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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TUDO POR AMOR / Jodi Picolt
TUDO POR AMOR / Jodi Picolt

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

No seu dia-a-dia de trabalho, Nina Frost, a ambiciosa delegada adjunta do Ministério Público, acusa pedófilos e trabalha afincadamente para garantir que um sistema legal com demasiadas lacunas mantenha estes criminosos atrás das grades. Mas quando o seu próprio filho de cinco anos, Nathaniel, fica traumatizado devido a abuso sexual, Nina e o seu marido, Caleb, um pedreiro reservado e metódico, ficam destroçados, dilacerados por um sistema legal ineficiente que Nina conhece demasiado bem. Num piscar de olhos, as verdades absolutas e as convicções de Nina desmoronam-se e esta lança-se num plano para fazer justiça pelas próprias mãos - independentemente das consequências, qualquer que seja o sacrifício.
Quando o monstro entrou finalmente pela porta, tinha uma máscara.
Ela olhou para ele uma e outra vez, estarrecida por mais ninguém ser capaz de ver para além do disfarce. Era o vizinho do lado, a regar a sus for sylbia. Era o estranho que sorria no elevador. Era o homem gentil que deu a mão a uma criança pequena para a ajudar a atravessar a rua. «Não vêem?», apetecia-lhe gritar. «Não percebem?»

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Debaixo dela, a cadeira era implacável. As suas mãos estavam cruzadas como as de uma menina, tinha os ombros direitos; mas o coração estava fora do ritmo, como uma alforreca a contorcer-se no seu peito. Quando é que respirar se tornara algo que tinha de conscientemente lembrar-se de fazer?
Estava rodeado por oficiais de diligências que o levaram, passando pela mesa do promotor de justiça, em frente ao juiz, em direcção ao local onde estava sentado o advogado de defesa. Do canto chegou o ruído sibilante de uma câmara de televisão. Era uma cena familiar, mas apercebeu-se de que nunca a tinha visto daquele ângulo. «Se mudarmos o nosso ponto de vista, a perspectiva será completamente diferente».
A verdade estava sentada ao seu colo, pesada como uma criança. Ia fazê-lo.
Essa ideia, que devia tê-la impedido de continuar imediatamente, fluía pelos seus membros como brandy. Pela primeira vez em semanas, não se sentia como uma sonâmbula a percorrer o fundo do oceano, de pulmões ardentes, sustendo o ar que tinha inspirado antes de submergir - uma inspiração que teria sido mais profunda, mais deliberada, se soubesse o que se seguiria. Neste lugar horrível, observando aquele homem horrível, subitamente voltou a sentir-se normal. E com esta sensação surgiram os pensamentos mais deliciosamente normais: que não tinha limpo a mesa depois do pequeno-almoço; que o livro da biblioteca que tinha desaparecido estava debaixo do cesto da roupa suja, que já devia ter mudado o óleo do carro há dois mil e quatrocentos quilómetros. Que nos dois segundos seguintes, os oficiais de diligências que o acompanhavam afastar-se-iam para lhe darem privacidade para falar com o seu advogado.
Dentro da mala, os seus dedos deslizaram sobre a macia capa de couro da agenda, os óculos escuros, um batom, o núcleo felpudo de um rebuçado Life Saver, fora da sua embalagem. Encontrou o que procurava e agarrou-o, surpreendida por verificar que se moldava com o mesmo conforto familiar da mão do seu marido.
Um passo, dois, três, foi o suficiente para se aproximar do monstro o suficiente para sentir o cheiro do medo dele, para ver a orla preta do casaco contrastando com o colarinho branco da camisa. Branco e preto, era a isso que tudo se resumia.
Por um segundo interrogou-se por que razão ninguém a tinha detido. Porque é que ninguém se tinha apercebido de que este momento era inevitável; que simplesmente entraria ali e fá-lo-ia. Mesmo agora, as pessoas que a conheciam melhor não a tinham agarrado quando se levantou do seu lugar.
Foi quando se apercebeu de que estava disfarçada, exactamente como o monstro. Era tão engenhoso, tão autêntico-, ninguém sabia realmente em que se tinha transformado. Mas agora conseguia sentir que se desfazia em bocados. «Deixem que toda a gente veja», pensou, enquanto a máscara caía. E quando encostou a arma à cabeça do arguido, quando o alvejou quatro vezes numa sucessão rápida, sabia que naquele momento não se teria reconhecido a si própria.
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Quando nos atingem sem razão, devemos ripostar com muita força; estou certa disso - com tanta força para ensinar à pessoa que nos atingiu a nunca mais o fazer.
Charlotte Brontè, Jane Eyre
Estamos no bosque, só os dois. Tenho os meus melhores ténis calçados, aqueles com atacadores arco-íris e a parte atrás que o Mason mordeu quando era apenas um cachorro. Os passos dela são maiores do que os meus, mas é um jogo - tento saltar para o buraco que os sapatos dela deixam. Sou uma rã; sou um canguru; sou mágico.
Quando ando, é parecido com o som dos cereais a serem servidos para o pequeno-almoço.
Crunch.
- Doem-me as pernas - digo-lhe.
- Só falta mais um bocadinho.
- Não quero andar - digo, e sento-me mesmo ali, porque se não me mexer ela também não o fará.
Ela inclina-se para baixo e aponta, mas as árvores são como as pernas de pessoas altas que me tapam a vista.
- Já estás a ver? - pergunta-me.
Abano a cabeça. Mesmo que conseguisse ver, ter-lhe-ia dito que não conseguia.
Ela levanta-me e põe-me às cavalitas.
- O charco - diz. - Consegues ver o charco? Daqui de cima, consigo. É um pedaço de céu, no chão. Quando o Céu se rompe, quem é que o arranja?
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UM
Sempre fui melhor nas alegações finais.
Sem ter pensado muito antes, consigo entrar numa sala de audiências, encarar os jurados e fazer um discurso que os deixe ávidos por justiça. Assuntos por resolver deixam-me louca; tenho de deixar tudo resolvido ao ponto de poder deitá-los para trás das costas e avançar para o caso seguinte. O meu chefe está sempre a dizer que prefere contratar promotores de justiça que foram empregados e empregadas de mesa nas suas vidas anteriores - isto é, que estejam habituados a equilibrar várias coisas. Mas eu trabalhei no departamento de embrulhos de oferta do Filene's para poder frequentar a faculdade de direito, e isso nota-se.
Hoje de manhã, tenho de fazer as alegações finais num caso de violação e tenho uma audiência de competência. À tarde, tenho uma reunião com um cientista perito em ADN, por causa de uma mancha de sangue no interior de um carro acidentado que revelou conter massa encefálica que não pertencia nem ao condutor embriagado acusado de homicídio por negligência, nem à passageira que morreu no acidente. Estou a pensar em tudo isto, quando Caleb espreita pela porta da casa de banho. O reflexo do seu rosto ergue-se como uma lua no espelho.
- Como está o Nathaniel?
Fecho a água e enrolo-me numa toalha.
- Está a dormir - digo.
Caleb esteve lá fora na sua barraca, a carregar a carrinha. Ele trabalha a pedra - faz caminhos de tijolo, lareiras, degraus de granito, paredes de pedra. Cheira a Inverno, um aroma que chega ao Maine ao mesmo tempo que se colhem as maçãs da região. A sua camisa de flanela está manchada pela poeira que cobre os sacos de cimento.
- Como está a febre? - pergunta Caleb, lavando as mãos no lava-loiça.
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- Ele está bem - respondo, embora não tenha ido verificar como estava o meu filho; nem sequer o vi esta manhã.
Tenho esperança de que se desejar bastante, isto se torne realidade. Nathaniel não estava assim tão doente ontem à noite, e não tinha mais de 37,5 de temperatura. Não parecia estar muito bem, mas isso por si não me impediria de o mandar para a escola - sobretudo num dia em que tenho de comparecer no tribunal. Toda a mãe trabalhadora já se encontrou assim entre Sila e Caribdis. Não consigo dedicar-me a cem por cento à família por causa do trabalho, não consigo dedicar-me a cem por cento ao trabalho por causa da família; e vivo temendo os momentos, como estes, em que os dois entram em conflito.
- Ficava em casa, mas não posso faltar a esta reunião. O Fred vai trazer os clientes para rever os projectos, e devemos todos fazer uma boa exposição.
Caleb olha para o relógio e resmunga.
- Na realidade, já estava atrasado há dez minutos - o dia dele começa cedo e acaba cedo, como o da maioria dos subempreiteiros. Isso significa que eu carrego o fardo de levar o Nathaniel à escola, enquanto Caleb está encarregado de ir buscá-lo. Anda à minha volta, agarrando na carteira e no boné de basebol.
- Não vais mandá-lo para a escola se estiver doente...
- Claro que não - digo, mas o calor sobe por baixo da gola da minha blusa. Dois comprimidos de Tylenol vão dar-me algum tempo; conseguia terminar o caso de violação antes de receber uma chamada da menina Lydia para ir buscar o meu filho. Penso nisto, e no segundo a seguir, odeio-me por isso.
- Nina - Caleb coloca as suas grandes mãos nos meus ombros. Apaixonei-me por Caleb por causa daquelas mãos, que são capazes de me tocar como se fosse uma bolha de sabão destinada a rebentar e no entanto são suficientemente poderosas para me segurar quando estou em risco de ficar desfeita.
Faço deslizar as minhas próprias mãos para cobrir as de Caleb.
- Ele vai ficar bem - insisto. Mostro-lhe o meu sorriso de promotora de justiça, arquitectado para convencer. - Vamos todos ficar bem.
Caleb demora algum tempo para acreditar nisto. É um homem inteligente, mas é metódico e cuidadoso. Tem de terminar um projecto com uma delicadeza refinada antes de avançar para o projecto seguinte, e toma decisões da mesma forma. Passei sete anos na esperança de que o facto de me deitar todas as noites ao seu lado fizesse desaparecer parte da sua ponderação, como se uma vida em conjunto pudesse suavizar ambos os nossos extremos.
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- vou buscar o Nathaniel às quatro e meia - diz Caleb, uma deixa que, na linguagem dos pais, significa o que anteriormente «amo-te» significava.
Sinto os seus lábios tocarem ao de leve na minha cabeça enquanto tento apertar o fecho nas costas da minha blusa.
- Chego a casa às seis - «também te amo».
Dirige-se para a porta e, quando olho para cima, fico impressionada por pedaços dele - a largura dos ombros, a inclinação do sorriso, a forma como os dedos dos pés se reviram dentro das grandes botas de trabalho. Caleb vê que estou a observar.
- Nina - diz ele, e aquele sorriso inclina-se ainda mais. - Também estás atrasada.
O relógio em cima da mesa-de-cabeceira marca 7h41. Tenho dezanove minutos para acordar e dar comida ao meu filho, enfiá-lo dentro das suas roupas, colocá-lo na sua cadeira no automóvel e percorrer o caminho que atravessa Biddeford até à escola, deixando tempo suficiente para chegar ao tribunal superior em Alfred às 9h00.
O meu filho tem um sono agitado, como um ciclone no meio dos lençóis. Os seus cabelos louros estão demasiado compridos; já precisava de um corte de cabelo há uma semana. Sento-me na beira da cama. O que são mais dois segundos quando temos oportunidade de assistir a um milagre?
Não devia ter engravidado há cinco anos. Não devia ter engravidado nunca, graças a um carniceiro de um obstetra que me retirou um quisto do ovário aos vinte e dois anos. Quando me senti debilitada e estive a vomitar durante semanas, fui consultar um médico interno, certa de que estava a morrer devido a algum parasita terrível, ou que o meu corpo estava a rejeitar os próprios órgãos. Mas a análise ao sangue dizia que não havia nada de errado. Pelo contrário, havia algo tão impossivelmente certo que, durante os meses seguintes, mantive os resultados colados no interior do armário dos medicamentos na casa de banho: o ónus da prova.
Nathaniel parece mais novo quando está a dormir, com uma mão enrolada debaixo da face e a outra a agarrar firmemente uma rã de peluche. Há noites em que fico a observá-lo, maravilhada por há cinco anos não conhecer esta pessoa que me transformou. Há cinco anos, não saberia dizer que o branco dos olhos de uma criança é mais claro do que a neve acabada de cair; que o pescoço de um rapazinho é a curva mais doce do seu corpo. Nunca teria pensado em atar um pano da loiça como se fosse um lenço de pirata e perseguir o cão para achar o seu tesouro enterrado, nem em fazer experiências num
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domingo chuvoso para ver quantos segundos são necessários para que um marshmallow expluda dentro do microondas. O rosto que eu mostro ao mundo não é o mesmo que guardo para Nathaniel: após anos a ver o mundo em absolutos, ele ensinou-me a identificar todos os tons da realidade.
Podia mentir e dizer que nunca teria ido para a faculdade de direito nem me teria tornado promotora de justiça se pensasse ter filhos. É uma profissão exigente, que se leva para casa e em que não se podem encaixar jogos de futebol nem espectáculos de Natal do jardim-de-infância. A verdade é que sempre adorei o que faço; é assim que me defino: «Olá, sou Nina Frost, sou delegada adjunta do Ministério Público». Mas também sou mãe de Nathaniel, e não trocaria essa designação por nada no mundo. Não há quota maioritária; estou dividida ao meio, cinquenta-cinquenta. No entanto, ao contrário da maioria dos pais, que ficam acordados à noite preocupados com os horrores que podem acontecer a uma criança, eu tenho oportunidade de lidar com eles. Sou um cavaleiro branco, um dos cinquenta advogados responsáveis por limpar o estado do Maine antes que Nathaniel siga o seu caminho através do mesmo.
Agora, toco-lhe na testa -fresca - e sorrio. com um dedo percorro a ligeira curva da sua face, o contorno dos lábios. Adormecido, afasta-me a mão, enfiando os punhos debaixo dos cobertores.
- Então - sussurro-lhe ao ouvido. - Precisamos de ir - visto que não se mexe, puxo os cobertores para trás e o odor pungente a amoníaco da urina emana do colchão.
«Hoje não». Mas sorrio, tal como o médico disse para fazer quando acontecessem estes acidentes a Nathaniel, o meu filho de cinco anos que já vai à casa de banho há três. Quando abre os olhos - tem os olhos de Caleb, cintilantes e castanhos, e tão envolventes que as pessoas costumavam abordar-me na rua para brincar com o meu bebé no seu carrinho - apercebo-me daquele momento de medo em que pensa que vai ser castigado.
- Nathaniel - suspiro - estas coisas acontecem - ajudo-o a sair da cama e começo a despir o pijama molhado, mas ele começa a debater-se vigorosamente.
Acerta-me na têmpora com um murro furioso, fazendo-me recuar.
- Por amor de Deus, Nathaniel! - digo rispidamente. Mas ele não tem culpa de que eu esteja atrasada; não tem culpa de ter molhado a cama. Respiro fundo e dispo a roupa, fazendo-a passar pelos tornozelos e pelos pés. - Vamos só limpar-te, está bem? - digo mais suavemente, e ele coloca a sua mão na minha, resignado.
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O meu filho costuma ser invulgarmente radioso. Descobre música nos sons do tráfego, fala a linguagem dos sapos. Nunca caminha quando pode saltitar; vê o mundo com a reverência de um poeta. Portanto este rapaz, que me olha desconfiadamente por cima da borda da banheira, não é o rapaz que eu conheço.
- Não estou zangada contigo - Nathaniel baixa a cabeça, envergonhado. - Os acidentes acontecem a qualquer um. Lembras-te como atropelei a tua bicicleta no ano passado, com o carro? Ficaste aborrecido, mas sabias que não tinha feito de propósito. Não foi? - era como se estivesse a falar com um dos blocos de granito de Caleb. Pronto, não fales comigo - mas nem isto resulta; não consigo provocar-lhe uma reacção. - Ah, já sei o que vai fazer com que te sintas melhor... podes vestir a tua camisola do Disney World. Já são dois dias seguidos.
Se pudesse, Nathaniel vestia-a todos os dias. No quarto dele, revirei o conteúdo de cada gaveta e encontrei a camisola enrodilhada no monte de lençóis sujos. Vislumbrando-a, retira-a de lá e começa a enfiá-la pela cabeça.
- Espera aí - digo, tirando-lha. - Sabes que te prometi, mas está cheia de chichi, Nathaniel. Não podes ir para a escola com isto vestido. Primeiro tem de ser lavada - o lábio inferior de Nathaniel começa a tremer, e de repente eu, a mediadora experimentada, sou obrigada a fazer um acordo extrajudicial. - Querido, juro, vou lavá-la hoje à noite. Podes usá-la o resto da semana. E durante a próxima semana também. Mas agora, preciso da tua ajuda. É preciso comer depressa, para podermos sair a horas. Está bem?
Passados dez minutos, chegámos a um acordo, graças à minha total capitulação. Nathaniel tem a maldita camisola do Disney World vestida, que foi lavada à mão e enfiada à pressa na máquina de secar e borrifada com um desodorizante para animais de estimação. Talvez a menina Lydia tenha alergias; talvez ninguém repare na nódoa debaixo do sorriso rasgado do Mickey. Mostro duas caixas de cereais.
- Qual delas? - Nathaniel encolhe os ombros, e naquele momento fico convencida de que o seu silêncio tem menos a ver com a vergonha e mais com querer ver-me irritada. Por acaso, está a resultar.
Sento-o em frente da bancada com uma taça de Cheerios Mel e Nozes enquanto lhe arranjo o almoço.
- Massa chinesa - anuncio com estilo, tentando arrancá-lo à sua melancolia. - E... ooh! Uma perna de frango do jantar de ontem! Três Oreos... e talos de aipo, para a menina Lydia não gritar outra vez com a Mamã por causa da pirâmide dos alimentos. Pronto - fecho a bolsa térmica e coloco-a dentro da mochila de Nathaniel, agarro numa
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banana para o meu pequeno-almoço e depois olho para o relógio no microondas. Dou mais dois comprimidos de Tylenol ao Nathaniel para levar; não lhe vai fazer mal só desta vez, e Caleb nunca saberá.
- Pronto - digo. - Temos de ir.
Nathaniel calça os ténis devagar e estende-me os seus pequenos pés para que lhe ate os atacadores. Ele consegue puxar o fecho do casaco de malha sozinho; pôr a mochila às costas. É enorme naqueles ombros estreitos; às vezes de trás faz-me lembrar Atlas, carregando o peso do mundo.
Enquanto conduzo o carro, coloco a cassete favorita de Nathaniel - o Wbite Álbum dos Beatles, imagine-se - mas nem mesmo Rocky Racoon consegue tirá-lo deste estado de espírito. com certeza acordou no lado errado da cama - o lado molhado, penso eu, suspirando. Uma voz débil dentro de mim diz que devia estar grata porque dentro de cerca de quinze minutos o problema será de outra pessoa.
Pelo espelho retrovisor, observo Nathaniel a brincar com a presilha da mochila a balançar, dobrando-a ao meio e em três. Chegamos ao sinal de stop no sopé da colina.
- Nathaniel - sussurro, num tom suficientemente alto para que se oiça por cima do ruído do motor. Quando olha para cima, entorto os olhos e deito a língua de fora.
Devagar, lento como o pai, sorri para mim.
-i No tablier, vejo que são 7h56. Estamos quatro minutos adiantados. i Estamos ainda melhor do que pensei.
Na perspectiva de Caleb Frost, constrói-se uma parede para manter algo indesejável do lado de fora... ou para guardar algo precioso do lado de dentro. Pensa nisto muitas vezes enquanto está a construir, encaixando o granito cintilante e o calcário clivoso em nichos, num quebra-cabeças tridimensional que passa pela beira de um relvado, compacto e direito. Agrada-lhe pensar nas famílias dentro destas muralhas que constrói: isoladas, em segurança, protegidas. É claro que isto é ridículo. Os seus muros de pedra dão pelo joelho, e não são dignos de um castelo. Têm grandes aberturas para as entradas, os caminhos e as latadas. E no entanto, cada vez que passa por uma propriedade que transformou com as suas próprias mãos fortes, imagina os pais sentados ao lado dos filhos a jantar, com a mesa envolta em harmonia como um mosquiteiro, como se as fundações concretas pudessem estabelecer um padrão para as emocionais.
Está ao pé da propriedade dos Warren com Fred, o empreiteiro deles, enquanto todos esperam que Caleb faça a sua apresentação. Agora, a terra está coberta de bétulas e áceres, alguns marcados para
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mostrar a potencial localização da casa e do sistema de esgotos. O Sr. e a Sr.a Warren estão tão perto um do outro que se tocam. Ela está grávida; a barriga roça na anca do marido.
- Bem - começa Caleb. A sua função é convencer estas pessoas de que precisam de um muro de pedra em volta da sua propriedade, em vez da vedação de um metro e oitenta que estão a pensar colocar. Mas as palavras não são o seu forte; isso é para a Nina. Ao seu lado, Fred pigarreia, incitando-o.
Caleb não consegue convencer este casal com palavras; consegue apenas ver o que o futuro lhes reserva: uma casa branca ao estilo colonial, com um alpendre fechado. Um Labrador, saltando para apanhar borboletas-monarca com a boca. Uma fileira de bolbos que serão túlipas no ano seguinte. Uma menina a andar de triciclo, com fitas a esvoaçar presas no guiador, ao longo do caminho, até chegar à barreira que Caleb construiu - o limite, segundo lhe disseram, da sua segurança.
Imagina-se agachado neste local, criando algo sólido num espaço onde antes não existia nada. Imagina esta família, nessa altura seriam três, aconchegada dentro destes muros.
- Sr Warren - pergunta Caleb com um sorriso, ocorrendo-lhe por fim as palavras certas. - Quando nasce a criança?
Num dos cantos do recreio, a Lettie Wiggs está a chorar. Está sempre a fazer isso, finge que o Danny lhe bateu quando na verdade está apenas a ver se consegue fazer a menina Lydia deixar o que quer que seja que estivesse a fazer para vir a correr para junto dela. O Danny também sabe disso, e a menina Lydia, e toda a gente excepto a Lettie, que chora e chora como se isso lhe valesse de alguma coisa.
Passa por ela. Passa também pelo Danny, que deixou de ser o Danny para ser um pirata, agarrado a um barril depois de um naufrágio.
- Hei, Nathaniel - diz a Brianna. - Olha para isto.
Está agachada atrás da barraca onde estão guardadas as bolas de futebol, suaves como melões maduros, e o tractor de brincar para remover terras onde só podemos andar durante cinco minutos, porque depois é sempre a vez de outra pessoa. Uma aranha prateada teceu uma teia desde a madeira até à vedação por trás dela, em ziguezague como um atacador de sapato. Num sítio, um nó do tamanho de uma moeda de dez cêntimos está enrolado em seda.
- É uma mosca - Cole empurra os óculos para cima no nariz. A aranha enrolou-a para o jantar.
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- Isso é tão nojento - diz a Brianna, mas aproxima-se mais. Nathaniel está de mãos nos bolsos. Pensa na mosca, na forma
como se dirigiu para a teia e ficou presa, como daquela vex em que Nathaniel se dirigiu para um monte de neve e perdeu uma bota na lama que estava no fundo. Interroga-se se a mosca estaria tão assustada como ele tinha ficado por entrar em casa descalço depois de ter andado na neve, com medo do que a mãe lhe diria. Provavelmente a mosca achou que devia descansar. Provavelmente parou por um segundo para ver como o sol parecia um arco-íris através daquela teia, e a aranha agarrou-a antes que pudesse escapar.
- Mas ela come a cabeça primeiro - diz o Cole.
Nathaniel imagina as asas da mosca, coladas às costas à medida que gira e é firmemente enrolada. Levanta a mão e passa-a através da teia, rasgando-a; vai-se embora.
A Brianna está furiosa.
- Então! - grita. E depois: - Menina Lydia!
Mas Nathaniel não presta atenção. Olha para cima, observando a trave superior dos baloiços e os ferros de trepar com o escorrega tão brilhante como a lâmina de uma faca. Os ferros de trepar são alguns centímetros mais altos. Colocando as mãos nas traves da escada de madeira, começa a subir.
A menina Lydia não o vê. Os ténis dele fazem cair uma chuva de pedrinhas minúsculas e terra, mas ele consegue equilibrar-se. Cá em cima, até é mais alto do que o pai. Pensa que talvez no meio da nuvem atrás dele esteja um anjo profundamente adormecido.
Nathaniel fecha os olhos e salta, de braços colados ao corpo como aquela mosca. Não tenta amortecer a queda, simplesmente embate com força, porque isso dói menos do que tudo o resto.
- Os melhores croissants - diz Peter Eberhardt, como se estivéssemos a meio de uma conversa, embora tenha acabado de chegar junto à máquina de café ao seu lado.
- No Left Bank - respondo. Era como se estivéssemos a meio de uma conversa, pensando bem. Só que esta conversa durava há anos.
- Um pouco mais perto de casa? Desta vez tenho de pensar.
- Mamie's - é um café em Springvale. - O pior corte de cabelo? Peter ri.
- O meu, no anuário da escola secundária.
- Estava a pensar num verbo, e não num substantivo.
- Então está bem. No sítio onde a Angeline faz a permanente, seja ele qual for - aproxima a cafeteira e enche-me a chávena, mas
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estou a rir tanto que entorno algum no chão. Angeline é a secretária do tribunal de comarca do Sul, e o seu penteado faz lembrar algo entre um rato almiscarado enrolado em cima da cabeça e um prato de massas amanteigadas em forma de laço.
Este é o nosso jogo, meu e do Peter. Começou quando éramos ambos delegados adjuntos do Ministério Público na comarca oeste, dividindo o nosso tempo entre Springvale e York. No Maine, os arguidos podem declarar-se inocentes ou culpados em tribunal, ou requerer uma reunião com o promotor de justiça. Peter e eu sentávamo-nos em frente um do outro numa secretária, trocando queixas em tribunal como ases num jogo de póquer. «Ficas com esta multa de trânsito, estou farta delas.» «Está bem, mas isso significa que tratas desta acusação de invasão de propriedade.» Agora que estamos ambos a tratar de crimes graves no tribunal superior vejo Peter muito menos vezes, mas ele ainda é a pessoa mais chegada a mim no escritório.
- A melhor citação do dia?
São apenas dez e meia; o melhor ainda pode estar para vir. Mas eu faço a minha cara de promotora de justiça, olho para Peter com ar solene e repito-lhe imediatamente o meu discurso de encerramento do caso de violação.
- Na realidade, senhoras e senhores, existe apenas um acto mais repreensível criminalmente. que infringe mais a lei, do que o que este homem cometeu... que seria deixá-lo ir em liberdade para voltar a fazê-lo.
Peter assobia por entre o espaço nos seus dentes da frente.
- Ooh, és a rainha da tragédia.
- É para isso que me pagam - deito natas no meu café, vejo-as coagular como sangue à superfície. Faz-me lembrar o caso da massa encefálica. - Como é que vai o julgamento do caso de violência doméstica?
- Não me interpretes mal, mas estou tão tremendamente farto de vítimas. São tão...
- Carentes? - digo secamente.
- Sim! - suspira Peter. Não seria bom tratar de um caso sem ter de lidar com todo o seu passado?
- Ah, mas então seria melhor seres um advogado de defesa - bebo um gole de café, deixo a chávena em cima do balcão, três quartos cheia. - Vês, quanto a mim, preferia tratar de um caso sem eles.
Peter ri.
- Pobre Nina. A tua audiência de competência é a seguir, não é? - E então?
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- Então, sempre que tens de enfrentar o Fisher Carrington ficas... bom, como eu naquele anuário da escola secundária. Na iminência de te arrancarem o escalpe.
Na qualidade de promotores de justiça, mantemos uma relação ténue com os advogados de defesa locais. Em relação à maior parte deles guardamos um ressentimento respeitoso; afinal de contas, estão apenas a cumprir as suas funções. Mas Carrington é uma espécie à parte. Educado em Harvard, de cabelos grisalhos, majestoso - é o pai de todos; é o distinto cavalheiro mais idoso que nos dá conselhos para seguir. É o tipo de homem em que os jurados querem acreditar, por princípio. Já nos aconteceu a todos numa altura ou noutra: apresentamos uma montanha de provas contra os seus olhos azuis à Paul Newman e o seu sorriso experiente, e o arguido sai em liberdade.
Como é óbvio, todos nós detestamos o Fisher Carrington.
Ter de enfrentá-lo numa audiência de competência é como chegar ao Inferno e descobrir que a única comida disponível é fígado cru - é o pior que poderia acontecer.
Em termos legais, a competência define-se como a capacidade de comunicar de forma que o júri entenda. Por exemplo, um cão pode ser capaz de farejar droga, mas não é capaz de testemunhar. Em relação às crianças envolvidas em casos de abuso sexual - casos em que o agressor não confessou - a única maneira de se obter uma condenação é conseguir que a criança preste testemunho. Mas antes que isso aconteça, o juiz tem de determinar se a testemunha é capaz de comunicar, de saber qual é a diferença entre a verdade e a mentira... e de compreender que em tribunal tem de se dizer a verdade. Quer dizer que quando tenho um julgamento de um caso de abuso sexual envolvendo uma criança, costumo requerer uma audiência de competência.
Portanto: imaginemos que temos cinco anos e coragem suficiente para confessar à nossa mãe que o nosso pai nos viola todas as noites, embora ele tenha dito que nos mata se contarmos a alguém. Agora imaginemos, como exercício, que temos de estar num tribunal tão grande como um estádio de futebol americano. Temos de responder às perguntas que faz o promotor de justiça. E em seguida temos de responder às perguntas com que um desconhecido nos bombardeia, um advogado que nos confunde de tal forma que começamos a chorar, pedindo-lhe que pare. E visto que todos os arguidos têm o direito de ficar cara a cara com o seu acusador, temos de fazer tudo isto enquanto o nosso pai olha para nós a menos de dois metros de distância.
Podem acontecer duas coisas. Ou nos declaram não competentes para comparecer ao julgamento, o que significa que o juiz encerra
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o caso e não teremos de comparecer novamente em tribunal... embora durante semanas tenhamos pesadelos com aquele advogado a fazer-nos perguntas horríveis e com a expressão estampada no rosto do nosso pai, e o mais provável é continuarem os abusos. Ou somos declarados competentes, e temos de repetir toda esta cena outra vez... desta vez, com dezenas de pessoas a assistir.
Posso ser promotora de justiça, mas sou também a primeira a dizer que se não formos capazes de comunicar de uma certa maneira, não conseguimos obter justiça no sistema legal americano. Já levei centenas de casos de abuso sexual a tribunal, já vi centenas de crianças no banco das testemunhas. Pertenço ao grupo de advogados que puxa por elas, até que relutantemente abandonem o mundo de fantasia que idealizaram para bloquear a verdade. Tudo isto, em nome de uma condenação. Mas não me convencem de que uma audiência de competência em si não traumatiza uma criança. Não me convencem de que mesmo que eu saia a ganhar dessa audiência, de alguma forma, a criança não sai.
Para advogado de defesa, Fisher Carrington é bastante respeitável. Não faz as crianças ficarem apavoradas nas suas cadeiras altas no banco das testemunhas; não tenta desorientá-las. Age como um avô que lhes dará chupa-chupas se disserem a verdade. Em todos os casos que ambos levámos a tribunal, excepto num, conseguiu que a criança fosse declarada não competente para comparecer em tribunal, e o agressor saiu em liberdade. No outro caso, fiz com que o seu cliente fosse condenado.
O arguido ficou três anos na prisão.
A vítima ficou sete anos a fazer terapia.
Olho para Peter.
- A melhor das hipóteses - desafio-o.
- Sim - digo suavemente. - É aí que quero chegar. .
Quando Rachel tinha cinco anos, os pais divorciaram-se - o tipo de divórcio que envolve insultos amargos, contas bancárias secretas e latas de tinta entornadas à porta de casa à meia-noite. Passada uma semana, Rachel contou à mãe que o pai costumava introduzir o dedo na sua vagina.
Contou-me que numa das vezes, vestia uma camisa de noite da Pequena Sereia e estava a comer cereais Froot Loops sentada à mesa da cozinha. Da segunda vez, vestia uma camisa de noite cor-de-rosa da Cinderela e estava a ver um vídeo do Franklin no quarto dos pais, no Verão em que tinha três anos. Lembra-se de pedir o vídeo do
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Franklin emprestado à sua cunhada. Nessa altura, ela e o marido ?ainda viviam juntos. Nessa altura, houve ocasiões em que deixou o marido sozinho com a filha.
Há muita gente que se interroga como diabo uma menina de cinco anos consegue lembrar-se do que lhe aconteceu quando tinha três. Meu Deus, o Nathaniel nem sequer consegue dizer-me o que fez ontem. Mas, pensando melhor, essas pessoas também não ouviram a Rachel contar a mesma história vezes sem conta. Não conversaram com psiquiatras, que afirmam que um acontecimento traumático pode ficar cravado como um espinho na garganta de uma criança. Não vêem, como eu vejo, que desde que o pai saiu de casa, a Rachel desabrochou. E mesmo não tendo nada disso em conta - como é que eu posso ignorar a palavra de qualquer criança? E se aquela que resolvo desconsiderar for a que foi verdadeiramente magoada?
Hoje, Rachel está sentada na cadeira giratória do meu escritório, rodopiando em círculos. As suas tranças chegam-lhe aos ombros, e tem as pernas magras como paus de fósforo. Este não é o local ideal para uma entrevista tranquila, mas pensando bem, o meu escritório nunca é. Há polícias a entrar e a sair e a assistente que partilho com os outros promotores de justiça escolhe este momento, como é óbvio, para colocar um ficheiro em cima da minha secretária.
- Vai demorar muito? - pergunta Míriam, sem nunca desviar os olhos da filha.
- Espero que não - digo-lhe, e em seguida cumprimento a avó de Rachel, que estará na galeria para dar apoio emocional durante a audiência. Por ser ela própria uma testemunha, Míriam não poderá lá estar. Mais um absurdo: a criança no banco das testemunhas, na maioria dos casos, nem sequer tem a segurança de ter a mãe perto.
- Isto será mesmo necessário? - pergunta Miriam pela centésima vez.
- É - digo-o laconicamente, olhando-a nos olhos. - O seu ex-marido rejeitou a sua oferta de um acordo extrajudicial. Isso quer dizer que o testemunho da Rachel é a única coisa de que disponho para provar que isto aconteceu - ajoelhando-me em frente a Rachel, faço parar a cadeira giratória. - Sabes uma coisa? - confesso. - Às vezes, quando a porta está fechada, também ando à roda.
Rachel põe os braços em volta de um boneco de peluche.
- Ficas tonta?
- Não. Finjo que estou a voar.
A porta abre-se. Patrick, o meu velho amigo, espreita cá para dentro. Veste a farda completa de polícia, em vez das suas habituais roupas de detective.
- Olá, Nina; já soubeste que os correios tiveram de recolher a série de selos de Advogados de Defesa Famosos? As pessoas não sabiam em que lado haviam de cuspir.
- Detective Ducharme - digo propositadamente. - Agora estou um pouco ocupada.
Ele cora; faz realçar-lhe os olhos. Quando éramos crianças, costumava arreliá-lo por causa deles. Uma vez convenci-o, quando éramos mais ou menos da idade de Rachel, de que eram azuis porque não tinha cérebro dentro do crânio, apenas um espaço vazio e nuvens.
- Desculpa... não me apercebi - cativou todas as mulheres que estavam na sala de um momento para o outro; se quisesse, podia sugerir que se pusessem aos saltos e provavelmente começariam imediatamente a fazer ginástica. O que faz com que Patrick seja ele próprio é o facto de não querer; nunca quis.
- Dr.a Frost - diz num tom formal -, a nossa reunião desta tarde mantém-se?
A nossa reunião é um almoço semanal que se realiza há muito tempo num restaurante modesto em Sanford.
- Mantém-se - estou morta por saber porque é que o Patrick está vestido a rigor; o que o terá trazido ao tribunal superior; como detective em Biddeford, o seu local habitual é o tribunal de comarca. Mas tudo isto terá de esperar. Ouço a porta fechar-se atrás de Patrick e volto-me para Rachel. - Vejo que hoje trazes um amigo. Sabes, acho que és a primeira criança a trazer um hipopótamo para mostrar ao juiz McAvoy.
- Chama-se Louisa.
- Gosto do nome. Também gosto do teu penteado.
- Hoje de manhã comi panquecas - diz Rachel.
Isso faz Míriam merecer um aceno de aprovação; é crucial que Rachel tenha comido um bom pequeno-almoço.
- São dez horas. É melhor irmos.
Miriam tem lágrimas nos olhos quando se dobra para ficar ao nível de Rachel.
- É agora que a Mamã tem de ficar cá fora à espera - diz, esforçando-se para não chorar, mas está patente na sua voz, na forma como os sons saem demasiado redondos, abafados pela dor.
Quando o Nathaniel tinha dois anos e partiu o braço, fiquei nas urgências enquanto lhe endireitavam os ossos e colocavam o gesso. Foi corajoso - tão corajoso, sem gritar, nem uma vez - mas a outra mão agarrava a minha com tanta força que as unhas dele deixaram pequenas meias-luas na minha palma. Estive sempre a pensar que de bom grado partiria o meu próprio braço, o meu coração, o meu ser, se isso significasse que o meu filho não teria de sofrer assim.
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A Rachel não é um caso difícil; está nervosa, mas não uma pilha de nervos. Míriam está a agir correctamente. Farei com que isto seja o menos doloroso possível para ambas.
- Mamã - diz Rachel, quando a realidade a atingiu como uma tempestade tropical. O hipopótamo cai ao chão e não há outra maneira de descrevê-lo: tenta entrar na pele da mãe.
Saio do meu escritório e fecho a porta, porque tenho uma missão a cumprir.
- Dr. Carrington - pergunta o juiz -, porque é que estamos a colocar uma criança de cinco anos no banco das testemunhas? Não haverá outra maneira de resolver este caso?
Fisher cruza as pernas e franze um pouco o sobrolho. Fez disto uma arte.
- Meritíssimo, a última coisa que desejo é que este caso prossiga. «Aposto que sim», penso.
- Mas o meu cliente não pode aceitar a proposta do estado. Desde o primeiro dia em que entrou no meu escritório, tem negado estes factos. Para além disso, o estado não dispõe de provas físicas nem de testemunhas... A Dr.a Frost, na realidade, pode apenas apresentar o testemunho de uma criança cuja mãe está determinada a destruir o seu ex-marido.
- Já não nos interessa que ele vá para a prisão, Meritíssimo - interrompo. - Queremos apenas que desista da custódia e do direito às visitas.
- O meu cliente é o pai biológico de Rachel. Está convencido de que a criança pode ter sido envenenada contra ele, mas não está disposto a desistir dos seus direitos de paternidade sobre uma filha por quem nutre amor e carinho.
«Blá, blá, blá.» Nem sequer estou a ouvir. Não preciso; Fisher comunicou-me tudo isso ao telefone quando me contactou para rejeitar o meu último acordo extrajudicial. - Está bem - suspira o juiz McAvoy. - Vamos levá-la para lá.
O tribunal está vazio, só lá estou eu, a Rachel, a avó, o juiz, Fisher e o arguido. A Rachel está sentada ao lado da avó, enrolando a cauda do seu hipopótamo de peluche. Conduzo-a ao banco das testemunhas, mas quando se senta, não consegue ver por cima da balaustrada.
O juiz McAvoy volta-se para o seu oficial de justiça.
- Roger, porque é que não vai num instante aos meus aposentos ver se há algum banco para a menina Rachel?
São precisos mais alguns minutos para corrigir a situação.
- Olá, Rachel. Como estás? - começo.
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- Estou bem - diz ela, numa voz muito fraca.
- Posso aproximar-me mais da testemunha, Meritíssimo? - mais perto, não serei tão intimidadora. Continuo a sorrir tanto que os meus maxilares começam a doer. - Podes dizer-me o teu nome completo, Rachel?
- Rachel Elizabeth Marx.
- Que idade tens?
- Cinco anos - mostra os dedos para me provar.
- Deste uma festa no dia do teu aniversário?
- Sim - Rachel hesita. E depois acrescenta: - Uma festa de princesa.
- Aposto que foi divertido. Recebeste alguns presentes?
- Hã-hã. Recebi a Barbie Nadadora. Sabe nadar de costas.
- com quem vives, Rachel?
- com a minha mamã - diz, mas os seus olhos voltam-se para a mesa da defesa.
- Vive mais alguém contigo?
-Já não - um sussurro.
- Costumavas viver com mais outra pessoa?
- Sim - Rachel acena com a cabeça. - com o meu papá.
- Vais à escola, Rachel?
- Estou na turma da Sr.a Montgomery.
- Lá existem regras?
- Sim. Não podemos bater, temos de levantar a mão para falar e não podemos trepar pelo escorrega.
- O que é que acontece quando não segues as regras na escola?
- A minha professora zanga-se.
- Sabes qual é a diferença entre dizer a verdade e mentir?
- Verdade é quando dizemos o que aconteceu, e mentira é quando inventamos alguma coisa.
- É isso. E a regra no tribunal, onde estamos agora, é que tens de dizer a verdade quando te fazemos perguntas. Compreendes?
- Sim.
- Se mentires à tua mãe, o que é que acontece?
- Ela fica zangada comigo.
- Prometes que tudo o que disseres hoje vai ser verdade?
- Hã-hã. Respiro profundamente. Primeiro obstáculo, ultrapassado.
- Rachel, aquele homem de cabelo grisalho éY Carrington. Ele também te quer fazer algumas perguntas. podes falar com ele?
- O. K. - diz Rachel, mas agora está a ficar nervosa. Foi desta
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parte que não pude falar-lhe; da parte para a qual não tinha todas as respostas.
Fisher levanta-se, transparecendo segurança.
- Olá, Rachel.
Ela franze os olhos. Adoro esta miúda. -Olá.
- Como se chama o teu urso?
- Ela é um hipopótamo - Rachel diz isto com o desdém que só uma criança consegue mostrar quando um adulto fica a olhar para o balde na sua cabeça e não consegue perceber que é um capacete espacial.
- Sabes quem é que está sentado à minha beira ali naquela mesa?
- O meu papá.
- Tens visto o teu papá?
- Não.
- Mas lembras-te de quando tu e o teu papá viviam na mesma casa todos juntos?
Fisher tem as mãos nos bolsos. A sua voz é suave como veludo.
- Hã-hã.
- A tua mamã e o teu papá costumavam discutir muitas vezes na casa castanha?
- Sim.
- E depois disso, o teu papá saiu de casa?
Rachel acena com a cabeça, e depois lembra-se do que lhe disse sobre ter de responder em voz alta. «
- Sim - murmura.
- Depois de o teu papá sair de casa, contaste a alguém uma coisa que te aconteceu... uma coisa sobre o teu papá, não foi?
- Hã-hã.
- Contaste a alguém que o Papá tocou no teu pipi?
- Sim.
- A quem contaste?
- À mamã.
- O que é que a Mamã fez quando lhe contaste?
- Chorou.
- Lembras-te de que idade tinhas quando o Papá tocou no teu pipi?
Rachel morde o lábio.
- Foi quando era bebé.
- Nessa altura ias à escola?
- Não sei.
- Lembras-te se lá fora estava calor ou frio?
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- Não, hum, não sei.
- Lembras-te se lá fora estava escuro, ou se havia luz? Rachel começa a balançar para trás e para a frente no banco,
abanando a cabeça.
- A Mamã estava em casa?
- Não sei - sussurra, e o meu coração afunda-se. É agora que vamos perdê-la.
- Disseste que estavas a ver o Franklin. Estava a dar na televisão, ou era um vídeo?
Por esta altura, Rachel nem sequer estabelece contacto visual com Fisher, nem com nenhum de nós.
- Não sei.
- Não faz mal, Rachel - diz Fisher calmamente. - Às vezes é difícil lembrarmo-nos.
Na mesa do promotor de justiça, reviro os olhos.
- Rachel, falaste com a tua Mamã antes de vires para o tribunal hoje de manhã?
Finalmente: algo que ela sabe. Rachel levanta a cabeça e sorri, orgulhosa. -Sim!
- Hoje de manhã foi a primeira vez que falaste com a Mamã sobre vires ao tribunal?
- Não.
- Já tinhas visto a Nina antes?
- Hã-hã.
Fisher sorri.
- Quantas vezes falaste com ela?
- Montes de vexes.
- Montes de vezes. Disse-te o que havias de dizer quando subisses para este pequeno compartimento?
- Sim.
- E disse-te que devias dizer que o Papá te tocou?
- Sim.
- A Mamã disse-te que devias dizer que o Papá te tocou? Rachel acena com a cabeça, e as pontas das tranças balançam.
- Hà-hã.
Começo a fechar o meu ficheiro relativo a este caso; já sei onde Fisher quer chegar; o que ele fez.
- Rachel - diz ele -, a tua mamã disse-te o que aconteceria hoje se viesses aqui dizer que o Papá tocou no teu pipi?
- Sim. Disse que ficaria orgulhosa de mim, por ser uma menina tão linda.
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- Obrigado, Rachel - diz Fisher, e senta-se.
Passados dez minutos, Fisher e eu encontramo-nos defronte ao juiz nos seus aposentos.
- Dr.a Frost, não estou a insinuar que tivesse colocado palavras na cabeça daquela criança - diz o juiz. - Estou a referir que ela está convencida de que está a fazer o que a senhora e a mãe querem que ela faça.
- Meritíssimo - começo.
- Dr. Frost, a lealdade da criança para com a mãe é muito mais forte do que a lealdade dela a um juramento. Nestas circunstâncias, qualquer condenação que o estado seja capaz de assegurar poderá ser invalidada - olha para mim, com alguma simpatia. - Talvez daqui a seis meses as coisas sejam diferentes, Nina - o juiz pigarreia. Declaro a testemunha não competente para comparecer a julgamento. O estado tem mais algum requerimento relativamente a este caso?
Sinto o olhar de Fisher observar-me, solidário em vez de vitorioso, e isso faz-me ficar furiosa.
- Preciso de falar com a mãe e com a criança, mas creio que o estado vai apresentar um requerimento para encerrar o caso sob todas as reservas - quer dizer que quando Rachel crescer, podemos voltar a apresentar queixa e tentar de novo. É claro, Rachel pode não ter coragem suficiente para isso. Ou a mãe pode desejar que ela siga em frente, em vez de reviver o passado. O juiz sabe isso, eu sei isso, e não há nada que qualquer um de nós possa fazer. É assim que funciona o sistema.
Fisher Carrington e eu saímos dos aposentos do juiz.
- Obrigado, doutora - diz ele, e eu não respondo. Seguimos em direcções opostas, como imanes que se repelem.
É por isso que estou zangada: 1) perdi. 2) Devia estar do lado da Rachel, mas acabei por me tornar na má da fita. Afinal de contas, fui eu que a fiz submeter-se a uma audiência de competência, e foi tudo em vão.
Mas nada disto transparece no meu rosto quando me inclino para falar com a Rachel, que está à minha espera no escritório.
- Foste tão corajosa hoje. Sei que disseste a verdade e estou orgulhosa de ti, e a tua mãe está orgulhosa de ti. E a boa notícia é que te portaste tão bem que não vais ter de fazer isto outra vez - asseguro-me de que a olho nos olhos ao dizer isto, para que interiorize, um elogio que possa trazer nos bolsos. - Agora preciso de falar com a tua mãe, Rachel. Podes esperar lá fora com a tua avó?
Míriam perde o controlo antes de Rachel ter fechado a porta atrás de si.
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- O que aconteceu lá dentro?
- O juiz declarou a Rachel não competente - reproduzo o testemunho que ela não ouviu. - Isso significa que não podemos acusar o seu ex-marido.
- Então como poderei protegê-la?
Cruzo as mãos por cima da secretária, agarrando a extremidade com força.
- Sei que tem um advogado a representá-la no seu processo de divórcio, Sr.a Max. Posso telefonar-lhe da sua parte. Ainda está a decorrer uma investigação da segurança social, e talvez possam fazer alguma coisa para reduzir ou supervisionar as visitas... mas a verdade é que não podemos instaurar um processo-crime nesta altura. Talvez quando Rachel for mais velha.
- Quando for mais velha - sussurra Míriam -, já lhe terá feito o mesmo mil vezes mais.
Não há nada que possa dizer sobre isto, porque o mais provável é que seja verdade.
Míriam soçobra à minha frente. Já vi isto dezenas de vezes, mães fortes que simplesmente ficam desfeitas em pedaços, como um lençol engomado que derrete com uma lufada de vapor. Balança-se para trás e para a frente, de braços cruzados com tanta força na cintura que fica dobrada em dois.
- Sr.a Max... se precisar de alguma coisa...
- O que faria no meu lugar?
A voz dela ergue-se como uma serpente, empurra-me para a frente.
- Não ouviu isto da minha boca - digo suavemente. - Eu agarrava na Rachel e fugia.
Passados alguns minutos, da minha janela, vejo Míriam Marx a procurar algo dentro da sua mala. As chaves do carro, penso eu. E muito provavelmente, a sua determinação.
Há muitas coisas em Nina que agradam a Patrick, mas uma das suas melhores qualidades é a maneira como entra numa sala. «Presença de palco», como a sua mãe costumava dizer quando Nina entrava de rompante na cozinha dos Ducharme, tirava uma Oreo do frasco das bolachas, e depois ficava parada, como se desse a todos os outros oportunidade para poderem acompanhá-la. Patrick só sabe que pode até estar voltado de costas para a porta, mas quando Nina entra ele consegue sentir um arrepio de energia na nuca, uma chamada de atenção quando todos os olhares se voltam para ela.
Hoje, está sentado ao balcão do bar vazio. Tequila Mockingbird é um sítio habitualmente frequentado por polícias, o que significa
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que normalmente não é muito movimentado antes da hora de jantar. Na realidade, houve alturas em que Patrick se interrogou se o estabelecimento abrirá cedo para o receber a ele e a Nina por ocasião dos seus habituais almoços de segunda-feira. Olha para o relógio, mas sabe que chegou antes da hora - chega sempre. Patrick não quer perder o momento em que ela entra, a maneira como o seu rosto se volta infalivelmente para o dele, como o ponteiro de uma bússola se volta para o Norte magnético.
Suyvesant, o empregado do bar, volta uma carta de tarot de um baralho. Aparentemente, está a fazer uma paciência. Patrick abana a cabeça.
- Não é para isso que servem, sabe.
- Bem, não sei que raio mais hei-de fazer com elas - separa-as por naipe: paus, copas, espadas e ouros. - Ficaram esquecidas na casa de banho das senhoras - o empregado do bar apaga o cigarro e segue o olhar de Patrick em direcção à porta. - Credo - diz. Quando é que vai dizer-lhe?
- Dizer-lhe o quê?
Mas Stuyvesant limita-se a abanar a cabeça e a empurrar o monte de cartas para junto de Patrick.
- Tome. Precisa mais delas do que eu.
- O que quer dizer com isso? - pergunta Patrick, mas nesse instante Nina chega. O ar dentro da sala zumbe como um campo cheio de grilos, e Patrick sente algo leve como hélio invadi-lo, até que quando dá por isso já se levantou da cadeira.
- Sempre um cavalheiro - diz Nina, atirando a sua grande mala preta para debaixo do balcão.
- E também um oficial - Patrick sorri para ela. - Imagine-se. Ela não é a rapariga que vivia na casa ao lado, já não é há anos.
Nessa altura tinha sardas e vestia calças de ganga com buracos nos joelhos e usava um rabo-de-cavalo tão apertado que repuxava os cantos dos olhos. Agora usa collants e fatos de saia e casaco; já usa o mesmo penteado curto há cinco anos. Mas quando Patrick se aproxima o suficiente, ela ainda lhe cheira a infância.
Nina olha para o uniforme dele enquanto Stuyvesant lhe coloca uma chávena de café à frente.
- Ficaste sem roupa lavada para vestir?
- Não, tive de passar a manhã numa escola primária a falar sobre a segurança no Dia das Bruxas. O chefe insistiu em que também me mascarasse - dá-lhe dois cubos de açúcar para o café antes de ela lhe ter pedido. - Como correu a tua audiência?
- A testemunha não foi declarada competente - diz isto sem que
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o seu rosto traia uma única emoção, mas Patrick conhece-a suficientemente bem para se aperceber do quanto isso a atormenta. Nina mexe o café, e depois sorri para ele. - De qualquer modo, tenho um caso para ti. A minha reunião das duas horas, na realidade.
Patrick apoia a cabeça na mão. Quando se alistou no exército, Nina estava na faculdade de direito. Também nessa altura era a sua melhor amiga. De vez em quando, quando estava a servir no USS John F. Kennedy no Golfo Pérsico, recebia uma carta dela, e através desta, a vida que podia ter tido. Aprendeu os nomes dos professores mais detestados da Universidade do Maine. Descobriu como era aterrorizador fazer o exame da Ordem dos Advogados. Leu sobre estar-se apaixonado, quando Nina conheceu Caleb Frost, ao percorrer um caminho de pedra que ele tinha acabado de colocar em frente à biblioteca. «Aonde é que isto me leva?» tinha ela perguntado. E a resposta de Caleb: «Aonde queres que te leve?»
Quando Patrick saiu do exército, Nina tinha-se casado. Patrick ponderou instalar-se em lugares de pronúncia fácil: Shawnee, Pocatello, Hickory. Chegou mesmo a alugar um camião da U-Haule e a percorrer exactamente mil e seiscentos quilómetros de Nova Iorque até Riley, no Kansas. Mas afinal tinha aprendido demasiado com as cartas de Nina e regressou a Biddeford, simplesmente por não poder estar longe.
- E então - diz Nina -, um porco saltou para dentro da manteigueira e arruinou completamente o jantar.
- Estás a brincar? - Patrick ri, apanhado. - O que fez a anfitriã?
- Não estás a ouvir, Patrick, que raio.
- Claro que estou. Mas credo, Nina. Massa encefálica na pala do assento do passageiro que não pertence a ninguém que estava dentro do carro? Bem que podia ser o porco na manteigueira como estavas a dizer - Patrick abana a cabeça. - Quem é que deixa o seu córtex cerebral no carro de outra pessoa?
- Diz-me tu. Tu é que és o detective.
- Está bem. O meu palpite? O carro foi restaurado. O teu arguido comprou-o em segunda mão, sem saber que o dono anterior foi até um sítio isolado e estoirou os miolos no banco da frente. Foi suficientemente bem limpo para voltar a ser vendido... mas não para o indómito Laboratório Estadual do Maine.
Nina mexe o café, e depois alcança o prato de Patrick para tirar uma batata frita.
- Não é impossível - admite. - vou ter de investigar o carro.
- Posso dar-te o nome de um tipo que uma vez utilizámos como informador. Tinha um negócio de restauro de automóveis antes de começar a traficar.
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- Arranja-me o ficheiro completo. Deixa-o na minha caixa do correio em casa.
Patrick abana a cabeça.
- Não posso. É um delito federal.
- Estás a brincar - Nina ri. - Não vais deixar nenhuma bomba! mas Patrick nem sequer sorri; para ele o mundo é um local com regras. - Então está bem. Deixa-o à porta - ela olha para baixo quando o pager começa a tocar, tira-o do cós da saia. - Oh, bolas.
- Algum problema?
- O jardim-de-infância do Nathaniel - tira o telemóvel da mala preta e marca um número. - Olá, fala Nina Frost. Sim. Claro. Não, não há problema - desliga, e depois volta a fazer uma chamada. - Peter, sou eu. Olha, acabei de receber uma chamada da escola do Nathaniel. Tenho de ir buscá-lo, e o Caleb está numa obra. Tenho duas moções para embargar em casos de condução sob influência de álcool; podes substituir-me? Faz acordos extrajudiciais, não me interessa, só quero ver-me livre deles. Sim. Obrigada.
- O que se passa com o Nathaniel? - pergunta Patrick enquanto ela volta a colocar o telemóvel na mala. - Está doente?
Nina desvia o olhar; parece quase embaraçada.
- Não, especificaram que não. Hoje começámos mal o dia; aposto que ele só precisa de se sentar no alpendre comigo e reorganizar-se.
Patrick já passou bastantes horas no alpendre com Nathaniel e Nina. O jogo favorito deles no Outono é apostar bombons Hersbey em qual será a primeira folha a cair de uma determinada árvore. Nina joga para ganhar, como tudo o resto na sua vida, mas depois alega que está demasiado cheia para reclamar o seu prémio e oferece todos os seus chocolates ao Nathaniel. Quando Nina está com o filho, parece - bem, mais radiosa, mais colorida - e mais suave. Quando riem com as cabeças próximas uma da outra, Patrick por vezes vê-a não como a promotora de justiça que agora é mas como a rapariguinha que outrora fora a sua parceira no crime.
- Posso ir buscá-lo - sugere Patrick.
- Pois, só não podes deixá-lo na minha caixa do correio - Nina sorri e tira a outra metade da sandes de Patrick do prato dele. Obrigada, mas a menina Lydia pediu expressamente para falar comigo, e acredita, é melhor não apanhar aquela mulher virada do avesso - Nina dá uma dentada, e depois dá o resto a Patrick. - Telefono-te mais tarde - apressa-se a sair do bar antes que Patrick consiga dizer adeus.
Ele observa-a a ir embora. Por vezes interroga-se se alguma vez abrandará o seu ritmo, se avançará tão depressa através da sua própria vida que nem sequer se apercebe da física da trajectória que
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escolheu: se dobrarmos a curva do tempo, até o dia de ontem nos parecerá estranho. A verdade é que Nina se esquecerá de lhe telefonar. E em vez disso será Patrick a telefonar-lhe para saber se Nathaniel está bem. Ela pedirá desculpas e dirá que tinha intenção de lhe telefonar. E Patrick... bem, Patrick perdoá-la-á, como sempre.
- Comportamento perturbador - repito, olhando directamente para a menina Lydia. - O Nathaniel voltou a dizer ao Danny que eu o punha na prisão se não lhe emprestasse os dinossáurios?
- Não, desta vez foi um comportamento agressivo. O Nathaniel esteve a estragar o trabalho das outras crianças... a derrubar construções de blocos, e a dada altura riscou o desenho de uma menina.
Mostro-lhe o meu sorriso mais cativante.
- O Nathaniel não estava em si hoje de manhã. Talvez seja algum vírus.
A menina Lydia franziu o sobrolho.
- Não me parece, Sr.a Frost. Houve outros incidentes... ele hoje estava a trepar pelos baloiços e a saltar de lá de cima...
- Os miúdos estão sempre a fazer essas coisas!
- Nina - diz a menina Lydia num tom suave, a menina Lydia que em quatro anos nunca utilizou o meu nome próprio -, o Nathaniel falava antes de vir para a escola hoje de manhã?
- Bem, claro que... - começo, e depois paro. O chichi na cama, o pequeno-almoço apressado, o mau humor... lembro-me de muitas coisas sobre o Nathaniel naquela manhã, mas a única voz que ouço na minha cabeça é a minha.
Era capaz de reconhecer a voz do meu filho em qualquer lado. Aguda e animada; costumava desejar poder fechá-la numa garrafa, como a Bruxa do Mar que a roubou à Pequena Sereia. Os seus enganos foram lombas para reduzir a velocidade que o impediram de crescer demasiado depressa; se os corrigisse, chegaria a esse destino muito antes que eu estivesse preparada. Mesmo assim, as coisas já estão a mudar demasiado rápido. O Nathaniel já não confunde os pronomes; já domina os ditongos - embora tenha imensas saudades de ouvi-lo dizer mano como um polícia de Itowery. O único percalço no discurso de Nathaniel que ainda posso reclamar é a sua incapacidade absoluta de pronunciar as letras L e R.
Na minha memória, estamos sentados à mesa da cozinha. Panquecas - em forma de fantasmas, com olhos de pedacinhos de chocolate - juntam-se numa pilha alta à nossa frente, acompanhadas por
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bacon e sumo de laranja. Um pequeno-almoço substancial é a nossa forma de subornarmos o Nathaniel nos domingos em que o Caleb e eu nos sentimos suficientemente culpados para ir à missa. O sol incide na borda do meu copo e um arco-íris espalha-se pelo meu prato.
- Qual é o oposto de esquerda (left) - pergunto. Sem pestanejar, Nathaniel diz:
- Branco (white).
Caleb vira uma panqueca. Quando era criança, ceceava. Ouvir Nathaniel traz-lhe uma dor humilhante, e a convicção de que o filho também será impiedosamente troçado. Ele acha que devemos corrigir Nathaniel, e perguntou à menina Lydia se os seus erros de dicção poderiam ser corrigidos por um terapeuta da fala. Ele acha que uma criança que para o ano vai para a pré-primária deve ter a eloquência de Lawrence Olivier.
- Então qual é o oposto de branco? - pergunta Caleb.
- Bwack (preto).
- Rrrright (direita) - enfatiza Caleb. - Tenta. Right.
- Wwwwhite. - Deixa lá, Caleb - digo.
"Mas ele não é capaz.
- Nathaniel - insiste -, o oposto de left é right. E o oposto de right (write, escrever) é...
Nathaniel pensa nisso por uns momentos.
- Ewase (erase, apagar) - responde.
- Que Deus o ajude - murmura Caleb, voltando-se novamente para o fogão.
Eu, limito-me a piscar o olho a Nathaniel.
- Talvez ajude - digo.
No parque de estacionamento do jardim-de-infância, ajoelho-me para ficar frente a frente com Nathaniel.
- Querido, diz-me o que se passa.
A gola de Nathaniel está torta; as mãos estão manchadas de vermelho com tinta para pintar com os dedos. Fica a olhar para mim com os olhos escuros muito abertos sem dizer uma palavra.
Todas as palavras que ele não diz sobem-me à garganta, espessas como bílis.
- Querido - repito. - Nathaniel?
«Achamos que precisa de estar em casa», tinha dito a menina Lydia. «Talvez possa passar esta tarde com ele.»
- É isso que queres? - pergunto em voz alta, fazendo deslizar as mãos dos seus ombros para a lua suave do seu rosto. - Tempo de
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qualidade? - com um sorriso forçado, envolvo-o num abraço. É pesado e quente e molda-se perfeitamente aos meus braços, embora em várias outras alturas da vida de Nathaniel (quando era bebé, quando era muito pequeno) eu estivesse convencida de que nos moldávamos um ao outro com a mesma perfeição.
- Dói-te a garganta? - abana a cabeça. - Dói-te alguma coisa? abana novamente a cabeça. - Aconteceu-te alguma coisa na escola? Alguém disse alguma coisa que te magoasse? Podes dizer-me o que aconteceu?
Três perguntas, demasiadas para ele poder processar, quanto mais responder. Mas isso não me impede de ter esperança que o Nathaniel me responda.
Poderão as amígdalas ficar tão inchadas que nos impeçam de falar? A amigdalite pode atingir-nos tão rápido como um relâmpago? A meningite não costuma afectar primeiro o pescoço?
Nathaniel entreabre os lábios - pronto, agora vai contar-me - mas a sua boca é uma caverna vazia e silenciosa.
- Não faz mal - digo, embora não seja verdade, nem por sombras.
Caleb chega ao consultório da pediatra quando estamos à espera de ser atendidos. Nathaniel está sentado ao pé da pista de comboio, empurrando-o em círculos. Lanço olhares dardejantes à recepcionista, que parece não compreender que isto é um caso de emergência, que o meu filho não está a comportar-se normalmente, que não se trata de uma maldita constipação vulgar, e que já devíamos ter sido atendidos há meia hora.
Caleb vai imediatamente para junto de Nathaniel, enrolando o seu grande corpo para formar um espaço de recreio para crianças.
- Então, Companheiro. Não te sentes lá muito bem, ha? Nathaniel encolhe os ombros, mas não fala. Já não fala sabe
Deus há quantas horas?
- Dói-te alguma coisa, Nathaniel? - diz Caleb, e isso foi a gota de água.
- Achas que já não lhe perguntei isso? - expludo.
- Não sei, Nina. Não estive aqui.
- Bem, ele não fala, Caleb. Não me responde - tudo o que isso implica... a triste verdade de que a doença do meu filho não é varicela, ou bronquite, ou qualquer uma das outras mil coisas que posso compreender... faz com que para mim seja difícil manter-me de pé. São as coisas estranhas, como esta, que se revelam sempre horríveis:
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uma verruga que não desaparece, que se metastiza num cancro; uma dor de cabeça aborrecida que afinal é um tumor cerebral. - Nem sequer tenho a certeza de que ele esteja a ouvir o que lhe digo agora. Quanto a mim pode ser algum... algum vírus que esteja a atacar-lhe as cordas vocais.
- Vírus - faz uma pausa. - Ontem ele sentia-se doente e tu mandaste-o para a escola hoje de manhã, apesar...
- A culpa é minha?
Caleb olha para mim, friamente.
- Ultimamente tens andado muitíssimo ocupada, é só isso que estou a dizer.
- Então devo desculpar-me por o meu trabalho não poder ser feito pelos meus horários, como o teu? Pronto, desculpa lá. Eu peço às vítimas para fazerem o favor de ser violadas e agredidas numa altura mais conveniente.
- Não, limitas-te a esperar que o teu próprio filho tenha o bom senso de ficar doente quando não tenhas nada marcado no tribunal.
Demoro uns momentos a responder, de tão zangada que estou.
- Isso é tão...
- É verdade, Nina. Como é que o filho de outra pessoa qualquer tem prioridade sobre o teu próprio filho?
- Nathaniel?
A voz suave da enfermeira pediátrica surge como um machado entre nós. Tem uma expressão no rosto que não consigo decifrar completamente, e não tenho a certeza se nos vai fazer perguntas sobre o silêncio do Nathaniel ou a nossa ausência de silêncio.
Parece que engoliu pedras, que o seu pescoço está cheio de seixos que se movem e roçam uns nos outros cada vez que ele tenta emitir um som. Nathaniel está deitado na mesa de exame enquanto a Dr.a Ortiz lhe aplica suavemente um gel debaixo do queixo, e depois lhe passa pela garganta uma vareta grossa que faz cócegas. No ecrã do computador que ela trouxe para dentro do consultório surgem manchas de sal e pimenta à superfície, imagens que não parecem nada ser dele.
Quando torce o mindinho consegue chegar a uma fenda no cabedal da mesa. Por dentro é de espuma, uma nuvem que se pode desfazer.
- Nathaniel - diz a Dr.a Ortiz -, és capaz de tentar falar para eu ouvir?
A mãe e o pai estão a olhar para ele tão fixamente. Faz lembrar-lhe aquela vez no Jardim Zoológico, quando Nathaniel esteve em frente
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à jaula de um réptil durante vinte minutos pensando que, se esperasse o tempo suficiente, a cobra sairia do seu esconderijo. Naquela altura desejava mais ver a cascavel do que qualquer outra coisa, mas ela tinha continuado escondida. Nathaniel por vezes interroga-se se estaria lá sequer.
Agora, aperta os lábios. Sente a parte de trás da garganta abrir-se como uma rosa. O som sobe vindo da barriga, tropeçando nas pedras que o sufocam. Não lhe chega nada aos lábios.
A Dr.a Ortiz aproxima-se mais.
- Tu és capaz, Nathaniel - incita. - Tenta lá.
Mas ele está a tentar. Está a esforçar-se tanto que se divide em dois. Há uma palavra presa por trás da língua, como um pedaço de madeira à deriva, e ele tem tanta vontade de dizê-la aos pais: Pára.
- Não há nada de extraordinário na ecografia - diz a Dr.a Ortiz.
- Não há pólipos ou inchaço das cordas vocais, não há nada físico que impeça o Nathaniel de falar - olha-nos com os seus olhos cinzentos límpidos. - O Nathaniel teve quaisquer outros problemas médicos ultimamente?
Caleb olha para mim, e eu desvio o olhar. Dei Tylenol ao Nathaniel, rezei para que ficasse bem porque tinha uma manhã muitíssimo atarefada. E depois? Perguntem a nove em cada dez mães; todas teriam feito o que eu fiz... e a última teria pensado muito sobre isso antes de pôr a ideia de lado.
- Ontem quando veio da igreja chegou a casa com dores de estômago - diz Caleb. - E continua a molhar a cama à noite.
Mas isso não é um problema médico. Isso está relacionado com monstros escondidos debaixo da cama, e bichos papões a espreitar à janela. Não tem nada a ver com perdas súbitas da fala. Ao canto, onde brinca com blocos de construção, observo Nathaniel a corar e de repente fico zangada com Caleb por ter mencionado o assunto.
A Dr.a Ortiz tira os óculos e esfrega-os na camisa.
- Por vezes, o que parece ser uma doença física, não é - diz devagar. - Por vezes, estas coisas podem estar relacionadas com chamar a atenção.
Ela não conhece o meu filho, não tão bem como eu. Como se uma criança de cinco anos fosse capaz de arquitectar um plano tão maquiavélico.
- Ele pode até nem ter consciência desse comportamento - continua a médica, lendo os meus pensamentos.
- O que podemos fazer? - pergunta Caleb, ao mesmo tempo que eu digo:
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- Talvez devêssemos consultar um especialista. A médica responde-me primeiro.
- Era precisamente isso que eu ia sugerir. Deixem-me fazer um telefonema para ver se a Dr.a Robichaud pode recebê-los esta tarde.
Sim, e disto que precisamos: um otorrinolaringologista que tenha experiência com este tipo de doenças; um otorrinolaringologista que seja capaz de colocar as mãos em cima do Nathaniel e sentir alguma coisa incrivelmente pequena que possa ser tratada.
- Em que hospital trabalha a Dr. Robichaud?
- Está em Portland - diz a pediatra. - É psiquiatra.
Julho. Piscina municipal. Trinta e nove graus no Maine, um recorde.
- E se eu me afundar? - perguntou-me o Nathaniel. Eu estava na parte mais rasa, observando-o a fitar a água como se fossem areias movediças.
- Achas mesmo que eu deixava que te magoasses? . Parecia ponderar esta hipótese.
- Não.
- Então está bem - estendi os braços.
- Mamã? E se isto fosse um poço de lava?
- Em primeiro lugar, eu não estaria de fato-de-banho.
- E se eu entrar aí e os meus braços e as minhas pernas se esquecerem do que têm de fazer?
- Não vão esquecer.
- Mas podiam.
- Não é provável.
- Basta apenas uma vez - disse Nathaniel num tom solene, e apercebi-me de que esteve a ouvir-me treinar os meus encerramentos no duche.
Uma ideia. Arredondei a boca, levantei os braços e mergulhei até ao fundo da piscina. A água zumbia nos meus ouvidos, o mundo ficou lento. Contei até cinco e depois o azul agitou-se, uma explosão mesmo à minha frente. De repente Nathaniel estava debaixo de água e a nadar, com os olhos cheios de estrelas e com o nariz e a boca a deitarem bolhas. Agarrei-o com força e vim à superfície.
- Salvaste-me - disse. Nathaniel colocou as mãos no meu rosto, uma de cada lado.
- Teve de ser - disse. - Para que tu pudesses salvar-me depois.
A primeira coisa que faz é desenhar uma rã a comer a lua. A Dra Robichaud não tem nenhum lápis de cera preto, portanto Nathaniel
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tem de colorir de azul o céu nocturno. Está a colorir com tanta força que o lápis de cera parte-se na sua mão, e depois fica a pensar se alguém gritará com ele.
Ninguém grita.
A Dr.a Robichaud disse-lhe que podia fazer tudo o que quisesse, enquanto todos estavam sentados à sua volta, observando-o a brincar. Todos: a mãe e o pai, e esta médica nova, que tem o cabelo louro tão claro que ele consegue ver o couro cabeludo por baixo, pulsando como um coração. A sala parece uma casa de bonecas, um cavalinho de baloiço para crianças mais pequenas do que Nathaniel, um pufe em forma de luva de basebol. Há lápis de cera, e tintas, e marionetas, e bonecas. Quando Nathaniel passa de uma actividade a outra, repara que a Dr. Robichaud escreve num caderno de mola, e interroga-se se também estará a desenhar; se terá aquele lápis de cera preto que falta.
De vez em quando faz-lhe perguntas, às quais não poderia responder mesmo que quisesse. «Gostas de rãs, Nathaniel?» E: «Essa cadeira é confortável, não achas?» A maior parte das perguntas são perguntas estúpidas que os adultos costumam fazer, mesmo que não queiram realmente ouvir as respostas. Só uma vez é que a Dr.a Robichaud disse algo a que Nathaniel desejava poder responder. Carregou no botão de um volumoso gravador de cassetes de plástico e o som que saiu era familiar: Dia das Bruxas e lágrimas corriam juntos.
- São cantos de baleias - disse a Dr.a Robichaud. - Já tinhas ouvido?
«Sim», Nathaniel queria dizer, «mas julguei que era só eu, a chorar por dentro».
A médica começa a falar com os pais, palavras difíceis que escorregam nos seus ouvidos e depois viram as costas e fogem como coelhos. Aborrecido, Nathaniel procura novamente o lápis de cera preto debaixo da mesa. Alisa os cantos do desenho. Depois repara no boneco ao canto.
É um menino, repara nisso assim que o volta para cima. Nathaniel não gosta de bonecos; não brinca com eles. Mas é atraído por este brinquedo, deitado no chão todo torto. Apanha-o e arranja os braços e as pernas, para já não parecer que está magoado.
Depois olha para baixo e vê o lápis de cera azul, partido, ainda enrolado na sua mão.
Não há maior cliché: a psiquiatra fala de Freud. Perturbação psicossomática é o termo referido no DSM-IV (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais) para aquilo que Sigmund designava
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por histeria - mulheres jovens cuja reacção ao trauma se manifestava em afecções físicas válidas sem qualquer causa física etiológica. Basicamente, diz a Dr.a Robichaud, a mente pode fazer o corpo doente. Já não acontece tão frequentemente como na época de Freud, porque existem muitos mais escapes aceitáveis para o trauma emocional. Mas de vez em quando ainda acontece, sobretudo em crianças que não possuem o vocabulário certo para explicar o que as perturba.
Olho para Caleb, interrogando-me se estará a acreditar em alguma coisa. A verdade é que só quero levar o Nathaniel para casa. Quero telefonar a uma testemunha especialista que uma vez utilizei, um otorrinolaringologista de Nova Iorque, para lhe pedir que me indique um especialista na área de Boston que possa ver o meu filho.
Nathaniel estava bem ontem. Não sou psiquiatra, mas até eu sei que uma crise nervosa não acontece de um dia para o outro.
- Trauma emocional - diz Caleb num tom suave. - Como por exemplo?
A Dr.a Robichaud diz qualquer coisa, mas o som é abafado. O meu olhar desviou-se para o Nathaniel, que está sentado ao canto da sala dos brinquedos. No seu colo, segura um boneco de barriga para baixo. com a outra mão, esfarela um lápis de cera entre as suas nádegas. E o seu rosto, oh o seu rosto - está branco como um lençol.
Já vi isto mil vezes. Já estive nos consultórios de centenas de psiquiatras. Já estive sentada ao canto como uma mosca na parede enquanto uma criança mostra o que não é capaz de contar, enquanto uma criança me fornece as provas de que necessito para fazer uma acusação.
De repente estou no chão ao lado de Nathaniel, de mãos nos seus ombros, de olhos fixos nos seus. Um momento depois, ele está nos meus braços. Balançamo-nos para trás e para a frente, e nenhum de nós consegue encontrar as palavras para dizer o que ambos sabemos ser verdade.
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Para lá do recreio da escola, do outro lado da colina, na floresta - é aí que a bruxa vive.
Todos sabemos da sua existência. Acreditamos. Nunca a vimos, mas isso é bom, porque aqueles que a vêem são os que são levados para longe.
A Ashleigh diz que a sensação que temos quando o vento sobe pela nossa nuca e não conseguimos evitar estremecer; isso é a bruxa a aproximar-se de mais. Ela usa um casaco de flanela que a torna invisível. O som dela é semelhante ao das folhas a cair.
O Willie estava na nossa turma. Tinha os olhos tão encovados que às vezes desapareciam, e cheirava a laranja. Deixavam-no calçar as suas sandálias mesmo depois de arrefecer, e ficava com os pés cheios de lama e azuis, e a minha mãe abanava a cabeça e dizia, «Vês?» e eu via - vi, e quem me dera poder fazer o mesmo. A verdade é que um dia o Willie estava sentado ao meu lado na hora da merenda, a molhar as suas bolachas no leite até ficarem todas espapaçadas num monte no fundo... e no dia seguinte tinha desaparecido, e nunca mais voltou.
No esconderijo debaixo do escorrega, a Ashleigh conta-nos que a bruxa o levou.
- Ela diz o nosso nome, e depois, não conseguimos evitar, fazemos tudo o que ela disser. Vamos aonde ela quiser.
A Lettie começa a chorar.
- Ela vai comê-lo. Ela vai comer o Willie.
- Demasiado tarde - diz a Ashleigh, e na mão tem um osso muito, muito branco.
Parece demasiado pequeno para ser do Willie. Parece demasiado pequeno para ser de algo que já tenha andado por aí. Mas eu sei melhor do que ninguém o que é; eu encontrei-o, quando estava a escavar debaixo dos dentes de leão ao pé da vedação. Fui eu que o dei à Ashleigh.
- Agora ela tem o Danny - diz a Ashleigh.
A menina Lydia disse-nos durante as actividades de grupo que o Danny estava doente. Colocámos a sua fotografia no quadro de Quem Está Aqui, virada para o lado triste. Depois do intervalo, íamos todos fazer um cartão para ele.
- O Danny está doente - digo à Ashleigh, mas ela limita-se a olhar para mim como se eu fosse a pessoa mais estúpida de sempre.
- Achavas que iam dizer-nos a verdade? - diz ela. Portanto, quando a menina Lydia não está a ver, passamos
por debaixo da vedação, por onde às vezes entram os cães e os coelhos - a Ashleigh, o Peter, a Brianna e eu, os mais corajosos. Vamos salvar o Danny. Vamos encontrá-lo antes que a bruxa o apanhe.
Mas a menina Lydia encontra-nos primeiro. Obriga-nos a ir lá para dentro e ficar sentados de castigo, e diz que nunca, nunca, nunca devemos sair do recreio. Não sabemos que podemos magoar-nos?
A Brianna olha para mim. Claro que sabemos; foi por isso que saímos.
O Peter começa a chorar, e conta-lhe tudo sobre a bruxa, e sobre o que a Ashleigh disse. As sobrancelhas da menina Lydia juntam-se como uma gorda lagarta preta.
- Isto é verdade?
- O Peter é um mentiroso. Inventou essa história toda - diz a Ashleigh, e nem sequer pestaneja.
Foi assim que soube que a bruxa já a apanhou.
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DOIS
Para que saibam: se isto alguma vez vos acontecer, não vão estar preparados. Vão andar na rua a pensar como é que as pessoas são capazes de agir como se o mundo não tivesse sido deslocado do seu eixo. Vão vasculhar as vossas mentes à procura de sinais e indícios, certos de que- um momento - vos pregará uma rasteira como uma raiz retorcida. Vão desferir um soco com tanta força na porta da casa de banho pública que vão magoar o pulso; vão começar a chorar quando o homem na cabina da portagem vos desejar um bom dia. Vão interrogar-se sobre «Como é possível»; vão perguntar «E se».
Caleb e eu vamos para casa no carro com um elefante sentado entre nós. Pelo menos é o que parece: este enorme volume que nos empurra cada um para o seu lado, impossível de ignorar, e no entanto ambos fingimos não conseguir vê-lo. No assento de trás, o Nathaniel dorme, segurando um chupa-chupa meio comido que a Dr.a Robichaud lhe deu.
Tenho dificuldade em respirar. É esse elefante, de novo, sentado tão perto de mim com um cotovelo a esmagar-me o peito.
- Ele tem de nos dizer quem foi - digo por fim, e as palavras libertam-se como um rio. - Tem de nos dizer.
- Não consegue.
Essa é a questão, no fundo. O Nathaniel não é capaz de falar, mesmo que queira. Ainda não sabe ler nem escrever. Até ser capaz de comunicar, não haverá nenhum culpado. Até ser capaz de comunicar, isto não será um caso; será apenas uma angústia.
- Talvez a psiquiatra esteja enganada - diz Caleb. Remexo-me no meu assento.
- Não acreditas no Nathaniel?
- Acredito que ele ainda não disse nada - olha pelo espelho retrovisor. - Não quero continuar a falar sobre isto, na frente dele.
- Achas que isso vai resolver alguma coisa?
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Caleb não diz nada, e essa é a minha resposta.
- A próxima saída é a nossa - digo apreensiva, porque Caleb ainda está na faixa da esquerda.
- Eu sei para onde vou, Nina - vira o carro para a direita, e faz sinal para a saída. Mas passado um minuto, passa por ela.
- Acabaste... - a acusação morre ao ver o seu rosto, marcado pela dor. Acho que nem sabe que está a chorar. - Oh, Caleb! estendo a mão para o tocar, mas aquele maldito elefante está à frente. Caleb estaciona o carro e sai, caminhando ao longo da berma da estrada, inspirando grandes golfadas de ar que lhe incham o peito.
Passado um momento, regressa.
- Faço inversão de marcha e volto para trás - anuncia... a mim? Ao Nathaniel? A ele próprio?
Aceno com a cabeça. penso: «Se ao menos fosse assim tão fácil.»
Nathaniel cerra os dentes de trás com força para que o zumbido da estrada passe por ele. Não está a dormir, mas finge estar, o que é quase a mesma coisa. Os pais estão a conversar, as palavras são tão suaves nos cantos que não as consegue ouvir bem. Talvez nunca mais consiga dormir. Talvez seja como um golfinho, e fique meio adormecido.
A menina Lydia falou-lhes sobre os golfinhos no ano passado, depois de terem transformado a sala de aula num oceano de papel-crepe azul e estrelas-do-mar de gliller-glue. Portanto Nathaniel sabe estas coisas: que os golfinhos fecham um olho e desligam metade do cérebro, dormindo de um lado, enquanto o outro vigia os perigos. Sabe que as mamãs golfinho nadam pelos seus bebés adormecidos, puxando-os numa corrente submarina, como se estivessem presos por fios invisíveis. Sabe que os anéis de plástico que juntam seis latas de Coca-Cola podem magoar os golfinhos, fazê-los dar à costa, enfraquecidos. E que embora respirem ar, morrem ali.
Nathaniel também sabe que, se pudesse, abria a janela e saltava lá para fora, tão longe que atravessaria a barreira da auto-estrada e a alta vedação para mergulhar no penhasco rochoso, para o oceano lá em baixo. Teria uma pele lisa e prateada e um sorriso permanentemente marcado na boca. Teria uma parte do corpo especial - como um coração, mas diferente - cheia de óleo e chamada melão, exactamente como o que comemos no Verão. Só que ficaria na parte da frente da cabeça e ajudá-lo-ia a encontrar o caminho no mais negro dos oceanos, na noite mais escura.
Nathaniel imagina nadar ao largo da costa do Maine em direcção ao outro lado do mundo, onde o Verão já se faz sentir. Semicerra
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os olhos o mais que consegue, concentra-se em emitir um ruído alegre, em orientar-se através dessas notas, em ouvi-las fazer ricochete, voltando para ele.
Embora Martin Toscher, licenciado em medicina, seja considerado uma autoridade na sua área, daria de boa vontade os seus louros para eliminar completamente a sua especialidade. Examinar uma criança em busca de provas de abuso sexual é mais do que suficiente; o facto de ter indiciado centenas de casos no Maine é extraordinariamente perturbador.
O seu paciente está deitado na mesa da sala de operações, anestesiado. Ele ia sugerir isso mesmo, dada a natureza traumática do exame, mas mesmo antes de o ter proposto aos pais, a mãe perguntou se o exame poderia ser feito dessa maneira. Agora, Martin avança com o procedimento, falando em voz alta enquanto trabalha, para que as suas conclusões fiquem gravadas.
- A glande do pénis parece normal, Tanner O - muda a posição da criança. - Olhando para a zona anal... existem múltiplas escoriações óbvias em processo de cura, com cerca de um a um centímetro e meio de profundidade e um centímetro de diâmetro, em média.
Retira um especulo anal de uma mesa perto dele. O mais provável é que, se existissem outras lesões mais profundas na mucosa da parede do intestino, já tivessem conhecimento delas - por esta altura a criança já estaria fisicamente doente. Mas lubrifica o instrumento e insere-o cuidadosamente - prende a luz e limpa o recto com uma longa cotonete de algodão. «Bem, graças a Deus», pensa Martin.
- O intestino apresenta-se limpo até oito centímetros de profundidade.
Retira as luvas e a máscara, lava-se, e deixa as enfermeiras a tratarem da criança em recuperação. É uma anestesia ligeira, o seu efeito passará rapidamente. Assim que sai da sala de operações, é abordado pelos pais.
- Como é que ele está? - pergunta o pai.
- O Nathaniel está bem - responde Martin, com as palavras que todos querem ouvir. - Esta tarde pode estar um pouco sonolento, mas isso é perfeitamente normal.
A mãe salta todas estas trivialidades.
- Chegou a alguma conclusão?
- Parece haver provas consistentes com uma agressão - diz o médico num tom suave. - Algumas escoriações rectais que já estão a sarar. É difícil dizer quando foram infligidas, mas certamente não são muito recentes. Talvez já se tenha passado mais ou menos uma semana.
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- As provas são consistentes com penetração? - pergunta Nina Frost.
Martin acena com a cabeça.
- Não foram causadas por uma queda de bicicleta, por exemplo.
- Podemos vê-lo? - esta foi do pai do rapaz.
- Em breve. As enfermeiras avisá-los-ão quando estiver acordado no recobro.
Começa a afastar-se, mas a Sr.a Frost detém-no colocando uma mão no seu braço.
- É capaz de dizer se se tratou de penetração peniana? Digital? Ou com um objecto estranho?
Os pais perguntam se os filhos ainda sentem dor devido à agressão. Se a cicatriz os afectará no futuro. Se irão lembrar-se, a longo prazo, do que lhes aconteceu. Mas estas perguntas, bem, fazem-no sentir como se estivesse a ser interrogado.
- Não há forma de saber esse tipo de pormenores - diz o médico. - Nesta altura só podemos afirmar que de facto aconteceu alguma coisa.
Ela afasta-se e cambaleia, encostando-se à parede. Soçobra. Em segundos transforma-se numa pequena bola em prantos no chão, com os braços do marido a envolvê-la para lhe dar algum apoio. Ao regressar ao bloco operatório, Martin apercebe-se de que é a primeira vez naquele dia que a vê comportar-se como uma mãe.
É um disparate, eu sei, mas vivi toda a minha vida a acreditar em superstições. Não se trata de atirar sal por cima do ombro, nem de pedir desejos com as pestanas, nem de usar os sapatos da sorte nos julgamentos - em vez disso, sempre achei que a minha sorte estava directamente relacionada com o azar dos outros. Quando iniciei a minha carreira como advogada, supliquei ficar com as agressões e os abusos sexuais, os horrores que ninguém quer encarar. Disse para comigo própria que, se lidasse com os problemas de estranhos diariamente, por magia isso far-me-ia não ter de lidar com
os meus.
Quando nos deparamos repetidamente com a violência, habituamo-nos à atrocidade. Podemos ver sangue sem pestanejar, somos capazes de dizer a palavra violação sem nos retrairmos. Mas a verdade, porém, é que este é um escudo de plástico. Todas as defesas se desmoronam quando o pesadelo ocorre na nossa própria cama.
No chão do seu quarto, Nathaniel está a brincar silenciosamente, ainda zonzo da anestesia. Conduz carrinhos Matchbox ao longo de uma pista. Aproximam-se de um determinado sítio, um propulsor, e
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subitamente disparam a grande velocidade subindo uma rampa, através das mandíbulas de uma pitão. Se o carro for só um bocadinho mais lento, a serpente fecha a boca num ápice. O carro de Nathaniel consegue sempre passar.
Tenho os ouvidos cheios das coisas que Nathaniel não diz: «O que é o jantar; posso jogar no computador; viste como aquele carro andou depressa?» As suas mãos fecham-se em torno do Matchbox como as garras de um gigante; neste mundo de faz de conta é ele quem manda.
As mandíbulas da pitão fecham-se com um estrondo tão grande neste silêncio que me sobressalto. E depois sinto qualquer coisa macia ao longo da minha perna, em subida acidentada pela minha coluna. Nathaniel segura num carrinho Matchbox, fazendo-o percorrer a avenida do meu braço. Estaciona entre as minhas clavículas, e depois pousa um dedo nas lágrimas na minha face.
Nathaniel coloca o carro na pista e sobe para o meu colo. A sua respiração é quente e húmida no meu pescoço quando se aproxima para se aconchegar. Isto faz-me sentir mal - que ele me escolha para o manter em segurança, quando já falhei miseravelmente. Ficamos assim durante muito tempo, até chegar a noite e as estrelas caírem no seu tapete, até a voz de Caleb subir pelas escadas, à nossa procura. Por cima da cabeça de Nathaniel, em penitência, observo o carro na sua pista, a girar em círculos, impulsionado pela sua própria energia.
Pouco depois das sete horas, perco o Nathaniel. Não se encontra em nenhum dos seus locais favoritos: o seu quarto, o quarto dos brinquedos, a armação para trepar lá fora. Pensava que Caleb estivesse com ele; Caleb pensou que ele estivesse comigo.
- Nathaniel! - grito, em pânico, mas ele não pode responder-me; não seria capaz de me responder mesmo que tivesse vontade de revelar o seu esconderijo. Mil cenas de horror passam-me pela cabeça de repente: o Nathaniel a ser raptado no quintal, incapaz de gritar por socorro; o Nathaniel a cair no nosso poço e a soluçar em silêncio; o Nathaniel deitado no chão, ferido e inconsciente. - Nathaniel! - grito novamente, desta vez mais alto.
- Vê tu lá em cima - diz Caleb, e também ouço a preocupação na sua voz. Antes que consiga responder ele dirige-se à lavandaria; ouve-se o som da máquina de secar a abrir e a fechar.
Nathaniel não está escondido debaixo da nossa cama, nem no seu roupeiro. Não está enrolado debaixo das teias de aranha nas escadas que conduzem ao sótão. Não está no baú dos brinquedos, nem por trás da grande poltrona na sala da costura.
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Não está debaixo da secretária do computador, nem atrás da porta da casa de banho.
Era de esperar que tivesse corrido um quilómetro e meio, pela maneira como estou arquejante. Encosto-me à parede perto da casa de banho, ouço Caleb bater com as portas dos armários e gavetas na cozinha. «Pensa como o Nathaniel», digo para comigo. Onde estaria se tivesse cinco anos?
Estaria a escalar arcos-íris. Estaria a levantar pedras à procura de grilos a dormir lá por baixo; estaria a separar a gravilha da entrada por pesos e cores. Mas estas eram as coisas que Nathaniel costumava fazer, as coisas que ocupam a mente de uma criança antes de crescer. De um dia para o outro.
Ouve-se um som de água a escorrer a vir da casa de banho. O lavatório; Nathaniel costuma deixar a torneira aberta quando lava os dentes. De repente tenho vontade de ver essa pinga de água, porque será a coisa mais normal que vi o dia inteiro. Mas lá dentro, o lavatório está seco como um osso. Viro-me para a origem do barulho, afasto a cortina do duche de padrão garrido.
E grito.
A única coisa que consegue ouvir debaixo de água é o seu coração. Será que isso também acontece aos golfinhos? Nathaniel interroga-se, ou será que conseguem ouvir sons que nós não conseguimos ouvir - o coral a desabrochar, os peixes a respirar, os tubarões a pensar. Os seus olhos estão bem abertos, e através da água o tecto parece estar a escorrer. As bolhas fazem-lhe cócegas nas narinas, e os peixes desenhados na cortina do duche tornam o cenário real.
Mas de repente a mãe está lá, ali no oceano onde não devia estar, e o seu rosto é amplo como o céu que se aproxima. Nathaniel esquece-se de suster a respiração quando ela o tira da água puxando-o pela camisa. Tosse, espirra mar. Ouve-a chorar, e isso relembra-o de que tem de regressar a este mundo, afinal.
Oh, meu Deus, ele não está a respirar - ele não está a respirar - e em seguida Nathaniel inspira uma grande golfada de ar. Tem o dobro do peso, com as suas roupas encharcadas, mas eu forço-o a sair da banheira e ele fica a pingar em cima do tapete do banho. Os pés de Caleb ressoam a subir as escadas:
- Encontraste-o?
- Nathaniel - digo o mais próximo do seu rosto que consigo -, o que estavas a fazer?
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Os seus cabelos dourados estão colados à cabeça, tem uns olhos enormes. Os lábios contorcem-se, tentando alcançar uma palavra que não sai.
As crianças de cinco anos podem ser suicidas? Que outra razão pode existir para encontrar o meu filho, completamente vestido, submerso numa banheira cheia de água?
Caleb entra na casa de banho. Lança um olhar a Nathaniel que está a pingar, e para a banheira a esvaziar-se.
- Que diabo?
- Vamos despir-te estas roupas molhadas - digo, como se costumasse encontrar o Nathaniel nesta situação todos os dias. Lanço as mãos aos botões da sua camisa de flanela, mas ele afasta-se de mim, enrolando-se numa bola.
Caleb olha para mim.
- Companheiro - tenta -, vais ficar doente se continuares assim.
Quando Caleb o puxa para o seu colo, Nathaniel fica completamente inerte. Está completamente acordado, a olhar directamente para mim, e no entanto era capaz de jurar que nem sequer está ali.
As mãos de Caleb começam a desabotoar a camisa de Nathaniel. Mas em vez disso, agarro numa toalha e enrolo-a à sua volta. Agarro-a junto ao pescoço de Nathaniel e inclino-me para a frente, para que as minhas palavras pousem no seu rosto voltado para mim.
- Quem te fez isto? - pergunto. - Diz-me, querido. Diz-me para que eu possa fazer tudo ficar bem.
- Nina.
- Diz-me. Se não me disseres, não posso fazer nada - a minha voz fica engatada a meio, como um comboio ferrugento. O meu rosto está tão molhado como o de Nathaniel.
Ele está a tentar; oh, ele está a tentar. Tem as faces vermelhas do esforço. Abre a boca, liberta uma lufada de ar sufocado. Faço-lhe um aceno, encorajando-o.
- Tu és capaz, Nathaniel. Vá lá.
Os músculos da garganta contraem-se. Parece que está novamente a afogar-se.
- Alguém te tocou, Nathaniel?
- Jesus! - Caleb afasta bruscamente o Nathaniel de mim. Deixa-o em paz, Nina!
- Mas ele ia dizer alguma coisa - levanto-me, esforçando-me para ficar novamente virada para Nathaniel. - Não ias, amor?
Caleb ergue Nathaniel nos seus braços ainda mais. Sai da casa de banho sem dizer uma palavra, embalando o nosso filho junto
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ao seu peito. Deixa-me no meio de uma poça de água, para limpar tudo o que ficou para trás.
Ironicamente, no Departamento das Crianças, Jovens e Serviços Familiares do Maine, uma investigação sobre maus-tratos a crianças não é investigação nenhuma. Para um assistente social poder iniciar oficialmente um caso, terá de dispor de provas psiquiátricas ou físicas de agressão sexual à criança, bem como do nome de um suspeito. Não haverá especulações - nessa altura a investigação já terá sido completada. O papel do assistente social do DCJF é deixar-se ir com a corrente, de forma que, se por algum milagre chegar à fase de julgamento, tudo tenha sido feito como o governo gosta.
Monica LaFlamme trabalha na Rede de Acção Contra os Maus Tratos a Crianças do DCJF há três anos, e está farta de entrar em cena no segundo acto. Olha pela janela do seu gabinete, um cubo cinzento e compacto como qualquer outro gabinete governamental no complexo, para um parque infantil deserto. É constituído por um conjunto de baloiços de metal em cima de uma laje de cimento. É precisamente o DCJF que possui a única estrutura para crianças da região que não cumpre os padrões de segurança actuais.
Boceja, aperta a cana do nariz com o polegar e o indicador. Monica está exausta. Não apenas por ter ficado acordada até tarde à espera do Letterman ontem à noite, mas no geral, como se as paredes cinzentas e a carpete para uso comercial do seu gabinete tivessem de alguma forma penetrado nela por osmose. Está cansada de apresentar relatórios sobre casos que não vão dar a lado nenhum. Está cansada de ver olhos de quarenta anos nos rostos de crianças de dez. O que ela precisa é de umas férias nas Caraíbas, onde há uma tão grande explosão de cores - ondas azuis, areia branca, flores escarlates - que a cegam para o seu trabalho do dia-a-dia.
Quando o telefone toca, Monica dá um salto na cadeira.
- Fala Monica LaFlamme - diz, apressando-se a abrir o dossiê que está em cima da sua secretária, como se a pessoa do outro lado da linha fosse capaz de ver que estava a sonhar acordada.
- Sim, bom dia. Fala a Dr.a Christine Robichaud. Sou psiquiatra no Centro Clínico do Maine - uma hesitação, e basta isso para que Monica saiba o que virá a seguir. - Preciso de comunicar um possível caso de abuso sexual envolvendo uma criança de cinco anos, do sexo masculino.
Toma notas enquanto a Dr.a Robichaud descreve comportamentos que viu vezes sem conta. Escreve o nome do paciente, os nomes dos pais. Há algo que lhe chama a atenção, mas ignora-o para se concentrar no que a psiquiatra está a dizer. ...,.....,., 56
- Há alguns relatórios policiais que me possa enviar por fax? pergunta Monica.
- Não contactaram a polícia. O rapaz ainda não identificou o agressor.
Ao ouvir isto, Monica pousa a caneta.
- Doutora, sabe que não posso iniciar uma investigação até haver alguém para ser investigado.
- É apenas uma questão de tempo. O Nathaniel apresenta uma perturbação psicossomática, que basicamente o torna mudo sem que haja uma causa física para tal. Estou convencida de que daqui a algumas semanas ele será capaz de nos dizer quem lhe fez isto.
- O que dizem os pais?
A psiquiatra faz uma pausa.
- Este comportamento é uma novidade.
Monica bate com a caneta na secretária. Segundo a sua experiência, quando os pais alegam estar completamente surpreendidos com o discurso ou as acções de uma criança que foi vítima de abuso, frequentemente acaba por se descobrir que o agressor é um deles ou os dois.
A Dr.a Robichaud também está perfeitamente consciente disso.
- Achei que talvez quisesse actuar logo de início, Sr.a LaFlamme. Indiquei aos Frost um pediatra com experiência em casos de abuso sexual a crianças, para fazer um exame detalhado ao filho. Deve estar prestes a enviar-lhe um relatório por fax.
Monica toma nota da informação, desliga o telefone. Depois olha para o que escreveu, preparando-se para dar início a outro caso que muito provavelmente se desintegrará antes de haver garantias de uma condenação.
«Frost», pensa, voltando a escrever o nome. Deve ser com certeza outra pessoa.
Estamos deitados na escuridão, sem nos tocarmos, com trinta centímetros de espaço entre nós.
- A menina Lydia? - sussurro, e sinto que Caleb abana a cabeça.
- Então quem? Quem é que fica sozinho com ele, para além de nós os dois?
Caleb fica tão calado que acho que adormeceu.
- O Patrick ficou a tomar conta dele um fim-de-semana inteiro quando fomos ao casamento da tua prima no mês passado.
Levanto-me apoiando-me num cotovelo.
- Deves estar a brincar. O Patrick é polícia. E conheço-o desde os seis anos.
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- Ele não tem namorada...
- Só se divorciou há seis meses!
- Só estou a dizer - Caleb vira-se - que podes não o conhecer tão bem como julgas.
Abano a cabeça.
- O Patrick adora o Nathaniel.
Caleb limita-se a olhar para mim. A sua resposta é clara, embora não chegue a dizê-la em voz alta: «Talvez demasiado».
Na manhã seguinte Caleb sai quando a Lua ainda está pendurada no seu cabide no céu, inclinada. Já discutimos este plano, negociando o nosso tempo como fichas num jogo de póquer: Caleb termina o seu muro, e chegará a casa ao meio-dia. Assim poderei ir ao escritório quando ele voltar, mas não vou. O meu trabalho terá de esperar. Isto tudo aconteceu ao Nathaniel quando eu não estava presente para testemunhar; não posso arriscar-me a perdê-lo novamente de vista.
É uma causa nobre para defender - proteger o meu filho. Mas hoje de manhã estou a ter dificuldades em compreender as leoas que protegem as suas crias e sinto-me mais próxima dos hamsters que as devoram. Em primeiro lugar, o meu filho parece não ter reparado que quero ser a sua heroína. Em segundo lugar, também não tenho a certeza se quero ser uma. Sobretudo se isso significar que tenho de defender um rapaz que me contraria sempre.
Meu Deus, ele tem todo o direito de odiar-me agora por ser tão egoísta.
No entanto a paciência nunca foi o meu forte. Resolvo problemas; procuro a represália. E embora saiba que não se trata de uma questão de querer, no caso de Nathaniel, estou zangada por o seu silêncio estar a proteger quem devia ser responsabilizado.
Hoje Nathaniel não está em si. Insiste em usar o seu pijama do Super-Homem, embora seja quase meio-dia. Pior, molhou a cama ontem à noite, portanto tresanda a urina. Caleb demorou mais de uma hora para lhe despir as roupas molhadas ontem; eu demorei duas horas para me aperceber de que não tenho força emocional ou física suficiente para contrariá-lo hoje de manhã. Assim, iniciámos uma nova batalha.
Nathaniel está sentado como uma gárgula de pedra no seu banco, de lábios cerrados, resistindo às minhas tentativas para dar-lhe alguma comida. Não come desde o pequeno-almoço de ontem. Mostrei-lhe tudo, desde cerejas ao marasquino até uma raiz de gengibre, todo o conteúdo do frigorífico de A a Z e vice-versa.
- Nathaniel - deixo cair um limão de cima da bancada. - Queres esparguete? Frango frito? Faço tudo o que quiseres. É só escolheres.
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Mas ele limita-se a abanar a cabeça.
Se ele não comer, não é o fim do mundo. Não, isso era ontem. Mas há uma parte de mim que acredita que se eu for capaz de fazer isto - encher a barriga do meu filho - ele vai deixar de estar magoado por dentro. Há uma parte de mim que se lembra que a primeira função de uma mãe é alimentar o filho; e se for capaz de cumprir esta pequena tarefa, talvez isso signifique que não o deixei ficar mal totalmente.
- Atum? Gelado? Piza?
Ele começa a mexer-se devagar no banco. De início é um erro
- o pé escorrega e ele começa a girar. Em seguida fá-lo deliberadamente. Ouve-me fazer-lhe uma pergunta e ignora-me propositadamente.
- Nathaniel. Rodopia.
Alguma coisa deu de si. Estou zangada comigo própria, com o mundo, mas por ser mais fácil, grito com ele.
- Nathaniel! Estou a falar contigo!
Ele olha para mim. E depois volta-me as costas, girando lentamente.
- Vais ouvir o que te digo, agora!
Patrick chega no meio desta encantadora cena familiar. Ouço a sua voz antes de ele nos ver na cozinha.
- Deve estar a chegar o Armagedão - diz ele -, porque não consigo lembrar-me doutra razão que te mantivesse afastada do trabalho por dois dias seguidos, quando... - quando dobra a esquina, vê a minha cara e abranda, movimentando-se com o mesmo cuidado que demonstraria ao entrar no local de um crime. - Nina - pergunta pausadamente -, estás bem?
Sou assolada por tudo aquilo que Caleb disse na noite passada, e começo a chorar. Também o Patrick, não; não conseguiria suportar a derrocada de mais de um pilar do meu mundo. Simplesmente não posso acreditar que Patrick tenha feito isto ao meu filho. Eis a prova: o Nathaniel não fugiu dele a correr e a gritar.
Patrick envolve-me nos seus braços e juro que se não fosse isso cairia ao chão. Ouço a minha voz, está incontrolável, um espasmo verbal.
- Estou óptima, estou a cem por cento - digo, mas a minha convicção vacila como uma folha de choupo-tremedor.
Como é que encontramos as palavras para explicar que a vida para a qual acordámos ontem não é aquela para a qual acordámos hoje? Como é que descrevemos atrocidades que não deveriam existir?
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Como promotora de justiça, flagelei-me com termos jurídicos -penetração, molestação, vitimização -? no entanto, nenhum destes termos é tão cru nem tão verdadeiro como a frase «Alguém violou o meu filho».
Os olhos de Patrick fixam-se no Nathaniel, depois em mim, voltando a fixar-se nele. Estará a pensar que tive um colapso nervoso? Que a pressão me partiu ao meio?
- Então, Peste - diz, usando a sua velha alcunha para o Nathaniel, que cresceu por etapas. - Queres ir lá para cima comigo para te vestires, enquanto a tua mãe, hum, limpa a bancada?
- Não - digo ao mesmo tempo que Nathaniel sai disparado da cozinha.
- Nina - Patrick volta a tentar. - Aconteceu alguma coisa ao Nathaniel na escola?
- Aconteceu alguma coisa ao Nathaniel na escola - repete Nina, com as palavras a rolarem-lhe na língua como berlindes. - «Aconteceu alguma coisa». Bem, agora essa é a questão principal, não é?
Ele fica a olhar para ela. Se a fitar o suficiente, descobrirá a verdade; foi sempre capaz de o fazer. Aos onze anos, soube que Nina tinha beijado o seu primeiro rapaz; embora ela tenha ficado demasiado envergonhada para contar a Patrick; soube que tinha sido aceite numa faculdade noutro estado muito antes de ela ter arranjado coragem para lhe confessar que ia deixar Biddeford.
- Alguém lhe fez mal, Patrick - sussurra Nina, soçobrando à sua frente. - Alguém, e eu... eu não sei quem foi.
Um arrepio percorre-lhe o peito.
- Ao Nathaniel?
Patrick já teve de dizer a alguns pais que os seus filhos adolescentes faleceram num acidente de automóvel provocado por um condutor embriagado. Já consolou viúvas junto das campas dos seus maridos suicidas. Já ouviu as histórias de mulheres que foram violadas. A única maneira de o fazer é afastar-se, fingindo que não se faz parte desta civilização, cujos membros causam tanto sofrimento uns aos outros. Mas isto... oh, disto... não pode afastar-se.
Patrick sente o coração ficar demasiado grande dentro do peito. Senta-se no chão da cozinha junto de Nina enquanto ela lhe conta os pormenores de uma história que nunca desejou ouvir. «Podia voltar a entrar por aquela porta», pensa, «e começar de novo. Podia voltar atrás no tempo».
- Ele não consegue falar - diz Nina. - E eu não sei como hei-de fazê-lo falar.
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Patrick segura-a de braços esticados, fazendo-a recuar um pouco.
- Mas tu sabes como hás-de fazer. Fazes as pessoas falar contigo a toda a hora.
Quando ela ergue o rosto, ele vê o que lhe ofereceu. Afinal não podemos estar condenados quando ainda conseguimos distinguir os contornos esbatidos da esperança do outro lado, na costa.
No dia a seguir ao seu filho ter ficado mudo por razões que Caleb não quer aceitar, sai porta fora e apercebe-se de que a sua casa está a cair aos bocados. Não no sentido literal, é claro - ele é demasiado cuidadoso para que isso acontecesse. Mas se olharmos com atenção, reparamos que as coisas que deviam ter sido feitas há imenso tempo - o caminho de pedra em frente à casa, o topo da chaminé, o muro de tijolo pelo joelho destinado a delimitar o perímetro do seu terreno - todos estes projectos tinham sido abandonados devido a outros encomendados por clientes dispostos a pagar pelos mesmos. Pousa a caneca de café na beira do alpendre e desce os degraus, tentando olhar objectivamente para cada um dos locais.
O caminho em frente à casa, bem, só um perito seria capaz de se aperceber de que as pedras estão colocadas de forma irregular; isso não é uma prioridade. A chaminé é uma vergonha; tem falhas em todo o lado esquerdo. Mas subir ao telhado tão tarde não faz nenhum sentido, para além disso, ajuda ter um assistente quando se trabalha a uma altura tão grande. O que significa que Caleb se vira primeiro para o muro. um adorno feito de tijolo oco de trinta centímetros de largura à beira da estrada.
Os tijolos estão empilhados no sítio onde os deixou há quase um ano. Recebeu-os de empreiteiros que sabiam que ele estava à procura de tijolos usados, e vêm de todas as partes da Nova Inglaterra - fábricas demolidas e alas de hospitais que se desmoronaram, mansões coloniais em ruínas e escolas abandonadas. Caleb gosta das suas marcas e falhas. Imagina que no barro vermelho poroso talvez haja velhos fantasmas ou anjos; não se importaria que qualquer um deles vagueasse pelos limites da sua propriedade.
Felizmente, já escavou para além da linha de congelação do solo. Há uma camada de pedra partida com quinze centímetros de espessura. Caleb agarra num saco de cimento Redi-Míx e despeja-o para dentro do carrinho de mão que usa para fazer as misturas. Desferir um golpe e arrastar, marcar um ritmo à medida que a água se mistura com a areia e o cimento. Consegue senti-lo apoderar-se de si assim que coloca o primeiro conjunto de tijolos, os ajeita em cima do cimento
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até assentarem - quando o seu corpo inteiro se dedica ao trabalho desta forma, a sua mente fica em aberto, em branco.
É a sua arte, e o seu vício. Movimenta-se ao longo da beira das fundações, colocando com graciosidade. Este muro não vai ser maciço; vai ter duas superfícies lisas, coroadas com uma camada decorativa de cimento. Nunca imaginaríamos que no seu interior a massa é áspera e feia, esborratada. Caleb não tem de ser cuidadoso nos sítios que não se vêem.
Estende a mão para agarrar num tijolo e os seus dedos tocam num objecto mais pequeno, mais liso. Um soldadinho de plástico daqueles verdes do exército. Da última vez que estivera a trabalhar nisto, Nathaniel tinha vindo com ele. Enquanto Caleb cavava a trincheira e a enchia de pedra, o filho tinha escondido um batalhão no forte feito de tijolos caídos.
Nathaniel tinha três anos.
- vou abater-te - dissera, apontando o soldadinho ao Mason, o golden retriever.
- Onde é que ouviste isso? - perguntou Caleb, rindo.
- Ouvi - disse Nathaniel com ar entendido - há muito tempo, quando era bebé.
«Assim há tanto tempo», pensara Caleb.
Agora, tem o soldadinho de plástico na mão. Uma lanterna oscila pelo caminho de acesso, e Caleb apercebe-se pela primeira vez de que o Sol já se pôs; que de alguma forma, imerso no seu trabalho, não reparou no final do dia.
- O que estás a fazer? - pergunta Nina.
- O que te parece que estou a fazer? - Agora?
Ele vira-se, escondendo o soldadinho de plástico no punho cerrado.
- Porque não?
- Mas é... é... - ela abana a cabeça. - vou deitar o Nathaniel.
- Precisas da minha ajuda?
Apercebe-se depois de as palavras lhe terem saído da boca que ela vai perceber mal. Queres ajuda, devia ter dito. Como seria previsível, Nina fica ofendida.
- Acho que passados cinco anos provavelmente consigo fazer isso sozinha - diz, e dirige-se novamente para casa, com a sua lanterna a saltar como um grilo.
Caleb hesita, sem ter a certeza se deveria ir atrás dela. Por fim, decide não o fazer. Em vez disso, semicerra os olhos sob as estrelas como pontas de alfinete e coloca o soldadinho de plástico na parte
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vazia entre os dois lados do muro. Assenta tijolos de ambos os lados, seguindo o traçado. Quando este muro estiver terminado, ninguém saberá que este militar está a dormir lá dentro. Ninguém excepto Caleb, que olhará para ele mil vezes por dia sabendo que pelo menos uma recordação incólume do seu filho foi salva.
Nathaniel está deitado na cama a pensar na vez em que tinha trazido um pintainho da escola. Bem, não era propriamente um pintainho... era um ovo que a menina Lydia tinha deitado para o lixo, como se fossem todos demasiado parvos para contar que agora havia três ovos em vez de quatro na incubadora. Os outros ovos, porém, tinham-se transformado em bolinhas de algodão amarelas que piavam. Portanto, nesse dia antes de o pai ir buscá-lo, Nathaniel entrou no gabinete da menina Lydia e tirou o ovo do caixote do lixo, enfiando-o na manga da camisola.
Tinha dormido com ele debaixo da almofada, certo de que se lhe dessem um pouco mais de tempo se transformaria num pintainho, como tinha acontecido aos outros. Mas só tinha dado origem a pesadelos - do pai a fazer uma omeleta de manhã, a partir a casca e um pintainho vivo a cair na frigideira ao rubro. O pai encontrou o ovo três dias depois junto à sua cama; tinha caído ao chão. Não tinha limpo a porcaria a tempo: Nathaniel ainda se lembrava do olho prateado sem vida, do corpo cinzento nodoso, aquilo que poderia vir a
ser uma asa.
Nathaniel pensava que a Criatura que tinha visto naquela manhã
- não era um pintainho, isso era certo - era a coisa mais assustadora que alguma vez existira. Mesmo agora, de vez em quando, quando pestaneja ela está lá, na parte de dentro das suas pálpebras. Deixou de comer ovos, porque tem medo do que possa estar lá dentro. Uma coisa que parece absolutamente normal por fora só pode estar disfarçada.
Nathaniel está a olhar para o tecto. Há coisas ainda mais assustadoras; sabe isso agora.
A porta do seu quarto abre-se mais e alguém entra. Nathaniel ainda está a pensar na Criatura, e no Outro, e não consegue ver nada devido à luz intensa do corredor. Sente algo fazer peso na cama, enrolar-se à sua volta, como se Nathaniel fosse a coisa morta e precisasse de formar uma casca para se esconder lá dentro.
- Está tudo bem - diz-lhe a voz do pai ao ouvido. - Sou só eu. os braços envolvem-no num abraço apertado, impedindo-o de tremer. Nathaniel fecha os olhos e, pela primeira vez depois de ter ido para a cama naquela noite, deixou completamente de ver o pintainho.
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No instante antes de entrarmos no consultório da Dr.a Robichaud no dia seguinte, uma esperança súbita invade-me. E se ela olhar para o Nathaniel e decidir que interpretou mal o seu comportamento? E se pedir desculpas, carimbando o ficheiro do nosso filho com letras vermelhas, ERRADO? Mas quando entramos, há uma outra pessoa que se juntou a nós, e basta isso para que o meu final de contos de fadas se desfaça em fumo. Num sítio tão pequeno como o condado de York, seria impossível estar do lado da acusação em casos de abuso de crianças e não conhecer Monica LaFlamme. Não tenho nada contra ela, em particular, só contra a sua agência. No nosso gabinete alteramos o acrónimo de DCJF à nossa maneira: AMAS - Aqueles Malditos Assistentes Sociais; ou SBM - Sociedade Burocrática do Maine. O último caso em que trabalhei com a Monica envolvia um rapaz a quem tinham diagnosticado uma perturbação de oposição - uma doença que, em último caso, nos impediu de acusar o seu agressor.
Levanta-se de mãos estendidas, como se fosse a minha melhor amiga.
- Nina... lamento muito.
Os meus olhos são de sílex; o meu coração é duro como um diamante. Não me deixo levar por estas tretas lamechas na minha profissão; e de maneira nenhuma vou deixar-me levar por elas na minha vida pessoal.
- O que pode fazer por mim, Monica? - pergunto de maneira brusca.
Vejo que a psiquiatra está chocada. Provavelmente nunca tinha ouvido ninguém ripostar ao DCJF. Provavelmente acha que devia receitar-me Prozac.
- Oh, Nina. Desejava muito poder fazer mais.
- Deseja sempre - digo, e é nesta altura que Caleb interrompe.
- Desculpe, ainda não fomos apresentados - murmura, apertando-me o braço em sinal de aviso. Aperta a mão a Monica e cumprimenta a Dr.a Robichaud, trazendo o Nathaniel lá para dentro para brincar.
- A Sr.a LaFlamme é a assistente social designada para o Nathaniel - explica a psiquiatra. - Achei que podia ser útil conhecê-la, para que responda a algumas das suas perguntas.
- Uma pergunta - começo. - Como é que faço para que o DCJF não se envolva?
A Dr. Robichaud olha nervosamente para Caleb, e em seguida para mim.
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- Em termos legais...
- Obrigada, mas em termos legais, sei bastante bem como as coisas se processam. Está a ver, esta pergunta tinha uma rasteira. A resposta é que o DCJF não está envolvido. Eles nunca se envolvem - estou a falar de mais, não consigo evitá-lo. Ver a Monica aqui é demasiado estranho, como se o trabalho e o lar tivessem viajado no tempo através do mesmo buraco de minhoca. - Dou-lhe um nome e digo-lhe o que essa pessoa fez... e depois pode ir fazer o seu trabalho?
- Bem - diz Monica, numa voz suave como caramelo. Sempre detestei caramelo. - É verdade, Nina, que uma vítima tem de identificar o agressor antes de...
A vítima. Reduziu o Nathaniel a qualquer um dos casos das centenas de casos em que fiquei do lado da acusação ao longo dos anos. A qualquer um dos maus resultados das centenas de maus resultados. É por isso, apercebo-me, que ver Monica LaFlamme no consultório da Dr. Robichaud me deixou virada do avesso. Significa que já atribuíram um número ao Nathaniel e criaram um ficheiro num sistema que sei estar destinado a deixá-lo ficar mal.
- Este é o meu filho - digo de dentes cerrados. - Não me interessa o que estabelece o procedimento, não me interessa que não tenham um nome; que não tenham nenhum nome durante meses ou anos. Então peguem em toda a população do Maine e vão excluindo os nomes um a um. Mas comecem, Monica. Meu Deus. Comecem.
Quando termino de falar, os outros estão a olhar para mim como se me tivesse crescido outra cabeça. Olho para Nathaniel - a brincar com blocos de construção, embora nenhuma destas pessoas de bem que se reuniram para o ajudar esteja a ver, por amor de Deus - e saio porta fora.
A Dr. Robichaud vem ter comigo no parque de estacionamento. Os calcanhares dela soam no pavimento, e sinto o cheiro de um cigarro a acender-se.
- Quer um?
- Não fumo. Mas obrigada.
Estamos encostadas a um carro que não é meu. Um Camaro preto enfeitado com dados de peluche. A porta não está trancada. Se entrar e for embora dali, poderei roubar a vida daquela pessoa também?
- Parece um pouco... desgastada - diz a Dr.a Robichaud. Perante isto, tenho de rir-me.
- A Distorção da Realidade é alguma disciplina do curso de medicina?
- Claro. Tem precedência para Mentir com Quantos Dentes se Tem na Boca - a Dr.a Robichaud acaba de fumar o cigarro e apaga-o,
pisando-o com o sapato. - Sei que é a última coisa que desejaria ouvir, mas no caso do Nathaniel, o tempo não é seu inimigo.
Ela não sabe. Nem sequer conhecia o Nathaniel há uma semana. Não olha para ele todas as manhãs lembrando-se, em contraste nítido, do rapazinho que costumava fazer tantas perguntas - porque é que os pássaros em cima dos cabos eléctricos não ficam electrocutados, porque é que o fogo é azul no centro, quem inventou o fio dental - que houve uma altura em que, estupidamente, desejei ter paz e sossego.
- Ele voltará para si, Nina - diz a Dr.a Robichaud numa voz suave.
Semicerro os olhos devido ao sol.
- A que preço?
Ela não tem resposta para isto.
- A mente do Nathaniel está a protegê-lo agora. Ele não está a sofrer. Não pensa tanto no que aconteceu como a Nina - hesitando, oferece um ramo de oliveira. - Podia indicar-lhe um psiquiatra de adultos, que podia receitar-lhe qualquer coisa. - Não quero medicamentos.
- Então talvez gostasse de ter alguém com quem falar.
- Sim - digo, voltando-me para ela. - O meu filho.
Olho novamente para o livro para verificar. Depois dou uma palmada na perna com uma mão e estalo os dedos.
- Cão - digo, e como se tivesse dito a sua deixa, o nosso retriever vem a correr.
Os lábios de Nathaniel curvam-se enquanto enxoto o cão.
- Não, Mason. Agora não - dá uma volta debaixo da mesa de ferro forjado, instalando-se aos meus pés. Um vento fresco de Outubro faz as folhas caírem para cima de nós: carmesins, ocres e douradas. Prendem-se nos cabelos de Nathaniel, enfiam-se nas páginas do manual de linguagem gestual como se fossem marcadores.
Devagar, as mãos de Nathaniel saem de debaixo das suas coxas. Aponta para si próprio, depois estende os braços, com as palmas das mãos viradas para cima. Dobrando os dedos, junta as mãos. «Eu quero». Dá palmadas na perna, tenta estalar os dedos.
- Queres o cão? - digo. - Queres o Mason?
O rosto de Nathaniel fica muito mais alegre. Acena com a cabeça, abrindo a boca num sorriso. É a sua primeira frase completa em quase uma semana.
Ao ouvir o nome, o cão levanta a sua cabeça peluda e espeta o nariz na barriga de Nathaniel.
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- Bem, tu é que pediste! - rio-me. Quando Nathaniel consegue afastar o Mason, tem as faces coradas de orgulho. Não aprendemos muitas coisas: os sinais para «querer», «mais», «beber» e «cão». Mas foi um começo.
Agarro na mão pequenina de Nathaniel, a qual posicionei para formar todas as letras do alfabeto da Linguagem Gestual Americana esta tarde... embora os dedos suaves e pequenos não fiquem assim tão bem enrolados em nós. Dobrando-lhe o dedo médio e o anelar, com todos os outros esticados, ajudo-o a fazer a combinação «I,L,Y» que significa «adoro-te» (I loveyou).
De repente Mason dá um salto, quase caindo em cima da mesa, e corre para o portão para saudar Caleb.
- O que se passa? - pergunta, olhando simultaneamente para o grosso manual e para a posição rígida da mão de Nathaniel.
- Nós - digo, deslocando intencionalmente o indicador de um ombro para o outro - estamos a trabalhar - cerro as mãos (o gesto para S) e bato com uma na outra, para simular trabalho árduo.
- Nós - anuncia Caleb, tirando o livro de cima da mesa e enfiando-o debaixo do braço - não somos surdos.
Caleb não acha bem que o Nathaniel aprenda a Linguagem Gestual Americana. Acha que se dermos essa ferramenta ao Nathaniel, ele pode nunca vir a ter um incentivo para voltar a falar. Acho que Caleb não tem gasto muito tempo a tentar adivinhar o que o filho quer comer ao pequeno-almoço.
- Olha para isto - insisto, e faço sinal a Nathaniel, tentando que ele faça outra vez a sua frase. - Ele é tão inteligente, Caleb.
- Eu sei que sim. Não é com ele que estou preocupado - agarra-me no cotovelo. - Posso falar contigo a sós por um minuto?
Entramos em casa e fechamos a porta de correr, para que Nathaniel não consiga ouvir.
- Quantas palavras achas que terás de lhe ensinar antes de seres capaz de começar a utilizar esta linguagem para lhe perguntares quem foi? - diz Caleb.
Intensas manchas de cor sobem-me às faces. Terei sido assim tão óbvia?
- Eu só quero, a Dr.a Robichaud só quer dar ao Nathaniel uma oportunidade de comunicar. Porque estar assim é frustrante para ele. Hoje ensinei-o a dizer «Quero o cão». Talvez queiras explicar ao teu filho por que razão estás tão determinado em tirar-lhe o único método que tem para se expressar.
Caleb estica as mãos abertas como um árbitro. É o sinal para não, embora tenha a certeza de que ele não sabe.
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- Não consigo discutir contigo, Nina. Fazes isso demasiado bem
- abre a porta e ajoelha-se junto a Nathaniel. - Sabes, está um dia demasiado bonito para estarmos aqui sentados, a estudar. Podes brincar no baloiço, se quiseres...
«Brincar: duas mãos a fazer o gesto para Y, presas pelos mindinhos para um aperto de mão.»
- Ou construir uma estrada na tua caixa de areia...
«Construir: mãos a fazer o gesto para U, sobrepondo-se uma à outra repetidamente.»
- ... e não tens de dizer nada, Nathaniel, se não estiveres preparado. Nem mesmo com palavras que fazes com as mãos - Caleb sorri para Nathaniel. - Está bem? - quando Nathaniel acena com a cabeça, Caleb pega nele ao colo, balançando-o por cima da sua cabeça para o sentar nos seus ombros. - O que dizes a irmos apanhar maçãs no bosque? - pergunta. - Eu faço de escadote.
Mesmo antes de ultrapassar os limites do nosso terreno, Nathaniel volta-se às cavalitas do pai. É difícil de ver a esta distância, mas parece que tem um braço esticado. Para acenar? Começo a acenar também, e depois apercebo-me de que os seus dedos estão a fazer aquela combinação «I,L,Y». e depois transformam-se no que parece ser um sinal de paz.
Posso não estar certa a nível técnico, mas consigo perceber o Nathaniel, perfeitamente.
«Também te adoro.»
Myrna Oliphant, a secretária que cinco delegados adjuntos do Ministério Público em Alfred partilham, é uma mulher com uma largura quase igual à sua altura. Os seus sapatos confortáveis rangem quando anda, cheira a gel para o cabelo Brylcreem, e consegue dactilografar umas extraordinárias cem palavras por minuto, embora nunca ninguém a tenha realmente visto fazê-lo. Peter e eu gracejamos sempre dizendo que vemos mais as costas de Myrna do que a cara, visto possuir um sexto sentido que a leva a desaparecer no instante em que qualquer um de nós precisa dela.
Portanto, quando entro no meu escritório oito dias depois de Nathaniel ter deixado de falar, e ela vem imediatamente ter comigo, sei que está tudo errado.
- Nina - diz num tom solidário. - Nina - leva a mão à garganta... há lágrimas verdadeiras nos seus olhos. - Se houver alguma coisa...
- Obrigada - digo, mortificada. Não me surpreende que ela saiba o que aconteceu; disse ao Peter e tenho a certeza de que ele contou a toda a gente os factos mais importantes. Os únicos dias de baixa que
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utilizei foram quando o Nathaniel teve amigdalite ou varicela; de alguma forma, a minha ausência no trabalho não foi diferente, tirando o facto de esta doença ser mais insidiosa. - Mas sabe, neste momento só preciso de tratar das coisas aqui para poder voltar para casa.
- Sim, sim - Myrna pigarreia, assumindo uma atitude profissional. - O Peter tem tratado dos seus recados, claro. E o Wallace está à sua espera - dirige-se de novo para a sua secretária, mas hesita um momento, lembrando-se. - Coloquei um bilhete na igreja - diz, e é nessa altura que me lembro de que também ela pertence à congregação de St. Anne s. Há um pequeno quadrado à parte no quadro do boletim Notícias e Mensagens, onde as pessoas podem pedir uma ave-maria ou um pai-nosso pelos membros da família ou amigos necessitados. Myrna sorri para mim. - Talvez Deus esteja a ouvir essas orações neste momento.
- Talvez - não digo o que estou a pensar: «E onde estava Deus quando tudo aconteceu?»
O meu escritório está exactamente como o deixei. Sento-me cuidadosamente na minha cadeira giratória, remexo nos papéis que estão em cima da secretária, ouço as mensagens no meu telefone. É bom voltar a um sítio que parece estar, e está, exactamente como me lembrava.
Alguém bate à porta. Peter entra e fecha a porta atrás de si. - Não sei o que dizer - admite.
- Então não digas nada. Entra e senta-te. Peter instala-se na cadeira do outro lado da secretária.
- Tens a certeza, Nina? Quero dizer, é possível que a psiquiatra esteja a tirar conclusões precipitadas?
- Eu vi os mesmos comportamentos que ela viu. E tirei as mesmas conclusões - olho para ele. - Um especialista encontrou provas físicas de penetração, Peter.
- Oh, meu Deus - Peter entala as mãos entre os joelhos, perplexo. - O que posso fazer por ti, Nina?
- Já estás a fazer. Obrigada - sorrio para ele. - De quem era a massa encefálica, no carro?
O olhar de Peter é suave no meu rosto.
- E isso que importa? Não devias estar a pensar nisso. Nem sequer devias estar aqui.
Sinto-me dividida entre fazer-lhe uma confidência e arruinar a boa impressão que tem de mim.
- Mas Peter - admito calmamente -, é mais fácil. Há um longo momento de silêncio. E depois:
- O melhor ano - desafia-me Peter.
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Observo a linha da vida. É fácil - fui promovida e tive o Nathaniel alguns meses depois.
- 1996. A melhor vítima?
- Poly Purebred dos desenhos animados Underdog - Peter olha para cima quando o nosso chefe, Wally Moffet, entra no nosso escritório. - Olá, chefe - dix a Wally, e depois volta-se para mim:
- Melhor amigo? - Peter levanta-se, dirige-se para a porta. - A resposta é sou eu. Seja o que for, quando for. Não te esqueças disto.
- Um bom homem - diz Wally, quando Peter sai. Wally é o típico delegado do Ministério Público: esguio como um tubarão, com muito cabelo e dentes de estrela de cinema que por si só poderiam reelegê-lo. Também é um excelente advogado, consegue abrir-nos o peito para chegar ao coração sem que nos apercebamos sequer do primeiro golpe. - Escusado será dizer que este trabalho estará aqui à tua espera quando estiveres preparada - começa Wally -, mas eu próprio te impedirei de entrar se estiveres a pensar em voltar mais cedo do que isso.
- Obrigada, Wally.
- Lamento mesmo muito, Nina.
- Sim - olho para baixo, para o meu mata-borrão. Há um calendário debaixo dele. Não há fotografias de Nathaniel em cima da minha secretária - um velho hábito que mantive desde os tempos do tribunal de comarca, quando a pior escumalha entrava no meu escritório para responder às acusações. Não queria que soubessem que tinha uma família. Não queria que isso voltasse para me assombrar.
- Posso... posso levar o caso a tribunal?
A pergunta é tão pequena, demoro um instante a aperceber-me de que a fiz. A pena nos olhos de Wally faz-me baixar os meus e olhar para o colo.
- Sabes que não podes, Nina. Não é que prefira que seja outra pessoa a meter este tarado na prisão. Mas ninguém no nosso gabinete poderá fazê-lo. Trata-se de um conflito de interesses.
Aceno com a cabeça, mas ainda não sou capaz de falar. Desejava-o, desejava-o tanto.
- Já telefonei para o gabinete do delegado do Ministério Público em Portland. Há lá um tipo que é bom - Wally esboça um sorriso sinuoso. - Quase tão bom como tu. Contei-lhes o que tinha acontecido, e que talvez tivéssemos de pedir a colaboração de tom LaCroix.
Tenho lágrimas nos olhos quando agradeço a Wallace. Ter-se colocado numa posição delicada - sem termos sequer um agressor para acusar - é extraordinário.
- Tomamos conta dos nossos - garante Wally. - Quem fez isto vai pagar.
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É uma frase que eu própria já utilizei, para acalmar pais desvairados. Mas sabia, mesmo ao dizê-la, que um custo igual será imputado ao filho deles. Apesar disso, porque é o meu trabalho, e porque habitualmente não há caso sem o depoimento de uma testemunha, digo aos pais que farei tudo para meter aquele monstro na prisão. Digo aos pais que no lugar deles faria tudo o que fosse preciso, inclusive colocar o filho no banco das testemunhas.
Mas agora sou eu a mãe, e este é o meu filho, e isso muda tudo.
Um sábado levei o Nathaniel para o meu escritório, para poder acabar de fazer algumas coisas no trabalho. Era uma cidade fantasma - as fotocopiadoras adormecidas como feras, os computadores cegos a piscar, os telefones silenciosos. Nathaniel ficou entretido com a máquina de destruir documentos enquanto eu revia alguns ficheiros.
- Porque é que me chamaste Nathaniel? - perguntou sem mais nem menos. Fiz uma marca no nome de uma testemunha que estava escrito num bloco.
- Significa «Presente de Deus».
As mandíbulas da máquina de destruir documentos retalhavam em conjunto. Nathaniel virou-se para mim.
- Vim dentro de um embrulho e tudo?
- Não eras bem esse tipo de presente - enquanto o observava, desligou a máquina de destruir documentos e começou a brincar com a colecção de brinquedos que eu tinha a um canto para as crianças que tivessem a pouca sorte de entrar no meu escritório. - Que nome preferias ter?
Quando estava grávida, no final de cada dia Caleb dizia boa noite ao bebé utilizando um nome diferente: Vladimir, Grizelda, Cuthbert. "Continua assim», disse-lhe, -e este bebé vai nascer com uma crise de identidade».
Nathaniel encolheu os ombros.
- Talvez pudesse ser Batman.
- Batman Frost - repeti, com um ar absolutamente sério. - Soa bem.
- Na minha escola há quatro Dylans: Dylan S., Dylan M., Dylan D., e Dylan T; mas não há nenhum Batman.
- O que é um facto muito importante - de repente, senti Nathaniel rastejar para debaixo da minha secretária, um peso quente nos meus pés. - O que estás a fazer?
- O Batman precisa de uma caverna, Mamã.
- Ah. Está certo - cruzei as pernas debaixo do corpo para dar mais espaço a Nathaniel e examinei um relatório da polícia. Nathaniel estendeu a mão para agarrar num agrafador, um walkie-talkie improvisado.
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O caso era uma violação, e a vítima tinha sido encontrada em estado comatoso dentro da banheira. Infelizmente, o agressor tinha sido suficientemente esperto para abrir a torneira, anulando assim quase todas as provas forenses que poderíamos ter obtido. Volto a página do ficheiro e fico a olhar para fotografias macabras do local do crime tiradas pela polícia, o rosto macilento e pálido da mulher que fora agredida.
- Mamã?
Virei a fotografia de imediato. É precisamente por isto que não misturo a minha vida profissional com a minha vida familiar.
- Hum?
- Apanhas sempre os maus?
Lembrei-me da mãe da vítima, que não conseguia parar de chorar o tempo suficiente para prestar declarações à polícia.
- Nem sempre - respondi.
- A maior parte das vezes?
- Bem - disse. - Pelo menos metade. Nathaniel pensou nisto por um momento.
- Suponho que seja o suficiente para seres um super-herói disse, e foi nessa altura que me apercebi que aquilo tinha sido uma entrevista para o lugar de Robin. Mas eu não tinha tempo para ser companheira de um desenho animado.
- Nathaniel - suspirei. - Tu sabes por que razão vim para aqui em particular, para me preparar para as alegações iniciais de segunda-feira. Para rever a minha estratégia e a minha lista de testemunhas.
Olhei para o rosto expectante de Nathaniel. Por outro lado, talvez se fizesse melhor justiça da Batcaverna. Um oximoro passou-me pela cabeça: «Hoje não vou fazer nada. vou fazer tudo o que quiser».
- Caramba, Batman - disse, descalçando os sapatos e rastejando para debaixo da secretária. Nunca tinha reparado que o interior era feito de pinho barato e não de mogno. - Robin apresenta-se ao serviço, mas só se puder conduzir o Batmóvel.
 - Não podes ser o Robin a sério.
- Pensei que a ideia era essa.
Nathaniel ficou a olhar para mim cheio de pena, como se alguém como eu já devesse ter aprendido as regras do jogo nesta altura da vida. Os nossos ombros batiam na secretária.
- Podemos trabalhar juntos e tudo, mas o teu nome tem de ser Mamã.
- Porquê?
Ele revirou os olhos. ? - Porque - disse-me Nathaniel. - É o que tu és.
- Nathaniel! - chamo, corando um pouco. Não é nenhum pecado, pois não, não ter controlo sobre o nosso filho? - Desculpe, Padre - digo, abrindo a porta para deixá-lo entrar. - Ultimamente tem-se mostrado... tímido com as visitas. Ontem, quando veio o homem da UPS. demorei uma hora a descobrir onde estava escondido.
O padre Szyszynski sorri para mim.
- Disse para comigo que devia ter telefonado antes, em vez de aparecer sem avisar.
- Oh, não. Não. Ainda bem que veio - isto é mentira. Não faço ideia do que devo fazer com um padre em casa. Sirvo biscoitos? Cerveja? Peço desculpa por todos os domingos em que não vou à missa? Confesso ter mentido logo de início?
- Bem, faz parte do trabalho diz o padre Szyszynski, indicando o seu colarinho. - A única coisa que tenho de fazer às sextas à tarde é ouvir as conversas na reunião das auxiliares.
- Isso é considerado uma regalia?
- É mais uma cruz que se carrega - diz o padre, e sorri. Senta-se no sofá da sala. O padre Szyszynski calça umas sapatilhas de corrida de alta tecnologia. Participa nas meias maratonas locais; os seus tempos estão afixados nos quadros das Notícias e Mensagens, ao lado dos papéis a pedir orações pelos necessitados. Até há uma fotografia sua, esguio e em forma, sem o seu colarinho, a cortar uma meta; na fotografia, não parece nada ser um padre; apenas um homem. Tem cerca de cinquenta anos, mas aparenta ser dez anos mais novo. Uma vez, ouvi-o dizer que tinha tentado fazer um pacto com Satanás para obter a juventude eterna, mas não conseguiu encontrar a extensão do diabo na agenda da diocese.
Quem terá sido o coscuvilheiro do grupo da igreja que contou ao padre o que nos tinha acontecido?
- O grupo de catequese sente falta do Nathaniel - diz-me. Está a ser politicamente correcto. Se quisesse ser mais exacto, diria que o grupo de catequese sente falta do Nathaniel em mais de metade dos domingos do ano, visto que não vamos regularmente à missa. Apesar disso, sei que o Nathaniel gosta de colorir desenhos na cave durante o serviço religioso. E gosta sobretudo do que se segue, quando o padre Szyszynski lhes lê uma velha Bíblia ilustrada para crianças enquanto o resto da congregação está lá em cima a tomar café. Senta-se logo no chão, no círculo deles, e, segundo Nathaniel, encena inundações, e pragas, e profecias.
Sei o que está a pensar - diz o padre Szyszynski.
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- Sabe.
Acena com a cabeça.
- Que em 2001 é arcaico presumir que a Igreja ocupe um espaço tão grande na nossa vida que ofereça algum conforto numa altura destas. Mas pode oferecer, Nina. Deus quer que vá ao Seu encontro.
Olho directamente para o padre.
- Ultimamente não tenho andado muito virada para Deus - digo abruptamente.
- Eu sei. Por vexes não faz muito sentido, a vontade de Deus - o padre Szyszynski encolhe os ombros. -Já houve alturas em que eu próprio duvidei Dele.
- É evidente que superou essas dúvidas - limpo os cantos dos olhos; porque estou a chorar? - Nem sequer sou verdadeiramente católica.
- É claro que é. Continua a voltar, não é verdade? Mas por culpa, não por fé.
- As coisas acontecem por alguma razão, Nina.
- Ah sim? Então faça-me um favor e pergunte a Deus que razão pode haver para deixar que uma criança seja magoada assim.
- Pergunte-Lhe a Nina - diz o padre. - E quando estiverem a conversar, é melhor lembrar-se de que têm algo em comum: também Ele viu o Seu filho sofrer.
Entrega-me um livro ilustrado - David e Golias, adaptado para crianças de cinco anos.
- Se o Nathaniel chegar a aparecer - levanta bastante a voz -, diga-lhe que o padre Glen deixou um presente para ele - é assim que lhe chamam todos os miúdos em St. Anne s, visto que não são capazes de pronunciar o seu apelido. «Caramba», dissera o padre, «depois de beber uns copos, nem eu sou capaz de pronunciá-lo». - O Nathaniel gostou particularmente desta história quando a li no ano passado. Queria saber se podíamos todos fazer fundas - o padre Szyszynski levanta-se, dirige-se para a porta à minha frente. - Se quiser falar, Nina, sabe onde pode encontrar-me. Cuide-se.
Começa a afastar-se, desce os degraus de pedra que Caleb colocou com as suas próprias mãos. Enquanto o observo a ir embora, aperto o livro junto ao peito. Penso nos fracos a derrotarem gigantes.
Nathaniel está a brincar com um barco, a afundá-lo e depois a vê-lo a voltar à superfície, oscilando. Acho que devo estar grata por ele estar sequer dentro da banheira. Mas ele hoje tem estado melhor.
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Tem falado com as mãos. E aceitou tomar este banho, desde que fosse ele a despir-se. Claro que o deixo, esforçando-me para não ir a correr ajudá-lo quando não conseguia desabotoar um botão. Tentei lembrar-me do que a Dr.a Robichaud nos disse sobre o poder: Nathaniel ficou indefeso; precisa de sentir que está novamente a ganhar controlo sobre si próprio.
Sento-me na borda da banheira, observando as suas costas a subir e a descer quando respira. O sabonete brilha como um peixe junto ao ralo.
- Precisas de ajuda? - pergunto, levantando uma mão com a outra, um sinal. Nathaniel abana a cabeça vigorosamente. Apanha a barra de marfim e passa-a pelo ombro, pelo peito, pela barriga. Hesita, e depois mergulha-a entre as pernas.
Está coberto por uma fina película branca que o torna irreal, um anjo. Nathaniel ergue o rosto para olhar para mim, dá-me o sabonete para que volte a colocá-lo no sítio. Por um momento, os nossos dedos tocam-se - na nossa nova linguagem, estes são os nossos lábios... será que faz disto um beijo?
Deixo cair o sabonete com um chape, e em seguida traço um círculo em volta da boca franzida com um dedo. Movimento os dedos indicadores para trás e para a frente, fazendo-os tocarem-se e afastarem-se. Aponto para Nathaniel.
«Quem te fez mal?»
Mas o meu filho não conhece estes sinais. Em vez disso, estende as mãos para os lados, exibindo orgulhosamente a sua palavra nova. «Acabei.» Ergue-se como uma ninfa do mar, com água a escorrer pelo seu lindo corpo. Enquanto limpo cada membro com a toalha e visto o pijama ao Nathaniel, interrogo-me silenciosamente se fui a única pessoa que lhe tocou neste sítio, e naquele, até que cada centímetro do seu corpo esteja novamente coberto.
A meio da noite Caleb ouve algo de errado na respiração da sua mulher.
- Nina? - sussurra, mas ela não responde. Ele vira-se de lado, envolve-a mais junto a si. Está acordada, consegue sentir isso sair-lhe dos poros. - Estás bem? - pergunta.
Ela volta-se para ele, de olhos baços na escuridão.
- E tu?
Ele abraça-a e esconde o rosto no seu pescoço. Respirá-la acalma Caleb; ela é o seu próprio oxigénio. Os lábios dele percorrem-lhe a pele, detêm-se na clavícula. Inclina a cabeça para ser capaz de ouvir o coração dela.
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Procura um lugar onde possa perder-se.
Portanto a sua mão vai do vale da sua cintura para a encosta de uma anca, enfiando-se para dentro da tira fina das suas cuecas. Nina sustém a respiração. Então, também está a sentir o mesmo. Precisa de se afastar dali, daquilo.
Caleb desliza mais para baixo e esfrega a palma da sua mão nela. Nina puxa-lhe os cabelos com mais força, quase ao ponto de doer.
- Caleb.
Agora está excitado, pesado e afundado no colchão.
- Eu sei - murmura, e enfia um dedo dentro dela. Está seca como um osso.
Nina puxa-lhe os cabelos, e desta vez ele sai de cima dela, que era o que ela queria desde o princípio.
- O que se passa contigo! - grita ela. - Não quero fazer isto. Agora não consigo - atira os cobertores para trás e sai do quarto dirigindo-se para a escuridão.
Caleb olha para baixo, vê a pequena gota de sémen que deixou nos lençóis. Sai da cama e tapa-a, para não ter de olhar para ela. Depois vai atrás de Nina, procurando-a por puro instinto. Durante bastante tempo, fica à porta do quarto do filho, observando-a a observar Nathaniel.
Caleb não nos acompanha ao consultório da psiquiatra na consulta seguinte. Diz que tem uma reunião que não pode desmarcar, mas eu acho que isso é apenas uma desculpa. Depois de ontem à noite, temos andado a evitar-nos. Para além disso, a Dr.a Robichaud agora está a trabalhar na linguagem gestual, até que Nathaniel recupere a voz, e Caleb discorda dessa táctica. Acha que quando o Nathaniel estiver pronto para nos dizer quem lhe fez mal, di-lo-á e, até lá, estamos apenas a pressioná-lo.
Quem me dera ter a paciência dele, mas não sou capaz de ficar aqui sentada e ver o Nathaniel esforçar-se. Não consigo deixar de pensar que em cada minuto que ele fica calado, há outra pessoa que devia ter ficado sem voz, petrificada.
Hoje, estivemos a trabalhar nos sinais práticos para os alimentos - cereais, leite, piza, gelado, pequeno-almoço. Os termos do livro de LGA estão agrupados desta forma - em unidades que funcionam em conjunto. Há uma imagem da palavra, com as letras, e depois um esboço de uma pessoa a fazer o sinal. Nathaniel pode escolher o que vamos estudar. Saltou das estações do ano para os alimentos e agora está de novo a folhear as páginas.
- Ninguém sabe onde irá parar... - graceja a Dr. Robichaud.
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O livro abre-se numa página com uma família.
- Oh, essa é boa -, digo, experimentando fazer o sinal no princípio: a mão a fazer o gesto para F, descrevendo um círculo que se afasta de nós.
Nathaniel aponta para a criança.
- Assim, Nathaniel - diz a Dr. Robichaud. - Rapaz - imita tocando na pala de um boné de basebol. Como muitos dos sinais que aprendi, este é uma correspondência perfeita do real.
- Mãe - continua a psiquiatra, ajudando Nathaniel a estender a mão, a tocar no queixo com o polegar e a agitar os dedos.
- Pai - o mesmo sinal, mas o polegar toca na testa. - Faz tu - diz a Dr.a Robichaud.
«Faz tu.»
Todas aquelas finas linhas pretas na página se enlearam umas nas outras, uma grossa cobra que vem na sua direcção, agarrando-o pelo pescoço. Nathaniel não consegue respirar. Não consegue ver. Ouve a voz da Dr.a Robichaud à sua volta, «pai pai, pai».
Nathaniel levanta a mão. Este sinal faz parecer que está a divertir-se à custa de alguém.
Só que não tem graça nenhuma.
- Vejam só, ele já é melhor do que nós - avança para o sinal seguinte, «bebé». - Muito bem. Nathaniel - diz a Dr Robichaud passado um momento. - Experimenta este.
Mas Nathaniel não experimenta. Tem a mão cerrada ao lado da cabeça, com o polegar espetado na têmpora.
- Querido, vais magoar-te - digo-lhe. Tento agarrar-lhe a mão e ele recua com um salto. Não vai parar de fazer o sinal para esta palavra.
A Dr.a Robichaud fecha o livro de LGA cuidadosamente.
- Nathaniel, queres dizer alguma coisa?
Ele acena com a cabeça, com a mão a abanar como um leque encostada à cabeça. O ar sai todo do meu corpo.
- Ele quer o Caleb...
A Dr.a Robichaud interrompe.
- Não fale por ele, Nina.
- Não pode estar a pensar que ele...
- Nathaniel, o teu papá alguma vez te levou a algum lado onde foram só os dois? - pergunta a psiquiatra.
Nathaniel parece ficar confuso com a pergunta. Acena com a cabeça lentamente.
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- Alguma vez te ajudou a vestir? - um outro aceno. - Alguma vez te abraçou, na tua cama?
Estou paralisada na minha cadeira. Os lábios parecem-me rígidos quando falo.
- Não é o que está a pensar. Ele só quer saber por que razão o Caleb não está aqui. Sente falta do pai. Não teria precisado de um sinal se... se... - nem consigo dizê-lo. - Podia ter apontado, milhares de vezes - sussurro.
- Podia recear as consequências de uma identificação tão directa - explica a Dr.a Robichaud. - Este tipo de identificação confere-lhe uma maior protecção psicológica. Nathaniel - continua num tom suave. - Sabes quem te fez mal?
Aponta para o livro de LGA. E faz novamente o sinal para «pai».
Devemos ter cuidado com o que desejamos. Passados todos estes dias, Nathaniel deu-nos um nome, e é aquele que eu nunca esperei ouvir. É aquele que me torna imóvel como uma pedra, o próprio material com o qual Caleb prefere trabalhar.
Ouço a Dr.a Robichaud fazer o telefonema para o DCJF; ouço-a dizer a Monica que há um suspeito, mas estou a centenas de quilómetros de distância. Estou a observar com a objectividade de alguém que sabe o que acontecerá a seguir. Será designado um detective para tomar conta do caso; o Caleb será chamado para interrogatório. O Wally Moffet contactará o gabinete do delegado do Ministério Público em Portland. O Caleb confessará e será condenado com base no seu depoimento; ou então o Nathaniel terá de acusá-lo em pleno tribunal.
Este pesadelo está apenas a começar.
Não seria capaz de fazê-lo. Sei-o tão bem como sei qualquer coisa sobre Caleb passados tantos anos. Ainda consigo vê-lo percorrer os corredores à meia-noite, segurando um Nathaniel bebé pelos pés, a única posição em que o nosso bebé cheio de cólicas parava de berrar. Consigo vê-lo sentado ao meu lado no dia em que o Nathaniel recebeu o diploma do infantário, como tinha chorado abertamente. Ele é um homem bom, forte e estável; o tipo de homem a quem confiaríamos a nossa vida, a vida do nosso filho.
Mas se acreditar que o Caleb está inocente, isso significa que não acredito no Nathaniel.
Pequenas recordações perturbam a minha mente. Caleb, sugerindo que Patrick podia ser o culpado. Porquê mencionar o seu nome, se não fosse para desviar as suspeitas de si próprio? Ou Caleb a dizer ao Nathaniel que não tinha de aprender a linguagem
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gestual se não quisesse. Qualquer coisa para impedir a criança de confessar a verdade.
Já conheci molestadores de crianças condenados. Não têm crachás, nem marcas, nem tatuagens a anunciarem o seu vício. Está escondido por trás de um suave sorriso de avô; está enfiado no bolso de uma camisa. São como todos nós. e é isso que os torna tão assustadores - saber que estas feras andam no meio de nós, e nós sem sabermos de nada.
Têm namoradas e mulheres que os amam, na ignorância.
Costumava interrogar-me como é que as mães não tinham nenhuma desconfiança de que isto estava a acontecer no seu lar. Teria de haver um momento em que tomaram a decisão de virar as costas antes que vissem algo que não queriam ver. Nenhuma mulher, pensava eu, podia dormir ao lado de um homem sem saber o que se passava na sua cabeça.
- Nina - Monica LaFlamme toca-me no ombro. Quando é que ela chegou? Sinto-me como se estivesse a acordar de um coma; forço-me a recuperar a consciência e procuro Nathaniel de imediato. Está a brincar no consultório da psiquiatra, ainda, com a pista de comboio Brio.
Quando a assistente social olha para mim, sei que foi isto que sempre suspeitou. E não posso culpá-la. No seu lugar, teria pensado o mesmo. Na realidade, no passado já o fiz.
A minha voz está envelhecida, despida.
-Já chamaram a polícia? ;ití!
Monica acena com a cabeça.
- Se puder fazer alguma coisa...
Preciso de ir a um sítio, e não posso levar o Nathaniel comigo. Custa-me ter de pedir, mas já perdi o meu barómetro de confiança.
- Sim - pergunto. - Pode ficar a tomar conta do meu filho?
Encontro-o na terceira obra, a fazer um muro de pedra. O rosto de Caleb ilumina-se quando reconhece o meu carro. Vê-me sair, e depois fica à espera do Nathaniel. Basta isso para me impulsionar para a frente, de forma que quando chego junto dele estou quase a correr, e dou-lhe uma bofetada com toda a minha força.
- Nina! - Caleb agarra-me nos pulsos e afasta-me dele. - Que raio!
- Seu sacana. Como foste capaz, Caleb? Como foste capaz?
Ele afasta-me, esfregando os dedos na face. A minha mão surge lá marcada, num rosa-vivo. Óptimo.
- Não sei de que estás a falar - diz Caleb. - Acalma-te.
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- Acalmo-me? - digo irada. - vou ser muito clara: o Nathaniel contou-nos. Contou-nos o que lhe fizeste.
- Não lhe fiz nada.
Durante algum tempo não digo uma palavra, limito-me a fitá-lo.
- O Nathaniel disse que eu... eu... - Caleb vacila. - Isso é ridículo. É o que todos dizem, os culpados, e isso deixa-me desfeita.
- Não te atrevas a dizer-me que o adoras.
- É claro que o adoro! - Caleb abana a cabeça, como se quisesse aliviá-la. - Não sei o que ele disse. Mas Nina, meu Deus. Meu Deus.
Quando não respondo, cada ano que passámos juntos desbobina-se, até estarmos ambos até aos joelhos numa desordem de recordações que não interessam. Os olhos de Caleb estão rasgados e húmidos.
- Nina, por favor. Pensa no que estás a dizer.
Olho para as minhas mãos, um punho firmemente cerrado sobre o outro. É o sinal para «em». Em sarilhos. Enamorada. Em todo
o caso.
- O que eu penso é que as crianças não inventam estas coisas. Que o Nathaniel não inventou isto - ergo os meus olhos ao encontro dos dele. - Não venhas para casa esta noite - digo, e regresso ao meu carro caminhando com grande precisão, como se o meu coração não se tivesse despedaçado dentro de mim.
Caleb observa os faróis traseiros do carro de Nina desaparecerem ao fundo da estrada. O pó que se levantou no seu rasto assenta e o cenário ainda parece o mesmo de há um minuto. Mas Caleb sabe que as coisas agora estão completamente diferentes; que não há maneira de voltar atrás.
Faz tudo pelo filho. Sempre fez, sempre fará.
Caleb olha para o muro que esteve a construir. Um metro, e ocupou-lhe a melhor parte do dia. Enquanto o filho estava no consultório de uma psiquiatra, a virar o mundo do avesso, Caleb esteve a assentar pedras, colocando-as umas ao lado das outras. Uma vez, quando namorava Nina, ensinou-a a assentar pedras de proporções que pareciam não se encaixar. "Só precisas de uma aresta em comum», tinha-lhe dito.
Por exemplo, este pedaço de quartzo irregular, colocado em diagonal junto a um bloco de arenito grande e baixo. Agora, levanta o pedaço de arenito e lança-o para a estrada, onde se parte em bocados. Ergue o quartzo e lança-o para o bosque atrás de si, rodopiando. Demole o muro, todo este trabalho cuidado, pedaço por pedaço. Depois afunda-se no monte de cascalho e leva as
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mãos cobertas de pó aos olhos, chorando pelo que não pode ser reconstruído.
Tenho de ir a mais um sítio. No gabinete do oficial de justiça do tribunal de comarca leste, movimento-me como um autómato. As lágrimas continuam a vir-me aos olhos, por muito que me esforce para as conter. Isto não é uma atitude profissional, mas estou-me nas tintas. Não se trata de um assunto profissional, trata-se de um assunto pessoal.
- Onde guarda os formulários para as ordens de protecção de menores? - pergunto à oficial de justiça, uma mulher que trabalha há pouco tempo no tribunal e de cujo nome não me lembro.
Olha para mim como se tivesse medo de responder. Depois aponta para um caixote. Preenche-o por mim, à medida que lhe vou ditando as respostas numa voz que não consigo colocar.
O juiz Bartlett recebe-me nos seus aposentos.
- Nina - ele conhece-me, todos eles me conhecem. - O que posso fazer por si?
Entrego-lhe o formulário e levanto o queixo. «Respira, fala, concentra-te.»
- Estou a apresentar-lhe isto por parte do meu filho, Meritíssimo. Preferia não o fazer em pleno tribunal.
Os olhos do juiz fitam os meus por algum tempo, e depois tira-me o papel das mãos.
- Diga-me - diz gentilmente.
- Existem provas físicas de abuso sexual - tenho o cuidado de não mencionar o nome de Nathaniel. Isso ainda não consigo fazer. E hoje, ele identificou o pai como agressor - o pai, não o meu marido.
- E a Nina? - pergunta o juiz Bartlett. - Está bem?
Abano a cabeça, de lábios cerrados. Aperto tanto as mãos que perco a sensibilidade nos dedos. Mas não digo uma palavra.
- Se puder fazer alguma coisa - murmura o juiz. Mas ele não pode fazer nada, nem ninguém pode, por muito que se ofereçam. Já tudo foi feito. E é esse o problema.
O juiz traça a paisagem acidentada da sua assinatura ao fundo do formulário.
- Sabe que isto é apenas temporário. Terá de haver uma audiência no prazo de vinte dias.
- São vinte dias que tenho para resolver isto.
Ele acena com a cabeça.
- Lamento, Nina.
Eu também. Por não ter visto o que se passava debaixo do meu nariz. Por não ter sabido proteger uma criança no mundo real, apenas no sistema legal. Por todas as escolhas que fiz, que me trouxeram a este momento. E sim, pela ordem de restrição que me abre um buraco no bolso queimando-o durante todo o caminho de regresso para junto do meu filho.
Estas são as regras em casa:
Fazer a cama de manhã. Lavar os dentes duas vezes por dia. Não puxar as orelhas ao cão. Comer os legumes todos, mesmo que não sejam tão bons como o esparguete.
Estas são as regras na escola:
Não trepar pela frente do escorrega. Não passar em frente aos baloiços-quando um amigo estiver a andar. Levantar a mão nas Actividades de Grupo quando temos alguma coisa para dizer. Qualquer um de nós pode jogar um jogo, se quiser. Vestir uma bata quando vamos pintar.
Também sei outras regras: Apertar o cinto de segurança. ? ? ;
Nunca falar com um estranho. Não dizer, senão no Inferno irei arder.
TRÊS
Afinal, a vida continua. Não existe nenhuma regra cósmica que nos conceda imunidade aos detalhes só porque nos deparámos com uma catástrofe. Os caixotes do lixo ainda transbordam, as contas aparecem no correio, os operadores de telemarketing interrompem o jantar.
Nathaniel entra na casa de banho mesmo quando estou a pôr a tampa na bisnaga de Preparação H. Uma vez li que aplicá-la na pele em volta dos olhos faz desaparecer o inchaço, a vermelhidão. Volto-me para ele com um sorriso tão grande que o faz recuar.
- Olá, querido. Lavaste os dentes? - ele acena com a cabeça, e eu agarro-lhe na mão. - Então vamos ler um livro.
Nathaniel trepa para cima da cama como qualquer outro menino de cinco anos - é uma selva, e ele é um macaco. A Dr.a Robichaud disse que as crianças recuperam rápido, até mais rápido do que os pais. Agarro-me a esta desculpa enquanto abro o livro - sobre um pirata cego de um olho que não consegue ver que o papagaio em cima do seu ombro é na realidade um caniche. Leio as primeiras três páginas, e então Nathaniel interrompe-me, com a mão aberta sobre as imagens de cores vivas. Agita o indicador e em seguida leva essa mão à testa, num sinal que desejava não voltar a ver.
«Onde está o Papá?»
Agarro no livro e ponho-o em cima da mesa-de-cabeceira.
- Nathaniel, esta noite ele não vem para casa - «Não vem para casa mais noite nenhuma», penso.
Franze o sobrolho ao olhar para mim. Ainda não sabe perguntar «porquê», mas é isso que o atormenta. Estará a pensar que é o responsável pelo exílio de Caleb? Disseram-lhe que haveria algum tipo de contrapartida por confessar?
Segurando as suas mãos entre as minhas - para evitar que me interrompa - tento tornar as coisas o mais simples possível.
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- Agora, o Papá não pode estar aqui.
Nathaniel liberta os braços, dobra os dedos para cima, fechando-os. «Quero.»
Meu Deus, eu também quero. Nathaniel, zangado, afasta-se de mim.
- O que o Papá fez - digo numa voz entrecortada - é errado. Ao ouvir isto, Nathaniel endireita-se num ápice. Abana a cabeça
veementemente.
Já vi isto antes. Se um dos pais estiver a abusar sexualmente do filho, muitas vezes diz à criança que se trata de um acto de amor. Mas Nathaniel continua a abanar a cabeça, com tanta força que o cabelo voa de um lado para o outro.
- Pára. Nathaniel, pára por favor - quando o faz, olha para mim com a expressão mais estranha, como se não me compreendesse.
É por isso que digo as palavras em voz alta. Preciso de ouvir a verdade. Preciso da confirmação do meu filho.
- O Papá fez-te mal? - sussurro, a pergunta crucial que a Dr.a Robichaud não quis fazer, não quis deixar-me fazer.
Nathaniel irrompe em lágrimas e esconde-se debaixo dos cobertores. Não sai de lá, nem mesmo quando lhe peço desculpa.
Tudo dentro do quarto do motel é da cor do musgo molhado - o tapete esfarrapado, o lavatório, a colcha biliosa. Caleb liga o aquecimento e o rádio. Descalça os sapatos e coloca-os cuidadosamente junto à porta.
Isto não é um lar; mal se pode considerar uma residência. Caleb pensa nas outras pessoas que estão hospedadas nos outros quartos aqui em Saco. Estarão todos no limbo como ele?
Não consegue imaginar dormir aqui uma noite. E no entanto sabe que viverá ali toda uma vida, se isso for necessário para ajudar o filho. Daria tudo por Nathaniel. Aparentemente, até o seu próprio ser.
Caleb senta-se na beira da cama. Levanta o auscultador do telefone, e depois apercebe-se de que não tem ninguém a quem telefonar. Mas encosta-o ao ouvido durante alguns momentos, até que surja a telefonista a relembrar-lhe que, aconteça o que acontecer, do outro lado, há alguém a escutar.
Não há nada a fazer: Patrick não consegue começar o dia sem um croissant de chocolate. Os outros polícias estão constantemente a troçar dele - «És demasiado fino para os donuts, não é verdade, Ducharme?» Põe termo ao assunto, disposto a sofrer alguma chacota desde que a secretária da polícia que encomenda todos os dias o
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tabuleiro de bolos inclua os seus favoritos. Mas naquela manhã, quando entra na cantina para ir buscar a sua merenda e encher a chávena de café, o croissant de Patrick não está lá.
- Oh, então rapazes - diz ele ao polícia de giro que se encontra ao seu lado. - Vocês estão a ser imbecis? Esconderam-no outra vez na casa de banho das senhoras?
- Não lhe tocámos, Tenente, juro.
Suspirando, Patrick sai da cantina dirigindo-se à secretária onde Mona está a ver o seu correio electrónico.
- Onde está o meu croissant? Ela encolhe os ombros.
- Fiz a mesma encomenda de sempre. Não me pergunte isso a mim.
Patrick começa a percorrer a esquadra de polícia, examinando as secretárias dos outros detectives e a sala onde os polícias de rua descansam durante o intervalo. Passa pelo chefe no corredor.
- Patrick, tens um segundo?
- Neste preciso momento, não.
- Tenho um caso para ti.
- Pode deixá-lo em cima da minha secretária? O chefe esboça um sorriso pretensioso.
- Quem me dera que fosses tão determinado com o teu trabalho como és com os teus malditos donuts.
- Croissants - grita Patrick nas suas costas quando já ia embora.
- É diferente.
Na sala de detenções, sentado ao lado do entediado sargento de serviço, encontra o culpado: um rapaz que parece estar a brincar aos polícias vestido com a farda do pai. Cabelos castanhos, olhos brilhantes, chocolate no queixo.
- Quem diabo és tu? - pergunta Patrick. -Guarda Orleans. O sargento de serviço cruza as mãos por cima do seu amplo
estômago.
- E aqui o detective que está prestes a cortar-te a cabeça é o Tenente Ducharme.
- Porque é que ele está a comer o meu pequeno-almoço, Frank? O polícia mais velho encolhe os ombros.
- Porque só está aqui há um dia...
- Seis horas! - corrige o rapaz orgulhosamente. Frank revira os olhos.
- Não sabia. :, .-
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- Mas tu sabes.
- Pois, mas se lhe tivesse dito não teria visto esta confusão toda. O novato estende o resto do croissant, a sua oferta de paz.
- Eu, ha, peço desculpa, Tenente.
Patrick abana a cabeça. Pondera ir ao frigorífico assaltar o almoço que a mãe do rapaz provavelmente lhe preparou.
- Que isto não aconteça outra vez.
Que raio de maneira de começar o dia; conta com a combinação da cafeína do chocolate e com o café para o despertar. Às dez horas, de certeza, terá uma dor de cabeça monstruosa. Patrick regressa à sua secretária e ouve o seu correio de voz - três mensagens; a única que realmente lhe interessa é a de Nina. «Telefona-me», diz - é tudo, nenhum nome, nada. Levanta o auscultador do telefone, e depois repara no ficheiro que o chefe deixou em cima da sua secretária.
Patrick abre a pasta, lê o relatório do DCJF. O auscultador cai em cima da secretária, onde fica a zunir muito depois de ele ter saído a correr do seu gabinete.
- Está bem - diz Patrick pausadamente. - vou tratar disto imediatamente. vou falar com o Caleb assim que sair daqui.
Não aguento mais o tom incrivelmente calmo da sua voz. Passo as mãos pelo cabelo.
- Por amor de Deus, Patrick. És capaz de parar de ser tão... tão polícia?
- Queres que te diga que me apetece espancá-lo até ficar inconsciente por ter feito isto ao Nathaniel? Que depois voltava a espancá-lo pelo que te fez a ti?
A fúria na sua voz surpreende-me. Inclino a cabeça, reflectindo na sua raiva.
- Sim - respondo suavemente. - Realmente quero que me digas isso - pousa a mão na minha nuca. Parece uma oração. - Não sei o que hei-de fazer.
Os dedos de Patrick envolvem o meu crânio, separam as madeixas do meu cabelo. Entrego-me a isto; imagino que ele lê os meus pensamentos.
- É para isso que me tens - diz ele.
Nathaniel fica contrariado quando lhe digo aonde vamos. Mas se ficar em casa mais um minuto, vou enlouquecer.
A luz é filtrada pelos painéis de vitrais do tecto da igreja de St. Anne s, envolvendo o Nathaniel e eu num arco-íris. A esta hora, num dia de semana, a igreja está silenciosa como um segredo. Ando com
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o maior cuidado, tentando não fazer mais barulho do que o absolutamente necessário. Nathaniel arrasta os pés, roçando os ténis no chão de mosaico.
- Pára com isso - sussurro, e imediatamente arrependo-me de o ter feito. As minhas palavras reverberam nas arcadas de pedra e nos bancos polidos e correm de novo para mim. Brilham tabuleiros de velas votivas brancas; quantas delas terão sido acesas pelo meu filho?
- Só demoro um minuto - digo ao Nathaniel, instalando-o num dos bancos com uma mancheia de carrinhos Matchbox. A madeira polida faz uma pista de corridas perfeita; para prová-lo, lanço um bólide a acelerar até ao outro extremo. Em seguida, dirijo-me aos confessionários antes que mude de ideias.
A cabina é apertada e sobreaquecida. Uma grade abre-se deslizando junto do meu ombro; embora não consiga vê-lo, consigo sentir o cheiro da goma que o padre Szyszynski usa nas suas camisas clericais.
Há um conforto na confissão, nem que seja pelo facto de seguir regras que nunca são quebradas. E por muito tempo que tenha passado, lembramo-nos sempre, como se houvesse um subconsciente colectivo católico. Nós falamos, o padre responde. Começamos pelos pecados mais pequenos, empilhando-os como uma torre de blocos com o alfabeto, e o padre manda-nos rezar uma oração para deitá-los ao chão, para que possamos começar de novo.
- Perdoe-me, padre, porque pequei. Passaram-se quatro meses desde a minha última confissão.
Se ficou chocado, disfarça muito bem.
- Eu... eu não sei porque estou aqui - silêncio. - Descobri uma coisa, recentemente, que está a acabar comigo.
- Continue.
- O meu filho... fizeram-lhe mal.
- Sim, eu sei. Tenho rezado por ele.
- Acho... parece... foi o meu marido que lhe fez isto.
Na pequena cadeira dobrável, estou dobrada ao meio. Dores agudas percorrem o meu corpo, e eu recebo-as de braços abertos. a esta altura pensei que era incapaz de sentir fosse o que fosse.
Faz-se um silêncio tão longo que me interrogo se o padre me terá ouvido. Depois:
- E qual é o seu pecado?
- O meu... o quê?
- Não pode confessar-se pelo seu marido.
A raiva borbulha como alcatrão, queimando-me a garganta. Não era essa a minha intenção.
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- Então o que queria confessar hoje?
Vim simplesmente para dizer em voz alta as palavras a alguém cuja função é ouvir. Mas em vez disso digo:
- Não mantive o meu filho em segurança. Não me apercebi de nada.
- A inocência não é um pecado.
- Então e a ignorância? - fito a grade entre nós. - Então e ser suficientemente ingénua para pensar que conhecia verdadeiramente o homem por quem me apaixonei? Então e desejar fazê-lo sofrer da mesma maneira que o Nathaniel está a sofrer?
O padre Szyszynski deixa que esta frase perdure.
- Talvez ele esteja. Recupero o fôlego.
- Eu amo-o - digo numa voz empastada. - Amo-o tanto quanto o odeio.
- Precisa de perdoar-se a si própria por não se ter apercebido do que estava a acontecer. Por querer contra-atacar.
- Não sei se sou capaz.
- Pois bem - uma pausa. - É capaz de perdoá-lo a ele? Olho para a sombra que é o rosto do padre.
- Não sou assim tão piedosa - digo, e saio do confessionário antes que ele possa impedir-me.
De que serve; já estou a viver a minha penitência. Ele não quer estar aqui.
A igreja tem o mesmo som dentro da sua cabeça - um sussurro que é mais alto do que todas as palavras que não estão a ser ditas. Nathaniel olha para a pequena câmara em que a sua mãe entrou. Empurra um carro ao longo do banco. Consegue ouvir o seu coração.
Estaciona o resto dos carrinhos Matchbox nos seus lugares e sai do banco devagar. com as mãos enfiadas debaixo da camisola, como um pequeno animal, Nathaniel percorre a nave principal da igreja em bicos de pés.
Junto ao altar ajoelha-se nos degraus para rezar. Aprendeu uma oração na catequese, que devia rezar à noite, o que habitualmente se esquecia de fazer. Mas lembra-se de que podemos rezar por qualquer coisa. É como um desejo que se pede ao apagar as velas de aniversário, só que vai directamente para Deus.
Reza para que da próxima vez que tente dizer alguma coisa com as mãos, toda a gente o entenda. Reza para ter o seu pai de volta.
Nathaniel repara numa estátua de mármore ao seu lado - uma mulher, com o Menino Jesus ao colo. Não se lembra do nome dela,
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mas está ali em toda a parte - nos quadros e nas tapeçarias e em mais estátuas de pedra. Em todas elas há uma mãe com o filho.
Interroga-se se alguma vez terá havido um pai em cima daquele pedestal, naquele quadro, retratado com o resto da sagrada família. Interroga-se se todos os pais serão levados para longe.
Patrick bate à porta do quarto que o gerente do Coz-E-Cotlages lhe indicou. Quando esta se abre, Caleb está do outro lado, de olhos vermelhos e barba por fazer.
- Olha - diz Patrick imediatamente -, isto é incrivelmente difícil. Caleb olha para o distintivo de polícia que Patrick tem na mão.
- Algo me diz que é um pouco mais difícil para mim do que para ti.
Este é o homem que vive com Nina há sete anos. Dorme ao seu lado, tem um filho dela. Este é o homem que tem vivido a vida que Patrick desejava. Achava que se tinha resignado com o rumo que as coisas tinham tomado. Nina estava feliz, Patrick queria que ela fosse feliz, e se isso implicasse que ele próprio tivesse de se afastar, tanto pior. Mas essa equação só resultava se o homem que Nina escolheu fosse digno dela. Se o homem que Nina escolheu não a fizesse chorar.
Patrick sempre achou que Caleb era um bom pai. e agora surpreende-o um pouco aperceber-se do quanto desejava que Caleb fosse o agressor. Se assim for, Caleb fica imediatamente desacreditado. Se assim for, há uma prova de que Nina escolheu o homem errado.
Patrick sente os seus dedos cerrarem-se em punhos, mas refreia o seu impulso de infligir dor. A longo prazo, isso não ajudará a Nina nem o Nathaniel.
- Foste tu que a levaste a fazer isto? - diz Caleb com voz tensa.
- Foste tu próprio que fizeste tudo sozinho - responde Patrick.
- Estás disposto a acompanhar-me até à esquadra?
Caleb agarra num casaco que estava em cima da cama.
- Vamos agora mesmo - diz.
À soleira da porta, estende a mão e toca no ombro de Patrick. O instinto de Patrick fá-lo tenso; a razão obriga-o a descontrair-se. Volta-se e olha friamente para Caleb.
- Não fui eu - diz Caleb num tom calmo. - A Nina e o Nathaniel são a minha outra metade. Quem seria assim tão estúpido para destruir isso?
Patrick não deixa que os seus olhos o traiam. Mas pensa, pela primeira vez, que talvez Caleb esteja a dizer a verdade.
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Outro homem talvez não se sentisse à vontade com a relação que a sua própria mulher tinha com Patrick Ducharme. Embora Caleb nunca tivesse duvidado da fidelidade de Nina - nem dos sentimentos que nutria por ele - Patrick não ocultava o que sentia o seu pobre coração. Ao longo de muitos jantares Caleb tinha observado os olhos de Patrick seguirem a sua mulher a andar de um lado para o outro na cozinha; tinha visto Patrick rodopiar Nathaniel no ar e enfiar as gargalhadas do rapazinho nos bolsos quando pensava que ninguém estava a ver. Mas Caleb não se importava realmente. Afinal, Nina e Nathaniel eram dele. Se sentia alguma coisa por Patrick era pena, por não ser tão afortunado como ele.
No início, Caleb tinha tido ciúmes da amizade tão próxima que Nina e Patrick tinham. Mas ela era uma mulher que tinha muitos amigos. E tornou-se rapidamente evidente que Patrick representava uma parte muito importante do passado de Nina: pedir-lhe que o afastasse da sua vida teria sido um erro, como separar gémeos siameses que partilhassem o mesmo coração.
Agora está a pensar em Nina, sentado à mesa cheia de marcas da sala de investigações da esquadra da polícia, com Patrick e Monica LaFlamme. Lembra-se, especificamente, da forma como Nina tinha negado categoricamente qualquer sugestão de que pudesse ter sido Patrick a fazer mal a Nathaniel - e no entanto, apenas alguns dias depois, tinha aparentemente acusado Caleb sem pensar duas vezes.
Caleb estremece. Uma vez, Patrick dissera que mantinham a temperatura das salas de interrogatório cinco graus mais baixa do que o resto da esquadra, para que os suspeitos se sentissem fisicamente desconfortáveis.
- Estou detido? - pergunta.
- Estamos apenas a conversar - Patrick não olha nos olhos de Caleb. - Como velhos amigos.
Velhos amigos, pois claro. Como Hitler e Churchill.
Caleb não quer estar ali sentado, a defender-se. Quer falar com o filho. Quer saber se Nina acabou de lhe ler o livro do pirata. Quer saber se Nathaniel voltou a molhar a cama.
- É melhor começarmos - Patrick liga um gravador.
Caleb apercebe-se subitamente de que a pessoa que constitui a sua melhor fonte de informações está sentada a um metro de distância.
- Tu viste o Nathaniel - murmura. - Como está ele?
Patrick olha para cima, surpreendido. Está habituado a ser ele a fazer as perguntas.
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- Ele estava bem, quando estiveste lá? Parecia ter estado a chorar?
- Ele estava... estava bem, dadas as circunstâncias - diz Patrick.
- Agora...
- Às vezes, quando não quer comer, conseguimos distraí-lo falando sobre alguma coisa de que ele goste. Futebol, ou rãs, por exemplo. E enquanto falamos estamos sempre a pôr-lhe comida no garfo. Diz à Nina.
- Vamos falar sobre o Nathaniel.
- O que achas que estou a fazer? Ele já disse alguma coisa? Verbalmente, quero dizer. Sem ser com as mãos?
- Porquê? - pergunta Patrick na defensiva. - Estás preocupado por ele poder contar-nos mais alguma coisa?
- Preocupado? Não me importava que a única palavra que conseguisse dizer fosse o meu nome. Não me importava que isso implicasse ficar a vida inteira atrás das grades. Quero apenas ouvi-la.
- A acusação dele?
- Não - diz Caleb. - A sua voz.
Já não tenho mais nenhum sítio para onde ir. O banco, os correios, um gelado para o Nathaniel. Um parque nas redondezas, uma loja de animais. Depois de sair da igreja, andámos de edifício em edifício, a tratar de assuntos que não precisam de ser tratados, só para não ter de regressar à minha própria casa.
- Vamos visitar o Patrick - anuncio, virando à última hora para o parque de estacionamento da esquadra da polícia de Biddeford. Ele vai odiar-me por isto (a ver como está a decorrer a sua investigação), mas, acima de tudo, vai compreender. No assento de trás do carro, Nathaniel atira-se para o lado, para que eu saiba o que ele pensa desta ideia.
- Cinco minutos - prometo.
O vento frio sacode ruidosamente a bandeira americana enquanto o Nathaniel e eu percorremos o caminho em direcção à porta de entrada. «Justiça para todos.» Quando estamos a cerca de seis metros de distância, a porta abre-se. Patrick sai primeiro, protegendo os olhos do sol. Imediatamente atrás dele vêm Monica LaFlamme e Caleb.
Nathaniel sustém a respiração, e depois liberta-se de mim. Simultaneamente, Caleb vê-o e apoia-se num joelho. Os seus braços agarram Nathaniel com força, num abraço apertado. Nathaniel olha para mim com um grande sorriso, e nesse horrível momento apercebo-me de que ele pensa que planeei isto para ele, uma surpresa maravilhosa.
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Patrick e eu mantemo-nos à distância, como dois ampara-livros, a enquadrar esta história à medida que se desenrola. Ele recompõe-se primeiro.
- Nathaniel - diz Patrick num tom calmo, firme, e prepara-se para afastar o meu filho. Mas o Nathaniel não deixa. Coloca os braços em volta do pescoço de Caleb, tenta enfiar-se dentro do seu casaco.
Por cima da cabeça do nosso filho, os olhos de Caleb encontram os meus. Levanta-se, levando o Nathaniel com ele.
Obrigo-me a desviar o olhar. A pensar nas centenas de crianças que conheci - aquelas que estão maltratadas, e sujas, e esfomeadas, e negligenciadas - que gritam quando são retiradas das suas casas, e imploram para ficar com uma mãe ou um pai que abusam delas.
- Companheiro - diz Caleb calmamente, obrigando Nathaniel a olhar para ele. - Sabes que o que eu mais gostava agora era de estar algum tempo contigo. Mas... tenho de fazer uma coisa.
Nathaniel abana a cabeça, de rosto franzido.
- vou ver-te assim que puder - Caleb caminha na minha direcção, balançando Nathaniel nos seus braços; arranca-o do seu próprio corpo e coloca-o no meu abraço. Nesta altura, Nathaniel está a chorar tanto que os soluços silenciosos o sufocam. A sua caixa torácica estremece debaixo da palma da minha mão, como um dragão a voltar à vida.
Enquanto Caleb se dirige à sua carrinha, Nathaniel ergue os olhos. Estão semicerrados e quase negros. Levanta o punho cerrado e bate-me no ombro. Depois fá-lo outra vez, e outra, num acesso de mau génio virado contra mim.
- Nathaniel! - diz Patrick rispidamente, Mas não dói nada. Nada que se compare com tudo o resto.
- Deve estar preparada para que haja alguma regressão - diz a Dr.a Robichaud num tom calmo, enquanto observamos o Nathaniel, inerte, deitado de barriga para baixo na carpete da sala dos brinquedos. - A família dele está a desfazer-se; na sua cabeça, ele é o responsável por isso.
- Ele correu para o pai - digo. - Devia ter visto.
- Nina, sabe melhor do que a maioria das pessoas que isso não prova que Caleb seja inocente. As crianças nessa situação acreditam que têm um laço especial que os liga ao pai. O facto de o Nathaniel ter corrido para ele... isso é um comportamento típico.
Ou talvez, permito-me pensar, Caleb não tenha feito nada de mal. Mas afasto a dúvida, porque agora estou do lado de Nathaniel.
- Então o que devo fazer?
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- Absolutamente nada. Continue a ser a mãe que sempre foi. Quanto melhor o Nathaniel compreender que há partes da sua vida que não se vão alterar, mais depressa superará as mudanças.
Mordo o lábio. É para o bem de Nathaniel que devo admitir os meus próprios erros, mas isso nunca é fácil.
- Talvez não seja uma ideia assim tão boa. Trabalho sessenta horas por semana. Não era propriamente eu que tratava de tudo. Era o Caleb - apercebo-me, demasiado tarde, de que estas não eram as palavras certas. - Quero dizer... bem, sabe o que eu quero dizer.
Nathaniel virou-se de lado. Ao contrário das outras vezes que viemos ao consultório da Dr.a Robichaud, hoje nada lhe chamou a atenção. Os lápis de cera estão no mesmo sítio, os blocos estão arrumados numa pilha ao canto, o teatro de fantoches é uma cidade fantasina.
A psiquiatra tira os óculos e limpa-os à camisola.
- Sabe, como mulher de ciências, sempre acreditei que temos poder para dar forma às nossas vidas. Mas há uma grande parte de mim que também pensa que as coisas acontecem por alguma razão, Nina - a Dr.a Robichaud olha para o Nathaniel, que agora se pôs de pé, e está finalmente a dirigir-se para a mesa. - Talvez ele não seja o único a começar de novo.
Nathaniel quer desaparecer. Não pode ser assim tão difícil; acontece todos os dias a todo o tipo de coisas. A poça de água da chuva à porta da escola deixa de existir quando o Sol está a meio do céu. A sua escova de dentes azul desaparece e é substituída por uma vermelha. O gato dos vizinhos sai para a rua uma noite e nunca mais volta. Quando pensa nisto tudo, começa a chorar. Portanto tenta sonhar com coisas boas - X-Men, o Natal e cerejas marasquino - mas nem sequer é capaz de visualizar as suas imagens na sua cabeça. Tenta imaginar a sua festa de aniversário, em Maio, e só consegue ver tudo negro.
Quem lhe dera poder fechar os olhos e adormecer para sempre, ficar naquele lugar onde os sonhos parecem tão reais. De repente, ocorre-lhe um pensamento: talvez o pesadelo seja isto. Talvez acorde e tudo esteja no seu lugar.
Pelo canto do olho, Nathaniel vê aquele estúpido livro grosso com aquelas mãos todas. Se não fosse aquele livro, se nunca tivesse aprendido a falar com os dedos, se tivesse ficado quieto, isto não teria acontecido. Levantando-se, dirige-se à mesa onde está pousado. É um caderno, com o tipo de encadernação com três grandes dentes. Nathaniel sabe abri-los; tem-nos em casa. Quando a mandíbula está bem aberta, tira a primeira página, a que tem um homem alegre e sorridente
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que utiliza a mão para dizer olá. A página seguinte mostra um cão e um gato e os respectivos sinais. Nathaniel atira ambas para o chão.
Começa a arrancar grandes pedaços de papel, espalhando-os a seus pés como neve. Pisa as páginas com desenhos de alimentos. Rasga ao meio aquelas que mostram uma família. Observa-se a si próprio a fazer tudo isto na parede mágica, um espelho deste lado, mas vidro do outro. E então olha para baixo e vê qualquer coisa.
Esta imagem, é aquela que procurava desde o princípio.
Agarra no pedaço de papel com tanta força que ele se amachuca na sua mão. Vira-se para a porta que conduz ao consultório da Dr.a Robichaud, onde a sua mãe está à espera. Fá-lo exactamente da mesma maneira que o homem a preto e branco na página o faz. Juntando o polegar e o indicador, Nathaniel move-os ao longo do pescoço, como se estivesse a cortar a sua própria cabeça.
Ele quer matar-se.
- Não, Nathaniel - digo, abanando a cabeça. - Não, querido, não - as lágrimas escorrem-lhe pelas faces, e ele agarra-se com força à minha camisola. Quando tento segurá-lo, debate-se, alisa uma folha de papel no meu joelho. Espeta o dedo num dos esboços.
- Devagar - diz a Dr.a Robichaud, e Nathaniel vira-se para ela. Traça novamente uma linha ao longo da traqueia. Bate com os indicadores um no outro. Depois aponta para ele próprio.
Olho para o papel, para o único sinal que não reconheço. Tal como os outros grupos no livro de LGA, este também tem um título. SÍMBOLOS RELIGIOSOS. E o movimento das mãos de Nathaniel não fora suicida. Estava a traçar um colarinho clerical imaginário; é este o sinal para padre.
«Padre. Fez-me Mal.»
As peças encaixam-se na minha cabeça: Nathaniel ficou obcecado pela palavra pai - embora sempre tenha chamado papá a Caleb. O livro infantil que o padre Szyszynski trouxe, que desapareceu antes mesmo de termos oportunidade de o ler ao deitar, e que ainda não voltou a aparecer. A resistência de Nathaniel, esta manhã, quando lhe disse que íamos à igreja.
E lembro-me de mais uma coisa: há algumas semanas, num domingo, quando fizemos um esforço para ir à missa. Nessa noite, quando o Nathaniel estava a despir-se, reparei que vestia umas cuecas que não eram suas. Cuequinhas baratas do Homem-Aranha, em vez dos boxers em miniatura de 7,99 dólares que comprei na
1 Father. na versão original em inglês, significa tanto pai como padre. (N. da T.)
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GapKicls para que o Nathaniel pudesse ficar igual ao pai. «Onde estão os teus?», perguntei.
E a sua resposta: «Estão na igreja».
Presumi que tivesse tido um descuido durante a catequese e que a sua professora lhe tivesse dado este par, depois de ter procurado na caixa da Boa Vontade. Procurei não me esquecer de agradecer à Sr.a Fiore por ter resolvido o assunto. Mas tinha roupa para lavar, um filho para dar banho e um par de moções para escrever, e nunca cheguei a ter oportunidade de falar com a professora.
Agora, agarro nas mãos trémulas do meu filho, e beijo-lhe as pontas dos dedos. Agora, tenho todo o tempo do mundo.
- Nathaniel - digo -, estou a ouvir.
Passada uma hora, em minha casa, Monica leva a sua caneca para o lava-loiça:
- Não se importa que diga ao seu marido?
- Claro que não. eu própria lhe teria dito, mas... - a minha voz esmorece.
- Compete-me a mim - termina, poupando-me de dizer a verdade: agora que perdoei Caleb, não sei se ele me perdoará.
Mantenho-me ocupada a lavar a loiça - a limpar as nossas canecas, a espremer as saquetas de chá e a deitá-las no lixo. Tentei concentrar-me no Nathaniel, especificamente, desde que saí do consultório da Dr. Robichaud - não só porque é o que devo fazer, mas porque sou terrivelmente cobarde. O que irá o Caleb dizer, que irá ele fazer?
A mão de Monica toca-me no braço.
- Estava a proteger o Nathaniel.
Olho directamente para ela. Não admira que os assistentes sociais sejam necessários; as relações entre as pessoas enredam-se tão facilmente, que é preciso um perito em desfazer os nós. Às vezes, porém, a única maneira de resolver um emaranhado é cortá-lo e começar de novo.
Ela lê-me os pensamentos.
- Nina, no seu lugar, ele teria tirado as mesmas conclusões.
O som de alguém a bater à porta interrompe-nos. Patrick entra, faz um aceno a Monica.
- Estava mesmo de saída - explica. - Se quiser contactar-me mais tarde, estarei no meu gabinete.
Isto foi-nos dirigido a ambos. Patrick, em princípio, precisará dela para se manter informado do caso. Eu precisarei dela, em princípio, para apoio moral. Assim que a porta se fecha atrás de Monica, Patrick avança.
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- O Nathaniel?
- Está no quarto dele. Está bem - um soluço percorre-me a garganta. - Oh, meu Deus, Patrick. Devia ter percebido. O que fui eu fazer? O que fui eu fazer?
- Fizeste aquilo que tinhas de fazer - diz ele simplesmente. Aceno com a cabeça, tentando acreditar nele. Mas Patrick sabe
que não está a resultar.
- Olha - conduz-me a um dos bancos da cozinha, faz-me sentar. - Lembras-te de quando éramos miúdos, e costumávamos brincar ao Duedo?
Limpo o nariz à manga. -Não.
- Isso é porque eu sempre te ganhei. Escolhias sempre o Mr. Mustard, independentemente das provas.
- Devo ter-te deixado ganhar.
- Óptimo. Porque se já o fizeste, Nina, não será assim tão difícil fazê-lo de novo - coloca-me as mãos nos ombros. - Cede. Conheço este jogo, Nina, e sou bom a jogá-lo. Se me deixares fazer o que tenho de fazer, sem te intrometeres no processo, não podemos perder - de repente, dá um passo atrás, enfia as mãos nos bolsos. - E agora tens outras coisas para resolver.
- Outras coisas? Patrick volta-se, olha-me nos olhos.
- O Caleb? É como naquele velho concurso: quem pestaneja primeiro Desta vez. não consigo suportar, sou eu que desvio o olhar.
- Então vai prendê-lo, Patrick. É o padre Szyszynski. Eu sei, e tu sabes. Quantos padres já foram condenados por fazerem precisamente esta... merda: - retraio-me, com o meu próprio erro a reverberar. - Falei com o padre Szyszynski sobre o Nathaniel durante a confissão.
- Fizeste o quê? O que é que pensavas?
- Que ele era o meu padre - depois olho para cima. - Espera. Ele pensa que é o Caleb. Era isso que eu achava na altura. Isso é bom, não é? Ele não sabe que é o suspeito.
- O que é importante é que o Nathaniel saiba.
- Isso não é completamente óbvio?
- Infelizmente, não. Aparentemente, há mais de uma maneira de interpretar a palavra padre. E seguindo a mesma lógica, há por aí um país inteiro cheio de padres - olha para mim com ar grave. - Tu é que és a promotora de justiça. Sabes que este caso não resistirá a mais nenhum erro.
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- Meu Deus, Patrick, ele só tem cinco anos. Fez o sinal para padre. O padre Szyszynski é o único padre que ele conhece, o único padre que mantém algum contacto regular com ele. Vai lá e pergunta ao Nathaniel se não era isso que ele queria dizer.
- Isso não vai ser suficiente em tribunal, Nina.
De repente apercebo-me de que Patrick não veio só por causa do Nathaniel; também veio por minha causa. Para me lembrar de que enquanto estou a ser uma mãe não posso deixar de pensar como uma promotora de justiça. Não podemos nomear o culpado pelo Nathaniel; tem de ser ele próprio a fazê-lo. De outra forma, não há hipóteses de se obter uma condenação.
Tenho a boca seca.
- Ele ainda não está preparado para falar.
Patrick estende-me a mão.
- Então vamos só ver o que ele nos diz hoje.
Nathaniel está no beliche de cima, a colocar a velha colecção de cromos de basebol do pai em montes. Gosta do toque das suas pontas gastas, e de como cheiram a velho. O pai disse-lhe que tivesse cuidado porque um dia estes cromos podiam pagar-lhe a faculdade, mas Nathaniel não quer saber. Neste momento, gosta de tocar-lhes, de olhar para todos aqueles rostos estranhos e de pensar que o pai costumava fazer o mesmo.
Ouve-se alguém bater à porta, e a mãe entra com o Patrick. Sem hesitar, Patrick sobe a escada - com todo o seu metro e oitenta e sete esmagado entre o tecto e o colchão. Isso faz Nathaniel sorrir um pouco.
- Olá, Peste - Patrick bate na cama com o punho. - Isto é confortável. Tenho de comprar uma para mim - senta-se, finge ter batido com a cabeça no tecto. - O que achas? Devo pedir à tua mãe que me compre também uma cama destas?
Nathaniel abana a cabeça e dá um cromo a Patrick.
- Isto é para mim? - pergunta Patrick, e depois lê o nome e esboça um grande sorriso. - Mike Schmidt, rookie1. Tenho a certeza de que o teu pai vai ficar muito satisfeito por teres sido tão generoso - enfia-o no bolso e tira um bloco e uma caneta ao mesmo tempo. Nathaniel, achas que posso fazer-te algumas perguntas?
Bem. Ele está farto de perguntas, ponto final. Mas o Patrick trepou até aqui a cima. Nathaniel acena com a cabeça, «sim».
Patrick toca no joelho do rapaz, tão devagar que Nathaniel nem sequer se sobressalta, embora ultimamente se sobressalte com tudo.
Jogador inexperiente, que joga há menos de um ano. (N. da T.)
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- Dizes-me a verdade, Peste? - pergunta num tom suave. Nathaniel acena com a cabeça, desta vez mais devagar.
- O teu papá fez-te mal?
Nathaniel olha para Patrick, e depois para a mãe, e acena com a cabeça enfaticamente. Sente que algo se abre no seu peito, facilitando a respiração.
- Alguém te fez mal? «Sim.»
- Sabes quem foi? «Sim.»
Patrick mantém o olhar fixo em Nathaniel. Não o deixa desviar os olhos, por muito que Nathaniel queira fazê-lo.
- Foi um rapaz ou uma rapariga?
Nathaniel está a tentar lembrar-se - como se diz? Olha para a mãe, mas Patrick abana a cabeça, e agora sabe que tudo depende dele. Hesitante, leva a mão à cabeça. Toca na testa, como se lá estivesse um boné de basebol.
- Rapaz - ouve a mãe traduzir.
- Foi um adulto ou uma criança?
Nathaniel pestaneja, olhando para ele. Não consegue fazer os sinais para aquelas palavras.
- Bem, era grande como eu, ou pequeno como tu?
A mão de Nathaniel paira entre o seu próprio corpo e o de Patrick. E depois cai, deliberadamente, no meio. Isso faz Patrick sorrir.
- Está bem, era um tipo de altura média, e era uma pessoa conhecida? «Sim.»
- És capaz de me dizer quem foi?
Nathaniel sente todo o seu rosto contrair-se, os músculos a ficarem tensos. Cerra os olhos com força. «Por favor, por favor, por favor», pensa. «Deixa-me tentar.»
- Patrick - diz a mãe, e dá um passo em frente, mas Patrick estende a mão e ela pára.
- Nathaniel, se eu te trouxesse umas fotografias - aponta para os cromos de basebol - como estas... achas que podias mostrar-me quem é essa pessoa?
As mãos de Nathaniel agitam-se por cima dos montes de cromos, como abelhões à procura de um sítio para pousar. Olha de um cromo para o outro. Não sabe ler, não consegue falar, mas sabe que Rollie Fingers tinha um grande bigode revirado, que Al Hrabosky parecia um urso pardo. Quando uma coisa lhe entrava na cabeça, ficava lá, era só uma questão de voltar a ir buscá-la.
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Nathaniel olha para Patrick, e acena com a cabeça. Isso, ele é capaz de fazer.
Monica já esteve em sítios muito piores do que o quarto onde encontra Caleb Frost, mas este é quase mais desagradável, e ela acha que isso se deve a já ter visto a casa onde ele devia estar. Assim que Caleb a reconhece através do buraco da fechadura, abre logo a porta.
- O que aconteceu ao Nathaniel? - pergunta, de feições alteradas por um medo genuíno.
- Nada. Absolutamente nada. Fez-nos uma nova revelação. Uma nova identificação.
- Não estou a perceber.
- Quer dizer que já não é suspeito, Sr. Frost - diz Monica calmamente.
As perguntas sobem por ele acima como uma fogueira.
- Quem -.consegue dizer, e a palavra tem um sabor a cinzas.
- Acho que devia ir para casa e falar com a sua mulher sobre isto - responde, e em seguida volta-se energicamente e vai embora, com a mala entalada debaixo do braço de forma austera.
- Espere - grita Caleb. Respira fundo. - A Nina... a Nina não se importa?
Monica sorri, deixa que a luz lhe ilumine os olhos.
- Quem é que acha que me pediu que viesse aqui?
Peter aceita encontrar-se comigo no tribunal de comarca, onde vou anular a ordem de restrição. O processo demora dez minutos, é apenas burocrático, e o juix. só faz uma pergunta: «Como está o Nathaniel?»
Quando chego ao átrio, o Peter está a entrar apressadamente. Vem logo ter comigo, com a preocupação a fazer-lhe descair os cantos da boca.
- Vim para aqui assim que pude - diz ofegante. Olha rapidamente para o Nathaniel, que me dá a mão.
Acha que eu preciso que distorça a letra da lei por minha causa, que retire o sangue do coração de pedra do juiz, que faça alguma coisa para que a balança da justiça penda a meu favor. De repente, sinto-me envergonhada pelo motivo pelo qual o contactei.
- O que foi? - pergunta Peter. - Qualquer coisa que seja, Nina. Enfio as mãos nos bolsos do casaco.
- Queria só beber um café - admito. - Queria sentir, durante cinco minutos, que tudo tinha voltado a ser como dantes.
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O olhar de Peter é um holofote; consegue ver o fundo da minha alma.
- Também posso fazer isso - diz, e enfia o braço no meu.
Embora já não haja lugares sentados ao balcão no Tequila Mockingbird quando Patrick chega, o empregado do bar olha para ele e sugere veementemente a um executivo que leve a sua bebida para uma mesa lá atrás. Patrick envolve-se no seu estado de espírito sombrio como se fosse uma parca, salta para o banco vazio e faz sinal a Stuyvesant. O empregado do bar aproxima-se e serve-lhe o habitual, Glenfiddich. Mas dá a garrafa a Patrick, e mantém o copo de whisky escocês atrás do balcão.
- No caso de mais alguém aqui querer um - explica Stuyv. Patrick olha para a garrafa, para o empregado do bar. Atira as
chaves do carro para cima do balcão, um negócio justo, e bebe um grande trago de whisky.
Por esta altura, Nina já foi ao tribunal e já voltou de lá. Talvez o Caleb tenha chegado a casa antes do jantar. Talvez tenham metido o Nathaniel na cama cedo, e estejam neste momento deitados no escuro ao lado um do outro.
Patrick volta a agarrar na garrafa. Já tinha estado no quarto deles. Uma cama de casal grande. Se ele fosse casado com ela, dormiriam num divã estreito, para estar bem perto dela.
Ele próprio tinha sido casado durante três anos, porque achava que se quiséssemos ver-nos livres de um buraco, o melhor era enchê-lo. Na altura não se tinha apercebido de que havia todo o tipo de enchimentos que ocupavam espaço, mas que não tinham substância. E isso faz-nos sentir igualmente vazios.
Patrick inclina-se para a frente quando uma mulher loura lhe dá um forte encontrão no ombro. - Seu tarado!
- Mas que raio? » « Ela semicerra os olhos. São verdes, com demasiado rímel.
- Não me apalpou mesmo agora? ?? -Não.
De repente, sorri, insinuando-se entre Patrick e o homem idoso à sua direita.
- Caramba. Quantas vezes terei de passar por si antes que se decida?
Colocando a sua bebida ao lado da garrafa de Patrick, estende a mão. De unhas pintadas. Ele detesta mãos com unhas pintadas.
- Chamo-me Xenia. E você?
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- Não estou mesmo interessado - Patrick esboça um sorriso tenso, virando-se para o balcão.
- A minha mãe não me educou para desistir facilmente - diz Xenia. - O que é que você faz?
- Sou cangalheiro.
- Não,-a sério. Patrick suspira.
- Estou na brigada anti-vício.
- Não, a sério. Vira-se novamente para ela.
- A sério. Sou agente da polícia. Abre muito os olhos.
- Isso quer dizer que estou presa?
- Depende. Infringiu alguma lei?
O olhar de Xenia percorre o seu corpo.
- Ainda não - molhando um dedo na sua bebida (qualquer coisa cor-de-rosa e com espuma) toca na sua camisola e depois na dele. Quer ir a minha casa para tirar estas roupas molhadas?
Ele cora e depois tenta fingir que não aconteceu.
- Não me parece. Ela apoia o queixo na mão.
- Acho que o melhor é pagar-me uma bebida. ??? ? Ele começa novamente a rejeitá-la, mas depois hesita. -
- Está bem. O que quer?
- Um orgasmo.
- com certeza - diz Patrick, escondendo um sorriso. Seria tão fácil... ir para casa com esta rapariga, gastar um preservativo e perder algumas horas de sono, saciar aquela inquietação. O mais provável seria comê-la sem sequer lhe dizer o seu nome. E em troca, por apenas algumas horas, sentiria que alguém o queria. Por uma noite, seria o eleito de alguém.
Só que esta pessoa em particular não era a sua eleita. Xenia passa as unhas na parte de trás do pescoço de Patrick.
- vou só gravar as nossas iniciais na porta da casa de banho das senhoras - murmura, afastando-se.
- Não sabe quais são as minhas iniciais.
- Invento-as - faz-lhe um pequeno aceno, e depois desaparece no meio da multidão.
Patrick chama Stuyvesant e paga a segunda bebida de Xenia. Deixa-a a gotejar em cima de um guardanapo à sua espera. Depois sai do Tequila Mockingbird completamente sóbrio, enfrentando o facto de que Nina o estragou para qualquer outra pessoa.
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Nathaniel está deitado no beliche de baixo enquanto lhe leio um livro antes de ir dormir. De repente, põe-se direito e vai quase a voar até à porta onde se encontra Caleb.
- Estás em casa - digo, como é óbvio, mas ele não ouve. Está perdido neste momento.
Ao vê-los juntos, quero mortificar-me de novo. Como é que fui capaz de acreditar que Caleb era o culpado?
O quarto torna-se subitamente demasiado pequeno para nós os três. Saio de lá, fechando a porta atrás de mim. Lá em baixo, lavo os talheres que estão no escorredor da loiça, já limpos. Apanho os brinquedos do Nathaniel que estão no chão. Sento-me no sofá da sala; e depois, inquieta, levanto-me e ajeito as almofadas.
- Ele está a dormir.
A voz de Caleb atinge-me profundamente. Volto-me, de braços cruzados sobre o peito. Será que esta atitude parece demasiado defensiva? Em vez disso, coloco-os junto ao corpo.
- Estou... estou contente por estares em casa.
- Estás?
O seu rosto não deixa transparecer nada. Saindo da sombra Caleb dirige-se a mim. Pára a meio metro de distância, mas é como se houvesse um universo entre nós.
Conheço cada linha do seu rosto. A que foi traçada durante o primeiro ano do nosso casamento, por rir tão frequentemente. Aquela que surgiu devido às preocupações no ano em que deixou a empresa de construção para se lançar por conta própria. Aquela que se desenvolveu por concentrar-se tanto no Nathaniel quando deu os primeiros passos, disse a primeira palavra. A minha garganta aperta-se como um torno, e todas as desculpas assentam-me, amargas, no estômago. Fomos suficientemente ingénuos para pensar que éramos invencíveis; que podíamos correr às cegas pelas curvas perigosas da vida a velocidades traiçoeiras sem nunca nos despenharmos.
- Oh, Caleb - digo por fim, por entre as lágrimas -, estas coisas não deviam acontecer-tnos.
Depois, também ele está a chorar, e abraçamo-nos um ao outro, ajustando cada um a sua dor aos vazios e falhas do outro.
- Ele fez aquilo. Ele fez aquilo ao nosso menino. Caleb segura o meu rosto entre as mãos.
-Vamos superar isto. Vamos fazer com que o Nathaniel melhore. mas as suas frases reviram nas pontas, como pequenos animais a
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implorar. - Estamos os três nisto, Nina - sussurra. - E estamos nisto juntos.
- Juntos - repito, encostando a minha boca aberta ao seu pescoço. - Caleb, tenho tanta pena.
- Chiu.
- Tenho, sim, tenho...
Interrompe-me com um beijo. Esse acto causa-me apreensão; não estava à espera disso. Mas depois agarro-o pelo colarinho e retribuo o beijo. Beijo-o do fundo da minha alma, beijo-o até ele sentir o sabor a cobre da mágoa. «Juntos.»
Despimo-nos um ao outro com brutalidade, rasgando tecido e arrancando botões que rebolam para debaixo do sofá como segredos. É a raiva a transbordar: raiva por isto ter acontecido ao nosso filho, por não podermos fazer o tempo voltar para trás. Pela primeira vez em dias posso ver-me livre da raiva; coloco-a em Caleb; mas apercebo-me de que ele me faz o mesmo. Arranhamo-nos, mordemo-nos, mas depois Caleb faz-me deitar com o toque mais suave. Os nossos olhos fixam-se quando ele se move dentro de mim; nenhum de nós se atreveria a pestanejar. O meu corpo lembra-se: é assim estar-se cheia de amor, em vez de desespero.
O último caso em que trabalhei juntamente com Monica LaFlamme não foi bem-sucedido. Ela enviou-me um relatório, declarando que uma Sr.a Grady a tinha contactado. Aparentemente, enquanto secava o seu filho de sete anos depois do banho, Eli agarrou na toalha do Rato Mickey e começou a simular estimulação sexual, e depois indicou o seu padrasto como culpado. A criança foi levada para o Centro Médico do Maine, mas não se encontraram provas físicas. Oh, e Eli sofria de algo designado por perturbação de oposição.
Encontrámo-nos no meu escritório, na sala que utilizamos para avaliar as crianças para os exames de competência. Do outro lado de um vidro espelhado havia uma mesa pequena, cadeiras pequenas, alguns brinquedos e um arco-íris pintado na parede. Monica e eu observávamos o Eli a correr às voltas como um diabrete, trepando literalmente pelas cortinas.
- Bem - disse eu. - Deve ser divertido.
Na sala adjacente, a Sr. Grady mandava o filho parar.
- Precisas de te acalmar, Eli - disse. Mas isso apenas o fez gritar mais, correr mais.
Voltei-me para Monica.
- Afinal, o que é a perturbação de oposição?
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A assistente social encolheu os ombros.
- Quer saber a minha opinião? - disse, indicando Eli com um gesto. - É aquilo. Ele faz o oposto do que lhe pedem que faça.
Fiquei a olhar para ela boquiaberta.
- Isso é mesmo um diagnóstico psiquiátrico? Quero dizer, não será apenas a definição do que uma criança de sete anos é?
- Quem sabe.
- Então e as provas forenses? - desenrolei um saco de mercearias e tirei uma toalha muito bem dobrada. A cara do Mickey sorria maliciosamente para mim. As grandes orelhas, o sorriso oblíquo; era sinistro por si só, pensei.
- A mãe lavou-a depois do banho naquela noite.
- Claro que sim.
Monica suspirou quando lhe devolvi a toalha.
- A Sr. Grady está decidida a ir a tribunal.
- A decisão não é dela - mas sorri quando a mãe de Eli se sentou entre mim e o agente da polícia que estava a investigar o caso. Fiz-lhe o meu discurso, sobre ver que informações a Sr.a LaFlamme conseguia obter de Eli, oficialmente.
Observámos a Monica a pedir ao Eli que se sentasse através do vidro espelhado.
- Não - disse ele, e começou a correr em volta da sala.
- Preciso que te sentes nesta cadeira. És capaz de fazer isso, por favor?
Eli agarrou na cadeira e atirou-a para o canto da sala. com uma paciência extraordinária, Monica apanhou-a e colocou-a ao lado da sua.
- Eli, preciso que te sentes nesta cadeira por um bocadinho, e depois vamos buscar a mamã.
- Quero a minha mamã agora. Não quero estar aqui - mas depois sentou-se.
Monica apontou para o arco-íris.
- És capaz de dizer-me que cor é esta, Eli? - Vermelho.
- Muito bem! E esta? - indicou a risca amarela com um dedo. Eli revirou os olhos em direcção a ela.
- Vermelho - disse.
- É vermelho, ou é uma cor diferente da outra risca?
- Quero a minha mamã - gritou Eli. - Não quero falar contigo. És estúpida e gorda.
- Está bem - disse Monica pausadamente. - Queres ir buscar a tua mamã?
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- Não, não quero a minha mamã.
Cerca de cinco minutos mais tarde, Monica deu por terminada a entrevista. Ergueu as sobrancelhas olhando para mim através do vidro e encolheu os ombros. A Sr Grady inclinou-se imediatamente para a frente.
- O que vai acontecer a seguir? Marcamos uma data para o tribunal?
Ao ouvir aquilo, respirei fundo.
- Não tenho a certeza do que aconteceu ao seu filho - disse diplomaticamente. - Provavelmente sofreu algum tipo de abuso; o comportamento dele parece indicá-lo. E acho que seria prudente avaliar o envolvimento do seu marido com Eli. No entanto, não podemos apresentar uma queixa-crime neste caso.
- Mas... mas disse que sim. Houve abuso. Não é o suficiente?
- Viu o Eli agora. Ele nunca será capaz de entrar numa sala de audiências, sentar-se numa cadeira e responder a perguntas.
- Se passasse mais tempo com ele...
- Sr.a Grady, não se trata apenas de mim. Ele terá de responder às perguntas do advogado de defesa e do juiz, e haverá um júri a alguns metros de distância, a observá-lo também. Compreende melhor do que ninguém quais são os problemas comportamentais do Eli, porque os vê diariamente. Mas infelizmente, o sistema legal não funciona para as pessoas que não conseguem reagir dentro dos seus parâmetros.
O rosto da mulher estava branco como uma folha de papel.
- Bem... então o que fazem nestes casos? Como é que protegem uma criança como o Eli?
Voltei-me para o vidro espelhado, onde Eli partia lápis de cera ao meio.
- Não protegemos - admiti.
Levantei-me na cama subitamente, com o coração acelerado. Um sonho. Foi só um sonho. Tenho o coração aos pulos, estou coberta de suor, como se fosse um véu, mas a minha casa está em silêncio.
Caleb está deitado de lado, virado para mim, respirando profundamente. Há rastos prateados que lhe atravessam o rosto; esteve a chorar durante o sono. Ponho o dedo numa lágrima, levando-o à boca.
- Eu sei - sussurro, e depois fico acordada deitada na cama o resto da noite.
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Estou a dormitar quando o Sol nasce, e acordo para ver a primeira geada do Inverno. No Maine, chega cedo e altera a paisagem. Alvo e farpado, o mundo é um lugar que se pode estilhaçar assim que o pisamos.
O Caleb e o Nathaniel não estão em lado nenhum; a casa está tão silenciosa que lateja à minha volta quando me visto e desço as escadas. O frio entra sorrateiramente pela fenda debaixo da porta e enrola-se em volta dos meus tornozelos enquanto bebo uma chávena de café e olho para o bilhete em cima da mesa. ESTAMOS NO CELEIRO.
Quando os encontro, estão a misturar massa. Bem, está o Caleb. O Nathaniel está agachado no chão da oficina, usando pedaços de tijolo para traçar os contornos do cão que está a dormir no chão de cimento.
- Olá - Caleb sorri, olhando para cima. - Hoje vamos construir um muro de cimento.
- Estou a ver. O Nathaniel tem gorro e luvas? Está demasiado frio lá fora para...
- Estão mesmo aqui - Caleb sacode o queixo para a esquerda; lá estão os acessórios de malha azul.
- Bem. Tenho de sair por um bocadinho.
- Então vai - Caleb arrasta a enxada pelo cimento, misturando-o. Mas eu não quero. Não sou necessária aqui; eu sei. Durante anos, fui o principal ganha-pão; a peça que não encaixava. No entanto, ultimamente habituei-me à minha própria casa. Ultimamente, não tenho desejado sair.
- Talvez eu...
O que estava prestes a dizer é interrompido quando Caleb se dobra para gritar olhando directamente no rosto de Nathaniel.
- Não! - Nathaniel encolhe-se, mas Caleb já o tinha agarrado por um braço para o afastar.
- Caleb...
- Não toques no anticongelante - grita Caleb a Nathaniel. Quantas vezes tenho de dizer-te isso? É veneno. Pode magoar-te gravemente - agarra na garrafa de Prestone que esteve a misturar na massa para impedir que congele com este frio, e depois cobre a porcaria que Nathaniel fez com um pano. Uma mancha de um verde estranho passa através deste e espalha-se. O cão salta para o líquido doce entornado, até que Caleb o afasta, empurrando-o.
- Sai daí, Mason.
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Ao canto, Nathaniel está quase a chorar.
- Vem cá - digo-lhe, abrindo os braços. Ele voa para eles, e beijo-lhe o cimo da cabeça. - Porque é que não vais buscar um brinquedo ao quarto para brincar enquanto o Papá está a trabalhar?
Nathaniel corre até casa com Mason atrás dele, ambos suficientemente espertos para reconhecer uma segunda oportunidade e saber agarrá-la. Caleb abana a cabeça recusando-se a acreditar.
- Desautoriza-me, Nina, estás à vontade.
- Não estou a desautorixar-te. Estou... bem, olha para ele, Caleb, pregaste-lhe um susto de morte. Ele não estava a fazer de propósito.
- Não interessa. Disse-lhe que não e ele não deu ouvidos.
- Não achas que ele tem sofrido o suficiente ultimamente? Caleb limpa as mãos a uma toalha.
- Sim, acho. Então e como é que ele vai ficar quando o cão que adora cair para o lado morto, por ele ter quebrado as regras e ter feito uma coisa que lhe disseram expressamente para não fazer?
- põe a tampa no Prestone, colocando-o numa prateleira alta. Quero que ele se sinta de novo como uma criança normal. E se o Nathaniel tivesse feito isto há três semanas, podes acreditar que o teria castigado.
Nem sequer consigo seguir essa lógica. Mordendo a língua para não responder, viro costas e vou embora. Ainda estou zangada com o Caleb quando chego ao departamento de polícia e encontro o Patrick a dormir na sua secretária.
Bato com a porta do seu gabinete, e ele quase cai da cadeira. Depois retrai-se, levando a mão à cabeça.
- Fico contente por ver que vocês os funcionários públicos estão realmente a merecer ganhar o dinheiro dos meus impostos - digo num tom amargo. - Onde está o alinhamento digital?
- Estou a trabalhar nele - responde Patrick.
- Oh, pois, vejo que estás realmente a esforçar-te bastante. Ele levanta-se e franze-me o sobrolho.
- Levantaste-te com o pé esquerdo?
- Desculpa. É só um pouco de alegria doméstica a transbordar. vou sem dúvida recuperar as minhas boas maneiras quando descobrires uma causa provável para meter o Szyszynski atrás das grades.
Patrick olha-me directamente nos olhos.
- Como está o Caleb?
- Óptimo.
- Não me parece que as coisas estejam assim tão bem...
- Patrick. Estou aqui porque preciso de saber que se está a fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Mostra-me.
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Ele acena com a cabeça e dá-me o braço. Andamos por corredores que nunca percorri no departamento de polícia de Biddeford, e por fim acabamos numa sala das traseiras não muito maior do que um armário. As luzes estão apagadas, um ecrã verde zune num computador e o rapaz que está sentado em frente ao teclado tem acne e uma mancheia de batatas fritas Munchos.
- Meu - diz a Patrick. Também me volto para Patrick.
- Estás a brincar.
- Nina, este é o Emílio. O Emílio ajuda-nos com as imagens digitais. É um craque em informática.
Inclina-se sobre Emílio e carrega num botão do teclado. Aparecem dez fotografias no ecrã, uma delas é do padre Szyszynski.
Inclino-me para a frente, olho de perto. Não há nada nos olhos do padre nem no seu sorriso fácil que leve a acreditar que é capaz de tal abominação. Metade das pessoas nas fotografias está vestida com hábitos de sacerdote; a outra metade veste os habituais fatos-macacos da prisão local.
- Na única fotografia de Szyszynski que consegui encontrar ele tem o colarinho clerical. Portanto tenho de fazer os condenados parecerem padres, também. Assim não haverá razão para se questionar o processo mais tarde, depois de o Nathaniel ter feito a sua identificação.
Ele diz isto como se fosse acontecer. Adoro-o por isso. Enquanto observamos, Emílio sobrepõe um colarinho a uma fotografia de um bandido com ar de bronco.
- Tens um minuto? - pergunta-me Patrick, e quando aceno com a cabeça, leva-me para fora do gabinete improvisado, passando por uma porta lateral que conduz a um pátio.
Há uma mesa de piquenique, um cesto de basquetebol, e em volta de tudo isto, uma alta vedação de rede de arame.
- Pronto - digo de imediato. - O que aconteceu de mal? Não aconteceu nada de mal.
- Se não tivesse acontecido nada de mal, podias ter falado em frente ao teu pirata informático adolescente.
Patrick senta-se no banco da mesa de piquenique.
- É o alinhamento.
- Eu sabia.
- És capaz de parar? - Patrick fica à espera enquanto me sento, e depois olha directamente para mim. Aqueles olhos, têm uma história com os meus. Foram a primeira coisa que vi quando recuperei os sentidos depois de ter sido atingida no crânio por uma bola de
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basebol lançada por Patrick na Liga Infantil. Foram a força de que eu precisava aos dezasseis anos para andar no teleférico da montanha Sugarloaf, embora tenha terror das alturas. Durante quase toda a minha vida, eles disseram-me que estava a ir bem, nos momentos em que não estava nas minhas mãos responder.
- Precisas de perceber uma coisa, Nina - diz Patrick. - Mesmo
que o Nathaniel aponte logo para a fotografia do Szyszynski... é uma revelação frágil. Examinar um alinhamento não é algo que uma criança de cinco anos consiga realmente entender. Podia ser que escolhesse o único rosto familiar; podia ser que apontasse para qualquer pessoa, só para que o deixássemos em paz.
- E achas que eu não sei isso?
- Sabes o que é necessário para assegurar uma condenação. Não podemos levá-lo a identificar alguém só porque queremos que este caso avance rapidamente. Só estou a dizer que o Nathaniel pode já ser capaz de falar daqui a uma semana. Talvez até amanhã. Eventualmente, será capaz de dizer o nome do culpado, e isso será uma acusação muito mais forte.
Inclinando-me para a frente, enfio as mãos no cabelo.
- E depois o que devo fazer? Deixá-lo depor?
- É assim que funciona.
- Quando o meu filho é a vítima, não - digo bruscamente. Patrick toca-me no braço.
- Nina, sem o testemunho do Nathaniel contra o Szyszynski, não tens caso - abana a cabeça, certo de que ainda não pensei muito bem nisto.
Mas nunca tive tanta certeza de uma coisa em toda a minha vida. Farei tudo o que for preciso para que o meu filho não seja testemunha.
- Tens razão - digo a Patrick. - E é por isso que conto contigo para fazeres o padre confessar.
Antes que me aperceba, chego a St. Anne s. Entro no parque de estacionamento e saio do carro, evitando a entrada principal para me dirigir em bicos de pés às traseiras do edifício. O presbitério é aqui, pegado ao corpo principal da igreja. Os meus ténis deixam pegadas na geada, o rasto de um homem invisível.
Se trepar até ao cimo de um poço de drenagem, consigo espreitar pela janela. Este é o apartamento do padre Szyszynski, a sala. Em cima de uma mesa de apoio está uma chávena de chá, com a saqueta ainda a escorrer. Há um livro aberto - tom Clancy - em cima do sofá. Por todo o lado há ofertas que recebeu dos paroquianos:
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um galgo afegão feito à mão, um apoio para Bíblias feito de madeira, um desenho emoldurado feito por uma criança. Todas estas pessoas também acreditaram nele; não fui a única idiota.
Não sei exactamente do que estou à espera. Mas enquanto ali estou lembro-me da véspera do dia em que Nathaniel deixou de falar, da última vez que fomos todos à Missa. Houve uma recepção para os dois sacerdotes que estavam de visita, uma faixa pendurada na mesa a desejar-lhes boa viagem de regresso a casa. Lembro-me de que o café naquela manhã tinha aroma de avelãs. De que já não havia donuts cobertos de açúcar em pó, embora Nathaniel quisesse um. Lembro-me de falar com um casal que já não via há vários meses, e de reparar que as outras crianças seguiam o padre Szyszynski até lá abaixo para a sua história semanal. «Vai, Nathaniel», disse. Ele estava escondido atrás de mim, agarrado às minhas pernas. Quase o empurrei para que se juntasse aos outros.
Obriguei-o a ir.
Fico aqui na vala de drenagem durante mais de uma hora, até que o padre entra na sala. Senta-se no sofá, agarra na chávena de chá e começa a ler. Não sabe que estou a observá-lo. Não se apercebe de que posso entrar na sua vida, tão sub-repticiamente como ele entrou na minha.
Tal como Patrick prometera, há dez fotografias - cada uma do tamanho de um cromo de basebol, cada uma mostrando um «padre» diferente. Caleb examina uma delas.
- Os Pedófilos de San Diego - murmura. - Só faltam as estatísticas.
Nathaniel e eu entramos na sala, de mãos dadas.
- Bem - digo alegremente. - Olha quem está aqui. Patrick põe-se de pé.
- Olá, Peste. Lembras-te de quando conversei contigo no outro dia? - Nathaniel acena com a cabeça. - hoje também vais conversar comigo?
Ele já está curioso em relação às fotografias; sinto-o pela forma como está a puxar-me em direcção ao sofá. Patrick dá palmadinhas na almofada ao seu lado, e Nathaniel sobe imediatamente. Caleb e eu sentamo-nos cada um do seu lado, em duas cadeiras demasiado acolchoadas. «Parecemos tão formais», penso.
- Trouxe-te algumas fotografias, tal como tinha dito - Patrick tira o resto de dentro do envelope castanho e dispõe-nas em cima da mesa de café, como se fosse fazer uma paciência com cartas. Olha para mim, e depois para Caleb: num aviso silencioso de que agora é
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ele que conduz as operações. - Lembras-te de me dizer que alguém te fez mal, Peste? «Sim.»
- E disseste que sabias quem tinha sido? Outro aceno, mais demorado.
- Quero mostrar-te algumas fotografias, e se alguma destas pessoas for a que te fez mal, quero que a indiques. Mas se a pessoa que te fez mal não estiver em nenhuma das fotografias, abana a cabeça para dizer que não, para que eu saiba que não está lá.
Patrick formulou isto na perfeição - um convite aberto e legalmente válido para uma identificação; uma pergunta que não leva o Nathaniel a achar que há uma resposta certa.
Embora haja.
Todos observamos os olhos de Nathaniel, escuros e sem limites, movendo-se de um rosto para o outro. Está sentado em cima das mãos. Os pés não chegam a tocar no chão.
- Percebes o que quero que faças, Nathaniel? - pergunta Patrick. Nathaniel acena com a cabeça. Uma das mãos sai de debaixo da coxa. Eu desejo que ele seja capaz de fazer isto, oh, desejo-o tanto que chega a doer, para dar um impulso a este caso. E pelos mesmos motivos, desejo igualmente que Nathaniel falhe.
A sua mão flutua sobre cada cromo sucessivamente, uma libélula pairando sobre um regato. Toca-lhe ao de leve, mas não pousa. O seu dedo roça o rosto de Szyszynski, continua. com os olhos, tento fazê-lo voltar atrás.
- Patrick - digo repentinamente. - Pergunta-lhe se reconhece alguém.
Patrick esboça um sorriso tenso. De dentes cerrados, diz:
- Nina, tu sabes que não posso fazer isso - diz. E depois para Nathaniel: - O que achas, Peste? Estás a ver a pessoa que te fez mal?
O dedo de Nathaniel mergulha como um metrónomo, traçando os contornos da fotografia de Szyszynski. Hesita ali, e depois começa a mover-se em direcção às outras fotografias. Ficamos todos à espera, interrogando-nos sobre o que nos estará a tentar dizer. Mas coloca uma fotografia por cima de outra, e mais outra, até ficar com duas colunas. Liga-as com uma diagonal. Todos estes movimentos deliberados, e afinal está apenas a fazer a letra N.
- Ele tocou na fotografia. Na fotografia certa - insisto. - Essa identificação basta.
- Não basta - Patrick abana a cabeça.
- Nathaniel, tenta de novo - aproximo-me e baralho as fotografias. - Mostra-me quem foi.
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- Isso foi útil - murmura Patrick.
- Não te vi a fazer nada para ajudar!
- Nathaniel - Caleb inclina-se à minha frente para tocar na perna do nosso filho. - Foste muito bem. Não ligues à tua mãe.
- Muito bem, Caleb.
- Não quis dizer isso, sabes muito bem. Tenho as faces a arder.
- Oh, a sério?
Pouco à vontade, Patrick começa a enfiar as fotografias dentro do envelope.
- Acho que devíamos falar sobre isto noutro sítio - diz Caleb determinado.
As mãos de Nathaniel erguem-se para tapar os ouvidos. Deita-se de lado, escondendo-se entre o sofá e a perna de Patrick.
- Olha só o que lhe fizeste - digo.
A confusão na sala tem todos os tons do fogo, e comprime-o, portanto Nathaniel tem de fazer-se tão pequeno que caiba entre as almofadas. Há algo duro no bolso de Patrick, no sítio onde ele está encostado. As calças dele cheiram a xarope de ácer e a Novembro.
A mãe está outra vez a chorar, e o pai está a gritar com ela. Nathaniel lembra-se do tempo em que bastava acordar de manhã para serem felizes. Agora, parece que, faça o que fizer, está errado.
Ele sabe que é verdade: o que aconteceu, aconteceu por sua causa. E agora que está sujo e diferente, os seus próprios pais não sabem o que fazer com ele.
Quem lhe dera ser capaz de fazê-los sorrir de novo. Quem lhe dera ter as respostas. Sabe que estão lá, mas estão entaladas na garganta, atrás Daquilo Que Não Deve Dizer.
A mãe lança as mãos ao ar e dirige-se para junto da lareira, de costas para todos. Está a fingir que ninguém vê, mas agora está a chorar convulsivamente. O pai e o Patrick estão a esforçar-se para não olharem um para o outro, com os olhos a desviarem-se de tudo naquela sala minúscula como uma Superball.
Quando recupera a voz, parece aquela vez em que o carro da mãe não queria pegar no Inverno passado. Ela girou a chave e o motor gemeu, guinchando e guinchando até regressar à vida. Nathaniel agora sente a mesma coisa, na sua barriga. Aquela faísca, aquele estalido, a mais pequena bolha a erguer-se na sua traqueia. Sufoca-o; faz o peito inchar. O nome que é empurrado lá para fora é débil, como sopa de aveia, nada que se assemelhe ao bloco denso e poroso que absorveu todas as suas palavras nestes últimos dias.
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Na realidade, agora que está na sua língua, como um comprimido amargo, é difícil de acreditar que algo tão pequeno tenha preenchido todo o espaço dentro dele.
Nathaniel está preocupado que ninguém o ouça, visto que há tantas palavras zangadas a voar como papagaios pela sala. Portanto põe-se de joelhos, encosta-se ao corpo de Patrick, coloca a mão em concha junto ao ouvido do homem corpulento. E fala, fala.
Patrick sente o peso morno de Nathaniel no seu lado esquerdo. E não admira; ele próprio protege-se dos comentários que Caleb e Nina atiram um ao outro; Nathaniel deve estar a sentir-se igualmente mal. Coloca um braço em volta da criança.
- Está tudo bem, Peste - murmura.
Mas então sente os dedos de Nathaniel roçarem-lhe a nuca. Um som entra-lhe no ouvido. Não é muito mais do que um suspiro, mas Patrick estava à espera. Abraça Nathaniel com força novamente, pelo que acabou de fazer. E depois volta-se para interromper Caleb e Nina.
- Quem diabo - pergunta Patrick - é o Padre Glen?
A altura mais lógica para revistar a igreja é durante a missa, quando o padre Szyszynski - aliás, padre Glen para as crianças como Nathaniel que não são capazes de pronunciar o seu apelido - está ocupado. Patrick não consegue lembrar-se da última vez em que foi à caça de provas vestido de fato e gravata, mas quer passar despercebido no meio da multidão. Sorri aos estranhos enquanto todos entram na igreja antes das nove da manhã; e quando se dirigem para a nave principal ele segue na direcção oposta, descendo uma escadaria.
Patrick não tem um mandado, mas este é um espaço público, e ele não precisa de um. Apesar disso, movimenta-se silenciosamente ao longo do corredor, relutante em atrair as atenções. Passa por uma sala de aulas onde as crianças pequenas estão sentadas remexendo-se como peixes em cadeiras e mesas ainda mais pequenas. Se fosse um padre, onde guardaria a caixa da Boa Vontade?
Nina contou-lhe tudo sobre o domingo em que Nathaniel tinha chegado a casa com um par de cuecas diferentes por debaixo da roupa. Pode não significar nada. Mas por outro lado, pode significar alguma coisa. E o trabalho de Patrick é revirar todas as pedras, para que quando encostar Szyszynski à parede disponha de todas as armas de que necessita para o fazer.
A caixa da Boa Vontade não se encontra ao pé do repuxo de água nem das casas de banho. Não se encontra no escritório de
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Szyszynski, um vestíbulo com sumptuosos painéis de madeira e pilhas de livros religiosos de parede a parede. Tenta abrir um par de portas fechadas no corredor, abanando-as para ver se cediam.
- Posso ajudá-lo?
A catequista, uma mulher de ar maternal, encontra-se a poucos metros de Patrick.
- Oh, desculpe - diz ele. - Não queria interromper a sua catequese.
Tenta usar todo o seu charme, mas esta é uma mulher provavelmente habituada a mentiras bem-intencionadas, a apanhar pessoas em flagrante. Patrick continua, pensando depressa.
- Na verdade, o meu filho de dois anos encharcou as calças de ganga durante o sermão do padre Szyszynski... e disseram-me que há uma caixa da Boa Vontade algures por aqui?
A catequista sorri compreensivamente.
- Isso está sempre a acontecer - diz. Acompanha Patrick à sala de aula, onde quinze pequenos rostos se viram para o avaliar, e entrega-lhe uma grande caixa azul Rubbermaid. - Não faço ideia do que tem lá dentro, mas desejo-lhe boa sorte.
Minutos depois Patrick está escondido na sala da caldeira, o primeiro sítio que encontra onde não será incomodado tão cedo. Está metido em roupa velha até aos joelhos. Há vestidos que devem ter uns bons trinta anos, sapatos de solas gastas, calças de neve para criança. Conta sete pares de cuecas - três deles são cor-de-rosa, com os rostos de pequenas Barbies estampados. Alinhando os quatro restantes no chão, tira um telemóvel do bolso e telefona a Nina.
- Como é que são? - diz quando ela atende. - As cuecas. ?" - Que barulho é esse? Onde estás?
- Na sala da caldeira em St. Anne s - sussurra Patrick.
- Hoje? Agora? Estás a brincar.
Impaciente, Patrick toca nas cuecas com um dedo enluvado.
- Está bem, tenho um par com robôs, outro com camiões, e duas que são brancas simples com uma cercadura azul. Há alguma coisa familiar?
- Não. Estas eram boxers. Tinham luvas de basebol.
Como é que ela se lembra disto é que ele não consegue imaginar. Patrick nem sequer era capaz de dizer que cuecas tem hoje vestidas.
- Aqui não há nada semelhante, Nina.
- Tem de estar aí.
- Se ele as guardou, e não sabemos se o fez, podem muito bem estar nos seus aposentos privados, escondidas.
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- Como um trofeu - diz Nina. e a tristeza na sua voz faz Patrick sofrer.
- Se estiverem lá, vamos buscá-las com um mandado - promete. Não diz o que está a pensar: que as cuecas por si só não provam realmente nada. Há mil maneiras de afastar este tipo de prova; e o mais provável é ele tê-las ouvido a todas.
- Falaste com...
- Ainda não.
- Telefonas-me, não telefonas? Depois?
- O que achas? - diz Patrick, e desliga. Dobra-se para apanhar toda a roupa do chão e voltar a metê-la na caixa, e repara numa coisa brilhante num recanto da parede por trás da caldeira. Torcendo o seu grande corpo num nó, estende uma mão mas não consegue agarrá-la. Patrick olha em volta do quarto de arrumos, encontra um atiçador e fá-lo deslizar por trás da caldeira até ao pequeno espaço vazio. Prende um canto - talvez seja um papel? - e consegue arrastá-lo até ficar ao alcance do braço.
Luvas de basebol. Cem por cento algodão. Gap, tamanho XXS.
Tira um saco de papel castanho do bolso. com os dedos enluvados, vira as cuecas na mão. Na parte de trás, à esquerda, ligeiramente descentrada, há uma mancha rígida.
No quarto dos arrumos, mesmo abaixo do altar onde o padre Szyszynski está naquele momento a ler as escrituras em voz alta, Patrick baixa a cabeça e reza para que, numa situação tão infeliz como esta, haja uma nesga de pura sorte.
Caleb sente a gargalhada de Nathaniel como um minúsculo tremor de terra, fazendo-lhe estremecer a caixa torácica. Encosta mais a orelha ao peito do filho. Nathaniel está deitado no chão-, Caleb está deitado em cima dele, com a orelha perto da boca do rapaz.
- Repete - pede Caleb.
A voz de Nathaniel ainda é débil, com as sílabas juntas por um fio. A sua garganta precisa de aprender outra vez a conter uma palavra, a embalá-la músculo por músculo, a erguê-la até à língua. Neste momento, tudo isto é uma novidade para ele. Neste momento, ainda é difícil.
Mas Caleb não consegue conter-se. Aperta a mão de Nathaniel à medida que o som sai entrecortado, espinhoso e hesitante.
- Papá.
Caleb sorri, tão orgulhoso que quase se divide em dois. Por baixo da sua orelha, ouve a maravilha nos pulmões do filho.
- Mais uma vez - implora Caleb, e prepara-se para ouvir.
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Uma recordação: procuro as chaves do carro pela casa toda, porque já estou atrasada para levar o Nathaniel à escola e ir para o trabalho, Nathaniel tem o casaco vestido e as botas calçadas, à minha espera.
- Pensa! - digo em voz alta, e depois viro-me para o Nathaniel.
- Viste as minhas chaves?
- Estão ali debaixo - responde.
- Debaixo do quê (under where)? Uma gargalhada emerge de dentro dele. - Obriguei-te a dizer underwear (cuecas). ... Quando me rio com ele, esqueço-me do que procurava.
Passadas duas horas, Patrick volta a entrar em St. Anne s. Desta vez, está vazia. As velas tremeluzem, projectando sombras, o pó dança nos raios de luz que passam através das janelas de vitrais. Patrick dirige-se imediatamente lá abaixo para o escritório do padre Szyszynski. A porta está completamente aberta, o padre está sentado à secretária. Por um momento, Patrick desfruta da sensação de voyeurismo. E depois bate à porta, duas vezes, com firmeza.
Glen Szyszynski olha para cima, sorrindo. - Posso ajudá-lo?
«Esperemos que sim», pensa Patrick, e entra.
Patrick empurra em direcção ao padre Szyszynski o documento enumerando os seus direitos, através da mesa de investigações.
- É apenas uma rotina, padre. Não se encontra sob custódia, e não está detido... mas está disposto a responder a algumas perguntas e a lei estabelece que eu preciso de lhe dizer que tem direitos antes de lhe fazer alguma pergunta.
Sem hesitar, o padre assina a lista de direitos que Patrick acabou de ler em voz alta.
- Estou pronto a fazer qualquer coisa para ajudar o Nathaniel.
Szyszynski ofereceu-se imediatamente para ajudar na investigação. Aceitou em fornecer uma amostra de sangue quando Patrick disse que precisavam de excluir todas as pessoas que estiveram próximo de Nathaniel. No hospital, observando a analista, Patrick interrogara-se se a doença nas veias deste homem seria quantificável, fazendo parte do fluido como a hemoglobina ou o plasma.
Agora, Patrick recosta-se na cadeira e fica a olhar para o padre. Já ficou frente a frente com milhares de criminosos, todos eles
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proclamando a sua inocência ou fingindo não fazer ideia daquilo a que se referia. A maior parte das vexes consegue reconhecer a barbaridade deles com o frio desprendimento de um agente da autoridade. Mas hoje, este homem esguio sentado à sua frente - bem, é tudo o que Patrick consegue fazer para não o espancar até fazer sangue só por dizer o nome de Nathaniel.
- Há quanto tempo conhece os Frost, padre? - pergunta Patrick.
- Oh, conheço-os desde que vim para a paróquia. Estive doente durante algum tempo e atribuíram-me uma nova congregação. Os Frost mudaram-se para Biddeford um mês depois de me tornar padre aqui - sorri. - Baptizei o Nathaniel.
- Costumam ir à igreja regularmente? O padre Szyszynski olha para baixo.
- Não tão regularmente como eu gostaria - admite. - Mas não me ouviu dizer isto.
- Deu catequese ao Nathaniel?
- Não dou catequese; a catequista é uma mãe. Janet Fiore. Durante a missa, lá em cima - o padre encolhe os ombros. - Mas adoro crianças, e gosto de me relacionar com os pequenitos...
«Aposto que sim», pensa Patrick.
- ... portanto depois do serviço religioso, enquanto a congregação convive e toma café, levo as crianças lá para baixo e leio-lhes uma história - sorri timidamente. - Devo confessar que sou um actor frustrado.
Também não é de admirar. ?
- Onde ficam os pais, enquanto lê?
- A desfrutar de alguns momentos sem as crianças lá em cima, na maioria dos casos.
- Mais alguém lê para as crianças consigo, ou costuma estar sozinho?
- Sou só eu. Os catequistas normalmente acabam de limpar a sala e depois sobem para tomar um café. A história dura apenas cerca de quinze minutos.
- As crianças saem alguma vez da sala?
- Só para ir à casa de banho, ao fundo do corredor.
Patrick pondera sobre este facto. Não sabe como Szyszynski conseguiu ficar a sós com o Nathaniel, quando todas as outras crianças estavam alegadamente presentes. Talvez lhes tenha dado o livro para verem sozinhas, e seguido Nathaniel até à casa de banho.
- Padre - diz Patrick -, já sabe como o Nathaniel foi maltratado? O padre hesita um pouco, e depois acena com a cabeça. -Sim. Infelizmente, já sei. ,.»
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Patrick fixa os olhos nos de Szyszynski.
- Sabia que existem provas físicas de que o Nathaniel sofreu penetração anal? - procura o mais ligeiro rubor nas faces do homem; uma alteração reveladora da sua respiração. Procura a surpresa, a retirada, o início do pânico.
Mas o padre Szyszynski limita-se a abanar a cabeça.
- Que Deus o ajude.
- Sabia, padre, que o Nathaniel nos disse que foi o senhor que lhe fez mal?
Por fim, o choque que Patrick esperava.
- Eu... eu... é claro que não lhe fiz mal. Nunca o faria. Patrick permanece em silêncio. Quer que Szyszynski pense em
todos os padres pelo mundo fora que foram considerados culpados deste crime. Quer que Szyszynski se aperceba de que se dirigiu para a forca pelo seu próprio pé.
- Hum - diz Patrick. - É engraçado. Porque eu falei com ele uma noite destas, e ele disse-me especificamente que tinha sido o padre Glen. É assim que as crianças lhe chamam, não é, padre? Aquelas crianças que... adora?
Szyszynski abana a cabeça repetidamente.
- Não fui eu. Não sei o que dizer. O rapas deve estar confuso.
- Bem, padre, é por isso que aqui está hoje. Preciso de saber se encontra alguma razão para que o Nathaniel pudesse dizer que lhe fez mal, se isso não aconteceu.
- A criança tem sofrido muito...
- Inseriu alguma vez qualquer coisa no ânus dele? O padre inspira.
- Certamente que não.
- Então porque acha que o Nathaniel disse o que disse? Lembra-se de alguma coisa que pudesse levá-lo a pensar que isso aconteceu, embora não tivesse acontecido? - Patrick inclina-se para a frente. Talvez uma vez em que estivesse sozinho com ele, tivesse acontecido algo entre os dois que pudesse ter colocado esta ideia na sua cabeça?
- Nunca estive sozinho com ele. Havia mais catorze crianças connosco.
Patrick balança a cadeira nas pernas de trás.
- Sabia que eu encontrei um par de cuecas do Nathaniel por trás da caldeira do quarto dos arrumos? O laboratório disse que havia sémen nelas.
O padre Szyszynski abre muito os olhos.
- Sémen? De quem?
- Era seu, Padre? - pergunta Patrick num tom calmo. . ? - Não.
Uma negação peremptória. Patrick estava à espera disto.
- Bem. para seu bem, espero que tenha razão, padre, porque vamos saber se isso é verdade através dos testes de ADN realizados ao seu sangue.
O rosto de Szyszynski está pálido e encovado; as mãos estão trémulas.
- Agora gostava de ir embora. Patrick abana a cabeça.
- Lamento, padre - diz. - Mas vou detê-lo.
Thomas LaCroix não conhece Nina Frost, embora tenha ouvido falar dela. Lembra-se de quando ela conseguiu obter uma condenação por uma violação que ocorreu numa banheira, embora todas as provas se tivessem perdido na água. É delegado do Ministério Público há demasiado tempo para duvidar das suas próprias capacidades - no ano passado, chegou mesmo a colocar um padre de Portland atrás das grades por este mesmo crime - mas também sabe que este tipo de caso é extremamente difícil de vencer. No entanto, quer sair-se bem. Não tem nada a ver com Nina Frost nem com o seu filho - apenas gostava que os promotores de justiça do condado de York soubessem como é que se fazem as coisas em Portland.
Ela atende o telefone ao primeiro toque.
- Até que enfim - diz, quando ele se apresenta. - Preciso mesmo de falar consigo sobre um assunto.
- com certeza. Podemos falar amanhã no tribunal, antes da acusação formal - começa tom a dizer. - Queria apenas telefonar antes...
- Porque é que o escolheram a si?
- Desculpe?
- O que é que faz de si o melhor advogado que o Wally conseguiu encontrar para a acusação?
Thomas inspira.
- Estou em Portland há quinze anos. E já levei a julgamento milhares de casos como este.
- Portanto está a telefonar por obrigação.
- Não disse isso - insiste Thomas, mas está a pensar: «Ela deve ser um prodígio num contra-interrogatório». - Compreendo que esteja nervosa por causa de amanhã, Nina. Mas a acusação formal, bem, a Nina sabe exactamente o que vai acontecer. Vamos enfrentá-la, e depois podemos sentar-nos para estabelecer a estratégia para o caso do seu filho.
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- Sim - e depois, secamente: - Precisa de indicações?
Mais um comentário sarcástico - este é o território dela, a sua vida, ele é um forasteiro em ambos.
- Olhe, imagino o que está a sofrer. Eu próprio tenho três filhos.
- Também achava que conseguia imaginar. Achava que isso é que me tornava boa no que fazia. Enganei-me das duas vezes.
Fica em silêncio, extinguindo-se todo o fogo que ardia dentro dela.
- Nina - promete Thomas -, farei tudo o que for possível para conduzir a acusação deste caso da mesma maneira que a Nina o faria.
- Não - responde ela calmamente. - Faça-o melhor.
- Não consegui uma confissão - admite Patrick, passando por Nina para entrar na cozinha dela. Quer apenas que o seu fracasso fique imediatamente ali exposto, como uma carcaça a ser desmanchada. Não há nada que ela possa dizer para o repreender que ele próprio já não tenha dito.
- Tu... - Nina fica a olhar para ele, e depois senta-se num banco.
- Oh, Patrick, não.
A angústia faz-lhe pressão nos ombros, obrigando-o a sentar-se também.
- Eu tentei, Nina. Mas ele não cedeu. Nem mesmo quando lhe falei do sémen e da revelação do Nathaniel.
- Então! - a voz de Caleb interrompe num tom firme, alegre. Acabaste o teu gelado, companheiro? - lança um aviso como uma faca entre a sua mulher e Patrick; inclina expressivamente a cabeça na direcção de Nathaniel. Patrick nem sequer tinha reparado no rapaz sentado à mesa, a comer qualquer coisa antes de se deitar. Lançara um olhar a Nina, e esquecera-se de que podia estar mais alguém na cozinha.
- Peste - diz ele. -Já é tarde para estares acordado.
- Ainda não são horas de ir para a cama.
Patrick já se tinha esquecido da voz de Nathaniel. Ainda rouca, parece mais adequada a um vaqueiro grisalho do que a uma criança pequena, mas mesmo assim é uma sinfonia. Nathaniel salta da cadeira para correr para Patrick, estendendo um braço magrinho.
- Queres sentir o meu músculo?
Caleb ri.
- Nathaniel esteve a ver o campeonato do Homem de Ferro no ESPN.
Patrick aperta o bíceps minúsculo.
- Caramba, com um braço destes eras capaz de dar-me um soco
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- diz num tom sério, e depois volta-se para Nina. - Ele é forte. Já viste como este rapaz é forte?
Está a tentar convencê-la de um tipo diferente de força, e ela sabe. Nina cruza os braços.
- Ele até podia ser o Hércules, Patrick, mas não deixava de ser o meu menino.
- Mãe - queixa-se Nathaniel. ? Por cima da cabeça dele. Nina pronuncia silenciosamente.
- Detiveste-o?
Caleb coloca as mãos nos ombros de Nathaniel, virando-o para a taça de gelado a derreter.
- Olhem, vocês os dois precisam de conversar... e sem dúvida, este não é o melhor sítio para o fazerem. Porque é que não saem? Podem contar-me tudo quando o Nathaniel estiver a dormir.
- Mas não queres...
- Nina - Caleb suspira -, vais entender o que o Patrick te disser, e eu vou -precisar que me expliquem. Podes ser a tradutora - observa Nathaniel a meter a última colherada de gelado na boca. Vá lá, companheiro. Vamos lá ver se aquele tipo da Roménia já fez saltar alguma veia do pescoço.
Na soleira da porta da cozinha, Nathaniel larga a mão do pai. Corre para Nina, agarrando-a pelos joelhos, quase uma placagem.
- Adeus, mãe - diz, sorrindo, a fazer covinhas. - Dorme bem. É um engano estranhamente perspicaz, pensa Patrick. Se Nina
pudesse, varreria toda esta porcaria por Nathaniel. Observa-a a dar um beijo de boa-noite ao filho. Quando Nathaniel corre novamente para junto de Caleb, ela baixa a cabeça e pestaneja, até as lágrimas já não serem tão brilhantes nos seus olhos.
- Então - diz - vamos lá.
Num esforço para melhorar os resultados financeiros nas noites calmas de domingo, o Tequila Mockingbird estabeleceu a Noite de Karaoke Jimmy Buffet de Key Largo, um banquete de hambúrgueres à discrição acompanhado de música. Quando o Patrick e eu entramos no bar, os nossos sentidos são agredidos: uma cadeia de luzes em forma de palmeira adorna o balcão; um papagaio de papel-crepe está pendurado do tecto; uma rapariga com excesso de maquilhagem e falta de saia está a assassinar «The Wind Beneath My Wings». Stuyvesant vê-nos entrar e sorri.
? Sweep tigbt, na versão original em inglês, que significa varre bem. em vez de sleep tigbt, dorme bem. (A , da .)
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- Vocês nunca aparecem ao domingo.
Patrick olha para uma pobre empregada de mesa, a tremer, de biquini, enquanto serve uma mesa.
- E agora sabemos porquê.
Stuyv coloca dois guardanapos à nossa frente.
- A primeira margarita é por conta da casa - informa.
- Obrigado, mas precisamos de qualquer coisa um pouco menos... - Festiva - termino.
Stuyvesant encolhe os ombros. - Como queiram.
Depois de virar as costas para ir buscar as nossas bebidas e os nossos hambúrgueres, sinto Patrick fitar-me. Está pronto para falar, mas eu não estou, ainda não. Assim que as palavras estão a pairar no ar, não há forma de evitar o que vai acontecer.
Olho para a cantora, agarrada ao microfone como se fosse uma varinha de condão. Não tem voz absolutamente nenhuma, mas ali está ela, a fazer a sua interpretação desafinada de uma canção que já era má.
- O que será que leva as pessoas a fazerem coisas destas? - digo distraidamente.
- O que leva as pessoas a fazerem o que fazem? - Patrick ergue o copo, mostra os dentes depois de beber um gole. Ouve-se um fraco aplauso quando a mulher desce do palco improvisado, provavelmente por ter acabado. - Já ouvi dizer que o karaoke é uma espécie de processo de autoconhecimento. Como o ioga, sabias? Sobes lá para cima e arranjas coragem para fazer algo que nunca na vida pensavas ser capaz de fazer, e depois de teres acabado, tornas-te uma pessoa melhor por causa disso.
- Pois, e o resto do público precisará de um Excedrín. Dá-me umas brasas para eu poder atravessar, qualquer dia destes. Oh, é verdade. Já fiz isso - para meu embaraço, vêm-me lágrimas aos olhos; para escondê-las, bebo um grande gole do meu whisky. - Sabes que quando falei com ele, disse-me para pensar em perdoar? Acreditas que teve a coragem de me dizer isso, Patrick?
- Não admitiu ter feito nada - responde Patrick suavemente. Olhou para mim como se não fizesse ideia do que eu estava a dizer. Como quando lhe falei nas cuecas e na mancha de sémen, foi um choque para ele.
- Patrick - digo, erguendo os olhos para olhar para os dele -, o que hei-de fazer?
- Se o Nathaniel testemunhar...
-Não.
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- Nina... Abano a cabeça.
- Não vou fazer-lhe isso.
- Então espera mais algum tempo, até que ele esteja mais forte.
- Ele nunca vai estar suficientemente forte para isso. Devo ficar à espera até a sua cabeça ter arranjado maneira de apagar tudo isto... e depois obrigá-lo a sentar-se na barra das testemunhas para trazer tudo de volta outra vez? Diz-me, Patrick, como é que isso pode ser para o bem do Nathaniel?
Patrick fica calado por um momento. Ele conhece este sistema como eu conheço; sabe que tenho razão.
- Talvez quando o sémen for identificado como sendo dele, o advogado do padre o convença a fazer algum acordo.
- Um acordo - repito. - A infância do Nathaniel a ser trocada por um acordo.
Sem dizer uma palavra, Patrick ergue o meu copo de whisky e dá-mo. Dou um gole hesitante. E depois um maior, embora a minha garganta esteja em chamas.
- Isto... é horrível - digo ofegante, a tossir.
- Então porque é que o pediste?
- Porque tu pedes sempre. E hoje à noite não me apetece ser eu própria.
Patrick sorri. ?»
- Talvez devesses pedir o teu habitual vinho branco, então, e ir lá para cima cantar para nós.
Como se tivesse dado uma deixa, a assistente do homem da máquina de karaoke aborda-nos, de bloco na mão. O cabelo descolorado cai-lhe para cima do rosto, e usa collants com o seu sarong tropical de minissaia.
- Meus queridos - diz-nos. - Querem fazer um dueto?
Patrick abana a cabeça.
- Não me parece.
- Oh, vá lá. Há aqui algumas canções muito giras para casais como vocês. «Summer Nights», lembram-se daquela do Grease? Ou então aquela que o Aaron Neville e a Linda Ronstadt cantam?
Não estou aqui; isto não está a acontecer. Uma mulher não está a tentar convencer-me a cantar karaoke quando vim aqui para falar sobre colocar o violador do meu filho atrás das grades.
- Vá embora - digo sucintamente.
Ela olha para o meu hambúrguer, inteiro.
- Talvez possa pedir uma dose de boa educação para acompanhar - diz ela, e volta rapidamente para o palco.
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Depois de ela já ter ido embora, o peso do olhar de Patrick assenta em mim.
- O que foi? - pergunto.
- Nada.
- É óbvio que há alguma coisa. Ele respira fundo, e deixa sair o ar.
- Podes nunca vir a perdoar o Szyszynski, Nina, mas não serás capaz de superar isto... de ajudar o Nathaniel a superar isto... até deixares de o amaldiçoar.
Bebo o resto da bebida.
- vou amaldiçoá-lo, Patrick, até ao dia da sua morte.
Uma nova cantora enche o espaço que ficou entre nós. Uma mulher corpulenta com os cabelos pelo rabo, que balança as suas ancas consideráveis quando toca o refrão na máquina de karaoke.
Basta um minuto...
- O que está ela ali a fazer? - murmuro.
Ambos desviamos o olhar do palco, e os nossos olhos encontram-se.
- Nina - diz Patrick -, não és só tu que estás a sofrer. Quando te vejo assim... bem, isso dá cabo de mim - olha para a sua bebida, mexe-a uma vez. - Desejava...
- Eu também. Mas podia desejar até o mundo parar de girar que isso não mudaria nada. Patrick.
A História já foi o presente...
Antes de o momento ter passado...
Os bons rapazes, querido, ficam sempre em último...
Patrick entrelaça os seus dedos nos meus em cima da mesa. Olha para mim, intensamente, como se estivesse prestes a ser interrogado sobre os pormenores do meu rosto. Depois, com o que aparenta ser um enorme esforço, desvia o olhar.
- A verdade é que não devia haver justiça para cabrões como ele. Pessoas destas deviam levar um tiro.
Assim juntas, as nossas mãos parecem um coração. Patrick aperta, eu retribuo o aperto. E a única forma de comunicação de que precisamos, este pulsar entre nós, a minha resposta.
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O assunto mais premente na manhã seguinte diz respeito ao que devemos fazer em relação ao Nathaniel. Isso não ocorreu nem a Caleb nem a mim antes; só quando começamos a vislumbrar o tribunal é que me apercebo de que o Nathaniel não pode estar presente nesta acusação formal... e não pode ficar sozinho. No corredor, ele fica entre nós, de mãos dadas a ambos - uma ponte viva.
- Devia ficar com ele no átrio - oferece-se Caleb, mas eu rejeito imediatamente essa solução. Caleb olha para Nathaniel. - Não tens nenhuma secretária que pudesse ficar a tomar conta dele durante algum tempo?
- Esta não é a minha comarca - faço notar. - E eu não vou deixá-lo com uma pessoa que não conheço.
É claro que não, nunca mais. Embora, afinal, não seja dos estranhos que devemos desconfiar.
Estamos presos neste impasse quando um anjo da guarda chega. Nathaniel é o primeiro a vê-la, e corre pelo corredor.
- Monica! - guincha, e ela levanta-o no ar, andando à roda com ele.
- Foi a palavra mais fabulosa que já ouvi - ri Monica , Nathaniel sorri. f
- Agora já consigo falar.
- Foi o que a Dr.a Robichaud me disse. Disse-me que quando vais ao consultório dela nem a deixas falar - passa o Nathaniel para a outra anca e dirige-se a nós. - Como é que estão a lidar com isto?
Como se houvesse uma resposta para essa pergunta hoje.
- Bem - diz Monica, como se tivéssemos respondido. - Vamos andando para a sala dos brinquedos ao pé do tribunal de família. O que achas, Nathaniel - ela ergue as sobrancelhas. - Ou será que têm outros planos para ele?
- Não... de maneira nenhuma - murmuro.
- Foi o que eu pensei. Tomar conta de crianças esta manhã... provavelmente não foi a vossa primeira prioridade.
Caleb toca nos cabelos doirados de Nathaniel.
- Porta-te bem - diz, e beija-lhe a face.
- Ele porta-se sempre bem - Monica põe-no no chão, e começa a levá-lo dali. - Nina, sabe onde nos encontrar quando estiverem despachados.
Observo-os a caminhar por um momento. Há duas semanas não suportava Monica LaFlamme; agora estou em dívida para com ela.
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- Monica - chamo, e ela volta-se. - Porque é que não tem filhos? Encolhendo os ombros, esboça um débil sorriso.
- Até agora, ninguém me pediu.
Os nossos olhares cruzam-se, e basta isso para apagar o passado.
 - Eles é que ficam a perder - digo eu, e sorrio.
Thomas LaCroix é cinco centímetros mais baixo do que eu e está a ficar careca. Isso não faz diferença absolutamente nenhuma, é claro, mas dou por mim a lançar olhares a Wally durante esta reunião, interrogando-me por que razão não terá sido capaz de encontrar o promotor de justiça mais perfeito, tão refinado por fora como por dentro, para que nenhum júri pudesse apontar-lhe nenhum defeito.
- Estamos a deixar o assunto inteiramente nas mãos do tom diz o meu chefe. - Sabes que te apoiamos a ti e ao Caleb, apoiamo-vos a cem por cento... mas não queremos que surjam problemas no recurso. E se estivermos na sala de audiências, pode parecer que estamos a viciar as cartas contra este tipo.
- Compreendo, Wally - digo. - Não há problema.
- Bem! - Wally põe-se de pé, tendo feito o que tinha a fazer aqui por agora. - Estaremos todos à espera para saber o que se passou.
Dá-me uma pancadinha no ombro ao sair. Quando vai embora, ficamos apenas os três - Caleb, eu e Thomas LaCroix. Como bom promotor de justiça - como eu - vai directo ao assunto.
- Não vão acusá-lo formalmente até depois do almoço por causa de toda esta publicidade - diz tom. - Viram os meios de comunicação social quando entraram?
Vê-los? Tivemos de passar por eles. Se não conhecesse uma entrada de serviço para o tribunal, nunca teria conseguido entrar com o Nathaniel.
- De qualquer modo, já falei com os oficiais de diligências. Vão retirar os outros prisioneiros do registo de julgamentos antes de trazerem o Szyszynski - olha para o relógio. - Estamos marcados para a uma hora, por isso têm algum tempo.
Estendo as mãos em cima da mesa.
- Não vai pôr o meu filho no banco das testemunhas - anuncio.
- Nina, sabe que isto é apenas uma acusação formal. Um processo burocrático. Vamos só...
- Quero que saiba uma coisa, e que fique já a sabê-la. O Nathaniel não vai depor.
Ele suspira.
- Já faço isto há quinze anos. E teremos de ver o que acontece.
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Neste momento, sabe melhor do que eu quais são as provas. Sem dúvida sabe melhor do que eu como está o Nathaniel. Mas também sabe que há algumas peças do quebra-cabeças das quais ainda estamos à espera: os relatórios do laboratório e a recuperação do seu filho. Daqui a seis meses, daqui a um ano... o Nathaniel pode estar muito melhor, e testemunhar poderá não representar uma dificuldade -assim tão grande.
- Ele tem cinco anos. Nesses quinze anos, tom, quantos casos com uma testemunha de cinco anos terminaram com um culpado na prisão perpétua?
Nem um único, e ele sabe.
- Então vamos ficar à espera - diz tom. - Temos algum tempo, e o arguido também vai querer algum tempo, a Nina sabe disso.
- Não pode mantê-lo na prisão indefinidamente.
- vou pedir 150 000 dólares de caução. E duvido que a Igreja Católica os vá pagar - sorri para mim. - Ele não vai a lado nenhum, Nina.
Sinto a mão de Caleb deslizar para o meu colo, e agarro-a. De início, penso que ele está a apoiar-me, mas depois ele aperta-me os dedos quase até doer.
- Nina - diz num tom afável -, talvez seja melhor deixarmos o Dr. LaCroix fazer o seu trabalho agora.
- Também é o meu trabalho - faço notar. - Coloco crianças no banco das testemunhas todos os dias, e vejo-as ficar devastadas, e depois vejo os agressores saírem em liberdade. Como pode pedir-me para esquecer isso, quando estamos a referir-nos ao Nathaniel?
- Exactamente, estamos a referir-nos ao Nathaniel. E hoje ele precisa mais de uma mãe do que de uma mãe que é uma promotora de justiça. Precisamos de analisar isto por etapas, e hoje a etapa é manter o Szyszynski atrás das grades - diz tom. - Vamos concentrar-nos, e assim que tivermos resolvido este problema, podemos decidir o que havemos de fazer a seguir.
Fico a olhar para o meu colo, onde amachuquei nervosamente a saia em mil vincos.
- Percebo o que quer dizer.
- Óptimo, então.
Erguendo o olhar, sorrio ligeiramente.
- Está a dizer o mesmo que eu digo às vítimas, quando não tenho a certeza de ter alguma hipótese de assegurar uma condenação.
Em seu favor, tom abana a cabeça.
- Tem razão. Mas não estou a tentar enganá-la. Nunca sabemos que casos vão resultar bem, que casos vão aceitar um acordo,
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que crianças vão regredir, que crianças vão melhorar ao ponto de, passado um ano, serem capazes de contribuir como não conseguiriam no primeiro dia. Levanto-me.
- Mas foi o tom que disse. Hoje não devo estar minimamente preocupada com essas outras crianças. Hoje só me preocupo com o meu filho - dirijo-me para a porta antes mesmo de Caleb se ter levantado da cadeira. - Uma hora - digo, e é um aviso.
Caleb não consegue apanhá-la até estarem no átrio, e depois, tem de afastá-la para uma pequena reentrância, onde os jornalistas não conseguirão encontrá-los.
- O que foi aquilo?
- Estou a proteger o Nathaniel - Nina cruza os braços, desafiando-o a dizer o contrário.
Parece trémula e insegura, nem parece ela. Talvez seja apenas a verdade deste dia. Deus sabe que Caleb também não se sente muito bem.
- Devíamos avisar a Monica de que houve um atraso. Mas Nina está ocupada a vestir o casaco.
- Podes fazer isso? - pergunta. - Preciso de ir num instante ao escritório.
- Agora? - Alfred e o tribunal superior ficam apenas a quinze minutos. Mas mesmo assim.
- Tenho de dar uma coisa ao Thomas - explica.
Caleb encolhe os ombros. Observa Nina a descer a escadaria da entrada. Os flashes de várias máquinas fotográficas atingem-na como balas, capturando-a no tempo enquanto corre pelos degraus abaixo. Caleb vê-a afastar um jornalista com a mesma facilidade com que enxotaria uma mosca.
Quer ir atrás dela a correr, abraçar Nina até que aquele muro à sua volta se desmorone e toda a dor transborde. Quer dizer-lhe que não tem de ser assim tão forte em frente dele, porque estão nisto juntos. Quer levá-la lá para baixo, para a sala alegre com quadrados do alfabeto no chão, sentar-se com ela e com o filho entre eles. Só precisa de tirar aquelas palas; então verá que não está sozinha.
Caleb chega mesmo a abrir a porta de vidro, para espreitar lá para fora. Mas agora ela é apenas um ponto, à distância, no parque de estacionamento. O nome dela paira-lhe nos lábios, mas então há uma explosão que o cega - um fotógrafo de um jornal, outra vez. Voltando a entrar, tenta ver-se livre da visão dupla, mas só passado bastante tempo consegue voltar a ver com clareza; e por isso nunca
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chega a ver o carro de Nina sair do parque do tribunal, virando na direcção oposta do escritório.
Estou atrasada.
Entro apressadamente pela porta principal do tribunal, contornando a fila de pessoas que estão à espera de passar pelo detector de metais.
- Olá, Mike - digo ofegante, esgueirando-me por trás do oficial de diligências conhecido, que se limita a acenar com a cabeça. A nossa sala de audiências fica à esquerda; abro a porta dupla e entro.
Está cheia de jornalistas e operadores de câmara, todos eles alinhados nas filas de trás como os rapazes malcomportados nos bancos de trás da camioneta. Esta é uma história importante no condado de York, no Maine. É uma história importante em qualquer lugar.
Encaminho-me para a frente, onde Caleb e Patrick estão sentados. Deixaram um lugar na coxia para mim. Por um momento, luto contra a minha tendência natural - avançar, atravessando a cancela, e sentar-me à mesa da acusação com Thomas LaCroix. É por isso que fazemos o «exame da Ordem dos Advogados» - devido a esse exame podemos trabalhar lá à frente, na sala de audiências.
Não conheço o advogado de defesa. Provavelmente é alguém de Portland. Alguém que a diocese contrata para tratar destas coisas. Há um operador de câmara posicionado à direita da mesa da defesa, com a cabeça inclinada junto à máquina, preparando-se.
Patrick é o primeiro a ver-me.
- Olá - diz. - Estás bem? ? .
Tal como esperava, Caleb está zangado.
- Onde estiveste? Tentei... O que estava prestes a dizer foi interrompido quando um oficial
de diligências começa a falar.
- O meritíssimo juiz Jeremiah Bartlett preside a esta audiência. Como é óbvio, conheço o juiz. Assinou a ordem de restrição contra Caleb. Manda-nos sentar, e eu tento, mas o meu corpo ficou rígido como uma tábua e não caibo no assento. Os meus olhos apreendem tudo e nada simultaneamente.
- Estão preparados para a acusação formal no caso do «Estado contra Szyszynski»? - pergunta o juiz.
Thomas levanta-se suavemente:
- Sim, Meritíssimo.
Na mesa da defesa, o outro advogado levanta-se. ? ? .
- Represento o padre Szyszynski, e estamos preparados, Meretíssimo.
Já vi isto mil vezes; um oficial de diligências avança, aproximando-se do lugar do juiz. Fá-lo para o proteger. Afinal, os arguidos que são levados lá para dentro são criminosos. Tudo pode acontecer.
A porta da cela de detenção abre-se, e o padre é trazido cá para fora. Tem as mãos algemadas à sua frente. Ao meu lado, sinto que Caleh se esquece de respirar. Seguro a minha mala no colo, num aperto mortal.
O segundo oficial de diligências conduz o padre até à mesa da defesa, ao lugar de dentro, visto que ele vai ter de levantar-se em frente ao juiz para apresentar a sua defesa. Agora está tão perto que podia cuspir-lhe em cima. Podia sussurrar, e ele talvez me ouvisse.
Digo a mim própria para ser paciente.
O meu olhar fixa-se no juiz, e depois nos oficiais de diligências. É com eles que me preocupo. Estãodepé, atrás do padre, assegurando-se de que ele se senta.
«Recua. Recua recua recua.»
Enfio a mão dentro da mala, passando pelo que me é familiar, para o calor que me salta para a mão. O oficial de diligências dá um passo atrás - este arguido, reles escumalha, ainda tem direito a ter privacidade com o seu advogado. Há palavras que se movem pela sala de audiências como pequenos insectos, distracções que ignoro.
Assim que me levanto, lanço-me no abismo. O mundo passa por mim numa névoa de cor e luz; o meu peso acelera, inexoravelmente. Depois penso: «Cair é o primeiro passo para se aprender a voar».
Em dois passos, atravesso o corredor da sala de audiências. Num abrir e fechar de olhos, encosto a arma à cabeça do padre. Carrego no gatilho quatro vezes.
O oficial de diligências agarra-me no braço, mas eu não largo a arma. Não consigo, até perceber que já o fiz. Há sangue a escorrer, e gritos, e depois estou de novo a cair, para a frente, para lá da cancela, onde devo estar.
- Acertei-lhe? Está morto?
Atiram-me ao chão, e quando abro os olhos, vejo-o. O padre jaz apenas a alguns metros, parte da sua cabeça desapareceu.
Largo a arma.
O peso em cima de mim assume uma forma familiar, e então ouço Patrick dizer-me ao ouvido.
- Nina, pára. Pára de lutar - a sua voz traz-me de volta. Vejo o advogado de defesa, escondido debaixo da mesa da estenógrafa. Os jornalistas, com as máquinas fotográficas a disparar como um campo cheio de pirilampos. O juiz, a carregar no botão de emergência na
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sua secretária, a gritar para evacuarem a sala de audiências. E Caleb, branco como a neve, interrogando-se sobre quem serei eu.
- Quem tem algemas? - pergunta Patrick. Um oficial de diligências entrega-lhe um par que tinha pendurado no cinto e Patrick prende-me as mãos atrás das costas. Levanta-me e arrasta-me pela mesma porta por onde o padre entrou. O corpo de Patrick é inflexível, o seu queixo firme contra a minha orelha.
- Nina - sussurra. - O que fizeste?
Uma vez, não há muito tempo, na minha própria casa, tinha feito a Patrick esta mesma pergunta. Agora devolvo-lhe a resposta.
- Fiz o que tinha de fazer - digo, e deixo-me acreditar nisso.
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Estar uma vez na dúvida É estar decidido de uma vez.
- Shakespeare,
O campo de férias é um lugar que vibra com o som dos grilos e é tão verde que às vezes me faz doer os olhos só de olhar.
Tenho medo de aqui estar, porque é ao ar livre e porque ao ar livre há abelhas. As abelhas fazem o meu estômago apertar-se como um punho, só de ver uma dá-me vontade de correr e esconder-me. Nos meus pesadelos imagino-as a sugarem-me o sangue como se fosse mel.
A minha mãe diz aos monitores do campo que tenho medo de abelhas. Eles dizem que, em todos aqueles anos, nem uma única criança foi picada.
Eu penso que alguém tem de ser o primeiro.
Uma manhã, a minha monitora - uma rapariga com um colar de macramé que usa até para nadar - leva-nos a dar um passeio a pé pelo bosque. É tempo de nos reunirmos, diz ela. Arrasta um tronco para servir de banco. Arrasta um segundo tronco e lá estão todos aqueles casacos amarelos.
Fico petrificado. As abelhas cobrem o rosto da monitora, os braços, a barriga. Tenta enxotá-las enquanto grita. Lanço-me para cima dela. Bato com as mãos na sua pele. Salvo-a, mesmo enquanto estou a ser picado uma outra vez.
Quando termina o campo de férias naquele Verão, os monitores atribuem-nos prémios. São faixas azuis, cada uma com grossas letras pretas impressas. A minha diz O Rapaz Mais Corajoso.
Ainda a tenho.
QUATRO
Nos momentos seguintes, Patrick interroga-se sobre como podia saber que o número favorito de Nina é o treze, que a cicatriz no queixo dela se deve a um acidente de trenó, que pediu um crocodilo de estimação em três natais seguidos - sem saber que dentro dela, durante todo este tempo, havia uma granada à espera de explodir.
- Fiz o que tinha de fazer - murmura repetidamente ao longo do tribunal escorregadio e ensanguentado.
Nos seus braços, ela estremece. Parece leve como uma nuvem. A cabeça de Patrick anda à roda. Nina ainda cheira a maçãs, o seu champô; ainda é incapaz de andar em linha recta - mas está a balbuciar de forma incoerente, não controlando nada, ao contrário do que Patrick está habituado a vê-la fazer. Quando atravessam a porta da cela de detenção, Patrick olha para trás, para a sala de audiências. «Pandemónio.» Sempre achou que aquela palavra fazia lembrar um circo, mas ei-lo ali agora. Massa encefálica a cobrir a parte da frente do fato do advogado de defesa. Montes de papéis e malas cobrem a galeria, enquanto alguns jornalistas choram e outros dão instruções aos seus operadores de câmara para filmarem. Caleb está imóvel como uma estátua. Bobby, um dos oficiais de diligências, está a falar para o rádio que tem ao ombro:
- Sim, foram disparados tiros, e precisamos de uma ambulância. Roanoke, o outro oficial de diligências, acompanha um pálido
juiz Bartlett aos seus aposentos.
- Evacuem o tribunal! - grita o juiz, e Roanoke responde.
- Mas não podemos, Meritíssimo: todos são testemunhas.
No chão, a ser completamente ignorado, jaz o corpo do padre Szyszynski.
«Matá-lo foi a decisão certa», pensa Patrick antes que o possa evitar. E imediatamente depois: «Oh, meu Deus, o que fez ela?»
- Patrick - Nina murmura.
Ele não consegue olhar para ela.
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- Não fales comigo - ele vai ser testemunha no... meu Deus julgamento de Nina por homicídio. Tudo o que ela lhe disser ele terá de referir em tribunal.
Enquanto uma agressiva fotógrafa abre caminho até à cela de detenção, Patrick desvia-se ligeiramente para esconder Nina da máquina fotográfica. Neste momento, a sua missão é protegê-la. Apenas desejava que houvesse alguém que o protegesse a ele.
Liberta-a dos seus braços para poder fechar a porta. Assim será mais fácil esperar a chegada do departamento de Polícia de Biddeford. Quando a porta se fecha, ele vê os paramédicos chegarem, inclinando-se sobre o corpo.
- Ele está morto? - pergunta Nina. - Preciso que me digas Patrick. Matei-o, não matei? Quantos tiros disparei? Tive de fazê-lo, tu sabes que tive de fazê-lo. Ele está morto, não está? Os paramédicos não vão conseguir reanimá-lo, pois não? Diz-me que não vão conseguir. Por favor, diz-me só que ele está morto. Prometo que fico aqui sentada sem me mexer se fores lá ver se ele está morto.
- Ele está morto, Nina - diz Patrick num tom calmo. Ela fecha os olhos, balança um pouco.
- Graças a Deus. Meu Deus, meu Deus, graças a Deus - deita-se no catre de metal da pequena cela.
Patrick vira-se de costas para ela. Na sala de audiências, os seus colegas chegaram. Evan Chão, outro detective-tenente do departamento, supervisiona o isolamento do local do crime, gritando por cima do crescendo de guinchos e soluços. Há polícias agachados, procurando impressões digitais, tirando fotografias da poça de sangue a espalhar-se e da balaustrada partida onde Patrick imobilizou Nina para lhe retirar a arma da mão. As forças especiais da polícia do estado do Maine chegam, percorrendo o corredor central como um tornado. Uma mulher, uma jornalista convocada para interrogatório, lança um olhar para o que resta do padre e vomita. É um cenário soturno e caótico; parece saído de um pesadelo, e porém, Patrick fica a olhar fixamente, muito mais disposto a enfrentar esta realidade do que a que chora silenciosamente atrás dele.
O que Nathaniel detesta neste jogo de tabuleiro em particular é que basta girar mal a roda e já está, a nossa pequena peça desliza pela grande rampa no meio. É verdade que se girarmos bem, podemos subir aquele escadote muito alto... mas nem sempre é assim que funciona, e quando nos apercebemos, já perdemos.
Monica deixa-o ganhar, mas ele não gosta tanto disso como pensava que gostaria. Fá-lo sentir-se como quando caiu da bicicleta e
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ficou com um corte absolutamente repulsivo no queixo. As pessoas olhavam para ele e fingiam que estava tudo normal, mas conseguia -se perceber pelos seus olhos que o que queriam mesmo era desviar o olhar.
- Vais girar, ou vou ter de esperar até teres seis anos? - graceja Monica.
Nathaniel faz girar a roda. Quatro. Anda o número certo de casas com o seu homenzinho e, tinha de ser, acaba numa daquelas rampas. Fica parado no cimo, sabendo que se andasse só três, Monica não diria uma palavra.
Mas antes de conseguir decidir fazer ou não batota, há algo atrás de si que lhe chama a atenção. Através da grande janela de vidro da sala dos brinquedos, vê um polícia... não, dois... cinco... a correr pelo corredor. Não se parecem com Patrick quando está a trabalhar - todo amarrotado, com uma camisa normal e de gravata. Têm botas brilhantes e distintivos prateados, e as mãos nas armas, tal como Nathaniel vê à noite na televisão quando desce as escadas para beber água e os pais não mudam de canal suficientemente rápido.
- Tiros - diz suavemente. Monica sorri para ele.
- Pois é, caíste. Mas para a próxima vais ter mais sorte, Nathaniel.
- Não... tiros - forma uma arma com os dedos, o sinal para a letra G. - Tu sabes. Pum.
Fica imediatamente a saber quando Monica o compreende. Ela olha para trás ao ouvir todos aqueles pés correr, e fica de olhos muito abertos. Mas volta-se novamente para Nathaniel com um sorriso colado por cima da pergunta que lhe estremece nos lábios.
- É a tua vez de jogar, não é? - diz Monica, embora ambos saibam que a vez dele já foi.
Quando Caleb recupera a sensibilidade nos dedos e nos pés, ela vem devagar, como uma queimadura de gelo emocional que deixa as suas extremidades inchadas e estranhas. Avança cambaleando, passando pelo sítio onde Nina acabou de alvejar um homem a sangue frio, passando pelas pessoas que se debatem para arranjar um lugar para poderem fazer o trabalho que foram ensinadas a fazer. Caleb guardou uma boa distância do corpo do padre Szyszynski. O seu corpo move-se rigidamente em direcção à porta onde viu Nina pela última vez, a ser empurrada para dentro de uma cela.
Meu Deus, uma cela. Um detective que não o reconhece agarra-lhe no braço.
- Aonde pensa que vai? - em silêncio, Caleb abre caminho empurrando o homem, e então vê o rosto de Patrick na pequena janela da porta. Caleb bate, mas Patrick parece estar a decidir se deve ou não abrir-lhe a porta.
Naquela altura, Caleb apercebe-se de que todas estas pessoas, todos estes detectives, acham que ele pode ser cúmplice de Nina.
Fica com a boca seca como areia, e quando Patrick abre por fim uma nesga da porta, nem sequer consegue pedir para ver a sua mulher.
- Vai buscar o Nathaniel e vai para casa - sugere Patrick numa voz calma. - Eu telefono-te, Caleb.
Sim, Nathaniel. Nathaniel. Só de pensar no filho, no andar de baixo enquanto tudo isto acontecia, faz o seu estômago andar às voltas. Movimenta-se com uma velocidade e graça invulgares para uma pessoa do seu tamanho, fintando as pessoas, até chegar ao extremo oposto da sala de audiências, à porta na parte de trás do corredor. Está um oficial de diligências de guarda, observando Caleb a aproximar-se.
 - O meu filho está lá em baixo. Por favor. Tem de me deixar ir ter com ele.
Talvez seja a dor marcada no rosto de Caleb, talvez seja a forma como as palavras lhe saem da boca da cor do sofrimento - por qualquer razão, o oficial de diligências faz-lhe sinal.
-Juro-lhe que volto já. Mas tenho de ver se ele está bem.
Um aceno, que Caleb não devia ver. Quando o oficial de diligências desvia o olhar, Caleb sai sorrateiramente pela porta atrás dele. Desce os degraus dois a dois e corre pelo corredor em direcção à sala dos brinquedos.
Por um momento, fica do lado de fora da janela de vidro, observando o filho a brincar e deixando que isso o faça voltar a si. Então Nathaniel vê-o e sorri, saltando para abrir a porta e lançar-se para os braços de Caleb.
O rosto tenso de Monica emerge no mar da sua visão.
- O que aconteceu lá em cima? - murmura com os lábios, em silêncio.
Mas Caleb limita-se a enfiar o rosto no pescoço do filho, tão silencioso como Nathaniel ficara ao acontecer algo que era incapaz de explicar.
Nina disse uma vez a Patrick que costumava ficar junto ao berço de Nathaniel, observando-o a dormir. «É espantoso», dissera. «A inocência num cobertor.» Agora ele compreende. Observando Nina a
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dormir, nunca adivinharíamos o que acontecera apenas duas horas antes. Nunca adivinharíamos, a julgar por aquela fronte suave, que pensamentos jazem debaixo da superfície.
Patrick, por outro lado, está absolutamente agoniado. Parece não conseguir recuperar o fôlego; forma-se-lhe um nó no estômago a cada passo. E cada vez que olha para o rosto de Nina, não consegue decidir-se sobre o que preferia descobrir. Que nesta manhã ela simplesmente enlouqueceu... ou que não.
Assim que a porta se abre, fico completamente acordada. Sento-me como uma mola no divã, com a mão a alisar o casaco que Patrick me deu para servir de almofada. É de lã, áspera; deixou-me linhas marcadas na face.
Um polícia que não conheço espreita cá para dentro.
- Tenente - diz formalmente -, precisamos do seu depoimento. É claro. Patrick também viu tudo.
Os olhos, do polícia são como insectos na minha pele. Enquanto Patrick se dirige para a porta eu levanto-me, agarrando-me às grades da cela.
- És capaz de descobrir se ele está morto? Por favor? Preciso de saber. Preciso. Preciso de saber se ele está morto - as minhas palavras atingem Patrick entre as omoplatas, fazendo-o abrandar. Mas ele não olha para mim ao sair da cela de detenção, passando pelo outro polícia e abrindo a porta.
Na nesga de sala que é revelada, vejo a actividade que Patrick escondeu de mim ao longo das últimas duas horas. Devem ter chegado os l he Murder Winnebago - uma unidade móbil da polícia estadual que contém tudo o que os polícias necessitam para investigar um homicídio e o pessoal indicado para o fazer. Agora percorrem a sala de audiências como uma massa de larvas, à procura de impressões digitais e assentando os nomes e depoimentos das testemunhas oculares. Uma pessoa muda de posição, revelando uma mancha carmesim contornando uma mão aberta a tornar-se acinzentada. Enquanto observo, um fotógrafo inclina-se, capturando o padrão de salpicos de sangue. Fico com o coração apertado. E penso: «Eu fiz isto; eu fiz isto».
Deus sabe que Quentin Brown não gosta de conduzir para lado nenhum, sobretudo grandes distâncias, em particular de Augusta para o condado de York. Quando chega a Brunswick tem a certeza de que, se passar mais um minuto, a sua estatura de um metro e noventa e seis ficará permanentemente imóvel na posição que este ridículamente
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pequeno Ford Probe lhe exige. Quando chega a Portland, tem de ser esticado. Mas enquanto delegado do procurador-geral, pertencente à equipa de investigação de homicídios, tem de ir para onde o mandam. E se alguém despachou um padre em Biddeford, então é para Biddeford que tem de ir.
Mesmo assim, quando chega ao tribunal de comarca, está com um mau humor formidável, e isso é algo que não pode ser ignorado. Pelos padrões normais, Quentin Brown é imponente - ao somar a sua cabeça rapada, a sua estatura invulgar e a sua cor de pele ainda mais invulgar neste estado de brancos, a maioria das pessoas presume que ele é um criminoso ou um jogador da NBA de férias. Mas um advogado? Um advogado negro? Aqui não, como dizem os habitantes locais.
Na realidade, a faculdade de direito da Universidade do Maine recruta bastantes estudantes de cor, para compensar a falta de variedade racial. Tal como Quentin, muitos entram; ao contrário de Quentin, todos saem. Passou vinte anos a entrar nos tribunais de província e a deixar atónitos os advogados de defesa que esperavam alguém - ou outra coisa - diferente. E verdade seja dita, Quentin gosta que isso aconteça.
Como sempre, as pessoas afastam-se de boca aberta, abrindo caminho para ele quando entra no Tribunal de Comarca de Biddeford. Entra na sala de audiências com a fita da polícia a selar as portas, e continua pelo corredor, passando a cancela. Tendo perfeita consciência de que o movimento abrandou e de que as conversas pararam, Quentin inclina-se e examina o homem morto.
- Para uma doida - murmura, avaliando -, tinha muito boa pontaria - depois, Quentin olha para o polícia que está a olhar para ele como se tivesse vindo de Marte. - O que foi? - diz com ar impassível. - Nunca viu uma pessoa com um metro e noventa e cinco?
Um detective aproxima-se dele, caminhando com autoridade. «
- Posso ajudá-lo?
- Quentin Brown. Do Gabinete do Procurador-Geral - estende a mão.
- Evan Chão - diz o detective, esforçando-se ao máximo para não hesitar. Meu Deus, como Quentin adora este momento.
- Quantas testemunhas do tiroteio há? Chão faz algumas contas num bloco.
- Já temos trinta e seis, mas há cerca de cinquenta pessoas na sala lá atrás que ainda não apresentaram os seus depoimentos. Mas todos dizem o mesmo: E temos todo o tiroteio gravado em vídeo; a WCSH estava a filmar a acusação formal para o noticiário das cinco.
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- Onde está a arma?
- O Bobby recolheu-a, colocou-a num saco. Quentin acena com a cabeça.
- E a culpada?
- Está na cela de detenção.
- Óptimo. Vamos redigir uma queixa de homicídio - olha em volta, verificando o estado da investigação. - Onde está o marido?
- com todas as outras pessoas, à espera de ser interrogado, suponho eu.
- Temos alguma prova que o relacione com o crime? Participou de alguma forma?
Chão troca um olhar com alguns polícias, que murmuram entre si e encolhem os ombros.
- Parece que ainda não foi interrogado.
- Então tragam-no até aqui, diz Quentin - vamos perguntar-lhe. Chão dirige-se a um dos oficiais de diligências.
- Roanoke, vai à procura do Caleb Frost, está bem?
O homem mais velho olha para Quentin e encolhe-se.
- Ele, hum, não está aqui.
- E tem a certeza disso? - diz Quentin devagar.
- Pois. Ele, bem, ele perguntou-me se podia ir buscar o filho, mas disse-me que voltava.
- Disse o quê? - é pouco mais do que um sussurro, mas vindo da grande estatura de Quentin, é ameaçador. - Deixou-o ir embora depois de a sua mulher ter assassinado o homem que foi acusado de molestar o filho deles? O que é isto, os Keystone Kops?
- Não, senhor - responde o oficial de diligências num tom grave. - É o Tribunal de Comarca de Biddeford.
Um músculo salta no maxilar de Quentin.
- Mandem alguém à procura deste tipo e interroguem-no - diz a Chão. - Não sei o que ele sabe; não sei se está envolvido, mas se for necessário detê-lo, façam-no.
Chão fica irritado.
- Não culpe a polícia por isto; o erro foi do oficial de diligências. Nem sequer me disseram que ele estava na sala de audiências.
«E onde mais poderia estar, se o agressor do filho estava a ser formalmente acusado?» Mas Quentin limita-se a respirar fundo.
- Bem, de qualquer modo precisamos de falar com a atiradora. O juiz ainda está aqui? Talvez consigamos que ele a acuse formalmente.
- O juiz está... indisposto.
- Indisposto - repete Quentin.
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- Tomou três Valium depois de terem sido disparados os tiros, e ainda não acordou.
É possível ir buscar outro juiz, mas já é tarde. E a última coisa que Quentin deseja é que esta mulher seja libertada por causa de algum comissário responsável pelas cauções.
- Acusem-na. Vamos mantê-la sob custódia durante a noite e acusá-la formalmente de manhã.
- Durante a noite? - pergunta Chão.
- Sim. Da última vez que verifiquei, ainda existia a Prisão de Alfred no condado de York.
O detective olha para baixo, para os sapatos, durante um momento.
- Pois, mas... bem, sabe que ela é promotora de justiça?
É claro que sabe, sabe-o desde o momento em que o seu gabinete foi contactado para investigar.
- O que eu sei - responde Quentin -, é que ela é uma assassina.
Evan Chão conhece Nina Frost; todos os detectives de Biddeford já trabalharam com ela em alguma ocasião. E tal como todos os outros homens da força policial, nem sequer a censura pelo que fez. Que raio, metade deles desejava ter coragem para fazer o mesmo, no lugar dela.
Ele não deseja fazer isto, mas por outro lado, é melhor ser ele do que aquele idiota do Brown. Pelo menos pode assegurar-se de que o próximo passo seja o menos doloroso possível para ela.
Toma o lugar do polícia que está a guardá-la e assume ele próprio a posição à porta da cela de detenção. Numa situação mais ideal, levava-a para uma sala de conferências, oferecia-lhe uma chávena de café, punha-a à vontade para aumentar as probabilidades de falar. Mas o tribunal não dispõe de uma sala de conferências segura, portanto esta entrevista terá de ser conduzida do outro lado das grades.
Os cabelos de Nina estão revoltos em volta do seu rosto, os seus olhos estão tão verdes que brilham. Tem arranhões profundos no braço; parece ter sido ela própria a fazê-los. Evan abana a cabeça.
- Nina, lamento muito... mas tenho de acusá-la pelo assassínio de Glen Szyszynski.
- Eu matei-o? - sussurra ela.
- Sim.
O sorriso que lhe surge no rosto transforma-a.
- Posso vê-lo, por favor? - pergunta educadamente. - Prometo que não toco em nada, mas por favor, preciso de vê-lo. ....
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- Ele já não está aqui, Nina. Não pode vê-lo.
- Mas eu matei-o?
Evan expira pesadamente. Da última vez que viu Nina Frost, estava a tratar de um dos seus próprios casos em tribunal - um encontro-violação. Colocou-se em frente ao culpado e deixou-o exangue no banco das testemunhas. Fê-lo parecer o que ela agora parece.
- Dá-me o seu depoimento, Nina?
- Não, não posso. Não posso. Fiz o que tinha a fazer, não posso fazer mais nada.
Tira um documento com os direitos.
- Preciso de ler-lhe os seus direitos.
- Fiz o que tinha a fazer.
Evan tem de falar mais alto do que ela.
- Tem o direito de permanecer calada. Tudo o que disser poderá ser usado contra si em tribunal. Tem o direito...
- Não posso fazer mais nada. Fiz o que tinha a fazer - balbucia Nina.
Evan termina finalmente de ler. Através das grades dá-lhe uma caneta para assinar o documento, mas esta cai-lhe dos dedos. Ela sussurra:
- Não posso fazer mais nada.
- Vá lá, Nina - diz Evan num tom suave. Destranca a cela de detenção, guia-a pelo corredor do gabinete do xerife, entrando num carro da polícia que está lá fora. - Só podemos acusá-la formalmente amanhã, portanto tenho de levá-la para a prisão, para passar a noite. Terá a sua própria cela, e vou assegurar-me de que tomarão conta de si. Está bem?
Mas Nina Frost enrolou-se em posição fetal no banco de trás do carro e parece não estar a ouvir absolutamente nada.
O guarda prisional na recepção da prisão chupa um rebuçado para a tosse Halls Mentho-Lyptus enquanto me pede que resuma a minha vida às únicas coisas que necessitam de saber numa prisão: «nome, data de nascimento, altura, peso. Cor dos olhos, alergias, medicação, médico habitual». Respondo suavemente, fascinada pelas perguntas. Normalmente entro nesta peça no segundo acto, vê-la do início é uma novidade para mim.
Uma baforada de mentol medicinal vem na minha direcção, enquanto o sargento volta a bater com o lápis.
- Características distintivas? - pergunta.
Ele está a referir-se a marcas de nascença, sinais, tatuagens. «Tenho uma cicatriz», penso silenciosamente, «no coração». A,
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Mas antes de conseguir responder, outro guarda prisional abre o fecho da minha mala preta e esvazia o seu conteúdo em cima da secretária. Pastilhas elásticas, três rebuçados Life Savers cobertos de pêlos, uma agenda, a minha carteira. Os detritos da maternidade: fotografias do Nathaniel, do ano passado, um anel de dentição há muito esquecido, uma embalagem de quatro lápis de cera fanada de um restaurante Chili s. Mais dois conjuntos de munições para a arma.
Agarro nos meus braços, subitamente a tremer.
- Não posso. Não posso fazer mais nada - sussurro, e tento enrolar-me numa bola.
- Bem, ainda não acabámos - diz o guarda prisional. Rola-me os dedos sobre a almofada de tinta e faz três conjuntos de impressões. Encosta-me a uma parede, dá-me uma placa. Sigo as suas instruções como um morto-vivo; não olho directamente para ele. Não me avisa quando o flash vai disparar; agora sei por que razão os criminosos parecem sempre ter sido apanhados desprevenidos nas fotografias da prisão.
Quando a minha visão se adapta depois da explosão de luz, uma guarda está de pé à minha frente. Tem uma longa sobrancelha que lhe atravessa a testa e a constituição de um defesa de futebol americano. Sigo-a aos tropeções até uma sala não muito maior do que um armário, que contém prateleiras cheias de uniformes prisionais de um laranja-vivo, muito bem dobrados. Lembro-me de repente de que as prisões do Connecticut tiveram de vender todos os seus fatos-macacos verde-floresta novos em folha porque os condenados estavam sempre a fugir para os bosques.
A guarda dá-me um uniforme.
- Dispa-se - ordena.
«Tenho de fazer isto», penso, enquanto a ouço estalar as luvas de borracha. «Tenho de fazer tudo o que for preciso para sair daqui.» Portanto obrigo a minha mente a ficar vazia, como um ecrã no final do filme. Sinto os dedos da guarda sondar-me a boca e os ouvidos, as narinas, a vagina, o ânus. Contraindo-me bruscamente, lembro-me do meu filho.
Quando acaba, a guarda agarra nas minhas roupas, ainda húmidas com o sangue do padre, e mete-as dentro de um saco. Visto o fato devagar, apertando as calças na cintura, tão apertadas que quase não consigo respirar. Os meus olhos deslocam-se para trás e para a frente ao longo do corredor. As paredes observam-me.
Na sala de detenções, novamente na parte da frente da prisão, a guarda deixa-me em frente a um telefone.
- Vá lá - orienta-me. - Faça a sua chamada. mJ!;,,?,
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Tenho o direito constitucional a fazer uma chamada telefónica privada, mas consigo sentir o peso dos seus olhares. Levanto o auscultador e brinco com ele, afagando o seu longo pescoço. Fico a olhar para ele como se nunca tivesse visto um telefone.
Ouçam o que ouvirem, não admitirão tê-lo ouvido. Já tentei levar vários guardas prisionais a testemunhar e eles recusaram-se sempre, porque têm de regressar para guardar estes prisioneiros todos os dias.
Pela primeira vez, isto funciona a meu favor.
Cruzo o olhar com o guarda prisional mais próximo e depois deixo lentamente de representar. Marcando o número, desejo estar em contacto com alguma coisa fora daqui.
- Está? - diz Caleb, a mais bela palavra na nossa língua.
- Como está o Nathaniel?
- Nina. Meu Deus, o que fizeste?
- Como está o Nathaniel? - repito.
- Como é que achas que ele está? A mãe foi presa por ter morto uma pessoa!
Fecho os olhos.
- Caleb, tens de me ouvir. Explico tudo quando te vir. Falaste com a polícia?
- Não...
- Não fales. Neste momento, estou na prisão. vou ficar aqui detida durante a noite, e amanhã vou ser formalmente acusada. sinto vir as lágrimas. - Preciso que telefones ao Fisher Carrington.
- A quem?
- É um advogado de defesa. E é a única pessoa que pode livrar-me disto. Não me interessa o que fizeres, mas fá-lo representar-me.
- E o que devo dizer ao Nathaniel? Respiro fundo.
- Que eu estou bem, e que amanhã já estarei em casa. Caleb está zangado; consigo ouvi-lo na sua pausa.
- Porque hei-de fazer isto por ti, depois do que acabaste de nos fazer?
- Se quiseres que haja um nós - digo -, é melhor que o faças.
Depois de Caleb me ter desligado o telefone, mantenho o auscultador encostado à orelha, fingindo que ainda está do outro lado da linha. Depois pouso o auscultador, volto-me e olho para o guarda prisional que está à espera para me levar para uma cela.
- Tive de fazê-lo - explico. - Ele não entende. Não consigo fazê-lo entender. Teria feito o mesmo, não teria? Se fosse o seu filho, não teria feito o mesmo? - faço os meus olhos moverem-se da
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esquerda para a direita, sem pousarem em nada. Roo a unha até a cutícula sangrar.
Faço-me de louca, porque é isso que quero que vejam.
Não fico surpreendida ao ser conduzida para as celas solitárias. Em primeiro lugar, os prisioneiros novos muitas vezes são colocados sob observação para evitar suicídios; em segundo lugar, fui eu que coloquei na prisão metade destas mulheres. O guarda prisional fecha a porta atrás de mim e este torna-se o meu mundo: um metro e oitenta por dois metros e meio, um divã de metal, um colchão manchado e uma sanita.
A guarda afasta-se, e, pela primeira vez neste dia, deixo-me desarmar. Matei um homem. Dirigi-me directamente ao seu rosto de mentiroso e disparei quatro tiros nele. A lembrança vem fragmentada - o clique do gatilho quando já não havia volta; o estrondo da arma; o ressalto na minha mão quando a arma fez ricochete, como se também estivesse a tentar parar, demasiado tarde.
O sangue dele era quente ao chegar à minha blusa.
Oh, meu Deus, matei um homem. Fi-lo pelas razões certas; fi-lo pelo Nathaniel, mas fi-lo.
O meu corpo começa a estremecer descontroladamente e, desta vez, não se trata de uma representação. Uma coisa é parecer louca por causa das testemunhas que serão chamadas a depor contra mim; outra coisa completamente diferente é vaguear pela minha própria mente e aperceber-me do que sou capaz. O padre Szyszynski não celebrará a missa no domingo. Não tomará a sua chávena de chá à noite nem rezará uma oração ao fim da tarde. Matei um padre a quem não foi dada a extrema-unção; e segui-lo-ei directamente para o Inferno.
Ergo os joelhos, encosto o queixo com força. Nas entranhas sobreaquecidas desta prisão, estou gelada.
- Estás bem, amiga?
A voz paira, vinda do outro lado do corredor, da segunda cela de reclusão solitária. Fosse quem fosse que esteve a observar-me, fá-lo das sombras. Sinto o calor subir-me ao rosto e olho para cima, vendo uma mulher negra alta, com a camisa atada por cima do umbigo, as unhas dos pés pintadas de cor de laranja para condizer com a farda da prisão.
- Chamo-me Adrienne e sou muito boa ouvinte. Não tenho oportunidade de falar com muita gente.
Ela acha que eu vou cair nessa cilada? Os informadores da polícia são tão comuns aqui como as declarações de inocência, e eu sei-o bem - já escutei ambos. Abro a boca para lhe dizer isto, mas,
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olhando com mais atenção, apercebo-me de que estou enganada. Os pés grandes, o abdómen ondulado, as veias nas costas das mãos - Adrienne não é uma mulher.
- O teu segredo - diz o travesti. - Fica em segurança comigo.
Olho directamente para o peito considerável dela - dele.
- Tens um Kleenex? - pergunto num tom monocórdico.
- Por um instante, faz-se um silêncio.
- Isso é apenas um pormenor técnico - responde Adrienne.
Desvio novamente o olhar.
- Pois, bem, não falo contigo na mesma.
Por cima de nós, ouve-se a chamada para apagar as luzes. Mas
 na prisão nunca fica escuro. É um crepúsculo eterno, uma altura em que as criaturas rastejam dos pântanos e os grilos invadem a terra.
Nas sombras, consigo ver a pele lisa de Adrienne, um tom mais claro do que a noite entre as grades da sua cela.
- O que fizeste? - pergunta Adrienne, e não há como interpretar mal a sua pergunta.
- O que fizeste tu?
- Foram as drogas, são sempre as drogas, querida. Mas estou a tentar deixá-las, a sério.
- Uma condenação por drogas? Então por que razão te puseram na solitária?
Adrienne encolhe os ombros.
- Bem, os rapazes, o meu lugar não é junto deles; só querem bater-me, sabes? Gostava de ficar com as raparigas, mas não me deixam, porque ainda não fiz a operação. Tenho tomado a minha medicação regularmente, mas eles dizem que isso não interessa, uma vez que tenho o tipo de material errado - ela suspira. - Para ser sincera, querida, não sabem o que me hão-de fazer.
Fico a olhar para as paredes de betão, para a fraca luz de segurança no tecto, para as minhas próprias mãos letais.
- Também não sabem o que me hão-de fazer - digo.
A Procuradoria-Geral instala Quentin num Residence Inn equipado com uma pequena cozinha, televisão por cabo e uma carpete que cheira a gatos.
- Obrigado - diz secamente, entregando um dólar ao adolescente que também é carregador. - É um palácio.
- Como queira - responde o rapaz.
A forma como os adolescentes constituem o único grupo que nem sequer pestaneja ao vê-lo fascina Quentin. Por outro lado, por vezes pensa que nem sequer pestanejariam se uma manada de cavalos
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selvagens passasse a centímetros dos seus pés calçados com sapatos Skechers.
Não os compreende, nem como grupo, nem individualmente.
Quentin abre o frigorífico, que emana um odor duvidoso, e depois afunda-se no colchão esponjoso. Bem, até podia ser o Ritz-Carlton, que ele detestaria na mesma. Biddeford, no geral, deixa-o irritável.
Suspirando, agarra nas chaves do carro e sai do hotel. O melhor é despachar isto. Conduz sem pensar no que está a fazer. Sabe que ela está lá, é claro. A morada dos cheques permaneceu a mesma durante todo este tempo.
Há um cesto de basquetebol à entrada; isto surpreende-o. De alguma forma, não ultrapassou a tragédia do ano passado para pensar que Gideon pudesse ter um passatempo menos embaraçoso para um promotor de justiça. Um SUVIsuzu usado, com demasiados buracos de ferrugem em volta das portas, está estacionado na garagem. Quentin respira fundo, ergue-se em toda a sua altura, e bate à porta.
Quando Tanya atende, isso ainda o afecta, atingindo-o como uma pancada no peito - a sua pele cor de conhaque, os olhos cor de chocolate, como se esta mulher fosse uma iguaria a ser saboreada. Mas, relembra Quentin, mesmo as trufas mais refinadas podem ser amargas por dentro. Não lhe serve de grande conforto reparar que ela também recua quando o vê.
- Quentin Brown - murmura Tanya, abanando a cabeça. - A que devo esta honra?
- Estou aqui por causa de um caso - diz ele. - Indefinidamente
- está a tentar espreitar para trás dela, para ver como é a sua casa por dentro. Sem ele lá. - Pensei em passar por aqui, visto que é provável que oiças o meu nome pela cidade.
-Juntamente com outras palavras menos simpáticas - diz Tanya entre dentes.
- Não ouvi o que disseste.
Ela sorri para ele, e ele esquece o que estavam a dizer.
- O Gideon está por aí?
- Não - diz ela, demasiado rápido.
- Não acredito em ti.
- E eu não gosto de ti, portanto porque é que não agarras em ti e voltas para o teu carrinho e...
- Mãe? - a voz ritmada de Gideon precede-o, e este aparece de repente por trás da mãe. Está quase da altura de Quentin, embora tenha acabado de fazer dezasseis anos. O seu rosto escuro aproxima-se ainda mais quando vê quem está à porta.
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- Gideon - diz Quentin. - Olá.
- Vieste arrastar-me outra vez para a reabilitação? - rosna. - Não me faças mais nenhum favor.
Quentin sente os punhos cerrarem-se.
- Eu fiz-te mesmo um favor. Puxei os cordelinhos para que o juiz não te mandasse para um centro de correcção juvenil, embora tivesse de sofrer as consequências disso no meu próprio departamento.
- E eu devo agradecer-te por isso? - Gideon ri. - Da mesma forma que todas as noites me ajoelho para agradecer o facto de seres meu pai?
- Gideon - avisa Tanya, mas ele empurra-a para passar.
- Mais tarde - empurra Quentin com força, numa ameaça, quando desce os degraus para entrar no huzu. Passados alguns momentos, o carro desce a rua a acelerar.
- Ele ainda se mantém afastado das drogas? - pergunta Quentin.
- Estás a perguntar porque te preocupas, ou porque não queres que isso manche outra vez a tua carreira?
- Isso não é justo, Tanya...
- A vida nunca é justa, Quentin - pelo mais breve instante, há uma tristeza presa aos cantos dos olhos dela, como as sementes de um sonho. - Quem sabe.
Fecha a porta antes que ele consiga responder. Passados alguns momentos, Quentin recua cautelosamente pelo caminho de acesso à casa. Conduz durante uns bons cinco minutos antes de se aperceber de que não faz ideia de para onde se dirige.
Deitado de lado, Caleb consegue ver o céu nocturno. A Lua é tão esguia que é provável que já nem ali esteja da próxima vez que piscar os olhos, mas aquelas estrelas estão espalhadas por todo o lado. Há uma luz brilhante que lhe chama a atenção. Está a cinquenta, talvez a cem anos-luz daqui. Olhando para ela, Caleb está a olhar directamente para o passado. Uma explosão que aconteceu há uma imensidão de anos, mas demorou todo este tempo a afectá-lo.
Vira-se de barriga para cima. Se ao menos tudo fosse assim.
Durante aquele dia todo esteve a pensar que Nina está doente; que precisa de tratamento, da mesma forma que uma pessoa com uma virose ou uma perna partida precisa de tratamento. Se algo na sua mente cedeu, Caleb será o primeiro a compreender - ele próprio esteve quase nessa situação, ao pensar no que Nathaniel sofreu. Mas quando Nina telefonou, mostrou-se racional, calma, insistente. Ela matou o padre Szyszynski intencionalmente.
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Esse facto em si, e por si só, não choca Caleb. As pessoas são capazes de guardar uma vasta gama de emoções dentro delas - amor, alegria, determinação. É apenas lógico que sentimentos negativos igualmente surpreendentes abram caminho à força e assumam o controlo. Não, o que o surpreende é a forma como ela o fez. E o facto de ela pensar realmente que o fez por Nathaniel.
Isto tem a ver com Nina, do princípio ao fim.
Caleb fecha os olhos a essa estrela, mas ainda a vê gravada no interior das pálpebras. Tenta lembrar-se do momento em que Nina lhe disse que estava grávida. «Isto não devia acontecer», disse-lhe ela. «Portanto nunca nos poderemos esquecer de que aconteceu.»
Ouve-se um restolhar de cobertores e lençóis, e depois Caleb sente algo quente encostado ao seu corpo. Volta-se, esperançoso, rezando para que tudo isto não tivesse passado de um pesadelo e para que possa acordar e encontrar Nina a dormir em segurança. Mas na almofada dela está Nathaniel, de olhos brilhantes por causa das lágrimas.
- Quero que a Mamã volte - sussurra.
Caleb lembra-se do rosto de Nina quando estava grávida de Nathaniel, como era radioso como qualquer estrela. Talvez essa glória tivesse esmorecido há muito, talvez tenha demorado todos estes anos-luz para chegar até ele agora. Vira-se para o filho e diz:
- Eu também.
Fisher Carrington está de costas para a porta da sala de conferências, a olhar lá para fora, para o pátio dos exercícios. Quando o guarda prisional fecha a porta atrás de si, deixando-me aqui dentro, ele volta-se lentamente. Tem exactamente o mesmo aspecto que tinha da última vez que o vi, na audiência de competência de Rachel: fato Armani, sapatos Bruno Magli, uma farta cabeleira branca afastada dos seus compreensivos olhos azuis. Aqueles olhos fitam o meu uniforme prisional demasiado grande e depois voltam imediatamente a fixar o meu rosto.
- Bem - diz num tom solene. - Nunca imaginei que iria falar consigo aqui.
Aproximo-me de uma das cadeiras que estão na sala e deixo-me cair em cima dela.
- Sabe uma coisa, Fisher? Já aconteceram coisas mais estranhas - Ficamos a olhar um para o outro, a tentarmos adaptar-nos a esta troca de papéis. Ele já não é o inimigo, é a minha única esperança. Ele é que manda; eu limito-me a segui-lo. E por cima disto há o verniz de um acordo profissional: ele não me perguntará o que fiz, e eu não terei de lhe dizer.
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- Tem de conseguir mandar-me para casa, Fisher. Quero estar lá quando o meu filho se sentar para almoçar.
Fisher limita-se a acenar com a cabeça. Já ouviu isto antes. E não interessa verdadeiramente o que eu quero, no fim de contas.
- Sabe que vão pedir uma audiência - diz.
É óbvio que sei; era o que eu faria se estivesse do lado da acusação. No Maine, se o estado conseguir apresentar causa provável de que foi cometido um crime capital, então o arguido poderá ser mantido sob custódia sem caução. Ficará na prisão até ao julgamento.
Durante meses.
- Nina - diz Fisher, a primeira vez que me chama algo diferente de doutora. - Oiça o que lhe digo.
Mas eu não quero ouvi-lo. Quero que ele me oiça a mim. com grande autocontrolo, ergo um rosto inexpressivo, ao olhar para ele.
- O que se segue, Fisher?
Ele consegue ler-me os pensamentos, mas Fisher Carrington é um cavalheiro- E portanto finge, tal como eu estou a fingir. Sorri, como se fôssemos velhos amigos.
- A seguir - responde - vamos a tribunal.
Patrick está de pé, lá atrás, por trás da multidão de jornalistas que vieram filmar a acusação formal da promotora de justiça que assassinou um padre a sangue-frio. É um caso de telefilme, de ficção. É uma história que se discute ao pé do reservatório de água com os colegas. Na realidade, Patrick esteve a ouvir os comentários em mais do que um canal. Palavras como retaliação e represália deslizam como cobras das bocas destes jornalistas. Por vezes, nem sequer referem o nome de Nina.
Falam do ângulo da bala, do número de passos que foram necessários para ir do lugar dela até ao do padre. Debitam um historial de condenações de padres por molestarem crianças. Não dizem que Nina aprendeu a diferença entre uma máquina de remoção de terras e uma máquina niveladora para satisfazer a curiosidade do filho. Não referem que o conteúdo da sua mala, catalogado na prisão, incluía um carrinho Matchbox e um anel de plástico fluorescente com uma aranha.
»Não a conhecem», pensa Patrick. «E portanto, não sabem porquê.»
Uma jornalista à sua frente, com um capacete de cabelos loiros, acena vigorosamente com a cabeça enquanto o seu operador de câmara filma a sua entrevista de improviso a um fisiologista.
1. Audiência que permite ao juiz recusar o estabelecimento de uma caução no caso de uma pessoa acusada de um crime particularmente grave. (N. da T.)
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- A amígdala influencia a agressividade através de um feixe de neurónios que conduz ao hipotálamo - diz ele. - Envia impulsos de excitação eléctrica ao longo da estria terminal, e é isso que faz despoletar a raiva. Sem dúvida que existem factores ambientais, mas na ausência dos padrões pré-existentes...
Patrick abstrai-se deles. Uma consciência tangível percorre a galeria e as pessoas começam a sentar-se nos seus lugares. Câmaras ciclópicas piscam. Lá atrás, Patrick encosta-se à parede da sala de audiências. Não quer que o reconheçam, não sabe bem porquê. Estará envergonhado de testemunhar a vergonha de Nina? Ou terá medo do que ela possa ver no seu rosto?
Não devia ter vindo. Patrick diz isto para consigo próprio
quando a porta da cela de detenção se abre e surgem os dois oficiais de diligências, ladeando Nina. Ela parece pequena e assustada e ele
lembra-se de como tremia encostada a ele, de costas para ele,
enquanto a afastava do tumulto ontem à tarde.
Nina fecha os olhos e avança. Tem no rosto exactamente a
mesma expressão de quando tinha onze anos, a alguns metros da base de um elevador de esqui, no momento antes de Patrick ter convencido o operador a deixá-la sair para não desmaiar.
Não devia ter vindo, mas Patrick também sabe que não podia estar longe.
vou ser acusada formalmente na mesma sala de audiências onde ontem assassinei um homem. O oficial de diligências pousa-me a mão no ombro e acompanha-me ao sair pela porta. De mãos algemadas atrás das costas, caminho por onde o padre caminhou. Se olhar suficientemente bem, consigo ver as suas pegadas brilhar.
Passamos pela mesa da acusação. Estão hoje presentes cinco vezes mais jornalistas; até há rostos que reconheço de Dateline e da CNN.
Sabiam que as câmaras de televisão quando funcionam em uníssono
parecem cigarras? Volto-me para a galeria à procura de Caleb, mas atrás
da mesa de Fisher Carrington há apenas uma fileira de assentos vazios.
Estou vestida com o meu uniforme da prisão e sapatos de salto
baixo. Não podem dar-nos sapatos na prisão, portanto usamos os sapatos que calçávamos quando nos prenderam. E ainda ontem, há uma vida, eu era uma profissional. Mas quando o salto do meu sapato
toca na borda macia de um tapete, tropeço e olho para baixo.
Estamos no sítio onde o padre caiu morto, ontem. Onde, supostamente, o pessoal da limpeza que limpou esta sala de audiências não conseguiu remover completamente a mancha de sangue do chão, e tapou-a com um resto de carpete.
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De repente não consigo dar nem mais um passo.
O oficial de diligências agarra-me no braço e arrasta-me pelo tapete, para junto de Fisher Carrington. Pronto, relembro. Sento-me no mesmo lugar onde o padre estava ontem sentado quando fui até ali e disparei sobre ele. Está quente debaixo das minhas coxas - as luzes no tecto da sala de audiências a incidirem na madeira, ou talvez seja apenas uma velha alma que ainda não tivesse tido tempo de seguir o seu caminho. Assim que o oficial de diligências se afasta, sinto uma corrente de ar na nuca e volto-me bruscamente, certa de que estará alguém à espera com uma bala para mim.
Mas não há bala, não há morte súbita. Há apenas os olhares de toda a gente naquela sala de audiências, a queimar como ácido. Para o seu entretenimento, começo a roer as unhas, a remexer-me na cadeira. Os nervos podem ser confundidos com a loucura.
- Onde está o Caleb? - sussurro a Fisher.
- Não faço ideia, mas ele esteve no meu escritório esta manhã, com os honorários. Mantenha a cabeça direita - antes que consiga responder, o juiz bate com o seu martelo.
Não conheço este juiz. Provavelmente, trouxeram-no de Lewiston. Também não conheço o procurador-geral, sentado no meu lugar habitual na mesa da acusação. É enorme, careca, temível. Olha-me apenas uma vez e em seguida os seus olhos prosseguem - já me rejeitou por ter passado para o lado negro.
Naquele momento, o que desejo fazer é aproximar-me deste promotor de justiça e puxar-lhe a manga. «Não me julgue», diria, «até ver as coisas pelos meus olhos. É apenas tão invencível como a sua mais pequena fraqueza, e essas são mesmo minúsculas - o comprimento da pestana de um bebé adormecido, a amplitude da mão de uma criança. A vida dá muitas voltas, e - afinal - a consciência também».
- O estado está pronto para prosseguir? - pergunta o juiz. O delegado do procurador-geral acena com a cabeça.
- Sim, Meritíssimo.
- O advogado de defesa está pronto para prosseguir?
- Sim, Meritíssimo - diz Fisher.
- O arguido que avance, por favor.
Não me levanto, de início. Não se trata de uma recusa consciente; simplesmente não estou habituada a levantar-me neste ponto da acusação formal. O oficial de diligências puxa-me do meu assento, torcendo-me o braço no processo.
Fisher Carrington permanece sentado na sua cadeira, e todo o meu corpo fica gelado. Esta é a sua oportunidade de me insultar.
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Quando um arguido se levanta e o advogado fica sentado, isso constitui um sinal claro para quem está dentro do assunto de que não se interessa absolutamente nada pelo seu cliente. Quando ergo o queixo e desvio o olhar, determinada, Fisher levanta-se lentamente da cadeira. É uma presença sólida do meu lado direito, um muro fortificado. Volta-se para mim e ergue uma sobrancelha, questionando a minha confiança.
- Por favor, diga o seu nome? Respiro fundo.
- Nina Maurier Frost.
? - O oficial de justiça que leia a acusação, por favor - pede o juiz.
- O estado do Maine acusa, no dia 30 de Outubro de 2001, a arguida, Nina Maurier Frost, de ter morto Glen Szyszynski em Biddeford, no condado de York, Maine. Como se declara?
Fisher passa uma mão pela gravata.
- Vamos apresentar uma declaração de inocência, Meritíssimo. E gostaria de prevenir o estado e o tribunal de que podemos apresentar uma declaração de inocência por razões de insanidade, posteriormente.
Nada disto surpreende o juiz. Também não me surpreende, embora Fisher e eu não tivéssemos falado sobre uma defesa baseada na insanidade.
- Dr. Brown - diz o juiz -, para quando gostaria de marcar uma audiência Harnish?
Também isto era de prever. No passado, encarei o caso «Estado contra Harnish» como providencial, mantendo os criminosos temporariamente fora das ruas enquanto me esforçava para colocá-los para sempre atrás das grades. Afinal, queremos mesmo que uma pessoa que cometeu um crime capital saia em liberdade?
Por outro lado, no passado, não era eu a criminosa em questão.
Quentin Brown olha para mim, e depois volta-se para o juiz. Os seus olhos, de obsidiana, não deixam transparecer nada.
- Meritíssimo, nesta altura, devido à gravidade do crime e à forma como foi cometido nesta mesma sala de audiências, o estado pede uma caução de 500 000 dólares, com garantia.
O juiz olha para ele, pestanejando. Estupefacto, Fisher dirige-se a Brown. Também quero observá-lo, mas não posso, porque dessa forma ele ficará a saber que estou suficientemente lúcida para compreender esta oferta inesperada.
- Será que estou a entender correctamente, Dr. Brown, que o estado prescinde do seu direito de realizar uma audiência Harnish? esclarece o juiz. - Que deseja estabelecer uma caução neste caso, em vez de recusá-la?
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Brown acena com a cabeça, tenso.
- Podemos aproximar-nos, por favor?
Dá um passo em frente, e Fisher também. Por causa do hábito, também dou um passo em frente, mas os oficiais de diligências que estão atrás de mim agarram-me nos braços.
O juiz coloca a mão em cima do microfone para que as câmaras não consigam captar a conversa, mas eu consigo, mesmo a alguns metros de distância.
- Dr. Brown, parece-me que as provas relativas a este caso são bastante boas.
- Juiz, para lhe dizer a verdade, não sei se ela vai apresentar uma declaração de insanidade plausível ou não... mas em boa consciência não posso pedir a este tribunal que a mantenha sob custódia sem caução. Foi promotora de justiça durante dez anos. Não me parece que vá fugir e não me parece que seja um risco para a sociedade. com todo o devido respeito, Meritíssimo, já consultei o meu superior e o superior dela sobre o assunto, e peço ao tribunal que faça o favor de não empolar muito este assunto por causa da imprensa.
Fisher volta-se imediatamente com um sorriso gracioso.
- Meritíssimo, gostaria de dizer ao Dr. Brown que a minha cliente e eu agradecemos muito a sua sensibilidade. Este é um caso difícil para todos os envolvidos.
Apetece-me dançar. Terem prescindido da audiência Harnish é um pequeno milagre.
- O estado pede uma caução no valor de 500 000 dólares. Quais são as ligações da arguida com este estado, Dr. Carrington? - pergunta o juiz.
- Meritíssimo, sempre residiu no Maine. Tem um filho pequeno aqui. A arguida entregará o passaporte e aceitará não sair do estado de boa vontade.
O juiz acena com a cabeça.
- Visto que trabalhou como promotora de justiça durante tanto tempo, como condição da caução da arguida também vou impedi-la de falar com quaisquer empregados que trabalhem actualmente no Gabinete do Ministério Público do condado de York até este caso estar encerrado, para garantir que não tenha acesso a nenhuma informação.
- com certeza, Meritíssimo - diz Fisher por mim. Quentin Brown precipita-se.
- Para além da caução, pedimos uma condição especial, uma avaliação psiquiátrica.
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- Não temos nenhum problema em relação a isso - responde Fisher. - Gostaríamos de ter uma avaliação nossa, feita por um psiquiatra particular.
- O estado tem algum interesse em que seja utilizado um psiquiatra privado ou um do estado, Dr. Brown? - pergunta o juiz.
- Queremos um psiquiatra do estado.
- Óptimo. Isso também será uma condição da caução - o juiz escreve qualquer coisa num ficheiro. - Mas não acho que sejam necessários 500 000 dólares para que esta mulher permaneça no estado. vou fixar a caução em 100 000 dólares com garantia.
O que acontece a seguir é um turbilhão: mãos nos meus braços, a empurrarem-me novamente em direcção à cela de detenção, o rosto de Fisher dizendo-me que telefonará a Caleb por causa da caução; jornalistas acotovelando-se pelos corredores, em direcção ao vestíbulo para telefonar aos colegas. Fico acompanhada por um delegado do xerife tão magro que o cinto tem tantos buracos como um painel para ferramentas. Tranca-me na cela e depois põe-se a ver a Sports Illustrated.
vou sair daqui. vou estar de volta a casa, para almoçar com o Nathaniel, tal como disse ontem a Fisher Carrington.
Abraçando os joelhos contra o peito, começo a chorar. E permito-me acreditar que talvez me safe desta.
No dia em que aconteceu pela primeira vez, tinham estado a falar sobre a Arca. Era um barco enorme, disse a Sr.a Fiore a Nathaniel e aos outros. Suficientemente grande para que coubessem lá todos, com os pais e os animais de estimação. Deu um lápis de cera a cada um e uma folha de papel para que desenhassem o seu animal preferido.
- Vamos lá ver o que isto vai dar - disse - e depois mostramo-los todos ao padre Glen antes da sua história.
Nathaniel sentou-se ao lado da Amélia Underwood naquele dia, uma rapariga que cheirava sempre a molho de tomate e àquilo que fica preso nos ralos da banheira.
- Os elefantes também iam no barco? - perguntou ela, e a Sr.a Fiore acenou com a cabeça. - Todos iam.
- Os guaxinims?
- Sim.
- Os narvais? - essa foi do Oren Whitford, que já lia histórias infantis quando Nathaniel nem sequer tinha a certeza para que lado era a curva no b e no d.
- Hâ-hà. ? ?
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- As baratas?
- Infelizmente - disse a Sr Fiore.
Phil Filbert levantou a mão.
- Então e as cabras santas (holy goats)?
A Sr.a Fiore franziu o sobrolho.
- É o espírito santo (Holy Gbost), Philip, o que é uma coisa
totalmente diferente - mas depois reconsiderou. - Mas acho que tambem lá estava.
Nathaniel levantou a mão. A professora sorriu para ele.
- Em que animal estás a pensar?
Mas ele não estava a pensar em nenhum animal.
- Tenho de ir fazer chichi - disse, e todos os outros miúdos
? riram. O calor espalhou-se pelo seu rosto agarrou no bloco de madeira que a Sr.a Fiore lhe deu como passe para ir à casa de banho e saiu porta fora a correr. A casa de banho ficava ao fundo do corredor, e Nathaniel demorou-se lá dentro, puxando o autoclismo algumas vezes, só para ouvir o som; lavando as mãos com tanto sabonete que as bolhas de sabão se ergueram no lavatório como uma montanha.
Não tinha pressa nenhuma para voltar à catequese. Em primeiro
lugar, todos ainda estariam a rir-se dele, e em segundo lugar, a Amélia Underwood cheirava pior do que as pequenas pastilhas dentro dos urinóis na casa de banho. Portanto aventurou-se um pouco mais pelo corredor, até ao escritório do padre Glen. A porta costumava estar trancada, mas, naquele momento, havia uma nesga suficientemente grande para Nathaniel poder passar. Sem hesitações, entrou lá para dentro.
; A sala cheirava a limão, como a parte principal da igreja. A mãe ? de Nathaniel disse que era por muitas senhoras se oferecerem para lavar os bancos até brilharem, portanto concluiu que provavelmente
? também tinham vindo limpar o escritório. No entanto, lá não havia bancos - só fileiras e fileiras de prateleiras cheias de livros. Havia tantas letras amontoadas nas lombadas dos livros que Nathaniel ficou
? tonto só de tentar identificá-las. Em vez disso, voltou-se para um quadro pendurado na parede, de um homem a montar um garanhão branco, atingindo um dragão no coração com uma lança.
Talvez os dragões não coubessem na Arca, e é por isso que
nunca mais ninguém os viu.
? - São Jorge era muito corajoso - disse uma voz atrás de si, e Nathaniel apercebeu-se de que não estava sozinho. - E tu? - perguntou o padre com um sorriso demorado. - Também és corajoso?
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Se Nina fosse sua mulher, Patrick ter-se-ia sentado na fila da frente da galeria. Teria mantido contacto visual com ela desde o instante em que entrou pela porta da sala de audiências, para que ela soubesse que, acontecesse o que acontecesse, ele estaria lá para a apoiar. Não teria sido necessário que viesse alguém a sua casa para lhe transmitir o resultado da acusação formal.
Quando Caleb vem à porta, Patrick está novamente furioso com ele.
- Ela saiu sob caução - diz Patrick sem nenhum preâmbulo. Temos de entregar um cheque de dex mil dólares no tribunal - olha fixamente para Caleb, de mãos nos bolsos do casaco. - Presumo que possas fazer isso. Ou planeavas deixar a tua mulher pendurada duas vezes no mesmo dia?
- Queres dizer, como ela me deixou? - retorque Caleb. - Não podia ir. Não tinha ninguém que ficasse a tomar conta do Nathaniel.
- Tretas. Podias ter-me pedido. Até fico a tomar conta dele agora. Vai lá, vai buscar a Nina. Ela está à espera - cruza os braços, desarmando Caleb.
- Não vou - diz Caleb, e num abrir e fechar de olhos Patrick encosta-o à ombreira da porta.
- Foda-se, o que é que te aconteceu? - diz, de dentes cerrados.
- Ela precisa de ti agora.
Caleb, mais alto e mais forte, empurra-o. Cerra um punho, fazendo Patrick voar para cima da sebe no caminho de acesso.
- Não me digas o que a minha mulher precisa - lá atrás ouve-se o som de uma vozinha, a chamar pelo pai. Caleb volta-se, entra e fecha a porta atrás de si.
Deitado em cima dos arbustos, Patrick tenta recuperar o fôlego. Levanta-se devagar, retirando folhas da sua roupa. E agora o que deve fazer? Não pode deixar Nina na prisão, e não tem dinheiro para pagar ele próprio a caução.
De repente, a porta volta a abrir-se. Caleb está ali, com um cheque na mão. Patrick aceita-o e Caleb acena com a cabeça em sinal de gratidão, nenhum deles mencionando o facto de que há apenas cinco minutos tinham mostrado instintos assassinos. Esta é a moeda das desculpas; um acordo feito em nome da mulher que desequilibrou as vidas de ambos.
Estou pronta para dar a Caleb um grande sermão por ter faltado à acusação formal, mas isso terá de esperar até ter abraçado Nathaniel
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com tanta força que ele comece a fundir-se em mim. Agitada, espero que o delegado abra a cela de detenção e me acompanhe à antecâmara do departamento do xerife. Está ali um rosto familiar, mas não é o certo.
- Depositei a caução - diz Patrick. - O Caleb deu-me o cheque.
- Ele... - começo a falar, e depois lembro-me de quem está à minha frente. Pode ser o Patrick, mas mesmo assim. Viro-me para ele, de olhos muito abertos, enquanto me leva dali pela porta de serviço da sala de audiências, para evitar a imprensa. - Ele está mesmo morto? Garantes-me que está mesmo morto?
Patrick agarra-me no braço e volta-me para ele.
- Pára - a dor repuxa-lhe as feições. - Por favor, Nina, pára. ? Ele sabe; é claro que sabe. Trata-se de Patrick. Por um lado, é
um alívio já não ter de fingir à sua frente; ter oportunidade de falar com alguém que compreenda. Conduz-me pelas entranhas do edifício até uma entrada de serviço, e esconde-me no seu Taurus, lá fora à espera. O parque de estacionamento está cheio de carrinhas de jornalistas, com antenas parabólicas montadas em cima como estranhas aves. Patrick atira algo pesado para o meu colo, uma grossa edição do Boston Globe.
ACIMA DA LEI, diz o título. E um subtítulo: «Padre Assassinado no Maine; A Justiça Bíblica de uma Promotora de Justiça». Há uma fotografia minha a cores, a ser imobilizada por Patrick e pelos oficiais de diligências. No canto direito está o padre Szyszynski, deitado numa poça do seu próprio sangue. Traço o perfil pouco nítido de Patrick.
- És famoso - digo suavemente.
Patrick não responde. Olha lá para fora, para a estrada, concentrado no que está à sua frente.
Costumava poder falar com ele sobre tudo. É impossível que isso tenha mudado, só por causa daquilo que fiz. Mas quando olho pela janela vejo um mundo diferente - gatos de duas pernas saltam pelas ruas, ciganas viram para os caminhos de acesso às casas, mortos-vivos batem às portas. Esqueci-me do Dia das Bruxas; hoje ninguém é a mesma pessoa que era no dia anterior.
- Patrick - começo a dizer.
Ele interrompe-me com um gesto brusco da mão.
- Nina, isto já é suficientemente mau. Cada vez que penso naquilo que fizeste, lembro-me da noite anterior, no Tequila Mockingbird. Do que te disse.
«Pessoas destas deviam levar um tiro.» Não me tinha lembrado das suas palavras até agora. Ou teria? Inclino-me sobre o assento para
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lhe tocar no ombro, para assegurá-lo de que a culpa não era dele, mas ele afasta-se de mim.
- Seja o que for que estiveres a pensar, estás enganada. Eu... De repente, Patrick vira o carro para a berma da estrada.
- Por favor, não me digas nada. vou ter de testemunhar no teu julgamento.
Mas sempre confiei em Patrick. Rastejar novamente para dentro da minha concha de insanidade parece uma loucura ainda maior; um disfarce dois números abaixo do meu. Volto-me com uma pergunta nos olhos, e como de costume, ele responde mesmo antes que eu a transmita por palavras.
- Fala antes com o Caleb - diz, e volta a entrar no tráfego lento do meio-dia.
Às vezes, quando pegamos no nosso filho ao colo, conseguimos sentir o mapa dos nossos próprios ossos debaixo das mãos, ou sentir o cheiro da nossa pele na sua nuca. Isto é a coisa mais extraordinária da maternidade - encontrarmos um pedaço de nós separado, à parte, mas sem o qual não seríamos capazes de viver. É a sensação que temos ao colocar a última das mil peças de um quebra-cabeças; é a última passada numa corrida empatada até essa altura; alegria, sentimento de pertença, maravilha deslumbrada, presos entre aqueles dedinhos gorduchos e os espaços em que os dentes de leite caíram. Nathaniel corre para os meus braços com a força de um furacão e, com a mesma facilidade, leva-me ao céu. - Mamã!
«Oh,» penso, «é por isto».
Por cima da cabeça do meu filho, reparo em Caleb. Mantém-se à distância, de rosto impassível. Digo:
- Obrigada pelo cheque.
- És famosa - diz-me Nathaniel. - A tua fotografia estava no jornal.
- Companheiro - pergunta Caleb -, queres escolher um vídeo para ver no meu quarto?
Nathaniel abana a cabeça.
- A Mamã também pode vir?
- Daqui a um bocado. Primeiro tenho de falar com o Papá. Então dedicamo-nos aos procedimentos da paternidade; Caleb
instala Nathaniel no imenso oceano da nossa colcha, enquanto eu carrego nos botões que põem uma cassete da Disney em movimento. Parece natural que, enquanto ele fica aqui à espera, encantado pela fantasia, Caleb e eu entremos no seu quarto de rapazinho
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para analisar a realidade. Sentámo-nos na cama estreita, rodeados por um grupo de rãs-arborícolas da Amazónia, um arco-íris de cores venenosas. Lá em cima, um móbil com uma lagarta vagueia sem ter uma única preocupação no mundo.
- Que fizeste tu, Nina? - diz Caleb, a primeira crítica. - Em que estavas a pensar?
- A polícia já falou contigo? Estás metido numa alhada?
- Porque haveria de estar?
- Porque a polícia não sabe que não planeaste isto comigo. Caleb dobra-se sobre si próprio.
- Foi isso que fizeste? Planeaste tudo?
- Planeei tudo para que não parecesse planeado - explico. Caleb, ele fez mal ao Nathaniel. Fez-lhe mal. E ia sair em liberdade.
- Isso não sabes...
- Sei. Vejo-o todos os dias. Mas desta vez, era o meu filho. O nosso filho. Durante quantos anos achas que o Nathaniel vai ter pesadelos sobre isto? Durante quantos anos estará em tratamento? O nosso filho nunca mais voltará a ser o que era. O Szyszynski levou um pedaço dele que ele nunca mais irá recuperar. Então porque não haveria eu de lhe fazer o mesmo? - «Faz aos outros», penso, o mesmo que te fizeram a ti».
- Mas Nina... - nem sequer é capaz de dizê-lo.
- Quando descobriste, quando o Nathaniel disse o nome dele, qual foi a primeira coisa que te passou pela cabeça? «
Caleb olha para baixo. ?
- Quis matá-lo.
- Sim. Ele abana a cabeça.
- O Szyszynski ia ser julgado. Devia ter sido castigado pelo que fez.
- Não era suficiente. Não há sentença que um juiz pudesse ditar que compensasse o que ele fez, e tu sabes disso. Eu fiz o que qualquer pai desejaria fazer. Só tenho de parecer louca para me poder safar.
- O que te leva a pensar que conseguirás?
- Sei o que é necessário para ser considerada legalmente demente. Observo estes arguidos entrarem e consigo perceber imediatamente quem vai ser condenado e quem vai sair em liberdade. Sei o que é necessário dizer, o que é necessário fazer - olho directamente para os olhos de Caleb. - Sou uma advogada. Mas matei um homem em frente a um juiz, em frente a um tribunal inteiro. Porque haveria de fazer isso, se não fosse louca?
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Caleb fica calado por um momento, revirando a verdade nas mãos.
- Porque é que estás a dizer-me isto? - pergunta num tom suave.
- Porque és meu marido. Não podes testemunhar contra mim no meu julgamento. És a única pessoa a quem posso dizê-lo.
- Então porque não me contaste o que ias fazer?
- Porque - respondo - ter-me-ias impedido.
Quando Caleb se levanta, dirigindo-se à janela, eu sigo-o. Coloco a mão suavemente nas suas costas, na depressão que parece tão vulnerável, mesmo num homem adulto.
- O Nathaniel merece isto - sussurro. Caleb abana a cabeça.
- Ninguém merece isto.
Afinal, conseguimos permanecer funcionais enquanto o nosso coração está a ser desfeito em bocados. O sangue circula, o ar flui, os neurónios disparam. O que falta é o afecto; uma curiosa falta de vivacidade na voz e nos actos que, se notada, revela um buraco tão fundo que não se vê o fim. Caleb fica a olhar para esta mulher que ainda ontem era a sua mulher e vê uma estranha no seu lugar. Escuta as suas explicações, e interroga-se sobre quando terá aprendido esta língua desconhecida, esta linguagem que não faz sentido.
É claro, é o que qualquer pai deseja fazer ao diabo que ataca uma criança. Mas 99,9 por cento daqueles pais não o faz. Talvez Nina pense que estava a vingar Nathaniel, mas sacrificou imprudentemente a sua própria vida. Se Szyszynski tivesse ido para a prisão, haveria retalhos e fragmentos, mas mesmo assim seriam uma família. Se Nina for para a prisão, Caleb perde uma esposa. Nathaniel perde a mãe.
Caleb sente o fogo acumular-se como ácido nos músculos dos ombros. Está furioso e atónito, e talvez um pouco intimidado. Percorreu cada centímetro desta mulher, compreende o que a faz chorar e o que a leva ao êxtase; reconhece cada corte e curva do seu corpo; mas não a conhece de maneira nenhuma.
Nina está expectante ao seu lado, à espera que ele lhe diga que fez bem. É engraçado que ela tenha ignorado a lei, mas mesmo assim precise da sua aprovação. Por esta razão, e por todas as outras, as palavras que ela deseja ouvir dele não chegam.
Quando Nathaniel entra no quarto com a toalha da mesa em volta dos ombros, Caleb agarra-se a ele. Nesta tempestade de estranheza, Nathaniel é a única coisa que reconhece.
- Olá! - grita Caleb com entusiasmo excessivo, e lança o rapaz ao ar. - Que bela capa!
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Nina também se volta, com um sorriso no rosto onde há um momento havia sinceridade. Também ela se aproxima de Nathaniel, e por puro despeito, Caleb levanta a criança bem alto colocando-a sobre os ombros, onde ela não consegue alcançá-la.
- Está a ficar escuro - diz Nathaniel. - Podemos ir?
- Ir aonde?
Em resposta, Nathaniel aponta para a janela. Na rua, lá em baixo, há um batalhão de pequenos duendes, monstros em miniatura, princesas fadas. Caleb repara, pela primeira vez, que as folhas caíram todas; que abóboras sorridentes estão empoleiradas como galinhas preguiçosas em cima dos muros de pedra da casa dos vizinhos. Como poderia não ter reparado nos sinais do Dia das Bruxas?
Olha para Nina, mas ela estava tão preocupada como ele. Como se fosse de propósito, soa a campainha. Nathaniel remexe-se em cima dos ombros do pai.
- Vai atender! Vai atender!
- Vamos ter de deixar para depois - Nina lança-lhe um olhar impotente; não há rebuçados em casa. Não sobrou nada doce.
Pior ainda; não há disfarce. Caleb e Nina apercebem-se disso ao mesmo tempo, e isso aproxima-os. Ambos recordam os anteriores Dias das Bruxas de Nathaniel por ordem decrescente, cavaleiro andante, astronauta, abóbora, crocodilo e, quando era bebé, lagarta.
- O que é que gostavas de ser? - pergunta Nina.
Nathaniel atira a sua toalha de mesa mágica para cima do ombro.
- Um super-herói - diz ele. - Um novo.
Caleb tem quase a certeza de que conseguem arranjar um Super-Homem em cima da hora.
- O que é que os antigos têm de mal?
Parece que tudo. Nathaniel não gosta do Super-Homem porque este pode ser derrotado pela criptonite. O anel do Lanterna Verde não funciona em nada que seja amarelo. O Incrível Hulk é demasiado estúpido. Até o Capitão Marvel corre o risco de ser levado a dizer a palavra Sbazam! e voltar a ser o jovem Billy Batson.
- Então e o Homem de Ferro? Nathaniel abana a cabeça.
- Pode enferrujar.
- O Aquaman?
- Precisa de água. - Nathaniel - diz Nina num tom suave -, ninguém é perfeito.
- Mas eles deviam ser - explica Nathaniel, e Caleb compreende. Esta noite, Nathaniel tem de ser invencível. Precisa de saber que o que lhe aconteceu nunca, nunca mais poderá voltar a acontecer.
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- Precisamos - diz Nina, pensativa - é de um super-herói sem calcanhar de Aquiles.
- Sem quê? - diz Nathaniel. Ela agarra-lhe na mão.
- Vamos lá ver - do roupeiro dele, tira um lenço de pirata, atando-o elegantemente à volta da cabeça de Nathaniel. Caía em volta do peito de Nathaniel um pedaço de fita para isolar locais de crime que Patrick trouxera uma vez. Dá-lhe uns óculos de natação, pintados de azul, para ter visão raio-X, e enfia um par de calções vermelhos por cima das calças de fato de treino dele, porque afinal estamos no Maine e ela não vai deixá-lo ir para a praia meio despido, ao frio. Depois indica sub-repticiamente a Caleb que tire a sua camisola térmica vermelha e lha dê. Ata-a em volta do pescoço de Nathaniel, uma segunda capa.
- Oh, meu Deus, estás a ver quem é que ele parece? Caleb não faz ideia, mas entra no jogo.
- Não posso acreditar.
- Quem? Quem! - Nathaniel está quase a dançar de entusiasmo.
- Bem, o IncrediBoy, é claro - responde Nina. - Nunca viste o seu livro de banda desenhada?
- Não...
- Oh, ele é o mais super dos super-heróis. Tem estas duas capas, está a ver, que o fazem voar mais longe e mais depressa.
- Fixe!
- E consegue extrair os pensamentos directamente das cabeças das pessoas, mesmo antes de os dizerem. Na verdade, pareces-te tanto com ele, que aposto que já tens esse superpoder.
- Vá lá - Nina cerra os olhos. - Adivinha o que estou a pensar. Nathaniel franze o sobrolho, concentrando-se.
- Hum... que eu faço isto tão bem como o IncrediBoy? Ela dá uma palmada na testa.
- Oh meu Deus, Nathaniel, como é que fizeste isso!
- Acho que também tenho a visão raio-X - diz Nathaniel numa voz esganiçada. - Consigo ver através das casas e saber que doces é que as pessoas estão a dar! - avança, correndo para as escadas. Despachem-se, está bem?
Sem a presença do filho a servir de amortecedor, Caleb e Nina sorriem de novo um para o outro desconfortavelmente.
- O que vais fazer quando ele não conseguir ver através das portas? - pergunta Caleb.
- Digo-lhe que é um pormenor técnico no seu sensor óptico que precisa de ser verificado.
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Nina sai do quarto, mas Caleb fica lá em cima por mais alguns momentos. Da janela, observa o seu filho maltrapilho a saltar do alpendre de uma só vez - com uma graça nascida da confiança. Mesmo daqui de cima, Caleb consegue ver o sorriso de Nathaniel, consegue ouvir o começo estridente da sua gargalhada. E pensa que talvez Nina tenha razão; que um super-herói não passa de uma pessoa vulgar que acredita ser infalível.
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CINCO
A dada altura da minha vida, queria salvar o mundo. Ficava a ouvir, de olhos enevoados, os professores da faculdade de direito e acreditava verdadeiramente que, enquanto promotora de justiça, tinha oportunidade de livrar o planeta do mal. Isto foi antes de compreender que quando temos quinhentos casos entre mãos, tomamos a decisão conscienciosa de fazer acordos em todos os que pudermos. Foi antes de me ter apercebido de que a justiça tem menos a ver com um veredicto do que com a persuasão. Antes de me ter apercebido de que não tinha escolhido uma cruzada, mas apenas um emprego.
Apesar disso, nunca me passou pela cabeça ser advogada de defesa. Não tinha estômago para pensar em levantar-me e mentir em nome de um criminoso moralmente depravado e, quanto a mim, na sua maioria, eles eram culpados até se provarem inocentes. Mas ao sentar-me no sumptuoso escritório forrado a painéis de madeira de Fisher Carrington, a beber café da Jamaica a 27,99 dólares por quatrocentos e cinquenta gramas, servido pela sua elegante e eficiente secretária, começo a entender os atractivos.
Fisher aparece para me receber. Os seus olhos azuis à Paul Newman cintilam, como se não pudesse estar mais encantado por me encontrar aqui sentada na sua antecâmara. E porque haveria de estar? Podia cobrar-me um braço e uma perna, ele sabe que eu pagaria. Tem a oportunidade de trabalhar num caso de homicídio de grande notoriedade que lhe renderá uma tonelada de novos negócios. E por fim, é muito diferente dos casos triviais, do género que Fisher era capaz de defender a dormir.
- Nina - diz ele. - Que bom vê-la - como se, há menos de vinte e quatro horas, não nos tivéssemos encontrado na sala de conferências de uma prisão. - Venha para o meu escritório.
Está coberto de painéis de macieira, uma sala masculina que conjura o cheiro a fumo de charuto e cálices de brandy. Tem os mesmos
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livros de estatutos que eu tenho, a encherem-lhe as prateleiras e, de alguma forma, isso é reconfortante.
- Como está o Nathaniel?
- Está bem - sento-me numa enorme poltrona de couro e deixo os meus olhos vaguearem.
- Deve estar satisfeito por ter a mãe em casa.
«Mais satisfeito do que o pai», penso. Concentro-me num pequeno esboço de Picasso na parede. Não é uma litografia - é verdadeiro.
- Em que está a pensar? - pergunta Fisher, sentando-se à minha frente.
- Que o estado não me paga o suficiente - volto-me para ele. Obrigada. Por me ter tirado de lá, ontem.
- Por muito que gostasse de ficar com os louros, isso foi-nos dado de mão beijada e a Nina sabe-o. Não esperava que o Brown fosse tolerante.
- Eu não voltava a esperar isso dele - sinto os seus olhos postos em mim, a avaliar-me. Em comparação com o meu comportamento na reunião de ontem, hoje estou muito mais controlada.
- Vamos ao que interessa - anuncia Fisher. - Prestou algumas declarações à polícia?
- Eles pediram. Repeti que tinha feito tudo o que podia fazer. Que não podia fazer mais nada.
- Disse isso quantas vezes?
- Repetidamente.
Fisher pousa a sua caneta Waterman e cruza as mãos. A sua
expressão é uma mistura curiosa de fascínio mórbido, respeito e resignação.
- A Nina sabe o que está a fazer - diz ele, uma afirmação. ?» Olho para ele por cima da beira da caneca de café.
- É melhor não me perguntar isso.
Recostando-se na cadeira, Fisher sorri. Tem covinhas, duas em cada face.
- Fez algum curso de representação antes de frequentar a faculdade de direito?
- Claro - digo. - O Fisher não?
Há tantas perguntas que ele deseja fazer-me; consigo vê-las lutar dentro dele como pequenos soldados desesperados para se juntarem a este tumulto. Não o censuro. Agora, sabe que estou lúcida; conhece o jogo que eu escolhi jogar. Isto é equivalente a um marciano aterrar no nosso quintal. Não podemos afastar-nos sem lhe tocar uma vez, para ver de que é feito por dentro.
- Porque é que pediu ao seu marido que me telefonasse? »
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- Porque os jurados o adoram. As pessoas acreditam em si hesito, e depois digo-lhe a verdade. - E porque detestei estar contra si.
Fisher aceita-o como algo que lhe era devido.
- Precisamos de preparar uma defesa por insanidade. Ou tentar extrema raiva.
Não há vários graus de homicídio no Maine, e a sentença é de um mínimo de vinte e cinco anos a prisão perpétua. O que significa que, se for absolvida, terei de ser declarada inocente (é difícil de provar, visto que o acto está filmado); inocente por razões de insanidade; ou sob a influência de extrema raiva causada por provocação adequada. Essa última sentença reduz o crime para homicídio preterintencional, uma acusação menor. É espantoso que neste estado seja legal matar alguém por nos ter chateado o suficiente e se o júri concordar que temos uma boa razão para estarmos chateados, mas é assim.
- O meu conselho é alegar ambas - sugere Fisher. - Se...
- Não. Se alegarmos ambas as coisas, isso parecerá desonesto perante o júri. Confie em mim. Parece que nem o Fisher consegue decidir qual a razão da minha inocência - fico a pensar nisto por um minuto. - Para além disso, conseguir que doze jurados estejam de acordo sobre o que uma provocação justifica é muito mais difícil do que fazê-los reconhecer a insanidade no caso de uma promotora de justiça que mata um homem a tiro em frente a um juiz. E ganhar alegando extrema raiva não é bem ganhar: apenas reduz a sentença. Se conseguir livrar-me disto com uma acusação de insanidade, trata-se de absolvição total.
A minha defesa começa a tomar forma na minha cabeça.
- Pronto - inclino-me para a frente, pronta a partilhar o meu plano com ele. - Vamos receber um telefonema do Brown por causa da investigação psiquiátrica do estado. Podemos ir primeiro a esse psiquiatra e, baseando-nos no relatório dele, podemos arranjar alguém que seja o nosso perito em psiquiatria.
- Nina - diz Fisher pacientemente. - A Nina é a cliente. Eu sou o advogado. Se não perceber isso agora, isto não irá resultar.
- Vá lá, Fisher. Sei exactamente o que devo fazer.
- Não, não sabe. É uma promotora de justiça, e não sabe nada sobre como montar uma defesa.
- O segredo é uma boa encenação, não é? E eu não fiz isso já?
- Fisher aguarda que eu me recoste na cadeira de braços cruzados sobre o peito, derrotada. - Pronto, está bem. Então o que vamos fazer?
- Vá ao psiquiatra do estado - diz Fisher secamente. - E depois arranje alguém que possamos usar como perito em psiquiatria -
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quando ergo as sobrancelhas, ignora-me. - vou pedir todas as informações que o detective Ducharme conseguiu reunir durante a investigação envolvendo o seu filho, porque foi isso que a levou a acreditar que tinha de matar este homem.
«Matar este homem.» A frase faz-me arrepios na espinha. Lançamos estas palavras por aí com tanta facilidade, como se estivéssemos a falar sobre o tempo, ou dos resultados dos Red Sox.
- Lembra-se de mais alguma coisa que eu precise de pedir?
- As cuecas - digo-lhe. - As cuecas do meu filho tinham sémen. Foram enviadas para serem realizados testes de ADN, mas ainda não regressaram.
- Bem, isso já não interessa verdadeiramente...
- Quero vê-lo - anuncio, não aceitando discussões. - Preciso de ver esse relatório.
Fisher acena com a cabeça, toma uma nota.
- Muito bem, então. vou pedi-lo. Entretanto, não saia do estado, não fale com ninguém do seu escritório, não faça asneiras, porque pode não ter uma segunda oportunidade - levanta-se, dispensando-me.
Dirijo-me para a porta, passando os dedos pela madeira envernizada. com a mão na maçaneta, paro e depois olho por cima do ombro. Ele está a tomar notas no meu ficheiro, tal como eu faço quando inicio um caso.
- Fisher? - ele olha para cima. - Tem filhos?
- Duas. Uma filha está no segundo ano da universidade em Dartmore e a outra anda no liceu.
De repente, torna-se difícil engolir.
- Bem - digo num tom suave. - Ainda bem.
Senhor tende piedade. Cristo tende piedade.»
Nenhum dos jornalistas ou paroquianos que compareceram à missa fúnebre do padre Szyszynski em St. Anne s reconhece a mulher vestida de negro que está sentada na penúltima fila da igreja, não respondendo ao Kyrie. Tive o cuidado de esconder o rosto com um véu, mantendo-me em silêncio. Não disse ao Caleb aonde ia; ele acha que depois da minha reunião com o Fisher vou directamente para casa. Mas em vez disso, sento-me em pecado mortal, a ouvir o arcebispo exortar as virtudes do homem que matei.
Pode ter sido acusado, mas não chegou a ser condenado. Ironicamente, transformei-o numa vítima. Os bancos estão lotados por este rebanho que veio apresentar-lhe a sua última homenagem. Tudo é prateado e branco - as vestes dos sacerdotes que vieram enviar Szyszynski a Deus, os lírios que ladeiam a nave lateral, os acólitos
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que vão à frente da procissão com as suas velas, o pano mortuário sobre o caixão - toda a igreja parece, suponho eu, o Paraíso.
O arcebispo reza sobre o caixão reluzente, ladeado por dois padres que agitam o incensório e a água benta. Parecem-me familiares; apercebo-me de que são os que visitaram recentemente a paróquia e interrogo-me se um deles ficará na paróquia, agora que não há padre.
«Confesso a Deus Todo-poderoso, e a vós irmãos, que pequei por minha culpa.»
O fumo doce das velas e das flores deixa-me tonta. A última missa fúnebre em que estive presente foi a do meu pai, com muito menos pompa do que esta, embora o serviço religioso fluísse na mesma corrente de descrença. Lembro-me do padre que colocou as mãos sobre as minhas e me ofereceu as suas maiores condolências: «Ele agora está com Deus».
Enquanto se lê o Evangelho, olho em volta, para a congregação. Algumas das mulheres mais velhas estão a soluçar, a maioria olha para o arcebispo com a solenidade que ele inspira. Se o corpo de S .yszynski pertence a Cristo, então quem controlava a sua mente? Quem colocou naquele cérebro a semente para fazer mal a uma criança? O que o fez escolher o meu filho?
As palavras ressaltam: «encomendar a sua alma»; «com o seu Criador»; «Hossana nas alturas».
As notas do órgão ressoam e então o arcebispo levanta-se para fazer o encómio.
- O padre Glen Szyszynski - começa - era muito amado pela sua congregação.
Não consigo explicar por que razão vim aqui; por que motivo sabia que era capaz de cruzar a nado um oceano, quebrar correntes, atravessar o país a correr se fosse preciso para testemunhar o enterro de Szyszynski. Talvez para mim seja um desfecho; talvez seja a prova de que ainda necessito.
«Este é o Meu Corpo.»
Imagino o seu rosto de perfil, no minuto antes de ter carregado no gatilho.
«Este é o Meu Sangue.»
O seu crânio, despedaçado.
Solto um suspiro no silêncio, e as pessoas que estão sentadas de ambos os meus lados voltam-se, curiosas.
Quando nos levantamos como autómatos e nos dirigimos em fila para a nave lateral, para comungar, apercebo-me de que os meus pés se mexem antes que consiga lembrar-me de os fazer parar. Abro a boca para o padre que segura na Hóstia.
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- Corpo de Cristo - diz ele, e olha directamente para mim.
- Ámen - respondo.
Quando me volto, o meu olhar fixa-se no banco da frente, do lado esquerdo da igreja, onde uma mulher vestida de negro está dobrada pela cintura, chorando tanto que quase não consegue respirar. Os seus caracóis cinzentos cor de ferro agitam-se por baixo do seu pequeno chapéu negro; as suas mãos estão cerradas sobre a borda do banco com tanta força que fico com a ideia de que pode lascar a madeira. O padre que me deu a Comunhão sussurra a um outro sacerdote, que o substitui enquanto vai confortá-la. E é nessa altura que percebo:
O padre Szyszynski também era filho de alguém.
O meu peito enche-se de chumbo e as minhas pernas derretem por baixo de mim. Posso dizer a mim própria que vinguei Nathaniel; posso dizer que estava moralmente certa - mas não posso escamotear a verdade de que uma outra mãe perdeu o seu filho por minha causa.
Estará certo encerrar-se um ciclo de dor dando início a outro?
A igreja começa a girar, e as flores estão a chegar-me aos tornozelos. Um rosto largo como a Lua ergue-se à minha frente, proferindo palavras que não consigo ouvir. «Se desmaiar, todos saberão quem sou. Crucificar-me-ão.» Reúno todas as forças que me restam para empurrar as pessoas que estão no meu caminho, para percorrer a nave cambaleando, para abrir as portas de St. Anne s e sair em liberdade.
Mason, o golden retríever, é o cão do Nathaniel desde que ele se lembra, embora já fizesse parte da família dez meses antes de ele nascer. E o mais estranho é que, se tivesse sido ao contrário - se o Nathaniel tivesse chegado primeiro - teria dito aos pais que preferia um gato. Gosta da forma como podemos pôr um gatinho em cima do braço, tal como transportaríamos um casaco se ficássemos com calor. Gosta do som que eles fazem junto ao seu ouvido, do modo como também faz a sua pele vibrar. Gosta da forma como não precisam de tomar banho; gosta do facto de poderem lançar-se de uma grande altura e cair sempre de pé.
Uma vez pediu um gatinho pelo Natal e, embora o Pai Natal lhe tivesse trazido tudo o resto, o gato não apareceu. Era por causa do Mason, ele sabia. O cão tinha o hábito de trazer presentes - o crânio de um rato que tinha roído até ao osso, o cadáver de uma cobra estraçalhada que encontrou ao fundo do caminho de acesso à casa, um sapo preso dentro da boca. «Deus sabe», disse a mãe de Nathaniel, «o que ele faria a um gatinho».
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Portanto, naquele dia em que vagueava pela cave da igreja, no dia em que esteve a olhar para o quadro do dragão no escritório do padre Glen, a primeira coisa em que Nathaniel reparou foi na gata. Era preta, com três patas brancas, como se tivesse pisado tinta e se tivesse apercebido, embora não totalmente, que isso não era uma boa ideia. A cauda retorcia-se como a cobra-capelo de um encantador de serpentes. O seu focinho não era maior do que a palma da mão de Nathaniel.
- Ah - disse o padre. - Gostas da Esme - inclinou-se e fez festas entre as orelhas da gata. - Que linda menina - agarrando na gata para a colocar nos seus braços, sentou-se no sofá por baixo do quadro do dragão. Nathaniel achou que ele era muito corajoso. Se fosse ele, ficava com receio que o monstro voltasse à vida e o engolisse inteiro. - Gostavas de fazer-lhe festas?
Nathaniel acenou com a cabeça, com a garganta tão cheia da sua sorte que nem era capaz de falar. Aproximou-se do sofá, da pequena bola de pêlo ao colo do padre. Pousou a mão nas costas da gatinha, sentindo o calor, e os ossos, e o seu coração.
- Olá - murmurou. - Olá, Esme.
A cauda dela fez cócegas a Nathaniel. debaixo do queixo, e ele riu. O padre também riu, e colocou a mão na parte de trás do pescoço de Nathaniel. Era o mesmo sítio onde Nathaniel acariciava a gata, e por um instante viu algo semelhante às imagens reflectidas até ao infinito nos espelhos de uma feira popular - ele a tocar na gata, e o padre a tocar-lhe a ele, e talvez até a grande mão invisível de Deus a tocar no padre. Nathaniel levantou a palma da mão, deu um passo atrás.
- Ela gosta de ti - disse o padre.
- A sério?
- Oh, sim. Ela não costuma comportar-se desta maneira ao pé da maioria das crianças.
Isso fez Nathaniel sentir-se inchado de orgulho. Fez festas nas orelhas da gata outra vez, e era capaz de jurar que ela sorriu.
- É isso mesmo - encorajou o padre. - Não pares.
Quentin Brown está sentado à secretária de Nina no gabinete do Ministério Público, interrogando-se sobre o que lhe falta. Por falta de espaço, foi-lhe cedido o escritório dela para servir de base de operações, e a ironia de estar a planear a condenação desta mulher a partir do mesmo lugar onde ela costumava sentar-se não lhe passou despercebida. O que descobriu, através da observação, é que Nina Frost tem a mania das arrumações - os clipes, por amor de Deus, estão separados por tamanhos em pequenos pires. Os ficheiros estão por
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ordem alfabética. Não se encontra uma pista em lado nenhum, nenhum Post-it amachucado com o nome de um negociante de armas; nem sequer um esboço do rosto do padre Szyszynski no mata-borrão. «Este podia ser o espaço de trabalho de qualquer pessoa», pensa Quentin, «e é aí que reside o problema».
Que tipo de mulher não tem a fotografia do filho e do marido em cima da secretária?
Reflecte sobre o que isto pode ou não significar durante um momento, e depois tira a carteira cá para fora. Lá de dentro retira uma fotografia gasta de Gideon quando era bebé. Tiraram-na no Sears. Para colocar aquele sorriso no rosto do rapazinho, Quentin fingira bater na cabeça de Tanya com uma bola de borracha, fazendo inadvertidamente as suas lentes de contacto caírem. Agora, coloca a fotografia quadrada no canto do mata-borrão, quando a porta se abre.
Dois detectives de Biddeford entram - Evan Chão e Patrick Ducharme, se Quentin bem se lembra.
- Entrem - diz, indicando com um gesto as cadeiras à sua frente. - Sentem-se.
Formam um bloco sólido, com os ombros quase a tocarem-se. Quentin ergue um comando e liga um vídeo na prateleira atrás de si. Ele próprio já viu a cassete mil vezes e supõe que os dois detectives também a tivessem visto. Caramba, a maior parte das pessoas de Nova Inglaterra por esta altura já a viram; foi transmitida nas notícias de todos os canais da CBS. Chão e Ducharme voltam-se, hipnotizados pela imagem de Nina Frost no pequeno ecrã, dirigindo-se com uma graça sobrenatural para a balaustrada da galeria e erguendo uma arma. Nesta versão, não editada, podemos ver o lado direito da cabeça do padre Szyszynski explodir.
- Credo - murmura Chão.
Quentin deixa a cassete continuar. Desta vez, não está a vê-la está a observar as reacções dos detectives. Não conhece Chão nem Ducharme de lado nenhum, mas uma coisa é certa - eles trabalharam com Nina Frost durante sete anos; trabalham com Quentin há vinte e quatro horas. Quando a câmara se inclina perigosamente, vindo a pousar perto da luta entre Nina e os oficiais de diligências. Chão olha para o colo. Ducharme fita o ecrã, resoluto, mas não há nenhuma emoção no seu rosto.
com um clique, Quentin desliga a televisão.
- Li os depoimentos das testemunhas, de todas as 124. E, naturalmente, ver toda a tragédia ao vivo e a cores não faz diferença nenhuma - inclina-se para a frente, de cotovelos apoiados na secretária de Nina - Aqui as provas são sólidas. A única questão é ela ser
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ou não culpada por razões de insanidade. Alegará isso, ou extrema raiva - voltando-se para Chão, pergunta: - Assistiu à autópsia?
- Sim, assisti.
- E?
- Já liberaram o corpo para ser transferido para a casa mortuária, mas não me entregarão um relatório até chegarem os ficheiros clínicos da vítima.
Quentin revira os olhos.
- Como se aqui houvesse alguma dúvida quanto à causa da morte?
- Não se trata disso - interrompe Ducharme. - Gostam de ter todos os ficheiros clínicos em anexo. Faz parte do protocolo do gabinete.
- Bem, digam-lhes que se despachem - diz Quentin. - Não me interessa que o Szyszynski tivesse SIDA em fase terminal... não foi disso que morreu - abre um ficheiro em cima da secretária e agita um papel em frente a Patrick Ducharme. - Que raio é isto?
Deixa o detective ler o seu próprio relatório sobre o interrogatório de Caleb Frost, sob suspeita de ter molestado o próprio filho.
- O rapaz esteve mudo - explica Patrick. - Ensinaram-lhe as bases da linguagem gestual, e quando o pressionámos para identificar o agressor, ele não parava de fazer o sinal para pai - Patrick devolve-lhe o papel. - Primeiro suspeitámos de Caleb Frost.
- O que fez ela? - pergunta Quentin. Não é necessário dizer a quem se refere.
Patrick passa uma mão pelo rosto, murmurando por baixo dela.
- Não ouvi bem o que disse, Detective - diz Quentin.
- Arranjou uma ordem de restrição contra o marido.
-Aqui?
- Em Biddeford.
- Quero uma cópia disso.
Patrick encolhe os ombros.
- Foi anulada.
- Não me interessa. Nina Frost matou a tiro o homem que estava convencida de ter molestado o filho. Mas apenas quatro dias antes, estava convencida de que tinha sido outro homem. O advogado dela vai dizer ao júri que matou o padre por ter feito mal ao seu filho... mas que grau de certeza teria?
- Havia sémen - diz Patrick. - Nas cuecas do filho.
- Sim - Quentin folheia mais algumas páginas. - Onde estão os resultados dos testes de ADN?
- No laboratório. Devem chegar esta semana. A cabeça de Quentin ergue-se lentamente.
- Ela nem sequer viu os resultados do ADN das cuecas antes de matar o tipo?
Um músculo contrai-se ao longo do maxilar de Patrick.
- O Nathaniel disse-me. O filho dela. Fez uma identificação verbal.
- O meu sobrinho de cinco anos diz-me que foi a fada dos dentes que lhe trouxe um dólar, mas isso não significa que eu acredite nele, Tenente.
Mesmo antes de ter terminado a frase, Patrick levanta-se da cadeira, inclinando-se sobre a secretária em direcção a Quentin.
- O senhor não conhece o Nathaniel Frost - diz num tom agressivo. - E não tem o direito de pôr em causa o meu discernimento profissional.
Quentin levanta-se, erguendo-se acima do detective.
- Tenho todo o direito. Porque ao ler o seu relatório sobre a investigação, parece-me evidente que meteu os pés pelas mãos simplesmente por ter dado tratamento especial a uma promotora de justiça que tirou conclusões precipitadas. E diabos me mordam se eu o vou deixar fazer isso de novo enquanto a acusamos.
- Ela não tirou conclusões precipitadas - argumenta Patrick. Sabia exactamente o que estava a fazer. Meu Deus, se fosse o meu filho, eu teria feito o mesmo.
- Prestem ambos atenção. A Nina Frost é suspeita de homicídio. Escolheu cometer um acto criminoso. Matou um homem a sangue-frio numa sala de audiências cheia de pessoas. O vosso trabalho é fazer cumprir a lei, e ninguém... ninguém... pode alterá-la ao seu gosto, nem sequer uma promotora pública - Quentin volta-se para o primeiro polícia. - Estamos entendidos, detective Chão?
Chão acena com a cabeça, tenso.
- Detective Ducharme?
???? Patrick olha-o nos olhos, senta-se na cadeira. Só muito depois de os detectives terem saído do escritório é que Quentin se apercebe de que Ducharme nunca chegou a responder.
Preparar-se para o Inverno, na opinião de Caleb, é apenas um desejo. A melhor preparação do mundo não vai impedir que uma tempestade nos apanhe desprevenidos. A questão é que nem sempre nos apercebemos de quando chegam os ventos de nordeste. Dirigem-se para o mar e depois mudam de rumo e fustigam o Maine com força. Nos últimos anos houve alturas em que Caleb abriu a porta de entrada e viu um monte de neve pela altura do peito; abriu caminho cavando com uma pá que guardava no armário da frente,
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para encontrar um mundo que não se parecia nada com o que era
na noite anterior.
Hoje, está a preparar a casa. Isso implica esconder a bicicleta de Nathaniel na garagem e procurar o trenó e os esquis. Caleb cobriu os arbustos em frente à casa com cavaletes triangulares de madeira, pequenos chapéus para proteger os seus ramos frágeis do gelo e da neve que caem do telhado.
Agora falta apenas armazenar lenha suficiente para durar todo o Inverno. Já trouxe três carregamentos, empilhando-os em cruz, na cave. Farpas de carvalho furam-lhe as luvas grossas enquanto ele se
? move ritmadamente, retirando um par de troncos do monte que caiu do contentor e dispondo-os cuidadosamente no seu lugar. Caleb sente uma melancolia oprimi-lo, como se cada centímetro a mais na pilha de lenha lhe retirasse qualquer coisa estival - um bando alegre de pintassilgos, um regato de águas revoltas, o vapor do solo revolto por uma planta a nascer. Ao longo de todo o Inverno, ao queimar estas pilhas, Caleb imagina-as como um quebra-cabeças. A cada tronco que lança ao fogo, lembra-se do canto de um grilo, ou da abóbada de estrelas no céu de Julho. E assim sucessivamente, até a cave estar novamente vazia e a Primavera se ter lançado, jubilante, por cima do seu terreno.
- Achas que dura o Inverno todo?
Ao ouvir a voz de Nina, Caleb sobressalta-se. Desceu as escadas que conduzem à cave e está ao fundo delas de braços cruzados, examinando as pilhas de lenha.
- Não me parece muita - acrescenta.
- Tenho o suficiente - Caleb coloca mais dois troncos. - Só que ainda não a trouxe toda para aqui.
Sente os olhos de Nina fixos nele enquanto se volta, dobrando-se, e levanta um grande toro, depositando-o no cimo de uma grande pilha.
- Então.
 - Sim - responde ela.
- Como correu com o advogado?
Ela encolhe os ombros.
- É um advogado de defesa.
Caleb presume que se trata de um insulto. Como sempre, em
assuntos legais, não sabe como responder. A cave está apenas meio cheia, mas Caleb apercebe-se de repente do seu tamanho, e de como
está perto de Nina, e da forma como aquele espaço parece não ser suficientemente grande para os dois.
- Vais sair outra vez? Porque preciso de ir ao armazém para comprar aquela lona impermeável.
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Ele não precisa de uma lona impermeável, tem quatro guardadas na garagem. Nem sequer sabe por que razão aquelas palavras lhe saíram da boca, como aves desesperadas para fugirem pelo cano da chaminé. E no entanto, continua a falar:
- És capaz de ficar a tomar conta do Nathaniel? Nina fica imóvel à sua frente.
- É claro que sou capaz de ficar a tomar conta do Nathaniel. Ou achas que sou demasiado instável para cuidar dele?
- Não quis dizer isso.
- Quiseste, Caleb. Podes não querer admiti-lo, mas é verdade. tem lágrimas nos olhos. Mas, por não se lembrar das palavras que as podiam fazer desaparecer, Caleb limita-se a acenar com a cabeça e a passar por ela; os ombros deles roçam um no outro e depois Caleb sobe as escadas.
Não vai ao armazém, como é óbvio. Em vez disso, dá por si a percorrer o condado por estradas secundárias, virando para o Tequila Mockingbird, o pequeno bar de que Nina fala de vez em quando. Ele sabe que ela costuma encontrar-se lá com o Patrick para almoçar todas as semanas; até sabe que o empregado do bar que tem um rabo-de-cavalo se chama Stuyvesant. Mas Caleb nunca lá tinha ido e, quando entra na sala quase vazia à tarde, parece que sente um segredo inchar debaixo das costelas - sabe muito mais sobre este local do que o mesmo sabe sobre ele.
- Boa tarde - diz Stuyvesant, enquanto Caleb hesita em frente ao balcão. Em que banco costumará Nina sentar-se? Fica a olhar para cada um deles, alinhados como dentes, tentando adivinhar qual. - O que deseja tomar?
Caleb bebe cerveja. Nunca gostou muito de bebidas fortes. Mas pede uma dose de Talisker, uma garrafa que consegue ler do outro lado do balcão cujo nome parece tão suave na língua como, supõe ele, o whisky que descreve. Stuyvesant pousa-a à sua frente com uma taça de amendoins. Há um executivo sentado a três bancos de distância e uma mulher tentando não chorar enquanto escreve uma carta numa mesa. Caleb ergue o copo para o empregado do bar.
- Sláinte - diz, um brinde que uma vez ouviu num filme.
- É irlandês? - pergunta Stuyvesant, passando um pano pela superfície envernizada do balcão.
- O meu pai era -defacto, os pais de Caleb tinham ambos nascido na América e os seus antepassados eram suecos e britânicos.
- Não me diga - diz o executivo, olhando para ele. - A minha irmã vive no condado de Cork. Um sítio magnífico - ri-se. - Por que diabo veio para aqui?
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Caleb bebe um gole do seu whisky.
- Não tive grande escolha - mente. - Tinha dois anos.
- Vive em Sanford?
- Não. Estou aqui em negócios. Vendas.
- E não estamos todos? - o homem ergue a sua cerveja. - Que
Deus abençoe as despesas por conta da empresa, certo? - faz sinal a Stuyvesant. - Mais uma rodada para nós - diz ele. E depois a Caleb:
- Sou eu que ofereço. Ou melhor, a minha empresa.
Falam sobre a próxima época dos Bruins, e de como já se pressente a neve. Discutem os méritos do Midwest, onde vive o executivo, comparado com a Nova Inglaterra. Caleb não sabe por que razão não diz a verdade ao executivo - mas a prevaricação é tão fácil e saber que este homem acreditará em tudo o que ele disser neste momento é estranhamente libertador. Portanto Caleb finge ser de Rochester, no New Hampshire, um local onde nunca esteve realmente. Inventa o nome de uma empresa, uma linha de produção de equipamento -de construção, e um historial de grandes sucessos. Deixa que as mentiras lhe rolem dos lábios, junta-as como fichas num casino, quase tonto de ver quantas consegue amontoar antes de se desmoronarem. O homem olha para o relógio e pragueja.
- Tenho de telefonar para casa. Se me atrasar, a minha mulher vai achar que bati com o meu carro alugado numa árvore. Sabe como é?
- Nunca me casei - Caleb encolhe os ombros, e bebe o Talisker através dos dentes, como barbas de baleia.
- Foi inteligente - o executivo salta do banco, dirigindo-se à parte de trás do balcão, a um telefone do qual Nina telefonou a Caleb uma ou duas vezes quando o seu telemóvel ficou sem bateria.
Quando passa, estende a mão.
? - Chamo-me Mike Johanson.
; Caleb aperta-lhe a mão.
- Glen - responde. - Glen.
Lembra-se demasiado tarde que é supostamente irlandês e não
polaco. Que Stuyvesant, que vive ali, vai certamente reconhecer o nome. Mas nenhuma destas coisas interessa. Quando o executivo volta e Stuyvesant pensa duas vezes, Caleb já saiu do bar, sentindo-se mais confortável usando a identidade improvável de outro homem do que ultimamente se tem sentido com a sua. O psiquiatra do estado é tão novo que sinto um impulso irresistível de me debruçar sobre a secretária que nos separa para alisarI um remoinho que tem no cabelo. Mas se o fizesse, provavelmente o
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Dr. Storrow morreria de susto, convencido de que ia estrangulá-lo com a alça da minha mala. Foi por isso que preferiu encontrar-se comigo no tribunal em Alfred e não posso censurá-lo. Todos os clientes deste homem são dementes ou homicidas e o local mais seguro para realizar uma entrevista - em vez da prisão - é um espaço público cheio de oficiais de diligências a andarem por ali.
Vesti-me com grande deliberação, não com o meu habitual traje conservador, mas de calças de caqui, uma camisola de gola alta e sapatos rasos. Quando o Dr. Storrow olha para mim, não quero que pense em mim como advogada. Quero que se lembre da sua própria mãe, a assistir aos seus jogos de futebol da linha lateral, instigando-o à vitória.
Da primeira vez que fala, estou à espera que a sua voz saia trémula.
- Era promotora pública no condado de York, não é verdade, Sra Frost?
Tenho de pensar antes de responder. A partir de que grau de loucura se é louco? Devo parecer ter dificuldades em compreendê-lo, devia começar a roer a gola da minha camisola? Deve ser fácil enganar um psiquiatra tão inexperiente como Storrow... mas já não é essa a questão. Agora, tenho de me assegurar de que a insanidade é temporária. Que serei, como dizemos nós, absolvida sem ser internada. Portanto sorrio para ele.
- Chame-me Nina - sugiro. - E é verdade.
- Muito bem - diz o Dr. Storrow. - Tenho este questionário, hum, para preencher e entregar no tribunal - tira uma folha de papel que já vi mil vezes, preenche os espaços em branco, e começa a ler.
- Tomou algum medicamento hoje, antes de vir para aqui?
-Não. -Já foi acusada de algum crime anteriormente?
- Não.
-Já esteve em tribunal anteriormente?
- Todos os dias - digo. - Ao longo dos últimos dez anos.
- Oh... - o Dr. Storrow olha para mim pestanejando, como se tivesse acabado de se lembrar com quem está a falar. - Oh, é verdade. Bem, mesmo assim tenho de fazer-lhe estas perguntas, se não se importa - pigarreia. - Compreende qual é o papel do juiz num tribunal?
Ergo uma sobrancelha.
- vou considerar isso como um sim - o Dr. Storrow escreve no seu formulário. - Sabe qual é o papel do promotor de justiça?
- Oh, acho que faço uma ideia.
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Sabe o que faz o advogado de defesa? Percebe que o estado está a tentar provar que é culpada para além de qualquer dúvida razoável?» As perguntas sucedem-se, idiotas como tartes de creme atiradas à cara de um palhaço. Fisher e eu usaremos esta entrevista ridícula de rotina em nosso benefício. No papel, sem a entoação da minha voz, as minhas respostas não parecerão absurdas - parecerão apenas um pouco evasivas, um pouco estranhas. E o Dr. Storrow é demasiado inexperiente para comunicar no banco das testemunhas que eu sempre soube ao que se referia.
- O que deve fazer se acontecer alguma coisa no tribunal que não compreenda?
Encolho os ombros.
- Eu pediria ao meu advogado que pergunte que precedente legal estavam a seguir, para poder procurá-lo.
- Compreende que tudo o que disser ao seu advogado, ele não poderá repetir?
- A sério?
O Dr. Storrow pousa o formulário. com uma expressão absolutamente séria, diz:
- Acho que podemos prosseguir - olha para a minha mala, de onde já retirei uma arma. - Já lhe diagnosticaram alguma doença psiquiátrica?
- Não.
- Já foi medicada devido a problemas psiquiátricos?
- Não.
-Tem antecedentes de esgotamento nervoso originado por stresse?
- Não. -Já tinha possuído alguma arma anteriormente? Abano a cabeça.
- Já recorreu alguma vez a qualquer tipo de aconselhamento? Essa pergunta faz-me parar. 4
- Sim - admito, pensando no confessionário em St. Anne s. - Foi o pior erro da minha vida.
- Porquê?
- Quando descobri que o meu filho tinha sido vítima de abuso sexual, fui confessar-me à minha igreja. Falei com o meu padre sobre isso. E depois descobri que o sacana que fez aquilo foi ele.
A minha linguagem faz subir um rubor por cima do colarinho da sua camisa.
- Sr.a Frost... Nina... preciso de fazer-lhe algumas perguntas sobre o dia em que... em que tudo aconteceu.
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Começo a puxar as mangas da minha camisola de gola alta. Não muito, só para o tecido me colorir as mãos. Olho para o colo.
- Tive de fazê-lo - sussurro. Estou a tornar-me muito boa nisto.
- Como se sentia nesse dia? - pergunta o Dr. Storrow. A dúvida gela-lhe a voz; apenas há alguns momentos, eu estava perfeitamente lúcida.
- Tive de fazê-lo... o senhor compreende. Já vi isto acontecer demasiadas vezes. Não podia deixá-lo ir assim - fecho os olhos, pensando em cada defesa por insanidade bem-sucedida que já ouvi propor em tribunal. - Não tive escolha. Não podia ter evitado... foi como se estivesse a observar outra pessoa a fazê-lo, outra pessoa a reagir.
- Mas sabia o que estava a fazer - responde o Dr. Storrow, e tenho de me conter para que a minha cabeça não se erga bruscamente. -Já levou a tribunal pessoas que fizeram coisas horríveis.
- Eu não fiz uma coisa horrível. Salvei o meu filho. Não é isso que as mães devem fazer?
- O que acha que as mães devem fazer?
«Ficarem acordadas a noite inteira quando um bebé está constipado, como se pudessem respirar por ele. Aprender a falar a língua dos pês, e fazer um pacto de falar assim um dia inteiro. Fazer pelo menos um bolo com todos os ingredientes que haja na despensa, só para ver ao que sabe.
Amarmos o nosso filho um pouco mais todos os dias.»
- Nina? - diz o Dr. Storrow. - Sente-se bem? ? % Olho para cima e aceno com a cabeça através das lágrimas. - Lamento.
- Lamenta? - ele inclina-se para a frente. - Lamenta verdadeiramente?
Já não estamos a falar do mesmo. Imagino o padre Szyszynski, a caminho do Inferno. Penso em todas as formas de interpretar aquelas palavras, e depois olho para o Dr. Storrow.
- E ele lamentou?
Nina sempre soube melhor do que qualquer outra mulher, pensa Caleb, enquanto os seus lábios deslizam pela encosta de um ombro. A mel, e sol, e caramelo - do céu-da-boca à curva por trás do joelho. Há alturas em que Caleb acha que podia banquetear-se na sua mulher sem nunca achar que era o suficiente.
As mãos dela sobem para se fecharem sobre o seu ombro e, na obscuridade, a sua cabeça desliza para trás, fazendo do contorno da garganta uma paisagem. Caleb esconde o rosto aqui e tenta orientar-se
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pelo tacto. Aqui, nesta cama, ela é a mulher por quem se apaixonou há uma vida. Sabe quando ela lhe vai tocar e onde. É capaz de prever todos os seus movimentos.
As pernas dela abrem-se de ambos os lados do seu corpo e
Caleb encosta-se a ela. Arqueia as costas. Imagina o momento em que estará dentro dela, como a tensão aumentará cada vez mais até explodir como uma bala.
Naquele momento, a mão de Nina desliza por entre os seus corpos para o envolver e, sem mais nem menos, Caleb fica flácido. Tenta roçar-se nela. Os dedos de Nina tocam-lhe como os de uma flautista, mas não acontece nada.
Caleb sente a mão dela subir novamente para o seu ombro,
sente o ar frio da sua ausência nos testículos.
- Bem - diz Nina, quando ele se vira de barriga para cima ao
lado dela. - Isto nunca tinha acontecido.
Ele olha para o tecto, para tudo menos para esta estranha ao seu lado. Não é a única coisa», pensa.
Na sexta-feira à tarde, o Nathaniel e eu vamos às compras. A P C é um festival gastronómico para o meu filho: vou do balcão da charcutaria, onde o Nathaniel recebe uma fatia de queijo de graça. para o corredor das bolachas, onde vamos buscar uma caixa de bolachas com a forma de animais, para os pães, onde Nathaniel vai comendo uma rosca simples.
- O que achas, Nathaniel? - pergunto, dando-lhe algumas uvas
do cacho que acabei de colocar dentro do carrinho. - Devo pagar 4,99 dólares por um melão?
Agarro no melão e cheiro-o na parte de baixo. Para dizer a verdade, nunca fui muito boa a avaliar a fruta. Sei que o segredo é a suavidade e o aroma, mas na minha opinião algumas das polpas mais doces eram duras como uma pedra à superfície.
De repente, a rosca que o Nathaniel estava a comer cai-me nas
mãos.
- Peter! - grita ele, acenando do seu arnês no carrinho das compras. - Peter! Hi, Peter! Olho para cima e vejo Peter Eberhardt percorrer o corredor das frutas e legumes com um pacote de batatas fritas e uma garrafa de Chardonnay. Peter, que eu já não via desde o dia em que a minha ordem de restrição foi anulada. Tenho tantas coisas para lhe dizer para lhe perguntar, agora que não estou no escritório para descobrir por mim própria - mas o juiz proibiu-me especificamente de falar com os meus colegas, como condição da caução.
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Nathaniel, é claro, não sabe. Percebe apenas que Peter - um homem que tem chupa-chupas Charms na secretária, que é capaz de fazer a melhor imitação de um pato a espirrar, que ele já não vê há semanas - de repente está a dois metros de distância.
- Peter - chama Nathaniel outra vez, abrindo os braços.
Peter hesita. Vejo-o no seu rosto. Mas por outro lado, adora o Nathaniel. Toda a racionalidade do mundo não consegue sobrepor-se ao sorriso do meu filho. Peter pousa o pacote de batatas fritas e a garrafa de vinho em cima de um expositor de maçãs Red Delicious e dá a Nathaniel um grande abraço.
- Olha para ti! - diz numa voz esganiçada. - Essa voz voltou a funcionar a cem por cento, não é verdade?
Nathaniel ri-se quando Peter lhe abre a boca para espreitar lá para dentro.
- O volume também funciona? - pergunta ele, fingindo rodar um botão na barriga de Nathaniel, o que faz Nathaniel rir cada vez mais alto.
Depois Peter volta-se para mim.
- Ele está óptimo, Nina - quatro palavras, mas eu sei o que está realmente a dizer: «Fizeste bem».
- Obrigada.
Olhamos um para o outro, avaliando o que pode e o que não pode ser dito. E como estamos tão ocupados a fazer da nossa amizade uma mercadoria, não reparo que se aproxima outro carrinho de compras. Choca com a parte de trás do meu, fazendo um ruído suficientemente alto para me fazer olhar para cima, para ver Quentin Brown sorrir ao lado de um mar de laranjas de umbigo.
- Ora, ora - diz ele. - Isto aqui já está a cheirar mal - tira um telemóvel do bolso de dentro e marca um número. - Enviem um carro para aqui agora. vou fazer uma detenção.
- Não está a perceber - insisto, enquanto guarda o telemóvel.
- O que é assim tão difícil de entender? Está a violar inequivocamente o seu acordo de caução, Dr.a Frost. Este senhor é ou não seu colega do gabinete do Ministério Público?
- Por amor de Deus, Quentin - interpõe Peter. - Eu estava a falar com o miúdo. Ele chamou-me.
Quentin agarra-me no braço.
- Dei-lhe uma oportunidade, e você fez-me parecer um idiota.
- Mamã? - a voz de Nathaniel ergue-se para mim como vapor.
- Está tudo bem, querido - volto-me para o delegado procurador-geral e digo entre dentes. - Irei consigo - digo em voz baixa. Mas por favor tenha a decência de fazer isto sem traumatizar o meu filho ainda mais.
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- Eu não falei com ela - grita Peter. - Não pode fazer isto. Quando Quentin se volta, os seus olhos ficam escuros como
ameixas.
- Creio, Dr. Eberhardt, que as palavras exactas que não disse foram: «Ele está óptimo, Nina.» Nina. O mesmo nome da senhora com quem não estava a falar. E sinceramente, mesmo tendo sido suficientemente estúpido para abordar a Dr.a Frost, a responsabilidade dela era agarrar no carrinho de compras e afastar-se de si.
- Peter, não faz mal - falo depressa, porque já ouço as sirenes à porta da loja. - Leva o Nathaniel para casa, para junto do Caleb, está bem?
Então dois polícias chegam a correr pelo corredor, com as mãos no punho das armas. Os olhos de Nathaniel abrem-se muito perante esta exibição, até se aperceber do que fazem.
- Mamã! - grita ele, enquanto Quentin dá ordens para me algemarem.
Volto-me para Nathaniel, com um sorriso tão grande que o meu rosto está prestes a quebrar-se.
- Está tudo bem, vês? Eu estou bem - o meu cabelo cai do gancho quando me puxam as mãos para trás das costas. - Peter? Leva-o agora.
- Anda lá, amigo - tranquiliza-o Peter, puxando-o para fora do carrinho. Os seus sapatos ficam presos na grade de metal, e o Nathaniel começa a debater-se com força. Estende-me os braços e começa a chorar tão violentamente que fica a soluçar.
- Mamàãâãã!
Conduzem-me por entre as poucas pessoas que fazem compras, pelos repositores de queixo caído, pelas empregadas das caixas que ficam paradas com os seus sensores electrónicos no ar. Ao longo de todo o caminho, consigo ouvir o meu filho. Os seus guinchos seguem-me pelo parque de estacionamento, até ao carro da polícia. As luzes giram no seu tejadilho. Uma vez, muito antes de tudo isto, Nathaniel apontou para um carro da polícia em perseguição, e chamou-lhe um Natal de sirene.
- Lamento, Nina - diz um dos polícias enquanto me faz entrar. Através da janela vejo Quentin Brown, de braços cruzados. «Sumo de laranja», penso. «Carne para assar e queijo americano fatiado. Espargos, bolachas Rilz, leite. Iogurte de baunilha.» Esta é a minha litania ao longo de todo o caminho até chegar à prisão: o conteúdo do meu carrinho de compras abandonado, a estragar-se lentamente, até que alguma alma caridosa tenha vontade de o colocar novamente no seu lugar.
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Caleb abre a porta e vê o filho soluçar nos braços de Peter.
- O que aconteceu à Nina? - pergunta imediatamente, e estende os braços para Nathaniel.
- O tipo é um anormal - diz Peter, desesperado. - Está a fazer isto para deixar a sua marca na cidade. Ele...
- Peter, onde está a minha mulher? O outro homem retrai-se.
- Outra vez na prisão. Violou o acordo de caução e o delegado do procurador-geral deteve-a.
Por um momento, Nathaniel parece ser feito de chumbo. Caleb vacila sob a responsabilidade de o sustentar, e depois recupera o equilíbrio. Nathaniel ainda chora, agora mais suavemente, um rio que corre pelas costas da sua camisola. Caleb faz pequenos círculos na coluna da criança.
- Volta atrás. Diz-me o que aconteceu.
Caleb selecciona palavras específicas: «mercearia», «frutas e legumes», «Quentin Brown». Mas mal consegue ouvir Peter por cima do som de trovão na sua cabeça, uma única frase: «Nina, o que fizeste agora?»
- O Nathaniel chamou-me - explica Peter. - Fiquei tão entusiasmado por ouvi-lo falar outra vez que não pude simplesmente ignorá-lo.
Caleb abana a cabeça.
- Foste... foste tu que a abordaste?
Peter é trinta centímetros mais baixo do que Caleb, e nesse momento tem consciência de cada um deles. Recua um passo.
- Nunca lhe arranjaria problemas, Caleb, tu sabes.
Caleb imagina o filho a gritar, a mulher a ficar entalada no meio de dois polícias, uma rajada de frutas caídas ao chão durante a luta. Sabe que a culpa não é de Peter, não totalmente. São precisas duas pessoas para conversar; a Nina devia ter-se simplesmente afastado.
Mas tal como ela lhe diria, não se lembrou disso nessa altura.
Peter pousa a mão na barriga da perna de Nathaniel e faz-lhe festas suavemente. Isso faz a criança recomeçar; os gritos fazem ricochete no alpendre, descascando os grossos ramos despidos.
- Meu Deus, Caleb, lamento. É tão ridículo. Nós não fizemos nada.
Caleb volta-se, e Peter consegue ver as costas de Nathaniel, arfando com a força do seu medo. Toca nos cabelos molhados do filho.
- Não fizeste nada? - desafia Caleb, e deixa Peter de pé lá fora.
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Caminho rigidamente enquanto sou de novo conduzida para as
celas da solitária, mas não consigo dizer o que me fez dormente - a minha detenção ou apenas o frio. A caldeira da prisão avariou-se, e todos os guardas prisionais vestem grossos casacos. Os reclusos que estão habitualmente de calções ou roupa interior vestiram camisolas; como não tenho nenhuma, sento-me a tremer na minha cela depois de terem trancado a porta atrás de mim. - Querida.
Fecho os olhos, voltando-me para a parede. Esta noite, não me
apetece falar com a Adrienne. Esta noite tenho de procurar uma forma de entender que Quentin Brown me tramou. Ser libertada sob caução da primeira vez foi um milagre; a sorte raramente bate à mesma porta duas vezes.
 Interrogo-me se Nathaniel estará bem. Interrogo-me se Fisher
terá falado com Caleb. Desta vez, ao ser presa, escolho telefonar ao meu advogado. Foi uma decisão cobarde.
Caleb dirá que a culpa foi minha. Isto é, se ainda me dirigir a palavra.
- Querida, estás a bater tanto os dentes que ainda fazes uma desvitalização. Toma - há algo a restolhar junto às grades, volto-me e vejo que Adrienne me atira uma camisola. - É de angora. Não a alargues.
com movimentos secos, agarro na camisola, que nem por sombras conseguiria alguma vez alargar, visto que Adrienne tem quinze centímetros e dois números de sutiã mais do que eu. Ainda estou a tremer, mas pelo menos agora sei que não tem nada a ver com o frio. Quando o guarda nos manda apagar as luzes, tento pensar no calor. Lembro-me de como o Mason, quando era cachorro, se deitava em cima dos meus pés com a sua barriga macia e quente nos meus dedos descalços. E da praia em St. Thomas, onde Caleb me
enterrou até ao pescoço na areia quente, na nossa lua-de-mel. E de um pijama, despido do corpo de Nathaniel de manhã, ainda quente e a cheirar a sono. Do outro lado do corredor, Adrienne mastiga rebuçados Life -Savers Wintergreen. Lançam pequenas faíscas verdes na obscuridade, como se tivesse aprendido a fazer os seus próprios relâmpagos.
Mesmo no silêncio abafado da prisão, consigo ouvir o Nathaniel
gritar por mim enquanto estou a ser algemada. O Nathaniel, que
estava a recuperar tão bem - quase na normalidade - o que lhe fará isto? Esperará por mim à janela, mesmo sem eu chegar a casa? Dormirá ao lado de Caleb, para afugentar os pesadelos?
Recapitulo as minhas acções na mercearia como a fita contínua de uma câmara de vídeo de vigilância - o que fiz, o que devia ter feito. Posso ter-me nomeado a mim própria protectora do Nathaniel, mas hoje não fiz um bom trabalho. Achei que falar com o Peter seria inofensivo... e em vez disso, esse acto pode ter feito o Nathaniel regredir a passos largos.
A alguns metros de distância, na cela de Adrienne, as faíscas dançam como pirilampos. As coisas nem sempre são o que parecem.
Por exemplo, sempre acreditei que sei o que é melhor para o Nathaniel.
Mas e se estiver enganada?
- Deitei um bocadinho de chocolate quente nas tuas natas - diz Caleb, uma piada sem graça, enquanto coloca a caneca em cima da mesa-de-cabeceira de Nathaniel. Nathaniel nem se vira para ele. Está voltado para a parede, embrulhado como num casulo, de olhos tão vermelhos de chorar que nem parece ser ele.
Caleb tira os sapatos e deita-se na cama de Nathaniel; depois envolve o rapazinho nos braços, com força.
- Nathaniel, está tudo bem.
Sente aquela cabeça pequenina estremecer uma vez. Erguendo-se, apoiado no cotovelo, Caleb vira suavemente o filho de barriga para cima. Sorri, esforçando-se tanto para fingir que isto é completamente normal, que todo o mundo de Nathaniel não se transformou num globo de neve, agitado intermitentemente de cada vez que as coisas parecem começar a assentar.
- O que me dizes? Queres provar este chocolate quente?
Nathaniel senta-se devagar. Tira as mãos de debaixo dos cobertores e fecha-as junto do corpo. Depois mostra a palma da mão, de dedos esticados, e põe o polegar no queixo. «Quero a Mamã.»
O corpo de Caleb fica completamente imóvel. Nathaniel não se tem manifestado muito desde que Peter o trouxe para casa, excepto através do choro. Parou de soluçar num dado momento entre a altura em que Caleb lhe deu banho e quando lhe vestiu o pijama. Mas é com certeza capaz de falar, se quiser.
- Nathaniel, podes dizer-me o que queres?
Aquele gesto com as mãos, de novo. E uma terceira vez.
- Podes dizer, companheiro? Eu sei que queres a Mamã. Diz para eu ouvir.
Os olhos de Nathaniel brilham, e as lágrimas transbordam. Caleb agarra na mão do rapazinho.
- Diz - implora. - Por favor, Nathaniel.
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Mas Nathaniel não diz uma palavra.
- Está bem - murmura Caleb, deixando a mão de Nathaniel cair-lhe no colo. - Não faz mal - sorri o melhor que pode, e sai da cama.
- Volto já. Entretanto, podes começar a beber esse chocolate quente, está bem?
No seu quarto, Caleb levanta o auscultador do telefone. Marca um número que estava num cartão dentro da sua carteira. Envia uma mensagem à Dr.a Robichaud, a pedopsiquiatra. Depois desliga, cerra o punho, e faz um buraco na parede com um soco.
Nathaniel sabe que a culpa foi sua. Peter disse que não, mas estava a mentir, como os adultos fazem a meio da noite para pararmos de pensar que está uma coisa horrível debaixo da cama. Levaram a rosca para fora da loja sem deixar a máquina ler os números; foram para casa sem o seu assento no automóvel; mesmo agora, o pai levou-lhe chocolate quente para o quarto, quando o proibiam de comer lá em cima. A mãe não está, todas as regras estavam a ser quebradas, e tudo por causa de Nathaniel.
Viu Peter e disse-lhe olá, o que afinal foi mau. Muito, muito mau.
É isto que Nathaniel sabe: ele falou, e o homem mau agarrou no braço da sua mãe. Ele falou, e veio a polícia. Ele falou, e a sua mãe foi levada dali.
Portanto nunca mais voltará a falar.
Sábado de manhã, tinham arranjado o aquecimento. Arranjaram-no tão bem que dentro da prisão estão quase vinte e sete graus. Quando me levam para a sala de conferências, para falar com Fisher, estou de camisola de alças, calças do uniforme prisional e a suar. Fisher, é claro, está absolutamente impecável, mesmo de fato e gravata.
- Só consigo falar com um juiz para uma audiência de revogação na segunda-feira - diz.
- Preciso de ver o meu filho.
O rosto de Fisher mantém-se impassível. Está tão zangado como eu estaria, no seu lugar - compliquei o meu caso irremediavelmente.
- O horário das visitas é das dez ao meio-dia hoje.
- Telefone ao Caleb. Por favor, Fisher. Por favor, faça tudo o que for necessário para que ele traga o Nathaniel para aqui - sento-me na cadeira à sua frente. - Ele tem cinco anos, e viu-me ser levada pela polícia. Agora tem de ver que eu estou bem, mesmo estando aqui.
Fisher não promete nada.
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- Não preciso de lhe dizer que a sua caução vai ser revogada. Pense no que quer que eu diga ao juiz, Nina, porque já não tem mais nenhuma oportunidade.
Espero que ele me olhe nos olhos.
- Telefona para minha casa?
- Admite que eu assuma o controlo das operações?
Durante um longo momento, nenhum de nós pestaneja, mas eu cedo primeiro. Fico a olhar para o meu colo até ouvir Fisher fechar a porta atrás de si.
Adrienne sabe que eu fico ansiosa à medida que o horário das visitas chega ao fim - é quase meio-dia, e ainda não fui chamada para ver ninguém. Está deitada de barriga para baixo, a pintar as unhas de cor-de-laranja fluorescente. Em honra da época de caça, disse. Quando o guarda prisional passa por nós na sua ronda de quinze minutos, eu levanto-me.
- Tem a certeza de que ainda não chegou ninguém?
Ele abana a cabeça, continua. Adrienne sopra para os dedos para secar o verniz.
- Comprei a mais - diz ela, mostrando-me o frasco. - Queres que o faça rebolar até aí?
- Não tenho unhas, roo-as.
- Ora, isso é um horror. Há pessoas que não têm o bom senso de aproveitar ao máximo aquilo que Deus nos deu.
Rio-me.
- Olha quem fala.
- No meu caso, querida, quando chegou a altura de me dar a coisa certa, Deus estava a ter um momento de senilidade - senta-se no beliche de baixo e tira os sapatos de ténis. Na noite passada, pintou as unhas dos pés com minúsculas bandeiras americanas. - Que merda - diz Adrienne. - Esborratei.
O relógio não se moveu. Nem um segundo, era capaz de jurar.
- Fala-me do teu filho - diz Adrienne quando me vê olhar novamente para o fundo do corredor. - Sempre quis ter um.
- Achei que preferias uma rapariga.
- Querida, nós as mulheres precisamos de muitos cuidados.i com um rapaz, sabemos exactamente com o que contamos.
Tento encontrar a melhor maneira de descrever o Nathaniel. É como tentar deitar o oceano numa chávena de café. Como explico um rapaz que come a comida por cores; que me acorda a meio da noite com uma necessidade premente de saber por que razão respiramos oxigénio em vez de água; que desmontou um gravador de microcassetes
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para encontrar a sua voz, presa lá dentro? Conheço tão bem o meu filho que me surpreendo - há demasiadas palavras para escolher. - Por vezes, quando lhe dou a mão - respondo por fim, devagar -, é como se já não se adaptasse. Quero dizer, ele só tem cinco anos, sabes? Mas eu consigo prever o que está para vir. Por vezes a palma da sua mão é um nadinha larga de mais, ou os seus dedos demasiado fortes - olhando para Adrienne, encolho os ombros. - Cada vez que o faço, penso que poderá ser a última vez que lhe dou a mão. Que da próxima será ele a dar-ma.
Ela sorri suavemente.
- Querida, ele hoje já não vem.
São 12h46, e tenho de desviar o olhar, porque a Adrienne tem
 razão.
O guarda prisional acorda-me ao fim da tarde.
- Vamos lá - resmunga, e abre a porta da minha cela. Levanto-me a custo, esfregando o sono dos olhos. Ele leva-me por um corredor, para uma parte da prisão que ainda não visitei. Há uma fileira
de pequenas divisões, miniprisões, à minha esquerda. O guarda abre uma e faz-me entrar.
Não é maior do que um armário de vassouras. Lá dentro, há um
banco em frente a uma janela de vidro acrílico. Um telefone está
montado na parede deste lado. E do outro lado do vidro, numa sala gémea, está o Caleb.
- Oh! - a palavra sai num grito, e cambaleio até ao telefone,
levantando o auscultador e encostando-o à orelha. - Caleb - digo,
sabendo que ele consegue ver o meu rosto, ler as minhas palavras. - Por favor, por favor, agarra no telefone - repito uma e outra vez numa pantomima. Mas o seu rosto está empedernido; os braços estão cruzados por cima do peito. Não vai conceder-me isso.
Derrotada, deixo-me cair no banco e encosto a testa ao vidro
acrílico. Caleb dobra-se para agarrar em alguma coisa, e apercebo-me de que Nathaniel esteve lá o tempo todo, por baixo do balcão onde não conseguia vê-lo. Ajoelha-se no banco, de olhos muito abertos e desconfiados. Toca hesitantemente no vidro, como se precisasse de
saber que não sou uma ilusão de óptica.
Uma vez na praia, encontrámos um caranguejo-eremita. Virei-o
ao contrário para que Nathaniel pudesse ver as suas patas articuladas movimentarem-se. «Põe-no na palma da tua mão», disse eu, «para ele rastejar». Nathaniel estendeu a mão, mas cada vez que eu ia lá pôr o caranguejo, ele afastava-se. Queria tocar-lhe, e estava aterrorizado
? por o fazer, em proporções iguais. .
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Portanto aceno. Sorrio. Encho o meu pequeno cubículo com o som do seu nome.
Como fiz com Caleb, levanto o auscultador do telefone.
- Tu também - pronuncio só com os lábios, e faço-o novamente, para que Nathaniel consiga perceber como. Mas ele abana a cabeça, e em vez disso leva a mão ao queixo. «Mamã», faz o gesto.
O auscultador cai-me da mão, uma serpente que ataca a parede atrás de si. Nem sequer preciso de olhar para o Caleb para confirmar; de um momento para o outro, fico a saber.
Então, com lágrimas a escorrerem-me pelo rosto, ergo a minha mão direita, na combinação «I-L-Y» que significa «adoro-te». Recomponho-me enquanto Nathaniel levanta um pequeno punho, abre os dedos como bandeiras de sinalização para igualar os meus. Depois, um sinal de paz, o sinal gestual com o número dois. «Também te adoro.»
Agora, Nathaniel está a chorar. Caleb diz-lhe algo que eu não consigo ouvir, e ele abana a cabeça. Atrás deles, o guarda abre a porta.
Oh, meu Deus, vou perdê-lo.
Bato no vidro com os nós dos dedos para lhe chamar a atenção. Encosto lá o rosto, e depois aponto para Nathaniel e aceno com a cabeça. Ele faz o que lhe pedi, virando a face para que toque na parede transparente.
Aproximo-me, beijo a barreira entre nós, e finjo que não existe. Mesmo depois de Caleb o ter levado da sala de visitas, fico sentada com a fronte encostada ao vidro, convencendo-me de que ainda sinto Nathaniel do outro lado.
Não aconteceu só uma vez. Dois domingos depois, quando a família de Nathaniel foi à missa, o padre entrou na pequena sala onde a Sr.a Fiore estava a ler uma história a todos sobre um tipo com uma funda que derrotou um gigante.
- Preciso de um voluntário - dissera, e, embora todas as mãos se tivessem erguido, ele olhou logo para Nathaniel.
- Sabes - disse no escritório -, a Esme teve saudades tuas.
- A sério?
- Oh, sem dúvida. Anda a dizer o teu nome há dias. Nathaniel riu.
- Não anda nada.
- Ouve - colocou a mão em concha junto à orelha, inclinando-se para junto da gata que estava no sofá. - Ora aí está.
Nathaniel pôs-se à escuta, mas só ouviu um miado fraco.
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- Talvez tenhas de te aproximar mais - disse o padre. - Sobe para aqui.
Só por um instante, Nathaniel hesitou, lembrando-se. A mãe tinha-o avisado sobre estar sozinho com estranhos. Mas não se tratava verdadeiramente de um estranho, pois não? Sentou-se ao colo do padre, e encostou a orelha mesmo na barriga da gata.
- Que lindo menino.
O homem moveu as pernas, como o pai de Nathaniel por vezes fazia quando ele estava sentado no seu joelho e o pé ficava dormente.
- Posso sair - sugeriu Nathaniel.
- Não, não - a mão do padre deslizou ao longo das costas de Nathaniel, para pousar no seu próprio colo. - Assim está bem.
Mas então Nathaniel sentiu a camisa a ser puxada para fora. Sentiu os dedos longos do padre, quentes e húmidos, na sua coluna. Nathaniel não sabia como havia de lhe dizer que não. Uma recordação ocupava-lhe o espírito: uma mosca que um dia ficou presa dentro do carro enquanto andavam, que estava sempre a chocar contra as janelas, numa tentativa desesperada de sair.
- Padre? - sussurrou Nathaniel.
- Estou apenas a abençoar-te - respondeu ele. - Um ajudante especial merece isso. Quero que Deus saiba isso cada vez que te vir - os seus dedos ficaram imóveis. - Tu queres que isso aconteça, não queres?
Uma bênção era uma coisa boa, e que Deus lhe dedicasse uma atenção especial - bem, era o que a mãe e o pai desejariam, Nathaniel tinha a certeza disso. Concentrou-se novamente na gata preguiçosa, e foi quando ouviu - apenas um suspiro - Esme, ou talvez não tivesse sido Esme, sussurrar o seu nome.
Da segunda vez que sou chamada por um guarda prisional, é domingo à tarde. Ele leva-me lá para cima, para as salas de conferência, onde os reclusos se encontram com os seus advogados em privado. Talvez Fisher tenha vindo ver como estou. Talvez queira falar sobre a audiência de amanhã.
Mas para minha surpresa, quando a porta se abre, Patrick está lá dentro à espera. Há seis recipientes com comida chinesa espalhados em cima da mesa.
- Comprei tudo o que gostas - diz ele. - Frango à General Tso, vegetais Io mein, vaca com brócolos, Camarão à Lago Tung Ting e bolinhas de massa ao vapor. Oh, e aquela porcaria que sabe a borracha.
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- Tofu - levanto um pouco o queixo, desafiando-o. - Pensei que não quisesses falar comigo.
- E não quero. Quero comer contigo.
- Tens a certeza? Pensa em tudo o que eu poderia dizer enquanto tivesses a boca cheia, antes que tenhas oportunidade de...
- Nina - os olhos azuis de Patrick parecem desbotados, cansados. - Cala-te.
Mas mesmo enquanto me repreende, estende a mão. Fica em cima da mesa, aberta, oferecendo-se, mais apetecível do que qualquer outra coisa à minha frente.
Sento-me à sua frente e agarro-a. Imediatamente, Patrick aperta-a, e é a minha ruína. Encosto a face à mesa fria e marcada, e Patrick afaga-me os cabelos.
- Fui eu que coloquei o papel no teu bolinho da sorte - confessa. - Diz que vais ser absolvida.
- O que é que o teu diz?
- Que vais ser absolvida - Patrick sorri. - Não sabia qual deles escolherias.
Os meus olhos fecham-se quando baixo a guarda.
- Está tudo bem - diz-me Patrick, e eu acredito nele. Encosto a palma da mão dele ao meu rosto ardente, como se a vergonha fosse algo que ele pudesse segurar na mão em concha, atirando-a algures para longe.
Quando telefonamos a alguém do telefone da prisão, as pessoas sabem. De trinta em trinta segundos ouve-se uma voz a informar a pessoa do outro lado da linhadeque essa chamada foi feita do Estabelecimento Prisional de Alfred. Uso os cinquenta cêntimos que o Patrick me deu naquela tarde, e faço a chamada quando vou a caminho do duche.
- Ouça - digo, assim que Fisher atende o telefone de casa. Queria que eu lhe dissesse o que deveria dizer na segunda-feira de manhã.
- Nina? - lá atrás ouço o riso de uma mulher. O som de copos, ou porcelana, no lava-loiça.
- Preciso de falar consigo.
- Apanhou-nos a meio do jantar.
- Bem, por amor de Deus, Fisher - viro-me de costas quando uma fila de homens entra desordenadamente vinda de lá de fora, do pátio. - É melhor voltar a telefonar quando for mais conveniente para si, porque estou certa de que terei outra oportunidade daqui a, oh, uns três ou quatro dias.
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Ouço o barulho distante tornar-se mais fraco; o clique de uma porta.
- Está bem. O que foi?
- O Nathaniel não fala. Tem de me tirar daqui, porque ele está desfeito.
- Não fala? Outra vez?
- O Caleb trouxe-o ontem. E... ele está a falar por gestos. Fisher pondera.
- Se o Caleb vier aqui testemunhar, e a psiquiatra do Nathaniel...
- Tem de apresentar uma notificação.
- À psiquiatra?
- Ao Caleb.
Se isto o surpreende, não o admite.
- Nina, a verdade é que fez asneira. vou tentar tirá-la daí. Ainda acho que é improvável. Mas se quer que eu tente, vai ter de aguentar uma semana.
- Uma semana? - ergo a voz. - Fisher, estamos a falar do meu filho. Sabe quanto o Nathaniel pode piorar numa semana?
- Estou a contar com isso.
Quando digo a Fisher para se ir lixar, a chamada já caiu.
Concedem-nos meia hora juntas lá fora, no pátio de exercícios, a Adrienne e a mim. Caminhamos ao longo do recinto, e depois, quando ficamos com frio, voltamo-nos de costas para o vento por baixo do alto muro de tijolo. Quando o guarda prisional vai lá para dentro, a Adrienne fuma cigarros que faz queimando cascas de laranja que recolhe do lixo da cantina, e enrolando as cinzas em páginas de papel bíblia rasgadas de Jane Eyre, um livro que a sua tia Lu lhe enviou pelo aniversário. Já chegou à página 298. Disse-lhe que pedisse A Feira das Vaidades no próximo ano.
Sento-me de pernas cruzadas na erva seca. A Adrienne está ajoelhada atrás de mim, a fumar, com as mãos nos meus cabelos. Quando sair, quer ser cosmetologista. A sua unha faz-me um risco no cabelo desde a fronte até à nuca.
- Nada de tranças - informo.
- Não me insultes - faz outro risco, paralelo ao primeiro, e começa a entrançar em fileiras apertadas. - Tens cabelos finos.
- Obrigada.
- Não era um elogio, querida. Olha para isto... desliza-me dos dedos.
Ela puxa e aperta, e por várias vezes me retraio. Se fosse assim tão fácil apertar a confusão dentro da minha cabeça, também. O seu cigarro incandescente, fumado até dois centímetros e meio da ponta, navega por cima do meu ombro e aterra no campo de basquetebol.
- Pronto - diz Adrienne. - Estás uma bomba.
É claro, eu não consigo ver. Toco nos nós e saliências que as tranças fizeram no meu couro cabeludo com as mãos, e depois, só porque me sinto mesquinha, começo a desfazer todo o trabalho de Adrienne. Ela encolhe os ombros, e depois senta-se ao meu lado.
- Sempre quiseste ser advogada?
- Não - afinal, quem quer? Que criança acha que ser advogada é uma vocação fascinante? - Queria ser como aquele homem no circo que doma os leões.
- Oh, eu sei. Aquelas roupas de lantejoulas eram um espectáculo. Para mim, o mais importante não eram as roupas. Adorava a
forma como Gunther Gebel-Williams era capaz de entrar numa jaula cheia de feras e fazê-las acreditar que eram gatos domésticos. Nisto, apercebo-me, a minha verdadeira profissão não é assim tão diferente.
- E tu?
- O meu pai queria que eu fosse central nos Chicago Bulis. Eu estava mais inclinada a ser corista em Las Vegas.
- Ah - levanto os joelhos, coloco os braços em volta deles. - E agora o que é que o teu pai pensa disso?
- Suponho que ultimamente não tenha pensado em grande coisa, a sete palmos debaixo da terra.
- Lamento. Adrienne olha para cima. - Não lamentes.
Mas ela retirou-se para outro sítio qualquer e, para minha surpresa, descubro que quero que ela volte. O jogo que eu e o Peter Eberhardt costumávamos fazer vem-me à cabeça, e volto-me para Adrienne.
- A melhor telenovela - desafio.
- O quê?
- Entra no jogo. Dá-me a tua opinião.
- ne Young and lhe Restless - responde Adrienne. - Que aqueles rapazes idiotas da prisão de segurança mínima nem sequer têm o bom senso de ver na sua televisão à uma da tarde, já que se fala nisso.
- Pior cor de lápis de cera?
- Ocre queimado. Mas afinal o que é aquilo? Bem lhe podiam chamar vómito - Adrienne sorri, um clarão de branco no seu rosto. As melhores calças de ganga? _
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- As Levys 501. A guarda prisional mais feia?
- Oh, aquela que aparece depois da meia-noite, que precisa de descolorar o bigode. Já viste o tamanho do rabo dela? Olá, querida, deixa-me apresentar-te à Jenny Craig!
E depois estamos ambas a rir, deitadas no chão frio a sentir o Inverno entrar por osmose. Quando por fim recuperamos o fôlego, há um vazio no meu peito, um sentimento que se entranha de que aqui, entre todos os lugares que existem, não serei capaz de estar alegre.
- O melhor sítio para se estar? - pergunta Adrienne passado um momento.
«Do outro lado deste muro. Na minha cama, em casa. Em qualquer sítio, com o Nathaniel.»
- Antes - respondo, porque sei que ela entenderá.
Num dos cafés de Biddeford, Quentin está sentado num banco demasiado pequeno para um gnomo. Um gole da sua caneca, e o chocolate quente queima-lhe o céu-da-boca.
- Caramba - murmura, colocando um guardanapo por cima da boca, precisamente quando Tanya entra pela porta com o seu uniforme de enfermeira: bata e calças, com padrão de minúsculos ursinhos de peluche.
- Cala-te, Quentin - diz ela, subindo para o banco ao lado dele.
- Não estou com disposição para te ouvir troçar do meu uniforme.
- Eu não estava a troçar - faz um gesto indicando a caneca, e depois desiste da batalha. - O que queres tomar?
Pede um descafeinado com chocolate. ?«
- Então gostas disto? - pergunta.
- De café? ? . .?
- De enfermagem.
Tinha conhecido Tanya na Universidade do Maine quando também ela era aluna. «O que é isto», tinha perguntado no final do primeiro encontro, percorrendo-lhe a clavícula com os dedos. «Uma clavícula», disse ela. «E isto?» A mão dele tinha descido pelo xilofone da sua coluna. "O cóccix». Abriu os dedos por cima da curva da anca dela. «Esta é a parte de ti de que eu gosto mais», disse. Ela tinha atirado a cabeça para trás, de olhos fechados enquanto ele descobria a pele e a beijava ali. -Ilíaco», sussurrara.
 Nove meses depois, tinha nascido o Gideon. Casaram-se - um erro - seis dias antes de ele nascer. Permaneceram casados durante
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menos de um ano. Desde essa altura, Quentin tem apoiado o seu filho financeiramente, já que emocionalmente não.
- Devo detestar, se já estou nisto há tanto tempo - diz Tanya, e Quentin demora algum tempo para se aperceber de que ela está apenas a responder à sua pergunta. Algo deve ter-lhe passado pelo rosto, porque ela toca-lhe na mão. - Desculpa, fui mal-educada. E tu só estavas a ser gentil.
Chega o café dela. Sopra-lhe antes de o provar.
- Vi o teu nome no jornal - diz Tanya. - Chamaram-te aqui por causa do assassinato daquele padre.
Quentin encolhe os ombros.
- Na realidade, é um caso bastante simples.
- Bem, claro, se ouvirmos as notícias - mas Tanya abana a cabeça, na mesma.
- O que queres dizer com isso?
- Que o mundo não é a preto e branco, mas tu nunca chegaste ?a aprender isso.
Ele ergue as sobrancelhas.
- Eu é que não aprendi? Quem é que mandou quem embora? - Quem é que encontrou quem a comer aquela rapariga que parecia um rato?
- Havia circunstâncias atenuantes - diz Quentin. - Estava bêbedo - hesita, e depois acrescenta -, e por acaso, ela parecia-se mais com um coelho.
Tanya revira os olhos.
- Quentin, já se passaram dezasseis anos e meio e ainda falas sobre isso como um advogado.
- Bem, o que esperavas?
- Que fosses um homem - responde Tanya simplesmente.
- Que admitisses que mesmo o Grande e Poderoso Brown é capaz de cometer um erro uma ou duas vezes num século - afasta a caneca, embora ainda não esteja nem a meio. - Sempre achei que és tão bom naquilo que fazes porque isso te retira a culpa. Sabes, como se fazer todos os outros andarem na linha te tornasse justo por associação - agarra na mala e atira cinco dólares para cima do balcão. Pensa nisso quando estiveres a acusar aquela pobre mulher.
- Que raio queres tu dizer com isso?
- Serás alguma vez capaz de imaginar o que ela sentiu, Quentin?
- pergunta Tanya, com a cabeça inclinada para um lado. - Ou será que esse tipo de ligação a uma criança te ultrapassa?
Ele levanta-se quando ela se levanta. -
- O Gideon não quer nada comigo.
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Tanya abotoa o casaco, já a meio caminho da porta.
- Sempre disse que ele tinha herdado a tua inteligência - diz ela, e depois, mais uma vez, foge-lhe por entre os dedos.
Quinta-feira, Caleb já tem uma rotina estabelecida. Acorda Nathaniel, dá-lhe o pequeno-almoço, e leva-o a passear o cão. Vão de carro até ao local onde Caleb estará a trabalhar de manhã e, enquanto constrói muros, Nathaniel fica sentado na caixa da carrinha a brincar com uma caixa de sapatos cheia de Legos. Almoçam juntos, sandes de banana e manteiga de amendoim, ou canja de galinha numa garrafa-termo e soda que tem guardada na geleira. E depois vão ao consultório da Dr.a Robichaud, onde a psiquiatra tenta, sem sucesso, fazer Nathaniel voltar a falar novamente.
É um bailado, na realidade - uma história que constróem sem palavras, mas que é compreensível para qualquer pessoa que veja Caleb e o seu silencioso filho movendo-se lentamente através dos dias. Para sua surpresa, até está a começar a parecer normal. Gosta do silêncio, porque quando não há palavras a ser ditas, não se tropeça nas erradas. E se Nathaniel não fala, pelo menos já não chora.
Caleb colocou as palas, passa de uma tarefa para a seguinte, dando de comer a Nathaniel, vestindo-o, aconchegando-o na cama, e portanto dispõe apenas de alguns momentos por dia para deixar a sua mente vaguear. Geralmente, isto acontece quando está deitado na cama, com o espaço vazio ao seu lado onde Nina costumava estar. E mesmo quando tenta evitar pensar nisso, a verdade enche-lhe a boca, azeda como um limão: a vida é mais fácil sem ela aqui.
Na quinta-feira, Fisher traz-me a instrução para ler. Esta consiste em 124 relatos de testemunhas oculares que descrevem o meu homicídio do padre Szyszynski, o relatório de Patrick sobre a molestação, o meu próprio depoimento incoerente a Evan Chão e o relatório da autópsia.
Primeiro leio o relatório de Patrick, sentindo-me uma rainha da beleza a contemplar o seu livro de recortes. Aqui está a explicação para tudo o resto que está empilhado ao meu lado. A seguir, leio os testemunhos de todas as pessoas que se encontravam na sala de audiências no dia do assassínio. É claro, deixo o melhor para o fim - o relatório da autópsia, que seguro com reverência, como se se tratasse dos Manuscritos do Mar Morto.
Primeiro olho para as fotografias. Observo-as tão intensamente que quando fecho os olhos ainda consigo ver os contornos irregulares onde o rosto do padre agora simplesmente desaparecera.
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Consigo visualizar a cor creme do seu cérebro. O coração pesava 350 gramas, é o que diz o Dr. Vern Potter, médico-legista.
- A dissecação das artérias coronárias - leio em voz alta - revela um estreitamento do lúmen devido a placa aterosclerótica. O estreitamento mais significativo situa-se na coronária descendente anterior esquerda, onde o estreitamento do lúmen é de oitenta por cento do diâmetro.
«Lúmen.» Repito a palavra, e as outras que são tudo o que resta do monstro: «Não há evidências de trombos; a membrana serosa da vesícula é lisa e brilhante; a bexiga encontra-se ligeiramente trabeculada».
O estômago contém bacon e um bolinho de canela parcialmente digeridos.
Queimaduras de pólvora formam uma coroa em volta do pequeno buraco na parte de trás da cabeça, por onde a bala entrou. Há uma zona de necrose em volta do orifício da bala. Apenas 816 gramas do seu cérebro permaneceram intactos. Verificaram-se contusões bilaterais da amígdala cerebral. Causa da morte: Ferimento de bala na cabeça. Forma da morte: Homicídio.
Esta linguagem é estranha, e fico subitamente, miraculosamente fluente. Toco com os dedos no relatório da autópsia. E depois lembro-me do rosto distorcido da sua mãe, no funeral.
Há outro ficheiro preso a este, com o nome do consultório de um médico local carimbado de lado. Deve ser o historial médico do padre Szyszynski. É um ficheiro grosso, com bem mais de cinquenta anos de exames de rotina, mas não me dou ao trabalho de o abrir. Porque haveria de o fazer? Fiz aquilo que todas aquelas gripes vulgares, e tosses roufenhas, e dores, e cãibras não conseguiram fazer.
Matei-o.
- Isto é para si - diz a assistente legal, entregando um fax a Quentin. Ele olha para cima, agarra nas páginas, e depois fica a olhar para elas, confuso. O relatório do laboratório tem o nome de Szyszynski escrito; mas não tem nada a ver com este caso. Depois compreende: é do caso anterior, do caso encerrado - o que envolve o filho da arguida. Olha para ele, encolhendo os ombros perante os resultados, que não são muito surpreendentes.
- Não é meu - diz Quentin.
A assistente legal olha para ele pestanejando.
- Então o que devo fazer-lhe?
Começa a devolvê-lo à mulher, e depois coloca-o à beira da sua secretária em vez disso.
- Eu trato disso - responde, e concentra-se novamente no seu trabalho até ela sair do seu escritório.
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Há mil lugares onde Caleb preferia estar - o casebre de um prisioneiro de guerra, por exemplo; ou em campo aberto durante um tornado. Mas hoje tinha de estar presente, a notificação assim o dizia. Está de pé na cantina da sala de audiências no seu único casaco e gravata muito usada, com uma chávena de café na mão, tão quente que lhe queima a palma, tentando fingir que as mãos não estão a tremer com os nervos.
Fisher Carrington não é um tipo assim tão mau, pensa. Pelo menos, não se compara ao demónio em que Nina o transformou.
- Acalme-se, Caleb - diz o advogado. - Quando der por isso já terá acabado.
Encaminham-se para a saída. O tribunal irá reunir-se daqui a cinco minutos; e mesmo agora, podem estar a trazer Nina.
- Só tem de responder às perguntas que já ensaiámos, e depois o Dr. Brown irá fazer-lhe algumas. Toda a gente espera apenas que diga a verdade. Está bem?
Caleb acena com a cabeça, tenta beber um pouco do fogo que é o seu café. Interroga-se sobre o que estará Nathaniel a fazer com Monica, lá em baixo na sala dos brinquedos. Tenta distrair-se imaginando um intricado padrão de tijolos que criou para o pátio de um antigo director executivo de uma companhia de seguros. Mas a realidade está agachada como um tigre dentro da sua cabeça: dentro de minutos, irá testemunhar. Dentro de minutos, dezenas de jornalistas, cidadãos curiosos e um juiz estarão presos às palavras de um homem que prefere de longe o silêncio.
- Fisher - começa, e depois respira fundo. - Não podem perguntar-me tudo, sabe, do que ela me contou... pois não?
- Tudo o que Nina lhe contou?
- Sobre... sobre o que ela fez. Fisher fica a olhar para Caleb.
- Ela falou consigo sobre isso?
- Sim. Antes de...
- Caleb - interrompe suavemente o advogado -, não me diga nada, e eu garanto que não terá de o dizer a mais ninguém.
Ele desaparece através de uma porta antes que Caleb possa sequer avaliar a intensidade do seu alívio.
Quando Peter sobe ao banco das testemunhas a pedido de Quentin Brown na audiência de revogação da minha caução, lança-me um olhar apologético. Não pode mentir, mas não quer ser o responsável
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por me pôr na prisão. Para tornar isto mais fácil para ele, tento não lhe lançar nenhum olhar. Em vez disso, concentro-me em Patrick, sentado algures atrás de mim, tão perto que consigo sentir o cheiro do sabonete que ele usa. E em Brown, que parece demasiado grande para estar a andar de um lado para o outro nesta minúscula sala de audiências.
Fisher põe a mão na minha perna, que tem estado a agitar-se nervosamente sem que eu desse por isso.
- Pare - pronuncia silenciosamente com os lábios.
- Viu Nina Frost naquela tarde? - pergunta Quentin.
- Não - diz Peter. - Não a vi.
Quentin ergue as sobrancelhas em absoluta descrença.
- Dirigiu-se a ela?
- Bem, estava a percorrer o corredor das frutas e legumes, e por acaso o seu carrinho de compras estava junto ao sítio onde eu ia passar. O seu filho estava sentado lá dentro. Foi com ele que falei.
- A Dr.a Frost também se aproximou do carrinho?
- Sim. Mas estava a dirigir-se para junto do filho. Não para mim.
- Limite-se a responder às perguntas que lhe faço.
- Olhe, ela estava ao meu lado, mas não falou comigo - diz Peter.
- E o senhor falou com ela, Dr. Eberhardt?
- Não - Peter volta-se para o juiz. - Estava a falar com o Nathaniel.
Quentin toca numa pilha de papéis em cima da mesa do promotor de justiça.
- Tem acesso à informação contida nestes ficheiros?
- Como sabe, Dr. Brown, não sou eu que estou a trabalhar no caso dela. O senhor é que está.
- Mas eu estou a trabalhar no antigo escritório dela, o que fica mesmo ao lado do seu, não é verdade?
- É.
- E - diz Quentin - não há trancas naquelas portas, pois não? -Não.
- Portanto suponho que ache que ela se aproximou para poder escolher melhor o papel higiénico?
Peter semicerra os olhos.
- Ela não queria meter-se em sarilhos, e eu também não.
- E agora está a tentar ajudá-la a sair deles, não está?
Antes que ele consiga responder, Quentin entrega a testemunha à defesa. Fisher levanta-se, abotoando o casaco. Sinto gotas de suor na coluna.
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- Quem falou primeiro, Dr. Eberhardt? - pergunta.
- O Nathaniel.
- O que disse ele?
Peter olha para a balaustrada. Agora também sabe que Nathaniel ficou novamente mudo.
- O meu nome.
- Se não queria que a Nina se metesse em sarilhos, porque é
que não virou as costas e foi embora?
- Porque o Nathaniel queria que eu ficasse. E depois... depois do abuso, deixou de falar durante um tempo. Foi a primeira vez que o ouvi falar depois de tudo o que aconteceu. Não podia limitar-me a dar meia volta e ir embora.
 - Foi nesse preciso momento que o Dr. Brown dobrou a esquina
e o viu?
Foi.
Fisher cruza as mãos atrás das costas.
- Falou alguma vez com a Nina sobre o seu caso?
- Não.
- Deu-lhe alguma informação interna sobre o caso dela?
- Não.
- Ela pediu-lhe alguma?
- NãO.
- Está a trabalhar no caso de Nina?
Peter abana a cabeça.
- Serei sempre seu amigo. Mas tenho consciência do meu trabalho, e dos meus deveres enquanto funcionário deste tribunal. E a última coisa que desejaria era envolver-me neste caso.
- Muito obrigado, Dr. Eberhardt.
Fisher senta-se no seu lugar ao meu lado na mesa da defesa,
enquanto Quentin Brown olha para o juiz.
- Meritíssimo, o estado cessa o interrogatório.
«Pelo menos um de nós descansa», penso.
O olhar de Caleb é atraído para ela, e fica chocado. A sua mulher, que parece sempre impecável, e fresca, e coordenada, está vestida com o uniforme prisional cor de laranja vivo. Os seus cabelos são uma nuvem em volta da sua cabeça; os olhos estão ensombrados por olheiras. Tem um corte nas costas da mão e um dos seus atacadores está desatado. Caleb sente um impulso improvável de se ajoelhar à sua frente para lhe dar um nó duplo, para esconder a cabeça no colo dela.
Podemos odiar uma pessoa e ser loucos por ela ao mesmo tempo.
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Fisher olha para ele, puxando Caleb novamente para as suas responsabilidades. Se fizer asneira, Nina poderá ver-se impedida de voltar para casa. Por outro lado, Fisher dissera-lhe que mesmo que não falhasse no banco das testemunhas, ela ainda poderia ficar presa na prisão à espera de julgamento. Pigarreia e imagina-se num oceano de linguagem, tentando manter a cabeça à tona de água.
- Quando é que o Nathaniel começou de novo a falar, depois de ter descoberto a ocorrência de abuso sexual?
- Há cerca de três semanas. Na noite em que o detective Ducharme veio falar com ele.
- A sua capacidade verbal aumentou desde essa noite?
- Sim - responde Caleb. - Estava quase de volta ao normal. - Quanto tempo é que a mãe passava com ele?
- Mais do que o habitual.
- Como é que o Nathaniel lhe pareceu estar? ?
Caleb pensa por um momento.
- Mais feliz - diz.
Fisher movimenta-se, ficando atrás de Nina.
- O que mudou depois do incidente na mercearia?
- Ficou histérico. Chorava tanto que não conseguia respirar, e não dizia nada - Caleb olha para os olhos de Nina, entregando-lhe esta frase como um presente. - Estava sempre a fazer o sinal para Mamã.
Ela faz um som fraco, como um gatinho. Ele fica sem palavras; tem de pedir a Fisher que repita a pergunta seguinte.
- Ele disse alguma coisa nesta última semana? - Não - responde Caleb.
- Levou o Nathaniel a ver a mãe?
- Uma vez. Foi muito... difícil para ele. - O que quer dizer?
- Não queria deixá-la - admite Caleb. - Tive de arrastá-lo dali quando acabou o tempo.
- Como é que o seu filho tem dormido à noite?
- Não dorme, a não ser que o leve para a minha cama. Fisher acena com a cabeça, com ar sério.
- Acha, Sr. Frost, que ele precisa que a mãe volte para junto dele? Quentin Brown levanta-se de imediato.
- Objecção!
- Isto é uma audiência de caução, vou permitir - responde o juiz. - Sr. Frost?
Caleb vê respostas a nadar à sua frente. São tantas, qual delas será aquela que deve escolher? Abre a boca, e depois fecha-a para começar de novo.
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Nesse momento repara em Nina. Os olhos dela estão brilhantes fitando os seus, febris, e ele tenta lembrar-se da razão pela qual isto lhe parece tão familiar. Então ocorre-lhe: era assim que estava há semanas quando tentava convencer um Nathaniel mudo de que só tinha de falar do fundo do coração; que qualquer palavra era melhor do que nenhuma.
- Ambos precisamos que ela volte - diz Caleb, e afinal era o que devia dizer.
A meio do testemunho da Dr.a Robichaud, apercebo-me de que este é o julgamento que teria sido realizado para condenar o padre, se eu não o tivesse matado. A informação que está a ser apresentada concentra-se na molestação de Nathaniel e nas consequências. A psiquiatra expõe ao tribunal o seu primeiro encontro com Nathaniel, a sua avaliação de abuso sexual, as suas sessões de terapia, a sua utilização de linguagem gestual.
- O Nathaniel chegou alguma vez ao ponto de conseguir voltar a falar? - pergunta Fisher.
- Sim, depois de ter revelado verbalmente o nome do seu agressor ao detective Ducharme.
- Desde essa altura, pelo que sabe, ele tem falado normalmente? A psiquiatra acena com a cabeça.
- Cada vez mais.
- Viu-o durante esta semana, Doutora?
- Sim. O pai telefonou-me, muito perturbado, na sexta-feira à noite. O Nathaniel tinha deixado de falar novamente. Quando o vi na segunda-feira de manhã, tinha regredido consideravelmente. Estava retraído e pouco comunicativo. Nem sequer consegui fazê-lo utilizar os sinais gestuais.
- Na sua opinião de perita, a separação da mãe está a causar danos psicológicos ao Nathaniel?
- Sem dúvida - diz a Dr.a Robichaud. - Na realidade, quanto mais se prolongar, maiores serão os danos permanentes.
Quando ela desce do banco das testemunhas, Brown levanta-se para o seu encerramento. Começa por apontar para mim.
- Esta mulher mostra um desrespeito absoluto pelas leis, e é evidente que não se trata da primeira vez. O que ela devia ter feito no instante em que viu Peter Eberhardt era dar meia volta e seguir na direcção oposta. Mas a verdade é que não o fez - volta-se para o juiz.
- Meritíssimo, foi o senhor que impôs a condição de que Nina Frost não devia ter contacto com membros do gabinete do Ministério Público, por estar preocupado por tratá-la de maneira diferente dos
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outros arguidos. Mas se a deixar sair em liberdade sem aplicar nenhuma sanção, estará a fazer precisamente isso.
Mesmo nervosa como estou, apercebo-me de que Quentin cometeu um erro táctico. Podemos fazer sugestões a um júri mas nunca, nunca podemos dizer a um juiz o que deve fazer.
Fisher levanta-se.
- Meritíssimo, o que o Dr. Brown viu no departamento das frutas e legumes foram apenas uvas verdes. A realidade é que não houve troca de informações. Na verdade, não há provas de que essas informações tenham sido sequer procuradas.
Pousa as mãos nos meus ombros. Já o vi fazer isto a outros clientes; no meu escritório, costumávamos chamar-lhe a sua Pose de Avô.
- Tudo isto foi um infeliz mal-entendido - continua Fisher -, mas não passa disso mesmo. Nem mais, nem menos. E se, em resultado, mantivermos Nina Frost longe do filho, podemos acabar por sacrificá-lo. com certeza que depois de tudo o que todos sofreram, isso será a última coisa que este tribunal desejará que aconteça.
O juiz ergue a cabeça e olha para mim.
- Não vou mantê-la afastada do filho - delibera. - No entanto, também não lhe darei oportunidade de voltar a violar as leis deste tribunal. Liberto a Dr.a Frost na condição de ficar em prisão domiciliária. Usará uma pulseira electrónica e estará sujeita a todas as leis da liberdade condicional relativamente à vigilância electrónica. Dr.a Frost
- espera que eu acene com a cabeça. - Não deve sair de casa, excepto para se encontrar com o seu advogado ou para comparecer no tribunal. Nessas ocasiões, e apenas nessas ocasiões, a pulseira será reprogramada de forma adequada. E que Deus me ajude, se eu próprio tiver de patrulhar a sua rua para garantir que está a cumprir estas disposições, fá-lo-ei.
A minha nova pulseira funciona através de linhas telefónicas. Se me afastar 46 metros de casa, a pulseira faz disparar um alarme. Um agente de liberdade condicional pode visitar-me a qualquer hora, pedir-me uma amostra de sangue e urina para se certificar de que não tomei drogas nem álcool. Opto por levar o uniforme prisional para casa, e peço ao delegado do xerife que diga que as minhas roupas sejam dadas a Adrienne, uma oferta. Ficarão pequenas e apertadas por outras palavras, perfeitas para ela.
- Você tem nove vidas - murmura Fisher enquanto saímos do gabinete de liberdade condicional, onde a minha pulseira foi programada por computador.
- Sobram-me sete - suspiro.
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- Esperemos que não tenhamos de usá-las a todas.
- Fisher - paro de andar quando chegamos à escadaria. - Queria apenas dizer-lhe... eu não teria feito melhor.
Ele ri.
- Nina, acho que ficaria engasgada se tivesse de dizer a palavra obrigada.
Subimos as escadas lado a lado, em direcção ao átrio. Fisher, um cavalheiro até ao fim, abre a pesada porta anti-incêndios da escadaria e segura-a enquanto eu passo.
A imediata explosão de luz das máquinas fotográficas deixa-me cega, e demora um momento até que o mundo regresse para junto de mim. Quando isso acontece, apercebo-me de que para além dos jornalistas, Patrick, Caleb e Monica estão à espera. E então, emergindo de algures por trás do grande corpo do pai, vejo o meu filho.
Ela veste um pijama cor de laranja esquisito e o cabelo parece um ninho de andorinha que Nathaniel uma vez encontrou por trás das garrafas de soda, na garagem, mas o rosto dela é o da mãe e a sua voz, ao dizer o nome dele, também é a da mãe. O sorriso dela é um anzol que o prende; consegue senti-lo na garganta quando engole e deixa-se ser puxado através do espaço entre ambos. Mamã. Os braços de Nathaniel erguem-se dos lados. Tropeça num cabo, e no pé de alguém, e depois está a correr.
Ela ajoelha-se e isso apenas faz puxar com mais força. Nathaniel está tão perto que é capaz de ver que ela está a chorar, e isto nem sequer é muito claro, porque ele também está a chorar. Sente o anzol soltar-se, retirando o silêncio que lhe incha na barriga há já uma semana, e no momento antes de alcançar o seu abraço transborda-lhe dos lábios numa alegria ferrugenta e aguda.
- Mamã, Mamã, Mamã! - grita Nathaniel, tão alto que abafa tudo menos o rufar de tambor do coração da mãe debaixo da sua orelha.
Ele cresceu numa semana. Ergo Nathaniel nos braços, sorrindo como uma tola, enquanto as câmaras capturam cada movimento. Fisher apoderou-se dos jornalistas, e ainda agora está a discursar para eles. Escondo o rosto no pescoço doce de Nathaniel, comparando a minha recordação com a realidade.
De repente Caleb está ao nosso lado. O seu rosto está tão imperscrutável como da última vez que estivemos sozinhos, de lados opostos de uma cabina de visitas de vidro numa prisão. Embora o seu testemunho tivesse ajudado a libertar-me, conheço o meu marido.
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Ele fez o que devia, mas não se tratou necessariamente de algo que quisesse fazer.
- Caleb - começo, agitada. - Eu... eu não sei o que dizer. Para minha surpresa, ele oferece-me um ramo de oliveira: um
sorriso malicioso.
- Bem, isso é uma estreia. Não admira que estejam aqui tantos jornalistas - o sorriso de Caleb encaixa no seu lugar com mais firmeza, e, simultaneamente, coloca o braço em volta dos meus ombros, levando-me um passo mais perto de casa.
Estas são as anedotas que eu sei.
O que é que há a meio de uma alforreca?
Um umbigo.
Porque é que o esqueleto não atravessa a rua? Porque não teve estômago.
Porque é que o biscoito foi para o hospitAl? Porque se sentia em migalhas.
O que é um dinossáurio cego? acho-que-não-nos-vê-ssáurio.
SEIS
E sem mais nem menos, regressei à minha vida anterior. Estamos os três sentados à mesa do pequeno-almoço, como qualquer outra família. com o dedo, Nathaniel traça os contornos das letras do título do jornal matutino.
- M - diz baixinho. - A, M... - por cima da minha chávena de café, olho para a fotografia. Ali estou eu, com o Nathaniel ao colo, o Caleb ao meu lado. Fisher também conseguiu ficar na fotografia. À distância, alguns passos atrás, está Patrick; reconheço-o apenas pelos sapatos. No cimo, em letras negras sonantes: MAMÃ.
Caleb leva a tigela de cereais vazia de Nathaniel quando ele vai a correr para o quarto dos brinquedos, onde colocou dois exércitos de dinossáurios de plástico para uma guerra jurássica. Olho para o jornal.
- Sou o exemplo vivo de uma má mãe - digo.
- É melhor do que ser a assassina local do Maine - faz um gesto com a cabeça indicando a mesa. - O que está dentro do envelope?
O envelope castanho é do tipo utilizado em escritórios, atado com fio vermelho. Encontrei-o enfiado entre as secções Local e Desporto do jornal. Viro-o do outro lado, mas não tem remetente, nenhum tipo de marca.
Lá dentro há um relatório do laboratório estadual, o tipo de tabela que já vi antes. Uma tabela com resultados em oito colunas, cada uma correspondente a um local diferente no ADN humano. E duas fileiras de números idênticos em todos os sítios.
«Conclusões: o perfil de ADN detectado nas cuecas é consistente com o perfil de ADN de Szyszynski. Em resultado, este não poderá ser eliminado como possível dador do material genético detectado nesta mancha. As hipóteses de ser seleccionado ao acaso um indivíduo a que corresponda o material genético encontrado nas cuecas são maiores do que uma em seis mil milhões, o que corresponde aproximadamente à população mundial.»
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Ou na nossa língua: o sémen do padre Szyszynski foi encontrado nas cuecas do meu filho.
Caleb espreita por cima do meu ombro.
- O que é isso?
- A absolvição - suspiro.
Caleb tira-me o papel das mãos, e eu aponto para a primeira fila de números.
- Isto mostra o ADN da amostra de sangue de Szyszynski. E a linha abaixo mostra o ADN da mancha nas cuecas.
- Os números são os mesmos.
- Exacto. O ADN é igual em todo o nosso corpo. É por isso que quando os polícias prendem um violador lhe retiram sangue; imaginas que ridículo seria pedir ao tipo que fornecesse uma amostra de sémen? A ideia é, se conseguirmos obter uma correspondência entre ADN do suspeito e as provas, a condenação é quase garantida - olho para ele. - Isto significa que foi ele, Caleb. Foi ele. E... - a minha voz esmorece.
- E o quê?
- E eu agi correctamente - termino.
Caleb coloca o papel virado para baixo em cima da mesa e
levanta-se.
- O que foi? - desafio-o.
Ele abana a cabeça devagar.
- Nina, não agiste correctamente. Tu própria o disseste. Se obtivermos uma correspondência entre o ADN do sangue do suspeito e o das provas, a condenação é garantida. Portanto se tivesses esperado, ele teria recebido o seu castigo.
- E o Nathaniel ainda teria de se sentar naquela sala de audiências, a reviver cada minuto do que lhe aconteceu, porque aquele relatório laboratorial não significaria nada sem o testemunho dele - para meu embaraço, as lágrimas vêm-me aos olhos. - Achei que o Nathaniel já tinha sofrido o bastante sem isso.
- Eu sei o que tu achaste - diz Caleb num tom suave. - É esse o problema. Então e aquilo que o Nathaniel teve de enfrentar por causa daquilo que fizeste? Não estou a dizer que fizeste mal. Nem sequer estou a dizer que fosse algo que eu próprio não tivesse pensado em fazer. Mas mesmo que fosse justo... ou merecido... Nina, apesar disso não foi correcto.
Ele calça as botas e abre a porta da cozinha, deixando-me sozinha com os resultados laboratoriais. Apoio a cabeça na mão e respiro fundo. Caleb está enganado, tem de estar enganado, porque se não estiver, então...
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Os meus pensamentos afastam-se desta ideia quando o envelope castanho me chama a atenção. Quem terá deixado isto para mim, tão misteriosamente? Alguém do lado da acusação deve tê-lo retirado do laboratório. Talvez o Peter o tivesse deixado ali, ou um assistente legal compreensivo que achou que poderia contribuir para o motivo numa defesa por insanidade. De qualquer forma, é um documento que eu não devo possuir.
Algo, portanto, que não posso partilhar com o Fisher.
Agarro no telefone e faço-lhe uma chamada.
- Nina - diz ele. - Viu o jornal esta manhã?
- Era difícil não ter visto. Olhe, Fisher, já viu os resultados do ADN do padre?
- Está a referir-se à amostra das cuecas? Não - faz uma pausa. Agora é um caso encerrado, obviamente. É possível que alguém tenha dito ao pessoal do laboratório que não se incomodasse com isso.
Não é provável. O pessoal do gabinete do Ministério Público teria estado demasiado ocupado para tratar de um pormenor desses.
- Sabe, gostaria mesmo de ver esse relatório. Se ele foi entregue.
- Não tem verdadeira utilidade para o seu caso...
- Fisher - digo num tom firme -, estou a pedir-lhe educadamente. Diga à sua assistente legal que telefone ao Quentin Brown para ele enviar o relatório por fax. Preciso de vê-lo.
Ele suspira.
- Está bem. Já volto a falar consigo.
Volto a colocar o auscultador no seu lugar, e sento-me à mesa. Lá fora, Caleb racha lenha, descarregando a sua frustração a cada golpe potente do machado. Ontem à noite, abrindo caminho debaixo dos cobertores com uma mão quente, tinha roçado na borda de plástico da minha pulseira de vigilância electrónica. Foi tudo, e depois virou-se de lado afastando-se de mim.
Agarrando no café, leio as linhas gémeas do relatório laboratorial outra vez. Caleb está enganado, só isto é que interessa. Todas estas letras e números, eles são a prova, preto no branco, de que sou uma heroína.
Quentin lança mais um olhar superficial ao relatório laboratorial e depois coloca-o ao canto da secretária. Não há nenhuma surpresa; toda a gente sabe por que razão ela matou o padre. A questão é que já nada disto interessa. O julgamento que se avizinha não está relacionado com abuso sexual, mas com assassínio.
A secretária, uma atormentada loura desbotada chamada Rhonda, ou Wanda, ou algo do género, espreita pela porta.
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- Não há ninguém que bata à porta neste edifício? - resmunga Quentin, repreendendo-a.
- O senhor levou o relatório laboratorial sobre o Szyszynski? pergunta ela.
- Está aqui mesmo. Porquê?
- O advogado de defesa acabou de telefonar; quer que lhe enviemos uma cópia por fax para o escritório, para ontem.
Quentin entrega o documento à secretária. - Qual é a pressa?
- Quem sabe.
Não faz sentido para Quentin; Fisher Carrington deve ter consciência de que a informação não será crucial para o seu caso. Mas por outro lado, é absolutamente irrelevante para a acusação - Nina Frost enfrenta uma condenação, ele tem a certeza, e não há relatório laboratorial sobre um morto que vá alterar isso. Quando a secretária fecha a porta atrás de si, Quentin já esqueceu o pedido de Carrington.
Marcella Wentworth detesta neve. Já teve a sua dose, visto ter crescido no Maine e ter em seguida trabalhado ali durante quase uma década. Detesta acordar e saber que tem de abrir caminho com uma pá para chegar ao carro; detesta a sensação de ter esquis debaixo dos pés; detesta a sensação de perda de controlo das rodas a derrapar em lama gelada. O dia mais feliz da vida de Marcella, na realidade, foi o dia em que se demitiu do seu emprego no Laboratório Estadual do Maine, se mudou para a Virgínia, e atirou as suas botas Sorrel para um contentor do lixo de um McDonald s na auto-estrada.
Já trabalha no CellCore, um laboratório privado, há três anos. Marcella está bronzeada todo o ano e possui apenas um casaco de Inverno, não muito grosso. Mas na sua secretária do trabalho tem um postal que Nina Frost, uma promotora de justiça, lhe enviou o Natal passado - um desenho representando a inconfundível forma de luva do seu estado natal, com olhos móveis e um chapéu de bobo. Once a Mainiac; ahvays a Mainíac (Uma vez Mainiaco; para sempre Mainiaco), tem escrito. ?
Marcella está a olhar para o postal e a pensar que lá já deve haver alguma neve no chão, quando Nina Frost telefona.
- Não vai acreditar nisto - diz Marcella -, mas estava mesmo agora a pensar em si.
- Preciso da sua ajuda - responde Nina. Toda profissional... mas Nina sempre foi assim. Uma ou duas vezes, desde que Marcella deixou o laboratório estadual, Nina telefonou para lhe pedir a sua opinião
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sobre um caso, apenas para verificação. - Tenho um teste de ADN que preciso de verificar.
Marcella olha para a esmagadora pilha de ficheiros em lista de espera a atafulhar-lhe a secretária.
- Não há problema. Qual é a história?
- Molestação infantil. Há uma amostra de sangue conhecida e depois sémen num par de cuecas. Não sou perita, mas os resultados parecem-me bastante evidentes.
- Ah. Imagino que não correspondam e acha que o laboratório estadual fez asneira?
- Por acaso, correspondem. Só preciso de ter a certeza absoluta.
- Suponho que não queira que este saia em liberdade - diz Marcella pensativamente.
Há uma hesitação.
- Ele está morto - diz Nina. - Eu matei-o.
Caleb sempre gostou de rachar lenha. Gosta do momento hercúleo de erguer o machado, de o lançar para baixo como um homem que mede a sua força num jogo de feira. Gosta do som de um tronco a partir-se, um estalido ardente e depois o plinc oco das duas metades a caírem para lados opostos. Gosta do ritmo, que apaga o pensamento e a memória.
Talvez quando já não tiver mais lenha para rachar, se sinta preparado para entrar em casa e encarar a sua mulher.
A determinação de Nina sempre foi atraente - sobretudo para um homem que, em tantas coisas, é naturalmente hesitante. Mas agora o defeito foi aumentado ao ponto de se tornar grotesco. Ele simplesmente não consegue desligar-se.
Uma vez, Caleb tinha sido contratado para construir um muro de tijolo em volta de um parque na cidade. Enquanto estava a trabalhar, habituara-se a um sem-abrigo que vivia debaixo do pavilhão das festas de aniversário. Chamava-se Coalspot, pelo menos foi o que lhe disseram. Era esquizofrénico mas era inofensivo. Por vezes, Coalspot sentava-se no banco de jardim ao lado de Caleb enquanto este trabalhava. Passava horas a desatar o sapato, tirando-o, raspando o calcanhar, e depois voltava a calçá-lo.
- Consegues ver? - perguntava o homem a Caleb. - Consegues ver o buraco de onde sai o veneno?
Um dia uma assistente social chegou para levar Coalspot para um abrigo, mas ele não quis ir. Insistiu, dizendo que infectaria todos
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os outros; o veneno era contagioso. Passadas três horas, a mulher tinha chegado ao limite.
- Tentamos ajudá-los - suspirou ela para Caleb - e é isto que nos acontece.
Portanto Caleb sentara-se ao lado de Coalspot. Tirou a sua própria bota de trabalho e a meia, apontando para o calcanhar.
- Estás a ver? - disse ele. -Já toda a gente tem um.
Depois, o sem-abrigo foi embora, dócil como um gatinho. Não importava que não houvesse nenhum buraco venenoso - mas naquele momento, Coalspot acreditou verdadeiramente que houvesse um. E por um segundo, Caleb dissera ao homem que ele tinha razão.
Agora, Nina é assim. Redefiniu as suas acções para que façam sentido para ela, já que não fazem para o resto das pessoas. Dizer que matou um homem para proteger o Nathaniel? Bem, qualquer que fosse o trauma que ele viesse a sofrer como testemunha nunca poderia ser tão mau como ver a mãe ser algemada e levada para a prisão.
Caleb sabe que Nina está à procura de vingança, mas não pode fazer o mesmo que fez a Coalspot - olhá-la nos olhos e dizer-lhe que sim, que compreende. Ele não é capaz de a olhar nos olhos, ponto final.
Interroga-se se não estará a erguer um muro entre eles para que quando ela for condenada seja mais fácil separar-se dela.
Caleb agarra noutro tronco e coloca-o em cima do bloco de rachar. Quando o machado desce, a madeira separa-se em dois bocados perfeitos, e ao meio está a verdade. O que Nina fez não faz Caleb sentir-se moralmente superior, por defeito. Faz dele um cobarde, porque não foi ele que teve a coragem de atravessar a fronteira do pensamento à acção.
Há partes das quais Nathaniel não se lembra - como o que ele disse quando Nathaniel disse que não pela primeira vez, abanando a cabeça; ou qual deles desabotoou as suas calças de ganga. Do que ainda se lembra, de vez em quando, mesmo quando se esforça ao máximo para não se lembrar, é de como o ar era frio quando despiu as calças, e como a mão dele estava quente depois disso. Como doeu, doeu tanto, embora ele tivesse dito que não ia doer. Como Nathaniel se tinha agarrado a Esme, com tanta força que ela miou; como no espelho dos seus olhos dourados ele viu um rapazinho que já não era ele.
vou fazer a Nina feliz.
São estes os primeiros pensamentos de Marcella ao ler os resultados dos testes de ADN e ao ver que a mancha de sémen e o sangue
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do padre são indistinguíveis um do outro. Nenhum cientista alguma vez dirá que isso é exactamente assim ao apresentar o seu testemunho, mas os números - e as estatísticas - falam por si: este é o agressor, não há dúvidas.
Levanta o auscultador do telefone para dizer isso a Nina, enfiando-o debaixo do queixo para poder colocar um elástico nos ficheiros clínicos que estavam presos ao relatório laboratorial. Marcella não se deu ao trabalho de examinar estes; pelo que Nina disse é bastante claro que o padre morreu em resultado dos ferimentos de bala. Mas apesar disso. Nina pediu a Marcella que fizesse uma revisão meticulosa. Suspira, e depois volta a pousar o auscultador e abre a pasta grossa.
Duas horas depois, termina a leitura. E apercebe-se de que, apesar das suas intenções de se manter à distância, terá de regressar ao Maine.
Eis o qu aprendi numa semana: uma prisão, não importa de que forma ou tamanho, é sempre uma prisão. Dou por mim a olhar pelas janelas como o cão, ansiando estar do outro lado do vidro. Daria uma fortuna para fazer as tarefas mais mundanas: ir ao banco, levar o carro à oficina no Jiffy CLube, juntar folhas com o ancinho.
O Nathaniel voltou para a escola. Foi a Dr.a Robichaud que sugeriu, um passo em direcção à normalidade. Apesar disso, não posso deixar de pensar se Caleb terá tido alguma pequena participação nisto; se não lhe agrada de facto a ideia de me deixar sozinha com o meu filho.
Uma manhã, antes de parar para pensar, já ia a meio do caminho de acesso da casa para ir buscar o jornal quando me lembrei da pulseira electrónica. Caleb encontrou-me no alpendre, a soluçar, à espera das sirenes que estava certa de que viriam. Mas por algum milagre, o alarme não disparou. Passei seis segundos ao ar livre, e ninguém soube de nada.
Para me manter ocupada, por vezes cozinho. Fiz penne alia rigata, coq au vin, pastéis. Escolho pratos de lugares distantes,detodo o lado menos daqui. Hoje, porém, estou a fazer limpezas. Já esvaziei o roupeiro e a despensa, voltei a colocar os artigos por ordem de frequência de utilização. Lá em cima no quarto, tirei cá para fora sapatos que nem me lembrava de ter comprado, e alinhei os meus fatos num arco-íris, do mais pálido rosa, passando pelo ameixa mais profundo, ao chocolate.
Estou a esgravatar na cómoda do Caleb quando ele entra, despindo uma camisola nojenta.
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- Sabes - digo - que no roupeiro do vestíbulo há um par de botas com pistões novinhas em folha cinco números acima do pé do Nathaniel?
- Comprei-as numa venda de garagem. O Nathaniel há-de crescer até lhe servirem.
Depois de tudo isto, ele não compreenderá que o futuro não segue necessariamente numa linha recta e contínua?
- O que estás a fazer?
- A arrumar as tuas gavetas.
- Eu gosto das minhas gavetas - Caleb agarra numa camisola rasgada que eu pus de lado e volta a enfiá-la lá dentro, toda amachucada. - Porque é que não fazes uma sesta? Lês, ou qualquer coisa assim?
- Isso seria uma perda de tempo - encontro três meias, todas sem par.
- Porque é que ter algum tempo livre há-de ser uma perda de tempo? - pergunta Caleb, vestindo outra camisola. Agarra nas meias que pus de parte e volta a metê-las na gaveta da roupa interior.
- Caleb, estás a estragar tudo.
- Como? Estava óptimo como estava! - ele mete a camisola para dentro das calças de ganga, voltando a apertar o cinto. - Gosto das minhas meias tal como estão - diz Caleb num tom firme. Por um momento, parece que vai dizer mais alguma coisa, mas depois abana a cabeça e desce as escadas a correr. Pouco depois, vejo-o pela janela, a caminhar ao sol brilhante e frio.
Abro a gaveta e tiro as meias órfãs. E depois a camisola rasgada. Levará semanas a reparar nas mudanças e um dia irá agradecer-me.
- Oh, meu Deus - grito, olhando pela janela para o carro desconhecido que encosta ao passeio. Sai de ládedentro uma mulher: pequena como um duende, de cabelos escuros e braços bem cruzados para se proteger do frio.
- O que foi? - Caleb vem a correr ao ouvir a minha exclamação.
- O que aconteceu?
- Nada. Absolutamente nada! - abro a porta e faço um grande sorriso para Marcella. - Nem acredito que esteja aqui!
- Surpresa - diz ela, e abraça-me. - Como está? - ela tenta não olhar, mas eu vejo a forma como os seus olhos se desviam para baixo para encontrar a minha pulseira.
- Estou... bem, agora estou óptima. Nunca esperei que me viesse trazer o relatório pessoalmente.
Marcella encolhe os ombros.
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- Achei que era capaz de gostar de companhia. E já não voltava a casa há uns tempos. Tinha saudades.
- Mentirosa - rio, puxando-a para dentro de casa, onde Caleb e Nathaniel estão a observar com curiosidade.
- Esta é a Marcella Wentworth. Trabalhava no laboratório estadual, antes de nos ter abandonado para se juntar ao sector privado.
Estou absolutamente radiante. Não é que Marcella e eu sejamos assim tão próximas; só que, ultimamente, não tenho oportunidade de ver muita gente. O Patrick aparece, de vez em quando. E há a minha família, é claro. Mas a maioria dos meus amigos são colegas, e depois da audiência de revogação, mantêm-se à distância.
- Está aqui a trabalhar ou de férias? - pergunta Caleb. Marcella olha para mim, sem ter a certeza do que há-de dizer.
- Pedi à Marcella que desse uma vista de olhos ao teste de ADN. O sorriso de Caleb esmorece muito ligeiramente, e só quem o conhecesse tão bem quanto eu é que notaria a diminuição de intensidade.
- Sabem que mais? E se eu levar o Nathaniel lá para fora para as duas poderem pôr a conversa em dia?
Depois de saírem, levo Marcella para a cozinha. Falamos sobre as temperaturas da Virgínia nesta época do ano e sobre quando caiu a primeira geada. Faço chá gelado. Depois, quando já não aguento mais, sento-me à frente dela.
- São boas notícias, não são? O ADN corresponde?
- Nina, reparou em alguma coisa quando leu o ficheiro clínico?
- Na realidade, não me dei ao trabalho de o ler. Marcella desenha um círculo na mesa com o dedo.
- O padre Szyszynski tinha leucemia mielóide crónica.
- Ainda bem - digo friamente. - Espero que estivesse a sofrer. Espero que vomitasse as tripas de cada vez que fizesse quimioterapia.
- Ele não estava a fazer quimioterapia. Tinha feito um transplante de medula óssea há cerca de sete anos. A leucemia dele estava em remissão. Para todos os efeitos, estava curado.
Fico um pouco rígida.
- Está a querer dizer-me que devia sentir-me culpada por matar um homem que sobreviveu a um cancro?
- Não. É... bem, há algo no tratamento da leucemia que influencia a análise de ADN. Basicamente, para curá-la, é preciso ter sangue novo. E isso é feito através de um transplante de medula óssea, visto que a medula óssea é que dá origem ao sangue. Passados alguns meses, a medula óssea antiga foi completamente substituída pela
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medula do dador. O sangue antigo desapareceu, e com ele a leucemia. - Marcella olha para mim. - Está a perceber?
- Até agora sim.
- O corpo pode utilizar este novo sangue porque é saudável. Mas não é o nosso sangue, e no que diz respeito ao ADN, não se parece com o do nosso antigo sangue. As células cutâneas, a saliva, o sémen; o ADN em todas elas é aquele com que nascemos, mas o ADN do nosso novo sangue vem do nosso dador - Marcella põe a mão em cima da minha. - Nina, os resultados laboratoriais estavam correctos. O ADN da amostra de sangue do padre Szyszynski correspondia ao sémen nas cuecas do seu filho. Mas o ADN do sangue do padre Szyszynski não era verdadeiramente o dele.
- Não - digo. - Não, não é assim. Ainda no outro dia estava a explicar ao Caleb. Podemos obter o ADN de qualquer célula no nosso corpo. É por isso que podemos utilizar uma amostra de sangue para comparar com uma amostra de sémen.
- Em noventa e nove vírgula nove por cento dos casos, sim. Mas esta é uma excepção muito, muito específica - ela abana a cabeça. Lamento, Nina.
Levanto a cabeça.
- Quer dizer que... ele ainda está vivo? Ela não precisa de responder.
Matei o homem errado.
Depois de Marcela ir embora, ando para trás e para a frente como um leão numa jaula que eu própria construí. Tenho as mãos a tremer: não consigo aquecer-me. O que fiz eu? Matei um homem que estava inocente. Um padre. Uma pessoa que me veio confortar quando o meu mundo se desmoronou; que adorava crianças, incluindo o Nathaniel. Matei um homem que lutou contra o cancro e venceu, que merecia ter uma vida longa. Cometi um assassínio e já nem sequer consigo justificar os meus actos para mim própria.
Sempre acreditei que existe um lugar especial no Inferno para os piores - os assassinos em série, os violadores que perseguem crianças, os sociopatas que tão depressa mentem como nos cortam a garganta por causa dos dez dólares que temos na carteira. E mesmo quando não consigo que sejam condenados, digo para comigo própria que eventualmente terão aquilo que merecem.
E eu também.
E sei-o, porque mesmo que não tenha forças para me levantar; mesmo que queira arranhar-me até que esta parte de mim esteja cortada em tiras, há uma outra parte de mim que pensa: «Ele ainda anda por aí».
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Agarro no telefone para ligar a Fisher. Mas depois desligo. Ele precisa de saber isto; é possível que descubra por si próprio. Mas não sei que papel isto irá desempenhar no meu julgamento, ainda. Poderia fazer a acusação parecer mais simpática, visto a vítima deles ser uma verdadeira vítima. Por outro lado, uma defesa por insanidade é uma defesa por insanidade. Não importa que eu tenha matado o padre Szyszynski, ou o juiz, ou todos os espectadores naquela sala de audiências - se eu estava demente na altura, não seria culpada.
Na realidade, isto pode fazer-me parecer mais louca.
Sento-me à mesa da cozinha e escondo o rosto nas mãos. A campainha da porta soa e de repente Patrick está na cozinha, demasiado grande para ela, muito agitado devido à mensagem que lhe deixei no pager.
- O que foi? - pergunta, absorvendo num só olhar a minha postura e o silêncio da casa. - Aconteceu alguma coisa ao Nathaniel?
É uma pergunta tão carregada de significados, que não consigo evitar - começo a rir. Rio até ter cãibras no estômago, até me faltar o ar, até as lágrimas me escorrerem dos olhos e me aperceber de que estou a chorar. Limpo o nariz com a parte de trás da manga e forço-me a olhar para ele.
- Patrick - sussurro -, fiz asneira. O padre Szyszynski... ele não... ele não foi...
Ele acalma-me e faz-me contar-lhe tudo. Quando acabo, fica a olhar para mim durante trinta segundos antes de falar.
- Estás a brincar - diz Patrick. - Mataste o homem errado?
Ele não espera por uma resposta, levanta-se e começa a andar de um lado para o outro.
- Nina, espera um segundo. Há confusões nos laboratórios; já aconteceu antes.
Agarro-me a esta bóia de salvação.
- Talvez seja isso, algum erro médico.
- Mas tivemos uma identificação mesmo antes de ter a prova do sémen. - Patrick abana a cabeça. - Porque é que o Nathaniel haveria de dizer o nome dele?
O tempo pode parar, agora já sei. É possível sentir o coração deixar de bater, sentir o sangue pairar nas veias. E ter a terrível sensação esmagadora de estarmos presos neste momento, sem que haja saída.
- Diz-me isso outra vez - as minhas palavras saem como pedras.
- Diz-me o que ele te disse.
Patrick volta-se para mim.
- Padre Glen - responde. - Certo?
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Nathaniel lembra-se de se sentir sujo, tão sujo que achava que poderia tomar mil duches e mesmo assim ainda precisar de se lavar. E a questão é que a parte suja dele estava debaixo da pele; teria de se esfregar até ficar em carne viva para que desaparecesse.
Ardia lá em baixo, e mesmo a Esme não se aproximava dele. Ronronou e depois saltou para cima da grande secretária de madeira, a olhar. «A culpa é tua», dizia ela. Nathaniel tentou agarrar nas calças, mas as suas mãos eram como bastões, incapazes de apanhar o que quer que fosse. As suas cuecas, quando por fim as conseguiu agarrar, estavam todas molhadas, o que não fazia sentido, porque Nathaniel não tinha tido nenhum descuido, ele sabia que não. Mas o padre tinha estado a olhar para as suas cuecas, segurando-as. Tinha gostado das luvas de basebol.
Nathaniel não queria voltar a usá-las, nunca mais.
- Podemos remediar isto - disse o padre, com uma voz suave como uma almofada, e desapareceu por um momento. Nathaniel contou até trinta e cinco, e depois fê-lo novamente, porque mais não sabia. Queria ir embora. Queria esconder-se debaixo da secretária ou dentro do armário dos ficheiros. Mas precisava de cuecas. Não podia vestir-se sem elas, punham-se primeiro. Era o que a mãe dizia quando às vezes se esquecia delas, e fazia-o ir lá acima para as vestir.
O padre voltou com um par de cuecas de bebé, não eram como as do pai, que pareciam calções. Tinha-as tirado, Nathaniel tinha a certeza, de dentro da caixa grande que tinha todos aqueles casacos sebentos e ténis mal cheirosos que as pessoas deixavam na igreja. «Como é que alguém vai embora sem os ténis, sem reparar?» Nathaniel sempre tinha desejado saber. E já agora, como é possível alguém esquecer-se das cuecas?
Estas estavam lavadas e tinham o Homem Aranha. Estavam demasiado apertadas, mas Nathaniel não se importou.
- Deixa-me levar o outro par - disse o padre. - vou lavá-las e depois devolvo-as.
Nathaniel abanou a cabeça. Puxou as calças para cima e enfiou os boxers no bolso de canguru da camisola, voltando a parte pegajosa para não ter de lhe tocar. Sentiu o padre afagar-lhe os cabelos e ficou absolutamente imóvel, como granito, com os mesmos sentimentos espessos e rectos por dentro.
- Precisas que te acompanhe?
Nathaniel não respondeu. Esperou que o padre pegasse na Esme e saísse; depois percorreu o corredor até à sala da caldeira. Lá dentro era arrepiante - não havia interruptor de luz, havia teias de aranha,
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e uma vez estava lá o esqueleto de um rato que tinha morrido. Nunca ninguém entrava lá dentro, e foi por isso que Nathaniel entrou e meteu as cuecas sujas muito para trás da grande máquina que zumbia e deitava calor.
Quando Nathaniel regressou à sua aula, o padre Glen ainda estava a ler a história da Bíblia. Nathaniel sentou-se, tentando ouvir. Prestou muita atenção, mesmo quando sentiu os olhos de outra pessoa fixos nele. Quando olhou para cima, o outro padre estava de pé no corredor, a segurar na Esme e a sorrir. com a mão livre levou um dedo aos lábios. «Chiu. Não contes nada.»
Foi naquele momento que Nathaniel perdeu todas as suas palavras.
No dia em que o meu filho deixou de falar, tínhamos ido à igreja. Depois, houve um café para convívio - o que Caleb gostava de chamar Suborno Bíblico, uma promessa de donuts em troca da nossa presença-na missa. Nathaniel andava à minha volta como se eu fosse um mastro em volta do qual se dança nas maias, virando-se para um lado e para o outro enquanto esperava que o padre Szyszynski chamasse as crianças para ler.
Este café era uma espécie de celebração - dois padres que tinham vindo estudar em St. Anne s para aprofundar a sua fé católica iam regressar às suas congregações. Havia um estandarte na base da mesa cheia de marcas a desejar-lhes boa sorte. Visto que não íamos regularmente à igreja, não tinha reparado bem nos padres a fazer fosse o que fosse que tinham de fazer. Tinha visto um deles de costas uma ou duas vezes e presumi que se tratava do padre Szyszynski, e quando o homem se virou é que me provou o contrário.
O meu filho estava zangado porque tinham acabado os donuts cobertos de açúcar em pó.
- Nathaniel - disse -, pára de me puxar.
Afastei-o da minha cintura, sorrindo apologeticamente para o casal com quem o Caleb estava a conversar; conhecidos que já não víamos há meses. Não tinham filhos, embora fossem da nossa idade, e suponho que Caleb gostasse de falar com eles pela mesma razão que eu - havia aquele espantoso E se a permear as conversas, como se o Todd e a Margaret fossem um espelho numa casa dos espelhos da feira em que Caleb e eu pudéssemos ver em quem nos poderíamos ter tornado, se eu nunca tivesse concebido. O Todd estava a falar sobre a sua próxima viagem à Grécia; sobre como iam alugar um barco para os levar de ilha em ilha.
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O Nathaniel, por razões que eu não podia entender, enterrou os dentes na minha mão.
Saltei, mais chocada do que magoada, e agarrei o Nathaniel pelo pulso. Fui apanhada naquele horrível limbo da disciplina pública - o momento em que uma criança fez algo verdadeiramente censurável mas escapa sem castigo porque não é politicamente correcto dar-lhe o açoite rápido no rabo que ele merece.
- Nunca mais faças isso - disse entre dentes, tentando sorrir. Estás a ouvir?
Depois reparei em todas as outras crianças a correrem pelas escadas abaixo atrás do padre Szyszynski, um Flautista de Hamelin.
- Vai - instiguei-o. - Não vais querer perder a história. Nathaniel escondeu o rosto debaixo da minha camisola, com a sua cabeça fazendo-me inchar novamente a barriga, numa gravidez falsa.
- Vai lá. Todos os teus amigos estão a ir.
Tive de afastar-lhe os braços que estavam em volta de mim e empurrá-lo na direcção certa. Olhou para trás duas vezes, e por duas vezes tive de acenar com a cabeça, encorajando-o a continuar.
- Desculpe - disse a Margaret, sorrindo. - Estava a falar sobre a Córsega?
Até agora, não me recordava de ter visto o outro dos dois padres, o mais alto que andava com uma gata como se fizesse parte das suas vestes clericais, a descer as escadas apressadamente, atrás das crianças. Que tinha chegado perto de Nathaniel e colocado a sua mão no ombro dele com o à-vontade de alguém que já o tinha feito antes.
«O Nathaniel disse o nome dele.»
Uma recordação surge e faz-me arder os olhos: «Qual é o oposto de esquerda ( e
«Branco (white)».
«Qual é o oposto de branco?» ?
«Bwack (black, preto)».
Lembro-me do padre, no funeral do padre Szyszynski, que olhou através do meu véu quando me dava a hóstia, como se as minhas feições fossem familiares. E lembro-me das frases cuidadosamente impressas num estandarte por baixo da mesa do café naquele último dia, antes de Nathaniel ter deixado de falar. QUE A pAZ O ACOMPANHE, PADRE OTOOLE. QUE A PAZ O ACOMPANHE, PADRE GWYNNE.
Diz-me o que ele te disse, tinha perguntado a Patrick.
«Padre Glen».
Talvez tenha sido isso que Patrick ouviu. Mas não era assim que Nathaniel teria dito.
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- Ele não estava a dizer padre Glen - Nina murmura a Patrick.
- Estava a dizer padre Guynne.
- Pois, mas tu sabes como o Nathaniel fala. Diz sempre mal os l.
- Desta vex não - suspira Nina. - Desta vez estava a dizer bem. Gwen. Gwynne. São tão parecidos.
- Quem diabo é o Gwynne?
Nina levanta-se, passando as mãos abertas pelos cabelos.
- Foi ele, Patrick. Foi ele que fez mal ao Nathaniel e ainda está, ainda pode estar a fazer isto a centenas de outros rapazes, e... - ela desfalece, encostando-se à parede, a cambalear. Patrick segura-a com uma mão, e assusta-se ao senti-la tremer tanto. O seu primeiro instinto é aproximar-se. A segunda reacção, mais inteligente, é deixá-la recuar um passo.
Desliza pelo lado do frigorífico até estar sentada no chão.
- É ele o dador de medula óssea. Tem de ser ele.
- O Fisher já sabe disto? - ela abana a cabeça. - O Caleb? Nesse momento, lembra-se de uma história que lera há muito
tempo na escola, sobre o início da Guerra de Tróia. Paris pode escolher entre ser o homem mais rico do mundo, o homem mais inteligente do mundo, ou ter a oportunidade de amar a mulher de outro homem. Patrick, tolo como é, cometeria o mesmo erro. Porque com o cabelo cheio de nós, de olhos vermelhos e inchados, a dor exposta no colo, Nina é tão bela para ele agora como Helena era naquela época. Ela ergue o rosto para o dele.
- Patrick... o que hei-de eu fazer?
O choque obriga-o a dar-lhe uma resposta.
- Tu - diz Patrick com clareza - não vais fazer nada. Vais ficar nesta casa porque vais ser julgada por teres assassinado um homem - quando ela abre a boca para argumentar, Patrick ergue a mão. - Já estiveste uma vez presa, e vê só o que aconteceu ao Nathaniel. O que achas que lhe irá acontecer se saíres por aquela porta para fazer justiça pelas tuas próprias mãos mais uma vez, Nina? A única maneira de o manteres em segurança é ficares com ele. Deixa-me... - ele hesita, sabendo que à beira deste precipício, a única saída é recuar, ou saltar. - Deixa-me tratar disto.
Ela sabe exactamente o que ele prometeu. Significa ir contra o seu departamento, ir contra o seu próprio código ético. Significa voltar as costas ao sistema, tal como Nina fez. E significa enfrentar as consequências. Tal como Nina. Não vê espanto no rosto dela, e a faísca informa-o de como ela se sente tentada a aceitar a proposta dele.
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- E arriscares-te a perder o teu emprego? A ires para a prisão? diz ela. - Não posso deixar-te fazer uma coisa assim tão estúpida.
«O que te faz pensar que ainda não fiz?» Patrick não diz as palavras em voz alta, mas não é preciso. Agacha-se e põe a mão no joelho de Nina. A mão dela sobe para cobrir a sua. E ele vê nos olhos dela: ela sabe o que ele sente por ela, sempre soube. Mas esta é a primeira vez que esteve perto de o admitir.
- Patrick - diz suavemente -, acho que já estraguei as vidas de demasiadas pessoas que amo.
Quando a porta se abre e Nathaniel entra disparado na cozinha num turbilhão de ar frio, Patrick põe-se de pé. O rapaz cheira a pipocas e traz uma rã de peluche dentro do casaco de inverno.
- Adivinha - diz. - O Papá levou-me ao salão de jogos.
- És um rapaz cheio de sorte - responde Patrick, e a voz parece fraca, mesmo aos seus ouvidos. Caleb entra, nessa altura, e fecha a porta atrás de si. Olha para Patrick e depois para Nina. e sorri desconfortavelmente.
- Achei que estavas com a Marcella.
- Ela teve de ir embora. Ia ter com outra pessoa. E quando saiu, apareceu o Patrick.
- Oh - Caleb esfrega a parte de trás do pescoço. - Então... o que disse ela?
- Sobre?
- Sobre o ADN.
Mesmo à sua frente, Nina muda. Lança um sorriso sofisticado ao marido.
- Corresponde - mente ela. - uma correspondência perfeita.
Assim que ponho os pés lá fora, o mundo é mágico. Ar suficientemente frio para que as minhas narinas fiquem coladas; um sol trémulo como uma gema crua; um céu tão amplo e azul que não o consigo abarcar todo com os olhos. O cheiro lá dentro é diferente de cá fora, mas não reparamos até uma das coisas nos ser retirada.
vou a caminho do escritório de Fisher, portanto a minha pulseira electrónica foi desactivada. Estar cá fora é tão maravilhoso que quase ofusca o segredo que guardo. Ao abrandar num semáforo, vejo o homem do Exército de Salvação balançar o seu sino, o balde a oscilar suavemente. Esta é a época da caridade; de certeza que sobrará alguma para mim.
A proposta de Patrick vagueia na minha mente como fumo, tornando difícil ver com clareza. Ele é o homem mais íntegro, mais honesto que conheço - não se teria oferecido de ânimo leve para ser
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o meu pelotão de um só homem. É claro, não posso deixá-lo fazer isto. Mas também não posso deixar de ter esperança de que talvez me ignore e o faça na mesma. de imediato, odeio-me por ter sequer pensado em tal coisa.
Também digo para comigo própria que não quero que Patrick vá atrás de Gwynne por outra razão, embora só a admita nos cantos mais escuros da noite: porque se trata do meu filho, da minha dor, da minha justiça.
Quando é que me tornei nesta pessoa - uma mulher que é capaz de cometer um assassínio, de querer assassinar de novo, para obter aquilo que quer sem se preocupar com quem destrói no processo? Terá sido sempre uma parte de mim, enterrada, à espera? Talvez haja uma semente de prevaricação mesmo na pessoa mais honesta - como Patrick - que requer uma certa combinação de circunstâncias para florescer. Então, na maioria de nós permanece dormente para sempre. Mas noutras pessoas, floresce. E assim que o faz, invade-nos como prímulas, abafando o nosso pensamento racional, matando a compaixão.
Acabou-se o espírito natalício.
O escritório de Fisher também está decorado para a época natalícia. Grinaldas em profusão enfeitam a lareira; há azevinho pendurado mesmo por cima da secretária da assistente. Ao lado da cafeteira há um jarro de cidra aquecida com especiarias. Enquanto espero que o meu advogado volte, passo a mão pela almofada de couro do sofá, simplesmente pela novidade de tocar noutra coisa diferente do velho sofá de chenile verde-acinzentada da minha sala de estar em casa.
O que Patrick disse sobre os laboratórios cometerem erros ficou-me na cabeça. Não vou dizer nada a Fisher sobre o transplante de medula óssea, pelo menos até ter a certeza de que a explicação de Marcella está certa. Não há razões para acreditar que Quentin Brown investigará esta particularidade obscura do ADN; portanto não há razões para perturbar já Fisher com informações de que talvez nunca venha a precisar.
- Nina - Fisher aproxima-se de mim com passos largos, franzindo o sobrolho. - Está a perder peso.
- Chama-se elegância de prisioneira de guerra - acerto o meu passo com o dele, avaliando as dimensões do corredor e da alcova, simplesmente por me serem estranhas. No seu gabinete, olho pela janela, onde os dedos dos ramos despidos tamborila no vidro.
Fisher segue a direcção do meu olhar.
- Quer ir lá para fora?
Está um frio de rachar, quase dezoito graus negativos. Mas não tenho o hábito de devolver presentes.
- Adorava.
Portanto caminhamos pelo parque de estacionamento por trás dos escritórios de advogados, com o vento a formar pequenos tornados de folhas castanhas. Fisher traz uma pilha de papéis nas mãos enluvadas.
- Recebemos a avaliação do psiquiatra. Não respondeu directamente às perguntas dele, pois não?
- Oh, por favor. Sabe qual é o papel de um juiz numa sala de audiências? Por amor de Deus.
Um pequeno sorriso brinca na boca de Fisher.
- De qualquer modo, ele considerou-a competente e lúcida na altura do delito.
Paro de andar. Então e agora? Será uma loucura tentar terminar o serviço depois de descobrirmos que não fomos bem-sucedidos da primeira vez? Ou será a coisa mais lúcida do mundo?
- Não se preocupe. Acho que vamos conseguir esmagar este tipo e rasgar o relatório dele em pedacinhos... mas também gostaria que um psiquiatra forense dissesse que na altura estava demente e que agora já não está. A última coisa que quero é que o júri pense que a Nina ainda é uma ameaça.
Mas eu sou. Imagino-me a matar o padre Gwynne com um tiro. a acertar desta vez. Depois volto-me para Fisher, com uma expressão absolutamente vazia no rosto.
- Quem quer utilizar?
- O que acha do Sidwell Mackay?
- Gozamos com ele lá no escritório - digo. - Qualquer promotor de justiça consegue desarmá-lo em precisamente cinco minutos.
- O Peter Casanoff? Abano a cabeça.
- Fala-barato pomposo.
Juntos, viramo-nos de costas para o vento, tentando tomar uma decisão muito lógica sobre quem podemos arranjar para me chamar de louca. Talvez isso não seja assim tão difícil, afinal. Que mulher racional ainda vê o sangue do homem errado nas suas mãos de cada vez que olha para baixo, mas passa uma hora no duche a imaginar como poderá matar o homem certo?
- Pronto - sugere Fisher. - Então e o O Brien, de Portland?
- Já o chamei umas duas vezes. Parece-me bem, talvez um pouco nervoso.
Fisher acena com a cabeça, concordando.
- Vai parecer académico, e eu acho que é disso que precisa, Nina.
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Ofereço-lhe o meu sorriso mais complacente.
- Bem, Fisher. Você é que manda!
Ele lança-me um olhar desconfiado, e depois entrega-me o relatório psiquiátrico.
- Este é o que o estado enviou. Tem de se lembrar daquilo que lhe disse antes de se encontrar com o O Brien.
Então os advogados de defesa pedem mesmo aos seus clientes que decorem o que disseram ao psiquiatra do estado.
- É verdade, vai ser o juiz Neal. Encolho-me.
- Oh, só pode estar a brincar.
- Porquê?
- Tem fama de ser incrivelmente crédulo.
- Que sorte a sua, então, de ser arguida - diz Fisher secamente.
- Falando nisso... acho que não vamos pô-la a testemunhar.
- Não estava à espera que o fizesse, depois do testemunho de dois psiquiatras - mas estou a pensar: «Agora não poderei ser testemunha, sabendo o que sei não poderei fazê-lo».
Fisher pára de andar e volta-se para mim.
- Antes que comece a dizer-me como acha que a sua defesa deveria ser conduzida, Nina, gostaria de lhe lembrar que está a olhar para a insanidade do ponto de vista de um promotor de justiça, e eu...
- Sabe, Fisher - interrompo, olhando para o relógio -, não posso falar sobre isso hoje.
- O coche vai transformar-se numa abóbora?
- Desculpe. Não posso mesmo - os meus olhos desviam-se dos dele.
- Não pode adiar indefinidamente. O seu julgamento vai começar em Janeiro, e eu vou para fora no Natal com a minha família.
- Primeiro deixe-me ser examinada - negoceio. - Depois podemos falar.
Fisher acena com a cabeça. Penso em O Brien, se conseguirei convencê-lo da minha insanidade. Quem sabe se, na altura, será uma encenação.
Pela primeira vez numa década, Quentin almoça com calma. Ninguém reparará no gabinete do Ministério Público; mal toleram a sua presença e, na sua ausência, provavelmente dançarão em cima da sua secretária. Verifica as indicações que descarregou do computador e entra com o carro no parque de estacionamento do liceu. Adolescentes enchouriçados dentro de casacos North Face lançam-lhe olhares rápidos
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quando passa. Quentin segue mesmo pelo meio de um jogo de bola sem alterar o passo, e continua pelas traseiras da escola.
Há um estádio de futebol americano reles, uma igualmente reles pista de atletismo e um campo de basquetebol. Gideon está a fazer um trabalho admirável a marcar um mariquinhas de um central quinze centímetros mais baixo do que ele. Quentin põe as mãos nos bolsos do sobretudo e observa o filho a roubar a bola e a marcar três pontos sem esforço.
Da última vez que o filho tinha agarrado num telefone para entrar em contacto com ele, tinha-lhe ligado da prisão, onde estava detido por posse de drogas. E embora isso tivesse custado a Quentin bastantes comentários mordazes sobre nepotismo, tinha conseguido realojar Gideon num estabelecimento de reabilitação. No entanto, isso não tinha sido suficientemente bom para Gideon, que queria ser libertado sem nenhum castigo.
- Não serves para nada como pai - tinha ele dito a Quentin. Já devia saber que também não servirias para nada como advogado.
Agora, passado um ano, Gideon cumprimenta outro jogador e depois volta-se e vê Quentin observá-lo.
- Merda, meu - resmunga. - Intervalo - os outros rapazes vão para as linhas laterais, chupando garrafas de água e despindo camadas de roupa. Gideon aproxima-se, de braços cruzados. - Vieste aqui para me chatear?
Encolhendo os ombros, Quentin diz:
- Não, vim para te ver. Para conversar.
- Não tenho nada para te dizer.
- Que estranho - responde Quentin -, visto que tenho dezasseis anos de coisas para te dizer.
- Então que diferença faz mais um dia? - Gideon volta para o jogo. - Estou ocupado.
- Desculpa.
As palavras fazem o rapaz parar.
- Pois, está bem - murmura. Regressa ao campo de basquetebol em passos largos, agarrando na bola e fazendo-a girar no ar, para impressionar Quentin, talvez? - Vamos lá, vamos lá! - chama ele, e os outros reúnem-se à sua volta. Quentin afasta-se.
- Quem era aquele, meu? - ouve um dos rapazes perguntar a Gideon. E a resposta de Gideon, quando ele acha que Quentin já está demasiado longe para ouvir:
- Um tipo que precisava de indicações.
Da janela do consultório médico no Instituto Oncológico Dana-
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Farber, Patrick consegue ver os limites desordenados de Boston. Olívia Bessette, a oncologista mencionada nos relatórios médicos do padre Szyszynski, afinal é bastante mais nova do que Patrick esperava - não muito mais velha do que ele próprio. Está sentada de mãos cruzadas, com os cabelos encaracolados presos num carrapito prático, com umas socas brancas de sola de borracha a baterem ligeiramente no chão.
- A leucemia afecta apenas as células sanguíneas - explica - e a leucemia crónica mielóide tem tendência a revelar-se em pacientes com quarenta ou cinquenta anos... embora já tivesse visto casos de pacientes com vinte anos.
Patrick interroga-se como é que uma pessoa se senta na beira de uma cama de hospital e diz a outra que vai morrer. Supõe que não deva ser assim tão diferente de bater a uma porta a meio da noite e informar um pai de que um filho foi morto num acidente de viação envolvendo um condutor embriagado.
- O que acontece às células sanguíneas? - pergunta.
- As células sanguíneas estão todas programadas para morrer, tal como nós. Começam numa fase embrionária, e depois crescem, tornando-se um pouco mais funcionais e, quando são expulsas da medula óssea, são células adultas. Nessa altura, os glóbulos brancos deverão ser capazes de combater infecções, os glóbulos vermelhos deverão ser capazes de transportar oxigénio e as plaquetas deverão ser capazes de fazer coagular o sangue. Mas quando temos leucemia, as nossas células nunca chegam a amadurecer... e nunca morrem. Portanto acabamos por ter uma proliferação de glóbulos brancos que não funcionam, e que ultrapassam todas as outras células.
Patrick não está verdadeiramente a ir contra a vontade de Nina por estar aqui. Está apenas a esclarecer o que eles sabem - não está a ir mais longe. Conseguiu marcar esta entrevista utilizando um subterfúgio, fingiu estar a trabalhar para o delegado do procurador-geral. Patrick explicou que o Dr. Brown tem o ónus da prova. O que significa que têm de estar cem por cento certos de que o padre Szyszynski não morreu de leucemia no momento em que a sua agressora puxou da arma. A Dr.a Bessette, a sua antiga oncologista, poderia dar-lhe a sua opinião?
- O que faz um transplante de medula? - pergunta Patrick.
- Milagres, se funcionar. Existem seis proteínas em todas as nossas células, antigénios leucocitários humanos, ou HLA. Ajudam o seu corpo a reconhecê-lo a si e o meu a mim. Quando procuramos um dador de medula óssea, estamos à espera que estas seis proteínas correspondam às nossas. Na maioria dos casos, isto significa que sejam
irmãos, ou meios-irmãos, talvez um primo... os parentes parecem apresentar a menor ocorrência de rejeição.
- Rejeição? - pergunta Patrick.
- Sim. No fundo, estamos a tentar convencer o corpo de que as células do dador são de facto nossas, porque têm as mesmas seis proteínas. Se não conseguirmos fazê-lo, o sistema imunitário rejeitará o transplante de medula óssea, o que conduz à doença do Enxerto Contra o Hospedeiro.
- Como num transplante de coração.
- Exactamente. Só que aqui não se trata de um órgão. A medula óssea é extraída da pélvis, porque são os ossos grandes do corpo que produzem o sangue. Basicamente, pomos o dador a dormir e depois espetamos-lhe agulhas nas ancas cerca de 150 vezes em cada lado, sugando as células imaturas.
Ele retrai-se, e a médica sorri um pouco.
- É doloroso. Ser dador de medula óssea é uma coisa muito altruísta.
«Pois, este tipo era um sacana de um altruísta», pensa Patrick.
- Entretanto, o paciente com leucemia esteve a tomar imunossupressores. Na semana anterior ao transplante, recebe uma dose de quimioterapia suficiente para matar as células sanguíneas no seu corpo. É cronometrado desta forma, para que a sua medula óssea esteja vazia.
- Pode-se viver-assim?
- Há um enorme risco de infecção. O paciente ainda possui as suas células sanguíneas vivas... só que não produzirá mais nenhumas. Depois recebe a medula do dador, através de um simples cateter intravenoso. Demora cerca de duas horas, e não sabemos como, mas as células encontram o seu caminho para chegar à medula óssea dentro do próprio corpo e começam a crescer. Cerca de um mês depois, a medula óssea foi completamente substituída pela do dador.
- E as células sanguíneas terão as seis proteínas do dador, aquela coisa dos HLA? - pergunta Patrick.
- Exactamente.
- Então e o ADN do dador?
A Dr.a Bessette acena com a cabeça.
- Sim. Em todos os aspectos o sangue é na realidade de outra pessoa. Está apenas a enganar o-corpo. levando-o a acreditar que é verdadeiramente seu.
Patrick inclina-se para a frente.
- Mas se... se o cancro entrar em remissão... o corpo do paciente começará de novo a fabricar o seu próprio sangue?
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- Não. Se isso acontecesse, consideraríamos que tinha ocorrido
uma rejeição do enxerto, e a leucemia regressaria. Queremos que o paciente continue a produzir o sangue do seu dador para sempre - bate ligeiramente no ficheiro em cima da sua secretária. - No caso de Glen Szyszynski, cinco anos após o transplante foi oficialmente declarado curado. A sua nova medula óssea estava a funcionar bastante bem, e as hipóteses de voltar a ter leucemia eram menores do que dez por cento - a Dr.a Bessette acena com a cabeça. - Acho que a
acusação poderá afirmar com segurança que embora o padre tivesse morrido, não foi de leucemia.
Patrick sorri para ela.
- Suponho que tivesse sido bom ter um caso de sucesso.
- É sempre bom. O padre Szyszynski teve sorte em encontrar uma correspondência perfeita.
- Uma correspondência perfeita?
- É assim que dizemos quando os HLA de um dador correspondem a tocios seis HLA do paciente.
Patrick inspira rapidamente.
- Sobretudo quando não são familiares.
- Oh - diz a Dr.a Bessette. - Mas não foi esse o caso. O padre Szyszynski e o seu dador eram meios-irmãos.
Francesca Martine veio para o Laboratório Estadual do Maine vinda do New Hampshire, onde esteve a trabalhar como especialista de ADN até surgir algo melhor. Esse algo afinal não foi o perito em balística que lhe despedaçou o coração. Mudou-se para norte, para tratar das suas feridas, e descobriu o que sempre soubera - a segurança vinha em gel e placas de Petri, e os números nunca nos magoavam.
Dito isto, os números também não conseguiam explicar a reacção visceral que tem assim que encontra Quentin Brown. Pelo telefone, imaginou-o como todos os outros autómatos do estado - atormentado e mal pago, com a pele de um tom cinzento doentio. Mas desde o instante em que ele entra no seu laboratório, não consegue
 tirar os olhos dele. Ele é impressionante, sem dúvida, com a sua altura excessiva e a sua tez de mogno, mas Frankie sabe que não é isso que a atrai. Sente uma atracção entre eles, um magnetismo intensificado pela experiência comum de serem diferentes. Ela não é negra, mas frequentemente é a única mulher na sala com um QI de 220. Infelizmente, se ela deseja que Quentin Brown a examine com mais atenção, terá de assumir a forma de um relatório laboratorial forense.
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- O que é que o fez olhar para aqui uma segunda vez? - pergunta Frankie.
Ele semicerra os olhos.
- Porque pergunta?
- Por curiosidade. É algo bastante esotérico para a acusação. Quentin hesita, como se estivesse a pensar se deveria confiar
nela. «Oh, vá lá», pensa Frankie. «Descontraia-se.»
- A defesa pediu especificamente para vê-lo. Imediatamente. E não me pareceu merecer este tipo de pedido. Não vejo como os resultados do teste de ADN aqui façam alguma diferença para nós ou para eles.
Frankie cruza os braços.
- Eles não estavam interessados no relatório laboratorial que eu emiti. É por causa do que está escrito nos ficheiros clínicos.
- Não estou a perceber.
- Sabe como o relatório do ADN diz que as hipóteses de seleccionar ao acaso um indivíduo que não esteja relacionado com isto a quem corresponda este material genético são uma em seis mil milhões?
Quentin acena com a cabeça.
- Bem - explica Frankie -, acabou de encontrá-lo.
Custa aproximadamente dois mil dólares do dinheiro dos contribuintes exumar um corpo.
- Não - diz Ted Poulin secamente. Como procurador-geral do Maine, e chefe de Quentin, isso deveria pôr fim à questão. Mas Quentin não irá desistir sem dar luta. não desta vez.
Agarra no auscultador do telefone.
- A especialista em ADN do laboratório estadual diz que podemos fazer os testes à polpa dentária.
- Quentin, isso não interessa para a acusação. Ela matou-o. Ponto final.
- Ela matou o tipo que molestou o filho. Tenho de fazê-lo passar de predador sexual a vítima, Ted, e essa é a maneira certa de o fazer.
Faz-se um longo silêncio do outro lado da linha. Quentin percorre o grão da macieira da secretária de Nina Frost com as pontas dos dedos. Faz isto repetidamente, como se estivesse a acariciar um amuleto.
- Não há família que se oponha?
- A mãe já deu consentimento. Ted suspira.
- A publicidade vai ser tremenda. Recostando-se na sua cadeira, Quentin sorri.
- Deixe-me tratar disso - sugere.
Fisher entra de modo intempestivo no gabinete do promotor
público, incaracteristicamente agitado. Já ali esteve antes, é claro, mas quem sabe onde diabo instalaram Quentin enquanto prepara a acusação para o caso de Nina. Acabou de abrir a boca para perguntar à secretária quando o próprio Brown sai da pequena área da cozinha, transportando uma chávena de café.
- Dr. Carrington - diz num tom agradável. - Estava à minha procura?
Fisher retira os documentos que recebera naquela manhã do
bolso de dentro. A Moção para Exumar. - O que é isto?
Quentin encolhe os ombros.
- O senhor deve saber. Foi o senhor que pediu os registos de ADN com urgência, afinal de contas.
Na realidade, Fisher não sabe porquê. Os registos de ADN foram entregues com urgência a pedido de Nina, mas diabos o levem se Brown vai saber disso.
- O que está a tentar fazer, doutor?
- Um simples teste que provará que o padre que a sua cliente matou não foi o tipo que abusou do filho dela.
Fisher endurece o olhar.
- Vemo-nos no tribunal amanhã de manhã - diz, e, quando entra no carro para se dirigir a casa de Nina, começa a compreender como um ser humano vulgar pode ficar suficientemente frustrado ao ponto de matar.
- Fisher! - digo, e fico realmente encantada por ver o homem. Isto deixa-me estupefacta... ou realmente passei para o lado do inimigo, ou então estou em prisão domiciliária há demasiado tempo. Abro a porta para o deixar entrar, e apercebo-me de que está furioso.
- Você sabia - diz ele, numa voz calma e muito mais assustadora devido a todo o autocontrolo. Entrega-me uma moção emitida pelo delegado do procurador-geral.
As minhas entranhas começam a revolver-se, sinto-me absolutamente agoniada. com um esforço tremendo, engulo e olho Fisher nos olhos - mais vale tarde do que nunca.
- Não sabia se havia de lhe dizer. Não sabia se a informação seria importante para o meu caso.
- Isso é o meu trabalho! - Fisher explode. - Por alguma razão está a pagar-me, Nina, e é porque em certa medida, sabe, embora
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pareça não ser conscientemente, que eu sou capaz de dar-lhe a absolvição. Na realidade, sou mais qualificado para o fazer do que qualquer outro advogado no Maine... incluindo a Nina.
Desvio o olhar. No fundo, sou uma promotora de justiça, e os promotores de justiça não contam tudo aos advogados de defesa. Dançam em volta uns dos outros, mas o promotor de justiça é sempre quem conduz a dança, deixando que o outro advogado se equilibre por si.
Sempre.
- Não confio em si - digo por fim. Fisher encara isto como um golpe.
- Bem, então estamos quites.
Ficamos a olhar um para o outro, dois grandes cães mostrando os dentes. Fisher desvia o olhar, zangado, e naquele momento vejo o meu rosto no reflexo da janela. A verdade é que já não sou uma promotora de justiça. Não sou capaz de me defender. Nem sequer tenho a certeza de que quero.
- Fisher - chamo, quando ele já vai a meio caminho da porta. Quanto é que isto me vai prejudicar?
- Não sei, Nina. Não a faz parecer menos louca, mas também vai retirar-lhe a compreensão do público. Já não é uma heroína, matando um pedófilo. É uma pessoa impetuosa que tirou a vida a um homem inocente... um padre, nem mais nem menos - abana a cabeça. - É o exemplo por excelência da razão pela qual temos leis.
Nos olhos dele, vejo o que se afigura - o facto de que já não sou uma mãe a fazer o que tinha de ser feito pelo seu filho, mas simplesmente uma mulher irreflectida que pensou que sabia mais do que toda a gente. Interrogo-me se os flashes das máquinas fotográficas causarão uma sensação diferente na pele quando me capturarem como criminosa em vez de vítima. Interrogo-me se os pais que outrora se mostraram compreensivos para com os meus actos - mesmo que tivessem discordado deles - olharão agora para mim e atravessarão a rua, no caso de a falta de discernimento ser contagiosa.
Fisher expira pesadamente.
- Não posso impedi-los de exumar o corpo.
- Eu sei.
- E se continua a esconder informação de mim, isso irá prejudicá-la, porque eu não saberei como hei-de jogar com ela.
Baixo a cabeça.
- Compreendo.
Ele levanta a mão em sinal de despedida. Fico de pé no alpendre e observo-o a ir embora, abraçando-me a mim própria para me
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proteger do vento. Quando o seu carro está ao fundo da rua, o fumo do escape congela, um suspiro preso no frio. Respirando fundo, volto-me e encontro Caleb a menos de um metro de distância atrás de mim.
- Nina - diz -, o que foi aquilo?
Passando por ele, empurrando-o, abano a cabeça, mas ele agarra-me no braço e não me deixa ir.
- Tu mentiste-me. Mentiste-me!
- Caleb, não estás a perceber...
Agarra-me nos ombros e abana-me uma vez, com força.
- O que é que eu não estou a perceber? Que mataste um homem inocente? Credo, Nina, quando é que te irás aperceber?
Uma vez, Nathaniel perguntou-me como é que a neve desaparecia. É assim no Maine - em vez de ir derretendo ao longo do tempo, demora um dia para que montes de neve que dão pela coxa de manhã se evaporem ao pôr do Sol. Fomos juntos à biblioteca para saber a resposta - sublimação, o processo pelo qual algo sólido desaparece no ar sem deixar rasto.
com as mãos de Caleb a segurarem-me, desfaleço. Deixo sair tudo o que receei libertar ao longo da última semana. A voz do padre Szyszynski enche-me a cabeça; o seu rosto paira à minha frente.
- Eu sei - soluço. - Oh, Caleb, eu sei. Pensei que era capaz. Pensei que podia resolver o assunto. Mas cometi um erro - encosto-me ao muro do seu peito, à espera que os seus braços me envolvam.
Isso não acontece.
Caleb dá um passo atrás, enfiando as mãos nos bolsos. Tem os olhos orlados de vermelho, atormentados.
- Que erro, Nina? Que mataste um homem? - pergunta com voz rouca. - Ou que não o mataste?
- É uma pena, é o que é - diz a secretária da igreja. Myra Lester abana a cabeça e depois entrega a Patrick a chávena de chá que lhe fez. - Falta tão pouco tempo para a missa de Natal, e nós sem um padre.
Patrick sabe que o melhor caminho para se chegar à informação nem sempre é aquele que é pavimentado e em linha recta, mas aquele que vai pelas traseiras e é na maioria das vezes esquecido como via de acesso. Também sabe, dos seus dias já muito distantes de educação católica, que a memória colectiva - e a fonte de bisbilhotice - na maioria das vezes é a secretária da igreja. Portanto mostra-lhe a sua expressão mais consternada, aquela que lhe valia sempre um beliscão na face das tias idosas.
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- A congregação deve estar devastada.
- Entre os rumores que andam por aí sobre o padre Szyszynski, e a forma como foi morto... bem, é extremamente profano, é tudo o que tenho a dizer sobre isso - funga, e depois instala o seu traseiro considerável numa poltrona no escritório da sacristia.
Gostaria de ter assumido uma identidade diferente, agora - um recém-chegado a Biddeford, por exemplo, a ver a paróquia - mas já foi visto enquanto detective, durante a investigação do abuso sexual.
- Myra - diz Patrick, e depois olha para ela e sorri. - Desculpe. Queria dizer Sr.a Lester, é claro.
As faces dela flamejam, e ri nervosamente.
- Oh, não, esteja à vontade para me chamar como quiser, Detective.
- Bem, Myra, tenho andado a tentar entrar em contacto com os padres que estiveram de visita em St. Anne s pouco antes da morte do padre Szyszynski.
- Oh, sim, eram maravilhosos. Absolutamente maravilhosos! Aquele padre OToole, tinha um sotaque sulista delicioso. Como aguardente de pêssegos, era o que eu pensava sempre que ele falava... Ou seria o padre Gwynne?
- A acusação anda a pressionar-me. Por acaso não faz ideia de onde os poderei encontrar?
- Voltaram para as suas próprias congregações, é claro.
- Há algum registo disso? Um endereço, talvez?
Myra franze o sobrolho, e um pequeno padrão de rugas com a forma de uma aranha surge-lhe na testa.
- Tenho a certeza de que deve haver. Não acontece nada nesta igreja sem que eu saiba os pormenores - ela dirige-se para os livros de registos empilhados por trás da sua secretária. Folheando as páginas de um livro com encadernação de cabedal, encontra uma entrada e bate-lhe com a parte plana da mão.
- Está aqui. Padres Brendan OToole, de St. Dennis, em Harwich, Massachussetts, e Arthur Gwynne, que deve partir esta tarde para a Sé de Portland - Myra coça a cabeça com a borracha de um lápis. Suponho que o outro padre pudesse vir de Harwich, também, mas isso não explicaria a aguardente de pêssego.
- Talvez se tivesse mudado em criança - sugere Patrick. - O que é a Sede Portland?
- Sé, S-É. É a zona da diocese principal do Maine, é claro ergue o rosto para Patrick. - Foram eles que mandaram os padres para cá.
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Meia-noite, num cemitério, com um caixão desenterrado Patrick lembra-se de mil lugares onde preferia estar. Mas permanece ao lado dos dois homens suados que içaram o caixão do chão e o colocaram ao lado da campa do padre Szyszynski, como um altar ao luar. Prometera ser os olhos de Nina, as suas pernas. E se necessário, as suas mãos.
Todos vestem fatos de protecção - Patrick e Evan Chão, Fisher Carrington e Quentin Brown, Frankie Martine e o médico-legista, Vern Potter. No círculo negro para lá das suas lanternas, uma coruja pia.
Vern dá um salto.
- Santo Deus. Estou à espera que saiam mortos-vivos de detrás das lápides a qualquer momento. Não podíamos ter feito isto à luz do dia?
- Prefiro os mortos-vivos à imprensa - diz Evan Chão entre dentes. - Acabe lá -com isso, Vern.
- Tudo bem - o médico-legista agarra num pé de cabra e abre o caixão do padre Szyszynski. O ar pestilento que se liberta do seu interior dá vómitos a Patrick. Eisher Carrington desvia o rosto e leva um lenço à sua máscara facial. Quentin afasta-se rapidamente para vomitar atrás de uma árvore.
O padre não está assim tão diferente. Ainda lhe falta metade do rosto. Os braços jazem ao lado do corpo. A sua pele, cinzenta e enrugada, ainda não se decompôs.
- Abre bem a boca - murmura Vern; depois afasta o maxilar e arranca um molar com um par de pinças dentárias.
- Traz-me um par de sisos, também - diz Frankie. - E cabelos. Evan faz sinal a Patrick, chamando-o de parte.
- Acreditas nisto? - pergunta.
- Não.
- Talvez o sacana esteja apenas a ter aquilo que merece. Patrick fica atordoado por um momento, até se lembrar: não há
razão para achar que Evan poderia saber o que Patrick sabe - que o padre Szyszynski era inocente.
- Talvez - consegue dizer.
Passados alguns minutos, Vern entrega um frasco e um envelope a Frankie. Quentin parte apressadamente na companhia dela, e Fisher segue um pouco atrás. O médico-legista fecha o caixão e volta-se para os coveiros.
- Podem voltar a colocá-lo - comunica, e depois dirige-se a Patrick. - Já vai embora?
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- É só um segundo - Patrick observa Vern partir, e depois volta-se para a sepultura, onde os dois homens corpulentos colocaram o caixão e o estão a cobrir novamente com terra. Espera até terem terminado, porque acha que alguém deveria fazê-lo.
Quando Patrick chega ao Tribunal de Comarca de Biddeford, interroga-se se o padre Arthur Gwynne terá alguma vez existido. Veio do cemitério, onde o corpo foi exumado, para a Sé católica em Portland... onde o chanceler lhe disse que os seus registos apenas mencionavam que o padre OToole ia visitar Biddeford. Se o padre Gwynne também estava na igreja, poderia ter sido uma ligação pessoal ao pároco de Biddeford que o tivesse trazido ali. O que, é claro, era exactamente o que Patrick queria confirmar.
O notário entrega-lhe uma cópia do testamento do padre, que se tornou um registo público há um mês, quando foi entregue ao tribunal. O documento é extremamente simples. O padre Szyszynski deixou cinquenta por cento do seu património à mãe. E o resto ao executor do seu testamento: Arthur Gwynne, de Belle Chasse, Luisiana.
O esmalte é o material mais resistente encontrado naturalmente no corpo humano, e isso torna-o uma chatice para abrir. Para isso, Frankie mergulha o molar extraído em azoto líquido durante cerca de cinco minutos, porque congelado, é mais provável que se fragmente.
- Olhe, Quentin - diz ela, sorrindo para o advogado, que espera impacientemente. - Consegue partir um dólar?
Ele procura nos bolsos, mas abana a cabeça.
- Desculpe.
- Não faz mal - ela tira um dólar da carteira e imerge-o no azoto líquido; depois tira-o, e parte-o em cima da bancada, rindo.
- Eu consigo. Ele suspira.
- É por isso que temos de esperar tanto tempo pelos resultados do laboratório estadual?
- Olhe, eu estou a deixá-lo passar à frente, não estou? - Frankie retira o dente do seu banho e coloca-o num almofariz esterilizado. Tenta parti-lo, batendo cada vez com mais força, mas o dente não se quebra.
- Um almofariz? - pergunta Quentin.
- Costumávamos utilizar a serra craniana do médico-legista, mas tínhamos de colocar sempre uma lâmina nova. Para além disso, o gume aquece demasiado e desnatura o ADN - olha para ele através
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dos óculos de protecção. - Não quer que eu faça asneira, pois não?
- mais uma pancada, mas o dente permanece intacto. - Oh, por amor de Deus - Frankie tira um segundo dente do azoto líquido. - Venha comigo. Quero acabar com isto de uma vez..
Ela coloca o dente dentro de dois sacos de plástico com fecho e conduz Quentin pela escadaria, até à garagem do laboratório na cave.
- Afaste-se - dix ela, e depois agacha-se, colocando o saco no chão. Frankie retira um martelo do bolso da bata e começa a bater, com o seu maxilar a doer em solidariedade. O dente quebra-se à quarta tentativa, e os pedaços estilhaçam dentro do saco de plástico.
- E agora? - pergunta Quentin.
A polpa é acastanhada, em pequena quantidade... mas está sem dúvida lá.
- Agora - dix ela - fica à espera.
Quentin, que não está habituado a ficar toda a noite em cemitérios e depois a conduzir até ao laboratório em Augusta, adormece numa fileira de cadeiras no átrio. Ao sentir uma mão fria na nuca, acorda sobressaltado, sentando-se tão depressa que fica momentaneamente tonto. Frankie está à sua frente, com um relatório na mão.
- E? - pergunta ele.
- A polpa do dente é quimérica.
- Na nossa língua?
Frankie senta-se ao lado dele.
- Testamos a polpa dentária porque contém células sanguíneas... mas também células tecidulares. Em si, e em mim, e na maioria das pessoas, o ADN em ambas essas células será o mesmo. Mas se uma pessoa receber um transplante de medula óssea, vai apresentar uma mistura de dois perfis de ADN na polpa dentária. O primeiro perfil será do ADN com que nasceram, e esse estará nas células tecidulares. O segundo perfil será do ADN que veio do dador de medula, e estará nas células sanguíneas. Nesta amostra, a polpa dentária do suspeito revelou uma mistura.
Quentin franze o sobrolho ao olhar para os números na página.
- Então...
- Então aí tem a sua prova - diz Frankie. - Foi outra pessoa que molestou aquele rapax.
Depois de Fisher me ter telefonado para dar a notícia, vou directamente para a casa de banho vomitar. E mais uma e outra vez, até já não ter nada no estômago a não ser culpa. A verdade é que matei
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um homem com as minhas próprias mãos. um homem que não merecia nenhum castigo. Em que é que isto me torna?
Quero tomar duche até já não me sentir suja; quero despir a minha própria pele. Mas o horror está no meu âmago. Se cortarmos a nossa consciência, vemo-nos esvair-nos em sangue.
Como o vi a ele.
No corredor, passo por Caleb, que de qualquer modo também já não fala comigo. Já não há palavras entre nós, cada um de nós colocou uma carga nisto, um ião que poderá ligar-se tanto a ele quanto a mim e afastar-nos para longe um do outro. No meu quarto, descalço os sapatos e enfio-me completamente vestida debaixo dos cobertores. Puxo-os para cima da cabeça; respiro neste casulo. Se desmaiarmos, e continuarmos sem ar, o que acontecerá?
Não consigo aquecer. É aqui que ficarei, porque agora qualquer decisão que eu tome pode ser suspeita. É melhor não fazer absolutamente nada, que correr outro risco que possa mudar o mundo.
É um instinto, apercebe-se Patrick - querer magoar alguém tanto quanto essa pessoa nos magoou. Houve momentos na sua carreira na polícia militar em que as suas detenções se tornaram violentas, com o sangue a escorrer-lhe das mãos a parecer-lhe um bálsamo na altura. Agora, sabe que a teoria pode dar um passo em frente: é um instinto querer magoar alguém tanto quanto essa pessoa magoou alguém de quem gostamos. Esta é a única explicação que ele encontra para estar sentado num 757 com destino a Nova Orleães, vindo de Dallas-Fort Worth.
A questão não é o que ele faria por Nina. «Qualquer coisa», responderia Patrick, sem hesitar. Ela tinha-o avisado expressamente que não queria que ele fosse atrás de Arthur Gwynne, e todas as acções de Patrick até agora poderiam ser classificadas como busca de informações, mas nem ele conseguia ocultar a verdade agora: não tinha nenhum motivo para voar para a Luisiana, a não ser para ficar frente a frente com este homem.
Mesmo agora, não consegue dizer a si próprio o que irá acontecer. Viveu a sua vida guiado por princípios e regras - na Marinha, como polícia, como amante não correspondido. Mas as regras só funcionam quando todos as seguem. O que acontece quando alguém não o faz, e os efeitos secundários fazem-se sentir directamente na sua vida? O que será mais forte - a necessidade de manter as leis, ou o motivo para lhes virarmos as costas?
Tem sido devastador para Patrick aperceber-se de que a mente criminosa não é assim tão diferente da de um homem racional. No fundo, tudo se resume ao poder de um desejo. Os toxicodependentes vendem
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o próprio corpo por um grama de coca. Os incendiários arriscam a vida para sentir algo arder em chamas à sua volta. Patrick sempre acreditou, como agente da autoridade, que está acima desta necessidade premente. Mas e se a nossa obsessão não tiver nada a ver com drogas, ou emoções, ou dinheiro? E se o que mais desejamos no mundo for restabelecer a vida tal como era há uma semana, há um mês. há um ano e estivermos dispostos a fazer tudo o que for preciso?
Este foi o erro de Nina; ela confundiu parar o tempo com fazê-lo voltar para trás. E ele nem sequer podia censurá-la, porque tinha cometido o mesmo erro, cada vez que estava com ela.
A pergunta que Patrick sabia que devia fazer não era o que faria por Nina... mas o que não faria.
A assistente de bordo empurra o carrinho das bebidas como um carrinho de bebé, travando ao lado da fila de Patrick.
- O que deseja tomar? - pergunta ela. O seu sorriso faz-lhe lembrar a máscara de Nathaniel no Dia das Bruxas do ano passado.
- Sumo de tomate. Sem gelo.
O homem sentado ao lado de Patrick dobra o jornal.
- Sumo de tomate e vodka - diz ele, sorrindo através do seu sotaque texano cerrado. - Sim, gelo.
Ambos provam as suas bebidas enquanto a assistente de bordo avança. O homem olha para o seu jornal e abana a cabeça.
- Devia ir para a cadeira eléctrica, essa sacana - resmunga.
- Desculpe?
- Oh, é este caso de homicídio. Já toda a gente deve ter ouvido falar nele... há uma idiota no corredor da morte que quer ter um perdão à última hora porque encontrou Jesus. A verdade é que o governador tem medo de lhe dar o cocktail por ela ser uma mulher.
Patrick sempre foi a favor da pena capital. Mas ouve-se a si próprio dizer:
- Parece-me razoável.
- Suponho que deva ser daqueles ianques de esquerda - diz o homem com desprezo. - Eu cá acho que não interessa se tem pila ou não. Dá um tiro na nuca a uma pessoa numa loja de conveniência, deve pagar o preço. Sabe? - encolhe os ombros, e depois termina a bebida. - Viaja em trabalho ou está de férias?
- Em trabalho.
- Eu também. Sou vendedor. Ratoeiras Hav-A-Heart - confidencia, como se se tratasse de algo sigiloso.
- Sou advogado da ACLU (União Americana de Liberdades Civis) - mente Patrick. - vou a caminho para defender o caso daquela mulher perante o governador.
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O rosto do vendedor fica vermelho.
- Bem. Não tive intenção de desrespeitar...
- É claro que teve.
Volta a dobrar o jornal, e mete-o na bolsa do assento à sua frente.
- Nem mesmo vocês os corações de manteiga conseguem salvá-los a todos.
- Uma - responde Patrick. - É só isso que desejo.
Há uma mulher que usa as minhas roupas, e a minha pele, e o meu cheiro, mas que não sou eu. Ela é como tinta, espalha-se por uma pessoa, dá cor, torna-nos alguém que anteriormente não éramos. E é indelével. Por muito que tentemos, não conseguimos recuperar o nosso ser.
As palavras não podem tirar-me da beira do abismo. Nem a luz do dia. Isto não é algo que se ultrapasse, é uma atmosfera que eu preciso de aprender a respirar. Criar guelras para a transgressão, fazê-la entrar nos meus pulmões a cada inspiração.
É assustador. Interrogo-me sobre quem será esta pessoa, a viver a minha vida. Quero agarrar-lhe na mão.
E depois quero empurrá-la, com força, para o precipício.
Patrick dá por si a despir camadas de roupa enquanto caminha pelas ruas de Belle Chasse, na Luisiana, passando por portões de ferro forjado e pátios cobertos de hera. O Natal parece deslocado neste clima, as decorações parecem suar neste calor húmido. Interroga-se como é que um rapaz da Luisiana como Glen Szyszynski conseguira sobreviver tão a norte.
Mas ele já sabe a resposta. Crescer entre os cajunsh e os crioulos não era assim tão diferente de cuidar dos acadianos na sua paróquia. A prova disso está no bolso de dentro do seu casaco, registos públicos copiados por um funcionário da Conservatória do Registo Civil da Luisiana, em Nova Orleães. Arthur Gwynne, nascido a 23 10 43, filho de Cecília Marquette Gwynne e do seu marido, Alexandre Gwynne. Quatro anos mais tarde, Cecília Marquette Gwynne, viúva, casou com Teodor Szyszynski. E em 1951, nasceu Glen.
Meios-irmãos.
O testamento de S yszynski foi revisto pela última vez em 1994; é muito possível que Arthur Gwynne já não pertença à comunidade
1. Grupo de pessoas no Sul da Luisiana descendentes de colonos franceses exilados da Acádia, antiga colónia francesa do Leste do Canadá, no século XVIII. (N. da T.)
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de Belle Chasse. Mas é um ponto de partida. Os padres não passam despercebidos numa cidade predominantemente católica; se Gwynne mantiver algum contacto com os vizinhos, Patrick sabe que poderá seguir alguma pista para descobrir o seu paradeiro. Para isso, há uma outra pista no seu bolso, rasgada da parte de trás de uma lista telefónica. Igrejas. A maior é a de Nossa Senhora da Misericórdia.
Não se permite pensar no que fará com as informações, quando as obtiver.
Patrick dobra a esquina e avista a catedral. Sobe os degraus de pedra a correr e entra na nave. Mesmo à sua frente encontra-se uma pia de água benta. Velas bruxuleantes projectam sombras nas paredes, e o reflexo de uma janela de vitral cria uma poça brilhante no chão de mosaico. Por cima do altar, uma escultura de Cristo na cruz, de madeira de cipreste, ergue-se como um mau presságio.
Cheira a catolicismo: cera de abelhas, e goma, e escuridão, e paz, tudo isto transporta Patrick para a sua juventude. Dá por si inconscientemente a fazer o sinal da cruz enquanto desliza para se sentar num banco na parte de trás do edifício.
Quatro mulheres acenam com a cabeça em oração, a sua fé a pousar suavemente em redor delas, como as saias das beldades confederadas. Outra soluça baixinho nas mãos enquanto um padre a conforta murmurando. Patrick espera pacientemente, passando as mãos pela madeira brilhante, envernizada, assobiando baixinho.
De repente, os cabelos na sua nuca eriçam-se. Caminhando ao longo da beira do banco está uma gata. A sua cauda bate-lhe novamente na nuca, e ele exala bruscamente.
- Pregaste-me um susto dos diabos - murmura, e depois olha para a escultura de Jesus. - De morte - corrige.
A gata pestaneja, e depois salta para os braços do padre que surgiu ao lado de Patrick.
-Já devias saber que isso não se faz - repreende o padre.
Patrick demora um momento para se aperceber de que o sacerdote está a falar com a sua gatinha.
- Desculpe. Estou a tentar localizar o padre Gwynne.
- Bem - o homem sorri. - Encontrou-me.
Cada vez que Nathaniel tenta ver a mãe, ela está a dormir. Mesmo quando há luz lá fora; mesmo quando é a hora do Franklin no Nickelocleon. «Deixa-a em paz», diz o pai. "É o que ela quer.» Mas Nathaniel não acha mesmo que a mãe queira isso. Pensa em como às vezes acorda a meio da noite a sonhar com aranhas debaixo da pele e gritos que não desaparecem, e a única coisa que o impede de sair
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do quarto a correr é a escuridão e a grande distância a que a cama parece estar da porta.
- Temos de fazer alguma coisa - diz Nathaniel ao pai, após se terem passado três dias, e a mãe continuar a dormir.
Mas o rosto do pai franze-se na parte de cima, como quando Nathaniel está a gritar demasiado enquanto lava o cabelo e o som ecoa pela casa de banho.
- Não podemos fazer nada - diz ele a Nathaniel.
Não é verdade. Nathaniel sabe. Portanto quando o pai sai lá para fora para colocar os caixotes do lixo ao fundo da via de acesso («Dois minutos, Nathaniel... és capaz de ficar aqui sentado e portares-te bem durante dois minutos, não és?») Nathaniel espera até deixar de ouvir o ruído de algo a ser arrastado na gravilha e então sobe a correr para o seu quarto. Vira o caixote do lixo para o usar como banco e tira aquilo de que precisa da cómoda. Gira a maçaneta do quarto dos pais silenciosamente, entra em bicos de pés como se o chão fosse feito de algodão.
São precisas duas tentativas para ligar o candeeiro de leitura perto da cama, do lado da mãe. e depois Nathaniel sobe para os cobertores. A mãe dele não está ali, só aquela grande forma inchada debaixo dos cobertores que nem sequer se mexe quando ele a chama. Espeta-lhe um dedo, franze o sobrolho. E depois puxa os lençóis para baixo.
A Coisa Que Não É a Sua Mãe geme e semicerra os olhos à luz repentina.
Tem os cabelos revoltos e embaraçados, como as ovelhas castanhas na quintinha do Jardim Zoológico. Os olhos dela parecem ter-se afundado demasiado no rosto, e tem sulcos ao longo da boca. Cheira a tristeza. Olha para Nathaniel e pestaneja uma vez, como se ele fosse qualquer coisa de que ela se lembra mas não consegue saber bem de onde. Depois puxa os cobertores para cima da cabeça de novo e vira-se, afastando-se dele.
- Mamã? - sussurra Nathaniel, porque este lugar exige silêncio.
- Mamã, sei do que precisas.
Nathaniel esteve a pensar nisso, e lembra-se de como se sentia preso num sítio muito, muito escuro sem ser capaz de explicá-lo. E também se lembra do que ela fez por ele, na altura. Portanto agarra no livro de linguagem gestual que a Dr. Robichaud lhe deu e enfia-o debaixo dos cobertores, colocando-o nas mãos da mãe.
Sustém a respiração enquanto as mãos dela percorrem os contornos e folheiam as páginas. Ouve-se um som que Nathaniel nunca tinha ouvido antes - como o mundo a abrir-se no início de um terramoto,
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ou talvez um coração a partir-se - e o livro desliza de debaixo dos lençóis, caindo aberto no chão. De repente, a colcha ergue-se como a mandíbula articulada de uma baleia branca e ele é engolido inteiro.
Depois está no lugar onde colocou o livro de linguagem gestual, mesmo entre os braços dela. Ela abraça-o com tanta força que não há espaço para palavras entre eles, faladas ou gesticuladas. E isso não interessa absolutamente nada, porque Nathaniel compreende perfeitamente o que a mãe lhe está a dizer.
«Credo», penso, retraindo-me, «apaguem as luzes».
Mas Fisher começa a colocar papéis e relatórios em cima dos cobertores, como se tivesse reuniões com clientes demasiado exaustos para sair do quarto todos os dias. Por outro lado, que sei eu? Talvez tenha.
- Vá embora - gemo.
- Conclusão: ele recebeu um transplante de medula óssea - diz Fisher energicamente. - A Nina matou o padre errado. Portanto precisamos de arranjar uma maneira de tirar vantagem disto e livrá-la antes de se lembrar de evitá-lo, os seus olhos encontram os meus, e ele não consegue escondê-lo: o choque e, sim, a repulsa de ver-me assim. Por lavar, por vestir, por me arranjar.
«Sim, veja, Fisher», penso. «Agora já não tem de fingir que sou louca.»
Viro-me de lado, e alguns papéis caem da beira da cama.
- Não tem de fazer este jogo comigo, Nina - suspira Fisher. Contratou-me para não ir para a prisão, e caramba, não irá para a prisão - faz uma pausa, e está prestes a dizer-me algo importante, mas o que diz não tem importância nenhuma. - Já entreguei os papéis para requerer um júri, mas sabe, podemos renunciá-lo à última hora
- os olhos dele fixam a minha camisa de noite, os meus cabelos despenteados. - Era capaz de ser mais fácil convencer uma pessoa de que... de que estava demente.
Puxo os cobertores para cima da cabeça.
- Recebemos o relatório do O Brien. Fez um bom trabalho, Nina. vou deixá-lo aqui para a Nina ver...
No escuro aqui debaixo, começo a cantarolar, para não o ouvir.
- Bem.
Enfio os dedos nos ouvidos.
- Acho que não há mais nada - sinto um rebuliço à minha esquerda enquanto ele reúne os seus ficheiros. - Pode contactar-me depois do Natal - começa a afastar-se, com os sapatos caros a bater na carpete como rumores.
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Matei um homem; matei um homem. Isto tornou-se parte de mim, como a cor dos meus olhos ou a marca de nascença na omoplata direita. Matei um homem, e nada do que eu faça poderá reverter isso.
Tiro os cobertores de cima do rosto mesmo quando ele chega à porta.
- Fisher - digo, a primeira palavra que pronuncio em dias. Ele volta-se, sorri.
- vou testemunhar. O sorriso desaparece.
- Não, não vai.
- vou sim.
Aproxima-se novamente da cama.
- Se testemunhar, o Brown vai fazê-la em pedaços. Se testemunhar nem eu a poderei ajudar.
Fico a olhar para ele, sem pestanejar, durante uma vida. - E então? - digo.
- Há uma pessoa que quer falar contigo - anuncia Caleb, e deixa cair o telefone portátil em cima da cama. Visto que não me dou ao trabalho de o alcançar, Caleb parece pensar melhor. - É o Patrick acrescenta.
Uma vez, numa ida à praia, deixei o Nathaniel enterrar-me na areia, demorou tanto tempo que os montes que prendiam as minhas pernas - o sítio onde ele tinha começado - tinham secado e endurecido. O peso da praia pressionava-me o peito, e lembro-me de sentir claustrofobia enquanto as suas mãozinhas construíam uma duna à minha volta. Quando finalmente me mexi, era um Titã, erguendo-me da terra com um poder suficiente para derrubar os deuses.
Agora, observo a minha mão rastejar por cima dos cobertores em direcção ao telefone, e não consigo impedi-la. Afinal, há algo suficientemente forte para me convencer a deixar a minha paralisia e autocomiseração cuidadosas - a possibilidade de acção. E embora tivesse olhado as consequências directamente nos seus olhos amarelos de lobo, afinal ainda estou viciada. «Olá, chamo-me Nina, e preciso de saber onde é que ele está.»
- Patrick? - encosto o auscultador ao ouvido.
- Encontrei-o. Nina. ele está na Luisiana. Numa cidade chamada Belle Chasse. É padre.
Todo o ar sai-me dos pulmões bruscamente. - Detiveste-o.
Há uma hesitação.
- NãO.
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Quando me sento, os cobertores caem.
- Tu... - não consigo terminar. Há uma parte de mim com tanta esperança que ele me conte algo terrível, algo que eu quero desesperadamente ouvir. E há outra parte de mim que espera que aquilo em que me transformei não o tenha envenenado também.
- Falei com o tipo. Mas não podia deixá-lo aperceber-se de que ando atrás dele, nem sequer que sou do Maine. Lembras-te de estudar isto no início, com o Nathaniel: se dermos alguma dica a um molestador, ele irá fugir, e nunca obteremos uma confissão. O Gwynne é ainda mais desconfiado, porque sabe que o meio-irmão foi morto devido a uma alegação de abuso sexual de crianças que ele próprio cometeu - Patrick hesita. - Portanto, em vez disso, disse que ia casar-me e estava à procura de uma igreja para a cerimónia. Foi a primeira coisa que me veio à cabeça.
As lágrimas vêm-me aos olhos. Ele esteve ao alcance de Patrick, e não aconteceu nada.
- Prende-o. Por amor de Deus, Patrick, larga este telefone e corre para lá...
- Nina, pára. Não sou polícia na Luisiana. O crime não ocorreu aqui. Preciso de ter um mandado de captura no Maine antes de acusar Gwynne de fuga na Luisiana, e, mesmo nessa altura, ele pode contestar a extradição - hesita. - E o que achas que o meu chefe dirá quando souber que estou a usar o meu distintivo para obter informações sobre um caso para o qual nem sequer fui designado?
- Mas Patrick... tu encontraste-o.
- Eu sei. E ele vai ser castigado - faz-se um silêncio. - Só que não vai ser hoje.
Ele pergunta-me se estou bem, e eu minto-lhe. Como poderia estar bem?
Voltei ao ponto de partida. Só que agora, depois de ser julgada pelo homicídio de um homem inocente, Nathaniel vai ser envolvido noutro julgamento. Enquanto eu estiver na prisão, ele terá de enfrentar o seu agressor, reviver o pesadelo. Nathaniel sofrerá, ficará magoado.
Patrick despede-se, e eu desligo o telefone. Fico a olhar para o auscultador na minha mão por um minuto. Esfregando os contornos do plástico macio.
Da primeira vez, tinha muito mais a perder.
- O que estás a fazer?
A minha cabeça sai da gola alta para ver Caleb de pé no quarto.
- O que te parece que estou a fazer? - abotoo as calças de ganga. Enfio os pés nas minhas socas.
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- O Patrick fez-te sair da cama - diz ele, e há uma nota na sua voz que está fora do tom.
- O Patrick deu-me uma informação que me fez sair da cama
- corrijo. Tento passar ao lado de Caleb, mas ele barra-me a saída. Por favor, tenho de ir a um sítio.
- Nina, tu não vais a lado nenhum. A pulseira.
Olho para o rosto do meu marido. Há rugas na sua testa que não me lembro de ver; com grande choque apercebo-me de que fui eu que as pus lá.
Devo-lhe isto.
Portanto ponho a mão no braço dele, conduzo-o para a cama, faço-o sentar ao meu lado na beira.
- O Patrick descobriu o nome do dador de medula óssea. É o padre que esteve de visita a St. Anne s este Outubro. Aquele do gato. Chama-se Arthur Gwynne, e trabalha numa igreja em Belle Chasse, no Luisiana.
O rosto de Caleb empalidece.
- Porque... porque é que estás a dizer-me isto?
«Porque da primeira vez, agi sozinha, quando no mínimo devia ter-te contado os meus planos. Porque quando te perguntarem em tribunal, não terás de testemunhar.»
- Porque - digo - ainda não acabou. Ele recua.
- Nina. Não - eu levanto-me, mas ele agarra-me o pulso, puxando-me para junto do seu rosto. O meu braço, torcido, dói-me.
- O que vais tu fazer? Violar a tua prisão domiciliária para matar outro padre? Uma sentença de prisão perpétua não é suficiente para ti?
- Na Luisiana têm pena de morte - riposto.
A minha resposta é uma guilhotina, separando-nos. Caleb liberta-me tão rapidamente que tropeço e caio no chão.
- É isso que queres? - pergunta em voz baixa. - És assim tão egoísta?
- Egoísta? - agora estou a chorar convulsivamente. - Estou a fazer isto pelo nosso filho.
- Estás a fazer isto por ti, Nina. Se pensasses no Nathaniel, só um bocadinho, concentravas-te em ser a sua mãe. Saías da cama e continuavas a viver a tua vida deixando que o sistema legal lidasse com o Gwynne.
- O sistema legal. Queres que eu fique à espera que os tribunais acusem este sacana? Enquanto ele viola mais dez, ou vinte crianças? E depois que espere mais enquanto os governadores dos nossos estados decidam a quem caberá a honra de o levar a julgamento? E
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depois que volte a esperar enquanto o Nathaniel testemunha contra o filho da mãe? E que veja o Gwynne receber uma sentença que termina antes de o nosso filho deixar de ter pesadelos sobre o que lhe fizeram? - inspiro longa e hesitantemente. - Aí tens o teu sistema legal, Caleb. Vale a pena esperar por ele?
Visto que não responde, levanto-me.
-Já vou para a prisão por matar um homem. Já não tenho vida. Mas o Nathaniel tem.
- Queres que o teu filho cresça sem ti? - a voz de Caleb sai entrecortada. - Deixa-me poupar-te o trabalho.
Levantando-se abruptamente, sai do quarto, chamando Nathaniel.
- Hei, companheiro - ouço-o dizer. - Vamos numa aventura. As minhas mãos e os meus pés ficam dormentes. Mas consigo ir
até ao quarto de Nathaniel, e encontro Caleb enfiando ao acaso algumas roupas num saco do Batman.
- O que....o que estás a fazer?
- O que te parece que estou a fazer? - responde Caleb, um eco das minhas palavras anteriores.
Nathaniel salta para cima e para baixo na cama. Os cabelos voam-lhe para os lados como seda.
- Não podes levá-lo para longe de mim. Caleb fecha o saco.
- Porquê? Tu estás disposta a afastar-te dele - volta-se para Nathaniel, forçando um sorriso. - Estás pronto? - pergunta, e Nathaniel salta para o seu braço esticado.
- Adeus, Mamã! - diz numa voz esganiçada. - Vamos numa aventura!
- Eu sei - sorrir é difícil, com este nó na garganta. - Já ouvi. Caleb passa por mim levando-o. Ouve-se o estrondo dos pés a descer as escadas, e o ruído inconfundível da porta a bater. O motor da carrinha de Caleb, a acelerar ao longo da via de acesso à casa. Depois fica tudo tão silencioso que consigo ouvir as minhas próprias apreensões, pequenos sussurros no ar em meu redor.
Deito-me na cama de Nathaniel, nos lençóis que cheiram a lápis de cera e a bolo de gengibre. A verdade é que não posso sair desta casa. Assim que o fizer, os carros da polícia virão a uivar atrás de mim. Serei presa mesmo antes de conseguir estar a bordo de um avião.
Caleb conseguiu; impediu-me de fazer o que eu desejava tanto fazer.
Porque ele sabe que se eu sair por aquela porta agora, não irei atrás de Arthur Gwynne. Irei à procura do meu filho.
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Passados três dias, Caleb ainda não me telefonou. Já tentei todos os hotéis e motéis da zona, mas, se ele estiver hospedado em algum deles, não será sob o seu verdadeiro nome. No entanto, é véspera de Natal, e de certeza que voltarão. O Caleb dá muita importância às tradições natalícias, e assim embrulhei todos os presentes do Nathaniel que guardei no sótão todo o ano. Das reservas cada vez mais escassas de comida no frigorífico cozinhei um frango e fiz sopa de aipo; pus a mesa com o serviço de porcelana requintado do nosso casamento.
Também fiz limpezas, porque quero que Caleb repare nisso assim que entre pela porta. Talvez se notar uma diferença no exterior, compreenda que também estou diferente por dentro. Os meus cabelos estão enrolados num chignon, e visto calças pretas de veludo e uma camisola vermelha. Nas orelhas tenho o presente que o Nathaniel me deu o Natal passado - brincos com pequenos bonecos de neve feitos de pasta de modelar Sculpy.
E no entanto, tudo isto é apenas um verniz exterior. Tenho olheiras em volta dos olhos - não durmo desde que foram embora, como se fosse uma espécie de castigo cósmico por passar os dias a dormitar quando estávamos todos juntos. Ando pelos corredores à noite, tentando encontrar os sítios na carpete gastos pelos pés de Nathaniel a correr. Observo fotografias antigas. Assombro a minha própria casa.
Não temos árvore, porque não pude sair para cortar uma. Temos a tradição de percorrer o nosso terreno no sábado antes do Natal para escolher uma árvore em família. Mas por outro lado, também não temos sido uma família exemplar nesta época natalícia.
Às quatro da tarde já acendi velas e coloquei um CD de Natal. Sento-me de mãos cruzadas no colo e fico à espera.
É algo que estou a estudar.
Às quatro e meia começa a nevar. Reorganizo os presentes do Nathaniel por tamanhos. Interrogo-me se haverá uma acumulação de neve suficiente para que ele desça a encosta das traseiras com o seu trenó Flexible Flyer que está encostado à parede, enfeitado com um laço.
Dez minutos depois, ouço o motor ruidoso de uma carrinha a chegar à entrada. Ponho-me de pé num salto, lanço um último olhar nervoso em volta, e abro a porta com um grande sorriso. O homem da UPS, cansado e coberto de flocos de neve, está no meu alpendre com uma encomenda.
- Nina Frost? - pergunta num tom monocórdico.
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Recebo o embrulho enquanto ele me deseja um feliz Natal. Dentro de casa, no sofá, abro-o, rasgando o papel. Uma agenda encadernada a couro para o ano 2002, carimbada por dentro com o nome dos escritórios de advogados de Fisher. «FELIZ NATAL dos Exmos. Srs. Carrington, Whitcomb, Horoby e Platt.»
- Isto vai ser tão útil - digo em voz alta -, depois de ser condenada.
Quando as estrelas surgem timidamente no céu nocturno, desligo a aparelhagem. Olho pela janela e observo o caminho de acesso a ser apagado pela neve.
Mesmo antes de Patrick se divorciar, oferecia-se para trabalhar no Natal. Por vezes, chega a fazer dois turnos. As chamadas normalmente levam-no a casas de idosos, a comunicar um choque estranho ou um carro suspeito que já desapareceu quando Patrick chega. O que estas pessoas querem é companhia numa noite em que mais ninguém está sozinho.
- Feliz Natal - diz ele, afastando-se da casa de Maisie Jenkins, de oitenta e dois anos, recentemente viúva.
- Deus o abençoe - responde ela, entrando numa casa tão vazia como aquela para que Patrick está prestes a regressar.
Podia ir visitar Nina, mas de certeza que Caleb trouxe Nathaniel para passar a noite. Não, Patrick não interromperia isso. Em vez disso, mete-se no carro e percorre as ruas escorregadias de Biddeford. As luzes natalícias brilham como jóias nos alpendres, no interior das janelas, como se o mundo tivesse sido salpicado com uma abundância de riquezas. Andando devagar, imagina as crianças adormecidas. Mas o que são as ameixas de açúcar?
De repente, um vulto garrido passa a correr pelos faróis de Patrick, e ele trava bruscamente. Vira o carro a derrapar evitando bater na pessoa que atravessou a estrada a correr. Saindo do carro, apressa-se a chegar junto do homem caído.
- O senhor está bem? - pergunta Patrick.
O homem vira-se. Está vestido de Pai Natal, e vapores alcoólicos erguem-se da sua barba postiça.
- São Nico para si, rapaz. Que não haja confusões. Patrick ajuda-o a sentar-se.
- Magoou-se?
- Deixe-me em paz - o Pai Natal debate-se para se libertar dele.
- Podia processá-lo.
Pequenos rebuçados redondos ou ovais muito associados ao Natal. (N. da T.)
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- Por não o atropelar? Duvido.
- Por condução imprudente de um veículo. Provavelmente está bêbedo.
Ao ouvir isto, Patrick ri.
- Ao contrário de si? ? - Não bebi nem uma gota!
- Está bem, Pai Natal - Patrick levanta-o. - Tem casa para onde ir?
- Tenho de ir buscar o meu trenó.
- É claro que sim - com um braço protector, conduz o homem para o seu carro.
- As renas roem as tábuas de madeira se as deixar demasiado tempo sozinhas.
- É claro.
- Não vou entrar aí. Ainda não estou arrumado, sabe. Patrick abre a porta de trás.
??? - vou correr esse risco, Avozinho. Vamos lá. vou levá-lo para Uma cama bem quentinha para que durma até curar isso. O Pai Natal abana a cabeça.
- A minha patroa vai matar-me. A Sr.a Natal vai ultrapassar isso.
O sorriso dele esmorece quando olha para Patrick. ?? - Vá lá, senhor guarda. Seja compreensivo. Sabe o que é ir para casa para junto da mulher que amamos e que só nos quer ver dali para fora?
Patrick fá-lo entrar no carro, talvez com um pouco de força a mais. Não, ele não sabe o que isso é. Não consegue ultrapassar a primeira parte dessa frase: «Sabe o que é ir para casa para junto da mulher que amamos?»
Quando chega à esquadra, o Pai Natal está inconsciente e tem de ser carregado para dentro do edifício por Patrick e pelo guarda de serviço. Patrick pica o ponto à saída, entrando na sua própria carrinha. Mas em vez de ir para casa, ele segue na direcção oposta, passando pela casa de Nina. Só para ter a certeza de que está tudo bem. É algo que não faz regularmente desde o ano em que regressou a Biddeford, quando Nina e Caleb já estavam casados. Passava por lá de carro quando fazia o turno do cemitério e via as luzes todas apagadas, excepto a do quarto deles. Uma dose extra de segurança, pelo menos era o que dizia para consigo na altura.
Anos depois, ainda não acredita.
É supostamente uma coisa muito importante, Nathaniel sabe. Não só pode ficar acordado até muito tarde na Véspera de Natal,
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como também pode abrir os presentes que quiser, ou seja, todos. E estão hospedados num antigo castelo verdadeiro, num país diferente chamado Canadá.
O quarto deles neste hotel-castelo tem uma lareira lá dentro, e uma ave que parece verdadeira mas que está morta. Empalhada, foi o que o pai disse, e talvez parecesse que tivesse comido demasiado, embora Nathaniel não ache que se possa morrer disso. Há duas camas enormes e o tipo de almofadas que se afundam quando nos deitamos em cima delas, em vex de voltarem à forma inicial.
Toda a gente fala uma língua diferente, que Nathaniel não percebe e que o faz lembrar-se da mãe.
Abriu uma camioneta telecomandada, um canguru de peluche, um helicóptero. Carros Matchbox de tantas cores diferentes que o fazem ficar tonto. Dois jogos de computador e uma máquina de pinball minúscula que pode segurar nas mãos. O quarto está cheio de papel de embrulho, que o pai está ocupado a lançar para o lume.
- Que quantidade de presentes - diz pensativamente, sorrindo para Nathaniel.
O pai tem deixado Nathaniel tomar as decisões. Para isso, ficaram todo o dia a brincar num forte e a andar num carro de diversões sobre carris, o fun qualquer coisa, Nathaniel não se lembra. Foram a um restaurante com uma grande cabeça de alce montada no exterior e Nathaniel pôde pedir cinco sobremesas. Voltaram para o quarto e abriram os presentes, deixando as meias para amanhã. Fizeram tudo o que Nathaniel pediu, o que nunca acontece quando está em casa.
- Então - diz o pai. - O que se segue?
Mas Nathaniel só quer que tudo volte ao que era dantes.
A campainha da porta soa às onze horas e é uma árvore de Natal. Então a cabeça de Patrick espreita através dos ramos, de trás do enorme abeto.
- Olá - diz ele.
O meu rosto parece feito de borracha, este sorriso parece estranho nele. -Olá.
- Trouxe-te uma árvore.
- Já reparei - recuando, deixo-o entrar em casa. Ele encosta a árvore à parede, e as carumas chovem em volta dos nossos pés.
- A carrinha do Caleb não está aqui.
Stuffed, na versão original em inglês, que significa tanto empalhada como empanturrada. (N. da T.) .,-., ..,,.
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- E o Caleb também não, nem o Nathaniel. Os olhos de Patrick escurecem.
- Oh, Nina. Meu Deus, lamento.
- Não lamentes - mostro-lhe o meu melhor sorriso. - Agora tenho uma árvore. E alguém que me ajude a comer o jantar da Consoada.
- Ora, Sr Maurier, terei muito gosto - ao mesmo tempo, apercebemo-nos do erro de Patrick: tratar-me pelo apelido de solteira, o apelido pelo qual me conhecia. Mas nenhum de nós se incomoda a fazer a correcção.
- Entra. vou tirar a comida do frigorífico.
- É só um segundo - corre para o carro, e volta com vários sacos de compras do Wal-Mart. Alguns estão presos com fitas. Feliz Natal - uma ideia posterior, inclina-se para a frente e beija-me na face.
- Cheiras a bourbon.
- Deve ser do Pai Natal - diz Patrick. - Tive o incomparável prazer de enfiar o São Nico numa cela para curar uma bela bebedeira - enquanto fala, começa a abrir os sacos. Cracker Jacks, Cheetos, Chex Mix. Champanhe sem álcool.
- Não havia muitos sítios abertos - desculpa-se.
Agarrando no champanhe falso, volto a garrafa nas minhas mãos.
- Nem sequer me deixas apanhar um pifo, ha?
- Não, se isso te fizer ir para a prisão - Patrick cruza o olhar com o meu. - Tu sabes quais são as regras, Nina.
E porque ele sempre soube o que é melhor para mim, sigo-o para a sala de estar, onde colocamos a árvore no suporte vazio. Acendemos a lareira e, em seguida, penduramos ornamentos tirados de caixas que tenho guardadas no sótão.
- Lembro-me deste - diz Patrick, tirando uma lágrima delicada de vidro com uma figurinha lá dentro.
- Costumava haver duas.
- E depois sentaste-te em cima de uma.
- Pensei que a tua mãe ia matar-me.
- Acho que ela ia, mas tu já estavas a sangrar... Patrick desata a rir.
- E tu não paravas de apontar para mim a dizer: «Ele tem um corte no rabo» - pendura a lágrima na árvore, ao nível do peito. Para que saibas, ainda tenho a cicatriz.
- Pois, está bem.
- Queres ver?
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Ele está a brincar, de olhos cintilantes. Mas tenho de fingir que estou ocupada com outra coisa na mesma.
Quando terminamos, sentamo-nos no sofá a comer frango frio e Chex Mix. Os nossos ombros tocam-se ao de leve, e lembro-me de como costumávamos adormecer na doca flutuante do lago da cidade, com o sol a bater-nos no rosto e no peito, aquecendo a nossa pele exactamente à mesma temperatura. Patrick coloca os outros sacos do Wal-Mart debaixo da árvore.
- Tens de prometer-me que esperas até de manhã para os abrires. Nessa altura apercebo-me; ele vai embora.
- Mas a neve... Ele encolhe os ombros.
- Tracção às quatro rodas. Não há problema.
Faço girar o meu copo, de forma que o champanhe falso se mexa lá dentro.
- Por favor - digo, e é tudo. Já era suficientemente mau antes. Agora que o Patrick esteve aqui, com a sua voz a encher a sala, o seu corpo a ocupar o espaço ao lado do meu, parecerá muito mais vazio quando ele for embora.
- Já é amanhã - Patrick aponta para o relógio: 12h14. - Feliz Natal - empurra um dos sacos de plástico para o meu colo.
- Mas eu não comprei nada para ti - não digo aquilo que estou a pensar: que em todos estes anos depois de Patrick ter regressado a Biddeford, ele não me deu um presente de Natal. Traz presentes para o Nathaniel, mas há entre nós um acordo tácito... algo mais seria andar na corda bamba nos limites da decência.
- Abre lá.
Dentro do primeiro saco do Wal-Mart está uma tenda pequena. Dentro do segundo, uma lanterna e um jogo novo de Cluedo. Um sorriso atravessa o rosto de Patrick.
- Agora é a tua oportunidade de me ganhares, não que sejas capaz.
Encantada, retribuo-lhe o sorriso.
- vou desancar-te - tiramos a tenda da sua bolsa protectora e montamo-la em frente à árvore de Natal. Mal há espaço para dois, e no entanto ambos rastejamos lá para dentro. - Acho que as tendas ficaram mais pequenas.
- Não, nós é que ficámos maiores - Patrick coloca o tabuleiro do jogo entre as nossas pernas cruzadas. - Até vou deixar-te ser a primeira.
- És um príncipe entre os homens - digo, e começamos a jogar. Cada vez que lançamos o dado regredimos um ano, até ser mais fácil
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imaginar que a neve lá fora é um campo de salsa-burra; que este torneio é de vida ou morte; que o mundo não é maior do que Patrick e eu e um acampamento no quintal. Os nossos joelhos chocam com força e o nosso riso enche a minúscula pirâmide de vinil. As luzes cintilantes na árvore de Natal, lá fora, poderiam ser pirilampos. As chamas atrás de nós, uma fogueira. Patrick faz-me voltar ao passado, e esse é o melhor presente que eu poderia receber.
Ele vence, por acaso. Foi a menina Scarlett, na biblioteca, com a chave-inglesa.
- Exijo uma desforra - anuncio.
Patrick tem de recuperar o fôlego, de tanto rir.
- Quantos anos estiveste na faculdade? - Cala-te, Patrick, e começa outra vez.
- Nem pensar. vou desistir enquanto ainda vou à frente. Por... quantos são?... trezentos jogos?
Tento tirar-lhe a peça do jogo, mas ele mantém-na fora do meu alcance.
- És tão chato - digo.
- E tu tens mau perder - ele agita a mão mais alto, e, numa tentativa para a alcançar, viro o tabuleiro de lado e deito abaixo a tenda também. Caímos num amontoado de vinil e cartões de Cluedo e aterramos de lado, encolhidos e enrodilhados.
- Da próxima vez que eu te comprar uma tenda - diz Patrick, sorrindo -, vou comprá-la um número acima.
A minha mão pousa-lhe na face, e ele fica absolutamente imóvel. com os seus olhos pálidos fixos nos meus, num desafio.
- Patrick - sussurro. - Feliz Natal - e beijo-o.
Quase tão depressa ele afasta-se de mim. Agora nem sequer posso olhar para ele. Não acredito que fiz isto. Mas depois a sua mão curva-se no meu maxilar, e ele retribui o beijo como se estivesse a verter a sua alma dentro de mim. Chocamos com os dentes e os narizes, arranhamo-nos e roçamo-nos, e durante o processo não nos separamos. O sinal da Linguagem Gestual americana para amigos: dois indicadores, presos pelos nós dos dedos.
Acabamos por sair da tenda. O fogo é quente do lado direito do meu rosto, e os dedos de Patrick estão presos nos meus cabelos. Isto é mau, eu sei que isto é mau, mas há um lugar para ele dentro de mim. Parece que ele estava primeiro, antes de qualquer outra pessoa. E penso, não pela primeira vez, que o que é imoral nem sempre é errado.
Apoiando-me nos cotovelos, fico a olhar para ele.
- Porque é que te divorciaste?
? - Porque achas? - responde suavemente.
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Desabotoo a minha blusa e depois, corando, volto a fechá-la. Patrick cobre as minhas mãos com as dele e faz deslizar as mangas translúcidas para baixo. Depois despe a camisola, e eu toco ao de leve no seu peito com os dedos, percorrendo uma paisagem que não é de Caleb.
- Não o deixes entrar - implora Patrick, porque sempre foi capaz de pensar os meus pensamentos. Beijo-o, passando pelos mamilos até à seta de pêlos pretos que desaparece debaixo das suas calças. As minhas mãos tentam abrir o cinto, até estar a segurá-lo. Baixando-me mais, meto-o na boca.
Num instante, ele puxa-me para cima pelos cabelos, esmagando-me contra o seu peito. O coração dele bate tão rápido, um chamamento.
- Desculpa - murmura no meu ombro. - É demasiado. Ter-te toda, é demasiado.
Passado um momento, ele saboreia o caminho descendo por mim. Tento não pensar na minha barriga mole, nas minhas estrias, nos meus defeitos. Estas são coisas com as quais não temos de nos preocupar num casamento.
- Eu não estou... tu sabes.
- Tu não estás o quê? - as suas palavras são um sussurro entre as minhas pernas.
- Patrick - puxo-lhe os cabelos. Mas o dedo dele desliza para o interior, e eu estou a cair. Ele ergue-se por cima de mim, segura-me junto a si, adapta-se. Movemo-nos como se fizéssemos isto desde sempre. Depois Patrick recua, retira-se e vem-se entre nós.
Junta-nos, pele com pele, uma culpa viscosa. »
- Não pude...
- Eu sei - levo os meus dedos aos lábios dele.
- Nina - fecha os olhos. - Amo-te.
- Também sei isso - é apenas o que me permito dizer, agora. Toco na encosta dos seus ombros, na linha da sua coluna. Tento decorá-las.
- Nina - Patrick esconde um sorriso na curva do meu pescoço.
- Ainda sou melhor no Cluedo.
Ele adormece nos meus braços e eu observo-o. É quando lhe digo aquilo que não consigo dizer a mais ninguém. Cerro a mão em punho, a letra D, e movimento-a em círculo por cima do seu coração. É a maneira mais sincera que conheço de pedir desculpa.
Patrick acorda quando o sol é uma luz brilhante na linha do horizonte. Toca no ombro de Nina, e depois no seu próprio peito, só
para se certificar de que aquilo é real. Deita-se de costas, fita as brasas incandescentes na lareira e deseja que a manhã nunca chegue.
Mas ela virá, e com ela, todas as explicações. E apesar do facto de ele conhecer Nina melhor do que ela própria se conhece, não tem a certeza de que desculpa escolherá. Ganha a vida a julgar as más acções das outras pessoas. No entanto, qualquer que seja o argumento que ela use, para ele soará sempre igual: «Isto não devia ter acontecido; isto foi um erro».
Há apenas uma coisa que Patrick deseja ouvir nos lábios dela, que é o seu nome.
Tudo o resto - bem, apenas faria isto esmorecer, e Patrick quer manter a noite intacta. Portanto retira cuidadosamente o braço de debaixo do doce peso da cabeça de Nina. Beija-lhe a fronte, respira-a fundo. Larga-a, antes que ela tenha oportunidade de o largar a ele.
A tenda, erguida, é a primeira coisa que vejo. A segunda é a ausência de Patrick. A dada altura, durante aquele incrível sono profundo, ele deixou-me.
Provavelmente é melhor assim.
Quando acabo de limpar os restos do nosso banquete da noite anterior e de tomar duche, estou quase convencida de que isto é verdade. Mas não consigo imaginar ver Patrick de novo sem o visualizar sobre mim, com os seus cabelos negros a roçarem-me no rosto. E acho que a paz dentro de mim, espalhada como mel pelo meu sangue, não pode ser atribuída ao Natal.
«Perdoai-me Pai, porque pequei.»
Mas terei pecado? O Destino cumprirá alguma vez as regras do jogo? Há um abismo tão grande como um oceano entre o dever e o querer, e eu estou a afogar-me nele.
A campainha da porta soa, Caleb está no alpendre, com Nathaniel à sua frente. O sorriso do meu filho é mais radioso do que o reflexo ofuscante da neve no caminho de acesso e, por um momento angustiante, espreito por cima do ombro de Caleb para ver se as marcas feitas pelo carro da polícia de Patrick já foram cobertas pela tempestade. Conseguiremos sentir o cheiro da transgressão, como um perfume entranhado na pele?
- Mamã! - grita Nathaniel.
Levanto-o bem alto, deleitando-me com o peso dele. O meu coração bate como um beija-flor na garganta. ?u. -Caleb. Ele não olha para mim.
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Esta é uma visita de compaixão, então. Dentro de minutos, Nathaniel terá ido embora. Abraço-o com mais força.
- Feliz Natal, Nina - diz Caleb. - Venho buscá-lo amanhã. acena, e em seguida sai do alpendre. Nathaniel conversa, o seu entusiasmo envolve-nos, juntando-nos, enquanto a carrinha se afasta. Estudo as pegadas que Caleb deixou no caminho de acesso coberto de neve como se fossem pistas, as provas inverosímeis de um fantasma que vai e vem.
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As nossas virtudes são frequentemente apenas vícios disfarçados.
- François, Duc de La Rochefoucauld
Hoje na escola a menina Lydla deu-nos uma merenda especial.
Primeiro, tivemos um pedaço de alface com uma passa. Era
um ovo.
Depois uma lagarta de queijo ralado.
A seguir veio a crisálida, uma uva.
A última parte era um pedaço de bolo de canela, com a forma do corpo de uma borboleta.
Depois, fomos lá para fora e libertámos as borboletas-monarca que nasceram na nossa aula. Uma pousou no meu pulso. Agora estava diferente, mãe eu sabia que era a mesma lagarta que eu tinha encontrado há uma semana e entregado à menina Lydia. Depois voou em direcção ao Sol.
Por vezes as coisas mudam tão rápido que faz a minha garganta doer de dentro para fora.
SETE
Quando eu tinha quatro anos encontrei uma lagarta no parapeito da janela do meu quarto e decidi salvar-lhe a vida. Obriguei a minha mãe a levar-me à biblioteca para poder procurar num guia de campo. Fiz orifícios na parte de cima de um frasco; dei-lhe erva e folhas e um pequeno dedal cheio de água. A minha mãe disse que se eu não soltasse a lagarta, ela morreria, mas eu estava convencida de que eu é que sabia. Lá fora no mundo, podia ser atropelada por uma camioneta. Podia ser queimada pelo sol. A minha protecção aumentaria as hipóteses dela.
Mudei a sua comida e água religiosamente. Cantei-lhe quando o Sol se punha. E no terceiro dia, apesar das minhas melhores intenções, a lagarta morreu.
Anos depois, está a acontecer tudo outra vez.
- Não - digo a Fisher. Parámos de andar; o ar frio de Janeiro é uma serpente atraída pelas pregas do meu casaco. Devolvo-lhe bruscamente o papel, como se manter o nome do meu filho longe da minha vista pudesse impedi-lo de estar na lista das testemunhas.
- Nina, a decisão não é sua - diz ele gentilmente. - O Nathaniel vai ter de testemunhar.
- O Quentin Brown está a fazer isto só para me perturbar. Quer que eu veja o Nathaniel ter uma recaída em tribunal para ver se me descontrolo outra vez, desta vez em frente a um juiz e a um júri - as lágrimas gelam-me nas pontas das pestanas. Quero que tudo isto acabe, agora. Foi por isso que assassinei um homem... porque pensei que isso impedisse esse pedregulho de rolar continuamente; porque se o arguido desaparecesse, então o meu filho não teria de se sentar no banco das testemunhas e voltar a contar a pior coisa que alguma vez lhe aconteceu.
Queria que o Nathaniel pudesse encerrar este capítulo atroz - e portanto, ironicamente, eu não o fiz.
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Mas mesmo este enorme sacrifício - da vida do padre, do meu futuro - não surtiu o resultado que devia.
Nathaniel e Caleb têm-se mantido à distância desde o Natal, mas de vez em quando o Caleb trá-lo para casa para passar algumas horas comigo. Não sei como Caleb explicou esta nova forma de vida ao Nathaniel. Talvez tivesse dito que eu estava demasiado doente para tomar conta de uma criança, ou demasiado triste; e talvez ambas as coisas sejam verdade. Uma coisa é certa - não é bom para o Nathaniel ver-me planear o meu próprio castigo. Ele já viu de mais.
Sei o nome do motel onde eles estão hospedados e, por vezes, quando me sinto particularmente corajosa, telefono. Mas é o Caleb quem atende sempre o telefone e ou não temos nada para dizer um ao outro, ou há tantas palavras a entupir a linha que nos liga que nenhuma delas avança.
Nathaniel, porém, tem passado bem. Quando vem a casa, está sorridente. Canta-me canções que a menina Lydia ensinou à turma. Já não dá um salto quando surgimos por trás dele e lhe tocamos no ombro.
Todos estes progressos serão apagados numa audiência de competência.
No parque atrás de nós, uma criança pequena está deitada de costas a fazer um anjo de neve. O problema destes é que temos de os estragar para nos levantarmos. Façamos o que façamos, há sempre uma pegada que nos liga ao chão.
- Fisher - digo simplesmente -. eu vou para a prisão.
- A Nina não...
? - Fisher. Por favor - toco-lhe no braço. - Eu consigo lidar com isso. Até acho que é o que mereço, por causa daquilo que fiz. Mas
matei um homem por uma razão, e apenas uma: para impedir que o
Nathaniel sofra mais. Quero que ele nunca mais pense sobre aquilo
que lhe aconteceu. Se o Quentin quer castigar-me, pode castigar-me.
Mas o Nathaniel fica fora disto.
Ele suspira.
- Nina. farei o melhor que posso...
- O Fisher não está a perceber - interrompo. - Isso não basta.
Visto que o juiz Ncal vem de Portland, não possui aposentos no Tribunal Superior de Alfred, portanto foi-lhe cedido o refúgio de outro juiz enquanto durasse o meu julgamento. No entanto, o juiz Mclntyre costuma passar os seus tempos livres a caçar. Assim, a pequena sala está decorada com cabeças de alces e veados de cauda branca, presas que perderam a batalha. «E eu?» penso. «Serei a seguir?»
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Fisher fez um requerimento, e a reunião resultante realizar-se-á à porta fechada para evitar o envolvimento dos meios de comunicação social.
- Meritíssimo, isto é tão ultrajante - diz ele - que eu nem sequer consigo expressar a minha absoluta consternação. O estado tem a morte do padre Szyszynski filmada em vídeo. Que necessidade poderão ter de que esta criança seja testemunhadealguma coisa?
- Dr. Brown? - incita o juiz.
- Meritíssimo, os alegados motivos para o assassínio foram as condições psiquiátricas do rapaz na altura, e o facto de a arguida acreditar que o filho tinha sido vítima de abuso sexual nas mãos do padre Szys ynski. O estado teve conhecimento de que, de facto, isso não é verdade. É importante que o júri tenha a oportunidade de ouvir o que o Nathaniel realmente disse à mãe antes de ela ter matado este homem.
O juiz abana a cabeça.
- Dr. Carrington, vai ser muito difícil para mim anular uma notificação se o estado alega que isso será relevante. Mas, quando se iniciar o julgamento, poderei ser capaz de deliberar que não tem relevância nenhuma... mas por agora, o depoimento desta testemunha contribui para o motivo.
Fisher tenta mais uma vez.
- Se o estado entregar uma alegação por escrito daquilo que acreditam ser o testemunho da criança, talvez possamos fazer um acordo, para que o Nathaniel não tenha de subir ao banco das testemunhas.
- Dr. Brown, isto parece ser razoável - diz o juiz.
- Discordo. Ter esta testemunha, em carne e osso, é crucial para o meu caso.
Há um momento de silêncio perplexo.
- Pense duas vezes, doutor - instiga o juiz Neal.
- Já pensei, Meritíssimo, acredite.
Fisher olha para mim, e eu sei exactamente o que ele está prestes a fazer. Os seus olhos estão escuros de compreensão, mas espera que eu acene com a cabeça antes de se voltar novamente para o juiz.
- Se o estado vai ser assim tão inflexível, então precisamos de uma audiência de competência. Estamos a falar de uma criança que ficou muda duas vezes nas últimas seis semanas.
O juiz aceitará imediatamente este compromisso, eu sei. Também sei que, de todos os advogados de defesa que já vi em acção, Fisher é um dos mais compassivos para as crianças nas audiências de competência. Mas desta vez não será. Porque agora, a melhor das hipóteses é conseguir convencer o juiz a declarar Nathaniel não
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competente, para que este não tenha de sofrer ao longo de um julgamento inteiro. E Fisher só conseguirá isso tentando activamente que Nathaniel fique desfeito em pedaços.
Fisher guardou-a para si, mas a sua opinião é que a arte começa a imitar a vida. Ou seja, a defesa por insanidade de Nina - de início uma completa encenação - está a começar a andar lá muito perto. Para evitar que ficasse destroçada após a audiência dessa manhã, levou-a a almoçar fora num restaurante chique, um local onde seria menos provável que ela tivesse um ataque de nervos. Fê-la informá-lo de todas as perguntas que o promotor de justiça faria a Nathaniel no banco das testemunhas, perguntas que ela tinha feito mil vexes a crianças que eram testemunhas.
O tribunal está escuro agora, vazio, à excepção dos guardas, de Caleb, de Nathaniel e de Fisher. Percorrem o corredor rapidamente, Nathaniel preso nos braços do pai.
- Ele está um bocadinho nervoso - diz Caleb, pigarreando. Fisher ignora o comentário. É como andar na corda bamba a três
mil metros do chão. A última coisa que deseja é ser duro com o rapaz; mas por outro lado, se for demasiado solícito, Nathaniel poderia sentir-se suficientemente à vontade na audiência para o declararem competente para comparecer ao julgamento. De qualquer forma. Nina irá ficar sempre contra ele.
Dentro do tribunal, Fisher liga as luzes do tecto. Elas assobiam, e depois inundam a sala com um brilho excessivo. Nathaniel aconchega-se mais perto do pai, com o rosto encostado ao ombro do homem corpulento. Onde está um pacote de pastilhas para o estômago turns quando precisamos dele?
- Nathaniel - diz Fisher num tom firme. - Preciso que vás sentar-te naquela cadeira. O teu pai vai estar lá atrás. Ele não pode dizer-te nada, e tu não podes dizer-lhe nada a ele. Tens de limitar-te a responder às minhas perguntas. Percebes?
Os olhos do rapaz são vastos como a noite. Segue Fisher para o banco das testemunhas, e depois trepa para cima da cadeira que foi colocada lá dentro.
- Desce por um segundo - Fisher vai até lá e tira a cadeira, substituindo-o por uma cadeira baixa. Agora, a testa de Nathaniel nem sequer aparece por cima da borda da barra das testemunhas.
- Eu... eu não consigo ver nada - sussurra Nathaniel.
- Não precisas de ver.
Fisher está prestes a começar a fazer perguntas para praticar quando um ruído o distrai - Caleb, a reunir metodicamente todos
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os bancos altos da sala de audiências, juntando-os ao pé das portas duplas.
- Achei que talvez estivessem... melhor noutro sítio. Para que não estejam aqui logo de manhã - cruza o olhar com o de Fisher.
O advogado acena com a cabeça.
- O armário. Um dos empregados da manutenção pode trancá-los. Quando se volta novamente para o rapaz , tem de se esforçar
para não ter um sorriso no rosto.
Agora Nathaniel sabe porque é que o Mason tenta sempre puxar a coleira - esta coisa chamada gravata, que nem sequer tem nenhum laço, está a apertar-lhe o pescoço. Puxa-a outra vez, mas o pai agarra-lhe na mão. Tem borboletas no estômago e preferia estar na escola. Aqui, toda a gente vai estar a olhar para ele. Aqui, toda a gente vai desejar que ele fale sobre coisas que ele não quer dizer.
Nathaniel agarra-se a Franklin, a sua tartaruga de peluche, com mais força. Ás portas fechadas da sala de audiências abrem-se num suspiro, e um homem que parece um polícia mas não é fá-los entrar. Nathaniel caminha hesitantemente pela carpete vermelha. A sala está tão sinistra como ontem à noite, na escuridão, mas ele ainda tem a sensação de que está a entrar na barriga de uma baleia. O coração começa a bater tão depressa como a chuva no parapeito da janela, e ele leva a mão ao peito para que mais ninguém ouça.
A mãe está sentada na fila da frente. Tem os olhos inchados, e antes de o ver ali, limpa-os com os dedos. Isso faz Nathaniel lembrar-se de todas as outras vezes que ela fingiu não estar a chorar, dizendo-o com um sorriso, mesmo que tivesse lágrimas nas faces.
Também está um homem muito grande na parte da frente da sala, com a pele da cor das castanhas. É o mesmo homem que estava no supermercado; que fez a sua mãe ser levada para longe. A sua boca parece ter sido cosida.
O advogado que está sentado mesmo ao lado da mãe levanta-se e aproxima-se de Nathaniel. Ele não gosta do advogado. Cada vez que o advogado veio a sua casa, os pais gritaram um com o outro. E ontem à noite, quando trouxeram Nathaniel para ali para ensaiar, o advogado foi sem dúvida mau.
Agora, põe a mão no ombro de Nathaniel.
- Nathaniel, sei que estás preocupado com a tua mamã. Eu também estou. Quero que ela esteja feliz outra vez, mas há aqui uma pessoa que não gosta da tua mamã. O nome dele é Dr. Brown. Estás a vê-lo ali? O homem alto? - Nathaniel acena com a cabeça. - Ele vai fazer-te algumas perguntas. Não posso impedi-lo de as fazer.
Mas quando lhes responderes lembra-te - eu estou aqui para ajudar a tua mamã. Ele não.
Depois acompanha Nathaniel até à frente da sala de audiências. Estão ali mais pessoas do que ontem à noite - um homem de vestido preto com um martelo na mão; outra pessoa com cabelos que ficam direitos em cima da cabeça, em caracóis apertados; uma senhora com uma máquina de escrever. A mãe. E o homem grande que não gosta dela. Caminham até ao pequeno compartimento com uma cerca onde Nathaniel teve de se sentar. Sobe para cima da cadeira que é demasiado baixa, e depois cruza as mãos no colo.
O homem do vestido preto fala.
- É possível trazer uma cadeira mais alta para esta criança? Toda a gente começa a olhar para a esquerda e para a direita.
O quase-polícia diz o que todos estão a ver:
- Parece que não há.
- O que quer dizer com isso? Temos sempre bancos extra para as crianças que vêm testemunhar.
- Bem, eu podia ir à sala de audiências do juiz Shea para ver se há alguns, mas não ficará aqui ninguém para vigiar a arguida, Meritíssimo.
O homem do vestido suspira, e depois entrega a Nathaniel um livro grosso.
- Porque não te sentas em cima da minha Bíblia, Nathaniel? Ele senta-se, contorcendo-se um bocadinho, porque o rabo está
sempre a escorregar. O homem dos caracóis aproxima-se dele com um sorriso. - Olá, Nathaniel - diz.
Nathaniel não sabe se deve falar já.
- Preciso que ponhas a mão em cima da Bíblia.
- Estou sentado em cima dela.
O homem vai buscar outra Bíblia, e segura-a em frente a
Nathaniel como uma mesa.
- Levanta a tua mão direita - diz ele, e Nathaniel levanta um braço no ar. - A tua outra mão direita - corrige o homem. - Jurasdizer a verdade, toda a verdade, e nada mais do que a verdade, com a ajuda de Deus? ? Nathaniel abana a cabeça veementemente.
- Há algum problema? - isto diz o homem do vestido preto,
- Não devo dizer palavrões (swear) - sussurra ele. A mãe sorri, então, e solta uma pequena gargalhada. Nathaniel
acha que é o som mais bonito que já ouviu.
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- Nathaniel, eu sou o juiz Neal. Preciso que me respondas a algumas perguntas hoje. Achas que és capaz de fazer isso?
Ele encolhe os ombros.
- Sabes o que é uma promessa? - quando Nathaniel acena com a cabeça, ele aponta para a senhora que está a dactilografar. - Preciso que fales em voz alta, porque aquela senhora está a escrever tudo aquilo que dizemos, e tem de te ouvir. Achas que és capaz de falar bem alto para que ela ouça?
Nathaniel inclina-se para a frente. E grita a plenos pulmões:
- Sim!
- Sabes o que é uma promessa?
- Sim.
- Achas que podes prometer responder a algumas perguntas hoje?
- Sim!
O juiz chega-se para trás, retraindo-se um bocadinho.
- Este é o Dr. Brown, Nathaniel, e vai falar contigo primeiro.
Nathaniel olha para o homem corpulento, que está de pé a sorrir. Tem dentes muito, muito brancos. Como um lobo. É quase da altura do tecto e Nathaniel olha para ele a aproximar-se, e pensa nele a fazer mal à mãe e depois a voltar-se para partir Nathaniel em dois com uma dentada.
Respira fundo, e desata a chorar.
O homem pára bruscamente, como se tivesse perdido o equilíbrio.
- Vá embora! - grita Nathaniel. Puxa os joelhos para cima, e esconde o rosto neles.
- Nathaniel - o Dr. Brown avança lentamente, estendendo a mão. - Preciso apenas de te fazer algumas perguntas. Está bem?
Nathaniel abana a cabeça, mas não olha para cima. Talvez o homem grande também tenha olhos de laser, como o Ciclope dos X-Men. Talvez consiga gelar as pessoas com um olhar e com o seguinte fazê-las arder em chamas.
- Como se chama a tua tartaruga? - pergunta o homem grande.
Nathaniel esconde Franklin debaixo dos joelhos, para que ele também não tenha de ver o homem. Cobre o rosto com as mãos e espreita, mas o homem aproximou-se ainda mais e isso faz Nathaniel virar-se de lado na cadeira, como se pudesse deslizar através das barras nas costas dela.
- Nathaniel - o homem tenta novamente.
- Não - soluça Nathaniel. - Não quero! O homem afasta-se.
- Juiz. Podemos aproximar-nos?
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Nathaniel espreita por cima da borda do compartimento onde está sentado e vê a mãe. Ela também está a chorar, mas isso também faz sentido. O homem quer fazer-lhe mal. Ela deve ter tanto medo dele como Nathaniel.
Fisher disse-me que não chorasse, porque serei expulsa da sala. Mas não consigo controlar-me - as lágrimas surgem tão naturalmente como um rubor ou a respiração. Nathaniel encolhe-se na cadeira de madeira quase escondido pelo banco das testemunhas. Fisher e Brown aproximam-se do lugar do juiz, onde este está suficientemente zangado para cuspir faíscas.
- Dr. Brown - diz ele. - Nem acredito que o senhor insistiu em deixar que isto chegasse a este ponto. Sabe muito bem que não precisava deste testemunho, e eu não vou permitir que se façam jogos psicológicos na minha sala de audiências. Nem pense em arranjar algum argumento para rebater isto.
- Tem razão, Juiz - responde aquele sacana. - Pedi para nos aproximarmos porque é evidente que esta criança não devia testemunhar. O juiz bate com o seu martelo.
- Este tribunal delibera que Nathaniel Frost não é competente para comparecer em julgamento. A notificação é anulada - ele volta-se para o meu filho. - Nathaniel, podes ir ter com o teu pai.
Nathaniel sai disparado da cadeira e desce os degraus depressa como um relâmpago. Acho que ele vai correr para junto de Caleb, lá atrás na sala de audiências - mas em vez disso apressa-se a vir ter comigo. O impulso do seu corpo faz os meus cabelos moverem-se para trás alguns centímetros. Nathaniel coloca os braços em volta da minha cintura, fazendo-me libertar a respiração que eu não me tinha apercebido estar a suster.
Espero até que Nathaniel olhe para cima, aterrorizado com os rostos deste mundo estranho - o oficial de justiça, a estenógrafa e o promotor de justiça.
- Nathaniel - digo-lhe com firmeza, atraindo a sua atenção. Foste a melhor testemunha que eu podia ter tido.
Por cima da cabeça dele, vejo Quentin olhar. E sorrio.
Quando Patrick conheceu Nathaniel Frost, a criança tinha seis
meses. O primeiro pensamento de Patrick foi que ele era parecido com Nina. O segundo foi que, ali mesmo, nos seus braços, estava a razão pela qual eles nunca ficariam juntos.
Patrick fez um enorme esforço para se aproximar de Nathaniel, embora por vezes fosse suficientemente doloroso para ficar a sofrer
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dias a fio depois de uma visita. Trazia ao Pestinha pequenos golfinhos para flutuar na banheira; Silly Putty; centelhas. Durante anos Patrick tinha desejado estar na pele de Nina: Nathaniel, que tinha crescido debaixo do seu coração, tinha certamente algo a ensinar-lhe. Portanto ele acompanhava-os em caminhadas, revezando-se com Caleb para transportar Nathaniel quando este ficava com as pernas cansadas. Deixava Nathaniel girar na sua cadeira de escritório na esquadra. Até ficou a tomar conta dele um fim-de-semana inteiro, quando Caleb e Nina foram a um casamento de um parente.
E ao longo do tempo, Patrick - que sempre tinha amado Nina deixou-se igualmente cativar pelo filho dela.
O relógio não se moveu em duas horas, Patrick era capaz de jurar. Neste preciso momento, o Nathaniel está a ser submetido à sua audiência de competência - um procedimento a que Patrick não poderia assistir, mesmo que quisesse. E não quer. Porque Nina também lá estará, e ele não a vê nem fala com ela desde a Véspera de Natal.
Não é que não queira fazê-lo. Meu Deus, parece não ser capaz de pensar noutra coisa a não ser em Nina - o seu toque, o seu sabor, a forma como o corpo dela se relaxou junto ao dele durante o sono. Mas agora, a recordação está cristalizada para Patrick. Quaisquer palavras que haja entre eles, réplicas de terramotos, irão apenas destoar. E não é o que Nina lhe diria que preocupa Patrick - é o que ela não diria. Que o ama, que precisa dele, que isto teve o mesmo significado para ela do que para ele.
Tem a cabeça apoiada nas mãos. Lá no fundo, há uma parte dele que também sabe que isto foi um erro grave. Patrick quer tirar este peso de cima do peito, confessar as suas dúvidas a alguém que o compreenderia implicitamente. Mas a sua confidente, a sua melhor amiga, é Nina. Se ela já não pode ser isso... e não pode ser sua... em que é que ficam?
com um profundo suspiro tira o telefone da secretária e marca um número de outro estado. Quer resolver tudo, um presente para oferecer a Nina antes de ter de subir ao banco das testemunhas para depor contra ela. Fransworth McGee, o chefe da polícia de Belle Chasse, atende ao terceiro toque.
- Está? - diz ele num sotaque sulista, prolongando a palavra numa sílaba extra.
- Fala o detective-tenente Ducharme, de Biddeford, no Maine diz Patrick. - Quais são as últimas informações sobre o Gwynne?
Patrick pode facilmente visualizar o chefe, com quem se tinha encontrado antes de deixar Belle Chasse. com uns bons vinte quilos
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a mais, bastos cabelos negros à Elvis. Uma cana de pesca encostada ao canto por trás da secretária; um autocolante para colocar no pára-choques preso ao quadro dos boletins com um pionés: HELL,YES, MY NECK IS RED (Sim, sou saloio, caramba).
- Têm de perceber que nos movimentamos cuidadosamente na nossa jurisdição. Não queremos incidentes precipitados, se é que me faço entender.
Patrick range os dentes. i,
- Já o deteve ou não?
- As vossas autoridades ainda estão a dialogar com as nossas autoridades, detective. Acredite, será o primeiro a saber quando acontecer alguma coisa.
Pousa bruscamente o telefone - zangado com aquele delegado idiota, zangado com Gwynne e mais zangado consigo próprio por não ter resolvido o assunto com as suas próprias mãos quando esteve no Luisiana. Mas não se podia esquecer que era um agente da autoridade, que era obrigado a cumprir certas regras. Que Nina tinha dito que não, mesmo sendo o que realmente desejava.
Patrick fica a olhar para o telefone no descanso. Por outro lado, é sempre possível reinventarmo-nos. Sobretudo à imagem de um herói.
Afinal, tinha visto Nina fazê-lo.
Passado um momento, Patrick agarra no casaco e sai da esquadra, determinado a efectuar uma mudança, em vez de esperar que esta lhe passe por cima.
Este revelou-se o melhor dia da minha vida. Primeiro, Nathaniel foi declarado não competente. Depois Caleb pediu-me que ficasse a tomar conta de Nathaniel depois da audiência, e durante a noite, porque tem um trabalho agendado perto da fronteira com o Canadá.
- Importas-te? - tinha dito educadamente, e eu nem sequer fui capaz de formular uma resposta, de tão encantada que estava. Tenho visões de Nathaniel sentado ao meu lado na cozinha enquanto fazemos o seu jantar preferido; imagino ver o seu vídeo do Shrek duas vezes seguidas com uma taça de pipocas como uma ponte entre nós.
Mas afinal, Nathaniel está exausto devido aos acontecimentos do dia. Adormece no sofá às seis e meia e só acorda quando o levo lá para cima. Na sua cama, a sua mão abre-se na almofada como se estivesse a oferecer-me um presente escondido.
Quando Nathaniel nasceu, agitou os punhos cerrados no ar, como se estivesse zangado com o mundo. Foram relaxando, momento a momento, até que eu lhe desse de mamar e observasse
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os seus dedos rabiscarem na minha pele, cerrando-se como um torno. Fiquei fascinada com aquela força, devido a todo o seu potencial. Nathaniel cresceria para segurar num lápis ou numa arma? Seria capaz de curar com o seu toque? Criar música? A palma da sua mão ficaria coberta de calos? De tinta? Por vezes separava os minúsculos dedinhos e percorria as linhas da palma da sua mão, como se fosse realmente capaz de prever o seu futuro.
Se Nathaniel já foi difícil de conceber devido à minha cirurgia para remover um quisto, o seu parto foi absolutamente horrível. Trinta e seis horas de trabalho de parto colocaram-me numa espécie de transe. Caleb estava sentado na beira da cama a ver uma maratona de Gilligan s Island na televisão do hospital, algo que me parecia tão doloroso como as minhas contracções.
- Vamos chamar-lhe Ginger - jurou ele. - MaryAnn.
O torno dentro de mim ficava mais apertado a cada hora que passava, até a agonia se transformar num buraco negro, cada dor atraindo outra.-Por cima da minha cabeça, Gilligan votou numa chimpanzé para vencer um concurso de beleza, para não ofender nenhuma das senhoras lá retidas. Caleb veio por trás de mim, levantando-me as costas quando eu nem sequer tinha forças para abrir os olhos.
- Não consigo - sussurrei. - É a tua vez. Então ele esfregou a minha coluna e cantou.
- O tempo começou a ficar mau... o pequeno navio foi lançado... vá lá, Nina! Se não fosse a coragem da destemida tripulação...
- Lembra-me - disse eu - de te matar depois.
Mas eu esqueci-me, porque alguns minutos depois Nathaniel nasceu. Caleb ergueu-o, um ser tão pequeno que se enrolava como uma lagarta nas mãos do meu marido. Não era uma Ginger nem uma MaryAnn, mas um Pequeno Companheiro. Na realidade, foi assim que lhe chamámos durante três dias, antes de escolhermos um nome. Caleb quis que fosse eu a escolher, visto que se recusou a receber as honras por um trabalho que foi quase todo meu. Portanto escolhi Nathaniel Patrick Frost, em homenagem ao meu falecido pai e ao meu melhor amigo.
Agora, é difícil acreditar que o rapaz a dormir à minha frente já foi tão pequenino. Levo a mão aos seus cabelos, sinto-os deslizar por entre os meus dedos como o tempo. «Já sofri antes», penso. «E vejam só o que recebi em troca.»
Quentin, que é capaz de se cruzar com um gato preto sem pestanejar e passar por baixo de escadas sem libertar uma gota de suor, é estranhamente supersticioso em relação aos julgamentos.
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Nas manhãs em que deve ir ao tribunal, veste-se totalmente, toma o pequeno-almoço, e em seguida tira a camisa e a gravata para se barbear. Não é prático, é claro, mas remonta ao seu primeiro caso, quando estava tão nervoso que quase tinha saído porta fora com uma barba do dia anterior.
E tê-lo-ia feito, se Tanya não o tivesse chamado.
Esfrega a espuma de barbear nas faces e no maxilar, e depois raspa a lâmina ao longo do rosto. Hoje não está nervoso. Apesar do mar de meios de comunicação social que de certexa inundará o tribunal, Quentin sabe que tem um caso sólido. Que raio, ele tem gravado em vídeo a arguida a cometer o crime. Nada do que ela ou Carrington façam poderá apagar esse acto dos olhos do júri.
O seu primeiro julgamento foi de uma multa de trânsito, que Quentin argumentou como se se tratasse de um homicídio premeditado. Tanya levara Gideon; tinha-o balançado na anca lá atrás na sala de audiências. Assim que vira aquilo, bem, sabia que tinha de encenar um espectáculo.
- Raios! - Quentin dá um salto ao fazer um corte no maxilar. O creme de barbear arde no golpe; Quentin franze o sobrolho e pressiona um lenço de papel nesse sítio. Tem de segurá-lo durante alguns segundos, até coagular, com o sangue a escorrer por entre os dedos. Fá-lo lembrar-se de Nina Frost.
Amachuca o lenço de papel e lança-o pela casa de banho, para dentro do caixote do lixo. Quentin não se dá ao trabalho de observar o seu lançamento perfeito. Muito simplesmente, quando achamos que somos incapazes de falhar, não falhamos.
Isto foi o que experimentei até agora: o meu fato preto de promotora de justiça, aquele que me faz parecer a Mareia Clark9 toda descomposta; o fato rosa-pálido que usei no casamento do meu primo; o vestido sem mangas de bombazina que Caleb uma vez me deu pelo Natal e que ainda tem as etiquetas. Experimentei calças, mas isso é demasiado masculino, e para além disso, nem sequer consigo decidir se posso usar sapatos de salto baixo com calças ou se isso é demasiado informal. Estou zangada com Fisher por não ter pensado nisto
- em vestir-me como os advogados de defesa vestem as prostitutas, com roupas largas de feios padrões florais, vestidos provindos do Exército de Salvação que nunca falham em fazer as mulheres parecerem ligeiramente perdidas e incrivelmente jovens.
Promotora de justiça que levou a julgamento o caso de O. J. Simpson. (N. da T.) ... ., .-,.-,...
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Sei o que vestir para que aquele júri acredite que estou a controlar a situação. Não faço ideia de como hei-de vestir-me para parecer indefesa.
O relógio em cima da mesa-de-cabeceira marca subitamente mais quinze minutos do que devia.
Visto o vestido sem mangas. É quase dois tamanhos acima do meu - terei mudado tanto? Ou será que nunca me dei ao trabalho de o experimentar? Puxo-o até à cintura e calço um par de collants, quando reparo que têm uma malha na perna esquerda. Agarro num segundo par - mas também está rasgado.
- Hoje não - digo em voz baixa, abrindo bruscamente a minha gaveta da roupa interior, onde guardo um par de collants para as emergências. Cuecas e sutiãs transbordam como espuma pelos lados da cómoda e para cima dos meus pés descalços enquanto procuro o invólucro de plástico.
Mas eu usei aqueles collants de reserva no dia em que matei Glen Szyszynski, e, visto que não estou a trabalhar desde essa altura, não me lembrei de os repor.
- Raios! - dou um pontapé na perna da cómoda, mas isso apenas me magoa os dedos dos pés e faz as lágrimas virem-me aos olhos. Atiro cá para fora o restante conteúdo da gaveta, puxo-a completamente para fora do encaixe na cómoda e atiro-a pelo quarto.
Quando as minhas pernas cedem, dou por mim sentada na nuvem macia de roupa interior. Enfio os joelhos debaixo da saia do vestido, escondo o rosto nos braços, e choro.
- A Mamã apareceu na televisão ontem à noite - diz Nathaniel enquanto se dirigem para o tribunal na carrinha de Caleb. - Quando estavas no duche.
Perdido nos seus próprios pensamentos, Caleb quase vai para a berma da estrada ao ouvir este comentário.
- Não devias ver televisão.
Nathaniel curva os ombros, e Caleb arrepende-se imediatamente. Nestes últimos dias, muito rapidamente pensa que fez alguma coisa mal.
- Não faz mal - diz Caleb. Obriga-se a concentrar-se na estrada. Em dez minutos, estará no tribunal superior. Poderá entregar Nathaniel a Monica na sala dos brinquedos; talvez ela tenha respostas melhores.
Nathaniel, porém, ainda não terminou. Mastiga as palavras na boca, e depois cospe-as muito depressa.
- Porque é que a Mamã me grita quando finjo que um pau é uma arma, e ela estava a brincar com uma a sério?
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Caleb volta-se e vê o filho olhar para ele, à espera de explicações. Faz sinal e encosta a carrinha à berma da estrada.
- Lembras-te de quando me perguntaste porque é que o céu é azul? E de como fomos procurar no computador e havia tantos termos científicos que nenhum de nós conseguiu compreender? Bem, isso é mais ou menos a mesma coisa. Há uma resposta, mas é mesmo complicada.
- O homem na televisão disse que o que ela fez foi errado - Nathaniel morde o lábio inferior. - É por isso que hoje vão gritar com ela, não é?
Oh, meu Deus, se ao menos pudesse ser assim tão fácil. Caleb sorri tristemente.
- Pois. É por isso.
Espera que Nathaniel volte a falar, e como isso não acontece, Caleb volta a entrar com a carrinha na faixa de trânsito. Percorre cinco quilómetros, e então Nathaniel volta-se para ele.
- Papá? O que é um mártir?
- Onde é que ouviste isso?
- Foi o homem, ontem à noite, na televisão. Caleb respira fundo.
- Quer dizer que a tua mãe te ama, acima de tudo. E foi por isso que ela fez aquilo que fez.
Nathaniel percorre a costura do seu cinto de segurança com os dedos, ponderando nisto.
- Então porque é que está errado? - pergunta.
O parque de estacionamento é um mar de gente: operadores de câmara a tentar avistar os seus jornalistas, produtores a ajustar os sinais dos seus satélites, um grupo de militantes católicas a exigir que Nina fosse julgada às mãos do Senhor. Patrick abre caminho com os ombros através da multidão, admirado por ver jornalistas da televisão nacional que reconhece devido à sua celebridade.
Um zumbido audível varre a fileira de espectadores que rondam a escadaria do tribunal. Então, ouve-se o ruído da porta de um carro fechar-se e, de repente, Nina sobe apressadamente os degraus com o braço avuncular de Fisher em volta dos seus ombros. Ergue-se um aplauso da multidão ali à espera, juntamente com uma vaia de reprovação de igual intensidade. Patrick aproxima-se mais dos degraus a custo.
- Nina! - grita ele. - Nina! Tira o distintivo para fora, mas empunhá-lo não o leva onde ele precisa de estar.
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- Nina! - grita Patrick de novo.
Ela parece vacilar, olhar em volta. Mas Fisher agarra-lhe o braço - leva-a para dentro do tribunal antes que Patrick consiga fazer-se ouvir.
- Senhoras e senhores, chamo-me Quentin Brown, e sou delegado do procurador-geral do estado do Maine - sorri para o júri. Estão todos aqui presentes porque no dia 30 de Outubro de 2001, esta mulher, Nina Frost, levantou-se e dirigiu-se com o marido para o Tribunal de Comarca de Biddeford para assistir à acusação formal de um homem. Mas ela deixou o marido ali à espera enquanto foi à loja de armas Moe s Gun Shop em Sanford, no Maine, onde pagou quatrocentos dólares em dinheiro por uma pistola Beretta de nove milímetros semiautomática e doze cartuchos de munições. Meteu-os na mala, voltou para o carro e regressou ao tribunal.
Quentin aproxima-se do júri como se tivesse todo o tempo do mundo.
- Ora, todos sabem, por entrar aqui hoje, que tiveram de passar por um sistema de segurança. Mas no dia 30 de Outubro, Nina Frost não passou. Porquê? Porque tinha trabalhado nos últimos sete anos como promotora de justiça. Conhecia o oficial de diligências que estava junto do sistema de segurança. Passou por ele sem olhar para trás e levou aquela arma, e as balas com as quais a tinha carregado, para dentro de uma sala de audiências exactamente igual a esta.
Dirige-se para a mesa da defesa, surgindo atrás de Nina para apontar com um dedo para a base do crânio dela.
- Passados alguns minutos, ela encostou aquela arma à cabeça do padre Glen Szyszynski e disparou quatro vezes directamente contra a sua cabeça, matando-o.
Quentin examina o júri; agora estão todos a olhar para a arguida, tal como ele queria.
- Senhoras e senhores, os factos neste caso são claros como água. Na realidade, a WCSH News, que estava a fazer uma reportagem sobre a acusação formal naquela manhã, filmou os actos da Dr.a Frost em vídeo. Portanto para vocês a questão não será se ela cometeu este crime. Nós sabemos que sim. A questão será: porque haveremos de permitir que fique impune?
Olha nos olhos de cada jurado em sequência.
- Ela gostaria de fazer-vos acreditar que deveria ficar à margem da lei porque o padre Szyszynski, padre da sua paróquia, tinha sido acusado por molestar sexualmente o seu filho de cinco anos. E no
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entanto, nem sequer se dera ao trabalho de se certificar de que estas alegações eram verdadeiras. O estado demonstrar-vos-á cientificamente, a nível forense, conclusivamente, que o padre Szyszynski não foi o homem que abusou do seu filho... e apesar disso a arguida assassinou-o.
Quentin vira as costas a Nina Frost.
- No Maine, se uma pessoa matar alguém premeditadamente, é culpada de homicídio. Ao longo deste julgamento, o estado provar-vos-á para além de qualquer dúvida razoável que foi exactamente isso que Nina Frost fez. Não importa que a pessoa assassinada tenha sido acusada de cometer um crime. Não importa que a pessoa assassinada tenha sido assassinada por engano. Se essa pessoa foi assassinada, ponto final, é necessário que haja um castigo adequado - olha para o banco dos jurados. - é nessa altura, senhoras e senhores, que devem intervir.
Fisher só tem olhos para aquele júri. Aproxima-se do banco e cruza o seu olhar com o de cada homem ou mulher, estabelecendo uma ligação pessoal mesmo antes de dizer uma palavra. É isso que costumava deixar-me fora de mim. quando o enfrentava numa sala de audiências. Ele tem esta capacidade extraordinária de transformar-se no confidente de todos, independentemente de o jurado ser uma mãe solteira de vinte anos a viver às custas da segurança social ou um rei do comércio electrónico com um milhão investido no mercado da bolsa.
- O que o Dr. Brown acabou de vos dizer é absolutamente verdadeiro. Na manhã do dia 30 de Outubro, Nina Frost comprou de facto uma arma. Dirigiu-se de facto ao tribunal. De facto, levantou-se e disparou quatro tiros na cabeça do padre Szyszynski. O que o Dr. Brown gostaria de vos fazer acreditar é que este caso se cinge a esses factos... mas nós não vivemos num mundo de factos. Vivemos num mundo de sentimentos. E o que ele manteve fora desta sua versão da história foi o que se passava na cabeça e no coração de Nina e que a levaria a esse momento.
Fisher coloca-se atrás de mim. como Quentin quando mostrou graficamente ao júri como aparecer sorrateiramente atrás de um arguido e atingi-lo com um tiro. Coloca as mãos nos meus ombros, e isso é reconfortante.
- Durante semanas, Nina Frost viveu num inferno que nenhum pai deveria experimentar. Descobriu que o filho de cinco anos tinha sido vítima de abuso sexual. Pior, a polícia tinha identificado o agressor como sendo o seu próprio padre: um homem em quem confiava. Traída, de coração despedaçado, e a sofrer pelo filho, começou a perder
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a noção entre o que está certo e o que está errado. A única coisa em que pensava quando se dirigiu ao tribunal naquela manhã para ver o padre ser formalmente acusado era que precisava de proteger o filho. «Nina Frost, melhor do que ninguém, sabe que o sistema de justiça trabalha para as crianças... e deixa-as ficar mal. Ela, melhor do que ninguém, compreende quais são as regras nos tribunais americanos, porque nos últimos sete anos as cumpriu diariamente. Mas no dia 30 de Outubro, senhoras e senhores, ela não era uma promotora de justiça. Era apenas a mãe do Nathaniel - vem colocar-se ao meu lado. - Por favor estejam atentos a tudo. E quando tomarem a vossa decisão, não ouçam apenas a cabeça. Ouçam o vosso coração.»
Moe Baedecker, o proprietário da Moe s Gun Sbop, não sabe o que há-de fazer ao seu boné de basebol. Os oficiais de diligências obrigaram-no a tirá-lo, mas os seus cabelos estão colados à cabeça e despenteados. Põe o boné no colo e penteia os cabelos com os dedos. Ao fazê-lo, olha para as unhas, com óleo e produto de limpeza de armas debaixo das cutículas, e apressa-se a enfiar as mãos debaixo das coxas.
- Ah sim, reconheço-a - diz ele, acenando com a cabeça para mim. - Ela entrou uma vez na minha loja. Foi directamente ao balcão e disse-me que queria uma pistola semiautomática.
- Já a tinha visto antes?
- Não.
- Ela deu uma vista de olhos à loja sequer? - pergunta Quentin.
- Não. Estava à espera no parque de estacionamento quando abri, e depois veio directamente para o balcão - encolhe os ombros.
- Fiz uma pesquisa instantânea dos seus antecedentes e, uma vez que a ficha dela estava limpa, vendi-lhe aquilo que ela queria.
- Ela pediu balas?
- Doze cartuchos.
- Ensinou à arguida como utilizar uma arma? Ele abana a cabeça.
- Ela disse-me que sabia.
O testemunho dele cai-me em cima como uma onda. Consigo lembrar-me do cheiro daquela pequena loja, da madeira sem acabamento das paredes, das fotografias de Rugers e Glocks atrás do balcão. Do facto de a caixa registadora ser antiquada e fazer realmente um som de campainha. Deu-me o troco em notas de vinte dólares novas, segurando cada uma delas contra a luz e demonstrando como podemos distinguir se são falsas ou não.
Quando volto a concentrar-me, Fisher está a fazer o contra-interrogatório.
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- O que fez ela enquanto pesquisava os seus antecedentes?
- Estava sempre a olhar para o relógio. A andar para trás e para a frente.
- Estava mais alguém na loja? -Não.
- Ela disse-lhe porque precisava de uma arma?
- Não me compete a mim perguntar - diz Moe.
Uma das notas de vinte que ele me tinha dado estava escrita, a assinatura de um homem. «Uma vez fiz isso», dissera-me Moe naquela manhã. «E, juro por Deus, recebi a mesma nota passados seis anos.» Entregara-me a arma, quente na minha mão. "Quem semeia ventos, colhe tempestades», tinha ele dito, e na altura, estava demasiado preocupada com os meus assuntos para prestar atenção a isto como aviso que era.
O operador de câmara tinha estado a filmar para a WCSH e estava instalado ao canto, segundo o diagrama de Quentin Brown da sala de audiências de Biddeford. Enquanto a cassete de vídeo é introduzida num leitor de vídeo, mantenho os olhos fixos no júri. Quero observá-los a observar-me.
Talvez tenha visto esta parte uma vez. Mas foi há meses, quando acreditava que tinha feito bem. A voz familiar do juiz atrai-me a atenção, e depois não consigo deixar de olhar para este pequeno ecrã.
As minhas mãos tremem quando empunho a arma. Os meus olhos estão muito abertos e desvairados. Mas os meus movimentos são suaves e belos, um bailado. Quando encosto a arma à cabeça do padre, a minha cabeça inclina-se para trás, e por um momento assombroso o meu rosto divide-se em máscaras de comédia e tragédia metade dor, metade alívio.
O tiro faz um estrondo tão grande que mesmo filmado faz-me dar um salto na cadeira.
Gritos. Uma exclamação. A voz do operador de câmara dizendo: «Que merda esta!» E depois a câmara inclina-se no seu eixo e lá estão os meus pés, a voar por cima da barra, e o baque do corpo dos oficiais de diligências a agarrarem-me, e Patrick.
- Fisher - sussurro. - vou vomitar.
A perspectiva muda novamente, girando para ficar pousada de lado no chão. A cabeça do padre jaz numa poça de sangue que se alastra. Falta-lhe metade, as manchas e fragmentos no filme sugerem que a matéria encefálica se espalhou pela lente da câmara. Um olho baço fita-me através do ecrã. «Acertei-lhe?» A minha própria voz. «Ele está morto?»
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- Fisher... - a sala anda à roda. Sinto-o levantar-se ao meu lado.
- Meritíssimo, se pudesse pedir um curto intervalo...
Mas não há tempo para isso. Salto da minha cadeira e atravesso a cancela da barra cambaleando, voo pelo corredor da sala de audiências com dois oficiais de diligências a perseguirem-me. Consigo passar a porta dupla, e depois caio de joelhos e vomito repetidamente, até no meu estômago restar apenas a culpa.
- Os vómitos de Frost " - digo passados alguns minutos, depois de me ter limpado e Fisher me ter levado para uma sala de conferências privada longe dos olhos da imprensa. - Será o título dos jornais amanhã.
Ele coloca os dedos em pirâmide.
- Sabe, tenho de lhe dizer, isto foi bom. Extraordinário, na verdade.
Olho para ele.
- Acha que vomiteidepropósito?
- E não?
- Meu Deus - desviando os olhos, fico a olhar pela janela. Pelo menos, a multidão lá fora aumentou.
- Fisher, viu aquela cassete? Como é que algum jurado irá absolver-me depois daquilo?
Fisher fica em silêncio por um momento.
- Nina, o que pensou enquanto estava a vê-la?
- Pensar? Quem teve tempo para pensar, com todas aquelas imagens? Quero dizer, há uma quantidade incrível de sangue. E o cérebro...
- O que pensou de si própria?
Abano a cabeça, fecho os olhos, mas não há palavras para o que fiz.
Fisher dá pancadinhas no meu braço.
- É por isso - diz ele - que irão absolvê-la.
No átrio, onde se encontra isolado para ser uma das testemunhas seguintes, Patrick tenta não pensar em Nina nem no seu julgamento. Fez as palavras cruzadas num jornal que alguém deixou em cima do assento ao lado dele; tomou cafés suficientes para fazer subir um pouco a pulsação; conversou com outros polícias a entrar e a sair.
" Frost Heaves, na versão original em inglês, significa igualmente uma ruptura do pavimento devido à congelação da água retida no solo. (N. da T.)
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Mas tudo é inútil; Nina está-lhe no sangue.
Quando ela saiu da sala de audiências, com um passo incerto, de mão a tapar a boca, Patrick tinha-se levantado da cadeira. Já ia a meio do átrio, tentando certificar-se de que ela estava bem, quando Caleb irrompeu pela porta dupla logo atrás dos oficiais de diligências.
Portanto Patrick voltou a sentar-se.
Na anca, o seu pager começou a vibrar. Patrick tira-o do cinto e olha para o número no ecrã. «Finalmente», pensa, e vai à procura de um telefone público.
Quando é hora de almoço, Caleb vai buscar sandes a uma charcutaria lá perto e trá-las para a sala de conferências onde estou refugiada.
- Não consigo comer - digo, quando ele me dá uma baguete embrulhada. Estou à espera de que ele me diga que tenho de comer, mas, em vez disso, encolhe os ombros e deixa a sandes pousada à minha frente. Pelo canto do olho, observo-o a mastigar a comida em silêncio. Já se rendeu nesta guerra; já nem sequer se importa o suficiente para discutir comigo.
Ouve-se alguém tentar abrir a porta trancada, e a seguir bater insistentemente. Caleb franze o sobrolho, e depois levanta-se para dizer a essa pessoa que vá embora. Mas quando abre ligeiramente a porta, Patrick está do outro lado. A porta abre-se, e os dois homens ficam desconfortavelmente em frente um do outro, com uma faixa de energia a crepitar entre eles que os impede de se aproximarem demasiado.
Nesse momento apercebo-me de que. embora tenha muitas fotografias de Patrick e muitas fotografias de Caleb, não tenho uma única de nós os três - como se, nessa combinação, fosse impossível que tantas emoções coubessem no enquadramento da câmara.
- Nina - diz ele, entrando. - Tenho de falar contigo.
«Agora não», penso, ficando gelada. De certeza que Patrick tem o discernimento de não mencionar o que aconteceu em frente ao meu marido. Ou talvez seja precisamente isso que ele quer fazer.
- O padre Gwynne está morto - Patrick entrega-me um artigo da Nexus enviado por fax. - Recebi um telefonema do chefe da polícia de Belle Chasse. Fartei-me de trabalhar ao ritmo sulista há alguns dias e pressionei um pouco as autoridades... enfim, parece que quando foram prendê-lo, ele já estava morto.
O meu rosto está imóvel.
- Quem foi? - sussurro.
- Ninguém, foi um ataque cardíaco.
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Patrick continua a falar, e as suas palavras caem como pedras de granizo no papel que estou a tentar ler.
- ... o maldito chefe levou dois dias inteiros para me telefonar... «O padre Gwynne, um estimado pároco local, foi encontrado morto nos seus aposentos pela sua governanta.»
- ... aparentemente, tinha antecedentes familiares de doença cardíaca...
« Parecia tão tranquilo, sabe, na sua poltrona , disse Margaret Mary Seaurat, que trabalhava para o padre há cinco anos. Como se tivesse acabado de adormecer depois de beber a sua chávena de cacau .»
- ... e vê lá isto: dizem que a gata morreu de desgosto...
«Num estranho revés relacionado, o muito amado animal de estimação de Gwynne, uma gata bem conhecida dos seus paroquianos, morreu pouco tempo depois de terem chegado as autoridades. Para aqueles que conheciam o padre, isto não é surpreendente: Ela gostava demasiado dele , sugeriu Seurat. Todos nós gostávamos. »
- Acabou, Nina.
«O arcebispo Schulte presidirá à missa fúnebre na igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, na quarta-feira de manhã às nove horas.»
- Ele está morto - experimento a verdade na minha língua. - Ele está morto - talvez Deus exista, então; talvez exista uma justiça cósmica. Talvez seja esta a verdadeira sensação de vingança. - Caleb digo, voltando-me. Tudo o resto passa entre nós sem uma única palavra: que o Nathaniel agora está em segurança; que não haverá nenhum julgamento por abuso sexual no qual tenha de testemunhar; que o vilão neste drama nunca mais fará mal a nenhum rapazinho; que após o meu veredicto, este pesadelo terá verdadeiramente terminado.
O seu rosto ficou tão pálido quanto o meu.
- Eu ouvi.
No meio desta minúscula sala de conferências, com duas horas de testemunho incriminatório atrás de mim, sinto uma alegria absoluta. E nesse instante, não importa o que tem faltado entre Caleb e eu. Muito mais importantes são estas notícias triunfais, e é algo que devemos partilhar. Abraço o meu marido.
Que não me retribui o abraço.
O calor invade-me as faces. Quando consigo erguer os olhos com algum vestígio de dignidade, Caleb está a olhar para Patrick, que se virou de costas.
- bom - diz Patrick, sem olhar para mim. - Achei que querias saber.
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Os oficiais de diligências são bocas-de-incêndio humanas: estão colocados no tribunal no caso de haver uma emergência, mas desaparecem no plano de fundo se esta não se verificar e raramente têm uma utilidade prática. Tal como a maioria dos oficiais de diligências que conheço, Bobby Tanucci não é muito atlético nem muito inteligente. E tal como a maioria dos oficiais de diligências, Bobby tem consciência de que se encontra abaixo dos advogados na cadeia alimentar da sala de audiências - o que justifica o facto de estar completamente intimidado nas mãos de Quentin Brown.
- Quem estava na sala de audiências quando retirou o padre Szyszynski da cela de detenção e o levou lá para dentro? - pergunta o promotor de justiça, alguns minutos após se ter iniciado o testemunho.
Bobby tem de pensar sobre isto, e o esforço é visível no seu rosto pastoso.
- Hum, bem, o juiz, pois. No seu lugar. E estava lá um oficial de justiça, e uma estenógrafa, e o advogado do morto, cujo nome não me lembro. E um delegado do Ministério de Justiça de Portland.
- Onde estavam sentados a Dr.a e o Sr. Frost? - pergunta Quentin.
- Na primeira fila, com o detective Ducharme.
- O que aconteceu a seguir? Bobby endireita os ombros.
- Eu e o Roanoke, o outro oficial de diligências, atravessámos a sala com o padre até chegar junto do seu advogado. Depois, sabe, afastámo-nos, porque ele tinha de se sentar, portanto eu fiquei atrás dele - respira fundo. - E depois...
- Sim, Sr. lanucci?
- Bem, não seideonde é que ela veio. Não sei como fez aquilo. Mas logo a seguir, há tiros a serem disparados e sangue por todo o lado, e o padre Szyszynski a cair da cadeira.
- O que aconteceu a seguir?
- Imobilizei-a. E o Roanoke também, e mais alguns homens que estavam lá atrás na sala, e o detective Ducharme, também. Ela deixou cair a arma e eu agarrei nela, e depois o detective Ducharme levantou-a e levou-a para a cela de detenção algemada.
- Foi alvejado, Sr. lanucci? Bobby abana a cabeça, perdido nas suas recordações. -
- Não. Mas se estivesse, sei lá, doze centímetros mais à direita, ela podia ter-me acertado.
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- Então diria que a arguida teve muito cuidado com a forma como apontou a arma ao padre Szyszynski?
Fisher levanta-se ao meu lado.
- Objecção.
- Deferida - delibera o juiz Neal.
O promotor de justiça encolhe os ombros.
- Retirado. A testemunha é sua.
Ao regressar ao seu lugar, Fisher aproxima-se do oficial de diligências.
- Falou com Nina Frost de manhã, antes dos disparos?
- Não.
- Na realidade, esteve ocupado a fazer o seu trabalho... manter o tribunal em segurança, e lidar com os prisioneiros... portanto não tinha nenhuma necessidade de vigiar a Dr.a Frost, pois não?
- Não.
- Viu-a tirar a arma?
- Não. .
- Disse que vários oficiais de diligências saltaram imediatamente para cima dela. Teve de lutar com a Dr.a Frost para lhe tirar a arma?
- Não.
- E ela não ofereceu resistência a nenhum de vocês quando a tentaram dominar?
- Estava a tentar ver à nossa volta. Não parava de perguntar se ele estava morto.
Fisher encerra o assunto com um encolher de ombros.
- Mas ela não estava a tentar fugir de si. Não estava a tentar feri-lo.
- Oh, não.
Fisher deixa esta resposta no ar por um momento.
- O senhor já conhecia a Dr.a Frost, não é verdade, Sr. lanucci?
- Claro.
- Como era a sua relação com ela?
Hobby olha para mim; e depois desvia os olhos.
- Bem, ela é delegada do Ministério Público. Está sempre a vir aqui - faz uma pausa. E depois acrescenta: - É simpática.
- Alguma vez a considerou violenta? -Não.
- Na verdade, naquela manhã, ela não parecia a Nina Frost que o senhor conhecia, não é verdade?
- Bem, sabe, o aspecto dela era o mesmo.
- Mas as suas atitudes, Sr. lanucci... já tinha visto a Dr.a Frost agir assim antes?
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O oficial de diligências abana a cabeça.
- Nunca a tinha visto disparar sobre ninguém, se é a isso que se refere.
- É sim - diz Fisher, sentando-se. - Não tenho mais perguntas.
Naquela tarde, quando é encerrada a sessão no tribunal, não vou directamente para casa. Arriscando mais quinze minutos de graça antes de a minha pulseira electrónica ser reactivada, dirijo-me a St. Anne s e entro na igreja onde tudo começou.
A nave está aberta ao público, embora ache que ainda não arranjaram um pároco substituto. Lá dentro está escuro. Os meus sapatos batem nos ladrilhos, anunciando a minha presença. À minha direita encontra-se uma mesa onde velas votivas brancas ardem em fileiras. Tirando uma, acendo-a por Glen Szyszynski. Acendo uma segunda vela por Arthur Gwynne.
Depois deslizo para um banco e ajoelho-me.
- Ave Maria cheia de graça - sussurro, rezando a uma mulher que também ficou do lado do filho.
As luzes no quarto de motel apagam-se às oito, hora de deitar de Nathaniel. Ao lado do filho, numa cama igual, Caleb está deitado com as mãos cruzadas atrás da cabeça, esperando que Nathaniel adormeça. Depois, por vezes, Caleb vê televisão. Liga um candeeiro e lê o jornal do dia.
Hoje não lhe apetece fazer nenhuma das coisas. Não está com vontade de ouvir os comentadores locais a dar palpites sobre o destino de Nina baseando-se no primeiro dia de testemunhos. Que raio, nem ele quer dar palpites.
Uma coisa é certa: a mulher que todas aquelas testemunhas
? viram; a mulher naquela cassete de vídeo - ela não é a mulher com quem Caleb se casou. E quando a nossa mulher não é a mesma pessoa pela qual nos apaixonámos há oito anos, em que situação é que ficamos? Tentamos conhecer a pessoa em que se transformou, esperando o melhor? Ou continuamos a enganar-nos na esperança de que uma manhã ela poderá acordar e ter voltado a ser a mulher que era?
Talvez, pensa Caleb ligeiramente chocado, também ele próprio já não seja a mesma pessoa.
Isso fá-lo voltar directamente ao assunto de que não queria lembrar-se, sobretudo agora, no escuro, sem nada para o distrair. Esta tarde, quando Patrick entrara na sala de conferências para lhes dar a notícia da morte de Gwynne... bem, Caleb deve estar a ler nas entrelinhas. Afinal, Nina e Patrick conhecem-se desde sempre. E embora o
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tipo seja uma espécie de obstáculo, a sua relação com Nina nunca incomodou Caleb verdadeiramente porque no fim de contas ele é que dormia com Nina todas as noites.
Mas Caleb não tem dormido com Nina.
Cerra os olhos, como se isso pudesse bloquear a memória de Patrick a desviar o olhar bruscamente quando Nina abraçou Caleb. Isso, só por si e em si, não o perturbava - Caleb era capaz de se lembrar de cem vezes em que Nina lhe tocara ou sorrira para ele na presença do outro homem que de alguma forma deixaram Patrick inquieto... embora Nina nunca parecesse reparar nisso. Na verdade, houve até ocasiões em que Caleb sentiu pena de Patrick, dos ciúmes estampados no seu rosto no instante antes de os disfarçar.
Hoje, porém, não havia inveja nos olhos de Patrick. Era dor. E é por isso que Caleb não consegue deixar de pensar no incidente; não consegue deixar de espicaçar o momento para o isolar, como um abutre à procura do osso. A inveja, afinal, surge por se desejar algo que não é nosso.
Mas a dor surge por perdermos algo que já possuímos.
Nathaniel detesta esta estúpida sala de brinquedos, com o seu estúpido canto de leitura, e as suas estúpidas bonecas carecas, e a sua estúpida caixa de lápis de cera que nem sequer tem o amarelo. Detesta a forma como as mesas cheiram a hospital e o chão é frio debaixo das suas meias. Detesta Monica, cujo sorriso faz lembrar a Nathaniel da vez em que agarrou num gomo de laranja no restaurante chinês e o meteu na boca, com a casca para fora, num tolo sorriso postiço. E acima de tudo, detesta saber que a mãe e o pai estão a apenas vinte e dois degraus acima, mas Nathaniel não pode ir ter com eles.
- Nathaniel - diz Monica -, porque não terminamos esta torre? É feita de blocos; estiveram ontem toda a tarde a construí-la e colocaram um aviso especial de um dia para o outro, pedindo aos empregados que a deixassem ali até hoje de manhã.
- Até onde achas que conseguimos chegar?
Já está mais alta do que Nathaniel; Monica trouxe uma cadeira para ele poder continuar a construir. Tem uma pequena pilha de blocos prontos para serem colocados.
- Tem cuidado - avisa ela enquanto ele sobe para cima da cadeira. Ele coloca o primeiro bloco lá em cima, e toda a estrutura oscila.
Da segunda vez, parece certo que vai cair - mas depois não cai.
- Foi por pouco - diz Monica.
Ele imagina que está em Nova Iorque e que é um gigante. Um Tiranossauro rex. Ou o King Kong. Come edifícios deste tamanho
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como se fossem cenouras. com um grande golpe da sua enorme pata, Nathaniel atinge o topo da torre.
Esta cai num grande monte estrondoso.
Monica parece estar tão triste que só por um instante Nathaniel fica a sentir-se muito mal.
- Oh - suspira ela. - Porque é que fizeste isso?
A satisfação curva os cantos da sua boca, florescendo de uma raiz dentro dele. Mas Nathaniel não lhe diz o que está a pensar: «Porque podia».
Joseph Toro parece estar nervoso por estar numa sala de audiências, e eu não posso censurá-lo. Da última vez que o vi estava acobardado debaixo do lugar do juiz, coberto de sangue e massa encefálica do seu próprio cliente.
- Encontrou-se com Glen Szyszynski antes de vir para o tribunal nesse dia? - pergunta Quentin.
- Sim - diz o advogado timidamente. - Na prisão, enquanto esperávamos pela acusação formal.
- O que disse ele sobre o alegado crime? - Negou-o categoricamente.
- - Objecção - diz Fisher. - Relevância?
- Deferida.
? Quentin reconsidera.
- Qual era a atitude do padre Szyszynski na manhã do dia 30 de Outubro?
- Objecção - desta vez Fisher levanta-se. - Pela mesma razão. O juiz Neal olha para a testemunha.
- Gostaria de ouvir isto.
- Estava muito assustado - murmura Toro. - Estava resignado. A rezar. Leu-me em voz alta, o Evangelho de S. Mateus. A parte em que Cristo diz «Meu Deus, porque me abandonastes?»
- O que aconteceu quando trouxeram o seu cliente? - pergunta Quentin.
- Levaram-no para a mesa da defesa onde eu estava sentado.
- E onde estava a Dr. Frost nessa altura?
- Sentada atrás de nós, à esquerda.
- Falou com a Dr.a Frost naquela manhã? - Não - responde Toro. - Nem sequer a conhecia. - Reparou em alguma coisa fora do vulgar nela?
- Objecção - diz Fisher. - Ele não a conhecia, portanto como poderia avaliar o que era ou não habitual?
- Indeferida - responde o juiz.
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Toro olha para mim, como uma ave a arranjar coragem para lançar um olhar ao gato sentado a alguns metros.
- Havia uma coisa fora do vulgar. Estava à espera que ela entrasse... porque ela era a mãe da alegada vítima, é claro... mas estava atrasada. O marido estava lá, à espera... mas a Dr.a Frost quase perdeu o início da acusação formal. Pensei que logo naquele dia era muito estranho que não chegasse a horas.
Ouço o seu testemunho, mas estou a observar Quentin Brown. Para um promotor de justiça, um arguido não passa de uma vitória ou de uma derrota. Não são pessoas de verdade; não têm vidas que interessem para além do crime que os trouxe ao tribunal. Enquanto estou a olhar para ele, Brown volta-se de repente. A sua expressão é fria, desapaixonada - uma expressão que também eu cultivei no meu reportório. Na realidade, recebi a mesma formação que ele, mas há um abismo entre nós. Este caso, afinal, é apenas o seu trabalho. Mas é o meu futuro.
O tribunal de Alfred é antigo, e as casas de banho não são excepção. Caleb termina de utilizar a longa bacia do urinol mesmo quando alguém surge ao seu lado. Desvia os olhos quando o outro homem abre o fecho da braguilha, depois afasta-se para lavar as mãos e apercebe-se de que é Patrick.
Quando Patrick se vira, hesita.
- Caleb?
A casa de banho está vazia, à excepção dos dois homens. Caleb cruza os braços, espera que Patrick ensaboe as mãos e as seque com uma toalha de papel. Fica à espera, e não sabe porquê. Sabe apenas que, neste momento, também não pode ir embora.
- Como está ela hoje? - pergunta Patrick.
Caleb descobre que não é capaz de responder, não consegue soltar uma palavra.
- Deve ser um inferno para ela, ali sentada.
- Eu sei - Caleb obriga-se a olhar directamente para Patrick, para que ele compreenda que esta não é uma resposta casual, nem sequer uma inferência.
- Eu sei - repete.
Patrick desvia o olhar, engolindo.
- Ela... ela contou-te?
- Não foi preciso.
O único som é o do autoclismo no urinol.
- Queres bater-me? - diz Patrick passado um momento. Abre os braços. - Vá lá. Bate-me.
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Devagar, Caleb abana a cabeça.
- Quero. Acho que nunca quis tanto uma coisa. Mas não vou bater-te, porque é demasiado triste, foda-se - dá um passo em direcção a Patrick, apontando um dedo ao peito do outro homem. Mudaste-te para aqui para estares perto da Nina. Viveste toda a tua vida em função de uma mulher que não vive a vida dela em função de ti. Esperaste até ela estar fragilizada, e depois certificaste-te de que eras a primeira coisa a que ela poderia agarrar-se - desvia o rosto. Não tenho de te bater, Patrick. Já és patético.
Caleb dirige-se para a porta da casa de banho mas a voz de Patrick fá-lo parar.
- A Nina costumava escrever-me de vez em quando. Estava fora, em serviço, e era a única coisa pela qual ansiava - sorri ligeiramente.
- Ela contou-me quando te conheceu. Contou-me para onde a levavas quando saíam juntos. Mas quando me contou que tinha escalado uma montanha qualquer contigo... foi nessa altura que soube que a tinha perdido.
- O monte Katahdin? Não aconteceu nada nesse dia.
- Não. Só o escalaram e depois desceram-no - diz Patrick. - A questão é que a Nina tem pavor das alturas. Às vezes fica tão tonta que desmaia. Mas amava-te tanto, que estava disposta a seguir-te para qualquer lado. Mesmo a novecentos metros de altitude - afasta-se da parede, aproximando-se de Caleb. - Sabes o que é patético? Que tenhas a oportunidade de viver com esta... esta deusa. Que de todos os homens no mundo ela te tivesse escolhido a ti. Recebeste esta oferta incrível, e nem sequer percebes que está à tua frente.
Depois Patrick passa por Caleb empurrando-o, fazendo-o bater contra a parede. Precisa de sair daquela casa de banho, antes que seja tão tolo que abra todo o seu coração.
Frankie Martine é uma testemunha da acusação - isto é, responde às perguntas com clareza e de forma concisa, tornando a ciência acessível até para o jurado que desistiu do liceu. Quentin passa quase uma hora a conduzi-la através dos aspectos técnicos dos transplantes de medula óssea, e ela consegue manter o júri interessado. Depois prossegue com aspectos técnicos da sua profissão - isolar ADN. Uma vez passei três dias no laboratório estadual com Frankie, para que ela me mostrasse de facto como o faz. Queria saber, para que pudesse compreender totalmente os resultados que me enviassem.
Aparentemente, não aprendi o bastante.
- O ADN é o mesmo em todas as células do nosso corpo explica Frankie. - Isso significa que, se retirarmos uma amostra de
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sangue a alguém, o ADN daquelas células sanguíneas corresponderá ao ADN das células cutâneas, das células tecidulares e dos fluidos corporais, como a saliva e o sémen. Foi por isso que o Dr. Brown me pediu que retirasse ADN da amostra de sangue do padre Szyszynski e a utilizasse para ver se correspondia ao ADN encontrado no sémen que estava nas cuecas.
- E foi o que fez? - pergunta Quentin.
- Sim, foi.
Entrega o relatório laboratorial a Frankie - o original, que foi deixado anonimamente na minha caixa do correio.
- Quais foram as suas conclusões?
Ao contrário de algumas das outras testemunhas que a acusação utilizou, Frankie olha directamente para mim. Não vejo lá compreensão, mas também não vejo repulsa. Por outro lado, trata-se de uma mulher que todos os dias é confrontada com as provas forenses do que as pessoas são capazes de fazer aos outros em nome do amor.
- Determinei que a hipótese de escolher ao acaso entre a população um indivíduo não relacionado diferente do suspeito, cujo ADN correspondesse ao ADN do sémen em todos os loci que testámos, era uma em seis mil milhões.
Quentin olha para o júri.
- Seis mil milhões? Não é esse o valor aproximado da população mundial?
- Creio que sim.
- Bem. o que tem tudo isto a ver com a medula óssea? Frankie remexe-se na cadeira.
- Depois de ter emitido estes resultados, o gabinete do procurador-geral pediu-me que examinasse os resultados com base nos registos médicos do padre Szyszynski. Há sete anos, recebeu um transplante de medula óssea, o que significa, basicamente, que o seu sangue era um empréstimo a longo prazo... recebido de um dador. Também significa que o ADN que retirámos desse sangue... o ADN que foi examinado e que correspondia ao sémen nas cuecas, não era o ADN do padre Szyszynski, mas sim do seu dador - ela olha para o júri, assegurando-se de que estão a acenar com a cabeça antes de continuar. - Se tivéssemos retirado saliva ao padre Szyszynski, ou sémen, ou até pele... tudo menos o seu sangue... teria sido excluído como dador da mancha de sémen nas cuecas da criança.
Quentin deixa isto assentar.
- Espere um segundo. Está a dizer-me que se alguém receber um transplante de medula óssea, essa pessoa terá dois tipos diferen tes de ADN no seu corpo?
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- Exactamente. É extremamente raro, e é por isso que constitui uma excepção e não a regra, e que os testes de ADN continuam a ser o tipo de prova evidente mais fiável - Frankie tira outro relatório laboratorial, actualizado. - Como podem ver aqui, é possível fazer testes a alguém que tenha recebido um transplante de medula óssea para provar que possui dois perfis de ADN diferentes. Extraímos polpa dentária, que contém tecidos e células sanguíneas. Se essa pessoa recebeu um transplante de medula óssea, essas células tecidulares deverão exibir um perfil de ADN e as células sanguíneas deverão exibir outro.
- Foi isso que encontrou quando extraiu polpa dentária ao padre Szyszynski?
- Foi.
Quentin abana a cabeça, fingindo admiração. - Portanto suponho que o padre Szyszynski fosse a única pessoa em seis mil milhões cujo ADN correspondia ao ADN encontrado nas cuecas... sem ter sido ele a deixá-lo lá?
Frankie dobra o relatório e enfia-o na sua pasta. e - Exactamente - diz ela.
- Trabalhou com Nina Frost em alguns casos, não trabalhou? pergunta Fisher alguns momentos depois. - Sim - responde Frankie. - Trabalhei. ? - Ela é bastante meticulosa, não é?
- É. É um dos promotores de justiça que está sempre a telefonar, a verificar os resultados que enviámos por fax. Até já foi ao laboratório. Muitos promotores de justiça não se dão ao trabalho, mas a Nina queria realmente ter a certeza de que percebia. Gosta de acompanhar do princípio ao fim.
Fisher lança-me um olhar de soslaio. «E eu que o diga.» Mas diz:
- Para ela é muito importante ter a certeza de que compreendeu bem os factos, não é?
- Sim.
- Não é uma pessoa que tire conclusões precipitadas, ou confie em algo que lhe disseram sem o verificar?
- Que eu tenha visto, não - admite Frankie.
- Quando emite os seus relatórios laboratoriais, Dr.a Martine, está à espera que sejam fidedignos, não é verdade?
- É claro.
- Na realidade, emitiu um relatório que afirmava que as hipóteses de outra pessoa que não o padre Szyszynski contribuir com este sémen que se encontrava nas cuecas de Nathaniel Frost eram menores do que um em toda a população mundial?
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- Sim.
- Nunca colocou nada naquele relatório que restringisse os seus resultados no caso de o suspeito ter recebido um transplante de medula óssea, pois não? Visto ser um acontecimento tão raro que nem a senhora, uma cientista, alguma vez o suporia?
- Estatísticas são estatísticas... uma estimativa.
- Mas quando entregou esse relatório inicial ao gabinete do Ministério Público, estava preparada para pedir ao promotor de justiça que confiasse nele?
- Sim.
- Estava preparada para pedir a um júri de doze pessoas que confiasse nele como prova para condenar o padre Szyszynski?
- Sim - diz Frankie.
- Estava preparada para pedir ao juiz que confiasse nele quando condenasse o padre Szyszynski?
- Sim.
- E estava preparada para pedir a Nina Frost, a mãe da criança, que confiasse nele para encerrar o caso e ter paz de espírito?
- Sim.
Fisher volta-se para a testemunha.
- Então e fica surpreendida, Dr.a Martine, que ela tenha confiado?
É claro que Quentin objectou - diz Fisher, com a boca cheia de piza de pepperoni. - A questão não é essa. A questão é que eu não retirei a pergunta antes de dispensar a testemunha. O júri vai reparar nessa pequena diferença.
- Está a sobrestimar o júri - argumento. - Não digo que o contra-interrogatório não tenha sido fantástico, Fisher, porque foi. Mas... cuidado, vai sujar a gravata com molho.
Ele olha para baixo, e depois lança a gravata para cima do ombro e ri.
- Você tem muita graça, Nina. Quando é que acha que vai começar de facto a apoiar a defesa neste julgamento?
«Nunca», penso. Talvez seja mais fácil para Fisher, um advogado de defesa, arranjar explicações racionais para justificar as acções das pessoas. Afinal, quando temos de estar diariamente do lado de criminosos e lutar pela sua liberdade, ou nos convencemos de que tinham alguma desculpa para cometer um crime... ou dizemos para connosco que se trata apenas de um emprego, e, se mentimos para os defender, fazemo-lo em nome das horas cobradas. Após sete anos a ser promotora de justiça, o mundo parece muito preto e branco. É certo que foi bastante fácil convencer-me de que fui moralmente
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justa, quando acreditava ter matado um molestador de crianças. Mas ser absolvida depois de assassinar um homem inocente - bem, até o Johnnie Cochran11 deve ter pesadelos de vez em quando.
- Fisher? - pergunto suavemente. - Acha que eu devia ser castigada?
Ele limpa as mãos a um guardanapo.
- E eu estaria aqui se achasse que sim?
- com aquilo que recebe, provavelmente iria para o meio de uma arena de gladiadores.
Sorrindo, ele olha para mim. - Nina, acalme-se. Eu vou conseguir que seja ilibada.
«Mas eu não devia ser.» A verdade jaz na boca do meu estômago, embora não consiga dizê-la em voz alta. Para que serve o processo legal se as pessoas podem decidir que os seus motivos estão acima da lei? Se retirarmos um tijolo às fundações, quanto tempo levará até que todo o sistema se desmorone?
Talvez possa ser perdoada por querer proteger o meu filho, mas há muitos pais que defendem os filhos sem cometer crimes. Posso dizer para comigo que nesse dia estava apenas a pensar no meu filho; que estava apenas a agir como uma boa mãe... mas a verdade é que não estava. Estava a agir como promotora de justiça, que não confiou no processo judicial quando o caso se tornou relevante a nível pessoal. Que já devia saber que não devia fazer o que fiz. E é exactamente por isso que mereço ser condenada.
- Se nem eu própria consigo perdoar-me - digo por fim -, como é que outras doze pessoas o farão?
A porta abre-se e Caleb entra. De repente, o ambiente está tenso como a corda de um arco. Fisher olha para mim - ele sabe que Caleb e eu temos estado separados ultimamente - e depois amachuca o guardanapo numa bola e lança-o para dentro da caixa.
- Caleb! Sobraram algumas fatias - levanta-se. - vou tratar... daquilo que estivemos a falar - diz Fisher vagamente, e sai dali enquanto pode.
Caleb senta-se à minha frente. O relógio na parede, cinco minutos adiantado, faz um tiquetaque tão alto como o bater do meu coração.
- Tens fome? - pergunto.
Percorre o canto aguçado da caixa de piza.
- Estou esfomeado - responde Caleb.
Mas não faz nenhum movimento para tirar uma das fatias. Em vez disso, ambos observamos os seus dedos a deslizarem para a
" Advogado de defesa no caso de O. J. Simpson. (N. da T.) ? 304
frente, ao envolver a minha mão entre as suas. Arrasta a cadeira mais para a frente e baixa a cabeça até tocar nos nossos punhos juntos.
- Vamos começar de novo - murmura.
Se é que ganhei alguma coisa ao longo destes meses, é a consciência de que não podemos começar de novo - apenas podemos viver com os erros que cometemos. Mas por outro lado, Caleb ensinara-me há muito tempo que não podemos construir nada sem algum tipo de fundação. Talvez aprendamos a viver as nossas vidas ao compreender, em primeira mão, como não devemos vivê-las.
- Vamos só recomeçar onde ficámos - respondo, e encosto a face à parte de cima da cabeça de Caleb.
Até onde poderá uma pessoa ir... e continuar a viver consigo própria?
É algo que tem atormentado Patrick. Há certos actos para os quais arranjamos facilmente desculpas - matar durante a guerra; roubar comida quando estamos a morrer de fome; mentir para salvar a própria vida. Mas se restringirmos as circunstâncias, aproximando-as mais da nossa realidade, de repente, a fé de um homem que dedicou a sua vida à moralidade fica seriamente abalada. Patrick não censura Nina por matar Glen Szyszynski, porque naquele momento acreditava verdadeiramente que era a sua única opção. Da mesma forma, ele não considera que ter feito amor com ela na Véspera de Natal fosse errado. Tinha esperado anos por Nina; e quando finalmente foi sua mesmo que só por uma noite - o facto de ser casada com outro homem era irrelevante. Quem poderia afirmar que a ligação entre Patrick e Nina era menos forte por não haver nenhum pedaço de papel a santificá-la?
A justificação é uma coisa extraordinária - agarra em todas aquelas linhas nítidas e esborrata-as, de forma que a honra se torna tão flexível como um salgueiro, e a ética rebenta como bolhas de sabão.
Se Nina decidisse deixar Caleb, Patrick estaria ao seu lado num instante, e podia arranjar uma multiplicidade de razões para defender o seu comportamento. Verdade seja dita, é algo em que ele se permitiu reflectir naqueles momentos suaves e cinzentos antes de o sono vir. A esperança é o seu bálsamo para a realidade; se Patrick aplicar uma camada suficientemente espessa, por vezes consegue até visualizar uma vida com ela.
Mas há o Nathaniel.
E é isso que Patrick não consegue ultrapassar. É capaz de encontrar razões para se apaixonar por Nina; até é capaz de encontrar razões para ela se apaixonar por ele. Não há nada de que ele mais
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gostasse do que ver Caleb fora da vida dela. Mas Caleb não é apenas o marido de Nina... também é o pai do filho dela. E Patrick não suportaria saber que era o responsável por estragar a infância de Nathaniel. Se Patrick o fizesse depois de tudo o que aconteceu, bem... como é que ela poderia alguma vez amá-lo?
Comparado com uma transgressão daquela magnitude, aquilo que está prestes a fazer parece insignificante.
Observa Quentin Brown do banco das testemunhas. O promotor de justiça está à espera que isto decorra tranquilamente - tão tranquilamente como no ensaio. Afinal, Patrick é um agente da autoridade, habituado a depor. Tanto quanto Brown sabe, apesar da sua amizade com Nina, ele está do lado da acusação.
- Foi designado para trabalhar no caso de Nathaniel Frost? - pergunta Quentin.
- Sim.
- Como é que a arguida reagiu à sua investigação do caso? Patrick ainda não consegue olhar para Nina, ainda não. Não
quer trair-se.
- Era uma mãe incrivelmente dedicada.
Não foi esta a resposta que ensaiaram. Patrick observa Quentin hesitar, e depois entregar-lhe de bandeja a resposta que ele devia ter dado.
- Viu-a alguma vez perder a calma ao longo deste caso?
- Por vezes ficava muito perturbada. O filho não falava. Não sabia o que fazer - Patrick encolhe os ombros. - Quem não ficaria frustrado numa situação destas?
Quentin lança-lhe um olhar esmagador. Comentários no banco das testemunhas não são necessários, nem desejáveis.
- Quem foi o seu primeiro suspeito no caso de molestação? - Não tínhamos nenhum suspeito até surgir Glen Szyszynski.
Por esta altura, Quentin parece pronto a estrangulá-lo.
- Chamou outro homem para ser interrogado? - Sim. Caleb Frost. - Porque é que o chamou? Patrick abana a cabeça.
- A criança estava a utilizar linguagem gestual para comunicar, e identificou o seu agressor com o sinal para pai. Na altura, não compreendemos que ele queria dizer sacerdote, em vez de papá - olha directamente para Caleb, na primeira fila, atrás de Nina. - O erro foi meu - diz Patrick.
- Qual foi a reacção da arguida ao facto de o filho ter feito o sinal para pai? ?
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Fisher ergue-se da cadeira, preparado para objectar, mas Patrick fala rapidamente.
- Levou o caso muito a sério. A sua principal preocupação foi sempre, sempre, proteger o filho - confuso, o advogado volta a sentar-se ao lado de Nina.
- Detective Ducharme... - interrompe o promotor de justiça.
- Ainda não acabei, Dr. Brown. Ia dizer que tenho a certeza de que isso a deixou devastada, mas obteve um mandado de restrição
contra o marido, porque achou que era a melhor maneira de manter
o Nathaniel em segurança.
Quentin aproxima-se mais de Patrick, dizendo entre dentes para
que apenas a sua testemunha ouça:
- Mas que raio está o senhor a fazer? - e depois volta-se de frente para o júri. - Detective, quando é que tomou a decisão de deter o padre Szyszynski?
- Depois de o Nathaniel ter feito uma identificação verbal, fui falar com ele.
- Deteve-o nesse momento?
- Não. Estava à espera que ele confessasse primeiro. Estamos sempre à espera disso nos casos de molestação infantil.
- O padre Szyszynski alguma vez admitiu ter abusado sexualmente de Nathaniel Frost?
Patrick já foi testemunha em bastantes julgamentos para saber que a pergunta é manifestamente inaceitável, porque apela a rumores. O juiz e o promotor de justiça ficam ambos a olhar para Fisher Carrington, à espera que ele objecte. Mas por esta altura, o advogado de Nina já percebeu. Fica sentado na mesa da defesa com as mãos em pirâmide, a observar o desenrolar.
- Os molestadores de crianças quase nunca admitem que fizeram mal a uma criança - diz Patrick, preenchendo o silêncio. - Sabem que a prisão não será um local agradável para eles. E sinceramente, sem uma confissão, um julgamento de um caso de molestação é uma questão de sorte ou de azar. Quase metade das vezes, estes tipos safam-se devido a provas insuficientes ou porque a criança está demasiado aterrorizada para testemunhar, ou porque testemunha e o júri não acredita na palavra de um miúdo...
Quentin interrompe antes que Patrick possa fazer mais estragos.
- Meritíssimo, podemos fazer um intervalo?
O juiz olha para ele por cima das suas lentes bifocais.
- Estamos a meio da instrução.
- Sim, Meritíssimo, eu sei.
Encolhendo os ombros, Neal volta-se para Fisher.
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- A defesa objecta a pararmos nesta altura?
- Óbvio que não, Meritíssimo. Mas pedia ao Tribunal que relembrasse aos advogados que as testemunhas estão isoladas e não poderão ser abordadas durante o intervalo.
- Óptimo - diz Quentin de dentes cerrados. Sai disparado da sala de audiências tão rápido que não vê Patrick finalmente a estabelecer contacto visual com Nina, a sorrir-lhe gentilmente e a piscar o olho.
- Porque é que este polícia está a trabalhar para nós? - pergunta Fisher, assim que me arrastou para uma sala de conferências privada lá em cima.
- Porque ele é meu amigo. Sempre pude contar com ele - pelo menos essa é a única explicação que posso dar. Eu sabia, é claro, que Patrick teria de testemunhar contra mim, e não levava isso a mal. Parte daquilo que faz o Patrick ser o Patrick é a sua absoluta devoção à linha nítida que separa o certo do errado. Foi por isso que não me deixou falar com ele sobre o assassínio; foi por isso que lutou tanto para estar do meu lado enquanto eu estava à espera de julgamento. É por isso que o facto de ter sugerido ir à procura do padre Gwynne significou tanto para mim, e foi tão difícil para ele.
É por isso que quando penso na Véspera de Natal, não consigo acreditar que tivesse acontecido.
Fisher parece estar a ponderar nesta estranha oferta que lhe caiu no colo.
- Devo ter cuidado com alguma coisa? Alguma coisa que ele não faça para a proteger?
Dormimos juntos não porque Patrick tivesse posto de lado a moralidade naquela noite. Foi porque ele foi demasiado honesto para se convencer a si próprio de que os sentimentos não existiam.
- Ele não mentirá - respondo.
Quentin volta ao ataque. Qualquer que seja o jogo que este detective esteja a jogar, vai acabar imediatamente.
- Estava no tribunal na manhã do dia 30 de Outubro?
- Era o meu caso - responde Ducharme friamente.
- Falou com a arguida naquela manhã?
- Sim. Falei com os dois, com a Dr.a e com o Sr. Frost. Estavam ambos muito nervosos. Falámos sobre quem poderia ficar com o Nathaniel durante os procedimentos, porque como é óbvio, estavam muito reticentes em deixá-lo ao cuidado de alguém naquela altura.
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- O que fez o senhor quando a arguida disparou sobre o padre Szyszynski?
Ducharme enfrenta o olhar do promotor de justiça com frontalidade.
- Vi uma arma e fui buscá-la.
- Sabia que a Dr.a Frost tinha uma arma antes dessa altura?
- Não.
- Quantos guardas foram necessários para a imobilizar?
- Ela deixou-se cair para o chão - corrige o detective. - Quatro oficiais de diligências caíram em cima dela.
- E então o que fez o senhor?
- Pedi algemas. O delegado lanucci deu-me um par. Prendi as mãos da Dr.a Frost atrás das costas e levei-a para a cela de detenção.
- Quanto tempo esteve lá dentro com ela?
- Quatro horas.
- Ela disse-lhe alguma coisa?
No ensaio, Ducharme tinha dito a Quentin que a arguida confessara-lhe ter cometido um crime. Mas agora, ele faz uma expressão de menino de coro e olha para o júri.
- Esteve sempre a repetir sem parar: «Fiz tudo o que podia; não posso fazer mais nada». Parecia estar louca.
Louca?
- Objecção - urra Quentin. ?
- Meritíssimo, a testemunha é dele! - diz Fisher.
- Indeferida, Dr. Brown.
- Aproximação! - Quentin dirige-se intempestivamente para o lugar do juiz. - Juiz, vou pedir que esta testemunha seja declarada hostil, para poder fazer perguntas indutoras.
O juiz Neal olha para Ducharme, e depois novamente para o promotor de justiça.
- Doutor, ele está a responder às suas perguntas.
- Não da maneira que devia!
- Lamento, Dr. Brown. Mas o problema é seu.
Quentin respira fundo, desviando o rosto. A verdadeira questão aqui não é o facto de Patrick Ducharme estar a destruir este caso sozinho. A questão é porquê.
Ou Ducharme guarda rancor de Quentin, que nem sequer conhece verdadeiramente... ou está a tentar ajudar Nina Frost por alguma razão. Olha para cima, e repara que o detective e a arguida estão a olhar um para o outro, uma ligação tão carregada que Quentin imagina que ao atravessá-la poderia receber um choque.
Bem.
309
- Há quanto tempo conhece a arguida? - pergunta pausadamente.
- Há trinta anos.
- Tanto tempo?
- Sim.
- É capaz de descrever a sua relação com ela?
- Trabalhamos juntos.
«O caraças», pensa Quentin. «Apostava a minha reforma em como também brincam juntos.»
- Costuma vê-la fora do escritório num contexto não profissional?
Poderia não ser perceptível para alguém que estivesse a observar com menos atenção do que Quentin... mas o maxilar de Patrick Ducharme contrai-se.
- Conheço a família dela. Almoçamos juntos de vez em quando.
- Como se sentiu quando soube que tinha acontecido isto ao Nathaniel?
- Objecção - brada Carrington.
O juiz passa um dedo pelo lábio superior.
?? - vou permitir.
- Fiquei preocupado com o rapaz - responde o detective.
- Então e Nina Frost? Ficou preocupado com ela?
- Claro que sim. É uma colega.
- Só isso? - acusa Quentin.
Ele está preparado para a reacção de Ducharme - um rosto completamente desprovido de cor. Mais um prémio: a forma como Nina Frost parece ter sido esculpida em pedra. «Bingo», pensa Quentin.
- Objecção! - Indeferida - diz o juiz, semicerrando os olhos para o detective.
- Somos amigos há muito tempo - Ducharme percorre um campo minado de palavras.- Sabia que a Nina estava perturbada, e fiz aquilo que pude para a aliviar.
- Como por exemplo... ajudá-la a matar o padre? Nina Frost levanta-se de um salto da sua cadeira na mesa da defesa.
- Objecção!
O advogado dela empurra-a para baixo. Patrick Ducharme parece estar pronto para matar Quentin, o que para ele não faz mal, agora que o júri pensa ser possível que o detective já seja cúmplice de um assassínio.
- Há quanto tempo é polícia?
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- Há três anos.
- E antes disso, foi detective da polícia militar?
- Sim, durante cinco anos. Quentin acena com a cabeça.
- Como investigador, detective e agente da polícia tanto no exército dos Estados Unidos como no Departamento de Polícia de Biddeford, quantas vezes já testemunhou?
- Dezenas de vezes.
- Tem consciência de que enquanto testemunha se encontra sob juramento, Detective?
- Claro.
- Hoje disse perante o tribunal que durante as quatro horas que passou numa cela de detenção com a arguida, ela parecia louca.
- É verdade. Quentin olha para ele.
- No dia a seguir ao padre Szyszynski ter sido assassinado, o senhor e o detective Chão vieram falar comigo ao gabinete do Ministério Público. Lembra-se do que me disse sobre o estado de espírito da arguida?
Há um longo impasse. Por fim Ducharme desvia o rosto.
- Disse que ela sabia exactamente o que estava a fazer, e que, se se tratasse do meu filho, eu teria feito o mesmo.
- Então... a sua opinião no dia a seguir ao homicídio era que Nina Frost estava perfeitamente lúcida. E a sua opinião hoje é que estava louca. Qual delas escolhe, Detective... e que diabo fez ela neste intervalo de tempo para que o senhor mudasse de ideias? - pergunta Quentin, e senta-se na cadeira, sorrindo.
Fisher está a desempenhar o papel de confidente para o júri, mas eu mal consigo acompanhar as suas palavras. Ver Patrick no banco das testemunhas deixou-me virada do avesso.
- Sabe - começa Fisher -, acho que o Dr. Brown estava a tentar insinuar algo sobre a sua relação com a Dr.a Frost que não está claro, e eu gostaria de ter oportunidade de tornar claro para o júri qual é a verdade. O senhor e a Nina eram muito amigos quando eram crianças, não é assim?
- Sim.
- E como todas as crianças, provavelmente dizia uma mentira inocente de vez em quando?
- Suponho que sim - diz Patrick.
- Mas isso está longe de ser considerado perjúrio, não está?
- Sim.
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- Tal como todas as crianças, vocês os dois maquinavam intrigas e esquemas e talvez até os levassem a cabo?
- Claro.
Fisher abre as mãos.
- Mas isso está longe de planear um assassínio, não é verdade?
- Absolutamente.
- E quando eram crianças, vocês os dois eram particularmente próximos. Mesmo agora, são particularmente próximos. Mas é só o que são... amigos. Correcto?
Patrick olha directamente para mim.
- Claro - diz ele.
O estado cessa o interrogatório. Eu estou demasiado nervosa para descansar. Percorro os cantos da pequena sala de conferências onde me deixaram sozinha - Caleb foi ver como estava o Nathaniel e Fisher saiu para telefonar para o seu escritório. Estou à janela - algo que Fisher me disse para não fazer, porque os fotógrafos lá em baixo têm umas super teleobjectivas que estão a utilizar - quando a porta se abre e o som do corredor se infiltra cá para dentro.
- Como está ele? - pergunto sem me virar, presumindo que Caleb voltou.
- Cansado - responde Patrick -, mas acho que vou recuperar. Volto-me, aproximo-me dele, mas agora há um muro entre nós,
que apenas ele e eu conseguimos ver. Os olhos de Patrick, aquele lindo azul, estão inundados de sombras. Afirmo o óbvio.
- Mentiste sobre nós. No banco das testemunhas.
- Menti? - ele aproxima-se mais, e isso dói. Haver tão pouco espaço entre nós e saber que não posso eliminá-lo completamente.
Somos apenas amigos. É só o que alguma vez seremos. Podemos imaginar, podemos fingir que não por uma única noite, mas esse não é o ponto de referência para uma vida em conjunto. Não há maneira de saber o que teria acontecido se eu não tivesse conhecido Caleb; se o Patrick não tivesse ido para o estrangeiro. Mas construí um mundo com o Caleb. Não posso arrancar esse pedaço de mim, mas também não posso cortar a parte do meu coração que pertence ao Patrick.
Amo-os aos dois; sempre amarei. Mas o problema não sou eu.
- Não menti, Nina. Fiz o que estava certo - a mão de Patrick ergue-se até ao meu rosto, e eu viro a face para a sua palma.
vou deixá-lo. vou deixar toda a gente.
- O que está certo - repito - é eu pensar antes de agir, para deixar de magoar as pessoas que amo.
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- A tua família - murmura ele. Abano a cabeça.
- Não - digo, a minha despedida. - Tu.
Depois de encerrada a sessão no tribunal, Quentin vai a um bar. Mas não lhe apetece particularmente beber, portanto mete-se no carro e guia sem destino. Vai a um Wal-Mart e compra 104,35 dólares de artigos de que não necessita; pára num McDonald s para jantar. Só passadas duas horas é que se apercebe de que precisa de ir a um sítio.
Está escuro quando pára junto à casa de Tanya, e tem dificuldade em tirar o passageiro de dentro do carro. Não foi tão difícil como seria de imaginar encontrar um esqueleto de plástico; os artigos do Dia das Bruxas, amontoados num canto desordenado, tinham uma promoção de sessenta por cento de desconto na loja de disfarces.
Carrega o esqueleto pela via de acesso como um amigo que bebeu demasiado, com as falanges a arrastar na gravilha, e utiliza um longo dedo ossudo para tocar à campainha. Passados alguns momentos, Tanya atende.
Veste a sua roupa de trabalho, e as tranças estão apanhadas num rabo-de-cavalo.
- Pronto - diz ela, olhando para Quentin e para o esqueleto. Tenho de ouvir isto.
Ele muda de posição, para poder segurar na caveira e deixar o resto pendurado, libertando uma mão.
- Omoplata - recita. - ísquio, ilíaco. Maxilar superior, maxilar inferior, perónio, cubóide - assinalou cada uma destas palavras no osso correspondente, com um marcador preto.
Tanya começa a fechar a porta.
- Perdeste o juízo, Quentin.
- Não! - enfia o pulso do esqueleto lá dentro. - Não faças isso. Respirando fundo, Quentin diz:
- Comprei isto para ti. Queria mostrar-te... que não me esqueci daquilo que me ensinaste.
Ela inclina a cabeça. Meu Deus, costumava adorar a forma como o fazia. E como massajava o seu próprio pescoço quando os músculos ficavam doridos. Olha para esta mulher, que ele já não conhece, e pensa que ela tem o aspecto que o lar deve ter.
Os dedos de Tanya deslizam pelos ossos, de que ele não conseguiu lembrar-se, amplas costelas brancas e partes do joelho e do tornozelo. Depois alcança o braço de Quentin e sorri.
- Ainda tens muito que aprender - responde e puxa-o para dentro de casa.
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Nessa noite sonho que estou no tribunal, sentada ao lado de Fisher, quando os pêlos se eriçam na minha nuca. O ar torna-se mais pesado, mais difícil de respirar, e atrás de mim os sussurros correm como ratos no chão árido.
- Todos de pé - diz o oficial de justiça, e eu estou prestes a fazê-lo, mas então ouve-se o frio estalido de uma arma encostada ao meu couro cabeludo, a tensão e a torrente de uma bala no meu cérebro, e estou a cair; estou a cair.
O som acorda-me. Inconfundível, uma celebração de chocalhos e estrondos no metal ressoante. Guaxinins, mas em Janeiro?
com o meu pijama de flanela, desço as escadas em bicos de pés. Enfio os meus pés descalços dentro de umas botas, os braços numa parca. Pelo sim pelo não, agarro no atiçador da lareira, e depois saio lá para fora.
A cobertura de neve mascara as minhas pegadas enquanto percorro os poucos metros até à garagem. À medida que me aproximo, o vulto negro encolhido revela-se demasiado grande para ser um guaxinim. A cabeça está enfiada no lixo. Só quando bato no caixote como se fosse um gongo é que o homem levanta a cabeça, tonto e com os ouvidos a zunir.
Está vestido como um ladrão, e o meu primeiro pensamento, demasiado caridoso, é que deve estar gelado. As mãos, cobertas por luvas de borracha, estão escorregadias devido ao conteúdo dos meus detritos. Como preservativos, penso - ele não quer apanhar nenhuma doença terrível e quem sabe o que podemos contrair ao examinar os detritos da vida de outra pessoa?
- Que diabo está você a fazer? - pergunto. Desenvolve-se um conflito no seu rosto. Depois tira um gravador do bolso.
- Está disposta a fazer uma declaração?
- Você é jornalista? Anda a vasculhar no meu lixo e é jornalista?
- aproximo-me dele. - O que achava que ia encontrar? Que mais poderia ser necessário dizer sobre a minha vida?
Agora reparo em como é jovem: o Nathaniel, com mais uns quinze anos. Está a tremer, e não sei se é por causa da temperatura lá fora, ou por ter ficado frente a frente com alguém tão diferente como eu.
- Os seus leitores querem saber se eu estive com o período na semana passada? Que acabei uma caixa de Cheerios Mel e Nozes? Que recebo demasiada publicidade no correio?
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Agarro no gravador e carrego no botão para gravar.
- Quer uma declaração? Eu faço-lhe uma declaração. Pergunte aos seus leitores se eles podem responder por cada minuto das suas vidas, cada pensamento nas suas cabeças, e ter orgulho nisso. Pergunte-lhes se nunca atravessaram a rua fora da passadeira... se nunca andaram a cinquenta e um quilómetros por hora numa zona de limite de velocidade de cinquenta quilómetros... se nunca aceleraram ao ver aquele semáforo amarelo. E quando encontrar essa única pessoa digna de pena que nunca deu um passo em falso, essa única pessoa com o direito de me julgar, diga-lhe que é tão humana quanto eu. Que amanhã, o seu mundo poderá ficar virado de pernas para o ar e poderá aperceber-se de que é capaz de cometer actos que nunca acreditaria serem possíveis - desvio o olhar, com a voz entrecortada. - Diga-lhe que ele poderia ter sido eu.
Depois agarro no gravador e atiro-o com tanta força e o mais longe que consigo, para um grande monte de neve. Entro em casa e tranco a porta atrás de mim, encosto-me a ela e recupero o fôlego.
Nada do que faça poderá trazer o padre Szyszynski de volta. Mas nada do que faça poderá apagar da minha memória o erro que cometi. Nenhuma sentença de prisão poderá castigar-me mais do que eu me castigo a mim própria, nem fazer o tempo voltar para trás, nem impedir-me de pensar que Arthur Gwynne merecia tanto morrer quanto o seu meio-irmão não merecia.
Tenho estado a movimentar-me em câmara lenta, à espera que um machado inevitável caia, a ouvir os depoimentos como se estas testemunhas estivessem a discutir o destino de um estranho. Mas agora, sinto-me despertar. O futuro poderá desenrolar-se em pinceladas indeléveis, mas isso não significa que tenhamos de ler a mesma frase vezes sem conta. Era exactamente esse o destino que eu não desejava para o Nathaniel... então porque haveria de o desejar para mim:
A neve começa a cair, como uma bênção Quero a minha vida de volta.
O pássaro parecia um dinossáurio minúsculo, demasiado pequeno para ter penas ou saber abrir os olhos. Estava no chão ao lado de um pau com forma de V e uma bolota de chapéu amarelo. A sua boca dobrava-se para trás, como uma dobradiça, e um coto de asa pendia. Conseguia ver o contorno do seu coração.
- Pronto - deitei-me no chão, para não ser tão assustador. Mas ele limitou-se a ficar ali deitado de lado, com a barriga Inchada como um balão.
Quando olhei para cima, consegui ver os seus irmãos e irmãs no ninho.
com um dedo, empurrei-o para cima da minha mão. -Mãe!
- O que foi? Oh, Nathaniel! - ela fez aquele estalido com a língua e agarrou-me no pulso, empurrando-o novamente para o chão.
- Não o apanhes!
- Mas... mas... - qualquer pessoa conseguia ver como estava doente. Devemos ajudar as pessoas que estão demasiado doentes ou demasiado tristes para tomar conta de si próprias; o padre Glen estava sempre a dizer Isso, Então porque é que as aves não?
- Assim que um ser humano toca numa cria, a mãe deixa de o querer - e, tal como ela tinha dito, o tordo grande veio do céu e passou a saltar mesmo ao lado da cria. - Agora já sabes - disse ela.
Fiquei a olhar para o pássaro. Interroguei-me se ficaria ali ao lado do pau em V e da bolota até morrer. Tapei-o com uma folha grande, para que ficasse quente.
- Se eu fosse um pássaro e alguém me tocasse, morria?
- Se fosses um pássaro - disse ela -, eu nunca te deixaria cair do ninho.
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OITO
São estas as coisas que ele leva: o seu ioió Yomega Brain; o braço de estrela-do-mar que encontrou na praia. A sua faixa de rapaz mais corajoso, uma lanterna, um cromo do Batman. Setenta e seis cêntimos, duas moedas de dez cêntimos, e vinte e cinco cêntimos canadianos. Uma barra de cereais e um saco de drageias que sobraram da Páscoa. São os tesouros que levou com ele quando se mudou para o motel com o pai; agora não os pode deixar para trás. Cabem todos dentro da fronha branca e batem ligeiramente no estômago de Nathaniel quando ele a coloca dentro do casaco e o fecha.
- Estás pronto? - pergunta o pai; as palavras foram lançadas como um pau num campo e esquecidas. Nathaniel interroga-se porque é que se terá dado ao trabalho de tentar manter isto em segredo, quando afinal o pai estava demasiado ocupado para reparar. Sobe para o lugar do passageiro na carrinha e aperta o cinto de segurança
- e depois, pensando melhor, desaperta-o.
Se quiser portar-se mesmo mal, o melhor é começar já.
Uma vez, o homem da lavandaria ofereceu-se para levar Nathaniel a ver onde o grande milípede andante de roupas passadas a ferro começava. O pai tinha-o erguido por cima do balcão e ele seguira o Sr. Sarni até bem lá atrás, onde as roupas estavam a ser limpas. O ar era tão pesado e húmido que Nathaniel ofegava quando carregou no grande botão vermelho, fazendo a correia transportadora de cabides mover-se lentamente no seu arco de novo. O ar no tribunal faz Nathaniel lembrar-se disso. Talvez não esteja tanto calor ali, nem tão pegajoso, mas é igualmente difícil respirar.
Quando o pai o leva para a sala de brinquedos lá em baixo com Monica, proferem palavras entre dentadas de marshmallow que pensam que Nathaniel não consegue ouvir. Ele não sabe o que é uma testemunha hostil, nem preconceito do júri. Mas quando o pai fala,
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as rugas do seu rosto surgem no rosto de Monica, como se fosse um espelho.
- Nathaniel - diz ela, com uma animação falsa, assim que o pai vai lá para cima. - Vamos lá tirar esse casaco.
- Tenho frio - mente, e aperta o seu embrulho junto a si.
Ela tem o cuidado de nunca tocar em Nathaniel, e ele interroga-se se será porque Monica possui visão raio-X para ver o quão sujo ele está por dentro. Ela olha para ele quando pensa que ele não está a ver, e os seus olhos são profundos como um lago. A mãe olha para ele com a mesma expressão. É por causa do padre Gwynne; Nathaniel deseja que pelo menos uma vez alguém se dirija a ele e pense nele apenas como um miúdo qualquer, e não como Aquele a Quem Isto Aconteceu.
O que o padre Gwynne fez está errado - Nathaniel sabia-o naquela altura, pela forma como a sua pele estremecia; e sabe-o agora, por falar com a Dr.a Robichaud e com Monica. Elas disseram vezes sem conta que Nathaniel não teve culpa. Mas isso não o impede de se voltar para trás de vez em quando, mesmo depressa, convencido de que sentiu a respiração de alguém no seu pescoço. E não o impede de pensar: se abrisse a sua barriga com um corte, como
o pai faz quando apanha uma truta, encontraria aquele nó preto que está sempre a doer?
- Então, como estamos esta manhã? - pergunta Fisher, assim que me sento ao lado dele.
- O Fisher não devia saber? - observo o oficial de justiça a colocar uma pilha de ficheiros no lugar do juiz. O banco das testemunhas, sem os seus membros, parece cavernoso.
Fisher dá-me pancadinhas no ombro.
- É a nossa vez - garante-me. - vou passar o dia inteiro a fazer os jurados esquecerem-se daquilo que o Brown lhes disse. Volto-me para ele.
- As testemunhas...
Quando a porta lateral se abre e os jurados entram em fila, desvio o olhar e interrogo-me como hei-de dizer a Fisher que afinal não é isso que quero.
- Tenho de ir fazer chichi - anuncia Nathaniel.
- Está bem - Monica pousa o livro que lhe estava a ler e levanta-se, à espera que Nathaniel a acompanhe até à porta. Caminham juntos ao longo do corredor até às casas de banho. A mãe de Nathaniel não o deixa ir sozinho à casa de banho dos rapazes, mas aqui não
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faz mal, porque há apenas uma sanita e Monica pode verificar antes de ele entrar. - Lava as mãos - lembra ela, e abre a porta para que Nathaniel possa entrar.
Nathaniel senta-se no frio assento da sanita para deitar tudo para fora. Deixou o padre Gwynne fazer tudo aquilo - e fez mal. Ele portou-se mal; mas não foi castigado. Na realidade, desde que se portou tão mal, toda a gente lhe tem dado mais atenção, e sido mais simpática.
A mãe também fez uma coisa muito má - porque foi a melhor maneira de emendar uma coisa que aconteceu, disse ela.
Nathaniel tenta interpretar tudo isto, mas as verdades estão demasiado enleadas na sua cabeça. Apenas sabe que, por alguma razão, o mundo está virado de pernas para o ar. As pessoas estão a quebrar as regras como doidas - e em vez de se meterem em sarilhos, essa é a única maneira de colocar tudo novamente no seu lugar.
Puxa as calças para cima, aperta o casaco e descarrega o autoclismo. Depois fecha a tampa e sobe da sanita para o suporte do papel higiénico e daí para a pequena saliência lá em cima. A janela ali é minúscula, só para vista, porque isto é uma cave. Mas Nathaniel consegue abri-la e é suficientemente pequeno para passar por lá.
Encontra-se atrás do tribunal, num dos vãos de janelas. Ninguém repara num miúdo do seu tamanho. Nathaniel passa ao lado das carrinhas e furgonetas no parque de estacionamento, atravessa o relvado gelado. Começa a vaguear pela estrada sem destino, sem estar de mão dada com um adulto, determinado a fugir. «Três coisas más», pensa ele, «todas de uma vez só».
- Dr., - pergunta Fisher -, quando é que a Dr.a Frost foi pela primeira vez ao seu consultório?
- No dia 12 de Dezembro.
Sentindo-se à vontade, como deveria estar, tendo em conta todos os testemunhos que apresentou ao longo da sua carreira, o psiquiatra relaxa na sua cadeira das testemunhas. com os cabelos grisalhos nas têmporas e a sua pose casual, parece irmão de Fisher.
- Que material recebeu antes de se encontrar com ela?
- Uma carta de apresentação sua, uma cópia do relatório da polícia, a cassete de vídeo filmada pela WCSH-TV, e o relatório psiquiátrico preparado pelo Dr. Storrow, o psiquiatra do estado, que a tinha examinado duas semanas antes.
- Quanto tempo durou a sua reunião com a Dr. Frost nesse primeiro dia?
- Uma hora.
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- Qual era o seu estado de espírito quando se encontraram?
- O tema da conversa foi o filho dela. Estava muito preocupada com a sua segurança - diz O Brien. - O filho tinha ficado mudo; ela estava muitíssimo agitada devido à preocupação; sentia-se culpada por ser uma mãe trabalhadora que não esteve presente o tempo suficiente para se aperceber do que estava a acontecer. Para além disso, os seus conhecimentos especializados sobre o funcionamento dos tribunais tornaram-na consciente dos efeitos da molestação de crianças... e mais ansiosa quanto à capacidade do filho para sobreviver ao processo legal sem sofrer traumas significativos. Após reflectir sobre as circunstâncias que levaram a Dr.a Frost ao meu consultório, bem como o facto de tê-la conhecido pessoalmente, concluí que ela é um exemplo clássico de alguém que sofre de perturbação de stresse pós-traumático.
- Como é que isso pode ter afectado a sua estabilidade mental na manhã de 30 de Outubro?
O Brien inclina-se para a frente para se dirigir ao júri.
- A Dr.a Frost sabia que estava a dirigir-se ao tribunal para enfrentar o agressor do filho. Estava absolutamente convencida de que o filho ficaria permanentemente marcado pelo acontecimento. Estava convencida de que depor, como testemunha, ou mesmo numa audiência de competência, seria devastador para a criança. Por fim, estava convencida de que o agressor seria eventualmente absolvido. Pensava em tudo isto, e quando se dirigiu ao tribunal, ficou cada vez mais agitada, e cada vez mais fora de si, até acabar por perder o controlo. Quando encostou a arma à cabeça do padre Szyszynski, não conseguia conscientemente deixar de o matar, foi um reflexo involuntário.
O júri estava a ouvir, pelo menos: alguns jurados foram suficientemente corajosos para me lançar olhares rápidos. Tentei fazer uma expressão que se encaixasse algures entre Contristada e Devastada.
- Doutor, quando foi a última vez que viu a Dr.a Frost?
- Há uma semana - O Brien esboça um sorriso bondoso para mim. - Agora sente-se mais capaz de proteger o filho, e compreende que os seus meios para o fazer não foram correctos. Na realidade, está cheia de remorsos devido às suas acções anteriores.
- A Dr.a Frost ainda sofre de perturbação de stresse pós-traumático?
- A PSPT não é como a varicela, que pode ficar curada para sempre. Na minha opinião, porém, a Dr.a Frost está numa altura em que compreende os seus próprios sentimentos e pensamentos e
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consegue impedir que estes a dominem. com uma subsequente terapia externa, creio que fará a sua vida normal.
Esta mentira custou á Fisher, e portanto a mim, dois mil dólares. Mas valeu a pena: vários membros do júri estão a acenar com a cabeça. Talvez a honestidade seja sobrestimada. O que é verdadeiramente inestimável é escolher de uma torrente de falsidades aquelas que mais precisamos de ouvir.
Os pés de Nathaniel doem-lhe, e os dedos estão gelados dentro das botas. As luvas estão na sala dos brinquedos, por isso as pontas dos dedos ficaram cor-de-rosa, mesmo enfiadas nos bolsos do casaco. Quando começa a contar em voz alta, só para ter alguma coisa que fazer, os números ficam a pairar à sua frente, enrolados ao frio.
Porque sabe que não deve, passa por cima da protecção e corre para o meio da estrada. Um autocarro aproxima-se, passando por ele com a buzina a apitar e desvia-se perdendo-se na distância.
Nathaniel abre os braços para se equilibrar e começa a andar na corda bamba da linha tracejada.
- Dr. O Brien - diz Quentin. - Acha que a Dr.a Frost é capaz de proteger o filho agora?
- Sim, acho.
- Então para quem irá apontar uma arma a seguir? O psiquiatra remexe-se na cadeira.
- Não creio que chegue a esses extremos.
O promotor de justiça franze os lábios, reflectindo.
- Talvez agora não. Mas e daqui a dois meses... dois anos? Alguma criança no parque infantil que ameace o filho. Ou um professor que olhe de lado para ele. Será que ela vai passar o resto da sua vida a fazer de Dirty Harry?
OBrien ergue uma sobrancelha.
- Dr. Brown, aqui não se tratou de alguém ter olhado de lado para o filho. Ele tinha sido molestado sexualmente. Ela estava convencida de que sabia para além de qualquer dúvida razoável quem o tinha feito. Também tenho conhecimento de que o indivíduo que foi eventualmente identificado como verdadeiro agressor morreu de causas naturais, portanto já não tem uma alegada vingança a cumprir.
- Doutor, o senhor examinou o relatório do psiquiatra do estado. Não é verdade que chegou à conclusão exactamente oposta, em relação ao estado mental da Dr.a Frost? Que ele não só a considerou competente para enfrentar julgamento como também achou que estava lúcida na altura do crime?
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- Sim, o Dr. Storrow indicou de facto isso. Mas esta foi a primeira avaliação que ele fez para o tribunal. Por outro lado, eu sou psiquiatra forense há mais de quarenta anos.
- E não sai barato, pois não? - diz Brown. - A defesa não está a pagar-lhe pelo seu testemunho aqui hoje?
- Os meus honorários são dois mil dólares por dia, mais as despesas - responde O Brien, encolhendo os ombros.
Há um rebuliço ao fundo da sala de audiências.
- Doutor, creio que utilizou as palavras «ela acabou por perder o controlo». Não é verdade?
- Não é esse o termo clínico, é claro, mas seria assim que o descreveria em conversa.
- Ela perdeu o controlo antes ou depois de se dirigir à loja de armas? - pergunta Brown.
- É evidente que isso fez parte do seu declínio mental progressivo...
- Ela perdeu o controlo antes ou depois de carregar a arma semiautomática de nove milímetros com seis balas?
- Como disse antes, isso fez parte...
- Ela perdeu o controlo antes ou depois de ter apontado cuidadosamente a arma a uma pessoa, e apenas a uma pessoa, numa sala cheia de gente?
A boca de O Brien fecha-se.
- Tal como disse anteriormente perante este tribunal, naquela altura a Dr.a Frost não tinha nenhum controlo sobre os seus actos. Deixar de matar o padre para ela era como deixar de respirar.
- O que é certo é que ela conseguiu fazer alguém deixar de respirar, não é verdade? - Brown dirige-se ao banco dos jurados. O senhor é um perito em perturbação de stresse pós-traumático, não é?
- Consideram-me bastante instruído nessa área, sim.
- E a PSPT é despoletada por um acontecimento traumático?
- Exactamente.
- O senhor viu a Dr.a Frost pela primeira vez após a morte do padre Szyszynski?
- Sim.
- E - diz Brown - acha que foi a molestação do filho da Dr.a Frost que despoletou a sua PSPT?
- Sim.
- Como sabe que não foi ter matado o padre?
- É possível - admite O Brien. - Só que o outro trauma foi anterior.
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- Não é verdade que os veteranos do Vietname podem ser flagelados pela PSPT a vida inteira? Que passados trinta anos estes homens ainda acordam com pesadelos?
- Sim.
- Então o senhor não pode, com algum tipo de certeza científica, dizer perante este júri que a arguida já ultrapassou a doença que, pelas suas próprias palavras, a fez perder o controlo?
Mais vozes a erguerem-se do fundo da sala de audiências. Concentro a minha atenção na frente.
- Duvido que a Dr.a Frost venha alguma vez a esquecer completamente os acontecimentos dos últimos meses - diz OBrien diplomaticamente. - Contudo, segundo a minha opinião pessoal, ela não é perigosa agora... e não será perigosa no futuro.
- Por outro lado, Doutor - diz Brown -, o senhor não está a usar um cabeção.
- Por favor - grita uma voz familiar, e então Monica afasta-se do oficial de diligências que a agarra e corre pelo corredor central da sala de audiências. Sozinha. Agacha-se ao lado de Caleb.
- É o Nathaniel - soluça. - Desapareceu.
O juiz concede um intervalo, e os oficiais de diligências que se encontram na sala de audiências são enviados à procura de Nathaniel. Patrick chama o xerife do condado e a polícia estadual. Fisher oferece-se para apaziguar o frenesim dos meios de comunicação social que ouviram falar da existência de um novo problema.
Eu não posso ir, porque ainda estou a usar aquela maldita pulseira electrónica.
Penso em Nathaniel, raptado. Nele a vaguear, entrando no vagão de um velho comboio, a morrer de frio. No navio onde ele poderá ter embarcado clandestinamente quando ninguém estava a ver. Ele podia dar a volta ao mundo, que eu continuaria prisioneira destas quatro paredes.
- Ele disse-me que tinha de ir à casa de banho - diz Monica, lavada em lágrimas. Ficamos à espera no átrio, que está livre de jornalistas. Eu sei que ela quer a absolvição, mas diabos me levem se eu lha darei. - Achei que talvez estivesse a sentir-se mal, porque estava a demorar tanto tempo. Mas quando entrei, aquela janela estava aberta - ela agarra-me na manga. - Acho que ninguém o levou, Nina. Acho que ele só fez isto para chamar a atenção.
- Monica - agarro-me ao mais fino filamento de controlo.
Lembro a mim própria que ela não podia saber o que Nathaniel faria.
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Que ninguém é perfeito; e que aparentemente eu não o protegi melhor do que ela. Mas mesmo assim.
Ironia: serei absolvida e o meu filho estará desaparecido.
De uma profusão de gritos, sempre fui capaz de distinguir os de Nathaniel. Em bebé; num parque infantil cheio de crianças; até mesmo de olhos fechados, a jogar Marco Pólo 2 na parte mais rasa da piscina. Talvez se gritar suficientemente alto agora, o Nathaniel consiga ouvir-me.
Dois círculos de cor viva surgiram nas faces de Monica.
- O que posso fazer? - sussurra ela.
- Traga-o de volta - e em seguida afasto-me, porque a culpa não é só contagiosa, também é mortal.
Caleb observa os polícias a acelerarem nos seus veículos, de luzes a piscar. Talvez atraiam Nathaniel; ou talvez não. Uma coisa é certa - estes guardas esqueceram-se do que é ter cinco anos. Assim, põe-se de costas para a janela que dá para a casa de banho da cave. Ajoelha-se, para ficar da altura de Nathaniel. Depois semicerra os olhos, tendo em conta tudo aquilo que pudesse chamar-lhe a atenção.
Um denso maciço de arbustos, nus e trémulos. Um guarda-chuva, virado ao contrário pelo vento e deitado fora. Uma rampa para deficientes pintada com linhas amarelas em ziguezague.
- Sr. Frost- a voz grave faz Caleb sobressaltar-se. Põe-se de pé e volta-se para ver ali o promotor de justiça, de ombros curvados para se proteger do frio.
Quando Monica tinha entrado a correr na sala de audiências para dar as más notícias, Fisher Carrington olhara para o rosto de Nina e pedira um intervalo. Brown, por outro lado, levantara-se e perguntara ao juiz se aquilo não seria um esquema para obter compaixão.
- Tanto quanto sabemos - tinha dito -, o rapaz pode estar são e salvo numa sala de conferências lá em cima.
Não demorara muito tempo para se aperceber do seu erro táctico, enquanto o júri observava Nina a ficar histérica. Mas mesmo assim, ele é a última pessoa que Caleb esperava ver aqui fora.
- Queria só dizer-lhe - diz Brown agora -, que se houver alguma coisa que eu possa fazer...
Deixa a frase esmorecer.
' Jogo para se jogar numa piscina em que um dos jogadores, de olhos fechados, grita -Marco», ao que os outros jogadores terão de responder -Pólo-. O primeiro jogador nada até aos outros, sempre de olhos fechados, e quando consegue apanhar um deles deixa de ser Marco. (N. do T.)
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- O senhor pode realmente fazer uma coisa - responde Caleb. Ambos os homens sabem o que é; sabem que não tem nada a ver com Nathaniel.
O promotor de justiça acena com a cabeça e vai lá para dentro. Caleb ajoelha-se de novo. Começa a mover-se em espiral em volta do edifício do tribunal, da mesma forma que coloca as pedras num pátio redondo - alargando os círculos para não deixar nenhum espaço e manter a curvatura do anel. Faz isto como faz tudo o resto - lenta e persistentemente - até ter a certeza de que está a ver o mundo através dos olhos do filho.
Do outro lado da estrada há uma encosta íngreme que Nathaniel desce a escorregar de rabo. As calças prendem-se num ramo e rasgam-se, mas não faz mal, porque ninguém irá castigá-lo. Pisa poças de água gelada de neve a derreter, atravessando os limites irregulares da zona arborizada, onde caminha até tropeçar num pedaço da floresta que ficou-de fora por engano.
É do tamanho da sua cama, em sua casa, e foi calcado pelos rastos dos animais. Nathaniel senta-se num tronco e tira a fronha de dentro do casaco. Tira cá para fora a barra de cereais e come metade, e depois decide guardar o resto. Liga a lanterna e encosta-a à palma da mão, de modo que as costas da mão brilhem, vermelhas.
Quando o veado aparece, Nathaniel sustém a respiração. Ele lembra-se do que o pai lhe disse - eles têm mais medo de nós do que nós deles. O grande, uma fêmea, tem uma pelagem cor de caramelo e pequenos cascos altos. A cria tem o mesmo aspecto, com manchas brancas no dorso, como se não tivesse sido toda colorida. Eles curvam os seus longos pescoços até ao chão, empurrando a neve com os focinhos.
É a mãe veado que descobre a erva. Apenas um tufo, mal chega a uma dentada. Mas em vez de a comer, empurra a cria para mais perto. Observa-a a comer, embora isso signifique que ela própria não ficará com nada.
Isso faz Nathaniel desejar dar-lhe a outra metade da sua barra de cereais.
Mas assim que mete a mão na sua fronha, as cabeças dos veados erguem-se subitamente e eles saltam com as quatro patas no ar, com as caudas como velas brancas à medida que desaparecem, embrenhando-se no bosque.
Nathaniel examina o rasgão na parte de trás das calças; as botas cheias de lama. Pousa a metade da barra de cereais em cima do
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tronco, no caso de o veado regressar. Depois levanta-se e dirige-se lentamente de novo para a estrada.
Patrick passou a pente fino o quadrado com dois quilómetros e meio em volta do tribunal, certo de que Nathaniel foi embora de livre vontade, e ainda mais certo de que o rapaz não poderia ter ido muito mais longe. Agarra no rádio para contactar a central de Alfred, a perguntar se alguém já tinha encontrado alguma coisa, quando um movimento na beira da estrada lhe chama a atenção. Enquanto Patrick observa, quatrocentos metros mais à frente, Nathaniel passa por cima da estrutura de ferro da protecção da estrada e começa a andar na berma.
- Que diabo - diz Patrick entre dentes, avançando ligeiramente com a carrinha. Parece que Nathaniel sabe exactamente para onde vai; dali, mesmo alguém tão pequeno como o Peste seria capaz de ver o telhado alto do tribunal. Mas o rapaz não consegue ver o que Patrick vê, da cabina alta da sua carrinha: Caleb, a aproximar-se, vindo do lado oposto da estrada.
Patrick observa Nathaniel a olhar para a direita e depois para a esquerda, e apercebe-se daquilo que ele planeia fazer. Colocando a sua luz rotativa no tejadilho da carrinha, Patrick vira apressadamente para bloquear o trânsito. Sai e desimpede o caminho, de forma que quando Nathaniel vir o pai à espera possa atravessar a estrada e correr para os braços de Caleb em segurança.
- Não voltes a fazer isso - digo contra o pescoço macio de Nathaniel, abraçando-o junto a mim. - Nunca mais. Estás a ouvir? Ele afasta-se, põe as mãos nas minhas faces.
- Estás zangada comigo?
- Não. Sim. Mas vou ficar, quando deixar de estar tão feliz - abraço-o com mais força. - Que pensavas tu?
- Que sou mau - diz ele simplesmente.
Por cima da cabeça de Nathaniel, cruzo o olhar com Caleb.
- Não, não és. querido. Teres fugido não foi correcto. Podias ter-te magoado; e fizeste com que eu e o Papá ficássemos tão preocupados que nem imaginas - hesito, escolhendo as palavras. - Mas podemos fazer uma coisa má e não sermos uma pessoa má.
- Como o padre Gwynne? Fico petrificada.
- Por acaso, não. Ele fez uma coisa má e era uma pessoa má. Nathaniel olha para mim.
- Então e tu?
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Pouco depois de a Dr.a Robichaud, a psiquiatra de Nathaniel, subir para o banco das testemunhas, Quentin Brown está de pé, pronto para objectar.
- Meritíssimo, o que tem esta testemunha para oferecer?
- Meritíssimo, contribui para o estado de espírito da minha cliente- argumenta Fisher. - A informação que ela recebeu da Dr. Robichaud relativamente ao estado cada vez mais agravado do filho foi extremamente relevante para a sua condição mental no dia 30 de Outubro.
- vou permitir - delibera o juiz Neal.
- Doutora, já tratou outras crianças que tivessem ficado mudas após abuso sexual? - pergunta Fisher.
- Sim, infelizmente.
- Em alguns destes casos, as crianças nunca chegam a recuperar a voz?
- Pode levar anos.
- Tinha alguma forma de saber se este estado seria prolongado no caso de Nathaniel Frost?
- Não - diz a Dr Robichaud. - Na realidade, foi por isso que comecei a ensinar-lhe os rudimentos da linguagem gestual. Ele estava a começar a ficar frustrado devido à sua incapacidade de comunicar.
- E isso ajudou?
- Durante algum tempo - admite a psiquiatra. - Depois ele voltou a falar.
- Os progressos foram regulares?
- Não. Cessaram quando o Nathaniel perdeu o contacto com a Dr.a Frost durante uma semana.
- Sabe porquê?
- Tive conhecimento de que ela foi acusada de violar as condições de caução e foi presa.
- Viu o Nathaniel durante a semana em que a mãe esteve na prisão?
- Sim, vi. O Sr. Frost levou-o ao meu consultório, bastante perturbado por a criança ter deixado de falar. Tinha regredido para o ponto em que só fazia um sinal para chamar a mãe.
- Na sua opinião, o que causou esta regressão?
- É evidente que foi a súbita e prolongada separação da Dr.a Frost - diz a Dr.a Robichaud.
- Que alterações se verificaram no estado do Nathaniel quando a mãe foi novamente libertada?
- Gritou por ela - a psiquiatra sorri. - Um barulho alegre.
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- E, Doutora, se ele sofresse novamente uma separação repentina e prolongada da sua mãe... qual acha que seria o resultado provável disso para o Nathaniel?
- Objecção! - brada Quentin.
- Retirado.
Passados alguns momentos, o promotor de justiça levanta-se para fazer o contra-interrogatório.
- Ao lidar com crianças de cinco anos, Doutora, não acha que muitas vezes fazem confusão com os acontecimentos:
- Sem dúvida. É por isso que os tribunais têm as audiências de competência, Dr. Brown.
Ao ser mencionado este assunto, o juiz Neal lança-lhe um olhar de aviso.
- Dr.a Robichaud, segundo a sua experiência, os casos legais deste tipo demoram de vários meses a vários anos a serem julgados, não é verdade?
-É.
- E a diferença de desenvolvimento entre uma criança de cinco anos e uma de sete é significativa, não é?
- Sem dúvida.
- Na realidade, não tratou já crianças que pareciam apresentar problemas em testemunhar quando vieram ter consigo pela primeira vez... e no entanto, passado um ano ou dois, depois de a terapia e o tempo os terem feito melhorar um pouco, foram capazes de subir para o banco das testemunhas sem nenhum percalço?
- Sim.
- Não é verdade que não há maneira de prever se Nathaniel teria sido capaz de testemunhar daqui a alguns anos sem que isso lhe causasse danos psicológicos significativos?
- Não, não há maneira de dizer o que poderia ter acontecido no futuro.
Quentin volta-se para mim.
- Enquanto promotora de justiça, a Dr.a Frost estaria decerto ciente deste intervalo de tempo para as presenças em tribunal, não acha?
- Sim.
- E enquanto mãe de uma criança desta idade, estaria ciente das alterações no desenvolvimento que seriam possíveis ao longo dos próximos anos?
- Sim. Na verdade, tentei dizer à Dr.a Frost que daqui a mais ou menos um ano o Nathaniel poderia estar melhor do que ela esperava. Que talvez até fosse capaz de testemunhar em seu favor.
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O promotor de justiça acena com a cabeça.
- Infelizmente, porém, a arguida matou o padre Szyszynski antes que pudéssemos vir a saber.
Quentin retira a afirmação antes mesmo de Fisher conseguir objectar. Puxo a ponta do seu casaco.
- Tenho de falar consigo - ele fica a olhar para mim como se eu tivesse perdido o juízo. - Sim - digo. - Agora.
Sei em que é que Quentin Brown está a pensar, porque já vi um caso através dos seus olhos. «Provei que ela o assassinou. Cumpri a minha função.» E talvez eu tenha aprendido a não interferir na vida das outras pessoas, mas é evidente que a responsabilidade de me salvar a mim própria é minha.
- Compete-me a mim - digo a Fisher na sala de conferências. Preciso de lhes dar uma razão para dizer que não tem importância.
Fisher abana a cabeça.
- Sabe o que acontece quando um advogado de defesa força demasiado um caso. A acusação tem o ónus da prova, e eu só posso abrir buracos. Mas se o fizer com demasiada força, esvazia-se tudo. Se usarmos uma testemunha a mais, a defesa perde.
- Compreendo o que está a dizer. Mas Fisher. a acusação provou mesmo que eu assassinei o Szyszynski. E eu não sou uma das suas testemunhas habituais - respiro fundo. - É claro, há casos em que a defesa perde por usar uma testemunha a mais. Mas há outros casos em que a acusação perde por o júri ouvir o arguido. Eles sabem que se fizeram coisas horríveis... e querem saber porquê, directamente da fonte.
- Nina, mal consegue estar sentada enquanto estou a fazer o contra-interrogatório, de tanta vontade que tem de objectar. Não posso pô-la a depor como testemunha quando não consegue deixar de ser uma promotora de justiça - Fisher está sentado à minha frente, de mãos abertas em cima da mesa. - A Nina pensa em factos. Mas só porque está a dizer algo aos jurados, isso não significa que eles o vão aceitar como realidade. Depois de todo o trabalho de preparação que fiz, eles gostam de mim; acreditam em mim. Se eu lhes disser que a Nina estava tão dominada pelas emoções que estava para além do pensamento racional, eles vão acreditar. Por outro lado, diga-lhes o que lhes disser, eles estarão predispostos a pensar que é uma mentirosa.
- Não se eu lhes disser a verdade.
- Que teve de facto intenção de dar um tiro no outro tipo? Que não estava doida.
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- Nina - diz Fisher num tom suave -, isso derrubará toda a sua defesa. Não pode dizer-lhes isso.
- Porque não, Fisher? Porque é que eu não serei capaz de fazer doze miseráveis pessoas entenderem que algures entre uma boa acção e uma má acção existem mil tons de cinzento? Neste preciso momento, Quentin ditou a minha condenação, porque lhes disse aquilo em que eu estava a pensar naquele dia. Se eu subir ao banco das testemunhas, posso dar-lhes uma versão alternativa. Posso explicar o que fiz, porque é que foi errado e porque é que na altura não consegui perceber isso. Ou mandam-me para a prisão... ou mandam-me para casa para junto do meu filho. Como posso deixar de agarrar essa oportunidade?
Fisher fica a olhar para a mesa.
- Se continuar assim - diz ele passado um momento -, terei de contratá-la depois de este caso estar encerrado - estende uma mão, contando pelos dedos. - Responde apenas às perguntas que lhe faço. Assim que começar a tentar educar o júri tiro-a dali. Se eu mencionar insanidade temporária, terá de arranjar maneira de concordar sem cometer perjúrio. E se demonstrar qualquer tipo de irritação, prepare-se para uma longa estadia na prisão.
- Está bem - ponho-me de pé num salto, pronta para ir. Mas Fisher não se mexe.
- Nina. Para que saiba... mesmo que não consiga convencer o júri, convenceu-me a mim.
Há três meses, se eu tivesse ouvido isto de um advogado de defesa, teria rido. Mas agora sorrio para Fisher, espero que venha ter comigo junto à porta. Entramos naquela sala de audiências como uma equipa.
O meu escritório, ao longo dos últimos sete anos, tem sido uma sala de audiências. É um espaço intimidador para muitas pessoas, mas não para mim. Sei quais são as regras ali: quando devo aproximar-me do oficial de justiça, quando devo falar com o júri, como devo inclinar-me para trás e murmurar algo a alguém na galeria sem chamar a atenção. Mas agora estou sentada numa parte daquele escritório em que nunca estive antes. Não me posso mexer. Não posso fazer o trabalho que costumo fazer.
Começo a perceber porque é que tantas pessoas receiam isto.
O banco das testemunhas é tão pequeno que os meus joelhos batem na frente. Os olhares de algumas centenas de pessoas examinam-me, como pequenas agulhas. Penso no que disse a milhares de testemunhas ao longo da minha carreira: «Tem de fazer três coisas:
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estar atento à pergunta, responder à pergunta e parar de falar». Lembro-me de uma coisa que o meu chefe costumava estar sempre a dizer - que as melhores testemunhas eram motoristas de camião e operários de linhas de montagem porque era muito menos provável que falassem de mais do que, por exemplo, os advogados instruídos.
Fisher entrega-me a ordem de restrição que obtive contra Caleb.
- Porque é que requereu isto, Nina?
- Na altura pensei que o Nathaniel tinha identificado o meu marido como a pessoa que tinha abusado sexualmente dele.
- O que fez o seu marido para levá-la a acreditar nisso? Encontro Caleb na galeria, abano a cabeça.
- Absolutamente nada.
- E no entanto tomou a medida extraordinária de obter uma ordem de restrição para o impedir de ver o próprio filho?
- Estava concentrada em proteger o meu filho. Se o Nathaniel disse que ele-era a pessoa que lhe tinha feito mal... bem, fiz a única coisa que podia fazer para mantê-lo em segurança.
- Quando decidiu anular a ordem de restrição? - pergunta Fisher.
- Quando me apercebi de que o meu filho tinha feito o sinal para a palavra pai não para identificar Caleb, mas sim para identificar um padre.
- Foi nessa altura que achou que o padre Szyszynski era o agressor?
- Foram várias coisas. Em primeiro lugar, um médico disse-me que tinha ocorrido penetração anal. Depois surgiu o sinal gestual de Nathaniel. Depois ele segredou um nome ao detective Ducharme que parecia ser «padre Glen». E por fim, o detective Ducharme disse-me que tinha encontrado as cuecas do meu filho em St. Anne s - engulo em seco. - Passei sete anos a juntar fragmentos para construir casos válidos em tribunal. Estava apenas a fazer o que me parecia ser absolutamente lógico.
Fisher olha para mim, zangado. «Absolutamente lógico.» Oh, bolas.
- Nina, preste atenção à minha próxima pergunta, por favor avisa Fisher. - Quando começou a achar que o padre Szyszynski era o agressor do seu filho, como se sentiu?
- Fiquei devastada. Tratava-se de um homem a que eu confiava a minha própria fé e a fé da minha família. O meu filho. Fiquei tão zangada comigo própria porque me tinha esforçado tanto... se tivesse ficado mais tempo em casa, talvez pudesse ter previsto isto. E fiquei
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frustrada porque agora que o Nathaniel tinha identificado um suspeito, sabia que o passo seguinte seria...
- Nina - interrompe Fisher. «Responde à pergunta», lembro a mim própria num rasgo mental. »E depois cala-te.»
Brown sorri.
- Meritíssimo, ela que termine a resposta.
- Sim, Dr. Carrington - concorda o juiz. - Não creio que a Dr.a Frost tenha terminado.
- Por acaso já terminei - digo rapidamente.
- Discutiu o melhor plano de acção para o seu filho com a psiquiatra dele?
Abano a cabeça.
- Não havia nenhum melhor plano de acção. Já levei centenas de casos a julgamento que envolviam vítimas infantis. Mesmo que o Nathaniel começasse a falar normalmente outra vez, e se fortalecesse... mesmo que ainda faltassem um ou dois anos para o caso ir a julgamento... bem, o padre nunca admitiria o que fizera. Isso significa que tudo dependia do meu filho.
- O que quer dizer?
- Sem uma confissão, a única coisa de que um promotor de justiça dispõe contra o arguido é o testemunho da criança. Isso significa que o Nathaniel teria de se submeter a uma audiência de competência. Teria de se levantar numa sala cheia de gente, como esta, e contar o que aquele homem lhe tinha feito. Aquele homem, é claro, estaria sentado a dois metros de distância, a observar... e podem ter a certeza de que teria dito à criança, mais do que uma vez, para não dizer nada. Mas ninguém estaria sentado ao lado do Nathaniel e ninguém estaria a abraçá-lo, ninguém lhe diria que agora podia falar.
«Ou o Nathaniel estaria aterrorizado e não aguentaria a audiência, e o juiz declará-lo-ia não competente para comparecer em julgamento; o que significa que o agressor nunca seria castigado... ou informariam o Nathaniel de que podia comparecer em julgamento; o que significa que teria de passar por tudo de novo em tribunal, ainda sob maior pressão e com outras pessoas diferentes a assistir. Incluindo doze jurados predispostos a não acreditar nele, por ser apenas uma criança - digo. Volto-me para o júri: - Não me sinto muito à vontade aqui, agora, e estive numa sala de audiências todos os dias ao longo dos últimos sete anos. É assustador estar presa neste cubículo. É traumatizante para todas as testemunhas. Mas não estamos a falar de uma vítima qualquer. Estamos a falar do Nathaniel.
- Então e a melhor das hipóteses? - pergunta Fisher gentilmente.
- E se, afinal, o agressor fosse para a prisão?
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- O padre teria permanecido na prisão durante dez anos, apenas dez anos, porque é a pena que as pessoas sem registo criminal recebem por destruir a vida de uma criança. Teria muito provavelmente saído em liberdade condicional antes de o Nathaniel entrar sequer na puberdade - abano a cabeça. - Como é que alguém pode achar isso a melhor das hipóteses? Como é que algum tribunal pode dizer que protegeria o meu filho?
Fisher lança-me um último olhar e pede um intervalo.
Na sala de conferências lá em cima, Fisher agacha-se em frente da minha cadeira.
- Repita comigo - diz.
- Oh, vá lá.
- Repita comigo: sou uma testemunha. Não sou uma advogada. Revirando os olhos, recito:
- Sou uma testemunha. Não sou uma advogada.
- Escuto-a pergunta, respondo à pergunta e calo-me - continua Fisher.
Se eu estivesse no lugar de Fisher desejaria que a minha testemunha me prometesse o mesmo. Mas eu não estou no lugar de Fisher. Tal como ele não está no meu.
- Fisher. Olhe para mim. Eu sou a mulher que passou dos limites. Aquela que de facto fez o que qualquer pai desejaria fazer nesta situação terrível. Cada jurado naquele júri olha para mim para tentar perceber o que me torna um monstro ou uma heroína - olho para baixo, sentindo as súbitas picadas das lágrimas. - É algo que ainda estou a tentar perceber. Não consigo dizer-lhes porque é que o fiz. Mas posso explicar-lhes que quando a vida do Nathaniel muda, a minha vida muda. Que se o Nathaniel nunca ultrapassar isto, eu também não vou ultrapassar. E quando olhamos para isto desta forma, cingirmo-nos ao testemunho já não parece ser assim tão importante, pois não? - visto que Fisher não responde, desço ao mais fundo do meu ser para alcançar qualquer confidência que tenha ficado para trás. - Eu sei o que estou a fazer - digo a Fisher. - Está tudo totalmente sob controlo.
Ele abana a cabeça.
- Nina - suspira -, porque é que acha que estou tão preocupado?
- Em que pensava quando acordou na manhã do dia 30 de Outubro? - pergunta-me Fisher, passados alguns minutos.
- Que aquele seria o pior dia da minha vida.
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Fisher volta-se, surpreendido. Afinal, não ensaiámos isto.
- Porquê? O padre Szyszynski estava prestes a ser formalmente acusado.
- Sim. Mas logo que fosse acusado, começaria a contagem decrescente para o julgamento. Ou levavam-no a julgamento ou libertavam-no. E isso significaria que o Nathaniel teria de participar novamente.
- Quando chegou ao tribunal, o que aconteceu?
- Thomas LaCroix, o promotor de justiça, disse que iam tentar evacuar a sala de audiências por este ser um caso tão mediático. Isso implicava um atraso da acusação formal.
- O que fez?
- Disse ao meu marido que tinha de ir ao escritório.
- E foi? Abano a cabeça.
- Fui dar a uma loja de armas, ao parque de estacionamento. Não sabia realmente como tinha ali chegado, mas sabia que era onde devia estar. .
- O que fez?
- Entrei na loja quando esta abriu e comprei uma arma.
- E depois?
- Coloquei a arma dentro da mala e regressei ao tribunal para assistir à acusação formal.
- Planeou o que iria fazer com a arma ao longo do percurso? pergunta Fisher.
- Não. Pensava apenas no Nathaniel. Fisher deixa isto assentar por um momento.
- O que fez quando chegou ao tribunal?
- Entrei.
- Lembrou-se dos detectores de metais?
- Não, nunca me lembro. Limito-me a passar ao lado deles por que sou promotora de justiça. Faço-o vinte vezes ao dia.
- Passou ao lado dos detectores de metal propositadamente por ter uma arma dentro da mala?
- Nesse momento - respondo - não estava a pensar em nada.
«Estou a olhar para a porta, apenas a olhar para a porta, e o padre vai entrar por ela a qualquer momento. A minha cabeça lateja por cima das palavras que Caleb diz. Tenho de o ver. Consigo apenas ouvir o meu sangue, aquele zumbido. Ele entrará por aquela porta.
Quando a maçaneta gira, sustenho a respiração. Quando a porta se abre e o oficial de diligências surge primeiro, o tempo pára. E
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então toda a sala desaparece e fico só eu e ele, com o Nathaniel preso entre nós como cola. Não consigo olhar para ele, e também . não consigo desviar o olhar.
O padre volta a cabeça e, infalivelmente, os seus olhos encontram os meus.
Sem dizer uma palavra, ele fala: "Perdoo-te".
É a ideia de ele me perdoar que faz algo soltar-se dentro de mim. A minha mão desliza para dentro da mala e quase com uma indiferença casual deixo que isto aconteça.
Sabem como por vezes sabemos que estamos a sonhar, mesmo enquanto o sonho decorre? A arma é puxada para a frente como um íman, até ficar a centímetros da sua cabeça. No momento em que carrego no gatilho não estou a pensar em Szyszynski; não estou a pensar no Nathaniel; nem sequer estou a pensar em vingança.
Apenas uma palavra, presa entre o torno dos meus dentes:
Não.»
- Nina - diz Fisher, num tom sibilante, perto do meu rosto. Sente-se bem?
Olho para ele pestanejando, e depois para o júri a fitar-me.
- Sim. Desculpem.
Mas na minha cabeça ainda estou lá. Não estava à espera do ricochete da arma. Para cada acção, há uma reacção igual e oposta. Se matarmos um homem, seremos castigados.
- Lutou quando os guardas caíram em cima de si?
- Não - murmuro. - Queria apenas saber que ele estava morto.
- Foi nessa altura que o detective Ducharme a levou para a cela de detenção?
- Foi.
- Disse-lhe alguma coisa enquanto estava lá dentro? rrjíii:.
- Que não tinha tido escolha. Que tinha de fazê-lo.
O que afinal era verdade. Nessa altura, tinha-o dito deliberadamente-para parecer louca. Mas o que aqueles psiquiatras disseram no seu testemunho é tecnicamente correcto - não tive controlo consciente dos meus actos. Estão apenas enganados ao considerar que isso significa que estava louca. O que eu fiz não foi causado por nenhuma doença mental, nenhuma crise psicótica. Foi por instinto.
Fisher faz uma pausa.
- Passado algum tempo, veio a saber que, na realidade, o padre Szyszynski não foi o homem que abusou sexualmente do seu filho. Como é que isso a fez sentir-se?
- Queria que me mandassem para a prisão.
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- Ainda acha isso? - pergunta Fisher.
- Não.
- Porquê?
Nesse instante, os meus olhos pousam na mesa da defesa, onde nem eu nem Fisher estamos sentados. Já é uma cidade fantasma, penso.
-Fiz o que fiz para manter o meu filho em segurança. Mas como poderei mantê-lo em segurança se não estiver com ele?
Fisher lança-me um olhar cheio de significado.
- Voltará alguma vez a fazer justiça pelas suas próprias mãos? Oh, eu sei o que ele quer que eu diga. Sei, porque é o que eu
tentaria extrair de uma testemunha neste momento também. Mas já menti a mim própria o suficiente. Não vou mentir a este júri também.
- Quem me dera poder dizer-vos que nunca mais o farei... mas isso não seria verdade. Pensei que conhecia este mundo. Pensei que podia controlá-lo. Mas quando pensamos que controlamos a nossa vida, é quando é mais provável que esta nos fuja das mãos.
«Matei uma pessoa - as palavras queimam-me a língua. - Não, não foi só uma pessoa, foi um homem maravilhoso. Um homem inocente. É algo que vou levar comigo, para sempre. E tal como qualquer fardo, vai tornar-se cada vez mais pesado... só que nunca poderei pousá-lo no chão, porque agora ele faz parte de mim - voltando-me para o júri, repito. - Quem me dera poder dizer-vos que nunca mais farei uma coisa destas, mas por outro lado, também nunca pensei que fosse capaz de fazer algo assim. E afinal estava enganada.»
Fisher vai matar-me, penso. É difícil vê-lo através das lágrimas. Mas o meu coração não está acelerado, e a minha alma está serena. «Uma reacção igual e oposta.» Passado todo este tempo, afinal a melhor maneira de emendar algo indubitavelmente errado é fazer algo indubitavelmente certo.
Se não fosse pela graça de Deus, pensa Quentin, poderia ser ele a estar sentado naquele banco. Afinal de contas, não há uma diferença assim tão grande entre ele próprio e Nina Frost. Talvez não tivesse matado pelo seu filho, mas sem dúvida que mexeu os cordelinhos para que a condenação de Gideon por posse de droga fosse anulada com muito mais facilidade do que o normal. Quentin consegue mesmo lembrar-se daquela pontada visceral quando soube o que acontecera a Gideon - não por ele ter violado a lei, tal como Tanya pensara, mas porque o sistema devia ter deixado o seu filho aterrado. Sim, em circunstâncias diferentes, Quentin poderia ter simpatizado com Nina; talvez pudesse até ter assunto de conversa, enquanto
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bebiam uma cerveja. No entanto, quem boa cama fizer, nela se deitará... o que colocou Nina do outro lado do banco das testemunhas, e Quentin a dois metros de distância e determinado a abatê-la. Ele ergue uma sobrancelha.
- Está a dizer-nos que, apesar de tudo o que sabe sobre o funcionamento dos tribunais e os casos de abuso infantil, na manhã do dia 30 de Outubro acordou sem intenções de matar o padre Szyszynski?
- É verdade.
- E que enquanto se dirigia ao tribunal para assistir à acusação formal deste homem, que, como disse, faria iniciar-se a contagem decrescente... nessa altura, não tinha planos para matar o padre Szyszynski?
- Não, não tinha.
- Ah - Quentin anda para trás e para a frente junto ao banco das testemunhas. - Suponho que lhe tenha ocorrido num rasgo de inspiração enquanto se dirigia à loja de armas.
- Por acaso, não.
- Foi quando pediu a Moe que lhe carregasse a arma semiautomática?
- Não.
- Então imagino que quando passou ao lado do detector de metais, de regresso ao tribunal, matar o padre S yszynski ainda não fazia parte dos seus planos?
- Não fazia.
- Quando entrou na sala de audiências, Dr.a Frost, e ocupou um lugar que lhe daria a melhor perspectiva para matar Glen Szyszynski sem ferir mais ninguém lá dentro... que até nessa altura não planeava matar esse homem?
As narinas dela dilatam-se.
- Não, Dr. Brown, não planeava.
- Então e no momento em que tirou a arma da bolsa e a encostou à têmpora do padre Szyszynski? Ainda não planeava matá-lo nessa altura?
Os lábios de Nina apertam-se.
- Tem de responder - diz o juiz Neal.
- Já disse ao tribunal anteriormente que não estava a pensar em nada naquele momento.
Quentin desferiu o primeiro golpe, e sabe-o.
- Dr.a Frost, não é verdade que tratou de mais de duzentos casos de molestação infantil nos sete anos em que esteve a trabalhar para o Ministério Público?
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-É.
- Desses duzentos casos, vinte foram a julgamento?
- Sim.
- E desses, doze foram condenações.
- É verdade.
- Nesses doze casos - pergunta Quentin - as crianças foram capazes de testemunhar?
- Sim.
- Na realidade, em vários desses casos, não existiam provas físicas que os apoiassem, como havia no caso do seu filho, não é verdade?
- É.
- Como promotora de justiça, como alguém que tem acesso a pedopsiquiatras e a assistentes sociais e com um profundo conhecimento do processo legal, não acha que teria sido capaz de preparar o Nathaniel para comparecer em tribunal melhor do que qualquer outra mãe?
Ela semicerra os olhos.
- Podemos ter todos os recursos do mundo à mão, e mesmo assim nunca conseguir preparar uma criança para isso. A realidade, como sabe, é que as leis no tribunal não foram escritas para proteger as crianças, mas para proteger os arguidos.
- Que sorte a sua, Dr.a Frost - diz Quentin secamente. - Diria que era uma promotora de justiça dedicada?
Ela hesita.
. - Diria que... era uma promotora de justiça demasiado dedicada. - Diria que se esforçava bastante pelas crianças que colocava no banco das testemunhas para apresentarem o seu depoimento?
- Sim.
- Tendo em conta essas doze condenações, não diria que o trabalho que desenvolveu com essas crianças foi bem-sucedido?
- Não, não diria - responde abruptamente.
- Mas esses culpados não foram todos para a prisão?
- Não durante o tempo suficiente.
- Mesmo assim, Dr. Frost - pressiona Quentin. - A senhora fez o sistema de justiça funcionar para essas doze crianças.
- O senhor não compreende -, diz ela, de olhos faiscantes. Tratava-se do meu filho. Enquanto promotora de justiça, a minha responsabilidade era completamente diferente. Devia levar a justiça o mais longe que conseguisse para cada uma delas, e foi isso que fiz. Tudo o resto que acontecesse fora dos limites daquela sala de audiências era com os pais, e não comigo. Se uma mãe decidisse esconder-se para manter um pai agressor longe do filho, essa decisão era ela
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que teria de tomar. Se uma mãe matasse um agressor a tiro após ouvir um veredicto, isso não me dizia respeito. Mas então um dia eu já não era apenas a promotora de justiça. Era a mãe. E eu é que tinha de tomar todas as medidas para garantir que o meu filho estivesse em segurança, acontecesse o que acontecesse.
É este o momento que Quentin esperava. Finalmente em sintonia com a sua raiva, ele aproxima-se.
- Quer dizer que o seu filho tem direito a mais justiça do que outra criança?
- Aquelas crianças eram o meu trabalho. O Nathaniel é a minha vida.
Nesse instante, Fisher Carrington ergue-se subitamente da cadeira.
- Meritíssimo, podemos fazer um curto intervalo...
- Não - dizem Quentin e o juiz em simultâneo. - Aquela criança era a sua vida? - repete Quentin.
- Sim.
- Então estaria disposta a dar a sua liberdade para salvar o Nathaniel?
- Sem dúvida.
- Estava a pensar nisso quando encostou a arma à cabeça do padre Szyszynski?
- Claro que sim - responde ela agressivamente.
- Pensava que a única maneira de proteger o seu filho era esvaziar aqueles cartuchos na cabeça do padre Szyszynski...
- Sim!
- ... e certificar-se de que nunca sairia vivo daquela sala de audiências?
- Sim. Quentin afasta-se.
- Mas disse-nos que naquele momento não estava a pensar em nada, Dr.a Frost - diz ele, e fica a olhar para ela até ela ter de desviar o olhar.
Quando Fisher se levanta para o reinterrogatório, ainda estou a tremer. Sabendo o que sei, como pude deixar que isso me escapasse? Examino freneticamente os rostos dos jurados, mas não consigo ver nada; nunca conseguimos ver nada. Uma mulher parece estar à beira das lágrimas. Outra está a fazer as palavras cruzadas ao canto.
- Nina - diz Fisher -, quando estava na sala de audiências naquela manhã, pensou que estaria disposta a dar a sua liberdade para salvar o Nathaniel?
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- Sim - sussurro.
- Quando estava na sala de audiências naquela manhã, pensou que a única maneira de parar aquela contagem decrescente era eliminar o padre Szyszynski?
- Sim.
Ele olha para mim.
- Quando estava na sala de audiências naquela manhã, planeava matá-lo?
- Claro que não - respondo.
- Meritíssimo - anuncia Fisher -, a defesa encerra o interrogatório.
Quentin está deitado na terrível cama da sua suite de hotel, interrogando-se sobre por que razão o calor ainda não se fez sentir, quando regulou a temperatura para os vinte e sete graus. Puxa os cobertores para cima de si, depois faz mais uma ronda pelos canais da televisão. Um programa de entretenimento, A Roda da Sorte, e um programa de publicidade informativa para homens com queda de cabelo. com um ligeiro sorriso. Quentin toca na sua cabeça rapada.
Levanta-se e encaminha-se para o frigorífico, mas as únicas coisas lá dentro são uma embalagem de seis latas de Pepsi e uma manga a apodrecer que não se lembra de ter comprado. Se quiser jantar, terá de ir comprá-lo. com um suspiro, atira-se para cima da cama para calçar as botas e senta-se acidentalmente em cima do comando.
O canal muda novamente, desta vez para a CNN. Uma mulher com um capacete espacial de cabelos ruivos macios está a falar em frente a um pequeno desenho do rosto de Nina Frost.
- Os depoimentos das testemunhas do julgamento por homicídio da delegada do Ministério Público terminaram esta tarde - diz a pivô. - As alegações finais estão marcadas para amanhã de manhã.
Quentin desliga o televisor. Ata as botas e então os seus olhos pousam no telefone ao lado da cama.
Após três toques, começa a discutir consigo próprio se deve ou não deixar mensagem. Depois, subitamente, música explode no seu ouvido, o ricochete ensurdecedor de um rap.
- Está? - diz uma voz, e depois baixa o volume.
- Gideon - diz Quentin. - Sou eu. Há uma pausa.
- Eu quem? - responde o rapaz, e isso faz Quentin sorrir; ele sabe muito bem quem fala. - Se estás à procura da minha mãe, ela não está. Talvez lhe diga para te telefonar mais tarde, mas pensando melhor talvez me esqueça de lhe dar o recado.
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- Gideon, espera! - Quentin quase consegue ouvir o telefone, a meio caminho do descanso, a ser puxado novamente para junto da orelha do filho.
- O que foi.
- Não telefonei para falar com a Tanya. Telefonei para falar contigo.
Por um longo momento, nenhum deles fala. Depois Gideon diz:
- Se telefonaste para falar, estás a sair-te pessimamente.
- Tens razão - Quentin massaja as têmporas. - Queria só pedir-te desculpa. Por causa de toda aquela história da sentença de reabilitação, por tudo. Na altura achei mesmo que estava a fazer o que era melhor para ti - respira fundo. - Não tinha o direito de te dizer como havias de viver a tua vida depois de eu a ter abandonado voluntariamente anos antes - visto que o filho fica em silêncio, Quentin começa a ficar nervoso. Será que desligou o telefone sem que ele tivesse dado por isso? - Gideon?
- Era sobre isso que querias falar comigo? - diz por fim.
- Não. Telefonei para ver se querias encontrar-te comigo para comermos uma piza - Quentin atira o comando para cima da cama, observa-o a ressaltar. O momento em que fica à espera da resposta de Gideon prolonga-se até à eternidade.
- Onde? - pergunta Gideon.
O mais engraçado num júri: não importa o quão dispersos pareçam estar durante os depoimentos das testemunhas; não importa quem adormece na última fila e quem pinta as unhas mesmo durante os contra-interrogatórios; assim que é altura de ir directo ao assunto, mostram-se subitamente à altura do desafio. Os jurados estão agora a olhar para Quentin, concentrados na sua alegação final.
- Senhoras e senhores - começa ele -, este caso é muito difícil para mim. Embora não conheça a arguida pessoalmente, chamá-la-ia de colega. Mas Nina Frost já não está do lado da lei. Todos viram com os vossos próprios olhos o que ela fez na manhã do dia 30 de Outubro de 2001. Entrou numa sala de audiências, encostou uma arma à cabeça de um homem inocente e disparou quatro vezes sobre ele.
«O mais irónico é que Nina Frost alega ter cometido este crime para proteger o filho. E, no entanto, veio mais tarde a descobrir... tal como todos nós viríamos a descobrir se os tribunais tivessem podido funcionar como devem funcionar numa sociedade civilizada... que ao matar o padre Szyszynski, não estava a proteger o filho - Quentin olha para o júri com um ar sério. - Há razões para existirem os tribunais: porque é muito fácil acusar-se um homem.
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Os tribunais apresentam os factos, para que se possa fazer uma apreciação racional. Mas a Dr. Frost agiu sem os factos. A Dr.a Frost não só acusou este homem, como também o julgou e executou sozinha naquela manhã.»
Aproxima-se do banco dos jurados, passando a mão pela balaustrada.
- O Dr. Carrington dir-lhes-á que a arguida cometeu este crime porque conhecia o sistema de justiça e acreditava verdadeiramente que este não protegeria o filho. Sim, Nina Frost conhecia o sistema de justiça. Mas utilizou-o para viciar os dados. Sabia quais seriam os seus direitos enquanto arguida. Sabia como agir para que o júri acreditasse que ela estava temporariamente demente. Sabia perfeitamente o que estava a fazer no momento em que se levantou e matou o padre Szyszynski a sangue frio.
Quentin dirige-se aos jurados, um de cada vez.
- Para declararem a Dr.a Frost culpada, terão em primeiro lugar de achar que o estado do Maine provou para além de qualquer dúvida razoável que o padre Szyszynski foi morto ilegalmente - abre as mãos. - Bem, todos viram isso acontecer na gravação de vídeo. Em segundo lugar, terão de achar que foi a arguida que matou o padre Szyszynski. Mais uma vez, neste caso não restam dúvidas de que isso é verdade. E por fim, terão de achar que a Dr.a Frost matou premeditadamente o padre Szyszynski. É uma palavra difícil, um termo jurídico, mas todos sabem o que significa.
Hesita.
- Esta manhã, enquanto se dirigiam para o tribunal, pelo menos um de vocês passou por um cruzamento com um semáforo que mudou para o amarelo. Precisaram de tomar a decisão se haviam de tirar o pé do acelerador e parar... ou se haviam de acelerar e passar por ele. Não sei que decisão tomaram; não preciso de saber. Só preciso de saber... só precisam de saber... é que na fracção de segundo em que tomaram a decisão de parar ou andar houve premeditação. Só preciso disso. E quando a Dr.a Frost vos disse ontem que no momento em que encostou a arma à cabeça do padre Szyszynski estava a pensar que tinha de impedir que ele saísse vivo da sala de audiências para proteger o filho, também isso foi premeditação.
Quentin volta a dirigir-se para a mesa da defesa e aponta para Nina.
- Este caso não é sobre emoções; este caso é sobre factos. E os factos neste caso são que um homem inocente está morto, que esta mulher matou-o e que ela achava que o filho merecia um tratamento
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especial que apenas ela poderia conceder - volta-se para o júri uma última vez. - Não lhe concedam nenhum tratamento especial por ter infringido a lei.
- Tenho duas filhas - diz Fisher, erguendo-se ao meu lado. Uma delas está no décimo primeiro ano do liceu; a outra está em Dartmouth - sorri para o júri. - Sou doido por elas. Tenho a certeza de que muitos de vocês sentem o mesmo pelos vossos filhos. E é isso que Nina Frost sente pelo filho dela, o Nathaniel - pousa a mão no meu ombro. - No entanto, numa manhã completamente normal, Nina teve de enfrentar uma horrível verdade que nenhum pai jamais deseja enfrentar: alguém tinha violado o seu filho. E Nina teve de enfrentar uma segunda verdade horrível: sabia o que um julgamento por molestação faria ao frágil equilíbrio emocional do filho.
Aproxima-se do júri.
- Como é que ela sabia? Porque tinha feito os filhos de outras pessoas passarem por isso. Porque tinha testemunhado, vezes sem conta, crianças a comparecerem no tribunal e a desfazerem-se em lágrimas no banco das testemunhas. Porque já tinha visto agressores saírem em liberdade mesmo enquanto estas crianças tentavam perceber porque é que tinham de reviver todo este pesadelo em frente a uma sala cheia de pessoas estranhas - Fisher abana a cabeça. - Foi uma tragédia. E para agravar a situação, existe o facto de afinal não ter sido o padre Szyszynski que fez mal ao seu filho. Mas no dia 30 de Outubro, a polícia acreditava ser ele o agressor. O gabinete do Ministério Público acreditava que sim. Nina Frost acreditava que sim. E nessa manhã, ela também acreditava que as suas opções se tinham esgotado. O que aconteceu no tribunal naquela manhã não foi um acto premeditado e malicioso, foi um acto desesperado. A mulher que viram disparar sobre aquele homem podia parecer-se com Nina Frost, podia mover-se como Nina Frost... mas, senhoras e senhores, aquela mulher no vídeo era uma pessoa diferente. Uma pessoa mentalmente incapaz de se controlar naquele momento.
Enquanto Fisher inspira novamente para se lançar na definição de inocente por razões de insanidade, eu levanto-me.
- Desculpem, mas eu gostava de terminar. Ele volta-se, defraudado.
- A Nina o quê?
Espero até ele estar suficientemente próximo para poder falar em privado.
- Fisher, acho que sou capaz de fazer uma alegação final. ?£, - A Nina não está a representar-se a si própria!
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- Bem, também não vou desvirtuar-me - olho para o juiz e para Quentin Brown, que está absolutamente boquiaberto.
- Posso aproximar-me, Meritíssimo?
- com certeza, esteja à vontade - diz o juiz Neal. Dirigimo-nos todos ao lugar do juiz, eu entre Fisher e Quentin.
- Meritíssimo, acho que este não é o procedimento mais avisado para a minha cliente - diz Fisher.
- Parece-me que isso é um assunto que ela terá de resolver murmura Quentin.
O juiz massaja a testa.
- Acho que a Dr.a Frost conhece os riscos que isso implica melhor do que os outros arguidos. Pode prosseguir.
Fisher e eu andamos em volta um do outro num momento embaraçoso.
- É o seu funeral - diz ele entre dentes, e depois passa por mim e senta-se. Aproximo-me do júri, recuperando o equilíbrio, como um velho marinheiro que volta a pisar num convés de um veleiro.
- Olá - começo num tom suave. - Penso que nesta altura todos sabem quem sou. É certo que ouviram muitas explicações para o que me trouxe aqui. Mas o que não ouviram, sem rodeios, foi a verdade.
Faço um gesto indicando Quentin.
- Sei isso, porque tal como o Dr. Brown, eu era promotora de justiça. E a verdade não é algo que surja muito frequentemente num julgamento. Têm estado a debitar-vos os factos. E a defesa a influenciar-vos através dos sentimentos. Ninguém gosta da verdade, porque esta está sujeita a interpretações pessoais, e tanto o Dr. Brown como o Dr. Carrington têm medo que a possam entender erradamente. Mas hoje, quero contá-la.
- A verdade é que cometi um erro terrível. A verdade é que naquela manhã eu não fui a justiceira que o Dr. Brown deseja que pensem que fui e não fui a mulher com uma crise nervosa, como o Dr. Carrington quer que pensem. A verdade é que fui a mãe do Nathaniel, e isso teve prioridade sobre tudo o resto.
Aproximo-me de um dos jurados, um jovem de boné de basebol voltado para trás.
- E se estivessem a apontar uma arma ao seu amigo e tivesse um revólver na mão? O que faria? - virando-me para um senhor mais idoso, pergunto: - E se regressasse a casa e visse a sua mulher ser violada? - recuo. - Onde está o limite? Dizem-nos para nos defendermos; dizem para defendermos aqueles de quem gostamos. Mas de repente, há um novo limite traçado pela lei. «Fiquem quietos», diz, «e
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deixem-nos tratar disso». E sabem que a lei nem sequer servirá de grande coisa; traumatizará o nosso filho, libertará um condenado passados apenas alguns anos. Aos olhos desta lei, isso é tratar do nosso problema, o que está moralmente certo é considerado errado... e o que está moralmente errado fica impune. Olho directamente para o júri.
- Talvez eu soubesse que o sistema judicial não faria nada pelo meu filho. Talvez até soubesse, em certa medida, que conseguiria convencer um júri de que parecia louca embora não estivesse. Quem me dera poder dar-vos a certeza... mas se aprendi alguma coisa, foi que não sabemos metade daquilo que pensamos saber. E muito menos nos conhecemos a nós próprios.
Volto-me para a galeria e olho, à vez, para Caleb e para Patrick.
- Para todos os que estão aí sentados, a condenarem-me pelos meus actos: como podem saber que não teriam feito o mesmo, se fossem postos à prova? Todos os dias fazemos pequenas coisas para impedir que as pessoas que amamos se magoem: dizer uma mentira inofensiva, apertar um cinto de segurança, tirar as chaves do carro a um amigo que já bebeu além da conta. Mas já ouvi falar de mães que arranjam força para levantar automóveis de cima de crianças pequenas lá aprisionadas; já li sobre homens que saltam para a frente das balas para salvar a mulher sem a qual não conseguiriam viver. Isso faz deles dementes... ou será esse o momento em que se encontram dolorosamente, cem por cento lúcidos? - ergo as sobrancelhas. - Não me cabe a mim dizer. Mas naquela sala de audiências, na manhã em que matei o padre Szyszynski, sabia exactamente o que estava a fazer. E ao mesmo tempo, estava louca - abro as mãos, suplicando.
- O amor faz-nos isso.
Quentin levanta-se para refutar.
- Infelizmente para a Dr. Frost, não existem dois sistemas de justiça neste país: um para aqueles que acham que sabem tudo e outro para todas as outras pessoas - olha para o júri: - Vocês ouviram-na - não está arrependida por ter matado um homem... está arrependida por ter matado o homem errado. Já se cometeram suficientes erros ultimamente - diz o promotor de justiça cautelosamente. Por favor, não cometam outro.
Quando soa a campainha, penso que pode ser Fisher. Não fala comigo desde que saímos do tribunal e as três horas que o júri demorou a deliberar após as alegações finais tendem a apoiar a sua ideia de que eu não devia ter-me levantado para falar sinceramente. Mas
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quando a abro, pronta para me defender - outra vez - ouço a voz aguda de Nathaniel.
- Mamã! - grita, apertando-me com tanta força que cambaleio para trás. - Mamã. deixámos o hotel!
- Deixaram? - digo, e depois repito-o por cima da sua cabeça para Caleb. - Deixaram?
Ele pousa o seu pequeno saco e o de Nathaniel.
- Achei que talvez fosse uma boa altura para voltar para casa diz ele suavemente. - Se não houver problema?
Agora Nathaniel abraça a barriga do nosso golden retriever semelhante a um barril; enquanto o Mason, contorcendo-se, lambe cada centímetro de pele nua que consegue encontrar. A sua grossa cauda bate nos ladrilhos, uma alegre tatuagem. Eu sei como se sente aquele cão. Só agora - com companhia - é que me apercebo de como tenho estado só.
Portanto encosto-me a Caleb, com a cabeça debaixo do seu queixo, onde não posso deixar de ouvir o seu coração.
- Perfeito - respondo.
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O cão era uma almofada a respirar debaixo de mim.
- O que aconteceu à mãe do Mason?
A minha mãe olhou para cima, sentada no sofá, onde lia papéis com palavras difíceis numa letra tão pequena que me fazia dores de cabeça só de pensar nelas.
- Está... num sítio qualquer.
- Porque é que ela não vive connosco?
- A mãe do Mason pertencia a um criador de Massachusetts. Teve doze cachorros e o Mason foi aquele que trouxemos para casa.
- Achas que ele tem saudades dela?
- Suponho que ao princípio tinha - respondeu. - Mas já foi há muito tempo, e ele é feliz connosco. Aposto que já nem se lembra dela.
Passo o dedo pelas gengivas de alcaçuz do Mason, por cima dos seus dentes. Ele olhou para mim, pestanejando.
Aposto que ela estava enganada.
NOVE
- Querias leite? - pergunta a mãe de Nathaniel.
- Já comi uma taça de cereais - responde o pai.
- Oh - começa a colocá-lo novamente no frigorífico, mas o pai tira-o da sua mão.
- Talvez beba mais um bocadinho.
Olham um para o outro, e então a mãe recua com um sorriso estranho e demasiado tenso.
- Está bem - diz ela.
Nathaniel observa isto da mesma maneira que assistiria a um desenho animado - sabendo lá no fundo que há algo que não é bem real ou correcto, mas sentindo-se atraído pelo espectáculo apesar disso.
No Verão passado, quando estava lá fora com o pai, perseguira uma libélula de um verde-eléctrico por todo o jardim e pela horta das abóboras, até à bacia dos pássaros. Ali encontrou uma libélula de um azul-vivo, e durante algum tempo observaram as duas a mordiscarem-se e a empurrarem-se uma à outra, com os corpos como se fossem espadas.
- Estão a lutar? - perguntara Nathaniel.
- Não, estão a acasalar - antes que Nathaniel conseguisse perguntar, o pai explicou: era a maneira que os animais, os insectos e isso faziam bebés.
- Mas parece que estão a tentar matar-se uma à outra - fez notar Nathaniel.
Quase ao mesmo tempo que disse isto, as duas libélulas ligaram-se uma à outra como uma estação espacial cintilante, com as asas a baterem como um quarteto de corações e as longas caudas a estremecerem.
- Às vezes é assim - respondera o pai.
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Quentin tinha passado a noite às voltas naquele colchão terrível, interrogando-se sobre que diabo estaria a reter o júri. Nenhum caso era um dado adquirido, mas por amor de Deus, este assassínio estava gravado em vídeo. Devia ser bastante simples. No entanto, o júri estava a deliberar desde ontem à tarde; e já se tinham passado quase vinte e quatro horas sem que se chegasse a um veredicto.
Já passou pela sala dos jurados pelo menos vinte vezes, tentando fazê-los chegar a uma condenação através de percepção extra-sensorial. O oficial de diligências que está à porta é um homem mais velho com a capacidade de dormir de pé. Ronca de volta a uma impassível posição de autoridade quando o promotor de justiça passa.
- Alguma coisa? - pergunta Quentin.
- Muitos gritos. Acabaram de encomendar o almoço. Onze sandes de peru e uma de carne assada.
Frustrado, Quentin dá meia volta e dirige-se novamente ao fundo do corredor, esbarrando com o filho a dobrar a esquina.
- Gideon?
- Tudo bem?
Gideon, no tribunal. Por um momento, o coração de Quentin pára. como acontecera há um ano.
- O que estás aqui a fazer?
O rapaz encolhe os ombros, como se ele próprio não percebesse.
- Hoje não tive treino de basquetebol, e achei que devia vir até aqui para descontrair - arrasta o sapato de ténis no chão para o fazer chiar. - Ver como é do outro lado, e isso.
Um sorriso vagaroso abre caminho através do rosto de Quentin enquanto dá uma palmada no ombro do filho. E pela primeira vez nos dez anos em que Quentin Brown esteve num tribunal, ficou sem palavras.
Vinte e seis horas; 1560 minutos; 93 600 segundos. Chamem-lhe o que quiserem; esperar, em qualquer denominação, demora uma eternidade. Memorizei cada centímetro desta sala de conferências. Contei os ladrilhos de linóleo do chão, assinalei as marcas do tecto, medi a largura das janelas. O que estarão a fazer lá dentro?
Quando a porta se abre, apercebo-me de que a única coisa pior do que esperar é o momento em que nos apercebemos de que foi tomada uma decisão.
Um lenço branco surge no corredor, seguido de Fisher.
- O veredicto - as palavras cortam-me a língua. - Já saiu?
- Ainda não.
Sem forças, volto a sentar-me na cadeira enquanto Fisher me atira o lenço.
- É para me preparar para a deliberação deles?
- Não, sou eu a render-me. Peço desculpas por ontem - olha para mim. - Embora um pequeno aviso com antecedência de que queria fazer as alegações finais teria sido simpático.
- Eu sei - olho para ele. - Acha que é por isso que o júri não regressou rapidamente com uma absolvição?
Fisher encolhe os ombros.
- Talvez seja por isso que não regressaram rapidamente com uma condenação.
- Pois, bem. Sempre fui melhor nas alegações finais. Ele sorri para mim.
- Eu sou mais dado aos contra-interrogatórios. . Olhamos um para o outro por um momento, em completa sintonia.
- Que parte de um julgamento detesta mais?
- Esta. Esperar que o júri regresse - Fisher expira pesadamente.
- Tenho sempre de acalmar o cliente, que só quer uma previsão do resultado, e ninguém pode prever isso. Vocês os promotores de justiça têm sorte, e não têm de tranquilizar ninguém dizendo-lhe que não irá passar o resto da vida na prisão quando sabemos muito bem que... - interrompe-se, porque toda a cor desapareceu do meu rosto.
- Bem. Em todo o caso. A Nina sabe que ninguém pode adivinhar o resultado da deliberação de um júri.
Visto não parecer particularmente encorajada, ele pergunta:
- Qual é para si a parte mais difícil?
- Mesmo antes de o estado encerrar o interrogatório, porque é a última oportunidade que tenho para garantir que expliquei todas as provas, e que o fiz correctamente. Assim que digo essas três palavras... sei que vou descobrir se fiz ou não asneira.
Fisher olha para mim.
- Nina - diz gentilmente -, o estado encerra o interrogatório.
Deito-me de lado em cima de um tapete com o alfabeto no chão da sala dos brinquedos, enfiando a pata de um pinguim na sua fenda de madeira.
- Se eu fizer este puzzle com um pinguim mais uma vez - digo -, poupo trabalho ao júri e enforco-me.
Caleb olha para cima, do sítio onde está sentado com Nathaniel, a ordenar ursinhos de plástico de várias cores.
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- Quero ir lá para fora - queixa-se Nathaniel.
- Não podemos, companheiro. Estamos à espera de notícias importantes para a Mamã.
- Mas eu quero! - Nathaniel dá um pontapé na mesa, com força.
- Talvez daqui a um bocadinho - Caleb entrega-lhe um carregamento de ursos. - Pronto, toma mais alguns.
- Não! - com um braço, Nathaniel derruba todo o tabuleiro que estava em cima da mesa. Os vários recipientes saltam e rebolam para a área dos blocos de construção; os ursinhos de plástico espalham-se pelos quatro cantos da sala. O estrondo resultante ecoa dentro da minha cabeça, no local vazio onde estou a esforçar-me tanto para não pensar em absolutamente nada.
Ponho-me de pé, agarro nos ombros do meu filho e abano-o.
- Tu não atiras brinquedos! Vais apanhá-los todos, Nathaniel, e eu estou a falar a sério!
Agora, Nathaniel está a chorar a plenos pulmões. Caleb, de rosto tenso, vira-se contra mim também.
- Lá por estares nos limites da tua paciência, Nina, isso não quer dizer que...
- Peço desculpa.
A voz à porta faz-nos a todos virar a cabeça. Um oficial de diligências espreita, acenando com a cabeça.
- O júri vem aí - diz ele.
- Não é um veredicto - segreda-me Fisher minutos depois. - Como sabe?
- Porque o oficial de diligências teria dito... não teria apenas dito que o júri tinha regressado.
Recuo, na dúvida.
- Os oficiais de diligências nunca me dizem nada.
- Confie em mim. Humedeço os lábios.
- Então porque estamos aqui?
- Não sei - admite Fisher, e ambos nos concentramos no juiz. Ele está sentado no seu lugar, com um ar deleitado por ter finalmente chegado ao fim da sua provação.
- Sr. Porta-Voz do júri - pergunta o juiz Neal -, o júri já chegou a um veredicto?
Um homem na primeira fila do banco dos jurados levanta-se. Tira o seu boné de basebol e enfia-o debaixo do braço, depois pigarreia.
- Meritíssimo, temos tentado, mas parece que não conseguimos chegar a um acordo em relação a isto. Alguns de nós... ,, .
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- Espere, Sr. Porta-Voz, não diga mais nada. Já deliberaram sobre este caso e realizaram a votação para ver qual é a opinião de cada. jurado sobre a culpa ou inocência?
- Já o fizemos algumas vezes, mas há sempre alguns que se recusam a mudar de ideias.
O juiz olha para Fisher e depois para Quentin.
- Aproximem-se os advogados. Também me levanto e o juiz suspira.
- Está bem, Dr.a Frost, a senhora também. Do seu lugar, murmura:
- vou fazer-lhes uma intimação de Allen13. Alguma objecção?
- Nenhuma objecção - diz Quentin e Fisher concorda. Ao regressarmos à mesa da defesa, cruzo o meu olhar com o de Caleb, e pronuncio silenciosamente com os lábios:
- Estão num impasse. O juiz começa a falar.
- Senhoras e senhores, escutaram todos os factos e escutaram todas as provas. Tenho consciência de que tem sido uma grande maratona e de que têm de tomar uma decisão difícil. Mas também sei que são capazes de chegar a uma conclusão... e que são o melhor júri para o fazer. Se o caso tiver de ir novamente a julgamento, um outro grupo de jurados não fará necessariamente um melhor trabalho do que vocês estão a fazer - olha para o grupo com um ar sério. Incito-vos a regressar à sala dos jurados, para terem em conta respeitosamente as opiniões uns dos outros e para verem se podem fazer alguns progressos. Ao fim da tarde, vou pedir-vos que regressem e me digam como está a correr.
- E agora? - sussurra Caleb atrás de mim.
Observo o júri revigorado a sair outra vez em fila. Agora ficamos à espera.
Observar alguém completamente desorientado faz-nos remexer na cadeira, pelo menos é o que descobre Caleb depois de passar mais duas horas e meia com Nina enquanto o júri está a deliberar. Ela está sentada, toda curvada para a frente, numa cadeira minúscula na sala dos brinquedos, ignorando completamente o Nathaniel a fazer sons de avião enquanto corre pela sala com os braços esticados. Os olhos dela fitam intensamente o vazio; o queixo está apoiado no punho.
" Instrução dada por um tribunal a um júri que demonstre ter dificuldades em chegar a um veredicto num caso criminal, numa tentativa de encorajar esse mesmo júri a fazer mais um esforço para chegar a uma decisão. (N. da T.)
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- Olá - diz Caleb num tom suave. Ela pestaneja, regressa à realidade.
- Oh... olá.
- Estás bem?
- Estou - um sorriso alonga-lhe os lábios até ficarem finos. Estou! - repete.
Fax lembrar a Caleb uma ocasião há alguns anos em que tentou ensinar-lhe esqui aquático: ela está a esforçar-se tanto, em vez de simplesmente deixar as coisas acontecerem.
- Porque é que não vamos todos às máquinas de venda automática? - sugere ele. - O Nathaniel pode beber um chocolate quente, e eu ofereço-te a água de lavar pratos que faz de sopa.
- Parece-me óptimo.
Caleb volta-se para Nathaniel e diz-lhe que vão comer qualquer coisa. Ele corre para a porta e Caleb segue atrás dele.
- Anda - diz a Nina. - Estamos prontos.
Ela fica a olhar para ele como se nunca tivessem chegado a conversar, muito menos há trinta segundos.
- Para fazer o quê? - pergunta.
Patrick está sentado num banco nas traseiras do tribunal, a gelar os ossos e a observar Nathaniel aos berros ao longo de um campo. Porque é que esta criança tem tanta energia às quatro e meia da tarde está para lá do seu entendimento, mas por outro lado consegue recordar-se dos tempos em que ele e Nina costumavam passar dias inteiros a jogar hóquei no lago gelado sem se cansarem nem ficarem com queimaduras do gelo. Talvez o tempo seja algo em que apenas reparamos quando envelhecemos e temos menos quantidade ao nosso dispor.
O rapaz cai ao lado de Patrick, com as faces de um vermelho ardente, de nariz a pingar.
- Tens um lenço de papel, Patrick? Ele abana a cabeça.
- Desculpa, Peste. Limpa à manga.
Nathaniel ri e depois faz isso mesmo. Curva a cabeça por baixo do braço de Patrick e isso fá-lo querer gritar. Se ao menos a Nina pudesse ver aquilo, o filho à procura de contacto físico - oh, meu Deus, o que isso faria ao seu moral naquele momento. Abraça Nathaniel com força, dá um beijo no alto da sua cabeça.
- Gosto de brincar contigo - diz Nathaniel.
- Bem, eu também gosto de brincar contigo.
- Tu não gritas.
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Patrick olha para ele.
- A tua mãe tem feito isso?
Nathaniel encolhe os ombros, depois acena com a cabeça.
- É como se a tivessem roubado e depois deixassem uma pessoa má no seu lugar, exactamente igual a ela. Uma pessoa que não consegue ficar sentada sossegada e não me presta atenção quando falo e quando falo fica sempre com dores de cabeça - ele olha para o colo. - Quero a minha antiga mãe de volta.
- Ela também quer isso, Peste - Patrick olha para oeste, onde o Sol começou a retirar sangue ao horizonte. - A verdade é que ela agora está bastante nervosa. Não tem a certeza de que tipo de notícias irá receber - quando Nathaniel encolhe os ombros, ele acrescenta: - Sabes que ela te adora.
- Bem - diz o rapaz num tom defensivo -, eu também a adoro. Patrick acena com a cabeça. «Não és o único», pensa.
- Um julgamento nulo? - digo, abanando a cabeça. - Não. Fisher, não consigo passar por isto outra vez. Sabe que os julgamentos não melhoram com a idade.
- Está a pensar como promotora de justiça - admoesta Fisher -, só que desta vez tem razão - vira-se de costas para a janela onde estava. - Esta noite quero que reflicta sobre uma coisa.
- O quê?
- Renunciar ao júri. vou falar com o Quentin de manhã, se concordar, para ver se ele está disposto a deixar o juiz deliberar o veredicto.
Fico a olhar para ele.
- Sabe que este caso está a ser julgado com base nas emoções e não na lei. Um júri poderá absolver baseando-se nas emoções. Mas um juiz irá sempre deliberar baseando-se na lei. Está doido?
- Não, Nina - responde Fisher num tom sério. - Mas a Nina também não estava.
Deitámo-nos na cama naquela noite com o peso de uma Lua cheia a comprimir-nos. Contei ao Caleb a minha conversa com Fisher, e agora estamos ambos a olhar para o tecto, como se a resposta pudesse aparecer escrita no céu com estrelas. Quero que Caleb me dê a mão na vastidão desta cama. Preciso disso, de acreditar que não estamos a quilómetros de distância um do outro.
- O que achas? - pergunta ele.
Viro-me para ele. Ao luar o seu perfil está debruado a ouro, a cor da coragem.
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- Já não volto a tomar uma decisão sozinha - respondo. Ele ergue-se apoiado num cotovelo, voltando-se para mim.
- O que aconteceria?
Engulo e tento impedir que a minha voz trema.
- Bem, um juiz irá condenar-me, porque legalmente cometi um assassínio. Mas a vantagem é que... provavelmente não terei uma sentença tão longa como teria com o veredicto de um júri.
De repente o rosto de Caleb ergue-se sobre o meu.
- Nina... tu não podes ir para a prisão.
Desvio o rosto, para que a lágrima deslize pela face que ele não consegue ver.
- Eu sabia que estava a correr este risco quando o fiz.
As mãos dele fecham-se com mais força sobre os meus ombros. Não podes. Não podes mesmo. - Eu vou voltar.
- Quando?
- Não sei.
Caleb esconde o rosto no meu pescoço, inspirando grandes quantidades de ar. E então, subitamente, também estou agarrada a ele, como se não pudesse haver nenhuma distância entre nós hoje, porque amanhã haverá uma tão grande. Sinto as palmas das suas mãos ásperas marcarem-me as costas; e o calor da sua dor é abrasador. Quando ele se vem dentro de mim, enterro-lhe as unhas nos ombros, tentando deixar a minha própria marca. Fazemos amor quase com violência, com tanta emoção que a atmosfera em nosso redor zune. E depois, como tudo o resto, terminou.
- Mas eu amo-te - diz Caleb, com voz entrecortada, porque num mundo perfeito, necessitaria apenas dessa desculpa.
Naquela noite sonho que estou a entrar no oceano, as ondas a encharcarem a bainha da minha camisa de noite de algodão. A água é fria, mas de modo nenhum tão fria como costuma ser no Maine, e a praia por baixo é uma macia língua de areia. Continuo a andar, mesmo quando a água me chega aos joelhos, mesmo quando me dá pelas ancas e a minha camisa de noite se cola ao corpo como uma segunda pele. Continuo a andar, e a água chega-me ao pescoço, ao queixo. Quando mergulho, apercebo-me de que vou afogar-me.
De início luto, tento racionar o ar que tenho nos pulmões. Depois estes começam a arder, um círculo de fogo debaixo das costelas. Os meus olhos abertos tornam-se negros, e começo a bater os pés, mas não vou a lado nenhum. «E agora», penso. «Finalmente.»
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Sabendo isto, deixo que os braços fiquem imóveis, e as pernas moles. Sinto o meu corpo afundar-se e a água encher-me, até estar enrolada em cima da areia no fundo do mar.
O Sol é um trémulo olho amarelo. Ponho-me de pé e, para minha grande surpresa, começo a andar com facilidade no fundo do oceano.
Nathaniel não se mexe no momento em que me sento na sua cama, a observá-lo a dormir. Mas quando toco nos seus cabelos, incapaz de me conter durante mais tempo, volta-se e olha para mim pestanejando.
- Ainda está escuro - sussurra.
- Eu sei. Ainda não é manhã.
Observo-o a tentar descortinar isto: o que poderia então ter-me feito acordá-lo a meio da noite? Como poderei explicar-lhe que da próxima vez que tiver oportunidade para fazer isto, o seu corpo poderá ocupar todo o comprimento da cama? Que quando voltar, o rapaz que deixei para trás já não existirá?
- Nathaniel - digo, com uma respiração irregular -, posso ter de ir embora.
Ele senta-se.
- Não podes, Mamã - sorrindo, até encontra uma razão. Acabámos de voltar.
- Eu sei... mas não depende de mim.
Nathaniel puxa os cobertores até ao peito, parecendo de repente muito pequeno.
- O que fiz eu desta vez?
Soluçando, puxo-o para o meu colo e escondo o rosto nos seus cabelos. Ele esfrega o nariz no meu pescoço, e isso faz-me tanto lembrar quando ele era bebé que não consigo respirar. Agora, trocaria tudo para ter esses minutos de volta, trancados num cofre de um avarento. Mesmo os momentos vulgares - andar de carro, limpar a sala dos brinquedos, fazer o jantar com o Nathaniel. Não é aquilo que fazemos com uma criança que nos junta... é o facto de termos a sorte de podermos fazê-lo.
Afasto-me para poder olhar para o seu rosto. O arco da sua boca, a curva do nariz. Os olhos, preservando recordações como o âmbar com que se parecem. «Guarda-as», penso. «Cuida delas por mim.» « Nesta altura, estou a chorar convulsivamente.
- Prometo, não será para sempre. Prometo que poderás visitar-me. E quero que saibas que em cada minuto de cada dia que esti«ver longe de ti... estarei a pensar no tempo que falta para regressar.
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Nathaniel põe os braços em volta do meu pescoço e agarra-se com toda a força.
- Não quero que vás.
- Eu sei - afasto-me, agarrando os seus pulsos frouxamente.
- Eu vou contigo.
- Quem me dera que pudesses. Mas eu preciso que alguém fique aqui para tomar conta do teu pai.
Nathaniel abana a cabeça.
- Mas eu vou ter saudades tuas.
- E eu também vou ter saudades tuas - digo num tom suave; Olha, e se fizermos um pacto? ijj
- O que é isso?
- UIma decisão que duas pessoas tomam juntas - tento esboçar ume sorriso. - Vamos combinar não ter saudades um do outro. Está bem?
Nathaniel olha para mim por um longo momento.
- Acho que não vou ser capaz - confessa. Puxo-o novamente para perto de mim.
- Oh, Nathaniel - sussurro. - Eu também não.
Nathaniel está colado ao meu lado na manhã seguinte quando entramos no tribunal. Os jornalistas, aos quais já quase me habituei, parecem-me uma tortura cruel, as suas perguntas e as suas câmaras de vídeo ofuscantes, um tormento moderno ao qual tenho de sobreviver. Estas serão as minhas fotografias Antes e Depois; Delegada do Ministério Público condenada. «Imprimam os vossos títulos agora», penso, «visto que vou para a prisão».
Assim que chego à barreira da porta dupla, entrego Nathaniel a Caleb e corro para a casa de banho, onde vomito em seco para uma sanita e molho o rosto e os pulsos com água.
- Consegues ultrapassar isto - digo para o espelho. - Pelo menos podes terminar com dignidade.
Respirando fundo, empurro as portas oscilantes à saída encaminhando-me para onde a minha família está à espera e vejo a Adrienne, o transexual, com um vestido vermelho dois números abaixo do dela e um sorriso tão grande como o Texas.
- Nina! - grita ela, e vem a correr abraçar-me. - O último lugar onde achava que desejaria estar era outra vez numa sala de audiências, mas querida, estou aqui por causa de ti.
- Saíste?
- Ontem. Não sabia se ia chegar a horas, mas a deliberação deste júri está a demorar mais do que a minha operação de mudança de sexo. »
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De repente, Nathaniel conseguiu enfiar-se entre nós e está a fazer os possíveis para trepar por mim como a uma árvore. Pego-lhe ao colo.
- Nathaniel, esta é a Adrienne. Os olhos dela iluminam-se.
- Ouvi falar tanto de ti.
É difícil ver quem está mais espantado com a presença de Adrienne - Nathaniel ou Caleb. Mas antes que possa dar alguma explicação, Fisher dirige-se a nós apressadamente.
Olho para ele.
- Faça isso - digo.
Quentin encontra Fisher à sua espera na sala de audiências.
- Temos de falar com o juiz Neal - diz num tom calmo.
- Não vou propor-lhe um acordo - responde Quentin.
- E eu não vou pedir-lhe nenhum - volta-se, dirigindo-se aos aposentos do juiz sem esperar para ver se o promotor de justiça o seguiria.
Passados dez minutos, estão em frente ao juiz Neal, com as cabeças ameaçadoras de animais de safari como testemunhas.
- Meritíssimo - começa Fisher -, estamos aqui há tanto tempo; é óbvio que o júri vai permanecer num impasse. Falei com a minha cliente... e se o Dr. Brown estiver de acordo, gostaríamos de entregar o caso ao Meritíssimo para que decida sobre os factos e o veredicto.
Bem, se é que Quentin esperava alguma coisa, de certeza que não era isto. Olha para o advogado de defesa como se o homem tivesse perdido o juízo. É certo, ninguém gosta de um julgamento nulo, mas deixar que o juiz delibere é agir estritamente em conformidade com a letra da lei - algo muito mais vantajoso para a acusação do que para a defesa, neste caso. Fisher Carrington acabou de oferecer a Quentin uma condenação numa bandeja de prata.
O juiz fica a olhar para ele.
- Dr. Brown? O que gostaria o estado de fazer? Pigarreia.
- O estado acha perfeitamente aceitável, Meritíssimo.
- Óptimo. Então vou deixar o júri ir embora. Preciso de uma hora para rever as provas e depois deliberarei - com um gesto, o juiz dispensa os dois advogados e dá início ao processo de decidir o futuro de Nina Frost.
Adrienne, afinal, é uma bênção. Tira-me o Nathaniel dos braços ao tornar-se ela própria num parque infantil quando Caleb e eu
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estamos demasiado atormentados para brincar. Nathaniel sobe para cima das costas dela e depois desce pela longa rampa das suas canelas.
- Se ele estiver a abusar - diz Caleb -, diga-lhe que pare.
- Oh, querido, esperei toda a vida por isto - ela vira Nathaniel de cabeça para baixo, e ele ri às gargalhadas.
Sinto-me dividida entre observá-los e juntar-me a eles. O meu maior receio é que, se me permitir tocar de novo no meu filho, nada do que façam possa arrastar-me para longe.
Quando se ouve alguém bater à porta da sala dos brinquedos, todos viramos a cabeça. Patrick está à porta, pouco à vontade. Sei o que ele quer e também sei que não o pedirá com a minha família aqui presente.
Para minha surpresa, Caleb tira a decisão das mãos de todos. Faz sinal a Patrick, e depois a mim.
- Vão lá - diz ele.
Então Patrick e eu damos por nós a percorrer os corredores sinuosos da cave, com trinta centímetros de espaço a separar-nos. Andamos tanto em silêncio que me apercebo de que não faço ideia de onde estamos agora.
- Como foste capaz? - explode ele por fim. - Se te submetesses a um novo julgamento por júri, pelo menos terias uma hipótese de ser absolvida.
- E teria arrastado o Nathaniel, o Caleb e a ti e a todas as outras pessoas novamente comigo. Patrick, isto tem de ter um fim. Tem de acabar. Aconteça o que acontecer.
Ele pára de andar, encostando-se a um cano de aquecimento.
- Nunca pensei realmente que fosses para a prisão.
- Há muitos sítios - respondo -, aonde pensei que nunca iria - sorrio debilmente. - Trazes-me comida chinesa de vez em quando?
- Não - Patrick olha para o chão entre os seus sapatos. - Eu não estarei aqui, Nina.
- Tu... o quê?
- vou mudar-me. Há algumas vagas no Noroeste do Pacífico que talvez me interessem - respira fundo. - Sempre quis ver como era. Só que não queria fazê-lo sem ti.
- Patrick...
com grande ternura, ele beija-me a testa.
- Vais ficar bem - murmura. -Já o fizeste antes - oferece-me um sorriso malicioso para guardar junto ao peito. E depois caminha até ao fundo do corredor, deixando-me encontrar o caminho de regresso sozinha. ., !. ? ., - -.- ?? v-» -?? --.?
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A porta da casa de banho ao fim das escadas abre-se, e de repente Quentin Brown encontra-se a menos de metro e meio de distância.
- Dr.a Frost - diz precipitadamente.
- Depois de tudo isto, acho que pode tratar-me por Nina - é uma infracção ética falar comigo sem a presença de Fisher e ambos sabemos disso. E no entanto, desrespeitar essa regra não parece assim tão terrível, depois de tudo isto. Visto que não responde, apercebo-me de que não tem a mesma opinião e tento contorná-lo. - Se me dá licença, a minha família está à minha espera na sala dos brinquedos.
- Tenho de admitir - diz Quentin enquanto me afasto -, fiquei surpreendido com a sua decisão.
Volto-me.
- Deixar que o juiz delibere?
- Sim. Não sei se faria o mesmo, se fosse arguido. Abano a cabeça.
- Por acaso, Quentin, não consigo imaginá-lo como arguido.
- Conseguia imaginar-me como pai? Isso surpreende-me.
- Não. Nunca ouvi dizer que tivesse família.
- Um rapaz. Dezasseis anos - enfia as mãos nos bolsos. - Eu sei, eu sei. Saiu-se tão bem ao imaginar-me como um vilão implacável que é difícil dotar-me de alguma compaixão.
- Bem - encolho os ombros. - Talvez um vilão implacável não.
- Então um idiota?
- As palavras são suas, doutor - respondo, e ambos sorrimos.
- Por outro lado, as pessoas conseguem estar sempre a surpreender-nos - diz ele pensativamente. - Por exemplo, uma promotora de justiça que comete um assassínio. Ou um delegado do procurador-geral que passa por casa de uma arguida à noite só para se assegurar de que ela está bem.
Fungo.
- Se é que passou por lá, foi para se assegurar de que eu ainda lá estava.
- Nina, alguma vez se interrogou sobre quem do seu gabinete é que lhe deixou o relatório laboratorial sobre as cuecas?
Fico de boca aberta.
- O nome do meu filho - diz Quentin - é Gideon.
Assobiando, acena e sobe as escadas a correr.
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A sala de audiências está tão silenciosa que consigo ouvir a respiração de Caleb atrás de mim. O que ele disse no instante antes de entrarmos para ouvir o veredicto do juiz também ecoa, no silêncio: «Tenho orgulho em ti».
O juiz Neal pigarreia e começa a falar.
- As provas neste caso mostram claramente que no dia 30 de Outubro de 2001 a arguida, Nina Frost, saiu, comprou uma arma, escondeu-a e levou-a para o tribunal de comarca de Biddeford. As provas também mostram que se posicionou perto do padre Szyszynski e disparou intencional e conscientemente quatro vezes sobre ele, atingindo-o na cabeça, causando assim a sua morte. As provas também mostram claramente que, na altura em que fez isto, Nina Frost tinha a ideia errada que o padre Szyszynski tinha molestado sexualmente o seu filho de cinco anos.
Baixo a cabeça, cada palavra é um golpe.
- Então o que é que as provas não corroboram? - pergunta o juiz retoricamente. - Especificamente, a afirmação da arguida de que se encontrava legalmente demente na altura em que disparou. Testemunhas asseguraram que agiu deliberada e metodicamente ao exterminar o homem que ela pensava ter feito mal ao filho. E na altura, a arguida era uma delegada adjunta do Ministério Público, formada e a exercer, que sabia muito bem que todas as pessoas acusadas de um crime, incluindo o padre Szyszynski, são inocentes até se provarem culpadas em tribunal. Basicamente, este tribunal acredita que Nina Frost seja promotora de justiça em todos os aspectos... tanto assim que, ao infringir a lei, teria de reflectir cuidadosamente sobre o acto.
Ele ergue a cabeça e empurra os óculos para cima no nariz.
- E portanto rejeito a defesa por insanidade da arguida. Alguma agitação à minha esquerda, de Quentin Brown.
- Contudo... Quentin fica imóvel.
- ... neste estado há uma outra razão para justificar o homicídio: nomeadamente se um arguido se encontrava sob a influência de medo ou raiva razoáveis causados por provocação razoável. Como promotora de justiça, Nina Frost não tinha razões para ter medo ou raiva na manhã do dia 30 de Outubro... no entanto, como mãe de Nathaniel, tinha. A tentativa do filho para identificar a vítima, o factor imprevisível que constituíram as provas de ADN e o conhecimento profundo da arguida sobre o tratamento das testemunhas no sistema
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de justiça criminal contribuem todos, na opinião deste tribunal, para que houvesse uma provocação razoável ao abrigo da lei. Parei de respirar. Isto não pode ser verdade.
- Por favor, levante-se a arguida.
Só quando Fisher me agarra o braço e me levanta é que me lembro de que o juiz se refere a mim.
- Nina Frost, declaro-a Inocente de Homicídio. Declaro-a Culpada de Homicídio Preterintencional de acordo com o 17-A dos MRSA (Estatutos Revistos e Anotados do Maine) secção 203 (1) (B). A arguida deseja renunciar ao relatório pré-sentença e ser sentenciada hoje?
- Sim, Meritíssimo - murmura Fisher.
O juiz olha para mim pela primeira vez nesta manhã.
- Sentencio-a a vinte anos na Prisão Estadual do Maine, com crédito para o tempo que já cumpriu - faz uma pausa. - O resto dos vinte anos será de pena suspensa e ficará em liberdade condicional durante esse tempo. Precisa de falar com o seu agente de liberdade condicional antes de deixar o tribunal hoje e depois, Dr.a Frost, pode sair em liberdade.
A sala de audiências irrompe num frenesim de lâmpadas de flash e confusão. Fisher abraça-me enquanto começo a chorar e Caleb salta por cima da barra.
- Nina? - pergunta. - Na nossa língua?
- É... bom - rio para ele. - É óptimo, Caleb - o juiz, basicamente, absolveu-me. Nunca terei de cumprir a minha pena de prisão, desde que consiga não matar mais ninguém. Caleb agarra-me e faz-me girar; por cima do seu ombro vejo Adrienne agitar o punho no ar. Atrás dela está Patrick. Está sentado de olhos fechados, a sorrir. Enquanto o observo, pestanejam e abrem-se para se focarem em mim. «Só tu», pronuncia Patrick silenciosamente com os lábios; palavras sobre as quais irei pensar durante anos.
Quando os jornalistas correm para chamar os seus associados depois de saberem o veredicto e a multidão na galeria diminui, reparo noutro homem. Quentin Brown reuniu os seus documentos e agarrou na sua pasta. Dirige-se à cancela entre as nossas mesas, pára, e volta-se para mim. Inclina a cabeça, e eu retribuo o aceno. De repente o meu braço está torcido atrás de mim e afasto-me instintivamente, certa de que alguém que não entendeu o veredicto do juiz está prestes a algemar-me novamente.
- Não - digo, voltando-me. - Não está a perceber... - mas então o oficial de diligências abre a pulseira electrónica que tenho no pulso. Cai ao chão, proclamando a minha libertação.
Quando olho para cima, Quentin já não está lá.
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Passadas algumas semanas, as entrevistas cessam. O olho de águia das notícias foca-se em qualquer outra história sórdida. Uma caravana de veículos da comunicação social serpenteia, dirigindo-se para sul. e nós voltamos a ser quem éramos.
Bem, a maioria de nós.
O Nathaniel está mais forte a cada dia e o Caleb arranjou alguns trabalhos novos. O Patrick telefonou-me de Chicago, o seu ponto de paragem a caminho da Costa Oeste. Até agora, foi o único que teve coragem suficiente para me perguntar como é que preencho os meus dias agora que já não sou promotora de justiça.
Representou uma parte tão grande de mim durante tanto tempo que não há uma resposta fácil. Talvez escreva o livro que todos parecem querer que escreva. Talvez preste aconselhamento jurídico gratuito aos cidadãos idosos no pavilhão recreativo comunitário. Talvez fique apenas em casa a ver o meu filho crescer.
Bato levemente no envelope que tenho na mão. É do Comité Disciplinar da Ordem dos Advogados e já está em cima da bancada da cozinha, por abrir, há quase dois meses. Agora também não vale a pena abri-lo. Eu sei o que está lá escrito.
Sento-me ao computador e escrevo uma carta bastante concisa. «Devolvo voluntariamente a minha licença; já não desejo exercer advocacia. Cumprimentos, Nina Frost.»
Imprimo-a e também um envelope a condizer. Dobro, lambo, fecho, selo. Depois calço as botas e percorro a via de acesso até chegar à caixa do correio.
- Pronto - digo em voz alta, depois de colocá-la lá dentro e erguer a bandeira vermelha. - Pronto - repito, quando o que quero realmente dizer é: «O que faço agora?»
Há sempre uma semana em Janeiro em que a neve começa a derreter. Sem aviso, a temperatura sobe para os dez graus; a neve derrete em poças extensas como um lago; as pessoas começam a sentar-se em cadeiras reclináveis, de calções, a assistir a tudo isto.
Este ano, porém, o degelo durou um número recorde de dias. Começou no dia da libertação de Nina. Nessa mesma tarde, o lago de patinagem da cidade foi encerrado devido a gelo instável; no final da semana os adolescentes desciam os passeios em cima de skates-, havia até rumores de alguns crocos a abrirem caminho através da lama inevitável. Tem sido bom para o negócio, não há dúvida - construções que não podiam ser feitas em pleno Inverno foram subitamente retomadas.
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E também fez a seiva correr nos áceres mais cedo do que alguma vez Caleb se lembra.
Ontem Caleb preparou os seus espigões e baldes; hoje, percorre os limites do seu terreno para recolher a seiva. O céu parece cortante como um bisturi, e Caleb tem as mangas da camisola arregaçadas até ao cotovelo. A lama é um súcubo, a agarrar-lhe as botas, mas nem isso consegue abrandá-lo. Dias como este não surgem muitas vezes.
Verte a seiva para dentro de enormes cubas. Cento e noventa litros deste suco doce ficarão reduzidos após a fervura a apenas quatro litros de xarope de ácer. Caleb fá-lo mesmo no fogão da cozinha, numa panela de fazer esparguete, passando cada dose por um coador antes de engrossar. Para Nina e Nathaniel o que interessa é o produto acabado - deitá-lo por cima das panquecas e dos waffles. Mas para Caleb, a beleza reside em como se obtém. O sangue de uma árvore, um espigão e um balde. O vapor a erguer-se, o aroma a encher cada canto da casa. Não há nada que se assemelhe: saber que cada inspiração será doce.
Nathaniel está a construir uma ponte, embora possa vir a ser um túnel. O mais fixe nos legos é que podemos alterá-los mesmo a meio. Por vezes quando constrói finge ser o pai, e fá-lo com o mesmo planeamento cuidadoso. E por vezes quando constrói finge ser a mãe, e faz uma torre o mais alta que consegue, antes de cair ao chão.
Tem de trabalhar em volta da cauda do cão, porque por acaso o Mason está a dormir mesmo no meio do chão do seu quarto, mas isso também não faz mal, porque podia ser uma aldeia com uma fera monstruosa. Na realidade, ele podia estar a criar o fantástico e espectacular barco de salvação.
Mas para onde irão todos? Nathaniel pensa por um minuto, e depois coloca quatro verdes e quatro vermelhas, começando a construir. Faz paredes grossas e janelas amplas. O andar de uma casa, chama-se piso (story, história).
Nathaniel gosta disso. Fá-lo sentir-se como se estivesse ele próprio a viver dentro de um livro. Como se toda a gente em todas as casas tivesse de certeza um final feliz.
A roupa suja é um começo bom e pouco exigente. A nossa parece reproduzir-se no fundo frio e húmido do seu cesto, de forma que, por muito cuidadosos que sejamos com as nossas roupas, há sempre um cesto cheio delas de vez em quando. Dobro a roupa lavada e levo-a lá para cima, guardando as coisas de Nathaniel antes de tratar das minhas.
É quando vou colocar um par de calças de ganga minhas num cabide que vejo o saco de viagem. Será que esteve mesmo ali, enfiado na parte de trás do roupeiro, durante duas semanas? Caleb provavelmente nunca sequer reparou; tem roupa suficiente nas gavetas para se ter esquecido de tirar as coisas do saco que levou consigo para o motel. Mas vê-lo fere-me a vista; faz-me lembrar o momento em que saiu de casa.
Tiro algumas camisolas de manga comprida, alguns boxers. Só quando os atiro para dentro do cesto da roupa suja é que me apercebo de que a minha mão está pegajosa. Esfrego os dedos uns nos outros, franzo a testa, agarro outra vez numa camisola e tiro-a, sacudindo.
Há uma grande mancha verde numa ponta.
Também há manchas numas meias. Parece que se entornou alguma coisa, mas, quando olho para dentro do saco, não há lá nenhum frasco de champô aberto.
Mas também não cheira a champô. É um aroma que não consigo identificar precisamente. Alguma coisa industrial.
A última coisa que tiro do saco é um par de calças de ganga. Por hábito, enfio as mãos nos bolsos para ter a certeza de que Caleb não deixou dinheiro ou facturas lá dentro.
No bolso esquerdo de trás há uma nota de cinco dólares. E no bolso direito de trás estão os cartões de embarque de dois voos da US Air: um de Boston para Nova Orleães e outro de Nova Orleães para Boston, ambos datados de 3 de Janeiro de 2002. O dia a seguir à audiência de competência de Nathaniel. A voz de Caleb vem de alguns metros atrás de mim. - Fiz o que tinha de fazer.
«Caleb está a gritar com Nathaniel dizendo-lhe que pare de brincar com o anticongelante. Quantas vezes terei de te dizer... é veneno. O Mason, aos saltos junto da poça por ter um sabor tão doce; ele não tem consciência.»
- A gata - sussurro, virando-me para ele. - A gata também morreu.
- Eu sei. Suponho que tenha bebido o resto do cacau. O etilenoglicol é tóxico... mas é bastante doce - aproxima-se de mim, mas eu afasto-me. - Disseste-me o nome dele. Disseste que ainda não tinha acabado. Eu limitei-me - diz Caleb num tom suave - a acabar aquilo que começaste.
- Não - ergo a mão. - Caleb, não me contes isso.
- És a única pessoa a quem eu posso contar.
Ele tem razão, é claro. Como sua mulher, não sou obrigada a testemunhar contra ele. Nem mesmo se Gwynne for autopsiado e
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encontrarem vestígios de veneno nos seus tecidos. Nem mesmo se as provas venham dar directamente a Caleb.
Mas por outro lado, passei três meses a sofrer as implicações de fazer justiça pelas próprias mãos. Vi o meu marido sair de casa - não por estar a julgar-me, afinal, mas por estar a pôr-se à prova. Estive tão perto de perder tudo o que sempre quis - uma vida à qual fui suficientemente tola para não dar valor até quase ma tirarem.
Fico a olhar para Caleb, à espera de uma explicação.
E no entanto, há sentimentos tão extensos e abrangentes que as palavras não conseguem abarcá-los. Enquanto a linguagem abandona Caleb, os seus olhos fixam-se nos meus e ele soletra aquilo que não consegue dizer. As suas mãos juntam-se para se agarrarem com força uma à outra. Para alguém que não saiba escutar de uma maneira diferente, parece que está a rezar, esperando o melhor. Mas eu, eu conheço o sinal para casamento.
É tudo o que ele precisa de dizer para que eu compreenda.
De repente, o Nathaniel entra de rompante no nosso quarto.
- Mamã, Papá! - grita ele. - Fiz o castelo mais fixe do mundo. Têm de vê-lo - dá meia volta antes mesmo de ter parado completamente e corre novamente para lá, à espera que vamos atrás dele.
Caleb observa-me. Não consegue dar o primeiro passo. Afinal, a única forma de comunicar é encontrar alguém que consiga compreender; a única maneira de ser perdoado é encontrar alguém que esteja disposto a perdoar. Portanto dirijo-me para a porta, voltando-me para trás junto à ombreira.
- Anda lá - digo a Caleb. - Ele precisa de nós.
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Acontece quando estou a tentar descer as escadas muito depressa, com os pés à frente do resto de mim. Um dos degraus não está onde devia estar e eu caio com muita força contra o corrimão onde se põe as mãos. Bato com a parte do braço que faz uma curva, a parte que tem o nome que parece mesmo aquilo que é, cotovelo.
A dor parece uma Injecção, uma agulha a entrar mesmo ali e a espalhar-se como fogo pelo resto do braço. Não consigo sentir os dedos, e a minha mão abre-se. Dói mais do que quando caí no gelo no ano passado e o meu tornozelo ficou da grossura do resto da perna. Dói mais do que quando passei por cima do guiador da minha bicicleta, esfolei a cara toda e levei dois pontos. Dói tanto que tenho de ultrapassar a parte dos ais antes de me lembrar de chorar.
- Mãããããããããããe!
Quando grito assim, ela consegue vir tão depressa como um fantasma, com o ar vazio num minuto e cheio dela no minuto seguinte.
- O que é que te dói? - grita ela. Toca em todos os sítios que aperto junto a mim.
- Acho que parti o úmero - digo.
- Humm - ela move aquele braço para cima e para baixo. Depois põe as mãos nos meus ombros e olha para mim. - Conta uma anedota.
-Mãe!
- De que outra maneira vamos ter a certeza de que está partido? .
Abano a cabeça.
- Não é assim que funciona.
Ela pega-me ao colo e leva-me para a cozinha.
- Quem disse? - ri, e quando dou por isso estou a rir também, o que deve querer dizer que afinal vou ficar bem.

 

 

                                                                  Jod Picoult

 

 

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