na rotunda até que, pouco antes da meia-noite, tocasse o hino.
Como as mulheres não queriam agradar apenas a si mesmas e às outras mulheres, mas também aos homens, estes também precisavam esforçar-se para que elas os deixassem ter acesso à roupa interior de tricô, atrás dos cobertores. Por isso, após os ballettki, a moda masculina passou a preocupar-se com o que havia acima dos sapatos. Nova moda e novos amores, troca-troca, gravidez, raspagem no hospital municipal. Na enfermaria do campo, o número de bebês atrás da cerca de madeira multiplicava.
Fui visitar o sr. Reusch de Guttenbrunn, do Banato. Eu o conhecia somente da chamada. Durante o dia, ele retirava escombros de uma fábrica bombardeada. À noite, consertava pufoaikas rasgadas em troca de tabaco. Alfaiate profissional, seus serviços passaram a ser muito solicitados, desde que o Anjo da Fome começara a caminhar leviano por aí. O sr. Reusch desenrolou uma fina fita, com pequenas linhas que marcavam os centímetros, e mediu-me do pescoço aos tornozelos. Depois disse: um metro e meio para a calça; três metros e vinte para a jaqueta. Além disso, três botões grandes e seis pequenos. Ele se encarregaria do forro da jaqueta, disse. Eu queria um cinto com fivela para a jaqueta também. Sugeriu-me uma fivela formada por duas argolas de metal e, nas costas, uma prega dupla. Ele disse: Essas pregas são agora a última moda na América.
Encomendei duas argolas de metal a Kowatsch Anton e fui com todo o meu dinheiro até a loja do vilarejo russo. O tecido pa- ra a calça era azul-opaco com barbotes cinza-claros. O tecido para a jaqueta, bege-areia com quadriculado marrom-saco-de-cimento. Cada quadro com efeitos em relevo. Comprei também uma gravata de confecção, verde-musgo com losangos oblíquos. E três metros de repes amarelo para uma camisa. Depois, botões para as calças e a jaqueta, mais doze bem pequenos para a camisa. Era abril de 1949.
Três semanas depois, eu possuía a camisa e o traje com a prega e a fivela de ferro. Agora finalmente o cachecol de seda vermelho-vinho com quadros opacos e brilhosos teria ficado bem em mim. Havia muito que Tur Prikulitsch não o usava mais, talvez o tivesse jogado fora. O Anjo da Fome já não habitava nosso cérebro, mas continuava na nuca. E tinha boa memória. Ele não precisava disso, a moda do campo de trabalho era também uma espécie de fome, fome dos olhos. O Anjo da Fome dizia: Não esbanje todo o seu dinheiro, não se sabe o que ainda está por vir. Tudo o que está por vir já está aqui, pensei. Eu queria roupas de sair para a rua principal do campo de trabalho, para a rotunda e mesmo para o trajeto até meu porão, pelo meio da erva daninha, da ferrugem e dos escombros. Eu começava o turno trocando de roupa no porão. O Anjo da Fome me advertia: O orgulho precede a queda. Meu eu respondia: Vive-se. Vive-se somente uma vez. A erva-armoles também não vai embora daqui, e usa joias vermelhas e confecciona para cada folha uma luva com um dedo diferente.
Nesse meio-tempo, minha mala de gramofone ganhara nova fechadura, mas agora, aos poucos, ia ficando muito pequena. Encomendei ao carpinteiro outra sólida mala de madeira para as roupas novas. E a Paul Gast, na serralheria, um bom cadeado de rosca para a mala.
Quando exibi minhas roupas novas na rotunda pela primeira vez, pensei: Tudo o que está por vir já está aqui. Tudo ficará para sempre como agora.
Um dia caminharei por lugares
elegantes
Na quarta paz, a erva-armoles também cresceu com seu verdor assoviante. Não a colhíamos mais, já não sentíamos aquela fome atroz. Tínhamos certeza de que agora, depois de nos matarem de fome durante cinco anos, nos alimentariam, não para que voltássemos para casa, mas para que ficássemos aqui trabalhando. Os russos esperavam cada ano pelo próximo, nós o temíamos. Entre nós o tempo velho era obstáculo de si mesmo, e para eles um tempo novo fluía no país gigantesco.
Corria o rumor segundo o qual, durante todos aqueles anos, Tur Prikulitsch e Bea Zakel tinham acumulado roupas na lavanderia e, depois de vendê-las no bazar, repartiram o dinheiro com Schischtwanjonow. Por isso, muitos haviam morrido de frio, sendo que, segundo as regras do campo, tinham direito a roupa de baixo, pufoaikas e sapatos. Nós deixamos de contá-los. Entretanto, quando contei a paz, soube que, no registro da enfermaria de Trudi Pelikan, descansavam em paz trezentos e trinta e quatro mortos — da primeira, segunda, terceira e quarta. Não pensei nisso durante semanas, e então apareciam feito uma matraca no meu cérebro e me acompanhavam durante o dia inteiro.
Quantas vezes pensei: As campainhas das baterias de coque tocavam de um ano ao outro. Um dia, em vez do banco na rua principal do campo de trabalho, gostaria de encontrar um banco de parque, no qual estivesse sentada uma pessoa livre, uma pessoa que jamais tivesse estado em um campo de trabalho. Na rotunda circulou uma noite a palavra SOLA DE CREPE. Nossa cantora Loni Mich perguntou o que era crepe. E Karli Halmen olhou de esguelha para o advogado Paul Gast e disse que crepe e crepúsculo vinham da mesma família e que, portanto, o céu da estepe é um crepúsculo, no qual usaremos todos solas de crepe. Loni Mich não desistiu. Depois das solas de crepe falou-se também das FAVORITAS, a última moda na América. Loni Mich perguntou novamente o que eram favoritas. O acordeonista Konrad Fonn explicou: Favoritas são penteados com plumas de rabo de pássaro nas orelhas.
A cada duas semanas, passavam filmes e noticiários semanais no cinema do vilarejo russo para as pessoas do campo de trabalho. Russos mas também americanos, e até mesmo requisitados filmes da UFA,* de Berlim. No noticiário americano via-se cair confete como neve entre os arranha-céus e homens cantarem usando solas de crepe e costeletas até o queixo. Depois do filme, o barbeiro Oswald Enyeter disse: As costeletas são as favoritas.
Eu também não sabia o que eram as favoritas. Raramente ia ao cinema. Por causa do meu trabalho por turno, eu passava a maior parte do tempo no porão e ainda cansado demais do porão. Mas eu tinha ballettkis para esse verão, Kobelian me dera de presente meio pneu. E eu podia trancar minha mala de gramofone, Paul Gast me fizera uma fechadura com três pequenos narizes, como dentes de rato. O carpinteiro havia fabricado um novo cadeado. Eu estava equipado com roupas novas. Solas de crepe não teriam servido aqui no porão, e favoritas surgiriam sozinhas, mas deveriam ser algo mais para Tur Prikulitsch. Eu as achava bem ridículas.
Mesmo assim, já chegaria o tempo, eu pensava, de encontrar Bea Zakel ou Tur Prikulitsch alguma vez em outro lugar, e de igual para igual, digamos, numa estação de trens com pilastras de ferro fundido e petúnias penduradas como num balneário. Digamos: Subo no trem e Tur Prikulitsch está sentado no mesmo compartimento. Eu o cumprimento brevemente e me sento diante dele, na diagonal; isso seria tudo. Eu me comporto como se isso fosse tudo, pois vejo sua aliança de casamento, sem perguntar se ele se casou com Bea Zakel. Desembrulho meu sanduíche e o coloco sobre a mesinha dobrável. Pão branco com uma grossa camada de manteiga e um róseo presunto cozido. Não vou julgá-lo bom, mas não deixarei transparecer que não me apetece. Ou então, eu me encontraria com o Lommer da cítara. Ele chegará com a cantora Loni Mich. Eu perceberia que sua papada aumentou ainda mais. Os dois querem buscar-me para o concerto do Ateneu. Com voz dissimulada, eu me desculparia e os deixaria ir. Pois eu seria recepcionista e indicador de lugares no Ateneu; receberia os dois na entrada e, com o indicador esticado, diria: Mostrem-me suas entradas, aqui a disposição é por números pares ou ímpares, vocês têm os números 113 e 114, ou seja, sentarão separados. Somente quando eu começar a rir, eles me reconhecerão. Porém, talvez eu não ria.
Imaginava também: Encontrarei Tur Prikulitsch uma segunda vez, numa grande cidade da América. Ele não estará usando aliança, mas subirá pela escada de braço dado com uma das Zirri. A Zirri não me reconhecerá, mas ele piscará um olho, como meu tio Edwin ao dizer “Acabo de arriscar mais um cílio”. Eu continuaria andando, isso seria tudo. Talvez eu ainda seja relativamente jovem quando sair do campo de trabalho — conforme se diz, nos meus melhores anos, como na canção que Loni Mich, com a papada tremendo, cantou como se fosse uma ária: QUASE TRINTA ANOS EU TINHA. Talvez eu encontre Tur Prikulitsch uma terceira, quarta vez, e até mais, num terceiro, quarto, sexto, até oitavo futuro. Um dia vou olhar a rua pela janela do pátio, no segundo andar, e estará chovendo. E lá embaixo, um homem que acaba de abrir seu guarda-chuva. Mas o guarda-chuva, emperrado, vai demorar a abrir, e ele se molhará. Verei que suas mãos são as mãos de Tur, porém ele não saberá disso. Se ele soubesse, eu pensaria: ele não deveria demorar tanto para abrir o guarda-chuva, ou usar luvas, ou não sairia à rua. Se ele não fosse Tur Prikulitsch, mas tivesse apenas as suas mãos, eu lhe gritaria da janela: Vá para o outro lado da rua, debaixo da marquise você não se molha. Ao levantar a cabeça, ele talvez dissesse: Com que direito o senhor me trata de você. E eu diria: Não olhei para o seu rosto, eu me dirijo apenas às suas mãos.
Eu imaginava: Um dia caminharei por lugares elegantes, onde se está em casa de uma forma diferente do que é na pequena cidade onde nasci. O lugar elegante será a beira-mar junto ao mar Negro. A água levantará espuma e balançará de maneira inédita para mim até então. Na beira-mar brilharão luzes de neon e soarão saxofones. Encontrarei Bea Zakel e a reconhecerei, seus olhos continuarão com aquele giro indeciso e o olhar fugidio. Eu não terei rosto, porque ela não me reconhecerá. Ela continuará com os cabelos pesados, porém não mais numa trança: ondulados nas têmporas, brancos como farinha, como as asas das gaivotas. Ainda terá os pômulos salientes, com duas sombras duras, como as duas esquinas de um edifício ao meio-dia. Eu pensarei no ângulo reto, e numa colônia atrás do campo de trabalho.
No outono anterior foi construída uma nova colônia russa atrás do campo de trabalho. Eram filas de casas de madeira pré-fabricadas, vindas da Finlândia; casas finlandesas. Karli Halmen me contara que as peças pré-fabricadas eram cortadas com precisão e vinham acompanhadas de minuciosos planos de montagem. No entanto, ao serem descarregadas, misturaram-se até que ninguém mais soubesse em que lugar deveria encaixar-se cada peça. A construção foi um desastre: algumas vezes havia peças a menos; em outras, a mais; ou peças erradas. Durante todos aqueles anos, o mestre de obras era o único que considerava os trabalhadores forçados pessoas de países civilizados, onde o ângulo reto tem noventa graus. Ele via os deportados como seres pensantes, por isso me lembro dele. Durante uma pausa para fumar, fez um discurso sobre as boas intenções do socialismo e a incapacidade. E chegou à conclusão: Os russos sabem o que é um ângulo reto, mas não conseguem reproduzi-lo.
Um dia, pensei eu, sabe-se lá em que paz e em que futuro, irei ao país dos cumes montanhosos, onde, no sonho, cavalgo pelo ar o porco branco e que, segundo dizem as pessoas, é a minha pátria.
Uma variante da volta a casa que circulava aqui, no campo de trabalho, afirmava que, ao voltar, teríamos perdido nossos melhores anos. Seríamos como os prisioneiros de guerra depois da Primeira Guerra Mundial — a volta para casa levaria décadas. Schischtwanjonow ordenará que nos apresentemos para a última e breve chamada e anunciará:
Com isto eu desativo o campo de trabalho. Desapareçam.
E cada um, por conta própria, irá caminhando para o leste, na direção errada, porque para o oeste estaria tudo fechado. Pelos Urais, atravessando a Sibéria, Alasca, América, e então por Gibraltar e o Mediterrâneo. Após vinte e cinco anos chegaríamos a casa, de leste pelo oeste, caso ainda fosse a nossa pátria, caso já não pertencesse à Rússia. Ou a outra variante: que nunca vamos sair daqui, pois nos manterão aqui por tanto tempo, até que o campo de trabalho se transforme num vilarejo sem torres de vigilância e nós continuemos aqui, sem ser russos ou ucranianos, porém habitantes por costume. Ou que teremos de ficar tanto tempo aqui, até não desejarmos mais ir embora, convencidos de que ninguém mais espera por nós em casa, porque há muito moram outras pessoas lá, porque todos foram deportados sabe-se lá para onde, e nem eles mesmos têm um lar. Outra variante diz que, enfim, queremos ficar aqui porque já não saberíamos mais o que fazer com um lar, nem o lar saberia o que fazer conosco.
Quando durante uma eternidade não sabemos nada do mundo de casa, nós nos perguntamos se realmente queremos ir para casa e o que esperamos de lá. No campo de trabalho nos roubam o desejo. Não se têm nem se devem tomar decisões. Queremos ir para casa, é verdade, mas nos limitamos a relembrar o passado, não nos atrevemos a desejar o futuro. Pensamos que a lembrança em si já é uma espécie de desejo. Onde poderia estar a diferença, se a cabeça gira em torno das mesmas coisas sempre, e o mundo é algo tão extraviado que nem mesmo nos faz falta.
O que vai ser de mim quando voltar para casa. Eu pensava: repatriado, caminharia pelo vale entre os cumes montanhosos e me adiantaria, TSCH-TSCH-TSCH, como o trem. Cairei na minha própria armadilha, cairei na mais assustadora familiaridade. Esta é a minha família, direi, e me referirei às pessoas do campo de trabalho. Minha mãe dirá que devo estudar para bibliotecário: Assim, você nunca precisará ficar lá fora passando frio. E você sempre gostou de ler, ela dirá. Meu avô vai dizer que devo pensar bem e me tornar caixeiro-viajante. Pois viajar você sempre quis, ele dirá. Minha mãe talvez diga isso, e meu avô talvez diga isso, mas estávamos aqui numa nova quarta paz e eu, apesar do novo irmão substituto, continuava sem saber se eles ainda estavam vivos. Aqui no campo, profissões como caixeiro-viajante eram boas para a sorte da cabeça, tinha-se algo a contar.
Uma vez, sentado na tábua do silêncio no porão, falei com Albert Gion sobre isso e até o arranquei de seu silêncio. Talvez eu vire caixeiro-viajante mais para a frente, projetei, com todo tipo de bugiganga na mala, com lenços de seda e lápis, gizes coloridos, unguentos e tira-manchas. Uma vez, meu avô trouxe uma concha do Havaí para minha avó, do tamanho de uma corneta de gramofone e de um azul perolado por dentro. Talvez eu me torne mestre de obras também, mestre de obras—mestre em cianotipia, eu disse, sentado na tábua do silêncio no porão. Mestre em cianotipia Ozalid. Então, terei meu próprio escritório. Construirei casas para gente com dinheiro, uma será completamente redonda como o cesto de ferro daqui. Primeiro, desenharei o plano no papel de sanduíche. No centro, um fuso do porão até a cúpula. Todos os quartos serão a quarta, a sexta e a oitava partes de um círculo, como pedaços de torta. O papel de sanduíche é colocado numa moldura sobre o papel Ozalid, e então se expõe a moldura ao sol entre cinco e dez minutos. Enrola-se o papel Ozalid inserindo-o num tubo com vapor de amônia, e depois de pouco tempo sai o plano pronto. A cópia azul Ozalid está pronta, rosa, lilás, marrom-canela.
Albert Gion ouviu e disse: Cópia-Ozalid, você já não tem vapor suficiente, acho que você está esgotado. Por que estamos aqui no porão. Por não termos um ofício. As profissões aqui são barbeiro, sapateiro e alfaiate. São boas profissões, com certeza as melhores aqui no campo de trabalho. Porém, ou você traz uma de casa, ou nunca a terá. São profissões do destino. Se tivéssemos sabido que um dia viríamos parar num campo de trabalho, teríamos virado barbeiro, sapateiro ou alfaiate. Mas de forma alguma caixeiro-viajante, mestre de obras ou mestre em cianotipia.
Albert Gion tinha razão. Seria transportar argamassa uma profissão. Se transportamos argamassa ou blocos de escória durante anos, ou descarregamos carvão ou arrancamos batatas da terra com as mãos ou limpamos o porão, sabemos como funciona, contudo não é uma profissão. Trabalho pesado, mas não uma profissão. De nós exigia-se apenas trabalho, nunca uma profissão. Seríamos sempre peões, e peão não é uma profissão.
Já não sentíamos aquela fome selvagem, e a erva-armoles continuava crescendo verde-prateada, logo se tornaria fibrosa e de um vermelho flamejante. Somente porque conhecíamos a fome, não a colhíamos, e comprávamos comida gordurosa no bazar e comíamos muito e indiscriminadamente. Agora a velha nostalgia era cevada com carne nova, apressada e fofa. E, com a carne nova, eu ainda precisava convencer a antiga: Um dia caminharei por lugares elegantes. Eu também.
* Universum Film AG, estúdios cinematográficos alemães. Atualmente, UFA Film & TV Produktion GmbH. (N. T.)
Profundas como o silêncio
Assim que deixei a época de peleeosso e as trocas de salvação para trás — quando tive diante de mim ballettkis, dinheiro vivo, comida, carne nova sob a pele e roupas novas na mala nova, veio uma intolerável liberdade. Sobre os cinco anos no campo de trabalho, há cinco coisas que eu posso dizer hoje:
1 movimento com a pá = 1 grama de pão.
O ponto zero é o indizível.
A troca de salvação é um hóspede do outro lado.
O “nós” do campo de trabalho é singular.
A circunferência tende ao absoluto.
Porém, para todas as cinco coisas vale uma só:
Entre si, são profundas como o silêncio, e não diante de testemunhas.
O paralisado
Era início de janeiro de 1950 quando deixei o campo de trabalho e fui para casa. Agora voltava a sentar-me numa sala de estar, num profundo quadrado sob o teto de estuque branco, como se estivesse sob a neve. Meu pai pintava os Cárpatos: a cada poucos dias, uma nova aquarela com montanhas de dentes cinzentos e abetos borrados pela neve, quase iguais em todas as pinturas. Ao pé da montanha, filas de abetos; na encosta, grupos de abetos; no cume, pares de abetos e abetos isolados; entre eles, aqui e ali, uma bétula feito uma galhada branca. Aparentemente, o mais difícil de pintar são as nuvens; em todos os quadros elas se assemelham a almofadas cinza num divã. Os Cárpatos pareciam sonolentos em todas as aquarelas.
Meu avô havia morrido. Minha avó, sentada em sua poltrona felpuda, fazia palavras cruzadas. De vez em quando, perguntava uma palavra: Canapé no Oriente, parte do sapato com s, raça de cavalo, telhado de lona.
Minha mãe tricotava meias de lã de ovelha, um par após o outro, para seu filho substituto Robert. O primeiro par era verde, o segundo branco. Depois marrom, salpicado de vermelho e branco, azul, cinza. A confusão começara com o par branco — minha mãe tricotava grumos de piolhos. A partir de então, em todas as meias, eu via nossos jardins de tricô entre os alojamentos, cumes de pulôveres ao amanhecer. Eu estava deitado no divã; o novelo de lã, na travessa de metal ao lado da cadeira da minha mãe, tinha mais vida do que eu. Os fios subiam, penduravam-se e se deixavam cair. Dois novelos do tamanho de um punho correspondiam a uma meia pronta, não era possível calcular todo o comprimento da lã. Juntando todas as meias, o tamanho talvez equivalesse à distância entre o divã e a estação de trens. Eu evitava a região em torno da estação de trens. Agora eu tinha os pés quentes, só coçavam as manchas de congelamento no calcanhar, onde os panos para os pés congelavam e grudavam na pele primeiro. No inverno, os dias tornavam-se cinza já por volta das quatro horas. Minha avó acendia a luz. A cúpula do abajur era um funil azul-claro com debrum de borlas azul-escuro. O teto recebia pouca luz, o estuque permaneceu cinza e começou a derreter. Na manhã seguinte, estava branco novamente. Eu imaginava que, à noite, enquanto dormíamos nos outros quartos, ele acabava de congelar, como os bordados de gelo no terreno baldio atrás do zepelim. Ao lado do armário tiquetaqueava um relógio. O pêndulo voava e trabalhava com a pá nosso tempo, entre os móveis do armário até a janela, da mesa ao divã, da estufa até a poltrona de felpas, do dia até a noite. Na parede, o tique-taque era o balanço da minha respiração; no meu peito, a minha pá de coração. Eu sentia muito a sua falta.
Final de janeiro, meu tio Edwin veio buscar-me bem cedo para apresentar-me ao seu chefe na fábrica de caixas. Lá fora, na pequena rua da escola, uma casa mais adiante, havia um rosto na janela do sr. Carp. Estava cortado, na altura do pescoço, pelo desenho da geada na janela. Uma trança de cabelos de gelo contornava-lhe a fronte, e, ao lado da base do nariz, um olho verde e escorregadio — vi Bea Zakel com um roupão de flores brancas e uma pesada trança cinza. Na janela, sentado como todos os dias, o gato do sr. Carp, mas tive pena de Bea, que tivesse envelhecido tão depressa. Eu sabia que o gato só podia ser um gato; que o poste telegráfico não era uma torre de vigilância; nem o fulgor branco sobre a neve, a rua principal do campo de trabalho, mas a rua da escola. Que aqui em casa tudo isso não podia ser outra coisa, porque se manteve idêntico. Tudo, com exceção de mim mesmo. Entre as pessoas saciadas de pátria, eu tinha vertigens diante da liberdade. Meu ânimo era inconstante, adestrado para a queda, e um medo canino, meu cérebro estava acostumado à submissão. Eu via Bea Zakel na janela esperando por mim, certamente ela também me viu passar. Eu devia tê-la cumprimentado, ao menos com um meneio de cabeça ou acenado com a mão. Mas só notei tarde demais, já havíamos passado duas casas. Quando, ao fim da rua da escola, viramos a esquina, meu tio me pegou pelo braço. Certamente percebia que, apesar de muito perto dele, eu estava bem longe, em outro lugar. Talvez ele não tenha segurado em mim, mas no seu velho sobretudo, que eu usava agora. Seu pulmão assobiava. Pareceu-me que não queria dizer aquilo que disse depois do longo silêncio. Que seus pulmões o obrigaram quando falou a duas vozes: Tomara que o aceitem na fábrica. Tenho a impressão de que na casa de vocês há um mal-estar permanente. Ele se referia ao paralisado.
No lugar onde o gorro de pele tocava a sua orelha esquerda, as pregas do seu pavilhão auricular se separavam tersas, como nas minhas orelhas. Eu deveria observar sua orelha direita também. Soltei-me e troquei de lado. Sua orelha direita era a minha, mais ainda que a esquerda. A borda tersa começava mais embaixo, era mais comprida e larga, como se passada a ferro.
Fui contratado na fábrica de caixas. Eu abandonava diariamente o paralisado e voltava a habitá-lo depois do trabalho. Todas as vezes quando eu voltava para casa, minha avó perguntava:
Você voltou.
E eu dizia: Sim, voltei.
Quando eu saía de casa, ela perguntava, todas as vezes:
Você está saindo.
E eu dizia: Estou saindo.
Ao perguntar, ela sempre dava um passo na minha direção e punha a mão sobre a testa num gesto de incredulidade. Suas mãos eram transparentes, apenas pele com veias e ossos, dois leques de seda. Eu queria abraçá-la quando ela me perguntava. O paralisado me impedia.
O pequeno Robert ouvia as perguntas diárias. Quando tinha vontade, imitava a avó: dava um passo na minha direção, punha a mão sobre a testa e perguntava numa frase:
Você voltou, você está saindo.
Todas as vezes em que encostava a mão na testa, eu via as dobrinhas de gordura na base de sua mão. Todas as vezes eu tinha vontade de torcer o pescoço do irmão substituto quando ele perguntava. O paralisado me impedia.
Um dia, ao voltar do trabalho, vi uma ponta de renda branca aparecendo por baixo da tampa da máquina de costura. Outro dia, havia um guarda-chuva pendurado na maçaneta da porta da cozinha, e sobre a mesa um prato quebrado, duas metades iguais como cortadas ao meio. E minha mãe havia enrolado um lenço no polegar. Um dia, os suspensórios do meu pai estavam em cima do rádio e os óculos da minha avó dentro do meu sapato. Outro dia, Mopi, o cachorro de pano de Robert, estava amarrado com os cordões do meu sapato na orelha da chaleira. E havia casca de pão dentro do meu gorro. Talvez se livrassem do paralisado quando eu não estava em casa. Talvez revivessem. Aqui em casa acontecia o mesmo que com o Anjo da Fome no campo de trabalho. Nunca ficou claro se todos juntos tínhamos um único paralisado, ou se cada um tinha o seu.
Talvez eles rissem quando eu não estava lá. Talvez sentissem pena de mim ou me insultassem. Provavelmente beijavam o pequeno Robert. Provavelmente diziam que precisavam ter paciência comigo porque me amavam, ou talvez apenas pensassem isso em silêncio e voltassem às suas ocupações. Provavelmente. Talvez eu devesse ter sorrido ao chegar a casa. Talvez eu devesse ter sentido pena deles, ou insultado. Talvez eu devesse ter beijado o pequeno Robert. Talvez eu devesse ter dito que precisava ter paciência com eles porque os amo. Porém, como eu poderia dizer isso, se nem ao menos em silêncio eu conseguia pensar.
No primeiro mês após meu retorno, eu deixava a luz acesa no quarto a noite toda, porque, sem a luz de serviço, eu tinha medo. Eu acreditava que à noite só se sonha quando se está cansado do dia. Somente depois de começar a trabalhar na fábrica de caixas, reapareceu pela primeira vez um sonho em meu sono.
Minha avó e eu estamos sentados juntos na poltrona de felpa; Robert ao lado, em sua cadeira. Eu sou pequeno, do tamanho de Robert, e ele é grande, do meu tamanho. Robert sobe na sua cadeira e pega, sobre o relógio, o estuque do teto. Ele o põe em volta do meu pescoço e no da avó como um cachecol branco. Meu pai se ajoelha diante de nós no tapete com sua câmera Leica, e minha mãe diz: Sorriam, esta será a última foto antes que ela morra. Minhas pernas mal passam até a beira da cadeira. Ante essa posição, meu pai só pode fotografar meus sapatos, a partir de baixo, com a sola apontando para a frente, em direção à porta. Diante dessas pernas curtas, meu pai não tem outra opção, mesmo que ele não queira. Eu tiro o estuque dos ombros. Minha avó me abraça e volta a colocar o estuque no meu pescoço. Ela o segura com suas mãos transparentes. Minha mãe dirige meu pai com uma agulha de tricô, até que ele começa a contar ao contrário, três, dois, e, ao chegar ao um, aperta o disparador. A seguir, minha mãe atravessa o coque com a agulha de tricô inclinada e tira o estuque de nossos ombros. E Robert sobe com ele em sua cadeira e o coloca de volta na parede.
Você tem uma filha em Viena
Eu já estava havia meses em casa, onde ninguém sabia o que eu tinha presenciado. E ninguém perguntava. Só é possível contar quando somos capazes de transmitir nossas experiências. Eu achava bom que ninguém perguntasse nada, mas no fundo aquilo me doía. Meu avô com certeza teria perguntado algo. Ele morrera fazia dois anos. No verão, após a terceira paz, ele morrera de falência dos rins e, diferentemente de mim, ficou com os mortos.
Uma noite chegou o vizinho, o sr. Carp, trazendo o nível que pedira emprestado. Ao me ver, começou a gaguejar. Eu lhe agradeci as polainas de couro amarelas e menti, dizendo que no campo de trabalho elas me haviam esquentado. Que me haviam trazido sorte, falei ainda por cima, e que, por causa delas, em uma ocasião, encontrara dez rublos no bazar. Da emoção, as pupilas do sr. Carp deslizavam por seus olhos como caroços de cerejas. Ele cruzou os braços, acariciando ambos os braços com os polegares, balançou-se e disse: Teu avó sempre te esperou. No dia de sua morte, as montanhas subiram até as nuvens, chegaram muitas nuvens estranhas até a cidade, vindas de todos os lugares, como malas de gente desconhecida. As nuvens sabiam que teu avô era um viajante incorrigível. Uma nuvem com certeza era tua, mesmo que não soubesses. Às cinco o enterro havia terminado, e logo depois caiu uma chuva silenciosa, durante meia hora. Eu sei, era uma quarta-feira, eu precisava ir à cidade comprar cola. Ao voltar, vi diante da entrada da vossa casa uma ratazana sem pelos. Estava enrugada, tremia e se encolhia junto à porta de madeira. Surpreendeu-me que ela não tivesse rabo, ou estivesse sentada em cima dele. Ao parar diante dela, vi um sapo cheio de verrugas. Ele me encarou inflando as bochechas feito duas bexigas e fazendo horríveis malabarismos com elas. Num primeiro momento, quis afastá-lo com o guarda-chuva, mas não tive coragem. Melhor não: trata-se de um sapo, ele acena com suas bexigas brancas; deve ter algo a ver com a morte de Leo. Pois a gente pensava que estavas morto. Teu avô esperou muito por ti nos primeiros tempos. No final, já não tanto. Sim, todos pensavam que estivesses morto. Afinal, não escrevias, por isso estás vivo agora. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, eu disse.
Minha respiração tremia, porque o sr. Carp mordia seu bigode desfiado, dando-me a entender que não acreditava em mim. Minha mãe observava de esguelha o pátio pela janela da varanda, onde não havia nada para ver, além de um pouco de céu e o cartão alcatroado sobre o alpendre. Senhor Carp, cuidado com o que diz, advertiu minha avó. Da outra vez o senhor me contou algo bem diferente, então as bexigas brancas se relacionavam com meu marido falecido: “Elas são uma saudação do seu falecido marido”, o senhor me disse à época. O sr. Carp murmurou mais para si mesmo: Como digo agora é como aconteceu de verdade. Seu marido acabava de morrer, eu não podia aparecer com o assunto da morte do Leo ainda por cima. O pequeno Robert pegou o nível que estava no chão e fez TSCH TSCH TSCH. Acomodou Mopi no teto de seu trem, puxou a mãe pelo vestido e falou: Entrem no trem, vamos para o Wench. O nível agitava seu olho verde e escorregadio. Mopi ia sentado no teto, mas dentro do nível ia Bea Zakel e olhava pela janela para os dedos dos pés do sr. Carp. O sr. Carp não dissera nada novo, apenas pronunciara algo inconveniente. Eu sabia que o susto havia sido mais forte do que a surpresa, e em casa foi um alívio sem alegria quando voltei. Eu defraudara o seu luto, porque eu vivia.
Desde que eu voltara para casa, tudo tinha olhos. Tudo via que minha nostalgia sem dono não desaparecia. Diante da grande janela ficava a máquina de costura, com a maldita lançadeira e a linha branca debaixo de sua tampa de madeira. O gramofone voltara para minha malinha deteriorada e o haviam instalado sobre a mesa do canto, como sempre. Penduradas, as mesmas cortinas verdes e azuis; nos tapetes serpenteavam as mesmas estampas de flores, embainhadas pelas mesmas franjas enredadas; os armários e portas rangiam ao abrir ou fechar, como sempre; o piso chiava nos mesmos lugares, o corrimão da escada da varanda continuava rachado no mesmo lugar, todos os degraus desgastados; na balaustrada o mesmo vaso de flores em sua cesta de arame. Nada me interessava. Eu estava trancado em mim mesmo e excluído de mim mesmo, eu não pertencia a eles, e sentia a minha própria falta.
Antes de eu ir para o campo de trabalho, havíamos passado dezessete anos juntos. Tínhamos compartilhado os grandes objetos, como portas, armários, mesas, tapetes. E as pequenas coisas, como pratos e xícaras, saleiro, sabonete, chaves. E a luz que vinha da janela e da lâmpada. Agora eu havia sido trocado. Sabíamos uns dos outros, o que deixamos de ser e nunca mais seríamos. Ser um estranho é com certeza uma carga, mas ter vergonha de estranhos numa proximidade impossível é uma carga demasiado grande. Eu tinha a cabeça na mala, eu respirava em russo. Eu não queria ir embora e cheirava a distância. Eu não podia ficar o dia inteiro em casa. Precisava de um trabalho para abandonar o silêncio. Eu tinha agora vinte e dois anos, mas não aprendera nada. Pregar caixas é uma profissão, eu era um peão novamente.
Em agosto, ao voltar da fábrica de caixas no final da tarde, havia uma carta para mim sobre a mesa da varanda. Era de Oswald Enyeter. Meu pai me observava enquanto eu lia, como alguém que olha para a sua boca enquanto você está comendo. Eu li:
Caro Leo! Espero que esteja de volta junto aos seus. Aqui, em casa, já não havia ninguém. Eu segui até a Áustria. Moro em Viena agora — em Margareten, muitos compatriotas estão aqui. Se você vier algum dia a Viena, poderei barbeá-lo novamente. Consegui um emprego de barbeiro com um compatriota. Tur Prikulitsch andava dizendo por aí que, no campo de trabalho, ele era o barbeiro, e eu o chefe. Bea Zakel se separou dele, mesmo assim continuou apoiando o que ele dizia. Batizou sua filha com o nome Lea. Tem algo a ver com Leopoldo? Há duas semanas, Tur Prikulitsch foi encontrado por alguns operários debaixo de uma das pontes do Donau. A própria gravata dentro da boca, e a testa partida em dois por uma machadada. O machado havia sido deixado sobre sua barriga, e não havia nem rastro do assassino. Pena que não fui eu. Ele mereceu.
Quando guardei a carta, meu pai perguntou:
Você tem uma filha em Viena.
Eu disse: Você leu a carta, não é isso o que ela diz.
Ele disse: Não se sabe tudo o que acontece num campo de trabalho.
Não se sabe, eu disse.
Minha mãe segurava meu irmão substituto pela mão. E Robert segurava, debaixo do braço, Mopi, o cão de pano recheado com serragem. Minha mãe acompanhou Robert até a cozinha. Ao voltar, trazia Robert numa das mãos, e na outra um prato de sopa. E Robert apertava Mopi junto ao peito e carregava na mão a colher para a sopa. Ou seja, para mim. Desde que começara na fábrica de caixas, eu me dedicava a vagar pela cidade depois do trabalho. As tardes de inverno me protegiam, porque escurecia cedo. As vitrines das lojas exibiam-se sob uma luz amarela como paradas de bonde. Do lado de dentro, esperavam por mim duas, três pessoas de gesso, com roupas novas. Elas ficavam bem perto umas das outras, com as etiquetas de preço diante das pontas dos pés, como se necessitassem tomar cuidado por onde andam. Como se as etiquetas diante de seus pés fossem marcações estabelecidas pela polícia, como se, pouco antes da minha chegada, um cadáver tivesse sido retirado dali. As mercadorias menores ficavam na altura das janelas, que estavam repletas de louças de porcelana e de alumínio. Ao passar, eu as carregava em cima do ombro como se fossem gavetas. Sob a luz triste, esperavam muitas coisas, que vivem mais do que as pessoas que as compram. Talvez tanto quanto as montanhas. Do Großer Ring, eu me dirigi às ruas residenciais. Nas janelas, cortinas iluminadas. As rosas de renda e os labirintos de linha mais variados tinham o mesmo reflexo negro dos galhos nus das árvores. E às pessoas nos quartos escapava que as cortinas estavam vivas e que suas linhas brancas se combinavam com a madeira negra, em desenhos que mudavam a cada instante porque soprava o vento. Somente no final da rua é que o céu se abria; eu via a estrela da tarde desaparecer e pendurava meu rosto nela. E então havia passado tempo suficiente, e eu me assegurava de que todos já teriam terminado de comer quando eu chegasse a casa.
Eu desaprendera a comer com garfo e faca. Não só minhas mãos tremiam, mas também tinha problemas ao engolir. Eu sabia como era passar fome e como se estica ou devora a comida ao tê-la finalmente. Quanto tempo se mastiga e quando se deveria engolir; contudo, comer com boas maneiras era algo que eu não sabia mais. Meu pai sentava-se diante de mim, e a mesa de jantar me parecia tão grande como a metade do mundo. Ele me observava com olhos semicerrados, disfarçando sua pena. Ao piscar, resplandecia então todo o seu horror, como o quartzo rosa na parte interna dos seus lábios. Minha avó era quem conseguia demonstrar mais consideração comigo, sem grandes escândalos. Provavelmente ela preparava aquela sopa espessa para que eu não me torturasse com o garfo e a faca.
Naquele dia de agosto em que chegou a carta, havia sopa de feijão com costelas de porco. Depois da carta eu perdera a fome. Cortei uma fatia de pão, comi primeiro as migalhas que haviam ficado na mesa e comecei então a comer com a colher. Meu irmão substituto, ajoelhado no chão, enfiou o coador de chá na cabeça do seu cachorro de pano, como se fosse um gorro, e o sentou em posição de montaria num canto da gaveta do pequeno armário da varanda. Tudo o que Robert fazia parecia-me assustador. Ele era uma junção de várias peças — seus olhos eram os da minha mãe, antigos, redondos e de um azul-crepúsculo. Os olhos permanecerão assim, pensei. Seu lábio superior era da avó, como uma gola pontuda debaixo do nariz. O lábio superior permanecerá assim. Suas unhas abauladas eram do avô e permaneceriam assim. Suas orelhas eram minhas e do meu tio Edwin, as dobras enroscadas que se curvavam tornando-se lisas acima do pavilhão auricular. Seis orelhas iguais, de três tipos de pele, porque as orelhas permaneceriam assim. Seu nariz não vai permanecer desse jeito, refleti. O nariz muda quando cresce. Depois talvez seja o do pai, com o canto ossudo na base. Se não for assim, então Robert não tem nada dele. Nesse caso, meu pai não contribuiu em nada para o filho substituto.
Robert veio até a mesa onde eu estava, mantinha seu Mopi com o coador de chá na mão esquerda e segurou no meu joelho com a direita, como se meu joelho fosse o canto de uma cadeira. Desde o abraço ao voltar, havia oito meses, ninguém mais naquela casa tocou em mim. Para eles eu era inacessível, para Robert um novo objeto na casa. Ele me tocava como fazia com os móveis, para segurar-se ou para pôr algo no meu colo. Dessa vez ele depositara Mopi no bolso do meu paletó, como se eu fosse sua gaveta. E fiquei quieto, como se eu fosse uma. Eu tinha vontade de afastá-lo com um empurrão, mas o paralisado me impedia. Meu pai pegou o cão de pano do meu bolso e disse:
Aqui, pegue o seu tesouro.
Ele desceu com Robert pelas escadas até o pátio. Minha mãe sentou-se diante de mim à mesa e ficou olhando a mosca sobre a faca de manteiga. Eu mexia minha sopa de feijão e me via sentado diante do espelho na barbearia de Oswald Enyeter. Tur Prikulitsch entrou pela porta. Eu o ouvi falar:
Pequenos tesouros são aqueles em que está inscrito: Aqui estou eu.
Maiores tesouros são aqueles em que está inscrito: Você se lembra.
Os mais belos tesouros, porém, são aqueles em que se inscreverá: Estive aqui.
ESTIVE AQUI, vindo da sua boca, soava como towarischtsch. Então eu estava havia quatro dias sem fazer a barba. No reflexo da janela da varanda, a mão coberta de pelos negros de Oswald Enyeter passava com a navalha entre a espuma branca. E, atrás da navalha, uma tira de pele se estendia como uma fita de borracha, da boca até a orelha. Ou já era então a longa ranhura da boca provocada pela fome. Meu pai podia falar de tesouros com a mesma ignorância de Tur Prikulitsch, porque nenhum dos dois havia tido nunca uma boca de fome. E a mosca sobre a faca de pão conhecia a varanda tão bem como eu a barbearia. Ela voou da faca de pão até o armário, do armário até minha fatia de pão, logo até a beira do prato e, dali, de volta para a faca de pão. Em cada ocasião decolava reta, dava voltas fazendo um zumbido e aterrissava em silêncio. Ela nunca pousava sobre a tampa de metal com pequenos furos do saleiro. Agora, de um momento para o outro, compreendi por que, desde que voltara para casa, eu nunca havia usado o saleiro. Em sua tampa cintilavam os olhos metálicos de Tur Prikulitsch. Eu sorvia a sopa, e minha mãe ouvia como se eu estivesse novamente lendo a carta que recebera de Viena. Sobre a faca de pão, a barriga da mosca brilhava, às vezes como gotas de orvalho, às vezes como gotas de alcatrão, quando ela se virava. Orvalho e alcatrão e como os segundos se estendem quando a testa sobre o focinho está partida ao meio. Hasoweh, mas como cabe uma gravata inteira na boca curta de Tur Prikulitsch.
A bengala
Depois do trabalho, fiz o caminho oposto para chegar em casa, do outro extremo das ruas residenciais, passando pelo Großer Ring. Eu queria passar na igreja da Santíssima Trindade e ver se ainda existiam o nicho branco e o santo com a ovelha à guisa de gola.
No Großer Ring havia um garoto gordo com meias brancas até o joelho, calças curtas xadrez e camisa branca com peitilho, como se tivesse acabado de fugir de uma festa. Ele desfolhava um ramo de dálias brancas para alimentar os pombos. Oito pombos bicavam as dálias brancas, supondo que aquilo no pavimento era pão, para soltá-las logo em seguida. Após alguns segundos, esqueciam tudo, sacudiam as cabeças e começavam outra vez a bicar as mesmas flores. Por quanto tempo mais sua fome acreditaria que as dálias eram pão. E o que pensava o garoto. Seria esperto ou tão burro como a fome dos pombos. Eu não queria pensar no engano da fome. Se o garoto tivesse jogado pão em vez de dálias despedaçadas, eu nem teria parado ali. No relógio da igreja eram dez para as seis. Atravessei rapidamente a praça, caso a igreja fechasse às seis.
Então veio ao meu encontro Trudi Pelikan, pela primeira vez desde o campo de trabalho. Quando nos vimos, era tarde demais. Ela se apoiava numa bengala. Como já não podia desviar, ela pôs a bengala sobre o pavimento e se agachou até o sapato. Porém, não estava desamarrado.
Estávamos ambos havia mais de meio ano novamente em casa, na mesma cidade. Por nosso próprio bem, não quisemos mais nos reconhecer. Não há nada a entender nisso. Rapidamente virei a cabeça para o lado. Contudo, que vontade de abraçá-la e dizer que concordo com ela. Como eu gostaria de ter dito: Sinto muito por você ter de se abaixar; não preciso de uma bengala, da próxima vez posso fazer isso por nós dois, se você me permitir. Sua bengala envernizada tinha na parte inferior uma garra enferrujada, e uma bola branca na empunhadura.
Em vez de entrar na igreja, virei de improviso à esquerda, em direção à rua estreita por onde passara na ida. O sol me furava as costas, o calor escorria pelo meu cabelo como se minha cabeça fosse uma chapa. O vento arrastava um tapete de poeira, nas copas das árvores ressoava um canto. Então, um funil de poeira surgiu em meio à calçada e me atravessou cambaleando até que se desfez. Ao cair, deixou o pavimento salpicado de preto. O vento rugiu trazendo as primeiras gotas. A tempestade havia chegado. Crepitaram franjas de cristal, e de repente caíram feito chicoteadas os primeiros cordões de água. Refugiei-me na papelaria.
Ao entrar, sequei com a manga a água do rosto. A vendedora saiu por uma portinha com cortina. Ela usava umas sapatilhas de feltro com borlas, como se brotasse um pincel do peito de cada pé. Foi para trás do balcão. Fiquei ao lado da vitrine, e por um tempo a observei com um olho, enquanto com o outro olhava para fora. Agora sua face direita estava bem inchada. Pusera as mãos sobre o balcão, seu anel para selar era pesado demais para aquelas mãos tão ossudas, um anel masculino. Sua face direita tornou-se plana, côncava até, e a esquerda gorda. Ouvi que algo fazia barulho entre seus dentes, ela chupava uma bala. Por um momento fechou os olhos, e suas pálpebras eram de papel. Então falou: A água para o meu chá está fervendo. Desapareceu pela portinha e, na mesma hora, um gato esgueirou-se por baixo da cortina. Ele veio até onde eu estava e se aconchegou na minha calça, como se me conhecesse. Peguei-o nos braços: ele não pesava. Não é um gato, disse a mim mesmo, apenas o tédio transformado em pele com riscas cinza, a paciência do medo numa rua estreita. Ele cheirou meu paletó molhado. Seu nariz parecia de couro e côncavo como um calcanhar. Quando apoiou sua pata dianteira no meu ombro e examinou minha orelha, praticamente não respirava. Eu empurrei a sua cabeça para o lado e ele pulou no chão. Ao pular, não fez um único ruído, caiu no chão como um pano. Ele estava vazio por dentro. A vendedora também saiu pela portinha com as mãos vazias. Onde estava o chá, não podia tê-lo bebido tão rápido. Além disso, agora sua face direita havia engordado novamente. Seu anel de selar raspou no balcão.
Pedi um caderno.
Quadriculado ou pautado, ela perguntou.
Eu disse: Pautado.
Você não teria dinheiro trocado, estou sem troco, disse ela enquanto sorvia. E as duas faces tornaram-se ocas. A bala lhe escorregou da boca, caindo sobre o balcão. Tinha desenhos transparentes. Ela a enfiou rapidamente na boca. Não era bala, ela chupava uma gota de cristal talhado de um lustre.
Cadernos pautados
O dia seguinte era domingo. Comecei a escrever no caderno pautado. O primeiro capítulo se chamava PRÓLOGO. Começava com esta frase: “Você me entenderá, ponto de interrogação”.
Com o você eu me referia ao caderno. Durante sete páginas tratava-se de um homem com o nome T. P. e outro com o nome A. G. e um K. H., e um O. E. E uma mulher com o nome B. Z. A Trudi Pelikan dei o codinome CISNE. O nome da planta escrevi Koksochim Zavod e o da estação de trens mineira, Jasinowataja. Também os nomes Kobelian e Kati-Plantão. Mencionei também seu irmãozinho Piold e seu momento de lucidez. O capítulo terminava com uma longa frase:
Ao amanhecer, depois de me lavar, desprendeu-se dos meus cabelos uma gota que escorreu feito uma gota de tempo pelo nariz, até a boca; o melhor seria deixar crescer uma barba em forma de trapézio, de modo que ninguém mais na cidade me reconheça.
Nas semanas seguintes ampliei o PRÓLOGO, três livros mais.
Omiti que, na viagem de volta, Trudi Pelikan e eu, sem termos combinado previamente, subimos em diversos vagões de animais. Não falei sobre minha velha mala de gramofone. Porém, descrevi com detalhes minha nova mala de madeira, minhas novas roupas: os ballettki, o gorro com viseira, a camisa, a gravata e o traje. Silenciei sobre meu choro convulsivo na minha viagem de volta, ao chegar ao campo de acolhida em Sighetul Marmatiei, a primeira estação de trens romena. Também sobre a quarentena de uma semana em um depósito de mercadorias ao fim da via da estação. Desmoronei internamente por medo de ser mandado de volta à liberdade e seu abismo mais próximo, que cada vez diminuía mais o caminho de casa. Eu estava sentado em minha nova carne e com minhas novas roupas, as mãos levemente inchadas entre a mala de gramofone e a nova mala de madeira, como se estivesse num ninho. O vagão de animais não fora selado. A porta se abriu totalmente, o trem entrou rolando na estação de Sighetul Marmatiei. Uma neve fina cobria a gare, eu saí caminhando sobre açúcar e sal. As poças cinza estavam congeladas, o gelo arranhado como o rosto do meu irmão costurado com linha branca.
Quando o policial romeno nos entregou os passes de livre-trânsito para a viagem de volta, segurei na mão a despedida do campo de trabalho e chorei. Até a casa, com dois transbordos, em Baia Mare e Klausenburg, foram no máximo dez horas. Nossa cantora Loni Mich se aconchegou ao advogado Paul Gast, dirigiu seu olhar para mim, julgando sussurrar. Porém, entendi cada palavra; ela disse:
Olha só como chora esse aí, algo nele transborda.
Pensei com frequência nessa frase. Depois a escrevi numa página em branco. No dia seguinte a risquei. No outro, voltei a escrevê-la logo abaixo. Risquei novamente. Quando a folha estava cheia, arranquei-a. Isso é a lembrança.
Em vez de citar a frase da minha avó, EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR, o lenço branco de batista e o leite saudável, descrevi durante páginas, como um triunfo, o pão próprio e o pão da face. Depois, minha resistência nos intercâmbios de salvação com a linha do horizonte e as estradas poeirentas. Com o Anjo da Fome me entusiasmei, como se, em vez de me torturar, ele só me tivesse salvado. Por isso, risquei PRÓLOGO e escrevi por cima EPÍLOGO. Era o grande fiasco interior que agora eu estivesse em liberdade, invariavelmente só, e me tornasse uma falsa testemunha para mim mesmo.
Escondi meus três cadernos pautados na minha nova mala de madeira. Ela ficava debaixo da cama e era meu armário de roupas desde que eu voltara para casa.
Eu ainda sou o piano
Passei um ano pregando caixas. Eu era capaz de segurar doze pequenos pregos de uma vez entre os lábios e, ao mesmo tempo, outros doze entre os dedos. Eu pregava com a mesma velocidade da minha respiração. O chefe disse: Você tem talento, suas mãos são tão planas.
Porém, não eram as minhas mãos, mas a respiração plana da norma russa. 1 movimento com a pá = 1 grama de pão transformou-se em 1 cabeça de prego = 1 grama de pão. Eu pensava na surda Mitzi, em Peter Schiel, em Irma Pfeifer, em Heidrun Gast, em Corina Marcu, que jaziam nus debaixo da terra. Para o chefe, eram caixas de manteiga e berinjelas. Para mim, pequenos caixões de madeira fresca de pinheiro. Os pregos deviam voar entre minhas mãos para que aquilo funcionasse. Eu chegava a oitocentos pregos por hora, isso ninguém conseguia reproduzir. Cada prego tinha sua pequena cabeça dura, e a cada movimento ao pregá-los estava a vigilância do Anjo da Fome.
No segundo ano me inscrevi num curso de betoneria. Durante o dia eu era especialista em betoneria numa obra em Utscha. Ali desenhei em papel mata-borrão meu primeiro projeto para uma casa redonda. Até as janelas eram redondas, tudo o que fosse anguloso se parecia a um vagão de animais. A cada traço eu pensava em Titi, o filho do mestre de obras.
No final do verão, Titi foi comigo uma vez até o Erlenpark. Na entrada do parque havia uma velha camponesa com uma cesta de frutas silvestres, vermelhas como o fogo e pequenas como a ponta da língua. E todas tinham em sua gola verde um cabo como arame finíssimo. Aqui e ali, algumas folhinhas dentadas ainda presas. Ela me deu uma para experimentar. Comprei para Titi e para mim dois cones grandes de papel. Passeamos em volta do pavilhão entalhado. Então, eu o atraí para cada vez mais longe ao longo do curso de água, até atrás do morro de grama baixa. Depois de comermos os morangos, Titi amassou o cone de papel e pretendia jogá-lo fora. Eu falei: Dê para mim. Ele me estendeu a mão, eu a peguei e não mais a soltei. Com um olhar frio, ele disse: Ei. Nem os risos nem as conversas puderam apagar isso.
O outono foi curto e tingiu rapidamente sua folhagem. Eu evitava o Erlenpark.
No segundo inverno já havia neve em novembro. A pequena cidade estava envolta em seu traje de algodão. Todos os homens tinham mulheres. Todas as mulheres tinham filhos. Todas as crianças tinham trenós. Todos eram gordos e saciados de pátria. Caminhavam pela brancura com sobretudos ajustados e escuros. Meu sobretudo era claro, grande demais e estava manchado. Também saciado de pátria, ainda era o sobretudo do meu tio Edwin. Os transeuntes balançavam os fragmentos de respiração saindo da boca e revelavam: Todos os saciados de pátria fazem sua vida aqui, todos exibem os olhos cintilantes como broches de ágata, esmeralda ou âmbar. Também por eles espera algum dia, cedo ou logo ou tarde, umagotadesorteemdemasia.
Eu tinha saudade dos invernos magros. O Anjo da Fome me acompanhava por todo lugar e ele não pensa. Conduziu-me pela rua tortuosa. Do outro extremo vinha um homem. Ele não usava um sobretudo, mas um cobertor quadriculado com franjas. Ele não tinha mulher, mas um carrinho de mão. No carrinho de mão não havia uma criança, mas um cão negro com a cabeça branca. A cabeça do cão balançava ritmicamente. Quando o cobertor quadriculado se aproximou, eu vi no peito direito do homem o contorno de uma pá de coração. Quando o carrinho passou por mim, a pá de coração era a mancha da queimadura de um ferro de passar, e o cachorro um botijão de metal com um funil esmaltado no pescoço. Quando segui o homem com os olhos, o botijão com o funil se transformou novamente num cachorro. E eu chegara às termas Netuno.
O cisne do emblema no alto tinha três patas de vidro formadas por sincelos. O vento embalava o cisne, uma pata de vidro quebrou. No chão, o sincelo quebrado era sal grosso, que no campo de trabalho precisava ainda ser batido. Eu o amassei com o salto do sapato. Quando se tornou fino o suficiente para espalhá-lo, entrei pelo portão aberto e parei diante da porta de entrada. Sem pensar duas vezes, passei pela porta, entrando no átrio. O chão escuro de pedra era um espelho de águas tranquilas. Vi meu sobretudo claro por baixo de mim nadar até o caixa. Pedi uma entrada.
A mulher do caixa perguntou: Uma ou duas.
Tomara que da sua boca falasse somente uma ilusão de óptica, não uma suspeita. Tomara que ela estivesse vendo apenas o sobretudo duplo, e não que eu estava a caminho da minha antiga existência. A mulher do caixa era nova. Mas o átrio me reconhecia, o chão brilhante, a coluna central, o vitral engastado com chumbo no caixa, os azulejos com os nenúfares. A fria decoração tinha sua própria memória, os ornamentos não haviam esquecido quem eu sou. Minha carteira estava na jaqueta. Por isso, enfiei a mão no bolso do meu sobretudo e disse:
Esqueci a carteira em casa, não tenho dinheiro.
A mulher do caixa disse: Não tem problema, já emiti o bilhete, pague da próxima vez; vou anotar seu nome.
Eu disse: Não, de jeito nenhum.
Ela esticou o braço para fora da bilheteria, quis segurar-me pelo sobretudo. Dei um passo atrás, estufei as faces, encolhi a cabeça e, arrastando os pés com os calcanhares na frente, passei junto à coluna central em direção à porta.
Ela gritou: Eu confio em você, anoto seu nome.
Só então vi o lápis verde atrás da sua orelha. Bati com as costas na maçaneta e abri a porta bruscamente. Tive de puxar com força, a mola de metal era pesada. Eu me esgueirei pela abertura e a porta rangeu atrás de mim. Depois de atravessar o portão de ferro, saí apressado pela rua.
Já estava escuro, o cisne do emblema dormia branco, e o ar dormia negro. Numa esquina da rua, nevavam penas cinza sob a lâmpada. Apesar de eu não me mexer de onde estava, meus passos ressoavam na minha cabeça. Então comecei a andar e deixei de ouvi-los. Minha boca tinha cheiro de cloro e óleo de lavanda. Pensei na etuba e, de lâmpada em lâmpada até chegar a casa, eu ia conversando com a neve que voava vertiginosa. Não era a neve sobre a qual eu caminhava, mas outra, esfomeada, muito distante e que me conhecia das vendas ambulantes.
Também naquela noite minha avó deu um passo em minha direção, pôs a mão sobre a testa, mas dessa vez perguntou: Você chegou tão tarde; você tem uma garota.
No dia seguinte me inscrevi para o curso de betoneria na escola noturna. Ali, no pátio da escola, conheci Emma. Ela fazia um curso para contador. Tinha olhos claros, não amarelo-latão como os de Tur Prikulitsch, mas como pele de marmelo. E como todos na cidade, possuía um sobretudo escuro e saciado de pátria. Quatro meses mais tarde nos casamos. Naquela época o pai dela já estava muito doente, não fizemos festa de casamento. Fui morar com ela na casa de seus pais. Tudo meu levei comigo: meus três cadernos pautados e as roupas cabiam na mala de madeira que eu trouxera do campo de trabalho. Quatro dias depois, o pai de Emma morreu. Sua mãe se mudou para a sala de estar e nos deixou o quarto de dormir com a cama de casal.
Moramos durante meio ano na casa da mãe de Emma. Então deixamos Hermannstadt e nos mudamos para a capital, Bucareste. O número da nossa casa era 68, como a quantidade de camas no alojamento. O apartamento ficava no quarto andar, tinha somente um quarto e uma cozinha acoplada, o banheiro ficava no corredor. Porém, perto dali, vinte minutos a pé, havia um parque. Quando o verão chegou à grande cidade, eu peguei um atalho, onde voava a poeira. Por ali eram apenas quinze minutos a pé. Enquanto esperava o elevador na escada, pela jaula metálica do vão subiam e desciam duas cordas claras trançadas, como se fossem as tranças de Bea Zakel.
Uma noite eu estava com Emma no restaurante A Jarra de Ouro, na segunda mesa ao lado da orquestra. O garçom, tampando o ouvido com a mão enquanto servia, disse: Ouça, venho sinalizando isto ao chefe o tempo todo, o piano está desafinado. E o que ele fez, mandou embora o pianista.
Emma me lançou um olhar penetrante. Em seus olhos giravam pequenas rodas dentadas amarelas. Elas estavam enferrujadas, suas pálpebras ficavam presas nelas ao pestanejar. Então seu nariz se contraiu, as pequenas rodas se soltaram, e Emma disse com olhos límpidos:
Está vendo, a culpa é sempre do músico, nunca do piano. Por que ela esperou com essa frase até que o garçom tivesse ido embora. Espero que ela não saiba o que está dizendo. Então, no parque, eu usava o codinome O MÚSICO. O medo não conhece perdão. Resolvi trocar de parque. E de codinome. Para o novo parque, que ficava longe de casa e perto da estação de trens, escolhi o codinome O PIANO.
Num dia chuvoso, Emma voltou para casa com um chapéu de palha. Ela desceu do ônibus. Perto do ponto de ônibus, junto ao pequeno hotel DIPLOMAT, havia um homem parado debaixo da marquise. Quando Emma passou, ele perguntou se podia pegar uma carona debaixo do seu guarda-chuva, até o ponto de ônibus seguinte, na esquina. Ele usava um chapéu de palha, era uma cabeça mais alto do que Emma e ainda mais com o chapéu de palha. Emma precisou levantar o guarda-chuva. Em vez de segurá-lo, o homem a deixou com a metade do corpo na chuva e enfiou a mão no bolso. Disse: Quando a água borbulha, chove por dias seguidos. Quando sua mulher faleceu chovia assim também. Ele adiou o enterro por dois dias, porém a chuva não parou. À noite, punha as coroas do lado de fora, para que bebessem água, mas não foi bom para as flores: elas se afogaram e apodreceram. Sua voz tornou-se então escorregadia e balbuciou algo que terminou com a frase: Minha mulher se casou com um caixão.
Quando Emma disse que casar é bem diferente de morrer, ele respondeu que de ambos é necessário ter medo. Quando Emma perguntou, Como assim, medo?, o homem exigiu que ela lhe entregasse sua carteira. Se não, terei de roubar uma no ônibus, confessou ele, de uma frágil dama de antes da guerra. E não conterá nada além de uma foto de seu falecido marido. Quando saiu correndo, seu chapéu de palha voou até uma poça. Emma lhe tinha dado a carteira. Ele dissera: Não grite, se não isto vai pular; em sua mão trazia uma faca.
Quando Emma terminou de me contar a história, acrescentou a frase: O medo não conhece perdão. Eu concordei.
Essas coincidências eram frequentes com Emma. Não digo mais, porque, quando falo, tudo o que faço é me envolver em silêncio de outra maneira, nos segredos de todos os parques e de todas as coincidências com Emma. Nosso casamento durou onze anos. E Emma teria continuado comigo, eu sei. Mas não sei por quê.
Nessa época, O CUCO e A CAIXINHA DE COSTURA foram presos no parque. Eu sei que a polícia faz com que todos falem e que nenhuma desculpa me serviria quando os dois mencionassem O PIANO. Dei entrada no visto para a Áustria. Eu mesmo escrevi o convite de minha tia Fini para que fosse mais rápido. Da próxima vez vai você, eu disse a Emma. Ela concordou, porque casais nunca deveriam viajar juntos para o oeste. Durante o tempo em que passei no campo de trabalho, minha tia Fini havia casado e se mudado para a Áustria. Durante uma viagem no ônibus SAURIO para os banhos de sal de Ocna-Ba?i, ela conhecera Alois, um confeiteiro de Graz. Eu contara a Emma sobre o ferro de frisar, o cabelo ondulado e os gafanhotos por baixo do vestido de minha tia Fini e fiz com que ela acreditasse que eu queria rever minha tia e conhecer o confeiteiro Alois.
É até hoje a minha culpa mais pesada: eu me preparei para uma viagem curta, embarquei no trem com uma mala leve e fui para Graz. De lá, escrevi a Emma uma carta do tamanho de uma mão:
Querida Emma,
O medo não conhece perdão.
Eu não vou voltar.
Emma não conhecia a frase de minha avó. Nunca havíamos falado sobre o campo de trabalho. Eu retomei essa frase e, na carta, acrescentei-lhe a palavra NÃO, para que tivesse assim o efeito contrário.
Isso foi há mais de trinta anos.
Emma se casou novamente.
Eu nunca mais me liguei a ninguém. Apenas trocas desenfreadas.
A urgência do desejo e a perfídia da felicidade há muito fazem parte do passado, mesmo que meu cérebro continue deixando-se seduzir em qualquer lugar. Às vezes é um certo balançar na rua, ou duas mãos numa loja. No bonde, é essa forma peculiar de procurar um banco. No compartimento do trem, a pergunta: Aqui ainda está livre?, essa vacilação prolongada e, logo depois, certa maneira de colocar a bagagem. No restaurante é, independente da voz, certa forma como o garçom diz: Sim, meu senhor. Até hoje, o que mais me seduz são os cafés. Sento-me à mesa e examino os clientes. Em um, dois homens, é sua forma específica de sorver a bebida. E ao depositar a xícara, a pele interior do lábio que brilha, como um quartzo rosa. Um, dois clientes, os outros não. Por causa de um ou dois clientes, surgem em minha mente os modelos da excitação. Embora eu os saiba petrificados como manequins numa vitrine, eles querem parecer jovens. Mesmo que saibam que já não sirvo para eles, porque estou saqueado pela idade. Uma vez, saqueado pela fome, eu não servia mais para meu cachecol de seda. Ao contrário do que era de esperar, fui alimentado com carne nova. Entretanto, ninguém ainda inventou carne nova contra o saqueio da idade. Antes eu achava que não me deixaria deportar, em vão, durante a noite, ao sexto, sétimo, até oitavo campo de trabalho. Quem sabe não me devolvem os cinco anos roubados em forma de adiamento da velhice. Não tem sido assim; quando a carne abdica, calcula de outra maneira. Por dentro é deserta, e brilha no rosto como fome dos olhos. E diz:
Você ainda é O PIANO.
Sim, eu digo, o piano que não toca mais.
Sobre os tesouros
Pequenos tesouros são aqueles em que está inscrito: Aqui estou eu.
Maiores tesouros são aqueles em que está inscrito: Você se lembra.
Os mais belos tesouros, porém, são aqueles em que se inscreverá: Estive ali.
ESTIVE ALI deve inscrever-se nos tesouros, pensava Tur Prikulitsch. Meu pomo-de-adão subia e descia como se eu tivesse engolido um cotovelo. O barbeiro afirmou: Ainda estamos aqui. O quinto vem depois do nono.
Na época, na barbearia, eu ainda acreditava que, se não morresse ali, depois seria tarde. Você deixa o campo de trabalho, está livre, provavelmente de volta a casa. Então, pode-se dizer: ESTIVE ALI. Contudo, o quinto vem antes do nono, tem-se um pouco de balamuk, ou seja, de sorte caótica, e cumpre revelar também onde e como. E por que alguém como Tur Prikulitsch falaria mais tarde, em casa, espontaneamente, que não precisou de sorte.
Talvez já então alguém do campo de trabalho havia decidido matar Tur Prikulitsch depois de sair de lá. Alguém que andasse acompanhado pelo Anjo da Fome enquanto Tur Prikulitsch levava seus sapatos como bolsinhas envernizadas pela rua principal do campo de trabalho. Na época de peleeosso, talvez alguém durante a chamada ou no cárcere tenha ruminado, inúmeras vezes em sua mente, como partir ao meio a testa de Tur Prikulitsch. Ou talvez esse alguém estivesse coberto de neve até o pescoço em algum trajeto da linha férrea, ou no Jama, coberto de carvão até o pescoço, ou na carjera, na neve, ou na torre de cimento. Ou deitado em sua cama, insone sob a luz de serviço amarela do alojamento, quando jurou vingança. Talvez tenha planejado o assassinato no mesmo dia em que, na barbearia, Tur, com seu olhar escorregadio, falou dos tesouros. Ou no momento em que ele me perguntou no espelho: Como vão as coisas no porão. Talvez até mesmo no instante em que respondi: Agradável, cada turno é uma obra de arte. Certamente um assassinato com uma gravata na boca e um machado sobre a barriga é também uma obra de arte atrasada.
Nesse meio-tempo, sei que em meus tesouros está inscrito: ALI FICAREI. Que o campo de trabalho me deixou voltar para ca- sa com a intenção de aumentar a distância necessária para crescer na minha cabeça. Desde que voltei, em meus tesouros já não consta: ALI ESTOU EU, nem EU ESTIVE ALI. Em meus tesouros está inscrito: DE LÁ NUNCA MAIS SAIREI. O campo de trabalho se estende cada vez mais da têmpora esquerda para a têmpora direita. Assim, sou obrigado a falar do meu crânio como de um terreno, o terreno do campo de trabalho. Não há como proteger-se, nem pelo silêncio nem pela palavra. Exagera-se tanto num como noutro, mas EU ESTIVE LÁ não existe em nenhum deles. E tampouco há uma medida certa.
Porém, os tesouros existem; nisso Tur Prikulitsch tinha razão. Minha volta é uma sorte inválida, continuamente agradecida, um círculo de sobrevivência que começa a girar por qualquer porcaria. Ela me tem na mão, como a todos os meus tesouros, que eu não consigo suportar nem soltar. Eu uso os meus tesouros faz mais de sessenta anos. Eles são frágeis e incômodos, íntimos e repugnantes, esquecidos e rancorosos, gastos e novos. Eles são o dote de Tur Prikulitsch e não se distinguem de mim. Se eu os enumero, erro.
Minha orgulhosa inferioridade.
Meus desejos angustiados, que silencio.
Minha pressa indignada: eu pulo imediatamente de zero a tudo.
Minha teimosa condescendência, pela qual dou razão a todos para poder reprová-los.
Meu oportunismo aos tropeções.
Minha avareza educada.
Minha fosca inveja nostálgica, quando as pessoas sabem o que querem da vida. Uma sensação como lã presa na garganta, fria e crespa.
Meu oblíquo esvaziar-me às colheradas, por sentir-me acossado por fora e vazio por dentro, desde que não tenho mais que passar fome.
Minha transparência lateral, por meio da qual eu me desfaço ao caminhar para dentro.
Minhas tardes pesadas: o tempo desliza devagar comigo entre os móveis.
Meu profundo desamparo. Preciso de muita proximidade, mas não me deixo levar pela mão. Domino o sorriso sedoso ao retroceder. Desde o Anjo da Fome, não permito que ninguém me possua.
O mais pesado de meus tesouros é a minha compulsão pelo trabalho. É o avesso do trabalho forçado e uma troca salvadora. Em mim vive o Domador da Compaixão, um parente do Anjo da Fome. Ele sabe como adestrar todos os outros tesouros. Sobe-me ao cérebro e me empurra para o feitiço da compulsão, porque me assusta ser livre.
Do meu quarto vê-se o relógio da torre sobre o Schlossberg de Graz. Junto à minha janela há uma grande tábua de desenho. Sobre a minha escrivaninha está meu último projeto, como uma toalha desbotada, empoeirado como o verão nas ruas lá fora. Quando olho para ele, ele não se lembra de mim. Desde a primavera, passeia diariamente em frente à minha casa um homem com um cão branco de pelo curto e uma bengala negra extremamente fina, a qual tem apenas uma curva débil como empunhadura, como um galho de baunilha aumentado. Se eu quisesse, poderia cumprimentar o homem e dizer-lhe que seu cão se parece com um porco branco no qual a nostalgia cavalgava pelo céu antigamente. Na realidade, gostaria de falar com o cão uma vez. Seria bom se o cão passeasse sozinho alguma vez, ou com o galho de baunilha, sem o homem. Talvez isso ocorra algum dia. Eu vou continuar morando aqui de qualquer jeito, e a rua continuará aqui também, onde ela está, e o verão ainda vai demorar para acabar. Eu tenho tempo e espero.
O que mais gosto é sentar-me diante da minha mesinha branca de fórmica: um metro de comprimento, um metro de largura; um quadrado. Quando o relógio da torre bate três horas, o sol entra no quarto. No chão, a sombra da minha mesinha parece a mala de gramofone. Ele toca para mim a música da Dafne, ou a “Paloma”, dançada em pares. Pego a almofada do sofá e danço em minha tarde morosa.
Tenho outros parceiros também.
Já dancei com o bule de chá.
Com o açucareiro.
Com a caixa de biscoitos.
Com o telefone.
Com o despertador.
Com o cinzeiro.
Com a chave de casa.
Meu menor parceiro é um botão arrancado do sobretudo.
Não é verdade.
Uma vez, havia debaixo da mesinha branca de fórmica uma passa poeirenta. Dancei com ela. Então a comi. Então surgiu uma espécie de distância em mim.
Epílogo
No verão de 1944, quando o Exército Vermelho já havia avançado bastante na Romênia, o ditador fascista Antonescu foi detido e executado. A Romênia se rendeu e surpreendentemente declarou guerra à Alemanha nazista, até então aliada. Em janeiro de 1945, o general soviético Vinogradov exigiu do governo romeno, em nome de Stálin, que todos os alemães residentes na Romênia contribuíssem para a “Reconstrução” da União Soviética destruída durante a guerra. Todos os homens e mulheres com idade entre dezessete e quarenta e cinco anos foram deportados para realizar trabalhos forçados em campos de trabalho soviéticos.
Também minha mãe passou cinco anos num campo de trabalho.
Como lembrava o passado fascista da Romênia, o tema deportação tornou-se um tabu. Somente dentro da família e com pessoas de muita confiança, que haviam sido elas mesmas deportadas, é que se falava sobre os anos no campo de trabalho. E mesmo assim, somente através de alusões veladas. Essas conversas furtivas acompanharam toda a minha infância. Eu não entendia o seu conteúdo, mas percebia o medo.
Em 2001 comecei a registrar por escrito as conversas com pessoas do meu vilarejo que haviam sido deportadas. Eu sabia que Oskar Pastior também fora deportado e contei-lhe que queria escrever sobre isso. Ele quis ajudar-me com suas lembranças. Nós nos reuníamos com regularidade: ele falava e eu anotava. E logo surgiu o desejo de escrever o livro juntos.
Quando, em 2006, Oskar Pastior morreu repentinamente, eu tinha quatro cadernos repletos de anotações manuscritas, além de esboços para alguns capítulos. Depois de sua morte, fiquei como paralisada. A proximidade pessoal que as anotações propiciavam fez com que a perda se tornasse ainda maior.
Somente depois de um ano, consegui obrigar-me a me despedir do “nós” e escrever este romance sozinha. Porém, sem os detalhes de Oskar Pastior sobre o cotidiano no campo de trabalho, eu não teria conseguido fazê-lo.
Herta Müller
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