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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TURBILHÃO V.1- P.3 / James Clavell
TURBILHÃO V.1- P.3 / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

TEERÃ: 16:17H. Os dois homens olhavam ansiosamente para o aparelho de telex no escritório de cobertura da S-G.

       — Vamos, pelo amor Deus! — murmurou McIver e tornou a olhar para o relógio. O 125 estava marcado para as cinco e meia. — Nós vamos ter que sair daqui a pouco, Andy, nunca se sabe como estará o tráfego.

       Gavallan estava se balançando distraidamente numa velha cadeira que rangia.

       — Sim, mas Genny ainda não chegou. Assim que ela chegar nós saiinos. Se acontecer o pior, eu posso ligar para Aberdeen de Al Shargaz.

       — Se Johnny Hogg conseguir passar pelo espaço aéreo de Kish e Isfahan, e se a autorização valer em Teerã.

       — Desta vez ele vai pousar, estou com o pressentimento de que o nosso mulá Tehrani quer os óculos novos. Só espero que Johnny os tenha conseguido.

       — Eu também.

 

 

 

 

       Era a primeira vez que o komiteh permitia que um estrangeiro tornasse a entrar no edifício. A maior parte da manhã fora gasta fazendo a limpeza e tornando a ligar o gerador que, evidentemente, estava sem combustível. Na mesma hora, o telex começou a funcionar:

       — Urgente! Por favor confirme se o seu telex está funcionando e informe o sr. McIver que eu tenho um telex Avisyard para o patrão. Ele ainda está em Teerã? O telex era de Elizabeth Chen em Aberdeen. 'Avisyard' era um código da companhia, usado raramente, que significava que uma mensagem que só podia ser lida por McIver e que ele mesmo deveria operar o telex. Teve que fazer quatro tentativas para conseguir receber a mensagem de Aberdeen.

       — Contanto que não tenhamos perdido nenhum aparelho — disse Gavallan, fazendo uma prece silenciosa.

       — Eu estava pensando a mesma coisa. — McIver relaxou os ombros. — Tem alguma idéia do que poderia merecer um Avisyard?

       — Não. — Gavallan escondeu a tristeza, pensando no verdadeiro Avisyard, o Castelo Avisyard, onde tinha passado anos tão felizes com Kathy, que foi quem sugeriu o código. Não pense em Kathy agora, disse a si mesmo. Agora não.

       — Eu detesto estas maltidas máquinas de telex, elas estão sempre en-guiçando — disse McIver, com o estômago pegando fogo, principalmente por causa da briga que tivera com Genny na noite anterior, insistindo que ela deveria partir hoje no 125, e também porque ainda não recebera nenhuma notícia de Lochart. Além disso, mais uma vez nenhum empregado iraniano se apresentara para trabalhar, só os pilotos, que tinham chegado naquela manhã. McIver mandara todos embora, exceto Pettikin, a quem colocou de sobreaviso. Nogger Lane aparecera lá por volta de meio-dia, para comunicar que seu vôo com o mulá Tehrani, seis Faixas Verdes e cinco mulheres tinha corrido bem.

       — Acho que o nosso amigo mulá quer dar outro passeio amanhã. Ele o espera às cinco e meia em ponto no aeroporto.

       — Está bem, Nogger, você vai revezar com Charlie.

       — Vamos, Mac, meu velho, eu trabalhei a manhã inteira, acima e além do dever, e Paula ainda está na cidade.

       — Eu sei disso muito bem, meu velho, e do jeito que as coisas estão, ela vai ficar aqui a semana inteira! Você vai ajudar o Charlie, vai sentar o seu rabo numa cadeira, atualizar os papéis dos nossos aparelhos e se der mais uma palavra eu mando você para a maldita Nigéria!

       Eles esperaram, sabendo que os telex tinham que passar pelas linhas telefônicas.

       — Há um bocado de fio entre Aberdeen e Teerã — resmungou McIver.

       — Assim que Genny chegar, nós partimos — disse Gavallan. — Eu vou me certificar de que ela esteja a salvo em Al Shargaz, antes de ir para casa. Você fez muito bem em insistir.

       — Eu sei disso, você sabe, e o Irã inteiro sabe, mas ela não.

       — Mulheres — disse Gavallan, diplomaticamente. — Há mais alguma coisa que eu possa fazer?

       — Acho que não. Espremer os dois sócios restantes ajudou um bocado.

       Gavallan tinha conseguido localizá-los, Muhammad Siamaki e Turiz Bakhtiar — um sobrenome bastante comum no Irã para aqueles que descendiam da rica, poderosa e numerosa tribo dos Bakhtiar, da qual o ex-primeiro-ministro era um dos chefes. Gavallan tinha conseguido tirar cinco milhões de riais em dinheiro deles — um pouco mais de sessenta mil dólares, uma miséria perto do que os sócios estavam devendo. Com promessas de mais algum dinheiro toda semana, em troca da promessa, e de uma nota, escrita a mão, de que eles seriam reembolsados "fora do país, caso fosse necessário, e de que poderiam viajar no 125 caso fosse necessário".

       — Está bem, mas onde está Valik? Como posso comunicar-me com ele? — Gavallan tinha perguntado, fingindo não saber nada a respeito da sua fuga.

       — Nós já dissemos a você: ele está de férias com a família — respondera Siamaki, rude e arrogante como sempre. — Ele vai entrar em contato com você em Londres ou em Aberdeen. Existe a questão dos nossos fundos nas Bahamas.

       — Os nossos fundos comuns, caro sócio, e existe a questão dos quase quatro milhões de dólares que temos para receber por serviços já prestados, além dos pagamentos pelo aluguel dos nossos aparelhos, já bastante atrasados.

       — Se os bancos estivessem abertos, você receberia o dinheiro. Não é nossa culpa que os aliados pestilentos do xá o tenham arruinado e arruinado o Irã. A culpa dessas catástrofes não é nossa. Quanto ao dinheiro que estamos devendo, nós não pagamos no passado?

       — Sim. Geralmente com um atraso de seis meses, mas eu concordo, caros amigos, que no fim nós sempre conseguíamos arrancar a nossa parte. Mas se todos os negócios feitos em regime de joint venture estão suspensos, como o mulá Tehrani me disse, como vamos operar de agora em diante?

       — Alguns negócios, não todos. A sua informação é exagerada e incorreta, Gavallan. Nós fomos avisados para voltar ao normal o mais cedo possível. As tripulações podem partir assim que os seus substitutos estiverem em segurança aqui. Os campos de petróleo devem voltar a operar a todo o vapor. Não haverá nenhum problema. Mas para evitar qualquer problema, mais uma vez nós negociamos a sociedade. Amanhã, o meu ilustre primo, o ministro das finanças Ali Kia, vai entrar para o conselho...

       — Espere um minuto! Eu tenho que aprovar de antemão qualquer mudança no conselho.

       — Você tinha esse poder, mas o conselho votou pela mudança desta regra. Se você quiser ir contra o conselho, pode levantar esta questão na próxima reunião em Londres. Mas nestas circunstâncias a mudança é necessária e razoável. O ministro Kia assegurou-nos que estaremos isentos. — E claro que os honorários e as porcentagens do ministro Kia sairão da parte de vocês...

       Gavallan tentou não olhar para a máquina de telex mas teve muita dificuldade, enquanto tentava imaginar uma maneira de escapar da armadilha.

       — Uma hora as coisas parecem estar bem, na outra está tudo ruim de novo.

       — Sim. Sim, Andy, eu concordo. Talbot foi o ponto crucial de hoje. Nessa manhã, bem cedo, eles tinham tido um breve encontro com Talbot.

       — Oh, sim, meu velho, as joint ventures são definitivamente persona non grata, sinto muito — ele dissera secamente. — Uma 'decisão superior' decretou a suspensão de todas as joint ventures, até novas instruções, embora que instruções e de quem, eles não tenham revelado. Ou quem tomou esta decisão superior. Nós achamos que o decreto olímpico veio do velho e querido komiteh, sejam eles quem forem! Por outro lado, meu velho, o aiatolá e o primeiro-ministro Bazargan disseram que todas as dívidas com estrangeiros serão honradas. É claro que Khomeini passa por cima de Bazargan e dá outras instruções, Bazargan dá instruções que o Komiteh Revolucionário modifica, os komitehs locais consideram a sua própria versão da lei como sendo uma verdade indiscutível, e nem um único garoto sujo entregou a sua arma até agora. As cadeias estão se enchendo lindamente, cabeças estão rolando e, fora a guilhotina, tudo isto me soa tediosamente familiar, meu velho, e sugere que nós todos deveríamos nos retirar para Margate até tudo isso acabar.

       — Você está falando sério?

       — O nosso conselho para evacuar todo o pessoal que não seja essencial ainda está valendo para assim que o aeroporto abrir, o que Deus sabe quando será, mas que está prometido para sábado. Nós conseguimos que a BA cooperasse com 747 fretados. Quanto ao ilustre Ali Kia, ele é um funcionário de importância secundária, bem secundária mesmo, sem nenhum poder e que joga em todos os times. Aliás, eu acabei de ouvir que o embaixador dos Estados Unidos em Kabul foi seqüestrado por mujhadins fundamentalistas xiitas, anticomunistas, que tentaram trocá-lo por outro mujhadin preso pelo governo pró-soviético. No tiroteio que se seguiu, ele foi morto. As coisas estão esquentando...

       O telex deu sinal de vida, atraindo a atenção deles, mas a máquina não funcionou. Todos dois praguejaram.

       — Assim que eu chegar em Al Shargaz, posso telefonar para o escritório e descobrir qual é o problema... — Gavallan olhou para a porta que se abria. Para surpresa deles, era Erikki. Ele e Azadeh deveriam encontrá-los no aeroporto. Erikki tinha no rosto o seu sorriso habitual, mas não havia nenhuma alegria nele.

       — Olá, patrão; olá, Mac.

       — Oi, Erikki. O que foi que houve? — McIver olhou-o atentamente.

       — Uma ligeira mudança de planos. Nós, ahn, bem, Azadeh e eu vamos voltar a Tabriz primeiro.

       Na noite anterior, Gavallan tinha sugerido que Erikki e Azadeh partissem imediatamente. "Nós encontraremos alguém para substituí-lo. Que tal virem comigo amanhã? Talvez nós consigamos outros documentos para Azadeh em Londres..."

       — Por que a mudança, Erikki? — perguntou. — Azadeh se arrependeu de deixar o Irã sem documentos iranianos?

       — Não. Há uma hora atrás nós recebemos uma mensagem. Eu recebi uma mensagem do pai dela. Aqui está. Leia você mesmo. — Erikki entregou a mensagem a Gavallan, que leu junto com McIver. O bilhete manuscrito dizia: "De Abdullah Khan para o capitão Yokkonen: Preciso que minha filha venha aqui imediatamente e peço que lhe dê permissão para isso". Estava assinado Abdullah Khan. A mensagem estava repetida em farsi do outro lado.

       — Você tem certeza de que é a letra dele? — perguntou Gavallan.

       — Azadeh tem certeza, e ela também conhecia o mensageiro. — Erikki acrescentou: — O mensageiro não nos contou mais nada, só que há muita luta por lá.

       — Por terra está fora de questão. — McIver virou-se para Gavallan. — Talvez o nosso mulá, Tehrani, dê uma autorização a Erikki? De acordo com Nogger, ele estava um carneirinho depois do seu passeio da manhã. Nós podíamos equipar o 206 de Charlie com tanques de longa-distância, e Erikki podia pilotá-lo, talvez com Nogger ou um dos outros para trazê-lo imediatamente de volta?

       — Erikki, você sabe o risco que está correndo? — perguntou Gavallan.

       — Sim. — Erikki ainda não havia contado nada a respeito dos assassinatos.

       — Você já pensou bem... em tudo? Rakoczy, a barreira da estrada, a própria Azadeh? Nós podíamos mandar Azadeh de volta sozinha e você podia seguir no 125 e nós a mandaríamos no vôo de sábado.

       — Vamos, patrão, o senhor nunca faria isso e nem eu. Eu não poderia deixá-la.

       — É claro, mas isso tinha que ser dito. Está bem, Erikki, você se encarrega dos tanques, nós vamos tentar conseguir a autorização. Eu sugiro que vocês voltem para Teerã o mais depressa possível e embarquem no 125 no sábado. Todos dois. Seria aconselhável você pedir uma transferência e passar uns tempos em outro lugar: Austrália, Cingapura, talvez, ou Aberdeen, mas lá podia ser frio demais para Azadeh. Você me avisa. — Gavallan estendeu-lhe a mão animadamente. — Feliz Tabriz, hein?

       — Obrigado. — Erikki hesitou. — Alguma notícia de Tom Lochart?

       — Não, ainda não. Ainda não consegui comunicar-me nem com Kowiss nem com Bandar Delam. Por quê? Xarazade está ficando ansiosa?

       — Mais do que isso. O pai dela está na prisão de Evin e...

       — Jesus Cristo. — McIver explodiu, e Gavallan ficou igualmente chocado, conhecendo os boatos acerca das prisões e dos pelotões de fuzilamento. — Por quê?

       — Para ser interrogado por um komiteh, ninguém sabe por quê, nem por quanto tempo ele vai ficar detido.

       — Bem, se for só para interrogatório... o que aconteceu, Erikki? — perguntou Gavallan, apreensivo.

       — Xarazade chegou em casa há meia hora atrás banhada em lágrimas. Quando ela foi para a casa dos pais na noite passada, depois do jantar, estava havendo o diabo. Aparentemente, alguns Faixas Verdes foram ao bazar, agarraram Emir Paknouri... o senhor sabe, o ex-marido dela. — Acusaram-no de "crimes contra o Islã" e mandaram que Bakravan comparecesse à prisão logo depois do amanhecer para interrogatório. Por que motivo ninguém sabe. — Erikki tomou fôlego. — Eles foram com ele até a prisão hoje de manhã, ela, a mãe, as irmãs e o irmão. Chegaram lá logo depois do amanhecer e esperaram horas e ainda estariam esperando se não recebessem ordens para dar o fora, por volta das duas horas da tarde, dos Faixas Verdes que estavam de guarda lá. Houve um silêncio de perplexidade.

       — Mac, tente falar com Kowiss. Faça-os entrarem em contato com Bandar Delam. Tom deve ser informado a respeito do pai de Xarazade. — Erikki notou o olhar que os dois homens trocaram. — O que está havendo com Tom?

       — Ele está num vôo fretado para Bandar Delam.

       — Sim, você já me disse isso. Mac me disse isso e Xarazade também. Tom disse a ela que voltaria dentro de poucos dias. — Erikki esperou. Gavallan apenas olhou para ele. — Bem, vocês devem ter boas razões.

       — Acho que sim — disse Gavallan. Tanto ele quanto Mac estavam convencidos de que Tom Lochart não teria ido para o Kuwait por sua livre e espontânea vontade, qualquer que fosse o suborno que Valik oferecesse a ele. Ambos estavam com medo de que ele tivesse sido forçado a ir.

       — Está bem, o senhor é o patrão. Bem, eu já vou. Sinto muito por trazer más notícias, mas achei melhor vocês saberem. — Erikki forçou um sorriso. — Xarazade não estava bem. Encontro vocês em Al Shargaz.

       — Quanto mais cedo melhor, Erikki. McIver disse:

       — Se você cruzar com Gen, não fale nada sobre o pai de Xarazade, sim?

       — É claro.

        Depois de Erikki ter saído, McIver disse:

       — Bakravan é um lojista importante demais para ser sumariamente preso.

       — Concordo. — Depois de uma pausa, Gavallan disse: — Espero que Erikki não esteja caindo numa armadilha. Aquela tal mensagem cheira muito mal, muito mal...

       O barulho do telex fez os dois pularem. Eles leram o telex, linha por linha, à medida que ele foi sendo passado. Gavallan começou a praguejar e continuou praguejando até a máquina parar.

       — Que Deus amaldiçoe a Imperial Helicópteros! — Ele arrancou a folha do telex, e Mac mandou de volta o sinal de chamada e 'Alerta Um'. Gavallan tornou a ler a mensagem.

       Era novamente de Liz Chen: "Caro Patrão, nós tentamos nos comunicar com você de hora em hora deste que Johnny nos disse que você tinha ficado em Teerã. Sinto trazer más notícias, mas de manhã cedo na segunda-feira, a Imperial Air e a Imperial Helicópteros anunciaram em conjunto 'novos acordos financeiros para revitalizar a sua posição competitiva no mar do Norte'. A IH foi autorizada a cancelar uma dívida de 17,1 milhões de libras esterlinas de dinheiro dos contribuintes e capitalizaram mais 48 milhões do seu débito de 68 milhões emitindo papel para a principal companhia ao invés do débito. Nós acabamos de saber secretamente que 18 dos nossos 19 contratos no mar do Norte que estavam para ser renovados por diferentes companhias foram entregues à IH abaixo do preço real. Thurston Dell, da ExTex precisa falar urgentemente com você. Os nossos operadores na Nigéria precisam urgentemente de três, repito, três 212 — você pode providenciá-los entre os que estão sobrando no Irã? Suponho que você irá para Al Shargaz ou Dubai com John Hogg hoje. Por favor, avise! Mac, se ele já tiver partido, por favor avise. Lembranças a Genny."

       — Estamos fritos! — disse Gavallan. — É um verdadeiro assalto com o dinheiro dos contribuintes.

       — Então, então leve-os para os tribunais — disse McIver, nervosamente, chocado com a palidez de Gavallan. — Uma competição desleal!

       — Eu não posso, pelo amor de Deus — e disse ainda mais alto e mais zangado —, a não ser que o governo se manifeste, não há nada que eu possa fazer! Sem ter que honrar os seus débitos legítimos, eles podem dar um preço muito mais baixo do que o nosso! Dew neh loh moh para Callaghan e todos os seus comunistas!

       — Vamos, Andy, nem todos são comunistas!

       — Eu sei disso, pelo amor de Deus — rugiu Gavallan — mas parecem!

       — Então o seu bom gênio superou a fúria e ele riu, embora seu coração ainda estivesse disparado. — Maldito governo — acrescentou com amargura — eles não sabem distinguir os seus cus de um buraco no chão.

       — Cristo, Andy, eu pensei que você fosse ter um infarto. — McIver sentiu as mãos tremendo. Ele estava perfeitamente consciente das implicações do telex. Todas as suas economias estavam em ações da S-G. — Dezoito contratos em dezenove, isso arrasa as nossas operações no mar do Norte!

       — Isso nos arrasa em toda parte. Com esta quantidade de dívidas canceladas, a IH pode oferecer preços inferiores aos nossos no mundo inteiro. E Thurston está querendo falar urgentemente comigo? Isso quer dizer que a ExTex vai recuar, a última renegociação que faltava, por causa de uma nova oferta 'ajustada' da IH, e eu assinei os contratos para os nossos X63.

       — Gavallan tirou o lenço do bolso e enxugou a testa. Então viu Nogger Lane olhando, boquiaberto, da porta. — Que diabo você quer?

       — Ahn, nada, senhor, eu pensei que o lugar estivesse pegando fogo...

       — Nogger Lane fechou a porta apressadamente.

       — Andy — McIver disse baixinho, depois que a porta estava bem fechada —, a Struan's. Eles não podem ajeitar as coisas para você?

       — A Struan's poderia, embora não com muita facilidade este ano. Mas Linbar não o fará. — Gavallan também manteve sua voz baixa. — Quando ele souber de tudo isso, vai pular de alegria. A ocasião não podia ser melhor para ele. — E sorriu desanimadamente, pensando no telefonema de Ian Dunross e nos seus avisos. Não tinha contado isto a McIver. McIver não fazia parte da Struan's, embora fosse também um velho amigo de Ian. Onde será que o Ian consegue as suas informações?

       Alisou a folha de telex. Isso era o auge de um grande número de problemas com a Imperial Helicópteros. Há seis meses atrás, a IH tinha contratado um dos seus executivos mais graduados, que levara com ele muitos segredos da S-G. No mês anterior, Gavallan perdera uma concorrência muito importante com a North Sea Board of Trade para a IH, depois de um ano de trabalho e enormes investimentos. As especificações da junta de comércio estabeleciam o desenvolvimento de equipamentos eletrônicos para uma operação de salvamento no mar por helicóptero, em qualquer condição de tempo, de dia ou de noite, de modo que os helicópteros pudessem avançar em segurança 150 quilômetros sobre o mar do Norte, flutuar, tirar oito homens do mar e voltar em segurança — em condições zero-zero e com ventos fortes — rapidamente. Nos meses de inverno, mesmo com um traje de sobrevivência no mar, uma hora era a expectativa máxima de vida e de resistência naquelas águas.

       Incentivado pelo entusiasmo de Ian Dunross: "Não se esqueça, Andy, uma tal habilidade e um equipamento desses também serviriam perfeitamente para os empreendimentos que pretendemos fazer nos mares da China", Gavallan tinha investido meio milhão de libras e um ano de trabalho para desenvolver os sistemas eletrônicos e de orientação necessários e também uma companhia de eletrônica. Então, no grande dia, o piloto oficial de teste descobriu que não conseguia operar o equipamento, embora seis pilotos de linha da S-G, inclusive Tom Lochart e Rudi Lutz, não tivessem nenhum problema em utilizá-lo mais tarde. Mesmo assim, a IH não conseguiu o certificado necessário a tempo. "A injustiça de todo este maldito negócio", ele escrevera para McIver, "é que a IH conseguiu o contrato usando um Guerney 661 com equipamento dinamarquês sem certificado a bordo. Nós conseguimos evasivas e eles conseguem dispensas. São uns filhos da mãe. Aliás, é claro que não posso provar, mas apostaria qualquer dinheiro que o piloto de teste foi comprado — ele foi enviado 'para um longo período de descanso'. Oh, nós vamos recuperar o dinheiro e vamos conseguir o contrato daqui a um ano mais ou menos porque o nosso equipamento é melhor, mais seguro e de fabricação britânica. Enquanto isso, a Imperial está operando em níveis de segurança que, eu acho, podem ser melhorados."

       É isso que conta realmente, pensou, relendo o telex, segurança. Em primeiro lugar a segurança e em último lugai a segurança.

       — Mac, poderia enviar minha resposta para Liz: "Estou de partida para Al Shargaz agora e telefonarei quando chegar". Passe um telex para Thurston e pergunte qual o acordo que ele estaria disposto a oferecer caso eu dobrasse o número de X63 encomendados até agora. S...

       — Hein?

       — Bem, não custa nada perguntar. A IH vai saber dos nossos problemas aqui e eu não vou deixar aqueles cretinos começarem a falar mal de nós. É melhor deixá-los na dúvida. De qualquer maneira, poderíamos usar dois X63 aqui para atender a todos os contratos da Guerney, se as coisas mudarem. Termine o telex, vejo você daqui a pouco.

       — Está bem.

       Gavallan encostou-se na poltrona e deixou a mente divagar, recuperando as forças. Vou ter que ser muito forte. E muito esperto. Uma coisa dessas pode enterrar a mim e à S-G e dar a Linbar tudo de que ele precisa. Isto e o problema do Irã. Sim, e foi estupidez perder a calma desse jeito! O que você precisa é da Árvore de Gritar de Kathy... Ah, Kathy, Kathy.

       A Árvore de Gritar era um velho costume do clã, uma árvore especial escolhida pelo membro mais velho do clã, em algum lugar por perto, onde você pudesse ir, sozinho, quando o dimônio — como a velha vovó Dunross, avó de Kathy, o chamava: "Quando você estiver possuído pelo dimônio e lá você pode xingar e berrar e reclamar e tornar a xingar até que não tenha mais palavrões para dizer. Assim haverá sempre paz em casa e nunca haverá necessidade de xingar um marido ou uma esposa ou um amante ou um filho. Sim, apenas uma pequena árvore, pois uma árvore pode agüentar todos os xingamentos, mesmo aqueles inventados pelo próprio dimônio"

       A primeira vez que ele usou a Árvore de Gritar de Kathy foi em Hong Kong. Lá, era u'm jacarandá, no quintal da Casa Grande, a residência do tai-pan da Struan's. O irmão de Kathy, Ian, era o tai-pan na época. Gavallan sabia exatamente o dia: foi numa quarta-feira, 21 de agosto de 1963, na noite em que ela lhe contou.

       Pobre Kathy, a minha Kathy, pensou, ainda amando-a — Kathy, nascida sob uma má estrela. Apaixonando-se perdidamente por um dos Eleitos — John Selkirk, tenente da aeronáutica, Cruz do Mérito Militar e RAF — casando-se imediatamente, sem ter completado dezoito anos, ficando viúva imediatamente, nem três meses depois, ele desaparecido em combate. Terríveis anos de guerra e mais tragédia, dois amados irmãos mortos em combate — um deles seu irmão gêmeo. Conhecendo você em Hong Kong em 1946, e eu me apaixonando imediatamente, desejando de todo o coração poder compensar um pouco toda aquela infelicidade. Sei que Melina e Scot o fizeram — eles sempre foram maravilhosos. E então, em 1963, antes do seu trigésimo oitavo aniversário, a esclerose múltipla.

       De volta à Escócia como você sempre quis. Eu para pôr em prática os planos de Ian, você para recobrar a saúde. Mas esta parte não aconteceria. Vendo você morrer. Vendo o sorriso doce que você usava para disfarçar o inferno que sentia por dentro, tão corajosa e delicada e sábia e amorosa, mas piorando aos poucos. Tão devagar, e no entanto tão depressa, tão inexoravelmente. Em 1968 numa cadeira de rodas, com a mente ainda cristalina, a voz clara, o resto uma casca, fora de controle e tremendo. Então chegou 1970.

       Naquele Natal eles estavam no Castelo Avisyard. E no segundo dia do novo ano, depois que os outros já tinham partido e que Melinda e Scot estavam esquiando na Suíça, ela tinha dito:

      — Andy, meu querido, eu não posso suportar um outro ano, um outro mês, um outro dia.

       — Sim — ele disse simplesmente.

       — Desculpe, mas eu vou precisar de ajuda. Eu preciso partir e eu, eu sinto muito que tenha demorado tanto... mas eu preciso partir agora, Andy. Eu tenho que fazer isso sozinha, mas vou precisar de ajuda. Sim?

       — Sim, minha querida.

       Eles tinham passado um dia e uma noite conversando, conversando sobre coisas boas e sobre os bons tempos e o que ele deveria fazer por Melinda e Scot, e que ela queria que ele se casasse de novo, e ela lhe disse como a vida com ele tinha sido maravilhosa e eles riram, juntos, e suas lágrimas só foram derramadas mais tarde. Ele segurou-lhe a mão paralítica com as pílulas de dormir e apoiou a cabeça dela em seu peito e ajudou-a com o copo d'água — com um pouco de uísque dentro para dar sorte — e só a soltou quando o tremor tinha parado.

       O médico dissera delicadamente: "Eu não a culpo. Se eu fosse ela, já teria feito isso há anos, pobre mulher".

       Então ele tinha ido até a Árvore de Gritar. Mas sem gritar nenhuma palavra — só lágrimas.

       — Andy?

       — Sim, Kathy?

       Gavallan levantou os olhos e viu que era Genny, na porta com McIver, os dois observando-o.

       — Oh, olá, Genny, sinto muito, eu estava a quilômetros de distância. — Ele se levantou. — Eu acho que foi o Avisyard que me fez meditar.

       — Oh, um telex Avisyard? Nenhum aparelho caiu? — Perguntou Genny, ansiosamente.

       — Não, não, graças a Deus, só a Imperial Helicópteros com mais um dos seus truques.

       — Oh, graças a Deus — disse Genny, francamente aliviada. Ela estava usando um casaco pesado e um bonito chapéu. Sua mala estava na ante-sala onde Nogger Lane e Charlie Pettikin esperavam. — Bem, Andy — disse —, a menos que você passe por cima do sr. McIver, acho que temos que ir. Eu estou tão pronta quanto o possível.

       — Vamos, Gen, não há neces... — McIver parou quando ela levantou a mão imperiosamente.

       — Andy — ela disse docemente —, por favor, diga ao sr. McIver que a guerra foi declarada.

       — Gen! Você...

       — Declarada, por Deus! — Imperiosamente, ela afastou Nogger Lane, apanhou sua mala, tropeçou um pouco por causa do peso, e saiu dizendo com um ar mais imperioso ainda: — Eu posso carregar a minha própria mala, muito obrigada.

       Houve um grande silêncio atrás dela. McIver suspirou. Nogger Lane teve dificuldade em conter uma gargalhada. Gavallan e Pettikin acharam melhor se manterem neutros.

      — Bem, ahn, não há necessidade de você ir conosco, Charlie — disse Gavallan, rispidamente.

       — Mas eu gostaria de ir se o senhor não se importar — disse Pettikin, sem muita vontade de ir, mas McIver tinha pedido a ele em particular para ajudá-lo com Genny. — Este chapéu é uma beleza, Genny — Pettikin tinha dito a ela logo depois de um maravilhoso café da manhã com Paula. Genny sorrira docemente.

       — Não tente me amansar, Charlie Pettikin, ou você também vai se ver comigo. Eu já estou cheia dos homens em geral. De fato, eu estou mesmo de saco cheio...

       Gavallan vestiu o casaco, apanhou o telex e enfiou-o no bolso.

       — Na verdade, Charlie — disse, e mostrou um pouco da sua preocupação —, se você não se importar, eu preferiria que você não fosse. Tenho alguns assuntos inacabados para discutir com Mac.

       — Claro, tudo bem. — Pettikin estendeu a mão e disfarçou o contentamento. O fato de não ir ao aeroporto lhe daria algumas horas a mais sozinho com Paula. Paula, a Loura, era como ele pensava nela desde o café, mesmo ela sendo castanha. Para McIver, ele disse: — Vejo você em casa.

       — Por que não espera aqui? Quero me comunicar com todas as bases assim que escurecer e nós poderemos voltar juntos. Eu gostaria que assumisse o controle. Nogger, você pode ir. — Nogger Lane ficou radiante e Pettikin praguejou silenciosamente.

       McIver foi guiando, com Gavallan ao seu lado e Genny atrás. — Mac, vamos falar sobre o Irã.

       Eles enumeraram as suas opções. E todas as vezes chegaram à mesma conclusão melancólica: tinham que confiar que a situação voltaria ao normal, os bancos reabririam, eles receberiam o dinheiro que lhes era devido, a sociedade deles seria liberada e eles não seriam presos.

       — Você tem que tocar adiante, Mac. Enquanto pudermos operar, você tem que ir tocando, sejam quais forem os problemas.

       McIver estava igualmente sério.

       — Eu sei. Mas como vou operar sem dinheiro? E os pagamentos do contrato?

       — Eu vou dar um jeito de lhe conseguir dinheiro para operar. Dentro de uma semana vou trazer dinheiro vivo de Londres. Posso continuar a cobrir o pagamento dos contratos de arrendamento dos seus aparelhos e peças por mais alguns meses; talvez possa até fazer o mesmo com os X63 se conseguir reprogramar os pagamentos mas, bem, não tinha planejado perder tantos contratos para a IH... talvez eu consiga recuperar alguns. De qualquer maneira, vai ser complicado por algum tempo, mas nada de muito preocupante. Espero que Johnny consiga vir; eu tenho que voltar para casa agora, há tanto o que fazer...

       McIver evitou por pouco uma colisão de frente com um carro que saiu de uma rua lateral, quase caiu na vala e tornou a voltar para a estrada.

       — Maldito idiota! Você está bem, Gen? — ele olhou pelo espelho retrovisor e estremeceu ao ver a sua fisionomia fechada.

       Gavallan também sentiu o ambiente gelado, começou a dizer alguma coisa mas pensou melhor e ficou calado. Fico imaginando se vou conseguir encontrar Ian. Talvez ele pudesse me ajudar a sair do abismo. Ao pensar nisso, lembrou-se da trágica morte de David MacStruan. Tantos dentre eles, os Struans, MacStruans, Dunrosses, seus inimigos os Gornts, Rothwells, Brocks, dos velhos tempos, tiveram mortes violentas ou desapareceram — perdidos no mar — ou mortos em estranhos acidentes. Até agora, Ian tem sobrevivido. Mas por quanto tempo mais? Não muito mais vezes.

       — Acho que já estou vivendo a oitava, Andy — dissera Dunross, da última vez que eles se encontraram.

       — O que foi agora?

       — Nada demais. Um carro-bomba explodiu em Beirute logo depois que eu passei. Nada com que se preocupar, já disse isso antes, não há um padrão. Acontece, simplesmente, que eu tenho uma vida encantada.

       — Foi como Macau?

       Dunross era um corredor entusiástico e competira em muitos dos Grandes Prêmios de Macau. Em 1965 — a corrida na época ainda era de amadores — ele vencera a corrida, mas o pneu da frente, do lado direito, do seu modelo e, estourou na linha de chegada e atirou-o de encontro à barricada, fazendo-o dar cambalhotas pela pista, com os outros carros desviando, exceto um que se chocou contra ele. Retiraram-no dos destroços com tudo intacto, ileso, exceto pelo pé esquerdo, que ele perdeu.

       — Como Macau, Andy — dissera Dunross, com um sorriso estranho. — Só um acidente. Ambas as vezes.

       Da outra vez, seu motor explodira mas ele escapara ileso. Houve boatos de que seu motor fora sabotado, e apontavam para seu inimigo Quillan Gornt, mas não publicamente.

       Quillan está morto e Ian está vivo, pensou Gavallan. E eu também. E Linbar também; aquele filho da mãe vai viver para sempre... Cristo, eu estou ficando mórbido e estúpido — tenho que parar com isto. Mac já tem preocupações suficientes. Tenho que encontrar uma saída.

       — Numa emergência, Mac, enviarei mensagens através de Talbot, e você faça o mesmo. Estarei de volta dentro de poucos dias, sem falta, e então terei as respostas. Enquanto isso, vou usar o 125 como base até segunda ordem. Johnny pode servir de mensageiro para nós. Isso é o melhor que posso fazer por ora...

       Genny, que não pronunciara nenhuma palavra e se recusara, educadamente, a ser incluída na conversa, embora ouvisse atentamente, também estava bastante preocupada. É óbvio que não há nenhum futuro aqui para nós, e eu ficaria contentíssima em partir — desde que Duncan fosse também. No entanto, nós não podemos simplesmente fugir com o rabo entre as pernas e deixar que todo o trabalho de Duncan e todos as suas economias sejam roubadas, isso o mataria da mesma forma que uma bala de revólver. Ugh! Como eu gostaria que ele me ouvisse. Ele deveria ter-se aposentado no ano passado quando o xá ainda estava no poder. Homens! Uns idiotas, todos eles! Cristo! Como os homens são tolos!

       O trânsito estava muito lento. Por duas vezes eles tiveram que desviar por causa de barricadas erguidas no meio da rua, guardadas por homens armados, não Faixas Verdes, que fizeram sinal para eles se afastarem. Havia cadáveres no meio do lixo, carros queimados e um tanque. Cachorros fuçavam no meio do lixo. Uma hora, houve um súbito tiroteio ali por perto e eles entraram numa rua lateral, evitando uma batalha feroz entre facções que nunca puderam identificar. Uma cápsula perdida de bazuca encravou-se num edifício próximo, mas sem nenhum perigo para eles. McIver contornou devagar a carcaça queimada de um ônibus, mais satisfeito do que nunca ter insistido para que Genny saísse do Irã. Mais uma vez ele olhou para ela pelo espelho retrovisor e viu-lhe o rosto branco debaixo do chapéu e seu coração se comoveu. Ela é tão boa, pensou orgulhosamente, tão corajosa. É maravilhosa, mas bem teimosa. Odeio aquele maldito chapéu. Ela não fica bem de chapéu. Por que diabo ela não faz o que eu mando sem discutir? Pobre Gen, vou ficar aliviado quando ela estiver em segurança.

       Perto do aeroporto, o trânsito praticamente parou, havia centenas de carros apinhados de gente, muitos europeus, homens, mulheres e crianças, indo para lá por causa do boato de que o aeroporto tinha sido reaberto. Faixas Verdes enraivecidos mandando todo mundo embora, avisos rabiscados em farsi e num inglês mal escrito pendurados nas árvores e nos muros: AEROPORTO PROIBIDO; AEROPORTO ABERTO SEGUNDA-FEIRA — COM PASSAGEM E VISTO DE SAÍDA.

       Eles levaram meia hora para conseguir passar pela barreira. Foi Genny quem finalmente conseguiu. Como a maioria das esposas, que tinham que fazer compras e lidar com os empregados e com o dia-a-dia da casa, ela falava um pouco de farsi — e embora não tivesse dito uma só palavra durante toda a viagem, ela se debruçou para a frente e falou com os Faixas Verdes amavelmente. Imediatamente, eles os deixaram passar.

       — Meu Deus, Gen, foi maravilhoso — disse McIver. — O que foi que você disse aos desgraçados?

       — Andy — ela disse altivamente —, por favor, diga ao sr. McIver que eu disse a eles que ele era um caso suspeito de varíola que estava sendo retirado do país.

       Havia mais Faixas Verdes no portão que levava à área de carga e aos escritórios da companhia, mas desta vez foi mais fácil e tornou-se evidente que eles eram esperados. O 125 já estava na pista, cercado por Faixas Verdes armados e caminhões. Dois Faixas Verdes de motocicleta fizeram sinal para que eles os seguissem e saíram roncando pela pista.

       — Por que vocês estão atrasados? — perguntou o mulá Tehrani, irritado, descendo os degraus do 125, seguido por dois revolucionários armados. Tanto Gavallan quanto McIver notaram que ele estava usando óculos novos. Viram, de relance, que John Hogg estava dentro da cabine e que havia um revolucionário no alto da escada com uma submetralhadora apontada.

       — O aparelho tem que decolar imediatamente. Por que vocês estão tão atrasados?

       — Sinto muito, Excelência, o trânsito. Insha'Allah Sinto muito — McIver disse cautelosamente. — Eu entendi, pelo que disse o capitão Lane, que sua missão para o aiatolá, que ele viva eternamente, foi satisfatória?

       — Não houve tempo necessário para completar todo o trabalho. Seja como Deus quiser. É, ahn, é necessário tornar a ir amanhã. O senhor, por favor, providencie isso. Para as nove horas.

       — Com prazer. Aqui está a relação dos passageiros. — McIver entregou-lhe o papel. Gavallan, Genny e Armstrong estavam nele. Armstrong ia de licença.

       Tehrani leu o papel com facilidade desta vez, visivelmente extasiado com os óculos.

       — Onde está esse Armstrong?

       — Oh, eu supus que ele estivesse a bordo.

       — Não há ninguém a bordo além da tripulação — disse o mulá, irritado, o grande prazer de ser capaz de enxergar superando o seu nervosismo por ter permitido que o 125 aterrissasse. Mas ele estava contente de ter permitido, os óculos eram um presente de Deus e o segundo par prometido pelo piloto para a próxima semana seria uma proteção caso o outro quebrasse e o terceiro par apenas para ler... Oh, Deus é grande. Deus é grande, muito obrigado a Deus por ter posto esta idéia na cabeça do piloto e por ter-me deixado enxergar tai) bem. — O aparelho tem que partir imediatamente.

       — O sr. Armstrong não costuma se atrasar, Excelência — Gavallan disse, franzindo a testa. Nem ele nem McIver tinham tido notícias de Armstrong desde a véspera, e ele não tinha ido ao apartamento na noite anterior. Naquela manhã, Talbot tinha dado de ombros, dizendo que Armstrong se atrasara, mas que não precisavam se preocupar que ele estaria no aeroporto na hora marcada. — Talvez ele esteja esperando no escritório — disse Gavallan.

       — Não há ninguém lá além dos empregados. O aparelho vai partir e não vai esperar. Subam a bordo, por favor! O aparelho vai partir imediatamente.

       — Perfeito — disse Gavallan. — Seja como Deus quiser. Por falar nisso, gostaríamos de uma autorização para o 125 voltar no sábado e de uma autorização para mandar um 206 a Tabriz amanhã. — Com grande formalidade, ele estendeu-lhe os papéis, caprichosamente preenchidos.

       — O, ahn, o 125 pode voltar, mas nada de vôos para Tabriz. Talvez no sábado.

       — Mas, Excelência, o senhor não..

       — Não — disse o mulá, consciente dos outros observando-o. Ele ordenou que o caminhão que estava bloqueando a pista se afastasse e olhou para Genny quando ela saltou do carro, balançando a cabeça aprovadoramente. Gavallan e McIver ficaram surpresos ao notar que ela tinha enfiado o cabelo para dentro do lenço que fazia parte do chapéu, de modo que o cabelo não aparecia e, com o casaco comprido, ela dava a impressão de estar usando um chador. — Por favor, suba a bordo.

       — Obrigada, Excelência — disse adequadamente em farsi, depois de ter ensaiado a manhã inteira com a ajuda de um dicionário, e com a dose certa de seriedade, — mas com sua permissão eu vou ficar. Meu marido não está tão bem da cabeça quanto deveria, temporariamente, mas o senhor, sendo um homem de tão grande inteligência, o senhor deve compreender que embora uma esposa não possa ir contra os desejos do marido, está escrito que até o próprio Profeta precisou de cuidados.

       — É verdade — disse o mulá e olhou Pensativamente para McIver. McIver devolveu o olhar, perplexo, sem entender. — Fique se desejar.

       — Obrigada — disse Genny, com grande deferência. — Então vou ficar Obrigada, Excelência, por sua permissão e sua sabedoria. — Ela disfarçou o contentamento por sua esperteza e disse em inglês: Duncan, o mulá Tehrani concorda que eu devo ficar. — Ela viu a fúria nos olhos dele e acrescentou apressadamente: — Eu vou esperar no carro.

       Ele estava lá antes dela.

       — Você trate de entrar naquele avião — disse —, ou eu mesmo ponho você lá dentro.

       — Não seja tolo, Duncan querido! — Ela estava tão solícita. — E não grite, é muito ruim para a sua pressão. — Ela viu Gavallan se aproximando e perdeu um pouco da confiança. Em volta havia uma neve desagradável e um céu desagradável e uns garotos azedos olhando para ela. — Você sabe como eu adoro este lugar — disse animadamente —, como poderia partir?

       — Você... você vai partir agora mesmo — McIver estava tão zangado que mal podia falar e por um segundo Genny teve medo de ter ido longe demais

       — Eu irei se você for, Duncan. Agora mesmo. Eu não vou, repito, não vou sem você e se você tentar me obrigar, vou fazer um escândalo tão grande que vai explodir o 125, o aeroporto e o país inteiro! Andy, explique a esse... a essa pessoa! Oh, eu sei que vocês dois podem arrastar-me para dentro do avião mas se fizerem isto vão ficar totalmente desautorizados e eu conheço vocês muito bem! Andy!

       — Mac, você perdeu! — Gavallan riu.

       Apesar da raiva, McIver riu também, e o mulá balançou a cabeça, espantado com a maluquice dos infiéis.

       — Gen, você... você planejou isso o tempo todo — McIver explodiu.

       — Quem, eu? — Ela era o próprio retrato da inocência. — Nem pense nisso!

       — Está bem, Gen — disse McIver, ainda com a expressão carregada de raiva. — Está bem, você ganhou, mas vai se arrepender.

       — A bordo! — ordenou o mulá.

       — E quanto a Armstrong? — perguntou McIver.

       — Ele conhece as regras e a hora. — Gavallan deu um abraço em Genny e trocou um aperto de mão com McIver.

       — Vejo vocês em breve, cuidem-se. — Ele subiu a bordo, o jato decolou e durante a longa viagem de volta ao escritório nem Genny nem Duncan McIver notaram o tempo passar. Ambos estavam preocupados. Genny sentou-se na frente. Ela estava muito cansada mas muito satisfeita.

       — Você é uma boa mulher, Gen — ele tinha dito assim que ficaram sozinhos —, mas não está perdoada.

       — Sim, Duncan — ela respondera humildemente, como uma boa esposa costuma fazer. De vez em quando.

       — Você não está absolutamente perdoada.

       — Sim, Duncan.

       — E não fique dizendo sim Duncan! — Ele continuou dirigindo por algum tempo, depois disse severamente: — Eu preferia vê-la em segurança em Al Shargaz, mas estou contente por você estar aqui.

       Ela não disse nada, sabiamente. Apenas sorriu. E pôs a mão no joelho dele. Ambos em paz agora.

       Foi outra viagem terrível, com muitos desvios, tiroteios, e mais corpos e cachorros e multidões enfurecidas, e lixo, pois havia meses que as ruas não eram limpas, e as valas há muito tempo estavam entupidas. A noite caiu rapidamente e o frio aumentou. Um ou outro carro e alguns caminhões do exército passaram por eles, sem ligar para a segurança da estrada, cheios de soldados.

       — Você está cansado, Duncan. Quer que eu dirija?

       — Não, eu estou bem, obrigado — ele respondeu, sentindo-se muito cansado, e ficando muito contente quando finalmente entraram na rua do escritório, escura e ameaçadora como todo o resto, sendo que a única luz vinha da cobertura. Ele teria preferido deixar o carro na rua, mas tinha certeza de que quando voltasse a gasolina teria sido roubada, embora houvesse um cadeado no tanque; isso se o próprio carro não tivesse sido levado. Ele entrou na garagem, trancou o carro, trancou a garagem e eles subiram as escadas.

       Charlie Pettikin recebeu-os no patamar, com o rosto pálido.

       — Oi, Mac. Graças a Deus você.. — Então ele viu Genny e parou. — Oh, Genny! O que, o que aconteceu? O 125 não conseguiu pousar?

       — Ele pousou — disse McIver. — O que foi que aconteceu, Charlie? Pettikin fechou a porta do escritório, e lançou um olhar a Genny que disse, cansada:

       — Está bem, eu vou ao banheiro.

       Cristo, ela pensou, isso tudo é tão estúpido. Será que eles nunca vão aprender? Duncan vai me contar assim que estivermos sozinhos, então eu vou ficar sabendo de qualquer maneira e seria muito melhor ouvir em primeira mão. Fatigada, ela se arrastou até a porta.

       — Não, Gen — disse McIver e ela parou, assustada. — Você escolheu ficar, então... — Ele deu de ombros. Ela notou algo de diferente nele e não soube se era para melhor ou para pior. — Diga, Charlie.

       — Rudi falou pelo HF há menos de meia hora atrás — disse Pettikin, rapidamente. — O HBC foi derrubado, explodiu no céu, não há nenhum sobrevivente, m...

       Tanto Genny quanto McIver ficaram brancos.

     — Oh, meu Deus! Ela se agarrou numa cadeira.

       — Eu não entendo o que está acontecendo — Pettikin disse, perplexo. — É tudo uma loucura, parece um sonho, mas Tom Lochart não teve nada, ele está em Bandar Delam com Rudi. E...

       — Tom está bem? — Exclamou McIver, revivendo. — Ele escapou?

       — Ninguém escapa de um helicóptero que explode no céu. Nada faz sentido, a menos que seja um disfarce. Tom estava transportando peças, sem passageiros, mas o oficial disse que ele estava cheio de gente, e Rudi disse: "Diga ao sr. McIver que o capitão Lochart voltou de licença". Eu cheguei até a falar com ele!

       McIver olhou para ele, pasmo.

       — Você falou com ele? Ele está bem? Você tem certeza? Voltou de que licença, pelo amor de Deus?

       — Eu não sei, mas falei com ele.

       — Espere um minuto, Charlie. Como foi que Rudi conseguiu se comunicar conosco? Ele está em Kowiss?

       — Não, ele disse que estava falando do Controle de Trafego Aéreo de Abadan.

       McIver resmungou uma obscenidade, muitíssimo aliviado por causa de Lochart, mas ao mesmo tempo horrorizado por causa de Valik e sua família. Cheio de gente? Só devia haver quatro pessoas! Havia mais de cinqüenta perguntas que ele queria que fossem respondidas imediatamente, e sabia que não havia saída para a enrascada em que ele e Tom estavam metidos. Ele não tinha contado a ninguém sobre a verdadeira missão de Tom nem sobre o seu próprio dilema em autorizá-la, a não ser a Gavallan.

       — Vamos começar desde o princípio, Charlie, palavra por palavra. Você está bem, Gen?

       — Sim, sim. Eu... eu vou preparar um chá. — Os dois notaram a fraqueza da sua voz e ela foi para a quitinete.

       Abalado, Pettikin sentou-se na beirada da escrivaninha.

       — Vou contar o mais exatamente possível. Rudi disse: "Estou com um oficial da Força Aérea Iraniana aqui e preciso saber oficialmente". Então uma outra voz apareceu no alto-falante. "Aqui é o major Qazani, do Serviço Secreto da Força Aérea! Exijo uma resposta imediata. O HBC é ou não é um 212 da S-G?" Para ganhar tempo, eu disse: "Espere um momento, vou apanhar a pasta". Eu esperei, torcendo para Rudi me dar uma dica, mas isso não ocorreu, então eu calculei que não havia problema. "Sim, o EP-HBC é um dos nossos 212." Imediatamente, Rudi explodiu e praguejou como eu nunca tinha visto antes e disse algo como "Por Deus, isso é terrível, por que o HBC tentou fugir para o Iraque e a Força Aérea Iraniana derrubou o aparelho, explodiu-o com todos os que estavam a bordo, mandando-os para o inferno que é o que eles merecem, quem estava pilotando e quem estava a bordo, com os diabos!" Pettikin enxugou um filete de suor.

       — Acho que eu também praguejei um pouco, fiquei um tanto abalado, não posso me lembrar exatamente, Mac, depois disse algo como: "Isso é terrível! Espere um momento, vou apanhar o livro de vôo", esperando que a minha voz soasse mais ou menos normal. Apanhei o livro e vi o nome de Nogger riscado, com 'alegou doença' escrito ao lado, e então o de Tom Lochart, e a sua assinatura autorizando o vôo. — Ele levantou os olhos para McIver, de-samparadamente. — Era óbvio que Rudi não queria que eu dissesse Tom, então eu disse apenas: "De acordo com o nosso livro, ele não foi entregue a ninguém"...

       McIver ficou vermelho.

       — Mas se você...

       — Foi o melhor que eu pude fazer na hora, pelo amor de Deus. Eu disse. "Ele não foi entregue a ninguém". Rudi começou a praguejar de novo mas eu achei que a voz dele estava diferente, mais aliviada. "Que diabo você está dizendo?" Ele disse. "Estou-lhe dizendo, capitão Lutz, de acordo com os nossos registros, o HBC ainda está guardado num hangar em Doshan Tappeh. Se ele saiu, deve ter sido seqüestrado", eu disse, esperando que a minha voz fosse convincente. Mac, eu estava improvisando e ainda não entendo qual é o problema. Então aquela outra voz disse: "Esta questão vai ser entregue imediatamente aos canais competentes. Quero verificar imediatamente o seu livro de vôo". Eu disse a ele que estava bem, para onde deveria mandá-lo? Isto o abalou um pouco porque é claro que não há nenhuma maneira de entregar o livro a ele imediatamente. No fim, ele disse para guardarmos os nossos registros com cuidado e que receberíamos instruções mais tarde. Então Tom entrou na linha e disse algo como:

       "Capitão Pettikin, por favor peça desculpas ao sr. McIver pelo meu atraso, mas eu fiquei preso por causa de uma nevasca numa aldeia ao sul de Ker-manshah. Assim que puder irei para casa." — Pettikin suspirou, olhou para Genny e depois outra vez para McIver. — Foi isto. O que você acha?

       — Quanto a Tom? Não sei. — McIver caminhou pesadamente até a janela e Pettikin e Genny viram o peso que ele estava carregando. Havia neve no parapeito e o vento tinha aumentado um pouco. Tiros esporádicos soavam à distância, de rifle e de pistola, mas nenhum deles notou.

       — Genny?

       — Eu... isso não faz sentido, nenhum sentido, Charlie, isso sobre Tommy não faz nenhum sentido.

       Ela despejou a água fervendo no bule de chá, já tendo aquecido as xícaras antes, satisfeita por ter algo para fazer com as mãos, sentindo-se desamparada e com vontade de chorar, com vontade de gritar por causa de toda aquela injustiça, sabendo que Duncan e Tom estavam numa enrascada, o seu Duncan tinha assinado o plano de vôo; sabendo que ela não podia falar nada a respeito de Annoush e das crianças e nem de Valik, se eles tivessem a bordo, e eles deviam estar a bordo, mas se Tom não estava pilotando, quem estaria?

       — O seqüestro... bem, obviamente o nome de Tommy está na autorização e o de Duncan também. As autoridades de Teerã ainda têm a autorização. A autorização tem o nome de Duncan então um seqüestro não é... não faz muito sentido.

        — Eu estou vendo isso agora, mas na hora a história me pareceu boa. — Pettikin estava se sentindo péssimo. Ele apanhou o livro de autorizações. — Mac, e se nós perdêssemos isto, nos livrássemos disto?

       — O controle de Teerã está com o original, Charlie. Tom reabasteceu o aparelho, deve haver um registro.

       — Em tempos normais, sem dúvida. Agora? Com toda essa confusão?

       — Talvez.

       — Quem sabe a gente consegue recuperar o original?

       — Vamos, pelo amor de Deus, não há nenhuma chance.

       Genny começou a servir o chá. O silêncio foi ficando mais pesado. Cheio de aflição, Pettikin disse:

       — Eu ainda não vejo como, se Tom saiu de Doshan Tappeh e então... a menos que ele tenha sido seqüestrado no meio do caminho, ou quando estava reabastecendo o aparelho. — Ele passou nervosamente as mãos pelo cabelo. — Tem que ser um seqüestro. Onde foi que ele reabasteceu? Em Kowiss? Talvez eles pudessem ajudar.

       McIver não respondeu, apenas ficou olhando para a noite lá fora, Pettikin esperou, depois folheou o livro de vôo, encontrou a cópia certa e olhou para as costas do papel.

       — Isfahan? — disse, surpreso. — Por que Isfahan? Mais uma vez, McIver não respondeu.

       Genny pôs leite condensado no chá e deu uma xícara a Pettikin.

       — Eu acho que você se saiu muito bem, Charlie — ela disse, sem saber o que mais poderia dizer. Então levou a outra xícara para McIver.

       — Obrigado, Gen.

       Ela viu as lágrimas e suas próprias lágrimas começaram a rolar. Ele pôs o braço em volta dela, pensando em Annoush e na festa de Natal que ele e Genny tinham dado para todos os filhos dos seus amigos, há tão pouco tempo atrás — a pequena Setarem e Jalal, as estrelas das brincadeiras, crianças tão maravilhosas, agora transformadas em cinzas ou em carne para os abutres.

       — Foi bom saber que Tommy está bem, querido — ela disse através das lágrimas, esquecendo-se de Pettikin. Embaraçado, Pettikin saiu e fechou a porta e nenhum dos dois notou que ele tinha saído. — É bom saber do Tommy — ela tornou a dizer. — Esta foi uma coisa boa.

       — Sim, Gen, esta foi uma coisa boa.

       — O que podemos fazer?

       — Esperar. Vamos esperar para ver. Vamos esperar que eles não tenham seguido... mas eu sinto que eles estavam a bordo. — Ternamente, ele enxugou suas lágrimas. — Mas no domingo, Gen, quando o 125 partir você vai junto — disse gentilmente. — Eu prometo que é só até nós resolvermos isso. Mas desta vez você precisa ir.

       Ela concordou. Ele tomou o chá. Estava muito bom. Ele sorriu.

       — Você faz um chá muito bom, Gen — disse, mas isso não afastou nem o medo nem a tristeza que ela estava sentindo.

       E nem o seu ódio por toda aquela matança e aquele desperdício e a tragédia e a usurpação do meio de vida deles, ou pelo mal que estava fazendo ao seu marido. A preocupação o está matando. Matando, ela pensou com mais raiva ainda. Então, de repente, ela teve a resposta. Olhou em volta para certificar-se de que Pettikin não estava lá.

       — Duncan — ela sussurrou — se você não quer que esses filhos da mãe roubem o nosso futuro, por que não partimos e levamos tudo conosco?

       — Hein?

       — Aparelhos, peças e pessoal.

       — Não podemos fazer isso, Gen. Eu já lhe disse isso cinqüenta vezes.

       — Oh, sim, nós podemos. Se quisermos e se tivermos um plano. — Ela disse isto com tanta confiança que o contagiou. — Tem o Andy para ajudar. Andy pode fazer o plano, nós não podemos. Você pode executá-lo, ele não. Eles não nos querem aqui, então que seja, nós partiremos. Mas com os nossos helicópteros, as nossas peças e o nosso respeito próprio. Teremos que manter tudo em sigilo absoluto, mas podemos fazê-lo. Nós podemos. Eu sei que sim.

 

SÁBADO, 17 de fevereiro

       EM KOWISS: 6:38H. O mulá Hussein estava sentado de pernas cruzadas no fino colchão, checando o funcionamento do AK47. Com um movimento experiente, ele colocou no lugar o novo pente de balas.

       — Ótimo — disse.

       — Vai haver mais luta hoje? — Sua mulher perguntou. Ela estava do outro lado da sala, em pé, ao lado de um fogão a lenha, esquentando uma panela de água para o primeiro café do dia. O seu chador preto farfalhava quando ela se movia, disfarçando o fato dela estar outra vez grávida.

       — Seja como Deus quiser.

     Ela repetiu as palavras dele, tentando disfarçar o medo, temerosa do que aconteceria com eles quando seu marido obtivesse o martírio que buscava com tanto ardor, desejando do fundo do coração gritar do alto dos minaretes que era demais suportar que Deus exigisse um tal sacrifício dela e dos seus filhos. Sete anos de casamento e três filhos vivos e quatro mortos e a extrema pobreza de todos aqueles anos — um contraste tão grande com sua vida anterior, com sua própria família, que possuía um açougue no bazar, sempre com o suficiente para comer, e alegria e andar sem o chador, piqueniques e até cinema — tudo isso enrugara seu rosto que um dia fora atraente. Seja como Deus quiser, mas não é justo, não é justo! Nós vamos morrer de fome. Quem vai querer sustentar a família de um mulá morto?

       O filho mais velho deles, Ali, um garotinho de seis anos, estava agachado ao lado da porta da cabana de um só cômodo que ficava ao lado da mesquita, seguindo atentamente todos os movimentos do seu pai. Seus dois irmãozinhos, de dois e três anos, dormiam num colchão de palha sobre o chão de terra, enrolados num velho casaco do exército. Eles estavam encolhidos como dois gatinhos. No cômodo, havia uma mesa tosca de madeira e dois bancos, algumas panelas, o colchão grande e um pequeno sobre velhos tapetes. Para iluminar, havia uma lamparina a óleo. A vala lá fora era para se fazer as necessidades e para se lavar. Não havia nenhum enfeite nas paredes de barro caiadas de branco. Uma torneira que às vezes funcionava, moscas e insetos e, num nicho, virado para Meca, no lugar de honra, estava o velho e gasto livro do Corão.

       Tinha acabado de amanhecer, o dia estava frio e nublado, e Hussein já chamara os fiéis para a oração da manhã na mesquita e limpara e lubrificara cuidadosamente a arma, tirando a pólvora da coronha e tornado a carregar o pente. Agora está ótimo, pensou satisfeito, pronto para fazer de novo o trabalho de Deus e há muita utilidade para uma arma como esta. O AK47 é muito melhor do que o M14, mais simples, mais forte, e tão preciso quanto o outro à queima-roupa. Estúpidos americanos, estúpidos por fabricarem uma arma de infantaria que era complexa e precisa a uma distância de mil metros, quando grande parte da luta era feita a menos de trezentos e você podia arrastar o AK47 na lama o dia inteiro e ele continuava fazendo o que tinha que fazer: matar. Morte a todos os inimigos de Deus!

       Já tinha havido alguns conflitos entre os Faixas Verdes e os marxistas-islâmicos e outros esquerdistas em Kowiss, e outros conflitos em Gach Saran, uma cidade a noroeste onde havia uma refinaria de petróleo. Na véspera, depois de escurecer, ele tinha conduzido os Faixas Verdes a um dos esconderijos secretos do Tudeh. A reunião tinha sido denunciada por um dos membros, em troca de piedade. Mas não haveria nenhuma. A batalha foi súbita, rápida e sangrenta. Onze homens foram mortos, ele esperava que alguns fossem líderes. Até agora o Tudeh ainda não tinha se mostrado publicamente, mas tinha marcado uma demonstração para o dia seguinte à tarde, em apoio à demonstração Tudeh de Teerã, embora Khomeini tivesse se mostrado francamente contrário a isto. O confronto já estava planejado. Os dois lados sabiam disso. Muitos irão morrer, pensou implacavelmente. Morte a todos os inimigos do Islã!

       — Aqui — disse ela, entregando-lhe o café preto quente e doce, o único luxo que ele se permitia, exceto nas sextas-feiras, Dias Santos, e em outros dias especiais e durante todo o mês sagrado de Ramadan, quando ele desistia de bom grado do café.

       — Obrigado, Fátima — disse educadamente. Quando ele foi nomeado mulá, seu pai e sua mãe tinham-na encontrado para ele e seu mentor, aiatolá Isfahani, tinha dito a ele para se casar, então ele obedecera.

       Ele tomou o café, com grande prazer, e devolveu-lhe a pequena xícara. O casamento não o desviara do seu caminho, embora de vez em quando ele sentisse prazer em dormir encostado nela, suas nádegas grandes e quentes no frio do inverno, às vezes fazendo-a virar, penetrando-a, e depois dormindo de novo, mas nunca realmente em paz. Eu só estarei em paz no paraíso, só então, ele pensou, com a excitação aumentando, tão perto agora. Agradeço a Deus pelo fato de ter recebido o nome do imã Hussein, Senhor dos Mártires, segundo filho do imã Ali, ele, o do Grande Martírio, há treze séculos atrás na Batalha de Karbala.

       Nós nunca o esqueceremos, ele pensou, seu êxtase aumentando, revivendo a dor de Ashura, o décimo dia de Muharram — há poucas semanas atrás — o aniversário daquele martírio, o dia de luto mais sagrado dos xiitas. Suas costas ainda traziam os vergões. Naquele dia ele tinha estado de novo em Qom, como no ano anterior e no outro, tomando parte nas procissões de Ashura, as procissões purificadoras, com dezenas de milhares de outros iranianos — chicoteando a si mesmos para lembrarem-se do divino martírio, açoitando-se com chicotes e correntes, castigando-se com ferros.

       Ele levara muitas semanas para se recuperar, para ser capaz de ficar em pé sem sentir dor. Seja como Deus quiser, disse a si mesmo orgulhosamente. A dor não é nada, este mundo não é nada, eu enfrentei Peshadi na base aérea, dominei-o e o levei preso para Isfahan como me ordenaram. E agora, hoje, eu vou à base para investigar os estrangeiros e dobrá-los e a este sunita, Zataki, que pensa que é Gengis Khan, e esta tarde eu vou tornar a conduzir os fiéis contra os ateus do Tudeh, fazendo o trabalho de Deus em obediência ao imã que só obedece a Deus. Rezo para que hoje eu seja admitido no paraíso, "para recostar-me em almofadas enfeitadas com fio de ouro, e o fruto dos dois jardins estará ao meu alcance", as palavras tão familiares do Corão ecoaram em sua cabeça.

       — Não temos comida — disse sua mulher, interrompendo-lhe os pensamentos.

       — Haverá comida na mesquita hoje — ele disse, e seu filho Ali ficou mais atento, momentaneamente distraído de cocar as feridas de mosca e as mordidas de outros insetos. — De agora em diante você e as crianças não vão mais passar fome. Nós daremos refeições diárias de horisht e arroz para os necessitados como fizemos sempre através da história. — Ele sorriu para Ali, estendeu a mão e despenteou-lhe os cabelos. — Deus sabe que nós estamos entre os necessitados.

       Desde a volta de Khomeini, as mesquitas tinham começado outra vez este antigo papel de fornecer refeições diárias de uma comida simples, mas nutritiva, comida que era doada como parte do Zakat — o imposto voluntário a que todos os muçulmanos estavam sujeitos — ou comprada com dinheiro do Zakat que agora era de novo uma prerrogativa exclusiva das mesquitas. Hussein soltou mais imprecações contra o xá, que tinha cancelado o subsídio anual concedido aos mulás e às mesquitas há dois anos, trazendo-lhes tanta pobreza e angústia.

        — Junte-se às pessoas que esperam na mesquita — disse a ela. — Quando todos estiverem alimentados, tire o suficiente para você e as crianças. Faça isto diariamente.

       — Obrigada.

       — Agradeça a Deus.

       — Eu agradeço, oh, sim, eu agradeço.

       Ele enfiou as botas e pendurou a arma no ombro

       — Posso ir com você, pai? — Ali perguntou na sua vozinha fina. — Eu também quero fazer o trabalho de Deus.

       — É claro, venha.

       Ela fechou a porta e se sentou num banco, com o estômago roncando de fome, sentindo-se fraca e doente, cansada demais para espantar as moscas que pousavam no seu rosto. Estava grávida de oito meses. A parteira tinha lhe dito que desta vez seria mais difícil do que das outras, porque o bebê estava na posição errada. Ela começou a chorar, lembrando-se da agonia do último parto e do anterior.

       — Não se preocupe — dissera a velha parteira, complacente —, você está nas mãos de Deus. Um pouco de bosta fresca de camelo espalhada no seu estômago vai livrá-la das dores. É dever de uma mulher ter filhos e você é jovem.

       — Jovem? Eu tenho 22 anos e sou velha, velha, velha. Eu sei disso e sei por que, e tenho um cérebro e tenho olhos, sei até escrever meu nome e sei que vamos poder melhorar como o imã sabe, quando os estrangeiros forem expulsos e os seus maus hábitos forem banidos. O imã, que Deus o proteja, é sábio e bom e fala com Deus, só obedece a Deus, e Deus sabe que as mulheres não são escravas para serem exploradas e tratadas como nos tempos do Profeta como alguns fanáticos desejam. O imã nos protegerá dos extremistas e não permitirá que eles revoguem a Lei da Família, do xá, que nos deu o direito de votar e a proteção contra o divórcio sumário — ele não permitirá que os nossos votos e direitos e liberdades nos sejam tirados, ou o nosso direito de escolher se queremos ou não usar o chador, ele nunca o fará quando vir o quanto nós somos contrárias a isso. Não quando ele vir a nossa firmeza inabalável. No país inteiro.

       Fátima secou as lágrimas e se sentiu mais feliz ao pensar nas demonstrações que estavam programadas para dali a três dias, e sentiu menos dor. Sim, nós, mulheres, vamos fazer uma demonstração pelas ruas de Kowiss, apoiando orgulhosamente as nossas irmãs das grandes cidades de Teerã, Qom e Isfahan, é claro que eu vou usar o chador por minha livre escolha, por causa de Hussein. Oh, como é maravilhoso poder mostrar a nossa solidariedade tanto como mulheres quanto pela revolução.

       A notícia das planejadas demonstrações em Teerã tinham percorrido todo o país, ninguém sabe como. Mas todas as mulheres sabiam. Em toda parte, as mulheres tinham decidido aderir e todas elas aprovavam — mesmo aquelas que não ousavam confessar.

      

       NA BASE AÉREA: 10:20H. Starke estava na torre da S-G observando a chegada do 125 com os flaps todos abertos para pousar, revertendo em seguida os motores para parar. Zataki e Esvandiary também estavam lá com dois Faixas Verdes. Zataki agora estava barbeado.

       — Vire à direita no final da pista, Eco Tango Lima Lima — disse o sargento Wazari, o jovem controlador de tráfego aéreo, treinado na Força Aérea dos Estados Unidos, com voz rouca. Ele estava usando roupas civis grosseiras em vez do seu elegante uniforme. Seu rosto estava bem inchado, o nariz amassado, faltavam três dentes e as orelhas estavam inchadas da surra que Zataki dera nele em público. No momento, ele não podia respirar pelo nariz. — Estacione em frente à torre principal.

       — Roger. — A voz de John Hogg saiu do alto-falante. — Repito que temos autorização para apanhar três passageiros e para entregar peças urgentes, partindo em seguida para Al Shargaz. Por favor, confirme.

       Wazari virou-se para Zataki, nitidamente apavorado.

       — Excelência, por favor, desculpe-me, mas o que devo responder?

       — Não diga nada, verme. — Zataki apanhou a metralhadora. Para Starke ele disse: — Diga ao seu piloto para estacionar, para desligar os motores e depois colocar todo mundo que está no aparelho no meio da pista. O aparelho vai ser revistado e se for liberado por mim, vai poder prosseguir, se não for, não vai poder. Você vem comigo, e você também — acrescentou para Esvan diary. E saiu.

       Starke obedeceu e virou-se para segui-lo, mas por um segundo ele e o sargento ficaram sozinhos. Wazari segurou-o pelo braço e murmurou pateticamente:

       — Pelo amor de Deus, ajude-me a embarcar nesse aparelho, capitão, eu farei qualquer coisa, qualquer coisa..

       — Eu não posso, é impossível — disse Starke, com pena dele. Há dois dias atrás Zataki tinha enfileirado todo mundo e tinha surrado o homem até ele perder os sentidos, por 'crimes contra a revolução', depois fez com que ele recobrasse os sentidos, obrigou-o a comer lixo e tornou a bater nele até ele perder os sentidos de novo. Só Manuela e os que estavam muito doentes tiveram permissão para não assistir. — Impossível!

       — Por favor... Eu lhe imploro, Zataki é louco, ele vai me ma... Wazari voltou-se em pânico quando um Faixa Verde tornou a aparecer na porta Starke passou por ele, desceu as escadas e foi até a pista, disfarçando a inquietação. Freddy Ayre estava na direção de um jipe. Manuela estava lá dentro, junto com um dos pilotos britânicos, e também Jon Tyrer, com uma bandagem nos olhos. Manuela usava umas calças largas, um casaco comprido e seu cabelo estava amarrado sob um boné de piloto.

       — Siga-nos, Freddy — disse Starke e entrou ao lado de Zataki no banco de trás do carro. Esvandiary engrenou e saiu para interceptar o 125 que agora estava saindo da pista principal, acompanhado por um enxame de caminhões cheios de Faixas Verdes e de dois motociclistas ziguezagueando perigosamente em volta deles. — Loucos! — resmungou Starke

       — Entusiastas, piloto, não loucos. — E Zataki riu, mostrando os dentes muito brancos

       — Seja o que Deus quiser

       Zataki olhou para ele, sem caçoar mais.

       — Você fala a nossa língua, você já leu o Corão e você conhece os nossos costumes. Já era tempo de você recitar o Shahada diante de duas testemunhas e se tornar muçulmano. Eu ficaria honrado em ser uma testemunha.

       — Eu também — disse imediatamente Esvandiary, também querendo ajudar a salvar uma alma, embora não pelas mesmas razões: A IranOil iria precisar de pilotos experientes para manter a produção enquanto substitutos iranianos estivessem sendo treinados e um Starke muçulmano poderia ser um deles

       Eu também ficaria honrado de servir de testemunha

       — Obrigado — respondeu-lhes Starke, em farsi. Ao longo dos anos, essa idéia lhe ocorrera. Uma vez, quando o Irã estava calmo e só o que ele tinha que fazer era pilotar o máximo que podia e tomar conta dos seus homens e rir com Manuela e as crianças. Será que foi mesmo só há seis meses atrás? Ele dissera a Manuela: — Sabe, Manuela, há muita coisa interessante no islamismo.

       — Você estaria pensando em quatro esposas, querido? — ela tinha perguntado com uma voz bem doce e no mesmo instante ele se pôs em guarda.

       — Vamos, Manuela, eu estava falando sério. Há muita coisa boa no islamismo.

       — Para os homens, não para as mulheres. O Corão não diz:' 'E os fiéis'', aliás todos homens, "deitar-se-ão em almofadas de seda e haverá huris que nem homens nem djins jamais tocaram"? Conroe, meu bem, eu nunca consegui entender isso. Por que elas devem ser perpetuamente virgens? Será que isso é muito importante para um homem? E será que as mulheres conseguem a mesma coisa, juventude e tantos jovens com chifres quanto queiram?

       — Quer prestar atenção, pelo amor de Deus! Eu estava querendo dizer que se você vivesse no deserto, no deserto da Arábia Saudita ou do Saara — você se lembra da vez que estivemos no Kuwait e fomos, só nós dois, para o deserto, com as estrelas grandes como ostras e o silêncio tão vasto, a noite tão límpida e infinita, e nós tão insignificantes, você se lembra como ficamos tocados pelo infinito? Você se lembra que eu disse que podia entender como um nômade, nascido numa tenda podia ser possuído pelo Islã?

       — E você se lembra, querido, que eu disse que nós não tínhamos nascido em nenhuma tenda?

       Ele sorriu, lembrando-se de como a havia abraçado e beijado e eles tinham se amado sob as estrelas. Mais tarde ele dissera:

       — Eu me referia ao ensinamento de Maomé, ao fato de que num espaço tão grande, tão aterrador na sua vastidão, você precisa de um abrigo seguro e que o Islã pode ser esse abrigo, talvez o único, o seu ensinamento original, não as interpretações distorcidas dos fanáticos.

       — Ora, é claro, querido — ela respondera na sua voz mais doce —, mas nós não moramos no deserto, nunca o faremos, e você é Conroe 'Duke' Starke, piloto de helicóptero, e no momento em que começar a pensar nessas quatro esposas eu estou fora, eu e as crianças, e nem o Texas vai ser suficientemente grande para você escapar da lição que vai levar de Manuela Rosita Santa de Cuellar Perez, meu amorzinho querido...

       Ele viu Zataki olhando para ele e sentiu o cheiro forte de gasolina, neve e inverno.

       — Talvez eu o faça um dia — disse a Zataki e Esvandiary. — Talvez eu o faça. Mas no tempo determinado por Deus, não por mim.

       — Que Deus apresse esse tempo. Você está se desperdiçando como infiel. Mas agora toda a atenção de Starke estava no 125 que se aproximava do estacionamento, e em Manuela, que devia partir hoje. Seria difícil para ela, tremendamente difícil, mas ela tinha que ir.

       Naquela manhã bem cedo, McIver dissera a Starke, de Teerã, pelo HF, que tinham conseguido autorização para o 125 pousar em Kowss, desde que Kowiss também autorizasse, que o aparelho estaria trazendo peças de reposição e que haveria lugar para três passageiros. No fim, o major Changiz e Esvandiary concordaram, mas só depois de Starke dizer, irritado, na frente de Zataki:

       — Vocês sabem que a nossa substituição de pessoal está muito atrasada. Um dos nossos 212 está esperando por peças e dois dos 206 estão prontos para a revisão das mil e quinhentas horas. Se eu não conseguir novas tripulações e peças, não vou poder operar, e serão vocês os responsáveis por não obedecermos às ordens do aiatolá Khomeini, não eu.

       O carro parou ao lado do 125, que desacelerava os motores. A porta ainda não estava aberta e ele pôde ver John Hogg espiando pela janela da cabine. Caminhões e armas cercaram o aparelho, com os excitados Faixas Verdes se movimentando em volta.

       Zataki tentou fazer-se ouvir, então, exasperado, atirou para o ar.

       — Afastem-se do avião — ordenou. — Por Deus e pelo Profeta, só os meus homens irão revistá-lo! Afastem-se! — Mal-humorados, os outros Faixas Verdes recuaram um pouco. — Piloto, diga a ele para abrir a porta depressa, e faça todo mundo sair logo, antes que eu mude de idéia!

       Starke fez sinal para Hogg de que estava tudo bem. Num instante a porta foi aberta pelo co-piloto. A escada foi baixada. Imediatamente, Zataki subiu os degraus e ficou em pé no alto com a arma preparada.

       — Excelência, não é preciso isso — disse Starke. — Todo mundo para fora, o mais depressa possível, está bem?

       Havia oito passageiros — quatro deles pilotos, três mecânicos e Genny McIver.

       — Meu Deus, Genny! Não esperava vê-la.

       — Olá, Duke. Duncan achou melhore... não importa. Manuela vai... — Ela a viu e foi até onde estava Manuela. Elas se abraçaram e Starke notou como Genny tinha envelhecido.

       Ele seguiu Zataki até o aparelho vazio. Assentos extras tinham sido colocados. No fundo, perto do toalete, havia vários engradados.

       — Peças e o motor sobressalente que você precisava — disse Johnny Hogg do assento do piloto, entregando-lhe o formulário. — Olá, Duke!

       Zataki pegou o formulário e fez um sinal para Hogg.

       — Fora!

       — Se o senhor não se importar, eu sou o responsável pelo aparelho, sinto muito — disse Hogg.

       — Pela última vez, fora!

       — Saia do seu lugar por um momento, Johnny. — interveio Starke. — Ele só quer verificar se não há nenhuma arma. Excelência, seria mais seguro se o piloto pudesse ficar aqui. Eu me responsabilizo por ele.

       — Fora!

       Relutante, John Hogg saiu da pequena cabine. Zataki certificou-se de que não havia nada nos bolsos que ficavam dos lados do assento, depois fez sinal para ele voltar ao seu lugar e examinou a cabine.

       — Aquelas são as peças de que você precisa?

       — Sim — disse Starke e, gentilmente, abriu espaço para ele no patamar da escada, de onde Zataki chamou alguns homens para carregarem os engradados para a pista. Os homens fizeram isso sem o menor cuidado, batendo com os engradados na porta e nos degraus, fazendo os pilotos estremecerem. Então

       Zataki revistou o aparelho minuciosamente, não encontrando nada que o irritasse. Exceto o vinho na geladeira e a bebida que havia no armário.

       — Nada mais de bebidas no Irã. Nenhuma. Confiscadas! — Ele quebrou as garrafas na pista e ordenou que abrissem os engradados. Havia um motor a jato e muitas outras peças. Tudo estava no formulário. Starke observava da porta da cabine, tentando passar despercebido.

       — Quem são esses passageiros? — perguntou Zataki. O segundo-oficial entregou-lhe uma lista de nomes. Estava escrita em inglês e em farsi: "Pilotos e mecânicos temporariamente desnecessários, todos com licenças vencidas". Ele começou a examinar a lista e os homens.

       — Duke — Johnny Hogg disse cautelosamente da cabine —, tenho algum dinheiro para você e uma carta de McIver. É seguro?

       — Por enquanto.

       — São dois envelopes que estão no bolso de dentro do meu uniforme. McIver disse que a carta é particular.

       Starke encontrou-os e enfiou-os no bolso de dentro do casaco.

       — Como estão as coisas em Teerã? — perguntou com o canto da boca.

       — O aeroporto está uma casa de loucos, com milhares de pessoas tentando entrar nos três ou quatro aviões que eles permitiram que pousassem até agora — disse rapidamente Hogg —, com pelo menos seis jumbos amontoados, esperando por uma autorização para aterrissar. Eu, ahn, eu simplesmente furei a fila, entrei sem autorização e disse: "Oh, sinto muito, pensei que estivesse autorizado", apanhei o meu pessoal e escapuli. Mal tive tempo de conversar com McIver. Ele estava cercado por revolucionários com o dedo no gatilho e por um ou dois mulás, mas ele parece estar bem. Pettikin, Nogger e os outros também parecem bem. Eu estou sediado em Al Shargaz por pelo menos uma semana, para ir e vir como for possível. — Al Shargaz não era longe de Dubai, onde a S-G tinha o seu QG deste lado do golfo. — Nós tivemos permissão da torre de controle de Teerã para trazer peças e pessoal para substituir aqueles que tencionamos levar. Parece que eles vão nos manter mais ou menos na medida de um para um e fornecendo tudo, com vôos marcados para sábados e quartas-feiras. — Ele parou para respirar. — Mac disse para você encontrar uma desculpa para eu vir aqui de vez em quando. Eu vou ser uma espécie de mensageiro dele e de Andy Gavallan até as coisas se normalizarem...

       — Cuidado — Starke disse disfarçadamente, ao ver Zataki olhar para o avião. Ele observara Zataki inspecionar os passageiros e seus documentos. Então viu-o fazer-lhe um sinal e desceu a escada.

       — Sim, Excelência?

       — Este homem não tem visto de saída.

       O homem era Roberts, um dos montadores, de meia-idade, muito experiente. A ansiedade transparecia no seu rosto marcado de rugas.

       — Eu disse a ele que não consegui um visto, capitão, nós não pudemos, os escritórios de imigração ainda estão fechados. Não houve nenhum problema em Teerã.

       Starke deu uma olhada no documento. O prazo só havia expirado há quatro dias.

       — Talvez o senhor pudesse deixar passar desta vez, Excelência. É verdade que o escritório..

       — Sem visto de saída ele não vai. Ele fica! Roberts ficou branco.

       — Mas Teerã me deixou sair e eu tenho que estar em Londres... Zataki agarrou-o pelo casaco e arrancou-o da fila, atirando-o no chão.

       Enfurecido, Roberts levantou-se.

       — Por Deus, eu tenho uma autor... — Ele parou. Um dos Faixas Verdes estava com um rifle encostado no seu peito, outro estava atrás dele, ambos prontos para puxar o gatilho.

       — Espere ao lado do jipe, Roberts. Droga! Espere ao lado do jipe — disse Starke.

       Um dos Faixas Verdes empurrou rudemente o mecânico em direção ao jipe enquanto Starke tentava disfarçar sua preocupação. Jon Tyrer e Manuela também não tinham papéis atualizados.

       — Sem visto de saída ninguém sai! — Zataki repetiu maldosamente e apanhou os papéis do homem seguinte.

       Genny, que era a próxima da fila, estava muito assustada, odiando Zataki e a violência e o cheiro de medo que a cercava, com pena de Roberts que precisava voltar à Inglaterra porque um dos seus filhos estava muito doente, suspeitava-se de pólio, e não havia nem correio nem telefones, e telex só esporadicamente. Ela observou Zataki examinando vagarosamente os papéis do piloto que estava na frente dela. Maldito filho da mãe!, pensou. Eu tenho que entrar naquele avião. Tenho que entrar. Oh, como eu gostaria de que todos nós estivéssemos partindo. Pobre Duncan, ele simplesmente se recusa a cuidar dele mesmo, não se preocupa em comer adequadamente e com certeza vai tornar a ter uma úlcera.

       — O meu visto de saída não está atualizado — disse ela, tentando mostrar-se tímida, e deixando algumas lágrimas brilharem nos olhos.

       — Nem o meu — disse Manuela, num fio de voz. Zataki olhou para elas e hesitou.

       — Mulheres não são responsáveis, só os homens. Vocês duas podem partir. Desta vez. Subam a bordo.

      — Será que o sr. Roberts não pode vir também? — perguntou Genny, apontando para o mecânico. — Ele real..

       — Subam a bordo! — Gritou Zataki, num dos seus súbitos e loucos ata quês de raiva, com o sangue subindo para o rosto.

       As duas mulheres subiram as escadas correndo, com todo mundo momentaneamente em pânico, e até os Faixas Verdes se agitaram nervosos.

       — Excelência, o senhor tem razão — Starke falou em farsi, obrigando se a aparentar calma. — Mulheres não devem discutir. — E esperou e todo mundo também esperou, mal respirando, com os olhos escuros cravados nele. Mas Starke sustentou-lhe o olhar. Zataki balançou a cabeça concordando e continuou a examinar, carrancudo, os papéis que tinha nas mãos.

       Na véspera Zataki voltara de Isfahan e Esvandiary autorizara um vôo para o dia seguinte de tarde para levá-lo de volta a Bandar Delam. Quanto mais cedo melhor, pensou Starke.

       E no entanto, ele tinha pena de Zataki. Na noite anterior ele o encontrara encostado num dos helicópteros com as mãos apertando as têmporas, com muita dor

       O que é, aga!

       — Minha cabeça. Eu... é a minha cabeça.

       Ele o convencera a ver o dr. Nutt e o levara reservadamente ao bangalô do médico.

       — Dê-me apenas aspirina ou codeína, doutor, o que o senhor tiver — tinha dito Zataki.

       — Talvez fosse melhor deixar-me examiná-lo e...

       — Nada de exames! — gritara Zataki. — Eu sei o que há de errado comigo. É a Savak o que há de errado, e a prisão... — E mais tarde, quando a codeína tinha diminuído a dor, Zataki contara a Starke que há cerca de um ano e meio ele tinha sido preso, acusado de propaganda contra o xá. Na época, ele trabalhava como jornalista para um dos jornais de Abadan. Tinha ficado preso por oito meses e então, logo depois do incêndio de Abadan, fora solto. Ele não contou a Starke o que tinham feito com ele. — Como Deus quiser, piloto — tinha dito com amargura. — Mas desde então, eu agradeço a Deus todos os dias por mais um dia de vida para exterminar mais gente da Savak e gente do xá, seus lacaios da polícia e seus lacaios soldados e todos aqueles que assistiram a sua maldade. Um dia eu o apoiei, ele não pagou pela minha educação, aqui e na Inglaterra? Mas ele foi o culpado da Savak! Ele foi o culpado! Essa parte da vingança é só por mim. Eu ainda não comecei a me vingar pela minha mulher e pelos meus filhos assassinados no incêndio de Abadan.

       Starke ficara em silêncio. Quem, como ou o porquê do incêndio que causara quase quinhentas mortes jamais viera a público.

       Ele observou Zataki trabalhar devagar e meticulosamente percorrendo a fila de possíveis passageiros. Quantos mais com papéis incompletos ou desatualizados Starke não sabia, todo mundo tenso, uma nuvem agourenta sobre eles. Logo seria a vez de Tyrer e Tyrer tinha que ir. O dr. Nutt tinha dito que seria mais seguro que Tyrer fosse examinado em Al Shargaz ou em Dubai o mais cedo possível, onde havia ótimos hospitais.

       — Eu tenho certeza de que ele está bem, mas é melhor ele descansar os olhos por enquanto. E ouça, Duke, pelo amor de Deus, mantenha-se fora do caminho de Zataki e avise aos outros para fazerem o mesmo. Ele está prestes a explodir e só Deus sabe o que poderá acontecer então.

       — O que há com ele?

       — Medicamente eu não sei. Psicologicamente ele é perigoso, muito perigoso. Eu diria que é maníaco-depressivo, certamente paranóico, provavelmente em conseqüência direta das suas experiências na prisão. Ele contou a você o que fizeram com ele?

     — Não. Não contou.

       — Se dependesse de mim, eu recomendaria que ele fosse mantido sob sedativos e não se aproximasse de uma arma.

       Ótimo, pensou Starke, desanimado. E como eu poderia fazer isso? Pelo menos Manuela e Genny estão a bordo e em breve estarão em Al Shargaz, que é um paraíso compa..

       Um grito de aviso interrompeu seus pensamentos. Do outro lado do 125, vindo de trás da saída da torre principal, estava o mulá Hussein com mais Faixas Verdes e eles pareciam muito hostis.

       Imediatamente, Zataki esqueceu os passageiros, empunhou sua metralhadora e, segurando-a frouxamente numa das mãos, se colocou entre Hussein e o avião. Dois dos seus homens se colocaram ao lado dele, e os outros se aproximaram do avião, tomando posições defensivas, cobrindo a aeronave.

       — Matem os malditos corvos — alguém murmurou. — O que há agora?

       — Preparem-se para se abaixar — disse Ayre.

       — Capitão — Roberts cochichou desesperado. — Eu tenho que entrar naquele avião, tenho que entrar, a minha filhinha está muito mal, será que o senhor pode conseguir alguma coisa com aquele filho da mãe?

       — Vou tentar.

       Zataki observava Hussein, com ódio dele. Há dois dias ele fora a Isfahan, convidado a ir lá para entendimentos com o komiteh secreto. Todos os 11 membros eram aiatolás e mulás, e lá, pela primeira vez, ele vira a verdadeira face da revolução pela qual ele tanto lutara e tanto tinha sofrido: "Os hereges serão destruídos. Nós teremos apenas Tribunais Revolucionários. A justiça será rápida e definitiva, sem apelação..." Os mulás estavam tão seguros de si, tão seguros do seu direito divino de governar e de administrar justiça já que só eles interpretavam o Corão e o Sharia. Cautelosamente, Zataki guardara seu horror e seus pensamentos para si mesmo, mas ele sabia que, mais uma vez, fora traído.

       — O que você quer, mulá? — disse Zataki, pronunciando esta palavra como se fosse um xingamento.

       — Primeiro eu quero que você entenda que não tem nenhum poder aqui O que você faz em Abadan é problema dos aiatolás de Abadan, mas aqui você não tem nenhum poder sobre esta base, sobre estes homens, ou sobre este avião. — Rodeando Hussein havia uma dúzia de jovens armados, de caras fechadas, todos Faixas Verdes.

       — Nenhum poder, hein? — Desdenhosamente, Zataki virou as costas para o mulá e gritou em inglês: — O avião vai partir agora! Todos os passageiros subam a bordo! — Iradamente, ele fez um sinal para o piloto partir, depois tornou a encarar Hussein. — Bem? E em segundo lugar? — perguntou, enquanto, atrás dele, os passageiros se apressaram em obedecer, e como os Faixas Verdes estavam concentrados em Zataki e Hussein, Starke mandou que Roberts subisse para o avião, e depois fez sinal para Ayre ajudá-lo a encobrir a fuga do mecânico. Juntos, eles ajudaram Tyrer a sair do jipe.

       Zataki brincava com a arma, com toda a sua atenção fixada em Hussein.

       — Bem? E em segundo lugar? — Ele tornou a perguntar.

       Hussein estava perplexo, e seus homens também estavam conscientes das armas apontadas para eles. Os motores começaram a rugir. Ele viu os passageiros subindo apressadamente, Starke e Ayre ajudando um homem com bandagens nos olhos a subir as escadas, depois os dois pilotos outra vez ao lado do jipe, os motores a jato esquentando, e assim que o último homem entrou, a escada foi levantada e o avião começou a taxiar.

       — Bem, aga, e depois?

       — Depois... depois o komiteh de Kowiss ordena que você e os seus homens saiam de Kowiss.

       Desdenhosamente, Zataki gritou para os seus homens por sobre o barulho dos motores, com os pés plantados na pista de concreto, pronto para lutar se fosse necessário e morrer se fosse necessário, com o ar superaquecido soprando em cima dele enquanto o avião se movia em direção à pista.

       — Vocês ouviram, o komiteh de Kowiss ordenou que nós partíssemos! Seus homens começaram a rir, e um dos Faixas Verdes de Hussein, um adolescente imberbe que estava no final do grupo, levantou a carabina e morreu imediatamente, quase cortado ao meio pela rajada precisa de balas dos homens de Zataki que o escolheram cuidadosamente. O silêncio foi quebrado apenas pelo som distante dos jatos. Hussein ficou momentaneamente confuso pela rapidez e pela poça de sangue que jorrou no concreto.

       — Seja como Deus quiser — disse Zataki. — O que você quer mulá?

       Foi então que Zataki notou o garotinho que o olhava petrificado, escondido atrás das vestes do mulá, agarrando-se a elas para se proteger, tão parecido com o seu próprio filho, o mais velho, que por um momento ele foi levado de volta aos dias felizes antes do incêndio, quando tudo parecia bem e havia alguma forma de futuro — a maravilhosa Revolução Branca do xá, a reforma agrária, o controle dos mulás, a educação universal e outras coisas — os bons tempos em que eu era um pai, o que não serei nunca mais. Nunca. Os choques elétricos e as tenazes destruíram essa possibilidade.

       Uma pontada violenta de dor nos seus testículos inundou sua cabeça junto com as lembranças e ele teve vontade de gritar. Mas não o fez, apenas reprimiu o sofrimento, como sempre, e se concentrou naquela morte. Ele pôde ver a expressão implacável do rosto do mulá e se preparou. Matar com a metralhadora dava-lhe grande pazer. O quente staccato, a arma viva explodindo em pequenos arrancos, o cheiro acre de cordite, o sangue dos inimigos de Deus e do Irã jorrando. Os mulás são inimigos, e mais do que eles todos, Khomeini, que comete o sacrilégio de permitir que o seu retrato seja venerado e que os seus seguidores o chamem de imã, e coloca os mulás entre nós e Deus, contra todos os ensinamentos do Profeta.

       — Ande logo — ele berrou —, eu estou perdendo a paciência!

       — Eu... eu quero aquele homem — disse Hussein, apontando. Zataki olhou em volta. O mulá estava apontando para Starke.

       — O piloto? Por quê? Para quê? — Ele perguntou, perplexo.

       — Para interrogatório. Eu quero interrogá-lo.

       — Sobre o quê?

       — Sobre a fuga dos oficiais de Isfahan.

       — E o que ele poderia saber a respeito disso? Ele estava comigo em Bandar Delam, a centenas de quilômetros, quando isso aconteceu, ajudando a revolução contra os inimigos de Deus! — Zataki acrescentou maldosamente: — Os inimigos de Deus estão em toda parte, em toda parte! O sacrilégio existe em toda parte, a adoração de ídolos é praticada em toda parte. Não é?

       — Sim, sim, os inimigos abundam e sacrilégio é sacrilégio. Mas ele é um piloto de helicópteros, foi um infiel que pilotou o helicóptero da fuga, ele pode saber alguma coisa. Eu quero interrogá-lo.

       — Não enquanto eu estiver aqui.

       — Por quê? Por que não? Por que você não...

       — Você não vai interrogá-lo enquanto eu estiver aqui, por Deus! Não enquanto eu estiver aqui! Mais tarde ou amanhã ou depois, como Deus quiser, mas não agora.

       Zataki tinha manobrado Hussein e viu no rosto dele e nos seus olhos que ele tinha cedido e que não era mais uma ameaça. Cautelosamente, ele olhou para o rosto de cada um dos Faixas Verdes que cercavam o mulá, mas não detectou mais nenhum perigo. A morte súbita e rápida de um deles, pensou sem nenhum sentimento de culpa, controla os outros.

     — Vocês devem querer voltar à sua mesquita agora, está quase na hora das orações. — Ele se virou de costas e caminhou para o jipe, sabendo que os seus homens o estariam protegendo, fez um sinal para Starke e Ayre, chamando-os, e entrou no banco da frente, com a metralhadora apontada, mas não tão ostensivamente como antes. Um por um, seus homens recuaram até os carros. E partiram.

       Hussein estava lívido. Seus Faixas Verdes esperavam. Um deles acendeu um cigarro, todos eles conscientes do corpo aos seus pés. E do sangue que ainda jorrava.

       — Por que você os deixou ir, papai? — O garotinho perguntou na sua vozinha fina.

       — Eu não deixei, meu filho. Nós temos coisas mais importantes a fazer no momento, depois voltaremos.

      

        EM ZAGROS TRÊS: 12:05H. Scot Gavallan olhava fixamente para o cano de uma metralhadora apontada para ele. Ele tinha acabado de pousar o 212 depois da primeira viagem do dia para a plataforma Rosa, para entregar outro carregamento de canos de aço e cimento, e assim que desligara os motores, Faixas Verdes armados vieram correndo do hangar para cercá-lo.

       Odiando o medo que tomou conta dele, desviou os olhos da arma e olhou para os olhos pretos e maldosos.

       — O que... o que quer? — perguntou, e depois falou num farsi hesitante: — Cheh karbarehi

       O homem que estava com a arma soltou uma torrente de palavras zangadas e incompreensíveis.

       Ele tirou os fones da cabeça.

       — Man zaban-eshoma ra khoob namidanam, Aghal — gritou por sobre o barulho dos motores. — Eu não falo a sua língua, Excelência! — contendo-se para não dizer a obscenidade que teve vontade de acrescentar. Mais palavras zangadas e o homem fez sinal para ele sair da cabine. Então ele viu Nasiri, o gerente de base da IranOil, desgrenhado e machucado, sendo levado em direção ao 212 por mais guardas revolucionários. Ele se inclinou um pouco para fora da janela.

       — Que diabo está acontecendo?

       — Eles... eles querem que você saia do helicóptero, capitão — respondeu Nasiri. — Eles... por favor, depressa!

       — Espere até eu completar a aterrissagem! — Nervosamente, Scot terminou os procedimentos de pouso. O cano da metralhadora não se movera, nem diminuíra a hostilidade em volta dele. Os rotores giravam mais devagar e quando deu para sair, ele tirou o cinto e saltou. Imediatamente, foi empurrado para fora do caminho. Homens excitados, gritando, abriram completamente a porta da cabine, espiaram para o interior, enquanto outros abriam a porta da cabine principal e subiam a bordo.

       — Que diabo aconteceu com você, aga! — perguntou a Nasiri, ao ver a extensão dos seus ferimentos.

       — O... o novo komiteh cometeu um erro — disse Nasiri, tentando manter a dignidade — achando que eu era... um partidário do xá e não um homem da revolução e do imã.

       — Quem são estes homens? Eles não são de Yazdek.

       Mas antes que Nasiri pudesse responder, o Faixa Verde que estava com a metralhadora abriu caminho pelo meio do grupo.

       — Para o escritório! AGORA! — disse o homem, num mau inglês, depois estendeu a mão e agarrou Scot pela manga da jaqueta de vôo para fazê-lo andar mais depressa. Automaticamente, Scot empurrou-lhe o braço. Uma arma foi-lhe enfiada nas costelas.

       — Está bem, pelo amor de Deus — resmungou e caminhou em direção ao escritório com a cara fechada.

       No escritório, Nitchak Khan, calênder da aldeia, e o velho mulá estavam em pé ao lado da escrivaninha, de costas para a parede ao lado da janela aberta. Ambos tinham um ar grave. Scot os cumprimentou e eles responderam com a cabeça, pouco à vontade. Atrás dele, muitos Faixas Verdes encheram a sala atrás de Nasiri.

       — Cheh karbareh, Kalandar? — perguntou Scot. — O que está havendo?

       — Estes homens são... afirmam ser o nosso novo komiteh — Nitchak Khan respondeu com dificuldade. — Eles foram mandados de Sharpur para assumir a nossa... a nossa aldeia e o nosso... campo de aviação.

       Scot ficou perplexo. O que o líder da aldeia dissera não fazia sentido. Embora Sharpur fosse a cidade mais próxima e tivesse jurisdição nominal sobre aquela região, o costume sempre deixara as tribos kash'kai das montanhas governarem a si mesmas — desde que eles aceitassem a suserania do xá de Teerã, obedecessem às leis e permanecessem desarmados e pacíficos.

       — Mas vocês sempre gover...

       — Quieto! — disse o líder dos Faixas Verdes, brandindo a metralhadora, e Scot viu Nitchak enrubescer. O líder usava barba, tinha cerca de trinta anos, estava pobremente vestido e seus olhos escuros eram maus. Ele arrastou Nasiri para a frente do grupo e falou rapidamente em farsi.

       — Eu... eu devo servir de intérprete, capitão — disse Nasiri, nervosamente. — O líder, Ali-sadr, diz que o senhor deve responder às perguntas. Eu já respondi a quase todas, mas ele quer... — Ali-sadr xingou-o e começou o interrogatório, lendo de uma lista preparada e com Nasiri traduzindo:

       — O senhor está no comando aqui?

       — Sim, temporariamente.

       — Qual é a sua nacionalidade?

       — Britânica. Agora que dia...

       — Há algum americano aqui?

       — Não que eu saiba — Scot disse imediatamente e manteve o rosto com uma expressão afável, torcendo para que Nasiri, que sabia que Rodrigues, o mecânico, era americano com uma falsa identidade inglesa, não tivesse respondido a esta pergunta. Nasiri traduziu sem hesitação. Um dos outros Faixas Verdes estava anotando as respostas.

       — Quantos pilotos há aqui?

       — No momento eu sou o único.

       — Onde estão os outros, quem são e qual é a nacionalidade deles?

       — O nosso piloto mais graduado, capitão Lochart, é canadense, e está em Teerã. Ele está pilotando um charter fora de Teerã, eu acho, mas é esperado de volta a qualquer momento. O outro, o segundo em comando, é o capitão Sessonne, francês, ele teve que partir para Teerã hoje, num vôo urgente para a IranOil.

       O líder levantou os olhos, com o olhar duro

       — O que havia de tão urgente?

       — A plataforma Rosa está pronta para medir um novo poço.

       Ele esperou enquanto Nasiri explicava o que isso significava e que os per furadores precisavam da ajuda urgente de especialistas da Schulumberger, agora sediados em Teerã. Esta manhã, Jean-Luc tinha ligado para a torre de controle local em Shiraz para tentar conseguir uma autorização para ir a Teerã. Para sua surpresa e alegria, a torre de Shiraz deu a aprovação imediatamente.

       — O imã decretou que a produção de petróleo deveria começar — eles tinham dito —, então ela vai começar.

       Jean-Luc decolara em poucos minutos. Scot Gavallan sorriu consigo mesmo sabendo que a verdadeira razão pela qual Jean-Luc tinha dado três cambalhotas na cabine do 206 era porque agora ele ia poder dar uma fugida para ver Sayada. Scot a tinha visto uma vez. "Ela tem uma irmã?", perguntara esperançoso.

       O líder escutou com impaciência, depois tornou a interromper e Nasiri encolheu-se.

       — Ele, Ali-sadr, diz que no futuro todos os vôos serão autorizados por ele, ou por este homem — Nasiri apontou para o jovem Faixa Verde que estava anotando as respostas de Scot. — No futuro, todos os vôos terão que levar a bordo um dos seus homens. No futuro, não haverá decolagens sem autorização prévia. Dentro de uma hora, o senhor deverá levar a ele e aos seus homens a todas as plataformas da região.

        — Explique a ele que não é possível fazer isso porque temos que entregar mais canos e cimento na plataforma Rosa. Do contrário, quando Jean-Luc voltar amanhã, eles não estarão prontos.

       Nasiri começou a explicar. O líder interrompeu-o rudemente e se levantou.

       — Diga ao infiel, o piloto, para estar pronto dentro de uma hora e então melhor ainda, diga-lhe para vir conosco até a aldeia onde eu posso vigiá-lo. Você vem também. E diga-lhe para ser muito obediente, pois embora o imã queira que a produção de petróleo comece imediatamente, todas as pessoas no Irã estão sujeitas à lei islâmica, sejam ou não iranianas. Nós não precisamos de estrangeiros aqui. — O homem olhou para Nitchak Khan. — Agora voltaremos para a aldeia — ele disse e saiu. Nitchak Khan enrubesceu. Ele e o mulá o seguiram.

       — Capitão, nós temos que ir com ele — disse Nasiri —, para a aldeia.

       — Para quê?

       — Bem, o senhor é o único piloto aqui e conhece a região — disse Nasiri, prontamente, imaginando qual seria o motivo verdadeiro.

       Ele estava com muito medo. Não tinha havido nenhum aviso de mudanças imediatas, nem eles sabiam na aldeia que a estrada já tinha sido aberta depois da última nevasca. Mas nesta manhã, o caminhão com doze Faixas Verdes chegara na aldeia. Imediatamente, o líder do komiteh apresentara o pedaço de papel assinado pelo Komiteh Revolucionário de Sharpur, dando-lhes jurisdição sobre Yazdek e "toda a produção da IranOil, instalações e helicópteros desta área". Quando, a pedido de Nitchak Khan, Nasiri dissera que se comunicaria pelo rádio com a IranOil para protestar, um dos homens começara a espancá-lo. O líder tinha feito o homem parar, mas não se desculpara, nem demostrara a Nitchak Khan o respeito que lhe era devido como calênder deste ramo dos kash'kai. Outro arrepio de medo percorreu Nasiri e ele desejou estar de volta a Sharpur com sua mulher e sua família. Que Deus amaldiçoe todos os komitehs e fanáticos e estrangeiros e o Grande Satã, a América, que causou todos os nossos problemas.

       — É... é melhor nós irmos — disse.

       Eles saíram. Os outros já estavam bem mais à frente no caminho que levava à aldeia. Quanto Scot passou pelo hangar, viu os seus seis mecânicos reunidos sob o olhar vigilante de um guarda armado. O guarda estava fumando e um arrepio o percorreu. Havia avisos em farsi e em inglês por toda parte. PROIBIDO FUMAR — PERIGO! De um lado, o segundo 212 estava na fase final da verificação das mil e quinhentas horas, mas sem os dois 206 que completavam sua frota atual de aviões, o hangar parecia vazio e deprimente.

       — Aga — ele disse para Nasiri, fazendo um sinal na direção dos guardas que os acompanhavam —, diga-lhes que eu preciso tomar providências em relação ao helicóptero e diga àquele imbecil para não fumar no hangar.

       — Eles disseram que está bem — traduziu Nasiri —, mas que é para o senhor se apressar. — O guarda que estava fumando atirou displicentemente o cigarro no concreto. Um dos mecânicos correu para apagá-lo. Nasiri gostaria de ficar, mas os guardas lhe fizeram sinal para continuar. Relutante, ele saiu.

       — Encha o tanque do FBC e faça uma inspeção nele — disse Scot, cuidadosamente, sem saber se algum dos guardas entendia inglês. — Dentro de uma hora eu tenho que levar o nosso komiteh para uma visita a todos os campos. Parece que temos um novo komiteh vindo de Sharpur.

       — Oh, merda — resmungou alguém.

       — E quanto ao material para a plataforma Rosa? — perguntou Effer Jordon. Ao lado dele estava Rod Rodrigues. Scot podia ver sua ansiedade.

       — Isso vai ter que esperar. Apenas encha o tanque do FBC, Effer, e faça todo mundo checá-lo. Rod — disse para animar o homem mais velho —, agora que estamos voltando à normalidade, você em breve vai ter a sua licença em Londres, capito!

       — Claro, obrigado, Scot.

       O guarda ao lado de Scot fez sinal para ele prosseguir.

       — Baleh Agha, sim, está bem, Excelência — disse Scot, depois acrescentou para Rodrigues: — Rod, faça uma inspeção cuidadosa para mim.

       — Claro.

       Scot saiu, com os guardas seguindo-o. Jordon perguntou ansioso:

       — O que está acontecendo e onde você vai?

       — Vou dar uma volta — disse sarcasticamente. — Como é que eu vou saber? Estive voando a manhã inteira. — E continuou andando, sentindo-se cansado, impotente e ineficiente, desejando que Lochart ou Jean-Luc estivessem ali em seu lugar. Malditos filhos da mãe do komitehl Um bando de malditos idiotas.

       Nasiri estava uns cem metros à frente, caminhando rapidamente, os outros já tinham desaparecido na curva do caminho que serpenteava através das árvores. A temperatura estava um pouco abaixo de zero e a neve rangia sob os pés, e embora Scot se sentisse aquecido em sua roupa de piloto, era difícil caminhar com as botas de vôo e ele se arrastava desanimado, querendo alcançar Nasiri mas não conseguindo. Havia montes de neve dos lados do caminho e muita neve nas árvores, mas o céu estava claro. Meio quilômetro adiante, no fim do caminho sinuoso, ficava a aldeia.

       Yazdek ficava num pequeno platô, agradavelmente protegida dos ventos. As cabanas e casas eram feitas de madeira, pedra e tijolos de barro e agrupadas em volta da praça em frente à pequena mesquita. Ao contrário da maioria das aldeias, ela era próspera, com bastante lenha para dar calor no inverno, bastante caça nas redondezas, com rebanhos de carneiros e cabras pertencentes à comunidade, alguns camelos e trinta cavalos e éguas de raça que eram o seu orgulho. A casa de Nitchak Khan tinha dois andares, era uma habitação coberta de telhas, de quatro cômodos, ficava ao lado da mesquita e era maior do que as outras.

       Ao lado ficava a escola, o edifício mais moderno. Tom Lochart projetara a estrutura simples e persuadira McIver a financiá-la no ano anterior. Até poucos meses, a escola fora dirigida por um jovem do Corpo de Professores do xá — a aldeia era quase toda analfabeta. Quando o xá partiu, o rapaz desapareceu. De vez em quando, Tom Lochart e outros da base faziam palestras lá — que eram mais sessões de perguntas e respostas — em parte para manter boas relações, e em parte para ter algo que fazer quando não havia vôos. As sessões eram bastante freqüentadas, tanto por adultos como por crianças, encorajados a comparecer por Nitchak Khan e sua esposa.

       Ao descer a pequena elevação, Scot viu os outros entrarem na escola. O caminhão que trouxera os Faixas Verdes estava estacionado do lado de fora. Os aldeões reuniam-se em grupos, observando silenciosamente. Homens, mulheres e crianças, nenhum deles armado. As mulheres kash 'kai não usavam nem véus nem chador, e sim roupas coloridas.

       Scot subiu a escada da escola. Da última vez que estivera lá, há poucas semanas, ele tinha feito uma palestra sobre a Hong Kong que ele conheceu quando seu pai ainda trabalhava lá e que ele costumava visitar durante as fé rias do colégio interno que freqüentava na Inglaterra. Fora difícil explicar como era Hong Kong, com suas ruas apinhadas de gente, tufões, pauzinhos e escrita em caracteres, e sua comida e seu capitalismo pirata, a imensidade de toda a China. Estou contente de termos voltado para a Escócia, pensou, e pelo velho ter iniciado a S-G que um dia eu vou dirigir.

       — O senhor deve sentar-se, capitão — disse Nasiri. — Ali. — Ele indicou uma cadeira no fundo da sala lotada. Ali-sadr e quatro outros Faixas Verdes estavam sentados na mesa onde o professor costumava sentar. Nitchak Khan e o mulá sentavam-se em frente a eles. Os aldeões estavam em pé, em volta.

       — O que está acontecendo?

       — É... é uma reunião.

       Scot percebeu o medo que Nasiri sentia e imaginou o que faria se os Faixas Verdes começassem a bater nele. Eu devia ser faixa preta ou lutador de boxe, pensou fatigado, tentando entender o que o líder estava dizendo em farsi.

       — O que ele está dizendo, aga! — cochichou para Nasiri.

       — Eu... ele está... ele está dizendo a Nitchak Khan como a aldeia vai ser governada de agora em diante. Por favor, eu explico depois. — Nasiri se afastou.

       Depois de algum tempo, o palavrório terminou. Todo mundo olhou para Nitchak Khan. Ele se levantou lentamente. Seu rosto estava grave e suas palavras foram poucas. Até Scot entendeu.

       — Yazdek é kash 'kai. Yazdek vai continuar a ser kash 'kai. — Ele voltou as costas para a mesa e começou a se retirar, com o mulá o seguindo.

       A uma ordem zangada do líder, dois Faixas Verdes barraram-lhe o caminho. Desdenhosamente, Nitchak Khan afastou-os, então outros o agarraram, com a tensão crescendo na sala, e Scot viu um dos aldeões se esgueirar para fora da sala sem ser observado. Os Faixas Verdes que estavam segurando Nitchak Khan viraram-no de frente para Ali-sadr e os outros quatro, que estavam em pé, enraivecidos e gritando. Ninguém tocara no velho mulá. Ele levantou a mão e começou a falar, mas o líder gritou para ele se calar e um murmúrio percorreu os aldeões. Nitchak Khan não lutou contra os homens que o imobilizavam, apenas olhou para Ali-sadr e Scot sentiu o ódio dele como se fosse um golpe físico.

       O líder tornou a falar com os aldeões, depois apontou um dedo acusador para Nitchak Khan e mais uma vez ordenou que ele obedecesse e mais uma vez Nitchak Khan disse calmamente:

       — Yazdek é kash'kai e vai continuar sendo kash'kai.

       Ali-sadr sentou-se. Os outros quatro fizeram o mesmo. Mais uma vez Ali-sadr apontou e disse algumas palavras. Os aldeões levaram um choque. Os quatro homens ao lado dele concordaram com a cabeça. Ali-sadr disse uma única palavra. Ele cortou o silêncio como uma lâmina.

       — Morte! — E se levantou e saiu, com os aldeões e os Faixas Verdes levando Nitchak Khan atrás dele, e Scot ficou esquecido. Scot se abaixou, tentando passar despercebido. Em pouco tempo ele estava sozinho.

       Lá fora, os Faixas Verdes arrastaram Nitchak Khan para o muro da mesquita e o colocaram lá. A praça estava vazia. À medida que os outros aldeões saíam da escola, eles também se afastavam rapidamente. Exceto o mulá. Vagarosamente, ele foi até onde estava Nitchak Khan e se colocou ao lado dele, de frente para os Faixas Verdes que, a vinte metros de distância, preparavam as armas. A uma ordem de Ali-sadr, dois deles afastaram o velho. Nitchak Khan esperava em silêncio, orgulhosamente, depois cuspiu no chão.

       O único tiro de rifle veio não se sabe de onde. Ali-sadr estava morto antes mesmo de cair no chão. O silêncio foi súbito e enorme, e os Faixas Verdes se viraram em pânico, depois ficaram paralisados quando uma voz gritou:

       — Allah-u Akbarr, larguem suas armas!

       Ninguém se moveu, depois um dos guardas do pelotão de fuzilamento apontou a arma para Nitchak Khan mas morreu antes de poder puxar o gatilho.

       — Deus é grande, larguem as armas!

       Um dos Faixas Verdes deixou a arma cair no chão. Um outro fez o mesmo, um outro correu para o caminhão mas morreu antes de andar dez metros. Agora todas as armas estavam no chão. E todos que continuavam em pé ficaram imóveis.

       Então a porta da casa de Nitchak Khan se abriu e sua esposa saiu com uma carabina, apontada, seguida de um rapaz também empunhando uma carabina. Ela parecia feroz no seu orgulho, dez anos mais jovem que o marido, e o único som na praça era o tilintar dos seus brincos e correntes e o farfalhar das suas longas vestes marrons e vermelhas.

       Os olhos estreitos de Nitchak Khan no seu rosto de maçãs salientes ficaram ainda mais estreitos, e as profundas rugas que tinha no canto dos olhos se acentuaram. Mas não disse nada a ela, apenas olhou para os oito Faixas Verdes que tinham sobrado. Sem piedade. Eles olharam para Nitchak, e um deles tentou apanhar a arma, e ela atirou no seu estômago e ele gritou, contorcendo-se na neve. Ela o deixou gritar por um momento. Depois deu um segundo tiro e os gritos cessaram.

       Agora havia sete.

       Nitchak Khan sorriu silenciosamente. Agora, das casas e cabanas, os homens e mulheres da aldeia saíram para a praça. Todos estavam armados. Ele voltou a atenção para os sete.

       — Entrem no caminhão, deitem-se e ponham as mãos para trás. — Os homens obedeceram de má vontade. Ele ordenou que quatro aldeões os vigiassem, depois voltou-se para o rapaz que tinha saído da sua casa. — Há mais um no campo de aviação, meu filho. Leve alguém com você e trate dele. Traga o corpo de volta mas cubram os seus rostos com lenços para que os infiéis não possam reconhecê-los.

       — Seja como Deus quiser. — O rapaz apontou para a escola. A porta estava aberta, mas não havia sinal de Scot. — O infiel — disse baixinho. — Ele não é da nossa aldeia. — E se afastou rapidamente.

       A aldeia esperou. Nitchak Khan coçou a barba Pensativamente. Então seus olhos dirigiram-se para Nasiri que estava escondido ao lado da escada da escola.

       O rosto de Nasiri ficou lívido.

       — Eu... eu não... eu não vi nada, nada, Nitchak Khan — ele falou com voz rouca e se levantou e pulou por cima dos corpos. — Eu sempre... nos dois anos em que estou aqui eu sempre fiz tudo o que pude pela aldeia. Eu... eu não vi nada — disse mais alto, covardemente, e então o terror o dominou e ele saiu correndo da praça. E morreu. Uma dúzia de homens tinha atirado nele.

       — É verdade que a única testemunha da maldade destes homens devia ser Deus.

       Nitchak Khan suspirou. Ele gostava de Nasiri. Mas ele não era do seu povo. Sua mulher se aproximou e ele lhe sorriu. Ela apanhou um cigarro, entregou-lhe e o acendeu para ele, depois tornou a guardar os cigarros e os fósforos no bolso. Ele fumou Pensativamente. Alguns cachorros latiram no meio das casas e uma criança chorou, e a fizeram calar rapidamente.

       — Haverá uma pequena avalanche para destruir a estrada no lugar em que ela foi interrompida antes, para manter todo mundo afastado até o degelo, — disse finalmente. — Nós poremos os corpos no caminhão e jogaremos gasolina por cima e o empurraremos para a ravina do Camelo Quebrado. Parece que o komiteh decidiu que nós podemos nos governar como sempre e que deveríamos ser deixados em paz como sempre, então eles foram embora e levaram o corpo de Nasiri com eles. Eles mataram Nasiri aqui na praça, como nós todos vimos, quando ele tentou escapar da justiça. Infelizmente, eles sofreram um acidente na volta. É uma estrada muito perigosa, como todos nós sabemos. Provavelmente eles levaram o corpo de Nasiri para provar que tinham cumprido o seu dever e livrado a montanha de um conhecido partidário do xá e o mataram quando ele tentou escapar. Ele certamente era um partidário do xá quando o xá tinha poder e antes do xá fugir. — Os aldeões concordaram satisfeitos e esperaram. Todos queriam saber a resposta para a última pergunta: e quanto à última testemunha? E quanto ao infiel que ainda estava dentro da escola?

       Nitchak Khan coçou a barba. Isso sempre o ajudava na hora de tomar uma decisão difícil.

       — Outros Faixas Verdes virão em breve, atraídos pelo magnetismo das máquinas voadoras, fabricadas pelos estrangeiros e pilotadas pelos estrangeiros para o benefício dos estrangeiros por causa do petróleo que é retirado da nossa terra para o benefício dos inimigos Tehranis e dos inimigos cobradores de impostos e de mais estrangeiros. Se não houvesse poços, não haveria estrangeiros, portanto não haveria Faixas Verdes. A terra é rica em petróleo em outros lugares, fácil de ser retirado em outros lugares. O nosso não é. Os nossos poucos poços não são importantes e as 11 bases são de acesso difícil e perigoso. Eles não tiveram que explodir o topo da montanha para salvar um deles de uma avalanche, há uns poucos dias atrás?

       Houve concordância geral. Ele continuou fumando despreocupadamente. As pessoas olhavam para ele, confiantes. Ele era o calênder, o chefe que tinha governado sabiamente por 18 anos, em épocas boas e más.

       — Se não houvesse máquinas voadoras, não poderia haver poços. Então, se esses estrangeiros partissem — ele continuou na mesma voz grossa e vagarosa —, eu duvido que outros estrangeiros se aventurassem a vir aqui para consertar e reabrir as 11 bases, pois as bases com certeza tornariam a ser avariadas, talvez até saqueadas por bandidos. Então nós seríamos deixados em paz. Sem a nossa benevolência, ninguém pode operar nas nossas montanhas. Nós, kash'kai, procuramos viver em paz. Mas seremos livres e governados pelos nossos próprios hábitos e costumes. Portanto, os estrangeiros devem partir, por sua própria vontade. E partir depressa. E também os poços. E tudo o que for estrangeiro. — Cuidadosamente, ele apagou o cigarro na neve. — Vamos começar: ponham fogo na escola.

       Ele foi obedecido imediatamente. Um pouco de gasolina e a madeira ressecada logo pegou fogo. Todo mundo esperou. Mas o infiel não apareceu, e quando eles revistaram as cinzas não encontraram nenhum resto dele.

      

       PERTO DE TABRIZ: 11:49H. Erikki Yokkonen subia com o 206 pelo alto desfiladeiro que ia dar na cidade. Nogger Lane estava ao seu lado e Azadeh atrás. Ela usava um grosso casaco de vôo sobre as roupas de esqui, mas no porta-bagagem havia um chador:

       — Só por segurança — dissera. Ela estava usando o terceiro par de fones que Erikki lhe conseguira.

       Tabriz Um, está me ouvindo? — Ele tornou a dizer. Esperaram. Nenhuma resposta ainda e já estava bem dentro da sua faixa. — Pode estar abandonada, pode ser uma armadilha, como aconteceu com Charlie.

       — É melhor darmos uma boa olhada antes de pousar — disse Nogger, pouco à vontade, com os olhos examinando o céu e a terra.

       O céu estava claro, a temperatura bem abaixo de zero, e as montanhas estavam cobertas de neve. Eles tinham reabastecido sem incidentes num depósito da IranOil muito próximo de Bandar-e Pahlavi, seguindo instruções da torre de Teerã.

       — Khomeini está com tudo sob controle, com a torre de controle querendo ajudar e o aeroporto aberto de novo — Erikki tinha comentado, tentando espantar a depressão que pesava sobre eles.

       Azadeh ainda estava muito abalada pela notícia da execução de Emir Paknouri por "crimes contra o Islã" e pela notícia ainda mais terrível a respeito do pai de Xarazade.

       — Isso é assassinato — exclamara horrorizada, ao saber. — Que crimes ele poderia ter cometido, ele que tem apoiado Khomeini e os mulás há gerações?

       Nenhum deles tivera qualquer resposta. A família recebera ordem de recolher o corpo e agora estava em luto profundo, Xarazade quase louca de tristeza — a casa fechada até mesmo para Azadeh e Erikki. Azadeh não queria sair de Teerã, mas tinha chegado uma segunda mensagem, enviada por seu pai a Erikki, repetindo a primeira: "Capitão, necessito urgentemente da presença da minha filha em Tabriz". — E agora eles estavam quase chegando em casa.

       Antigamente, era a nossa casa, Erikki pensou. Agora eu não tenho mais certeza.

       Perto de Qazvin, ele sobrevoara o lugar onde o seu Range Rover tinha ficado sem gasolina e onde Pettikin e Rakoczy os salvaram da multidão. O Range Rover não estava mais lá. Depois passara sobre a aldeia miserável onde ficava a barreira, e de onde ele fugira para esmagar o mujhadin de cara redonda que lhes roubara os papéis. É loucura voltar, pensou.

       — Mac tem razão — Azadeh tinha dito, implorando. — Vá para Al Shargaz e deixe Nogger levar-me para Tabriz e trazer-me de volta para pegar o próximo vôo. Eu vou me encontrar com você em Al Shargaz não importa o que meu pai diga.

       — Eu vou levá-la para casa e trazê-la de volta — respondera. — Está acabado.

       Eles tinham decolado de Doshan Tappeh pouco depois do amanhecer. A base estava quase vazia, com muitos edifícios e hangares transformados em ruínas, destroços de aviões da Força Aérea iraniana, de caminhões, e um tanque incendiado com o emblema dos Imortais do lado. Não havia ninguém limpando aquela bagunça. Não havia nenhum guarda. Os catadores de lixo estavam levando para casa qualquer coisa que pudessem queimar — não havia quase nenhum combustível para vender, nem comida, mas ainda havia muitas batalhas diurnas e noturnas entre Faixas Verdes e esquerdistas.

       O hangar e a oficina da S-G estavam quase intatos. Havia muitos buracos de balas nas paredes, mas nada fora saqueado até agora e eles estavam operando, precariamente, com alguns mecânicos e funcionários fazendo o trabalho normal. O pagamento de alguns salários atrasados, com o dinheiro que McIver conseguira espremer de Valik e dos outros sócios, fora a isca. Ele dera mais algum dinheiro para Erikki pagar o pessoal de Tabriz Um:

       — Comece a rezar, Erikki! Hoje eu tenho um encontro marcado no Ministério para tratar das nossas finanças e do dinheiro que nos estão devendo — McIver tinha dito a eles pouco antes de decolarem —, e para renovar todas as nossas licenças vencidas. Foi Talbot, da embaixada, quem marcou o encontro para mim. Ele acha que há uma boa chance de Bazargan e Khomeini conseguirem controlar a situação agora e desarmar os esquerdistas. Nós só temos que manter o ânimo e a calma.

       É fácil para ele, pensou Erikki.

       Chegaram ao alto do desfiladeiro. Ele se inclinou e baixou depressa.

       — Lá está a base! — Os dois pilotos se concentraram. A biruta era a única coisa que se movia. Não havia nenhum veículo estacionado em lugar algum. Não saía fumaça de nenhuma das cabanas. — Devia haver fumaça. — Fez uma volta apertada a duzentos metros. Ninguém apareceu para recebê-los. — Vou dar uma olhada mais de perto.

       Tornaram a dar outra volta. Nada se moveu e eles subiram para trezentos metros. Erikki pensou por um momento.

       — Azadeh, eu podia pousar no pátio da frente do palácio ou do lado de fora dos muros.

       Imediatamente, Azadeh sacudiu a cabeça.

       — Não, Erikki, você sabe como os guardas estão nervosos, e como ele é sensível a alguém aparecer lá sem ter sido chamado.

       — Mas ele nos chamou, pelo menos a você. Ordenou é uma palavra melhor. Podíamos ir até lá, dar uma volta e olhar, e se estiver tudo bem, nós pousamos.

       — Podíamos pousar bem longe e andar...

       — Nada de andar. Não sem armas. — Ele não tinha conseguido arranjar uma arma em Teerã. Qualquer maldito vândalo tem tantas quantas quiser, pensou irritado. Tenho que arranjar uma. Já não me sinto mais seguro. — Vamos dar uma olhada e depois decidimos. — Ele ligou para a freqüência da torre de Tabriz e chamou. Nenhuma resposta. Tornou a chamar, depois virou e foi para a cidade. Ao passarem sobre a pequena aldeia de Abu Mard, Erikki apontou para baixo e Azadeh viu a escolinha onde passara tantos momentos felizes, a clareira ali perto e lá, ao lado do riacho, o lugar onde ela vira Erikki pela primeira vez e tinha achado que ele era um gigante da floresta e se apaixonara, milagre dos milagres, para ser salva por ele de uma vida de tormentos. Ela estendeu a mão e tocou-o através da pequena janela.

       — Você está bem? Está aquecida? — E sorriu para ela.

        — Oh, sim, Erikki. A aldeia nos deu muita sorte, não? — Ela conservou a mão no ombro dele. O contato agradava a ambos.

       Logo eles puderam ver o aeroporto e a estrada de ferro que ia para o norte, para o Azerbeijão soviético que ficava a poucos quilômetros de distância, e depois até Moscou. A sudeste ela fazia uma curva e voltava a Teerã, que ficava a seiscentos quilômetros de distância. A cidade era grande. Agora eles podiam ver a cidadela e a mesquita azul, as fábricas de aço poluidoras, as cabanas e casas dos seiscentos mil habitantes.

       — Olhem ali! — Parte da estação estava pegando fogo, com a fumaça subindo em ondas. Havia mais incêndios perto da cidadela e nenhuma resposta da torre de Tabriz e nenhuma atividade na pista do aeroporto, embora houvesse alguns pequenos aviões parados lá. Havia um bocado de atividade na base militar, com caminhões e carros indo e vindo, mas pelo que eles podiam ver, não havia tiroteios nem lutas nem multidões nas ruas. Toda a região próxima à mesquita estava estranhamente vazia.

       — Não quero descer muito — ele disse —, não quero tentar nenhum maníaco do gatilho.

       — Você gosta de Tabriz, Erikki? — perguntou Nogger, para disfarçar a inquietação. Ele nunca estivera ali antes.

       — E uma cidade e tanto, velha e sábia, aberta e livre — a mais cosmopolita do Irã. Passei momentos maravilhosos aqui, comida e bebida do mundo todo barata e fácil de encontrar: caviar e vodca da Rússia e salmão defumado da Escócia e uma vez por semana, nos bons tempos, a Air France trazia pão fresco e queijos franceses. Mercadorias turcas e caucasianas, inglesas, americanas, japonesas, qualquer coisa. Ela é famosa pelos seus tapetes, Nogger, e pela beleza das suas mulheres... — Azadeh puxou-lhe a orelha e ele riu. — É verdade, Azadeh, você não é de Tabriz? É uma ótima cidade, Nogger. Eles falam um dialeto do farsi que é mais turco do que qualquer outra coisa. Durante séculos ela tem sido um grande centro comercial, parte iraniano, mas também russo, turco, curdo e armênio, sempre rebelde e independente e sempre desejada pelos cazares e agora pelos soviéticos...

       Aqui e ali grupos de pessoas olhavam para eles.

       — Nogger, você está vendo alguma arma?

       — Muitas, mas ninguém está atirando em nós. Ainda. Cautelosamente, Erikki contornou a cidade e dirigiu-se para leste. Lá, a cidade se elevava em colinas próximas umas das outras e no alto de uma delas ficava o palácio dos Gorgons, com uma estrada que ia até lá. Não havia nenhum trânsito na estrada. No interior dos altos muros, havia muitos acres de terra: pomares, uma fábrica de tapetes, garagens para vinte carros, abrigos para rebanhos de ovelhas durante o inverno, cabanas e acomodações para cerca de cem empregados e guardas, e o enorme edifício principal de cinqüenta cômodos, com a pequena mesquita e o minarete. Alguns carros estavam estacionados perto da entrada principal. Ele fez um círculo a duzentos metros.

       — Que lugar! — disse Nogger Lane, maravilhado.

       — Foi construído para o meu bisavô pelo príncipe Zergeyev, por ordem dos czares Romanovs, Nogger, como um pishkesh — disse distraidamente Azadeh, observando o local. — Foi em 1890, quando os czares já tinham roubado as nossas províncias caucasianas e estavam, mais uma vez, tentando separar o Azerbeijão do Irã e queriam a ajuda dos kans Gorgons. Mas a nossa linhagem foi sempre leal ao Irã, embora tenham procurado manter um certo equilíbrio. — Ela estava observando o palácio lá embaixo. Havia pessoas saindo da casa principal e das outras casas: empregados e guardas armados. — A mesquita foi construída em 1907 para celebrar a assinatura de um novo acordo entre a Rússia e a Inglaterra, a respeito da divisão do nosso território, e algumas esferas de infl... Oh, olhe, Erikki, aqueles não são Najoud e Fazulia e Zadi... e, oh, olhe, Erikki, aquele não é o meu irmão Hakim? O que Hakim está fazendo lá?

       — Onde? Oh, estou vendo. Não, eu não...

       — Talvez... talvez Abdullah Khan o tenha perdoado — ela disse excitadamente. — Oh, isso não seria maravilhoso?

       Erikki olhou para as pessoas lá embaixo. Ele só tinha visto o irmão dela uma vez, no dia do seu casamento, mas tinha gostado muito dele. Abdullah Khan permitira que ele viesse só por esse dia e depois o mandara de volta para Khoi, na parte setentrional do Azerbeijão, perto da fronteira da Turquia, onde tinha grandes negócios de exploração de minério.

       — A única coisa que Hakim sempre desejou foi ir para Paris estudar piano — Azadeh tinha dito a ele. — Mas meu pai não quis ouvi-lo, simplesmente amaldiçoou-o e expulsou-o por traição.

       — Não é Hakim — disse Erikki, pois seus olhos eram muito melhores do que os dela.

      — Oh — Azadeh apertou os olhos por causa do vento. — Oh. — Ela ficou desapontada. — Sim, tem razão, Erikki.

       — Lá está Abdullah Khan! — Não havia nenhuma dúvida sobre o homem imponente e corpulento, com a longa barba, que saíra pela porta principal e parara na escada, com dois guardas armados atrás. Havia dois outros homens com ele. Todos vestiam pesados sobretudos por causa do frio. — Quem são eles?

       — Desconhecidos — ela respondeu, tentando superar a decepção. — Eles não têm armas e não há nenhum mulá, logo não são Faixas Verdes.

       — Eles são europeus — disse Nogger. — Você tem um binóculo, Erikki?

       — Não.

       Erikki parou de circular, desceu para 150 metros e ficou pairando, observando atentamente Abdullah khan. Ele o viu apontar para o helicóptero e depois falar com os outros homens, voltando a observar o helicóptero outra vez. Outras irmãs de Azadeh e pessoas da família, algumas usando chador, bem como alguns empregados, tinham-se juntado, protegendo-se do frio. Erikki desceu mais trinta metros. Ele tirou os óculos escuros e os fones e abriu a janela, perdendo o fôlego quando o ar gelado o atingiu, pôs a cabeça para fora para que o pudessem ver claramente, e acenou. Todos os olhos se voltaram para Abdullah Khan. Depois de uma pausa, o khan acenou de volta. Sem nenhum prazer.

       — Azadeh! Tire os fones e faça a mesma coisa.

       Ela obedeceu na mesma hora. Algumas das suas irmãs acenaram animadamente, falando umas com as outras. Abdullah Khan ignorou-a, apenas esperou. Matyeryebyets, pensou Erikki, depois inclinou-se para fora da cabine e apontou para o amplo espaço ao lado da piscina gelada, em mosaico, que havia no pátio, obviamente pedindo permissão para pousar. Abdullah Khan concordou com a cabeça e apontou para lá, falou brevemente com os guardas, depois virou-se e entrou na casa. Os outros homens o seguiram. Um dos guardas ficou. Ele desceu a escada em direção ao local de pouso, verificando o seu rifle.

       — Nada como um comitê de recepção amigável — resmungou Nogger.

       — Não precisa se preocupar, Nogger — disse Azadeh, com uma risada, nervosa. Eu vou saltar primeiro, Erikki, é mais seguro eu ser a primeira.

       Eles pousaram imediatamente. Azadeh abriu a porta e foi cumprimentar suas irmãs e a madrasta, a terceira esposa de seu pai, que era mais moça do que ela. A primeira mulher, Khanan, tinha a mesma idade que ele, mas agora estava enferma e nunca saía do quarto. Sua segunda mulher, mãe de Azadeh, morrera há muitos anos.

       O guarda interceptou Azadeh. Educadamente. Erikki respirou mais forte. Estava muito longe para ouvir o que eles estavam falando e, de qualquer modo, nem ele nem Nogger falavam farsi ou turco. O guarda fez um sinal em direção ao helicóptero. Ela balançou a cabeça e acenou para eles, chamando-os. Erikki e Nogger completaram o pouso, observando o guarda que os olhava com ar sério.

       — Você detesta armas tanto quanto eu, Erikki? — perguntou Nogger.

       — Mais ainda. Mas pelo menos esse homem sabe usar uma arma. São os amadores que me assustam. — Erikki desligou os motores e guardou a chave da ignição no bolso.

       Eles se dirigiram para onde estavam Azadeh e suas irmãs, mas o guarda ficou no caminho. Azadeh gritou:

       — Ele diz que vocês devem ir para o salão de recepção imediatamente e esperar lá. Sigam-me, por favor.

       Nogger era o último. Uma das bonitas irmãs chamou-lhe a atenção, e ele sorriu consigo mesmo e subiu os degraus de dois em dois.

       O salão de recepção era grande, frio e ventoso e cheirava a mofo, tinha uma pesada mobília vitoriana, muitos tapetes e almofadões e antiquados aquecedores a vapor. Azadeh ajeitou o cabelo num dos espelhos. Suas roupas de esqui eram elegantes e modernas. Abdullah Khan nunca tinha exigido que suas esposas e filhas, ou suas empregadas, usassem o chador, ele não aprovava o chador. Então por que Najoud estava usando um hoje? Ela se perguntou, com o nervosismo aumentando. Um empregado trouxe chá. Eles esperaram meia hora, depois outro guarda chegou e falou com ela. Ela deu um profundo suspiro.

       — Nogger, é para você esperar aqui — disse. — Erikki, eu e você devemos acompanhar este guarda.

       Erikki seguiu-a, tenso mas confiante de que o armistício que ele tinha negociado com Abdullah Khan ainda estivesse valendo. O contato da sua faca pukoh tranqüilizou-o. O guarda abriu uma porta no final do corredor e fez sinal para eles entrarem.

       Abdullah Khan estava recostado em algumas almofadas, reclinado sobre um tapete em frenta à porta, com guardas atrás dele; a sala era luxuosa, vitoriana, formal e, de certa forma, decadente e suja. Os dois homens que eles tinham visto na escada estavam sentados de pernas cruzadas ao seu lado. Um era europeu, um homem grande e conservado, de uns sessenta anos, com ombros fortes e olhos eslavos num rosto amigável. O outro era mais jovem, tinha cerca de trinta anos, com feições asiáticas e pele amarelada. Ambos usavam roupas pesadas de inverno. A cautela de Erikki aumentou enquanto ele esperava na porta que Azadeh fosse até o pai, se ajoelhasse diante dele, beijasse as suas mãos gordas, cheias de anéis, e lhe pedisse a bênção. Impassível, seu pai fez sinal para que ela se afastasse e manteve os olhos fixos em Erikki, que o cumprimentou educadamente da porta mas permaneceu perto dela. Disfarçando a vergonha e o medo, Azadeh tornou a se ajoelhar no tapete e olhou-o. Erikki viu os dois estranhos examinarem-na apreciativamente, e sua temperatura subiu um ponto. O silêncio ficou mais pesado.

       Ao lado do khan, havia um prato de halvah, pequenos quadrados de doces de mel turcos que ele adorava, e ele comeu alguns, brincando com os anéis.

       — Então — disse com dureza — parece que você mata indiscriminadamente como um cachorro louco.

       Os olhos de Erikki estreitaram-se e ele não disse nada.

       — Bem?

       — Se eu mato, não é como um cachorro louco. Quem dizem que eu matei? Um velho no meio de uma multidão perto de Qazvin. Com um golpe de cotovelo, seu peito foi achatado. Há testemunhas. Depois, três homens num carro e um do lado de fora, que era um importante combatente da liberdade. Há mais testemunhas. Mais adiante, cinco mortos e mais feridos durante o resgate do helicóptero. Mais testemunhas. — Houve um outro silêncio. Azadeh não se movera, embora o sangue lhe tivesse fugido do rosto. — Bem?

       — Se existem testemunhas, o senhor deve saber também que nós estávamos pacificamente tentando chegar a Teerã, que não estávamos armados, que fomos atacados por uma multidão e que se não fosse por Charlie Pettikin e Rakoczy, provavelmente estaríamos... Erikki interrompeu-se momentaneamente, notando o olhar repentino trocado entre os dois homens. Então, mais cautelosamente ainda, ele continuou: — Nós estaríamos provavelmente mortos. Nós estávamos desarmados mas Rakoczy não estava, e eles atiraram em nós primeiro.

       Abdullah Khan também notara a mudança nos homens que estavam ao seu lado. Pensativo, ele olhou para Erikki.

       — Rakoczy? O mesmo que atacou a sua base junto com o mulá e os soldados marxistas-islâmicos? O muçulmano soviético?

       — Sim. — Erikki olhou para os dois desconhecidos, com um olhar duro. — O agente da KGB, que dizia vir da Geórgia, de Tbilisi.

       Abdullah Khan sorriu levemente.

       — KGB? Como você sabe?

       — Eu os conheço bem. — Os dois desconhecidos olharam para ele inocentemente. O mais velho tinha um sorriso simpático que gelou Erikki.

       — Este Rakoczy, como foi que ele entrou no helicóptero? — perguntou o khan.

       — Ele capturou Charlie Pettikin na minha base no domingo passado. Pettikin é um dos nossos quatro pilotos e ele tinha vindo a Tabriz para nos apanhar, a mim e Azadeh. A minha embaixada tinha pedido para eu me comunicar com eles a respeito do meu passaporte. Foi no dia em que a maioria dos governos, o meu também, mandou que todos os estrangeiros que não fossem essenciais deixassem o Irã — disse, exagerando com facilidade. — Na segunda-feira, o dia em que saímos daqui, Rakoczy obrigou Pettikin a transportá-lo para Teerã. — Erikki contou rapidamente o que tinha acontecido. — Se ele não tivesse notado a bandeira da Finlândia no teto do carro, nós estaríamos mortos.

       O homem de feições asiáticas riu baixinho.

       — Isso seria uma grande perda, capitão Yokkonen — disse em russo. O homem mais velho, com os olhos eslavos, perguntou num inglês perfeito: — Este Rakoczy, onde ele está agora?

       — Não sei. Em algum lugar em Teerã. Posso perguntar quem são os senhores? — Erikki estava tentando ganhar tempo e não esperava nenhuma resposta. Estava tentando decidir se Rakoczy era amigo ou inimigo desses dois, que eram, obviamente, soviéticos, obviamente da KGB ou da GRU, a polícia secreta das forças armadas.

       — Qual era o primeiro nome dele, por favor? — O homem mais velho perguntou gentilmente.

       — Fedor, como o revolucionário húngaro — Erikki não percebeu nenhuma reação e poderia ter prosseguido, mas era esperto demais para fornecer qualquer informação para a KGB ou a GRU. Azadeh estava ajoelhada no tapete, com as costas retas, imóvel. Suas mãos pousavam no colo, e seus lábios vermelhos contrastavam com a palidez do rosto. De repente ele sentiu muito medo por ela.

       — Você admite ter matado esses homens? — perguntou o khan, e comeu outro doce.

       — Admito ter matado um homem, há um ano e pouco, salvando a sua vida, Alteza, e...

       — E a sua! — disse Abdullah Khan, raivosamente. — Os assassinos o teriam matado também. Foi a Vontade de Deus que nós dois vivêssemos.

       — Eu não comecei o conflito nem o provoquei — Erikki tentava escolher as palavras com inteligência, sentindo-se burro, inseguro e inadequado. — Se eu matei esses outros não foi por minha vontade, mas apenas para proteger sua filha e minha esposa. Nossas vidas estavam em perigo.

       — Ah, você considera que é seu direito matar todas as vezes que considera que sua vida está em perigo?

       Erikki viu o rubor no rosto do khan, e percebeu os dois soviéticos observando-o e lembrou da sua própria herança e das histórias do seu avô sobre os tempos antigos nas Terras do Norte, quando gigantes povoavam a terra e os duendes e demônios não eram apenas um mito, há muito tempo atrás, quando a terra era pura e o mal era o mal e o bem era o bem, e o mal não podia usar nenhuma máscara.

       — Se a vida de Azadeh for ameaçada, ou a minha, eu matarei qualquer um — respondeu.

       Os três homens sentiram um sopro gelado passando por eles. Azadeh ficou apavorada com aquela ameaça e os guardas que não falavam nem russo nem inglês se agitaram, sentindo a violência.

      A veia no meio da testa de Abdullah Khan pulsou.

       — Você irá com este homem — disse sombriamente. — Você irá com este homem e fará o que ele mandar.

       Erikki olhou para o homem de feições asiáticas.

       — O que você quer de mim?

       — Apenas a sua habilidade como piloto, e o 212 — disse o homem, amistosamente, em russo.

       — Sinto muito, mas o 212 está na revisão das mil e quinhentas horas e eu trabalho para a S-G e para a Madeira Iraniana.

       — O 212 está pronto, já foi revisado pelos seus mecânicos e a Madeira Iraniana o emprestou a... a mim.

       — Para fazer o quê?

       — Para voar — disse o homem, irritado. — Você é surdo?

       — Não, mas parece que você é.

       O homem espumou. O homem mais velho sorriu estranhamente. Abdullah Khan virou-se para Azadeh que quase deu um salto de medo.

       — Você, vá apresentar os seus respeitos a Khanan!

       — Sim... sim... papai — gaguejou e se levantou de um salto. Erikki deu um passo para a frente, mas os guardas estavam prontos, um deles apontava para ele e Azadeh disse, quase chorando:

       — Não, Erikki, é... eu... eu devo ir... — E saiu correndo antes que ele pudesse impedi-la.

       O homem com o rosto asiático quebrou o silêncio.

       — Você não tem nada a temer. Nós só precisamos dos seus serviços. Erikki Yokkonen não respondeu, certo de que estava encurralado, que tanto ele quanto Azadeh estavam encurralados e perdidos, e sabendo que, se não houvesse nenhum guarda ali ele teria atacado agora, sem hesitação, teria matado Abdullah Khan e provavelmente os outros dois. Os três homens sabiam disto.

       — Por que o senhor mandou chamar minha mulher, Alteza? — perguntou na mesma voz calma, já sabendo a resposta agora. — O senhor mandou duas mensagens.

       Abdullah Khan disse com um esgar de desprezo:

       — Ela não tem nenhum valor para mim, mas tem para os meus amigos: para trazê-lo de volta e fazê-lo comportar-se. E por Deus e pelo Profeta, você vai se comportar. Você vai fazer o que este homem mandar.

       Um dos guardas fez um pequeno movimento com a metralhadora e o barulho ecoou na sala. O soviético e o homem de feições asiáticas se levantaram.

       — Primeiro a sua faca, por favor.

       — Você pode vir buscá-la. Se realmente a quiser.

       O homem hesitou. Repentinamente, Abdullah Khan deu uma gargalhada. A gargalhada foi cruel e os fez ficar tensos.

       — Deixe a faca com ele. Isto vai tornar a sua vida mais interessante. — Então voltou-se para Erikki: — É aconselhável você ser obediente e se comportar.

       — Seria mais aconselhável deixar-nos partir em paz.

       — Você gostaria de ver o seu co-piloto pendurado pelo dedão do pé agora mesmo? — Os olhos de Erikki apertaram-se ainda mais. O soviético mais velho inclinou-se para cochichar com Abdullah Khan, cujo olhar não se afastou de Erikki. Suas mãos brincavam com a adaga coberta de jóias. Quando o homem terminou de falar, ele balançou a cabeça. — Erikki, você vai dizer ao seu co-piloto que é para ele obedecer enquanto estiver em Tabriz. Nós vamos mandá-lo para a base, mas o seu pequeno helicóptero vai ficar aqui. Por enquanto. — Ele fez sinal para o homem de feições asiáticas sair.

       — Meu nome é Cimtarga, capitão. — O homem não era tão alto quanto Erikki, mas era muito forte, com ombros largos. — Primeiro nós...

       — Cimtarga é o nome de uma montanha, a leste de Samarcanda. Qual é o seu verdadeiro nome? E o seu posto?

       O homem deu de ombros.

       — Meus antepassados andavam com Timur Tamerlão, o Mongol, aquele que gostava de erguer montanhas de crânios. Primeiro nós vamos para a sua base. Vamos de carro. — Passou por ele e abriu a porta, mas Erikki não se moveu, ainda olhando para o khan.

       — Eu verei minha mulher esta noite.

       — Você a verá quando... — Abdullah Khan parou porque o homem mais velho mais uma vez se inclinou e cochichou. Novamente o khan balançou a cabeça, concordando. — Ótimo. Sim, capitão, você a verá esta noite e a cada duas noites. Desde que... — Ele deixou a expressão no ar. Erikki virou-se e saiu.

       Quando a porta se fechou atrás deles, a tensão abandonou a sala. O homem mais velho riu.

       — Alteza, o senhor foi perfeito, perfeito como sempre.

       Abdullah Khan relaxou o ombro esquerdo, incomodado pela dor que sentia na articulação atacada de artrite.

       — Ele vai ser obediente, Petr — disse —, mas só enquanto a minha desobediente e ingrata filha estiver ao meu alcance.

       — Filhas são sempre difíceis — respondeu Petr Oleg Mzytryk. Ele vinha do norte da fronteira, de Tbilisi, Tiflis.

       — Não é assim, Petr. Todas as outras me obedecem e não me causam problemas, mas esta... ela me deixa furioso.

       — Então mande-a embora assim que o finlandês tiver feito o que é preciso. Mande os dois embora. — Os olhos eslavos brilharam na face bondosa e ele acrescentou alegremente: — Se eu fosse trinta anos mais jovem, e ela fosse livre, eu me candidataria a livrá-lo dela.

       — Se você tivesse pedido antes deste louco aparecer, você poderia tê-la com a minha bênção — Abdullah Khan disse com amargura, embora tivesse notado uma esperança oculta, e ocultasse a surpresa, pondo-a de lado para consideração posterior. — Eu me arrependo de tê-la dado a ele. Achei que ela também o levaria à loucura. Arrependo-me do meu juramento diante de Deus de deixá-lo vivo. Foi um momento de fraqueza.

       — Talvez não. É bom ser generoso, às vezes. Ele realmente salvou sua vida.

       — Insha'Allah! Foi um Ato de Deus. Ele foi apenas um instrumento.

       — É claro — Mzytryk disse apaziguadoramente. — É claro.

       — Este homem é um demônio, um demônio ateu que tem sede de sangue. Se não fosse pelos meus guardas, você mesmo viu, nós estaríamos lutando por nossas vidas.

       — Não, não enquanto ela estiver em seu poder para ser manobrada... impropriamente. — Petr sorriu estranhamente.

       — Se Deus quiser, eles logo estarão no inferno — disse o khan, ainda furioso por ter tido que manter Erikki vivo para ajudar Petr Oleg Mzytryk, quando poderia tê-lo entregue ao mujhadin esquerdista e assim livrar-se dele para sempre.

       O mulá Mahmud, um dos líderes em Tabriz da facção mujhadin islâmico-marxista que tinha atacado a base, viera até ele há dois dias e lhe contara o que tinha acontecido na barreira da estrada.

       — Aqui estão os papéis dele como prova — dissera o mulá com truculência. — Dos dois estrangeiros, que devem ser da CIA, e da moça, sua filha. Assim que ele voltar a Tabriz, nós o levaremos diante do komiteh, o julgaremos, o levaremos para Qazvin e o executaremos.

       — Pelo Profeta, vocês não o farão, não enquanto eu não tiver aprovado. — Ele tinha respondido imperiosamente, apanhando os papéis. — Aquele cão danado estrangeiro é casado com a minha filha, não é da CIA, está sob minha proteção até que eu a cancele, e se você tocar num único fio daquele cabelo vermelho ou se meter com ele ou com a base sem minha permissão, eu retirarei todo o meu apoio secreto e nada vai impedir os Faixas Verdes de acabarem com os esquerdistas de Tabriz! Ele será entregue a você quando eu decidir, não você

       — O mulá se retirara aborrecido e Abdullah tinha imediatamente acrescentado Mahmud à sua lista de prioridades. Quando ele examinou com cuidado os papéis e encontrou o passaporte e a identidade de Azadeh e outros documentos, tinha ficado encantado, pois isso lhe dava um poder extra sobre ela e o marido.

       Sim, pensou, olhando para o soviético, ela agora fará qualquer coisa que eu mandar. Qualquer coisa.

       — Seja como Deus quiser, mas ela pode ficar viúva muito em breve.

       — Vamos esperar que não depressa demais! — A gargalhada de Mzytryk foi gostosa e contagiante. — Não antes do marido terminar a sua missão.

       Abdullah Khan estava satisfeito com a presença do homem e com o seu conselho inteligente, e contente por Mzytryk fazer o que tinha que ser feito. Mas eu vou ter que ser um manipulador de fantoches melhor do que nunca, ele pensou, se quiser sobreviver e se quiser que o Azerbeijão sobreviva.

       Por toda a província e em Tabriz a situação agora era muito delicada, com insurreições de vários tipos e facções lutando contra facções, com dezenas de milhares de soldados soviéticos a postos, do outro lado da fronteira. E tanques. E nada entre eles e o golfo para atrapalhá-los. Exceto eu, ele pensou. E uma vez de posse do Azerbeijão — com Teerã indefensável como a história já provou diversas vezes — então o Irã cairá nas mãos deles como a maçã podre que Krushchev previu. Junto com o Irã, o golfo, o petróleo mundial e Ormuz.

       Ele queria urrar de raiva. Maldito xá que não quis ouvir, não quis esperar, não teve o bom senso de esmagar uma rebelião de segunda classe instigada pelos mulás há vinte anos e mandar o aiatolá Khomeini para o inferno como eu aconselhei e pôs em risco o nosso domínio absoluto, inevitável, sobre o mundo inteiro exceto a Rússia, czarista ou soviética — o nosso verdadeiro inimigo.

       Nós estávamos tão perto: os Estados Unidos estavam comendo nas nossas mãos, adulando-nos e empurrando-nos as suas armas mais avançadas, implorando-nos para policiar o golfo e assim dominar os malditos árabes, absorver o seu petróleo, torná-los nossos vassalos assim como os seus malditos parasitas, os xeques sunitas, da Arábia Saudita até Omã. Nós poderíamos ter dominado o Kuwait num dia, o Iraque numa semana os xeques sauditas e dos emirados árabes teriam fugido para o deserto implorando piedade! Nós poderíamos conseguir qualquer tecnologia que quiséssemos, navios, aviões, tanques, armas à vontade, até mesmo a bomba atômica, por Deus! — os nossos reatores alemães teriam feito isso para nós.

       Tão perto de cumprir a vontade de Deus, nós, os xiitas do Irã, com nossa inteligência superior, nossa história milenar, nosso petróleo e nosso domínio do estreito que, no fim, deverá pôr de joelhos todo o Povo da Mão Esquerda. Tão perto de conquistar Jerusalém e Meca, controlar Meca — a mais Santa das Santas.

       Tão perto de nos tornarmos os primeiros sobre a terra, como é nosso direito, mas agora, agora tudo isso está ameaçado e nós temos que começar de novo, e mais uma vez superar os bárbaros satânicos do norte, e tudo por causa de um único homem.

      Insha'Allah!, ele pensou, e isso o acalmou um pouco. Mesmo assim, se Mzytryk não estivesse na sala, ele teria gritado e esbravejado e batido em alguém, em qualquer um. Mas o homem estava aqui e tinha que ser manobrado, os problemas do Azerbeijão tinham que ser contornados, então ele controlou a raiva e meditou sobre a sua próxima jogada. Apanhou o último doce e enfiou-o na boca.

       — Você gostaria de se casar com Azadeh, Petr?

       — Você gostaria de ter-me, eu que sou mais velho do que você, como genro? — O homem disse com uma risada.

       — Se esta fosse a Vontade de Deus — ele respondeu com a quantidade certa de sinceridade e sorriu para si mesmo, pois tinha visto o brilho súbito nos olhos do amigo, rapidamente disfarçado. Então, pensou, você já a deseja tendo-a visto apenas pela primeira vez. E se eu realmente a entregasse a você quando me livrasse do monstro, que vantagem isso me traria? Muitas! Você é qualificado, você é poderoso, politicamente isso seria muito sábio, muito sábio, e você poria algum juízo na cabeça dela e a trataria como ela precisa ser tratada, não como o finlandês, que a trata com mimos. Você seria um instrumento de vingança sobre ela. Há muitas vantagens...

       Há três anos, Petr Oleg Mzytryk tinha tomado posse da imensa propriedade que pertencera a seu pai — também um velho amigo dos Gorgons — perto de Tbilisi, onde, por gerações, os Gorgons também possuíam muitas importantes ligações comerciais. Desde então, Abdullah Khan viera a conhecê-lo intimamente, hospedando-se na propriedade durante suas freqüentes viagens de negócios. Ele tinha achado Petr Oleg, como todos os russos, muito discreto, revelando muito pouco. Mas, ao contrário da maioria, extremamente prestativo e simpático — e mais poderoso do que qualquer soviético que conhecia, um viúvo com uma filha casada, um filho na marinha, netos — e hábitos estranhos. Ele morava sozinho na enorme propriedade, exceto pelos empregados e por uma mulher de uma beleza estranha e cruel, uma russa-eurasiana chamada Vertinskya, de uns trinta e tantos anos, com quem ele só tinha aparecido duas vezes em três anos, quase como se fosse um tesouro particular. Ela parecia ser ao mesmo tempo escrava, prisioneira, companheira de bebida, meretriz, torturadora e gata selvagem.

       — Por que você não a mata e acaba com isso, Petr? — Ele tinha dito um dia em que assistiu a uma violenta discussão e Mzytryk a tinha chicoteado, com a mulher cuspindo e xingando e lutando até que os empregados a levaram embora arrastada.

       — Não... ainda não — dissera Mzytryk, com as mãos trêmulas — ela é... é valiosa demais.

       — Ah, sim, sim, agora eu compreendo — dissera Abdullah Khan, igualmente provocado, sentindo quase a mesma coisa a respeito de Azadeh: a relutância em se livrar de um objeto antes que estivesse realmente acovardado, humilhado e rastejante. E ele se lembrou de como tinha invejado Mzytryk pelo fato de Vertinskya ser amante e não filha, de modo que o ato final de vingança pudesse ser consumado.

       Que Deus amaldiçoe Azadeh, pensou. Amaldiçoe-a porque podia ser a gêmea da mãe que me deu tanto prazer, ela que me faz lembrar constantemente a minha perda, ela e seu maldito irmão, ambos cópias da mãe na aparência e nos modos mas não em qualidade, ela que era como uma huri do Jardim de Deus. Eu pensei que os nossos dois filhos me amassem e respeitassem, mas não, assim que Napthala foi para o paraíso a verdadeira natureza deles se manifestou. Eu sei que Azadeh estava conspirando com o irmão para me matar. Eu não tenho a prova? Oh, Deus, eu gostaria de poder espancá-la como Petr faz com a sua Nêmesis, mas não posso, não posso. Toda vez que eu levanto a mão contra ela, eu vejo a minha bem-amada, maldita Azadeh, que Deus a mande para o inferno...

       — Acalme-se — disse Mzytryk gentilmente.

       — O quê?

       — Você parecia tão perturbado, meu amigo. Não se preocupe, tudo vai dar certo. Você encontrará um meio de exorcizá-la.

       Abdullah Khan balançou a cabeça gravemente.

       — Você me conhece bem demais. — Isso é verdade, ele pensou, pedindo um chá para si mesmo e vodca para Mzytryk, o único homem com quem ele sempre se sentira à vontade.

       Eu me pergunto quem você realmente é, ele pensou, observando-o. Há muitos anos, no tempo do seu pai, quando nos encontrávamos na propriedade, você costumava dizer que estava de licença, mas nunca dizia de licença de quê, eu nunca consegui descobrir, por mais que tentasse. Primeiro, eu achei que fosse do exército soviético, pois uma vez, quando estava bêbado, você me disse que tinha sido comandante de tanques durante a Segunda Guerra Mundial em Se-bastopol, indo até Berlim. Mas então eu mudei de idéia e achei mais provável que você e seu pai fossem da KGB ou da GRU, pois ninguém em toda a URSS se recolhe a uma propriedade dessas na Geórgia, a melhor parte do país, sem ter ligações muito importantes e muita influência. Você diz que está aposentado — aposentado de onde?

       Ao tentar descobrir a extensão do poder de Mzytryk nos primeiros tempos, Abdullah Khan mencionara que uma célula clandestina de comunistas do Tudeh em Tabriz estava planejando assassiná-lo e ele gostaria que a célula fosse destruída. Isto só era verdadeiro em parte, a verdadeira razão era o fato do filho de um homem que ele secretamente odiava e não podia atacar abertamente fazer parte do grupo. Na mesma semana, todas as cabeças dos membros do grupo foram enfiadas em estacas perto da mesquita com um aviso: ASSIM MORRERÃO TODOS OS INIMIGOS DE DEUS. Ele tinha derramado lágrimas fingidas no funeral e rido em particular. O fato de Petr Mzytryk ter poder para eliminar uma das suas próprias células significava que ele tinha mesmo poder. E Abdullah Khan viu também a importância que tinha para eles.

       — Por quanto tempo você vai precisar do finlandês? — perguntou Abdullah.

       — Por algumas semanas.

       — E se os Faixas Verdes o impedirem de voar ou o interceptarem? O soviético deu de ombros.

       — Vamos esperar que ele conclua a missão. Duvido que haja algum sobrevivente — seja ele ou Cimtarga — caso sejam encontrados deste lado da fronteira.

       — Ótimo. Agora voltemos ao que conversávamos antes de sermos interrompidos: você concorda que não haverá apoio ostensivo para os membros do Tudeh aqui, desde que os americanos fiquem de fora e Khomeini não inicie um programa contra eles?

       — O Azerbeijão tem sido sempre um foco de interesse para nós. Sempre dissemos que ele deveria ser um Estado independente. Tem riqueza, poder, minerais e petróleo em quantidade mais do que suficiente para sustentá-lo e... — Mzytryk sorriu — e uma liderança esclarecida. Você poderia levantar esta bandeira, Abdullah. Tenho certeza de que você conseguiria todo o apoio necessário para ser presidente. Com nosso reconhecimento imediato.

       E então eu seria assassinado no dia seguinte enquanto os tanques estivessem entrando pelas fronteiras, o khan disse a si mesmo sem maldade. Oh, não, meu bom amigo, o golfo é uma tentação grande demais até mesmo para você.

       — E uma grande idéia — disse veementemente —, mas eu precisaria de tempo. Enquanto isso eu poderia contar também com o fato dos comunistas do Tudeh virem se voltar contra os insurretos?

       O sorriso de Petr Mzytryk permanceceu o mesmo, mas seu olhar mudou.

       — Seria estranho se o Tudeh atacasse os seus irmãos de criação. O marxismo-islâmico é defendido por muitos intelectuais muçulmanos. Eu ouvi dizer que até você os apoia.

       — Concordo que deve haver um equilíbrio no Azerbeijão. Mas quem mandou os esquerdistas atacarem o campo de aviação? Quem os mandou atacar e incendiar a nossa estação de trem? Quem ordenou que o nosso oleoduto fosse destruído? Obviamente ninguém de bom senso. Ouvi dizer que foi o mulá Mahmud, da mesquita Hajsta. — Ele observou Petr cuidadosamente. — Um dos seus.

       — Eu nunca ouvi falar nele.

       — Ah — Abdullah Khan disse com uma jovialidade fingida, sem acreditar. — Estou contente, Petr, porque ele é um falso mulá, não é nem mesmo um verdadeiro islâmico-marxista, ele é um agitador. Foi ele que invadiu a base de Yokkonen. Infelizmente, ele tem quinhentos combatentes apoiando-o, todos igualmente indisciplinados. E recebe dinheiro de algum lugar. E tem ajudantes como Fedor Rakoczy. O que Rakoczy significa para você?

       — Não muito — disse Petr, imediatamente, com o mesmo sorriso e o mesmo tom de voz, esperto demais para evitar a pergunta. — Ele é um engenheiro mecânico em Astara, na fronteira, um dos nossos conterrâneos muçulmanos que parece ter-se juntado aos mujhadins como um dos Combatentes da Liberdade, sem permissão nem aprovação.

     Petr manteve o rosto impassível, mas por dentro estava praguejando obscenamente, com vontade de gritar: Meu filho, meu filho, você nos traiu? Você foi mandado para espionar, para se infiltrar no meio dos mujhadins e nos manter informados, só isso! E desta vez você foi enviado para tentar recrutar o finlandês, depois para ir para Teerã e organizar os estudantes universitários, não para se aliar a um cão danado de um mulá ou para atacar campos de aviação ou matar uns vagabundos numa estrada. Você enlouqueceu? Seu idiota, e se você fosse ferido e apanhado? Quantas vezes eu lhe disse que eles — e nós — podemos quebrar a resistência de qualquer um no devido tempo e esvaziá-lo dos seus segredos? É burrice se arriscar assim! O finlandês é importante agora, mas não o suficiente para que você desobedeça as ordens, arrisque o seu futuro, o futuro do seu irmão — e o meu!

       Se o filho é suspeito, o pai também é. Se o pai é suspeito, a família também é. Quantas vezes eu lhe disse que a KGB trabalha de acordo com o Livro, destrói aqueles que não obedecem ao Livro, que pensam por si mesmos, que se arriscam e que ultrapassam as instruções.

       — Este Rakoczy não é importante — respondeu com suavidade. Fique calmo, ele ordenou a si mesmo, começando a ladainha: Não há com o que se preocupar. Você sabe segredos demais para ser importunado. Assim como o meu filho. Ele é bom, devem estar enganados sobre ele. Ele foi testado muitas vezes, por você e por outros especialistas. Você está seguro. Você é forte, você tem saúde, e você podia surrar e trepar com aquela lindeza da Azadeh e ainda estuprar Vertinskya no mesmo dia. — O importante é que você é o foco principal do Azerbeijão, meu amigo — ele disse na mesma voz apaziguadora. — Você vai ter todo o apoio de que necessitar e suas opiniões a respeito dos islâmicos-marxistas vão chegar à fonte certa. Você terá o equilíbrio que deseja.

       — Ótimo, conto com isso — disse o khan.

       — Enquanto isso — e Mzytryk voltou ao motivo principal da sua súbita visita —, e quanto ao capitão inglês? Você pode nos ajudar?

       Há dois dias, chegara em sua casa, perto de Tbilisi, um telex altamente secreto, em código, informando-o que o posto secreto da CIA de escuta de radar na face norte de Sabalan fora explodido por sabotadores pouco antes da chegada de grupos simpatizantes locais, que tinham sido enviados para remover todos os livros de código, máquinas cifradas e computadores. "Veja Ivanovitch pessoalmente imediatamente", continuava o telex, usando o nome em código de Abdullah Khan. "Diga-lhe que os sabotadores eram britânicos — um capitão e dois gurkhas — e um agente da CIA chamado Rosemont (nome de código Abu Kurd), guiados por um dos nossos mercenários que foi morto por eles antes de conseguir conduzi-los até a emboscada. Um dos soldados e o agente da CIA foram mortos durante a fuga e acredita-se que os dois sobreviventes estejam indo para o setor de Ivanovitch. Providencie a cooperação dele. Seção 16/a. Acuse recebimento." Seção 16 significava: esta pessoa ou pessoas são inimigos importantes e devem ser interceptados, detidos e trazidos para interrogatório por quaisquer meios que forem necessários. O Va' significava: se isto não puder ser feito, elimine-os sem demora.

       Mzytryk tomou um gole de vodca, esperando.

        — Nós apreciaríamos a sua ajuda.

       — Vocês sempre tiveram a minha ajuda — disse Abdullah. — Mas encontrar dois sabotadores experientes no Azerbeijão, que certamente devem estar disfarçados, é quase impossível. Eles devem ter lugares seguros para se esconder. Há um consulado britânico em Tabriz, e dezenas de rotas pelas montanhas desviando-se daqui. — Ele se levantou e foi até a janela, olhando para fora. Dali ele podia ver o 206 estacionado no pátio, sob guarda. O dia ainda estava sem nuvens. — Se eu estivesse conduzindo esta operação, fingiria estar indo para Tabriz, e em seguida faria a volta e atravessaria o Cáspio. Como foi que eles entraram?

       — Cáspio. Mas a pista deles foi seguida vindo para cá. Dois corpos foram encontrados na neve, e as pegadas dos dois homens se dirigiam para cá.

       O fracasso da missão Sabalan tinha causado acessos de raiva. O fato de haver tanto equipamento secreto da CIA assim tão perto provocara infiltrações e compra de informações durante anos. Nas últimas duas semanas, a informação de que alguns postos de radar tinham sido evacuados mas que não foram destruídos na fuga e no pânico que eles tinham ajudado a espalhar, tinha feito os gaviões se prepararem para avançar imediatamente, com força total. Mzytryk, conselheiro-chefe desta região, aconselhara cautela, que eles usassem grupos locais em lugar de soviéticos, para não entrar em choque com Abdullah Khan — seu contato exclusivo e agente mais importante — para não arriscar um incidente internacional.

       — É totalmente desaconselhável arriscar um confronto — ele tinha dito, mantendo-se dentro do Livro. E do seu plano particular. — O que é que nós ganhamos com uma ação imediata? Se é que não nos forneceram informações erradas e Sabalan não passa de uma grande cilada, o que é provável? Uns poucos livros de código que talvez até já tenhamos. Quanto aos computadores avançados, a nossa operação Zatopek já tem isso nas mãos.

       Esta era uma operação secreta da KGB altamente controvertida e inovadora, que recebera o nome do corredor tcheco, e que fora preparada em 1965. Com uma verba inicial de 10 milhões de dólares, moeda estrangeira tremendamente escassa, a operação Zatopek deveria adquirir um suprimento contínuo da melhor e mais avançada tecnologia ocidental pela simples compra através de uma rede de companhias fictícias e não pelo método convencional e muito caro do roubo e da espionagem.

       "O dinheiro não é nada comparado com os lucros", seu primeiro relatório altamente confidencial para a Central informara quando ele voltou pela primeira vez do Extremo Oriente em 1964. "Há dezenas de milhares de negociantes corruptos e companheiros de viagem que nos venderão o melhor e o mais moderno para ter lucro. Um lucro enorme para um único indivíduo seria uma ninharia para nós — porque economizaremos bilhões em pesquisa e desenvolvimento, que poderemos gastar na nossa Marinha, Força Aérea e Exército. E, igualmente importante, poderemos economizar anos de suor, trabalho e fracasso. A um custo quase inexistente, podemos nos manter a par de tudo o que seus inventores puderem conceber. Uns poucos dólares por baixo da mesa poderão comprar todos os seus tesouros."

       Petr Mzytryk sentiu uma onda de satisfação quando recordou como o seu plano fora aprovado. Embora naturalmente apresentado por seus superiores como sendo idéia deles, da mesma forma que ele o roubara de um dos seus agentes secretos em Hong Kong, um francês chamado Jacques de Ville, do grande conglomerado da Struan's que lhe tinha aberto os olhos: "Não é contra a lei americana despachar produtos com tecnologia avançada para a França ou para a Alemanha Ocidental ou uma dúzia de outros países, e não é contra a lei desses países uma companhia enviá-los para outros países onde não existam leis suíças contra o embarque de mercadorias para a União Soviética. Negócios são negócios, Gregor, e o dinheiro é que faz o mundo girar. Através da própria Struan's, nós poderíamos fornecer-lhe toneladas de equipamentos que os Estados Unidos proibiram que fossem fornecidos aos soviéticos. Nós negociamos com a China — por que não com vocês? Gregor, vocês marinheiros não entendem de negócios..."

       Mzytryk sorriu consigo mesmo. Naquela época ele era conhecido como Gregor Suslev, capitão de um pequeno cargueiro soviético que transitava entre Vladivostok e Hong Kong, o seu disfarce para o trabalho altamente secreto como superintendente do setor da KGB na Ásia.

       Durante os anos que se seguiram a 1964, quando eu propus o esquema pela primeira vez, pensou orgulhosamente, com uma despesa total até agora de 85 milhões de dólares, a operação Zatopek economizou bilhões para a Mãe Rússia e proporcionou um fluxo constante e cada vez maior de instrumentos desenvolvidos pela NASA, pelos japoneses, pelos europeus, maravilhas eletrônicas, hardware, software, planos, robôs, micros, remédios e todo o tipo de mágicas para serem copiadas à vontade — equipamento desenvolvido pelo próprio inimigo e comprado com dinheiro emprestado por eles, que nunca pagaremos. Que idiotas eles são!

        Ele quase riu alto. E o que é mais importante ainda, a operação Zatopek me dá uma liberdade de ação para continuar a operar e agir como eu quiser nesta região, para jogar o Grande Jogo que os estúpidos britânicos deixaram escorregar dos seus dedos.

     Ele observou Abdullah Khan em pé na janela, esperando pacientemente que ele decidisse qual o favor que ia pedir em troca da captura dos sabotadores. Vamos, Gordo Mau, ele pensou com severidade, usando o apelido que secretamente lhe dera, nós dois sabemos que você pode pegar aqueles matyeryebyets se quiser, se eles ainda estiverem no Azerbeijão.

       — Eu farei o que puder — disse Abdullah Khan, ainda de costas para ele, e Mzytryk não disfarçou o sorriso. — Se eu os interceptar, o que faço então, Petr?

       — Comunique a Cimtarga. Ele tomará todas as providências.

       — Muito bem. — Abdullah Khan balançou a cabeça para si mesmo e voltou a sentar-se. — Está combinado, então.

       — Obrigado — disse Petr, muito satisfeito. Uma tal determinação por parte de Abdullah Khan prometia um sucesso rápido.

       — Este mulá de que estávamos falando, Mahmud — disse o Khan —, ele é muito perigoso. E também o seu bando de assassinos. Eu acho que eles são uma ameaça para todo mundo. O Tudeh deveria ser instruído para lidar com eles. Em segredo, é claro.

       Mzytryk imaginou até que ponto Abdullah sabia do seu apoio secreto a Mahmud, um dos seus convertidos melhores e mais fanáticos.

       — Os membros do Tudeh devem ser protegidos, e seus amigos também — Ele viu a súbita onda de irritação, então concordou e acrescentou imediatamente: — Talvez este homem possa ser transferido e substituído. Uma ruptura completa e um fratricídio só ajudariam ao inimigo.

       — Esse mulá é um falso mulá e não é um verdadeiro crente de coisa alguma.

       — Então ele devra partir. Rapidamente. — Petr Mzytryk sorriu Abdullah Khan não.

       — Muito rapidamente, Petr. Permanentemente. E o seu grupo dissolvido O preço era alto, mas a Seção 16/a tinha-lhes dado suficiente autoridade.

       — Por que não rápida e permanentemente, já que você diz que é necessário? Eu concordo em, ahn, passar adiante as suas recomendações. — Mzytryk sorriu e agora Abdullah Khan sorriu também, igualmente satisfeito.

       — Estou feliz por concordarmos, Petr. Torne-se um muçulmano para a salvação da sua alma.

       — No devido tempo — riu Mzytryk. — Enquanto isso, torne-se um comunista para sua satisfação terrena.

       O khan riu, inclinou-se para frente, e tornou a encher o copo de Petr.

       — Eu não posso convencê-lo a ficar por uns dias?

       — Não, mas obrigado. Depois que tivermos comido, acho que vou iniciar a minha viagem de volta. Tenho um bocado de coisas para fazer.

       O khan estava muito satisfeito. Agora eu já posso esquecer aquele incômodo mulá e seu bando, e é uma preocupação a menos. Mas eu me pergunto o que você faria, Petr, se soubesse que os sabotadores que você procura, o seu capitão e o soldado, estão aqui, na minha propriedade, esperando poder sair em segurança? Mas para onde? Para Teerã ou para você? Eu ainda não decidi.

       Oh, eu sabia que você viria implorar a minha ajuda, por que outro motivo eu os mantive em segurança, por que outro motivo eu me encontrei secretamente com eles em Tabriz há dois dias e os trouxe para cá em segredo, senão por sua causa? Talvez. É uma pena que Vien Rosemont tenha sido morto, ele era útil. Mesmo assim, a informação e o aviso contidos no código que ele deu ao capitão para me entregar são mais do que úteis. Ele será difícil de substituir.

       Sim, e também é verdade que quando você recebe um favor você tem que prestar outro. O infiel Erikki é só um deles. Ele tocou uma campainha e quando o criado apareceu, ele disse:

       — Diga a minha filha Azadeh que ela jantará conosco.

      

       EM TEERÃ: 16:17H. Jean-Luc Sessonne bateu com a aldrava de cobre na porta do apartamento de McIver. Ao lado dele estava Sayada Bertolin. Agora que estavam longe da rua e sozinhos, ele agarrou-lhe os seios através do casaco e beijou-a.

       — Prometo que. não vamos demorar, e depois voltamos para a cama!

       — Ótimo — ela riu.

       — Você reservou uma mesa no Clube Francês?

       — É claro. Temos bastante tempo.

       — Sim, chérie..

       Ele estava usando uma grossa e elegante capa de chuva por cima do uniforme de piloto. Seu vôo de Zagros fora tumultuado, ninguém respondia aos seus freqüentes chamados pelo rádio, embora os canais estivessem cheios de vozes excitadas falando em farsi, que ele não falava nem entendia.

       Ele se mantivera na altitude normal e fizera uma aproximação de acordo com os padrões no Aeroporto Internacional de Teerã. Assim mesmo não obteve nenhuma resposta aos seus chamados. A biruta estava cheia e indicava haver um forte vento cruzado. Quatro jumbos estavam no pátio, perto do terminal, junto com outros jatos, um deles uma carcaça queimada. Viu que alguns estavam sendo carregados, cercados por homens, mulheres e crianças demais, sem nenhuma ordem, com as escadas perigosamente apinhadas de gente, e malas e bagagens espalhadas por toda parte. Não viu nenhum policial nem guarda de trânsito, nem do outro lado do terminal onde todas as estradas de acesso estavam entupidas de veículos, formando um enorme engarrafamento. O estacionamento estava lotado, mas havia ainda mais carros tentando entrar e as calçadas estavam cheias de pessoas carregadas de bagagem.

       Jean-Luc agradeceu a Deus por estar voando e não andando e parou no campo próximo de Galeg Morghi, sem problemas. Guardou o 206 no hangar da S-G e conseguiu imediatamente transporte para a cidade, com a ajuda de uma nota de dez dólares. Primeiro parou no escritório de Schlumberger e marcou a viagem de volta para Zagros. Depois foi para o apartamento dela. Sayada estava em casa. Como sempre, a primeira vez depois de estarem separados há tanto tempo foi imediata, impaciente, bruta, egoísta e mutuamente explosiva.

       Ele a conhecera numa festa de Natal em Teerã há um ano, dois meses e três dias atrás. Ele se lembrava daquela noite com todos os detalhes. A sala estava cheia e assim que entrou, ele a percebeu, como se a sala estivesse vazia. Ela estava sozinha, tomando uma bebida, com um vestido branco e transparente.

       —Vous parlez français, madame? — ele tinha perguntado, estonteado com sua beleza.

       — Sinto muito, m'sieur, só umas poucas palavras. Prefiro falar inglês.

       — Então em inglês: estou radiante por tê-la conhecido, mas estou num dilema.

       — Oh? Qual?

       — Gostaria de fazer amor imediatamente.

       — Hein?

       — Você é a personificação de um sonho... — Isso teria soado muito melhor em francês, mas não faz mal, ele tinha pensado. — Eu venho procurando por você a vida inteira e preciso fazer amor com você, você é extremamente desejável.

       — Mas... mas o meu... marido está ali. Eu sou casada.

       — Isto é um empecilho, madame, não um impedimento.

       Ela tinha rido e ele soube que ela seria sua. Só mais uma coisa tornaria tudo perfeito.

       — Você sabe cozinhar?

       — Sim — ela respondera com tanta confiança que ele percebeu que ela seria soberba, que na cama seria divina, e o que ela não soubesse ele poderia ensinar-lhe. Que sorte ela tem por ter-me conhecido, pensou alegremente, e tornou a bater na porta.

       Seus meses juntos tinham voado. O marido dela raramente visitava Teerã. Ele era um banqueiro libanês em Beirute, de ascendência francesa.

       — E portanto civilizado — dissera Jean-Luc com total confiança —, e portanto, evidentemente, ele aprovaria a nossa liaison, chérie, caso venha a descobrir. Ele é muito velho comparado com você, é claro que ele aprovaria.

       — Eu não tenho tanta certeza, chéri, e ele só tem cinqüenta anos e você é...

       — Divino — ele dissera, ajudando-a —, como você. — Para ele, isso era verdade. Ele nunca tinha visto um cabelo e uma pele tão macios, pernas tão longas e uma paixão ardente que era um presente dos céus. — Mon Dieu — ele tinha gemido uma noite, mantido no auge da paixão pela magia dela. — Eu morro nos seus braços.

       Mais tarde, ela o beijara e trouxera-lhe uma toalha quente, voltando para a cama. Isto foi numas férias em Istambul, no outono do ano anterior, e a sensualidade daquela cidade os envolvera.

       Para ela, o caso era excitante, mas não o fim de todos os casos. Ela tinha discutido Jean-Luc com o marido na noite da festa.

       — Ah — ele tinha dito, achando graça —, foi por isso que você quis conhecê-lo!

       — Sim, eu o achei interessante. Embora sendo francês e totalmente egocêntrico como todos eles. Mas ele me excitou, sim, é verdade.

       — Bem, você ficará aqui em Teerã por dois anos, eu não posso ficar mais do que alguns dias por mês; é perigoso demais. E seria uma pena você ficar sozinha toda noite. Não seria?

       — Ah, então eu tenho a sua permissão?

       — Onde está a esposa dele?

       — Na França. Ele fica dois meses no Irã e depois passa um mês com ela.

       — Talvez fosse uma boa idéia, esta ligação. Boa para o seu ânimo, boa para o seu corpo, e boa para o nosso trabalho. E o que é mais importante, desviaria a atenção.

       — Sim, isso também me ocorreu. Eu disse a ele que não falava francês e ele oferece muitas vantagens. Ele é membro do Clube Francês.

       — Ah! Então eu concordo. Ótimo, Sayada. Diga-lhe que eu sou um banqueiro de ascendência francesa, o que em parte é verdade. Meu trisavô não foi soldado de Napoleão na sua caminhada pelo Oriente Médio em direção à índia? Diga ao seu francês que nós somos libaneses de várias gerações, não de poucos anos.

       — Sim, você está sendo esperto, como sempre.

       — Consiga que ele a faça sócia do Clube Francês. Isso seria perfeito! Há um bocado de poder lá. De algum modo, o acordo Irã-Israel tem que ser rompido, de algum modo o xá tem que ser dobrado, de algum modo nós temos que afastar Israel do petróleo do Irã ou o maldito Begin ficará tentado a invadir o Líbano para expulsar os nossos soldados. Com o petróleo iraniano ele conseguiria, e seria o fim de outra civilização. Eu estou cansado de me mudar.

       — Sim, sim, eu concordo...

       Sayada estava muito orgulhosa. Tanta coisa acontecera naquele ano, era inacreditável! No próximo ano, o líder Yasir Arafat estava convidado para vir a Teerã para um encontro triunfal com Khomeini, em agradecimento ao seu apoio à revolução; as exportações de petróleo para Israel tinham sido suspensas, Khomeini, inimigo fanático de Israel estava instalado no poder — e o xá, pró-Israel, tinha sido expulso, coberto de vergonha. Tantos progressos desde que ela conhecera Jean-Luc. Um progresso inacreditável! E ela sabia que tinha ajudado o marido, que ocupava um lugar de destaque na OLP, agindo como mensageira especial, levando e trazendo mensagens e cassetes de Istambul, do Clube Francês em Teerã — oh, quanta intriga fora necessária para convencer os iraquianos a permitirem a ida de Khomeini para a França, onde ele não seria mais amordaçado — e de todos os tipos de lugares, escoltada pelo meu belo amante. Oh, sim, pensou satisfeita, os amigos e contatos de Jean-Luc foram muito úteis. Em breve voltaremos para Gaza e recuperaremos nossas terras, nossas casas, lojas c vinhedos...

       A porta do apartamento de McIver se abriu. Era Charlie Pettikin.

       — Meu Deus, Jean-Luc, que diabo você está fazendo aqui? Olá, Sayada, você está mais linda do que nunca, entrem! — Ele trocou um aperto de mão com Jean-Luc e beijou-a dos dois lados do rosto, sentindo o calor que emanava dela.

       O longo casaco e o capuz a escondiam quase toda. Ela conhecia os perigos de Teerã e se vestia de acordo:

       — Isso poupa tantos problemas, Jean-Luc; eu concordo que é estúpido e arcaico, mas eu não quero ser atacada, nem quero que algum imbecil fique sacudindo o pênis para mim ou se masturbe quando eu passar. Isso aqui não é nem nunca será a França. Concordo que é inacreditável que agora, em Teerã, eu tenha que usar uma espécie de chador para ficar segura, quando, há um mês atrás, isso não era preciso. Diga você o que disser, chéri, a velha Teerã acabou para sempre...

       De certo modo é uma pena, pensou, entrando no apartamento. Ela tinha o que havia de melhor no Ocidente e no Oriente — e o pior. Mas agora, agora eu tenho pena dos iranianos, principalmente das mulheres. Por que será que os muçulmanos, principalmente os xiitas, são tão bitolados e não deixam suas mulheres se vestirem de uma maneira moderna? Será por serem tão reprimidos e maníacos por sexo? Ou por que eles têm medo delas se destacarem? Por que eles não podem ser abertos como nós, palestinos, ou como os egípcios, shargazianos, dubaianos, ou como os indonésios, paquistaneses e tantos outros? Deve ser impotência. Bem, nada vai me impedir de comparecer à Marcha de Protesto das Mulheres. Como Khomeini ousa tentar trair a nós, mulheres, que fomos lutar por ele nas barricadas?

       Estava frio dentro do apartamento, com o aquecimento ainda trabalhando apenas com a metade da potência, e ela conservou o casaco, apenas desabotoou-o para ficar mais confortável, e se sentou num dos sofás. Seu vestido era quente, parisiense, e aberto até a coxa. Os dois homens notaram. Ela estivera ali muitas vezes e achava o apartamento sem vida e desconfortável, embora gostasse muito de Genny.

       — Onde está Genny?

       — Foi para Al Shargaz esta manhã, no 125.

       — Então Mac partiu? — perguntou Jean-Luc.

       — Não, só ela, Mac está...

       — Não acredito! — disse Jean-Luc. — Ela jurou que jamais partiria sem o velho Duncan!

       Pettikin riu.

       — Eu também não acreditava. Mas ela foi que nem um carneirinho. — Há tempo de sobra para contar a Jean-Luc o verdadeiro motivo da sua partida, ele pensou.

       As corsas andaram ruins por aqui?

       — Sim, e estão piorando. Houve muitas outras execuções. — Pettikin achou melhor não mencionar o pai de Xarazade na frente de Sayada. Não havia nenhum motivo para preocupá-la. — Que tal um chá? Eu acabei de preparar Você soube o que aconteceu com a prisão Qasr hoje?

       — O quê?

       — Foi invadida por uma multidão — disse Pettikin, indo até a cozinha buscar mais xícaras. — Eles arrombaram o portão e soltaram todo mundo, e prenderam alguns Savaks e policiais, e agora corre o boato de que os Faixas Verdes organizaram tribunais ilegais e estão enchendo as celas com quem quer que seja e esvaziando-as ainda mais depressa diante de pelotões de fuzilamento.

       Sayada teria dito que a prisão fora libertada e que agora os inimigos da revolução, os inimigos da Palestina, estavam recebendo um castigo justo. Mas ficou calada e escutou atentamente enquanto Pettikin prosseguia:

       — Mac foi cedo com Genny para o aeroporto, depois para o Ministério, depois vem para cá. Ele deve chegar logo. Como estava o trânsito no aeroporto, Jean-Luc?

       — Com quilômetros de engarrafamento.

       — O velho mandou o 125 ficar em Al Shargaz umas duas semanas para tirar todo o nosso pessoal, se for necessário, ou para trazer novas turmas.

       — Ótimo. Scot Gavallan já está com a licença vencida, e também alguns mecânicos. O 125 pode conseguir uma autorização para parar em Shiraz?

       — Vamos tentar na próxima semana. Khomeini e Bazargan querem que a produção de petróleo volte a ser feita com força total, por isso nós achamos que eles vão cooperar.

       — Vocês vão conseguir trazer turmas novas, Charlie? — disse Sayada, perguntando-se se um 125 britânico deveria ter licença para operar tão livremente. Malditos britânicos, sempre sendo coniventes.

       — Esse é o plano, Sayada. — Pettikin despejou mais água fervendo no bule e não notou a careta no rosto de Jean-Luc. — A embaixada britânica nos mandou evacuar todo o pessoal que não fosse essencial. Nós já retiramos algum pessoal supérfluo, e Genny, e Johnny Hogg foi apanhar Manuela Starke em Kowiss.

       — Manuela está em Kowiss? — Sayada estava tão surpresa quanto Jean-Luc.

       Pettikin contou-lhes que ela tinha chegado e que McIver a mandara para lá

       — Tem tanta coisa acontecendo que é difícil se manter a par de tudo. O que você está fazendo aqui e como vão as coisas em Zagros? Vocês vão ficar para jantar? Quem cozinha esta noite sou eu — Jean-Luc disfarçou o seu horror.

       — Sinto muito, mon vieux, hoje é impossível. Quanto a Zagros, lá as coisas estão perfeitas, como sempre; afinal, é o setor francês. Eu estou aqui para apanhar o pessoal da Schlumberger. Volto amanhã de madrugada e terei que trazê-los de volta dentro de dois dias. Como poderia resistir a esse vôo extra? — Ele sorriu para Sayada e ela lhe devolveu o sorriso. — Na verdade, Charlie, estou com um fim-de-semana vencido há muito tempo. Onde está Tom Lochart? Quando ele vai voltar para Zagros?

       Pettikin sentiu o estômago revirar. Desde que eles receberam a chamada de Rudi Lutz da torre de Abadan há três dias, comunicando que o HBC fora derrubado ao tentar atravessar a fronteira e que Tom Lochart estava "de volta da licença", eles não tinham obtido mais nenhuma informação, exceto uma chamada formal, feita através de Kowiss, dizendo que Lochart estava voltando a Teerã por terra. Ainda não houvera nenhum inquérito oficial a respeito do seqüestro.

       Gostaria muito que Tom estivesse de volta, pensou Pettikin. Se Sayada não estivesse aqui, eu contaria tudo a Jean-Luc, ele é mais amigo de Tom do que eu, mas eu não sei quanto a Sayada. Afinal, ela não faz parte da família, ela trabalha para os kuwaitianos, e este negócio do HBC pode ser considerado como traição.

       Distraidamente, ele encheu uma xícara e entregou a Sayada, e serviu outra para Jean-Luc, de chá quente, preto, com açúcar e leite de cabra que nenhum deles gostava, mas aceitaram por delicadeza.

       — Tom fez o que tinha de fazer — disse cautelosamente, fazendo isso parecer sem importância. — Ele partiu anteontem de Bandar Delam, por terra. Deus sabe quanto tempo ele vai levar para chegar, mas já devia ter chegado ontem à noite. Facilmente. Esperemos que chegue hoje.

       — Isso seria perfeito — disse Jean-Luc. — Então ele poderia levar o grupo da Schlumberger para Zagros e eu tiraria alguns dias de licença.

       — Você acabou de ter uma licença. E está no comando.

       — Bem, pelo menos ele pode voltar comigo, assumir a base e eu volto para cá no domingo. — Jean-Luc sorriu para Sayada. — Voilà, está tudo arranjado. — Sem perceber, ele tomou um gole do chá e quase engasgou. — Mon Dieu, Charlie, eu o amo como a um irmão, mas isso é merde.

       Sayada riu e Pettikin o invejou. De qualquer modo, pensou, com o coração disparando, o vôo da Alitalia de Paula deve estar voltando a qualquer momento... o que eu não daria para que os seus olhos se iluminassem por mim como os de Sayada pelo M'sieur Sedução.

       É melhor ir com calma, Charlie Pettikin. Você poderia fazer papel de idiota. Ela tem 29 anos, você tem 56, e só conversou com ela umas poucas vezes. Sim. Mas ela me excita mais do que eu me lembro de ter-me sentido excitado há anos e agora eu posso entender por que Tom Lochart se apaixonou por Xarazade.

       A campainha do transmissor-receptor de alta freqüência que estava na mesinha começou a tocar. Ele se levantou e aumentou o volume.

       — QG de Teerã, vá em frente!

       — Aqui é o capitão Ayre em Kowiss para o capitão McIver. Urgente. — A voz estava baixa e acompanhada de estática.

       — Aqui é o capitão Pettikin, o capitão McIver não está aqui no momento. Você está em dois por cinco. — Era uma medida, de um a cinco, relativa à força do sinal. — Posso ajudar?

       — Alerta Um. Jean-Luc resmungou.

       — O que há entre Freddy e você? Capitão Ayre e capitão Pettikin?

       — É apenas um código — disse Pettikin, distraidamente, olhando para o aparelho, e a atenção de Sayada aumentou. — Está apenas sendo desenvolvido e significa que alguém está presente ou está ouvindo, alguém que não deveria estar. Um inimigo. Respondendo com a mesma formalidade, você dá a entender que compreendeu a mensagem.

       — Isso é muito inteligente — disse Sayada. — Vocês têm muitos códigos, Charlie?

       — Não, mas estou começando a desejar que tivéssemos. É horrível não saber o que está acontecendo na realidade. Nenhum contato direto, nenhuma correspondência, nem telefones e o telex uma droga com tantos malucos armados se metendo conosco. Por que eles não entregam as armas e nos deixam viver em paz?

       O HF zumbia sem parar. Lá fora, o dia estava nublado e feio, com as nuvens prometendo mais neve, e a luz do cair da tarde fazia os telhados e até as montanhas parecerem sem vida. Eles esperaram impacientemente.

       — Aqui é o capitão Ayre de Kowiss... — Mais uma vez a voz estava acompanhada de estática e eles tiveram que se concentrar para poder ouvir. — ...primeiro vou transmitir uma mensagem recebida de Zagros Três há poucos minutos atrás, do capitão Gavallan. — Jean-luc ficou tenso. — A mensagem dizia exatamente: "Pan pan pan" — o sinal de socorro da aviação aérea internacional que vinha logo abaixo de Mayday. — "Acabei de ser informado pelo komiteh local que não somos mais persona grata em Zagros e que devemos evacuar da área todos os estrangeiros das nossas plataformas, dentro de 48 horas, senão... Solicito instruções imediatas". Fim da mensagem. Você anotou?

       — Sim — disse Pettikin, apressadamente, rabiscando algumas anotações.

       — Isso foi tudo o que ele disse, mas pareceu perturbado.

       — Vou informar ao capitão McIver e chamá-lo de volta o mais depressa possível. — Jean-Luc inclinou-se para a frente e Pettikin deixou que ele tomasse o microfone.

       — Aqui é Jean-Luc, Freddy, por favor comunique-se com Scot e diga a ele que estarei de volta, conforme o planejado, amanhã, antes do meio-dia. Foi bom falar com você, obrigado. Charlie vai falar. — E devolveu o microfone, tendo perdido todo o bom humor.

       — Farei isso, capitão Sessonne. Foi bom falar com você. Outra coisa: o 125 recolheu o nosso pessoal bem como a sra. Starke, inclusive o capitão Jon Tyrer que tinha sido ferido num contra-ataque mal sucedido de grupos de esquerda, em Bandar Delam...

       — Que ataque? — murmurou Jean-Luc.

       — E a primeira vez que ouço falar nisso. — Pettikin ficou tão perturbado quanto ele.

       — ...e, de acordo com o planejado, trará de volta equipes de substituição dentro de poucos dias. Outra coisa: o capitão Starke... — Todos eles perceberam a hesitação e a ansiedade, e a transmissão curiosamente artificial, como se a informação estivesse sendo lida: — O capitão Starke foi levado para Kowiss para ser interrogado por um komiteh ...— Os dois homens prenderam a respiração. — ...para esclarecer fatos relativos a uma fuga em massa num helicóptero, de oficiais da Força Aérea, pró-xá, de Isfahan, no dia 13, terça-feira passada, que se acredita estivesse sendo pilotado por um europeu. E mais: as operações aéreas continuam a melhorar sob a estrita supervisão da nova gerência. O sr. Esvandiary agora é o nosso novo gerente de área da IranOil e quer que assumamos todos os contratos da Guerney. Para fazer isso, precisaríamos de mais três 212 e um 206. Por favor, envie instruções. Nós precisamos de peças de reposição para HBN, HGX e HKJ, e de dinheiro para pagamento de salários atrasados. Isso é tudo, por enquanto.

       Pettikin continuou a escrever, com o cérebro mal funcionando.

       — Eu, ahn, anotei tudo e vou informar ao capitão McIver assim que ele voltar. Você disse, ahn, você disse "um ataque em Bandar Delam". Por favor, informe os detalhes.

       Só se ouvia o barulho da estática. Eles esperaram. Então mais uma vez ouviu-se a voz de Ayre, agora não mais artificial:

       — A única informação que tenho é que houve um ataque anti-aiatolá Khomeini, que o capitão Starke e o capitão Lutz ajudaram a sufocar. Depois, o capitão Starke trouxe os feridos para cá para tratamento. Do nosso pessoal, só Tyrer foi ferido. Isso é tudo.

       Pettikin sentiu um filete de suor no rosto e enxugou-o.

       — O que... o que aconteceu com Tyrer? Silêncio. Então:

       — Um ligeiro ferimento na cabeça. O dr. Nutt diz que ele vai ficar bom.

       — Charlie, pergunte a ele o que significa isso sobre Isfahan — disse Jean-Luc.

       Como num sonho, Pettikin viu os seus dedos apertarem o botão de transmissão.

       — O que significa isso sobre Isfahan? Eles esperaram em silêncio. Então:

       — Não possuo nenhuma outra informação além da que dei a vocês.

       — Tem alguém dizendo-lhe o que falar — murmurou Jean-Luc. Pettikin apertou o botão de transmissão, depois mudou de idéia. Havia tanta coisa a perguntar que Ayre não poderia responder.

       — Obrigado, capitão — ele disse, satisfeito de que sua voz soasse mais firme. — Por favor, peça a 'Pé-quente' para enviar por escrito o seu pedido de helicópteros extras, sugerindo a duração do contrato e o plano de pagamento. Mande pelo 125 quando ele for levar o pessoal substituto. Mantenha-nos... mantenha-nos informados a respeito do capitão Starke. McIver se comunicará com você o mais cedo possível.

        — Entendido. Desligo.

       Agora só havia estática. Pettikin mexeu nos botões. Os dois homens olharam um para o outro, sem se lembrarem de Sayada, que ficou sentada, quieta, no sofá, sem perder nada.

       — Estrita supervisão? Isso parece mau, Jean-Luc.

       — Sim. Provavelmente significa que eles têm que voar com Faixas Verdes armados. — Jean-Luc praguejou, com o pensamento em Zagros e em como o jovem Scot reagiria sem a sua liderança. — Merde! Quando eu parti, hoje de manhã, estava tudo ótimo, com a torre de Shiraz tão prestativa quanto um hoteleiro suíço fora da estação. Merde!

       Pettikin lembrou-se subitamente de Rakoczy e de como ele estivera perto de um desastre. Por um segundo, pensou em contar a Jean-Luc, depois resolveu não fazê-lo. Notícias velhas!

       — Talvez devêssemos contatar o controle de Shiraz para pedir ajuda?

       — Mac pode ter alguma idéia. Mon Dieu, as coisas também não parecem boas para o lado de Duke: esses komitehs estão se espalhando como praga. É melhor Bazargan e Khomeini lidarem com eles depressa, antes que sejam engolidos. — Jean-Luc levantou-se, muito preocupado, e espreguiçou-se, então viu Sayada enroscada no sofá, com sua xícara de chá intacta na mesinha ao lado e sorrindo para ele.

       Imediatamente, o seu bom humor voltou. Não há nada mais que eu possa fazer pelo jovem Scot no momento, ou por Duke, mas há algo que posso fazer por Sayada.

       — Sinto muito, chérie, disse com um sorriso. — Você está vendo, sempre acontecem problemas em Zagros quando eu não estou lá. Charlie, nós vamos agora. Eu tenho que dar uma olhada no apartamento, mas voltamos aqui antes do jantar. Digamos às oito horas; nessa altura Mac já deve ter chegado, não?

       — Sim. Vocês não querem um drinque? Sinto muito, mas não temos vinho. Uísque? — Ele ofereceu meio sem vontade, porque era a última garrafa.

       — Não, obrigado, mon vieux. —Jean-Luc vestiu o casaco, certificou-se no espelho de que estava tão elegante como sempre, e pensou nos caixotes de vinho e nas latas de queijo que tivera o bom senso de mandar a esposa estocar no apartamento. — À bientôt, vou trazer-lhes uma garrafa de vinho.

       — Charlie — disse Sayada, controlando-se cuidadosamente, como vinha fazendo desde que o HF começou a se manifestar —, o que Scotty quis dizer a respeito de uma fuga de helicóptero?

       Pettikin deu de ombros.

       — Há todo o tipo de boatos a respeito de fugas, por terra, mar e ar. E sempre dizem que os 'europeus' estão envolvidos — ele respondeu, esperando parecer convincente. — Nós levamos a culpa de tudo.

       E por que não?, vocês são responsáveis, pensou Sayada Bertolin, sem malícia. Politicamente, ela estava encantada por vê-los suando. Pessoalmente, não. Ela gostava dos dois e da maioria dos pilotos, especialmente de Jean-Luc, que lhe dava enorme prazer e sempre a divertia. Eu tenho sorte em ser palestina, disse a si mesma, e cristã copta, de uma linhagem antiga. Isso me dá forças que eles não têm, a consciência de uma herança que remonta aos tempos bíblicos, uma compreensão da vida que eles nunca poderiam alcançar, bem como a capacidade de dissociar política de amizade e cama — enquanto for necessário e prudente. Nós não tivemos trinta séculos de treinamento de sobrevivência? Gaza não existe há três mil anos?

       — Existe um boato de que Bakhtiar fugiu do país e foi para Paris.

       — Eu não acredito nisso, Charlie — disse Sayada. — Mas há outro boato em que acredito — acrescentou, notando que ele não tinha respondido à sua pergunta sobre o helicóptero de Isfahan. — Parece que o general Valik e sua família fugiram para se juntar aos outros sócios em Londres. Parece que eles ficaram com milhões de dólares.

       — Sócios? — Jean-Luc disse desdenhosamente. — Ladrões, todos eles, seja aqui ou em Londres, a cada ano que passa ficam piores.

       — Nem todos são assim tão maus — disse Pettikin.

       — Aqueles crétins roubam o suor da nossa testa, Sayada. Eu estou estarrecido com o velho Gavallan por tê-los deixado fazer isso — retrucou Jean-Luc.

       — Deixe disso, Jean-Luc — disse Pettikin. — Ele os enfrenta passo a passo.

       — Passo a passo do nosso caminho, meu velho. Somos nós que pilotamos, não ele. Quanto a Valik... — Jean-Luc deu de ombros com um exagero gaulês. — Se eu fosse um iraniano rico, teria partido há meses atrás, com tudo que pudesse juntar. Há meses já era óbvio que o xá perdera o controle da situação. Agora é a Revolução Francesa e o Terror se repetindo de novo, mas sem o nosso estilo, inteligência, civilização ou educação. — Ele sacudiu a cabeça, desgostoso. — Que desperdício! Quando se pensa em todos os séculos de ensinamentos e riqueza que nós, franceses, empregamos tentando ajudar este povo a sair da Idade Média, e o que foi que eles aprenderam? Nem mesmo a fazer um pão decente.

       Sayada riu e, ficando na ponta dos pés, beijou-o.

       — Ah, Jean-Luc, eu amo você e a sua segurança. Agora, mon vieux, temos que ir, você tem um monte de coisas para fazer.

       Depois que eles saíram, Pettikin foi até a janela e olhou para os telhados lá fora. Havia os inevitáveis tiroteios esporádicos e um pouco de fumaça perto de Jaleh. Não era um incêndio grande. Uma brisa gelada espalhava a fumaça. As nuvens cobriam as montanhas. O frio que vinha da janela era muito forte; gelo e neve cobriam o parapeito. Na rua, lá embaixo, havia muitos Faixas Verdes. A pé ou de caminhão. Então, de todos os minaretes, os muezins começaram a chamar para a oração da tarde. Os chamados pareciam cercá-lo.

       Subitamente, ele se encheu de horror.

      

       NO MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA: 17:04H. Duncan McIver estava sentado, exausto, numa cadeira de madeira num canto da ante-sala lotada do ministro. Estava com frio e com fome e muito irritado. Seu relógio mostrou-lhe que esperava há quase três horas.

       Havia uns 12 homens espalhados pela sala, iranianos, franceses, americanos, ingleses e um kuwaitiano usando um galabia — um longo camisolão árabe — e um turbante. Há alguns minutos atrás, os europeus tinham parado educadamente de conversar, uma vez que, em resposta aos chamados dos muezins, que ainda soavam através das altas janelas, os muçulmanos tinham-se ajoelhado, de frente para Meca, para fazerem a oração da tarde. Esta foi curta e terminou logo e mais uma vez a conversa recomeçou, superficial. Não era conveniente discutir nada de importante num escritório do governo, principalmente agora. A sala era arejada e o ar estava gelado. Todos usavam seus sobretudos, todos igualmente cansados, alguns estóicos, a maioria com ódio, pois todos, como McIver, tinham hora marcada para muito antes.

       — Insha'Allah, ele murmurou, mas isso não o ajudou.

       Com um pouco de sorte, Gen já estará em Al Shargaz, pensou. Estou muito feliz dela estar fora daqui, e muito feliz por ela ter concordado por si mesma:

       — Sou eu que tenho que falar com Andy. Não se pode pôr nada por escrito.

       — Isso é verdade — ele tinha dito, apesar das suas dúvidas, acrescentando relutantemente: — Talvez Andy consiga fazer um plano que possamos realizar. Mas que não tenhamos que fazê-lo. É perigoso demais. Há rapazes e aviões demais espalhados por aí. É perigoso demais. Gen, você se esquece que nós não estamos em guerra apesar de estarmos no meio de uma.

       — Sim, Duncan, mas não temos nada a perder.

       — Podemos perder vidas, bem como aparelhos.

       — Nós só vamos ver se é exeqüível, não é, Duncan?

       A velha Gen é sem dúvida a melhor mensageira que poderíamos ter — se realmente precisássemos de uma. Ela está certa, é perigoso demais escrever isto numa carta: "Andy, a única maneira de sairmos desta confusão é ver se podemos organizar um plano para retirar todos os nossos aparelhos e peças, que estão atualmente sob registro iraniano e que, tecnicamente, são propriedade de uma companhia iraniana chamada CHI..."

       — Cristo! Isso é conspiração!

       — Partir não é a solução. Nós temos que ficar e trabalhar e pegar o nosso dinheiro quando os bancos abrirem. De algum modo, eu tenho que convencer os sócios a ajudar — ou talvez este ministro possa nos dar uma ajuda. Se ele ajudar, não importa o quanto isso custe, nós poderíamos esperar a tempestade passar aqui mesmo. Qualquer governo precisa de ajuda para extrair o seu petróleo, eles têm que ter helicópteros e nós vamos conseguir o nosso dinheiro...

       Ele levantou os olhos quando a porta se abriu e um funcionário fez sinal para alguém entrar no gabinete. Pelo nome. Não parecia haver nenhuma lógica no modo das pessoas serem recebidas. Mesmo no tempo do xá, não era nunca por ordem de chegada. Era somente por influência. Ou dinheiro.

        Talbot, da embaixada britânica, tinha conseguido o encontro para ele com o assessor do ministro e tinha-lhe dado uma carta de apresentação.

       — Sinto muito, meu velho, nem mesmo eu consigo falar com o primeiro-ministro, mas Antazam é uma boa pessoa, fala bem inglês. Não é um desses birutas revolucionários. Ele vai atendê-lo.

       McIver tinha voltado do aeroporto pouco antes do almoço e estacionara o mais perto possível dos escritórios do governo. Ao apresentar a carta, em inglês e em farsi, para o guarda da porta principal, ainda com bastante antecedência, o homem o mandara falar com outro guarda, num outro edifício, e depois de mais interrogatórios, para este edifício e de escritório em escritório, até que ele tinha chegado ali, uma hora atrasado e fumegando de raiva.

       — Ah, não se preocupe, aga, o senhor tem muito tempo — dissera o funcionário da recepção, amavelmente, para seu alívio em bom inglês, e devolvera-lhe o envelope contendo a carta de apresentação. — Este é o escritório certo. Por favor, entre por aquela porta e sente-se na ante-sala. O ministro Kia vai vê-lo o mais breve possível.

       — Eu não quero vê-lo! — McIver explodira. — O meu encontro é com o ministro Antazam!

       — Ah, ministro Antazam, sim, aga, mas ele não faz mais parte do gabinete do primeiro-ministro Bazargan. Insha'Allah — disse o jovem, agradavelmente. — O ministro Kia lida com tudo o que diz respeito a, ahn, estrangeiros, finanças e aviões.

       — Mas eu insisto... — McIver parou quando atentou para o nome e se lembrou do que Talbot dissera sobre Kia e de como os sócios restantes da CHI tinham plantado esse homem no conselho em troca de uma enorme soma e nenhuma garantia de assistência. — Ministro Ali Kia?

       — Sim, aga, o ministro Ali Kia vai recebê-lo o mais breve possível. — O recepcionista era um jovem simpático, bem vestido, com um terno, camisa branca e gravata azul, exatamente como nos velhos tempos. McIver tivera a idéia de colocar um pishkesh de 5.000 riais no envelope junto com a apresentação, exatamente como nos velhos tempos. O dinheiro tinha desaparecido.

       Talvez as coisas estejam mesmo voltando ao normal, pensou McIver. Ele entrou na outra sala e sentou-se num canto e começou a esperar. No seu bolso havia um outro maço de notas e ele imaginou se deveria tornar a encher o envelope com a quantia certa. Por que não?, pensou, nós estamos no Irã, funcionários sem importância precisam de quantias sem importância, funcionários graduados precisam de dinheiro grosso — perdão, pishkesh. Certificando-se de que não estava sendo observado, colocou algumas notas altas no envelope, depois acrescentou mais algumas por segurança. Talvez esse idiota possa realmente ajudar-nos — os sócios costumavam ter a corte nas mãos, talvez tenham feito o mesmo com Bazargan.

       De vez em quando, funcionários apressados passavam com um ar de importância pela ante-sala, com papéis nas mãos, e tornavam a sair. Ocasionalmente, um dos homens que estava esperando era gentilmente convidado a entrar. Sem exceção, eles ficavam lá dentro apenas por poucos minutos e saíam com o rosto pálido, ou vermelho, furiosos, e obviamente de mãos vazias. Aqueles que ainda estavam esperando iam se sentindo cada vez mais frustrados. O tempo passava muito devagar.

       — Aga McIver! — A porta do gabinete estava aberta e um funcionário fazia sinal para ele entrar.

       Ali Kia estava sentado atrás de uma enorme escrivaninha, sem nenhum papel em cima. Tinha um sorriso nos lábios, mas seus olhos eram pequenos e duros e McIver não gostou dele instintivamente.

       — Ah, ministro, quanta gentileza em receber-me — disse McIver, forçando o bom humor e oferecendo-lhe a mão. Ali Kia sorriu educadamente e estendeu-lhe uma mão flácida.

       — Por favor, sente-se, sr. McIver. Obrigado por vir ver-me. O senhor tem uma apresentação, eu creio.

       O seu inglês era bom, com um sotaque de Oxford, onde ele freqüentara a universidade, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, com uma bolsa dada pelo xá, ficando lá durante toda a guerra. Ele fez um aceno de mão cansado para o funcionário que estava ao lado da porta. O homem saiu.

       — Sim, ahn, era para o ministro Antazam, mas percebo que deveria ser dirigida ao senhor. — McIver entregou-lhe o envelope. Kia tirou a carta, verificou a quantia que havia no envelope, atirou displicentemente o envelope em cima da mesa para mostrar que mais dinheiro seria bem-vindo, leu a nota manuscrita com cuidado, depois colocou-a na sua frente.

       — O sr. Talbot é um honrado amigo do Irã, embora seja representante de um governo hostil — disse Kia, com voz suave. — Que ajuda posso dar ao amigo de uma pessoa tão honrada?

       — Há três coisas, ministro. Mas talvez eu tenha permissão para dizer o quanto estamos felizes na S-G pelo senhor ter concordado em nos conceder o benefício da sua valiosa experiência, juntando-se ao nosso conselho.

       — Meu primo foi muito insistente. Duvido que eu possa ajudar, mas seja como Deus quiser.

       — Seja como Deus quiser. — McIver o observava cuidadosamente, tentando compreendê-lo, e não conseguiu explicar o seu desagrado imediato, que teve muito trabalho para esconder. — Primeiro, existe um boato de que todas as joint ventures estão suspensas, dependendo de uma decisão do Komiteh Revolucionário.

       — Dependendo de uma decisão do governo — Kia corrigiu-o secamente. — E daí?

       — Como isto afetará a nossa sociedade, a CHI?

       — Eu duvido que a afete de algum modo, sr. McIver. O Irã precisa dos helicópteros para a produção de petróleo. A Guerney Aviation fugiu. Parece que o futuro da sua companhia promete ser melhor do que nunca.

       McIver disse cautelosamente:

       — Mas há muitos meses que não somos pagos por serviços prestados no Irã. Temos feito todos os pagamentos de leasing das aeronaves com dinheiro de Aberdeen e estamos com os aparelhos sobrecarregados em relação à quantidade de trabalho que temos para fazer.

       — Amanhã os bancos... o Banco Central deve abrir. Por ordem do primeiro-ministro. E do aiatolá, é claro. Uma parte do dinheiro devido será paga, tenho certeza.

       — O senhor poderia nos dar uma idéia de quanto podemos esperar, ministro? — McIver sentiu-se mais esperançoso.

       — Mais do que o suficiente para... para continuar com as operações. Eu já providenciei para que o senhor retire as suas turmas, uma vez que os substitutos estejam aqui. — Ali Kia tirou uma pasta fina de uma gaveta e entregou-lhe um papel. Era uma ordem dirigida ao Serviço de Imigração dos aeroportos de Teerã, Abadan e Shiraz, para permitir a saída de pilotos e mecânicos da CHI à medida que outros fossem chegando. A ordem estava mal datilografada mas era legível, em farsi e em inglês, e estava assinada em nome do komiteh responsável pela IranOil e datada da véspera. McIver nunca tinha ouvido falar nele.

       — Obrigado. Posso pedir também a sua autorização para que o 125 faça ao menos três viagens por semana nas próximas semanas? É claro que só até que os seus aeroportos internacionais voltem ao normal, para trazer turmas, peças, equipamentos, peças de substituição, e assim por diante, e — ele acrescentou com naturalidade —, para retirar pessoal supérfluo.

       — Poderia ser possível aprovar isso — disse Kia. McIver estendeu-lhe o bolo de papéis.

       — Eu tomei a liberdade de colocar isso por escrito, para poupar-lhe o trabalho, ministro, com cópias dirigidas ao Controle de Tráfego Aéreo de Kish, Kowiss, Shiraz, Abadan e Teerã.

       Kia leu cuidadosamente a primeira cópia. Estava escrita em farsi e em inglês, de uma forma simples e direta, com as formalidades corretas. Seus dedos tremiam. Assiná-las seria ir muito além da sua autoridade, mas agora que o assistente do primeiro-ministro caíra em desgraça, bem como o seu próprio superior — ambos aparentemente destituídos pelo ainda misterioso Komiteh Revolucionário — e com o caos cada vez maior no governo, ele sabia que tinha que assumir o risco. A necessidade absoluta que tinha de que ele, sua família, e seus amigos tivessem acesso imediato a um avião particular, especialmente um jato, compensava o risco.

       Eu posso sempre alegar que o meu superior mandou que eu assinasse, pensou, mantendo o nervoso longe do rosto e dos olhos. O 125 é um presente de Deus — no caso de serem espalhadas mentiras contra mim. Maldito Jared Bakravan! A minha amizade com o cão do bazar quase me envolveu na sua traição contra o Estado; eu nunca emprestei dinheiro na minha vida, nem me meti em conspirações com estrangeiros, nem apoiei o xá.

       Para manter McIver na incerteza, ele atirou os papéis ao lado da carta de apresentação, quase com raiva.

       — Isso poderia ser aprovado. Haveria uma taxa de 500 dólares por pouso. Isso era tudo, sr. McIver? — perguntou, sabendo que não. Seu inglês cínico! Você acha que pode me enganar?

       — Só mais uma coisa, Excelência — McIver entregou-lhe o último papel. — Nós temos três aparelhos que precisam desesperadamente de manutenção e reparos. Eu preciso de uma autorização de saída para poder mandá-los para Al Shargaz. — Ele prendeu a respiração.

       — Não há necessidade de mandar para fora aparelhos tão valiosos, sr. McIver. Conserte-os aqui.

       — Oh, eu o faria se pudesse, Excelência, mas não é possível. Nós não temos nem as peças nem os técnicos. E cada dia que um dos nossos helicópteros fica parado custa uma fortuna aos nossos sócios. Uma fortuna — ele repetiu.

       — E claro que o senhor pode consertá-los aqui, sr. McIver, basta trazer as peças e os técnicos de Al Shargaz.

       — Fora o custo do aparelho, há o pagamento e as diárias das equipes. É tudo muito caro; talvez eu devesse mencionar que este custo cabe aos sócios iranianos, isso faz parte do acordo... fornecer todas as autorizações de saída necessárias. — McIver continuou a se lamentar. — Nós precisamos ter todo o equipamento existente pronto para cumprir todos os novos contratos da Guerney se o aia... se, ahn, quisermos obedecer ao decreto do novo governo de que a produção de petróleo deve ser normalizada. Sem equipamento... — Ele deixou a frase no ar e mais uma vez prendeu a respiração, rezando para ter escolhido a isca certa.

       Kia franziu a testa. Qualquer coisa que custasse dinheiro aos sócios iranianos, agora, sairia parcialmente do seu próprio bolso.

       — Em quanto tempo eles seriam consertados e trazidos de volta?

       — Se eu puder levá-los dentro dos próximos dois dias, deve levar mais ou menos uma semana.

       Mais uma vez Kia hesitou. Os contratos da Guerney, somados aos contratos da CHI já existentes, aos helicópteros, equipamentos, acessórios e peças valiam milhões, dos quais ele agora tinha uma sexta parte — sem ter investido nada, ele riu por dentro. Principalmente quando tudo era executado, sem custos, por esses estrangeiros. Autorização de saída para três helicópteros? Ele deu uma olhada no relógio. Era um Cartier todo enfeitado — um pishkesh de um banqueiro que, há duas semanas atrás, tinha precisado ter acesso por meia hora, em particular, a um telex que estivesse funcionando. Daqui a poucos minutos, ele tinha um encontro marcado com o chefe do Controle de Tráfego Aéreo e poderia facilmente embrulhá-lo e conseguir a autorização.

       — Muito bem — disse, encantado por ser tão poderoso, um funcionário em ascensão, por poder ajudar na implementação da política de petróleo do governo e ao mesmo tempo economizar o dinheiro dos sócios.

       — Muito bem, mas as autorizações de saída só serão válidas por duas semanas, a licença vai custar — ele pensou um momento — vai custar cinco mil dólares por aparelho, em dinheiro, antes da saída, e eles deverão estar de volta em duas semanas.

       — Eu, eu não vou conseguir arranjar este dinheiro a tempo. Eu poderia dar-lhe um vale, ou cheques para serem descontados num banco suíço — de dois mil dólares por aparelho.

       Eles barganharam por alguns momentos e chegaram a 3.100 dólares.

       — Obrigado, Aga McIver. — Ali Kia disse gentilmente. — Por favor, saia cabisbaixo para não encorajar aqueles patifes que estão esperando lá fora.

       Quando McIver estava mais uma vez no seu carro, ele apanhou os papéis e olhou para as assinaturas e para o carimbo oficial.

       — É quase bom demais para ser verdade — murmurou alto. Agora o 125 está legalizado, Kia diz que a suspensão não vai se aplicar a nós, nós temos vistos de saída para três 212 que são necessários na Nigéria, por 9.310 dólares, contra o valor deles de três milhões, é mais do que justo! Eu nunca achei que iríamos conseguir! — E disse alegremente: — McIver, você merece um uísque! Um uísque bem grande!

      

       NOS ARREDORES, AO NORTE: 18:50H. Tom Lochart saiu do táxi velho e amassado, e deu uma nota de vinte dólares ao homem. Sua capa de chuva e seu uniforme de piloto estavam amassados e ele parecia muito cansado, sujo, com a barba por fazer e se sentia imundo, mas a sua alegria por estar defronte ao seu próprio edifício e perto de Xarazade depois de tanto tempo espantava qualquer cansaço. Uns poucos flocos de neve estavam caindo, mas ele mal notou ao correr para dentro e subir as escadas — não adiantava tentar o elevador, ele não funcionava há meses.

       O carro que tomara emprestado com um dos pilotos em Bandar Delam ficara sem gasolina na véspera, no meio do caminho para Teerã, e com um defeito no marcador de gasolina. Ele o deixara numa garagem e conseguira pegar um ônibus e, depois outro, depois de enguiços, atrasos e desvios, chegara ao terminal de Teerã há duas horas. Sem lugar para se lavar, sem água corrente, os banheiros sempre os mesmos imundos buracos no chão.

       Não havia nenhum táxi no ponto nem nas ruas. Nenhum ônibus ia para perto da sua casa. Era longe demais para ir a pé. Então um táxi apareceu e ele o fez parar. Embora estivesse quase lotado, de acordo com o hábito, abriu a porta e forçou a entrada, suplicando aos outros passageiros que permitissem que ele partilhasse do seu transporte. Foi feito um acordo razoável. Eles ficariam honrados em levá-lo e ele ficaria honrado em pagar por todos eles, ser o último e pagar ao motorista em dinheiro. Dinheiro americano. Era a sua última nota.

       Apanhou a chave e tentou abrir a porta, mas a tranca estava passada por dentro, então tocou a campainha, esperando impacientemente pela empregada; Xarazade nunca viria abri-la. Tamborilou alegremente na porta, com o coração cheio de amor por ela. Sua excitação aumentou ao ouvir os passos da empregada se aproximando, a tranca sendo tirada, a porta se abrindo. Uma mulher estranha, usando o chador, encarou-o.

       — O que o senhor deseja, aga! — Sua voz era tão rude quanto o seu farsi.. Sua excitação desapareceu, deixando no lugar um grande vazio.

       — Quem é você? — perguntou com a mesma grosseria. A mulher começou a fechar a porta, mas ele pôs o pé na frente, impedindo-a. — O que você está fazendo na minha casa? Eu sou Excelência Lochart e esta é a minha casa! Onde está Sua Alteza, minha mulher? Hein?

       A mulher olhou-o com um ar ameaçador, depois caminhou até a porta da sala e abriu-a. Lochart viu pessoas estranhas lá, homens e mulheres, e armas encostadas na parede.

       — Que diabo está havendo aqui? — resmungou em inglês e entrou na sua sala de estar. Dois homens e quatro mulheres levantaram os olhos dos seus tapetes, onde estavam sentados de pernas cruzadas ou recostados em almofadas, fazendo uma refeição em frente à sua lareira, onde um fogo crepitava alegremente, com os pratos espalhados ao acaso, sem sapatos, de pés sujos. Um dos homens, mais velho do que os outros, com cerca de quarenta anos, estava com a mão numa automática enfiada no cinto.

       Lochart ficou cego de raiva, sentindo a presença daqueles estranhos como se fosse um estupro e um sacrilégio.

       — Quem são vocês? Onde está minha mulher? Por Deus, saiam Já da m... Parou. O revólver estava apontado para ele

       — Quem é você, aga!

      Com um esforço supremo, Lochart dominou a fúria, com dor no peito

       — Eu sou... eu sou... esta é... é a minha casa... eu sou o dono.

       — Ah, o dono. Você é o dono? — O homem chamado Teymour interrompeu-o com uma risada breve. — O estrangeiro, o marido da mulher Bate ravan? Vo... — A automática foi apontada quando Lochart fez menção de atacá-lo. — Não faça isso! Eu atiro com muita rapidez e muita pontaria. Revistem-no. — Disse ao outro homem, que se levantou imediatamente. O homem correu as mãos por ele, demonstrando experiência, tirou-lhe a maleta das mãos e revistou-a.

       — Nenhuma arma. Manuais de vôo, bússola.. Você é o piloto Lochart?

       — Sim disse Lochart, com o coração bateftdo

       — Sente-se ali. Agora!

       Lochart sentou-se na cadeira, bem distante do fogo. O homem colocou o revólver no tapete ao seu lado e apanhou um papel.

       — Dê isto a ele.

       O outro homem obedeceu. O papel estava escrito em farsi. Todos o observavam cuidadosamente. Lochart levou um certo tempo para decifrar a letra: "Ordem de confisco. Por crimes contra o Estado islâmico, todas as propriedades de Jared Bakravan estão confiscadas, exceto a casa da sua família e sua loja no bazar". Estava assinado em nome de um komiteh por alguém, que ele não conseguiu entender e datava de dois dias atrás.

       — Isso... isso é ridículo — Lochart começou a dizer, desamparadamente.

       — Sua... Sua Excelência Bakravan foi um dos maiores sustentadores do aiatolá Khomeini. Um dos maiores. Deve haver algum engano.

       — Não há nenhum engano. Ele foi preso, condenado por agiotagem e executado.

       Lochart encarou-o, perplexo.

       — Tem... tem que haver algum erro!

       — Não há nenhum erro, aga. Nenhum — disse Teymour, com uma ponta de delicadeza na voz, vigiando Lochart cuidadosamente, vendo o perigo que ele representava. — Nós sabemos que você é canadense, um piloto, que esteve fora, que é casado com uma das filhas do traidor e que não é responsável pelos crimes dele, nem pelos dela, caso ela tenha cometido algum. — Sua mão buscou a arma, ao ver Lochart enrubescer. — Eu disse 'se', aga, controle a sua raiva.

       — Ele esperou e não apanhou a sua bem conservada Luger, embora estivesse preparado. — Nós não somos agitadores despreparados, nós somos Combatentes da Liberdade, profissionais, e deram-nos estas instalações para guardar para personalidades retardatárias. Nós sabemos que você não é um inimigo, então acalme-se. É claro que isto deve ser um choque para você. Nós entendemos, é claro que entendemos, mas temos o direito de tomar o que é nosso.

       — Direito? Que direito vocês têm de..

       — Direito de conquista, aga. Algum dia foi diferente? Vocês, britânicos, deviam saber disso melhor do que ninguém. — Sua voz se manteve calma. As mulheres observavam com olhos frios e duros. — Acalme-se. Nenhum dos seus pertences foi tocado. Ainda. — Ele fez um gesto com a mão. — Veja por si mesmo.

       — Onde está minha mulher?

       — Eu não sei, aga. Não havia ninguém aqui quando chegamos. Nós chegamos esta manhã.

       Lochart estava quase louco de preocupação. Se o pai foi condenado, será que a família iria pagar? Todo mundo? Espere um minuto! Tudo confiscado "...exceto a casa", não era isto que estava escrito no papel? Ela tem que estar lá... Cristo, fica a quilômetros de distância e eu não tenho carro..

       Ele estava tentando fazer a cabeça trabalhar.

       — Você disse, você disse que nada foi tocado 'ainda'. Você quer dizer que será tocado em breve?

       — Um homem inteligente protege os seus bens. Seria aconselhável levar os seus bens para um lugar seguro. Tudo que pertencia a Bakravan ficará aqui, mas e os seus bens? — Ele deu de ombros. — É claro que pode levá-los, nós não somos ladrões

       — E os bens da minha esposa?

       — Os dela também. É claro. Coisas pessoais. Eu já disse que não somos ladrões.

       — Quanto... quanto tempo eu tenho?

       — Até às cinco horas da tarde de amanhã.

       — Isso não é suficiente. Não pode ser até depois de amanhã?

       — Até às cinco da tarde de amanhã. Você gostaria de comer alguma coisa?

       — Não, não, obrigado.

       — Então até logo, aga, mas primeiro dê-me as suas chaves, por favor. Lochart enrubesceu apesar do controle. Tirou as chaves do bolso e entregou-as ao outro homem, que estava próximo. — Você falou em personalidades. Que personalidades?

       — Personalidades, aga. Este lugar pertencia a um inimigo do Estado, agora ele é de propriedade do Estado para dar para quem ele quiser. Sinto muito, mas é claro que você compreende.

       Lochart olhou para ele, depois para o outro homem e depois para ele de novo. Seu cansaço agora lhe pesava. E sua impotência.

       — Eu, ahn, antes de sair eu gostaria de fazer a barba e trocar de roupa. Está bem?

       Depois de uma pausa, Teymour disse:

       — Sim. Hassan, vá com ele.

       Lochart saiu, acompanhado por Hassan com ódio deles e de tudo o que estava acontecendo. Seguiu pelo corredor e entrou no seu próprio quarto. Nada fora tocado, embora todos os armários estivessem abertos, bem como as gavetas, e houvesse um cheiro de fumaça de cigarro, mas não havia nenhum sinal de uma partida apressada nem de violência. A cama tinha sido usada. Acalme-se e faça um plano. Eu não posso. Muito bem, então tome um banho, faça a barba e vá até a casa de Mac, não fica muito longe e você pode caminhar até lá. Ele vai ajudá-lo, ele vai emprestar-lhe dinheiro e um carro e você vai encontrar Xarazade na casa de sua família. E não pense em Jared — simplesmente não pense.

      

       PERTO DA UNIVERSIDADE: 20:10H. Rakoczy chegou a lamparina para mais perto do maço de papéis, diários, pastas e documentos que tinha roubado do cofre da embaixada dos Estados Unidos, e continuou a separá-los. Ele estava sozinho no pequeno quarto de uma casa de cômodos — um de uma série de cômodos semelhantes, a maioria de estudantes, que lhe fora alugado por Farmad, o líder estudantil do Tudeh que tinha sido morto na noite do comício. O quarto era sujo, sem aquecimento, e tinha apenas uma cama, uma mesa trôpega, uma cadeira, e uma janela minúscula. As vidraças estavam rachadas e cobertas com papelão.

       Ele riu alto. Tanta coisa acontecera e a um custo tão pequeno. O plano tinha sido muito bom. O tumulto encenado do lado de fora dos portões da embaixada — depois o súbito tiroteio dos telhados em frente, criando pânico, a rápida invasão do prédio — a única oposição tinha vindo dos fuzileiros armados de metralhadoras, e mesmo assim com ordens para não atirar — no tempo justo antes da chegada dos partidários de Khomeini para sufocar a rebelião, matar-nos ou capturar-nos. Protegido pelo pandemônio, correra para os fundos do prédio, arrombando a porta lateral, depois subira as escadas dos fundos sozinho, enquanto o seu grupo criava mais tumulto do lado de fora, atirando para o ar, gritando, tomando cuidado para não matar ninguém mas fazendo um bocado de barulho. Um andar, depois o outro, depois correra pelo corredor gritando com os americanos, duas velhas assustadas e um rapaz:

       — Para o chão, deitem-se, ou todo mundo morre.

       Eles obedeceram apavorados, assim como todos os outros — eu não os culpo, o ataque fora tão súbito e eles estavam tão despreparados, desarmados e foram levados ao pânico. Dentro do quarto. Vazio, exceto por um empregado iraniano paralisado de medo, com os braços sobre a cabeça, e metade do corpo debaixo da cama. Explodira o cofre rapidamente, pondo tudo na mala, tornara a sair, descendo a escada de três em três degraus, depois fugira em direção à multidão, com Ibrahim Kyabi e os outros a protegê-lo, recuando com perfeição, tendo alcançado todos os objetivos.

       A chefia tem que ficar impressionada, ele tornou a pensar, a minha promoção a major tem que estar garantida, e papai vai ficar tão orgulhoso de mim.

       — Por Deus e pelo Profeta — disse involuntariamente, enquanto outra onda de felicidade o invadia, sem notar que falara alto. — Eu nunca me senti tão realizado em minha vida.

       Ele voltou alegremente ao trabalho. Até agora o cofre não havia revelado nenhum tesouro, mas um monte de documentos a respeito do envolvimento da CIA no Irã, alguns carimbos particulares do embaixador, um livro de código que podia ser importante, contas particulares, algumas jóias de pouco valor, algumas moedas antigas. Não importa, pensou. Ainda falta examinar muita coisa, diários e papéis pessoais.

       O tempo passou depressa para ele. Em breve Ibrahim Kyabi estaria lá para discutir a Marcha das Mulheres. Ele queria saber como prejudicá-la em favor dos objetivos do Tudeh e contra Khomeini e o xiismo. Khomeini é o verdadeiro perigo, pensou, o único perigo. Aquele velho estranho, ele e a sua intransigência monolítica. Quanto mais cedo ele for levado à presença do Não-Deus, melhor.

       Uma corrente de ar gelado entrou pelas vidraças quebradas. Isso não o perturbou. Ele se sentia aquecido, pois estava usando a sua grossa jaqueta de couro, suéter, camisa, roupa de baixo, meias e sapatos grossos. "Use sempre meias e sapatos de boa qualidade para o caso de ter que correr", tinham dito seus professores. "Esteja sempre preparado para correr..."

     Ele se lembrou, divertido, da perseguição de Erikki Yokkonen, de tê-lo levado para dentro do labirinto e de tê-lo deixado perdido perto da Casa dos Leprosos. Tenho certeza de que vou ter que matá-lo um dia, pensou. E a gata brava da sua mulher. E quanto a Azadeh? E quanto à filha de Abdullah Khan, Abdullah, o Cruel, que embora valioso como agente duplo está se tornando arrogante demais, independente demais e poderoso demais para a nossa segurança? Sim, mas agora eu gostaria que tanto o marido quanto a mulher estivessem de volta a Tabriz, fazendo o que precisamos que façam. E quanto a mim, eu gostaria de estar de licença de novo. Em casa, em segurança, outra vez Igor Mzytryk, capitão da KGB, em casa com Delaurah, envolvendo-a com os meus braços, na nossa linda cama com os mais finos lençóis da Irlanda, seus olhos verdes brilhando, sua pele macia como pêssego, e tão linda. Daqui a sete semanas nasce o nosso primogênito. Oh, eu espero que seja um filho...

       Com parte da audição — já que seu ouvido estava sempre atento a qualquer sinal de perigo — ele ouviu os muezins chamando para a oração da noite. Começou a limpar a pequena mesa. Muito em breve Ibrahim Kyabi estaria lá e não havia necessidade do rapaz tomar conhecimento de coisas que não lhe diziam respeito. Ele guardou tudo, rapidamente, na sacola. Levantou uma tábua do assoalho e colocou a sacola no buraco que havia por baixo e que continha também uma automática carregada, de reserva, cuidadosamente embrulhada em oleado e meia dúzia de granadas britânicas. Um pouco de terra espalhada nas fendas e não havia mais sinal do esconderijo. Diminuiu a chama da lamparina e afastou as cortinas. Havia um pouco de neve do lado de dentro do parapeito. Satisfeito, ficou esperando. Passou-se meia hora. Kyabi não costumava se atrasar.

       Então ele escutou passos. Apontou a automática para a porta. O código da batida foi impecável; mesmo assim, quando destrancou a porta, encostou-se na parede e escancarou-a, pronto para atacar, caso fosse um inimigo. Mas era Ibrahim Kyabi, todo agasalhado e satisfeito por estar lá.

       — Sinto muito, Dimitri — disse, batendo com os pés, com um pouco de neve presa no seu cabelo escuro e crespo —, mas os ônibus são quase inexistentes.

       Rakoczy tornou a trancar a porta.

       — A pontualidade é importante. — Você queria saber quem era o mulá que estava no helicóptero de Bandar Delam quando o seu pai foi assassinado, pobre homem. Eu consegui o nome para você. — Ele viu os olhos do rapaz se iluminarem e disfarçou um sorriso. — Seu nome é Hussein Kowissi e ele é o mulá de Kowiss. Você conhece o lugar?

       — Não, não, eu nunca estive lá. Hussein Kowissi? Ótimo. Obrigado.

       — Eu o chequei para você. Ele parece ser um anticomunista fanático, fanático por Khomeini, mas na realidade ele é um agente da CIA.

       — O quê?

       — Sim — disse Rakoczy, com a informação errada perfeitamente justificada. — Ele passou alguns anos nos Estados Unidos, mandado pelo xá, fala inglês fluentemente e foi secretamente aliciado por eles quando era estudante. O seu antiamericanismo é tão falso quanto o seu fanatismo.

       — Como é que você consegue fazer isso, Dimitri? Como consegue descobrir tanta coisa tão depressa... sem telefones, telex, nem nada?

       — Você se esquece que cada ônibus leva alguns dos nossos, cada táxi, caminhão, aldeia, agência de correios. Não se esqueça — ele acrescentou com convicção —, não se esqueça de que as massas estão do nosso lado. Nós somos as massas.

       — Sim.

       Ele viu a dedicação do rapaz e compreendeu que Ibrahim era o instrumento correto e que estava pronto.

       — O mulá Hussein ordenou que os Faixas Verdes matassem seu pai, acusando-o de ser um fantoche dos estrangeiros.

       A cor fugiu do rosto de Kyabi.

       — Então... então eu quero pegá-lo. Ele é meu.

       — Isso deveria ser deixado para profissionais. Eu vou providenciar.

       — Não. Por favor. Eu tenho que me vingar.

       Rakoczy fingiu pensar a respeito, disfarçando a satisfação. Hussein Kowissi já fora marcado para morrer há algum tempo.

       — Dentro de poucos dias eu vou arranjar armas, um carro e um grupo para ir com você.

       — Obrigado. Mas eu só vou precisar disto. — Kyabi tirou uma faca do bolso, com as mãos tremendo. — Isto e uma ou duas horas, e um pouco de arame farpado e eu mostro a ele até onde vai a vingança de um filho.

       — Ótimo. Agora a Marcha das Mulheres. Está definitivamente marcada para daqui a três dias. O qu... — Ele parou horrorizado, deu um pulo repentino em direção à parede lateral, puxando um nó meio disfarçado. Uma parte da parede se abriu dando acesso à escada de incêndio às escuras. — Venha — ele ordenou e saiu correndo pelas escadas, com Kyabi seguindo-o às cegas, aterrorizado.

       Nesse momento, sem nenhum aviso, a porta foi violentamente aberta, sendo quase arrancada das dobradiças, e os dois homens que a haviam arrombado quase caíram dentro do quarto, seguidos por outros. Eram todos iranianos, todos usavam faixas verdes e saíram correndo atrás deles, com as armas prontas.

       Eles desceram as escadas pulando os degraus, perseguidores e perseguidos, tropeçando e quase caindo, tornando a se equilibrar e correndo para o meio da rua e para o meio da noite para o meio da multidão, e então Rakoczy foi direto para a armadilha e para os braços deles. Ibrahim Kyabi não hesitou, apenas mudou de direção e atravessou a rua voando, entrou numa ruazinha apinhada de gente e foi engolido pela escuridão.

       Num velho carro estacionado em frente à saída de incêndio, Robert Armstrong tinha visto os seus homens entrarem, Rakoczy ser apanhado e Kyabi escapar. Rakoczy fora rapidamente enfiado num caminhão que estava esperando, antes que as pessoas que estavam na rua percebessem o que estava acontecendo. Dois dos Faixas Verdes caminharam na direção de Armstrong, ambos mais bem vestidos do que comumente. Ambos possuíam cartucheiras no cinto para as suas Máusers. As pessoas se afastavam deles, inquietas, olhando-os disfarçadamente, querendo evitar problemas. Os dois homens entraram no carro e Armstrong se afastou, e os Faixas Verdes restantes se misturaram com os pedestres.

       Em poucos minutos, Robert Armstrong era parte do tráfego engarrafado. Os dois homens tiraram as suas faixas verdes e as guardaram no bolso.

       — Sinto muito termos perdido aquele filho da mãe, Robert — disse o mais velho dos dois, num inglês fluente, com sotaque americano. Era um homem de cara raspada, de uns cinqüenta anos, coronel Hashemi Fazir, superintendente-chefe do Serviço Secreto, treinado nos Estados Unidos e membro da Savak antes da formação do Serviço Secreto.

       — Não se preocupe, Hashemi — disse Armstrong. O mais jovem, sentado no banco de trás, disse:

       — Nós temos Kyabi no filme tirado durante o tumulto na embaixada, aga. E na universidade. — Ele estava na casa dos vinte, tinha um vasto bigode e seus lábios se curvavam cruelmente. — Nós o apanharemos amanhã.

       — Agora que ele está fugindo, se eu fosse você não teria tanta certeza, tenente — disse Armstrong, dirigindo cuidadosamente. — Já que ele está marcado, apenas siga-o. Ele pode levá-lo a peixes mais graúdos. Ele o levou a Dimitri Yazernov. Os outros riram.

       — Sim. Sim, é verdade.

       — E Yazernov vai nos levar a todo tipo de pessoas e lugares interessantes.

       — Hashemi acendeu um cigarro, oferecendo-o. — Robert?

       — Obrigado. — Armstrong deu uma tragada e fez uma careta. — Meu Deus, Hashemi, estes cigarros são horríveis. Eles vão matá-lo.

       — Como Deus quiser. — Então Hashemi citou em farsi: — "Lave-me com vinho quando eu morrer, / No meu funeral, leia um texto que se refira a vinho, / Se quiser me encontrar no dia do Juízo Final, / Procure por mim na poeira da loja de vinho."

       — São os cigarros que vão matá-lo, não o vinho — disse Armstrong secamente, com a bela melodia das palavras em farsi ecoando.

       — O coronel estava citando um trecho do Rubãiyãt de Ornar Khayyám — o rapaz falou lá de trás, em inglês. — Isso quer dizer...

       — Ele sabe o que significa, Muhammad — interrompeu-o Hashemi. — O sr. Armstrong fala perfeitamente o farsi. Você ainda tem muito o que aprender. — Ele fumou por algum tempo, observando o tráfego. — Pare o carro um momento, sim, Robert?

       Quando o carro parou, Hashemi disse:

       — Muhammad, volte para o QG e espere por mim lá. Certifique-se de que ninguém. Ninguém! Chegue a Yasernov antes de mim. Diga à equipe para verificar, somente, se está tudo pronto. Eu quero começar à meia-noite.

       — Sim, coronel. — O homem mais moço deixou-os. Hashemi observou-o desaparecer no meio da multidão.

       — Eu bem que gostaria de um uísque com soda bem grande. Continue dirigindo mais um pouco, Robert.

       — Claro. — Armstrong saiu com o carro, e olhou para ele, percebendo alguma coisa. — Problemas?

       — Muitos. — Hashemi observou o trânsito e os pedestres com a fisionomia fechada. — Eu não sei até quando vamos poder operar, até quando estaremos seguros, nem em quem confiar.

       — O que há de novo nisso? — Armstrong sorriu sombriamente. — Esta é uma das contingências do ofício — disse, com a lição bem aprendida depois de 11 anos como consultor do Serviço Secreto, tendo passado antes disso vinte anos na polícia de Hong Kong.

       — Você quer estar presente quando Yazernov for interrogado, Robert?

       — Sim, se não for atrapalhar.

       — O que é que o MI6 quer com ele?

       — Eu sou apenas um ex-membro da Divisão Especial da CID, contratado para ajudá-los a montar um serviço equivalente, lembra-se?

       — Eu me lembro muito bem. Dois contratos de cinco anos, o último prolongado até o próximo ano, quando você se aposentará com uma pensão.

       — Grande esperança! — disse Armstrong, desgostoso. — Khomeini e o governo vão pagar a minha pensão? Grande esperança. — Ele estava bem consciente de que todo o seu trabalho no Irã fora desperdiçado, e com a desvalorização do dólar de Hong Kong, desde que ele se aposentara em 1966, sua verdadeira aposentadoria não valeria nada. — Minha pensão foi por água abaixo. Os olhos escuros endureceram.

       — Robert, o que é que o MI6 quer com este desgraçado?

       Robert Armstrong franziu a testa. Havia algo muito errado esta noite. O jovem Kyabi não deveria ter escapado da rede e Hashemi está mais nervoso do que um novato no seu primeiro trabalho.

       — Pelo que eu sei, eles não querem nada. Sou eu que estou interessado nele. Eu — disse despreocupadamente.

       — Por quê?

       É uma história tão longa, pensou Armstrong. Será que eu deveria contar-lhe que Dimitri Yasernov é um disfarce para Fedor Rakoczy, o islâmico-marxista russo que vocês estão tentando apanhar há meses? Será que eu deveria contar-lhe que o verdadeiro motivo pelo qual me mandaram ajudá-lo a agarrá-lo hoje à noite é que, inteiramente por acaso, o MI6 descobriu através de um desertor tcheco que o seu verdadeiro nome é Igor Mzytryk, filho de Petr Oleg Mzytryk, que nos meus dias de Hong Kong costumava ser conhecido como Gregor Suslev, o grande espião, que julgávamos morto há muito tempo?

       Não, nós não queremos Yasernov, mas nós queremos — eu quero — o pai, que se supõe morar em algum lugar ao norte da fronteira, ao nosso alcance, oh, Deus, fazei com que ele esteja vivo e ao nosso alcance, pois nós adoraríamos arrancar informações daquele desgraçado por todos os meios possíveis — ex-chefe do serviço de espionagem no Extremo Oriente, conferencista em espionagem na Universidade de Vladivostok, membro graduado do Partido e Deus sabe o que mais desde então.

       — Eu acho... nós achamos que Yazernov é mais importante do que apenas um elo de ligação entre o Tudeh e os estudantes. Ele é um sósia perfeito do seu dissidente curdo, Ali bin Hassan Karakose.

       — Você quer dizer que eles são o mesmo homem?

       — Sim.

       — Impossível.

       Armstrong deu de ombros. Tinha atirado um osso; se ele não quisesse roê-lo, isso era problema dele. O trânsito estava engarrafado de novo, com todo mundo buzinando e xingando. O homem corpulento fechou os ouvidos ao barulho e apagou o cigarro iraniano.

       Hashemi franziu a testa, observando-o.

       — Qual é o seu interesse em Karakose e nos curdos, se é verdade o que você está dizendo?

       — Os curdos estão espalhados por todas as fronteiras — disse sem hesitação. — O movimento curdo nacional é muito sensível e fácil para os soviéticos explorarem, com grandes implicações internacionais por toda a Ásia Menor. É claro que estamos interessados.

       O coronel ficou olhando pela janela, pensativo, com a neve caindo levemente. Um ciclista passou por eles, batendo descuidadamente no lado do carro. Para surpresa de Armstrong — geralmente Hashemi era bem-humorado — ele baixou furiosamente o seu vidro e xingou o rapaz e toda a sua geração. Ele apagou o cigarro com um ar soturno.

       — Deixe-me aqui, Robert. Nós começamos com Yazernov à meia-noite. Você é bem-vindo. — Ele fez menção de abrir a porta.

       — Espere, meu velho — disse Armstrong. — Nós somos amigos há muito tempo. Que diabo está acontecendo?

       O coronel hesitou. Então fechou a porta.

       — A Savak foi declarada ilegal pelo governo, assim como todos os departamentos do serviço secreto, inclusive nós, e recebemos ordens de debandar imediatamente.

       — Sim, mas o primeiro-ministro já disse a vocês para continuarem, em segredo. Você não tem nada a temer, Hashemi. Você não foi atingido. Você recebeu ordens de esmagar o Tudeh, os fedayins, e os islâmicos-marxistas... você me mostrou as ordens. A operação desta noite não estava dentro dessa linha?

       — Sim. Sim, estava. — Mais uma vez Hashemi parou, com a cara fechada e a voz rouca. — Sim, estava, mas... O que você sabe a respeito do Komiteh Revolucionário Islâmico?

       — Só que ele parece consistir de homens escolhidos pessoalmente por Khomeini — Armstrong começou a dizer, com honestidade. — Eles têm plenos poderes, nós não sabemos quem são, quantos são, quando ou onde se reúnem, nem se é o próprio Khomeini que o preside.

       — Eu sei com certeza que, com a aprovação de Khomeini, no futuro, este komiteh será investido de todo o poder, que Bazargan é apenas um testa de ferro momentâneo enquanto o Komiteh Revolucionário elabora a nova constituição islâmica que nos fará regredir aos tempos do Profeta.

       — Maldição! — resmungou Armstrong. — Nenhum governo eleito?

       — Nenhum. — Hashemi estava fora de si de raiva. — Não o que nós entendemos por isso.

       — Talvez a constituição não seja aprovada, Hashemi. O povo terá que votar, nem todo mundo é partidário fanático de...

       — Por Deus e pelo Profeta, não tente se enganar, Robert! — o coronel disse rispidamente. — A grande maioria é de fundamentalistas, eles só precisam se apoiar nisso. A nossa burguesia, os ricos e a classe média são de Teerã, Tabriz, Abadan, Isfahan, todos apadrinhados pelo xá, um mero punhado se comparados com os outros 36 milhões, a maioria dos quais não sabe ler nem escrever. É claro que qualquer coisa que Khomeini aprove será votada. E nós dois sabemos qual é a sua visão de Islã, do Corão e do Sharia.

       — Daqui a quanto tempo... daqui a quanto tempo eles terão a constituição pronta?

       — Você entende tão pouco a nosso respeito, depois de todo esse tempo? — disse Hashemi, irritado. — Assim que conquistamos o poder, nós o usamos antes que ele nos escape. A nova constituição começou a vigorar assim que o pobre infeliz do Bakhtiar foi traído por Carter, traído pelos generais e obrigado a fugir. Quanto a Bazargan, piedoso, honesto, justo e com tendências democráticas, indicado por Khomeini, legalmente primeiro-ministro até as eleições, o pobre imbecil não passa de um bode expiatório para qualquer coisa que dê errado daqui para a frente.

       — Você quer dizer que ele vai ser o bode expiatório? Que vai ser levado a julgamento?

       — Julgamento? Que julgamento? Eu já não lhe disse o que o Komiteh Revolucionário considera como julgamento? Se eles o acusarem, ele está morto. Insha'Allah! E por último, o motivo pelo qual eu não consigo raciocinar direito e estou tão zangado que preciso me embebedar, é porque eu ouvi dizer hoje à tarde, muito em particular, que a Savak foi secretamente reorganizada, que vai ser rebatizada de Savama — e que Abrim Pahmudi foi nomeado diretor!

       — Jesus Cristo! — Armstrong sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. Abrim Pahmudi era um dos três amigos de infância do xá, que fora colega de escola dele no Irã e depois na Suíça, que se tornara muito importante no conselho imperial, na Savak. Dizia-se que depois da família do xá ele era o seu conselheiro mais ouvido. Supunha-se que estivesse escondido, esperando por uma oportunidade de negociar com o governo de Bazargan, em nome do xá, a instituição de uma monarquia constitucional e a abdicação do xá em favor do seu filho Reza. — Jesus Cristo! Isso explica muita coisa.

       — Sim — disse Hashemi com amargura. — Durante anos o filho da mãe tomou parte em quase todas as reuniões militares ou políticas importantes, em toda conferência de cúpula, todo acordo secreto, e nos últimos dias tomou parte em todas as reuniões importantes com o embaixador dos Estados Unidos, com os generais americanos, participou de toda decisão importante do xá, dos nossos generais, e esteve presente todas as vezes em que se discutiu a respeito de um golpe de Estado, e se rejeitou essa possibilidade. — Ele estava tão zangado que as lágrimas corriam pelo seu rosto. — Nós fomos todos traídos. O xá, a revolução, o povo, você, eu, todo mundo! Quantas vezes nós demos informações a ele durante todos esses anos em que trabalhamos juntos, você e eu, mais de uma dúzia de vezes? Com listas, nomes, contas bancárias, ligações, segredos que só nós poderíamos descobrir e saber. Tudo — tudo por escrito mas com uma única cópia — a regra não era esta? Fomos todos traídos.

       Armstrong ficou gelado. É claro que Pahmudi sabia tudo a respeito do seu envolvimento com o Serviço Secreto. Pahmudi tinha que saber tudo de importante a respeito de George Talbot, de Masterson, o seu equivalente na CIA, de Lavenov, o seu equivalente soviético, de todos os nossos planos a curto e longo prazo, nossos planos de invasão, nossas operações para neutralizar as instalações de radar altamente secretas da CIA com homens como o jovem capitão Ross.

       — Maldição — ele resmungou, ao mesmo tempo furioso porque suas próprias fontes não o haviam prevenido. Pahmudi, maneiroso, inteligente, poliglota e discreto. Nem uma vez em todos aqueles anos tinha havido a menor suspeita contra ele. Nunca. Como ele podia ter escapado tão limpo, até do xá que estava constantemente mandando checar e tornar a checar os seus auxiliares mais importantes? Com todo o direito, pensou. Cinco tentativas de assassinato contra ele, balas no seu corpo e no seu rosto, ele não era o governante de um povo conhecido pela violência, tanto a dirigida contra os seus governantes quanto a dirigida pelos governantes contra o povo?

       Cristo! Onde vai acabar tudo isso?

      

       AINDA NO MESMO TRÂNSITO: 9:15H. McIver se arrastava, bem mais ao sul, dirigindo-se à área do bazar, onde ficava a casa de Jared Bakravan, com Tom Lochart ao seu lado.

       — Tudo vai dar certo — disse McIver, doente de preocupação.

       — Claro, Mac. Não esquenta.

       — Sim, nada de preocupações.

       Quando McIver voltou para o seu apartamento depois do encontro com Ali Kia, muito satisfeito, Tom Lochart estava lá, tinha chegado poucos momentos antes. Sua alegria por ter visto Tom Lochart são e salvo dissipou-se imediatamente quando notou a aparência deste e pelas notícias que Pettikin lhe deu a respeito da comunicação por rádio feita por Freddy Ayre sobre Scot Gavallan em Zagros, e sobre o fato de Starke ter sido levado pelo komiteh de Kowiss para interrogatório a respeito da 'fuga de Isfahan'.

       — A culpa é toda minha, Mac — tinha dito Tom Lochart.

       — Não, a culpa não é sua, Tom. Nós dois caímos numa cilada. De qualquer modo, fui eu que dei permissão para o vôo, não que isso tenha ajudado Valik. Eles estavam todos a bordo; como foi que você conseguiu sair? Conte-nos o que aconteceu, depois eu chamo Freddy. Você quer um drinque?

       — Não, não, obrigado. Ouça, Mac, tenho que encontrar Xarazade. Ela não estava em casa, eu estou com esperanças de que ela esteja na casa do pessoal dela e eu tenho...

       — Ela está lá, eu sei que está, Tom. Erikki me disse, pouco antes de partir esta manhã para Tabriz. Você já soube o que aconteceu com o pai dela?

       — Sim, eu soube, uma coisa terrível! Você tem certeza de que ela está lá?

       — Tenho. — McIver caminhou pesadamente até o aparador e preparou um drinque enquanto continuava: — Ela não esteve no apartamento desde que você partiu e ela estava bem até... Erikki e Azadeh a viram anteontem. Ontem eles...

       — Erikki disse como ela estava?

       — Ele disse que ela estava tão bem quanto se poderia esperar. Você sabe como estas famílias iranianas são unidas. Não sabemos mais nada sobre o pai dela, a não ser o que Erikki nos contou: que ele recebera ordens de ir até a prisão como testemunha, e em seguida a família recebeu ordens de apanhar o corpo e foi informada de que ele tinha sido fuzilado por 'crimes contra o Islã". Erikki disse que eles apanharam o, ahn, o corpo e, bem, ontem eles estavam de luto. Sinto muito, mas é tudo. — Ele tomou um gole da bebida e se sentiu melhor. — Ela está em casa, em segurança. Primeiro conte-nos o que aconteceu com você, e depois eu vou ligar para Freddy e nós vamos procurar Xarazade.

     Lochart contou rapidamente. Eles escutaram, perplexos.

       — Quando Rudi me disse que aquele oficial da Força Aérea iraniana, Abbasi, é que tinha derrubado o HBC, eu quase enlouqueci. Eu... eu desmaiei, e a próxima coisa que me lembro é do dia seguinte. Abbasi e os outros já tinham ido embora e estava tudo sob controle. Mac, a idéia de Charlie a respeito de um seqüestro, isso não vai colar... não tem jeito!

       — Nós sabemos disso, Tom — respondera MacIver. — Termine a sua história.

       — Eu não consegui uma autorização para voar de volta, então arranjei um carro emprestado, cheguei há umas duas horas e fui direto para o apartamento. O pior é que ele foi confiscado pelos Faixas Verdes, assim como todas as propriedades do sr. Bakravan, exceto a loja do bazar e a casa onde mora a família.

       Lochart contou a eles o que acontecera, acrescentando:

       — Eu... eu agora sou como um órfão no meio de uma tempestade. Não tenho mais nada, nós não temos nada, Xarazade e eu. — Ele riu e foi uma risada infeliz e McIver pôde ver que ele estava morrendo por dentro. — É verdade que o prédio era de Jared, e também o apartamento e tudo o que está lá dentro, embora... embora uma parte seja o dote de Xarazade... Vamos embora, sim, Mac?

       — Primeiro deixe-me ligar para Freddy. O...

       — Oh, é claro, desculpe. Estou tão preocupado que não consigo pensar direito.

       McIver terminou o seu drinque e foi até o HF. Ele ficou olhando para o aparelho.

       — Tom — disse tristemente — o que você quer fazer a respeito de Zagros?

       Tom Lochart hesitou.

       — Eu podia levar Xarazade para lá comigo.

       — É perigoso demais, meu rapaz. Sinto muito, mas é isso. — McIver viu Lochart olhar para dentro de si mesmo, como que a medir-se, e suspirou, sentindo-se muito velho.

       — Se Xarazade estiver bem, eu vou voltar com Jean-Luc amanhã de manhã e nós vamos analisar o problema de Zagros, e ela vai no próximo vôo para Al Shargaz — disse Lochart. — Dependendo do que encontrarmos em Zagros... se tivermos que fechar, Insha 'Allah, despacharemos todos os nossos operários para Shiraz, para embarcarem nos vôos regulares. A companhia vai dizer-lhes para onde ir, e nós removeremos tudo para Kowiss, aparelhos, peças e pessoal. Certo?

       — Sim. Enquanto isto, eu irei ao ministro amanhã bem cedo e verei se posso ajeitar as coisas. — McIver ligou o botão de transmissão. — Kowiss, aqui é QG. Está me ouvindo?

       Quase instantaneamente:

       — QG, aqui é Kowiss, capitão Ayre, continue por favor, capitão McIver.

       — Primeiro, quanto a Zagros Três: diga ao capitão Gavallan que o capitão Lochart e Sessonne estarão de volta amanhã por volta de meio-dia com instruções. Enquanto isto, prepare planos para obedecer ao komiteh. — Malditos filhos da mãe, pensou, então continuou para o benefício daqueles que estavam escutando: — O gerente de base da IranOil em Zagros deve lembrar ao komiteh que o aiatolá e o governo ordenaram claramente que a produção de petróleo voltasse ao normal. O fechamento de Zagros interferira seriamente com a produção daquela área. Informe ao capitão Gavallan que eu cuidarei disto pessoalmente com o ministro Kia, que, há uma hora atrás, me confirmou esta ordem e me deu permissões por escrito para retirar e substituir turmas com o nosso 125 até...

       — Cristo, Mac, que ótimas notícias — ouviu-se pelo rádio.

       — Sim... com o nosso 125 até que o serviço regular se normalize. Substituição de pessoal e substituição de aparelhos para executar todo o trabalho extra e cumprir os contratos da Guerney que o governo está nos pedindo para as sumir; portanto eu não entendo as ações do komiteh local. Entendeu, capitão Ayre?

       — Sim senhor. Mensagem perfeitamente clara

       — O capitão Starke já voltou? Houve um longo silêncio, depois.

       — Negativo, QG.

       A voz de McIver tornou-se ainda mais fria.

       — Chame-me imediatamente assim que ele voltar. Capitão Ayre, cá entre nós, se ele tiver qualquer problema e não estiver de volta à base são e salvo ao amanhecer, eu prenderei todos os nossos aparelhos no solo, em todo o Irã, interromperei todas as nossas operações e mandarei todo o nosso pessoal para fora do Irã.

       — Ótimo, Mac — disse baixinho Pettikin. McIver estava concentrado demais para ouvi-lo.

       — Entendeu isto, Kowiss? Silêncio. E depois:

       — Afirmativo.

       — No que diz respeito a você — McIver acrescentou, tendo uma idéia repentina —, informe ao major Changiz e a 'Pé-quente' de minha parte que eu estou mandando que você interrompa todas as operações, inclusive emergências até que Starke esteja de volta à base. Entendeu?

       Silêncio, depois:

       — Afirmativo. A mensagem será transmitida imediatamente.

       — Ótimo. Mas apenas a informação que diz respeito à sua base. O resto é segredo até o amanhecer. — Ele sorriu implacavelmente e depois acrescentou:

       — Eu farei uma viagem de inspeção assim que o 125 voltar, portanto certifique se de que todos os relatórios estejam em dia. Mais alguma coisa?

       — Não senhor. No momento não. Estamos ansiosos pela sua visita e ficaremos na escuta como sempre

       Entendido e desligo.

       — Isso deve resolver as coisas, Mac, isso vai colocar um marimbondo nos seus rabos — disse Pettikin.

       — Talvez sim, talvez não. Nós não podemos interromper as emergências Além das razões humanitárias, isso nos coloca numa posição ilegal e eles podem nos tirar tudo. — McIver terminou o seu drinque e deu uma olhada no relógio.

       — Vamos, Tom, não vamos esperar por Jean-Luc, vamos procurar Xarazade.

       O trânsito tinha diminuído um pouco mas ainda se arrastava, com a neve grudando no pára-brisa. A estrada estava escorregadia e cheia de neve suja dos lados.

       — Vire a direita na próxima esquina — disse Lochart

       — Certo, Tom. — Eles continuaram em silêncio. McIver virou a esquina — Tom, você assinou a nota do combustível em Isfahan?

       — Não, não assinei

       — Alguém o entrevistou, perguntou o seu nome, alguma coisa desse tipo? Faixas Verdes? Alguma pessoa?

       Lochart desviou a mente de Xarazade

       — Não, não que eu me lembre. Eu era só o "capitão" e parte do cenário. Até onde posso me lembrar, não fui apresentado a ninguém. Valik e... Annoush e as crianças foram almoçar assim que nós pousamos com o outro general. Cristo, eu não consigo nem mesmo me lembrar do nome dele — ah, sim, Seladi. Todo mundo me chamava de''capitão". Eu era apenas uma parte do cenário. Aliás, eu fiquei no hangar com o helicóptero durante todo o tempo em que estivemos lá, vigiando o reabastecimento e checando o aparelho. Eles até me trouxeram comida numa bandeja e eu comi sentado na cabine. Fiquei lá o tempo todo até que aqueles malditos Faixas Verdes caíram em cima de mim e me arrastaram para fora e me trancaram num quarto. Não houve nenhum aviso, Mac. Eles simplesmente cercaram a base; devem ter tido muita ajuda de dentro. Os desgraçados que me agarraram estavam frenéticos, gritando que eu era da CIA, americano. Eles insistiram nisso o tempo todo, mas estavam mais preocupados em tomar a base do que comigo. Entre à esquerda, Mac. Não está muito longe agora.

       McIver continuou a dirigir, inquieto, a região era muito pobre e os transeuntes os observavam atentamente.

       — Talvez a gente consiga fazer essa história colar: fingir que o HBC foi seqüestrado de Doshan Tappeh por algum desconhecido. Talvez eles não sigam o rastro dele a partir de Isfahan.

       — Então por que eles agarraram Duke Starke?

       — Rotina. — McIver suspirou profundamente. — Sei que é muito arriscado, mas pode dar certo. Talvez a história do "americano da CIA" continue valendo e pronto. Deixe crescer um bigode ou uma barba, por via das dúvidas.

       Lochart sacudiu a cabeça.

       — Isso não vai adiantar. Meu nome está na primeira licença. Nós dois estamos... este é que é o problema.

       — Quando você decolou de Doshan Tappeh, quem o viu sair? Lochart pensou por um momento.

       — Ninguém. Eu acho que foi Nogger quem supervisionou o abastecimento do aparelho na véspera. O...

       — Está certo. Agora eu me lembro, ele estava uma fera, disse que eu estava dando trabalho demais para ele com a jovem Paula na cidade. Havia algum empregado iraniano ou guardas por lá? Você pagou baksheesh para alguém?

       — Não, não havia ninguém. Mas eles podem ter gravado a minha voz nos seus gravadores automáticos... — Lochart espiou pela janela. Sua excitação aumentou e ele apontou. — Lá está a curva, estamos perto.

       McIver entrou na rua estreita, que só dava para dois carros passarem. Havia neve dos lados subindo pelos muros altos — e portas e portões dos dois lados. McIver nunca tinha estado ali antes e estava surpreso de que Bakravan, tão rico, morasse numa região tão pobre. Ele era rico, lembrou, estremecendo involuntariamente, e agora está morto por "crimes contra o Estado" — e o que constitui um crime contra o Estado? Mais uma vez ele estremeceu.

       — Lá está a porta, ali à esquerda.

       Eles pararam ao lado de um monte de neve cheio de lixo. Uma porta indescritível estava cavada no muro alto e mofado. A porta tinha uma faixa de ferro coberta de ferrugem.

       — Vamos entrar, Mac.

       — Vou esperar um momento, se tudo estiver bem eu vou embora. Estou exausto. — Só há uma solução, pensou McIver, e esticou o braço fazendo Lochart parar. — Tom, nós temos permissão para retirar três 212. Você leva um. Amanhã. Zagros que vá para o diabo. Jean-Luc pode lidar com isso. Quanto a Xarazade, eu não sei se eles vão deixá-la ir ou não, mas é melhor você sair o mais depressa possível. É a única coisa a fazer; saia enquanto pode. Nós a poremos no próximo vôo do 125.

       — E quanto a você, Mac?

       — Eu? Não precisa se preocupar. Você sai, e se eles a deixarem ir, leve-a também. Jean-Luc pode cuidar de Zagros. Parece que vamos ter que fechar, de qualquer maneira. Está bem?

       Lochart olhou para ele.

       — Deixe-me pensar a respeito, Mac. Mas obrigado. — Ele saiu. — Eu estarei lá antes do amanhecer. Não deixe Jean-Luc partir sem mim. Podemos decidir lá, está bem?

      — Sim. — McIver viu o amigo usar a aldrava antiquada. O som era alto. Os dois homens esperaram, Lochart doente de ansiedade, preparando-se para ser cercado pela família, para as lágrimas de boas-vindas e para as perguntas, tendo que ser gentil quando tudo o que queria era levá-la para o quarto deles e abraçá-la e se sentir seguro, vendo todo aquele pesadelo acabar. Esperando em frente à porta. Depois batendo de novo, mais alto. Esperando. McIver desligara o motor para economizar gasolina, o silêncio fazia a espera ainda pior. Flocos de neve se amontoavam no pára-brisa. Pessoas passavam como fantasmas, todo mundo desconfiado e hostil.

       Passos abafados se aproximaram e a vigia abriu só um pedacinho. Os olhos que espiaram Lochart eram frios e duros e ele não reconheceu o pequeno pedaço de rosto que conseguiu ver.

       — Sou eu, Excelência Lochart — disse em farsi, tentando parecer normal. — Minha mulher, a senhora Xarazade, está aqui.

       Os olhos o examinaram com mais atenção para ver se ele estava sozinho ou acompanhado, examinando o carro atrás dele e McIver sentado na direção

       — Espere por favor, aga.

       A vigia foi fechada. Mais uma vez esperando, batendo com os pés por causa do frio, esperando, depois batendo impacientemente na porta de novo, com vontade de arrombá-la, sabendo que não podia. Mais passos. A vigia tornou a abrir-se. Olhos e rosto diferentes.

       — Qual é o seu nome, aga!

       Lochart teve vontade de gritar com o homem, mas não o fez.

       — Meu nome é aga piloto Thomas Lochart, marido de Xarazade. Abra a porta. Está frio, eu estou cansado e vim ver minha mulher.

       Silenciosamente, a vigia foi fechada. Um momento de espera angustiante, depois para o seu alívio ele ouviu a porta sendo destravada. A porta se abriu. O empregado segurava uma lamparina a óleo bem no alto. Mais adiante estava o pátio cercado de muros altos, com uma fonte delicada no meio, árvores e plantas protegidas contra o frio. Do outro lado havia uma outra porta, guarnecida com ferro. Esta porta estava aberta e ele a viu, com sua silhueta se destacando contra a luz. Ele correu e tomou-a nos braços, gemendo e chorando.

       A porta da rua foi fechada e as trancas recolocadas.

       — Espere! — Lochart gritou para o empregado, lembrando-se de McIver. Então ele ouviu o carro sendo ligado e se afastando.

       — O que é, aga! — perguntou o empregado.

       — Nada — respondeu e ajudou Xarazade a entrar em casa. Quando ele a viu na luz, seu estômago encheu-se de gelo e sua felicidade desapareceu. O rosto dela estava inchado e sujo, seu cabelo sujo e despenteado, seus olhos vagos, suas roupas amassadas.

       — Jesus Cristo... — murmurou, mas ela não prestou nenhuma atenção, apenas continuou agarrada nele, fora de si, gemendo numa mistura de farsi e inglês, com as lágrimas escorrendo pelo rosto. — Xarazade, está tudo bem agora... — ele disse, tentando acalmá-la. Mas ela continuou com aquele lamento monótono. — Xarazade, Xarazade, minha querida, eu estou de volta... está tudo bem... — Ele parou. Era como se não tivesse dito nada e, de repente, ficou apavorado de que ela tivesse enlouquecido. Começou a sacudi-la gentilmente, mas isso também não teve nenhum efeito. Então ele notou o velho empregado em pé perto da escada, esperando suas ordens. — Onde... onde está Sua Alteza Bakravan? — perguntou, com Xarazade agarrada ao seu pescoço.

       — Ela está nos seus aposentos, aga.

       — Por favor, diga-lhe que estou aqui e... e que gostaria de vê-la.

       — Oh, ela não recebe mais ninguém agora, aga. Ninguém. Seja como Deus quiser. Ela não viu ninguém desde aquele dia. — As lágrimas brilharam nos seus velhos olhos. — Vossa Excelência esteve fora, talvez não saiba que...

       — Eu soube. Sim, eu soube.

       — Insha'Allah, aga, Insha'Allah, mas que crimes poderia o Mestre ter cometido? Insha'Allah que ele tivesse sido escolhido, Insh...

       — Insha'Allah. Por favor, diga a Sua Alteza... Xarazade, pare com isso! Vamos querida — disse em inglês, enlouquecido pelos seus gemidos —, para com isso! Depois disse em farsi para o criado: — Por favor peça a Sua Alteza para receber-me.

       — Oh, sim, eu vou pedir-lhe, aga, mas Sua Alteza não abre a porta nem responde, nem vai recebê-lo, mas eu vou cumprir a sua ordem imediatamente. — Ele começou a se afastar.

       — Espere, onde estão todos?

       — Quem, aga!

       — A família. Onde está o resto da família?

       — Ah, a família. Sua Alteza está nos seus aposentos, e a senhora Xarazade está aqui.

       Mais uma vez Lochart sentiu a raiva crescer com os gemidos dela.

       — Eu quero saber onde estão Excelência Meshang, sua mulher e filhos e minhas cunhadas e seus maridos.

       — Onde mais poderiam estar a não ser em suas casas, aga?

       — Então diga a Excelência Meshang que eu estou aqui — ele disse. Meshang, o filho mais velho e sua família eram os únicos que residiam lá em caráter semipermanente.

       — Certamente, aga. Como Deus quiser, eu irei ao bazar pessoalmente.

       — Ele está no bazar?

       O velho balançou a cabeça.

       — É claro, aga, ele está lá esta noite, ele e sua família. Agora ele é o Mestre e tem que tomar conta dos negócios. Seja como Deus quiser, aga, ele é o chefe da casa dos Bakravan agora. Eu irei imediatamente.

       — Não, mande outra pessoa. — O bazar era perto e não seria nenhuma intromissão. — Há alguém... Xarazade, Xarazade, pare com isso! — Ele disse com severidade, mas ela não pareceu escutar. — Tem água quente na casa?

       — Deveria ter, aga. A fornalha está em perfeito estado, mas não está ligada.

       — Vocês não têm combustível?

       — Oh, deve haver combustível, aga. O senhor gostaria que eu verificasse?

       — Sim, acenda a fornalha e traga-nos comida e chá.

       — Certamente, aga. O que é que Vossa Excelência deseja?

        Lochart manteve a calma com dificuldade, cada vez mais nervoso com os gemidos dela.

       — Qualquer coisa. Não, arroz e horisht, horisht de frango — ele disse, citando um prato fácil e comum. — Horisht de frango.

       — Se o senhor desejar, aga, mas o cozinheiro tem orgulho do seu horisht de frango e vai levar horas para prepará-lo. — O velho esperou educadamente, com os olhos indo de Lochart para a moça.

       — Então... então, oh, pelo amor de Deus, traga apenas fruta. Fruta e chá, qualquer fruta que tiver...

       Lochart não podia mais suportar aquilo e levantou Xarazade no colo e subiu as escadas, atravessou os corredores até os aposentos que costumavam usar nesta casa de três andares, de teto chato e que era rica, suntuosa e cheia de meandros. Ele abriu a porta e fechou-a com o pé.

       — Xarazade, ouça... Xarazade, ouça! Ouça pelo amor de Deus!

       Mas ela continuou encostada nele, gemendo e balbuciando incoerentemente. Ele a levou para o outro quarto, abafado por causa das janelas e vidraças fechadas e obrigou-a a sentar-se na cama desarrumada, depois correu para o banheiro que era moderno — a maior parte do encanamento era moderno — exceto o vaso.

       Não havia água quente. A água fria correu e não pareceu muito salobre. Ele encontrou algumas toalhas, molhou uma delas e voltou, com o peito doendo, sabendo que estava enfrentando um problema muito difícil. Ela não se havia movido. Ele tentou lavar-lhe o rosto, mas ela resistiu e começou a espumar, piorando ainda mais a sua aparência. Saliva escorria-lhe pelos cantos da boca.

       — Xarazade... Xarazade, minha querida, pelo amor de Deus, minha querida... — Ele a ergueu e abraçou-a, mas nada parecia tocá-la. Só os gemidos mantinham-se constantes, fazendo-o ficar cada vez mais nervoso. — Controle-se — disse alto, sentindo-se desamparado, e se levantou, mas as mãos dela agarraram as suas roupas e tentaram arrastá-lo de volta.

       — Oh, Deus, dê-me forças... — ele viu sua mão atingir-lhe o rosto. Por um momento, o gemido parou, ela o olhou, incrédula, depois seu olhar tornou a ficar vago, a ladainha recomeçou e ela se agarrou às suas roupas. — Deus me ajude — disse desesperado, e então começou a esbofeteá-la, cada vez com mais força, tentando deseperadamente ser duro, mas não duro demais e depois enfiou o rosto dela na cama e bateu-lhe nas nádegas, até ficar com a palma da mão doendo e de repente ele ouviu gritos que eram gritos de verdade e não gemidos:

       — Tommyyyy... pare oh, por favor Tommy, por favor pareeee... Tommy você está me machucando, o que foi que eu fiz? Eu juro que não pensei em mais ninguém, oh, Deus, Tommy, pare por favor...

       Ele parou. O suor escorria pelos seus olhos, suas roupas estavam molhadas e ele saiu da cama tropeçando. Ela se contorcia de dor, com as nádegas e o rosto vermelhos, mas suas lágrimas eram lágrimas de verdade e seu olhar era o seu olhar de sempre e seu cérebro estava normal.

       — Oh, Tommyyyy, você me machucou, você me machucou — ela soluçou como uma criança espancada. — Por quê? Por quê? eu juro que o amo... Eu não fiz nada... nada... para feri-lo e... fazer você me machucar... — Desesperada de dor e vergonha por tê-lo enfurecido, sem entender por quê, sabendo apenas que tinha que acalmá-lo, ela se arrastou para fora da cama e caiu aos pés dele, implorando perdão através das lágrimas.

       Suas lágrimas pararam quando sua mente foi penetrada pela realidade e ela levantou os olhos para ele.

       — Oh, Tommy — disse cheia de tristeza —, papai está morto... assassinado... assassinado pelos Faixas Verdes... assassinado...

       — Sim... sim, minha querida, eu sei, oh, eu sei... Sinto tanto...

       Ele a ergueu e suas lágrimas se misturaram com as dela e ele a abraçou bem apertada e deu-lhe um pouco da sua força e fez com que ela se sentisse inteira e ela também lhe deu um pouco da sua força e também ele se sentiu inteiro. Então eles dormiram um pouco — acordando algumas vezes, mas tornando a adormecer em paz, recuperando as forças, com a chama da lamparina lançando sombras bondosas. Pouco antes de meia-noite, ele acordou. Ela o observava e fez um esforço para beijá-lo, mas uma onda de dor impediu-a.

       — Oh, você está bem?. — Ele a abraçou.

       — Oh, tenha cuidado... desculpe, sim... é... — Com dificuldade, ela tentou enxergar as costas, então viu que suas roupas estavam imundas. Fez uma careta. — Ugh, estas roupas, por favor, me dê licença, querido... — Ela se levantou com dificuldade e tirou-as. Com muito esforço, apanhou a toalha molhada, limpou o rosto e escovou o cabelo. Então, quando ela chegou mais perto da luz, ele viu que um dos seus olhos estava ficando preto e que suas nádegas estavam cheias de manchas roxas.

       — Por favor, perdoe-me... o que foi que eu fiz para ofendê-lo?

       — Nada, nada — respondeu horrorizado e contou a ela como a encontrara.

       Ela o olhou sem entender.

       — Mas... você está dizendo que eu... eu não me lembro de nada disso, só... só de estar sendo espancada.

       — Eu sinto tanto, mas foi a única maneira de... sinto muito.

       — Oh, não, meu querido. — Tentando lembrar-se, ela voltou para a cama e se deitou de bruços, com cuidado. — Se não fosse por você... Seja como Deus quiser, mas se foi como você disse... estranho, e eu não me lembro de nada, de nada desde a hora em que... — Sua voz falseou um pouco, depois ela continuou, tentando ser firme: — Se não fosse por você, talvez eu tivesse enlouquecido para sempre. — Ela chegou mais para perto dele e beijou-o. — Eu o amo, meu bem-amado — disse em farsi.

       — E eu a amo, minha bem-amada — ele respondeu, subjugado

       Depois de um momento, ela disse numa voz estranha:

       — Tommy, eu acho que sei o que me deixou louca... eu vi papai... eu o vi ontem, anteontem,... não consigo me lembrar... ele parecia tão pequeno morto, tão pequenino, morto, com todos aqueles buracos no rosto e na cabeça. Eu não me lembrava dele ser tão pequeno, mas eles o diminuíram, eles tiraram...

       — Não — ele disse gentilmente, vendo as lágrimas caírem. — É Insha'Allah. Não pense nisso.

       — Certamente, marido, se é o que você diz — ela disse imediatamente, de modo formal, em farsi. — É claro que é a Vontade de Deus, sim, mas é importante para mim contar para você, me livrar da vergonha do modo como você me encontrou... eu gostaria de contar-lhe algum dia.

       — Então conte-me agora, Xarazade, e depois deixaremos que fique no passado para sempre — ele respondeu, com o mesmo formalismo. — Por favor, conte-me agora.

       — É que eles tornaram o maior homem do mundo... depois de você... eles o tornaram insignificante. Sem nenhum motivo. Ele sempre foi contra o xá e era um grande partidário desse mulá Khomeini. — Ela disse isso calmamente e ele escutou a palavra "mulá" e não aiatolá ou imã ou farmandeh e sentiu isso como um aviso. — Eles assassinaram meu pai sem nenhum motivo, sem julgamento e de forma ilegal e o fizeram ficar pequeno, eles tiraram tudo o que tinha enquanto homem, enquanto pai, um pai bem-amado. Seja como Deus quiser, era o que eu deveria dizer e vou tentar. Mas não posso acreditar que seja esta a Vontade de Deus. Pode ser a vontade de Khomeini. Eu não sei. Nós mulheres vamos saber logo.

       — O quê? O que você quer dizer com isso?

       — Dentro de três dias nós, mulheres, vamos fazer uma marcha em protesto — todas as mulheres de Teerã.

       — Contra o quê?

       — Contra Khomeini e os mulás que estão contra os direitos das mulheres. Quando ele nos vir marchando sem o chador ele não fará o que é errado.

       Lochart só estava prestando atenção pela metade, lembrando-se dela há poucos dias atrás — foi mesmo há poucos dias atrás que este pesadelo começou? Xarazade tão contente consigo mesma e usando o chador, tão satisfeita em ser apenas uma esposa e não uma mulher moderna como Azadeh. Ele viu os seus olhos, percebeu a sua determinação e compreendeu que ela estava comprometida.

       — Eu não quero que você tome parte nesse protesto.

       — Sim, é claro, marido, mas toda mulher de Teerã vai marchar e tenho certeza de que você não gostaria de me envergonhar diante da memória de meu pai, diante dos representantes dos seus assassinos, gostaria?

       — É uma perda de tempo — disse Lochart, sabendo que estava derrotado, mas querendo continuar a discussão. — Meu amor, eu desconfio que uma marcha de protesto de todas as mulheres do Irã ou de todo o Islã não vai sensibilizar Khomeini nem um pouco. As mulheres no seu Estado islâmico não farão nada que não esteja determinado no Corão, nada. Nem ninguém mais. Não é esta a sua força?

       — É claro que você tem razão. Mas nós vamos marchar em protesto e então Deus vai abrir os seus olhos e tornar tudo claro para ele. É como Deus quer, não como Khomeini quer. No Irã nós temos formas históricas de lidar com esses homens.

       Seus braços estavam em volta dela. Marchar não é a resposta, ele pensou. Oh, Xarazade, há tanto que decidir, que dizer, que contar, agora não é a hora. Mas existe Zagros e um 212 para embarcar. Mas isso deixa Mac sozinho para tocar as coisas, se houver alguma coisa que tocar. E se eu a levasse também? Eu não poderia, a não ser à força.

      — Xarazade, talvez eu tenha que fazer um transporte. Levar um 212 para a Nigéria. Você viria comigo?

       — É claro, Tommy. Quanto tempo nós ficaríamos ausentes? Ele hesitou.

       — Algumas semanas. Talvez mais. — Ele sentiu uma pequena mudança nela, imperceptível.

       — Quando você gostaria de partir?

       — Muito em breve. Talvez amanhã. Ela saiu dos seus braços sem se afastar.

       — Eu não seria capaz de deixar mamãe, não por enquanto. Ela... ela está desesperada, Tommy, e... e se eu fosse, não sei o que aconteceria com ela. E há o pobre Meshang. Ele tem que administrar o negócio, ele precisa de ajuda; há tanta coisa para fazer e para cuidar.

       — Você sabe a respeito da ordem de confisco?

       — Que ordem?

       Ele lhe contou. Seus olhos tornaram a se encher de lágrimas e ela se ergueu, esquecendo-se da dor. Ficou olhando para a chama da lamparina e para as sombras que ela lançava.

       — Então nós não temos mais casa, mais nada. Seja como Deus quiser — disse deprimida. Então, quase na mesma hora, ela falou com um tom de voz diferente: — Não, não é como Deus quiser! É como os Faixas Verdes querem. Agora nós temos que nos juntar para salvar a família, ou então eles terão derrotado papai. Nós não podemos permitir que eles o assassinem e também o derrotem, isso seria terrível.

       — Sim, eu concordo, mas este transporte resolveria os nossos problemas por algumas semanas...

       — Você tem razão, Tommy, como sempre, sim, sim, resolveria se nós precisássemos partir, mas esta é a nossa casa, como sempre foi, se agora não for mais ainda, oh, como seremos felizes aqui! De manhã eu vou pegar os criados e trazer tudo que é nosso do apartamento. Ora! O que são uns poucos tapetes e quinquilharias quando temos esta casa e a nós mesmos? Vou providenciar tudo. Oh, nós vamos ser felizes aqui.

       — Mas e se vo...

       — Este roubo faz com que seja ainda mais importante que fiquemos aqui, para resistir, para protestar. Ele torna a marcha muito mais importante. — Ela colocou um dedo nos lábios dele quando viu que ele ia falar. — Se você precisa fazer este transporte... e é claro que você precisa fazer o seu trabalho... então vá, meu querido, mas volte depressa. Dentro de poucas semanas Teerã terá voltado ao normal e será agradável de novo e eu sei que esta é a Vontade de Deus.

       Oh, sim, pensou cheia de confiança, com a alegria vencendo a dor, eu já estarei no segundo mês e Tommy ficará tão orgulhoso de mim e, enquanto isso, será tão maravilhoso viver aqui, cercada pela família, tendo vingado papai, com a casa cheia de alegria novamente.

       — Todo mundo vai nos ajudar — disse, tornando a deitar nos braços dele, cansada, mas feliz. — Oh, Tommy, estou tão contente que você esteja em casa, que nós estejamos em casa, vai ser tudo tão maravilhoso, Tommy. — Suas palavras tornaram-se mais lentas à medida que o sono tomava conta dela. — Nós vamos todos ajudar a Meshang... e os que estão no estrangeiro vão voltar, tia Annoush e as crianças... eles vão ajudar... e tio Valik vai orientar Meshang..

       Lochart não teve coragem de lhe contar.

 

DOMINGO, 18 de fevereiro

       NO PALÁCIO DO KHAN, TABRIZ: 3:13H. Na escuridão do pequeno quarto, o capitão Ross abriu a tampa de couro do seu relógio e deu uma olhada nos números fosforescentes.

       — Tudo pronto Gueng? — murmurou em gurkhali.

       — Sim, sahib — Gueng sussurrou, contente da espera ter terminado.

       Cautelosamente e sem fazer barulho, os dois homens saíram de suas enxergas que estavam sobre tapetes velhos e fedorentos, no chão de terra. Eles estavam inteiramente vestidos e Ross foi até a janela e espiou para fora. O guarda estava estirado ao lado da porta, profundamente adormecido, com o rifle no colo. A duzentos metros dali, depois dos pomares cobertos de neve e das construções externas, estava o palácio de quatro andares de Gorgon Khan. A noite estava escura e fria, com algumas nuvens e uma nebulosidade em volta da lua que brilhava de vez em quando.

       Mais neve, pensou, depois abriu a porta com cuidado. Os dois homens ficaram lá perscrutando a escuridão. Não havia luz em lugar nenhum. Sem fazer barulho, Ross foi até o guarda e o sacudiu, mas o homem não despertou do sono drogado que ainda duraria umas duas horas. Fora fácil dar-lhe a droga num pedaço de chocolate, guardado para este propósito no seu equipamento de sobrevivência — alguns dos chocolates drogados, outros envenenados. Mais uma vez ele se concentrou na noite, esperando pacientemente que a lua fosse encoberta por uma nuvem. Distraidamente ele coçou uma mordida de pulga. Estava armado com o seu kookri e uma granada.

       — Se formos parados, Gueng, só estávamos dando um passeio — tinha combinado mais cedo. — É melhor deixarmos as armas aqui. Para que levar kookris e uma só granada? É um velho costume gurkha. Uma ofensa contra o nosso regimento andar desarmado.

       — Eu acho que gostaria de levar todas as nossas armas agora e voltar para as montanhas e seguir para o sul, sahib.

       — Se isto não der certo, é o que vamos ser obrigados a fazer, mas é um bocado arriscado — respondera Ross. — É um bocado arriscado. Nós vamos ficar desguarnecidos; aqueles caçadores ainda estão à nossa procura e não vão desistir enquanto não formos apanhados. Não se esqueça de que só com muita dificuldade foi que conseguimos chegar ao esconderijo. Foram as roupas que nos salvaram. — Depois da emboscada em que Vien Rosemont e Tenzing tinham sido mortos, ele e Gueng tinham despido alguns dos seus agressores e colocado vestes tribais por cima dos seus uniformes. Ele tinha pensado em largar os uniformes, mas achou que não era aconselhável. — Se formos apanhados é porque fomos e ponto final.

       Gueng tinha sorrido.

       — Então é melhor você se tornar um bom hindu agora. Aí, se formos mortos, não é um fim mas um começo.

       — Como eu faço isso, Gueng? Tornar-me um hindu? — Ele sorriu ao se lembrar do ar espantado de Gueng e de como ele tinha dado de ombros. Então eles tinham amarrado os corpos de Vien Rosemont e Tenzing e tinham-nos deixado juntos na neve, de acordo com o costume das montanhas:

       — Este corpo não tem mais valor para o espírito, e por causa da imutabilidade da reencarnação, ele é legado aos animais e pássaros que são outros espíritos lutando com seu próprio carma para chegar ao Nirvana, o lugar da Paz Celestial.

       Na manhã seguinte, eles tinham localizado os seus perseguidores. Quando eles desceram das colinas nos arredores de Tabriz, os seus perseguidores estavam no máximo meio quilômetro atrás. Só a sua camuflagem os salvara, permitindo que eles se misturassem com a multidão, muitos nativos tão altos quanto ele e de olhos azuis, muitos tão bem armados. Eles tiveram sorte e logo da primeira vez encontraram a porta dos fundos da garagem imunda, tinham dito o nome de Vien Rosemont e o homem que estava lá os escondera. Naquela noite, Abdullah Khan fora lá com seus guardas, muito hostil e desconfiado.

       — Quem lhe disse para perguntar por mim?

       — Vien Rosemont. Ele também nos contou a respeito deste lugar

       — Quem é este Rosemont? Onde ele está agora?

       Ross contara a ele o que tinha acontecido na emboscada, e vira um novo interesse nos olhos do homem, embora ele continuasse hostil.

       — Como vou saber que você está dizendo a verdade? Quem é você?

       — Antes de Vien morrer, ele me pediu para transmitir-lhe uma mensagem

       Ele estava delirando e sofrendo, mas me fez repetir três vezes para se certificar. Ele disse: "Diga a Abdullah Khan que Peter está atrás da cabeça da Górgona e que o filho de Peter é pior do que Peter. O filho joga com os curtos, assim como o pai, que vai tentar usar uma Medusa para agarrar a Górgona." — Ele viu os olhos do homem brilharem, mas não de alegria. — Então isso significa alguma coisa para você?

       — Sim. Significa que você conhece Vien. Então Vien está morto. Seja como Deus quiser, mas é uma pena. Vien era bom, muito bom, e um grande patriota. Quem é você? Qual era a sua missão? O que você estava fazendo nas nossas montanhas?

       Mais uma vez ele hesitou, lembrando-se de que Armstrong dissera a ele para não confiar demais no homem. No entanto, Rosemont, em quem ele confiara, dissera ao morrer: "Você pode confiar cegamente naquele velho filho da mãe. Eu confiei, uma dúzia de vezes, e ele nunca me falhou. Vá até ele, ele vai livrá-lo..."

       Abdullah Khan estava sorrindo, com a boca tão cruel quanto os olhos.

       — Você pode confiar em mim. Acho que vai ter que confiar.

       — Sim. — Mas não demais, ele acrescentou silenciosamente, odiando a palavra, a palavra que custa a vida, a vida de milhões, a liberdade de milhões e a paz de espírito de todo adulto na terra mais cedo ou mais tarde. — Foi para neutralizar Sabalan — respondeu e contou-lhe o que tinha acontecido lá.

       — Deus seja louvado! Vou passar a informação para Wesson e Talbot.

       — Quem?

       — Ah, não importa. Vou fazer vocês chegarem ao sul. Venham comigo. Não é seguro aqui. Há uma ordem de captura, com recompensa, de "dois sabotadores britânicos, dois inimigos do Islã". Quem são vocês?

       — Ross. Capitão Ross, e este é o sargento Gueng. Quem eram os homens que nos perseguiam? Iranianos ou soviéticos? Ou conduzidos por soviéticos?

       — Os soviéticos não operam abertamente no Azerbeijão. Ainda não. — Os lábios do Khan torceram-se num sorriso estranho. — Eu tenho uma caminhonete aí fora. Subam rapidamente e deitem na traseira. Eu vou escondê-los, e quando for seguro farei vocês chegarem a Teerã. Mas vocês têm que obedecer às minhas ordens. Explicitamente.

       Isto foi há dois dias atrás, mas a vinda dos estrangeiros soviéticos e a chegada do helicóptero tinham tornado tudo diferente. Ele viu a lua se esconder atrás de uma nuvem e bateu no ombro de Gueng. O homenzinho desapareceu no pomar. Quando ouviu o sinal de que estava tudo bem, ele o seguiu. Eles se movimentaram muito bem até chegarem na ala norte da enorme casa. Nenhum guarda nem cachorro por enquanto, embora Gueng tivesse visto alguns dobermans acorrentados.

       Foi uma subida fácil até a varanda do primeiro andar. Gueng foi na frente. Ele correu metade da sua extensão, atravessou o corredor de janelas fechadas até a escada que levava à próxima varanda. No alto ele esperou, verificando o terreno. Ross alcançou-o. Gueng apontou para o segundo grupo de janelas e tirou o seu kookri, mas Ross sacudiu a cabeça e apontou para uma porta lateral que percebera, onde a escuridão era profunda. Ele experimentou a maçaneta. A porta rangeu alto. Alguns pássaros saíram voando do pomar, chamando uns aos outros. Os dois homens se concentraram na direção de onde os pássaros tinham vindo, esperando ver uma patrulha. Não apareceu nenhuma. Esperaram mais um pouco para terem certeza, depois Ross entrou na frente, com a adrenalina aumentando a sua tensão.

       O corredor era longo, com muitas portas dos dois lados e algumas janelas viradas para o sul. Em frente à segunda porta, ele parou, e experimentou a maçaneta cautelosamente. A porta se abriu silenciosamente e ele entrou depressa, seguido de Gueng, com o kookri e a granada preparados. O aposento parecia uma ante-sala: tapetes, almofadões, uma mobília vitoriana antiquada e sofás. Havia duas portas. Rezando para estar escolhendo certo, Ross abriu a porta que ficava mais perto do canto do edifício e entrou. As cortinas estavam fechadas, mas uma réstia de luar mostrou-lhes claramente a cama e o homem que eles procuravam e uma mulher dormindo sob uma pesada colcha. Era o homem certo, mas eles não tinham esperado encontrar uma mulher. Gueng fechou a porta. Sem hesitação, eles se colocaram dos dois lados da cama, Ross do lado do homem e Gueng do lado da mulher. Ao mesmo tempo, eles taparam a boca dos dois com lenços, fazendo pressão suficiente para evitar que eles gritassem.

       — Nós somos amigos, piloto, não grite — Ross murmurou perto do ouvido de Erikki, sem saber o nome dele nem quem era a mulher, apenas reconhecendo-o como sendo o piloto. Ele viu o susto se transformar em ódio à medida em que o sono desaparecia e as mãos enormes ergueram-se para despedaçá-lo. Ele as evitou, aumentando a pressão sob o nariz de Erikki, subjugando-o com facilidade. — Eu vou soltá-lo, não grite, piloto. Somos amigos, somos britânicos. Soldados britânicos. Apenas balance a cabeça se estiver acordado e se tiver compreendido. — Ele esperou, depois sentiu mais do que viu o enorme homem balançar a cabeça, vigiando os seus olhos. Os olhos gritavam perigo. — Mantenha-a amordaçada, Gueng, até termos resolvido as coisas do lado de cá — disse baixinho em gurkhali, e depois para Erikki: — Piloto, não tenha medo, somos amigos.

       Ele diminuiu a pressão e deu um pulo para trás quando Erikki atirou-se em cima dele, depois rolou na cama para pegar Gueng, mas parou, rígido. O luar se refletia no kookri de lâmina curva, mantido perto da garganta dela. Os olhos de Azadeh estavam arregalados e ela estava apavorada

       — Não! Deixem-na em paz... — disse Erikki em russo com uma voz rouca, vendo apenas os olhos orientais de Gueng, pensando que era um dos homens de Cimtarga, ainda confuso e em pânico. Ele estivera dormindo profundamente, com a cabeça doendo das horas de vôo, a maior parte do tempo por instrumentos e em péssimas condições. — O que quer?

       — Fale inglês. Você é inglês, não é?

       — Não, não, eu sou finlandês. — Erikki olhou para Ross, que não passava de uma silhueta ao luar. — Que diabo você quer?

       — Desculpe acordá-lo desse jeito, piloto — Ross disse apressadamente, chegando um pouco mais perto, mantendo a voz baixa. — Desculpe, mas eu tinha que falar com você em segredo. É muito importam.

       — Diga àquele desgraçado para soltar a minha mulher! Agora!

       — Mulher? Oh, sim., sim, é claro, desculpe. Ela... ela não vai gritar? Por favor, diga-lhe para não gritar — Ele viu o homem enorme virar-se para a mulher que estava deitada imóvel sob a pesada colcha, com a boca ainda coberta, o kookri imóvel. Ele o viu estender a mão cautelosamente e tocá-la, com os olhos no kookri. Sua voz era gentil e animadora, mas ele não falou nem em inglês nem em farsi, mas numa outra língua. Em pânico, Ross pensou que fosse russo e ficou ainda mais desorientado, tendo esperado encontrar um piloto britânico da S-G, sem uma companheira de cama, não um finlandês com uma esposa russa, e ficou apavorado de ter levado Gueng para uma armadilha. Os olhos do homem voltaram-se para ele e ele viu mais perigo ainda lá.

       — Diga-lhe para soltar a minha mulher — disse Erikki, em inglês, achando difícil concentrar-se. — Ela não vai gritar.

       — O que foi que você disse a ela? Foi em russo?

       — Sim, foi em russo e eu disse: "Este desgraçado vai soltar você em um segundo. Não grite, apenas venha para trás de mim. Não se mova depressa, apenas venha para trás de mim. Não faça nada a menos que eu ataque o outro desgraçado, então lute pela sua vida.

       — Você é russo?

       — Já disse que sou finlandês e eu me canso facilmente de homens com facas no meio da noite, sejam eles britânicos, russos ou até mesmo finlandeses.

       — Você é um piloto da S-G Helicópteros?

       — Sim, ande logo e solte-a, seja você quem for, ou vou começar alguma coisa.

       Ross ainda não tinha se recuperado do seu próprio pânico.

       — Ela é russa?

       — Minha mulher é iraniana, ela fala russo e eu também — disse Erikki, friamente, movendo-se ligeiramente para fora do raio de luar em direção às sombras. — Vá para a luz, eu não posso vê-lo, e pela última vez, diga a este desgraçado para soltar a minha esposa, diga-me o que quer e depois saia.

       — Sinto muito tudo isso. Gueng solte-a agora.

       Gueng não se moveu. Nem a lâmina curva. Em gurkhali, ele disse:

       — Sim, sahib, mas primeiro pegue a faca que está debaixo do travesseiro do homem.

       Em gurkhali, Ross respondeu:

       — Se ele tentar pegá-la, irmão, se tocar nela, mate-a, eu cuido dele. — Então, em inglês, ele disse gentilmente: — Piloto, você tem uma faca debaixo do travesseiro. Por favor, não toque nela, sinto muito, mas se o fizer antes que tenhamos esclarecido tudo... por favor, seja paciente. Solte-a, Gueng — disse, sem tirar os olhos do homem. Com o canto do olho, ele viu a forma vaga de um rosto, com os cabelos longos e despenteados ocultando-a, depois ela se moveu para trás dos ombros enormes, agasalhando-se com a camisola de mangas compridas. Ross estava de costas para a luz e não viu quase nada dela, só o ódio nos seus olhos, mesmo no escuro. — Sinto muito chegar como um ladrão no meio da noite. Peço desculpas — disse a ela, que não respondeu. Ele repetiu o pedido de desculpas em farsi. Ela também não respondeu. — Por favor, peça desculpas por mim à sua esposa.

       — Ela fala inglês. Que diabo você quer? — Erikki sentia-se um pouco melhor agora que ela estava segura, embora bem consciente da proximidade do outro homem com a faca curva.

       — Nós somos uma espécie de prisioneiros do khan, piloto, e eu vim avisá-lo e pedir a sua ajuda.

       — Avisar-me sobre o quê?

       — Eu ajudei um dos seus capitães há poucos dias atrás. Charles Pettikin

       — Ele viu o nome ser reconhecido imediatamente, então relaxou um pouco. Rapidamente, contou a Erikki a respeito de Doshan Tappeh e do ataque da Savak e como eles tinham escapado, descrevendo Pettikin minuciosamente para não haver nenhum engano.

       — Charlie contou-nos sobre você — disse Erikki, estarrecido, sem sentir mais nenhum medo — mas não disse que o deixara perto de Bandar-e Pahlavi; só que alguns paraquedistas britânicos o salvaram de um Savak que ia estourar os seus miolos.

       — Eu pedi a ele que esquecesse o meu nome. Eu, ahn, nós estávamos numa missão.

       — Sorte para Charlie e para você, nós...

       Ross viu a mulher cochichar no ouvido do marido, distraindo-o. O homem balançou a cabeça e tornou a olhar na direção dele.

       — Você pode ver-me, mas eu não, venha para a claridade. Quanto a Abdullah, se vocês fossem seus prisioneiros, estariam acorrentados, ou num calabouço, não soltos no palácio.

       — Fui informado de que o khan nos ajudaria se tivéssemos problemas. Nós tivemos problemas e ele disse que nos esconderia até que pudesse nos mandar de volta para Teerã, em segurança. Enquanto isso, ele nos botou numa cabana, escondida, do outro lado da propriedade. Há um guarda vigiando-nos permanentemente.

       — Escondê-los de quê?

       — Nós estávamos numa missão e estávamos sendo perseguidos e...

       — Que missão? Eu ainda não posso vê-lo, venha para a claridade. Ross moveu-se, mas não o bastante.

       — Nós tivemos que explodir alguns equipamentos secretos americanos de radar para evitar que fossem roubados pelos soviéticos ou por seus partidários. Eu..

       — Sabalan?

       — Como você sabe disso?

       — Eu estou sendo obrigado a levar um soviético e alguns esquerdistas para saquear postos de radar perto da fronteira e depois levar o material para Astara, na costa. Um deles foi destruído na face norte. Eles não conseguiram tirar nada dali e até agora o resto não revelou nada que valesse a pena, pelo que eu sei. Continue, avisar-me sobre o quê?

       — Você está sendo forçado?

       — Minha mulher é refém do khan e dos soviéticos, em troca da minha cooperação e bom comportamento. — disse Erikki, com simplicidade.

       — Cristo! — A cabeça de Ross trabalhava em alta velocidade. — Eu, ahn, eu reconheci o emblema da S-G quando vocês estavam voando em círculos e vim avisar que os soviéticos estavam aqui, eles chegaram de manhã bem cedo e estão planejando raptá-lo com a ajuda do khan. Parece que ele está jogando dos dois lados contra o meio; um agente duplo. — Ele viu o espanto de Erikki.

       — A nossa gente precisa saber disso depressa.

       — Raptar-me para fazer o quê?

       Não sei exatamente. Mandei Gueng espionar depois que o seu helicóptero chegou. Ele se escondeu atrás de uma janela dos fundos. Conte a eles, Gueng.

       — Foi depois que eles acabaram de almoçar, sahib, o khan e o soviético, e eles estavam ao lado do carro do soviético na hora que ele ia embora. Eu estava atrás de um arbusto ali perto e pude ouvir muito bem. No início, não consegui entender o que eles diziam, mas depois ouvi o khan dizer: "Vamos falar inglês; há criados por perto." O soviético respondeu: "Obrigado pela informação e pela oferta." Então o khan disse: "Quer dizer que estamos de acordo? Com relação a tudo, Patar?" O soviético disse: "Sim, eu vou recomendar tudo o que você deseja. Vou providenciar para que o piloto não o incomode nunca mais. Quando ele tiver terminado aqui, ele será levado para o norte..." Gueng parou por causa do ruído feito por Azadeh. — Sim, memsahibi

       — Nada.

       Gueng concentrou-se, querendo transmitir a mensagem perfeitamente para eles:

       — O soviético disse: "Vou providenciar para que o piloto não torne a incomodá-lo. Quando ele tiver terminado aqui, será levado para o norte, em caráter permanente". E... — Ele pensou por um minuto. — Ah, sim! E ele disse: "O mulá não vai incomodá-lo mais e em troca você vai prender os sabotadores ingleses para mim? Vivos, eu gostaria de tê-los vivos, se for possível". O khan respondeu: "Sim, eu os apanharei, Patar, você..."

       — Petr — disse Azadeh, com a mão no ombro de Erikki — Seu nome é Petr Mzytryk.

       — Cristo! — murmurou Ross, entendendo.

       — O quê? — perguntou Erikki.

       — Eu lhe contarei mais tarde. Termine, Gueng.

       — Sim, sahib. O khan disse: "Eu os pegarei, Patar, vivos, se puder. Qual será o meu prêmio se eles estiverem vivos?" O soviético riu. "Qualquer coisa, dentro do razoável, e o meu?" O khan disse: "Eu a levarei comigo na próxima visita." Sahib, isso foi tudo. Então o soviético entrou no carro e partiu.

       Azadeh estremeceu.

       — O que foi? — disse Erikki.

       — Ele estava se referindo a mim — ela disse num fio de voz.

       — Não estou entendendo — disse Ross.

       Erikki hesitou, com uma pressão ainda maior na cabeça. Ela lhe contara que fora chamada pelo pai para participar do almoço e que Petr Mzytryk a convidara para ir a Tbilisi — "Junto com o seu marido, é claro, se ele estiver livre; eu adoraria mostrar-lhe o nosso campo..." — e como o soviético tinha sido atencioso.

       — Isso... isso é uma coisa pessoal. Não é importante — disse ele. — Parece que você me fez um grande favor. Como eu posso ajudar? — Ele sorriu fatigado e estendeu a mão. — Meu nome é Yokkonen, Erikki Yokkonen, e esta é minha esposa, Az...

       — Sahib! — Gueng sussurrou, alertando-o.

       Ross imobilizou-se. Ele viu a outra mão de Erikki debaixo do travesseiro.

       — Não mova um músculo — disse, com o kookri subitamente fora da bainha. Erikki percebeu o tom de voz e obedeceu. Cautelosamente, Ross puxou o travesseiro, mas a mão não estava perto da faca. Ele apanhou a faca. A lâmina brilhou ao luar. Pensou por um momento, depois entregou-a a Erikki.

       — Sinto muito, mas é preciso tomar cuidado. — Ele apertou a mão esticada que não se movera e sentiu a sua enorme força. Sorriu para ele e virou-se ligeiramente, com a luz caindo no seu rosto pela primeira vez. — Meu nome é Ross, capitão John Ross, e este é Gueng...

       Azadeh prendeu a respiração e se ergueu de um pulo. Todos olharam para ela e agora Ross a viu claramente pela primeira vez. Era Azadeh, a sua Azadeh de dez anos atrás, Azadeh Gorden, como ele a conhecera então, Azadeh Gorden do High Country olhando para ele, mais linda do que nunca, com os olhos maiores do que nunca, ainda uma visão do paraíso.

       — Meu Deus, Azadeh, eu não tinha visto o seu rosto...

       — Nem eu o seu, Johnny.

       — Azadeh... Meu Deus — gaguejou Ross. Ele estava radiante e ela também, e então ele ouviu a voz de Erikki e viu que ele o olhava, com a enorme faca na mão, e uma onda de medo percorreu-o e também a ela.

       — Você é Johnny Olhos Claros? — disse Erikki numa voz neutra.

       — Sim, sim, sou eu... Eu tive o privilégio de conhecer a sua esposa há anos, muitos anos... Meu Deus, Azadeh, como é bom vê-la de novo!

       — Eu também... — Sua mão não havia deixado o ombro de Erikki.

       Erikki podia sentir a mão e ela o queimava, mas não se moveu, hipnotizado pelo homem que estava diante dele. Ela lhe contara a respeito de John Ross e do verão que passaram juntos e do resultado do verão, que o homem não soubera nada a respeito da criança, e ela nunca tentara encontrá-lo para contar-lhe, nem queria que jamais soubesse.

       — A culpa foi minha, Erikki, não dele — ela dissera com simplicidade.

       — Eu estava apaixonada, eu só tinha 17 anos e ele 19. Eu costumava chamá-lo de Johnny Olhos Claros; eu nunca tinha visto um homem com olhos tão azuis antes. Nós estávamos perdidamente apaixonados, mas foi só uma paixão de verão, não como o nosso amor que é para sempre, o meu é e eu me casarei com você se meu pai permitir, oh, sim, por favor, meu Deus, mas só se você puder ser feliz mesmo sabendo que um dia, há muito tempo atrás, eu estava crescendo. Você precisa prometer-me, jurar que pode ser feliz como homem e como marido, pois talvez um dia nós o encontremos. Eu ficarei feliz em encontrá-lo e sorrirei para ele, mas a minha alma será sua, meu corpo será seu, minha vida será sua, e tudo o mais que possuo...

       Ele tinha jurado conforme ela queria, sinceramente e de todo o coração, afastando a inquietação. Ele era moderno, compreensivo e finlandês — a Finlândia não foi sempre progressista, a Finlândia não foi o segundo país no mundo, depois da Nova Zelândia, a conceder às mulheres o direito de votar? Não havia nenhuma inquietação nele. Nenhuma. Ele só estava triste por ela, por ela não ter sido mais cuidadosa, pois ela lhe contara a respeito da ira do pai — uma ira que ele podia entender.

       E agora ali estava o homem, forte, jovem e bonito, de um tamanho muito mais próximo do dela, de uma idade muito mais próxima da dela. Ele se sentiu despedaçado pelo ciúme.

       Ross estava tentando recobrar a calma, dominado pela presença dela. Tirou os olhos dela e da lembrança dela e tornou a olhar para Erikki. E leu tudo claramente em seus olhos.

       — Eu conheci sua mulher há muito tempo atrás, na Suíça... eu estive num colégio lá por algum tempo.

       — Sim, eu sei — disse Erikki. — Azadeh me contou. Eu... eu... é um encontro repentino para todos nós. — Ele saiu da cama, muito mais alto do que Ross, com a faca ainda na mão, todos eles bem conscientes da faca. Ele viu que Gueng, do outro lado da cama, ainda estava com o seu kookri na mão. — Bem. Mais uma vez obrigado, capitão, pelo aviso.

       — Você disse que estava sendo obrigado a pilotar para os soviéticos?

       — Azadeh está como refém para que eu me comporte — disse Erikki, com simplicidade.

       Ross balançou a cabeça Pensativamente.

       — Não há muito que você possa fazer a respeito disso se o khan lhe é hostil. Cristo, que confusão! A minha idéia era que já que você estava sendo ameaçado, também iria querer fugir e que nos daria uma carona no helicóptero.

       — Se eu pudesse daria, sim... sim, é claro. Mas há vinte guardas comigo toda vez que estou voando e Azadeh... minha esposa e eu somos vigiados muito de perto quando estamos aqui. Há um outro soviético chamado Cimtarga que é como se fosse a minha sombra, e Abdullah Khan é... muito cauteloso. — Ele ainda não tinha decidido o que fazer a respeito de Ross. Ele olhou para Azadeh e viu que o seu sorriso era sincero, que o toque no seu ombro era sincero, e que este homem não significava nada mais do que um velho amigo para ela agora. Mas isso não afastou o seu impulso quase cego de atacar. — Nós temos que ter cuidado, Azadeh.

       — Muito cuidado.

       Ela tinha sentido a tensão sob sua mão quando ele dissera "Johnny Olhos Claros" e sabia que, dos três, só ela podia controlar esse perigo extra. Ao mesmo tempo, o ciúme de Erikki, que ele estava tentando com todas as forças esconder dela, a excitava, bem como a evidente admiração do seu antigo amor. Oh, sim, pensou, Johnny Olhos Claros, você está mais maravilhoso do que nunca, mais esbelto do que nunca, mais forte do que nunca — mais excitante, com a sua faca curva e o seu rosto mal barbeado, as suas roupas imundas e o seu cheiro de homem — como pude não reconhecê-lo?

       — Há um momento atrás, quando eu corrigi este homem, dizendo que era Petr e não Patar, isto significou alguma coisa para você, Johnny. O quê?

       — Foi uma mensagem em código que eu transmiti ao khan — disse Ross, dolorosamente consciente do fato de que ela ainda o enfeitiçava. — "Diga a Abdullah Khan que Peter"... este podia ser o Patar ou Petr de Gueng, o soviético. "Que Peter está atrás da cabeça da Górgona e que o filho de Peter é pior do que Peter. O filho joga com os curtos como o pai, que vai tentar usar uma Medusa para agarrar a Górgona.

       — Isso é fácil, Erikki? — perguntou Azadeh.

       — Sim — disse Erikki, distraído. Mas por que "joga com os curtos"?

       — Talvez seja isso — ela exclamou, com a excitação aumentando. "Diga a Abdullah Khan que Petr Mzytryk, KGB, está atrás da sua cabeça, que o filho de Mzytryk", vamos supor que também seja da KGB — "é pior do que o pai. O filho joga com os curtos. Talvez isso signifique que o filho está envolvido com os curdos e sua rebelião que ameaça o poder de Abdullah Khan no Azerbeijão, que a KGB, o pai e o filho também estão envolvidos, e que Petr Mzytryk "usará uma Medusa para agarrar a Górgona" — ela pensou por um momento. — Isso poderia ser um outro enigma e significar "usará uma mulher", talvez uma mulher má para agarrar o meu pai.

       — Ross ficou chocado.

       — O khan é... meu Deus, o khan é seu pai?

       — Sim. Gorgon é o meu nome de família — disse Azadeh — e não Gorden. Mas a diretora da escola em Château d'Or me disse no primeiro dia que eu não devia usar um nome como Gorgon; iriam debochar de mim sem parar, que eu devia ser apenas Azadeh Gorden. Era divertido para mim, e a diretora achou melhor que eu fosse apenas Azadeh Gorden e não a filha de um khan.

       Erikki quebrou o silêncio.

       — Se a mensagem está correta, o khan não confiará nem um pouco nesse matyeryebyets.

       — Sim, Erikki. Mas meu pai não confia em ninguém. Em ninguém mesmo. Se papai está jogando dos dois lados como Johnny acha, ninguém pode dizer o que ele fará. Johnny, quem lhe passou a mensagem que você transmitiu a ele?

       — Um agente da CIA que disse que eu podia confiar a vida a seu pai. Erikki disse ironicamente:

       — Eu sempre soube que o pessoal da CIA era louco.

       — Este cara era muito normal — disse Ross, mais rispidamente do que pretendia. Ele viu Erikki enrubescer e o sorriso dela desaparecer.

       Mais um silêncio. Mais tenso. A claridade do quarto diminuiu quando a lua se escondeu atrás de uma nuvem. A escuridão era inquietante. Gueng, que tinha observado e ouvido sentiu a inquietação e silenciosamente invocou todos os deuses para livrá-los da Medusa, o demônio pagão com serpentes em lugar de cabelo sobre quem os missionários haviam falado na sua primeira escola no Nepal. Então o seu sexto sentido percebeu a aproximação do perigo, ele sussurrou um aviso, foi até a janela e espiou para fora. Dois guardas armados com um doberman numa corrente estavam subindo as escadas em frente.

       Os outros também estavam rígidos. Eles ouviram os guardas caminharem pelo terraço, com o cão farejando e puxando a corrente. Depois eles foram em direção à porta. Mais uma vez ela rangeu. Os homens entraram na casa.

       Ouviram-se vozes abafadas do lado de fora da porta do quarto e o som do cão farejando. Depois perto da porta da ante-sala. Gueng e Ross puseram-se à espreita, com os kookris prontos. Depois de algum tempo, os guardas atravessaram o corredor, saíram da casa e tornaram a descer as escadas. Azadeh movimentou-se nervosamente.

       — Normalmente eles não vêm até aqui. Nunca. Ross murmurou apressadamente:

       — Talvez eles nos tenham visto entrar aqui. É melhor sairmos. Se ouvirem tiros, vocês não nos conhecem. Se ainda estivermos em liberdade amanhã à noite, podemos vir até aqui, digamos logo depois da meia-noite? Talvez pudéssemos pensar num plano.

       — Sim — disse Erikki. — Mas venham mais cedo. Cimtarga avisou-me que talvez tivéssemos que partir antes do amanhecer. Venha por volta das onze horas. É melhor termos vários planos prontos. Vai ser muito difícil sair, muito difícil.

       — Quanto tempo você vai ficar trabalhando para eles, antes de terminar?

       — Não sei. Talvez uns três ou quatro dias.

       — Ótimo. Se não fizermos contato com você, esqueça-se de nós. Certo?

       — Que Deus o proteja, Johnny — Azadeh falou com ansiedade. — Não confie no meu pai, você não deve deixar... não deve deixar que ele ou os outros o levem.

       Ross sorriu e isto iluminou o quarto, até mesmo para Erikki.

       — Não há problema. Boa sorte para nós todos. — Ele acenou despreocupadamente e abriu a porta.

       Em poucos segundos, ele e Gueng tinham partido tão silenciosamente quanto tinham chegado. Erikki olhou pela janela e viu-lhe apenas a sombra descendo as escadas, observando como os dois homens faziam uso da noite de uma forma inteligente e silenciosa, invejando a elegância natural dos movimentos e das maneiras de Ross.

       Azadeh estava em pé ao lado dele, uma cabeça mais baixa, com o braço passado pela cintura dele, vigiando também. Depois de um momento, o braço dele rodeou-lhe os ombros. Eles esperaram, esperando ouvir gritos e tiros, mas a noite permaneceu tranqüila. A lua tornou a sair de trás das nuvens. Não havia movimento em parte alguma. Ele olhou para o relógio. Eram 4:23h.

       Ele olhou para o céu, não havia nenhum sinal do amanhecer ainda. Ao amanhecer ele teria que partir, não para a face norte de Sabalan, mas para outros postos de radar mais para oeste. Cimtarga dissera-lhe que a CIA ainda estava operando certos postos perto da fronteira com a Turquia, mas que hoje o governo de Khomeini tinha ordenado que eles fossem fechados, evacuados e deixados intatos.

       — Eles nunca farão isso — dissera Erikki. — Nunca.

       — Talvez sim, talvez não. — Cimtarga rira. — Assim que recebermos ordens, você e eu iremos voar até lá com os meus "nativos" para apressá-los...

       Matyer! E matyer Johnny Olhos Claros chegando para complicar as nossas vidas. No entanto, agradeço a todos os deuses pelo aviso que ele trouxe. O que estará Abdullah planejando para Azadeh? Eu gostaria de matar aquele porco velho e acabar com isso. Sim, mas não posso. Eu jurei pelos antigos deuses, e esse juramento não pode ser quebrado, de não tocar no pai dela — da mesma forma que ele jurou pelo único Deus que não nos prejudicaria, embora ele vá encontrar um jeito de quebrar a promessa. Será que eu posso fazer o mesmo? Não. Um juramento é um juramento. Como o que você fez a ela de que poderia viver feliz com ela sabendo a respeito dele — ele — não foi? Sua mente escureceu de ódio e ele ficou contente pela escuridão.

       Então a KGB planeja seqüestrar-me. Se for um plano verdadeiro eu estou perdido. E quanto a Azadeh? O que estará o demônio do Abdullah planejando para ela agora? E agora este Johnny chega para nos perturbar — eu nunca pensei que ele fosse tão bonito e duro, um homem com quem ninguém deve se meter, ele e aquela maldita faca, aquela faca assassina...

       — Volte para a cama, Erikki — ela disse. — Está muito frio, não está? Ele balançou a cabeça e se deitou do lado dela, muito perturbado. Quando eles estavam de novo debaixo da enorme colcha, ela se aconchegou nele. Não o bastante para provocar uma reação, mas o suficiente para parecer normal e tranqüila.

       — Que coisa extraordinária descobrir que era ele, Erikki! John Ross. na rua eu certamente não o teria reconhecido. Oh, foi há tanto tempo que eu já tinha esquecido como ele era. Estou tão contente de que você tenha se casado comigo, Erikki — ela disse, com a voz calma e amorosa, certa de que a mente dele estava remoendo aquele antigo amor. — Eu me sinto tão segura com você... se não fosse por você eu teria morrido de medo. — Ela disse isso como se estivesse esperando uma resposta. Mas não estou esperando nenhuma resposta, meu querido, pensou satisfeita e suspirou.

       Ele a ouviu suspirar e imaginou o que significaria aquele suspiro, sentindo o seu calor de encontro a ele, odiando a raiva de que estava possuído. Será que ela tinha sorrido para o seu amante do modo como o fez porque está arrependida? Ou está furiosa comigo — ela deve ter notado o meu ciúme. Ou ela está triste porque esqueci a minha promessa, ou está me odiando porque eu odeio o homem? Eu juro que vou exorcizá-la dele...

       Ah, Johnny Olhos Claros, ela estava pensando, quanto êxtase eu desfrutei em seus braços, mesmo da primeira vez quando dizem que dói, mas nunca doeu. Só uma dor que se transformou num fogo que se transformou numa fusão que me arrancou a vida e tornou a devolvê-la, melhor do que antes, oh, muito melhor do que antes! E então Erikki...

       Estava muito mais quente agora debaixo das cobertas. Sua mão foi até o sexo dele. Ela sentiu que ele se mexia ligeiramente e ocultou um sorriso, certa de que o seu calor o estava atingindo agora, seria tão fácil excitá-lo ainda mais. Mas desaconselhável. Muito desaconselhável, pois ela sabia que ele a tomaria com Johnny na cabeça, tomando-a para se vingar de Johnny e não para amá-la — talvez até pensando que, concordando, ela estaria se sentindo culpada e tentando expiar a culpa. Oh, não, meu amor, eu não sou uma criança boba, é você o culpado, não eu. E embora você fosse ser mais forte do que o normal e mais violento, o que normalmente aumenta o meu prazer, desta vez não aumentaria, pois, querendo ou não, eu iria resistir ainda mais do que você, consciente do meu outro amor. Então, meu querido, é dez mil vezes melhor esperar. Até o amanhecer. Até lá, meu querido, se eu tiver sorte, você já terá se convencido de que está errado em odiar e ter ciúmes e será o meu Erikki de novo. E se não tiver? Então eu recomeçarei — há dez mil maneiras de curar o meu homem.

       — Eu o amo, Erikki — disse e beijou a coberta sobre o seu peito, virou-* se e ajeitou as costas de encontro a ele e adormeceu, sorrindo.

      

       NA BASE AÉREA DE KOWISS: 8:11H. Freddy Ayre cerrou os punhos. Por Deus, não! Você ouviu as ordens de McIver: Se Starke não estiver de volta ao amanhecer, todos os vôos estarão cancelados. Já passa das oito horas e Starke ainda não voltou, portanto todos os..

       — Você vai obedecer às minhas ordens! — Esvandiary, o gerente da IranOil, gritou, e sua voz ecoou por toda a base da S-G. — Eu ordenei que você entregasse um novo tanque de lama e um cano, do contrato com a Guerney, na Plataforma S.,

       — Não haverá nenhum vôo enquanto o capitão Starke não estiver de volta — disse Ayre. Eles estavam na pista de decolagem, perto dos três 212 que Esvandiary escalara para as operações do dia, com os três pilotos equipados e prontos desde o amanhecer, com o resto dos estrangeiros observando, nos mais variados graus de nervosismo e raiva. Em volta deles havia um caminhão com Faixas Verdes hostis e empregados da base que tinham acabado de chegar com Esvandiary. Quatro dos homens de Zataki estavam agachados perto dos helicópteros, mas nenhum deles se movera desde o início da discussão, embora todos eles observassem com atenção.

       — Todos os vôos estão cancelados! — repetiu Ayre. Furiosamente, Esvandiary gritou em farsi.

       — Esses estrangeiros se recusam a obedecer a ordens legítimas da IranOil.

       — Um murmúrio de raiva elevou-se entre os asseclas de Esvandiary que apontaram as armas para os estrangeiros, e ele apontou para Ayre. — Eles precisam de um exemplo.

       Sem nenhum aviso, mãos rudes agarraram Ayre e a surra começou. Um dos pilotos, Sandor Petrofi, correu para impedir, mas foi empurrado para trás, escorregou e foi chutado de volta para onde estavam os outros, impotentes, sob a mira das armas.

       — Pare com isso! Pop Kelly, o capitão alto, gritou, com o rosto lívido.

       — Deixe Ayre em paz, nós vamos executar as missões.

       — Ótimo. — Esvandiary disse aos seus homens para parar. Eles puseram Ayre em pé. — Decolem todos. Imediatamente!

       Quando os aparelhos estavam no ar, ele ordenou que todos os estrangeiros se afastassem.

       — Não haverá motins contra o Estado islâmico nunca mais. Por Deus, todas as ordens da IranOil serão... serão... cumpridas instantaneamente. — Muito satisfeito consigo mesmo por ter terminado com o motim, conforme prometera ao comandante da base, ele entrou no prédio principal, foi até o escritório de Starke, do qual se apossara, e ficou em pé na janela, observando os seus domínios.

       Ele viu dois helicópteros bem afastados agora, o terceiro flutuava a vinte pés de altura sobre o tanque de lama, esperando que o pessoal de terra prendesse o gancho na grande corrente de aço que estava presa ao reboque. Em frente ao edifício, Ayre, cercado por outros estrangeiros, estava sendo socorrido pelo dr. Nutt. Maldito filho da mãe, tinha que me dar tanto trabalho, pensou Esvandiary, e deu uma olhada no seu relógio, admirando-o. Era um rolex de ouro que ele comprara no mercado negro naquela manhã, conforme convinha à sua importância, com o dinheiro do pishkesh dado por um lojista do bazar que queria que o filho trabalhasse na IranOil.

       — O senhor precisa de alguma coisa, Excelência? — Pavoud perguntou servilmente da porta. — Posso dar-lhe os parabéns pelo modo como lidou com os estrangeiros? Há anos que eles precisavam levar uma boa surra para serem colocados nos seus lugares; como o senhor foi inteligente.

       — Sim. De agora em diante a base vai funcionar perfeitamente. Assim que haja um problema, qualquer um que esteja como responsável será usado como exemplo. Graças a Deus que aquele filho de um cão do Zataki vai partir dentro de uma hora, com os seus assassinos, para Abadan.

       — Este vôo vai partir na hora, Excelência. — Os dois homens riram.

       — Sim, traga-me um pouco de chá, Pavoud. — Deliberadamente, Esvandiary não usou as regras normais de educação e notou que o servilismo do homem aumentou. Ele tornou a olhar pela janela. O dr. Nutt estava tratando de um corte no supercílio de Ayre. Eu me diverti vendo Freddy apanhar, ele pensou. Sim, foi muito divertido.

       Sob o vento gelado, o dr. Nutt tinha envolvido Ayre com um outro casaco.

       — É melhor você vir até a enfermaria, rapaz.

       — Eu estou bem — disse Ayre, com dor em todo o corpo. — Acho... acho que não há nada quebrado.

       — Filhos da mãe — alguém disse. — Freddy, é melhor nós pensarmos numa maneira de darmos o fora daqui.

       — Eu vou sair no primeiro avião... Não vou me arriscar a...

       Todos eles olharam para cima quando os motores a jato do helicóptero que estava flutuando se aceleraram. Era muito arriscado levantar um peso daqueles — especialmente com este vento — mas isso não era nenhum problema para um profissional como Sandor. O gancho prendeu logo da primeira vez e assim que o pessoal de terra ficou com as mãos livres, ele aumentou a força, os motores gemeram com força total, agüentando a tensão, e depois helicóptero e carga subiram para o céu. O guarda que estava no banco da frente ao lado de Sandor acenou nervosamente, bem como o que estava na cabine.

       — Você está indo muito bem, capitão... nenhum problema — Sandor ouviu Wazari dizer da torre nos fones de ouvido. Sandor calculou a distância, ganhando altura, com mãos e pés perfeitamente coordenados, vendo apenas Esvandiary na janela do escritório, sentindo-se furioso pela surra violenta levada por Ayre, dada por um bando de homens armados comandados por um covarde. Isso o levou de volta à sua infância em Budapeste, durante a Revolução Húngara. Ele era impotente então — mas não agora.

       — Você está indo bem, HFD, mas um pouco perto demais. — A voz de Wazari avisou-o. — Você está um pouco perto, vá mais para o sul...

       Sandor aumentou a potência, dirigindo-se para a torre que ficava no alto do edifício.

       — A carga está direita? — perguntou. — Parece um pouco estranha.

       — Parece direita, sem problemas, mas vá mais para o sul à medida que subir. Está tudo perfeito... vá mais para o sul, está me ouvindo?

       — Você tem certeza, pelo amor de Deus? O aparelho está parecendo muito lento...

       A agulha subiu até trinta metros. Sandor fechou a cara e sua mão jogou o comando para a direita, ao mesmo tempo em que empurrava o leme para a direita. No mesmo instante, o helicóptero oscilou perigosamente, o guarda que estava ao lado dele perdeu o equilíbrio, bateu de encontro à porta e depois agarrou Sandor, tentando equilibrar-se e deu um encontrão nos controles. Mais uma vez Sandor corrigiu, xingando o guarda como se o homem apavorado fosse um verdadeiro risco.

       Por um momento pareceu que o balanço faria o helicóptero despencar do céu, então Sandor empurrou o guarda que estava aterrorizado.

       — Mayday. Carga fora de controle — ele gritou, com os ouvidos surdos a Wazari, os olhos concentrados embaixo, esquecido de tudo que não fosse a necessidade de vingança. — A carga está fora de controle!

       Sua mão puxou o liberador de carga de emergência, o gancho soltou-se e o tanque de aço despencou do céu diretamente sobre o escritório. Aquela tonelada e meia de aço caiu sobre o telhado, pulverizando alicerces, paredes, vidro, metal, mesas, fazendo desmoronar todo aquele canto, e parou encravada nos destroços da parede interior.

       Um momento de silêncio horrorizado tomou conta de toda a base, depois o barulho dos motores encheu o céu quando, livre da carga, o helicóptero ficou fora de controle. Os reflexos de Sandor lutaram para recuperar o domínio do aparelho, mas sua mente não estava se importando se ia conseguir dominá-lo ou não, se conseguiria pousar ou não, sabendo apenas que ele se vingara de um dos bandidos. Ao lado dele, o guarda estava vomitando e pelos fones ele ouvia "Jesus Cristo... Jesus Cristo..." vindo da torre.

       — Cristo, cuidadoooo! — alguém gritou quando o helicóptero desabou em cima deles. Todo mundo saiu correndo, mas os reflexos de Sandor cortaram os motores e tentaram um pouso de emergência impossível. As pás foram se arrastando pela neve, não se vergaram, e o helicóptero deslizou para frente até parar, intacto, a quarenta metros de distância.

       Ayre foi o primeiro a chegar à cabine. Ele abriu a porta violentamente. Sandor estava lívido, abobalhado, olhando para a frente.

       — A carga ficou fora de controle... — disse com voz rouca.

       — Sim.

       Foi tudo o que Ayre pôde dizer, sabendo que era mentira, depois outros foram chegando e ajudaram Sandor, que estava com as pernas bambas, a descer da cabine. Atrás dele, perto do edifício, Ayre viu Faixas Verdes olhando estarrecidos para os destroços, depois Pavoud e o outro funcionário saíram cambaleando pela porta da frente, em estado de choque. A janela e o canto onde Esvandiary estivera tinham virado pó. O dr. Nutt abriu caminho no meio das pessoas e correu em direção às ruínas, enquanto Wazari descia a escada de emergência, saindo da torre que oscilava perigosamente, com metade dela solta no ar. Cristo, pensou Ayre, Wazari deve ter visto tudo. Ele se ajoelhou ao lado do amigo.

       — Você está bem, Sandy?

       — Não — disse Sandor, abalado. — Acho que enlouqueci. Eu não podia parar.

       Wazari abria caminho no meio das pessoas em direção à cabine, ainda em pânico por ter visto o tanque caindo em cima dele, sabendo que o piloto desobedecera propositalmente às suas instruções.

       — Você está louco, porra? — Ele explodiu com Sandor por cima do barulho dos motores.

       Ayre enfureceu-se.

       — Porra, a carga ficou fora de controle! Nós todos vimos e você também.

       — Você tem toda a razão, eu vi e você também. — Wazari olhou, apavorado, para todos os lados, à procura de Faixas Verdes, mas não havia nenhum por perto. Então ele viu Zataki se aproximando, vindo de um dos bangalôs. Seu terror aumentou. Ele ainda estava muito machucado da surra que levara de Zataki, seu nariz amassado, sua boca doendo, de onde tinham sido arrancados três dentes, e ele sabia que admitiria qualquer coisa para evitar outra surra. Ele se ajoelhou ao lado de Sandor, arrastando Ayre com ele. — Ouça — sussurrou, desesperado — você jura por Deus que vai me ajudar? Você promete?

       — Eu já disse que faria o que pudesse! — Ayre livrou-se dele, furioso, sentindo muita dor por ter-se abaixado. Ele se ergueu e deu de cara com Zataki. O susto o paralisou... e os olhos do homem. Todos os outros tinham recuado para longe deles.

        — Piloto, você fez isto para matar Esvandiary, não foi? Sandor levantou os olhos para ele.

       — A carga ficou fora de controle, coronel.

       Zataki pôs os olhos em Ayre, que se lembrou do que o dr. Nutt dissera a respeito do homem, com a cabeça doendo, o saco, o corpo inteiro.

       — A... ahn, a operação é muito difícil, foi o vento. A carga ficou fora de controle. Foi um Ato de Deus, Excelência...

       Wazari deu um passo para trás quando Zataki se virou para ele.

       — É verdade, Excelência, disse imediatamente. — Os ventos lá em cima são muito perigosos. — Ele gritou quando o punho de Zataki golpeou o seu estômago e se dobrou de dor, depois Zataki agarrou-o e atirou-o de encontro ao helicóptero.

       — Agora diga-me a verdade, verme!

       — É verdade — Wazari murmurou, no meio da náusea, quase sem poder falar. — É verdade! Foi Insha'Allah! — Ele viu o punho de Zataki preparado e gritou numa mistura de farsi e inglês: — Se você me bater, eu vou dizer qualquer coisa que queira ouvir, qualquer coisa. Eu não posso suportar outra surra e vou jurar qualquer coisa que você queira, mas a carga fugiu ao controle. Por Deus, eu juro por Deus que a carga fugiu ao controle.

       Zataki olhou fixamente para ele.

      — Deus o mandará para o fogo do inferno por toda a eternidade se você tiver dito uma mentira em Seu Nome. Você jura que foi só a Vontade de Deus? Que a carga ficou fora de controle? Você jura que foi um Ato de Deus?

       — Sim, sim, eu juro! — disse Wazari, tremendo, ainda seguro por ele. E tentou demonstrar sinceridade no olhar, sabendo que sua única chance de viver estava com Ayre, provando-lhe o seu valor. — Eu juro por Deus e pelo Profeta que foi um acidente, um... um Ato de Deus. Insha'Allah...

       — Como Deus quiser. — Zataki balançou a cabeça, absolveu-o e soltou-o. Wazari escorregou para a neve, vomitando, e todos os outros agradeceram a Deus, aos céus ou ao carma o fato de que, por enquanto, a crise tivesse passado. Zataki fez um sinal para os destroços. — Tirem de lá o que restar de Esvandiary.

       — Sim... sim, imediatamente — disse Ayre.

       — A menos que o capitão volte, você levará a mim e a meus homens para Bandar Delam. — Zataki se afastou. Seus Faixas Verdes foram com ele.

       — Cristo! — alguém murmurou, todos eles imensamente aliviados. Eles ajudaram Sandor a se levantar e também Wazari.

       — Você está bem, sargento? — perguntou Ayre.

       — Não, maldição, não, não estou! — Wazari cuspiu um pouco de vômito. Quando ele viu que os Faixas Verdes tinham ido embora com Zataki, seu rosto contorceu-se de ódio. — Aquele maldito filho da mãe! Espero que ele vá para o inferno!

       Ayre puxou Wazari para um lado e baixou a voz.

       — Eu não me esquecerei que prometi tentar ajudá-lo. Quando Zataki partir você estará bem. Eu não me esquecerei.

       — Nem eu — disse Sandor, com voz fraca. — Obrigado, sargento.

       — Você me deve a sua maldita vida — disse o homem e tornou a cuspir, com os joelhos fracos e o peito ardendo. — Você poderia ter-me matado também com aquele maldito tanque.

       — Sinto muito. — Sandor estendeu a mão. Wazari olhou para a mão estendida e depois para o seu rosto.

       — Eu apertarei a sua mão quando estiver em segurança, fora deste maldito país. — E saiu mancando.

       — Freddy! — O dr. Nutt estava no meio dos destroços com dois mecânicos, tentando retirar as vigas e o resto e acenou chamando-o. Os Faixas Verdes estavam em volta, vigiando. — Dê-nos uma ajuda aqui, sim?

       Todos foram ajudar. E nenhum deles queria ser o primeiro a ver Esvandiary.

       Eles o encontraram desmaiado numa abertura sob um dos lados do tanque. O dr. Nutt agachou-se ao lado dele, examinando-o com dificuldade.

       — Ele está vivo — gritou, e Sandor sentiu o estômago revirar. Rapidamente todos ajudaram a retirar os pedaços de viga e os restos da escrivaninha de Starke e arrastaram gentilmente o homem.

       — Acho que ele está bem — disse o dr. Nutt, com a voz rouca. — Levem-no para a enfermaria. Ele está com um galo feio na cabeça mas os braços e pernas parecem direitos e não há nada esmagado. Alguém vá buscar uma maca.

       As pessoas se apressaram em cumprir as suas ordens, sentindo-se mais aliviadas, todas odiando 'Pé-quente' mas desejando que ele estivesse bem. Sem ninguém ver, Sandor foi para trás do edifício, tão aliviado que podia até chorar, e vomitou violentamente.

       Quando voltou, só Ayre e Nutt estavam esperando.

       — Sandy, é melhor você vir também, deixe-me dar uma olhada em você disse Nutt. — Maldita ala de acidentados, é o que nós temos agora

       — Tem certeza de que 'Pé-quente' vai ficar bom?

       — Tenho certeza absoluta. — Os olhos do médico estavam lacrimejando, de um azul pálido e um tanto injetados. — O que houve de errado, Sandy? — perguntou calmamente.

       — Não sei, doutor. Tudo o que eu queria era apanhar aquele desgraçado e na hora, largar o tanque me pareceu a coisa perfeita para fazer

       Você sabe que isso seria assassinato? Ayre disse, inquieto:

       — Doutor, o senhor não acha que é melhor deixar as corsas corno estão? Não, não acho. — A voz de Nutt tornou-se mais severa. — Sandy, você sabe que isso foi uma tentativa de assassinato.

       — Sim. — Sandor olhou para ele. — Sim, eu compreendo e sinto muito.

       — Você sente que ele não esteja morto?

       — Juro por Deus, doutor. Eu agradeço a Deus que ele esteja vivo. Eu ainda acho que ele se tornou uma pessoa má e covarde e tudo que eu detesto e não posso perdoá-lo por... por ordenar a surra em Freddy, mas isso não é desculpa para o que fiz. O que eu fiz foi uma loucura, não há desculpa para isso, e eu realmente agradeço a Deus por ele estar vivo.

       — Sandy — disse Nutt, com a voz mais calma —, é melhor você não voar por um dia ou dois. Você sofreu uma pressão forte demais. Não precisa preocupar-se, rapaz, desde que compreenda. Apenas vá com calma por um ou dois dias. Você vai ter uma tremedeira esta noite, mas não se preocupe. Você também, Freddy. É claro que isso fica entre nós três e a carga se desequilibrou. Eu vi. — Ele ajeitou os tufos de cabelo sobre a cabeça calva, que o vento tinha despenteado. — A vida é estranha, muito estranha, mas aqui entre nós três, Deus estava com você hoje, Sandy, se é que existe um Deus. — Ele se afastou, curvado como um velho saco de batatas.

       Ayre ficou olhando para ele.

       — O doutor é boa pessoa, sabe, nós tivemos muita sorte, tão próximos de um desastre, tão...

       Houve um grito e eles olharam naquela direção. Um dos pilotos perto do portão principal gritou de novo e apontou. O coração deles deu um salto. Starke caminhava pela estrada vindo da cidade. Estava sozinho. Tanto quanto podiam ver dali, ele estava ileso, andando com passos largos. Acenaram excitadamente e ele acenou de volta, e a notícia se espalhou pelo campo e Ayre saiu correndo para recebê-lo, esquecido da dor. Talvez exista um Deus no céu afinal de contas, pensava alegremente.

      

       EM LENGEH: 14:15H. Scragger estava tomando sol na grande plataforma de madeira ancorada a cem metros da praia, com uma pequena balsa de borracha presa a ela. A plataforma consistia em pranchas de madeira presas em tambores vazios de petróleo. Na balsa havia equipamento de pesca e um walkie-talkie, e sob ela estava pendurada uma gaiola de arame com os doze peixes que ele e Willi Neuchtreiter já tinham apanhado para o jantar — o golfo estava cheio de camarões, cavalas, atuns, percas, robalos e dúzias de outras espécies.

       Willi, um outro piloto, nadava preguiçosamente nas águas rasas e mornas ali perto. Na praia ficava a base deles — meia dúzia de trailers, cozinha, dormitórios para a turma de iranianos, um trailer-escritório com torre de rádio e antena, hangares com espaço para uma dúzia de 212 e 206.

       Atualmente, a tripulação completa compunha-se de cinco pilotos, inclusive ele, sete mecânicos, 15 empregados iranianos, diaristas, cozinheiros e serventes, e o gerente da IranOil, Kormani, que estava doente. Dos outros pilotos, dois eram britânicos e o último, Ed Vossi, americano.

       Na base estavam três 212 — no momento com trabalho suficiente para apenas um — e dois 206 Jet Rangers, sem trabalho praticamente nenhum. Fora o Consórcio Francês com os seus contratos de Siri de Georges de Plessey, todos os outros contratos tinham sido cancelados ou suspensos até o fim das agitações. Ainda havia rumores de muita agitação na grande base naval de Bandar Abbas, que ficava a leste, e de lutas ao longo de toda a costa. Há dois dias, a agitação tinha alcançado a base pela primeira vez. Agora eles tinham um komiteh permanente de Faixas Verdes, polícia e um mulá:

       — Para proteger a base contra os esquerdistas, capitão Excelência.

       — Mas mulá Excelência, meu velho, nós não precisamos de proteção.

       — Seja como Deus quiser, mas as nossas importantes instalações de petróleo da ilha de Siri foram atacadas e avariadas por aqueles cães. Os nossos helicópteros nos são vitais e não serão estragados. Mas não se preocupem, nada será mudado por nós. Nós compreendemos o nervosismo de vocês em voar com armas, portanto nenhum dos nossos irá armado, embora um de nós vá voar sempre com vocês. Para a sua proteção.

       — Scragger e os outros tinham ficado mais tranqüilos com a presença no komiteh do sargento da polícia local, Qeshemi, com quem eles tinham sempre mantido boas relações. Os problemas de Teerã, Qom e Abadan mal os tinham alcançado aqui no estreito de Ormuz. As greves foram poucas e muito ordeiras. De Plessey estava pagando as contas da EPF, portanto estava tudo ótimo, exceto pela falta de trabalho.

       Scragger olhou preguiçosamente em direção à praia. A base estava em ordem, e ele podia ver os homens cumprindo as suas tarefas, limpando, consertando, com alguns membros do komiteh sentados descansadamente na sombra. Ed Vossi estava perto do 206 fazendo a revisão.

       — Não há trabalho suficiente — murmurou Scragger. Tinha sido assim nos últimos meses e ele sabia muito bem o quanto isso podia ser desastroso. A falta de vôos regulares e a necessidade de comprar equipamento moderno é que o tinham convencido a vender a Sheik Aviation para Andrew Gavallan há muitos anos trás.

       Mas não me arrependo, pensou. Andy é fantástico, ele tem sido correto comigo. Eu tenho um pedacinho da companhia e posso pilotar enquanto estiver em forma. Mas o Irã é terrível para Andy no momento. Ele não está sendo pago nem pelo trabalho que já foi feito nem pelo que está sendo feito agora, exceto aqui, o que é uma pena. Os bancos já estão fechados há uns quatro ou cinco meses, e ele vem sustentando as operações no Irã com o dinheiro do seu próprio bolso. Alguma coisa tem que acontecer. Com apenas Siri funcionando, não há o suficiente para pagar nem a metade dos nossos compromissos.

       Há três dias, quando Scragger trouxe Kasigi de volta do canteiro de obras da Iran-Toda perto de Bandar Delam, Kasigi perguntara a de Plessey se podia fretar um 206 para ir para Al Shargaz ou Dubai.

       — Eu tenho que entrar em contato imediatamente, por telefone e telex, com o meu escritório principal no Japão para confirmar os acordos feitos com você a respeito dos seus preços e sobre a elevação dos preços dos futuros fornecimentos. — De Plessey concordara imediatamente. Scragger decidira que ele mesmo ia pilotar e estava satisfeito por isso. Em Al Shargaz, ele estivera com Manuela e Johnny Hogg. E com Genny.

       Ela o pusera a par de tudo, e em particular, principalmente a respeito de Lochart.

       — Deus do céu! — dissera, chocado com a rapidez com que as operações estavam se desintegrando e com que a revolução os estava envolvendo pessoalmente. — Pobre velho Tom.

       — Tom devia ter chegado de Bandar Delam na véspera da minha partida, mas não chegou, e não sabemos ainda o que realmente aconteceu. Eu, pelo menos, não sei — ela disse. — Scrag, só Deus sabe quando vamos poder conversar em particular outra vez, mas há outra coisa: só entre nós dois, sim?

       — Prometido.

       — Eu não acho que o governo volte ao normal algum dia. Eu queria perguntar a você: mesmo que volte, será que os sócios, com ou sem ajuda oficial, ou a IranOil poderiam forçar-nos a sair e ficar com os nossos aparelhos e equipamentos?

       — Por que eles fariam isso? Eles precisam dos helicópteros... mas, se quisessem, é claro que poderiam — respondera, dando um assovio de espanto, pois esta possibilidade jamais lhe ocorrera antes. — Maldição, se eles decidissem que não precisavam de nós, Genny, isso seria muito fácil, muito fácil. Eles podiam conseguir outros pilotos, iranianos ou mercenários, não é isso que nós somos? É claro que eles poderiam nos expulsar e ficar com o nosso equipamento. E se perdermos tudo o que temos aqui, adeus S-G.

       — Foi o que Duncan pensou. Será que poderíamos partir com os nossos aviões e peças, se eles decidissem fazer isso?

       Ele tinha rido.

       — Seria um roubo perfeito. Mas não poderia ser feito, Genny. Se nós tentássemos e eles nos apanhassem, eles nos mandariam para a cadeia. Não há nenhuma maneira de fazer isso. Não sem a aprovação do DAC do Irã.

       — E se fosse a Sheik Aviation?

       — Não faria nenhuma diferença, Genny.

       — Então você simplesmente os deixaria roubar tudo o que lutou a vida inteira para conseguir, Scrag? Eu não acredito.

       — Nem eu — ele disse na mesma hora —, embora só Deus saiba o que eu faria.

       Ele viu o rosto bondoso observando-o, com os óculos escuros empoleirados na cabeça, com os olhos cheios de ansiedade, sabendo que sua preocupação não era só por McIver e tudo o que ele construíra, não só pelas suas próprias economias que, como as dele, estavam presas à S-G, mas também por Andy Gavallan e por todos os outros.

       — O que eu faria? — disse vagarosamente. — Bem, nós temos quase tanto em peças no Irã quanto em aparelhos. Nós teríamos que começar a retirá-las, embora não saiba como fazer isso sem que as pessoas fiquem desconfiadas. Nós não poderíamos tirar todas elas, mas poderíamos diminuir o prejuízo. Então nós todos teríamos que partir ao mesmo tempo, todo mundo, todos os helicópteros, de Teerã, Kowiss, Zagros, Bandar Delam e daqui. Nós... — Ele pensou um pouco. — Nós teríamos que vir para cá, Al Shargaz... Mas, Genny, nós todos teríamos que percorrer distâncias diferentes e alguns teriam que parar uma ou duas vezes para reabastecer e mesmo que chegássemos a Al Shargaz, eles ainda poderiam apreender os aparelhos por falta de autorizações apropriadas. — Ele a examinou. — Andy acredita que é isso que os sócios pretendem fazer?

       — Não, não, ainda não, e nem Duncan, ele não tem certeza. Mas é uma possibilidade e o Irã está piorando dia a dia. É por isso que estou aqui, para perguntar a Andy. Não se pode colocar isso numa carta ou num telex.

       — Você telefonou para Andy?

       — Sim, e disse tanto quanto ousei. Duncan me pediu para tomar cuidado; e Andy me disse que tentaria se informar em Londres e que quando chegasse, dentro de uns dois dias, decidiria o que deveríamos fazer. — Ela tornou a colocar os óculos. — Nós devemos estar preparados, você não acha, Scrag?

       — Eu estava imaginando por que você tinha deixado o Dunc sozinho. Ele mandou você?

       — É claro. Andy vai estar aqui dentro de uns dois dias.

       A mente de Scragger trabalhava furiosamente. Se tentarmos enganá-los, alguém vai se machucar. O que eu faria com os radares de Kish, Lavan e Lengeh, que podem lançar vinte aviões de combate atrás de nós em questão de minutos, antes de termos alcançado céus amigos, caso decolássemos sem permissão?

       — Dunc acha que eles vão nos passar a perna?

       — Não — ela respondera. — Ele não, mas eu acho.

        — Neste caso, Genny, aqui entre nós, é melhor pensarmos num plano.

       Ele recordou como o seu rosto se iluminara, e tornou a pensar no quanto Duncan McIver era sortudo, embora fosse o mais intratável e dogmático dos homens.

       Seus olhos estavam observando o mar quando ele ouviu o 206 levantar vôo. Ed é um grande piloto, pensou.

       — Ei, Scrag!

       — Sim, Willi?

       — Você nada e eu fico olhando. — Willi subiu para a plataforma.

       — Está bem, companheiro.

       Além da grande quantidade de peixes comestíveis, havia também predadores, tubarões e arraias e outros e, às vezes, águas-vivas venenosas, mas eram raros em águas pouco profundas como aquelas, e desde que se conservasse os olhos abertos, podia-se ver a sombra deles a tempo de alcançar a plataforma. Scragger bateu na madeira, como sempre, antes de mergulhar na água morna.

       Willi Neuchtreiter também estava nu. Ele era um homem baixo e atarracado de 48 anos, de cabelos castanhos e mais de cinco mil horas de vôo em helicópteros, dez anos com o exército alemão e oito com a S-G — trabalhando na Nigéria, no mar do Norte, em Uganda e aqui. O seu boné estava na plataforma e ele o colocou e também os óculos escuros, espiou o 206 que ia na direção do golfo, e depois observou Scragger. Em poucos minutos, o sol já o secara. Ele gostava do sol, do mar e de estar em Lengeh.

       Tão diferente de casa, pensou. Sua casa era em Kiel, no norte da Alemanha, no mar Báltico, onde o clima era severo e quase sempre frio. Sua mulher e seus três filhos tinham ido para casa no ano anterior por causa da educação das crianças, e ele resolvera ficar dois meses aqui e um em Kiel, e conseguira uma transferência para voltar para o mar do Norte, para ficar mais perto de casa. No próximo mês, depois que terminasse a sua licença, ele não voltaria mais para Lengeh.

       Droga de mar do Norte com seu clima terrível e constante perigo, preso nos alojamentos vagabundos, tendo que suportar a chateação de passar duas semanas voando numa plataforma a cem milhas da costa, para ter direito a uma semana em casa, em Kiel, ganhando apenas o suficiente para pagar a hipoteca e o colégio e guardar um pouco para as férias. Mas você vai estar perto das crianças e de Hilda e da mãe e do pai, e a sua terra é sempre a sua terra. Sim, é verdade, e com um pouco de sorte, em breve, todos os alemães poderão misturar-se livremente uns com os outros. A mãe vai poder visitar a sua família em Schwerin sempre que quiser. E Schwerin e todas as outras Schwerins não estarão mais ocupadas. Deus permita que eu viva para ver este dia.

       — Scrag, tem uma sombra se aproximando.

        Scrag a vira quase ao mesmo tempo, e nadou de volta para a plataforma. A sombra se aproximou depressa. Era um tubarão.

       — Papagaio — ele disse. — Olhe o tamanho dele!

       O tubarão diminuiu a velocidade e começou a nadar em círculos, com o dorso cortando a superfície calma da água. Cinza claro, mortal e sem pressa. Os dois homens observaram silenciosamente, fascinados. Então Scragger riu.

       — Que tal, Willi?

       — Sim, Nossa Senhora, ele não é o Tubarão, mas é o maior que eu já vi. Acho que podemos pegá-lo. — Alegremente, ele apanhou a vara de pesca que estava no barco. — E quanto à isca? O que você acha que devemos usar?

       — A perca, aquela grande.

       Rindo, Willi enfiou a mão na gaiola e tirou o peixe que se debatia e enfiou-o no anzol de aço próprio para tubarões. Havia sangue em suas mãos e ele lavou-as na água, vigiando a presa. Depois ele se levantou, verificou a corrente presa ao anzol, amarrou-a cuidadosamente à grossa linda de náilon que estava no carretei.

      — Aqui está, Scrag.

       — Nada disso! Foi você quem viu primeiro!

       Excitadamente, Willi enxugou o sal da testa com as costas da mão, ajeitou o boné e olhou para o tubarão que ainda nadava em círculos a uns vinte metros de distância. Com muito cuidado, ele atirou a isca diretamente no caminho dele, esticando delicadamente a linha. O tubarão passou pela isca e continuou a circular. Os dois homens praguejaram. Willi recolheu a linha. A perca se debatia espasmodicamente, morrendo. Havia uma fina trilha de sangue no mar. Mais uma vez Willi atirou a isca com perfeição. Mais uma vez nada aconteceu.

       — Maldição — disse Willi. Desta vez ele deixou a isca onde estava, vendo-a afundar cada vez mais até chegar ao fundo, mantendo apenas uma ligeira tensão na linha. O tubarão se aproximou, passou por cima dela, quase tocando-a com a barriga e continuou a circular.

       — Talvez ele não esteja com fome.

       — Esses filhos da puta estão sempre com fome. Talvez ele saiba que estamos esperando por ele. Ou esteja nos preparando uma cilada. Scrag, pegue um peixe menor e atire exatamente onde está a isca quando ele estiver passando.

       Scragger escolheu um robalo. Ele o atirou com destreza. O peixe caiu no mar dez metros na frente do tubarão, pressentiu o perigo e escapuliu para o fundo. O tubarão não deu a menor atenção a ele, nem à perca que estava tão pertinho, simplesmente deu uma rabanada e continuou a circular.

       — Deixe a isca ficar onde está — disse Scragger. — Não é possível que esse desgraçado não tenha sentido o cheiro dela.

       Agora eles podiam ver os olhos amarelos e os três peixinhos pilotos flutuando sobre a sua cabeça, a linha fina da enorme boca sob o nariz rombudo, a pele escorregadia e o poder do enorme rabo. Mais uma volta. Um pouco mais perto desta vez.

       — Aposto que ele tem mais de dois metros, quase três, Willi.

       — Aquele filho da puta está nos vigiando, Scrag — disse Willi apreensivo, perdendo toda a animação.

       Scragger franziu a testa, com a mesma sensação. Ele afastou os olhos do tubarão e olhou para o barco. Não havia nenhuma arma aproveitável lá, só um canivete pequeno, um arpão leve de alumínio e alguns remos. Mesmo assim, ele puxou o barco mais para perto, ajoelhou-se e esticou a mão para apanhar a faca e o arpão. Gostaria de ter um revólver, pensou.

       Um grito súbito de Willi o fez dar um pulo para trás e ele mal teve tempo de ver o tubarão vindo diretamente na direção dele em grande velocidade. Ele bateu contra o barco de borracha, com a feia cabeça fora da água, as mandíbulas se abrindo ao se lançar contra ele, batendo de encontro aos tambores de petróleo, fazendo a popa do barco sair da água. E então foi embora, deixando os dois homens apavorados.

       — Meu Deus, Harry... — Willi gritou e apontou. O tubarão estava atacando a isca. Eles o viram engolir a isca e o anzol e se afastar, com a linha cantando no carretel. Willi prendeu o fôlego; depois, segurando a vara com as duas mãos, puxou com força.

       — Pegueiiii eleeeee! — gritou, agüentando a pressão, com o carretel chiando enquanto a linha corria, com o anzol bem preso.

       — O maldito filho da mãe quase me pegou — disse Scragger, com o coração disparado, observando a linha esticada. — Não deixe o desgraçado enganá-lo.

       Willi pôs mais pressão na linha e começou a enfrentá-lo, com a linha esticada.

       — Preste atenção nele, Willi, ele vai virar e voltar rapidamente... — Mas o tubarão não fez isso, ele simplesmente diminuiu a velocidade e lutou freneticamente para se livrar da linha e do anzol, enchendo a água à sua volta de bolhas, com metade do corpo para fora, rolando e girando. Mas o anzol agüentou e a linha era bastante forte e Willi deu ao peixe liberdade suficiente, permitindo que ele se afastasse, e depois mais uma vez começando a recolher a linha. Os minutos foram passando. O esforço de lutar contra um peixe desses sem um arreio ou uma cadeira, sem poder usar as pernas para se apoiar, era enorme. Mas Willi ficou firme. Repentinamente, o tubarão parou de lutar, começando a nadar em círculos novamente. Mais devagar.

       — Boa, Willi, você o pegou, Willi.

       — Scrag, se ele se aproximar depressa, veja se pode evitar que a linha se embarace, e quando eu o trouxer para uma distância suficiente, dê-lhe um golpe com o arpão. — Willi sentia dor nas costas e nas mãos, mas agora ele estava motivado, esperando pela próxima jogada. Ela veio rapidamente.

       O tubarão virou-se e nadou para cima deles. Willi começou a recolher a linha freneticamente para diminuir a folga, caso o tubarão tornasse a virar e partisse a linha, mas ele continuou avançando e foi para baixo da plataforma. Milagrosamente, a linha não se embaraçou e quando o tubarão saiu do outro lado para se lançar em direção a águas mais profundas, Willi deu bastante linha e aos poucos voltou a recolher. Mais uma vez o tubarão tentou livrar-se do anzol num paroxismo de raiva, fazendo a água ficar branca de espuma, e mais uma vez Willi agüentou. Mas os seus músculos estavam se enfraquecendo, ele sabia que não poderia segurá-lo sozinho e praguejou baixo.

       — Dê-me uma mão, Scrag.

       — Está bem, companheiro.

       Juntos, os dois homens seguraram a vara, com Willi manejando o carretel, puxando o tubarão, manobrando-o, cada vez mais perto. O tubarão estava mais lento.

       — Ele está ficando cansado, Willi. — Eles o foram puxando, centímetro por centímetro. Agora o tubarão estava a trinta metros da plataforma, quase sem avançar, com o grande rabo balançando vagarosamente para frente e para trás, quase se espojando na água. Para respirar, um tubarão precisa se movimentar para a frente. Se parar, ele se afoga.

       Pacientemente, eles continuaram a combatê-lo, com o seu peso enorme machucando-os. Agora eles podiam ver o seu tamanho, os olhos amarelos, as mandíbulas cerradas, os peixes pilotos. Vinte e cinco metros, vinte, dezoito, dezessete...

       Então aconteceu. O tubarão criou forças e saiu nadando numa velocidade incrível por cinqüenta metros, com a linha do carretel correndo, depois fez uma curva de noventa graus em alta velocidade e ia fugir mas Willi conseguiu controlar a tensão da linha, obrigando o peixe a circular, mas sem conseguir trazê-lo mais para perto. Mais uma volta, com Willi usando toda a sua força no carretel, sem nenhum resultado. Na volta seguinte ele recuperou um pouco de linha. Mais um centímetro. Mais um, então os dois homens perderam o equilíbrio e quase caíram dentro d'água quando a linha se soltou.

       — Nós o perdemos, Harry...

       Os dois estavam sem fôlego, cheios de dores e muito desapontados. Não havia nem sinal do tubarão.

       — Maldita linha — disse Willi, enrolando-a, praguejando em duas línguas. Mas não foi a linha. Foi a corrente. Os elos próximos ao anzol estavam amassados.

       — Aquele desgraçado deve ter mastigado a corrente! — disse Scragger, fascinado.

       — Ele estava brincando conosco, Scrag — disse Willi desgostoso. — Ele poderia ter escapado quando quisesse. Ele nos estava passando a perna. — Eles examinaram a água em volta, mas não havia sinal dele. — Ele pode estar no fundo esperando — disse Pensativamente.

       — E mais provável que esteja a dois quilômetros de distância, louco como um cão raivoso.

       — Aposto como ele é louco, Scrag. Aquele anzol não serviu de nada contra ele. — Os dois homens examinaram o mar. Nada. Então eles notaram que o barco de borracha estava pendurado pela proa e meio submerso. Scragger abaixou-se e examinou-o cuidadosamente, com o olho no mar e debaixo da plataforma.

       — Olhe — disse. Havia um grande rasgão numa nas câmaras de ar. — O desgraçado deve ter feito isso quando nos atacou. — O ar estava escapando depressa. — Não há problema. Nós podemos nadar até a praia facilmente. Vamos.

       Willi olhou para a plataforma, depois para o mar.

       — Você vai, Scrag. Eu vou esperar pelo barco de madeira com alguém sentado na frente com uma metralhadora.

       — Não há problema, pelo amor de Deus. Vamos embora.

       — Scrag — Willi disse docemente —, eu o amo como a um irmão, mas não vou sair daqui. Aquele bichão me assustou horrivelmente. — Ele se sentou no meio da plataforma e abraçou os joelhos. — Aquele filho da mãe está escondido em algum lugar, esperando para atacar. Se você quiser ir, tudo bem, mas eu, eu sei o que diz o Livro, quando estiver em dúvida, esconda-se. Mande vir outro barco pelo walkie-talkie.

      — Eu mesmo vou trazê-lo. — O barco de borracha cedeu quando Scragger pisou cuidadosamente dentro dele, quase virou, e ele engatinhou de volta para a plataforma, praguejando, mais rápido do que pretendia. — Do que é que você está rindo?

       — Você saiu daí como se tivesse uma água-viva atrás de você. — Willi ainda estava rindo. — Scrag, por que você não nada até em casa?

       — Não amola. — Scragger olhou para a praia, com o coração batendo. Hoje ela parecia muito longe, quando nos outros dias era tão perto.

       — Você é louco de ir nadando — disse Willi, desta vez seriamente. — Não faça isso.

       Scragger não prestou atenção nele. Sabe de uma coisa? Ele estava pensando. Você está morto de medo. Aquele desgraçado era pequeno e você o fisgou e ele fugiu e agora ele está a milhas de distância no golfo. Sim, mas onde?

       Ele enfiou o dedão na água. Alguma coisa atraiu-lhe a atenção lá embaixo. Ele se ajoelhou num dos lados da plataforma e puxou a gaiola. Ela estava vazia. Um dos lados tinha sido arrancado.

       — Papagaio!

       — Eu vou chamar o barco — disse Willi, estendendo a mão para apanhar o walkie-talkie. — Com uma metralhadora.

       — Não há necessidade disso, Willi — disse Scragger, para se mostrar. — Vamos ver quem chega na praia primeiro.

       — Nem brincando! Scrag, pelo amor de Deus, não... — Willi ficou apavorado quando Scragger mergulhou. Ele o viu subir à superfície e dar algumas braçadas, depois, de repente, ele voltou e subiu na plataforma, engasgando-se de tanto rir.

       — Enganei você, hein? Você tem razão, meu filho, qualquer pessoa que nadar até a praia está louca! Chame o barco, eu vou pescar alguma coisa para o jantar

       Quando o barco chegou, um dos mecânicos estava no leme com dois excitados Faixas Verdes na proa e os outros observando na praia. Eles estavam no meio do caminho quando o tubarão surgiu repentinamente e começou a nadar em círculos. Os Faixas Verdes começaram a atirar e, na sua excitação, um deles caiu na água. Scragger conseguiu agarrar a sua arma e abriu fogo contra o tubarão que corria em direção ao homem apavorado, em pé no raso. As balas entraram na cabeça e nos olhos do tubarão, e embora o tubarão já devesse estar morto — ele não acreditou nisso — simplesmente deu uma cambalhota se debatendo, com as mandíbulas e o rabo trabalhando, e então atacou a sua presa. Mas sem a ajuda do olfato e da visão ele errou o homem e foi em direção à areia, encalhando com metade do corpo para fora da água.

       — Scrag — disse Willi quando conseguiu falar —, você tem uma sorte dos diabos. Se você tivesse voltado nadando ele o teria apanhado. Você tem uma sorte dos diabos.

      

       NA PLATAFORMA ROSA — ZAGROS: 15:05H. Tom Lochart saltou do 206 e trocou um aperto de mão com Mimmo Sera, o 'homem da companhia' que o cumprimentou calorosamente. Com Lochart estava o especialista da Schlumberger, Jesper Almqvist, um jovem sueco alto, de quase trinta anos. Ele trazia uma maleta especial com as ferramentas necessárias — o restante do equipamento já estava lá, no lugar.

       — Buon gíorno, Jesper, prazer em vê-lo. Ele está esperando por você.

       — Certo, sr. Será, vou trabalhar. — O rapaz se afastou em direção à plataforma. Ele tinha verificado a maioria dos poços no campo.

       — Vamos até lá dentro um instante, Tom. — Será foi na frente através da neve até o trailer-escritório. Lá dentro estava quente e havia um bule de café na fornalha de ferro, cheia de lenha, no canto da parede. — Café?

       — Obrigado, eu estou exausto, a viagem de Teerã até aqui foi muito cansativa.

       Será estendeu-lhe uma xícara.

       — Que diabo está acontecendo?

       — Obrigado. Não sei exatamente. Eu só deixei o Jean-Luc na base, tive uma conversa breve com Scot, e então achei melhor trazer logo Jesper e vir falar com você pessoalmente. Ainda não estive com Nitchak Khan; vou fazer isto assim que voltar, mas Scot foi bem claro: Nitchak Khan disse a ele que o komiteh tinha-nos dado 48 horas para partir. Mel...

       — Mas por quê? Mamma mia, se vocês saírem, nós vamos ter que fechar o campo.

       — Eu sei. Meu Deus, o café está ótimo! Nitchak sempre foi razoável no passado. Você já soube que este komiteh matou Nasiri e pôs fogo na escola?

       — Sim, que coisa terrível. Ele era um cara legal, embora fosse pró-xá.

       — Assim como todos nós, quando o xá estava no poder — disse Lochart, pensando em Xarazade e Jared Bakravan e Emir Paknouri e no HBC, seu pensamento voltando sempre ao HBC e a Xarazade. Ele saíra ao amanhecer, odiando ter que deixá-la. Ela ainda dormia profundamente. Ele tinha pensado em acordá-la, mas não havia mais nada que pudesse dizer. Zagros era responsabilidade dele, e ela parecia tão exausta, a marca no seu rosto tão nítida. O seu bilhete dizia: "Volto dentro de dois dias. Se houver qualquer problema procure Mac ou Charlie. Todo o meu amor." Ele tornou a olhar para Será.

       — McIver tem um encontro esta manhã com um alto funcionário do governo, então, com um pouco de sorte, talvez ele consiga resolver isso. Ele disse que nos mandaria uma mensagem assim que voltasse. O seu rádio está funcionando?

       Será deu de ombros.

       — Como sempre: de vez em quando.

       — Se eu souber de alguma coisa, mandarei um recado para você, ou hoje à noite ou amanhã bem cedo. Espero que tudo não passe de uma tempestade num balde de merda. Mas se tivermos que dar o fora, McIver mandou que eu ficasse temporariamente perto de Kowiss. Não há nenhuma maneira de atender vocês de lá. O que você acha?

       — Se você for obrigado a sair, nós vamos ter que evacuar o campo. Você vai ter que nos transportar para Shiraz. Há um QG da companhia lá. Eles podem nos alojar lá ou mandar-nos para fora até podermos voltar. Madona, seriam onze bases fechadas, com dois turnos.

       — Nós podemos usar os dois 212, não se preocupe.

       — É muita coisa, Tom. — Será estava muito preocupado. — Não há nenhuma maneira de fechar e retirar os homens em 48 horas. Não há jeito.

       — Talvez não seja necessário. Vamos torcer. — Lochart levantou-se.

       — Se tivermos que evacuar, a maioria do pessoal vai ficar contente. Nós não temos nenhuma substituição há várias semanas e eles estão com as licenças vencidas. — Será levantou-se e olhou pela janela. Podia-se ver o sol da tarde brilhando no pico que ficava sobre a plataforma Bellissima. — Você soube do ótimo trabalho que Scot fez, com Pietro?

       — Sim. Os rapazes o chamam de Pietro Bombardeiro agora. Sinto muito sobre Mario Guineppa.

       — Chesarà, sara! Os médicos são todos stronzi. Ele fez um exame no mês passado. Estava perfeito. Stronzo! — o italiano olhou-o com atenção. — O que há, Tom?

       — Nada.

       — Como estava Teerã?

       — Nada bom.

       — Scot disse-lhe alguma coisa que eu não saiba?

       — O motivo para as ordens do komiteh'! Não, não disse. Talvez eu consiga arrancar alguma coisa de Nitchak Khan. — Lochart trocou um aperto de mão com ele e saiu. Depois que decolou, ele pensou na história que Scot tinha contado a ele, Jean-Luc e Jesper sobre o que havia acontecido na aldeia depois que o komiteh condenou Nitchak Khan à morte:

       — Assim que eles levaram Nitchak Khan para fora da escola e eu fiquei sozinho, pulei pela janela dos fundos e corri para a floresta o mais silenciosamente possível. Uns dois minutos depois, eu ouvi uma porção de tiros e voltei correndo para a base, o mais depressa que pude. Devo admitir que estava morto de medo. Isso levou um bom tempo, a maldita neve tem montes de mais de três metros de altura. Não muito tempo depois de eu ter chegado, Nitchak Khan e o mulá e alguns dos aldeões apareceram. Meu Deus, eu fiquei tão aliviado! Eu estava certo de que Nitchak e o mulá tinham sido fuzilados e acho que eles também ficaram aliviados, porque me olharam com os olhos arregalados, pensando que eu também estivesse morto.

       — Por quê? — Tom tinha perguntado.

       — Nitchak disse que pouco antes do komiteh ir embora eles tocaram fogo na escola, supostamente comigo ainda lá dentro. E disse que eles tinham ordenado que todos os estrangeiros saíssem de Zagros. Todo mundo, mas principalmente nós, com os nossos helicópteros, no máximo até amanhã à noite.

       Lochart olhava a terra lá embaixo, a base não ficava muito longe dali, com a aldeia nas suas proximidades. O sol da tarde descia por trás das montanhas. Havia bastante claridade, mas não havia mais sol para esquentá-los. Um pouco antes dele ter saído com Jesper para a plataforma Rosa, quando não havia ninguém por perto, Scot tinha contado a ele o que tinha realmente acontecido.

       — Eu vi tudo, Tom. Eu não fugi na hora em que disse que tinha fugido. Eu não tive coragem de contar a ninguém mas eu estava espiando pela janela da escola, apavorado, e vi tudo. Tudo aconteceu tão depressa. Meu Deus, você devia ter visto a mulher do velho Nitchak com o rifle, parecia uma tigresa. E dura! Ela atirou na barriga do Faixa Verde, então deixou ele gritar um pouco e... baanggg! acabou com ele. Aposto que foi ela quem atirou no primeiro filho da mãe, o líder, quem quer que ele fosse. Nunca vi uma mulher como aquela, nunca pensei que ela fosse assim.

       — E quanto a Nasiri?

       — Nasiri não teve nenhuma chance. Saiu correndo e eles o mataram. Tenho certeza que eles o mataram porque ele era uma testemunha e não era da aldeia. Isso me fez criar coragem e pôr as pernas para trabalhar, eu pulei a janela como disse e quando Nitchak apareceu aqui, eu fingi acreditar na história dele. Mas eu juro por Deus, Tom, todos aqueles filhos da mãe do komiteh estavam mortos quando eu saí da aldeia, então Nitchak deve ter ordenado que pusessem fogo na escola.

       — Nitchak Khan não faria isto, não com você lá dentro. Alguém deve ter visto você sair.

       — Espero que você esteja errado porque então eu sou uma ameaça viva para a aldeia, a única testemunha

        Lochart pousou e caminhou até a aldeia. Ele foi sozinho. Nitchak Khan e o mulá esperavam por ele no café, conforme fora combinado. E muitos aldeões, mas nenhuma mulher. O café era o lugar das reuniões, uma choupana de um só cômodo feita de troncos de madeira e pau a pique com um telhado inclinado e uma chaminé primitiva, com as vigas pretas de anos de fumaça. Havia grossos tapetes para a pessoa sentar.

       — Salaam, calênder, que a paz esteja com você — disse Lochart, usando o título honorífico para dar a entender que Nitchak Khan era também o líder da base.

       — Que a paz esteja com você, calênder dos Homens Voadores — o velho disse educadamente. Lochart sentiu a bofetada e viu que não havia nada da amizade dos velhos tempos nos olhos dele. — Por favor, sente-se e esteja à vontade. Sua viagem foi proveitosa?

       — Como Deus quiser. Eu senti falta da minha casa aqui em Zagros e dos meus amigos de Zagros. O senhor é abençoado por Deus, calênder. — Lochart sentou-se no tapete desconfortável e trocou as intermináveis gentilezas, esperando que Nitchak Khan permitisse que ele fosse diretamente ao assunto. A sala era claustrofóbica e tinha um cheiro rançoso, o ar estava pesado com o cheiro das pessoas, de cabras e carneiros. Os outros homens observavam silenciosamente.

       — O que traz Vossa Excelência até a aldeia? — perguntou Nitchak Khan e uma onda de expectativa passou por ele.

       — Eu fiquei chocado quando soube que estranhos vieram até a nossa aldeia e tiveram a impertinência de pôr as mãos no senhor.

       — Como Deus quiser. — Nitchak Khan apertou ligeiramente os olhos.

       — Os estranhos vieram à nossa aldeia mas foram embora deixando-a como ela sempre foi. O seu acampamento, infelizmente, não será mais o mesmo.

       — Mas por quê, calênder? Nós temos sido bons para a aldeia e empregamos muita gente do seu povo...

       — Não cabe a mim questionar o nosso governo nem os komitehs do nosso governo ou o nosso Comandante do Povo, o próprio aiatolá. O jovem piloto viu e ouviu, então não resta mais nada a dizer.

       Lochart percebeu a armadilha.

       — O jovem piloto só viu e ouviu o que aconteceu na escola, calênder. Eu peço que nós, como hóspedes antigos e conhecidos — ele escolheu cuidadosamente as palavras —, que nós tenhamos tempo de procurar mudar uma ordem que parece ir contra os interesses de Zagros.

       — Zagros se estende por mil quilômetros e atravessa as terras dos kash 'kai, entra na terra dos Bakhtiari e de mais uma centena de tribos. Yazdek é Yazdek

       — Nitchak falou asperamente, e depois citou o Rubãiyãt: — "Entregue o seu corpo ao destino e suporte a dor, / Porque o que a Pena escreveu para você, / Ela não vai apagar."

       — É verdade, mas Ornar Khayyám escreveu também: "A bondade e a maldade que estão no coração do homem, / A alegria e a dor que são a nossa sorte e o nosso destino, / Não se opõem à roda do paraíso porque, à luz da razão, / A roda é mil vezes mais impotente que você."

       Um murmúrio correu entre os aldeões. O velho mulá balançou a cabeça, satisfeito e não disse nada. Os olhos de Nitchak Khan sorriram embora sua boca não, e Lochart soube que o encontro iria melhorar agora. Ele abençoou Xarazade que abrira os seus olhos, seus ouvidos e seus sentidos para o Rubãiyãt que, em farsi, possuía enorme beleza.

       Todo mundo esperou. Nitchak Khan coçou a barba, pôs a mão no bolso e encontrou uma carteira de cigarros. Lochart, como quem não quer nada, apresentou o pishkesh, um isqueiro Dunhill folheado a ouro que tinha comprado de Effer Jordon exatamente para isso: "Effer, eu mato você se ele não funcionar logo da primeira vez!" Ele acariciou a pedra. O pavio acendeu e ele tornou a respirar. Sua mão estava bem firme quando ele se inclinou e ofereceu fogo ao velho.

       Nitchak Khan hesitou, depois acendeu o cigarro e deu uma longa tragada.

       — Obrigado. — Seus olhos se estreitaram quando Lochart pôs o isqueiro no tapete em frente a ele.

       — Talvez o senhor pudesse aceitar este presente de todos nós do campo, que estamos gratos pela sua orientação e pela sua proteção. Afinal, o senhor não arrombou os portões e tomou posse da base em nome do povo? O senhor não venceu a corrida de tobogã, derrotando o melhor dos nossos corredores, por causa da sua coragem?

       Outro murmúrio percorreu os aldeões, todos esperavam, cheios de contentamento pelo acirramento da disputa, embora todos soubessem que o infiel só falara a verdade. O silêncio cresceu, então o khan esticou a mão e apanhou o isqueiro e examinou-o atentamente. O seu polegar retorcido levantou a tampa como ele havia visto outros fazerem no acampamento. Com um pequeno movimento, o isqueiro acendeu logo da primeira vez e todo mundo ficou tão contente quanto ele pela qualidade do pishkesh,

       — Qual a orientação que Vossa Excelência precisa?

       — Nada em particular, caiênder Excelência — disse Lochart, em tom desgostoso, prosseguindo com o jogo de acordo com os costumes.

       — Mas deve haver alguma coisa que poderia melhorar o grupo de Vossa Excelência? — O velho apagou o cigarro no chão.

       Finalmente Lochart deixou-se convencer.

       — Bem, já que Vossa Excelência tem a bondade de perguntar, se Vossa Excelência pudesse interceder por nós no komiteh, para que este nos dê um pouco mais de tempo, eu ficaria muito agradecido. Vossa Excelência, que conhece estas montanhas como o fundo do seu próprio prato, sabe que não podemos cumprir ordens de estranhos que obviamente não sabem que não podemos tirar todo o pessoal das plataformas, nem salvaguardar as plataformas, a propriedade que o ramo ilustre dos kash'kai, os Yazdek, possuem em Zagros, nem tirar todas as nossas máquinas e peças até amanhã ao pôr-do-sol.

       — É verdade, os estranhos não sabem de nada — disse Nitchak Khan, satisfeito. Sim, ele pensou, os estranhos não entendem nada e aqueles cães que ousaram tentar implantar seus sujos costumes estrangeiros foram rapidamente punidos por Deus. — Talvez o komiteh possa conceder mais um dia.

       — Isto seria mais do que eu ousaria pedir. Mas, caiênder, isto não seria o bastante para mostrar-lhes como eles sabem pouco sobre o seu Zagros. Talvez eles precisem de uma lição. Eles deveriam dar pelo menos duas semanas. Afinal de contas, o senhor é o caiênder de Yazdek e de todas as 11 plataformas e todo o Zagros conhece Nitchak Khan, Nitchak Khan ficou muito orgulhoso e também os aldeões, que se deixaram levar pela lógica do infiel. O khan apanhou o seu cigarro e o seu isqueiro. Este acendeu na primeira tentativa.

       — Duas semanas — disse, e todo mundo ficou muito satisfeito, inclusive Lochart. Então ele acrescentou, para dar a si mesmo tempo para pensar se duas semanas não seria tempo demais: — Eu vou mandar um mensageiro solicitando duas semanas.

       Lochart levantou-se e agradeceu profusamente ao khan. Duas semanas dariam tempo a McIver. Do lado de fora, o ar tinha gosto de vinho e ele encheu os pulmões agradecido, feliz com a maneira pela qual conduzira a delicada negociação.

       — Salaam, Nitchak Khan, que a paz esteja com você.

       — E com você também.

       Do outro lado da praça ficava a mesquita e ao lado dela, as ruínas da escola. Do outro lado da mesquita ficava a casa de dois andares de Nitchak Khan e, na porta, estavam sua mulher e dois dos seus filhos junto com outras mulheres da aldeia, também usando roupas coloridas.

       — Por que a escola foi queimada, calênder?

       — Ouvimos um dos homens do komiteh dizer: "Assim deve terminar tudo o que for estrangeiro. Assim vai desaparecer a base e tudo o que ela contém. Nós não precisamos de estrangeiros aqui, não queremos nenhum estrangeiro aqui."

        Lochart ficou triste. Isto é o que a maioria de vocês acredita, se não todos, pensou. E no entanto, muitos dentre nós tentam fazer parte do Irã, falar a língua, desejam ser aceitos, mas nunca o serão. Então por que ficamos, por que tentamos? Talvez pela mesma razão pela qual Alexandre, o Grande, ficou, por que ele e dez mil dos seus oficiais se casaram com mulheres iranianas numa única grande cerimônia. Porque existe uma magia nelas e no Irã que é indefinível, totalmente obsessiva, que consome como eu estou sendo consumido.

       As mulheres que estavam cercando a esposa de Nitchak Khan deram uma gargalhada por algo que ela dissera.

       — É melhor quando as esposas estão felizes, não? Elas são um presente de Deus para os homens, hein? — disse o khan, jovialmente.

       Lochart concordou, pensando na sorte fantástica que Nitchak Khan tivera e no presente de Deus que era a sua esposa — como Xarazade para ele e, pensando nela, mais uma vez o horror da noite anterior tomou conta dele, o seu terror de quase tê-la perdido, sua loucura e tristeza, depois ter que bater nela e ver as marcas, quando tudo o que ele queria era a felicidade dela neste mundo e no outro, se houvesse um outro.

       — E que sorte a minha por Deus tê-la feito uma atiradora tão boa, hein?

       — Sim — disse Lochart, sem pensar. Ele sentiu um frio no estômago e xingou a si mesmo por ter deixado a sua mente divagar. Ele viu os olhos astutos observando-o e acrescentou apressadamente: — Atiradora? A sua mulher é uma boa atiradora? Por favor, desculpe-me, Excelência, eu não ouvi direito. O senhor quis dizer com um rifle?

       O velho não disse nada, apenas examinou-o e depois balançou a cabeça Pensativamente. Lochart manteve o olhar firme e tornou a olhar para o outro lado da praça, imaginando se teria sido uma cilada proposital.

       — Ouvi dizer que muitas mulheres kash 'kai sabem usar um rifle. Parece que, ahn, que Deus o abençoou de muitas maneiras, calênder.

       Depois de alguns momentos Nitchak Khan disse:

       — Eu mando avisar a você amanhã, quanto tempo mais o komiteh permite. Que a paz esteja com você.

       Ao voltar para a base, Lochart perguntou a si mesmo: Será que eu caí numa armadilha? Se a observação foi involuntária, feita por causa do orgulho que ele sente dela, então talvez, talvez nós estejamos seguros e Scot esteja seguro. De qualquer modo, nós temos tempo — nós talvez tenhamos, mas Scot talvez não tenha.

       O sol já tinha ido embora daquela parte do platô e a temperatura caíra rapidamente para abaixo de zero outra vez. O frio ajudou a clarear-lhe a mente mas não eliminou sua ansiedade nem venceu o cansaço.

       Uma semana, duas semanas ou alguns dias, você não tem muito tempo, pensou. Em Teerã, McIver contara a ele que conseguira licenças de saída para três 212, para irem para Al Shargaz para 'reparos'.

       — Tom, eu vou mandar um dos seus, um daqui, e um de Kowiss. E de lá para a Nigéria, mas pelo amor de Deus, guarde esta parte para você. Aqui estão os papéis de saída datados da próxima quarta-feira. Eu acho que você mesmo deveria ir e dar o fora enquanto pode. Você pode sair e ficar em Al Shargaz. Há muitos pilotos lá para levar adiante os 212.

       Mac simplesmente não compreende, pensou. Ele saiu do meio das árvores e avistou a base, Scot e Jean-Luc esperando por ele ao lado de um 212.

       Eu vou mandar Scot no helicóptero de carga aconteça o que acontecer, pensou Lochart, e tendo tomado a decisão, ficou um pouco menos preocupado. A decisão mais importante é: começamos a evacuar ou não? Para decidir isso, você tem que decidir até onde pode confiar em Nitchak Khan. Não se pode confiar muito, de jeito nenhum.

      

       NO QG DO SERVIÇO SECRETO: 18:42H. Fazia menos de 23 horas desde que Rakoczy fora capturado, mas ele já estava vencido e balbuciava o terceiro nível — a verdade. Os primeiros dois níveis foram camuflagens compostas de verdades parciais ensaiadas repetidas vezes por todos os agentes profissionais até que estivessem embebidas em seus subconscientes, na esperança de que essas meias-verdades desviassem a atenção dos inquiridores, evitando que eles cai/assem mais fundo, ou fazendo-os acreditar que tinham descoberto toda a verdade. Infelizmente para Rakoczy, os seus inquiridores eram especialistas e estavam ansiosos para irem ainda mais a fundo. O problema deles era evitar que a tortura o matasse antes. O problema de Rakoczy era como morrer rapidamente.

       Quando ele fora apanhado na noite anterior, tinha imediatamente tentado morder a ponta do colarinho onde estava costurado o frasco de veneno — uma ação reflexa. Mas os seus captores tinham previsto isso, mantendo sua cabeça para trás enquanto lhe davam clorofórmio, depois o despiram cuidadosamente, procuraram algum dente falso de veneno em sua boca e examinaram o seu ânus para ver se havia alguma cápsula

       Ele tinha esperado apanhar e ter que tomar drogas psicodélicas:

       — Se eles usarem isso em você, capitão Mzytryk, você está acabado — disseram seus professores. — Não há muito a fazer exceto tentar morrer antes de revelar os segredos. É melhor morrer antes que eles acabem com você. Nunca se esqueça de que nós o vingaremos. Podemos esperar cinqüenta anos, mas apanharemos aqueles que o traíram.

       Mas ele não tinha esperado o grau de agonia a que eles o levaram tão depressa, nem as coisas inenarráveis que haviam feito com ele, enfiando-lhe eletrodos no nariz, boca, estômago, reto, nos seus testículos e globos oculares — com injeções que o faziam dormir, que o faziam acordar, com poucos minutos de intervalo entre sono e vigília, sono e vigília, desorientado, de cabeça para baixo, do lado avesso.

       — Pelo amor de Deus, Hashemi — dissera Robert Armstrong, enojado, logo no início — por que vocês simplesmente não lhe dão o soro da verdade, vocês têm estas drogas, não há necessidade de toda essa merda.

       O coronel Hashemi Fazir tinha dado de ombros.

       — Um pouco de crueldade faz bem à alma. Por Alá, você viu os arquivos, você viu o que a KGB fez com alguns dos nossos cidadãos que nem mesmo eram espiões?

       — Isso não é desculpa.

       — Nós precisamos desta informação depressa, por Deus. Nós precisamos alcançar o terceiro nível que você está sempre repisando. Eu não tenho tempo para a sua ética distorcida, Robert. Se você não quiser ficar, saia.

       Armstrong tinha ficado. Ele tinha tapado os ouvidos para não ouvir os gritos, odiando aquela brutalidade. Não há mais necessidade disso hoje em dia, ele dissera para si mesmo, sabendo que ele já teria morrido há muito tempo.

       Ele observou os dois homens através do espelho de uma só face enquanto eles trabalhavam em Rakoczy na câmara pequena e bem equipada, sentindo pena dele de uma certa forma — afinal, Rakoczy era um profissional como ele, um homem corajoso que tinha resistido de uma forma extraordinária.

       Repentinamente os gritos cessaram e Rakoczy estava outra vez inerte. Hashemi falou no microfone que estava ligado aos fones do homem lá embaixo.

       — Ele está morto? Eu disse a vocês, seus cães estúpidos, para terem cuidado.

       Um dos dois homens era um médico. Os fones que ele usava cortavam todos os sons exceto as instruções dos inquiridores. Irritado, ele ergueu as pálpebras de Rakoczy e examinou os seus olhos, e com o estetoscópio ouviu o seu coração.

       — Ele está vivo, coronel. Ele... ainda há uma forma de lidar com ele.

       — Dê-lhe cinco minutos e depois acorde-o. E não o mate até que eu mande. — Furioso, Hashemi desligou o microfone e xingou o homem. — Não quero ele morto agora que estamos tão perto de saber de tudo. — Ele olhou para Armstrong, com os olhos brilhando. — Ele é o melhor que já tivemos, hein? Por Deus, Robert, ele é uma mina de ouro.

       Rakoczy já balbuciara as suas duas camuflagens há muito tempo atrás e depois o seu nome verdadeiro, o seu número na KGB, onde tinha sido educado, onde tinha nascido, se casado, onde morava, seus superiores em Tbilisi, o seu envolvimento no Irã, o Tudeh, os mujhadins, como e onde eles apoiaram o movimento de independência dos curdos, quem eram os seus contatos.

       — Quem é o agente principal da KGB no Azerbeijão?

       — Eu... pare por favor... por favor pareeee... é Abdullah Khan de Tabriz. .. ele, só ele de importância e ele... ele era... ele é para ser o primeiro presidente quando o Azer... Azerbeijão se tornar independente mas agora ele ficou importante demais e inde... independente então... então ele agora é uma Seção 16/a...

       — Você não está nos dizendo toda a verdade. Dêem-lhe uma lição!

       — Oh eu estoueuestouporfavor...

       Depois tornando a reanimá-lo e mais uma vez ele balbuciando, a respeito de Ibrahim Kyabi, do pai de Ibrahim, do mulá Kowissi, quem eram os líderes estudantis do Tudeh, sobre a sua própria esposa, seu pai e onde ele morava em Tbilisi, e sobre seu avô que esteve na polícia secreta do czar antes de ser membro fundador da Cheka, depois GPU, NKVD e finalmente KGB — fundada em 1954 por Kruchev depois de Beria ter sido fuzilado como espião ocidental.

       — Você acredita que Beria era um espião nosso, Mzytryk?

       — Sim... sim... ele era, a KGB tem provas oh sim... por favor paree... pareeee eu vou contar tudoooo...

       — Como eles poderiam ter provas dessa mentira?

       — Sim, era uma mentira mas nós tínhamos que acreditar nisso... nós tínhamos tínhamos tínhamos... por favor pareeeee eu implorooooo...

       — Parem de machucá-lo, seus demônios. — A voz de Armstrong veio como uma deixa. — Não há necessidade de machucá-lo se ele está cooperando... quantas vezes eu preciso repetir! Enquanto ele estiver dizendo a verdade não toquem nele. Dêem-lhe um copo d'água. Agora, Mzytryk, conte-nos o que sabe sobre Gregor Suslev.

       — Ele... ele é um espião, eu acho.

       — Você não está dizendo a verdade! — Hashemi berrou com ele. — Dêem-lhe uma lição!

       — Não... não... por favor pare pelo amor de Deus pareeee... ele ele é Petr Oleg Mzytryk, meu pai meu pai... Suslev era o seu nome falso no Extremo Oriente perto de Vlad... Vladivostok e o outro nome falso era Brodnin... e e e ele mora em em Tbilisi e é conselheiro-chefe para assuntos iranianos e supervisor de Abdullah Abdullah Khan...

       — Você está mentindo de novo. Como você poderia saber de todos esses segredos? Dêem-lhe uma li...

       — Por favor, não, eu juroooo que não estou mentindo eu... li o seu dossiê secreto e sei que é verdade... Brodnin foi o último e então ele... Alá me ajudeeee... — Mais uma vez ele desmaiou. Mais uma vez eles o reanimaram.

       — E como Abdullah Khan entra em contato com o seu supervisor?

       — Ele... meu... eles se encontram sempre que... às vezes na... na fazenda, às vezes em Tabriz...

       — Em que lugar em Tabriz?

       — No... no palácio do khan...

       — Como eles marcam o encontro?

       — Por código... telex em código de Teerã... do QG...

       — Que código?

       — O... G16...G16...

       — Qual é o nome de código de Abdullah Khan?

       — Ivanovitch.

       — E do seu supervisor? — Armstrong teve o cuidado de não perturbar o prisioneiro impotente fazendo-o lembrar que tinha traído o pai.

       — Ali... Ali Khoy...

       — Quem eram os contatos de Brodnin?

       — Eu... eu não... eu não me lembro...

       — Ajudem-no a lembrar-se!

       — Por favorporfavor oh Deus oh Deus espere deixe-me pensar eu não consigo me lembrar era era... espere ele me disse que havia que havia três... era algo parecido com uma cor uma cor... espere, sim, Grey sim era Grey... e o outro era e o outro era Broad alguma coisa... Broad alguma coisa... eu acho que era Julan Broad alguma coisa...

       — Quem mais? — perguntou Armstrong, disfarçando o seu choque. — O terceiro?

       — Eu... não consigo me lem... não espereeee deixe-me pensarrrr... havia havia um outro... ele me disse que havia ele me contou sobre quatro... sobre quatro... um... um era... Ted... Ever... Ever alguma coisa... Everly e havia um outro... se... eu... por favorrr deixe-me pensar e era era Peter... não Percy... Percy Smedley sim Smedey Tailler ou Smidley...

       A cor fugiu do rosto de Armstrong.

       — ... foi só isso foi só isso que ele ele me contou...

     — Diga-nos tudo o que sabe sobre Roger Crosse! Nenhuma resposta.

       Pelo espelho eles viram o homem se contorcendo na mesa de operações, debatendo-se contra os fios enquanto sofria mais um castigo e, misturadas com os gemidos as palavras tornaram a jorrar:

       — Ele ele... pareeee ele era era chefe não chefe-adjunto do MI6 e foi quase o nosso agente secreto inglês mais importante por por... vinte anos ou mais e... e Brodnin Brod meu pai descobriu que ele era um agente duplo... triplo e ordenou-lhe Seção 16/a... Crosse nos enganou durante anos enganou enganou...

       — Quem deu a dica para Brodnin a respeito de Crosse?

       — Eunãosei eu juroquenãosei eu não posso saber tudo saber tudo só o que estava no dossiê e e o que ele me contou...

       — Quem era o supervisor de Roger Crosse?

       — Eu não sei, não sei, como eu poderia saber eu só sei o que li escondido no dossiê do meu pai... vocês têm que acreditar em mimmmm...

       — Conte-me tudo o que havia no dossiê — disse Hashemi, tão interessado agora quanto Armstrong.

       Eles ouviram, separando as palavras dos gritos. Às vezes uma mistura quase incoerente de russo e farsi enquanto Rakoczy continuava a produzir mais nomes e endereços e disfarces e postos em resposta às suas perguntas, com a memória estimulada por novos níveis de dor, até que ficou vazio e repetitivo e confuso, e sem valor. Então, misturado com as palavras sem sentido veio.

       — Pah... mud... Pah... mudi...

       — O que é que tem Pahmudi? — perguntou Hashemi, abruptamente.

       — Eu... ele... me ajudou...

       — O que é que tem Pahmudi? Ele é um agente soviético? Agora só havia palavras incoerentes, choro e confusão.

       — É melhor dar-lhe um descanso, Hashemi. A memória dele é boa demais para ser destruída. Nós podemos saber o que Pahmudi significa amanhã e rever as informações. — Armstrong também estava esgotado, secretamente maravilhado com as informações que Rakoczy tinha fornecido. — Eu aconselho um período de descanso, deixe-o dormir por umas cinco horas, depois podemos recomeçar.

       Na câmara, os dois homens aguardavam instruções. O médico consultou o relógio. Ele estava naquilo há seis horas, sem descanso, suas costas doíam e também a sua cabeça. Mas ele era um especialista da Savak há muito tempo e estava muito satisfeito por ter levado Rakoczy ao nível da verdade sem drogas. Ateu filho da mãe! Ele pensou com nojo.

       — Deixem-no dormir por quatro horas, depois vamos recomeçar — ouviu-se pelo alto-falante.

       — Sim, coronel. Muito bem. — Ele examinou os olhos debaixo das pálpebras, depois disse cuidadosamente para o seu assistente, que era surdo-mudo mas podia ler lábios: — Deixe-o como está. Vai poupar tempo quando voltarmos. Ele vai precisar de uma injeção para acordar. — O homem balançou a cabeça e, quando a porta foi aberta pelo lado de fora, os dois homens saíram.

       No quarto por trás do espelho o ar estava seco e enfumaçado.

       — E quanto a Pahmudi.

       — Ele tem que estar ligado com Mzytryk, Petr Oleg. — Armstrong estava repassando as informações de Rakoczy, fascinado.

       Hashemi tirou os olhos do homem que estava deitado na mesa e desligou o gravador, apertando o botão de reenrolar. Numa gaveta entreaberta, havia mais sete fitas cassete.

       — Posso ter cópias? — Armstrong perguntou.

       — Por que não? Os olhos de Hashemi estavam vermelhos e já havia uma sombra de barba no seu rosto embora ele se tivesse barbeado há poucas horas.

        — O que havia de tão importante sobre Brodnin e aqueles outros nomes, Grey, Julan Brod alguma coisa, Ted Ever alguma coisa e Percy Smedley ou Smidley Tailler?

       Armstrong levantou-se para aliviar a dor no ombro e também para ter tempo para pensar.

       — Brodnin era um homem de negócios soviético, da KGB, mas um agente duplo nosso. Nunca houve nenhuma suspeita de que ele nos estivesse enganando. Julan Broad alguma coisa tem que ser Julian Broadhurst. Nós nunca soubemos de nada sobre ele, nunca houve nenhum boato, nada. Ele é um líder da Sociedade Fabian, um membro altamente respeitado do partido trabalhista, com livre entrada no gabinete, conselheiro e confidente de primeiros-ministros.

       — E acrescentou aborrecido: Patriota.

       — Então agora você o tem nas mãos. Traidor. Então ponha-o numa mesa por algumas horas, tire tudo dele e depois afogue-o no Tâmisa. Grey?

       — Lord Grey, agitador da esquerda, ex-sindicalista, líder fanático do grupo anti-China e anti-Hong Kong, educadamente anticomunista, mandado para a Câmara dos Lordes há alguns anos para criar mais confusão. Nós fizemos uma investigação sobre ele há alguns anos, mas ele saiu limpo. Nada exceto a sua política. — Meu Deus, Armstrong estava pensando, se ambos são espiões e traidores, e se pudermos provar, isso destroçaria o Partido Trabalhista, sem falar na explosão que Percy causaria nos Conservadores. Mas como provar e continuar vivo? — Nós nunca tivemos nada contra ele.

       — Então agora você o tem nas mãos também. Traidor. Tire tudo dele e mate-o. Ted Ever alguma coisa?

       — Everly — menino de ouro da TUC sendo preparado para o gabinete. Impecável político centrista. Nunca houve nem um cheiro de cor-de-rosa, quanto mais de comunista.

       — Agora você o tem nas mãos. Torture-o. Smedley ou Smidley Tailler?

       Robert Armstrong ofereceu-lhe um cigarro. Percy Smedley-Taylor: nobreza rural, rico, Trinity College... um anormal apolítico que consegue manter as suas aberrações fora da imprensa quando é apanhado. Conhecido crítico de dança, editor de revistas eruditas, com ligações impecáveis e intocáveis com as fontes mais altas e mais delicadas do poder inglês. Cristo todo-poderoso, se ele é um espião soviético... É impossível! Não seja idiota, você já está nisso há muitos anos, conhece segredos demais para se surpreender com alguém.

       — Não significa nada, mas eu vou checá-lo, Hashemi — ele disse, sem querer dividir o que sabia até que tivesse resolvido o que fazer.

       O gravador desligou quando acabou de reenrolar a fita. Hashemi tirou-a, colocou-a junto com as outras na gaveta de baixo e trancou-a cuidadosamente.

       — Então lide com eles à nossa maneira: envie um emissário até eles, Robert, eles e seus nojentos amigos importantes. Eles lhe darão suficiente pishkesh para compensar a sua falta de pensão. — Hashemi riu alegremente, inserindo uma outra fita. — Mas não vá pessoalmente ou acabará numa travessa com uma faca nas costas ou veneno na cerveja. Esses filhos da mãe importantes são todos iguais. — Ele estava muito cansado, mas a sua excitação com todo o maravilhoso conhecimento que Rakoczy proporcionara a eles espantou-lhe o sono. — Nós já tiramos dele o suficiente para dinamitar o Tudeh, controlar os curdos, impedir a insurreição no Azerbeijão, colocar Teerã em segurança, Kowiss em segurança, e fortalecer Khomeini no poder, disse para si mesmo.

       — É isso o que você quer? E quanto a Abrim Pahmudi? O rosto de Hashemi ficou sombrio.

       — Que Alá me deixe lidar com ele convenientemente! Rakoczy me deu uma chave de ouro, talvez até mesmo para chegar a ele. — E olhou para Armstrong. — De ouro para você também, hein? Este Suslev, Petr Oleg, que assassinou o grande Roger Crosse, hein?

       — Sim. Você também. Agora você sabe quem é o seu maior inimigo.

       — O que significa Mzytryk, este Suslev, para você?

       — Eu tive um pega com ele há anos, em Hong Kong. — Armstrong tomou um gole de café frio, atirando a isca. — Ele podia fornecer a você, e a mim, mais ouro do que o filho. Ele podia entregar Abrim Pahmudi e entregar, Deus sabe a quem mais. Talvez o Komiteh Revolucionário? Eu faria qualquer coisa para tirar informações de Suslev. Como podemos conseguir isto?

       Hashemi desviou a atenção de Pahmudi e colocou-a de volta no perigo que estavam correndo ele e sua família

       — Em troca você me arranja um passaporte britânico, uma maneira segura de sair e uma pensão substancial, caso eu precise?

       Armstrong estendeu a mão.

       — Feito — disse ele.

       Os dois homens apertaram-se as mãos, nenhum deles acreditando que aquele gesto tivesse qualquer outro valor além da delicadeza, ambos sabendo que cumpririam a promessa se pudessem, mas só se fosse em proveito próprio.

       — Se o pegarmos, Robert, eu controlo o interrogatório e pergunto o que quiser primeiro.

       — É claro, você é o chefe. — Armstrong disfarçou o seu contentamento.

       — Você seria capaz de apanhá-lo?

       — Talvez eu pudesse convencer Abdullah Khan de arranjar um encontro deste lado da fronteira. Rakoczy já nos disse o suficiente sobre ele para fazê-lo contorcer-se, embora tenhamos que ser cautelosos... ele é um dos nossos melhores agentes também.

       — Fale sobre a Seção 16/a. Aposto que ele não sabe que foi traído. Hashemi concordou.

       — Se conseguirmos fazer Petr Oleg atravessar a fronteira, não há necessidade de trazê-lo para cá. Nós podemos tratar dele no nosso posto em Tabriz.

       — Eu não sabia que vocês tinham um posto lá.

       — Há um monte de coisas que você não sabe sobre o Irã, Robert. — Hashemi apagou o cigarro. Quanto tempo ainda me resta? ele pensou nervosamente, totalmente desacostumado a se sentir como a caça e não como o caçador.

       — Pensando bem, dê-me o passaporte amanhã.

       — Quanto tempo você vai levar para 'convencer' Abdullah Khan?

       — Nós vamos ter que agir com cuidado. Aquele desgraçado é todo-poderoso no Azerbeijão. — Ambos olharam para Rakoczy, que se mexeu, gemeu e tornou a mergulhar no seu pesadelo. — Temos que ter muito cuidado.

       — Quando?

       — Amanhã. Assim que terminarmos com Rakoczy, visitaremos Abdullah. Você providencia o avião, ou helicóptero. Você está em bons termos com a CHI, não está?

       Armstrong sorriu.

       — Você sabe de tudo, não?

       — Só a respeito do que acontece em Teerã, dos assuntos islâmicos e iranianos.

       Hashemi ficou imaginando o que McIver e os outros estrangeiros que trabalhavam com petróleo fariam se soubessem que o ministro interino Ali Kia, recentemente nomeado para o conselho da ATC, tinha, há poucos dias, recomendado a nacionalização imediata de todas as companhias estrangeiras ligadas ao petróleo, de todos os aviões com registro iraniano, de todas as companhias de aviação, e a expulsão de todos os pilotos e empregados estrangeiros.

       — E como o senhor vai atender aos campos de petróleo, ministro Excelência? — ele perguntara quando soube.

       — Nós não precisamos de estrangeiros. Os nossos próprios pilotos podem atender aos nossos campos. Nós não temos centenas de pilotos que precisam provar a sua lealdade? Eu suponho que o senhor tenha arquivos secretos a respeito de todos os pilotos estrangeiros, executivos e assim por diante. O, ahn, o komiteh os está solicitando.

       — Eu acho que não temos nada, Excelência. Esses arquivos foram organizados pela Savak — Hashemi dissera suavemente. — Eu suponho que o senhor saiba que essas pessoas horríveis possuem uma pasta completa sobre Vossa Excelência?

       — Que pasta? Eu? Savak? Você deve estar enganado.

       — Talvez. Eu nunca a li, Excelência, mas soube da sua existência. Contaram-me que ela cobre os últimos vinte anos. Talvez ela só contenha mentiras...

       Ele deixara o ministro Kia muito abalado, com a promessa de que tentaria obter a pasta secretamente e entregaria a ele e tinha rido até estar de volta ao QG do Serviço Secreto. A pasta sobre Ali Kia — sua pasta — cobria mesmo vinte anos e continha provas irrefutáveis de todo o tipo de negociatas, usura, ações pró-xá, junto com práticas sexuais altamente originais — fotografadas — que fariam os conservadores fundamentalistas terem um ataque.

       — Qual é a piada? — Armstrong perguntou.

       — A vida, Robert. Há duas semanas eu tinha à minha disposição toda a Força Aérea, se precisasse, agora eu preciso pedir a você para arranjar um avião. Você arranja o avião, eu arranjo a licença. — E sorriu. — Você vai me entregar o passaporte britânico, perfeitamente válido, como diria Talbot, antes de decolarmos, certo?

       — Certo. — Armstrong disfarçou um bocejo. — Enquanto estamos esperando, não podemos ouvir o último cassete?

       Hashemi estendeu a mão para apanhar a chave, mas parou ao ouvir uma batida na porta. Demonstrando cansaço, ele se levantou e abriu-a. Sua fadiga desapareceu. Havia quatro homens do lado de fora. Um dos seus próprios homens, lívido, e três Faixas Verdes. Armados. Ele conhecia o mais velho deles.

       — Salaam, general — disse polidamente, com o coração apertado. — Que a paz esteja com o senhor.

       — Salaam, coronel. Que a paz esteja com o senhor. O general Janan tinha uma fisionomia dura e sua boca era uma linha. Savak. Ele olhou friamente para Armstrong, depois apanhou um papel e entregou-o a Hashemi. — Você deve entregar-me o prisioneiro Yazernov imediatamente.

       Hashemi pegou o papel, agradecendo a Deus por ter arriscado tudo para capturar Rakoczy e fazê-lo chegar rapidamente ao terceiro nível. "Ao coronel Hashemi Fazir, Serviço Secreto. Urgente. Por ordem do Komiteh Revolucionário: O Departamento de Serviço Secreto está dissolvido e todo o pessoal será absorvido imediatamente por esta organização sob o comando do general Janan. O senhor está suspenso de suas funções até novas ordens. Deverá entregar imediatamente ao general Janan o prisioneiro Yazernov e todas as fitas do interrogatório. (Assinado) Abrim Pahmudi, Diretor, Savama."

       — O espião ainda está no segundo nível e o senhor vai ter que esperar. É perigoso removê-lo e...

       — Ele não está mais sob sua responsabilidade.

       O general fez um sinal para um dos seus homens, que saiu, chamou os outros para o corredor depois desceu as escadas e entrou na câmara lá embaixo. O médico, pálido e muito nervoso, estava junto com eles. Quando os Faixas

       Verdes viram o homem nu sobre a mesa, os instrumentos e a forma como ele estava cheio de fios, seus olhos faiscaram. O médico começou a tirar os fios. Lá em cima, na sala de interrogatório, Hashemi olhou para o general.

       — Eu advirto, formalmente, que é perigoso removê-lo. O senhor é responsável.

       — Insha'Allah. Apenas entregue-me as fitas.

       Hashemi deu de ombros e destrancou a gaveta de cima e entregou-lhe as doze fitas do primeiro e do segundo nível, praticamente sem valor nenhum.

       — E as outras também! Agora!

       — Não há mais nenhuma.

       — Abra a outra gaveta!

       Mais uma vez Hashemi deu de ombros, escolheu uma chave e usou-a cuidadosamente. Ela girou corretamente. A chave punha em funcionamento o magnetizador e apagava as fitas. Só ele e Armstrong conheciam o segredo — bem como as instalações secretas dos gravadores em duplicata:

       — Nunca se sabe, Hashemi, quando se pode ser traído e por quem — Armstrong dissera-lhe há anos, quando, juntos, eles haviam instalado o equipamento. — Você pode querer apagar as fitas e depois usar as fitas secretas para negociar a sua liberdade. Nunca se é cuidadoso demais num jogo desses.

       Hashemi abriu a gaveta, rezando para que os dois mecanismos estivessem funcionando. Insha'Allah, pensou e entregou as oito fitas. — Estou-lhe dizendo que elas estão vazias.

       — Se estiverem, aceite as minhas desculpas, se não estiverem... Insha'Allah! — O general olhou para Armstrong, com os olhos duros como pedra. — É melhor você deixar o Irã depressa. Dou-lhe um dia e uma noite pelos serviços prestados no passado.

      

       NA CASA DE BAKRAVAN, PERTO DO BAZAR: 20:57H. Xarazade estava deitada de bruços na cama, tomando uma massagem, e gemeu de prazer enquanto a velha passava óleo nas suas manchas roxas e na pele

       — Oh, tenha cuidado, Jari.

       — Sim, sim, minha princesa — murmurou Jari, com as mãos fortes e suaves aliviando a dor.

       Ela tinha sido babá e empregada de Xarazade desde o seu nascimento e a amamentara quando o seu próprio bebê, nascido uma semana antes, morrera. Durante dois anos ela amamentou Xarazade e depois, porque Jari era uma mulher tranqüila e gentil, agora viúva, ficara encarregada de tomar conta dela. Quando Xarazade se casou com Emir Paknouri, ela a acompanhou para a casa dele e então, quando o casamento terminou, elas voltaram para casa alegremente. Estúpido casar uma flor daquelas com um homem que preferia garotos, por mais dinheiro que ele tivesse, Jari sempre pensara assim, mas nunca dissera nada. Nunca nunca nunca. Era perigoso ir contra o chefe da casa — qualquer chefe da casa — mais ainda quando se tratava de um avarento como Jared Bakravan, pensou, nada triste por ele estar morto.

       Quando Xarazade se casara pela segunda vez, Jari não fora para o apartamento. Mas isso não tinha importância, porque Xarazade passava os dias lá quando o infiel estava fora. Todos os empregados o chamavam assim e o toleravam por causa da felicidade dela, que só as mulheres compreendiam.

       — Eeee, que demônios são os homens — ela disse e disfarçou um sorriso, compreendendo muito bem. Todos eles tinham ouvido os gritos e os soluços na noite passada, e embora todos soubessem que um marido tinha o direito de bater na mulher e que Deus tinha permitido que os golpes do infiel tirassem a sua senhora do seu ataque, ela própria ouvira gritos diferentes, pouco antes do amanhecer, os gritos dos dois no jardim de Deus.

       Ela mesma nunca estivera lá. Outras lhe contavam como tinham sido transportadas, e Xarazade também, mas as poucas vezes que o seu marido tinha deitado com ela fora para o prazer dele e não dela. A parte dela tinha sido sofrimento e seis filhos antes dos vinte anos, sendo que quatro tinham morrido quando ainda eram bebês. Depois ele morrera, livrando-a de morrer de parto, o que ela sabia que de outro modo seria inevitável. Como Deus quiser! Oh, sim, disse a si mesma, contente, Deus me salvou e o fez morrer e agora, com toda a certeza, ele está ardendo no fogo do inferno, pois ele era um blasfemador que mal rezava uma vez por dia. Deus também me deu Xarazade!

       Ela olhou para o lindo corpo macio e para os longos cabelos escuros. Eeee, disse a si mesma, que bênção ser tão jovem, tão elástica, tão disposta para fazer o trabalho de Deus por longo tempo

       — Vire-se, princesa, e..

       — Não, Jari, está doendo muito.

       — Sim, mas eu preciso massagear os músculos do seu estômago e fortalecê-los. — Jari deu uma risadinha. — Eles precisam ficar bem fortes.

       Imediatamente, Xarazade virou-se e olhou para ela, esquecendo-se da dor:

       — Oh, Jari, você tem certeza?

       — Só Deus pode ter certeza, princesa. Mas você alguma vez atrasou tanto? Você não está atrasada?, e atrasada também em ter um filho?

       As duas mulheres riram juntas, depois Xarazade deitou-se de costas e entregou-se às mãos dela e ao futuro e ao momento feliz quando dissesse a ele: Tommy, sinto-me honrada em comunicar... não, não está bom. Tommy, Deus nos abençoou... não, assim também não está bom embora seja verdade. Se ao menos ele fosse muçulmano e iraniano, seria tão mais fácil. Oh, Deus, e Profeta de Deus, faça com que Tommy se torne muçulmano para salvá-lo do inferno, faça com que meus filhos sejam fortes e faça-os crescer para terem filhos e filhas e estes terem filhos... oh, como somos abençoados por Deus..

       Ela deixou a mente divagar. A noite estava calma, ainda caía um pouco de neve e não havia muito tiroteio. Daqui a pouco eles jantariam e depois ela jogaria gamão com a prima Karim ou com Zarah, mulher do seu irmão Meshang, depois iria dormir satisfeita, tendo passado bem o dia.

       De manhã, quando Jari a acordara, o sol já estava alto, e embora ela tivesse chorado um pouco por causa da dor, o óleo e a massagem a fizeram sentir-se logo aliviada. Depois veio o banho ritual e a primeira oração do dia, ajoelhada diante do pequeno altar num canto do quarto, com o seu sajadeh, a pequena tapeçaria quadrada, finamente tecida, com sua tigela de areia sagrada de Cabella e, além disso, a fileira de contas de rezar e sua cópia do Corão, lindamente decorada. Um rápido café da manhã composto de chá, pão fresco ainda quente do forno, manteiga, mel e leite, um ovo cozido como sempre — isso raramente faltava, mesmo durante os maus momentos — e depois a caminhada rápida até o bazar, de véu e chador, para ver Meshang, o seu adorado irmão.

      — Oh, Meshang, meu querido, você parece tão cansado. Soube o que houve com o nosso apartamento?

       — Sim, soube — respondeu taciturno, com sombras negras sob os olhos. Aqueles quatro dias desde que seu pai fora para a prisão Evin tinham-no envelhecido. — Filhos de um cão, todos eles! Mas eles não são do nosso povo. Ouvi dizer que são membros da OLP agindo em nome deste Komiteh Revolucionário. — E deu de ombros. — Seja como Deus quiser!

       — Como Deus quiser, sim. Mas meu marido disse que um homem chamado Teymour, o líder, este homem disse que nós tínhamos até a hora da oração da tarde de hoje para retirar as nossas coisas.

       — Sim, eu sei. Seu marido deixou um recado para mim antes de partir esta manhã para Zagros. Eu mandei Ali e Hassan e alguns outros empregados, disse a eles para fingirem ser transportadores e recolherem tudo o que pudessem.

       — Oh, obrigado, Meshang, que esperteza a sua. — E ficou mais aliviada. Ela não podia nem imaginar ter que ir lá pessoalmente. Seus olhos se encheram de lágrimas. — Eu sei que é a Vontade de Deus, mas me sinto tão vazia sem papai.

       — Sim, sim... eu sinto a mesma coisa... Insha'Allah.

       Não havia mais nada que ele pudesse fazer. Ele fizera tudo corretamente, supervisionando a limpeza do corpo, envolvendo-o com a melhor musselina, e depois o funeral. Agora a primeira parte do luto estava terminada. No quadragésimo dia haveria outra cerimônia no cemitério quando mais uma vez eles chorariam e rasgariam suas roupas e todos estariam inconsoláveis. Mas depois, como agora, cada um deles mais uma vez retomaria o fardo da vida, havia o Shahada para ser recitado cinco vezes por dia, os Cinco Pilares do Islã para obedecer, para garantir que a pessoa fosse para o céu e não para o inferno — o único motivo importante para viver. Eu certamente irei para o paraíso, pensou com total confiança.

       Eles ficaram sentados, em silêncio, na pequena sala sobre a loja que há tão pouco tempo atrás era o domínio particular de Jared Bakravan. Será que fora só há quatro dias que papai estivera lá negociando o novo empréstimo com Ali Kia — quando nós ainda tínhamos algo a oferecer — e que Paknouri entrou e todos os nossos problemas começaram? Filho de um cão! É tudo culpa dele. Ele levou os Faixas Verdes até lá. Sim, ele era uma maldição há anos. Se não fosse pela sua fraqueza, Xarazade já teria tido uns cinco ou seis filhos e nós não teríamos que aturar o infiel que nos torna alvo das zombarias dos lojistas.

       Ele viu a mancha em volta do seu olho esquerdo mas não comentou nada. Esta manhã ele agradecera a Deus e concordara com sua mulher que a surra a trouxera de volta do seu ataque.

       — Não há nenhum mal numa boa surra de vez em quando, Zarah — ele concluíra com prazer, e pensara: todas as mulheres precisam de uma boa surra de vez em quando, com suas constantes reclamações, choros, picuinhas, ciúmes, interferências e toda essa conversa de votação e marchas e protestos. Contra o quê? Contra as leis de Deus!

       Eu nunca entenderei as mulheres. Entretanto, até o Profeta, cujo nome seja louvado, ele, o homem mais perfeito que já viveu, até ele teve problemas com as mulheres e mais dez esposas depois que Khadija, a primeira, morreu após ter-lhe dado seis filhos — que pena que nenhum dos seis filhos sobrevivesse, exceto sua filha Fátima. Mesmo depois de toda essa experiência com mulheres, está escrito que até o Profeta, até ele, tinha que se afastar de vez em quando para ter um pouco de paz.

       Por que as mulheres não podem contentar-se em ficar em casa, em serem obedientes, ficarem caladas e não se meterem?

       Há tanto o que fazer. Tantos fios de meada para desenrolar e descobrir, tantos segredos para revelar, contas e notas promissórias e débitos para descobrir, e tão pouco tempo. Todas as nossas propriedades roubadas, aldeias, a propriedade no mar Cáspio, casas e apartamentos e edifícios em toda Teerã — tudo o que é do conhecimento daqueles demônios! Demônios! O Komiteh Revolucionário, os mulás e os Faixas Verdes são demônios na terra. Como vou lidar com todos eles? Mas tenho que fazê-lo de algum modo. Tenho, e então, no ano que vem, farei a peregrinação a Meca.

       — Seja como Deus quiser — disse e se sentiu um pouco melhor. E Deus quis que eu me encarregasse de tudo muito mais cedo do que eu esperava, muito embora eu esteja tão bem treinado quanto qualquer filho estaria para assumir um império, até mesmo o império Bakravan.

       Também foi do desejo de Deus que eu já conhecesse a maioria dos segredos, revelados a mim por meu pai nos últimos anos, quando ele descobriu que podia confiar em mim, que eu era mais inteligente do que ele tinha esperado. Não fui eu que sugeri as contas numeradas na Suíça há quase sete anos, e expliquei sobre os títulos do Tesouro dos Estados Unidos, o investimento imobiliário na América, e, principalmente, sobre as Sete Irmãs? Nós fizemos milhões, e tudo a salvo desses filhos de um cão, graças a Deus! Em segurança na Suíça, em ouro, terras, ações, dólares, marcos alemães, iens e francos suíços...

       Viu Xarazade olhando para ele, esperando.

       — Os empregados farão tudo antes do pôr-do-sol, Xarazade, não se preocupe — disse com amor, mas desejando que ela fosse embora para que pudesse prosseguir com o seu trabalho. Mas estava na hora de tratar de outros assuntos:

       — Este seu marido, ele concordou em se tornar muçulmano, não?

       — Quanta gentileza a sua em se lembrar, querido Meshang. Meu marido concordou em pensar nisso — respondeu defensivamente. — Eu o tenho instruído sempre que posso.

     — Ótimo. Quando ele voltar, por favor diga-lhe que venha me ver.

       — Sim, é claro — ela disse imediatamente. Meshang era o chefe da família agora e, como tal, tinha que ser obedecido sem perguntas.

       — O prazo de um ano e um dia já venceu, não? — O rosto de Xarazade iluminou-se.

       — Sinto-me honrada em dizer-lhe, Meshang querido, que talvez Deus nos tenha abençoado. Eu estou um ou dois dias atrasada.

       — Que Deus seja louvado. Isto merece ser celebrado! Papai teria ficado tão feliz. — Ele deu-lhe um tapinha na mão. — Ótimo. Agora, e quanto a ele, o seu marido? Este seria o momento perfeito para um divórcio, não?

       — Não! Oh, como você pode dizer uma coisa dessas? — Ela exclamou, antes de poder controlar-se. — Oh, absolutamente não, oh, não, isto seria terrível, eu morreria, seria terr...

       — Fique quieta, Xarazade! Pense! — Meshang estava estarrecido pela sua falta de educação. — Ele não é iraniano nem muçulmano, ele não tem dinheiro, não tem futuro, não merece fazer parte dos Bakravans, você não concorda?

       — Sim, sim, é claro, eu... eu concordo com tudo o que você está dizendo, mas se puder dizer uma coisa... — ela falou apressadamente, mantendo os olhos baixos para disfarçar o choque, amaldiçoando-se por não ter percebido o quanto Meshang se opunha ao seu Tommy, e que, portanto, era um inimigo contra quem ela devia se proteger. Como pude ser tão estúpida e ingênua? — Eu concordo que pode haver problemas, meu querido, e concordo com tudo o que você disse... — Ela se ouviu dizendo com sua voz mais melosa, enquanto sua cabeça trabalhava na velocidade da luz, analisando, descartando, tentando fazer um plano, para agora e para o futuro, pois sem a benevolência de Meshang a vida seria muito dura. — Você é o homem mais sábio que eu conheço... mas permita-me dizer que Deus talvez o tenha posto no meu caminho, papai concordou com o nosso casamento, então até que Deus o tire do meu caminho eme...

       — Mas agora eu sou o chefe da família e tudo mudou. Os aiatolás mudaram tudo — ele disse secamente. Ele jamais gostara de Lochart, ressentia-se por ele ser um infiel, a causa de todos os seus problemas passados e presentes; desprezava-o por ser um intruso e uma despesa injustificada, mas como não pudera interferir e por causa do acordo tácito do pai, ele sempre mantivera esse sentimento oculto. — Não preocupe a sua linda cabecinha, mas a revolução mudou tudo. Nós vivemos num mundo diferente, e é nessa perspectiva que eu preciso considerar o seu futuro e o futuro do seu filho.

       — Você tem toda a razão, Meshang, e eu o abençôo por pensar em mim e no meu filho, como você é maravilhoso e que sorte você estar aqui para tomar conta de nós — disse, tendo recuperado o controle. E continuou a elogiar e a bajular, mostrando-se arrependida por sua falta de educação, usando toda sua astúcia, não dando a ele nenhuma indicação e desviando a conversa para outros assuntos. Então, na hora certa, ela disse:

       — Eu sei que você deve estar muito ocupado. — E se levantou sorrindo. — Você e Zarah estarão em casa para o jantar? O primo Karim vem jantar, e conseguir escapar da base, não vai ser divertido? Eu não o vejo desde... — ela parou em tempo. — Pelo menos há uma semana, mas o mais importante, Meshang, é que o cozinheiro vai fazer o seu horisht favorito, exatamente do modo como você gosta.

       — Oh, vai? Oh, bem, sim, sim, nós estaremos em casa. Mas diga a ele para não usar alho demais. Agora, quanto ao seu marido...

       — Oh, isto me faz lembrar, querido Meshang — disse, jogando sua última cartada. Por enquanto. — Ouvi dizer que Zarah agora tem a sua permissão ara ir à Marcha das Mulheres, depois de amanhã, que bondade a sua. — Ela viu ficar vermelho e riu consigo mesma, sabendo que Zarah estava decidida ir e ele estava decidido a que ela não fosse. Sua fúria explodiu. Ela ouviu pacientemente, com os olhos inocentes, concordando de vez em quando, na hora certa.

       — Meu marido concorda totalmente com você, Meshang querido — disse com o fervor apropriado. — Sim, totalmente, querido irmão, e eu vou falar com Zarah, caso ela comente alguma coisa a respeito dos seus sentimentos...

       — Não que isso faça a menor diferença para ela, ou para mim, porque a esta marcha de protesto nós iremos de qualquer maneira. Ela o beijou de leve. — Até logo, meu querido, tente não trabalhar demais. Eu vou providenciar o horisht.

       Então ela fora imediatamente falar com Zarah e a avisara que Meshang ainda estava furioso por causa da marcha.

       — Ridículo! Todas as nossas amigas vão estar lá, Xarazade. Será que ele quer nos envergonhar diante das nossas amigas? — Juntas elas tinham feito um plano. E como a tarde já estava no fim ela correra para casa para mandar fazer o horisht.

       — Exatamente como o mestre gosta e se você usar alho demais e não estiver perfeito, eu... eu vou mandar o velho Ashabageh, o adivinho, botar mau-olhado em você! Vá até o mercado e compre o melão que ele adora!

       — Mas senhora, há tempo que não há melões...

       — Arranje um! — gritara, batendo com os pés. — É claro que você pode conseguir um.

       Depois supervisionara Jari enquanto ela arrumava todas as suas roupas e as de Tommy, derramando uma lágrima de vez em quando, não pela perda do apartamento, que ele desejara mais do que ela, mas de felicidade por estar de novo em casa. Um descanso, uma oração, depois um banho, e agora a massagem.

       — Pronto, princesa — disse Jari, com os braços cansados. — Agora você deve se vestir para o jantar. O que gostaria de usar?

       Ela escolhera a roupa que mais agradaria a Meshang, a saia de lã colorida e a blusa que ele admirava. Então, mais uma vez, fora verificar o horisht e o polo — a maneira iraniana de cozinhar o arroz, com uma crosta dourada de dar água na boca — e a outra especialidade de Meshang, o melão, cheiroso, suculento e perfeitamente esculpido.

       Esperando por seu primo Karim Peshadi — amando-o, lembrando-se de como tinham crescido juntos, suas famílias sempre unidas, os verões nas propriedades do mar Cáspio, nadando e velejando e, no inverno, esquiando perto de Teerã, nada além de festas, bailes e alegria, Karim alto como o pai, o coronel-comandante de Kowiss, e tão bonito quanto ele. Ela sempre associava Karim àquela primeira noite de setembro em que vira o estrangeiro alto com olhos azuis-acinzentados — olhos que brilharam com o fogo celestial de que falavam os antigos poetas, no mesmo instante em que pousaram nela...

       — Alteza, Sua Excelência, seu primo capitão Karim Peshadi, pede permissão para vê-la.

       Ela correra alegremente para recebê-lo. Ele estava olhando por uma das janelas do menor dos salões de recepção, que tinha as paredes forradas de espelhos e as janelas seguindo um desenho artístico persa, e cuja única mobília era o tradicional sofá baixo que circundava as paredes, uns poucos centímetros para fora do tapete grosso, macio e revestido da mais fina fazenda persa — como o encosto que ficava preso nas paredes.

       — Querido Karim, que bom — Ela parou. Era a primeira vez que o via desde o dia em que tinham ido juntos ao comício de Doshan Tappeh, há uma semana, e agora ele parecia um estranho. Com a pele esticada sobre as maçãs do rosto, terrivelmente pálido, com círculos negros em volta dos olhos, mal barbeado, mal vestido, quando geralmente ele se mostrava impecavelmente vestido e arrumado. — Oh, Karim, o que foi?

       Os lábios dele se moveram mas não saiu nenhum som. Ele tornou a tentar.

       — Papai está morto, fuzilado por crimes contra o Islã, eu fui considerado suspeito, fui suspenso e posso ser preso a qualquer momento — disse amargamente. — Quase todos os nossos amigos são suspeitos, o coronel Jabani desapareceu, acusado de traição. Você se lembra dele, o que conduziu o povo contra os Imortais e perdeu quase toda a mão numa explosão...

       Apatetada, ela ficou sentada, escutando, olhando para ele.

       — ...mas o pior ainda está para vir, querida Xarazade. O tio... tio Valik e Annoush e os pequenos Jalal e Setarem estão todos mortos, foram mortos tentando fugir para o Iraque num 212 civil...

       Seu coração parecia que tinha parado e o pesadelo começou.

       — ...eles foram interceptados e derrubados perto da fronteira do Iraque. Eu estive no QG hoje, esperando para responder às perguntas do nosso komiteh quando o telex da base de Abadan chegou — aqueles filhos de um cão do komiteh não sabem ler, então pediram-me para ler, sem saber que eu tinha ligação com Valik, que nós éramos parentes. O telex estava marcado como secreto e dizia que os generais traidores Valik e Seladi tinham sido identificados por seus documentos, encontrados nos destroços do 212, junto com outros e... e uma mulher e duas crianças... e pedia-nos para checar o helicóptero, supostamente um dos helicópteros da companhia de Tom que tinha sido seqüestrado, EP-HBC...

      Ela desmaiou.

       Quando voltou a si, Jari passava uma toalha molhada em sua testa, com outros empregados rodeando-a, ansiosos, e Karim, pálido e arrependido mais atrás. Ela o olhou com um ar vago. Então tudo o que ele contara veio à sua cabeça, bem como o que Erikki dissera e a estranheza de Tom. E mais uma vez tudo se embaralhou e outra onda de terror começou a invadi-la.

       — Excelência... Excelência Meshang já chegou? — Ela perguntou com voz fraca.

       — Não, não, princesa. Deixe-me ajudá-la a ir para a cama, você vai se sentir me...

       — Eu estou... não, obrigada, Jari, eu... eu estou bem. Por favor, deixe-nos a sós.

       — Mas prince...

       — Deixe-nos a sós!

       Eles obedeceram. Karim estava angustiado.

       — Por favor, desculpe-me, querida Xarazade, eu não deveria tê-la preocupado com todos esses problemas, mas eu... eu só soube o que... o que houve com papai hoje de manhã. Eu sinto muito, Xarazade, não compete a uma mulher se preocupar com...

       — Karim, ouça, eu imploro — ela interrompeu-o com um desespero cada vez maior. — Aconteça o que acontecer, não fale nada a Meshang sobre o tio Valik, não diga nada sobre ele... e os outros, ainda não, por favor, ainda não! Não diga nada sobre Valik!

       — Mas por quê?

       — Porque... porque... — Oh, Deus, oh, Deus, o que vou fazer? Ela estava pensando, com vontade de gritar: tenho certeza de que Tommy estava pilotando o HBC, oh, Deus, fazei com que eu esteja errada, mas tenho certeza de que foi isso que Erikki disse quando eu perguntei a ele quanto tempo Tommy iria ficar fora. Erikki disse: "Não se preocupe, o vôo de Tommy é para Bandar Delam: HBC com peças sobressalentes. Não deve levar mais de um dia ou dois." Bandar Delam não fica próximo a Abadan que fica na fronteira? O tio Valik não veio falar com Tommy tarde da noite, muito tarde, o que mostra que o assunto era muito urgente, e então, depois que ele saiu, Tommy não estava diferente, infeliz, olhando fixamente para o fogo? "A família precisa olhar pela família", não foi isto que ele murmurou? Oh, Deus, ajude-me...

       — O que é, Xarazade, o que é?

       — Não tenho coragem de contar-lhe, Karim, embora confie cegamente em você, mas preciso proteger Tommy... se Meshang descobrir sobre Tommy, será o nosso fim, o fim de tudo! Ele o denunciaria, ele não se arriscaria a ter mais problemas... ou crimes contra Deus! Eu não posso me opor à família, Meshang me obrigaria a me divorciar dele. Deus me ajude, o que devo fazer? Sem Tommy eu... eu morreria, eu sei que sim... o que foi mesmo que Tommy disse sobre levar um aparelho para fazer um transporte? Um transporte para Al Shargaz? Era para lá ou para a Nigéria? Eu não tenho coragem de lhe contar, Karim, não tenho coragem...

       Mas quando compreendeu como ele estava preocupado, sua boca se abriu e ela despejou tudo o que não tivera coragem de contar.

       — Mas é impossível — ele gaguejou —, impossível. O telex disse que não houve sobreviventes, é impossível que ele estivesse pilotando.

       — Sim, mas ele estava, ele estava, eu tenho certeza, tenho certeza. Oh, Karim, o que vou fazer? Por favor, ajude-me, por favor, eu imploro, por favor ajude-me! — As lágrimas escorriam pelo seu rosto e ele a abraçou, tentando consolá-la. — Por favor, não diga nada a Meshang, por favor me ajude, seu o meu Tommy... eu morreria.

       — Mas Meshang vai fatalmente descobrir! Ele tem que saber.

       — Por favor me ajude. Deve haver algo que você possa fazer, deve haver alguma...

       A porta se abriu e Meshang entrou apressado, junto com Zarah.

       — Xarazade, minha querida, Jari me disse que você desmaiou, o que aconteceu, você está bem? Karim, como vai? — Meshang parou, estarrecido com a aparência desleixada de Karim e sua palidez. — O que foi que aconteceu?

       No silêncio que se seguiu, Xarazade tapou a boca com a mão, apavorada de tornar a soltar tudo. Ela viu Karim hesitar. O silêncio ficou mais pesado, então ela o ouviu dizer rapidamente.

       — Eu tenho notícias terríveis. Primeiro... primeiro sobre meu pai. Ele foi fuzilado, fuzilado por... por crimes contra o Islã...

       Meshang explodiu.

       — Não é possível! O herói de Dhofar? Você deve estar enganado!

       — Também não era possível que isso acontecesse com Sua Excelência Jared Bakravan, mas ele está morto e papai também está morto, e há mais notícias, todas ruins...

       Xarazade começou a chorar desamparadamente, Zarah abraçou-a e Karim, penalizado, resolveu deixar que outros trouxessem as notícias a respeito de Valik, sua mulher e seus filhos.

       — Insha'Allah — ele disse, odiando essa desculpa que ele não podia mais aceitar por crimes profanos cometidos por homens em nome de um Deus que esses homens jamais conheceriam. O aiatolá é realmente um presente de Deus. Precisamos apenas segui-lo para livrar o Islã desses blasfemadores nojentos, pensou. Deus vai puni-los depois da morte assim como nós, os vivos, devemos puni-los com a morte.

       — Minhas notícias são todas ruins; eu fui considerado suspeito, assim como a maioria dos meus amigos, a Força Aérea está em julgamento. Tolamente, eu contei a Xarazade... eu queria que você soubesse, Meshang, mas tolamente contei a ela e foi por isso que ela desmaiou. Por favor, perdoe-me. Sinto muito, mas não vou ficar, não posso, preciso... preciso voltar. Eu só vim contar a vocês... eu tinha que contar a alguém...

      

       NO ESCRITÓRIO DE McIVER: 22:20H. McIver estava sozinho nos escritórios de cobertura, sentado em sua cadeira, com os pés descansando confortavelmente na mesa, lendo — a luz era boa e a sala estava quente graças ao gerador. O telex estava ligado, assim como o HF Já era tarde, mas não fazia sentido ir para casa ainda, onde estava frio, úmido e não tinha Genny. Ele levantou os olhos. Alguém subia apressadamente a escada externa. A batida foi nervosa.

       — Quem é?

       — Capitão McIver? Sou eu, capitão Peshadi, Karim Peshadi. Estarrecido, McIver destrancou a porta, pois conhecia muito bem o

       homem, como aluno do curso de pilotos de helicóptero e como primo favorito de Xarazade. Estendeu a mão, disfarçando o espanto com a aparência do rapaz.

       — Entre Karim; o que posso fazer por você? Fiquei muito penalizado quando soube da prisão do seu pai.

       — Ele foi fuzilado há dois dias.

       — Oh, Cristo!

       — Sim. Desculpe, mas isso não vai ser nada agradável. — Apressadamente, Karim fechou a porta e baixou a voz. — Sinto muito, mas preciso andar depressa, já estou horas atrasado mas venho da casa de Xarazade. Fui até o seu apartamento mas o capitão Pettikin disse que o senhor estava aqui. Esta noite eu li um telex secreto enviado pela nossa base em Abadan. — E contou o que estava escrito no telex.

       McIver ficou apavorado e tentou disfarçar.

       — Você contou ao capitão Pettikin?

       — Não, não. Achei que só devia contar ao senhor.

       — Pelo que eu sei, o HBC foi seqüestrado. Nenhum dos nossos pilotos esteve envolvido...

       — Não estou aqui oficialmente, e só vim contar ao senhor porque Tom não está aqui. Eu não sabia o que fazer. Estive com Xarazade esta noite e descobri, por acaso, sobre Tom. — Ele repetiu o que Xarazade lhe dissera. — Como é possível que Tom esteja vivo e todos os outros mortos? McIver sentiu a dor no peito começando de novo.

       — Ela está enganada.

       — Em nome de Deus, diga-me a verdade! O senhor deve saber! Tom deve ter-lhe contado, o senhor pode confiar em mim — explodiu o rapaz, fora de si de preocupação. — O senhor tem que confiar em mim. Talvez eu possa ajudar. Tom está correndo um perigo terrível, bem como Xarazade e toda a nossa família! O senhor tem que confiar em mim! Como foi que Tom conseguiu sair?

       McIver sentiu o laço sendo apertado em volta de todos eles — Lochart, Pettikin, ele. Não perca a calma, disse a si mesmo, tenha cuidado. Você não deve admitir nada. Não admita nada!

       — Pelo que sei, Tom não chegou perto do HBC.

       — Mentiroso! — disse o rapaz, furioso, e despejou o que concluíra no trajeto até chegar lá, andando, lutando por um lugar num ônibus, tornando a andar, com a neve caindo, com frio e desesperado, e ainda tendo que comparecer diante do komiteh. — O senhor deve ter assinado a autorização, o senhor ou Pettikin, e o nome de Tom deve constar da autorização. Eu conheço você muito bem, vocês e seus sermões sobre respeitar as regras, assinando formulários, sempre com um formulário para assinar. O senhor assinou, não foi? Não foi? — gritou.

       — Acho melhor o senhor sair, capitão — disse secamente McIver.

       — O senhor está tão envolvido quanto Tom, será que não compreende? O senhor está numa encrenca tanto quanto...

       — Acho que é melhor você esquecer isso. Eu sei que você está esgotado e foi terrível o que houve com seu pai — disse bondosamente. — Lastimo profundamente.

       Não havia nenhum outro som além do zumbido suave do HF e do gerador que ficava sobre o telhado. McIver esperou. Karim também. Então o rapaz balançou a cabeça.

       — O senhor tem razão — disse abatido —, por que confiaria em mim? Não existe mais confiança. O nosso mundo se transformou num inferno e tudo por causa do xá. Nós confiamos nele e ele traiu a nossa confiança, deu-nos falsos aliados, amordaçou os nossos generais, fugiu e nos deixou na fogueira, envergonhados, abandonou-nos aos falsos mulás. Juro por Deus que o senhor pode confiar em mim, mas que diferença isso faz para o senhor ou para qualquer pessoa? Não existe mais confiança. — Seu rosto contorceu-se. — Talvez Deus tenha nos abandonado. — O HF na outra sala deu um estalo, por causa da estática produzida por uma tempestade elétrica em algum lugar. — O senhor pode falar com Zagros? Xarazade disse que Tom foi para lá hoje de manhã.

       — Eu tentei, mas não consegui. — McIver disse com sinceridade. — Nesta época do ano é quase impossível, mas eu soube que ele chegou bem. A nossa base em Kowiss transmitiu um relatório pouco depois do meio-dia.

       — É melhor... é melhor o senhor contar a Tom, contar-lhe o que eu disse. Diga-lhe para dar o fora. — A voz de Karim era inexpressiva. — Vocês são abençoados, vocês podem voltar para casa. — Então o seu desespero explodiu e as lágrimas rolaram-lhe pelo rosto.

       — Ora, rapaz...

       Penalizado, McIver pôs o braço em volta dos seus ombros e consolou-o, o rapaz era da mesma idade que seu filho que estava a salvo na Inglaterra, que nascera inglês, que estava a salvo no chão, era médico e não tinha nada a ver com aviação, em segurança... Meu Deus, quem está seguro?

       Pouco depois sentiu que o rapaz estava mais calmo. Para poupar-lhe o embaraço, afastou-se e olhou para a cozinha.

       — Eu ia tomar um chá, você quer me fazer companhia?

        — Eu... quero apenas um copo d'água e depois vou embora, obrigado. Imediatamente, McIver foi buscar água. Pobre rapaz, pensou, que coisa terrível o que houve com seu pai — um sujeito fantástico, forte, linha dura mas correto e leal, e não uma pessoa de duas caras. Terrível. Meu Deus, se eles o fuzilaram, são capazes de fuzilar qualquer um. Nós todos estaremos mortos em breve, de uma maneira ou de outra.

       — Aqui está — disse, revoltado, entregando o copo a Karim.

       O rapaz aceitou-o, envergonhado por ter perdido o controle na frente de um estrangeiro.

       — Obrigado. Boa noite. — E viu McIver olhar estranhamente para ele. — O que é?

       — Apenas uma idéia súbita, Karim. Você poderia ter acesso à torre de Doshan Tappeh?

       — Não sei. Por quê?

       — Se você pudesse, sem que ninguém soubesse o que estava querendo, você talvez pudesse apanhar a autorização do HBC. Tem que estar no livro de decolagens, caso eles estivessem usando um naquele dia. Então nós saberíamos quem estava pilotando, não é?

       — Sim, mas de que adiantaria isso? — Karim observou os olhos claros no rosto anguloso. — Eles estariam com os gravadores automáticos ligados.

       — Talvez sim, talvez não. Tinha havido luta por lá... talvez eles não tenham podido ser tão eficientes. Pelo que eu sei, quem levou o HBC não teve autorização verbal da torre. Ele simplesmente decolou. Talvez no meio de toda a excitação eles não tenham gravado qualquer autorização. — A esperança de McIver foi crescendo à medida que ele desenvolvia este raciocínio. — Só o livro poderia dizer, o livro de autorização de decolagens.

       Karim tentou compreender aonde McIver queria chegar.

       — E se estiver escrito que foi Tom Lochart?

       — Não sei como poderia, porque então a minha assinatura teria que estar lá, o que seria, ahn, uma assinatura forjada. — McIver odiava mentiras, e a sua história improvisada cada vez soava mais falsa. — A única autorização que eu assinei foi para Nogger Lane levar algumas peças para Bandar Delam, mas cancelei-a. As peças não eram importantes e as coisas estavam muito tumultuadas, e então o HBC já tinha sido seqüestrado.

       — A autorização é a única prova?

       — Isso só Deus pode saber com certeza. Se a autorização mencionar Tom Lochart e estiver assinada por mim, é falsa. Uma falsificação que pode causar muitos problemas. Portanto ela não deveria existir. Não acha?

       Karim balançou a cabeça vagarosamente, com a sua imaginação já levando-o até a torre, passando pelos guardas — haveria guardas lá? — encontrando o livro e a página correta e vendo... vendo o Faixa Verde na porta, matando-o, apanhando o livro e fugindo, tão silenciosamente e secretamente como tinha entrado, indo até o aiatolá, contando-lhe a respeito do crime monstruoso cometido contra seu pai, o aiatolá sábio, prestando atenção, e não como os cães que tinham abusado da Palavra, ordenando imediatamente vingança em nome do Único Deus. Depois indo até Meshang e contando-lhe que a família estava salva, e mais importante, sabendo que Xarazade, que ele amava e desejava com loucura, mas que lhe era proibida nesta vida — prima em primeiro grau e contra a lei do Corão — também estava salva.

       — A autorização não deveria existir — repetiu, muito cansado. E se levantou. — Eu vou tentar. Sim, vou tentar. O que aconteceu com Tom?

       Atrás de McIver, o telex começou a se manifestar. Os dois deram um pulo. McIver tornou a prestar atenção em Karim.

       — Quando você o encontrar, pergunte-lhe, esta é a coisa certa a fazer. Não é? Pergunte a Tom.

       — Salaam.

       Trocaram um aperto de mão e ele saiu. McIver tornou a trancar a porta. O telex era de Genny, em Al Shargaz: "Alô número um criança. Conversei com Chinês que chega amanhã à noite, segunda-feira, e estará no 125 para Teerã, terça-feira. Ele diz que é imperativo que você se encontre com ele para uma conferência no aeroporto. Tudo acertado aqui para consertos nos 212 e retorno rápido. Acuse recebimento. Falei com as crianças na Inglaterra e está tudo bem. Estou me divertindo muito aqui, farreando pela cidade, satisfeita por você não estar aqui, por que você não está? MacAllister."

       MacAllister era o seu nome de solteira e ela só o usava quando estava muito zangada com ele.

       — Grande Gen — disse alto, sentindo-se melhor ao pensar nela. Estou contente que ela esteja a salvo e fora desta confusão. Estou contente dela ter falado com as crianças, isso deve tê-la alegrado. Grande Gen. Tornou a ler o telex. O que há de tão urgente com Andy? Vou saber logo. Pelo menos estamos em contato através de Al Shargaz. Ele se sentou na cadeira da secretária e começou a datilografar a resposta.

        Ao cair da tarde, recebeu um telex do QG em Aberdeen, mas estava completamente truncado. Só a assinatura era legível: "Gavallan." Imediatamente, passou um telex pedindo repetição e estava esperando desde então. Esta noite, a recepção do rádio também estava ruim. Havia rumores de grandes tempestades de neve nas montanhas e o BBC World Service, com uma transmissão pior do que de costume, falava em grandes tempestades por toda a Europa e na costa leste dos Estados Unidos e em inundações no Brasil. As notícias, de um modo geral, eram péssimas: greves na Grã-Bretanha, combates no Vietnã entre exércitos chineses e vietnamitas, a derrubada, por guerrilheiros, de um avião rodesiano que se preparava para pousar, um provável racionamento de gasolina a ser ordenado por Carter, os soviéticos testando um míssil de 2.500 quilômetros de alcance, e no Irã: "Yasir Arafat foi recebido pelo aiatolá Khomeini, num encontro tumultuado, em que os dois líderes abraçaram-se publicamente, e a OLP assumiu o QG da Missão Israelense em Teerã. Mais quatro generais foram fuzilados. Continuam os combates no Azerbeijão entre forças pró e anti-Khomeini, o primeiro-ministro Bazargan mandou os Estados Unidos fecharem dois postos de escuta de radar na fronteira Irã-União Soviética e acertou um encontro com o embaixador soviético e o aiatolá Khomeini nos próximos dias para discutir importantes diferenças"...

       Deprimido, McIver desligara, e a tensão de tentar entender as notícias com toda a estática tinha aumentado a sua dor de cabeça. Ele tinha tido dor de cabeça o dia inteiro. Ela começara depois do seu encontro daquela manhã com o ministro Ali Kia. Kia aceitara as notas promissórias de um banco suíço, 'taxas de licença' para a partida dos três 212 e também para seis aterrissagens e decolagens do 125 e prometera descobrir o motivo das expulsões de Zagros:

       — Diga ao komiteh de Zagros, enquanto isso, que suas ordens foram revogadas por este ministério, aguardando investigação.

       Isso vai mesmo adiantar muita coisa diante do cano de uma arma!, pensou. O que será que Erikki e Nogger estão fazendo agora? Naquela tarde tinha chegado um telex da Madeira Iraniana, passado pela ATC de Tabriz: "Os capitães Yokkonen e Lane estão requisitados para um trabalho de emergência de três dias. Termos habituais para o frete. Obrigado." Estava assinado como de costume pelo gerente de área e era um pedido normal. Para Nogger, isso é melhor do que ficar coçando o saco, pensara McIver. O que será que o pai de Azadeh queria com ela?

       Exatamente às 19:30h Kowiss tinha chamado, mas a transmissão estava péssima, apenas parcialmente audível e com muita estática. Freddy Ayre comunicava que Starke voltara ileso.

       — Graças a Deus!

       — Diga de n... estou ouvin..do um por cinco, cap...er.

       — Vou repetir — disse devagar e com cuidado. — Diga a Starke que estou muito contente por ele estar de volta. Ele está bem?

       — ...tão Starke...pondeu per....iteh j....toriamente.

       — Repita, Kowiss.

       — Eu repito, capit...arke...resp...guntas do ...iteh ..sa...

       — Vocês estão um por cinco. Torne a tentar às nove horas; não, eu vou ficar aqui até tarde e tentarei por volta das 11 horas.

       — Compreendo o se... tar mais tarde... olta... 11 desta noite?

       — Sim, por volta das 11 horas desta noite.

       — Capi...hart e Jean-Luc cheg... Zagro... a salvo...

       O resto da transmissão foi incompreensível. Depois ele se preparara para esperar. Enquanto esperava, dormiu e leu um pouco, e agora, sentado em frente à máquina de telex, tornou a olhar para o relógio: 22:30h.

       Assim que acabar aqui, vou chamar Kowiss — disse em voz alta. Terminou cuidadosamente o telex para sua mulher, acrescentando, por causa de Manuela, que estava tudo bem em Kowiss. Está tudo bem, pensou, uma vez que Starke está de volta, está bem, e os rapazes estão bem.

       Colocou a fita pontilhada no transmissor, bateu o número de Al Shargaz, esperou um tempo interminável pela resposta, depois apertou o botão de transmissão. A fita começou a correr. Outra longa espera, mas o código de aceitação de Al Shargaz apareceu.

       — Ótimo. — Ele se levantou e se espreguiçou. Na gaveta da escrivaninha estavam as suas pílulas e ele tomou a segunda do dia. — Maldita pressão — resmungou. Sua pressão estava 16 por 11 no último exame médico. As pílulas a fizeram baixar para 13 por 8:

       — Mas olhe, Mac, isso não significa que você possa abusar de uísque, vinho, ovos e creme. O seu colesterol também está alto...

       — Que uísque e cremes o quê, pelo amor de Deus, doutor! Nós estamos no Irã...

       Ele recordou como ficara mal-humorado quando Genny perguntou:

       — Como foi? — respondera:

       — Ótimo, melhor do que da última vez e não chateia!

       Para o inferno com isso! Gostaria de um bom uísque com soda e gelo e depois mais um. Normalmente haveria uma garrafa no cofre, e soda e gelo na geladeira. Agora não havia mais nada. As provisões estavam a zero. Preparou uma xícara de chá. E quanto a Karim e o HBC? Pensarei sobre isso mais tarde: 23h.

       — Kowiss, aqui é Teerã, está me ouvindo? — Pacientemente, ele chamou e tornou a chamar e depois parou. Quinze minutos depois, tornou a tentar. Nenhum contato. — Deve ser a tempestade — disse, já sem paciência. — Para o diabo, vou tentar de casa.

       Vestiu um casaco grosso e subiu a escada em espiral até o telhado para verificar o nível de combustível do gerador. A noite estava muito escura e quieta, não se ouvia quase nenhum tiroteio e o que havia era abafado pela neve. Não havia luz em parte alguma. A neve continuava a cair devagar, quase 15 centímetros desde o amanhecer. Ele tirou a neve do rosto e iluminou o mostrador com a lanterna. O nível de combustível estava bom, mas eles teriam que arranjar outro suprimento nos próximos dias. Que amolação. E quanto ao HBC? Se Karim conseguisse apanhar o livro e ele pudesse ser destruído, não haveria nenhuma prova, haveria? Sim, mas e quanto a Isfahan, o reabastecimento em Isfahan?

       Pensativo, ele voltou, trancou tudo e, usando a lanterna para iluminar o caminho, começou a descer os cinco lances de escada. E não ouviu o telex começar a funcionar atrás dele.

       Na garage, foi até o carro e abriu a porta. Seu coração deu um salto quando viu uma figura alta se aproximando. Savak e HBC surgiram em sua cabeça; ele quase deixou cair a lanterna, mas era Armstrong, com uma capa escura e um chapéu.

       — Desculpe, capitão McIver, não quis assustá-lo.

       — Bem, mas assustou — disse, furioso, com o coração ainda disparado. — Por que você não se anunciou nem subiu até o escritório ao invés de ficar escondido nas sombras como um bandido?

       — O senhor poderia estar com visitas. Eu vi uma delas saindo, então achei melhor esperar. Desculpe. Por favor, apague a lanterna.

       Zangado, McIver fez o que ele pediu — desde que Gavallan tinha localizado Armstrong, ele tinha vasculhado a sua própria memória mas não se lembrava de tê-lo visto nunca. — 'Seção Especial e CID' não fizeram nada para diminuir a sua antipatia.

       — Onde esteve? Nós o esperamos no aeroporto mas você não apareceu. Sim, sinto muito sobre isso. Quando é que o 125 volta para Teerã? Na terça-feira, se Deus quiser Por quê?

       — A que horas aproximadamente?

       — Ao meio-dia. Por quê?

       — Excelente. Isto seria perfeito. Eu preciso ir para Tabriz; eu e um amigo poderíamos fretá-lo?

       — De jeito nenhum. Eu jamais conseguiria arranjar uma autorização. E quem é o amigo?

       — Eu garanto a autorização. Desculpe, capitão, mas é muito importante.

       — Ouvi dizer que tem havido muitos combates em Tabriz; estava no noticiário hoje. Desculpe, mas eu não poderia autorizar isso, seria um risco desnecessário para a tripulação.

       — O sr. Talbot ficaria feliz em reforçar este pedido — Armstrong falou na mesma voz baixa e paciente.

       — Não. Sinto muito. — McIver virou-se mas estacou ao ouvi-lo perguntar num tom carregado de veneno:

       — Antes de ir, eu poderia perguntar a respeito do HBC e de Tom Lochart e do seu sócio Valik, sua mulher e dois filhos?

       McIver ficou paralisado de choque. Podia ver o rosto esculpido em pedra, a boca dura e os olhos que brilhavam com a luz refletida da lanterna.

       — Eu... eu não sei do que você está falando.

       Armstrong pôs a mão no bolso, tirou um pedaço de papel e levantou-o até a altura do rosto de McIver. McIver dirigiu o foco da lanterna para ele. O papel era a fotocópia de uma anotação num livro de autorizações. A letra era boa. "EP-HBC autorizado às 6:20h para um vôo da CHI para Bandar Delam, entrega de peças; piloto capitão T. Lochart, vôo autorizado pelo capitão McIver." A parte de baixo do papel era uma fotocópia da própria autorização, assinada por ele com o nome do capitão N. Lane riscado e marcado 'doente', e substituído pelo do capitão Lochart,

       — Um presente, com os meus cumprimentos.

       — Onde conseguiu isso?

       — Quando o 125 entrar no espaço aéreo de Teerã, fale com o capitão Hogg pelo rádio e diga-lhe que terá de voar imediatamente até Tabriz. Você receberá a autorização a tempo.

       — Não, eu não...

       — Se você não providenciar tudo e não mantiver tudo em segredo, só entre nós — Armstrong falou com uma determinação que assustou a McIver —, os originais vão para a Savak, agora rebatizada de Savama.

       — Isto é chantagem!

       — É uma barganha. — Armstrong enfiou o papel na mão dele e começou a se afastar.

       — Espere! Onde... onde estão os originais?

       — Não estão nas mãos deles, ainda não.

       — Se... se eu fizer o que você pede, eu os tenho de volta, certo?

       — Você deve estar brincando! É claro que você não terá nada de volta.

       — Isso não é justo. Não é nada justo!

       Armstrong voltou e encarou-o, seu rosto parecendo uma máscara.

       — É claro que não é justo. Se você os conseguir de volta, estará livre, não? Todos vocês. Enquanto esses papéis existirem, vocês farão o que for preciso, não farão?

       — Você é um maldito filho da mãe!

       — E você é um idiota que devia cuidar da sua pressão. McIver engasgou.

       — Como você sabe disso?

       — Você ficaria estarrecido com o que eu sei sobre você e Genevere Mac-Allister e Andrew Gavallan e a Casa Nobre e muitas outras coisas que ainda não comecei a usar. — A voz de Armstrong tornou-se mais dura, com o cansaço e a tensão fazendo-o perder o controle. — Será que você não entende que há uma forte possibilidade de que os tanques e os aviões soviéticos estacionem permanentemente deste lado de Ormuz e que o Irã se torne uma província soviética? Eu estou cansado de bancar o idiota com vocês, uns avestruzes. Faça o que eu estou pedindo sem discutir, porque se não fizer eu vou acabar com vocês todos.

 

TERÇA-FEIRA, 20 de fevereiro

       TABRIZ: 5:12H. Na pequena cabana quase no limite da propriedade do khan, Ross acordou de repente. Ficou deitado imóvel, mantendo a respiração regular, mas com todos os sentidos atentos. Aparentemente, não havia nada de diferente, só os mosquitos de sempre e o abafamento do quarto. Pela janela ele pôde ver que a noite estava escura, o céu encoberto. Do outro lado do quarto, no outro catre, Gueng dormia encolhido, respirando normalmente. Por causa do frio, os dois homens tinham se deitado completamente vestidos. Sem fazer barulho, Ross foi até a janela e examinou a escuridão. Nada ainda. Então, junto ao seu ouvido, Gueng cochichou:

       — O que foi, sahib!

       — Não sei. Provavelmente nada.

       Gueng cutucou-o e apontou. Não havia nenhum guarda na cadeira do lado de fora, na varanda.

      — Talvez ele só tenha ido dar uma volta.

       Havia sempre, pelo menos, um guarda. De dia ou de noite. Na noite anterior, havia dois, e Ross fizera um boneco na sua cama e deixara Gueng para distraí-los, pulando pela janela dos fundos, indo sozinho ao encontro de Erikki e Azadeh. Ao voltar, quase tropeçara numa patrulha, mas eles estavam sonolentos e distraídos, e não repararam nele.

       — Dê uma olhada pela janela dos fundos — murmurou Ross.

       — Sahib, talvez tenha sido apenas um espírito da montanha — Gueng disse baixinho. No país do Alto do Mundo, havia uma superstição de que, à noite, os espíritos visitavam a cama dos que dormiam, com boas ou más intenções, e que os sonhos eram histórias que eles cochichavam.

       O homenzinho apurou os olhos e os ouvidos para sentir a escuridão.

       — Acho que talvez seja melhor prestarmos atenção aos espíritos.

       E voltou para a cama, enfiou as botas, tornou a colocar o talismã que tinha guardado debaixo do travesseiro no bolso do uniforme, depois vestiu suas roupas tribais e seu turbante. Rapidamente, checou o seu rifle, as granadas e a mochila que continha munição, granadas, água e um pouco de comida. Não havia necessidade de checar sua kookri, esta nunca estava longe do seu alcance, era sempre limpa e lubrificada toda noite — e afiada — pouco antes de dormir.

       Agora Ross também estava pronto. Mas pronto para quê?, perguntou a si mesmo. Não se passaram nem cinco minutos desde que você acordou e aí está você, com a kookri solta na bainha, com a trava de segurança solta e para quê? Se Abdullah quisesse fazer-lhe algum mal, ele teria tirado as suas armas — ou tentado tirá-las.

       Na tarde anterior eles tinham ouvido o 206 decolar e pouco depois Abdullah Khan fora vê-los.

       — Ah, capitão, desculpe pelo atraso, mas a confusão está maior do que nunca. Os nossos amigos soviéticos estão oferecendo um prêmio muito alto por suas cabeças — disse jovialmente. — O suficiente até para tentar-me, quem sabe?

       — Esperemos que não, senhor. Quanto tempo vamos ter que esperar?

       — Uns poucos dias, não mais do que isso. Parece que os soviéticos querem muito pegar vocês. Recebi outra delegação deles pedindo-me para ajudá-los a capturar vocês, a primeira foi antes de vocês chegarem. Mas não se preocupe, eu sei onde está o futuro do Irã.

       Na noite anterior, Erikki tinha confirmado a questão da recompensa:

       — Hoje eu estava perto de Sabalan, limpando outro posto de radar. Alguns dos operários pensaram que eu era russo. Há muitas pessoas que falam russo entre os povos da fronteira, e disseram que esperavam que fossem eles a capturar o Sabotador britânico alto e seu ajudante. A recompensa são cinco cavalos, cinco camelos e cinqüenta ovelhas. Isso é uma fortuna, e se eles sabem da existência de vocês aqui tão ao norte, pode apostar que estão procurando por aqui.

       — Os soviéticos estavam supervisionando vocês?

       — Só Cimtarga, mas mesmo assim ele não parecia estar controlando. Só a mim e ao aparelho. Os que falavam russo ficavam me perguntando quando avançaríamos pela fronteira com as tropas.

       — Meu Deus. Eles tinham algo em que se basear para perguntar isso?

       — Eu duvido, só boatos. O pessoal aqui se alimenta de boatos. Eu disse: Nunca: Mas o homem zombou e disse que sabia que nós tínhamos 'quilômetros' de tanques e exércitos esperando, que ele os vira. Eu não sei falar farsi, portanto não sei se ele era um outro agente da KGB disfarçado de nativo.

       — Este 'material' que você está transportando, é importante?

       — Não sei. Alguns computadores e um bocado de caixas pretas e papéis. Eles me mantêm afastado, mas nada disso é desmontado por especialistas, é apenas arrancado da parede, os fios são cortados, ficam pendurados e são enfiados para dentro de qualquer jeito. Os operários só estão interessados nos mantimentos, principalmente em cigarros.

       Eles tinham conversado a respeito de fugir. Era impossível fazer planos. Havia muitos elementos imponderáveis.

       — Não sei por quanto tempo eles vão querer que eu pilote — Erikki tinha dito. — Esse filho da mãe do Cimtarga me disse que o primeiro-ministro Bazargan ordenou que os ianques abandonassem dois postos, mais para leste, perto da Turquia, os últimos que eles tinham aqui, mandou que eles os evacuassem imediatamente e deixassem o equipamento intacto. Nós devemos voar até lá amanhã.

       — Você usou o 206 hoje?

       — Não. Aquele era Nogger Lane, um dos nossos capitães. Ele veio para cá conosco, para levar o 206 de volta para Teerã. O nosso gerente da base me disse que eles convenceram Nogger a colaborar para verificar alguns lugares onde os combates continuam. Quando McIver não tiver notícias nossas, ele vai levar um choque e mandar uma turma de busca. Isto talvez nos dê uma outra chance. E quanto a você?

       — Talvez a gente dê o fora. Estou ficando muito nervoso naquela maldita cabana. Se resolvermos sair, talvez a gente vá em direção à base de vocês e se esconda na floresta. Se for possível, entraremos em contato com você, mas não nos espere. Certo?

       — Sim. Mas não confie em ninguém na base, exceto nos nossos dois mecânicos, Dibble e Arberry.

       — Posso fazer alguma coisa por você?

       — Você poderia deixar-me uma granada?

       — É claro, você alguma vez usou uma?

       — Não, mas sei como funciona.

       — Ótimo. Olhe aqui. Puxe o pino e conte até três... não, quatro, e atire. Você precisa de um revólver?

       — Não, não obrigado, eu tenho a minha faca. Mas a granada pode ser útil.

       — Lembre-se de que pode ser bem perigosa. É melhor eu ir andando. Boa sorte.

       Ross estava olhando para Azadeh ao dizer isto, vendo o quanto ela estava linda, sabendo que o tempo deles já estava escrito nas estrelas ou no vento ou no badalar dos sinos que eram tão característicos das Terras Altas no verão quanto os próprios picos. Imaginando por que ela nunca respondera às suas cartas, depois a escola informando-o que ela tinha partido. Ido embora para casa. No último dia que eles passaram juntos, ela dissera:

       — Tudo o que aconteceu aqui talvez não volte a acontecer nunca mais, meu Johnny Olhos Claros.

       — Eu sei. Se não voltar a acontecer, posso morrer feliz porque sei o que é o amor. De verdade. Eu te amo, Azadeh.

       Um último beijo. Depois dando adeus do trem, até ela desaparecer. Desaparecer para sempre. Talvez nós dois soubéssemos que era para sempre, pensou, esperando ali na escuridão da pequena cabana, tentando decidir o que fazer, se devia esperar mais um pouco, dormir ou fugir. Talvez seja como disse o khan e nós estejamos seguros aqui — por enquanto. Não há razão para desconfiar inteiramente dele. Vien Rosemont não era nenhum imbecil e ele disse para confiar...

       — Sahib!

       Ele tinha ouvido os passos furtivos no mesmo instante. Os dois homens se esconderam, um protegendo o outro, ambos satisfeitos por ter chegado a hora de agir. Alguém abriu a porta silenciosamente. Era um espírito fantasmagórico das montanhas que estava em pé ali olhando para a escuridão da cabana — uma silhueta e um rosto indistinto. Espantado, ele reconheceu Azadeh, o chador fazendo com que ela se dissolvesse na escuridão, com o rosto inchado de chorar.

       — Johnny? — Ela sussurrou ansiosamente.

       Por um instante, Ross não se moveu, com a arma apontada e esperando pelos inimigos.

       — Azadeh, aqui, ao lado da porta, cochichou, tentando se acostumar.

       — Rápido, sigam-me, vocês dois estão em perigo! Rápido! — Imediatamente, ela saiu correndo para o meio da noite.

       Ele viu Gueng sacudir a cabeça, inquieto, e hesitou. Então se decidiu, agarrando a mochila.

       — Nós vamos.

       E se esgueirou pela porta e correu atrás dela, sob a luz fraca do luar, seguido por Gueng, protegendo-o automaticamente. Ela esperava ao lado de umas árvores. Antes que ele a alcançasse, fez sinal para que ele a seguisse, e foi correndo na frente, atravessando o pomar e rodeando algumas construções. A neve abafava seus passos, mas deixava uma trilha e ele o notou claramente. Ele seguia a uma distância de dez passos, observando cuidadosamente o terreno, imaginando qual seria o perigo, por que ela estivera chorando e onde estaria Erikki.

       As nuvens brincavam com a lua, escondendo-a quase completamente. Sempre que a lua aparecia, ela parava e fazia sinal para que ele parasse e esperasse, depois tornava a avançar, protegendo-se bem, e ele imaginou onde ela teria aprendido a se movimentar na floresta, então lembrou-se de Erikki e sua enorme faca e dos finlandeses e da Finlândia — terra de lagos, florestas, montanhas e caça. Concentre-se, idiota, você vai ter muito tempo para deixar a mente divagar mais tarde, não agora quando você pode pôr todo o mundo em perigo! Concentre-se!

       Seus olhos perscrutavam a escuridão, esperando problemas, desejando que aparecessem logo. Em pouco tempo estavam perto do muro que circundava a propriedade. O muro tinha três metros de altura e era todo de pedra, com uma faixa larga e vazia entre ele e as árvores. Mais uma vez ela fez sinal para ele parar e se proteger e caminhou para a frente, em campo aberto, procurando um determinado lugar. Encontrou-o sem dificuldade e fez sinal para ele avançar. Antes que a alcançasse, ela já estava subindo, enfiando facilmente os pés nas fendas e saliências, algumas naturais, outras preparadas para tornar a subida mais fácil. A lua apareceu e ele se sentiu nu e subiu com mais rapidez. Quando chegou no topo, ela já estava descendo pelo outro lado. Ele se deixou escorregar e encontrou alguns buracos para pôr os pés e se abaixou, esperando por Gueng. A sua ansiedade aumentou até que ele viu a sombra de Gueng se projetando no chão, alcançando o muro em segurança.

       A descida foi mais difícil e ele escorregou e caiu nos últimos dois metros, praguejou e olhou em volta para se localizar. Ela já atravessara a estrada e se dirigia para um lugar cheio de pedras na montanha íngreme, a duzentos metros de distância. Para baixo e à esquerda, ele podia ver parte de Tabriz, com fogueiras no outro extremo da cidade, perto do aeroporto. Agora ele ouvia barulho de tiros a distância.

       Gueng aterrissou ao lado dele, sorriu e fez sinal para prosseguirem. Quando chegou nas pedras ela tinha desaparecido.

       — Johnny! Aqui!

       Ele viu a pequena fenda na rocha e avançou. Havia uma abertura que mal dava para uma pessoa passar. Ele esperou por Gueng e depois entrou através da abertura da rocha para a escuridão. Ela estendeu a mão e guiou-o para um dos lados. Ela fez sinal para Gueng e também o ajudou, depois moveu uma pesada cortina de couro fechando a abertura. Ross abriu a mochila para apanhar a lanterna, mas antes que a tirasse um fósforo foi aceso. Ela o protegia com a mão. Estava ajoelhada e acendeu a vela do nicho. Ele olhou em volta rapidamente. A cortina na entrada parecia ser à prova de luz, a caverna era espaçosa, quente e seca, com alguns cobertores e tapetes velhos no chão, alguns utensílios de comer e beber e alguns livros e brinquedos numa prateleira natural. Ah, o esconderijo de uma criança, pensou, e olhou para ela. Tinha ficado ajoelhada perto da vela, de costas para ele, e agora, quando tirou o chador pela cabeça, se transformou em Azadeh de novo.

        — Aqui. — Ele ofereceu um pouco d'água do seu cantil. Ela aceitou agradecida mas evitou seus olhos. Ele olhou para Gueng e leu o seu pensamento.

       — Azadeh, você se importa que apaguemos a luz, agora que já vimos onde estamos, para podermos abrir a cortina e vigiar melhor? Eu tenho uma lanterna, caso precisemos de luz.

       — Oh, oh, sim... sim, é claro. — Ela tornou a se virar para a vela. — Eu... oh, só um minuto, desculpe... — Havia um espelho na prateleira, que ele não tinha notado. Ela o apanhou e olhou para o seu reflexo, odiando o que viu, as manchas de suor e os olhos inchados. Rapidamente, limpou algumas manchas, apanhou o pente e se ajeitou o melhor que pôde. Deu uma última olhada no espelho e soprou a vela. — Desculpe — disse.

       Gueng afastou a cortina e atravessou a rocha, ficando em pé lá fora, ouvindo. Houve mais tiroteio dos lados da cidade. Alguns edifícios pegaram fogo do outro lado da única pista do campo de aviação que ficava à direita. Não havia nenhuma luz lá e muito poucas na cidade. Poucos faróis de automóvel nas ruas. O palácio estava escuro e silencioso e ele não conseguiu perceber nenhum perigo. Voltou e disse a Ross o que tinha visto, falando em ghurkali, e acrescentou.

       — É melhor eu ficar lá fora, é mais seguro, não resta muito tempo, sahib.

       — Sim. — Ross tinha percebido a inquietação na voz dele, mas não fez nenhum comentário. Sabia o motivo. — Você está bem, Azadeh? — perguntou baixinho.

       — Sim. Agora estou. É melhor no escuro. Desculpe-me por estar tão desarrumada. Sim, estou melhor agora.

       — O que está havendo? Onde está o seu marido? — Ele usou a palavra deliberadamente e ouviu-a mover-se na escuridão.

       — Logo depois que você partiu, na noite passada, Cimtarga e um guarda vieram e disseram a Erikki que ele tinha que se vestir imediatamente e partir. Este homem, Cimtarga, disse que sentia muito mas que tinha havido uma mudança de planos e que queria partir imediatamente. E eu, eu fui chamada pelo meu pai. Deveria ir imediatamente. Antes de entrar no quarto dele, eu o ouvi dando ordens para que vocês dois fossem presos e desarmados pouco antes do amanhecer. — Havia tensão na voz dela. — Ele estava planejando mandar buscar vocês dois a pretexto de discutir a sua partida amanhã, mas vocês seriam levados para uma cilada perto dos edifícios da fazenda, amarrados, colocados num caminhão e enviados para o norte imediatamente.

       — Para que lugar no norte?

       — Tbilisi. — Nervosamente, ela continuou: — Eu não sabia o que fazer, não havia nenhuma maneira de avisá-los. Eu sou vigiada tão de perto quanto vocês e mantida afastada dos outros. Quando eu vi meu pai, ele disse que Erikki ficaria fora alguns dias, que hoje, ele, meu pai, ia fazer uma viagem de negócios para Tbilisi e que... que eu iria com ele. Ele... ele disse que ficaríamos fora dois ou três dias e que então Erikki já teria terminado e nós poderíamos voltar para Teerã. — Ela estava quase chorando. — Eu estou tão assustada. Estou tão assustada de que tenha acontecido alguma coisa com Erikki.

       — Erikki deve estar bem — disse, sem entender a respeito de Tbilisi, tentando decidir sobre o khan. Sempre pensando no que Vien tinha dito: "Confie sua vida a Abdullah e não acredite nas mentiras que disserem sobre ele". E no entanto, aqui estava Azadeh dizendo o contrário. Ele olhou para onde ela estava, sem enxergá-la, odiando a escuridão, querendo ver-lhe o rosto, os seus olhos, pensando que talvez pudesse ler algo neles. Gostaria que ela me tivesse contado tudo isso do outro lado do maldito muro ou na cabana, pensou, seu nervosismo aumentando. Cristo, o guarda!

       — Azadeh, o guarda, você sabe o que aconteceu com ele?

       — Oh, sim. Eu... eu o subornei, Johnny, eu o subornei para se afastar por meia hora. Era a única maneira de chegar... era a única maneira.

       — Meu Deus... ele murmurou. — Você pode confiar nele?

       — Oh, sim. Ali é... ele está com meu pai há anos. Eu o conheço desde os sete anos e dei-lhe um pishkesh de algumas jóias, o bastante para sustentar a ele e à sua família durante anos. Mas, Johnny, quanto a Erikki... estou tão preocupada!

       — Não precisa preocupar-se, Azadeh. Erikki não disse que eles talvez o mandassem para perto da Turquia? — Ele disse para animá-la, ansioso para fazê-la voltar em segurança. — Não sei como agradecer-lhe por ter-nos avisado. Vamos, primeiro nós vamos levá-la de volta e...

       — Oh, não, eu não posso — ela exclamou. — Você não compreende? Papai vai me levar para o norte e eu nunca vou conseguir fugir, nunca. Meu pai me odeia e vai me deixar com Mzytryk, eu sei que vai, eu sei.

       — Mas e quanto a Erikki? — ele perguntou, chocado. — Você não pode simplesmente fugir!

       — Oh, sim, eu tenho que fugir, Johnny. Eu tenho. Não tenho coragem de ficar esperando, não tenho coragem de ir para Tbilisi, é muito mais seguro para Erikki que eu fuja agora. Muito mais seguro.

       — Do que é que você está falando? Você não pode simplesmente fugir assim! Isso é loucura! Digamos que Erikki volte esta noite e descubra que você partiu? O que...

       — Eu deixei um bilhete para ele. Nós combinamos que numa emergência eu deixaria um bilhete num lugar secreto do nosso quarto. Nós não tínhamos como saber o que papai iria fazer enquanto ele estivesse fora. Erikki vai entender. Há mais uma coisa. Papai vai ao aeroporto hoje, por volta de meio-dia. Ele vai esperar um avião, alguém que vem de Teerã, eu não sei quem é, nem do que se trata, mas achei que talvez você pudesse... você pudesse convencê-los a nos levar de volta para Teerã ou que nós pudéssemos subir a bordo sem sermos vistos ou que você... você pudesse obrigá-los a nos levar...

       — Você está louca — ele disse, zangado. — Isso tudo é loucura, Azadeh. É loucura partir e deixar Erikki. Como você sabe que não é como o seu pai falou, pelo amor de Deus? Você diz que o khan odeia você. Meu Deus, se você fugir assim, quer ele a odeie ou não, ele vai ficar furioso. De qualquer maneira, você vai colocar Erikki num perigo ainda maior.

       — Como você pode ser tão cego? Você não percebe? Enquanto eu estiver aqui, Erikki não tem nenhuma chance, nenhuma. Se eu não estiver aqui, ele só precisa pensar em si mesmo. Se ele souber que eu estou em Tbilisi, ele vai para lá e estará perdido. Você não está vendo? Eu sou a isca. Em nome de Deus, Johnny, abra os olhos! Por favor, ajude-me!

       Ele a ouviu chorar, baixinho, e isto apenas aumentou a sua fúria. Cristo, nós não podemos levá-la. Isso é totalmente impossível. Seria assassinato — se o que ela diz sobre o khan é verdade, haverá um batalhão atrás de nós dentro de duas horas e teremos sorte se ainda estivermos vivos ao pôr-do-sol.

       — Já devem estar atrás de nós, pelo amor de Deus, raciocine direito! É maluquice fugir! Você tem que voltar. É melhor — disse.

       O choro parou.

       — Insha'Allah — ela disse num tom de voz diferente. — Como você achar melhor, Johnny. É melhor vocês partirem depressa. Vocês não têm muito tempo. Para que lado vocês vão?

       — Eu... eu não sei. — Ele estava contente com a escuridão, que ocultava o seu rosto. Meus Deus, por que tinha que ser Azadeh? — Vamos, nós vamos levá-la de volta.

       — Não há necessidade. Eu... eu vou ficar aqui mais um pouco. Ele percebeu a mentira e seus nervos ficaram ainda mais tensos.

       — Você vai voltar. Tem que voltar.

       — Não — ela respondeu desafiadoramente. — Eu não posso voltar nunca mais. Vou ficar aqui. Ele não vai me encontrar. Eu já me escondi aqui antes. Uma vez eu fiquei aqui dois dias. Aqui eu estou segura. Não se preocupe comigo. Eu ficarei bem. Vá você. É o que você tem que fazer.

       Exasperado, ele conseguiu controlar o impulso de erguê-la à força, e ao invés disso tornou a recostar-se na parede da caverna. Eu não posso deixá-la, não posso carregá-la de volta contra a vontade e não posso levá-la. Não posso deixá-la, não posso levá-la. Oh, você pode levá-la com você, mas por quanto tempo? E quando ela for capturada, estaria envolvida com sabotadores e só Deus sabe do que mais eles a acusariam e eles atiram pedras nas mulheres por isso.

       — Quando descobrirem que não estamos lá, e que você também não está, o khan vai saber que você nos avisou. Se você ficar aqui, acabará sendo descoberta e o khan vai saber de qualquer maneira que você nos avisou e isto vai tornar as coisas piores do que nunca para você, e para o seu marido. Você precisa voltar.

       — Não, Johnny. Eu estou nas mãos de Deus e não estou com medo.

       — Pelo amor de Deus, Azadeh, raciocine.

       — Eu estou raciocinando. Eu estou nas mãos de Deus, você sabe disso. Nós não conversamos sobre isso lá nas montanhas uma dezena de vezes? Eu não estou com medo. Deixe-me uma granada como a que você deu a Erikki. Eu estou em segurança nas mãos de Deus. Por favor, vá agora.

       Naquela época, eles conversavam muito sobre Deus. Numa montanha na Suíça, era fácil e normal, e não havia do que se envergonhar — não com a sua bem-amada que sabia o Corão e lia em árabe e se sentia muito perto do Infinito e que acreditava piamente no Islã. Aqui no escuro da pequena caverna não era a mesma coisa. Nada era igual.

       — Insha'Allah — ele disse e decidiu. — Nós vamos voltar, você e eu, e eu vou mandar Gueng prosseguir. — E se levantou.

       — Espere — ele a ouviu levantar-se e sentiu o seu hálito e a sua proximidade. A mão dela tocou-lhe o braço. — Não, meu querido — ela disse, com a voz de antigamente. — Não, meu querido, isso destruiria o meu Erikki... e você e o seu soldado. Você não vê, eu sou o instrumento para destruir Erikki. Remova o instrumento e ele terá uma chance. Fora dos muros do meu pai você também tem uma chance. Quando você vir Erikki, diga a ele... diga a ele.

       O que devo dizer a Erikki? ele se perguntou. Na escuridão, ele tomou-lhe a mão e, sentindo o seu calor, viu-se de volta à enorme cama, com uma violenta tempestade de verão sacudindo as janelas, os dois contando os segundos entre os relâmpagos e o trovão que ecoava no vale — às vezes apenas um ou dois segundos, oh, Johnny, deve estar quase aqui em cima, Insha'Allah se nos apanhar, não importa já que estamos juntos — de mãos dadas assim. Mas não assim, ele pensou com tristeza. Levou a mão dela aos lábios e beijou-a.

       — Você mesma pode dizer a ele. Nós vamos tentar... juntos. Preparada?

       — Você quer dizer prosseguir? Juntos?

       — Sim.

       Depois de uma pausa, ela disse:

       — Primeiro pergunte a Gueng.

       — Ele faz o que eu digo.

       — Sim, é claro. Mas por favor, pergunte a ele. Mais um favor. Sim? Ele foi até a entrada da caverna. Gueng estava encostado nas rochas do lado de fora. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, Gueng disse baixinho em ghurkali:

       — Nenhum perigo ainda, sahib. Lá fora.

       — Ah, você ouviu?

       — Sim, sahib.

       — O que você acha?

       Gueng sorriu.

       — O que eu acho, sahib, não pesa nada, não afeta nada. Carma é carma. Eu faço o que o senhor diz.

      

       NO AEROPORTO DE TABRIZ: 12:40H. Abdullah Khan estava em pé ao lado do seu Rolls à prova de balas no pátio de concreto coberto de neve perto do terminal do aeroporto. Ele estava vermelho de raiva, observando o 125 terminar o pouso, rezando para que ele explodisse. Na véspera, um telex passado através do QG da polícia f ora-lhe entregue por seu sobrinho, coronel Mazardi, o chefe de polícia. "Por favor, espere pelo vôo G-ETLL, ETA 1240 amanhã, terça-feira, (assinado) coronel Hashemi Fazir." O nome o fizera tremer e a todos os que tiveram acesso à mensagem. O Serviço Secreto sempre estivera acima da lei e o coronel Hashemi Fazir era o seu grande inquisidor, um homem cuja crueldade era uma lenda até no Irã, onde a crueldade era desejada e admirada.

       — O que ele quer aqui, Alteza? Mazardi perguntara, muito amedrontado.

       — Discutir o Azerbeijão — respondera, escondendo o temor e abalado pela secura do telex, completamente desorientado por esta chegada inesperada e indesejada. — É claro que é para perguntar como pode me ajudar. Ele tem sido um amigo secreto há anos — acrescentou, mentindo automaticamente.

       — Vou ordenar uma guarda de honra e um comitê de boas-vindas e..

       — Não seja idiota! O coronel Fazir gosta de ficar incógnito. Não faça nada, não chegue perto do aeroporto, apenas certifique-se de que as ruas estão tranqüilas e... ah, sim, aumente a pressão sobre o Tudeh. Aliás, obedeça às ordens de Khomeini de arrasá-los. Incendeie o quartel-general deles hoje à noite e prenda os líderes conhecidos. — Será um pishkesh perfeito, caso eu precise de um, pensara, encantado com a própria esperteza. Fazir não é fanaticamente anti-Tudeh? Graças a Deus que Petr Oleg já aprovou.

       Então ele tinha mandado Mazardi embora e xingara todos os que estavam por perto, mandando-os embora também. O que será que esse filho de um cão do Fazir quer comigo?

       Ao longo dos anos, eles tinham se encontrado diversas vezes e tinham trocado informações, vantajosas para ambos. Mas o coronel Hashemi Fazir era um desses homens que acreditavam que a única proteção do Irã repousava num governo absolutamente centralizado, com sede em Teerã, e que os chefes tribais eram arcaicos e representavam um perigo para o Estado — e, acima de tudo, Fazir era um teerani com o poder para descobrir muitos segredos, segredos que poderiam ser usados contra ele. Que Deus amaldiçoe todos os teeranis e os mande para o inferno. E Azadeh, e o seu maldito marido!

       Azadeh! Será que eu gerei mesmo aquele demônio? Não é possível! Alguém deve ter... Deus me perdoe por desconfiar da minha amada Naphtala! Azadeh está possuída pelo demônio. Mas ela não vai escapar, oh não, eu juro que a levarei para Tbilisi e que deixarei Petr usá-la..

       O sangue começou a rugir nos seus ouvidos e o aperto no peito recomeçou, uma dor incômoda. Pare, disse a si mesmo, ansiosamente, acalme-se. Deixe-a de lado, você vai ter sua vingança mais tarde. Pare ou você se matará! Pare com isso, deixe-a de lado e pense em Fazir, você vai precisar de toda a sua astúcia para lidar com ele. Ela não pode escapar.

       Quando, logo depois do amanhecer, os guardas apavorados tinham corrido para lhe dizer que os dois prisioneiros haviam desaparecido e, quase ao mesmo tempo, viram que ela não estava lá, a sua violência não teve limites. Imediatamente ele mandara homens revistarem o esconderijo dela nos rochedos, de cuja existência ele sabia há anos e ordenara que eles não voltassem sem ela e os sabotadores. Mandara decepar o nariz do guarda da noite, os outros guardas foram açoitados e atirados na prisão, acusados de conspiração, as criadas dela foram chicoteadas. Por fim, saíra bufando para o aeroporto, deixando uma nuvem de terror por todo o palácio.

       Que Deus amaldiçoe todos eles, pensou, fazendo um esforço enorme para se acalmar, sem tirar os olhos do jato. O céu estava parcialmente azul, com nuvens ameaçadoras e um vento mau que varria a pista coberta de neve. Ele estava usando um chapéu de astracã, um sobretudo com gola de pele e botas forradas de pele, e o frio embaçava-lhe os óculos. No bolso, trazia um pequeno revólver. Atrás dele, o pequeno prédio do terminal estava vazio, exceto pelos seus homens que guardavam o aeroporto e a estrada de acesso ao lado. Em cima, no telhado, colocara um atirador com instruções para matar Fazir caso ele tirasse do bolso um lenço branco e assoasse o nariz. Eu fiz tudo o que podia, agora está nas mãos de Deus. Exploda, seu filho da mãe!

       Mas o 125 fez uma aterrissagem perfeita, com a neve espirrando das rodas. O seu temor aumentou. E também o som das batidas do seu coração.

       Seja como Deus quiser — murmurou e entrou no banco de trás do carro, separado do motorista e de Ahmed, seu conselheiro de maior confiança e guarda-costas, pelo vidro móvel, à prova de balas.

       — Intercepte-o — ordenou e verificou o revólver, deixando-o destravado. O 125 saiu do final da pista e foi para a área de abastecimento, virou a favor do vento e parou. Tudo estava deserto, só havia montes de neve e espaços vazios. O grande Rolls parou ao lado do avião e a porta do jato se abriu. Ele viu Hashemi Fazir em pé na porta, acenando para ele:

       — Salaam! Que a paz esteja com Vossa Alteza, venha a bordo. Abdullah Khan abriu o vidro e respondeu:

       — Salaam, que a paz esteja com Vossa Excelência, venha para cá. — Você deve achar que eu sou um idiota em colocar a minha cabeça numa armadilha dessas, pensou. — Ahmed, suba a bordo, vá armado e finja que não sabe falar inglês.

       Ahmed Dursak era um turcomano muçulmano, muito forte, muito rápido com um revólver ou uma faca. Ele saiu do carro, com a metralhadora na mão, e subiu rapidamente os degraus, com o vento levantando o seu casaco comprido.

       — Salaam, coronel Excelência — disse em farsi, parando no último degrau. — O meu mestre pede que o senhor se junte a ele no carro. As cabines de jatos pequenos o fazem sentir-se mal. No carro os senhores podem conversar em particular e em paz, totalmente sozinhos se desejar. Ele pergunta se o senhor honrará a sua pobre casa ficando com ele durante sua permanência aqui.

       Hashemi ficou chocado de que Abdullah tivesse tido a ousadia — e a confiança — de mandar um emissário armado. Ir para o carro também não convinha a ele, era muito fácil haver aparelhos escondidos.

       — Diga a Sua Alteza que eu às vezes fico enjoado em carros e que peço que ele venha até aqui. Aqui nós podemos conversar em particular, também podemos ficar a sós e isto seria um favor que ele me faria. É claro que você deve revistar a cabine, para o caso de um inimigo ter-se escondido a bordo.

       — O meu mestre preferiria, Excelência, que...

       Hashemi chegou mais perto dele e seus lábios eram uma linha e sua voz dura.

       — Reviste o avião! Agora! E faça isso depressa, Ahmed Dursak, três vezes assassino. Uma delas de uma mulher chamada Najmeh. E faça o que estou mandando ou você não durará mais nem uma semana nesta terra.

       — Então estarei mais depressa no paraíso, porque servindo o khan eu estou fazendo o trabalho de Deus — disse Ahmed Dursak — mas vou fazer a revista como o senhor deseja. — Ele entrou na cabine e viu os dois pilotos. Armstrong estava na cabine. Seus olhos se estreitaram, mas não disse nada, apenas passou por ele educadamente e abriu a porta do toalete, certificando-se de que estava vazio. Não havia nenhum outro lugar onde alguém pudesse esconder-se.

       — Se o que o senhor sugere for possível, Excelência, os pilotos sairão? Antes, Hashemi tinha perguntado ao capitão, John Hogg, se ele se importaria de sair caso fosse necessário.

       — Desculpe, senhor — dissera Hogg — mas eu não gosto nem um pouco dessa idéia.

       — Seria apenas por alguns minutos. O senhor pode levar a chave da ignição, e os disjuntores — dissera Robert Armstrong. — Eu me responsabilizo pessoalmente de que ninguém entre na cabine do piloto nem toque em nada.

       — Eu ainda não gosto da idéia, senhor.

       — Eu sei — respondera Armstrong. — Mas o capitão McIver lhes disse que obedecessem às instruções. Dentro do razoável. E isso está dentro do razoável.

       Hashemi viu a arrogância no rosto de Ahmed e teve vontade de arrancá-la dali. Isto vem mais tarde, prometeu a si mesmo.

       — Os pilotos esperarão no carro.

       — E o infiel?

       — Este infiel fala farsi melhor do que você, e se você for esperto, verme, será educado com ele e o chamará de Excelência, pois posso lhe assegurar, e aos seus ancentrais turcomanos, que ele tem uma memória tão boa quanto a minha e pode ser muito mais cruel do que você imagina.

       Ahmed esboçou um sorriso.

       — E Sua Excelência, o infiel, ele também vai esperar na pista?

       — Ele fica aqui. Os pilotos vão esperar dentro do carro. Se Sua Alteza quiser trazer um guarda com ele, para certificar-se de que não há nenhum assassino escondido, ele será bem-vindo. Se este acordo não estiver bom para ele, talvez nós possamos nos encontrar na chefatura de polícia. Agora dê o fora.

       Ahmed agradeceu educadamente, desceu e contou ao khan o que fora dito, acrescentando:

       — Acho que aquele cão deve estar muito seguro de si mesmo para ter sido tão grosseiro. — E no avião, Hashemi dizia em inglês:

       — Robert, aquele filho de um cão deve estar muito seguro de si para ter criados tão arrogantes.

       — Você realmente arrastaria o khan de todos os Gorgons para a chefatura de polícia?

       — Eu poderia tentar. — Hashemi acendeu outro cigarro. — Mas acho que não conseguiria. O sobrinho dele, Mazardi, ainda é o chefe de polícia e a polícia aqui ainda mantém grande parte do seu poder. Os Faixas Verdes e os komitehs ainda não estão dominando.

       — Por causa de Abdullah?

       — É claro que sim. Durante meses, por ordem dele, a polícia de Tabriz apoiou Khomeini. A única diferença dos tempos do xá para os tempos de Khomeini é que os retratos do xá foram substituídos pelos retratos de Khomeini, os emblemas do xá foram retirados de todos os uniformes e agora o poder de Abdullah é maior do que nunca. — Um vento gelado entrou pela porta entreaberta. — O povo do Azerbeijão é uma raça traiçoeira e cruel. Os xás Qajar vieram de Tabriz, bem como o xá Abbas, que construiu Isfahan e tentou garantir a sua longevidade assassinando seu filho mais velho e cegando outro.

       Hashemi Fazir estava observando o carro pela janela, desejando que Abdullah cedesse. Ele agora se sentia melhor e mais confiante de que veria o Dia Santo desta semana do que estivera no sábado à noite, quando o general Janan invadira o seu QG com ordens para dissolver o Serviço Secreto e levara os cassetes e Rakoczy. Durante toda aquela noite ele tinha ficado apavorado, então, na madrugada de ontem, quando saiu de casa, descobriu que havia homens seguindo-o e, de manhã, sua mulher e seus filhos foram empurrados na rua. Ele só conseguira se livrar das pessoas que o seguiam no início da tarde. Nessa ocasião, um dos líderes do seu Grupo Quatro, secreto, estava esperando num esconderijo e naquela noite, quando o general Janan saltou da sua limusine à prova de balas para entrar em casa, um carro estacionado ali perto, cheio de explosivos plásticos, explodiu, matando a ele e a dois dos seus assistentes de maior confiança, destruindo totalmente sua casa, acabando com sua mulher, três filhos e sete criados — além do seu velho e enfermo pai. Homens gritando slogans esquerdistas dos mujhadins foram vistos fugindo do local. Na fuga, eles deixaram panfletos grosseiramente escritos: "Morte à Savak, agora Savana."

      Nas primeiras horas da manhã, meia hora depois de Abrim Pahmudi ter deixado discretamente a cama de sua amante muito secreta, homens cruéis tinham-lhe feito uma visita. Mais slogans esquerdistas tinham sido ouvidos e a mesma mensagem fora rabiscada nas paredes, com sangue, vômito e fezes da moça em lugar de tinta. Às nove horas daquela manhã, com hora marcada, ele tinha ido apresentar as suas condolências a Abrim Pahmudi pelas duas tragédias — é claro que o Serviço Secreto o informara a respeito. Como pishkesh ele levou parte do testemunho de Rakoczy como uma informação que tivesse vindo parar em suas mãos através de outras fontes — contendo o estritamente necessário para ter valor.

       — Estou certo, Excelência, de que se pudesse continuar com o meu trabalho, poderia conseguir muito mais. E se o meu departamento fosse honrado com a sua confiança e tivesse permissão para operar como antes — mas reportando-se unicamente ao senhor e a nenhum outro poder — eu poderia evitar esses horrores e talvez remover esses cães terroristas da face da terra. Enquanto ele estava lá, um assistente entrara às pressas, desolado, para dizer que outros terroristas tinham assassinado um dos mais importantes aiatolás de Teerã — outro carro-bomba — e que o Komiteh Revolucionário exigia a presença imediata de Pahmudi. Pahmudi levantara-se imediatamente, mas antes de sair revogou suas ordens anteriores.

       — Concordo, coronel Excelência. Por trinta dias. O senhor tem trinta dias para provar o seu valor.

       — Obrigado, Excelência, a sua confiança me honra, pode ter certeza da minha lealdade. Posso ter Rakoczy de volta, por favor?

       — Aquele cão, o general Janan deixou que ele fugisse.

       Depois ele fora para o aeroporto e se encontrara com Robert Armstrong no 125 e, uma vez lá em cima, rira às gargalhadas. Era a primeira vez que um carro-bomba com um detonador de controle remoto era usado no Irã.

       — Por Deus, Robert — dissera alegremente —, é totalmente eficiente. Você fica esperando a cem metros de distância até ter certeza de que é ele, depois liga o botão do controle que não é maior do que uma carteira de cigarros e... bum! mais um inimigo que se vai para sempre, e o seu pai! — E enxugou as lágrimas dos olhos, morrendo de rir. — Foi isso que abalou Pahmudi. Sim, e sem o Grupo Quatro teríamos sido eu e minha família.

       O Grupo Quatro nascera de uma sugestão de Armstrong que ele aceitara e trabalhara: pequenos bandos de homens e mulheres bem selecionados, altamente treinados nas mais modernas táticas antiterroristas, muito bem pagos e cuidadosamente protegidos — todos não-iranianos, e todos desconhecidos entre si — conhecidos apenas por Hashemi e leais a ele. O seu anonimato significava que uns podiam ser usados contra os outros caso fosse necessário. Individualmente eles eram descartáveis e facilmente substituíveis — no Oriente Médio e no Oriente Próximo havia muita pobreza, muitas causas traídas, muito ódio, muitas crenças, muitos desabrigados, o que fornecia um mar de homens e mulheres desesperados por um emprego desses.

       Ao longo dos anos, o seu time do Grupo Quatro prosperara, seus golpes eram secretos, na grande maioria secretos até para Armstrong. Ele olhou para Armstrong e sorriu.

       — Sem eles eu estaria morto.

       — Eu também, provavelmente. Fiquei terrivelmente assustado quando aquele desgraçado do Janan disse: "Dou-lhe um dia e uma noite por causa dos serviços prestados." Aquele desgraçado nunca deveria ter-me deixado sair.

       — E verdade. — Alguns milhares de metros abaixo deles a terra estava coberta de neve e o jato já estava sobrevoando as montanhas, a viagem até Tabriz levava pouco mais de meia hora.

       — E quanto a Rakoczy? Você acredita no que Pahmudi disse, sobre ele ter fugido?

       — É claro que não, Robert. Rakoczy era uma troca, um pishkesh. Quando Pahmudi viu que as fitas estavam vazias e viu o estado em que Rakoczy se encontrava, ele deixou de ter qualquer valor, exceto como um pagamento por favores prestados no passado. Ele não poderia saber da ligação com o seu Petr Oleg Mzytryk. Ou poderia?

       — Não é provável — eu diria impossível.

       — É provável que ele esteja no QG soviético, se não estiver morto. Os soviéticos vão querer saber o que ele revelou... ele poderia dizer-lhes?

       — Duvido. Ele estava no limiar. — Armstrong sacudiu a cabeça. — Duvido. O que você vai fazer agora que é outra vez o sr. Maioral? Alimentar Pahmudi com um pouco mais de informação sobre ele nos próximos trinta dias, se ele estiver vivo nos próximos trinta dias?

       Hashemi sorriu de leve e não respondeu. Eu ainda não sou o sr. Maioral, pensou, nem estou seguro enquanto Pahmudi não estiver no inferno — junto com muitos outros. Eu talvez ainda tenha que usar o seu passaporte. Armstrong tinha-lhe dado o passaporte antes de decolarem. Ele o checara cuidadosamente.

       Depois tinha fechado os olhos e relaxado, gozando do luxo e do conforto do jato particular que já estava sobre Qazvin, a apenas 15 minutos de Tabriz. Mas não cochilou. Passou o tempo pensando no que fazer a respeito da Savama, de Pahmudi e Abdullah Khan, e no que fazer com Robert Armstrong, que sabia demais.

       Pela janela da cabine, ele continuou a vigiar o Rolls, grande, imaculado, e possuído por tão poucos na terra. Por Deus e pelo Profeta, quanta riqueza, pensou, maravilhado com esta prova do poder e da posição do khan. Quanto poder ele tem para exibir um tal bem, destemidamente, diante dos komitehs e de mim. Abdullah Khan não vai ser fácil de dobrar.

       Sabia que ali no avião eles estavam perigosamente expostos — alvos fáceis se Abdullah ordenasse aos seus homens que atirassem neles —, mas tinha abandonado esta possibilidade, certo de que nem mesmo Abdullah Khan ousaria atacar tão abertamente três infiéis, um jato e ele. Mas para o caso do khan ter providenciado um 'acidente', dois times do Grupo Quatro já estavam a caminho por terra, um para Abdullah pessoalmente, o outro para a sua família, e só deixariam de agir se ouvissem dele mesmo o código combinado. Ele sorriu. Uma vez Robert Armstrong dissera-lhe que o castigo chinês para uma pessoa importante nos velhos tempos era "morte — e para todas as gerações".

       — Eu gosto disso, Robert — comentara. — Isso tem estilo.

       Ele viu a porta da frente do carro se abrir. Ahmed saltou, carregando a metralhadora, depois foi até a porta traseira e abriu-a para Abdullah.

       — Você ganhou o primeiro round, Hashemi — disse Armstrong e foi até a frente do avião. — Pronto capitão, não demoraremos muito.

       Relutantemente, os dois pilotos saíram da pequena cabine, enfiaram os casacos e desceram rapidamente os degraus. Eles cumprimentaram o khan educadamente. Ele fez sinal para que entrassem no carro e começou a subir a escada do avião, seguido por Ahmed.

       — Salaam, Alteza, que a paz esteja com o senhor — disse Hashemi, calorosamente, cumprimentando-o na porta, uma deferência que Abdullah notou imediatamente.

       — E também com o senhor, coronel Excelência. — Eles trocaram um aperto de mão. Abdullah passou por ele e entrou na cabine, com os olhos fixos em Armstrong, e sentou-se na cadeira mais próxima da saída.

       — Salaam, Alteza — disse Armstrong. — Que a paz esteja com o senhor

       — Este é um colega meu — disse Hashemi, sentando em frente ao khan.

       — Um inglês, Robert Armstrong.

       — Ah, sim, o Excelência que fala farsi melhor que o meu Ahmed e que é famoso por sua memória... e crueldade. — Atrás dele, Ahmed tinha fechado a pesada cortina por sobre a porta e estava em pé de costas para a cabine do piloto, de guarda, com a arma preparada, mas não de uma forma grosseira.

       — Hein?

       Armstrong sorriu.

       — Isso foi uma brincadeira do coronel, Alteza.

       — Não concordo. Mesmo em Tabriz nós já ouvimos falar do especialista do Departamento Especial, que ficou 12 anos a serviço do xá, como cão de caça dos seu cães de caça — Abdullah disse desdenhosamente em farsi. O sorriso desapareceu do rosto de Armstrong, e tanto ele quanto o coronel ficaram tensos com a grosseria. — Eu li a sua ficha. — Ele pousou os seus olhos negros em Hashemi, completamente seguro de que o seu plano iria funcionar: a um sinal dele Ahmed os mataria, sabotaria o avião, mandaria os pilotos de volta para uma rápida decolagem e uma explosão — nada a ver com ele, pela Vontade de Deus, e ele, depois de uma conversa tão proveitosa, em que prometara "apoio total ao governo central", ficaria muito triste.

       — Então, Excelência — disse —, tornamos a nos encontrar. O que posso fazer pelo senhor? — Eu sei que, infelizmente, o seu tempo aqui conosco é curto.

       — Talvez, Alteza, seja eu que possa fazer algo pelo senhor. Tal...

     — Vá direto ao assunto, coronel — disse grosseiramente o khan, desta vez em inglês, totalmente seguro de si. — Nós conhecemos um ao outro, podemos dispensar os cumprimentos e os elogios e ir direto ao assunto. Eu sou muito ocupado. Se o senhor tivesse tido a delicadeza de vir até o meu carro, sozinho, eu me sentiria melhor, nós poderíamos conversar em particular, com calma. Agora vá direto ao assunto!

       — Eu quero conversar com o senhor a respeito do seu supervisor, coronel Petr Oleg Mzytryk — Hashemi disse com a mesma grosseria, mas sentindo-se de repente apavorado de que tivesse caído numa armadilha e que Abdullah fosse um partidário secreto de Pahmudi —, e sobre a sua longa ligação com a KGB através de Mzytryk, cujo nome de código é Ali Khoy.

       — Supervisor? Que supervisor? Quem é este homem? — Abdullah escutou sua própria voz perguntando, mas sua cabeça rodava. Você não pode saber isso, é impossível. E através das batidas desordenadas do seu coração, ele viu o coronel abrir a boca e dizer outras coisas que tornaram tudo muito pior, muito pior, e, pior que tudo, estragaram o seu plano. Se o coronel estava falando a respeito de coisas tão secretas abertamente, na frente deste estrangeiro e de Ahmed, é que estes segredos deveriam estar gravados em algum lugar, guardados num lugar seguro para serem entregues ao Komiteh Revolucionário e aos seus inimigos no caso de algum acidente.

       — O seu supervisor — insistiu Hashemi, notando a mudança e aproveitando-se da vantagem —, Petr Oleg, cuja fazenda fica no lago Tzvenghid no vale Oculto, a leste de Tbilisi, cujo nome de código é Ali Khoy, e o seu é Iv...

       — Espere — disse Abdullah, com voz rouca, o rosto lívido. Nem mesmo

       Ahmed sabia disso, e não devia saber. — Eu... eu... dê-me um pouco d'agua. Armstrong fez menção de se levantar, mas parou diante da arma de Ahmed apontada para ele.

       — Por favor, sente-se, Excelência, eu vou buscar água. Coloquem os cintos de segurança, todos dois.

       — Não há nenhu...

       — Façam o que estou dizendo — Ahmed rosnou e levantou a arma, espantado com a mudança na aparência e nos modos do khan e preparado para pôr em prática o outro plano sozinho. — Coloquem os cintos!

       Eles obedeceram. Ahmed estava perto do filtro e encheu um copo de plástico e entregou-o ao khan. Hashemi e Armstrong ficaram olhando, sem ação. Nenhum deles tinha esperado uma capitulação tão imediata do khan. O homem parecia ter encolhido diante dos olhos deles, e estava muito pálido e respirando com dificuldade.

       O khan terminou de beber a água e olhou para Hashemi, com os olhos injetados de sangue por trás dos óculos. Ele os tirou e limpou distraidamente, tentando recuperar as forças. Tudo parecia estar demorando mais do que o normal.

       — Espere por mim ao lado do carro, Ahmed.

       Inquieto, Ahmed obedeceu. Armstrong abriu o cinto e tornou a fechar a cortina. Por um momento, o khan sentiu-se melhor, o ar gelado que entrou ajudou a clarear a sua mente. — E então, o que vocês querem?

       — O seu nome de código é Ivanovitch. Você tem sido um espião da KGB desde janeiro de 1944. Durante este tempo, você...

       — Tudo mentira. O que você quer?

       — Eu quero me encontrar com Petr Oleg Mzytryk. Eu quero interrogá-lo seriamente. Em segredo.

       O khan ouviu as palavras e pesou-as. Se esse filho de um cão sabia o nome de código de Petr e o seu próprio e sabia a respeito do vale Oculto e de janeiro de 1944 quando ele foi secretamente a Moscou para entrar para a KGB, então ele deveria saber coisas mais sérias. O fato de que ele estava jogando dos dois lados para o bem do seu Azerbeijão faria pouca diferença para os assassinos da direita ou da esquerda.

       — Em troca de quê?

       — Liberdade para agir no Azerbeijão, enquanto o senhor fizer o que for bom para o Irã, e um firme relacionamento de trabalho comigo. Eu lhe darei informações que porão o Tudeh, os esquerdistas e os curdos nas suas mãos, — e lhe darei provas de como os soviéticos o estão enganando. Por exemplo, o senhor foi declarado Seção 16/a.

       O khan olhou-o boquiaberto. Seus ouvidos começaram a rugir.

       — Eu não acredito nisso!

       — Petr Oleg Mzytryk assinou a ordem — disse Hashemi.

       — Pr... provas, eu... eu quero provas — ele gaguejou.

       — Traga-o para o lado de cá da fronteira, vivo, e eu lhe darei provas... pelo menos ele dará.

       — Você... você está mentindo.

       — O senhor não planejou ir para Tbilisi hoje ou amanhã, a convite dele? O senhor não voltaria nunca. A versão seria que o senhor teria fugido do Irã.

       O senhor seria denunciado, seus bens confiscados e sua família caíra em desgraça. .. e seria entregue aos mulás. — Agora que Hashemi sabia que tinha Abdullah nas mãos, a única coisa que o preocupava era o estado de saúde do homem. Sua cabeça apresentava uma ligeira contração, o rosto geralmente corado estava pálido, com uma estranha vermelhidão em volta dos olhos e nas têmporas, e a veia da sua testa estava saltada. — É melhor o senhor ir para o norte e dobrar a sua guarda. Eu poderia negociar Petr Oleg... melhor ainda, eu poderia permitir que o senhor o resgatasse e... bem, há muitas soluções caso eu me apodere dele.

       — O que... o que você quer com ele?

       — Informação.

       — Eu... eu poderia tomar parte nisso? Hashemi sorriu.

       — Por que não? Então está combinado?

       A boca do khan moveu-se sem produzir nenhum som. Depois ele disse:

       — Eu vou tentar.

       — Não — o coronel disse duramente, achando que tinha chegado a hora do coup de grace. — Não. O senhor tem quatro dias. Eu voltarei no sábado. Ao meio-dia de sábado eu estarei no seu palácio para receber a mercadoria. Ou, se o senhor preferir, poderá entregá-lo secretamente neste endereço. — E pôs um pedaço de papel na mesa entre eles. — Ou, terceira opção, se o senhor me disser a hora e o lugar em que ele atravessará a fronteira, eu providenciarei tudo. — Ele soltou o cinto de segurança e se levantou. — Quatro dias, Ivanovitch.

       A raiva de Abdullah quase lhe arrebentou os tímpanos. Ele tentou levantar-se mas não conseguiu. Armstrong ajudou-o e Hashemi foi até a cortina, mas antes de abri-la tirou a automática do coldre.

       — Diga a Ahmed para não nos atrapalhar.

       Fraco, o khan ficou em pé na porta e fez o que lhe tinha sido ordenado. Ahmed estava ao pé da escada, com a arma preparada. O vento mudara de direção, agora estava soprando em direção ao final da pista e tinha aumentado consideravelmente.

       — Você não ouviu o que Sua Alteza disse? — O coronel gritou. — Está tudo bem, mas ele precisa de ajuda. — Manteve a voz calma. — Ele deve ver um médico o quanto antes.

       Ahmed estava confuso, sem saber o que fazer. Lá estava o seu mestre, visivelmente pior do que antes, mas aqui estavam os homens que tinham causado isso — que deviam ser mortos.

       — Ajude-me a entrar no carro, Ahmed — disse o khan, com um palavrão e isso resolveu tudo.

       Ele obedeceu imediatamente. Armstrong segurou-o do outro lado e, juntos, eles desceram as escadas. Rapidamente, os pilotos saíram e correram para o avião enquanto Armstrong ajudava o homem enfermo a entrar no banco de trás. Abdullan ajeitou-se com dificuldade, enquanto Armstrong sentia-se mais nu do que nunca, ali sozinho, desprotegido, enquanto Hashemi ficava em segurança na porta da cabine. Os motores a jato ganharam vida.

       — Salaam, Alteza — ele disse. Espero que o senhor esteja bem.

       — É melhor o senhor sair depressa da nossa terra — disse o khan. Depois falou para o motorista: — Volte para o palácio.

       Armstrong ficou observando o carro se afastar, depois voltou-se. Viu o estranho sorriso de Hashemi, a automática semi-oculta na mão, e por um momento pensou que o homem ia atirar nele.

       — Depressa, Robert!

       Ele subiu correndo os degraus, com as pernas geladas. O co-piloto já tinha apertado o botão de recolher a escada. A escada subiu, a porta foi fechada e eles começaram a se mover. Lá dentro, ele se sentiu revigorado.

       — Está frio lá fora — disse. Hashemi não prestou atenção nele.

       — Capitão, decole o mais rápido possível — ordenou, em pé atrás dos pilotos.

       — Eu vou ter que taxiar para trás, senhor. Eu não ouso decolar deste lado, com o vento soprando por trás.

       Hashemi praguejou e espiou pela janela da cabine de pilotagem. O outro lado da pista parecia estar a um milhão de quilômetros de distância, com o vento levantando bolos de neve. Para usar a rampa de saída correta, eles teriam que passar perto da área de estacionamento do terminal. Eles teriam que cruzá-la e usar a rampa oposta para a decolagem. O Rolls estava se afastando em direção ao terminal. Ele podia ver homens armados reunindo-se para esperá-lo.

       — Recue pela pista e faça uma decolagem curta.

       — Isso é altamente irregular sem autorização da torre — disse John Hogg.

       — Você prefere uma bala na cabeça ou uma prisão da Savak? Aqueles homens são inimigos. Faça o que estou dizendo!

       Hogg podia ver as armas. Ele ligou o seu botão de transmissão.

       — ECO TANGO LIMA LIMA pedindo permissão para recuar — disse, não esperando nenhuma resposta.

       Depois de saírem do espaço aéreo de Teerã, não tinha havido nenhuma resposta até ali, e nenhum contato com essa torre. Ele deslizou o jato de marcha à ré pela pista, derrapando, e acelerou um pouco mais, mantendo-se à esquerda, seguindo a trilha que deixaram ao descer. — Torre, aqui é Eco Tango Lima Lima, dando marcha à ré. — Gordon Jones, o co-piloto, estava checando tudo, preparando a viagem de volta a Teerã. O vento os empurrava, as rodas incertas. Eles viram o Rolls parar no terminal e os homens o cercarem.

       — O mais rápido que puder. Faça a volta, há pista suficiente — disse Hashemi.

       — Assim que for possível, senhor — disse educadamente John Hogg, mas estava pensando, deixe de ser metido, coronel sei lá o quê, eu estou mais do que ansioso para subir, mas tenho que dar uma folga. Ele tinha visto a hostilidade dos homens no carro e, em Teerã, o nervosismo de McIver. Mas a torre de Teerã dera-lhes autorização imediatamente, dera-lhes prioridade como se ele estivesse levando o próprio Khomeini. Maldição, o que nós somos capazes de fazer pela Inglaterra e por uma caneca de cerveja! Suas mãos e seus pés estavam sentindo a neve e o gelo e a superfície escorregadia. Ele diminuiu um pouco a aceleração.

     — Olhe! — disse o co-piloto. Um helicóptero a jato estava cruzando o espaço aéreo, mais ou menos a um quilômetro de distância. — É um 212, não é?

       — É. Não parece que esteja vindo para cá — disse Hogg, observando atentamente em volta.

       No terminal, um outro carro tinha-se juntado aos homens que rodeavam o Rolls; na frente, à esquerda, havia um clarão luminoso; agora o 212 tinha entrado atrás de uma colina; à direita havia um bando de pássaros; todos os mostradores estavam no verde; havia mais homens perto do Rolls e alguém no telhado do prédio do terminal; o combustível estava em bom nível; a neve não estava muito profunda, com um lençol de gelo por baixo; cuidado com o monte de neve aí na frente; vá um pouco mais para a direita; o rádio está sintonizado corretamente; o vento ainda está na nossa traseira; nuvens de tempestade estão se formando ao norte; diminua um pouco o motor esquerdo!

       Hogg corrigiu a guinada, com o avião supersensível na superfície gelada.

       — Talvez seja melhor o senhor voltar para o seu lugar, coronel — disse.

       — Decole o mais rápido que puder. — Hashemi voltou. Armstrong estava espiando pela janela na direção do terminal. — O que eles estão fazendo lá, Robert? Algum problema? — perguntou.

       — Ainda não. Meus parabéns. Você lidou brilhantemente com Abdullah.

       — Se ele fizer a entrega. — Agora que estava tudo terminado, Hashemi estava se sentindo mal. Perto demais da morte desta vez, pensou, ele colocou o cinto de segurança, depois abriu-o, tirou a automática do bolso, colocou a trava de segurança e enfiou-a no coldre. Seus dedos tocaram no passaporte britânico que estava no seu bolso de dentro. Talvez eu não vá precisar dele afinal, pensou. Ótimo. Eu odiaria cair em desgraça para ter que usá-lo. Ele acendeu um cigarro.

       — Você acha que ele vai durar até sábado? Pensei que ele fosse ter um ataque.

       — Há anos que ele é assim gordo e horrível.

       Armstrong percebeu o ódio latente. Hashemi Fazir era sempre perigoso, estava sempre tenso, o seu patriotismo fanático misturava-se ao seu desprezo pela maioria dos iranianos.

       — Você lidou com ele maravilhosamente — disse e tornou a olhar pela janela. O Rolls e o outro carro e os homens em volta estavam muito longe e semi-ocultos pelas dunas de neve, mas ele podia ver muitas armas no meio deles e de vez em quando alguém apontava na direção deles. Vamos, pelo amor de Deus, pensou, vamos subir.

       — Coronel — a voz de Hogg veio pelo intercomunicador — o senhor poderia vir até aqui?

       Hashemi tirou o cinto e foi até a cabine de pilotagem.

       — Lá, senhor — disse Hogg, apontando para a direita, depois do final da pista, para um grupo de pinheiros no começo da floresta. — O que o senhor acha daquilo? — O pequeno clarão de luz começou a piscar de novo. — É um SOS.

       — Robert — Hashemi exclamou — olhe à frente e à direita.

       Os quatro homens se concentaram. Mais uma vez a luz repetiu o SOS. — Não há nenhuma dúvida, senhor — disse Hogg. — Eu poderia sinalizar de volta. — Ele apontou para o flash de sinalização usado para emergências que produzia uma luz verde ou vermelha no caso do rádio falhar.

       Hashemi tornou a falar para dentro da cabine

       — O que você acha, Robert?

       — É um SOS sim!

       O 125 estava descendo a pista em direção ao sinal. Eles esperaram, depois viram três pessoas saírem do meio das árvores, dois homens e uma mulher usando um chador. E viram as armas deles.

       — É uma armadilha — disse Hashemi, imediatamente —, não se aproxime, dê meia-volta!

       — Não posso — respondeu Hogg —, não há espaço suficiente. — Ele abriu um pouco mais as válvulas. O jato estava taxiando muito depressa, seguindo a trilha de descida. Eles podiam ver as pessoas sacudindo as armas.

       Armstrong gritou:

       — Vamos dar o fora daqui!

       — Assim que eu puder, senhor. Coronel, talvez seja melhor o senhor voltar para o seu lugar, pode sacudir um pouco — disse Hogg, com voz neutra, depois tirou-os da mente. — Gordon, fique de olho naqueles desgraçados lá fora e no terminal.

       — Claro. Não se preocupe.

       O capitão virou-se momentaneamente para checar o outro lado da pista, achou que ainda não estavam na distância certa, mas diminuiu a aceleração e tocou nos freios. Começou a derrapar; então soltou os freios, mantendo o jato o mais reto possível, com o vento castigando-os. As figuras perto das árvores estavam maiores agora.

       — Eles parecem gente das tribos. Duas carabinas automáticas. — Gordon Jones examinou o terminal. — O Rolls foi embora, mas tem um carro vindo pela rampa nesta direção.

       — Desacelerando agora. Ainda muito depressa para virar.

       — Cristo, eu acho... eu acho que um dos homens da tribo atirou — Jones disse nervosamente.

       — Aqui vamos nós — Hogg falou no intercomunicador, freou, sentiu o avião derrapar, segurou-o, começou a fazer uma volta para a direita em toda a largura da pista, o impulso fazendo-os desequilibrarem-se e com o vento ainda hostil.

       Na cabine, Armstrong e Hashemi estavam-se segurando fortemente, espiando pelas janelas. Eles viram uma das figuras correndo na direção deles, empunhando a arma. Armstrong resmungou:

       — Nós somos um alvo fácil. — Ele sentiu o jato derrapando ao fazer a volta, sem tração, e praguejou.

       Na cabine de pilotagem, Hogg estava assoviando desafinadamente. O jato oscilou sobre as trilhas de descida, ainda derrapando, o lado oposto da pista bloqueado por dunas pesadas e sólidas. Ele não ousou acelerar ainda e esperou, com a boca seca, torcendo para que ele desse a volta mais depressa e entrasse no vento. Mas ele não o fez, apenas continuou a deslizar, com as rodas imprestáveis, os freios perigosos, os motores gemendo e o gelo na superfície.

       Inexoravelmente, as dunas foram-se aproximando cada vez mais. Ele podia ver as lâminas de gelo que rasgariam a sua fina superfície. Não havia nada a fazer a não ser esperar. Então uma rajada de vento bateu na cauda do avião e o fez dar uma guinada e agora, embora ele ainda estivesse deslizando, estava de frente para o vento. Delicadamente, ele acelerou os dois motores, sentiu a derrapagem diminuindo e imediatamente começou a empurrar os aceleradores até conseguir alguma velocidade, conseguindo mais controle, depois controle completo e finalmente empurrou os aceleradores com força. O 125 pulou para a frente, suas rodas deixaram a superfície, ele recolheu o trem de aterrissagem e estavam planando.

       — Podem fumar se desejarem — disse laconicamente no intercomunicador, inteiramente satisfeito consigo mesmo.

       No campo de aviação, não muito longe das árvores, Ross tinha parado de correr e acenar, com dor no peito.

       — Malditos filhos da mãe — gritou para o avião. — Será que vocês não têm olhos?

       Profundamente desapontado, ele começou a caminhar de volta para onde estavam os outros, que tinham esperado obedientemente na beira da floresta. Todos estavam deprimidos. Tão perto, pensou. Pelo binóculo, ele tinha visto o khan chegar, depois subir a bordo, depois, mais tarde, Armstrong descer as escadas com o khan, ajudando-o.

       — Oh, deixe-me olhar, Johnny. — dissera Azadeh ansiosamente e focalizara o binóculo para enxergar melhor. — Oh, meu Deus, papai parece doente. Espero que ele esteja bem. O médico está sempre dizendo a ele para fazer uma dieta e trabalhar menos.

       — Ele está indo muito bem, Azadeh — ele retrucara, tentando disfarçar o sarcasmo. Mas ela percebera e corara, dizendo:

       — Oh, desculpe... eu não tive a intenção... eu sei que ele..

       — Eu não estava querendo dizer nada — ele atalhou, focalizando o binóculo em Armstrong, elaborando um plano para entrar a bordo. Tão fácil. Um avião da S-G, era fácil reconhecer pelo emblema, e Armstrong. Estamos salvos! Mas agora não estamos salvos, estamos numa enrascada, disse a si mesmo com mais amargura ainda, caminhando pela neve, sentindo-se imundo e desejando um banho e louco de raiva. Eles têm que ter visto o SOS. Será que estavam com a cabeça nas nuvens? Por que diabo eles.

       Ouviu o sinal de perigo emitido por Gueng e virou-se. Um carro estava a poucas centenas de metros de distância, dirigindo-se para lá. Ele correu e apontou para a floresta.

       — Vamos para lá!

       Já tinha planejado com antecedência. Primeiro o aeroporto, depois, se não desse certo, eles podiam ir para a base de Erikki. A base ficava a uns seis quilômetros de distância, a sudeste de Tabriz. Protegido pelas árvores, ele parou e olhou para trás. O carro parou no final da pista e alguns homens saltaram, começaram a persegui-los mas acharam o caminho muito pesado no meio da neve. Então tornaram a entrar no carro e foram embora.

       — Eles não vão conseguir nos alcançar — disse Ross. Ele foi caminhando na frente cada vez mais para dentro da floresta, mantendo-se necessariamente no caminho mais difícil.

       Na beirada da floresta havia campos gelados que no verão possuíam uma vegetação abundante, a maior parte pertencia a um pequeno número de proprietários rurais, apesar das reformas agrárias do xá. Do outro lado dos campos ficavam as favelas de Tabriz. Eles podiam ver os minaretes da mesquita Azul e a fumaça dos inúmeros incêndios, carregada pelo vento.

       — Nós podemos contornar a cidade, Azadeh?

       — Sim, mas é... é um caminho bem longo.

       Eles perceberam a sua preocupação. Até agora ela caminhara rapidamente e sem se queixar. Mas ainda era um estorvo. Eles estavam usando vestes tribais sobre os uniformes. Suas botas sujas poderiam passar despercebidas. Bem como suas armas. E o chador dela. Ele a olhou, ainda não estava acostumado a vê-la enfeiada pelo chador. Ela percebeu o seu olhar e tentou sorrir. Ela compreendera. Tanto a respeito do chador quanto a ser um peso.

       — Vamos atravessar a cidade — ela disse. — Nós podemos ficar nas ruas laterais. Eu tenho algum... algum dinheiro e poderemos comprar comida. Johnny, você pode fingir ser um caucasiano de, digamos, de Astara, eu posso fingir que sou sua mulher. Gueng, você fale em gurkhali ou numa língua estrangeira e pareça grosseiro e arrogante como os turcomanos do norte. Você poderia passar por um deles eles. Eles são descendentes de mongóis, muitos iranianos o são. Ou talvez eu pudesse comprar alguns lenços verdes e transformá-los em Faixas Verdes... É o melhor que posso fazer.

       — Está bom, Azadeh. Talvez seja melhor nós não ficarmos todos juntos. Gueng, você pode nos seguir.

       — Nas ruas, as esposas iranianas seguem os maridos. Eu... eu vou ficar um passo atrás de você, Johnny — disse Azadeh.

       — É um bom plano, memsahib — disse Gueng. — Muito bom. A senhora pode guiar-nos.

       Ela agradeceu-lhe com um sorriso. Em pouco tempo eles alcançaram os mercados, ruas e alamedas das favelas. Uma hora um homem deu um encontrão em Gueng. Sem hesitação, Gueng deu um soco na garganta do homem, fazendo-o cair esparramado na rua, desacordado, xingando-o alto num dialeto do gurkhali. Houve um momento de silêncio no meio da multidão, depois o barulho recomeçou e os que estavam perto conservaram os olhos baixos e seguiram adiante, alguns fazendo, disfarçadamente, o sinal contra o mau-olhado que todos aqueles que vinham do norte, os descendentes das hordas que não conheciam o único Deus, tinham a fama de possuir.

       Azadeh comprou comida dos vendedores de rua, pão fresco, kebab de carneiro e horisht de feijão e legumes, com bastante arroz. Eles se sentaram em bancos toscos e comeram, depois continuaram a andar. Ninguém prestou atenção neles. Ocasionalmente, alguém oferecia-lhes algo para comprar, mas Azadeh intervinha e protegia-os, engrossando a voz e falando no dialeto turco local. Quando os muezins chamaram para a oração da tarde, ela parou, com medo. Em volta deles, homens e mulheres procuravam um pedaço de tapete, fazenda, papelão, jornal ou caixa para se ajoelharem e começarem a rezar. Ross hesitou; depois, atendendo ao seu olhar suplicante, fingiu rezar também e o momento passou. Na rua inteira, só uns quatro ou cinco permaneceram em pé, Gueng entre eles, encostados numa parede. Ninguém incomodou os que ficaram em pé. Os habitantes de Tabriz descendiam de muitas raças, muitas religiões.

       Continuaram andando, dirigindo-se para sudeste e agora estavam nos subúrbios, cheios de barracos, lixo e cachorros famintos, onde a vala era o único esgoto. Em breve não haveria mais barracos, começariam os campos e pomares, depois a floresta e a estrada principal para Teerã, que subia, cheia de curvas, em direção ao desfiladeiro que os levaria até Tabriz Um. Ross não sabia o que fazer quando chegassem lá, mas Azadeh dissera que conhecia várias cavernas nas redondezas onde eles poderiam esconder-se até que um helicóptero pousasse.

       Atravessaram a última favela e saíram para a trilha coberta de neve. A neve da superfície estava suja de bosta de mula e de burro, escorregadia e traiçoeira, e eles juntaram-se a outros que caminhavam por ali, alguns conduzindo burros carregados, outros curvados sob o peso da carga que levavam, outros fazendo as suas necessidades, homens, mulheres e crianças — passavam um punhado de neve com a mão esquerda e continuavam a andar — um povo poliglota, gente de tribos, nômades, gente da cidade — que só tinham em comum a pobreza, e o orgulho.

       Azadeh estava muito cansada, ressentindo-se da tensão de ter tido que atravessar a cidade. Ela tivera medo de cometer algum erro, medo deles serem reconhecidos, estava louca de preocupação com Erikki e sem saber o que fariam quando chegassem na base. Insha'Allah, ela disse a si mesma, muitas e muitas vezes. Deus vai velar por você, por ele e por Johnny.

       Quando chegaram perto do lugar onde a trilha se juntava à estrada de Teerã, viram Faixas Verdes e homens armados em pé ao lado de uma barreira, examinando veículos e observando as pessoas que passavam. Não havia nenhum modo de evitá-los.

       — Azadeh, você vai primeiro — cochichou Ross. — Espere por nós mais adiante na estrada. Se nos pararem, não interfira, apenas prossiga. Vá em direção à base. Vamos nos separar, é mais seguro. — E sorriu para ela. — Não se preocupe. — Ela concordou com a cabeça, com o rosto ainda mais pálido por causa do medo, e saiu andando. Ela estava carregando a mochila dele. Ao sair da cidade, ela tinha insistido:

       — Olhe para as outras mulheres, Johnny. Se eu não carregar alguma coisa, vou chamar muita atenção.

       Os dois homens esperaram, depois foram até a beira da estrada e urinaram no banco de neve. As pessoas continuaram passando. Algumas repararam neles. Umas poucas os xingaram de infiéis. Uma ou duas ficaram intrigadas — sem saber, eles estavam urinando na direção de Meca, um ato que nenhum muçulmano jamais faria.

       — Depois que ela passar, vai você, Gueng. Eu o seguirei em dez minutos.

       — É melhor o senhor ser o próximo — cochichou Gueng. — Eu sou um turcomano.

       — Está bem, mas se me pararem, não interfira. Escape no meio da confusão e leve-a para um lugar seguro. Não vá falhar!

       O homenzinho sorriu, com os dentes muito brancos.

       — Não vá o senhor falhar, sahib. O senhor ainda tem muito o que fazer antes de ser o Senhor da Montanha. — Gueng olhou para a barreira a cem metros de distância. Ele viu que Azadeh estava passando agora. Um dos Faixas Verdes disse algo a ela, mas ela manteve os olhos desviados, respondeu e o homem fez sinal para que ela passasse. — Não espere por mim na estrada, sahib. Eu posso atravessar os campos. Não se preocupe comigo. Eu o encontrarei.

       — E abriu caminho no meio dos pedestres e juntou-se ao grupo que estava voltando em direção à cidade. Uns cem metros adiante ele se sentou num caixote e desamarrou a bota como se esta o estivesse machucando. Suas meias estavam em frangalhos, mas isso não importava. As solas dos seus pés eram duras como ferro. Ganhando tempo, ele tornou a amarrar a bota, divertindo-se em ser um turcomano.

       Na barreira, Ross juntou-se à fila dos que estavam deixando Tabriz. Ele reparou na polícia que estava junto com os Faixas Verdes, observando as pessoas. As pessoas estavam irritadas, como sempre, odiando qualquer autoridade e qualquer intromissão no seu direito de ir e vir à vontade. Muitos estavam francamente zangados e alguns estavam a ponto de explodir.

       — Você — um Faixa Verde falou com ele —, onde estão os seus papéis? Demonstrando raiva, Ross cuspiu no chão.

       — Papéis? Minha casa foi queimada, minha mulher foi queimada e meus filhos foram queimados pelos cães esquerdistas. Só me resta esta arma e um pouco de munição. É a Vontade de Deus, mas por que vocês não vão queimar os partidários de Satã e fazer o trabalho de Deus ao invés de parar homens honestos?

       — Nós somos honestos! — o homem disse zangado. — Nós estamos fazendo o trabalho de Deus. De onde você vem?

       — De Astara. Astara, na costa. — E deixou a raiva aparecer. — Astara. E você?

        O próximo homem na fila e o que estava atrás dele começaram a xingar e dizer aos Faixas Verdes para se apressarem e não os obrigarem a ficar esperando no frio. Um policial estava abrindo caminho em direção a eles, então Ross decidiu arriscar e passou com um palavrão, o homem que estava atrás o seguiu e o próximo e agora eles estavam do outro lado. O Faixa Verde gritou uma obscenidade e depois continou a tomar conta da fila.

       Ross levou um certo tempo para respirar com mais facilidade. Ele tentou não se apressar e os seus olhos examinaram a estrada. Não havia sinal de Azadeh. Havia carros e caminhões passando, subindo com dificuldade ou descendo depressa demais, com as pessoas se espalhando de vez em quando com a inevitável torrente de palavrões. O homem que estava atrás dele na fila alcançou-o, os pedestres agora estavam diminuindo, entrando em caminhos laterais que conduziam a cabanas do lado da estrada ou a aldeias dentro da floresta. Era um homem de meia-idade com um rosto forte, pobremente vestido e um rifle bem conservado.

       — Aquele filho da mãe daquele Faixa Verde — disse com um forte sotaque. — O senhor tem razão, aga, eles deveriam estar fazendo o serviço de Deus, o serviço do imã, não o de Abdullah Khan.

       Ross pôs-se imediatamente em guarda.

       — Quem?

       — Eu venho de Astara e pelo seu sotaque eu sei que o senhor não vem de Astara, aga. Os astaris nunca mijam na direção de Meca nem com as costas para Meca. Somos todos bons muçulmanos em Astara. Pela sua aparência, o senhor deve ser o Sabotador pelo qual o Khan está oferecendo uma recompensa. — A voz do homem era calma, curiosamente amigável, e o velho rifle Enfield continuava pendurado no seu ombro.

       Ross não disse nada, apenas resmungou, sem mudar de passo.

       — Sim, o Khan está oferecendo um bom preço pela sua cabeça. Muitos cavalos, um rebanho de ovelhas, dez camelos ou mais. Um resgate digno de um xá para uma pessoa comum. O resgaste é maior se o senhor for capturado vivo. Mais cavalos, ovelhas e camelos, o suficiente para a vida inteira. Mas onde está a mulher, Azadeh, a filha dele, a filha que o senhor raptou, o senhor e o outro homem?

       Ross olhou-o espantado e o homem riu.

       — O senhor deve estar muito cansado para se denunciar assim com tanta facilidade. — Repentinamente, o seu rosto endureceu-se, sua mão entrou no bolso da velha jaqueta, ele tirou um revólver e enfiou-o na cintura de Ross. — Caminhe um passo na minha frente, não se vire nem faça nada ou eu lhe darei um tiro na espinha. Agora, onde está a mulher? Há uma recompensa por ela também.

       Nesse momento um caminhão que vinha descendo derrapou na curva, arremessou-se para o outro lado da estrada e foi para cima deles, buzinando alto. As pessoas se espalharam. Os reflexos de Ross foram mais rápidos e ele deu um passo para o lado, deu um encontrão no homem, fazendo-o rolar no meio do caminho do caminhão. As rodas da frente e de trás do caminhão passaram por cima do homem. O caminhão parou alguns metros à frente.

       — Que Deus nos proteja, vocês viram isso? — disse alguém. — Ele pulou na frente do caminhão.

       Ross arrastou o corpo para fora da estrada. O revólver tinha desaparecido na neve.

       — Ah, o mártir de Deus é seu pai, aga? — uma velha perguntou.

       — Não... não — Ross falou com dificuldade, em pânico, tudo acontecera depressa demais. — Eu... ele é um estranho. Eu nunca o vi antes.

       — Pelo Profeta, como os pedestres são descuidados! Será que eles não têm olhos? Ele está morto? — o motorista do caminhão perguntou, subindo a colina. Era um homem robusto, rude, barbado. — Deus é testemunha de que ele se jogou na minha frente, como todos puderam ver! Você — ele disse para Ross —, você estava ao lado dele, deve ter visto.

       — Sim... sim, é como você está dizendo, eu estava atrás dele.

       — Seja como Deus quiser. — O motorista foi embora satisfeito, estava tudo certo e acabado. — Sua Excelência viu tudo. Insha'Allah!

       Ross afastou-se no meio dos poucos que tinham se dado ao trabalho de parar e subir a colina, nem depressa nem devagar, tentando controlar-se, sem ousar olhar para trás. Depois da curva, ele apertou o passo, imaginando se fora certo reagir com tanta rapidez — quase sem pensar. Mas o homem teria vendido os dois. Não pense nele, carma é carma. Mais uma curva e ainda nenhum sinal de Azadeh. Sua ansiedade aumentou.

       Nesse ponto a estrada subia tortuosa. Ele passou por algumas cabanas meio escondidas na beira da floresta. Cachorros sarnentos catavam comida. Os poucos que chegaram perto dele, ele enxotou, havia muitos cães raivosos por lá. Mais uma curva, o suor escorria, e lá estava ela agachada do lado da estrada, descansando como uma dezena de outras velhas. Ela o viu no mesmo instante, sacudiu a cabeça para alertá-lo, levantou-se e continuou a andar. Ele seguiu uns vinte metros atrás. Então houve um tiroteio mais abaixo. Como todo mundo, eles pararam e olharam para trás. Não conseguiram ver nada. A barreira ficava muito atrás, muitas curvas abaixo, a meio quilômetro de distância. O tiroteio cessou logo. Ninguém disse nada, apenas começaram a subir mais depressa.

       A estrada não era boa. Eles andaram mais ou menos um quilômetro, saindo da estrada quando havia trânsito. De vez em quando um ônibus passava, mas sempre superlotado e nenhum parava. Nessa época a pessoa podia esperar até um dia ou dois num ponto de ônibus antes de conseguir lugar. Às vezes um caminhão parava, em troca de dinheiro.

       Mais adiante, um caminhão passou por ele e diminuiu a velocidade quando chegou perto de Azadeh.

       — Por que andar quando os que estão cansados podem viajar aqui com ajuda de Ciro, o caminhoneiro, e de Deus? — gritou o motorista, rindo debochadamente, cutucando o seu companheiro, um homem de barba escura mais ou menos da idade dele. Eles a estavam observando há algum tempo, observando o balanço dos seus quadris que nem mesmo um chador conseguia esconder. — Por que uma flor de Deus deveria caminhar quando poderia estar aquecida num caminhão ou no tapete de um homem?

       Ela levantou os olhos, disse um palavrão e gritou para Ross:

       — Marido, este leproso filho de um cão ousou insultar-me e fez comentários obscenos contra as leis de Deus... — Ross já estava ao lado dela e o motorista se viu olhando para o cano de uma arma.

       — Excelência... eu estava perguntando se... se o senhor e ela não gostariam de uma carona — disse o motorista, em pânico. — Há lugar lá atrás... se Vossa Excelência quiser honrar o meu veículo...

       O caminhão estava cheio de aparas de ferro, mas era melhor do que andar.

     — Para onde você está indo?

       — Para Qazvin, Excelência, Qazvin. O senhor vai nos dar a honra?

       O caminhão não parou mas foi fácil para Ross ajudá-la a subir. Juntos, eles se abrigaram do vento. As pernas dela estavam tremendo e ela estava gelada e muito nervosa. Ele abraçou-a.

       — Oh, Johnny, se você não estivesse aqui...

       — Não se preocupe, não se preocupe. — Ele lhe transmitiu um pouco do seu calor. Qazvin? Isto não fica no meio do caminho para Teerã? É claro que sim. Nós vamos ficar no caminhão até Qazvin, disse a si mesmo, recuperando as forças. Depois podemos conseguir outra carona, ou encontrar um ônibus ou roubar um carro, é isso que vamos fazer.

       — A entrada para a base fica a dois ou três quilômetros daqui — ela disse, tremendo nos seus braços. — Para a direita.

       Base? Ah, sim, a base. E Erikki. Mas, o mais importante, e Gueng? E quanto e Gueng? Faça a sua mente trabalhar. O que você vai fazer?

       — Como é... como é o terreno lá? Aberto e desprotegido ou uma ravina ou o quê? — perguntou.

       — É bastante liso. A nossa aldeia está chegando, Abu Mard. Nós passamos pela aldeia, depois a terra se achata numa espécie de platô onde fica a nossa estrada. Depois a estrada principal torna a subir em direção ao desfiladeiro.

       Ele podia ver a estrada subindo tortuosa, aparecendo de vez em quando, ondulando precariamente pela encosta da montanha

       — Nós vamos saltar do outro lado da aldeia, antes da parte plana, vamos dar a volta pela floresta e chegar à base. Isso é possível?

       — Sim. Eu conheço muito bem o terreno. Eu... eu ensinei na escola da aldeia e costumava levar as crianças para... para passear. Eu conheço os caminhos. — Mais uma vez ela estremeceu.

       — Proteja-se do vento. Daqui a pouco você vai esquentar.

       O velho caminhão subia com dificuldade, quase na mesma velocidade de alguém andando, mas era melhor do que andar. Ele manteve o braço em torno dela e em pouco tempo ela parou de tremer. Por cima da grade do caminhão ele viu um carro se aproximando depresssa, com as mudanças gemendo, seguido de uma pick-up verde. O motorista do carro não tirou a mão da buzina. Não havia espaço para o caminhão se afastar, então o carro passou pela contra mão e seguiu em frente. Espero que você se mate, pensou, enraivecido pelo barulho e pela estupidez. Notou que estava cheio de homens armados, bem como a pick-up que vinha atrás, embora todos esses homens estivessem em pé na traseira, segurando-se em barras de metal, com a grade traseira abaixada e batendo violentamente. Quando a pick-up passou, ele viu um corpo atirado debaixo dos pés deles. Primeiro pensou que fosse o velho. Mas não era. Era Gueng. Não havia dúvida por causa do que restava do uniforme. E do Kookri que estava enfiado na cintura de um dos homens.

       — O que foi, Johnny?

       Ele se viu ao lado dela, sem senti-la nem a qualquer outra coisa. Apenas que falhara com o segundo dos seus homens. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

       — O que foi? O que aconteceu?

       — Nada. É só o vento. — Ele limpou as lágrimas, depois se ajoelhou e olhou em frente. Serpenteando, a estrada desaparecia e tornava a aparecer. Assim como o carro e a pick-up. Ele podia ver a aldeia agora. Do outro lado, a estrada tornava a subir, depois ficava plana, como ela dissera. O carro e a pick-up passaram pela aldeia em alta velocidade. Ele tinha no bolso um binóculo pequeno mas muito potente. Firmando-se contra o balanço do caminhão, focalizou o carro. Assim que este chegou na parte plana, acelerou, virou à direita na estrada que ia dar na base e desapareceu. Quando a pick-up chegou na interseção, ela parou, bloqueando a maior parte da estrada. Meia dúzia de homens saltaram, espalharam-se pela estrada e ficaram olhando na direção de Tabriz. Então a pick-up virou à direita e desapareceu atrás do carro.

       O caminhão diminuiu a velocidade quando o motorista colocou ruidosamente a primeira. Bem à frente havia uma subida curta e íngreme, com um caminho que saía de lá, e não havia nenhum pedestre nesta parte da estrada.

       — Onde vai dar aquele caminho, Azadeh?

       Ela ficou de joelhos e olhou para onde ele estava apontando.

       — Vai dar em Abu Mard, a nossa aldeia — respondeu. — Ele dá várias voltas mas termina dando lá.

       — Prepare-se para pular. Há uma outra barreira lá na frente.

       No momento certo ele escorregou pelo lado, ajudou-a a descer e correram para se esconder. O caminhão não parou e o motorista não olhou para trás. Em pouco tempo ele tinha tomado distância. De mãos dadas, eles correram para o meio das árvores.

 

       EM ZAGROS TRÊS: 16:05H. Lochart recostou-se na cabine do 212, esperando para ir de novo até a plataforma Rosa com outro carregamento de cano's — o céu estava sem nuvens, as montanhas tão claras e distintas que ele sentiu como se pudesse esticar a mão e tocá-las. Observava Rodrigues, o seu mecânico, que estava ajoelhado na neve, espiando o interior de um painel de inspeção.

       — É uma tarde perfeita para se esquiar ou andar de tobogã, Rod, não para trabalhar.

       — É um dia perfeito para dar o fora daqui, Tom.

       — Talvez a gente não tenha que fazer isso — disse Lochart. Desde sábado, quando tivera o confronto com Nitchak Khan, que não tinha mais tido notícias dele nem de qualquer pessoa da aldeia. — Talvez o komiteh mude de idéia ou Mac consiga que a ordem seja cancelada. É loucura nos mandar embora quando estão precisando de todo o petróleo que puderem conseguir e o novo poço da Rosa é um maná. Jesper Almqvist calculou que ele daria 18 mil barris por dia quando começasse a funcionar. Isso significa quase 360 mil dólares por dia, Rod.

       — Os mulás não ligam a mínima para petróleo ou qualquer outra coisa a não ser Alá, o Corão ou o paraíso, você disse isso um milhão de vezes. — Rodrigues limpou uma mancha de óleo. — Nós todos deveríamos ter ido com Jesper para Shiraz, e depois para fora do Irã. Nós não somos desejados. Nasiri teve os miolos estourados, certo? Para quê? Ele era um cara legal. Nunca fez mal a ninguém. Já nos mandaram ir embora. Que diabo estamos esperando?

       — Talvez o komiteh mude de idéia. Nós temos 11 plataformas para manter.

       — As plataformas estão operando com capacidade mínima, as turmas de trabalho estão loucas para darem o fora e não têm sido substituídas há semanas. — Rodrigues levantou-se, limpou a neve dos joelhos e começou a tirar o óleo das mãos. — É loucura ficar num lugar em que não se é desejado. O jovem Scot está agindo de um modo muito estranho. E você também, pensando bem.

       — Bobagem — retrucou Lochart. Ele não tinha contado a ninguém o que Scot dissera que realmente acontecera na aldeia. Sua ansiedade voltou — por Scot, pela base, por Xarazade, pelo HBC, e de novo por Xarazade.

       — Bobagem nada — disse Rodrigues —, você tem estado nervoso pra burro desde que voltou de Teerã. Você quer ficar no Irã, Tom, está bem, é diferente, você está casado com o Irã. Mas eu quero sair.

       Lochart tirou Xarazade da mente. Ele viu o medo no rosto do amigo.

       — Qual é o problema, Rod?

       O homem troncudo ajeitou o cinto em cima da barriga e abotoou o casaco.

       — Eu estou nervoso como o diabo com a minha indentificação falsa, Tom. Merda, assim que eu abrir a boca eles vão saber que eu não sou britânico. Todos os meus vistos estão vencidos. Está acontecendo o mesmo com alguns dos rapazes, mas eu sou o único americano aqui, eu fiz uma palestra na escola sobre os Estados Unidos e os malditos mulás dizem que eu sou Satã, eu, um ótimo católico, pelo amor de Deus! Eu não consigo mais dormir de noite.

       — Por que você não disse isso antes? Você não precisa ficar, Rod. 0212 deve partir amanhã. Que tai ir junto com Scot? Uma vez em Al Shargaz, você pode pedir transferência para a Nigéria, o Quênia ou qualquer outro lugar.

       Por um momento Rodrigues não disse nada, com uma expressão desolada no rosto.

       — Eu gostaria muito, Tom. Se você puder conseguir isso, é claro que estará tirando um peso enorme dos meus ombros.

       — Está combinado. Nós temos que mandar um mecânico. Por que não você, você é mais antigo?

       — Obrigado. Muito obrigado, Tom. — Rodrigues ficou radiante. — Eu vou só ajustar o pedal e ele estará como novo.

       Lá embaixo, na área de abastecimento, Lochart viu que a carga de canos estava pronta para ser embarcada. Dois operários iranianos esperavam para guiar o gancho suspenso para dentro da cavilha. Ele começou a entrar na cabine, mas parou ao ver dois homens se aproximando pelo caminho que ia dar na aldeia, a uns cem metros de distância. Nitchak Khan e um outro homem carregando uma carabina. Mesmo àquela distância era fácil ver a faixa verde no braço.

       Lochart foi ao encontro deles, preparando a mente para pensar e falar em farsi.

       — Salaam, calênder, salctam, aga — ele disse para o outro homem, também barbado, mas muito mais jovem.

       — Salaam — respondeu Nitchak. — Vocês conseguiram um prazo até o quinto pôr-do-sol.

       Lochart tentou disfarçar o choque. Hoje era terça-feira, o quinto dia seria domingo.

       — Mas, Excelência, o.

       — Até o quinto pôr-do-sol — disse o Faixa Verde, sem nenhuma gentileza. Vocês não podem trabalhar nem voar no Dia Sagrado, é melhor dar graças a Deus, e no quinto pôr-do-sol a partir de hoje se todos os estrangeiros e seus aviões não tiverem partido, a base será incendiada.

       Lochart olhou para ele em silêncio. Atrás do homem ficava a cozinha e ele viu Jean-Luc sair de lá e depois caminhar na direção deles.

       — Em quatro dias úteis vai ser muito difícil, aga, e eu não acho..

       — Insha'Allah.

       — Se nós partirmos, todas as plataformas terão que parar. Só nós podemos abastecê-las e a seus homens. Isso vai prejudicar o Irã, isso...

       — O Islã não precisa de petróleo. Os estrangeiros precisam de petróleo. No quinto pôr-do-sol. Se vocês não partirem, a responsabilidade é de vocês.

       Nitchak Khan olhou de banda para o homem. Depois disse para Lochart:

       — Aga, eu gostaria de ir junto com este homem falar com o calênder dos italianos. Eu gostaria de ir agora, por favor.

       — A honra é toda minha, calênder — disse Lochart, e pensou, Mimmo Sera está nas montanhas há anos, ele vai saber o que fazer. — Eu tenho uma carga de canos para entregar na plataforma Rosa; podemos ir imediatamente.

       — Canos? — o rapaz falou rudemente. — Não há necessidade de canos. Vamos diretamente. Sem canos.

       — A IranOil mandou entregar os canos e os canos vão, ou você não vai — disse Lochart, zangado. — O aiatolá Khomeini ordenou que a produção de petróleo voltasse ao normal. Por que o komiteh o desobedece?

       O rapaz olhou, mal-humorado, para o Khan que disse calmamente:

       — Seja como Deus quiser. O aiatolá é o aiatolá, o komiteh só obedece a ele. Vamos, aga.

       Lochart tirou os olhos do rapaz.

       — Está bem. Iremos imediatamente.

       — Salaam, calênder — disse Jean-Luc, juntando-se a eles. — Tom, qual é a resposta? — perguntou em inglês.

       — Pôr-do-sol de domingo. Nós já teremos que ter saído nessa hora e não podemos voar na sexta-feira.

       Jean-Luc engoliu um palavrão.

       — Nenhuma chance de negociação?

       — Nenhuma. A não ser que você queira discutir com esse filho da mãe Insolentemente, o rapaz com a arma encarou Jean-Luc

       — Diga a este filho de um cão que ele cheira mal. Lochart tinha sentido um leve cheiro de alho.

       — Ele está dizendo que a sua comida tem um cheiro ótimo, Jean-Luc. Ouça, eles querem falar com Mimmo Sera. Eu voltarei assim que puder, e então resolverei o que fazer. Calênder, nós podemos ir agora — disse em farsi e abriu a porta da cabine.

       — Olhe! — disse Rodrigues, de repente e apontou para cima das montanhas na direção norte. Havia fumaça subindo para o céu. — É Maria?

       — Pode ser Bellissima — disse Jean-Luc. Nitchak Khan estava tentando enxergar ao longe.

       — Ali fica perto de onde nós vamos, não?

        — Não fica muito fora da rota, calênder. O velho parecia muito preocupado.

       — Talvez fosse melhor levar os canos no seu próximo vôo, piloto. Há dias que temos ouvido dizer que os esquerdistas estavam-se infiltrando nas montanhas, querendo sabotar e criar problemas. Na noite passada, um dos meus pastores teve a garganta cortada e os testículos arrancados. Eu tenho homens lá fora procurando os assassinos. — Com o rosto preocupado, ele entrou na cabine. O Faixa Verde seguiu-o.

       — Rod — disse Lochart — tire o 206 do hangar. Jean-Luc, fique na escuta HF. Eu vou me comunicar com você.

       — Oui, pas problème. — Jean-Luc tornou a olhar para a fumaça. Lochart deixou o carregamento de canos na base e partiu rapidamente em direção ao norte. Era Bellissima e estava pegando fogo. De longe ele pôde ver as chamas subindo a dez metros de um dos trailers que, ressecado pelo ar sem umidade, estava quase todo destruído. De um dos lados, perto do aparelho de perfuração, lavrava outro incêndio. Perto do barracão de dinamite, havia um corpo na neve. Acima da base, o pico coberto de neve da montanha, reformado pela explosão de Pietro e pela conseqüente avalanche, estava agradável. Abaixo, a ravina caía dois mil e quinhentos metros.

      Quando se aproximou, viu meia dúzia de figuras correndo pelo caminho tortuoso que descia até o vale — todos eles armados. Sem hesitação, virou e foi atrás deles, vendo-os à frente agora, exatamente em frente, praguejando por não estar num avião de combate. Não teria dificuldade em pegar todos eles. Seis homens, barbados, usando roupas nativas. Então viu um dos homens parar e mirar e depois o clarão familiar dos tiros e teve que se afastar, fazendo uma manobra de fuga, e quando tornou a voltar, numa altura mais segura, as figuras tinham desaparecido.

       Virou-se para a cabine. Nitchak Khan e o Faixa Verde estavam olhando pelas janelas laterais, com os narizes apertados nas janelas. Gritou mas eles não escutaram, então bateu na parede da cabine para atrair a atenção deles e fez um sinal chamando Nitchak Khan. O velho foi até a frente, se segurando, pouco à vontade no ar.

       — Você os viu? — gritou.

       — Sim, sim — Nitchak Khan gritou de volta. — Não é gente da montanha. São os terroristas.

      Lochart voltou a pilotar.

       — Jean-Luc, está me ouvindo?

       — Alto e claro, Tom, continue.

       Informou o que tinha visto e mandou que ele ficasse no rádio, depois concentrou-se no pouso, sobre a imensidão da ravina como sempre, com muitas correntes ascendentes e um vento forte. Esta era a primeira vez que ele vinha a Bellissima desde que voltara de Teerã. Com a morte de Guineppa, Bellissima estava operando, no mínimo, com apenas um turno. Quando pousou, viu Pietro, agora o chefe no lugar de Guineppa, que se afastou do incêndio e correu em direção a eles.

       — Tom! Nós precisamos de ajuda — gritou na janela do piloto, quase chorando. — Gianni está morto e há dois feridos...

       — Está bem. Não se preocupe. — Lochart começou a desligar o aparelho. — Nitchak está lá atrás com um Faixa Verde. Não se preocupe, está bem? — Ele tornou a se virar no assento e apontou para a porta. O velho concordou com a cabeça. — Que diabo aconteceu, Pietro? — perguntou, procurando os botões com os dedos.

       — Não sei... eu não sei, amico. — Pietro pôs a cabeça mais perto da janela da cabine. — Nós estávamos almoçando quando aquela garrafa cheia de gasolina com um pano pegando fogo entrou pela janela e começamos a pegar fogo... — Ele olhou para trás quando as chamas alcançaram um tambor quase cheio de óleo e subiram para o céu, soltando uma fumaça preta. Os quatro homens que lutavam contra o fogo recuaram. — Si, o refeitório incendiou rapidamente e quando corremos para fora lá estavam aqueles homens, nativos, banditos... Mamma mia, eles começaram a atirar e aí nós nos espalhamos e nos protegemos. Então, mais tarde, Gianni os viu pondo fogo na sala do gerador, perto de onde está a dinamite e... e ele simplesmente correu para avisá-los mas um deles atirou nele. Mamma mia, não havia motivo para atirar nele! Bastardi, stronzi bastardi!

       Rapidamente, Lochart e os outros desceram do avião. O único som era do vento e das chamas e da única mangueira de incêndio. Pietro desligara os geradores e bombas e fizera o vedamento de emergência de toda a plataforma. O telhado do trailer caiu e voaram fagulhas e pedaços de madeira em brasa, muitas caindo nos telhados próximos, mas como estavam cobertos de neve não representavam perigo. O fogo ainda estava fora de controle perto da sonda, alimentado por restos e vapores de óleo, e altamente perigoso. Os homens espalharam espuma, mas as chamas ainda subiam na direção do barracão de dinamite, lambendo uma parede de ferro ondulado.

       — Quanto há lá dentro, Pietro?

       — Demais.

       — Vamos tirar de lá.

       — Mamma mia... — Pietro seguiu Lochart, os dois protegendo o rosto das chamas com as mãos, e forçaram a porta. Não havia tempo de achar a chave. A dinamite estava arrumada em caixas. Havia uma dúzia de caixas. Lochart apanhou uma caixa e saiu, sentiu o bafo do calor e depois o ar fresco. Um dos homens apanhou a caixa e correu com ela para um lugar seguro enquanto Lochart voltava para buscar outra.

       Perto do helicóptero, Nitchak Khan e o Faixa Verde estavam abrigados do vento, fora de perigo

       — Seja como Deus quiser.

       — Como Deus quiser — o Faixa Verde repetiu. — O que faremos agora?

       — Temos que pensar nos terroristas. E no homem morto.

       O rapaz olhou através da neve para a figura deitada como um boneco quebrado

       — Se ele não tivesse vindo para as nossas montanhas, não estaria morto. É dele a culpa por estar morto, de mais ninguém.

       — É verdade. — Nitchak Khan ficou olhando para o fogo e para os homens que o combatiam e quando finalmente Lochart e Pietro acabaram de tirar a dinamite do barracão, os outros já tinham conseguido controlar o fogo.

       Lochart recostou-se num trailer para recuperar o fôlego.

       — Pietro, nós só temos até o pôr-do-sol de domingo. Então é dar o fora ou agüentar as conseqüências.

       Pietro fechou a cara. Olhou para Nitchak Khan e para o Faixa Verde que estavam perto do helicóptero.

       — Cinco dias? Isto me poupa de ter que tomar uma decisão, Tom. Nós evacuamos para Shiraz, via plataforma Rosa ou direto. — Pietro fez um sinal na direção do fogo com o punho cerrado, e a outra mão no bíceps. — No momento a plataforma Belíssima está arruinada. Eu vou precisar de Almqvist para tapar os poços. Mamma mia, há um bocado de homens pra transportar. Que desperdício! Estou contente que o velho Guineppa não esteja aqui para ver a destruição de hoje. É melhor eu ir ver Mimmo.

       — Imediatamente, com os que estão feridos. E quanto a Gianni? Pietro olhou para o corpo.

       — Nós o deixaremos para o final, meu pobre irmão de sangue — disse tristemente. — Ele não vai apodrecer.

      

       NA PLATAFORMA ROSA: Mimmo Sera estava sentado em frente a Nitchak Khan e ao Faixa Verde no refeitório, e Lochart, Pietro e os três operários mais graduados também estavam na mesa. Durante meia hora, Mimmo, que falava bem farsi, tinha tentado convencer o Faixa Verde a estender o prazo ou a permitir que ele deixasse turmas reduzidas de operários enquanto ele e Lochart iam com o Faixa Verde ver o chefe da IranOil em Shiraz.

       — Chega, em nome de Deus! — disse o Faixa Verde, irritado.

       — Mas, Excelência, sem os helicópteros nós vamos ter que fechar todo o campo e começar a evacuá-lo imediatamente. Sem dúvida, Excelência, uma vez que o aiatolá, que Deus o abençoe, e o primeiro-ministro Bazargan querem que a produção de petróleo volte ao normal, nós deveríamos consultar a IranOil em Sh...

       — Chega! Calênder! — O Faixa Verde dirigiu-se a Nitchak Khan. — Se esses cérebros de mosquito desobedecerem, a responsabilidade é sua, você está acabado, Yazdek está acabada e todo o seu povo! Se um só estrangeiro ou uma só máquina voadora ficar aqui depois do quinto pôr-do-sol, e você não tiver incendiado a base, nós o faremos. Depois incendiaremos a aldeia, por terra ou por ar. Você — o Faixa Verde rosnou para Lochart —, ligue o aparelho. Nós vamos voltar. Agora! — E saiu furioso.

       Todos o seguiram, desanimados. Lochart sentia-se triste por todos aqueles que tinham descoberto o petróleo, construído o campo e colocado tanta energia, talento, dinheiro, e risco nele. É escandaloso, pensou, mas não temos nenhuma opção. Não há nada a fazer. Vamos ter que sair. Vou cancelar a saída de Scot e usar todos os aparelhos para fazer isso. Vamos trabalhar como loucos durante cinco dias e esquecer Teerã e Xarazade e que hoje é o dia da marcha de protesto da qual ela foi proibida de participar.

       — Calênder — disse. — Sem a sua benevolência e a sua ajuda nós somos obrigados a partir.

       Nitchak Khan viu todos os olhos voltados para ele.

       — Eu tenho que escolher entre a base e a minha aldeia — disse gravemente. — Isto não é uma escolha. Eu vou tentar encontrar os terroristas e entregá-los à justiça. Enquanto isso, é melhor vocês não se arriscarem. Estas montanhas estão cheias de esconderijos.

       Com grande dignidade, ele se levantou e saiu, tendo a certeza de que não seria obrigado a incendiar a base, embora, se fosse a Vontade de Deus, ele soubesse que o faria sem um momento de hesitação, quer ela estivesse cheia ou vazia.

      Ele se permitiu a sombra de um sorriso. O seu plano funcionara com perfeição. Todos os estrangeiros tinham aceitado Hassan, o pastor de cabras, como sendo um genuíno Faixa Verde, cuja falsa arrogância e agressividade foram uma maravilha de se ver; os estrangeiros engoliram a sua história a respeito de 'terroristas' que tinham assassinado um pastor e ele reparara no medo deles; esses mesmos 'terroristas' tinham atacado a plataforma de petróleo, a mais difícil de alcançar das 11 existentes e, na escuridão da noite, esses mesmos 'terroristas' incendiariam parte da plataforma Rosa e depois desapareceriam para sempre — de volta à vida normal da aldeia de onde tinham saído. E ao amanhecer, pensou com satisfação, o terror já terá se espalhado, todos os estrangeiros estarão loucos para partir, a evacuação estará assegurada e a paz cairá sobre Yazdek.

       Eles são idiotas em quererem jogar quando só nós conhecemos as regras do jogo! Mas ainda há o problema do jovem piloto. Ele foi ou não uma testemunha? Os mais velhos aconselharam um 'acidente' como sendo o mais prudente. Ontem teria sido perfeito, quando o rapaz estava caçando sozinho. Tão fácil escorregar e cair sobre a arma. Sim. Mas a minha esposa foi contra um 'acidente'

       — Por quê?

       — Porque a escola foi uma coisa maravilhosa — ela tinha dito. — Não foi a primeira que tivemos? Sem os pilotos ela nunca teria existido. Mas agora nós sabemos e podemos facilmente construir outra sozinhos; porque os pilotos foram bons para nós, sem eles nós não saberíamos muito do que sabemos agora, nem teríamos uma aldeia tão rica; porque eu acho que o rapaz falou a verdade. Eu o aconselho a deixá-lo partir, não se esqueça o quanto o rapaz nos fez rir com suas histórias sobre esse lugar chamado Kong na terra chamada China, onde há mil vezes mil vezes mil pessoas, onde todos os cabelos são negros, todos os olhos são negros e as pessoas comem com um pedacinho de pau.

       Ele se lembrou de como havia rido junto com ela. Como podia existir tanta gente numa mesma terra, e todo mundo igual?

       — Ainda há o perigo dele ter mentido.

       — Então teste-o — ela dissera. — Ainda há tempo.

       Sim, pensou, há quatro dias para descobrir a verdade. Cinco, incluindo o Dia Santo.

      

       TEERÃ: 17:16H. A Marcha das Mulheres terminara.

       Ela começara de manhã com o mesmo ar de expectativa que envolvera Teerã por dois dias — quando inacreditavelmente, pela primeira vez na história, as mulheres, por si mesmas, como um grupo coeso, tomariam as ruas em protesto, para mostrar a sua solidariedade contra qualquer usurpação dos seus direitos duramente conquistados por parte dos novos governantes, e mesmo do próprio imã.

       "O vestido apropriado para uma mulher é o hijab que exige que elas cubram os seus cabelos e braços e pernas e zinaat — suas partes tentadoras."

       — Eu escolhi usar o chador em protesto contra o xá, Meshang — Zarah, sua mulher, berrara para ele. — Eu escolhi! Eu o fiz! Eu nunca usarei um véu, um chador ou um lenço contra a minha vontade, nunca nunca nunca...

       "A educação mista, introduzida pelo Satã xá há poucos anos, deixará de existir, porque na prática ela transformou muitas de nossas escolas em casas de prostituição."

       — Mentira, tudo mentira! Ridículo! — Xarazade dissera a Lochart. —

       A verdade deve ser gritada do alto dos edifícios. Não é o imã que está dizendo estas coisas, são os fanáticos que o cercam...

       "O abominável Ato de Proteção ao Casamento do Satã xá está abolido."

       — Isso deve ser um engano, Hussain — a esposa do mulá dissera cautelosamente. — O imã não pode estar dizendo isso. O Ato nos protege contra a rejeição por parte do marido, contra a poligamia e nos garante o direito de divórcio, o direito de voto e protege a propriedade da esposa...

       "Na nossa nação islâmica, todo mundo será governado unicamente pelo Corão e pelo Sharia. As mulheres não devem trabalhar, devem voltar para o lar, ficar no lar, para cumprir o seu dever sagrado, ordenado por Deus, de parir e criar filhos e cuidar dos seus Senhores."

       — Pelo profeta, Erikki, por mais que eu deseje ter filhos e ser uma boa esposa para você — dissera Azadeh, juro que não posso ficar sentada sem fazer nada e ver as minhas irmãs menos afortunadas serem forçadas a voltar para a Idade Média, sem liberdade nem direitos. São os fanáticos, não Khomeini, que estão tentando fazer isso. Eu vou marchar esteja onde estiver...

       Por todo o Irã, as mulheres tinham preparado marchas de solidariedade — em Qom, Isfahan, Meshed, Abadan, Tabriz, mesmo em pequenas cidades como Kowiss — mas não nas aldeias. Por todo o Irã tinha havido brigas e discussões entre pais e filhas, maridos e esposas, irmãos e irmãs, as mesmas brigas, súplicas, xingamentos, exigências, promessas, proibições e, Deus nos proteja, até mesmo rebeliões — às claras ou em segredo. E em todo o Irã a resolução secreta das mulheres era a mesma.

       — Estou contente do meu Tommy não estar aqui. Isso torna as coisas bem mais fáceis — dissera Xarazade à sua imagem no espelho naquela manhã, a marcha estava marcada para começar ao meio-dia. — Estou contente dele estar longe, porque o que quer que ele dissesse eu iria desobedecer. — Um tremor de excitação, agradável e ao mesmo tempo doloroso percorreu-a.

        Ela estava verificando a maquilagem no espelho, mais uma vez, para certificar-se de que a mancha em volta do olho esquerdo estava bem coberta com pó. Quase não aparecia mais. Ela sorriu para si mesma, satisfeita com o que viu. Seu cabelo estava ondulado e solto e ela usava uma blusa verde, uma saia da mesma cor, meias de náilon e botas de pelica russa, e quando saiu, tinha decidido vestir um casaco enfeitado de pele e um chapéu da mesma cor. O verde não é a cor do Islã?, pensou alegremente, esquecendo-se de toda a tristeza.

       Atrás dela, a cama estava entulhada de roupas de esqui e outras roupas que ela pensara em usar e desistira. Afinal, as mulheres nunca protestaram em grupo antes, então temos que estar com a nossa melhor aparência. Que pena que não estejamos na primavera, aí eu poderia usar o meu vestido de seda amarela e o chapéu amarelo e...

       Uma súbita tristeza tomou conta dela. Seu pai lhe dera aquele vestido de presente de aniversário no ano anterior, e o lindo colar de pérolas. Pobre papai, pensou, sentindo a raiva subir. Que Deus amaldiçoe os homens maus que o mataram. Que Deus os atire no fogo do inferno para sempre! Que Deus proteja Meshang e toda a família e o meu Tommy, e que não permita que os fanáticos nos privem da nossa liberdade.

       Agora havia lágrimas em seus olhos e ela as afastou. Insha'Allah, pensou. Papai está no paraíso para onde vão os fiéis, então não há motivo para lamentações. Não. Só o desejo de ver fazerem justiça contra os malditos assassinos. Assassinato! Tio Valik. HBC. Annoush e as crianças. HBC! Como eu odeio estas letras! O que aconteceu com Karim? Ela não tinha tido nenhuma notícia desde domingo e não sabia se ele estava detido, morto ou livre, nem tinha ouvido mais nada a respeito do telex — não havia nada a fazer a não ser rezar. E foi o que ela fez. Mais uma vez. E varreu da mente aqueles problemas, jogando-os para os ombros de Deus e sentiu-se limpa. Enquanto estava colocando o chapéu forrado de pele, a porta se abriu e Jari entrou apressada, também vestida com a sua melhor roupa.

       — Está na hora, princesa, Sua Alteza Zarah já chegou, oh, como você está bonita!

       Cheia de entusiasmo, Xarazade apanhou o casaco, correu pelo corredor, com a saia voando, e desceu as escadas para cumprimentar Zarah que esperava por ela no saguão.

       — Oh, você está linda, Zarah querida — disse, abraçando-a. — Oh, eu achei que Meshang iria impedi-la no último minuto.

       — Ele não teve nenhuma chance — disse Zarah, com uma gargalhada, com um lindo chapéu de pele elegantemente pousado sobre a cabeça. — Eu o atormentei ontem na hora do café e continuei o dia inteiro, a noite inteira e hoje de manhã a respeito do novo casaco de zibelina que eu tinha que possuir de qualquer maneira ou morreria de vergonha na frente das minhas amigas. Ele fugiu para o bazar para escapar e se esqueceu da marcha. Vamos embora, já devemos estar atrasadas, eu tenho um táxi esperando. Parou de nevar, o dia está prometendo ser bonito, embora esteja muito frio.

       Havia mais três mulheres no táxi, amigas e primas, duas usando orgulhosamente jeans e saltos altos e jaquetas de esquiar, com os cabelos soltos, uma delas com um boné de esquiar e todas estavam tão excitadas como se estivessem indo a um piquenique como nos velhos tempos. Nenhuma delas notou os res-mungos de desaprovação do motorista de táxi, nem se incomodou com isso.

       — Para a universidade — ordenou Zarah, e começaram a falar todas ao mesmo tempo como um bando de pássaros. Quando estavam ainda a duas ruas de distância dos portões da universidade, onde a marcha ia se concentrar, o táxi teve que parar, tão grande era a multidão.

       Onde se havia esperado umas poucas centenas, havia milhares e chegavam mais a cada minuto, de todos os lados. Jovens e velhas, bem-nascidas e mal nascidas, cultas e analfabetas, camponesas e nobres, ricas e pobres — de jeans, saias, calças, botas, sapatos, farrapos, peles — e em todas o mesmo fervor, mesmo daquelas que tinham vindo usando o chador. Algumas das mais militantes já estavam fazendo discursos e outras gritavam slogans:

       — Abaixo o chador obrigatório..

       — Unidade, luta, vitória...

       — Mulheres unidas, nós nos recusamos a ser obrigadas a usar o purdah ou o chador...

       — Eu estive em Doshan Tappeh lutando contra os Imortais. Nós não lutamos e sofremos para nos submeter ao despotismo...

       — Morte ao despotismo seja qual for a sua forma...

       — Simmmm! Hurra às mulheres — gritou Xarazade — abaixo o chador obrigatório e os véus e lenços! — Como as outras, ela foi tomada pela excitação. Zarah pagou ao homem e deu-lhe uma boa gorjeta, voltou-se alegremente, deu o braço a Xarazade e Jari, e nenhuma delas ouviu o motorista gritar:

       — Rameiras, todas vocês — e saiu com o carro.

       A multidão estava um tanto dispersa, sem saber o que fazer, a maioria delas esmagada pelo enorme número e variedade de mulheres, roupas e idades — até alguns homens juntando-se a elas cheios de entusiasmo.

       — Nós estamos protestando, Zara, estamos mesmo, não estamos?

       — Oh, sim, Xarazade! E há tantas de nós...

       Gritando no meio do barulho, ouvindo falar uma mulher bem vestida, uma conhecida advogada e ativista de Teerã, campeã de direitos femininos, Namjeh Lengehi. Uns poucos grupos de homens, estudantes e professores, pró e contra, junto com alguns mulás, todos contra, também ouvindo:

       — Alguns mulás dizem que nós mulheres não podemos julgar, não devemos receber educação e temos que usar o chador. Por três gerações nós permanecemos sem o véu, por três gerações nós temos tido direito a educação e há uma geração que temos o direito de votar. Deus é grande...

       — Deus é grande — mil vozes ecoaram.

       — Algumas de nós têm mais sorte que outras, algumas são mais educadas do que outras, algumas até possuem uma educação melhor do que a dos homens. Algumas dessas conhecem melhor as leis modernas, até mesmo a lei corânica, melhor do que muitos homens, por que essas mulheres não podem julgar? Por quê?

       — Não há nenhum motivo! Queremos que essas mulheres sejam juízes!

       — Zarah gritou junto com cem outras, abafando a voz dos mulás e seus partidários que gritavam:

       — Sacrilégio!

        Quando conseguiu se fazer ouvir novamente, Namjeh Lengehi continuou:

       — Nós apoiamos o aiatolá de todo o coração... — Mais aplausos a interromperam, numa grande demonstração de afeição. — Nós o abençoamos pelo que ele fez e lutamos o melhor que pudemos, lado a lado com os homens, partilhamos o sofrimento deles e as celas de prisão e ajudamos a ganhar a revolução e a expulsar o déspota e agora estamos livres, o Irã está livre do seu jugo e do jugo estrangeiro. Mas isto não dá a ninguém, aos mulás, nem mesmo ao aiatolá, o direito de atrasar o ponteiros do relógio...

       Ouviram-se gritos de:

       — Não, não, não! Nada de despotismo! Voto para as mulheres! Não ao despotismo sob qualquer forma! Lengehi para o Majilis! Lengehi para ministro da educação!

       — Oh, Zarah, isso não é maravilhoso? — disse Xarazade. — Você já votou alguma vez?

       — Não, querida, é claro que não. Mas isso não quer dizer que eu não quero ter o direito de poder votar caso queira. Eu já disse a Meshang uma centena de vezes que é claro que eu perguntaria a ele em quem votar, mas assim mesmo eu gostaria de entrar na cabine, sozinha, caso tivesse vontade!

       — Você tem razão! — Xarazade virou-se e gritou: — Viva a revolução! Deus é grande! Deus é grande! Lengehi para a Suprema Corte! Mulheres para juízes! Nós insistimos nos nossos direitos...

       Teymour, o iraniano treinado na OLP que tinha tomado o apartamento de Xarazade e que fora mandado para supervisionar a marcha e identificar os militantes, reconheceu-a das fotografias que tinha visto lá. A sua raiva aumentou.

       — As mulheres devem obedecer às leis de Deus — ele gritou. — Nada de mulheres juizes! As mulheres devem fazer o trabalho de Deus! — Mas a voz dele foi abafada pelas outras milhares de vozes e ninguém prestou atenção nele.

       Ninguém soube como a marcha começou. Elas simplesmente pareceram sair andando e em pouco tempo enchiam as avenidas, de parede a parede, interrompendo todo o tráfego, avançando alegremente, com uma força irresistível. Os que estavam em barracas, janelas e balcões de casas vizinhas olhavam de boca aberta para as manifestantes.

       A maioria dos homens estava chocada.

       — Olhe aquela ali, a jovem rameira com o casaco verde que abre na frente e mostra a abertura entre as pernas, olha, olha lá! Que Deus a amaldiçoe por tentar-me...

       — Olha aquela ali com as calças apertadas.

       — Onde? Ah, estou vendo, a de calças azuis! Que Deus nos proteja! Pode-se ver cada ondulação da sua zinaatl Ela está pedindo! Como aquela que está de braço dado com ela, a de casaco verde! Meretriz! Ei, sua meretriz, o que você quer é um pau, é só isso que você quer...

       Os homens olhavam e se inflamavam. O desejo seguia a marcha.

       As mulheres olhavam e meditavam. Mais e mais mulheres esqueceram-se das compras ou das suas barracas e se juntaram às suas irmãs, tias, mães, avós, tirando destemidamente das cabeças os lenços e véus e o chador — aquela não era a capital, elas não eram todas teeranis, a elite do Irã, e não mais aldeãs? Era diferente aqui, não como lá na aldeia onde elas nunca teriam ousado gritar slogans e tirar os lenços, véus e o chador.

       — Mulheres, unam-se! Deus é Grande! Deus é Grande! Vitória, unidade, luta. Igualdade para as mulheres! Voto! Não ao despotismo, qualquer despotismo...

       Na frente das manifestações, atrás delas, em volta delas, nas avenidas e nas ruas laterais, grupos de homens começaram a se formar. Os que eram contra e os que eram a favor. As discussões tornaram-se cada vez mais violentas — a lei coranica exigia que todos os muçulmanos resistissem a qualquer tentativa contra o Islã. Algumas brigas começaram. Um homem puxou uma faca e morreu, com a faca de outro homem nas costas. Alguns tiros e ferimentos. Muitas brigas. Alguns tumultos entre liberais e fundamentalistas, entre esquerdistas e Faixas Verdes. Umas cabeças quebradas, mais um homem morto e, aqui e ali, crianças atingidas pelo fogo cruzado, algumas mortas, outras agachadas atrás de carros estacionados.

       Ibrahim Kyabi, o líder estudantil do Tudeh que tinha escapado da emboscada na noite em que Rakoczy fora apanhado, correu para a rua e pegou uma das crianças apavoradas enquanto seus amigos lhe davam proteção. Ele chegou em segurança na outra esquina. Assim que se certificou de que a menina estava bem, ele gritou para os amigos:

       — Sigam-me — sabendo que eles estavam em minoria ali, e saiu correndo. Eles eram seis e correram para dentro dos becos e ruas laterais. Logo estavam a salvo, correndo em direção à avenida Roosevelt. Os partidários do

       Tudeh receberam ordens de evitar confrontos com os Faixas Verdes, de marchar junto com as mulheres, de se infiltrar nas fileiras e de conquistar adeptos. Ele estava contente de voltar à ativa depois de ficar escondido.

       Meia hora depois de Rakoczy ter sido capturado, ele relatara a traição ao seu supervisor no QG do Tudeh. O homem lhe dissera para não ir para casa, para tirar a barba e se manter fora de circulação num esconderijo perto da universidade:

       — Não faça nada até a hora da marcha de protesto das mulheres, na terça-feira. Junte-se à marcha com a sua célula conforme o planejado, depois vá para Kowiss no dia seguinte. Isso deve mantê-lo em segurança por algum tempo.

       — E quanto a Dimitri Yazernov? — Ele só conhecia Rakoczy por este nome.

       — Não se preocupe. Nós os tiraremos das mãos daqueles bandidos. Torne a dizer-me como eles eram.

       Ibrahim contara a ele o pouco que se lembrava sobre os Faixas Verdes e a emboscada. E então ele perguntara:

       — Quantos homens irão para Kowiss comigo?

       — Você e mais dois devem ser suficientes para um maldito mulá. Sim, ele tornou a pensar, mas eu não preciso de ninguém. Logo o meu pai estará vingado. Suas mãos apertaram o M16 que fora roubado uma semana antes do arsenal de Doshan Tappeh.

       — Liberdade! — gritou e correu pela avenida Roosevelt para se juntar às primeiras fileiras do protesto, espalhando-se com seus amigos.

       Uns cem metros atrás, um caminhão aberto, cheio de jovens, se arrastava lentamente, cercado pelos milhares de manifestantes, acenando e gritando palavras de encorajamento. Eram pilotos sem uniforme. Entre eles estava Karim Peshadi. Durante horas ele procurara Xarazade no meio dos manifestantes mas não a tinha visto. Ele e os outros estavam estacionados em Doshan Tappeh, onde a ordem e a disciplina eram praticamente inexistentes, com os komitehs detendo o controle, expedindo ordens e contra-ordens, outras ordens vindo do Alto Comando subserviente ao primeiro-ministro Bazargan, outras do Komiteh Revolucionário — e outras do rádio onde, de vez em quando, o aiatolá Khomeini falava e determinava as normas.

       Como todos os outros pilotos e oficiais por todo o país, Karim fora colocado diante de um komiteh para ser interrogado a respeito da sua ficha, das suas crenças políticas e das suas ligações pré-revolucionárias. Sua ficha era boa e ele pôde jurar sinceramente que apoiava o Islã, Khomeini e a revolução. Mas o fantasma do seu pai pairava sobre ele, e Karim enterrara cuidadosamente o desejo de vingança no fundo do coração. Até agora ele não fora afetado.

       Há duas noites ele tentara ir até a torre de Doshan Tappeh para procurar o livro de autorizações, mas fora obrigado a voltar. Esta noite ele ia tentar de novo — tinha jurado a si mesmo que não falharia. Eu não posso falhar, pensou, Xarazade confia em mim... oh, Xarazade, é você que dá sentido à minha vida embora esteja proibida para mim.

       Ansiosamente, ele a procurou no meio dos manifestantes, sabendo que ela estava lá, em algum lugar. Na noite anterior ele e um grupo de amigos tinham ouvido uma transmissão incendiaria feita por um aiatolá fundamenta-lista, opondo-se ao Protesto das Mulheres e exigindo que se fizessem protestos contrários por 'fiéis'. Ele ficara seriamente preocupado por causa de Xarazade, suas irmãs e parentes que ele sabia que também estariam na marcha. Seus amigos estavam igualmente preocupados com suas famílias. Então, esta manhã, eles tinham apanhado o caminhão e se juntaram ao protesto. Com armas.

       — Igualdade para as mulheres — ele gritou. — Democracia para sempre! Islã para sempre! Democracia, lei e Islã para sem... — As palavras morreram.

       Na frente da marcha, os homens tinham formado uma grossa barreira na rua, impedindo o avanço. As mulheres que iam na frente viram o ódio deles e os punhos levantados. Instintivamente, as mulheres nas primeiras filas tentaram diminuir a marcha, mas não conseguiram. O impulso de milhares as empurrou inexoravelmente para a frente.

       — Por que esses homens estão tão zangados? — perguntou Xarazade, sua alegria desaparecendo e os empurrões aumentando.

       — Eles são apenas mal conduzidos, aldeões em sua maioria — disse corajosamente Namjeh Lengehi. — Eles querem que sejamos escravas, escravas, não tenham medo! Deus é Grande...

       — Dêem os braços — gritou Zarah —, eles não podem nos fazer parar! Allahhh-u Akbarrr...

       Entre os homens que bloqueavam a rua estava o homem que, na prisão Evin, levara Jared Bakravan para a morte. Ele reconhecera Xarazade na frente.

       — Deus é Grande — ele murmurou em êxtase, com suas palavras abafadas pelos gritos —, Deus me fez o instrumento que mandou para o inferno o maldito lojista e agora Deus colocou nas minhas mãos a meretriz, sua filha. — Seus olhos a contemplaram com desejo, vendo-a nua nas almofadas, deitada, com os seios erguidos, os olhos cheios de paixão, a boca úmida, os lábios úmidos, ouvindo-a suplicar-lhe: "Possua-me, depressa, por você eu o faço de graça, penetre-me, depressa, por você eu faço qualquer coisa... oh, Satã, ajude-me a extrair Deus do seu membro..."

       Ele empunhou a faca, com os testículos vibrando, sua macheza orgulhosa, e atirou-se em direção a ela.

       — Deus é Grandeeee... — Sua corrida foi súbita e ele atravessou o espaço que os separava, derrubou uma dúzia, tentando alcançá-la, mas escorregou e, em sua excitação, caiu, com a faca atingindo algumas pessoas. Os que ele feriu gritavam e ele conseguiu se levantar e atirou-se para ela, vendo apenas a ela, com os olhos arregalados de terror, com a faca na mão pronta para matá-la, a três passos de distância, dois passos, um... sentindo-se inundado pelo seu perfume, o cheiro do demônio encarnado. Ele começou o golpe mortal, mas não chegou a tocá-la e soube que Satã tinha enviado um djinn diabólico para impedi-lo — sentiu um fogo no peito, seus olhos ficaram cegos e ele morreu com o nome de Deus nos lábios.

       Xarazade olhou para a figura caída, com Ibrahim ao seu lado agora, uma arma na mão, gritos e berros e um urro de raiva de mil mulheres fazendo pressão atrás deles.

       Outro tiro e um homem caiu gritando.

       — Avançar em nome de Deus — gritou Lengehi, vencendo o próprio medo, e seu grito foi acompanhado por Ibrahim, que sacudiu Xarazade:

       — Não tenha medo, avante as mulheres...

       Ela viu a confiança dele e por um momento confundiu-o com seu primo

       Karim, tão parecido em altura, corpo e rosto, depois seu terror e seu ódio pelo que acontecera explodiram e ela gritou:

       — Avante pelo meu pai... Abaixo os fanáticos e os Faixas Verdes... abaixo os assassinos! — Ela agarrou Zarah. — Vamos! Para a frente! — E deu o braço a ela e a Ibrahim, o seu salvador, tão parecido com Karim que poderiam ser irmãos, e continuaram a marchar. Mais homens corriam para a frente para ajudar, o caminhão com os pilotos entre eles.

       Outro atacante de faca veio correndo para cima deles.

       — Deus é Grande... — gritou Xarazade, a multidão junto com ela, mas antes de ser dominado o rapaz golpeou o braço de Namjeh Lengehi. Inexoravelmente, as filas de trás fizeram pressão para a frente, com os dois lados gritando "Deus é Grande", com os dois lados absolutamente certos de que estavam com a razão. Então a oposição cedeu.

       — Deixem-nas marchar — gritou um homem. — As nossas mulheres também estão lá, algumas estão, há muitas mulheres... demais... — Os homens que estavam no caminho recuaram, outros se afastaram e então o caminho ficou livre. Um urro de triunfo elevou-se dos manifestantes:

       — Allahhh-u Akbarrr... Deus está conosco, irmãs!

       — Para a frente — tornou a gritar Xarazade e a marcha prosseguiu. Os que estavam feridos foram carregados ou ajudados a saírem do caminho, os outros continuaram andando. Agora o protesto ficou outra vez disciplinado. Ninguém mais barrou-lhes o caminho, embora muitos homens observassem sombriamente das laterais, com Teymour e outros fotografando os militantes.

       — É um sucesso — disse Namjeh Lengehi, com voz fraca, ainda andando na primeira fila, com um lenço estancando o sangue que jorrava do seu braço. — Nós somos um sucesso. Até mesmo o aiatolá vai saber da nossa determinação. Agora nós podemos voltar para os nossos maridos e as nossas famílias. Nós fizemos o que precisávamos fazer e agora podemos voltar para casa.

      — Não — disse Xarazade, com o rosto pálido e sujo de terra, ainda não recuperada do choque. — Nós precisamos marchar amanhã e amanhã e amanhã, até que o imã concorde publicamente com os nossos direitos e não nos obrigue a usar o chador.

       — Sim — disse Ibrahim —, se vocês pararem agora os mulás vão esmagá-las.

       — Você tem razão, aga, oh, como posso agradecer-lhe por ter-nos salvo?

       — Sim — concordou Zarah, ainda abalada. — Nós vamos marchar amanhã, senão esses... esses loucos vão nos destruir.

       A marcha prosseguiu sem maiores problemas e o mesmo aconteceu nas outras cidades: confusão no início e depois o protesto continuando pacificamente.

       Mas nas aldeias e pequenas cidades, a marcha foi interrompida antes de começar e mais ao sui, em Kowiss, houve silêncio na praça da cidade, exceto pelo barulho do chicote e dos gritos. Hussein estava lá quando a marcha se formou.

       — Este protesto está proibido. Todas as mulheres que não estiverem vestidas de acordo com o hijab estão sujeitas a serem condenadas por nudez pública contra as ordens do Corão. — Só meia dúzia de mulheres, entre duzentas, estavam vestidas com roupas ocidentais.

      — Onde está escrito no Corão que estaremos desobedecendo a Deus se não usarmos o chador! — gritou uma das mulheres. Ela era esposa do gerente do banco e freqüentara a Universidade de Teerã. Sua aparência era modesta, ela usava um casacão e uma saia, mas seus cabelos estavam soltos.

       — Oh, Profeta, diga a suas esposas e filhas e mulheres crentes que usem os véus bem cerrados... O Irã é um Estado islâmico... o primeiro da história. O imã decretou o hijab. Então será o hijab. Vão para casa e vistam-se direito imediatamente!

       — Mas as fiéis de outras terras não são obrigadas a usar o chador, e os seus líderes e os seus maridos não as obrigam a isso.

       — Os homens são responsáveis pelo que diz respeito às mulheres, por isso Deus favoreceu a um deles... as mulheres direitas são, portanto, obedientes.. Aquelas que você achar que podem ser rebeldes, castigue-as; mande-as para a cama e bata nelas. Se então elas lhe obedecerem, não faça nada contra elas. Vão e cubram suas cabeças.

       — Eu não irei. Há mais de quarenta anos que as mulheres iranianas não usam mais o véu e...

       — Quarenta chibatadas vão dobrar a sua desobediência! Deus é Grande! — Hussein fez sinal para um dos seus acólitos. Outros agarraram a mulher e imobilizaram-na. O chicote logo rasgou a fazenda nas costas dela debaixo das vaias dos homens que assistiam. Quando terminou, a mulher desmaiada foi carregada. Por outras mulheres. As outras voltaram para casa. Em silêncio.

       Lá, Hussein olhou para a esposa, com o ventre inchado da gravidez.

       — Como você ousou comparecer a um protesto de meretrizes e mulheres perdidas?

       — Foi... foi um erro — disse ela, apavorada. — Foi um grande erro.

       — Sim, você ficará sem comida, passando apenas a água, por dois dias, para se lembrar. Se você não estivesse grávida, sofreria o mesmo castigo, na praça.

       — Obrigada por ter sido misericordioso, que Deus o abençoe e proteja Obrigada..

      

       NO AEROPORTO DE TEERÃ: 18:40H. Com Andrew Gavallan ao seu lado, McIver saiu da área de descarga em direção ao 125, ETLL, que estava parado no pátio de carga a meio quilômetro de distância. O aparelho tinha chegado de Tabriz há uma hora e estava reabastecido e pronto para o vôo de volta através do golfo. Depois que ele pousou, Armstrong agradecera-lhes efusivamente por ter permitido que ele usasse o aparelho. Assim como o coronel Hashemi Fazir.

       — O capitão Hogg disse que o 125 volta no sábado, sr. Gavallan — dissera Hashemi, educadamente. — Eu gostaria de saber se o senhor terá a gentileza de nos dar uma carona até Tabriz. Só de ida desta vez, não será necessário esperar, nós voltaremos por nossa própria conta.

       — É claro, coronel — Gavallan respondera gentilmente, sem se sentir nada satisfeito em relação aos dois homens.

       Ao chegar de Al Shargaz naquela manhã, McIver contara-lhe imediatamente, em particular, por que era necessário cooperar

       — Eu vou tratar disso imediatamente com Talbot, Mac — ele dissera, furioso com a chantagem. — Não importa que seja CID ou Seção Especial!

       Eles todos tinham tapado os ouvidos com as mãos quando um gigantesco avião de transporte dos Estados Unidos taxiou perto deles, em direção ao ponto de decolagem — um dos muitos aviões do governo americano enviados para evacuar o resto do pessoal americano de prestação de serviços e da embaixada, exceto por um pequeno grupo. O ar superaquecido dos jatos suspendeu a neve e atingiu-os. Quando Gavallan conseguiu fazer-se ouvir, ele disse:

       — Talbot deixou uma mensagem para o senhor, sr. Armstrong, e pediu que o senhor fosse vê-lo o mais cedo possível. — Ele viu o olhar trocado entre os dois homens e imaginou o que significaria.

       — Ele disse onde, senhor?

       — Não, apenas que fosse vê-lo o mais cedo possível. — Gavallan teve a atenção despertada por uma enorme limusine preta que vinha depressa em direção a eles, com a bandeira oficial de Khomeini no pára-lama. Dois homens saltaram e cumprimentaram Hashemi com deferência, segurando a porta para ele entrar.

       — Até sábado. Mais uma vez obrigado, sr. Gavallan. — Hashemi entrou atrás.

       — Como poderemos entrar em contato com o senhor, coronel, caso haja uma mudança nos planos?

       — Através de Robert. Ele pode me mandar um recado. Há alguma coisa que eu possa fazer por vocês? Aqui no aeroporto?

       McIver disse rapidamente.

       — Com relação ao abastecimento, obrigado por ter providenciado, se o senhor conseguir que nós tenhamos um serviço assim tão rápido todas as vezes, eu agradeceria. E também as nossas autorizações.

       — Vou cuidar disso. O senhor terá prioridade para o vôo de sábado. Se houver alguma outra coisa, por favor, peça a Robert. Vamos, Robert.

       Robert Armstrong disse:

       — Mais uma vez obrigado, sr. Gavallan, vejo-o no sábado, se não o vir antes.

       Quando Talbot esteve lá mais cedo para saber a hora em que Armstrong voltaria de Tabriz, Gavallan o chamara para um canto e tinha urrado de ódio por causa da chantagem.

       — Pelo amor de Deus — dissera Talbot, chocado. — Que acusação terrível, terrivelmente não-britânica, Andrew, se me permite falar assim! Eu compreendo que Armstrong teve um trabalho considerável para tentar livrar você, a sua companhia, Duncan e Lochart... um bom homem aquele, linda esposa, que coisa triste o que houve com o pai dela... de um desastre que pode vir à tona a qualquer momento. Não pode? — E sorriu docemente. — Eu compreendo que Robert pediu, apenas pediu um modesto favor, fácil de providenciar, nada demais, Andrew.

       — Ele é da Seção Especial, ex-CID em Hong Kong, não é? O sorriso de Talbot não perdeu a doçura.

       — Eu não sei dizer. Mas ele parece querer prestar-lhe um favor. Simpático da parte dele, não?

       Ele está com o livro de autorizações?

       — Eu não sei de nada a respeito disso.

       — Quem é esse coronel Fazir afinal de contas? Talbot tinha acendido um cigarro.

       — Apenas um amigo. É um homem bom para se ter como amigo.

       — Eu reparei nisso. Ele conseguiu combustível e prioridade para decolar como se fosse Deus Todo-Poderoso.

       — Oh, ele não é, de jeito nenhum. É quase isso, mas não é Deus. Deus é inglês — Talbot dera uma gargalhada. — É é mulher. Nenhuma inteligência masculina poderia ter feito uma confusão tão completa no mundo. Uma palavra de advertência, meu chapa: eu ouvi dizer, seguindo o conselho do seu colega de diretoria, Ali Kia, que eles pretendem nacionalizar todas as companhias de aviação estrangeiras, especialmente a sua, se conseguirem organizar as coisas.

       Gavallan ficou chocado.

       — Quem são eles!

       — Isso importa?

       Depois que Talbot já tinha ido embora, Gavallan voltou para o escritório que estava com uma boa freqüência hoje. Ainda não voltara ao normal, mas estava chegando lá — operador de rádio, operador de telex, gerente administrativo, almoxarifes e alguns secretários, não havia nenhuma mulher presente hoje, porque todas tinham pedido permissão para ir à marcha de protesto.

       — Mac, vamos dar uma volta.

       McIver levantou a cabeça de uma pilha de relatórios.

       — Claro — disse, vendo a fisionomia grave do outro.

       Eles não tinham tido tempo ainda de conversar em particular, era impossível fazer isso dentro ou perto dos escritórios, as paredes eram finas e os ouvidos estavam atentos em toda parte. Desde que Gavallan chegara há horas atrás, os dois tinham estado ocupados verificando o livro caixa, os contratos ainda em vigor, os contratos suspensos ou cancelados e o estado atual de cada base — todas elas comunicando, reservadamente, um mínimo de trabalho e um máximo de aborrecimento — a única notícia boa fora a permissão conseguida por McIver para exportar os três 212 e mesmo isso não era certo. Ainda.

       Os dois homens saíram para o pátio de carga. Um jumbo da JAL roncou no céu.

       — Dizem que ainda há dois ou três mil técnicos japoneses se divertindo na Iran-Toda — McIver disse distraidamente.

       — O consórcio deles está levando uma tremenda surra. Hoje o Financial Times disse que o prejuízo deles já vai a meio bilhão de dólares, não há nenhuma chance deles terminarem este ano, nem de pularem fora. Isso e o excesso de frota mercante no mundo devem estar prejudicando imensamente a Toda. — Gavallan verificou se não havia ninguém por perto. — Pelo menos o nosso investimento de capital é móvel, Mac, a maior parte dele.

       McIver olhou para ele, vendo o rosto marcado, as espessas sobrancelhas grisalhas, os olhos castanhos.

       — E este o motivo da "conferência urgente"?

       — Um deles. — Gavallan contou-lhe o que Talbot dissera. — Nacionalizada! Isso significa que vamos perder tudo, a menos que tomemos alguma providência. Genny tem razão, você sabe. Temos que fazer isso sozinhos.

       — Eu não acho que seja possível. Ela lhe disse, não?

       — É claro, mas eu acho que podemos. Analise isso: digamos que hoje é o Dia Um. Todo o pessoal supérfluo começa a deixar o Irã por transferência ou de licença; nós retiramos todas as peças que pudermos, seja pelo nosso 125 ou nas linhas regulares quando elas recomeçarem a operar, como obsoletas, supérfluas, para conserto ou como bagagem pessoal. Zagros Três recua para Kowiss, Tabriz fecha 'temporariamente' e o 212 de Erikki vai para Al Shargaz, depois para a Nigéria, junto com Tom Lochart de Zagros, e um 212 de Kowiss. Você fecha o QG em Teerã e o transfere para Al Shargaz para dirigir as operações e controlar as nossas três bases restantes de Lengeh, Kowiss e Bandar Delam 'esperando a volta à normalidade' de lá. Nós todos ainda estamos sob as ordens do nosso governo para evacuar todo o pessoal supérfluo.

       — Certo, mas...

       — Deixe-me terminar, rapaz. Digamos que possamos planejar e preparar tudo isso em trinta dias. O Dia Trinta e Um será o Dia D. No momento exato do Dia D, ou D mais um, dependendo do tempo ou Deus sabe lá de quê nós passamos pelo rádio uma palavra em código de Al Shargaz. Simultaneamente, todos os pilotos restantes e helicópteros decolam e se dirigem para Al Shargaz através do golfo. Lá nós removemos os rotores, embarcamos os helicópteros em uns 747 de carga que eu terei fretado em algum lugar, eles voam para Aberdeen e pronto — Gavallan terminou com um sorriso radiante.

       McIver ficou olhando para ele, estarrecido.

       — Você está louco! Você está doido varrido, Chinês. Tem que haver algum furo nisso... você é doido.

       — Aponte algum furo.

       — Posso apontar cinqüenta, pri...

       — Um de cada vez, rapaz, e lembre-se da sua pressão. Como está ela, aliás? Genny pediu-me para perguntar.

       — Ótima, e não comece. Primeiro, a mesma hora de decolagem: os helicópteros das diferentes bases vão levar tempos diferentes por causa das distâncias que terão que percorrer. O que sair de Kowiss terá que ser reabastecido, não vai poder ir de uma vez só, nem mesmo através do golfo.

       — Eu sei disso. Nós faremos diferentes subplanos para cada uma das três bases. Cada comandante de base fará o seu próprio plano de saída, nós seremos responsáveis por eles na chegada. Scrag pode atravessar o golfo facilmente, bem como Rudi de Bandar De...

       — Ele não pode. Nem Rudi de Bandar Delam nem Starke de Kowiss podem atravessar o golfo direto até Al Shargaz, mesmo que consigam atravessar o golfo. Eles terão que atravessar o espaço aéreo do Kuwait, da Arábia Saudita e dos Emirados e só Deus sabe o que eles farão conosco, multas ou prisão. Al Shargaz também, não há nenhum motivo para que eles ajam de forma diferente. — McIver sacudiu a cabeça. — Os domínios dos xeques não podem fazer nada sem autorização iraniana. Eles, com toda a razão, estão apavorados que a revolução de Khomeini se espalhe até eles, todos têm grandes minorias xiitas e não são páreo para as Forças Armadas iranianas caso elas decidam endurecer.

       — Uma coisa de cada vez — disse Gavallan calmamente. — Você tem razão quanto aos helicópteros de Rudi e Starke, Mac. Mas digamos que eles tenham autorização para voar sobre todos esses territórios?

       — Hein?

       — Eu passei um telex para todas as torres de controle do golfo pedindo autorização e recebi telex confirmando que os helicópteros da S-G em trânsito podem passar.

       — Sim, mas.,

       — Mas um ponto de cada vez, rapaz. Outra coisa, digamos que todos os nossos aparelhos voltassem a ter um registro britânico. Eles são britânicos, são nossos, nós estamos pagando por eles, nós somos os donos não importa o que os sócios tentem fazer. Sob registro britânico, eles não estão sujeitos ao Irã nem a nada que diga respeito a eles. Certo?

       — Uma vez que você esteja fora, sim, mas você não vai conseguir que as autoridades da Aeronáutica Civil iraniana concordem com a transferência, logo você não vai poder fazê-los voltar a ser britânicos.

       — Digamos que eu pudesse arranjar-lhes um registro britânico mesmo assim?

      — E como você conseguiria uma coisa dessas?

       — Pedindo. Pedindo, rapaz, você pede ao pessoal do registro em Londres para fazer isso. De fato, eu fiz isso antes de sair de Londres. "As coisas estão um tanto confusas no Irã", eu disse. "Uma bagunça completa, meu velho", eles disseram. "Eu gostaria de voltar a ter um registro britânico para os meus pássaros, temporariamente", disse, "talvez eu tenha que tirá-los de lá até que a situação se normalize. É claro que as autoridades do Irã aprova, riam, mas eu não consigo que nenhum pedaço de papel seja assinado no momento, vocês sabem como é isso." "Certamente, meu velho", eles disseram, "acontece o mesmo com o nosso maldito governo, com qualquer maldito governo. Bem, os pássaros são seus, não há nenhuma dúvida, é um pouco irregular, mas eu imagino que possa ser feito. Você vai à festa dos Velhos Camaradas?"

       McIver tinha parado de andar e estava olhando para ele, perplexo

       — Eles concordaram?

       Ainda não, rapaz. O que mais?

       — Eu tenho mais uma centena de dúvidas! — Irritado, McIver recomeçou a andar, com frio demais para ficar parado E então?

       — E então, se eu fizer uma pergunta de cada vez, você vai me dar uma resposta... e uma possível solução, mas isso ainda não será o suficiente

       — Eu concordo com Genny, nós teremos que fazê-lo sozinhos. Talvez, mas terá que ser uma coisa viável. Outra coisa: nós temos permissão para retirar três 212, talvez conseguíssemos tirar o resto.

       — Os três ainda não estão fora, Mac. Os sócios, e muito menos o DAC, não nos deixarão escapar do seu controle. Olhe para a Guerney: todos os seus helicópteros foram confiscados. Quarenta e oito, inclusive todos os seus 212, cerca de 30 milhões de dólares apodrecendo, não podem nem mesmo fazer a manutenção deles. — Eles olharam para a pista. Um Hércules da RAF estava pousando. Gavallan ficou observando-o, — Talbot me disse que lá para o fim da semana todo o pessoal de treinamento e técnicos do exército, marinha e aeronáutica britânicos estarão fora daqui e na embaixada só ficarão três pessoas, incluindo ele. Parece que por causa do tumulto na embaixada dos Estados

       Unidos. Alguém entrou, aproveitando-se da confusão, explodiu cofres e agarrou papéis cifrados..

       — Eles ainda tinham material secreto lá? — McIver estava horrorizado.

       — Parece que sim. De qualquer maneira, Talbot disse que a infiltração fez palpitar cada um dos esfíncteres diplomáticos do mundo cristão, do mundo soviético e do mundo árabe. Todas as embaixadas estão fechando. Os árabes são os mais abalados. Nenhum dos xeques do petróleo quer ver Khomeini do outro lado do golfo e estão ansiosos, desejosos e prontos para gastar muitos petrodólares para evitar isto. Talbot disse: "Eu aposto cinqüenta libras contra um alfinete quebrado que o Iraque agora está com um talão de cheques aberto, os curdos também, e todo mundo que seja árabe, pró-sunita e anti-Khomeini”. O golfo inteiro está prestes a explodir. Mas enquanto isso o...

       — Enquanto isso, ele não está tão obstinado quanto estava há alguns dias; nem tão certo de que Khomeini vai se retirar silenciosamente para Qom. "É o bom e velho Irã para os iranianos, meu velho, enquanto eles tiverem Khomeini e os mulás", ele disse. "É sim para o khomeinismo, se os esquerdistas não o assassinarem antes, e fora com tudo que for velho. Isto é, nós." — Gavallan bateu palmas com as mãos enluvadas para manter a circulação. — Eu estou gelado. Mac, está muito claro que nós estamos numa tremenda enrascada aqui. Nós temos que cuidar de nós mesmos.

       — É um risco tremendo. Eu acho que vamos perder alguns aparelhos Só se a sorte estiver contra nós.

       — Você está pedindo um bocado de sorte, Andy. Você se lembra daqueles dois mecânicos na Nigéria que ficaram presos por 14 anos só por terem feito a manutenção de um 125 que foi tirado ilegalmente do país?

       — Isso foi na Nigéria. Os mecânicos ficaram para trás. Nós não vamos deixar ninguém

       — Se um só estrangeiro ficar para trás, será agarrado, atirado na prisão e se tornará um refém para todos nós e todos os aparelhos, a menos que você esteja preparado para deixá-lo ser morto. Se não estiver, eles o usarão para nos obrigai a voltar e quando nós voltarmos, eles estarão bastante irritados E quanto a todos os nossos empregados iranianos?

       Obstinadamente, Gavallan disse:

       — Se a sorte estiver contra nós, será um desastre não importa o que façamos. Eu acho que deveríamos preparar um plano bem-feito, com todos os detalhes finais, sob condição. Isto levará semanas, e é melhor mantermos o plano supersecreto, só entre nós

       McIver sacudiu a cabeça.

       — Nós vamos ter quer consultar Rudi, Scragger, Lochart e Starke, se você quiser agir com seriedade

       — Você tem toda razão. — Gavallan estava com as costas doendo e se esticou. — Depois que estiver devidamente planejado.. Nós não precisamos sugar a última teta antes disso.

       Eles caminharam em silêncio durante algum tempo, com a neve rangendo alto Agora estavam quase no final do pátio.

       — Nós estaríamos exigindo um bocado dos rapazes — disse McIver Gavallan não pareceu ouvi-lo

       — Nós não podemos simplesmente abandonar 15 anos de trabalho, não podemos jogar fora as nossas economias, as suas, de Scrag, e todo o resto — disse ele. — O nosso Irã acabou. A maioria dos caras com quem nós trabalhamos durante anos fugiu, está escondida, está morta, ou está contra nós, quer queira quer não. O trabalho está reduzido a um mínimo. Dos 26 helicópteros que temos aqui, só nove estão operando. Nós não estamos sendo pagos pelo pouco que estamos fazendo, nem estamos recebendo os pagamentos atrasados. Eu acho que tudo isso é um cancelamento.

       Obstinadamente, McIver disse:

       — Não é assim tão ruim como você pensa. Os só..

       — Mac, você precisa entender que eu não posso desistir do dinheiro que nos devem mais os nossos aparelhos e peças e continuar a funcionar. Eu não posso. Os nossos treze 212 valem 13 milhões de dólares, os nove 206 valem um milhão e trezentos, os três Alouettes mais um milhão e meio, e três milhões em peças. Vinte milhões mais ou menos. Eu não posso desistir disso. Ian me avisou que a Struan's precisa de ajuda este ano, não existe dinheiro sobrando. Linbar tomou algumas decisões erradas e... bem, você sabe o que eu penso dele e ele de mim. Mas ele ainda é o tai-pan. Eu não posso largar o Irã, não posso desfazer os contratos para os novos X63, não posso lutar contra a Imperial que, atualmente, está nos engolindo no mar do Norte com o dinheiro dos contribuintes. Não posso fazer nada disso.

       — Você estaria pedindo um bocado dos rapazes, Chinês.

       — E de você também, Mac, não se esqueça de você. Teria que ser um esforço conjunto, não apenas por mim, mas por eles também. Porque é isso ou afundar.

       — A maior parte dos nossos rapazes pode arranjar empregos sem problemas. O mercado está desesperado atrás de pilotos de helicópteros bem treinados que trabalham com petróleo.

       — E daí? Aposto que todos eles preferem trabalhar conosco, nós cuidamos deles, pagamos em dólar, temos a melhor ficha em matéria de segurança. A S-G é a melhor companhia de helicópteros da terra e eles sabem disso! Você e eu sabemos que fazemos parte da Casa Nobre, por Deus, e isso também significa alguma coisa. — Os olhos de Gavallan brilharam subitamente. — Seria um grande golpe se nós conseguíssemos sair dessa. Eu adoraria esfregar isto no nariz de Linbar. Quando chegar a hora, nós perguntaremos aos rapazes. Enquanto isso, a todo o vapor, hein, rapaz?

     — Está bem — McIver disse sem entusiasmo. — Vamos ao planejamento. Gavallan olhou para ele.

       — Eu conheço você bem demais, Mac. Daqui a pouco vai ser você que vai estar louco para começar e eu é que vou estar dizendo: espere um pouco, e quanto a isso assim assim..

       Mas McIver não estava escutando. Sua mente estava tentando formular um plano, apesar das impossibilidades. Com exceção do registro britânico. Será que isso seria o ponto-chave?

       — Andy, quanto ao plano. É melhor termos um nome em código para ele

       — Genny disse que deveríamos chamá-lo de 'Turbilhão'. Afinal nós estamos metidos em um.

 

 

                                                                  James Clavell

 

 

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