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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UBIRAJARA / José de Alencar
UBIRAJARA / José de Alencar

 

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UBIRAJARA

 

Ubirajara Senhor da lança, de Ubira - vara, e jara    - senhor; aportuguesando sentido, vem a ser lanceiro. Com este nome existia   ao tempo do descobrimento, nas cabeceiras do rio São Francisco, uma nação   de que fala Gabriel Soares - Roteiro do Brasil, cap. 182.

"A peleja dos Ubirajaras, diz esse escritor, é a   mais notável do mundo, como fica dito, porque a fazem com uns paus tostados   muito agudos, de comprimento de três palmos, pouco mais ou menos cada   um, e tão agudos de ambas as pontas, com os quais atiram a seus contrários   como com punhais, e são tão certos com eles que não erram   tiro, com o que tem grande chegada; e desta maneira matam também a caça   que se lhe espera, o tiro não lhe escapa; os quais com estas armas se   defendem de seus contrários tão valorosamente como seus vizinhos   com arcos e flechas, etc."

Desta arma e da destreza com que a manejavam proveio o   nome de bilreiros que lhes deram os sertanistas, significando assim que tangiam   suas lanças com a agilidade e sutileza igual à da rendeira ao   trocar os bilros.

 

ADVERTÊNCIA

 

Este livro é irmão de Iracema.

Chamei-lhe de lenda como ao outro. Nenhum título   responde melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições   da pátria indígena.

Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não   tiver estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade, há   de estranhar em outras coisas a magnanimidade que ressumbra no drama selvagem   a formar-lhe o vigoroso relevo.

Como admitir que bárbaros, quais nos pintaram os   indígenas, brutos e canibais, antes feras que homens, fossem suscetíveis   desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da criação?

Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época,   senão de todo o período colonial, devem ser lidos à luz   de uma crítica severa. É indispensável sobretudo escoimar   os fatos comprovados, das fábulas a que serviam de mote, e das apreciações   a que os sujeitavam espíritos acanhados, por demais imbuídos de   uma intolerância ríspida.

Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida   por longo trato de séculos, queriam esses forasteiros achar nos indígenas   de um mundo novo e segregado da civilização universal uma perfeita   conformidade de idéias e costumes.

Não se lembravam, ou não sabiam, que eles   mesmos provinham de bárbaros ainda mais ferozes e grosseiros do que os   selvagens americanos.

Desta prevenção não escaparam muitas   vezes espíritos graves e bastante ilustrados para escreverem a história   sob um ponto de vista mais largo e filosófico.

Entre muitos citarei um exemplo. Barlaeus referindo as   justas que se faziam entre os selvagens para obterem em prêmio de seu   valor a virgem mais formosa, não se esqueceu de acrescentar este comento   - finis spectantium est voluptas.

Narrados com este pessimismo, as cenas da cavalaria, os   torneios e justas não passariam de manejos inspirados pela sensualidade.   Nada resistiria à censura ou ao ridículo.

Por igual teor, senão mais grosseiras, são   as apreciações de outros escritores acerca dos costumes indígenas.   As coisas mais poéticas, os traços mais generosos e cavalheirescos   do caráter dos selvagens, os sentimentos mais nobres desses filhos da   natureza são deturpados por uma linguagem imprópria, quando não   acontece lançarem à conta dos indígenas as extravagâncias   de uma imaginação desbragada.

Releva ainda notar que duas classes de homens forneciam   informações acerca dos indigenasa dos missionários e a   dos aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de acordo nesse ponto,   de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam   assim a importância da sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se   da crueldade com que tratavam os índios.

Faço estas advertências para que ao lerem   as palavras textuais dos cronistas citados nas notas seguintes não se   deixem impressionar por suas apreciações muitas vezes ridículas.   É indispensável escoimar o fato dos comentos de que vem acompanhado,   para fazer uma idéia exata dos costumes e índole dos selvagens.

 

O CAÇADOR

 

Pela margem do grande rio caminha Jaguarê,   o jovem caçador. O arco pende-lhe ao ombro, esquecido e inútil.   As flechas dormem no coldre da uiraçaba.

Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar   na grama, zombando do caçador.

Jaguarê não vê o tímido campeiro,   seus olhos buscam um inimigo capaz de resistir-lhe ao braço robusto.

O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador   também despreza o jaguar, que já cansou de vencer.

Ele chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta;   os outros fogem espavoridos quando de longe o pressentem.

Não é esse o inimigo que procura, porém   outro mais terrível para vencê-lo em combate de morte e ganhar   nome de guerra.

Jaguarê chegou à idade em que o mancebo troca   a fama do caçador pela glória do guerreiro.

Para ser aclamado guerreiro por sua nação   é preciso que o jovem caçador conquiste esse título por   uma grande façanha.

Por isso deixou a taba dos seus e a presença de   Jandira, a virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa.

Mas o sol três vezes guiou o passo rápido   do caçador através das campinas, e três vezes como agora   deitou-se além nas montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo   digno de seu valor.

A sombra vai descendo da serra pelo vale e a tristeza cai   da fronte sobre a face de Jaguarê.

O jovem caçador empunha a lança de duas   pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.

Nenhum guerreiro brandiu jamais essa arma terrível,   que sua mão primeiro fabricou.

Lá estaca o jovem caçador no meio da campina.   Volvendo ao céu o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito   de guerra.

O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer   longe nas cavernas da montanha.

Respondeu o ronco da sucuri na madre do rio e o urro do   tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao desafio   do caçador.

Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos   ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.

A copa frondosa ramalhou, como as palmas do coqueiro ao   sopro do vento, e o tronco gemeu até à raiz.

O caçador repousa à sombra de sua lança.

 

* * *

 

Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.

Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta   embebida no arco flexível.

Ergue-se Jaguarê.

Seu olhar ardente voou, sôfrego de encontrar o inimigo   que lhe tardava.

Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no   rosto sombrio.

Pela faixa cor de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê   conheceu que era uma filha da valente nação dos tocantins, senhora   do grande rio, cujas margens ele pisava.

A liga vermelha que cingia a perna esbelta da estrangeira   dizia que nenhum guerreiro jamais possuíra a virgem formosa.

A corça veio cair aos pés de Jaguarê,   atravessada pela flecha certeira da jovem caçadora que a seguia de perto.

A virgem reconheceu o cocar da nação que   na última lua chegara aos campos do Taari  e da qual os pajés   tinham dado notícia.

— Guerreiro araguaia, pois vejo pela pena vermelha   de teu cocar que pertences a essa nação valente; se pisas os campos   dos tocantins como hóspede, bem-vindo sejas; mas se vens como inimigo,   foge, para que tua mãe não chore a morte de seu filho e tenha   quem a proteja na velhice.

— Virgem dos tocantins, Jaguarê já soltou   seu grito de guerra. Ele pisa os campos de teus pais como senhor. Tu és   sua prisioneira. Não que vencer a corça tímida seja glória   para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que ele espera.

— Se o veado te der a sua ligeireza, jovem guerreiro, ela   não te servirá senão para ver o rasto de meu pé   antes que o vento o apague.

A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa   campina. Após ela se arremessou Jaguarê que muitas vezes vencera   o tapir.

Mas a virgem dos tocantins corria como a nandu no deserto,   e o caçador conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar.

Travou do arco e o brandiu. A seta obedeceu-lhe, pregando   no tronco do açaí a faixa que flutuava ao sopro do vento.

— A filha dos tocantins tem no pé as asas do beija-flor;   mas a seta de Jaguarê voa como o gavião. Não te assustes,   virgem das florestas; tua formosura venceu o ímpeto de meu braço   e apagou a cólera no coração feroz do caçador. Feliz   o guerreiro que te possuir.

— Eu sou Araci, a estrela do dia, filha de Itaquê,   pai da grande nação tocantim. Cem dos melhores guerreiros  o servem em sua cabana para merecer que ele o escolha por filho. O mais forte   e valente me terá por esposa. Vem comigo, guerreiro araguaia, excede   aos outros no trabalho e na constância, e tu romperás a liga de   Araci na próxima lua do amor.

— Não, filha do sol; Jaguarê não deixou   a taba de seus pais onde Jandira lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo   da virgem. Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho   a sua nação. Torna à taba dos tocantins e dize aos cem   guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores   araguaias, os desafia ao combate.

— Araci vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ela   guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo   caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virgem do   sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.

A virgem disse e desapareceu na selva. Os olhos de Jaguarê   seguiram o passo ligeiro da formosa caçadora, como o guaxinim que rasteja   a zabelê.

Quando ela desapareceu o jovem caçador recostou-se   ao tronco da emburana e esperou.

 

* * *

 

Do outro lado da campina assoma um guerreiro.

Tem na cabeça o canitar das plumas de tucano,   e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.

E um guerreiro tocantim. De longe avistou Jaguarê   e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias.

As duas nações não estão em   guerra; mas sem quebra da fé pode um guerreiro, cansado do longo   repouso, oferecer a outro guerreiro combate leal.

Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já   tinha brandido o seu e disparado no ar uma seta, mensageira do desafio.

Respondeu o guerreiro disparando também uma flecha   no ar, para dizer que aceitava o combate.

Então os dois campeões caminharam um para   o outro com o passo grave e pararam frente a frente.

— Eu sou Jaguarê, filho de Camacã, chefe da   valente nação dos araguaias, que vem de longe em busca da terra   de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior   caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama do caçador;   ele quer um nome de guerra, que diga das nações a força   de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se tua nação   te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; se não, passa   teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape  virgem de Jaguarê.

— O caraíba guiou teu passo ao encontro de Pojucã, o matador de gente, guerreiro chefe da terrível nação   tocantim, que enche de terror as outras nações. Há três   luas, desde que fugiram espavoridos os bárbaros tapuias , que Pojucã   não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és   digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucã se compadece de tua   mocidade e consente em combater contigo. Terás a glória de ser   morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão   teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua   sorte.

— Jaguarê agradece a Tupã que te fez   um grande guerreiro e o chefe mais feroz da grande nação tocantim,   Pojucã, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha   do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne   o espanto dos teus e o terror das outras nações.

Os dois campeões recuaram passo a passo até   que se acharam a um tiro de arco.

Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram   um contra o outro brandindo o tacape.

 

* * *

 

Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como   as torrentes impetuosas no remoinho da Itaoca.

Dez vezes as clavas bateram, e dez vezes volveram para   bater de novo.

Os animais que passavam na floresta fugiram espavoridos,   como se a borrasca ribombasse no céu.

Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em   lascas pelos ares.

— O ubiratã é forte; mas há outro   ubiratã que lhe resiste. Como o braço de Pojucã é   que não há outro braço. Já viste, jovem caçador,   o veado nas garras da jibóia? Assim vais morrer.

— Se tu fosses a cascavel que somente sabe morder, Jaguarê   te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria seu caminho. Mas tu   s a jibóia feroz; e Jaguarê gosta de estrangular a jibóia.   Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador.   Lança teu bote, guerreiro tocantim.

Pojucã estendeu os braços e estreitou os   rins de Jaguarê, que por sua vez cingiu os lombos do guerreiro.

Cada um dos campeões pôs na luta todas as   suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da mata.

Ambos, porém, ficaram imóveis. Eram dois   jatobás que nasceram juntos e entrelaçaram os galhos ligando-se   no mesmo tronco.

Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa   bramindo sem agitá-los; e eles permanecem quedos pelo volver dos tempos.

Um pajé que passou na orla da mata viu os lutadores   e esconjurou-os pensando que eram as almas de dois guerreiros presos no abraço   da morte.

Já a sombra se desdobrava pelo vale fora e o sol   despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.

Por fim afrouxaram os braços e cada lutador recuou   para contemplar seu adversário. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.

Conheceram que podiam lutar corpo a corpo, a noite inteira,   sem que um prostrasse o outro.

— Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro   chefe da nação tocantim. Mas Pojucã não consente   que haja na terra quem resista a seu braço. É preciso que tu morras,   Jaguarê, para que ele seja o primeiro dos guerreiros que o sol alumia.

— Pojucã, matador de gente, guerreiro feroz da nação   tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber se   tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro   dos guerreiros que existiram até este momento, ele quer que tua derrota   seja a sua primeira façanha.

Disse e arrancando do tronco da emburana a lança   de duas pontas caminhou outra vez para Pojucã.

— Esta arma que tu vês é a lança de   duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido   pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é   o primeiro cujo sangue ela vai beber. Empunha a lança de duas pontas,   guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.

 

* * *

 

Pojucã repeliu a lança que o jovem caçador   lhe apresentara.

— Jamais no combate um guerreiro tocantim atacará   seu adversário desarmado; nem Pojucã precisa da lança.   Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço;   o de Pojucã basta para te prostrar.

— O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece   Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão à corda   do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta, e Jaguarê estará   duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejá-la.

O chefe tocantim cruzou os braços.

— Toma a lança, Pojucã, se não queres   que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará   desarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do   maior guerreiro araguaia, o grande Camacã.

O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê que travou-lhe   dos pulsos, e outra vez os dois campeões ficaram imóveis.

A noite veio achá-los na mesma posição.   Três vezes cessaram a luta, e de novo a travaram. Mas afinal se convenceram   que nenhum derrubaria o outro.

Então Pojucã disse

— Guerreiro araguaia, é preciso acabar o combate.   A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão   a lança e caminhemos até a margem do rio. Aquele que primeiro   chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.

 

* * *

 

Assim fizeram os dois campeões. Chegados à   margem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou   a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo ímpeto da   desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de   Pojucã.

 

* * *

 

O guerreiro chefe enrista desdenhosamente a lança   e caminha para Jaguarê. Não vai como o guerreiro que marcha ao   combate, mas como o matador que se prepara para imolar a vítima.

— Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar   como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já,   se quisesse, ele te houvera ferido com tua própria mão.

— Abandona a glória do guerreiro, que não   é para ti, nhengaíba. Pojucã te concederá a vida   e te levará cativo à taba dos tocantins para que tu cantes as   suas façanhas na festa dos guerreiros.

— Cativo serás tu, mas não para cantar os   feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguaias para ajudar   as velhas a varrer a oca.

Arremessou-se Pojucã avante e desfechou o golpe;   mas a lança rodara e foi o chefe tocantim quem recebeu no peito a ponta   farpada.

Quando o corpo robusto de Pojucã tombava, cravado   pelo dardo, Jaguarê d'um salto calcou a mão direita sobre o ombro   esquerdo do vencido, e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo

— Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro   invencível que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucã,   e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro   que existiu antes dele.

— Se meu valor, que serviu para aumentar a tua fama, merece   de ti uma graça, não deixes que Pojucã sofra mais um instante   a vergonha de sua derrota.

— Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás   à taba dos araguaias para narrar o meu valor. A fama de Jaguarê   precisa de um prisioneiro como o grande Pojucã na festa da vitória.

— Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica   certo que se tua arma traiçoeira feriu-me o peito, o suplício   não vencerá a constância do varão tocantim, que sabe   afrontar as iras de Tupã e desprezar a vingança dos araguaias.

 

O GUERREIRO

 

Retumba a festa na taba dos araguaias.

As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio   da noite escura as chamas da alegria (26).

Toda a tarde o trocano reboou chamando os guerreiros das   outras tabas à grande taba do chefe.

Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacã,   o maior chefe dos araguaias.

No fundo da ocara, preside o conselho dos anciões,   que decide da paz ou da guerra e governa a valente nação.

Os anciões, sentados no longo jirau, contemplam   taciturnos a geração de guerreiros que eles ensinaram a combater,   e têm saudades da passada glória.

Suspenso em frente deles está o grande arco da nação   araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.

É a insígnia do chefe dos guerreiros, a qual   Camacã, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda conserva,   pois ninguém ousa disputá-la.

Ei-lo, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão   tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao invencível   tacape, ele dirige a festa.

De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão   dos guerreiros, colocados por sua ordem primeiro os chefes das tabas; depois   os varões; por último os moços guerreiros.

Vêm depois os jovens caçadores que já   deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas proezas   a honra de serem admitidos entre os guerreiros.

Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude   não lhes consente ainda a robustez, que tamanho esforço demanda.

Todos invejam a glória de Jaguarê, que ontem   era o primeiro entre eles, e hoje ali está disputando a fama aos mais   valentes guerreiros.

Por detrás da estacada apinham-se as mulheres, que   segundo o rito pátrio não podem ser admitidas nas festas guerreiras.

De longe acompanham silenciosas, com os olhos, as velhas   aos filhos, as esposas aos seus guerreiros, e as virgens aos noivos.

Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus;   mas não ousam murmurar uma palavra.

Entre elas está Jandira, a doce virgem, cujos negros   olhos não se cansam de admirar Jaguarê, seu futuro senhor.

Já lhe tarda o momento de ver aclamar guerreiro   ao jovem caçador, para ter a felicidade de servi-lo como escrava na paz,   e acompanhá-lo como esposa ao combate.

 

* * *

 

No centro da ocara ergueu-se Jaguarê.

Defronte dele, Pojucã, no corpo que a ferida não   abateu, mostra a grande alma, serena em face dos inimigos.

Camacã troou a inúbia para ordenar silêncio   e o filho começou

— Guerreiros araguaias, ouvi a minha história de   guerra.

"Depois que Jaguarê sofreu as provas do valor, partiu   para conquistar um nome famoso.

"Deixando a taba, viu o falcão negro que despedia   o vôo para as águas sem fim, e Jaguarê disse

"O falcão negro é o valente guerreiro dos   ares; ele será a fama do guerreiro araguaia que atravessará as   nuvens e subirá ao céu.

"Então Jaguarê marcou o vôo do falcão   negro e seguiu por ele.

"O sol despediu-se e voltou; uma, duas, três vezes.   No último sol Jaguarê encontrou um guerreiro da nação   tocantim, senhora do grande rio.

"Guerreiros araguaias, quereis saber qual foi o campeão   que Tupã enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?

"Ele aí está diante de vós.

"É o grande Pojucã, o feroz matador de gente,   chefe da tribo mais valente da poderosa nação dos tocantins, senhores   do grande rio.

"Vós que o tendes aqui presente, vede como é   terrível o seu aspecto, mas só eu que o pelejei conheço   o seu valor no combate.

"O tacape em sua mão possante é como o tronco   do ubiratã que brotou no rochedo e cresceu.

"Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não   o pôde arrancar de sua mão e foi obrigado a despedaçá-lo.

"Os braços de Pojucã, quando ele os estende   na luta, não há quem os vergue; são dois penedos que saem   da terra.

"Seu corpo é a serra que se levanta no vale. Nenhum   homem, nem mesmo Camacã, o pode abalar.

"Pojucã era o varão mais forte e o mais valente   guerreiro que o sol tinha visto até aquele momento.

"Foi este, guerreiros araguaias, o herói que ofereceu   combate ao filho de Camacã; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu   que havia encontrado um inimigo digno do seu valor.

"Ele vos contempla, guerreiros araguaias. Se alguém   duvida da palavra de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim,   chame-o a combate e saberá quem é Pojucã."

O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador   à multidão dos guerreiros; mas nenhum ousou aceitar o desafio.

 

* * *

 

Pojucã alçou a mão em sinal de que   desejava falar; todos escutaram com respeito o herói, ainda maior na   desgraça.

— Guerreiros araguaias, ouvi a voz de Pojucã, vosso   inimigo, que afronta as iras dos fortes e despreza a vingança dos fracos.

"Pojucã, guerreiro chefe da grande nação   tocantim, jamais encontrou guerreiro que resistisse à força de   seu braço invencível.

"Mas Tupã, cansado de ouvir celebrar em todas as   festas o nome de Pojucã, como vencedor, emprestou sua força a   Jaguarê, o maior guerreiro que já pisou a terra.

"Eu que senti o ímpeto de sua coragem, posso dizer-vos   que só o sangue tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão   poderoso.

"Foi alguma virgem araguaia que vagando pela íloresta   encontrou Pojucã, e trouxe no seio fecundo a alma do grande guerreiro.

"Seu braço é como o corisco do céu;   e a sua força como a tempestade que desce das nuvens."

Calou-se Pojucã; e Jaguarê continuou o seu   canto de guerra

"Quando a sombra começava a descer da crista da   montanha, Pojucã e Jaguarê caminharam um contra o outro.

"Toda a noite combateram. O sol nascendo veio achá-los   ainda na peleja, como os deixara; nem vencidos, nem vencedores.

"Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza   do corpo, e na destreza das armas.

"Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro   igual; pois ambos queriam ser o primeiro.

"Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida   a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.

"Três vezes seu punho robusto a brandiu, e três   vezes ela escapou-lhe da mão, como a serpente das garras do gavião.

"Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado;   e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.

"Ele caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos   tocantins, o valente dos valentes, Pojucã, o feroz matador de gente."

E Jaguarê, brandindo a arma da vitória, bradou

"Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu   o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupã.

"Eu sou Ubirajara,o senhor da lança, o guerreiro   terrível que tem por arma uma serpente."

 

* * *

 

O trocano ribombou, derramando longe pela amplidão   dos vales e pelos ecos das montanhas a pocema do triunfo.

Os tacapes, vibrados pela mão pujante dos guerreiros,   bateram nos largos escudos retinindo.

Mas a voz possante da multidão dos guerreiros cobriu   o imenso rumor, clamando

— Tu és Ubirajara, o senhor da lança, o vencedor   de Pojucã, o maior guerreiro da nação tocantim.

"Os guerreiros araguaias te recebem por seu irmão   nas armas e te aclamam forte entre os fortes.

"Os cantores celebrarão teu nome como os mais   famosos da nação araguaia; e Camacã terá a glória   de chamar-se pai de Ubirajara; como foi glória para Jaguarê, ser   filho de Camacã."

Quando parou o estrondo da festa e cessou o canto dos guerreiros,   avançou Camacã, o grande chefe dos araguaias.

De um salto o ancião alcançou o arco da nação,   insígnia do chefe na guerra, e caminhou para Ubirajara.

O arco era de ubiratã, grosso como o braço   do mais robusto guerreiro; a corda trançada de crautá tinha o   corpo do dedo que a brandia.

Os mais possantes varões da nação   araguaia, a custo, empunhavam o grande arco; mas só um tinha força   para disparar a setaera Camacã, o chefe dos chefes, que dirigia na guerra   os guerreiros araguaias.

Assim falou o ancião

— Ubirajara, senhor da lança, é tempo de   empunhares o grande arco da nação araguaia, que deve estar na   mão do mais possante. Camacã o conquistou no dia em que escolheu   por esposa Jaçanã, a virgem dos olhos de fogo, em cujo seio te   gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apesar da velhice que lhe mirrou o corpo,   nenhum guerreiro ousaria disputar o grande arco ao velho chefe, que não   sofresse logo o castigo de sua audácia. Mas Tupã ordena que o   ancião se curve para a terra, at desabar como o tronco carcomido; e que   o mancebo se eleve para o céu como a árvore altaneira. Camacã   revive em ti; a glória de ser o maior guerreiro cresce com a glória   de ter gerado um guerreiro ainda maior do que ele.

 

* * *

 

Ubirajara tomou o arco que lhe apresentava o pai e disse

— Camacã, tu és o primeiro guerreiro e o   maior chefe da nação araguaia. Para a glória de Jaguarê   bastava que ele se mostrasse teu filho no valor, como é teu filho no   sangue. Mas o grande arco da nação araguaia, Ubirajara não   o recebe de ti e de nenhum outro guerreiro, pois o há de conquistar pela   sua pujança.

Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou

— O guerreiro que ouse empunhar o grande arco da nação   araguaia, venha disputá-lo a Ubirajara.

Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou   o passo.

O trocano reboou de novo, e no meio da pocema do triunfo,   a multidão dos guerreiros proclamou

— Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais   forte dos guerreiros araguaias; empunha o arco chefe.

Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda   zuniu como o vento na floresta.

Era a primeira seta, mensageira do chefe, que levava às   nuvens, a fama de Ubirajara.

Os cantores exaltaram a glória dos dois chefesa   do velho Camacã, que trocara a arma do guerreiro pelo bordão do   conselho; e a do jovem Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava   tão grande, como fora o pai na robustez dos anos.

Pojucã teve o consolo de ouvir seu nome repetido   muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.

Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação   araguaia, desde os tempos remotos em que os progenitores deixaram a grande taba   dos Tamoios, seus avós.

Quando os nhengaçaras entoaram o canto do triunfo,   vieram as mulheres com vasos cheios do generoso cauim e apresentaram as taças   aos guerreiros.

Jandira suspirou; ela era virgem, e como suas companheiras,   não podia aparecer na festa dos guerreiros.

Sentiu não ser já esposa, para ter o orgulho   de encher de vinho espumante, por ela fabricado, a taça de seu herói   e senhor.

O guincho agoureiro da inhuma ressoava na mata, quando   começou a dança guerreira que durou até perto da alvorada.

 

A NOIVA

 

Ao raiar da luz no céu, Jandira abriu os lindos   olhos negros.

Seu canto foi o primeiro que saudou o nascer do dia e acordou   em seu ninho a viuvinha.

A doce filha de Majé saltou da rede que embalara   os sonhos castos da virgem; e despediu-se dela como a jaçanã que   deixa a moita para habitar o ninho do amor.

A virgem araguaia acreditava ter dormido a última   noite na cabana paterna, que essa manhã ia trocar pela cabana do esposo.

O jovem caçador que a amava, Jaguarê, fora   aclamado guerreiro, e entre todos os guerreiros, o chefe da nação.

Como guerreiro ele pode tomar uma esposa; e como chefe   pertence-lhe a virgem de sua escolha, entre as mais formosas da taba.

Ainda que a virgem tenha um noivo, ou que o pai a destine   a outro, se o chefe a deseja, a vontade de Tupã é que lhe pertença.

Tupã assim ordena para que os grandes chefes possam   gerar de seu sangue os mais belos e valentes guerreiros.

Jaguarê antes de ser aclamado chefe já a tinha   escolhido, e Jandira não aceitaria outro noivo senão o jovem caçador   a quem amava.

Ela o espera. Logo que o sol alumie a terra, Ubirajara,   o grande chefe, há de vir buscá-la.

Então a virgem se despedirá de Majé;   e irá armar na cabana de seu guerreiro e senhor a rede da esposa.

Ligeira e contente, corre a banhar-se no rio antes que   chegue Ubirajara, para quem purifica seu corpo e unge-se com o óleo   fragrante do sassafrás.

Ela quer que o destemido guerreiro ache seu amor saboroso   como o vinho que espuma na taça e ferve nas veias.

Tornando à cabana, perfumou de beijoim a larga rede   que tecera dos fios do algodão entrelaçados com as penas do guará.

Essa rede tinha duas vezes o tamanho de sua rede de virgem   porque era a rede do casamento em que devia receber o esposo.

Depois arrumou no uru a louça que havia fabricado   para o serviço do guerreiro, e que devia transportar à sua nova   cabana.

Quando terminou todos os preparativos, encostou-se à   porta da cabana; seus olhos impacientes chamavam Ubirajara.

Mas o guerreiro não vinha, e o sol já tinha   subido além da crista da serra.

A luz do dia derramava a alegria pelos campos; e a alegria   que lhe afogara os sonhos da noite fugia agora da alma de Jandira.

Então a filha de Majé partiu em busca do   noivo que a esquecera.

 

* * *

 

No mais escuro da mata, vaga o chefe dos araguaias.

Seus olhos fogem à luz do dia e buscam a sombra,   onde encontram a imagem que traz na lembrança. A noite, quando o guerreiro   dormia em sua rede solitária, Araci, a linda virgem, lhe apareceu em   sonho e lhe falou:

— Jaguarê, jovem caçador, tu dormes descansado   enquanto os guerreiros tocantins se preparam para roubar a virgem de teus amores.   Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde.

Ele erguera-se para segui-la; mas a virgem formosa desferiu   a corrida veloz através da campina e desapareceu na floresta.

Neste ponto do sonho o guerreiro acordara.

Uma estrela brilhante listrava o céu, como uma lágrima   de fogo, e Ubirajara pensou que era o rasto de Araci, a filha da luz.

A juriti arrulhou docemente na mata e Ubirajara lembrou-se   da voz maviosa da virgem do sol.

O guerreiro tornou à rede, esperando achar ali outra   vez o sonho que visitara sua alma; porém o sono fugira de seus olhos.

Quando raiou a primeira alvorada, Ubirajara saiu da cabana   e buscou no mais espesso da mata a sombra propícia à saudade.

Seu passo o guiava sem querer para as bandas do grande   rio, onde devia ficar a taba dos tocantins.

É assim que os coqueiros, imóveis na   praia, inclinam para o nascente seu verde cocar.

Ubirajara ouviu o rumor de um passo ligeiro através   da mata; de longe conheceu Jandira que o procurava.

A doce virgem achara à porta da cabana o rasto do   guerreiro e o seguira através da floresta.

— Que mau sonho aflige Ubirajara, o senhor da lança   e o maior dos guerreiros, chefe da grande nação araguaia, para   que ele se afaste de sua taba e esqueça a noiva que o espera?

— A tristeza entrou no coração de Ubirajara,   que não sabe mais dizer-te palavras de alegria, linda virgem.

— A tristeza é amarga; quando entra no coração   do guerreiro o enche de fel. Mas Jandira fará como sua irmã, a   abelha, ela fabricará em seus lábios, os favos mais doces para   seu guerreiro; suas palavras serão os fios de mel que ela derramará   na alma do esposo.

— Filha de Majé, doce virgem, ainda não chegou   o dia em que Ubirajara escolha uma esposa; nem ele sabe ainda qual o seio que   Tupã destinou para gerar o primeiro filho do grande chefe dos araguaias.

 

* * *

 

O lábio de Jandira emudeceu; mas o peito soluçou.

A virgem conheceu que o amor de Ubirajara retirava-se dela,   e que de todo o perderia se o não defendesse.

Então escondeu a dor no fundo da alma e chamou o   riso a seus lábios, a alegria a seus olhos.

Ela sabia que os guerreiros amam a flor da formosura, como   a folhagem da árvore; e que a tristeza murcha a graça da mais   linda virgem.

— Chefe dos araguaias, Ubirajara, não desprezas   Jandira que outrora escolheste para tua noiva. Se então ela era formosa   a teus olhos, mais formosa se fará para merecer teu amor. Tu gostavas   de seus cabelos (33) negros que arrastam no chão; ela os entrançará   com as plumas vermelhas do guará para que te pareçam mais bonitos.   Seus olhos negros que te falavam, ela os cercará de uma listra amarela   como os olhos da jaçanã. Sua boca, que ainda não provaste,   Jandira a encherá de amor para que bebas nela o contentamento.

Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os lábios   mudos do guer-reiro não se abriram.

— Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a   flor no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor.   Nestes peitos que te pertencem, ela os nutrirá com seu sangue, não   menos guerreiro do que o teu; porque é o sangue de Majé, o maior   dos anciões, depois de Camacã. Seus braços, que outrora   querias para tua cintura (34), não servirão unicamente para te   abraçarem, mas também para te servirem. Tua esposa te acompanhará   por toda parte, na taba, como no campo do combate; ela cuidará de tua   cabana; aprontará as mais saborosas iguarias para seu guer-reiro, e fabricará   para ele o vinho, que a alma da festa.

— Jandira é a mais bela das virgens araguaias. Seu   amor fará a ventura de um guerreiro valente. Ubirajara não podia   achar para si uma esposa mais fiel; nem para seus filhos outra mãe tão   fecunda. Mas a noite desceu em sua alma. Só a estrela do dia pode restituir-lhe   a alegria que o abandonou. A filha de Majé merece um guerreiro que tenha   olhos para a sua formosura.

 

* * *

 

Pojucã sentou-se pensativo à porta da cabana.

O semblante, sempre grave, como convém a um chefe,   cobre-se de tristeza.

A noite que foge da terra, vencida pelo sol, parece recolher-se   na alma do chefe tocantim.

Não é sua ferida que o faz sofrer. O bálsamo   suave da embaíba sara rapidamente os golpes mais profundos; e os varões   tocantins aprendem desde o berço a desprezar a dor.

E em seu coração de guerreiro que Pojucã   sente as garras do Anhangá.

O revés de ser vencido e cair prisioneiro, ele o   suporta como o varão forte que viu prostrados por Aresqui, no campo da   batalha, os mais terríveis guerreiros.

A grandeza do vencedor o consola; resta-lhe ainda a glória   de ter resistido a um braço como o de Ubirajara, grande chefe dos araguaias.

Mas ele esperava que depois de haver ornado com sua presença   a festa do triunfo, o vencedor fosse generoso, e lhe concedesse a honra do sacrifício.

É o temor de que Ubirajara lhe recuse uma morte   gloriosa e o retenha cativo, que nesse momento acabrunha o chefe dos tocantins.

Ele, um guerreiro livre, que pisara outrora como senhor   aqueles campos, reduzido à condição de escravo?

Ele, um varão chefe, que tinha na obediência   de seu arco mais de mil guerreiros valentes, obrigado a reconhecer um dono?

Ele, que afrontava a cólera de Tupã, quando   o deus irado rugia do céu, curvar-se ao aceno de um homem, fosse, embora,   o mais pujante dos filhos da terra?

Pojucã estremecia quando se lembrava que podia ser   condenado a tão grande humilhação.

Em seu terror promovia o passo, com o ímpeto de   fugir para sempre da taba dos araguaias, onde o ameaçava aquela vergonha.

Mas uma força invencível atava-lhe a vontade.   Ele não se pertencia desde o momento em que Ubirajara calcou-lhe a mão   direita no ombro.

Esse era o sinal da conquista, que prendia o vencido ao   vencedor; aquele que violasse a lei da guerra, perderia para sempre o nobre   título de guerreiro.

O desprezo do inimigo o acompanharia aos seus nativos;   e a taba de seus irmãos não se abriria para o fugitivo que houvesse   desonrado o nome de sua nação.

Por isso, na cabana solitária, Pojucã está   mais guardado do que se o cercasse a multidão dos guerreiros araguaias.

Vela ele próprio em si, porque vela em sua fama.

Pode Ubirajara esquecê-lo que na volta o encontrará   ali onde o deixou.

Nada o arrancará da cabana; nem a necessidade de   buscar o alimento para o corpo.

Bem-vinda será a fome, se durar tanto que prostre   seu corpo robusto, e o entregue ao seio da terra, onde o guerreiro dorme o sono   da glória.

Além, rompe da selva Ubirajara, que se encaminha   para a cabana com o passo rápido.

Segue-o de perto Jandira, como a gentil corça acompanha   o caçador, que roubou-lhe o companheiro.

Descobrindo o chefe dos araguaias, Pojucã encerrou   a tristeza dentro de sua alma; e chamou ao rosto a altivez dos grandes guerreiros.

O chefe tocantim não queria que seu vencedor se   regozijasse de ter-lhe abatido o ânimo inflexível.

 

* * *

 

Quando Ubirajara aproximou-se da cabana, Pojucã   tomou-lhe o passo.

— Ubirajara, senhor da lança, grande chefe da nação   araguaia, não confessaste tu, diante dos anciões das tabas e de   todos os teus guerreiros, que Pojucã era o varão mais forte e   o mais terrível no combate, que o sol tinha visto até o momento   de ser vencido por ti?

— Ubirajara o disse. É a voz da nação   araguaia.

— Desde que tu cruzaste comigo a seta do desafio até   este momento, Pojucã, guerreiro varão, e chefe de uma taba na   valente nação dos tocantins, mostrou-se pela sua constância   e valor digno do sangue de seus avós?

— Pojucã o disse, e a fama o repete.

— Então, por que Ubirajara, o grande chefe dos araguaias,   não concede a Pojucã a morte gloriosa, que os tocantins jamais   recusaram a um guerreiro valente, e que somente se nega aos fracos? Já   não serviu Pojucã à tua glória na festa do triunfo?   Esperas dele que te obedeça como um escravo? Se aviltas o varão   a quem venceste, humilhas o teu valor que ele exaltava.

O grande chefe araguaia ouviu sem interromper o prisioneiro   e respondeu com gravidade

— Ubirajara não recusa ao bravo chefe tocantim,   seu terrível inimigo, o suplício, que não negaria   a qualquer guerreiro valente. Ele esperava que tua ferida se fechasse de todo,   para que o grande Pojucã possa, no dia do último combate, sustentar   a fama de seu nome, e a glória de um varão que só foi vencido   por Ubirajara.

O grande chefe dos araguaias levou aos lábios a   inúbia de Camacã; a voz do mando reboou pelo vasto âmbito   da taba.

Apareceram vinte jovens guerreiros, a quem ele ordenou   que chamasse a conselho os anciões.

Depois tornou ao chefe tocantim

— Os araguaias receberam de seus avós o costume   das nações que Tupã criou. Eles destinam ao prisioneiro   a mais bela e a mais ilustre de todas as virgens da taba, para que ela conserve   o sangue generoso do herói inimigo e aumente a nobreza e o valor de sua   nação.

"É esta também a lei, que os guerreiros tocantins   observam em suas tabas.

"A mais bela e a mais nobre de todas as virgens araguaias,   aquela que se ergue como a palmeira no meio da campina coberta de flores, é   Jandira, a filha de Majé, que tem no seio os doces favos da abelha."

Travando então do pulso de Jandira, que ali ficara   presa de sua vista, levou-a ao prisioneiro.

— Recebe-a como esposa do túmulo.

 

* * *

 

Jandira, que ouviu espavorida aquelas palavras, quis fugir;   porém a mão do chefe araguaia a reteve.

— Ubirajara parte, mas ele voltará para assistir   a teu suplício e vibrarte o último golpe. Pojucã terá   a glória de morrer pela mão do mais valente guerreiro.

 

* * *

 

Ficaram Jandira e Pojucã em face um do outro.

— Virgem dos araguaias, Tupã te reservou para esposa   do mais terrível dos inimigos de tua nação. O filho de   seu sangue será o mais valente dos guerreiros; tu sentirás orgulho   por havê-lo gerado em teu seio.

— Pojucã, chefe tocantim, Jandira nunca será   tua esposa.

— Não é Ubirajara o chefe de tua nação,   e não te destinou ele para servir de noiva do túmulo ao guerreiro   que vai morrer no suplício?

— Ubirajara é o grande chefe da nação   araguaia; à sua voz cala-se a palavra dos anciões; a seu gesto   curva-se a fronte dos guerreiros; à sua vontade obedecem as tabas. Mas   no amor de Jandira, ninguém manda, nem Tupã. Jandira é   noiva de Ubirajara, e se ele não quiser aceitá-la, o guanumbi a levará para os campos alegres onde repousam as virgens que morreram.

— Pojucã não carece do amor de Jandira. Nas   tabas dos tocantins, a mais bela das virgens se regozijaria de pertencer ao   mais valente dos chefes e de habitar sua rede. Nas tabas dos araguaias, onde   nascem guerreiros como Ubirajara, não faltarão virgens formosas,   que desejem a glória de ser mãe de um filho de Pojucã.

— Jandira seria a primeira, se não conhecesse Jaguarê,   o mais belo dos jovens caçadores, que é hoje Ubirajara, o senhor   da lança e chefe dos chefes. Pojucã merece uma esposa que nunca   tenha ouvido o canto de outro guerreiro, para dar-lhe um filho digno dele.

— Os ritos de tua nação não punem   a noiva que rejeita o prisioneiro?

— Jandira sabe que sujeita-se à morte; mas a morte   é menos cruel do que o abandono.

— Então foge, virgem dos araguaias; e esconde-te   à cólera dos anciões. Talvez mais tarde Ubirajara se arrependa   e te perdoe.

— Jandira parte. Ela te deseja uma esposa terna e a morte   gloriosa.

A filha de Majé penetrou na floresta e afastou-se   rapidamente da taba.

Quando já estava muito longe, sentou à sombra   de um manacá coberto de flores e cantou

— Eu fui Jandira, a linda abelha, que fabricava os favos   de cera para enchê-los de mel saboroso.

"Agora arrancaram-me as minhas asas com que eu voava pela   campina colhendo o pó das flores e secou a docura de meu sorriso.

"O canto que saía de meu seio era como o da patativa   ao pôr-do-sol, quando se recolhe em seu ninho de paina macia.

"Agora eu queria ter no coracão uma serpente para   morder aquela que roubou-me o amor de meu guerreiro.

"Guardei a minha formosura para orgulho do esposo, e inveja   dos outros guerreiros.

"Agora eu trocaria a flor do meu rosto por um aspecto terrível   que infundisse pavor.

"Meus seios mais lindos que os botões do cardo,   por um peito feroz, e as mãos ligeiras que tecem os fios do algodão   pelas garras do jaguar.

"Eu fui Jandira, o manacá viçoso que se vestia   de flores azuis e brancas.

"Agora sou como a juçara que perdeu a folha,   e só tem espinhos para ferir aqueles que se chegam."

 

* * *

 

Os anciões já estavam reunidos na oca do   conselho, quando Ubirajara entrou.

Falou Camacã

— Ubirajara, senhor da lança, chefe dos chefes,   os pais da grande nação araguaia escutam a tua voz.

O grande chefe três vezes bateu no chão com   a ponta do arco e disse

— Pojucã, o chefe tocantim, pede a morte do combate;   ele a merece, porque é um grande guerreiro e um varão ilustre.   Ubirajara concedeu-lhe essa honra, como seu vencedor.

— Ubirajara é um inimigo generoso, respondeu Camacã.

Todos os anciões inclinaram gravemente a cabeça   encanecida para exprimirem sua aprovação às palavras de   Camacã.

Prosseguiu Ubirajara

— É tempo de escolher para o prisioneiro uma esposa   digna de acompanhar em seus últimos dias ao herói inimigo, e de   ser mãe do marabá, o filho da guerra.

Todos os abarés desejavam para si a glória   de oferecer uma filha ao prisioneiro.

— Ubirajara destinou-lhe Jandira, filha de Majé.   Ela o merece por sua formosura e pelo sangue do grande guerreiro que gira em   suas veias.

— Ubirajara é um grande chefe, disse Camacã.

Os anciões aprovaram outra vez com a cabeça;   Majé acrescentou

— O sangue do velho Majé não desmentirá   em Jandira a fama da nação araguaia.

— Não! disse Ubirajara, e todos os anciões   repetiram-Não!

O grande chefe tornou com a voz pausada

— Celebrai a cerimônia da entrega da esposa ao prisioneiro.   Ubirajara parte; só estará de volta na próxima lua para   assistir ao suplicio de Pojucã. Se na ausência de Ubirajara cair   na taba a flecha, núncia da guerra, conduzi o trocano ao sitio onde se   abraçam os grandes rios e soltai a voz da nação araguaia.   Nesse dia Ubirajara será convosco.

Os prudentes anciões, com a cabeça inclinada   para melhor ouvir, recebiam as palavras do grande chefe e as guardavam na memória.

Quando Ubirajara calou-se, Camacã repetiu, ainda   mais pausado, as recomendações do filho

— É esta a vontade de Ubirajara?

— Tu o disseste.

— Os anciões guardaram a palavra do chefe dos chefes?   perguntou ainda Camacã.

— Ela entrou no espírito dos abarés, como   a raiz no seio da terra; observou Majé.

— Bem dito; repetiram todos.

Ubirajara saiu do carbeto; após ele os anciões   se retiraram lentamente.

 

A HOSPITALIDADE

 

Na entrada do vale ergue-se a grande taba dos tocantins.   É a hora em que as sombras abraçam os troncos das árvores   e o sol descansa em meio da carreira.

A floresta emudece e todos os viventes se abrigam da calma   que abrasa.

Ubirajara deixa o escuro da mata e caminha para a grande   taba dos tocantins.

Quando chegou à distância do tiro de uma flecha   despedida pelo mais robusto guerreiro, tocou a inúbia.

O guerreiro de vigia respondeu; e o chefe araguaia, quebrando   a seta, alçou a mão direita para mostrar a senha da paz.

Então avançou para a taba; na entrada da   caiçara que cercava o campo dos tocantins, atirou ao chão a seta   partida.

Os guerreiros que tinham acudido ao som da inúbia,   deixaram passar o estrangeiro sem inquirir donde vinha, nem o que trouxera.

Era este o costume herdado de seus maiores; que o hóspede mandava na taba aonde Tupã o conduzia.

Ubirajara passou entre os guerreiros e dirigiu-se à   cabana mais alta que ficava no centro da ocara.

A figura do tucano, feita de barro pintado, e colocada   em cima da porta, dizia que era ali a cabana do grande chefe. Mas Ubirajara   já o sabia; pois antes de penetrar na taba, subira à grimpa do   mais alto cedro da floresta para conhecer o sítio once habitava Araci,   a estrela do dia.

A cabana estava deserta naquele instante, mas ouvia-se   a fala das mulheres que trabalhavam no terreiro.

Ubirajara transpôs o limiar e, levantando a voz,   disse

— O estrangeiro chegou.

Acudiram as mulheres e conduziram Ubirajara à presença   do grande chefe dos tocantins.

Itaquê passava as horas da ardente calma à   sombra da frondosa gameleira, que podia abrigar cem guerreiros embaixo de sua   rama.

Repousando dos combates, o formidável guerreiro   não desdenhava as artes da paz em que era tão consumado como   nas batalhas.

Assim honrava as fadigas da taba, dando o exemplo do trabalho   à família de que era pai, e à nação de que   era chefe.

Nesse momento as mulheres colocadas em duas filas, com   as mãos erguidas, urdiam os fios de algodão, passados pelos dedos   abertos em forma de pente. Itaquê manejava a lançadeira, tão   destro como na peleja vibrava o tacape. Sua mão ligeira tramava a teia   de uma rede, que entretecia das penes douradas do galo-da-serra.

Quando chegou Ubirajara, o grande chefe dos tocantins,   depois de ter rematado a urdidura, entregou a lançadeira ao guerreiro   Pirajá que estava a seu lado, e veio ao encontro do hóspede.

— O estrangeiro veio à cabana de Itaquê, grande   chefe da nação tocantim; disse Ubirajara.

— Bem-vindo é o estrangeiro à cabana de Itaquê,   grande chefe da nação tocantim.

Então o tuxava voltou-se para Jacamim, a mãe   de seus filhos

— Jacamim, prepara o cachimbo do grande chefe, pare que   ele e o estrangeiro troquem a fumaça da hospitalidade.

Os mensageiros já corriam pela taba, avisando os   guerreiros moacaras da vinda do hóspede à cabana de Itaquê.

Os moacaras, revestidos de seus ornatos de festa, se encaminharam   com o passo grave à oca principal, a fim de honrar o hóspede do   grande chefe da nação tocantim.

Ali chegados, cada um dirigiu ao estrangeiro a pergunta   da hospitalidade e deu-lhe a boa-vinda.

 

* * *

 

Depois que Itaquê ofereccu a Ubirajara o cachimbo   da paz, e com ele trocou a fumaça da hospitalidade, os cantores entoaram   a saudação da chegada

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Ele   traz a alegria à cabana; e quando parte, leva consigo a fama do guerreiro   que teve a fortuna de o acolher.

"Nas tabas por onde passe, e na terra de seus pais, ele   conta aos velhos, que depois ensinam aos moços, as proezas dos heróis   que viu em seu caminho, e de quem recebeu o abraço da paz.

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Ele   traz consigo a sabedoria; na cabana do guerreiro, que tem a fortune de o acolher,   todos o escutam com respeito.

"Em suas palavras prudentes, os anciões da taba   aprendem, para ensinar aos moços, os costumes dos outros povos, as façanhas   de guerras desconhecidas por eles, e as artes da paz, que o estrangeiro viu   em suas viagens.

"O hóspede é mensageiro de Tupã. O   primeiro que apareceu na taba dos avós da nação tocantim,   foi Sumé, que veio donde a terra começa e caminhou pare onde a   terra acaba.

"Dele aprenderam as nações a plantar a mandioca   para fazer a farinha; e a tirar do caju e do ananás o generoso cauim,   que alegra o coração do guerreiro.

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Quando   o estrangeiro entra na cabana, o guerreiro que tem a fortuna de o acolher, não   sabe se ele é um chefe ilustre ou o grande Sumé que volta de sua   viagem.

"O sábio ensina, por onde passa, os segredos da   paz, e o herói, as façanhas da guerra; mas ambos deixam na cabana   da hospitalidade, a glória de ter abrigado um grande varão.

"O hóspede é mensageiro de Tupã. Por   seu caminho vai deixando a abundância e a festa; depois do banquete da   boa-vinda, as árvores vergam com os frutos e a caça não   cabe na floresta.

"A cabana, que fecha a porta ao hóspede, o vento   a arranca, o fogo do céu a abrasa. O guerreiro que não se alegra   com a chegada do hóspede, vê murchar ao redor de si a esposa, os   filhos, as mulheres e as roças que ele plantou.

"Bem-vindo seja o estrangeiro na cabana de Itaquê,   o grande chefe da nação tocantim, que teve a glória de   ser escolhido pelo hóspede.

"Os guerreiros exultam com a honra de seu chefe, e os cantores   te saúdam, mensageiro de Tupã."

Enquanto na cabana ressoa o canto da boa-vinda, Jacamim,   a esposa de Itaquê, chamou as amantes do marido, sues servas, pare ajudá-la   a preparar o banquete da hospitalidade.

As servas pressurosas estenderam à sombra da gameleira   as alvas esteiras de palmas entrançadas de airi; e colocaram sobre elas   os urus cheios de farinha-d'água.

Trouxeram também os camucins rasos, onde se apinhavam   as moquecas envoltas em folhas de banana, e peças de carne, assada no   biaribi, que ainda fumegava nos pratos feitos de concha de tartaruga.

Depois suspenderam a caça mais volumosa, veados   e antas, assim como as igaçabas de cauim, nos ramos inclinados da árvore,   em altura que o braço do guerreiro pudesse alcançar.

Frutas de várias espécies, pencas douradas   de bananas, cachos roxos de açaí, os rubros croás e os   fragrantes abacaxis, enchiam o jirau levantado no meio do terreiro.

 

* * *

 

Jacamim conduzira o hóspede à sombra da gameleira,   onde o esperava o banquete da chegada.

Ao lado de Ubirajara sentou-se Itaquê e depois os   moacaras que tinham vindo para a festa da hospitalidade.

Os guerreiros comeram em silêncio. As mulheres diligentes   os serviam, enchendo de vinho de caju e ananás as largas cumbucas, tintas   com a pasta do crajuru que dá o mais brilhante carmim.

Quando o hóspede, depois de satisfeito o apetite,   lavou o rosto e as mãos, Jacamim ordenou às servas que recolhessem   os restos das provisões, e retirou-se com elas.

Também afastaram-se os jovens guerreiros, que ainda   não tinham voz no conselho. Só ficaram sentados com o hóspede,   Itaquê, e os moacaras, senhores das cabanas.

O cachimbo do grande chefe passou de mão em mão   e cada ancião bebeu a fumaça da erva de Tupã, que inspira   a prudência no carbeto.

Então disse o chefe

— Itaquê deseja dar a seu hóspede um nome   que lhe agrade; e precisa que o ajude a sabedoria dos anciões.

A lei da hospitalidade não consentia que se perguntasse   o nome ao estrangeiro que chegava, nem que se indagasse de sua nação.

Talvez fosse um inimigo; e o hóspede não   devia encontrar na cabana onde se acolhia, senão a paz e a amizade.

O chefe, que tinha a fortuna de receber o viajante, escolhia   o nome de que ele devia usar enquanto permanecia na cabana hospedeira.

Foi Ipê quem primeiro falou

— Tu chamarás ao hóspede Jutaí, porque   sua cabeça domina o cocar dos mais fortes guerreiros, como a copa do   grande pinheiro aparece por cima da mata.

Disse Tapir

— Chama ao hóspede Boitatá, porque ele tem   os olhos da grande serpente de fogo, que voa como o raio de Tupã.

Os moacaras, cada um por sua vez, falaram; e como a voz   começava do mais moço para acabar no mais velho, as últimas   falas eram menos guerreiras e traziam a prudência da idade.

Assim Caraúba, que era o segundo antes do chefe,   disse

— Itaquê, o hóspede é o núncio   da paz. Tu deves chamá-lo Jutorib, porque ele trouxe a alegria à   tua cabana.

Guaribu, cujos anos enchiam a corda de sua existência   de mais nós, do que tem o velho cipó da floresta, falou por último

— O viajante é senhor na terra que ele pisa como   hóspede e amigo; e o nome é a honra do varão ilustre, porque   narra sua sabedoria. Pergunta ao estrangeiro como ele quer ser chamado na taba   dos tocantins.

— Bem dito!

Itaquê, aprovando as palavras prudentes do ancião,   perguntou a Ubirajara que nome escolhia; este lhe respondeu

— Eu sou aquele que veio trazido pela luz do céu.   Chama-me Jurandir.

Nesse momento, Araci, a estrela do dia, apareceu por entre   as palmeiras e caminhou para a cabana.

Os mais valentes entre os jovens guerreiros tocantins acompanhavam   a formosa caçadora. Eram os servos do amor, que disputavam a beleza da   virgem.

Os cantores saudaram de novo o hóspede pelo nome   que ele escolhera

— Tu és aquele que veio trazido pela luz do céu.   Nós te chamaremos Jurandir; para que te alegres ouvindo o nome de tua   escolha.

"Tu és aquele que veio trazido pela luz do céu.   Nós te chamaremos Jurandir; e o nome de tua escolha alegrará o   ouvido dos guerreiros."

 

* * *

 

De longe Araci viu o estrangeiro, sentado entre os anciões,   como o frondoso jacarandá no meio dos velhos troncos das aroeiras.

A virgem reconheceu logo o caçador araguaia e adivinhou   que ele viera à cabana de Itaquê para disputar sua beleza aos guerreiros   tocantins.

O coração de Araci encheu-se de alegria.   Seus negros cabelos estremeceram de contentamento, como as penas da jaçan   quando pressente o formoso inverno.

O estrangeiro não queria ser conhecido; pois deixara   o cocar das plumas da arara, que eram o ornato guerreiro de sua nação.   Mas a imagem do jovem caçador ficara na lembrança da virgem, como   fica na terra a verde folhagem, depois da lua das águas.

A lei da hospitalidade proibia à virgem revelar   o segredo do estrangeiro, só dela sabido. Nesse momento foi à   sua alma que obedeceu e não ao costume da nação.

Quando Araci chegou ao terreiro, os anciões se preparavam   para ouvir a maranduba do hóspede. Os guerreiros e as mulheres escutavam   em silêncio.

O estrangeiro começou

— Jurandir é moço; ainda conta os anos pelos   dedos e não viveu bastante para saber o que os anciões da grande   nação tocantim aprenderam nas guerras e nas florestas.

"O moço é o tapir que rompe a mata, e voa   como a seta. O velho é o jabuti prudente que não se apressa.

"O tapir erra o caminho e não vê por onde   passa. O jabuti observa tudo, e sempre chega primeiro.

"Jurandir é moço; mas conhece as grandes   florestas; e atravessou mais rios do que as veias por onde corre o sangue valente   de seu pai.

"A primeira água em que Jaçanã, sua   mãe, o lavou, quando ele rasgou-lhe o seio, foi a do grande lago onde   Tupã guardou as águas do dilúvio, depois que as retirou   da terra.

"Ainda Jurandir não era um caçador, quando   ele se banhou no pará sem fim, onde os rios despejam a sua corrente,   e cujas águas quando dormem se mudam em sal.

"Duas vezes Jurandir seguiu o pai dos rios, desde a grande   montanha onde nasce, até a várzea sem fim que ele enche com suas   águas.

"Ele viu o grande rio combater com o mar, no tempo da pororoca.   Os dois chefes tocam a inúbia antes da peleja, para chamar seus guerreiros.

"Vêm de um lado as águas do mar; são   os guerreiros azuis, com penachos de araruna; vêm do outro as águas   do rio; são os guerreiros vermelhos com penachos de nambu.

"Começa a batalha. Os guerreiros se enrolam, como   a corrente da cachoeira, batendo no rochedo; a terra estremece com o trovão   das águas.

"Mas o grande rio agarra o mar pela cintura. Arranca do   chão o inimigo; carrega-o nos ombros; solta o grito de triunfo.

"Por muito tempo os Tetivas, que habitam sobre as   árvores, vêem passar correndo as águas do marsão   os guerreiros azuis que fogem espavoridos e vão esconder-se na sombra   das florestas.

"Jurandir também viu a terra onde habitam as mulheres   guerreiras (48), senhoras de seu corpo, que vivem embaixo das águas   do grande rio.

"Só elas sabem o segredo das pedras verdes, que   tornam os guerreiros cativos de seu amor, sem privá-las da liberdade.

"Por isso, todas as luas, grande número de guerreiros   as visitam em sua taba; e elas guardam para os mais valentes a flor de sua beleza.

"Quando chega o tempo de vir o fruto do amor, guardam somente   as filhas; e enviam aos guerreiros os filhos, donde saem os maiores chefes.

"Feliz o guerreiro que acha uma terra valente e fecunda   para a flor do seu sangue. O filho será maior do que ele; e o neto maior   do que o filho.

"Sua geração vai assim crescendo de tronco   em tronco; e forma uma floresta de guerreiros, onde o último cedro se   ergue mais frondoso e robusto, porque recebe a seiva de seus avós. "

 

* * *

 

Quando Jurandir proferiu as últimas palavras, seus   olhos que tinham muitas vezes buscado Araci, repousaram nela.

A virgem tocantim compreendeu que o estrangeiro se referia   a si; e não escondeu sua alegria, como não esconde sua flor a   juquiri que o rio beija.

A formosa caçadora cantou. Sua voz era límpida   e sonora como o gorjeio do sabiá, quando se deleita com o calor do sol.

— Feliz a terra que recebe a semente do cedro frondoso   e robusto; ela se cobrirá de sombra e frescura. Os guerreiros gostarão   de reunir-se aí para falar da paz e da guerra.

"Ela é como a virgem que um chefe ilustre escolheu   para sua esposa, e que se povoa de uma prole numerosa. As nações   a respeitam porque é a mãe de valentes guerreiros; os anciões   escutam seu conselho na paz e na guerra.

"As mulheres guerreiras, senhoras de seu corpo, são   como a palmeira do muriti, que rejeita o fruto antes que ele amadureça   e o abandona à correnteza do rio.

"A esposa não desprende de si o filho, senão   quando ele não chupa mais seu peito. Ela é como a mangabeira;   nutre o fruto com seu leite, que é a flor de seu sangue.

"Não é na terra das mulheres guerreiras que   o estrangeiro deve buscar a esposa; mas na taba de sua nação,   onde Tupã guarda para seu valor a mais bela das virgens, aquela que tem   o sorriso de mel."

O hóspede respondeu

— Jurandir sabe onde encontrará a virgem que deseja   para esposa. A luz do céu o guia, e nada resiste à força   de seu braço.

Depois de responder ao canto de Araci, o estrangeiro continuou   sua maranduba, que todos ouviram silenciosos.

Ele contou o que havia aprendido nas praias do mar, habitadas   pela valente nação dos tupinambás, descendentes da mais   antiga geração de Tupi.

Os pajés dos tupinambás lhe disseram que   nas águas do pará sem fim vivia uma nação de guerreiros   ferozes, filhos da grande serpente do mar.

Um dia esses guerreiros sairiam das águas para tomarem   a terra às nações que a habitam; por isso os tupinambás   tinham descido às praias do mar, para defendê-las contra o inimigo.

Os guerreiros do mar também tinham suas guerras   entre si, como os guerreiros da terra. Então as águas pulavam   mais altas do que os montes; seu estrondo era como o trovão.

Jurandir contou mais, que nas praias do mar se encontrava   uma resina amarela, muito cheirosa, a qual a grande serpente criava no   bucho.

Os tupinambás faziam dessa goma contas para seus   colares; Jurandir mostrou a pulseira que lhe cingia o artelho, presente de um   guerreiro daquela nação.

Essas contas tornavam o pé do guerreiro ágil   na corrida, e protegiam o viajante contra os caiporas da floresta, que apartavam-se   de seu caminho.

Muitas outras coisas referiu Jurandir; e os anciões   admiravam-se de ver o juízo prudente de um abaré no corpo jovem   de tão forte guerreiro.

Os mais velhos dos moacaras acreditaram que o hóspede   era filho de Sumé, mandado por seu pai correr as terras que o sábio   tinha visto em sua mocidade.

Calaram porém seu pensamento, para o comunicarem   aos anciões quando se reunisse o carbeto da nação.

 

* * *

 

O sol já descia para as montanhas, quando terminou   a festa da hospitalidade na cabana de Itaquê.

Os moacaras partiram. Itaquê voltando à sua   ocupação, deixou o hóspede senhor de sua vontade, para   fazer o que lhe agradasse.

Vieram os jovens pescadores da taba, com os anzóis   e jequis, saber do hóspede que peixe ele preferia.

Depois deles chegaram os jovens caçadores que, antes   de partir para a floresta, vinham receber os desejos do hóspede.

Por fim aproximaram-se as mulheres que já tinham   rompido o fio da virgindade; mas não eram nem esposas, nem amantes de   guerreiros.

Essas eram as mulheres livres, que davam seu amor e o retiravam   quando queriam, mas não recebiam a proteção de um guerreiro,   nem podiam jamais ser mães da prole.

Os filhos, concebidos no próprio seio, só   tinham por mãe a esposa, que o guerreiro tomou por companheira de sua   existência e raiz de sua geração.

O rito da hospitalidade, entre os filhos da floresta, manda   que se dê ao estrangeiro amigo tudo que deleita ao guerreiro.

Por isso vinham as moças oferecer a Jurandir   sua beleza, para que ele escolhesse entre elas uma companheira, que partilhasse   sua rede na cabana hospedeira.

Todas se tinham enfeitado com seus mais belos ornatos,   para agradar aos olhos de Jurandir; pois não havia para elas maior glória   do que a de merecer o amor do estrangeiro.

Umas traziam as tranças urdidas com penas vistosas   dos pássaros de sua predileção; outras haviam perfumado   da essência do sassafrás os cabelos soltos, que derramavam sua   fragrância ao sopro da brisa.

Chegando diante do estrangeiro, começaram uma dança   amorosa para mostrar a graça do seu corpo. Aquelas que tinham a voz doce   cantavam em louvor de Jurandir.

Araci fora buscar seu balaio de palha vermelha, e sentara-se   no terreiro, junto à porta da cabana. Seus dedos ágeis enfiavam   as sementes de jequiriti, de que fazia um ramal para seu colo gentil.

Enquanto compunha o colar, a virgem percebia que os olhos   de Jurandir abandonavam os encantos das mulheres e buscavam seu rosto.

Mas ela voltava-se para a floresta; com o trinado de seus   lábios chamava o crajuá, que voava no olho da palmeira. O passarinho,   iludido, vinha, cuidando ouvir o canto da companheira.

Jurandir apartou as mulheres e disse

— As moças tocantins são formosas; qualquer   delas alegraria o sono do estrangeiro. Mas Jurandir não veio à   cabana de Itaquê para gozar do amor de uma noite; ele velo buscar a esposa   que há de acompanhá-lo até à morte, e a virgem que   escolheu para mãe de seus filhos.

Quando Araci ouviu estas palavras cobriu-se de sorrisos,   como o guajeru se cobre de suas flores alvas e perfumadas, com os orvalhos da   manhã.

Jurandir voltou-se então para a virgem caçadora.

— Estrela do dia, Araci, conduze-me à presença   de Itaquê. É tempo que ele saiba o segredo do estrangeiro.

— Os sonhos disseram a Araci, duas noites seguidas, que   o jovem caçador chegaria à cabana de Itaquê; ela te esperou.   Quando meus olhos te viram sentado entre os moacaras, logo conheceram que tu   vinhas buscar a esposa.

O estrangeiro respondeu

— Jurandir chegou à taba dos seus, e recebeu um   nome de guerra e o grande arco de sua nação. Mas a cabana do chefe   estava deserta; e sua rede não lhe guardou o sono tranqüilo do guerreiro.   Ele ouviu tua voz que o chamava, virgem tocantim, e ergueu-se; tua luz o guiou,   filha do sol, e o trouxe à tua presença.

 

SERVO DO AMOR

 

Jurandir, conduzido pela virgem, caminhou ao encontro de   Itaquê e disse

— Grande chefe dos tocantins, Jurandir não veio   à tua cabana para receber a hospitalidade; veio para servir ao pai de   Araci (53), a formosa virgem, a quem escolheu para esposa. Permite que ele a   mereça por sua constância no trabalho, e que a dispute aos outros   guerreiros pela força de seu braço.

Itaquê respondeu

— Araci é a filha de minha velhice. A velhice é   a idade da prudência e da sabedoria. O guerreiro que conquistar uma esposa   como Araci terá a glória de gerar seu valor no seio da virtude.   Itaquê não pode desejar para seu hóspede maior alegria.

Desde esse momento, Jurandir não foi mais estrangeiro   na taba dos tocantins. Pertencia à oca de Itaquê, e devia, como   servo do amor, trabalhar para o pai de sua noiva.

Os guerreiros, cativos da beleza de Araci, conheceram que   tinham de combater um adversário formidável; mas seu amor cresceu   com o receio de perder a filha de Itaquê.

Jurandir tomou suas armas e desccu ao rio. Era a hora em   que o jacaré bóia em cima das águas como o tronco morto;   e a jaçanã se balança no seio do nenúfar.

O manati erguia a tromba para pastar a relva na margem   do rio. Ouvindo o rumor das folhas, mergulhou na corrente, mas já levava   o arpéu do pescador, cravado no lombo.

Jurandir não esperou que o peixe ferido desenrolasse   toda a linha. Puxou-o para terra; e levou-o ainda vivo à cabana de Itaquê,   onde três guerreiros custaram a deitá-lo no jirau.

As mulheres cortaram as postas de carne e os guerreiros   cavaram a terra para fazer as grelhas do biaribi.

Jurandir partiu de novo e entrou na floresta. Ao longe   reboavam os gritos dos caçadores que perseguiam a fera.

Pelo assobio o guerreiro conheceu que era um tapir. O animal   zombara dos caçadores e vinha rompendo a mata como a torrente do Xingu.

As árvores que seu peito encontrava caíam   lascadas.

Jurandir estendeu o braço. O velho tapir, agarrado   pelo pé, ficou suspenso na carreira, como o passarinho preso no laço.   Nunca, até aquele momento, encontrara força maior que a sua.

Uma vez descera à lagoa para beber. A sucuri, que   espreitava a caça, mordeu-o na tromba. Ele fugia, esticando a serpente;   e a serpente encolhendo-se, o arrastava até à beira d'água.

Assim tornou uma, duas, três vezes. Mas o tigre urrou   de fome. O velho tapir disparou pela floresta; e a sucuri com a cauda presa   à raiz da árvore arrebentou pelo meio.

O velho tapir rompeu a serpente como se rompe uma corda   de piaçaba; mas não pôde abalar o braço de Jurandir,   mais firme do que o tronco do guaribu.

O estrangeiro tornou à cabana com a caça.   Nenhum dos guerreiros da taba, nem mesmo o velho Itaquê, pôde agüentar   com as duas mãos a fera bravia.

Então Jurandir obrigou o animal a agachar-se aos   pés de Araci e disse

— O braço de Jurandir fará cair assim, a   teus pés, o guerreiro que ouse disputar ao seu amor a tua formosura,   estrela do dia.

 

* * *

 

Nunca a abundância reinara na cabana sempre farta   do chefe dos tocantins, como depois que a ela chegara o estrangeiro.

Jurandir era o maior caçador das florestas e o primeiro   pescador dos rios. Seu olhar seguro penetrava na espessura das brenhas, como   na profundeza das águas.

Nada escapava à destreza de sua mão. Onde   ela não chegava, iam as unhas de suas flechas certeiras, que rasgavam   o seio da vítima, como as garras do jaguar.

O estrangeiro soubera de Araci, qual era a caça   que Itaquê preferia e qual o peixe que ele achava mais saboroso. Desde   então nunca o velho chefe sentiu a falta do manjar predileto.

Se não era a lua própria do peixe desejado,   Jurandir sabia onde o podia encontrar. Não tornava à cabana sem   a provisão necessária para a refeição do dia.

Depois da caça e da pesca, Jurandir trabalhava nas   roças de Itaquê. Fazia no tabuleiro os matumbos, para que Jacamim   enterrasse as estacas da maniva e semeasse o feijão, o milho e o fumo.

Entre os filhos das florestas, a plantação   devia ser feita pela mão da mulher, que era mãe de muitos   filhos; porque ela transmitia à terra sua fecundidade.

A semente que a mão da virgem depositava no seio   da terra dava flor; mas da flor não saía fruto. E se era um guerreiro   que plantava, o aipim endurecia como o pau-d'arco.

Nas vazantes do rio, Jurandir capinava a terra coberta   de relva e outras plantas, e só deixava crescer o arroz, o inhame e as   bananeiras.

Quando o estrangeiro partia pela manhã, Araci o   acompanhava de longe pela floresta. Sua vontade a levava após ele.

O costume da taba não consentia que a virgem desejada   pelos servos do seu amor preferisse um guerreiro, antes de saber se ele a obteria   por esposa.

A filha de Itaquê não queria pertencer a outro   guerreiro. Mas lembrava-se que a virgem deve merecer o esposo por sua paciência;   assim como o guerreiro merece a esposa por sua constância e fortaleza.

Então voltava ao terreiro enquanto os outros guerreiros   espreitavam sua vontade, ela tecia as franjas para a rede do casamento.

Sua mão sutil urdia como alvo fio do crauatá   a fina penugem escarlate. Os noivos cuidavam que era a do peito do tucano; mas   ela sabia que era do peito da arara e que tinha as cores do seu guerreiro.

Quando o sol chegava ao cimo dos montes, ouvia-se o canto   de Jurandir que voltava da caça. A virgem, seguida pelos guerreiros,   ia ao encontro do estrangeiro.

Então desciam ao rio. Era a hora do banho. Araci   cortava as ondas mais lindas que a garça cor-de-rosa; e os guerreiros   a seguiam de perto, como um bando de galeirões.

Mas nenhum, nem mesmo Jurandir, que nadava como um boto,   podia alcançar a formosa virgem. Ela parecia a flor do mururê que   se desprendeu da haste e passe levada pela corrente.

Uma vez a filha das águas soltou um grito e desapareceu   no seio das ondas. Jacamim cuidou que o jacaré tinha arrebatado a filha   de seu seio. Os guerreiros mergulharam pare salvá-la; mas não   a encontraram.

Todos a julgavam perdida, quando apareceu Jurandir que   trazia nos braços o corpo da virgem formosa. Pisando em terra, ela correu   para a cabana, onde foi esconder sua alegria.

Desde então, era no banho que Araci recebia o abraço   de Jurandir, sem que os outros guerreiros suspeitassem da preferência   dada ao estrangeiro.

No seio das ondas ninguém a adivinhava a não   ser o ouvido sutil de Jurandir, a quem ela chamava com o doce murmúrio   do irerê.

Encontravam-se no fundo do rio, enquanto durava a respiração.   Depois desprendiam-se do abraço e surgiam longe um do outro.

 

* * *

 

Tarde, voltando da caça, Jurandir viu na floresta   um rastro, que ele conhecia.

Chegado à cabana, entregou a Jacamim o veado que   matara e saiu para visitar os arredores. Nada encontrou de suspeito; o rastro,   que o inquietava, não chegara até ali.

No outro dia, ao romper da alvorada, logo depois do banho,   os guerreiros partiram para a caça e para a pesca. Só ficaram   na cabana Jacamim e as mulheres de Itaquê.

Araci tomou o arco e entrou na floresta. A imagem do guerreiro   amado fugia naquele instante de seus olhos; eles buscaram entre as folhas o   sinal de seus passos e não o descobriram.

Lembrou-se a virgem, que Jurandir gostava da polpa do guaraná   adoçada com o mel da abelha; e colheu os frutos encarnados que pendiam   dos ramos da trepadeira.

Nesse momento a arara cantou no olho do pirijá (57).   Araci precisava de suas plumes vermelhas, para o cocar que ela tecia em segredo.

Era o cocar do amor, com que desejava ornar a cabeça   de seu guerreiro e senhor, no dia em que ele a conquistasse por esposa.

A virgem armou o arco e seguiu a arara rompendo a folhagem.   Quando ia disparar a seta, ouviu ao lado um rumor desusado.

Jurandir estava perto dela e segurava o braço de   uma mulher, que ainda tinha na mão a macana afiada.

Araci conheceu a virgem araguaia pela faixa de algodão   entretecida de penas, que lhe apertava a curva da perna; e adivinhou que era   Jandira, a noiva do guerreiro.

— Filha de Majé, tua mão quis matar a virgem   que Jurandir escolheu para esposa. Tu vais morrer.

— Desde que Ubirajara abandonou Jandira, ela começou   a morrer, como a baunilha que o vento arranca da árvore. Acaba de matá-la;   para que sua alma te acompanhe de dia na sombra das florestas e te fale de noite   na voz dos sonhos.

— A virgem araguaia ameaçou a vida de Araci; ela   lhe pertence; disse a filha de Itaquê.

Jurandir cortou na floresta uma comprida rama de imbé   e atou as mãos de Jandira.

— Jandira é tua escrava. Não lhe dês   a liberdade. Ela tem a astúcia da serpente e seu veneno.

— Eu era a cobra-d'água, amiga do guerreiro, que   habita sua cabana e a guarda contra o inimigo. Quem foi que me fez a cascavel   venenosa, que traz nos lábios o sorriso da morte?

Jurandir não respondeu. Nesse momento ele teve saudade   de sue cabana e lembrou-se do tempo em que, jovem caçador, seguia na   floresta a formosa virgem araguaia.

 

* * *

 

As duas virgens ficaram sós no claro da floresta.

Já o rumor dos passos de Jurandir se apagara ao   longe e ainda tinham ambas os olhos cativos uma da outra.

Jandira pensou que ela não podia dar a Ubirajara   a formosura da filha de Itaquê. Araci receou que o amor do guerreiro se   voltasse outra vez para a linda virgem araguaia.

A filha de Majé preparou-se para morrer à   mão de sua rival, mas ela preferia a morte ao suplício de contemplar   sua beleza.

Araci, a estrela do dia, cantou

— O amor do guerreiro é a alegria da virgem; quando   ele foge, a virgem fica triste como a várzea que perdeu sua relva.

"Por isso Jandira está triste; o amor do guerreiro   fugiu dela; e a deixou solitária como a nambu, a quem o companheiro abandonou.

"Mas o amor do guerreiro é como o orvalho da noite.   Quando o sol queima a várzea, ele desce do céu para cobri-la de   verdura e de flores.

"Araci está alegre; porque o amor do guerreiro voltou-se   para ela; e Jurandir vai fazê-la companheira de sua glória e mãe   de seus filhos.

"Quando a esposa de Jurandir não tiver mais beleza   para dar a seu guerreiro, ela consentirá que Jandira durma em sua rede.

"E o orvalho da noite descerá do céu para   cobrir a várzea de verdura e de flores. E Jandira achará outra   vez seu sorriso de mel."

Assim cantou Araci, a estrela do dia; e a virgem araguaia   respondeu

— A árvore que morreu não sofre quando o   fogo a queima. Jandira prefere a morte à vergonha de ser tua serva e   à tristeza de ver a cada instante a formosura da estrangeira que roubou   seu amor.

"Araci, a estrela do dia, é mais bela do que Jandira,   mas não sabe amar o guerreiro, que a escolheu para mãe de seus   filhos.

"Nunca Jandira ofereceria sua rede de esposa a outra   mulher; e aquela que recebesse o amor de seu guerreiro morreria por sua mão.

"Ela amaria seu esposo tanto que sua graça nunca   se retirasse dela; pois saberia morrer quando não tivesse mais beleza   para dar-lhe.

"A nação araguaia nunca levanta a taba do   vale onde acampou, senão quando a terra já não pode dar-lhe   mais frutos.

"Assim é o guerreiro. Ele não retira seu   amor da esposa que habita, senão quando ela já não sabe   alegrar sua alma."

Tornou a virgem tocantim

— A cajazeira depois que dá seu fruto perde a folha;   o guerreiro busca a sombra de outra árvore para repousar.

"Mas vem a lua das águas e a cajazeira outra vez   se cobre de folhas; sua sombra é doce ao guerreiro.

"A esposa é como a cajazeira. Quando o guerreiro   não acha alegria em seus braços, ela sofre que busque outra sombra   e espera que lhe volte a flor para chamá-lo de novo ao seio.

"Araci ama seu guerreiro, como Jacamim ama Itaquê.   A cabana do grande chefe dos tocantins está cheia de servas; mas seu   amor nunca abandonou a esposa.

"As servas deram a Itaquê muitos filhos; mas os filhos   da velhice, foi só Jacamim quem os deu ao grande chefe; porque o primeiro   amor do guerreiro não morre nunca.

"Ele é como a grama que nunca mais deixa a terra   onde nasceupodem arrancá-la que brota sempre.

"Araci quer apagar a tristeza de tua alma e beber o teu   sorriso de mel, para que o esposo ache mais doces seus lábios, quando   os provar.

"Tu serás irmã de Araci e lhe darás   um filho de Jurandir, tão valente, como os que seu amor há de   gerar no seio da esposa."

Jandira afastou os olhos da virgem dos tocantins, para   desviar dela sua ira.

— Tua palavra dói como o espinho da juçara,   que tem o coco mais doce que o mel.

"As flechas do teu arco não matam mais do que os   sorrisos que o amor do guerreiro derrama em teu rosto, estrela do dia.

"Ubirajara deixou-me por ti; mas foi a Jandira que ele   primeiro escolheu para esposa, quando ainda era jovem caçador.

"Nos campos alegres, onde vão os guerreiros quando   morrem, ele me chamará; e o guanumbi virá buscar a minha alma   no seio da flor do manacá para levá-la a seu amor.

"Mata-me ou deixa que eu morra para não ver mais   tua beleza e não ouvir o canto de tua alegria. "

Araci caminhou para Jandira e desatou-lhe os pulsos.

— O amor do guerreiro não pertence à mulher   que seus olhos primeiro viram; mas àquela que ele escolheu.

"Apanha teu arco; e morra aquela que não souber   defender seu amor e merecer o esposo. "

Araci disse, e tirou da uiraçaba uma seta. Jandira   ficou imóvel, com os pulsos cruzados, como se ainda estivessem presos

— A vontade de Ubirajara atou os braços de Jandira;   ela rejeita a liberdade dada por ti. Araci pode ser preferida; porém,   não será mais generosa do que a filha de Majé.

 

O COMBATE NUPCIAL

 

Chegou o dia, em que os noivos de Araci deviam disputar   a posse da formosa virgem.

Era a hora em que o sol transpondo a crista da montanha,   estende pelo vale sua araçóia d'ouro.

A grande nação tocantim cerca a vasta campina.   No centro estão os anciões, que formam o grande carbeto.

Em frente aparece Araci, a estrela do dia, que há   de ser o prêmio da constância e fortaleza do mais destro guerreiro.

Jacamim acompanha a filha; nesse momento remoça   com a lembrança do dia em que Itaquê a conquistou, lutando com   os mais feros mancebos tocantins.

De um e outro lado seguem pela ordem da idade os moacaras.   Cada um cerca-se da esposa, das servas e das filhas, que vieram para assistir   ao combate.

É a única das festas guerreiras, em que o   rito de Tupã consente a presença das mulheres, porque trata-se   de sua glória.

Contemplando o esforço heróico dos mais nobres   guerreiros para conquistar a formosura de uma virgem, as outras virgens aprendem   a prezar a castidade, e as esposas se ufanam de guardar a fé no primeiro   amor.

Itaquê, o grande chefe dos tocantins, preside ao   combate, orgulhoso pela valente nação que dirige, como pela formosa   virgem de que é pai.

Quando seus olhos admiram a multidão de guerreiros,   servos do amor de Araci, que se preparam a disputar a esposa, o grande chefe   ergue a fronte soberba como o velho ipê da floresta coroado de flores.

Os noivos se distinguem dos outros guerreiros pelo bracelete   de contas verdes, que o guerreiro cinge ao pulso da esposa, quando rompe a liga   da virgindade.

Lá caminha Pirajá, o grande pescador, senhor   dos peixes do rio, a quem obedece o manati e o golfinho.

Junto dele ergue-se Uiraçu, que tomou este nome   do valente guerreiro dos ares, pelo ímpeto do assalto.

Vem depois Araribóia, a grande serpente das lagoas,   Cauatá, o corredor das florestas, Cori, o altivo pinheiro, e tantos outros,   ainda mancebos, e já guerreiros de fama.

Entre todos, porém, assoma Jurandir. Sua fronte   passa por cima da cabeça dos outros guerreiros, como o sol quando se   ergue entre as cristas da serrania.

Os músicos fizeram retroar os borés, anunciando   o começo da festa; e os servos do amor se estenderam em linha pelo meio   da campina.

Então os nhengaçaras levantaram o canto nupcial

"A esposa é a alegria e a força do guerreiro.   Ela acende em suas veias um fogo mais generoso que o do cauim, e prepara para   seu corpo o repouso da cabana.

"Por isso, o primeiro desejo do mancebo, quando ganha nome   de guerra, é conquistar uma esposa.

"Não basta ser valente guerreiro para merecer a   virgem formosa, filha de um grande chefe; é preciso a paciência   para sofrer e a perseverança no trabalho.

"Araci, a estrela do dia, filha de Itaquê, será   a alegria e a glória do mais forte e do mais valente.

"Os filhos que ela gerar em seu seio, onde corre o sangue   do grande chefe, serão os maiores guerreiros das nações."

 

* * *

 

Itaquê deu o sinal; o combate começou.

Pirajá foi o primeiro que saiu a campo, e clamou   esgrimindo o tacape

— Araci, estrela do dia, tu serás esposa do guerreiro   Pirajá, que te vai conquistar pela força de seu braço.

Avançou Uiraçu, e disse

— A virgem formosa ama ao guerreiro Uiraçu e há   de pertencer-lhe.

A noiva cantou

— Araci ama o mais forte e mais valente. Ela pertencerá   ao vencedor, que vencer a bravura dos outros guerreiros, como venceu a vontade   da esposa.

A voz maviosa da virgem afagou a esperança de todos   os campeões; mas seus olhos ternos só viam o nobre semblante de   Jurandir, o escolhido de sua alma.

Os dois guerreiros travaram a pugna; os tacapes girando   nos ares encontravam-se como dois madeiros arrojados pelo remoinho da cachoeira.

Afinal Pirajá, ameaçado pelo bote do adversário,   recuou um passo do lugar em que se postara. Pela lei do combate estava vencido,   e teve de deixar o campo.

Araribóia tomou o seu lugar; e o combate prosseguiu   com vária fortuna, até Cori que, expelindo o vencedor, manteve-se   firme contra todos que vieram disputá-lo.

Faltava Jurandir. O estrangeiro avançou gravemente,   como convinha a um grande guerreiro da nação araguaia.

Ele queria dar ao vencedor de tantos combates, o tempo   preciso para descansar.

A mão do guerreiro arrastava pelo chão o   tacape, que desdenhava erguer para um combate sem glória.

Quando Jurandir achou-se em face do vencedor, levantou   a voz e disse

— Para merecer Araci, a estrela do dia, Jurandir queria   vencer a cem guerreiros, e não, combater um guerreiro fatigado.

"Tu empunhas um tacape; toma outro, habituado a vencer;   ele restituirá a teu braço a força que perdeu. Basta a   Jurandir esta mão, para te arrebatar todas as tuas vitórias. "

Disse, e arremessou a arma aos pés do adversário.

Cori, pensando que seu rival o atacava, desfechou-lhe o   golpe. Mas Jurandir aparou-o na mão firme e, arrebatando o tacape que   o ameaçava, arrancou o guerreiro do chão.

Assim o pinheiro que o tufão arrebata, antes de   partir o tronco, desprende a raiz da terra, onde nada o abalava.

Jurandir ficou só no campo. Mas todos os noivos   se haviam mostrado valentes guerreiros; talvez nas outras provas saíssem   vencedores.

 

* * *

 

Os músicos tocaram os borés; e os jovens   caçadores trouxeram para o meio do campo a figura da noiva.

Era um grosso toro de madeira, no qual a mão destra   de um pajé entalhara, com o dente da cutia, a cabeça de uma mulher.

Três caçadores vergavam com o peso da carga   e foram precisos dez para trazê-lo desde a cabana do pajé até   o campo, onde ficou semelhante a uma mulher sentada.

Na véspera, o pajé burnira de novo com a   folha da sambaiba o toro de madeira, e o esfregara com a banha do teiú,   para que ele escorregasse da mão do guerreiro como o lagarto da mão   do caçador.

Depois os mancebos guerreiros espalharam pelo campo, troncos   de árvores cortadas com as ramas e as folhas; e fincaram cercas de estacas   entre os barrancos da várzea que ia morrer à margem do rio.

Itaquê deu o sinal; e os guerreiros começaram   a nova prova, mais difícil que a primeira.

Era preciso que o guerreiro, à disparada, levantasse   do chão, sem parar, o toro de madeira; e se defendesse dos rivais que   o assaltavam para toma-lo.

Esse jogo era o emblema da agilidade e robustez, que o   marido devia possuir, para disputar a esposa e protegê-la contra os que   ousassem desejá-la.

Na primeira corrida foi Jurandir quem mais rápido   chegou. Como o condor que, rebatendo o vôo, leva nas garras a tartaruga   adormecida; assim o veloz guerreiro suspendeu a figura da esposa e com ela arremessou-se   pela campina.

Os outros o seguiam ardendo em ímpetos de roubar-lhe   a presa. Na planície aberta seria vão intento porque nenhum corria   como o estrangeiro.

Mas Jurandir achava diante de si, para tolher-lhe o passo,   as árvores derrubadas, os barrancos profundos e outros obstáculos   de propósito acumulados.

Não hesitou, porém, o destemido mancebo.   Saltou as corcovas, galgou as caiçaras, e subiu pelos galhos que estrepavam   o chão.

Uma vez os guerreiros aproximaram-se tanto, que Jurandir   sentiu nos cabelos o sopro da respiração ofegante. Em frente,   erguia-se a alta estacada.

Se tentasse subir, carregado como estava, os guerreiros   com certeza o alcançariam a tempo de arrancar-lhe a presa.

Então arremessou pelos ares o toro de madeira, como   se fosse o tacape de um jovem caçador; e seguiu após.

Sempre vencedor dos assaltos dos rivais, Jurandir percorreu   a vasta campina, e foi colocar a figura da esposa no meio do carbeto dos anciões.

Ali era o termo da correria. O guerreiro que chegava a   esse ponto com a sua carga, saía triunfante da prova.

Ele mostrava como arrebataria a esposa do meio dos inimigos   e a defenderia contra seus ataques até recolhê-la em um asilo seguro.

De todos os guerreiros só Cori e Uiraçu conseguiram   ganhar a prova; mas nenhum com a galhardia de Jurandir

Cori por vezes foi alcançado, e só à   confusão dos outros deveu escapar-se. Uiraçu recuperou a presa   já perdida, porque Pirajá, que havia empolgado, falseou na corrida   e tombou.

Os três vencedores entraram de novo em campo para   decidir entre si. O triunfo não se demorou. Jurandir o arrebatou, como   o gavião arrebata a presa que disputam duas serpes.

Soaram os borés; e ao som do canto de triunfo entoado   pelos nhengaçaras, os chefes e os guerreiros saudaram o vencedor dos   vencedores.

 

* * *

 

Quando voltou o silêncio, Ogib, o grande pajé   dos tocantins, estava em pé no meio do campo.

Junto dele, uma das velhas mães dos guerreiros segurava   o camucim da constância, que tinha o bojo pintado de vermelho.

O pajé disse

— Não basta que o guerreiro seja forte e valente,   para merecer a esposa.

"É preciso que tenha a constância do varão,   e não se perturbe com o sofrimento.

"É preciso que ele tenha a paciência do tatu,   e suporte sereno as mortificações das mulheres, e as importunações   das crianças.

"O guerreiro que não tem constância e paciência,   depressa gasta suas forças.

"O rio que se derrama pela várzea, nunca verá   suas margens cobertas de grandes florestas.

"Assim é o guerreiro que não sabe sofrer,   e derrama sua alma em lamentações.

"Nunca ele será pai de uma geração   forte e gloriosa, nem verá sua cabana povoar-se dos guerreiros de seu   sangue.

"Se queres merecer a filha de Itaquê, mostra, Jurandir,   que és varão ainda maior do que o famoso guerreiro que todos admiram."

O grande pajé levantou o tampo do camucim, e descobriu   uma abertura, bastante para caber o punho do mais robusto guerreiro.

Jurandir meteu a mão no vaso. O semblante sempre   grave do guerreiro cobriu-se de um sorriso doce como da luz a alvorada; e seus   olhos, mais contentes que dois saís, pousaram no rosto de Araci.

O camucim da constância continha um formigueiro de   saúvas, que o pajé havia fechado ali na última lua.

Açuladas pela fome de tantos dias, as formigas vorazes   se prepararam para dilacerar a primeira vítima que lhes caísse   nas garras.

A dentada da saúva, que anda solta no campo, dói   como uma brasa; quando são muitas e com fome, queimam como a fogueira.

Todas as vistas se fitaram no semblante do guerreiro para   espreitar-lhe o mínimo gesto de sofrimento.

Mas Jurandir sorria; e seus lábios ternos soltaram   o canto do amor. De propósito o guerreiro adoçou a voz, para não   parecer que disfarçava o gemido com o rumor do grito guerreiro.

Assim cantou ele

— A dor é que fortalece o varão, assim como   o fogo é que enrija o tronco da craúba, da qual o guerreiro fabrica   o arco e o tacape.

"A juçara tem setas agudas mas Araci quando atravessa   a floresta, colhe o coco de mel, embora a palmeira lhe espinhe a mão.

"O ferrão da saúva dói mais do que   o espinho da juçara; mas Jurandir acha o mel dos lábios de Araci   mais doce do que o coco da palmeira.

"Quando Jurandir era jovem caçador, gostava de tirar   a cutia da toca, embora o seu dente agudo lhe sarjasse a carne.

"O ferrão da saúva não dói   como o dente afiado; e Jurandir sabe que o pêlo dourado da cutia, não   é tão macio como o colo de Araci.

"Jurandir despreza a dor. Seus olhos estão bebendo   o sorriso da virgem, mais suave que o leite do sapoti. Sua mão está   sentindo o roçar dos cabelos da virgem formosa."

Os anciões deram sinal para concluir a prova da   constância; mas o guerreiro continuou o seu canto de amor.

— A cumari arde no lábio do guerreiro; mas torna   mais gostosa a carne do veado assado no moquém.

"O cauim queima a boca do guerreiro; mas derrama a alegria   dentro d'alma.

"A saúva arde como a cumari e queima como o cauim;   porém torna os beijos de Araci mais saborosose o amor de Jurandir espuma   como o vinho generoso.

"Araci há de sorrir de felicidade, quando o filho   de seu guerreiro lhe rasgar o seio.

"Jurandir não tem corpo para sofrer, quando o sorriso   de Araci lhe enche a alma de amor."

Foi preciso quebrar o camucim para que o guerreiro pudesse   retirar a mão, de inflamada que ficara.

O grande pajé esfregou na pele vermelha o suco de   uma erva dele conhecida; e logo desapareceu a inchação.

 

* * *

 

Faltava a última prova, chamada a prova da virgem.

As outras serviam para conhecer o valor, a destreza e robustez   do guerreiro, assim como a força de seu amor.

Nesta era que a virgem podia mostrar seu agrado pelo vencedor;   ou livrar-se de um esposo, que não soubera ganhar-lhe o afeto.

Os cantores disseram

"Tupã deu asas à nambu para que ela escape   às garras do carcará.

"Tupã deu ligeireza à virgem, para que ela   fuja do guerreiro que não quer por esposo.

"Mas a nambu, quando ouve o canto do companheiro, espera   que ele chegue para fabricar seu ninho.

"A virgem, quando segue o guerreiro que ela prefere, pensa   na cabana do esposo e corre devagar para chegar depressa."

Araci deixou a mãe, e avançou até   o meio do campo.

O grande pajé colocou Jurandir na distância   de uma muçurana, que cinge dez vezes a cintura do guerreiro.

Estrela do dia lançou para as espáduas as   longas tranças negras que voaram ao sopro da brisa.

Arqueou os braços mimosos, vestidos com franjas   de penas, como as asas brilhantes do arirama, e quando soou o sinal, desferiu   a corrida.

Jurandir seguiu-a. Ele conhecia a velocidade do pé   gentil de Araci, que zombava do salto do jaguar.

Nem que pudesse alcançá-la, o guerreiro o   tentaria; depois de vencedor, queria dever a esposa ao amor dela e não   a seu esforço.

Disputaria Araci não só a todos os guerreiros   das nações, como a todas as nações das florestas;   só à vontade da própria virgem não a disputaria,   pois a queria rendida e não vencida.

Mas sua glória mandava que ele, o chefe de uma grande   nação, se mostrasse digno da formosa virgem, que o aceitasse por   esposo.

Araci voava pela campina. Às vezes trançava   a corrida como o colibri que adeja de flor em flor, outras vezes fugia mais   rápida do que a seta emplumada de seu arco.

Quando mostrou a todos que Jurandir não a alcançaria   nunca, se ela quisesse fugir-lhe, reclinou a cabeça para esconder o rubor.

Jurandir abriu os braços e recebeu a esposa que   se entregava a seu amor.

O guerreiro suspendeu a virgem formosa ao colo; e levou-a   à cabana do amor que ele construíra à margem do rio.

 

* * *

 

As ramas de jasmineiro e do craviri vestiam a cabana e   matizavam o chão de flores.

Araci foi buscar a rede nupcial, que ela tecera de penas   de tucano e arara; e Jurandir conduziu os utensílios da cabana.

Então o estrangeiro sentou-se com a virgem no terreiro   e, antes de passar a soleira da porta, revelou a Araci quem era o guerreiro   que ela aceitara por esposo.

— Araci pertence ao grande chefe da nação   araguaia. Ela teve a glória de vencer ao maior guerreiro das florestas.   Ela será mãe dos filhos de Ubirajara; e terá por servas   as virgens mais belas, filhas dos chefes poderosos.

"A palmeira é formosa quando se cobre de flores   e o vento agita as suas folhas verdes que murmuram; mais formosa, porém,   quando as flores se mudam em frutos, e ela se enfeita com seus cachos vermelhos.

"Araci também ficará mais formosa quando   de seu sorriso saírem os frutos do amore quando o leite encher seus peitos   mimosos, para que ela suspenda ao colo os filhos de Ubirajara."

Araci ouviu as palavras do guerreiro, palpitante como a   corça; e ornou a fronte do esposo com o cocar de plumas vermelhas, que   tecera em segredo.

Depois, sentindo os olhos de Ubirajara, que bebiam a sua   formosura, ela vestiu o aimará mais alvo do que a pena da garça.

A túnica de algodão, entretecida de penas   de beija-flor, desce das espáduas até a curva da perna, cingida   pela liga da virgindade.

Quando Araci passava entre os guerreiros que admiravam   sua beleza, ela não corava, porque sua castidade a vestia, como a flor   à sapucaia.

Mas agora, em presença do guerreiro a quem ama e   para quem guardou sua virgindade, tem pejo, e esconde sua formosura às   vistas de Ubirajara.

— Os olhos do esposo são como o sol, disse o guerreiro;   eles queimam a flor do corpo de Araci.

"Araci tem medo que os olhos do esposo não a achem   digna de seu amor; e vestiu seus enfeites.

"Araci queria ser como a juriti, e ter no corpo uma penugem   macia, que só a deixasse ver em sua formosura.

"Foi por isso que tua esposa se cobriu com o seu aimará.   Os olhos de Ubirajara não lhe queimarão mais a flor de seu corpo."

O guerreiro respondeu

— A flor do igapê é mais formosa quando   abre, e se tinge de vermelho aos beijos do sol, do que fechada em botão   e coberta de folhas verdes.

Ubirajara tomou nos braços a esposa e pôs   o pé na soleira da porta.

Nesse momento soou um clamor; chegaram os guerreiros que   vinham chamar o vencedor à presença de Itaquê.

O carbeto dos anciões tinha decidido que o vencedor   antes de receber a esposa, devia declarar quem era; pois fora recebido como   estrangeiro, e ninguém na taba o conhecia.

 

A GUERRA

 

Itaquê esperava sentado na cabana e cercado do carbeto   dos anciões. Jurandir entrou; Araci ficou na porta, orgulhosa do esposo   que a conquistara e da admiração que ele ia inspirar aos guerreiros   da sua nação.

Itaquê falou

— Quando o estrangeiro chegou à cabana de Itaquê,   ninguém lhe perguntou quem era e donde vinha. O hóspede é   senhor.

"Mas agora o estrangeiro saiu vencedor do combate do casamento   e conquistou uma esposa na taba dos tocantins.

"É preciso que ele se faça conhecer; porque   a filha de Itaquê, o pai da nação dos tocantins, jamais   entrará como esposa na taba, onde habite quem tenha ofendido a um só   de seus guerreiros."

O estrangeiro disse

— Morubixaba, abarés, moacaras, e guerreiros da   valente nação tocantim, vós tendes presente o chefe dos   chefes da grande nação araguaia.

"Eu sou Ubirajara, o senhor da lança; e o maior   guerreiro depois do grande Camacã, cujo sangue me gerou. Se quereis saber   por que tomei este nome, ouvi a minha maranduba de guerra."

Ubirajara contou o seu encontro com Pojucã; o combate   em que o venceu e a festa do triunfo, até o momento em que deixou a taba   dos araguaias.

Terminou dizendo que no seguinte sol partiria, para assistir   ao combate da morte, como prometera ao prisioneiro.

Ninguém interrompeu a maranduba de guerra. Ubirajara   ouviu um gemido; mas não soube que rompera do seio de Araci.

Itaquê arquejou como o rio ao peso da borrasca.

— Tu és Ubirajara, senhor da lança. Eu sou   Itaquê, pai de Pojucã. Tenho em face o matador de meu filho; mas   ele é meu hóspede!

"Chefe dos araguaias, tu és um jovem guerreiro;   pergunta a Camacã que te gerou, qual deve ser a dor do pai, que não   pode vingar a morte do filho. "

O grande chefe vergou a cabeça ao peito, como o   cedro altaneiro batido pelo tufão.

Pojucã tinha sua taba mais longe, na outra margem   do rio. Ele partira na última lua para rastejar a marcha dos tapuias;   e voltava senhor do caminho da guerra quando encontrou Ubirajara.

Seu pai e os guerreiros de sua taba pensavam que ele buscava   na floresta o caminho da guerra. Mal sabiam que a essa hora esperava prisioneiro   na taba dos araguaias o combate da morte.

Anciões e guerreiros emudeceram. Todos respeitavam   a dor do pai, e não ousavam perturbá-la.

Jacamim, a mãe de Pojucã, aproximara-se.   O grande chefe ouviu seu gemido.

— A esposa de Itaquê não chora na presença   do matador de seu filho. A voz do esposo, a mãe teve força para   esconder no seio sua tristeza e mostrar-se digna do grande chefe dos tocantins.

Ubirajara falou

— A vingança é a glória do guerreiro;   Tupã a deu aos valentes. Ubirajara venceu Pojucã em combate leal   e aceita o desafio de Itaquê e de todos os chefes tocantins.

— Tu és meu hóspede; enquanto Itaquê   brandir o grande arco da nação tocantim, ninguém ofenderá   o amigo de Tupã na taba de seus guerreiros.

Dizendo assim, o grande chefe ergueu-se e trocou com o   estrangeiro a fumaça da despedida.

— Parte. O sol que viu o estrangeiro na cabana hospedeira   o acompanhará amigo; mas com a sombra da noite, mil guerreiros, mais   velozes que o nandu, partirão para levar-te a morte.

Ubirajara tomou suas armas e disse

— O hóspede vai deixar tua cabana, chefe dos tocantins;   tu verás chegar o guerreiro inimigo.

 

* * *

 

Itaquê seguiu o estrangeiro até o terreiro;   em torno dele se reuniram os abarés, os moacaras e os guerreiros para   assistirem à partida.

Ubirajara caminhou com passo lento e grave até o   fim da taba.

Chegado ali, tornou rápido à entrada da cabana   e retrocedeu, apagando no chão o vestígio de seus passos.

A nação tocantim o observava imóvel.

Por fim o estrangeiro postou-se no centro da ocara e com   o formidável tacape vibrou no largo escudo um golpe, que repercutiu pela   taba como o estrondo da montanha.

— O hóspede passou o limiar da cabana que o tinha   acolhido, e apagou seu rastro na taba dos tocantins.

"Quem está aqui é um guerreiro armado, que   pisa senhor a taba de seus inimigos.

"Itaquê, morubixaba dos tocantins, Ubirajara, o senhor   da lança, grande chefe dos araguaias, te envia a guerra na ponta de sua   seta."

Quando o guerreiro acabou de proferir estas palavras, Itaquê   levantou os olhos e viu cravada na figura do tucano, que era o símbolo   da nação, a seta de Ubirajara.

Mil arcos se ergueram, mil tacapes brandiram. A voz possante   de Itaquê abateu as armas de seus guerreiros.

Disse o morubixaba

— A lei da hospitalidade é sagrada. A cólera   do estrangeiro não deve perturbar a serenidade do varão tocantim.

Depois voltou-se para o inimigo.

— Ubirajara, grande chefe dos araguaias, Itaquê,   o pai da poderosa nação tocantim, aceita a guerra que tu lhe enviaste.   Recebe em teu escudo o penhor do combate.

A corda do grande arco da nação tocantim   brandiu, e a seta de Itaquê mordeu o escudo de Ubirajara.

— Vai buscar teus guerreiros e nós combateremos   à frente das nações.

— Ubirajara combaterá até que lhe restituas   a esposa; assim como ele a conquistou a seus rivais, saberá conquistá-la   a ti e à tua nação.

O chefe araguaia partiu. No seio da floresta encontrou   Araci que o esperava.

A formosa virgem fora à cabana do casamento buscar   a rede nupcial e preparar-se para acompanhar o esposo.

— Ubirajara parte; mas antes de cinco sóis ele estará   aqui para te conquistar à tua nação.

— A esposa te acompanha. Teu braço valente já   a conquistou; e ela entregou-se a seu senhor. Araci te pertence; deves levá-la.

A virgem tocantim desejava seguir Ubirajara à taba   dos araguaias. Falava em sua alma a ternura da esposa e da irmã.

Partindo, ela unia-se para sempre a seu guerreiro e esperava   que o amor o moveria a salvar Pojucã.

Ubirajara pensou e disse

— Se Ubirajara tivesse rompido a liga de Araci, ela era   sua esposa; e ninguém a arrebataria de seus braços. Mas a virgem   tocantim não pode abandonar a cabana onde nasceu, sem a vontade de seu   pai.

Araci suspirou

— Ubirajara vai deixar a lembrança de Araci nos   campos dos tocantins. Jandira o espera na taba dos araguaias e lhe guarda o   seu sorriso de mel.

— A luz de teus olhos, Araci, estrela do dia, foi buscar   Ubirajara na taba dos seus, onde ressoavam os cantos de seu triunfo, e o trouxe   à tua cabana.

"Quando ele partiu encontrou Jandira, e para que a filha   de Majé não o acompanhasse, a deu a Pojucã como esposa   do túmulo."

— O goaná do lago voa longe, longe, para banhar-se   nas águas da chuva que alagaram a várzea; mas logo volta ao seu   ninho, e não se lembra mais da moita onde dormiu.

— Ubirajara é um guerreiro, ele não aprende   com o goaná do lago, que foge do perigo, mas com o gavião, grande   chefe dos guerreiros do ar, que nunca mais abandona o rochedo onde assentou   a sua oca.

— Se Ubirajara amasse a esposa, também não   a abandonaria. Os braços de Araci já cingiram o colo de seu guerreiro.   O tronco não desprende de si a baunilha que se entrelaçou em seus   galhos.

Ubirajara calcou a mão sobre a cabeça de   Araci

— Itaquê respeitou a lei da hospitalidade no corpo   de Ubirajara; Ubirajara não deixará a traição na   terra hospedeira.

"Araci não deve querer para esposo um guerreiro   menos generoso do que seu pai."

A virgem emudeceu. Ela sabia que a honra é a primeira   lei do guerreiro.

Antes de partir, o chefe consolou a esposa.

— Ubirajara vai pedir ao gavião suas asas para voltar   ao seio de Araci. Ele virá à frente de sua nação,   conduzido pela luz de teus olhos.

"As outras mulheres são o prêmio de um combate   entre os servos de seu amor. Araci terá essa glória; que ela será   o prêmio da maior guerra que já viram as florestas."

O chefe araguaia pôs as mãos nos ombros de   Araci; duas vezes uniu o seu ao rosto dela, por uma e outra face, para exprimir   que nada os podia separar.

Quando o guerreiro desapareceu na floresta, Araci caminhou   para a cabana do esposo, que ficara triste e solitária.

A virgem fechou a porta; sentou-se na soleira e cantou   sua tristeza.

 

* * *

 

Dois sóis tinham passado; e viera a noite.

A última estrela se apagava no céu, quando   Ubirajara pisou os campos dos araguaias.

Sua mão robusta, vibrando a clava, feriu o trocano.   A voz da nação araguaia derramou-se ao longe pelo vale, como o   estrondo da montanha que arrebenta.

Com o primeiro raio do sol que subia o píncaro da   serra, chegaram à grande taba os chefes das cem tabas araguaias, com   todos os seus guerreiros, convocados à ocara da nação.

Ubirajara mandou que Pojucã, o prisioneiro, viesse   à sua presença

— Vê o mar de meus guerreiros que enche a terra,   como as águas do grande rio quando alaga a várzea. Eles esperam   o aceno de Ubirajara para inundarem teus campos.

"A nação tocantim carece neste momento do   braço de seus maiores guerreiros; vai levar-lhe o socorro de teu valor,   para que se aumente a glória de Ubirajara, seu vencedor.

"Tu és livre, Pojucã; parte e voa, que a   guerra dos araguaias te segue os passos."

O semblante do filho de Itaquê ficou sombrio

— Pojucã é um chefe ilustre; não merece   esta desonra. Tu lhe prometeste a morte dos bravos. Ele exige o combate.

O chefe araguaia contou a maranduba da hospitalidade

— Ubirajara não sabia que Pojucã era filho   de Itaquê; pois ele nunca pisaria como hóspede a cabana de um guerreiro,   a quem tivesse decepado um filho.

"É preciso que recuperes a liberdade para que não   se diga que Ubirajara surpreendeu a hospitalidade do grande chefe dos tocantins."

Pojucã não respondeu. Ele reconhecera que   a honra do seu vencedor exigia sua volta à taba dos seus.

— Parte. Nós combateremos à frente das nações.   Ubirajara pertence a Itaquê; mas depois dele, terás a glória   de ser vencido outra vez por este braço.

— Ubirajara é um grande chefe e maior guerreiro.   Se Tupã não consente que Pojucã seja vencedor, ele não   quer maior glória do que a de morrer combatendo Ubirajara.

Pojucã foi à cabana de seu vencedor buscar   as armas. Ubirajara arrimou-se ao tacape, como o rochedo que se apoia ao tronco   do ipê, e meditou.

Quando passou o chefe tocantim que voltava à sua   taba, Ubirajara levantou a cabeça e disse:

— Os olhos de Ubirajara te acompanham; tu és irmão   de Araci e vais para junto dela. Dize à estrela do dia que seu esposo   está com ela.

O conselho dos abarés se reunira para meditar sobre   a guerra. O velho Majé, a quem irritava o desaparecimento da filha, reparou   que sem o voto do carbeto se convocasse a nação.

Veio um mensageiro chamar o grande chefe para o carbeto.   Ubirajara chegou. Antes que falasse a voz dos anciões, o guerreiro levantou   o arco e disse

— O conselho dos anciões governa a taba e medita   nas coisas da paz Toda a nação respeita sua prudência e   sabedoria.

"Mas enquanto Ubirajara brandir o grande arco dos araguaias,   tem a guerra fechada em sua mão.

"Quando ele soltar o grito do combate, a voz que falar   da paz, emudecerá para sempre, ainda que venha da cabeça do abar   que a lua já embranqueceu.

"Quem não quiser assim, venha arrancar da mão   de Ubirajara, este arco que ele conquistou por seu valor."

Os abarés estremeceram. Mas o carbeto meditou e   decidiu que a maior glória e sabedoria da nação era ter   o seu grande arco de guerra na mão de um chefe como Ubirajara.

Camacã tratou com os anciões acerca da defesa   das tabas; e o grande chefe abriu o caminho da guerra.

 

* * *

 

Quando Ubirajara desdobrou sua guerra pela margem do grande   rio, ele viu que uma nação tapuia preparava-se para assaltar a   taba dos tocantins.

O grande chefe tocou a inúbia, cuja voz chamava   o jovem Murinhém (63), primeiro dos cantores araguaias.

Correu o nhengaçara à presença do   grande chefe, e dele recebeu a mensagem que devia levar ao campo inimigo.

Os cantores eram respeitados por todas as nações   das florestas como os filhos da alegria; porque serviam de mensageiros entre   as nações em guerra.

Eles penetravam no campo inimigo, entoando o seu canto   de paz; e nenhum guerreiro ousava ofender aquele a quem Tup concedera a fonte   da alegria.

Murinhém atravessou rápido a campina e apresentou-se   em frente de Canicrã, chefe dos tapuias.

— Ubirajara, o senhor da lança, que empunha o arco   da poderosa nação araguaia, te manda, a ti, quem quer que sejas,   e a todos quantos te obedecem, a sua vontade.

O tapuia rugiu; mas seus olhos viam o mar dos guerreiros   araguaias que o cercava, e na frente o grande vulto de Ubirajara, semelhante   ao rochedo sombrio e imóvel do meio dos borbotões da cachoeira.

— Os guerreiros de Canicrã só conhecem a   vontade do seu chefe; e Canicrã afronta a cólera de Tupã   e das nações que ele gerou. Dize, mensageiro, o que pede Ubirajara   ao grande chefe dos tapuias.

— Ubirajara te manda que encostes o tacape da guerra. A   nação tocantim aceitou a sua flecha de desafio, e ele não   consente que ninguém combata seu inimigo, antes de o ter vencido.

— Torna e dize ao grande chefe araguaia, que Canicrã   veio trazido pela vingança. Pojucã, um dos chefes tocantins, penetrou   em sua taba e incendiou a cabana do pajé, que foi devorado pelas chamas.

"Ubirajara é um grande chefe; ele que diga se o   pai da nação pode sofrer tão dura afronta. Canicrã   escutará a voz de sua amizade. "

O chefe tapuia tomou uma de suas flechas; arrancou o farpão   e deu ao mensageiro a haste emplumada com as asas negras do anum, que era o   emblema guerreiro de sua nação.

— Toma; entrega ao grande chefe araguaia o penhor da aliança.

Murinhém partiu e foi à taba dos tocantins   levar igual mensagem. Itaquê escutou o que lhe mandava Ubirajara e respondeu.

— Antes que Itaquê trocasse com Ubirajara a seta   do desafio, Pojucã tinha levado a guerra à taba dos tapuias.

"Canicrã veio trazido pela vingança; e a   nação tocantim não pode recusar o combate. Mas Itaquê   sabe honrar seu nome se Ubirajara quer, ele combaterá juntamente os dois   inimigos."

O mensageiro tornou ao campo dos araguaias com as respostas   dos dois chefes. Ubirajara ouviu e meditou.

— Escuta a vontade de Ubirajara para levá-la aos   inimigos. O grande chefe araguaia não roubará a Canicrã   a glória da vingança; ele respeita a honra da nação   tapuia, mas rejeita sua aliança. Restitui o penhor que recebeste.

"Itaquê pode aceitar o combate que Pojucã   foi buscar; Ubirajara não ofende o nome de um guerreiro, ainda mais de   um morubixaba, e do pai de Araci.

"O chefe dos araguaias não carece de auxílio   para triunfar de seus inimigos deseja que a nação tocantim derrote   aos tapuias, para ter ele a glória de vencer ao vencedor.

"Se Itaquê não pode repelir os tapuias, Ubirajara   toma a si castigar os bárbaros; e depois de varrê-los das florestas,   combaterão as duas nações.

"Se os tocantins necessitam de aliados para resistir ao   ímpeto dos araguaias, Ubirajara espera que Itaquê os chame e que   eles venham.

"Murinhém falará assim a um e outro chefe;   a ambos dirá que a cabana onde estiver Araci fica sob a guarda de Ubirajara;   quem nela penetrar como inimigo, sofrerá a morte vil do covarde."

O guerreiro deixou a voz do chefe e falou com a voz de   esposo

— A Araci levarás o canto de amor de Ubirajara.   Tu lhe dirás que arme a rede nupcial e não deixe nossa cabana,   enquanto Ubirajara não a for buscar.

"Conta-lhe também que o canitar que ela teceu, ainda   não deixou a cabeça do seu guerreiro e há de acompanhá-lo   sempre. "

 

A BATALHA

 

A um lado da imensa campina move-se a multidão dos   guerreiros tocantins, do outro lado, a multidão dos guerreiros tapuias.

As duas nações se estendem como dois lagos   formados pelas grandes chuvas, que se transformam em rios e atravessam o vale.

De um e outro campo levantou-se a pocema guerreira; e os   dois povos arremetendo travaram a batalha.

Itaquê achou-se em frente de Canicrã. Ambos   se buscavam; dez vezes tinham combatido; vencedores ambos, nenhum fora vencido.

Enquanto viverem os formidáveis guerreiros, não   é possível quebrar a flecha da paz entre as duas nações.

Era preciso que um deles morresse para que o vencedor encostasse   o tacape do combate e desse repouso à sua nação para reparar   os estragos da guerra.

Quando os dois chefes se encontraram, os guerreiros de   um e outro campo ficaram imóveis, contemplando o pavoroso combate.

Ubirajara de longe, apoiado em seu grande arco, admirava   os dois guerreiros e pensava qual não seria o seu orgulho em vencê-los   ambos.

Durava a peleja o espaço de uma sombra. Em torno   dos chefes lastravam o chão os tacapes e escudos que se tinham espedaçado   aos golpes de cada um.

Imóveis no mesmo lugar, só agitavam a cabeça   e os braços; semelhantes a dois condores, que de garras presas aos píncaros   do rochedo, se dilaceram com o bico adunco.

Um rugido espantoso atroou pela campina, que estremeceu   a batalha e rolou pelas profundezas da floresta.

Pahã, a seta, era o último filho de   Canicrã. Ainda curumim, pelejava ao lado do irmão, o guerreiro   Crebã, cujo ombro mal alcançava com o braço.

Ele tinha nos olhos a vista da gaivota, e nas setas de   seu arco, feitas de espinho de ouriço, a velocidade e a certeza do vôo   do guanumbi.

Quando caçava na floresta, divertia-se em matar   as mutucas traspassando-as com suas flechas, que voavam mais rápidas   e certeiras que as vespas venenosas.

Pahã saltara sobre os ombros do guerreiro Crebã   para assistir ao combate. Admirando o valor de Canicrã, teve orgulho   e inveja do pai.

Itaquê desfechara tão formidável golpe,   que o tacape e escudo de Canicrã se espedaçaram em suas mãos,   deixando-o à mercê do inimigo.

O chefe tocantim arrojou-se, e já sua mão   descia sobre a espádua do tapuia para fazê-lo prisioneiro.

O arco de Pahã sibilou duas vezes. Os olhos de Itaquê,   os olhos do varão forte que nunca umedecera uma lágrima, choraram   sangue.

As setas do curumim tinham vazado as pupilas do fero guerreiro,   cuja vista era raio. Assim a jandaia rói o grelo do prócero coqueiro.

Foi então que Itaquê soltou o rugido pavoroso   que fez tremer a terra. Mas o grito de espanto soçobrou no peito dos   guerreiros e rompeu em um grito de horror.

Itaquê estendera os braços, hirtos como duas   garras de condor. A mão direita abarcou o penacho e a cabeleira de Canicrã,   a esquerda entrou pela boca do tapuia e travou-lhe o queixo.

Separaram-se os braços do guerreiro cego, e a cabeça   de Canicrã abriu-se como um coco que se fende pelo meio.

Agitando no ar o crânio sangrento como um maracá   de guerra, Itaquê arrojou-se contra os inimigos, buscando a morte que   lhe fugia.

Quando o sol entrou, não havia na campina a sombra   de um tapuia.

O velho herói voltou à cabana conduzido por   Pojucã

— Tupã viu que Itaquê não podia ser   vencido pela mão dos homens; e quis vencê-lo ele mesmo pela mão   de um menino.

 

* * *

 

Quando Ubirajara viu o êxito do combate, lamentou   que dos dois grandes guerreiros não restasse nenhum, para que ele o vencesse.

Seus olhos descobriram Pahã que fugia no meio dos   destroços de sua nação. Ergueu a mão, mas não   chegou a retesar a seta.

A águia não persegue a andorinha. Era indigno   de um guerreiro, quanto mais de um chefe, empregar seu valor contra um menino.

O chefe chamou à sua presença Tubim, um dos   jovens caçadores, que tinham acompanhado a guerra para prover o alimento.

— Tubim tem as asas da abelha; se ele alcançar o   curumim tapuia que eu estou olhando, Ubirajara lhe dará o nome de Abeguar.

O jovem caçador seguiu o olhar do chefe e sumiu-se   num turbilhão de poeira. Quando os vaga-lumes começaram a luzir   no escuro da mata, ele estava de volta ao campo dos araguaias; e trazia o curumim   fechado nos braços.

Nessa mesma noite, Tubim recebeu o nome de Abeguar, senhor   do vôo, em honra da façanha que tinha realizado.

Os cantores entoaram seu louvor; e o jovem caçador   teve a glória de receber os aplausos dos moacaras de sua nação,   e de um chefe como Ubirajara.

Ao raiar da manhã, Murinhém foi à   taba dos tocantins, acompanhado por vinte guerreiros que conduziam o curumim.

Quando chegou em frente à cabana do grande chefe,   o cantor viu Itaquê no terreiro, sentado em uma sapopema.

O guerreiro fitava os olhos no céu, onde o calor   lhe dizia que estava o sol. Mas não encontrava a luz que para sempre   o abandonara.

Então o velho guerreiro abaixava os olhos para a   terra, como se buscasse o lugar do repouso.

Quando soaram longe os passos dos estrangeiros, o chefe   alongou a fronte para ver pelo ouvido o que os olhos lhe recusavam.

Murinhém chegou e disse

— Ubirajara envia a Itaquê o resto da vingança.   Este é Pahã, o filho de Canicrã. Ele te roubou a vista;   mas não salvou o pai de tua mão terrível. Faze do curumim   tapuia um mancebo tocantim; e ele será a luz dos teus olhos e caminhará   na frente do grande chefe para abrir-lhe o caminho da guerra.

Pahã avançou

— O filho de Canicrã jamais será escravo;   nasceu tapuia e tapuia morrerá, como o grande chefe que o gerou. Enquanto   o ouriço viver nas florestas, ele roubará seus espinhos para furar   os olhos dos tucanos.

Itaquê pousou a palma da mão na cabeça   do menino

— O curumim que ama seu pai é filho de Itaquê.   Tu és livre, Pahã; vai caçar o ouriço. Quando fores   um guerreiro, acharás cem mancebos do sangue de Itaquê para castigarem   tua audácia.

O chefe voltou-se para o cantor.

— Tupã tirou a luz dos olhos de Itaquê; mas   aumentou a força de seu braço. Ubirajara terá para combatê-lo   um inimigo digno de seu valor.

Murinhém tornou ao chefe araguaia com esta resposta.

 

* * *

 

Quando partia o cantor, chegaram à cabana de Itaquê   os abarés da nação tocantim.

Os anciões sentaram-se em torno do guerreiro cego;   e bebendo a fumaça da sabedoria, formaram o carbeto.

Falou Guaribu

— O grande arco da nação carece de uma mão   robusta para brandir sua corda; e de um olho seguro para dirigir sua seta. Itaquê   é o maior guerreiro das florestas; seu nome faz tremer aos mais valentes   dos inimigos; seu braço fere como o raio. Mas a luz fugiu de seus olhos   e ele não pode mais abrir o caminho da guerra.

O velho chefe ergueu-se com o passo trôpego. Alcançando   o grande arco dos tocantins abraçou-se com ele e falou-lhe.

— Quando Itaquê te recebeu da mão do grande   Javari, ele pensava que só a morte o separaria de ti, para transmitir-te   a um guerreiro de seu sangue. Mas Itaquê ficou na terra, como um tronco   levado pela corrente, que não sabe onde vai.

Um esguicho de sangue saltou dos buracos, onde o velho   tivera os olhos. Era a lágrima que a desgraça lhe deixara.

Os abarés meditaram. Guaribu falou de novo

— O grande arco da nação que tu recebeste   do grande Javari, teu pai, não te abandonará. Ele fica em tua   mão invencível; haverá outro arco na mão do mais   valente guerreiro, que abrirá o caminho da guerra. Mas enquanto Itaquê   viver, sua voz governará a nação que ele defendeu com seu   braço.

O semblante do velho chefe cobriu-se de um sorriso, como   o negro rochedo sobre o qual desliza um raio de luar.

— Pais da sabedoria, abarés, olhai aquele jatobá   que se levanta no meio da campina, e que eu só posso ver agora na sombra   de minha alma.

"Ele tem muitas raízes que o sustentam nos ares,   tem muitos galhos que o cercam e estendem ao longe a sua rama. Mas o tronco   é um só.

"As grossas raízes são os abarés que   sustentam o chefe com o seu conselho. Os galhos fortes são os moacaras   que cercam o chefe e geram a multidão de guerreiros mais numerosa que   as folhas das árvores. O tronco é o chefe da nação;   se ele se dividir, o jatobá não subirá às nuvens,   nem terá forças para resistir ao tufão.

"O lugar de Itaquê é no conselho. O último   dente de seu colar de guerra foi o que ele arrancou da boca de Canicrã.   Convocai os guerreiros, e o que for mais forte e mais valente empunhe o grande   arco da nação."

O trocano chamou a nação ao carbeto. Vieram   os moacaras, conduzindo suas tribos.

O velho Itaquê contava pelos passos os guerreiros   que chegavam. O grande arco da nação, que ele segurava direito,   parecia um dos esteios da cabana, e tinha a corda tão grossa como a da   rede do chefe.

Os mais famosos guerreiros tocantins se apresentaram para   disputar o grande arco; muitos conseguiram vergá-lo, mas a seta não   partiu.

Itaquê escutava com o ouvido atento; o som dele conhecido   não feriu os ares.

— Onde está Pojucã? perguntou o velho chefe.

O valente guerreiro do sangue de Itaquê estava de   parte, grave e taciturno. Algum motivo o separava do arco-chefe, que ele devia   ser o primeiro a disputar.

— Teu filho te escuta; respondeu.

— Empunha o arco-chefe; se há um guerreiro tocantim   que possa conquistá-lo, esse deve ser do sangue de Itaquê.

Pojucã recebeu o arco. Fincando nele os pés,   o guerreiro arrojou-se para trás como a jibóia quando se enrista   para armar o bote.

A seta partiu, e foi cravar a cabeça de um chefe   tapuia, fincada na estaca, à entrada da taba.

Itaquê curvara a cabeça. Ele ouviu brandir   a arma; não era, porém, aquele o zunido da corda do arco, quando   o vergava sua mão possante.

Pojucã depôs o arco-chefe aos pés de   Itaquê e disse

— Pojucã mostrou que em suas veias corre o sangue   generoso de Itaquê. Mas o grande arco pesa em sua mão. Só   há um guerreiro na terra que o possa brandir como Itaquêe esse   não cinge a fronte com o cocar das penas de tucano.

— Pojucã negou a Itaquê esta última   consolação. O arco invencível do grande Tocantim, que foi   o pai da nação, vai sair de sua geração. Tocantim   o transmitiu a seu filho Javari, que me gerou; mas eu não soube gerar   com seu sangue um guerreiro digno deles.

 

UNIÃO DOS ARCOS

 

Os tapuias voltaram; com eles vinha Agniná à   frente de sua nação, para vingar a morte de Canicrã, seu   irmão.

Era grande a multidão dos guerreiros; e maior a   tornavam a sanha da vingança e a fama do chefe que a conduzia.

Não eram tantos os tocantins; mas bastaria seu valor   para igualá-los, se não lhes faltasse a cabeça, que rege   o corpo.

A poderosa nação estava como o bando de caitetus   que perdeu o pai e desgarra-se pela floresta, correndo sem rumo.

Os mais valentes moacaras, chefes das tribos, esperavam   pelo grande chefe da nação para abrir-lhes o caminho da guerra.

Os abarés meditaram. Eles não podiam inventar   um guerreiro capaz de suceder a Itaquê; mas não se resignavam a   abater a glória da nação, trocando o arco invencível   do grande Tocantim por outro arco mais leve, que Pojucã manejasse.

Também Pojucã anunciara que, não podendo   brandir o arco de Itaquê, jamais empunharia outro arco-chefe, menos glorioso   do que o do grande Tocantim.

Abarés, chefes, moacaras, guerreiros, toda a nação   se reuniu em torno do herói cego.

Daquele que durante tantas luas defendera a nação   com a força de seu braço e a protegera com o terror de seu nome,   esperavam ainda a salvação.

O velho ouviu a voz dos abarés, a voz dos chefes,   a voz dos moacaras, a voz dos guerreiros, e disse

— Itaquê ainda pode combater e morrer por sua nação;   mas sem a luz do céu, ele não pode mais abrir a seus filhos o   caminho da vitória.

"O braço de Itaquê defendeu sempre a nação   tocantim; quer ela ser defendida agora pela palavra daquele, que não   tem mais para dar-lhe senão a experiência de sua velhice?

"Pensem os abarés, os chefes, os moacaras e os guerreiros."

Guaribu respondeu

— A nação pensou. Fala e todos obedecerão   à tua palavra, como obedeciam ao braço de Itaquê.

— A voz do coração diz ao neto de Tocantim   que a glória da nação que ele gerou não se pode   extinguir. O sangue de Itaquê, passando pelo seio de Araci, se unirá   a outro sangue generoso para brotar maior e mais ilustre.

"Assim a terra onde nasceu uma floresta de acajás,   recebe o limo do rio e gera nova floresta mais frondosa que a outra.

"Jacamim, chama Araci, a filha de nossa velhice. E vós,   abarés, chefes, moacaras e guerreiros, segui-me."

O velho herói atravessou a taba guiado por Araci.

A nação o seguia em silêncio.

Quando o guerreiro cego passava com a mão no ombro   da virgem formosa que dirigia o seu passo incerto, os guerreiros lembravam-se   do tronco já morto que a rama do maracujá ainda sustenta de pé   junto ao penedo.

Os cantores iam adiante e entoavam um canto de paz.

 

* * *

 

Um mensageiro de Itaquê o precedera no campo dos   araguaias.

Ubirajara, cercado de seus abarés, chefes, moacaras   e guerreiros, veio ao encontro do morubixaba dos tocantins.

A alma do grande chefe araguaia encheu-se da alegria de   ver Araci; mas ele retirou os olhos da esposa, para que o amor não perturbasse   a serenidade do varão.

— Ubirajara está em face de Itaquê; para combatê-lo,   se trouxe a guerra; para abraçá-lo, se trouxe a paz.

— Nunca Itaquê pediu a paz ao inimigo que trouxe-lhe   a guerra, antes de o vencer; nem teria vivido tanto para cometer essa fraqueza.   Ele vem trazer-te a vitória para que tu a repartas com seu povo.

O velho herói avançou o passo

— Chefe dos araguaias, tu levaste a guerra à taba   dos tocantins para conquistar Araci, a filha de minha velhice.

"Por teu heroísmo, e ainda mais pela nobreza com   que restituíste a liberdade a Pojucã, tu merecias uma esposa do   sangue de Tocantim.

"Mas desde que tu ameaçaste toma-la pela força   de teu braço, Itaquê não podia mais conceder-te a filha   de sua velhice, senão depois que abatesse teu orgulho.

"Ele preparava-se para te combater, e à tua nação;   mas fugiu-lhe dos olhos a luz que dirige a seta da guerra; e não há   entre seus guerreiros um que possa brandir o arco do grande Tocantim."

Quando pronunciou estas palavras, a voz do velho guerreiro   soçobrou-lhe no peito

— O arco de Itaquê é como o gavião   que perdeu as asas e não pode mais levar a morte ao inimigo. As andorinhas   zombam de suas garras.

"Empunha o arco de Itaquê, chefe dos araguaias, e   tu conquistarás por teu heroísmo uma esposa e uma nação.

"À esposa farás mãe de cem guerreiros   como Itaquê; e à nação, conservarás a glória   que ela conquistou quando o filho de Javari a conduziu à guerra.

"Tupã dará a teu braço esta força   para que o sangue de Itaquê brote mais vigoroso e os netos de Tocantim   dominem as florestas. "

Ubirajara sorriu

— Chefe dos tocantins, teus olhos não podem ver   o grande arco da nação araguaia; mas pergunta à tua mão   se o arco que Camacã brandia invencível e agora empunha Ubirajara,   cede ao arco de Itaquê.

O velho herói palpou o arco-chefe dos araguaias   e vergou-lhe a ponta ao ombro, como se a haste fosse de taquari.

Ubirajara travou do arco de Itaquê e desdenhando   fincá-lo no chão, elevou-o acima da fronte. A flecha ornada de   penas de tucano partiu.

O semblante de Itaquê remoçou, ouvindo o zunido   que recordava-lhe o tempo de seu vigor. Era assim que ele brandia o arco outrora,   quando as luas cresciam aumentando a força de seu braço.

O velho inclinou a fronte para escutar o sibilo de sua   flecha que talhava o azul do céu. Os cantores não tinham para   ele mais doce harmonia do que essa.

Ubirajara largou o arco de Itaquê para tomar o arco   de Camacã. A flecha araguaia também partiu e foi atravessar nos   ares a outra que tornava à terra.

As duas setas desceram trespassadas uma pela outra como   os braços do guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade

Ubirajara apanhou-as no ar.

— Este é o emblema da união. Ubirajara fará   a nação tocantim tão poderosa como a nação   araguaia. Ambas serão irmãs na glória e formarão   uma só, que há de ser a grande nação de Ubirajara,   senhora dos rios, montes e florestas.

O chefe dos chefes ordenou que três guerreiros araguaias   e três guerreiros tocantins ligassem com o fio do crautá as hastes   dos dois arcos.

Quando o arco de Camacã e o arco de Itaquê   não fizeram mais que um, Ubirajara o empunhou na mão possante   e mostrou-o às nações

— Abarés, chefes, moacaras e guerreiros de minhas   nações, aqui está o arco de Ubirajara, o chefe dos grandes   chefes. Suas flechas são gêmeas, como as duas nações,   e voam juntas.

Ambas as cordas brandiram a um tempo. A seta araguaia e   a seta tocantim partiram de novo como duas águias que par a par remontam   às nuvens.

Quando calou-se a pocema do triunfo, Ubirajara caminhou   para a filha de Itaquê

— Araci, estrela do dia, tu pertences a Ubirajara, que   te conquistou pela força de seu braço. Agora que é senhor,   ele espera a tua vontade.

A formosa virgem rompeu a liga vermelha que lhe cingia   a perna e atou-a ao pulso de seu guerreiro.

Ubirajara tomou a esposa aos ombros (65) e levou-a à   cabana do casamento.

O jasmineiro semeava de flores perfumadas a rede do amor.

 

* * *

 

O outro sol rompia, quando os tapuias estenderam pela campina   a multidão de seus guerreiros.

Na frente assomava Agniná, a montanha dos guerreiros,   ainda mais feroz do que o irmão, o terrível Canicrã.

De um lado e do outro seguiam-se os chefes, cada um à   frente de seus guerreiros.

Ubirajara escolheu mil guerreiros araguaias e mil guerreiros   tocantins, com que saiu ao encontro dos tapuias.

Depois que desdobrou sua batalha pela campina, o chefe   dos chefes caminhou só para o inimigo.

Quando chegava a meio do campo, os tapuias levantaram a   pocema de guerra, que atroou os ares, como o estrépito da cachoeira.

Um turbilhão de setas crivou o longo escudo do herói,   que ficou semelhante ao grosso tronco de juçara, eriçado de espinhos.

Ubirajara embraçou o escudo na altura do ombro,   e com o pé brandiu sete vezes a corda do grande arco gêmeo.

As setas vermelhas e amarelas subiram direitas ao céu   e perderam-se nas nuvens.

Quando voltaram, Agniná e os chefes que obedeciam   a seu arco, tinham cada um fincado na cabeça o desafio do formidável   guerreiro.

Enfurecidos mais pelo insulto do que pela dor, arremessaram-se   contra o inimigo que os esperava coberto com seu vasto escudo.

Agniná era o primeiro na corrida e o primeiro na   sanha. Após ele vinham os outros a dois e dois, lutando na rapidez.

Quando o esposo de Araci viu que eles se estendiam pela   campina, como dois ribeiros que se aproximam para confundir suas águas;   o herói empunhou a lança de duas pontas e soltou seu grito de   guerra, que era como o bramir do jaguar, senhor da floresta.

Seu pé devorou o espaço; e a lança   de duas pontas girou em sua mão, como a serpente que enrosca-se nos ares,   silvando.

Caiu Agniná do primeiro bote; após ele caíram   aos dois os chefes tapuias, como caem os juncos talhados pelo dente afiado da   capivara.

Então o herói soltou seu grito de triunfo,   que era como o rugido do vento no deserto

— Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro   invencível que tem por arma uma serpente.

"Eu sou Ubirajara, o senhor das nações, o   chefe dos chefes, que varre a terra, como o vento do deserto."

O herói estendeu a vista pela campina, e não   descobriu mais o inimigo, que sumia-se na poeira.

Ubirajara lançou-lhe seus guerreiros, que tinham   fome de vingança; porém o terror de sua lança dava asas   aos fugitivos.

Desde esse dia nunca mais um tapuia pisou as margens do   grande rio.

Ubirajara voltou à cabana, onde o esperava Araci.

A esposa despiu as armas de seu guerreiro, enxugou-lhe   o corpo com o macio cotão da monguba, e cobriu-o do bálsamo fragrante   da embaíba.

Encheu depois de generoso cauim a taça vermelha   feita do coco da sapucaia; e aplacou a sede do combate.

Enquanto nas grandes tabas se preparava a festa do triunfo   e o herói repousava na rede, Araci foi ao terreiro e voltou conduzindo   Jandira pela mão.

— Jandira é irmã de Araci, tua esposa. Ubirajara   é o chefe dos chefes, senhor do arco das duas nações. Ele   deve repartir seu amor por elas, como repartiu a sua força.

A virgem araguaia pôs no guerreiro seus olhos de   corça.

— Jandira é serva de tua esposa; seu amor a obrigou   a querer o que tu queres. Ela ficará em tua cabana para ensinar a tuas   filhas como uma virgem araguaia ama seu guerreiro.

Ubirajara cingiu ao peito, com um e outro braço,   a esposa e a virgem.

— Araci é a esposa do chefe tocantim; Jandira será   esposa do chefe araguaia; ambas serão as mães dos filhos de Ubirajara,   o chefe dos chefes, e o senhor das florestas.

 

* * *

 

As duas nações, dos araguaias e dos tocantins,   formaram a grande nação dos Ubirajaras, que tomou o nome do herói.

Foi esta poderosa nação que dominou o deserto.

Mais tarde, quando vieram os caramurus, guerreiros do mar,   ela campeava ainda nas margens do grande rio (66).

 

                                                                                                       José de Alencar

 

Carlos Cunha Arte & Produção Visual

 

 

 

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