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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TUDO POR ELA / Josiane da Veiga
TUDO POR ELA / Josiane da Veiga

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

“Quantas vidas vou viver até encontrá-la?”
França, II Guerra Mundial
Esther Wiesel sempre aceitou seu papel passivo de filha de um comerciante abastado. Contudo, naquele verão de 1938, viu-se acuada por um casamento arranjado, fruto do desejo paterno em manter os traços judaícos de sua família bem encaminhados.
Foi Therron, um jovem pintor francês libertino, que virou seu mundo do avesso, fazendo-a tornar-se uma pária para a família, mas uma mulher extremamente feliz com o homem que sempre estaria em seu coração.
Porém, quando a Guerra explode e a Gestapo a tira dos braços de seu amor, é em suas promessas de eternidade que ela se agarra para sobreviver ao terror que se torna sua vida.

 


 


Capítulo 01

O amor não existe

França, 1938.

O sol já havia se posto, e agora uma leve brisa primaveril tomava conta do ambiente externo do restaurante.

Sentados em uma fileira de cadeiras de madeira, enquanto desfrutava um excelente jantar, a família Wiesel comemorava a ventura de uma vida farta. Porque, bem da verdade, naqueles dias imprecisos, ter dinheiro o suficiente para comemorar um noivado num dos restaurantes mais caros de Paris não era para qualquer um.

Proveniente da Alemanha, Frederic Wiesel, o patriarca, chegou com a esposa Margareth em meados da Grande Guerra, que deixou o povo alemão em ruínas. Buscando um lugar para recomeçar, ele inaugurou uma sapataria perto do Louvre e, em pouco tempo, conseguiu boa freguesia e lucro.

No ano de 1918, uma filha, a primeira e única, lhe trouxe grande felicidade ao nascer, coroando seus esforços, uma recompensa divina pela qual ele era muito grato.

A vida seguia bem. Deus estava com eles.

Judeus fervorosos, deram a menina o nome de Esther, em homenagem a antiga Rainha das Escrituras que tocou o coração de um Rei pagão através de sua oração.

Naquele dia, enquanto admirava o lindo Jardim de Bagatelle, Frederic não se atentou ao semblante antagônico da filha, que em nada lembrava aquela monarca vitoriosa.

Para ele, era uma noite de grande júbilo. Josef, filho de um importante industrial e membro do templo que frequentava, havia comentado sobre os sentimentos que passara a nutrir por Esther.

Em poucas semanas, com o apoio do rabino, o casamento estava marcado. Naquela noite tranquila, a alegria tomava conta da família enquanto o jovem Josef colocava um anel no dedo de uma Esther sem reação.

Os risos acompanhavam o sorriso alegre do noivo. Todavia, ninguém parecia notar o olhar sério de Esther para a joia, enquanto sua alma transparecia dor.

Era uma noite alegre para os Wiesel. Parecia um pesadelo latente para Esther.


Os risos ficaram para trás. Esther caminhou até o canteiro de rosas, enquanto a mente divagava em sonhos que jamais se concretizariam.

Josef não era um homem desagradável, e ela reconhecia que o pai havia escolhido, à sua maneira, o melhor para ela. Contudo, em seus tolos devaneios de menina, acreditou que um dia iria se apaixonar e se casar por amor. O amor, porém, naquele instante, parecia tão longínquo e inatingível.

Esther tinha o sonho de liberdade. Conhecer o mundo, estudar, divertir-se, fazer qualquer coisa que a sua alma indomável desejasse.

Mas, a moça judia também sabia que havia responsabilidades que não se pagavam. Ela devia aquilo ao pai e a mãe, que haviam sofrido muito para que ela tivesse tudo.

Olhou para si mesma. O vestido de boa qualidade, os calçados de última moda, cada peça que a cobria tinha um preço.

Levou a mão para trás e colocou o cabelo escuro atrás da orelha. Até mesmo as madeixas bem cuidadas custavam caro.

Não que a família cobrasse algo dela, mas sempre ficou subentendido que todos os gastos consigo eram focados na perspectiva de que ela realizasse um bom casamento que traria felicidade a todos.

Subitamente, seu luto foi quebrado. Ao longe, risos masculinos chegaram a ela. Três homens aproximavam-se, trazendo consigo garrafas de bebida, e cantigas românticas clichês.

Mais risos. Esther preparou-se para afastar-se quando seu olhar encontrou outro.

Naquele instante, a vida dela mudou.

 

Therron Esme cresceu num lar desfeito. O pai, um bêbado mundano, fugiu com a amante, deixando-o na miséria com uma mãe doente.

Aos doze anos, ele passou a sustentar o pequeno apartamento que viviam no subúrbio de Paris, limpando lareiras ou fazendo qualquer coisa que aparecesse; e, aos catorze, passou a viver sozinho após a tuberculose levar sua genitora.

Por sorte, o Deus que governava o universo lhe deu um dom: a arte de transparecer com cores e pinceis momentos únicos, serviu também para lhe pagar as contas.

Therron era prolífero. Realizava muitos quadros em pouco tempo, e os vendia a um preço justo nas praças que frequentava. Não ganhava muito, mas tinha o suficiente para aproveitar a vida libertina e boêmia ao lado dos amigos.

E havia dois, em especial. Pierre, um jovem estudante de medicina e Vladimir, um rapaz russo que havia vindo à França para aperfeiçoar o idioma.

Juntos, o trio trocava o dia pela noite, bebia mais do que o corpo aguentava, aproveitava os prazeres mundanos que estavam à disposição, e flertavam com as mais bonitas francesas que apareciam.

Parecia uma vida perfeita. E o era. Em nada, Therron mudaria aqueles dias.

Mesmo assim, era temente a Deus. Católico, ia à missa, respeitava o padre, rezava todas às noites antes de dormir. Agarrava-se em algo que não via, mas sentia, para crer que havia um futuro além da vida desgarrada.

Naquela noite, depois de dançarem em uma festa, o trio esgueirou-se para o jardim de Bagatelli, onde o conde Artois construiu a mais bela estrutura que os olhos podiam ver, numa flora impecável, repleta das mais diversas cores.

— Eu vi — Pierre gritou em sua direção, após uma piada mal contada os fazerem gargalhar. — Vi como Marie olhou para você na festa.

Therron deu os ombros, afastando-se do amigo.

— Marie é uma jovem respeitável — apontou. — Não vou me aproveitar de sua inocência apenas porque ela encantou-se com meus lindos olhos azuis e meu belíssimo cabelo loiro — brincou. — Confundiu-me com um anjo, coitada.

— Mal sabe ela que está diante do demônio, em pessoa — Vladimir completou, as gargalhadas inundando sua garganta. — Pobre jovem... Apaixonou-se pelo pior dos canalhas.

— Não sou um canalha.

A negativa de Therron quase fê-lo cair no chão. Estava tão bêbado que qualquer esforço o desequilibrava.

— Apenas, não acredito no amor — prosseguiu. — E não escondo isso de ninguém.

— Um dia — Pierre profetizou —, vai apaixonar-se perdidamente por uma mulher e esquecerá cada uma dessas palavras tristes.

— O amor não existe — apontou, recusando.

O amor, ou o que quer que fosse que representava aquele sentimento que tomava o coração dos desafortunados, havia feito seu pai fugir de casa e sua mãe se deixar levar pela doença e tristeza.

Ele não precisava de amor.

Volveu então para frente, a fim de prosseguir sua caminhada quando se deparou com uma jovem ao lado de um canteiro de rosas.

Ela era linda. Os cabelos negros estavam soltos, caindo sobre os ombros em cachos definidos. Vestia um bonito vestido de tom pastel, e o olhar escuro parecia esconder muitos mistérios.

— Ei — Pierre se aproximou, puxando-o.

O olhar de Therron não a deixou.

— Idiota! — o amigo o xingou. — Vamos! Ainda temos que...

As palavras prosseguiam, mas Therron não o ouvia.

Porque ali estava ela. Ali... Há poucos passos de si... Bastaria apenas cruzar a pequena distância que os separava e ele estaria junto dela...

Novamente.

Sim, não era um encontro casual. Era um reencontro programado pelo destino. Ele havia localizado alguém que lhe pertencia. Alguém a quem estava vinculado desde o início dos tempos.

Sabia disso. Ela também. Percebia pelo olhar assustado que aquela sensação não era exclusiva sua.

Fez menção de ir à sua direção, quando uma voz a distância quebrou a mágica. A mulher pareceu assustada por alguns segundos, e então lhe deu as costas, correndo em direção ao som.

Ele a havia encontrado.

Nunca mais a deixaria partir.


Aqueles olhos azuis ela levaria para sempre. Eram como um lago profundo, que lhe remetia a profundezas inimagináveis, a momentos únicos, que ela vivera, mas não se recordava.

U m Déjà vu .

Sim, ela já o havia encontrado antes. Em que momento, não sabia. Porém, ela o conhecia. Sentia seu tato, seu cheiro, como se fossem feitos do mesmo barro, destinados a estarem juntos desde que o tempo passou a existir.

Arrepiou-se.

Parou sua caminhada quando trombou em alguém. Josef havia vindo atrás dela, e aquela repentina necessidade de aproximação do homem a sufocou. Tentou desviar-se, mas ele a conteve.

O noivo sorriu.

Esther nunca lhe dava intimidade, e ele não a tomava, tampouco. Era sempre um cavalheiro, e, por alguns segundos, ela apiedou-se do jovem, desejando que ele pudesse encontrar alguém que o amasse como merecia, porque ela jamais o faria.

— Você sabe — ele comentou, atraindo sua atenção. — Você me lembra rosas.

Mesmo sendo essas as suas flores favoritas, era um elogio sem nenhum cabimento. Ela tentou sorrir.

— É mesmo? Por quê?

Silêncio.

— Gostaria de voltar para junto de nossa família? — a indagação masculina era claramente desconfortável.

— Tomarei um pouco mais de ar — ela comentou. — A massa estava um tanto pesada.

Assentindo, Josef a deixou. Foi um alívio tão imenso que ela sentiu os olhos enchendo-se de lágrimas diante do que se seguiria.

Como conviver com um homem que ela não suportava sequer fazer companhia por alguns instantes? Como permiti-lo beijá-la, fazer-lhe amor?

— Você me lembra rosas — um tom masculino surgiu atrás dela, fazendo-a volver-se imediatamente.

Ali estava ele... O loiro que a havia marcado tão profundamente com um simples olhar.

Ele era bonito. Alto, magro, cabelos bem alinhados num corte moderno e curto, e o olhar... Por Deus... O olhar...

— Por quê? — a pergunta dela era direta.

— Porque as rosas são camadas que se completam — apontou, a voz um tanto arrastada. — Se você consegue captar a beleza de uma pétala, acaba descobrindo a importância de todas as pétalas juntas. E você é assim. A junção de muitas coisas que formam um encanto único. Palavra nenhuma é capaz de expressar tamanha beleza.

Ela riu.

— Está bêbado.

— Estou bêbado — ele concordou. — Mas, não cego.

Aproximou-se, estendendo a mão.

— Therron — se apresentou. — Therron Esme — completou, adicionando o sobrenome. — E sua graça?

— Sou Esther Wiesel — ela respondeu, aceitando o cumprimento.

O toque teve um efeito imediato em ambos. Assustados, separaram os dedos com nítida rapidez.

— Vai parecer um flerte — ele murmurou. — Mas, acredite-me, não o é. — Respirou fundo. — De onde eu a conheço?

Visualizar a pergunta que ela se fazia saindo dos lábios masculinos trouxe-lhe estranhamento.

— Não faço ideia.

De repente, vozes ao longe. O olhar de Esther tornou-se nuvem escurecida.

— Perdão, preciso ir.

— Espere — segurou-a pelo braço. — Não posso ficar sem vê-la — murmurou, e ela entendeu que aquilo era essencialmente real. — Onde você mora?

Não devia dizer. Ou simplesmente devia mentir. Contudo, a verdade escapou dos lábios.

— Em cima de uma sapataria, perto do Louvre. É a única sapataria daquele lugar.

Assim, ela correu em direção aos pais. O coração aos saltos, uma emoção tremenda, algo que a mudaria para todo sempre.

 

Capítulo 02

 

O amor que existe


Therron Esme não havia pregado o olho desde o encontro noturno. Enquanto o efeito do álcool o deixava, ele buscava os pinceis para captar a imagem daquela mulher, temendo perdê-la nas lacunas da mente.

Contudo, ainda podia vê-la, os cabelos escuros, os olhos profundos, a pele pálida, o corpo bonito... Até o tom da voz, ele reconheceria. E, enquanto os dedos traçavam linhas numa figura bem talhada ao lado de um canteiro de rosas, ele sentia a emoção tomar conta de sua alma, a transparecer por sua arte.

Quando o dia amanheceu, postou-se em direção ao centro, próximo do sena, a buscar por uma sapataria, único indício de que a visão da noite anterior não era fruto de sua mente arrebatada.

Logo encontrou, num sobrado em uma esquina movimentada, a Wiesel Sapataria. O lugar já estava aberto, e o movimento era intenso.

Nas vitrines, ele podia ver os calçados bem feitos, e um senhor bem ajeitado a atender os clientes.

O desenho que trabalhara durante a madrugada estava em suas mãos. Imaginou se era uma boa ideia entrar, falar com o homem; por fim, seu coração decidiu por ele.

Afinal, não havia escolhas. Therron Esme, o pintor que dizia claramente que o amor não existia, agora estava completamente apaixonado por alguém com quem trocou meia dúzia de palavras e que havia visto uma única vez.

Entrou. O homem o encarou com um sorriso simpático e se aproximou.

— No que posso ajudar, meu jovem?

Estendeu a ele a pintura. Imediatamente o comerciante e sapateiro reconheceu a moça desenhada.

— Procuro por Esther — anunciou.

— É minha filha — o homem contou, o tom sério.

Therron não esmoreceu.

— Sou amigo de sua filha e gostaria de...

— Deixe-me explicar algo. — Interrompeu, um tanto obtuso. — Uma jovem judia não tem amigos homens que não fazem parte de sua congregação. Especialmente um artista, alguém sem eira, sem beira, claramente sem princípios religiosos. Não vejo vantagem nesse tipo de amizade, portanto, passar bem — apontou a porta.

— Mas...

— Minha filha está noiva. Irá se casar em poucos dias. Por favor, não volte mais.

Diante das palavras, Therron simplesmente recuou.

Pela primeira vez, sua vida desgarrada lhe trouxe consequências. E eram as mais desastrosas possíveis.


Esther vestiu o casaco de veludo. Apesar da primavera, as manhãs ainda eram geladas próximo do sena.

O pai surgiu à porta e ela lhe sorriu.

— Estou indo até a biblioteca — comentou. — Terminei uma das obras de Dumas, e quero ler outra.

A literatura era seu refúgio. Ela amava as letras, e até mesmo arriscava alguns versos datilografados com esmero. Contudo, ainda não se sentia segura para mostrá-los a alguém. Quem sabe um dia poderia realizar seu sonho e ser uma escritora?

O homem assentiu.

— Conhece um pintor, Esther?

— Um pintor?

A indagação de retorno denotava que ela não fazia ideia de quem o pai estava falando.

— Um jovem loiro esteve nessa manhã na sapataria. Disse conhecê-la e queria lhe entregar uma pintura.

Silêncio. A mente de Esther parecia em conflito. Logo o pai entendeu que ela reconhecia a figura descrita em suas palavras.

— O dia de seu casamento se aproxima, Esther. E será com um rapaz formidável que te dará uma boa vida, com conforto e respeito. Sei que é jovem, e que sonha com coisas a mais, mas, acredite em mim, todo o resto é ilusão.

Ela assentiu.

— Um artista pode ser algo tentador quando se é jovem. Contudo, igualmente, costumam ser pobres, e qualquer sentimento que nutrisse por ele seria recompensado com miséria. — Aproximou-se, apertando seus ombros. — O amor acaba quando o pão falta, minha pequena.

Ela sorriu.

— Amor, papa? Mal trocamos algumas palavras ontem à noite.

A resposta, claramente, satisfez Frederic. Logo ele a deixava.

— Vá à biblioteca, filha — disse. — Cultura e conhecimento nunca são demais.


As ruas estavam repletas de gente indo e vindo, em suas próprias tarefas. O vento bateu contra o rosto, e ela logo apertou o casaco, protegendo-se de coisas além da aragem fria.

As palavras paternas tocaram-na profundamente. Porém, pelos motivos errados. O fato de que Therron a havia procurado parecia corroê-la e a animá-la de maneira inexplicável.

O coração batia tão forte no peito, que um sorriso mal conseguia ser contido.

O que era aquela sensação potente?

Repentinamente, a figura loira surgiu diante dela, como um fantasma conjurado. O sorriso dele logo a cativou. Viu-se a retribuir, sem conseguir controlar a ansiedade em estar próxima dele.

— Fui procurá-la — ele disse. — Seu pai não me deixou vê-la.

Ela ignorou o tom abatido.

— Por quê?

— Queria lhe mostrar algo que fiz — estendeu a ela a pintura que expressava a noite anterior, quando se conheceram.

A mão feminina não se moveu.

— Não posso aceitar.

— Não pode ou não quer?

Aquela mágoa nítida fê-la lacrimejar.

— Sou noiva — contou, as palavras dolorosas.

— E você o ama?

A questão lhe tirou o ar.

— Que tipo de pergunta é essa? Mal nos conhecemos!

— Mal se conhecem... — repetiu as palavras . — Quis dizer, você e seu noivo?

O sorriso irônico dele a inflamou.

— Quis dizer nós dois! Nós mal nos conhecemos para que venha com perguntas descabidas!

A gargalhada não mais se conteve. O riso dele a fez sorrir também.

— Sabe que mente — murmurou. — Sabe que nós dois temos mais histórias do que pudemos nos lembrar.

Aquela afirmação a assustou, e Esther viu-se a caminhar para longe dele. Logo, percebeu ser seguida.

— Você não respondeu. Ama seu noivo?

— Vou amar — afirmou. — Amor se conquista com o tempo.

— Amor é imediato — ele retrucou. — Eu te amei no instante que a vi parada ao lado das flores, e sei que é recíproco.

— Está louco.

— Estou — concordou. — Como nunca estive antes. — Segurou seu braço. — Dei-me uma única chance, uma única noite. À meia noite estarei embaixo de sua janela. Iremos passear pela cidade, conversar, estarmos juntos. Se, no final da noite, você não tiver certeza de que pertencemos um ao outro, prometo nunca mais importuná-la.

Enquanto a figura masculina afastou-se, ela permaneceu a encarar o horizonte, como se a escolha diante dela pudesse mudar a sua vida.


Ainda não era meia noite, mas a figura coberta por um capuz já se encontrava abaixo de sua janela.

A noite fria parecia não acovardá-lo, e Esther segurou a cortina com força, tentando decidir o que fazer.

Uma vez sua falecida avó lhe dissera que o pior pensamento que uma pessoa poderia ter na velhice era o arrependimento pelo que não viveu. De alguma maneira, a jovem sabia que, caso não fosse até ele, ela viveria aquela experiência nos seus dias finais.

Provavelmente, naquela noite decidisse sua vida. O pai estava certo, e um artista costuma ser por demais encantador. Tão logo lhe visse os defeitos, ela entenderia que era em Josef que devia firmar seus pensamentos e suas emoções.

Abriu a janela. A escuridão reinante do lado externo a tocou. A família costumava dormir cedo, e ela sabia que ninguém lhe daria por falta até de manhã.

Era um risco. Mas, a urgência em seu âmago a impelia a cometer aquela loucura.

Esgueirou-se pela sacada, até que sentiu as mãos de Therron a auxiliando. Ele havia escalado as paredes e a protegia, para que ela alcançasse o chão.

Tão logo estavam em terra firme, encararam-se. Havia um misto de euforia e culpa no rosto de Esther, mas logo foi substituído pela certeza de que tomara a melhor decisão.

Ao lado dele, ela sentia-se tão feliz como nunca.

— Aonde iremos? — inquiriu.

— A uma festa — murmurou. — Uma noite para dançar e conversar — explicou. — Somos jovens e devemos isso a nós mesmos.


Enquanto a gaita tocava num ritmo frenético, e pares bailavam animadamente no centro daquele ambiente, Esther encarava as faces com nítido interesse.

Jamais estivera em um lugar assim. Era uma espécie de salão de festas, mas muito mais escuro e com muita mais bebida dos que ela frequentava com a família. E a música era tão alta que mal conseguia ouvir Therron falar.

Após ele dizer algo e ela franzir a testa, em dúvida, a boca dele aproximou-se de suas orelhas.

— Estou levando-a para o mau caminho — ele murmurou, rindo.

O olhar dela não o desmentia.

— Não se preocupe — prosseguiu, o tom masculino não escondia a felicidade. — Não importa o caminho, estarei ao seu lado, e vou protegê-la.

Assim, ela foi levada ao centro do baile. Sentiu as mãos de Therron em sua cintura, apertando-a, trazendo-a contra ele, e então ele deslizava com ela pelo salão, fazendo-a gargalhar como nunca, num galope musical, canções tão alegres que invadiam sua alma e latejavam seu coração.

Dançaram assim por cerca de meia hora, até o ar lhe faltar e o cansaço a tomar. Depois, Therron a puxou em direção a uma mesa e lhe serviu uma caneca de cerveja.

Era a primeira vez que bebia álcool, mas não se importou. Estava completamente entregue às mãos dele. E ele cuidaria dela.

— Então você é pintor? — ela começou, puxando assunto.

— E você não aceitou meu presente — apontou, assentindo. — Pintarei muitos quadros com seu rosto.

— Meu rosto? Não devo ser uma boa modelo.

— Creio que será a melhor.

Ela sorriu, embevecida.

— Onde mora?

— No subúrbio, ao norte. Em Sarcelles.

— E você vive do que pinta?

— Parece surpresa. Não passo fome, lhe garanto.

— Não me entenda mal. Vi uma única obra sua, e a achei fantástica, porém...

— Porém?

— Meu pai sempre disse que artistas são sem futuro.

A afirmação não o ofendeu.

— Seu pai deve estar certo — concordou. — Mas, eu pretendo conseguir emprego em uma fábrica, entende? Para sustentar minha esposa.

A palavra a assustou.

— Esposa?

— Sim, você.

Ela não resistiu e riu da frase.

— Parece tão certo do que quer.

— Você não?

— Eu sou uma jovem judia com um destino já traçado — contrapôs. — Essa noite é apenas um lampejo de felicidade, algo a me apegar...

— Enquanto os dias passam sem que saiba o que é emoção? Enquanto o marasmo destrua sua sanidade? — completou. — Diga-me, Esther: uma vida difícil, mas ao meu lado, é tão pior que a vida compartilhada com quem não se ama?

Aquela pergunta a calou. Porque, bem da verdade, as últimas vinte e quatro horas haviam sido tão idílicas que eram quase inacreditáveis.

Subitamente, deu-se conta do tempo.

— Vinte e quatro horas... — murmurou. — Talvez um pouco mais de horas, mas... definitivamente, é o tempo que nos conhecemos.

— E você já sabe que trocará tudo que tem, tudo que foi condicionada, por esses poucos momentos.

— Não trocarei — negou, mas não havia convicção na sua voz.

— Trocará — aproximou-se dela. — Porque vinte e quatro horas já mudaram sua forma de ver sua própria existência. Além disso, está focada no agora, e isso é um erro. Afinal, quantas vidas já tivemos juntos? Você sabe. Você me reconhece. E é tão forte, tão intenso que não consegue fugir.

Então, o dedo polegar dele deslizou pelo queixo feminino. Os olhos azuis cravaram-se na boca delicada, e logo a boca dele teve o mesmo destino.

Enquanto a banda tocava uma melodia animada, neles, tudo era lento e avassalador. Os lábios a se tocar, o beijo a se traçar, a intensidade das emoções tão fortemente angariadas em suas almas jovens.

Esther desfez o beijo.

Não porque quisesse, mas porque era errado.

Tudo ali era errado.

Ela era noiva, filha de um membro importante de um templo judaico. E ele era um pintor de rua, sem nada a lhe oferecer além das boas intenções.

— Eu não posso — negou, e então se levantou. — Irei embora, não me procure mais.

Enquanto ela corria para a saída, as lágrimas que brotavam em seu olhar também surgiram nos olhos azuis do homem que ficara para trás.


O espelho refletia uma noiva lindíssima. Esther tinha dificuldade de reconhecer que a imagem era ela.

Havia passado pela purificação momentos antes de vestir aquele bonito vestido branco. Estava em jejum e oração desde a manhã, ouvindo a mensagem na voz delicada e emocionada da mãe que, naquele instante, Deus perdoava todos os seus pecados, e estava expurgada para receber seu marido.

Contudo, haveria perdão para tão grave delito? Aceitar o jovem Josef enquanto nutria algo tão intenso por alguém mundano como Therron?

— Tem misericórdia de mim, ó Deus, por teu amor; por tua grande compaixão apaga as minhas transgressões — recitou o salmo 51. — Pois eu mesmo reconheço as minhas transgressões, e o meu pecado sempre me persegue.

O barulho no templo era intenso. Em breve, assinariam o contrato de casamento que antecedia a cerimônia.

Na sala onde aguardava, solitária com seus pensamentos, sentiu a garganta sufocar, enquanto desejava a morte.

Aliás, não seria essa a solução perfeita? Evitaria uma vida ao lado de Josef e não envergonharia os pais.

Um barulho na janela vê-la voltar-se naquela direção. Pasma, encarou Therron, metade do corpo para dentro da sala, metade para fora, a mão estendida em sua direção.

— Li no jornal que hoje seria o seu casamento — ele murmurou. — E eu nunca me perdoaria se permitisse que cometesse esse erro.

— Não posso fugir — ela murmurou. — Vá embora.

Contudo, ele sequer se mexeu.

— Não vou deixar que estrague a sua vida porque sua família não entenderia tudo que se passa entre nós — afirmou. — Eu posso ser apenas um pintor, mas vou batalhar para que nunca te falte nada. Posso não te dar luxo, mas te respeitarei e serei o melhor homem que puder. — Seu tom amenizou. — Você sabe que é minha, Esther... Você sabe.

A mão dele erguida, num convite óbvio, era irrecusável. Esther podia recuar, mas não o quis. Enfim, chegou-se a ele, e deixou que ele a puxasse para um abraço.

Enquanto eles fugiam pela janela, as estrelas se alinhavam no universo.


Na direção de um carro arista velho e enferrujado, um jovem de cabelos escuros aguardava a dupla, sorridente.

No carona, outro rapaz também parecia muito satisfeito pelo desfecho.

— Esther — apontou Therron, empurrando a noiva para dentro do automóvel. — Esse é Pierre — apontou o motorista. — E Vladimir. — O homem ao lado lhe estendeu a mão.

Esther sorriu para eles, especialmente para o motorista, pelo qual nutriu imediata simpatia. No coração, uma felicidade inexplicável pela coragem em tomar as rédeas da própria vida.

— Para onde vamos? — Pierre indagou ao amigo.

— Para uma igreja.

— Uma igreja? Vamos rezar?

— Temos uma noiva pronta, meu caro — Therron apontou. — Falta apenas um padre e Esther será completamente minha.

 

O apartamento pequeno e humilde era extremamente limpo. Essa foi à primeira sensação que Esther teve ao entrar e encarar as madeiras que revestiam o ambiente interno. Não que fosse uma surpresa, ela reparou como as roupas (um tanto gastas) de Therron eram sempre impecáveis, mas ficou agradavelmente surpresa em saber que seu – agora – marido era uma pessoa que priorizava por algo que, para os judeus, era de muita importância.

Casaram-se em uma igreja católica no bairro que Therron morava. Nada sabia sobre ele além daquilo. Ele era católico, e devoto de Maria, a mãe do messias para os cristãos.

Era como um universo novo, arrepiante e desafiador. Ela havia cometido uma loucura, sabia disso, mas não conseguia ter arrependimento. Havia deixado à casa dos pais, o luxo provido por eles, e a sua congregação – base de sua experiência espiritual – por um homem que só conhecia o nome, a religião que seguia e a profissão.

Voltou-se para ele. Apesar de tudo, era como se reconhecesse seu olhar. Não sabia nada dele, é verdade, mas conhecia cada pedaço de sua alma.

— Eu quero que saiba que não te forçarei a nada — ele avisou, um sorriso casto no rosto. — Temos tempo — assinalou. — Uma vida inteira.

Ela retribuiu o sorriso. Voltou-se novamente para frente, e caminhou até a janela.

Abaixo, as ruelas de uma Paris até então desconhecida para ela pareciam intimidá-la, mas Esther estava pronta para enfrentar aquela nova vida.

Do templo, partiram para a Igreja. Ela não voltou para os pais, porque sabia que não haveria perdão. Não imediatamente ao menos, pois a decepção de Frederic e Margareth devia estar sendo descomedida.

Sofria por isso. Mas, havia algo tão forte que a puxava em direção à Therron. Era o inevitável. Do instante que se viram diante das rosas, até aquele que foram declarados marido e mulher pelo padre, ela soube que era dele.

— E seus pais? — indagou.

Claramente ele morava sozinho naquele local, mas acreditou que a mãe devia ir até lá para deixar tudo organizado.

— Meu pai fugiu com uma mulher quando eu era uma criança — contou. — Minha mãe morreu algum tempo depois.

— Oh — ela murmurou, enrubescida. — Sinto muito.

— Já tem algum tempo. — deu os ombros.

— E você vive sozinho, desde então?

— Sim.

— Sem ninguém para amar e ninguém que lhe dê amor?

Aquele sorriso tímido que sempre despontava nos lábios masculinos pareceu expressar muito.

— Eu nunca senti falta — foi franco. — Era como se...

Pareceu pensar. Lá fora, o barulho noturno criava um fundo tenso. Esther aguardou ansiosamente pela resposta.

— Era como se eu sempre estivesse esperando você.

Ela riu. De alguma maneira, tinha a mesma sensação.

— Parece uma maldição — brincou. — Destinados a esperarmos um ao outro?

— Parece que vivi muitas vidas até conseguir chegar a você. E isso não é romântico — denotou. — É algo doloroso. Transforma-me em um covarde.

— Um covarde?

— Tenho a sensação que é só uma questão de tempo para eu perdê-la. — Suspirou alto. —De novo — completou.

— De novo? — ela sentia-se estranha em repetir cada palavra dele. Contudo, eram tão carregadas de simbolismos que a estremeciam. — O que quer dizer?

— É como me sinto — murmurou. — Um covarde porque esse medo me aterroriza desde o instante que a vi pela primeira vez. Foi esse medo que me fez interromper seu casamento. Esse medo que me levou a te forçar a se casar comigo. Esse medo que me faz sufocá-la, porque, para mim, esse momento juntos é tão frágil como um cristal que pode ser quebrado pelo toque do vento.

Lágrimas surgiram no olhar feminino, enquanto ela cruzava pelo apartamento, chegando-se a ele, destruindo a distância física que, naquele instante, os separava.

— Não vai acontecer — prometeu. — Não vai acontecer — inteirou, firme.

Uma promessa que poderia ser cumprida?

— Eu te amo — ele murmurou. — Eu mal te conheço, e eu te amo ao ponto de morrer por ti.

Os lábios deles se tocaram, num gentil beijo que resplandecia o amor.

Therron havia dito que não havia pressa entre eles, que nada seria forçado, e de fato não o foi. Porque foi Esther que tomou à dianteira, segurou o rosto do marido e afundou-se em seus lábios bonitos.

Enquanto ele a guiava até o quarto, peças do vestido branco que lhe serviu durante à tarde ficavam espalhadas pelo chão, como um tapete que levava a um propósito específico de paixão.

— Eu senti tanto a sua falta — a frase completou aquele momento mágico. — Tanto... tanto...

Esther nunca havia ficado nua diante de ninguém. Mas, não teve vergonha. Até porque havia adoração no olhar azul que passeou pelos seus seios eriçados e chegou até seu centro de pelos encaracolados e escuros.

— Céus, me diga, como vou conseguir pintar algo decente depois de vê-la assim?

Ela riu, enquanto ele arrancava a camisa, a calça e os calções.

Ambos eram jovens e tinham um corpo bonito, mas Esther soube imediatamente que Therron superava a tudo.

Na juventude, observava com discreta curiosidade as estátuas nuas que adornavam a cidade, sabendo que os homens retratados nelas eram o que mais de belo representava a masculinidade. Mesmo assim, aquele homem perante ela, agora, parecia algo além de qualquer expectativa.

Therron tinha ombros largos, num corpo delgado, magro, com músculos salientes do esforço de pintar e carregar seus quadros pela cidade. A barriga era definida, as coxas grossas, cercadas por ralos pelos incolores. O olhar dela se perdeu no pênis semiereto, bonito, de veias salientes e generosa proporção.

Suspirou, afastando o olhar, subitamente nervosa.

Therron sentiu aquilo e se aproximou, segurando-a nos braços, abraçando-a forte, beijando o topo da sua cabeça.

— Podemos esperar.

— Sou sua esposa diante de Deus e dos homens, e o quero ser de forma completa — ela murmurou. — Penso que, nessa noite, estaria diante de Josef, não fosse por ti — murmurou, as lágrimas voltando. — Obrigada... Você salvou-me... Salvou-me...

— Prometo que nunca irá se arrepender.

Os lábios voltaram a se unir, dessa vez com mais intensidade, mais agonia. Havia uma necessidade urgente em Esther, um anseio de mulher que jamais a tomou antes, mas que agora a arrebatava de forma avassaladora.

A mão masculina apertou as nádegas femininas e logo Therron a comprimia contra ele, aumentando de forma incontrolável aquela sensação mágica.

O olhar masculino encontrou-a, e Esther gemeu, diante daquela firmeza com que era puxada, com que era arrebatada.

Era como se estivesse num jogo ao qual ela perdia e ganhava ao mesmo tempo.

O fogo, o desejo, a magia declarada dos sentimentos os guiou à cama. Therron deixou Esther abaixo dele, beijando seus lábios, sentindo as mãos delicadas dela apertando seus ombros, como se confiasse inteiramente que ele lhe daria o melhor dos presentes.

O sexo nem sempre trazia satisfação a uma mulher, principalmente quando se era a primeira vez, mas Therron jurou a si mesmo que faria com que Esther gostasse da sensação.

A alma deles estava unida, queria que os corpos também resplandecessem isso.

Baixou a face, buscando os seios bonitos, empinados. Abocanhou o seio direito, enquanto deslizava a mão no esquerdo, num carinho gentil e delicado. Esther estremeceu, e tentou controlar os sons que pareciam escapar de seus lábios, mas logo ela não mais se impediu de gemer.

Therron chupou o bico, deslizando a língua naquela extremidade, balançando o quadril contra o baixo ventre, fazendo-a agoniar de paixão.

A boca de Therron desceu mais. A língua dançou pelo ventre bonito, feminino, e então encontrou sua cerne, deixando-a mais molhada, mais ansiosa, mais desesperada.

Beijou-a lá, diante do olhar arregalado da esposa. Sorriu para ela, enquanto afundava-se em sua carne, fazendo-a agoniar de prazer, as pernas abrirem, um gozo inexplicável tomando-a pela primeira vez.

Depois, voltou até seus lábios bonitos. Beijou-a profundamente, puxando sua coxa para cima, ajeitando-se entre elas e embalando-se até penetrá-la inteiramente.

Ele percebeu os olhos arregalados, o susto que pareceu tomá-la, e, na mesma medida, a maneira como ela aquietou-se e pareceu confiar inteiramente nele. Havia dor, era claro, mas havia também a intensa sensação de pertencimento.

Remexeu-se dentro dela, assim que percebeu que ela pareceu mais tranquila. Levantou o quadril, e o baixou, num ritmo que saía e entrava. O olhar deles, direto e unido, não se desviava. Ela precisava contemplá-lo para não temer, e ele não iria deixá-la decepcionada.

Então, uma sensação estranha tomou o corpo da mulher. Era como subir ao pico mais alto do mundo e cair de lá, numa adrenalina somada a uma paixão fervente.

Logo, o gemido dela tornou-se mais alto, mais frequente, mais intenso. E então, o ápice fez as pernas dela tremerem, e Therron molhá-la com seu corpo.

Estava feito. Não eram mais apenas duas almas unidas pela paixão, e sim duas carnes elevadas ao mais alto nível de intimidade do sexo.

 

Esther aproximou-se do marido sentado em um banco ao lado do sena. Ele lia um jornal com interesse, as sobrancelhas arqueadas, como se o assunto nas linhas fosse deveras interessante.

O vento frio do inverno que chegava fê-la estremecer perante ele. Logo, o olhar pacífico a encontrou e Therron sorriu.

— Quer o meu casaco? — ofereceu.

— Não. Estou apenas nervosa.

Após alguns meses, ela se preparava psicologicamente para ir à sapataria do pai pedir seu perdão e tentar fazer as pazes.

Quando fugiu do templo, soube que estava cortando os vínculos familiares. Contudo, não se arrependia. Trocar o conforto de sua casa e a perspectiva de riqueza com Josef pelo amor de Therron foi a coisa mais certa que já fizera.

Contudo, queria novamente ver os pais. Os amava, ansiava para que aceitassem Therron na família.

Ao saber-lhe o desejo, o marido apenas sorriu, como se entendesse sua vontade, mas como se não acreditasse em seu sucesso na empreitada. Agora, ele a acompanhava até a sapataria. Estavam próximos do rio, e ela havia ido a uma confeitaria pegar um copo de chá, enquanto ele permanecia sentado em um banco, a aguardá-la com o semblante sério.

— O que aconteceu? — perguntou, preocupada.

— Nada — fechou o jornal, tentando transmitir paz.

— É um péssimo mentiroso, Therron.

Um suspiro triste fê-la sentar-se ao seu lado.

— Um menino judeu... — murmurou. — Um rapaz inconsequente... — prosseguiu. — Matou um diplomata da embaixada alemã.

Ela assentiu, compreensiva.

— Você parece assustado.

— Uma sensação ruim — murmurou. — E se vendêssemos tudo que temos e fôssemos para a América?

Ela riu.

— De que jeito? Não conhecemos ninguém lá. Além disso, estamos seguros aqui. Não percebe que muitos judeus estão vindo para a França, a fim de escapar da Alemanha?

Therron respirou fundo.

— Eu tenho medo. Você agora é uma Esme, mas... E se descobrirem que é judia?

— Estamos na França, Therron! — insistiu.

— Muita gente odeia os judeus. E não é apenas na Alemanha. O jornal fala de ataques à comunidade judaica nos arredores de Paris. — Suspirou longamente. — As ideias de Hitler estão ganhando adeptos em todo canto.

Ela sabia ser verdade.

— Não vou fugir do meu país — murmurou. — E não me afastarei dos meus pais, mesmo que eles demorem a me perdoar. Um dia vai acontecer. Um dia eles vão aceitá-lo, e então seremos uma família feliz.

Ele tocou seu rosto, com delicadeza.

— É tão pura, Esther. E crê tanto em coisas que estão acima de nossas forças.

Puxando-a levemente, trouxe-a para um beijo.

 


O pai batia na sola de um sapato com força. Logo, seu olhar volveu para a entrada, para o casal que aparecia diante deles.

— Saía — ordenou, sem dar-lhes tempo de conversa.

— Pai, tudo que quero...

— Não sou seu pai — bramou contra ela. Therron ficou na frente da mulher, em defesa. — Você traiu sua família, nos envergonhou perante nossa comunidade. E tudo por quê? Por um artista de rua?

— Meu marido, pai... — defendeu.

— Um pobretão que vai te fazer viver o inferno. Um dia vai se arrepender de tudo, Esther. Um dia voltará para mim, admitindo seu erro e implorando por perdão.

Ela negou as palavras.

— Viverei mil anos e não me arrependerei de ter casado com Therron, pai. Mas, me arrependerei de tê-lo procurado.

Voltando-se, então, para a saída, ela deixou o local.

O artista loiro encarou o sapateiro por alguns segundos, quando, por fim, seguiu sua mulher.

 

Capítulo 03

 

O medo

França, 1940.


“É com o coração pesado que eu digo a vocês, hoje, que devemos parar de lutar.”

Therron Esme era um pacifista. Um artista, de alma sensível que acreditava piamente no poder e na beleza da arte. Era assim que, a seu ver, o mundo devia evoluir. Não com guerra, mas com amor.

Apesar disso, sempre foi um admirador convicto do Marechal Petain, um líder e herói francês, que protegeu seu povo desde a Grande Guerra.

Ouvir suas palavras de derrota na rádio, naquela manhã, destruiu sua esperança.

Se Petain não acreditava que a França poderia prosseguir, era porque a derrota estava certa.

Enquanto milhares de franceses buscavam fuga, e um novo governo se formava sobre a mão nazista, Esme traçou rotas para tirar Esther da cidade.

Não se sabia ao certo o que faziam aos judeus, mas os boatos eram muitos. Diziam-se, as bocas pequenas, que quando entravam em trens que iam para o leste, jamais eram vistos novamente.

Porém, ao explicar seus planos a esposa, ouviu dela que a mãe, Margareth, estava doente. Mesmo não sendo mais bem quista pelos familiares, a esperança do perdão a fazia recuar diante da fuga, e a buscar sempre por informações sobre a vida dos pais.

E assim eles decidiram ficar. Ao menos temporariamente.

 

Havia uma postura de dignidade trágica nos olhares em volta de Therron. Alguns permitiam que as lágrimas escorressem pelo semblante impassível, numa estranha postura de dor e resignação, como se o inevitável fosse apenas mais um capítulo de um livro triste.

Existia muita gente ao redor da avenida onde a infantaria do Exército da Alemanha realizava o Desfile da Vitória. Em um cavalo escuro, era possível assistir o General Briesen, comandante do 30ª Divisão de Infantaria, os saudando com nítido orgulho.

Para os alemães, era o paraíso, a vingança ante a vergonha na derrota da guerra anterior. Para os franceses, era o abatimento de verem suas vidas sendo destruídas por gestos simbólicos tão firmemente declarados em cada saudação nazista.

Therron fechou os olhos, afastando-se da multidão.

Agora, era tarde demais. Para sair da zona ocupada da França ele precisaria de documentos. Esther tinha um nome declaradamente judeu. Mesmo que se professasse Esme, haveria uma investigação referente aos antepassados da esposa.

Estava tão abatido que mal percebeu a aproximação de Pierre, que o segurou nos braços.

— Precisamos lutar — o amigo murmurou, baixo, com fogo nos olhos.

Lutar? Contra todo o exército alemão?

— Você ficou louco. — Murmurou.

— Existem guerrilhas...

— Guerrilhas? Eles são um dos exércitos mais bem armados do mundo — contrapôs.

Pierre negou.

— Então cairemos batalhando.

— Já caímos. Além disso, não sou um homem sozinho, tenho esposa. Devo proteger Esther. Preciso tirar minha mulher da cidade.

— Ninguém entra nos trens sem documentos.

— Ela é uma Esme — tentou manter acesa a esperança. — Vamos conseguir.

Pierre negou. Mas, por fim, seu olhar pareceu abrandar.

— Meu amigo — murmurou. — Não acredito que terá sucesso em sua missão, mas tentarei conseguir um meio seguro para que saía da França. Só te peço, por favor, não vá para os trens. Estão prendendo judeus que tentam embarcar.

Therron assentiu. Subitamente, o pesadelo daquele dia tornou-se extremamente palpável.

— Ficarei em teu aguardo.

Pierre fez menção de se retirar, quando sentiu a mão firme de Therron a segurá-lo.

— Você é um médico — argumentou. — Não um soldado. Por favor, imploro que pense bem antes de desafiar o poder nazista.

— Eu não tenho o seu sangue covarde — insultou-o, mas logo se arrependeu das palavras amargas. — Perdão. Você é uma alma boa, um artista, um romântico, Therron. Mas, o momento agora é de guerra, é de ódio. Eu não sei se esse homem gentil que você é será capaz de proteger Esther.

Diante de tais palavras, afastaram-se.

 

A vida tinha que prosseguir. Mesmo diante do medo, os remanescentes de Paris ainda levantavam de manhã e iam trabalhar. Os únicos que pareciam mais acanhados eram os judeus, mas, até mesmo eles, permaneciam em silêncio perante as decisões nazistas.

Os poucos que se submetiam a enfrentar as ruas ostentavam uma estrela judaica amarela cravada em suas roupas. Era uma exigência do ministro Goebbels e do próprio Hitler, que causou imediata preocupação em Therron.

Um dia ele chegou em casa, e viu a esposa costurando no casaco a estrela de Davi. Tomou de suas mãos as vestes, e esmoreceu perante seu olhar desolado.

— Ninguém sabe que é uma Wiesel. Sua família te renegou. Para o bem ou para o mal, é uma Esme, Esther.

Ela negou.

O homem ajoelhou-se diante dela. Segurou suas mãos, tentando transmitir uma crença que nem mesmo ele sentia.

— Pierre tentará uma forma de nos tirar de Paris.

— Mas, meus pais...

— Esther — ele tentou trazê-la a razão. — Acabou, Esther. Não há mais chance alguma, nenhuma possibilidade. Ou fugimos, ou você será mandada para o leste.

As palavras causaram alvoroço.

— Começaram as evacuações?

— Não sei ainda — murmurou. — Tudo que ouvimos são boatos, mas prefiro ser precavido. Vamos tentar rumar em direção ao Canal da Mancha, e conseguir uma passagem para a América, de navio.

O soluço desesperado escapou da garganta feminina, e Therron a abraçou, tentando mantê-la firme, tentando ser a força que ambos precisavam naqueles momentos de agonia.

— Eu te amo — ele sussurrou. — Eu vou te proteger...

No sábado que se seguiu, como de costume, Therron arrumou suas sacolas de pinceis, quadros e telas e foi em direção à praça. Pouco tempo depois, já estava a vender suas obras.

O movimento caiu bastante. Não era apenas por medo, as pessoas estavam sem dinheiro. Therron entendeu que, numa crise, o primeiro ato a se praticar é livrar-se dos luxos. Os quadros dele se encaixavam nesse perfil.

Contudo, logo um nazista de vestes pretas aproximou-se. Seu olhar focado no quadro bonito, um desenho de Esther que ele havia feito durante um piquenique, havia chamado sua atenção.

— Ela é linda... — murmurou, num francês carregado e de má pronúncia.

Therron respirou fundo, tomado por uma sensação desconhecida. As mãos tremiam, mas não era de medo. Ele odiou a maneira como aquele nazista encarava a beleza da esposa, com nítido interesse, como se sua musa pudesse ser compartilhada.

Havia uma raiva latente em seu coração por aqueles homens. Especialmente os membros da S.S. Para Therron, eram os seres humanos mais desgraçados que já pisaram na terra.

Contudo, havia algo além por aquele, em especial.

Repentinamente, o homem volveu para ele. Era jovem, no máximo trinta anos. Cabelos negros, olhos igualmente escuros e uma postura reta e direta.

— Você parece um ariano — murmurou, perante o cabelo loiro e o olhar azul celeste de Therron.

— E você não — o outro devolveu.

Um sorriso amistoso surgiu nos lábios do inimigo.

— Quanto custa? — apontou o quadro.

Therron precisava de dinheiro, mas não queria macular a imagem de Esther nas mãos de um nefasto como aquele.

— Eu não negocio com nazistas — disse.

Aquele tom corajoso fez o sorriso do outro se alargar mais.

— Kraus! — um grito ao longe fez o membro da S.S volver-se para trás.

Alguém o chamava, e ele pareceu pronto a ir. Therron suspirou de alívio. Pelo menos naquele dia não seria retalhado por suas palavras mordazes.

— Tem sorte por eu admirar a coragem — o outro disse, antes de caminhar.

Ao longe um trovão ecoou, anunciando que a chuva se aproximava. Therron recolheu suas coisas e foi embora.

 

— Therron!

O chamado fê-lo volver-se para um canto escuro da ruela daquele bairro pobre.

Imediatamente reconheceu o sogro, apesar do olhar profundo, as olheiras negras denotando a exaustão, e a magreza que deixava claro que o homem não estava bem.

A despeito dos problemas entre eles, aproximou-se. Devia a Esther qualquer possibilidade de redenção. Queria que fossem novamente uma família. Se Frederic conseguisse engolir seu orgulho, poderia partir com eles tão logo Pierre lhe arrumasse uma condução.

— Tome — o mais velho lhe estendeu um envelope.

Therron o segurou nas mãos, abrindo imediatamente. Lá, notas diversas em dólar lhe assustaram.

— O quê?

— Fique com isso.

Therron negou.

— Não posso ficar com seu dinheiro, senhor Frederic. Eu jurei a mim mesmo que jamais o aceitaria, e sustentaria sua filha da forma mais digna que pudesse. Até então, apesar de todas as dificuldades, nada faltou a Esther.

O homem assentiu.

— É, eu sei. — Suspirou. — Therron, eu estava enganado sobre você, mas não é por esse motivo que estou lhe dando esse valor. É uma ajuda, para que tire Esther daqui.

— Estou tentando conseguir uma forma de sair...

— Não basta. — Foi ríspido. — Precisa sair rápido. Ontem à noite levaram a família de Josef, e fui informado que Margareth e eu seremos enviados para o leste hoje à tarde.

— Hoje? Precisa ver sua filha, despedir-se dela...

— Não. E não é por orgulho. A polícia esteve em minha casa e eu disse que minha filha, Esther Wiesel, faleceu há dois anos. Contudo, é questão de tempo até alguém delatá-la. Esther não pode me ver, nem a mãe. Ela precisa esquecer que é uma judia e você precisa fugir com ela daqui o quanto antes.

Os olhos de Therron encheram-se de lágrimas diante do amor paterno que ele jamais vivenciou.

— Eu sinto muito — foi sincero. — Eu espero que...

— Não deseje nada, Therron, porque eu sei que meu fim e o de Margareth está próximo. Apenas, tente cuidar de Esther, salvá-la dos malditos nazistas.

O rapaz assentiu.

Depois disso, o mais velho desapareceu na ruela. Era a última vez que o via.

 


Esther encolheu-se na dor pungente das notícias trazidas pelo marido.

Therron deslizou a palma das mãos por suas costas, num carinho confortador, enquanto aceitava que seu desespero fosse expresso pelas lágrimas que se derramavam em abundância no rosto.

— Nunca mais verei meus pais? Nunca me despedirei de minha mãe? — ela murmurou ao marido que a apertou contra os braços.

Estavam deitados na cama, compartilhando aquela dor que refletia mais do que agonia. Era medo. Era a sensação terrível que tudo acabaria em pouco tempo, num final funesto.

Batidas fortes na porta assustaram a ambos. Esther sentou-se rapidamente, olhando para o marido, como se buscasse ajuda.

Therron pediu calma, e a levou até o roupeiro, onde ela buscou esconderijo. Então, foi atender a porta, o coração aos saltos, e quase suspirou de alívio ao ver o amigo Pierre do outro lado.

— Entre — mandou.

Fechou a porta, olhando para os dois lados do corredor antes. Estava vazio.

Esther logo surgiu na sala. Nem deu-se conta de que vestia apenas a camisola de linho, o rosto transbordava pavor.

— Enviamos por carro uma família judia até Dieppe. A intenção era pegar um barco clandestino para atravessar o canal da mancha e chegar à Inglaterra.

— Mas? — Esther indagou, antevendo a má notícia.

— Foram descobertos por nazistas — contou. Depois, aproximou-se da mulher, apertando seus ombros. — Minha querida amiga, não é seguro tirá-la de Paris, nesse momento. — Levou a mão ao casaco, e deu a ela um documento. — Antonieta Esme é seu nome agora. Precisa usar esse documento, e precisa evitar as ruas, pois existem muitos delatores.

Esther assentiu.

— Quando for seguro, daremos um jeito, eu prometo.

Após, afastou-se dela e preparou-se para ir embora. Na porta, trocou um abraço com Therron.

— Muito obrigado — o loiro disse.

Naquele momento de agonia, a única coisa real e sincera era a amizade. Foi nisso que o casal se firmou.

 

1942.

A vida se tornava cada vez mais difícil nas ruas de Paris. O antissemitismo era gritante. Os poucos judeus que ainda viviam na cidade luz eram constantemente agredidos e humilhados em público.

O pequeno apartamento de Therron acaba por se tornar a prisão de Esther. Ainda que tenha documentos falsos, ela não sai à rua, e mesmo suas menores necessidades, precisam ser sanadas pelo esposo.

Se alguma vez, naqueles quatro anos de casamento, Esther duvidou dos sentimentos de Therron, agora ela tinha certeza do amor que o marido nutria para consigo.

Mais que isso, era uma amizade que ia além da relação carnal que compartilhavam.

Therron também se privava de viver. Para passar seu tempo livre com a esposa, ele abandonou as pequenas alegrias da vida, como passear pelas praças ou tomar café nas bonitas confeitarias.

Agora, tudo se resumia ao apartamento, e ao medo crescente que nunca cessava.

Cada barulho de carro na rua fazia os dentes dela baterem de medo, quase ao ponto de trincarem-se. Cada grito ou pisada forte no prédio, deixava-a ao ponto de desfalecer.

Era nas mãos de Therron que ela se segurava, era no calor do corpo masculino que ela buscava paz, em suas palavras, o conforto que parecia apenas um pequeno alento diante de tanto desespero.

Numa noite fria, sentados próximos do rádio e bebendo chá, eles ouviram as palavras confortadoras do general Gaulle, que agora era a esperança da resistência e que mantinha o apoio à Inglaterra, no enorme sonho francês de liberdade:

“ A chama da resistência francesa não deve se apagar, nem se apagará" ...

Esther olhou para o marido, um sorriso tímido nos lábios, e ele retribuiu com um afago nos dedos.

— O governo no exílio e os movimentos de resistência nos salvarão — ela murmurou, beijando os lábios masculinos. — Eu tenho fé.

Ele também tinha.

Enquanto aconchegava a esposa nos lábios, não deu-se conta de que a fé de ambos seria testada com terrível intensidade.

 

Capítulo 04

 

O Velódromo


O dia 16 de julho de 1942 ficaria marcado para sempre na memória francesa como uma vergonha, um dia em que seus heróis se tornaram de barro, e seu governo os traiu.

Mais de dez mil judeus marcharam, presos, naquela que seria a maior deportação judaica no país, sob os olhares em misto do povo francês. Alguns riam, enquanto outros se apiedavam. Alguns gritavam “ Vão para Jerusalém, é lá seu lugar ”, enquanto outros arriscavam a vida para dar-lhes esconderijo em suas casas.

O evento foi cuidadosamente planejado pelos nazistas. Reuniram documentos a fim de conseguir capturar todos os judeus que permaneciam em Paris e arredores, e usaram e abusaram da boa vontade de uma parte da população local, que não se privou em denunciar a identidade dos odiosos judeus, para ganhar lucro ou simpatia dos invasores.

Esther jamais soube quem a delatou. Tampouco aquilo importou. Naquela manhã, ela acordara cedo, preparara o café do marido e lhe dera um beijo gentil de despedida, ao vê-lo sair para trabalhar.

Depois passou a limpar o apartamento, a costurar roupas velhas e, por fim, a preparar o almoço.

O dia típico de uma dona de casa, interrompido por um forte chute na porta, fê-la gritar.

Sequer tentou se defender, seu pavor era tão claro quando o dia. Qualquer nazista saberia que aquela jovem de documentos falsos era uma porca judia que merecia a prisão.

Havia, contudo, um porém: era a polícia francesa que agora invadia seu lar, exigia seus documentos e a observava com nítido deboche.

Um dos policiais amassou seus documentos, entregando a outro homem que entrava, armado, como se ela fosse uma temível criminosa. Depois disso leu, em um papel, um texto sem emoção:

— Pode pegar um par de sapatos, dois pares de meia, duas camisas, dois pares de roupas íntimas, um suéter, um conjunto de lenços, uma tigela, um copo, um cobertor e alimento para dois dias. Coloque tudo numa mala, rápido, ou sairá daqui sem isso.

Empurram-lhe em direção ao corredor, sem qualquer constrangimento, rudes com aquela mulher de corpo frágil a carregar uma mala.

Não lutou. Mesmo assim, recebeu alguns safanões no rosto, machucando-a. Marchou sob a mira de um fuzil até a parte externa do prédio. Lá fora, cidadãos que outrora eram simpáticos vizinhos lhe xingavam de puta, e cuspiam nela.

Adiante, uma família judia formada por um jovem casal e um bebê caminhava em passos trôpegos, assustados.

O bebê chorou.

O som de um tiro cortou o ar.

Enquanto a mãe berrava com a criança a sangrar no colo, Esther soube que não haveria piedade dos seus captores.

Dois passos seguintes e um som seco quase a fez cair. Uma jovem acabava de pular de um prédio, preferindo suicidar-se a entregar-se às mãos covardes da polícia parisiense.

Esther observou o cadáver com lágrimas nos olhos. Era o juízo final.

 

A gritaria na rua estava intensa. Therron logo viu um vendedor judeu andando acuado sob a mira de um revólver.

Estranhou aquilo, pois não haviam nazistas à vista. Então, tentou manter a calma, dizendo a si mesmo que era apenas uma prisão isolada. Ou, simplesmente, estavam a buscar os homens. Mulheres e crianças costumavam ser deixadas para trás, quando havia prisões.

Tudo em vão, poucos passos depois, percebeu mais judeus caminhando pela ruela, com suas estrelas amarelas costuradas na roupa e lágrimas a escorrer pelos rostos sofridos. Famílias inteiras, incluindo crianças de colos e idosos sendo empurrados em cadeiras de rodas. Não havia respeito por ninguém, não importava a idade.

O choro incontido das vítimas contrastava com o riso e júbilo na população que acompanhava o cerco aos judeus.

Apavorou-se. Largou a sacola com os pinceis no chão e correu em direção à rua onde morava. Antes de conseguir virar a esquina, dois braços fortes o contiveram e ele caiu no chão.

Lutou contra seu captor, quando percebeu ser Pierre.

— Eles a levaram! — O amigo contou. — Eles a levaram, Therron — viu lágrimas nos olhos do outro. — Eu não cheguei a tempo.

Therron tentou se desvencilhar, mas Pierre o manteve mais firme.

— Me deixe! — gritou. — Ela é minha esposa.

— Vão te prender! Irão te acusar de proteção a um judeu!

— O que importa?

Só então a garganta deu deixa de que a mente havia perdido o controle. Therron caiu de joelhos, chorando.

— Se você for preso, quem poderá salvá-la?

A explicação parecia coerente, e Therron assentiu, tentando manter o controle.

— Para onde a levaram?

— Não sei. A moça que trabalha no departamento de polícia, mas que também é um membro da resistência, me avisou há duas horas sobre a prisão de Esther. Parece que alguém do templo dela delatou-a, mediante tortura. — Diante do olhar mais centrado, trouxe esperança. — Iremos descobrir onde ela está sendo levada, está bem? Por favor, precisa manter o controle!

Therron concordou. Esther o precisava mais forte do que nunca.


Esther se lembrava do pai, certa vez, a impedi-la de ver uma corrida no Velódromo de Inverno em Paris.

Vários amigos da escola iriam ir, e ela amaldiçoou a família tão religiosa que a privava de viver sua mocidade sem medo ou limites.

Não sabia ela, claro, que o lugar era ponto de encontro de putas, apostadores e bêbados. Local destacado para os prazeres mundanos, onde uma moça de boa reputação jamais devia pôr os pés.

Contudo, como nada na vida era definido por certezas, ali estava ela, sentada no chão frio, sentindo as vistas nublarem pela sede, pela fome, pelo frio.

Muitos desfaleceram naqueles dias após sua prisão. Mais de treze mil judeus amontoados sem comida, bebida ou cuidados, tendo nada além da roupa do corpo para protegê-los do frio noturno.

Definitivamente, aquele lugar parecia o inferno, mas Esther mal sabia que o seu inferno pessoal estava apenas começando.

Cobriu o nariz com o blusão, tentando manter o cheiro de fezes longe de si. O fedor era tão forte, que ela vomitaria, caso tivesse algo no estômago.

Perto dela, um homem urinou no chão, como se a sua dignidade já tivesse sido arrancada e seus pudores levados ao léu.

Esther tentou se levantar, afastar-se. Percebeu que os demais estavam com suas famílias, mas ela não tinha ninguém. Sequer alguém para falar. Qualquer passo, em qualquer direção, poderia fazê-la perder o canto que arrumara para descansar as pernas.

Preocupados, os judeus mantinham-se em seus bandos ligados ao sangue, tentando proteger-se entre si, imaginando quando aquela agonia teria fim.

As noites frias tornam-se calor durante o dia. As portas fechadas, as muitas respirações e os corpos aproximados, deixavam o ambiente ainda mais sufocante.

Depois disso, as horas perderam sua importância, a fome deixou de doer, e as vistas passaram a fechar-se com mais frequência.

Iria morrer, não fosse alguém a derramar água em seus lábios.

Abriu os olhos e deu de cara com um bombeiro.

— Moça, aguente — ele murmurou, colocando nas mãos dela um pedaço de pão.

Seu salvador desapareceu, logo depois, em meio à multidão que implorava por ajuda. Jamais soube, mas aquele ato de misericórdia faria os bombeiros de Paris se tornarem alvos dos nazistas.

— Vão levar alguns de nós para Drancy.

O anúncio foi feito por um judeu de olhos assustados que parecia ter ouvido tal coisa dos policiais.

Drancy ficava ao norte de Paris, e falava-se em um campo de trabalho forçado por lá. Esther suspirou de alívio, qualquer coisa para sair daquele ambiente e respirar ar puro.

Sentiu uma dor aguda no baixo ventre. Não ia ao banheiro desde que saíra de casa, e não tinha coragem de levantar as saias como faziam as outras mulheres, e urinar no chão.

Lágrimas surgiram nos olhos quando ela sentiu o líquido quente descendo por suas pernas.

Sua degradação parecia completa.


No apartamento no centro de Paris, Therron encarou o amigo com preocupação. A porta havia recebido três batidas com força, e o médico correu até ela, abrindo-a sem pestanejar.

Uma jovem de cabelos castanhos claros entrou no ambiente, e passou para Pierre uma cópia do que parecia uma lista realizada pelos nazistas.

— Esther está no velódromo — a recém-chegada relatou.

— Mas, por quê? Ela não tem filhos!

Naqueles dias que passaram, a resistência tentou ajudar Therron como pôde. Até tentaram sabotar um trem que partiu de Paris com solteiros e casais sem filhos. Mas, Esther não estava em nenhum vagão.

— Ela apresentou documentos falsos e a levaram para lá, até que averiguassem — a mulher explicou.

Chamava-se Úrsula e trabalhava dentro do departamento de polícia. Arriscava a vida para tentar sabotar os planos nazistas. No dia 16 de julho, foi graças a sua coragem que muitos judeus conseguiram escapar e esconder-se da polícia.

— O bombeiro chefe é da resistência, e informou que as pessoas no velódromo estavam sem água desde que chegaram. Ele enfrentou o chefe de polícia para conseguir abrir as mangueiras e dar de beber ao povo.

— Provavelmente será preso por isso — apontou Pierre. — Temos um membro da resistência lá. É encanador. Precisamos falar com ele — apontou. — Ele conseguirá tirar Esther do velódromo.

— Tarde demais — a jovem se compadeceu. — Estão transferindo as pessoas hoje — e apontou o relatório.

Pierre o abriu imediatamente.

— Drancy? Irão levar todos para Drancy?

— Não Esther — ela murmurou. — Precisam apenas saber o que fazer com as famílias que tem crianças.

— Crianças? Por quê? — questionou Therron.

A jovem, Úrsula, encarou o pintor com legítimo horror.

— Ouvi boatos, não sei se é verdade...

— O quê?

— Construíram câmaras de gás, onde irão sufocar...

Sua voz sumiu. Ela não precisava terminar.

Diante do silêncio, Pierre começou a procurar pelo nome de Esther entre as folhas.

— Ela não vai para Drancy — confirmou. Depois, voltou-se para o amigo. — Vão enviá-la para a Polônia. Um lugar chamado Auschwitz.


O vagão que transportava gado parou nos trilhos com um som grotesco.

O amontoado de pessoas empurradas pela polícia era levado até as portas e puxados para dentro.

O destino incerto aterrorizava Esther.

Depois de cinco dias presa no velódromo, ela não conseguia mais raciocinar direito. Apenas, cumpria as ordens, como uma ovelha ao matadouro.

— Esther!

O grito ao longe deu ares de um último presente de Deus, o tom amável que tanto a aquecia.

Voltou-se para trás. Seu olhar encontrou-se com Therron. Ele estava com as duas mãos na cerca de arame que os separava. A multidão ao redor dele parecia prestes a esmagá-lo. Era muita gente a se despedir de quem amava, ou a rir do desespero dos que partiam.

— Eu te amo, Esther — ele gritou.

Ela foi empurrada para dentro do vagão. As lágrimas em ambos despencavam sem controle.

— Eu vou te achar, Esther! — Prometeu. — Vou te salvar, mesmo que isso custe minha vida.

E então a porta do vagão se fechou.

Como anteviu Therron quando a conheceu, a dor de perdê-la beirou a morte.

 

Capítulo 05

 

A Resistência.


Therron entrou no apartamento de portas quebradas. Lá dentro, a bagunça denotava a agressividade com que a esposa havia sido levada.

Ele não havia voltado para o local desde a prisão de Esther. Em muito porque Pierre achava perigoso, em muito porque temia perder o controle assim que visse o lugar onde ele perdeu-se no amor da mulher.

Ergueu os olhos dos trapos rasgados ao chão e encarou os quadros pendurados nos tripés de madeira, ainda inacabados.

Lembrou-se de seus princípios ao ver as obras.

Em tudo, estava errado. A bondade e o amor, a beleza e a docilidade, não venciam o mal. O mal se combatia com o mal. Sempre foi um bom homem, respeitador e generoso, e tinha sua esposa arrancada de si, jogada em um trem como lixo, talvez sem comer e beber nada por dias, com destino incerto.

A culpa o fez aproximar-se dos quadros. Logo, ele chutou-os, quebrando, gritando, expurgando de si a raiva.

Se tivesse deixado a arte de lado e se unido aos movimentos que lutavam contra os nazistas, talvez Esther estivesse ao seu lado. Mas, não... ele deixou-se levar pelo lado sonhador que só lhe trouxe desgraça.

O artista doce estava morto. Os nazistas haviam matado aquela faceta. Restava agora um homem que só queria recuperar sua mulher e vingar-se daqueles porcos.

Correu até o armário. Numa madeira solta, encontrou o envelope que o sogro havia lhe dado e que ele havia guardado com responsabilidade, a fim de começar uma nova vida num país onde conseguisse abrigo para Esther.

Agora, aquele dinheiro teria outro propósito. Um destino sinistro que mancharia para sempre sua alma.


La Résistance [1] costumava não ter local fixo de encontro, mas Pierre havia descoberto que Jean, um dos líderes da facção que lutava contra o eixo, estaria em reunião numa fazenda ao leste de Paris.

Pierre havia se unido ao grupo em 1940. Costumava levar informações que conseguia coletar no hospital até a liderança. Cada detalhe podia ser útil e ele não esquecia nada.

Agora, trazia consigo uma poderosa arma: um homem sedento pela sede de vingança.

Jean, cujo sobrenome ninguém sabia, tinha cerca de quarenta anos, os olhos desconfiados e o tom ameaçador. Olhou para Therron medindo-o, como se quisesse descobrir suas fraquezas e enfrentá-lo por elas.

— Pierre já tinha me falado sobre você — sorriu, apontando uma cadeira para o loiro, num convite a se sentar. — Um pintor, um artista muito sensível — comentou. — Alguém que nunca pegaria em armas, nunca mataria ninguém. — Riu, depois, com deboche. — Um católico que vai a missa todos os domingos e que professa o perdão aos inimigos. O que alguém como você faz aqui?

— Mudei de opinião — disse, simplesmente, entregando ao homem o envelope cheio de notas.

O olhar de Jean arregalou-se diante da ajuda inesperada.

— O que quer em troca?

— Uma arma e treinamento. Depois, ajuda para ir à Polônia. Documentos para que eu consiga me infiltrar.

— Para buscar sua esposa... — Completou o líder, negando com a face. — Entende que a nossa luta é muito maior do que a simples paixonite por uma mulher?

Em segundos Therron estava de pé, segurando o colarinho de Jean, o ódio dominando sua face.

— Ela não é uma paixonite — murmurou.

O homem então tocou suas mãos, tentando acalmá-lo.

— Guarde sua raiva para os nazistas. Ela será mais útil lá que aqui — sugeriu.

Therron o soltou, tentando controlar a respiração.

— Peço desculpas — murmurou. — Eu irei fazer o que me mandarem, não importa quais serão as ordens, a única coisa que preciso é ser infiltrado na Polônia.

— Conseguirei te mandar para a Alemanha, fácil. Posso conseguir sua transferência assim que um esquema que estamos aguardando virar lei. Não seria difícil conseguir uma identidade falsa informando que seu pai era alemão. Por sorte, você parece um alemão, até.

Therron assentiu.

— De que lei fala?

— Há burburinhos que irão mandar franceses para a Alemanha, a fim de trabalharem. Parece que, com o envio dos homens alemães aos campos de batalha, falta mão de obra no país. Então...

— Se eu chegar à Alemanha com documentos que me declaram como descendente alemão, não seria difícil cruzar a fronteira com a Polônia.

— Com os contatos certos, te coloco até da S.S — brincou.

O olhar de Therron brilhou.

— Quando começo meu treinamento?

— Em breve.

A conversa estava finalizada.

 

Capítulo 06

 

Auschwitz


Os vagões não tinham sanitário, nem balde. Apenas palhas no piso pareciam ter sido postas ali como lembrete do que representava os judeus para os alemães: o gado imundo, que estava destinado ao abatedouro.

Estavam em setenta pessoas naquele cubículo apertado que fedia tanto ao ponto de Esther comparar o velódromo a um jardim.

Ela não tinha forças. Estava fraca, desde os dias do velódromo. Havia bebido a água dada pelo bombeiro, e depois comido metade do pão que o homem lhe entregou. Era tudo que tinha no corpo, desde que saíra de Paris.

A quantidade de dias, ela não mais contava. O trem parava às vezes, dois ou três homens judeus desciam sob o olhar atento dos guardas, e conseguiam um pouco de ração. Ela chegou a pegar um pedaço de pão com geleia num dos dias, mas cercada de fezes e urina, o alimento não desceu em sua garganta.

Numa das paradas, alguns companheiros de vagão foram retirados do comboio e atirados próximos da ferrovia. Estavam mortos. Não aguentaram a desnutrição. Esther os invejou.

O frio logo os atingiu. Aquilo fê-la entender que estava sendo levada para o leste. Sentada sobre sua mala, com dificuldade conseguiu pegar um xale. Comprimida contra os demais ocupantes, ela mal conseguia respirar.

— Você é casada? — uma das companheiras de clausura, certa vez, apontou para sua aliança.

Assentiu.

— Sou Sarah — ela se apresentou, estendendo a mão esquelética.

Aqueles poucos dias de prisão estavam transformando os judeus em ossos.

— Esther.

— Seu marido está no vagão?

— Meu marido não é judeu.

A sobrancelha negra de Sarah ergueu-se, surpresa. Não era comum uma judia casar com um ímpio.

— Sou casada — contou, mesmo que Esther não houvesse perguntado, porque queria dialogar desesperadamente. — Mas, retirei minha aliança e a joguei na merda. Se os alemães quiserem meu ouro, terão que enfiar a mão na bosta e pegar.

— Querer o ouro?

— Eles estão retirando tudo que temos. Os rumores se espalham. Ficam até com nossos velhos relógios ou sapatos.

Esther encarou a aliança simples, mas de grande significado. Não! Não podia deixar seus captores ficarem com o símbolo de seu amor por Therron.

— Obrigada pelo aviso — murmurou.

O som cessou entre elas com o apito forte do trem.

Haviam chegado ao destino final de suas vidas.

 

“Arbeit Macht Frei”.

Aquelas letras em ferro, desconhecidas para Esther, fizeram-na arquear as sobrancelhas. Ao seu lado, Sarah, que parecia mais forte, ajudou-a a caminhar.

— O trabalho liberta — a mulher murmurou, fazendo com que o rosto de Esther se volvesse para ela.

— Como?

— É o que diz — apontou.

— Sabe alemão?

— Era professora do idioma — ela sorriu. — Trabalhei na Alemanha, até Hitler assumir o poder. Quando começaram a nos restringir, meu marido e eu soubemos que a França era o paraíso para os judeus, e decidimos ir para lá. Não sei dizer se foi nosso maior erro.

Esther percebeu o olhar abatido, e apertou suas mãos, tentando lhe dar forças.

— Se eles querem nosso trabalho, faremos isso — afirmou. — Quem sabe, depois da guerra, não nos libertem?

Aquela esperança parecia infantil, mas o que mais poderia restar as duas mulheres?

A conversa foi interrompida pela voz irritada de um soldado da Schutzstaffel. Um deles, falando francês, explanou aos prisioneiros.

— Iremos dividi-los conforme suas ocupações. Como os mais velhos e os doentes não tem condições de trabalhar, irão tomar um banho e descansar, os demais, serão conduzidos ao alojamento.

Tomar um banho e descansar era tudo que Esther queria, mas a urgência na voz de Sarah a preparou para algo além do previsto.

— Se eles perguntarem, diga que está bem. Se questionarem o que sabe fazer, diga que costura, que cozinha, que faz qualquer coisa. Se falarem algo específico, aceite. — Depois, sussurrou. — Não negue nada a eles, irão te matar.

Aquele alerta a desesperou. Ao ser chamada, tinha lágrimas nos olhos, mas forçou o corpo a caminhar com rapidez. As vistas nublaram pela fome e sede, mas seguiu os instintos.

— Nome?

— Esther — disse, um tanto fraca. Pigarreou, e completou, mais firme. — Esther Esme.

— O que fazia na França?

— Eu trabalhava com meu pai em sua sapataria. Também administrava o negócio, entendo de números. Depois de me casar, aprendi a cozinhar, costurar e a fazer diversos afazeres.

Um visto foi feito em sua ficha. Suas mãos tremiam. O que representava?

— Vá com o grupo para a triagem.

Triagem? Triagem de quê?

Olhou para trás, e viu o olhar em lágrimas de Sarah. Entendeu que ela era a próxima, e também não estava em melhores condições.

Enquanto andava na direção indicada, olhou para baixo, vendo a terra barrenta. Subitamente, lembrou-se das palavras da companheira de viagem, e retirou a aliança. Com o pé, cavoucou rapidamente um buraco no barro, olhando para trás, tentando perceber se algum oficial vira seu ato.

Jogou a aliança no pequeno buraco, e voltou a puxar o barro com os pés. Escondia ali, diante da sala de triagem, o lembrete de que sua vida era real.

Ao contrário do que pensavam os alemães, ela não era um animal e sim uma mulher que outrora fora feliz. Mais que isso, era o amor da vida do homem mais maravilhoso que ela já conhecera.

Caminhou em direção à um prédio de tijolos marrões, onde várias mulheres alemães gritavam e batiam nos rostos das prisioneiras, enquanto lhes mandavam tirar a roupa.

Esther tentou passar despercebida. Arrancou as vestes com rapidez, aceitando um vestido em tom cinza. Tão logo vestiu-se, foi puxada para uma cadeira, onde outra alemã, com uma navalha, começou a cortar seu cabelo.

Ela tentava não pensar, enquanto via as madeixas negras que Therron tanto amava caindo no chão, como uma oficial despedida da mulher que era ela.

Tossiu quando jogaram nela um pó contra piolhos, e depois foi entregue em suas mãos um lenço para cobrir a cabeça.

— Siga para o alojamento indicado pelo guarda — uma mulher avisou, em sua língua natal.

Ao longe, o sol começava a se pôr. Nem se deu conta, era o início do Sabbath.

 

A porta do carro negro abriu, saindo de lá um homem de vestes negras que ostentava um medalhão com a cruz de ferro.

— Minha honra chama-se lealdade — outro homem de vestes iguais o saudou.

— Heil Hitler — devolveu, com o semblante fechado.

O outro homem logo lhe entregou alguns documentos, os quais o jovem oficial da S.S observou com atenção.

— Mais uma leva de judeus da França — apontou. — Um pouco mais de treze mil.

— Treze? Esperávamos vinte e quatro — o recém-chegado reclamou.

Começou a caminhar para o prédio de administração quando seu olhar cruzou com uma judia que apertava o pé contra o chão.

Logo, notou algo brilhoso a cair no solo. O objeto foi escondido em seguida e ela rumou em direção à sala de triagem.

O comandante Kraus Fritz a seguiu com o olhar, até vê-la sumir e, então, aproximou-se do amontoado de terra.

Naquele instante, a roda do acaso começou a girar.

Não importavam-se as circunstâncias, o destino sempre se cumpria.

 

Capítulo 07


Kraus Fritz


A vida de delinquente de Kraus Fritz não se iniciou por eventualidade.

Na verdade, ela foi o conjunto de muitos fatores que começaram com a morte do pai, durante a Primeira Grande Guerra, a completa depravação da mãe, mulher de muitos amantes que não se importava em esconder do filho sua vida desgarrada, e o abandono, aos dez anos, entregue aos tios, a fim de que a genitora pudesse “aproveitar a vida”.

Sempre se sentiu um estorvo em casa, mas na casa dos tios, sua rejeição beirava a crueldade. Ouvia seguidamente que não passava de uma boca a mais para alimentar, e de que seu nascimento havia sido um erro.

Aos dezesseis anos saiu de casa, indo morar em cortiços, pagando o aluguel através de bicos na área da construção civil.

Aos dezenove passou a beber, aos vinte, já fumava, aos vinte e cinco já era conhecido por sua vida imprópria e sem regras — vida essa tão parecida com a da mãe — amante de mulheres de vida fácil, sedutor, devasso e imoral.

Provavelmente, não chegaria aos trinta não fosse à presença da gestapo em sua porta, certo domingo de manhã.

Sem delongas, levaram-no para a Chancelaria do Reich, causando imediato desconforto no jovem.

A vida política da Alemanha não importava para Kraus. Ele sequer ouvia a rádio, ou os discursos do Führer. Portanto, não entendia o porquê de estar ali.

Seus pensamentos foram logo respondidos pela entrada de Adolf Hitler. Ficou tão nervoso pela presença que sequer o saudou, como era de costume ao povo.

— Você é filho de Hans Fritz? — o líder indagou. — Fritz do 16º Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro? — completou, dando mais informações.

O jovem assentiu.

— Seu pai foi um grande homem, um grande alemão, um nacionalista convicto, alguém que me salvou muitas vezes na guerra. — Hitler explicou. — Não fosse por ele, talvez eu não tivesse sobrevivido... — murmurou. — Eu soube que você estava sozinho, vivendo de forma imprópria, e disse a mim mesmo que não poderia deixar o filho de um grande amigo em tal situação.

Adolf Hitler chamou alguém, à direita.

— Himmler — dirigiu-se a um homem de meia idade, de porte intelectual. — Leve o jovem, treine-o, faça-o útil ao Terceiro Reich. Transforme o jovem Kraus num orgulho a memória de seu pai.

Para qualquer pessoa, sair de uma vida de liberdade e ingressar num serviço como a tropa de proteção, cheia de regras e imposições, devia ser claustrofóbico. Para Kraus, foi a descoberta de um mundo novo, onde ele era respeitado, admirado, e amado.

Achou nos homens com quem dividia o uniforme, uma família. Dos olhares de repúdio dos familiares biológicos, ele passou a ser seguido com respeito pelos confraternos unidos pela política.

Não se levou muito tempo, e tornou-se um comandante.

Esteve na França, durante os festejos de ocupação. E foi lá que a vida deu-lhe outra guinada que acabou-lhe por roubar sua paz.

Numa pintura de um quadro feito por um artista de rua ele encontrou o olhar mais profundo e a beleza mais encantadora que já vira.

Incapaz de desviar seus olhos da obra de arte, caminhou em direção à imagem que lhe sugava, como se sua alma estivesse atrás de algo, e agora estava ali, diante dele, um lembrete de que a vida era mais que a guerra, e que ele era mais do que um nazista.

— Ela é linda... — murmurou, em francês, língua que havia aprendido na S.S, com má dicção, mas numa tentativa de simpatia ao artista.

Até porque queria saber de onde ele tirara a inspiração. Quem era a mulher retratada no quadro?

— Não negocio com nazistas.

Foi a resposta crua que recebeu.

Não se ofendeu. Os franceses eram um povo dominado e, como tais, reagiam. Logo, um soldado de seu regimento o chamou e ele deixou o jovem loiro pintor para trás.

Não esqueceu-se do quadro, contudo, mas quando retornou mais tarde, não mais encontrou o artista.

E, assim, quando em 1942 foi designado para Auschwitz I, já havia perdido as esperanças de um dia conhecer aquela personagem que ansiava.

Não esperava, é claro, que ela surgisse diante dele, com roupas de prisioneira, o olhar abatido e o desespero exalando pelos poros.

Rumou até ela, mas a mulher andava em direção ao alojamento. Não a seguiu, ali. Agachou-se diante do amontoado que ela fizera, e tirou de lá uma aliança de ouro.

Guardou-a no bolso.

As nuances da vida nunca paravam de surpreender.

 

Capítulo 08

 

Ódio


Esther adentrou um dos blocos, e encarou o amontoado de rostos que pareciam não vê-la. Era como se ela fosse parte de um sonho ruim, um fantasma a deslizar entre os “castelos”, beliches de três andares onde várias mulheres se amontoavam, tentando dividir um espaço para descansar do dia duro.

Sentou-se em um canto livre. As lágrimas que até então estavam controladas, derramaram-se pelo seu rosto. Em seguida, sentiu um abraço confortador, e percebeu ser Sarah, a estar no mesmo lugar que ela.

— Vamos sobreviver — a nova amiga afirmou.

Um risinho baixo surgiu do andar de cima, e logo um rosto cansado e esquelético as encarava.

— Primeiro dia? — indagou a outra.

— Sim — Sarah respondeu. — Primeiro dia.

— Então se preparem. Nem calçados confortáveis temos. O solado de madeira até parece bom para o frio, mas a verdade é que depois de uma caminhada, vão sentir a sola dos pés descolando-se e a dor será insuportável. Vocês não vão sobreviver. Nenhuma de nós irá. Torçam para que o fim de vocês chegue logo.

Esther encolheu-se mais contra a amiga, buscando amparo.


A detenta volveu para seu catre, deixando Sarah e Esther completamente aterrorizadas. Não era acostumada àquele sofrimento. O pai a preparou para uma vida de conforto, e Therron, apesar de pobre, cuidava de suas necessidades e lhe tratava com muito carinho.

Agora, tudo que se abria diante dela era um futuro sinistro, banhado em sangue e dor.

Repentinamente, o som de vozes se silenciou. Adiante, um oficial da S.S entrou no alojamento, seguido de um membro feminino dos guardas. Rumaram até ela, fazendo-a encolher-se de medo.

Será que haviam encontrado sua aliança?

— Pegue suas coisas — o homem disse, frio.

Temerosa, Esther o obedeceu. Pouco depois, carregando a mala, seguiu-o até a parte frontal da unidade. Entrou em um prédio, indo até o que seria uma residência. Entrou com o homem no apartamento quente que contrastava com as suas mãos geladas, o medo transparecendo em seu semblante.

— Você sabe cozinhar? — ele questionou, tão logo a guarda feminina sumiu.

Ela assentiu.

— E cuidar de uma casa?

Voltou a confirmar.

— Coloque suas coisas no porão, você será minha criada, a partir de agora.

Obviamente houve alívio em sua alma, mas ela lutou para nada transparecer. Até porque, aquele homem era um alemão, um nazista. O que ele realmente planejava para ela era totalmente desconhecido.

— Sou Kraus — ele se apresentou, ela nem entendia o motivo. Os alemães não costumavam achar que um judeu valeria um cumprimento. — Qual seu nome?

— Esther...

Ergueu os olhos, de repente, querendo desvendar o que havia por trás do olhar escuro do outro.

— Vá para o porão, Esther. Antes de o sol nascer, quero meu café pronto. Encontrará tudo na cozinha.

A mulher quase correu naquela direção. Fechou a porta atrás de si, observando um velho colchão no chão e um cobertor, luxo que nenhum outro prisioneiro tinha.

Como a muito não fazia, ajoelhou-se no chão, agradecendo a Deus por protegê-la e pedindo perdão por seu egoísmo, já que sabia que os demais judeus não tiveram a mesma sorte.


Por respeito a ela, Therron baniu a carne de porco do pequeno apartamento que dividiam. Assim sendo, mesmo desviada dos princípios que seguia, e da religião que amava, ela manteve seu regime alimentar conforme orientação do rabino.

Contudo, naquela cozinha, não havia escolhas. O wurst quase branco, feito com carne de porco e defumado com banha, era frito com cebolas, enquanto o cheiro invadia suas narinas, incomodando seu estômago ao ponto de um vômito formar-se em sua garganta.

Porém, ela manteve-se firme. Vivenciara tanta coisa desde que fora presa, que aquele alimento nem devia enojá-la.

Kraus, como havia se apresentado, surgiu, impecável em seu uniforme, e sentou-se à mesa.

Esther retirou a frigideira do fogão e foi com ela até o homem, colocando o alimento em seu prato.

O brezel quente, recém-saído do forno, estava ao lado, e ele o mordeu com vontade. Houve um pequeno gemido de satisfação, o que fez com que Esther suspirasse de alívio.

— Você já comeu hoje? — ele perguntou, o francês bastante carregado, enquanto observava o olhar dela para o prato.

A mulher negou.

— Você fala? — brincou, diante da mudez.

— Sim... Sim, senhor.

— Então me responda com palavras, por favor.

Era tão gentil que sequer parecia um membro da S.S.

— Sirva-se — apontou o refogado com a carne suína.

Esther sentiu a ânsia voltando fortemente.

— Obrigada, senhor, mas não é necessário.

Kraus encarou o prato, e depois voltou a ela. Então pareceu compreender.

— Judeus não comem porco — murmurou para si mesmo. — Esqueci-me completamente disso. — Apontou o pão. — Pegue um brezel.

Acanhada, ela pegou uma pequena poção e levou a boca. Fazia tanto tempo que não comia algo que não fosse a sopa de serragem, ou os pães velhos dados no trem, que o alimento pareceu estufá-la imediatamente.

— Você pode comer o que achar aqui — ele murmurou, levantando-se. — Apenas, nunca se retire do apartamento sem minha autorização. Entende isso?

Ela assentiu, mas logo falou:

— Sim, entendo.

O homem sorriu.

— Ótimo.

Mordeu mais um pedaço do pão, e depois rumou a saída.


O sargento da unidade ao sul de Paris blasfemou contra Jesus Cristo que resolvera nascer num dia tão frio, enquanto dirigia um Horch naquela estrada enlameada.

Por que diabos tinham que comemorar o Natal e por que diabos os comandantes o haviam designado a buscar mais vinho sobre aquela friagem?

Sabe o que faltava ali? Um bom e velho judeu inútil, para cumprir aquele tipo de obrigação que ninguém queria.

Um amigo de infância contara que as coisas estavam boas na Polônia, onde aqueles sub-humanos faziam o trabalho que ninguém queria.

Eram os judeus que arrumavam os esgotos, consertavam as estradas, lavravam o campo, e toda sorte de serviços pesados que os alemães conseguissem arrumar.

Escondendo um riso, lembrou-se das anedotas narradas pelo outro. Duas vezes na semana, depois do trabalho, eles eram levados para os banhos, onde um sabonete de areia era entregue para que limpassem a pele escamosa. Depois, sem toalhas, eram obrigados a correrem nus até o alojamento, onde as roupas os aguardavam.

Gargalhou ao imaginar um pênis circuncidado, encolhido de frio, a balançar contra o vento enquanto seu dono tremia perante a neve.

Os filhos da puta da gestapo deviam estar se divertindo pra caralho!

Subitamente, um solavanco. Não precisava ser um gênio para saber que o pneu estourara.

Parou o carro no acostamento, e saiu do veículo. Mesmo agasalhado, aquele vento gelado e úmido lhe fez doer os ossos.

Aproximou-se do pneu, quando notou uma série de pregos enrolados no mesmo, unidos por uma corda. Levou a mão à cinta, a procura da arma, quando sentiu um cano na nuca.

— Nem pense nisso — uma voz em francês lhe interrompeu.

Em seguida, foi empurrado contra o veículo. De soslaio, percebeu ser um homem loiro a lhe ameaçar. Uma mulher ruiva surgiu em seguida.

Ela aproximou-se e lhe retirou a arma. Depois, procurou por mais objetos nos seus bolsos. Seu dinheiro foi saqueado junto com um canivete e alguns documentos.

— Quero informação — o francês avisou, o tom calmo.

O sargento não era um homem corajoso, e definitivamente, não arriscaria a própria pele para manter qualquer segredo do Reich.

— De que tipo?

— Quando sairá o próximo comboio para a Polônia?

O alemão logo percebeu que a intenção do homem era sabotar uma leva de judeus. A maldita resistência estava, desde a ocupação, atrapalhando o árduo trabalho alemão de limpeza racial.

— Em janeiro — murmurou. — Dia 15.

A mulher aproximou-se do homem.

— Já temos a arma, dinheiro e informação. Vamos embora antes que alguém apareça na estrada.

O sargento suspirou de alívio quando viu o homem assentindo, contudo, em seguida, o som forte e estrondoso, curvou sua cabeça.

— Therron! — a mulher exclamou. — O que você fez?

O tiro havia sido na testa. Ironicamente, com o passar dos meses em treinamento, o antigo artista percebeu que seu dom não se resumia a pinceis.

— Vou tirar a roupa dele — avisou à Theresa.

A companheira de guerrilha pareceu nervosa, mas não o impediu. Visualizou o loiro arrancar o uniforme e deixar o homem nu. Em seguida, ele levou o corpo para cima do automóvel.

— O que planeja? — inquiriu.

— Alcance o canivete, por favor?

O olhar assombrado feminino não se desviou enquanto Therron Esme castrava o nazista e marcava a testa do homem com a suástica.

Quando tudo se resumia a sangue e bestialidade, ele limpou as mãos numa poça de água e se afastou. A mulher seguiu com ele .


Theresa Burnier alcançou um copo com uísque para o jovem companheiro de guerrilha. Sentado no chão, Therron observava o mapa da ferrovia, tentando traçar a melhor forma de sabotar as ordens nazistas.

— Precisaremos de meia dúzia de homens — murmurou a ela. — Talvez mais.

A mulher aproximou-se, o corpo próximo do dele.

— Jean acha que suas táticas são muito arriscadas.

— Jean tem medo de matá-los. Eu não.

— Nosso líder pensa em te mandar para a Alemanha na próxima leva de trabalhadores franceses — murmurou, havia tristeza em seu tom.

A boca bonita dela aproximou-se do homem, mas ele desviou-se e logo se pôs de pé.

— Não me deixará nem mesmo uma lembrança?

— Eu sou um homem casado — ele devolveu, irritado com a ladainha feminina.

Estavam em guerra! Em guerra! Não havia espaço para nenhum desejo carnal.

— Pode ser um homem viúvo, nesse momento — ela murmurou, não para irritá-lo, mas sim porque aquilo era a verdade.

— Mais um motivo para eu matar quantos nazistas conseguir.

Bebeu o uísque num único gole e largou o copo sobre a mesinha. Depois, afastou-se. A mente focada em destruir mais um plano nazista. Os meses que se seguiram a captura de Esther o transformaram em um monstro, despertando nele um ódio avassalador.

 

Capítulo 09

 

Sina


As crianças ciganas eram reconhecidas de longe, afinal de contas, ninguém sofria mais nos campos que os ciganos. E, nenhum dos ciganos era tão vítima quanto os pequenos.

Com o passar dos dias, Esther notou que eles sequer tinham um alojamento. Viviam em barracões, sem qualquer tipo de higiene, com seus excrementos espalhados pelo chão, quase à altura do tornozelo, vítimas de toda sorte de doenças, aquém até mesmo dos homossexuais.

Eram as crianças, com seus corpinhos em putrefação, mortos-vivos como personagens de livros góticos que Esther lia escondida, que apareciam próximo do horário de almoço, junto com as mulheres, uma vez na semana, para trazer sacos com mantimentos e reabastecer o estoque de Kraus.

Esther sentia tanta pena que sua ânsia era roubar aquela comida e dar as pessoas, mas sabia que era só prolongar o sofrimento.

A noite indagava a Deus porque não morriam logo. A cada dia, além da fome e da tortura, havia a extensa humilhação.

Mesmo assim, descobriu naquele povo uma fortaleza.

Era um contraste. Sua fraqueza diante da coragem cigana. Enquanto ela chorava pelos cantos, eles cantavam perante seus barracões, incentivando suas crianças famintas a dançar, a não esmorecer, a continuar a batalha pela vida.

E havia mais histórias: muitos deles, ao serem presos, enfrentavam pelotões intensamente armados munidos apenas com uma simples faca.

O mundo tinha tanto a aprender com os ciganos... Havia honra e bravura naquele povo.

Para ela, todavia, além do medo, existia um complemento. Kraus a tratava com uma estranha cordialidade, que a tornava a cada dia mais desconfiada e temerosa.

O que um nazista da S.S iria querer dela? Sabia que eles não tocavam nas mulheres, especialmente numa judia, a fim de estupro, mas... Por que aquele homem havia tirado ela dos campos e a mantinha para si, trancada no apartamento?

— Moça — uma das ciganas a arrancou do devaneio. — Os sacos de farinha estão na despensa.

— Obrigada — murmurou.

A mulher fez menção de sair, mas voltou-se. Seus olhos focaram-se em Esther e, por alguns segundos, a judia creu que a cigana lia sua alma.

— Que triste a sua sina... — a mulher murmurou. — Que triste cada uma das suas vidas... Em todas elas, viveu para encontrar quem ama, e depois o perdeu, afogando-se em dor.

As palavras remetiam muito aos medos de Therron e o olhar de Esther encheu-se de lágrimas.

— Ele vai morrer?

Sabia que não devia indagar aquilo. Deus proibia especulações com feiticeiros, mas ela precisava de um alento.

— Seu amor vai sobreviver à guerra, mas vai arruinar-se em sua própria alma. Morrer tem muitos significados. Às vezes é melhor morrer no corpo físico, que perder a compaixão e a misericórdia, sentimentos que nos torna humano. Às vezes é melhor morrer, mas ter a alma salva. Pior é respirar e estar vivo, mas morto por dentro.

O que aquilo expressava?

— Você vai sair do campo — a cigana afirmou, em seguida. — Mas, o campo nunca sairá de você. Seu futuro é tão triste que me faz chorar. Porém, tem sorte em uma coisa. Sempre terá seu irmão perto de ti.

— Sou filha única — Esther apontou para a mulher.

— Em carne? Sim, provavelmente. Mas, em alma, tem um gêmeo. Vocês já se conhecem. Se perderam, mas irão se reencontrar. Não agora, não ainda. Mas, quando tudo parecer escuro, ele irá surgir. E vai te ajudar a reencontrar seu amor. Poucas têm tanta ventura.

E depois afastou, deixando a mulher em prantos. Havia tantos motivos para chorar, mas ela nem mesmo sabia por que derramava aquelas lágrimas.

 

Com o passar das semanas, enfim, Esther teve autorização para sair do apartamento. Eram poucos minutos, apenas para lavar as roupas de cama, os uniformes, e o que precisava nos tanques que ficavam perto dos alojamentos.

Aqueles momentos, contudo, tornaram-se joias preciosas nos dias que vivia no campo de concentração.

Via Sarah ao longe, cada dia mais magra. Quando se cruzavam, discretamente, dava a ela um pedaço de pão que roubava e guardava embaixo das saias. Também sempre surrupiava um cigarro de Kraus, para dar as crianças, já que cigarro era uma preciosa moeda de troca no campo, incluindo comida extra.

Foi numa das suas andanças que ela descobriu que havia um canto em Auschwitz que parecia um tabu até mesmo para as vítimas da brutalidade nazista.

Jovens de diversas nacionalidades, quase sempre comunistas, eram enviadas a uma casa, onde permaneciam como incentivo para os homens que trabalhavam, escravas sexuais dos desejos perniciosos de quem já havia perdido tudo, inclusive seu senso moral.

— O que melhor trabalhar hoje terá quinze minutos com uma das moças — prometeu um dos guardas, aos berros, fazendo Esther tremer.

Das janelas, era possível ver o rosto sofrido das moças usadas como um simples buraco onde os homens enfiavam seus paus, desmerecidas por conta de algo que elas sequer eram culpadas.

Ah, se Esther tivesse algum poder. Mas, ser uma prisioneira em Auschwitz era acima de qualquer coisa a certeza de uma vida efêmera.

Ao se distanciar da casa, ela manteve o semblante impassível. Aquela dor, não poderia compartilhar.

Subitamente, contudo, estancou. Do outro lado de uma cerca, uns vinte quilos mais magro, de roupas sujas e de olhar derrotado ela viu Frederic Wiesel, seu pai.


Os membros da S.S, Bauer e Becker, podiam ser considerados irmãos.

Parecidos, ambos tinham a pele pálida, os olhos verdes, a mesma imagem rígida e o mesmo vínculo nacionalista.

Nascidos na mesma cidade, alistaram-se juntos na juventude Hitlerista, onde passavam os dias primaveris quebrando vidraças das lojas de judeus e fazendo pequenos afazeres aos bons alemães.

Mantiveram ardente o sonho de entrar para a Schutzstaffel, mas como toda tropa de elite, a enorme lista de exigências fazia com que a cada ano que passava seus desejos mais se distanciarem.

Foi o avanço da guerra que conseguiu a façanha, porém. As muitas requisições de ingresso foram abandonadas e, enfim, a dupla conseguiu ir para Auschwitz.

Agora, sentados diante do comandante Kraus Fritz, eles não escondiam a satisfação de enfim trabalhar pelo avanço do Reich.

Subitamente, uma prisioneira ingressou na sala. Trazia nas mãos uma bandeja de chá, e aproximou-se, a servir os alemães.

— Uma porca judia tocando em nossas xícaras? — Bauer comentou, em voz alta, sem constrangimento.

Ao contrário do amigo, Becker era mais discreto. Volveu o olhar para o comandante Kraus e permaneceu em silêncio, enquanto via o homem fuzilar Bauer com o olhar.

— Saía, Esther — Kraus ordenou a mulher, que rapidamente sumiu da sala. Depois, encarou os jovens. — Antigamente havia uma série de reivindicações para se ingressar na Schutzstaffel. A importância disso era ter homens realmente preparados e superiores na elite da polícia do nosso amado líder. Agora, pelo jeito, aceitam qualquer um.

Bauer não escondeu a raiva de Kraus perante as palavras. Jamais haviam se visto antes daquele momento, mas bastou aquele curto espaço no tempo para torná-los inimigos.

— Devia ter uma alemã a lhe servir.

— Devia saber que não se dá conselhos a um comandante — devolveu. — Pegue seus papeis e vão para os alojamentos. Vocês começam seu trabalho amanhã.

Tão logo os homens saíram do apartamento, Kraus foi à cozinha, onde uma sempre calada Esther fazia seu trabalho abstendo-se de qualquer palavra.

Aproximou-se por trás dela, percebendo o corpo feminino ficando rígido pelo medo.

Contra a vontade, esmoreceu diante da fragilidade.

Era um caminho sem volta. Ele não mais conseguia desviar o olhar dela, e aquilo poderia ser sua perdição.

Repentinamente, não se importou.

 

Capítulo 10

 

O pão.


O comandante Kraus era responsável pela área administrativa do campo. Esther sabia que, adiante, logo após os prédios que compunham a administração e os alojamentos onde os prisioneiros em melhores condições de saúde trabalhavam, havia dois campos complementares, onde a maldade era apenas um dos pontos a destruir as pessoas.

Falava-se em banhos dos quais ninguém voltava. Em prisões tão estreitas que a pessoa morria de pé, pois sequer conseguia se sentar. Diziam-se que o tifo e a disenteria estavam destruindo as vidas, que um médico chamado de anjo da morte ministrava as mais temíveis experiências e que algumas guardas usavam crianças para alimentar seus cães.

Mas, ali... Ali, perto de Kraus, ela sentia-se segura. Mesmo assim, não conseguia esquecer o olhar do pai, do outro lado da cerca, como se o encontro fosse tortuoso para ele, como se esperasse que sua rebenta estivesse a salvo, e não vivenciando o inferno.

A magreza dele trouxe-lhe lágrimas nos olhos. Frederic Wiesel era o tipo de homem que levantava cedo e dormia tarde a fim de sempre manter a família. Nunca faltou comida em sua casa, nem conforto entre suas paredes.

Como devia estar a mãe? A sempre tão frágil Margareth aguentaria aquela vida desgraçada?

Naquela manhã, Esther lavaria as roupas de cama de Kraus. Tão logo o comandante saiu do quarto e foi para a cozinha, ela entrou nos aposentos, retirando os lençóis de linho e os colocando em grandes cestos.

Voltou à cozinha a fim de avisar que estaria indo lavar as roupas. Enquanto Kraus volvia seu olhar para o jornal, ela levou a mão num dos pães e o colocou no cesto de roupa.

Soube no instante que o olhar de Kraus voltou-se para ela, que ele havia reparado em seu gesto, mas o homem não disse nada, simplesmente voltou a beber o café.

Então, Esther saiu.

O coração aos saltos, o medo irracional que quase a fazia desfalecer, por fim acalmou. Caminhou em direção aos tanques de concreto, e colocou as roupas dentro da água com sabão.

Aguardou o quanto pôde. Estava prestes a finalizar a tarefa, quando percebeu um grupo de homens caminhando em direção à estrada.

Seguiam pelo corredor cercado de arame. As roupas sujas e o olhar abatido tornava-os muito parecidos, mas ela reconheceu o pai.

Mesmo diante do medo, ela caminhou naquela direção. Ao longe, no início da fila, um dos guardas armados guiava os prisioneiros, mas Frederic ficou para trás, e conseguiu se aproximar da cerca.

— Pai — ela queria abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem. Mas, tudo que conseguia, além de chorar, foi entregar a ele um pedaço do pão que roubara.

Ele aceitou o alimento e o guardou rapidamente dentro das calças.

— Pai, e a mãe?

O olhar de desespero tornou-se paternal. Era como se somar a dor da filha pela prisão a morte da mãe fosse algo que ele não quisesse fazer.

— Ela já chegou doente, Esther.

— Eles a levaram as câmaras?

O homem assentiu. Foi naquele momento que Esther soube que os boatos eram reais.

— E seu marido? Por que ele não fugiu contigo?

— Therron tentou, mas falhou. Não foi culpa dele...

O pai parecia entender.

— Os quatro anos que vivemos longe mesmo estando tão perto, Esther... Jamais me perdoarei por não ter aproveitado meus dias de liberdade ao seu lado, filha...

Um dos guardas percebeu que conversavam e gritou. Eles se distanciaram.

— Pai, trarei comida, eu...

O homem se afastou, não mais ouvindo suas palavras.

Esther voltou ao tanque de roupas. As águas cobertas de espuma juntaram-se as lágrimas femininas que cascateavam pelo rosto e derramavam-se nos tecidos nos quais o comandante Kraus dormia.

 

Esther havia dado o pão a um homem velho.

Kraus, escondido entre os prédios, imaginou que vínculo tinham. Conheciam-se de onde? Seria ele um parente? Talvez o pai dela?

Apertou a aliança no bolso, pensando no dono do coração da mulher. Onde estava o homem que a fez arriscar a vida para esconder seu vínculo amoroso? Também no campo, ou já morto?

Ou... Quem sabe... Teria o marido a abandonado quando foi presa. Isso era provável, muitos judeus foram deixados pelos cônjuges quando a gestapo bateu em suas portas.

Aliás, sabia ele, muitos prisioneiros dali haviam sido delatados exatamente por aqueles que lhes juraram amor eterno.

Deixou a aliança no bolso e voltou para o apartamento. Na sua mesa de escritório, começou a analisar a papelada sobre as execuções e a quantidade de gás usado num dos últimos banhos.

Números e mais números, quantidades que não lhe causavam nenhuma comoção ou sentimento. Era simplesmente trabalho. E um trabalho que ele faria com toda honra e dignidade, em nome de um mundo melhor, onde Adolf Hitler seria o porta-voz de esperança.

Ouviu o som de passos e soube que Esther havia retornado. Ergueu-se e caminhou até a cozinha, vendo-a a lavar a louça de seu café.

Um leve tremor nos ombros denunciou o choro, e ele se aproximou. Puxou seu braço e encarou seu semblante em desespero. Guiou a mão até sua face, querendo limpar as lágrimas, quando ela o empurrou, esbofeteando-o.

Naquele instante o tempo parou.

Esther sabia que, no momento que se defendeu, Kraus iria puni-la. Ele era um membro da S.S e ela era apenas uma judia. Seu ato impensado, provavelmente, a condenaria a morte.

Porém, dando dois passos para trás, ele simplesmente recuou. Depois, deixou-a sozinha.

A mulher caiu de joelhos no chão.

 

Capítulo 11

 

Destruição


O comandante voltou ao seu apartamento quando a noite já se fazia há muitas horas. Trazia nas mãos uma garrafa de rum, e nos lábios um cigarro aceso, como se aquela regalia fosse sanar qualquer ato de represaria.

Esther o aguardou na sala. Até porque não havia aonde se esconder. Estava presa ali, e quanto antes acabasse sua agonia, melhor. Preferia a morte, a eterna espera.

Contudo, Kraus a observou com o semblante impassível. Bebeu um gole da garrafa e depois estendeu a ela.

A judia o encarava sem saber exatamente o que aquilo significava.

— Eu quero que beba — ele explicou, naquele francês forçado que só ele tinha.

— Não quero.

— Não estou pedindo.

Ela segurou a garrafa. Depois, bebeu um gole, sentindo o líquido queimar sua garganta.

— Você sabe o que eu faria com qualquer prisioneiro que erguesse a mão para mim, Esther? — indagou, aproximando-se como uma fera ferida, causando um frenesi intenso na mulher. — Eu poderia facilmente quebrar seu crânio com minhas mãos. — Levou a mão até sua face, contudo, não para agressão e sim para um carinho.

— Então me mate — o sussurro feminino o arrepiou. — Me mate como matou minha mãe...

— Sua mãe?

— Nas câmaras — explicou-se. — Minha mãe morreu sufocada pelos atos dos homens que comanda.

Até aquele instante, o amontoado de corpos retirados dos banheiros e queimados nos poços eram apenas números a serem contabilizados pelo Reich. Todavia, agora, era uma mãe, uma pessoa real, alguém que havia colocado a mulher diante dele no mundo, a mesma mulher que ele não conseguia machucar, nem se afastar.

— Você está me enlouquecendo, Esther — o murmuro foi dito baixo, contra os lábios, mas sem contato. — E por quê? Sequer tenho vontade de fodê-la. Não é paixão, nem desejo. O que diabos me guia até você, me enfeitiça ao ponto de eu mantê-la aqui, protegida, a salvo, e me culpar por cumprir meu dever civil de limpeza racial?

A boca dele desviou-se de seus lábios e beijou sua bochecha. Depois disso Kraus afastou-se. Naquela semana, evitaram falar um com o outro.

 

O ofício designado de Berlim ardeu em seus dedos. A solicitação para comparecer até Rudolf Höss, o comandante chefe do campo, tinha um motivo, apesar de não estar explícito nas linhas.

Alguém do campo havia denunciado sua fervorosa devoção à judia para a liderança da S.S. Quem? Kraus poderia jurar ser Bauer!

De qualquer maneira, o maldito iria pagar caro quando retornasse. Conhecia Höss o suficiente para ter a confiança do homem. Ele não havia chegado ao posto de comandante por privilégios, e sim por trabalho duro e princípios angariados em sua alma.

Kraus Fritz havia provado sua lealdade a Hitler muitas vezes. Chegava a hora de o Reich demonstrar que confiava nele.


A ordem dada a Esther era de que não saísse do apartamento de Kraus para nada, nem mesmo para lavar a roupa. Simplesmente, devia ficar ali, a limpar e cuidar de suas coisas, enquanto o comandante estivesse ausente.

Contudo, quatro dias após a partida de Kraus, a porta abriu-se de forma obtusa e Bauer, o soldado que a encarou com nítido nojo no dia de sua chegada, surgiu perante ela, possesso, como se fosse um dever punir aquela vadia judia por existir.

— Você vem comigo — ele gritou.

Não pediu, nem falou. Sua voz soou aos berros, como se ela fosse surda, como se fosse louca, como se não merecesse a mínima consideração.

Começou a tremer, antevendo o que seria. A câmara? Talvez voltar ao alojamento? Quem sabe, enviada a outro campo?

Já se fazia tanto tempo que ela estava em Auschwitz que havia perdido a noção dos dias. Como não tinha contato com os demais prisioneiros, não sabia nada sobre transferências, e aquilo a alarmou.

Ali, podia ver o pai, ao menos uma vez na semana. Se a transferissem, quando poderia vê-lo novamente?

— Devo levar minhas coisas? — perguntou, baixo.

— Não.

A resposta crua fê-la estremecer.

Se não era uma transferência, era a câmara. A morte agoniante, o amontoado de gente dividindo um cubículo enquanto o oxigênio faltava, corpos um sobre outros, no desespero de sobreviver ao inferno.

“Livra-me na tua justiça, e faze-me escapar; inclina os teus ouvidos para mim, e salva-me ”.

Com o salmo 71 na mente, ela seguiu Bauer. A terra barrenta parecia cravar em seus pés de sapatos gastos e velhos. A garganta secou, as mãos tremeram, o coração em tal agonia mal conseguia mantê-la em dignidade.

Subitamente, pararam. Só então Esther voltou o olhar para o lado.

— Não...

Não era a câmara. Era pior. O prostíbulo de Auschwitz erguia-se diante dela, como se, subitamente, seu maior medo desde a prisão, fosse declarado.

— Entre, sua puta — Bauer a estapeou, puxando-a pelos cabelos, até o local.

— Senhor! — ela exclamou. — Senhor, mate-me, por favor... Mate-me — implorou.

Bauer riu do pedido. O nazista não considerou, contudo, que não era dirigido a ele. Esther falava com o Deus que regia os céus. Apenas não sabia mais se esse Deus ainda inclinava seus ouvidos aos judeus.

 

Jean encarou o jovem francês com o olhar carregado de simbolismos.

— Therron — o chamou. — Eu sei que você está zangado...

— Zangado? Você me prometeu! Faz mais de um ano que estou na Resistência, matei mais nazistas que o fronte inteiro da resistência juntos, e você irá enviar Peter a Alemanha?

— Exatamente por isso — Jean afirmou. — Nós temos um documento para colocar um informante dentro de um grupo fechado de nazistas, admiradores e amantes de membros da S.S. Queremos alguém frio, que consiga nos passar informações sem perder a cabeça.

— Eu aceitei ajudar a Resistência por causa dessas passagens! — Therron gritou.

Naquele local isolado, uma fazenda perto de Paris, Jean notou que as coisas poderiam facilmente sair do controle.

— Therron, seu trabalho é admirável...

— Você me fez lutar aqui, enquanto minha esposa foi mandada a Polônia. Fez-me crer que eu conseguiria resgatá-la.

— E também lhe avisei que nossa missão é mais importante que seu amor por uma judia.

Silêncio. Therron parecia remoer as palavras, como se elas repassassem em sua mente, fazendo-o captar a essência de cada letra. A Resistência era uma luta política, não por pessoas. Claramente, pouco importava o que ocorriam aos judeus.

— Onde estão os documentos?

— Estão guardados comigo — respondeu, calmo, tentando ser amigável. — Os próximos documentos que conseguirmos serão seus, eu prometo.

Um estrondo ecoou pela casa isolada. A cabeça de Jean pendeu para trás, enquanto a fumaça saia da arma de Therron.

Ele mirou na testa e acertou exatamente onde queria. Depois, aproximou-se do corpo do líder, e passou a buscar por papeis em seus bolsos.

Nada.

Começou a procurar nas gavetas, quando achou um envelope.

“Rolf Maik.”

Aquele nome alemão escrito sobre um envelope pardo fê-lo sorrir. Abriu-o e encontrou a identidade, as passagens e toda sorte de documentação que precisava. Até mesmo as chaves de um pequeno apartamento de Berlim, e sua localização.

Durante seu treinamento, aprendeu um pouco de alemão, Esforçou-se mais que os outros para conseguir se infiltrar na região ocupada nazista. Agora, estava a um passo de recuperar a esposa.

Voltou-se para o cadáver de Jean e o observou atentamente.

Qualquer um que se colocasse em seu caminho em direção à Esther teria o mesmo fim.

 


O quarto tinha cheiro de sabão. Um cubículo de menos de dois metros, com uma janela ao fundo, uma cama de solteiro com um colchão gasto por cima, lençóis floreados dando ares de feminilidade, e um pequeno vaso de flores murchas que não conseguiam deixar o ambiente menos claustrofóbico.

Esther sentou-se na cama, as pernas bambas, antecedendo o que viria. A noite já havia caído há algum tempo e ela ouvia os passos dos homens e o choro baixo feminino vindo de alguns quartos.

Cada passo que se aproximava de sua porta a deixava mais apreensiva. Contudo, até aquele momento, ninguém viera até ela.

Pensou em Therron e no amor que nutria pelo marido. Era nele que seus pensamentos se firmavam quando abria os olhos de manhã, ou quando os fechava, à noite, para dormir. Therron estava sendo sua força; nos poucos momentos em que queria sobreviver, era por ele, mesmo não sabendo mais se o encontraria quando voltasse... Se voltasse.

Como a guerra estaria indo? A França conseguira aliados? Ou Hitler expandia seu poder além de qualquer limite?

Viver sem a esperança do amanhã era pior que a certeza do fim. E a cada dia que passava naquele lugar, Esther sentia-se mais fraca.

Encolheu-se na cama, as costas escoradas na parede, orando a Deus que nenhum homem viesse e que guarda Bauer só quisesse amedrontá-la. Porém, tão logo terminou essas orações, um homem abriu a porta.

— Você tem vinte minutos — uma das guardas anunciou, fechando a porta atrás dele.

O olhar de Esther arregalou-se diante do rosto conhecido. Era Josef, seu antigo noivo. O que ele fazia ali?

— Josef... — murmurou. — Você...

— Judeus não tem autorização para vir aqui, mas como sou líder do meu alojamento, Bauer me abriu uma exceção.

A voz dele trazia um rancor palpável.

— Josef...

— Você me abandonou no altar, humilhou-me perante todos os meus... Mesquinha, egoísta, destruiu sua própria família, trouxe vergonha a seu pai, e tudo a troco de quê? De um pintor de bosta, de rua, um ninguém, um pobretão? Eu te ofereci os céus, e você aceitou a miséria vinda dele.

O olhar de Esther esmoreceu. Ela levantou-se, ficando de fronte ao homem.

— Não vou me desculpar por seguir meu coração, mas peço desculpas por tê-lo magoado — ela disse, convicta. — Contudo, de que adianta remoer o passado, Josef? Nosso destino estava traçado para esse campo. Qualquer que fosse nosso pecado, aqui nós pagamos.

Ele assentiu, como se concordasse. Repentinamente, contudo, retirou o casaco. O olhar dela voltou a ficar temeroso, conforme as roupas masculinas iam sendo arrancadas.

— O que está fazendo? — questionou.

— Tenho vinte minutos — ele a lembrou. — Você me deixou para se deitar com um pobretão, e agora se acosta com um comandante nazista, que deve ter enjoado de ti, e te enfiado aqui depois de tê-la usado bastante.

— Está enganado.

— Pouco importa — A empurrou contra a cama. Esther deu um grito mudo, enquanto sentia o corpo do homem se pressionando contra o seu. — Você me deve isso.

Ela berrou por socorro. Sua boca foi coberta pelas mãos calejadas. Em seguida, sua saia erguida a altura dos quadris. As lágrimas femininas caíram sobre as mãos de Josef, mas ele não a soltou.

Para ele, Esther não passava de uma vadia e, como tal, merecia ser fodida.

Enfiou-se nela com brutalidade, arrancando um gemido de dor. Ela tentava lutar desesperadamente, e aquilo o irritou.

Um soco. Dois. O sangue começou a sair em abundância do nariz arrebitado, mas ela ainda tinha forças para reagir.

Dessa forma, o homem a soltou um pouco, apenas o suficiente para bater a cabeça dela contra a parede.

Quando a percebeu desacordada, fez o que quis.

E o que queria não manchou apenas a mulher. Acabou por destruir o resto de hombridade que havia em si.

 

 

Frau Herna era uma formosa alemã que adorava uniformes. Havia sido amante de vários homens da S.S, mas agora, já tendo passado pelas mãos de muitos deles, ficara marcada pelo desinteresse masculino.

Os homens eram assim. Não gostavam muito do fácil.

Contudo, não foi por solidão que ela deu conversa a um jovem loiro de olhos intensamente azuis que a observou atentamente durante toda a noite, naquele bar no Sul da Polônia.

O homem era muito bonito. Bonito ao ponto de tirar dela o ar. Tinha sotaque, havia dito que nasceu na França, mas seu pai era alemão. Depois que Hitler assumiu o poder, percebera que era hora de voltar para o Reich.

— E o que você faz? — ela inquiriu, interessada.

Ele levou uma caneca de cerveja preta aos lábios. Bebeu um longo gole, antes de devolvê-la ao balcão.

— Eu sou um pintor.

— Um artista?

— Rolf Maik — apresentou-se. — A seu dispor.

— Um artista... — ela repetiu, num tom sedutor. — Pinta paisagens?

— Prefiro mulheres nuas.

O riso feminino invadiu o ambiente.

— Me pintaria? — indagou, fazendo uma pose sedutora.

— Seria uma grande honra.

Duas horas depois, eles estavam em um quarto vagabundo de hotel. Herna nem pestanejou em tirar a roupa para um homem que havia conhecido há poucas horas.

O pintor trazia consigo um papel grande e um lápis, e sentou-se perto da cama, admirando as formas generosas.

— Seu namorado ou marido não ficará zangado por tal informalidade? — inquiriu, antevendo a resposta.

Rolf ou, como era seu nome real, Therron, não havia se aproximado daquela mulher ao acaso. Na cidade há alguns dias, descobriu que ela fora amante de um comandante de Auschwitz. Muito provavelmente conseguiria informações preciosas de como se aproximar daqueles homens através da mulher.

— Meu amante me largou depois que se encantou por uma judia — ela apontou, sem constrangimento, enquanto erguia os braços, levantando os seios. — Você crê nisso? Deixou-me por causa de uma porca judia, uma cadela sem formas, magra, uma peste que Hitler faz muito bem em limpar do mundo.

O homem permaneceu em silêncio. Apenas sorriu para ela, como se a incentivasse a continuar.

— Qual o nome dele?

— Fritz. Kraus Fritz.

Bingo! Era o comandante de Auschwitz I. Era exatamente o homem que ele precisava se aproximar.

— Quem sabe vocês ainda não possam voltar...

— Voltar? Ele chamou o nome dela enquanto dormia na minha cama — disse, desaforada. — Esther, uma francesa — apontou. — Jamais me esquecerei de tamanha afronta. Depois disso, nunca mais o vi.

Os papeis caíram da mão de Therron. Algo em seu âmago explodiu. Havia uma dubiedade de sentimentos. A Esther citada seria a sua mulher? Ela estava viva? Mas, viva para ser de um nazista?

Outro homem a tocava? Afundava-se no corpo que era dele?

Levantou-se, quase sem sentir as pernas.

— Aonde você vai? — ela questionou.

Não houve retorno.

Therron a cada dia submergia mais no ódio. Agora, outro sentimento fazia companhia à raiva. Era o ciúme.


Foi relativamente fácil livrar-se das indagações de Rudolf Höss. Conhecia o homem desde que entrara para a S.S, e sabia que havia mais segredos entre eles do que supunham um novato como Bauer.

“ Lembra-se de como estávamos juntos quando descobrimos que alguns membros da S.S seguiam os passos de Röhm? ”, sua pergunta remetia a vivência ao lado do outro. “ Nós percebemos que alguns arianos, alguns puros, praticavam coito como animais, seguindo ideias imorais, homens com homens, e nós livramos o mundo de tais aberrações sem levar nada a público. Compartilhamos uma amizade e um segredo, e você me ofende quando questiona minha decisão de manter uma judia como empregada. Sabe muito bem que eu jamais misturaria meu sangue com uma sub-humana ”.

O comandante chefe assentiu, diante dele. Em seguida veio um pedido de desculpas e a dispensa.

Naquela manhã, ao retornar para Auschwitz, Kraus trazia consigo a certeza de que ele não deixaria Bauer viver mais que alguns dias.

Claro, seria discreto. Mas, daria um jeito de livrar-se do homem antes que ele colocasse sua preferência por Esther em perigo.

Entrou no apartamento e encontrou o silêncio. O pânico tomou conta de si, antevendo a desgraça.

Se a tivessem levado as câmaras... Se a tivessem matado...

Desceu as escadas com relativa calma. O semblante frio tentando não demonstrar nada. Interpretar um homem calculista era o que salvaria a sua pele, e a da judia, se ainda estivesse viva.

— Ei, guarda! — chamou um dos homens. — Onde está minha criada?


Era quase impossível reconhecê-la. O rosto inchado pelas agressões, as manchas roxas, a boca machucada... Ela sequer conseguiu ficar em pé diante dele.

Resvalou no chão, mas Kraus não a ajudou. Atrás dele, uma das guardas lhe bateu com uma vara, fazendo-a se erguer, apesar da dificuldade.

Kraus apertou o pulso, contendo uma gana tremenda.

Ele sabia quem havia sido responsável pela ida de Esther ao prostíbulo. Nitidamente, a raiva de Bauer pelos judeus ultrapassava todos os limites. Vendo que aquela judia, em especial, era protegida pelo comandante, ele não pestanejou em fazê-lo sair do campo para poder atacá-la.

— Você voltará para meu apartamento — disse, frio, como se não se doesse pelo sofrimento diante dele. — Quero que tome um banho e arrume meu café da manhã.

Enquanto ela o seguia silenciosa pelo campo, caminhando em passos lentos, arrastados, emitindo pequenos gemidos de dor pelo tempo que fora abusada e estuprada, ele tentou manter a calma.

Vingança, bem sabia, era algo a se praticar com discreta neutralidade. Não podia colocar nada a perder.

Momentos depois, viu Esther olhar em direção a um grupo de homens. Apesar de saber que não podia permiti-la ir até eles, ele não a conteve. Ficou apenas a aguardá-la.

Logo, ela retornava, o choro escapando pela garganta, um sofrimento tão expressado em seu semblante que o condoeu.

— Meu pai morreu — ela contou. — Mataram meu pai porque ele estava fraco demais para trabalhar.

Depois, ela seguiu em direção ao apartamento. Kraus ficou para trás.

Pela primeira vez na vida, questionava seus princípios e o que o fizera a se tornar um nazista.

 


Capítulo 12

 

Olhar


A cidade de Oswiecim estava relativamente gelada naquele dia de outono, final de 1944.

A Europa estava em guerra, a Alemanha as vésperas de uma derrota vergonhosa, mas ali, aos arredores de Auschwitz, os trens continuavam a trazer trabalhadores sem parar, a queimar humanos em seus fornos, e a agir como se a limpeza racial fosse mais importante que a própria luta armada, em si.

Próximo de uma mata fechada, Therron encarou o complexo. Era uma estrutura gigantesca, com a única finalidade de explorar e matar. Arrepiou-se ao pensar em Esther, ali... Talvez em quê estado.

Ao longe era possível ver alguns prisioneiros com seus uniformes sujos e de listas a cavar buracos. Houveram tiros, e alguns corpos caíram no chão. Contudo, os homens nem se mexeram diante dos assassinatos. Parecia lugar comum. Therron abriu a boca, pasmo, percebendo que a grande finalidade nazista era tirar a humanidade daquelas pessoas.

E estavam conseguindo.

O cheiro de carne assada era intenso, e ele cobriu o nariz.

Como faria para se aproximar do campo? Talvez conseguisse se tornar amigo de algum guarda? Oferecer seus serviços ao Reich? Se chegasse próximo, poderia tentar resgatar Esther.

Repentinamente, viu uma figura ao longe, caminhando com um cesto de roupas. Tudo nela era cinza e apagado, o vestido listrado caindo como um lençol sobre o corpo raquítico, a cabeça coberta com um lenço... Contudo, o que seus olhos não conseguiam decifrar, seu coração e sua alma reconheceram.

Era ela... Era Esther! Ali, há uns duzentos metros dele... A mulher que ele amava mais que tudo, a mulher que o fez tornar-se o inverso do homem que outrora foi.

Por ela... Por ela estava ali. Tudo que fazia, era por ela.

— Eu vou te salvar, meu amor... eu darei um jeito — prometeu.

 

As manchas roxas estavam sumindo rapidamente. À noite, quando todos iam dormir e as luzes do prédio dos guardas se apagavam, Kraus surgia em seu quarto, com um unguento nas mãos e uma generosidade latente nas ações.

— Eu não sabia que seu pai seria morto — lhe disse, certa vez. — Nem sua mãe. Eu peço desculpas.

— Por que se importa?

A questão dela o calou. Ele sinceramente não sabia o que havia entre eles, mas reconhecia que era mais forte do que tudo, até mesmo que a razão que o nacionalismo havia trazido para a sua existência.

— O partido me salvou de uma vida terrível. Antes de entrar para a S.S, eu era um homem de vícios e sem futuro. Hoje...

— Hoje é um assassino — ela devolveu.

Mais uma verdade. Mais silêncio. Depois, ele saiu, deixando-a com seus próprios demônios. O homem também tinha os seus.

Agora, enquanto carregava o cesto, Esther não encarava os companheiros de prisão. Alguns dos homens, especialmente os não judeus, a forçaram. Ela nem sabia quantos. O tempo dos prisioneiros com ela fora dividido entre vários.

Um saía de cima, e outro subia. Normalmente, apagavam-na assim que ela tentasse lutar. Depois, no dia seguinte, acordava com sangue nas pernas, escorrendo, e o rosto completamente destruído pelas agressões.

Mas, a marca na alma era pior. Um dia uma cigana dissera que o campo jamais sairia dela. Era verdade. Enquanto cruzava pelos homens, ela sentiu nojo deles. Não mais se comoveu com suas mortes. Ao contrário, queria que todos morressem.

Subitamente, estancou. Não sabia quantos homens haviam-na estuprado depois de Josef, mas com certeza não tinha sido todos. A maioria ali mal se aguentava em pé. Portanto, aquele ódio era infundado, e ela notou que abominar seus próprios companheiros de fé seria o ponto final de sua vida.

Mais que isso, seria cumprir o propósito nazista de jogá-los um contra o outro.

Largou o cesto ao lado do tanque, e voltou os olhos para os demais prisioneiros.

Disse a si mesma para ter piedade. Implorou que Deus a ajudasse a perdoar, numa oração muda. Ela sabia que sua carne estava condenada naquele lugar, mas ainda haveria esperança para sua alma.

De repente, adiante, atrás das cercas de arame farpado, ela notou uma figura loira, a observá-la.

Lágrimas deslizaram pelo rosto cansado e sofrido. Lágrimas que pareciam mais que dor. Era um agradecimento.

Não importava mais seus sentimentos e sua dor. Therron estava ali. Ela teria aquela última imagem a confortá-la antes do fim.

 

Kraus Fritz ordenou aos guardas que tirassem seus uniformes e fossem fazer uma corrida pelo campo. Era uma punição a todos, por sua viagem não planejada e pelo que havia ocorrido a Esther.

Todos sabiam, mas ninguém teceu comentários.

Enquanto Bauer e os demais marchavam apenas de camisas de baixo, ele chegou-se ao coldre do soldado, que estava perto do uniforme. Tirou as balas de seu revólver e depois devolveu a arma ao seu lugar.

Mais tarde, voltou ao escritório e começou a ler informações sobre o prostíbulo. Uniu dados preciosos e sorriu quando Bauer entrou no seu escritório, já uniformizado, após cumprir a punição.

— O senhor mandou me chamar, comandante?

Assentiu, erguendo-se.

— Siga-me.

A ordem foi respeitada sem nenhum adicional.

Becker cruzou por eles e os seguiu com os olhos, até vê-los subindo em um automóvel Volkswagen Kübelwagen camuflado.

Desapareceram em direção a Auschwitz II. Aquela visão o arrepiou.


— Osman Tabor — Kraus leu o papel diante de um homem destruído pela dor. — Turco comunista — murmurou. — Um lixo.

O sorriso de Bauer denotava que concordava com o comandante pela primeira vez.

— Pegue uma pá — ordenou ao prisioneiro. — Iremos cavar um buraco.

Normalmente quando acontecia isso, era um jogo cruel entre os guardas. Bauer imaginou que o homem iria cavar sua própria sepultura antes de ser o alvo de uma competição de tiro.

Entendeu aquilo como uma tentativa de aproximação de Kraus. O comandante devia ter percebido que fora ele que o delatara, e tentava agora firmar paz entre eles.

Aceitou aquilo de bom grado. Até porque, matar aqueles turcos doentes não lhe faria mal nenhum.

Seguiram com o homem até um campo fechado, a caminho do terceiro complexo. O lugar estava isolado, muitas árvores a cercá-los. O ambiente perfeito para se divertir.

Kraus desceu primeiro do veículo. Depois, tirou a arma da cintura e apontou para o homem. Bauer veio em seguida, um sorriso mal contido.

— Osman Tabor — Kraus o chamou. — Irmão de Samia Tabor, não é? Sua irmã e você foram presos tentando ajudar alemães comunistas dentro do solo sagrado da Alemanha. Apesar da boa relação entre nossos países, é um crime imperdoável.

O silêncio do homem tinha muitos significados. Mas, de todos eles, em nada representava arrependimento.

— Você será enviado à câmara de gás amanhã — contou, e só então percebeu o olhar do homem se arregalar. — Triste destino, não? Pior de tudo é saber que sua irmã serve ao prostíbulo de Auschwitz desde que foram presos. Não faz ideia do estado dela. Já foi submetida há vários abortos, e provavelmente será morta em breve porque há suspeita de peste.

Ele percebia o olhar do homem se condoer, enquanto Bauer riu.

— Deixe-me contar uma coisa que, no entanto, desconhece: Foi feita uma sugestão por uma das guardas para transferência da sua irmã para uma fábrica. Sabe quem negou? — apontou a arma para o guarda, ao lado. — O guarda Bauer — delatou. — Ele disse, segundo o relatório que li, que Samia é uma puta desejada demais para se desfazerem.

O sorriso de Bauer sumiu.

— Vou te contar outro segredo, Osman. O guarda Bauer está armado, mas a arma não têm balas. Eu mesmo tirei as balas antes de trazê-lo para cá. E você tem uma pá. Claro, está fraco, mas tem ódio e a vingança a alimentá-lo. Sabe que irá morrer amanhã, então me pergunto: que melhor maneira de morrer que essa? Sabendo que está limpando a honra de sua irmã mediante o assassinato de seu carrasco.

Osmar segurou a pá com força, e rumou em direção a Bauer. O guarda até retirou seu revólver do coldre, mas ao apertar o gatilho, nenhum som emergiu.

Depois, era derrubado pela força do turco. Enquanto seu crânio amassava pela intensidade que a pá batia em sua cabeça, Kraus puxou um cigarro do bolso e o acendeu.

Assistiu o comunista bater até as forças acabarem, chorando de puro ódio, enquanto visualizava sua pobre irmã a ser abusada por crápulas como aquele.

Quando, enfim, tudo acabou, o turco o encarou. O sangue escorria pela pá, respingos em seu rosto. Era a imagem da completa desconstrução humana.

— Você vai me matar agora?

— Ainda tem vinte e quatro horas — Kraus retrucou.

— Vinte e quatro horas a mais nesse inferno — negou. — Me mate agora, eu te peço.

Kraus o observou atentamente. Depois, ergueu a arma contra o homem e disparou.

 

Therron descobriu que o exército vermelho estava chegando pelo desespero nos rostos femininos daquela cidade polonesa.

Todos sabiam como agiam os comunistas. Era estupro e escalpo. Então, conforme a notícia do avanço soviético chegava, famílias inteiras colocavam tudo que tinham em cima de carros ou carroças e rumavam em direção à Alemanha, numa fuga desesperada.

Therron ficou. Não sabia o que esperar dos vermelhos, mas não iria fugir. Estava há poucos quilômetros de sua esposa, e estaria ao lado dela quando conseguissem invadir Auschwitz.

 


Capítulo 13

 

Morte


A apreensão se tornava a cada dia mais palpável. E não era apenas fruto das mortes que haviam se intensificado, mas principalmente dentro do pequeno apartamento, onde Kraus andava de um lado para o outro, nervoso, como se as coisas andassem muito ruins para ele.

À noite, em suas orações, Esther orava pelos aliados. Agora, tanto tempo ali, presa, ela sentia que Deus enfim a ouvia.

— Que ano estamos? — indagou ao comandante, certo dia, enquanto lhe servia o almoço.

Kraus a encarou como se não a reconhecesse. Devia ser estranho para ele que alguém perdesse completamente a noção do tempo.

— Quarenta e cinco — respondeu, contudo. — Janeiro — completou, com mais exatidão.

O telefone tocava constantemente. Num dos dias do ano anterior, Esther ouviu Kraus comentar com alguém do outro lado da linha que o campo de Majdanek havia caído.

Desde então, tudo que ela se perguntava era quando Auschwitz também cairia.

As câmaras eram usadas noite e dia. O forno não parava um segundo de queimar. Com o aumento dos mortos, os nazistas já não davam conta de queimar tantos cadáveres, então vários deles eram jogados nos corredores, em amontoados que apodreciam sobre o sol, exalando um odor forte que parecia arder o nariz.

Havia também as mulheres que se jogavam contra a cerca elétrica. Aos montes. Jovens ou velhas preferiam a eletricidade ao gás. Esther começou a imaginar qual seria seu fim, qual seria sua escolha.

Depois da primeira quinzena de janeiro, começaram a sair comboios de evacuação. Os prisioneiros que sobreviviam eram transportados em caminhões para continuar sua jornada de sofrimento.

Isso, claro, se tivessem sorte. Porque também ocorreram as tais marchas da morte, onde as evacuações aconteciam a pé, onde prisioneiros desnutridos e maltratados por anos e anos de maldade eram forçados a caminhar por lugares íngremes cobertos de gelo, sem comida, água, abrigo, em direção a um destino incerto.

Depois disso, ficaram apenas os mais famintos, exaustos e destroçados encarcerados. Os soldados remanescentes não davam conta de matarem tanto e, aos poucos, as mortes foram rareando. Até porque, para que se dariam ao trabalho? A maioria deles não aguentaria mais alguns dias tamanha desnutrição.

Agora, tudo que restavam eram poucos guardas e montar uma estratégia de defesa, para que o campo não fosse tomado.

Kraus estava à frente deles. Organizou vários postos de observação, armados, com as ordens de matarem o quanto puderem.

Numa noite, uma mensagem da cidade comunicou que as tropas vermelhas haviam chegado e se aproximavam cada vez mais do campo.

Com a notícia veio às histórias. Mulheres e crianças, até bebês de colo, sendo estupradas e mortas por homens completamente drogados por pervitin, já sem honra, com qualquer dignidade anterior perdida durante os anos de batalha.

Foi assim que se deu conta do perigo que passava Esther. Se os vermelhos não poupavam nem um bebê de colo, por que poupariam uma mulher judia?

 

— Alto lá! — o grito em russo fez o jovem loiro erguer as mãos.

Therron aproximou-se de um acampamento, e respondeu, no pouco russo que havia aprendido com o amigo de juventude, anos antes da guerra:

— Sou francês. Sou da resistência. Meus documentos com nome alemão são falsos.

O soldado se aproximou, desconfiado, e buscou por armas. Não havia nenhuma. Então, empurrou Therron até um grupo de homens, onde um dos líderes apontava um mapa.

Therron imaginou como se explicaria e pediria ajuda, quando seu olhar cruzou com um dos soldados, sentado e bebendo, rindo como uma criança, trazendo no semblante uma inocência que ainda permanecia, apesar da dureza da guerra.

— Vladimir — gritou, chamando-o, e então o viu olhando em sua direção.

O reconhecimento do homem foi imediato, e ele correu até o loiro, abraçando-o, num saudoso conforto de irmãos.

— O que faz aqui, seu filho da puta? — o russo indagou, brincando, rindo, feliz demais por aquele encontro.

Ao ver que o loiro não mentia, o soldado baixou a arma, e a guarda em volta pareceu aliviar.

— Lembra-se de Esther?

— A judia que roubamos no dia do casamento?

Seu olhar então tornou-se pura compreensão.

— Há um campo de concentração por aqui?

Therron assentiu.

— Esther ainda está viva, eu há vi esses dias, andando pelo campo. Preciso de ajuda...

— Nós iremos te ajudar — o russo prometeu. — Eu juro... Nós iremos.

Mais um abraço. Diante de tanto sofrimento, ainda restava à amizade verdadeira como um alento de alma.

— Você tem notícias de Pierre? — Vladimir indagou.

— Nunca mais o vi, desde que Esther foi presa. Mas, sei que ele luta na Resistência.

O outro assentiu. Era a última notícia que receberia do amigo médico.

 

Capítulo 14

 

Vermelho


Os tiros começaram a ser ouvidos ao longe. Um som comum, já que disparos eram corriqueiros no campo. Contudo, dessa vez, vinham de fora, numa tentativa de invasão.

Havia chegado à hora. Os soviéticos estavam às portas de Auschwitz, e a apreensão de Kraus era muito mais do que pela simples derrota.

Ele podia ter ido embora, refugiar-se em Berlim. Muitos comandantes o fizeram. Porém, aquele ato seria deixar Esther a própria sorte, e isso ele não faria.

O extremismo pelo qual viveu até então tirou tudo dela. Seus pais, sua liberdade, possivelmente um esposo (apesar de ela nunca falar sobre isso), e também sua dignidade feminina. Ali, nas mãos dos nazistas, ela fora vítima de muitas brutalidades. Porém, aquela última... Aquela não ocorreria!

Ele preferiria matá-la antes.

Porém, era uma decisão que não podia tomar sozinho. Sabia o que estavam ocorrendo às mulheres, e deixar Esther a mercê de muitos homens para fazerem dela um jogo de poder e brutalidade, era pior que dar-lhe uma morte rápida.

— Nós precisamos conversar — disse, numa noite gelada.

Era madrugada, e os tiros em volta do campo não paravam. Ela estava deitada em seu colchão, e logo sentou-se.

O homem ficou aos seus pés.

— Tome — entregou-lhe a aliança que havia roubado.

Percebeu no olhar escuro que ela havia reconhecido a joia, mas que não tinha mais esperanças de vê-la novamente. As lágrimas caíram quando Esther a colocou no próprio dedo.

— Ele se chamava Therron — ela contou. — Sempre será o amor da minha vida...

O homem assentiu, compreensível.

— Os russos vão invadir o campo. Questão de horas, até que matem os guardas que estão resistindo. Então, não serei mais capaz de protegê-la.

Silêncio. Era como se cada palavra fosse mastigada com parcimônia.

— Eles estão estuprando as mulheres até a morte. Não sou capaz de responder se você irá escapar de suas mãos. Então, te ofereço um fim rápido. Mas, essa decisão precisa ser sua.

Esther recusou.

— Vi meu marido próximo do campo, dias antes. Sei que Therron está à espreita, na tentativa de me salvar. Imploro que não me mate. Deixe-me tentar voltar para ele.

Kraus acreditou piamente que ela havia tido uma alucinação. Mesmo assim, não levou para esse lado ao aconselhar.

— Se os russos te pegarem antes, o que você viveu no prostíbulo será apenas um leve degustar do horror que experimentará nas mãos do exército vermelho.

— Eu preciso arriscar — ela afirmou. — Meu marido era um homem bom e gentil, incapaz de praticar o mal. Eu sei que, para estar aqui, ele deve ter feito coisas ruins. Ninguém se aproxima das áreas ocupadas através da bondade. Devo isso a ele. Se foi corajoso o suficiente para vir até mim, devo ser igualmente para ir ao seu encontro.

Kraus assentiu. Se aquela era a decisão de Esther, ele a respeitaria.

— Vista algo quente, então. Tentarei retirá-la através de uma das cercas. Logo o sol vai nascer, e os soviéticos vão matar a todos. Se você sobreviver, poderia levar de mim uma boa lembrança? — pediu. — Sei que não mereço seu perdão...

— Você me salvou — ela afirmou, colocando o casaco por cima do vestido velho. — Você me salvou de muitas maneiras, e eu sou muito grata.

Kraus então a enlaçou nos braços. O que viveram, era um mistério para ele, mas a proximidade de seu fim e a certeza da punição por suas más escolhas fizeram-no perceber que não haveria tempo para meditar sobre isso.

Ela era uma simples mulher que cruzou seu caminho. E ele a amou. Ponto. Apenas isso. Não o amor comum, mas algo bem mais significativo que isso.

Teve por ela o mais sublime dos sentimentos. Ao menos teria algo para levar consigo para a morte.

Cruzaram correndo por entre os corredores de arame farpado. Vestindo negro, camuflaram-se dos tiros russos, sem notar alguém atrás deles, a ver-lhes os atos.

Kraus havia desligado a eletricidade de uma das cercas. Naquele instante, cortava-a com um alicate.

— Fuja em direção à mata, e tente não ficar à vista dos soviéticos. Não confie em ninguém — entregou-lhe algumas notas em dinheiro e uma sacola. — Se perguntarem, diga que perdeu os documentos. Troque sua roupa e consiga uma passagem de trem para o mais longe possível daqui.

Esther assentiu, abraçando-o fortemente.

— Eu te amo — ele murmurou contra seus cabelos, tão baixo que ela mal escutou. — Não sei se vai conseguir, mas quando os soviéticos me matarem, tudo que terei em minha mente é meu pedido a Deus para que você escape.

A mulher recuou. Depois, deu alguns passos em direção à cerca.

Ali... Sua liberdade. Todo o horror que vivera, agora, teria um fim.

O vento soprou, balançando seus cabelos negros. Caminhou, quase sem acreditar em sua ventura. Sentiu as lágrimas correndo pelo seu rosto, frutos de seu grito de alvedrio.

Perdeu o pai, a mãe, e a dignidade naquele lugar. Agora, novamente, tomaria as próprias decisões.

Agora, novamente, livre.

Repentinamente, dois disparos.

O som fez Kraus ficar brevemente surdo.

O olhar masculino assombrado viu-a cair, despencando no chão.

Vê-la morrer foi pior que experimentar a própria morte.

 


Capítulo 15

 

O fim.


A primeira daquelas três almas interligadas perdeu a vida exatamente no dia vinte e sete de janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco, dia que, no futuro, seria conhecido como Dia Internacional em Memória do Holocausto.

E era até cômico que fosse exatamente Esther a primeira a morrer, deles. Ora, ela havia sido a maior das vítimas. Therron não fora preso, e Kraus havia sido um comandante. Mas, ela não... Ela perdeu tudo...

Então, quando enfim a liberdade estava a alguns passos, um queimar na nuca e a escuridão. Antes de apagar, Esther pensou em Deus e, pela primeira vez, perdeu a fé.

Ninguém soube disso. Nem mesmo Kraus que rastejou até seu corpo e a abraçou, afundando o rosto em seu pescoço, despejando urros de raiva e dor.

O olhar masculino, então, voltou-se para o assassino.

Becker ainda mantinha a pistola estendida, dessa vez na direção do comandante.

— Você matou meu amigo Bauer por essa puta judia? — A pergunta era mais uma acusação. — E agora iria libertá-la?

Não adiantaria justificativas, e Kraus não perderia seus últimos segundos de vida explicando-se àquele homem.

Apertou Esther nos braços. Esperou pelas balas.

Morreu com ela e, com ela, ele renasceria.

 

Das milhares de vida que chegaram, saíram e morreram em Auschwitz, apenas em torno de sete mil estavam ali para recepcionar os vitoriosos soviéticos.

O exército vermelho planejava adentrar o complexo como guerreiros, mas o tamanho do horror que encontraram calaram, por fim, seus ímpetos.

A visão jamais poderia ser descrita em palavras, até porque palavras não expressariam os sentimentos que tomaram os homens e as mulheres que compunham a frota armada a adentrar no campo.

As enfermeiras logo se aproximaram dos doentes, moribundos deixados para trás para não atrasarem as marchas. Mesmo os que ainda estavam de pé, estavam tão esqueléticos que elas entendiam que não durariam muitos dias.

Therron observou o horror com sentimento dubio. Alívio por enfim estar ali, perto da esposa, e desespero pelas vidas perdidas e massacradas, pessoas que jamais conseguiriam deixar aquele lugar maldito para trás, mesmo que fossem embora.

— Onde ela estava? — Vladimir aproximou-se dele.

— Ela caminhava em direção ao prédio em que os membros da S.S atiravam. Acredito que era a administração.

Vladimir assentiu.

Lá, encontraram mais corpos. Dessa vez, dos remanescentes da tropa de Hitler. Haviam se suicidado quando a derrota se tornou inevitável.

Andaram pelos andares, olhando em cada canto, chamando pelo nome da mulher. Silêncio.

Voltaram onde os recém-libertos prisioneiros estavam em atendimento. Indagaram sobre Esther, mas ninguém sabia dela.

— É muita gente por aqui — Vladimir lhe comentou, percebendo o desespero tomando conta de Therron. — Com certeza vamos encontrá-la. Ela pode ter se escondido em algum lugar e teme sair...

— E se foi transferida?

O outro negou.

— Mantenha a calma.

Duas horas depois, começaram a trazer corpos que estavam afastados, atirados pelos campos próximos. Therron observava nitidamente a cada um, mas em seu íntimo não havia nenhuma comoção.

Seus sentimentos eram apenas para a esposa. Era apenas em Esther que ele centrava seus pensamentos.

— Não vai acreditar — um russo aproximou-se de Vladimir. — O comandante não fugiu. Está morto, ao lado de uma mulher com roupas de prisioneiro...

Foi um baque, como se o chão desaparecesse de seus pés.

No fundo, ele não queria seguir Vladimir porque não queria ver os cadáveres. Provavelmente, já entendia o que havia acontecido.

Mas, devia a si mesmo a verdade. Então a viu, dois tiros na nuca, deitada no colo de um homem que havia levado uma bala na testa.

O desgraçado nazista a matou, e depois se suicidou?

Puxou a mulher do colo do bárbaro, aos prantos, odiando-o, querendo matá-lo, mesmo que ele já estivesse morto.

Houve silêncio enquanto Therron ninava o corpo da esposa no colo, beijando sua testa, jurando-lhe amor eterno.

— Eu a perdi, Vladimir — murmurou ao amigo, que tinha lágrimas nos olhos. — No instante que eu a vi pela primeira vez, eu já sabia que a perderia. Só não esperava que me perdesse junto com ela.

No dia sete de maio, a Alemanha rende-se incondicionalmente aos Aliados. Esther perdeu-se no tempo e nos números, montantes de vítimas que não paravam, mesmo com a rendição.

Um evento que jamais se apagaria.

 

Capítulo 16

 

A morte não é o fim.


Brasil, tempo atual.


A mulher de cabelos longos e negros acendeu o cigarro mentolado e ficou a degustar o sabor da fumaça sobre a língua, antes de soltá-la, atraindo a atenção de outra jovem, à sua direita.

— Eloise! — o tom recriminatório de Amanda, antiga amiga de escola, não deixava dúvidas de que ela era contra o vício. — Isso vai acabar te matando.

— Assim espero — retrucou.

O cigarro saiu de seus dedos e foi apagado contra uma bituqueira próxima, fazendo com que a fumante soltasse um longo suspiro de raiva.

— Por que não me deixa em paz?

— Você não pode fumar aqui! — a mulher ralhou. — Quer que eu perca meu emprego?

O local? Uma bonita galeria no centro velho de Porto Alegre. Eloise Hopp representava a editora de sua família, para a qual também trabalhava, num evento beneficente, onde diversos quadros famosos eram apresentados a ricos e poderosos da cidade.

Contudo, nenhum tão rico ou poderoso quanto ela. Desde que o primeiro de seus muitos livros havia sido adaptado para o cinema, ela passara a ver o saldo bancário aumentar demasiadamente.

Não que isso lhe trouxesse qualquer felicidade. Eloise nunca expressava nenhum sentimento além da completa apatia pela vida.

— Não entendo porque Caio pediu para que viesse — Amanda mencionou o irmão gêmeo de Eloise. — Ele sabe que você nunca se comporta.

— Metade das pessoas daqui veio por minha presença — retrucou. Depois, vendo o olhar culpado da amiga, apaziguou. — Quanto custa? — apontou para uma pintura em carreteis.

— Os quadros de Iberê Camargo não estão à venda. Mas, existem alguns quadros que, acredito, te interessariam.

— É mesmo? Nunca gostei muito das artes plásticas.

— Tem um quadro que trouxemos da Suíça que me fez pensar em ti tão logo o vi — a outra comentou.

Eloise a seguiu. Em muito porque andar por entre obras que nada lhe diziam estava lhe aborrecendo, em muito porque devia aquilo a Amanda.

A mulher loira era uma das poucas amigas que lhe restaram, desde a infância.

Subitamente, estancaram.

— Olhe. Esse é um Esme.

Os olhos da mulher se arregalaram. Um quadro de forma abstrata, mas que podia ser definido como um lugar qualquer, uma figura oculta por tinta preta, e a terrível sensação de terror e tristeza exalando das cores.

— Mórbido — murmurou.

— Incrível como enfim você conseguiu captar algo de uma tela — a outra riu. — É de um dos pintores mais famosos do século passado. E, acredite se quiser, antes de fazer essas pinturas perturbadoras, ele costumava expressar sua arte através da beleza das cores pastel. Mas, durante a guerra tudo mudou. Assim sendo, o “Perdida” que vê agora é a expressão do sofrimento de Esme. Ele passou a usar muito o preto, o vermelho e o laranja, depois de perder a esposa.

A mulher ergueu os dedos a fim de tocar na tela. Foi impedida pela outra.

— Não pode tocar, Eloise. Esse quadro vale uma fortuna.

— Vou comprá-lo — afirmou. — Reserve-o para mim.

— É sério? — Amanda não escondia a surpresa.

A amiga escritora não costumava gastar os milhões que ganhara com literatura, vivendo uma vida até simples por demais.

— Diga-me, Amanda — Eloise murmurou. — Qual é a história desse homem? Do pintor?

Havia algo no tom de Eloise que arrepiou Amanda.

— Quer mesmo saber?

— Não é sua função me vender à obra?

— Achei que já a havia comprado.

— Sim, mas quero saber o que há por trás de tanta dor.

Enfim, a loira voltou o olhar para a pintura.

— Therron Esme era um jovem pintor de rua quando a Guerra chegou à França. Ele não fazia muito sucesso, e seus quadros eram vendidos a um preço irrisório, comparado a hoje. Mas, sabe... Quando penso nele... Quando o estudo, entendo que ele era feliz. Possui uma história de amor linda, ele roubou uma noiva na porta do templo, e casou-se com ela. Uma mulher que abandonou uma família rica para viver ao lado de um pintor pobre.

— E foram felizes?

— Quando a guerra chegou, a esposa de Therron foi deportada para a Polônia. Ele abandonou a arte e se infiltrou na Resistência, tentando salvá-la. Falam que enlouqueceu, que chegou a matar o líder do grupo ao qual pertencia, mas nada foi provado. Infelizmente, ele não conseguiu encontrá-la com vida.

Uma longa pausa.

— Depois da guerra, ele voltou a pintar, mas dessa vez, expressando sua dor. Assim, foi descoberto por uma galeria na Suíça e, em pouco tempo, era um dos pintores mais abastados e aclamados da Europa. Contudo, suicidou-se em cinquenta e cinco.

Um sentimento de dor potente tomou Eloise ao saber da morte. Por quê? Ela não sabia.

— Entregue o quadro em minha casa, por favor — pediu.

Enquanto caminhava em direção à saída da galeria, sentiu uma explosão em seu âmago, que a tomou de dor.

No céu, as estrelas voltaram a se alinhar, como a muito não acontecia.

Era uma questão de tempo – pouco tempo – para que, enfim, aquela triste história tivesse o final que merecia.

 

 

                                                                  Josiane da Veiga

 

 

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