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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TUNEIS DE SANGUE / Darren Shan
TUNEIS DE SANGUE / Darren Shan

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O cheiro de sangue é enjoativo. Centenas de carcaças dependuradas em ganchos prateados, rígidas, brilhando com o sangue congelado. Sei que são apenas animais — vacas, porcos, ovelhas —, mas não consigo deixar de pensar que são seres humanos.
Cuidadosamente dou um passo à frente. Luzes fortes, no alto, significam que o lugar é claro como o dia. Tenho de andar com cuidado. Preciso me esconder entre os animais. Tenho de me mover devagar. O chão é escorregadio, coberto de água e sangue, o que dificulta mais ainda meu avanço.
Mais à frente eu o vejo... o vampiro... o Sr. Crepsley. Ele se move silenciosamente, como eu, os olhos fixos no homem gordo que está à sua frente.
O homem gordo. Por causa dele estou neste abatedouro gelado. Ele é o ser humano que o Sr. Crepsley pretende matar. O homem que tenho de salvar.
O homem gordo pára e examina uma das carcaças dependuradas. Seu rosto é rechonchudo e vermelho. Está usando luvas de plástico. Bate com a mão no animal morto — o rangido do gancho quando a carcaça balança me faz rilhar os dentes — e começa a assobiar. Está andando outra vez. O Sr. Crepsley o segue. Eu também.
Ofídio está em algum lugar, mais atrás. Eu o deixei do lado de fora. Não convém que nós dois arrisquemos a vida.
Começo a me mover depressa, chegando mais perto. Nenhum dos dois sabe que estou aqui. Se tudo sair como planejado, não saberão. Não, até o Sr. Crepsley fazer o primeiro movimento. Não até eu ser obrigado a agir.
O homem gordo pára outra vez. Inclina-se para examinar alguma coisa. Dou um passo para trás, rapidamente, temendo ser visto, mas então o Sr. Crepsley se aproxima. Droga! Não tenho tempo de me esconder. Se for este o momento escolhido por ele para atacar, preciso chegar mais perto.
Salto alguns metros para a frente, arriscando ser ouvido. Felizmente, toda a atenção do Sr. Crepsley está concentrada no homem gordo.
Estou apenas três ou quatro metros atrás do vampiro agora. Levanto a longa faca de açougueiro que até esse momento eu levava ao lado do corpo. Meus olhos estão fixos no Sr. Crepsley. Não quero agir antes dele — darei ao vampiro a oportunidade de provar que minhas terríveis suspeitas são infundadas, mas assim que o vejo preparado para correr...
Seguro a faca com firmeza. Pratiquei o golpe o dia todo. Sei exatamente qual o ponto que devo atingir. Um golpe rápido no pescoço do Sr. Crepsley e pronto. Era uma vez o vampiro. Mais uma carcaça a ser pendurada.
Passam-se longos segundos. Não me preocupo em saber o que o homem gordo está observando. Será que ele nunca mais vai se levantar?
Então acontece. O homem gordo ergue o corpo rapidamente. O Sr. Crepsley sibila. Prepara-se para atacar. Posiciono a faca e acalmo meus nervos. O homem gordo está de pé agora. Ele ouve alguma coisa. Olha para o teto — direção errada, seu tolo! — quando o Sr. Crepsley ataca. Salto no mesmo momento que o vampiro, com um grito estridente, brandindo a faca, resolvido a matar...

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    Um mês antes.
    Meu nome é Darren Shan. Sou meio-vampiro.
Fui humano até roubar a aranha de um vampiro. Depois disso, minha vida mudou para sempre. O Sr. Crepsley — o vampiro — obrigou-me a ser seu assistente e entrei para um circo cheio de artistas esquisitos, chamado Circo dos Horrores.
   
A adaptação foi difícil. Beber sangue foi mais difícil ainda e por longo tempo eu me recusei a fazer isso. Finalmente, eu fiz, para salvar a memória de um amigo agonizante (os vampiros podem armazenar as lembranças de uma pessoa se tomarem todo seu sangue). Não gostei — as primeiras semanas foram horríveis e fui atormentado por pesadelos —, mas depois de ter tomado aquele primeiro drinque vermelho-sangue não podia voltar atrás. Aceitei meu papel de assistente de vampiro e aprendi a fazer isso o melhor possível.
   
No ano seguinte, o Sr. Crepsley me ensinou a caçar e sugar sangue sem ser apanhado; como tomar apenas o sangue suficiente para sobreviver; como esconder das outras pessoas a minha identidade de vampiro. E com o tempo deixei para trás meus temores humanos e torneime uma verdadeira criatura da noite.
 
    Um grupo de meninas olhava, todas muito sérias, para Tuti Membros. Ele estava esticando os braços e as pernas, girando o pescoço, relaxando os músculos. Então, piscando um olho para as garotas, pôs os três dedos do meio da sua mão na boca e os arrancou com os dentes.
   
As meninas gritaram e fugiram. Tuti riu, divertido, e balançou os três dedos novos que começavam a crescer na sua mão.
   
Eu ri. A gente se acostuma com coisas desse tipo quando trabalha no Circo dos Horrores. O espetáculo itinerante estava cheio de pessoas notáveis, horrores da natureza com maravilhosos e às vezes assustadores poderes.
   
Além de Tuti Membros, os artistas eram Sancho Duas Panças, capaz de comer um elefante adulto ou um tanque; Diana Dentada, que podia quebrar aço com os dentes; o Homem Lobo, que matou meu amigo Sam Crespo; Truska, uma mulher bela e misteriosa que podia fazer crescer uma barba no seu rosto quando quisesse; e o Sr. Altão, capaz de se mover com a rapidez do relâmpago e que parecia poder ler as mentes das pessoas. O Sr. Altão era o dono do Circo dos Horrores.
   
Estávamos nos apresentando em uma pequena cidade, acampados atrás de um velho moinho dentro do qual o espetáculo se realizava todas as noites. O lugar era um lixo, mas eu estava acostumado. Podíamos atuar nos grandes teatros do mundo e dormir em luxuosos quartos de hotéis — o Circo ganhava muito dinheiro —, mas era mais seguro ser discreto e continuar nos lugares onde a polícia e outras autoridades raramente apareciam.
   
Eu não tinha mudado muito desde que saíra de casa com o Sr. Crepsley, há quase um ano e meio. Por ser meio-vampiro, envelhecia apenas na proporção de um quinto do tempo de envelhecimento dos seres humanos, o que significa que, embora dezoito meses tivessem passado, meu corpo estava só três ou quatro meses mais velho.
   
Embora não houvesse diferença na minha aparência externa, por dentro eu era uma pessoa inteiramente diversa. Era mais forte do que qualquer garoto da minha idade, podia correr mais depressa, saltar mais longe e enfiar minhas unhas superfortes em paredes de tijolos. Minha audição, minha visão e meu olfato estavam muito mais apurados.
   
Como não era um vampiro completo, eu ainda não podia fazer uma porção de coisas. Por exemplo, o Sr. Crepsley podia correr a uma supervelocidade, o que ele chamava de deslizar. Podia exalar um bafo de gás que deixava as pessoas inconscientes. E podia trocar pensamentos com vampiros e com alguns outros, como o Sr. Altão.
   
Eu não poderia fazer essas coisas até me tornar um vampiro completo. Isso não me tirava o sono porque ser um meio-vampiro tinha suas vantagens. Eu não precisava tomar muito sangue humano e — o que era melhor — podia me movimentar durante o dia.
   
Era dia quando eu e Ofídio, o menino-cobra, explorávamos o lixo à procura de comida para os Pequeninos — estranhas criaturas pequenas que usavam capuzes azuis e nunca falavam. Ninguém — exceto talvez o Sr. Altão — sabia quem ou o que eles eram, de onde vinham ou por que viajavam com o Circo. O líder deles era um homem perturbador chamado Sr. Tino (ele gostava de comer crianças!), mas não o víamos com frequência no Circo.
   
— Encontrei um cachorro morto — gritou Ofídio, segurando o animal acima da cabeça. — Fede um pouco. Acha que eles vão se importar?
   
Farejei o ar. Ofídio estava longe, mas senti o cheiro do cachorro tão bem quanto um ser humano sentiria de perto e fiz um sinal afirmativo.
   
— Vai servir — disse eu. Os Pequeninos comiam qualquer coisa que levássemos.
   
Eu tinha uma raposa e alguns ratos no saco. Eu não gostava de caçar ratos — os ratos são amigos dos vampiros e geralmente atendem quando os chamamos —, mas trabalho é trabalho. Todos temos de fazer coisas de que não gostamos nesta vida.
   
Havia uma porção de Pequeninos no Circo — vinte ao todo —, e um deles estava caçando conosco. Ele entrou para o Circo logo depois que eu e o Sr. Crepsley chegamos. Eu o distinguia dos outros porque ele mancava da perna esquerda. Ofídio e eu passamos a chamá-lo de Esquerdinha.
   
— Ei, Esquerdinha! — gritei. — Como vão as coisas? — A figurinha de capuz azul não respondeu, ele nunca respondia, mas bateu na barriga, o sinal de que precisava de mais comida.
   
“Esquerdinha diz para continuarmos”, disse eu para Ofídio.
   
— Foi o que pensei — suspirou ele.
   
Quando procurava outro rato, vi uma pequena cruz de prata no lixo. Apanhei o crucifixo e limpei a sujeira. Observando a cruz, sorri. Pensar que eu antes acreditava que os vampiros tinham horror a cruzes. A maior parte dessas coisas dos filmes e dos livros é bobagem. Cruzes, água benta, alho, nada disso tem efeito sobre um vampiro. Podemos atravessar água corrente. Não precisamos ser convidados a uma casa para entrar nela. Temos sombra e reflexo (embora um vampiro completo não possa ser fotografado. Algo a ver com encontro de átomos). Não podemos mudar de forma nem voar.
   
Uma estaca no coração mata um vampiro. Mas o mesmo acontece com uma bala, com fogo ou com o impacto de um objeto pesado caindo em cima dele. É mais difícil matar um vampiro do que um ser humano, mas não somos imortais. Longe disso.
   
Deixei a cruz no chão e recuei um pouco. Concentrando minha vontade, tentei fazer com que ela saltasse para minha mão esquerda. Olhei durante um minuto inteiro, depois estalei os dedos da mão direita.
   
Não aconteceu nada.
   
Tentei outra vez e não consegui. Havia meses eu vinha tentando, sem sucesso. Parecia tão simples para o Sr. Crepsley — um estalo dos dedos e o objeto estava na sua mão, mesmo quando situado há vários metros de distância —, mas eu não conseguia fazer a mesma coisa.
   
Eu estava me dando muito bem com o Sr. Crepsley. Ele não era de todo mau. Não éramos amigos, mas eu o aceitava como professor e não o odiava mais como logo depois que ele me transformou em meio-vampiro.
   
Guardei a cruz no bolso e continuei a caçada. Depois de algum tempo, encontrei um gato semimorto de fome, dentro do que restava de um forno de microondas. Ele também estava caçando ratos.
   
O gato me recebeu com um silvo agudo e eriçou os pêlos do pescoço. Fingi dar as costas para ele, então virei rapidamente, agarrei-o pelo pescoço e torci. Com um pequeno grito estrangulado o corpo dele amoleceu. Enfiei-o no saco e fui ver como Ofídio estava se saindo.
   
Eu não gostava de matar animais, mas caçar era parte da minha natureza. De qualquer modo, eu não tinha nenhuma simpatia por gatos. O sangue do gato é venenoso para um vampiro. Se eu tomasse, não morreria mas ia passar mal do estômago. E os gatos são também caçadores. Na minha opinião, quanto menos gatos existissem, maior o número de ratos.
   
Naquela noite, de volta ao acampamento, tentei mover a cruz mentalmente outra vez. Havia terminado minhas tarefas do dia e o espetáculo só começaria dentro de mais algumas horas, por isso eu tinha muito tempo livre.
   
Era uma noite fria de fim de novembro. A neve não tinha chegado ainda, mas estava ameaçando. Eu usava minha fantasia colorida de pirata: camisa verde-claro, calça púrpura, paletó dourado e azul, uma faixa de cetim vermelho na cintura, chapéu marrom com uma pena e sapatos macios com a ponta virada para cima.
   
Afastei-me das vans e das barracas e encontrei um lugar discreto ao lado do velho moinho. Enfiei a cruz em um pedaço de madeira na minha frente, respirei fundo, concentrei-me na cruz e a mandei vir para a palma da minha mão estendida.
   
Nada.
   
Cheguei mais perto, até minha mão ficar a poucos centímetros da cruz.
   
— Eu ordeno que se mova — disse eu, estalando os dedos. — Eu ordeno que se mova. — Clique. — Mova-se. — Clique. — Mova-se!
   
Gritei a última palavra mais alto do que pretendia e bati com o pé no chão, furioso.
   
— O que você está fazendo? — uma voz familiar perguntou, atrás de mim.
   
Vi o Sr. Crepsley saindo das sombras.
   
— Nada — disse eu, tentando esconder a cruz.
   
— O que é isso? — indagou ele. Seus olhos não perdiam nada.
   
— Só uma cruz que achei quando estava caçando — respondi, estendendo a mão com a cruz.
   
— O que estava fazendo com ela? — perguntou o Sr. Crepsley, desconfiado.
   
— Tentando fazer com que se movesse — disse eu, resolvendo que estava na hora de perguntar ao vampiro sobre seus segredos mágicos. — Como você faz isso?
   
Um sorriso apareceu no rosto dele, enrugando a longa cicatriz no lado esquerdo.
   
— Então é isso que o está preocupando — riu baixinho. Estendeu a mão e estalou os dedos, me fazendo piscar os olhos. Num instante a cruz estava na mão dele.
   
— Como se faz? — perguntei. — Só os vampiros completos podem fazer?
   
— Vou mostrar outra vez. Olhe com atenção agora.
   
Levou a cruz para o pedaço de madeira, ele recuou e estalou os dedos. Mais uma vez ela desapareceu e apareceu na sua mão.
   
— Você viu?
   
— Vi o quê? — Eu estava confuso.
   
— Uma última vez — disse ele. — Tente não piscar os olhos.
   
Focalizei a pequena peça de prata. Ouvi o estalo dos dedos e — com os olhos bem abertos — pensei ter notado uma leve sombra entre ele e a cruz.
   
Quando me virei, o vampiro estava jogando a cruz de uma das mãos para a outra e sorrindo.
   
— Já descobriu? — perguntou ele.
   
Franzi a testa.
   
— Pensei ter visto... Parecia... — Meu rosto se iluminou. — Você não moveu a cruz! — gritei. — Você se moveu!
   
Com um sorriso beatífico, disse:
   
— Você não é tão bobo quanto parece — elogiou-me com seu costumeiro sarcasmo.
   
— Faça outra vez — pedi. Dessa vez não olhei para a cruz, mas para o vampiro. Não consegui seguir seus movimentos, ele era rápido demais, mas percebi vagas imagens dele quando se lançou para a frente, apanhou a cruz e saltou para trás outra vez.
   
“Então você não pode mover as coisas com sua mente?”, perguntei.
   
— É claro que não — riu.
   
— Sendo assim, por que estala os dedos?
   
— Para distrair os olhos dos outros — explicou.
   
— Então, é um truque — disse eu. — Não tem nada a ver com ser vampiro.
   
Ele deu de ombros.
   
— Eu não poderia me mover tão depressa se fosse humano, mas sim, é um truque. Eu me
interessei por ilusionismo antes de ser vampiro e gosto de me manter em forma.
   
— Posso aprender a fazer isso? — perguntei.
   
— Talvez — disse ele. — Você não pode se mover tão depressa quanto eu, mas pode conseguir, se o objeto estiver perto da sua mão. Teria de praticar com afinco. Mas se quiser posso ensinar.
   
— Eu sempre quis ser um mágico — disse eu. — Mas... espere um pouco... — Lembrei-me das várias vezes em que o Sr. Crepsley abrira fechaduras com um estalar dos dedos. — E fechaduras? — perguntei.
   
— Isso é diferente. Você sabe o que é energia estática? — Eu não sabia. — Alguma vez passou um pente pelo cabelo e depois o encostou numa folha fina de papel?
   
— Isso mesmo! — disse eu. — O papel gruda no pente.
   
— Isso é energia estática — explicou. — Quando um vampiro desliza, forma uma forte carga de energia estática. Eu aprendi a controlar essa carga. Assim, posso abrir qualquer fechadura que você quiser.
   
Pensei no assunto.
   
— E o estalo dos dedos? — perguntei.
   
— Velhos hábitos custam a morrer — sorriu.
   
— Mas velhos vampiros morrem facilmente! — uma voz rosnou atrás de nós e, antes que eu tivesse tempo de saber o que estava acontecendo, alguém veio por trás e, estendendo os braços, encostou um par de facas afiadas na carne macia dos nossos pescoços!
 
   
CAPÍTULO DOIS
   
 
   
 
    Fiquei paralisado quando senti a faca e ouvi a voz ameaçadora, mas o Sr. Crepsley não deu a mínima. Empurrou a faca gentilmente, e atirou a cruz de prata para mim.
   
— Torvelinho, Torvelinho — suspirou o Sr. Crepsley. — Eu sempre sou capaz de ouvir você a meio quilômetro de distância.
   
— Não é verdade! — disse a voz, irritada. — Você não pode ter ouvido.
   
— Por que não? — perguntou o Sr. Crepsley. — Ninguém no mundo respira tão pesadamente. Eu poderia descobrir você em uma multidão de milhares, com os olhos vendados
   
— Uma dessas noites, Larten — respondeu o estranho —, uma noite dessas eu o apanho. Veremos então o quanto você é esperto.
   
— Nessa noite me retirarei coberto de vergonha — riu o Sr. Crepsley.
   
O Sr. Crepsley levantou uma sobrancelha para mim, com ar divertido, vendo que eu estava ainda rígido e com um pouco de medo, mesmo sabendo que nossas vidas não corriam perigo.
   
— Devia se envergonhar, Torvelinho — disse o Sr. Crepsley. — Você assustou o garoto. — Parece que é só para isso que sirvo — rosnou o estranho. — Assustar crianças e velhinhas.
   
Virei devagar e me vi cara a cara com o homem chamado Torvelinho. Ele não era muito alto, mas era largo, como um lutador de luta livre. O rosto era uma massa de cicatrizes e manchas escuras e as bordas das pálpebras eram extremamente negras. O cabelo castanho era curto e ele vestia calça jeans comum e um blusão branco folgado. Tinha um largo sorriso e dentes brilhantes e amarelos.
   
Só quando olhei para as pontas dos seus dedos e vi dez cicatrizes compreendi que ele era um vampiro. É assim que a maioria dos vampiros é criada. Sangue de vampiro é bombeado neles através da carne macia na ponta dos dedos das mãos.
   
— Darren, este é Torvelinho — apresentou-nos o Sr. Crepsley. — Um velho amigo digno de confiança e bastante desajeitado. Torvelinho, este é Darren Shan.
   
— Prazer em conhecê-lo — disse o vampiro, sacudindo minha mão. — Você não me ouviu chegar, não é?
   
— Não — respondi honestamente.
   
— É isso aí! — disse ele com seu vozeirão. — Está vendo?
   
— Meus parabéns — disse o Sr. Crepsley secamente. — Se alguma vez você for chamado para entrar sem ser visto num quarto de criança, não terá problemas.
   
Torvelinho fez uma careta.
   
— Vejo que o tempo não suavizou você. Cortante como sempre. Quanto tempo faz? Catorze anos? Quinze?
   
— Dezessete em fevereiro próximo — respondeu o Sr. Crepsley imediatamente.
   
— Dezessete! — assobiou Torvelinho. — Mais do que pensei. Dezessete anos e azedo como sempre. — Cutucou minhas costelas. — Ele ainda acorda ranzinza como uma velha? — perguntou.
   
— Sim — disse eu, rindo.
   
— Nunca consegui uma palavra positiva dele até a meia-noite. Tive de partilhar um caixão com ele certa vez, durante quatro meses inteiros — estremeceu ao lembrar. — Os quatro meses mais longos da minha vida.
   
— Vocês compartilharam um caixão? — perguntei, incrédulo.
   
— Fomos obrigados — disse ele. — Estávamos sendo caçados. Tínhamos de ficar juntos. Eu não faria outra vez. Prefiro enfrentar o sol e torrar.
   
— Você não era o único a ter motivo de queixa — rosnou o Sr. Crepsley. — Seus roncos quase me levaram a enfrentar o sol. — Seus lábios tremiam e percebi que ele se esforçava heroicamente para não rir.
   
— Por que vocês estavam sendo caçados? — perguntei, curioso.
   
— Deixe isso para lá — disse o Sr. Crepsley asperamente, antes que Torvelinho pudesse responder, e depois olhou zangado para o antigo companheiro.
   
Torvelinho fez uma cara triste.
   
— Foi há quase sessenta anos, Larten. Eu não sabia que era informação sigilosa.
   
— O garoto não está interessado no passado — disse o Sr. Crepsley com firmeza (é claro que eu estava!). — Você está no meu território, Torvelinho. Eu pediria que respeitasse minha vontade.
   
— Velho morcego birrento — resmungou Torvelinho, mas obedeceu. — Então, Darren, o que você faz no Circo dos Horrores?
   
— Um pouco de tudo — disse eu. — Arranjo comida para os Pequeninos e ajudo os artistas a se prepararem para...
   
— Os Pequeninos ainda viajam com o Circo? — interrompeu Torvelinho.
   
— Existem mais Pequeninos do que nunca — respondeu o Sr. Crepsley. — No momento temos vinte.
   
Os vampiros trocaram um olhar cúmplice mas não falaram mais no assunto. Percebi que Torvelinho ficou perturbado pelo modo como suas cicatrizes se juntaram ferozmente no cenho franzido.
   
— Como vão as coisas com os Generais? — quis saber o Sr. Crepsley.
   
— A mesma rotina de sempre — disse Torvelinho.
   
— Torvelinho é um General Vampiro — disse o Sr. Crepsley, acendendo meu interesse. Eu tinha ouvido falar dos Generais Vampiros, mas ninguém disse exatamente quem ou o que eram.
   
— Com licença — disse eu. — Mas o que é um General Vampiro? O que fazem?
   
— Ficamos de olho em trapaceiros como este — riu Torvelinho, cutucando o Sr. Crepsley. — Impedimos que se metam em encrencas.
   
— Os generais Vampiros monitoram o comportamento do clã dos vampiros — acrescentou o Sr. Crepsley. — Procuram garantir que ninguém mate inocentes ou use seu poder para o mal.
   
— Como fazem isso? — perguntei.
   
— Se descobrem um vampiro que se voltou para o mal — disse o Sr. Crepsley —, eles o matam.
   
— Oh. — Olhei para Torvelinho. Ele não parecia um matador, mas, pensando bem, todas aquelas cicatrizes...
   
— É um trabalho tedioso a maior parte do tempo — disse Torvelinho. — É mais como um policial de cidade pequena do que um soldado. Jamais gostei da expressão “General Vampiro”. Pomposa demais.
   
— Não são só os vampiros malvados que os Generais liquidam — explicou o Sr. Crepsley. — Faz parte também do seu trabalho liquidar os vampiros tolos ou fracos — suspirou. — Eu estava esperando esta visita. Vamos para minha barraca, Torvelinho, tratar do assunto?
   
— Você me esperava? — Torvelinho pareceu assustado.
   
— Mais cedo ou mais tarde a história ia se espalhar — disse o Sr. Crepsley. — Eu não tentei esconder o garoto, nem esconder a verdade. Por favor, anote isso; vou usar durante o meu julgamento, quando for chamado para me defender.
   
— Julgamento? A verdade? O garoto? — Torvelinho estava atônito. Olhou para minhas mãos, viu as marcas dos vampiros nos meus dedos e seu queixo caiu. — O garoto é um vampiro? — gritou estridentemente.
   
— É claro. — O Sr. Crepsley franziu a testa. — Mas certamente você sabia.
   
— Eu não sabia nada disso! — protestou Torvelinho. Olhou nos meus olhos e se concentrou intensamente. — O sangue é fraco nele — pensou alto. — Ele é só meio-vampiro.
   
— Naturalmente — disse o Sr. Crepsley. — Não é nosso costume transformar nossos assistentes em vampiros completos.
   
— Nem transformar crianças em assistentes! — disse Torvelinho, agressivamente, parecendo mais autoritário do que antes. — Que ideia foi essa? — perguntou para o Sr. Crepsley. — Um garoto! Quando isso aconteceu? Por que não informou ninguém?
   
— Faz quase um ano e meio que passei meu sangue para Darren — disse o Sr. Crepsley. — O motivo por que fiz isso é uma longa história. Quanto à razão de ainda não ter contado a ninguém, a resposta é simples. Você é o primeiro da nossa espécie que encontro. Eu o teria levado à próxima reunião do Conselho se não encontrasse nenhum General antes. Agora não é mais preciso.
   
— Pois eu acho que é preciso! — disse Torvelinho, zangado.
   
— Por quê? — perguntou o Sr. Crepsley. — Você pode julgar minhas ações e dar o veredicto.
   
— Eu? Julgar você? — riu Torvelinho. — Não, obrigado. Deixo você para o Conselho. A última coisa de que preciso é me envolver numa encrenca dessas.
   
— Com licença, mas do que se trata? — perguntei. — Por que estão falando em ser julgado? E quem ou o que é o Conselho?
   
— Falo disso depois — disse o Sr. Crepsley, ignorando minha pergunta. Ele olhou intrigado para Torvelinho. — Se você não está aqui por causa do garoto, por que veio? Pensei ter deixado bem claro, no nosso último encontro, que não quero mais saber dos Generais.
   
— Você deixou claro como o cristal — admitiu Torvelinho. — Talvez eu tenha vindo só para falar sobre os velhos tempos.
   
O Sr. Crepsley disse com um sorriso cínico:
   
— Depois de me deixar em paz por dezessete anos? Acho que não, Torvelinho.
   
O General Vampiro tossiu discretamente.
   
— Há problemas à vista. Nada a ver com os Generais — acrescentou rapidamente. — Isso é pessoal. Eu vim porque achei que você precisa saber de uma coisa. — Ele parou de falar.
   
— Continue — animou-o o Sr. Crepsley.
   
Torvelinho olhou para mim e pigarreou.
   
— Não faço objeção a falar na frente de Darren — garantiu ele.
   
— Mas você me pareceu ansioso para não falarmos sobre seu passado ainda há pouco. O que tenho a dizer pode não ser para os ouvidos dele.
   
— Darren — disse o Sr. Crepsley imediatamente —, Torvelinho e eu vamos continuar a conversa na minha barraca, só nós dois. Por favor, procure o Sr. Altão e diga-lhe que não posso fazer meu número esta noite.
   
Não gostei muito. Queria ouvir o que Torvelinho tinha para dizer. Ele era o primeiro vampiro que eu conhecia, depois do Sr. Crepsley — mas por sua expressão severa sabia que estava resolvido. Virei-me para sair.
   
— E Darren — me chamou o Sr. Crepsley. — Sei que você é curioso por natureza, mas vou avisar: não tente ouvir nossa conversa. Não vou gostar nem um pouco se fizer isso.
   
— O que pensa que sou? — perguntei. — Você me trata como se...
   
— Darren — disse ele, zangado. — Nada de escutar nossa conversa!
   
Emburrado, assenti com a cabeça.
   
— Tudo bem.
   
— Anime-se — disse Torvelinho quando eu ia saindo desapontado. — Eu conto tudo assim que Larten der as costas.
   
Quando o Sr. Crepsley virou-se para ele com chispas saindo dos olhos, o General Vampiro ergueu a mão rapidamente e riu.
   
— Brincadeira!
 
   
 CAPÍTULO TRÊS
   
 
   
 
    Resolvi fazer sozinho o ato com Madame Octa, a aranha do Sr. Crepsley. Eu podia lidar com ela perfeitamente. Além disso, era divertido substituir o Sr. Crepsley. Já tinha estado no palco, com ele, várias vezes, mas sempre como ajudante.
   
Entrei depois de Mano Mão — o homem que podia correr vários metros, apoiado nas mãos, em menos de oito segundos, e era um boa-praça. O público me aplaudiu com entusiasmo, e depois fui vender doces em forma de aranha para a plateia.
   
Depois do espetáculo, fiquei com Ofídio. Contei a ele sobre a visita de Torvelinho e perguntei o que ele sabia sobre os Generais Vampiros.
   
— Não muita coisa — disse. — Sei que existem, mas nunca vi nenhum.
   
— E o Conselho? — perguntei.
   
— Acho que é uma grande reunião que eles fazem a cada dez ou quinze anos — respondeu. — Uma enorme conferência para discutir várias coisas.
   
Era tudo o que ele podia me dizer.
   
Algumas horas antes do nascer do dia, enquanto Ofídio tratava da serpente, Torvelinho saiu da van do Sr. Crepsley — o vampiro preferia dormir nos porões dos prédios, mas não havia quartos adequados no velho moinho — e me convidou a caminhar com ele.
   
O General Vampiro andava devagar, passando a mão nas cicatrizes que tinha no rosto, como o Sr. Crepsley fazia quando estava pensando.
   
—Você gosta de ser um meio-vampiro, Darren? — perguntou ele.
   
— Na verdade, não — respondi sinceramente. — Eu me acostumei, mas era mais feliz como ser humano.
   
Ele fez um sinal de compreensão.
   
— Sabe que vai envelhecer apenas um quinto do que os seres humanos envelhecem? Você se resignou a uma longa infância? Isso não o incomoda?
   
— Sim, incomoda — disse eu. — Sempre esperei ansiosamente ser crescido. Incomoda pensar que vai demorar tanto. Mas não posso fazer nada. Estou destinado a isso, não é?
   
— Está — suspirou. — Esse é o problema de fazer passar o sangue de vampiro para uma pessoa: não se pode retirar mais. Por isso não fazemos com crianças. Só queremos pessoas que sabem no que estão se metendo, que querem abandonar sua condição humana. Larten não devia ter passado seu sangue para você. Foi um erro.
   
— É por isso que ele está falando em ser julgado? — perguntei.
   
Torvelinho assentiu.
   
— Ele deve responder por seu erro. Terá de convencer os Generais e os Príncipes de que isso não vai prejudicá-los. Se não conseguir... — Torvelinho parecia preocupado.
   
— Ele será morto? — perguntei em voz baixa.
   
Torvelinho sorriu.
   
— Duvido. Larten é muito respeitado. Será advertido, mas não penso que alguém peça a sua cabeça.
   
— Por que você não o julga?
   
— Todos os Generais têm o direito de julgar vampiros não graduados, mas Larten é meu velho amigo. É melhor que os juízes sejam imparciais. Mesmo que ele tivesse cometido um crime de verdade, eu acharia difícil puni-lo. Além disso, Larten não é um vampiro qualquer. Ele já foi General.
   
— É mesmo? — Olhei para Torvelinho, atônito.
   
— Um General muito importante. Estava prestes a ser eleito Príncipe Vampiro quando desistiu.
   
— Um príncipe? — perguntei, cético. Era difícil imaginar Crepsley com a coroa e o manto real.
   
— É como chamamos nossos líderes — disse Torvelinho. — São muito poucos. Só os vampiros mais nobres e respeitados são eleitos.
   
— E o Sr. Crepsley quase foi um deles? — perguntei. Torvelinho fez que sim com a cabeça. — O que aconteceu? Como ele acabou viajando com o Circo dos Horrores?
   
— Ele renunciou — disse Torvelinho. — Faltavam poucos anos para ser ordenado, chamamos o processo de ordenação de um príncipe, quando certa noite ele declarou que estava farto do seu posto e não queria mais saber dos Generais Vampiros.
   
— Por quê? — perguntei.
   
Torvelinho deu de ombros.
   
— Ninguém sabe. Larten nunca explicou. Talvez apenas tenha se cansado de lutar e matar.
   
Eu queria perguntar contra quem os Generais Vampiros lutavam, mas nesse momento passamos pelas últimas casas da cidade e Torvelinho sorriu e esticou os braços.
   
— Uma pista livre — disse ele, feliz.
   
— Está indo embora? — perguntei.
   
— Tenho de ir. A agenda de um General é bastante cheia. Só parei aqui porque estava no meu caminho. Gostaria de ficar e conversar com Larten sobre o passado, mas não posso. De qualquer modo, creio que Larten vai partir muito em breve.
   
Fiquei atento.
   
— Para onde ele vai? — perguntei.
   
Torvelinho balançou a cabeça e sorriu.
   
— Desculpe. Ele me escalpela se eu disser. Já falei mais do que devia. Não vai dizer que contei que ele já foi General, vai?
   
— Não, se não quer que eu conte.
   
— Obrigado. — Torvelinho abaixou-se e olhou nos meus olhos. — Às vezes Larten é um osso duro de roer. Esconde muito bem seu jogo, e conseguir informação com ele pode ser como arrancar os dentes de um tubarão. Mas ele é um bom vampiro, um dos melhores. Você não podia ter um professor melhor. Confie nele, Darren, e não cometerá erros.
   
— Vou tentar — disse eu.
   
— Este mundo pode ser perigoso para os vampiros — disse Torvelinho suavemente. — Mais perigos do que você imagina. Fique com Larten que estará mais apto a sobreviver do que muitos da nossa espécie. Não se vive tanto tempo quanto ele sem aprender mais truques do que realmente precisamos.
   
— Quantos anos ele tem? — perguntei.
   
— Não estou certo — disse Torvelinho. — Acho que cento e oitenta ou duzentos.
   
— E você?
   
— Eu sou um garotinho — disse ele. — Mal acabo de passar a marca dos cem.
   
— Cem anos de idade! — Assobiei baixinho.
   
— Isso é nada para um vampiro — disse Torvelinho. — Eu acabava de fazer dezenove anos quando me tornei um meio-vampiro, e tinha só vinte e dois quando passei a vampiro completo. Posso viver uns bons quinhentos anos se os deuses dos vampiros permitirem.
   
— Quinhentos...! — Eu não podia imaginar como era ser tão velho.
   
— Já imaginou apagar as velas desse bolo? — riu Torvelinho. Então levantou-se. — Preciso ir. Tenho de percorrer numa supervelocidade cinquenta quilômetros antes do amanhecer. — Ele fez uma careta. — Detesto voar em alta velocidade. Sempre fico enjoado depois.
   
— Eu o verei outra vez? — perguntei.
   
— Provavelmente. O mundo é um lugar pequeno. Tenho certeza de que nossos caminhos vão se cruzar outra vez em uma noite linda e melancólica. — Ele apertou minha mão. — Até logo, Darren Shan.
   
— Até a próxima, Torvelinho — disse eu.
   
— A próxima — concordou ele e preparou-se para partir. Respirou fundo várias vezes e começou a andar depressa. Depois de algum tempo, apressou o passo. Fiquei onde estava, vendo-o correr até atingir a velocidade para deslizar e desaparecer em um piscar de olhos e, então, dei meia-volta e retornei ao acampamento.
   
Encontrei o Sr. Crepsley na sua van, sentado ao lado da janela, que era completamente coberta com tiras de adesivo para evitar o sol durante o dia, com o olhar perdido e tristonho.
   
— Torvelinho se foi — disse eu.
   
— Sim — suspirou ele.
   
— Não ficou muito tempo — observei.
   
— Ele é um General Vampiro — disse o Sr. Crepsley. — Seu tempo não lhe pertence.
   
— Gostei dele.
   
— Ele é um bom vampiro e um bom amigo — concordou o Sr. Crepsley.
   
Tossi discretamente.
   
— Ele disse que você logo partirá também.
   
O Sr. Crepsley olhou para mim, desconfiado.
   
— O que mais ele disse?
   
— Nada — menti rapidamente. — Perguntei por que ele não podia ficar mais tempo e ele disse que não havia necessidade, uma vez que você provavelmente logo irá partir.
   
O Sr. Crepsley assentiu.
   
— Torvelinho trouxe notícias desagradáveis — disse ele, cuidadosamente. — Tenho de deixar o circo por algum tempo.
   
— Aonde vai?
   
— A uma cidade — respondeu vagamente.
   
— E eu? — perguntei.
   
O Sr. Crepsley passou a mão na cicatriz, pensativamente.
   
— Era nisso que eu estava pensando. Eu preferia não levar você, mas acho que posso precisar da sua ajuda.
   
— Mas eu gosto daqui — reclamei. — Não quero ir embora.
   
— Nem eu — disse o Sr. Crepsley secamente. — Mas preciso ir. E você tem de ir comigo. Lembre-se, somos vampiros, não artistas de circo. O Circo dos Horrores é uma forma de disfarce, não nosso lar.
   
— Quanto tempo ficaremos fora? — perguntei, tristonho.
   
— Dias. Semanas. Meses. Não sei dizer ao certo.
   
— E se eu me recusar?
   
Ele olhou ameaçadoramente para mim.
   
— Um assistente que não obedece às ordens não tem utilidade — disse ele, em voz baixa. — Se não posso contar com sua cooperação, terei de tomar providências para demitir você do cargo.
   
— Quer dizer, me despedir? — sorri amargamente.
   
— Só há um modo de lidar com um vampiro rebelde — respondeu ele e eu sabia qual era: uma estaca enfiada no coração!
   
— Não é justo — resmunguei. — O que vou fazer sozinho o dia inteiro numa cidade estranha, enquanto você dorme?
   
— O que você fazia quando era humano? — perguntou ele.
   
— As coisas eram diferentes — disse eu. — Eu tinha amigos e família. Vou ficar sozinho outra vez se deixarmos o Circo, como quando comecei a ser seu assistente.
   
— Vai ser difícil — disse o Sr. Crepsley, compreensivo. — Mas não temos escolha. Devo partir no começo da noite. Eu partiria agora, se não estivéssemos tão perto do nascer do dia. Você deve vir comigo. Não há outra...
   
Parou, como se tivesse uma nova ideia.
   
— É claro — falou ele devagar. — Podemos levar outra pessoa conosco.
   
— Como assim? — perguntei.
   
— Podemos levar Ofídio.
   
Franzi a testa, pensando nessa possibilidade.
   
— Vocês dois são bons amigos, não é mesmo?
   
— Somos — respondi. — Mas não sei o que Ofídio vai pensar disso. E há também a serpente. O que faríamos com ela?
   
— Tenho certeza de que alguém pode cuidar da serpente — disse o Sr. Crepsley, entusiasmando-se com a idéia. — Ofídio seria boa companhia para você. E ele é mais sensato. Pode evitar que você faça bobagem quando não estou por perto.
   
— Eu não preciso de uma babá! — disse eu, zangado.
   
— Não — concordou o Sr. Crepsley —, mas um guardião não pode se descuidar. Você tem o hábito de se meter em encrenca quando age por sua conta. Lembra-se de quando roubou Madame Octa? E a confusão com aquele garoto humano, Sam não sei do quê?
   
— Isso não foi culpa minha! — gritei.
   
— Certamente que não - disse o Sr. Crepsley. — Mas aconteceu quando você resolveu as coisas sozinho.
   
Fiquei emburrado mas não disse nada.
   
— Convido Ofídio ou não? — insistiu ele.
   
— Eu convido — disse eu. — Você provavelmente vai fazer com que ele se sinta obrigado a ir.
   
— Faça como quiser — levantou-se. — Vou acertar as coisas com Hibérnio. — Esse era o nome do Sr. Altão. — Esteja aqui antes do amanhecer para que eu possa lhe dar alguma orientação. Quero ter certeza de poder partir tão logo anoiteça.
   
Ofídio levou um bocado de tempo para decidir. Não gostava da ideia de se separar dos amigos do Circo e da sua serpente.
   
— Não vai ser para sempre — disse eu.
   
— Eu sei — ele parecia inseguro.
   
— Encare como umas férias — sugeri.
   
— Gosto da ideia de umas férias — admitiu. — Mas seria interessante saber aonde estou indo.
   
— Às vezes as surpresas são mais divertidas.
   
— E às vezes não são — resmungou.
   
— O Sr. Crepsley vai dormir o dia todo — lembrei. — Podemos fazer o que quisermos. Podemos visitar a cidade, ir ao cinema, nadar, o que quisermos.
   
— Nunca nadei — disse Ofídio e, pelo seu sorriso, vi que acabava de decidir fazer a viagem.
   
— Posso dizer ao Sr. Altão que você vai com a gente? — perguntei. — E pedir a ele que providencie os cuidados para sua serpente?
   
Ofídio assentiu.
   
— De qualquer modo, ela não gosta do frio. Vai dormir quase todo o inverno.
   
— Ótimo! — Sorri, feliz. — Vai ser maravilhoso.
   
— Acho bom que seja — disse ele. — Ou será a última vez que saio de férias com você.
   
Passei o resto do dia fazendo e desfazendo as malas. Eu tinha só duas pequenas sacolas, uma para mim e outra para o Sr. Crepsley, mas, fora meu diário, que eu levava para toda parte, estava sempre mudando de ideia sobre o que deveria levar.
   
Então me lembrei da Madame Octa — eu não ia levá-la conosco — e fui procurar alguém para tomar conta dela. Mano Mão concordou em cuidar da aranha, mas disse que de jeito nenhum a deixaria fora da gaiola.
   
Finalmente, depois de horas indo de um lado para outro — o Sr. Crepsley não fazia nada, o bode velho sabido —, a noite chegou e com ela a hora de partir.
   
O Sr. Crepsley examinou as sacolas e aprovou com um breve movimento da cabeça. Eu falei sobre deixar Madame Octa com Mano Mão e ele assentiu outra vez do mesmo modo. Apanhamos Ofídio, despedimo-nos do Sr. Altão e de alguns dos outros e começamos a andar pelo campo.
   
— Vai poder carregar nós dois quando deslizar? — perguntei ao Sr. Crepsley.
   
— Não tenho nenhuma intenção de deslizar — disse ele.
   
— Então, como vamos viajar?
   
— Ônibus e trens — respondeu ele, e riu da minha surpresa. — Os vampiros podem usar os transportes públicos como os seres humanos. Não há nenhuma lei que proíba.
   
— Acho que não — disse eu, com um largo sorriso, imaginando o que os outros passageiros pensariam se soubessem que estavam viajando com um vampiro, um meiovampiro e um menino-cobra. — Então, vamos? — perguntei.
   
— Vamos — respondeu o Sr. Crepsley simplesmente, e nós três seguimos para a cidade para apanhar o primeiro trem.
 
   
CAPÍTULO QUATRO
   
 
   
 
    Era estranho estar em uma cidade. O barulho e o cheiro quase me deixaram doido nos primeiros dias. Com meus sentidos mais aguçados, era como estar dentro de um liquidificador ligado. Eu ficava na cama durante o dia, cobrindo a cabeça com o travesseiro mais espesso que encontrei. Mas, no fim de uma semana, acabei me acostumando com os sons superagudos e os cheiros, e aprendi a ignorar tanto uns quanto outros.
   
Ficamos em um hotel na esquina de uma praça tranquila. A noitinha, quando o trânsito era pouco, garotos da vizinhança se reuniam na rua para jogar futebol. Eu gostaria de jogar também, mas não ousava — com minha força extra, podia acidentalmente acabar quebrando os ossos de alguém ou coisa pior.
   
No começo da segunda semana, tínhamos entrado em uma rotina confortável. Ofídio e eu,
todas as manhãs — o Sr. Crepsley saía todas as noites, sem dizer aonde ia —, tomávamos um café da manhã reforçado. Depois saíamos para explorar a cidade, que era grande e velha e cheia de coisas interessantes. Voltávamos para o hotel ao cair da noite, para o caso de o Sr. Crepsley precisar de nós, assistíamos a um pouco de TV ou disputávamos jogos no computador. Geralmente íamos para a cama entre onze horas e meia-noite.
   
Depois de um ano no Circo dos Horrores, era uma experiência estimulante viver como um ser humano outra vez. Eu adorava poder dormir até tarde, sem me preocupar em caçar comida para os Pequeninos. Era muito bom não ter de estar sempre correndo, ajudando os artistas e poder sentar-se calmamente à noite, me enchendo de doces e assistindo à TV — isso era o paraíso.
   
Ofídio se divertia também. Ele nunca tivera uma vida assim. Era parte do mundo do circo desde que se conhecia por gente, primeiro com o cruel dono de um espetáculo ambulante, depois com o Sr. Altão. Ele gostava do Circo — eu também gostava — e esperava ansiosamente nossa volta, mas tinha de admitir que era muito bom aquele intervalo.
   
— Eu nunca pensei que a TV pudesse ser um vício — disse ele, depois de assistirmos a cinco seriados seguidos.
   
— Meus pais nunca me deixavam assistir muito à televisão — disse eu. — Mas alguns meninos do colégio assistiam à televisão cinco ou seis horas todas as noites da semana.
   
— Eu não chegaria a tanto — comentou Ofídio, pensativo. — É divertido em doses
pequenas. Talvez eu compre um aparelho portátil quando voltarmos ao Circo dos Horrores.
   
— Nunca pensei em comprar uma televisão desde que entrei para o Circo — disse eu. — Tanta coisa estava acontecendo que eu nem podia pensar nisso. Mas você tem razão. Seria bom ter um aparelho, nem que fosse só para as reprises dos Simpson. — Este era nosso seriado favorito.
   
Às vezes eu imaginava o que o Sr. Crepsley andava fazendo — ele sempre foi misterioso, mas não tanto. Porém, na verdade, isso não me preocupava demais. Era bom ficar algum tempo livre do Sr. Crepsley.
   
Sempre que saíamos, Ofídio tinha de se disfarçar com várias camadas de roupa. Não por causa do frio — embora estivesse gelado. A primeira neve começou a cair alguns dias depois que chegamos — mas por causa da sua aparência. Embora ele não se incomodasse com os olhares espantados e curiosos — estava acostumado —, era mais fácil andar pela cidade se pudesse passar por ser humano normal. Assim ele não precisava parar a cada cinco ou dez minutos para explicar a um estranho curioso quem e o que ele era.
   
Cobrir seu corpo e suas pernas era fácil — calça, um blusão e luvas —, mas o rosto era outro papo. Não tinha cor tão intensa nem tantas escamas quanto no resto do corpo, mas não era o rosto de um ser humano comum. Um boné grosso disfarçava seu longo cabelo amareloesverdeado, e óculos com vidros grossos escondiam a parte superior do rosto. Mas a parte inferior...
   
Experimentamos com ataduras e tintas cor da pele antes de descobrir a resposta: uma barba falsa! Nós a compramos em uma loja de disfarces e achamos que parecia idiota — ninguém podia confundi-la com uma barba verdadeira —, mas serviu para o que queríamos.
   
— Devemos parecer um par de doidos — disse Ofídio, rindo, enquanto passeávamos pelo zoológico. — Você com sua fantasia de pirata, eu neste disfarce evidente. As pessoas provavelmente pensam que somos um par de fugitivos de algum hospício.
   
— O pessoal no hotel com certeza pensa isso — disse eu, rindo também. — Ouvi os mensageiros e as camareiras falando a nosso respeito, e eles acham que o Sr. Crepsley é médico de loucos e que somos seus pacientes.
   
— É mesmo? — riu Ofídio. — Imagine se soubessem a verdade, que vocês são dois vampiros e eu um menino-cobra!
   
— Acho que não se importariam — disse eu. — O Sr. Crepsley dá boas gorjetas e é isso que importa. “O dinheiro compra privacidade”, como ouvi um dos gerentes dizer quando uma camareira se queixou de um cara que andava nu nos corredores.
   
— Eu vi! — exclamou Ofídio. — Pensei que tinha ficado fora do quarto quando a porta bateu.
   
— Nada disso! — Sorri. — Aparentemente ele anda nu há uns quatro ou cinco dias. Segundo o gerente, ele vem todos os anos por algumas semanas e passa o tempo todo andando pelo hotel, pelado como veio ao mundo.
   
— E eles deixam? — perguntou Ofídio, incrédulo.
   
— “O dinheiro compra privacidade” — repeti.
   
— E eu que pensava que o Circo dos Horrores fosse um lugar estranho para viver — murmurou Ofídio. — Os seres humanos são mais esquisitos do que nós.
   
Com o passar dos dias, a cidade se tornava cada vez mais natalina, todos se preparando para o dia 25 de dezembro. Árvores de Natal apareciam; luzes e decorações se acendiam nas ruas e nas janelas, à noite; Papai Noel aterrissava e recebia pedidos; brinquedos de todas as formas e tamanhos enchiam as prateleiras das lojas, do chão até o teto.
   
Eu esperava ansiosamente o Natal. No ano anterior, a data passou sem ser notada, uma vez que quase ninguém do Circo dos Horrores se dava ao trabalho de comemorar.
   
Ofídio não entendia o porquê de toda aquela excitação.
   
— Para que serve isso? — perguntava. — As pessoas gastam um monte de dinheiro para dar presentes que as outras pessoas não precisam, ficam quase loucas preparando ceias especiais, enfeitam árvores, um número assustador de perus são engordados e mortos. É ridículo!
   
Tentei dizer a ele que era um dia de paz e de boa vontade, quando as famílias se reuniam e festejavam, mas ele não se convenceu. Na sua opinião, era um desperdício maluco de dinheiro.
   
O Sr. Crepsley, é claro, apenas bufava quando mencionávamos o assunto.
   
— Um costume idiota dos seres humanos — dizia. Não queria nada com as festas.
   
Ia ser um Natal solitário, longe da minha família — eu sentia mais falta de todos eles nessa época do ano, especialmente de Aninha —, mas esperava ansioso o Natal, do mesmo jeito. O hotel ia dar uma grande festa para os hóspedes. Teriam presunto, peru, pudim de ameixas e uma caixa de surpresas. Eu estava resolvido a arrastar Ofídio para o espírito do dia. Tinha certeza de que ele mudaria de opinião quando experimentasse o Natal pela primeira vez.
   
 
   
 
    — Quer sair para fazer compras? — perguntei em uma tarde gelada, enrolando um cachecol no pescoço (eu não precisava do cachecol, meu sangue de vampiro me mantinha aquecido, nem do casaco grosso ou do blusão de lã, mas chamaria atenção se saísse sem eles).
   
Ofídio olhou pela janela. Tinha nevado mais cedo e o mundo lá fora estava todo branco e gelado.
   
— Não quero me dar ao trabalho — disse ele. — Não estou com vontade de me enrolar em roupas pesadas outra vez. — Naquela manhã tínhamos brincado de jogar bola de neve um no outro.
   
— Tudo bem — disse eu, satisfeito por Ofídio não querer sair. Eu queria procurar alguns presentes para ele. — Não vou demorar mais de uma ou duas horas.
   
— Vai voltar antes do anoitecer? — perguntou Ofídio.
   
— Talvez — disse eu.
   
— Acho melhor voltar. — Com a cabeça indicou o quarto do Sr. Crepsley. — Você sabe como são as coisas. A única noite em que não estiver aqui ele vai precisar de você.
   
Eu ri.
   
— Vou arriscar. Quer que eu traga alguma coisa? — Ele balançou a cabeça. — Tudo bem. A gente se vê logo.
   
Saí andando na neve, assobiando. Eu gostava da neve. Ela cobria a maior parte dos cheiros e abafava grande parte do barulho. Algumas crianças que moravam na praça faziam um boneco de neve. Parei para olhar mas segui meu caminho antes que elas me convidassem para brincar. Era melhor não me envolver com seres humanos.
   
No lado de fora de uma grande loja de departamentos, enquanto eu olhava a vitrine pensando no que daria para Ofídio, uma menina parou ao meu lado. Era muito morena, com cabelos longos e negros, mais ou menos da minha idade e um pouco mais baixa do que eu.
   
— Bem-vindo a bordo, capitão — disse ela, batendo continência.
   
— Como disse? — perguntei, espantado.
   
— Sua fantasia — com um largo sorriso ela abriu meu casaco. — Eu acho legal, você parece um pirata. Você vai entrar ou está só olhando?
   
— Não sei. Procuro um presente para um amigo, mas estou em dúvida.
   
— Certo — assentiu. — Qual a idade dele?
   
— Um pouco mais velho do que eu.
   
— Loção pós-barba — disse ela, com firmeza.
   
Balancei a cabeça.
   
— Ele ainda não faz a barba. — E jamais faria, pêlos não cresciam nas escamas de Ofídio.
   
— Tudo bem. O que acha de um CD?
   
— Ele não ouve muita música — disse. — Mas, se eu der um CD player, com certeza vai começar a ouvir.
   
— Um CD player é muito caro — disse a menina.
   
— Ele é um bom amigo. Ele merece.
   
— Pois então vá em frente. — Ela estendeu a mão sem luva, apesar do frio. — Meu nome é Débora.
   
Apertei a mão dela. A minha parecia muito branca comparada à pele morena da menina.
Eu disse meu nome.
   
— Darren e Débora — sorriu ela. — Soa bem, como Bonnie e Clyde.
   
— Você sempre fala assim com estranhos? — perguntei.
   
— Não — disse ela. — Mas não somos estranhos.
   
— Não somos? — perguntei, intrigado.
   
— Tenho visto você por aí. Eu moro na praça, perto do seu hotel. Por isso sabia da sua fantasia de pirata. Você anda com aquele cara engraçado de óculos e barba falsa.
   
— Ofídio. O presente é para ele. — Tentei lembrar se havia visto aquele rosto no meio das outras crianças. — Não me lembro de ter visto você.
   
— Não tenho saído muito. Estive de cama, com um resfriado. Por isso vi você. Passei
muitos dias na frente da janela, olhando a praça. A vida fica muito chata quando se está presa à cama.
   
Débora assoprou as mãos e esfregou uma na outra.
   
— Você devia estar usando luvas — disse eu.
   
— Olha só quem fala — disse ela com desdém. Eu havia esquecido de calçar luvas. — Mas é por isso que estou aqui. Perdi minhas luvas e estou indo de loja em loja tentando encontrar um par igual. Não quero que meus pais descubram que perdi as luvas no meu segundo dia fora da cama.
   
— Como é a luva? — perguntei.
   
— Vermelha com imitação de pele em volta do pulso. Ganhei do meu tio há alguns meses mas ele não disse onde comprou.
   
— Já tentou esta loja? — perguntei.
   
— Hã-hã — disse ela. — Eu ia entrar quando vi você.
   
— Quer vir comigo?
   
— Claro. Detesto fazer compras sozinha. Ajudo você a escolher um CD player se quiser. Entendo muito do assunto.
   
— Tudo bem — empurrei a porta da loja e a segurei para ela passar.
   
— Ei, Darren — disse ela, sorrindo. — Vão pensar que você está a fim de mim.
   
Senti que corava e em vão tentei achar uma resposta adequada. Débora riu, entrou e eu fui atrás dela.
 
   
 CAPÍTULO CINCO
   
 
   
 
    O sobrenome de Débora era Cicuta e ela o detestava.
   
— Imagine ter o nome de uma planta venenosa — disse, indignada.
   
— Não é tão ruim. Eu gosto.
   
— Isso mostra a espécie de gosto que você tem — disse ela com desprezo.
   
Débora morava na cidade havia pouco tempo. Não tinha irmãos ou irmãs. O pai era um especialista em computadores que estava sempre viajando pelo mundo todo a serviço. A família tinha morado em cinco lugares diferentes desde que ela nasceu.
   
Ela ficou interessada quando soube que eu também viajava muito. Não falei sobre o Circo dos Horrores, mas disse que estava sempre na estrada, com meu pai, que era caixeiroviajante.
   
Débora quis saber por que ainda não tinha visto meu pai na praça.
   
— Vi você e seu irmão — pensou que Ofídio fosse meu irmão e eu não corrigi o engano — uma porção de vezes, mas nunca seu pai.
   
— Ele se levanta muito cedo — menti. — Levanta-se antes de o sol nascer e só volta para casa no meio da noite, a maior parte das vezes.
   
— Ele deixa vocês dois sozinhos no hotel? — franziu os lábios, pensando no assunto. — E a escola? — perguntou.
   
— Estas luvas são iguais às que você quer? — Evitei responder à pergunta, tirando um par de luvas vermelhas de uma prateleira.
   
— Quase — disse ela, examinando as luvas. — As minhas eram um pouco mais escuras.
   
Fomos a outra loja e vimos uma porção de CD players. Eu não tinha muito dinheiro, por isso acabei não comprando nada.
   
— É claro que depois do Natal eles abaixam o preço nas liquidações — suspirou Débora. — Mas o que se pode fazer? Se a gente espera, parece mesquinho.
   
— O dinheiro não me preocupa — disse eu. Eu podia voltar ao hotel e pedir ao Sr. Crepsley.
   
Não encontramos as luvas que ela queria em outras duas lojas e andamos mais um pouco, vendo as luzes que se acendiam nas ruas e nas janelas.
   
— Adoro esta hora da noite — disse Débora. — É como se uma cidade fosse dormir e outra, nova, começasse a acordar.
   
— Uma cidade de notívagos — disse eu, pensando no Sr. Crepsley.
   
— Hummm — disse ela, olhando para mim de modo estranho. — De onde você é? Não consigo localizar por seu sotaque.
   
— Daqui e dali — respondi vagamente. — De um lado e de outro.
   
— Não vai me dizer, vai? — ela perguntou, diretamente.
   
— Meu pai não gosta que eu conte para outras pessoas.
   
— Por quê? — desafiou-me ela.
   
— Não posso dizer — respondi com um sorriso sem graça.
   
— Hummm — resmungou outra vez, mas não insistiu. — Que tal seu hotel? Parece um pouco antiquado. É mesmo?
   
— Não — disse eu. — É melhor do que a maioria dos lugares onde já estive. O pessoal não reclama se você brinca no corredor. E alguns hóspedes... — contei do cara que andava nu.
   
— Não! — exclamou, encantada. — Está brincando?
   
— Verdade — jurei.
   
— Eles não o expulsam?
   
— Ele está pagando. No que lhes diz respeito ele tem o direito de andar no hotel do modo que quiser.
   
— Tenho de ir lá qualquer dia — sorriu.
   
— Quando quiser — disse eu, sorrindo também. — Exceto durante o dia — acrescentei rapidamente, lembrando-me do sono do Sr. Crepsley. A última coisa que eu queria era que Débora surpreendesse o vampiro enquanto ele dormia.
   
Voltamos para a praça, sem pressa. Gostei de estar com Débora. Sabia que não era certo fazer amizade com seres humanos — era muito perigoso —, mas era difícil rejeitar Débora. Havia muito tempo eu não estava com alguém da minha idade, a não ser Ofídio, desde que virei meio-vampiro.
   
— O que vai dizer a seus pais sobre as luvas? — perguntei quando paramos na frente dos degraus da casa dela.
   
Débora deu de ombros.
   
— A verdade. Vou começar a tossir quando contar. Assim, não vão se zangar e sim ficar com pena de mim.
   
— Espertinha — ri.
   
— Não admira, com um sobrenome como Cicuta. — Ela sorriu, e então perguntou: — Não quer entrar um pouco?
   
Consultei o relógio. O Sr. Crepsley já devia ter acordado e provavelmente saído do hotel. Não me agradava a ideia de deixar Ofídio sozinho por muito tempo. Ele podia se aborrecer, achando que estava sendo abandonado, e resolver voltar para o Circo.
   
— Acho melhor não — disse eu. — É tarde. Estão me esperando.
   
— Você é quem sabe — disse Débora. — Apareça amanhã, a qualquer hora, se quiser. Estarei em casa.
   
— Não vai estar na escola? — perguntei.
   
Ela balançou a cabeça.
   
— Com as festas tão próximas, mamãe disse que não preciso ir até o Ano-Novo.
   
— Mas deixou você sair para procurar as luvas?
   
Débora mordeu o lábio, embaraçada.
   
— Ela não sabe que estive andando — admitiu. — Saí de táxi e disse que ia visitar uma amiga. Eu devia voltar de táxi também.
   
— Ah, ah! — Sorri. — Vejo a possibilidade de uma pequena chantagem.
   
— Experimente! — disse ela. — Faço uma poção de bruxa e transformo você numa rã. — Tirou uma chave da bolsa e disse: — Você vai aparecer, não vai? É muito chato ficar sozinha. Ainda não tenho muitos amigos aqui.
   
— Posso aparecer, mas como vai explicar minha presença para sua mãe? Não pode dizer que nos conhecemos em um táxi.
   
— Tem razão. — Entrecerrou os olhos. — Eu não tinha pensado nisso.
   
— Eu não sou só um rosto bonitinho — disse eu.
   
— Não é nem mesmo um rosto bonitinho! — riu. — Que tal se eu for ao hotel? — sugeriu. — Podemos ir ao cinema e digo para mamãe que nos conhecemos lá.
   
— Tudo bem — disse eu, e lhe dei o número quarto. — Mas não muito cedo — avisei. — Espere até as cinco ou seis horas, quando já está escuro.
   
— Certo. — Ela bateu os pés no degrau da frente da casa. — E então? — disse ela.
   
— E então o quê? — perguntei.
   
— Você não vai perguntar?
   
— Perguntar o quê?
   
— Se eu quero ir ao cinema.
   
— Mas você acaba de...
   
— Darren — suspirou ela. — As meninas nunca convidam os meninos para sair.
   
— Não? — Eu estava confuso.
   
— Você não sabe de nada, não é? — riu. — Apenas pergunte se eu quero ir ao cinema, certo?
   
— Certo — disse eu com um gemido. — Débora, quer ir ao cinema comigo?
   
— Vou pensar — disse ela; abriu a porta com a chave e desapareceu dentro da casa.
   
Meninas!
 
   
CAPÍTULO SEIS
   
 
   
 
    Ofídio assistia à televisão quando entrei no quarto.
   
— Alguma novidade? — perguntei.
   
— Não.
   
— O Sr. Crepsley não sentiu a minha falta?
   
— Ele mal notou que você não estava. Ele anda muito esquisito ultimamente.
   
— Eu sei. Está na hora de mais uma dose de sangue humano para mim, mas ele nem mencionou. Normalmente, ele se preocupa muito em certificar-se de que eu me alimento no tempo certo.
   
— Você vai se alimentar sem ele? — perguntou Ofídio.
   
— Provavelmente. Entro em um dos quartos, tarde da noite, e tomo algum sangue de um hóspede adormecido. Usarei uma seringa. — Eu não podia fechar os cortes com saliva, como um vampiro completo.
   
Eu havia percorrido um longo caminho no último ano. Não fazia muito tempo e eu teria adorado a chance de deixar passar o momento de me alimentar. Agora, eu me alimentava porque precisava, não porque me mandavam.
   
— Acho bom ter cuidado — advertiu Ofídio. — Se for apanhado, o Sr. Crepsley vai ficar furioso.
   
— Apanhado? Eu? Impossível! Entro e saio num instante, como um fantasma.
   
Foi o que fiz, mais ou menos às duas horas da manhã. Foi fácil para alguém com meus talentos. Encostando o ouvido na porta, eu podia ouvir os sons do quarto e dizer quantas pessoas estavam lá dentro e se tinham sono leve ou pesado. Quando encontrei um homem sozinho, roncando como um urso, entrei e tirei a dose necessária de sangue. De volta ao meu quarto, passei o sangue da seringa para um copo e bebi.
   
— Isso vai dar — disse eu, quando terminei. — Pelo menos vai me aguentar até amanhã, e é o que importa.
   
— O que há de tão especial amanhã? — perguntou Ofídio.
   
Contei meu encontro com Débora e que tínhamos combinado ir ao cinema.
   
— Você tem um encontro! — riu Ofídio, encantado.
   
— Não é um encontro! — disse eu, com desdém. — Só vamos ao cinema.
   
— Só? — sorriu. — Não existe isso de só com as meninas. É um encontro.
   
— Está bem. É uma espécie de encontro. Não sou burro. Sei que não posso me envolver.
   
— Por que não?
   
— Porque ela é uma garota normal e eu sou só meio humano.
   
— Isso não deve impedir que fiquem juntos. Ela não vai descobrir que é um vampiro, a não ser que você comece a morder o pescoço dela.
   
— Ha-ha — ri, secamente. — Não é isso. Dentro de cinco anos ela será uma mulher adulta, enquanto eu continuarei como sou agora.
   
Ofídio balançou a cabeça.
   
— Preocupe-se com os próximos cinco dias, não com cinco anos. Você tem estado muito com o Sr. Crepsley. Está ficando tão pessimista quanto ele. Não há razão para você não sair com garotas.
   
— Acho que tem razão — suspirei.
   
— É claro que tenho.
   
Mordi o lábio, nervosamente.
   
— Supondo que seja um encontro, o que a gente faz? Nunca fui a um encontro.
   
Ofídio deu de ombros.
   
— Nem eu. Mas acho que é só agir normalmente. Converse com ela. Conte algumas piadas. Trate a garota como amiga. Então...
   
— Então...? — perguntei quando ele parou.
   
Ofídio franziu os lábios.
   
— Dê um apertão — disse ele, rindo.
   
Atirei um travesseiro nele.
   
— Estou arrependido de ter contado para você — resmunguei.
   
— É brincadeira. Mas vou dizer uma coisa. — Ele ficou sério. — Não conte ao Sr. Crepsley. Ele provavelmente nos levará para outra cidade ou pelo menos para outro hotel.
   
— Você está certo — concordei. — Não vou falar em Débora quando ele estiver por perto. Não vai ser difícil. Eu mal o vejo. E, quando isso acontece, ele quase não fala. Parece estar em um mundo só dele.
   
Embora eu não soubesse então, um mundo do qual Ofídio e eu íamos fazer parte... e Débora também.
   
 
   
* * *
   
 
    O dia seguinte passou lentamente. Meu estômago era um feixe de nervos. Tive de tomar leite morno para me acalmar. Ofídio não ajudava em nada. Ficava dizendo a hora em voz alta e comentando: “Faltam cinco horas! Faltam quatro horas! Três horas e meia...”
   
Felizmente eu não precisava me preocupar com a roupa, porque só tinha aquela, portanto não havia o problema de escolher o que devia vestir. Isso resolvido, passei umas duas horas no banheiro, verificando se estava imaculadamente limpo.
   
— Acalme-se — disse Ofídio, finalmente. — Você está ótimo. Estou quase tentado a ir
com você.
   
— Cale a boca, seu burro. — E não pude conter um sorriso.
   
— Bem, de qualquer modo, quer que eu desapareça antes de Débora chegar? — perguntou Ofídio.
   
— Por quê?
   
— Você pode não me querer por perto — resmungou.
   
— Quero apresentar você a ela. Débora pensa que somos irmãos. Vai parecer estranho se você não estiver aqui.
   
— É só que... bem... como vai explicar? — perguntou Ofídio.
   
— Explicar o quê?
   
— O jeito como sou — disse ele, esfregando algumas escamas para fora do braço.
   
— Ah — finalmente compreendi do que se tratava. Débora não sabia que Ofídio era um menino-cobra. Ela esperava um garoto comum.
   
— Ela pode se assustar — disse Ofídio. — Muita gente se assusta quando se encontra diante de um cara como eu. Talvez fosse melhor eu...
   
— Escute — disse eu com firmeza. — Você é meu melhor amigo, certo?
   
— Certo — concordou ele, com um sorriso fraco. — Mas...
   
— Não! — exclamei. — Nada de “mas”. Eu gosto muito de Débora mas, se ela não pode aceitar sua aparência, pior para ela.
   
— Obrigado — disse Ofídio em voz baixa.
   
 
   
 
    A noite chegou e o Sr. Crepsley se levantou. Eu tinha preparado uma refeição para ele — bacon, salsichas, costeletas de porco. O Sr. Crepsley comeu em silêncio e saiu antes que Débora chegasse.
   
— Está se sentindo bem? — perguntei, vendo-o comer rapidamente.
   
— Ótimo — resmungou.
   
— Você está horrível — fui direto. — Tem se alimentado como deve?
   
Ele balançou a cabeça.
   
— Não tenho tido tempo. Talvez esta noite.
   
— Eu tirei sangue de um hóspede a noite passada — disse eu. — Vai me alimentar por uma semana mais ou menos.
   
— Muito bem — disse ele, distraído. Por ser a primeira vez que eu tinha feito aquilo sozinho, esperava algum elogio, mas aparentemente ele não se importou, como se tivesse perdido todo o interesse por mim.
   
Lavei os pratos depois que ele saiu e me sentei para assistir à TV com Ofídio e esperar por Débora.
   
— Ela não vem — disse eu, depois do que me pareceram umas duas horas. — Ela me deu o bolo.
   
— Relaxe — riu Ofídio. — Você só está sentado aí há dez minutos. É cedo ainda. Consultei meu relógio — ele tinha razão.
   
— Não vou conseguir — gemi. — Nunca saí com uma garota. Vou estragar tudo. Ela vai me achar um chato.
   
— Não fique tão tenso — disse Ofídio. — Você quer sair com ela e vai sair com ela, então, por que se preocupar?
   
Comecei a responder, mas fui interrompido por Débora batendo na porta. Esquecendo os nervos, levantei-me de um salto e a fiz entrar.
 
   
 CAPÍTULO SETE
   
 
   
 
    Eu esperava que Débora fosse aparecer toda arrumada, mas ela estava de jeans, um blusão folgado e um casaco longo e espesso.
   
Notei que usava um par de luvas vermelhas.
   
— Você encontrou as luvas? — perguntei.
   
Ela fez uma cara resignada.
   
— Estavam no meu quarto o tempo todo — gemeu. — Tinham caído atrás do aquecedor. É claro que só encontrei depois de ter contado à minha mãe que havia saído sem elas. Seu pai e seu irmão estão aqui também? — perguntou ela.
   
— O Sr. Cre... quero dizer, papai, saiu. Ofídio está — fiz uma pausa. — Tem uma coisa que você precisa saber sobre Ofídio.
   
— O que é?
   
— Ele não é como as outras pessoas.
   
— Quem é como as outras pessoas? — riu Débora.
   
— Você compreende — comecei a explicar. — Ofídio é um...
   
— Escute — interrompeu Débora. — Não me importa o quanto ele é esquisito. Apenas me faça entrar e me apresente.
   
— Tudo bem — sorri hesitante e com um gesto convidei-a a entrar. Débora passou por mim rápida e confiantemente. Deu alguns passos no quarto, viu Ofídio e parou.
   
— Minha nossa! — ela exclamou. — Isso é uma fantasia?
   
Ofídio sorriu, nervoso. Estava de pé na frente da TV, rígido, com os braços cruzados.
   
— Débora — disse eu —, este é Ofídio, meu irmão. Ele é...
   
— Isso são escamas? — perguntou ela, dando um passo na direção dele.
   
— Uh-huh — disse Ofídio.
   
— Posso tocar?
   
— Claro — respondeu Ofídio.
   
Ela passou os dedos no braço esquerdo dele — Ofídio estava de camiseta — e depois no direito.
   
— Minha nossa! — exclamou ela outra vez. — Você sempre foi assim?
   
— Sempre — disse Ofídio.
   
— Ele é um menino-cobra — expliquei.
   
Virou-se para mim, furiosa.
   
— Isso é uma coisa horrível de se dizer. Não devia xingar seu irmão só porque ele é diferente.
   
— Eu não estava xingando... — comecei, mas ela me interrompeu.
   
— Você gostaria que alguém caçoasse dessa fantasia idiota que você usa? — disse ela zangada. Olhei para minha roupa. — Oh, sim! — disse ela com desprezo. — Eu podia ter dito muita coisa sobre essa roupa maluca, mas não disse. Achei que, se você queria parecer alguém saído de um filme de piratas, o problema era seu.
   
— Está tudo bem — disse Ofídio, suavemente. — Eu sou um menino-cobra. — Débora olhou para ele, hesitante. — Sou mesmo — garantiu. — Tenho características ofídicas. Troco de pele, tenho o sangue frio, tenho olhos de cobra.
   
— Mesmo assim — disse Débora. — Não é direito ser comparado a uma cobra.
   
— É, se você gosta de cobras — riu Ofídio.
   
— Ah! — Débora olhou outra vez para mim, embaraçada. — Desculpe — disse ela.
   
— Tudo bem — disse eu, no fundo satisfeito com a reação dela. Uma prova de que não tinha preconceitos.
   
Débora estava fascinada com Ofídio e não parava de fazer perguntas. O que ele comia? Quantas vezes? Podia falar com as cobras? Depois de algum tempo, pedi a Ofídio para mostrar a língua — era incrivelmente longa e ele podia enfiá-la no nariz.
   
— É a coisa mais nojenta, mais legal que já vi! — exclamou Débora quando Ofídio demonstrou sua habilidade de lamber as narinas. — Eu gostaria de poder fazer isso. Ia matar de medo todo mundo na escola.
   
Finalmente chegou a hora de ir ao cinema.
   
— Não volto tarde — disse eu para Ofídio.
   
— Não se apresse por minha causa — disse ele, e piscou o olho.
   
 
   
 
    O cinema ficava perto e chegamos bem antes de o filme começar. Compramos pipoca e refrigerantes e entramos. Conversamos durante os comerciais e os trailers.
   
— Gosto do seu irmão — disse Débora. — Ele é um pouco tímido, mas acho que tem a ver com a aparência.
   
— Sim — concordei. — A vida não tem sido fácil para ele.
   
— Alguém mais na sua família parece uma cobra? — perguntou ela.
   
— Não. Ofídio é o único.
   
— Sua mãe não é fora do comum? — Eu tinha dito a Débora que meus pais eram divorciados e que Ofídio e eu passávamos metade do ano com cada um. — Ou seu pai?
   
Sorri.
   
— Papai também é estranho — disse eu. — Mas nada como Ofídio.
   
— Quando vou poder conhecê-lo?
   
— Logo — menti. Débora tinha gostado imediatamente do menino-cobra, mas como reagiria a um vampiro? Eu desconfiava que não aceitaria tão bem o Sr. Crepsley se soubesse o que ele era.
   
O filme era uma tola comédia romântica. Débora riu mais do que eu. Na volta à praça, comentamos o filme. Eu fingi ter gostado mais do que gostei realmente. Quando passamos por um beco escuro, Débora segurou minha mão para se sentir segura, o que para mim foi maravilhoso.
   
— Você não tem medo do escuro? — perguntou.
   
— Não — respondi. A pequena rua parecia bastante clara para meus olhos de vampiro. — Ter medo do quê? — perguntei.
   
Ela estremeceu.
   
— Sei que é bobagem, mas sempre tive um pouco de medo de ser atacada por um vampiro ou por um lobisomem. — Ela riu. — Bobeira, não acha?
   
— É mesmo — disse eu com uma risada forçada. — Bobeira.
   
Se ela soubesse...
   
— Suas unhas são bem compridas — comentou.
   
— Desculpe — disse eu. Minhas unhas eram incrivelmente duras. Tesouras não as cortavam. Eu tinha de cortar com os dentes.
   
— Não precisa se desculpar.
   
Quando saímos da rua estreita, senti que ela me observava atentamente à luz da rua.
   
— O que está olhando? — perguntei.
   
— Você tem alguma coisa diferente, Darren — disse ela, pensativa. — Mas não sei o que
é.
   
Dei de ombros, tentando levar na brincadeira.
   
— É porque sou muito bonito — disse eu.
   
— Não — ela estava séria. — É alguma coisa dentro de você. Às vezes eu vejo nos seus olhos.
   
Olhei para longe.
   
— Está me deixando embaraçado — murmurei.
   
Ela apertou a minha mão.
   
— Meu pai está sempre chamando minha atenção. Diz que sou muito curiosa. Minha mente está sempre cheia de ideias e eu nunca deixo de falar sobre elas. Preciso aprender a ficar quieta.
   
Chegamos à praça e levei Débora até a porta da sua casa. Fiquei parado, meio sem jeito, na frente dos degraus, imaginando o que devia fazer.
   
Débora resolveu o problema para mim.
   
— Quer entrar? — perguntou.
   
— Seus pais não estão em casa?
   
— Tudo bem, eles não se importam. Digo que você é amigo de uma amiga.
   
— Bem... está certo — disse eu. — Se você tem certeza.
   
— Eu tenho — sorriu, segurou minha mão e abriu a porta.
   
Eu estava quase tão nervoso, quando entrei, quanto na noite em que me esgueirei no porão, na minha cidade natal, para roubar Madame Octa do Sr. Crepsley adormecido.
 
   
CAPÍTULO OITO
   
 
   
 
    No fim, eu não precisava me preocupar. Os pais de Débora eram tão agradáveis quanto ela. Chamavam-se Nelson e Dora — não permitiram que eu os chamasse de Sr. e Sra. Cicuta —, e me fizeram sentir que era bem-vindo assim que entrei.
   
— Olá! — disse Nelson, vendo-me primeiro quando entramos na sala de estar. — Quem é esse?
   
— Mamãe, papai, este é Darren — disse Débora. — É amigo da Anita. Eu o encontrei no cinema e o convidei a vir até aqui. Tudo bem?
   
— Claro — disse Nelson.
   
— É claro — concordou Dora. — íamos jantar. Quer jantar conosco, Darren?
   
— Se não for incômodo — disse eu.
   
— De modo algum — sorriu. — Você gosta de ovos mexidos?
   
— É meu prato favorito. — Na verdade não era, mas achei que valia a pena ser delicado.
   
Enquanto comíamos, contei uma porção de coisas a meu respeito para Nelson e Dora.
   
— E a escola? — perguntou Nelson, como Débora havia perguntado na véspera.
   
— Meu pai foi professor — menti, tendo pensado um pouco no assunto desde o dia
anterior. — Ele dá aulas a nós dois, Ofídio e eu.
   
— Mais ovos, Darren? — perguntou Dora.
   
— Sim, por favor. Estão deliciosos. — Era verdade. Muito melhor do que quaisquer outros ovos mexidos que eu já houvesse comido. — O que tem neles?
   
— Alguns temperos extras — disse Dora, sorrindo orgulhosamente. — Eu fui chef de cozinha.
   
— Eu gostaria que tivessem alguém como a senhora no hotel — suspirei. — A comida não é muito boa.
   
Eu me ofereci para lavar os pratos, mas Nelson disse que se encarregava disso.
   
— É meu modo de me livrar da pressão de um dia difícil — disse. — Nada me agrada mais do que lavar alguns pratos sujos, lustrar o corrimão e passar aspirador nos tapetes.
   
— Ele está brincando? — perguntei para Débora.
   
— Na verdade, não. Tudo bem se formos para meu quarto? — perguntou ela.
   
— Vá em frente — disse Dora. — Mas não fiquem tagarelando por muito tempo, faltam ainda alguns capítulos para terminarmos Os três mosqueteiros, não se esqueça.
   
Débora fez uma careta.
   
— Um por todos e todos por um — gemeu. — Muito interessante, só que eu não acho.
   
— Você não gosta de Os três mosqueteiros?
   
— Você gosta?
   
— Claro. Eu vi o filme pelo menos oito vezes.
   
— Mas você nunca leu o livro?
   
— Não, mas eu li uma história em quadrinhos sobre eles, uma vez.
   
Débora trocou um olhar divertido com a mãe e as duas começaram a rir.
   
— Eu tenho de ler um pouco do que chamam de clássicos todas as noites — resmungou Débora. — Espero que você nunca tenha de aprender quanto esses livros são chatos. — Desço logo — disse ela para a mãe e subiu a escada na minha frente.
   
O quarto dela era no terceiro andar. Um quarto grande, quase vazio, com enormes guardaroupas embutidos e poucos pôsteres e enfeites.
   
— Não gosto de lugares muito atulhados — explicou Débora quando me viu olhando em volta.
   
Havia uma árvore de Natal artificial, sem nenhum ornamento, em um canto. Eu tinha visto
uma também na sala de estar e notei mais algumas em outros quartos quando subimos a escada.
   
— Por que as árvores? — perguntei.
   
— Ideia de papai. Ele adora árvores de Natal, por isso pusemos uma em cada cômodo da casa. Os ornamentos estão em caixinhas, debaixo delas — apontou para a pequena caixa debaixo da árvore —, e nós as abrimos no dia de Natal e decoramos as árvores. É um belo modo de passar a noite e nos deixa cansados, de modo que caímos no sono assim que encostamos a cabeça no travesseiro.
   
— Parece divertido. — Concordei pensativamente, lembrando como era bom decorar a árvore de Natal em casa, com minha família.
   
Débora me observou em silêncio.
   
— Você podia vir na véspera de Natal — disse ela. — Você e Ofídio. Seu pai também. Podem ajudar com as árvores.
   
Olhei para ela.
   
— Fala sério?
   
— Claro. Tenho de perguntar aos meus pais primeiro, mas duvido que eles ponham alguma objeção. Já tivemos amigos nos ajudando antes. É mais divertido com mais gente.
   
Fiquei satisfeito por ela ter convidado, mas hesitei antes de aceitar.
   
— Posso perguntar para eles? — disse Débora.
   
— Não sei se ainda estaremos aqui no Natal. O Sr. Cre... papai não é previsível. Ele vai aonde o trabalho exige, seja lá onde for.
   
— Muito bem, o convite está de pé — disse ela. — Se estiverem aqui, ótimo. Se não — deu de ombros —, nos ajeitaremos sozinhos. Falamos sobre presentes de Natal.
   
— Você vai comprar o CD player para o Ofídio? — perguntou Débora.
   
— Vou. E alguns CDs também.
   
— Fica faltando só seu pai. O que vai dar a ele?
   
Pensei no Sr. Crepsley e do que ele poderia gostar. Eu não ia comprar nada para ele — ele sempre ignorava presentes —, mas era interessante pensar no que eu poderia dar a ele. O que podia interessar um vampiro?
   
Comecei a sorrir.
   
— Já sei — disse eu. — Vou comprar para ele uma lâmpada ultravioleta.
   
— Uma lâmpada ultravioleta? — estranhou Débora.
   
— Assim ele pode se bronzear. — Eu comecei a rir. — Ele está bastante pálido. Não toma muito sol.
   
Débora não compreendia por que eu estava achando tanta graça. Eu gostaria de poder explicar a piada para ela — valia a pena comprar a lâmpada só para ver a cara do vampiro —, mas não tinha coragem.
   
— Você tem um senso de humor esquisito — murmurou, perplexa.
   
— Confie em mim — disse eu. — Se conhecesse meu pai, ia saber por que estou rindo. — Ia contar a Ofídio minha ideia quando voltasse para o hotel. Ele podia apreciar a ironia.
   
Conversamos por mais ou menos uma hora. Então chegou o momento de ir embora.
   
— Muito bem — disse ela, quando me levantei. — Eu não ganho um beijo de boa-noite?
   
Pensei que fosse ter um ataque.
   
— Eu... humm... quero dizer... — transformei-me em um desastre gaguejante.
   
— Você não quer me beijar? — perguntou Débora.
   
— Quero! — disse eu rapidamente, ofegante. — Só que... eu... huumm.
   
— Ei, esqueça — disse ela, dando de ombros. — Para mim tanto faz — levantou-se. — Eu o acompanho até a porta.
   
Descemos a escada rapidamente. Eu queria me despedir de Nelson e Dora, mas Débora não me deu chance. Ela foi direto para a porta e a abriu. Eu estava ainda tentando vestir o casaco.
   
— Posso voltar amanhã? — perguntei, lutando para encontrar a manga esquerda do casaco.
   
— Claro, se quiser — disse ela.
   
— Escute, Débora. Desculpe se não a beijei. É que eu fiquei...
   
— Assustado? — perguntou, sorrindo.
   
— Isso aí — admiti.
   
Débora riu.
   
— Tudo bem. Pode vir amanhã. Eu quero que venha. Só que na próxima vez arranje um pouco mais de coragem, está certo? — E fechou a porta atrás de mim.
 
   
 CAPÍTULO NOVE
   
 
   
 
    Fiquei parado nos degraus durante uma eternidade, sentindo-me um completo idiota. Comecei a andar relutantemente de volta ao hotel — mas não queria voltar, não queria admitir para Ofídio minha tolice. Por isso, dei algumas voltas na praça, deixando que o ar frio da noite invadisse meus pulmões e clareasse minha cabeça.
   
Eu deveria me encontrar com Débora no dia seguinte, mas, de repente, senti que não poderia esperar tanto tempo. Isso resolvido, fui outra vez para a frente da casa dela, olhei para todos os lados para me certificar de que não estava sendo observado. Não vi ninguém e, com minha visão extraforte, tive certeza de que ninguém podia me ver.
   
Tirei os sapatos e subi pela calha na frente da casa. A janela do quarto de Débora ficava a três ou quatro metros da calha, assim, quando cheguei a ela, enfiei as unhas no tijolo e
atravessei.
   
Fiquei dependurado logo abaixo da janela, esperando que Débora aparecesse.
   
Mais ou menos vinte minutos depois, a luz se acendeu no quarto. Bati de leve no vidro da janela; depois de um tempo, bati com mais força. Passos se aproximaram.
   
Débora abriu um pouco a cortina e olhou para fora, intrigada.
   
Depois de alguns segundos, olhou para baixo e me viu. Quase desmaiou de surpresa.
   
— Abra a janela — disse eu, movendo os lábios devagar para o caso de Débora não poder me ouvir. Com um gesto afirmativo, ela se ajoelhou e levantou o vidro inferior da janela.
   
— O que está jazendo? — murmurou. — No que está segurando?
   
— Estou flutuando no ar — brinquei.
   
— Você é doido. Vai escorregar e cair.
   
— Estou perfeitamente seguro — garanti. — Sou um bom alpinista.
   
— Deve estar congelando — ela olhou para meus pés. — Onde estão seus sapatos? Entre, depressa antes que...
   
— Não quero entrar — interrompi. — Subi aqui porque... bem... eu... — respirei fundo. — O convite ainda está de pé?
   
— Que convite? — perguntou Débora.
   
— Para o beijo — disse eu.
   
Débora piscou os olhos, depois sorriu.
   
— Você é louco — disse, rindo baixinho.
   
— Cem por cento louco — concordei.
   
— Todo esse trabalho só para isso? — perguntou.
   
Fiz que sim com a cabeça.
   
— Podia ter batido na porta.
   
— Não pensei nisso — sorri. — Então, o que me diz?
   
— Acho que você merece — disse ela —, mas rápido, está bem?
   
— Está bem — concordei.
   
Débora pôs a cabeça para fora. Eu me inclinei para a frente, com o coração disparado, e encostei de leve meus lábios nos dela.
   
Débora sorriu.
   
— Valeu a pena o esforço? — perguntou.
   
— Valeu. — Eu estava tremendo e não era de frio.
   
— Tome — disse. — Aqui está outro.
   
Ela me beijou docemente e quase soltei as unhas da parede.
   
Ela se afastou, sorrindo misteriosamente. No vidro escuro vi meu reflexo, rindo como um bobão.
   
— Vejo você amanhã, Romeu — disse ela.
   
— Amanhã — suspirei, feliz.
   
 
   
 
    Quando a janela e as cortinas se fecharam, desci, satisfeito comigo mesmo. Praticamente voei para o hotel. Estava quase na porta quando me lembrei dos meus sapatos. Corri até a casa, apanhei os sapatos, sacudi a neve acumulada neles e calcei.
   
Quando cheguei ao hotel, recuperei minha compostura. Abri a porta do quarto e entrei. Ofídio assistia à TV. Olhava atento para a tela e mal notou minha chegada.
   
— Voltei — disse eu, tirando o casaco. Ele não disse nada. — Voltei! — repeti em voz mais alta.
   
— Humm — rosnou, acenando distraído para mim.
   
— Que bela atitude — reclamei. — Pensei que você estaria interessado em saber como foram as coisas. Na próxima vez não vou me iludir. No futuro, vou só...
   
— Você viu as notícias? — perguntou Ofídio em voz baixa.
   
— Talvez você fique surpreso em saber, jovem Ofídio — disse eu sarcasticamente —, que não passam mais noticiários nos cinemas. Agora, quer saber como foi o meu encontro ou não?
   
— Você devia ver isto — disse Ofídio.
   
— Ver o quê? — perguntei, irritado. Fiquei atrás dele e vi que era um noticiário. — O noticiário? — Ri. — Desligue, Ofídio, que vou contar tudo sobre...
   
— Darren! — disse Ofídio, com uma impaciência que não era comum nele. Olhou para mim e seu rosto era uma máscara de apreensão. — Você precisa ver isto — repetiu, falando
mais devagar, e vi que ele não estava brincando.
   
Sentei e olhei para a tela. Vi o lado de fora de um prédio, então a câmera passou para uma tomada de interior, filmando as paredes. Uma legenda informava aos espectadores que as fotos eram de arquivo, o que significava que haviam sido tiradas fazia algum tempo. Um repórter falava vagamente sobre o prédio.
   
— Do que se trata? — perguntei.
   
— Foi aí que os corpos foram encontrados — sussurrou Ofídio.
   
— Que corpos?
   
— Olhe— disse ele.
   
As câmeras focalizaram um quarto escuro, que parecia igual aos outros, parou por alguns segundos, então voltaram para o exterior do prédio. A legenda informava que essas novas fotos haviam sido tiradas mais cedo, nesse mesmo dia. Vi vários policiais e médicos saindo do prédio, empurrando macas com rodas, cada uma delas com um objeto imóvel dentro de um saco de plástico.
   
— Esses são o que estou pensando? — perguntei.
   
— Cadáveres — confirmou Ofídio. — Seis até agora. A polícia ainda está revistando o prédio.
   
— O que isso tem a ver conosco? — perguntei, inquieto.
   
— Ouça. — Ele aumentou o volume.
   
Uma repórter falava agora para a câmera, ao vivo, explicando como a polícia encontrara os corpos — dois adolescentes os tinham descoberto por acaso quando exploravam o prédio deserto — e como a procura estava se processando. A repórter parecia extremamente abalada.
   
O apresentador do noticiário perguntou à repórter alguma coisa sobre os corpos. Ela balançou a cabeça.
   
— Não — disse ela. — A polícia não está divulgando nomes e não vai divulgar antes de
notificar a família dos mortos.
   
— Souberam mais alguma coisa sobre a natureza das mortes? — perguntou o apresentador.
   
— Não — respondeu ela. — A polícia bloqueou o fluxo de informações. Temos apenas as notícias iniciais. As seis pessoas, não sabemos se são homens ou mulheres, aparentemente foram vítimas de um assassino em série ou de algum culto sacrificial. Não sabemos nada sobre os dois últimos corpos encontrados, mas os quatro primeiros apresentam as mesmas condições e ferimentos estranhos.
   
— Pode explicar mais uma vez quais são essas condições? — perguntou o apresentador.
   
A repórter inclinou a cabeça assentindo.
   
— As vítimas, pelo menos as quatro primeiras, apresentam um corte na garganta, que parece ter sido a causa da morte. Além disso, os corpos parecem, e devo avisar que esta é uma declaração prematura, não verificada ainda, completamente sem sangue.
   
— Possivelmente sugaram o sangue dessas pessoas ou o secaram de algum modo? — sugeriu o apresentador.
   
A repórter deu de ombros.
   
— Até o momento, ninguém sabe a resposta, exceto a polícia. — Ela fez uma pausa. — E, claro, o assassino.
   
Ofídio abaixou o som, mas deixou a imagem.
   
— Está vendo? — perguntou em voz baixa.
   
— Oh, não — murmurei. Pensei no Sr. Crepsley saindo sozinho todas as noites desde que chegamos, errando pela cidade por motivos que não revelava. Pensei nos seis corpos e nos comentários do apresentador e da repórter: “... completamente sem sangue.” “Possivelmente sugaram o sangue.”
   
— O Sr. Crepsley — disse eu. E por um longo tempo olhei para a tela, em silêncio, incapaz de dizer qualquer outra coisa.
 
   
CAPÍTULO DEZ
   
 
   
 
    Andei de um lado para outro, no quarto do hotel, os punhos fechados, praguejando furioso, Ofídio olhando para mim em silêncio.
   
— Eu vou matá-lo — resmunguei, finalmente. — Vou esperar o nascer do dia, abro as cortinas, enfio uma estaca no seu coração, corto fora sua cabeça e ponho logo nele.
   
— Você não acredita em aguardar os acontecimentos, certo? — observou Ofídio, secamente. — Suponho que também vá retirar o cérebro dele e encher sua cabeça com alho.
   
— Como você pode fazer piada com uma coisa dessas? — gritei.
   
Ofídio hesitou.
   
— Pode não ter sido ele.
   
— Ora, deixe disso! — rosnei. — Quem mais pode ter sido?
   
— Eu não sei.
   
— O sangue todo foi sugado dos corpos! — gritei.
   
— É o que os repórteres pensam — disse Ofídio. — Eles não têm certeza.
   
— Talvez seja melhor esperar — disse eu, furioso. — Esperar que ele mate mais cinco ou seis, é isso?
   
Ofídio suspirou.
   
— Não sei o que devemos fazer. Mas acho que precisamos ter provas antes de ir atrás dele. Decapitar uma pessoa é uma coisa muito definitiva. Se descobrirmos, mais tarde, que estávamos errados, não poderemos voltar atrás. Não poderemos grudar sua cabeça outra vez e dizer: “Desculpe, foi um grande erro, sem ressentimentos.”
   
Ofídio tinha razão. Matar o Sr. Crepsley sem provas seria errado. Mas tinha de ser ele. Aquelas noites fora do hotel, seu modo estranho de agir, sem dizer o que estava fazendo — tudo se encaixava.
   
— Há mais uma coisa — disse Ofídio. Olhei para ele. — Digamos que o Sr. Crepsley seja o assassino.
   
— Não tenho nenhum problema para aceitar isso — resmunguei.
   
— Por que teria feito? — perguntou Ofídio. — Não é seu estilo. Eu o conheço há mais tempo do que você e nunca vi, nem ouvi falar, de nada parecido. Ele não é um assassino!
   
— Provavelmente matou quando era General Vampiro. — Contei a Ofídio minha conversa com Torvelinho.
   
— Sim — concordou Ofídio. — Ele matou vampiros malignos, que mereciam ser mortos. O que estou dizendo é que, se ele matou essas seis pessoas, talvez elas tivessem de ser mortas também. Talvez fossem vampiros.
   
Balancei a cabeça.
   
— Ele deixou de ser um General Vampiro há vários anos.
   
— Torvelinho pode ter persuadido o Sr. Crepsley a voltar a ser um general. Não sabemos coisa alguma sobre os Generais Vampiros nem como eles trabalham. Talvez por isso o Sr. Crepsley tenha vindo para cá.
   
De certa forma, parecia razoável, mas eu não acreditava.
   
— Seis vampiros perversos soltos em uma cidade? — perguntei. — Quais são as
probabilidades de isso acontecer?
   
— Quem sabe? — disse Ofídio. — Você sabe como um vampiro perverso age? Eu não sei. Talvez formem gangues.
   
— E o Sr. Crepsley liquidou todos eles sozinho. Vampiros são duros de matar. Ele não teria problema em matar seres humanos, mas seis vampiros? De jeito nenhum!
   
— Quem disse que estava sozinho? — perguntou Ofídio. — Talvez Torvelinho estivesse com ele. Talvez haja uma porção de Generais Vampiros na cidade.
   
— Seu argumento fica cada vez mais fraco — comentei.
   
— É possível — disse Ofídio —, mas isso não quer dizer que eu esteja errado. Nós não sabemos, Darren. Não pode matar o Sr. Crepsley por causa de um palpite. Temos de esperar. Pense um pouco e vai ver que estou certo.
   
Eu me acalmei e pensei no assunto.
   
— Tudo bem — suspirei. — Ele é inocente até que se prove o contrário. Mas o que vamos fazer? Sentar e fingir que nada aconteceu? Informar a polícia? Perguntar diretamente a ele?
   
— Se estivéssemos no Circo dos Horrores — disse Ofídio, pensativo —, podíamos falar com o Sr. Altão e deixar tudo por conta dele.
   
— Mas não estamos no Circo — eu o alertei.
   
— Não — disse ele. — Estamos sozinhos. — Seus olhos estreitos se apertaram mais ainda. - Que tal isto? Vamos seguir o Sr. Crepsley todas as noites, ver aonde ele vai e o que está fazendo. Se descobrirmos que é o assassino, e que as vítimas são seres humanos comuns, então nós o matamos.
   
— Você faria isso? — perguntei.
   
Ofídio fez que sim.
   
— Eu nunca matei — disse ele em voz baixa — e odeio a idéia. Mas, se o Sr. Crepsley está assassinando sem uma boa causa, eu o ajudo a matá-lo. É claro que preferia deixar isso
para outra pessoa, mas como não há mais ninguém...
   
Ofídio estava decidido e tive certeza de que podia confiar nele.
   
— Mas precisamos ter certeza. Se houver a menor sombra de dúvida, não devemos fazer isso.
   
— Combinado — disse eu.
   
— E tem de ser uma decisão unânime — acrescentou Ofídio. — Quero que prometa que não vai matá-lo se eu não aprovar.
   
— Tudo bem.
   
— Falo sério. Se eu achar que o Sr. Crepsley é inocente e você for atrás dele, farei todo o possível para deter você. Mesmo que signifique... — Não terminou a frase.
   
— Não se preocupe — disse eu. — Não é uma coisa que espero ansiosamente. Estou acostumado ao Sr. Crepsley. A última coisa que desejo é matá-lo.
   
Era verdade. Gostaria que minhas suspeitas fossem sem fundamento. Mas desconfiava que não eram.
   
— Espero que estejamos enganados — disse Ofídio. — Dizer que vamos matá-lo é fácil, mas fazer é um pouco mais difícil. Ele não é do tipo que não se defende quando é atacado.
   
— Vamos nos preocupar com isso depois — propus. — Agora, aumente o volume da TV outra vez. Se tivermos sorte, a polícia vai resolver o caso e vai ser nada mais do que um ser humano louco que assistiu a muitos filmes de Drácula.
   
Sentei ao lado de Ofídio e passamos o resto da noite assistindo ao noticiário, quase sem falar, esperando que o vampiro — o assassino? — voltasse.
 
   
CAPÍTULO ONZE
   
 
   
 
    Seguir o Sr. Crepsley não era fácil. Na primeira noite nós o perdemos depois de alguns minutos. Ele subiu por uma escada de incêndio e, quando chegamos ao topo, já tinha desaparecido. Andamos pela cidade por algumas horas, esperando encontrá-lo por acaso, mas não vimos nem sinal dele o resto da noite.
   
Aprendemos com a experiência. No dia seguinte, enquanto o Sr. Crepsley dormia, saí e comprei dois telefones celulares. Ofídio e eu os testamos antes do cair da noite. Funcionavam perfeitamente.
   
Naquela noite, quando o Sr. Crepsley subiu para o telhado, Ofídio ficou embaixo. Ele não podia se mover tão depressa quanto eu. Sozinho, consegui localizar o vampiro e passei a informação para Ofídio, que o seguiu.
   
Mesmo sozinho, foi difícil. O Sr. Crepsley podia se movimentar muito mais rápido do que eu. Felizmente, ele não tinha a menor idéia de estar sendo seguido, por isso não se apressava tanto quanto podia, pensando que não precisava.
   
Eu o vigiei durante três horas naquela noite, antes de perdê-lo outra vez de vista quando ele deslizou para a rua e deu algumas voltas que me desorientaram. Na noite seguinte, fiquei com ele até o nascer do dia. Depois disso, nossa sorte variava. Algumas noites eu o perdia dentro de uma hora, em outras ficava atrás dele até de manhã.
   
Ele não fazia muita coisa enquanto eu o seguia. Às vezes parava em um lugar durante longo tempo, acima das pessoas, e as observava silenciosamente (escolhendo a próxima vítima). Outras vezes, vagava sem parar. Seus caminhos eram imprevisíveis. Podia repetir o caminho duas ou três noites seguidas ou tentar direções completamente novas todas as noites. Era impossível prever para onde iria.
   
No fim de cada noite, Ofídio estava exausto — eu sempre esquecia que ele não tinha os meus poderes —, mas não se queixava. Eu disse que ele podia ficar no hotel algumas noites, se quisesse, mas ele balançou a cabeça e insistiu em ir comigo.
   
Talvez pensasse que eu mataria o Sr. Crepsley se ele não estivesse por perto.
   
Talvez Ofídio estivesse certo.
   
Nenhum cadáver fresco foi descoberto desde a notícia sobre aquele prédio abandonado. Confirmaram que todos os corpos estavam sem sangue e que eram seres humanos comuns, dois homens e quatro mulheres. Todos jovens — o mais velho tinha vinte e sete anos — e moravam em lugares diferentes da cidade.
   
O desapontamento de Ofídio foi evidente quando soube que as vítimas eram pessoas normais — as coisas seriam mais fáceis se fossem todas vampiros.
   
— Os médicos podem dizer a diferença entre seres humanos e vampiros? — perguntou ele.
   
— É claro — respondi.
   
— Como?
   
— Sangue diferente— expliquei.
   
— Mas eles não tinham sangue — Ofídio me fez lembrar.
   
— As células não são iguais. Os átomos agem de modo estranho nos vampiros, por isso não podem ser fotografados. E eles têm unhas e dentes extremamente fortes. Os médicos saberiam, Ofídio.
   
Eu tentava manter a mente aberta. O Sr. Crepsley não matara ninguém enquanto nós o seguíamos, o que era um bom sinal. Por outro lado, ele podia estar esperando baixar a poeira para atacar outra vez — no momento, se alguém chegava tarde em casa da escola ou do trabalho, sinais de alarme começavam a tocar imediatamente.
   
Ou talvez ele tivesse matado. Talvez soubesse que nós o estávamos seguindo e só matava quando tinha certeza de que o tínhamos perdido. Isso era pouco provável, mas não descartei a hipótese completamente. O Sr. Crepsley podia ser astuto quando queria. Eu não duvidava de nenhuma das coisas que ele seria capaz de fazer.
   
Embora eu passasse dormindo grande parte do dia — para ficar acordado à noite —, fazia questão de acordar algumas horas antes do pôr-do-sol para estar com Débora. Geralmente eu ia à casa dela e sentávamos no quarto, ouvindo música e conversando — eu sempre procurava conservar energia para a perseguição noturna —, mas às vezes saíamos para andar ou para olhar as lojas.
   
Eu estava resolvido a não deixar que o Sr. Crepsley estragasse minha amizade com Débora. Eu gostava de estar com ela. Era minha primeira namorada. Eu sabia que teríamos de
nos separar mais cedo e não mais tarde — não me esqueci do que eu era —, mas não faria nada para encurtar nossos momentos juntos. Eu estava dedicando minhas noites a seguir o Sr. Crepsley. Não ia desistir dos meus dias também.
   
— Por que você não aparece mais depois do anoitecer? — perguntou ela em um sábado quando saíamos do cinema. Eu tinha me levantado mais cedo que de costume para passar o dia com ela.
   
— Tenho medo do escuro — choraminguei.
   
— Fala sério — ela disse e beliscou meu braço.
   
— Meu pai não gosta que eu saia à noite — menti. — Ele se sente um pouco culpado por nunca estar em casa durante o dia. Gosta que Ofídio e eu fiquemos com ele à noite, conversando sobre as coisas que fizemos.
   
— Com certeza ele não se importaria se você saísse uma vez ou outra — protestou. — Ele deixou você sair na noite do nosso primeiro encontro, não deixou?
   
Balancei a cabeça.
   
— Eu saí escondido. Ele ficou zangado quando descobriu. Fiquei de castigo por uma semana. Por isso não levei você para conhecê-lo, ele ainda está furioso.
   
— Ele parece um grande rabugento — disse Débora.
   
— Ele é — suspirei. — Mas o que posso fazer? É meu pai e tenho de obedecer.
   
Eu me sentia mal mentindo para ela, mas não podia dizer a verdade. Sorri para mim mesmo pensando no que aconteceria se eu dissesse: “Sabe esse cara que digo que é meu pai? Não é. É um vampiro e acho que foi quem matou aquelas seis pessoas.”
   
— Por que está sorrindo? — perguntou Débora.
   
— Não é nada — falei rapidamente, apagando o sorriso.
   
Era uma estranha vida dupla — garoto normal durante o dia, perseguidor mortal de vampiro à noite —, mas eu estava gostando. Há mais ou menos um ano, eu estaria confuso.
Teria um sono agitado, preocupado com o que a nova noite traria. Meus hábitos alimentares seriam afetados e eu ficaria deprimido. Provavelmente ia preferir me concentrar em apenas uma coisa e deixaria de ver Débora.
   
Não agora. Minha experiência com o Sr. Crepsley e com o Circo dos Horrores havia me transformado completamente. Eu podia desempenhar dois papéis diferentes. Na verdade, eu gostava da variedade. Seguir o vampiro à noite fazia com que me sentisse grande e importante — Darren Shan, protetor da cidade adormecida! —, e ver Débora à tarde fazia com que me sentisse um ser humano normal. Eu tinha o melhor de dois mundos. Isso acabou quando o Sr. Crepsley encontrou sua próxima vítima — o homem gordo.
 
   
 CAPÍTULO DOZE
   
 
   
 
    A princípio não percebi que o Sr. Crepsley estava seguindo alguém. Ele pairou sobre uma rua comercial movimentada durante quase uma hora, observando os fregueses. Então, de repente, subiu ao topo do prédio ao qual estava agarrado e começou a atravessar o telhado.
   
Telefonei para Ofídio. Ele nunca telefonava para mim, temendo que o vampiro ouvisse o toque do meu telefone.
   
— Ele está se movendo outra vez — sussurrei.
   
— Já não é sem tempo — resmungou Ofídio. — Detesto quando ele para. Você não imagina o frio que sinto parado aqui embaixo.
   
— Vá comer alguma coisa — disse eu. — Ele está se movendo bem devagar. Acho que você pode descansar uns cinco ou dez minutos.
   
— Tem certeza? — perguntou Ofídio.
   
— Tenho. Ligo para você se acontecer alguma coisa.
   
— Tudo bem. Vou comer um cachorro-quente e tomar uma xícara de café. Quer que leve alguma coisa para você aí em cima?
   
— Não, obrigado — disse eu. — Manterei contato. Vejo você mais tarde. — Desliguei o telefone e saí atrás do vampiro.
   
Eu não gostava de comer coisas como cachorro-quente, hambúrgueres ou batatas fritas quando seguia o Sr. Crepsley. Seu olfato podia facilmente detectar o cheiro forte dessas comidas. Eu comia fatias de pão seco — que quase não tinham cheiro —, para enganar a fome, e levava água em uma garrafa.
   
Depois de alguns minutos, fiquei curioso. Nas outras noites, o vampiro ficava em um lugar ou vagava sem direção. Dessa vez movia-se com determinação.
   
Resolvi me aproximar. Era perigoso, especialmente porque ele não estava com pressa — podia me descobrir com mais facilidade —, mas eu tinha de ver o que ele estava fazendo.
   
Diminuindo um terço da distância entre nós — o máximo que eu ousava —, vi que ele estava inclinado sobre a beirada do telhado, olhando para baixo.
   
Olhei para baixo também, para a rua bem iluminada. Não descobri o que ele vigiava. Só quando seus olhos pararam acima de uma lâmpada, vi o homem gordo na calçada, amarrando o cordão do sapato.
   
Era isso! O Sr. Crepsley estava atrás do homem gordo! Eu tinha certeza pelo modo como o vampiro olhava, esperando que o homem amarrasse o cordão e começasse a andar. Quando finalmente o homem gordo ergueu o corpo e recomeçou a caminhar, o Sr. Crepsley o seguiu.
   
Recuando alguns passos, liguei para Ofídio.
   
— O que aconteceu? — perguntou. Eu podia ouvir sua mastigação e vozes ao fundo.
   
— Ação — disse eu, simplesmente.
   
— Que droga! — exclamou Ofídio. Ouvi quando ele largou o cachorro-quente e se afastou para um lugar mais quieto. — Tem certeza? — perguntou.
   
— Positivo — disse eu. — A caça foi encontrada.
   
— Tudo bem — suspirou Ofídio. Parecia nervoso e eu não o culpava, eu também estava nervoso. — Tudo bem — disse ele outra vez. — Diga sua posição.
   
Li para ele o nome da rua.
   
— Mas não se apresse. Estão se movendo devagar. Fique algumas ruas atrás dos dois. Não quero que o Sr. Crepsley veja você.
   
— Eu também não quero que ele me veja — resmungou Ofídio. — Mantenha-me informado.
   
— Certo — prometi. Desliguei o telefone e saí atrás do vampiro que perseguia o homem gordo.
   
Ele o seguiu até um prédio grande, onde o homem entrou. O Sr. Crepsley esperou meia hora, então deu a volta no prédio lentamente, verificando as janelas e as portas. Eu o segui, mantendo distância, pronto para correr se ele entrasse.
   
Ele não entrou. Depois de examinar o lugar, passou para o telhado de um prédio vizinho, de onde avistava todas as entradas, e sentou-se, para esperar.
   
Eu disse a Ofídio o que estava acontecendo.
   
— Ele só está sentado? — perguntou Ofídio.
   
— Sentado e vigiando — confirmei.
   
— Que tipo de lugar é?
   
Eu tinha lido o nome na parede, quando passei pelo prédio e vi algumas janelas, mas podia ter dito a Ofídio o que era, sem precisar entrar, simplesmente pelo fedor de sangue de animal no ar.
   
— É um abatedouro — murmurei.
   
Uma longa pausa.
   
— Talvez ele só esteja aí por causa do sangue dos animais — sugeriu Ofídio então.
   
— Não. Ele teria entrado se fosse o caso. Ele não veio pelos animais. Veio por causa do homem.
   
— Não sabemos disso — disse Ofídio. — Talvez esteja esperando o prédio fechar.
   
— Seria uma longa espera — ri. — Fica aberto a noite toda.
   
— Vou subir — disse Ofídio. — Não se mexa até eu chegar.
   
— Eu vou me mexer quando o Sr. Crepsley se mexer — disse eu, mas Ofídio já tinha desligado o telefone e não me ouviu.
   
Ele chegou alguns minutos depois, com o hálito cheirando a mostarda e cebola.
   
— Pão seco para você daqui em diante — resmunguei.
   
— Você acha que Sr. Crepsley vai sentir o cheiro? — perguntou Ofídio. — Talvez seja melhor eu voltar para baixo e...
   
Balancei a cabeça.
   
— Ele está muito perto do abatedouro. O cheiro de sangue anula qualquer outro.
   
— Onde ele está? — perguntou Ofídio. Apontei para o vampiro. Ofídio teve de fazer um esforço, mas finalmente o viu.
   
— Precisamos ficar em silêncio completo — avisei. — O menor barulho e ele voa para cima da gente.
   
Ofídio estremeceu — fosse por causa do frio ou por causa da ideia de ser atacado, eu não sei — e sentou-se. Depois disso quase não falamos.
   
Tínhamos de respirar com as mãos em concha na frente da boca para que nossa respiração não aparecesse no ar gelado. Estaríamos bem se estivesse nevando — a neve esconderia o vapor —, mas a noite era clara e fria.
   
Sentamos ali até três horas da manhã. Ofídio batia os dentes e eu estava a ponto de mandálo para casa antes que morresse congelado quando o homem gordo apareceu. O Sr. Crepsley saiu atrás dele imediatamente.
   
Tarde demais percebi que o vampiro ia passar por nós. Não havia nenhum lugar para nos escondermos. Ele ia nos ver!
   
— Fique completamente imóvel — murmurei para Ofídio. — Nem respire.
   
O vampiro veio na nossa direção, andando com passo firme, descalço no telhado coberto de gelo. Eu tinha certeza de que ele ia nos ver, mas seus olhos estavam fixos no homem. Passou a cinco metros de nós — sua sombra pairou sobre mim como um fantasma — e se foi.
   
— Acho que meu coração parou — disse Ofídio, com voz trêmula.
   
Ouvi o som familiar das batidas do coração do menino-cobra (eram um pouco mais lentas do que as de um ser humano normal) e sorri.
   
— Você está bem — garanti.
   
— Pensei que estávamos ferrados — Ofídio sibilou.
   
— Eu também. — Levantei-me para ver para onde o vampiro estava indo. — Acho melhor você voltar para a rua — disse eu.
   
— Ele não está andando depressa — disse Ofídio. — Posso segui-lo.
   
Balancei a cabeça.
   
— Nunca se sabe quando ele vai apressar o passo. O homem pode tomar um táxi ou ter uma carona à sua espera. Além disso, depois de termos escapado por pouco, é melhor nos separarmos, assim, se um de nós for apanhado, o outro pode voltar para o hotel e fingir que não tem nada a ver com a história.
   
Ofídio sentiu a lógica do meu argumento e desceu pela escada de incêndio mais próxima. Eu comecei a seguir as pegadas do vampiro e do homem gordo.
   
Ele estava voltando pelo mesmo caminho, passando pela rua deserta onde eu o vira antes, em direção a um conjunto de apartamentos.
   
O homem morava em um dos apartamentos centrais no sexto andar. O Sr. Crepsley esperou as luzes se apagarem no apartamento e subiu pelo elevador. Corri escada acima e fiquei na outra extremidade do patamar.
   
Eu esperava que ele abrisse a porta e entrasse no apartamento — fechaduras não eram problema para o vampiro —, mas tudo que fez foi verificar a porta e as janelas. Então voltou para o elevador.
   
Desci correndo a escada e alcancei o vampiro quando ele se afastava do bloco de apartamentos. Eu disse a Ofídio o que estava acontecendo e para onde o vampiro se dirigia. Alguns minutos depois ele se juntou a mim e seguimos o Sr. Crepsley no seu passo apressado pelas ruas.
   
— Por que ele não entrou? — perguntou Ofídio.
   
— Não sei. Talvez tivesse mais alguém lá. Ou talvez pretenda voltar mais tarde. Uma coisa é certa: ele não foi até lá para pôr uma carta no correio.
   
Depois de algum tempo, viramos uma esquina, entramos em uma viela e vimos o Sr. Crepsley inclinado sobre uma mulher imóvel. Ouvi a exclamação abafada de Ofídio quando ele deu um passo à frente. Segurei seu braço e puxei.
   
— O que está fazendo? — esbravejou. — Não vê? Ele está atacando! Temos de detê-lo, antes...
   
— Está tudo bem — disse eu. — Ele não está atacando. Está se alimentando.
   
Ofídio parou de tentar se libertar.
   
— Tem certeza? — perguntou, desconfiado.
   
Fiz que sim com a cabeça.
   
— Está tomando o sangue do braço da mulher. Os corpos no prédio tinham a garganta cortada, lembra?
   
Ofídio balançou a cabeça hesitante.
   
— Se você estiver enganado...
   
— Não estou — garanti.
   
Minutos depois, o vampiro seguiu seu caminho, deixando a mulher. Corremos para ela, para verificar. Como eu tinha dito, ela estava inconsciente, mas viva, com uma pequena cicatriz no braço esquerdo, o único sinal de que tinha saciado a fome de um vampiro.
   
— Vamos embora — disse eu, ficando de pé. — Ela vai acordar em poucos minutos. É melhor não estarmos aqui.
   
— E o Sr. Crepsley? — perguntou Ofídio.
   
Olhei para o céu, calculando quanto tempo faltava para o nascer do dia.
   
— Ele não vai matar mais ninguém esta noite — disse eu. — É muito tarde. Provavelmente está voltando para o hotel. Vamos, se não chegarmos antes dele, vai ser difícil como o diabo explicar onde estivemos.
 
   
CAPÍTULO TREZE
   
 
   
 
    Antes que a noite chegasse, no dia seguinte, Ofídio foi para o bloco de apartamentos vigiar o homem gordo. Eu fiquei no hotel para seguir o Sr. Crepsley. Se o vampiro fosse ao bloco de apartamentos, eu me encontraria com Ofídio. Se ele fosse para outro lugar, discutiríamos a situação para resolver se Ofídio deveria ou não abandonar seu posto.
   
O vampiro levantou assim que o sol se pôs. Parecia mais satisfeito nessa noite, embora ainda fosse a figura perfeita para uma casa funerária.
   
— Onde está Ofídio? — perguntou ele, atacando a comida que eu havia preparado.
   
— Foi fazer compras.
   
— Sozinho? — O Sr. Crepsley fez um pausa. Por um momento pensei que estivesse desconfiado, mas estava apenas procurando o saleiro.
   
— Acho que ele está comprando presentes de Natal — disse eu.
   
— Pensei que Ofídio estivesse acima desses absurdos. Afinal, que dia é hoje?
   
— Vinte de dezembro — respondi.
   
— E o Natal é no dia vinte e cinco?
   
— É.
   
O Sr. Crepsley passou a mão na cicatriz, pensativamente.
   
— Meus negócios aqui deverão estar terminados a essa altura — disse.
   
— É mesmo? — Eu tentei não parecer curioso nem satisfeito.
   
— Eu tinha planejado ir embora o mais cedo possível mas, se você quer ficar para o Natal, tudo bem. Sei que o pessoal do hotel está preparando uma espécie de comemoração.
   
— Sim, está — disse eu.
   
— Você gostaria de participar?
   
— Gostaria. — Forcei um sorriso. — Ofídio e eu pretendemos trocar presentes. Vamos cear com o resto dos hóspedes, abrir caixinhas de surpresa e nos encher de peru. Você pode tomar parte também, se quiser. — Tentei fazer com que parecesse que eu queria sua presença.
   
Ele sorriu e balançou a cabeça.
   
— Essas festas não me atraem — disse ele.
   
— Como quiser — respondi.
   
Assim que ele saiu, fui atrás. Ele se encaminhou diretamente ao abatedouro, o que me surpreendeu. Talvez não estivesse interessado no homem gordo. Talvez estivesse vigiando alguma coisa ou alguém no prédio.
   
Discuti o assunto com Ofídio, pelo telefone.
   
— É estranho — concordou. — Talvez queira pegar o homem quando ele entrar ou quando sair do trabalho.
   
— Talvez — disse eu, sem muita certeza. Havia alguma coisa estranha. O vampiro não estava agindo como eu esperava.
   
Ofídio ficou onde estava para seguir o homem gordo. Encontrei um lugar seguro para me esconder, perto de um cano de aquecimento, que diminuía o frio. Minha visão do abatedouro não era tão boa quanto a da véspera, mas eu via perfeitamente o Sr. Crepsley e era isso que importava.
   
O homem gordo chegou na mesma hora da noite anterior e Ofídio logo depois dele. Fui para a beirada do telhado quando os vi, pronto para saltar e intervir se o Sr. Crepsley atacasse. Mas o vampiro continuou imóvel.
   
E isso foi tudo naquela noite. O Sr. Crepsley sentado na borda do seu telhado, Ofídio e eu agachados nos nossos, o pessoal do abatedouro fazendo seu trabalho. Às três horas da manhã, o homem gordo apareceu e foi para casa. Mais uma vez o Sr. Crepsley o seguiu e mais uma vez nós seguimos o Sr. Crepsley. Mas o vampiro não subiu ao sexto andar. Foi a única coisa diferente da noite anterior.
   
Na noite seguinte, aconteceu a mesma coisa.
   
— O que ele está tramando? — perguntou Ofídio. O frio estava intenso e ele se queixava de cãibras nas pernas. Eu disse que ele podia ir embora, mas Ofídio estava resolvido a ficar até o fim.
   
— Eu não sei — disse eu. — Talvez esteja esperando um momento especial para agir. Talvez a lua não esteja na posição certa ou coisa assim.
   
— Pensei que os lobisomens fossem os únicos monstros afetados pela lua — disse Ofídio, em tom de brincadeira.
   
— Eu também pensei — disse eu. — Mas não tenho certeza. Há muita coisa que o Sr. Crepsley não me contou sobre os vampiros completos. Dá para escrever um livro com tudo que eu não sei.
   
— O que vamos fazer se ele atacar? — perguntou Ofídio. — Acha que temos chance de vencê-lo em uma luta?
   
— Não em uma luta limpa — disse eu. — Mas em uma luta suja... — Tirei do bolso uma faca de açougueiro, longa e enferrujada, deixei que Ofídio visse e guardei outra vez debaixo da camisa.
   
— Onde arranjou isso? — disse Ofídio, atônito.
   
— Eu andei espiando o abatedouro hoje para me familiarizar com o lugar, e encontrei a faca em uma lata de lixo, nos fundos. Acho que está enferrujada demais para ser usada.
   
— É isso que vai usar? — perguntou Ofídio em voz baixa.
   
Fiz que sim.
   
— Corto a garganta dele — murmurei. — Espero que ele ataque e então... — Fechei a boca com força, contraindo os músculos do rosto.
   
— Você acha que é capaz? Ele é muito rápido. Se você perder a primeira oportunidade, é mais do que certo que não terá a segunda.
   
— Ele não estará me esperando. Eu posso fazer. — Olhei para Ofídio. — Sei que combinamos fazer isso juntos, mas quero me encarregar dele sozinho quando chegar o momento.
   
— De jeito nenhum! — reclamou Ofídio.
   
— Tenho de fazer isso. Você não pode se mover tão silenciosamente quanto eu. Se vier, vai atrapalhar. Além disso — acrescentei —, se não der certo e eu falhar, você ainda estará por perto para uma segunda tentativa. Espere o dia nascer e faça isso quando ele estiver
dormindo.
   
— Talvez essa seja a melhor solução — disse Ofídio. — Talvez nós dois devamos esperar. A razão principal de estarmos aqui é confirmar que ele é o assassino. Se for confirmado e conseguirmos provas, por que não esperamos e...
   
— Não — disse eu suavemente. — Não vou deixar que ele mate aquele homem.
   
— Você não sabe nada sobre ele — disse Ofídio. — Lembra-se da minha sugestão: as seis pessoas podem ter sido mortas porque eram más? Talvez esse cara não valha nada.
   
— Não me importa — disse eu, obstinadamente. — Só concordei em me juntar ao Sr. Crepsley porque ele me convenceu de que não matava as pessoas. Se ele for um assassino, sou culpado também, por acreditar nele e ajudá-lo todo esse tempo. Não pude fazer nada para evitar os seis primeiros assassinatos, mas, se puder, vou fazer o possível para evitar o sétimo.
   
— Tudo bem — suspirou Ofídio. — Seja como você quiser.
   
— Não vai interferir?
   
— Não — prometeu.
   
— Mesmo que eu tenha problemas e pareça precisar de ajuda?
   
Ele hesitou antes de assentir.
   
— Tudo bem. Nem mesmo nesse caso.
   
— Você é um bom amigo, Ofídio — disse eu, segurando as mãos dele.
   
— Você acha? — sorriu Ofídio amargamente. — Espere até você se dar mal com o Sr. Crepsley e ficar encurralado, gritando por socorro, e eu o ignorar. Veremos então que espécie de amigo você vai pensar que eu sou!
 
   
 CAPÍTULO CATORZE
   
 
   
 
    Na noite de vinte e dois de dezembro, o Sr. Crepsley atacou.
   
Ofídio o viu. Eu estava relaxando um pouco, descansando meus olhos — até os olhos de um meio-vampiro se cansam, depois de horas de concentração —, quando Ofídio, de repente, saltou, alarmado, e agarrou meu tornozelo.
   
— Ele está se movendo!
   
Inclinei-me para a frente, a tempo de ver o vampiro saltando para o telhado do abatedouro. Ele abriu uma janela e entrou rapidamente.
   
— É agora! — gemi, levantando-me de um salto e correndo para o prédio.
   
— Espere um pouco — disse Ofídio. — Vou com você.
   
— Não! — disse eu com firmeza. — Já conversamos sobre isso. Você prometeu...
   
— Não vou entrar no prédio — disse Ofídio. — Mas não vou ficar sentado aqui, enlouquecendo de preocupação. Espero você no lado de fora do abatedouro.
   
Não havia tempo para discutir. Assentindo com um gesto rápido, eu corri. Ofídio correu atrás de mim, o mais depressa possível. Parei na frente da janela aberta e escutei atentamente para ver se ouvia sons do vampiro. Não ouvi nada. Ofídio parou ao meu lado, ofegante por causa da corrida. Saltei para dentro e ele me seguiu.
   
Estávamos em uma sala longa cheia de canos. O chão era coberto de serragem, onde se viam claramente as pegadas do Sr. Crepsley. Seguimos essas marcas até uma porta que se abria para um corredor de azulejos. A serragem tinha grudado nos pés do Sr. Crepsley e marcava agora seu caminho sobre os ladrilhos.
   
Seguimos a trilha pelo corredor e descemos um lance de escadas. Estávamos em uma parte silenciosa do prédio — os trabalhadores ficavam todos na outra extremidade —, mas nos movemos cautelosamente mesmo assim. Não convinha sermos apanhados naquele delicado estágio do jogo.
   
Quando as marcas de serragem começaram a ficar mais fracas, tive medo de perder o vampiro. Eu não queria procurar por ele às cegas, por isso apressei o passo. Ofídio fez o mesmo.
   
Quando dobramos um ângulo do corredor, vi de relance o manto vermelho e parei imediatamente. Recuei, de modo a não ser visto, arrastando Ofídio comigo.
   
Eu disse silenciosamente, apenas movendo os lábios.
   
— Não diga nada — e espiei cautelosamente para ver o que o Sr. Crepsley estava fazendo.
   
O vampiro estava escondido atrás de caixas de papelão encostadas na parede. Não vi mais ninguém, mas ouvi passos que se aproximavam.
   
O homem gordo apareceu numa porta. Assobiava e examinava alguns papéis presos a uma prancheta. Parou na frente de uma porta automática e apertou um botão na parede. Com um som áspero e agudo, a porta se abriu.
   
O homem gordo pendurou a prancheta em um gancho na parede e entrou. Ouvi quando ele apertou outro botão. A porta parou, rangeu e começou a descer com a mesma lentidão com que tinha subido.
   
O Sr. Crepsley correu para a frente quando a porta estava quase fechada e deslizou por baixo dela.
   
— Volte para a sala com os canos e fique escondido — disse eu para Ofídio. Ele começou a se queixar. — Faça o que estou dizendo! — disse eu, irritado. — Se ficar aqui ele vai ver você quando voltar. Volte para lá e espere. Eu o encontro, se conseguir detê-lo. Se não... — Peguei a mão de Ofídio e apertei com força. — Foi um prazer conhecer você, Ofídio.
   
— Tenha cuidado, Darren — disse Ofídio, e eu podia ver o medo nos seus olhos. Não medo por ele mesmo. Medo por mim. — Boa sorte.
   
— Não preciso de sorte — disse eu, bravamente, e tirei a faca de baixo da camisa. — Eu tenho isto. — Apertando outra vez a mão dele, corri pelo corredor e me atirei debaixo da
porta, que acabou de abaixar imediatamente depois, me fechando com o homem gordo e o vampiro.
   
 
   
 
    O lugar estava cheio de carcaças de animais penduradas do teto em ganchos de aço. Era uma sala refrigerada para manter a carne fresca.
   
O fedor de sangue era enjoativo. Eu sabia que eram apenas corpos de animais, mas não conseguia parar de pensar que eram seres humanos.
   
As luzes no teto eram incrivelmente fortes, de modo que eu precisava me mover com o maior cuidado. Uma sombra podia significar meu fim. O chão era escorregadio — água, sangue? —, portanto era preciso estar atento ao lugar em que se pisava.
   
Havia um estranho brilho rosado em volta das carcaças, resultado das luzes fortes e do sangue. Em um lugar como aquele, qualquer um vira vegetariano.
   
Depois de alguns segundos sem ver nada além de animais mortos, avistei o Sr. Crepsley e o homem gordo. Fiquei atrás dos dois, acompanhando seus passos.
   
O homem gordo parou para verificar uma das carcaças. Devia estar sentindo frio porque assoprou nas mãos para aquecer, embora usasse luvas. Deu uma palmada no animal morto quando terminou de examinar — o gancho rangeu sinistramente quando a carcaça balançou de um lado para outro — e começou a assobiar a mesma melodia que sibilava no corredor.
   
Ele começou a andar outra vez.
   
Eu diminuía a distância que me separava do Sr. Crepsley. Não queria ficar muito para trás — quando de repente o homem gordo parou para examinar alguma coisa no chão. Parei e comecei a recuar devagar, temendo que ele visse meus pés, e então notei que o Sr. Crepsley se adiantava sorrateiramente para o homem agachado.
   
Praguejei baixinho e corri para a frente. Se o Sr. Crepsley estivesse mais atento, teria me ouvido, mas ele estava concentrado no homem à sua frente.
   
Parei alguns metros atrás do vampiro e tirei da cintura minha faca enferrujada. Aquele seria o momento ideal para atacar — o vampiro estava de pé, imóvel, ainda concentrado no homem, ignorando minha presença, um alvo ideal —, mas eu não podia. O Sr. Crepsley tinha
de fazer o primeiro movimento. Eu me recusava a acreditar no pior sobre ele até o momento em que o ataque fosse uma realidade. Como disse Ofídio, se o matasse, de modo nenhum podia trazê-lo de volta à vida. Não era hora de cometer um erro.
   
Os segundos pareciam horas enquanto o homem gordo continuava abaixado, examinando fosse o que fosse que chamou sua atenção. Finalmente ele deu de ombros e levantou o corpo. Ouvi o Sr. Crepsley praguejar e vi seu corpo ficar tenso. Ergui a faca.
   
O homem gordo deve ter ouvido alguma coisa porque ergueu os olhos — para o lugar errado. Devia olhar para trás: um instante antes o Sr. Crepsley havia saltado.
   
Mesmo tendo previsto o movimento, eu não acertei. Se tivesse saltado ao mesmo tempo que o vampiro, a faca poderia ter atingido o alvo, a sua garganta. Mas hesitei por uma fração de segundo, e perdi a direção do alvo.
   
Saltei sobre o Sr. Crepsley, gritando estridentemente, em parte para evitar que ele continuasse o ataque, em parte por estar tão horrorizado com o que fazia.
   
O grito fez o Sr. Crepsley girar o corpo rapidamente. Arregalou os olhos, incrédulo. Como ele deixou de olhar para a frente, bateu de costas no homem gordo e os dois caíram no chão.
   
Saltei sobre o Sr. Crepsley e brandi a faca. A lâmina penetrou profundamente na parte superior do braço esquerdo do vampiro. Ele rugiu de dor e tentou me afastar. Eu o empurrei para baixo — ele estava em uma posição difícil, sem poder usar seu peso e sua força extras — e levantei o braço para desfechar com toda minha força um golpe longo e mortal.
   
Não cheguei a dar o golpe mortal porque, quando meu braço se ergueu, para trás, bateu em alguém. Em alguém que flutuou do teto. Alguém que saltou de cima. Alguém que berrou quando meu braço o atingiu e se afastou de mim o mais depressa possível.
   
Esquecendo o vampiro por um momento, olhei para trás, para o vulto que rolava rapidamente. Eu podia ver que era um homem, porém, nada mais do que isso, até ele parar de rolar e ficar de pé. Quando ele olhou para mim, desejei que continuasse rolando para fora da sala.
   
Era uma figura espantosa. Um homem alto. Largo e inchado. Imaculadamente vestido de branco, só alterado por manchas de sujeira e sangue adquiridas quando ele rolou no chão.
   
Sua pele, cabelo, olhos, lábios e unhas contrastavam totalmente com a brancura da roupa. A pele era manchada e arroxeada. O resto era de um vermelho vibrante, como se tivesse sido mergulhado em sangue.
   
Eu não sabia quem ou o que era aquela criatura, mas tive certeza de que era um agente do mal. Estava escrito em todo seu corpo, no modo como parou, no esgar de desdém, na loucura que dançava nos olhos estranhamente vermelhos, no modo como os lábios de rubi se
arreganhavam, mostrando os dentes agudos.
   
Ouvi o Sr. Crepsley praguejar e começar a se levantar. Antes que conseguisse ficar de pé, o homem de roupa branca urrou e correu para mim com uma velocidade que nenhum ser humano poderia atingir. Abaixou a cabeça e me atingiu com uma cabeçada, quase rompendo as paredes do meu estômago, tirando todo o ar dos meus pulmões.
   
Voei para trás, para cima do Sr. Crepsley, e sem querer o derrubei outra vez.
   
A criatura de branco berrou, hesitou por um momento, como se estivesse se preparando para atacar, depois, segurando numa carcaça, começou a subir no ar. Segurou no parapeito de uma janela, no alto — pela primeira vez percebi que a sala era circundada por janelas —, quebrou o vidro e deslizou para fora.
   
O Sr. Crepsley praguejou outra vez e empurrou-me com força. Subiu em uma carcaça e saltou para a janela atrás do homem de pele roxa, com uma careta de dor por causa do braço atingido pela faca. Ficou parado na janela por um momento, escutando atentamente. Então, abaixou a cabeça e os ombros.
   
O homem gordo — que balbuciava como uma criança — ajoelhou-se e começou a se arrastar para longe de nós. O Sr. Crepsley o viu e, depois de um olhar desesperado pela janela, desceu para o chão e correu para o homem, que tentava se levantar.
   
Impotente, vi o Sr. Crepsley ajudar o homem a se levantar e olhar furioso para ele. Se estava determinado a matar o homem, eu não podia fazer nada para detê-lo. Minhas costelas pareciam atingidas por um bate-estacas. Era doloroso respirar. Fazer qualquer movimento estava fora de questão.
   
Mas o Sr. Crepsley não pensava em matar. Tudo que fez foi bafejar no rosto do homem gordo, que ficou rígido, depois desabou no chão, inconsciente.
   
Então o Sr. Crepsley virou-se rapidamente e avançou para mim, com os olhos cheios de uma fúria que eu jamais vira nele. Comecei a temer por minha vida. Ele me puxou para cima e me sacudiu como se eu fosse um boneco.
   
— Seu idiota! — rugiu. — Seu cretino intrometido! Será que sabe o que fez? Sabe?
   
— Eu estava... tentando... evitar... — chiei. — Pensei...
   
O Sr. Crepsley quase encostou seu rosto no meu e rosnou:
   
— Ele escapou por causa da sua maldita intromissão, um assassino louco saiu
completamente livre. Esta era minha oportunidade de detê-lo e você... você...
   
Não conseguiu continuar. A raiva prendeu sua língua. Ele me jogou no chão, deu meiavolta e agachou, praguejando e gemendo — em certos momentos parecia até estar chorando — com indisfarçada ira.
   
Olhei do vampiro para o homem inconsciente e para a janela quebrada, e compreendi (não era preciso ser um gênio para entender) que eu tinha cometido um terrível engano, talvez fatal.
 
   
CAPÍTULO QUINZE
   
 
   
 
    Houve um longo e tenso período de silêncio, os minutos passando lentamente. Passei a mão nas costelas — nenhuma estava quebrada. Levantei e rilhei os dentes, sentindo minhas entranhas queimarem de dor. Eu ia ficar dolorido por muitos dias.
   
Aproximei-me do Sr. Crepsley e, depois de pigarrear, disse:
   
— Quem era aquele? — perguntei.
   
Ele olhou furioso para mim e balançou a cabeça.
   
— Idiota! — rosnou. — O que está fazendo aqui?
   
— Tentando evitar que você o matasse — apontei para o homem gordo. O Sr. Crepsley apenas olhou para mim. — Vi na TV a notícia sobre as seis pessoas mortas — expliquei — e pensei que você fosse o assassino. Eu o segui...
   
— Pensou que eu fosse o assassino? — rugiu o Sr. Crepsley. Assenti embaraçado. — Você é mais burro do que eu pensava! Tem tão pouca fé em mim que pensou...
   
— O que mais eu podia pensar? — exclamei. — Você nunca me conta nada. Você desaparecia na cidade todas as noites, sem dizer coisa alguma sobre aonde ia ou o que estava fazendo. O que eu devia pensar quando ouvi que seis pessoas foram encontradas completamente sem sangue?
   
O Sr. Crepsley pareceu alarmado, depois ficou pensativo. Então concordou, com um gesto cansado.
   
— Tem razão — suspirou. — Devemos demonstrar confiança para merecer confiança. Eu queria poupar você dos detalhes sangrentos. Não devia ter feito isso. A culpa é minha.
   
— Tudo bem — disse eu, confuso com tanta gentileza. — Acho que eu não deveria ter vindo atrás de você.
   
O Sr. Crepsley olhou para a faca.
   
— Você pretendia me matar? — perguntou.
   
— Pretendia — disse eu, embaraçado. Para minha surpresa, ele riu baixinho.
   
— Você é um jovem ousado, Mestre Shan. Mas eu sabia disso quando fiz de você meu assistente. — Levantou-se e examinou o corte no braço. — Acho que devo agradecer por não ter sido pior.
   
— Você vai ficar bom? — perguntei.
   
— Vou viver — disse, esfregando saliva no corte para cicatrizar.
   
Olhei para a janela quebrada.
   
— Quem era aquele? — tornei a perguntar.
   
— A pergunta não é “quem” — disse o Sr. Crepsley. — A pergunta é “o quê”. Ele é um vampixiita1. Seu nome é Vampirado.
   
— O que é um vampixiita?
   
— É uma longa história. Não temos tempo. Mais tarde eu...
   
— Não — disse eu, com firmeza. — Eu quase o matei esta noite porque não sabia o que estava acontecendo. Explique agora para evitar outras confusões.
   
O Sr. Crepsley hesitou, depois assentiu.
   
— Muito bem. Acho que este lugar é tão bom quanto qualquer outro. Com certeza ninguém nos incomodará. Mas não é prudente nos demorarmos. Preciso pensar nos acontecimentos indesejáveis desta noite e começar a fazer novos planos. Serei breve. Procure não fazer perguntas desnecessárias.
   
— Vou tentar — prometi.
   
— Os vampixiitas são... — parou, procurando as palavras certas. — Nas noites antigas, os seres humanos eram vistos com desprezo por muitos vampiros, que se alimentavam deles como pessoas se alimentam de animais. Não era raro um vampiro sugar todo o sangue de uma ou duas pessoas cada semana. Com o passar do tempo, resolvemos que isso não era aceitável, e foram promulgadas leis proibindo mortes desnecessárias.
   
“A maioria dos vampiros obedeceu à lei de boa vontade — é mais fácil para nós passar despercebidos pelos seres humanos se não os matarmos —, mas outros acharam que nossa causa estava sendo traída. Certos vampiros acreditavam que os seres humanos foram postos neste planeta para nos alimentar.”
   
— Isso é loucura! — gritei. — No começo os vampiros são seres humanos. Que espécie de...
   
— Por favor — interrompeu o Sr. Crepsley. — Só estou tentando explicar o que certos vampiros pensaram. Não estou justificando suas ações.
   
“Há setecentos anos, as coisas ficaram sem controle. Setenta vampiros se separaram do resto e declararam que pertenciam a uma raça diferente. Adotaram o nome de vampixiita e estabeleceram suas próprias regras e seu próprio governo.
   
“Basicamente, o vampixiita acredita que é errado alimentar-se de um homem sem matá-lo. Acredita que há certa nobreza em sugar todo o sangue de uma pessoa e absorver seu espírito — como você absorveu parte do espírito de Sam Crespo quando sugou todo o sangue dele —, e que é vergonhoso tomar pequenas doses, como uma sanguessuga.”
   
— Então eles sempre matam as pessoas de quem se alimentam? — perguntei. O Sr. Crepsley assentiu. — Isso é horrível!
   
— Concordo com você — disse o vampiro. — Como concordou a maioria dos vampiros quando os vampixiitas se separaram. Houve uma grande guerra. Muitos vampixiitas foram mortos. Muitos vampiros também, mas estávamos vencendo. Teríamos acabado com eles mas... — Sorriu amargamente. — Os seres humanos que tentávamos proteger nos impediram.
   
— Como assim? — perguntei.
   
— Muitos homens sabiam da existência dos vampiros. Mas, desde que não os matássemos, eles nos deixavam em paz. Tinham medo de nós. Mas quando os vampixiitas começaram a massacrá-los, eles reagiram e lutaram. Infelizmente não sabiam a diferença entre vampiros e vampixiitas, por isso tanto uns como outros foram perseguidos e mortos.
   
“Nós podíamos ter eliminado os vampixiitas, mas não os humanos. Eles estavam prestes a nos eliminar. No fim, nossos Príncipes se reuniram com os vampixiitas e concordaram com uma trégua. Nós os deixaríamos em paz se eles parassem de matar tão livremente. Só deveriam matar quando precisassem de alimento e fariam o possível para que a humanidade não soubesse dos seus crimes.
   
“A trégua funcionou. Quando os homens compreenderam que estavam a salvo, pararam de nos perseguir. Os vampixiitas viajaram para longe para nos evitar — foi parte do acordo —, e praticamente não tivemos notícias deles nos últimos séculos, a não ser por um ou outro pequeno conflito e as competições.”
   
— Competições? — perguntei.
   
— Os vampiros e os vampixiitas têm uma vida dura — disse o Sr. Crepsley. — Sempre em lutas e competições. Os seres humanos e os animais são adversários interessantes mas, se um vampiro quer realmente testar a própria força, ele luta com um vampixiita. É comum vampiros e vampixiitas lutarem até a morte.
   
— Isso é burrice — disse eu.
   
O Sr. Crepsley deu de ombros.
   
— Somos assim. O tempo mudou os vampixiitas — continuou. — Você notou as unhas, os cabelos e os olhos vermelhos?
   
— E os lábios — acrescentei. — E a pele dele é arroxeada.
   
— Essas mudanças aconteceram porque eles tomam mais sangue do que os vampiros. A maioria dos vampixiitas não é tão colorida quanto Vampirado, ele vem tomando quantidades perigosas de sangue, mas todos têm as mesmas marcas. A não ser os jovens vampixiitas. Precisam de algumas décadas para adquirir a cor.
   
Pensei no que acabava de ouvir.
   
— Então os vampixiitas são agentes do mal? É por isso que os vampiros têm uma reputação tão má?
   
O Sr. Crepsley passou a mão na cicatriz, pensativamente.
   
— Dizer que são maus não é de todo verdade. Para os homens, eles são, mas para os vampiros são mais parentes mal orientados do que malignos.
   
— O quê? — Eu não podia acreditar que ele os estivesse defendendo.
   
— Depende de como vemos o caso — disse ele. — Você aprendeu a não se importar em tomar sangue humano, certo?
   
— Sim, mas...
   
— Lembra-se de como era contra isso no começo?
   
— Lembro, mas...
   
— Para muitos homens você é mau — disse ele. — Um jovem meio-vampiro que toma sangue humano... quanto tempo acha que demoraria até que alguém tentasse matar você se conhecesse sua verdadeira identidade?
   
Mordi o lábio inferior e pensei no assunto.
   
— Não me entenda mal — disse o Sr. Crepsley. — Não aprovo os vampixiitas e o que fazem. Mas não acho que são maus.
   
— Está dizendo que é direito matar os seres humanos? — perguntei, desconfiado.
   
— Não. Estou dizendo que eu os compreendo. Os vampixiitas matam por causa das suas crenças, não porque gostem de matar. Um soldado humano que mata na guerra não é um agente do mal, é?
   
— Não é a mesma coisa — disse.
   
— Mas incide na mesma linha duvidosa. Para os humanos, os vampixiitas são maus, pura e simplesmente. Mas, para os vampiros, e você agora pertence ao clã dos vampiros, não é tão fácil julgar. Eles fazem parte da família.
   
“Além disso, os vampixiitas têm seus pontos nobres. São leais e corajosos. E nunca faltam à palavra; quando um vampixiita faz uma promessa, ele cumpre. Se um vampixiita mente, e seus companheiros descobrem, ele é executado, sumariamente. Eles têm suas faltas e pessoalmente não gosto deles, mas será que são maus?” suspirou. “É difícil dizer.”
   
— Mas você ia matar esse — lembrei.
   
O Sr. Crepsley concordou.
   
—Vampirado não é um vampixiita comum. A loucura invadiu sua mente. Está descontrolado e mata indiscriminadamente para alimentar seu desejo lunático. Se fosse um vampiro, seria julgado pelos Generais e executado. Porém os vampixiitas são mais tolerantes com seus membros menos afortunados. Detestam matar um dos seus.
   
“Se um vampixiita enlouquece, é expulso do grupo e deixado livre. Se se mantiver afastado dos seus iguais, eles não fazem nada para prejudicá-lo. Ele é...”
   
Um gemido nos sobressaltou. Olhamos para trás e vimos o homem gordo começando a se mexer.
   
— Venha — disse o Sr. Crepsley. — Continuamos a conversa no caminho para o telhado.
   
Saímos da sala refrigerada e começamos a voltar para o hotel.
   
— Vampirado vagueia pelo mundo há vários anos — disse o Sr. Crepsley. — Normalmente, vampixiitas loucos não duram tanto. Cometem erros absurdos e logo são apanhados e mortos pelos homens. Mas Vampirado é mais esperto do que muitos. Ainda tem noção suficiente das coisas para matar silenciosamente e esconder os corpos. Você conhece o mito de que os vampiros não podem entrar em uma casa sem ser convidado?
   
— Claro — disse eu. — Nunca acreditei nisso.
   
— Nem deve acreditar. Mas, como muitos mitos, tem origem em fatos. Os vampixiitas quase nunca matam homens em casa. Eles apanham a caça fora, matam e se alimentam. Depois escondem o corpo ou disfarçam os ferimentos para que a morte pareça acidental. Um vampixiita louco geralmente esquece essas regras fundamentais, mas Vampirado lembra-se delas ainda. Por isso sabíamos que ele não atacaria o homem em casa.
   
— Como souberam que ele ia atacar esse homem?
   
— Os vampixiitas são tradicionalistas — explicou o Sr. Crepsley. — Eles escolhem suas vítimas com antecedência. Entram sorrateiramente em suas casas enquanto os homens dormem e os marcam, três pequenos arranhões no lado esquerdo do rosto. Você não notou as marcas no rosto do homem gordo?
   
Balancei a cabeça.
   
— Eu não estava procurando marca alguma.
   
— Pois estão lá — garantiu o Sr. Crepsley. — São quase invisíveis. Ele provavelmente pensou que se arranhou quando dormia. Mas as marcas são inconfundíveis quando a gente sabe o que está procurando. Sempre no mesmo lugar e sempre do mesmo tamanho.
   
“Por isso eu estava acompanhando o homem. Até aquela noite eu procurava às cegas, percorrendo a cidade, esperando encontrar alguma pista de Vampirado. Encontrei o homem gordo por acaso e o segui. Eu sabia que o ataque seria aqui, quando ele estivesse vindo de casa para o trabalho ou voltando do trabalho para casa, portanto era só uma questão de esperar que Vampirado resolvesse dar o golpe.” O vampiro fechou a cara. “Então, você entrou em cena.” Ele não podia disfarçar a amargura na voz.
   
— Vai conseguir encontrar Vampirado outra vez? — perguntei.
   
Ele balançou a cabeça.
   
— Descobrir o homem marcado foi um golpe de sorte incrível. Não acontece duas vezes. Além disso, embora Vampirado seja doido, ele não é tolo. Vai abandonar qualquer homem que já tenha marcado e fugir desta cidade — disse o Sr. Crepsley com tristeza. — Suponho que tenhamos de nos conformar com isso.
   
— Conformar? — perguntei. — Não vai continuar a segui-lo? — O Sr. Crepsley balançou a cabeça. Eu parei no patamar, estávamos quase na porta da sala com os canos. Olhei atônito para ele e disse:
   
— Por que não? — exclamei. — Ele é louco. Está matando gente! Você tem de...
   
— Não é mais comigo — disse o vampiro gentilmente. — Não compete a mim me preocupar com criaturas como Vampirado.
   
— Então, por que se envolveu nisso? — perguntei, pensando em todas as pessoas que o vampixiita louco iria matar.
   
— As mãos dos Generais Vampiros estão atadas para assuntos como esse. Eles não ousam tomar providências para eliminar vampixiitas loucos. Temem deflagrar outra guerra. Como eu disse, os vampixiitas são leais. Exigem vingança pelo assassinato de um dos seus. Podemos matar vampixiitas em uma luta limpa, mas se um General matar um vampixiita, seus aliados se sentem na obrigação de retaliar.
   
“Eu me envolvi porque nasci nesta cidade. Vivi aqui como ser humano. Embora todos que eu conhecia tenham morrido há muito tempo, sinto-me ligado à cidade — é, mais do que qualquer outro, o lugar que considero meu lar.
   
“Torvelinho sabe disso. Quando descobriu que Vampirado estava aqui, resolveu me procurar. Ele imaginou — corretamente — que eu não ficaria sentado deixando que um vampixiita louco fizesse uma carnificina. Foi esperteza da parte dele, mas eu não o culpo. Eu teria feito o mesmo.”
   
— Não entendo — disse eu. — Pensei que os Generais Vampiros quisessem evitar uma guerra.
   
— Eles querem.
   
— Mas, se você matasse Vampirado, não teria...
   
— Não — interrompeu-me. — Não sou um General. Sou um mero vampiro, sem nenhuma ligação com qualquer outro. Os vampixiitas poderiam vir atrás de mim, se soubessem que eu o matei, mas os Generais não estariam envolvidos. Seria pessoal. Não provocaria uma guerra.
   
— Compreendo. Então, agora que sua cidade está a salvo, você não se importa mais com ele?
   
— Isso mesmo — disse o Sr. Crepsley simplesmente.
   
Eu não podia concordar com essa posição — eu teria caçado Vampirado até os confins da terra—, mas compreendia. Ele estava protegendo “sua” gente. Agora, eliminada a ameaça, ele não considerava mais o vampixiita problema seu. Era uma típica amostra de lógica de vampiro.
   
— O que acontece agora? — perguntei. — Voltamos para o circo e esquecemos tudo isto?
   
— Exatamente — disse ele. — Vampirado vai evitar esta cidade no futuro. Vai desaparecer na noite e está acabado. Podemos voltar e continuar nossa vida.
   
— Até a próxima vez — disse eu.
   
— Eu só tenho uma cidade natal — respondeu o vampiro. — O mais provável é que não haja uma próxima vez. Venha. Se tem mais perguntas, respondo mais tarde.
   
— Tudo bem — depois de uma pausa, continuei: — O que dissemos há pouco, sobre não guardar mais segredos importantes, ainda está valendo? Vai confiar em mim agora e me contar as coisas?
   
O vampiro sorriu.
   
— Confiaremos um no outro — disse ele, sorrindo.
   
Retribuí o sorriso e entramos na sala onde ficavam os canos.
   
— Como eu não vi as pegadas de Vampirado antes? — perguntei, seguindo as marcas que deixamos no chão quando entramos no prédio.
   
— Ele entrou por outro caminho — disse o Sr. Crepsley. — Eu não queria ficar muito perto até ele atacar para que não me visse antes. Eu ia para a janela, quando me lembrei de Ofídio.
   
— Espere um pouco! — disse eu para o Sr. Crepsley. — Temos de pegar Ofídio.
   
— O menino-cobra também sabia disto? — riu o Sr. Crepsley. — Vá buscar Ofídio depressa. Mas não espere que eu conte a história outra vez para ele. Deixo esses detalhes para você.
   
Voltei para procurar meu amigo.
   
— Ofídio — chamei em voz baixa. Não tendo resposta, chamei com voz um pouco mais alta. — Ofídio! — Onde ele tinha se escondido? Olhei para baixo e vi um par de pegadas na serragem que iam na direção de um conjunto maciço de canos.
   
“Ofídio!” chamei outra vez, seguindo as marcas. Provavelmente ele me viu falando com o vampiro e não tinha certeza do que estava acontecendo. “Está tudo bem”, gritei. “O Sr. Crepsley não é o assassino. É outro...”
   
Pisei em alguma coisa e ouvi o barulho de algo sendo amassado. Dei um passo para trás, inclinei-me e apanhei o objeto para examinar melhor. Com uma sensação de aperto no peito, vi o que era — os restos quebrados de um telefone celular.
   
— Ofídio! — gritei, correndo para a frente. Encontrei sinais de luta — a serragem muito espalhada, como se alguém tivesse sapateado em cima dela. Milhares de grãos de poeira pairavam no ar, formando nuvens.
   
— O que aconteceu? — perguntou o Sr. Crepsley, aproximando-se cautelosamente. Mostrei a ele o telefone. — Era do Ofídio? — adivinhou.
   
Fiz que sim com a cabeça.
   
— O vampixiita deve ter pegado Ofídio — disse eu, horrorizado.
   
O Sr. Crepsley suspirou e abaixou a cabeça.
   
— Então Ofídio está morto — disse ele, sem rodeios, e baixou os olhos quando eu comecei a chorar.
 
   
 CAPÍTULO DEZESSEIS
   
 
   
 
    O Sr. Crepsley acertou nossas contas no hotel assim que chegamos, para o caso de o pessoal notar o desaparecimento de Ofídio ou se o vampixiita o obrigasse a dizer onde estávamos.
   
— E se ele escapar? — perguntei. — Como vai saber onde nos encontrar?
   
— Não acredito que escape — disse o Sr. Crepsley tristemente.
   
Fomos para outro hotel, não muito longe do primeiro. Se o homem atrás do balcão ficou
surpreso quando viu um homem de aparência solene com uma cicatriz e um menino que parecia transtornado, com uma fantasia de pirata, chegando ao hotel em uma hora tão estranha, guardou as suspeitas para si mesmo.
   
Pedi ao Sr. Crepsley para me contar mais sobre os vampixiitas. Ele disse que eles nunca sugavam o sangue de vampiros — nosso sangue é veneno para outros vampiros e para os vampixiitas. Eles viviam um pouco mais do que os vampiros, embora a diferença fosse mínima. Comiam pouca comida normal, preferindo se sustentar de sangue. Só sugavam animais como último recurso.
   
Ouvi com atenção. Era mais fácil não pensar em Ofídio se procurasse me concentrar em outra coisa. Mas, quando o dia começou a nascer e o Sr. Crepsley foi dormir, fiquei sozinho para pensar no que havia acontecido.
   
Vi o sol nascer. Eu estava cansado, mas não podia dormir. Como ia enfrentar os pesadelos que certamente estavam de tocaia à minha espera? Preparei um café da manhã reforçado, mas meu apetite desapareceu depois da primeira garfada e acabei jogando tudo na lata de lixo. Liguei a TV e comecei a passar de um canal para o outro, mal prestando atenção ao que via e ouvia.
   
De vez em quando, tudo aquilo parecia um sonho. Ofídio não podia estar morto. Eu certamente dormi no telhado, enquanto vigiava o Sr. Crepsley, e sonhei. A qualquer momento, Ofídio ia me sacudir para acordar. Eu contaria a ele meu sonho e nós dois daríamos boas risadas. “Você não vai se livrar de mim tão facilmente”, diria ele, rindo.
   
Mas não era um sonho. Eu tinha estado cara a cara com o vampixiita louco. Ele sequestrou Ofídio e o matou ou estava se preparando para matá-lo. Esses eram os fatos e tinham de ser enfrentados.
   
O problema era que eu não ousava enfrentar os fatos. Tinha medo de enlouquecer se o fizesse. Assim, em vez de aceitar a verdade e me acostumar com ela, enterrei-a profundamente, onde não pudesse me perturbar quando eu fosse ver Débora. Talvez ela pudesse me animar um pouco.
   
 
   
 
    Débora estava brincando na praça quando cheguei. Havia nevado intensamente durante a noite e ela fazia um homem de neve com outras crianças. Ficou surpresa e feliz quando me viu chegar tão cedo. Apresentou-me para os amigos que me examinaram com curiosidade.
   
— Quer andar um pouco? - perguntei.
   
— Não pode esperar até eu terminar o homem de neve?
   
— Não. Estou inquieto. Preciso andar. Posso voltar mais tarde, se você quiser.
   
— Tudo bem. Eu vou. — Ela olhou atentamente para mim. — Você está bem? Está branco como um lençol e seus olhos... você esteve chorando?
   
— Estive descascando cebolas. Débora voltou-se para os amigos. — A gente se vê depois — disse ela e segurou no meu braço. — Quer ir a algum lugar especial?
   
— Na verdade, não — respondi. — Você resolve. Eu a acompanho.
   
Andamos sem falar muito, até Débora apertar meu braço e dizer:
   
— Tenho boas notícias. Perguntei a meus pais se você podia vir na véspera de Natal para ajudar na decoração das árvores e eles concordaram.
   
— Ótimo — disse eu, sorrindo com esforço.
   
— Eles o convidaram para a ceia também. Iam convidar você para o dia de Natal, mas sei que vocês pretendem ir à festa do hotel. Além disso, não acredito que seu pai viria, o que acha?
   
— Não — disse eu em voz baixa.
   
— Mas na véspera tudo bem, não é? — perguntou. — Ofídio pode vir também. Vimos jantar cedo, às duas ou três da tarde, assim teremos bastante tempo para decorar as árvores. Você pode...
   
— Ofídio não vai poder vir — disse eu, secamente.
   
— Por que não?
   
Com um aperto na garganta, tentei inventar uma mentira plausível. Finalmente disse:
   
— Ele está com gripe. Não pode sair da cama.
   
— Ontem ele parecia bem — disse Débora, intrigada. — Eu vi vocês dois quando saíram à noitinha. Ele me pareceu...
   
— Como você nos viu? — perguntei.
   
— Pela janela. Não é a primeira vez que vejo vocês saindo ao anoitecer. Eu nunca disse nada porque achei que, se você quisesse, me contaria o que iam fazer.
   
— Não é bonito espiar os outros — disse eu, irritado.
   
— Eu não estava espiando! — defendeu-se, magoada com a acusação e o meu tom de voz. — Eu vi vocês por acaso. E se essa vai ser sua atitude, pode esquecer a véspera de Natal. — Ela se virou para voltar.
   
— Espere — disse eu, segurando o braço dela (cuidadosamente para não machucar). — Desculpe. Eu estou de mau humor. Não me sinto muito bem. Talvez tenha apanhado a gripe de Ofídio.
   
— Você está meio abatido — admitiu ela com um olhar suave.
   
— Quanto às nossas saídas noturnas, vamos encontrar com nosso pai — disse eu. — Nós o encontramos depois do trabalho para comer alguma coisa ou ir ao cinema. Eu teria convidado você, mas sabe como são as coisas com meu pai.
   
— Você devia nos apresentar — disse Débora. — Aposto que eu faria com que ele gostasse de mim, se tivesse oportunidade.
   
Começamos a andar outra vez.
   
— Então, como fica a véspera de Natal? — perguntou.
   
Balancei a cabeça. Sentar-se à mesa com Débora e seus pais era a última coisa em que eu queria pensar.
   
— Tem de me dar algum tempo para a resposta. Não sei se estaremos ainda aqui. Talvez tenhamos de ir embora.
   
— Mas a véspera de Natal é amanhã! — exclamou Débora. — A esta altura certamente seu pai já disse quais são seus planos.
   
— Ele é esquisito — disse eu. — Gosta de deixar tudo para o último minuto. Posso voltar desta caminhada e o encontrar com as malas arrumadas, pronto para partir.
   
— Ele não pode ir se Ofídio está doente — disse ela.
   
— Ele pode e irá, se resolver.
   
Débora parou de andar. Mais ou menos a um metro de nós, subia ar quente de uma grade na calçada. Ela deu alguns passos e ficou de pé em cima da grade.
   
— Você não vai embora sem me avisar, não é? — perguntou.
   
— É claro que não.
   
— Eu detestaria se você desaparecesse no ar sem me dizer nada — ela disse, e lágrimas surgiram nos cantos dos seus olhos.
   
— Prometo — disse eu. — Quando eu souber que vou embora, você vai saber também. Palavra de honra. — Fiz uma cruz sobre o coração.
   
— Venha cá — disse ela. Puxou-me para perto e me abraçou com força.
   
— Por que isso? — perguntei. — Tem de haver uma razão? — sorriu e apontou para a frente. — Vamos virar a próxima esquina. Isso nos levará de volta à praça.
   
Segurei o braço de Débora, para voltarmos, e então lembrei que tínhamos mudado de hotel. Se voltássemos para a praça, ela esperaria que eu entrasse no hotel. Podia suspeitar se me visse indo para outro lugar.
   
— Eu vou sozinho — disse eu. — Telefono esta noite ou de manhã para dizer se virei jantar ou não.
   
— Se seu pai quiser ir embora, tente insistir para que fique. Eu adoraria se você viesse.
   
— Vou tentar — prometi e vi, com olhos tristes, quando ela virou a esquina e desapareceu.
   
Foi então que ouvi alguém rir baixinho, debaixo dos meus pés. Olhei para as grades, não vi ninguém e pensei que estivesse ouvindo coisas. Mas então uma voz disse, das sombras:
   
— Gosto da sua namorada, Darren Shan — um riso malicioso e imediatamente adivinhei quem estava lá embaixo. — Um prato muito saboroso. Bom para comer, não acha? Parece muito mais gostosa do que seu outro amigo. Muito mais saborosa do que Ofídio.
   
Era Vampirado — o vampixiita louco!
 
   
CAPÍTULO DEZESSETE
   
 
   
 
    Ajoelhei e olhei entre as grades. Estava escuro, mas depois de alguns segundos consegui distinguir o vulto do gordo vampixiita.
   
— Qual é o nome da sua namorada, hem? — perguntou Vampirado. — Ana? Beatriz? Catarina? Diana? Elsa? Fernanda? Gilda? Helena? Eva? Joana... — Ele parou e eu podia imaginá-lo franzindo a testa. — Não. Espere. Eva começa com E, não com I. Existe algum nome de mulher que comece com I? Não me lembro de nenhum no momento. E você, Darren Shan, hem? Tem alguma ideia? — Pronunciou meu primeiro nome de modo estranho, rimando com Jaruren.
   
— Como você me encontrou? — perguntei, perplexo.
   
— Foi fácil. — Ele se inclinou para a frente, evitando cuidadosamente os raios do sol, e bateu com as pontas dos dedos no lado da cabeça. — Usei meu cérebro. O jovem Vampirado tem muito cérebro, tem mesmo. Arranquei umas escamazinhas do seu amigo Cobrinha. Ele me disse onde ficava o hotel. Eu acampei no lado de fora. Observei atentamente. Vi você passar com sua namorada, e os segui.
   
— O que você fez? — perguntei.
   
O vampixiita riu alto.
   
— Com minha faca arranquei algumas escamas do Cobrinha. Da próxima vez vou arrancar o couro para fazer uma bolsa! Ha! Cérebro, como eu disse, cérebro! Um homem idiota não poderia ter ideias tão geniais. O jovem Vampirado tem o cérebro do tamanho de...
   
— Onde está Ofídio? — interrompi, batendo nas barras do chão para fazer o vampixiita se calar. Dei um puxão na grade, tentando chegar aonde ele se encontrava, mas estava firmemente pregada no chão.
   
— Ofídio? Ofídio? — Vampirado fez uma espécie de dança estranha no escuro, debaixo da grade. — Ofídio está amarrado — disse ele. — Dependurado pelos tornozelos. O sangue
indo todo para a cabeça. Gritando como um leitãozinho. Implorando para ser libertado.
   
— Onde ele está? — perguntei, desesperado. — Ele está vivo?
   
— Diga-me — ele ignorou a pergunta —, onde você e o vampiro estão hospedados? Mudaram de hotel, não é? Por isso não vi você sair. O que estava fazendo na praça? Não! — gritou quando abri a boca para falar. — Não me diga, não me diga! Dê a meu cérebro a oportunidade de funcionar. O jovem Vampirado tem muito cérebro. O cérebro até vaza das suas orelhas, como diriam alguns.
   
Parou de falar por um momento, virando os olhos pequenos de um lado para outro, então estalou os dedos e gritou:
   
— A garota! A namoradinha de Darren Shan! Ela mora na praça, certo? Você queria vê-la. Qual é a casa dela? Não me diga, não me diga! Eu descubro sozinho. Basta seguir a garota. Garotinha saborosa. Bastante sangue, hem? Sangue gostoso, salgado. Até posso sentir o gosto.
   
— Fique longe dela! — gritei. — Se você se aproximar dela, eu...
   
— Não me ameace — urrou o vampixiita. — Não me ameace! Não vou aturar desaforo de um meio-vampiro vira-lata como você. Mais alguma ameaça e eu vou embora, e será o fim do
Cobrinha.
   
Consegui me controlar.
   
— Isso significa que ele ainda está vivo? — perguntei com voz trêmula.
   
Com um largo sorriso, Vampirado bateu no nariz.
   
— Talvez sim, talvez não. Não tem nenhum jeito de você ter certeza, não é?
   
— O Sr. Crepsley disse que os vampixiitas honram sua palavra — disse eu. — Se der sua palavra de que ele está vivo, então saberei.
   
Vampirado balançou a cabeça assentindo.
   
— Ele está vivo.
   
— Dá a sua palavra?
   
— Dou minha palavra. O Cobrinha está vivo. Amarrado e dependurado. Berrando como um porquinho. Eu o estou guardando para o Natal. Será minha ceia de Natal. Cobrinha em vez de peru. Você acha que eu sou espírito de porco, hem? — Ele riu. — Entendeu? Espírito de porco. Não é uma das minhas piadas mais sutis, mas serve. Cobrinha riu. Cobrinha faz tudo que eu mando. Você também faria se estivesse na sua posição. Dependurado pelos tornozelos. Gritando como um leitãozinho.
   
Vampirado tinha um modo irritante de se repetir.
   
— Escute — disse eu. — Solte Ofídio. Por favor, ele não fez nenhum mal a você.
   
— Ele se intrometeu nos meus planos — gritou o vampixiita. — Eu estava pronto para me alimentar. Ia ser glorioso. Eu teria sugado todo o sangue do homem gordo, depois o esfolaria e penduraria na sala refrigerada com as outras carcaças. Transformaria em canibais alguns pobre humanos que nem iam desconfiar. Seria um jogo especial, não acha?
   
— Ofídio não interferiu em coisa nenhuma — disse eu. — Fomos eu e o Sr. Crepsley. Ofídio estava no lado de fora.
   
— No lado de dentro, no lado de fora, não estava do meu lado. Mas logo estará. — Vampirado passou a língua nos lábios vermelhos como sangue. — Do meu lado e na minha barriga. Nunca suguei um menino-cobra antes. Não vejo a hora de experimentar. Talvez eu o recheie antes de me alimentar. Fica mais de acordo com o Natal.
   
— Eu mato você! — gritei, puxando a grade outra vez, completamente descontrolado. — Vou encontrá-lo e fazer picadinho de você, membro após membro!
   
— Minha nossa! — riu Vampirado, fingindo medo. — Céus! Por favor, não me machuque, meio-vampirinho malvado. O jovem Vampirado é um cara legal. Que tal me deixar em paz?
   
— Onde está Ofídio? — rugi. — Traga Ofídio aqui agora ou eu...
   
— Tudo bem, agora chega! — disse Vampirado, irritado. — Não vim aqui para ouvir gritos, não, não vim. Posso ir a muitos outros lugares se quiser que gritem comigo, sabe? Agora cale a boca e escute.
   
Com grande esforço consegui me acalmar.
   
— Ótimo — rosnou Vampirado. — Assim é melhor. Você não é tão burro quanto a maioria dos vampiros. Um pouco de cérebro em Darren Shan, hem? Não tão inteligente quanto eu, é claro, mas quem o é? O jovem Vampirado tem mais cérebro do que...
   
“Agora chega.” Ele enfiou as unhas na parede, debaixo da grade e ergueu um pouco o corpo. “Ouça com atenção.” Parecia lúcido agora. “Não sei como você me encontrou — o Cobrinha não quis me dizer, por mais escamas que eu arrancasse; eu não me importo. É seu segredo. Guarde com você. Nós todos precisamos de segredos, não é mesmo, hem?
   
“E não me importo com o homem”, continuou. “Ele era apenas uma refeição. Há muitos no lugar de onde veio. Muito mais sangue no mar de carne humana.
   
“Não me importo com você”, disse ele com desdém. “Meiosvampiros não me interessam. Você só estava seguindo seu dono. Você não me preocupa. Estou preparado para deixar você viver. Você, o Cobrinha e o homem.
   
“Mas o vampiro Larten Crepsley”, os olhos vermelhos do vampixiita encheram-se de ódio. “Com ele eu me importo. Ele devia saber que não é direito ficar no meu caminho. Vampiros e vampixiitas não se misturam!” ele gritou a plenos pulmões. “Até os tolos do mundo sabem disso. Uns não se intrometem no caminho dos outros. Ele violou as leis. Ele tem de pagar.”
   
— Ele não violou nenhuma lei — disse eu, desafiadoramente. — Você é louco. Você está matando gente na cidade inteira. Tinha de ser detido.
   
— Louco? — Eu esperava que Vampirado reagisse com fúria ao insulto, mas ele apenas riu baixinho. — Foi isso que ele disse? Louco? O jovem Vampirado não é louco! Sou tão são quanto qualquer outro vampixiita. Estaria aqui se fosse louco? Teria juízo bastante para manter o Cobrinha vivo? Você vê minha boca espumando? Você me ouve dizendo disparates como um idiota? Hem?
   
Resolvi ser indulgente.
   
— Talvez não. Pensando bem, você parece muito inteligente.
   
— É claro que sou inteligente. O jovem Vampirado tem cérebro. Não pode ser louco quem tem cérebro, a não ser que pegue raiva. Está vendo algum animal com raiva?
   
— Não — respondi.
   
— E então? — perguntou, triunfante. — Nenhum animal raivoso, portanto nenhum Vampirado louco. Está entendendo, hem?
   
— Estou entendendo — disse eu em voz baixa.
   
— Por que ele se intrometeu? — perguntou Vampirado. Parecia contuso e petulante. — Eu não estava fazendo nada contra ele. Eu não entraria no seu caminho. Por que ele tinha de estragar tudo daquele jeito?
   
— Esta era, antigamente, a cidade dele — expliquei. — Ele morava aqui quando era ser humano. Achou que era seu dever proteger sua gente.
   
Vampirado olhou para mim, incrédulo.
   
— Quer dizer que ele fez isso por eles? — falou com voz estridente. — Os portadores de sangue? — Riu insanamente. — Ele deve ser doido! Pensei que talvez os quisesse para ele. Ou que eu matei alguém de quem ele gostava. Nem por um segundo pensei que ele fez isso por causa de... de...
   
Vampirado começou a rir.
   
— Isso resolve tudo — disse ele. — Não posso deixar um lunático solto por aí. Nunca se sabe quando vai aprontar outra. Ouça o que estou dizendo, Darren Shan. Você parece um garoto esperto. Vamos fazer um trato, resolver esta confusão, hem?
   
— Que tipo de acordo? — perguntei, desconfiado.
   
— Uma troca — disse Vampirado. — Eu sei onde está o Cobrinha. Você sabe onde o vampiro está. Um pelo outro. O que você diz?
   
— Trocar o Sr. Crepsley por Ofídio? — zombei. — Que tipo de acordo é esse? Trocar um amigo por outro? Com certeza não acredita que eu...
   
— Por que não? — perguntou Vampirado. — O menino-cobra é inocente, não é? Seu melhor amigo, ele me disse. Foi o vampiro quem tirou você da sua família, da sua casa. Ofídio disse que você o odeia.
   
— Isso foi há muito tempo.
   
— Mesmo assim— continuou o vampixiita. — Se você tivesse de escolher entre os dois,
quem escolheria? Se a vida deles estivesse na balança e você só pudesse salvar um, quem salvaria?
   
Não precisei pensar por muito tempo.
   
— Ofídio — disse eu com firmeza.
   
— Pois então é isso! — disse Vampirado com seu vozeirão.
   
—Mas o Sr. Crepsley não está em perigo. Você quer que eu o use para tirar Ofídio do aperto. — Balancei a cabeça devagar. — Não vou fazer isso. Não vou trair o Sr. Crepsley ou levá-lo a uma armadilha.
   
— Não precisa. É só dizer o nome do hotel e o número do quarto. Eu faço o resto. Entro quando ele estiver dormindo, faço o que tenho de fazer, e depois levo você para apanhar Ofídio. Dou minha palavra que deixo vocês dois livres. Pense nisso, hem? Compare as opções. O vampiro ou o Cobrinha. A escolha é sua.
   
Balancei a cabeça outra vez.
   
— Não. Não há nada para pensar. Eu trocaria de lugar com Ofídio de boa vontade, se isso...
   
— Eu não me importo com você! — berrou Vampirado. — Eu quero o vampiro. O que eu ia fazer com um meio-vampirinho idiota? Não posso beber seu sangue. Não ganho nada matando você. É Crepsley ou não há acordo.
   
— Pois então não há acordo — disse eu, sentindo os soluços subirem na garganta, pensando no que essas palavras significavam para Ofídio.
   
Vampirado cuspiu em mim, enojado. A cusparada ricocheteou na grade.
   
— Você é um bobo — rosnou. — Pensei que fosse inteligente, mas não é. Pois então, que seja. Vou encontrar o vampiro. Sua namorada também. Vou matar os dois. Depois mato você. Espere para ver se não faço isso.
   
O vampixiita soltou as unhas da parede e mergulhou na escuridão.
   
— Pense em mim, Darren Shan — gritou, deslizando por um túnel. — Pense em mim quando o Natal chegar, quando estiver comendo o peru e o presunto. Sabe o que vou estar comendo? Sabe? — Sua risada ecoou sinistramente quando ele desapareceu no túnel.
   
— Sim — disse eu em voz baixa. Eu sabia exatamente o que ele estaria comendo.
   
Fiquei de pé, enxuguei as lágrimas do rosto e fui para o hotel acordar o Sr. Crepsley e contar para ele meu encontro com Vampirado. Depois de alguns minutos, subi por uma escada de incêndio e atravessei os telhados, por precaução, para o caso de o vampixiita estar me seguindo.
 
   
CAPÍTULO DEZOITO
   
 
   
 
    Não foi surpresa para o Sr. Crepsley saber que Vampirado estava vigiando o hotel — ele esperava isso —, mas ficou atônito por eu ter voltado à praça.
   
— No que estava pensando? — disse ele, zangado.
   
— Você não me avisou para ficar longe da praça — respondi.
   
— Não achei que precisava — gemeu. — O que deu em você para voltar lá?
   
Resolvi que estava na hora de falar sobre Débora. Ele ouviu em silêncio minha explicação.
   
— Uma namorada — disse ele, quando terminei, balançando a cabeça surpreso. — Por que pensou que eu desaprovaria? Não há nenhum motivo para você não ser amigo de uma garota. Até os vampiros completos se apaixonam por seres humanos. É complicado e não recomendável, mas não há nada de errado nisso.
   
— Não está zangado?
   
— Por que iria me zangar? Assuntos do seu coração não me dizem respeito. Você agiu certo. Não fez promessas que não pode cumprir e não esqueceu que só pode ser temporário. O que me preocupa na sua amizade com essa garota é a ligação com o vampixiita.
   
— Acha que Vampirado irá atrás dela?
   
— Duvido. Acho que ele vai ficar longe da praça. Agora que sabemos que ele esteve lá, certamente vai evitar a área, no futuro. Mas você deve ter cuidado. Não vá visitá-la à noite. Entre pela porta dos fundos. Fique longe das janelas.
   
— Posso continuar a me encontrar com ela?
   
— Pode — sorriu. — Acho que deve me achar uma espécie de estraga-prazeres, mas eu nunca faria você se sentir infeliz intencionalmente.
   
Sorri, agradecido.
   
— E Ofídio? — perguntei. — O que vai acontecer com ele?
   
O sorriso desapareceu.
   
— Não tenho certeza. — Pensou por alguns minutos. — Você recusou realmente trocar a minha vida pela dele? — Falou como se eu estivesse dizendo aquilo para impressioná-lo.
   
— É verdade — disse eu.
   
— Mas por quê?
   
Dei de ombros.
   
— Dissemos que iríamos confiar um no outro, está lembrado?
   
O Sr. Crepsley virou a cabeça para o lado e tossiu com a mão fechada na frente da boca. Então olhou para mim como se estivesse envergonhado.
   
— Eu subestimei muito você, Darren — disse ele. — Não farei isso outra vez. Foi melhor do que pensei a escolha para que fosse meu assistente. É uma honra ter você ao meu lado.
   
O elogio me deixou sem jeito. Não estava acostumado a ouvir coisas agradáveis do vampiro, por isso fiz uma careta e tentei fingir que não era importante.
   
— E Ofídio? — perguntei.
   
— Faremos o que for preciso para salvá-lo — disse o Sr. Crepsley. — É pena que você tenha recusado me trocar por ele. Se soubéssemos que Vampirado ia propor isso, podíamos ter pensado em uma armadilha. Agora que você demonstrou sua lealdade para comigo, ele não vai oferecer outra vez. Perdemos uma ótima oportunidade de vencê-lo. Mas ainda há esperança — disse ele. — Hoje é dia vinte e três. Sabemos que Ofídio não será morto antes do dia vinte e cinco.
   
— A não ser que Vampirado mude de ideia.
   
— É pouco provável. Os vampixiitas não são famosos por sua natureza indecisa. Se ele disse que não matará Ofídio antes do dia de Natal, é quando ele vai matá-lo. Temos duas noites, hoje e amanhã, para procurar seu covil.
   
— Mas ele pode estar em qualquer lugar da cidade! — exclamei.
   
— Não concordo. Ele não está na cidade, está debaixo dela. Escondido nos túneis. Nos esgotos. Nos canos de escoamento. Escondendo-se do sol, podendo se movimentar à vontade.
   
— Não pode ter certeza. Podia estar lá só hoje para me seguir.
   
— Nesse caso estamos ferrados. Mas, se ele estabeleceu sua base lá embaixo, podemos ter uma chance. Não há muito espaço debaixo do solo. É mais fácil detectar ruídos. Não vai ser fácil, mas há esperança. A noite passada, não tínhamos nem isso. Se tudo o mais falhar — acrescentou — e acabarmos de mãos vazias... — Os músculos do seu rosto ficaram tensos. — Procuro nosso parente assassino e ofereço a ele o acordo que ele ofereceu a você.
   
— Está dizendo...
   
— Sim — disse ele, sombriamente. — Se não encontrarmos Ofídio a tempo, troco a minha vida pela dele.
   
 
   
 
    Havia mais espaço sob o solo do que o Sr. Crepsley previa. Era um labirinto complexo. Os canos pareciam ir e vir de todos os lados, como que instalados ao acaso. Alguns eram grandes o bastante para ficarmos de pé, outros mal davam para rastejar dentro deles. Muitos estavam em uso, verdadeiros regatos de água e restos de despejo. Outros eram velhos, secos e rachados.
   
O fedor era horrível. Uma coisa era certa: poderíamos ver ou ouvir Vampirado ou Ofídio, mas certamente jamais poderíamos nos guiar pelo olfato.
   
O lugar era cheio de fatos, aranhas e insetos. Mas logo descobri que, se a gente os ignora, eles geralmente nos ignoram também.
   
— Não compreendo por que precisam de tantos túneis — disse o Sr. Crepsley, aborrecido, depois de várias horas de procura infrutífera. Parecia que tínhamos andado a metade da cidade mas, quando ele pôs a cabeça para fora, acima do solo, para verificar nossa posição, viu que tínhamos percorrido menos de um quilômetro.
   
— Acho que diferentes túneis foram feitos em épocas diferentes — disse eu. Meu pai trabalhava para uma firma construtora e me explicou um pouco sobre os sistemas subterrâneos. — Em alguns lugares os canos se desgastam, e geralmente é mais fácil cavar novos túneis do que consertar os antigos.
   
— Que desperdício — resmungou o Sr. Crepsley com desprezo. — Pode-se construir uma cidade pequena no espaço ocupado por esses malditos canos. — Olhou em volta. — Parece que há mais buracos do que concreto. Me admira que a cidade não tenha desmoronado.
   
Depois de algum tempo, o Sr. Crepsley parou, praguejando.
   
— Quer parar? — perguntei.
   
— Não — ele suspirou. — Vamos continuar. É melhor procurar do que esperar sentado. Pelo menos assim estamos exercitando uma espécie de controle sobre nosso destino.
   
Usamos lanternas nos túneis. Precisávamos de alguma luz. Nem mesmo os vampiros enxergam na escuridão completa. Os fachos de luz aumentavam a probabilidade de Vampirado nos ver antes que pudéssemos vê-lo, mas era um risco que não podíamos evitar.
   
— Não há nenhum meio de procurá-lo telepaticamente, há? — perguntei quando paramos para descansar. Aquele negócio de se arrastar e levantar era exaustivo. — Você não pode entrar em contato com os pensamentos dele?
   
O vampiro balançou a cabeça.
   
— Não tenho nenhuma conexão com Vampirado. Para se ligar aos sinais do pensamento de uma pessoa, são necessárias emissões iguais às do radar, dos dois lados. — Ergueu os dois dedos indicadores, um a mais ou menos meio metro do outro. — Digamos que este sou eu. — Balançou o indicador da mão direita. — Este é o Sr. Altão. — Balançou o da esquerda. — Há muitos anos aprendemos a reconhecer as ondas mentais um do outro. Agora, quando quero encontrar o Sr. Altão, emito uma série de ondas parecidas com radar. — Dobrou e endireitou o dedo. — Quando esses sinais entram em contato com Hibérnio, uma parte da mente dele automaticamente responde com sinais iguais, mesmo que seu consciente não perceba.
   
— Quer dizer que pode encontrá-lo mesmo que ele não queira ser encontrado?
   
O Sr. Crepsley confirmou.
   
— Por isso muitas pessoas recusam-se a compartilhar suas ondas identificadoras. Só se deve revelar a quem confiamos. Menos de dez pessoas na terra podem me encontrar desse modo, ou eu a elas. — Sorriu pesarosamente. — Não preciso dizer que nenhuma delas é um vampixiita.
   
Eu não estava certo de ter compreendido tudo sobre ondas mentais, mas apenas o suficiente para saber que o Sr. Crepsley não podia usá-las para encontrar Ofídio.
   
Mais uma esperança riscada da lista.
   
Mas a conversa me fez pensar. Com certeza havia algum meio de aumentar nossas chances. O plano do Sr. Crepsley — andar ao acaso pelos túneis e rezar para encontrar o vampixiita — era fraco. Será que não podíamos fazer qualquer outra coisa? Nenhum meio de preparar uma armadilha e atrair Vampirado para ela?
   
Concentrei meus pensamentos imediatos na procura — se encontrássemos o vampixiita por acaso, eu não queria ser apanhado com a cabeça nas nuvens —, mas dediquei parte da mente a pensar com seriedade.
   
Alguma coisa que o vampixiita havia dito lutava para vir à lembrança no fundo do meu cérebro, mas eu não conseguia descobrir o que era. Relembrei tudo que ele dissera. Falamos sobre Ofídio, o Sr. Crepsley e Débora e sobre o acordo e...
   
Débora.
   
Ele me provocou falando nela, dizendo que ia matá-la e sugar seu sangue. Na hora, não dei atenção, considerando uma ameaça vã, porém, quanto mais pensava, mais me perguntava o quanto ele estava realmente interessado nela.
   
Ele devia estar faminto ali embaixo. Estava acostumado a se alimentar regularmente. Tínhamos atrapalhado sua agenda. Ele disse que mal podia esperar para sugar o sangue de Ofídio, mas estaria mesmo? Vampiros não podem tomar sangue de cobras e eu era capaz de apostar que os vampixiitas também não podiam. Talvez o sangue de Ofídio não fosse apropriado para beber. Talvez Vampirado só pudesse matar o menino-cobra no dia de Natal, mas não sugar seu sangue, como havia planejado. Ele comentou mais de uma vez como Débora parecia saborosa. Seria uma pista para dizer que Ofídio não era saboroso?
   
O tempo passava e os pensamentos giravam em minha mente. Eu não disse nada quando o Sr. Crepsley avisou que precisávamos voltar à superfície (ele tinha um relógio natural embutido) para o caso de Vampirado estar nos seguindo e ouvindo tudo que dizíamos. Subi em silêncio para fora do túnel e andamos pelas ruas, depois pelos telhados outra vez. Continuei em silêncio quando entramos sorrateiramente pela janela do hotel e desabei numa cadeira, cansado, triste e infeliz.
   
Mas então, hesitante, tossi para chamar a atenção do vampiro.
   
— Acho que tenho um plano — disse eu e, falando devagar, expliquei.
 
   
CAPÍTULO DEZENOVE
   
 
   
 
    Nelson atendeu o telefone quando liguei para a casa de Débora. Perguntei se podia falar com ela.
   
— Poderia se ela estivesse acordada — riu. — Sabe que horas são?
   
Olhei para meu relógio. Faltavam poucos minutos para as sete horas da manhã.
   
— Oh — disse eu, embaraçado. — Desculpe. Não tinha ideia. Eu o acordei?
   
— Não. Tenho de passar no escritório, por isso é um dia comum para mim. Na verdade, estava quase na porta quando o telefone tocou.
   
— Vai trabalhar na véspera de Natal?
   
— Não há descanso para os perversos — riu. — Mas só vou ficar no escritório algumas horas. Ajeitando algumas pontas soltas antes do feriado de Natal. Volto bem antes da ceia. Por falar nisso, podemos esperar você ou não?
   
— Sim, por favor — disse eu. — Por isso estou telefonando para dizer que vou.
   
— Ótimo! — Ele parecia genuinamente satisfeito. — E Ofídio?
   
— Não v ai ser possível. Ele ainda não está bem.
   
— É pena. Escute, quer que eu acorde Débora? Eu posso...
   
— Não, tudo bem — disse eu, rapidamente. — Só diga a ela que eu vou jantar. Duas horas?
   
— Perfeito — disse Nelson. — Vejo você mais tarde, Darren.
   
— Até logo, Nelson.
   
Desliguei e fui direto para a cama. Minha cabeça zumbia de tanto ter falado com o Sr. Crepsley, mas me obriguei a fechar os olhos e me concentrar em belos pensamentos. Momentos mais tarde, meu corpo cansado mergulhou no sono e dormi pesadamente até uma hora da tarde, quando o despertador tocou.
   
Minhas costelas doeram quando me levantei e meu peito estava cheio de manchas arroxeadas nos lugares em que Vampirado tinha batido com a cabeça. Depois de andar por alguns minutos, me senti melhor, mas precisava ter cuidado para não fazer movimentos bruscos e para inclinar o corpo o menos possível.
   
Tomei um bom banho de chuveiro e, depois de me enxugar, borrifei desodorante no corpo todo — foi difícil me livrar do cheiro do esgoto. Depois de me vestir, apanhei a garrafa de vinho que o Sr. Crepsley havia comprado para levar para a casa de Débora.
   
Bati na porta dos fundos da casa, como o Sr. Crepsley havia recomendado. Dora abriu.
   
— Darren — ela me beijou nos dois lados do rosto. — Feliz Natal!
   
— Feliz Natal — disse eu.
   
— Por que não usou a porta da frente?
   
— Eu não queria sujar seus tapetes — disse eu, passando os pés no capacho, no lado de dentro da porta. — Meus sapatos estão sujos de neve derretida e lama.
   
— Seu bobo — sorriu. — Como se alguém se importasse com os tapetes no dia de Natal. Débora! — chamou. — Um belo pirata está aqui e quer ver você.
   
— Oi — disse Débora, descendo a escada. Ela também me beijou nos dois lados do rosto. — Papai disse que você telefonou. O que tem nesse saco?
   
Tirei a garrafa de vinho.
   
— Para a ceia — disse eu. — Meu pai me deu para trazer.
   
— Oh, Darren, é muita gentileza — disse Dora. Apanhou a garrafa e disse em voz alta para Nelson: — Veja o que Darren trouxe.
   
— Ah! Vinho! — Os olhos de Nelson se iluminaram. — Melhor do que o que compramos. Convidamos o homem certo. Devíamos convidá-lo com mais frequência. Onde está o sacarolhas?
   
— Espere um pouco — riu Dora. — A ceia ainda não está pronta. Vou pôr a garrafa na geladeira. Vocês vão para a sala de estar. Eu grito quando chegar a hora.
   
Abrimos algumas caixinhas de surpresa enquanto esperávamos e Débora perguntou se meu pai já tinha resolvido quando íamos embora. Eu disse que sim, que partiríamos nesta noite.
   
— Esta noite? — disse ela, desapontada. — Ninguém viaja para lugar algum na véspera de Natal, a não ser para casa. Minha vontade é ir até aquele hotel, arrastar seu pai para fora e...
   
— Pois é para onde estamos indo — interrompi. — Para casa. Mamãe e papai vão ficar juntos outra vez, só no dia de Natal. Para dar alguma alegria a Ofídio e a mim. Deve ser uma surpresa, mas eu o ouvi falando no telefone esta manhã. Por isso telefonei tão cedo. Eu estava entusiasmado.
   
— Oh. — Vi que Débora ficou aborrecida com a notícia, mas reagiu com bravura. — Isso é maravilhoso. Aposto que é o melhor presente que vocês podiam desejar. Talvez eles resolvam as coisas de uma vez.
   
— Talvez— disse eu.
   
— Então, esta é a última tarde que vocês passam juntos — observou Nelson. — O destino separou os dois jovens românticos.
   
— P-a-a-a-pai! — Débora gemeu, batendo de leve com a mão fechada no pai. — Não diga coisas como essa. É embaraçoso!
   
— Para isso é que servem os pais — sorriu Nelson. — É nossa tarefa embaraçar as filhas na frente dos namorados.
   
Débora olhou para ele, zangada, mas percebi que ela estava gostando.
   
A refeição foi magnífica. Dora aplicou muito bem todos seus anos de experiência culinária. O peru e o presunto praticamente derretiam na boca. As batatas assadas estavam no ponto exato e os vegetais, macios como gelatina. A aparência era maravilhosa e o gosto melhor ainda.
   
Nelson contou uma piada nova que nos fez morrer de rir e Dora fez o seu truque de festa, balançar um pãozinho no nariz. Débora tomou um gole de água e gargarejou Noite feliz inteira. Então chegou minha vez de entreter as plateias.
   
— Esta ceia está tão boa — suspirei — que sou capaz até de comer os talheres. — Enquanto todos riam, apanhei uma colher, mordi o cabo, mastiguei em pedaços pequenos e engoli.
   
Três pares de olhos praticamente saltaram das órbitas.
   
— Como fez isso? — perguntou Débora rindo.
   
— O segredo é a alma do negócio — disse eu, piscando para ela.
   
— Era uma colher de mentira — rugiu Nelson. — Ele está brincando conosco.
   
— Dê-me a sua colher — disse eu. Ele hesitou, examinou a colher para ter certeza de que era real, e me entregou. Não precisei de muito tempo para engolir a colher com meus duros dentes de vampiro.
   
— É incrível! — exclamou Nelson, atônito, batendo palmas, entusiasmado. — Vamos experimentar com uma concha de servir.
   
— Espere um pouco — gritou Dora quando Nelson estendeu a mão para a mesa. — Essa faz parte de um faqueiro e é difícil encontrar igual. Daqui a pouco você vai querer que ele coma os pratos de porcelana da minha avó.
   
— Por que não? — disse Nelson. — Jamais gostei daqueles pratos velhos.
   
— Tome cuidado — avisou Dora torcendo o nariz dele — ou eu faço você comer os pratos.
   
Débora inclinou-se para mim, sorrindo, e apertou minha mão.
   
— Fiquei com sede depois dessas colheres — brinquei, levantando-me da mesa. — Acho que está na hora do meu vinho.
   
— Atenção todos — disse Nelson, encantado.
   
— Eu vou apanhar — disse Dora, levantando-se.
   
— De jeito nenhum — disse eu, empurrando-a gentilmente de volta à cadeira. — Esteve servindo a tarde toda. Está na hora de alguém servir a você.
   
— Ouviram isso? — disse Dora, e sorriu para os outros dois. — Acho que vou trocar Débora por Darren. Ele será muito mais útil por aqui.
   
— Ah, é assim? — disse Débora com desprezo. — Amanhã você não vai ganhar nenhum presente!
   
Sorrindo para mim mesmo, apanhei o vinho da geladeira e tirei o papel laminado que protegia a rolha. O saca-rolhas estava na pia. Passei uma água nele e abri a garrafa. Cheirei — eu não entendo muito de vinho, mas o cheiro parecia muito bom — e encontrei quatro copos limpos. Enfiei a mão no bolso por alguns segundos e derramei alguma coisa nos três copos. Em seguida servi o vinho e voltei para a mesa.
   
— Salve! — gritou Nelson quando apareci na porta.
   
— Por que demorou tanto? — perguntou Débora. — Estávamos a ponto de mandar uma equipe de busca à sua procura.
   
— Levei algum tempo para tirar a rolha — disse eu. — Não estou acostumado.
   
— Devia ter arrancado com os dentes — brincou Nelson.
   
— Não pensei nisso — disse eu, muito sério. — Farei na próxima vez. Obrigado pelo conselho.
   
Nelson olhou para mim, hesitante.
   
— Quase me enganou! — riu de repente, balançando um dedo.
   
— Quase me enganou!
   
A repetição da frase me fez lembrar de Vampirado, mas rapidamente afastei da mente qualquer pensamento sobre o vampixiita e levantei meu copo.
   
— Um brinde — anunciei. — Aos Cicutas. Seu nome pode ser veneno, mas sua hospitalidade é de primeira classe. Saúde! — Eu tinha ensaiado o brinde e foi muito bom, como eu esperava que fosse. Eles suspiraram alto, depois riram e ergueram os copos, batendo todos no meu.
   
— Saúde — disse Débora.
   
— Saúde — disse Dora.
   
— Virar o copo! — disse Nelson rindo.
   
E bebemos.
 
   
CAPÍTULO VINTE
   
 
   
 
    Mais tarde, na véspera de Natal. Debaixo do solo nos túneis.
   
 
    Estávamos procurando havia poucas horas, mas parecia mais tempo. Transpirávamos e estávamos cobertos de sujeira, nossos pés e nossas calças encharcados de água imunda. Íamos o mais depressa possível, fazendo muito barulho. Minhas costelas doeram no começo, mas o pior passou e agora eu mal notava as pontadas quando me abaixava, curvava o corpo ou virava rapidamente para um lado.
   
— Vá mais devagar — o Sr. Crepsley reclamou várias vezes. — Ele vai ouvir se você continuar assim. Precisamos ter mais cuidado.
   
— Para o inferno com o cuidado — gritei. — Esta é a nossa última chance de encontrá-lo. Temos de cobrir a maior área possível. Não me importa quanto barulho eu faça para isso.
   
— Mas se Vampirado ouvir... — começou o Sr. Crepsley.
   
— Cortamos tora sua cabeça e recheamos com alho! — gritei, e comecei a me mover mais depressa ainda, fazendo mais barulho.
   
Logo chegamos a um túnel maior do que todos os outros. O nível da água na maioria dos túneis era mais alto do que na véspera, por causa da neve derretida no solo, mas esse estava seco. Talvez fosse um escoadouro de emergência para o caso de os outros transbordarem.
   
— Vamos descansar aqui — disse o Sr. Crepsley, sentando-se, exausto. A procura era mais difícil para ele do que para mim por ser mais alto e ter de se curvar mais.
   
— Não temos tempo para descansar — disse eu, irritado. — Pensa que Vampirado está
descansando?
   
— Darren, procure se acalmar. Compreendo sua agitação, mas não poderemos ajudar Ofídio se entrarmos em pânico. Você está tão cansado quanto eu. Alguns minutos não farão diferença, de um modo ou de outro.
   
— Você não se importa, certo? — disse eu, emburrado. — Ofídio está em algum lugar, sendo torturado ou cozido e você só se preocupa com suas velhas pernas cansadas.
   
— Elas são velhas — resmungou — e estão tão cansadas, tenho certeza, quanto as suas. Sente-se e pare de agir como uma criança. Se o destino quiser que encontremos Ofídio, nós o encontraremos. Senão...
   
Furioso com o vampiro, fiquei de pé na frente dele.
   
— Me dê essa lanterna — tentei tirar a lanterna da mão dele. A minha, eu tinha quebrado quando a deixei cair. — Eu vou na frente, sozinho. Você fica aí sentado e descansa. Vou encontrar Ofídio sem sua ajuda.
   
— Pare com isso — disse ele, me empurrando. — Você está agindo de modo intolerável. Acalme-se e...
   
Dei um puxão e a lanterna caiu da mão do Sr. Crepsley. Escapou também da minha mão e partiu-se em pedaços contra a parede do túnel. Mergulhamos na mais completa escuridão.
   
— Seu idiota! — rugiu o Sr. Crepsley. — Agora temos de voltar e encontrar outra lanterna. Você nos custou um tempo precioso. Eu disse que alguma coisa como essa iria acontecer.
   
— Cale a boca! — gritei, empurrando o vampiro para trás. Ele caiu e recuou às cegas.
   
— Darren! — gritou o Sr. Crepsley. — O que está fazendo?
   
— Vou encontrar Ofídio.
   
— Não pode! Não sozinho! Volte e me ajude a levantar. Torci o tornozelo. Voltaremos com lanternas melhores e iremos mais depressa. Você não pode procurar sem luz.
   
— Posso ouvir — respondi. — E posso sentir. E posso gritar. Ofídio! — gritei, para
provar o que dizia. — Ofídio! Onde você está? Sou eu!
   
— Pare! Vampirado pode ouvir. Volte e fique quieto.
   
Ouvi o vampiro se levantando. Respirando fundo, corri pelo túnel. Diminuí o passo quando vi um cano que saía do cano maior. Entrei nele e comecei a me arrastar. Os gritos do Sr. Crepsley ficavam cada vez mais distantes. Cheguei então a outro cano e entrei nele. Depois outro. E outro. Em cinco minutos eu tinha me perdido do vampiro.
   
Estava sozinho. No escuro. Debaixo do solo.
   
Estremeci, mas lembrei por que estava ali e o que estava em jogo. Tateando às cegas, procurei um túnel maior.
   
— Ofídio — chamei em voz baixa. Depois de pigarrear, gritei: — Ofídio! Sou eu, Darren! Está me ouvindo! Estou indo ao seu encontro. Grite se puder me ouvir. Ofídio! Ofídio! Ofídio!
   
Gritando e chamando avancei, com as mãos estendidas na frente do corpo, aguçando os ouvidos para o menor som, os olhos inúteis — um alvo perfeito para todos os demônios da escuridão.
   
 
   
 
    Não sei há quanto tempo estava ali. Não havia nenhum modo de calcular as horas dentro dos túneis. Também não tinha noção de direção. Podia estar me movendo em círculos. Apenas seguia para a frente, chamando Ofídio, arranhando as mãos nas paredes, meus pés e minhas pernas dormentes por causa da umidade e do frio.
   
Às vezes uma corrente de ar soprava nas minhas narinas para me lembrar do mundo lá em cima. Eu me apressava quando isso acontecia, temendo perder a coragem e parar para respirar melhor.
   
Eu estava descendo, cada vez mais me aprofundando no sistema de canos e túneis. Imaginei quantas pessoas deviam ter estado ali embaixo, em todos esses anos. Não muitas. Em alguns canos mais antigos, talvez eu fosse o primeiro ser humano (meio humano) a passar nas últimas décadas. Se tivesse tempo, teria parado para gravar minhas iniciais na parede.
   
— Ofídio! Está me ouvindo! Ofídio! — repetia.
   
Nenhuma resposta. Na verdade, eu não esperava que ele respondesse. Se por acaso eu encontrasse o covil de Vampirado, era quase certo que ia encontrar Ofídio amordaçado. O vampixiita não era do tipo de ignorar um detalhe desse tipo.
   
— Ofídio! — o esforço enrouquecia minha voz. — Você está aí? Pode...
   
De repente, sem qualquer aviso, senti o golpe da mão pesada nas costas e caí. Gritei de dor e rolei para o lado, procurando enxergar nas profundezas da escuridão.
   
— Quem está aí? — perguntei com voz trêmula. Uma risada seca me respondeu. — Quem é você? — resfoleguei. — Sr. Crepsley? É você? Você me seguiu? É...
   
— Não — murmurou Vampirado no meu ouvido. — Não é. — Acendeu uma lanterna nos meus olhos. A luz era cegante. Com uma exclamação abafada, fechei os olhos, esquecendo todo pensamento de me defender. Era isso que o vampixiita esperava. Antes que cu pudesse reagir, ele se inclinou para a frente, abriu a boca e assoprou no meu rosto... o sopro dos mortos-vivos... o gás que deixava as pessoas inconscientes.
   
Tentei me afastar dele, mas era tarde demais. O gás estava em mim. Entrou nas minhas narinas e desceu pela garganta, inundando os pulmões, obrigando-me a curvar o corpo tossindo espasmodicamente.
   
A última coisa de que me lembro foi cair para a frente, os pés roxos e descalços de Vampirado crescendo à medida que eu caía na direção deles.
   
E então... nada. Tudo era negro.
 
   
 CAPÍTULO VINTE E UM
   
 
   
 
    Quando voltei a mim, estava cara a cara com uma caveira. Não uma caveira antiga — essa tinha ainda carne grudada nela e um dos olhos flutuava na órbita.
   
Gritei e tentei me afastar, mas vi que não podia. Olhando para cima (para cima? Por que não para baixo!) para meu corpo, vi que estava todo amarrado com cordas. Depois de alguns segundos de espanto e pânico, vi outra corda em volta dos meus tornozelos e compreendi que estava dependurado de cabeça para baixo.
   
— Aposto que o mundo parece diferente desse ponto em que você está, hem? — perguntou Vampirado. Girei o corpo, eu não podia mover braços nem pernas, mas podia girar o corpo, e o vi sentado a pouca distância da caveira, roendo uma unha. Estendeu o pé e começou a balançar a caveira. — Diga olá para Ofídio — riu, divertido.
   
— Não! — gritei, balançando para a frente, arreganhando os dentes, tentando morder a perna dele. Infelizmente a corda não era tão comprida. — Você prometeu que não o mataria antes do Natal! — exclamei.
   
— Quer dizer que ainda não é Natal? — perguntou Vampirado, inocentemente. — Opa! Desculpe. Um pequeno engano, hem?
   
— Vou matar você — ameacei. — Vou...
   
Um gemido me fez calar. Virando-me, vi que não estava sozinho. Tinha mais alguém pendurado de cabeça para baixo a alguns metros de mim.
   
— Quem está aí? — perguntei, certo de que era o Sr. Crepsley. — Quem está aí?
   
— D-D-D-Darren? — ouvi uma voz fraca.
   
— Ofídio? — exclamei, incrédulo.
   
Vampirado riu e acendeu uma lanterna de luz forte. Meus olhos levaram alguns segundos para se ajustar à claridade. Quando se ajustaram, vi a forma familiar e o rosto do meninocobra. Ele parecia faminto, exausto e assustado — mas estava vivo.
   
Ofídio estava vivo!
   
— Eu enganei você, não é? — disse Vampirado com uma risadinha, aproximando-se.
   
— O que você está fazendo aqui, Darren? — gemeu Ofídio. Seu rosto estava cheio de cortes e equimoses e vi uma mancha rosada no seu braço e no ombro direitos, de onde as escamas haviam sido arrancadas brutalmente. — Como foi que ele...
   
— Chega de falar, seu réptil — rosnou Vampirado, dando um pontapé em Ofídio, fazendoo girar na corda.
   
— Pare com isso! — rugi.
   
— Me faça parar — riu Vampirado. — Fique quieto — disse para Ofídio. — Se falar outra vez sem permissão, serão suas últimas palavras. Compreendeu? — Ofídio assentiu, balançando fracamente a cabeça. Toda sua resistência havia sido aniquilada. Seu estado era lastimável. Mas pelo menos estava vivo. Isso era o principal.
   
Comecei a examinar o lugar. Estávamos em uma grande caverna, escura demais para dizer se era natural ou artificial. Ofídio e eu pendíamos de uma barra de aço. Esqueletos enchiam o chão. Eu ouvia água pingando em algum lugar e vi um catre num canto.
   
— Por que me trouxe aqui? — perguntei.
   
— O Cobrinha estava muito solitário — respondeu Vampirado. — Achei que você seria uma boa companhia para ele, hem?
   
— Como me encontrou?
   
— Não foi difícil. Não foi difícil. Ouvi você e o vampiro quando estavam ainda a quilômetros de distância. Eu os segui. Vampirado conhece esses encanamentos como a palma de sua mão, sim, ele conhece. O jovem Vampirado é esperto. Estou aqui há muito tempo. Não fico parado, de papo para o ar.
   
— Por que não atacou antes? — perguntei. — Pensei que quisesse matar o Sr. Crepsley.
   
— Eu vou matar — disse Vampirado. — Calculando o tempo. Esperando a hora certa. Então você entrou como um furacão e facilitou as coisas. O jovem Vampirado não podia desprezar um presente. Pego o vampiro mais tarde. Por enquanto você serve. Você e o Cobrinha.
   
— O Sr. Crepsley estava sozinho — provoquei. — Sem lanterna. Estava no escuro. Mas você resolveu me atacar. Você é um covarde. Ficou com medo de atacar uma pessoa do seu tamanho. Você não é melhor do que...
   
O punho de Vampirado atingiu meu queixo e eu vi estrelas.
   
— Diga isso outra vez — disse ele, assustadoramente — e corto sua orelha.
   
Olhei para o vampixiita com ódio, mas não disse nada.
   
— Vampirado não tem medo de nada — disse ele —, especialmente de um vampiro velho como Crepsley. Que tipo de vampiro é esse que se alia a crianças, hem? Não vale a pena me preocupar com ele. Eu o pego mais tarde. Você tem mais coragem. Seu sangue é mais quente. — Inclinou-se e beliscou meu rosto. — Gosto de sangue quente — disse ele, suavemente.
   
— Não pode sugar meu sangue — disse eu. — Sou meiovampiro. É proibido.
   
— Talvez eu tenha dado fim às proibições. Sou independente. Não dou satisfações a ninguém. As leis dos vampixiitas não me atingem aqui embaixo. Faço o que quero.
   
— É veneno — disse eu, alarmado. — Sangue de vampiro é veneno para os vampixiitas.
   
— É mesmo?
   
— É. Assim como sangue de cobra. Não pode se alimentar com nenhum de nós dois.
   
Vampirado disse com cara triste:
   
— Você tem razão sobre sangue de cobra — resmungou. — Dei uma mordida nele só para experimentar, você compreende, só um teste, e vomitei quatro horas depois.
   
— Eu estou dizendo! — exclamei, triunfante. — Não somos bons para você. Nosso sangue não vale nada. Não pode ser tomado.
   
— Tem razão — murmurou Vampirado —, mas pode ser derramado. Posso matar e comer vocês dois, mesmo não podendo sugar seu sangue. — Começou a nos empurrar, fazendo-nos girar loucamente. Fiquei enjoado.
   
Então Vampirado foi buscar alguma coisa. Quando voltou, tinha duas facas enormes nas mãos. Ofídio começou a choramingar baixinho quando viu as facas.
   
— Ah! Cobrinha lembra para que isto serve — riu Vampirado malevolamente. Passou a lâmina de uma faca na outra, produzindo um som agudo e desagradável que me provocou arrepios. — Nós nos divertimos com elas, não foi, réptil?
   
— Desculpe, Darren — soluçou Ofídio. — Ele me fez dizer onde vocês estavam. Não pude evitar. Ele cortou minhas escamas e... e...
   
— Tudo bem — disse eu, calmamente. — Não foi culpa sua. Eu também teria falado. Além disso, não foi assim que ele me pegou. Deixamos o hotel antes que ele chegasse.
   
— Devem ter deixado também seus cérebros — disse Vampirado. — Pensaram mesmo que podiam entrar sem mais nem menos aqui, no meu covil, salvar o menino-cobra e sair como alegres carneirinhos? Nunca ocorreu a vocês que sou o senhor deste território e que usaria todo meu poder para detê-los?
   
— Sim, me ocorreu — disse eu em voz baixa.
   
— Mas mesmo assim você veio?
   
— Ofídio é meu amigo — disse eu, simplesmente. — Eu faria qualquer coisa para libertá
lo.
   
Vampirado balançou a cabeça e bufou com desprezo.
   
— É a sua porção humana. Se fosse um vampiro completo, saberia que era impossível. Fico surpreso por Crepsley ter ficado tanto tempo com você antes de fugir.
   
— Ele não fugiu! — gritei.
   
— Sim, ele fugiu, sim, ele fugiu — riu Vampirado. — Eu o segui até lá em cima. Por isso não peguei você antes, entendeu? Ele correu como se estivesse sendo perseguido pelo sol.
   
— Está mentindo — disse eu. — Ele não fugiria. Ele não me deixaria.
   
— Não? — sorriu o vampixiita. — Você não o conhece tão bem quanto pensa, garoto. Ele se foi. Está fora do jogo. Provavelmente está na metade do caminho, voltando para o lugar de onde veio, correndo com o rabo entre as pernas.
   
Vampirado saltou para a frente e sacudiu as duas facas, uma de cada lado do meu rosto. Gritei e fechei os olhos, esperando ver meu sangue correr. Mas ele parou a milímetros de mim, bateu com as facas nas minhas orelhas e recuou.
   
— Só estou fazendo um teste — disse. — Queria ver quanta fibra moral você tem. Não muita, hem? Não muita. O Cobrinha só gritou depois da minha quarta ou quinta investida. Você vai ser menos divertido do que pensei. Talvez não me dê ao trabalho de torturar você. Talvez eu o mate logo. Gostaria disso, meio-vampiro? Seria para seu bem. Sem dor, sem sofrimento, sem pesadelos. Cobrinha tem pesadelos. Conte a ele seus pesadelos, réptil. Conte como você acorda de repente gritando e soluçando como um bebê.
   
Ofídio apertou os lábios e não disse nada.
   
— Oh, oh — caçoou Vampirado. — Ficando corajoso outra vez na frente do amigo, é isso? Redescobrindo sua bravura, hem? Bom, não se preocupe. Não vai demorar para acabar com ela.
   
Passou uma faca na outra novamente e foi para trás de nós, onde não podíamos vê-lo.
   
— Com qual começo? — perguntou, pensativo, dando pulinhos às nossas costas. — Acho... escolho... — Ele se moveu silenciosamente. Senti o cabelo da minha nuca eriçar.
   
— Você! — rugiu de repente e se atirou sobre... mim.
 
   
 CAPÍTULO VINTE E DOIS
   
 
   
 
    Vampirado puxou minha cabeça para trás. Senti a lâmina da faca na carne macia do meu pescoço. Meu corpo ficou rígido, esperando o corte. Eu queria gritar, mas a lâmina me impedia. “É isso”, pensei. “Este é o fim. Que modo estúpido de morrer.”
   
Mas o vampixiita estava só me provocando. Tirou a faca devagar do meu pescoço e riu malevolamente. Tinha todo o tempo do mundo. Não precisava se apressar. Queria brincar um pouco conosco.
   
— Você não devia ter vindo — murmurou Ofídio. — Foi bobagem. — Parou de falar por um momento e depois continuou: — Mas obrigado, do mesmo jeito.
   
— Você teria me abandonado? — perguntei.
   
— Teria — disse ele, mas eu sabia que era mentira.
   
— Não se preocupe — disse eu. — Vamos descobrir um meio de sair dessa.
   
— Um meio de sair? — exclamou Vampirado. — Não diga besteira. Como vai escapar? Roendo as cordas? Se pudesse alcançá-las com os dentes, mas não pode. Arrebentar as cordas com sua superforça de vampiro? Nada feito. São fortes demais. Eu experimentei todas antes, sabe? Aceite a realidade, Darren Shan, você está condenado! Ninguém virá ajudá-lo. Ninguém pode encontrar você aqui embaixo. Vou fazer as coisas devagar, vou cortar você em pedacinhos e espalhar pela cidade toda, como confete, e não há nada que você possa fazer para evitar, portanto, caia na real!
   
— Pelo menos, deixe Ofídio ir — implorei. — Você tem a mim. Não precisa dele. Pense como será horrível para ele se o deixar ir. Terá de viver sabendo que eu morri no seu lugar. Será uma carga pesada demais. Talvez pior do que morrer.
   
— Talvez — rosnou Vampirado. — Mas sou um homem simples. Gosto dos prazeres simples. É uma boa ideia, mas prefiro cortá-lo em fatias, lenta e dolorosamente, se você não se importa. Menos complicado.
   
— Por favor — solucei. — Deixe Ofídio ir. Faço tudo que você quiser. Eu... eu... entrego Crepsley.
   
Vampirado riu.
   
— Nada feito. Você teve a chance de fazer isso antes. Mas não aproveitou. Além disso, não pode me levar até ele agora. Ele naturalmente mudou outra vez de hotel. Pode até ter fugido da cidade.
   
— Deve haver alguma coisa que eu possa dar a você! — gritei desesperado. — Deve haver algum meio... — parei.
   
Praticamente eu podia ouvir as orelhas de Vampirado ficando em pé.
   
— O que é? — perguntou ele, curioso, depois de alguns segundos de silêncio. — O que você ia dizer?
   
— Espere um pouco! — disse eu, irritado. — Tenho de pensar primeiro. — Eu sentia os olhos de Ofídio grudados em mim, com um misto de esperança e resignação ao destino do qual, ele sabia, nenhum de nós podia escapar.
   
— Diga logo — falou Vampirado com impaciência, levantando-se, dando a volta e ficando de pé na minha frente. O contorno do seu rosto arroxeado não aparecia muito bem na luz fraca da caverna, de modo que os olhos e os lábios pareciam três globos vermelhos flutuando no ar e o cabelo manchado era como um tipo estranho de morcego. — Não tenho a noite toda — disse ele. — Fale enquanto pode.
   
— Eu só estava pensando — falei rapidamente. — Você vai ter de sair da cidade depois disso, certo?
   
— Deixar a cidade? — urrou Vampirado. — Deixar meus belos túneis? Nunca! Gosto daqui. Quer saber como estar aqui embaixo me faz sentir? Como se estivesse dentro do corpo da cidade. Esses túneis são como veias. Esta caverna é como o coração onde o sangue da cidade entra e sai. — Sorriu e pela primeira vez não era um sorriso malévolo. — Pode imaginar? — disse em voz baixa. — Viver dentro de um corpo, andando pelas veias, e os túneis de sangue completamente livre?
   
— Mesmo assim — disse eu, com firmeza —, você terá de ir embora.
   
— Que conversa é essa de ir embora? — disse ele irritado, me espetando com a faca. — Você começa a me aborrecer.
   
— Só estou sendo prático. Você não pode ficar aqui. O Sr. Crepsley sabe onde você está. Ele vai voltar.
   
— Aquele covarde? Duvido. Ele está muito...
   
— Ele vai voltar com reforços — interrompi. — Com outros vampiros.
   
Vampirado riu.
   
— Está falando dos Generais Vampiros?
   
— Estou.
   
— Bobagem! Não podem vir atrás de mim. Há um acordo entre eles e nós. Eles não se intrometem. Crepsley não é um General, é?
   
— Não — disse eu. — Não é.
   
— Está vendo? — gritou Vampirado, triunfante. — Ele não viria atrás de mim, se fosse. Regras, leis e modos de vida. Significam tanto para os vampiros quanto para os vampixiitas.
   
— Mesmo assim, os Generais virão — insisti em voz baixa. — Eles não podiam antes, mas agora podem. Talvez esta noite. Amanhã certamente. Talvez essa fosse a intenção do Sr. Crepsley, desde o começo.
   
— Que besteira é essa que você está dizendo? — Vampirado parecia preocupado.
   
— Há pouco você disse uma coisa interessante. Que ficou surpreso de o Sr. Crepsley ter vindo comigo. Não dei importância na hora, mas agora, pensando bem, concordo que foi estranho. Pensei que fosse porque ele queria ajudar a encontrar Ofídio, mas agora...
   
— O quê? — gritou Vampirado estridentemente quando parei de falar. — Diga o que está pensando. Desembuche, ou... — Ergueu as facas ameaçadoramente.
   
— O pacto entre os vampiros e os vampixiitas — disse eu, depressa. — Diz que um lado não pode se intrometer na vida do outro, certo?
   
— Certo.
   
— A não ser que seja para se defender ou se vingar.
   
Vampirado concordou.
   
— É isso.
   
Com um leve sorriso eu disse:
   
— Você não vê? Eu sou meio-vampiro. Se me matar, os Generais terão uma desculpa para vir atrás de você. O Sr. Crepsley deve ter planejado isso desde o começo. — Respirei fundo e olhei nos olhos de Vampirado. — Ele deixou que você me encontrasse. Ele queria que você me pegasse. Ele queria que você me matasse.
   
Vampirado arregalou os olhos.
   
— Não — sua voz era sibilante. — Ele não faria isso.
   
— Ele é um vampiro. É claro que faria. Esta é a cidade natal dele. Não passo de um aprendiz. Qual de nós você escolheria para ser sacrificado?
   
— Mas... mas... — O vampixiita esfregou o rosto, nervoso. — Não fui eu que comecei — gritou. — Vocês me perseguiram.
   
Balancei a cabeça.
   
— O Sr. Crepsley veio atrás de você. Eu sou inocente. Não sou uma ameaça. Se me matar, será por sua conta. Os Generais vão cair em cima de você e nenhum vampixiita vai fazer nada para defendê-lo.
   
Vampirado ficou em silêncio, enquanto minhas palavras se gravavam em sua mente, depois começou a pular para cima e para baixo, num lugar só, praguejando furiosamente. Deixei o vampixiita extravasar sua raiva durante algum tempo, então disse:
   
— Ainda não é tarde demais. Deixe-me ir. Deixe Ofídio ir também. Fuja da cidade. Assim, eles não podem tocar em você.
   
— Mas eu adoro estes túneis — gemeu Vampirado.
   
— Adora o bastante para morrer por eles? — perguntei.
   
Ele entrecerrou os olhos.
   
— Você é muito inteligente, não é? — rosnou.
   
— Na verdade, não. Se fosse não teria vindo aqui. Mas posso ver a verdade quando está na minha frente. Mate-me, Vampirado, e estará assinando sua sentença de morte.
   
Ele curvou os ombros e tive certeza de que estava salvo. Agora, só tinha de me preocupar com Ofídio...
   
— O Cobrinha — disse Vampirado, ameaçadoramente. — Ele não é vampiro. Nada me impede de matá-lo, hem?
   
— Não! — gritei. — Se fizer mal a Ofídio, eu mesmo vou procurar os Generais e contar...
   
— Contar o quê? — interrompeu Vampirado. — Você acha que eles se importam? Pensa que vão arriscar uma guerra por causa de um réptil? — Riu. — O jovem Vampirado está com vontade de matar. Posso não ter o pequeno meio-vampiro, mas não vão me tirar o Cobrinha também. Veja, Darren Shan. Veja como eu faço uma nova boca no menino-cobra, na barriga!
   
Ele agarrou as cordas que prendiam Ofídio e o puxou para a frente com a mão esquerda. Com a direita, brandiu uma das facas e preparou-se para o primeiro corte.
   
— Espere! — gritei. — Não faça isso! Não faça isso!
   
— Por que não? — disse Vampirado com desdém.
   
— Eu troco de lugar com ele! — continuei a gritar. — Eu no lugar de Ofídio!
   
— Não adianta — disse Vampirado. — Você é meio-vampiro. Nada feito.
   
— Eu arranjo outra pessoa! Muito melhor!
   
— Quem? — riu Vampirado. — Quem você pode me dar, Darren Shan?
   
— Eu lhe dou... — Engoli em seco, fechei os olhos e murmurei as palavras terríveis.
   
— O que você disse? — perguntou, desconfiado. — Fale alto. Não estou ouvindo.
   
— Eu disse... — Passei a língua nos lábios e, fazendo um esforço, obriguei-me a falar mais alto dessa vez: — Eu disse que dou a você a minha namorada. Se você poupar Ofídio, eu lhe dou... Débora.
 
   
 CAPÍTULO VINTE E TRÊS
   
 
   
 
    Minha oferta obscena foi recebida com um silêncio atônito que Ofídio foi o primeiro a quebrar.
   
— Não! — gritou. — Não faça isso! Não pode!
   
— Débora por Ofídio — disse eu, ignorando as súplicas de Ofídio. — O que você me diz?
   
— Débora? — Vampirado coçou o rosto devagar. Levou alguns segundos para
compreender de quem eu estava falando. Então, lembrou e sorriu. — Ah! Débora! A saborosa namorada de Darren Shan. — Seus olhos brilharam pensando nela.
   
— Ela será mais útil para você do que Ofídio — disse eu. — Pode tomar seu sangue. Você disse que gostaria. Disse que ela deve ter um sangue delicioso.
   
— Sim — concordou Vampirado. — Salgado. Suculento. — Recuou um passo, afastandose de Ofídio. — Mas por que escolher? — ele pensou alto. — Por que não ter os dois? Matar o menino-cobra agora, sugar o sangue de Débora mais tarde. Não vai ser difícil encontrá-la. Posso vigiar a praça amanhã, descobrir onde ele mora e assim que a noite chegar... — Sorriu.
   
— Você não tem tempo — disse eu. — Tem de deixar a cidade esta noite. Não pode esperar.
   
— Ainda tagarelando sobre deixar a cidade? — disse Vampirado com desprezo. — Se eu soltar você, como me convenceu a fazer, não preciso sair daqui.
   
— Sim, precisa. Vai levar algum tempo para que os vampiros descubram que estou vivo. Os Generais virão direto para estes túneis assim que chegarem. No fim, vão saber, mas se eles o matarem antes disso...
   
— Não ousarão! — exclamou Vampirado com voz estridente. — Isso significará guerra!
   
— Mas eles não vão saber disso. Pensarão que estavam dentro dos seus direitos. Pagarão caro pelo erro, mas isso não será consolo para você. Você tem de ir embora o mais depressa possível. Pode voltar daqui a algumas semanas, mas, se ficar agora, estará pedindo um desastre.
   
— O jovem Vampirado não quer ir embora — disse o vampixiita, amuado. — Eu gosto daqui. Não quero ir. Mas você tem razão — suspirou. — Por algumas noites, pelo menos, devo ir. Encontrar um porão escuro abandonado. Me esconder. Ficar fora de circulação.
   
— Por isso Débora será melhor do que Ofídio — insisti. — Você deve estar com fome. Vai querer se alimentar antes de ir, certo?
   
— Oh, sim — concordou Vampirado, passando a mão na barriga.
   
— Mas se alimentar sem planejar antes é perigoso. Os vampiros estão acostumados, mas os vampixiitas não, estou certo?
   
— Está — disse Vampirado. — Somos mais inteligentes do que os vampiros. Pensamos com antecedência. Planejamos. Marcamos nosso alimento.
   
— Mas você não pode fazer isso agora — lembrei. — Precisa de uma refeição rápida para ter forças quando for embora. Eu posso providenciar isso. Concorde com os meus termos e eu o levo a Débora. Posso fazer você entrar e sair sem que ninguém veja.
   
— Darren! Pare! — rugiu Ofídio. — Eu não quero isso! Você não pode...
   
Com um violento soco na barriga, Vampirado o calou.
   
— Como posso confiar em você? — berrou o vampixiita. — Como vou saber que não vai me enganar?
   
— Como posso enganar você? — respondi. — Mantenha minhas mãos amarradas nas costas e uma faca perto do meu pescoço. Deixe Ofídio onde está venho buscá-lo mais tarde, depois que você se alimentar e sair da cidade. Se eu tentar qualquer coisa, estarei condenando nós dois. Não sou burro. Sei o que está em jogo.
   
Vampirado cantarolou baixinho enquanto pensava.
   
— Você não deve fazer isso — gemeu Ofídio.
   
— É o único meio — sussurrei-lhe.
   
— Eu não quero trocar minha vida pela de Débora — disse ele. — Prefiro morrer.
   
— Veremos se vai pensar do mesmo modo amanhã — rosnei.
   
— Como pode fazer isso? — perguntou ele. — Como pode entregá-la como se fosse um... um...
   
—Um ser humano — disse eu, secamente.
   
— Eu ia dizer um animal.
   
Com um débil sorriso eu disse:
   
— Para um vampiro é a mesma coisa. Você é meu melhor amigo, Ofídio. Débora é somente um ser humano que me atraiu.
   
Ofídio balançou a cabeça.
   
— Não o reconheço mais — disse tristemente e virou o rosto para o outro lado.
   
— Tudo bem — Vampirado tomou uma decisão. Empunhou as facas e avançou. Estremeci, mas ele apenas cortou as cordas que prendiam meus tornozelos. Caí pesadamente no chão. — Faremos a coisa ao seu modo — declarou o vampixiita. — Mas se você der um passo em falso...
   
— Não darei — disse eu, levantando-me. — Agora, que tal me dar sua palavra?
   
— O quê?
   
— Você ainda não deu. Não saio daqui sem sua palavra.
   
O vampixiita sorriu.
   
— Garoto esperto — Vampirado arreganhou os dentes. — Tudo bem. Dou minha palavra, a garota pelo Cobrinha. Débora por Ofídio. Está bem assim para você?
   
Fiz um sinal de aprovação.
   
— Diga que vai me deixar ir quando terminar com Débora. Diga que não vai impedir que eu volte para libertar Ofídio. Diga que não fará nada para nos prejudicar depois.
   
Vampirado riu.
   
— Oh, você é sem dúvida inteligente. Quase tanto quanto o jovem Vampirado. Muito bem. Eu o deixo ir. Não farei nada para impedir que venha libertar o Cobrinha, nem para prejudicálos, quando forem libertados. — Ergueu um dedo. — Mas se você voltar a esta cidade, ou se nossos caminhos se cruzarem no futuro, será a morte. Esta é uma trégua temporária, não uma garantia a longo prazo. Combinado?
   
— Combinado.
   
— Muito bem. Vamos então?
   
— Não vai desatar algumas destas cordas? — perguntei. — Não consigo andar direito.
   
— Se consegue andar, já é suficiente — riu Vampirado. — Não vou me arriscar com você. Tenho a impressão de que você não deixará passar nenhuma oportunidade de me enganar. — Ele me empurrou com força, fazendo-me cambalear. Depois me firmei sobre as pernas e começamos a andar.
   
Olhei para trás, para Ofídio.
   
— Não vou demorar — disse eu. — Virei antes do nascer do dia e voltaremos para casa, para o Circo dos Horrores, certo?
   
Ele não respondeu. Não quis nem mesmo olhar para mim.
   
Com um suspiro, comecei a sair do covil, com Vampirado me guiando pelos túneis, cantarolando pequenas canções sinistras, dizendo o que ia fazer quando pusesse as mãos imundas em Débora.
 
   
 CAPÍTULO VINTE E QUATRO
   
 
   
 
    Passamos rapidamente pelos túneis. Vampirado marcava as paredes à medida que andava, arranhando-as com as unhas. Ele não queria, mas eu disse que o acordo seria desfeito se não o fizesse. Desse modo, eu só teria de seguir as marcas quando voltasse. Muito mais simples do que tentar lembrar todas as voltas e desvios.
   
Vampirado tinha de me carregar quando era preciso rastejar ou subir. Eu detestava ficar tão perto dele — seu hálito fedia a sangue humano —, mas tinha de aguentar. Ele não ia desamarrar meus braços, de modo nenhum.
   
Saímos dos túneis por um bueiro perto da praça. Vampirado me içou para fora, mas me empurrou para baixo rapidamente quando passou um carro.
   
— Preciso ter cuidado — grunhiu. — A polícia está por toda parte, infestando a cidade como moscas, desde que encontraram os corpos. Uma chateação. No futuro, enterrarei os ossos com mais cuidado.
   
Passou a mão na roupa para limpar parte da sujeira, mas não pensou em limpar a minha também. Disse, amuado, outra vez:
   
— Preciso comprar roupas novas quando voltar. Muito embaraçoso. Nunca posso visitar o mesmo alfaiate duas vezes, sabe?
   
— Por quê?
   
Olhou para mim com uma sobrancelha levantada.
   
— Acha que meu rosto é uma coisa fácil de esquecer? — perguntou, apontando para a pele arroxeada e os olhos e lábios vermelhos. — Ninguém esqueceria. Por isso tenho de matar o alfaiate quando a roupa está pronta. Eu roubaria roupas das lojas se pudesse, mas sou grande demais — bateu na barriga avantajada e riu.
   
“Venha”, disse ele. “Vá na frente. Vamos pela rua de trás. Menos chance de sermos vistos.”
   
As ruas estavam praticamente desertas; era tarde e véspera de Natal e a neve derretida era perigosa, e não encontramos ninguém. Caminhamos na neve misturada com lama, Vampirado me jogando no chão sempre que um carro passava. Eu começava a ficar farto disso — não podia aliviar o impacto da queda com as mãos e meu rosto era meu escudo. Mas ele apenas riu quando me queixei.
   
— Assim você fica mais forte — disse ele. — Cria mais músculos.
   
Finalmente chegamos à casa de Débora. Vampirado parou na frente da porta dos fundos e olhou em volta, nervoso. As casas vizinhas estavam às escuras, mas mesmo assim ele hesitou. Por um momento pensei que fosse desistir do acordo.
   
— Com medo? — perguntei, suavemente.
   
— O jovem Vampirado não tem medo de nada! — respondeu ele agressiva e imediatamente,
   
— Então, o que estamos esperando?
   
— Você parece muito ansioso para me levar à sua namorada — disse ele, desconfiado.
   
Dei de ombros do melhor modo possível, amarrado daquele jeito.
   
— Quanto mais eu tiver de esperar, pior vou me sentir. Eu sei o que tem de ser feito. Não gosto e vou me sentir péssimo depois, mas tudo que quero agora é acabar com isso, libertar Ofídio e encontrar um lugar quente para deitar e relaxar. Meus pés parecem dois blocos de gelo.
   
— Pobre meio-vampirozinho — riu Vampirado. Depois, com uma das suas unhas pontudas de vampixiita, cortou um círculo no vidro da janelinha da porta dos fundos. Enfiou a mão, abriu a porta e me empurrou para dentro.
   
Ele escutou em silêncio os ruídos da casa.
   
— Quantas pessoas moram aqui? — perguntou.
   
— Três. Débora e os pais.
   
— Nenhum irmão ou irmã? — Balancei a cabeça. — Nenhum inquilino?
   
— Só os três — repeti.
   
— Posso dar uma mordidinha no pai ou na mãe quando acabar com a garota — resmungou.
   
— Isso não faz parte do acordo — disse eu, furioso.
   
— E daí? Eu nunca disse que os pouparia. Duvido que tenha fome depois, mas talvez volte outra noite, e apanhe os dois, um de cada vez. Vão pensar que é uma maldição de família. — Riu baixinho.
   
— Você é nojento — rosnei.
   
— Diz isso porque gosta de mim — riu outra vez. — Vá em frente — disse ele, passando para os negócios. — Suba a escada. O quarto dos pais primeiro. Quero ter certeza de que estão dormindo.
   
— É claro que estão dormindo — disse eu. — É madrugada. Você ouviria se estivessem acordados.
   
— Não quero que me peguem de surpresa — disse.
   
— Ouça — suspirei. — Se você quer ver Nelson e Dora, tudo bem, eu o levo até eles. Mas é perda de tempo. Não seria melhor entrar e sair o mais depressa possível?
   
O vampixiita pensou no assunto.
   
— Muito bem — disse. — Mas, se eles aparecerem de repente, o jovem Vampirado mata os dois, mata sim, e a culpa será sua.
   
— Acho justo — disse eu, começando a subir a escada.
   
Era uma caminhada longa e tensa. Todo amarrado, eu não podia me mover tão silenciosamente como de hábito. Toda vez que um degrau rangia, eu parava com uma careta. Vampirado estava tenso também. Torcia as mãos e respirava ruidosamente cada vez que eu fazia um barulho e parava.
   
Quando cheguei na frente do quarto de Débora, encostei a cabeça na porta e suspirei tristemente.
   
— É aqui — disse eu.
   
— Saia do caminho — disse Vampirado agressivamente e me empurrou para o lado. Ficou parado, farejando, depois sorriu. — Sim — gargarejou. — Posso sentir o cheiro do sangue dela. Aposto que você também pode, hem?
   
— Sim — disse eu.
   
Ele girou a maçaneta e abriu a porta. O quarto estava escuro, mas nossos olhos, acostumados à escuridão mais densa dos túneis, ajustaram-se imediatamente.
   
Vampirado olhou em volta, notando os guarda-roupas e as cômodas, os poucos pôsteres e móveis, a árvore de Natal sem enfeites, perto da janela.
   
Dava para ver o contorno do corpo de Débora sob as cobertas, movendo-se levemente, como se estivesse tendo um pesadelo. O cheiro do seu sangue era intenso no ar.
   
Vampirado avançou e então se lembrou de mim. Amarrou-me à maçaneta da porta, puxou a corda para se certificar de que os nós estavam seguros, então encostou o rosto no meu e riu sarcasticamente.
   
— Você já viu a morte antes, Darren Shan? — perguntou.
   
— Já — respondi.
   
— É maravilhosa, não é?
   
— Não — disse eu secamente. — É horrível.
   
O vampixiita suspirou.
   
— Você não pode ver a beleza. Não faz mal. Você é jovem. Vai aprender quando crescer. — Com dois dedos roxos segurou meu queixo. — Quero que você assista. Quero que veja quando eu cortar a garganta dela. Que me veja sugar seu sangue. Quero que me veja roubar sua alma para mim.
   
Tentei desviar os olhos, mas ele segurou meu queixo com mais força e me obrigou a virar a cabeça.
   
— Se você não olhar, vou diretamente ao quarto dos pais depois disto e mato os dois. Compreendeu?
   
— Você é um monstro — disse eu, com voz rouca.
   
— Compreendeu? — repetiu ameaçadoramente.
   
— Sim — disse eu, virando a cabeça e soltando meu queixo. — Vou olhar.
   
— Bom garoto — riu baixinho. — Garoto esperto. Nunca se sabe, você pode gostar. Isso pode ser um marco na sua vida. Talvez você venha comigo quando eu for embora. O que acha, Darren Shan? Que tal abandonar aquele velho vampiro chato e ser assistente do jovem Vampirado, hem?
   
— Acabe logo com isso — disse eu, sem disfarçar meu nojo.
   
Vampirado atravessou o quarto devagar e silenciosamente. Tirou do bolso as duas facas, enquanto andava, e as girou no ar como um par de batutas. Começou a assobiar, mas baixinho, de modo que só os mais perfeitos ouvidos podiam ouvir.
   
Os leves movimentos continuavam sob as cobertas.
   
Vi, com um nó no estômago, Vampirado aproximar-se da presa. Mesmo que não tivesse recebido ordem para olhar, eu não podia tirar os olhos da cena. Era uma visão tenebrosa, mas fascinante. Era como ver a aranha se lançar sobre a mosca. Só que essa aranha usava facas, comia seres humanos e tinha a cidade toda como sua teia.
   
Ele se aproximou da cama no lado perto da porta e parou a meio metro de distância. Então,
tirou alguma coisa de um dos bolsos. Forçando a vista, vi que era uma pequena bolsa. Vampirado a abriu, tirou uma substância que parecia sal, a qual espalhou no chão. Eu queria perguntar o que era, mas não ousava falar. Achei que devia ser algum ritual dos vampixiitas quando matavam alguém em casa. O Sr. Crepsley havia dito que eles gostavam muito de rituais.
   
Vampirado andou em volta da cama, espalhando o “sal”, murmurando palavras sem sentido para mim. Quando terminou, voltou para os pés da cama, olhou em volta para se certificar de que eu estava olhando e então, com um movimento rápido — quase rápido demais para mim —, saltou para cima da cama, com um pé de cada lado da figura adormecida, puxou as cobertas e atacou com as duas facas, com golpes assassinos que tirariam a vida de Débora num instante.
 
   
 CAPÍTULO VINTE E CINCO
   
 
   
 
    As facas de Vampirado zuniram no ar, acertando o local onde devia estar o pescoço de Débora, através da fazenda macia dos travesseiros e do colchão.
   
Mas não através de Débora.
   
Porque Débora não estava ali.
   
Vampirado olhou para baixo, para a criatura amarrada na cama, as patas e o focinho tão
tensos quanto eu.
   
— É... um... — Seu queixo tremeu. Ele não conseguia dizer a palavra.
   
— É um bode — terminei a frase por ele, com um sorriso.
   
Vampirado virou-se lentamente, sua face uma máscara de confusão.
   
— Mas... mas... mas...
   
Enquanto ele gaguejava, tentando entender o que estava acontecendo, a porta de um dos guarda-roupas se abriu e o Sr. Crepsley apareceu.
   
O vampiro parecia até mais sinistro do que o vampixiita, com sua roupa e capa vermelhas como o sangue, o farto cabelo ruivo e a medonha cicatriz.
   
Vampirado ficou imóvel quando viu o Sr. Crepsley. Os olhos vermelhos pareciam querer
saltar das órbitas e a pele arroxeada empalideceu quando o sangue fugiu de seu rosto.
   
Pelos filmes que tinha visto, eu esperava uma luta longa e movimentada. Pensei que os dois trocariam insultos primeiro, depois o Sr. Crepsley desembainharia uma faca ou uma espada e eles lutariam por todo o quarto, dando pequenas espetadelas, no começo, e aos poucos passando para os ferimentos mais sérios.
   
Mas não foi nada disso. Foi uma luta entre predadores da noite, supervelozes, apenas interessados em matar, não em impressionar a plateia. Houve apenas quatro movimentos no conflito e foi no espaço de tempo de dois confusos e furiosos segundos.
   
O Sr. Crepsley fez o primeiro movimento. Com a mão direita atirou uma faca curta que zumbiu no ar. Atingiu Vampirado no lado esquerdo do peito, a poucos centímetros do alvo visado — o coração. O vampixiita se encolheu e começou a respirar fundo para gritar.
   
Quando Vampirado abriu a boca, o Sr. Crepsley se lançou para a frente. Só precisou de um enorme salto e estava ao lado da cama, em posição para o corpo-a-corpo com o vampixiita.
   
Esse foi o segundo movimento da luta.
   
O terceiro movimento foi de Vampirado — o único que fez. Em pânico, ele procurou
atingir o Sr. Crepsley com a faca da mão esquerda. A lâmina cintilou no ar numa velocidade assustadora e teria acabado com o vampiro se estivesse apontada para o alvo. Mas não estava. Passou a uns bons seis centímetros acima da cabeça do vampiro.
   
Quando o braço de Vampirado acompanhou o movimento da faca, abriu uma brecha que foi logo explorada pelo Sr. Crepsley. Com a mão direita ele desfechou o golpe de misericórdia. Espalmou a mão e enfiou as unhas como lâminas afiadas na barriga de Vampirado.
   
E, quando eu digo enfiou, quero dizer enfiou.
   
Vampirado ficou imóvel, como morto. A faca caiu da sua mão e ele olhou para baixo. A mão do Sr. Crepsley sumiu dentro da barriga do vampixiita até só os ombros ficarem de fora.
   
Deixou a mão lá dentro por um momento e então puxou-a para fora, trazendo entranhas e uma torrente de sangue escuro.
   
Vampirado gemeu e desabou. Caiu de joelhos, amassando o bode no percurso, depois caiu no chão, ficou de costas, tentando fechar o buraco na barriga com as palmas das mãos.
   
Mas o buraco era grande demais. A saliva cicatrizante de vampixiita não adiantava. Ele não podia fazer nada para fechar a abertura ou evitar que seu sangue precioso se esvaísse. Era
o fim de Vampirado.
   
O Sr. Crepsley recuou, afastando-se do vampixiita agonizante, apanhou um lençol da cama e limpou a mão com ele. Seu rosto estava inexpressivo. Não parecia nem satisfeito, nem triste com o que acabava de fazer.
   
Depois de alguns segundos, Vampirado compreendeu que não havia esperança para ele. De bruços, com os olhos fixos em mim, começou a se arrastar na minha direção, rilhando os dentes de dor.
   
— Sr. Crepsley? — disse eu com voz trêmula.
   
O Sr. Crepsley olhou atentamente para o vampixiita, que se arrastava, depois balançou a cabeça.
   
— Não se preocupe. Ele não pode fazer nenhum mal. — Mas, por segurança, ele se adiantou, me libertou das cordas e ficou ao meu lado, pronto para atacar, se fosse preciso.
   
Em uma longa e agonizante jornada, o vampixiita arrastou-se até mim. Quase tive pena dele, mas bastou que eu me lembrasse de Ofídio dependurado pelos tornozelos e do que ele pretendia fazer com Débora para me convencer de que ele merecia tudo aquilo.
   
Ele parou mais de uma vez e pensei que ia morrer no meio do caminho, mas o vampixiita estava determinado a dizer suas últimas palavras e continuou a lutar, mesmo sabendo que assim apressava a própria morte.
   
Caiu com o rosto no chão, aos meus pés, ofegante. O sangue jorrava da sua boca e eu sabia que o fim estava próximo. Ergueu um dedo tremido e curvo, pedindo que eu me abaixasse.
   
Olhei interrogativamente para o Sr. Crepsley.
   
O vampiro deu de ombros.
   
— Ele é inofensivo agora. Você decide.
   
Resolvi ouvir o que o vampixiita agonizante tinha para dizer. Inclinei-me com o ouvido perto da sua boca. Ele tinha somente alguns segundos de vida.
   
Os olhos vermelhos giravam loucamente nas órbitas. Então, com imenso esforço, eles se
fixaram em mim e os lábios se abriram em um último esgar. Ele ergueu a cabeça tanto quanto podia e murmurou alguma coisa que não consegui ouvir.
   
— Não ouvi — disse eu. — Tem de falar mais alto. — Levei o ouvido para mais perto da sua boca.
   
Vampirado passou a língua nos lábios, limpando um pouco do sangue, abrindo espaço para o ar. Então, com seu último suspiro, conseguiu dizer as palavras que pareciam importantes para ele.
   
— Ga-ga-ga-roto es-es-es-perto, hem? — gorgolejou, então sorriu inexpressivamente e caiu para a frente.
   
O vampixiita estava morto.
 
   
 CAPÍTULO VINTE E SEIS
   
 
   
 
    Enrolamos o corpo de Vampirado em um grande saco de plástico e mais tarde o deixamos nos túneis de sangue que ele tanto amava. O melhor lugar para seu funeral.
   
Pusemos o bode em um saco também, mas fizemos alguns orifícios para entrada de ar. Esperávamos que Vampirado matasse o animal que eu havia roubado da seção infantil do zoológico da cidade. O Sr. Crepsley queria levá-lo para o Circo dos Horrores — seria um petisco para a serpente de Ofídio ou para os Pequeninos —, mas eu o convenci a libertar o animal.
   
Em seguida limpamos a sujeira. Vampirado tinha perdido muito sangue, que teve de ser lavado. Não queríamos que os Cicutas encontrassem o quarto sujo e começassem a fazer perguntas. Trabalhamos rapidamente, mas levou algumas horas.
   
Terminada a limpeza, subimos para o sótão, levamos para baixo Nelson, Dora e Débora, adormecidos, e os pusemos nas respectivas camas.
   
A noite havia sido completamente planejada. O vinho que levei para a ceia? Eu o havia adulterado quando estava na cozinha. Acrescentei uma das poções do Sr. Crepsley, sem gosto, que fazia dormir dez minutos depois de ingerida. Dormiriam ainda várias horas e acordariam com dor de cabeça, mas, fora isso, sem nenhum outro efeito colateral.
   
Sorri, imaginando o que iam pensar quando acordassem em suas camas, completamente vestidos, sem nenhuma lembrança da noite anterior. Seria um mistério que jamais descobririam.
   
Não foi um plano perfeito. Muita coisa podia ter saído errada. Para começar, não havia garantia de que Vampirado fosse me encontrar quando “briguei” com o Sr. Crepsley e saí furioso, sozinho, e não podíamos garantir que não me mataria imediatamente.
   
Ele podia ter me amordaçado quando me pegou e nesse caso eu não poderia convencê-lo de que devia me deixar viver. Ou Vampirado poderia ignorar meu aviso sobre os Generais Vampiros — o que eu disse era verdade, mas o problema era que Vampirado era louco. Nunca se sabe como um vampixiita louco vai agir. Ele podia ter achado graça na ameaça dos Generais e me feito em pedaços.
   
Convencê-lo a trocar Ofídio por Débora sempre foi a parte mais arriscada. Para que desse certo, eu teria de representar o papel com perfeição. Se eu fizesse a oferta logo no começo, Vampirado ficaria desconfiado e não cairia na armadilha. Se ele tivesse a mente sã, acho que não teria acreditado, independentemente da minha atuação; portanto, nessa parte, sua loucura funcionou a nosso favor.
   
E, é claro, tínhamos de pensar na sua morte. Vampirado poderia ter vencido o Sr. Crepsley. Nesse caso, nós seis teríamos morrido: o Sr. Crepsley, Ofídio e eu, Débora, Dora e Nelson.
   
Foi um jogo perigoso — e injusto para os Cicutas, que nada sabiam sobre seu papel no jogo mortal —, mas às vezes temos de correr certos riscos. Seria sensato arriscar cinco vidas em troca de uma? Provavelmente não. Mas era humano. Se eu não tivesse aprendido nada mais no meu encontro com o vampixiita, aprendi ao menos que os mortos-vivos podem ser humanos. Tínhamos de ser — sem um coque de humanidade, seríamos como Vampirado, nada mais do que monstros da noite, sedentos de sangue.
   
Ajeitei os lençóis limpos em volta de Débora. Vi uma pequena cicatriz em volta do seu tornozelo esquerdo, onde o Sr. Crepsley havia retirado sangue antes. Precisou do sangue para passar no bode, a fim de enganar o olfato de Vampirado.
   
Olhei para o vampiro.
   
— Você agiu certo esta noite — disse eu. — Obrigado.
   
Ele sorriu.
   
— Fiz o que tinha de ser feito. O plano foi seu. Eu é que devia agradecer. A não ser pelo fato de você se intrometer no meu caminho quando o descobri. Na minha opinião, uma coisa compensa a outra, por isso ninguém precisa agradecer.
   
— O que vai acontecer quando os vampixiitas descobrirem que o matamos? Eles virão atrás de nós?
   
O Sr. Crepsley suspirou.
   
— Se tivermos sorte, não encontrarão o corpo. Se encontrarem, espero que não possam ligar sua morte a nós.
   
— E se ligarem? — pressionei-o para uma resposta.
   
— Então eles nos caçarão até os confins da terra — disse ele. — E nos matarão. Não teremos a menor chance. Virão em massa e os Generais não nos ajudarão.
   
— Oh — disse eu. — Era melhor não ter perguntado.
   
— Preferia uma mentira?
   
Balancei a cabeça.
   
— Não. Chega de mentiras. — Sorri. — Mas acho melhor não dizer isso a Ofídio. O que ele não sabe não pode preocupá-lo. Além disso, ele já está bastante zangado comigo. Ele pensou que eu ia mesmo trocar a vida de Débora pela sua. Ofídio está furioso.
   
— Vai se acalmar quando explicarmos os fatos — disse o Sr. Crepsley, confiante. — Agora, vamos apanhar Ofídio?
   
Hesitei e olhei para Débora.
   
— Quer me deixar sozinho por alguns minutos? — perguntei.
   
— É claro. Mas não demore, o nascer do dia está perto e não quero passar o dia todo encurralado naqueles malditos túneis. Espero lá embaixo. — Ele saiu do quarto.
   
Olhei para meu relógio. Quase quatro horas da madrugada. Queria dizer que estávamos no dia vinte e cinco de dezembro. O dia de Natal.
   
Trabalhei rapidamente. Levei a árvore de Natal vazia para um lado da cama de Débora, abri a caixa com as decorações e cobri a árvore com as bolas brilhantes, pequenas figuras, tiras douradas e pequenas luzes cintilantes. Quando terminei, virei Débora na cama, de modo que ela ficou de frente para a árvore. Seria a primeira coisa que ela ia ver quando abrisse os olhos de manhã.
   
Eu me sentia mal indo embora sem me despedir. Assim, eu esperava de certo modo compensar minha falha. Quando ela acordasse e visse a árvore, saberia que eu não tinha ido embora sem mais nem menos. Saberia que estava pensando nela e não me julgaria culpado por esse desaparecimento repentino.
   
Fiquei alguns segundos parado ao lado da cama olhando para o rosto dela. Essa seria sem dúvida a última vez que eu a veria. Ela parecia tão doce ali, adormecida. Tive vontade de arranjar uma câmera e tirar uma foto, mas não precisava — sempre me lembraria dos mínimos detalhes daquela cena. Ficaria junto com os rostos dos meus pais, da minha irmã, de Sam — rostos queridos que jamais sairiam da galeria mental da minha lembrança.
   
Inclinando-me para a frente, beijei a testa dela e afastei uma mecha de cabelo dos seus olhos.
   
— Feliz Natal, Débora — disse eu baixinho, depois me virei, saí do quarto e fui libertar Ofídio.

 

 

                                                                                                    Darren Shan

 

 

 

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