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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TURBILHÃO V.2 - P.3 / James Clavell
TURBILHÃO V.2 - P.3 / James Clavell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

BASE DE KOWISS: 13:47H. O coronel Changiz, o mulá Hussein e alguns Faixas Verdes saltaram do carro. Os Faixas Verdes se espalharam pela base enquanto o coronel e Hussein se dirigiam ao escritório.

       No escritório, os dois funcionários que ainda estavam lá levaram um susto com a chegada repentina do coronel.

       — Sim... sim, Excelência?

       — Onde está todo mundo? — gritou Changiz. — Onde?

       — Deus é testemunha de que não sabemos de nada, Excelência coronel, a não ser que Sua Excelência, o capitão Ayre foi levar algumas peças para a plataforma Abu Sal e que Sua Excelência, o capitão McIver foi para Teerã com Sua Excelência o ministro Kia e que Sua Excelência, o capitão Lochart foi procurar os 212 que estão vindo para cá e...

       — Que 212?

       — Os quatro 212 que Sua Excelência o capitão McIver mandou que viessem de Bandar Delam para cá com pilotos e pessoal e nós estamos nos preparando... nos preparando para recebê-los. — O funcionário, cujo nome era Ismael, se encolheu sob o olhar penetrante do mulá. Deus é testemunha de que o capitão foi sozinho, para procurar por eles sozinho, pois eles não têm HF e talvez um VHF pudesse alcançá-los lá em cima.

 

 

 

 

       Changiz ficou enormemente aliviado. Ele disse para Hussein:

       — Se os 212 estão vindo para cá, não há razão para todo este pânico. — Ele enxugou a testa. — Quando é que eles vão chegar?

       — Imagino que seja logo, Excelência — disse Ismael.

       — Quantos estrangeiros há na base neste momento?

       — Eu... eu não sei, Excelência, nós... nós estamos trabalhando num relatório e...

       Um Faixa Verde entrou correndo no escritório.

       — Não encontramos nenhum estrangeiro, Excelência — ele disse para Hussein. — Um dos cozinheiros disse que os dois últimos mecânicos partiram com os helicópteros grandes hoje de manhã. Os operários iranianos disseram que os ouviram dizer que as equipes substitutas deveriam chegar no domingo ou na segunda.

       — Sábado, Excelências, eles nos disseram que seria amanhã — corrigiu Ismael. — Mas os quatro 212 que estão chegando vão trazer mecânicos a bordo, bem como pilotos e mais pessoal, Sua Excelência McIver disse. O senhor está precisando de mecânicos?

       O Faixa Verde estava dizendo:

       — Alguns dos quartos... parece que os infiéis arrumaram as malas apressadamente, mas ainda há três helicópteros no hangar.

       Changiz virou-se para Ismael.

       — De que tipo?

       — Um... não, dois 206 e um francês, um Alouette.

       — Onde está o chefe do escritório, Pavoud?

       — Ele estava doente, Excelência coronel, ele saiu daqui doente, logo depois da oração do meio-dia e foi para casa. Não foi, Ali? — ele disse para o outro colega.

       — Sim, sim, ele estava doente e saiu dizendo que voltaria amanhã.

       — O capitão McIver mandou que os helicópteros de Bandar Delam viessem para cá?

       — Sim, sim, Excelência, foi isto que ele disse a Sua Excelência Pavoud, eu o ouvi dizer exatamente isto, com pilotos e mais pessoal, não foi, Ali?

      — Sim, juro por Deus, foi isto que aconteceu, Excelência coronel.

       — Está bem, já chega. — Para Hussein, o coronel disse: — Vamos falar com Lochart pelo rádio. — E para o funcionário ele perguntou: — O sargento Wazari está na torre?

       — Não, Excelência coronel, ele voltou para a base pouco antes de Sua Excelência o capitão Lochart decolar para procurar os quatro 212 que deveriam estar chegando de...

       — Chega! — O coronel pensou um momento e depois falou rudemente com o Faixa Verde: — Você! Mande o cabo ir correndo para a torre.

       O jovem Faixa Verde enrubesceu com a grosseria e olhou para Hussein, que disse friamente:

       — O coronel está pedindo para você fazer o favor de procurar o cabo Bor-gali e levá-lo para a torre, depressa.

       Changiz começou a dizer:

       — Eu não quis ser indelicado, é cia...

       — É claro. — Hussein dirigiu-se para a escada que levava à torre. Changiz seguiu-o, bastante contrito.

       Há meia hora havia chegado na base aérea um telex da torre de controle de Teerã, pedindo uma verificação imediata de todo o pessoal estrangeiro da CHI e dos helicópteros de Kowiss: "...fomos comunicados do desaparecimento de quatro 212 da base da CHI em Bandar Delam pelo Diretor Gerente da CHI, Siamaki, que acredita que eles possam ter sido levados ilegalmente do Irã para um dos Estados do Golfo."

       Imediatamente, Changiz tinha sido chamado pelo Faixa Verde de serviço, que já tinha levado o telex para Hussein e o komiteh. O komiteh estava em sessão na base, dando prosseguimento à investigação acerca da confiabilidade islâmica de todos os soldados e oficiais, e dos crimes cometidos contra Deus em nome do xá. Changiz ficou enjoado.O komiteh era impiedoso. Ninguém que havia sido pró-xá tinha escapado. E embora ele fosse o comandante, indicado pelo komiteh com a aprovação de Hussein, o seu nome ainda não havia sido confirmado pelo todo-poderoso Komiteh Revolucionário. Até isto acontecer, Changiz sabia que estava sob julgamento. E ele não tinha feito um juramento de fidelidade ao xá, pessoalmente, assim como todos os outros membros das Forças Armadas?

       Na torre, ele viu Hussein olhando para o equipamento.

       — O senhor sabe operar os rádios, coronel? — perguntou o mulá, com

       suas roupas velhas, mas limpas, o turbante branco recém-lavado mas também velho.

       — Não, Excelência, foi por isso que mandei chamar Borgali.

       O cabo Borgali subiu as escadas de dois em dois degraus e se apresentou.

       — UHF e HF — ordenou o coronel.

       — Sim senhor — Borgali ligou os aparelhos. Nada. Checou-os rapidamente e encontrou o cristal quebrado e viu que estava faltando o disjuntor do VHF. — Desculpe, senhor, mas este equipamento não está funcionando.

       — Você quer dizer que foi sabotado? — Hussein perguntou em voz baixa e olhou para Changiz.

       Changiz perdeu a fala. Que Deus castigue todos os estrangeiros, ele estava pensando, cheio de desespero. Se foi uma sabotagem deliberada... então isto prova que eles fugiram e levaram os nossos helicópteros. Aquele cão do McIver devia estar sabendo de tudo quando eu falei com ele sobre o 125.

       Um arrepio gelado percorreu-o. Não havia mais nenhum 125 agora, nem rota de fuga, nem chance de tomar Lochart ou qualquer um dos outros pilotos como refém num ataque forjado, e depois ajudar o homem secretamente a 'escapar da prisão' em troca de um lugar no avião para si mesmo — caso isso fosse necessário. Ele sentiu uma contração nas entranhas. E se o komiteh descobrir que minha mulher e minha família já estão em Bagdá, e não em Abadan, onde a minha pobre mãe está 'morrendo'? Os demônios que povoavam os seus pesadelos estavam sempre zombando dele, gritando a verdade: "Que mãe? A sua mãe está morta há sete ou oito anos! Você está planejando fugir, você é culpado de crimes contra Deus e o Irã e a revolução..."

       — Coronel — Hussein disse com uma voz aterradora —, se os rádios foram sabotados, isto significa que o capitão Lochart não está procurando os outros helicópteros, mas sim que fugiu junto com o outro, e que McIver mentiu ao dizer que tinha mandado os 212 para cá, não?

       — Sim... sim, Excelência, e...

       — E então isto também significa que eles escaparam ilegalmente e levaram dois helicópteros daqui ilegalmente, sem falar nos quatro de Bandar Delam, não?

       — Sim, sim, isto também é verdade.

       — Seja como Deus quiser, mas o senhor é responsável.

       — Mas Excelência, o senhor deve compreender que seria impossível prever uma operação secreta, ilegal, como... — Ele compreendeu o olhar do outro e calou-se.

       — Então o senhor foi enganado?

       — Os estrangeiros são uns filhos da mãe que mentem e fingem o tempo todo... — Changiz parou, tendo uma idéia. Ele agarrou o telefone e praguejou ao ver que este não estava funcionando. Num tom de voz diferente, ele disse rapidamente: — Excelência, um 212 não pode atravessar o golfo sem ser reabastecido, não é possível, e McIver vai ter que reabastecer o seu aparelho também para conseguir chegar até Teerã com Kia. Ele vai ter que reabastecer também, então nós poderemos apanhá-lo. — Para Borgali ele disse: — Depressa, volte para a torre e descubra onde o 206 que partiu para Teerã com o ministro Kia vai pousar para reabastecer. Diga ao oficial de serviço para alertar a base e prender o piloto, deter o helicóptero e mandar o ministro para Teerã... por terra. — Ele olhou para Hussein. — O senhor concorda, Excelência? — Hussein fez um sinal afirmativo com a cabeça. — Ótimo. Vá depressa!

       O cabo saiu correndo pelas escadas.

       Estava frio na torre e ventando. Uma pancada de chuva sacudiu as janelas por um instante e depois passou. Hussein não prestou atenção, com os olhos fixos em Changiz.

       — Nós vamos agarrar aquele cão, Excelência. O ministro Kia vai nos agradecer.

       Hussein não sorriu. Ele já tinha providenciado um komiteh de recepção para Kia no aeroporto de Teerã, e se Kia não conseguisse explicar o seu estranho comportamento, dentro em breve o governo estaria livre de um ministro corrupto.

       — Talvez o ministro Kia faça parte da conspiração e esteja fugindo do Irã com McIver, o senhor já pensou nisso, coronel?

       O coronel ficou boquiaberto.

       — O ministro Kia, o senhor acha mesmo?

       — O que o senhor acha?

       — Por Deus, é... é possível, se o senhor acha que sim... — Changiz respondeu cautelosamente, tentando manter-se bem alerta. — Eu nunca tinha visto aquele homem na minha vida. O senhor deve saber melhor do que eu, Excelência, a respeito de Kia, o senhor o interrogou diante do komiteh. — E o isentou de culpa, pensou satisfeito. — Quando agarrarmos McIver, poderemos usá-lo como refém para trazer os outros de volta, nós vamos apanhá-lo, Excelência...

       Hussein viu o medo no rosto do coronel e imaginou que culpas o homem carregaria, será que o coronel também fazia parte do plano de fuga que tinha se tornado tão óbvio para ele desde que havia interrogado Starke na véspera e McIver naquela manhã?

       E se tinha se tornado tão óbvio — ele imaginou um superior religioso perguntando — por que você o manteve em segredo e não o evitou?

       — Por causa de Starke, Eminência. Porque eu acredito sinceramente que aquele homem, embora seja um infiel, é um instrumento de Deus e um protegido de Deus. Por três vezes ele evitou que as forças do mal me concedessem a paz do paraíso. Por causa dele, os meus olhos se abriram para a vontade de Deus, eu compreendi que não devo mais buscar o martírio, e sim permanecer na terra para me tornar um flagelo incansável para os inimigos de Deus e do imã, para os inimigos do Islã e os seus inimigos.

       — Mas e os outros? Por que permitiu que eles escapassem?

       — O Islã não precisa nem de estrangeiros nem de seus helicópteros. Se o Irã precisar de helicópteros, há mais de mil em Isfahan.

       Hussein não tinha a menor dúvida de que estava certo, tão certo quanto este coronel vira-casaca pró-xá, pró-americanos, estava errado.

       — Então, coronel, e quanto aos dois 212, o senhor vai pegá-los também? Como?

       Changiz foi até o mapa da parede, perfeitamente consciente de que, embora todos dois tivessem sido enganados, ele era o comandante e o responsável caso o mulá quisesse responsabilizá-lo. Mas não se esqueça de que este é o mulá que fez um acordo com o coronel Peshadi na noite do primeiro ataque à base, este é o mesmo homem que fez amizade com o americano Starke e aquele maníaco de Abadan, Zataki. E eu não sou um defensor do imã e da revolução? Eu não entreguei a base aos soldados de Deus?

       Insha'Allah. Concentre-se nos estrangeiros. Se você conseguir agarrá-los, nem que seja só um, você estará a salvo deste mulá e dos seus Faixas Verdes.

       Havia várias rotas de vôo marcadas no mapa, de Kowiss para diversos campos de petróleo e plataformas situadas no golfo.

       — Aquele cão lá do escritório falou em peças que estavam sendo transportadas para Abu Sal — ele murmurou. Agora, se eu fosse eles, onde desceria para reabastecer? Ele apontou para as plataformas. — Numa dessas, Excelência — ele disse, cheio de excitação. — Era aqui que eu desceria.

       — As plataformas têm reservas de combustível?

       — Oh, sim, para o caso de uma emergência.

       — E como vai agarrá-los?

       — Com os caças.

      

       NO LOCAL DE ENCONTRO: 14:07H. Os dois 212 estavam parados na praia deserta, sob uma chuva fina. Freddy Ayre e Lochart estavam sentados, desanimados, na porta de uma das cabines, os dois mecânicos e Wazari na outra, todos cansados de carregar os pesados tambores de duzentos litros de combustível e de se revesar em bombear gasolina para dentro dos tanques. Nunca dois 212 haviam sido reabastecidos com tanta rapidez. Freddy Ayre tinha chegado lá por volta das onze e meia, Lochart um pouco depois do meio-dia, eles tinham levado meia hora para reabastecer e estavam esperando desde então.

       — Vamos dar mais meia hora — disse Lochart.

       — Cristo, você está agindo como se tivéssemos todo o tempo do mundo.

       — É uma burrice ficarmos os dois esperando, é mais seguro você ir na frente. Quantas vezes eu vou ter que dizer isto? Leve todo mundo, eu fico esperando.

       — Quando o Mac chegar, nós todos podemos...

       — Droga, leve os mecânicos e Wazari, eu fico esperando. McIver diria isto mesmo se estivesse aqui e vocês estivessem esperando por mim.

       — Pelo amor de Deus, pare de bancar o herói e dê o fora!

       — Não, sinto muito, mas ou partimos juntos ou eu vou esperar até ele chegar.

       Lochart deu de ombros, com o humor tão sombrio quanto o dia. Assim que chegou, ele tinha calculado aproximadamente o esquema de McIver:

       — Freddy, Mac saiu do sistema de Kowiss às 11:20h. Digamos que ele continuasse voando por meia hora, e depois levasse mais meia hora, no máximo, para fingir uma emergência, aterrissar e se livrar de Kia, e mais uma hora para chegar aqui. Isto significa que deverá chegar, no mais tardar, às 13:30h. O meu palpite é que ele estará aqui entre 13:00 e 13:15h.

        Mas já passava das duas e nem sinal de Mac ainda e talvez ele não chegasse nunca — deve ter havido algum imprevisto. Ele estudou as nuvens, procurando respostas no tempo e redefinindo os seus planos. Os tambores vazios estavam arrumados numa pilha e ainda havia cinco cheios. Os tambores tinham sido levados para lá durante as viagens de rotina para as plataformas e escondidos sob lona, camuflados com areia e algas. Lá no meio do mar, quase invisível, havia uma plataforma, bem acima do nível do mar, empoleirada sobre estacas.

       Ele não tivera nenhum problema em chegar lá. Assim que estava no ar, Wazari tinha se arrastado até a cabine.

       — É melhor você ficar escondido até estarmos sobrevoando o golfo — Lochart tinha dito. Mas quando pousaram, Wazari ficou muito enjoado, então ele mudou de idéia e contou aos outros o que tinha acontecido. Agora Wazari já tinha se recuperado e fora aceito. Mas ainda era considerado suspeito.

       A praia fedia a peixe podre e algas. O vento, mantendo-se em cerca de trinta nós, sacudia as lâminas dos rotores, ainda adverso à rota de fuga planejada para o Kuwait. O teto tinha baixado, estava agora em cerca de setenta metros. Mas Lochart não estava pensando nisso. Sua mente estava cada vez mais voltada para Teerã e Xarazade, enquanto os seus ouvidos tentavam ouvir o barulho do 206 por sobre o ruído do vento e das ondas. Vamos, Mac, ele rezou. Vamos, não me decepcione. Vamos Mac, não me decepcione...

       Aí ele ouviu o barulho do helicóptero. Levou alguns segundos para se certificar e então deu um salto para fora da cabine, com a boca ligeiramente aberta para ouvir melhor e aumentar a sua capacidade de localização. Ayre deixou de sonhar acordado e ficou ao lado dele, ambos olhando para o céu coberto de nuvens, ouvindo o barulho cada vez mais alto do motõ.r, indo na direção do mar, depois ultrapassando-os e Lochart praguejou

       — Ele não nos viu!

       — VHF? — perguntou Ayre.

       — É perigoso demais... ainda não... ele vai tornar a passar, ele é bom demais para não fazer isto.

       Mais uma vez a espera, o ruído dos motores desaparecendo, depois tornando a aumentar. Mais uma vez o helicóptero passou e não os viu e começou a se afastar e mais uma vez tornou a voltar. Os motores roncavam cada vez mais altos, então ele saiu da neblina a um quilômetro da praia, localizou-os e começou a descer. Não havia dúvida de que era um deles, McIver estava pilotando e estava sozinho. Eles começaram a aplaudir.

      

       NA CABINE DE COMANDO DO 206: MacIver tinha tido muita dificuldade em encontrar o local de encontro, os charcos eram todos iguais, a costa também e as condições péssimas. Então ele se lembrou da plataforma inativa perto da costa, começou a procurá-la e, usando-a como marco, voou em direção à costa.

       Quando estava solidamente plantado no chão, ele murmurou.

       — Graças a Deus — e respirou, com o estômago doendo e desesperado de vontade de urinar, abriu a porta da cabine imediatamente e disse, sem responder a nenhuma pergunta: — Desculpem, mas tenho que mijar. Freddy, desligue-o para mim, sim? — Lochart, que estava mais perto, disse:

       — Deixe que eu faço isso, Mac.

       — Obrigado. — MacIver soltou o cinto, saltou e correu para a duna mais próxima. Quando pôde falar, ele olhou em volta, viu Ayre esperando por ele, os outros perto dos 212. — Os meus dentes de trás estavam flutuando há mais de uma hora.

       — Eu sei como é.

       McIver fechou o zíper e reparou em Wazari.

       — Que diabo ele está fazendo aqui?

       — Tom achou melhor trazê-lo, mais seguro do que deixá-lo lá e ele realmente ajudou. É melhor irmos andando, Mac. Nós já estamos reabastecidos. E quanto ao 206?

       — Vamos ter que deixá-lo aqui. — O aparelho não estava equipado com tanques para longas distâncias e levaria muito tempo para montar um sistema de reabastecimento durante o vôo. E de qualquer maneira, o vento contrário aumentaria o consumo de combustível e tornaria a viagem impossível. MacIver apontou para o mar. — Eu pensei em deixá-lo na plataforma na esperança de podermos voltar e apanhá-lo, mas isso é impossível. Não há espaço suficiente para pousar com ele e com um 212 ao mesmo tempo. É uma pena, mas não há outro jeito.

       — Nenhum problema com Kia?

       — Não. Ele deu um pouco de trabalho, e... — Ele se virou, espantando. Atrás deles, Lochart tinha acelerado o 206 e agora estava subindo e recuando. — Pelo amor de Deus, Tom... — ele gritou e correu em direção ao helicóptero, mas Lochart recuou mais depressa e subiu seis metros. — Tommmm!

       Lochart debruçou-se na janela.

       — Não espere por mim, Mac! — gritou.

       — Mas você está quase sem combustível...

       — Há o bastante por enquanto. Eu vou esperar vocês partirem e então volto para reabastecer. Vejo-o em Al Shargaz.

       — Que diabo você está fazendo? — disse Ayre, surpreso.

       — Xarazade — McIver disse, xingando a si mesmo por ter esquecido disto. — Ele devia ter mais de cinqüenta planos prontos para levar o 206, de uma forma ou de outra. — Então ele pôs as mãos em volta da boca e gritou: — Tom, você vai arruinar a operação turbilhão, pelo amor de Deus! Você tem que ir conosco!

       — Eles nunca me tomarão como refém, Mac! Nunca! O risco é meu, não seu... a decisão é minha, por Deus. Agora dêem o fora!

       McIver pensou por um segundo, depois berrou:

       — Desça agora, nós o ajudaremos a reabastecer, isto vai lhe poupar trabalho. — Ele viu Lochart balançar a cabeça negativamente e apontar para os 212.

       — Eu vou voltar para apanhar Xarazade — gritou Lochart. — Não tentem me impedir nem me dissuadir... é o meu pescoço, não o de vocês... Feliz aterrissagem. — Ele acenou e se afastou, pousando de frente para eles, mantendo os motores ligados, pronto para uma decolagem rápida.

       Não há meio de impedi-lo — murmurou McIver, furioso consigo mesmo por n$o ter se prevenido.

       — Nós.nós poderíamos esperar até o combustível dele acabar disse Ayre.

       — Tom é esperto demais para cair numa armadilha dessas. — Quase em pânico, McIver olhou para o relógio, com a cabeça confusa. — Malditos idiotas, eu e Tom. — Ele viu todos os outros olhando para ele

       — O que vamos fazer, Mac? — perguntou Ayre.

       McIver forçou-se a raciocinar com clareza: Você é o líder. Decida. Nós estamos horrivelmente atrasados. Tom tomou esta decisão depois de tudo o que eu disse a ele. É um direito dele. Sinto muito, mas isto significa que ele está por conta dele. Agora pense nos outros. Erikki tem que estar bem. Rudi e Scragger e os rapazes estão a salvo, vamos presumir que estejam, então entre no 212 e comece a segunda parte da viagem.

       Ele teve vontade de gemer alto, a idéia de ter que conduzir um 212 até o Kuwait voando baixo por mais uma ou duas horas quase acabou com ele.

       — Maldição — resmungou. Os outros ainda estavam olhando para ele. E esperando. — Tom vai voltar para apanhar a esposa dele, vamos deixá-lo sozinho.

       — Mas se ele for apanhado, isto não arruinará a operação? — Ayre perguntou.

       — Não. Tom está por conta própria. Você ouviu o que ele disse. Nós vamos partir para o Kuwait conforme o combinado. Todo mundo para o 212 de Ayre. Eu levo o de Lochart. Vamos embora e voaremos baixo e perto um do outro. Silêncio de rádio até estarmos bem longe da fronteira. — McIver dirigiu-se para o outro 212. Os outros se entreolharam, inquietos. Todos ele tinham notado a palidez dele e todos sabiam que ele não tinha uma licença médica.

       Kyle, o mecânico baixinho, foi atrás dele.

       — Mac, não há sentido em voar sozinho, eu vou com você.

       — Não, obrigado. Todo mundo na máquina de Freddy! Andem, vamos logo!

       — Mac, eu vou falar com Tom — disse Ayre. — Ele deve estar louco, eu vou convencê-lo a ir para o Kuw...

       — Você não vai fazer isso. Se fosse com Genny, eu estaria do mesmo jeito. Todos a bordo! — Neste momento, o som de dois caças a jato a baixa altitude, ultrapassando a barreira do som, encheu a praia. E deixaram um enorme silêncio atrás deles.

       — Jesus — Wazari estremeceu. — Capitão, se o senhor não se importar, eu posso voar com o senhor?

       — Não, todo mundo com Freddy, eu prefiro voar sozinho.

       — A sua falta de licença não faz nenhuma diferença para mim. — Wazari deu de ombros. — Insha 'Allah! Eu fico tomando conta do rádio. — E fez um sinal em direção ao céu. — Aqueles filhos da mãe não falam inglês. — Ele entrou no 212 e se sentou no assento da esquerda.

       — É uma boa idéia, Mac — disse Ayre.

       — Está bem. Nós vamos voar baixo e juntos como planejamos. Freddy, se um de nós tiver problemas, o outro continua — Vendo o olhar de Ayre, ele acrescentou: — Qualquer tipo de problema. — Lançando um último olhar a Lochart, McIver acenou e subiu a bordo. Ele estava muito contente por não estar sozinho. — Obrigado — disse a Wazari. — Eu não sei o que vai acontecer no Kuwait, sargento, mas ajudarei no que puder. — Ele fechou o cinto e ligou o motor Número Um.

       — Claro. Obrigado. Droga, eu não tenho nada a perder; minha cabeça está explodindo, eu já tomei todas as aspirinas que havia... O que houve com Kia?

       McIver ajustou o volume dos seus fones, ligou o motor Número Dois, verificando os tanques de combustível e os instrumentos enquanto falava.

       — Eu tive que fazer o pouso de emergência um pouco mais tarde do que tinha planejado. Pousei cerca de um quilômetro de uma aldeia, mas correu tudo bem, bem demais, o cretino desmaiou e então eu não consegui retirá-lo da cabine. Ele ficou preso no assento e os cintos dos ombros se embaralharam e eu não pude soltá-los. Eu não tinha nem uma faca para cortar as alças. Tentei de todas as maneiras, mas o fecho tinha enguiçado, então desisti e esperei que ele voltasse a si. Enquanto esperava, retirei a bagagem dele e coloquei-a perto da estrada, num lugar onde ele pudesse encontrá-la. Quando ele voltou a si, eu tive um trabalhão para convencê-lo a sair da cabine. — Os dedos experientes de McIver iam de um botão a outro. — No fim, eu fingi que tínhamos um incêndio a bordo e saltei, deixando-o lá dentro. Isto resolveu o problema, ele deu um jeito de abrir o cinto e saiu correndo. Eu tinha deixado os motores ligados, foi muito perigoso, mas eu tive que arriscar, e assim que ele saiu, eu voltei correndo e fui embora. Bati numa ou duas pedras, mas não tive maiores problemas...

       O seu coração estava disparado, a garganta seca com aquela partida frenética, Kia agarrando-se à maçaneta da porta, aos berros, pendurado, com um dos pés no esqui, McIver com medo de ser obrigado a pousar novamente. Felizmente, Kia perdeu a coragem e pulou para o chão e então McIver foi embora. Ele deu uma volta para ver se Kia estava bem. A última coisa que viu foi Kia agitando os punhos enfurecido. Então ele tinha se dirigido para a costa, colado às copas das árvores e às rochas. E embora estivesse a salvo, seu coração continuou disparado. Ondas de náusea e calor começaram a percorrer seu corpo.

       E só a tensão das últimas semanas, ele tinha dito a si mesmo. A tensão e o esforço para tirar aquele idiota da cabine, somados à preocupação com o Turbilhão e ao medo que senti ao ser interrogado por aquele mulá.

       Depois de deixar Kia, ele tinha continuado a voar por algum tempo. Dificuldade de concentração. A dor aumentando. Os controles pouco familiares. Um espasmo de náusea e ele quase perdeu o controle, então resolveu pousar e descansar um pouco. Ele ainda estava no sopé das montanhas, coberto de rochas, árvores e neve, o teto baixo e não tão carregado. Tonto de náusea, ele escolheu o primeiro platô e desceu. O pouso não foi bom e isso o assustou mais ainda. Ali perto havia um riacho, parcialmente gelado, com a água espumando ao descer pelas pedras. Ele foi atraído pela água. Com muita dor, desligou os motores, foi tropeçando até lá, deitou-se na neve e bebeu bastante água. O choque do frio o fez vomitar e quando o espasmo passou, ele limpou a boca e tornou a beber. Isto e o ar frio o fizeram sentir-se melhor. Um punhado de neve esfregado na nuca e nas têmporas fez com que ele se sentisse ainda melhor. Aos poucos a dor diminuiu e a dormência no braço esquerdo passou. Ao sentir-se melhor, ele se levantou e, cambaleando um pouco, voltou para a cabine e atirou-se no assento.

       A sua cabine estava quente, agradável e familiar — aconchegante. Automaticamente, ele prendeu o cinto de segurança. O silêncio encheu os seus ouvidos e a sua cabeça. Só o barulho do vento e da água, nem motores, nem tráfego, nem estática, nada além da suavidade da água e do vento. Paz. Suas pálpebras estavam pesadas. Ele fechou os olhos e dormiu.

       Ele dormiu profundamente por cerca de meia hora. Quando acordou, sentiu-se revigorado — nem dor, nem desconforto, só um pouco tonto, como se tivesse sonhado com a dor. Ele se espreguiçou. Então ouviu um barulhinho de metal. Ele olhou em volta. Montado num pequeno pônei das montanhas, observando-o silenciosamente, havia um rapaz, um nativo. Ele trazia um rifle pendurado na sela e outro nas costas, junto com um cinturão de balas.

       Os dois ficaram olhando um para o outro, então o rapaz sorriu e o platô pareceu iluminar-se.

       — Salaam, aga.

       — Salaam, Aga. — MacIver também sorriu, surpreso por não sentir medo algum, a beleza selvagem do rapaz deixando-o à vontade. — Loftan befarma'idshoma ki hastid? — Ele usou uma das poucas frases que sabia: Posso perguntar quem é você?

       — Aga Mohammed Rud Kahani — e então algumas palavras que McIver não entendeu e ele tornou a sorrir e disse: — Kash kai.

       — Ah, kash'kai. — McIver balançou a cabeça, compreendendo que o rapaz pertencia a uma das tribos nômades que se espalhavam pelas montanhas Zagros. Ele apontou para si mesmo. — Aga McIver — e disse outra frase: Mota assefan, man zaban-e shoma ra khoob nami danan. — Desculpe, eu não falo a sua língua.

       — Insha'Allah. América?

       — Inglês. — Ele estava observando a si mesmo e ao outro homem. Helicóptero e cavalo, piloto e nativo, um abismo entre eles, mas nenhuma ameaça de um para o outro. — Sinto muito, mas preciso ir embora — ele disse em inglês, então fez um gesto indicando voar. — Khoda haefez, até logo, aga Mohammed Kash'kai.

       O rapaz balançou a cabeça e ergueu a mão numa despedida.

       — Khoda haefez, Agha. — Depois afastou-se com o seu cavalo e ficou lá, observando-o. Quando os motores estavam com toda a força, McIver acenou e partiu. Ele foi pensando no rapaz durante toda a viagem. O rapaz não tinha nenhum motivo para não atirar em mim. Nem para atirar. Será que eu sonhei com ele e com a dor? Não, eu não sonhei com a dor. Será que eu tive um ataque cardíaco?

       Agora, pronto para partir para o Kuwait, ele encarou a questão pela primeira vez. A inquietação voltou e ele olhou para Wazari, que estava olhando desconsoladamente para o mar, pela janela lateral. Até que ponto eu represento um perigo agora? Ele perguntou a si mesmo. Se eu tive um ataque, mesmo que fraco, posso ter outro, então será que estou arriscando a vida dele e a minha? Acho que não. Eu só tenho a pressão alta e isto está sob controle, eu tomo duas pílulas por dia e não há problema. Eu não posso largar um 212 só porque Tom ficou maluco. Eu estou cansado mas estou bem, e o Kuwait fica apenas a duas horas de vôo. Eu estaria mais satisfeito se não tivesse que pilotar. Meu Deus, eu nunca imaginei que um dia fosse sentir isso. O velho Scragger pode continuar pilotando, mas eu nunca mais vou querer saber disso.

       Ele estava prestando atenção ao barulho dos motores. Estão prontos para decolar agora, não há necessidade de checar os instrumentos. Através dos pingos de chuva do pára-brisa ele viu Ayre erguer o polegar, também pronto. Lá na praia, ele podia ver Lochart no 206. Pobre Tom. Aposto que está torcendo para nós irmos logo, louco para reabastecer e correr para o norte, atrás de um outro destino. Espero que ele consiga, pelo menos vai ter um vento favorável.

       — Posso ligar o VHF? — perguntou Wazari, distraindo-o. — Vou sintonizá-lo nas freqüências militares.

       — Ótimo. — McIver sorriu para Wazari, satisfeito com a companhia dele.

       Ouviu o barulho de estática nos fones, depois vozes falando em farsi. Wazari escutou um pouco, depois falou com voz rouca:

       — São os caças falando com Kowiss. Um deles disse: "Em nome de Deus, como vamos encontrar dois helicópteros nesta poça de merda?"

       — Eles não vão encontrar se depender de mim. — McIver tentou mostrar-se confiante. Ele atraiu a atenção de Ayre, apontou para cima, indicando os caças e fez um sinal de quem corta a garganta. Então apontou para o golfo mais uma vez e ergueu o polegar. Deu uma olhada no relógio: 14:21h. — Aqui vamos nós, sargento — ele disse e acelerou ao máximo — próxima parada o Kuwait. Eta 16:40h aproximadamente.

      

       NO AEROPORTO DO KUWAIT: 14:56H. Genny e Charlie Pettikin estavam sentados no restaurante ao ar livre do último andar do terminal recém-inaugurado. Estava um dia lindo, ensolarado, e lá eles estavam abrigados do vento. As toalhas e os guarda-sóis eram de um amarelo brilhante, todo mundo comia e bebia com prazer. Exceto eles. Genny mal havia tocado na sua salada, Pettikin tinha só beliscado o seu arroz com curry.

       — Charlie — Genny disse subitamente — acho que vou tomar um martíni de vodca afinal.

       — Boa idéia — Pettikin chamou o garçom e fez o pedido. Ele gostaria de acompanhá-la, mas estava esperando substituir ou se revesar com Lochart e Ayre no próximo trecho até a ilha Jellet, pelo menos mais uma parada para reabastecer, talvez duas, antes de chegar a Al Shargaz. Maldito vento. — Não vai demorar muito agora, Genny.

       Oh, pelo amor de Deus, quantas vezes você vai repetir isto, Genny teve vontade de gritar, doente de tanto esperar. Estoicamente, ela continuou a manter uma aparência de tranqüilidade.

       — É, agora falta pouco, Charlie. — Eles olharam na direção do mar. A visibilidade estava ruim, o horizonte coberto de névoa, mas eles seriam informados assim que os helicópteros entrassem no radar do Kuwait. O representante da Imperial Air estava esperando na torre.

       Como medir o tempo? Ela perguntou a si mesma, tentando enxergar através da neblina, com toda a sua energia se derramando, buscando Duncan, enviando preces e esperança e forças que ele poderia estar precisando. A informação que Gavallan tinha dado naquela manhã não havia ajudado:

       — Por que motivo ele está levando Kia, Andy? De volta para Teerã? O que significa isto?

       — Eu não sei, Genny. Estou repetindo o que ele disse. A nossa interpretação é que Freddy foi enviado primeiro para o ponto de encontro. Mac decolou com Kia. Ou ele vai levá-lo para o ponto de encontro ou vai deixá-lo no caminho. Tom vai segurar as pontas por algum tempo, para dar aos outros tempo para se afastar, depois ele vai para o ponto de encontro. Nós recebemos o primeiro chamado de Mac às 10:42h. Digamos que ele e Freddy tenham decolado às 11 horas. Vamos dar-lhe mais uma hora para chegar ao ponto de encontro e reabastecer, vamos acrescentar duas horas e meia de vôo e eles devem chegar ao Kuwait por volta das 14:30h. Dependendo de quanto tempo tiverem que esperar no ponto de encontro, podem chegar a qualquer hora a partir das 14:30h.

       Ela viu o garçom trazendo o seu drinque. Na bandeja havia um telefone sem fio.

       — Telefone para o senhor, capitão Pettikin — disse o garçom, enquanto colocava o copo na frente dela.

       Pettikin levantou a antena e atendeu.

       — Alô? Oh, alô, Andy. Ela observou o rosto dele.

       — Não, não, ainda não... Oh?... — Ele ouviu atentamente durante algum tempo, respondendo de vez em quando, sem demonstrar nada, e ela imaginou o que Gavallan estaria dizendo que ela não devia ouvir. — Sim, claro... sim, está tudo sob controle... Sim, sim, ela está aqui, está bem, um momento. — Ele passou o telefone para ela. — Quer falar com você.

       — Alô, Andy, o que há de novo?

       — Estou só dando notícias, Genny. Não se preocupe com Mac e os outros, não se pode dizer quanto tempo eles tiveram que esperar no ponto de encontro.

       — Eu estou bem, Andy. Não se preocupe comigo. E quanto aos outros?

       — Rudi, Pop Kelly e Sandor estão a caminho daqui. Eles reabasteceram em Abu Dhabi e nós estamos em contato com eles. John Hogg é o nosso retransmissor. Eles estão sendo esperados dentro de vinte minutos. Scrag está bem, Ed e Willi sem problemas, Duke está dormindo e Manuela está aqui. Ela quer falar com você. — Ela ouviu a voz de Manuela.

       — Oi, querida, como vai? E não me diga que vai muito bem

       Genny sorriu.

       — Muito bem. Duke está bem?

       — Está dormindo como um bebê, não que os bebês durmam quietinhos o tempo todo. Só queria que você soubesse que nós também estamos ansiosos. Vou passar para Andy.

       Uma pausa e então:

       — Alô, Genny, Johnny Hogg vai entrar na sua área em pouco tempo e também vai ficar na escuta, Nós manteremos contato com você. Posso falar outra vez com Charlie, por favor?

       — É claro, mas e quanto a Marc Dubois e Fowler? Uma pausa.

       — Nada ainda. Nós estamos com esperança de que eles tenham sido resgatados. Rudi, Sandor e Pop refizeram parte do caminho e procuraram o mais que puderam. Não havia nenhum sinal de destroços e há um bocado de navios nessas águas, além de plataformas. Nós achamos que eles devem estar bem.

       — Agora conte-me o que Charlie deve saber e eu não. — Ela franziu a testa com o silêncio do outro lado da linha, depois ouviu Gavallan suspirar.

       — Você é esperta demais para mim, Genny. Está bem, eu perguntei a Charlie se tinha chegado aí algum telex do Irã, como o que recebemos aqui em Dubai e em Bahrain. Eu estou tentando puxar todas as cordas possíveis através de Newbury e da nossa embaixada no Kuwait no caso de alguma complicação, embora Newbury diga que eu não deva esperar muito, uma vez que o Kuwait está perto demais do Irã, não quer desagradar a Khomeini e está apavorado que ele mande alguns fundamentalistas para cá para açular os xiitas do Kuwait. Eu disse a Charlie que estou tentando comunicar-me com os pais de Ross no Nepal e com seu regimento. Isto foi tudo. — E numa voz mais gentil: — Eu não queria preocupá-la mais do que o necessário. Certo?

       — Sim, obrigada. Sim, eu... eu estou bem. Obrigada, Andy. — Ela passou o fone para Charlie e olhou para o seu copo. Haviam-se formado gotículas na superfície. Algumas estavam escorrendo. Como as lágrimas no meu rosto, ela pensou e levantou-se. — Volto num segundo.

       Pettikin viu-a afastar-se cheio de tristeza. Ele escutou as instruções finais de Andy.

       — Sim, sim, é claro — disse. — Não se preocupe, Andy, eu me encarrego de... eu me encarrego de Ross, e ligarei assim que eles surgirem no radar. É terrível não saber de Dubois e Fowler, vamos ter pensamentos positivos e esperança. Quanto aos outros, é formidável. Até logo.

       O fato de ter encontrado Ross o havia abalado. Assim que recebeu o telefonema de Gavallan naquela manhã, ele tinha corrido para o hospital. Por ser sexta-feira, a equipe estava reduzida ao mínimo, havia apenas um recepcionista de plantão e só falava árabe. O homem sorriu e deu de ombros e disse:

       — Bokrah, amanhã. Mas Pettikin tinha insistido e no fim o homem tinha entendido o que ele queria e tinha dado um telefonema. No fim de algum tempo um enfermeiro chegou e fez um sinal para ele. Eles atravéssaram vários corredores e atravessaram uma porta e lá estava Ross nu numa mesa.

       Foi o impacto, a nudez total, a aparência de profanação e a inexistência de um mínimo de dignidade o que tinha desesperado Pettikin, não a morte em si. Este homem que tinha sido bom em vida fora deixado ali como se fosse uma carcaça. Em outra mesa havia lençóis. Ele apanhou um e o cobriu e isto o fez sentir-se melhor.

       Pettikin tinha levado mais de uma hora para encontrar a enfermaria onde Ross estivera, para localizar uma enfermeira que falasse inglês e para achar o médico.

       — Sinto tanto, sinto tanto, senhor — o médico, um libanês, tinha dito num inglês hesitante. — O rapaz chegou ontem em coma. Ele estava com uma fratura de crânio e nós suspeitamos de lesão cerebral. Disseram-nos que ele foi atingido por uma bomba terrorista. Os dois tímpanos estavam rompidos e ele tinha alguns cortes e hematomas de menor importância. Nós o radiografamos, evidentemente, mas além de enfaixar-lhe a cabeça havia muito pouco a fazer a não ser esperar. Ele não tinha nenhum ferimento interno nem hemorragia. Ele morreu esta manhã ao nascer do dia. O alvorecer hoje foi bonito, não foi? Eu assinei o atestado de óbito, o senhor gostaria de ter uma cópia? Nós entregamos uma para a embaixada inglesa, junto com os pertences dele.

       — Ele... ele recobrou a consciência antes de morrer?

       — Eu não sei. Ele estava sob tratamento intensivo e a sua enfermeira... deixe-me ver... O médico consultou as suas listas e encontrou o nome dela. — Sivin Tahollah. Ah, sim. Nós a designamos para ele porque ele era inglês.

       Ela era uma mulher idosa, fazia parte dos destroços do Oriente Médio, sem antepassados, parte de muitas nações. O seu rosto era feio e marcado de varíola, mas sua voz era gentil e tranqüilizadora, suas mãos cálidas.

       — Ele não recobrou a consciência, Effendi. — Ela disse em inglês — não realmente.

       — Ele disse alguma coisa em especial, alguma que a senhora pudesse entender, qualquer coisa?

       — Muita coisa que eu pude entender, mas sem sentido, Effendi. — Ela pensou por um momento. — A maioria do que ele disse foram divagações, o espírito temendo o que não deveria temer, desejando o que não podia ter. Ele murmurou "azadeh". Azadeh significa "nascido em liberdade" em farsi, embora também seja um nome comum de mulher. Às vezes ele murmurava um nome parecido com "Erri" ou "Ekki" ou "kookri", e depois outra vez "azadeh". O seu espírito ainda não estava em paz, embora ele não tenha chorado ou gritado como alguns ao se aproximar do limiar.

       — Houve mais alguma coisa?, qualquer coisa? Ela brincou com o relógio que usava na lapela.

       — De vez em quando seus pulsos pareciam incomodá-lo e quando eu os esfregava ele ficava calmo de novo. Durante a noite ele falou numa língua que eu nunca tinha ouvido antes. Eu falo inglês, um pouco de francês e muitos dialetos árabes, muitos. Mas esta língua eu nunca tinha ouvido antes. Ele falou de uma maneira melodiosa, misturada com divagações e

       "azadeh", e às vezes palavras como... — Ela buscou na memória. — Como "regimento" e "edelweiss" e "highlands" ou "high land", e algumas vezes, ah, sim, palavras como "gueng" e "tens'ng", às vezes um nome como "Roses" ou "Rose Mountain", talvez não fosse um nome, mas um lugar mas parecia entristecê-lo. — Seus olhos velhos eram remelentos. — Eu já vi a morte muitas vezes, Effendi, muitas, sempre diferente e sempre igual. Mas a sua morte foi tranqüila e ele passou para o outro lado sem sofrimento. No último momento ele deu um grande suspiro. Eu acho que ele foi para o paraíso, se é que os cristãos vão para o paraíso, e encontrou a sua Azadeh...

      

       TABRIZ — NO PALÁCIO DO KHAN: 15:40H. Azadeh caminhava vagarosamente pelo corredor em direção ao Salão, onde ia encontrar-se com o irmão, suas costas ainda a incomodavam por causa da explosão da granada na véspera. Deus do Céu, foi apenas ontem que os nativos e Erikki quase nos mataram?, pensou. Parece que foi há mil dias, e parece que já morreu há um ano-luz.

       Era uma outra existência. Não havia nada de bom nela, exceto mamãe e Erikki e Hakim, Erikki e... Johnny. Uma existência de ódios e matança, terror e loucura, a loucura de viver como párias, Hakim e eu, cercados de maldade, loucura a barreira de Qazvin e aquele horrível mujhadin de cara redonda imprensado contra o carro, esmagado como uma mosca, loucura o nosso resgate feito por Charlie e o homem da KGB — como era o nome dele, ah, sim, Rakoczy — Rakoczy quase matando a todos nós, loucura o que houve em Abu Mard e que mudou a minha vida para sempre, loucura o que houve na base, onde passamos tempos tão bons, Erikki e eu, mas onde Johnny matou tanta gente tão depressa e com tanta crueldade.

       Ela tinha contado tudo a Erikki na noite anterior — quase tudo.

       — Na base ele... ele se tornou um animal assassino. Eu não me lembro de muita coisa, só de alguns flashes, de ter-lhe entregue a granada na aldeia, de vê-lo correr em direção à base... granadas e metralhadoras, um dos homens usando uma kookri, depois Johnny levantando a sua cabeça decepada e urrando como um espírito mau... Agora eu sei que a kookri era de Gueng. Johnny me contou em Teerã.

       — Não diga mais nada agora. Deixe para amanhã, deixe o resto para amanhã, minha querida. Vá dormir, você está a salvo agora.

       — Não. Eu tenho medo de dormir, mesmo agora nos seus braços, mesmo com as ótimas novidades sobre Hakim, quando eu durmo eu volto à aldeia, volto a Abu Mard e o mulá está lá, aquele maldito, o calânder está lá, o açougueiro está lá com a sua faca de trinchar.

       — Não há mais aldeia nem mulá, eu estive lá. Não há mais nem calânder nem açougueiro. Ahmed contou-me a respeito da aldeia, parte do que houve lá.

       — Você foi à aldeia?

       — Sim, esta tarde, quando você estava descansando. Eu peguei um carro e fui até lá. Só há destroços e cinzas. Ainda bem — Erikki tinha dito com ódio.

       No corredor, Azadeh parou um momento e se segurou na parede até passar a crise de tremedeira. Tanta morte, matança e horror. Ontem, quando ela tinha chegado na escada no palácio e vira Erikki na cabine, com o sangue escorrendo pelo rosto e pingando da manga, com Ahmed encolhido ao seu lado, ela quase morrera e depois, ao vê-lo saltar e caminhar ereto para ela e levantá-la nos braços, ela revivera, pondo para fora todos os seus temores junto com as lágrimas.

       — Oh, Erikki, oh, Erikki, eu tive tanto medo, tanto...

       Ele a carregara para o salão e o médico estava lá com Hakim, Robert Armstrong e o coronel Fazir. Uma bala arrancara parte da orelha esquerda de Erikki, outra passara de raspão pelo seu braço. O médico cauterizara as feridas e fizera um curativo nelas, aplicando-lhe soro antitetânico e penicilina, com mais medo de infecção do que da perda de sangue.

       — Insha'Allah, mas não há muito mais que eu possa fazer, capitão, o senhor é forte, o seu pulso está bom, um cirurgião plástico pode melhorar a aparência da sua orelha, a sua audição não foi afetada, graças a Deus! Tome cuidado apenas com a infecção...

       — O que aconteceu, Erikki? — tinha perguntado Hakim.

       — Eu voei para o norte, em direção às montanhas e Ahmed foi descuidado. Não foi culpa dele, ele ficou enjoado, e antes que nos déssemos conta do que estava acontecendo, Bayazid encostou um revólver na cabeça dele, um outro nativo encostou um na minha e Bayazid disse:

       — Voe até a aldeia, depois você pode partir.

       — Você fez um juramento sagrado de que não iria fazer-me nenhum mal! — eu disse. *

       — Eu jurei que não lhe faria nenhum mal e não vou fazer, mas o juramento foi meu, não dos meus homens — disse Bayazid, e o homem que estava com a arma encostada na minha cabeça riu e gritou:

       — Obedeça ao nosso xeque ou, por Deus, você vai sentir tanta dor que vai implorar pela morte.

       — Eu devia ter pensado nisso — disse Hakim. — Devia ter feito todos eles jurarem. Eu devia ter pensado nisso.

     — Não teria feito nenhuma diferença. De qualquer maneira, a culpa foi minha; eu os trouxe aqui e quase estraguei tudo. Não posso dizer-lhe o quanto estou arrependido, mas era a única maneira de voltar e eu pensei que fosse encontrar Abdullah Khan, nunca imaginei que aquele matyeryebyets do Bayazid fosse usar uma granada.

       — Nós não estamos feridos, graças a Deus, Azadeh e eu. Como você podia saber que Abdullah Khan estava morto, ou que metade do seu resgate já fora pago? Continue a contar o que aconteceu — tinha dito Hakim, e Azadeh notou algo de estranho na voz dele. Hakim mudou, ela pensou. Eu não consigo mais entender o que ele está pensando, como antes. Antes dele se tornar khan, khan de verdade, eu conseguia, mas agora não. Ele ainda é o meu irmão querido, mas um estranho. Tanta coisa mudou, e tão depressa. Eu mudei, Erikki também, meu Deus, e quanto! Johnny não mudou...

       No salão, Erikki prosseguira:

       — Continuar voando era a única maneira de tirá-los do palácio sem mais confusão nem matança. Se Bayazid não tivesse insistido, eu teria oferecido. Nenhuma outra maneira seria segura para você e Azadeh. Eu tinha que apostar no fato deles obedecerem ao juramento. Mas o que quer que acontecesse, era entre mim e eles, eu sabia disso e eles também, pois é claro que eu era o único que sabia quem eles eram e onde viviam e a vingança de um khan é uma coisa séria. O que quer que eu fizesse, deixa-los no meio do caminho ou ir até a aldeia, eles jamais me libertariam. Como poderiam?, era a aldeia ou eu e o único Deus deles votaria pela aldeia junto com eles, não importa o que eles tivessem combinado ou jurado.

       — Esta é uma questão que só Deus pode responder

       — Os meus deuses, os meus antigos deuses, não gostam de ser usados como desculpas e eles não gostam desses juramentos em seu nome. Eles desaprovam inteiramente isso, aliás, eles proíbem. — Azadeh percebeu a amargura e tocou nele com carinho. Erikki segurou a mão dela. — Eu estou bem agora, Azadeh.

       — O que aconteceu depois, Erikki? — perguntou Hakim.

       — Eu disse a Bayazid que não havia gasolina suficiente e tentei raciocinar com ele, mas ele disse apenas: "Seja como Deus quiser", enfiou a arma no ombro de Ahmed e puxou o gatilho. "Vá para a aldeia! A próxima bala vai ser no estômago." Ahmed desmaiou e Bayazid debruçou-se por cima dele para apanhar a arma que tinha escorregado para o chão da cabine, e estava sob o assento, mas não conseguiu apanhá-la. Eu estava com o cinto de segurança fechado, Ahmed também, mas eles não, então eu comecei a dar piruetas no céu de uma maneira que nunca pensei que um helicóptero pudesse agüentar, depois deixei-o cair e fiz uma aterrissagem malfeita; pensei que tivesse quebrado um esqui, mas depois vi que só estava torto. Assim que paramos, eu usei a arma e a minha faca e matei os que estavam conscientes e hostis, desarmei os inconscientes e atirei-os para fora da cabine. Então, depois de algum tempo, eu voltei.

       — Assim, com esta facilidade — tinha comentado Armstrong — quatorze homens.

       — Cinco, e Bayazid. Os outros... — Azadeh estava com o braço no ombro dele e sentiu-o tremer. — Eu os deixei lá.

       — Onde? — perguntou Hashemi Fazir. — O senhor poderia descrever o lugar, capitão? — Erikki fizera-o com bastante precisão e o coronel tinha mandado alguns homens para procurá-lo.

       Erikki colocou a mão no bolso e tirou as jóias dadas como resgate, entregando-as para Hakim.

       — Agora eu gostaria de conversar com minha mulher, se você não se importar. Contarei o resto mais tarde. — E os dois tinham ido para os seus aposentos e ele não dissera mais nada, apenas a abraçara com carinho. A presença dele afastou sua angústia. Ele logo adormeceu. Ela mal dormiu, pois voltava sempre à aldeia, lutando para livrar-se das suas garras sufocantes. Ela tinha ficado quieta por algum tempo nos braços dele, depois fora sentar-se numa cadeira e cochilara, contente por estar com ele. Ele dormira profundamente até escurecer, depois acordara.

       — Primeiro um banho e uma barba e depois um pouco de vodca e então podemos conversar. Eu nunca a vi mais bonita nem a amei mais e sinto muito ter tido ciúmes. Não, Azadeh, não diga nada ainda. Depois eu vou querer saber de tudo.

       Ao amanhecer, ela terminara de contar a ele tudo o que havia para contar — tudo o que ela jamais contaria — e ele terminara a sua história. Ele não tinha escondido nada, nem o seu ciúme, nem o ódio mortal nem a alegria da batalha e as lágrimas que derramara na montanha, ao ver a selvageria dos ferimentos que causara nos nativos. Eles... eles me trataram direito na aldeia deles... e resgate é um costume antigo. Se não fosse pelo fato de Abdullah ter mandado matar o mensageiro deles... talvez isso fizesse diferença, talvez não. Mas isso não desculpa os assassinatos, eu me sinto um monstro, você se casou com um louco, Azadeh. Eu sou perigoso.

       — Não, não, não é, é claro que não.

       — Por todos os meus deuses, eu matei vinte homens ou mais em dez dias e, no entanto, eu nunca tinha matado antes, a não ser aqueles assassinos, aqueles homens que entraram aqui para matar o seu pai antes do nosso casamento. Fora do Irã eu nunca matei ninguém, nunca feri ninguém, eu tive muitas brigas com ou sem pukoh, mas nada sério. Nunca. Se este calânder ou a aldeia ainda existissem, eu o teria matado sem pestanejar. Eu posso entender o seu Johnny na base; agradeço a todos os deuses por terem-no trazido para junto de nós para proteger você e o amaldiçôo por ter destruído minha paz, embora eu saiba que estou em dívida eterna para com ele. Eu não posso lidar com as mortes e nem com ele. Não posso, ainda não.

       — Isto não tem importância agora, Erikki. Agora nós temos tempo. Agora estamos em segurança, você, eu, Hakim, nós estamos seguros, meu querido. Olhe para o amanhecer, não é lindo? Olhe, Erikki, é um novo dia agora, tão bonito, uma nova vida, Nós estamos seguros, Erikki.

      

       NO SALÃO: 15:45h. Hakim Khan estava sozinho exceto por Hashemi Fazir. Hashemi chegara inesperadamente há meia hora. Ele se desculpara pela intromissão, estendendo-lhe um telex.

       — Achei que o senhor deveria ver isto imediatamente, Alteza.

       O telex dizia: "URGENTE. Ao coronel Fazir, Serviço Secreto, Tabriz: prenda Erikki Yokkonen, marido de Sua Alteza, Azadeh Gorgon, por crimes contra o Estado, por cumplicidade em pirataria aérea, seqüestro e alta traição. Algeme-o e mande-o imediatamente para o meu QG aqui. Diretor, Savama, Teerã."

       Hakim dispensou os guardas.

       — Eu não entendo, coronel. Por favor explique.

       — Assim que eu o decodifiquei, telefonei para saber de mais detalhes, Alteza. Parece que no ano passado a S-G Helicópteros vendeu alguns aparelhos para a CHI e...

       — Eu não compreendo.

       — Desculpe, para a Companhia de Helicópteros Iraniana, uma companhia iraniana, onde trabalha atualmente o capitão Yokkonen. Entre esses havia, há, dez 212, incluindo o dele. Hoje, os outros nove, avaliados em cerca de nove milhões de dólares, foram roubados e retirados ilegalmente do Irã por pilotos da CHI. A Savama supõe que tenham sido levados para um dos Estados do golfo.

       Hakim disse friamente:

       — Mesmo que eles tenham feito isso, não tem nada a ver com Erikki. Ele não fez nada de errado.

       — Nós não sabemos ao certo. Alteza. A Savama acha que talvez ele soubesse da conspiração. Ela tem que ter sido planejada há algum tempo, porque há três bases envolvidas: Lengeh, Bandar Delam e Kowiss, bem como o escritório central deles em Teerã. A Savama está agitadíssima porque foram informados de que uma grande quantidade de peças valiosas foi retirada também. Não..

       — Informados por quem?

       — Pelo diretor executivo, Siamaki. E o que é ainda mais sério, todo o pessoal estrangeiro da CHI, pilotos, mecânicos e funcionários, também desapareceram. Todos eles, portanto trata-se de uma conspiração. Parece que ontem havia cerca de vinte deles em todo o Irã, na semana passada havia quarenta, hoje não há nenhum. Não há mais nenhum empregado estrangeiro da S-G, ou melhor, da CHI, em todo o Irã. Exceto o capitão Yokkonen.

       Imediatamente, Hakim percebeu a importância de Erikki e xingou a si mesmo por permitir que o seu rosto o denunciasse quando Hashemi disse jovialmente:

       — Ah, sim, é claro que o senhor percebe isso! A Savama me disse que mesmo que o capitão seja inocente de cumplicidade na conspiração, ele é o único trunfo de que dispomos para convencer os líderes e criminosos, Gavallan e McIver, e certamente o governo britânico que deve ter tomado parte na traição, a devolver os nossos helicópteros, as nossas peças, a pagar uma indenização bem grande e voltar para o Irã para ir ao julgamento por crimes contra o Islã.

       Hakim Khan mudou de posição nas almofadas, com a dor nas costas voltando e querendo gritar de raiva porque toda aquela dor e aquela angústia tinham sido desnecessárias, e agora, incapaz de ficar em pé sem sentir dor, ele poderia ficar lesado para sempre. Deixe isto para mais tarde, disse a si mesmo severamente, e trate de lidar com este filho de um cão perigoso que está sentado ali pacientemente como se fosse um vendedor de tapetes preciosos que tivesse apresentado os seus preços e estivesse esperando pelo início das negociações. Se eu quiser comprar.

       Para tirar Erikki desta armadilha, eu terei que dar a este cão um pishkesh pessoal, de valor para ele e não para a Savama, que Deus os amaldiçoe seja que nome tenham. O quê? no mínimo Petr Oleg Mzytryk. Eu poderia entregá-lo para Hashemi sem pestanejar, se ele vier e quando vier. Ele virá. Ontem Ahmed mandou chamá-lo em meu nome — como estará passando Ahmed, será que a operação correu bem? Espero que o idiota não morra; eu poderia usar um pouco mais os seus conhecimentos. Que burrice deixar-se apanhar desprevenido, que burrice! Sim, ele é um burro, mas este cão não é. Dando-lhe Mzytryk de presente, mais ajuda no Azerbeijão e com a promessa de uma amizade futura, eu posso tirar Erikki da armadilha. Mas por que o faria?

       Porque Azadeh o ama? Infelizmente ela é irmã do khan de todos os Gorgons e isto é um problema do khan não do irmão.

       Erikki é um risco para mim e para ela. Ele é um homem perigoso, com as mãos manchadas de sangue. Os nativos, sejam curdos ou não, vão buscar vingança, provavelmente. Ele sempre foi uma escolha errada embora tenha-lhe trazido muita alegria e ainda lhe proporcione felicidade — mas nenhum filho — e agora ele não pode ficar no Irã. Impossível. Não há jeito dele ficar. Eu não poderia comprar dois anos de proteção para ele e Azadeh jurou por Deus que ficaria aqui pelo menos dois anos — como meu pai foi esperto em me dar poder sobre ela. Se eu tirar Erikki da armadilha, ela não poderá ir com ele. Em dois anos muita coisa pode acontecer. Mas se ele não serve para ela, por que livrá-lo? Por que não deixá-los levar Erikki para se vingarem de uma traição? É traição roubar a nossa propriedade.

       — Esta é uma questão séria demais para responder imediatamente — disse.

       — Não há nada para o senhor responder, Alteza. Só para o capitão Yokkonen. Eu presumo que ele ainda está aqui.

       — O doutor ordenou que ele descansasse.

       — Talvez o senhor pudesse mandar chamá-lo, Alteza.

       — É claro. Mas um homem da sua importância e da sua cultura deve saber que há regras de honra e hospitalidade no Azerbeijão e na minha tribo. Ele é meu cunhado e até mesmo a Savama entende a honra familiar. — Os dois homens sabiam que esta era apenas uma abertura numa delicada negociação, delicada porque nenhum dos dois queria a maldição da Savama sobre suas cabeças, nenhum dos dois sabia ainda onde poderia chegar, nem mesmo se algum acordo particular era desejado. — Eu presumo que muitos saibam desta... desta traição?

       — Só eu aqui em Tabriz, Alteza, no momento — Hashemi disse imediatamente, esquecendo-se convenientemente de Armstrong, a quem ele havia sugerido este telex forjado naquela manhã:

       — Não há nenhuma maneira daquele filho de um cão do Hakim saber que não é verdadeiro, Robert. — Ele tinha dito, encantado com a sua esperteza. — Ele vai ter que negociar. Nós trocamos o finlandês por Mzytryk e isto não vai nos custar nada. Aquele finlandês sanguinário pode partir ao pôr-do-sol quando nós conseguirmos o que queremos. Até lá nós o manteremos preso.

       — Digamos que Hakim Khan não concorde, não queira ou não possa entregar Mzytryk?

       — Se ele não quiser negociar, nós agarramos Erikki de qualquer maneira. O Turbilhão vai vazar logo e eu posso usar Erikki para todo tipo de concessões. Ele é refém de pelo menos 15 milhões de dólares em helicópteros... ou talvez eu o ofereça aos nativos como uma oferenda de paz... O fato dele ser finlandês ajuda. Eu poderia ligá-lo intimamente com Rakoczy e à KGB e causar aos soviéticos todo tipo de problemas, bem como à CIA, hein? Até mesmo ao M16, hein?

       — A CIA nunca fez mal algum a você. Nem o M16.

       — Insha'Allah! Não se meta nisto, Robert. Erikki e o khan são uma questão interna do Irã. Para o seu próprio bem, não se meta. Com o finlandês eu posso conseguir concessões importantes. — Mas importantes só para mim, Robert, não para a Savama, tinha pensado Hashemi, sorrindo para si mesmo. Amanhã ou depois nós voltaremos para Teerã e então os meus assassinos vão caçá-lo na calada da noite e aí, puf, você se apagará como uma vela. — Ele vai entregá-lo — disse calmamente.

       — Se Hakim desistir de Erikki, ele vai agüentar o diabo da irmã, eu acho que ela iria até o fim por ele.

       — Talvez ela tenha que fazê-lo.

       Hashemi recordou a alegria que sentira e agora foi ainda melhor. Ele podia ver a inquietação de Hakim e estava certo de que ele estava num beco sem saída.

       — Tenho certeza de que o senhor compreenderá, Alteza, eu tenho que responder rapidamente a este telex.

       Hakim decidira fazer uma oferta parcial.

       — Traição e conspiração não devem ficar sem punição. Seja onde for. Eu mandei chamar o traidor que o senhor deseja. Com urgência.

       — Ah. Quanto tempo levará para Mzytryk responder?

       — Você deveria saber melhor do que eu, não?

       Hashemi percebeu o seu aborrecimento e xingou-se por ter cometido este deslize.

       — Eu ficaria estarrecido se Vossa Alteza não obtivesse uma resposta com muita rapidez — disse com grande gentileza. — Com muita rapidez.

       — Quando?

       — Dentro de 24 horas, Alteza. Pessoalmente ou por mensageiro. — Ele viu o jovem khan se mexer cheio de dor e tentou decidir se deveria adiar ou insistir na sua vantagem, certo de que a dor era verdadeira. O médico fornecera-lhe um diagnóstico detalhado das possíveis contusões do khan e de sua irmã. Para cobrir qualquer eventualidade, ele mandara o médico dar a Erikki um sedativo bem forte aquela noite, caso o homem tentasse escapar.

       — As 24 horas terminam às sete horas desta noite, coronel.

       — Há tanto o que fazer em Tabriz, Alteza, seguindo o seu conselho desta manhã, que eu duvido que pudesse tratar do telex antes disso.

       — O senhor vai destruir o quartel-general dos esquerdistas mujhadins esta noite?

       — Sim, Alteza. — Agora que temos a sua permissão e a sua garantia de que não haverá repercussões junto ao Tudeh, ele teve vontade de acrescentar, mas não o fez. Não seja estúpido! Este rapaz não tem três caras como o cão do Abdullah, que ele queime no fogo do inferno. Este é mais fácil de se lidar, desde que você tenha mais cartas do que ele e não tenha medo de mostrar as garras quando necessário. — Seria uma pena se o capitão não estivesse disponível para... para ser interrogado esta noite.

       Os olhos de Hakim estreitaram-se com aquela ameaça desnecessária. Como se eu não entendesse, seu filho de um cão grosseiro.

       — Eu concordo. — Houve uma batida na porta. — Entre. Azadeh entrou.

       — Desculpe interrompê-lo, Alteza, mas o senhor pediu-me para lembrá-lo meia hora antes da hora de ir para o hospital tirar as radiografias. Saudações, que a paz esteja com o senhor, coronel.

       — E que a paz de Deus esteja com a senhora, Alteza. — Fico contente de que toda esta beleza vá ter que ser coberta com o chador em breve, estava pensando Hashemi. Ela poderia tentar o próprio Satã, quanto mais os analfabetos sujos do Irã. Ele tornou a olhar para o khan. — Eu já vou, Alteza.

       — Por favor, volte às sete, coronel. Se eu tiver alguma notícia antes disso, mando chamá-lo.

       — Obrigado, Alteza.

       Ela fechou a porta atrás dele.

       — Como você está se sentindo, Hakim querido?

       — Cansado. E com muita dor.

       — Eu também. Você tem que ver o coronel mais tarde?

       — Sim. Isso não tem importância. Como vai Erikki?

       — Está dormindo. — Ela estava feliz. — Nós temos tanta sorte, nós três.

      

       NA CIDADE DE TABRIZ: 16:06H. Robert Armstrong checou a sua pequena automática, com o rosto fechado.

       — O que você vai fazer? — perguntou Henley, sem gostar nem um pouco do revólver. Ele também era inglês, mas muito menor, tinha um bigode espetado e usava óculos. Estava sentado atrás da escrivaninha no escritório sujo e desarrumado, debaixo de um retrato da rainha Elizabeth.

       — É melhor você não perguntar isso. Mas não se preocupe, eu sou um tira, lembra-se? Isto é só para o caso de algum bandido resolver acabar comigo. Você pode transmitir a mensagem para Yokkonen?

       — Não posso ir ao palácio sem ser convidado, que desculpa eu daria? — Henley levantou as sobrancelhas. — Acha que posso dizer para Hakim Khan: Sinto muito, meu velho, mas quero falar com o seu cunhado a respeito da possibilidade de retirar um amigo do Irã no seu helicóptero. — A sua jovialidade desapareceu. — Você está completamente enganado a respeito do coronel, Robert. Não há nenhuma prova de que ele seja responsável pelo que aconteceu com Talbot.

       — Mesmo que você tivesse uma prova, não o admitiria — disse Armstrong, zangado consigo mesmo por ter explodido quando Henley lhe contou a respeito do 'acidente'. Mais uma vez a sua voz endureceu. — Por que diabos você esperou até hoje para me contar que tinham acabado com Talbot? Pelo amor de Deus, isso aconteceu há dois dias.

       — Eu não decido a política, apenas transmito as mensagens, e de qualquer maneira nós acabamos de saber. Além disso, foi difícil encontrá-lo. Todo mundo pensou que você tivesse partido, a última vez que você foi visto estava a bordo de um avião britânico, indo para Al Shargaz. Droga, você recebeu ordens de partir há uma semana e ainda está aqui, que eu saiba não está em nenhuma missão, e não importa o que você tenha decidido fazer, não o faça, queira por gentileza dar o fora do Irã porque se você for apanhado e eles o puserem no terceiro nível, muita gente vai ficar uma fera.

       — Vou tentar não desapontá-los. — Armstrong levantou-se e vestiu sua velha capa com gola de pele. — Vejo-o em breve.

       — Quando?

        — Quando eu quiser. — Armstrong fechou a cara. — Não estou sob a sua autoridade e o que eu faço ou deixo de fazer não lhe interessa. Providencie apenas para que meu relatório fique guardado no cofre até que você tenha uma mala diplomática para enviá-lo com urgência a Londres, e fique com a sua maldita boca fechada.

       — Geralmente você não é tão rude nem tão sensível. Que diabo está acontecendo, Robert?

       Armstrong virou-se e desceu as escadas, saindo para a friagem da rua. Estava nublado e prometia nevar de novo. Ele desceu a rua apinhada de gente. Transeuntes e vendedores fingiam não notá-lo, presumindo que ele fosse soviético, e tratavam de cuidar da própria vida. Embora estivesse atento para ver se estava sendo seguido, sua mente estava imaginando como lidaria com Hashemi. Não havia tempo para consultar os seus superiores, e nem ele realmente queria fazer isso. Eles teriam sacudido as cabeças:

       — Meu Deus, o nosso velho amigo Hashemi? Despachá-lo sob suspeita dele ter liquidado com Talbot? Primeiro nós precisaríamos de provas...

       Mas nunca haverá nenhuma prova e eles não acreditariam na existência das equipes Grupo Quatro e nem que Hashemi está se imaginando um moderno Hassan ibn al-Sabbah. Mas eu sei. Hashemi não estava radiante por ter assassinado o general Janan? Agora ele tem peixes mais graúdos para fisgar. Como Pahmudi. Ou todo o Komiteh Revolucionário, sejam eles quem forem — fico me perguntando se ele já os pegou? Será que ele iria atrás do próprio imã? É impossível saber. Mas de uma maneira ou de outra, ele vai pagar pelo velho Talbot — depois de apanharmos Petr Oleg Mzytryk. Sem Hashemi eu não tenho nenhuma chance de apanhá-lo, e através dele, os malditos traidores que nós todos sabemos que estão operando lá em cima em Whitehall, os patrões de Philby, o quarto, o quinto e o sexto homem — no Gabinete, no M15 ou no M16. Ou em todos três.

       Estava com dor de cabeça de tanta raiva. Tantos homens bons traídos. O toque da sua automática agradou-lhe. Primeiro Mzytryk, pensou, depois Hashemi. Só falta decidir quando e onde.

      

       BAHRAIN — NO AEROPORTO INTERNACIONAL: 16:24H. Jean-Luc estava falando no telefone no escritório de Matias.

       — ...Não, Andy, não temos nenhuma notícia. — Ele olhou para Matias que ouviu e baixou os polegares sombriamente.

       — Charlie está fora de si — estava dizendo Gavallan. — Eu acabei de falar com ele pelo telefone. É terrível, mas não podemos fazer nada a não ser esperar. A mesma coisa com relação a Dubois e Fowler. — Jean-Luc pôde perceber o cansaço na voz de Gavallan.

       — Dubois vai aparecer, afinal de contas ele é francês. Por falar nisso, eu disse a Charlie que se... quando — corrigiu apressadamente — quando Tom Lochart e Freddy Ayre pousarem, diga a eles para reabastecerem os aparelhos em Jellet ao invés de virem para cá, a menos que haja uma emergência. Matias levou pessoalmente o combustível de reserva para Jellet, portanto sabemos que está lá. Andy, é melhor você ligar para Charlie e usar a sua autoridade porque Bahrain pode endurecer e eu não quero arriscar um outro confronto. A advertência deles foi clara, quer estejamos voando com registro britânico ou não. Eu ainda não sei como conseguimos livrar Rudi, Sandor e Pop. Tenho certeza de que eles vão apreender qualquer aparelho com registro iraniano, bem como as tripulações, e da próxima vez vão verificar a pintura e os papéis.

       — Está bem, eu vou falar com ele imediatamente. Jean-Luc, não há nenhum motivo para você voltar para Al Shargaz; por que não vai diretamente para Londres amanhã e depois para Aberdeen? Eu vou mandá-lo para o mar do Norte até estarmos com tudo resolvido, está bem?

       — Boa idéia. Eu me apresentarei em Aberdeen na segunda-feira — Jean-Luc disse rapidamente, pensando no fim-de-semana livre. Mon Dieu, eu mereço isso, pensou, e mudou de assunto rapidamente para não dar tempo a Gavallan de argumentar. — Rudi já chegou?

       — Sim, são e salvo. Todos três estão aqui. E também Vossi e Willi. Scrag está bem. Erikki está fora de perigo. Duke está melhorando devagar... Se não fosse por Dubois e Fowler, Mac, Tom e o grupo deles... Aleluia! Eu tenho que ir, até logo.

       — Au revoir. — E disse para Matias: — Merde, fui designado para o mar do Norte.

       — Merde.

       — Qual é o número da Alitalia!

       — E 22134. Porquê?

       — Mesmo que eu tenha que invocar o próprio papa, vou estar no primeiro vôo para Roma amanhã, com conexão para Nice. Preciso de Marie-Christine, das crianças e de uma comida decente. Espéce de con, o mar do Norte! — Preocupado, ele olhou para o relógio. — Espéce de con esta espera! Onde estão os nossos pássaros de Kowiss, onde?

      

       KUWAIT - AO LARGO DA COSTA: 16:31H. A luz vermelha do combustível acendeu. McIver e Wazari viram-na ao mesmo tempo e ambos praguejaram.

       — Quanto ainda temos, capitão?

       — Com este maldito vento, não muito. — Ele estava apenas uns três metros acima das ondas.

       — Quanto ainda falta para chegarmos?

       — Não muito. — McIver estava exausto e sentia-se muito mal. O vento chegara a cerca de trinta e cinco nós e ele estava poupando o 212, tentando fazer o combustível render, mas não havia muito o que pudesse fazer naquela altitude. A visibilidade ainda estava fraca, e as nuvens menos densas à medida que se aproximavam da costa. Ele olhou pela janela, para Ayre, apontou para o painel e baixou os polegares. Ayre balançou a cabeça. A sua luz vermelha ainda não havia aparecido. Mas naquele momento ela acendeu.

       — Maldição — Kyle, o mecânico de Ayre, disse: — Nós estaremos voando em campo aberto dentro de poucos minutos e seremos um alvo fácil.

       — Não se preocupe. Se Mac não chamar logo o Kuwait, eu o farei. — Ayre espiou para cima, achou que tinha visto dois caças, mas eram apenas gaivotas. — Cristo, por um momento...

       — Aqueles filhos da mãe não teriam coragem de nos seguir até aqui, teriam?

       — Não sei. — Eles estavam brincando de esconder com dois caças desde que haviam saído da costa. Próximo a Kharg, esgueirando-se através da chuva e da neblina, sem variar a altura sobre as ondas, ele e McIver tinham sido localizados:

       — Aqui é o controle de Kharg. Helicópteros voando ilegalmente no rumo 275, subam para trezentos e mantenham-se lá. Subam para trezentos e mantenham-se lá.

       Por um momento, eles ficaram em estado de choque, então McIver fez sinal a Ayre para segui-lo, fez uma curva de noventa graus para o norte, afastando-se de Kharg, e desceu ainda mais. Em poucos minutos os seus fones encheram-se com as vozes dos pilotos dos caças, falando em farsi com o controle da Força Aérea.

       — Eles estão sendo informados das nossas coordenadas, capitão — disse Wazari. — Ordens para preparar os foguetes... agora estão comunicando que os foguetes já estão armados...

       — Aqui é Kharg! Helicópteros ilegais no curso 270, subam para trezentos e mantenham-se lá. Se não obedecerem, serão interceptados e abatidos; eu repito, serão interceptados e abatidos.

       McIver soltou os comandos e esfregou o peito, sentindo a dor de voltar, depois manteve o curso enquanto Wazari traduzia trechos do que estava sendo dito:

       — ...o líder está dizendo sigam-me... agora o atirador diz que os foguetes estão armados... como eles vão encontrar os helicópteros no meio de toda essa merda de neblina... diz: eu estou diminuindo a velocidade... não queremos errar... o controlador de terra está dizendo: confirme se os foguetes estão armados, confirme destruição. Jesus, eles estão confirmando foguetes armados e em rota de colisão conosco.

       Então os dois caças tinham saído da neblina em direção a eles, mas à direita e vinte metros acima e então passaram por eles e desapareceram.

       — Cristo, será que eles nos viram?

       — Jesus, capitão, não sei, mas esses filhos da mãe carregam sensores de calor.

       O coração de McIver estava disparado quando ele fez um sinal para Ayre e ficou parado no ar, logo acima das ondas, para despistar os caças.

       — Conte-me o que eles estão dizendo, Wazari, pelo amor de Deus!

       — Os pilotos estão xingando... estão comunicando que estão a duzentos, duzentos nós... um deles está dizendo que não há nenhum buraco no colchão de nuvens e que o teto está a cerca de cento e cinqüenta... que é difícil enxergar a superfície... o controlador está dizendo para eles seguirem para a fronteira e se colocarem entre ela e os piratas... Jesus, piratas? Fiquem entre eles e o Kuwait, vejam se as nuvens estão menos densas... mantenham-se emboscados em cem...

       O que fazer? McIver estava perguntando a si mesmo. Nós poderíamos nos desviar do Kuwait e seguir direto para Jellet. Não adianta. Com este vento jamais conseguiríamos. Não podemos voltar. Então é mesmo o Kuwait e rezar para despistá-los.

       Na fronteira, as nuvens foram suficientes para escondê-los. Mas os caças estavam à espreita em algum lugar, esperando por uma brecha, ou que as nuvens ficassem menos densas ou que suas presas achassem que estavam a salvo e subissem para a altura regulamentar de aproximação. O canal militar estava mudo já há um quarto de hora. Agora eles podiam ouvir os controladores do Kuwait.

       — Vou cortar um motor para economizar combustível — disse McIver.

       — O senhor quer que eu chame o Kuwait, comandante?

       — Não, eu farei isso. Num minuto. É melhor você voltar para a cabine e ficar preparado para se esconder. Veja se pode encontrar algum colete salva-vidas, há alguns no armário. Use uma roupa inteiriça. Jogue fora o seu uniforme e fique com um colete à mão. Wazari ficou branco.

       — Nós vamos descer no mar?

       — Não, é só camuflagem, caso sejamos inspecionados — mentiu McIver, não esperando conseguir chegar até a costa. Sua voz estava calma e sua cabeça também, embora as pernas estivessem pesadas como chumbo.

       — Qual é o plano quando pousarmos, comandante?

       — Vamos ter que dançar conforme a música. Você tem algum documento?

       — Só as minhas licenças de operador, americana e iraniana. Ambas dizem que eu pertenço à Força Aérea do Irã.

       — Fique escondido, eu não sei o que vai acontecer... mas vamos ter esperança.

       — Comandante, nós deveríamos subir, não há necessidade de abusarmos da sorte — disse Wazari. — Já ultrapassamos a fronteira, estamos a salvo agora.

       McIver olhou para cima. A neblina e as nuvens estavam menos densas, agora eles estavam quase totalmente desprotegidos. A luz vermelha pareceu encher o seu horizonte. É melhor subir, hein? Wazari tem razão, não há necessidade de abusarmos da sorte, pensou.

       — Nós só estaremos a salvo quando estivermos no chão — disse alto. — Você sabe disso.

      

       NA TORRE DO AEROPORTO DO KUWAIT: 16:38H. A sala estava com a equipe completa. Alguns controladores britânicos, outros kuwaitianos. O melhor equipamento moderno. Telex, telefones e eficiência. A porta se abriu e Charlie Pettikin entrou.

       — O senhor mandou me chamar? — perguntou ansiosamente ao controlador de plantão, um irlandês rechonchudo, usando um jogo de fones com um pequeno microfone pendurado e uma única peça de ouvido.

       — Sim, capitão Pettikin — o homem disse secamente e, imediatamente, a ansiedade de Pettikin aumentou. — O meu nome é Sweeney, olhe! — Ele usou o lápis para apontar. Na periferia da sua tela, na linha dos trinta quilômetros, havia uma luzinha. — Isto é um helicóptero, talvez dois. Ele ou eles acabaram de aparecer, ainda não se comunicaram. Disseram-me que o senhor está esperando dois helicópteros britânicos em trânsito, não é verdade?

       — Sim — disse Pettikin, com vontade de gritar de alegria pelo fato de um deles ou os dois terem aparecido no sistema — eles deviam estar vindo para Kuwait neste curso — e ao mesmo tempo dolorosamente consciente de que ainda faltava muito para eles estarem em segurança. — Está correto — disse, rezando.

       — Talvez não sejam os seus, afinal, pois este curso que eles estão usando é um bocado estranho, vindos do leste, já que estão em trânsito do Reino Unido. — Pettikin não disse nada. — Caso eles sejam os seus, qual seria o registro deles?

       O desconforto de Pettikin aumentou. Se ele fornecesse os registros britânicos e os helicópteros fornecessem os registros iranianos — como legalmente seriam obrigados a fazer — estariam todos encrencados. As letras verdadeiras teriam forçosamente que ser vistas da torre quando os helicópteros se aproximassem para pousar — não havia como os controladores deixarem de vê-las. Mas se ele desse a Sweeney os registros iranianos... isso arruinaria a operação Turbilhão. O filho da mãe está tentando me pegar, pensou, sentindo um grande vazio por dentro.

       — Sinto muito — disse humildemente —, eu não sei. O nosso serviço de documentação não é dos melhores. Desculpe.

       O telefone da escrivaninha tocou. Sweeney atendeu.

       — Ah, sim, sim, comandante?... sim, não... no momento não... achamos que são dois... sim, sim, eu concordo... não, está bom agora. Desaparece de vez em quando... sim, muito bem. — Desligou, tornando a concentrar-se na tela.

       Inquieto, Pettikin tornou a olhar para a tela. A luzinha parecia estar parada.

       Então Sweeney trocou para alcance máximo e a tela abrangeu uma extensão maior para o interior do golfo, a oeste em direção aos poucos quilômetros até a fronteira do Kuwait com o Iraque, a nordeste em direção à fronteira Irã-Iraque, ambas muito próximas.

       — O nosso sistema de longo alcance esteve enguiçado por algum tempo ou nós os teríamos visto antes, agora está ótimo, graças a Deus. Há um bocado de bases de combate ali — disse distraidamente, indicando com o lápis o lado iraniano da fronteira do Shatt-al-Arab na direção de Abadan. Então moveu o lápis na direção do golfo, traçando uma linha entre Kowiss e Kuwait e parou na luzinha. — Estes são os seus helicópteros, caso haja dois, e caso sejam os seus. — Ele moveu a ponta do lápis um pouco para o norte, para dois pontos que se deslocavam rapidamente. — Caças. Não são nossos. Mas estão na nossa área. — E levantou os olhos para Pettikin que ficou gelado. — Não autorizados e portanto hostis.

       — O que eles estão fazendo? — perguntou, agora certo de que estava sendo testado.

       — É isto que nós gostaríamos de saber, e muito. — A voz de Sweeney não era nada amigável. Com o lápis, ele indicou dois outros pontos, saindo da faixa militar do Kuwait. — Estes são nossos, vão dar uma olhada. — Ele emprestou um fone de reserva para Pettikin e ligou o transmissor. — Aqui é o Kuwait. Helicóptero ou helicópteros aproximando-se a 274 graus, qual o seu registro e a sua altitude?

       Estática. O chamado foi repetido pacientemente. Então Pettikin reconheceu a voz de McIver.

       — Kuwait, aqui é o helicóptero... aqui é o helicóptero Boston Tango e o helicóptero Hotel Echo, em trânsito para Al Shargaz, passando de duzentos para duzentos e cinqüenta. — McIver tinha dado apenas as duas últimas letras do registro iraniano em vez de todas as letras exigidas na primeira chamada, incluindo o prefixo EP para Irã.

       Surpreendentemente, Sweeney aceitou a chamada:

       — Helicópteros Bosto. Tango e Hotel Echo comuniquem-se no momento de pousar. — E Pettikin viu que ele estava distraído, concentrado nos dois pontos hostis que agora se aproximavam rapidamente dos helicópteros, seguindo-os com o lápis na tela. — Eles estão rentes — murmurou. — Quinze quilômetros a leste.

       A voz de McIver soou nos fones:

       — Kuwait, por favor confirme pouso. Solicitamos aproximação direta, estamos com pouco combustível.

       — Aproximação direta aprovada, comunique momento de pouso.

       Pettikin percebeu a dureza da voz e quase deu um gemido. Sweeney começou a cantarolar. O controlador-chefe, um kuwaitiano, levantou-se da sua mesa e aproximou-se deles.

       Eles observaram o sinal deixando um desenho da terra e os pontinhos de luz à sua passagem, vendo-os não como pontos luminosos, mas como dois caças hostis e dois interceptadores do Kuwait ainda muito longe, com dois helicópteros indefesos entre eles. Mais perto. Os hostis estavam quase fundidos com os helicópteros agora. Então eles se afastaram em direção ao golfo. Por um momento, os três homens prenderam a respiração. Foguetes levam algum tempo para alcançar o alvo. Os segundos se passaram. Os sinais dos helicópteros permaneceram na tela. Os dos interceptores do Kuwait também, aproximando-se dos helicópteros, e depois eles também se afastaram. Sweeney trocou para a freqüência deles e escutou a conversa em árabe. Ele olhou para o controlador-chefe e falou com ele em árabe. O homem disse:

       — Insha'Allah — cumprimentou Pettikin com a cabeça e saiu da sala.

       — Os nossos interceptadores comunicaram que não viram nada — Sweeney disse a Pettikin com uma voz neutra. — Exceto dois helicópteros 212. Eles não viram nada. — Ele voltou para a faixa regular, com aviões se apresentando e sendo orientados para pouso e decolagem, depois mudou o radar para um alcance menor. Agora os helicópteros estavam separados em dois sinais, ainda longe da costa. A aproximação deles parecia terrivelmente lenta em comparação com os traços dos jatos que chegavam e partiam.

       A voz de McIver se fez ouvir:

       — Pan pan pan! Kuwait, aqui falam os helicópteros BT e HE, pan pan pan, as nossas luzes vermelhas estão acesas, os tanques vazios, pan pan pan.

       — Era a chamada de emergência que ficava um grau abaixo de Mayday.

       — Permissão para pousar no heliporto de Messali Beach, bem à sua frente, perto do hotel. Vamos avisá-los e enviaremos combustível. Está me ouvindo? — perguntou Sweeney.

       — Roger, Kuwait, obrigado. Eu conheço o hotel. Por favor, informe ao capitão Pettikin.

       — Certo, informarei imediatamente. — Sweeney telefonou e pôs de sobreaviso o helicóptero de resgate para o caso de uma decolagem repentina, mandou um carro de bombeiros para o hotel e depois estendeu a mão para apanhar o fone que tinha emprestado a Pettikin, olhou para a porta e fez sinal para ele chegar mais perto. — Agora ouça — falou baixinho, com raiva. — É você quem vai encontrá-los e reabastecê-los e fazê-los passar pela Alfândega e pela Imigração — se puder — e fazê-los dar o fora do Kuwait o mais depressa possível ou vocês, eles e os seus amigos "importantes" irão todos para a cadeia! Mãe Santíssima, como vocês tiveram a coragem de pôr em risco o Kuwait com essas suas aventuras malucas contra aqueles fanáticos do Irã, obrigando homens honestos a arriscarem os seus empregos por vocês. Se um dos seus helicópteros tivesse sido abatido... foi uma sorte danada não ter havido um incidente internacional. — Ele pôs a mão no bolso e de lá tirou um papel que enfiou na mão de Pettikin, que ficou paralisado de susto.

       Sweeney deu-lhe as costas e tornou a pegar o telefone. Pettikin saiu com as pernas bambas. A uma distância segura, ele olhou o papel. Era um telex. O telex. De Teerã. Não era uma fotocópia. Era o original.

       Deus do céu! Será que Sweeney o interceptou e o guardou para nós? Mas ele não disse: ...fazê-lo passar pela Alfândega e pela Imigração — se puder?

      

       HOTEL MESSALIBEACH: O pequeno caminhão de combustível, com Genny e Pettikin a bordo, saiu da estrada e entrou nos amplos jardins do hotel, com os esguichos ligados. O heliporto ficava bem à esquerda do enorme estacionamento. Já havia um carro de bombeiros lá, esperando. Genny e Pettikin saltaram, Pettikin com um walkie-talkie de ondas curtas, ambos examinando o céu na direção do mar.

       — Charlie, você está pegando alguma coisa?

       Eles podiam ouvir o barulho dos motores, mas ainda não os viam, até que de repente:

       — Dois por cinco, Charlie... — Ruídos de estática. — ...mas eu.. Freddy, você desce no heliporto, eu vou descer do lado... — Mais estática.

       — Lá estão eles! — gritou Genny. Os 212 saíram do meio da neblina a cerca de duzentos metros. — Oh, Deus, ajude-os...

       — Estamos vendo vocês, Mac, há um carro de bombeiros aqui, não há problema. — Mas Pettikin sabia que eles estavam numa grande enrascada, não havia possibilidades de trocar as letras com tantas pessoas olhando. Um dos motores falhou e tossiu, mas eles não puderam saber de qual dos helicópteros. Outra tossida.

       A voz de Ayre, seca demais, disse:

       — Afastem-se aí embaixo, eu vou descer no heliporto.

       Eles viram o 212 da esquerda se afastar ligeiramente e começar a perder altitude, calculando a distância, com o motor tossindo. Os bombeiros se prepararam. McIver manteve o curso e a altitude, para ter uma chance maior se os seus dois motores parassem

       — Merda — Pettikin murmurou involuntariamente, vendo Ayre se aproximar depressa, depressa demais, mas então ele reverteu ao máximo e pousou bem no meio do círculo, em segurança, com McIver começando o seu pouso de emergência. Pelo amor de Deus, por que ele está voando sozinho e onde está Tom Lochart? Sem espaço para manobrar, todo mundo prendendo a respiração, e então os esquis tocaram o chão e neste momento os motores morreram.

       Bombeiros, em contato com o aeroporto pelo rádio, comunicaram fim da emergência, começaram a guardar o equipamento e Pettikin já estava agarrando a mão de McIver correndo depois até Ayre para fazer o mesmo. Genny ficou em pé ao lado da cabine de McIver, sorrindo para ele, radiante

       — Olá, Duncan — disse Genny, tirando o cabelo dos olhos. Fez boa viagem?

       — A pior que eu já fiz, Gen — ele respondeu, tentando sorrir, ainda não refeito de todo. — De fato, nunca mais quero voar, nunca mais quero pilotar, que Deus me ajude! Eu ainda vou checar o Scrag, mas só uma vez por ano.

       Ela riu e deu-lhe um abraço desajeitado e o teria largado, mas ele continuou abraçado com ela, cheio de amor, tão aliviado por vê-la de novo e por estar no chão, com seu passageiro são e salvo, com o aparelho em segurança, que sentiu vontade de chorar

       — Você está bem, amor?

       Isso a fez chorar. Ele não a chamava assim há meses, talvez anos. Ela o abraçou ainda mais apertado.

       — Agora veja só o que você me fez. — Ela encontrou um lenço, soltou-o e depois beijou-o de leve. — Você merece um uísque com soda. Dois, e bem grandes! — Pela primeira vez ela notou a palidez dele. — Você está bem, querido?

       — Sim. Acho que sim. Estou um pouco abalado. — McIver olhou para Pettikin, que ria e conversava animadamente com Ayre, enquanto o motorista do caminhão-tanque já tinha começado a abastecer os helicópteros. Mais adiante, um carro de aparência oficial estava se aproximando.

       — E quanto aos outros, o que aconteceu?

       — Está todo mundo em segurança, exceto Marc Dubois e Fowler Joines. Eles ainda estão desaparecidos. — Ela contou que sabia a respeito de Starke, Gavallan, Scragger, Rudi e seus homens. — Uma novidade fantástica é que Newbury, um funcionário do consulado em Al Shargaz, recebeu uma mensagem de Tabriz dizendo que Erikki e Azadeh estão em segurança na casa do pai dela, mas o pai está morto, parece, e agora o irmão dela é o khan.

       — Meu Deus, isto é maravilhoso! Então nós conseguimos, Gen!

       — Sim, sim, conseguimos, maldito vento. — Ela tornou a tirar o cabelo dos olhos. — E Andy, Charlie e os outros acham que Dubois tem uma boa chan... — Ela parou, e sua alegria foi se extinguindo, ao perceber, sur bitamente, o que havia de errado. Ela se virou e olhou para o outro 212

       — Tom? Onde está Tom Lochart?

      

       AO SUL DE TEERÃ: 17:10H. O poço de petróleo deserto ficava numas colinas desertas a cerca de cento e cinqüenta quilômetros de Teerã. Lochart o conhecia dos velhos tempos, o seu 206 estava estacionado ao lado da bomba de combustível e ele tinha reabastecido manualmente o aparelho e já estava quase terminando.

       Era uma estação intermediária para os helicópteros que serviam àquela região, parte do grande oleoduto setentrional que, em épocas normais, abrigava uma equipe de manutenção iraniana. Numa cabana tosca havia alguns beliches para se passar a noite caso alguém fosse apanhado por uma das tempestades súbitas que eram muito comuns ali. Os donos originais do local, britânicos, o haviam chamado de 'D'Arcy 1908' para homenagear um inglês com este nome que fora o primeiro a descobrir petróleo no Irã, naquele ano. Agora pertencia à IranOil, mas tinha mantido tanto o nome quanto os tanques de combustível cheios.

       Graças a Deus por isso, Lochart tornou a pensar já cansado de bombear combustível. No local de encontro, na costa, ele tinha atirado dois tambores vazios de duzentos litros no banco de trás, para o caso de D'Arcy 1908 estar aberto, e conseguira uma bomba provisória. Ainda havia combustível suficiente na costa para usar quando estivessem saindo do Irã, e Xarazade poderia manejar a bomba durante o vôo.

       — Agora nós temos uma chance — disse alto, sabendo onde pousar, como guardar o helicóptero em segurança e como entrar em Teerã.

       Estava confiante outra vez, fazendo planos, pensando no que dizer a Meshang, o que evitar, o que dizer a Xarazade e como iam escapar. Tem que haver um jeito dela receber a sua parte da herança, o bastante para lhe dar a segurança de que ela precisa...

       A gasolina transbordou dos tanques cheios até a boca, e ele praguejou por sua falta de cuidado, tampou-os cuidadosamente e enxugou o excesso. Agora estava pronto, os tambores do banco de trás já estavam cheios e a bomba no lugar.

       Numa das cabanas ele achou algumas latas de carne e comeu uma delas — impossível comer e pilotar, a não ser que fosse com a mão esquerda, e ele estava há tempo demais no Irã para fazer isso — depois apanhou a garrafa de cerveja que tinha deixado na neve para gelar e tomou-a devagar. Havia água num barril. Ele quebrou o gelo e jogou água no rosto para refrescar-se, mas não ousou bebê-la. Enxugou o rosto. Sentiu a barba espetando e tornou a praguejar, querendo estar com boa aparência para ela. Então lembrou-se da maleta de vôo e dos aparelhos de barbear que havia lá. Um deles era a pilha. Ele o encontrou.

       — Você pode fazer a barba em Teerã — disse para o seu reflexo na janela da cabine, ansioso por partir.

       Um último olhar em volta. Neve, pedras e nada mais. Lá longe ficava a estrada Qom—Teerã. O céu estava encoberto mas o teto estava alto. Alguns pássaros voavam lá em cima. Aves de rapina, pensou, fechando o cinto de segurança.

     

       TEERÃ — NA CASA DOS BAKRAVAN: 17:15H. Uma porta se abriu no muro e duas mulheres saíram, cobertas de chador e véu, Xarazade e Jari estavam irreconhecíveis. Jari fechou a porta e foi andando apressadamente atrás de Xarazade, que avançava rapidamente no meio da multidão.

       — Princesa, espere... não há pressa...

       Mas Xarazade não diminuiu o passo até virar a esquina. Então parou e ficou esperando impacientemente.

       — Jari, vou deixá-la agora — disse, não dando tempo a Jari de interrompê-la. — Não vá para casa, mas encontre-me no café, você sabe qual, às seis e meia, espere por mim se eu me atrasar

       — Mas princesa... — Jari mal podia falar. — Mas Sua Excelência Meshang... a senhora disse a ele que nós íamos ao médico e não...

       — No café por volta das seis e meia, sete horas, Jari! — Xarazade saiu andando depressa, atravessou o tráfego perigosamente para evitar que a empregada a seguisse, entrou num beco, depois em outro e logo estava livre.

       — Eu não vou me casar com aquele homem horrível, não vou, não vou, não vou! — murmurou alto.

       A zombaria começara já naquela tarde, embora tivesse sido apenas no almoço que Meshang anunciara o grande mal. A sua melhor amiga tinha chegado há uma hora atrás para perguntar se eram verdadeiros os boatos de que Xarazade ia se casar com um membro da família Farazan.

       — O bazar só fala nisso, Xarazade querida, eu vim imediatamente para dar-lhe os parabéns.

       — O meu irmão tem muitos planos, agora que eu estou quase divorciada — ela tinha dito displicentemente. — Eu tenho muitos pretendentes.

       — É claro, é claro, mas o boato é de que o dote já foi combinado.

       — Ah, é? É a primeira vez que estou ouvindo falar nisto, como as pessoas são mentirosas!

       — É verdade, que coisa horrível! Outros fofoqueiros maldosos afirmam que o casamento será na próxima semana e que o seu... e que o futuro marido está se gabando de ter tapeado Meshang no dote.

       — Alguém tapear Meshang? Tem que ser mentira!

       — Eu sabia que os boatos eram falsos! Eu sabia! Como você poderia casar-se com Diarréia Danoush, xá do lixo da noite? Como você poderia? — E sua amiga tinha dado boas gargalhadas. — Pobre querida, para que lado você iria virar-se?

       — Que importância tem isso? — Meshang berrara com ela. — Elas estão é com inveja! O casamento vai se realizar, e hoje à noite nós vamos recebê-lo para jantar.

       Talvez sim, talvez não, ela pensou. Talvez o jantar não seja como eles estão esperando.

       Mais uma vez ela verificou o caminho, com os joelhos fracos. Ela estava indo para o apartamento do amigo dele, não muito longe dali. Lá ela encontraria a chave secreta no nicho do andar de baixo, entraria, olharia debaixo do tapete do quarto e levantaria o assoalho como o vira fazer. Então ela apanharia a pistola e a granada — Deus seja louvado pelo chador para escondê-las e ajudar-me a ficar disfarçada — depois ela poria no lugar a tábua do assoalho e o tapete e voltaria para casa. Estava quase sem fôlego de excitação. Ibrahim vai ter orgulho de mim, indo à luta por Deus, para me sacrificar por Deus. Ele não foi para o sul lutar contra o mal e se sacrificar da mesma maneira? É claro que Deus vai perdoar as suas bobagens esquerdistas.

       Como ele foi esperto de me mostrar como tirar a trava de segurança e armar o revólver e segurar a granada, puxar o pino e depois atirá-la sobre os inimigos do Islã, gritando Deus é Grande, Deus é Grande... e depois atacando-os, atirando neles, sendo levada para o paraíso, esta noite mesmo se eu puder, amanhã no máximo, com a cidade toda dizendo que os estudantes esquerdistas começaram a sua insurreição. Nós os arrasaremos, meu filho e eu, nós o faremos, soldados de Deus e do profeta, cujo nome seja louvado, nós o faremos!

     Deus é Grande, Deus é Grande... Puxe o pino e conte até quatro e atire, eu me lembro exatamente do que ele disse.

      

       KUWAIT — NO HELIPORTO DO HOTEL MESSALI BEACH: 17:35H. McIver e Pettikin estavam olhando para os dois homens da Alfândega e da Imigração, o primeiro examinando impassivelmente os papéis do helicóptero, o outro a cabine do 212. Até agora a inspeção deles fora superficial, embora demorada. Eles tinham recolhido todos os passaportes e documentos dos helicópteros, mas tinham dado apenas uma olhada superficial neles e perguntado a McIver a opinião dele a respeito da situação no Irã. Eles ainda não haviam perguntado diretamente de onde os helicópteros tinham vindo. Iriam perguntar a qualquer momento, pensavam McIver e Pettikin, nervosos.

       McIver pensara em deixar Wazari escondido, mas resolvera não correr o risco.

       — Sinto muito, sargento, você vai ter que arriscar.

       — Quem é ele? — O homem da Imigração perguntou imediatamente, a cor e o medo de Wazari denunciando-o.

       — Um operador de rádio e radar — disse McIver, com naturalidade. O funcionário tinha-se afastado e deixara Wazari lá em pé, suando, vestido com o pesado macacão de plástico e o colete de salva-vidas fechado até a metade.

       — Então, capitão, o senhor acha que vai haver um golpe no Irã, um golpe militar?

       — Eu não sei — tinha respondido McIver. — Os boatos se espalham como pragas. Os jornais ingleses dizem que é possível, muito possível, e também que o Irã está tomado por uma espécie de loucura, como o Terror da Revolução russa ou francesa. Posso mandar os nossos mecânicos verificarem tudo enquanto esperamos?

       — É claro. — O homem esperou enquanto McIver dava as ordens, e depois disse: — Vamos esperar que esta loucura não se espalhe pelo golfo, hein? Ninguém quer problemas deste lado do golfo Islâmico. — Ele usou a expressão de propósito, uma vez que todcs os Estados do golfo detestavam o termo golfo Pérsico. — Este é o golfo Islâmico, não é?

       — Sim, sim, é.

       — Todos os mapas terão que ser mudados. O golfo é o golfo, o Islã é o Islã e não pertence apenas à seita xiita.

       McIver não disse nada, ficando mais cauteloso e mais inquieto. Havia muitos xiitas no Kuwait e na maioria dos Estados do golfo. Muitos. Geralmente eles eram os pobres. Os governantes, os xeques, eram geralmente sunitas.

       — Capitão! — O funcionário da Alfândega estava na porta da cabine do 212 estacionado no heliporto, chamando-o. Ayre e Wazari tinham recebido instruções para esperar longe dos helicópteros até que a inspeção tivesse terminado. Os mecânicos estavam ocupados checando os aparelhos. — Vocês estão carregando armas de qualquer tipo?

       — Não, senhor; a não ser a pistola de sinalização aprovada pelo regulamento.

       — Contrabando de algum tipo?

       — Não, senhor, só peças de reposição. — Todas as perguntas normais, intermináveis, que seriam repetidas assim que eles fossem liberados para ir para o aeroporto. Finalmente, o homem agradeceu e fez sinal para ele se afastar. O funcionário da Imigração tinha voltado para o carro com os passaportes. O transmissor de rádio ficara ligado, e McIver pôde ouvir claramente o controle de terra. Ele viu o homem cocar a barba Pensativamente e depois apanhar o microfone e falar em árabe. Isso aumentou a sua preocupação. Genny estava sentada na sombra e ele foi até ela.

       — Cabeça erguida — ela murmurou. — Como vai indo?

       — Gostaria muito que eles nos deixassem prosseguir — disse McIver, irritado. — Nós vamos ter que aturar mais uma hora disto no aeroporto e eu não tenho a menor idéia do que fazer.

       — Charlie tem...

       — Capitão! — O homem da Imigração o chamava e a Pettikin para irem até o carro. — Então o senhor está em trânsito, não é?

       — Sim. Para Al Shargaz. Com a sua permissão, nós partiremos imediatamente — disse McIver. — Iremos até o aeroporto, preencheremos o nosso plano de vôo e partiremos assim que pudermos. Está certo?

       — Para onde o senhor disse que está indo?

     — Para Al Shargaz, via Bahrain para reabastecer. — McIver estava ficando cada vez mais nervoso. Qualquer funcionário do aeroporto deveria saber que eles precisariam reabastecer antes de Bahrain, mesmo que o vento não estivesse assim tão forte, e todos os aeroportos do caminho eram sauditas, portanto ele teria que preencher um plano de vôo para uma aterrissagem em território saudita. Bahrain, Abu Dhabi, Al Shargaz, todos tinham recebido o mesmo telex. O Kuwait também, e mesmo que aqui o telex tivesse sido interceptado por um funcionário que simpatizava com eles, por qualquer motivo, o mesmo não aconteceria nos aeroportos sauditas. Com toda a razão, pensou McIver, e viu o homem olhar para as letras do registro iraniano debaixo das janelas da cabine de comando. Eles tinham chegado lá com o registro iraniano, ele teria que preencher o plano de vôo e partir com as mesmas letras.

       Para seu espanto, o homem apanhou um bloco de formulários no carro.

       — Eu recebi instr... eu aceitarei o seu plano de vôo e darei permissão para o senhor seguir direto daqui para Bahrain, imediatamente. O senhor pode me pagar as taxas de pouso regulamentares e eu carimbarei os seus passaportes também. Não haverá necessidade de ir até o aeroporto.

       — O quê?

      — Eu aceitarei o seu plano de vôo agora e o senhor pode partir daqui mesmo. Por favor, prepare-o. — Ele entregou o bloco a McIver. Era o formulário correto. — Assim que o senhor tiver terminado, assine-o e devolva-me. — Havia algumas moscas incomodando-o e ele as afastou com a mão

       Depois apanhou o microfone, esperou até que McIver e Pettikin se afastassem e falou em voz baixa.

       Sem poder acreditar no que tinha acontecido, eles foram se encostar no caminhão.

       — Jesus, Mac, você acha que eles sabem e estão simplesmente deixando que a gente vá embora?

       — Eu não sei o que pensar. Não perca tempo, Charlie. — McIver enfiou o bloco nas mãos dele e disse com mais irritação do que pretendia: — Faça logo este plano de vôo antes que ele mude de idéia: Al Shargaz. Se tivermos uma emergência em Jellet isso é problema nosso. Pelo amor de Deus, faça isto logo e vamos partir o mais rápido que pudermos.

       — Claro. Agora mesmo.

       — Você não vai pilotar, vai, Duncan? — peguntou Genny.

       — Não, é Charlie quem vai fazer isso.

       Pettikin pensou por um momento, depois pegou uma chave e algum dinheiro.

       — Esta é a chave do meu quarto, Genny. Você pode apanhar as minhas coisas para mim, não há nada muito importante lá, pagar a conta e pegar o próximo avião. Hughes, o representante da Imperial Air, lhe dará prioridade.

       — E quanto ao seu passaporte e licença para pilotar? — ela perguntou.

       — Eu sempre os carrego comigo, tenho um medo danado de perdê-los, bem como uma nota de cem dólares — nunca sei quando vou precisar subornar alguém.

       — Conte comigo. — Ela colocou os óculos escuros e sorriu para o marido. — O que você vai fazer, Duncan?

       Sem notar, McIver suspirou profundamente.

       — Eu vou ter que continuar, Gen. Não tenho coragem de ficar aqui. Duvido que eles me deixassem. Eles estão desesperados para não criar nenhuma confusão e loucos para se livrarem de nós. É óbvio, não é? Quem já ouviu falar em ser autorizado a decolar de uma praia? Nós somos um tremendo embaraço e uma ameaça para o Estado, é claro que somos. Esta é a verdade! Faça o que Charlie disse, Gen. Nós vamos reabastecer os aparelhos em Jellet, mudar os registros lá e torcer pelo melhor. Você está com os estênceis, Charlie?

        — Pincéis, tinta, tudo. — Pettikin não parou de preencher os formulários. — E quanto a Wazari?

       — Ele faz parte da tripulação até que alguém faça alguma pergunta. Coloque-o aí como operador de rádio. Isto não é nenhuma mentira. Se não implicarem com ele em Bahrain, certamente o farão em Al Shargaz. Talvez Andy possa inventar alguma coisa para livrá-lo.

       — Está bem. Ele é da tripulação. Então está pronto.

       — Ótimo. Gen, Jeliet é fácil de chegar, Bahrain e A! Shargaz também. O tempo está bom, a lua está de fora, portanto um vôo à noite não será problema. Faça o que Charlie disse. Você chegará lá a tempo de nos esperar.

       — Se você vai partir imediatamente, precisará de comida e água — ela disse. — Podemos conseguir um pouco aqui. Eu vou buscar, Charlie. Vamos, Duncan, você está precisando de um drinque

       — Sirva-me um em Al Shargaz, Gen.

       — Eu o farei. Mas vou lhe servir um agora. Você não vai pilotar, está precisando de um, eu vou lhe arranjar. — Ela foi até o funcionário da Imigração e conseguiu permissão para comprar sanduíches e dar um telefonema.

       — Volto num segundo, Charlie. — McIver seguiu-a pelo interior do saguão do hotel e foi direto para o toalete. Lá ele vomitou muito. Levou algum tempo para se recuperar. Quando saiu, ela estava desligando o telefone

       — Os sanduíches já estão quase prontos, o seu drinque está servido e eu pedi uma ligação para você falar com Andy. — Ela foi na frente até uma mesa no suntuoso terraço-bar. Três Perrier gelados com fatias de limão, e uma dose dupla de uísque puro, sem gelo, do jeito que ele gostava. Ele bebeu o primeiro copo de Perrier sem parar.

       — Meu Deus, eu estava precisando disto... — Ele olhou para o uísque, mas não o tocou. Pensativamente, ele tomou o segundo copo de Perrier e olhou para ela. Quando ele já estava quase no fim, disse: — Gen, acho que gostaria que você viesse comigo.

       Ela ficou perplexa. Depois disse:

       — Obrigado, Duncan, eu gostaria muito de ir. Sim, eu gostaria muito. O rosto dele enrugou num sorriso.

       — Você teria vindo de qualquer jeito, não teria? Ela deu de ombros. Baixou os olhos para o uísque.

       — Você não está pilotando, Duncan. O uísque seria bom para você. Acalmaria o seu estômago.

       — Você notou, hein?

       — Só que você está muito cansado. Eu nunca o vi assim tão cansado, mas você se saiu maravilhosamente bem, fez um trabalho perfeito e deve descansar. Você... você tem tomado as suas pílulas e todo o resto?

       — Oh, sim, embora vá precisar de um reforço em breve. Não há problema, mas eu me senti muito mal umas duas vezes. — Ao ver a ansiedade dela, ele acrescentou depressa: — Eu estou bem agora, Gen. Muito bem.

       Ela não quis insistir. Agora que ele a convidara para ir junto, ela podia relaxar um pouco. Desde que ele pousara que ela o vinha observando com muito cuidado, cada vez mais preocupada. Ela tinha pedido umas aspirinas junto com os sanduíches, tinha Veganin na bolsa e o estojo de primeiros socorros que o dr. Nutt lhe dera em segredo.

       — Como foi pilotar de novo? De verdade?

       — De Teerã até Kowiss foi formidável, mas o resto não foi tão bom. Este último trecho não foi nada bom. — A lembrança de ter sido perseguido por caças e de ter estado tão perto do fracasso o fez sentir-se enjoado outra vez. Não pense nisso, disse a si mesmo, já terminou. O Turbilhão está quase no fim. Erikki e Azadeh estão a salvo, mas e quanto a Dubois e Fowler, que diabo aconteceu com eles? E Tom? Eu poderia matar Tom, pobre idiota.

       — Você está bem, Duncan?

       — Oh, sim, estou muito bem. Só estou cansado, foram duas semanas daquelas.

       — E quanto a Tom? O que você vai dizer a Andy?

       — Eu estava pensando nele agora. Vou ter que contar a Andy.

       — Isto é uma ameaça e tanto ao Turbilhão, não?

       — Ele... ele está por conta própria, Gen. Talvez ele consiga apanhar Xarazade e fugir. Se for apanhado... nós temos que esperar e torcer — disse. Mas ele estava pensando quando ele for apanhado. McIver estendeu a mão e tocou-a, contente de estar com ela, sem querer preocupá-la ainda mais. Tudo isso é muito mais duro para ela. Eu acho que vou morrer.

       — Por favor, desculpe-me, sahib, mensahib, os seus pedidos foram levados para o helicóptero — disse o garçom.

       McIver entregou-lhe um cartão de crédito e o garçom se afastou.

       — Isto me faz lembrar da sua conta do hotel e da do Charlie. Vamos ter que tratar disso antes de partirmos.

       — Oh, eu telefonei para o sr. Hughes enquanto você estava no banheiro e pedi a ele para cuidar das nossas contas e despachar nossa bagagem e todo o resto se eu não estivesse de volta dentro de uma hora. Eu estou com a minha bolsa, meu passaporte e... por que você está rindo?

       — Nada... nada, Gen.

       — Foi só para o caso de você me convidar. Eu achei... — Ela examinou as bolhas do seu corpo. Mais uma vez deu de ombros e olhou para ele, sorrindo feliz. — Estou tão contente que você tenha me pedido isso, Duncan. Obrigado.

      

       AL SHARGAZ — NOS ARREDORES DA CIDADE: 18:01H. Gavallan saltou do carro e subiu rapidamente os degraus da frente da casa em estilo mourisco que era cercada de muros altos.

       — Sr. Gavallan!

       — Oh, olá, sra. Newbury! — Ele mudou de direção para ir ao encontro da mulher, que estava meio escondida, ajoelhada, plantando alguns arbustos perto da entrada de carros. — O seu jardim está maravilhoso.

       — Obrigada. É uma distração e me mantém em forma — ela respondeu. Angela Newbury era alta, tinha cerca de trinta anos e seu sotaque era elegante. — Roger está no pavilhão esperando pelo senhor. — Com as costas das mãos enluvadas, ela enxugou o suor do rosto, deixando uma mancha de terra. — Como vão as coisas?

       — Muito bem — ele disse, omitindo as notícias sobre Lochart. — Nove em dez até agora.

       — Oh, que bom, oh, isso é um alívio. Meus parabéns, nós estávamos todos tão preocupados. Que maravilha, mas pelo amor de Deus, não diga a Roger que eu perguntei, ele teria um ataque. Ninguém deve saber.

       Ele devolveu-lhe o sorriso e atravessou os lindos jardins até chegar ao pavilhão. Este ficava no meio de um grupo de árvores e canteiros de flores e tinha cadeiras, mesinhas, um bar portátil e telefone. A sua alegria desapareceu ao ver a cara de Roger.

       — Qual é o problema?

       — Você é o problema. Turbilhão é o problema. Eu deixei muito claro que a operação não era aconselhável. Como ela está indo?

       — Acabei de saber que os dois Kowiss chegaram em segurança no Kuwait e partiram para Bahrain sem problemas, isto significa nove em dez, se incluirmos o de Erikki em Tabriz. Dubois e Fowler ainda não apareceram, mas n5s estamos torcendo. Agora, qual é o problema, Roger?

       — O golfo está em palvorosa, com Teerã pondo a boca no mundo e todos os nossos escritórios em alerta. O meu Líder Destemido e este seu criado, Roger Newbury, estão convidados a comparecer ao gabinete do ilustre ministro do Exterior, às sete e meia, para explicar a súbita afluência de helicópteros com registros britânicos aqui, e para informar quanto tempo eles pretendem ficar. — Newbury, um homem pequeno e magro, com cabelos cor de areia, olhos azuis e um nariz proeminente, estava visivelmente irritado. — Fico satisfeito com os nove em dez, você quer um drinque?

       — Obrigado. Um uísque com soda. Newbury foi preparar.

       — O meu Líder Destemido e eu ficaríamos encantados se você nos sugerisse o que dizer.

       Gavallan pensou por um momento.

       — Os helicópteros sairão daqui assim que conseguirmos embarcá-los nos aviões de carga.

       — E quando vai ser isso? — Newbury entregou-lhe o drinque.

       — Obrigado. Os aviões de carga estão prometidos para domingo, por volta das 18 horas. Nós vamos trabalhar a noite inteira e os despacharemos na segunda-feira de manhã.

       Newbury ficou alarmado.

       — Você não pode tirá-los daqui antes disso?

       — Os aviões foram encomendados para amanhã, mas me deixaram na mão. Por quê?

       — Porque, meu velho, há poucos minutos atrás nós recebemos uma informação amável, de alta fonte, de que caso os helicópteros não estejam mais aqui amanhã ao anoitecer, talvez eles não sejam apreendidos.

       Agora foi a vez de Gavallan levar um choque.

       — Isso não é possível. Não pode ser feito.

       — Eu estou sugerindo que seria prudente que você tornasse isso possível. Leve-os para Omã ou Dubai ou qualquer outro lugar.

       — Se fizermos isso... se fizermos isso, ficaremos mais encrencados ainda.

       — Não acho que você possa ficar mais encrencado do que já está, meu velho. Da forma como nos passaram esta informação, amanhã ao anoitecer você vai estar encrencado até o pescoço. — Newbury brincou com o seu drinque, uma batida de limão. Que droga tudo isso, ele estava pensando. Enquanto somos obrigados a ajudar a salvar os nossos interesses comerciais da catástrofe do Irã, temos que pensar tanto a longo prazo como a curto prazo. Não podemos pôr em risco o governo de Sua Majestade. Além disso, meu fim-de-semana está arruinado. Eu deveria estar tomando um gostoso aperitivo de vodca com Angela e aqui estou eu, me aborrecendo. — Você vai ter que retirá-los.

       — Você não pode nos conseguir um adiantamento de 48 horas, explicar Que os aviões de carga foram contratados mas que só pode ser no domingo?

       — Eu não ousaria sugerir isto, Andy. Isto seria admitir a nossa culpa.

       — Você poderia nos conseguir uma licença de trânsito de 48 horas para Omã?

       Newbury fez uma careta.

       — Vou perguntar ao chefe, mas não poderemos sondá-los até amanhã, agora é tarde demais, e o meu palpite é que o pedido será negado. O Irã tem uma força considerável lá, afinal de contas eles realmente ajudaram a derrotar os rebeldes comunistas apoiados pelo Iemen. Duvido que eles concordem em ofender um grande amigo, por mais que a atual linha fundamentalista os desagrade.

       Gavallan estava se sentindo mal.

       — É melhor eu ver se consigo trazer os meus aviões de carga ou tentar uma outra alternativa. Eu diria que tenho uma chance em cinqüenta. — Ele terminou o drinque e se levantou. — Sinto muito por tudo isto.

       Newbury também se levantou.

       — Sinto muito não poder ajudar mais — disse, genuinamente aborrecido. — Mantenha-me informado e eu farei o mesmo.

       — É claro. Você disse que talvez pudesse mandar uma mensagem para o capitão Yokkonen em Tabriz?

       — Posso tentar. O que é?

       — Só que eu mandei dizer que ele deve, ahn, partir o mais cedo possível, pelo caminho mais curto. Por favor, assine GHPLX Gavallan.

       Sem fazer nenhum comentário, Newbury tomou nota da mensagem.

       — GHPLX?

       — Sim. — Gavallan tinha certeza de que Erikki entenderia que este era o novo registro britânico. — Ele não está a par de certos acontecimentos, então, se o seu homem pudesse também falar com ele em particular e explicar o motivo de tanta pressa, eu ficaria muito agradecido. Obrigado pela sua ajuda.

       — Para o seu bem, e o dele, eu concordo que quanto mais cedo ele partir melhor, com ou sem o helicóptero. Não há nada que possamos fazer para ajudá-lo. Sinto muito, mas esta é a verdade. — Newbury brincou com o copo. — Ele agora representa um enorme perigo para você. Não?

       — Eu acho que não. Ele está sob a proteção do novo khan, cunhado dele. Ele está bastante seguro — disse Gavallan. O que Newbury diria se soubesse sobre Tom Lochart? — Erikki vai ficar bem, ele vai entender. Mais uma vez obrigado.

      

       TABRIZ — NO HOSPITAL INTERNACIONAL: 18:24H. Hakim Khan caminhou penosamente para o quarto particular, seguido por um médico e por um guarda. Ele estava usando muletas e estas faziam com que andasse com mais facilidade, mas quando se inclinava ou tentava sentar, elas não lhe aliviavam a dor. Isto só os analgésicos conseguiam fazer. Azadeh estava esperando lá embaixo, seu raio-X fora melhor do que o dele, e ela sentia menos dor.

       Ahmed estava deitado na cama, acordado, com o peito e o estômago envolto em ataduras. A operação para remover a bala alojada no seu peito tinha sido bem-sucedida. A do estômago fizera muitos estragos, ele perdera muito sangue e a hemorragia interna tinha recomeçado. Mas quando ele viu Hakim tentou levantar-se.

       — Não se mexa, Ahmed — disse Hakim, com bondade. — O médico me disse que você está se recuperando bem.

       — O médico é um mentiroso, Alteza.

       O médico começou a falar, mas parou quando Hakim disse:

       — Mentiroso ou não, fique bom, Ahmed.

       — Sim, Alteza, com a ajuda de Deus. Mas e o senhor, o senhor está bem?

       — Se o raio-X não tiver mentido, eu estou apenas com uma rotura de ligamentos. — E deu de ombros. — Com a ajuda de Deus.

       — Obrigado... Obrigado pelo quarto particular, Alteza. Eu nunca tive tanto conforto.

       — Isto é apenas uma prova do meu reconhecimento por tanta lealdade. — Com um gesto imperioso, ele mandou que o guarda e o médico saíssem. Depois que a porta foi fechada, ele chegou mais perto. — Você pediu para me ver, Ahmed?

       — Sim. Alteza, por favor, desculpe-me por não ter podido... não ter podido ir até o senhor. — A voz de Ahmed estava fraca e ele falava com dificuldade. — O homem de Tbilisi que o senhor quer... o soviético... ele mandou uma mensagem para o senhor. Está... está debaixo da gaveta... ele a prendeu aqui debaixo da gaveta. — Com esforço ele apontou para uma pequena cômoda.

       A excitação de Hakim cresceu. Ele enfiou a mão por baixo da gaveta. As ataduras que o envolviam não deixavam que ele se inclinasse direito. Encontrou o papelzinho dobrado e retirou-o com facilidade.

       — Quem trouxe isto e quando?

       — Foi hoje... não sei a que horas... Não tenho certeza, acho que foi esta tarde. Não sei. O homem estava usando um jaleco de médico e óculos,

       mas não era um médico. Era um azerbeidjano, talvez um turco, eu nunca o tinha visto antes. Ele falou em turco, e tudo o que disse foi: "Isto é para Hakim Khan, de um amigo de Tbilisi. Compreendeu?" Eu disse que sim e ele saiu tão depressa quanto tinha entrado. Por algum tempo achei que fora um sonho...

       A mensagem estava rabiscada numa letra que Hakim não reconheceu: "Meus sinceros parabéns pela sua herança. Que o senhor possa ter uma vida longa e ser tão produtivo quanto o seu predecessor. Sim, eu também gostaria de encontar-me urgentemente com o senhor. Mas aqui, não aí. Desculpe. Assim que o senhor estiver pronto, eu ficarei honrado em recebê-lo, com pompa ou em particular, o que o senhor preferir. Nós deveríamos ser amigos, há muito o que fazer e nós temos muitos interesses em comum. Por favor, diga a Robert Armstrong e a Hashemi Fazir que Yazernov está enterrado no cemitério russo em Jaleh e que está ansioso para vê-los assim que for conveniente." Não havia nenhuma assinatura.

       Muito desapontado, ele voltou para perto da cama e entregou o papel a Ahmed.

       — Como você interpreta isto?

       Ahmed não teve forças para segurar o papel.

       — Desculpe, Alteza, por favor, segure-o para que eu possa ler. — Depois de ler, ele disse: Não é a letra de Mzytryk, eu... eu reconheceria a sua letra mas... mas acredito que seja genuíno. Ele deve ter transmitido a mensagem para... para os seus subordinados...

       — Quem é Yazernov e o que ele quer dizer com isto?

       — Eu não sei. É um código... um código que eles vão entender.

       — Ou é um convite para um encontro ou uma ameaça. Qual dos dois?

       — Eu não sei, Alteza. Acho que é um encontro. — Ele teve um espasmo de dor e praguejou na sua própria língua.

       — Mzytryk sabe que nas duas últimas vezes eles estavam à espreita? Ele sabe que Abdullah Khan o traiu?

       — Eu... eu não sei, Alteza. Eu lhe disse que ele era esperto e que o khan, seu pai, tomava muito cuidado com ele. — O esforço de falar e de se concentrar estava tirando as forças de Ahmed. — O fato de Mzytryk saber que eles estão em contato com o senhor... que ambos estão aqui agora, não significa nada, ele tem espiões em toda parte. O senhor é o khan e é claro... é claro que o senhor sabe que... que é espionado por todo tipo de homens, a maioria maus, que comunicam tudo aos seus superiores — na maioria piores ainda. — Ele sorriu e Hakim ficou pensando o que significaria o sorriso. — Mas, por outro lado, o senhor sabe esconder os seus verdadeiros propósitos, Alteza. Abdullah Khan nunca suspeitou o quanto o senhor é brilhante, nem uma vez. Se... se ele tivesse sabido o quanto o senhor vale, ele nunca o teria banido, mas tê-lo-ia feito seu herdeiro e conselheiro.

       — Ele teria me mandado matar. — Nem por um segundo Hakim Khan ficou tentado a contar a Ahmed que fora ele próprio que enviara os assassinos que Erikki matara, nem sobre a tentativa de envenenamento que também havia falhado. — Há uma semana atrás ele teria ordenado que eu fosse mutilado e você o teria feito alegremente.

       Ahmed olhou para ele, com olhos fundos que refletiam a face da morte

       — Como é que o senhor sabe de tanta coisa?

       — É a vontade de Deus.

       O fim começara. Os dois homens sabiam disto. Hakim disse:

       — O coronel Fazir mostrou-me um telex acerca de Erikki. — E contou o conteúdo do telex a Ahmed. — Agora eu não tenho Mzytryk para servir de barganha, não imediatamente. Posso entregar Erikki a Fazir ou então ajudá-lo a fugir. De qualquer maneira minha irmã prometeu ficar aqui e não pode ir com ele. Qual é o seu conselho?

        — Para o senhor é mais seguro entregar o infiel ao coronel como pishkesh e fingir para ela que não pôde fazer nada para impedir... para impedir a prisão. Na verdade, não há nada que o senhor possa fazer se o coronel decidir que vai ser assim. Ele, o da Faca, ele vai resistir e portanto vai ser morto. Então o senhor pode prometê-la secretamente para o homem de Tbilisi... Mas não entregá-la nunca, assim o senhor poderá controlá-lo... embora eu duvide.

       — E se ele, o da Faca, "conseguir" fugir?

        — Se o coronel permitir isso, ele exigirá um pagamento.

       — E qual será?

       — Mzytryk. Agora ou no futuro. Enquanto ele, o da Faca, viver, Alteza, ela nunca se divorciará dele. Esqueça-se do Sabotador, ele pertence a uma outra vida, e quando os dois terminarem, ela irá ao encontro dele, isto é, se ele permitir que ela fique aqui. Eu duvido que até mesmo o senhor, Alteza... — Os olhos de Ahmed se fecharam e um tremor o percorreu.

       — O que aconteceu com Bayazid e os bandidos? Ahmed... Ahmed não o escutou. Ele estava vendo as estepes, as vastas planícies da sua terra e da terra dos seus ancestrais, o mar de grama de onde os seus antepassados tinham vindo para cavalgar ao lado dos exércitos de Gengis Khan, e depois ao lado dos exércitos de seu neto, Kublai Khan e seu irmão Hulagu Khan, que invadiram a Pérsia e ergueram montanhas de crânios dos que se opuseram a eles. E que permaneceram aqui nas terras douradas desde tempos muito remotos. Ahmed pensou, terras de vinho, calor e riqueza, de mulheres de grande beleza e sensualidade, valorizadas desde tempos muito antigos como Azadeh... ah agora eu nunca a possuirei como ela deveria ser possuída, arrastada pelos cabelos como um despojo de guerra, carregada na sela de um cavalo para ser possuída e domada sobre peles de lobos...

       De muito longe, ele ouviu a sua própria voz dizendo:

       — Por favor, Alteza, eu lhe imploro um favor, eu gostaria de ser enterrado na minha própria terra e de acordo com os nossos costumes... — Então eu poderei viver para sempre com os espíritos dos meus ancestrais, ele pensou, atraído por aquela terra encantadora.

       — Ahmed, o que aconteceu com Bayazid e os bandidos quando vocês pousaram?

       Com muito esforço, Ahmed voltou.

       — Eles não eram curdos, eram apenas nativos fingindo ser curdos e ele, o da Faca, os matou a todos, Alteza, com enorme brutalidade — disse com estranha formalidade. — Na sua loucura, ele os matou a todos, com faca, revólver, mãos, pés e dentes, a todos, exceto Bayazid que, por causa do juramento feito ao senhor, não podia atacá-lo.

       — Ele o deixou vivo? — Hakim perguntou, incrédulo.

       — Sim, que Deus lhe dê paz. Ele... ele pôs um r-e-vólver na minha mão e segurou Bayazid perto do revólver e eu... — Sua voz sumiu, ondas de grama o chamavam se estendendo até o horizonte.

       — Você o matou?

       — Oh, sim, olhando... Olhando dentro dos olhos dele. — A voz de Ahmed encheu-se de raiva. — O filho de um... um cão atirou em mim pelas costas, duas vezes, sem honra e sem... e sem virilidade, o filho de um cão. — Os lábios sem sangue sorriram e ele fechou os olhos. Ele estava morrendo, suas palavras eram quase imperceptíveis. — Eu me vinguei.

       Hakim falou rapidamente:

       — Ahmed, o que foi que você não me disse e que eu preciso saber?

       — Nada... — Alguns segundos depois os seus olhos se abriram e Hakim viu a morte lá dentro. — Não há nenhum outro deus além de Deus e... — um pouco de sangue escorreu-lhe pelos cantos da boca. — Eu fiz do senhor kh... — A última palavra morreu com ele.

       Hakim sentiu-se mal diante daqueles olhos parados.

       — Doutor! — gritou.

       Imediatamente o homem entrou junto com o guarda. O médico fechou os olhos dele.

       — Seja como Deus quiser. O que devemos fazer com o corpo, Alteza?

       — O que é feito em geral com os corpos? — Hakim afastou-se apoiado nas muletas e o guarda o acompanhou. Então, pensava Hakim, então, Ahmed, agora você está morto e eu estou sozinho, desligado do passado e sem obrigação para com ninguém. Você me fez khan? Era isso o que você ia dizer? Você sabia que havia buracos ocultos naquele quarto também?

       E deu um sorriso. Depois seu rosto endureceu. Agora é a vez do coronel Fazir e de Erikki, Ele, o da Faca, como você o chamava.

      

       NO PALÁCIO: 18:48H. Na luz do entardecer, Erikki consertava cuidadosamente um dos buracos de bala no pára-brisa de plástico do 212 com fita adesiva. Era difícil com o braço na tipóia, mas sua mão era forte e o ferimento do braço ia ficar bom — não havia sinal de infecção. Ele estava com a orelha coberta de curativos, parte do seu cabelo tinha sido raspado por medida de higiene, e ele estava melhorando rapidamente. Seu apetite era bom. As horas de conversa que tivera com Azadeh tinham-lhe proporcionado bastante paz de espírito.

       É só isso, pensou, é só uma medida, não o suficiente para perdoar as matanças ou o perigo que eu represento. Então que seja. Foi assim que os deuses me fizeram e é assim que eu sou. Sim, mas e quanto a Ross e Azadeh? E por que ela guarda o kookri tão perto dela:

       — Foi o presente dele para você, Erikki, para você e para mim. - Traz má sorte dar uma faca a um homem sem receber dinheiro em troca, na mesma hora, só como um símbolo. Quando eu o vir, vou lhe dar algum dinheiro e aceitar o presente.

       Mais uma vez ele apertou o botão de arranque. Mais uma vez o motor pegou, tossiu e morreu. E quanto a Ross e Azadeh?

       Ele se sentou na porta da cabine e olhou para o céu. O céu não lhe deu nenhuma resposta. Nem o pôr-do-sol. O sol estava se pondo e havia nuvens ameaçadoras. Os chamados dos muezins começaram. Os guardas do portão viraram-se de frente para Meca e se prostraram; assim como os que estavam dentro do palácio e os que estavam trabalhando nos campos, na fábrica de tapetes e nos abrigos de ovelhas.

       Inconscientemente, sua mão se dirigiu para a faca. Inconscientemente, seus olhos verificaram se a metralhadora ainda estava ao lado do assento do piloto e carregada. Havia outras armas escondidas na cabine, armas tiradas dos nativos. AK47s e M16s. Ele não se lembrava de tê-las tirado ou de tê-las escondido, descobrira-as esta manhã ao fazer a sua inspeção para ver os estragos e enquanto limpava o interior da cabine.

       Com o curativo na orelha, ele não ouviu o carro que se aproximava até que este apareceu no portão. Os guardas do khan reconheceram os ocupantes e fizeram sinal para o carro passar. Este parou no enorme pátio, perto da fonte. Mais uma vez ele apertou o botão de arranque, e mais uma vez o motor pegou por um momento, sacudiu todo o aparelho e morreu.

       — Boa noite, capitão — disseram os dois homens, Hashemi Fazir e Armstrong. — Como o senhor está se sentindo hoje? — perguntou o coronel.

       — Boa noite. Se eu tiver sorte, dentro de mais ou menos uma semana estarei melhor do que nunca. — Erikki disse amavelmente, mas pondo-se em guarda.

       — Os guardas disseram que Suas Altezas ainda não voltaram. O khan está nos esperando, nós viemos aqui a convite dele.

       — Eles estão sendo radiografados no hospital. Eles saíram enquanto eu estava dormindo, não devem demorar. — Erikki observou-os. — Os senhores gostariam de um drinque? Há vodca, uísque e chá e, é claro, café.

       — Obrigado, o que o senhor for tomar — disse Hashemi. — Como está o seu helicóptero?

       — Mal — respondeu aborrecido. — Há uma hora que estou tentando fazê-lo pegar. Ele teve uma semana miserável. — Erikki foi na frente em direção aos degraus de mármore. — Estou precisando urgentemente de um mecânico. Nossa base está fechada, como vocês sabem, e eu tentei telefonar para Teerã, mas os telefones estão mudos de novo.

       — Talvez eu possa lhe arranjar um mecânico, amanhã ou depois, da base aérea.

       — Poderia mesmo, coronel? — O seu sorriso foi súbito e grato. — Isto ajudaria um bocado. E eu preciso de combustível, um tanque cheio. Seria possível?

       — Você poderia voar até o campo de aviação?

       — Eu não me arriscaria, mesmo que conseguisse fazer o motor pegar, seria perigoso demais. Não, eu não me arriscaria. — Erikki sacudiu a cabeça. — O mecânico vai ter que vir aqui. — Ele foi andando por um corredor comprido, abriu a porta que dava para o pequeno salão do andar térreo que Abdullah Khan reservara para convidados não-islâmicos. Era chamado Salão Europeu. O bar era bem sortido. Havia sempre gelo na geladeira, gelo feito com água fervida, soda e refrigerantes de todos os tipos, além de chocalate e halvah, que ele adorava.

       — Eu vou tomar vodca — disse Erikki.

       — O mesmo para mim, por favor — disse Armstrong. Hashemi pediu um refrigerante.

       — Eu também vou tomar uma vodca depois que o sol terminar de se pôr.

       — Os muezins ainda estavam chamando.

       — Prosit! — Erikki tocou o seu copo no de Armstrong, educadamente fez o mesmo com Hashemi, e bebeu tudo de um só gole. Serviu-se de outra dose.

       — Sirva-se, superintendente. — Ao ouvir um carro se aproximando, ele olhou pela janela. Era o rolls. — Dêem-me licença um minuto, vou dizer a Hakim Khan que os senhores estão aqui. — Erikki saiu e recebeu Azadeh e o irmão na escada. — O que foi que as radiografias mostraram?

       — Nenhum sinal de ossos quebrados em nenhum de nós. — Azadeh estava contente, com o rosto descansado. — Como você está, meu querido?

       — Muito bem. Que bom que não haja nenhuma fratura nas costas de vocês. Que maravilha! — O sorriso que deu para Hakim foi genuíno. — Estou muito contente. Você tem alguns convidados, o coronel e o superintendente Armstrong. Eu os levei para o Salão Europeu. — Erikki percebeu o cansaço de Hakim. — Quer que eu diga a eles para voltarem amanhã?

       — Não, não, obrigado. Azadeh, quer dizer a eles que os verei dentro de 15 minutos, para eles ficarem à vontade? Vejo-os mais tarde, na hora do jantar.

       — Hakim viu-a tocar em Erikki, sorrir e se afastar. Como eles tinham sorte em se amarem tanto, e como isso era triste para eles. — Erikki, Ahmed está morto, eu ainda não quis contar a Azadeh.

       Erikki sentiu uma grande tristeza.

       — É por minha culpa que ele está morto. Bayazid não lhe deu nenhuma chance. Matyeryebyets!

       — Foi a vontade de Deus. Vamos entrar e conversar por um momento.

       — Hakim foi até o Grande Salão, apoiando-se nas muletas. Os guardas ficaram na porta, fora do alcance da conversa. Hakim foi até um nicho, largou as muletas, virou-se de frente para Meca, gemeu de dor ao se ajoelhar e tentou orar. Mesmo fazendo força, ele não conseguiu e teve que se contentar em entoar o Shahada. — Erikki, me ajude aqui, por favor.

       Erikki levantou-o com facilidade.

       — É melhor você não fazer isto por uns dias.

       — Não rezar? — Hakim olhou-o espantado.

       — Quer dizer... talvez o único Deus possa entender se você rezar em pé, sem se ajoelhar. Se não você vai piorar as suas costas. O médico disse o que havia de errado?

       — Ele acha que são ligamentos rompidos. Irei a Teerã assim que puder, com Azadeh, para consultar um especialista. — Erikki estendeu as muletas para Hakim. — Obrigado. — Depois de pensar por um momento, ele escolheu uma cadeira em lugar das almofadas e sentou-se, e depois pediu chá.

       A mente de Erikki estava em Azadeh. Tão pouco tempo.

       — O melhor especialista de coluna do mundo é Guy Deschamp, em Londres. Ele me consertou em cinco minutos, depois dos médicos terem dito que eu teria que ficar em tração por três meses ou ficaria com dois discos rompidos. Não acredite num médico comum sobre as suas costas, Hakim. O máximo que eles podem fazer é lhe dar analgésicos.

       A porta se abriu. Um criado trouxe o chá. Hakim mandou-o sair junto com os guardas.

       — Veja que eu não seja interrompido. — O chá estava quente, perfumado com hortelã, doce e servido em pequenas xícaras de prata. — Agora, nós precisamos decidir o que você vai fazer. Você não pode ficar aqui.

       — Concordo — disse Erikki, satisfeito por ter terminado a espera. — Sei que eu sou... eu sou um problema para você como khan.

       — Parte do acordo que eu e Azadeh fizemos com meu pai, para sermos perdoados e para que eu fosse declarado seu herdeiro, foram os juramentos que fizemos de permanecer em Tabriz, no Irã, por dois anos. Assim, embora você tenha que partir, ela não pode.

       — Ela me contou sobre os juramentos.

       — É óbvio que você está em perigo, até mesmo aqui. Eu não posso protegê-lo contra a polícia e contra o governo. Você deve partir imediatamente, voar para fora do país. Dentro de dois anos, quando Azadeh puder partir, ela irá.

       — Não posso partir. Fazir disse que me mandaria um mecânico amanhã, possivelmente. E combustível. Se eu conseguisse falar com McIver em Teerã, ele poderia mandar alguém até aqui.

       — Você já tentou?

       — Sim, mas os telefones ainda estão mudos. Eu teria usado o HF da nossa base, mas o escritório está totalmente destruído. Eu sobrevoei a base quando estava vindo para cá, está uma bagunça, não há viaturas nem tambores de gasolina. Quando eu chegar a Teerã, McIver poderá enviar um mecânico para cá para consertar o 212. Até ele poder voar, pode ficar onde está.

       — Sim. É claro. — Hakim serviu-se de mais chá, convencido agora de que Erikki não sabia nada a respeito da fuga dos outros pilotos e dos helicópteros. Mas isso não muda nada, disse a si mesmo. — Não há nenhuma linha aérea servindo Tabriz ou eu providenciaria alguma dessas coisas para você. Mesmo assim, ainda acho que você deveria partir imediatamente. Você está correndo muito perigo, um perigo iminente.

       Erikki estreitou os olhos.

       — Você tem certeza?

       — Sim.

       — O que é?

       — Não posso dizer-lhe. Mas não está sob meu controle, é sério, imediato, não diz respeito a Azadeh no momento, mas poderia afetá-la se não formos cautelosos. Para proteção dela, isto deve ficar entre nós dois. Eu lhe darei um carro, qualquer um que você queira dos que estão na garagem. Há cerca de vinte, creio. O que aconteceu com o seu Range Rover?

       Erikki deu de ombros, com a mente trabalhando.

       — Isto é outro problema, o fato de ter matado aquele matyeryebyets daquele mujhadin que tomou os meus documentos e os de Azadeh, e depois Rakoczy fulminou os outros.

       — Eu tinha me esquecido de Rakoczy. — Hakim tornou a insistir: — Não há rt-mito tempo.

       Erikki movimentou a cabeça para aliviar a tensão dos músculos e diminiur a dor.

       — Até que ponto o perigo é imediato, Hakim? Hakim sustentou-lhe o olhar.

       — Imediato o suficiente para eu sugerir a você que espere até escurecer e depois apanhe o carro e parta e saia do Irã o mais rápido que puder — acrescentou deliberadamente. — Imediato o bastante para saber que se você não o fizer, Azadeh sofrerá mais ainda. Imediato o suficiente para saber que você não deve dizer nada a ela antes de partir.

       — Você jura?

       — Diante de Deus, eu juro que acredito no que estou dizendo.

       Ele viu Erikki franzir a testa e esperou pacientemente. Gostava da sua honestidade e da sua simplicidade, mas isso não pesava nada na balança.

       — Você pode partir sem dizer nada a ela?

       — Se for durante a noite, perto do amanhecer, contanto que ela esteja dormindo. Seu eu partir hoje à noite, fingindo que vou sair, digamos para ir até a base, ela ficará esperando por mim, e se eu não voltar, será muito difícil, para ela e para você. Ela tem pesadelos com a aldeia, ficará histérica. Uma partida secreta seria mais prudente, pouco antes do amanhecer. Ela estará dormindo, o médico lhe deu sedativos. Ela estará dormindo e eu poderia deixar um "bilhete.

       Hakim concordou, satisfeito.

       — Então está combinado. — Ele não queria nenhum problema para Azadeh ou causado por ela.

       Erikki tinha percebido a determinação dele e soube, sem sombra de dúvida, que se a deixasse agora perdê-la-ia para sempre.

      

       NA CASA DE BANHOS: 19:15H. Azadeh enfiou-se na água quente até o pescoço. A banheira era lindamente trabalhada, com 15 metros quadrados e vários níveis, rasa de um lado com plataformas para a pessoa se recostar, e a água quente vinha de uma fornalha que ficava no quarto ao lado. A sala era quente e grande, um lugar alegre, com espelhos. Seu cabelo estava enrolado numa toalha e ela estava encostada numa das plataformas, com as pernas esticadas, deixando a água relaxá-la.

       — Oh, está tão bom aqui, Mina — murmurou.

       Mina era uma mulher forte, bonita, uma das três empregadas de Azadeh. Ela estava em pé na água, usando apenas uma calcinha, massageando gentilmente as costas e o pescoço de Azadeh. A sala de banho estava vazia exceto por Azadeh e a criada. Hakim tinha mandado o resto da família para outras casais em Tabriz: para preparar um Dia de Luto adequado para Abdullah Khan — tinha sido a desculpa, mas todos sabiam que os quarenta aias de espera eram para lhe dar tempo de inspecionar o palácio à sua vontade e rearrumar os aposentos da maneira que quisesse. Só o velho khan não foi incomodado, e Aysha e os s dois filhos

       Sem perturbar a tranqüilidade de Azadeh, Mina puxou-a para a parte mais rasa, e para outra plataforma, onde Azadeh ficou deitada, com a cabeça pousada confortavelmente num travesseiro, de modo que ela pudesse trabalhar no seu peito, coxas e pernas, preparando-a para a verdadeira massagem de óleo que viria mais tarde, quando ela já tivesse absorvido o calor da água.

      — Oh, isto é tão bom! — Azadeh repetiu. Ela estava pensando no quanto isto era melhor do que a sua antiga sauna, aquele calor forte e seco, e depois o terrível mergulho na neve, um choque reanimador, mas não tão bom quanto isto, a sensualidade da água perfumada e o silêncio e nenhum choque e oh, como isto é bom... mas por que a banheira é uma praça de aldeia e agora está tão frio e tem um açougueiro e o falso mulá está gritando: — Primeiro a mão direita... apedrejem a rameira! — Ela lançou um grito mudo e deu um salto.

       — Oh, eu machuquei a senhora, Alteza, sinto muito!

       — Não, não foi você, Mina, não foi nada, nada, por favor, continue. — Mais uma vez os dedos gentis. Seu coração se acalmou. Eu espero poder voltar a dormir sem... sem a aldeia. Na noite passada, com Erikki, foi bem melhor, só por estar perto dele. Talvez hoje à noite seja melhor ainda. Onde estará o Johnny. Ele deve estar a caminho de casa agora, para o Nepal, de licença. Agora que Erikki está de volta eu me sinto segura outra vez, enquanto eu estiver com ele, perto dele. Sozinha eu não... não me sinto segura, nem com Hakim. Eu não me sinto mais segura. Simplesmente não me sinto mais segura.

       A porta se abriu e Aysha entrou. Seu rosto estava marcado de tristeza, seus olhos cheios de medo, o chador preto fazendo-a parecer ainda mais abatida.

       — Olá, Aysha querida, o que foi?

       — Eu não sei. O mundo é estranho e eu não tenho... me sinto perdida.

       — Venha para dentro da banheira — disse Azadeh, com pena dela, ela parecia tão magra e velha, tão frágil e indefesa. É difícil acreditar que ela é a viúva do meu pai com um filho e uma filha, e que só tem 17 anos. — Entre, está tão bom.

       — Não, não, obrigada, eu queria apenas falar com você. — Aysha olhou para Mina, depois baixou os olhos e esperou. Há dois dias ela teria simplesmente mandado chamar Azadeh que teria ido imediatamente e se inclinado e se ajoelhado esperando pelas ordens dela, da mesma forma como ela estava ajoelhada agora. Seja como Deus quiser, pensou. Se não fosse pelo meu terror com relação ao futuro dos meus filhos, eu estaria gritando de alegria, nunca mais aquele fedor e aqueles roncos, nunca mais aquele peso em cima de mim e aqueles gemidos e os acessos de raiva, as surras e o desespero em conseguir alcançar aquilo que raramente conseguia. "A culpa é sua, é sua, é sua"... Como poderia ser minha culpa? Quantas vezes eu implorei a ele para me dizer o que eu podia fazer para ajudar, e eu tentava e tentava e no entanto era tão raro e então, de repente, o peso desaparecia, os roncos começavam e eu ficava acordada a noite inteira, deitada no suor e no fedor. Oh, quantas vezes eu quis morrer.

       — Mina, deixe-nos a sós até eu chamá-la — disse Azadeh. Ela foi obedecida instantaneamente. — Qual é o problema, Aysha querida?

       A garota tremeu.

       — Eu estou com medo. Estou com medo por meu filho e vim lhe pedir que o proteja.

       Azadeh disse bondosamente.

       — Você não tem nada a temer de Hakim Khan e de mim, nada. Nós juramos por Deus que protegeríamos você, seu filho e sua filha, você escutou, nós o fizemos na frente do seu... do seu marido, nosso pai, e depois novamente, depois da morte dele. Você não tem nada a temer, nada.

       — Eu tenho tudo a temer — a moça gaguejou. — Não estou mais em segurança, nem o meu filho. Por favor, Azadeh, Hakim Khan não poderia... não poderia... eu assinaria um papel desistindo de todos os meus direitos em nome dele, qualquer papel, eu só quero viver em paz e quero que o meu filho cresça e viva em paz.

       — A sua vida é aqui conosco, Aysha. Logo você vai ver como nós vamos ser felizes juntos. — disse Azadeh. A garota tem o direito de estar com medo, pensou. Hakim nunca vai ceder o khanato se tiver filhos. Ele tem que se casar agora, eu preciso ajudá-lo a encontrar uma boa esposa. Não se preocupe, Aysha.

       — Preocupar-me? Você está em segurança agora, você que até poucos dias atrás vivia em terror. Agora eu não estou segura e vivo aterrorizada.

       Azadeh analisou-a. Não havia nada que pudesse fazer por ela. A vida de Aysha estava decidida. Ela era a viúva de um khan. Ela ficaria no palácio, vigiada e guardada, vivendo o melhor que pudesse. Hakim não ousaria permitir que ela tornasse a se casar, e não poderia permitir que ela desistisse dos direitos do filho, garantidos pela vontade pública do marido moribundo. — Não se preocupe — disse.

       — Olhe aqui — Aysha tirou um grande envelope pardo de baixo do seu chador. — Isto é seu.

       — O que é isto? — As mãos de Azadeb estavam molhadas e ela não quis apanhar o envelope.

       A garota abriu-o e mostrou-lhe o que tinha dentro. Azadeh arregalou os olhos. Seu passaporte, carteira de identidade, e outros documentos, de Erikki também, todas as coisas que tinham sido roubadas pelo mujhadin na barreira da estrada. Isto era realmente um pishkesh.

       — Onde você conseguiu isso?

       A garota estava certa de que ninguém estava escutando, mas ainda assim baixou a voz.

       O mulá esquerdista, o mesmo mulá da aldeia, ele os entregou a Sua Alteza, Abdullah Khan, há duas semanas, quando você estava em Teerã... o mesmo mulá da aldeia.

       Azadeh ficou olhando para ela sem acreditar.

       — Como ele os conseguiu? Nervosamente, a garota deu de ombros.

       — O mulá sabia sobre a barreira e sobre o que tinha acontecido lá. Ele veio aqui para tentar apanhar o... o seu marido. Sua Alteza... — Ela hesitou, depois continuou aos cochichos. — Sua Alteza disse a ele que não, só quando ele desse a sua aprovação, mandou-o embora e guardou os papéis.

       — Você tem outros papéis, Aysha? Papéis particulares?

       — Não que digam respeito a você, nem ao seu marido. — Mais uma vez a garota tremeu. — Sua Alteza odiava tanto vocês todos. Ele queria o seu marido destruído, depois ele ia entregá-la ao soviético, e o seu irmão ia ser assassinado. Há tanta coisa que eu sei e que poderia ajudar a você e a ele, e tanta coisa que eu não entendo. Azadeh, tome cuidado com ele, Azadeh.

       — Sim — Azadeh disse lentamente. — Papai mandou o mulá para a aldeia?

       — Eu não sei. Acho que sim. Eu o ouvi pedir ao soviético para acabar com Mahmud, ah, sim, este era o nome do falso mulá. Talvez Sua Alteza tenha-o mandado lá para atormentar você e o Sabotador, mandando-o também ao encontro da própria morte. Mas Deus interveio. Eu ouvi o soviético concordar em mandar alguns homens atrás desse Mahmud.

       Azadeh perguntou como quem não quer nada:

      — Como foi que você ouviu tudo isso?

       Aysha segurou o chador e ajoelhou-se nervosamente na beirada da banheira.

       — O palácio é uma colmeia de buracos feitos para se ouvir e se ver, Azadeh. Ele... Sua Alteza não confiava em ninguém, espionava todo mundo, até a mim. Eu acho que nós devíamos ser amigas, aliadas, você e eu, nós somos indefesas, até você, talvez você mais do que qualquer um de nós e a menos que nos ajudemos mutuamente estaremos perdidas. Eu posso ajudá-la, protegê-la. — Gotas de suor apareceram-lhe na testa. — Eu só peço que você proteja o meu filho, por favor. Eu posso proteger você.

       — É claro que devemos ser amigas — disse Azadeh, sem acreditar que estivesse sob qualquer ameaça, mas curiosa de conhecer os segredos do palácio. — Você me mostra esses lugares secretos e divide comigo os seus conhecimentos?

       — Oh, sim, sim. — O rosto da garota iluminou-se. Eu vou lhe mostrar tudo e estes dois anos passarão rapidamente. Oh, sim nós vamos ser amigas.

       — Que dois anos?

       — Enquanto seu marido estiver fora, Azadeh. Azadeh se levantou, alarmada.

       — Ele vai embora? Aysha olhou-a espantada.

       — É claro. Que mais ele pode fazer?

      

       NO SALÃO EUROPEU: Hashemi estava entregando a Robert Armstrong a mensagem enviada por Mzytryk que Hakim acabara de mostrar a ele. Armstrong deu uma olhada nela:

       — Sinto muito, Hashemi, mas não sei ler turco.

       — Ah, desculpe, eu me esqueci. — Hashemi leu em inglês. Os dois homens viram a decepção de Armstrong. — Da próxima vez, Robert, nós o pegaremos, Insha’Allah.

       Não tem importância, pensou Armstrong. Foi um tiro ao acaso, de qualquer maneira. Eu pego Mzytryk de outra vez. Eu vou pegá-lo e vou pegar você, meu velho amigo Hashemi, você fez muito mal em matar Talbot. Por que fez isso? Vingança, porque ele conhecia muitos dos seus segredos? Ele não lhe faria nenhum mal, pelo contrário, ele tirou muitos ossos do seu caminho e consertou um bocado de erros para você. Droga! Você não lhe deu nenhuma chance, então por que você deveria ter uma? Assim que eu tiver conseguido uma saída, você está frito. Não há nenhum motivo para adiar mais isso, agora que Mzytryk sabe que eu estou atrás dele e está debochando de mim lá onde ele está seguro. Talvez os chefões mandem a Divisão Especial ou uma equipe dos Serviços Aéreos Especiais para Tbilisi agora que sabemos onde ele está — alguém vai pegar o filho da mãe. Mesmo que eu não o faça... Ele foi atraído pelas palavras de Hakim:

       — Coronel, o que significa isso, sobre Yazernov e o cemitério de Jaleh? — Hashemi respondeu prontamente:

       — É um convite, Alteza. Yazernov é um intermediário que Mzytryk usa às vezes, aceito pelos dois lados, quando algo de importância para os dois lados precisa ser discutido.

       Armstrong quase riu, pois Hashemi sabia tão bem quanto ele que se tratava de uma promessa de vingança pessoal e, evidentemente, de uma imediata Seção 16/a. Esperto da parte de Mzytryk usar o nome Yazernov e não Rakoczy.

       — Assim que for conveniente encontrar Yazernov — disse Hashemi. — Eu acho, Alteza, que é melhor nós voltarmos para Teerã amanhã.

       — Sim — concordou Hakim. Voltando do hospital de carro com Azadeh, ele tinha decidido que a única maneira de lidar com a mensagem de Mzytryk e com estes dois homens era cara a cara. — Quando vocês voltarão a Tabriz?

       — Se estiver bem para o senhor, na semana que vem. Então nós poderemos discutir como atrair Mzytryk para cá. Com a sua ajuda, há muito a ser feito no Azerbeijão. Nós acabamos de receber um relatório comunicando que os curdos estão em rebelião perto de Rezaiyeh, agora bem providos de armas e dinheiro fornecidos pelo Iraque, que Deus os amaldiçoe. Khomeini ordenou ao Exército que acabasse com eles de uma vez por todas.

       — Com os curdos? — Hakim sorriu. — Nem mesmo ele, que Deus o proteja, nem mesmo ele vai conseguir fazer isto, não de uma vez por todas.

       — Talvez desta vez ele consiga, Alteza. Ele está enviando fanáticos para lutar contra fanáticos.

       — Os Faixas Verdes podem obedecer ordens e morrer mas eles não habitam estas montanhas, eles não têm a resistência dos curdos nem o seu desejo pela liberdade na terra a caminho do paraíso.

       — Com a sua permissão, eu comunicarei o seu conselho, Alteza. Hakim disse asperamente:

       — Será que darão mais crédito a mim do que deram aos conselhos do meu pai, ou do meu avô, que foram os mesmos?

       — Eu espero que sim, Alteza. Eu espero... — Suas palavras foram abafadas pelo barulho do 212 que foi ligado, pegou, tossiu, se agüentou por um momento e tornou a morrer. Pela janela, eles viram Erikki tirar a tampa de um dos motores e ficar olhando para o problema que havia lá dentro com um lanterna. Hashemi tornou a voltar-se para o khan que estava sentado numa cadeira, com as costas retas. O silêncio se tornou complicado, com as mentes de três homens trabalhando, todas igualmente poderosas, todas inclinadas para algum tipo de violência.

       Hakim Khan disse cautelosamente:

       — Ele não pode ser preso na minha casa nem nos meus domínios. Muito embora ele não saiba nada do que está no telex, ele sabe que não pode ficar em Tabriz, nem mesmo no Irã, e que minha irmã não pode ir com ele nem deixar o Irã nos próximos dois anos. Ele sabe que tem que partir imediatamente. O seu aparelho não pode voar. Eu espero que ele não se deixe prender.

       — Minhas mãos estão atadas, Alteza — a voz de Hashemi era apologética e aparentemente sincera. — É meu dever obedecer à lei do país. — Distraidamente ele notou um fio de linha na manga e tirou-o. Armstrong compreendeu o sinal imediatamente. Limpar a manga esquerda significava: "Eu preciso falar com este homem em particular, ele não vai falar na sua frente. Arranje uma desculpa e espere por mim lá fora." — Hashemi repetiu com a mesma tristeza na voz: — É nosso dever obedecer à lei.

       — Eu tenho certeza absoluta de que ele não tomou parte em nenhuma conspiração, não sabe nada a respeito da fuga dos outros, e eu gostaria que ele pudesse partir em paz.

       — Eu terei prazer em informar à Savama dos seus desejos.

       — Eu ficaria satisfeito se o senhor fizesse o que estou sugerindo.

       — Alteza, se o senhor me der licença, a questão do capitão não é da minha alçada e eu não gostaria de me meter em questões de Estado — disse Armstrong.

       — Sim, o senhor pode ir, superintendente. Quando eu vou receber o seu relatório sobre as novas medidas de segurança?

       — Estará nas suas mãos quando o coronel voltar.

       — Que a paz esteja com o senhor.

       — E com o senhor também, Alteza. — Armstrong saiu, depois caminhou devagar pelos corredores até a escada. Hashemi vai espremer o infeliz, pensou.

       A noite estava agradável, havia uma brisa fresca e o céu estava avermelhado para o lado do oeste. Céu vermelho à noite, alegria do pastor, céu vermelho de manhã, um aviso para o pastor.

       — Boa noite, capitão. Entre nós dois e esta parede, se o seu ônibus estivesse funcionando, eu sugeriria uma viagem rápida até uma fronteira.

       Erikki estreitou os olhos.

       — Por quê?

       Armstrong apanhou um cigarro.

       — O clima não anda muito saudável por aqui, não acha? — Ele protegeu o isqueiro com as mãos e acendeu-o.

       — Se você acender um cigarro com toda esta gasolina em volta, o seu clima e o meu deixarão de ser saudáveis permanentemente. — Erikki apertou o botão. O motor funcionou perfeitamente por vinte segundos, depois tornou a morrer. Erikki praguejou.

       Armstrong cumprimentou-o educadamente e se afastou, voltando para o carro. O motorista abriu a porta para ele. Ele entrou, acendeu o cigarro e tragou profundamente, sem saber se Erikki tinha compreendido a mensagem. Espero que sim. Não posso contar-lhe sobre o telex forjado, nem sobre Turbilhão, isto me poria no paredão por traição a Hashemi e ao khan por meter o meu nariz onde não sou chamado, eu fui avisado. Está certo. É uma questão de política interna.

       Cristo! Estou nervoso com tudo isso. Preciso de umas férias. Umas longas férias. Onde? Eu poderia voltar para Hong Kong por uma ou duas semanas, visitar os meus velhos amigos, os poucos que sobraram, ou talvez ir para o Pays d'Enhaut, esquiar. Há anos que não esquio e uma boa cozinha suíça me faria bem, roesti, wurst e um bom café com creme e montes de vinho. Montes! É o que eu vou fazer. Primeiro Teerã, depois tratar de Hashemi, e depois em direção à natureza. Talvez eu conheça alguém interessante...

       Mas as pessoas como nós não voltam do frio e não mudam. Que diabo eu vou fazer para ganhar dinheiro no futuro, agora que a minha pensão iraniana foi pro brejo e a pensão que recebo da polícia de Hong Kong cada dia vale menos?

       —- Olá, Hashemi, como foi?

       — Ótimo, Robert. Motorista, volte para o QG. — O motorista acelerou, passou pelo portão e tomou a estrada em direção à cidade. — Erikki vai fugir de madrugada, pouco antes do amanhecer. Nós vamos segui-lo até onde acharmos conveniente e então o prenderemos, fora de Tabriz.

       — Com a bênção de Hakim?

       — Bênção particular, indignação pública. Obrigado — Hashemi aceitou o cigarro, muito satisfeito consigo mesmo. — Nessa altura, o infeliz provavelmente já estará morto.

       Armstrong ficou imaginando qual teria sido o acordo.

       — Por sugestão de Hakim?

       —É claro.

       — Interessante. — Isso não foi idéia de Hakim. O que estará Hashemi tramando agora? Armstrong perguntou a si mesmo.

       — Sim, interessante. Depois de acabarmos com os mujhadins hoje à noite e de nos certificarmos de que o finlandês está seguro, de um jeito ou de outro, voltaremos para Teerã.

       — Perfeito.

      

       TEERÃ - NA CASA DOS BAKRAVAN: 20:06H. Xarazade colocou a pistola e a granada na bolsa e escondeu-a debaixo de algumas roupas na gaveta da sua cômoda. As roupas que ela iria usar mais tarde, uma jaqueta de esqui com um suéter grosso por baixo e calças de esqui, já estavam escolhidas. Agora ela usava um vestido de seda verde pálido, de Paris, que realçava a sua silhueta e as suas longas pernas. A sua maquilagem também estava perfeita. Ela deu uma última olhada no quarto e depois desceu para a recepção em honra de Danoush Farazan, o seu futuro marido.

       — Ah, Xarazade! — Meshang esperava na porta. Ele estava transpirando e disfarçou o nervosismo com um bom humor fingido, sem saber o que esperar dela. Quando ela voltara do médico mais cedo, ele tinha começado a brigar com ela e a ameaçá-la, mas, inacreditavelmente, ela simplesmente baixara os olhos e dissera documente:

       — Não precisa dizer mais nada, Meshang. Deus já decidiu, por favor, desculpe-me, eu vou trocar de roupa. — E agora ela estava lá, ainda dócil.

       E é bom que esteja, ele pensou.

       — Sua Excelência Farazan está ansioso por cumprimentá-la. — Ele tomou-lhe o braço e conduziu-a pela sala, no meio das vinte pessoas aproximadamente que estavam lá, a maioria amigos dele com as esposas, Zarah e algumas de suas amigas, e nenhum amigo de Xarazade. Ela sorriu para aqueles que conhecia e depois dedicou toda a sua atenção a Danoush Farazan.

       — Saudações, Excelência — disse educadamente e estendeu-lhe a mão. Esta era a primeira vez que ela o via tão de perto. Ele era mais baixo do que ela. Ela baixou os olhos para os poucos fios de cabelo pintado sobre a calva grosseira, a pele grossa e as mãos mais grosseiras ainda, com o mau hálito dele invadindo o espaço que os separava, os olhinhos escuros brilhando. — Que a paz esteja com o senhor.

       — Saudações, Xarazade, que a paz esteja com você, mas por favor, não me chame de Excelência. Como... como você é linda.

       — Obrigada — ela disse e observou a si mesma retirando a mão e o sorriso, ficando em pé ao lado dele, correndo para trazer-lhe um refrigerante, com as saias voando, servindo-o gentilmente, sorrindo das bobagens que ele dizia, cumprimentando os outros convidados, fingindo não reparar nos seus olhares e nos sorrisos disfarçados, nunca exagerando a sua performance, com o pensamento fixo no comício na universidade que já tinha começado, e na Marcha de Protesto que fora proibida por Khomeini mas que iria se realizar.

       Do outro lado da sala, Zarah estava observando Xarazade, estarrecida com a mudança, mas agradecendo a Deus por ela ter aceito o seu destino e estar disposta a obedecer, o que tornava mais fácil a vida de todos. O que mais ela poderia fazer? Nada. E não há nada que eu possa fazer a não ser aceitar o fato de que Meshang tem uma prostituta de 14 anos que já pôs as garras de fora, gabando-se de que em breve vai tornar-se sua segunda esposa.

       — Zarah!

       — Oh, sim, Meshang, meu querido.

       — A noite está perfeita, perfeita. — Meshang enxugou a testa e aceitou o refrigerante que estava na bandeja que também continha taças de champanhe para aqueles que gostavam. — Estou encantado por Xarazade ter recobrado o juízo, pois não há dúvida de que este casamento é perfeito para ela.

       — Perfeito — Zarah disse amavelmente. Acho que devemos ficar gratos por ele ter chegado sozinho e não ter trazido um dos seus amiguinhos. E é verdade, ele realmente cheira ao lixo que vende. — Você organizou tudo com perfeição, meu querido Meshang.

       — Sim, sim. Está tudo correndo conforme planejei.

      

       PERTO DE JALEH: Para alcançar a pequena pista de grama, antiga sede de um aeroclube agora abandonado, Lochart tinha contornado a cidade e voado baixo para evitar ser visto por algum radar. Durante todo o caminho desde D'Arcy 1908, ele mantivera o seu rádio sintonizado com o Aeroporto Internacional de Teerã, mas o canal estava silencioso, o aeroporto estava fechado por causa do Dia Santo, nenhum vôo tinha sido permitido. Ele tivera o cuidado de chegar ao anoitecer. Quando desligou os motores e ouviu os muezins, ficou satisfeito. Até agora tudo bem.

       A porta do hangar estava enferrujada. Com alguma dificuldade ele conseguiu abri-la e empurrou o 206 para dentro. Depois tornou a fechar a porta e começou a longa caminhada. Estava usando as suas roupas de piloto e, se fosse parado, planejava dizer que era um piloto comercial cujo carro tinha enguiçado e que ia passar a noite com alguns amigos.

       Quando chegou aos arredores de Teerã, as estradas foram se tornando cada vez mais cheias, com pessoas indo e vindo das mesquitas, sem alegria nem cor, só uma apreensão sombria.

       Não havia muito tráfego, exceto por alguns veículos militares cheios de Faixas Verdes. Não havia soldados nem policiais uniformizados. Quem controlava o tráfego eram jovens Faixas Verdes. A cidade estava voltando à ordem. Nenhuma mulher vestida com roupas ocidentais, todas usando chadors.

       Alguns xingamentos foram dirigidos a ele, não muitos. Alguns cumprimentos — o seu uniforme de piloto dava-lhe um ar de respeito. Entrando mais na cidade, ele encontrou um bom lugar para esperar por um táxi perto de um mercado. Enquanto esperava, comprou uma garrafa de refrigerante, pegou um pedaço de pão fresco e começou a mastigá-lo. O vento da noite aumentou um pouco, mas o braseiro era alegre e convidativo.

       — Saudações. Os seus documentos, por favor.

       Os Faixas Verdes eram jovens, educados, alguns com um começo de barba. Lochart mostrou-lhes a sua identidade que estava carimbada e em dia e eles a devolveram depois de alguma discussão.

       — Para onde o senhor vai, podemos saber? De propósito, num farsi atroz, ele disse:

       — Visitar amigos, perto bazar. Carro enguiçou. Insha'Allah. — Ele os ouviu falando entre eles, dizendo que pilotos eram inofensivos, que este aqui era canadense, isto não faz parte do Grande Satã? Não, acho que não.

       — Que a paz esteja com o senhor — eles disseram e se afastaram. Ele foi até a esquina e ficou olhando o tráfego, o cheiro da cidade era forte — gasolina, temperos, fruta podre, urina, suor e morte. Os seus olhos atentos enxergaram um táxi só com dois homens atrás e um na frente, numa esquina que estava bloqueada por um caminhão que fazia uma curva. Sem hesitar, ele se enfiou no meio dos carros, empurrou um outro homem, tirando-o do caminho, abriu a porta e se jogou lá dentro, pedindo muitas desculpas em farsi e implorando aos ocupantes que permitissem que ele os acompanhasse. Depois de alguns xingamentos, alguma discussão, o motorista verificou que o bazar ficava bem no caminho que ele tinha combinado com os outros, todos passageiros individuais que também tinham forçado lugar.

       — Com a ajuda de Deus, a sua parada será a segunda, Excelência.

       Eu consegui, pensou exultante, depois permitiu que outros pensamentos viessem à superfície: espero que os outros também consigam. Duke e Scrag, Rudi, todos eles, Freddy e o velho Mac.

      

       BAHRAIN — AEROPORTO INTERNACIONAL: 20:50H. Jean-Luc, em pé no heliporto, focalizou o binóculo nos dois 212 que estavam no final da pista, com as luzes de navegação acesas. Eles tinham recebido autorização para um pouso imediato e se aproximavam rapidamente. Ali perto estava uma ambulância, um médico e o funcionário da Imigração, Yusuf. O céu estava claro e coberto de estrelas, a noite agradável, com um vento fraco e quente.

       O 212 que vinha na frente virou um pouco e agora Jean-Luc pôde ler as letras do registro. G-HUVX. Britânico. Graças a Deus, eles tiveram tempo em Jellet, pensou, reconheceu Pettikin na cabine de comando, depois dirigiu o binóculo para o outro 212 e viu Ayre e Kyle, o mecânico.

       Pettikin desceu. Matias e Jean-Luc se aproximaram, Matias em direção a Pettikin, Jean-Luc à porta da cabine. Ele abriu-a.

       — Olá, Genny. Como está ele?

       — Ele não parece estar respirando. — Ela estava branca.

       Jean-Luc viu McIver deitado no chão, com um salva-vida sob a cabeça. Há vinte minutos atrás, Pettikin tinha comunicado à torre de Bahrain que um dos seus tripulantes, McIver, parecia estar sofrendo um ataque cardíaco, solicitou urgentemente um médico e uma ambulância. A torre tinha providenciado imediatamente.

       O médico entrou rapidamente na cabine e ajoelhou-se ao lado de McIver. Um olhar foi o suficiente. Ele usou a injeção que tinha preparado.

       — Isto vai fazê-lo melhorar rapidamente e nós o teremos no hospital dentro de poucos minutos. — Em árabe ele chamou os enfermeiros e eles entraram correndo. — Eu sou o dr. Lanoire, por favor, conte-me o que aconteceu.

       — É um ataque cardíaco? — Ela perguntou.

       — Sim, é. Não muito grave — disse o médico, querendo acalmá-la. Ele era meio-francês, meio-Bahrain, muito bom, e eles tinham tido sorte de consegui-lo em tão pouco tempo. Atrás dele os enfermeiros tinham posto McIver em uma maca e já o retiravam cuidadosamente do helicóptero.

       — Ele... meu marido, ele de repente engasgou e deu uma espécie de ronco, "Eu não posso respirar", depois se dobrou em dois de dor e desmaiou. — Ela limpou o suor do rosto e continuou na mesma voz neutra: — Eu achei que devia ser um ataque cardíaco e não sabia o que fazer, então me lembrei do que o velho doutor Nutt disse quando fez uma conferência para todas as esposas e abri o colarinho de Duncan e o deitamos no chão, então eu encontrei as... as cápsulas que ele nos tinha dado e coloquei uma debaixo do nariz dele e quebrei-a...

       — Nitrato?

       — Sim, foi isto. O doutor Nutt deu duas para cada uma de nós e nos disse para guardá-la em lugar seguro e nos ensinou como usá-las. O cheiro é horrível, mas Duncan gemeu e voltou a si, e depois tornou a desmaiar. Mas ele estava respirando, mal, mas respirando. Estava difícil de ver e de ouvir dentro da cabine, mas eu achei que ele tinha parado de respirar outra vez e ministrei-lhe a última cápsula, e ele pareceu melhorar de novo.

       O médico estava observando a maca. Assim que ela foi colocada dentro da ambulância, ele disse para Jean-Luc:

       — Capitão, por favor leve madame McIver para o hospital dentro de meia hora, aqui está o meu cartão, eles saberão onde me encontrar.

       Genny disse rapidamente:

      — O senhor não acha melhor... O médico respondeu com firmeza:

       — A senhora ajudará mais deixando-nos fazer o nosso trabalho durante meia hora. A senhora já fez o seu, salvou a vida dele, eu acho. — E se afastou depressa.

      

       TEERÃ — NA CASA DOS BAKRAVAN: 20:59H. Zarah estava diante da mesa, vendo se estava tudo pronto. Pratos, talheres e guardanapos de linho branco. Tijelas de horishts variados, carnes e legumes, pão fresco e frutas frescas, doces e condimentos. Só faltava trazer o arroz e isto seria feito quando ela anunciasse que o jantar estava servido.

       — Ótimo — disse para os criados e foi para a outra sala.

       Os convidados ainda estavam conversando, mas ela viu que no momento Xarazade estava sozinha, perto de Daranoush que conversava animadamente com Meshang. Disfarçando a tristeza, ela foi até lá.

       — Minha querida, você parece tão cansada. Você está se sentindo bem?

       — É claro que ela está bem — Meshang disse alto, cheio de animação. Xarazade forçou um sorriso num rosto que estava muito pálido.

       — É a excitação, Zarah, é só excitação. — Então ela disse para Farazan: — Se o senhor não se importar, Excelência Daranoush, eu não vou acompanhá-lo no jantar esta noite.

       — Por que, o que foi que houve? — Meshang disse asperamente — Você está doente?

       — Oh, não, meu querido irmão, é só excitação. — Xarazade concentrou a sua atenção no homenzinho. — Talvez eu possa vê-lo amanhã? Talvez possamos jantar juntos amanhã?

       Antes que Meshang pudesse responder por ele, Daranoush disse:

       — É claro, minha querida — aproximou-se dela e beijou-lhe a mão, e ela teve que usar toda a sua força de vontade para não recuar. — Nós jantaremos juntos amanhã. Talvez a senhora, Sua Excelência Meshang e Zarah me dêem a honra de jantar na minha pobre casa. — E deu uma risadinha. Seu rosto ficou ainda mais grotesco. — Na nossa pobre casa.

       — Obrigado, eu acho a idéia formidável. Boa noite, que a paz esteja com o senhor.

       — E com você também.

       Ela foi igualmente gentil com o irmão e Zarah, depois virou-se e saiu. Daranoush observou-a afastando-se, o balanço dos seus quadris e das nádegas. Meu Deus, olhe só para ela, ele disse a si mesmo com desejo, imaginando-a nua, mexendo-se para ele. Eu fiz um trato ainda melhor do que esperava. Quando Meshang propôs o casamento, eu só me deixei convencer pelo dote, junto com as promessas de uma futura sociedade no bazar — coisas substanciais, como evidentemente deveria ser, em se tratando de uma mulher grávida de um estrangeiro. Mas agora, por Deus, eu não acho que será difícil dormir com ela, fazê-la tratar-me como eu gosto, e talvez fazer filhos meus. Quem sabe, talvez seja como Meshang disse, talvez ela perca o que está carregando. Talvez ela o perca.

       Ele se coçou distraidamente enquanto ela saía da sala.

       — Agora, onde é mesmo que nós estávamos, Meshang?

       — Sobre a minha sugestão de um novo banco...

       Xarazade fechou a porta e subiu as escadas correndo. Jari estava no quarto dela, cochilando numa cadeira.

       — Oh, princesa, como...

       — Eu vou para a cama agora, Jari. Você pode sair e eu não quero ser incomodada, Jari, por ninguém, seja qual for o motivo. Nós conversaremos na hora do café.

       — Mas, princesa, eu vou dormir na cadeira... Xarazade bateu com os pés, aborrecida.

       — Boa noite! E eu não quero ser incomodada! — Trancou a porta depois que ela saiu, tirou os sapatos barulhentamente e depois, sem fazer barulho, trocou de roupa rapidamente. Colocou o véu e o chador. Cautelosamente, ela abriu a porta que dava para o balcão e saiu. As escadas davam para um pátio interno e lá havia um corredor que levava a uma porta nos fundos. Ela abriu os ferrolhos. As dobradiças rangeram. Então ela saiu e fechou a porta. Enquanto se afastava rapidamente, o seu chador ondulava atrás dela como se fosse uma grande asa negra.

       No salão de recepção, Zarah olhou para o relógio e foi até Meshang.

       — Querido, você gostaria que o jantar fosse servido agora?

       — Daqui a pouco, você não está vendo que Sua Excelência e eu estamos ocupados?

       Zarah suspirou, depois foi conversar com uma amiga, mas parou quando ouviu o porteiro entrar com um ar de ansiedade, e olhar em volta à procura de Meshang, depois ir rapidamente até onde ele estava e cochichar. Meshang ficou pálido. Daranoush Farazan ficou sem fala. Ela correu para eles.

       — O que está acontecendo?

       Meshang mexeu com a boca mas não produziu nenhum som. No súbito silêncio que se seguiu, o criado assustado exclamou:

       — Há alguns Faixas Verdes aqui, Alteza, Faixas Verdes e um mulá. Eles querem ver Sua Excelência imediatamente.

       No grande silêncio que se fez, todo mundo recordou a prisão de Paknouri e a intimação de Jared e todas as outras prisões, execuções e rumores de mais terror, mais komitehs, as cadeias cheias de amigos, fregueses e parentes. Daranoush estava quase louco de raiva por estar naquela casa numa hora dessas, com vontade de rasgar as roupas por ter concordado tolamente em se juntar com a família Bakravan, já condenada por causa da agiotagem de Jared — a mesma agiotagem de que eram culpados todos os prestamistas do bazar, mas só que Jared tinha sido apanhado! Filho de um cão e eu concordei publicamente com o casamento e concordei em particular em participar dos planos de Meshang, planos que agora eu posso ver, oh Deus, proteja-me, que são perigosamente modernos, perigosamente ocidentais, e claramente contra os desejos e as ordens do imã. Filho de um cão, deve haver uma saída pelos fundos desta casa de condenados.

       Os quatro Faixas Verdes e o mulá estavam na sala para onde o criado os havia levado, sentados de pernas cruzadas e recostados em almofadas de seda. Eles tinham tirado os sapatos e os deixado ao lado da porta. Os jovens estavam de olhos arregalados com a riqueza que os cercava, suas armas pousadas no tapete, ao lado deles. O mulá usava belas roupas e um bonito turbante branco e era um homem imponente de uns sessenta anos, com uma barba branca e espessas sobrancelhas escuras, um rosto forte e olhos negros.

       A porta se abriu, Meshang entrou na sala como um autômato. Ele estava branco e sua cabeça doía com a intensidade do seu terror.

       — Saudações... saudações, Excelência...

       — Saudações. O senhor é Excelência Meshang Bakravan? — Meshang balançou afirmativamente a cabeça. — Ah, então meus cumprimentos e que a paz esteja com o senhor, Excelência, por favor, desculpe-me por vir tão tarde, mas eu sou o mulá Sayani e vim em nome do komiteh. Nós acabamos de descobrir sobre Sua Excelência Bakravan e eu vim contar-lhe que embora tenha sido vontade de Deus, Sua Excelência não foi condenado de acordo com a lei, foi morto por engano, sua propriedade foi confiscada por engano, e tudo será devolvido imediatamente.

       Meshang ficou olhando para ele, sem fala.

       — O governo islâmico tem o compromisso de executar a lei de Deus. O mulá franziu as sobrancelhas enquanto continuava: — Deus sabe que nós não podemos controlar todos os fanáticos ou ignorantes. Deus sabe que há alguns que, por excesso de zelo, cometem erros. E Deus sabe também que há muitos que usam a revolução para fazer o mal, sob uma capa de 'patriotismo', muitos que torcem o Islã para atender aos propósitos sujos, muitos que não obedecem à palavra de Deus, muitos que agem para nos desmoralizar, mesmo alguns que usam falsamente o turbante, muitos que não merecem o turbante, mesmo alguns aiatolás, mesmo eles, mas com a ajuda de Deus nós arrancaremos os seus turbantes, limparemos o Islã e acabaremos com o mal, onde quer que ele esteja...

       As palavras não estavam alcançando Meshang. Sua mente estava explodindo de esperança.

       — Ele... meu pai... eu vou recuperar... as minhas propriedades?

       — O nosso governo islâmico é o governo da lei. A realeza pertence exclusivamente a Deus. A lei do Islã tem absoluta autoridade sobre todos — inclusive o governo islâmico. Mesmo o Mais Nobre Mensageiro, que a paz esteja com ele, esteve sujeito à lei que apenas Deus revelou, exposta unicamente pela palavra do Corão. — O mulá se levantou. — Foi a vontade de Deus, mas Sua Excelência Jared Bakravan não foi julgado de acordo com a lei.

       — Isto... isto é verdade?

       — Sim, é a vontade de Deus, Excelência. Tudo será devolvido. O seu pai não nos deu o seu apoio generosamente? Como pode o governo islâmico florescer sem a ajuda e o apoio dos bazaris, como podemos existir sem os bazaris para lutar contra os inimigos do Islã, os inimigos do Irã e o Infiel?...

      

       DO LADO DE FORA DO BAZAR: O táxi parou na praça cheia de gente. Lochart saltou e pagou o motorista enquanto dois de uma massa de passageiros em potencial, uma mulher e um homem, brigavam pelo espaço que ele tinha deixado. A praça estava cheia de gente entrando e saindo da mesquita e do bazar e em volta das barracas. Prestaram pouca atenção nele, seu uniforme e seu quepe dando-lhe passagem livre. A noite estava fria e nublada. O vento tinha aumentado de novo e agitava as chamas dos lampiões a óleo dos vendedores de rua. Do outro lado da praça ficava a rua dos Bakravan e ele caminhou rapidamente, dobrou a esquina e se afastou para deixar o mulá Sayani e os Faixas Verdes passarem, depois continuou andando.

       Na porta que ficava no muro alto ele parou, respirou fundo e bateu com força. Depois tornou a bater. Ouviu passos, viu um olho por trás da vigia.

       — Porteiro, sou eu, Excelência Capitão Lochart — ele gritou alegremente.

       A porta foi aberta.

       — Saudações, Excelência — disse o porteiro, ainda não de todo recuperado do choque da chegada e da partida inesperada do mulá e dos Faixas Verdes, humildemente recebidos por Sua Excelência Mau Humor em pessoa, pensou espantado, que assim que a porta se fechou tinha começado a pular como um doido, batendo com os pés no chão, e voltando correndo para o salão e agora aqui estava uma nova aparição, por Deus, o infiel que foi casado com a prometida de Sua Excelência Mijo.

       Uma rajada de vento fez voarem folhas mortas pelo pátio. Um outro criado de olhos esbugalhados estava em pé ao lado da porta.

       — Saudações, Excelência — ele gaguejou — Eu... eu vou dizer a Sua Excelência Meshang que o senhor chegou.

       — Espere! — Agora Lochart estava ouvindo o ruído excitado de vozes vindo do salão de jantar, copos tilintando, risadas de festa. — Minha mulher está lá dentro?

       — Sua mulher? — O criado conteve-se com dificuldade. — A, ahn, Sua Alteza, Excelência capitão, ela foi para a cama.

       A ansiedade de Lochart aumentou.

       — Ela está doente?

       — Ela não me pareceu doente, Excelência, ela subiu pouco antes do jantar. Eu vou dizer a Sua Excelência Meshang que...

       — Não é preciso incomodar nem a ele nem aos seus convidados — ele disse, encantado com a oportunidade de vê-la a sós primeiro. — Eu vou vê-la e depois desço e anuncio a minha presença.

       O criado observou-o subir as escadas, de dois em dois degraus, esperou até que ele desaparecesse da sua vista, depois correu para encontrar Meshang

       Lochart andou de um corredor para o outro. Forçou-se a ir andando, encantado com a surpresa que faria a ela e depois eles iriam ver Meshang e Meshang ouviria o seu plano. Finalmente ele chegou na porta do quarto e girou a maçaneta. Como a porta não abriu, ele bateu de leve e chamou:

       — Xarazade, sou eu, Tommy. — O seu coração cantava enquanto ele esperava. — Xarazade? — Esperou. Tornou a bater. Esperou. Depois bateu um pouco mais alto. — Xarazade!

       — Excelência!

       — Oh, olá, Jari — disse, não notando, na sua impaciência, que ela estava tremendo. — Xarazade, querida, abra a porta, sou eu, Tommy!

       — Sua Alteza disse que não queria ser incomodada.

       — Ela não se referia a mim, é claro que não! Oh! Ela tomou um comprimido para dormir?

       — Oh, não, Excelência. Ele prestou atenção nela.

       — Por que você está tão assustada?

       — Eu? Eu não estou assustada, Excelência, por que estaria assustada? Há alguma coisa errada, ele pensou. Impacientemente, tornou a bater.

       — Xarazade! — Esperou, esperou, esperou. — Isto é ridículo — murmurou. — Xarazade! — Sem se dar conta do que estava fazendo, começou a esmurrar a porta. — Abra esta porta, pelo amor de Deus!

       — O que você está fazendo aqui?

       Era Meshang, louco de raiva. No final do corredor, Lochart viu Zarah aparecer e parar.

       — Boa... boa noite, Meshang — ele disse, com o coração disparado, tentando se mostrar razoável e educado e por que ela não abria a porta e não foi assim que eu pensei que fosse acontecer. — Eu voltei para ver minha mulher.

       — Ela não é mais sua mulher, ela está divorciada, agora saia! Lochart olhou para ele estarrecido.

       — É claro que ela é minha mulher!

       — Por Deus, você é idiota? Ela foi sua mulher. Agora saia da minha casa!

       — Você é louco, você não pode fazê-la divorciar-se assim.

       — SAIA!

       — Foda-se! — mais uma vez Lochart esmurrou a porta. — Xarazade! Meshang virou-se para Zarah:

       — Vá chamar os Faixas Verdes! Ande, vá chamar os Faixas Verdes! Eles porão este louco daqui para fora.

       — Mas, Meshang, não é perigoso envolvê-los em...

       — Vá chamá-los!

       Lochart exaltou-se. Enfiou o ombro na porta. Esta sacudiu mas não cedeu, então ele levantou o pé e atirou-o de encontro à fechadura. A fechadura estalou e a porta abriu-se.

       — Vá chamar os Faixas Verdes! — Meshang berrou. — Você não compreende que eles agora estão do nosso lado?, nós fomos reconhecidos... — Então ele entrou no quarto também. Viu, espantado, que o quarto estava vazio, a cama vazia, o banheiro vazio, que ela não estava em lugar nenhum. Tanto ele como Lochart viraram-se para Jari que estava em pé na porta, olhando estarrecida. Zarah, cautelosamente, ficou parada atrás dela.

       — Aonde ela está? — gritou Meshang .

       — Eu não sei, Excelência, ela não saiu daí, o meu quarto é aqui ao lado e eu tenho o sono leve... — Jari gritou quando Meshang acertou-lhe um soco na boca, fazendo-a cair de quatro no chão.

       — Onde ela foi?

       — Eu não sei, Excelência. Pensei que ela estivesse na ca... — Ela gritou quando o pé de Meshang acertou-a do lado. — Por Deus, eu não sei, eu não sei!

       Lochart foi até as janelas francesas. Elas se abriram facilmente, pois não estavam trancadas. Imediatamente, ele saiu para o balcão, desceu as escadas e foi até a porta dos fundos. Depois voltou devagar, com a cabeça rodando. Meshang e Zarah ficaram observando do balcão.

       — A porta dos fundos não estava trancada. Ela deve ter saído por lá.

       — Para ir aonde? — Meshang estava vermelho de raiva e Zarah virou-se para Jari que estava ainda de quatro no chão, gemendo e chorando de dor e medo.

       — Cale-se, sua cadela, ou vou mandar açoitá-la. Jari! Se você não sabe aonde ela foi, aonde acha que ela deve ter ido?

       — Eu... eu não sei, Alteza — a velha soluçou.

       — Pense! — Zarah gritou e deu-lhe um tapa. Jari uivou.

       — Eu não seiii! Ela esteve esquisita o dia inteiro, Excelência, esquisita, ela me mandou embora hoje à tarde e continuou sozinha e eu me encontrei com ela às sete horas e nós voltamos juntas, mas ela não disse nada, nada, nada...

       — Por Deus, por que você não me contou isso? — gritou Meshang.

       — Mas o que havia para contar, Excelência? Por favor, não me chute de novo, por favor!

       Meshang atirou-se numa cadeira. O pêndulo violento de um terror total, quando os Faixas Verdes e o mulá foram anunciados, para uma total euforia ao saber que suas propriedades seriam devolvidas e depois a fúria por saber que Lochart estava lá e que Xarazade tinha sumido o haviam deixado completamente perturbado. Sua boca se moveu mas não saiu nenhum som e ele viu Lochart questionando Jari mas não conseguiu entender as palavras.

       Ao voltar correndo para a sala de jantar para contar a grande novidade, tinha havido muita alegria, Zarah chorando de felicidade, abraçando-o, bem como as outras mulheres, e os homens lhe apertaram a mão com entusiasmo. Todos exceto Daranoush. Daranoush não estava mais lá. Ele tinha fugido. Pela porta dos fundos.

       — Ele foi embora?

       — Como um saco de merda! — Alguém gritou.

       Todo mundo tinha começado a rir, aliviados por não correrem nenhum risco por tabela, além de satisfeitos com a volta de Meshang à riqueza e ao poder, tudo isso deixando-os com as cabeças leves. Alguém tinha gritado:

       — Você não pode ter por cunhado um cretino como Daranoush, Meshang!

       — Não, não, por Deus — ele se lembrava de ter respondido, tomando uma taça de champanhe. — Como confiar num homem destes? Nem com um balde de mijo! Pelo Profeta, eu sempre achei que o Imundo Daranoush cobrava demais pelos serviços. O bazar devia rescindir o seu contrato!

       Mais aplausos e todos concordaram e Meshang tinha bebido uma segunda taça de champanhe, exultante com as novas possibilidades que se abriam diante dele: o novo contrato para o lixo do bazar que ele, como a parte ofendida, evidentemente receberia, um novo consórcio para financiar o governo sob sua coordenação e maior lucro, novas associações com ministros mais importantes do que Ali Kia — onde está aquele filho da mãe? — novos acordos nos campos de petróleo, monopólios para manobrar, um novo casamento para Xarazade, tão fácil de conseguir agora, quem não haveria de querer entrar para a sua família, a família de bazaris? Não havia mais necessidade de pagar um dote exorbitante, o que eu concordei porque não havia outro jeito. Todas as minhas propriedades de volta, as propriedades nas costas do Cáspio, ruas de casas em Jaleh, apartamentos nos subúrbios ao norte da cidade, terras, pomares, campos e aldeias, tudo de volta.

       Depois o criado estragando a sua alegria, murmurando que Lochart tinha voltado, que já estava dentro da casa, lá em cima. Ele correndo para cima e agora olhando, impotente, o homem que ele tanto detestava interrogando Jari, com Zarah ouvindo atentamente.

       Com esforço, ele se concentrou. Jari estava dizendo, entre soluços:

       — Eu não tenho certeza, Excelência... ela... ela só... só me disse que o rapaz que tinha salvado a vida dela na primeira marcha de protesto das mulheres era estudante.

       — Ela alguma vez se encontrou com ele sozinha?

       — Oh, não, Excelência, não, como eu disse, nós o conhecemos na marcha e ele nos convidou para tomar café para nos recuperarmos — disse Jari. Ela estava apavorada de ser apanhada mentindo, mas mais apavorada ainda em contar o que tinha realmente acontecido. Que Deus nos proteja, ela rezou. Para onde ela foi, para onde?

       — Como era o nome dele, Jari?

       — Eu não sei, Excelência, pode ter sido Ibrahim ou... ou Ismael, eu não sei, eu já disse, ele não era importante.

       A cabeça de Lochart estava latejando. Nenhuma pista, nada. Aonde ela poderia ter ido? Para a casa de um amigo? Para a universidade? Para outra marcha de protesto? Não se esqueça dos boatos no mercado sobre uma nova manifestação estudantil, hoje à noite eram esperadas novas manifestações de protesto, novas marchas, Faixas Verdes contra esquerdistas, mas todas as marchas desfavoráveis ao imã tinham sido proibidas pelo komiteh e a paciência do komiteh já tinha se esgotado.

       — Jari, você tem que ter alguma idéia, algum modo de nos ajudar! Meshang disse com a voz gutural:

       — Vou mandar chicoteá-la. Ela sabe.

       — Eu não sei, não sei... — Jari gemeu.

       — Cale a boca, Jari! — Lochart virou-se para Meshang, com o rosto pálido e cheio de ódio. — Eu não sei para onde ela foi, mas sei o porquê: você a obrigou a se divorciar, e eu juro por Deus que se acontecer alguma coisa com ela, qualquer coisa, você vai pagarl

       Meshang gritou:

       — Você a abandonou, você a deixou sem um tostão, você a abandonou e está divorciado, vo...

       — Lembre-se, você vai pagar! E se você impedir a minha entrada nesta casa quando eu voltar ou quando ela voltar, por Deus, você vai pagar por isto também! — À beira da loucura, Lochart dirigiu-se para as portas francesas

       Zarah disse rapidamente:

       — Aonde você vai?

       — Eu não sei... eu... para a universidade. Talvez ela tenha ido participar de outra marcha, embora eu não saiba por que teria fugido para fazer isso...

       Lochart não conseguiu articular o seu verdadeiro medo: de que a sua revolta fosse tão extrema que sua mente tivesse ficado perturbada e que ela tivesse resolvido se matar. Oh, não suicídio, mas quantas vezes no passado ela tinha dito: "Nunca se preocupe comigo, Tommy. Eu sou uma crente. Eu sempre procuro fazer o trabalho de Deus e desde que eu morra fazendo o trabalho de Deus, com o nome de Deus nos meus lábios, eu irei para o paraíso."

       Mas e quanto ao nosso filho? Uma mãe não poderia fazer isto, poderia, uma pessoa como Xarazade?

       O quarto estava muito quieto. Por uma eternidade ele ficou lá. Então, de repente, todo o seu ser enveredou para uma outra direção. Numa voz estranhamente clara ele disse:

       — Sejam testemunhas do que eu digo: Eu atesto que não há nenhum outro deus além de Deus e que Maomé é o Profeta de Deus... — E repetiu isto pela terceira vez. Agora estava feito. Ele estava em paz consigo mesmo. Ele os viu olhando para ele, boquiabertos.

       Meshang quebrou o silêncio, não mais com raiva.

       — Allah-u Akbarl Seja bem-vindo. Mas dizer o Shahada, por si só, não é o suficiente.

       — Eu sei. Mas é o começo.

       Eles o viram desaparecer na noite, todos eles encantados por terem testemunhado a salvação de uma alma, a transmutação de um infiel em um crente, de forma tão inesperada. Todos estavam cheios de alegria, vários níveis de alegria.

       — Deus é Grande! Zarah murmurou:

       — Meshang, isto não muda tudo?

       — Sim, sim e não. Mas agora ele irá para o paraíso. Seja como Deus quiser. — De repente ele se sentiu muito cansado. Seus olhos se dirigiram para Jari e ela recomeçou a tremer. — Jari — ele disse com a mesma calma —, você será chicoteada até contar toda a verdade ou até ir para o inferno. Vamos, Zarah, não podemos nos esquecer dos nossos convidados.

       — E Xarazade?

       — Seja como Deus quiser.

      

       PERTO DA UNIVERSIDADE: 21:48H. Xarazade entrou na rua principal onde Faixas Verdes e seus partidários estavam se reunindo. Milhares deles. A grande maioria era de homens. Todos armados. Os mulás os controlavam, exortando-os a manter a disciplina, a não atirar nos esquerdistas até que estes começassem a atirar, a tentar persuadi-los a desistir do seu pecado.

       — Não se esqueçam de que eles são iranianos, não estrangeiros diabólicos. Deus é Grande... Deus é Grande...

       — Seja bem-vinda, minha filha — um velho mulá disse bondosamente — que a paz esteja com você.

       — E com o senhor também — ela disse. — Nós estamos marchando contra o antideus?

       — Oh, sim, daqui a pouco, há muito tempo.

       — Eu tenho um revólver — ela disse orgulhosamente, mostrando-o a ele. — Deus é Grande.

       — Deus é Grande. Mas é melhor que a matança termine e que os revoltosos reconheçam a Verdade, renunciem à sua heresia, obedeçam ao imã e voltem para o Islã. — O velho viu a sua juventude e a sua decisão e ficou ao mesmo tempo feliz e entristecido. — É melhor que a matança cesse, mas se os de esquerda não pararem de se opor ao imã, que a paz de Deus esteja com ele, então, com a ajuda de Deus, os mandaremos para o inferno...

      

       TABRIZ — NO PALÁCIO: 22:05H. Os três estavam sentados diante do fogo, tomando café e observando as chamas, a sala pequena e ricamente adornada, quente e aconchegante — um dos guardas de Hakim ao lado da porta. Mas não havia nenhuma paz entre eles, embora todos fingissem que sim, agora durante toda a noite. As chamas prendiam a atenção deles, cada um vendo diferentes quadros lá dentro. Erikki estava vendo a encruzilhada do caminho, sempre a encruzilhada, de um lado as chamas conduziam à solidão, de outro à felicidade — talvez sim e talvez não. Azadeh via o futuro, tentando não vê-lo.

       Hakim Khan desviou o olhar do fogo e lançou o desafio.

       — Você esteve distraída a noite toda, Azadeh.

       — Sim. Acho que todos nós estivemos. — O seu sorriso não era verdadeiro. — Você acha que poderíamos falar em particular, nós três?

       — É claro. — Hakim fez um sinal para o guarda. — Se eu precisar de você, chamarei. — O homem obedeceu e fechou a porta. Instantaneamente, a atmosfera da sala mudou. Agora todos três eram adversários, todos estavam conscientes disto, todos estavam em guarda e preparados.

       — Sim, Azadeh?

       — É verdade que Erikki deve partir imediatamente?

       — Sim.

       — Deve haver uma solução. Eu não posso agüentar dois anos sem o meu marido.

       — Com a ajuda de Deus, o tempo vai passar depressa. — Hakim Khan estava sentado bem esticado, melhor da dor por causa da codeína.

       — Eu não posso agüentar dois anos. — Ela tornou a dizer

       — O seu juramento não pode ser quebrado Erikki disse:

       — Ele tem razão, Azadeh. Você fez o juramento de livre e espontânea vontade, Hakim é o khan e o preço... justo. Mas todas as mortes... — eu tenho que partir, a culpa é minha, nem sua nem de Hakim.

       — Você não fez nada de errado, nada, você foi obrigado a proteger a mim e a você mesmo, eles iam nos matar, e quanto ao ataque... você fez o que achou melhor, você não tinha meios de saber que o resgate tinha sido pago pela metade nem que papai estava morto. Ele não deveria ter mandado matar o mensageiro.

       — Isto não muda nada. Eu tenho que partir esta noite. Nós devemos aceitar isto e deixar as coisas como estão — disse Erikki, observando Hakim.

       Os anos passarão depressa.

       Se você viver, meu querido Azadeh virou-se para o irmão, que olhou para ela, com o mesmo sorriso, com o mesmo olhar.

       Erikki olhou para os dois irmãos, tão diferentes e no entanto tão parecidos. O que foi que deu nela, por que ela precipitou o que não deveria ter sido precipitado?

       — É claro que eu vou viver — ele disse, aparentemente calmo. Uma brasa caiu e ele se inclinou para a frente e atirou-a no fogo. Ele viu que Azadeh não tinha tirado os olhos de Hakim, nem ele dela. A mesma calma, o mesmo sorriso educado, a mesma inflexibilidade.

       — Sim, Azadeh? — disse Hakim.

       — Um mulá poderia liberar-me do meu juramento.

       — Isso não é possível. Nem um mulá nem eu faríamos isso, nem mesmo o imã concordaria em fazê-lo.

       — Eu posso absolver a mim mesma. Isto é entre mim e Deus, eu posso absol...

       — Você não pode, Azadeh. Você não pode fazer isto e viver em paz com você mesma.

       — Eu posso. E posso viver em paz.

       — Não pode fazer isso e continuar sendo muçulmana.

      — Sim — ela disse com simplicidade. — Eu concordo. Hakim ficou boquiaberto.

       — Você não sabe o que está dizendo.

       — Oh, eu sei sim. Eu já considerei até mesmo esta possibilidade. — A voz dela era neutra. — Eu já considerei esta solução e achei-a suportável. Eu não vou agüentar dois anos de separação, nem vou aturar nenhum atentado contra a vida de meu marido, nem perdoá-lo. — Ela se encostou na cadeira e abandonou a luta momentaneamente, aflita mas contente por ter aberto o jogo e ao mesmo tempo assustada. Mais uma vez ela abençoou Aysha por tê-la alertado.

       — Eu não vou permitir que você renuncie ao Islã sob hipótese alguma — disse Hakim.

       Ela simplesmente ficou olhando para o fogo.

       O campo minado estava em toda a volta deles, todas as minas estavam armadas e embora Hakim estivesse concentrado nela, os seus sentidos estavam ligados em Erikki. Ele, o da Faca, sabendo que o homem estava esperando também, jogando um jogo diferente agora que o problema estava diante deles. Será que eu fiz bem em mandar o guarda sair?, perguntou a si mesmo, ofendido com a ameaça dela, com o cheiro de perigo enchendo as suas narinas.

       — Não importa o que você diga, Azadeh, não importa o que você tente fazer, pelo bem da sua alma eu seria forçado a evitar uma apostasia. De todas as maneiras que estivessem ao meu alcance. Isto é inimaginável.

       — Então, por favor, me ajude. Você é muito sábio. Você é o khan e nós passamos por muita coisa juntos. Eu lhe imploro, retire a ameaça que pesa sobre a minha alma e a do meu marido.

       — Eu não estou ameaçando nem a sua alma nem a do seu marido.

       — Hakim olhou diretamente para Erikki. — Não estou.

       Erikki disse:

       — Quais são esses perigos que você mencionou?

       — Não posso dizer-lhe, Erikki — respondeu Hakim.

       — O senhor poderia dar-nos licença, Alteza? Nós precisamos nos preparar para partir.

       Azadeh levantou-se. Erikki fez o mesmo.

       — Fiquem onde estão! — Hakim estava furioso. — Erikki, você permitiria que ela renunciasse ao Islã, à toda a sua herança e à sua chance de uma vida eterna?

       — Não, isto não está nos meus planos. — Os dois olharam para ele, intrigados. — Por favor, diga-me quais são os perigos, Hakim.

       — Que planos? Você tem um plano? De fazer o quê?

       — Os perigos. Primeiro conte-me a respeito dos perigos. O islamismo de Azadeh está seguro comigo, eu juro pelos meus próprios deuses. Que perigos?

       Nunca tinha feito parte da estratégia de Hakim revelar-lhe os perigos, mas agora que ele estava abalado pela teimosia dela, horrorizado por ela ter pensado em cometer a suprema heresia, e mais desorientado ainda pela sinceridade deste estranho homem. Então ele contou sobre o telex e sobre a fuga dos pilotos com os helicópteros, e a sua conversa com Hashemi, notando que Azadeh estava tão horrorizada quanto Erikki, mas que a surpresa dela não parecia verdadeira. É como se ela já soubesse, como se tivesse estado presente, das duas vezes, mas como ela poderia saber? Ele continuou:

       — Eu disse a ele que você não poderia ser preso nem na minha casa, nem nos meus domínios, nem em Tabriz, que eu lhe daria um carro e que esperava que você escapasse de ser preso e que você partiria antes do amanhecer.

       Erikki ficou abalado. O telex muda tudo, ele pensou.

       — Então eles estão esperando por mim.

       — Sim. Mas eu não contei a Hashemi que eu tinha um outro plano, que já tinha enviado um carro para Tabriz, que assim que Azadeh estivesse dormindo eu...

       — Você me teria deixado aqui, Erikki? — Azadeh estava estarrecida.

       — Você me teria deixado sem me contar, sem me consultar?

       — Talvez. O que você estava dizendo, Hakim? Por favor, termine o que ia dizer.

       — Assim que Azadeh estivesse dormindo, eu planejava retirá-lo do palácio e levá-lo para Tabriz, onde está o carro e enviá-lo para a fronteira, a fronteira turca. Eu tenho amigos em Khoi e eles o ajudariam a atravessar a fronteira, com a ajuda de Deus — Hakim acrescentou automaticamente, grandemente aliviado por ter tido a precaução de elaborar este plano alternativo — só para o caso de sei necessário. E agora foi o caso, ele pensou.

       — Você tem um plano?

       — Sim.

       — Qual é?

       — Se você não gostar dele, Hakim Khan, o que vai fazer?

       — Neste caso, eu me recusaria a consentir nele e tentaria impedi-lo.

       — Eu preferiria não me arriscar a desagradá-lo.

       — Sem a minha ajuda, você não pode partir.

       — Eu gostaria de ter a sua ajuda, isto é verdade. — Erikki não estava mais confiante. Uma vez que Mac, Charlie e os outros já tinham partido. Como é que eles conseguiram fazer isto tão depressa? Por que isto não aconteceu enquanto nós estávamos em Teerã, mas graças a todos os deuses Hakim é o khan agora e pode proteger Azadeh. E óbvio o que a Savak vai fazer comigo se conseguirem me pegar, quando me pegarem.

       — Você estava certo sobre o perigo. Você acha que eu poderia fugir conforme você sugeriu?

       — Hashemi deixou policiais no portão. Eu acho que você podia ser retirado, seria possível distraí-los. E não sei se há outros na estrada, mas pode haver, é mais do que provável que haja. Se eles estiverem atentos e você for interceptado... foi a vontade de Deus.

       Azadeh disse:

       — Erikki, eles estão esperando que você vá sozinho e o coronel concordou em não tocar em você dentro de Tabriz. Se nós estivéssemos escondidos na traseira de um velho caminhão, precisaríamos apenas de um pouco de sorte para evitá-los.

       — Você não pode partir — Hakim disse impacientemente, mas ela não ouviu. A sua mente tinha se voltado para Ross e Gueng e a fuga anterior, e como os dois tinham tido dificuldade em escapar, mesmo sendo sabota-dores e combatentes treinados. Pobre Gueng. Um arrepio percorreu-a. A estrada para o norte é tão difícil quanto a que vai para o sul, é muito fácil eles armarem uma emboscada, é muito fácil bloquearem as estradas. Não é tão distante assim daqui até Khoi e de Khoi até a fronteira, mas em termos de tempo, é como se fossem milhões de quilômetros e com o meu problema nas costas... eu duvido que conseguisse andar até mesmo um único quilômetro.

       — Não faz mal — ela murmurou. — Nós chegaremos lá. Com a ajuda de Deus nós conseguiremos escapar.

       Hakim exclamou:

       — Por Deus e pelo Profeta, e quanto ao seu juramento, Azadeh? O rosto dela estava muito pálido agora e ela apertou os dedos para parar de tremer.

       — Por favor, perdoe-me, Hakim, mas eu já lhe disse. E se me impedirem de partir com Erikki agora, ou se Erikki não quiser me levar, eu vou dar um jeito de fugir, eu juro. — Ela olhou para Erikki. — Se Mac e os outros foram embora, você pode ser usado como refém.

       — Eu sei. Eu tenho que sair daqui o mais rápido que puder. Mas você tem que ficar. Você não pode desistir da sua religião só por causa dos dois anos, por mais que eu odeie ter que deixá-la.

       — Será que Tom Lochart deixaria Xarazade por dois anos?

       — Este não é o ponto — Erikki disse cautelosamente. — Você não é Xarazade, você é a irmã de um khan e jurou que ficaria aqui.

       — Isto é entre mim e Deus, Tommy nunca deixaria Xarazade — Azadeh repetiu teimosamente — Xarazade não deixaria o seu Tommy, ela o ama...

       — Eu preciso conhecer o seu plano — Hakim interrompeu friamente.

        — Sinto muito, mas não posso confiá-lo a ninguém.

       O khan apertou os olhos, e precisou de toda a sua força de vontade para não chamar o guarda. — Então nós estamos num impasse. Azadeh, dê-me um pouco mais de café, por favor. — Ela obedeceu imediatamente. Ele olhou para o homem enorme que estava em pé de costas para o fogo, — Não estamos?

       — Por favor, resolva este impasse, Hakim Khan — disse Erikki. — Eu sei que você é um homem inteligente e eu não lhe faria nenhum mal, nem faria nenhum mal a Azadeh.

       Hakim aceitou o café e agradeceu a ela, ficou olhando para o fogo, pesando os prós e os contras, precisando saber o que Erikki tinha em mente, querendo pôr um fim em tudo aquilo, querendo que Erikki fosse embora e Azadeh ficasse e voltasse a ser como era, sábia, gentil, amorosa e obediente — e muçulmana. Mas ele a conhecia bem demais para ter certeza de que ela faria o que havia ameaçado fazer e a amava demais para permitir que ela cumprisse a ameaça.

       — Talvez isto pudesse satisfazê-lo, Erikki: eu juro por Deus que vou ajudá-lo, desde que o seu plano não despreze o juramento da minha irmã, não a force a se tornar uma apóstata, não a coloque nem em perigo espiritual nem político... — ele pensou por um momento — não traga nenhum mal nem para ela nem para mim, e tenha alguma chance de sucesso.

       Azadeh interrompeu com raiva:

       — Isto não é nenhuma ajuda, como Erikki poderia ser ca...

       — Azadeh! — Erikki disse asperamente. — Onde estão os seus modos? Fique quieta. O khan estava falando comigo, não com você. É o meu plano que ele quer conhecer, não o seu.

       — Sinto muito, desculpem-me, por favor — ela disse imediatamente, com sinceridade. — Sim, você tem razão. Eu peço desculpas a vocês dois.

       — Quando nós nos casamos, você jurou obedecer-me. Isto ainda está valendo? — ele perguntou asperamente, furioso porque ela tinha quase arruinado o seu plano, pois ele vira os olhos de Hakim encherem-se de ódio e ele precisava dele calmo, não agitado.

       — Sim, Erikki — ela respondeu imediatamente, ainda chocada com o que Hakim dissera, pois isto fechava todas as saídas, menos a que ela havia escolhido, e essa escolha a aterrorizava. — Sim, sem reservas, desde que você não me abandone.

       — Sem reservas. Sim ou não?

       Imagens de Erriki atravessaram a sua mente, a sua doçura e o seu amor e a sua alegria e todas as boas coisas, junto com a violência que nunca a havia atingido mas que atingiria a qualquer um que a ameaçasse ou que ficasse no caminho dele, Abdullah, Johnny, até mesmo Hakim, especialmente Hakim.

       Sem reservas, sim, ela teve vontade de dizer, exceto contra Hakim, exceto se você me abandonar. Os olhos dele estavam mergulhados nos dela. Pela primeira vez ela estava com medo dele. Ela murmurou:

       — Sem reservas. Eu imploro a você para que não me abandone. Erikki voltou a sua atenção para Hakim.

       — Eu aceito o que você propôs, obrigado. — E tornou a se sentar. Azadeh hesitou, depois se ajoelhou ao lado dele, pondo o braço no seu joelho, precisando daquele contato, com esperança de que ele ajudasse a afastar o medo que sentia e a raiva que sentia de si mesma por ter perdido a calma. Eu devo estar ficando louca, pensou. Que deus me ajude...

       — Eu aceito as regras que você impôs, Hakim Khan — Erikki estava dizendo calmamente. — Mesmo assim, não vou revelar-lhe o meu plan... Espere, espere! Você jurou que iria me ajudar se eu não o pusesse em perigo e eu não o farei. Em vez disso — ele disse cautelosamente — em vez disso, eu vou expor um plano hipotético que poderia satisfazer todas as suas condições. — Inconscientemente, a mão dele começou a acariciar-lhe os cabelos e o pescoço. Ela sentiu a tensão aliviar. Erikki observava Hakim, os dois homens prestes a explodir. — Assim está bem?

       — Continue.

       — Digamos, hipoteticamente, que o meu helicóptero estivesse em perfeitas condições, que eu estivesse fingindo que não conseguia fazê-lo funcionar para enganar a todo mundo, e para que todo mundo se acostumasse com o fato de que a toda hora eu estou ligando o motor e desligando. Digamos que eu tivesse mentido sobre o combustível e que houvesse o bastante para uma hora de vôo, podendo facilmente chegar até a fronteira e..

       — Você tem combustível! — Hakim perguntou involuntariamente, com esta idéia abrindo outras possibilidades.

       — Nesta história hipotética, sim. — Erikki sentiu a mão de Azadeh apertar-lhe o joelho mas fingiu não notar. — Digamos que dentro de um ou dois minutos, antes de nós irmos para a cama, eu dissesse a você que gostaria de experimentar os motores novamente. Digamos que eu fizesse isso, que os motores pegassem e funcionassem o bastante para esquentar e depois morressem, ninguém se preocuparia com isso, foi a vontade de Deus. Todo mundo pensaria: o louco não deixa aquele helicóptero em paz, por que ele não desiste e nos deixa dormir sossegados? Então digamos que eu o ligasse, acelerasse ao máximo e subisse. Hipoteticamente, eu poderia me afastar daqui em segundos, desde que os guardas não atirassem em mim, e desde que não houvesse nenhum inimigo, nem Faixas Verdes nem policiais com armas no portão ou do outro lado dos muros.

       Hakim suspirou. Azadeh se mexeu um pouco. A seda do seu vestido farfalhou.

       — Eu gostaria muito que esta história pudesse acontecer de verdade — disse ela.

       — Isto seria mil vezes melhor que um carro, dez mil vezes melhor — disse Hakim. — Você poderia voar tudo isso durante a noite?

       — Poderia, desde que tivesse um mapa. A maioria dos pilotos que passam muito tempo numa mesma região tem um mapa na cabeça. É claro que tudo isto é ficção.

       — Sim, sim, é. Bem, até agora tudo bem com o seu plano hipotético. Você poderia fugir dessa maneira, se conseguisse neutralizar os inimigos que estão no pátio. Agora, hipoteticamente, e quanto à minha irmã?

       — A minha esposa não entra em nenhuma fuga, nem real nem hipotética. Azadeh não tem escolha: ela precisa ficar por sua livre e espontânea vontade e esperar os dois anos. — Erikki viu o espanto de Hakim e sentiu a revolta imediata de Azadeh. Mas não deixou que os seus dedos cessassem de acariciar-lhe os cabelos e o pescoço no mesmo ritmo, acalmando-a, convencendo-a, e continuou mansamente: — Ela deve ficar em obediência ao seu juramento. Ela não pode partir. Ninguém que a ame, principalmente eu, poderia permitir que ela desistisse do islamismo por causa de dois anos. Aliás, Azadeh, hipoteticamente ou não, isto está proibido, entendeu?

       — Estou ouvindo o que você diz, marido — disse entre dentes, tão zangada que mal podia falar e xingando a si mesma por ter caído na armadilha dele.

      — Você está presa ao seu juramento por dois anos, depois você pode partir livremente. Isto é uma ordem!

       Ela levantou os olhos para ele e disse sombriamente:

       — Talvez daqui a dois anos eu não queira partir.

       Erikki colocou a sua mão enorme no ombro dela, com os dedos rodeando-lhe de leve o pescoço.

       — Neste caso, mulher, eu voltarei e a arrastarei pelos cabelos. — Ele disse isto com tanta calma e com tanta fúria que ela ficou paralisada. Logo em seguida ela baixou os olhos e olhou para o fogo, ainda encostada na perna dele. Ele continuou com a mão no seu ombro. Ela não fez nenhum movimento para tirá-la dali. Mas ele sabia que ela estava com ódio dele. No entanto, ele sabia que era necessário dizer o que tinha dito.

       — Por favor, desculpem-me por um momento — ela disse, com a voz fria como gelo.

       Os dois homens ficaram olhando-a se afastar Quando estavam sozinhos, Hakim disse:

       — Ela vai obedecer?

       — Não — disse Erikki. — Não, a menos que você a mantenha trancada, e mesmo assim... Não, ela está decidida.

       — Eu nunca, nunca permitirei que ela quebre o juramento e renuncie ao islamismo, você precisa entender isto, mesmo... mesmo que eu tenha que matá-la.

       Erikki olhou para ele.

       — Se você fizer algum mal a ela, você é um homem morto, caso eu esteja vivo.

      

       NAS FAVELAS AO NORTE DA CIDADE DE TABRIZ: 22:36H. No meio da escuridão, a primeira leva de Faixas Verdes correu para a porta que ficava no muro alto, explodiu as fechaduras e entrou no pátio interno atirando. Hashemi e Robert Armstrong estavam do outro lado da praça, razoavelmente protegidos por um caminhão estacionado. Outros homens se esgueiraram pelo beco para impedir qualquer retirada.

       — Agora! — Hashemi disse no walkie-talkie. Imediatamente o lado oposto da praça onde estava o inimigo foi iluminado pelos holofotes montados em caminhões camuflados. Homens começaram a sair correndo de outras portas, mas a polícia e os Faixas Verdes abriram fogo e a batalha começou. — Vamos, Robert — disse Hashemi e se aproximou cautelosamente.

       Os informantes tinham dito que naquela noite haveria uma reunião de líderes marxistas-islâmicos ali e que aquele edifício estava ligado a outros por todos os lados por portas e passagens secretas. Com a assistência de Hakim Khan, Hashemi tinha iniciado o primeiro de uma série de ataques para desativar a extensa oposição esquerdista ao governo, para agarrar os líderes e fazer deles um exemplo público — para os seus próprios propósitos.

       O primeiro grupo de Faixas Verdes tinha limpado a área e estava avançando pelas escadas, sem se preocupar com a própria segurança. Os adversários, que agora já tinham se recuperado da surpresa, estavam resistindo com a mesma ferocidade, bem armados e bem treinados.

       Lá fora na praça houve uma trégua, nenhum adversário queria se arriscar nem se juntar àqueles que estavam presos, indefesos, no meio dos carros, alguns dos quais já estavam pegando fogo. O beco atrás do edifício estava ameaçadoramente quieto, com a polícia e os Faixas Verdes bloqueando as duas saídas, bem entrincheirados atrás dos seus veículos.

       — Por que estamos esperando aqui como se fôssemos uns iraquianos covardes e fedorentos? — Um dos Faixas Verdes perguntou agressivamente.

       — Por que não levamos a batalha até eles?

       — Vocês estão esperando porque foi isto que o coronel mandou — disse o sargento de polícia — vocês estão esperando porque nós podemos matar todos aqueles cães sem nos arriscarmos e...

       — Eu não estou subordinado a nenhum coronel, só a Deus! Deus é Grannnnde! — Com isto, o rapaz empunhou o rifle e saiu correndo em direção à porta dos fundos do edifício. Outros o seguiram. O sargento xingou-os e mandou que eles voltassem, mas suas palavras foram abafadas pela fuzilaria que desceu sobre os rapazes das janelas que ficavam no alto do muro e que matou a todos.

       Hashemi e os outros tinham ouvido os tiros no beco e presumiram que tinha havido uma tentativa de fuga.

       — Os cães não podem escapar por aquele lado, Robert — Hashemi gritou animadamente —, eles estão cercados! — De onde ele estava, podia ver que o ataque ao edifício principal tinha sido interrompido. Ele ligou o transmissor: — Segunda leva para dentro do QG.

       Imediatamente, um mulá e outro grupo de rapazes soltaram o seu grito de guerra e atravessaram a praça correndo. Robert Armstrong ficou perplexo por Hashemi mandá-los atacar assim, com a praça toda iluminada, o que fazia deles alvos fáceis.

       — Não se meta, Robert! Pelo amor de Deus, eu já estou cansado das suas interferências. — Hashemi tinha dito friamente quando ele fizera algumas sugestões sobre como organizar o ataque antes da luta ter começado.

       — Guarde o seu conselho para si mesmo, isto é uma questão interna, não tem nada a ver com você!

       — Mas, Hashemi, nem todos os prédios são inimigos ou marxistas, deve haver famílias lá, talvez centenas de inocen...

       — Cale a boca ou eu juro que vou considerá-lo traidor!

       — Então eu vou ficar para trás. Vou voltar e vigiar o palácio.

       — Eu disse que você viria nesta operação. Você acha que vocês, britânicos, são os únicos que podem lidar com uns poucos revolucionários?

       — Você vai ficar perto de mim, num lugar onde eu possa vê-lo, mas primeiro entregue-me o seu revólver.

       — Mas Hashemi...

       — O seu revólver! Pelo Profeta, eu não confio mais em você. O seu revólver!

       Então ele lhe havia entregue o revólver e Hashemi tinha se acalmado, parecendo relaxar, dando uma gargalhada. Mas não tinha devolvido o revólver e Armstrong se sentiu nu no meio da noite, com medo de que tivesse sido traído. Olhou para ele, tornou a ver uma certa estranheza nos olhos de Fazir e no jeito como ele mexia com a boca, com um pouco de saliva escorrendo pelos cantos.

       Uma rajada de tiros atraiu a sua atenção outra vez para o prédio. Os tiros estavam vindo das janelas superiores, em resposta àquele novo ataque. Muitos jovens foram detidos, mas alguns conseguiram entrar, o mulá entre eles, para reforçar os que ainda estavam vivos. Juntos eles abriram caminho no meio dos corpos que estavam bloqueando a escada e conseguiram chegar até o andar seguinte.

       Na praça, Hashemi estava agachado atrás de um carro, cheio de excitação e invadido pelo sentimento de poder.

       — Mais homens para dentro do prédio!

       Ele nunca tinha comandado um ataque antes, nunca havia tomado parte em nenhum. Todo o seu trabalho anterior tinha sido secreto, encoberto, com apenas uns poucos homens envolvidos em cada operação — mesmo com os seus assassinos do Grupo Quatro, tudo o que ele tinha feito era dar as ordens e esperar em segurança. Exceto a vez em que ele próprio tinha detonado o carro-bomba que destruíra o seu inimigo na Savama, o general Janan. Por Deus e pelo Profeta, a sua mente estava gritando, foi para isto que eu nasci: batalhas e guerra!

       — Todos ao ataque! — ele gritou no walkie-talkie e depois ficou em pé e berrou o mais alto que pôde: — Todos ao ataque!

       Os homens começaram a atacar de todos os lados. Atirando granadas por cima dos muros, para dentro dos pátios e pelas janelas, indiscriminadamente. Explosões e fumaça, tiros, de rifles e metralhadoras, e mais explosões e então uma explosão gigantesca no QG dos esquerdistas quando o depósito de gasolina e munição explodiu, destruindo o último andar e a maior parte da fachada. A onda de calor arrancou as roupas de Hashemi e derrubou Armstrong. Mzytryk, que tinha estado observando tudo de binóculo de uma das janelas de cima, do outro lado da praça, pôde vê-los claramente e decidiu que o momento era perfeito.

       — Agora — ele disse em russo.

       O atirador que estava ao lado dele já estava com a mira telescópica apontada para o alvo, com o cano do rifle pousado no parapeito da janela. Imediatamente ele colocou o indicador no gatilho, sentiu o dedo de Mzytryk sobre o gatilho e começou a contagem regressiva como este havia ordenado:

       — Três... dois... um... fogo! — Mzytryk apertou o gatilho. Os dois homens viram a bala dundum entrar nas costas de Hashemi, atirá-lo de encontro ao carro e depois lançá-lo no chão. — Ótimo — Mzytryk murmurou sombriamente, lamentando apenas que os seus olhos e as suas mãos não pudessem lidar sozinhos com os assassinos do seu filho. — Três... dois., um...

       O alvo se mexeu. Os dois homens praguejaram, pois tinham visto Armstrong virar-se, olhar em sua direção por um instante e então se atirar no meio dos carros e desaparecer atrás de um deles.

       — Ele está perto da roda da frente. Ele não pode escapar. Tenha paciência. Só atire quando puder. — Mzytryk deixou apressadamente a sala, foi até o alto da escada e gritou em turco para os homens que estavam esperando lá embaixo. — Podem ir! — depois tornou a voltar para a sala. Ao entrar, viu o atirador atirar.

      — Peguei-o — disse o homem com um palavrão. Mzytryk olhou pelo binóculo mas não conseguiu ver Armstrong. — Onde está ele?

       — Atrás do carro preto — ele esticou a cabeça por um segundo e eu o peguei.

       — Você o matou?

       — Não, camarada general. Fui muito cuidadoso, exatamente como o senhor mandou.

       — Tem certeza?

       — Sim, camarada general. Eu o atingi no ombro, talvez no peito. O prédio onde ficava o QG estava queimando furiosamente agora, os tiros disparados dos outros prédios eram esporádicos, apenas focos de resistência, com os atacantes em número muito maior, todos tomados por um frenesi de brutalidade. Bárbaros, Mzytryk pensou com desprezo, depois tornou a olhar para o corpo de Hashemi, contorcendo-se no chão. Não morra muito depressa, matyeryebyets.

       — Você está vendo o inglês?

       — Não, camarada general, mas ele está coberto pelos dois lados. Então Mzytryk viu a ambulância chegando e homens com a braçadeira da Cruz Vermelha saltarem com maças e começarem a recolher os feridos, com a luta já quase terminada. Estou contente por ter vindo aqui esta noite, pensou, ainda cheio de ódio. Ele decidira comandar pessoalmente a vingança assim que a mensagem de Hakim tinha sido entregue na noite anterior. A 'intimação' mal disfarçada, junto com o relatório secreto enviado por Pahmudi relatando a maneira pela qual o seu filho tinha morrido nas mãos de Hashemi e de Armstrong, haviam provocado nele um acesso de raiva.

       Tinha sido simples conseguir um helicóptero e pousar nos arredores de Tabriz na noite anterior, tinha sido simples organizar um contra-ataque para pegar os dois assassinos. Tinha sido simples planejar a sua vingança, que consolidaria as suas relações com Pahmudi, removendo do caminho dele o seu inimigo Hashemi Fazir e ao mesmo tempo evitar muitos problemas futuros para os seus mujhadins e para o Tudeh. E Armstrong, o ardiloso agente M16, outro que já deveria ter sido eliminado há muito tempo — maldito seja este filho da mãe por ter aparecido como um fantasma depois de todos aqueles anos.

       — Camarada general!

       — Sim, eu os estou vendo. — Mzytryk ficou olhando os homens da

       Cruz Vermelha colocarem Hashemi numa maca e carregá-lo em direção à ambulância. Outros se dirigiram para trás do carro. A mira telescópica os seguiu. A excitação de Mzytryk aumentou.

       O atirador esperou pacientemente. Quando os homens tornaram a aparecer, eles estavam carregando Armstrong.

       — Eu sabia que tinha acertado naquele filho da mãe — o atirador disse.

      

       NO PALÁCIO: 23:04H. Silenciosamente, as luzes vermelhas fosforescentes do painel de instrumentos ganharam vida. Os dedos de Erikki apertaram o botão de partida. Os jatos tossiram, pegaram, hesitaram quando ele acelerou e desacelerou cuidadosamente. Então ele ligou os disjuntores e os motores começaram a esquentar.

       Os holofotes estavam acesos no pátio. Azadeh e Hakim Khan, bem agasalhados contra o frio da noite, estavam parados ali perto, observando-o. No portão da frente, a uns cem metros de distância, dois guardas e a polícia de Hashemi também observavam, mas preguiçosamente. Os seus cigarros brilhavam. Os dois policiais puseram os seus Kalashinikovs no ombro e se aproximaram.

       Mais uma vez os motores engasgaram e Hakim Khan gritou por sobre o barulho:

       — Erikki, deixe isso por hoje! — Mas Erikki não escutou. Hakim se afastou do barulho, chegando mais perto do portão, com Azadeh seguindo-o de má vontade. O seu andar era penoso e ele praguejou, desabituado com as muletas.

       — Saudações, Alteza — o policial disse educadamente.

       — Saudações, Azadeh — Hakim disse, irritado —, o seu marido não tem paciência, está perdendo o juízo. O que há com ele? É ridículo ficar tentando ligar os motores. O que adiantaria mesmo que ele conseguisse ligá-los?

       — Eu não sei, Alteza — o rosto de Azadeh estava branco sob a luz fraca e ela estava muito nervosa. — Ele... desde o ataque ele tem estado muito esquisito, muito difícil, difícil de entender, ele me assusta.

       — Isto não é de espantar! Ele é capaz de assustar o próprio demônio!

       — Por favor, perdoe-me, Alteza — disse Azadeh — mas em épocas normais ele... ele não é assustador.

       Educadamente, os dois policiais se afastaram, mas Hakim os fez parar.

       — Vocês notaram alguma diferença no piloto?

       — Ele está muito zangado, Alteza. Ele está zangado há horas. Uma vez eu o vi dar um chute na máquina, mas se ele está diferente ou não é difícil dizer. Eu nunca tinha estado perto dele antes.

       O cabo tinha cerca de quarenta anos e não queria encrenca. O outro homem era mais moço e estava ainda mais assustado. As ordens deles eram para vigiar até que o piloto partisse de carro, ou até que qualquer pessoa saísse de lá de carro, para não impedir a saída mas comunicar imediatamente ao QG pelo rádio do carro. Todos dois compreendiam o perigo da situação em que se encontravam. O braço do Gorgon Khan tinha um longo alcance. Ambos sabiam dos criados e guardas do falecido khan que tinham sido acusados por ele de traição e que ainda estavam apodrecendo nos subterrâneos da polícia. Mas os dois também sabiam que os braços do Serviço Secreto eram ainda mais certeiros.

       — Diga-lhe para parar com isso, Azadeh. Para parar os motores.

       — Ele nunca esteve tão zangado comigo antes... e esta noite... — Ela estava vesga de raiva. — Eu não acho que posso obedecê-lo.

       — Você vai obedecer.

       Depois de uma pausa, ela murmurou:

       — Quando ele está zangado, eu não consigo nada com ele.

       Os policiais viram a palidez dela e sentiram pena, mas sentiram ainda mais pena deles mesmos, pois tinham ouvido contar o que acontecera na encosta da montanha. Que Deus nos proteja dele, o da Faca! Como deve ser estar casada com um bárbaro desses que todo mundo sabe que bebeu o sangue dos nativos que matou, que adora espíritos da floresta contra a lei de Deus, e que rola nu na neve, forçando-a a fazer o mesmo.

       Os motores tornaram a engasgar e começaram a morrer e eles viram Erikki berrar de raiva e dar um soco no aparelho, fazendo uma mossa no alumínio com a força do seu golpe.

       — Alteza, com a sua permissão, eu vou me deitar. Acho que vou tomar um comprimido para dormir e espero que amanhã seja um dia melhor...

       — Sim, um comprimido para dormir é uma boa idéia. Muito boa. Acho que vou tomar dois, as minhas costas estão doendo horrivelmente e agora sem eles eu não consigo dormir. — Hakim acrescentou zangado: — A culpa é dele! Se não fosse por causa dele eu não estaria sentindo dor. — Ele se virou para o seu guarda-costas. — Chame os guardas que estão no portão. Quero dar-lhes algumas instruções. Vamos, Azadeh.

       Ele saiu andando com dificuldade, seguido obedientemente por Azadeh. Os motores começaram a gemer de novo. Irritado, Hakim Khan virou-se e disse para o policial.

       — Se ele não parar dentro de cinco minutos, mande que ele pare em meu nome. Cinco minutos, por Deus!

       Inquietos, os dois homens ficaram olhando ele se afastar, com o guarda-costas e os dois guardas do portão andando apressadamente atrás dele.

       — Se sua Alteza não consegue lidar com ele, o que nós podemos fazer? — disse o policial mais velho.

       — Com a ajuda de Deus, os motores vão continuar até que o bárbaro esteja satisfeito ou que ele mesmo resolva parar.

       As luzes do pátio foram apagadas. Depois de seis minutos os motores ainda estavam sendo ligados e desligados.

       — É melhor nós obedecermos. — O policial mais moço estava muito nervoso. — O khan disse cinco minutos. Nós estamos atrasados.

       — Esteja preparado para correr e não o irrite mais do que o necessário. Fique com a arma preparada. — Nervosamente, eles se aproximaram. — Piloto! — Mas o piloto ainda estava de costas para eles e com metade do corpo para dentro da cabine. Filho de um cão! Mais perto, agora quase debaixo da hélice. — Piloto! — O cabo disse alto.

       — Ele não pode ouvi-lo, quem poderia ouvir com este barulho? Vá na frente, eu fico cobrindo você.

       O cabo concordou, encomendou a alma a Deus e se abaixou para se proteger do deslocamento de ar.

       — Piloto! — Ele teve que chegar bem perto e tocar nele. — Piloto! — Agora o piloto se virou, com o rosto zangado, disse alguma coisa em bárbaro que ele não entendeu. Com um sorriso forçado e uma polidez forçada, ele disse:

       — Por favor, Excelência piloto, nós ficaríamos honrados se o senhor desligasse os motores, Sua Alteza, o khan mandou. — Ele viu o olhar vago, lembrou-se que Ele, o da Faca, não sabia falar nenhuma língua civilizada, então repetiu o que tinha dito, falando mais alto e usando mímica. Para seu imenso alívio, o piloto balançou a cabeça concordando, desligou alguns botões e agora os motores estavam parando e as hélices diminuindo de velocidade.

       Graças a Deus! Bom trabalho, como você é esperto, o cabo pensou, gratificado.

       — Obrigado, Excelência piloto, obrigado. — Muito satisfeito consigo mesmo, ele espiou para dentro da cabine. Agora ele viu o piloto fazendo sinais para ele, claramente tentando agradá-lo, e com toda a razão, por Deus, convidando-o para se sentar no assento do piloto. Cheio de orgulho, ele viu o bárbaro inclinar-se educadamente para dentro da cabine, mover os controles e apontar para os instrumentos.

       Sem conseguir conter a sua curiosidade, o policial mais jovem se aproximou por baixo das hélices que estavam girando bem devagar agora, e foi até a porta da cabine. Ele se inclinou para ver melhor, fascinado pelas fileiras de botões e mostradores que brilhavam na escuridão.

       — Por Deus, cabo, você já tinha visto tantos botões e mostradores? Você parece que foi feito para este assento.

       — Eu gostaria de ser um piloto — disse o cabo. — Eu... — Ele parou, estarrecido, enquanto suas palavras eram engolidas por uma fumaça vermelha que tirou o ar de seus pulmões e tornou a escuridão completa.

       Erikki tinha batido com a cabeça do policial mais moço na do cabo, deixando os dois sem sentidos. Os rotores tinham parado. Ele olhou em volta Nenhum movimento na escuridão, só algumas luzes no palácio. Nenhuma presença estranha que ele pudesse perceber. Rapidamente, ele guardou as armas dos dois atrás do assento do piloto. Levou apenas alguns segundos para carregar os dois homens até a cabine e deitá-los lá dentro, abrir suas bocas e enfiar as pílulas para dormir que tinha roubado do armário de Azadeh e depois amordaçá-los. Levou um momento para recobrar o fôlego antes de ir até a frente e checar se estava tudo pronto para uma partida imediata. Depois ele voltou para a cabine. Os dois homens não se haviam movido. Ele se encostou na porta, pronto para tornar a silenciá-los se fosse preciso. Sua garganta estava seca. Ele estava banhado de suor. Ficou esperando. Então ouviu os cachorros e o barulho das correntes. Silenciosamente, ele preparou a arma. A patrulha composta de dois guardas armados fez a volta no palácio mas não se aproximou dele. Ele observou o palácio, com o braço já fora da tipóia.

      

       NAS FAVELAS AO NORTE: A ambulância decrépita, de cor parda, corria pelas ruas esburacadas. Atrás havia dois enfermeiros e três maças e numa delas estava Hashemi, urrando, perdendo sangue, com os intestinos para fora.

       — Em nome de Deus, dêem-lhe morfina — falou Armstrong, também cheio de dor. Estava afundado na maca, segurando um curativo bem apertado de encontro ao buraco de bala na parte superior do seu peito, sem perceber o sangue que jorrava da ferida nas suas costas e que estava ensopando o curativo que um dos enfermeiros tinha enfiado pelo rasgão do seu casaco. — Dêem-lhe morfina. Depressa! — Ele tornou a dizer, em farsi e em inglês, odiando-os pela sua estupidez e grosseria, ainda em choque pela surpresa da bala e do ataque que tinha vindo ele não sabia de onde. Por quê por quê por quê?

       — O que eu posso fazer, Excelência? — Alguém respondeu. — Nós não temos morfina. É a vontade de Deus. — O homem acendeu uma lanterna que quase o cegou, focalizou-a em Hashemi e depois na terceira maca. O rapaz que estava lá já estava morto. Armstrong viu que eles não tinham se dado ao trabalho de fechar-lhe os olhos. Hashemi tornou a gritar.

       — Apague a lanterna, Ismael — disse o outro enfermeiro. — Você quer que atirem em nós?

       Ismael obedeceu. Mais uma vez no escuro, ele acendeu um cigarro, tossiu e Pigarreou, afastou a cobertura da janela por um momento para ver onde estavam.

       — Só mais alguns minutos, com a ajuda de Deus. — Ele se inclinou e sacudiu Hashemi, tirando-o da paz da inconsciência para o inferno da dor. — Só mais alguns minutos, Excelência coronel. Não morra ainda — ele disse animadoramente. — Só mais alguns minutos e o senhor será tratado.

       Todos eles foram sacudidos quando uma das rodas caiu num buraco. Armstrong ficou tonto de dor. Quando ele sentiu a ambulância parar, quase chorou de alívio. Outros homens abriram a porta traseira e entraram. Mãos rudes agarraram-lhe os pés e o deitaram na maca, amarrando-o. Através da névoa de dor, ele viu a maca de Hashemi sendo carregada para fora, depois os homens o levantaram de qualquer jeito, a dor foi demais e ele desmaiou.

       Os homens que estavam carregando a maca saltaram a vala e entraram por uma porta que ficava num muro alto, atravessaram um corredor, desceram um lance de escadas e chegaram num porão amplo iluminado com lamparinas a óleo. Mzytryk disse:

       — Coloquem-no ali! — Apontou para a segunda mesa, Hashemi já estava na primeira, também amarrado na maca. Sem nenhuma pressa, Mzytryk examinou os ferimentos de Armstrong, depois os de Hashemi, com os dois homens ainda inconscientes.

       — Ótimo — ele disse. — Espere por mim lá em cima Ismael.

       Ismael tirou a braçadeira da Cruz Vermelha e atirou-a num canto junto com as outras.

       — Muitos dos nossos foram martirizados no edifício. Eu duvido que alguém tenha escapado.

       — Então você foi esperto de não ir à reunião.

       Ismael subiu as escadas para se juntar aos amigos que estavam se congratulando pelo sucesso em ter conseguido agarrar o líder inimigo e o seu cão de fila, o estrangeiro. Todos eram combatentes marxistas islâmicos, de confiança, e não havia nenhum enfermeiro entre eles.

       Mzytryk esperou até estar sozinho, depois apanhou um pequeno canivete e enfiou em Hashemi. O berro que este soltou o agradou muito. Quando ele parou de berrar, Mzytryk apanhou um balde de água gelada e despejou na cara do coronel. Os olhos deste se abriram e o terror e a dor que viu lá agradaram-lhe mais ainda.

       — Você queria ver-me, coronel? Você assassinou o meu filho, Fedor. Eu sou o general Petr Oleg Mzytryk. — Ele tornou a usar o canivete. O rosto de Hashemi tornou-se grotesco quando ele urrou, gritando e gaguejando de forma incoerente, tentando soltar-se das correias.

       — Isto é pelo meu filho... e isto é pelo meu filho... e isto é pelo meu filho... O coração de Hashemi era forte e ele durou vários minutos, implorando piedade, implorando pela morte, implorando ao Único Deus pela morte e por vingança. Ele teve uma morte horrível.

       Por um momento, Mzytryk ficou inclinado sobre ele, sentindo o mau cheiro. Mas ele não precisou se forçar a lembrar o que aqueles dois tinham feito com o seu filho para arrastá-lo até o terceiro nível. O relatório de Pahmudi tinha sido explícito.

     — Hashemi Fazir, você pagou, seu comedor de merda — ele disse e cuspiu-lhe no rosto. Então ele se virou e parou. Armstrong estava acordado e olhando para ele da maca, do outro lado do porão. Frios olhos azuis. Rosto sem sangue. A falta de medo o espantou. Vou mudar isto logo, ele pensou e apanhou o canivete. Então ele notou que o braço direito de Armstrong estava fora das correias, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, Armstrong tinha enfiado a mão na lapela do casaco e estava com a ponta da cápsula de cianureto perto da boca.

       — Não se mexa! — Armstrong avisou.

       Mzytryk era experiente demais para pensar em apressá-lo e a distância era muito grande. No seu bolso havia uma automática mas antes que ele pudesse empunhá-la ele tinha certeza que os dentes de Armstrong quebrariam a cápsula e três segundos não seriam tempo suficiente para uma vingança. A sua única esperança era que a dor de Armstrong o fizesse desmaiar ou perder a concentração. Ele se encostou na outra mesa e xingou-o.

      Quando os homens da maca tinham amarrado as correias, na escuridão da ambulância, Armstrong tinha instintivamente feito força contra as correias para ter espaço suficiente para tirar o braço caso a dor se tornasse insuportável. Havia outra cápsula escondida no colarinho da sua camisa. Ele tinha assistido, tremendo, a agonia de Hashemi, agradecendo a Deus por ter conseguido soltar o braço, apesar do esforço ter sido terrível. Mas assim que ele tocou na cápsula, o terror foi embora e a dor diminuiu. Ele estava em paz consigo mesmo na beira da morte, onde a vida é tão sublime...

       — Nós... nós somos profissionais — ele disse. — Nós não assassinamos o seu... o seu filho. Ele estava vivo quando... quando o general Janan foi buscá-lo para entregá-lo a Pahmudi.

       — Mentiroso! — Mzytryk sentiu a fraqueza da voz dele e viu que não teria que esperar muito tempo. E se preparou.

       — Leia os documentos... os documentos oficiais... a Savama deve ter preparado alguns... e também os da sua maldita KGB

       — Você acha que eu sou algum idiota que você possa jogar contra Pahmudi antes de morrer?

       — Leia os relatórios, faça perguntas, você poderia chegar à verdade. Mas vocês da KGB não gostam da verdade. Eu estou dizendo que ele estava vivo quando a Savama o levou.

       Mzytryk ficou inseguro. Não seria normal para um profissional como Armstrong, tão perto da morte, perder tempo sugerindo uma tal investigação sem estar certo do resultado.

       — Onde estão as fitas? — Ele disse, vigiando-o cuidadosamente, vendo os olhos começando a pestanejar, por causa do grande cansaço pela perda do sangue. A qualquer momento agora. — Onde estão as fitas?

       — Não havia nenhuma fita. Não... não do terceiro nível. — As forças de Armstrong estavam no fim. A dor tinha passado agora, junto com o tempo. Era preciso um esforço cada vez maior para se concentrar. Mas as fitas precisavam ser protegidas, uma cópia já estava a caminho de Londres junto com um relatório especial. — O seu filho era forte e corajoso e não nos revelou nada.

       — O que... o que Pahmudi arrancou dele eu não sei... Os capangas de Pahmudi... foram eles ou a sua própria escória. Ele estava... vivo quando o seu bando o levou. Pahmudi contou a Hashemi.

       Isto é possível, pensou Mzytryk, inquieto. Aqueles filhos da mãe em Teerã fizeram esta confusão toda no Irã, interpretaram mal o xá durante anos e estragaram o nosso trabalho de gerações.

       — Eu vou descobrir. Pela alma do meu filho eu vou descobrir mas isto não vai ajudá-lo, camarada!

       — Um favor merece outro. Você matou Roger, Roger Crosse, não foi? Mzytryk riu, feliz em atormentá-lo e aproveitar a espera.

       — Fui eu que planejei isto sim. E AMG, lembra-se dele? E Talbot, mas eu disse a Pahmudi para usar o seu comedor de merda, Fazir, para este 16/a.

       — Ele viu os olhos azuis estreitarem e imaginou o que estaria por trás deles.

       Armstrong estava vasculhando a memória. AMG? Ah, sim, Alan Medford Grant, nascido em 1905, chefe dos agentes da contra-inteligência. Em 1963, como informante secreto de Ian Dunross, ele tinha apontado uma infiltração na Casa Nobre. E outra no meu Setor Especial, e que por acaso era o meu melhor amigo.

       — Mentiroso! AMG foi morto num acidente de motocicleta em 1963!

      — Foi ajudado. Nós tínhamos um 16/a naquele traidor havia mais de um ano, e na sua esposa japonesa.

       — Ele não era casado.

       — Vocês não sabem de nada. Setor Especial? Cabeças de Bagre. Ela era do serviço secreto japonês. Ela sofreu um acidente em Sydney naquele mesmo ano.

       Armstrong permitiu-se um pequeno sorriso. O 'acidente' de motocicleta de AMG tinha sido planejado pela KGB mas tinha sido encenado pelo M16. O atestado de óbito era genuíno, mas era de outra pessoa, e Alan Medford Grant ainda está operando, embora com um rosto diferente e com outro nome que nem mesmo eu conheço. Mas uma esposa? Japonesa? Seria isto outra cortina de fumaça, ou outro segredo? Engrenagens dentro de engrenagens...

       O passado acenava para Armstrong. Com esforço, ele concentrou a mente naquilo que queria realmente saber, para verificar se estava certo ou errado, não havia mais nenhum tempo a perder.

       — Quem é o quarto homem? O arquitraidor?

       A pergunta ficou suspensa no porão. Mzytryk ficou perplexo e depois sorriu, pois Armstrong tinha-lhe dado a chave para se vingar psicologicamente Ele contou e viu o seu choque. E contou o nome do quinto e do sexto.

       — O M16 está cheio de agentes nossos, bem como o Ml5, e a maioria dos seus sindicatos. Ted Everley é um dos nossos, Broadhurst e Lord Grey. Você se lembra dele de Hong Kong? E não só no Partido Trabalhista, embora eles sejam os nossos melhores aliados. Nomes? — Ele disse exultante, sabendo que estava seguro. — Procure no Who's Who! Nos bancos, na City, no Ministério do Exterior. Henley é outro dos nossos e eu já recebi uma cópia do seu relatório, procure no Gabinete, talvez até mesmo em Downing Street. Nós temos uns quinhentos profissionais na Inglaterra, sem contar com os seus próprios traidores. — O seu riso era cruel.

       — E Smedley-Taylor?

       — Oh, sim, ele também e... — Repentinamente, Mzytryk parou de se gabar, em guarda. — Como você sabe sobre ele? Se você sabe sobre ele... Hein?

       Armstrong estava satisfeito. Fedor Rakoczy não tinha mentido. Todos aqueles nomes estavam nas fitas que já tinham seguido, que estavam em segurança, Henley não tinha merecido confiança nunca, nem Talbot. Ele estava contente mas triste, com pena por não poder estar por perto para agarrá-los. Alguém o fará. AMG o fará.

       Seus olhos pestanejaram, sua mão escorregou da lapela do casaco. Na mesma hora, Mzytryk atravessou o espaço que os separava, movendo-se com muita rapidez para um homem tão grande, prendendo-lhe o braço com a perna, rasgando a lapela, e agora Armstrong estava à sua mercê.

       — Acorde, seu matyeryebyets. — disse exultante, empunhando o canivete. — Como você soube de Smedley-Taylor?

       Mas Armstrong não respondeu. A morte tinha vindo silenciosamente. Mzytryk estava com raiva, com a cabeça estalando.

       — Não faz mal, ele se foi, não preciso perder meu tempo. — Ele resmungou alto. O filho da mãe foi para o inferno sem saber que era um instrumento de traidores, de alguns deles. Mas como foi que ele soube a respeito de Smedley? Ele que vá para o inferno. E se ele tiver dito a verdade a respeito do meu filho?

       Num canto do porão havia uma lata de querosene. Ele começou a derramá-lo sobre os corpos, sua raiva se dissipando.

       — Ismael! — Ele chamou da escada. Quando terminou o querosene, atirou a lata num canto. Ismael e outro homem desceram até o porão. — Vocês estão prontos para partir? — perguntou Mzytryk.

       — Sim, com a ajuda de Deus.

       — E com a ajuda de nós mesmos também — Mzytryk falou suavemente. Ele enxugou as mãos, cansado mas satisfeito com o resultado do dia e da noite. Agora era só ir até os arredores de Tabriz onde estava o seu helicóptero. Uma hora — menos — até a fazenda em Tbilisi e Vertinskya. Dentro de poucas semanas o jovem Hakim vai chegar, com ou sem o meu pishkesh, Azadeh. Se for sem, isto vai lhe custar caro. — Acenda o fogo — ele disse secamente — e então iremos embora.

       — Tome aqui, camarada general! — Alegremente, Ismael atirou-lhe alguns fósforos. — E um direito seu terminar o que começou.

       Mzytryk tinha apanhado os fósforos.

       — Ótimo — disse. O primeiro não acendeu. Nem o segundo. Mas o terceiro sim. Ele recuou até a escada e atirou-o com cuidado. As chamas subiram até o teto e pegaram nas estacas de madeira. Então o pé de Ismael acertou-lhe as costas e o fez cair esparramado perto do fogo. Em pânico, Mzytryk gritou e tentou afastar as chamas, e se virou e começou a engatinhar em direção à escada, parou por um instante para bater na lapela de pele do casaco, tossindo e engasgando com a fumaça e com o cheiro de carne queimada. Conseguiu ficar em pé. A primeira bala estraçalhou a sua rótula, ele urrou e recuou na direção do fogo, a segunda quebrou a sua outra perna e atirou-o no chão. Ele lutou, impotente, contra as chamas, seus gritos abafados pelo barulho do incêndio. E ele se transformou numa tocha.

       Ismael e o outro homem subiram as escadas até o primeiro andar, quase colidindo com outros que tinham corrido para baixo. Eles olharam boquiabertos o corpo em chamas de Mzytryk, as chamas agora consumindo as suas botas.

       — Por que você fez isso? — Um deles perguntou, horrorizado.

       — O meu irmão morreu naquela casa, e o seu primo também.

       — Seja como Deus quiser. Mas, Ismael, o camarada general? Que Deus nos proteja, ele nos fornecia dinheiro, armas e explosivos, por que matá-lo?

       — Por que não? Aquele filho de um cão não era um satanista arrogante e mal-educado? Ele nem mesmo era um seguidor do Livro. — Ismael disse com desprezo. — Há dezenas de outros no lugar de onde ele veio, milhares. Eles precisam de nós, nós não precisamos deles. Ele merecia morrer. Ele não veio sozinho, para tentar-me? — E cuspiu na direção do corpo. — Pessoas importantes têm guarda-costas.

       Uma labareda de fogo lançou-se na direção deles. Eles recuaram rapidamente. O fogo pegou na escada de madeira e se espalhou rapidamente. Na rua, todos eles se amontoaram num caminhão, não mais uma ambulância. Ismael olhou para trás em direção às chamas que consumiam a casa e riu às gargalhadas.

       — Agora aquele cão virou cinza! Que todos os infiéis possam morrer assim tão depressa.

      

       NO PÁTIO DO PALÁCIO: Erikki estava encostado no 212 quando viu as luzes se apagarem nos aposentos do khan no segundo andar. Uma checada rápida nos dois policiais drogados que dormiam profundamente na cabine tranqüilizou-o. Silenciosamente, ele fechou a porta da cabine, enfiou a faca no cinto e apanhou a metralhadora. Com a habilidade de um caçador noturno, ele se moveu silenciosamente em direção ao palácio. Os guardas do khan no portão não o viram se afastar — por que eles iriam se incomodar em vigiá-lo? O khan tinha dado ordens bem claras para eles deixarem o piloto em paz e não agitá-lo, pois com certeza ele logo se cansaria de brincar com o aparelho.

        — Se ele tomar um carro, não se metam. Se a polícia quiser barulho, Isto é um problema deles.

       — Sim, alteza — tinham respondido, contentes por não serem responsais por Ele, o da Faca.

       Erikki esgueirou-se pela porta da frente e atravessou o corredor fracamente iluminado até a escada que conduzia à ala norte, bem longe dos aposentos do khan. Silenciosamente, ele subiu as escadas e atravessou outro corredor. Viu uma réstia de luz debaixo da porta dos seus aposentos. Sem hesitar, entrou na ante-sala, fechando a porta sem fazer barulho. Atravessou a sala e abriu a porta do quarto. Levou um choque ao ver que Mina, a criada de Azadeh, estava lá. Ela estava ajoelhada na cama, onde tinha estado massageando Azadeh, que dormia profundamente.

       — Oh, perdão — ela gaguejou, morta de medo dele como todos os outros criados. — Eu não vi Vossa Excelência chegar. Sua alteza me pediu... me pediu para continuar com a massagem e depois dormir aqui.

       O rosto de Erikki era uma máscara, as manchas de óleo no seu rosto e no .curativo sobre a orelha o faziam parecer mais perigoso ainda.

       — Azadeh!

       — Oh, não a acorde, Excelência... ela tomou... ela tomou dois comprimidos para dormir e me disse para pedir desculpas ao senhor em nome dela caso...

       — Vista-a — ele sibilou. Mina empalideceu.

       — Mas Excelência! — O coração dela quase parou quando ela viu uma faca aparecer na mão dele.

       — Vista-a rapidamente e se você fizer um som eu corto a sua garganta. Ande logol — Ele a viu pegar a camisola. — Isto não, Mina! Roupas quentes, roupas de esquiar, por todos os deuses, não importa qual, mas que seja depressa. — E ficou vigiando, colocando-se entre ela e a porta para que ela não pudesse fugir. Na mesinha-de-cabeceira estava o kookri guardado na bainha. Um arrepio o percorreu e ele desviou os olhos, e quando teve certeza de que Mina obedecia, apanhou a bolsa de Azadeh que estava sobre a penteadeira. Todos os documentos dela estavam lá, identidade, passaporte, carteira de motorista, certidão de nascimento, tudo. Ótimo, pensou, e abençoou Aysha por esta dádiva, que Azadeh tinha-lhe contado antes do jantar, e agradeceu aos seus deuses por terem inspirado o seu plano naquela manhã. Ah, minha querida, você pensou que eu fosse mesmo deixá-la?

       Dentro da bolsa estava também o seu saco de jóias que parecia mais pesado do que o normal. Seus olhos se arregalaram com as esmeraldas e os diamantes e os colares de pérolas e os broches que agora ele continha. O resto das jóias de Najoud, pensou, as mesmas que Hakim usou para barganhar com os nativos e que eu tirei de Bayazid. Pelo espelho, ele viu Mina olhando de boca aberta para aquele tesouro que ele tinha nas mãos, com Azadeh inerte e quase vestida.

       — Ande depressa! — falou pelo espelho.

      

       NA EMBOSCADA PERTO DO PALÁCIO: Tanto o sargento de polícia quanto o motorista do carro que estava parado ao lado da estrada estavam olhando para o palácio, a quatrocentos metros de distância; o sargento usava um binóculo. Estava vendo apenas a luz fraca do lado de fora da portaria, nenhum sinal dos guardas nem dos dois homens deles.

       — Vá até lá — disse o sargento, inquieto. — Há algo errado, por Deus! Ou eles estão dormindo ou estão mortos. Vá devagar e sem fazer barulho. — E colocou uma cápsula no Ml6.0 motorista ligou o motor e entrou na estrada vazia.

      

       NO PORTÃO PRINCIPAL: Babak, o guarda, estava encostado num pilar, do lado de dentro do enorme portão de ferro fechado e trancado. O outro guarda estava enroscado num saco de dormir, profundamente adormecido. Através das barras do portão, podia-se ver a estrada sinuosa e cheia de neve que conduzia à cidade. A cem metros da fonte vazia do pátio estava o helicóptero. O vento gelado movia ligeiramente as hélices.

       Babak bocejou e bateu com os pés por causa do frio, depois começou a urinar pelas barras, movendo distraidamente o jato para um lado e para o outro. Mais cedo, quando eles foram dispensados pelo khan e voltaram para o seu posto, tinham visto que os dois policiais não estavam lá.

       — Eles foram comer alguma coisa ou então dormir um pouco — tinha dito. — Que Deus amaldiçoe toda a polícia.

       Ele bocejou, louco para amanhecer, quando teria algumas horas de folga. Só faltava deixar sair o carro do piloto antes do amanhecer, depois tornar a trancar o portão e logo ele estaria na cama com um outro corpo quente. Automaticamente, ele coçou os órgãos genitais, sentindo o pênis endurecer. Ele se recostou no portão, brincando com o pênis, seus olhos conferindo se a tranca do portão estava no lugar e se o pequeno portão lateral também estava trancado. Então ele percebeu um movimento com o canto dos olhos. Prestou atenção. O piloto estava saindo por uma porta lateral do palácio com um embrulho grande sobre os ombros; seu braço não estava mais na tipóia e ele carregava um revólver. Babak se abotoou depressa, tirou o rifle do ombro e se colocou fora do campo de visão. Cautelosamente, chutou o outro guarda que acordou sem fazer barulho.

       — Olhe — murmurou — eu pensei que o piloto ainda estivesse na cabine do helicóptero.

       Com os olhos arregalados, eles observaram Erikki se esgueirar pelas sombras e depois percorrer correndo o espaço até o outro lado do helicóptero.

       — O que é que ele está carregando? Que pacote é aquele?

       — Parece um tapete, um tapete enrolado — o outro cochichou. Ouviram o barulho da porta da cabine de comando sendo aberta.

       — Mas por quê? Em nome de Deus, o que ele está fazendo?

       Não havia quase nenhuma luz, mas a visão deles era boa e a audição também. Eles ouviram um carro se aproximando mas foram imediatamente distraídos pelo som da porta da cabine sendo aberta. Eles esperaram, mal respirando, e o viram descarregar dois pacotes semelhantes e depois passar por baixo do rabo do helicóptero e reaparecer do outro lado. Por um momento ele ficou lá, olhando na direção deles, mas sem os ver, depois abriu a porta da cabine de comando e entrou com o revólver. O tapete agora estava encostado no assento do lado.

       Repentinamente os jatos foram ligados e os dois guardas deram um salto.

       — Que Deus nos proteja, o que vamos fazer?

       — Nada — disse Babak, nervosamente. — O khan nos disse exatamente: "Deixem o piloto em paz, não importa o que faça, ele é perigoso" — foi isto o que ele nos disse, não foi? "Quando o piloto pegar o carro perto do amanhecer, deixem-no partir." — Agora ele estava sendo obrigado a falar alto por causa do barulho. — Nós não vamos fazer nada.

       — Mas ninguém nos disse que ele ia tornar a ligar os motores, o khan não disse isso, nem que ia se esgueirar com rolos de tapetes.

       — Você tem razão. Seja como Deus quiser, mas você tem razão. — O nervosismo deles aumentou. Eles não tinham esquecido os guardas presos e açoitados pelo velho khan por causa de desobediência ou fracasso, nem daqueles que tinham sido banidos pelo novo khan. — Os motores estão funcionando bem agora, você não acha? — Os dois olharam para cima quando as luzes se acenderam no segundo andar, o andar do khan, então eles se viraram quando o carro da polícia chegou correndo e parou diante do portão. O sargento saltou, com uma lanterna na mão.

       — O que está acontecendo, por Deus? — gritou o sargento. — Abra o portão! Onde estão os meus homens?

       Babak correu até o portão lateral e tirou a tranca.

       Na cabine de comando, as mãos de Erikki moviam-se o mais rápido possível, mas o ferimento do braço o atrapalhava. O suor escorria pelo seu rosto, misturado com um filete de sangue da orelha, cujo curativo saíra do lugar. Ele estava ofegante por causa da longa corrida desde a ala norte com Azadeh enrolada no tapete, drogada e indefesa, e xingava os mostradores para chegarem ao verde mais depressa. Ele tinha visto as luzes se acenderem no apartamento de Hakim e agora havia cabeças espiando para fora. Antes de sair do quarto, ele tinha deixado Mina inconsciente, torcendo para não tê-la machucado muito, para proteger tanto ela como a ele próprio — para que ela não pudesse dar o alarme ou ser acusada de cumplicidade — tinha enrolado Azadeh no tapete e colocara o kookri na cintura.

       — Vamos — sibilou para os mostradores, depois viu dois homens no portão com uniformes da polícia. De repente, o helicóptero foi iluminado pela luz da lanterna e o seu estômago revirou. Sem pensar, ele agarrou a metralhadora, enfiou o cano pela janela do piloto e puxou o gatilho, mirando para cima.

       Os quatro homens se espalharam para se proteger das balas que rico-chetearam no portão. No seu pânico, o sargento deixou cair a lanterna, mas antes pôde ver os dois corpos inertes do cabo e do outro policial esparramados no chão e presumiu que eles estivessem mortos. Quando os tiros pararam, o sargento se arrastou até o portão lateral em direção ao carro e ao seu Ml6.

       — Atire, por Deus — gritou o motorista da polícia. Nervoso, Babak apertou o gatilho, atirando de qualquer jeito. Imprudentemente, o motorista tentou apanhar a lanterna. Outra rajada do helicóptero e ele deu um pulo para trás. — Filho de um cão... — Os três correram para se abrigar Outra rajada e a lanterna foi destruída.

       Erikki viu seu plano de fuga arruinado, o 212 um alvo indefeso no chão. Não havia mais tempo. Por um segundo ele pensou em desligar os motores. Os ponteiros estavam muito baixos. Então ele despejou toda a munição da metralhadora no portão com um urro de guerra, acelerou ao máximo e deu outro grito selvagem que gelou a todos que o escutaram. Os jatos alcançaram a força máxima, gemeram com a tensão quando ele pôs o comando para frente e o helicóptero subiu alguns centímetros, com o rabo para cima, deu um salto, com os esquis se arrastando pelo pátio enquanto o aparelho sacudia e subia e descia e tornava a subir, balançando muito. No portão principal, o motorista arrancou a arma do guarda e foi para o pilar, procurou mirar o helicóptero que estava fugindo e puxou o gatilho.

       No segundo andar do palácio, Hakim estava debruçado na janela do quarto, ainda tonto com o sono e com barulho. O seu guarda-costas, Margol, estava ao lado dele. Eles viram o 212 quase colidir com uma pequena cabana de madeira, seus esquis arrancando parte do telhado, depois tentar subir jogando muito. Fora dos muros do palácio, estava o carro da polícia, a figura do sargento delineada pela luz dos holofotes. Hakim o viu mirar e desejou que as balas não atingissem o aparelho.

       Erikki ouviu as balas arrancando pedaços de metal, rezou para que elas não tivessem atingido nenhuma parte vital e se afastou perigosamente do muro em direção a algum espaço onde ele pudesse ficar sob a proteção do palácio. Ao fazer a manobra repentina, o tapete que continha Azadeh caiu sobre os controles. Por um momento, ele ficou perdido, então usou toda a sua força para empurrá-la. A ferida do seu braço tornou a abrir.

       Ele foi para trás da ala norte, com o helicóptero a apenas um metro do chão e se dirigiu para o outro muro perto da cabana onde Ross e Gueng tinham ficado escondidos. Uma rajada de balas atingiu a porta e perfurou o painel, estilhaçando o vidro.

       Quando o helicóptero desapareceu das vistas de Hakim, ele atravessou o imenso quarto e saiu para o corredor, para as janelas de lá.

       — Você o está vendo? — perguntou, ofegante do esforço

       — Sim, Alteza — disse Margol e apontou excitadamente. — Ali! O 212 era apenas uma sombra escura na escuridão, então os holofotes do muro foram acesos e Hakim o viu passar a poucos centímetros do muro e mergulhar atrás dele. Alguns segundos depois ele reapareceu, ganhando velocidade e altura. Neste momento Aysha veio correndo pelo corredor, gritando histericamente.

       — Alteza, Alteza... Azadeh desapareceu, ela desapareceu., aquele demônio a raptou e Mina está inconsciente.

       Foi difícil para Hakim concentrar-se por causa do remédio para dormir, suas pálpebras estavam pesadas

       — O que é que você está dizendo?

       — Azadeh sumiu, sua irmã sumiu, ele a enrolou num tapete e a raptou, levou-a com ele.— Ela parou, com medo, ao ver o olhar de Hakim, o seu rosto lívido, os olhos se fechando, sem saber que ele tinha tomado o remédio para dormir.

        — Ele a raptou! Mas isto não é possível... não é poss...

       — Oh, é sim, ela foi raptada, e Mina está inconsciente.

       Hakim piscou os olhos e depois gaguejou:

       — Faça soar o alarme, Aysha! Se ela foi raptada, por Deus, faça soar o alarme. Eu tomei comprimidos para dormir e... Eu vou lidar com aquele demônio amanhã de manhã. Agora eu não posso, mas mande alguém... a polícia... os Faixas Verdes... dê o alarme, diga que há um resgate oferecido pelo khan pela cabeça dele. Margol, ajude-me a voltar para o meu quarto.

       Criados e guardas amedrontados estavam reunidos no final do corredor e Aysha correu, chorando, em direção a eles, contando o que tinha acontecido e o que o khan tinha ordenado.

       Hakim caiu na cama, exausto.

        — Margol, diga aos... aos guardas para prenderem aqueles idiotas que estão no portão. Como eles puderam deixar que isto acontecesse?

       — Eles podem não ter estado vigilantes, Alteza. — Margol tinha certeza de que eles receberiam a culpa, alguém tinha que arcar com a culpa, muito embora ele estivesse presente quando khan dissera a eles para não se meterem com o piloto. Ele deu as ordens e voltou. — O senhor está bem, Alteza?

       — Sim, obrigado. Não saia do quarto... acorde-me ao amanhecer. Mantenha o fogo aceso e acorde-me ao amanhecer.

       Exausto, Hakim entregou-se ao sono que acenava para ele com tanta sedução, sem dor nas costas, sua mente concentrada em Azadeh e Erikki. Quando ela saiu da sala e o deixou sozinho com Erikki, ele tinha demonstrado a sua tristeza:

       — Não há nenhuma maneira de escapar da armadilha, Erikki. Nós estamos presos nela, todos nós, você, Azadeh e eu. Eu ainda não posso acreditar que ela fosse capaz de renunciar ao islamismo, mas ao mesmo tempo estou convencido de que ela não vai obedecer nem a mim nem a você. Eu não quero feri-la, mas não tenho outra alternativa, a alma imortal de Azadeh é mais importante do que a sua vida passageira.

       — Eu poderia salvar a sua alma, Hakim. Com a sua ajuda.

       — Como? — Ele tinha percebido a tensão de Erikki, seu rosto tenso, seus olhos estranhos.

       — Retire o motivo que tem para destruí-la.

       — Como?

       — Digamos, hipoteticamente, que este piloto louco não fosse um muçulmano, mas um bárbaro e que estivesse tão apaixonado pela sua esposa que em vez de fugir sozinho, de repente ele a deixasse inconsciente, a seqüestrasse e retirasse do seu país contra a sua vontade e se recusasse a permitir que ela voltasse. Em muitos países um marido pode... pode tomar medidas extremas para conservar a sua mulher, até mesmo forçá-la a obedecê-lo. Assim ela não teria quebrado o seu juramento, ela nunca teria que desistir do islamismo, você nunca seria obrigado a fazer-lhe mal e eu ficaria com a minha mulher

       — Isto é um embuste — Hakim tinha dito espantado —, é um embuste.

       — Não é não, é uma ficção, é uma coisa hipotética, tudo isto é só ficção, mas, hipoteticamente, está de acordo com as regras que você jurou cumprir e ninguém nunca acreditaria que a irmã do Gorgon Khan quebraria por livre espontânea vontade o seu juramento e renunciaria ao islamismo por causa de um bárbaro. Ninguém. Mesmo agora você não tem certeza de que ela faria, tem?

       Hakim tentara encontrar as falhas. Não há nenhuma, tinha pensado, estarrecido, e isto resolveria a maior parte dos... isto não resolveria tudo se acontecesse? Se Erikki conseguisse fazer isso sem o seu conhecimento nem a sua ajuda... Raptá-la! É verdade, ninguém jamais acreditaria que ela tivesse quebrado o seu juramento por livre e espontânea vontade. Raptada! Eu poderia deplorar isto publicamente e me regozijar por ela em segredo, se eu quiser que ela viva e que ele viva. Mas eu tenho que querer, é a única maneira: para salvar a alma dela, eu tenho que salvá-lo.

       Na paz do quarto, ele abriu os olhos por um instante. As sombras das chamas dançavam no teto. Erikki e Azadeh estavam lá. Deus me perdoará, pensou, mergulhando no sono. Será que eu tornarei a vê-la de novo?

      

       TEERÃ — PERTO DA UNIVERSIDADE: 23:58H. Xarazade estava junto dos Faixas Verdes, em pé no frio e na escuridão, protegendo a frente dos islâmicos que entoavam em uníssono: Allah-uuu Akbarrr — uma barreira viva contra os dois ou três mil estudantes esquerdistas e agitadores que avançavam pela estrada. Lanternas e tochas, alguns carros pegando fogo, revólveres, paus, cacetetes. Seus dedos apertaram a automática que estava no bolso; e granada estava preparada no outro.

       — Deus é Grande — ela gritou.

       O inimigo aproximava-se depressa e Xarazade viu os punhos levantados, o tumulto aumentando de ambos os lados, os gritos mais enraivecidos, os nervos mais tensos, antecipando a luta.

       — Não há outro Deus além de Deus...

       Agora os inimigos estavam tão perto que ela podia ver alguns rostos. De repente, ela percebeu que eles não eram uma massa de revolucionários satânicos, nem todos eles, mas que a grande maioria era de estudantes, homens e mulheres da sua própria idade, as mulheres corajosamente sem o chador e gritando pelos direitos das mulheres, pelo voto, e por todas as coisas sensatas, dadas por Deus, conquistadas a duras penas, coisas que não podiam voltar atrás.

       Ela foi transportada de volta para a excitação embriagadora da marcha das mulheres, todas elas usando as suas melhores roupas, os cabelos soltos, e elas tão livres quanto os cabelos, a favor da liberdade e da justiça para todos na nova república islâmica onde ela e o seu filho e Tommy poderiam viver felizes para sempre. Mas surgiu outra vez diante dela o fanático com a faca na mão despedaçando o futuro, mas isto não tinha importância porque Ibrahim o havia detido, Ibrahim, o líder estudantil, ele estava lá para salvá-la. Oh, Ibrahim, você está aqui esta noite, liderando-os agora como fez conosco? Você está aqui mais uma vez lutando pela liberdade e pela justiça e pelos direitos das mulheres ou foi martirizado em Kowiss como você queria, matando o mulá malvado que assassinou seu pai da mesma maneira como o meu também foi assassinado?

       Mas... mas papai foi morto pelos islâmicos, não pelos esquerdistas, pensou, confusa. E o imã ainda defende implacavelmente a idéia de que tudo seja como era nos tempos do Profeta... e Meshang... e Tommy obrigado a partir. E ela obrigada a se divorciar e a se casar com aquele homem horroroso e sem nenhum direito.

       — O que eu estou fazendo aqui? — pensou no meio do pandemônio. Eu deveria estar lá com eles, eu deveria estar lá com eles e não aqui... não, não, nem lá também! E quanto ao meu filho, é perigoso para ele e...

       Um revólver disparou em algum lugar, depois outros e a confusão se generalizou, os que estavam na frente tentando recuar e os que estavam atrás tentando avançar. Atrás de Xarazade houve um enorme tumulto. Ela foi arrastada para a frente, com os pés mal tocando o chão. Um velho tropeçou e caiu, murmurando o Shahada e quase a arrastou junto. Alguém lhe deu uma cotovelada no estômago e ela gritou de dor, seu medo transformando-se em pânico.

       — Tommyyyy! — Ajude-me — ela gritou.

       Uns cem metros à frente, Tom Lochart estava imprensado de encontro a uma vitrine, com o casaco rasgado, sem o quepe, cheio de desespero. Há horas ele estava procurando por ela no meio dos estudantes, certo de que ela estaria no meio deles. Onde mais poderia estar? Não no apartamento daquele estudante, aquele que Jari tinha conhecido, aquele Ibrahim ou seja lá que nome for, que não era nada importante. É melhor que ela esteja lá do que aqui, pensou desesperado. Oh, Deus, permita que eu a encontre.

       Mulheres passavam entoando cânticos, a maioria com roupas ocidentais, jeans, jaquetas e então ele a viu. Começou a abrir caminho, mas viu que tinha se enganado mais uma vez, pediu desculpas e tornou a se afastar, ouvindo alguns xingamentos. Então achou que a tinha visto do outro lado da rua, mas mais uma vez estava enganado. A moça usava roupas de esquiar parecidas com as dela, tinha o mesmo estilo de cabelo e era quase da mesma idade. Mas carregava um cartaz marxista-islâmico e ele, desapontado, xingou-a, odiando-a por sua estupidez. Os gritos o estavam perturbando também e ele teve vontade de pegar um pau e destruir o demônio que havia neles.

       Oh, Deus, ajude-me a encontrá-la.

       — Deus é Grande — ele murmurou e embora estivesse louco de preocupação por causa dela, ao mesmo tempo o seu coração estava exultante.

       Tornar-me muçulmano vai fazer toda a diferença do mundo. Agora eles vão aceitar-me, eu sou um deles, posso ir à Meca no Hajj, posso rezar em qualquer mesquita, cor e raça não significam nada para Deus. Só a fé. Eu acredito em Deus e acredito que Maomé foi o profeta de Deus, não vou ser fundamentalista nem xiita. Vou ser um ortodoxo sunita. Vou procurar um professor e aprender árabe. Vou pilotar para a IranOil e para o novo regime e seremos felizes, Xarazade e eu..

       Uma arma disparou ah perto, uma barricada feita de pneus pegou fogo e as chamas se elevaram no ar enquanto pequenos grupos de estudantes atiravam-se aos gritos, sobre as fileiras de Faixas Verdes. Ouviram-se mais tiros e agora a rua inteira explodiu em gritos e confusão, com os mais fracos sendo pisoteados. Um grupo de estudantes frenéticos arrastou-o em direção ao centro do combate.

       A oitenta metros de distância, Xarazade estava gritando, lutando pela vida, tentando afastar-se para um dos lados para conseguir uma certa segurança O seu chador foi arrancado, seu lenço desapareceu. Ela estava machucada, com dor no estômago. Havia uma multidão em volta dela agora, atacando os que estavam contra eles, cada um por si, mas envolvidos pela selvageria da mui tidão. A batalha continuou, sem que ninguém soubesse quem era amigo ou inimigo, exceto os mulás e os Faixas Verdes que gritavam, tentando controlar o tumulto. Com um urro ensurdecedor, a multidão islâmica hesitou por um momento e depois avançou. Os fracos caíram e foram esmagados. Homens, mulheres. Gritos, berros, pandemônio, todos invocando a sua própria versão de Deus.

       Os estudantes resistiram desesperadamente, mas foram esmagados. Sem piedade. Muitos caíram. Foram pisoteados. Então o resto dispersou-se, a debandada começou e os lados se confudiram.

       Lochart usou a sua altura e a sua força para se afastar para o lado e estava agora entre dois carros, momentaneamente protegido por eles. A poucos metros de distância, ele viu um beco, meio escondido, que levava a uma mesquita onde ele poderia abrigar-se. À sua frente houve uma terrível explosão quando um tanque explodiu e as chamas se espalharam. Os que tiveram sorte morreram na hora, os feridos começaram a gritar. À luz das chamas, ele pensou tê-la visto, então um grupo de estudantes em fuga veio correndo na direção dele, um punho atingiu-lhe as costas, outros o empurraram e ele caiu no chão, sob as botas deles.

       Xarazade estava apenas a trinta metros de distância, com os cabelos desgrenhados, as roupas rasgadas, ainda presa no meio da multidão, ainda arrastada pelo tumulto, ainda gritando por socorro, sem que ninguém ouvisse ou se importasse.

       — Tommyyyy, ajude-me...

       A multidão se separou momentaneamente. Ela correu para a brecha, abrindo caminho em direção às lojas fechadas e aos carros estacionados. O tumulto estava diminuindo. Braços tentavam abrir espaço para respirar, mãos enxugavam o suor e limpavam a sujeira e as pessoas viam quem estava do lado. — Sua comunista filha da puta — o homem que estava na sua frente gritou, com os olhos saltando das órbitas de raiva.

       — Não é verdade, eu sou muçulmana — ela gaguejou, mas as mãos dele tinham agarrado a sua jaqueta — o zíper quebrou e ele agarrou-lhe os seios.

       — Rameira! Mulheres muçulmanas não se exibem, mulheres muçulmanas usam o chador...

       — Eu o perdi. Ele foi arrancado de mim — ela gritou.

       — Meretriz! Que Deus a amaldiçoe! As nossas mulheres usam o chador.

       — Eu o perdi, ele foi arrancado — ela tornou a gritar e tentou soltar-se. Não há nenhum outro..

       — Rameira! Meretriz! Satanista! — ele gritou, sem escutar o que ela dizia, tomado pela fúria e inflamado pelo contato com os seios dela sob a blusa de seda. Ele rasgou o tecido e agarrou-os, com a outra mão tentando estrangulá-la, enquanto ela gritava e chutava. Os que estavam em volta esbarravam neles ou tentavam se afastar, sem conseguir enxergar na escuridão, sem saber o que estava acontecendo, exceto que alguém tinha agarrado uma esquerdista nas fileiras dos crentes.

       — Por Deus, ela não é uma esquerdista, eu a ouvi gritando a favor do ímã... — Alguém exclamou, mas sua voz foi abafada pelos gritos, a luta recomeçou e os homens ou avançavam para ajudar ou abriam espaço para recuar e ela ficou a mercê dele.

       Ela lutou com unhas, pés e voz, sufocada pelo hálito dele e pelas obscenidades que dizia. Com um último esforço, ela pediu ajuda a Deus e deu um golpe para cima, errou e se lembrou do revólver. Conseguiu agarrá-lo, apontou-o para ele e puxou o gatilho. O homem gritou, com os órgãos genitais esfacelados e caiu no chão, urrando de dor. Houve um silêncio súbito em volta dela. E espaço. Ela tirou a mão do bolso ainda segurando o revólver. Um homem que estava perto dela agarrou-o.

       Ela olhou para o seu agressor que gemia e contorcia-se no chão.

       — Deus é Grande — ela gaguejou, então notou o estado das suas roupas e fechou a jaqueta, levantou os olhos e viu o ódio em volta dela. — Ele estava me atacando... Deus é Grande, Deus é Grande...

       — Ela está dizendo isso da boca para fora, ela é uma esquerdista — gritou uma mulher. — Olhem para as roupas dela, ela não é uma de nós...

       A poucos metros de distância, Lochart estava tentando levantar-se, com a cabeça doendo, os ouvidos zumbindo, quase sem poder ver nem ouvir. Com grande esforço, ele ficou em pé, então abriu caminho em direção à escuridão do beco e à sua segurança. Outros tinham tido a mesma idéia e a entrada já estava obstruída. Então a voz dela alcançou-o no meio dos gritos e ele se virou.

       Ele a viu acuada, encostada numa parede, cercada por uma multidão, com as roupas rasgadas, a manga da jaqueta arrancada, os olhos arregalados, uma granada na mão. Neste instante, um homem se adiantou, ela tirou o pino da granada, o homem parou, todo mundo começou a recuar, Lochart correu até ela e agarrou a granada, mantendo a alavanca para baixo.

       — Afastem-se dela — berrou em farsi e ficou na frente dela, protegendo-a. — Ela é muçulmana, seus filhos de um cão. Ela é muçulmana e é minha esposa e eu sou muçulmano!

       — Você é estrangeiro e ela é uma esquerdista.

       Lochart deu um soco no homem com o punho protegido pela granada e arrebentou-lhe a boca, quebrando-lhe o maxilar.

       — Deus é Grande — Lochart berrou. Outros o acompanharam e aqueles que não acreditaram nele ficaram quietos, com medo dele mas com mais medo ainda da granada. Segurando-a firmemente com o braço livre, quase carregando-a, Lochart foi abrindo caminho, com a granada preparada. — Deixem-nos passar, por favor, Deus é Grande, que a paz esteja com vocês. — Os que estavam na primeira fileira se afastaram, depois os de trás e assim por diante, enquanto ele ia murmurando: — Deus é Grande, que a paz esteja com vocês, até conseguir chegar no beco apinhado de gente, tropeçando no lixo e nos buracos, esbarrando nas pessoas na escuridão. Algumas luzes estavam acesas do lado de fora da mesquita. Na fonte ele parou, quebrou o gelo e com uma das mãos jogou um pouco d'água no rosto, com o cérebro ainda explodindo. — Cristo — murmurou e molhou mais o rosto.

       — Oh, Tommyyyy! — exclamou Xarazade, com uma voz fraca e esquisita. — De onde você veio, de onde, oh, eu estava com tanto medo... com tanto medo...

       — Eu também — ele gaguejou, quase sem poder falar. — Há horas que estou procurando por você, minha querida. — Ele a abraçou. Você está bem?

       — Oh, sim, sim. — Ela se agarrou a ele, enterrando a cabeça no seu ombro.

       De repente mais tiros e gritaria. Instintivamente, ele a apertou de encontro a ele, mas não achou que houvesse perigo ali. Apenas vultos passando na semi-escuridão, o tiroteiro cada vez mais distante e o barulho do tumulto diminuindo.

       Estamos seguros, finalmente. Não, ainda não, ainda resta a granada — não tem pino para torná-la segura, nada que se possa fazer para isso. Por cima da cabeça dela ele viu um edifício queimado ao lado da mesquita, do outro lado da praça. Eu posso me livrar dela lá, disse a si mesmo, ainda sem conseguir raciocinar com clareza, apertando-a com força e tirando forças deste abraço. A multidão tinha crescido e agora enchia o beco. Até diminuir, seria difícil e perigoso livrar-se da granada, então ele chegou mais perto da fonte, onde estava mais escuro.

       — Não se preocupe. Vamos esperar mais um pouco e depois continuamos.

       — Eles falavam em inglês, baixinho, havia tanto o que contar, tanto o que perguntar. — Você tem certeza de que está bem?

       — Sim, oh, sim. Como foi que você conseguiu me achar? Como? Quando foi que você voltou? Como foi que você me achou?

       — Eu... eu voltei esta noite e fui até a sua casa, mas você não estava lá.

       — Então ele desabafou: — Xarazade, eu me tornei muçulmano.

       Ela o olhou sem acreditar,

       — Mas... mas foi só um truque, um truque para escapar deles.

     — Não, eu juro! É verdade. Eu recitei o Shahada na frente de três testemunhas, Meshang, Zarah e Jari, e eu acredito. Eu realmente acredito. Vai dar tudo certo agora.

       Suas dúvidas se dissiparam ao ver a alegria dele, ao ouvi-lo repetir o que tinha acontecido.

       — Oh, que maravilha, Tommy! — disse, fora de si de felicidade e ao mesmo tempo estranhamente convencida de que, para eles, nada iria mudar. Nada fará Meshang mudar, ela pensou. Meshang encontrará um meio de nos destruir, seja o meu Tommy um crente ou não. Nada irá mudar, o divórcio não será anulado, o casamento não será desfeito. A não ser que...

       Seus temores se dissiparam.

       — Tommy, nós podemos sair de Teerã esta noite? Podemos fugir esta noite, meu querido?

       — Isto não é mais necessário, agora não. Eu tenho planos maravilhosos. Eu saí da S-G. Agora que sou muçulmano, posso ficar e trabalhar para a IranOil, você não está vendo?

       Os dois não viram a multidão crescendo, loucos para estarem em casa.

       — Não precisa se preocupar, Xarazade.

       Alguém tropeçou e deu um encontrão nele, depois outro, a multidão começando a invadir o pequeno santuário deles. Ela o viu empurrar um homem e outros começaram a xingar. Rapidamente, ela deu a mão a ele e o empurrou para a frente.

       — Vamos para casa, marido — ela disse alto, em farsi, alertando-o, apertando-lhe a mão e depois cochichou: — Fale em farsi — e então um pouco mais alto: — Nós não estamos seguros aqui e podemos conversar melhor em casa.

      — Sim, sim, mulher. É melhor irmos para casa. — Andar era melhor e mais seguro e Xarazade estava ali e amanhã os problemas se resolveriam, esta noite seria apenas um banho e sono, comida e sono, sem sonhos ou apenas sonhos bons.

       — Se quiséssemos partir secretamente esta noite, nós poderíamos? Poderíamos, Tommy?

       O cansaço invadiu-o e ele quase gritou com ela, será que ela não tinha entendido o que ele acabara de dizer? Em vez disso, controlou a impaciência e disse apenas:

       — Agora não há necessidade de fugir.

       — Você tem toda a razão, marido, como sempre. Mas nós poderíamos?

       — Sim, acho que sim — disse cansado, e explicou como, andando e parando junto com a multidão, com o beco se estreitando, ficando cada vez mais claustrofóbico.

       Agora ela estava contente, segura de que conseguiria convencê-lo. Amanhã eles partiriam. Amanhã de manhã eu vou recolher as minhas jóias, vamos fingir para Meshang que vamos encontrá-lo no bazar na hora do almoço, mas nessa altura estaremos voando para o sul no pássaro de Tommy. Ele pode voar para um dos Estados do golfo ou para o Canadá, ou para qualquer outro lugar, pode-se ser muçulmano e canadense sem nenhum problema, eles me disseram na embaixada. E em breve, daqui a um ou dois meses, nós voltaremos para o Irã e viveremos aqui para sempre...

       Ela chegou mais para perto dele, toda feliz, oculta pela multidão e pela escuridão, sem sentir mais medo algum, certa de que o futuro deles seria maravilhoso. Agora que ele é um crente, ele irá para o paraíso, Deus é Grande, Deus é Grande, e eu também, e, juntos, com a ajuda de Deus, deixaremos aqui filhos e filhas. E então, quando formos velhos, se ele morrer primeiro, no quadragésimo dia eu providenciarei para que o seu espírito seja lembrado, depois amaldiçoarei a sua esposa mais jovem ou as suas esposas e os filhos delas, depois porei os meus negócios em dia e ficarei esperando o momento de me juntar a ele — quando Deus quiser.

       — Oh, eu o amo, Tommy, sinto muito ter-lhe dado tanto trabalho... Agora eles estavam saindo do beco. A multidão era ainda maior, cobrindo a rua e a calçada. Mas havia uma leveza nelas, homens, mulheres, mulás, Faixas Verdes, jovens e velhos depois de terem passado a noite fazendo o trabalho de Deus. — Allah-u Akbar! — Alguém gritou e as palavras ecoaram em mil gargantas. Na frente, um carro impaciente avançou, bateu em alguns pedestres que caíram sobre outros e todos caíram no chão, entre risos e xingamentos. Xarazade e Lochart no meio deles, nenhum dos dois machucado. Ele a tinha segurado e, rindo, ficaram um instante deitados no chão, com a granada ainda segura na mão dele. Ele não tinha ouvido o chiado — sem saber, ao cair, ele tinha soltado a alavanca por um instante. Durante uma infinidade, ele sorriu para ela e ela para ele.

       — Deus é Grande — ela disse e ele repetiu com a mesma confiança. E, naquele instante, eles morreram.

 

SÁBADO, 3 de março

       AL SHARGAZ: 6:34H. A pontinha do sol surgiu no horizonte e transformou o deserto negro num mar escarlate, colorindo a velha cidade portuária e os barcos que estavam lá embaixo no golfo. Do alto dos minaretes, os muezins começaram a chamar, mas a música das suas vozes não agradou a Gavallan nem ao resto do pessoal da S-G que estava no terraço do Hotel Oásis tomando um café apressado.

       — Isso irrita os nervos, não é, Scrag? — disse Gavallan.

       — É verdade, meu velho — respondeu Scragger. Ele, Rudi Lutz e Pettikin estavam sentados numa mesa com Gavallan, todos eles cansados e desanimados. O sucesso quase total da operação Turbilhão estava se transformando num desastre. Dubois e Fowler ainda estavam desaparecidos, em Bahrain, McIver ainda não estava fora de perigo. Tom Lochart tinha voltado para Teerã e só Deus sabe onde estaria agora. Não havia nenhuma notícia de Erikki e Azadeh. Eles não tinham dormido quase nada na noite anterior. E o prazo deles se esgotava hoje ao pôr-do-sol.

       A partir do momento em que os 212 começaram a pousar, na véspera, todos tinham ajudado a desmontá-los, tirando rotores e caudas para colocar nos jumbos de carga quando estes chegassem, se chegassem. Na noite anterior, Roger Newbury tinha voltado do encontro no palácio de Al Shargaz com o ministro do Exterior: de péssimo humor.

       — Não posso fazer nada, Andy. O ministro disse que o novo representante ou embaixador do Irã pediu a ele e ao xeque que fizessem pessoalmente uma inspeção no aeroporto, uma vez que teria visto oito ou nove 212 estranhos lá, afirmando que seriam helicópteros de registro iraniano que haviam sido 'seqüestrados'. O ministro disse que, evidentemente, Sua Alteza, o xeque, tinha concordado, como poderia recusar? A inspeção seria feita ao anoitecer, junto com o embaixador. Eu fui 'cordialmente convidado', como representante inglês, a verificar os documentos de identidade e se encontrar algum suspeito vai ser uma encrenca!

       Gavallan tinha ficado acordado a noite inteira tentando adiantar a chegada dos aviões de carga ou conseguir outros através de todas as fontes internacionais que conseguiu desencavar. Não havia nenhum disponível. O máximo que a companhia que ele contratara fez foi prometer "talvez" adiantar a hora da chegada para meio-dia do dia seguinte, domingo.

       — Droga de gente — resmungou e se serviu de mais café. — Quando se precisa de dois 747, não se consegue nenhum, e geralmente com um único telefonema pode-se conseguir cinqüenta.

       Pettikin estava igualmente preocupado, ainda mais com McIver no hospital em Bahrain.

       Nenhuma notícia era esperada antes do meio-dia sobre a gravidade do ataque cardíaco de McIver.

       — Pas problème — Jean-Luc tinha dito na noite anterior. — Eles deixaram Genny ficar num quarto ao lado no hospital, o médico é o melhor de Bahrain e eu estou aqui. Cancelei o meu vôo para casa e vou ficar aqui esperando, mas envie-me algum dinheiro amanhã para pagar as contas.

       Pettikin brincou com a xícara, sem conseguir comer. Tinha passado o dia e toda a noite anterior ajudando a preparar os helicópteros e não tinha tido chance de ver Paula e ela partiria esta manhã para Teerã, ainda trabalhando na evacuação de cidadãos italianos, e só estaria de volta dentro de dois dias. Gavallan tinha ordenado uma retirada imediata de todos os participantes do Turbilhão da área do golfo até que fosse feita uma avaliação.

       — Nós temos que ser muito cuidadosos — tinha dito a todos eles. — Todo mundo tem que partir por enquanto.

       Mais tarde, Pettikin tinha dito:

       — Você tem razão, Andy, mas e quanto a Tom e Erikki? Nós devíamos deixar alguém aqui, eu estou disposto...

       — Pelo amor de Deus, Charlie, pare com isso — Gavallan tinha respondido. — Você acha que eu não estou morto de preocupação por causa deles? E de Fowler e Dubois? Nós temos que fazer uma coisa de cada vez. Todo mundo que não for necessário vai sair antes do pôr-do-sol e você é um deles! — Isto tinha ocorrido por volta de uma hora da manhã no escritório, quando Pettikin chegara para substituir Scot, que ainda estava controlando o HF. Ele tinha passado o resto da noite lá. Não tinha havido nenhuma chamada. Às cinco horas, Nogger Lane o rendera e ele fora para o hotel tomar café, encontrando Rudi, Gavallan e Scragger já sentados à mesa. — Conseguiu alguma coisa com os aviões, Andy?

       — Não, Charlie, só amanhã ao meio-dia, se tivermos sorte. — Sente-se, tome um pouco de café. — Então o dia amanhecera e os muezins começaram o seu chamado. Agora a ladainha deles terminara. O ambiente ficou menos tenso no terraço.

       Scragger serviu-se de mais chá, com o estômago ainda embrulhado. Teve outra cólica violenta e correu para o banheiro. O espasmo passou rapidamente e ele evacuou muito pouco, mas não havia sangue nas fezes e o doutor Nutt tinha dito que não achava que fosse disenteria:

       — Vá com calma por alguns dias, Scrag. Vou saber o resultado dos seus exames amanhã. — Ele tinha contado ao doutor Nutt sobre o sangue na urina e a dor de estômago nos últimos dias. Escondê-lo teria sido um risco imperdoável, tanto para os seus passageiros quanto para o helicóptero.

       — Scrag, é melhor você ficar aqui no hospital por alguns dias — tinha dito o doutor Nutt.

       — Foda-se, seu bode velho! Eu tenho mais o que fazer!

       Ao voltar para a mesa, ele viu as fisionomias sombrias e odiou aquilo, mas não havia nada a fazer a não ser esperar. Não podiam sair com os aparelhos porque teriam que atravessar o espaço aéreo da Arábia Saudita, dos Emirados ou de Omã e não havia nenhuma possibilidade de conseguirem uma autorização imediata. Ele tinha sugerido, de brincadeira, que tornassem a montar os helicópteros, descobrissem quando o próximo superpetroleiro inglês estaria em Ormuz e então decolassem e fossem pousar nele.

       — ...e aí nós simplesmente navegaríamos no mar azul e saltaríamos em Mombaça ou então navegaríamos até a Nigéria.

       — Ei, Scrag — Vossi tinha dito cheio de admiração —, grande idéia. Eu bem que gostaria de um cruzeiro. Que tai, Andy?

       — Nós seriamos presos antes mesmo de ligarmos os motores. Scragger sentou-se e espantou uma mosca. O sol estava menos vermelho agora e todos usavam óculos escuros por causa da claridade. Gavallan terminou o café.

       — Bem, eu vou para o escritório ver se posso fazer alguma coisa. Se quiserem falar comigo, estarei lá. A que horas você termina, Rudi?

       Rudi estava encarregado de preparar os helicópteros para serem embarcados.

       — O seu prazo terminava amanhã ao meio-dia. Vamos mantê-lo. — Ele engoliu o resto do café e se levantou. — Hora de partir, meineKinder! — Resmungos e grunhidos dos outros, mas na maioria bem-humorados, apesar do cansaço. Um êxodo geral para os carros que estavam esperando lá fora.

       — Andy — disse Scragger. — Eu vou com você, se não se importar.

       — Boa idéia, Scrag. Charlie, não há necessidade de você ficar no grupo de Rudi uma vez que estamos adiantados. Por que você não vai até o escritório mais tarde?

       Pettikin sorriu para ele.

       — Obrigado. — Paula não deveria sair do seu hotel antes das dez. Agora ele teria bastante tempo para estar com ela. Para dizer o quê? perguntou a si mesmo, despedindo-se deles.

       Gavallan passou pelos portões. O aeroporto ainda estava parcialmente às escuras. Havia alguns jatos com as luzes de navegação acesas, os motores esquentando. A evacuação do Irã ainda era uma prioridade. Ele olhou para Scragger e viu a careta dele.

       — Você está bem?

       — Claro, Andy. Só com um pouco de dor de barriga. Sofri muito com isso na Nova Guiné, por isso tomo sempre muito cuidado. Se eu conseguisse um pouco do elixir do velho dr. Collis Brown ficaria ótimo! — Era uma tintura maravilhosa e altamente eficaz inventada pelo dr. Collis Brown, um cirurgião do exército inglês, para combater a desinteria que matara dezenas de milhares de soldados durante a guerra da Criméia. — Seis gotas daquele remédio mágico e você fica novo em folha.

       — Tem razão, Scrag — Gavallan falou distraidamente, imaginando se o serviço de carga da Pan Arn teria tido algum cancelamento. — Eu nunca viajo sem o Collis... espere um instante! — Ele deu um sorriso radiante. — O meu estojo de sobrevivência! Tem um pouco lá. Liz o põe sempre na minha mala. Collis Brown, bálsamo Tigre, aspirinas, uma moeda de ouro e uma lata de sardinhas.

       — Sardinhas?

       — Caso eu fique com fome. — Gavallan estava satisfeito por poder desviar um pouco sua atenção dos problemas do Turbilhão. — Liz e eu temos um amigo em comum que conhecemos há anos em Hong Kong, um cara chamado

       Marlowe, um escritor. Ele sempre carregava uma lata com ele, ração para não passar fome, e Liz e eu sempre rimos dele por isto. Tornou-se uma espécie de símbolo para nos lembrarmos do quanto temos sorte.

      — Peter Marlowe? Aquele que escreveu o Changi* — sobre o campo de prisioneiros de guerra em Cingapura?

       — Sim. Você o conhece?

       — Não, mas li o livro. Não os outros, mas li este. — Scragger se lembrou da sua própria guerra contra os japoneses, e depois de Kasigi e da Irã-Toda. Na noite anterior ele tinha ligado para outros hotéis a fim de localizar Kasigi e no fim o encontrara registrado no Internacional e tinha deixado um recado, mas ele ainda não tinha ligado de volta. Provavelmente ele está danado por eu tê-lo deixado na mão, por não termos podido ajudá-lo na Irã-Toda. Que coisa! Bandar Delam e a Irã-Toda parecem ter acontecido há dois anos e não há dois dias. Ainda assim, se não fosse por ele, eu ainda estaria algemado àquela maldita cama.

       — É uma pena que nós todos não tenhamos latas de sardinhas, Andy — disse. — Nós realmente nos esquecemos da sorte que temos, não? Olha que sorte nós tivemos em sair de Lengeh sãos e salvos. E quanto ao velho Duke? Em pouco tempo ele vai estar novo em folha. Um centímetro a mais e ele estaria morto, mas não está. Scot a mesma coisa. E quanto ao Turbilhão? Todos os rapazes estão fora do Irã e os nossos pássaros também. Erikki está em segurança. Mac vai ficar bom, você vai ver! Dubois e Fowler? Isto às vezes acontece, mas ainda não aconteceu, pelo que sabemos, portanto temos que ter esperança. Tom? Bem, ele escolheu isto e vai conseguir dar um jeito.

      

       PERTO DA FRONTEIRA IRÃ-TURQUIA: 7:59H. Mil quilômetros em direção ao norte, Azadeh protegeu os olhos contra o sol que nascia. Ela tinha visto alguma coisa brilhar no vale lá embaixo. Seria o reflexo de uma arma ou de um arreio? Ela preparou o M16, e apanhou o binóculo. Atrás dela, Erikki estava deitado sobre alguns cobertores na cabine do 212, profundamente adormecido. Seu rosto estava pálido e ele tinha perdido um bocado de sangue, mas ela achava que ele estava bem. Através das lentes do binóculo, ela não viu nada se movendo. O terreno ali estava coberto de neve e havia poucas árvores. Desolado. Nem aldeias e nem fumaça. O dia estava bonito e muito frio. Não havia nuvens e o vento tinha melhorado durante a noite. Vagarosamente ela examinou o vale. A poucos quilômetros de distância havia uma aldeia que ela não tinha notado antes.

       O 212 estava parado num terreno montanhoso, num platô de pedra. Na noite anterior, depois da fuga do palácio, Erikki tinha se perdido por causa de uma bala que avariara alguns instrumentos. Com medo de esgotar o combustível e sem poder ao mesmo tempo pilotar e estancar o sangue do braço, ele tinha decidido se arriscar a pousar e esperar pelo amanhecer. Uma vez no chão, tinha tirado o tapete da cabine e o desenrolara. Azadeh ainda estava dormindo tranqüilamente. Ele amarrara as suas feridas o melhor possível, depois enrolara-a de novo no tapete para que ela não sentisse frio, apanhara algumas armas e se recostara nos esquis para vigiar. Mas por mais que tentasse, não conseguiu manter os olhos abertos.

       Ele acordou de repente. Um início de claridade aparecia no céu. Azadeh ainda estava enrolada no tapete mas agora o observava.

       — Então você me raptou! — E a sua frieza fingida desapareceu e ela se arrastou para os braços dele, beijando-o e agradecendo-lhe por ter solucionado o dilema deles três com tanta sabedoria, fazendo o discurso que tinha ensaiado:

       — Eu sei que uma esposa não pode fazer muita coisa contra o marido, Erikki, quase nada. Mesmo no Irã, onde somos civilizados, mesmo aqui, uma esposa é quase uma escrava e o imã é muito claro com relação aos deveres de uma esposa, e no Corão — ela acrescentou —, e no Corão e no Sharia suas obrigações estão muito claras. Eu sei também que estou casada com uma pessoa que não tem fé e juro que tentarei fugir pelo menos uma vez por dia para tentar voltar e cumprir o meu juramento embora esteja aterrorizada e saiba que você vai me apanhar todas as vezes e que vai me deixar sem dinheiro ou me bater e que eu vou ter que obedecer, mas assim mesmo eu o farei. — Ela estava com os olhos cheios de lágrimas de alegria. — Obrigada, meu querido, eu estava com tanto medo...

       — Você teria feito aquilo? Teria renunciado ao seu Deus?

       — Erikki, oh, como eu rezei para que Deus o iluminasse.

       — Você teria feito aquilo?

       — Agora não há mais necessidade de pensar nisso, não é, meu amor?

       — Ah — ele disse, compreendendo tudo. — Então você sabia, não é? Você sabia que era isto que eu tinha que fazer!

       — Eu só sei que sou sua mulher, que o amo, que tenho que obedecê-lo, que você me levou embora contra a minha vontade. Nunca mais precisaremos falar nisso. Por favor?

       Ele a olhou timidamente, desorientado e não conseguiu entender como ela podia parecer tão forte e ter saído de um sono drogado com tanta facilidade. Sono!

       — Azadeh, eu preciso dormir direito por uma hora. Desculpe, mas não posso continuar. Sem uma hora de sono é impossível. Acho que estamos seguros aqui. Você fica de guarda, nós estamos seguros.

       — Onde estamos?

       — Ainda estamos no Irã, perto da fronteira. — Ele lhe entregou um M16 carregado, sabendo que ela saberia usá-lo. — Uma das balas atingiu a minha bússola. — Ela o viu cambalear ao ir para a cabine, agarrar alguns cobertores e se deitar. Na mesma hora ele adormeceu. Enquanto esperava pelo amanhecer, ela pensou no futuro deles e no passado. Ainda havia um assunto a resolver: Johnny. Nada mais. Como a vida é estranha. Eu achei que ia gritar mil vezes fechada naquele tapete, fingindo estar drogada. Como se eu fosse tão estúpida a ponto de me drogar sabendo que talvez tivesse que ajudar a nos defender. Foi tão fácil enganar Mina, o meu querido Erikki e Hakim, que não é mais meu querido: "...o seu espírito eterno é mais importante do que o seu corpo temporário!" — ele teria me matado. A mim! A sua amada irmã! Mas eu o enganei Ela estava muito satisfeita consigo mesma e com Aysha, que tinha revê lado a ela os lugares secretos para se espionar, de modo que quando ela saíra da sala fingindo estar com raiva e deixara Erikki e Hakim sozinhos, tinha se escondido para ouvir o que eles estavam dizendo. Oh, Erikki, eu fiquei apavorada de que você e Hakim pudessem acreditar que eu realmente fosse capaz de quebrar o meu juramento — e com medo que as pistas que tinha dado a você durante toda a noite não resultassem no seu estratagema perfeito. Mas você foi mais esperto do que eu — você chegou até a consertar o helicóptero. Oh, como você foi esperto, como eu também fui, como nós dois fomos. Eu até providenciei para que você trouxesse a minha bolsa e o saco de jóias com o espólio de Najoud que eu tirei de Hakim, de modo que agora estamos ricos além de estarmos salvos, desde que consigamos sair deste maldito país.

       — É maldito, minha querida — tinha dito Ross, da última vez que ela o vira em Teerã, pouco antes de deixá-la. Ela não agüentaria partir sem se despedir, então tinha procurado Talbot para perguntar por ele e algumas horas mais tarde ele tinha batido na porta do apartamento, vazio exceto por eles dois.

       — É melhor você sair do Irã, Azadeh. O seu amado Irã está mais uma vez perdido. Esta revolução é igual a todas as outras: uma nova tirania substitui a anterior. Os seus novos governantes vão impor as suas leis, a sua versão da lei de Deus, da mesma forma que o xá impôs as dele. Os seus aiatolás vão viver e morrer como os papas vivem e morrem, alguns homens bons, alguns homens maus e alguma maldade. Quando Deus quiser, o mundo vai melhorar um pouco, a besta que há nos homens que têm necessidade de morder, torturar e matar se tornará um pouco mais humana e um pouco mais contida. São as pessoas que estragam o mundo, Azadeh. Principalmente os homens. Você sabe que te amo?

       — Sim. Você disse isso na aldeia. Você sabe que eu te amo?

       — Sim.

       Seria tão fácil mergulhar no colo do tempo como quando eles eram jovens.

       — Mas nós não somos mais jovens e há uma grande tristeza em mim, Azadeh.

       — Isto vai passar, Johnny — ela tinha dito, querendo a felicidade dele.

       — Isto vai passar da mesma forma que os problemas do Irã vão passar. Nós tivemos épocas terríveis durante séculos, mas elas passaram. — Ela se lembrou como eles haviam sentado juntos, sem se tocarem, no entanto possuídos, um pelo outro. Então ele sorrira e levantara a mão num adeus e partira silenciosamente.

       Mais uma vez o clarão no vale. A ansiedade voltou a invadi-la. Agora um movimento nas árvores e ela os viu.

       — Erikki! — Ele acordou na mesma hora. — Lá embaixo. Dois homens a cavalo. Parecem nativos. — E entregou o binóculo para ele.

       — Estou vendo. — Os homens estavam armados e cavalgavam pelo vale, vestidos como gente das montanhas, tentando manter-se protegidos. Erikki focalizou o binóculo neles. De vez em quando via-os olharem na direção deles.

       — Eles provavelmente podem ver o helicóptero, mas duvido que possam nos ver.

       — Eles estão vindo para cá?

       Apesar da dor e do cansaço, ele percebera o medo na voz dela.

       — Talvez. É provável que sim. Eles devem levar uma meia hora para chegar aqui. Nós temos muito tempo.

       — Eles estão procurando por nós. — O rosto dela estava pálido e ela chegou mais perto de Erikki. — Hakim deve ter dado o alarme.

       — Ele não faria isso. Ele me ajudou.

       — Isto foi para você fugir. — Nervosamente, ela olhou em volta para o platô, as árvores e as montanhas, depois para os dois homens. — Uma vez que você tenha escapado, ele volta a agir como khan. Você não conhece Hakim, Erikki. Ele é meu irmão, mas primeiro ele é khan.

       Pelo binóculo, ele viu a aldeia semi-oculta ao lado da estrada. O sol refletia nos fios de telefone. A sua própria ansiedade aumentou.

       — Talvez eles sejam apenas aldeões e estejam curiosos. Mas não vamos esperar para descobrir. — E sorriu fatigado. — Está com fome?

       — Sim, mas estou bem. — Rapidamente, ela começou a enrolar o tapete que era antigo, valioso e um dos seus favoritos. — Estou com mais sede do que fome.

       — Eu também, mas estou me sentindo melhor. O sono ajudou. — Seus olhos percorreram as montanhas, comparando o que estava vendo com o que se lembrava do mapa. Um último olhar para os homens que ainda estavam bem Iá embaixo. No momento não há perigo, a menos que haja outros aqui em volta, pensou e foi para a cabine de comando. Azadeh enfiou o tapete na cabine e fechou a porta. Havia buracos de bala que ela não havia notado antes. Houve outro clarão de sol batendo em metal na floresta, muito mais perto, que nenhum dos dois viu.

       A cabeça de Erikki estava doendo e ele se sentia fraco. Ele apertou o botão de partida. O motor pegou imediatamente. Uma rápida verificação nos instrumentos. Conta-giros avariado, bússola quebrada, nada de ADF. Não havia necessidade de alguns instrumentos — o barulho dos motores lhe diria quando os ponteiros estivessem no verde. Mas os mostradores de combustível estavam parados em um quarto de tanque. Não havia tempo para checá-los nem para ver se havia algum outro estrago. E se houvesse, o que ele poderia fazer? Todos os deuses, grandes e pequenos, velhos e novos, vivos, mortos ou ainda por nascer, fiquem do meu lado hoje, eu vou precisar de toda a ajuda que me puderem dar. Os olhos dele pousaram no kookri que ele se lembrava vagamente de ter enfiado no bolso do assento. Sem nenhum esforço consciente, ele estendeu a mão e tocou-o. Seus dedos pareceram queimar.

       Azadeh correu para a cabine de comando, a turbulência dos rotores que ganhavam velocidade enregelando-a ainda mais. Ela subiu no assento e trancou a porta, desviando os olhos das manchas de sangue no assento e no chão. O sorriso dela morreu ao notar a concentração e o ar estranho dele, com a mão perto do kookri, mas sem tóca-lo. Mais uma vez ela se perguntou por que ele o teria trazido.

       — Você está bem, Erikki? — perguntou, mas ele não pareceu ouvi-la. Insha'Allah. É pela vontade de Deus que estamos vivos, que estamos juntos e quase em segurança. Mas agora cabe a mim carregar esta cruz e manter-nos em segurança. Ele ainda não é o meu Erikki, nem em aparência nem em estado de espírito. Eu quase posso ouvir os maus pensamentos martelando a sua cabeça. Em breve o mal vai outra vez dominar o bem. Que Deus nos proteja.

       — Obrigada, Erikki — disse, apanhando os fones que ele lhe estendeu, preparando-se mentalmente para a batalha.

       Ele se certificou de que ela estava bem presa no assento e ajustou o volume dos fones para ela.

       — Você está me ouvindo bem?

       — Oh, sim, meu querido, obrigada.

       Parte da sua audição estava concentrada no barulho dos motores, daí a um ou dois minutos eles poderiam decolar.

       — Nós não temos combustível suficiente para chegar a Van, que é o aeroporto mais próximo na Turquia — eu poderia ir para o sul, para reabastecer o aparelho no hospital em Rezaieyeh, mas seria muito perigoso. Vou voar algum tempo em direção ao norte. Eu vi uma estrada e uma aldeia naquela direção. Talvez seja a estrada Khoi—Van.

       — Ótimo, vamos depressa, Erikki, não me sinto segura aqui. Há algum campo de aviação perto daqui? Hakim deve ter alertado a polícia e eles devem ter alertado a Força Aérea. Podemos decolar?

       — Só mais alguns segundos, os motores estão quase prontos. — Ele viu a sua ansiedade e a sua beleza e mais uma vez a visão dela e de John Ross juntos se infiltrou na sua mente. Ele forçou-a a sair. — Eu acho que há campos de aviação ao longo de toda a fronteira. Nós iremos o mais longe que pudermos. Acho que temos combustível suficiente para atravessar a fronteira. — E fez um esforço para parecer despreocupado. — Talvez a gente consiga achar um posto de gasolina. Você acha que eles aceitariam cartão de crédito?

       Ela deu uma gargalhada nervosa e levantou a bolsa, enrolando a alça em volta do pulso.

      — Não precisamos de cartão de crédito, Erikki. Somos ricos, você é rico. Eu sei falar turco e se eu não conseguir comprar a nossa segurança é porque não pertenço à tribo dos Gorgons. Mas de lá nós iremos para onde? Istambul? Você merece umas férias maravilhosas, Erikki. Nós só estamos salvos por sua causa, você fez tudo, pensou em tudo.

       — Não, Azadeh, foi você que fez tudo. — Você e John Ross, ele teve vontade de gritar e tornou a olhar para os instrumentos para disfarçar. Mas, sem Ross, Azadeh estaria morta e portanto eu estaria morto e não posso viver com a idéia de vocês dois juntos. Eu tenho certeza de que você o ama...

       Neste momento, viu, espantado, grupos de cavaleiros saírem da floresta a meio quilômetro de onde eles estavam, com policiais no meio, e começaram a galopar em direção a eles. Seus ouvidos lhe disseram que os ponteiros estavam no verde. Imediatamente, ele acelerou ao máximo. O tempo acabando. Erguendo-se do chão, mas não vendo jeito de evitar que os atacantes os derrubassem. Havia tempo de sobra para qualquer um deles mirar e atirar. O guarda do meio, o sargento, ele está parando e tirando o M16 do coldre da sela.

       De repente, o tempo parou de passar em câmera lenta e Erikki desviou o aparelho e fugiu deles, balançando-se para todos os lados, esperando que cada segundo fosse o último e então eles começaram a se afastar em direção à ravina por sobre as árvores.

       — Não atirem — o sargento gritou para os nativos que estavam atirando, com os seus cavalos empinando. — Em nome de Deus, eu disse a vocês que recebemos ordens de capturá-los, de salvá-la e de matá-lo, não de matá-la! — Com relutância os outros obedeceram e quando ele se aproximou deles, viu que o 212 estava bem distante, perto do vale. Ele ligou o walkie-talkie:

       — QG, aqui é o sargento Zibri. A emboscada falhou. Os motores foram ligados antes que nós pudéssemos nos posicionar. Mas ele saiu do esconderijo.

       — Para onde ele está indo?

       — Está virando para o norte, em direção à estrada Khoi—Van.

       — Você viu Sua Alteza?

       — Sim. Ela parecia aterrorizada. Diga ao khan que nós vimos o seqüestrador amarrá-la no assento e pareceu que ele tinha amarrado também os seus pulsos. Ela... — A voz do sargento ficou mais excitada. — Agora o helicóptero virou para leste, está dois ou três quilômetros ao sul da estrada.

       — Ótimo. Bom Trabalho. Nós vamos alertar a Força Aérea.

      

       TEERÃ - NO QG DO SERVIÇO SECRETO: 9:54H. Suliman al Wiali, um dos assassinos do Grupo Quatro, tentou controlar o tremor das mãos ao receber o telex das mãos do coronel da Savama: "O chefe do Serviço Secreto, coronel Hashemi Fazir, foi morto ontem à noite, liderando bravamente o ataque que destruiu o QG dos esquerdistas mujhadins, junto com o consultor inglês, Armstrong. Os dois homens morreram queimados quando os traidores explodiram o edifício, (assinado) Chefe de Polícia, Tabriz."

       Suliman ainda não se recobrara do medo ao ser chamado repentinamente, apavorado de que este funcionário já tivesse encontrado no cofre de Fazir papéis incriminadores sobre os assassinos do Grupo Quatro — o cofre estava aberto e vazio atrás dele. Com certeza meu mestre não teria sido tão negligente, não aqui no seu próprio escritório!

       — Foi a vontade de Deus, Excelência — ele disse, devolvendo o telex e disfarçando a raiva. — A vontade de Deus. O senhor é o novo chefe do Serviço Secreto, Excelência?

       —Sim. Quais eram as suas tarefas?

       — Eu sou um agente, Excelência — Suliman disse a ele, bajulando-o como seria de se esperar, ignorando o verbo no passado. O medo começou a diminuir. Se esses cães suspeitassem de alguma coisa eu não estaria aqui, ele raciocinou, com a confiança aumentando, eu estaria numa prisão, berrando. Esses filhos da mãe incompetentes não merecem viver num mundo de homens. — O coronel mandou que eu fosse morar em Jaleh e conservasse os olhos e os ouvidos abertos e descobrisse comunistas. — Ele manteve os olhos sem expressão, desprezando aquele homem pomposo sentado na mesa de Fazir.

       — Há quanto tempo você está trabalhando aqui?

       — Três ou quatro anos, não me lembro muito bem, Excelência, está na minha ficha. Talvez sejam cinco anos, não me lembro. Deve estar na minha ficha, Excelência. Cerca de quatro anos e eu trabalho muito e servirei ao senhor com todas as minhas forças.

       — A Savama está absorvendo o Serviço Secreto. De agora em diante você prestará contas a mim. Quero uma cópia dos seus relatórios desde que você começou.

       — Seja como Deus quiser Excelência, mas eu não sei escrever, escrevo muito mal e Sua Excelência Fazir nunca me pediu para fazer relatórios escritos — mentiu Suliman, inocentemente. Ele esperou em silêncio, arrastando os pés e se fingindo de idiota. Savak ou Savama, são todos uns mentirosos e é mais do que provável que tenham providenciado o assassinato do meu mestre. Que Deus amaldiçoe todos eles, esses cães arruinaram os planos do meu mestre. Eles me tiraram do meu emprego perfeito. Meu emprego perfeito com dinheiro de verdade e poder de verdade e um futuro de verdade. Esses cães são uns ladrões, eles roubaram o meu futuro e a minha segurança. Agora eu não tenho mais emprego, não tenho mais inimigos de Deus para matar. Nem futuro, nem segurança, nem proteç... A menos...

       A menos que eu use a minha inteligência e a minha habilidade para assumir o trabalho do ponto em que o meu mestre parou.

       E por que não? E a vontade de Deus que ele esteja morto e que eu esteja vivo, que ele tenha sido sacrificado e eu não. Por que não criar mais times? Eu conheço as técnicas do meu mestre e parte dos seus planos. Melhor ainda, por que não invadir a sua casa e esvaziar o cofre do porão que ele nunca soube que eu sabia que existia? Nem mesmo a sua mulher sabe da existência dele. Agora que ele está morto, deve ser fácil. Sim, e é melhor que seja esta noite, para chegar lá antes que um desses desgraçados de esquerda faça isso. Que tesouros aquele cofre poderia conter — deve conter! Dinheiro, papéis, listas — o meu mestre adorava listas como um cachorro ama merda! Que eu caia morto se o cofre não contiver uma lista dos outros do Grupo Quatro. O meu falecido mestre não planejava ser o al-Sabbah da atualidade? Por que não posso ser eu? Com assassinos, assassinos de verdade que não temem a morte e buscam o martírio como um passaporte para o paraíso...

       Ele quase riu alto. Para disfarçar, arrotou.

       — Desculpe Excelência, mas não estou me sentindo bem, posso me retirar, por favor?

       — Onde é que o coronel Fazir guardava os seus papéis?

       — Papéis, Excelência? Perdoe-me, Excelência, mas como é que um homem como eu poderia saber a respeito de papéis? Eu sou só um agente, eu lhe trazia informações e às vezes ele me mandava embora com um pontapé e um palavrão. Vai ser ótimo trabalhar para um homem de verdade. — Ele respirou confiante. O que Fazir desejaria que eu fizesse agora? Certamente desejaria que eu me vingasse por ele, o que significa obviamente acabar com Pahmudi que é o responsável pela sua morte, e este cão que ousa sentar-se à sua mesa. Por que não? Mas só depois que eu tiver esvaziado o cofre de verdade. — Posso me retirar, Excelência? A minha bexiga está cheia e eu sofro de um parasita.

       Enojado, o coronel levantou os olhos da ficha que não lhe dizia nada. Não havia papéis no cofre, só dinheiro. Um pishkesh maravilhoso para mim, pensou. Mas onde estão os papéis? Fazir deve tê-los guardado em algum lugar. Sua casa?

       — Sim, pode sair — ele disse, irritado — mas apresente-se a mim uma vez por semana. A mim, pessoalmente. E não se esqueça, a menos que você faça um bom trabalho... nós não queremos empregar malandros.

       — Sim, Excelência, certamente, Excelência, obrigado, Excelência. Eu farei o melhor que puder por Deus e pelo imã, mas quando devo me apresentar? — No dia seguinte do Dia Sagrado, todas as semanas. — O coronel fez sinal para ele sair. Suliman saiu arrastando os pés e prometeu a si mesmo que antes do dia marcado para ele se apresentar este coronel não existiria mais. Filho de um cão, por que não? O meu poder já alcança de Beirute a Bahrain.

      

       BAHRAIN: 12:50H. Ao sul, a mais de mil quilômetros de distância, Bahrain estava ensolarada, com as praias cheias de gente que passava o fim-de-semana, gente fazendo windsurfe desfrutando da brisa agradável, mesas nos terraços dos hotéis cheias de homens e mulheres, usando pouca roupa para se queimar ao sol da primavera. Uma dessas mulheres era Sayada Bertolin.

       Ela usava uma saída de praia transparente por cima do biquíni e estava sentada sozinha numa mesa protegida por uma barraca verde, tomando uma batida de limão. Preguiçosamente, ela observava os banhistas e as crianças brincando no raso — um dos garotinhos se parecia com o seu próprio filho. Vai ser tão bom estar em casa de novo, pensou, abraçar o meu filho outra vez e até mesmo tornar a ver o meu marido. Foi tanto tempo fora da civilização, longe de boa comida e boa conversa, de um bom café, de croissants e vinho, de jornais, televisão e rádio e todas as coisas maravilhosas a que não damos o devido valor. Mas eu não. Eu sempre as apreciei e sempre trabalhei por um mundo melhor e por justiça no Oriente Médio.

       Mas e agora? A alegria desapareceu.

       Agora eu não sou apenas uma simpatizante da OLP e um correio, mas uma agente secreta da milícia cristã libanesa, seus senhores israelenses e seus senhores da CIA — graças a Deus eu tive a sorte de ouvi-los cochichando quando eles pensaram que eu já tinha saído depois de receber ordens para voltar a Beirute. Ainda não sei o nome deles, mas já sei o bastante para identificar as suas origens. Cães! Cães imundos! Cristãos! Traidores da Palestina! Ainda falta vingar-me de Teymour. Será que terei coragem de contar ao meu marido, que contará aos outros membros do Conselho? Não, não tenho coragem. Eles sabem demais.

       A sua atenção focalizou-se no mar e ela ficou estarrecida. No meio dos surfistas ela reconheceu Jean-Luc, aproximando-se da praia, equilibrado na prancha, elegantemente inclinado contra o vento. No último segundo, ele virou a favor do vento, pulou para o raso e deixou a vela cair. Ela sorriu de tal perfeição.

       Ah, Jean-Luc, como você gosta de si mesmo! Mas eu admito que foi bem feito. Em muitas coisas você é soberbo, como chef, como amante — ah, sim, mas só de vez em quando, você não varia o bastante, nem experimenta o bastante para nós do Oriente Médio que entendemos de erotismo, e você se preocupa demais com a sua própria beleza.

       — Eu admito que você é lindo — ela murmurou, umedecendo-se agradavelmente com a idéia. Você é melhor do que a média na arte de fazer amor, meu querido, mas não mais do que isso. Você não é o melhor. O meu primeiro marido era o melhor, talvez porque tenha sido o primeiro. Depois Teymour Teymour era fantástico. Ah, Teymour, eu não tenho mais medo de pensar em você agora, agora que saí de Teerã. Lá eu não podia. Eu não vou me esquecer de você nem do que você fazia. Eu vou me vingar da milícia cristã pelo que fez a você algum dia.

       Seus olhos estavam observando Jean-Luc, imaginando o que ele estaria fazendo lá, contente por ele estar lá, desejando que ele a visse, sem querer tomar a iniciativa para não provocar o destino, mas pronta para esperar e ver o que o destino tinha reservado para ela. Ela se olhou no espelho, pôs um pouco de brilho nos lábios e perfume atrás das orelhas. Mais uma vez ela esperou. Ele se aproximou. Ela fingiu concentrar-se no copo, olhando-o pelo seu reflexo no vidro, deixando tudo ao acaso.

       — Sayada! Mon Dieu, chérie! O que você está fazendo aqui?

       Ela ficou devidamente surpresa e então ele a beijou e ela sentiu gosto de sal e cheiro de óleo de bronzear e suor e resolveu que aquela tarde seria perfeita.

       — Eu acabei de chegar, chéri. Cheguei ontem à noite de Teerã — respondeu, sem fôlego, deixando o desejo invadi-la. — Eu estou na fila de espera do vôo de meio-dia para Beirute amanhã, mas o que você está fazendo aqui? É um milagre!

       — É mesmo, que sorte nós temos! Mas você não pode partir amanhã, amanhã é domingo. Amanhã nós vamos ter churrasco, lagosta e ostras!

       Ele era totalmente confiante, gaulês e charmoso e ela pensou, por que não? Beirute pode esperar. Eu esperei tanto tempo que um dia a mais não vai fazer diferença.

       E ele estava pensando: Isto é perfeito! O fim-de-semana ia ser um desastre, mas agora, amor esta tarde e depois a sesta. Mais tarde eu vou escolher um jantar perfeito, depois vamos dançar um pouco e fazer amor ternamente e dormir profundamente, prontos para outro dia perfeito amanhã.

       — Chérie, estou desolado, mas tenho que deixá-la por uma hora — disse com o toque perfeito de tristeza. — Nós vamos almoçar aqui. Você está hospedada neste hotel? Perfeito, eu também: 1623. Que tal à uma e meia, quinze para as duas? Não troque de roupa, você está linda. Cest bon? — Ele se inclinou e beijou-a e tocou-lhe nos seios, sentiu o seu tremor e ficou satisfeito.

      

       NO HOSPITAL: 13:16H. — Bom dia, dr. Lanoire. O capitão McIver, foi muito grave? — perguntou Jean-Luc, falando em francês. O pai de Anton Lanoire tinha vindo de Cannes, sua mãe era de Bahrain, tinha estudado na Sourbonne e era filha de um pescador analfabeto que ainda pescava como sempre tinha pescado, ainda vivia numa cabana embora fosse multimilionário, dono de poços de petróleo.

       — Foi médio.

       — O que isto significa?

       O doutor estalou os dedos. Ele era um homem de aparência distinta de cerca de quarenta anos, educado em Paris e Londres, trilíngüe, falava árabe, francês e inglês.

       — Nós só saberemos com certeza dentro de alguns dias; ainda teremos que fazer vários exames. Só saberemos a extensão do ataque quando ele fizer um angiograma daqui a um mês, mas no momento o capitão McIver está reagindo ao tratamento e não está sentindo dor.

       — Mas ele vai ficar bom?

       — A angina é uma coisa bastante comum, geralmente. Pelo que a esposa dele disse, ele esteve sob grande tensão nos últimos meses, e ainda pior nos últimos dias com este Turbilhão de vocês, e não é para menos. Que coragem! Eu me congratulo com ele, com você e com todos os outros que participaram. Ao mesmo tempo, aconselho que todos os pilotos e membros da tripulação tenham dois ou três meses de licença.

       Jean-Luc sorriu satisfeito.

       — Posso ter isto por escrito, por favor? É claro que os três meses de licença de saúde deveriam ser pagos integralmente, mais uma bonificação.

       — É claro. Que trabalho magnífico vocês todos fizeram pela companhia, arriscando suas vidas. Todos vocês mereciam um prêmio. Eu me pergunto como foi que não houve mais gente com ataques cardíacos. Os dois meses são para vocês se recuperarem, Jean-Luc, é essencial que vocês passem por um check-up antes de voltarem a pilotar.

       Jean-Luc estava perplexo.

       — Todos nós vamos sofrer um ataque cardíaco?

       — Oh, não, não, de jeito nenhum. — Lanoire sorriu. — Mas seria muito aconselhável fazer um check-up, só como precaução. Você sabia que a angina é causada por um súbito bloqueio do sangue? Um derrame se dá quando isto acontece no cérebro. As artérias ficam entupidas e pronto. Insha'Allah, Isto pode acontecer a qualquer momento.

       — Pode mesmo? — O desconforto de Jean-Luc aumentou. Merda! Era só o que faltava, eu sofrer um ataque cardíaco.

       — Oh, sim — o médico continuou prestimosamente. — Eu conheci pacientes entre 30 e 40 anos, com a pressão perfeitamente normal, pouco colesterol e eletrocardiogramas normais que puf! — Ele fez um gesto expressivo com as mãos. — Em poucas horas, puf!

       — Puf! Desse jeito? — Jean-Luc sentou-se nervosamente.

       — Eu não sei pilotar mas imagino que pilotar causa uma grande tensão, especialmente em lugares como o mar do Norte. E a tensão é talvez a maior causa de angina, quando uma parte do coração morre e...

       — Meu Deus, o coração do velho Mac morreu? — Jean-Luc estava chocado.

       — Oh, não, só um pedaço. Toda vez que você tem um ataque de angina, por mais fraco que seja, um pedaço está perdido para sempre. Morto. — O dr. Lanoire sorriu. — É claro que você pode viver por muito tempo até o tecido acabar.

       — Mon Dieu, Jean-Luc pensou apavorado. Não estou gostando nada disso. Mar do Norte? Merda, eu vou pedir uma transferência antes mesmo de chegar lá. — Quanto tempo o Mac vai ficar no hospital?

       — Quatro ou cinco dias. Eu sugiro que você deixe para visitá-lo amanhã, mas não o canse. Ele precisa ter um mês de licença e depois fazer outros exames.

       — Quais são as chances dele?

       — Isto depende da vontade de Deus.

       Lá em cima, na varanda, de um quarto agradável que dava para o mar, Genny estava cochilando numa cadeira, com o Times de Londres daquele dia, trazido pelo vôo da BA, aberto no colo. McIver estava deitado confortavelmente na cama. Uma brisa vinda do mar o acordou. O vento mudou, ele pensou. Voltou ao nordeste de sempre. Ótimo. Ele se virou para ver melhor o golfo. O ligeiro movimento a acordou imediatamente. Ela dobrou o jornal e se levantou.

       — Como você está se sentindo, amor?

       — Bem. Estou muito bem agora. Nenhuma dor. Só um pouco cansado. Eu ouvi vagamente você conversando com o médico. O que foi que ele disse?

       — Parece estar tudo bem. O ataque não foi grave. Você vai ter que ficar de repouso por alguns dias, depois tirar um mês de licença e depois fazer mais alguns exames. Ele ficou muito satisfeito por você não fumar, você está sempre em forma. — Genny estava em pé contra a luz, mas ele podia ver-lhe o rosto e leu a verdade nele. — Você não pode mais voar, como piloto — ela disse e sorriu.

       — Isto é uma droga — ele disse friamente. — Você já entrou em contato com Andy?

       — Sim. Liguei para ele ontem à noite e hoje de manhã e vou tornar a ligar dentro de uma hora mais ou menos. Ainda não há nenhuma notícia de Marc Dubois nem de Fowler, mas todos os nossos pássaros estão a salvo em Al Shargaz e estão sendo desmontados para serem embarcados amanhã. Andy estava tão orgulhoso de você e de Scrag. Eu falei com Scrag hoje de manhã também.

       A sombra de um sorriso.

       — Vai ser bom ver o velho Scrag. Você está bem?

       — Oh, sim. — Ela tocou-lhe o ombro. — Estou muito contente por você estar melhor. Você me deu um susto.

       — Eu dei um susto em mim mesmo, Gen. — Ele sorriu e estendeu-lhe a mão e disse asperamente: — Obrigado, sra. McIver.

       Ela encostou o rosto na mão dele e depois inclinou-se e beijou-o de leve nos lábios, confortada pela enorme afeição que havia no rosto dele.

       — Você me deu um susto daqueles — ela repetiu. Ele notou o jornal.

       — É de hoje, Gen?

       — Sim, querido.

       — Parece que há anos que não vejo um. O que há de novo?

       — A mesma coisa de sempre. — Ela dobrou o jornal e o pôs de lado displicentemente, sem querer que ele visse o artigo que ela estava lendo, com medo de preocupá-lo. "Colapso da bolsa em Hong Kong." Isto vai certamente afetar a Struan's e aquele filho da mãe do Linbar, ela pensou, mas será que vai afetar a S-G e Andy? Não há nada que Duncan possa fazer, então deixa para lá. — Greves, Callaghan fazendo uma confusão ainda maior na pobre Inglaterra. Dizem que ele pode pedir uma eleição este ano e se o fizer, Maggie Thatcher terá uma boa chance. Isto não seria ótimo? Ter alguém sensato para variar?

       — Porque ela é mulher? — Ele sorriu de lado. — Isto certamente seria uma revolução. Deus do céu, uma mulher primeiro-ministro! Não sei como ela conseguiu tirar a liderança das mãos de Heath... ela deve usar calças de ferro! Se ao menos os malditos liberais ficassem fora do caminho... — Ele se calou e ela o viu olhar para o mar, para alguns barcos que passavam.

       Silenciosamente, ela se sentou e esperou, querendo deixá-lo voltar a dormir ou conversar um pouco, o que ele quisesse. Ele deve estar melhorando, já que está xingando os liberais, ela pensou, contente, deixando a mente vagar, olhando para o mar. O cabelo dela foi agitado pela brisa e cheirava a água salgada. Era gostoso ficar lá sentada, sabendo que ele estava melhor, "reagindo ao tratamento". "Não precisa se preocupar, sra. McIver." Fácil de dizer, difícil de fazer.

       Haverá uma profunda mudança nas nossas vidas, tem que haver, além de perdermos o Irã e tudo o que tínhamos lá, um bocado de lixo, a maior parte não vai fazer falta. Agora que o Turbilhão acabou, eu devia estar louca ao sugeri-lo, mas como funcionou bem! Agora a maioria dos nossos rapazes já está fora de lá e em segurança. Não posso pensar em Tom nem em Marc nem em Fowler, Erikki, Azadeh e Xarazade, que Deus os abençoe, todos os nossos melhores equipamentos e portanto ainda estamos operando, a nossa parte na S-G tem que valer alguma coisa. Não vamos ficar sem um tostão e isto já é uma bênção. Imagino quanto faríamos com as nossas ações? Suponho que tenhamos uma participação. Mas e quanto ao "colapso da Bolsa"? Espero que isto não nos tenha prejudicado.

       Seria bom ter um pouco de dinheiro, mas não me importo, contanto que Duncan fique bom. Talvez ele se aposente e talvez não. Eu não gostaria que ele se aposentasse, isto o mataria. Onde nós iríamos viver? Perto de Aberdeen? Ou em Edimburgo, perto de Sara e Trevor? Ou em Londres, perto de Hamish e Kathy? Em Londres não, é horrível, e nós não deveríamos morar muito perto de nenhum dos dois, não quero incomodá-los embora fosse bom poder visitá-los de vez em quando, ajudar com as crianças. Não quero ser uma sogra chata para Trevor nem para Kathy — uma garota tão bonita. Kathy, Kathleen, Kathy: Andrew e Kathy, e ir algumas vezes para o castelo Avisyard, e agora Andrew e Maureen e a pequena Electra. Eu não gostaria de ficar sozinha e não quero que Duncan...

       Não quero reviver o horror, a escuridão, sem poder enxergar, com os jatos roncando, o fedor de petróleo — meu Deus, como é que eles agüentam o barulho e o balanço hora após hora — e o tempo todo Duncan sem ar, sem saber se ele estava vivo ou morto, gritando por duas vezes:' 'Ele está morto, ele está morto" — e ninguém ouvindo e ninguém para ajudar e o querido Charlie voando para cá o mais depressa que podia, o outro homem, o sargento iraniano, como era mesmo o nome dele, ah, sim, Wazari, Wazari simpático mas inútil. Oh, Deus, foi horrível, horrível, horrível, e durou uma eternidade... mas agora está tudo bem e graças a Deus eu estava lá. Duncan vai ficar bom. Vai ficar. Tem que ficar.

       O que será que aconteceu com Wazari? Ele parecia tão assustado quando a polícia o levou. Espere um pouco, Jean-Luc não disse que tinha ouvido dizer que eles provavelmente o soltariam sob a custódia de Andy como exilado político se Andy garantisse tirá-lo de Bahrain e dar-lhe um emprego?

       Maldita revolução! Que droga eu não ter podido voltar para apanhar algumas das minhas coisas! Havia aquela velha frigideira que não grudava nunca, e o bule de vovó que preparava chás tão gostosos mesmo com aqueles saquinhos nojentos e a água de Teerã. Ugh! Água! Dentro em breve nada mais de me agachar e usar água em vez de papel higiênico! Ugh! Nunca mais eu vou ter que me agachar...

       — Por que é que você está sorrindo, Gen?

       — Oh, deixe-me pensar. Oh, sim, eu estava pensando em ser obrigada a me agachar, nos infelizes de manhã perto do fosso e suas garrafas de água. Pobre gente. Era horrível e ao mesmo tempo engraçado. Nunca mais eu quero me agachar, meu rapaz. — Ela viu a mudança nos olhos dele e a sua ansiedade voltou. — Não vai ser ruim voltar para casa, Duncan. Não vai, eu prometo.

       Depois de uma pausa, ele concordou, um pouco para si mesmo.

       — Vamos esperar para ver, Gen. Não vamos tomar nenhuma decisão ainda. Não há necessidade de decidir o que faremos no próximo mês ou dois. Primeiro deixe-me ficar bom, e então decidiremos. Não se preocupe, sim?

       — Eu não estou preocupada.

       — Ótimo, não há necessidade de se preocupar. — Mais uma vez seus olhos foram atraídos pelo mar. Eu não vou passar o resto da minha vida agüentando o clima da Inglaterra, isto seria horrível. Aposentar-me? Cristo, vou ter que pensar em alguma coisa. Se eu tiver que parar de trabalhar vou ficar maluco. Talvez a gente conseguisse um lugarzinho perto do mar para passar o inverno, na Espanha ou no sul da França. Não vou deixar de jeito nenhum Gen ficar gelada e envelhecer antes do tempo. Aquele vento horrível do mar do Norte. De jeito nenhum! Nós vamos ter dinheiro mais do que suficiente agora que o Turbilhão foi um sucesso. Nove em dez 212. Maravilhoso! Não posso pensar nem em Dubois nem em Fowler nem em Tom e Erikki, Azadeh e Xarazade.

       A ansiedade dele voltou e com ela uma pontada que aumentou ainda mais a ansiedade e que trouxe uma pontada ainda maior..

       — O que você está pensando Duncan?

       — Que está um dia lindo.

       — Sim, sim, está.

       — Você quer tentar ligar para o Andy para mim, Gen?

       — É claro. — Ela pegou o telefone e discou, sabendo que seria melhor para ele falar um pouco. — Alô? Oh, alô, Scot, como vai? Aqui é Genny. — Ela ouviu e depois disse. — Isto é ótimo. Seu pai está ai? — Tornou a escutar e depois disse: — Não, apenas diga a ele que Duncan quer falar com ele. Ele está bem e pode-se falar com ele pela extensão aqui do quarto: 455. Ele só quer dizer alô. Você pede a Andy para ligar quando voltar? Obrigada, Scot... não, ele está bem, diga isto a Charlie. Até logo.

       Pensativamente, ela pousou o fone no gancho.

       — Nada de novo, Duncan. Andy foi até o aeroporto com Scrag. Eles vão ver aquele japonês. Você sabe qual é, aquele da Irã-Toda. Desculpe, eu não diria isto na cara dele, mas ainda não consigo perdoá-los pelo que fizeram na guerra.

       McIver franziu a testa.

       — Sabe, Gen, talvez estivesse na hora de fazer isso. Kasigi ajudou muito ao velho Scrag. Os 'pecados dos pais' é uma conversa que não leva a nada. Talvez nós devêssemos começar uma nova era. É isto o que temos, Gen, quer queira quer não, uma nova era. Não acha?

       Ela viu o sorriso dele e isso quase a fez chorar de novo. Eu não posso chorar, vai ficar tudo bem, a nova era vai ser boa e ele vai melhorar, tem que melhorar... oh, Duncan, eu estou com tanto medo.

       — Vou dizer-lhe uma coisa, rapaz — ela disse alegremente —, quando você estiver em forma, nós vamos passar umas férias no Japão e então vamos ver.

       — Está combinado. Podemos até tornar a visitar Hong Kong. — Ele pegou-lhe a mão e apertou-a e ambos ocultaram o seu medo do futuro, medo pelo outro.

      

       AL SHARGAZ — HOTEL INTERNACIONAL: 13:55H. Kasigi estava pro curando pelas mesas cheias no terraço impecável dando para a piscina, - Ah, sr. Gavallan, capitão Scragger, sinto muito estar atrasado Não faz mal, sr. Kasigi, sente-se por favor.

       — Obrigado. — Kasigi estava usando um terno leve de tropical e parecia estar fresco, embora não estivesse. — Sinto muito, eu detesto chegar atrasado, mas no golfo é quase impossível ser pontual. Eu tive que vir de Dubai e o trânsito... Acho que devo dar-lhes os parabéns, ouvi dizer que o Turbilhão foi um sucesso quase total.

       — Ainda estamos com um helicóptero e dois tripulantes desaparecidos, mas de modo geral tivemos muita sorte — disse Gavallan, sem nenhuma alegria. — O senhor gostaria de almoçar ou de tomar um drinque? — O almoço, solicitado por Kasigi, fora marcado para as 12:30h. Conforme haviam combinado antes, Gavallan e Scragger não tinham esperado e já estavam no café.

       — Um conhaque com água mineral, por favor, num copo alto, e outro copo só com água mineral. Não quero almoçar, não estou com fome. — Kasigi mentiu educadamente, sem querer comer depois que eles já tinham terminado. Ele sorriu para Scragger. — Então! Estou muito satisfeito em ver que o senhor está em segurança e que conseguiu retirar o seu helicóptero e a sua tripulação. Meus parabéns!

       — Desculpe ter tido que me esquivar das suas perguntas mas, bem, o senhor compreende.

       — Assim que eu soube, eu entendi, é claro. Saúde! — Kasigi bebeu a água mineral, sedento. — Agora que o Turbilhão terminou, sr. Gavallan, talvez o senhor possa me ajudar a resolver os meus problemas na Irã-Toda.

       — Eu gostaria muito, é claro, mas não posso. Sinto muito, mas não podemos. Não é possível, isto deve estar óbvio agora.

       — Talvez seja possível. — Kasigi não desviou os olhos. — Ouvi dizer que vocês têm um prazo que se esgota hoje ao pôr-do-sol para tirar os seus aviões daqui ou eles serão apreendidos.

       Gavallan fez um gesto com as mãos.

       — Vamos esperar que seja apenas mais um boato.

       — Um dos funcionários da sua embaixada informou ao nosso embaixador que isto era definitivo. Seria uma tragédia perder todos os aviões depois de tanto sucesso.

       — Definitivo? O senhor tem certeza? — Gavallan sentiu um vazio por dentro.

       — O meu embaixador está certo que sim. — Kasigi deu um sorriso agradável. Digamos que eu pudesse estender este prazo até o pôr-do-sol de amanhã, vocês poderiam resolver os meus problemas na Irã-Toda? Os dois homens ficaram olhando para ele, espantados.

       — O senhor pode estender o nosso prazo, sr. Kasigi?

       — Eu não posso, mas o nosso embaixador talvez pudesse. Tenho um encontro marcado com ele dentro de uma hora. Vou pedir a ele, talvez ele pudesse influenciar o embaixador iraniano, ou o xeque, ou ambos. — Kasigi viu o interesse de Gavallan e deixou isto no ar, sendo um pescador muito experiente em águas ocidentais para não conhecer a isca. — Eu estou em débito com o capitão Scragger. Não me esqueci de que ele salvou a minha vida e que saiu do seu caminho para me levar a Bandar Delam. Amigos não devem esquecer estas coisas. A nível de embaixador... talvez isto pudesse ser feito.

       O embaixador japonês? Meu Deus, seria possível? O coração de Gavallan estava batendo, cheio de esperança com esta possibilidade inesperada.

       — O nosso embaixador não pode fazer nada, o meu contato foi muito claro. Eu apreciaria qualquer ajuda que pudesse conseguir. O senhor acha que ele nos ajudaria?

       — Se quisesse, acho que sim. — Kasigi tomou um gole do seu conhaque. — Do mesmo modo que o senhor pode nos ajudar. O meu presidente pediu para eu lhe transmitir os cumprimentos dele e mencionou um amigo em comum, Sir Ian Dunross. — Ele viu a reação nos olhos de Gavallan e acrescentou: — Eles jantaram juntos há duas noites.

       — Se eu puder ajudar... qual é exatamente o seu problema? — Onde está a ratoeira e qual é o custo? pensou Gavallan. E onde está Ian? Tentei localizá-lo por três vezes e não consegui.

       — Eu preciso de três 212 e de dois 206 na Irã-Toda o mais depressa possível, sob contrato de um ano. É essencial que a fábrica seja terminada e o komiteh local me prometeu total cooperação, se começarmos imediatamente. Se não o fizermos, será desastroso.

       Na noite anterior, o engenheiro-chefe Watanabe, da Irã-Toda, tinha enviado um telex em código. "O chefe do komiteh, Zataki, está feito um louco por causa do seqüestro da S-G. O seu ultimato foi: ou nós reiniciamos a construção imediatamente, e para isso temos que ter helicópteros, ou a fábrica inteira será imediatamente tomada e nacionalizada e todos os estrangeiros que estão aqui responderão por traição. A hora D é após as orações da tarde de domingo, dia quatro, quando eu devo me apresentar diante do komiteh. Por favor envie instruções."

       Telefonemas urgentes feitos durante a noite para Osaka e Tóquio tinham servido apenas para aumentar a raiva de Kasigi.

       — Yoshi, meu caro amigo —, tinha dito seu primo e chefe Hiro Toda, com toda a gentileza —, eu consultei o sindicato. Todos nós concordamos que é ótimo que você esteja aí. Depende de você. Nós estamos absolutamente confiantes que você será capaz de resolver estes problemas antes de partir.

       A mensagem era bem clara: resolva-os ou não volte.

       Ele tinha passado o resto da noite tentando encontrar uma saída. Então, de madrugada, ele tinha se lembrado de algo que o embaixador dissera sobre o novo embaixador iraniano e que lhe sugeriu um meio possível de resolver o problema do prazo de Gavallan e o seu próprio problema.

       — Para ser franco, sr. Gavallan — disse ele e quase riu alto por esta observação tão estúpida, mas tão necessária nas negociações ocidentais —, eu preciso de um plano até o pôr-do-sol de amanhã e também de respostas.

       — Por que neste prazo, posso perguntar?

       — Porque eu me comprometi com um amigo e tenho que honrar este compromisso — disse Kasigi. — Então nós dois temos um prazo, o mesmo. — Aí ele achou que estava na hora e puxou com força para ver se o anzol estava firme.

       — Se o senhor puder me ajudar, eu ficarei eternamente grato. É claro que farei tudo para convencer o meu embaixador a ajudá-lo, de qualquer maneira.

       — Não adianta oferecer-lhe os meus pássaros, eles seriam apreendidos na mesma hora, não adianta oferecer-lhe os 206 que deixamos para trás, eles também já devem estar fora de combate. A S-G está fora, a Bell também, bem como a Guerney e todas as outras companhias. O senhor poderia conseguir japoneses que fossem pilotos de helicóptero?

       — Não, não há ninguém treinado. — Ainda não, pensou Kasigi, mais uma vez furioso com o Sindicato por não ter tido a visão de treinar o seu próprio pessoal de confiança para o serviço. — O pessoal vai ter que ser estrangeiro. O meu embaixador poderia facilitar vistos e assim por diante, é claro que vocês sabem que a Irã-Toda é um projeto nacional — ele acrescentou, sem se importar em exagerar. Ele o será em breve, assim que todas as informações que possuo chegarem às mãos certas. — Que tal tripulações francesas ou alemãs?

       Com algum esforço, Gavallan desviou o pensamento da questão de como uma conversa a nível de embaixadores poderia levar à segurança dos seus homens e helicópteros, como ele poderia então livrar-se da armadilha de Linbar e ficar livre para lidar com a Imperial Helicópteros no mar do Norte, com a crise de Hong Kong, como resolveria a questão da retirada de circulação de Linbar, posicionando Scot para assumir o poder no futuro.

       — Tantas possibilidades maravilhosas — disse involuntariamente, então disfarçou rapidamente e se concentrou em resolver o problema da Irã-Toda.

       — Há dois aspectos neste problema. Primeiro, equipamentos e peças: se o senhor pudesse fornecer uma carta de crédito no valor da nossa taxa mensal usual, renovável pelo tempo que ficarem com os aparelhos, onde quer que eu os consiga, com uma garantia de que se as autoridades do Irã os apreenderem, vocês assumirão todos os pagamentos pelo leasing em dólares fora do Irã e reembolsarão os proprietários no caso de perda total, eu poderia enviá-los para a Irã-Toda dentro de... de uma semana.

       Kasigi disse imediatamente:

       — Os nossos banqueiros são os Sumitomo; eu poderia arranjar um encontro com eles aqui, esta noite. Isto não é problema. Onde o senhor conseguiria os aparelhos?

       — Na Alemanha ou na França — não podemos usar nem aviões britânicos nem americanos. A mesma coisa com relação aos pilotos. A França provavelmente é melhor por causa da ajuda que deu a Khomeini. Eu poderia consegui-los através de alguns amigos na Aerospatiale. E quanto ao seguro? Não poderei conseguir um seguro para vocês no Irã.

       — Talvez eu possa fazer isso através do Japão.

       — Ótimo. Eu odiaria pôr no ar pássaros não segurados. Outra coisa: Scrag, digamos que seja possível conseguir os aparelhos, quantos pilotos e mecânicos seriam necessários?

       — Bem, Andy, se você pudesse consegui-los, seria melhor ter de oito a dez pilotos e de dez a quatorze mecânicos, baseados fora do Irã, mas bem perto.

       — Quem os pagaria, sr. Kasigi? Em que moeda e onde?

       — Na moeda que quisessem, onde quer que desejassem e na forma que desejassem. Preços padrões?

       — Acho que o senhor teria que oferecer um 'bônus de risco de vida', em se tratando do Irã.

       — O senhor poderia providenciar tudo para mim, sr. Gavallan, o equipamento e o pessoal, por, digamos, uma comissão de dez por cento?

       — Vamos esquecer as porcentagens e nos lembrar de que o nosso envolvimento terá que ser mantido em segredo. Eu sugeriria o seguinte: a sua operação deveria ser controlada, logística, peças e reparos, do Kuwait ou de Bahrain.

       — Bahrain seria melhor, Andy — disse Scragger.

       — O Kuwait fica muito mais perto — retrucou Kasigi.

       — Sim — disse Scragger — e está muito mais sujeito a pressões do Irã ou a tumultos incentivados pelo Irã. Este lado do golfo está destinado a uma convulsão, eu acho. Há xiitas demais, que geralmente são pobres, xeques demais na maioria sunitas. A curto ou longo prazo o senhor estará mais seguro em Bahrain.

       — Então será Bahrain — disse Kasigi. — Sr. Gavallan, posso contar com os serviços do capitão Scragger durante um ano para dirigir a operação, se esta for realizada, pelo dobro do seu salário atual? — Ele viu os olhos de Scragger estreitarem-se e imaginou se teria ido longe demais ou depressa demais, então acrescentou sorrindo: — Se estou querendo que você desista do seu primeiro amor, meu amigo, o mínimo que posso fazer é tentar recompensá-lo.

       — É uma grande oferta, mas, bem, eu não sei. Andy? Gavallan hesitou.

       — Isto significa que você teria que sair da S-G, Scragger, e deixar de pilotar. Você não poderia comandar cinco naves e pilotar, e de qualquer maneira, você nunca poderia voltar ao Irã, de jeito nenhum.

       Está certo. Desistir de voar. Então eu também estou numa encruzilhada, Scragger estava pensando. Não tente fingir que o azar de Mac não o abalou. E por que eu desmaiei ontem? O dr. Nutt disse que foi só exaustão. Besteira, eu nunca desmaiei na minha vida e o que é que os médicos entendem disso, afinal? Um ano em Bahrain? Isto é melhor do que alguns meses no mar do Norte, sempre esperando pelo próximo exame médico. Sem voar? Meu Deus! Espere um instante, eu poderia me manter em forma e fazer alguns vôos locais.

       — Eu vou ter que pensar no assunto, mas obrigado pela oferta, sr. Kasigi.

       — Enquanto isso, sr. Gavallan, o senhor poderia organizar os primeiros dois meses?

       — Sim, com um pouco de sorte, durante esta semana eu poderia conseguir aparelhos e pessoal em número suficiente para vocês começarem, o resto dentro de uma ou duas semanas para um contrato de três meses sujeito a renovação. — Gavallan acrescentou o mais delicadamente possível: — Desde que consigamos alargar o nosso prazo

       Kasigi disfarçou o seu contentamento.

       — Ótimo. Podemos nos encontrar aqui às nove? Eu trarei o sr. Umura, que é o presidente do Sumitomo no golfo, para providenciar as cartas de crédito na forma que o senhor quiser, sr. Gavallan.

       — Nove horas em ponto. Talvez o senhor pudesse mencionar para o seu embaixador que mesmo que o prazo que termina hoje ao pôr-do-sol seja alargado, os meus cargueiros só chegarão ao meio-dia de amanhã e eu só terminarei de carregá-los ao pôr-do-sol de amanhã.

       — O senhor manterá esta 'conversa de embaixadores' só entre nós?

       — É claro. O senhor tem a minha palavra. Scrag?

       Kasigi ouviu Scragger dizer o mesmo e ficou estarrecido pelo fato dos ocidentais confiarem na 'palavra' de alguém — palavra de honra, honra de quem, que honra? Não é verdade que um segredo partilhado não é mais um segredo e nunca mais tornará a ser? Como o Turbilhão, tinha sido tão fácil descobri-lo.

       — Talvez nós pudéssemos combinar o seguinte: nós resolvemos as questões financeiras e as cartas de crédito hoje à noite; o senhor começa a providenciar os helicópteros, peças e tripulações, como dirigir a operação de Bahrain, armazenagem, e tudo o mais, tudo sujeito a confirmação amanhã ao pôr-do-sol. Se vocês tiverem retirado o seu próprio equipamento até lá, o senhor garante que a Irã-Toda terá os seus helicópteros no decorrer da semana.

       — O senhor parece estar muito confiante em conseguir alargar o nosso prazo.

       — Talvez o meu embaixador possa fazê-lo. Assim que terminar o meu encontro com ele, eu telefono para informar o que ele disse a respeito. Capitão Scragger, seria possível o senhor organizar um programa de treinamento para pilotos japoneses?

       — Facilmente, desde que eles falassem inglês e tivessem pelo menos cem horas de vôo em helicópteros. Eu teria que conseguir um instrutor e... — Scragger parou. De repente, tinha-lhe ocorrido que aquela era a solução perfeita. — E uma grande idéia, eu poderia ser o examinador. Assim vou poder voar bastante. Grande! — ele sorriu, radiante. — Vou lhe dizer uma coisa, meu velho, se Andy puder dar um jeito, estou com você. — Ele estendeu a mão e Kasigi apertou-a.

       — Obrigado. Perfeito. Então, sr. Gavallan, vamos tentar?

       — Por que não? — Gavallan estendeu a mão e sentiu o aperto de mão firme de Kasigi e pela primeira vez acreditou que realmente houvesse uma chance. Kasigi é esperto. Muito esperto. Agora ele conseguiu estabelecer a forma de atuação moderna das companhias japonesas: contratar especialistas estrangeiros para treinar pessoal japonês em serviço, ou criar o mercado nos seus próprios países e então colocar os treinandos. Nós ficamos com os lucros a curto prazo, eles ficam com o mercado a longo prazo. Eles estão fazendo conosco nos negócios o que não conseguiram fazer durante a guerra. Sem tirar nem pôr. E daí? É um acordo justo. E se Kasigi e o seu embaixador conseguirem livrar-me do desastre, não custa nada ajudá-lo a livrar-se do seu.

       — Vamos tentar.

       Kasigi sorriu de verdade pela primeira vez.

       — Obrigado. Eu telefono assim que tiver notícias — Ele cumprimentou e se afastou

       — Você acha que ele vai conseguir, Andy? — Scragger perguntou esperançoso.

       — Para ser franco, eu não sei. — Gavallan fez sinal ao garçom para trazer a conta.

       — Como é que você vai resolver o problema dele a tempo? Gavallan começou a responder e parou. Ele tinha acabado de ver Pettikin e Paula sentados numa mesa perto da piscina, com as cabeças bem juntinhas.

       — Eu pensei que Paula fosse para Teerã hoje de manhã.

       — Ela ia. Talvez o vôo tenha sido cancelado ou ela tenha dado parte de doente. — Scragger disse distraidamente.

       — O quê?

       — Isso é comum. Se estiver um dia bonito e uma garota de repente quiser tirar a tarde de folga para nadar ou fazer amor ou simplesmente passear, ela liga para o escritório durante a hora do almoço e diz que está se sentindo mal. Doente. — As sobrancelhas de Scragger se ergueram. — Esta Paula é qualquer coisa... Charlie é um felizardo.

       Gavallan viu o prazer no rosto deles, ali sentados, esquecidos do mundo. Além da preocupação com Dubois, Erikki e os outros, ele tinha lido a notícia nos jornais sobre o súbito estouro da bolsa em Hong Kong: "Muitas das companhias mais importantes, a começar pela Struan's, Rothwell-Gornt, Par-Con da China, perderam 30 por cento do seu valor ou mais num dia, com o mercado inteiro caindo e sem perspectivas de parar de cair. A declaração dada pelo Tai-Pan, sr. Linbar Struan, dizendo que isso era apenas uma oscilação temporária, provocou uma reação violenta no governo e nos seus rivais. A imprensa mais sensacionalista estava cheia de boatos sobre acordos internos entre os Quatro Grandes e manipulações para fazer os preços despencarem." Deve ser por isso que eu não consigo encontrar o Ian. Será que ele foi para Hong Kong? Maldito Linbar! O balanço da companhia este ano vai ser vermelho de alto a baixo.

       Com esforço ele pôs um freio na mente. Ele viu Pettikin inclinar-se e segurar a mão de Paula. Ela não retirou a sua.

       — Você acha que ele vai pedi-la, Scrag?

       — Se não o fizer, ele é um idiota.

       — Eu concordo. — Gavallan suspirou e se levantou. — Scrag, eu não vou esperar. Você assina a conta, depois vai falar com Charlie, diga que sinto muito mas que preciso dele no escritório por uma hora, depois ele pode tirar o resto do dia de folga. Depois localize Rudi e Willi. Eu vou telefonar para Jean-Luc e nós todos vamos tentar dar um jeito para atender Kasigi, caso ele tenha sucesso em resolver o nosso problema. Não diga a eles por que, diga só que é urgente e que eles fiquem de boca fechada. — Ele se afastou.

       — Ei, sr. Gavallan! — Ele parou. Era o americano Wesson, que jovialmente levantou-se da mesa e estendeu a mão. — O senhor tem tempo para um drinque?

       — Oh, olá, sr. Wesson, obrigado, mas, ahn, podemos deixar para outra vez? Eu estou com pressa.

       — Claro, quando quiser. — Wesson sorriu para ele e se inclinou, cochichando de forma conspiratória, e pela primeira vez Gavallan notou o pequeno aparelho de surdez que ele usava na orelha esquerda. — Só queria dar-lhe os parabéns, o senhor deu uma lição naqueles palhaços.

       — Nós, ahn, nós só tivemos sorte. Desculpe, mas tenho que correr. Até logo.

       — Claro, até logo. — Pensativamente, Wesson apanhou a caneta e guardou-a no bolso. Então Kasigi vai tentar fisgar Gavallan, pensou, dirigindo-se para o saguão. Eu nunca teria imaginado isso. Merda, o novo regime não vai cooperar de jeito nenhum. Kasigi está sonhando. O pobre infeliz deve estar ficando louco, a Irã-Toda está uma bagunça e, que diabo, mesmo que eles começassem agora, levariam anos para pôr a fábrica para produzir, e todo mundo sabe que a torneira de petróleo do Irã vai ficar fechada, fazendo o Japão perder 70 por cento do seu suprimento de energia; vai haver com certeza outro aumento nos preços mundiais, mais inflação... O Japão é o nosso único aliado no Pacífico e os pobres infelizes vão ficar sem ter o que fazer.

       Jesus, com Lengeh fechado, todo o campo de Siri não estará em perigo? Como é que de Plessey vai operar Siri sem o apoio de helicópteros? Embaixador, hein? Interessante. Como é que isto vai funcionar? Quem faz o quê? Para quem? E o que eu passo adiante para o velho Aaron? Tudo, o velho filho da mãe vai conseguir destrinchar isto.

       Ele atravessou o saguão e caminhou em direção ao seu carro e não notou que Kasigi estava numa das cabines telefônicas.

       — ...concordo plenamente, Ishii-san — Kasigi estava dizendo respeitosamente em japonês, com o suor escorrendo pela testa. — Por favor informe a Sua Excelência que nós vamos conseguir equipamento e tripulação, eu tenho certeza, se o senhor conseguir arranjar o resto. — Ele disfarçou o nervosismo.

       — Ah, é mesmo? Excelente — Ishii disse, falando da embaixada. — Vou informar a Sua Excelência imediatamente. Mas e quanto ao embaixador iraniano? Teve notícias dele?

       Kasigi se sentiu perdido.

       — Ele não aceitou o convite?

       — Não, sinto muito, ainda não, e já são quase três horas. É uma pena. Por favor, compareça ao encontro conforme combinamos. Obrigado, Kasigi-san.

       — Obrigado, Ishii-san — respondeu, com vontade de gritar. Delicadamente, repôs o fone no gancho.

       No saguão refrigerado ele se sentiu um pouco melhor e foi ao balcão de recepção. Lá ele apanhou os recados que haviam deixado para ele — dois de Hiro Toda, pedindo para ele telefonar — e subiu para o seu quarto e trancou a porta. Amassou os recados e jogou-os na privada, e começou a urinar sobre eles.

       — Meu caro estúpido primo Hiro — disse alto em japonês — se eu salvar o seu estúpido pescoço, o que tenho que fazer para salvar o meu próprio — e acrescentou uma torrente de palavrões em inglês, já que não havia nenhum em japonês — a sua família vai ficar em débito com a minha por oito gerações por todos os problemas que você está me causando.

       Ele deu a descarga, tirou a roupa, tomou uma chuveirada e se deitou nu na cama, sentindo a brisa fresca, querendo juntar energias e recobrar a tranqüilidade para se preparar para o encontro.

       A observação casual do embaixador japonês que dera início a todo o seu plano tinha sido feita para Roger Newbury numa recepção na embaixada britânica há dois dias. O embaixador tinha mencionado que o novo embaixador iraniano estava lamentando o fechamento da Irã-Toda, que daria ao novo Estado islâmico uma posição de poder econômico em toda a região do golfo.

       — O nome dele é Abadani, ele freqüentou a universidade, é formado em economia, é, evidentemente fundamentalista, mas não um fanático. É bastante jovem e sem muita experiência, mas é um funcionário de carreira, fala inglês bem e esteve na embaixada de Kabul...

       Na hora, aquelas observações não tinham significado muito para Kasigi. Então aconteceu o Turbilhão. As informações de Teerã tinham-se espalhado pelo golfo e chegaram os rumores do pedido feito por Abadani de uma inspeção dos helicópteros de Gavallan, marcada para aquela tarde — uma inspeção que, evidentemente, provaria que os helicópteros tinham registros iranianos:

       — ...e isto, Kasigi-san, vai criar um incidente internacional — Ishii tinha dito a ele na noite anterior —, porque agora o Kuwait, a Arábia Saudita e Bahrain estarão implicados, e isto, posso assegurar-lhe, todos prefeririam evitar, principalmente o nosso xeque.

       Ao amanhecer, ele fora ver Abadani e tinha explicado sobre Zataki e o reinicio da construção, acrescentando sigilosamente, que o governo japonês estava transformando a Irã-Toda num projeto nacional — e portanto responsabilizando-se por todo o financiamento futuro — e que com a cooperação de sua Excelência Abadani ele poderia começar também o trabalho em Bandar Delam imediatamente.

       — Projeto nacional? Graças a Deus! Se o seu governo estiver por trás disso formalmente, isso resolveria todos os problemas de financiamento de uma vez por todas. Graças a Deus. O que posso fazer? Qualquer coisa!

       — Para recomeçar imediatamente, eu vou precisar de helicópteros e de pilotos estrangeiros. A única maneira de consegui-los rapidamente é com a ajuda da S-G helicópteros e do sr. Gaval...

       Abadani tinha explodido.

       Depois de escutar educadamente, aparentemente concordando com uma longa tirada sobre pirataria aérea e inimigos do Irã, Kasigi tinha voltado ao ataque de uma forma indireta.

       — O senhor tem toda a razão, Excelência — tinha dito. — Mas eu tive que escolher entre me arriscar a desagradar-lhe trazendo isto ao seu conhecimento ou falhar no meu dever para com o seu grande país. A nossa escolha é simples: se eu não conseguir helicópteros, não posso reiniciar a obra. Já tentei a Guerney's e outras companhias sem sucesso e agora eu sei que posso consegui-los rapidamente através deste homem horrível, é claro que só por alguns meses até que eu possa providenciar pessoal japonês. Se eu não recomeçar imediatamente, isto deixará Zataki furioso, eu posso garantir-lhe que ele e o seu komiteh de Abadan são a própria lei, e ele vai cumprir a sua ameaça. Isto chocará e embaraçará o meu governo, fazendo-o adiar a implementação do financiamento para o projeto nacional e então... — Ele deu de ombros. — O meu governo vai mandar que se abandone a Irã-Toda e vai começar uma nova fábrica petroquímica numa área segura como a Arábia Saudita, o Kuwait ou o Iraque.

       — Seguro? O Iraque? Aqueles ladrões? Arábia Saudita ou Kuwait? Por

       Deus, eles são domínios decadentes, prontos a serem tomados pelo povo. É perigoso iniciar um negócio a longo prazo com os xeques, muito perigoso. Eles não obedecem à lei de Deus. Agora o Irã o faz. O Irã está firme agora. O imã, que a paz de Deus esteja com ele, nos salvou. Ele ordenou que o petróleo deve jorrar. Deve haver algum outro meio de conseguir helicópteros e pilotos! Gavallan e o seu bando de piratas estão de posse de propriedade nossa. Eu não posso ajudar piratas a escapar. O senhor quer que piratas escapem?

       — Deus me livre, eu jamais sugeriria isso. É claro que nós não temos certeza de que eles sejam piratas, Excelência. Eu ouvi dizer que tudo isso não passa de boatos espalhados pelos nossos inimigos que querem ver o Irã ainda mais prejudicado. Mesmo que fosse verdade, o senhor poderia comparar nove helicópteros usados com três bilhões de dólares já gastos e outro um bilhão que o meu governo poderia ser convencido a investir?

       — Sim. Pirataria é pirataria, lei é lei, o xeque concordou com a inspeção, a verdade é a verdade. Insha'Allah.

       — Concordo inteiramente, Excelência, mas o senhor sabe que a verdade é relativa e um adiamento até amanhã depois do pôr-do-sol seria do interesse do seu país... — Ele tinha corrigido rapidamente — do interesse do imã e do seu Estado islâmico.

       — A verdade de Deus não é relativa.

       — Sim, sim, é claro — disse Kasigi, aparentemente calmo, mas rangendo os dentes por dentro. Como alguém pode lidar com estes lunáticos que usam a sua fé como desculpa para tudo e 'Deus' todas as vezes que desejam interromper um raciocínio lógico? São todos loucos, bitolados! Eles não querem compreender como nós, japoneses, que é preciso ser tolerante com as crenças dos outros povos, e que a vida vai 'de nada até nada', e que céu e inferno e Deus são apenas fumaça de ópio de um cérebro desarranjado — até prova em contrário!

       — É claro que o senhor tem razão, Excelência. Mas não serão os helicópteros e pilotos dele, eu preciso apenas das relações que ele tem. — Ele tinha esperado e escutado pacientemente e então tinha jogado a sua última cartada:

       — Estou certo de que o xeque e o ministro do Exterior ficariam imensamente gratos se o senhor adiasse a inspeção até amanhã para que eles pudessem comparecer à recepção do meu embaixador às oito horas de hoje à noite.

       — Recepção, sr. Kasigi?

       — Sim, foi marcada em cima da hora, mas é tremendamente importante

       — por acaso eu sei que o senhor é o convidado mais importante. — Kasigi tinha baixado ainda mais o tom de voz. — Peço-lhe para não dizer como o senhor ficou sabendo disso, mas, muito em particular, posso dizer-lhe que o meu governo está em busca de contratos de petróleo a longo prazo, que poderiam ser extremamente lucrativos para vocês caso o Irã pudesse continuar a fornecer-nos petróleo. Seria o momento perfeito pa...

       — Contratos de longos prazos? Eu concordo que os contratos negociados pelo xá não valem nada, são unilaterais e precisam ser cancelados. Mas nós damos valor aos japoneses como clientes. O Japão jamais tentou nos explorar. Estou certo de que o seu embaixador não se importaria de começar a recepção uma hora mais tarde. O xeque, o ministro do Exterior, Newbury e eu poderíamos ir diretamente do aeroporto.

       Kasigi não sabia bem até onde podia ir. Mas, Excelência, ele pensou, se o senhor não adiar a sua inspeção, eu me vingarei, porque o senhor me terá feito cometer o único pecado que levamos em conta: o fracasso.

       — É uma sorte que o Irã esteja tão bem representado aqui.

      — Eu irei com certeza à recepção, sr. Kasigi, depois da inspeção.

       A cartada final de Kasigi fora dada com toda a elegância necessária:

       — Tenho a sensação, Excelência, de que o senhor será convidado muito em breve para ir ao meu país para conhecer os líderes mais importantes, 05 mais importantes, de lá, pois o senhor certamente percebe o quanto o seu Estado islâmico é vital para o Japão, e para verificar recursos tecnológicos que seriam muito valiosos para o Irã.

       — Nós... nós certamente estamos precisando de amigos sinceros — disse Abadani.

       Kasigi o observara cuidadosamente e não tinha visto nenhuma reação, apenas os mesmos olhos impiedosos e a mesma inflexibilidade.

       — Nesses tempos difíceis é essencial cuidar dos amigos, não acha? A pessoa nunca sabe quando a desgraça pode atingi-la, seja ela quem for. Não acha?

       — Isto está nas mãos de Deus. Só Dele. — Tinha havido uma longa pausa, e depois Abadani dissera: — Seja como Deus quiser. Vou pensar no que o senhor disse.

       Agora, na privacidade do seu quarto de hotel, Kasigi estava com muito medo. Só é essencial cuidar de você mesmo. Por mais inteligente ou cuidadoso que você seja, você nunca sabe quando a desgraça vai atingi-lo. Se os deuses existem, é só para nos atormentar.

      

       NO INTERIOR DA TURQUIA: 16:23H. Eles tinham pousado perto da aldeia naquela manhã, a menos de um quilômetro da fronteira. Erikki teria preferido entrar um pouco mais no país por medida de segurança, mas os seus tanques estavam secos. Ele fora interceptado e caíra numa emboscada de novo, desta vez por dois caças e dois aviões de combate Huey e tivera que aturá-los por mais de um quarto de hora até conseguir se esgueirar através da fronteira. Os dois Huey não se aventuraram a atravessar a fronteira, mas tinham continuado a circular do outro lado.

       — Esqueça-os, Azadeh — dissera alegremente —, nós estamos seguros agora.

       Mas não estavam. Os aldeões os haviam cercado e a polícia chegara. Quatro homens, um sargento e outros três, todos de uniforme — amarrotados e mal cortados — com revólveres no coldre. O sargento usava óculos escuros para se proteger dos reflexos do sol na neve. Nenhum deles falava inglês. Azadeh os cumprimentara de acordo com o plano que ela e Erikki tinham combinado, explicando que Erikki, um cidadão finlandês, fora empregado por uma companhia britânica, sob contrato com a Madeira Iraniana, que nos tumultos ocorridos no Azerbeijão e nas batalhas perto de Tabriz a sua vida fora ameaçada pelos esquerdistas, que ela, sua esposa, também fora ameaçada, e então eles tinham fugido.

       — Ah, o effendi é finlandês, mas a senhora é iraniana?

       — Finlandesa pelo casamento, sargento, iraniana de nascimento. Aqui estão os nossos documentos. — Ela entregara a ele o seu passaporte finlandês que não incluía referências ao seu falecido pai, Abdullah Khan. — Podemos usar o telefone, por favor? Nós podemos pagar, é claro. O meu marido gostaria de ligar para a embaixada dele e também para o seu patrão em Al Shargaz.

       — Ah, Al Shargaz. — O sargento balançou a cabeça satisfeito. Ele era robusto, e apesar de bem barbeado, a sombra da sua barba aparecia na pele dourada. — Onde fica isso?

       Ela o informou, muito consciente da sua aparência e da de Erikki. Erikki com o curativo sujo e manchado de sangue e ela com o cabelo desgrenhado, as roupas e o rosto sujos. Atrás deles, os dois Huey continuavam a circular. O sargento observou-os Pensativamente.

       — Por que eles ousariam mandar caças para o nosso espaço aéreo e helicópteros atrás de vocês?

       — A vontade de Deus, sargento. Temo que haja muitas coisas estranhas ocorrendo daquele lado da fronteira.

       — Como estão as coisas na fronteira? — ele fez sinal para os dois outros policiais se encaminharem para o 212 e começou a escutar atentamente. Os três policiais se aproximaram, espiaram o interior da cabine de comando. Buracos de bala, manchas de sangue e instrumentos quebrados. Um deles abriu a porta da cabine. Muitas armas automáticas. Mais buracos de balas.

       — Sargento!

       O sargento respondeu mas esperou educadamente até que Azadeh tivesse terminado. Aldeões escutavam de olhos arregalados, não havia nenhum chador nem véu entre eles. Então ele apontou para uma das cabanas da aldeia.

       — Por favor, esperem ali na sombra. — O dia estava frio, a terra coberta de neve, o sol brilhante refletindo na neve. Sem se apressar, o sargento examinou a cabine de comando. Ele apanhou o kookri, tirou-o um pouco para fora da bainha e tornou a guardá-lo. Então fez sinal para Azadeh e Erikki se aproximarem. — Como o senhor explica as armas, effendfí

       Nervosa, Azadeh traduziu a pergunta para Erikki.

       — Diga-lhe que elas foram deixadas no meu aparelho por nativos que estavam tentando seqüestrá-lo.

       — Ah, nativos — disse o sargento. Espanta-me que os nativos tenham deixado um tal tesouro para trás. O senhor pode explicar isso?

       — Diga a ele que foram todos mortos por legalistas e que eu escapei no meio da confusão.

       — Legalistas, effendi?. Que legalistas?

       — Polícia. A polícia de Tabriz — disse Erikki, desconfortavelmente consciente de que cada pergunta os arrastava ainda mais para o abismo. — Pergunte a ele se posso usar o telefone, Azadeh.

       — Telefone? Certamente, no seu devido tempo. — O sargento estudou os Huey que circulavam por um momento. Então tornou a fitar Erikki com seus olhos duros. — Estou contente em saber que a polícia era leal. A polícia tem um dever para com o Estado, para com o povo e para com o cumprimento da lei. Contrabando de armas é contra a lei. Fugir da polícia que está defendendo a lei é crime, não é?

       — Sim, mas nós não somos contrabandistas de armas, sargento, nem fugitivos da polícia — respondeu Azadeh, ainda mais amedrontada agora. A fronteira estava tão perto, perto demais. Para ela, a última parte da fuga tinha sido terrível. Obviamente, Hakim havia alertado toda a região da fronteira; só ele teria o poder de conseguir uma interceptação tão rápida, tanto por terra quanto por ar.

       — O senhor está armado? — o sargento perguntou delicadamente.

       — Só tenho uma faca.

       — Poderia entregar-me, por favor? — Erikki obedeceu. — Por favor, sigam-me.

       Eles foram para a delegacia, um pequeno prédio de tijolos com celas e alguns escritórios com telefones, perto da mesquita, na pequena praça da aldeia.

       — Nos últimos meses, nós tivemos refugiados de todos os tipos passando pelas nossas estradas, iranianos, ingleses, europeus, americanos, muitos do Azerbeijão, mas nenhum soviético. — Ele riu da própria piada. — Muitos refugiados, ricos, pobres, bons, maus, muitos criminosos entre eles. Alguns foram mandados de volta, outros puderam continuar. Insha'Allah. Por favor, esperem ali.

       "Ali" não era uma cela, mas uma sala com algumas cadeiras, uma mesa e grades nas janelas, muitas moscas e nenhuma saída. Mas estava quente e razoavelmente limpa.

        — Nós podemos comer e beber alguma coisa e usar o telefone, por favor? — perguntou Azadeh. — Nós podemos pagar, sargento.

       — Vou mandar trazer alguma coisa do hotel. A comida é boa e não é cara

       — Meu marido quer saber se pode usar o telefone

       — Certamente. No devido tempo.

       Isto tinha acontecido de manhã, e agora já estavam no final da tarde. Nesse meio tempo, a comida tinha chegado, arroz e guisado de carneiro, pão e café turco. Ela pagara com riais e não fora caro. O sargento autorizara-os a usar o buraco fedorento no chão do banheiro e a se lavarem com a água de um tanque e de uma velha pia. Não havia nenhum material de primeiros socorros, só iodo. Erikki limpada as suas feridas o melhor possível, trincando os dentes de dor, ainda fraco e exausto. Depois, tinha-se esticado numa cadeira, posto os pés sobre outra e, com Azadeh ao seu lado, adormecera. De vez em quando, a porta se abria e um dos policiais entrava e tornava a sair.

       — Matyeryebyets — resmungava Erikki. — Para onde podemos escapar?

       Ela o acalmara e ficara perto dele, mantendo o seu próprio medo sob controle. Preciso ajudá-lo, pensava sem parar. Estava se sentindo melhor agora com o cabelo penteado, o rosto limpo, o suéter arrumado. Pela porta, podia escutar conversas abafadas, ocasionalmente o telefone tocando, carros e caminhões passando pela estrada, moscas zumbindo. O cansaço a venceu e ela dormiu profundamente, um sono cheio de pesadelos: barulho de motores e tiros e Hakim montado como um cossaco, perseguindo-os, ela e Erikki enterrados até o pescoço no chão, os cascos dos cavalos passando perto deles, depois conseguindo libertar-se, correndo para a fronteira que era formada por quilômetros de arame farpado, o falso mulá, Mahmud, e o açougueiro aparecendo de repente entre eles e a salvação e...

       A porta se abriu. Os dois acordaram, assustados. Um major impecávelmente uniformizado estava lá, ladeado pelo sargento e outro policial. Era um homem alto e severo.

       — Seus documentos, por favor — ele disse para Azadeh.

       — Eu, eu os entreguei ao sargento, major.

       — A senhora entregou-lhe um passaporte finlandês. Os seus documentos iranianos. — O major estendeu a mão. Ela foi vagarosa demais. Imediatamente o sargento se adiantou e agarrou-lhe a bolsa, espalhando o conteúdo desta sobre a mesa. Ao mesmo tempo, o outro policial avançou para Erikki, com a mão no revólver, e fez sinal para ele ir para o outro canto da sala. O major tirou o pó de uma cadeira e sentou-se, recebeu a carteira de identidade iraniana dela das mãos do sargento e examinou-a cuidadosamente, depois olhou para o conteúdo da bolsa que estava espalhado sobre a mesa. Abriu o saco de jóias. Seus olhos se arregalaram.

       — Onde conseguiu isto?

       — São minhas. Eu as herdei dos meus pais. — Azadeh estava assustada, sem saber o que o major sabia e tinha visto a maneira como ele a olhava. Erikki também. — O meu marido pode usar o telefone, por favor? Ele quer...

       — No devido tempo! Já lhe disseram isso muitas vezes. No devido tempo é no devido tempo. — O major fechou a bolsa e colocou-a na mesa, diante dele. Seus olhos examinaram-lhe os seios. — O seu marido não fala turco?

       — Não, major.

       O oficial virou-se para Erikki e disse em bom inglês:

       — Há uma ordem de prisão contra o senhor, expedida de Tabriz. Por tentativa de homicídio e rapto.

       Azadeh empalideceu e Erikki controlou o seu pânico o melhor que pôde.

       — Rapto de quem, senhor?

       O major teve um lampejo de irritação.

       — Não tente brincar comigo. Desta senhora. Azadeh, irmã de Hakim, o Gorgon Khan.

       — Ela é minha esposa. Como pode um marido...

       — Eu sei que ela é sua esposa e é melhor o senhor contar-me a verdade, por Deus. A ordem de prisão diz que o senhor a levou contra a sua vontade e fugiu num helicóptero iraniano. — Azadeh começou a responder, mas o major exclamou:

       — Eu perguntei a ele, não à senhora. E então?

       — Foi sem o consentimento dela e o helicóptero é britânico e não iraniano. O major ficou olhando para ele, depois virou-se para Azadeh.

       — Bem?

       — Foi... foi sem o meu consentimento..

       — Mas o quê?

       Azadeh sentiu-se mal. Sua cabeça doía e ela estava desesperada. A polícia turca era conhecida pela sua inflexibilidade, seu grande poder pessoal e sua dureza.

       — Por favor, major, talvez possamos conversar em particular, explicar isto em particular.

       — Nós estamos falando em particular agora, madame — o major disse secamente, e então, percebendo a sua angústia e a sua beleza, acrescentou: — Inglês é mais particular do que turco. Então...

       Então, hesitando, escolhendo cuidadosamente as palavras, ela falou sobre o juramento feito a Abdullah Khan e sobre Hakim e o dilema, impossibilitada de partir e sem poder ficar e como Erikki, com sua sabedoria, tinha desfeito o nó górdio. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto.

       — Sim, foi sem o meu consentimento, mas de certa forma foi com o consentimento do meu irmão que ajudou Eri...

       — Se foi com o consentimento de Hakim Khan, então por que ele está oferecendo uma enorme recompensa por este homem, vivo ou morto — perguntou o major, sem acreditar nela — e expediu a ordem de prisão no nome dele, exigindo extradição imediata, se necessário?

       Ela ficou tão chocada que quase desmaiou. Sem pensar, Erikki fez menção de se aproximar dela, mas enfiaram-lhe um revólver no estômago.

       — Eu só ia ajudá-la — disse ele.

       — Então fique onde está! — Em turco, o oficial disse: — Não o mate — E em inglês: — Bem, lady Azadeh. Por quê?

       Ela não pôde responder. Seus lábios se moveram, mas não emitiram nenhum som. Erikki respondeu por ela:

       — O que mais podia um khan fazer, major? A honra de um khan está envolvida. Publicamente, ele teria que fazer isso, não teria, mesmo que estivesse de acordo?

       — Talvez, mas não tão depressa, não, não tão depressa, não pondo em alerta caças e helicópteros. — Por que ele faria isso se quisesse que vocês escapassem? pensou, foi um milagre vocês não terem sido obrigados a pousar, não terem caído com todos aqueles buracos de bala. Isto tudo parece um monte de mentiras. Talvez ela esteja com tanto medo dele que seja capaz de dizer qualquer coisa. Agora, a sua fuga do palácio, o que aconteceu exatamente?

       Erikki contou a ele. Não há mais nada a fazer, pensou. Apenas contar a verdade e manter a esperança. Sua atenção estava toda em Azadeh, vendo o horror que a dominava, no entanto, é claro que Hakim reagiria dessa maneira, é claro que vivo ou morto. O sangue do seu pai não lhe corria nas veias?

       — E as armas?

       Mais uma vez, Erikki contou tudo, como fora forçado a pilotar para a KGB, sobre o xeque Bayazid, seu rapto e resgate e o ataque ao palácio, sendo obrigado a transportá-los e depois eles quebrando o juramento e então sendo obrigado a matá-los.

       — Quantos homens?

       — Não me lembro exatamente. Uma meia dúzia, talvez mais.

       — O senhor gosta de matar, hein?

       — Não, major, eu detesto. Mas, por favor, acredite, nós fomos capturados numa teia, contra a nossa vontade, tudo o que queremos é partir em paz, por favor, deixe-me ligar para a minha embaixada... eles podem se responsabilizar por nós... nós não somos uma ameaça para ninguém.

       O major ficou olhando para ele.

       — Eu não concordo, a sua história é muito inverossímil. Você está sendo procurado por rapto e tentativa de homicídio. Por favor, acompanhe o sargento — ele disse e repetiu em turco. Erikki não se mexeu, fechou os punhos e estava a ponto de explodir. Imediatamente, o sargento empunhou o revólver os dois policiais se aproximaram dele ameaçadoramente e o major disse duramente: — É uma ofensa muito séria desobedecer à polícia neste país. Vá com o sargento. Vá com ele.

       Azadeh tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Erikki empurrou a mão do sargento, controlando a raiva e o medo, e tentou sorrir para dar-lhe coragem.

       — Está tudo bem — murmurou e acompanhou o sargento.

       Azadeh estava quase dominada pelo pânico. Suas mãos e seus joelhos estavam tremendo, mas ela queria mostrar altivez, sabendo que estava indefesa e que o major estava sentado à sua frente, vigiando-a, os dois a sós na sala. Insha'Allah, ela pensou e olhou para ele com ódio.

       — A senhora não tem nada a temer — disse, olhando-a com curiosidade. Então estendeu a mão e apanhou o saco de jóias dela. — Por medida de segurança — e saiu da sala, afastando-se pelo corredor.

       A cela ficava no fim do corredor e era pequena e suja, mais uma jaula do que um aposento, com uma cama, grades na janela, correntes presas numa ar-gola na parede, um balde fedorento num dos cantos. O sargento fechou a porta e trancou-a. Pela grade, o major disse:

       — Lembre-se, o 'conforto' de lady Azadeh depende da sua docilidade. — E se afastou.

       Agora, sozinho, Erikki começou a caminhar pela cela, analisando a porta, a fechadura, as grades, o teto, as paredes, as correntes, procurando uma forma de escapar.

      

       AL SHARGAZ - NO AEROPORTO: 17:40H. A um quilômetro de distância, do outro lado do golfo, Gavallan estava no escritório, esperando ansiosamente ao lado do telefone, faltando ainda uma hora para o pôr-do-sol. Ele já tinha conseguido uma promessa de um 212 de uma companhia de Paris e de dois 206 de um amigo da Aerospatiale, a taxas razoáveis. Scot estava na sala ao lado, controlando o HF, com Pettikin tomando conta do telefone. Rudi, Willi Neuchtreiter e Scragger estavam no hotel, em outros telefones, tentando conseguir pessoal, providenciando possíveis estratégias em Bahrain. Nenhuma palavra ainda de Kasigi.

       O telefone tocou. Gavallan agarrou o fone, com a esperança de que fossem notícias de Dubois e Fowler ou que fosse Kasigi.

       — Alô?

       — Andy, aqui é Rudi. Conseguimos três pilotos da Lufttransportgesells-haft e eles prometeram também dois mecânicos. Dez por cento de reajuste, um mês de trabalho, dois de descanso. Espere um instante... há uma ligação na outra linha, eu torno a ligar para você, até logo.

       Gavallan fez uma anotação no seu bloco, a ansiedade causando-lhe azia, e isto o fez pensar em McIver. Mais cedo, ao falar com ele, não havia mencionado nenhum dos problemas de prazo, não querendo preocupá-lo ainda mais, prometendo-lhe que assim que os helicópteros estivessem em segurança ele tomaria o próximo avião para Bahrain.

      — Não se preocupe, Mac, não tenho palavras para agradecer a você e a Genny pelo que fizeram.

       Pela janela, podia ver o sol descendo no céu. O aeroporto estava movimentado. Viu um Jumbo da Alitalia aterrissando e isto o fez lembrar de Pettikin e Paula; ainda não tinha tido a oportunidade de perguntar a ele o que estava acontecendo. Perto do final da pista, na área de carga, os seus oito 212 pareciam caveiras sem os rotores e as colunas de rotor, com os mecânicos ainda desmontando alguns deles. Onde está Kasigi, pelo amor de Deus? Tentara ligar para ele várias vezes no hotel, mas ele não estava lá e ninguém sabia informar para onde tinha ido ou quando voltaria.

       A porta se abriu.

       — Papai — disse Scot. — Linbar Struan está no telefone.

       — Mande-o à merda... espere! — Disse, Gavallan rapidamente. — Diga apenas que eu não estou, mas que ligarei para ele assim que voltar. — E resmungou um monte de palavrões em chinês. Scot saiu depressa. O telefone tornou a tocar.

       — Gavallan.

       — Andrew, aqui é Roger Newbury, como vai? Gavallan começou a suar.

       — Olá, Roger, alguma novidade?

       — O prazo está mantido. O iraniano insistiu em vir me buscar primeiro, e estou esperando. Nós vamos juntos para o aeroporto para nos encontrar com o xeque. Vamos chegar alguns minutos antes da hora e então nós três vamos para a área de carga.

       — E quanto à recepção na embaixada japonesa?

       — Está combinado que iremos todos depois da inspeção. Só Deus sabe o que vai acontecer até lá mas... bem, isso não é problema nosso. Sinto muito, mas nossas mãos estão atadas. Até breve.

       Gavallan agradeceu, desligou e enxugou a testa. Outra vez o telefone. Kasigi? Ele atendeu.

       — Alô?

       — Andy? Ian — Ian Dunross.

       — Meu Deus, Ian. — Gavallan esqueceu os problemas. — Estou muito contente por você ter ligado, tentei falar com você duas vezes mas não consegui.

       — Sim, desculpe não ter podido ligar antes. Como vão as coisas? Gavallan contou resumidamente. E falou sobre Kasigi.

       — Temos cerca de uma hora até o pôr-do-sol.

       — Esta é uma das razões pelas quais estou ligando. Foi uma pena o que houve com Dubois, Fowler e McIver, vou ficar com os dedos cruzados. Lochart dá a impressão de ter pirado, mas quando o amor está envolvido... -Gavallan ouviu o suspiro dele e não soube interpretá-lo.

       — Você se lembra do Hiro Toda, da Navegações Toda?

       — É claro, Ian.

       — Hiro falou-me de Kasigi e do problema que estão tendo na Irã-Toda. Eles estão numa encrenca danada, o que você puder fazer para ajudar, por favor, faça.

       — Certo. Estou trabalhando nisso o dia inteiro. Toda contou-lhe sobre a idéia de Kasigi com relação ao embaixador japonês?

       — Sim. Hiro telefonou pessoalmente. Ele disse que estão ansiosos em nos ajudar, mas que este é um problema iraniano e para ser honesto, eles não têm muita esperança, uma vez que os iranianos estão defendendo os seus direitos. — O rosto de Gavallan refletiu a sua decepção. — Dê-lhes toda a ajuda possível. Se a Irã-Toda for encampada... bem, aqui entre nós... — Dunross falou em dialeto de Xangai: — Toda a filosofia de uma companhia nobre seria mortalmente atingida. — Depois em inglês de novo: — Esqueça-se de que eu disse isto.

       Embora Gavallan tivesse esquecido quase completamente o dialeto de Xangai, entendeu a mensagem e quase perdeu a fala. Ele não tinha a mínima idéia de que a Struan's estivesse envolvida nisso, Kasigi nunca tinha dado nenhuma pista.

       — Kasigi vai conseguir os seus helicópteros e pilotos mesmo que apreendam os nossos aparelhos.

       — Vamos esperar que isso não aconteça. Outra coisa, você leu nos jornais sobre a queda da bolsa de Hong Kong?

       — Sim.

       — Foi pior do que estão dizendo. Alguém está fazendo um jogo muito duro e Linbar está encrencado. Mesmo que você consiga retirar os 212 e possa continuar operando, vai ter que cancelar os X63.

       A temperatura de Gavallan subiu.

       — Mas Ian, com eles eu posso abalar o poder da Imperial, oferecendo aos clientes um serviço melhor e uma maior segurança e...

       — Eu concordo, meu velho. Mas se não pudermos pagar por eles, você não poderá tê-los. Sinto muito, mas é isso. O mercado de ações enlouqueceu, mais do que o normal, está se refletindo no Japão e nós não podemos deixar que a Toda quebre aqui também.

       — Talvez tenhamos sorte. Eu não vou perder os meus X63. Por falar nisso, você ouviu dizer que Linbar vai colocar Choy no conselho?

       — Sim. Uma idéia interessante. — Isto foi dito de forma neutra e Gavallan não soube se ele estava a favor ou contra. — Eu soube disto indiretamente. Se tudo der certo hoje, você está planejando estar em Londres na segunda-feira?

       — Sim. Vou saber melhor hoje ao pôr-do-sol, ou amanhã. Se tudo correr bem, vou até Bahrain visitar o Mac e depois vou para Londres. Por quê?

       — Talvez eu precise que você cancele Londres e se encontre comigo em Hong Kong. Aconteceu algo muito estranho... com Nobunaga Mori, a outra testemunha que estava junto com Choy quando David MacStruan morreu. Nobunaga morreu queimado há dois dias na casa dele em Kanazawa, no campo, perto de Tóquio, em circunstâncias muito estranhas. Pelo correio de hoje, recebi uma carta muito curiosa. Não posso discuti-la pelo telefone, mas é muito interessante.

       Gavallan prendeu a respiração.

       — Então David... não foi acidente?

       — Você vai ter que esperar até nos encontrarmos, Andy, ou em Tóquio ou em Londres, o mais cedo possível. Por falar nisso, Hiro e eu tínhamos planejado ficar em Kanazawa na noite em que Nobunaga morreu, mas na última hora não pudemos ir.

       — Meu Deus, que sorte.

       — Sim. Bem, tenho que desligar. Há algo que eu possa fazer por você''

       — Nada, a não ser que consiga estender o meu prazo até domingo à noite.

       — Ainda estou trabalhando nisso, não se preocupe. Sinto muito sobre Dubois, Fowler e McIver... aquele número em Tóquio receberá recados até segunda-feira.

       Eles se despediram. Gavallan ficou olhando para o telefone. Scot entrou com mais notícias sobre possíveis pilotos e helicópteros, mas Gavallan mal ouviu o que ele disse. Teria sido assassinato, afinal? Cristo! Maldito Linbar e seus maus investimentos. De uma maneira ou de outra eu tenho que conseguir os X63, tenho que conseguir.

       Outra vez o telefone. A ligação estava ruim e o sotaque da pessoa do outro lado era péssimo:

       — Interurbano para effendi Gavallan a cobrar Seu coração deu um salto. Erikki?

       — Aqui fala effendi Gavallan, pode completar a ligação. Pode falar mais alto, por favor, eu mal posso ouvi-lo. Quem está chamando?

       — Um momento, por favor... Enquanto aguardava impacientemente, ele olhou para o portão perto do final da pista por onde o xeque e os outros passariam se Kasigi falhasse e houvesse a inspeção. Seu coração quase parou quando viu uma grande limusine com a bandeira de Al Shargaz se aproximando, mas o carro passou numa nuvem de poeira e uma voz do outro lado da linha, que ele mal podia ouvir, disse:

       — Andy, sou eu, Marc, Marc Dubois.

       — Marc? Marc Dubois? — Ele gaguejou e quase deixou cair o telefone, tapando um ouvido para escutar melhor. — Cristo! Marc? Você está bem? Onde você está? E Fowler está bem? Onde vocês se meteram? — A resposta foi incompreensível. Ele teve que fazer um esforço enorme para ouvir. — Diga de novo!

       — Nós estamos em Kor al Amaya... — Kor al Amaya era uma plataforma enorme de petróleo, de um quilômetro de comprimento, que ficava na ponta do golfo, perto da boca do estuário de Shatt-al-Arab, que dividia o Irã do Iraque, a cerca de oitocentos quilômetros a noroeste. — Você pode me ouvir, Andy? Kor al Amaya..

      

       NA PLATAFORMA DE KOR AL AMAYA: Marc Dubois também estava tapando um ouvido e tomando cuidado para não gritar. O telefone ficava no escritório do gerente, e havia muitos iraquianos e estrangeiros no escritório ao lado que podiam ouvir.

       — Esta linha não é particular... vous comprenezi

       — Entendi, pelo amor de Deus, o que foi que aconteceu? Vocês foram recolhidos?

       Dubois certificou-se de que ninguém estava ouvindo e disse cautelosa mente:

       — Não, mon vieux, o combustível estava acabando e, voilà, o petroleiro Oceanrider apareceu no meio da merde e então eu pousei lá, perfeitamente, é claro. Eu e Fowler estamos bem. Pasproblèmel E quanto aos outros, Rudi, Sandor e Pop?

       — Estão todos aqui em Al Shargaz, todo mundo, o seu pessoal, o de Scrag, de Mac, de Freddy, embora Mac esteja em Bahrain no momento. Com vocês a salvo, o Turbilhão teve um resultado de dez em dez. Erikki e Azadeh estão a salvo em Tabriz, embora — Gavallan ia dizer que Tom estava arriscando a vida ficando no Irã, mas não havia nada que ele ou Dubois pudessem fazer, então disse alegremente: — Que maravilha vocês estarem em segurança, Marc. O seu helicóptero está em condições?

       — É claro, eu, ahn, preciso apenas de combustível e instruções.

       — Marc, você agora tem registro britânico... espere um segundo... é GHKVC. Apague os números antigos e coloque os novos. Tem havido o diabo e os nossos antigos anfitriões encheram o golfo de telex pedindo aos governos que apreendam os nossos helicópteros. Não desembarque em lugar nenhum.

       Dubois ficou sério.

       — Golf, Hotel Kilo Victor Charlie, entendi. Andy, le bon dieu estava conosco porque o Oceanrider tem registro libanês e o seu comandante é inglês. Uma das primeiras coisas que eu pedi foi uma lata de tinta, tinta... compreende?

       — Compreendo, maravilhoso. Continue!

       — Como ele estava indo para o Iraque, eu achei melhor ficar quieto e ficar aqui até falar com você e esta é a primeira oportunidade — Dubois viu o gerente iraquiano se aproximando. Então falou mais alto e em outro tom de voz: — Esta missão com o Oceanrider está sendo perfeita, sr. Gavallan e fico contente em dizer que o capitão está muito satisfeito.

       — Certo, Marc, eu faço as perguntas. Quando ele vai terminar de fazer o carregamento e qual é o seu próximo porto?

       — Talvez amanhã. — Ele cumprimentou gentilmente o iraquiano que se sentou atrás da sua mesa. — Devemos chegar em Amsterdã conforme o planejado. — Os dois homens estavam tendo dificuldade em escutar.

       — Você acha que pode ficar aí até o fim da linha? É claro que pagaremos as despesas de frete.

       — Não vejo por que não. Acho que você vai descobrir que esta experiência vai se tornar um trabalho permanente. O comandante viu como é conveniente poder ficar ao largo e ao mesmo tempo fazer visitas rápidas ao porto, mas francamente, os proprietários cometeram um erro ao pedirem um 212. Um 206 seria muito melhor. Acho que eles vão querer um desconto. — Ele ouviu a gargalhada de Gavallan e ficou feliz. — Acho melhor desligar, só queria dar notícias. Fowler manda lembranças e se possível eu torno a telefonar quando estivermos passando por aí.

       — Se tudo correr bem, não estaremos mais aqui. Os pássaros serão retirados amanhã. Não se preocupe, eu vou controlar todo o percurso do Oceanrider. Assim que você tiver passado por Ormuz e estiver fora do golfo, peça ao capitão para manter um contato por rádio ou telex comigo em Aberdeen. Está bem? Estou mandando todo mundo para o mar do Norte até nos organizarmos. Oh, você deve estar sem dinheiro, assine todas as notas que depois eu reembolsarei o capitão. Como é o nome dele?

       — Tavistock, Brian Tavistock.

       Entendi. Marc, você não imagina o quanto estou contente.

       Eu também. À bientôt. — Dubois desligou e agradeceu ao gerente.

       Foi um prazer, capitão o homem respondeu, pensativo. — Todos os grandes petroleiros vão ter o apoio de helicópteros?

       — Não sei, m'sieur. Seria conveniente para alguns, não?

       O gerente sorriu de leve, um homem alto, de meia-idade, com sotaque americano e treinado nos Estados Unidos.

       — Há um barco patrulha iraniano vigiando, o Oceanrider. Curioso, não?

       — Sim.

       — Felizmente eles estão em águas iranianas e nós em nossas águas. Os iranianos acham que são donos do golfo Árabe, das nossas águas, das águas do Shatt, e do Tigre e do Eufrates até o seu nascedouro: Dois mil quilômetros.

       — O Eufrates é tão grande assim? — Dubois perguntou, ficando mais preocupado.

       — Sim. Ele nasce na Turquia. O senhor já esteve no Iraque antes?

       — Não, m'sieur, infelizmente. Talvez na minha próxima viagem.

       — Bagdá é uma maravilha, antiga e moderna, e o resto do Iraque também, merece uma visita. Nós temos nove bilhões de toneladas de reserva de petróleo e duas vezes isto esperando para ser descoberto. Valemos muito mais do que o Irã. A França deveria apoiar a nós, não a Israel.

       — Eu, m'sieur, sou só um piloto — disse Dubois. — Nada de política para mim.

       — Para nós isto é impossível. Política é vida. Nós descobrimos isto do modo mais difícil. Mesmo no jardim do Éden... o senhor sabia que há pessoas vivendo aqui há mais de sessenta mil anos? O jardim do Éden ficava a menos de cem quilômetros de distância; onde o Tigre e o Eufrates se encontram. O nosso povo descobriu o fogo, inventou a roda, a matemática, a escrita, o vinho, a jardinagem, a agricultura... os jardins suspensos da Babilônia eram aqui, Xarazade inventou suas histórias para o califa Harum al-Rashid, só igualadas pelas do seu Carlos Magno, e aqui viviam os povos mais poderosos das antigas civilizações: babilônios e assírios. Até o Dilúvio começou aqui. Nós sobrevivemos aos sumérios, gregos, romanos, árabes, turcos, ingleses e persas. — Ele quase cuspiu estas palavras. — E vamos continuar a sobreviver a eles.

       Dubois balançou a cabeça, concordando. O comandante Tavistock o havia alertado:

       — Nós estamos em águas iraquianas, a plataforma é território iraquiano, meu rapaz. Assim que você sair do navio, estará por sua conta. Eu não tenho nenhuma jurisdição. Compreende?

       — Eu só quero dar um telefonema. Tenho que dar.

       — Que tal desembarcar quando passarmos por Al Shargaz na volta?

       — Não haverá nenhum problema — Dubois tinha dito a ele, perfeitamente confiante. — Por que haveria? Eu sou francês. — Ao fazer a aterrissagem forçada no navio, ele tivera que contar ao comandante a respeito do Turbilhão e dos motivos que levaram a ele. O velho tinha apenas resmungado.

       — Eu não sei nada sobre isso, meu rapaz, você não me contou nada. Primeiro é melhor você passar uma tinta sobre esses números iranianos e colocar um G na frente de qualquer coisa que quiser. Eu vou pedir ao meu pintor para ajudá-lo. Quanto a mim, se alguém me perguntar alguma coisa, você é uma experiência que os proprietários me impingiram, você embarcou em Cape Town e eu não gosto nem um pouco de você e quase nunca conversamos. Certo? — O capitão tinha sorrido. — Estou feliz por tê-lo a bordo. Eu estive em barcos que operavam no Canal durante a guerra, a minha mulher é de íle d'Ouessant, perto de Brest. Nós costumávamos ir até lá de vez em quando atrás de vinho e conhaque, como os meus ancestrais piratas costumavam fazer. Tire a pele de um inglês e encontrará um pirata. Seja bem-vindo a bordo. Dubois esperou e olhou para o gerente iraquiano.

       — Talvez eu possa tornar a usar o telefone amanhã, antes de partirmos?

       — É claro. Não se esqueça de nós. Tudo começou aqui, e terminará aqui. Salaaml — O gerente deu um sorriso estranho e estendeu a mão. — Boa sorte.

       — Obrigado. Até breve.

       Dubois saiu, desceu as escadas e foi para fora, ansioso por voltar ao Oceanrider. A algumas centenas de metros de distância, ele viu o barco patrulha iraniano, uma pequena fragata jogando no meio das ondas.

       — Espèce de con — ele resmungou e se afastou, com a cabeça confusa. Dubois levou cerca de 15 minutos para caminhar de volta até o navio. Ele viu Fowler esperando e contou-lhe as novidades.

       — Que bom saber notícias dos rapazes, que maravilha, mas ir até Amsterdã nesta banheira velha? — Fowler começou a praguejar, mas Dubois foi até a proa e se encostou na amurada.

       Todo mundo salvo! Nunca pensei que fôssemos conseguir, pensou, feliz. Que sorte fantástica! Andy e Rudi vão achar que foi planejamento, mas não foi. Foi sorte. Ou Deus. Deus programou o Oceanrider para passar na hora certa. Merde, foi outra vez por pouco, mas está terminado, então não há necessidade de lembrar. E agora? Contanto que não tenhamos mau tempo e que eu não fique com enjôo, ou que esta banheira velha afunde, será ótimo não ter nada para fazer por duas ou três semanas, só pensar, esperar, dormir, jogar um pouco de bridge, e dormir e pensar e planejar. Depois Aberdeen e o mar do Norte e rir com Jean-Luc, Tom Lochart e Duke e os outros rapazes, depois ir para... para onde? Está na hora de me casar. Merda, eu não quero casar ainda. Só tenho trinta anos e até agora consegui evitar isso. Seria um azar encontrar uma feiticeira parisiense com cara de anjo, capaz de usar os seus feitiços para destruir as minhas defesas e me fazer mudar de idéia. A vida é divertida demais, e a caçada mais ainda!

       Ele se virou e olhou para o poente. O sol, enevoado por causa da enorme poluição, estava se pondo no horizonte plano e sem graça. Eu gostaria de estar em Al Shargaz com os rapazes.

      

       AL SHARGAZ — HOSPITAL INTERNACIONAL: 18:01H. Starke estava sentado na varanda do segundo andar, também olhando o sol se pôr, mas aqui ele estava lindo, sobre um mar calmo e um céu sem nuvens, com a luminosidade obrigando-o a apertar os olhos, mesmo por trás dos óculos escuros. Ele estava usando calças de pijama e o seu peito estava envolto em ataduras e cicatrizando rapidamente e embora ainda estivesse fraco, tentava refletir e fazer planos. Havia tanto o que pensar — caso consigamos retirar os aparelhos ou não.

       No quarto, atrás dele, podia ouvir Manuela conversando numa mistura de espanhol e texano com seu pai e sua mãe lá em Lubbock. Ele já tinha falado com eles, e falado também com os seus próprios pais e os seus filhos, Billyjoe, Little Conroe e Sarita:

       — Puxa, papai, quando é que você vem para casa? Eu ganhei um cavalo novo e o colégio está ótimo e hoje está mais quente do que uma tigela de chili apimentado de Chiquita.

       Starke sorriu ligeiramente mas não conseguiu livrar-se do seu mar de preocupações. Há uma distância tão grande entre aqui e lá. Tudo é tão diferente mesmo na Inglaterra. Depois Aberdeen, e o mar do Norte? Eu não me importo de ir por um mês ou dois, mas isto não é para mim, nem para as crianças e Manuela. É óbvio que as crianças querem ficar no Texas, em casa, e Manuela também. Aconteceu muita coisa para assustá-la, coisa demais e muito de repente. E ela tem razão, mas que diabo, eu não sei para onde quero ir nem o que quero fazer. Tenho que continuar voando, é só isso que sei fazer, quero continuar voando. Onde? Não no mar do Norte nem na Nigéria, que são as regiões mais importantes de Andy agora. Talvez uma das áreas menores na América do Sul, Indonésia, Malásia ou Bornéus? Eu gostaria de continuar com ele, se pudesse, mas e as crianças, o colégio e Manuela?

       Talvez esquecer o estrangeiro e ir para casa? Não. Muito tempo fora. Muito tempo aqui.

       Seus olhos contemplaram o deserto, lá longe, para além da velha cidade. Ele estava recordando as vezes que tinha ido para o deserto à noite, às vezes com Manuela, outras vezes sozinho, indo até lá só para escutar. Escutar o quê? O silêncio, a noite, as estrelas chamando umas às outras? Nada?

       — Você escuta Deus — dissera o mulá Hussein. — Como pode um infiel fazer isso? Você escuta Deus.

       — Essas palavras são suas, mulá, não minhas.

       Homem estranho, salvou a minha vida, eu salvei a dele, quase morri por causa dele e depois fui salvo de novo, depois todos nós de Kowiss tivemos liberdade para partir — que diabo, ele sabia que estávamos deixando Kowiss para sempre, tenho certeza disso. Por que ele nos deixou partir, nós, o Grande Satã? E por que ele vivia me dizendo para ir falar com Khomeini? O imã não está certo, não está nada certo.

      O que existe em tudo isso que me atrai?

       Está lá longe, alguma coisa no deserto que existe só para mim. Uma completa paz. O absoluto. É só para mim. Não é para Manuela nem para as crianças nem para os meus pais nem para mais ninguém, só para mim... Não posso explicar isto para ninguém, muito menos para Manuela, da mesma forma como não poderia explicar o que aconteceu na mesquita em Kowiss e durante o interrogatório.

       E melhor dar o fora daqui ou estou perdido. A simplicidade do Islã parece tornar tudo tão simples e claro e melhor e no entanto...

       Eu sou Conroe Starke, texano, piloto de helicópteros, com uma mulher maravilhosa e isto deveria ser o suficiente, não deveria?

       Perturbado, ele tornou a olhar para a velha cidade, seus minaretes, e muros avermelhados pelo sol que descia no horizonte. Além da cidade estava o deserto e além do deserto, Meca. Ele sabia que aquele era o caminho para Meca porque tinha visto a equipe do hospital, médicos, enfermeiros, e outros, ajoelharem-se para rezar, virados naquela direção. Manuela entrou na varanda, distraindo-o e sentou-se ao lado dele e o trouxe parcialmente de volta à reali dade.

       — Eles mandaram lembranças e perguntaram quando voltamos para casa. Seria bom visitá-los, não acha, Conroe? — Ela o viu balançar a cabeça, distraidamente, com o pensamento longe, então olhou na direção dos olhos dele e não viu nada de especial. Apenas o sol se pondo. Droga! Ela disfarçou sua preocupação. Ele estava melhorando, mas não era o mesmo. "Não se preocupe, Manuela", tinha dito o dr. Nutt, "é provavelmente o choque de ter sido baleado, a primeira vez é sempre um tanto traumática." É isto e Dubois, Tom, Erikki, toda esta espera e preocupação e não saber, nós todos estamos na expectativa, você, eu, todo mundo, mas não sabemos bem de quê. Todos nós fomos afetados de maneiras diferentes.

       A preocupação a estava deprimindo. Para disfarçar, ela se debruçou na grade, olhando para o mar e para os barcos.

       — Enquanto você dormia, eu procurei o dr. Nutt. Ele disse que você pode sair dentro de poucos dias, até amanhã, se for muito importante, mas vai ter que ir devagar por um mês ou dois. No café, Nogger me disse que há um boato de que todos nós teremos pelo menos um mês de férias pagas, não é ótimo? Com isso e mais a licença médica, temos muito tempo para ir para casa, hein?

       — Claro. Boa idéia.

       Ela hesitou, depois se virou e olhou para ele.

       — O que o está perturbando, Conroe?

       — Não sei ao certo, querida. Estou me sentindo bem, não é o meu peito. Não sei.

       — O dr. Nutt disse que seria assim mesmo por algum tempo, querido, e Andy disse que há uma boa chance de que não haja nenhuma inspeção e que os aviões de carga vão chegar mesmo amanhã ao meio-dia, não há nada que se possa fazer, você não pode fazer mais nada... — O telefone tocou no quarto e ela foi atender, ainda falando — ...não podemos fazer mais nada do que já estamos fazendo. Se pudermos partir, nós e os nossos helicópteros, sei que Andy vai conseguir o pessoal para Kasigi e então... Alô, oh, olá, querido...

       Starke viu-a arregalar os olhos e emudecer e seu coração quase parou e então a sua explosão de alegria, gritando para ele:

       — É Andy, Conroe, ele recebeu um telefonema de Marc Dubois, ele está no Iraque num navio, ele e Fowler, fizeram uma aterrissagem forçada num petroleiro e estão sãos e salvos no Iraque... Oh, Andy, que ótimo! O quê? Oh, sim, ele está bem e eu... mas e quanto a Kasigi? ...Espere um instante — sim, mas... claro, — ela desligou e voltou para a varanda. — Nenhuma notícia de Kasigi ainda. Andy disse que estava com pressa e que tornaria a ligar. Oh, Conroe... — Agora ela estava ajoelhada ao lado dele, com os braços rodeando-lhe o pescoço, abraçando-o com cuidado, derramando lágrimas de felicidade. — Eu estava tão preocupada com Marc e com o velho Fowler, estava com tanto medo de que eles estivessem perdidos.

       — Eu também, eu também — ele podia sentir o coração dela batendo e o seu também e seu espírito ficou um pouco mais leve. Ele a abraçou com o braço bom. — Droga — murmurou, também quase sem poder falar — Vamos, Kasigi, vamos..

      

       NO QG EM AL SHARGAZ: 18:18H. Gavallan estava na janela do escritório, vendo o carro oficial de Newbury, com a bandeira da Inglaterra tremulando, atravessar o portão. O carro parou em frente ao prédio, com um motorista uniformizado e duas pessoas atrás. Ele sacudiu a cabeça e jogou um pouco d'água no rosto, secando-o depois.

       A porta se abriu. Scot entrou, com Charlie Pettikin ao seu lado Os dois estava pálidos.

       — Não se preocupem — disse Gavallan —, entrem. — Ele voltou para a janela, tentando aparentar calma e ficou lá, enxugando as mãos. O sol estava perto do horizonte. — Não precisamos ficar esperando aqui; vamos encontrá-los. — Firmemente, ele foi andando na frente, em direção ao corredor. — Que bom termos tido notícias de Marc e Fowler, não?

       — Foi ótimo — disse Scot, com a voz desanimada, apesar do esforço. -Dez em dez, não podia ser melhor, papai.

       Eles atravessaram o corredor e saíram para o saguão

       — Como vai Paula, Charlie?

       — Oh, ela está bem, Andy. — Pettikin estava espantado com o sangue frio de Gavallan e sem nenhuma vontade de estar no lugar dele. — Ela... ela partiu para Teerã há uma hora e não acho que volte antes de segunda-feira, embora ela ache que talvez possa voltar amanhã. — Maldito Turbilhão, pensou, infeliz, estragou tudo. Eu sei que um coração fraco não conquista uma mulher bonita, mas que diabo eu posso fazer? Se eles tomarem os nossos helicópteros, a S-G está falida, não tenho mais emprego, não tenho quase nenhuma reserva. Sou muito mais velho do que ela... droga! De uma certa forma, estou contente. Agora não posso mais estragar a vida dela e de qualquer maneira ela não seria louca de dizer sim. — Paula está bem, Andy.

       — Ela é uma boa moça.

       O saguão estava lotado. Eles o atravessaram e saíram do frescor do ar refrigerado para o calor do sol. Gavallan parou, estarrecido. Todo o contingente da S-G estava lá, Scragger, Vossi, Willi, Rudi, Pop Kelly, Sandor, Freddy Ayre e todos os mecânicos. Estavam todos imóveis, observando o carro que se aproximava. O carro parou na frente deles.

       Newbury saltou.

       — Olá, Andrew — ele disse, mas agora todos estavam paralisados porque era Kasigi quem estava diante deles, não o iraniano, e Kasigi estava sorrindo alegremente, enquanto Newbury dizia numa voz perplexa:

       — Realmente, eu não sei o que está acontecendo, mas o embaixador iraniano cancelou a inspeção no último minuto e o xeque também e o sr. Kasigi me telefonou, convidando-me para ir à recepção japonesa, de modo que não haverá inspeção esta noite.

       Gavallan deu um grito de alegria e todos começaram a cumprimentar Kasigi, agradecendo-lhe, falando, rindo, uns tropeçando nos outros e Kasigi disse:

       — ...e também não haverá inspeção amanhã, nem que tenhamos que raptar o embaixador... — e mais risadas e vivas e Scragger gritando:

       — Hurra para Kasigi.

       Gavallan abriu caminho até Kasigi e deu-lhe um abraço apertado, gritando no meio do tumulto:

       — Obrigado, obrigado. Você terá uma parte dos seus helicópteros dentro de três dias, o resto no fim de semana... — depois acrescentou incoerentemente. — Cristo, dê-me um segundo, Cristo, tenho que contar a Mac, Duke e aos outros... a comemoração é por minha conta... Kasigi viu-o afastar-se apressado e sorriu

      

       NO HOSPITAL: 18:32H. Tremendo, Starke desligou o telefone, exultante e voltou para a varanda.

       — Puxa, Manuela, nós conseguimos, não vai haver inspeção! O Turbilhão deu certo; Andy não sabe como Kasigi conseguiu, mas ele conseguiu e... Puxa! — Ele a abraçou e debruçou-se na amurada. — O Turbilhão deu certo, agora estamos seguros, agora vamos poder sair e agora podemos fazer planos. Puxa! Kasigi, o filho da puta, ele conseguiu! Allah-u Akbar ele acrescentou triunfantemente, sem pensar.

       O sol tocou o horizonte. Da cidade, um muezin, um só, começou a chamar. E o som encheu os seus ouvidos e o seu ser e ele escutou, esquecido de tudo, seu alívio e sua alegria se misturando com as palavras, o chamado e o infinito — e ele se afastou dela. Impotente, ela esperou, sozinha. Ali enquanto o sol se punha, ela esperou, com medo por ele, triste por ele, sentindo que o futuro estava em jogo. Ela esperou como só uma mulher sabe esperar.

       O chamado cessou. Agora estava tudo muito quieto, muito silencioso. Os olhos dele viram a velha cidade com todo o seu antigo esplendor, o deserto mais além, o infinito além do horizonte. E então ele viu as coisas como elas eram. O som de um jato decolando e de gaivotas chamando. Depois o ruído de um helicóptero em algum lugar e ele decidiu.

       — Tu — ele disse para ela em farsi — tu, eu te amo para sempre.

       — Tu, eu te amo para sempre — ela murmurou, quase chorando. Então ela o viu suspirar e soube que estavam juntos outra vez.

       — Hora de ir para casa, minha querida. — Ele tomou-a nos braços. — Hora de nós todos irmos para casa.

       — A minha casa é onde você está — ela disse, agora sem nenhum temor.

      

       NO HOTEL OÁSIS: 23:52H. Na escuridão, o telefone tocou, despertando Gavallan de um sono profundo. Ele deu um salto, acendendo a luz da mesinha-de-cabeceira.

       — Alô?

       — Alô, Andrew, aqui é Roger Newbury, desculpe ligar tão tarde, mas...

       — Oh, não faz mal, eu disse que você podia ligar até meia-noite, como foram as coisas? — Newbury tinha prometido telefonar contando o que acontecera na recepção. Normalmente Gavallan estaria acordado, mas hoje ele pedira licença para se ausentar da comemoração pouco depois das dez e adormecera imediatamente.

       — E quanto a amanhã?

       — Fico encantado em dizer que Sua Excelência Abadani aceitou o convite do xeque para passar o dia caçando no oásis Al Sal, então é provável que fique fora o dia todo. Pessoalmente eu não confio nele, Andrew, e o aconselho a retirar os seus helicópteros e o seu pessoal o mais rápida e discretamente possível, e também para fechar o escritório aqui por um mês ou dois até receber uma comunicação nossa. Está bem?

       — Sim, ótimo, obrigado. — Gavallan tornou a deitar-se sentindo-se um novo homem. — Eu já tinha planejado fechar o escritório — ele disse com um bocejo. — Todo mundo vai partir antes do pôr-do-sol. — Ele tinha percebido o nervosismo na voz de Newbury, mas atribuíra a toda aquela excitação. Abafou outro bocejo e acrescentou: — Scragger e eu seremos os últimos; estamos com reservas no vôo para Bahrain, junto com Kasigi, para visitar McIver.

       — Ótimo. Como você conseguiu dobrar Abadani eu não sei, mas nós todos tiramos o chapéu para você. Agora, ahn, eu detesto trazer más notícias junto com as boas, mas acabamos de receber um telex de Henley, de Tabriz.

       Gavallan perdeu o sono imediatamente.

       — Problemas?

       — Acho que sim. Parece estranho, mas diz o seguinte: — houve um ruído de papéis: — "Soubemos que houve uma espécie de atentado ontem à noite contra a vida de Hakim Khan e parece que o capitão Yokkonen está envolvido. Na noite passada ele fugiu para a fronteira da Turquia no seu helicóptero, levando a mulher, Azadeh, com ele, contra a vontade dela. Hakim Khan mandou expedir uma ordem de prisão contra ele por tentativa de homicídio e rapto. No momento, estão ocorrendo muitas lutas entre facções rivais em Tabriz, o que está dificultando a obtenção de notícias mais exatas. Assim que conseguirmos informações mais detalhadas, tornaremos a nos comunicar." É só isso. Espantoso, não? — Silêncio. — Andrew, você está ouvindo?

       — Sim, sim, estou. Estou só... estou só tentando me refazer do choque. Não há nenhuma chance de ter havido um engano?

       — Eu duvido. Enviei um telex urgente pedindo mais detalhes; talvez recebamos mais notícias amanhã. Sugiro que você entre em contato com o embaixador da Finlândia em Londres e o avise. O telefone da embaixada é 01-7668888. Sinto muito por tudo isso.

       Gavallan agradeceu, tonto, e desligou o telefone.

 

DOMINGO, 4 de marco

       NA ALDEIA TURCA: 10:20H. Azadeh acordou assustada. Por um momento ela não conseguiu reconhecer onde estava, então o quarto entrou em foco — pequeno, triste, com duas janelas, o colchão de palha sobre a cama dura, lençóis e cobertores grosseiros mas limpos — e se lembrou que aquele era o hotel da aldeia e que na véspera, ao anoitecer, apesar dos seus protestos e de não querer deixar Erikki, ela fora escoltada até lá pelo major e por um policial. O major ignorara suas desculpas e insistira em jantar com ela no pequeno restaurante que tinha ficado vazio assim que eles chegaram.

       — É claro que a senhora tem que comer alguma coisa para manter as forças. Sente-se, por favor. Eu vou mandar levar para o seu marido a mesma coisa que a senhora pedir. Está bem assim?

       — Sim, por favor — ela disse, também em turco, percebendo a ameaça implícita. — Eu posso pagar por isso.

       Um ligeiro sorriso aflorou-lhe aos lábios grossos.

       — Como quiser.

       — Obrigada, major. Quando eu e meu marido poderemos partir?

       — Discutirei isso com a senhora amanhã, não esta noite. — Ele fez um sinal ao policial para ficar de guarda na porta. — Agora falaremos em inglês — disse, estendendo-lhe sua cigarreira de prata.

       — Não, obrigada, eu não fumo. Quando poderei ter as minhas jóias de volta, major?

       Ele escolheu um cigarro e começou a bater com uma das pontas na cigarreira, observando-a.

       — Assim que for seguro. O meu nome é Abdul Ikail. Minha base é em Van e sou responsável por toda esta região, até a fronteira. — Ele usou o isqueiro, tragou a fumaça, sem tirar os olhos dela. — A senhora já esteve em Van?

       — Não, nunca.

       — É um lugarzinho tranqüilo. Era — ele corrigiu — antes da sua revolução, embora a fronteira tenha sido sempre problemática. — Tornou a tragar a fumaça. — Indesejáveis de ambos os lados querendo atravessar ou fugir. Contrabandistas, traficantes de drogas, comerciantes de armas, ladrões, tudo o que a senhora possa imaginar. — Ele disse isto naturalmente, pontilhando as palavras com baforadas de fumaça. O ar estava pesado na pequena sala e cheirava a comida velha, gente e fumo. Azadeh estava cheia de pressentimentos Seus dedos brincavam com a alça da bolsa.

       — A senhora já esteve em Istambul? — perguntou.

       — Sim. Uma vez. Passei uns dias lá quando era pequena. Fui com o meu pai, ele tinha negócios lá e eu fui mandada de avião para um colégio na Suíça

       Eu nunca estive na Suíça. Fui a Roma uma vez, de férias. E a Bonn, fazer um curso na polícia, e outro em Londres, mas nunca estive na Suíça. — Ele fumou por alguns instantes, pensativo, depois apagou o cigarro num cinzeiro lascado e fez um sinal ao gerente do hotel, que estava parado, servilmente, na porta, esperando para servir. A comida era primitiva mas saborosa e servida com uma humildade nervosa que a deixou ainda mais perturbada. Era óbvio que a aldeia não estava acostumada a tão augusta presença.

       — Não precisa ter medo, Lady Azadeh, a senhora não corre nenhum perigo — ele disse, como se pudesse ler-lhe os pensamentos. — Pelo contrário, estou contente pela oportunidade de conversar com a senhora, é muito raro uma pessoa da sua... da sua posição passar por aqui. — Durante todo o jantar, com paciência e educação, ele a interrogou acerca do Azerbeijão e de Hakim Khan, falando muito pouco, recusando-se a falar sobre Erikki ou sobre o que iria acontecer. — O que tiver que ser, será. Por favor, torne a contar-me a sua história.

       — Eu... eu já contei tudo, major. É a verdade, não uma história. Eu contei a verdade e meu marido também.

       — É claro — ele disse, comendo com apetite. — Por favor, conte outra vez.

       Ela contou tudo novamente, assustada, vendo o desejo em seus olhos, embora ele fosse sempre respeitoso e sério.

       — É a verdade — disse, mal tocando na comida à sua frente, sem apetite algum. — Nós não cometemos nenhum crime, meu marido simplesmente defendeu a si próprio e a mim, juro por Deus.

       — Infelizmente Deus não pode testemunhar a seu favor. Evidentemente, no seu caso, eu aceito o que a senhora diz como sendo o que acredita ser verdade. Felizmente, aqui, nós somos mais avançados, não somos fundamentalistas, existe uma separação entre o Islã e o Estado, ninguém se mete entre nós e Deus, e o nosso único fanatismo é manter a nossa maneira de viver da forma que queremos, e impedir que as crenças e leis de outros povos nos sejam impingidas. — Ele parou, escutando atentamente. Ao ir para o hotel, com a noite caindo, eles tinham ouvido tiros a distância e algumas explosões. Agora, no silêncio do restaurante, ouviram mais tiros. — Provavelmente curdos defendendo as suas casas nas montanhas. — Ele fez um ar de desprezo. — Ouvimos dizer que Khomeini está enviando o exército e os Faixas-Verdes para atacá-los.

       — Então está cometendo outro erro — ela disse — É o que o meu irmão diz.

       — Eu concordo. A minha família é curda. — Ele se levantou. — Haverá um policial do lado de fora do seu quarto esta noite. Para a sua proteção — ele disse, com o mesmo sorriso estranho que a perturbava. — Para a sua proteção. Por favor, fique no seu quarto até que eu... que eu a venha buscar ou mande chamá-la. A sua obediência favorece ao seu marido. Durma bem.

       Então ela tinha ido para o quarto e, vendo que não havia nem fechadura nem tranca na porta, tinha colocado uma cadeira prendendo a maçaneta. O quarto era frio, a água da jarra estava gelada. Ela tinha se lavado, depois rezado, acrescentando uma prece especial para Erikki, e tinha se sentado na cama.

       Com muito cuidado, ela tirou o alfinete de chapéu, de aço, de seis polegadas, que havia escondido no forro da bolsa, estudando-o por alguns instantes

       A ponta era fina como a de uma agulha, a cabeça pequena mas de tamanho suficiente para permitir que ela a segurasse no momento de golpear. Ela o enfiou num dos lados do travesseiro como Ross lhe havia ensinado:

       — Assim não há perigo para você — ele dissera com um sorriso — um inimigo não o notaria e você pode tirá-lo facilmente. Uma garota linda como você deve estar sempre armada, por precaução.

       — Oh, Johnny, mas eu nunca seria capaz de matar, nunca.

       — Você será capaz, se houver necessidade, e deve estar preparada para isto. Desde que você esteja armada, saiba como usar a arma e aceite o fato de que pode ser obrigada a matar para se proteger, nunca precisará ter medo. — Naqueles dias maravilhosos passados nas montanhas, ele tinha mostrado a ela como usá-lo.

       — Uma polegada enfiada no lugar certo é mais do que suficiente, é mortal. — Ela o havia carregado desde então, mas nunca o havia usado, nem mesmo na aldeia. A aldeia. Deixe a aldeia para a noite, não para o dia.

      Seus dedos tocaram a cabeça do alfinete. Talvez esta noite, ela pensou. Insha'Allah! E quanto a Erikki? Insha'Allah! Então ela se lembrou de Erikki dizendo: "Insha'Allah é ótimo, Azadeh, e uma boa desculpa, mas Deus, qualquer que seja o seu nome, precisa de uma ajuda terrena de vez em quando".

       Sim, eu juro que estou preparada, Erikki. Amanhã é outro dia e eu vou ajudar meu querido. Vou dar um jeito de tirar você desta encrenca.

       Mais confiante, ela soprou a vela e enfiou-se debaixo das cobertas, ainda vestida com a roupa de esqui. O luar entrava pelas janelas. Em pouco tempo, ela ficou aquecida. O calor, o cansaço, a juventude fizeram com que ela caísse num sono sem sonhos.

       Durante a noite, ela acordou de repente. Alguém estava girando silenciosamente a maçaneta. Ela segurou o estilete, vigiando a porta. Esta se moveu ligeiramente mas não abriu, presa pela cadeira que rangeu sob a tensão. Logo em seguida a maçaneta voltou à posição anterior. De novo o silêncio. Nem passos nem barulho de respiração. E a maçaneta não tornou a se mexer. Ela sorriu consigo mesma. Johnny também lhe havia ensinado como colocar a cadeira na posição certa. Ah, meu querido, eu espero que você encontre a felicidade que procura, ela pensou e tornou a dormir, de frente para a porta.

       Agora ela estava acordada e descansada e sabia que estava muito mais forte do que na véspera, mais preparada para a batalha que iria começar em breve. Sim, por Deus, disse a si mesma, imaginando o que a teria acordado. Ruídos de trânsito e de vendedores de rua. Não, não foi isto. Então ouviu uma batida na porta.

       — Quem é, por favor?

       — Major Ikail.

       — Um momento, por favor. — Ela calçou as botas, endireitou o suéter e o cabelo. Depois retirou a cadeira. — Bom dia, major.

       Ele olhou para a cadeira, achando graça.

       — A senhora foi esperta em prender a porta. Não faça isso de novo sem permissão. — Então ele a examinou. — A senhora parece descansada. Ótimo. Já pedi café e pão fresco. O que mais a senhora gostaria?

       — Apenas de poder partir junto com meu marido.

       — Sim? — Ele entrou no quarto, fechou a porta e sentou-se, de costas para o sol que entrava pelas janelas. — Com a sua cooperação, isto poderia ser arranjado.

       Quando ele entrou no quarto, ela recuou disfarçadamente e se sentou na beira da cama, com a mão perto do travesseiro.

       — Que tipo de cooperação, major?

       — Seria prudente não haver um confronto — ele disse estranhamente. — Se a senhora cooperar... e voltar para Tabriz por sua livre vontade esta noite, o seu marido permanecerá sob custódia esta noite e será mandado para Istambul amanhã

       — Para que lugar em Istambul?

       — Primeiro para a prisão, por medida de segurança, onde o embaixador da Finlândia poderá vê-lo e, se Deus assim o quiser, em seguida será libertado.

       — Por que ele deveria ir para a prisão, ele não fez nad...

       — Há uma recompensa por ele. Vivo ou morto. — O major sorriu. — Ele precisa de proteção, há dezenas de iranianos aqui na aldeia e nos arredores, todos à beira da inanição. A senhora também não precisa de proteção?

       Não seria uma vítima perfeita para um rapto?, o khan não pagaria um enorme resgate pela sua única irmã? Não?

       — Eu voltarei de boa vontade se isto ajudar o meu marido — ela disse imediatamente. — Mas se eu voltar, que garantia vou ter de que o meu marido será protegido e enviado Dará Istambul, major?

       — Nenhuma. — Ele ficou em pé diante dela. — A alternativa, se a senhora não cooperar espontaneamente, é enviá-la hoje para a fronteira e ele. ele terá que correr os riscos.

       Ela não se levantou e nem afastou a mão do travesseiro. Eu faria isso de boa vontade, mas assim que partir Erikki estará indefeso. Cooperar? Será que isto significa ir para a cama com este homem por minha livre e espontânea vontade?

       — Como é que eu devo cooperar? O que é que o senhor quer que eu faça? — Ela perguntou, furiosa por sentir que sua voz estava menos segura do que antes.

       Ele riu e disse sarcasticamente:

       — O que todas as mulheres têm dificuldade de fazer: obedecer, sem discussão, e parar de bancar a esperta. — Ele virou as costas. — A senhora vai ficar aqui no hotel. Eu voltarei mais tarde. Espero que então a senhora esteja preparada... para dar uma resposta correta. — Ele saiu e fechou a porta.

       Se ele tentar forçar-me, eu o matarei, ela pensou. Não posso ir para a cama com ele para comprá-lo, meu marido jamais me perdoaria e nem eu perdoaria a mim mesma, pois nós dois sabemos que isso não garantiria nem a liberdade dele nem a minha e mesmo que o fizesse, ele não poderia viver com isso e iria procurar vingar-se. E nem eu poderia viver com isso.

       Ela se levantou, foi até a janela e olhou para a aldeia movimentada, para as montanhas cobertas de neve que a cercavam, com a fronteira logo adiante.

       — A única chance que Erikki tem é se eu voltar — ela murmurou. — Mas não posso voltar, a não ser com a aprovação do major. E mesmo assim...

      

       NO POSTO POLICIAL: 11:58H. Com um puxão das mãos possantes de Erikki, a parte de baixo da barra de ferro central da janela soltou-se com uma chuva de cimento. Rapidamente, ele tornou a enfiá-la no buraco e foi olhar pelas grades para o corredor. Não apareceu nenhum carcereiro. Rapidamente, ele juntou os pequenos pedaços de cimento e os arrumou em volta da base para disfarçar. Ele tinha passado a maior parte da noite trabalhando naquela barra, com o mesmo cuidado de um cachorro roendo um osso. Agora ele tinha uma arma e uma alavanca para entortar as outras barras.

       Isto vai me tomar uma meia hora, não mais, pensou, e sentou-se na cama, satisfeito. Depois de trazer a comida na noite anterior, os policiais o haviam deixado sozinho, confiando na segurança da cela. Esta manhã, eles lhe deram um café horroroso e um pedaço de pão duro e tinham ficado olhando para ele, sem entender quando ele pediu para ver o major e a esposa. Ele não sabia como era 'major' em turco e nem o nome do oficial, mas quando apontou para a lapela, imitando o posto do homem, eles tinham entendido e simplesmente erguido os ombros, falando várias coisas em turco que ele não tinha entendido e depois tinham tornado a sair. O sargento não tornou a aparecer.

       Nós sabemos o que fazer, ele pensou, Azadeh e eu, nós dois estamos em perigo, cada um de nós fará o melhor que puder. Mas se tocarem nela ou a machucarem, nenhum deus poderá ajudar aquele que a tiver tocado enquanto eu viver. Eu juro.

       A porta do final do corredor foi aberta. O major aproximou-se.

       — Bom dia — disse, franzindo o nariz com o fedor.

       — Bom dia, major. Onde está minha mulher e quando é que o senhor vai nos deixar partir?

       — A sua mulher está na aldeia, em segurança e descansada. Acabei de vê-la. — O major olhou-o, pensativo, notou as mãos dele cheias de poeira, estudou cuidadosamente a fechadura da cela, as barras da janela, o chão, o teto...

       — A segurança dela e o tratamento que vai receber dependem do senhor. Está entendendo?

       — Sim, sim, estou. E como o policial mais graduado daqui, eu o considero responsável por ela.

       — Ótimo — disse sorrindo sarcasticamente, e então o sorriso desapareceu.

       — Acho melhor evitar um confronto. Se o senhor cooperar, ficará aqui esta noite e amanhã eu o enviarei sob escolta para Istambul, onde o seu embaixador poderá vê-lo se quiser, para ser julgado pelos crimes de que é acusado ou para ser extraditado.

       Erikki tirou da cabeça os seus próprios problemas.

       — Eu trouxe a minha esposa para cá contra a vontade dela. Ela não fez nada de errado, devia voltar para casa. Ela pode ser levada de volta?

       O major observou-o.

       — Isto depende da sua cooperação.

       — Vou pedir a ela para voltar. Vou insistir, se é isto o que o senhor quer dizer.

       — Ela poderia ser mandada de volta — o major disse, experimentando-o.

       — Oh, sim. Mas é claro que é possível que no caminho até a fronteira ou ao sair do hotel ela seja 'raptada' novamente, desta vez por bandidos, bandidos iranianos, muito perigosos, e levada para as montanhas para ser devolvida daqui a um mês ou dois em troca de um resgate substancial a ser pago pelo khan Erikki ficou pálido.

       — O que o senhor quer que eu faça?

       — A estrada de ferro não fica muito longe daqui. Esta noite o senhor poderia ser retirado daqui em segredo e levado para Istambul. As acusações contra o senhor poderiam ser anuladas. O senhor poderia ganhar um bom emprego, voando, treinando os nossos pilotos por dois anos. Em troca, o senhor concordaria em se tornar um agente secreto, fornecendo-nos informações sobre o Azerbeijão, especialmente sobre o soviético que mencionou, Mzytryk, informações sobre Hakim Khan, onde ele vive e como, como entrar no palácio, e qualquer outra coisa que quisermos saber.

       — E quanto à minha esposa?

       — Ela fica em Van, por livre e espontânea vontade, como refém, para garantir que o senhor se comporte... por um mês ou dois. Depois ela pode ir ao seu encontro, onde quer que o senhor esteja.

       — Se ela for levada de volta para Hakim Khan hoje, em segurança, ilesa, e se eu tiver provas de que ela está em segurança, farei o que o senhor quer.

       — Ou o senhor concorda ou não — o major disse impacientemente. — Não estou aqui para negociar com o senhor!

       — Por favor, ela não tem nada a ver com os meus crimes. Por favor, deixe-a partir. Por favor.

       — O senhor acha que somos idiotas? O senhor concorda ou não?

       — Sim! Mas primeiro quero vê-la em segurança. Primeiro!

       — Talvez primeiro o senhor queira vê-la ser violentada. Primeiro! Erikki atirou-se para cima dele por entre as grades e a porta da cela foi sacudida pelo impacto. Mas o major estava fora de alcance e riu das mãos enormes que tentavam agarrá-lo sem conseguir. Ele tinha calculado a distância com precisão, era experiente demais para se deixar apanhar desprevenido, um investigador experiente demais para ignorar como provocar, ameaçar e experimentar, como debochar e exagerar para tirar proveito do próprio terror do prisioneiro, como torcer os fatos para penetrar a cortina de mentiras e meias-verdades até chegar à verdade.

       Os seus superiores tinham deixado a seu critério o que fazer com os prisioneiros. Agora ele tinha decidido. Sem se apressar, ele tirou o revólver e apontou para o rosto de Erikki. Este não recuou mas continuou agarrado nas grades com as duas mãos, ofegante.

       — Ótimo — o major disse calmamente, guardando o revólver. — O senhor foi avisado de que o seu comportamento é que determinaria a forma como ela seria tratada. Ele se afastou. Quando Erikki ficou sozinho, tentou arrancar a porta da cela Esta rangeu mas não se soltou.

      

       NO AEROPORTO INTERNACIONAL DE AL SHARGAZ: 16:39H. Sentado na direção do seu carro, Gavallan observou as portas do 747 de carga fecharem-se sobre a metade dos 212, caixotes de peças e rotores. Pilotos e mecânicos carregavam febrilmente o segundo jumbo, faltando carregar apenas uma carcaça de 212, uma dúzia de caixotes e uma pilha de malas.

       — Estamos dentro do horário, Andy. — Rudi disse, fingindo não notar a palidez do amigo. — Meia hora.

       — Ótimo. — Gavallan entregou-lhe alguns papéis. — Aqui estão as licenças para os mecânicos partirem com eles

       — Nenhum piloto?

       — Não. Todos os pilotos têm reservas no vôo da BA. Mas certifique-se de que estejam na Imigração às seis e dez; a BA não pode atrasar o vôo. Certifique-se de que todos estejam lá, Rudi. Eles têm que partir neste vôo. E,u dei minha palavra.

       — Não se preocupe. E quanto a Duke e Manuela?

       — Eles já partiram. O doutor Nutt foi com eles. Eué só isso — Ga vallan não estava conseguindo raciocinar direito.

       — Você e Scrag ainda estão no vôo de seis e trinta e cinco para Bahrain?

       — Sim. Jean-Luc vai nos esperar. Estamos levando Kasigi para organizar a sua operação e se preparar para receber os helicópteros da Irã-Toda. Eu vou ao embarque de vocês.

       — Vejo-o em Aberdeen. — Rudi apertou-lhe a mão com firmeza e se afastou rapidamente, Gavallan engrenou, arranhou a marcha e praguejou, depois voltou para o escritório.

       — Alguma notícia, Scrag?

       — Ainda não, meu velho. Kasigi ligou. Eu disse a ele que está tudo certo, dei-lhe os números de registro dos helicópteros e os nomes dos pilotos e mecânicos. Ele disse que tem reservas no nosso vôo para o Kuwait esta noite, depois pode pegar uma carona até Abadan e depois para a Irã-Toda. — Scragger estava tão perturbado quanto os outros com a cara de Gavallan — Andy, você cobriu todas as possibilidades.

       — Será? Eu duvido, Scrag. Não consegui retirar Erikki e Azadeh. Durante toda noite, até bem tarde no horário de Londres, Gavallan tinha entrado em contato com todas as pessoas importantes que tinha conseguido lembrar. O embaixador da Finlândia tinha ficado chocado:

       — Mas não é possível! Um compatriota nosso não poderia estar envolvido numa coisa dessas. Impossível! Onde o senhor vai estar amanhã a esta hora? — Gavallan tinha dito a ele e tinha visto o dia amanhecer. Não havia nenhuma maneira de entrar em contato com Hakim Khan, a não ser através de Newbury, e Newbury estava tratando disto.

       — É uma droga, Scrag, mas é verdade. — Ele agarrou o telefone e tornou a largá-lo. — Vocês todos já fecharam as contas no hotel?

       — Sim, Kasigi vai nos encontrar no aeroporto, no portão de embarque. Mandei a nossa bagagem para o terminal e despachei tudo. Podemos ficar aqui até o último momento.

       Gavallan ficou olhando para o aeroporto. O movimento era normal.

       — Eu não sei o que fazer, Scrag. Não sei mais o que fazer

      

       NO POSTO POLICIAL DA ALDEIA TURCA: 17:18H. — ...como o senhor quiser, effendi. O senhor vai tomar as providências necessárias? — O major disse respeitosamente no telefone. Ele estava sentado na única escrivaninha do pequeno escritório, o sargento em pé ali perto, a faca e o kookri de Erikki em cima da escrivaninha. — ...Ótimo. Sim... sim, eu concordo. Salaam. — Ele desligou, acendeu um cigarro e se levantou. — Eu estarei no hotel.

       — Sim, effendi. — Os olhos do sargento brilharam, divertidos, mas ele disfarçou cuidadosamente. Observou o major endireitar a jaqueta e o cabelo e colocar o fez, invejando-lhe o posto e o poder. O telefone tocou.

       — Sim, é da polícia. Oh, alô, sargento. — Ele ouviu, cada vez mais espantado. — Mas... sim, muito bem. — Desligou, perplexo. — Era... era o sargento Urbil, da fronteira, major. Há um caminhão da Força Aérea Iraniana com Faixas Verdes e um mulá a caminho para levar o prisioneiro e a moça de volta para o Irã.

       O major explodiu.

       — Em nome de Deus, quem foi que permitiu que inimigos passassem pela fronteira sem autorização? Há ordens expressas a respeito de mulás e revolucionários.

       — Eu não sei, effendi—disse o sargento, assustado com o acesso de raiva do major. — Urbil disse apenas que eles tinham papéis oficiais e que insistiram. Todo mundo sabe do helicóptero iraniano e ele os deixou passar.

       — Eles estão armados?

       — Ele não disse, effendi.

       — Pegue os seus homens, todos eles, armados de metralhadoras

       — Mas... e quanto ao prisioneiro?

       — Esqueça-o! — O major disse e saiu xingando.

      

       NOS ARREDORES DA ALDEIA: 17:32H. O caminhão da Força Aérea Iraniana era um veículo de tração nas quatro rodas, parte tanque e parte carroceria, e entrou na estrada lateral que era pouco mais que uma trilha na neve, trocou de marcha e se dirigiu para o 212. O sentinela que estava perto foi ao encontro deles.

       Meia dúzia de jovens armados, usando braçadeiras verdes, saltaram, seguidos de três oficiais uniformizados da Força Aérea e de um mulá. O mulá pendurou o seu Kalashnikov no ombro.

       — Salaam. Estamos aqui para tomar posse da nossa propriedade em nome do imã e do povo — o mulá disse, cheio de importância. — Onde estão o raptor e a mulher?

       — Eu... eu não sei de nada. — O policial estava assustado. Suas ordens eram claras: montar guarda e manter todo mundo a distância até ordem em contrário. — É melhor irem primeiro ao posto policial para se informarem. — Ele viu um dos aviadores abrir a porta da cabine de comando e olhar para dentro, enquanto os outros dois desenrolavam as mangueiras para reabastecei o helicóptero. — Ei, vocês três, ninguém pode se aproximar do helicóptero sem permissão!

       O mulá ficou na frente dele.

       — Aqui está a nossa permissão! — Ele sacudiu os papéis na cai a ao poli ciai e isto o abalou ainda mais, pois não sabia ler.

       — É melhor irem primeiro ao posto policial — ele gaguejou, depois, com imenso alívio, viu o carro da polícia se aproximando, vindo da aldeia. O carro derrapou na neve, deslizou alguns metros e parou. O major, o sargento e dois policiais saltaram, com as armas na mão. Cercado pelos seus Faixas Verdes, o mulá aproximou-se deles, sem medo.

       — Quem é você? — O major perguntou asperamente.

       — Mulá Ali Miandiry do komiteh de Khoi. Nós viemos buscar a nossa propriedade, o raptor e a mulher, em nome do imã e do povo.

       — Mulher? Você se refere a Sua Alteza, a irmã de Hakim Khan?

       — Sim. Ela

       — Imã? Que imã?

       — O imã Khomeini, que a paz esteja com ele

       — Ah, o aiatolá Khomeini — o major disse, ofendido pelo título. — Que 'povo'?

       O mulá estendeu-lhe os papéis com a mesma agressividade

       — O povo do Irã. Aqui está a nossa autorização.

       O major apanhou os papéis e leu-os rapidamente. Havia dois, escritos em farsi. O sargento e seus dois homens haviam-se espalhado, cercando o caminhão, com as metralhadoras na mão. O mulá e os Faixas Verdes olharam desdenhosamente para eles.

       — Por que eles não estão escritos na forma correta, legal? — O major perguntou. — Onde está o carimbo da polícia e a assinatura do chefe de polícia de Khoi?

       — Nós não precisamos disso. Estão assinados pelo komiteh.

       — Que komiteh! Eu não sei de nada a respeito de komitehs.

       — O Komiteh Revoluncionario de Khoi tem autoridade sobre esta área e sobre a polícia.

       — Esta área? Esta área é a Turquia.

       — Eu me refiro à área próxima à fronteira.

       — Com que autoridade? Onde está a sua autoridade? Mostre-me Os rapazes ficaram irritados.

       — O mulá já mostrou isso — um deles disse agressivamente. — O komiteh assinou o papel.

       — Quem o assinou? Você?

       — Fui eu — disse o mulá. — É legal. Perfeitamente legal. O komiteh é a autoridade. — Viu o pessoal da Força Aérea olhando para ele. — O que vocês estão esperando? Reabasteçam o helicóptero!

       Antes que o major pudesse dizer alguma coisa, um deles falou respeitosamente:

       — Desculpe-me, Excelência, o painel está todo quebrado, alguns dos instrumentos não estão funcionando. Não podemos voar com ele até que tenhamos feito uma revisão. Seria mais seguro..

       — O infiel pilotou de Tabriz até aqui, viajando de dia e de noite, pousou em segurança, então por que vocês não podem pilotá-lo de dia?

       — É só que seria mais seguro fazer uma revisão antes de levantar vôo, Excelência.

       — Mais seguro? Por que mais seguro? — Um dos Faixas Verdes perguntou asperamente, aproximando-se dele — Nós estamos nas mãos de Deus, fazendo o trabalho de Deus. Você quer atrasar o trabalho de Deus e deixar o helicóptero aqui?

       — É claro que não, é cl...

       — Então obedeça ao nosso mulá e reabasteça-o! Agora!

       — Sim, sim, é claro — disse o piloto, humildemente. — Como quiser.

       — Rapidamente, os três obedeceram. O major ficou chocado ao ver que o piloto, um capitão, deixava-se mandar tão facilmente pelo jovem arruaceiro que agora olhava para ele desafiadoramente.

       — O komiteh tem jurisdição sobre a polícia, aga — o mulá estava dizendo.

       — A polícia serviu ao Satã xá e é suspeita. Onde está o raptor e a... a irmã do khan?

       — Que autoridade você tem para atravessar a fronteira e fazer exigências? — O major estava furioso.

       — Em nome de Deus e do imã Khomeini, isto é autoridade suficiente! — O mulá apontou para os papéis. Um dos rapazes empunhou a arma.

       — Não faça isso — o major avisou. — Se você disparar um único tiro no nosso solo, as nossa forças invadirão a fronteira e queimarão tudo o que houver daqui a Tabriz!

       — Se for a vontade de Deus! — O mulá encarou-o, com seus olhos escuros e cheios de determinação, desprezando o major e aquele regime decadente que ele e seu uniforme representavam para ele. Guerra agora ou mais tarde era a mesma coisa para ele, ele estava nas mãos de Deus e fazendo o trabalho de Deus e a Palavra do imã os levaria à vitória sobre todas as fronteiras. Mas agora não era hora de começar uma guerra, havia muito o que fazer em Khoi, esquerdistas para derrotar, revoltas para sufocar, os inimigos do Irã para destruir e, para isso, nessas montanhas, cada helicóptero era inestimável.

       — Eu... peço permissão para tomar posse da nossa propriedade — prosseguiu mostrando-se mais razoável. Ele apontou para as letras. — Este registro é nosso, isto prova que ele nos pertence. Foi roubado do Irã. O senhor deve saber que ele não tinha permissão para sair do Irã, portanto, legalmente, ainda é nosso. A ordem de prisão — ele apontou para os papéis na mão do major — a ordem de prisão é legal, o piloto raptou a mulher, então nós tomaremos posse deles também. Por favor.

       O major estava numa posição insustentável. Ele não podia de forma alguma entregar o finlandês e a mulher para um bando de foras-da-lei por causa de um pedaço de papel ilegal, isto seria uma grave negligência e custar-lhe-ia a cabeça. Se o mulá insistisse, ele seria obrigado a resistir e a defender o posto policial mas, obviamente, não tinha homens suficientes para isso e fatalmente cairia no confronto armado. Ele também estava convencido de que o mulá e os Faixas Verdes estavam preparados para morrer ali mesmo, o que não era o seu caso.

       Então, resolveu arriscar:

       — O raptor e Lady Azadeh foram levados para Van esta manhã. Para extraditá-los, vocês terão que se dirigir ao QG do Exército, não a mim. A... a importância da irmã do khan fez com que o Exército tomasse conta deles.

       O mulá ficou pensativo. Um dos Faixas Verdes disse grosseiramente:

       — Como vamos saber que isto não é mentira? - O major avançou para ele, o rapaz recuou um passo, os Faixas Verdes apontaram as armas de trás do caminhão, os pilotos, desarmados, atiraram-se no chão, apavorados e o major levou a mão ao revólver.

       — Parem! — O mulá exclamou. Foi imediatamente obedecido, até mesmo pelo major, que ficou furioso consigo mesmo por ter permitido que o orgulho e que os seus reflexos sobrepujassem a sua autodisciplina. O mulá pensou por um momento, considerando as possibilidades. Então disse: — Nós vamos enviar uma solicitação a Van. Sim, vamos fazer isso. Mas não hoje. Hoje nós vamos apanhar o que nos pertence e partir. — E ficou lá, com os pés ligeiramente afastados, o rifle pendurado no ombro, extremamente confiante.

       O major fez força para disfarçar o alívio. O helicóptero não tinha nenhum valor nem para ele nem para os seus superiores e era um enorme embaraço.

       — Eu concordo que este registro seja iraniano — disse secamente. — Quanto a ser propriedade de vocês, eu não sei. Se você assinar um recibo, deixando em aberto a questão da propriedade, pode levá-lo e partir.

       — Eu assinarei um recibo pelo nosso helicóptero.

       Nas costas do mandado de prisão, o major escreveu um texto que o satisfazia e que talvez satisfizesse ao mulá. Este se virou e gritou para os aviadores que, apressadamente, começaram a enrolar as mangueiras, e o piloto ficou em pé ao lado da cabine, tirando a neve da roupa.

       — Você está pronto, piloto?

       — Agora mesmo, Excelência.

       — Aqui está — disse o major, estendendo o papel para o mulá. Com mal disfarçado desprezo, este assinou sem ler.

      — Você está pronto agora, piloto? — perguntou.

       — Sim, Excelência. — O jovem piloto olhou para o major e o major viu ou achou que viu a infelicidade nos olhos dele e um pedido mudo por um asilo impossível de ser concedido. — posso ligar os motores?

       — Ligue — o mulá disse rapidamente — é claro. — Em segundos, os motores pegaram e os rotores começaram a ganhar velocidade. — Ali e Abrim, vocês vão voltar para a base no caminhão.

       Obedientemente, os dois rapazes entraram no caminhão junto com o motorista da Força Aérea. O mulá fez sinal para eles partirem e para os outros entrarem no helicóptero. Os rotores estavam girando velozmente e ele esperou até que todo mundo estivesse instalado na cabine, depois empunhou a arma, sentou-se ao lado do piloto e fechou a porta.

       O 212 começou a se afastar. Zangado, o sargento apontou a metralhadora.

       — Eu posso acabar com aqueles malditos bastardos, major.

       — Sim, sim, nós poderíamos fazer isso — o major pegou a cigarreira. — Mas vamos deixar para Deus. Talvez Deus faça isso para nós. — Ele acendeu o isqueiro com as mãos trêmulas, tragou a fumaça e observou o caminhão e o helicóptero se afastarem. — Aqueles cães terão que aprender boas maneiras e levar uma lição. — Ele foi até o carro e entrou. — Deixem-me no hotel.

      

       NO HOTEL: Azadeh estava debruçada na janela, examinando o céu. Ela tinha ouvido o 212 decolar, enchendo-se de esperança de que Erikki tivesse conseguido escapar.

       — Oh, Deus permita que seja verdade..

       Os aldeões também estavam olhando para o céu e agora ela também viu o helicóptero voando em direção à fronteira. Suas entranhas se reviraram. Será que ele trocou a liberdade dele pela minha? Oh, Erikki...

       Então ela viu o carro da polícia entrar na praça e parar na frente do hotel. O major saltou, endireitando o uniforme. Seu rosto perdeu a cor. Resolutamente, ela fechou a janela e se sentou na cadeira, de frente para a porta, perto do travesseiro. Esperando. Esperando. Novos passos. A porta imediatamente se abriu.

       — Siga-me — ele disse. — Por favor. Por um momento, ela não entendeu.

       — O quê?

       — Siga-me, por favor.

       — Por quê? — Ela perguntou, desconfiada, suspeitando de uma armadilha e não querendo deixar a segurança do estilete escondido. — O que está acontecendo? O meu marido está pilotando o helicóptero? Ele está voltando? O senhor o mandou de volta? — Ela perdeu a coragem, com medo que Erikki tivesse se entregado em troca da segurança dela. — É ele que está pilotando?

       — Não, o seu marido está na delegacia. Os iranianos vieram buscar o helicóptero e também vocês dois. — Agora que a crise tinha passado, o major estava se sentindo muito bem. — O helicóptero tinha registro iraniano e não tinha autorização para sair do Irã, portanto eles tinham direito a ele. Agora siga-me.

       — Para onde, por favor?

       — Eu achei que a senhora gostaria de ver o seu marido. — O major estava se divertindo em olhar para ela, se divertindo com o perigo, imaginando onde estaria escondida a arma. Essas mulheres têm sempre uma arma ou algum tipo de veneno, alguma espécie de morte espreitando pelo estuprador desavisado. É fácil escapar se você estiver preparado, se vigiar-lhes as mãos e não dormir. — Bem?

       — Há... há iranianos na delegacia?

       — Não. Isto aqui é a Turquia, não o Irã, não há nenhum estrangeiro esperando pela senhora. Vamos, não precisa ter medo.

       — Eu... eu desço logo. Imediatamente.

       — Sim, imediatamente. A senhora não precisa de bolsa, só sua jaqueta. Ande logo antes que eu mude de idéia. — Ele viu o lampejo de ódio nos olhos dela e se divertiu mais ainda. Mas desta vez ela obedeceu, com ódio, vestiu a jaqueta e desceu, odiando a sua impotência. Atravessou a praça ao lado dele, com vários olhos seguindo-os. Entrou na delegacia e foi levada para a mesma sala da véspera.

       — Por favor, espere aqui.

       Então ele fechou a porta e entrou no escritório. O sargento estendeu-lhe o telefone.

       — É o capitão Tanazak, o oficial de serviço na fronteira, major.

       — Capitão? Major Ikail. A fronteira está fechada para todos os mulás e Faixas Verdes até ordem em contrário. Prenda o sargento que deixou alguns deles passarem há duas horas e mande-o para Van. Há um caminhão iraniano voltando. Detenha-o por vinte horas, Dem como os homens que estão lá dentro. Quanto a você, está sujeito à corte marcial por ter deixado de cumprir instruções sobre homens armados! — Ele desligou e olhou para o relógio. — O carro está pronto, sargento?

       — Sim, effendi.

       — Ótimo. — O major saiu e foi até a cela, seguido pelo sargento. Erikki não se levantou. Só os seus olhos se mexeram. — Agora, sr. piloto, se estiver preparado para ficar calmo, controlado e não mais estúpido, vou trazer a sua mulher para vê-lo.

       A voz de Erikki estava rouca.

       — Se algum de vocês tocar nela, eu juro que os matarei.

       — Eu concordo que deve ser difícil ter uma esposa assim. É melhor ter uma feia, a menos que ela seja mantida num purdah. Agora, o senhor quer vê-la ou não?

       — O que tenho que fazer? Irritado, o major disse:

       — Ficar calmo e controlado e não ser mais estúpido. — Para o sargento, ele disse em turco: — Vá buscá-la.

       Erikki estava esperando por algum truque. Então ele a viu no final do corredor, inteira, e quase chorou de alívio, e ela também.

       — Oh, Erikki...

       — Vocês dois, ouçam — o major disse secamente. — Muito embora vocês dois tenha-nos causado um bocado de inconvenientes, eu decidi que ambos estão dizendo a verdade, então serão mandados imediatamente, sob escolta, para Istambul, discretamente, e entregues ao seu embaixador, discretamente, para serem expulsos, discretamente.

       Eles ficaram olhando para ele, boquiabertos.

       — Nós vamos ser libertados? — ela disse, segurando-se nas grades.

       — Imediatamente. Nós contamos com a discrição de vocês, e isto faz parte do acordo. Vocês terão de concordar formalmente, por escrito. Discrição. Isto significa que não vão dar nenhuma informação, nem em público nem em particular, sobre a fuga de vocês. Vocês concordam?

       — Oh, sim, sim, é claro — disse Azadeh. — Mas não há, não há nenhum truque?

       — Não.

       — Mas... mas por quê? Por que depois... por que o senhor nos está deixando ir? — Erikki gaguejou, ainda sem acreditar.

       — Porque eu testei vocês dois e vocês passaram no teste, vocês não cometeram nenhum crime dentro do que nós consideramos como crime, os seus juramentos são entre vocês e Deus e não estão sujeitos a nenhum tribunal e, felizmente para vocês, o mandado de prisão era ilegal e portanto inaceitável. Komiteh! — ele murmurou aborrecido, então notou o modo como eles estavam olhando um para o outro. Por um momento ele ficou enlevado e com inveja.

       Curioso que Hakim Khan tenha permitido que um komiteh expedisse o mandado, não a polícia, o que teria tornado a extradição legal. Ele fez um sinal para o sargento.

       — Deixe-o sair. Eu vou esperar pelos dois no escritório. Não se esqueçam que eu ainda tenho algumas jóias para devolver-lhes. E as duas facas — ele se afastou.

       A cela foi aberta ruidosamente. O sargento hesitou e depois saiu. Nem Erikki nem Azadeh o viram sair e nem notaram a sujeira da cela, só tinham olhos um para o outro, ela do lado de fora, ainda segurando nas grades, ele do lado de dentro, segurando nas grades da porta. Eles não se moveram, apenas sorriram.

       — Insha'Allah? — ela perguntou.

       — Por que não? — E então, ainda desorientado por terem sido soltos por um homem honesto a quem Erikki teria matado como a essência da maldade há um instante atrás, Erikki se lembrou do que o major tinha dito sobre o purdah, e o quanto ela era atraente. Apesar do seu desejo de não estragar o milagre do que havia acontecido, ele exclamou:

       — Azadeh, eu gostaria de deixar todo o mal aqui. Seria possível? E quanto a John Ross?

       O sorriso dela não se alterou e ela sabia que eles estavam à beira do abismo. Com toda a confiança, ela pulou para dentro dele, satisfeita pela oportunidade.

       — Há muito tempo, quando começamos, eu disse a você que o havia conhecido quando era muito jovem — ela disse, com uma voz terna, disfarçando a sua ansiedade. — Na aldeia e na base ele salvou a minha vida. Quando eu tornar a vê-lo, se isto acontecer, eu sorrirei para ele e ficarei feliz. Peço a você para fazer o mesmo. O passado é o passado e deve continuar a ser passado.

       Aceite isto, Erikki, agora e para sempre, ela pensou, ou o nosso casamento terminará rapidamente, não por minha vontade, mas porque você irá se castrar, irá tornar a sua vida intolerável e não vai me querer perto de você. Então eu voltarei para Tabriz e começarei uma outra vida, é triste mas é verdade, e foi isto o que decidi fazer. Eu não vou lembrar a você a promessa que me fez antes de nos casarmos, não quero humilhá-lo, mas como é vergonhoso da sua parte esquecê-la. Eu só o perdôo porque o amo. Oh, Deus, os homens são tão estranhos, tão difíceis de entender, por favor, faça-o lembrar-se do seu juramento imediatamente.

      — Erikki — ela murmurou — deixe o passado em paz. Por favor. — Com os olhos, ela implorou como só uma mulher pode implorar.

       Mas ele evitou-lhe o olhar, devastado pela sua própria estupidez e ciúme. Azadeh tem razão, ele estava gritando para si mesmo. Isto é passado. Azadeh me contou honestamente sobre ele e eu prometi livremente que poderia viver com isso e ele realmente salvou-lhe a vida. Ela tem razão, mas mesmo assim eu tenho certeza de que ela o ama.

       Atormentado, ele olhou dentro dos olhos dela, uma porta fechou-se no seu cérebro, ele trancou-a e jogou fora a chave. A velha ternura invadiu-o, purificando-o.

       — Você tem razão e eu concordo! Você tem razão! Eu te amo, e Finlândia para sempre! — Ele a ergueu nos braços e beijou-a e ela também o beijou, depois abraçou-o enquanto, mais feliz do que nunca, ele a carregou pelo corredor. — Será que eles têm sauna em Istambul? Você acha que nos deixarão dar um telefonema, só um, você acha...

       Mas ela não estava ouvindo. Estava feliz.

      

       BAHRAIN — O HOSPITAL INTERNACIONAL: 18:03H. O telefone tocou no quarto de Mac e Genny despertou do seu agradável devaneio na varanda, enquanto Mac cochilava numa poltrona ao lado dela, na sombra. Ela se levantou sem fazer barulho para não acordá-lo e foi atender.

       — Quarto do capitão McIver — ela disse baixinho.

       — Oh, sinto muito incomodá-la, poderia falar com o capitão McIver? Aqui é o assistente do sr. Newbury em Al Shargaz.

       — Sinto muito, ele está dormindo, aqui é a sra. McIver, o senhor pode deixar o recado?

       A voz hesitou.

       — Talvez a senhora possa pedir a ele para ligar para mim. Bertram Jones.

       — Se for importante, é melhor falar comigo. Outra vez a voz hesitou. Depois:

       — Muito bem, obrigado. Há um telex do nosso QG em Teerã para ele. Diz: "Por favor, informe ao capitão McIver, diretor executivo da CHI, que um dos seus pilotos, Thomas Lochart, e sua mulher foram mortos acidentalmente durante uma manifestação." Sinto muito pelas más notícias, sra. McIver.

       — Es-tá tudo bem. Obrigada. Eu vou informar ao meu marido. Obrigada. — Silenciosamente, ela desligou o telefone. Olhou para o espelho e viu que o seu rosto estava pálido, refletindo a sua tristeza.

       Oh, meu Deus, eu não posso deixar que Duncan me veja nem que saiba, se não ele...

       — Quem era, Gen? — McIver perguntou da varanda, ainda meio dormindo.

       — Nada... nada de importante, querido. Torne a dormir.

       — Que bom, sobre os testes, hein? — Os resultados tinham sido excelentes.

       — Maravilhoso... eu voltarei num segundo. — Ela foi até o banheiro e fechou a porta e derramou um pouco d'água no rosto. Não posso contar a ele, simplesmente não posso... tenho que protegê-lo. Será que devo ligar para Andy? Ela deu uma olhada no relógio. Não posso, Andy já deve estar no aeroporto. Vou... vou esperar até ele chegar, é isto o que vou fazer... vou esperá-lo junto com Jean-Luc e... não posso fazer nada até lá... Oh, Deus, oh, Deus, pobre Tommy, pobre Xarazade... meus pobres amores...

       As lágrimas escorreram-lhe pelo rosto e ela abriu as torneiras para disfarçar o barulho. Quando voltou para a varanda, McIver estava dormindo satisfeito. Ela se sentou e ficou olhando para o pôr-do-sol, sem enxergá-lo.

      

       AEROPORTO INTERNACIONAL DE AL SHARGAZ: PÔR-DO SOL. Rudi Lutz, Scragger, e todos os outros estavam esperando no portão de embarque, olhando ansiosamente para o saguão lotado, cheio de passageiros embarcando e desembarcando.

       — Chamada final para o vôo da BA para Roma e Londres. Todos a bordo, por favor.

       Pelas enormes janelas de vidro, eles podiam ver que o sol estava quase descendo no horizonte. Todos estavam nervosos.

       — Andy devia ter mantido Johnny e o 125 aqui, pelo amor de Deus — Rudi murmurou, nervoso.

       — Ele teve que ser mandado para a Nigéria — Scot disse defensivamente.

       — O Velho não teve escolha, Rudi. — Mas ele viu que Rudi não estava ouvindo, então deu de ombros e disse distraidamente para Scragger: — Você vai mesmo deixar de voar, Scrag?

       O rosto enrugado se contorceu.

       — Por um ano, só por um ano... Bahrain vai ser ótimo para mim, Kasigi é uma beleza e eu não vou deixar de voar completamente, é claro que não. Não posso, meu filho, só de pensar nisso tenho arrepios.

       — Eu também. Scrag, se você tivesse a minha idade... — Ele parou quando um funcionário da BA, muito irritado, atravessou a segurança e falou para Rudi:

       — Capitão Lutz, esta foi a última chamada! — O avião já está cinco minutos atrasado. Não podemos segurá-lo por mais tempo! O senhor tem que embarcar o resto do seu grupo imediatamente ou partiremos sem vocês!

       — Está bem — Rudi disse. — Scrag, diga a Andy que esperamos o máximo possível. Se Charlie não conseguir chegar a tempo, atire-o no Gottver-dammstechen, calabouço! Maldita Alitalia por ter chegado tão cedo. Todos a bordo. — Ele entregou o seu cartão de embarque a uma aeromoça atraente e passou pelo portão, ficando do outro lado, checando se todos estavam lá, Freddy Ayre, Pop Kelly, Willi, Ed Vossi, Sandor, Nogger Lane, Scot ficando por último e fazendo cera até que não pôde mais esperar.

       — Ei, Scrag, diga ao Velho que eu concordo.

       — Claro, meu chapa. — Scragger acenou enquanto ele desaparecia na Segurança, depois virou-se e foi para o seu portão, do outro lado do terminal, onde Kasigi já estava esperando, então ele viu Pettikin correndo no meio da multidão, de mãos dadas com Paula e Gavallan um pouco atrás. Pettikin abraçou-a rapidamente e correu para o portão.

       — Pelo amor de Deus, Charlie...

       — Não brigue comigo, Scrag, tive que esperar por Andy. — Charlie disse, sem fôlego. Ele entregou o seu cartão de embarque, jogou um beijo para Paula e desapareceu.

       — Oi, Paula, o que está havendo?

       Paula também estava sem fôlego, mas radiante. Ela deu-lhe o braço, dando-lhe um apertão:

       — Charlie me convidou para passar a sua licença com ele, caro, na África do Sul; eu tenho parentes perto de Cape Town, uma irmã e a família dela, então eu disse que sim.

       — Claro! Isto quer dizer que...

       — Desculpe, Scrag! — Gavallan gritou, juntando-se a eles. Ele estava ofegante, mas vinte anos mais jovem. — Desculpe, fiquei meia hora no telefone, parece que perdemos o maldito contrato com a ExTex na Arábia Saudita e parte do mar do Norte, mas que se dane. Tenho grandes notícias! — Ele sorriu radiante e ficou dez anos mais moço ainda, atrás dele, o sol tocou o horizonte.

       — Erikki ligou quando eu já estava na porta, ele está bem, e Azadeh também, eles estão a salvo na Turquia e...

       — Aleluia! — Scragger explodiu de alegria e lá de dentro da sala de espera, depois da Segurança, houve uma explosão de alegria dos outros, ao receberem a notícia de Pettikin.

       — ...e depois recebi um telefonema de um amigo do Japão. Quanto tempo nós temos ainda?

       — Bastante tempo, vinte minutos, por quê? Você deixou de ver Scot por pouco, ele me pediu para dar-lhe um recado: "Diga ao Velho que sim."

       Gavallan sorriu.

       — Ótimo. Obrigado. — Agora ele já tinha recuperado o fôlego. — Eu me encontro com você, Scrag. Espere por mim, Paula, volto já. — Ele foi até o balcão de informações da JAL. — Boa noite, poderia informar-me, por gentileza, a que horas sai o próximo vôo de vocês de Bahrain para Hong Kong?

       A recepcionista consultou o computador.

       — Às onze e quarenta e dois desta noite, Sayyid.

       — Excelente. — Gavallan pegou os seus bilhetes. — Cancele a minha reserva no vôo da BA para Londres esta noite e faça uma reserva para mim no... — Os alto-falantes ganharam vida e abafaram a voz dele com o chamado para as orações. Um silêncio imediato tomou conta do aeroporto.

       E lá no alto das montanhas Zagros, a oitocentos quilômetros de distância ao norte, Hussein Kowissi saltou do cavalo e depois ajudou o seu filho a fazer o camelo ajoelhar-se. Ele usava um casaco de pele de cabra kash'kai por cima das vestes negras, um turbante branco e o seu Kalashnikov estava pendurado nas costas. Ambos estavam solenes, o rosto do garotinho inchado de tanto chorar. Juntos, eles amarraram os animais, apanharam os seus tapetes de rezar, viraram-se de frente para Meca e começaram. Um vento gelado soprava à volta deles, levantando a neve que cobria os altos cumes. O pôr-do-sol aparecia numa nesga de céu, no meio das grossas camadas de nuvens, cheias de neve e de tempestade. As preces foram rezadas rapidamente.

       — Vamos acampar aqui esta noite, meu filho.

       — Sim, pai. — Obedientemente, o garotinho ajudou-o a descarregar, com as lágrimas outra vez escorrendo-lhe pelo rosto. Na véspera a mãe dele tinha morrido. — Pai, a mamãe estará no paraíso quando chegarmos lá?

       — Não sei, meu filho. Sim, acho que sim. — Hussein disfarçou a tristeza. O parto tinha sido longo e cruel, não pôde fazer nada para ajudá-la a não ser segurar-lhe com carinho as mãos e rezar para que ela e a criança fossem poupadas e que a parteira fosse habilidosa. A parteira era habilidosa, mas a criança nasceu morta, a hemorragia não parou e aconteceu o que tinha que acontecer.

       Seja como Deus quiser, ele tinha dito. Mas pela primeira vez isto não o ajudou. Ele a havia enterrado junto com a criança. Com grande tristeza, tinha ido até a casa do seu primo, também um mulá, e tinha dado os seus filhos pequenos para eles criarem, e o seu lugar na mesquita até que a congregação escolhesse o seu sucessor. Depois, com o outro filho, ele tinha dado as costas a Kowiss.

       — Amanhã nós estaremos nas planícies, meu filho. Lá vai estar mais quente.

       — Eu estou com muita fome, pai — disse o garotinho.

       — Eu também, meu filho — ele disse gentilmente. — Alguma vez foi diferente?

       — Nós seremos martirizados logo?

       — Quando Deus quiser.

       O garotinho tinha seis anos e achava difícil entender muitas coisas, mas isto não. Quando Deus quiser, nós iremos para o paraíso, que é quente e verde e há mais comida do que se pode comer e água fresca para beber. Mas e quanto...

       — Há valas no paraíso? — Ele perguntou com a sua vozinha fina, encostando-se no pai para se esquentar.

       Hussein abraçou-o.

       — Não, meu filho, acho que não. Não há necessidade delas. — Ele continuou a limpar a sua arma com um pedaço de pano embebido em óleo. — Não há necessidade de valas.

       — Isto será muito estranho, pai, muito estranho. Por que nós saímos de casa? Para onde estamos indo?

       — Primeiro para nordeste, muito longe daqui, meu filho. O imã salvou o Irã, mas os muçulmanos do norte, sul, leste e oeste estão cercados por inimigos. Eles precisam de ajuda e orientação e da Palavra de Deus.

       — O imã, que a paz esteja com ele, foi ele quem o mandou?

       — Não, meu filho. Ele não manda, só orienta. Eu vou fazer o trabalho de Deus por livre e espontânea vontade, por minha própria escolha, um homem está livre para escolher o que deve fazer. — Ele viu o garotinho franzir a testa e deu-lhe um abraço, cheio de amor. — Agora nós somos soldados de Deus.

       — Oh, que bom. Eu vou ser um bom soldado. O senhor quer me contar de novo por que deixou aqueles satanistas partirem, aqueles da base, e por que os deixou levarem as nossas máquinas?

       — Por causa do líder, do capitão — Hussein disse pacientemente. — Eu acho que ele era um instrumento de Deus, ele abriu os meus olhos para a mensagem de Deus de que eu deveria buscar a vida e não o martírio, de que deveria deixar que Deus decidisse a hora do martírio. E também porque ele me deu uma arma invencível contra os inimigos do Islã, os cristãos e judeus: o conhecimento de que eles consideram a vida humana como sendo sacrossanta.

       O garotinho abafou um bocejo.

       — O que significa sacrossanta?

       — Eles acreditam que a vida de uma pessoa não tem preço, de qualquer pessoa. Nós sabemos que a vida é dada por Deus, pertence a Deus, volta para Deus, e que qualquer vida só tem valor se estiver a serviço de Deus. Você compreende, meu filho?

       — Acho que sim — disse o garotinho, muito cansado. — Desde que estejamos fazendo o trabalho de Deus, nós vamos para o paraíso e o paraíso é eterno.

       — Sim, meu filho. Usando o que o piloto me ensinou, um único crente pode convencer milhões. Nós vamos espalhar isto, você e eu... — Hussein estava muito contente de que o seu propósito estivesse claro. É curioso, ele pensou, que aquele homem, Starke, tenha-me mostrado o caminho. — Nós não somos nem orientais nem ocidentais, só islâmicos. Você compreende, meu filho?

       Mas não houve nenhuma resposta. O garotinho estava profundamente adormecido. Hussein deitou-o no seu colo, observando o sol que se punha. O último pontinho de sol desapareceu.

       — Deus é Grande — disse para as montanhas, para o céu e para a noite. — Não há nenhum outro Deus além de Deus...

 

 

                                                                  James Clavell

 

 

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