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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ÚLTIMO BEIJO DA MEIA NOITE / Gena Showalter
ÚLTIMO BEIJO DA MEIA NOITE / Gena Showalter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O agente da Black Ops Solomon Judah acorda preso e enjaulado em um zoológico doentio onde os Extraterrestres são a atração principal. Vika Lukas, a filha do dono, recebe a tarefa de cuidar e alimentar Solo. O monstro dentro dele anseia matá-la imediatamente, mesmo que ela possua a chave de sua liberdade. Mas o lado humano dele percebe que a bela garota muda é mais do que parece — ela é sua.

Vika suporta as piadas e o ódio dos prisioneiros, esperando mantê-los com vida mesmo que não possa libertá-los. Porém, Solo é diferente — ele a protege. Mas quando a hostilidade se transforma em um romance proibido, seus sentimentos por ela serão usados contra ele… e ele será submetido a uma prova de fogo.

 

 

 

 

        A adolescente de catorze anos, Viktorija Lukas, corria entre tendas de circo, a garganta e os pulmões queimando ao ofegar por ar. Embora já passassem das duas da manhã, muitos dos artistas estavam do lado de fora delas, conversando e rindo barulhentamente em volta de fogueiras de chamas altas, celebrando a última noite deles em uma cidade próspera.

        Quanto mais próximo Vika chegava ao seu destino, mais o cheiro de animais impregnava cada inalação que dava. Era um cheiro que ela aprendeu a adorar. O cheiro que seu pai queria afastar dela para sempre.

        Ele planejava vender os seus bebês — em pedaços.

        Righty, o gorila com uma tendência de roubar colares e pulseiras. Angie, a égua tímida demais para olhar qualquer um que não fosse Vika nos olhos. Gabbie, o camelo veloz. Gus, a zebra que se escondia com frequência atrás de objetos pequenos demais para ocultá-lo. Dobi, o tigre mais que animado que ela flagrou fazendo xixi em todos os tipos de lugares inapropriados. Barney, o lhama devorador de comida que era, obviamente, obeso. Sammie, o avestruz obsessivo-compulsivo que agora exibia vários pontos no corpo sem penas. Mini, a elefante docemente sensível que chorava ao mais leve aumento de voz de Vika. Zoey, o urso viciado em açúcar.

        E havia One Day, o bravo leão que Vika amava acima de todos os outros.

        — Aquelas criaturas sarnentas custam muito dinheiro para manter. — seu pai resmungou naquela manhã. Para ele, essa era uma razão boa o suficiente para matá-los, mas ela tinha chorado e implorado, disposta a dizer qualquer coisa para salvá-los, e então a ladainha havia continuado. — Eles ocupam muito espaço. Estão velhos demais, fracos demais e não impressionam mais as pessoas. Eles as enchem de pena e nojo.

        O seu pai não tinha se importado com o fato de que cada animal era lindo para Vika, com defeitos e tudo. Não tinha se importado que One Day e os outros fossem os seus únicos amigos, o único consolo que ela encontrou desde a morte de sua mãe e da perda dos seus amigos de infância há dois anos atrás. Jecis Lukas era o dono do Cirque de Monstres, e ele só se importava com lucro.

        E o lucro agora exigia que ele adquirisse um novo jardim zoológico — um que exibiria pessoas. Extraterrestres, para ser exata, machos e fêmeas de diferentes planetas cujas famílias vieram para a Terra há quase cem anos para curtir vidas seguras e pacíficas.

        Infelizmente, não havia nada de seguro ou pacífico nas “boas-vindas” que receberam por aqui. Uma Guerra Mundial havia se iniciado quase destruindo este planeta. E mesmo que uma trégua houvesse ocorrido eventualmente, permitindo que Extraterrestres vivessem junto aos humanos, as incontáveis raças ainda eram uma excentricidade. Algumas tinham cores estranhas, algumas formas anormais. Algumas tinham poderes além da imaginação. Humanos pagariam sim por ir assisti-las e zombar delas, especialmente no recesso escuro e imundo de um lugar como aquele.

        — Vale tudo se o preço for justo. — Jecis gostava de dizer.

        O que aconteceu com o homem que ele costumava ser? Aquele que a carregava nos ombros e fazia cócegas em seus pés? Espere. Ela há muito sabia a resposta. A ganância havia matado aquele homem.

        Matado — como seus bebês se ela falhasse em libertá-los.

        Quando Vika alcançou as jaulas seu sangue corria efervescendo por suas veias. Uma camada leve de suor lustrava sua pele e tremores sacudiam sua espinha, vibrando pelos seus braços e pernas.

        Tão felizes em vê-la, cada um dos animais começou a cantar uma bela canção.

        — Shhh. Fiquem calados, meus queridos. — Ela estendeu a mão para destrancar a jaula de One Day, mas derrubou o molho de chaves. Desesperadamente tateou a terra. Os metais eram escuros demais e aquela área mal iluminada, não conseguia enxergar. — Aqui!

        Graças a Deus! Ela se levantou e encaixou a chave com cuidado. Clique.

        — Vika! — O grito de seu pai cortou a distância.

        Não! Não, não, não. Ele havia notado sua ausência.

        One Day rugiu em protesto, incitando o resto dos animais. Em poucos segundos, o tom dos gritos deles mudou de alegre para frenético.

        — Por favoooor, façam silêncio. — ela sussurrou com fervor.

        Claro, a trilha continuou a tocar.

        Nenhuma das criaturas gostava de Jecis. Eles o temiam e desprezavam, e por boa razão. Ele as tratava horrivelmente, sempre cuspia nelas, gritava com elas e as cutucava com varas de choque.

        Vika tinha protestado contra o abuso — uma vez. Foi um erro que nunca mais cometeria.

        As dobradiças chiaram quando abriu a jaula, e seu olhar se fundiu com os olhos escuros e febris do seu melhor amigo. Sua juba de pelo dourado estava cheia de nós, galhos e terra aninhados em várias partes de suas madeixas. Apesar do fato dela sempre lhe dar porções de suas próprias refeições, ele estava tão magro que podia ver cada uma de suas costelas. Havia um machucado pingando em sua pata esquerda, ainda supurando apesar do unguento que ela tinha aplicado todas as manhãs, tardes e noites nas últimas semanas.

        — Finalmente, o dia que te falei chegou. — ela disse em um Inglês puro. Como imigrante da Nova Lituânia, ela teve que reduzir gradativamente seu sotaque para se encaixar na nova identidade que seu pai havia comprado pra ela, para impedir que fosse deportada. Jecis foi o seu professor, e seu sistema de castigo-e-recompensa havia garantido um rápido sucesso.

        One Day choramingou, deu uma espiada para fora e tentou empurrar a sua mão.

        — Vá, baby. Vá.

        Outra cutucada dele.

        — Vá embora agora. Jecis quer machucar você, mas não deixarei.

        One Day saiu da jaula, mas ao invés de correr para a liberdade ele se esfregou em sua perna, fazendo com que ela tropeçasse e derrubasse as chaves pela segunda vez. Ele queria ser escovado, ela sabia. Ele amava quando o limpava e escovava, seu ronronar de aprovação tão alto e farto que sempre lhe caíam como mel aquecido.

        Lágrimas queimavam seus olhos, nublando sua visão.

        — Corra agora. Por favor.

        Quantas vezes ela prometera a liberdade ao seu precioso leão? Um dia fugiremos juntos. Um dia crescerei e você ficará forte, e nós protegeremos um ao outro. Sim, One day. Dissera aquelas palavras tantas vezes que elas finalmente se tornaram um nome.

        Ele merecia uma chance de correr e brincar e fazer o que desejasse.

        — Vá.

        — Vika! — A voz de seu pai retumbou mais perto… tão perto que seus passos ecoavam ao fundo.

        Ela empurrou One Day para a linha das árvores que ficava à distância. Não seria capaz de salvar os outros, percebeu com uma vazão de pesar, mas poderia salvar seu precioso leão. Tinha que salvá-lo.

        — Eu disse pra ir embora!

        Ele resistiu outra vez, esfregando-se em sua perna.

        Um ofego chocado soou a alguns metros.

        — Você fez isso. — seu pai disse. — Realmente fez isso. Você me traiu. Eu! Depois de tudo que fiz por você.

        Ele havia chegado.

        Seu coração martelava no peito quando seu olhar o encontrou na escuridão. Ele era alto, com ombros largos e um peito de barril. Não necessariamente coisas ruins — até que um temperamento tão quente quanto o centro da terra o dominasse. O medo que tinha conseguido ignorar agora a consumia. De repente seus pés pareciam pesar uma tonelada, e agora não conseguia forçar-se a se mover.

        Ela raramente desobedecia aquele homem. Os castigos dele eram severos demais.

        — Eu… eu…

        Jecis foi até ela, agarrou seu braço em um aperto doloroso e a sacudiu.

        — Eu te compro as melhores roupas, a melhor comida, te presenteio com os maiores tesouros e mesmo assim ousa me desafiar?

        One Day rugiu com uma fúria há muito tempo contida e os cercou lentamente. Mas ele não atacou. Não podia. Jecis usava Vika de escudo, sempre garantindo que ela bloqueasse o caminho. O resto dos animais batia nas barras das jaulas.

        — Atsiprašau. — Vika conseguiu dizer.

        Jecis a olhou com ódio por olhos da cor de violetiniai, a mesma dos dela. Ela só rezava para que os seus não levassem uma crueldade tão fria e intensa.

        — Eu te disse para só falar Inglês. Ou fala a língua de nossa pátria esperando que alguém perceba que é estrangeira e tente tirá-la de mim?

        — Eu... sinto muito. — ela traduziu com um tremor.

        — Ainda não, mas sentirá. — Ele a soltou... só para golpeá-la no rosto.

        Ela caiu no chão. Sua boca se encheu de sangue, um gosto amargo de cobre cobrindo sua língua, e a dor explodiu pela sua cabeça.

        One Day saltou na direção do seu pai, mas doente como o leão estava, o ataque foi lerdo e Jecis desviou com facilidade da criatura, agarrando Vika e colocando-a de pé. O leão se agachou, pronto para iniciar outro ataque, claramente ansioso para rasgar seu inimigo ao meio.

        — Eu a amo mais que a própria vida, Vika, mas esse amor não irá salvá-la da minha fúria.

        Quando me salvou? Ela sentiu vontade de gritar. Sabiamente continuou calada.

        Outro rugido rasgou o ar.

        — Pensa em me ameaçar, hein, leão? Me ferir? — Jecis retirou uma arma da cintura de sua calça e estendeu o braço. — O homem que pagou pelos seus cuidados todos esses anos?

        — Não! — Vika berrou, tentando puxar aquele braço, mas sem ter sucesso. — Por favor, não. Não faça isso. Por favor. — ela repetiu, beirando a histeria.

        — Antes eu teria sido piedoso, teria feito isso sem causar dor nenhuma. Agora…

        — Não!

        One Day não pôde conter mais a sua agressão e saltou. Jecis apertou o gatilho.

        Boom!

        Apesar do zumbido repentino nos ouvidos de Vika e das estrelas que apareciam em sua visão, ela ouviu o choro agonizante de One Day e viu quando ele caiu no chão. Olhos escuros e enormes, agora cheios de angústia e arrependimento a encontraram. O corpo dele se retorceu e ele uivou em agonia.

        Um grito de negação saiu dela.

        — Cuidarei de você daqui a um instante. — seu pai disparou, empurrando-a agora que a ameaça não existia mais. — Primeiro…

        Ela engatinhou até One Day para acariciar seu corpo que estava estremecendo. Oh, meu querido. Oh, não. Seu choque e horror devoraram toda sua força quando ela levantou os olhos e viu Jecis se virar, mirar. Boom.

        Virar. Boom.

        Virar. Boom.

        Um após o outro seus belos animais foram executados, seus gritos abruptamente interrompidos. Seu queixo estremeceu, finalmente expulsando as lágrimas que se acumularam em seus olhos. Lágrimas se derramaram em suas bochechas, descendo mais, queimando e fazendo arder o corte que o anel do seu pai havia deixado para trás.

        Queria desviar os olhos de seus amigos. Não podia tolerar testemunhar seus sofrimentos, mas se recusou a se permitir o luxo de se isolar mentalmente. Aqueles preciosos seres viveram vidas terríveis ali no circo e não podia deixar que morressem sozinhos.

        Quando o último deles ficou quieto e imóvel, só One Day aguentando — oh, One Day, eu sinto tanto — seu pai puxou-a e pôs a arma em sua mão.

        — Sobrou uma bala. — ele disse, agarrando seu pulso para garantir que não apontasse a arma para ele. — Você terminará com ele.

        A bile queimou ao subir à sua garganta.

        — Não. Por favor, não.

        — Faça. — rosnou Jecis ficando com o rosto diante do seu, quase encostando seus narizes. — Faça ou as coisas serão bem piores para você.

        — Eu... eu não ligo. Não farei isso. Não posso.

        Ele estreitou os olhos.

        — Faça ou arrancarei a pele dele enquanto ainda está vivo. — Choveu cuspe em seu rosto.

        Seu leão está sofrendo. Isso era para o melhor. Era verdade, ela se perguntou, ou estava simplesmente tentando se confortar? De qualquer modo…

        Tremendo ela estendeu o braço, a arma pesada em sua palma. Embora Jecis ainda a segurasse, ele não ofereceu apoio algum.

        Sangue se derramava da boca de One Day.

        Seu dedo segurou o gatilho e sua vista embaçou.

        Seu adorado suspirou profundamente como se soubesse o que planejava. Como se esperasse pelo fim inevitável.

        — Sinto tanto. — ela disse com uma voz aguda. — Me perdoe.

        Boom.

        O leão ficou imóvel e calado como todos os outros. Soluços chacoalhavam seu corpo e seu braço caiu de lado.

        — Boa garota. — Jecis recuperou a arma e colocou-a de volta na calça. Ele enrolou as mangas da camisa e estalou os dedos. — Agora, meu coração, é sua vez. Claramente você não aprendeu a me respeitar devidamente. Mas aprenderá, eu te prometo, e nunca mais teremos um problema assim.

 

                                             SEIS ANOS DEPOIS

        MICHAEL BLACK APOIOU AS COSTAS na cadeira, as mãos formando o topo de uma pirâmide sobre a boca. Estudou três agentes que recrutara para a operação Dumpster Dive. Cada um deles era um extraterrestre que foi criado aqui na Terra. Cada um perdeu a família biológica pouco depois do nascimento, e por causa de Michael cada um foi rapidamente adotado por uma família humana, sob a condição de Michael ter completo acesso a eles sempre que desejasse.

        Ele começara seus treinamentos quando tinham cinco anos, embora só tivesse lhes ensinado poucas coisas a princípio. Tiro ao alvo eventualmente se transformara em um jogo real de caça. Acampamentos se transformaram em lutas para sobreviverem uma semana inteira na selva sozinhos, sem qualquer tipo de arma. Criar estratégias para vencer vídeo games avançou para criar estratégias para salvar um ao outro de qualquer que fosse a situação desastrosa que Michael encenasse.

        Agora os garotos eram adultos, os melhores dos melhores — e estavam prestes a encarar a maior ameaça às suas carreiras.

        — Vamos só ficar aqui sentados em silêncio? — disse John Sem Sobrenome. Ele tinha se recusado a aceitar o sobrenome dos seus pais adotivos, e na época em que Michael descobriu o porquê, tirando-o daquela casa, o garoto também não queria ter nada a ver com o sobrenome Black.

        — Obviamente, não. — respondeu Michael com facilidade. — Estamos conversando, não estamos?

        John lhe mostrou o dedo. Ele era um Rakan e dos seus cachos à sua pele lustrosa, ele parecia ter sido esculpido de uma rocha de ouro. Michael tinha completa certeza que não havia homem mais belo.

        Corbin Blue abafou o riso, e John também lhe mostrou o dedo.

        Blue era um Arcadian, uma raça conhecida pela pele clara de seu povo, cabelo branco, e olhos cor de lavanda, e ele era um dos guerreiros mais ferozes que Michael já encontrou, com mais de um metro e noventa de altura, com a massa muscular de uma espécie fabricada artificialmente em uma dieta firme de esteroides e hormônios de crescimento.

        Dos três machos, Blue era a única pessoa pública. Ele jogava futebol americano profissional como disfarce para ir às festas certas que as pessoas certas frequentavam, onde álcool fluía e segredos eram revelados. Bem, por isso e porque ele gostava de derrubar outros caras por dinheiro.

        Ao lado dele estava Solomon Judah. Michael não tinha certeza das origens do homem. Tudo que sabia era que nunca conheceu alguém como ele, e todos que o conheciam o temiam. Incluindo Michael! Solo ou era fogo ou gelo, nunca um meio-termo.

        Solo era solitário, só saindo de sua “bat-caverna jeca de fim de mundo”, como Blue dizia, para uma missão. Mas também, Solo precisava ser solitário. Ele era mais alto que Corbin e John, de um modo monstruoso, com uma massa muscular ainda maior, porém enquanto os outros eram fantasias de beleza civilizada, Solo era um pesadelo de infernal feiura.

        E ok, sim, isso já era exagero. Ele só se parecia com uma criatura do submundo quando seu temperamento o dominava. Em um bom momento ele na verdade era o que a assistente de Michael se referia como um bárbaro chique. E ela sempre usava um tom de voz abafado e respeitador ao falar isso.

        Solo tinha cabelo preto repicado de forma irregular, graças à sua afinidade de cortar as madeixas com a própria lâmina, e pele altamente bronzeada. Seus olhos eram azuis e com bastantes cílios, seu nariz marcante e aristocrático, com uma leve saliência no centro de tantas fraturas que sofreu.

        Sempre que experimentava um surto de raiva, a pele de Solo escurecia em um tom assustador de vermelho — a última cor que seus inimigos viam antes de morrerem de modos terríveis. Seus dentes alongavam em algo bem pior que presas. Suas maçãs do rosto dobravam de tamanho e suas orelhas cresciam e ficavam pontudas. Garras metálicas brotavam de suas unhas.

        Quando a última das mudanças físicas ocorria ninguém seria capaz de acalmá-lo. Ele explodiria até ficar fraco demais para se mover, tudo em seu caminho já totalmente e completamente destruído.

        Isso nem sempre fora o caso. Uma vez seus pais adotivos tiveram grande sucesso na esfera acalme-a-fera-selvagem. Na verdade, o par passara incontáveis anos da vida de Michael assustando-o quando ele tentava se aproximar do menino louco, não para tentar subjugá-lo, mas para abraçá-lo forte em seus braços. E Solo tinha deixado que o abraçassem!

        Quando Mary Elizabeth e Jacob morreram, Solo ficara inconsolável — e outra vez impossível de ser detido.

        Ele deve ter sentido o olhar de Michael, porque levantou os olhos e segurou seu olhar. Eles dividiram um momento de comunicação silenciosa.

        Michael: Como está indo, filho?

        Solo: Se não começar logo arrancarei seu coração e o comerei no café-da-manhã.

        Aquele era só um palpite da parte de Michael, claro, mas de repente teve certeza que Solo hoje era gelo.

        — Recebi uma boa dose de inteligência. — disse Michael sem perder mais tempo. Ele sentou ereto e pressionou alguns botões em seu computador.

        — É, odeio ter que dizer isso, chefe, mas isso não é exatamente uma novidade. — replicou Blue. — A única vez que nos chama é quando recebe informação. Vamos tratar logo do assunto dela, certo?

        — Por que se importa se isso demora ou não? — perguntou John. — É baixa temporada para vocês, então não tem de estar em lugar algum.

        — Fale por si. — Blue apontou com o polegar na direção de Rakan como se dissesse, Dá pra acreditar nesse cara? — Eu tenho um casamento para fingir que ajudo a planejar.

        A verdade nua e crua, bem ali. E Michael ainda estava chocado com o casamento iminente. Ele sempre checava seus garotos, e sabia que Blue não conhecia a moça há muito tempo. Algumas semanas, nada mais. Mas essa não era a parte chocante. Depois de um relacionamento desastroso alguns anos atrás, Blue tinha se tornado um profissional de uma noite só. Mesmo assim, agora esperava viver uma vida inteira bem casado? Por favor. E a garota? A fama de Blue era ampla. Realmente acreditava que seria ela quem o mudaria?

        Bem, isso não aconteceria. A noiva não tinha ideia que Blue trabalhava nas partes secretas do governo como um assassino contratado e jamais teria. Eventualmente, ela perceberia que ele mentia para ela sobre seu paradeiro, e exigiria respostas que não poderia dar. Ela assumiria que ele estava tendo um caso — e ele poderia estar tendo mesmo, também — e o deixaria.

        Michael viu isso acontecer com seus espiões várias e várias vezes, mas eles continuavam tentando, esperando construir laços com alguém, qualquer pessoa, e criar uma ilusão de normalidade. Quando aprenderiam? Quando sua vida era uma mentira das grandes, finais felizes eram impossíveis. E sim, Michael sabia disso por experiência própria.

        Ele teria liberado os garotos do emprego, mas eles o mandariam ir se ferrar. Eles eram irmãos por circunstâncias, se não por sangue, e lá no fundo se amavam de verdade. Michael também. Além disso, eles não conheciam outro modo de vida. Ele não deixou que aprendessem. Um erro de sua parte, sim, mas um que era tarde demais para corrigir.

        Pelo menos John e Solo não cometeriam o mesmo erro que o amigo deles. O par tinha vagado por muita coisa ruim para tentar o casamento, e Michael sabia que os dois se sentiam sujos até os ossos. E Solo… bem, não estava errado em pensar assim.

        Outros agentes faziam bagunça e Solo era quem limpava tudo, destruindo a evidência que nunca deveria aparecer — quer viva ou morta, quer culpada ou inocente.

        Michael ligaria para ele, daria uma localização, e diria o que dera errado. Alguns dias depois Solo consertaria tudo. E oh, as coisas que tinha que fazer para ter sucesso…

        — O que entrou no seu sapato hoje, chefe? — perguntou Blue. Ele sempre foi o mais observador dos três. — Está pensando no meu casamento? Querendo chorar por que não recebeu convite?

        — Chorar, quando prefiro me matar do que ir a essa cerimônia? — ele perguntou, já sabendo que estaria lá, escondido nas sombras. — Dificilmente.

        Seu olhar voltou para Solo. Ele iria? O cara estava jogado na cadeira, os ombros curvados numa tentativa inútil de fazê-lo parecer menor. Seus olhos estavam estreitados e ainda presos aos de Michael, agora tão penetrantes como uma espada.

        — Certo, continuando. — murmurou Michael, entendendo a dica. Ele pressionou alguns botões e uma tela apareceu na parede atrás dele. Imagens se formaram. — Conheçam Gregory Star. Humano. Trinta e três. Casado e com dois filhos, um garoto de vinte e um, e uma garota de dezenove. Ambos viciados em drogas. Nós rastreamos o desaparecimento de vários agentes do setor de Investigação e Remoção Alienígena até a porta do Senhor Star.

        — Localização dos agentes? — perguntou Blue.

        — Dispersa. Não agimos ainda porque não temos certeza se estão vivos ou mortos.

        Alguns botões mais foram pressionados, e uma foto de cada agente apareceu na tela.

        — Então não se têm ideia do que Star quer —ou faz— com esses agentes. — declarou John sem rodeios.

        — Correto.

        — Mas têm certeza que ele está envolvido?

        — Temos. Colocamos ele sob vigilância por outro motivo e ouvimos algumas conversas telefônicas. Apesar de podermos ligá-lo aos crimes, não conseguimos descobrir mais nada.

        — Bem, falei com ele em algumas festas, e tenho que dizer, estou surpreso. — disse Blue. — Ele é um empresário bem rico com um olho bom para as mais bonitas. Apostas são uma fraqueza e drogas um passatempo, o que provavelmente é a razão dos seus filhos serem viciados. Guarda-costas são itens de primeira necessidade e amantes tão descartáveis quanto roupa de baixo, mas ele parece bem inofensivo.

        Solo disparou.

        — Sim, e todos são sempre exatamente o que aparentam, não são? Por que não pensa antes de falar? Idiota.

        Blue, que sentou no meio dos meninos, virou-se para encará-lo.

        — Por que não diz oi para a raspadinha de cereja que estou prestes a fazer do seu cérebro?

        Ele também poderia fazer isso. Possuía habilidades extraordinárias que nenhum humano, e muitos poucos Arcadianos, nem podiam sonhar possuir.

        — Vá em frente. — disse Solo, despreocupado. — Diferente de você, tenho alguns neurônios sobressalentes.

        — Crianças. — disse Michael, batendo as mãos. — Já chega. — Se eles decidissem reencenar a gazela-manca-versus-o-leão-faminto do filme Animais da Antiga Terra, Michael perderia dois agentes e provavelmente alguns membros depois de tentar separá-los.

        Pistoleiros eram bebezões.

        — Deixe eles brincarem. — disse John, seu tom agora com um toque de emoção que Michael não conseguia nomear. Algo temperado com veneno… mortal. — Eles precisam resolver logo isso. Estão com um saldo devedor.

        — Não, não rola. — Blue sabia como brincar; Solo não. Blue insultaria intencionalmente Solo (mais do que já tinha feito), e Solo iria embora — depois de deixar para trás uma carnificina. Nada nem ninguém seria capaz de trazê-lo de volta daquele estado até que ele estivesse pronto. Mas ele nunca estava. — Se rolar, terei que tirar todos os três desse caso e mandá-los trabalhar com a minha filha, Evie.

        — Já chega! — gritou John, e os outros dois homens imediatamente fecharam os bicos.

        Eles podiam ser capazes de descartar Michael, mas dançariam no meio do fogo por John.

        — Estamos bem agora? — perguntou Michael.

        Blue assentiu.

        Solo correu a língua por cima dos dentes… dentes levemente maiores do que eram minutos antes.

        Michael sabia que Solo foi insultado por pessoas a vida inteira. Por causa de sua altura e massa muscular, crianças da escola primária o apelidaram de Menino Ogro — até seu temperamento ter lhe vencido e ele se transformado parcialmente em sua outra forma. Então elas o chamaram de Purê de Monstro e de Feioso-O e até atiravam pedras nele.

        Uma vez para se proteger, ele quase espancou um garoto até a morte.

        Ligaram para a sua mãe, e ela chegou a tempo de acalmá-lo antes que ele machucasse outra criança, mas o mal já tinha sido feito. Ele foi expulso do sistema educacional e teria que ser isolado para o resto da vida, se Michael não interferisse.

        — Estamos bem. — John disse, seu rosto pálido. — Evie agora está fora de cogitação.

        Um segredo bem conhecido: John protegeria Evie com a própria vida contanto que não tivesse que falar com ela. Isso era culpa de Michael. Ele tinha mimado sua filha caçula, e ela agora sentia que era dever de todo homem fazer o mesmo.

        — Digo isso com a melhor intenção possível, Michael — disse Blue com um estremecimento —, mas Evie precisa de um freio.

        — Levarei isso em consideração. — Michael limpou a garganta. — Agora, como eu dizia, os agentes foram levados enquanto trabalhavam.

        — Humanos? De outros mundos? — perguntou John. Sua cor ainda não voltara ao normal.

        — Ambos. — ele respondeu. — Machos e fêmeas também. O único traço em comum é que trabalham para o IRA.

        — Eles são jovens? De boa aparência? — perguntou Blue.

        — Alguns deles, sim.

        — Talvez estejam sendo vendidos no mercado escravo. Essa é a melhor maneira de esconder múltiplos corpos com vida, bem como a melhor maneira de fazer dinheiro rápido quando se está tentando sustentar um vício. — Blue passou dois dedos pela suavidade de sua mandíbula. — Algum civil foi levado?

        — Sim. — disse Michael, impressionado pela ligação que sua mente rápida fez. Levara dois dias para que Michael ligasse aquele ponto em particular. — Contudo, não achamos que tenha a ver com tráfico. Temos homens no interior dos maiores leilões que ocorrem e nos prostíbulos, mas nenhum deles viu traço dos agentes ou dos civis.

        — O que você realmente tem? — perguntou Solo. — Como sabe que as vítimas foram levadas pelos mesmos caras?

        Outra pergunta excelente.

        — O Sr. Star tem uma marca pessoal. Ele usou o sangue das vítimas para desenhar o símbolo chinês de vingança em uma parte da casa.

        Blue revirou os olhos.

        — Tem certeza que o símbolo é de vingança? Um cara que conheço fez uma tatuagem que ele achava ser o símbolo da força, mas na realidade era o símbolo da indigestão.

        — Um cara que você conhece? Cara, já vi suas costas. — John disse com sarcasmo. — A tatuagem é a sua.

        Sem dar desculpas, Blue disse:

        — Achei que a história teria mais graça assim.

        Tanto faz.

        — Sim, temos certeza. — interferiu Michael. — Achamos que usa-a para nos desconcertar e confundir os seus motivos. Não há razão para ele procurar vingança contra dezessete pessoas que foram sequestradas. Nenhuma delas tem qualquer ligação com ele ou uma com a outra. Fora da agência em que trabalham, claro.

        John apertou os lábios.

        — Deixe-me adivinhar. Você quer que descubramos o que Star fez com todas essas dezessete pessoas antes que o matemos. Bem, esqueça isso. Se acabarmos com ele agora ninguém mais será levado, e o problema estará resolvido. — ele disse, abrindo os braços. — Por nada.

        — Quando uma dessas pessoas é uma senadora, não apagamos o único homem que pode saber aonde ela está. — Mas não havia dúvida de que Star morreria quando tudo tivesse terminado. — Então, é assim que as coisas vão ser. John, você se juntará ao time da IRA de Nova Chicago como um transferido de Manhattan. Eles perderam dois agentes com essa catástrofe.

        — Entendido.

        — E ninguém pode saber quem você realmente é ou por que está ali. Nem seu novo chefe, nem seu novo parceiro, Dallas Gutierrez. — Michael jogou para ele uma pasta digital com toda informação que precisaria.

        John pegou o aparelho e folheou-o rapidamente.

        — E por que estou lá realmente?

        — Para ouvir as fofocas de escritório e para estudar os agentes. Se alguém tiver uma conexão com o Sr. Star, quero saber a respeito e quero que fique amigo dessa pessoa. Durma com ela. O que for preciso.

        Ele assentiu.

        — Blue, o mundo está prestes a descobrir seu novo vício em drogas.

        Os olhos do jogador profissional se estreitaram perigosamente. Ótimo. Ele entendeu. Teria que fingir com sua noiva também.

        — Agora que está ficando fora de controle, dará uma festa. Você convidará os filhos do Sr. Star e vai ser legal com eles. Se puder torne-se o novo fornecedor do filho. E se a filha estiver interessada, durma com ela. Só tenha cuidado. Odiaria que você também desaparecesse.

        Como John, ele assentiu.

        Ao menos não tinha discutido o caso.

        Michael se concentrou em Solo. Ele ainda estava curvado na cadeira, os olhos ainda estreitos.

        — Você se tornará o novo guarda-costas mais confiável de Blue. O homem que sabe fazer o serviço. O que Blue confia para fazer as coisas mais duvidosas.

        Um vislumbre de pânico apareceu antes das feições de Solo se endireitarem, sem revelar mais nada.

        — Muito bem.

        Ele odiava sair em público, e Blue levava uma vida bem pública. Sua foto seria tirada, estaria em todos os jornais, e ele teria que reviver cada momento e tolerar cada insulto. Mas faria aquilo. Ele sempre fazia o que Michael pedia.

        — Ótimo. — disse Michael. — Cada um de vocês tem quatro dias para se preparar. No quinto, espero que estejam arraigados nos seus papéis. Dispensados.

        Em uníssono, os garotos se levantaram. Quando eles se dirigiram à porta, Blue resmungou. John esfregou a nuca. Solo estava quieto, os braços de lado, as passadas propositalmente leves.

        Os sensores acima da porta captaram seus movimentos e abriram a porta corrediça e à prova de som de metal. Blue a atravessou primeiro, John em seus calcanhares, e Solo em seguida.

        Whoosh.

        Uma rajada repentina e violenta de calor golpeou todo o escritório, tirando Michael da cadeira e arremessando-o na parede. Fogo lambeu sua pele, e flechas de dor o banharam quando ele deslizou para o chão. Tentou respirar, mas não conseguiu. Algo pesado pressionava seu peito, e ele piscou rapidamente em um esforço para se concentrar. Uma mesa agora estava em cima dele, ele percebeu. O que… como…?

        A resposta surgiu. Alguém tinha explodido seu escritório domiciliar.

        Ele riu da improbabilidade de tal situação e sangue borbulhou de sua boca. Quando tossiu e lutou para fazer o ar passar pela obstrução líquida, sua dor se intensificou e sua visão escureceu.

        Onde estavam seus garotos? Ele se perguntou de modo perplexo. Eles foram…? A escuridão se aproximava dele… dor… doendo… estava doendo tanto agora… Os garotos estiveram mais próximo da explosão e não tinha certeza se poderiam ter sobrevivido… mas eles eram tão fortes, tão vitais… certamente tinham…

        A escuridão alcançou-o finalmente e nada mais existiu…

 

        Para Solo a consciência retornou em passos lentos. Havia fumaça em seu nariz e na sua garganta, e seu corpo latejava como se cada osso estivesse quebrado. Não estava certo de onde estava ou o que tinha acontecido.

        — Com esse aqui? — uma voz que ele não reconhecia disse.

        Apesar da névoa embaçando sua visão, foi capaz de distinguir dois homens abaixados em cima dele. Um era magro, alto e tinha por volta dos trinta, com cabelo e olhos escuros. O outro era uma versão viva do homem que Solo viu na foto projetada no escritório de Michael, Gregory Star.

        Star era um humano baixinho com cabelo grisalho, olhos castanhos e pele bronzeada e marcada pelo sol.

        — Olhe para ele. — ele disse, os lábios se retorcendo de asco conforme os olhos varriam o corpo de Solo. — Venda-o para aquele mesmo circo que vendemos o agente do IRA. Ele dará uma quantia decente.

        — E esse aqui?

        Os dois sumiram da linha de visão de Solo, mesmo assim ouviu o suspiro de Star.

        —Termine de queimá-lo. Fritado como está não há modo dele sobreviver e ser transportado para qualquer lugar, e assim não haverá nada dele para que alguém o encontre. Uma pena, contudo. Eu meio que gostei dele.

        — E esse último?

        Uma pausa. Um ronronar de prazer.

        — Não faça nada. Vou ficar com ele.

 

        Mais uma vez a consciência chegou lentamente para Solo. A escuridão desaparecia gradualmente de sua mente com pequenos pensamentos se formando. “Eu preciso acordar. Alguma coisa aconteceu. Alguma coisa errada”.

Estava envolto em calor, suor, sua pele ardendo. A cada inalação o interior de seu nariz queimava. A cada expiração seu peito pulsava como se fosse rasgado por vidro quebrado. Ele flexionou e esticou os dedos. As juntas estavam rígidas, inchadas. Arqueou as costas, esticando-as. Cada vértebra estava quebrada, algumas até mesmo saltando de volta para o lugar com força dolorosa.

Ele era um Allorian — uma raça sobre a qual os humanos nada sabiam — e devido ao poder do guardião que lhe foi dado por seus pais biológicos, curava-se rápido. Forçou suas pálpebras a se abrirem, fazendo careta à medida que a pele frágil repuxava. Piscou uma vez, duas, e várias outras vezes. Alguém acendeu uma luz muito intensa que brilhava diretamente sobre seus olhos, empolando suas córneas. Ele não podia fazer nada a não ser ficar cego pelo branco e dourado.

Solo fechou os olhos novamente. Sons penetraram seus ouvidos ultrassensíveis. O choque de metal contra metal. Um gemido de dor. Vários conjuntos de passos. O esguicho de algo sendo jogado num balde.

Seu nariz ainda queimando torceu-se à medida que os cheiros o assaltavam. Sujeira, grama, aveia velha, odor corporal, perfume antigo, e até mesmo um traço de cobre corroído. Sangue.

Sem mais se importar com os danos provados pela luz, abriu os olhos e manteve-os assim. O ardor gradualmente cessou, pelo que ele era agradecido. Olhou em volta, apenas para perceber que ninguém acendeu uma lâmpada. Ele estava do lado de fora, o sol era o responsável pelos altos raios que se focavam sobre ele. E... estava em uma jaula.

A ciência disso acertou-o como a energia elétrica de um raio e puxou-se para cima. Tontura atingiu sua mente, mas não se permitiu reagir. Experimentou coisa pior mil vezes antes, e com a vida que levava experimentaria coisas piores mil vezes mais.

Ao seu redor homens e mulheres estavam presos em jaulas similares à dele: grandes, com barras espessas, teto vermelho acima e quatro rodas abaixo. Os homens usavam somente tangas, e as fêmeas algum tipo de tecido transparente sobre os seios e em volta dos quadris.

— Aquilo acordou. — alguém disse.

O escárnio do “aquilo” reverberou.

Solo sabia que falavam dele. Fora chamado de “aquilo” grande parte de sua vida. Normalmente a pessoa cometia o erro apenas uma vez.

Ele examinou as jaulas uma segunda vez, sua mente processando diversos detalhes de uma só vez. Eram dez jaulas no total, formando um círculo largo com uma abertura nos lados leste e oeste, permitindo que homens livres entrassem no centro sem obstáculos. Nenhuma jaula estava vazia. Havia cinco machos, incluindo ele mesmo, e cinco fêmeas.

Cada um era um alienígena de alguma espécie, e nenhum da mesma raça. Havia uma Teran, ele achou, pois só podia ver as costas do cabelo fulvo da mulher, o que não lhe dava certeza. Tinha uma fêmea Delensean, com pele azul e seis braços. Um macho Mec, com uma cabeça careca estranhamente formada e uma pele que mudava de cor conforme o humor. Naquele instante estava clara, quase transparente, como se ele não sentisse qualquer emoção.

Depois vinha um macho Ell Rollie com um físico grande e, como o resto de sua raça, com a parte superior pouco menor do que uma casa térrea. Uma fêmea Morevv, uma das mais belas espécies que já caminhou pela Terra com a pele e os olhos prateados. Uma Rakan, com um brilho dourado ainda mais brilhante do que o de John Sem Sobrenome. Um macho Targon. Um Bree Lian. Uma fêmea Cortaz.

Cada um tinha algemas de metal grosso em seus punhos. Solo ergueu seus dois braços bem pesados. As mesmas algemas apertavam seus punhos. Ele franziu o cenho. A pele ao redor do metal estava num tom de bronze mais escuro que o habitual com um traço de vermelho, como se estivesse à beira de mudar para sua outra forma. Quando balançou seus dedos, dores afiadas correram por seus braços até os ombros. Já teve pinos fincados em seus ossos antes e reconheceu a sensação. Mas por que prendê-lo, senão para curar os ossos? Para limitar o alcance de seus movimentos, talvez? Mas por que limitar seus movimentos e enjaulá-lo ao mesmo tempo?

Calma.

— Não tenha medo.

Reconhecendo a voz, ele olhou para a direita. Com o tamanho do dedo indicador de Solo, X tinha os cabelos prateados, quando antes eram pretos como tinta, e olhos abobados que foram de um vibrante azul esverdeado. Uma túnica rasgada e suja envolvia sua forma macilenta. A pele que fora luminosa brilhando com todas as cores do arco-íris, estava agora pálida e mais fina do que papel antigo.

  1. Seu guardião.

O ser sempre pareceu subnutrido, mas quando alimentou Solo com a pouca força que ainda tinha, como deve ter feito após a explosão, ele parecia um zumbi. Solo era o único que podia ver X, o único que podia ouvi-lo. Ele apenas esperava que o Dr. Evil, seu outro companheiro, se mantivesse em frequência silenciosa hoje.

Dr. Evil. Seu torturador.

Dr. E não foi dado a ele, só apareceu e se recusou a ir embora.

— Não estou com medo. — ele finalmente replicou. Não tinha certeza do que estava acontecendo. Lembrava-se de X dizendo para ficar longe do encontro com Michael. Lembrava-se de ignorá-lo e entrar no escritório de Michael. Lembrava-se... da explosão. Sim, isso mesmo. Blue abriu a porta e uma bomba estourou. Solo foi atirado pelo cômodo e ficou inconsciente instantaneamente. Depois disso ele se lembrava de... de que?

— Você deveria estar com muito medo. — falou outra voz. Dr. Evil. Suas esperanças foram rasgadas e queimadas.

Solo olhou para a esquerda. Enquanto X tornou-se envelhecido e desgastado com o passar do tempo, Dr. E prosperou. Ele tinha cabelos louros grossos e olhos de um jade pálido. Sua pele era bronzeada, lisa e cheia de saúde. Ele também usava uma túnica, mas esta cintilava num branco brilhante.

E — abreviação para Laevus.

X — abreviação para Adiutrix.

Solo era muito jovem para poder pronunciar nomes tão complicados. Ele também ficara um tanto assustado. Mas o par continuou indo e vindo, discutindo, oferecendo conselhos, e Solo eventualmente se acostumou com eles.

— Você vai encontrar uma saída. — X disse agora, sempre otimista. Nunca acreditou que Solo falharia em qualquer sentido, o que sempre causava uma decepção aterradora quando Solo, de fato, falhava.

— Ele vai? Mesmo? — retrucou Dr. E. — Porque duvido seriamente que ele possa mastigar essas barras. Não importa o quão grandes sejam seus dentes!

Solo olhou além das jaulas, colhendo suas opções. Mais humanos andavam por ali agora do que antes, apressando-se em uma ou outra direção, enquanto outros praticavam em diferentes aparatos. Havia um trapézio farpado com ferrões saindo de uma barra fina. Um homem escalou até o topo de uma bala de canhão em tamanho natural que parecia feita de vidro com peixes saltitantes nadando entre as paredes. Uma mulher dava giros em um trampolim, cuidando de evitar anéis de fogo colocados aleatoriamente.

... Venda-o também para o mesmo circo que comprou o agente do IRA...

As palavras reverberavam na cabeça de Solo.

... Venda-o... Circo...

Star, o homem que raptara e talvez até matara dezesseis pessoas, tinha se aproximado dele e dito aquelas palavras. Venda-o também para o mesmo circo que comprou o agente do IRA. Ele vai dar um bom preço.

A verdade atingiu-o com a força de uma marreta. Star dissera estas palavras para um empregado a respeito de Solo. E ambos o fizeram, ele se deu conta. Tinham-no vendido para um circo. Aquele circo.

O terror inundou-o, um ácido corrosivo que queimava e destruía. Isso era — deveria ser — impossível. Star não poderia saber onde enviar seus agentes obscuros para capturá-lo, quando eles mesmos só tinham tal conhecimento com uma hora de antecedência. Mais do que isso, não havia ninguém no mundo todo que pudesse passar pela segurança de Michael. Um sistema que Solo havia implantado.

Mas tudo bem. Star descobrira e de alguma forma violou a segurança. Durante os muitos anos que Solo trabalhou para Michael, aprendeu a procurar uma solução no momento em que percebesse haver um problema. Podia lidar com Star depois. Agora, apenas escapar importava.

E deveria ser fácil. Ele estava em uma jaula, sim, mas não havia guardas armados diante da porta. As barras eram de metal, sim, mas não tinham — ele as alcançou — uma carga elétrica. Bom.

Um dos cativos tossia e murmurava

— Bobo. Você nunca ficará livre.

Ele precisava lembrar-se que ali não havia nenhuma testemunha de cada um de seus feitos. Se apenas John ou Blue estivessem lá. Eles iriam...

Acabem de queimá-lo. Frito como está. De jeito nenhum vai sobreviver ao transporte para qualquer lugar, e desse jeito não haverá nada dele para alguém encontrar. Uma pena, eu acho. Eu meio que gostava dele.

E esse último?

Não faça nada. Vou mantê-lo.

O diálogo passou pela mente de Solo e ele apertou os molares. O que quer que Star e seu empregado disseram, John e Blue estavam vivos. Michael também. Solo não acreditaria em nada menos que isso. Seus amigos eram fortes, ardilosos e habilidosos. A morte não tinha chance. Assim que saísse daquele circo, Solo procuraria os homens. Então completariam sua missão e destruiriam Star.

Espere. A missão deles.

Venda-o também para o circo que comprou o agente do IRA.

“O agente do IRA” disse Star. Um dos desaparecidos.

Solo analisou os cativos uma vez mais. Seu olhar recaiu sobre a Teran, que tinha finalmente se virado para encará-lo. Ela. Ela era o agente. Ele viu sua fotografia na parede do escritório de Michael.

Seu nome era Kitten e ela era parte da Equipe de Investigação E Remoção Alienígena de Nova Chicago, treinada para matar com as mãos nuas, para suportar a pior tortura e, se necessário, “arrancar a valeriana do inferno do corpo de alguém”, o que quer que isso significasse.

Seu cabelo embaraçado combinava com o de um gato malhado, com matizes de dourado, marrom, preto, e até traços de linho entremeados. Suas orelhas terminavam em pequenas pontas afiadas, mais bonitas que as dele quando estava bravo. Ela tinha olhos ambarinos repuxados para cima, maçãs do rosto altas e lábios curvados num profundo franzido. Ela era bonita de um jeito muito feminino e travesso — ou teria sido, com um pouco mais de peso no corpo. Ela estaria passando fome?

Provavelmente. Mas ainda assim, uma centelha de alívio acendeu em seu peito. Para encontrar e salvar a vida daquela agente, deveria estar disposto a suportar outra explosão. Ele não sairia sem ela.

Enquanto ajustava seu plano de fuga para incluir mais um, ela silvou para ele.

— O que está olhando, novato? Vou estripar você.

Dr. E bufou de raiva.

— Ela não seria capaz de te estripar se você arrancar as mãos dela!

— Procure por compreensão como se fosse um tesouro escondido. — falou X — Ela foi machucada, então machuca outros numa tentativa de se proteger de futuros abusos.

Solo se obrigou a olhar para longe da ingrata Teran antes que seu temperamento tomasse conta. Se acontecesse Kitten se mataria apenas para salvar-se de não ser morta por ele. E ela era esperta por fazê-lo!

Ele ainda fugiria para isso, mas agora duvidava que tinha de ser bonzinho a respeito. Não se importava se ela foi machucada ou não.

Certo. Ele se importava. Que seja.

Um homem que tinha que estar sobre uma perna de pau cruzou seu caminho. E mesmo assim as pernas do homem permaneceram cobertas pelas calças, e ele parecia equilibrar-se nos pés nus ao invés de em postes de madeira. Mas... aquilo não estava certo. Era muito alto e as pernas muito finas.

Uma fêmea de não mais do que 90 centímetros bamboleava atrás dele. Pelo menos Solo assumiu que fosse fêmea. Ela tinha seios amplos e vestia uma camisa rosa e uma minissaia brilhante, mas também tinha uma longa e grossa barba com contas entrelaçadas pelas mechas escuras de cabelos... não, não cabelo. Não podia ser. As mechas moviam-se e silvavam e revelavam pequenas presas brancas. Cobras, ele percebeu. Sua barba estava comprimida com centenas de cobrinhas de olhos vermelhos e brilhantes.

Outra fêmea seguia atrás dela soltando fogo pela boca sem ajuda de qualquer tocha. Ela ria quando os demais alienígenas nas jaulas se encolhiam nas jaulas para evitar serem queimados, mas aquela risada cessou quando seu olhar pousou em Solo. Ela parou a meio passo, seus olhos fazendo uma varredura.

— Bem, bem. O que temos aqui?

Ele a analisou também. Jovem, com o tônus muscular definido do tamanho do de Solo e a força necessária a uma fêmea. Não fosse assim ele poderia partir a espinha dela em duas. Ela era atraente com traços ousados, olhos verdes que seriam bonitos não fosse o brilho inflado do orgulho, com um leve traço escuro, cabelos lisos na altura dos ombros com mechas cor-de-rosa. Havia três aranhas tatuadas em cada um de seus braços, cada uma de um tamanho diferente.

— Rejeite-a. — X ordenou, surpreendendo-o. X era o amante, não o guerreiro. — Mande-a embora.

— Não a rejeite. Olhe para ela. Ela parece perversa, garantida. — replicou Dr. E. X rosnou baixo em sua garganta. — O mal se espalha e nós não devemos pegar o dela.

Dr. E esfregou as mãos juntas com alegria.

— Olá! Estou ansioso para que Solo pegue o que quer que ela tenha.

Sim. Dr. E não se importaria caso Solo pegasse alguma coisa nojenta pelo tempo em que o pequeno diabrete pudesse observar.

X estalou.

        — Beleza geralmente esconde uma besta.

Dr. E cantarolou em aprovação.

— Bom ponto. Vamos tirar as roupas dela para ter certeza.

Eles poderiam continuar o dia todo. Solo ergueu o queixo, agarrou as barras na sua frente e sacudiu toda a cela. Esperava assustar a mulher e impor seu domínio, mas também, furtivamente, checar a fechadura da porta. Com apenas um olhar ele pode dizer que era nova, feita para abrir somente quando a digital apropriada fosse escaneada. Infelizmente também era feita de titânio e manteve-se firme.

Sem abalar-se com a explosão dele, ela caminhou para perto dele.

— Você viu meu novo talento? Soltar fogo? Acabei de adquiri-lo e já sou muito boa.

Ela falava como se fosse tão fácil quanto adquirir uma camiseta nova.

— Mas chega de mim e minha magnificência. — ela continuou. — Jecis finalmente acatou meu conselho e trouxe uma atração que as massas irão temer. Você é tão grande quanto um urso e feroz como um leão, não? Estou satisfeita.

Solo alcançou por entre as barras, determinado a agarrá-la. Sorrindo, ela pulou fora de seu alcance.

— Uh, uh, uh. Nada disso ou serei forçada a castigar meu novo e gostoso brinquedo.

Ele já foi chamado de muita coisa, mas nunca daquilo.

— Eu a quero mais a cada segundo que passa. — disse Dr. E com um suspiro sonhador.

X sacudiu a cabeça e disse:

— Ela não é mulher para você, Solo.

— Ohhhh, isso é um choque. X não quer que você faça a festa dentro das calças. Bem, adivinhe? Eu quero! Faz muito tempo.

— Silêncio. — Rosnou Solo e a fêmea gaguejou indignada. Dr. E queria toda mulher que Solo encontrava e X não queria nenhuma. Mas Solo não era um escravo de seus desejos. No punhado de vezes que tivera uma amante, saiu sentindo-se sujo e enojado. Porque — a vergonha lutava para tomá-lo — se as fêmeas não saíssem quebradas e sangrando, ele não saía feliz.

Solo apenas atraía mulheres com um lado sombrio: aquelas que queriam o monstro em suas camas mais do que o homem; as que queriam um tapa mais do que um beijo, uma arranhada de suas garras do que uma carícia.

No trabalho, tudo bem. Tanto faz. Ele faria qualquer coisa com qualquer um, sem remorso. Simplesmente desligava sua mente, enterrava as emoções. Esse era o único meio dele fazer as terríveis coisas que supostamente precisavam ser feitas. Mas machucar as muitas fêmeas que ele deveria proteger? As mesmas fêmeas a quem apenas queria dar prazer? Seus pais tinham lhe ensinado melhor do que isso.

A fêmea se aquietou e o olhou.

— Você não pode simplesmente me mandar calar. Sou sua senhora e você é meu escravo.

— Na verdade, você não é nada.

Ao invés de insultá-lo novamente, ela sorriu.

— Acho que adorarei ensiná-lo a forma correta de se fazer as coisas.

Chega.

— Se você espera sobreviver à carnificina que vou fazer com esse circo, deve me libertar.

— Libertá-lo? — ela perguntou com um ronronar sedutor. — E o que me dará em troca, hum?

— Não barganhe com ela. — apressou-se X.

Solo pressionou a língua no céu da boca. Como se fosse fazer algo tão tolo. Outras pessoas poderiam barganhar, mas não Solo. Nunca Solo. Faltar com sua palavra era sofrer dolorosamente. Uma maldição de sua raça, aparentemente.

— Eu te disse. — ele falou — Vou permitir que viva.

— Que doce. Mas não, não acho que vou deixá-lo ir. Gosto de você exatamente onde está. E talvez algum dia até mesmo me agradeça por esta recusa. Prometo que não sou de morder, e que encontrará o paraíso nos meus braços. Mas, adivinhe? — ela acrescentou num sussurro quando se inclinou na direção dele. — Eu sou uma mentirosa, e mordo. Forte.

Palavrões ecoaram de uma boca feminina atrás dela. Ele voltou os olhos para os demais alienígenas. Todos, exceto a Teran, continuavam escondidos nas sombras de suas jaulas, suas expressões amedrontadas. A Teran — Kitten — estava sentada na mesma posição de antes, mas sacudia as barras e seu olhar se fechava sobre a humana.

— Por que não vem até aqui brincar comigo? — Kitten rosnou.

A garota empalideceu. Muito provavelmente as duas tinham brigado e a garota perdeu.

— Liberte-me. — ele repetiu, chamando a atenção dela. — Eu prometo. É o único jeito de se salvar.

Uma risada tilintante borbulhou dela, o encontro com a Teran já esquecido.

— Você não é a coisa mais adorável? Eu sei que pressenti, mas agora tenho certeza: vou realmente gostar de domesticá-lo.

Muito bem. Por volta do pôr-do-sol ela já não estaria apta a gostar de algo nunca mais.

— Meu nome é Audra, por sinal. Sou a estrela do trapézio, assim como a amante do dono do circo. Sou alguém de valor.

Alguém precisava ensinar a ela o significado da palavra “valor”.

Arquejos de horror irromperam atrás dela.

— Ele está vindo. — um dos alienígenas disse.

— Jecis está chegando. — outro choramingou.

Mais uma vez, a humana empalideceu. Afastando-se de Solo, ela falou afetadamente:

— Até a próxima, escravo. — então ela se virou e correu da clareira.

 

X e Dr. E permaneceram em silêncio enquanto o grande humano entrava na linha de visão. O recém-chegado parou no centro da clareira, apoiando os punhos carnudos nos quadris e chamando a atenção de Solo para a arma embainhada num lado e a larga lâmina no outro. Ele estava pronto para a guerra.

Solo examinou o resto dele. Tinha cabelos escuros com traços queimados pelo sol, ombros e peitoral largos, e pernas tão grossas quanto três troncos. Tudo isso seria normal, não fosse desproporcional para um humano, mas a pele do rosto era fina como papel e, apesar do bronzeado, Solo achou que podia visualizar seus ossos faciais como se estivesse olhando através de um raio-X, embora sem óculos protetores. Só que os ossos eram maiores do que deveriam ser, considerando o formato de seu rosto, e seus dentes eram afiados como adagas.

— Nós não lutamos com o homem... — X disse sobriamente — Mas contra a fraqueza dentro dele.

Solo não tinha ideia do que aquilo queria dizer e, naquele momento não se importava. Só queria sair da jaula.

O macho inspecionou os cativos com orgulho arrogante antes de encontrar o olhar de Solo. Seus lábios curvaram-se no vislumbre de um sorriso, revelando dentes que não combinavam com as adagas que Solo tinha visto.

— Bom, você está acordado.

— Liberte-me. — exigiu Solo.

Uma risada estrondosa rasgou seus ouvidos.

— Um lutador. Fico feliz.

Outra recusa. A raiva voltou num lampejo de fogo no peito de Solo.

A silhueta do homem lançada no chão de repente se moveu. Franzindo o cenho, Solo se concentrou nisso. Não havia como uma silhueta tão pequena pertencer a um homem tão bruto. Tinha que ser...

Uma fêmea, ele se deu conta.

Uma jovem mulher saiu da frente do macho, e todas as terminações nervosas do corpo de Solo tomaram conhecimento e se animaram. Ela era absoluta e completamente primorosa. De tamanho pequeno, com cabelos louros compridos e cacheados e olhos que pairavam entre tinta preta e um profundo e rico roxo — olhos ameixas.

Ela era uma princesa de contos de fada deslumbrante trazida à vida.

Ele não podia se forçar a desviar o olhar, apenas conseguia beber cada detalhe. Uma suave testa, o delicado declive do nariz, maçãs do rosto altas e lábios em forma de coração criavam o rosto mais luminoso, uma tela de perfeição. Ela tinha um corado rosado, uma flor empoeirada com o orvalho da manhã e que alguém, por favor, esfaqueasse-o e o tirasse daquela miséria, pois estava soando como um poeta demente e estava subitamente faminto.

A única falha nela era o machucado recente no lado direito de sua mandíbula. Ele não gostava do fato dela ter sido machucada.

Como se sentisse seu olhar, ela olhou em sua direção. Seus olhos se encontraram. A boca dela formou um pequeno “o”. Ele sabia o que aquela reação queria dizer. Ela considerava seu tamanho monstruoso, assim como todos os demais. Mas ela não desfez a ligação, embora enojada ou amedrontada, e desesperada para se esconder. Ela continuava olhando-o, aqueles olhos ameixas abrindo-se, suavizando-se.

O ar entre ambos crepitava com... algo, e cada músculo em seu corpo retesava-se dolorosamente contra o osso.

— Ela. — disse X, parecendo atordoado. — É ela. Ela é sua.

— De jeito nenhum. — replicou Dr. E exasperado. — Simplesmente de jeito nenhum. Ela nunca vai querer ter nada com ele, e ainda que queira, o que é improvável, caso eu não tenha deixado claro, ele irá matá-la com suas mãos gigantescas.

— É ela. — repetiu X.

Sim, ela é minha, toda minha, pensou Solo, então sacudiu sua cabeça. Certamente aquele pensamento não tinha brotado em sua mente. Ela era tão pequena, tão delicada. E ainda assim, ele ouvia: Ela é minha; uma segunda vez, um bramido estrondoso dessa vez, e soube além de qualquer dúvida. Sim, ele teve aquele pensamento.

Jecis girou para dizer alguma coisa para outro cativo e Solo estendeu seu braço através da barra, afoito em sua tentativa de tocar a garota. Apenas tocá-la. Ele tinha que apreender a textura de sua pele. Seria tão macia quanto parecia... ou mais?

Engolindo em seco, ela escondeu-se atrás do macho chamado Jecis. Finalmente Solo a havia assustado. Ele sufocou seu rugido de frustração.

O crepitar se desvaneceu no ar afinal, mas o corpo de Solo não relaxou. Ele queria levar a garota no estilo “homem das cavernas”. Queria bater os punhos no peito, proclamando para cada homem que respirava que ela pertencia a Solo. Queria arremessar os inimigos dela aos seus pés e deleitar-se em sua adoração.

Nunca faria nenhuma dessas coisas, e ela nunca o adoraria. Ela não era do tipo que desejava um monstro em sua cama. Não era forte como a fêmea que cuspia fogo, ou bruta com um vício em perigo. Frágil como parecia, tímida como agia, ela gritaria por ajuda no instante em que se aproximasse dela.

— Eu disse. — disse Dr. E com uma voz cantarolante. — Não há jeito.

A réplica de sua raiva recebeu o mesmo tratamento de sua frustração. Como ele, X ficou em silêncio.

O homenzinho nunca antes escolheu uma fêmea para Solo, tinha até reclamado cada dia que Solo passou com sua única namorada de longo tempo, Abigail. O fato de X escolher uma garota que muito provavelmente pertencia ao pedaço de carne que estava prestes a anunciar ser o dono do circo — e não havia dúvida na mente de Solo de que ele era o dono — era quase demais para ele lidar.

Jecis mexia a boca, obviamente falando com Solo. Hipnotizado como Solo estava pela garota, tinha perdido o foco.

—... Aceite as boas-vindas ao Cirque de Monstres. Como falei, e tenho certeza que você já ouviu, sou Jecis Lukas, dono, operador... seu novo mestre. Pode-se pensar em direitos iguais, mas considerando nossas posições diferentes, eu já provei a minha. Se fizerem o que eu disser, quando disser, vocês terão uma vida tranquila pela frente. Caso contrário...

Cirque des Monstres. Traduzindo do francês: “Circo de Monstros”, embora Jecis certamente não fosse francês. Solo viajou pelo mundo diversas vezes; nomes, línguas e dialetos era uma especialidade para ele. O nome Jecis Lukas era lituano, assim como cada sotaque dele.

Solo nunca ouviu falar daquele circo em particular, dirigido por aquele macho em particular, mas sabia sobre grupos viajantes com performances similares. Eles operavam ilegalmente, com estrutura insegura, jogos injustos, prêmios que não eram nada além de objetos roubados, tendas onde drogas e mulheres eram vendidas, e violência sem paralelos a cada esquina.

Jecis continuou seu discurso, dizendo:

— Vocês não falarão, cuspirão ou machucarão qualquer um que se aproximar de vocês. Apenas sentem-se em sua nova casa e pareçam bonitinhos. — ele riu de sua própria piada. — Você pode ter problemas com essa última parte, gigante, mas é parte do seu apelo. Nunca se esqueça que é meu bichinho. Meu animal. E, se você se comportar, será recompensado. Do contrário, será punido.

Uma palavra ecoava na mente de Solo: animal.

Ele examinou as jaulas mais atentamente. Havia letras incrustadas sobre cada uma, embora alguém tivesse tentado raspar as letras. Ele leu Leão. Tigre. Macaco. E um por um os títulos passavam. Urso. Jacaré.

Esqueça a raiva. A fúria tremeluzia bem abaixo da superfície de sua pele. Os outros alienígenas eram para serem animais. Estavam ali para serem vistos pelos espectadores do circo, estudados e degradados. Estavam ali para serem... afagados? Alimentados? Montados?

Ele morreria antes de deixar que um humano o afagasse. Morreria antes de deixar um humano alimentá-lo com a mão. Queimaria o mundo inteiro até o chão antes de deixar um humano selá-lo e montá-lo.

— Eu te falei. — disse X — Não tema. O homem colherá o que semear.

— Se isso for verdade, nosso menino deveria ter um ataque de pânico. — retrucou Dr. E com um risinho. — Ele não plantou exatamente a melhor das árvores, não é?

X ignorou-o, dizendo:

— Jecis se destruirá. E você, Solo, encontrará uma saída.

— Duvidoso. — Dr. E checou as próprias cutículas. — É claro, você escapou de uma prisão antes S., meu caro, mas a primeira vez foi um exercício de treinamento e na segunda teve ajuda. Agora está sozinho. Essa gente tem armas, e não temem usá-las. Você está desarmado.

— Você será bem sucedido, e irá ajudar todos os outros.

— Você irá falhar, e porá mais sofrimento sobre a cabeça de cada um. Apenas comporte-se e espere pelo resgate, e se sairá melhor.

Jecis disse alguma outra coisa, abafando seus companheiros, mas Solo não os ouviu tampouco. Pela primeira vez desde que acordou, examinou o próprio corpo. Como os outros machos, usava apenas uma tanga. Seu peito, braços e pernas estavam cortados e feridos, com hematomas pretos e azuis espalhando-se por todo lado. Ele estava uma bagunça.

Sua pele estava mais vermelha do que há cinco minutos, o primeiro sinal de sua ainda crescente fúria. Ele torceu os braços para olhar as tatuagens. O nome de sua mãe foi gravado em seu antebraço direito, e o de seu pai, no esquerdo. Tinha um sulco dividindo o M e o primeiro A de MARY ELIZABETH, mas JACOB estava intocável.

Sua jaula inteira chacoalhou, e seu olhar se ergueu. Um Jecis carrancudo estava parado bem diante dele.

— Escute quando eu falar, gigante. Este circo abre amanhã e espero seu melhor comportamento. — a voz dele ecoava pela luz do dia, a caveira por trás da pele parecia mover-se sem a indução do corpo, indo para frente, para mais perto de Solo. — Eu falo sério.

A maldade deixou uma camada saturada no ar.

Eu estarei muito longe, ele disse a si mesmo.

— E se eu for mau?

Atrás do humano homens moveram-se até a clareira e colocaram baldes de... — ele fungou — sopa de enzima no chão. Os baldes foram seguidos de pilhas de trapos e garrafas de... — outra fungada — perfume.

— Se um espectador reclamar, só um... — numa pausa dramática Jecis ergueu os braços e esfregou os punhos juntos. — Eu porei uma bala em seus cérebros, sem perguntas.

Quando Solo não ofereceu reação à ameaça — estar ali, fazer aquilo — Jecis socou as barras da jaula, a camada se afinando.

— Se duvida de mim, pergunte aos seus camaradas animais. Muitos dos amigos deles morreram pelas minhas mãos.

 

       Como sempre, Vika estava revoltada pela indução de um novo "animal." Seja homem ou mulher, jovem ou velho, o recém-chegado sempre pedia a ela para mostrar misericórdia e conceder liberdade no momento em que seu pai se afastava. Misericórdia, ela não iria aparecer. A liberdade que ela não iria dar. Não podia.

 Ainda não.

E o que poderia ser pior do que perder a audição? Fácil. Perder a visão também. Oh, sim. Seu pai era vil. Ele destruíra sua audição sem esperança de reparação, simplesmente para torná-la dependente dele, e ameaçou tirar sua visão se alguma vez ela o traísse dessa forma novamente.

Se quisesse sair, ela faria, teve que aderir a um plano de fuga muito rigoroso. Um plano que exigiu que permanecesse no circo por mais um ano. Apenas um ano, e então poderia libertar os Extraterrestres e correr. Ela poderia se esconder para sempre e nunca ter medo de ser encontrada.

Jecis terminou seu discurso sobre regras e expectativas, e fez um gesto para Vika seguir em frente. Ela deu um passo ao lado dele como qualquer outro robô obediente. Ele colocou uma mão firme no ombro dela, e ela olhou para cima para ver seus lábios.

— Esta é sua cuidadora. — disse ele aos Extraterrestres. — Você vai tratá-la melhor do que trata os clientes. Vai manter suas mãos para si mesmo e suas bocas fechadas, ou meus homens e eu vamos nos divertir com você antes que receba uma bala.

Ele não esperou pela resposta deles, para ele, eles eram irrelevantes, mas girou para enfrentar Vika. Ela encontrou o olhar dele, não mais surpresa ao encontrar olhos que já não eram da cor das flores, mas pretos, como fossas intermináveis​​.

Ele segurou seu rosto e beijou-a na ponta do nariz.

— Se você tiver qualquer problema, meu coração, não hesite em gritar por mim.

Eu nunca vou buscar sua ajuda.

— Obrigada.

— Qualquer coisa por você. — Em vez de se afastar como ela esperava, ele permaneceu no local, os lábios franzidos. — Meu novo animal é grande e feroz, diferente de qualquer outro que você lidou antes. Talvez eu devesse chamar seu guarda.

— O circo será inaugurado amanhã. — ela interrompeu rapidamente, na esperança de impedi-lo de se meter no assunto. — Há tanta coisa para fazer, e não há nenhuma razão para desperdiçar o tempo de alguém olhando por mim. Além disso, não importa o quão forte ele é, o recém-chegado nunca se atreverá a me machucar. Ele agora sabe as consequências de te desafiar.

O punho de seu pai apertou, quase esmagando sua mandíbula e desafiadoramente piorando o que restava da “lição” da última semana.

— Vou desperdiçar o tempo de quem eu quiser. Você é mais importante para mim do que um show de sucesso, e se eu acho que há uma ameaça, não é uma ameaça. Sou muito mais sábio sobre estas coisas.

Não gritarei.

— Claro. — ela conseguiu dizer. Se, no entanto, o show se mostrasse ineficaz e ele forçasse seu guarda-costas a permanecer ao seu lado, impedindo Matas de se preparar adequadamente para o ato mágico, Jecis iria culpá-la. Ele iria repreendê-la. Ela se machucaria.

Com um suspiro, ele a soltou.

— Como se eu pudesse te negar qualquer coisa. Muito bem, permito que você trabalhe sozinha, pois não existem moradores locais nas proximidades e os Extraterrestres estão contidos. Mas se voltar para casa com uma única ferida, minha preciosa, vou ficar muito chateado.

Bem, então. Ela não gostaria de salientar a infinidade de hematomas que decoravam seu corpo. Além disso, não era necessário. Ele sabia que eles estavam ali, colocou-os lá. Mas embora fosse autorizado a maltratá-la a qualquer hora, em qualquer lugar, a ninguém jamais foi concedido o mesmo privilégio.

Ele deu um beijo na ponta do seu nariz antes de se afastar, plenamente seguro que ela faria tudo que estivesse em seu poder para proteger a si mesma. Ele não estava errado. Ela faria. Podia sonhar em deixar seu pai, podia até estar planejando fazer isso, mas nunca o desobedeceria enquanto estivesse ali.

Será que o recém-chegado teria alguma ideia do que estava reservado para ele?

Se ele não estivesse convencido da maldade de Jecis, estaria em breve. Jecis punia seus animais pelo mais suave delito, embora os castigos nunca fossem leves. Seu temperamento tiraria o melhor dele e ele explodiria em um acesso de raiva. Ele mutilaria... ele arruinaria...e mataria indiscriminadamente...

Infelizmente, aqueles que morreram foram os sortudos.

Vika caminhou até os fornecimentos que os trabalhadores de seu pai deixaram para trás, nunca se permitindo mudar o seu olhar para estudar os lábios dos Extraterrestres para descobrir o que eles estavam dizendo sobre ela, e eles estavam dizendo alguma coisa, ela sabia que estavam, porque podia sentir as vibrações de suas palavras contra sua pele. Em momentos como este, estava quase grata por sua surdez.

Vou fugir deste inferno e levá-lo comigo, Vika, Bruxa Malvada dos Mundos. Vou colocá-la em uma gaiola e oh, as coisas que vou fazer com você... Isto veio de Mec, que ela chamava Rainbow.

Você não é nada mais do que uma prostituta de circo, e merece estar nessa gaiola, não eu! Isso veio de Cortaz chamada Crissabelle.

Eles precisavam de um alvo para sua frustração e raiva, e ela era a aposta mais segura. Ela sabia disso, e parou de deixá-los magoar seus sentimentos há muito tempo. Ela nunca iria prejudicá-los e certamente nunca faria fofoca, mas era quase impossível manter um segredo de Jecis. Um dia ele descobriria sobre os dois infratores e acabaria com eles.

Um dia.

As palavras deixaram um gosto ruim em sua boca.

O resto dos Extraterrestres recusava-se a olhar, falar com ela ou sobre ela, com muito medo do que Jecis faria. Na verdade, não, isso não era verdade. Targon realmente parecia gostar dela.

— Está na hora do meu banho de esponja ainda, Vika, eu quero Licka? — ele gostava de dizer. Ele frequentemente se referia a si mesmo como papai Spanky, e uma vez por dia lhe pedia para fazer o mesmo.

— Comam, todos. Estou me sentindo generosa hoje. — Ela jogou cookies de baunilha em cada gaiola, mesmo as de Mec e de Cortaz. Premiar o Terrível Duo por seu mau comportamento era tolice, mas uma parte dela queria deixar a vida deles melhor, mesmo que fosse de uma pequena maneira.

Como os Extraterrestres se lançaram para as sobremesas e devoraram ​​cada migalha, ela pegou uma garrafa de spray de enzima, uma escova e um dos trapos, e se aproximou da jaula pertencente a Bree Lian, que ela chamava de Dots.

Sua raça era conhecida pela pele colorida que cobria seu corpo da cabeça aos pés, e Dots não era diferente. Ele assemelhava-se a um leopardo de cabelos compridos, com pontos dourados e manchas pretas, apesar de seus maneirismos serem o menos felino possível. Tão musculoso como era, ele não andava como um trovão de um lado a outro da gaiola.

Ainda assim, ele meio que lembrou Dobi, o bonito tigre que fazia xixi em tudo, inclusive Vika, e cada vez que olhava para ele, uma dor atravessava seu coração.

Não vá por aí. Certo. O passado estava fora dos limites e por boas razões. Olhar para trás trazia apenas sofrimento. Lamento trazia dor. Sofrimento trazia depressão, e depressão trazia tormento. Ela teve bastante daquilo, obrigada.

Assim. Seguindo em frente. Cada uma das diferentes espécies dava diferentes características físicas, bem como das diferentes qualidades inatas. Alguns Bree Lians poderiam envenenar um inimigo com seus dentes ou unhas. Alguns Cortazes podiam se teletransportar. Alguns Mecs podiam hipnotizar com a mudança de cores de sua pele. Alguns Terans poderiam saltar mais de um quilômetro em um único salto. Mas era absolutamente impossível conhecer cada uma das habilidades que esses Extraterrestres possuíam particularmente, razão pela qual seu pai foi ao mercado negro e comprou algemas de escravos.

As algemas eram grossas e de bronze, com agulhas longas e afiadas de algum tipo de metal alienígena que perfuravam os ossos de cada portador, gotejando um fornecimento estável e constante de um potente inibidor direto até a medula.

Quando Vika precisava chegar dentro de uma gaiola, seja para lavá-la ou ao seu prisioneiro, só tinha que pressionar o ativador remoto para enviar diferentes drogas, sedativo através do sistema do Extraterrestres, nocauteando-o por pelo menos uma hora.

Quanto mais perto chegava de Dots, mais fervorosamente ele rondava o comprimento de sua gaiola. Normalmente ele era a encarnação da tranquilidade. Comia quando devia comer. Ele nunca falava sem antes ter sido proferido, e sempre permanecia sentado no canto dos fundos quando Vika se aproximava.

Mas ele está aqui há tempo suficiente para saber exatamente como seu pai operava.

Os Extraterrestres foram mantidos em zoológico desde que eram saudáveis ​​e humanos, ele permanecia fascinado com eles. Oito dias atrás, o mais antigo dos escravos foi transferido para os jogos porque apareceu "febril".

Ele era um Rslado-el, uma raça delicada, facilmente quebrável. Muitas vezes ela chegara perto de libertá-lo. Perto, mas não perto o suficiente. Agora ele era a estrela do Mole Bater Attack, forçado a dar golpes com sua cabeça para sair dos buracos, enquanto os humanos tentavam atingi-lo no rosto com bastões acolchoados.

Nas últimas semanas, Dots perdeu muito peso. Apesar de seus músculos, ele estava começando a aparecer magro. Vika lhe dera porções extras em cada refeição, mas até agora, a comida não tinha ajudado.

Ele seria o próximo a ir para a faca.

Ela queria libertá-lo antes que isso acontecesse. Ela queria. E se ele pudesse esperar um pouco mais, ela o faria. Ele só tinha que aguentar. Mas não podia dizer isso a ele, podia?

Com o estômago se torcendo com uma mistura pungente de culpa e remorso, Vika pulou para pressionar o botão que o deixaria inconsciente. Como detestava sua falta de altura! Em um piscar de olhos, o Bree Lian foi se lançando para ela, gritando:

— Vou matar você antes de deixar você mexer em mim! — E lançou migalhas de biscoito por todo o seu rosto. Ele conseguiu alcança-la através das grades e arranhá-la antes de entrar em colapso, já roncando.

Havia uma pulsação em seu ombro e sentiu o fio quente de sangue, mas uma lesão tão pequena era apenas uma mancha em seu radar.

Ela realizou um giro rápido, certificando-se que o rugido do Bree Lian não despertou a atenção de um executor por perto. Um minuto se passou, depois dois. Ninguém veio correndo. Bom, isso era bom.

Mas, e seu pai? Pensou ela, a primeira centelha de pânico florescendo. Você não vai voltar para casa com uma única contusão.

Uma ferida aberta era pior, não era isso. Com movimentos frenéticos, amarrou a manga da camisa em torno do ombro, aplicando pressão para as marcas de garras. Tão logo o sangue parasse de correr, ela faria devidamente o curativo na coisa e mudaria de camisa. Algo de mangas compridas, talvez. E se finalmente usasse um dos colares que seu pai lhe dera, estaria muito satisfeito com ela para perceber qualquer outra coisa. Certamente. Esperançosamente.

— Se alguém mais tentar isso de novo — ela se forçou a dizer, não encontrando o olhar de ninguém —, vou me esquecer de alimentá-lo hoje à noite. — E oh, como detestava fazer ameaças como essa. Ameaças que não tinha certeza se seria capaz de cumprir. Mas não podia arriscar uma outra lesão. Seu pai mataria todos e cada um dos Extraterrestres, só para fazer um ponto.

Bem, isso era lucro. Ele tinha pago um preço alto por eles, e apesar de ter feito um monte de volta com o zoológico e os jogos, recebeu o maior retorno para o seu investimento quando vendia os corpos em partes.

Com as mãos trêmulas, ela destrancou a porta de Dots e subiu para o interior. Passou meia hora limpando sua pele e escovando seu cabelo, tão gentilmente e de forma menos invasiva possível. O tempo todo, pena brotava dentro dela. Sua modéstia era coisa do passado; cortesia comum foi esquecida, e tormento era uma ocorrência diária.

Um dia serei capaz de ajudá-lo.

Ugh. Aquelas palavras novamente.

Ela terminou com o Bree Lian e o prendeu. O Targon estava ao lado. E, embora não tivesse um apelido para ele, recusou-se a se referir a ele como papai Spanky.

Como sempre, ele se estendia por todo o chão de sua gaiola e sorriu para ela. Ele era um homem bonito, com a pele pálida que brilhava como se polvilhada com pó de diamante e cabelos negros como a noite, com toques de safira. Só uma coisa que nunca o tinha incomodado, e era o aspecto de Matas.

O Targon irrompia em qualquer momento quando avistava seu guarda-costas.

— Estou muito sujo. — ele ronronou. — Certifique-se de esfregar muito, muito duro.

Ela colocou a mão em seu pescoço para sentir a reverberação de sua caixa de voz e julgar melhor seu volume.

— Se eu pudesse esfregaria sua mente.

— Querida, não importa onde você vai esfregar, vai precisar de um porte industrial.

Revirando os olhos, ela pulou e apertou o botão para torná-lo inconsciente.

Enquanto pulverizava a mistura de enzimas que iria limpá-lo por dentro e por fora, em seguida esfregando o excesso de óleo, podia sentir o olhar aborrecido de alguém dentro dela, queimando profundamente e com certeza. Não havia nenhuma razão para olhar para cima. Sabia que o recém-chegado era o culpado. Todo mundo olhava no início, com a esperança de aprender seus hábitos e descobrir a melhor maneira de dominá-la e, como Criss dissera muitas vezes — soprar desse buraco.

Mas Vika lembrou que, num primeiro momento, este tinha olhado para ela com curiosidade, consciência crepitante e espanto atordoado, ao invés de suspeita. A mistura inebriante que a chocara. Os homens simplesmente não a consideravam dessa maneira.

Quão rapidamente o seu semblante mudou, porém, quando seu pai anunciou que estava a cargo de seus cuidados. Consciência e temor dera lugar à ferocidade mal reprimida. E a isso ela estava acostumada.

Se liberto, ele poderia esmagá-la em segundos.

Podia. Ela rolou a palavra em sua mente. Mas, ele podia? O temor voltou ou foi a ferocidade puxando as rédeas?

Ela ousaria olhar para cima e descobrir?

Apenas o pensamento causou o suor das palmas das mãos. Tão grande como este Targon era... tudo o que ele era ficaria vários centímetros mais alto e estaria muitos centímetros mais largo. Ele era a personificação do poder, e ela tinha certeza que nunca viu um homem tão musculoso.

Se ele a ameaçasse, ela iria... O quê? Gritar? Dificilmente. Havia apenas duas coisas que a assustava. Um bravo Jecis e um Jecis feliz. O recém-chegado não era nenhuma dessas coisas. Mas tudo bem, sim, tão esquentado quanto seu temperamento parecia ser, ele só seria capaz de deslizar para a terceira posição, sem qualquer esforço real.

Mas... seus olhos. Ele tinha olhos tão encantadores. Eram grandes e no mais glorioso tom de azul bebê, como o céu sobre a mais brilhante das manhãs, cercado por um leque de cílios grossos e pretos. Por um momento ela se perdeu naqueles olhos, e oh, foi o feito mais surpreendente.

Perdida, ela se esquecera de sua vida miserável.

Perdida, ela tinha encontrado força.

Ela iria se perder novamente?

Bem. Ela tinha que saber. Vika olhou para cima.

 

VIKA encontrou o olhar do recém-chegado e todo o seu corpo reagiu, cada célula que possuía ganhou vida, zumbindo, aquecendo. Mas não se perdeu. Nem perto disso. Ele era muito mais do que raiva. Irradiava fúria incandescente, sua pele realmente escurecia de um profundo vermelho rico. Suas pálpebras se estreitaram em fendas perigosas, as maçãs do rosto se salientavam e suas narinas inflavam com cada inalação sua.

Seus dentes até mesmo cresceram, ela percebeu com horror intensificado. Estavam tão longos que se estendiam por cima do lábio inferior. E suas orelhas mudaram, agora apontando para as extremidades. E as suas unhas.... oh, doce misericórdia... eram garras.

Certamente era capaz de cortar as barras de sua jaula. E quando fizesse, pisaria até ela. Ele levantaria os punhos pesados ​​e a destruiria. A dor seria demais. Ele atingiria seu rosto, e finalmente a cegaria. Não!

Pânico ameaçou dominá-la quando deixou cair o pano. A respiração ficou presa na garganta e cristalizou, deixando um nódulo duro irregular que a sufocou. Preto piscou através de sua linha de visão quando subiu ao canto traseiro da jaula do Targon.

Vai doer, vai machucar, vai doer tanto.

Exceto que...

A dor sempre está próxima.

Ela piscou, sem saber quanto tempo havia passado. O recém-chegado... não se moveu um centímetro, ela percebeu. Ele não tentou chegar até ela. E mesmo se tivesse, ela pensou, coragem finalmente fazendo uma aparição, ele estava algemado e drogado, tão indefeso quanto um bebê recém-nascido. Não havia nada que pudesse fazer para prejudicá-la.

Pouco a pouco, o resto de seu pânico diminuiu. Engolindo em seco, olhou para ele. Sua pele voltara à sua cor original de bronze. Seus dentes encolheram e suas garras desapareceram. Seus olhos ainda brilhavam com um fogo furioso, mas também ficaram feridos.

O mesmo ferimento que seu reflexo frequentemente exibia.

O que ela fizera para ofendê-lo? Ela não o prendera, alimentara-o com deliciosos cookies. Os cookies que havia ignorado, ela percebeu. As pequenas delícias redondas estavam no chão da jaula. Mas já sabia a resposta, não é? Estremeceu quando olhou para ele, lutando para não criar distância entre eles, como se ele fosse nojento, contaminado.

Tal reação teria ofendido a qualquer um. Mas ainda assim, um guerreiro como ele deveria ter batido no peito com orgulho. Seu pai adorava as reações aterrorizadas que seu poder provocava, pois acariciava seu ego. Mas, tudo bem, nem todos os homens eram como seu pai. Ou Matas. Ou os outros homens no circo. Ou uma boa parte dos homens que visitaram o circo. Ela sabia disso. Vira os pais com seus filhos, sorrindo e protetores. Ela vira maridos com suas esposas, adoráveis e amorosos. O amor verdadeiro, não o tipo que Jecis estava vendendo.

        Não posso deixar o pobre rapaz assim. Todo o seu mundo tinha acabado de entrar em colapso, e um novo, um mais sombrio, estava se formando à sua volta. Neste primeiro dia de sua nova vida terrível, podia conceder-lhe a gentileza. Não poderia?

Determinada, Vika deslizou para fora da jaula do Targon, ativou o bloqueio com sua impressão digital e caminhou através da clareira em direção ao recém-chegado.

Uma pedra bateu no seu braço. Franzindo a testa olhou para a esquerda e viu de relance a fêmea na jaula ao lado do recém-chegado. Cortaz sorriu presunçosamente e lançou outra pedra. Esta bateu no peito de Vika.

Vika não se incomodou de perguntar a Crissabelle se ela queria morrer. Vika podia adivinhar a resposta. Sim. Desculpe querida, mas não vou forçá-la.

— O fato de você se lembrar que eu coleciono pedras é provavelmente a coisa mais doce que já fez. — ela forçou-se a dizer com uma tranquilidade que não sentia. — É nosso aniversário?

O sorriso da Extraterrestre assumiu uma borda mais sinistra. Apesar da sujeira que manchava suas bochechas, ela era de tirar o fôlego. Era alta e esbelta, todos os membros longos de elegância esguia. Sua pele era impecável como a pérola mais cara e o cabelo uma queda de veludo negro.

— Quando meus irmãos vierem e me pegarem, e eles irão, você será queimada viva enquanto assisto e rio.

A pedra bateu em Vika por trás. Ela virou-se para olhar para o culpado, só para atirar uma pedra maior no peito. Mec Rainbow estava gargalhando e apontando para ela, como se houvesse algo de errado com ela. Ele adorava fazer isso.

As primeiras vezes que ele fez isso, Vika fugira para verificar-se em um espelho. Uma mancha no rosto? Roupas rasgadas? Algo em seus dentes? Mas não houve uma vez que encontrou nada fora do lugar, e percebeu que ele só queria torturá-la.

— Você encontrou algumas para minha coleção, também? Isso é tão atencioso. Mas gente, não comprei nada para vocês.

A gargalhada parou e ele sussurrou para ela. Sua pele começou a brilhar vermelho brilhante, um sinal de sua fúria crescente.

A princípio ele e Crissabelle tentaram construir um relacionamento com ela. Criss dissera como ela era legal, e Rainbow dissera que odiava a forma como seu pai conversava com ela, que poderia ajudar se ela o libertasse. Depois de um tempo Vika continuou a recusar este arruinado indício de boa vontade.

As transgressões deles começaram pequenas e eles apenas insultavam, nada mais. Quando perceberam que Vika não contaria a Jecis, começaram a arremessar palha, em seguida comida, e agora pedras. Eles assumiram que, neste caso, Vika pegaria, pegaria, pegaria, e nunca devolveria.

Eles estavam tão bem, pensou com um suspiro.

De cabeça erguida fechou o resto da distância com o recém-chegado. Ele estava no mesmo lugar, na mesma posição, mas seu olhar diminuíra no Mec e na Cortaz. Como Mec, sua pele mais uma vez assumiu um tom de vermelho.

— Olá. — disse Vika.

Aqueles olhos azuis bebê viraram-se em sua direção, e ela estremeceu.

Ela respirou fundo, esperando aspirar um pouco mais de coragem e parar o zumbido repentino em suas veias. Falhou em ambas. O formigamento até aumentou. Indício de fumaça de turfa, pinho e hortelã encheu seu nariz, fazendo-a pensar em fogueiras à meia-noite em uma floresta encantada. Era um perfume tão raro que fechou os olhos e respirou de novo, e de novo, até que ficasse tonta.

Não havia muitas florestas permitidas no mundo. A maioria pertencia ao governo e invasores nunca foram autorizados. Na verdade, só viu-as de uma grande distância, enquanto o circo viajava de cidade em cidade, de estado em estado, e às vezes entre outros países, durante todo o ano, sempre eram autorizados a permanecer em clareiras onde costumavam estar nas florestas.

Por fim, o brilho do sol e o olhar quente do homem lembrou-a que ela estava fora de vista, era meio-dia e tinha muito o que fazer. A não conclusão de uma única tarefa seria convite para castigo, e castigo poderia colocá-la fora de combate por vários dias.

Com o coração martelando, concentrou-se. O cativo agora irradiava calor suficiente para derreter o Ártico em uma questão de segundos.

— Por que você não vem um pouco mais perto, fêmea? — ele perguntou.

Felizmente o pânico não assaltou e pôde recorrer à audácia que só surgia na ausência de seu pai.

— Acho que vou ficar aqui, mas agradeço a sugestão.

Vika endireitou os ombros e olhou para o homem. De perto podia ver que sua pele parecia ser tão suave como vidro, o desvanecimento do vermelho para o belo bronze. Seus ossos faciais eram um pouco mais cheios, mas estavam perfeitamente juntos, criando uma imagem de masculinidade áspera, não diluída. Na verdade, era tão feroz na aparência como um dia fora durante o auge de sua vida muito curta.

Um desejo súbito para o que poderia ter sido inchou nas cavidades do seu coração.

A boca do Extraterrestre se movia, ela percebeu, mas perdera suas palavras. Ao invés de admitir a verdade, ela permaneceu em silêncio. As pessoas muitas vezes se repetiam, salvando-a de ter que pedir.

Finalmente, ele disse:

— O que você está olhando, humana?

— Estou olhando para você. Obviamente.

Ele pegou as barras, os nós dos dedos esbranquiçaram sem cor. As palavras NPRY, Elizabeth e JACOB foram gravadas em seus braços. Elizabeth e Jacob, ela entendeu. Eram nomes, e ela se perguntou o que as pessoas significavam para ele. Mas NPRY?

— Mulher!

A pulsação dançava a uma batida selvagem que não podia controlar, ela disse:

— Aqui. — e retirou o pedaço de chocolate que colocou no bolso de sua calça jeans para aproveitar mais tarde. — Pegue. É seu.

Ela jogou, mas ele não pegou. Não olhou para onde o doce deslizou e parou também.

— Se você não comê-lo agora, ele vai derreter e terá que lambê-lo. Isso pode ser embaraçoso, acredite. Mas o chocolate é bom de qualquer jeito, por isso até você ou não...

Sua boca estava se movendo novamente. Essa boca rosa exuberante.

—... fiz uma pergunta, fêmea.

Fingindo indiferença, ela jogou o cabelo sobre o ombro.

— Pergunte novamente. — disse ela. Nenhum dos presos adivinhara sua enfermidade, e nunca admitiria isso. Tão desesperados quanto eram, tanto quanto a culpavam por sua prisão, eles usariam a desvantagem contra ela. — Estava distraída.

— Muito bem. Você quer morrer?

— Que maravilha. — respondeu ela no tom mais seco que conseguiu. — Minha oitava ameaça de morte hoje. Certificarei-me de fazer uma anotação no meu diário.

— Sim, você quer morrer. — disse ele com um aceno lento. — Caso contrário, você me libertaria.

— Deixe-me dizer como o resto desta conversa vai ser e poupar tempo, sim? Se não conseguir libertá-lo neste exato momento, você vai escapar. Você vai ser o único a me matar. Vai me ferir. Vou me arrepender do dia em que nunca deveria ter nascido. Fim da história. Então... você vai comer isso?

Franzindo a testa, ela balançou a cabeça.

— Quero dizer, vai comer o chocolate agora, não é?

Sem nunca afastar o olhar dela, ele pegou o doce, desembrulhou o papel alumínio e esmagou o pedaço em uma das barras da jaula, esfregando... esfregando... até que as migalhas caíram no chão sujo abaixo.

Um choramingar de perda escapou dela. Sim, ela teve mais de um milhão de pedaços em seu trailer, todos dado a ela por seu pai, só porque ele a "amava". Mas isso não alterava o fato de que o Extraterrestre tinha acabado de destruir algo que ela tinha ganhado com sangue, suor e um monte de lágrimas.

— Perda sua. — ela se forçou a dizer alegremente.

— Você não tem ideia do terror que trouxe a este circo, menininha.

Menininha. Isso é o que o pai muitas vezes a chamava. Sua linda menina. Sua querida filhinha. Sua filhinha amada. Vika ergueu o queixo e deixou escapar:

— Não me chame assim. E eu não trouxe você aqui.

Uma sobrancelha arqueou, transformando toda a sua expressão em desafio.

— Não importa. Você é culpada por associação.

— Não sou.

— Também é.

— Não sou! — ela disse batendo o pé.

Suas pálpebras semicerraram perigosamente.

— Não somos crianças. Deixe-me ir.

—Não. — ela respondeu, sem uma única batida de hesitação.

—Muito bem. Como eu disse, você vai morrer com o resto.

—Blá, blá, blá. Eu sei. — Vibrações à sua esquerda fizeram seu olhar se fixar nessa direção.

—Matá-la, matá-la, matá-la. — Rainbow gritava enquanto ele pulava em sua jaula.

Outra vibração à sua direita. Seu olhar se voltou para o recém-chegado... qualquer que seja o seu nome. Ele decidiu usar sua distração a seu favor, estava estendendo a mão por entre as grades, tentando contorcer seu corpo para ganhar comprimento suficiente para agarrá-la.

Ela tropeçou para trás, fora do alcance. Frustrado, ele tirou os dentes de sabre para ela — doce misericórdia — que cresceram diante de seus olhos e eram ainda maiores do que antes! Suas feições irradiando uma raiva sombria que viu muitas vezes hoje.

Tremendo, ela gritou:

— Eu estava tentando fazer o seu dia melhor, e você decidiu me matar por isso? Talvez mereça estar nessa jaula, hein? — E afastou-se para terminar suas tarefas.

 

       Solo observou quando a mulher que os prisioneiros chamavam de Vika — uma moça que o proprietário do circo chamara de “meu coração” — sedando e banhando o resto dos Extraterrestres. Ela ainda trabalhava no último deles, a Cortaz, restando apenas Solo.

Seu toque era sempre hesitante, trêmulo e gentil, e estava altamente curioso para saber se ela o trataria com o mesmo respeito, considerando todas as ameaças que fizera. Uma curiosidade que ele desprezava. Não deveria se importar de uma forma ou de outra. Para banhá-lo ela teria que sedá-lo, e a ideia de cair que nem um urso atingido na floresta era altamente humilhante. Além do mais, se dormisse durante todo o episódio, a curiosidade doentia nunca seria aliviada.

E ainda assim, ainda gostava da ideia de ter suas mãos nele.

Estúpido. Precisava ser mais esperto no que lhe dizia respeito.

Já cometera dois erros graves. O primeiro? Atração. Homens se esqueciam dos seus propósitos quando desejavam uma mulher. O segundo? Sentiu uma certa pena dela. Porque, ali onde estava, uma bela garota humana certamente vestida na pele do anjo mais estimado de Deus, ainda tinha o hematoma do tamanho de um punho no rosto. Do tamanho do punho de Jecis, para ser exato.

Solo chegara à conclusão de que Jecis a estava forçando a trabalhar para ele e que se conseguisse convencê-la, poderia fugir com ela. Ela — sua própria fêmea, de acordo com X. Realmente achava que também teria uma chance de convencê-la. Se ela estivesse apanhando, ansiaria algum tipo de proteção. Qualquer proteção, mesmo a de um monstro. Proteção que ele teria jurado lhe dar. Mas quando tinha se oferecido para ajudá-la, ela nem se incomodou em responder.     

Depois disso a frustração tornou-se uma força viva dentro dele, e as ameaças de morte fluíram. Ao invés de se encolher de medo como uma mulher que sofria maus-tratos teria feito, ela zombou dele com sua indiferença.

Foi quando a verdade apareceu. Ela era fria e cruel, sem coração, e ele teria que matá-la junto com todo mundo. E se sentia totalmente okay com isso, disse a si mesmo. Sempre viveu seguindo cinco palavras, as palavras mais fortes que existiam: tudo que se prove necessário.

Na verdade, se abrir a porta de sua jaula era um problema, removeria seu polegar — talvez a única chave das trincas — e o faria com um golpe de garras ou com um corte dos dentes. Ela gritaria e choraria, mas nada que dissesse ou fizesse o impediria. Ela não merecia a compaixão de Solo e, para vergonha de sua mãe, não a teria.

X tinha ferrado com tudo. Vika seria a mulher de Solo? Dificilmente. Ou ela gostava de se deitar com Jecis Lukas ou veio de sua semente. De qualquer forma, merecia o que tinha.

E daí que tivesse exibido momentos de bondade?

E daí se o seu rosto expressivo tinha revelado dor, coragem e uma determinação ferrenha quando olhou para Solo, todas as três emoções fazendo seu peito doer. E certo, sim, a dor realmente ganhou vida quando o Bree Lian arranhou seu ombro. Solo se forçou a lutar com a compulsão de se soltar de sua jaula simplesmente para rasgar o outro Extraterrestre em incontáveis pedacinhos. Uma compulsão com a qual teve de lutar novamente quando Mec e Cortaz atiraram pedras nela.

Tolice sua, considerando que Solo iria machucá-la hoje à noite. Mas lembrou de todas as vezes que as crianças na escola tinham jogado pedras nele. Lembrou do dia em que suas emoções o dominaram e ele esmagou o rosto do outro garoto. Lembrou que aquele foi o dia que X, que esteve ao seu lado desde seu nascimento só para desaparecer depois da morte de seus pais biológicos, tinha retornado. Aquele também foi o dia que o Dr. E chegou. Lembrava-se de desejar ter uma vida diferente — mas Vika não parecia se importar.

Não gostava de ter que esperar para agir, mas paciência era sua melhor amiga no momento. Não se recuperara totalmente da explosão, a fraqueza ainda nadando pelas suas veias, afetando seus membros. Seu aperto não era tão forte quanto o normal, e duvidava que seus passos seriam estáveis.

— Posso sentir sua raiva, Solo. — disse X, sentando-se no ombro de Solo, apoiando os cotovelos nos joelhos elevados. — Por quê? A garota não fez nada de errado.

— Nada de errado? — Dr. E bufou, andando de um lado para o outro. — Talvez estejamos pensando em garotas diferentes, porque essa daí tentou envenená-lo!

— Não seja ridículo. Ela não tentou envenená-lo.

— Prove.

X ficou calado, sabendo que não havia necessidade de falar. Solo era mais do que capaz de sentir a essência de veneno, e não sentira nada no chocolate. Então… por que ela lhe deu? Tinha esperado amaciá-lo ou talvez até seduzi-lo? Ela dormiu com algum dos machos aprisionados, curtindo o poder que tinha sobre eles? Só o pensamento fazia suas unhas aumentarem e cortarem suas palmas.

Ele se voltou para ela, observou intensamente e percebeu que banhava a mulher com a mesma gentileza distante que mostrou aos homens. Ele relaxou, suas unhas voltando ao tamanho normal. Não, ela não dormiu com nenhum dos homens.

Porém tinha esperado abrandar Solo. Mas por quê?

Dr. E bateu um pé e rosnou.

— Se não está no time de Solo, está contra ele. Ela está do outro lado e precisa ser eliminada. É tudo que estou dizendo.

— Oh, é tudo? E ainda assim, ficando aqui esperando para que destruam um ao outro, você só irá conseguir encurralar sua própria vida.

Enquanto Solo ouvia o par, lutou com outra onda de fúria. Aparentemente ele conseguia pensar em machucar Vika, mas se mais alguém sugerisse isso, seus problemas aumentavam —mesmo com relação a um homem minúsculo que ninguém podia ver nem ouvir.

X disse:

— Olhe além da superfície, Solo, do jeito que sempre quis que as pessoas fizessem com você. Vika não é o que parece.

Dr. E não era alguém para ser ignorado.

— Espere. Está tentando nos dizer que não acha que ela seja como qualquer outra mulher que Solo já conheceu? Por favor. Elas ou saem correndo para longe dele com medo ou se jogam em cima dele exigindo que liberte sua fera grandona e malvada. Ela correu. Dê-lhe alguns dias e fará o oposto.

Sim, ela fugiu, mas também tinha se aproximado dele depois e oferecido um presente.

— Escute-a assobiando tão alto e fora de tom. — continuou Dr. E, seu tom derramando desprezo. — É óbvio que ela gosta do trabalho.

— Talvez precise de uma distração para fazer uma tarefa tão terrível. — respondeu X.

— É. Certo.

As duas possibilidades tinham mérito. Cada vez que ela terminava com um Extraterrestre, deixava um presente dentro da jaula. Uma pilha de biscoitos para o Bree Lian, uma rosa para o Delensean, um cobertor extra para o Morevv. Um livro para o Teran e um protetor solar para o Rakan. Gestos de gentileza, claro. Algo para aliviar sua culpa, talvez. Algo para impedir que os prisioneiros se revoltassem, definitivamente.

Ela terminou com Cortaz e trancou a jaula. Olhando para o chão, ela se aproximou da jaula de Solo, parou, levantou o pé como se quisesse dar outro passo e voltou a colocá-lo no chão. Um segundo depois ela sacudiu a cabeça e fechou o resto da distância com passos firmes e determinados.

— Não faça isso. — ele disse.

Seu braço estremeceu quando ela o levantou para pressionar o botão que o sedaria.

Ele era maior que os outros e não esperava cair tão rápido quanto eles caíram — mas caiu. Entre uma batida do coração e outra, seus braços e pernas pareceram tão pesados quanto rochas. Seus joelhos cederam e seu rosto bateu no chão da jaula com um som abafado.

 

        O rangido alto da porta da jaula quase fez Vika correr. De algum modo ela encontrou força para entrar na pequena área delimitada. O peito do recém-chegado subia e descia de forma constante, mas seus membros estavam totalmente imóveis.

        Certo, então. Ela o deixou para recolher seus materiais de limpeza, a atenção presa no óleo especial de sândalo que trouxe. Sempre o carregava, mas nunca teve realmente que usá-lo. Agora… pensou que ele se misturaria agradavelmente com o cheiro natural de turfa queimada do Extraterrestre, e não conseguiu se conter. Adicionou o líquido no frasco com um borrifador e voltou a entrar na jaula.

        Consigo fazer isso. Sério.

        Ela começou pelos pés, chocada com o quanto seus dedos eram adoráveis. Nunca antes viu dedos dos pés que se pareciam com o mais puro dos diamantes, brilhando na luz — e se não os escondesse, nunca mais os veria de novo. Jecis os removeria.

        Mordendo o lábio, ela deixou a jaula só tempo suficiente para pegar um punhado de terra e um copinho d’água. Ela criou uma pasta grossa e escura e a passou em suas unhas, escondendo a sua beleza. Quando a mistura secou, ficou feliz de notar que continuou intacta, nenhuma parte caindo.

        De volta ao trabalho. Trabalhou em direção aos joelhos, borrifando a mistura com o sabão e limpando com o paninho, totalmente chocada outra vez pela falta de pelos em suas pernas. Isso não devia fazer seu coração acelerar, mas fez. Era simplesmente… ele era construído tão belamente, todo músculos e força.

        Ela banhava outros homens, claro que sim, mas havia algo de espetacular naquele. Alguma coisa espetacular mesmo apesar das múltiplas manchas de fuligem, cada uma escondendo um ferimento de alguma espécie. Hematomas e crostas que teve muito cuidado de não machucar mais. Pobre coitado. O que fizeram com ele?

        Suas bochechas coraram no momento que alcançou suas coxas, e decidiu não limpar debaixo da tanga. Estava curiosa, não mentiria a respeito disso, mas até a ideia de olhar aquela parte dele, até mesmo para fazer seu trabalho, era errada. Então voltou a atenção para seu estômago musculoso e totalmente digno de se babar, e santa misericórdia, ele devia contrabandear barras de ferro debaixo da pele — barras de ferro que se contraíam, ela notou com o cenho franzido, como se estivessem criando vida. Ela...

        Observou quando o machucado em sua barriga se desfez, num segundo presente, ausente no outro, e o mistério daquelas contrações ficou momentaneamente de lado. Como um ferimento podia sumir tão rápido assim? Ela passou o pano pela área, mas a pele continuou bronzeada e saudável.

        Incrível. Ela o varreu com o olhar e percebeu que vários outros machucados também sumiram. Ele estava se curando bem diante de seus olhos. Que dom maravilhoso e miraculoso — um que ela pagaria uma fortuna para possuir.

        Vika limpou seus braços e mãos e depois seu peito, e as contrações aumentaram. Uma reação alérgica às drogas, talvez? Preocupada, ela colocou uma mão na altura do seu coração. As batidas eram fortes, mesmo que rápidas. Não, não era uma reação alérgica. Tinha que ser uma característica de sua raça, então.

        Quando se inclinou sobre ele para esfregar seu pescoço, roçou o peito no seu e perdeu o fôlego.

        Endireitou-se com um salto, pensamentos rodando em sua mente.

        Devia ter visto ele antes do circo ter se tornado tão importante, sua mãe uma vez disse sobre seu pai. Ele costumava me deixar sem fôlego.

        A perda de ar era um sinal de atração. Um que Vika nunca experimentou antes. Por que aqui? Por que com aquele homem… que era tão macio quanto o veludo e ainda assim tão duro quanto uma pedra, e tão quente quanto um cobertor de inverno?

        Bem, isso respondia à pergunta, ela supôs.

        Voltou a atenção para seu rosto. Seu surpreendentemente adorável rosto. Cílios compridos e cheios sombreavam as maçãs do seu rosto, proeminentes o bastante para cortarem vidro. Ele tinha um nariz arrogante que ela queria tocar… não deveria tocar… não pôde evitar tocar. Seus dedos formigaram.

        Seus lábios eram uma verdadeira obra de arte. Eram viçosos e da mesma cor das rosas que sua mãe costumava colher todas as manhãs para enfeitar o trailer. Uma tradição que Vika deixou de lado desde que ela faleceu.

        Como seria pertencer a um homem como aquele? Ele protegia as coisas que amava ou as machucava? Como ele era em sua outra vida, a que tinha antes de se tornar escravo?

        Migrou os dedos para os seus lábios. Lábios tão macios quanto aparentavam. Não, mais macios. Como pequenos travesseiros.

        Pela primeira vez na vida, ela se perguntou como seria beijar um homem.

        Você pode descobrir…

        A pergunta surgiu de um lugar oculto dentro dela, atravessou sua mente, a mais traiçoeira das tentações. Um beijinho doeria? Ele nunca saberia e ela nunca mais teria de se perguntar como seria.

        Um rápido olhar em volta provou que todos os Extraterrestres estavam dormindo e que nenhum dos artistas ou funcionários estava por perto. Nunca mais haveria um momento tão perfeito.

        Centímetro por centímetro, ela se abaixou. Finalmente, estava lá, pairando acima da sua boca.

        Não devia fazer isso.

        Um momento de razão, brotando de um lugar que conhecia muito bem. Do seu mecanismo de autopreservação.

        Que ignorou.

        Ele não ofereceu reação, mesmo assim a doçura do ato deixou-a estupefata. Uma mistura intoxicante de emoções correndo dentro dela, levantou a cabeça, olhou em volta. Ainda estavam a sós. Seus olhos ainda estavam fechados, a respiração ainda regular. Novamente abaixou a cabeça. Dessa vez aplicou mais pressão, e oh, gostou muito mais da sensação. Ele estava ali, podia senti-lo, e podia saborear seu aroma intensificado.

        Pergunto-me se seu gosto é tão bom quanto o cheiro.

        Outra tentação irresistível. Sua língua saiu por conta própria e traçou o centro da sua boca. No momento do contato, um gemido escapou. Seu gosto ainda era melhor, e isso deveria ser impossível, mas aqui, agora, nada era impossível.

        Não era de se admirar que as pessoas gostassem de fazer isso. Havia uma comunhão de corpos, uma ausência completa de preocupações. O mundo e os seus problemas simplesmente deixavam de ter importância.

        Mais, ela pensou, e sua barriga estremeceu.

        Sim. Mais. Ela sugou seu lábio inferior entre os dentes, com cuidado, com muito cuidado para não machucá-lo. Outro gemido escapou — justo quando ele abriu os olhos e prendeu o olhar no seu.

 

        Bem, sua curiosidade foi claramente saciada, não foi? Pensou Solo.

        Ela o beijou, confundiu, impressionou. Chocou. Porque fez por livre e espontânea vontade. Ele não pediu, não exigiu. Ela simplesmente cedeu. Um encontro gentil de lábios, seguido pela mais doce mordiscada.

        Seu corpo estava imóvel — ainda estava imóvel — mas sua mente funcionava muito bem, tanto na hora quanto agora. O tempo inteiro, na realidade. Ele ficou altamente sintonizado com cada ação dela, cada respiração que dava. Cada carícia.

        Sentiu o momento em que espalhou lama nas unhas dos seus pés. Levou alguns minutos para descobrir o que estava fazendo, e por que, e quando as respostas apareceram, ele vacilou. Ela esperava protegê-lo.

        Depois ela começou a limpá-lo. Enquanto agia com gentileza, mas metodicamente com os outros homens, ela foi doce e cheia de afeto com Solo, demorando-se, tratando-o — excitando-o. Desde o primeiro toque seu sangue chegou ao ponto de ebulição.

        Seus músculos ficaram tensos quando tentou de tudo em seu poder para se mover, para agarrá-la — não para jogá-la de lado e fugir, mas para trazê-la mais perto. Para despi-la e possuí-la, aqui e agora.

        E quando o beijou… um grunhido de necessidade rasgou o interior de sua garganta.

        Seu desespero por ela finalmente lhe dera a força para abrir os olhos.

        — Me perdoe. Não sei o que me deu. — ela resmungou e saiu aos tropeços de sua jaula. Depois de fechar e trancar a porta, correu dali sem olhar para trás.

        Solo quis gritar e exigir que voltasse, mas não conseguia mexer a boca. Sua completa e absoluta impotência o enfureceu.

        Ele precisava abraçar Vika e retribuir o beijo de modo adequado. Foi o mais doce que já recebeu. E apreciou imensamente. Ela tratou sua boca como se fosse um tesouro, e ela uma exploradora. Foi gentil, e oh, tão terna. Levantou a cabeça e voltou a encaixar os lábios nos seus, e na segunda vez provou-o. Ela gemeu, como se tivesse adorado tudo o que descobriu.

        — Solo. — disse Dr. E, tirando sua atenção dos seus pensamentos. — Estamos basicamente sozinhos. Você não devia estar planejando sua fuga e assassinato de todos aqui?

        Fuga. Sim, isso era tudo que importava. Nenhum guerreiro digno do salário que Solo recebia teria se perdido num momento como aquele. E por um beijo tão inocente, acima de todas as coisas.

        Mas…

        — Você poupará Vika e a levará consigo. — anunciou X.

        — Errado! Você matará Vika, como ameaçou fazer. — retrucou Dr. E. — Mas sinta-se livre para trazer as melhores partes dela consigo.

        Um pulsar de raiva brotou do fundo de seu peito. Correu a língua pelos dentes. Ótimo. Movimento.

        — Vocês dois me façam um favor e calem o bico. — Palavras. Sua mandíbula agora funcionava.

        Ele tentou girar o pescoço de um lado para o outro — sucesso. Girou os ombros. Isso levou um pouco mais de esforço, mas mesmo assim conseguiu. O efeito das drogas estava passando, então.

        Respirando fundo… exalando… e foi capaz de se forçar a se colocar em uma posição sentada. Inspecionou as jaulas. Todos os prisioneiros dormiam.

        Além da área deles e dos equipamentos que já havia notado, pôde ver uma tenda enorme e vermelha com múltiplas tendas brancas e menores dispostas de lado. Não havia árvores para usar como esconderijo na possibilidade de ser visto e perseguido, o que significava que não haveria galhos para usar como adagas na casualidade dele falhar em encontrar uma arma antes de deixar aquela clareira. Isso não era nada demais. Suas mãos eram armas suficientes.

        Suas orelhas se mexeram e ele captou uma alteração a uns… cinquenta metros, era o seu palpite.

        — Estou dizendo, ele é grande, vermelho e feio que nem o pecado. — uma voz de homem que não reconheceu falou. — Ele tem que ser o próprio diabo.

        — E estou dizendo que nós é quem trabalhamos para o diabo.

        Os dois riram com humor.

        — Tem que dar uma olhada nele.

        — Vika provavelmente está por lá.

        — E daí?

        — E daí que ela vai nos colocar pra correr mais cedo ou mais tarde, e não podemos dizer não à preciosa filha de Jecis — foi a resposta desdenhosa — ou acabaremos desaparecendo no ato do mágico Matas.

        Alívio correu por Solo, uma cachoeira morna que não entendeu, mas que não questionaria. Vika era filha de Jecis, não sua amante.

        — Se conseguir olhar nos olhos da criatura, vai conseguir aguentar Matas.

        Uma pausa. O som de alguém cuspindo.

        — Está bem. Mas só porque não acredito que nada possa ser tão feio quanto você disse.

        Dois pares de pés soaram.

        Solo sabia que os homens estavam vindo dar uma olhada nele. Eeee… claro. Uns trinta segundos depois, dois homens robustos com barrigas redondas e peles morenas adentraram no círculo de jaulas e giraram para encontrar o novato. O da esquerda avistou Solo e seus olhos se arregalaram. Ele tropeçou para trás, só para se equilibrar de novo e sacudir a cabeça.

        — Misericórdia. Estava certo, Leonard.

        — É, mas você tem que olhar de perto para realmente apreciar a feiura.

        O par se colocou à sua frente, permitindo que Solo estudasse a quarta e quinta pessoa que sofreria seu iminente ataque. Os dois tinham dentes amarelados e o homem da direita nem exibia alguns. Suas bocas estavam cheias de tabaco.

        — É odioso, não é? — disse um, e Solo percebeu que sua pele mais uma vez tinha adquirido a cor vermelho-sangue.

        Em outra época, outra situação, ele teria explodido. Ali, naquele momento, tinha controle sobre seu temperamento.

        O outro cuspiu uma baba negra.

        — Devíamos tirar fotos, sabe. Provar que brigamos com uma besta-fera. As mulheres ficariam tão animadas com a nossa coragem que tirariam as calcinhas e nos implorariam para que mostrássemos as nossas feras.

        — Você nunca vai brigar com uma criatura como essa.

        — Ah, é? Fique olhando. — O falante pegou algumas pedras que foram atiradas em Vika e jogou-as em Solo.

        Algumas bateram em seu peito, algumas em suas pernas, mas cada uma só provocou uma leve ferroada, lembrando-lhe de todas as vezes que tinha ido ao recreio, a humilhação, a fúria. Humilhação e fúria que até mesmo agora vinham à superfície. E se ele experimentou tudo isso outra vez, o que a pequenina Vika sentiu?

        Seu olhar estreito foi até Cortaz e Mec que ainda dormiam. Eles a machucaram. Eles pagariam.

        — Acho que está fazendo cócegas nessa coisa. — o outro disse com uma risada.

        A palavra coisa ecoou na mente de Solo e suas unhas cresceram em garras afiadas.

        — Acalme-se. — comandou X.

        — Fique mais puto. — retorquiu Dr. E.

        Os dois homens saíram murmurando sobre encontrar uma câmera. Cada palavra era mais baixa que a última, até Solo não conseguir mais discernir suas vozes. Queria sacudir a jaula até que as barras se soltassem. Queria tentar alguma coisa, qualquer coisa, mas ainda não recuperou toda sua força, e até que recuperasse, estava vulnerável demais e não podia se dar ao luxo de colocar seu plano em prática.

        Não deveria demorar tanto tempo, contudo. Ficaria mais forte e pronto para partir ao pôr-do-sol, no máximo, mas esperaria até que todos estivessem dormindo. Então…

        É, só aí agiria.

 

       Algumas horas depois os prisioneiros acordaram. A maioria se sentou de um salto. Alguns se moveram com calma e se espreguiçaram. Todos murmuraram e reclamaram de Vika.

        Como se invocada pelas reclamações, ela reapareceu, vestindo uma nova camisa e calça jeans. O top era rosa, com renda e a calça brilhante. Ela parecia ter acabado de sair de uma casa noturna depois de dançar durante horas com o homem de seus sonhos.

        Solo apertou os punhos, uma leva quente de irritação atingindo-o.

        Ela o tocou, beijou. Não a queria dançando com outro homem.

        Estúpido de sua parte, sim. Ele se importava com isso? Não.

        Os homens que cuspiam tabaco — que não voltaram com uma câmera — vinham atrás dela, ambos carregando baldes e olhando-a com malícia. Quando ela parou e os encarou, suas expressões mudaram. Ela apontou para o chão, uma rainha com seus súditos, esperando obediência absoluta e imediata.

        Ela conseguiu. Eles colocaram os novos baldes onde ela os queria e recolheram os outros. Ela se ocupou com o conteúdo deles, mas o par continuou onde estava por vários minutos, observando-a, olhando-a com desejo outra vez agora que ela estava de costas, acotovelando um ao outro numa linguagem masculina.

        — Acho que vou entrar no trailer dela essa noite e me divertir um pouco.

        — Faça isso e não terá mais que se preocupar com a performance de Matas. Ele vai te matar logo de cara.

        Uma encolhida de ombros.

        — Pode valer a pena.

        — Claro, ele só vai te matar se Jecis não te encontrar primeiro.

        — Posso acabar com os dois ao mesmo tempo. — o cara resmungou em voz baixa.

        — Ótimo. Vá em frente. Mate os brutamontes mais ruins que já caminharam na face da terra, que eu entro no trailer dela enquanto vocês três estarão mortos demais para me impedir.

        Os dois abafaram os risos.

        Matas foi mencionado em várias ocasiões. Quem era ele? E por que Vika não exibia reação alguma com a conversa deles? Uma conversa sobre o seu possível estupro? Ao invés disso ela se concentrava em sua tarefa, tirando tigelas de um balde e enchendo-as com pão e grãos que haviam no outro. Só quando um dos homens fez o que Solo quis fazer na primeira vez em que a viu e estendeu a mão para tocar numa mecha do seu cabelo, ela reagiu. Sua espinha ficou rígida quando ela se virou para encarar o culpado.

        Solo agarrou as barras da jaula.

        — Me toque novamente — ela disse —, e usarei partes do seu corpo como joias em menos de uma hora. Entendeu?

        O lábio de um dos homens se contorceu de medo. Ele assentiu e se afastou o mais rápido que conseguiu. O outro, o maior, manteve a atenção nela por mais tempo do que era considerado decente, o olhar varrendo seu corpo, demorando-se onde não deveria.

        — Acha mesmo que é forte o bastante para me matar, Senhorita Vika? — ele perguntou suavemente.

        Ela sorriu com prazer.

        — Vamos perguntar a Jecis o que ele acha disso, sim?

        Antes do homem poder responder, Solo sacudiu as barras, a jaula inteira tremendo e chacoalhando, gerando um enorme barulho. O homem voltou a atenção na direção de Solo, e seus olhares se prenderam. Os olhos do homem eram castanhos. Os de Solo vermelho-sangue — e a cor se intensificando a cada segundo.

        Empalidecendo, o homem finalmente recuou. Ele bateu em uma das jaulas, virou-se e foi embora da clareira.

        Os ombros de Vika relaxaram de alívio.

        Sem os guardas para dissuadi-los, Mec e Cortaz começaram suas cruéis provocações. Embora os movimentos de Vika fossem rígidos, ela não deu outra indicação que notou ao voltar ao seu trabalho.

        Solo nunca encontrou alguém capaz de sair de sintonia do resto do mundo com tamanho sucesso.

        Ele viu quando ela deslizou uma tigela com comida em cada uma das jaulas, nunca se aproximando o bastante para que alguém a agarrasse, colocando as tigelas numa pá e forçando os prisioneiros a aceitá-la à distância.

        — Quero falar com você. — disse quando chegou até ele.

        Ela o ignorou, até mesmo se recusando a levantar os olhos.

        A maioria dos Extraterrestres a agradeceram, mas Mec atirou a tigela nela, os grãos voando e batendo em seu corpo. Solo esperava que gritasse, ameaçasse, mas simplesmente se abaixou, recolheu tudo e passou de volta a ele com um murmurado:

        — Fingirei que foi um acidente. Dessa vez.

        Isso… não fazia sentido.

        Por que tão generosa? Por que tão bondosa? Por que não deixava o homem que a ofendeu passar fome? Isso era o que uma bruxa fria e calculista escondida sob a pele de um anjo teria feito. Isso era o que Solo teria feito.       

        — Sei o que está pensando, e a resposta é simples. — disse X. — Ela simpatiza com os que estão sob seus cuidados.

        — Errado! Ninguém é tão bom assim. Ela é pura e simplesmente patética — disse Dr. E —, esperando que as criaturas se comportem se for boa com elas.

        Solo não sabia mais em quem acreditar.

        — Vaca estúpida. — gritou Cortaz. — Eu a quero morta!

        A Extraterrestre atirou um punhado de grãos em Vika e vários pedaços grudaram em seu cabelo. Cada músculo no corpo de Solo ficou tenso. Vika encarou a culpada e Cortaz atirou mais um punhado, os grãos atingindo dessa vez o seu rosto.

        Dr. E riu.

        — Adoro ver as pessoas tendo o que merecem.

        X gemeu, como se sentisse dor.

        Solo se manteve em silêncio, embora sua mandíbula estivesse tão dolorosamente apertada que mal conseguia suportar. Não tinha certeza se Vika realmente merecia o que estava acontecendo, mas não se envolveria. Não seria seu protetor ou defensor; não era como se precisasse de um, de qualquer modo. Era uma mulher livre. Não se importaria com o que lhe acontecesse.

        Sim, ela era gentil com os prisioneiros. Mas ainda cumpria as ordens de seu pai. Podia ter libertado todos e fugido, mas não o fez.

        — Tudo bem. — disse Vika com uma pontada de tristeza. — Azar o seu. Passará fome e facilitará que Jecis a domine.

        Essas eram basicamente as mesmas palavras que dissera a ele junto com o chocolate. Pela mesma razão, isso lhe causou uma dor no peito. Mas julgando pela expressão sombria da Cortaz, passar fome era exatamente o que queria. Nossa. Ela deve ter mentido sobre os irmãos. Uma mulher que tinha esperança não se comportaria assim.

        Embora Solo pudesse entender o desejo de morrer ao invés de continuar um escravo.

        — Ajude-a. — disse X.

        Quem era “ela”?

        — Não. — ele sussurrou, porque a resposta era a mesma, qualquer que fosse. A Cortaz tinha machucado Vika, e mesmo que Solo tivesse decidido não proteger nem defender a garota, não ajudaria aqueles que a machucavam. Só a ideia disso fazia sua raiva voltar.

        Talvez… talvez não matasse Vika quando escapasse. Queimaria o circo inteiro, soltaria Kitten, trancaria Vika em sua fazenda e procuraria Michael. Juntos eles reuniriam um exército, voltariam ali e fariam o Dr. E sorrir.

        O que faria com Vika depois disso, não tinha certeza.

 

       O sol da manhã elevou-se no céu, chamas douradas, laranjas, rosas, e púrpuras raiando em todas as direções. Fofas nuvens brancas salpicavam uma vastidão sem fim, e um único pássaro negro passou voando por eles com um trinado de solidão e desespero.

       Solo entendia.

       Ainda estava preso dentro de sua jaula.

       Ele, um mestre das fechaduras, um homem mais forte do que dez humanos extraordinários combinados, quem uma vez retirou John Sem Nome de uma prisão em Xangai só com um palito de dentes e um pedaço de chiclete, e, sim, Blue ao seu lado, falhou em livrar-se de uma velha jaula enferrujada para animais.

       Ele... não tinha palavras.

       Na verdade tinha palavras, percebeu um segundo mais tarde; eram tão negras quanto a noite e cheias de farpas. Queria soltá-las, mas também queria um alvo e os Extraterrestres estavam dormindo, e não via Jecis em nenhuma parte. Como era possível esta situação? Não devia ser possível. Devia estar muito longe. O circo não devia ser nada além de uma recordação. Devia estar livre!

       Por que não estava livre?

       Depois de tentar desativar a fechadura e falhar... depois de tentar cortar as barras com suas garras e falhar... depois de tentar cavar sua passagem pelas tábuas do chão, logo pelo teto e falhando, permitiu que seu temperamento tomasse o controle. Sacudiu a jaula inteira, mas não conseguiu derrubá-la.

       Estava muito fraco. E quanto mais furioso ficava, mais fraco se tornava. Dr. E riu o tempo inteiro, só para desaparecer algumas horas atrás. X ficou com ele muito mais tempo do que ele havia gostado, suspirando de vez em quando, irradiando apenas tristeza, antes de finalmente desaparecer também.

       Estou realmente preso aqui.

       Não. De jeito nenhum. Não aceitaria isso.

       — Kitten. — ele disse, usando o nome que ela não ofereceu, tentando revelar o fato que sabia que era uma agente da IRA com habilidades. Ela tinha experiência com o circo; Pode não ter tido força para se libertar, mas observou as idas e vindas e saberia o que fazer. E dois era sempre melhor que um, X já tentou dizer algo parecido a ele.

       Ela espreguiçou-se acordando, sentando-se alguns minutos mais tarde, seu longo cabelo preso em um rabo de cavalo baixo.

        — Faça um favor a si mesmo, grandalhão, e preserve sua energia.

       — Conheço seus colegas de trabalho. — ele disse.

       — Espere. O que? — Com os olhos arregalados ela envolveu seus dedos em torno das barras de sua jaula. — Quem é você? Quem você conhece?

       Bom. Tinha sua atenção.

        — Vamos ter uma conversa, você e eu, sobre o que desejo discutir, até que eu esteja satisfeito com suas respostas. Tudo bem?

       Assentiu com impaciência.

       — Prometa. — ele disse.

       Kitten assentiu novamente e disse:

        — Okay. Prometo. Agora me diga o que quero saber!

       Ele a observava, esperando, e soube o exato momento em que o voto brotou e floresceu pelo seu espírito, alma, e corpo — ramos que a forçariam a fazer o que prometeu ou sofreria terrivelmente. Ela arregalou os olhos e um suspiro escapou de seus lábios. A mão trêmula sobre seu coração, como um passarinho delicado.

       — O que fez... como fez... você fez algo comigo! Eu sei que fez alguma coisa. Senti uma descarga elétrica percorrendo meu corpo.

       Para Solo promessas eram vinculantes se ele as pronunciasse ou recebesse. Uniam-se dentro dele e da outra pessoa, uma compulsão que recusava ser ignorada. Se ele tentasse, doía. Se a outra pessoa tentasse, doía.

       A habilidade, ele aprendeu, podia ser uma bênção ou uma maldição, dependendo de como fosse usada. Notou isso quando criança, experimentou, testou, e só cresceu mais forte ao longo dos anos. No final, aprendeu que podia ser salvo ou capturado pelas coisas que prometia — e os outros podiam ser salvos ou capturados também.

       — Conheço seus colegas de trabalho. — ele repetiu.

       Ela rangeu os dentes de frustração.

        — Você disse isso antes e estou pronta para algo novo. Essa conversa é... é... — Rugas profundas formaram-se nos cantos de sua boca, suas sobrancelhas franzidas. — Essa conversa é... — Seu olhos se fecharam, e um gemido de dor a deixou. — Por que não posso dizer as palavras que quero dizer?

       Porque as palavras teriam rompido sua promessa, deixando-o insatisfeito. Até o pensamento de tal coisa afligia seu espírito, a fonte de sua vida, que por sua vez afligia sua alma ou sua mente, vontade e emoções e, finalmente seu corpo.

       Ela lançou-lhe um olhar acusador enquanto rangia os dentes.

— Bem. Você acha que conhece meus colegas de trabalho. Acho que está errado.

       — Tenho certeza. Essas pessoas, eles sentem falta de sentarem-se ao redor do fogo com você e não podem esperar para tê-la de volta.

       Demorou um momento, mas ela finalmente captou o que queria dizer. Agentes da IRA tinham lança chamas, armas capazes de disparar fluxos de fogo. Seus colegas de trabalho sentiam sua falta. Eles estavam no caso.

       Ela pressionou a testa contra a barra ao lado de suas mãos, tentando ficar mais próxima a ele.

        — Sério?

       — Sim.

       — Diga olá para eles.

       Tradução: Ele estava em contato?

        — Eu faria, mas pararam de receber minhas chamadas.

       Arreganhando os dentes com seu lábio superior erguido, ela disse entre dentes.

        — Provavelmente é o melhor. Pelo muito que eu viajo, eles estão quase mortos para mim.

       Ele sabia o que ela queria dizer. O circo mudava tanto que o IRA nunca seria capaz de rastreá-los rápido o suficiente. E estava certa. O IRA não iria. Mas John e Blue? Sim. Eles podiam fazer qualquer coisa, se tivessem sobrevivido à bomba.

       Não pense desse modo. Eles sobreviveram.

       — Fale-me sobre seu rapto. — ele disse. — Todos os detalhes.

       — De jeito nenhum. Isso é privado. — Afastou-se dele, tentando encerrar a conversa. Um momento depois ela gemeu e virou-se para encará-lo. Franzindo a testa, ela disse. — Nunca mais vou prometer fazer qualquer coisa para você, então eu estava em casa, relaxando. — As palavras escaparam dela. — Alguém sorrateiramente deve ter drogado as cervejas na minha geladeira, porque tomei uma, só uma, e desmaiei. O que nunca aconteceu antes, nem mesmo quando eu tinha quatorze anos e tive minha, argh! Aí, quando acordei, estava... estava... — Ela envolveu os braços ao seu redor. — Rapidamente fui vendida para Jecis.

       Ela não estava dizendo tudo a ele.

       — O que aconteceu entre acordar e ser vendida? Preciso saber.

       Suas bochechas ficaram coradas, e seu olhar percorreu os outros cativos para ver se eles estavam acordados. Eles estavam, e estavam escutando descaradamente.

        — Por quê? Não é como se você pudesse me ajudar. — ela disse entre dentes.

       — Você foi espancada? Estuprada? — Solo perguntou suavemente. Eles precisavam de um código para discutir um potencial resgate, não discutir eventos que aconteceram no passado. Os eventos que podiam ajudar Solo a fazer o perfil de Star, compreender seus motivos, seus recursos, e sua agenda.

       — Não, mas fui... — Novamente ela tropeçou nas palavras. — Não importa. — Um gemido. Ela fechou seus olhos. — Por favor. Não importa.

       — Certo. — ele disse sentindo pena dela. Imediatamente ela relaxou, desavisada que a conversa retomaria quando todo mundo adormecesse esta noite. — Você conhece um homem pelo nome de Gregory Star? — Ele descreveu as características do humano que ele viu na fotografia. — Um de vocês?

       Todos menos o Targon sacudiram a cabeça, enquanto ele apenas fingia estar muito interessado em contar as manchas de sujeira ao invés de ouvir. O Targon soprou um beijo.

       Kitten enrugou a sobrancelha quando ela captou a imagem em sua mente.

— Não. Não o conheço, e ninguém jamais o mencionou. Por que? Foi ele quem... quem organizou para que eu fosse levada?

       — Sim.

       — Você está certo?

       Ele movimentou a cabeça. Para o Targon, ele disse.

        — Qual o seu nome?

       — Kaamil-Alize. Por que?

       — Eu estava cansado de sempre me referir a você como o Targon, mas acho que continuarei com isto.

       — Own, que atraente. Você tem uma queda por mim e não consegue me tirar da sua cabeça. Eu adoraria dizer que fico surpreendido, mas só direi que não estou interessado e deixo como está, ok?

       Solo revirou seus olhos. Todos os Targons eram tão irreverentes quanto este aqui?

— Como você foi capturado?

       Olhos de âmbar iluminaram-se com diversão.

— Como se alguém pudesse me capturar. Eu mesmo me entreguei.

       Dificilmente.

— Por que?

— Pensei que seria divertido. Seria excitante e eu estava certo. — Mas um duro cintilar entrou em seus olhos, drenando a diversão.

       Não, ele não pensou que seria divertido. O brilho em seus olhos disse que estava aqui por uma razão. Mas qual?

        — Eu não acredito em você.

       — Ele está dizendo a verdade. — disse Kitten. — Eu estava aqui quando ele chegou. A maior parte dos outros Jecis trouxe para dentro depois que outra pessoa os trouxeram e os venderam. Pelo que pude perceber, sempre é alguém diferente que os trazem a cada vez.

       Ele não estava certo do que fazer sobre isto.

       — Então por que esse Star me sequestraria? — Ela exigiu. Um momento mais tarde, ela adicionou. — A menos que...

       Solo aproveitou a deixa, insistindo.

        — A menos que?

       — Eu acordei e... alguém estava na minha casa. Alguém que eu machuquei muito tempo atrás. Depois que ela... terminou comigo, eu estava drogada e mais tarde acordei enquanto algum sujeito estranho negociava me vender para Jecis.

       Detalhes, e ele não teve que esperar. Os detalhes que realmente o ajudaram. Michael mencionou o símbolo de vingança, mas assumiu ser um meio para livrar-se deles. E se Michael estivesse errado? E se as pessoas... o que? Resolveram se vingar, então contrataram Star para fazer o serviço? Ou talvez Star realmente organizou tudo.

        — Obrigado.

       Novamente, manchas coloridas enrubesceram suas bochechas, mas ela acenou com a cabeça.

        — Qual dos meus colegas de trabalho você conhece?

       — Dallas. — Durante sua reunião, Michael só mencionou um nome em associação com esta unidade da garota, e foi este nome. Só esperava que os dois conhecessem um ao outro.

       Ela riu com vontade, dizendo.

        — Dallas. As coisas vão ficar feias. Agora se me dá licença, vou fechar meus olhos e sonhar com toda a dor que ele causará.

       Quando ela se deitou, ele apanhou algumas pedras no chão de sua jaula, lançando-as para o alto e pegando, para o alto e pegando. Hora de pensar. De planejar.

       — Seja cuidadoso com isto. — Tão bonita quanto uma manhã primaveril, a Cortaz se debruçou ao lado de sua jaula. — Você pode precisar delas mais tarde.

       Ou não.

       — Para machucar Vika? — Ele disse ríspido.

       Ela vacilou na aspereza de seu tom. Com medo dele?

       Ela devia ter.

       Calma. Tranquilo. Ele ainda a culpava por seu tratamento agressivo com Vika sim, mas também precisava dela ao seu lado. Em uma situação como esta, aliados eram importantes.

       — Bem, por que não? — Ela disse, erguendo seu queixo. — Aquela menina merece isto. E você é realmente tão estúpido que não percebeu que nós tentamos todo truque possível para nos livrar deste buraco do inferno? Ainda assim estamos aqui, e aqui você ficará também.

       — Você está errada. — ele disse. Precisaria de mais tempo. Logo estaria completamente curado da explosão. Nada o impediria, então.

       — Estou aqui há dois meses. Juro a você, não estou errada. — Ela moveu seu braço pelas barras e mostrou seus pulsos na fresta de luz. — São as algemas. Elas injetam qualquer droga por nossos corpos e nos mantêm fracos, e nossas habilidades sobre-humanas são inúteis.

       Ele estudou o metal das algemas que circulavam seus pulsos. Metal. Esqueceu de pensar nisso como a chave para sua liberdade. Podia ainda sentir as finas agulhas embutidas em seus ossos, enquanto forçava mais ainda o movimento, eeeee... sim, podia sentir um leve gotejar de calor, pingando, gotejando em seu sistema.

       Os Extraterrestres não estavam sendo somente drogados nos banhos, ele percebeu. Eram drogados a cada minuto de cada dia.

       A raiva retornou, um fogo quente em seu tórax.

       Não importa. Você superará. Você sempre supera.

       Um triste, você verá sorriso curvou os cantos de seus lábios.

        — Eu sou Crissabelle, a propósito, mas pode me chamar Criss. Chame-me Crissy ou Belle e cortarei sua língua.

       Ele não disse seu próprio nome a ela. Não diria. Quanto menos estas pessoas soubessem sobre ele, melhor. Além disso, foi nomeado com o nome de um dos homens mais sábios que já viveu, e mesmo assim, frequentemente agia como estúpido. Bem, não aqui. Não agora. Não mais.

       — Quem tem a chave para as algemas? — Ele perguntou.

       — Eu não sei. — ela respondeu com um dar de ombros. — Nunca vi isto. Você pensaria que Jecis ou seus comparsas de merda nos insultariam mostrando a tal chave, mas não. Nunca fizeram, e não estou certa se isso foi misericordioso ou apenas uma crueldade.

       Ele soltou as pedras agitando-as em sua palma. Baque, baque, baque.

        — Como foi trazida pra cá?

       Fúria misturou-se com remorso, chamejando em seus olhos.

        — Eu estava fora tarde da noite festejando com amigos, e acabei bebendo um pouco demais. Matas apareceu, e de alguma maneira me convenceu a ir para casa com ele. Eu digo de alguma maneira, porque ele é doente e asqueroso e não sou nem doente e nem asquerosa. Só que ele não me levou para casa. Ele me trouxe aqui.

       Matas novamente. O nome estava começando a perturbá-lo.

       — Então... como devo chamar você? — Ela perguntou.

       — Bob.

       Um sorriso lento floresceu.

        — De forma alguma você é Bob.

       — Fred, então.

       O sorriso cresceu.

        — Isto é até pior. Mas vá em frente. Continue mentindo para mim e começarei a te chamar de Gigante Vermelho alegre.

       Ele não daria a ela uma reação, disse a si mesmo. Não arrancaria a cabeça dela de seu corpo quando escapasse também.

       — Alguém já teve sucesso em remover estas algemas? — Ele enfiou os dedos de sua mão esquerda no direito, e os dedos de sua mão direita na esquerda.

       — Eu não faria isto. — Criss se apressou a dizer.

       E então ele sentiu. Imediatamente a dor explodiu em seu corpo, afiada, cortando do topo de sua cabeça até as solas dos pés. Ele caiu para o lado, teias de aranha escurecendo suas vistas, colidindo com pontinhos brancos de luz formando um caleidoscópio atordoante.

       — Eu te avisei. — ele ouviu Criss zombar. — Quando você puxa as hastes de metal, um tipo diferente de droga é injetada no seu corpo. Uma que causa dor, ao invés de letargia. E não pense que pode fugir daqui e remover estas coisas com alicates ou algo assim. Eu estava aqui quando um sujeito conseguiu arranjar um alicate, e quando ele cortou, as agulhas das algemas acionaram, cortando fora suas mãos.

       Eventualmente a névoa preta e branca foi enfraquecendo e Solo já podia enxergar claramente novamente. Ele lentamente arranjou-se em uma posição sentada. Olhou para seus pulsos e descobriu que fez mais danos a si mesmo. As algemas ainda estavam lá, ainda firmemente em seu lugar, mas sangue agora gotejava debaixo do metal.

       — Da próxima vez, escute a tia Criss. Ela é muito esperta. E bonita. E talentosa.

       E modesta.

       — Existem furos em toda a haste — ela disse —, e se você olhar de perto achará vários tubinhos em cada algema. É daí que as drogas são administradas. Nós somos postos para dormir a cada poucos dias para que os tubos sejam reabastecidos.

       Sua frustração e raiva intensificaram, borbulhando, outro fogo quente branco querendo derramar dele; de alguma maneira conseguiu conter-se. Agora não era a hora de outro acesso de raiva temperamental. Especialmente quando aquele acesso de raiva seria inútil.

       Ao longe podia ouvir passos, vozes tagarelando e o rugido de motores de carro.

       — E então começa. — Criss disse com um suspiro.

       Uma aspiração profunda e ele pegou o odor de café no ar.

       Ele achava café amargo demais para apreciar, mas ainda assim sua boca salivou para provar, e seu estômago torceu com fome. A tigela de cereal de ontem à noite tinha gosto de terra, e ainda, se ele recebesse outra tigela daquilo — ou outro pedaço de chocolate — ele teria comido cada grão. Ele tinha que manter sua força. Obviamente.

       — Como isso funciona? — Ele se encontrou rosnando.

       Criss deslizou em um charco de luz e esticou as pernas. Os olhos verdes reluziam com atitude, sua pele perolada brilhando enquanto os dedos despenteavam seus cabelos pretos acima dos ombros, protegendo o que espreitava por baixo daquele tecido transparente.

        — Em algumas horas o circo abrirá e haverá uma série de pessoas que caminharão por esta área durante o dia inteiro. Alguns simplesmente olharão para você. — Sua voz endureceu quando acrescentou. — Alguns comandarão você para erguer sua roupa ou dar uma volta e se curvar. Jecis coloca dois guardas armados aqui e ninguém tem permissão de tocar em você, mas se você se recusar a fazer o que é solicitado...

       Sim, ele lembrou: uma bala no cérebro. Sua pele escureceu e seus dentes e garras ficaram compridos. O fogo ardia mais quente chamuscando tudo ao redor.

       — Não dê dicas a ele. — o Bree Lian falou. — Deixe-o aprender em primeira mão como o resto de nós.

       Solo já queria uma fatia dele. Aquilo só fechava o acordo.

       — Deixe ele tomar o fardo durante algum tempo. — Mec adicionou.

       Sim, Solo teria uma fatia dele também.

       Vários outros murmuraram concordando. O que significava que todos eles queriam que Solo obtivesse toda a atenção de Jecis, de forma que podiam agir sem medo. Bom. Mas tudo bem, tanto faz. Ele entendia de sobrevivência.

       Ele também nunca esquecia uma desfeita.

       Criss acenou longe seus comandos, dizendo.

        — A pequena ratinha não nos alimentará até depois do circo, e só se nos comportarmos. — Ela soprou no ar a última palavra, o movimento duro com fúria contida.

       Aquela ira logo rasgaria livre, ele estava certo, e a deixaria despreocupada, disposta a fazer qualquer coisa para morrer. Não só lançaria pedras, mas mais. Muito mais. E a pequena ratinha — Vika, a linda Vika com os olhos feridos, o rosto machucado, o corpo de sereia e o beijo de um anjo — aguentaria o ímpeto disto.

       Ele foi tão cuidadoso em não pensar sobre ela ontem à noite. Agora ... não haveria o que parasse o cabo de guerra mental que se seguiria.

       Ela é minha. Eu a quero.

       Você é estúpido? Ela não é sua. Ela pertence a Jecis — você não a quer.

       Eu a mereço. Depois de tudo que sofri aqui, ela será minha recompensa.

       Ela não é um prêmio.

       Ele era tão ruim quanto X e Dr. E.

       — Uh-oh. Eu reconheço esse olhar. — Criss disse com um gemido.

       Ele forçou os músculos em seu rosto para relaxar, não revelando nada mais.

        — Que olhar?

       Ela deu uma bufada.

        — Por favor. Vika é a filha do grande sujeito, sabe, e nada além de problemas.

       Viu? Vika é uma maçã podre de uma árvore envenenada.

       — Além do que, pensei que estivesse interessado em nossa pequena gatinha. — Criss disse com um erguer de seu queixo.

       Seu olhar se virou para Kitten, que ainda espreguiçava no chão de sua jaula.

       — Vika faz o que o papai diz, quando diz, e ainda que você fosse bonito... uh... bem, de qualquer maneira, ela não ajudaria você. — Criss disse. — Não quero ser cruel, só honesta.

       — Chega de honestidade. — o Targon chamou. — Vamos partir pra diversão! Eu adoraria ver você tentar encantar nossa pequena Vika, Sr. Feioso.

       Todos menos Kitten e Criss riram silenciosamente.

       Como se fosse chamado, Dr. E chegou na cena se empoleirando sobre ombro de Solo como um pássaro. Estava mais pálido que o habitual, e um pouco instável em seus pés. Por que?

        — Eles ousaram arreliar você? Bem, é hora de ensinar a eles uma lição, não acha? Se disser a Jecis que está disposto a fazer um pouco de luta livre num octógono sem cobrar nada, vai poder rasgar estas criaturas em mil pedaços sem nenhuma punição. É ganhar ou ganhar...

       — Eles estão tão frustrados e bravos quanto você. — X disse, aparecendo em seu ombro direito. Ele estava mais bronzeado que o usual, e completamente firme em seus pés. — Eles estão dando coices nas circunstâncias, não em Solo.

       — Chega! — Ele rosnou, de repente doente do cativeiro, de X, de Dr. E e todos os seus muitos fracassos recentes. Ele tinha que sair. Precisava sair. Drogado ou não, tinha que haver um jeito.

       Cada um dos Extraterrestres o perscrutaram com diferentes sombras de emoção. Alguns com terror, outros com satisfação. Mas ninguém zombou dele, e Dr. E — rindo e repentinamente corado — e X — suspirando com remorso e agora pálido — uma vez mais desapareceram.

       Solo embrulhou seus dedos em torno das barras e sacudiu, sacudiu, sacudiu. Claro, continuavam fixas, causando frustração para subir e devorar o que restava de sua ira controlada.

       — Uh, eu não faria isto também. — Criss disse. — Vai se arrepender.

       Ele não parou. Não podia. Sou forte suficiente para qualquer coisa, até isto. Outra sacudida. Mas novamente, as barras permaneciam intactas. Raiva transformou-se em ira, e a frustração formou extremidades dentadas que picavam sua pele fazendo-o sangrar.

       Agora, agora, agora. Outra sacudida, uma sacudida mais dura. Sacudida, sacudida, sacudida.

       Raiva... mesclada com uma explosão súbita de fraqueza...

       Frustração... se misturando com um repentino jato de água glacial...

       As drogas, ele percebeu quando sua mente obscureceu. As drogas devem se ativar com emoções mais fortes, porque a cada momento que passava, a debilidade só crescia enquanto a água glacial inundava outra parte de seu corpo, até que não teve mais forças para agarrar as barras.

       Seus braços caíram fortemente para seus lados, e sua cabeça tombou à frente, seu queixo batendo em seu esterno. Ele perdeu o controle de seu corpo e cambaleou, extremidade acima de. Um pouco antes de aterrissar ele pensou ter ouvido Criss dizendo:

— Eu te avisei.

 

       Vika andava de um lado para o outro em seu trailer, o segundo maior veículo da frota. (O de seu pai era o maior, claro.) As paredes eram cobertas de renda cor-de-rosa e enfeitadas com várias tapeçarias em tons de joias. Cada pedaço de mobília branca era luxuosa e cara. A mesinha de café era vitoriana e as pernas entalhadas com figuras parecidas com dragões. Os criados-mudos adornados com vasos de cristal e tigelas enfeitadas.

        Um lar de contos de fadas para uma princesa de contos de fadas, seu pai geralmente dizia.

        Tecidos finos estavam espalhados pelo ambiente. Veludos, cetins, sedas, e até o altamente caro algodão. Ela sabia costurar, e deveria então poder confeccionar para si mesma “um guarda-roupa apropriado para a filha de um rei”. Não foi o que fez. Nem o que faria.

        Para combinar com as roupas, ela possuía colares de jades, braceletes de rubis e pingentes de safiras, mais um conjunto de unhas de diamantes com anéis de ouro que cobriam o dedo inteiro, e um broche no formato da cabeça de um leão, a juba âmbar e os olhos cor de ébano. Cada joia brilhava quando a luz se derramava em raios suaves e dourados sobre elas. Tão lindas. Tão inúteis. Elas eram itens que no momento não poderia vender, pois seu pai sentiria falta delas.

        — Por que não usa as coisas que te dou? — Jecis questionava pelo menos uma vez por semana.

        — Elas não fazem meu estilo. — ela dizia. E então ele tentava outra vez, dando-lhe outra coisa, algo maior, não entendendo que ela não sentia vontade de usar seus presentes de culpa —exatamente isso é o que eram.

        Mas ontem à noite no jantar, tudo havia mudado. Ela usou um dos colares como planejado, e ele lhe fez um cafuné, muito satisfeito com ela, sem nem reparar no leve volume do curativo debaixo de sua camisa.

        Oh, que vida eu tenho.

        Sua mãe teria amado o trailer, as roupas e as joias. Teria costurado o maior número de vestidos possíveis e dançado em volta do lar, rindo e rodopiando, fazendo Vika sorrir.

        Uma lança repentina de tristeza a perfurou. Sua bela mãe que tinha alegado amá-la mais do que qualquer outra coisa, mas que abandonara sua única filha para fugir com o amante.

        Em poucos dias, Jecis a tinha encontrado e trazido de volta. Depois, na manhã seguinte, ele convocara todos os artistas em um local e anunciara que sua esposa morrera de um coração negro e podre. E isso era verdade. Jecis tinha um coração negro e podre, e foi quem a matou.

        Vika não tinha ideia do que acontecera com o amante.

        De qualquer forma, não ficaria pensando no passado, lembrou a si mesma. Pensaria no dia de hoje: o dia de estreia do circo em Nova Atlanta.

       Tinha que ficar no trailer até que seu pai terminasse suas obrigações e performances. Ia relaxar, comer seus tantos chocolates e aproveitar o tempo, como se horas e horas sem nada a fazer a não ser contar as suas economias (pela milésima vez) fosse divertido, enquanto todos da “família” do circo trabalhavam para ter um lugar onde morar e o que comer, não apenas ajudando com as roupas, tendas, jogos e veículos, como também se apresentando.

        Vika só tinha que cuidar dos Extraterrestres depois que o público fosse embora. Dessa forma os habitantes da cidade não a viam, nunca tentavam machucá-la e cabeças não teriam que rolar. Mais importante, o circo nunca precisaria sair para outra localidade mais cedo do que o planejado, simplesmente para evitar a lei.

        Jecis queria que Vika ficasse a salvo — de todos, menos dele.

        Quando aprenderá, Vika? Não pode haver dois mestres em uma casa. Faça o que eu mandar, quando eu mandar ou vai sofrer. Eu te amo, mas não posso criar desculpas para você só porque é minha única filha.

        Um pai que amava sua filha não batia nela. Um pai que amava sua filha não mutilaria e expulsaria uma das suas duas únicas amigas, forçando-a a desistir da outra por medo de ver a garota receber o mesmo tratamento. Um pai que amava sua filha não assassinaria seus preciosos animais.

        Só quero viver em paz.

        E mesmo assim, não tinha permanecido no trailer. Passou cinco minutos lá fora, correndo pelo zoológico para checar o novato. Cinco minutos, somente isso, mas na opinião de seu pai aquilo era muito tempo.

        Um arrepio quase a fez cair e ela se derrubou no sofá. Como queria que Jecis fosse o homem que costumava ser, o homem que ouvia suas histórias sobre borboletas e que a colocava para dormir à noite, mas tudo mudara quando seu avô morreu e ele assumiu o circo.

        O lugar estava horrível, encarando uma ruína financeira. Dinheiro rapidamente se tornou a única preocupação de Jecis, e ele começou a vender drogas e mulheres entre os espetáculos. Fizera coisas terríveis para manter os empregados na linha e seus segredos ocultos, e essas coisas destruíram o homem que ela conheceu. Mas seus bolsos estavam cheios, e isso era tudo o que importava para ele. Depois de um ano, ele transformou o lugar — e — sua própria transformação terrível havia se completado.

        Se ele descobrisse o que fizera hoje ele a puniria por se colocar em perigo.

        Se. Ah. Ele descobriria. Muitas pessoas a viram, exatamente como sabia que veriam.

        Por que fez aquilo, então?

        Não havia necessidade de considerar; já sabia a resposta. Fez aquilo porque não conseguia tirar o prisioneiro da cabeça. Lembrou umas mil vezes de como havia tocado nele. Com as mãos nuas. Homem e mulher, calor e calor. Mais umas mil vezes lembrou de ter colocado a boca na dele — e de como gostou.

        De repente, sentiu a vibração em sua pele de alguém… gritando? Ah, sim. Um grito. Os cabelos da sua nuca se arrepiaram. Ela quase abriu a porta para espiar lá fora.

        A mais nova adição do zoológico finalmente havia alcançado o fim de sua tolerância.

        Simpatia cresceu dentro dela. A noite inteira ele tinha lutado desesperadamente para se libertar, mesmo sem fazer progresso algum. Temendo que seu pai ouvisse seus palavrões e decidisse agir, ela tinha esperado por perto, pronta para cuidar dos seus ferimentos. Mas Jecis não reapareceu, e o novato continuou a lutar, até perceber finalmente que não havia como sair daquela jaula. Raiva contorceu suas feições e sua pele ficou naquele tom carmesim. Seus dentes e garras cresceram, e embora ela devesse ter saído correndo de medo, a alteração fascinara Vika.

        Porquê… não importava quanto o corpo dele mudasse, seus olhos continuavam os mesmos: grandes e azuis, com aqueles cílios compridos que combinariam mais com uma mulher. Olhos inocentes. Olhos marcantes.

        Olhos de um Extraterrestre.  

        Como todo mundo, Vika sabia dos planetas habitados que existiam no espaço. Mas diferente de todos, também sabia que havia um mundo não visto operando aqui, na terra, ao redor de todos eles. E a impressionava o fato do quanto esses dois mundos eram próximos. Nas tantas vezes em que lutou com a morte, teve vislumbres daquele mundo e sabia que havia um bem e um mal absoluto — e que os dois eram tão reais quanto ela.

        Um passo era tudo que bastava, e o espírito conseguia deixar o corpo e adentrar naquele outro reino.

        O mais novo prisioneiro devia tê-la lembrado do lado maligno, mas não era assim. Bem o oposto, de fato.

        Ela voltou ao trailer e esperou que alguém trouxesse seu café da manhã. Alguns minutos depois saiu de fininho e voltou ao zoológico, onde jogou a comida na jaula dele. Ele tinha experimentado o synbacon, os biscoitos ou os cubos de mel? Estava acordado. Tinha visto, mas não tentou alcançar o saco de lona, e se falou alguma coisa ela não soube dizer. Ela manteve a atenção longe dele. Se cruzassem olhares, ele poderia tentar falar com ela e ficaria tentada a permanecer por lá.

        Afinal, devia-lhe outro pedido de desculpas. Ele estava indefeso e ela tirou vantagem dele de uma maneira terrível. Foi só… espere. Ela ia fazer mesmo isso? Pensaria no beijo agora? Quando evitara o assunto a noite inteira?

        Sim. Ia.

        Por que pressionou os lábios nos dele? Por quê? Ela não era assim. Desejo não era algo que já experimentou, e ainda assim estava atraída por ele em um nível primitivo. Em um nível inegável. Agora, uma parte dela que achou que estivesse destruída há muito tempo, uma garotinha carente que sonhava com um príncipe encantado aparecendo para resgatá-la, espreguiçava-se… espreguiçava… finalmente acordando completamente. Só que dessa vez aquele príncipe estava sozinho, exatamente como ela. Ele precisava de um amigo, tal como ela.

        Pensamentos perigosos. Pensamentos que já a colocaram em problemas. Primeiro, ela só podia contar consigo mesma e sabia disso. Segundo, ficou amiga da primeira Extraterrestre a ser capturada, na verdade aprendeu a amar e adorar a garota. Escapou todas as noites para ficar com ela, com sua doce Mara, e elas conversaram, dividiram histórias sobre suas vidas.

        Eventualmente Vika libertou Mara e todos os outros.

        E sofreu terrivelmente pelas suas ações.

        Sabia que não deveria repetir aqueles passos outra vez. E mesmo assim, tudo com o que parecia se importar era que o novato não passasse fome, e mais que isso, ele sofreria uma surpresa terrível quando o circo abrisse daqui a algumas horas. Ela queria que ele experimentasse algo de bom naquele dia.

        Se ele jogou a comida fora, tudo bem. Azar dele. Ela tinha feito uma boa ação, e poderia...

        As luzes do teto acenderam e ela grunhiu. Ela não tinha um alarme; ao invés disso, o sistema de iluminação era ativado para alertá-la que alguém esperava por ela.

        Seu estômago se contraiu quando se levantou e virou a maçaneta com a mão trêmula. Felizmente não era seu pai que vinha castigá-la por sua desobediência. Infelizmente era Matas, o seu “guarda-costas”, e ele irradiava perigo.

        Encontrando seu olhar, ela disparou.

        — O que quer?

        — Deixe-me entrar. — ele exigiu com sua carranca característica. Ele tinha cabelo escuro e desgrenhado e olhos da cor de gelo negro. Possuía uma pele de tonalidade mais escura, e era grande de peito e braços — e de orgulho e crueldade.

        Hoje ele optou por usar calça, mas sem camisa, revelando o piercing prateado em forma de pino no seu mamilo esquerdo. Ele tinha certeza que o acessório o fazia parecer bacana. Como era a palavra certa? Maneiro? Descolado? Para Vika o objeto parecia um martelo. Uma chave inglesa? Tanto faz! Parecia uma ferramenta.

        — Saia da frente, Vika.

        Aja normalmente.

        — Não. Essa casa é minha. Você não é bem-vindo. — Seja corajosa. — Então vá embora.

        — Eu irei… depois que disser o que tenho a dizer. — Ele a empurrou, e no momento do contato, insetos pareceram pular dele dentro dela, enterrando-se em sua pele e em suas veias.

        Uma sensação muitíssimo diferente do contato que teve com o Extraterrestre.

        Tentou não retorcer o rosto quando se virou para encará-lo.

        — Seja rápido.

        — Por quê? Tem que ir a algum lugar? — ele perguntou só para ser cruel.

        Ela não ficou surpresa; ele era um homem cruel. Oh, nunca a machucaria fisicamente nem nada assim. Ele tinha medo demais do seu pai. Mas gostava de feri-la de outras formas.

        Ele caiu no seu sofá e mexeu em um dos colares pendurados em um molde numa mesinha de canto.

        — Nós vamos conversar. Entendeu?

        — Entendi. — E podia imaginar como seria a conversa.

        Quando vai parar de ser tão teimosa e casar logo comigo? Ele perguntaria.

        Nunca, ela responderia.

        Não seja ridícula. Quando? Sou a melhor coisa que poderia acontecer a uma garota como você.

        Uma garota como ela. Surda. Deficiente. Depois que eu morrer considerarei o pedido. Talvez.

        Ele diria um palavrão. Ela tremeria.

        Então, sim, tinha medo de alguém além de Jecis.

        — Eu iniciarei as festividades. — ela disse, negando-se a recuar. — Esqueceu a regra número um?

        Um músculo contraía abaixo do olho dele, uma indicação clara de sua raiva crescente.

        — Não.

        — E ela é?

        — Não tocar na preciosa Vika. Nunca.

        — E lembra que me tocou ao entrar?

        — Sim. — ele disse entre os dentes.

        — Aqui vai outra pergunta. Lembra da regra número dois?

        Os dedos dele se fecharam em volta dos diamantes, e ela ficou surpresa das pedras não terem se transformado em pó.

        — Se eu violar a regra número um, tenho que bater no meu rosto ou você conta ao seu pai.

        Ela esperou, piscando de maneira inocente. Jecis era o único poder que tinha sobre aquele homem ou qualquer outro, e o exercia com frequência e severidade.

        Matas estalou a mandíbula.

        — Bem?

        Fechando ainda mais a cara, ele se estapeou.

        — Bom garoto. — ela disse com toda a doçura que conseguiu reunir. Ela o viu com outras mulheres e sabia que ele frequentava a escola de disciplina de Jecis Lukas. Ele não tinha medo de bater para afirmar sua autoridade e provar algo (estúpido) quando ficava com raiva… ou até mesmo levemente perturbado.

        — Agora é minha vez. — ele disse. — Quando vai se casar comigo?

        Viu?

        — Estou pensando… nunca. Isso é bom pra você?

        Um piscar de irritação.

        — Sou a razão do pessoal do seu pai odiá-la, a razão de até os Extraterrestres estarem se virando contra você. Uma palavra aqui, outra acolá e o veneno se espalha. Case-se comigo e farei com que amem você.

        Como ele ousava!

        — O que disse? — ela exigiu.

        Ele ignorou a pergunta.

        — Quero você, Vika, e eu a terei.

        Na verdade, ele era o segundo no comando do circo e queria ser o primeiro. Não entendia ainda que isso jamais aconteceria. Jecis nunca abdicaria do seu poder, e Matas nunca seria forte o suficiente para tomá-lo dele.

        Antes de se tornar o diretor do circo, Jecis tinha executado o ato de magia. Depois de se tornar o diretor, ensinou a Matas os segredos da magia negra, os dois passando incontáveis horas mergulhados em livros, praticando o que liam, e até testando seus poderes em alguns dos fregueses do circo.

        Em comparação, os dois não estavam nem no mesmo nível.

        — Você nunca me terá. — ela disse sacudindo a cabeça. — Você me dá repulsa.

        — É verdade? — De repente a sombra dele se moveu — enquanto seu corpo permanecia imóvel — expandindo-se por cima dos seus ombros… separando-se, deslizando em direções diferentes, cada membro sombrio ficando mais próximo dela.

        Com o coração martelando Vika endireitou os ombros. Sabia o que aquelas sombras eram, reconhecia do outro reino. Elas eram malignas. De um mal tão real, tão vil que possuía uma espécie de forma de vida.

        Seu pai carregava a mesma essência. Na verdade, foi com ele que Matas conseguiu as suas. Ela as notou alguns dias depois que eles começaram a treinar juntos.

        — É sim. Agora vá embora. — ela disparou.

        Ele sorriu, todo dentes brancos como pérolas e ameaça.   

        — Me obrigue.

        Os espasmos recomeçaram.

        — Você não costumava ser assim, sabe. — Como o seu pai, ele tinha mudado com o passar dos anos — de um jovem um tanto quanto afável que gostava de dividir o algodão doce com ela depois de cada espetáculo para aquilo, um homem exigente e depravado, capaz da façanha mais desprezível.

        — Eu sei. — ele disse, e não parecia se importar. — Agora estou melhor.

        — Não na minha opinião.

        — Isso é porque você ainda precisa evoluir. Mas posso torná-la poderosa, Vika. Pense nisso. Poderia torná-la poderosa o suficiente para matar seu pai e mandar nesse circo ao meu lado. Eu...

        — Transformou Rasa em uma aberração. — Ele havia usado sua magia para transformar a barba da mulher em centenas de pequenas serpentes.

        Ele deu de ombros, despreocupado.

        — Ouviram quando riu do meu número, e ela precisava aprender uma lição.

        — E Audra? — Ele também tinha compartilhado seu “poder” com ela.

        — Nunca a amaldiçoei. Ela veio até seu pai e pediu pelo mesmo dom que agora eu ofereço a você. Ele me disse para trabalhar com ela, e foi o que fiz. Todos os dias ela implora por mais do que tenho.

        O tom escarnecedor dele a fez pensar que ele dava a Audra mais do que aulas de magia negra.

        — Não quero nada com você nem com sua mágica.

        Ela jamais se permitiria descer até o esgoto em que Jecis e Matas viviam. Uma fome e sede por dinheiro e pelo poder que ele mencionou tinha arruinado os dois, apodrecido suas almas. E sim, ela sempre ouviu que quanto mais se tinha mais se cobiçava, e que pessoas que apanhavam se tornavam agressores ainda mais cruéis — mas ela quebraria aquele ciclo.

        Muito tempo atrás Vika decidiu não ser como os homens em sua vida. Ela sempre dizia a verdade. Recusava-se a se queixar de sua situação (com muita frequência). Recusava-se a odiar as pessoas que a cercavam. Forçava-se a ser bondosa. Isso não significava que tinha que gostar, aceitar ou suportar o que as pessoas lhe faziam. Sabia que era possível amar alguém e não tolerar suas ações. Sabia que podia lutar com o que era feito a ela, e sempre o fazia, o melhor que podia, sem ser cruel.

        E, como tudo que tinha valor, uma decisão dessas requeria trabalho. Era difícil ser verdadeira quando sabia que uma mentira a salvaria temporariamente. Era difícil caminhar pelo lado do amor quando a raiva exigia que corresse para o do ódio. Era difícil trabalhar para ser boa quando estava com dores, e ainda mais difícil ter esperança quando se sentia abandonada, bem, por todos. Mas na verdade, no final do dia, quando descansava a cabeça no travesseiro, sabia que escolheu o melhor caminho. Eles tinham que atravessar a lama. Ela permanecia limpa.

        — Agora — ela disse —, se me dá licença, gostaria de um tempo sozinha para pensar nessa conversa e rir da sua cara. Na verdade, mesmo que não me dê licença, gostaria de ficar só. Aproveite seu dia. Ou não. Preferencialmente não. — Certo, então ela nunca era boa com Matas. Mas também, até as boazinhas não deviam brincar com o diabo.

        Ela abriu a porta e esperou.

        Ele se levantou devagar do sofá e enfiou o colar de diamantes que tinha tocado no bolso.

       Ela quase protestou. Quase.

        Podia desprezar o que a joia representava, mas cada peça serviria para uma ótima causa. Em um ano teria dinheiro suficiente em bugigangas e coisas do gênero para comprar uma nova identidade e uma casa escondida nas montanhas do Novo Colorado. Um lugar que sonhava ter pelos últimos quatro anos. Um lugar que ninguém seria capaz de tomar dela.

        Sem a nova identidade Jecis seria capaz de encontrá-la. Sem a casa teria que arrumar um trabalho para pagar aluguel, o que a colocaria sob o controle de outra pessoa, como também a deixaria exposta.

        Além do mais, o tempo lhe dava a chance de procurar pela chave das algemas dos Extraterrestres. Algemas que precisavam ser removidas ou os cativos poderiam ser rastreados até os confins da terra — e talvez até outros planetas.

        — Se Jecis pega você com isso — ela disse como se feliz ante a possibilidade —, terá sérios problemas.

        — Ele não vai me pegar. Isso sumirá em uma hora. — Matas saiu do trailer, fazendo questão de encostar nela ao passar.

        Estremecendo quando insetos mais uma vez pareceram pular nela, fechou a porta com força.

 

        VIKA jogara um saco de comida para ele. O conhecimento manteve Solo imóvel. Ela atirou-lhe um saco de comida, e ela fez isso, mesmo com medo em seus olhos.

Por que temer?      

Do que — ou de quem — ela tinha medo?

Assim como antes quando os dois Extraterrestres a machucaram, Solo experimentou uma vontade quase incontrolável de mastigar as barras de sua jaula. Não que tal ação fosse funcionar, agora sabia. Mas então, o desejo não tinha nada a ver com ganhar sua liberdade e tudo a ver com matar qualquer dragão que a atormentasse.

Desesperado para vingar sua guardiã?

Talvez. Ele fizera a coisa da vingança inúmeras vezes antes e nunca se sentiu melhor depois disso, só pior. Perguntou a si mesmo se iria se sentir diferente em nome de uma mulher. Sua fêmea.

Não, não dele.

—Jecis vai vencê-la, mas ótimo para correr pelo jardim zoológico. — o macho cuspidor de tabaco de ontem disse alegremente à distância. — Ele está no rastro dela agora. Você sabe o quanto quero ver?

As orelhas de Solo se contraíram.

O outro macho de ontem gargalhou.

—Tanto quanto eu, estou apostando.

— Vai ser uma pena, porém, ver aquele lindo rosto todo estourado.

— Ele sempre a deixa em mau estado.

— É verdade.

Uma pausa.

— Ok, aqui vai uma pergunta pra você. Há uma arma na sua cabeça e você tem que escolher entre Vika ou a mulher barbada. Mas se você escolher Vika, Jecis consegue ter sua esposa. Quem você escolheria?

— Jecis pode ficar com a minha esposa, a bruxinha. Vou levar Vika com certeza.

Vika. Eles estavam discutindo sobre Vika. Jecis derrotaria sua própria filha? Seu "coração?" Certamente não. Certamente o homem a espancaria e nada mais. Mas os homens mencionaram um cara preso, caso não tivessem.

Pequenos pontos pretos brilharam através da visão de Solo.     

Ele não conhecia a garota e não confiava nela. Por que deveria? Não devia querer ajudá-la. E, no entanto...

Ela jogara o saco de comida. Solo não tinha que olhar para saber o que estava dentro da sacola. Podia sentir o cheiro do leite e da farinha do pão, bem como a doçura do mel e o sabor da carne.

       Por que ela faria uma coisa dessas, especialmente porque, de acordo com o bruto, ela não deveria entrar nesta área hoje? Ela tinha se arriscado — e receberia — punição.

       Ele tinha que ajudá-la.

        —Vika. — Antes que Solo mesmo percebesse que tinha se movimentado, seus dedos estavam envolvidos em torno das grades. Ele estava balançando a gaiola... sacudindo-as... com tanta raiva que seus ossos estavam vibrando. —Vika, venha aqui!

        Assim como antes, o calor disparou em seus pulsos e rapidamente se espalhou pelo resto do corpo. Em poucos minutos seus braços sentiram-se sobrecarregados com pedregulhos. Frustrado, impotente, enfurecido novamente, ele cerrou os dentes e forçou-se a parar.

       Sua mãe estava, provavelmente, revirando no túmulo. Uma mulher que estava prestes a ser derrotada perto dele — ele estava bem aqui, relativamente forte, um tanto capaz — mas não podia fazer nada sobre isso, só deixaria acontecer.

        — Nós temos que fazer alguma coisa, Solo. — X disse materializando-se, parecendo mais forte e mais estável do que ontem.

        Não importa para onde o casal ia quando desapareciam, sempre sentiam uma mudança em suas emoções e voltavam para ele.

        — Eu digo que bons ventos levem a garota. Ele não quer uma mulher assim. — Dr. E disse quando também se materializou, parecendo mais fraco e mais pálido do que ontem.

        Uma mulher assim. Por alguma razão a frase irritou Solo. Ela era uma mulher que cuidou dele gentilmente. A mulher que beijou-o como se fosse precioso para ela. Uma mulher que mordiscou seus lábios como se gostasse do gosto dele e ansiasse por mais.

       Mas parecia tão preocupada e gentil, arriscando ser castigada para alimentá-lo.

Por que ele? — ou tão enganosa quanto a serpente no Jardim do Éden tentando-o, atraindo-o para uma sensação de segurança antes de, finalmente, atingi-lo para derrubá-lo?

        Havia verdadeiro medo em seus olhos e não podia imaginar que ela suportaria punição simplesmente por enganar Solo em... o quê? Não suavizá-lo, como presumiu pela primeira vez, suavizar era muito leve para extrair algum resultado verdadeiro em uma situação como a deles. Talvez esperasse enganá-lo para fazê-lo confiar nela. Mas por que queria que confiasse nela? Ele já estava preso e enfraquecido, além disso. Ela não tinha necessidade de sua cooperação. Para tornar seu trabalho mais fácil?

       Mal se conteve de perfurar o chão da jaula. Estava confuso e não gostava de ser confundido. Preferia as coisas em preto e branco. Ou, no caso de X e Dr. E, certo e errado.

— O que posso fazer por ela? — sussurrou ferozmente. Raramente pedia conselho ao par, que gaguejaram em perplexidade. — Estou preso. — Mas tinha que fazer alguma coisa. Tinha que pagar sua generosidade.

        Em toda sua vida, em todas as situações precárias que passou, só foi preso uma vez sem qualquer sentimento de esperança. Era uma criança e tão jovem quanto ele fora, provavelmente não deveria ter mantido a memória do que acontecera, mas lembrava-se com facilidade de estar sentado em seu berço, sua mãe biológica beijando seu rosto e dizendo a X para cuidar dele enquanto ela tomava banho... e Solo teve que assistir quando três homens encapuzados invadiram a casa e a assassinaram. Seu corpo tinha caído, uma piscina de vermelho inundando-a.        

        Ele sentiu o cheiro de pólvora, sentiu a viscosidade do sangue quente.

        Seu pai correu de dentro do outro quarto, sua pele já mudando de bronze para carmesim, seus olhos brilhando com preocupação. Ele abriu a boca para falar, mas o boom, boom, boom de balas abafou sua voz quando ele também foi morto a tiros. Tombou a poucos centímetros da mãe de Solo, seu próprio sangue aprofundando a piscina. Os olhos de ambos estiveram arregalados de medo e dor, a luz dentro embaçando...

       Um dos homens perguntou aos outros o que fazer com ele. Todos os três olharam para ele, discutiram o assunto e decidiram matá-lo também. Uma discussão se seguiu quando o atirador foi escolhido. A arma foi levantada. Outro boom trovejou. A dor... a escuridão absoluta que descera sobre Solo... X murmurou:

        — Durma agora. — O retorno da consciência com Michael segurando-o perto de si, gritando para os paramédicos.  

        — Ordene a mim ajudar Vika. — disse X agora, sua voz concisa com a força de sua determinação. — Só me ordene e confie em mim para fazer isso. Você vai ver. Pode sentar-se de costas e assistir como milagres acontecem.

        Dr. E bufou.

        — Se você ajudar a garota, vai estar em um estado enfraquecido e incapaz de ajudar Solo se algo acontecer com ele. Ele não é estúpido o suficiente para permitir isso.

        — Solo? — X disse, ignorando o outro ser. — Vamos lá. Ordene.

        Solo não se importava de perder a força de X, não para algo assim, mas foram por este caminho antes e X só o decepcionou. Um melhor amigo nunca apareceu. Uma boa menina nunca o escolheu acima de todas as coisas. Seus pais adotivos não ressuscitaram dos mortos. Ele não tinha mais confiança para oferecer.       

        — Solo? — X instigou.

        Mas... talvez uma boa menina finalmente o tenha escolhido. Vika o ajudou, a despeito do perigo para si mesma. Essa generosidade era melhor do que o calor em uma tempestade de inverno, a luz em uma caverna escura. Esperança floresceu.

        — O que vai fazer por ela? — Ele exigiu.

        — Por que ainda pergunta? Não pode escapar se estiver fraco. Portanto não pode arriscar tudo o que tem o potencial para fazer de você um fraco. — Dr. E andava de um lado do ombro esquerdo para o outro. — Além disso, quando X falhar, e ele vai, ficará triste e incapaz de funcionar adequadamente. Se não puder funcionar corretamente, você não poderá, o que? Escapar.      

        E ele queria fugir mais do que qualquer coisa. Certo?

        X permaneceu focado em Solo.

        — Não sei como lidar com as coisas até chegar até ela, mas vou fazer alguma coisa. Tudo que preciso é a sua permissão.

        — Não faça isso, Solo. Por favor.

        — X. — ele sussurrou. — Faça isso.

        — Não! Não seja idiota. — Dr. E disse com um aceno de cabeça acentuado.

        — O que exatamente você quer que eu faça? — X insistiu, ainda ignorando Dr. E. — Seja específico.

        Como bem sabia a importância das palavras.

        — Eu quero que você...

       — Não. — Dr. E interrompeu asperamente. — Você está brincando com isso?

        — Salve-a. — Solo completou. — De qualquer forma necessária, qualquer que seja o custo para mim, salve-a.

        — Considere feito. — Um X sorrindo desapareceu.

        — Idiota! — Dr. E gritou, batendo o pé. — Você tem alguma ideia do que fez?

        Sim. Ele tinha. Virou-se para a única via disponível para ele, confiando em um poder maior do que ele. E não podia se permitir preocupar com o resultado. Algo que observou ao longo dos anos: preocupar-se sempre enfraquecia X ainda mais e fortalecia Dr. E.

       Solo olhou para o homenzinho que tantas vezes alimentou suas raivas, não mais surpreso ao descobrir sua pele desprovida de cor.

        — Vá embora.

        — Você não pode... como se atreve... Oh! — Dr. E desapareceu também.

        — Ei, não é justo, sinto cheiro de comida. — Criss disse, chamando sua atenção para as jaulas.

        Bom. Ele não podia se permitir pensar sobre Vika e uma distração acabara de se apresentar.

        — Seu nariz está funcionando corretamente. Tenho comida. — Entregue por Vika.

        Quando é que o fato deixaria de chocá-lo?

        Criss esticou o braço através das grades e acenou com os dedos para ele.

        — Compartilhe comigo. Não comi em dias.

       — Por sua própria culpa. Você desperdiçou o que lhe foi dado.

        — Por uma boa causa!

        Foi isso mesmo?

        Ele abriu a bolsa. Os cantos de vários dos biscoitos tinham se desintegrado e o bacon crocante quebrou em vários pedaços.

Sua boca encheu de água e seu estômago roncou.

— Você quer a metade? — ele perguntou, pegando um pedaço de um biscoito e um quarto de uma fatia de bacon e jogando para ela.

Primeira regra de pesca: utilize a isca adequada.

Ela pegou os pedaços com graça surpreendente, e com uma velocidade que seu olhar se esforçou para acompanhar, encheu a boca com ambas as porções, como se temesse que alguém tentasse levá-las para longe dela. Ela fechou os olhos enquanto saboreava a comida, sua pele brilhando... irradiando um brilho de pérolas na luz solar... fazendo seus olhos lacrimejarem com seu brilho.

Quando suas pálpebras se abriram, seus olhos eram da mesma tonalidade brilhante.

— Mais. — ela disse em uma voz profunda e gutural.

— Por que pega a comida de mim e não de Vika?

— Eu não quero dar-lhe a satisfação de me ver implorar por cada pedaço.

— Ela oferece livremente.

Um grunhido de Criss.

— Você é fã de mel? — ele perguntou.

— Mel? Me dá!

Peguei você.

— Eu vou... depois de prometer nunca machucar Vika novamente.

— Claro, com certeza. Agora me dê.

— Você vai prometer não machucá-la com palavras, comida, pedras ou qualquer outra coisa, e eu vou te dar metade do conteúdo do saco.

Dr. E fez outra aparição. Havia um novo corte em sua bochecha e sua túnica estava rasgada. Seus ombros estavam inclinados, como se sua cabeça estivesse pesada demais para segurar.

— Agora você está indo longe demais. Esse alimento é seu. Precisa manter sua força.

Sua? Ou a do Dr. E?

       — A Extraterrestre ficou sem alimento mais tempo do que Solo. — X disse de repente, fazendo com que a atenção de Solo se movesse para ele. — É justo compartilhar.

        Seu manto tinha uma única marca chamuscada, pouco acima do coração e sua pele estava pálida, as linhas de tensão expandindo-se de seus olhos, mas estava sorrindo tão feliz como antes.

        — E você não ouviu falar? — X acrescentou. — É muito melhor dar do que receber.

       — A garota. — ele sussurrou.

        Irradiava satisfação do ser.

        — Ela está a salvo.

        — Como? — Ele não ouviu nada, e tão pouco tempo tinha se passado.

        — A escuridão não pode permanecer na luz.

        Ele não tinha certeza do que isso significava em termos de segurança para Vika, mas permitiu que o sujeito soltasse. Vika estava segura. Isso era tudo o que importava.    

— Então você tem uma queda por nossa guardiã, não é? Foi o que pensei. — disse Criss. —Bem, a romântica em mim aprova. É a verdadeira história tipo a-bela-e-a-fera, e estou dentro! Quando meus irmãos vierem me buscar, e eles virão, vou me certificar de matar Vika só um pouco para que fique com algo de lembrança. Juro. De nada. Agora, por favor. Me dá o mel!    

De alguma forma ele conseguiu manter uma expressão vazia. Não discutiria seus sentimentos por Vika — quaisquer que fossem — e não se permitiria reagir a ser chamado de animal, enquanto não havia nada que pudesse fazer sobre isso. No entanto, sabia como manter o placar. Esse foi o segundo ponto para Criss. No três... pobre menina morta.

Assim era como todo mundo a chamaria.     

— Não é bom o suficiente. — disse ele. — Jure o que exige. — Ele fingiu morder metade de um biscoito. — Caso contrário, você não ganha nada.

— Ok, ok. — ela se apressou. — Juro. Não vou machucá-la novamente. Nunca. Com qualquer coisa.

Um momento passou e todo seu corpo tremia como se ligado a um gerador elétrico. Sua coluna estremeceu em total alinhamento, ficando ereta.

— O que foi isso?  

— A lembrança de que você não vai gostar das consequências se quebrar sua palavra. — alertou.

Ela ergueu o queixo.

— Você é um Jolly Red Gigante complicado, não é? Bem, isso é bom, desde que me dê o resto do que prometeu. — Aqueles dedos longos e elegantes acenaram com mais vigor.

Ele jogou sua parte. Assim como antes, ela pegou a comida e devorou ​​cada pedaço.  

— Você não consegue fazer nada direito hoje? Se queria compartilhar com ela, tudo bem, mas deveria ter feito seu trabalho para isso. — Dr. E reclamou. — E por “isso” quer dizer a metade do menor biscoito, não a metade de todo o saco.

        Suspirando de contentamento Criss deitou em sua gaiola, uma joia rara em um mar de pedras maçantes.

       Sua vida teria sido mais fácil se tivesse especulado sobre Criss durante toda a noite. Em vez disso, era por Vika que ele estava atraído, era de Vika que ele queria falar, era sobre Vika que queria aprender e... Vika que queria salvar, inclusive de si mesmo. Suas mãos se fecharam em punhos. Ela era sua passagem para fora daqui. Tinha que fazer o que fosse necessário, até mesmo para ela.

        — Ei! — Um dos outros cativos chamou. — Novo cara. Hamburglar.

        —O que você deu a Criss? — Alguém perguntou.

       — Eu quero um pouco para mim!

        Solo estalou os dentes para os interlocutores e ficou em silêncio. Dois ainda inclinaram suas cabeças, reconhecendo um predador muito mais perigoso do que eles — que não queriam irritar, mesmo enjaulado como estava.

        O Targon soprou-lhe um beijo.

        Kitten olhou para ele com impaciência expectante.

        Sem uma palavra, retirou um pedaço de bacon e jogou metade do que restava na bolsa para ela e a outra metade para Targon. Ela pegou sua parte e cravou dentro. Targon balançou a cabeça e arrematou sua porção como ela também.

       — Gesto doce, mas não posso comer isso. — disse Targon. — Minha mulher… — Ele fechou os lábios com força, ficando em silêncio. E deve ter decidido que não era bom o suficiente, porque ele girou, dando as costas a Solo.

        Interessante.

        — Estou muito feliz para estar chateada por você ter compartilhado com Kitten sem fazer dela uma imbecil completa. — Criss ronronou. — Ela é uma selvagem, por sinal. Estou surpresa que conseguiu que ela conversasse ao invés de lançar maldições, mas assim são as novidades, nunca se sabe quando vai se deparar com elas.  

Ele comeu o bacon, apreciando os sabores.

— Eu não sou um barril de cerveja. — Kitten estalou.

Vozes vindas da clareira chamaram sua atenção.

— Eles estarão aqui em menos de uma hora. Mova suas carcaças preguiçosas, agora, agora, agora!

— Você já colou os espinhos nas pás?

        — Apascente as cobras, Rasa! Se levar mais uma mordida na minha mão, vou começar a morder de volta.

       Uma gota de suor rolou pelas costas de Solo. O ar já estava quente e úmido, o que só ficaria mais quente e úmido conforme o dia avançasse.

        — O que você fez para fazer Vika gostar de você, afinal? — Criss perguntou, rolando para ficar de lado.

        Ele não tinha resposta, e pegando uma página do manual de Targon, virou-se.

        — Seja o que for. Dica recebida. — ela murmurou. — Porém, esta não é uma história de a-bela-e-a-fera, não é? É uma coisa irmã-esposa, certo? Você quer Vika, Kitten... e provavelmente eu. Definitivamente eu. Sou muito sexy. Bem, considere que me deixou intrigada... a menos que Vika traga para você algo mais para comer. Se pegar um pedaço de carne, serei sua escrava por toda a vida. Bem, metade de uma vida. Meus irmãos vão te matar.   

Novamente, ele não ofereceu nenhuma resposta.

        — Você preparou sua mente para o que está prestes a acontecer? — ela perguntou.

        O lembrete inundou-o com apreensão. O circo, que devia começar.

        — Basta fazer o que você disse. — disse ela. — Vai se odiar por isso, mas será melhor pra você. Confie em mim.

 

       Ele não poderia ter se preparado para isso, Solo pensava.

        Por quinze dólares por cabeça, um humano após o outro foi autorizado a desfilar pela clareira. Os humanos paravam na frente de cada jaula e estudavam os Extraterrestres famintos ali dentro enquanto comiam algodão doce, o sorvete derretido, cachorro-quente, e pretzels misturados com aditivos químicos.

       Eles sabiam que estavam sendo drogados?

        Alguns olhavam com espanto e admiração. Alguns ofereciam críticas aos defeitos. Alguns jogavam pedaços de cereais para os cativos. Solo permitiu que esses pedaços batessem nele, deixando-os cair aos seus pés, mas viu como os outros os pegaram e comeram, desesperados o suficiente para tomar o que podiam obter, quando podiam fazê-lo, apesar de Vika tê-los alimentado.

       Ele deveria ter compartilhado sua generosidade com todos eles, percebeu com uma pontada de culpa.

        Crianças percorriam a cada tantas vezes, rindo, jogando pedras em vez de comida, antes de serem expulsas pelos guardas armados. Isso certamente explicava de onde as pedras arremessadas em Vika vieram.

        — Dance para mim, Pérola. — um homem pediu a Criss, enquanto os dois homens com ele acenavam com a cabeça ansiosamente.

       Nenhuma vez proferindo um comentário depreciativo ou insulto, Criss dançou, levantando os braços acima da cabeça e balançando os quadris. Os homens gemiam e grunhiam sua aprovação, embora cada movimento dela foi feito enquanto ela cerrava os dentes e ódio brilhava em seus olhos.

       Basta fazer o que você disse. Vai se odiar por isso, mas será melhor pra você, ela disse. Confie em mim.

       Mesmo agora, ele acreditava no oposto. Se odiasse a si mesmo por suas ações, nunca seria melhor.

        Apenas Kitten desafiou os humanos. Ela cuspiu maldições, como Criss disse que faria, e tentou arranhar e morder qualquer um que pisasse muito perto.

        Alguns dos espectadores do sexo feminino pediram aos Extraterrestres homens para levantar suas tangas, e eles também obedeceram. Mesmo Targon, que usava seu sorriso habitual — apesar de ter sido agora cortado por cacos de vidro.

        Ninguém pediu a Solo para fazer nada. Ele se transformou em parte, sua pele um tom claro de vermelho com os olhos brilhantes, provavelmente, e suas presas e garras a meio mastro.

No entanto, aqueles com estômagos mais fortes encararam com curiosidade mórbida até perceber que ele não seria o primeiro a abaixar o olhar, e que a fúria em chamas por meio dele poderia dar-lhe a força que precisava para explodir através das grades e fazer algum dano antes que os guardas pudessem matá-lo.

       Ele ouviu murmúrios de "feio" e "horrível", assim como ouviu toda a sua vida, só que agora não havia nada que pudesse fazer sobre isso. Ele só tinha que aceitar. O reagir era passar, e passar para fora era para ser muito mais vulnerável​​, como ele já tinha percebido, e este não era a hora ou o lugar para acolher qualquer tipo de vulnerabilidade.

        — Aposto que você quer matar essas pessoas. — Dr. E disse. Ele estava mais pálido do que antes, realmente pálido e mais frágil. — Eu sei que sim.

       O dano que Solo poderia fazer a qualquer outro momento...

        — Você deve memorizar os rostos, e quando você sair daqui deve caçar os agressores lá fora e dar-lhes um gostinho de sua dor.

        — Há outra maneira, você sabe. — X disse antes que pudesse responder. Sempre estava lá com sua bondade e compaixão, fazendo o seu melhor para construir Solo e encorajá-lo. Sua cor já tinha retornado.

       — Não se atreva a alimentá-lo com outra linha sobre perdão. Não podemos perdoar esse tipo de comportamento. — Sempre Dr. E estava lá com seu lança-chamas, determinado a enfurecer ainda mais Solo.

        Bem, estava funcionando.

        — Ele pode, sim — disse X —, mas não era isso o que eu ia dizer. Esta é uma situação terrível, mas há uma luz na escuridão se você olhar para ele, em vez de manter os olhos fechados.

       — Meus olhos não estão fechados. — ele resmungou baixinho. Estavam abertos e estavam olhando para o casal humano que tinha acabado de parar em frente a ele, boquiaberto. Por que não estavam revoltados com as condições que seres vivos eram forçados a suportar? Por que não iam...

       Seu olhar ficou preso em uma cascata de cabelos loiros logo atrás do casal. Ele se concentrou. Espiando por trás da gaiola agora, observando-o, expressão de preocupação e sentimento de culpa, estava Vika.

Seu lábio estava dividido no centro e havia uma nova contusão em sua bochecha.

        — X. — ele rosnou. X não a salvou. Ela foi espancada.

       O macho humano tentou impressionar a fêmea esticando o braço, como se fosse corajoso o suficiente para um animal de estimação como Solo.

        O desejo com que lutou desde que acordou nesta jaula de repente o venceu. O desejo de ferir aqueles que queriam machucá-lo. O desejo de retribuir crueldade com crueldade. E, no entanto, havia um novo. O desejo de chegar até Vika. Para protegê-la.

       Com reflexos extremamente rápidos Solo estendeu a mão, agarrou o homem pelo pulso e torceu. Os ossos quebraram instantaneamente.

        Um grito de dor ecoou.

        Um dos guardas avançou, já sacando a arma.

        Solo podia lidar em ser baleado. Ao longo dos anos ele foi baleado, esfaqueado, espancado, e qualquer outra coisa que a mente humana pudesse imaginar. Mesmo assim. Ele não deveria ter feito isso, percebeu. Deveria ter permanecido impassível. Mesmo sem o humano, ele ainda não podia chegar a Vika.

       Neste momento liberou o homem e levantou as mãos com as palmas pra fora, com toda inocência.

        — Exijo um reembolso! — O homem gritou enquanto lágrimas grossas escorriam pelo seu rosto. — Ai, ai, ai, e indenização! E todas as minhas contas médicas pagas, ai, ai, ai. Disseram que eu não seria machucado, mas olhe para isto. Está esmagado! Ai, ai, ai. Propaganda enganosa é crime.

        Carrancudo, o guarda guardou a arma de volta para examinar a lesão do humano.

       — Uh-oh. Você está com problemas agora. — Dr. E disse com uma risada. Saúde e vitalidade estavam voltando para suas bochechas. Ele não estava mais instável.

        — Concentre-se na luz. — disse X. Ele agora estava pálido. Agora estava instável.

        Não havia luz em uma situação como esta.

        O guarda enviou o humano em um caminho, provavelmente a um médico, e se aproximou da jaula.

— Espero que perceba que o dinheiro que agora devemos a ele será retirado de sua pele. — Com isso ele apertou o botão que Vika já havia pressionado... o botão que trazia paralisia.

        Solo rugiu quando calor se espalhou de seus pulsos para o resto do seu corpo, exatamente como as vezes que ele tinha ficado com raiva, só que este calor era mais forte e movimentou-se muito mais rapidamente. Um rio que acabou livre de uma barragem. Lutou contra o aumento súbito de fraqueza... lutou contra a proximidade da vulnerabilidade...

        Ele perdeu.    

        A última coisa que viu antes de um peso pesado puxar suas pálpebras foi Vika, seu cabelo selvagem, seus olhos brilhando com uma estranha espécie de loucura. Ela estava correndo em direção a ele, determinada a chegar até ele... até que o segundo guarda agarrou-a pela cintura e puxou-a para uma parada.

Solo lançou outro rugido, tentou alcançá-la e não conseguiu.

       

       Em torno de duas horas da manhã, a lua era um mero gancho de ouro no céu negro repleto de estrelas. Todos os clientes do circo foram para casa, e agora todos os artistas se reuniam em torno de uma grande fogueira ardente no centro das jaulas dos Extraterrestres.

       Vika tremia com a força de seu medo. Não por si mesma, não desta vez, mas pelo recém-chegado.

Olhos Azuis, ela começou a chamá-lo. A taxa de quinze dólares que seu pai perdeu junto com o dinheiro por "danos" e a irritação de ter que lidar com um humano furioso estava para ser retirada da carne de Olhos Azuis.

       O homem não despertou uma vez que os medicamentos atingiram seu sistema, mas apenas porque a ele foi dada uma nova dose a cada hora. Seu pai o queria dócil até o momento certo, que passou a ser apenas quando todos os seus empregados e os encargos de Vika pudessem testemunhar a punição de Olhos Azuis.

        Os artistas trouxeram cadeiras de gramado e agora as colocaram na frente das jaulas. Lá estava Rasa, a mulher barbada do tamanho de um duende com cobras sibilantes se erguendo de seu queixo. Estava o comedor de espada, a mulher-macho com quatro mãos, os ginastas siameses e, aparentemente, milhares de outros.

       Olhos Azuis estava de joelhos, caído, seus punhos ligados a ganchos salientes de um cepo. O fogo ardia ao lado dele, lançando raios dourados sobre a pele profundamente bronzeada de suas costas nuas. Não havia mais qualquer sinal de vermelho. Mas haveria. Muito em breve haveria, e seria vermelho de uma espécie diferente.

        Jecis chutou sua lateral para acordá-lo, e aplausos abundaram.

       Quando Olhos Azuis levantou a cabeça, ele piscou rapidamente, talvez lutando para se concentrar. Jecis andava de braços erguidos. Em frente ao Extraterrestre ele parou, virou-se para o seu povo.     

        — Este homem... esta criatura repugnante... atreveu-se a tocar um humano sem permissão. — O pai dela gritou, exasperando a multidão. Vika continuou a ler os lábios. — Ele tinha toda a intenção de causar danos irreparáveis... depois de ter sido avisado para se comportar.

        Um coro de "boo" varreu a massa, as vibrações quase lançando-a fora de seus pés. Ela examinou as pessoas que cresceram com ela, esperando, rezando para encontrar um rosto simpático, que alguém, qualquer um, poderia levantar-se e gritar: "Isso está errado. Não deixarei você machucar esse homem.” Alguém com força para forçar seu pai a recuar.

       Em vez disso, ela descobriu alegria maliciosa e prazer cruel. Expressões mais maníacas, porque todo mundo ainda usava seus trajes de performance, tendo chegado aqui logo após o último show. Havia lantejoulas, penas, saias fofas curtas, rendas e meias arrastão, tórax oleosos e calças praticamente pintadas no corpo.

        Essas pessoas eram párias, aceitaram apenas pela forma de se divertir. Agora queriam ser entretidos. Na verdade, provavelmente se sentiam como se merecessem um bom show. Jecis cobrou ingresso, afinal.

       Os músculos das costas de Olhos Azuis se retesaram e sua espinha ficou reta. Ele esquadrinhou a área, de repente alerta. Alguém jogou um punhado de pipoca nele, os grãos amarelos macios chovendo sobre ele.

        Fúria brilhou em seus olhos... um fogo muito mais quente que as chamas crepitando ao lado dele.

        Por favor, ela projetava para Jecis. Não faça isso.

        — Que esta seja uma lição para todos. — o pai continuou, virando-se... torneando... para enfrentar todos na plateia. Ele estava dizendo mais, mas estava de costas no momento para Vika, por isso não conseguiu ler seus lábios. O público gostou de qualquer que seja a ameaça ou insulto que ele emitiu, porque o riso entrou em erupção.

       Então, ele estava de frente para ela de novo, e estava dizendo:

        —... sei que desobedecer é sofrer.

        Aplausos se juntaram ao riso. Seu estômago revirou. E por mais confusa que ela reagisse ultimamente, sentia como se pudesse lisonjeá-lo.

        Quando seu pai estendeu a mão, quando Matas bateu a alça de um chicote contra a palma da mão, Vika encolheu-se na escuridão da noite. Jecis queria o sangue dela, e se ele a viu, receberia uma surra também.

       Algo estranho aconteceu hoje. Poucos minutos depois que Matas deixou seu trailer, as luzes brilharam novamente. Ela abriu a porta, à espera de ter de lidar com ele uma segunda vez.

        Em vez disso, seu pai estivera ali. Carrancudo. Enfurecido.

        — Você ousou me desobedecer? Ousou se colocar em perigo quando sabe que você é a coisa mais preciosa do mundo para mim?

        Ele empurrou-a para trás, invadiu atrás dela e deu um tapa nela.

        — M-me desculpe. — ela proferiu.

       — Por que fez isso comigo? — Bofetada. — Por que me obriga a te machucar desse jeito? — Bofetada.

        Mas nesse momento ele tinha gritado de dor. Ele. Não ela. Como se sua pele de alguma forma cortasse a dele.

        Em seguida uma voz sussurrou dentro de sua mente. Uma voz real, o primeiro som que ouvira nos últimos anos. Chocada até seu âmago, ela esfregou seus ouvidos, balançou a cabeça, apenas para perceber que o som não saltou do lado de fora — saltou de dentro dela. E, no entanto, não pertencia a ela.

        O choque se transformou em confusão, a confusão em pavor.

        Ela estava louca?

        Você não tem que aceitar isso, a voz dissera.

        Em seguida, um pouco mais alto: Você é forte.

        Em seguida, bastante mais alto: Você é vitoriosa.

        Talvez estivesse louca, mas também tinha poder, como se suas palavras de força fossem transmitidas diretamente ao seu âmago. Ela de alguma forma reuniu a coragem de gritar na cara de seu pai:

        — Não! Não vou deixar você fazer isso comigo!

       Ele cambaleou para trás alguns passos, como se vacilante, antes de parar e estalar os ossos em seus dedos, preparando-se para coisas sérias. Mas em vez de bater nela com o punho fechado, fez uma pausa, uma gota de medo aparecendo em seus olhos. Medo. Dirigido a ela!

        — Sou necessário no ringue. — ele murmurou, confundindo-a ainda mais. — Vou lidar com você mais tarde.

        E ele iria, com medo ou não. Nunca esquecia a punição devida e nunca perdoava, nunca mostrava misericórdia. Nem mesmo a ela, sua suposta amada. Foi por isso que decidiu voltar ao zoológico e verificar Olhos Azuis. Afinal de contas, uma surra já estava esperando por ela. Que melhor momento para desobedecer e fazer o que queria?

        Quando escapou do trailer, a voz retornara. Mais tarde você vai voltar a lutar. Mais tarde você vai voltar a ganhar.

       — Quem é você? — Ela perguntou. — O que é você?

        Silêncio. E, no entanto, um cobertor quente parecia se envolver em torno dela, abraçando-a, apenas para desaparecer um segundo depois, como se nunca tivesse existido. Como se tivesse acabado de ser abraçada e liberada.

        Mas... isso significaria que não era louca. Isso significaria que algo tentou ajudá-la. Alguma coisa... como o bem absoluto nesse outro reino? Afinal, se o mal podia se manifestar, fazia sentido que o bem podia também.

        — Não posso lutar mais tarde. — Vika disse. Se ela se tornasse um problema muito grande, Jecis finalmente faria valer sua ameaça de cegá-la. Ele poderia até mesmo expulsá-la do circo, e ela se encontraria nas ruas, incapaz de conseguir seu dinheiro, sem habilidades, sem proteção... sem esperança.

       Um flash de movimento chamou a atenção dela, puxando-a de seus pensamentos. Jecis tinha acabado de desenrolar o chicote. O final estava dividido em três partes, uma com um estilhaço de vidro, uma com um prego grande, e uma com um pedaço de madeira lascada. Um nó cresceu em sua garganta, e seu queixo começou a tremer. Olhos Azuis ia se machucar hoje.

        Quase desejava que fosse a única caída sobre o cepo, que fosse a única a receber a chegada do chicote. Um estranho tentou feri-lo, e ele se defendeu do jeito que sempre desejou ter a força para fazer. Merecia ser elogiado, não disciplinado!

       A culpa por causa disso ia destruí-la.

        Olhos Azuis esquadrinhou a multidão uma segunda vez, lentamente, muito lentamente, retardando ainda mais... até que seu olhar finalmente descansou em cima dela. Os olhos de Vika arregalaram quando espanto e confusão a inundaram. Ele não podia vê-la. Não podia. Ninguém podia. Ela foi para o lado esquerdo, envolta em um manto negro como a noite e envolta por sombras.

        Jecis se moveu atrás dele.

        O olhar de Olhos Azuis se afastou dela, parando diante... da extraterrestre que Vika chamava de Kitten, que estava segurando as barras de sua jaula, sua expressão tensa com fúria. Ele deu-lhe um aceno de confiança.

       Ele trabalhou rápido. No circo há apenas dois dias e já estava namorando uma mulher.

        Uma faísca de ciúmes aqueceu o peito de Vika. Ciúme? Sério? Mas por quê?

        Olhos Azuis a desprezava, com certeza, e continuaria a desprezá-la até que o plano de fuga de Vika fosse aprovado ou até que ele morresse neste circo — o que viesse primeiro.

       Ela desviou os olhos, o olhar pegando Targon.

        — Matas. — ele chamou.

        Matas não teve nenhuma reação.

        O Targon tentou novamente.

        — Matas! Enfrente-me, covarde. Enfrente seu destino.

        Ainda nada de Matas.

        Havia muitos aplausos para distinguir uma só voz, ela supôs. Mais uma vez se perguntou por que Targon odiava Matas tão intensamente. Até onde sabia, os dois nunca conversaram.

       Jecis levantou o chicote no ar. Nova vibração após nova vibração reverberou nela, e embora não pudesse ouvir nada, suspeitava que os aplausos agora eram obscenos. Um músculo saltou na mandíbula de Olhos Azuis.

       Sorrindo, Jecis entregou o primeiro golpe.

        Manchas de sangue e pele voaram em todas as direções. Vika se encolheu e apertou a mão na boca para parar de ofegar. Mas Olhos Azuis nunca vacilou — e ele estava mais uma vez olhando para ela.

        — Sinto muito. — ela murmurou. — Sinto tanto.

        Um segundo golpe foi dado.

        Mais uma vez Olhos Azuis permaneceu como estava, e novamente Vika vacilou. Como Jecis podia fazer isso? Como alguém podia ser tão cruel?

        Um terceiro golpe choveu. Mais sangue e pele pulverizou e Vika sabia que o dano às pobres costas de Olhos Azuis era profundo, além da necessidade de pontos. Na verdade não haveria mais nada a dar pontos.

       Com o quarto golpe os joelhos de Vika cederam e ela caiu no chão. Ninguém merecia esse tipo de tratamento. Ninguém, além do próprio portador do chicote. Lágrimas se agruparam em seus olhos, enevoando sua visão. Como podia deixar seu pai fazer isso?

        Vergonha se juntou à culpa e bateu nela com a mesma força com que o chicote continuou a bater em Olhos Azuis. Ela devia fazer alguma coisa. Devia tentar deter seu pai, sem importar as consequências para si mesma.

       Mas ela fez? Não. Era fraca. Patética. Uma covarde.

        Você deve apenas acabar com tudo, uma voz sussurrou dentro de sua cabeça.

        Outra voz, ela percebeu com espanto. Não era a mesma voz doce de antes, mas uma mais profunda, ela sugeria... se suicidar?

Você vai se sentir melhor. Todo mundo vai se sentir melhor. O que não é o amor sobre a ideia?

       Alfinetadas do mal roçaram sua pele — o mal que reconheceu em Jecis, Matas e no outro mundo — e a verdade bateu nela. Ela realmente não estava louca. As vozes eram reais.

        Uma a procurou para ajudá-la.

        A outra a procurou para destruí-la.

        Bem, ela sofreu muito para desistir agora. Tudo o que tinha a fazer era manter o plano, continuando a guardar e vender os presentes que seu pai lhe dava — e parar a hemorragia de dinheiro por comprar secretamente sutilezas para os extraterrestres. Um ano, lembrou a si mesma.

        A esperança é boba. E se seus tesouros forem roubados antes de vendê-los — se o seu dinheiro for roubado depois de vendê-los? E se o seu pai descobrir seu plano? Você realmente quer que ele tenha a satisfação de te matar?

        — Eu não estou te ouvindo. — ela sussurrou. — Vá embora.

        Surpreendentemente, o crepitar do mal desapareceu no ar.

        Outro golpe foi entregue a Olhos Azuis, interrompendo a conversa mais estranha que ela já teve. Outro recuar de sua parte. Esperava que fosse o fim de tudo... mas não, de novo e de novo o chicote desceu, até Olhos Azuis ter recebido quinze golpes agonizantes.

        Um Jecis ofegante derrubou a arma e esfregou as mãos manchadas de sangue juntas em um gesto de um trabalho bem feito. Ele olhou Olhos Azuis, mas franziu o cenho. Na verdade cada pessoa no meio da multidão estava franzindo a testa, Vika percebeu. Estavam olhando para Olhos Azuis, como se ele fosse um monstro usando uma tiara: apavorados, contudo, impressionados.

Por quê?

        — Qualquer um que ajudá-lo, morre. — Jecis anunciou. — E se achar uma forma de lutar e correr livre — acrescentou ele, pisoteando para chutar Olhos Azuis no estômago —, irei até ele. Há um rastreador em suas algemas. Vou tê-lo de volta na jaula pela manhã, e você vai desejar que as chicotadas o tivessem matado. Ah, e se tentar remover as algemas, vai ativar as lâminas-serras e elas vão retirar suas mãos. — Ele riu cruelmente. — Um pouco de precaução de segurança que eu tinha instalado.

        Olhos Azuis nem sequer olhou em sua direção.

        Jecis se moveu rapidamente ao redor.

        — Você e você. — ele rosnou para dois de seus maiores colaboradores. — Fiquem aqui o resto da noite e o vigiem.

        Com isso, ele caminhou para longe com um sorridente Matas próximo em seus calcanhares. A maior parte dos outros seguiam atrás dele. Havia alguns retardatários que ficaram para trás para avaliar a reação de Olhos Azuis às ameaças. Ele permaneceu como estava, sua expressão em branco, o olhar fixo em Vika.

       Felizmente a fadiga de um longo dia de trabalho duro e do conhecimento que mais um dia como este surgiria no horizonte logo levou a melhor sobre os retardatários e cambalearam, deixando apenas os guardas. Um estava postado na extremidade leste do círculo dos cativos e um estava postado no extremo oeste. Vika olhou para os extraterrestres nas jaulas. A maioria estava segurando as barras como Kitten, e algumas de suas expressões estavam cheias de horror, enquanto alguns estavam cheios de alívio. Se ajudasse Olhos Azuis e soasse um alerta, só traria mais problemas sobre sua cabeça. Ou suas costas.

       Mas por que eles soariam um alerta? Jecis voltaria e poderia muito bem dirigir sua ira contra os prisioneiros. Mas, novamente, se eles permanecessem em silêncio, ele saberia que testemunharam suas ações e os puniria amanhã. Ou talvez estaria muito zangado com Vika para considerar parte dos extraterrestres.

       De qualquer maneira, ela não se preocuparia com seu pai agora. Não podia. Muito bem que ela conhecia a dor de ser espancada, em seguida ser deixada sozinha e sofrendo, desesperada por alguém, qualquer um, para ajudar. Abandonar Olhos Azuis não era uma opção.

       Coração trovejando no peito, Vika esgueirou-se atrás do primeiro guarda. Engolindo em seco, virou para trás o capuz de seu manto e bateu no ombro dele. Ele se virou para encará-la, tenso.

        — Vika. — disse ele, sua expressão endurecendo. Ele olhou para trás, como se esperasse que o pai dela atacasse. — O que está fazendo aqui?

       Ela forçou um sorriso, levantou a mão... aquela com o anel que tinha comprado apenas algumas semanas atrás, esperando um momento como este... e soprou. Tinha que funcionar. Um pó fino e escuro aspergiu no rosto do homem, os mesmos medicamentos usados por Jecis ​​para sedar os extraterrestres. Ele tossiu, sua pele ruborizou com a cor e ela recuou para a escuridão. Um momento depois seus joelhos entraram em colapso. Ele bateu no chão já inconsciente.

       — Bernard? — O outro guarda disse, caminhando adiante. Ele alcançou seu amigo e se agachou — e Vika estava lá, agachando-se também, soprando pó em sua face. Ele também tossiu e caiu, aterrissando em cima do seu amigo.

        Ela esperou, apenas para ter certeza. Ambos os homens permaneceram no local.

        Uma pequena medida de alegria explodiu através dela. Tinha funcionado!

        Em uma hora eles despertariam e se lembrariam do que tinha feito, mas pensava que não diriam a Jecis. O mais provável é que preferissem sofrer castigo por dormir no trabalho do que lançar a culpa sobre ela e sofrer um destino ainda pior.

       Vika correu para frente, caindo de joelhos no momento em que chegou ao lado de Olhos Azuis. Sua cabeça estava voltada para ela, seu rosto descansando no cepo, sua mandíbula apertada. Seus olhos estavam fechados, a longa extensão de seus cílios ventilando para fora. Manchas de sangue espirraram em seu rosto. Incapaz de se conter, estendeu a mão e ternamente tirou o cabelo da testa dele.

       Ele encontrou seu olhar.

        — O que você está fazendo, Vika?

        — Ajudando.

        — Não faça isso. Não estou em um clima agradável.

        Uma onda de calor subiu dentro dela, atravessando-a. Ele pensou em protegê-la de si mesmo. Era tão bonito quanto forte, ela percebeu, e odiava vê-lo trazido para baixo por esse mal.

        Eu deveria ter detido isso. Deveria ter feito alguma coisa. Bem, estava fazendo alguma coisa agora.

                — Eu preciso. — Tão rapidamente como era capaz, soltou as algemas do toco. Apesar do fato de que Olhos Azuis ainda estava acordado, ele caiu para frente, sem fazer nenhum esforço em parar o seu ímpeto.

        Ela o pegou antes dele bater no chão. Era muito grande e pesado demais para ela arrastá-lo de volta à sua jaula. Além disso, suas costas... oh, doce misericórdia. Bile queimou um caminho até seu peito. De perto podia ver pedaços expostos de músculo, tecido dizimado e sangue vazando por milhares de pequenos rios.

       As lágrimas voltaram aos seus olhos.

        — Eu sinto muito. — ela sussurrou. Deixou-o cair ao chão deslizando da melhor maneira que pôde, sentiu uma vibração e suspeitou que ele gemeu. Foi sua primeira reação ao que tinha acontecido. Ou a ação o machucou mais do que as chicotadas ou ele não se importava em revelar sua dor para ela.        

Ela se endireitou com a intenção de correr para a beira da clareira onde guardou alimentos e remédios e outros suprimentos, sabendo que teria que alimentar os prisioneiros e medicar Olhos Azuis rapidamente, sem avisar ninguém no acampamento. Mas antes que pudesse dar um único passo, dedos surpreendentemente fortes enrolaram em seu tornozelo.

       — Já vou voltar. — disse ela, apontando para onde precisava ir.

        Olhos Azuis manteve sua aderência. Sombras e luz de fogo dourado cintilaram em seu rosto, entrelaçando com a luz escura, e enquanto podia ver que seus lábios se moviam, não conseguia distinguir as palavras.

        — Deixe-me ir. — disse ela, e rezou para não ter gritado. — Você está fraco demais para fazer qualquer coisa comigo, e além disso, tenho remédios lá.

       Desta vez, seu aperto se intensificou.

        — Não estou muito fraco. E avisei que estou no limite.

        Seu olhar correu pela área, mas ninguém saltou sobre ela. Uma bênção, certamente, que ela não receberia novamente. Incapaz de pensar em qualquer outra opção, Vika sentou-se. Ainda assim, Olhos Azuis manteve seu domínio sobre o tornozelo, forçando-a a se enrolar em uma bola para encontrar seus olhos.

       Ela colocou uma mão em seu pescoço, e disse:

        — O que você quer de mim?

        — Eu disse o que queria.

        Só agora ou antes? Decidida a enfrentá-lo, ela disse:

        — Deixe-me adivinhar. Liberdade. Bem, muito ruim. Você precisa de atendimento médico em primeiro lugar.

        Ele franziu o cenho para ela.

       Grande. Ela se perdeu por uma milha?

        — Deixe-me ir ou vou lutar para me livrar e deixá-lo aqui. E antes que pense que permitirei que rasteje para a senhora liberdade, sei que vou bater em você em primeiro lugar. Meu pai não estava mentindo. Há um rastreador nos punhos e será melhor você ficar bem aqui.

       — E quanto a você? Ele vai bater em você por me ajudar?

        — Isso não é da sua conta.

        Olhos Azuis disse alguma coisa, mas seus lábios estavam se movendo muito rapidamente para ela acompanhar.

        Inquieta, ela engoliu em seco.

        — Alguém já te disse que, uh, seu sotaque é muito acentuado para traduzir? — Uma pergunta que não era mentira, não é verdade?

        A carranca voltou, mais escura do que antes.

        — Você está olhando para minha boca. Pare.

        Seu olhar se moveu.

        — Vou parar no momento em que me deixar ir. Que tal?

        A intensidade de seu olhar de cristal se deteve na prisão dela antes de perceber que sua boca estava novamente em movimento. Ela olhou para baixo, e ele apertou os lábios. Frustrada, ela olhou para cima... e mais uma vez ele começou a mover sua boca. Ela olhou para baixo.

        Ele fez uma pausa, e pouco antes dela bater no peito de frustração, ele disse:

        — Você é surda, não é?

        Seu corpo inteiro enrijeceu. Como ele adivinhou? Ninguém nunca imaginou. E se os outros prisioneiros ouviram?

        Ela rangeu agudamente.

        — Espero que se sinta bobo dizendo isso. — Uma evasão não era uma mentira, embora não fosse exatamente a verdade. Mas muitas pessoas tentaram tirar proveito dela quando sabiam de sua enfermidade. — Eu tenho os remédios ali. Deixe-me ir e eu vou fazer você se sentir melhor.

       — Por quê? — Ele exigiu.

        Seu olhar virou-se tempo suficiente para pegar a linha de suas pálpebras, a cor escurecendo seu rosto.

        — Por quê?

        — Por que você quer me ajudar?

       Porque, de fato.

        — Você está machucado.

        — E daí?

        Antes que ela pudesse responder, não que soubesse o que dizer, seu olhar deslizou para longe dela, por cima do ombro. Temendo que um dos artistas tivesse se deparado com eles, ela girou pronta para saltar e lançar algum tipo de ameaça. Mas ninguém saltou sobre ela.

       Alguns segundos se passaram antes que se acalmasse o suficiente para ondular para cima e encontrar o olhar de Olhos Azuis.

        — Devo me apressar. — disse ela. — Ou você deseja outras chicotadas... e assistir algumas sendo entregues a mim?

        Um momento se passou sem qualquer reação dele, e ela pensou que certamente ninguém mais no mundo poderia esconder suas emoções como este homem. Então, para sua surpresa, ele a soltou, sem mais argumentos. Ela pulou para ficar em pé e correu para seus suprimentos.

 

       Grandes ondas de dor assolaram todo o corpo de Solo, mas só conseguia pensar na surdez de Vika. E ela era surda. Disso não tinha dúvidas. Ela observava sua boca constantemente, e quando superou sua suposição de que ela apenas fitava com horror os seus dentes grandes e afiados, percebeu que ela não ouviu nada do que disse. Do contrário nunca se aproximaria dele.

        — Venha mais perto que mastigo o seu rosto. — ele disse com os dentes trincados de raiva e vergonha, e embora as palavras fossem mentirosas, ela não saberia disso.

        E ela se aproximou.

        — Solte meus braços para que eu quebre seu pescoço.

        Outra mentira, mas ela soltou seus braços.

        — Está implorando por isso, não está? — disse na hora. — Bem, agora é minha e nunca vou deixar que escape. Quer misericórdia, terá que ganhá-la.

        Ela não exibiu medo algum.

        Então lembrou do jeito que ela observava a boca do pai e dos outros extraterrestres. Do jeito que parecia tão facilmente desconectada do resto do mundo. Do jeito que os homens do seu pai se sentiam confortáveis o bastante para discutir sobre ela bem atrás dela.

        E sério, a deficiência explicava tantas outras coisas. Ela tinha que pôr a mão na garganta para julgar o volume da voz, mas nem mesmo isso garantia uma precisão de cem por cento. Ela sussurrava em momentos inapropriados e gritava em outros.

        Solo não tinha certeza do que pensar da revelação… ou do fato dela não ser tão distante quanto queria que acreditasse. Ela não gostou de vê-lo sendo chicoteado; a ideia o atingiu no mesmo instante que o chicote, surpreendendo-o e lhe dando forças. A cada chicotada Vika tremia com simpatia. Lágrimas de um pesar genuíno encheram seus olhos, lágrimas grossas rolando pelas suas bochechas. Seus joelhos eventualmente cederam.

        Ela se tornou então sua âncora.

        Um risonho Dr. E o abandonou.

        X também o abandonou depois de dar um suspiro, embora primeiro tivesse prometido ajudar assim que sua força retornasse. Ajuda que Solo teria recusado se estivesse só. X já tinha falhado com ele. Não seria bobo o suficiente para confiar novamente na criatura.

        Vika, entretanto, ficou firme, mantendo seu olhar sem vacilar para que nunca ficasse sozinho e nunca tivesse que se concentrar em outra pessoa, nunca tivesse que considerar o que estava acontecendo.

        Que enigma que era. Não conseguia entendê-la.

        E não teria a chance naquela noite, tinha certeza. Teve que soltá-la e ela saiu em disparada, o que provavelmente foi uma coisa boa. No momento estava pendurado por uma corda bem gasta, pronto para cair no mais perigoso do seu ser a qualquer tempo. Não mentiu sobre isso. Sua mente estava confusa pela dor sempre crescente que tinha recusado a demonstrar sentir para Jecis, nem no menor dos graus. Preferia se banhar em ácido e se secar com cacos de vidro do que satisfazer os desejos doentios de um homem tão louco. Michael o treinou para se comportar da maneira certa.

        — Voltei. — disse Vika.

        Algo completamente chocante. Ela manteve sua palavra sem precisar ser forçada.

        Ele queria gritar quando ela tratou dos seus ferimentos com gentileza, mas outra vez permaneceu quieto. Não queria que parasse. Precisava daquilo. E gostava da ideia de suas mãos nele, sem levar em conta quais circunstâncias.

        — Vai se curar. — ela sussurrou. — Tem que se curar.

        Quando o som daquela voz doce passou pela sua mente, foi capaz de fingir que estava na sua fazenda, em seu quarto. Na sua cama. Eles tinham acabado de fazer amor e estava exausto. Ela tinha adorado cada momento, e agora não conseguia parar de tocá-lo, tinha que conseguir mais dele. Mas quando seus companheiros de cativeiro se admiraram, gritando aceleradas perguntas e ordens para ele, foi puxado de volta ao presente.

        — Por que está aí parado e deitado? — Mec suspirou com avidez. — Mate-a!

        Ele sabia que ela era surda?

        — Bob! Fred! Aqui! — Criss sacudiu a porta da jaula. — Supere sua dor e nos liberte!

        — Agora é a nossa chance. — rosnou Bree Lian. — Faça alguma coisa!

        Não. Eles não sabiam. Eles teriam dito para usar essa deficiência contra ela. No momento eles simplesmente se encontravam desesperados para que fizesse alguma coisa.

        — Por que vocês todos não calam a boca? — retrucou o Targon. — Deixem a garota ajudar o cara.

        Apoio. Do Targon. Milagre dos milagres.

        Vika olhou por cima do ombro.

        — Silêncio. — disse e se voltou para Solo.

        Solo franziu o cenho. Talvez estivesse errado sobre ela. Talvez — não. Não havia erro. Ela apenas tinha seguido a direção do seu olhar. Não tinha ideia que as criaturas estiveram mandando acabar com sua vida. Sua expressão era mais triste do que raivosa, culpada ao invés de temerosa.

        Deveria ouvir seus companheiros e agir. Deveria lutar para sair dali. Agora. Deveria fazer tudo que se provasse necessário.

        Não era avesso a machucar uma garota surda e indefesa para se salvar… era? Ontem mesmo teria dito que não, não e mil vezes não. Mas duas vezes já Vika cuidou dele com delicadeza, e só sua mãe fizera uma coisa assim na vida. Vika lhe deu comida e ganhou uma surra por isso.

        Sua mãe esperaria que ajudasse a garota que o ajudava.

        Sim, ele era avesso a machucar uma garota surda e indefesa. A sua garota surda.

        Usando cada pedacinho de sua força, Solo se colocou de cócoras. Qualquer que fosse a pomada que ela passou em seus ferimentos foi absorvida e felizmente entorpeceu a dor. Ela deslizou um braço debaixo do seu peito e exerceu pressão, ajudando-o a se endireitar.

        — Consegue se levantar? — perguntou suavemente.

Ele abriu a boca para responder, percebeu que ela não conseguia ver seus lábios naquele ângulo e resolveu assentir com a cabeça. Conseguiu se colocar de pé e tentou não contrair os músculos de dor. Vika empurrou-o na direção da jaula; ele resistiu.

— Não vou voltar para lá. — disse. Novo plano. Partiria com Vika e Kitten, encontraria um lugar para se esconder, um que Jecis não conseguisse rastrear, mesmo se houvesse um GPS nas algemas e esperaria até se curar. Entraria em contato com Michael. Juntos eles voltariam ali e destruiriam o circo. Alguns aspectos do plano sempre seriam imutáveis. Com Vika, ele… não tinha mais certeza do que faria com ela.

Depois que o circo fosse destruído, iria atrás de John e Blue se eles estivessem desaparecidos.

— Por favor. — ela disse, puxando seu braço. A única palavra saiu repleta de medo.

— Não vou machucar você nem permitir que seu pai a machuque também. — Ele passou o braço em volta da cintura dela e forçou-a a ficar ao seu lado.

Ela lutou para se libertar, mas ele só fez segurá-la com mais força. Ela lutou mais um pouco, mas surpreendentemente teve o cuidado de não encostar em seus cortes.

— Não faça isso. — ela pediu.

— Preciso.

Enquanto os extraterrestres o chamavam — me salve primeiro, não, eu, por favor — ela finalmente ficou quieta.

— Ok — disse ela com um suspiro desanimado —, já chega. Eu oficialmente jogo a toalha.

Hã, o quê? Talvez fossem os seus machucados, mas ele não entendeu mesmo o que ela acabou de dizer.

— Jogar… a toalha? — Talvez.

Ela deve não ter notado suas palavras, porque saiu falando em disparada.

— Dou o quanto sou capaz de dar, e sacrifico o que posso, às vezes me ponho em perigo, e mesmo assim ninguém pensa duas vezes antes de estragar ainda mais a minha vida. Então tudo bem, tanto faz. Vou com você. Não posso impedi-lo de fugir sem usar seus ferimentos contra você.

— Obrigado. — ele disse, e falou sério.

— Mas quando for capturado, e será — ela continuou —, terei certeza de mencionar como me imobilizou. O último homem que colocou a mão em mim a perdeu. Jecis a decepou. E depois, para realmente provar do que era capaz, decepou a outra. E nem vou mencionar o que ele fará comigo!

— Quanta gentileza sua. — Enquanto ela falava, continuou prendendo-a com força e a levou em direção à jaula de Kitten. — Mas não farão nada a você. Garantirei isso.

Dos extraterrestres, as ordens para que os libertassem viraram apelos de ajuda. Tão altos quanto estavam, outro guarda rapidamente apareceria. Ele não queria perder o precioso tempo com Vika libertando-os. Muito embora… se Jecis e companhia descobrissem o sequestro de Vika, eles teriam outras pessoas para perseguirem, outras pistas para seguirem, dando a Solo mais do tempo que precisava.

Crueldade de sua parte? Talvez. Mas também compaixão. Eles ficariam livres. Se a situação fosse reversa, iria querer ser libertado por qualquer que fosse a razão, mesmo aquela.

Ele mudou de direção, aproximando-se da jaula mais próxima a ele.

— Obrigada, Olhos Azuis. — disse Vika, seu tom cheio de alívio. Ela deve ter assumido que ele tinha intenção de voltar para sua própria prisão. — Obrigada. Não vai se arrepender disso. Eu tenho planos e se você conseguir esperar só uns...

— Meu nome é Solo. — ele interferiu, garantindo que ela estivesse vendo seus lábios. Ela tinha planos? Que tipo de planos? E gostava de homens com os olhos azuis?

Aquela última pergunta o irritou profundamente. Por que se importava?

— Solo. — Um sorriso levantando os cantos dos seus lábios. — É um prazer te conhecer.

Ele teria jurado que o sol tinha acabado de irromper um escudo de nuvens cinzentas, iluminando todo o rosto dela. Ele queria que ela sorrisse todos os segundos de todos os dias… mas seu leve divertimento morreu de maneira rápida no momento em que parou na frente da jaula do Mec.

Pavor irradiou dela.

— Vai libertar todos eles, não vai?

— Sim.

— Confie em mim. Não vai querer fazer isso. Por favor!

— Preciso fazer. — ele repetiu.

Embora ela puxasse e puxasse repetidas vezes, ele a forçou a colocar o polegar na fechadura. No momento em que as duas metades se abriram, Mec saiu. Tão cheio de alegria como estava, a pele brilhando em um azul brilhante. Extraterrestre tolo. Nunca seria capaz de se esconder assim.

— Vocês estão todos mortos. — disse Vika, sem expressar emoção. — Você, eu, todos eles. Estamos tão mortos como… todas as coisas que estão mortas.

— Eu a protegerei. — Ele tropeçou e quase não conseguiu se endireitar. Mas falava a sério com todas as fibras de seu ser. Queria que ficasse a salvo. Agora e sem... Ah, não. Não chegaria a esse ponto. Ele a queria a salvo. Por enquanto.

Ele parou, fitou os olhos dela e disse outra vez.

— Eu te protegerei. — dessa vez acrescentou. — Eu juro.

Ela não se abalou, como qualquer outra pessoa teria feito e isso o surpreendeu. Talvez fosse por não conseguir ouvir sua voz, raciocinou. Talvez fosse porque ele estava drogado e em uma condição fraca. Tanto faz. Não importava realmente, ele supôs. Um juramento era um juramento, e ele havia acabado de se comprometer com ela.

Um suspirou a deixou e ela assentiu.

— Certo. Confiarei em você.

Solo a levou até a próxima jaula e dessa vez ela não ofereceu resistência alguma.

— Ei, você. Pare. — um guarda gritou à distância, e Solo não tinha certeza se a ordem foi desferida a ele ou ao Mec.

De qualquer forma não havia tempo de soltar os outros. Kitten, sim, mas não os outros. Teria que voltar para resgatá-los. Ele arrastou Vika até a jaula da garota e ela colocou o polegar no identificador da fechadura sem qualquer solicitação sua.

Kitten correu para o seu lado.

— Vamos logo fazer o que temos que fazer.

— Cale-se. — disse Vika, uma qualidade desesperada na voz. — Por favor. Não queremos que nos alcancem.

— Cale a boca você! — rosnou Kitten, indo até ela. — Melhor ainda, continue falando. Eu a calarei eu mesma por ter permitido o que aconteceu comigo.

Solo tirou Vika do alcance de Kitten.

— Não a ameace. — Solo disse à extraterrestre. Não tinha certeza do que faria se repetisse aquilo outra vez. Só sabia que a raiva já crescia dentro de si... uma raiva incontrolável. Uma que, quando liberada, seria impossível de ser contida.

— Tudo bem. — murmurou Kitten. — Mas tenho um problema com ela, e um dia vou resolvê-lo.

— Não sem a minha permissão. — Permissão que nunca daria.

Com a mandíbula apertada, ele saiu andando aos tropeços com as mulheres uma de cada lado, o resto dos extraterrestres xingando-o… xingamentos que diminuíam de volume, não só por estarem se afastando, mas porque a força das emoções dos extraterrestres estava ativando as algemas e fazendo com que as drogas se derramassem em seus corpos. Eles caíam rapidamente, como se Solo mesmo os eliminasse um por um.

Ele apressou o passo, tentando manter as próprias emoções sob controle.

Só conseguiu andar mais uns metros antes de um homem atarracado aparecer em um canto.

— Matas! — Solo ouviu o Targon gritar. — Vou matar você! Vou matar você, mas com tanto gosto!

Não só um grito, o nome foi vomitado, como se fosse um palavrão terrível. Barras chacoalharam. O chão tremeu.

Matas. Finalmente se encontravam. Ele esteve presente no açoitamento. Foi quem passou o chicote a Jecis. O que deu um sorriso largo com cada chicotada.

Mas não havia tempo para uma apresentação apropriada. Quando Solo mudou de direção, o homem chegou nele. Fumaça negra se erguia dos ombros dele em espirais grossos e em forma de serpente. Mal, Solo sabia. Devido a tantos criminosos que tinha mirado ao passar dos anos, já tinha visto aquele tipo de poder maligno. Dentes levemente tortos brilharam em uma careta quando o homem tirou uma arma da cintura da calça e apertou o gatilho.

Solo se virou para que bloqueasse completamente as mulheres com o corpo. Uma dor nova explodiu em seu ombro, e sua visão instantaneamente escureceu.

Vika soltou um grito de fazer gelar o sangue que se juntou à repetição de falhei de novo, falhei de novo, falhei de novo, que de repente ecoou em sua mente. Ele desmoronou sem conseguir mais se manter em pé, e por ainda segurar tanto Vika quanto Kitten, as duas caíram com ele. Ele conseguiu colocar as duas debaixo de si, ainda determinado a usar o corpo como escudo caso o homem resolvesse abrir fogo.

Ele... não soube de mais nada, pois a escuridão comeu-o vivo.

Ou morto igual a todas as coisas que estavam mortas.

 

       Matas atirou em Solo. Matas tinha mesmo atirado em Solo. Sangue respingou em Vika quando Solo caiu… derramando em cima dela quando ele chegou ao chão e colocou-a debaixo do corpo. Para protegê-la. Ela. Sua inimiga. Exatamente como havia prometido. Kitten estava lutando debaixo dele, tentando se libertar, mas ele não facilitava.

        Estava morto?

        Por favor, não esteja morto.

        Com a mão tremend, Vika estendeu a mão para checar o pulso de Solo. Estava fraco, mas existia. Ele vivia. Alívio a bombardeou — bem quando Matas puxou-a debaixo do peso maciço do corpo de Solo.

        Olhando-a de cima com raiva, ele disparou.

        — Remova a bala da besta. Não queremos que a principal atração do seu pai morra, queremos?

        — N-não.

        Ele chutou Solo na lateral do corpo, fazendo-o girar nas costas destroçadas e libertar Kitten.

        A Teran pulou, preparada para sair em disparada, mas astuto como era Matas conseguiu agarrá-la pela cintura antes que desse mais um passo.

        — Me solte! — rosnou Kitten.

        — Depois de me divertir um pouquinho com você.

        — Tenha cuidado com ela. — Vika ordenou, seu sangue gelando. — Por favor. Ela está sob meus cuidados e sou responsável por ela.

        Kitten parou, olhando Vika com os olhos arregalados em choque.

        Os olhos de Matas ficaram gélidos e calculistas, como se Vika estivesse dado exatamente o que queria.

        — Vai ficar me devendo uma. — ele disse, então guiou uma protestante Kitten para sua respectiva jaula.

        Vika tropeçou em busca dos suprimentos médicos que trouxe para cuidar de Solo depois do açoitamento. Ela voltou e, embora sua mão tremesse substancialmente mais, conseguiu fazer como Matas havia ordenado.

        O peito de Solo estava mais vermelho do que bronze, com um buraco do tamanho de uma moeda de vinte e cinco centavos bem acima do coração. Lágrimas escorriam por suas bochechas, borrando a imagem dele. Quanto um homem conseguia suportar em um só dia antes que morresse? Perguntou a si mesma ao envolver o peito inteiro dele em gaze.

        — Já está bom. — disse Matas. Embora fosse bastante forte para carregar Solo, optou por não fazê-lo, arrastando o extraterrestre até a prisão e arruinando o pouco bem que Vika fez por suas costas e peito.

        Sinto tanto, ela pensou, lutando para não soluçar. A noite não deveria ter acabado assim.

        Olhos escuros a prenderam onde estava, zombando do seu pesar.

        — Está feliz consigo mesma?

        — Não.

        — Ótimo. Seu pai quer falar com você. — Matas a agarrou pelo pulso e puxou-a para fora da clareira.

        Rápido demais, o trailer de Jecis apareceu. Seu pai esperava na porta e indicou que entrasse. Ela não ofereceu protesto, mas chegou a parar, incapaz de dar outro passo sozinha. Seus pés simplesmente estavam muito pesados.

        Matas a levantou e levou-a para dentro. Para mascarar seu sentimento crescente de medo, ela olhou em volta do lar que não mais trazia nenhum aspecto que lembrasse a presença de sua mãe. Como todos os outros veículos do circo, o trailer tinha paredes de metal; múltiplos cadeados alinhavam a abertura da única porta. Não havia janelas.

        Contudo, diferente dos outros —com exceção do seu— aquele ostentava móveis novíssimos. Havia uma poltrona reclinável, um sofá de couro, uma televisão de projetor e imagens holográficas de Audra dançando em cada canto. Travesseiros de variados tons estavam espalhados ao redor de uma lareira falsa, formando uma pequena alcova que seria bonita se não fosse pelo tapete de pele de urso posicionado à sua frente. Um tapete cortesia de Zoey.

        Sim, Jecis havia tirado a pele do precioso urso de Vika. Na verdade ele deu um “bom uso” a todos os seus amados animais ao invés de vendê-los. Um “presente” para Vika. As penas de avestruz de Sammie enfeitaram chapéus e adornos de um grupo de artistas. Dobi, o tigre e Righty, o macaco foram empalhados e exibidos na tenda principal. Guz, a zebra, Angie, o cavalo, Gabby, o camelo, e Barney, a lhama, foram imersos em algum tipo de metal alienígena e se transformaram em “cavalinhos” de um carrossel. Mini, o elefante, teve as entranhas retiradas e também foi imerso no mesmo metal, servindo agora como um recipiente de enzima entre os dois banheiros públicos do circo, onde as pessoas podiam lavar as mãos.

        Vika nem conseguia pensar no que Jecis fez com One Day.

        Além da sala de estar, havia uma cama tamanho queen. Audra no momento estava deitada no meio dela, as cobertas enfeitadas com joias ao seu redor. Sorrindo, ela bebia de um copo de conhaque. Uma das aranhas gravadas em seu braço começou a se mover, rastejando cada vez mais alto, até finalmente descansar em seu ombro.

        As tatuagens no corpo de Audra ganharam vida alguns meses atrás, depois que começou suas aulas com Matas.

        Audra odiava Vika e gostava de assistir seus castigos. Mas também, Vika meio que merecia esse ódio. Audra, Vika e a amiga delas, Dolly, cresceram juntas, inseparáveis, irmãs de todas as formas que importavam até a mãe de Vika morrer e Jecis começar a exigir todo o tempo que Vika possuía.

        Ficaremos juntos para sempre, eu e você. Você nunca me abandonará. Sou o único em que poderá confiar. O único que alguma vez a amará. Nunca esqueça.

        A cada chance que tinha Vika escapava para passar tempo com suas duas garotas favoritas. As três estavam brincando com os animais, rindo de maneira histérica dos barulhos que Zoey fazia quando cochilava quando Dolly acidentalmente fechou a porta da jaula em cima da mão de Vika.

        Jecis descobriu e ficou furioso, dizendo que a punição tinha que se adequar ao crime. Dolly havia machucado a mão de Vika, e, portanto, Jecis removeu a de Dolly. Quando os pais da garota protestaram, Jecis expulsou toda a família.

        Foi então que Vika chamou Audra de nomes terríveis e até a esbofeteou na esperança de mandá-la embora e salvá-la da ira de Jecis. Olhando para trás, ela sabia que fizera a coisa errada.

        Não havia como desfazer o passado, sabia disso, mas depois procurou-a para recompensá-la pelo que fez e se desculpar. Audra recusou-se a perdoá-la.

        Matas colocou Vika em uma cadeira na frente da quitinete do trailer. Ele esfregou as costas de dois dedos debaixo do seu queixo e sorriu de maneira convencida. Então saiu, a porta batendo com força atrás dele.

        Ele atirou em Solo. Simplesmente atirou com tanta facilidade como se o extraterrestre fosse o prato principal do jantar, e agora tinha a coragem de sorrir para mim?

        Solo passaria daquela noite?

        Ela encontraria seu corpo sem vida pela manhã, moscas e formigas cobrindo-o?

        Seria ao menos capaz de andar pela manhã?

        Jecis foi para o outro lado da bancada e levou tempo cortando e acendendo um charuto. Mesmo com a grossa pedra de granito entre eles, fumaça negra a rodeou e teve que prender a respiração para se impedir de tossir.

        Jecis se inclinou para frente e fechou os dedos duros em sua mandíbula para manter sua atenção nele. Ele estreitou os olhos o máximo possível.

        — Nada a me dizer? — ele começou.

        — Eu… sinto muito. — ela disse, trocando de posição na cadeira. Era a verdade. Sentia muito por ele ser o homem que era, por Solo estar ali, por tudo que aconteceu que não pôde evitar.

        — Não estou falando de hoje à noite, estou falando dessa manhã. — ele disse, surpreendendo-a com a calma que tinha na voz. Ele a soltou.

        — Eu... eu... — Não tinha resposta que incitasse aquele sentimento de calma.

        A única salvação era que não desafiou a autoridade dele na frente de testemunhas. Do jeito que o circo funcionava, Jecis é quem dava as cartas e a ninguém era permitido questioná-lo. Jamais. Qualquer um que verbalizasse alguma objeção — homem ou mulher — acabaria lutando com Jecis na frente de todos os membros de sua família, e se transformando em um bom exemplo. Se essa pessoa sobrevivesse, ela e toda sua família seria expulsa. A não ser que tivesse uma mulher ou filha bonita, claro. Elas podiam ficar para casar com outros homens.

        — Gosta de Matas, Vika? — ele perguntou de forma casual. Casual até demais.

        Espere. O que?

        — Não. — Ela sacudiu a cabeça de maneira violenta.

        — Ele me disse que você já se entregou a ele.

        Um ultraje a invadiu, fazendo com que disparasse de forma estúpida.

        — Mentira dele! Juro que é mentira. — Ela nunca esteve com um homem, e para ser sincera, nunca sentiu desejo algum de mudar esse fato.

        Até Solo. Até que o beijasse.

        Mas mesmo assim, não teria feito nada. Transar significava dividir uma parte de si com outra pessoa, unir seu corpo ao dela… talvez até mesmo sua alma. Sexo era uma vulnerabilidade absoluta, só outra forma de um homem dominar uma mulher.

        Não, obrigada.

        — Não há razão para negar o que aconteceu. — disse Jecis.

        — Mas....

        — Devo admitir que fiquei chateado no começo. Contudo, depois de pensar um pouco, acho que gosto da ideia de ter netos.

        O oxigênio congelou em seus pulmões. Isso tinha que ser uma armadilha. Havia gritado com seu pai mais cedo, empurrou e foi até a clareira sem permissão. Novamente! Ainda assim ele falava de netos?

        Uma tragada do charuto, uma nuvem de fumaça, e por um momento, só um momento, ela viu uma máscara descer sobre as feições dele. Uma com ossos bem proeminentes, olhos vermelhos e dentes parecidos com presas.

        — Matas tem razão. — ele disse. — Você tem tempo demais disponível, e esse tempo a coloca em problemas. — Seu tom derramava irritação. — Só para que saiba, o Mec já foi encontrado. Matas nos deixou para cuidar dele.

        Uma maré de remorso se juntou à raiva de Vika, mas ela de algum modo conseguiu manter a expressão neutra. Não posso demonstrar reação. Em termos circences, “cuidar” de uma pessoa significava “torturar e matar”.

        Pobre Arco-Íris. Ele a tinha insultado mais do que os outros, e até a atormentou mais do que todos os extraterrestres juntos, mas admirava seu espírito. Não importava o que faziam, sua força nunca se esvaía.

        — O que será feito com o outro? — ela perguntou, e não foi muito capaz de ocultar suas emoções dessa vez. Havia um tremor em sua voz. — O novato?

        Ele apertou os lábios com nojo, e disse:

        — Ele levou um tiro. Acho que já é punição suficiente, não acha?

        — Sim. — Obrigada, obrigada, obrigada. — É bondoso de sua parte. Papai.

        A área em volta dos olhos dele suavizou.

        — Pela manhã, farei com que Matas remova a jaula do Mec até que encontrem um substituto. — Ele colocou o charuto no cinzeiro, o olhar afiando como uma lâmina. — Agora, vamos falar sobre o que aconteceu essa noite.

        Todo músculo em seu corpo ficou tenso. Ele ia perguntar como Solo chegou até o Mec, e por que ela falhou em gritar por ajuda, e não tinha respostas para dar. Não uma que fosse satisfazê-lo.

        — Lembra o que aconteceu quando deixou o circo muitos anos atrás? — ele perguntou.

        Outro sim saiu de sua boca.

        Isso foi poucos meses depois que seu pai comprara os “candidatos perfeitos para o seu zoológico”. Naquela época, ela e Mara tinham se tornado amigas, e ela quis tanto que a garota fosse feliz. Mara, que desesperadamente sentia saudades do seu marido. Mara, cuja barriga grávida crescia a cada dia.

        Vika se ligou a ela à primeira vista realmente, a mulher de aparência frágil fazendo lembrar tanto de si mesma. Mara tinha dito que assim que estivesse livre, Vika poderia viver com ela, que seu marido era um guerreiro poderoso e que iria protegê-la.

        Vika havia libertado Mara e todos os outros — mas Mara a abandonou, sem jamais aparecer no lugar em que marcaram. E depois Jecis encontrou Vika e o resto da sua coleção de espécimes vivos, todos menos Mara, no passar de uma semana.

        Eles foram mortos.

        Ela levou uma surra.

        Mas apesar de ter perdido a audição naquela noite, ficou feliz ao vê-lo. Havia um muro escuro e perigoso lá fora, um para o qual não estava preparada. Um que quase a devorara e cuspira seus ossos.

        Não tinha proteção, dinheiro e ninguém que soubesse quem era seu pai, então ninguém sabia que deveria temer sua fúria. Tinha andado pelas ruas implorando por comida e dinheiro. Homens tinham chamado-a de nomes terríveis e tentaram arrastá-la para becos desertos. Teve que se esconder atrás de latas de lixo. Medo do vasto desconhecido atormentara sua mente constantemente e, bem, na época foi demais para suportar.

        Tudo o que conhecia era a vida que levava dentro do circo. Na época, viajavam de cidade em cidade com os trailers. Ficavam em cada localidade por duas semanas, os primeiros dias usavam para fazer a divulgação, Audra e as outras moças atraentes indo até o centro da cidade para espalhar a notícia do circo e atrair os homens para ele. Depois disso os espetáculos começavam.

        Sempre havia vigias nas estradas, e se a polícia fosse avistada, eles a paravam. Se as autoridades não podiam ser compradas, os artistas arrumavam a maior parte possível dos equipamentos e partiam em direção à próxima cidade.

        Agora Jecis tinha outro método de viagem. Um que Vika desprezava. Um que ela nunca mais deveria ter que suportar assim que deixasse aquele lugar. E quando estivesse estabilizada em sua nova vida e certa de que não poderia ser encontrada, até ajudaria a polícia a caçar seu pai e fechar o circo de uma vez por todas.

        — E quer deixar o circo outra vez? — ele perguntou com a voz sedosa.

        — Não quero deixar o circo. — ela disse. Mais uma vez, isso era verdade. Ela queria ficar. Por enquanto. Assim que tivesse dinheiro suficiente… assim que encontrasse a chave das algemas sua resposta mudaria.

        — Acha justo que aquele extraterrestre feio que alimenta, aquele que vigiou enquanto os humanos estavam por perto, irá tomar conta de você assim que sair de sua jaula?

        Ele sabia que ela violou as regras uma segunda vez. Ela engoliu em seco.

        Solo tomará conta de você agora. Ele irá protegê-la de verdade.

        A voz penetrou sua mente e ela ofegou. Era a voz daquela manhã. A do bom. Do gentil.

        — O quê? — exigiu seu pai.

        — Eu… eu…

        — Esqueça. Eu te fiz uma pergunta. Acha que o extraterrestre cuidará de você? — insistiu seu pai.

        Ela… achava, percebeu. Ele cuidaria, sim, dela. Ao menos por um tempo. Afinal, ele usou o próprio corpo como escudo para proteger o seu. Um homem disposto a fazer isso não era um homem que jogaria uma garota indefesa numa cova de crocodilos. Mas não era isso o que Jecis queria ouvir.

        — Ele é um prisioneiro, papai. — disse. — Não pode cuidar de ninguém.

        Mais uma vez, a palavra “papai” surtiu efeito. A expressão dele ficou mais suave e ele não percebeu que ela não respondeu a sua pergunta.

        — Ninguém irá amá-la como eu amo. Ninguém cuidará de você como eu. Não é verdade?

        Ela assentiu de um modo quase imperceptível. Não, ninguém mais a “amaria” daquele jeito. Isso ela garantiria.

        Apaziguado ele sentou em uma cadeira e pegou o charuto.

        — Ótimo. Então percebe que o extraterrestre muito em breve iria assassiná-la a sangue frio depois que saísse daqui, então não há razão para discutir mais esse assunto.

        Antes que o alívio tivesse o tempo necessário para invadi-la...

        —Também não haveria mais castigo! — ele acrescentou — Agora, tratemos do próximo.

        Ela varreu a mente, tentando descobrir o que ele abordaria, mas não restava nada.

        — Matas. — ele disse.

        E ela grunhiu.

        — Ele quer casar com você.

        Ela entrelaçou os dedos, esperando não retorcer a camisa e revelar a profundidade da sua repentina agitação.

        — Isso é péssimo, porque não quero me casar com ele.

        — Ele a tratará bem. Garantirei isso.

        Aquilo parecia — não, era uma aprovação.

        — Está mesmo considerando isso? — Ela ofegou.

        — Estou. Ele me deu a palavra de que nunca a machucará e que ficará para sempre aqui no circo com você. Comigo.

        Pontos negros piscaram em sua visão. Um nó cresceu em sua garganta, ameaçando cortar seu suprimento de ar. Todos os seus belos planos começavam a serem destruídos à sua volta. Seu pai mudava a própria composição de sua existência, tentando reescrever o futuro que ela mapeou para si mesma.

        Não se preocupe, disse a voz. O mal não vencerá no final.

        Não se preocupar? Como podia parar de se preocupar?

        Audra saiu do quarto e caminhou até a quitinete. Ela se serviu de outra dose, soprou uma leva de fogo no topo e mordiscou uma bolacha água e sal quando as chamas morreram, seu quadril balançando no ritmo de uma música que Vika jamais ouviria.

        Audra sorriu quando percebeu que Vika a observava e disse.

        — Pode muito bem aceitar a oferta de Matas. Ninguém mais vai te querer.

        Jecis se endireitou no assento e bateu o punho com força na bancada, chacoalhando o cinzeiro.

        — Qualquer um será um sortudo de tê-la. Ela é a filha de um campeão e dará à luz filhos fortes. O problema é encontrar um homem digno dela.

        Um homem que ele pudesse controlar, era o que queria dizer. Um homem que a manteria ali, ao seu alcance, pelo resto de sua triste vida. Um homem que ocuparia seu tempo com uma gravidez atrás da outra, mantendo-a ocupada demais para se meter em “problemas”.

        — Não. — disse com a voz rasgada. — Não aceitarei.

        Uma luz traiçoeira brilhou nos olhos de Jecis — uma que ela reconhecia. Perigo estava próximo.

        — Eu quero isso, minha querida garotinha, portanto fará o que mando. Audra irá ajudá-la a planejar o casamento.

        — Não. — ela repetiu, a boca tão seca que sua língua parecia um pedaço de lixa. Se Jecis insistisse em percorrer esse caminho, teria que fugir mais cedo do que o planejado, antes que pudesse economizar dinheiro suficiente, antes que encontrasse a chave das algemas. Mas iria embora, sem dúvida.

        Lentamente, seu pai se levantou. Ele apoiou as palmas no tampo da mesa e se inclinou em sua direção.

        — Você se casará com ele com um sorriso no rosto, Vika, ou darei seus tesouros a Audra e darei o trato dos animais a outra pessoa. Serei forçado a demonstrar meu desprazer com relação a você… inúmeras vezes. Você entende?

 

       Os dias seguintes passaram em um borrão para Solo. Ele devia ter se recuperado mais rápido, e não estava certo se as drogas nadando por seu sistema eram o problema, se X ainda não podia alimentá-lo forte, ou se o chicote foi atado com veneno e seus sentidos estavam muito entorpecidos para perceber. Qualquer que fosse a razão, ele permaneceu fraco.

       Não era a debilidade que o atormentava, entretanto. Era a memória de seu fracasso. Ele tentou escapar, esteve muito perto de ter sucesso, mas “tão perto” não era bom o suficiente.

       Ele nunca arruinou antes um trabalho de forma tão sublime.

       Pelo menos enão estava morto como o Mec.

       O pensamento não o confortava como deveria. A culpa o enchia toda vez que recordava os gritos do Mec por clemência, que veio só com o nascer do sol. No meio do silêncio Solo assistiu um Matas satisfeito arrastar o corpo sem brilho e inanimado para longe.

       Solo caiu adormecido, só para acordar e perceber que sua jaula foi removida da clareira e colocada na frente do trailer de Jecis. Uma monstruosidade, se alguma vez viu uma. Uma caveira e ossos cruzados foram pintados do lado, olhando fixamente para ele. Um cubículo gigante estirado acima do banco do motorista e passageiro, e a barriga era quase muito gorda para a estrada.

       Ele teria preferido algo menor, mais rápido e mais elegante, mas não havia nenhum outro trailer bloqueando a frente deste aqui, então a saída seria fácil. Ele podia levar Kitten e Vika pra longe, sem problemas.

       Sim. Ele tinha um novo plano.

       Mas o primeiro obstáculo ainda não mudou: sair desta jaula.

       A maior parte do tempo que Jecis entrou ou deixou a área, não deu a Solo nenhuma atenção. De vez em quando ele parava e olhava fixamente, dizendo coisas tipo:

        — Eu sou senhor e mestre aqui, e ainda quebrarei você. É só esperar.

       Audra ficou no trailer a noite toda. Os dois mal se falavam, lutavam, faziam sexo, então lutavam um pouco mais. Jecis nunca tinha medo de usar força física, mas deve ter evitado o rosto da garota, porque ela nunca aparecia com contusões visíveis.

       Ele não estava certo o que teria feito se ouvisse Jecis batendo em Vika.

       Vika, a contradição. Ela saiu das entranhas do desalmado Jecis, e ainda assim era amável. Ela ajudou Solo, embora ouvisse Jecis ordenar a ela para ficar longe, colocando-se em perigo.

       Perigo. De seu próprio pai. As coisas não deveriam ser assim. Especialmente com uma fêmea como ela prejudicada pela surdez, incapaz de ouvir sua destruição vindo, e tão minúscula quanto uma princesa fada, incapaz de resistir a muito abuso antes de quebrar.

       Mesmo o pensamento de um único golpe a qualquer parte de seu corpo enchia Solo com umas das mais sombrias iras que ele já experimentou.

       Ele queria, precisava, conversar com ela. Podia ajudá-la, e ela podia ajudá-lo. Podia ser sua maior aliada — ele a queria como sua maior aliada. Mas, embora ela tivesse visitado três vezes por dia, nunca o olhava para ler seus lábios.

       Toda manhã ela aparecia poucos minutos depois da partida de Jecis como se estivesse escondida em algum lugar perto, observando e esperando. Ela retornava à tarde, embora nunca na mesma hora, e então novamente à noite. Ela dava comida e água para Solo, e até trapos e spray antisséptico para ele se limpar, mas não falava uma palavra.

       Tantas vezes Solo quase agarrou seu braço. Se ela não conversasse com ele, não conseguiria pedir que o ajudasse. Se não pudesse conseguir que o ajudasse, teria que forçá-la. Teria que remover seu dedo com suas presas e garras, como havia planejado a primeira vez que a encontrou. Então podia roubar o reboque e a levaria para um hospital, onde o dedo poderia ser reimplantado. Mas... nunca esqueceria a imagem de seu sangue escorrendo de seu braço quando ela apertasse a ferida em seu peito. Podia nunca esquecer o horror de ouvi-la gritar de dor. Podia nunca esquecer a ideia de que ela iria chorar.

       Oh, se ela chorasse ele seria um caso perdido.

       Estava aborrecido consigo mesmo. A liberdade devia vir antes de qualquer coisa, especialmente uma mulher em parte responsável por suas circunstâncias. No entanto, ele aceitou dois fatos surpreendentes. Com ou sem promessa, não poderia riscar e tinha que incluir “manter Vika protegida de todos os outros” em seus planos.

       — Sentindo-se melhor, eu vejo. — uma voz feminina disse, empurrando-o para fora de sua cabeça. — Você está até sentado como um menino grande. Deve estar tão orgulhoso.

       Ele enfocou no aqui e agora. Audra estava escorada no canto de sua jaula. Ela vestia um top negro como sutiã, com lantejoulas multicoloridas costuradas ao longo das extremidades, uma mistura de amarelo, azul, verde e vermelho. Aquelas mesmas lantejoulas eram coladas sobre seus ombros nus e abaixo em seus braços, ao longo dela.

       Uma das tatuagens de aranha moveu-se de dentro do cotovelo para o pulso.

       Tatuagens temporárias, então. Entretanto nunca viu uma que parecesse tão real. Ele terminou seu estudo dela. Seu meio estava totalmente nu. Uma calcinha preta cobria o essencial, e um par de meias arrastão agarradas em suas pernas, entretanto elas só eram visíveis até seus joelhos. Botas de salto alto pareciam pintadas em suas panturrilhas e pés. Uma cauda de pavão subia por trás dela, abanando para cima e para baixo.

       Sua mancha de cabelo escuro, rosa — listrado estava preso em um coque, e sua maquiagem era tão espessa e selvagem que quase parecia não humana. Seus olhos pareciam desumanos. As lentes de contato eram verdes polvilhadas de glitter. Seus cílios eram da cor das penas, azuis, verdes e pretos, abanando acima de suas sobrancelhas e têmpora.

       — Ainda nada a dizer a mim? — Ela perguntou e chupou um pirulito.

       Uma das aranhas saltou da pele de suas pernas e desceu pelo seu braço.

       De jeito nenhum. De forma alguma. Tinha que ser as drogas bagunçando com sua mente. Ele tinha que estar alucinando.

        — O que você gostaria que eu dissesse?

       Lambida. Um sorriso lento e sensual enrolou os cantos de seus lábios, e ela zumbiu sua aprovação.

        — Por que você não começa com o quanto sou bonita? — lambida.

       Ela era bonita, não havia como negar, mas Solo sabia bem o quanto as aparências podiam ser enganosas. Ele nunca era de julgar pelo exterior.

       A primeira e única garota que ele teve um encontro vivia na fazenda ao lado dele. A simples, mas doce Abigail, de quem X gostou, mas não quis para ele até hoje, e quem Dr. E menosprezou e quis que a enterrasse em seu quintal. Abigail foi a primeira e única garota que já quis o homem e não o monstro. Ele a pegava toda vez que bebia demais, protegia-a toda vez quando saia à cidade de noite, e ajudava a subir sua janela do quarto sempre que ela escapava. Ela o beijou mil vezes, disse mil vezes obrigado, mas nunca deu a ele nada mais. Apesar disto, genuinamente parecia gostar dele, mas sempre quando estavam sozinhos.

       Um dia a indignação levou vantagem e ele deu a ela uma escolha. Tome tudo, o tempo todo, na frente de todo mundo ou não tenha nada dele. Ela chorou, implorou que permanecesse em sua vida, mas no fim ela esteve pouco disposta a mudar e então ele foi embora.

       Ele nunca olhou para trás.

       Em Vika ele pensaria pra sempre, suspeitou. Sua atração por ela queimava profundamente, inexoravelmente, e não só porque ela era requintada, a mais adorável fêmea que já viu. Novamente, a aparência pouco importava para ele, e teria gostado dela se fosse feia como, bem, um Allorian. Era o modo que ela o tratava. Como se ele importasse.

       O que ele faria com aquela garota?

       Não podia resolver seus problemas com o Dr. E e X, não que estivesse em condições de falar com qualquer um. Ambos os machos o abandonaram durante as chicotadas e só retornaram em momentos rápidos, desaparecendo no momento em que abriu a boca.

       — Bem? — Audra exigiu.

       — Eu não direi nada. — ele anunciou.

       Ela se endireitou, seu sorriso se transformando em uma carranca.

        — Eu vi você se transformar na besta mais feia viva e ainda pensa que é melhor que eu. Bem, porei você no seu lugar — ela disse suavemente, ferozmente —, bem debaixo de mim.

       Ela estendeu seu braço e a aranha realmente saltou de sua pele sobre uma das barras da jaula. Certo, não havia nenhum modo que fosse uma alucinação. Oito pernas rastejaram pelo metal, tap, tap, tocando como uma aranha.

       Dobradiças gritaram quando a porta para o reboque de Jecis abriu. O macho entrou na luz do dia. Audra inalou nitidamente e a aranha saltou de volta para seu braço.

       Algum tipo de magia negra estava trabalhando na garota. Agora que se concentrou, Solo podia sentir o crepitar disto no ar. Era o mesmo crepitar que Jecis e Matas emitiam, só que em um grau mais leve. Ele teria que permanecer em guarda perto dela.

       Franzindo a testa Jecis examinou a área. Ele observou Audra e sua carranca se intensificou. Ele pisou em direção à jaula.

       — O que você está fazendo? — Ele exigiu.

       Como Audra colou um sorriso sedutor no rosto e teceu uma mentira sobre Solo chamando-a e pedindo comida, Solo esquadrinhou a área. Barraca após barraca, outros reboques, mas nenhuma sugestão de Vika.

       Uma pedra bateu no seu ombro esquerdo e ele olhou pra baixo, assistindo como uma prata dentada rolou pelo chão de sua jaula.

       — Você está me escutando? Eu disse para não ousar falar com minha mulher novamente. — Jecis rosnou. Ele enrolou seus dedos em torno das barras e sacudiu o vagão inteiro. — Você me entendeu? Caso contrário vou matar você e enviar o que sobrar pra sua família.

       Solo levantou suas pestanas e encontrou o olhar do homem. Manteve sua expressão em branco, recusando-se a dar qualquer tipo de reação. Um dia escaparei. Um dia acabarei com seu reinado de terror.

        — Desculpe, mas não tenho família.

       Depois de um momento longo e agitado, Jecis disse:

        — Seus amigos, então.

       — O que faz você pensar que um homem como eu tem amigos?

       Jecis correu a língua por cima dos dentes.

        — Então deixaremos os cachorros terem você. Se quiserem. Eles gostam de sua carne tenra, e você parece podre.

       Solo apenas olhou.

       — Falando de comida — Jecis cuspiu —, você tem comido, não é Homem Besta, apesar de pedir à minha mulher um pedaço? Sua cor é muito boa para um homem faminto. Quem esteve te alimentando? Minha doce pequena Vika?

       — Provavelmente. — disse Audra. Ela passou o pirulito por cima dos seus lábios. — Eu a vi correndo por este lado ontem à noite.

       — Porque seu trailer é ao lado do meu, sua prostituta estúpida.

       Audra vacilou.

        — C-claro.

       Não tão valente na luz do dia e ele podia adivinhar por que. Jecis toleraria seu temperamento quando estavam a sós e não havia testemunha. Mas o homem não seria tão indulgente diante dos outros, quando todos os desafios à sua autoridade teriam de ser neutralizados do modo mais violento possível, e impedir os outros de pensar em se levantar contra ele.

       Mais do que isto, Solo conhecia seu tipo. Conhecia o tipo de Audra também. Jecis costumava oprimir e desprezar todo mundo. Audra queria ser algo diferente, alguém capaz de prender a atenção de um homem tão forte. Então ela agiu. No fim, porém, Jecis se cansaria dela e ela pagaria por todos seus crimes percebidos. Um homem tipo Jecis nunca esqueceria um erro.

       Um homem tipo Jecis, ainda que Solo fosse do mesmo modo.

       Ele massageou a parte de trás do pescoço. Não gostou da comparação. Mas não pensaria nisso agora. Uma revelação importante acabou de se revelar. O trailer de Vika era ao lado do de Jecis. Solo não podia ver nenhum sinal disto e só podia assumir que o seu era menor, obstruído. Ele podia roubar este, em vez do de seu pai. Uma generosidade de sua parte, deixando-a levar uma parte de sua vida, já que Solo nunca permitiria que ela retornasse.

       E por quanto tempo pretende ficar com ela?

       — Tudo que eu estava dizendo — Audra adicionou com um tremor — era que ela pode ter estado alimentando-o para enraivecer você e enviar um castigo para si mesma, assim demorando seu casamento.

       Vika ia se casar? Com quem? Ele quase rosnou.

       Jecis, que estava olhando-o atentamente, fez uma careta.

        — Finalmente peguei você, como prometido, mas não por uma razão que aprovo. Você não deve cobiçar minha filha, escravo. Ela está fora dos limites para gente como você, é muito boa. Se olhar novamente para ela removerei seus olhos. Se conversar novamente com ela, removerei sua língua.

       Não se escondendo da intimidação, Solo disse:

        — Tente. — Ele faria tudo em seu poder para se assegurar que Jecis afundasse com ele. — Vamos descobrir o que acontece.

       As narinas do homem queimaram em choque e raiva.

        — Talvez eu vá. Talvez até devolva você para o homem que te vendeu para mim. Ele não é tão bom quanto eu sou.

       — Quem me vendeu? — Gregory Star, ele soube, mas queria ouvir o nome de Jecis.

       Sorrindo Jecis agarrou Audra pelo antebraço e disse:

        — Vamos, mulher, e deixe-o imaginar.

       No momento que eles contornaram o canto, X materializou-se no ombro de Solo.

       — Onde você estava? Solo exigiu.

       — Me recuperando.

       — Todo esse tempo? — Ele estava fixo em seus pés, pelo menos sua cor era forte.

       Silêncio.

       — Você estava se enfraquecendo, mas estava tentando me curar, não estava? — Ele perguntou, finalmente percebendo.

       X não confirmou nem negou.

       Mas Solo sabia que ele fez isto.

        — Obrigado. — ele disse.

       Uma pausa. Um aceno com a cabeça.

       — Mas ainda estou bravo com você. — ele adicionou. — Não salvou a menina quando teve a chance. — Ele planejou gritar, mas não podia levar-se a fazê-lo. — Você me disse que teve sucesso.

       — Tão pouca fé. — o pequeno macho falou. — Eu não menti. Ela está viva, não está?

       — Ela estava ferida.

       — Estava, sim, antes de você me pedir para ajudar. Fiz exatamente o que disse que eu faria. Salvei-a de dano adicional.

       Um bom ponto, mas um que não quis reconhecer. Ele então teria que admitir sua própria falha, que desperdiçou minutos preciosos debatendo o que fazer.

       Um longo suspiro de sofrimento escovou acima de sua orelha.

       Era isso, só um suspiro, mas Solo de repente quis cortar seu próprio coração e apresentá-lo em um prato. Oh, como abominava os suspiros de X. Ele sempre podia sentir a decepção, a desaprovação e a dor, como se tivesse quebrado uma promessa que nunca fez. Como se estivesse destruindo algo precioso, algo que não podia nem ver!

       Talvez estivesse. A mãe de Solo o criou para ser um homem melhor do que era.

       Para Mary Elizabeth Judah, toda vida era preciosa e um presente de Deus para ser entesourado. Solo não entesourou X exatamente, não é? Não devolveu o que lhe foi dado.

       Até quando Solo foi mais retorcido, Mary Elizabeth tratou-o com carinho e generosidade. Ela cozinhou suas refeições favoritas. Arrepiou seu cabelo e disse o quanto ele era bonito. Ela deixava pequenas notas pela casa com palavras positivas de encorajamento. "Você é forte e corajoso". E, "Você é adorado". Uma boa mulher, sua mãe.

       Talvez ela soubesse sobre a profissão de Solo; talvez não. Eles nunca conversaram sobre isto. Tudo que ele fez, foi por uma boa causa. Nunca fez perguntas, mas então, nunca quis saber. Ele confiou em Michael. Removia escória como Jecis Lukas das ruas.

       Mas ficou mais frio ao longo dos anos, não é? Não era o homem que sua mãe criou.

       — Obrigado. — ele disse novamente, desta vez com mais coração. — Pelo que fez por Vika e por mim.

       — Não há de quê. — X disse com um sorriso feliz.

       — Ugh. Material sentimental. — Dr. E disse, nunca muito atrás. Ele estava curvado como se seus ombros fossem muito pesados para levantar. — Não somos mulheres. Vamos homem, nesta festa, e matar alguma coisa.

       Movimento à sua esquerda. Solo virou-se na hora certa para observar Vika rastejar por trás de um dos pneus enormes do trailer. Ela escovou a sujeira de suas mãos e joelhos e verificou a área para ver se tinha intrometidos.

       — Ela estava escutando da única maneira que pode. — X disse. — Através de vibrações.

       Seu olhar cor de ameixa se fixou em Solo, e cada músculo de seu corpo esticou, apertando para baixo em seus ossos. A conversa constante de seus companheiros desapareceu enquanto bebia de sua visão. Ela usava um top e calças do mesmo tom escuro do pneu, e parecia como se tivesse saído da revista "A motoqueira da semana — Edição Especial. Seu cabelo longo e claro estava sensualmente bagunçado e suas bochechas rosadas.

       Ela andou para trás, pra longe dele, finalmente desaparecendo pelo canto.

       Ele quase gritou uma negação. Calma. Firme. Ela voltaria. Ele diria a ela sobre a ameaça de seu pai e avaliaria sua reação. Não perguntaria a ela sobre o casamento. Ela iria...

       Retornou alguns minutos mais tarde com comida, fazendo a tensão escoar dele. Ela mudou a roupa para branco e agora parecia como se tivesse saído de uma nuvem. Ela escovou seu cabelo, os fios brilhando como ouro derretido. Ela escovou os dentes também. Podia cheirar a hortelã de sua pasta de dentes. Ela lançou um saco de aniagem pelas barras e sobre seu colo, o odor de torradas com manteiga e salsichas feitas na hora flutuando no seu nariz.

       Ela alcançou um bolso da calça para retirar um trapo. Ele esperou. Quando ela esticou seu braço para lançar pelas barras, ele saltou em ação, saindo da outra extremidade da jaula para frente, estendendo seu próprio braço.

       Contato. Seus dedos bloquearam ao redor do seu pulso.

       Ela ofegou. Suas pálpebras agitaram para cima e seu olhar caiu sobre ele.

       — Deixe-me ir. — ela exigiu.

       Quando a suavidade de sua pele deu prazer a ele? Quando o calor que ela emitiu se misturou com o dele próprio?

        — Ou o que?

       Lábios em forma de coração franzidos no mais adorável beicinho.

        — Ou você perderá suas partes masculinas.

       Algo frio apertou contra sua coxa e ele olhou pra baixo. Ela posicionou uma lâmina na bainha de sua tanga.

       X bateu palmas pela sua ousadia.

       Dr. E rosnou.

       — Movimento bom. — Solo disse, estranhamente orgulhoso dela.

       Ela suspirou um pouco abatida, e disse.

        — Duvido que eu realmente possa seguir com minha ameaça. Eu realmente só levo a arma para assustar as pessoas.

       Oh, querida. Isto não é algo que você admita para seu oponente.

       Tão inocente quanto parecia, entretanto, seus oponentes podiam provavelmente achar sua falta de intento malicioso.

       Ele a soltou.

        — Eu só queria sua atenção.

       — Bem, você tem. — Ela pareceu ao lado e embainhou a arma. — Mas é muito perigoso para conversarmos.

       — Saberei se alguém aparecer deste lado. Você terá bastante tempo para se esconder.

       Silêncio enquanto ela ponderava seu pedido.

       — Eu prometo. — ele disse.

       Outro momento passou antes dela movimentar a cabeça.

       — Prometa. Prometa que fará.

        Ele não podia aguentar o pensamento de assistir ela ir embora novamente. Não ainda.

        — Só um pouco. Desde que seja seguro.

       Seu nariz franziu à medida que ela dizia.

        — Mas acabei de falar.

       — Eu quero as palavras. Por favor.

       — Por favor. Uau. Não acho que já ouvi essa palavra dos lábios de outra pessoa. Não sem um pedido para a liberdade, isto é. Mas certo. — ela disse. — Prometo. — Ele esperou por qualquer tipo de reação dela, mas novamente... ela não teve uma. Nada como um simples tremor. As palavras verdadeiramente não tinham ligação para ela?

       — Você vai se casar? — Ele não queria realmente perguntar, na realidade odiava-se por perguntar, mas ali estava ele. Não podia suportar isso. E não queria.

       — Não se eu puder evitar. — ela respondeu, levantando o queixo.

       — Diga-me, por quê?

       — Vou falar sobre qualquer coisa, menos isso. — ela disse.

       Fúria agora irradiava dela. Fúria e mais daquele medo que ele notou antes, misturada com uma quantia saudável de desespero e resignação.

       Muito bem.

        — Você está comendo? — perguntou. Ele sentiu a magreza de seu pulso, estava tão preocupado quanto escravizado.

       — Já que o voto não incluiu honestidade, direi sim.

       — Então você não está.

        Seus ombros caíram.

        — Estou. Um pouco. — admitiu naquela sua voz aveludada.

       — Coma mais. — Ele ergueu a bolsa que ela lançou nele. Durante seu pulo, caiu ao lado. Ele cavou dentro dela e achou o pão.

       — Eu ficarei bem. — ela disse. — Você precisa de nutrição.

       Ele ouviu a fome em sua voz e viu o modo que ela olhava o pão como se hipnotizada. Ela vinha dando a ele a comida de seu próprio prato, percebeu, provavelmente não querendo ser pega agarrando mais e anunciando seu propósito. Ele mal podia processar esta informação quando enfiou a torrada em sua boca. Só seus pais colocaram seu bem-estar acima do deles.

       Vika sacudiu sua cabeça, longos fios de seu cabelo dourado enrolado dançando ao redor dela. Quando isso falhou em dissuadi-lo, ela arqueou para trás.

        — Você primeiro. Está se recuperando de todos aqueles danos.

       — Estou mais recuperado do que você percebe.

       — Você é definitivamente mais forte, e definitivamente se cura rápido, mas ninguém...

       Ele girou.

       Ela ofegou com assombro.

        — Suas costas.

       Existiam algumas crostas permanecendo, algumas cicatrizes, mas diferente disto, a pele estava remendada.

       Ela estendeu a mão, traçando o dedo sobre um dos cumes. O toque era eletrizante e ele gemeu. Ele... ele... queria mais, queria aquele dedo por toda parte dele, em todos os lugares. Da mesma maneira suave, da mesma maneira gentil. Da mesma maneira terna.

       — Bem, ainda quero que você coma. — ela disse um pouco trêmula, como se a conexão a afetasse também.

       Ele se forçou a encará-la. Controle. Não estava certo quanto tempo eles estariam a sós e ela precisava comer. Mordeu um pedaço minúsculo do canto do pão, então uma vez mais colocou-o em sua boca, certificando-se que seus lábios encontraram o mesmo lugar que os dele.

       Uma atraente pequena mordida, revelando a sugestão mais nua de dentes.

       Uma ação tão inocente, ainda tão adorável para assistir.

       Cor floresceu brilhante em suas bochechas à medida que ela mastigava, engolindo.

       — Outro pedaço. — ele exigiu.

       Ela obedeceu.

       Ele gostava disto, percebeu. Gostava de alimentá-la e saber que estava ajudando-a, mesmo de uma maneira tão pequena.

        — Outra.

       — É tão bom. — ela disse, e reivindicou uma mordida maior.

       — Isto não é bom? — Dr. E zombou.

       Solo olhou acima dele, pretendendo dar a ele um olhar sombrio suficiente para mandá-lo fugindo de medo, mas a visão de Dr. E o atordoou. Em uma questão de segundos o homenzinho perdeu peso, suas bochechas ficaram cavadas, e sua pele pálida ficou ainda mais pálida que antes.

       — Você tem alguma ideia de como parece ridículo, empurrando sua mão gigante no rosto minúsculo dela? Por que não age como homem e remove seu dedo polegar, então fica livre? Huh, huh? É isso que quis no princípio, não é?

       — Não escute-o. — X disse, e olhou para Solo acima dele. — Seu único propósito é arruinar sua vida. Diga-me o que percebeu até agora.

       Onde Dr. E murchava, X florescia. Em questão de segundos ele ganhou peso nos músculos, suas bochechas preenchidas, sua pele agora ardendo brilhante. A felicidade de Solo estava fortalecendo X do modo que X fortaleceu-o todos estes anos? Isso era a mesma felicidade enfraquecendo Dr. E? Sim, percebeu um momento mais tarde. Era. E fazia sentido. Sua preocupação sempre causava o oposto.

       O quanto era estranho pensar que podia ter muito prazer em algo que nunca realmente experimentado antes, até com seus amados pais, para ele sempre parecia como se algo importante estivesse faltando em sua vida, enquanto preso em uma jaula. Mas estava.

       — Esta menina só trouxe dificuldade para sua porta. — Dr. E lamentou. — Como seria errado usá-la para escapar?

       — Machucar outra pessoa, não importa quem eles são ou o que fizeram, só para conseguir o que você quer — X respondeu —, é o que está errado.

       — Saia de seu pedestal!

       — Por que? A visão é melhor.

       — Cale-se. — Solo estalou.

       — Mas... — Dr. E começou.

       — Agora!

       Medo retornou aos olhos de ameixa de Vika, escurecendo o purpúreo para um negro doentio.

        — Se este é o modo que você vai agir, estou fora daqui!

       — Eu não estava falando com você, tem minha palavra. — apressou antes dela poder dar um único passo. Devo fazer melhor. Tão facilmente assustou esta mulher, entretanto ela imediatamente mexeu-se e emitiu algum tipo de ataque verbal. Ele gostou disso nela. Tinha coragem, e embora pudesse ser golpeada, nunca ficaria por baixo.

       — Bem, então, o que estava falando? — Ela exigiu. — Quero dizer, com quem estava falando?

       Como ele podia realmente responder isto?

        — Sinto muito por te surpreender. — ele disse e colocou a torrada em sua boca.

       Ela mastigou, engoliu e fez a mesma pergunta novamente.

       Ela partiria se ele continuasse a recusar?

        — E se eu disser que estava falando com um homem invisível? — Ele perguntou, espantado que tivesse admitido tanto. Estava em desvantagem suficiente, e nem mesmo Michael, John ou Blue sabiam sobre Dr. E e X.

       — Eu poderia acreditar em você. — ela respondeu e soou sincera.

       Chocante.

       E um alívio enorme. Estava contente por não tentar mentir. Eventualmente, até mesmo a menor mentira pegaria um homem, um emaranhado de espinhos que o deixariam cortado e sangrando. De fato, Solo sempre disse à sua mãe a verdade a respeito de tudo, até sobre a comida. Não por ser cruel, mas porque respeitava-a demais para alimentar uma mentira.

       Um pequeno sorriso ergueu os cantos da boca de Vika.

       Da mesma maneira que antes, o sorriso iluminou seu rosto inteiro. Ela parecia como se engolisse o sol. Seu coração batia contra suas costelas, seu sangue aquecia, e oh, lutou com o desejo de juntá-la em seus braços e segurá-la. Só segurá-la.

       — Acho que você é tão misterioso quanto eu. — ela disse, então deu outra mordida na torrada e gesticulou para ele com um pedaço. — Ou é adequado parafrasear tão misterioso quanto eu? De qualquer maneira, é sua vez.

       — Estou envergonhado por você. — Dr. E disse. — Você devia...

       — Ele disse que se calasse! — X subiu na orelha de Solo, pisando pela sua cabeça e saltou no seu ombro esquerdo. Agarrou o uma vez bonito loiro pela orelha e quando Dr. E ganiu, desapareceu.

       Eu devo àquele homem muito mais que outro agradecimento.

       E à menina, se fosse honesto. Solo deu uma mordida na torrada.

        — Aprecio tudo que fez por mim, Vika.

       Outro sorriso, este aqui não tão brilhante.

        — Gostaria de poder fazer mais.

       — Não quero que faça mais. Não quero que se arrisque ao meu lado novamente.

       Ela piscou rapidamente.

        — Você está tentando me proteger? A menina que não está vinculada por algemas?

       — Sim. Jurei que iria.

       — E sempre mantém suas promessas, você disse.

       — Sempre.

       O resto da tensão foi drenada dela, e ela disse:

        — Isto é muito doce de sua parte.

       Uma fêmea que se refere a ele como doce. Uma novidade que apreciou bastante. Mas ela não prometeu não se arriscar.

       — Então seu nome é realmente Solo? — Ela perguntou.

       — É Solomon, mas meus amigos me chamam Solo. — Ele devia ter dado ela o mesmo pseudônimo Bob Fred que deu a Criss, mas gostava da ideia de seu nome derramando daqueles lábios em forma de coração.

       — E você está bem comigo chamando você assim?

       — Sim. — Mais do que bem.

       — Embora não sejamos amigos?

       Ele movimentou a cabeça. Um homem mais preparado teria dito algo como — Nós somos amigos — ou — Adoraria ser seu amigo — mas as palavras teriam soado falsas vindo dele. Não queria realmente ser seu amigo. Queria usá-la... queria salvá-la... queria ficar com ela.

       Ela considerou cuidadosamente isto, acenou com a cabeça.

        — Muito bem. Solo.

       Realidade era muito melhor que suposição.

        — Sobre Audra. — ele disse e ela empalideceu. — O que sabe sobre suas tatuagens?

       Sua cabeça balançou para o lado, sua expressão resignada.

        — Ela tentou usar uma contra você, não é?

       — Sim.

       — Matas a ensinou um pouco sobre magia negra. Desde então as aranhas ganham vida e mordem quem ela deseja. E oh, é doloroso. Deixa você doente.

       — Você foi mordida?

       — Algumas vezes.

       Strike três, Audra.

        — Escute, você está em apuros. Seu pai suspeita que é você quem tem me alimentado.

       Seus joelhos se dobraram e ela teria desmoronado se ele não alcançasse e agarrasse a bainha de sua camiseta para segurá-la. O quanto ela era leve. O lado mais forte dela não seria sequer páreo para o lado mais fraco dele.

       — Será que nunca vou evitar ter uma fratura? — Ela perguntou com um tremor.

       Evitar uma...

        — Espera. — Você quer dizer pegar uma fratura.

       — Por que eu ia querer pegar uma fratura? Você pega uma bola. Você quebra ossos, casas e corações. E agora devo ir.

       Não ainda. Ele não estava pronto.

        — Liberte-me, Vika. — A única coisa que já implorou foi pelas vidas de seus pais adotivos, o que não chegou a lugar nenhum. Ainda assim, ele podia implorar por isto. — Deixe-me proteger você melhor.

       Sua boca abriu, fechou. Uma vez mais ela balançou sua cabeça.

        — Eu não posso.

       — Pode.

       — Não. Eu sinto muito. — ela disse, sacudindo sua cabeça com mais força e ênfase. — E eu sei, eu sei. Minha recusa significa que você voltará a ser um rude pequeno gigante...

       Uh, aquela expressão não fazia absolutamente nenhum sentido.

       — ... e começará a emitir ameaças de morte novamente, mas tenho que permanecer com o circo durante algum tempo mais. Eu só tenho que...

       — Por que? Jecis bate em você. Por que não o deixa antes dele ter uma chance de machucar você novamente?

       — Você não entende. Posso levar uma surra, eu posso, mas se partir antes de ter... logo antes — disse, parando de admitir algo que ela não queria que ele soubesse —, Jecis me achará e matará, como também aos extraterrestres.

       — Você é sua filha. — Sua preciosa. Sua amada, Solo lembrava, e teve que apertar os dentes para se impedir de amaldiçoar. — Ele não mataria você.

       Outro pequeno sorriso, este aqui triste nas extremidades.

        — Ele não iria querer. Espere. Retiro o que disse. Talvez ele o faria. Para Jecis, deixar o circo é uma traição e merece o castigo final.

       — Mas você quer? — Ele agarrou as barras. — Partir, quero dizer?

       Esperança reluziu em seus olhos e ela assentiu.

        — Quero.

       Sua própria sensação de esperança floresceu.

        — Um dia este circo será destruído. Jecis machucou muitas pessoas para não sair machucado. Essa é uma lei espiritual, e leis espirituais são sempre obrigadas. Quanto mais tempo você ficar, mais provável será pega na mira.

       — Um dia. — ela repetia ecoando.

       — Sim. Liberte-me, Vika, e esse dia pode ser hoje. Cuidarei dele. Ele nunca mais vai te machucar.

       Vergonha destruiu o que permanecia da esperança.

        — Não posso deixar você fazer isto.

       — Por que não? Você o ama? — Ele perguntou.

       — Quando ele é um homem do mal sem bondade alguma dentro dele?

       Isso não era exatamente uma resposta.

       — Não — ela disse finalmente —, mas ele também é meu pai. Não posso. Eu simplesmente não posso. E além disto, você teria que matar Matas também. Caso contrário ele viria atrás de nós e o mesmo destino nos aconteceria.

       Solo felizmente cuidaria de Matas.

       — E então depois destes dois homens estarem mortos, não terei nenhum meio de proteção — disse —, você me deixaria lá fora no mundo enorme e mau para cuidar de mim mesma sem dinheiro, impotente. Você não iria querer, eu sei. Posso dizer que você é um bom homem. Mas tem uma vida lá fora, uma que não inclui a filha do dono do jardim zoológico e você eventualmente me soltaria.

       — Não.

       — Você também condenaria os outros cativos à morte. — inseriu. — Eles seriam sacrificados simplesmente para me castigar.

       — Eu voltaria por eles.

       — Sim, mas faria isto a tempo? Não, você não pode garantir isto. — Ela girou sua cabeça, tentando terminar a conversa do único modo que podia.

       Solo prendeu-lhe o pulso, dando um aperto mais duro para chamar sua atenção para ele.

        — Deixarei sua família em paz, se é isso que você quer. — Ele os entregaria a Michael, e o resultado final seria o mesmo, mas ela não precisava saber disto. — Vou libertar os extraterrestres e te levarei comigo, e você nunca terá que se defender sozinha. Eu tenho dinheiro. Posso cuidar de você pelo resto de sua vida, se assim o desejar.

       O olhar dela procurou suas feições.

        — Eu... eu realmente penso que você está falando sério. — disse.

       — Estou. E estou disposto a jurar.

       — Não faça. — ela disse com uma sacudida de sua cabeça. — Não quero você moralmente obrigado ou qualquer coisa assim, quando existe um problema enorme com seu plano.

       — E qual é? — disse, urgência montando duro. Ele teria uma solução, qualquer que fosse, e ela o libertaria. Ela teria que libertá-lo.

       — As algemas.

       — Elas realmente não são um problema. Tenho um amigo que pode removê-las. — John podia remover qualquer tipo de correntes. Se ainda estiver vivo. O pensamento o irritou. Ele estava. E isso era final.

       — Você poderá perder suas mãos.

       — Elas crescerão de volta.

       Um momento passou. Ela sacudiu sua cabeça, como se suas palavras fossem muito estranhas para manter dentro de sua cabeça.

        — A pergunta real é, você pode alcançar seu amigo antes de Jecis achar você? E os outros prisioneiros enquanto isso?

       Ele estalou sua mandíbula. Não tinha nenhuma solução imediata, o que significava que tinha que tentar outro ângulo.

        — Você gosta da vida que leva? Morando em trailers? Furtando comida para prisioneiros?

       Rosnando baixinho, ela bateu nas barras.

        — Não, mas tenho um plano. Um plano que funcionará melhor que o seu, obrigado. Só tenho que esperar pela hora perfeita.

       Ah. Seu plano misterioso.

        — Nunca haverá uma hora mais perfeita que este momento. Estou aqui. Estou disposto. — Ele espalhou seus braços para chamar sua atenção para a força conquistada a duras penas muito superior a do seu pai. — Farei o que disse. Salvarei você, protegerei você. E por que se importaria com os outros, afinal? Eles te odeiam.

       Seu queixo se levantou altivo.

        — Aqui está uma lição que você devia provavelmente aprender. Qualquer um que devolve ódio com ódio não é melhor que meu pai, e não negociarei um monstro por outro.

       Como ela ousava compará-lo a Jecis! Embora fez isso para si mesmo. Queria gritar com ela.

       Também queria abraçá-la.

       Definitivamente queria beijá-la.

       — Se você se afastar de mim, Vika, estará me condenando à morte. — Um prolongamento da verdade e definitivamente uma manipulação, mas por que não? Tudo mais se provou fútil.

       O rubor drenou de suas bochechas, deixando-a tão pálida quanto Dr. E.

        — Passo cada segundo procurando a chave das algemas. Tenho feito isso por anos, de fato. Eu as encontrarei. Libertarei você.

       O anúncio confundiu-o. Por anos, ela disse. Ela vem tentando ajudar os cativos por anos.

       Solo estendeu-se através das barras. Ela vacilou, mas não se afastou. Com qualquer outro, ele teria tomado tal reação pessoalmente e se enfurecido. Mas com ela, com sua passada, ele soube melhor e permitiu que ele mesmo localizasse a ponta do dedo ao longo da curva de sua mandíbula. Tão suave, tão lisa.

       Sua respiração acelerou... mas ela ainda não partiu.

       Não a convenceria a fazer o que ele queria. Sabia disso agora. Ela era muito teimosa, muito cega pelos méritos de seu plano. E existiam méritos. Só não havia suficiente.

       Ele teria que se juntar a ela. Por enquanto.

        — Estudei as algemas. A chave é provavelmente de metal com uma barriga esbelta e duas abas terminais. Procure por algo na forma da carta oito.

       — Eu vou. — disse rouca e lambeu os lábios. — E obrigada.

       Seu braço caiu para o lado. Se ele continuasse a tocar, cederia ao desejo de tocar sua nuca e puxá-la pra frente. Para roubar o ar de seus pulmões. Se isso acontecesse, pararia de escutar seu pai.

       Ela voltou para longe dele.

        — Este é nosso último dia na cidade. Depois do último show pararemos de trabalhar e partiremos. Jecis manterá você aqui, querendo-o perto durante sua primeira viagem. Voltarei pra você quando puder. — Uma risada nervosa escapou. — Se eu puder.

       Com aquela declaração secreta, ela girou e correu da área, jamais olhando para trás.

       — Por que... — ele começou, só para serrar seus lábios. Ela não podia ouvi-lo.

       Ele esmurrou as barras. Odiava seu cativeiro, sim, mas no fundo, uma parte dele odiava ver aquela mulher ir embora.

 

       Vika pesou suas opções. Seu pai suspeitava que ela tivesse alimentado Solo. Ele a questionaria, intimidaria e veria a verdade. Não haveria como esconder isso; nunca houve, e sabia daquilo antes de agir. Mas ainda foi incapaz de se impedir de ajudar o extraterrestre ferido. Inclusive agora, não era uma decisão que lamentasse. Ele a advertiu sobre o que a aguardava, apesar do fato que podia ter empacotado uma bolsa e deixando-o no pó.

       Eu devia tê-lo libertado.

       Mas... ela não quis ficar sem ele. De alguma maneira ele se tornou um porto seguro.

       Ele era tão bonito, mais bonito a cada dia que passava. E era tão doce para ela, tão maravilhosamente protetor.

       Constantemente se perguntava o que sentiria ao beijá-lo quando estivesse acordado, e então, ser beijada por ele. Porque ele a queria, não porque queria algo dela. De fato, perguntava-se isso durante toda sua conversa.

       Agora tinha que saber. Era uma necessidade.

       Ele era uma necessidade.

       Seu odor, seu olhar, seu toque, seu calor, os calos em suas mãos. Seu sorriso, sua carranca, sua genialidade, sua generosidade. Ela não esqueceu o fato que ele usou seu corpo como um escudo para salvá-la de uma bala já designada para ele.

       Tudo nele apelava para ela.

       Sim, ela devia ter dado sua liberdade — mas ainda estava contente que não fez. Não só por suas razões egoístas, mas porque ele estava em melhor situação aqui preso do que lá fora, sendo caçado por seu pai.

       Se ela pensasse, até por um segundo, que poderia com sucesso esconder-se de Jecis com aquelas algemas em seus pulsos, teria feito isto, teria arriscado. Mas não. Ele não podia. Ninguém podia.

       O melhor curso era ficar aqui, cuidar dos extraterrestres e tirar qualquer disciplina que seu pai resolvesse dar. Machucaria, humilharia, mas se Jecis batesse nela, o casamento teria que ser adiado para dar tempo de se recuperar. Tempo era tudo que precisava. Mas oh, sabendo o que teria que suportar causava um tremor de repulsa e medo que a balançava.

       Ela só... tinha que achar aquela chave. Pelo menos agora sabia o que procurar.

       Vika vestiu uma calça solta e macia e uma camiseta confortável, algo que pudesse relaxar enquanto sentia como se seus órgãos fossem nada além de polpa. Puxou suas botas mais confortáveis e pegou a faca que achou em uma caixa de quinquilharias favoritas da sua mãe alguns anos atrás, só para parar, sua atenção captou a beleza da arma.

       O cabo era esculpido de madrepérola e quando segurava contra a luz brilhava com todas as cores do arco-íris. A lâmina estava atualmente escondida, mas quando liberava era fina, prateada e afiada.

       Como algo tão adorável podia machucar tão absolutamente?

       Sua mãe costumava polir o metal com golpes amorosos, mas só quando Jecis estava ausente. Três semanas antes de sua morte ela olhou para Vika e sorriu um pouco loucamente. Um dia ele me empurrará muito longe, e eu o matarei. Nós já não teremos que ter medo novamente, não é, princesa?

       Um dia.

       Agora Vika riu sem humor. “Um dia” era a resposta pra tudo, não isto.

       — Como pôde me deixar com ele, mãe? — sussurrou. Ele só ficou pior ao longo dos anos, cada vez mais de seu coração apodrecendo e sua alma murchando. E a coisa verdadeiramente triste era que ele não tinha nenhuma ideia que se tornou um monstro. Ainda se considerava justo e equitativo. — Como pôde escolher um outro homem acima de mim?

       Com um suspiro Vika colocou a lâmina dentro do bolso.

       Sabedoria salvará você do caminho dos homens maus, e arma-se para a guerra é sábio.

       A voz a surpreendeu, e ela girou. Uma procura rápida provou que ainda estava sozinha, e sua espinha perdeu sua rigidez súbita. O alarme foi substituído por antecipação. Não um intruso, afinal, mas o retorno do bem... seja o que for que ele era.

       — Quem é você? — Ela perguntou. — O que é você?

       Da última vez ele a ignorou. Desta vez respondeu. Meu nome é X, e sou seu... ajudante.

        — Como um X que marca o lugar?

       Exatamente.

       — Como poderia me ajudar, X?

       Você me diz. Você me chamou.

       Uh, não. Não, não chamou.

        — Acho que eu lembraria de algo assim.

       Mas você não pensa que posso sentir seu tormento?

       Suas emoções eram tão fortes que estava projetando no outro reino?

        — Você mencionou guerra. — ela disse. — Você parece bom, gentil. Não devia ter um problema com o uso da força?

       Contra a maldade? De maneira alguma!

       Bom ponto. Mas...

        — Eu não quero guerra. — ela disse. — Quero paz. — Finalmente. Pelo menos uma vez.

       Como você acha que a paz é ganha?

       Guerra, mas... 

        — Como você acha que pessoas são perdidas?

       E você não está perdida agora?

       Seus movimentos estavam aos arrancos quando ancorou sua massa espessa de cabelo em um rabo-de-cavalo.

        — Estou viva.

       E gosta de sua vida?

       Solo perguntou a ela exatamente a mesma coisa.

        — O que posso fazer para mudar isto? Diga-me, por favor, porque estou certamente fazendo tudo que posso e não tendo nenhuma sorte.

       Confiança.

       — Quem?

       Silêncio.

       — Quem? — Ela exigiu.

       Novamente silêncio.

       Aborrecido por um fim tão abrupto para sua conversa, ela pisou fora do veículo. Atrás dela a porta fechou e bloqueou automaticamente.

       Ela deveria permanecer em seu trailer novamente hoje, mas queria lidar com seu pai ao invés de correr, e queria enfrentar. Esperar só tornaria as coisas piores.

       O sol estava brilhante, cintilante. Em uma hora o circo abriria. Nesse exato instante artistas se movimentavam, instalando enquanto tentavam trabalhar tudo que eles não precisariam. O dia seria apressado. E oh, Solo foi um choque. Quando o circo deixasse os subúrbios de Nova Atlanta, ele encontraria uma nova colheita inteira de monstros — e passaria a amar as barras que o contiveram.

       Não pense sobre isso agora. Poderia perder seu nervo.

       Vika correu para fora da área isolada onde os artistas viviam e os jogos e passeios. Primeiro ultrapassou a roda-gigante. Logo cada cesta giraria em círculos e de cabeça para baixo com um artista balançando da barra estirada através de cada carro. Nenhum dos protetores perceberiam que aqueles artistas estavam ancorados às barras com algemas coloridas e não estavam em qualquer perigo de voar para suas mortes.

       Logo a seguir passou pela montanha russa que dispararia em túneis artificiais decorados para se assemelhar a planetas diferentes, cada um repleto de luzes brilhantes, hologramas místicos e névoa fantasmagórica. Só que a névoa não estava lá para efeito visual, como os humanos sempre assumiram. Estava lá para efeito físico. Nas partículas estavam uma dose pequena de adrenalina, fazendo o passeio parecer mais excitante do que realmente era.

       Depois disto, os carros de para-choque surgiram. Um choque elétrico seria dado em cada motorista que batesse. Por alguma razão, as pessoas adoravam ver seus companheiros humanos empurrarem contra o choque, amavam ouvir as maldições e o rosnar, amavam ser perseguidos em alta velocidade, onde a vingança era eventualmente tomada.

       Ela virou a esquina e entrou no refeitório, o odor de pão e carnes fritas flutuando pelo ar, seguido por caramelo e algo cítrico. Uma vez que passou pelo pátio e serpenteou por outra esquina, os jogos de Jecis que costumavam ganhar mais dinheiro até que os extraterrestres que já perderam seu apelo, surgiram. Alfinete o Rabo no Wedlg, Rakan Piñata e a Prateleira de Encestar eram os favoritos da multidão atual.

       Lágrimas encheram os olhos da Vika. Dificilmente alguém descascava aquela camada de “diversão” para espiar no indigente submundo do circo. Os truques, as mentiras, a crueldade. As pessoas vinham, jogavam e riam. Assistiram as apresentações no Grande Vermelho e se maravilhavam, cativados por feitos que nenhum humano — ou extraterrestres — deviam ser capazes de fazer. E então partiam, totalmente ignorantes para as pessoas do mal que eles acabaram de sustentar.

       Finalmente a barraca principal surgiu, uma monstruosidade grande e vermelha que seu pai moldou depois dos velhos circos, e Vika tropeçou em seus próprios pés. Jecis estava do lado de dentro, preparando-se para o primeiro show.

       Confiança, X de repente disse. Liberte os Extraterrestres. Vá embora. Hoje. Agora. Neste minuto. Jamais olhe para trás.

       Como ela teria adorado fazer isso.

        — Se eu fizer, eles serão capturados novamente.

       Confiança.

       — Você não entende.

       Não entendo?

       Vika alcançou a entrada e olhou para o interior. Arquibancada cheia em cada centímetro do espaço que não foi usado pelo anel do centro, e claro, o espaço escondido nos fundos onde os artistas se trocavam. No anel havia refletores, polos, arames, redes, equipamento, pedregulhos, máquinas de fumaça.

       Quando menina, ela sonhava em ter um ato seu e deixar seu pai orgulhoso. Agora, estava contente que ele sempre negou seu pedido, com muito medo que alguém a visse, quisesse e a levasse, inclusive nas costas dele. Para ser encarada, julgada e criticada por estranhos? Não, obrigado.

       Uma mão dura fechou em seu antebraço e forçou-a a girar. Minis bombardeios de medo explodiram nela quando seu olhar caiu sobre Matas, que estava bem abaixo dela, um fogo ardente em seus olhos.

       — O que está fazendo aqui, Vika? Deveria estar em seu trailer.

       Não vou me rebaixar.

        — Você esqueceu a regra número um? — Ela se forçou a estalar.

       Um sorriso cruel ergueu os cantos de sua boca.

        — Nós estaremos casados no fim do mês, o que significa que suas regras estão fora e as minhas estão dentro. Quer saber a primeira? Faça o que eu digo, quando eu disser ou machuco você de maneiras que não pode nem imaginar. E não esqueça que me deve por deixar Kitten sair incólume.

       Ainda há tempo de partir, X disse.

       Posso lidar com isto, ela se assegurou, até seu sangue gelar nas veias.

        — Meu pai não ficará satisfeito. Ele não quer que você me maltrate.

       — Realmente acho que ele mudará de ideia quando vir isto. — Matas estendeu sua mão livre. Um dispositivo pequeno e preto descansava no centro de sua palma. Ele usou seu polegar para apertar o botão no centro e uma tela azul cristalizou-se no ar.

       Cores chamejaram dentro daquela tela, um retrato logo se formando.

       Vika dentro de jaula do Solo. Vika banhando-o. Vika, beijando-o.

       Vá embora, Vika. Saia agora! X pediu. Corra para Solo.

       Oh, doce misericórdia. Ela queria, realmente queria, mas tinha que conter esta situação primeiro. Se seu pai visse isto, Solo seria morto.

        — N-não mostre a ele, Matas. Por favor.

       Seus dedos fecharam acima do dispositivo e a tela desapareceu.

        — Escondi uma máquina fotográfica no jardim zoológico enquanto estava atrás. Tenho vigiado você, e sei que tem dado aos animais tratamento que eles nunca deveriam ter. Tratamento que seu pai pagou. Eu podia deixar aquele deslize, mas isto... não. Não posso.

       Seus joelhos tremeram, ameaçando ceder.

        — Eu vou embora. — ela ameaçou. — Se você contar a ele, eu partirei. Ajudarei as autoridades a acharem o circo e fecharem, e você acabaria sem trabalho.

       Vika, por favor. Me escute. Nunca tente pechinchar com o mal.

       — Não me ameace. — Matas rosnou... logo antes dele dar um tapa nela.

       Sua cabeça chicoteou para o lado, seu rosto ardendo. O gosto de sangue cobriu sua língua. Outra surra, e de um homem que ela tinha repulsa? Não. Não! Não deixaria que isso acontecesse.

       Ela agarrou sua lâmina e atingiu, batendo a ponta na lateral de Matas tão profundo quanto possível. Talvez ele tenha rugido, talvez não, mas tropeçou para longe dela. E como ficou lá arquejando e olhando boquiaberto, ela olhou abaixo na lâmina encharcada de carmesim. Horror a inundou, seu sangue não mais frio, mas gelado, poucos cristais de gelo fazendo com que ela parecesse pesada, dolorida.

       Ela simplesmente apunhalou alguém. Simplesmente machucou alguém do pior modo possível. Talvez até o tivesse matado. Sim, fez isso para se proteger, mas ainda assim era algo que seu pai teria feito.

       Não posso ser como ele. Eu simplesmente não posso.

       Oh, Vika, X disse tristemente. Eu sinto muito.

       — Você vai pagar por isto. — rosnando, Matas trovejou em direção a ela, fechando a distância antes dela poder se afastar. Ele bateu seu punho carnudo ao lado de sua cabeça, jogando-a no chão.

       Outro choque, seu cérebro chocando-se contra seu crânio.

       Ele esmurrou uma segunda vez. E assim, as luzes se apagaram para Vika.

 

       Solo ouviu os dois homens discutirem antes de vê-los, as orelhas remexendo enquanto escutava. Tinha esperado que X, que havia aparecido há alguns minutos dizer de maneira enigmática.

        — Controle-se, pois ela precisa de sua ajuda, não do seu gênio. — antes de desaparecer. Mas não, X não era assim.

        — Matarei você, Matas.

        Ele reconheceu a rouquidão da voz, sabia que pertencia a Jecis.

        — Já pedi desculpas.

        — Isso não melhora as coisas!

        — Eu te mostrei o vídeo. Você viu o que ela fez.

        — E isso é um problema, mas é meu problema. Devia ter me procurado. Devia ter me deixado cuidar disso. Agora. — Um rugido louco de fúria que Solo só ouviu uma vez antes — dele mesmo, no dia em que encontrou os corpos em decomposição dos seus pais. — Era para você engravidá-la, fazê-la sentir vontade de ficar, dar algo para ela fazer. O olhar que levava ultimamente, era igual ao de antes, quando ela... mas você pôs tudo a perder!

        Matas deveria engravidar… Vika? Apesar do fato dela não gostar do bruto?

        — Eu te dei um presente — continuou Jecis com a voz estremecida —, a minha posse mais estimada, e você a quebrou. Deveria expulsá-lo do meu circo.

        — Ela me esfaqueou, e eu reagi. — disse Matas, sua própria voz abalada. — Isso não acontecerá novamente. Como eu disse, me desculpe.

        — Desculpas não aceitas! Quase a matou com aqueles murros.

        — Deixe-me cuidar dela. Farei com que se sinta melhor com a minha mágica.

        Ela. Tinham de estar falando de Vika.

        — Não tocará nela novamente. Se qualquer outro homem tivesse me colocado numa situação dessas… se qualquer outro homem tivesse machucado meu bebê desse jeito…

        Seu bebê. Estavam mesmo discutindo Vika. Solo não ouviu o resto da conversa. Estava de pé e apertando as barras de aço um segundo depois cheio de pavor, junto com fúria e desespero… tanto desespero… Mas não podia extravasar nenhuma emoção, não com as algemas e as drogas debilitando seu organismo.

        O que fizeram a ela? Quanto havia sofrido? Sobreviveria?

        Perguntas, perguntas, tantas perguntas se formaram, mas um fato se consolidou: faria o responsável pagar. Não porque decidiu usar Vika para fugir. Não porque percebeu que ela era sua única esperança. Mas porquê... Só porque...

        Tinha certeza absoluta que a vingança lhe daria uma ótima sensação.

        — Continue calmo. Lembre-se do que falei. Ela precisa de ternura agora. — disse X, aparecendo e com uma aparência levemente mais frágil, sua pele não tão reluzente.

        — Ajude-a. — ele exigiu.

        — Eu tentei, mas não posso ajudar alguém que não quer ser ajudado. Ninguém pode.

        Finalmente Jecis e Matas dobraram a esquina, entrando em sua linha de visão. Os dois estavam com as caras fechadas. Jecis carregava Vika nos braços. Vika, que parecia uma boneca quebrada.

        Os joelhos de Solo quase cederam. Cabelos claros caíam em uma cascata ao redor dela em nós. Um braço estava dependurado. O outro esmagado no peito de Jecis. Seu rosto estava contra o peito do homem também, escondendo os ferimentos que levava.

        A fúria enfim foi detonada e ele articulou um rugido que competia com o de Jecis. Os dois homens tropeçaram.

        — Calma. — Disse X. — Precisa se acalmar.

        Os homens se aproximavam cada vez mais da jaula de Solo, tão perto que a maldade que havia em ambos roçou sua pele. Seu coração martelava como se tentasse enfiar um prego em uma de suas costelas. Nunca foi de gostar do trabalho que fazia, de sentir prazer em tirar vidas, mas teria curtido e sentido prazer dessa vez.

        — Calma.

        Devia ter sido fácil para ele. Em sua linha de trabalho viu os efeitos dos abusos domésticos milhares de vezes, e se achava durão demais para se importar. Sempre disse a si mesmo que as pessoas que continuavam naquele tipo de situação mereciam o que sofriam. Agora, vendo os hematomas em Vika, descobrindo que era surda, sabendo que foi criada em mundo tão isolado como aquele, suspeitando que não tinha ideia de que existia coisa melhor lá fora…

        Mas mesmo se soubesse não teria deixado o circo. Lembrou-se do que ela disse. Também sentenciaria os outros prisioneiros à morte.

        Ela os queria livres. Queria-os a salvo. Mesmo que tivesse que pagar um preço terrível.

        De repente, uma peça do quebra-cabeça se encaixou e uma imagem clara do seu caráter começou a se formar. Ela se importava de todo coração com aqueles que cuidava. Não só para aliviar uma consciência culpada, mas porque colocava os demais acima de si mesma. Continuava aqui, aceitando o abuso de seu pai, o de Matas, até o abuso dos extraterrestres para salvar aqueles sob seus cuidados. E sim, provavelmente havia outras razões, mas os extraterrestres eram uma das maiores, ele tinha certeza.

        Ainda mais miraculosamente, ela entendia o motivo dos extraterrestres se comportarem como se comportavam e não guardava rancor. Como poderia, e ainda se dispor a violar as regras e distribuir biscoitos e chocolates:

        Que tipo de pessoa faria isso?

        Uma resposta se formou imediatamente. Uma do tipo que sua mãe teria amado.

        Uma dor surgiu no centro do seu peito, profunda e ardente, provavelmente deixando uma cicatriz. Uma que aceitou de bom grado.

        — O que fizeram com ela? — ele gritou com uma emoção que nunca usou antes. Uma emoção que nem conseguia nomear. Era forte demais para uma mera fúria e fria demais para ser algo tão controlado quanto maquinação, surgindo de um lugar bem no fundo de si, onde o instinto se provava ser a força dominante.

Jecis parou a alguns metros, bufando sua própria ira.

        — Você. O que fez com minha filha, besta? Como a enfeitiçou?

        — Passe-a para mim. — exigiu Solo.

        — Nem ouse. — Matas, que segurava a lateral ensanguentada do corpo, abriu a boca para dizer algo. Sombras saíram dele cada vez mais altas, alcançando Jecis… mas o crânio nebuloso se escondendo sob a pele de Jecis se virou — sem que Jecis movesse um centímetro — e bateu os dentes. As sombras recuaram e Matas fechou a boca.

        — Ela merece coisa melhor do que vocês. — rosnou Solo.

        Matas correu, agarrou as barras e sacudiu a jaula.

        — Continue falando, eu o desafio. Farei ainda pior com você.

        Movendo-se mais rápido do que qualquer homem pudesse notar, Solo fechou a distância, pôs os dedos em volta dos pulsos do homem e apertou. Em poucos segundos, os ossos foram esmagados.

        Matas chiou de dor, expulsando pássaros negros dos seus ninhos no topo do trailer.

        — Pare!

        — Quando eu terminar. — rosnou Solo e definitivamente ainda não havia terminado. Ele torceu um dos braços de Matas, forçando o homem a girar ou perder o membro, e bateu o antebraço nas barras, quebrando também aqueles ossos.

        Dessa vez, Matas gritou.

        Solo ainda não havia terminado. Ele sacudiu e bateu antebraço dele no aço, também quebrando aqueles ossos. Matas soltou outro grito, esse bem agudo.

        O conflito inteiro não durou nem três segundos.

        Solo podia ter estendido os braços e rasgado a jugular do homem com as garras. Definitivamente teria feito isso, se não temesse que Vika pagasse por suas ações.

        Lágrimas vazaram pelas bochechas de Matas e seus joelhos cederam. Mas o homem não caiu — não conseguiu. Solo continuava segurando seu braço, aplicando pressão em cada um dos machucados.

        — P-por favor. — implorou Matas.

        Ele fez Vika implorar antes de surrá-la?

        Solo levantou o braço do homem um pouco mais.

        Como se pressentisse a tensão, um gemido saiu dela. Foi o primeiro ruído que fez, e um que provava que estava viva, que ainda sentia dor.

        — Me dê a garota. — repetiu Solo. — Eu jamais a machucaria.

        — Por favor… por favor. — disse Matas.

        Mostrando os dentes numa forma de agressão tipicamente masculina, Jecis disse:

        — Oh, darei ela a você, claro. Ela pensa que o quer, e um tempinho a sós a faria mudar de ideia, ensinaria uma lição, e faria com que apreciasse aquilo que tem.

        Sem hesitação, Solo colocou as mãos no ar, palmas para cima. Matas desmoronou gemendo, segurando o braço no peito e tentando se afastar.

        — Vika. — disse Solo. — Me dê ela. Agora.

        — Não. — Matas conseguiu dizer entre soluços. — Ela é minha! Você disse!

        — Silêncio! — gritou Jecis. — Já tomei minha decisão, e ela permanece a mesma. Ela escolheu o animal ao invés de você por duas vezes, portanto darei o que ela acha que quer. E você. — ele disse para Solo. — Estou colocando meu coração nas suas mãos. Tomará conta dele.

        Vika não era o coração daquele homem. Um homem guardava seus tesouros, mimava-os, colocava o bem-estar deles acima do seu. Jecis não fazia nada disso.

        — Ele é uma besta. — gritou Matas. — Ele irá maltratá-la. Olhe o que fez comigo!

        Ignorando-o, Jecis disse a Solo:

        — Se ela morrer, você morre. Se machucá-la de qualquer forma, eu o machucarei mil vezes pior. Só vai assustá-la. Fazer com que o odeie.

        Já estava farto de conversa. Queria a garota.

        — Me dê! Agora!

        — Abra a jaula, Matas. — ordenou Jecis. — Ainda tem um braço funcionando, sim? Depois disso, mude o código da trava. Não quero que Vika se solte durante a explosão solar.

        Murmurando, ainda chorando, Matas se colocou de pé.

        Cada músculo que Solo possuía ficou tenso, seu corpo se preparando para agir no momento que a porta destravasse. Ele agarraria Vika e fugiria. Levaria a garota para um lugar seguro e voltaria. Salvaria os extraterrestres, exatamente como ela desejava, e destruiria sua família, exatamente como não queria. Ou não quis antes. Talvez tivesse mudado de ideia.

        Só que agora o homem que o olhava com fúria pressionou o botão que fez as algemas perfurarem-no com sedativos, e a força abandonou-o em um instante. Seus braços e pernas ficaram pesados demais para movimentá-los e pontinhos pretos piscavam em seus olhos.

        — Toque nela — rosnou Matas, ainda choramingando de dor — e fatio você em pedaços.

        — Já basta. — disse Jecis, percorrendo a distância que faltava e espiando nos olhos de Solo. — Quando as explosões solares acontecerem, você descobrirá que há monstros pior do que você aí fora. Eles virão atrás de você e tentarão comê-lo. Mantenha Vika no centro da jaula, que eles não poderão tocá-la. Você, por outro lado… é tão grande que aposto que vão conseguir pegá-lo, não importa onde esteja. Terá que lutar com eles. — Ele sorriu, mas não havia divertimento em sua expressão. — Isso deve ser exatamente o que é preciso para assustá-la e impedir que deseje ter algo a ver com você.

        Solo não se importou com o aviso. Ele desmoronou, dizendo:

        — Vou… matar… vocês… dois.

       

        Com as pálpebras se abrindo, Solo sentou de um pulo. Centelhas residuais de fúria brilhavam em seu peito, cada uma servindo como um lembrete. Vika. Espancada. Levada até a jaula. Sua para que a salvasse. Ele se virou — e a encontrou deitada de costas do lado oposto, imóvel, imóvel demais.

        Apesar das dores em seu corpo — bem recentes, que provavam que não imaginara Jecis colocando Vika no chão e dando-lhe uma surra especial — ele rastejou até ela.

        Havia dois cortes em seu lábio inferior. Um era de antes e reabriu, e o outro era novo. Mas esse era o único ferimento que conseguia ver. Para que dormisse tão profundamente, gemesse como gemeu, tinha de haver mais. Ele correu os dedos com gentileza pelo seu escalpo, e sentiu dois galos do tamanho de ovos de galinha. Entre um segundo e o outro, ele se transformou parcialmente.

        O mais gentil possível, Solo verificou seus sinais vitais e os tremores intensos em suas mãos o surpreenderam. Ao menos seus batimentos cardíacos estavam fortes, concedendo-lhe um pouco de alívio. Como X disse, ela sobreviveria.

        Deveria acordá-la. Ela precisava ficar alerta pelas próximas seis horas. No mínimo. Mas só se Jecis não tivesse dado algum dos remédios novos disponíveis para uma concussão humana daquelas. Solo odiava não saber.

        Para variar, X não apareceu com uma resposta ou um encorajamento em uma hora de necessidade, e Dr. E não apareceu para dizer que devia ficar mais irado ainda. Como se precisasse de ajuda para isso.

        Como gostaria de possuir a habilidade de curar os outros como Corbin Blue, absorvendo os ferimentos dela em seu próprio corpo. Ou como John Sem Nome, a habilidade de hipnotizar com a voz, forçando as pessoas a fazer o que quisesse. Mas não. Os Allorians aparentemente vinham com muitos defeitos e muito poucos benefícios.

        Olhou em volta. A noite tinha caído. Sua jaula ainda não foi removida, então o trailer de Jecis estava à sua frente. Não havia ninguém do lado de fora. O que era estranho. O circo deveria supostamente estar sendo desmontado, em direção a outra localidade. Devia haver bastante atividade.

        No canto mais afastado da jaula, ele encontrou medicamentos, curativos, um cobertor, garrafa d’água e comida. Tão gentilmente quanto antes, cuidou do lábio de Vika e então dobrou o cobertor para colocar debaixo de sua cabeça. Só aí ela fez um som, e esse som foi um gemido baixo, como um choramingo.

        — Vika. — disse. — Acorde para mim, querida. — Acariciou sua bochecha. — Vamos.

Outro gemido, mas ela piscou os olhos. Eles estavam cobertos de gelo, opacos.

— Solo?

        Bom. Isso era bom. Ela o reconhecia; essa parte de sua memória estava intacta.

        — Estou aqui.

        — Minha cabeça dói.

        — Eu sei.

        — E estou cansada.

        — Seu pai derramou um líquido amargo na sua boca antes de trazê-la para a minha jaula?

        — Eu não... — Uma pausa quando ela contraiu as feições de dor. — Espere. Sim. Derramou.

        — Durma, então.

        — Obrigada. — ela disse com um leve suspiro. Sua cabeça caiu para o lado.

        Ele traçou a curva delicada de sua mandíbula. Já a achava bela antes, mas agora, sabendo o que sabia a seu respeito, sentindo sua pele morna cerca-lo, inalando a delicadeza de seu aroma, menta e jasmim, ela era perfeita. Era tudo que já desejou em uma mulher, e tudo que nunca pôde ter.

        X alegava que ela pertencia a ele. Apesar de tudo, Solo queria acreditar nisso. Não queria mais lutar com a ideia.

        E queria acreditar que ela ficaria feliz em acordar — acordar de verdade — e se encontrar em sua jaula, que não gritaria, choraria nem imploraria por sua misericórdia. Afinal, havia uma grande diferença entre cuidar de um animal e se aproximar o bastante dele para ser mordida.

        Suas orelhas começaram a mexer. Finalmente um som. Resmungos.

        Solo olhou em volta, mas não viu nada. Mesmo assim os murmúrios continuaram. E estava perto. Franzindo o cenho, ele se levantou e se aproximou das barras. Encontrou Jecis no topo do trailer, os braços parrudos abertos.

        Relâmpagos brilhavam no céu.

        A voz de Jecis aumentou de volume. O vento aumentou vários nós. Mais raios surgiram, dessa vez arqueando na direção do humano, como se atraídos por ele. Talvez ele morresse, Solo esperou, mas no momento que o raio entrou em contato, o corpo do homem pareceu expandir, sombras negras emanando dele. Uma neblina espessa e branca se formou na beira das sombras e rolaram do trailer até a jaula. Solo ficou ouvindo, escutou um farfalhar de vento, o barulho de passos e o bater de uma porta. Jecis deve ter entrado.

        A próxima coisa que ouviu foi o estalar de chamas. Até sentiu o calor. Ouviu pisadas apressadas e havia passos suficientes para aquilo ser um exército.

        Perturbado, ele ficou de vigia. A neblina começou a afinar… afinar… e então tudo mudou —embora não para melhor.

       

       O que apareceu foi uma terra devastada.

Solo olhou em volta. Ainda podia ver o trailer de Jecis, mas agora estava cercado por morros áridos cheios de árvores mortas, insetos gordos voando de um galho retorcido a outro. Havia fogo em todas as direções, chamas de um amarelo dourado dançando no vento quente e seco.

Os passos ficaram mais próximos aumentando de volume, até que uma multidão de homens e mulheres finalmente apareceu, descendo dos morros. Eles corriam e tropeçavam em sua direção.

Os monstros que Jecis mencionou.

Solo havia viajado o mundo inteiro, visto raças terríveis, mas nada como aquilo. As criaturas eram humanoides, com peles flácidas e finas que nem papel que cheiravam a podre. Vermes percorriam seus escalpos e seus olhos eram escuros e sem vida — quando tinham olhos, quer dizer. Alguns eram cegos, com as órbitas oculares vazias. Mas uma coisa toda criatura tinha em comum, percebeu quando se convergiram para a jaula: uma fome por presas. Gemendo, batendo os dentes afiados, eles estenderam os braços entre as barras numa tentativa desesperada de agarrá-lo.

Movendo-se rapidamente, Solo deslizou Vika e os suprimentos para o centro. Depois, pela primeira vez desde a sua captura, fez bom uso de suas garras e dentes. Atacou e membros caíram. Sangue jorrou. Mordeu e teve que cuspir dedos. Um gosto terrível cobriu sua língua.

Adrenalina explodiu dentro dele, queimando, furiosa, ativando as drogas em suas algemas. Seus movimentos diminuíram, mas conseguiu se manter de pé. Ou estava desenvolvendo uma imunidade ou sua determinação era grande demais para ser negada.

Por horas ele continuou a lutar, os braços machucados baterem nas barras muitas vezes, as panturrilhas cortadas e sangrando, mas seus oponentes continuavam a cair como pedras em um oceano, então a dor valia a pena. E mesmo assim, no momento em que derrubava uma criatura, mais duas avançavam. Por quanto tempo seria forçado a fazer isso sem qualquer resultado visível?

A batalha se estendeu por tanto tempo que dois sóis começaram a nascer no céu laranja-queimado e cheio de fumaça. Ele renovou seus esforços agindo com mais fervor, desesperado para proteger a mulher que foi depositada sob seus cuidados. Só que seu golpe seguinte encontrou o ar. Os monstros se afastavam dele, chiando como se suas peles fossem sensíveis demais para tolerar mais do que o mais leve toque da luz. Eles arrastaram os mortos consigo, deixando para trás somente sangue.

Solo ficou onde estava por muito tempo, esperando, ofegando, mas os monstros jamais voltaram.

O que eram aquelas coisas?

Não havia necessidade de vasculhar seu cérebro para saber o que queriam. Ele sabia. Ele e Vika, dois deliciosos aperitivos.

Vika.

Seus músculos e ossos protestaram quando ele correu para o seu lado. Havia manchas de sangue fresco em suas bochechas, mas nenhum daquele sangue era seu. Ela ainda dormia completamente alheia do tumulto ao seu redor, com nenhum machucado recente, e alívio o atravessou.

Ele usou a garrafa com borrifador e enzima para limpá-la, depois se limpar, e então a jaula. Não queria que ela acordasse e visse nada que indicasse uma devastação — ou que o temesse ainda além do necessário. Não entraria no jogo do seu pai. O tempo inteiro contou os segundos que se passavam, precisando saber quanto tempo mais passaria entre a luz e a escuridão, a paz e o caos, caso os monstros retornassem.

Andou de um lado para o outro, matando os insetos que tinham coragem de tentar picá-lo.

Observou os montes.

Uma hora passou, duas, três… oito, nove. Acordava Vika a cada sessenta minutos para verificar seus sinais vitais, e ela sempre dizia que sua cabeça doía e que queria dormir. Sempre deixava que dormisse.

Na décima hora os dois sóis começaram a se pôr. Em poucos minutos passos podiam ser ouvidos à distância. Gemidos e grunhidos ficaram mais altos. Os monstros mais uma vez subiam o morro. Só que dessa vez estavam mais famintos e mais determinados a jantarem, batendo os dentes com mais força, tentando passar pelas barras para alcançá-lo.

Ao invés de lutar contra eles, ele testou os parâmetros da jaula deitando-se ao lado de Vika e usando seu corpo para protegê-la. Jecis esperava que eles fossem capazes de pegá-lo, mas sua esperança foi vã. E Solo gostava muito mais das coisas assim.

Talvez aquilo não fosse tão ruim no fim das contas.

 

        Pelo que pareceu a mais dolorosa das eternidades, Vika ganhava e perdia a consciência constantemente, vagamente ciente que alguém cuidava das suas necessidades de um modo atencioso. Mas isso não podia ser verdade. Ninguém nunca cuidou assim das suas necessidades.

        Oh, seu pai sempre designava alguém para banhá-la e enfaixá-la depois de uma surra, mas geralmente aquela pessoa era Audra, que só se sentava no trailer, remexia em seus tesouros ou a atormentava com aranhas.

        Estava imaginando aquilo?

        Não. Não, não podia estar. O cheiro de sândalo que tinha adicionado à loção de Solo misturado à fragrância única de turfa queimada que ele emitia penetrava o estupor de sua mente. Solo devia estar com ela. Isso certamente explicaria por que continuava imaginando que conversava com ele. Bem, percebeu que não estava imaginando.

        Estavam juntos, e a noção a enchia de alívio... mas também a confundia. Como estavam juntos? Precisava acordar, descobrir.

        Durma, sussurrou X. Estou fazendo o que posso para aumentar o poder do remédio que seu pai te deu, e meu trabalho será melhor sem qualquer interferência de sua parte, muitíssimo obrigado.

        Ela… lembrava que ele tentara ajudá-la na tenda com Matas. Sim. É verdade. Matas bateu nela, e — não tinha certeza do que aconteceu depois disso. Só sabia ter falhado em dar ouvidos a X e sofrera por isso. Não cometeria o mesmo erro.

        — Dormirei. Obrigada. — disse, e adormeceu.

 

        Uma eternidade depois… ou talvez meros minutos… a escuridão se apagou da mente de Vika e um sonho fantástico ganhou forma à sua volta. Estava dentro de um pátio sombreado, flores com cores de joias desabrochavam em todas as direções, espaçadas entre colunas brandas e elevadas. À sua direita havia um homem alto e musculoso que nunca viu antes. Ele tinha o cabelo escuro e olhos da cor do mais puro oceano. Sua pele era de um tom exuberante e escuro de bronze, coberta de brilhos dourados. Usava uma túnica extremamente branca e segurava uma espada.

        À sua esquerda havia outro homem de túnica branca, e embora ele também fosse alto e musculoso, não possuía a beleza do primeiro. Pele branca, cabelo desgrenhado em volta de um rosto com maçãs do rosto finas e lábios rachados. Sua pele era branca como giz, e seus olhos de um verde tão claro que teriam lembrado diamantes inseridos em um lustroso jade, se possuíssem qualquer brilho que fosse. Ao invés disso, eles eram foscos, sem vida. Ele não tinha arma.

        Com o coração martelando nas costelas, ela se afastou de ambos.

        — Estou morta?

        Os dois a encararam.

        — Está aqui — o de cabelo escuro disse, acenando para o jardim — e me vê. — Havia surpresa em seu tom. — Nem meu protegido vem aqui, e ninguém a não ser ele me vê.

        — Isso quer dizer que também pode me ver, não é, garota linda? — disse o loiro, sorrindo, um sorriso de feiticeiro apesar de sua aparência maltratada. — Vamos nos beijar para celebrar. — Ele lhe estendeu os braços.

        Bem antes do contato que não podia evitar, o outro gigante bateu nas mãos dele.

        — Não permitirei que a machuque, demônio.

        Embora o loiro tivesse chiado, não fez outra menção de ir até ela.

        Ela reconheceu suas vozes. O bom. E o mal.

        — Não preste atenção a ele. Sou o que chamam de X, a propósito, e venho te ajudando o máximo que posso. — O homem de cabelo preto ofereceu um sorriso cordial. — Você não está morta. Vive. Tem muitos danos internos devido a todos esses anos com seu pai, mas agora está se curando muito bem.

  1. O bom.

        — Graças a você. — disse.

        — E a Solo.

        Solo. Varreu a área com os olhos. Havia um banco de alabastro a alguns metros, mas estava vazio.

        — Ele está aqui?

        — Não. Como eu disse, ele nunca veio aqui.

        Ela se encheu de desapontamento.

        — Onde é aqui?

        — Alloris. Eu sou o Atilium de Solo, e para protegê-lo da rejeição, preciso mantê-lo longe, vigiando-o até que esteja pronto.

        Estava mais confusa do que nunca.

        — Eu me chamo Dr. E. — o loiro se intrometeu sem percalços. Ele a lembrava seu pai, quando Jecis falava para a multidão dentro da enorme tenda de lona vermelha durante uma performance. Um tom tranquilo destinado a enganar, ocultando uma riqueza de maldade.

        — Ele não é um Atilium — disse o outro — mas um Epoto.

        — Não sou. — O loiro também ofereceu um curto sorriso, mas estava longe de amigável. O dele era só dentes e nenhuma substância.

        — Não sei o que é nenhuma dessas duas coisas. — Espere. Ela tinha ouvido suas vozes. Não só na sua mente, como antes, mas por seus ouvidos. Ouvidos que não funcionavam há anos. Como era… por quê… isso não era possível. Era?

        Seu corpo inteiro começou a tremer. Por quanto tempo sonhou com uma coisa assim? Ansiou com todas as suas forças? Quantas vezes chorou pelo fato de nunca mais voltar a ouvir? Incontáveis. E mesmo assim aqui, agora…

        Ela explodiu de alegria, tão intoxicante quanto vinho.

        — O que querem de mim? — perguntou, depois piscou. Sua voz! Acabou de ouvir a própria voz, também. Era diferente da qual se lembrava, mais adulta, grave.

        Posso mesmo ouvir!

        — Não tenho certeza se terei uma oportunidade dessas outra vez — disse X de modo determinado —, então vou dizer muita coisa. Solo é um bom homem e se sente atraído por você. Pode cultivar essa atração. E se o fizer, ele permitirá que tome conta dele, agora e sempre, e permitirá que fique ao seu lado, agora e sempre. Não é o que queria?

        — Não, eu...

        — Precisa pôr as necessidades dele acima das suas, sim.

        Ela franziu o cenho, terminando.

        — Quero viver sozinha.

        — Se fizer como eu sugiro — continuou X, como se ela não tivesse falado —, ele fará o mesmo com você, prometo, e será mais feliz do que já foi. Ele cuidará tão bem de você.

        — Não dê ouvidos a ele. — retrucou Dr. E, acenando de forma desdenhosa com a mão. — Solo é um homem terrível. Olhe para ele. Odioso! E você é tão linda. Merece coisa melhor, um belo príncipe que venha salvar o dia. Além do mais, colocar as necessidades dos outros antes das suas? Estupidez!

        — Solo não é odioso. — disparou Vika. Ele tinha uma beleza dura e masculina que não era aparente à primeira vista, mas oh, ao passar da segunda, terceira e quarta, tudo o que queria era ficar ali olhando para ele.

        X sorriu para ela, um brilho orgulhoso nos olhos.

        — Solo pode te ajudar, Vika, e você pode ajudá-lo. Mas a escolha é sua.

        — Escolha? Não existe escolha. Se você se colocar sob os cuidados de Solo, estará se colocando em uma situação ainda pior. — disse o Dr. E. — Pense nisso. Solo acabou em uma jaula, e você ganhou uma surra. Vocês dois só sabem mesmo é se meter em problemas. Se vocês se juntarem… — Ele estremeceu.

        Ela ignorou Dr. E, dizendo a X:

        — Libertarei Solo. — As algemas ainda eram um problema, mas não podia mais continuar no circo. Simplesmente não. Como resultado, sua nova vida começaria.

        Quando Dr. E esbravejou, X disse.

        — Você o libertará, sim, mas depois o deixará para que se esconda do resto do mundo, apesar do fato de estar destinada a ficar ao lado dele e ele ao seu.

        Destinada?

        — Se ele ficar com aquelas algemas, será um alvo para Jecis.

        — Mesmo assim, vocês serão mais fortes juntos, duas metades de um todo. — Ele estava desaparecendo, sua voz alternando entre baixa e alta. — Diga que ficará com ele, sem importar mais nada.

        — Não posso. — sussurrou. Ela o libertaria e sairia sozinha. Libertariam os outros extraterrestres, também, mas isso era tudo que podia prometer. — Sinto muito.

        Dr. E riu com alegria, a curva de seus ombros de repente menos exagerada.

        — Exatamente o que eu queria ouvir.

        O cenho de X se tingiu de tristeza — e ela notou os ombros dele começarem a se curvar.

        — Uma virada errada leva a um destino errado. Você se verá em um lugar que nunca deveria visitar.

        — Tão dramático. — Dr. E estalou a língua em reprovação. Com uma piscada e uma gargalhada. — Verei você de novo, beleza. Muito em breve. — ele desapareceu.

        X suspirou e a olhou no fundo dos olhos.

        — Durma. — ele disse, e suspirou.

        — Mas não estou… cansada. — Seus olhos se fecharam e a escuridão invadiu sua mente. Não soube de mais nada.

 

        Nos dias seguintes, Solo entendeu três fatos bem importantes.

        Vika era uma sedutora natural.

        Ela era instintivamente atraente.

        Era uma doença para lá de incurável.

        Ela dormia e acordava, às vezes murmurando consigo mesma sobre desvios errados e certos e ele jurou que faria uma dieta sem murmúrios assim que aquilo acabasse. Eram adoráveis demais e ele chegou ao seu limite. E certo. Tudo bem. Não foram os murmúrios que o seduziram àquele estado. Toda vez que os monstros atacavam, ele deitava ao seu lado para protegê-la. O calor do seu fôlego acariciava sua pele. A doçura do seu cheiro enchia seu nariz. A batida do seu coração seguia a mesma da dele, fazendo-o se sentir como se fossem um único ser.

        Tudo agia em consonância para instigar sua necessidade por ela a atingir uma nova estratosfera.

        Toda vez que ela se mexia, ele corria ao seu lado para dar comida e água. Ela comia, ele também, e ele rezava para que os monstros voltassem para que tivesse uma desculpa para abraçá-la.

        Precisava se controlar. Porque apesar da aspereza de sua necessidade, não se permitiria possuí-la. Não podia. Pensou nisso e apareceram mil e duas razões para evitar beijá-la, prová-la, despi-la, acariciá-la e tê-la... e mil e outras coisas que imaginava fazer com ela.

        No momento, contudo, não conseguia lembrar-se de nenhuma razão.

        Bem, não, isso não era exatamente verdade. Conseguia pensar em uma. Ela podia não querê-lo do mesmo jeito que a queria. Sim, uma vez tinha o beijou, mas pode ter sido por simples curiosidade. Sim, ela deu-lhe comida extra, mas pode ser consequência da bondade de seu coração e não de sentimentos românticos por ele.

        Agora ou ela se sentiria em dívida com ele ou evitaria irritá-lo. Podia deixar que fizesse o que sentisse vontade, mas não por paixão.

        Queria sua paixão ou nada.

        Então ao invés de planejar formas de conquistá-la, serviria melhor o seu tempo bolando um novo plano de fuga. É. Era isso que faria. E talvez parasse de querer, necessitar, desejar, ansiar, e esperar pelo que jamais poderia ser.

 

        Água gelada vibrou nos lábios de Vika, escorregando garganta abaixo, seguida por comida. As ações a arrancaram da escuridão e a trouxeram de volta à luz. Ela piscou, abrindo os olhos.

        Embora sua visão estivesse embaçada, podia ver Solo em cima dela, um fio de sangue debaixo de seu olho.

        Eles realmente estavam juntos nessa, pensou.

        Ele segurava uma garrafa contra sua boca. Ela bebeu o que lhe dava, e tinha certeza que nunca provou nada tão magnífico. Queria fechar os olhos e apreciar o gosto, mas não queria desviar o olhar de Solo.

        Seu cabelo escuro estava todo bagunçado, as mechas espetadas. Tinha a cabeça baixa, o queixo apoiado no peito. Seus olhos estavam semicerrados, os cílios ocultando o azul cristalino de suas íris e estendendo-se para fora tão belamente quanto a cauda de um pavão. Notara a curva aristocrática de seu nariz e as maçãs do rosto pontudas no dia em que ela o banhara, mas não percebera os lábios macios e rosados que qualquer mulher pagaria uma fortuna para ter.

        Ele era duro, capaz e feroz, e por apenas um segundo — ou dois — desejou ter dito a X que faria o que fosse necessário para ficar com Solo, que colocaria sua vida nas mãos dele e confiaria nele para mantê-la segura. Agora e sempre.

        Espere. X. Alloris. O Altilium, o que quer que fosse. O sonho que não era exatamente um sonho, ela sabia agora. Por mais tempo que tivesse passado em sua cabeça ao longo dos anos, sabia a diferença entre fantasia e realidade, e não havia como confundir os dois à luz do dia. Ela realmente falara com X e com o Dr. E, o Epoto. Eles realmente existiam e estavam lá fora, em algum lugar, e conheciam Solo.

        X, que claramente o amava.

        Dr. E, que claramente o odiava.

        Solo sabia que eles estavam ali? Que X o considerava “uma responsabilidade”?

        Solo, quem estava tão próximo agora que só tinha que estender a mão para tocá-lo.

        Tão poucas pessoas sabiam que havia outro mundo ao redor deles, tão real quanto esse.

        — Olá, você. — ela disse. Apenas o silêncio respondeu.

        O desapontamento atravessou-a, cortando. Seus ouvidos pararam de funcionar, o que significava que não seria capaz de escutar a voz de Solo também. E, oh, adoraria poder escutá–lo. Ele devia ter uma voz baixa, ela apostava. Baixa e vibrante. Sexy.

        Solo ergueu os olhos, piscando de surpresa.

        – Você está acordada.

        Novamente, silêncio.

        O desapontamento se intensificou, mas lutou contra isso. Ela estava viva, e com o melhor homem que já conheceu. O que havia para reclamar?

        — Eu estou. — Ela esticou os braços acima da cabeça, arqueando as costas. Os ossos saltaram.

       Calor explodiu nos olhos de Solo, o azul lembrando o queimar das chamas. A mão calejada em sua nuca recostou-a no chão. Ele afastou-se dela, levando embora o delicioso calor de seu corpo.

       — Como você se sente? — ele perguntou.

       Não tão bem quanto alguns segundos atrás.

        — Muito bem, obrigada. — Melhor do que ela se sentiu em anos. — Mas como... — ela analisou seus arredores. Estava dentro da jaula dele, as barras erguendo-se à sua volta. Além delas estendia-se a imensidão das Nolands. Chamas queimavam, fios de densa fumaça chiavam e insetos verdes e negros zumbiam por toda parte, atacando uma árvore que se atrevera a sobreviver, seus galhos vibrando com vida — mas rapidamente se deteriorando.

       Seu pai… ele… ele… a aprisionara. O homem responsável por seu bem-estar, que proferira seu amor por ela acima de todas as outras coisas, colocara-a com um de seus “animais” durante uma tempestade solar, deixando-a vulnerável a um ataque dos Nolanders.

       Ela não deveria estar surpresa, mas estava. Ele fizera tantas e tantas coisas terríveis com ela, mas isso… A mágoa perfurou-a, ferindo-a mais do que o punho de Matas. Matas, que devia ter mostrado o vídeo a Jecis.

       Ela sabia que seu pai era cruel, sabia que desfrutava de impor seu poder sobre ela e todas as outras pessoas. Sabia que não hesitava em punir todos os que o desafiavam, mas... ela era sua menininha. Sua princesinha. Sua adorada.

       Bem, isso tornaria a tarefa de abandonar o circo muito mais fácil. Isso é, caso permitissem que ela saísse da jaula, pensou, lutando contra uma onda de pânico. Ela era um dos números agora? Essa era uma sentença perpétua?

       Seria tratada como um animal qualquer?

       Oh, piedade. Todos esses anos nada fizera para impedir seu pai de prender pessoas inocentes. Pessoas que experimentaram essas mesmas emoções, mas sem esperança alguma.

       Ela não poderia libertá-los enquanto ainda usassem aquelas algemas, quando finalmente decidira que faria isso. Não podia permitir que Jecis os encontrasse e trouxesse-os de volta. Ela tinha que ficar, não importando a dor que viesse a sofrer, e tinha que continuar sua procura pela chave.

       Entretanto, antes tinha que sair da jaula.

       Desculpe, X, mas não posso deixar Solo partir agora.

       Solo cutucou-a gentilmente no ombro para chamar sua atenção.

        — Há algo que eu possa fazer por você?

        Por ela. Um de seus torturadores. Depois de tudo, ele ainda desejava ajudá-la.

        — Eu... eu... — queria chorar. Queria soluçar e implorar por seu perdão. — Me perdoe. Sei que não há nada que eu possa dizer...

        — Vika. — ele chamou.

        —... para tornar as coisas melhores, mas vou tentar. Eu vou. Você tem minha palavra. Não vou deixá-lo manter você…

        — Vika.

        —… preso por mais tempo. Assim que eu estiver livre, procurarei melhor pela chave.

       Ele se curvou, aproximando-se de seu rosto.

        — Vika!

        Ela piscou.

        — Sim?

        — Não vou machucá-la. — ele disse, sentando-se novamente.

        A confusão voltou. O que ele estava pensando? Que ela simplesmente se desculpara para tranquilizá-lo? Bem, se esse era o caso, não acreditaria em uma palavra que ela dissesse sobre sua liberdade, certo?

        — Seu pai deixou uma coberta pra você. Deixei você usá-la como travesseiro por um tempo, mas quando começou a sarar, eu a peguei e pendurei no canto como cortina. Para te dar um pouco de privacidade... quando você precisar usar o penico que ele também deixou. Acho que é esse o nome.

        Calor inundou suas bochechas.

        — C-certo, obrigada. — ela não devia se sentir embaraçada. Na verdade, merecia isto. Ele e os outros tiveram que suportar esse tipo de violência desde que foram capturados.

        — Só para que saiba, eu banhei você. — ele disse. — Mas em momento algum tirei suas roupas, nem olhei qualquer coisa que não devia.

        Como ela fez com ele. O calor intensificou.

        Ela olhou para si mesma e viu que ainda usava as mesmas roupas que usara quando enfrentara seu pai, a camiseta simples e as calças leves. Ao menos estava confortável.

        — Obrigada, Solo, de verdade. Por tudo.

        Uma rígida balançada de cabeça.

        — De nada.

        Seu olhar passou sobre ele. Ele ainda vestia a tanga, seu grande e belo corpo à mostra. Sua pele era de um luminoso bronze, cada um de seus músculos tão bem definidos que pareciam esculpidos.

        Sua respiração ficou presa na garganta.

        — Então... há quanto tempo estamos aqui?

        — Três dias.

        Três dias inteiros. Cinquenta horas ao invés de setenta e duas, já que o tempo não era o mesmo aqui. Durante aquelas cinquenta horas, Solo poderia tê-la amarrado. Ele não o fizera. Poderia ter ameaçado não dar a ela nenhum remédio ou comida até que jurasse ajudá-lo. Ele não o fizera. Poderia tê-la dado de comer aos Nolanders e poupado a si mesmo. Ele não o fizera.

        Eu sou o monstro nesse relacionamento.

        — Você está bem? — ela perguntou, hesitante.

        Ele piscou, franzindo a testa.

        — Por quê?

        — Você tem sangue no rosto.

        Ele reagiu como ela tivesse estapeado-o, girando para esconder que estava esfregando sua pele com um vigor que a assustava.

        — Deixe-me ver. — disse, mas ele agiu como se ela não tivesse dito nada. Vika suspirou. — Os monstros te feriram?

        — Você sabe sobre eles?

        — Sim. Para mantê-los fora dos trailers, Jecis removeu as janelas, reforçou as paredes com metal e pôs fechaduras nas portas.

        — Ele deveria ter nos colocado dentro de seu trailer, então. — ele falou, ainda esfregando o rosto.

        — E deixar que você encontrasse e escondesse armas para atacá-lo depois?

        Ele endureceu o queixo.

        — Você sabe de algum lugar seguro para se esconder fora dessa jaula?

        Ele esperava dar o fora dali enquanto ainda não havia guardas armados?

        — Eu não recomendaria lutar com os Nolanders em sua quadra de baseball pessoal. Agora, vai parar de fazer isso e me deixar ajudar?

        Ele parou, a mão caindo de lado. Lentamente virou-se e encontrou seu olhar, seus olhos tão gelados que ela sentiu calafrios.

        Ainda assim ela segurou sua mão.

        — Tapete. — ele a ajudara, e agora era sua vez de ajudá-lo, mesmo que fosse com algo tão pequeno quanto aquilo. Apesar do fato de que ele havia esfregado tanto o rosto que havia uma mancha vermelha de um dos lados, o sangue permanecia.

        Relutante, ele a obedeceu.

        — Deite-se aqui.

        Pouco a pouco ele recostou-se, uma máscara cobrindo suas feições.

        Ela gentilmente limpou o rasgo avermelhado. O braço dela tremeu, a ação exigindo muito de um braço que não fora usado por três dias, mas persistiu.

        — As pessoas jogam baseball em um campo.

        — Foi o que eu disse. Não foi?

        — Você disse quadra.

        O olhar de Solo nunca a abandonou. Ele assistia a cada reação sua, como se... o que? Como se quisesse saber cada emoção sua? Bem, ele descobriria que ela amava cuidar dele e admirá-lo. Especialmente seus lábios. Lábios lindos e carnais.

        Agora mesmo, eles estavam rosados. Quando mudava de aparência, tornavam-se vermelhos como sua pele ferida. Eles ainda seriam tão macios quanto se lembrava? ela pensou. Tão doces?

        — Você está encarando. — ele avisou, sua voz dura.

        — Isso te incomoda?

        Sua língua saiu, virou um pouco.

        — Não.

        Ter aquela língua em sua boca… saber o que seria pressionar a sua contra a dele... ela respirou fundo.

        — Incomodava antes. Você ameaçou me matar.

        — Isso foi antes.

        Antes... do quê?

        — E eu jamais machucarei você, Vika. — ele se esticou, seu polegar traçando o contorno dos lábios dela.

        No momento do toque seus lábios começaram a formigar. Eles se entreabriram sozinhos, e uma quente e necessitada lufada de ar escapou dela.

        — Eu sei que não. Assim como nunca machucarei você. — ela forçou-se a continuar limpando o machucado — antes que fizesse algo do qual os dois se arrependessem. — Viu? Sou inofensiva.

        Ele não se retraiu. Ele encarou-a, o fogo em seus olhos aumentando. Finalmente ele se curvou sobre ela.

        — Me desculpe. — ele engasgou. — Mas tenho que fazer isso.

        — O quê...

        Ele beijou-a, silenciando-a. Seus lábios pressionaram os dela, pausando por um segundo ou dois, como se testando sua reação. Sim! Era isso o que queria. E não surpreendente, era magnífico, os lábios dele mais macios do que antes. Quando não protestou, ele ergueu a cabeça e estudou seu rosto. O que quer que tenha visto, aparentemente gostara, porque abaixou uma segunda vez. A língua dele invadiu sua boca, que ela vorazmente abriu.

        Suas línguas dançaram juntas, e, oh, esse beijo era tão melhor do que o anterior, quando tomou o que não podia. Ele ia devagar, estimulando-a, mas não precisava de estímulos. Ela precisava de mais.

        De algum jeito entendeu o que ela quis dizer. Ele aumentou a pressão, a velocidade e forçou a cabeça dela a inclinar, obtendo um melhor acesso, dominando sua alma, marcando-a como sua, consumindo-a. Ela amou cada segundo, envolvida de corpo e alma, devastada, perdida. Feliz por estar perdida.

        Ele era tão quente, fogo contra sua pele. Tão necessário. De repente, não podia se imaginar respirando sem ele. Ele estava aqui e era dela, e isso era lindo. Um lindo beijo de um lindo homem.

        A mão dele escorregou por baixo de seus ombros, inclinou-se e aconchegou sua nuca. A textura áspera de sua pele a deliciava, fazendo-lhe cócegas. Ele massageou os músculos ali, arrancando um murmúrio de prazer dela. Então sua mão começou a abaixar... parando no caminho de seus braços, traçando círculos... inclinando-se novamente, dessa vez em direção ao seu seio...

        Seu seio dolorido. Um lugar no qual ela nunca foi tocada por ninguém. Ela flagrara atos ilícitos o suficiente nas sombras do circo para saber que, uma vez que um homem tivesse suas mãos nos seios de uma mulher, ele não podia evitar tomar mais, tudo.

        Vika ficou tensa, não tendo certeza se estava pronta para o que o “tudo” englobava.

        Ele devia estar muito atento a todas as suas nuances, porque recuou de repente, interrompendo o contato.

        Conforme ela lutava para respirar, seus dedos procuraram os lábios dela que formigavam.

        — Solo. — ela murmurou, chamando-o de volta. Podia não estar pronta para tudo, mas isso não significava que o beijo tinha que terminar.

        Os punhos dele se cerraram.

        Ela o enfureceu?

        — Eu... eu... — não tinha ideia do que dizer. Como se diz a um homem que quer beijá-lo, mas não quer fazer nada mais do que isso com ele? Não ainda, pelo menos.

        — Quando os monstros irão retornar? — ela perguntou, mudando de assunto.

        Ele desviou o olhar dela.

        — Em algumas horas. Mas não se preocupe. Você ficará bem onde está, e deitarei ao seu lado.

        Ele fizera o mesmo por ela antes, não fizera? A ideia do peso dele pressionando-a... não a assustava, percebeu. De fato, maravilhava-a, fazendo seu sangue borbulhar com o calor.

        Talvez estivesse mais perto de querer o “tudo” do que pensava.

        — Eles não conseguirão nos alcançar. — ele acrescentou. — E não terei que tocar você.

        — Eu não me importo...

        — O que é esse lugar? — ele interrompeu.

        Mensagem recebida. Assunto encerrado. Talvez fosse melhor.

        — Um mundo entre mundos.

        Ele franziu a testa.

        — Explique, por favor.

        Outro rouco ”por favor”. Como resistiria?         — Através de sua magia negra, meu pai aprendeu a mover o circo de uma cidade à outra sem ter que descarregar tudo ou montar as tendas e equipamentos ou mover os veículos, e sem ter que dar um passo. De alguma forma, ele cria círculos solares que abrem um portal de um lugar a outro, mas tem mais dificuldade fechando os círculos, especialmente se estamos viajando uma longa distância. E às vezes, ficamos presos aqui.

        Seu rosto enrugou-se mais.

        — Eu sei que viagem entre mundos é possível, e foi assim que os extraterrestres vieram para a Terra, mas não sabia que cidadãos comuns podiam abrir portais por conta própria.

        — Eu duvido que possam. Mas então, meu pai não é exatamente “comum”, é?

        — Bem, preciso saber o que ele sabe.

        — Confie em mim, você não quer se envolver com magia negra.

        Ora, ora. Que bom que você me escutou, disse Dr. E, sua voz parecendo sair do nada. Ela não podia vê-lo, mas ela podia sentíííí–lo. Havia um tipo de estranha rachadura no ar, brilhando contra sua pele. Ele está prestes a tentar você a espiar por ele.

        Solo havia escutado o homem?

        Sua expressão permaneceu a mesma: pensativa.

        — Se eu te pedisse para descobrir que tipo de feitiço ele invoca — ele disse, olhando-a atentamente — você o faria?

        Viu? Eu disse!

        — Não. — ela respondeu honestamente, ignorando o Dr. E. Ela não podia culpar Solo por querer mais informações. — Ele chamou o mal para sua vida, e não vou fazer o mesmo com a minha. Por que quer saber sobre os círculos, afinal? Para impedi-lo?

        Solo ponderou por um momento, então balançou uma mão no ar.

        — Qual foi o maior período de tempo que esteve presa nas Nolands?

        Então... ele queria colocá-la em perigo, mas não queria dizer-lhe o porquê. Disso, ela podia culpá–lo.

        — Seis dias. — ela disse um tanto desconfiada. — Mas quer saber? Não terminamos com o outro assunto. Eu poderia dizer sim, tentarei descobrir como meu pai faz o que faz, porque eu te devo uma e sempre às vezes tento pagar minhas dívidas.

        — Sempre às vezes? — ele interrompeu.

        — Exatamente. Portanto, aqui vai uma pergunta pra você. Preferiria ter a informação sobre os círculos solares ou a chave para suas algemas?

        — A chave para minhas algemas. — ele respondeu sem hesitação.

        Eu poderia ter adivinhado essa, suspirou Dr. E.

        — Está disposta a entregá-las a mim quando achá-las? — Solo perguntou com a paciência de um predador. — Não só usá-las, mas dá-las a mim.

        — Claro. — ela respondeu e ele piscou surpreso. — Se meu pai me deixar sair da jaula, já decidi aumentar meus esforços e fazer o que for preciso para desfazer o que ele fez.

        — Jure. — ele apressou. — Jure me libertar, remover as algemas quando encontrar as chaves e colocá-las unicamente sob minha custódia.

        Ele e seus juramentos. Ela lutou contra o impulso de revirar os olhos. Mas percebera que ele dissera “quando” e não “se”. Ou ele tinha mais confiança nela do que ela tinha ou simplesmente se recusava a admitir a derrota em qualquer coisa.

        Não faça isso, Dr. E implorou.

        — Jurado. — ela disse, querendo sorrir. Ela meio que gostava de desobedecer o Dr. E. Ele a amaldiçoou.

        Solo olhou-a atentamente, alívio e desconfiança em seus olhos.

        — O que? — ela perguntou.

        — Algo estranho aconteceu com você?

        — Não. Por quê?

        — Nada. — ele esfregou a nuca. — Diga-me uma coisa. Sua surra mais recente foi por minha causa?

        — Não. — ela falou, e era a verdade. Matas batera nela porque o envergonhara com sua contínua recusa a seus avanços amorosos, ao escolher um “animal” ao invés dele.

        Você devia ter botado a culpa em Solo. Havia agora um desdém na voz do Dr. E. Ele teria se sentido culpado e feito qualquer coisa que você pedisse.

        — Você pode calar a boca? — ela revidou. — Estou farta de você. — Vika não queria ninguém se sentindo culpado por sua causa. Culpa era algo terrível, que o consumia por dentro, e Solo já tinha o suficiente com o que se preocupar.

        A rachadura no ar desapareceu instantaneamente.

        Solo afastou-se dela.

        — Como você quiser.

        — Não, você não. — disse, sentando-se e estendendo um braço para alcançá-lo. Ela encostou os dedos em seu pulso, um pulso tão grande que sua mão não chegava nem perto de circundar. Ele era forte, incrivelmente forte, e isso deveria tê-la assustado, teria assustado, até que acordou e descobriu tudo o que ele fizera por ela. — Você é... — tontura a fez fraquejar, gemer.

        Solo voltou em um instante, puxando-a de seu braço para agarrar a parte de trás de sua cabeça. Ele a tranquilizou e ela batalhou contra a vontade de se acomodar no calor do corpo dele, e saber que estava segura e protegida uma vez em sua vida e que talvez até fosse... querida.

        Ele não a queria, entretanto. Gostava de beijá-la, disso tinha certeza, e queria mais, mas sexo não era e jamais seria prova do afeto de alguém.

        — Você se sentou muito rápido depois de passar muito tempo deitada.

        — Eu não estava falando com você. — ela assegurou. — Antes, quero dizer.

        — Então com quem estava falando? — ele parou para balançar a cabeça, talvez se lembrando da outra vez que tiveram esse tipo de conversa, quando a pergunta fora direcionada a ele. — E por que você apanhou? Nunca me disse.

        Ela lambeu os lábios.

        — Você uma vez me disse que falava com homens invisíveis.

        Ele sugou uma respiração e se afastou dela.

        — Não, não disse que falava. Apenas que talvez falasse.

        Legal.

        — Você acredita que há outro mundo funcionando ao nosso redor?

        — Bastante.

        Os olhos dela arregalaram. Ele admitira aquilo tão fácil, como se não temesse sua reação.

        — Verdade?

        — Sim.

        — Eu também.

        — E?

        — E eu... estava falando com alguém nessa dimensão. — ela falou, esperando que ele admitisse conhecer Dr. E e X.

        Um minuto se passou.

        Outro.

        — E aí, por que você apanhou? — ele finalmente perguntou, não dando nenhuma pista de suas emoções.

        Talvez ele não soubesse que o par mantinha-se atento a ele. Se não soubesse, não queria ser a pessoa que o informaria disso.

        — Matas é doente, insano e obcecado por poder. É por isso.

        Solo ergueu o braço para acariciar a sobrancelha dela. Ele parou logo antes de encostar nela, deixando a mão cair do lado do corpo.

        — Sei que você não é fã de violência, mas quando foi entregue a mim eu quebrei o braço dele de um jeito que nunca mais voltará ao normal. Ele não baterá em você de novo.

        Outro ato para protegê-la.

        — Obrigada. — ela disse, lutando contra o peso em seu estômago. Claramente ele não a tocaria mais, mesmo do mais ínfimo jeito, e talvez até se arrependesse de tê-la beijado. Por que mais manteria tamanha distância entre eles?

        Mas... mas... ela não queria terminar com ele. E não queria que ele tivesse terminado com ela.   

        Ele olhou-a, pensando por um momento. Seus ombros estavam duros com a tensão.

        — Há quanto tempo este circo opera?

        Eu posso fazer isso. Posso conversar como se nada estivesse errado.

        — O tata-tata-tataravô de Jecis o abriu, e o filho mais velho de cada geração tem assumido desde então.

        — Como ele nunca foi fechado?

        — Ele usa esquemas para evitar que os policiais descubram o circo, mas quanto pode, paga os chefões para que o ignorem.

        — Você já viu esses chefões?

        — Oh, sim. — Jecis amava entreter e Audra era a menina dos seus olhos, aquela que ele mantinha ao seu lado durante tais eventos. Vika assistia das sombras sempre que era possível.

        — E você poderia dizer quem são se eu te mostrasse fotografias?

        Pare tudo.

        — Você é policial? — ela perguntou, a ideia não a surpreendendo. Preocupava-a, entretanto. Depois que o libertasse, ele talvez a prendesse.

        Uma pausa. Um reflexo de culpa em seus olhos. Então…         — Digamos apenas que tenho interesse em fechar esse circo de uma vez por todas.

        — É, eu também. — ela disse, aliviada por não ter que se preocupar em ser atirada em outra cela.

        Ele arqueou uma sobrancelha.

        — Onde pretende viver assim que escapar?

        Ela imaginou bonitas casas em New Colorado, aquelas que ela ainda não era capaz de bancar — o tipo de casa que podia ser vendida a qualquer hora enquanto poupasse algum dinheiro.

        — Encontrarei um lugar.

        Ele esfregou dois dedos no queixo.

        — Onde quer que seja, mudanças serão necessárias.

        Por sua surdez, ele quis dizer.

        — Você vai vir me visitar e curar isso? — ela perguntou e prontamente desejou que pudesse retirar as palavras. Quão maravilhoso seria tê-lo dentro do seu santuário, apenas porque ele queria estar ali. Mas do jeito que estava agindo, de forma alguma ele iria...

        — Eu estaria disposto a isso, sim.

        Prazer era uma suave e doce chuva contra sua pele.

        — Mesmo?

        — Mesmo.

        — Você pediria pagamento?

        Os olhos dele se estreitaram em pequenas linhas. Tossindo, ele levantou-se e saiu pisando até o canto mais distante. Apenas então ela percebeu o erro dela.

        — Solo. — ela chamou, mas ele a ignorou. — Solo, me desculpe. Não quis questionar sua honra ou qualquer coisa assim.

        Silêncio.

        Mas claro, ela vivia em um mundo de silêncio.

        — Eu realmente sinto muito.

        Novamente, silêncio.

        — Eu estava com medo que você estivesse bravo comigo, porque congelei durante nosso beijo, mas foi só porque fiquei nervosa pelo que nós estávamos fazendo. Eu nunca fiz nada assim antes. E então, quando disse que queria vir ver minha nova casa e me ajudar, perguntei se queria ser pago porque queria que você dissesse sim. Eu ia te dizer que te pagaria em beijos. Eu só... eu só queria que você soubesse que gostei do que fizemos, mas não sabia como te contar.

        Ela tinha experiência nula com homens que não eram a cria do demônio ou parentes de sangue. Ou ambos. Os meninos das cidades nunca foram uma opção, e nenhum dos rapazes no circo ousaria enfurecer seu pai. E depois do tempo que passou na cidade grande sozinha, assustada e testemunhando o mais cruel dos deveres, não queria ter nada a ver com qualquer homem... e talvez até mulheres com bigode.

        Alguns dias atrás, ela teria se aterrorizado com a mera ideia de ser tocada por mãos tão grandes e ásperas quanto as de Solo — e provavelmente teria! Agora, com a doçura dele tão fresca em sua mente, só queria outro beijo.

        Ela sentou-se, mas mesmo parada a tontura retornou com força total e viu-se obrigada a fechar os olhos. Dessa vez, Solo não veio ao seu lado.

        Nada podia dar certo para ela? Nada?

        — Tudo bem. Tanto faz. — ela chiou tomada pelo ressentimento. — Aja como uma princesinha então. — se Solo quisesse xingar porque inadvertidamente o insultara, dane-se. Problema dele. — Normalmente eu não diria algo assim, mas vou abrir uma exceção para você. Espero que aproveite sua solidão. O que quero dizer é que espero que engasgue e morra com ela!

 

        Suas últimas palavras faziam perfeito sentido. Solo estava sufocando em sua solidão. Sua mente se recusava a se acalmar, presa em um único pensamento. Ela gostara do seu beijo, quisera mais. Não porque se sentira endividada com ele ou porque desejara acalmá-lo. Apenas... porque.

        Quase desejou que ela não tivesse contado a ele. Agora seu corpo almejava o dela em um nível que jamais experimentara, um nível que devastava tudo o mais que sentia, como se ele nunca soubesse o que era desejar alguma coisa. Agora sabia.

        Ele a queria desesperadamente.

        Precisava dela urgentemente.

        Ele tinha que tê-la. Não podia se segurar por muito mais tempo.

        Mas tinha que aguentar. Não por qualquer uma das razões que antes imaginava, mas por outra. Razão nº 103. Ele já reagira de forma terrível quando ela estava ferida. Se a tomasse, ele se apegaria ainda mais a ela, e se isso acontecesse não estava seguro de qual seria sua reação quando Jecis viesse levá-la. E Jecis viria.

        Solo precisava pensar qual seria o melhor caminho, a melhor forma de lidar com isso.

        Vika se movera até o canto mais distante da jaula onde os raios de luz eram mais fortes, mas menos insetos se aproximavam. Ele tomara o centro e agora se deitava de bruços. Ele equilibrou seu peso em suas mãos e pés e empurrou para cima, abaixou-se, empurrou de novo, trabalhando a tensão em seus braços.

        Pela centésima descida, uma lenta queimação atingia seus bíceps. Ele fez mais duzentas flexões antes de rolar de costas e fazer um número equivalente de abdominais. Suor escorria por seu peito e costas em pequenas gotículas. Sua mente girava.

        Se Vika descobrisse seu passado… sobre seu outro trabalho… ela não confiaria mais nele e não o deixaria sair da jaula. Ela o jogaria no mesmo nível de crueldade que seu pai e Matas.

        Não entenderia a diferença entre matar por necessidade e à sangue frio. Mas então, ela não precisaria, percebeu um segundo depois. As mortes que causara nem sempre foram necessárias. Às vezes tirara a vida de inocentes para chegar a seus alvos — e aquelas mortes foram operadas à sangue frio.

        Aquelas foram as tarefas que deixaram um filme negro de ácido sobre sua pele.

        Aquelas também foram as tarefas que o fizeram questionar sua linha de trabalho, debatendo-se sobre deixar a agência. E de fato ele a teria deixado há muito tempo, não fosse por John e Blue. Eles precisavam dele.

        — O que você está fazendo? — Vika perguntou, dando um fim ao tratamento frio.

        — Exercitando. Trazendo oxigênio para o meu cérebro. — E talvez estivesse funcionando.

        Seus pensamentos de repente saltaram de uma estrada curva para uma mais reta. E daí que ele reagiu de forma terrível quando ela estava ferida? E daí que se apegasse mais a ela? E daí que ela não ficaria feliz quando soubesse de seu antigo trabalho? Nenhum outro homem a beijara. Nenhum outro homem a abraçara. Solo foi o primeiro. Um sentimento de possessividade cresceu dentro dele, consumindo-o.

        Solo seria o único.

        Ele a teria, decidiu, e seus movimentos diminuíram. Aproveitaria qualquer que fosse o tempo restante que ainda tivesse com ela nessas terras. Seria seu homem e ela seria sua mulher.

        Sua mulher. Oh, como gostava do som daquilo. Trabalharia para que fosse assim. O que quer que fosse preciso.

        Com a decisão, alívio o preencheu, e dentro dele, onde o instinto pulsava, uma intuição de repente floresceu. Isso era certo. Era para ser.

        A revelação deixou-o. Antes ele tinha intuições desse tipo todos os dias, uma sabedoria interna que nada tinha a ver com uma voz externa. A verdade crescia dentro dele, motivando-o a fazer exatamente o que precisava fazer para sobreviver — e não apenas sobreviver, mas prosperar. Vá ali. Não vá ali. Faça isso. Não faça isso.

        Mas depois de muitos estímulos para fazer coisas que não exatamente queria fazer — recusar um emprego, ficar longe de John e Blue por um certo período — ele começou a pensar mais racionalmente. Talvez tenha entendido mal, dizia a si mesmo. Talvez apenas sentisse falta disso.

        Depois que ignorara muitas intuições, elas simplesmente pararam de aparecer, e tivera apenas X para guiá-lo. Convencera a si mesmo de que estava mais feliz assim. Mas não estava. Ele ignorara sua companheira e tomara decisões estúpidas, como ficou evidente na explosão do escritório de Michael. Bem, não mais. Não ignoraria mais nenhuma intuição. Não dessa vez. Essa estava certa, e ele conquistaria a confiança de Vika.

        Antes ele a assustara, foi longe demais, rápido demais. Solo preferia apodrecer nessa jaula até o fim da sua vida do que assustar Vika de qualquer maneira. Nunca quis que olhasse para ele da mesma forma que seu pai e Matas. Ele iria devagar dessa vez, iria tranquilizá-la em cada experiência nova.

        E não havia hora melhor para começar. Ele se levantou, seus olhos se fixando em sua bela Vika. Alvo marcado. Pobrezinha.

        — O que? — ela perguntou, remexendo-se, desconfortável. — Não que eu esteja falando com você.

        O tratamento frio não terminou, afinal.

        — Estou pensando.

        — No quê?

        — No nosso acordo. — ele olhou-a de cima abaixo, essa princesa que viera salvar a fera. Cabelo loiro embaraçado sobre um rosto sujo de poeira. As mãos dela retorciam nervosamente o tecido da camiseta. Ele definitivamente teria algum trabalho com as preliminares. Mas... ele não se importava. De fato, estava encantado com isso.

        Ele queria mais do que sexo.

        Ele queria acalmá-la e confortá-la, falar e rir com ela. Ele queria... tudo. Sua mente, suas emoções, seus pensamentos, esperanças e sonhos. Queria conhecê-la, cada pequeno detalhe, e contar a ela sobre si mesmo. Nunca sentira nada disso com uma mulher.

        Queria saber sobre o homem invisível que ela mencionara. Quis perguntar na hora, mas não se permitiu fazer isso. Aquela linha de raciocínio apenas a convidaria a perguntar sobre X e o Dr. E, e não estava pronto para confessar. Ela tinha um protetor como ele? Tinha um atormentador?

        — Bem. — ela bufou. — Não há nada que possa dizer que me faça falar com você novamente.

        Os lábios dele torceram com uma surpresa que era tão potente quanto seu desejo, assustando-o.

        — Vou pensar em algo.

        — Quer apostar?

        Oh, Vika. Você é muito adorável para descrever.

        Agora que decidira tê-la, adorável não era mais algo tão terrível.

        Solo considerou suas opções. Como exatamente se supunha que um homem como ele cortejasse uma mulher? O que podia dar a ela que já não tivesse?

        Bem, podia pensar em uma coisa que ela nunca recebera. Um pedido de desculpas. Determinado, ele fechou a distância entre eles e sentou-se bem em frente a ela. Vika se recusou a encontrar seu olhar. Ele pegou suas bochechas em suas palmas, parando para sentir a maciez da pele dela, e então forçou-a a olhá-lo.

        — Me desculpe sobre antes. — ele disse com a voz rouca. — Eu gostaria de receber beijos seus, ainda quero. Você é uma linda mulher, e eu a quis desde a primeira vez que te vi, mesmo sendo minha cuidadora.

        Os olhos dela aumentaram a cada palavra.

        — Você me quis, mesmo que eu sendo...

        — Tão pequena quanto um moleque de 12 anos? Espertinha? Sim, mesmo assim.

        Com a expressão confusa, ela enrolou seus dedos ao redor do pulso dele.

        — Fale a verdade. Mesmo que eu seja a filha de Jecis?

        Neste momento, ela não era a filha do dono do zoológico. Era a mulher de Solo e nada mais. Mas assim como a questão física do relacionamento deles, ela não estava pronta para aquele tipo de paixão ou uma possessão tão intensa. Então fez a única coisa que podia fazer. Ignorou a pergunta e mudou de assunto.

        — Só pra que saiba, ganhei nossa aposta. Você está definitivamente falando comigo.

        Um momento se passou. Um tímido sorriso iluminou o rosto dela.

        — E você está perdoado por antes.

        — Fácil assim? — claro que não. Se ela fosse como ele, manteria uma lista de suas transgressões, quer se desculpasse ou não. Depois de três, ela lavaria as mãos com ele. Mas então, ninguém conseguiria manter um relacionamento quando se mantinha uma lista. Os registradores estavam sempre muito conscientes do mau para se concentrar no bom.

        — Você parece surpreso e desconfiado. — ela disse, seu sorriso aumentando. Ela não podia ser uma mera mortal; simplesmente não podia. — Não sei por quê. Você usou o tom de voz mais pidão quando se desculpou, praticamente transbordava sinceridade. Tenho certeza disso.

        Ele riu com sensível deleite, despreocupado de uma forma que jamais esteve, mesmo fora dessa jaula. Mas o som foi cortado bruscamente assim que percebeu o que estava fazendo, e só o crepitar do fogo e o zumbido dos insetos podia ser ouvido.

        Ele tentou seduzi-la, mas foi ela quem o seduziu.

        — Quero jogar um jogo. — Solo disse um tempo depois. Ele tomou um pouco de tempo para fortalecer-se contra o charme de Vika, porque sabia que não poderia encantá-la se era sempre ele que saía encantado. Achou que estava pronto.

        — E sempre consegue o que quer? — ela respondeu, erguendo o nariz no ar.

        Ele achou errado.

        — Isso é um gesto? — ele perguntou, lutando contra um sorriso. — Parece um gesto de uma princesinha.

        Ela engasgou com divertida raiva.

        — Como se atreve! Eu não faço gestos de princesinha!

        Não rirei de novo. Ele sentou-se diante dela, uma posição que gostava. Ela estava perto o suficiente para que sentisse seu cheiro, tocasse, mas longe o bastante para não se sentir tentado a pular em cima dela — mais do que algumas vezes.

        — Diga-me. O que faz no seu tempo livre?

        Sua sobrancelha franziu, o clima de brincadeira sumindo.

        — Não entendo. Qual a importância disso? E o jogo?

        — Estamos jogando agora.

        — Oh. E é…

        — Jogo das perguntas.

        — Oh. — ela repetiu, ainda surpresa e um tanto confusa. — Bem, quais são as regras?

        — Apenas uma. Se eu te perguntar algo, você tem que responder.

        O entendimento caiu e ela piscou seus olhos travessa.

        — Bem, boa sorte. Estou jogando para ganhar.

        — Eu também. — e ele planejava ganhar mais do que o jogo.

        — Faça sua pergunta número 1 e ouça-me dominar.

        Ele gostava de vê-la assim. Animada. Talvez até feliz.

        — Eu já fiz.

        — O que... ah, sim. — brincando com as pontas do cabelo, ela disse: — Nos dias em que sou forçada a permanecer no trailer eu conto meu dinheiro e planejo meu futuro. E você?

        Ele se obrigara a olhar para tudo, menos suas mãos. Suas lindas mãos. Tão gentis, tão femininas. Capazes de entregar o mais inegável prazer, ele tinha certeza disso.

        — Cuido da minha fazenda.

        Sua boca formou um grande O e seu olhar viajou sobre ele.

        — Você não se parece com um fazendeiro.

        Talvez não devesse olhar para sua boca também.

        — E você já encontrou tantos de nós assim?

        — Bem, não. — ela sentou-se sobre os joelhos, praticamente pulando de entusiasmo. — Você viu como respondi rápido? Estou ganhando, certo?

        Os músculos em seu estômago contraíram quando ele disse:

        — Você está definitivamente perdendo. E estou definitivamente ganhando.

        Ela franziu a testa, e ele teve que lutar contra outra risada.

        — Como? — ela exigiu.

        — Quanto mais perguntas você fizer a pessoa responder, mais pontos ganha. Eu fiz mais perguntas.

        Os olhos dela se estreitaram, dois lasers prendendo-se nele.

        — Talvez eu tenha interpretado mal as regras.

        — Compreensível. Você é estrangeira.

        — Mas talvez eu tenha interpretado certo. — ela adicionou. — Você não pode mudá-las quando bem quiser.

        — Eu posso, também. Fui eu quem inventou o jogo.

        — E qual é o placar, Sr. Inventor?

        — Quinze a um. — ele disse, escolhendo um número não tão alto que ela não pudesse alcançá-lo, mas não tão baixo que pudesse ultrapassá-lo. — Mas como sou um cara legal, vou deixar você fazer a próxima pergunta. Certo?

        — Certo.

        Ele assobiou com falsa pena.

        — Mais dois pontos para mim. Um porque você respondeu uma pergunta desnecessária e outro porque caiu no meu truque. Mais sorte da próxima vez.

        — Seu pequeno trapaceiro. — ela disse com uma bolha engasgada de alegria que fez todos os músculos do estômago dele contrair de novo. Ela bateu um dedo no queixo, iluminando-se de repente.

        — Oh, já sei! Você me contaria sobre sua fazenda?

        — Claro.

        — Peguei você! — ela disse, em uma voz cantante. — Outro ponto para mim.

        Não vou rir.

        — Fica a milhas de distância de qualquer outra residência, e é cercada de espécies raras de árvores. — a maioria das florestas foram completamente queimadas durante a guerra entre humanos e extraterrestres. — Há uma fonte natural cheia de peixes, e os pássaros voam com frequência por ali. Há diversas flores e arbustos com vegetais, e um coelho safado que gosta de arruinar os dois. Eu dei a ele o nome de Homem Morto Pulando.

        Com a expressão brilhante de encanto, ela disse:

        — Nunca ouvi falar de tal lugar, e não posso nem imaginar como deve ser.

        Talvez um dia ele a levasse até lá.

        A ideia surgiu, e ele congelou. Uma vez pensou em prendê-la ali, mas agora... sabia que não faria tal coisa. Gostaria de tê-la lá sim, mas queria que fosse por vontade própria e que ela estivesse feliz e sorridente. E nua.

        — Você tem algum talento oculto? — ela perguntou, não ciente do tumulto interno dele.

        Ele tinha muitos talentos ocultos, mas havia apenas um que podia compartilhar sem assustá-la tanto.

        — Posso lutar contra um touro com as mãos nuas.

        — Sério?

        — Sério.

        — Peguei você! São quatro pontos para mim e usando seu próprio truque contra você, e em sequência. — ela disse com um sorrisinho. — E antes que possa perguntar, eu direi. Meu talento oculto é dar um mortal de costas.

        Ele... não fazia a mínima ideia do que era aquilo.

        — Um dia vou querer ver.

        Em um instante, toda a diversão dela se foi. Seu brilho morreu.

        — O que? — ele exigiu, não seguro do que fez de errado.

        — Essas palavras... — ela murmurou. — “Um dia”. Odeio-as.

        — Por quê? São tão inocentes.

        Ela sacudiu a cabeça, ignorando a pergunta.

        — Qual é, uh, sua lembrança favorita?

        Ele a queria de volta do jeito que ela estava e decidiu não forçá-la a dizer a verdade. Não ainda. Ao invés disso, inclinou-se, pousando os lábios no vão de seu pescoço.

        — Vou contar, mas terei que sussurrar porque é pessoal.

        Ela ofegou, o movimento esfregando sua pele na boca dele.

        Ele gemeu. Tão macio, tão quente.

        Ela engasgou.

        — Diga-me.

        — E se eu dissesse que foi quando beijei você? — ele soltou, a garganta áspera e tensa.

        O pulso de Vika acelerou e ele recuou para ver sua expressão. Manchas de cor escureciam suas bochechas. Cor que anunciava excitação, não pânico. Exatamente o que esperava ver.

        — Foi? — ela perguntou com a mão pousada no peito.

        — Sim. — e era verdade.

        — Eu diria que... — ela mordeu o lábio inferior e o sangue dele zumbiu de exaltação.

        Calma.

        Outro lento e luxuriante sorriso floresceu, iluminando seu rosto inteiro.

        — Eu diria que me deve outro ponto.

        Um minuto se passou antes que ele entendesse o que ela quis dizer, e quase engoliu a própria língua. Que pequena e malandra ninfa ela era — algo que ele gostava.

        — E você? Qual sua lembrança favorita? Tenha em mente que se você se recusar a responder, perde oito pontos.

        O mordiscar começou novamente.

        — Consigo um ponto extra se minha resposta for a mesma que a sua?

        Isso vai me matar.

        — Você consegue trinta pontos extras. — ele grunhiu.

        — Bom. — foi ela quem se inclinou dessa vez, hálito quente batendo em seu pescoço. — Porque é.

        A excitação aumentou, cegando, consumindo.

        — Vika...

        À distância ele ouviu passos. Gemidos, resmungos.

        Ele checou o céu, viu que o sol estava prestes a se pôr. Amaldiçoando em voz baixa, arrastou Vika para o centro da jaula.

        Os braços dela fraquejaram conforme lutava para se manter estável.

        — O que você...

        — Deite-se. — no momento em que a teve deitada de costas, esticou-se ao lado dela.

        — Os monstros.

        — Concentre-se em mim.

        Ela empalideceu, mas obedeceu.

        — Qual é o seu maior desejo? — ele perguntou para distraí-la.

        A jaula chacoalhou. Braços estenderam-se através das barras.

        Vika olhou, aterrorizada.

        Solo pousou sua palma contra a bochecha dela, forçando-a a prestar atenção nele. Ele maravilhou-se novamente com a textura perfeita de sua pele, com a pureza de suas feições.

        — Você quer que eu ganhe?

        Ela balançou a cabeça, engoliu em seco.

        — Bem... por muito tempo eu quis um irmãozinho. Então depois que meu pai mudou, fiquei feliz por ser filha única. Nunca quis que outra criança sofresse com a ira de Jecis.

        — Ele não foi sempre assim? — Solo perguntou, seu dedão acariciando seus ossos delicados. Enfim, ele estava ao lado dela, sua suavidade pressionada contra sua brusquidão, e ela estava acordada — mas ele não podia tê-la.

        — Não. Ele mudou quando assumiu o circo. Não era quem supostamente deveria tomar o cargo, porque tinha um irmão mais velho. Mas meu avô e meu tio morreram lutando um contra o outro na concessão de posse. Jecis foi então encarregado com os holofotes, e creio que tenha agarrado as rédeas do controle com as duas mãos.

        A mudança deve ter assustado uma garotinha despreparada para o que estava por vir.

        — Eu sinto muito.

        O sorriso dela foi terno, triste e doce ao mesmo tempo.

        — Obrigada.

        Um dos monstros enfiou uma perna através das barras para tentar chutá-los para o outro lado onde outros monstros aguardavam, esperando para agarrá-los. Este era um movimento novo. Um que não apreciava, especialmente quando estava fazendo um progresso tão doce com Vika.

        Raiva criou faíscas em sangue já quente, as chamas rugindo e se alastrando.

        Ele agarrou o monstro pelo tornozelo e puxou com toda sua força. A perna separou-se do corpo e ele atirou o membro através das barras.

        Ele se arrependeu imediatamente. Sangue escorria pelo chão da jaula. Pior, Solo transformou-se parcialmente. Sua pele agora estava vermelha e garras e dentes projetavam-se para fora. Vika devia estar assustada além d...

        — Você tem um melhor amigo? — ela perguntou, como se nada tivesse acontecido.

        Por um momento, ele apenas pôde permanecer ali, encarando-a.

        — Você não quer falar sobre o que acabou de acontecer?

        — Por que faria isso?

        — Acabei de arrancar... quer dizer, acabei de ajudar aquela criatura a perder vinte quilos em menos de um segundo.

        — Eu sei. Você me salvou. De novo. Melhor amigo. — ela disparou.

        Talvez ela sempre fosse surpreendê-lo.

        — John e Blue. São como irmãos para mim.

        — E os nomes tatuados no seu braço?

        — Mary Elizabeth e Jacob. Meus pais. Eles morreram em um acidente de carro.

        Uma dor em seu peito.   Simpatia nos olhos dela.       

        —Eu sinto muito.   

        —Daria qualquer coisa para tê-los de volta para sempre. Ou pelo menos, tê-los de volta por cinco minutos, só para poder dizer o quanto eu os amei e sinto muito por meu comportamento.

        — Tenho certeza que eles sabiam o quanto você os amava.

        Esperava que sim.

        — Eu saí de casa com dezessete anos quando descobri o quanto eles recebiam para cuidar de mim. Pensei que eram gentis comigo por causa do dinheiro e não porque possuíam algum afeto por mim. — uma suposição que o Dr. E encorajara. — Mas minha mãe me ligava pelo menos uma vez por dia. No começo eu a ignorei, mas ela jamais desistiu. Começamos a nos falar de novo, e ela me contou que eles puseram cada centavo em uma conta para mim. Eu me senti tão mal, tão idiota.

        — Mas aposto que ela o perdoou na hora.

        — Perdoou. — e Solo passou a amar Mary Elizabeth Judah muito mais. — Mas um dia ela não me ligou e eu estava fora em... não podia ligar para ela. Seis dias se passaram antes que eu conseguisse um telefone. Ela não respondeu. Voltei à fazenda... e descobri ela e meu pai dentro da caminhonete amassada contra uma árvore no meio da propriedade, seus corpos jogados sobre os assentos. — Ele não sabia o que causara o acidente. Não foi um freio quebrado. Ou tiros.

        Eles estiveram ali por sete dias.

        Depois da autópsia foi revelado que seu pai teve um ataque cardíaco ao volante e Mary Elizabeth morrera no impacto, seu lado do veículo recebendo a maior parte dos danos.

        — Oh, Solo. Eu sinto tanto. — Vika disse novamente. Ela pegou suas bochechas nas palmas das mãos como ele fizera com ela. — Tamanha perda... é algo terrível, algo que dói em você de um jeito indescritível.

        Sim.

        — Você tem um melhor amigo? — ele perguntou, mudando de assunto antes que se desmanchasse. Não queria que ela o visse dessa forma.

        — Eu... bem... hmm...

        Claro que tinha. Ela era tão adorável, tão gentil e perfeita. As pessoas deviam venerá-la.

        Entretanto, ela crescera em um lar abusivo e tal contexto poderia corromper a mente de uma pessoa. Como com a de John Sem Nome. Solo testemunhara, sem esperança, como o alegre e amável garoto que conhecera pela primeira vez no escritório de Michael há tantos anos atrás se tornara rapidamente quieto e contido. E então as explosões começaram. Toda vez que alguém o tocava, John reagia com uma ira que nem mesmo Solo havia expressado.

        Solo não fazia ideia do que foi feito com o garoto que John fora, mas, como muitos criminosos que Solo estudara ao longo dos anos, podia adivinhar. Mesmo depois que Michael tirara John daquela casa e colocara-o em um local seguro, o garoto não abaixou a guarda. De fato, tornara-se ainda mais determinado a manter-se isolado.

        John não confiava em ninguém, não acreditava em ninguém e acreditava no pior de todos aqueles que encontrava. Aquilo não era forma de viver.

        Ainda assim, era exatamente como ele mesmo vinha vivendo, Solo percebeu.

        Solo não tinha certeza do que era pior. Se a determinação dele e de John de permanecerem sozinhos ou a de Blue de encontrar alguém, qualquer um. Ao longo dos anos o rapaz trocara de mulheres como se fossem lenços descartáveis. Vivera com uma mulher por um ano e agora estava noivo de outra, mas não fora fiel a nenhuma delas, escolhendo o trabalho acima do romance, sempre fazendo o que Michael dizia para ele fazer.

        Eles todos fizeram.

        — Quer a verdade?

        Ele retirou-se de sua própria cabeça.

        — Sempre.

        Suavemente, ela admitiu:

        — Você é o único amigo que eu tenho.

        O fato o inundou de humildade.

        — Considero isso um privilégio, Vika.

        Ela tateou em volta até que encontrou sua mão e então entrelaçou seus dedos, chocando-o, maravilhando-o. Ele nunca segurou a mão de uma mulher, nem mesmo a de Abigail.

        Trouxe os dedos dela aos seus lábios, beijando cada um deles.

        — Você teria gostado de John e Blue, eu acho. Nós nos conhecemos desde os cinco anos de idade e sempre cuidamos um do outro. Eles são grandes como eu, e são fortes, mas te protegeriam com suas vidas. — ele só precisava pedir.

        O rosto dela suavizou, tornando-se sombrio.

        — Uma vez tive amigos assim. Eram os animais que eu cuidava. Os leões e macacos e ursos.

        Essa pequena doçura lidara com perigosos predadores?

        — Eles já te feriram?

        — No começo eles eram muito desconfiados. Mas aí passamos a nos conhecer melhor e tudo mudou. — a sombra foi embora, dando lugar a uma névoa sonhadora que contagiava até sua voz, e ele não ficaria surpreso se descobrisse que ela saíra de um livro de contos e os animais a seguiram, labendo seus pés.

        — Você os amava.

        Mas até a névoa desapareceu.

        — Sim. — ela disse, apática.

        — O que aconteceu com eles?

        — Eles morreram. Fim. — as palavras, tão bruscamente proferidas, contaram a ele muito mais do que ela provavelmente pretendia.

        — Vika. — ele disse. Nisso ele insistiria. Tinha que saber. — Estou disposto a te perdoar tão facilmente quanto me perdoou, e você não terá nem que se desculpar.

        As sobrancelhas dela franziram.

        — Pelo quê?

        — Por... — fazer meu corpo arder e minha mente desejar por um futuro impossível —... me deixar interessado em seu passado e então não contar a história.

        Os lábios dela se curvaram em um sorriso sensual.

        — Você quer uma história?

        — Sim.

        — Dê-me uma primeiro. Como foi capturado?

        Quanto ele deveria contar a ela?

        — Uma explosão me deixou ferido. Um homem decidiu me vender para Jecis enquanto eu ainda estava muito fraco para lutar. Agora, como seus animais morreram?

        Um calafrio atravessou-a e ela nervosamente lambeu os lábios.

        — Meu pai.

        Como ele pensava.

        — Ele os matou. — era uma afirmação, não uma pergunta.

        — Matou... bem na minha frente. Ele inclusive me fez atirar no meu leão, One Day[1].

        Um dia. Por que essas palavras eram tão... ah. Ele entendeu. As palavras a lembravam de seu mascote, do que ela perdera, do que fora forçada a fazer.

        Solo podia sentir os ossos de seus dedos se curvando, sabia que era apenas questão de tempo antes que as unhas de sua mão esquerda se enterrassem em sua bonita bochecha e as unhas de sua mão direita se enterrassem em seu cabelo. Ele retirou ambas, pousando suas palmas nas têmporas dela.

        A ação não devia ser provocante, mas foi. Ele a cercou, era tudo o que ela podia ver.

        — Conheci pessoas como seu pai. — ele disse. — Se você permanecer no circo, Jecis vai acabar te matando.

        Manchas gêmeas de rosa pintaram suas bochechas, e se eram originadas de raiva ou de vergonha, ele não tinha certeza.

        — Não foi ele quem me bateu dessa vez.

        — Eu sei. Foi Matas, mas seu pai já te bateu. Não é?

        Ela pressionou os lábios, recusando-se a responder.

        — Sim. — ele respondeu por ela. — Você não merece o que eles fazem com você, Vika. Você precisa deixá-los.

        — Eu vou. — ela disse com uma determinação que ele esperava dela. — Eu disse, pretendo fazer isso. Estive vendendo tudo de valor que posso, guardando e escondendo dinheiro o mais rápido que posso para comprar uma nova identidade e ser capaz de me sustentar. Eu tenho que ser capaz de me sustentar sozinha. Não tenho nenhuma habilidade e não posso me colocar sob o controle de outro homem novamente.

        Ela queria fugir, ele sabia, mas estava tentando de maneira esperta atingir sua meta, coisa que ele desconhecia. Boa menina. Estava orgulhoso dela e extremamente aliviado.

        — Você quase cortou minhas bolas quando eu te agarrei. — ele lembrou. — Acho que sabe se cuidar sozinha.

        — Eu também feri Matas. — ela sussurrou, com um pingo de vergonha.

        — Estou grato. — ele respondeu, claramente surpreendendo-a.

        O sol começou a nascer e os monstros a ir embora. Timing perfeito.

        — Você não tem confiança, entretanto, e posso curar isso. — ele se levantou, ergueu a mão e balançou seus dedos na direção dela. Isso é perigoso. Se tocar nela, não será capaz de impedir a reação de seu corpo. Desejo irá te consumir. Você a forçará a coisas para as quais não está pronta. — Vou te ensinar tudo o que precisa saber.

 

       Solo esperou.

       Vika resistiu, claramente insegura.

       — Você tem um bom coração e merece ser estimada. — ele disse. — Até que isso aconteça.

       Ela franziu a testa, olhando-o com cautela.

        — Violência nem sempre é a resposta. Estou muito fraca pra me defender contra os músculos e a força de um homem. Tentei e olha o resultado.

       Ela reuniu sua coragem uma vez. Arriscou tudo. Podia fazer isso novamente.

       — Você está certa. Violência nem sempre é a resposta. Mas às vezes violência é a resposta. Nunca procure uma briga, Vika, mas quando se tratar de algo como a sobrevivência, não recue quando estiver procurando por você. Seu adversário simplesmente continuará voltando para mais e as coisas ficarão piores. Eu sei que entende e aceita isso em algum nível ou teria reagido ao que fiz com o monstro.

       Passou um instante. Ela movimentou a cabeça e sussurrou.

        — Mas se eu tentar, vou continuar perdendo.

       — Claro que você vai. Nesse instante você está lutando por sentir a derrota. Tem experimentado os mesmos resultados por tanto tempo que não espera mais qualquer coisa diferente. — Ele agia da mesma maneira. Deu uma olhada nela e chegou à conclusão de que poderia nunca querê-lo. Ele agia daquele modo também. Falava daquele modo.

       No momento ele decidiu lutar por eles, as coisas tinham que começar a mudar entre eles. Conversaram e riram. Ficaram mais íntimos. Em breve ele teria suas mãos por todo o seu corpo.

       — Você tem que se esforçar e se levantar novamente. — Ele manteve seu braço estendido como se estivesse contando para ela uma das histórias que sua mãe costumava ler para ele. Era uma de suas favoritas, sobre um gigante espadachim que levou um exército inteiro a tremer de medo. Ao longo, veio um jovem rapaz que, sem nenhum treinamento formal, conseguiu matar o gigante só com um estilingue e uma pedra, salvando o exército inteiro.

       Enquanto Solo falava, interesse faiscava nos olhos de Vika.

        — E você acha que alguém como eu poderia salvar um exército?

       — Darei a você algo melhor que um sim ou um não. Darei a você algo pra pensar. Temos que admitir que ambos acreditamos na existência de outro mundo em operação ao nosso redor. Eu vi isso.

       — Eu também! — Ela disse.

       Seu entusiasmo o fez sorrir.

        — Humanos, extraterrestres, não importa. Lá dentro, somos seres de espírito. Temos almas e corpos.

       — É isso que eu pensava!

       — Você é um espírito eterno; tem uma alma, sua mente, vontade e emoções e vive em um corpo que vai envelhecendo. Seu espírito é afinado para o mundo não visto. Por qual outro motivo você acha que pode enxergar nele?

       — Como você sabe disso? — Ela perguntou.

       — Minha mãe me ensinou. — E também X e Dr. E. — Eu não estava certo se acreditava nela no início, mas estudo intenso provou que ela estava certa. — Queria saber mais sobre as criaturas que o seguiam. Saber se ele era ou não louco.

       — Vá em frente. — ela disse, claramente com interesse intensificado.

       — Como espíritos, temos mais direção do que percebemos. Ouça profundamente dentro de si mesma. Existe um conhecimento que supera as emoções e capacidades mentais. Saber disso levará você à vitória em todas às vezes, se prestar atenção a ele...

       Ela fechou os olhos, concentrada. Um segundo se passou, dois. Suas pálpebras se abriram e ela fechou o cenho desapontada.

        — Eu escutei, mas não senti nada.

       — Às vezes é preciso tempo e prática, deixando de fora o resto do mundo, o barulho.

       Seus lábios franziram com uma pitada de irritação.

        — Há um problema com sua teoria: não ouço qualquer barulho.

       — Na verdade, você faz em sua cabeça. — ele disse, e ela não podia refutar. — Todo mundo batalha seus pensamentos em um momento ou outro. Pensamentos negativos, pensamentos ilícitos, pensamentos maus. Você tem que botá-los pra baixo e se recusar a insistir neles.

       — Por quê?

       — Se entretiver um, dará boas-vindas a outro, e quanto mais fizer isso, mais fortes eles se tornam, desenvolvendo raízes grossas e galhos espessos até que não possa mais ver através da floresta escura em sua mente. — Ele sabia disso em primeira mão.

       Ela deliberou por um momento, movimentou a cabeça.

        — Você está certo.

       — Sempre.

       Ela bufou.

        — Então o que aconteceu com o menino depois da luta?

       — Tornou-se um símbolo de vitória para seu povo e posteriormente foi coroado rei. Agora, permita-me ajudar você, Vika. Existe uma razão muito boa para que eu tenha sido colocado em sua vida. Além disso, se quiser uma vida diferente, tem que fazer algo diferente. — As palavras fizeram-no parar. Estava começando a soar como X.

       Bem, não era uma coisa tão ruim.

       Solo acenou com os dedos. Seria cuidadoso sobre seus danos, mas a ensinaria da maneira que Michael o ensinou: combate corpo-a-corpo, infligindo o que fosse necessário para forçar o conhecimento para o bem do instinto.

       — De verdade? — Ela perguntou.

       — De verdade. Deve sempre estar pronta para se defender do que vem contra você, e aprender as regras da batalha é um bom começo.

       Ela deliberou um instante mais, suspirando.

        — Oh, tudo bem, mas só porque sempre quis ser rainha. — Sua mão escorregou para a dele e suavemente arrastou-a para seus pés. Ela respirou fundo, nitidamente balançando e ele envolveu um braço ao redor de sua cintura para mantê-la na vertical.

       No seu âmago em redemoinho, ele queria gritar com satisfação. Uma bonita fêmea — esta bonita fêmea — encostada nele, descansando a cabeça na cavidade do seu pescoço, confiando nele.

       — Só preciso de um momento para me firmar. — ela murmurou.

       Ele acariciou a linha de sua coluna, a curva requintada de sua cintura, e teve que ranger os molares para impedir-se de gemer. Lento e com calma, lembrou de si mesmo. Sabia que isso seria difícil.

       — Você é tão quente. — ela disse.

       — Desculpe. — ele disse, mas sabia que ela não poderia ouvi-lo.

       — É muito bom.

       Realmente vai me matar.

       — Isso não vai me fazer como meu pai, não é? — Ela perguntou.

       E lá estava o cerne da questão, ele percebeu. Moveu sua mão pra cima, mais pra cima, e ergueu seu queixo.

        — Ele luta para infligir dor. Você luta para salvar. Não é nada parecida com ele, e nunca será.

       Lágrimas de gratidão encheram seus olhos e seu coração de repente se sentiu como se estivesse sendo espremido por um punho de ferro.

       — Pronta? — Ele perguntou. Se esperasse mais, eles não chegariam a lutar.

       — Pronta.

       Pelas próximas várias horas ele ensinou-a como — corretamente — fazer um punho, exatamente onde um peso leve como o seu poderia esmurrar um homem para infligir mais dano, incapacitar e como utilizar até o mais inocente dos itens para retardar um atacante.

       Estava tímida no início e assustada a ponto de tremer, mas logo encontrou um centro de força e reuniu seus ataques com vigor. Absorveu tudo que ele disse e concentrou-se com todo seu ser para fazer o melhor que pudesse.

       — Você continua dobrando seu polegar debaixo dos dedos. — ele disse. — Não faça isso. Vai quebrá-lo.

       — Veja! Uma vez eu disse a você que quebrar era ruim, mas fingiu que não acreditava em mim. — Uma vez mais ela fez um punho adequado. — Gostou?

       — Sim. Agora balance.

       Ela fez, saindo e ao redor. Uma ação ineficaz que teria irritado seu atacante em vez de machucá-lo.

       — Não. Adiante. Um soco, soco. — Ele demonstrou o que queria dizer, então bateu os cumes de seu estômago. — Bata em mim.

       Seus olhos se arregalaram, ametistas brilhantes apoiadas por veludo preto.

        — Não.

       — Sim. — A única maneira de deixá-la confortável com a luta era ficar de costas para ela para conseguir ser usado para bater carne de verdade. — Não seja uma princesa, doçura. Bata em mim como se fosse o único modo de libertar os extraterrestres.

       Esperava que ela fosse gritar com ele. Ao invés disso, esmurrou-o. Simplesmente quase o nocauteou nas tripas, não uma vez, não duas, mas três vezes. Se fosse qualquer outro homem teria se dobrado...

       — Bom. — ele administrou. — Está bom.

       Ela o esmurrou novamente.

       Ele pegou seu pulso, estudou-a, preocupado que pudesse reverter para seu medo antigo de se tornar como seu pai. Mas seu rosto estava corado e seus lábios entreabertos, à beira de um sorriso. Ela não estava para quebrar. Estava para comemorar.

       — Estou impressionado com sua... técnica. — ele disse.

       — Machuquei você? — Ela perguntou, estendendo seus dedos para alcançar seu estômago.

       Ele sugou uma respiração.

       — Estou surpresa que estes gatinhos não quebraram minha mão. — ela disse com o olhar trancado nos cumes de músculos. — Eles são tão duros.

       Bem, você não tem nem ideia.

        — Isto é um cãozinho. — ele corrigiu.

       — Gatinhos... cãezinhos... ambos são filhotinhos, portanto apropriado. — Ainda acariciando.

       Ele pegou sua mão antes da sessão de treinamento mudar de marcha.

        — Agora é hora de aprender o que fazer quando alguém tentar te bater. Vou me lançar pra você lentamente. — Muito, muito lentamente, cada centímetro medido. Desse modo, se ela falhasse em atender, ele conseguiria parar antes do contato. — Quero que se abaixe antes que eu te alcance, em seguida comece a preparar o golpe, ok?

       Um aceno com determinação.

       Eles realizaram a ação repetidamente até que ela pudesse se defender e atacar em sucessão rápida, sem parar para considerar seu próximo movimento. E oh, era magnífica enquanto trabalhava. Todo aquele cabelo dourado dançava ao redor de seus ombros, pelas costas. Seu peito subia e descia; sua camiseta logo ficou molhada de suor — dela e dele — fazendo o material colar em seus seios. Seus mais-que-um-punhado de seios.

       Seios que seguraria nas suas mãos. Um dia. Em breve.

       Ela chutou suas pernas e bateu em seus tornozelos juntos. Ele tropeçou para um lado, mas se segurou nas barras.

       Batendo palmas, ela deu saltinhos.

        — Eu consegui! Realmente consegui!

       — Com certeza.

       — Uau! Sou incrível! E tenho que dizer, é muito mais fácil do que eu esperava.

       Um grunhido alojou em sua garganta. Deveria ter sido mais difícil! Obtenha o controle de si mesmo, Judah. Ele era um assassino treinado. Poderia fazer melhor que isso.

       — Vamos levar isso até pontuar. — ele disse.

       — Estou pronta.

       Ele variou suas falsas batidas, forçando-a a pensar enquanto permanecia em movimento. Ela começou a antecipar seus movimentos antes dele saber em que direção estava indo. Uma técnica de sobrevivência que deve ter desenvolvido como filha de Jecis.

       Ficou muito triste e irritado por isso, mas orgulhoso do que ela realizou. Estava determinado a ensiná-la mais do que sobrevivência. Ele a ensinaria a vencer.

       — Você é muito bom nisso. — ela disse.

       — Tenho que ser.

       — Por quê?

       Uh-oh. Território perigoso.

        — Quando eu era pequeno, tive vários desentendimentos com humanos que ainda não aceitavam os extraterrestres vivendo neste planeta. Tive que aprender a controlar minha força, bem com infligir dano suficiente para me salvar.

       Ela colocou sua mão trêmula à altura de seu próprio coração e parecia prestes a explodir em lágrimas.

        — Isso é tão triste.

       Tão sensível à dor de outra pessoa.

        — É mais comum do que imagina. Mas Vika?

       — Sim?

       — Você não devia ter me deixado te distrair. — Solo entrou em ação derrubando-a no chão, segurando-a antes dela bater, impedindo que batesse a cabeça e prendendo-a no lugar. Não importava o quanto vigorosamente ela se contorcia, não conseguia se libertar. A tristeza deixou-a, pelo menos.

       Mas desejo tomou seu lugar.

       Ela cheirava a jasmim e hortelã, e ele precisava mais de ambos, mas um segundo passou, dois, e ele parou de respirar. Isto era muito importante para bagunçar. Até agora manteve seus toques apenas nos negócios, nunca deslizando os dedos pela roupa e passando sobre sua pele nua. Agora a restrição o pegou, seu próprio desejo fez alvoroço. Podia senti-la, cada centímetro dela. Podia sentir cada curva que previamente negou a si mesmo.

       — Quero beijar você. — ele disse.

       — Sim. Por favor.

       — Eu não farei qualquer outra coisa.

       — Ok.

       — Com medo? — Ele perguntou.

       — Não. — ela sussurrou.

       Ele olhou para seus lábios. Tão rosa e bonito, só uma leve sugestão de ferimento.

       Ela estava pronta?

       Rezou para que estivesse.

       Ele não conseguiria se conter.

       Inclinou-se e pressionou o mais suave dos beijos na sua boca. Suas unhas cravaram em seu tórax e ele não estava certo se queria afastá-lo ou arrastá-lo para mais perto.

       Bem, bem. Ele poderia parar. Levantou sua cabeça para olhar em seus olhos. Maravilhada, olhava fixamente para ele, mais preocupada do que nunca e tão emocionante quanto tentadora. Ela definitivamente não quis afastá-lo. Então fez novamente. Ele beijou-a demorando desta vez, e um necessitado gemidinho escapou dela.

       — Abra. — ele ordenou.

       No momento em que obedeceu, ele deslizou a língua em sua boca. E oh, seu gosto era primoroso, assim como se lembrava, como frutas do verão imersas em creme de leite fresco. Da última vez ele se tornou imediatamente viciado. Desta vez, foi mudado para sempre. Ele não poderia existir sem isso — sem ela. Era a única luz em uma vasta extensão de escuridão.

       O calor de seu corpo o envolveu. Seus dedos enredaram em seus cabelos e ela inclinou a cabeça para o lado, forçando um contato mais profundo. Como se precisasse forçá-lo. Ele tomou e deu. Ele bebeu dela, ganancioso, voraz, usando o que restava de sua força de vontade para manter suas mãos no chão ao lado de seus ombros.

       Ela começou a encontrar sua língua impulso atrás de impulso, aplicando mais pressão. Sua respiração ofegante entrosada com a dele, e ele gostou disso quase tanto quanto do beijo. Esteve tomando dela e ela estava tomando dele, e eles estavam se tornando um, mesmo de uma maneira tão pequena.

       Ele queria tocá-la.

       Tinha que tocá-la, nela toda, logo, logo, logo, e ele iria. Não haveria nenhuma parte dela que ele ignoraria.

       Mas não seria suficiente. Nunca seria suficiente — nada seria. Se a tocasse, ele a possuiria. E não podia se permitir possui-la em um chão manchado de sangue. Não hoje e nem amanhã. Não na sua primeira vez. Não com o trailer de Jecis ao lado de sua jaula. Não até que estivesse pronta, até que o arrependimento estivesse longe de ser um problema.

       E se ele não parasse agora, nunca pararia.

       Solo rolou para trás, sentando vários centímetros fora do alcance. Certamente foi a coisa mais difícil que já fez. Vika se sentou, seus dedos indo diretamente para a boca. Seus lábios pulsavam tão deliciosamente quanto os dele?

       — Não mais por hoje. — ele disse mais rispidamente do que pretendia.

       Seus dedos abaixaram e a ponta rosa de sua língua saiu, como se quisesse capturar mais de seu gosto.

        — Eu gosto de fazer isso com você.

       Matando-o. Ele se levantou, andou a passos largos para os suprimentos.

        — Beba. — ele disse e lançou a ela uma garrafa de água. — Você precisa ficar hidratada.

       Ela perdeu por centímetros e teve que se inclinar mais para buscar a garrafa de onde rolou.

       — Como sabia o que eu estava planejando fazer durante o treinamento? — Ele perguntou para se distrair.

       Ela lutou com a tampa à medida que disse.

        — Você me ignorou, mas eu deveria te responder?

       — Sim.

       Ela riu e era um som bonito embora enferrujado, e quando piscou surpresa, ele soube que ela não teve motivo para rir em um tempo muito longo.

        — Muito bem então. Recompensarei sua honestidade. — Ela bebeu metade da garrafa e fez sinal para ele tomar o restante. — O conhecimento que você me disse. Quando fiquei quieta dentro da minha cabeça, pude sentir as mudanças em seu corpo bem antes de você saltar em ação.

       — Bom. — Ela precisava de toda vantagem que pudesse conseguir. — Use esse conhecimento, não importa quanto seu oponente seja grande.

       Um aceno com a cabeça relutante saudou suas palavras.

        — Quem ensinou essas habilidades a você?

       — Um amigo.

       — John ou Blue?

       — Nenhum dos dois. Michael. John e Blue treinavam comigo.

       — Eles são como você?

       Ele sabia o que ela quis dizer.

        — Eles são extraterrestres, mas não da mesma espécie. — Este tópico normalmente o impelia à raiva. Ninguém sabia sobre os Allorians, e porque não sabiam e ele se recusou a dizer, inventaram nomes para sua raça. Mas Vika não quis dizer nenhum insulto, e sabia disso também. — Eu sou Allorian.

       Um curioso brilho naqueles olhos ameixa aveludados.

        — Você já esteve lá?

       — Não que eu me lembre.

       — Bem, você é definitivamente único. E estou falando da melhor maneira possível, é claro.

       — Eu sei. — Ele trocou de um pé para outro, de repente desconfortável. Em toda sua vida, quis que alguém diferente de seus pais gostasse dele por quem ele era. Por admirá-lo. E agora sua bela pequena humana estava fazendo isso, e estava inseguro sobre o que dizer ou como reagir. — Usará o que você aprendeu hoje?

       — Espero não precisar, mas sim. Se alguém vier para mim, vou saltar sobre eles como um Wolverine ferido com um fetiche de sede de sangue.

       Ele tentou conter sua risada, mas falhou.

       Vika suavizou a expressão.

        — Eu amo ver você assim. Assim... relaxado. E quero saber mais sobre você. — ela disse. — Quero saber tudo.

       E quis dar a ela qualquer coisa que desejasse. Enquanto esquadrinhava o crepitar das fogueiras, as colinas com suas árvores mortas e nodosas, ele disse.

        — Contei a você que possuo uma fazenda. Eu cresci realmente lá. Meus pais eram humanos e me adotaram.

       — Ah. É por isso que pensou que eles estavam sendo pagos para cuidar de você. Assumi era um costume alien.

       Ele sabia muito pouco sobre os Allorians. Só o que X disse a ele. Eles eram uma raça pacífica, muito amorosa. Muito jovial. Todo mundo tinha uma companheira, como X, até que fossem fortes o suficiente para cuidar deles mesmos.

       Talvez fosse por isso que Michael formou o par com os Judahs. Eles se ajustavam tão bem com seus antepassados.

       O casal mais do que adorava Solo. Eles mais do que adoravam um ao outro também, e no fundo ele sempre quis o que eles tiveram — o que acreditava que nunca podia esperar ter.

       — Eu ainda não posso imaginar você cuidando da terra. — Vika disse.

       — Fiz mais do que cuidar da terra. Criava animais. Não os clones que todos os fazendeiros criam hoje, mas a coisa real. Porcos, ovelhas, cabras, galinhas, vacas. Nós nos recusamos a vendê-los — algo que faria seus pais milionários —, porque esperávamos ajudar com o repovoamento.

       Ele ainda se recusava a vender. Felizmente, não teve que se preocupar com eles enquanto estava desaparecido. Sempre antes de uma reunião com Michael, ele contratava uma equipe para ver todas as suas necessidades.

       — Você foi abençoado.

       Muito. E ele desejava que ela sentisse o mesmo.

        — Quero outro voto de você, Vika. — Você não deveria fazer isto. Você sabe melhor. Ela acidentalmente poderia dar informações ao seu pai. Mesmo assim, ele disse. — Se nos separarmos, quero que vá para a fazenda. — Ele forneceu o endereço. — Memorize.

       Um sorriso enorme floresceu, apenas para cair em uma carranca de devastação.

        — Por que você me receberia lá?

       Por que a mudança nela?

        — Talvez eu precise de uma governanta. — Ele preferia mimá-la a vê-la fazer tarefas, mas esses detalhes poderiam ser trabalhados posteriormente. Primeiro ele teria que conseguir levá-la para lá — uma ideia que gostava mais a cada minuto que passava.

       — Eu. — Empalidecendo, ela esfregou sua garganta. — Quanto tempo você iria me querer lá?

       — Eu não sei. — Neste exato momento, não poderia não imaginar querendo-a lá. Em sua cama, de manhã e à noite, seu cabelo pálido espalhado pelo seu travesseiro, seu corpo leve aconchegado debaixo de suas cobertas. Seu cheiro de hortelã e jasmim penetraria o ar. Ele poderia protegê-la em todas as horas do dia e da noite, capacitá-la de maneira que floresceria como fez durante sua sessão de treinamento, observando o clarão iluminar seus olhos e o rubor escurecer suas bochechas.

       — O que aconteceria quando se cansasse de mim? Para onde eu iria? — Ela balançou sua cabeça, inflexível. — Não. Sinto muito. Não posso confiar na sua oferta. Eu sinto muito. — ela repetiu. — Se necessário conseguirei um trabalho em outro lugar. Sou altamente qualificada.

       Uh, um tempo atrás ela disse que não possuía nenhuma habilidade.

       — Em alguma coisa, quero dizer. — ela apressadamente adicionou. — Sou qualificada em alguma coisa. Certamente. Eu apenas... tenho que fazer isto sozinha. Lá fora, no mundo real, eu sou a única em quem posso confiar. E, além disso, eu disse a você. Estou economizando.

       — Você está com medo dos homens. Eu entendo. Mas não precisa.

       — Eu não tenho medo de homens! Eu vou ter... você sabe...

       — Preocupação na minha fazenda. — ele interrompeu, forçando-a a ficar quieta ou perder o que estava dizendo. — Você iria cozinhar, limpar e alimentar os animais. Você está acostumada a isso, não é?

       Sua boca se abriu e fechou.

        — Esse foi um golpe baixo.

       — Como assim? — Ele perguntou, confuso e irritado que ela não estava mais disposta. Que não parecia querê-lo tanto quanto a queria.

       Cílios marrons dourados fundiram juntos.

        — Você acha que só sirvo pra isso.

       — Eu não sei.

       Uma névoa branca espessa de repente rolou pelas grades, negro queimava nas extremidades, reivindicando sua atenção. O que...

       — Chegamos. — disse Vika, sua voz agora destituída de emoção. — A névoa deve limpar dentro da próxima meia hora e estaremos em nosso novo local

 

       Nunca Vika teria adivinhado que choraria a perda de Nolands. Mas fez, e teria dado metade do seu tesouro para voltar algumas semanas. Poderia ter dado todo seu tesouro para ficar para sempre. Em questão de dias, Solo se tornou uma de suas coisas favoritas em todo o mundo. Ele era ainda melhor do que chocolate!

       Ela não temia seu temperamento. Afinal de contas, irritou-o várias vezes, mas nenhuma vez a golpeou. Ela até o acertou, mas em vez de fúria ele mostrou como bater nele com mais força.

       Era pragmático e rabugento, mas também gentil e carinhoso. E tinha um senso de humor inesperado, que achava que ele não tinha. Que ela conseguiu trazer à tona, surpreendendo os dois. Ele mesmo ofereceu uma casa e um emprego, e talvez tivesse feito isso por pena, talvez tenha feito isso para fazê-la mudar de ideia a respeito de libertá-lo, mas ainda assim fez isso. Ele era um homem tão bom.

       Ela não deve tê-lo rejeitado com força, não devia ter ferido seus sentimentos, mas quando a súbita explosão de alegria que sua oferta trouxe desapareceu, novos medos apareceram. E se ela se mudasse, ele ficasse cansado dela e a chutasse para fora? Ou se ele se cansasse dela, deixasse-a ficar, e trouxesse para casa uma namorada?

       As mãos de Vika se enrolaram em pequenos punhos apertados só de pensar em Solo pressionando os lábios macios na boca de outra mulher.

       Por que se sentia assim? Não importa o quanto o quisesse, não importa o quão possessiva percebeu que era, não podia se permitir cair em um relacionamento já fadado ao fracasso. Sim, eles pareciam ter superado as circunstâncias que os fizeram ficar juntos. Sim, adorava passar o tempo com ele. Mas e o futuro? Como poderia fazê-lo feliz fora do circo?

       Seria melhor para ela ficar com seu plano atual. Comprar uma nova ID para si, encontrar a chave das algemas, livrar os extraterrestres de uma vez por todas e cortar seus laços com o circo. E se não a ID, então a casa, em Nova Colorado. Ninguém jamais seria capaz de chutá-la pra fora de sua própria terra ou escoltar a mulher que conquistou o coração de Solo à sua porta.

       A mão no ombro dela puxou-a de seus pensamentos.

        — Você está bem? — Perguntou Solo agachando-se ao lado dela, suas feições tensas com preocupação.

        Curiosamente, ela pode verdadeiramente dizer:

        — Sim. Por quê?

        — Olhe para si mesma.

       Ela olhou. Suas roupas estavam um pouco sujas, um pouco molhadas. Nada estava fora do lugar, mas ela estava tremendo de frio.

        O frio. Doce misericórdia, mas a temperatura tinha despencado. Ela percebeu que colocou os braços em torno da cintura, tentando aconchegar-se dentro de si mesma para se aquecer.

        — F-frio. — disse ela, dentes batendo agora que a realidade deu-se a conhecer.

       Solo, que não usava nada mais do que a tanga, seu único cobertor enrolado ao redor de seus ombros, puxou-a contra seu peito.

        Seu coração batia no ombro dela, acalmando-a. Ela poderia ter ficado em seus braços para sempre — e era exatamente por isso que tinha que se afastar dele. E ela o faria... depois de apenas um minutinho... não, dois minutos... três... ele era quente, um forno ambulante, e... e... e ele a beijou algum tempo atrás e ela ainda ansiava por outro, um loooongo e profundoooo.

       Ele foi o primeiro homem a estar disposto a arriscar-se à ira de seu pai só para estar com ela. Matas muitas vezes a reivindicou, sim, e até mesmo disse ao seu pai que estavam juntos, mas Matas nunca tentou nada. Solo, no entanto... ele devia realmente querê-la, porque embora Jecis controlasse seu destino, ele pressionou seus lábios nos dela com tanta delicadeza, como se ela fosse preciosa, talvez frágil, apenas para levantar e estudar sua expressão antes de voltar para um outro saborear. Um saborear muito mais intenso.  

                A memória só fez com que sua pele formigasse com saudade, suas entranhas doerem com necessidade. Oh, como ela doía.

        Não podia pensar nos beijos de Solo agora. A qualquer momento teria que enfrentar seu pai. O nevoeiro desaparecia e Jecis olharia para o monitor dentro de seu trailer e perceberia que não estava mais dentro do mundo entre os mundos, e surgiria. Não podia ser encontrada desfrutando de sua punição ou ela e Solo receberiam outra.

               — Eles não podem nos ver juntos como estamos. — disse ela, levantando a cabeça e movendo-se para longe dele.

                Ele abaixou o braço e acenou com a cabeça. Ela franziu a testa para ele. Seu rosto era uma máscara inexpressiva, não dando nenhum de seus pensamentos. E, no entanto, de repente ele irradiava uma extrema frieza que ultrapassou em muito o que soprava das montanhas.

        Um suspiro escapou dela quando a compreensão alcançou-a. Ele tomou suas palavras e ações como rejeição.

        — Solo. — disse ela.

       Ele ficou em pé, quilômetros de pele bronzeada à vista. Se ela estava com frio, ele devia estar próximo ao congelamento. De pé, ela desenrolou o cobertor e colocou o material em sua direção.

        — Aqui. — ela disse.

        — Não. — Ele balançou a cabeça, inflexível. — Fique com ele.

        Ela não podia ouvir sua voz, mas a vibração de suas palavras carregava um soco poderoso. Devia ter jogado cada uma como uma bola de beisebol.

       — Escute, você. Eu me movi para longe de você porque meu pai vai explodir se vir suas mãos em mim, e não vou permitir outra surra. — Depois de tudo o que Solo fez por ela, não seria capaz de suportar a culpa.

       Isso não relaxou sua postura.

        — Só pra você saber, não tenho medo dele. Mas não se preocupe. Eu entendo. Você e eu podemos ser amigos em privado quando precisar da minha ajuda, mas temos que ser meros conhecidos em público. Certo?   

        Oh, essa queimou!

        — É preciso se superar e parar com a birra agora.

        Seu olhar se estreitou sobre ela.

        — Vamos reunir todas as fichas de pôquer, certo?

        Ele piscou, uma reação diferente do que ela esperava.

       — Fichas de pôquer? Quer dizer que devemos colocar as cartas na mesa?

       — Não, não quero dizer que devemos colocar as cartas na mesa! Um novo jogo não pode começar até que todas as fichas estejam fora da mesa. — Por que ele sempre perguntava a ela sobre isso? — Estou tentando acabar com o seu mau humor e começar um bom, assim me ajude e ouça.

        — Muito bem. — Ele apertou os lábios, como se quisesse parar de... fazer cara feia? Ou rir?

       Tanto faz!

        — Aqui vai. Não sei como tirar você dessa situação confusa, e certamente não sei como lidar com o que está acontecendo entre nós. Depois de termos abandonado o circo e se você não me abandonar, e se ainda me quiser, e se não quiser mais nenhuma outra pessoa e me pedir para trabalhar para você, minha resposta pode ser diferente. — Podia ser, mas provavelmente não seria. Não que fosse dizer isso. — E não tenho vergonha de estar contigo. Embora devesse sentir! Você é tão tolo! Eu já te disse, mas vou dizer novamente. Não vou deixar você ser torturado simplesmente porque gosto de você. Por que não pode colocar isso na sua cabeça?

       O piscar iniciou de novo, embora seus olhos estivessem iluminados.

        — Você gosta de mim e deseja me proteger.

        Finalmente! Ele entendeu.

        — Sim. Sei que ficar longe não é muito, mas é tudo que posso fazer por você agora. Homem tolo. — ela murmurou.

        Ele parecia tão surpreso, sabia que muitas pessoas não se atreveram a chamá-lo de um nome tão irreverente, e que ela tinha acabado de provar o quão confortável se tornou com ele. Caso contrário, não teria arriscado sua crescente ira quando ele claramente não tinha medo de seu pai. Solo ponderou suas palavras por um momento, a luz no oceano azul ainda brilhando, iluminando.

        — Se você não for cuidadosa, senhorita Vika — ele disse —, nunca serei capaz de deixá-la ir.

        Ela... não tinha ideia de como responder. Mantê-la para sempre? Sua mente boba estava gritando, sim, por favor.

        Apesar de tudo.

        Voltei.

        A voz familiar sussurrou em sua mente e ela virou para a direita para enfrentar o locutor. Sua torrente inicial de alarme diminuiu quando viu uma pequena versão de cabelos escuros de X empoleirado em seu ombro. Ele parecia mais jovem do que antes, mais forte.

       Mas nunca antes viu isso claramente no outro mundo — enquanto estava em outra esfera — e não sabia o que pensar.

        Quando seu pai chegar, e ele vai, fará o que for necessário para escapar da jaula com Solo. Sua boca não se movia, e ainda assim suas palavras reverberaram dentro de sua cabeça. Você precisa sair. Agora.

       Mentiroso! disse o Dr. E, fazendo-a balançar para a esquerda. Ele também era agora uma pequena versão de si mesmo. Parecia mais velho do que antes, mais fraco.

        Você sabe que Solo será capturado. E se estiver com ele, vai ser capturada também.

        Um toque em seu ombro a fez girar para Solo — que estava bem na frente dela, a preocupação, mais uma vez irradiando dele.

        — Você está bem?

       — V-você os vê? — ela perguntou, esfregando as mãos pra cima e pra baixo nos braços.

        — Vejo quem?

       — Eles. — Ela olhou para a esquerda... Dr. E foi embora. Olhou para a direita... X foi embora. — Mas... mas... — Seus ombros caíram. — Não se preocupe.

        —O que você vê? — Insistiu ele.  

        Por duas vezes discutiram sobre outros reinos, mas nunca mencionou X ou Dr. E, embora ele tinha que conhecê-los. E ele era Allorian, e de alguma forma, durante o seu sonho que não era um sonho, ela apareceu em Alloris. Mas não seria a primeira a mencionar seus nomes. Solo exigiria saber o que disseram a ela. Ele concordaria com X, sabia que faria, e então teria que derrubá-lo mais uma vez. Apesar do fato de que ela sabia que X estava certo. Estava sempre certo. Mas ela não podia ver uma maneira de obedecê-lo.

       — Vika.

        Esqueça seu pai. Esqueça o futuro. Ela se jogou em seus braços. Eles provavelmente não ficariam juntos por muito mais tempo, e ela precisava saborear cada momento.

        Ele não se agarrou a ela. Ela sentiu uma vibração, sabia que ele estava falando.

— Eu não sei o que você está dizendo. E sinceramente? Não me importo. Se quiser me afastar, desculpe, porque vou ficar aqui. Apenas me abrace forte e me avise se ouvir alguém chegando.

       Alguns momentos se passaram antes que ele obedecesse.

        Um suspiro de alívio deixou-a com a sensação de sua força e calor envolvendo-a.

        — Eu jurei fazer o meu melhor para encontrar a chave e estou sendo sincera. Eu vou. Mas por onde devo começar? E se falhar?

        À direita, ela ouviu um gemido.     

À esquerda, ouviu um riso barulhento.

        Suas unhas afundaram no peito de Solo, como se ele fosse sua única âncora em uma tempestade turbulenta. Na verdade, ele era. Dr. E e X ainda estavam aqui, ouvindo.

Mãos quentes seguraram seu rosto, uma bela carícia que ela se lembraria todos os dias de sua vida. Ele ergueu o queixo dela, esperança e lampejos do que parecia ser apreensão olhando para ela.

— Ele manteria a chave por perto, e pode até ser algo que ele usa todos os dias. E você não vai falhar.

— Mas eu olhei por suas joias.

 — Procure compartimentos secretos no seu trailer. E se você entrar em apuros, corra. Corra, e não olhe para trás.

Oh, sim. Apreensão. Ela mal podia processar o conhecimento. Ele estava colocando suas necessidades acima das dele. Não apenas pela ajuda que ela poderia fornecer, mas por ela.

— Eu não posso fazer isso, Solo. — Não importa o que aconteça. — Eu simplesmente não posso.

       Seu olhar procurou o dela, perfurando todo o caminho até sua alma.

— Então corra para mim.

        Ela se esfregou contra a palma da mão, praticamente ronronando com o calor e o prazer da sensação.

— O que você seria capaz de fazer? — ela sussurrou. Não perguntou para ser cruel, mas para apontar como tal coisa seria fútil.

        A raiva de repente ofuscou a apreensão, mas seu aperto permaneceu gentil.

— Vou pensar em alguma coisa.

       Que a raiva não era dirigida a ela, sabia, mas às circunstâncias.

        — Não quero trazer mais problemas a você.

        — Eu posso lidar com o problema.

        — E eu não posso?

        Seus polegares acariciaram, fazendo-a tremer.

— Você lidou demais. E um dia vai me contar tudo o que fizeram com você. Um dia vai ter a vida que merece.

Um dia.

Pânico veio à tona, porque ela sabia, sabia que algo ruim aconteceria em breve. Algo ruim sempre acontecia quando essas palavras eram pronunciadas. Ainda assim, tudo que disse foi:

— B-bem. Eu vou com você. E antes que diga algo, eu juro.

Pontinhos de cor brilharam à esquerda. A névoa estava diminuindo agora, percebeu. Diferentes partes do circo foram aparecendo, tudo em seu lugar, nada mais do que uma polegada fora. A jaula que se tornou porto seguro de Vika estava exatamente onde foi deixada — em frente ao trailer de Jecis.

Só a paisagem tinha mudado. Um único sol brilhava em um céu azul bebê. Ao invés de montes de fuligem e cinzas, com retorcidas árvores e extremidades grotescas alongadas em todas as direções, montanhas cobertas de neve pintavam a área.

— Um dia você será... — As orelhas de Solo se contraíram. Os cantos de seus lábios foram para baixo quando ele sacudiu a cabeça em direção ao trailer de seu pai. — Ele vem vindo.

Engolindo um grito, Vika saltou para longe dele.

Um segundo depois, a porta se abriu e Jecis martelou para fora. Audra vinha atrás dele vestindo um lindo chapéu dourado, casaco e botas — todos feitos das peles de One Day. Os remendos calvos de idade e os furos da arma de Jecis foram preenchidos com pele de outro animal, criando a ilusão de um leão saudável no auge da sua vida.

        Sempre que Vika via a roupa lutava contra o desejo de rasgar o rosto de Audra.

Não ia reagir.

        Solo se moveu como se quisesse saltar na frente dela. De alguma forma, ele se deteve.

        — Vika. — Jecis disse, olhando-a com... uma confusa mistura de decepção e alívio em seus olhos. — Você se recuperou.

        — Sim, eu me recuperei.

        — Você até parece contente. — Seu olhar moveu-se para Solo e a tensão voltou. — E você parece como se quisesse cortar meu coração com uma colher enferrujada e banquetear-se.     

        Solo permaneceu quieto.

        — Você foi gentil com minha filha, não foi, besta? Aposto que ainda controlou seu mais obscuro desejo, só para impressioná-la.

        Mais uma vez, só havia tranquilidade em Solo.

       — Você não lhe ensinou nada! — Jecis gritou, seu rosto ficando vermelho. — Nada! Eu esperava que o animal agisse com ela como um animal. Esperava encontrá-la de joelhos, implorando para eu libertá-la.

        Audra recuou alguns passos, virou-se e correu para o trailer, como se temesse que ele fosse concentrar toda a raiva em cima dela. Tremores começaram a deslizar pela espinha de Vika.

       — Um animal a faria sentir a necessidade de implorar, sim. — Solo finalmente respondeu, não deixando dúvidas que ele considerava Jecis o animal de verdade.

        Jecis estalou a mandíbula.

        — Você quer que eu implore? — Ela perguntou ao pai, trazendo sua atenção para ela. — Eu vou. — Por Solo poderia fazer praticamente qualquer coisa.

        — Implorar? Agora? — Ele cuspiu no chão. — Quando isso não vai significar nada?

       Ainda. Ela tinha que tentar. Com medo agitando seu estômago, ela disse:

        — Papai, por favor, me liberte. Por favor. — ela odiava a ideia de deixar Solo preso sozinho, para sofrer humilhações quando o circo começasse e novos humanos viessem vê-lo. Tão mal como ele reagia à rejeição, tinha que ser um tipo especial de tortura para ele. Mas ela tinha que fazer. —Por favor.

       Solo colocou a mão em seu ombro e apertou, uma proposta de silêncio.

        Os olhos de seu pai quase saltaram do rosto e a tonalidade vermelha voltou à sua pele, mais escura agora.

        — Como se atreve a tocá-la, besta!

       Vika tentou se afastar, mas Solo aplicou pressão suficiente para mantê-la no lugar.

        — Papai. — disse ela, desesperada. — Eu... podemos jantar hoje à noite. E podemos conversar. Exatamente como antes, quando eu era pequena. Lembra? E depois vou voltar para as minhas funções anteriores, se você deixar.

       Jecis inalou bruscamente, soltando o ar lentamente. Finalmente, ele balançou a cabeça, como se tivesse acabado de tomar uma decisão.

        — Eu vou libertá-la, Vika.

        — Obrigada. Obrigada, você então...

        — Na condição de que você se desempenhe no picadeiro esta noite. — acrescentou.

        — O quê? — Ela guinchou, assim quando o aperto de Solo apertou o suficiente para fazê-la estremecer.

       Imediatamente a pressão a deixou. Mas... ela não queria mais ir embora.

        Jecis ignorou a pergunta.

        — E você, besta, vai sofrer. Acha que era ruim antes? Em breve estará rezando por esses dias. Não só vai ser devolvido ao zoológico, mas vai se tornar a atração principal no novo zoológico.

       Solo rugiu com a raiva que ele provavelmente reprimiu por muito tempo.

— Eu vou te matar primeiro.

— Me ameace novamente depois de sua soneca e veja o que recebe. — Sorrindo agora, seu pai estendeu a mão e apertou o botão na jaula.

        Baque.

       Vika assistiu impotente quando o homem que passou os últimos seis dias protegendo-a cair no chão imóvel. Vulnerável.

        Jecis abriu a porta da jaula e pisou dentro. Ela deixou cair o cobertor, determinada a deixá-lo para trás, para Solo ficar quente. O pai pegou-a pelo braço e puxou-a pra fora, fechando a porta atrás de si.

       — Tenho sido muito indulgente com você. — disse ele, puxando-a pra frente. — Percebo agora. Deixei você desperdiçar seu tempo com os animais quando teria sido melhor servido com você no ringue. Talvez então tivesse apreciado todo o trabalho que fiz para você. Pra você e só você. Eu mesmo considerei matar Matas depois do que fez com você, e como me agradece?

        — Papai...

       — Silêncio! Vou levá-la para a costureira. As duas vão ter que trabalhar a noite toda, mas o que for preciso, você vai garantir ter a melhor fantasia ou vai conhecer meu desagrado.      

        — S-sim. Claro. — disse ela, querendo olhar para trás, para Solo, mas não se permitindo o luxo.

        Eu tenho que encontrar essa chave. É nossa única esperança.

 

       JECIS não mentiu sobre o zoológico.

        Vika olhou para ele com crescente horror.

        No início desta manhã, Matas — cujo braço tinha misteriosamente curado do abuso de Solo, cuja pele estava agora com veias de um negro doentio — tinha drogado cada um dos cativos, deixando-os inconscientes. Então os arrastou para a tenda que Jecis montou para seus empregados. Ali os dois homens os despiram e o gigante os prendeu à roda giratória com aros de ferro grosso.

        Solo não teve uma chance de lutar, seus músculos paralisados ​​pelos sedativos. E agora não teria a menor chance. Não podia sequer usar os dentes. Uma focinheira cobria a metade inferior do seu rosto.

        O circo tinha começado há pouco tempo, e os humanos começaram a desfilar dentro e fora, podiam tocar qualquer extraterrestre que desejassem, de qualquer forma que desejassem.

        Não ajudava que olhassem para os cativos com admiração nos olhos.

        Não importa que não tentaram ferir um único.

        Os Extraterrestres estavam humilhados. Indefesos. Desamparados.

       A tenda estava quente, incentivando a venda de sorvete na esquina, apesar de estar gelado lá fora. Morango, baunilha e chocolate derretiam enquanto os humanos estudavam e acariciavam os extraterrestres um por um, discutindo sua "magnificência".

       Jecis escoltara Vika aqui alguns minutos atrás, e agora estava no limite da tenda. Ela queria fugir dele. Queria atacá-lo. Como ele se atrevia a permitir isso?

        — Não existe uma chave para as algemas, você sabe. — disse ele. — Anos atrás destruí a única que foi feita um dia.

        As palavras penetraram no manto escuro em torno de sua mente e quase mandou-a de joelhos. Ele não estava mentindo. Não podia estar. Havia muita alegria em seus olhos.

       Nenhuma chave, ela lamentou, suas entranhas se esvaziando. Não havia uma chave. Todo esse tempo sua busca foi em vão. Esqueça o dinheiro que ela queria salvar. Se tivesse encontrado a chave, teria libertado todos antes do previsto. Se soubesse que não poderia ser encontrada, teria ainda libertado todos antes do previsto. No entanto, ficar para ajudar os extraterrestres foi em vão.

       Eles estavam condenados. Sempre estiveram condenados.

        — Sua besta vai usar os punhos para sua sepultura. — Jecis disse com um sorriso maligno.

        Ele queria lembrá-la do destino de Solo. Ele reuniu sua determinação em vez disso.

        Ele era um homem odioso desagradável e nunca mudaria. Apenas causaria mais dor. E Matas também. Ele foi rebaixado para mercenário por estar fora de serviço pelas suas ações contra ela, mas um dia explodiria. Ele e seu pai lutariam pelos direitos do circo. Uma vez pensou que seu pai ganharia sempre contra ele. Agora, depois que Matas tinha "curado" seu braço? Ela não tinha tanta certeza. Mas sabia que só um deles ficaria em pé — e não queria estar por perto para descobrir quem era.

        Ela iria embora hoje à noite, Vika decidiu. Após a apresentação, quando todo mundo estivesse muito bêbado ou cansado demais para perceber suas ações. Não haveria mais espera. Reuniria o maior número de suas joias quanto pudesse levar, libertaria Solo e todos os outros e fugiria. Correr e jamais olhar para trás, assim como Solo disse.

       Finalmente.

        Se Jecis a encontrasse, bem, preferia morrer a voltar. E havia maneiras de garantir que acontecesse.

 

       — Bem-vindo ao incrível e espetacular Cirque de Monstres! — A voz de Jecis ecoou pela tenda escura. Vika ficou na lateral. Não podia ouvi-lo, não podia ler seus lábios, mas sabia a rotina de cor e reconheceu as vibrações distintas.

        Vermelho, azul e luzes verdes de repente acenderam e varreram a multidão enchendo as arquibancadas que cercavam o picadeiro central. Como esperado, gorjeios de emoção entraram em erupção, roçando sua pele. As luzes foram desligadas, mais uma vez deixando a tenda na escuridão total.

       Então faíscas multicoloridas pulverizaram no ar acima, fogos de artifício que não eram realmente fogos de artifício, em cascata sobre os humanos. A julgar pelas expressões flutuantes, sabia que todo mundo estava gritando de alegria.

       Quando as faíscas morreram, os holofotes foram novamente ligados — mas desta vez eles se concentraram nos acontecimentos no picadeiro. A fumaça de pedras estrategicamente colocadas, e quando címbalos soaram para definir a batida, saltou para fora uma das mais belas cantoras de Jecis, seguida de outra e mais outra.

        Cada mulher usava um top de paetês e calcinha pequena. Depois que subiram uma em cima da outra para formar uma pirâmide, levantaram e estenderam seus braços à espera de aplausos.

       Pelo menos, a maior parte da pele de Vika estava coberta. Usava um vestido de noite do mesmo tom vermelho rubi que seu batom. Era adaptado às suas curvas, um decote cavado nas costas e alargado na parte inferior. Seu cabelo estava solto, escovado com um brilho dourado e caindo até a cintura em ondas perfeitas.

       Um palhaço foi o próximo a saltar da fumaça surpreendendo os espectadores, mas em vez de ajudar as senhoras com a pirâmide, ele mergulhou para cima e tentou beijar a estrela. Ela resistiu. A pirâmide oscilou. Ele manobrou para o nível mais baixo e tentou beijar a outra. Ela também resistiu, e caiu para baixo da pirâmide. Risos abundavam quando as mulheres se ergueram, e levantando as mãos, pareciam puxar o palhaço no ar com uma corda invisível. Ele pendia ali, suspenso e lutando, e a multidão expunha ávido interesse.

       Dois outros palhaços delimitados por causa da fumaça, desesperadamente tentaram ajudar seu amigo, mas logo foram apanhados na mesma bolha de ar, e as mulheres começaram a fazer malabarismos com eles, sem jamais tocá-los.

       Mais dez minutos e seria a vez de Vika. Mesmo a ideia fez seu coração bater de forma irregular. Onde estava X? Ela queria falar com ele, queria pedir conselhos. Ele iria dizer a verdade, nada reteria, e desta vez ela ouviria, se soubesse como proceder ou não.

       Audra estava postada ao lado dela para garantir que não perdesse seu ato. Vika faria parte do ato mágico de Matas. Só mais um castigo, ela sabia.

        — Por que vende sua alma para isso? — Vika perguntou. Ela queria uma distração, mas também queria a resposta.

        O queixo da garota de ergueu, mas não se incomodou em olhar na direção de Vika.

        — O que mais eu ia fazer? Onde mais poderia ir?

       — A qualquer lugar.

        — Acredito que você descobriu a alegria de tentar isso. — Audra respondeu girando os olhos. — Nossa espécie não é aceita lá fora.

        Nossa espécie.

        — Eu não sou nada parecida com você.

       A maior vibração acariciou-a e sabia que a multidão estava torcendo loucamente. Os palhaços foram desaparecendo um a um, e quando não havia mais as fêmeas se olharam, olharam para trás das pedras, como se não tivessem ideia do que havia acontecido.

       — Não se iluda. — disse Audra. — Você é exatamente como eu.

        — Como assim?

        — Estamos contaminadas. E sem este circo, não somos nada.

        Não. Ela não acreditaria nisso.

       — Eu te amei uma vez, sabe. — disse Audra.

        — E eu te amei. — Parte dela ainda amava, apesar de tudo. Lembrou-se da menina com quem brincou, riu com ela.

        — Você me destruiu quando me rejeitou.

        — Não. Eu te salvei.

       — Não! Destruiu! Minha família estava tão orgulhosa que eu era amiga da filha de Jecis, e quando você me cortou de sua vida, eles me cortaram da deles. Aos doze anos tive de encontrar um homem para me aceitar. Ele era horrível, sempre me usando, e o triste é que ainda estaria com ele se Jecis não tivesse decidido que me queria.

       — Me desculpe, sinto muito. — Ela sabia que Audra tinha começado a viver com um dos homens de Jecis, mas não tinha conhecimento... não tinha pensado... — Você viu o que Jecis fez com Dolly. Eu não podia deixar que isso acontecesse com você.

        Audra riu sem humor.

        — Dolly. Eu sempre odiei o quanto você se importava com ela.

        O quê!

        —Ela era sua amiga também.

        — Não, ela era um incômodo. Quem você acha que disse a seu pai que ela bateu com a sua mão na jaula?

        — Não. — Vika disse balançando a cabeça, recusando-se a acreditar no que sua ex-amiga estava querendo dizer.

        — Oh, sim. Eu queria você só para mim.

       Mas como podia viver na ignorância quando a ex-amiga tão corajosamente proclamava o seu crime? A raiva aumentou.

        — Você arruinou uma garota inocente para seu próprio ganho egoísta. Diga-me, Audra. Está feliz com o que suas ações fizeram?

       Aplausos soaram lá fora sinalizando o fim do ato e poupando Audra de ter de formular uma resposta.

        Vika se focou no picadeiro. Suas mãos começaram a suar.

        Matas deu um passo à frente e no centro. Ele operava com seu charme habitual e talento quando acenou com a mão sobre uma grande cartola preta — e para fora dela voaram vinte pássaros, cada um pintado com todas as cores do arco-íris. Eles subiram pela tenda, circulando a multidão antes de desaparecerem em uma nuvem de fumaça, assim como os palhaços fizeram.

       Ele jogou o chapéu de lado, as sombras subindo dos ombros, formando... cabeças de leões. Isso era novo. Os leões se viraram para Matas, abriram a boca e o comeram em uma mordida. Ele desapareceu. Em seguida os leões também desapareceram. Todo mundo olhou em volta. Algumas pessoas ainda se levantaram. Um segundo se passou, dois, depois três. Os leões reapareceram no outro lado do picadeiro, abriram a boca e cuspiram um Matas ileso, ganhando mais aplausos.

        Ele abriu os braços e sorriu... mas a expressão não tinha qualquer tipo de sinceridade.

        — E agora, chamarei minha adorável assistente. — ele disse.   

        Audra deu-lhe um pequeno empurrão e Vika tropeçou para o picadeiro. Houve uma queimação em torno de seus tornozelos, e olhou para baixo para ver que a garota explodiu uma chama na bainha do seu vestido. Ela parou para dar tapinhas nela, fazendo com que o público risse e sua pele aquecesse. Fumaça ondulava em volta dela.

       As sombras de Matas sempre se lançando para fora e em volta dela, puxando-a para frente. Pavor ameaçava consumi-la, mas ainda não ofereceu resistência quando ele a algemou a uma roda girando — o mesmo tipo de roda que Solo foi amarrado no zoológico — com os braços acima da cabeça e as pernas afastadas. Um movimento do pulso e voltas e voltas ela girou. Seu entorno turvou, e seu estômago se apertou.

        Isso não fizera parte de seu ato por anos, e nunca com Vika.

       Mas o pai dela a queria assustada, não era? Queria provar seu controle absoluto sobre ela. Queria quebrá-la e refazê-la em algo sombrio, como ele. Queria que ela dependesse de sua misericórdia. Misericórdia que ele não possuía.

        Sua mente ficou em branco quando, em rápida sucessão, lâminas afundaram na roda ao lado de sua têmpora esquerda e à direita. Ao lado de seu quadril esquerdo e direito. Sua coxa esquerda. Coxa direita. Ambos os tornozelos. Finalmente o giro parou e Vika ficou surpresa ao descobrir que Matas não tinha propositadamente a acertado.   

        Ele fechou a distância entre eles e retirou as algemas. Obrigando-se a sorrir, Vika se ergueu e acenou para a multidão. Pelos próximos dez minutos seguintes, Matas a fez trazer seus suportes, a fez "descansar" em uma mesa, enquanto a serrava ao meio, suas sombras escondendo o fato de que ela ainda estava inteira, e ele se inclinou sobre ela e beijou-a para o efeito dramático. Ela mal se impediu de morder sua língua e cuspir o gosto vil.  

        A multidão aplaudiu. Ali. Ela fez a sua parte. Foi feito.

        De cabeça erguida, caminhou de volta para os limites do picadeiro. Vários outros artistas deram um tapinha em suas costas por um trabalho bem feito. Pela primeira vez eles não estavam tratando-a como se ela fosse uma leprosa, e não tinha que querer saber o porquê. Eles agora a consideravam um deles, não mais separada. E... uma parte dela gostava de saber que já não era desprezada, não havia como negar isso.

       Talvez Audra estivesse certa. Audra, que agora entrava no picadeiro para balançar no trapézio.

        Talvez Vika estivesse contaminada.

        Uma vibração atrás dela. Uma grande mão em seu ombro.

        Jecis andou rapidamente ao seu lado, e seu nervosismo retornou.

        — Muito bem. — disse ele. Usava uma jaqueta vermelha ajustada, calças pretas justas e botas até o joelho. Usava mais maquiagem do que ela, provavelmente para evitar que sua pele envelhecida parecesse desbotada na luz.

       — Obrigada. — respondeu ela, feliz por ele não estar aqui gritando com ela.

        — Você se divertiu?

        Inclusive agora, ela não mentiria.

        — Não. — Ela poderia ter gostado da admiração que recebeu lá no final, mas o sentimento foi passageiro... assim como a admiração. Essas pessoas se voltariam sobre ela em um piscar de olhos.

        Jecis abrangeu o braço.

        — Olhe. Olhe lá fora, em seus rostos. Sinta a adoração da multidão. Você pode tê-la a cada semana.

       — Eu não quero isso. Você teve que vender sua alma para conseguir. — Assim como Audra. — Não vou fazer o mesmo.

        — Vendi minha alma? Querida, quando assumi este circo finalmente encontrei minha alma.

       Como não podia ver no que se tornou?

        — Papai, você encontrou algo sombrio e pervertido. Eu gostava do jeito que você era.

        Um reflexo da frustração e impaciência em seus olhos. E... era um crânio escondido debaixo de sua pele espiando para ela, seus dentes mastigando ruidosamente?

        — Quando eu era fraco?

        — Quando você era doce.

        — E você não gosta de mim agora? — Perguntou ele com a boca se movendo ao contrário da caveira.

        Ela apertou os lábios, recusando-se a responder.

        Ele não bateu nela e nem a empurrou. Nem sequer falou mais uma palavra para ela. Simplesmente se afastou.

       Vika permaneceu no mesmo lugar pelo resto do espetáculo. E teve que admitir, ela mesma foi cativada pelas luzes coloridas, a batida exuberante da música e as palhaçadas dos malabarismos, girando, girando, rodando e rodando por de cabos conectados a vigas de madeira no teto, seus corpos contorcidos no que deveria ter sido posições impossíveis. Alguns até mesmo mergulhavam através de aros de fogo, relâmpagos piscando de suas mãos quando se encontravam no centro.

       Um canhão de vidro gigante foi levado para a direita. Um homem fez uma grande produção deslizando para dentro do cano. Audra oscilou de uma das cordas, aproximando-se do canhão e disparou um spray de fogo de sua boca, acendendo o pavio. Quando girou em sentido oposto o homem explodiu do centro, e os peixes dentro do vidro estouraram livres. Só que eles não ficaram feridos. O vidro transformou-se em brilhantes flocos de neve e os peixes em animais empalhados que várias pessoas de sorte no meio da multidão poderiam pegar.      

        Finalmente, porém, o show acabou e todos nas arquibancadas se levantaram. Eles caminharam para fora conversando e rindo, maravilhados com o que viram, especulando sobre como certas coisas foram feitas.

       Quando o último corpo passou pela porta os artistas ofereceram sua própria alegria, estourando a bebida que fizeram em seus próprios trailers em vez de qualquer tipo de champanhe. Jecis estava no meio deles, bebendo em seu louvor.

        Agora era sua chance.

       Vika esgueirou-se na parte de trás da tenda e correu para seu trailer. Uma vez lá, trancou-se dentro. Jecis tinha uma chave, mas mesmo se decidisse usá-la, as luzes piscavam e apagavam, alertando-a para a sua presença.

       Ela trocou os saltos altos por botas, mas não se incomodou em perder tempo para trocar de vestido. Ainda não. Se seu pai a visse, ela queria que pensasse que estava fora de casa com a intenção de se divertir com os outros artistas. Dessa forma ele estaria menos inclinado a detê-la ou até mesmo falar com ela.

        Bem, já não era sem tempo, disse uma voz.

        X!

       — Eu sei. — disse ela. — Antes tarde do que nunca.

        Mãos trêmulas, ela enfiou tantos colares, pulseiras e bijuterias possível no maior saco que pôde carregar. Ignorou os chocolates, mas também pegou as câmeras que sua mãe tinha amado — além da lâmina, elas eram tudo o que a mulher que lhe deu à luz tinha deixado, e não podia obrigar-se a deixá-las para trás. Não havia quase nenhum espaço para camisola e calças de inverno, mas eram necessárias, de modo que amontoou-as dentro.

        — Você sabia que não tinha uma chave para as algemas? — Ela perguntou, recordando as vezes que ele disse a ela para pegar Solo e ir agora ou mais tarde.     

        Não. Eu simplesmente tinha conhecimento que você precisava sair sem se preocupar com as algemas.

        Antes de vestir o casaco, ela colocou várias peças de joias que não couberam no saco. Seis colares, dezessete pulseiras. Anéis em todos os dedos. Que visão ela devia ser.

       — Bem, queria que você tivesse me dito. — disse ela.

        Eu fiz. Várias vezes.

        — Por que não muito mais?

        Por que não ouviu pela primeira vez?

        Um ponto que não podia refutar.

        — Tudo bem, estou pronta para ir. — O saco estava quase demasiado pesado para puxar, arrastar, mas arrastou-o para fora. O ar frio imediatamente envolveu-a, o calor de sua respiração causando uma névoa fina se formando em frente de seu rosto.

        — Você sabe onde Solo está? — Ela sussurrou.

       Sei. Ele está na mesma tend-a de antes. Aquela do zoológico.

        Reprimindo um gemido, ela se pressionou contra a lateral do trailer, escondida na escuridão, esperando e ouvindo da única maneira que podia. Felizmente não havia vibração aos seus pés.

        Antes de salvar o dia, X disse, você vai precisar roubar para Solo algumas roupas. Ele está nu.

       — Tudo bem.

        Vai precisar de algumas outras coisas também.

        Como se ela fosse discutir com ele sobre qualquer coisa de novo.

        — Só me diga por onde começar e vou fazer isso acontecer.

        Ele recitou uma lista do que parecia ser itens ridículos, e ela engoliu outro gemido.

        — Tudo bem. — ela repetiu. Com o coração martelando, correu para frente.

 

Solo perdeu a noção do tempo. Ele não tinha certeza de quanto tempo estava preso a esta roda. Só sabia que seus braços e pernas estavam dormentes, amarrados como estavam à tábua, e que as pessoas finalmente pararam de vir para dentro da tenda. Olhando para ele. Acariciando sua carne como se fosse um gatinho manso doméstico. Despertando a besta dentro dele a um passo febril.

Os Extraterrestres ao seu redor estavam quietos. Não porque estavam amordaçados — eles não estavam —, mas porque estavam em estado de choque, ainda totalmente humilhados, ainda se recuperando, sobretudo do que tinha acontecido, sobre o quanto estiveram vulneráveis.

        Ele não podia fazer isso de novo. Preferia morrer.

      Mesmo agora seus dedos estavam enrolados em punhos, suas garras cortando as palmas das mãos. Seu sangue estava quente, tão quente, línguas de fogo lambendo suas veias. Algo ainda mais quente foi se juntando aos seus dois pulsos amarrados, mas agora, em face de seu ressentimento crescente, o calor se espalhou. As algemas acabaram acelerando-o a outro nível.

        Não importa o que você tenha que fazer, fique no controle. Ele não toleraria nada menos. Só tinha que fazer... o quê? Desde a morte de seus pais, não teve sorte com seu temperamento. Não até Vika, que o teria provocado e…

       Vika. Onde ela estava?

        Ele imaginou-a, sua doce e amável Vika, e seus dedos realmente desenrolaram. Imaginou-a olhando para ele, os lábios inchados e brilhantes de seus beijos, seus olhos arregalados com perplexidade e necessidade, e seus músculos relaxaram.    

        Para ficar com ela, ele poderia fazer isso de novo. Podia fazer qualquer coisa.

        Vou ter aquela mulher. Um dia. Em breve. Muitas vezes.

        E quando esse "um dia" chegasse, iria fazê-la esquecer sua aversão às palavras.

        — Você merece isso, sabe. — disse o Dr. E.

        Bem na hora para tentar reviver a raiva de Solo.

        — Não, você merece o que está prestes a acontecer. Resgate. — E tinha X, aqui para edificá-lo.

        — Onde estavam vocês quando eu estava nas Nolands? — Ele exigiu em voz baixa, as palavras abafadas pela focinheira em sua boca. — Espere. Resgate?

       Um momento depois Vika correu para dentro da tenda. Estava vestida com um vestido vermelho glorioso e ele esqueceu as perguntas. Seus braços estavam cobertos por um casaco preto e grosso, mas o material estava dividido no meio e ele podia ver que a parte superior de seu vestido era cavado baixo o suficiente para revelar um pouco de decote. O comprimento era tão longo que varria o chão, enrolando ao redor de seus pés como se estivesse em uma névoa encantada. O tecido se agarrava a cada curva e seu corpo... era uma obra de arte. Pequena e exuberante, com os quadris que se abriam em forma de coração.

       Dele. Ela é minha, pensou. Não precisava mais da ajuda de X, não para isso. Já percebeu isso sim, mas agora o conhecimento rodou onde o instinto bateu em seu próprio coração. Nunca mais permitiria que ela se afastasse dele.

       Ela chegou a ele e deixou cair a bolsa que estava segurando. Com a expressão pálida e tensa, apesar da maquiagem brilhante que usava, ela imediatamente procurou desfazer as barras de metal envolta sobre seus punhos, puxando com força e arrastando.

       — Vamos embora hoje à noite. — disse ela. — Agora. Não importa o que tivermos que fazer. — Mas não importava o quanto ela lutasse bravamente, não podia remover os obstáculos. — Argh! O que devo fazer?

Ele abriu a boca para responder, não tendo certeza que seria capaz de compreendê-lo, mas ficou rígida.

       — Shh! — Ela correu para trás da roda, fora de vista.

Foi então que ele ouviu os passos que se aproximavam.

— Seu saco. — ele sussurrou ferozmente. Ela deixou a coisa aos seus pés. Mas não podia ouvi-lo, lembrou a si mesmo, e ela não tinha ideia de que deixara evidências para trás.

       Três dos guardas de Jecis de repente entraram na tenda, cada um bebendo de uma garrafa meio vazia de bebida. O trio foi tropeçando na direção da roda de Criss, dois deles discutindo sobre quem começaria a tomá-la primeiro, e o terceiro prometendo domar Kitten depois que ele assistisse a violação da outra garota.

       Solo esquadrinhou o resto dos extraterrestres. Exceto o Targon, todos os olhos estavam fechados, como se os presos não pudessem suportar ver o que não podiam deter. Não o Targon, no entanto. Seus olhos estavam abertos. Seu corpo estava tenso, cada um dos seus músculos tensos, como se preparados para lutar.

       — Kaamil-Alize. — Solo rosnou.

       A atenção do Targon virou em sua direção e eles compartilharam um momento de compreensão. Tinham que fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

        Resumindo: Ele não podia permitir isso. Pelas mulheres e por Vika. Ela tentaria deter os homens. Eles se excitariam com ela, sendo filha de Jecis ou não. Estavam bêbados. Não se importavam.

       O pensamento de Vika sendo atacada... ferida por esses humanos nojentos... talvez jogada no chão e despojada de suas roupas, talvez até mesmo tocada de forma que ela sempre desprezou. Não! Um novo surto da droga corria nas veias de Solo, mas nem isso poderia atenuar a frieza de sua determinação.

       Cerrando os dentes, rosnando, colocou toda sua força no seu braço direito, levantando... elevando... músculos e tendões se rasgando, mas ainda assim ele ergueu — até que o metal da roda não pôde suportar a tensão e se quebrou para longe. Sangue quente escorreu pelo seu braço.

        Os humanos alcançaram Criss. Estavam muito ocupados acariciando-a para perceber Solo.

        — O que você está fazendo? — Dr. E exigiu. — Pare! Está se machucando.

        Coisa engraçada. O ser parecia irritado em vez de preocupado.

       Solo arrancou a focinheira e seu braço caiu inerte ao lado. O manguito ainda estava lá, ainda ativo, mas no momento só se preocupava com a amplitude de movimento. Imediatamente começou a trabalhar no outro braço, levantando apesar da dor, até que esses grilhões caíram.

       Um dos guardas ouviu e olhou para trás. Ele notou o estado semi-livre de Solo e empalideceu, batendo em seus amigos para conseguir a atenção deles. Eles o avistaram e finalmente pararam de rir.

        — O que você está fazendo?

        — Chega disso.

        Eles foram para frente e Vika correu para fora, prostrando-se na frente de Solo e abrindo os braços.

       — Deixe-o em paz! — Ela gritou.

        Eles pararam, Solo momentaneamente esquecido.

        — E o que temos aqui? — Disse um deles.

        — Uma menina impertinente, é isso que é.

       — Sempre quis um pedaço seu, Vika Lukas, e você está aqui, jogando-se em mim. Jecis certamente vai entender se eu aceitar seu oferecimento. Especialmente desde que ele deixou mais do que claro o que fez para protegê-la.

       Os três se moveram em direção a ela, só para congelar no lugar até a metade. Cada um tinha um pé levantado no meio do caminho. Cada um olhou de soslaio para Vika, a expressão imutável.

— Eu vou segurá-los enquanto puder. — o Targon disse com os dentes cerrados.        

Solo sabia que guerreiros Targon possuíam a habilidade de manipular moléculas de energia e controlar o corpo humano, mas assumiu que esse guerreiro em particular estava muito drogado para fazê-lo.

        Vika girou para encarar Solo, com os olhos arregalados.

— Eu não entendo o que está acontecendo.

Solo não perdeu tempo. Apenas as pernas permaneciam amarradas. Quando puxou e empurrou, um de seus joelhos saltou fora do lugar, mas isso não o deteve também. Nada podia, e finalmente estava livre, caindo da roda... colidindo com o chão.

        Por pura garra e força de vontade ele se arrastou para ficar em pé. Os pontos pretos teciam pela sua visão quando Vika correu para o seu lado, com as mãos macias pressionando seu peito.

       — Oh, Solo. — ela sussurrava. — Você está ferido.

        Ele a pegou pela cintura e colocou-a atrás dele.

        — Faço o que precisa ser feito. — X disse, com a voz tensa.

        Enquanto ele falava, Solo sentiu outra onda de calor correr pelas suas veias. Só que este calor não surgiu por causa das drogas. Vinha de X. Ossos começaram a pular de volta no lugar. Músculos começaram a se juntar novamente.

       No momento em que estava completamente curado, X desapareceu.

        E Solo. Totalmente. Sem. Restrições.

        Ele avançou, os braços se movendo ao seu lado com as pernas aumentando a velocidade, até que deixou um rastro de fogo em seu caminho. Investiu com força contra os guardas e eles voaram para o chão, batendo forte. Arrancou a traqueia de um — com os dentes — enquanto agarrava a garganta do outro. Ambos os atos aconteceram em dois segundos.

O terceiro, finalmente, capaz de se mover, tentou se arrastar para longe dele, mas Solo o pegou. Ele se levantou, o sangue escorrendo pelo queixo e bateu o macho no chão da esquerda para a direita, esquerda para a direita, uma e outra vez, até que estava ofegante, até que seus braços arderam, até que não havia mais nada e ele estava segurando apenas um casaco encharcado de sangue.     

Dr. E disse algo. Os extraterrestres o chamaram. Solo foi também perdendo sua raiva para entender as palavras. Tinha que destruir este lugar. Tinha que garantir que Vika nunca mais sofresse nas mãos desses monstros. Tinha que salvar os outros como ele.

       Ele se chocou com a pequena sorveteria, inclinando a construção de lata ao seu lado. O equipamento se espalhou no chão. Garrafas de aromatizantes derramaram-se perfumando o ar com morangos e baunilha. A fragrância só o enfureceu ainda mais, lembrando-o dos humanos. De ser tocado quando não queria ser tocado. Ele rasgou a estrutura, deixando apenas pedacinhos, indiferente quando fragmentos irregulares de ferro o cortaram.

       Um grupo de homens correu para dentro da tenda para descobrir o que estava causando tal confusão. Oito, Solo contou quando ergueu-se, pronto para mais. Querendo mais. Eles o avistaram e paralisaram. Solo sabia que sua pele se tornara vermelha. Sabia que seus ossos aumentaram, suas orelhas estendidas em pontos pequenos e afiados, suas presas brotaram e suas garras aumentaram. Ele era o monstro sobre o qual suas mães provavelmente os avisaram. O que estava em suas camas ou em seus armários. A pessoa que roubaria suas almas.     

        Ele saltou em ação e bateu violentamente neles, uma bola de boliche nos pinos. Eles lutaram com ele, mas não puderam contê-lo. Tentaram, oh, tentaram, mas Solo rasgou braços de articulações, rasgou espinhas debaixo de revestimentos carnais, mordeu e arranhou e jogou seus adversários em todas as direções — em pequenos pedaços fragmentados.

        — Solo. — ele ouviu.

        Suave, sussurrante. Assustada.

        Ele virou de costas ofegante, as narinas dilatadas, seu grande corpo tenso, suas garras levantadas e pronto para cortar o que se atreveu a assustar Vika. Grandes olhos cor de ameixa olharam para ele... e ele era o alvo do seu medo.

        —Vika. — disse ele, sua voz nada mais do que um arranhão quebrado.

        Ela ainda estava de pé na frente de sua roda, seu pequeno corpo trêmulo, seus braços em volta de sua cintura.

        — Os outros. — ela disse, e acenou para os extraterrestres. —Vamos libertá-los e ir embora.

        Ela ainda queria sair com ele.

        Faria o que ela pediu.

        Correu para a roda de Kitten. Ela estava contra suas amarras e o sangue escorrendo dos braços. Ele estendeu a mão, puxou e arrancou uma das barras da roda, levando um enorme pedaço de madeira com ele.      

        — Assisti-lo trabalhar foi um verdadeiro prazer. — disse ela. — Mas você não é parte do IRA, não é? Estou supondo que está na Black Ops completamente, baby.

        Silencioso ele estendeu a mão para a segunda barra.

        Soaram passos atrás dele e Kitten empalideceu.

        —Vá. — disse ela. — Volte por mim mais tarde. Com armas. E Dallas.

        Ele virou-se. Outros quatro homens e duas mulheres acabaram de correr para a tenda. Eles pararam para catalogar a carnificina como se não pudessem acreditar no que estavam vendo. Uma das mulheres lançou um grito de gelar o sangue. Seu olhar voltou-se para Vika. Estava na roda de Criss, puxando inutilmente uma das barras. Lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto o resto dos extraterrestres imploravam e insistiam com ela para se apressar.

        Ele tinha uma escolha a fazer. Vika ou todos os outros. Agora ele não poderia ter as duas coisas. O conhecimento frustrou-o, enfureceu-o ainda mais e a culpa imediatamente começou a roer seus ossos. Porque, honestamente? Ele não precisou de um minuto para pensar. Já sabia o que ia fazer: pegar Vika e correr.

        Ele voltaria, no entanto. Não havia nenhuma dúvida sobre isso. Não deixaria essas pessoas indefesas por mais tempo do que o necessário.

        Decidido, correu para o lado de Vika e pegou-a.

        — Se você quiser salvar alguma coisa aqui — disse o Targon — volte em nove dias.

        Por que nove dias?

        — Meu saco. — Vika disse ofegante. — Por favor! Preciso dele.

       Os machos finalmente olharam além da pilha de cadáveres e poças de sangue e o notaram. Gritos entraram em erupção. Solo voltou atrás, pegou a alça do saco e ajustou por cima do ombro. No momento que o peso assentou-se contra ele, surpresa o encheu. A pequena Vika tinha carregado essa coisa? Sozinha? Tinha que pesar cem quilos, no mínimo.

       Outro grupo de homens entrou na tenda, requerendo a sua atenção — e Jecis ocupava o centro. Seu tempestuoso olhar travou-se em Solo e o crânio, que sempre carregava com ele, aquilo se moveu por vontade própria, separou seus próprios ossos, essa presença sombria inclinou-se para trás, esticou sua mandíbula aberta e gritou.

        Um dia vamos ter nosso confronto, Solo prometeu, e correu na direção oposta. Um dia, muito em breve.  

 

       Solo carregou Vika e seu saco durante a noite para as montanhas. Ele tinha que estar congelando. Ela estava. E ele estava nu, e o gelo praticamente revestia o ar.

        — Eu trouxe roupas e sapatos. — disse ela, com os dentes batendo. — Estão no saco.

        Talvez ele tenha respondido, talvez não. De qualquer forma, ele continuou.

        O que aconteceu dentro da tenda... devastação total era a única maneira de descrever. Ele se transformou em uma besta vermelha furiosa, como os outros o haviam chamado.

        Ele feriu as pessoas. Tinha matado.

        Ele a protegeu.

        Não tinha medo dele e o conhecimento a surpreendeu. Ele nunca iria machucá-la, e lá no fundo, onde o conhecimento que ele ensinara a ela sobre isso rodou, compreendeu. Ela estava com medo por ele.   

        A qualquer momento alguém poderia ter caminhado para dentro da tenda com uma arma e atirado nele. Se isso tivesse acontecido seu pai o teria matado, não apenas para puni-lo pelo que tinha feito, mas porque Jecis teria medo dele, mesmo atrás da jaula.

        — Eu posso andar. — disse ela, não querendo que tivesse que carregar todo o fardo de sua fuga.

       Ele a colocou no chão, sem nunca perder o passo, segurou a mão dela e arrastou-a atrás dele. Eles manobraram ao redor de árvores — muitas árvores! — e sobre troncos grossos. Uma eternidade depois, ele olhou para ela.

        — Perguntas? Preocupações? Comentários?

        — Onde estamos? — Ela perguntou. Jecis não dissera. Tudo que sabia era que nunca esteve aqui.

        — A região de Nova Kolyma no Extremo Oriente russo.

        — Sibéria?

        — Sim. Não se preocupe. Estou nisso.

       Subindo, subindo, mais e mais rápido, ele a levou através da neve. Neve no chão, neve nas árvores bonitas. Um verdadeiro inverno no país das maravilhas, impressionante em sua beleza. Duro em sua traição. Quanto rapidamente uma pessoa poderia morrer congelada aqui?

        Infelizmente, esse não era o menor dos seus problemas. Jecis viria atrás deles.

        Talvez não esta noite. Talvez não amanhã. Ele não sentiria pressa. Afinal, poderia localizar Solo a qualquer momento. Mas reuniria as tropas e viria atrás deles.

        Seria sensato Vika abandonar Solo agora e atacar por conta própria. Era o que tinha planejado fazer enquanto estavam presos nas Nolands. Agora...

       Não tinha coragem de deixá-lo.

        Ele olhou para ela, dizendo:

        — Grite se precisar que eu pare.

        — Eu vou. — E ela quase gritou mil vezes nos próximos cinco minutos, mas de alguma forma segurou o som dentro de si. Queria a maior distância entre eles e o circo possível, mesmo que tivesse que sofrer para conseguir isso.

       Foram pelo mais alto da montanha, a mais espessa das árvores e o terreno ficou mais rochoso. Eventualmente Vika perdeu a noção de tempo. Tudo que sabia era que estava tremendo incontrolavelmente e seus músculos estavam tão pesados como pedras. Seus pulmões queimavam.

        Solo olhou para ela uma segunda vez, diminuiu o ritmo e parou.

        — Vamos parar para a noite. — disse ele. Não estava sem fôlego e não parecia estar com frio.

       — Porque você encontrou um lugar seguro? — ela perguntou, esperançosa.

        — Porque você está cansada.

        Como ela tinha suspeitado.

        — Eu não me importo. Continue indo até encontrar um lugar seguro. — Eles precisavam de todas as vantagens que pudessem obter.

        Ele estudou-a atentamente, orgulho brilhando nos olhos azuis.

        — Muito bem.

        Esse orgulho era dirigido a ela?

        Esperava que ele saltasse para trás em movimento. Em vez disso, deixou cair o saco e descompactou o topo. As roupas que ela roubara de seu pai descansavam no topo. Embora nem uma única peça tivesse pertencido a Jecis. Ao contrário, Jecis as roubara do Targon e eram do tamanho perfeito para Solo.

       Tamanho — a razão pela qual ninguém as comprou. O material era tão negro como a noite e possuía uma qualidade exuberantemente macia.

        Ele se estendeu para pegar a camisa e a calça, depois tirou as roupas que ela trouxe para ela e atirou-as em sua direção.

        — Que tal deixar a bolsa para trás? — Ele perguntou enquanto puxava meias e botas.

       O quê?

        — Não! — Remover o casaco era realmente doloroso, o ar frio cortante em cada seção da pele exposta, mas de alguma forma encontrou força para fazê-lo. Em seguida ela retirou o vestido.

        Solo desviou os olhos, dizendo:

        — É excesso de bagagem, e eu quero dizer, literalmente.

        — É a minha vida. — A camiseta e a calça a envolveram, mas oh, estavam quentinhas, tendo sido aconchegadas ao corpo de Solo durante toda a caminhada.

       — Ouvi joias batendo lá dentro.

        — Exatamente.

        Um brilho ansioso que rivalizava com a beleza do luar entrou em seus olhos.

        — Eu vou te comprar novas.

        Quando ela foi ao inferno e voltou para este?

        — Dê o saco para mim, vou carregá-lo.

        Franzindo a testa, ele mais uma vez ajustou a alça no ombro.

        — Solo. — disse ela.

        — Vika. — Sem outra palavra, ele uniu seus dedos e urgiu-a para frente

 

       Solo se deleitava com sua liberdade. Ainda usava as algemas sim, mas já não estava atrás das grades. Não estava mais amarrado a uma roda, um bloco de rascunho para qualquer pessoa com uma coceira. Tinha sua mulher ao seu lado e o único perigo atualmente perseguindo-os era o tempo.      

        Ele ouviu, viu, e sabia que Jecis ficou para trás. Ainda assim, Solo queria o máximo de distância possível entre eles esta noite. Amanhã arrastaria Vika ao que provavelmente parecia estar a milhares de quilômetros, e quanto mais corressem esta noite, menos teriam de caminhar enquanto ela estivesse dolorida e com fome, sua adrenalina descarregada.

       Não, ele pensou depois, não permitiria que ela tivesse fome. No momento em que a escondesse em uma pequena fenda quente e adormecesse, ele caçaria. Mas uau, ela já estava segurando-se melhor do que esperava. Sua minúscula mulher do nada tinha uma teimosia que não iria permitir que ela parasse — ou até mesmo ficasse lenta. Podia parecer estar dormindo de pé, mas acompanhava-o passo a passo.

       — O que vamos fazer? — Ela bufou.

        — Evitar as cidades, primeiramente. — Muitos americanos se mudaram para a Sibéria logo após a guerra entre humanos e alienígenas, já que a Sibéria era supostamente a única terra livre da “mácula” dos extraterrestres. Na verdade, extraterrestres eram geralmente alvejados se vistos aqui. — Meu chefe Michael tem uma cabana na fronteira. — Michael tinha casas em cada estado, cada país. Talvez até mesmo em cada cidade. Foi assim que manteve seus agentes escondidos, não importava onde estavam ou o que tinha que fazer. — Nós vamos fazer nosso caminho.

       Chegaram a uma pequena clareira onde uma árvore caiu, o centro escavado pelo tempo e idade. Ninguém seria capaz de se esconder nas proximidades. Ele iria ver e ouvir quem se aproximasse. E poderia compartilhar seu calor corporal com Vika no interior do cepo. Isso era o melhor ele ia conseguir.

       Ele largou a bolsa ao lado da árvore, pediu a Vika para se estabelecer dentro e trabalhou na coleta de pedras próximas. Queria dez, mas só pôde encontrar oito. Oh, bem. Teria que servir. Ele limpou a neve de um pequeno pedaço de terra e usou as pedras para formar um círculo. Em seguida recolheu os galhos e empilhou-os dentro das rochas.

        Sentou-se ao lado de Vika, firmou duas pedras e bateu uma na outra.

        — Por mais que eu adoraria vê-lo criar fogo dessa forma porque é muito viril e imponente e tudo o mais — disse ela — me sentiria culpada se não te dissesse que há um isqueiro na bolsa.

        Ele fez uma pausa, olhou para ela e arqueou uma sobrancelha.

        — Você veio preparada.

       — Tive ajuda. — admitiu depois de uma breve hesitação.

        — Quem?

        —Bem... — mordeu o lábio inferior enquanto buscava na bolsa. Vários minutos se passaram e ela começou a murmurar baixinho. — Encontrei! — Sorrindo ela pegou um isqueiro e deu um tapa em sua mão.

        — Você não respondeu minha pergunta, Vika.

       — Oh, sim. Bem, você se lembra daqueles homens invisíveis que nós falamos?

        — Sim. — Ele acendeu a ponta de um dos galhos, as chamas se aproximando rapidamente e a crepitação se espalhando para os outros. Calor flutuou em direção a eles e fumaça espiralou pelo ar.

        — Não ia te dizer, a menos que confessasse em primeiro lugar, mas esse tipo de espera parece bobagem agora, afinal. Então, aqui vai. Um deles me ajudou. Seu nome é X e ele...

        — X? Meu X?

        — Seu X? Você o vê, então.

        — Vejo. Vejo na maior parte da minha vida.

        — Bem, comecei a vê-lo alguns dias depois que foram capturados.

        Ele não tinha ideia do que pensar sobre esse desenvolvimento. X nunca se revelou a outra pessoa, nunca expressou desejo de fazê-lo, nunca mencionou isso, e Solo assumiu que era uma façanha impossível.

       — O que ele disse a você? — Ele exigiu.

        Vika gemeu.

        — Essa pergunta é a razão pela qual nunca mencionei o nome dele.

        Mesmo para Solo. Mas, assim como ela deduziu, passaram do ponto de se segurar.

        — Você vai dizer querendo ou não.

        — Tudo bem. — em suas bochechas floresceu um lindo rosa. — X diz que ele é um Altilium e Dr. E é um Epoto, mas não tenho ideia do que qualquer uma dessas palavras significa.

       — Eles em latim significam “provedor” e “sugador” e certamente se encaixam. — E eles certamente disseram mais do que isso.

        Névoa subia diante dela, criando uma névoa de sonho.

        — Então, como o Dr. E é um médico?

        — Bem, pra começar ele conseguiu um doutorado em me irritar.

        Ela riu quando disse:

        — Conseguiu dois doutorados. Eu realmente gosto de X, mas quero encontrar uma maneira de me livrar do Dr. E.

        Solo foi a razão pela qual o ser a tinha incomodado, mas não jogaria a culpa em seu caminho. Não merecia essa mulher, mas a queria. Queria fazer o que fosse necessário para se tornar o homem que ela precisava.

        — Eles estão com você agora?

        — Não. Você?

        — Não. — Então para onde foram? — O que mais eles disseram? E é melhor confessar. Caso contrário, serei obrigado a utilizar minha técnica de interrogatório mundialmente famosa.

        Outra risadinha. Ela presumiu que ele estava brincando. Mas pelo menos parou de corar. Solo não queria que se envergonhasse com ele. Ele a queria confortável o bastante para confessar qualquer coisa.

        — Bem, X disse que tenho que ficar com você.   

        É por isso que gosto mais dele. Esperou. Ela permaneceu em silêncio.

        — Isso foi tudo? — ele insistiu.

        — Em resumo sim, e tudo que estou disposta a admitir no momento. Com ou sem interrogatório.

        Não foi tão ruim.

        Então ela acrescentou.

        — Dr. E sugeriu que o deixe apodrecer aqui.

        Ele apertou os punhos e conseguiu sentir as drogas começarem a gotejar em sua corrente sanguínea.

        Ele queria falar com as duas criaturas ali e agora. Queria perguntar como e por que, o que mais foi dito e ordenar que deixassem sua mulher em paz. Ela não devia ser incomodada pelas suas peripécias.

        — Vamos mudar de assunto. — ele disse. Antes que os sedativos fizessem efeito.

        Ele se espreguiçou ao lado dela e esta imediatamente se aconchegou nele, angulando a cabeça para observar seus lábios e suspirando com o que parecia ser satisfação. Ele brincou com as pontas dos seus cabelos, contente.

        — Não tem medo de mim, tem? — perguntou.

        — Não. Por quê? — Luz dourada dançava em volta dela, fazendo-a parecer como se tivesse acabado de sair de alguma pintura antiga de uma terra mágica com fadas, duendes e um “felizes para sempre”.

        — Eu… machuquei algumas pessoas hoje.

        — Em um esforço de ajudar outras. Confie em mim — ela disse com um bocejo —, estou começando a entender a diferença.

        Graças ao Senhor.

        — Ótimo. — Ele beijou sua testa. — Agora feche os olhos, coração. Precisa dormir.

        — Mas não estou cansada.

        Ela estava, mas lutava contra a exaustão. Muita adrenalina, talvez. Muita preocupação acerca do que o futuro aguardava.

        — Quer brincar do jogo de fazer perguntas novamente?

        Suas feições se iluminaram.

        — Sim, por favor.

        — Ótimo, porque estou me perguntando… qual é sua cor favorita?

        — Azul — ela disse, depois admitiu baixinho —, o tom exato de azul dos seus olhos. Nunca vi nada tão lindo.

        Ele ficou imóvel, sem nem ousar respirar.

        — Qual é sua cor favorita? — ela perguntou.      

        — Vika.

        — Sim?

        — Não — ele disse, lutando contra um sorriso —, essa é a minha cor favorita.

        Ela franziu o cenho em confusão, do mesmo modo que fez na jaula quando ele disse algo que não conseguiu entender muito bem.

        — Mas não sou uma cor.

        — Tem certeza?

        Uma pausa. Um segundo depois uma risada explodiu dela. Uma risada que aqueceu-o muito mais que o fogo.

        — Sabe, essa é a coisa mais maravilhosa que jamais ouvi. — ela disse, passando os dedos pelos seus cabelos. — Você é o primeiro homem a me elogiar de verdade e acho que já estou viciada nisso.

        — Sou mesmo o primeiro?

        Uns segundos de silêncio.

        — Você será. — ela sussurrou, e os dois sabiam que não falava só sobre os elogios.

        Instantaneamente a onda de necessidade que experimentou por ela todos aqueles dias o inundou, seu corpo reagindo a ela no nível mais básico e primitivo. Sabia que era virgem, mas aqui, agora, o conhecimento provocou o arrebatamento de um sentimento de posse — um mais forte do que antes.

        Aquela mulher seria sua, e somente sua.

        — Esqueça o jogo. Quero beijar você. — ele falou rasgado. Estavam sozinhos. Ninguém os observava, ninguém os ouvia. Não havia melhor momento.

      Seu sorriso morreu, o humor se esvaindo dela.

        — Mas não beijarei. — ele se forçou a acrescentar. Claramente não estava pronta.

        Bem, teria que prepará-la outra vez.

        — Por que não? — ela disse. Depois. — Oh. Certo. É a minha vez de Te beijar. — Ela se inclinou e lambeu o caminho até sua boca.

        Surpresa o atingiu primeiro, seguido de perto por um desejo intensificado. Suas línguas se encontraram, rolaram juntas e a doçura do seu gosto o fez refém. Calor explodiu pelo seu corpo inteiro, suas células criando vida, suas terminações nervosas explodindo faíscas elétricas e ele gemeu quando a completa e absoluta devastação do seu desejo o consumiu. Aquela mulher… tinha que tê-la, toda ela, e logo.

        — Vika. — disse.

        — Solo.

        Ele lhe deu doçura e ternura… a princípio. Quanto mais mordiscavam um ao outro, mais concentrados seus movimentos se tornaram. Ele brincou com a bainha da camiseta dela, correndo os dedos por ela, provocando a pele exposta da sua barriga, tentando prepará-la para uma invasão mais íntima.

        Logo ela estava gemendo, seguindo seu movimento para um contato mais prolongado.

        — Quero tocar você, coração.

        — Já está tocando. — ela sussurrou.

        Um comentário tão inocente, lembrando-o para ir devagar, para ser cuidadoso — sem se importar com o tamanho da sua própria necessidade. A paz de espírito dela era mais importante do que qualquer prazer passageiro.

        — Eu sei, mas quero subir mais e tocar seus seios.

        A língua linda e rosada dela apareceu varrendo seus lábios, deixando um delicado brilho de umidade.

        — Não tocarei em mais nada. — ele disse. Não até que estivesse pronta.

        Passou um momento. Ela engoliu em seco, assentiu.

        Lentamente ele deslizou a mão debaixo da camiseta e a tocou, carne na carne, palma no seio. A pele dela estava fria, mas ele rapidamente a esquentou. Passou o polegar pelo bico, provocando um gemido nela, esse saindo bem do fundo do seu ser. O tempo inteiro observava a sua expressão. Medo nunca apareceu. Somente prazer.

        E quando ela se arqueou em um pedido silencioso por uma pressão maior, ele lutou contra a necessidade de urrar com uma sublime satisfação.

        Ele faria com que gozasse.

        — Gosta disso? — perguntou, já sabendo a resposta.

        — Ah, sim.

        — Quero substituir minhas mãos com a minha boca, certo, e... — As orelhas de Solo coçaram e ele enrijeceu.

        — O que...

        Ele recolheu a mão e colocou os dedos nos lábios dela, silenciando-a. Com sua outra mão, ele apagou as chamas. Tudo ficou escuro.

        Seus olhos se ajustaram em segundos e ele viu quando uma raposa entrou e saiu da clareira. Nenhuma ameaça, então. Ainda não. A intrusão serviu como um lembrete necessário. Ele era o único meio de proteção de Vika, e isso tinha que vir primeiro do que qualquer outra coisa.

        Solo encontrou o seu olhar.

        — Tenho que interromper nossas atividades extracurriculares. Não podemos arriscar nenhum tipo de distração e, além disso, temos um dia e tanto pela frente. Durma.

        — Não.

        — Sim. — Ele relaxou dentro do tronco oco e pressionou a cabeça dela na curva do pescoço.

        — Tudo bem. Boa noite, Solo. — ela disse com uma pitada de frustração, a respiração morna acariciando seu pescoço.

        — Noite. — ele respondeu, mesmo sabendo que não podia ouvi-lo.

        Poucos minutos depois ela se derreteu em cima dele, indicando que havia adormecido como ordenado. Mas quando estava prestes a se levantar para caçar o café da manhã, ela começou a se revirar antes de acordar de um pulo, ofegando.

        — Estou aqui. — ele assegurou. — Solo está aqui.

        — Solo. — ela disse suspirando e se ajeitando nele. Mais uma vez dormiu. Dessa vez continuou imóvel, quieta.

        Ela se sentia segura com ele, confiava nele, e ele estava contente por isso — mesmo que abraçá-la fosse a coisa mais doce e o pior tipo de tortura existente, o seu aroma decadente invadindo seu nariz, suas curvas macias coladas na rigidez do seu corpo.

        Mas era isso o que sempre quis, não era? Uma mulher nos braços, feliz de estar com ele. E que essa mulher fosse Vika…

        Apesar de tudo, Solo sorriu.

 

         Luz perfurou a escuridão na mente de Vika e ela se esticou, despertando do sono mais pacífico de sua vida. O cheiro de carne assada encheu seu nariz e sua boca se encheu de água.

         Ela se espreguiçou e esfregou os olhos. Imediatamente notou alguns fatos surpreendentes. Estava quente, envolvida por um cobertor espesso e peludo, coisa que não tinha ontem à noite e, à exceção da gargantilha de diamantes ao redor de seu pescoço, suas joias foram removidas.

         Solo estava abaixado na frente de um fogo pequeno, girando um espeto de carne através de duas varas que plantou no chão. Sozinha, provavelmente teria morrido de fome. Mas Solo estava além de capaz, além de recursos. E muito mais bonito que seu colar com raios dourados brilhantes e dançando em cima dele, destacando sua força, sua masculinidade absoluta.

         — Bom dia. — ela disse.

         Ele virou em direção a ela, olhou-a de cima abaixo, um calor aquecendo tão ardente quanto as chamas na frente daqueles olhos azul bebê.

        — Bom dia.

         Seu coração acelerou quando ela lembrou o grande domínio de seu beijo. E quando ele segurou seu seio, oh, doce misericórdia, a reação que teve foi inesperada, o mais doce tipo de prazer, o mais agonizante tipo de dor.

         Ela precisava de mais. Queria mais, sim, também, mas precisava era a melhor palavra. Quando ele parou, ela quis morrer. Teria negociado sua próxima respiração por um toque.

        E tudo bem, tudo bem, entendia suas razões, teve que entender, mas ainda queria rosnar com insatisfação. Nunca experimentou tanto prazer, e ele tinha acabado de tomá-la.

         Você está fazendo beicinho, ela pensou e suspirou. Solo merece mais do que uma fêmea chorona mais preocupada com fazer amor do que com a segurança — especialmente já que aquela mesma fêmea o impediu de continuar um tempo atrás.

         — Solo. — ela disse.

         — Sim. Esse sou eu. O que há com o tom arrogante?

         Tom arrogante!

        — Eu não tenho um. Tudo bem, eu tenho. Sinto muito.

         — Ainda frustrada? — Ele perguntou a ela.

         — Talvez. — Ela baixou o olhar para suas mãos; seus dedos estavam retorcendo juntos. — Quero que você saiba. Sinto que eu deveria explicar. Por que não deixei você fazer mais do que me beijar aquela vez na jaula.

         — Você me disse. Não estava pronta.

        — E isso era verdade. É que quando era mais jovem, só uma menina, as coisas que eu testemunhei nas sombras... — Ela disse e um tremor percorreu-a. — Então fugi e fui capturada por um grupo de rapazes bêbados e mal consegui menear meu caminho livre para me esconder. As coisas eles fizeram antes que eu conseguisse fugir... eles apertaram e machucaram, e eu estava com tanto medo, tão feliz quando meu pai apareceu e me salvou, e estou divagando, eu sei, mas essa é uma das razões por que fiquei com ele por tanto tempo. Ele me salvou de um destino terrível. No circo, seu nome me ofereceu alguma proteção.

         Solo se abaixou na frente dela.

         — Vika.

         — Não, não diga nada. Aconteceu. Eu aprendi e cresci. Estou bem. Eu só queria que você soubesse.

         — Você era uma criança. — ele disse. — Uma criança que cresceu e se transformou em uma mulher bem fechada, desesperada para uma saída, ainda assim cuidando daqueles menos afortunados que ela. Entendo isto agora. — Ele suspirou. — Eu ameacei você durante nosso primeiro encontro e não me orgulho de mim mesmo por isso. Gostaria de poder voltar atrás e fazer mil coisas de maneira diferente.

         Ela correu seus dedos pelos cachos gelados de seu cabelo, encantada pela suavidade.

        — Típico Solo, tentando fazer com que eu me sinta melhor.

         — Sempre. — Ele beijou a ponta do seu nariz. — Ouça. Apressei você ontem à noite e falhei em terminar porque ver você gozar teria me empurrado além dos limites. Eu sei que você não me culpa por decidir esperar, mas seu corpo não pensa assim, é compreensível. Quando estivermos finalmente juntos será em uma cama e você estará segura. Nós poderemos fazer o que quisermos um com o outro.

         — Sim, bem... — Até conversar sobre que poderiam e fariam estava deixando-a excitada. Ela tratou de mudar de assunto. — O que há para o jantar?

         — Não pergunte e não direi.

         — Bem, como você conseguiu matar essa carne misteriosa?

         — Encontrei inesperadamente um grupo de caçadores à espera de um cego e confisquei suas armas.

         Ela não perguntaria o que ele fez com os caçadores.

         — Falando em armas... — Ele endireitou e caminhou para o outro lado de sua cama de tronco de árvore, onde ergueu dois rifles. — Já usou um destes?

         — Uma arma? Sim. Algo tão grande? Não.

         — Darei a você uma mini lição antes de sairmos fora. E você não tem que se preocupar sobre o uso, o barulho e Jecis nos localizando. Vê as pontas? Criei uma pasta especial para amortizar o estrondo.

         — Oh, bem, ótimo, mas já tenho uma arma. — ela disse, procurando dentro da bolsa até que a encontrou. — Está até carregada e tudo mais.

         Ele olhou para a arma, balançou a cabeça, então olhou novamente, uma luz estranha entrando em seus olhos.

        — A trava não está puxada. — ele disse com os dentes cerrados.

               — Que trava? — Ela girou o cano em direção a seu rosto e...

         A arma foi arrancada de seu aperto. Solo brincava com ela e se ouviu um clique. Ele verificou... independente de como era chamado, o pequeno centro redondo que girava antes de dizer.

        — Estive carregando essa coisa aí, Vika.

                Agora provavelmente não era hora de dizer “dã”.

        — Eu sei.

                — Eu podia ter me matado. Ou você! E pensei que tivesse dito que já usou uma arma.

       — Eu usei. Meu pai colocou uma na minha mão e me forçou a apertar o gatilho. E adivinha o quê? Tenho uma boa notícia pra você. Você não atirou em si mesmo ou em mim.

               Ele correu a língua entre os dentes.

        — Deixe-me adivinhar. Isso foi ideia de X?

                — Foi uma sugestão dele, sim. — ela disse, não querendo colocar o rapaz em dificuldade quando só quis ajudar.

               — O que mais ele disse que você trouxesse?

                — Mostrarei a você. — Ela retirou um garfo, pasta de dentes, batom, um preservativo e spray perfumado para o corpo. — Ele me disse que cada uma dessas coisas era uma necessidade.

                — Ok. Então por que o garfo? — Ele perguntou.

                Era a primeira pergunta que ele tinha? Realmente?

               — X disse que nós não somos selvagens e não devemos agir como se fôssemos.

                — E o batom?

                — Ele não me disse.

                — Nenhuma garrafa d’água? Nenhuma comida?

                — Não. Mas estou achando que é porque podemos derreter e beber a neve, e X sabia que você poderia pegar...— ela acenou com a mão em direção às coisas no fogo.

                — E o preservativo? O único preservativo?

       Eeeeee.... lá estava a pergunta que assumiu que ele faria primeiro.

        — Não é minha culpa. — ela disse, lutando com um rubor. — Estou envergonhada também, mas ele disse pra trazer, então eu trouxe.

         — Sim, mas provavelmente não estamos envergonhados pelas mesmas razões. — ele murmurou.

         Por que ele estava envergonhado, então?

         Ele pegou o garfo e saiu pisando firme para a cozinha improvisada, onde colocou pedaços suculentos de carne em uma pedra grande, plana.

        — Existe um rio a poucos metros ao norte, e já limpei a pedra. — ele disse, entregando a ela. — Não somos selvagens, certo, e não terei você comendo em um prato sujo.

         Uma batida de surpresa quando ela absorveu suas palavras. Que doçura, homem doce, considerando-a em todas as coisas, até nas pequenas coisas.

        — Obrigada. — ela disse com um sorriso brilhante.

                — De nada. Agora, aqui está o garfo. — Ele estendeu sua mão.

                Ela sacudiu a cabeça.

        — Não, obrigada. Isto é pra você.

                — Não vou usar um garfo enquanto você usa seus dedos. Tome.

                — Não.

       Ele franziu a testa, mas enfiou o utensílio de volta na bolsa.

        — Tudo bem. Nós dois seremos selvagens.

                — Tudo bem. — Depois que ela deu algumas mordidas na comida mais deliciosa de sua vida, ela gemeu e disse: — Existe qualquer coisa que você não pode fazer? — E talvez ela fosse selvagem, porque queria continuar a encher seu rosto enquanto estava conversando — e queria roer o osso. — Você não tem necessidade de um chefe de cozinha na sua fazenda.

         — E ainda assim quero um. — ele murmurou.

         Será que isso significava o que ela pensou que significava? Que ele ainda queria Vika lá?

        — Doce. —Mal arranhamos a superfície, ela percebeu. — Quero que você saiba, enquanto estivermos em nossa jornada, não vou desapontá-lo ou atrasá-lo. Vou acompanhar, prometo.

                — Não se esforce demais.

                — Eu não vou. — ela disse e era verdade. Planejava se esforçar muito. Ele apenas a ajudaria. Ela não o impediria.

 

       Solo terminou de comer e encheu todas as “necessidades” de volta na bolsa, assim como o cobertor que roubou, e ergueu a coisa estúpida por cima do ombro, em seguida um rifle, então o outro. Ele teria dado a Vika uma das armas, mas não, isso nunca aconteceria agora. Nem mesmo se sua vida dependesse disso.

        — Eu arranjei um lugar para você cuidar de quaisquer necessidades urgentes que possa ter. — ele disse e observou como a cor, mais uma vez, coloriu suas bochechas.

         — Obrigada. — ela respondeu, compreendendo. — Mas, uh... onde é?

         Ele apontou, encantado pela inquietação dela por algum motivo. Eles passaram seis dias juntos, presos em uma jaula 3x3. Já era pra ter deixado pra lá esse tipo de coisa. Mas sua pequena Vika era afetada e adequada, ele supôs — até que a beijou.

         Toda vez que se lembrava do seu beijo um fogo acendia em seu sangue, e uma profunda consciência florescia no lugar onde fervia o instinto primitivo. Era maravilhoso... era terrível... ele a queria, mas não poderia tê-la. Não aqui fora a céu aberto, onde qualquer um poderia tropeçar neles.

         Pelo menos entendia um pouco mais sobre ela agora — e quanto ele a entendeu mal no começo e até momentos antes. Não é à toa que ela sempre quis viver por conta própria. Não é à toa que queria passar o resto de sua vida sozinha. Era um milagre ter permitido que Solo se aproximasse dela.

         Vika levantou, cambaleou na neve e logo desapareceu atrás de uma parede de folhas de inverno. A área era perto o suficiente para ele ouvir se alguém a abordasse, mas longe o suficiente para que ela se sentisse confortável para fazer qualquer coisa que precisasse. Além disso, um bom número de árvores formava um círculo ao redor dela, protegendo-a de quaisquer olhos espreitadores.

         Ele desmontou o espeto, apagou o fogo e a dispersão das pedras. Escondeu as evidências de sua permanência da melhor maneira que pôde, e quando terminou Vika estava retornando.

         — Você está dolorida? — Ele perguntou.

         — Surpreendentemente, não muito.

         Bom.

        — Vamos manter um ritmo brutal hoje. Verifiquei nossas coordenadas e se nos apressarmos poderemos chegar à cabana um pouco depois do anoitecer.

         — Estou pronta. — ela disse e soou como se estivesse mesmo.

         Ele entrelaçou seus dedos — algo que gostava de fazer. Gostava de saber que ela estava perto. Que confiava o suficiente nele para permanecer ao seu lado.

         Marcharam adiante em silêncio durante a primeira hora.

         — Tenho algo pra te dizer— ela disse —, mas você não vai gostar.

         — Pode me dizer qualquer coisa.

         — Bem... veja, não existe uma chave para as algemas. Jecis destruiu a única, isso explica por que nunca fui capaz de encontrá-la.

         Explica o porque?

         — Eu sinto muito! — Ela adicionou.

         Nenhuma chave, ele pensou, assombrado pela realização, embora devesse ter percebido há muito tempo. Jecis era cruel o suficiente, simplesmente satisfeito consigo mesmo em fazer tal coisa sem se importar com as vidas que estava arruinando. Na verdade, feliz sobre a vida que estava arruinando.

                E Vika estava esperando uma resposta dele. Esperava que ele endoidasse, provavelmente.

               — Não se preocupe. — ele finalmente respondeu e virou à esquerda, manobrando ao redor de um laguinho de gelo. Depois de um tempo as drogas nos punhos acabariam. Elas não poderiam mais afetá-lo. Mas... ele ainda as queria fora. Nunca mais ia querer alguém tendo esse tipo de poder sobre ele. Nunca mais ia querer ser localizado por alguns cliques de um computador.

        Esperava procurar pela chave quando voltasse para resgatar os extraterrestres, mas agora isso seria desnecessário, uma coisa a menos a fazer. E realmente era provavelmente o melhor. Agora poderia remover as faixas no momento que tivesse Vika a uma distância segura e soubesse que Michael estava a caminho.

         Michael, que já deveria tê-lo encontrado.

         Mas Solo ainda se recusava a acreditar que seus amigos estavam mortos. Em sua linha de trabalho você tem que ver o corpo para acreditar. E mesmo assim ainda restavam dúvidas.

         John era astuto. Blue era um sedutor. Ambos eram sobreviventes. Ninguém poderia mantê-los por muito tempo. E Solo, bem, ele era o que consertava tudo. Sempre seria o solucionador de problemas e resolveria isso.

       Juntos eles salvaram este mundo de muita, muita gente terrível. Fornecedores de drogas, traficantes de escravos humanos, assassinos e aqueles que pensam em reunir um exército e subir ao poder. Os meninos eram esperados para um salvamento de seu próprio povo. E faria isso, ele se assegurou. Tinha certeza.

         Pelas próximas seis horas, ele teve cuidado em evitar as áreas com lobos e ursos. E fez bem, até que se deparou com uma matilha se deslocando na direção da extremidade do penhasco acima dele. Ele quis amaldiçoar, mas realmente não poderia fazer nada. Não há nenhum caminho a evitar — porque os animais estiveram claramente caçando-o.

         Os olhares amarelos brilhantes esquadrinharam a luz do dia, diligentemente procurando o sabor do que tinham cheirado. Solo parou e lançou um olhar estreito em Vika, exigindo silêncio. Ela movimentou a cabeça mostrando que compreendeu. Ele a levantou e colocou-a na pedra mais próxima. Poderia excedê-la em peso por mais de sessenta e oito quilos, mas seus passos eram bem leves.

         Ele colocou o saco aos seus pés e deu um beijo rápido em seus lábios. Seus olhos estavam arregalados, vidrados com medo e cansaço, mas permaneceu em pé quando ele se afastou. Estava mais orgulhoso dela a cada segundo que passava.

         Um baixo e ameaçador grunhido dividiu o ar, seguido por outro.

         Os lobos o viram. Então saltaram e aterrissaram atrás dele em sucessão rápida. Ele ouviu o baque de suas patas e poderia calcular a localização de cada um.

         Solo virou, pegou o rifle e deu um tiro. Não houve nenhum estrondo alto, só um aprazível estalo, o silenciador improvisado fez seu trabalho. Uma criatura acalmou, sua perna agora ostentava um ferimento aberto, enquanto os outros saltaram sobre ele. A ira o engolfou. Raiva por esses animais colocarem sua mulher em perigo, podendo tê-la prejudicado.

         Pouco antes do contato ele mudou em sua outra forma, tornando impossível usar o rifle. Ele soltou a arma no chão e agarrou dois dos lobos pelos pescoços, batendo-os juntos, bloqueando um de seus amigos de sua jugular. O outro saltou para o chão e ele lançou aqueles que se ocupou no topo.

         Os três restantes trancaram nas suas pernas e estavam mastigando sua panturrilha. Vermelho gotejava e espirrava pela neve, perfumando o ar com o sabor de cobre. Ele lançou um à esquerda, um à direita e agarrou o último. Erguendo alto a criatura, jogou a cabeça para trás e rugiu.

         Os outros começaram a recuar para longe dele. Ele lançou um todo contorcido em seu punho e o lobo bateu em seus amigos. Não mais contente com os poucos metros de distância, o conjunto inteiro botou o rabo entre as pernas e fugiu correndo.

         Um som estranho atrás dele o fez olhar em volta, preocupado. Vika permanecia no lugar que a deixou, mas estava segurando a arma que X pediu que roubasse. E estava tremendo, pálida.

         — Eu... eu não atirei. Sinto muito. Eu tentei. Queria ajudar você, mas não pude. Tudo o que podia pensar era em One Day e o modo que ele me olhou quando Jecis me fez atirar, e os outros, à medida que morriam, e eu... é isso, então desculpe!

         Um pedido de desculpas. Depois de tudo que ela acabou de presenciar. Uma vez mais ela não estava indignada com sua habilidade de luta e o conhecimento.

         Ele ergueu as mãos com as palmas pra fora e se moveu em direção a ela. Suas unhas retraídas.

        — Querida, está tudo bem. É realmente melhor que não tenha feito. Você não praticou com uma arma e poderia ter me atingido. Você quer me matar?

                — Não!

                Suavemente ele retirou a arma de seu aperto kung fu e enfiou o cano na cintura de suas calças. Puxou-a em seus braços e segurou-a, apenas abraçando-a enquanto ela chorava, muito feliz por ter permitido que os lobos vivessem.

         — Eu sinto muito. Agora não é hora para emoção. — Ela ergueu a cabeça, revelando olhos lacrimejantes que machucaram sua alma. — Preciso cuidar de seus ferimentos.

         — E você pode, no momento em que chegarmos à cabana. — Ele segurou suas bochechas, seus polegares afastando as lágrimas que sempre seriam sua ruína. — Sinto muito por tudo o que teve que suportar ao longo dos anos, meu amor.

               Ela fungou um tremor.

        — Obrigada. Mas Solo? Se você fosse esperto me deixaria para trás. Sei que tenho tentado meu melhor para continuar, como prometi, mas ainda estou te atrasando, não é?

         Se você fosse esperto, ela disse, obviamente sem pistas sobre o quanto o insultou.

         Por que ele queria sorrir?

        — Você estaria a milhas e milhas daqui se não tivesse que se preocupar comigo. — ela continuou. — Não é?

         Provavelmente.

        — O calor do corpo é importante em um tempo como este. — Não para ele, entretanto. Solo não sentia frio como os humanos. Além disso, ele disse. — Talvez você esteja me salvando do congelamento. Talvez esteja me salvando de morrer de tédio. Você é muito divertida.

       Isso a acalmou um pouco e ela brincou com a gola de sua camisa.

        — Você está certo. Estou certa que estou salvando você. E a propósito, disponha sempre.

         — Bem, está na hora de vocês dois começarem a confiar um no outro. — disse uma voz familiar. — Foi o batom, não foi? Eu sabia que você não seria capaz de resistir a ela.

         Solo não teve que olhar para saber que X tinha acabado de pousar em seu ombro.

         — Onde você estava?

         Vika franziu a testa para ele.

        — Aqui mesmo.

                — X. — ele disse com um aceno de cabeça.

                — Sério? — Ela olhou para a direita. Olhou para a esquerda. — Onde ele está?

                — Você não pode vê-lo ou ouvi-lo?

               — Não.

                — Por que ela não pode ver ou ouvir você agora? — Ele perguntou a X.

                — Eu só sou capaz de me manifestar para uma pessoa de cada vez. E respondendo à sua pergunta anterior, tenho recarga. Tive que fazer isso muito ultimamente.

                — Está levando mais tempo que o habitual.

               — Estou usando mais energia que o habitual.

                        — Onde você foi afinal?

                X olhou para baixo, chutou um pé de sandália.

        — Você sabe que eu não direi a você.

        Não, ele nunca dizia. Mesmo assim.

        — Obrigado. — dificilmente parecia adequado. — Devo a você.

                — E vou cobrar, tenho certeza. — o homenzinho disse com um sorriso.

                Mas não iria. Ele nunca o fez.

               Por que Solo de repente sentiu como se arrepiando o cabelo do macho?

        — Onde está Dr. E? — E como é estranho ter esta conversa na frente de alguém. Ele nunca fez isso antes.

                — Ele está em algum lugar próximo, isto é tudo o que sei. E pretendo caçá-lo. Mas primeiro... — Ele desceu o braço de Solo e parou nas faixas de metal ao redor de seus pulsos. Perscrutou dentro do buraco da fechadura murmurando pra si mesmo e movimentando a cabeça. — Se eu pudesse curar as feridas dos lobos lá atrás ou abrir as algemas, qual você preferiria?

                — Acho que é a coisa mais estúpida que você já disse.

                X riu.

               — Anotado. Pode demorar um pouco, já que tenho que desativar o motor nas agulhas para evitar que você perca suas mãos. — Então colocou suas próprias mãos dentro do buraco da fechadura e uma luz brilhante irrompeu dele, quase cegando Solo com sua intensidade.

               Um minuto se passou. Dois. Três. Finalmente as algemas se desengataram. As faixas permaneceram presas a seus pulsos, as agulhas ainda incorporadas em seu osso, mas tudo que ele tinha que fazer era arrancar cada uma das agulhas, causando dores afiadas pelo seu braço e estava livre. Docemente, abençoadamente livre, capaz de manter as duas mãos.

                Vika engasgou com prazer.

                — Se você tinha o poder de fazer isso — Solo disse para X — por que não fez antes?

                — Era o circo. A magia negra. Meu poder era limitado.

                Isso ele compreendia.

                Novamente “obrigado” dificilmente parecia adequado.

        — X... eu não tenho palavras.

                — Eu não quero palavras. Sempre quis ver você feliz e resolvido, Solo. Espero que saiba disso.

                X o amava, Solo percebeu. Realmente o amava. Pensou que Mary Elizabeth e Jacob Judah eram os únicos, mas não. Ele sempre teve X, só não sabia disso. E ele deveria realmente saber, deveria ter percebido mais profundo que a superfície. Mas esteve tão cego por seus problemas e suas expectativas distorcidas.

        — Eu sei. — ele finalmente disse. — Realmente sei.

                — Então faça o necessário para ficar assim, tá? — X disse e desapareceu para recarregar.

                Da próxima vez que eu o vir, vou beijá-lo na boca.

                — Oh, Solo. — Vika disse, saltitando e batendo palmas. — Que maravilha! Jecis nunca poderá encontrar você agora.

                Mas Solo o encontraria, ele jurou a si mesmo, e isso era um voto que não quebraria.

        — Vamos, querida. Só mais oito horas de viagem para ir.

         Um pequeno gemido escapou, mas tudo que ela disse foi:

        — Amanhã, enquanto estivermos na cabana, começo a planejar as atividades do dia.

                — Desde que as atividades incluam uma cama.

                Talvez ela soubesse o que ele quis dizer. Talvez não.

                — Combinado. — ela disse e sorriu tão docemente quanto açúcar — manhosa como um gatinho, selando seu destino.

 

       FINALMENTE!

        A cabana apareceu, pequena e parcialmente oculta por árvores e neve.

        Solo sabia que haveria um cofre em algum lugar da propriedade e procurou em cada pedacinho do perímetro de nove metros até encontrá-lo dentro do tronco de uma árvore. Ele teve que arrancar os pedaços de gelo com as garras, provando que ninguém esteve ali faz um tempo, e digitou sua senha pessoal.

        Luzes azuis e amarelas brilharam, sinalizando que as armadilhas dos limites da propriedade foram desativadas.

        Depois digitou a senha para recolher as informações. Passaram-se seis meses desde que um agente adentrou aquelas premissas, e quatro semanas desde que um dos fios de disparo captou movimento, enviando choques elétricos no corpo do invasor. Ou um humano se aproximou demais ou um animal em busca do seu jantar.

        — Dormir agora? — perguntou Vika.

        Suas palavras eram inteligíveis, pobrezinha. Ele não demonstrou piedade, parando só duas vezes para garantir que ela comesse a carne extra que trouxe, e bebesse a água que derretia para ela.

        — Agora dormir. — respondeu, e pegou-a nos braços.

        Sua cabeça descansou em seu ombro, o resto do corpo instantaneamente ficando mole.

        Ele colocou-a dentro da cabana onde era mais quente. Os móveis eram antiquados e confortáveis, destinados ao conforto mesmo e não à praticidade. Um enorme sofá de tecido. Outro de dois lugares. Uma poltrona do papai. Uma mesinha de centro com revistas velhas espalhadas por cima. Ele ficou feliz. Queria que Vika se sentisse tranquila e calma ali.

        Entrou no quarto principal, mas passou direto pela cama queen-size. No banheiro anexo entrou no boxe. No circo ela usava uma enzima líquida barata em um borrifador para limpar os cativos. É por isso que precisava tirar suas roupas e usar trapos de pano. Aqui, com uma enzima a seco e mais cara, tirar a roupa era desnecessário.

        Seu peso nos azulejos disparou o interruptor automático e o jato começou a esfumaçar em volta deles, limpando-os por dentro e fora da roupa, bem como o próprio tecido que usavam. Sua pele formigou e um gosto de menta até encheu sua boca.

        Depois de feito, ele entrou no quarto e depositou Vika em cima do colchão macio. Uma massa de cabelo loiro se espalhou no travesseiro e um suspiro baixinho abriu os seus lábios. Ela se enroscou de lado. Ele não conseguiu evitar. Estendeu a mão e passou os dedos pela curva de sua orelha. Ela era uma mulher tremendamente teimosa. Tremendamente bonita.

        Sua mulher.

        Ele removeu seu casado e colocou as cobertas em volta dela. Roçou os dedos na gargantilha de diamantes que deixou nela. As pedras eram frias, mas belas, e desejou ter comprado aquela joia para ela. Mesmo assim, ao ver uma mulher tão delicada usando uma coisa daquelas tentava o animal dentro dele. O animal que teria negado até a morte há poucos dias.

        O animal que antes odiou.

        De alguma forma, seu maior defeito se transformou em seu maior trunfo. Não usara sua força para intencionalmente causar o mal, e sim para proteger algo precioso. E ela era preciosa, não era? Preciosa para ele de tantas maneiras.

        A necessidade que sentia por ela se dilatou no mais sublime sentimento de satisfação quando percebeu que finalmente seria capaz de tê-la. De todas as formas. Sem interrupções. Sem distrações. Sem correrem perigo. E ela estava pronta para recebê-lo. Sabia que estava. Da última vez… o jeito que se movia…

        E depois, naquela manhã…

        — Ainda frustrada? — perguntou a ela.

        — Talvez. — foi sua resposta afiada.

        Ele tinha excitado-a sem dar nenhuma espécie de alívio.

        — Em breve. — prometeu a ela agora, mesmo que não pudesse ouvi-lo. Deu um beijo em sua testa e andou em silêncio pela casa. Tinha dois andares, embora o primeiro fosse subterrâneo e somente um olho bem treinado seria capaz de encontrar a passagem que dava para ele.

        O aquecedor já estava ligado, o ar morno, mas acendeu a lareira da sala de estar de qualquer maneira. A cozinha era pequena com bancadas de granito; armários de cerejeira com comida enlatada suficiente para prover uma família de quatro pessoas durante vários meses de isolamento. Só havia um quarto. O outro foi transformado em um escritório.

        Um escritório que Solo assumiu para si. Reivindicou a única cadeira em frente a uma parede de computadores e começou a digitar no teclado central, reativando as armadilhas do lado de fora. Enviou uma mensagem a Michael, John e Blue, esperou cinco minutos, dez, mas nenhuma resposta apareceu de nenhum dos três. Decidiu que checaria mais tarde, depois que comesse.

        A dispensa estava estocada com ainda mais comida enlatada e ele devorou um galão inteiro de sopa de frango com macarrão. E… nenhuma resposta dos caras.

        Aquilo não significava nada, garantiu a si mesmo.

        Foi até o quarto, deitou no colchão e puxou Vika para que ficasse colada ao seu lado. Ela não acordou, mas se aconchegou nele. Ele ancorou uma mão em seu cabelo e outra em seu traseiro, amando a forma perfeita em que se encaixavam.

        Mas… meia hora passou. Duas horas passaram. Ele ficou ali deitado, simplesmente olhando para o teto. Estava ligado demais para dormir, a mente muito ativa. Que jornada que ele empreendeu. Forçado a se tornar uma aberração de circo. Cercado pelo mal, mas cuidado por uma santa. Uma corrida por uma tundra congelada com uma loirinha linda ao seu lado. Um ataque de lobos. E agora isso. Satisfação.

        E, sinceramente, se tudo que suportou tivesse sido necessário para levá-lo àquele momento, sabendo que Vika estava a salvo, que foi ele quem a salvou de uma vida de tortura e tormento, não mudaria absolutamente nada.

 

        A luz do sol se derramava pela janela do quarto. Solo não dormiu nem um pouco, mas ainda estava deitado na cama, Vika ainda aconchegada em seu corpo. Ela ficou na mesma posição a noite inteira, sem emitir som algum.

        Ele a desejava. Precisava dela.

        Quando ela acordaria?

        Ele contou as vigas do teto. Vinte e três.

        Contou novamente, só para ter certeza. Vinte e três.

        Contou as partículas de poeira flutuando no ar. Duas mil e dezesseis. Duas mil e dezessete. Dezoito. Dezenove.

        Finalmente ela suspirou e se deitou de costas. Arqueou o corpo e espreguiçou.  

        A ferocidade de sua necessidade repuxava com força a coleira que colocou nela. Se ela fosse outra mulher teria se atirado em cima. Mas não era o caso. Era Vika. Sua Vika. Preferia morrer a assustá-la ou pressioná-la por algo que não estava preparada para dar. Certo?

        Mas não tinha com o que se preocupar. Ela estava pronta; ele já chegou àquela conclusão antes. E ele nunca errava. Certo?

        — Solo? — ela disse, a voz rouca de sono.

        Certo.

        — Vika. — Ele girou em cima dela, segurou-a pela nuca, levantou sua cabeça e juntou suas bocas. Seu gosto, seu calor, sua maciez, gentileza, cada curva do seu voluptuoso corpo soprava o fogo do seu desejo.

        Ele a beijou com vontade, de língua, marcando-a, sendo marcado por ela, acendendo um fogo que sempre arderia entre eles. Depois de um momento de hesitação ela o recebeu com o mais doce dos gemidos, prendendo os braços à sua volta e arqueando o corpo. Ele quase rosnou com a intensidade do prazer.

        Ela estava pronta.

        — Vai parar dessa vez? — ela perguntou.

        — Só se quiser que eu pare.

        — Não quero.

        — Então não vou parar nunca.

        O beijo continuou, até ela ficar ofegante, lutando para conseguir respirar.

        — Já fizemos isso. — ela disse. — Agora quero saber o que vem depois.

        — Já fizemos a segunda parte também, mas vamos fazê-la de novo. E provavelmente mais uma terceira e quarta vez. — Até que mais do que só seu corpo estivesse preparado. Forçando-se a ir devagar, deslizou as mãos debaixo da sua camiseta até encontrar pele morna e nua. — Diga se ficar com medo.

        Se ela ouviu suas palavras, não respondeu. Contudo, ela se empurrou contra sua mão, dizendo-lhe tudo o que precisava saber. Ele apalpou seus seios pesados como fez antes e grunhiu. Outro encaixe perfeito. Ela choramingou sua excitação, encorajando-o a apalpar mais… até suas mãos tremerem, até que ela se arqueasse continuamente, tentando se colar mais a ele.

        — Vou descer agora. — ele disse.

        Talvez ela tenha lido seus lábios. Talvez não. Ele voltou sua atenção para sua barriga, interessando-se pelo seu umbigo. Quando não protestou, ele traçou os dedos pelo cós de sua calça.

        Um ofego saiu dela. Seus olhares se prenderam e ela estremeceu.

        — Mudou de ideia? Quer que eu pare? — perguntou, engolindo uma recusa.

        — Não. Continue, por favor. — Uma súplica cheia de necessidade.

        Ele continuou, descendo ainda mais. Manteve as carícias leves e tranqüilas, e ela respondeu a cada movimento, cada roçar do seu polegar, choramingando outra vez… logo depois implorando.

        — Mais. Por favor.

        — Sim. Eu darei mais. Mas quero vê-la primeiro, coração.

        — Eu… eu tenho algumas cicatrizes. — ela respondeu de um jeito trêmulo.

        Uma explosão de fúria, rapidamente suprimida.

        — Você é linda. Toda linda. Cada pedacinho.

        Ela lambeu os lábios.

        — Sério?

        — Sério.

        — Prove.

        Com prazer. Ele passou a camiseta por sua cabeça e jogou-a de lado, depois tirou seu sutiã, expondo-a aos seus olhos, e oh, como era maravilhosa, perfeita em todos os sentidos, exatamente como sabia que seria. Ela… a primeira mulher a tentá-lo a perder o controle.

        Ele viu uma cicatriz pálida e fina em seu ombro direito e a beijou. Havia uma cicatriz rosada e enrugada ao lado das suas costelas esquerdas e beijou-a também. Arrepios surgiram em sua pele.

        — Você é a criatura mais linda que já foi criada. — disse, levantando da cama.

        Se ela tivesse outras cicatrizes, ficariam mais embaixo, em suas pernas e quando ele chegasse lá não queria parar nem um segundo para arrancar a própria roupa. Melhor tirá-la agora.

        — Aonde vai? — ela exigiu.

        Um tom de voz tão feroz para uma criatura tão pequenina. Ele quase sorriu.

        Em silêncio tirou a roupa, depois se abaixou e tirou o que sobrou da dela. Sua respiração ficou presa na garganta. Ele a descreveu como perfeita antes, mas isso… isso que era perfeição. Cada pedacinho dela era envolvido em uma pele suculenta de um tom rosado, suas curvas generosas criando uma pintura de uma feminidade das mais doces.

        Como suspeitava, ela tinha outras cicatrizes. Só algumas, mas formavam círculos enrugados onde os ossos haviam extravasado a pele; elas de certa forma só aumentavam sua beleza. Ela sobreviveu a um tipo de inferno que teria destruído centenas de outros. Cada marca de abuso era um atestado da incrível força que possuía.

        — Tão poderoso. — ela disse, olhando seu corpo. — Venha cá.

        — Quero beijar suas outras cicatrizes.

        — Depois.

        — Depois. — ele repetiu. Cuidaria tão bem dela, jurou a si mesmo quando se deitou ao seu lado. Trataria aquela mulher como o tesouro que era, faria com que se sentisse tão especial que nunca duvidaria de sua determinação em protegê-la.

        O calor irradiava dela, envolvendo-o, mas mesmo assim ela estremeceu.

        — Medo? — ele perguntou.

        — Extasiada.

        — Quero fazer com que se sinta ainda melhor. — Querendo voltar a deixá-la naquele estado de total excitação, ele lhe deu outro beijo, buscando, provando, tomando, concedendo. Finalmente ela precisava de mais —precisava de tudo. Todavia ele só acariciou seu rosto, brincou com as pontas do seu cabelo. Traçou a linha dos seus ombros. Cada toque era inocente e ao mesmo tempo estratégico.

        — Solo. — ela finalmente disse, em uma ordem.

        — Sim. — respondeu, em uma promessa.

        — Mais.

        Exatamente o que esperava ouvir. Ele explorou-a do jeito que ansiou explorar desde o começo, sem deixar nenhuma parte sua intocada. Decorou seu corpo. Apreciou seu corpo, aquela garota doce e vulnerável com um coração mais raro do que diamantes. Lambeu e sugou as cicatrizes de suas pernas.

        — Tão linda. — ele disse. — Tão perfeita.

        — Eu? Você é o lindo e o perfeito.

        Quando ela o olhou com prazer, paixão e necessidade nos olhos, sentiu-se o belo príncipe que quis ser quando era um garotinho.

        — Você não mudaria nada em mim. — Uma afirmação, não uma pergunta.

        — Só se você quisesse deixar essa cama antes que realmente fizéssemos a parte boa!

        Ele deu risada. Humor. No sexo. Ele nunca soube que isso seria possível. Mas também, nunca esteve com uma mulher como ela, uma mulher de amor e de luz.

        — Vou te mostrar a parte boa. — grunhiu com mais ferocidade.

        Começou a fazer exatamente isso. Sua própria necessidade deveria tê-lo dominado, feito com que se apressasse, mas aquilo era importante demais para que corresse, ansiava a satisfação dela com um desespero enorme, estava tão determinado a fazer daquilo uma lembrança que ela guardaria com amor pelo resto da vida, que teve o cuidado de sempre observar suas reações.

        Quando ela ofegava, sabia que gostava do que estava fazendo.

        Quando gemia, sabia que gostava muito mais.

        Mas quando ela se retorcia, sabia que era sua.

        O tempo inteiro ela apertava e arranhava suas costas. Parecia não se cansar dele, parecia precisar dele, de alguma parte dele, e acabou por agarrar sua mão e sugar seus dedos com a boca.

        Ele quase explodiu da própria pele de desejo.

        — Está pronta para mim, coração?

        — Por favoooor.

        Ela roubou a palavra exata bem da sua mente.

        — Preciso pegar uma camisinha. Estou limpo, não tenho nada, mas não podemos arriscar um bebê.

        — Não. Quero sentir você. Só você. Só da primeira vez.

        Oh, sim. Ela com certeza lia sua mente. Ele sabia do risco, exatamente como disse, mas não conseguia se importar mais naquele momento.

        Colocou-se na posição certa preparando-se, mas sem tomá-la. Não ainda. Ela prendeu as pernas em volta dele e seus lábios se encontraram em outro beijo ardente. Finalmente ele se moveu para frente. Pretendia ser gentil, mas tão pequena como ela era, teve que exercer mais pressão do que intencionava. Ela ofegou quando ele finalmente conseguiu entrar, seu corpo se sacudindo com o choque da invasão.

        — Tudo bem? — disse entre os dentes.

        — Siiim. — ela disse em um gemido.

        Então ele fez o trabalho direito, preparou-a corretamente. Quando se mexeu, ela ofereceu outro gemido e lhe deu mais do que ele já havia imaginado ser possível, sem recusar nada. Ela o cercava, apertava, respirava em sua orelha, gritava seu nome, arqueava, movia-se com ele, gritava, puxava seu cabelo, arranhava mais suas costas, beijava, beijava e beijava seu corpo. E quando ele soube que ela estava prestes a perder o fôlego, levantou a cabeça e olhou em seus olhos. Bem fundo.       

        — Vika. — entoou seu nome. — Vou te dar tudo o que tenho para dar, eu te prometo, e você vai gostar. Jure para mim que vai.

        — Solo, meu querido Solo. — Seus tremores aumentaram. — Eu juro e eu te darei tudo. Tudo o que tenho.

        — Vou fazer com que se sinta muito feliz por ter dito isso. — Quando ele a beijou e reivindicou, foi a um passo além do que tinha prometido, dando-lhe tudo o que era e o que alguma vez seria. Ela era tudo o que desejava, tudo que pensou que jamais teria e então ela começou a ofegar seu nome, várias e várias vezes, chamando por ele, levando-o ainda mais além.

        Quando suas costas deixaram a cama, ela gritou com a força do seu orgasmo. Ele sentiu o seu alívio e perdeu o resto de seu controle.

        E quando caiu em cima dela alguns minutos depois, rapidamente girou para o lado, sem querer machucá-la. Suas pálpebras estavam inacreditavelmente pesadas — e ele só conseguiu sorrir com a ironia daquilo. Fez uma longa caminhada por entre montanhas de gelo carregando uma bolsa com uns quarenta e cinco quilos de joias sem se cansar uma vez, e foi aquela pequena mulher quem conseguiu esgotá-lo.

        Ficaria com ela para sempre, decidiu quando foi pegando no sono, e lamentava por qualquer um que tentasse tirá-la dele.

 

       Enquanto seu doce e exausto Solo tirava um cochilo, Vika se vestiu e apreciou um maravilhoso banho de enzima a seco. Esquentou um pouco de sopa de tomate e tomou-a conforme estudava a cabana. Era maior do que havia esperado e bem cômoda, com paredes de madeira e mobílias gastas e confortáveis. Um tapete macio marrom cobria o chão da sala de estar, e quadros com rosas e lírios cobriam as paredes. Havia um tapete ainda mais macio na cozinha e panelas e frigideiras penduradas em um suporte de metal bem acima de uma bancada de granito.

        Uma mistura eclética de velho e novo, como se um homem e uma mulher dividissem a responsabilidade de decorar o lugar. O homem tinha decidido o que iria no chão e a mulher o que pertencia às paredes.

        O chefe de Solo era casado? Perguntou-se. Se era, o que a mulher pensaria de Vika? Ela nunca socializou com pessoas de fora do circo e não tinha certeza se sabia como dar uma boa impressão.

        Falando nisso, o que os amigos de Solo achariam dela? Eles dariam tapinhas nas costas dele por um trabalho bem feito, como os homens às vezes faziam, ou o chamariam de lado e aconselhariam que ficasse longe dela?

        Como Solo reagiria se esse fosse o caso?

        Uma vez ele lhe disse que eles a protegeriam, mas isso não queria dizer que gostariam dela ou a aprovariam. Um calor escaldante subiu no centro do seu peito, um que não tinha nada a ver com prazer.

        — Preocupação só traz rugas. — sua mãe costumava dizer. — Bem, além de estragar os ossos.

        Vika forçou os pensamentos depressivos a abandonarem sua cabeça e espiou pela janela embaçada pela neve. Agora que estava bem quentinha podia apreciar a majestade do inverno ao seu redor. E talvez… talvez seu amor também se enraizasse no fato de que, pela primeira vez em sua vida, não tinha que temer fazer ou dizer a coisa errada e “merecer” uma surra por isso. Estava a salvo. Solo nunca a machucaria fisicamente, algo que provou inúmeras vezes quando lutou para salvá-la.

        Ela era… estimada. Sim. Era mesmo. Não importava o que os amigos dele pudessem falar a seu respeito!

        O homem a beijou e tocou, e fez tudo isso com um prazer desavergonhado, uma necessidade intensa e uma pitada de deleite. Ela amou cada segundo e só ansiava por mais. Nada que ele fizera a assustou. Tudo a excitou, suavizou.

        Estou tão feliz por ter esperado por ele.

        Era assim que fazer amor era para todo mundo?

        Não. De jeito nenhum. As coisas que testemunhou com o passar dos anos tinham só confirmado o contrário. Sexo podia ser violento, explosivo, furioso, ou risível, engraçado, e aparentemente despreocupado. Mas terno? Não, não tinha testemunhado um desses. O que ela e Solo fizeram era especial, e ela guardaria aquela lembrança em seu coração por toda a eternidade.

        Um movimento reclamou sua atenção.

        Com o coração acelerando, ela abandonou a sopa para correr em volta da bancada da cozinha e colar o nariz no vidro da janela. Mais ou menos a uns quarenta metros de distância, um belíssimo tigre branco andava de um grupo de árvores a outro, deixando uma linha de cor rubi pelo caminho.

        Rubi… sangue? Ele estava ferido?

        Tinha de estar. Só o desespero por ajuda o levaria tão perto assim da vida humana.

        Mas… não devia ajudá-lo. Não era tola. Bem, não sempre. Sabia que ele era um animal selvagem, diferente do seu adorado e domado Dobi com o problema da marca. Suspeitava que ele fosse arrancar sua cabeça com os dentes se tivesse oportunidade. Talvez até metade de uma oportunidade. Ótimo, mesmo que ela falhasse em lhe dar qualquer tipo de oportunidade. Mas… não podia deixá-lo ali fora, machucado, sem ao menos tentar ajudá-lo.

        — Sei o que está pensando. — disse X de repente, aparecendo em seu ombro. — E o prazer seria meu em ajudá-la. Posso impedir que a fera te ataque.

        — Sério?

        Sim, sério. Mas primeiro, quero te mostrar uma coisa. É a razão pela qual vim, e posso estar fraco demais depois que ajudemos o seu amiguinho lá fora para mostrá-la mais tarde. — Ele colocou a mãozinha em sua nuca e imagens de Solo começaram a aparecer em sua mente.

        Solo — um garotinho que só os seus pais amaram.

        Solo — uma criança que nenhuma outra queria ficar perto.

        Solo — um adolescente que as garotas zoavam. Ele nunca teve um encontro ou namoro autêntico. A única garota que gostou usava-o para satisfazer suas próprias necessidades.

        Solo — um homem que só as mulheres mais depravadas desejavam.

        — Você é feio. — milhares de pessoas disseram.

        — Você é nojento. — mais umas mil disseram.

        Solo — um guerreiro que decidiu passar o resto de sua vida sozinho. Desse jeito, ninguém poderia magoá-lo.

        Oh, a dor que aquele homem suportou… tão parecida com a sua. Como alguém ousava tratá-lo tão mal? Enquanto ela sim havia merecido aquele ódio empurrado nela, ele não. E como, como, como ele sobreviveu ao circo? Como ela pôde deixá-lo naquela jaula por tanto tempo?

        Lágrimas correram por suas bochechas.

        — Não mostrei o passado dele antes para que não tivesse pena dele nem se sentisse culpada — disse X —, mas agora sei que o entende um pouco melhor.

        — Ele é maravilhoso mesmo, não é?

        — É sim. Agora trate do tigre antes que Solo acorde e resolva impedi-la.

        — Você vai me ajudar. Ele não vai se importar.

        — E você é inocente demais até para ser descrita. Vamos!

        O mais silenciosamente possível, Vika entrou na ponta dos pés no banheiro. Era o maior que já viu, o triplo do tamanho daquele do seu trailer e quase tão largo quanto o próprio quarto, com paredes de um azul calmante e uma pia no formato de concha. Ela colocou os materiais que precisaria dentro de uma cesta que encontrou na sala de estar — e havia muita coisa para escolher levar! Nunca viu tantas gazes e remédios.

        Claramente, Michael era um homem que gostava de estar preparado para qualquer coisa.

        Quando saiu, ficou de olho em Solo. Ele estava completamente imóvel, o peito mal subindo ao respirar. Seus cílios espessos estavam arrepiados, curvando nas pontas e os lábios abertos, relaxados. Ele parecia infantil a ponto de se admirar.

        Uma sensação morna de satisfação a encheu, praticamente rasgando sua pele. Não quero ficar sem ele, deu-se conta. Nunca. Queria abraçá-lo e nunca deixar que fosse embora.

        Como ele se sentia com relação a ela? De verdade. Ele a desejava, sim. E pediu que vivesse em sua fazenda. Mas como se sentia realmente? Como podia se sentir quando todo o perigo passasse?

        Preocupações, rugas e ossos estragados, lembrou-se, contendo um suspiro.

        As dobradiças rangeram quando abriu a porta dos fundos e ela fez uma careta. Mas Solo não gritou nem apareceu correndo, então continuou. O tigre ainda estava lá, ainda andando de um lado para o outro — ainda sangrando.

        — Como vai acalmá-lo? — perguntou a X.

        — Tenho os meus meios.

        Eles estavam a vários metros de distância, mas podia sentir o sangue escorrendo da pata esquerda frontal do tigre. Ele pisou em alguma espécie de armadilha, apostaria nisso, pois a pele e o músculo foram perfurados em locais separados.

        Aproximou-se lentamente, X dirigindo seus passos. O ar frio a golpeou, ferroando sua pele. O tigre a viu, olhos azuis se prendendo aos dela, e então parou. Um passo, dois, ela continuou a sua jornada. Ele mostrou os dentes de sabre — compridos, afiados, mortais.

        — É, X? — Ela considerou soltar a cesta e sair correndo.

        — Deixe comigo.

        O tigre se agachou, como se pronto para saltar em cima dela e se banquetear com seus ossos. Seus passos vacilaram.

        — Ele não vai saltar. Agora, vá uns dez centímetros para a esquerda. Ótimo. Agora rode na direção da direita.

        Mais uma vez ela obedeceu.

        — Por que estou andando desse jeito?

        — Para evitar as armadilhas. Agora, dê um passo gigante para frente, como se estivesse passando por cima de um tronco caído. Bom, agora pare. Me dê só um momento. — Com isso, ele desapareceu.

        Ele não reapareceu nela nem no tigre (pelo que viu), mas de repente a criatura caiu no chão cheio de neve. O animal exalou forte.

        — Ele é todo seu. — disse X, mais uma vez em seu ombro.

        Vika fechou o resto da distância com passos bem mais seguros. Ajoelhou-se ao lado da magnífica fera e coçou atrás de suas orelhas.

        — Farei com que se sinta melhor. — disse. E, agora acostumada com Solo, adicionou. — Eu prometo.

        Olhos azuis cheios de dor a observaram com cautela. Não falharia com aquela criatura.

        Trabalhando rapidamente, embora com bastante gentileza, limpou cada uma das perfurações.

        — Poucas pessoas teriam vindo aqui. — disse X.

        — Não podia deixá-lo assim.

        — Gosto disso em você.

        — Obrigada.

        — Você é exatamente o que Solo sempre precisou.

        Uma excitação percorreu-a por dentro.

        — Como ele era quando criança? Tirando o que me mostrou, claro.

        Uma risada carinhosa.

        — Ele era o garotinho mais adorável já criado, seguindo sua mãe pelos cantos, sempre lhe trazendo presentes.

        Ontem ele se ofereceu para comprar joias para Vika. Ela se convenceu de que a oferta tinha origem na irritação acerca do peso de sua bolsa, e talvez tivesse, mas e se também viesse de um desejo de agradá-la?

        Com as mãos tremendo, ela passou um creme anestésico nos ferimentos do felino e cobriu sua pata com uma gaze grossa branca, aplicando pressão para estancar qualquer sangramento posterior. Uma última coçada atrás da cabeça da criatura e ela se levantou para caminhar de volta à cabana. Mais uma vez X ordenou os seus passos, fazendo-a andar em ziguezague e saltar aqui e acolá.

        Dentro da cabana o calor a envolveu instantaneamente. Ela despiu o casaco e levou a cesta de volta ao quarto, desesperada para voltar a ver Solo. Ele tinha se mexido. As cobertas da cama foram chutadas, deixando seu corpo nu. Estava de bruços, as costas voltadas para ela. Suas costas deliciosas. Ele era todo pele bronzeada e músculos bem definidos, seu bumbum firme, suas pernas… machucadas, como a do tigre.

        Preocupada, Vika correu para o seu lado.

        — Tudo bem, então. É aqui que eu me despeço. — disse X e desapareceu.

        Os lobos morderam Solo, ela lembrou, e as marcas de dentes ainda estavam presentes, ainda escorriam. Ela colocou a cesta no chão e retirou o único algodão de limpeza que restou.

        No momento em que o material roçou sua pele ele deu um pulo, os braços rodando, as garras alongando — mas ele a viu e deteve o movimento bem a tempo.

        As garras retraíram e Solo gemeu, como se sentisse dor.

        — Sinto tanto, coração.

        — A culpa foi minha. — ela disse, e não havia nem uma gota de medo dentro dela. Esse era o tamanho de sua confiança nele. — Meus bebês costumavam reagir do mesmo jeito quando alguém os despertava. Eu deveria saber. — Sorrindo suavemente, ela empurrou de leve seu peito morno. — Fique deitado. Você prometeu que eu cuidaria de você quando chegássemos na cabana. Bem, ótimas notícias. Chegamos na cabana.

        Tão forte quanto ele era, a ação forçava-o a não fazer nada. Quieto, ele caiu para trás, os travesseiros ao seu redor. Observou enquanto ela tratava dele em silêncio. Quando terminou, ela traçou as unhas do seu pé com a ponta do dedo.

        — Tão lindas. — ela disse. — Como diamantes.

        — Eu quero você de novo, Vika.

        Ele estava completa e totalmente nu.

        — Percebi isso também, Solo. — ela disse com um sorriso.

        Seus olhares se encontraram e ela suspeitou que o mesmo fogo que estalava dentro dele também estalava dentro dela.

        — Você me quer? — ele perguntou.

        — Mais do que qualquer coisa.

        — Então me tenha.

        Ela o teve. Oh, e como.

 

        Vika se apoiou com um cotovelo na cama e olhou para Solo. Ele encontrou seus olhos com as pálpebras semicerradas. Seu cabelo estava completamente desarrumado, as madeixas escuras arrepiadas. Os ossos fortes do seu rosto estavam cobertos por uma pele corada pelo prazer intenso que compartilharam. Seus lábios macios e prontos para seus beijos, um pouco inchados.

        Ele era de tirar o fôlego.

        — Acho que gostei mais dessa vez do que da primeira. — ela anunciou.

        — Gostará ainda mais da terceira. — ele prometeu.

        Ela riu com prazer.

        — E aí, quando chegarmos à sua fazenda vai me deixar dar comida aos animais? Essa pode ser uma das minhas tarefas?

        Uma pausa. Uma hesitação.

        — Decidiu ficar comigo?

        — Por enquanto. — ela disse, pensando ao mesmo tempo, para sempre. Mas não diria essa parte. Ainda não. Nao até que tivesse certeza que a queria em sua vida por todo esse tempo.

        — Isso é bom. — Ele passou uma mão no rosto. — Mas tenho que te contar uma coisa, Vika. Você pode mudar de ideia.

        Seu estômago afundou. Em um único segundo, ele foi de brincalhão e excitado a sério e amargo.

        — O que é?

        Ele desviou os olhos.

        — Não quero mentir para você, quero te contar tudo, mesmo que tenha dito a mim mesmo que guardasse o segredo, e sei que deveria ter contado antes que fugisse comigo. Mas sou um homem esperto — muito esperto —e agora é tarde demais para que se livre de mim, então esse era o caminho mais fácil e não lamento por isso.

        Cer-to, ela nunca o viu tão desconfortável assim. E já o viu ser despido e acariciado por estranhos!

        — Conte logo.

        Ele emaranhou os dedos no cabelo.

        — Você não vai gostar.

        — Bem, vai ter que honrar o que tem dentro da calça e me dizer!

        Ele ficou imóvel, repuxando os lábios.

        — O que tenho dentro da calça? Está falando das minhas bolas?

        Calor explodiu pelas suas bochechas.

        — Talvez.

        — Diga. — ele disse com um sorriso. — Diga a palavra certa. Quero ouvi-la sair por esses lábios de maçã-do-amor.

        — Não! Agora pare de enrolar e... seus olhos. — ela disse com o cenho franzido. Havia um zumbido leve em seus ouvidos, irritante e ao mesmo tempo maravilhoso. — Seus olhos eram de um azul claro, mas agora estão um roxo escuro, como os olhos do meu pai eram. Como os meus são. — E ela conseguia ver com muito mais clareza que antes, percebeu ao olhar em volta do quarto.

        Antes ela achava que tudo era claro. Agora percebia como esteve errada. Isso que era clareza. Partículas de poeira rodopiavam no ar, flutuando… flutuando… e a luz de cima fornecia uma radiação inegável que trazia lágrimas aos seus olhos.

        Confusa, ela subiu com os olhos.

        — O que está havendo?

        — Seus olhos agora são azuis claros. — ele disse. — Eu notei há alguns minutos, mas achei que fosse um truque de luz.

        — Meus olhos não estão roxos?

        — Não. Estão azuis, como os meus eram.

        Então… eles mudaram, os dois.

        — Não entendo.

        — Será que nós… trocamos? É possível?

        Talvez.

        — Mas nunca ouvi falar de nada assim acontecer. Não com humanos, nem com humanos que namoram extraterrestres. — O zumbido parou abruptamente, e no seu lugar ela ouviu sua própria voz. — Consigo ouvir. — disse com um ofego. — Eu consigo ouvir! — E oh, sua voz era linda! Ela sabia que se gabar era errado, mas não conseguiu evitar. Sua voz era a coisa mais linda que já ouviu!

        — O quê? — ele disse, coçando os ouvidos. — Fale de novo.

        Esquece aquilo. A voz dele era a coisa mais linda que já ouviu. Rouca e grossa, misteriosa e masculina, cheia de poder e de um vigor inegável, fazendo com que estremecesse.

        — É um milagre! Meus ouvidos estão funcionando. Tem alguma ideia do tempo que eu...

        — Não consigo te ouvir. — ele interrompeu. — Não escuto nada.

        — O quê? — ela berrou. Ela podia ouvir, mas ele não? Não. Não, não, não. Isso significaria que trocaram mais do que só a cor dos olhos. Trocaram de ouvidos. A perfeição dele em troca de todos os seus defeitos.

        — A promessa. — Ele a fitou estupefato. — Eu prometi te dar tudo o que eu era.

        E ela também. Sua boca ficou seca.

        — Oh, Solo, eu sinto tanto. — Ela pôs as palmas em seu peito, sentiu a batida forte do seu coração. — Nunca teria concordado em fazer uma troca dessas...

        — Calma. — ele disse. — No meu trabalho tive que aprender a ler lábios também, então não teremos problema nenhum de comunicação.

        Sim, mas ele a ajudou e em troca ela o prejudicou.

        — Nunca serei capaz de me perdoar. Depois de tudo o que você fez por mim, vou e faço uma coisa assim com você, aumentando seu sofrimento. Não é justo. Na verdade, é um crime. Eu devia ser castigada!

— Pare com isso agora mesmo. Essa coisa de poder ou não ouvir? Não importa. — Ele a puxou para baixo para que ficasse abraçada em seu peito. — Agora escute o que tenho a dizer. — Ele traçou as pontas dos dedos pela sua coluna. — Eu contarei sobre o meu passado e você jurará ficar comigo mesmo assim.

        Uma ordem. Uma que ela acataria. Não havia nada que pudesse dizer que mudasse a ideia que fazia dele.

        — Eu era um assassino profissional do governo. — Ele fez uma pausa, como se esperasse que ela pulasse e corresse.

        Ela não fez nenhuma das duas coisas — estava surpresa demais.

        Ele continuou.

        — Eu matava humanos, extraterrestres, homens, mulheres, não importava. Se me diziam para matar alguém, eu matava aquela pessoa sem questionar. Matei muita gente, Vika.

        Ela não mentiria. As palavras eram difíceis de ouvir e ela se retraiu. O seu homem, um assassino. Mas ele não se parecia em nada com o seu pai, lembrou a si mesma, e jamais pensaria nele dessa maneira. Jecis gostava da dor que infligia. Solo nunca gostou, e nisso apostaria a própria vida.

        — Chorei quando matei pela primeira vez e não tenho vergonha de admitir isso. Fiquei olhando o corpo por muito, muito tempo, tremendo, com o estômago revirado. Mas mesmo assim aceitei o serviço seguinte, e o próximo, e eventualmente o que fazia não me incomodava mais. Estava frio por dentro e feliz por isso.

        Mas agora não. Havia arrependimento demais em seu tom.

        — A maior parte do que fiz foi por uma boa causa, e sei que homens como eu são necessários para manterem o nosso mundo a salvo. Mas as coisas que tive que fazer para finalizar certos trabalhos… acho que sempre fui mais como você, porque sem importar as minhas razões, o que eu fazia também matava o homem que eu era. Queria poder desfazer meu passado. Queria voltar e viver uma vida diferente, mas não posso. Tenho que viver com o que fiz. E agora, estou te pedindo que também viva com isso.

        Ela ouviu o arrependimento, agora misturado com insegurança, dúvida, culpa e pesar. Um desejo de virar a página e começar do zero. Um desejo que ela conhecia muito bem. Ficou surpresa de poder julgar as emoções de maneira tão precisa, e duvidava que poderia ter feito o mesmo com qualquer outra pessoa, mas aquele era Solo, seu Solo, e ela o conhecia de uma forma que não conhecia mais ninguém.

        Vika sentou-se, o cabelo caindo em volta dos ombros. Ele esperou, tenso.

        — Todo mundo se arrepende de coisas que fez no passado. — ela disse e ele ficou ainda mais tenso. — Até eu.

        Enquanto ele observava seus lábios, relaxou, mas só de leve.

        — Você não fez nada de errado.

        Oh, não. Ele não iria absolvê-la.

        — Ao invés de achar um modo de libertar os extraterrestres desde o princípio, permiti que o meu pai os usasse. E não ouse dizer que fiz o que podia. Podia ter feito mais. Minhas ações eram egoístas. Eu queria ir embora dali para sempre e deixei-os apodrecerem ali enquanto salvava o meu dinheiro.

        — Você procurou a chave.

        — Podia ter procurado mais. Podia ter perguntado a Jecis sobre ela.

        — E se colocado em uma posição de maior risco.

        — Tudo o que estou dizendo é que nós dois poderíamos ter agido de maneira diferente.

        — Vika...

        — Ainda quero ficar na sua fazenda. — ela interferiu. — Você não é o homem que costumava ser, e não é um monstro. — E ela não gostava do fato de já ter implicado que ele pudesse ser um. Ninguém poderia ver dentro do coração de um homem e saber o que ele sentia nem por que fazia o que fazia. Você tinha que esperar e observar os frutos. Uma laranjeira sempre daria laranjas. Um limoeiro sempre daria limões. — Não sou a garota que era também, e estou tão...

        — Não ouse se desculpar. — ele disse com severidade. — Com o seu passado, o fato de ter me ajudado já é incrivelmente suficiente.

        — Arrependida. — ela terminou de todo jeito.

        O cenho franzido dele era reprovador.

        — Temos que nos perdoar. — ela disse assentindo com a cabeça. — Não podemos viver odiando a nós mesmos. É um sentimento terrível e só abrirá a porta para que odiemos os outros. Odiar os outros nos deixará iguais a Jecis, e não quero ser como ele.

        — Só podemos mudar o que vem a partir de agora. — concordou Solo. — Fazer melhor.

        — Vamos começar do zero. — A partir daquele momento ela não era mais a covarde que se escondia nas sombras, o ratinho tímido que se encolhia pelos cantos, a vítima de uma crueldade constante. Estava cheia de esperança. Cheia de poder.

        Estava com o mais magnífico dos homens.

        — Contanto que nunca esqueça o que fizemos aqui nessa cabana. — disse Solo, sua voz suave.

        Arrepiando-se, ela respondeu.

        — Acredite em mim, sonharei com essa cabana toda vez que fechar os olhos.

        — Tenho o pressentimento que também sonharei. — Ele levantou a mão e roçou suas bochechas com a ponta de um dedo. — Falamos sobre o passado. Agora vamos falar sobre o futuro. Depois que eu libertar os extraterrestres do circo, tenho que encontrar meus amigos, John e Blue. Eles ficaram feridos como eu, e do pouco que sei sobre o homem responsável por isso, coisas terríveis foram feitas com eles.

        — Eu entendo. — E ela não aceitaria nada diferente. — Farei o que puder para ajudar.

        Uma luz potente nos olhos que estava acostumada a ver refletidos no espelho — uma luz que nunca viu neles antes.

        — Não importa o que aconteça, cuidarei de você.

        — E eu de você. — ela prometeu. — E quando conseguirmos — e iremos conseguir, porque somos impossíveis de sermos detidos — vamos sair juntos. Muitas vezes. Você vai me cortejar levando-me a jantares e vou me arrumar toda para seduzi-lo. Dançaremos, comeremos, conversaremos, daremos muitas risadas e vamos nos divertir como nunca.

        — Concordarei com esses termos com uma condição. — ele disse e estendeu o braço para apalpar seu traseiro.

        Um tamborilar de necessidade, um gemido velado.

        — Qual?

        Ele lambeu e chupou a pele da sua clavícula.

        — Solo não é bom com palavras. Ele vai ter que mostrar.

        Tolo homem das cavernas.

        — De novo? Ai, meu Deus! Sobreviverei a isso?

        Ele a beijou, voltando a decorar seu corpo, mas o beijo logo saiu do controle. Bem antes Vika estava confusa pelo prazer completo e absoluto que encontrou no ato de fazer amor com ele. Solo era gentil e era brusco, era cuidadoso e indisciplinado, era… tudo para ela, e mais do que já pôde sonhar.

        Não havia uma só parte dela que ele não expressasse o quanto apreciava. Nada era tabu. Ele se deleitava no que ela era, e entrava em erupção num frenesi de grunhidos e comandos quando ela assumia o controle, mostrando-lhe exatamente o quanto o amava.

        Amava?

        Sim, amava, deu-se conta. Ela o amava com todo o coração. A emoção explodiu em seu ser, aquecendo-a, enchendo-a de prazer, emocionando-a — assustando-a, mas não perderia tempo com essa última, e não pensaria em querer mais dele do que ele poderia querer dela. Seus sentimentos não mudariam por conta dos dele. E não era um ratinho, lembrou-se. Era corajosa. Era forte. Iria atrás do que desejava com tudo o que tinha dentro de si.

 

       Solo fitou a tela do computador e fechou a cara. Finalmente recebeu um e-mail. Três, na verdade. Um de Michael, um de John e um de Blue. Mas todos os três eram respostas automáticas.

        Os e-mails dos três mudaram. Bem como os seus números de telefone. Esse era um procedimento padrão quando uma identidade ou localização era comprometida — ou quando um agente morria.

        O código de Solo na cabana também devia ter mudado, mas não era o caso. Não sabia ao certo porquê. O que fazia agora? Precisava de um novo plano. Se Michael estava vivo, ele sabia que Solo estava ali, apesar do probleminha de comunicação dos dois. Ele saberia no momento em que Solo digitou a senha do alarme. Ele teria ligado.

        Para Solo isso ainda não provava que o homem estava morto. Porém. É, porém. Sempre havia um “porém” quando dúvidas e incertezas estavam envolvidas. Solo poderia ter que proceder como se Michael estivesse fora de cena e incapaz de ajudá-lo.

        Agora que as algemas ficaram para trás na floresta, Jecis não seria capaz de localizar Solo. Ele ficaria de vigia nas cidades mais próximas, talvez até no aeroporto e rodoviária. Mas isso não era exatamente um problema. Na garagem no subsolo da cabana havia uma caminhonete e um ATV[2]. Porém… Lá vinha aquela palavra outra vez. Ele não gostava de ideia de expor Vika aos elementos da natureza. Ela aguentou bem da primeira vez, mas desde então ele cometeu o erro de deixar que o desejo ofuscasse suas responsabilidades e não usou camisinha na primeira vez que fizeram amor. Usou na segunda, e devia ter parado já que não havia mais. Mas aí ele raciocinou que o mal já estava feito. Então fez amor com ela pela terceira vez — e faria novamente.

        Agora ela poderia estar grávida. E se não estivesse, poderia estar ao fim do dia.

        A possibilidade devia perturbá-lo. A possibilidade devia apavorá-lo. Não estava pronto para ser pai. Mas não podia negar que gostava da ideia de Vika redonda com seu filho, ligada a ele a um nível tão visceral.

        Um zumbido alto irrompeu em seus ouvidos e ele franziu o cenho, ignorando-o. Não gostava que Jecis soubesse que Vika estava pelas redondezas. Não gostava nem que pai e filha estivessem no mesmo país. Mas embora Solo agora tivesse os recursos, não tinha tempo de levá-la para outro lugar.

        Ficaria ali mais uma noite, decidiu, e esperaria por Michael. Depois, se seu chefe falhasse em contatá-lo ou não chegasse, trancaria Vika na cabana e voltaria ao circo — com armas, como Kitten pediu. Afinal, a garagem estava cheia e não só de veículos.

        Ele não queria correr o risco de Jecis mudar o circo de lugar outra vez. No momento, Solo duvidava que o homem faria algo assim. Ele ia querer ficar por ali e procurar Vika.

        — Você está feliz. — disse uma voz familiar.

        Solo piscou, momentaneamente confuso. Podia ouvir. Isso queria dizer que Vika, que no momento cochilava, exausta de mais uma incansável sessão de amor, voltou a ser surda? Se fosse assim, ele não tinha certeza se gostava da troca.

        — Estou. — respondeu. — Não graças a você.

        Dr. E apareceu na mesa, olhando-o com raiva. Seu cabelo estava todo cheio de nós, solto em volta de um rosto esquelético. Seus olhos estavam afundados, bem como as bochechas.

        — Por que não? Eu te ajudei.

        — Você só me meteu em problemas.

        O ser chiou para ele, e se houvesse algumas pedrinhas do tamanho certo para ele, Solo tinha certeza que seriam jogadas em sua cabeça.

        — Nunca mais vai me dar ouvidos, não é?

        — Não. — Ele gostava de pensar que aprendia com seus erros.

        Dr. E estalou a mandíbula.

        — X foi dado a você no dia da sua concepção, um presente dos seus pais para atender às suas necessidades, para protegê-lo e ensiná-lo, mas ele nunca deveria anular seu livre arbítrio, mesmo que se metesse em encrencas.

        — Eu sei disso. — Solo disse, sentando-se mais ereto.

        — Eu costumava ser como ele. Você sabia disso? Muito, muito tempo atrás, eu era um Altilium. Mas escolhi uma vida diferente, escolhi tomar ao invés de perguntar e esperar pela resposta, e a fonte do meu poder secou. Tive que encontrar outra. Então me juntei a você e a X sem pedir permissão. Se tivesse me ignorado, teria sido forçado a ir embora, mas você não ignorou. Você me ouviu, me recebeu de braços abertos e fui capaz de me ligar a você e me alimentar de você.

        — Como um parasita. — Solo disse entre os dentes.

        Um aceno indiferente da pequenina mão do Dr. E.

        — Prefiro o termo “receptor de energia”.

        — Tanto faz. Continue. Tenho certeza que tem um propósito nessa conversa.

        Antes que o carinha pudesse abrir a boca, a cabeça de Vika apareceu na porta e ela disse:

        — Solo? — Sua massa de cabelo claro estava escovada e lustrosa. Seus olhos tinham outra vez a cor de ameixas, e embora estivessem brilhando, seu cenho estava franzido.

        Solo ficou de pé.

        — Tudo bem?

        — Tudo ótimo. Mas estou surda de nov, e só queria ter certeza que você conseguia ouvir.

        — Consigo. — ele disse.

        Alívio pintou os cantos do seu sorriso repentino, ofuscando-o.

        — Fico feliz. — Ela entrou no escritório e se apoiou na parede. Devia ter remexido no guarda-roupa, porque agora usava um suéter enorme que teve que ter as mangas enroladas e uma calça com as bainhas também enroladas.

        Ela nunca pareceu tão jovem e cheia de frescor, e seu coração de fato inchou no peito. Mas ele queria vê-la usando as roupas que comprou para ela. Ou nas roupas que ele já vestiu. Queria vê-la cercada pelas suas coisas — pelas coisas deles. Queria lhe dar… tudo.

        — Eu me pergunto por que a troca dos nossos sentidos continua acontecendo. — ela disse. — Sei que você disse que acha que é porque juramos dividir tudo o que tínhamos, mas acha que há mais do que isso, já que nada dura?

        — Como o quê?

        — Eu não sei. — Ela encolheu os ombros. — Esperava que pudesse me dizer.

        Como o fato dele desejar dar tudo a ela? Como o fato de amar dividir o que tinha com ela?

        — Fico feliz que isso esteja acontecendo e espero que também esteja. Ninguém nunca teve a chance de ver o mundo através dos olhos de outra pessoa, mas nós sim. Ninguém mais teve a chance de ouvir pelos ouvidos de outra pessoa, mas nós sim.

        — Somos especiais? — ela disse, uma pergunta quando o que provavelmente queria fazer era uma afirmação.

        — Somos. E talvez as habilidades não estejam durando porque é assim que a divisão funciona. Dar e receber. Como o curso das marés.

        Ela assentiu, satisfeita com isso.

        — Bem, Sr. Especial, vou assaltar a dispensa e cozinhar um banquete — disse. — Está com fome?

        — Sempre.

        — Me dê uma hora. Enquanto isso, prepare-se para se surpreender. — Ela soprou um beijo, virou-se e caminhou pelo corredor.

        Solo rodou nos calcanhares e encarou o ser que tantas vezes lhe deu terríveis conselhos, riu durante sua tortura no circo e o abandonou várias e várias vezes, quando Solo mais precisava de ajuda.

        — Não.

        Dr. E estalou a mandíbula.

        — Nem mesmo para salvar minha vida?

        — Nem por isso.

        Uma pausa. Pesada, opressiva.

        — Muito bem. — disse o ser. — Foi você quem pediu por isso. — Com isso, ele desapareceu.

 

Vika encontrou ervilhas, vagens, cenouras e tomates e misturou tudo. Também achou vários pacotes de frango em pedaços e os descongelou no forno, depois refogou com uma deliciosa manteiga de garrafa.

Havia tantos temperos para escolher que ela ainda estava um pouco desconcertada. Havia coisas que nunca ouviu falar. Usou somente o que conhecia, sem querer arruinar a primeira refeição de verdade que preparava para Solo.

Na fazenda, ele lhe daria tarefas. Já dissera que sim. Ela queria provar que poderia fazer tudo o que ele pedisse, que poderia tomar conta dele do jeito certo. E rezava para que pudesse!

Não tinha educação formal. Sua mãe a ensinou a ler e escrever, e seu conhecimento também era limitado. Eu tenho uma mente rápida, garantiu a si mesma, e posso aprender qualquer coisa. E… e… ela sabia costurar. Isso! Aquela era uma habilidade perfeitamente aceitável. Faria reparos nas roupas de Sol, e ele seria o fazendeiro mais bem vestido do mundo inteiro.

E podia vender suas joias e usar a renda para comprar algo especial para ele. Algo que ele sempre desejou. Só tinha que descobrir o que era.

Quando o frango aqueceu e os vegetais estavam cozinhando, desligou o fogo e preparou dois pratos. A fumaça subia e o cheiro encheu sua boca d’água.

Ponto para mim, pensou, orgulhosa de si mesma. Ela às vezes observava o cozinheiro do circo, sabendo que um dia teria que cuidar das suas próprias refeições.

Ela pegou os pratos para levá-los até a mesa, mas viu o seu tigre pela janela. Ele tinha voltado. Não estava mais andando de um lado para o outro em agonia, mas deitado entre as árvores, balançando a cauda lentamente. Até bocejou.

Um corpo morno e forte pressionou suas costas e ela estremeceu. Lábios macios deslizaram pela lateral do seu pescoço e os arrepios intensificaram, arrancando-lhe um gemido. Ela colocou os pratos na mesa. Solo a segurou pela cintura e a virou.

Ele beijou uma pálpebra e depois a outra.

— Estou pronto para dividir outra vez.

— Dividir é mesmo meio divertido, eu acho.

— Você acha? Não, você sabe. — Ele beijou a ponta do seu nariz, uma bochecha, depois a outra. Então pairou sobre seus lábios, com o fôlego quente a acariciando. — Então o que estava fazendo olhando pela janela? Já sonhando comigo?

Ela passou os dedos pelos músculos do seu estômago, até seus ombros, e em volta, em sua nuca, com a intenção de puxá-lo o que faltava para que seus lábios se tocassem.

— Não, Sr. Ego, estava olhando meu tigre.

Os músculos dele ficaram tensos sob sua mão.

— Tigre?

— Ahãm. — Ela puxou, mas Solo resistiu. — Ele estava ferido, mas já está melhor.

Franzindo o cenho, ele tirou-a do chão e colocou-a de lado para se aproximar do vidro. Ele olhou por um momento antes de virar a cabeça na sua direção, os olhos arregalados.

— Ele está com um curativo. — disse.

— Eu sei. — Seus ouvidos começaram a zumbir.

— Quem colocou aquele curativo nele, Vika?

Dessa vez ela conseguiu ouvir, e ele não parecia muito contente.

— Bem…

— Vika.

— Eu coloquei.

— O quê? — ele gritou. — Você foi lá fora? Chegou perto de um predador perigoso? Quando? Enquanto eu estava dormindo? — ele adicionou, respondendo a própria pergunta.

Irritada agora, ela jogou as mãos para cima.

— Sim, mas X me ajudou. Nunca corri perigo algum.

— Há armadilhas lá fora, Vika.

— Por isso que X me fez andar por um caminho estranho.

Uma tonalidade vermelha escureceu sua pele.

— Essa é a segunda vez que menciona ele. X sabia disso e não me acordou?

— Por que acordaria? Estava dormindo tão tranquilamente. E como falei, não corri perigo.

Ele apertou a mandíbula, obviamente tentando se controlar.

— X poderia ter se enfraquecido e o tigre poderia ter te mutilado.

— Mas nada disso aconteceu.

— Como pôde… por que fez… — Gritando um palavrão, Solo esmurrou a bancada da cozinha, agitando os pratos.

Vika pulou, assustada com o barulho.

— Quer me levar para a cova mais cedo? — ele rosnou. — É por isso que faz essas coisas? — Outro grito, outro murro.

Dessa vez os pratos caíram no chão. Nada quebrou, mas a maravilhosa e deliciosa comida que ela passou tanto tempo preparando estava arruinada. Vika olhou para a mistura de amarelo, verde e laranja e entrou em desespero. Solo não só não iria mais descobrir que excelente cozinheira provavelmente era, mas agora precisaria de uma lição a respeito do seu temperamento.

— Esse tipo de surto não será tolerado. — ela disse com severidade. — Lidei com esse tipo de coisa a minha vida inteira e sei que jamais me machucaria, mas não deixarei que fale comigo assim. Não terei esse tipo de relacionamento com você.

Ele colocou as mãos em seus ombros, mas ela se afastou bruscamente delas. Com a cabeça em pé, virou-se e foi embora.

 

       Solo limpou a cozinha com o estômago um pouco revirado. Ele permitiu que a raiva o dominasse e magoou os sentimentos da sua mulher, talvez até a tenha assustado. Com o passado dela, devia saber como agir. Sabia que tinha de ser cuidadoso.

        Estava envergonhado. Simplesmente… sentiu tanto medo pelo o que ela fez. Saiu naquele frio adverso sem saber que um passo errado poderia eletrocutá-la ou matá-la, e fez isso para se aproximar de uma fera ferida e selvagem. Não tinha senso de perigo? Não conseguia entender que Solo não queria viver sem ela?

        Ficou imóvel.

        Não queria viver sem ela.

        Ele repetiu as palavras em sua mente várias e várias vezes, e percebeu que eram verdadeiras. Queria que ficasse com ele agora e para sempre. Não queria só que ficasse próxima também. Queria estar com ela. Cada minuto do dia, queria conversar com ela, rir com ela, fazer amor. Queria aprender mais sobre ela, pensar nela e saber que pertencia a ela. Queria que ela ansiasse o mesmo dele.

        E não queria mudá-la. Tomar conta dos outros fazia parte da sua natureza. Ela não conseguia olhar para o ferido ou o doente sem desejar ajudar, e essa era uma belíssima qualidade, uma que o atraiu nela, uma que o cativou, encantou.

        Nunca deveria ter gritado com ela, lembrando-a do seu pai, e definitivamente lhe devia um pedido de desculpas.

        Ele procurou-a pela casa e encontrou-a no quarto. Ela estava tirando as joias da bolsa, colocando o que pareciam ser milhares de colares, pulseiras e anéis na cama. A única outra coisa que trouxe, além dos itens que X pediu, foram câmeras descartáveis.

        — Perdão.

        Vika parou o que fazia, virando seus enormes olhos cor púrpura para ele.

        Sem uma palavra, ele pegou uma câmera e depois Vika em seus braços. Ela não protestou. Ele sentou na cadeira em frente à cama e dirigiu o seu corpo como um mestre e sua marionete, forçando-a a sentar em seu colo.

        Mesmo que estivesse brava com ele, Solo foi inundado por um contentamento absoluto. Quem teria acreditado que alguém preso a circunstâncias tão medonhas poderia encontrar tal benção? Uma mulher tão adorável quanto aquela. Prazer além da imaginação. Risos. Partilha. Aceitação.

        A perda de sua audição, em curtas ocasiões, ou para sempre, era mesmo um prazer para ele. Vika estava segura. Estava com ele, para proteger e tratar bem. Ele teria que largar o emprego, claro, mas também já havia planejado fazer isso de qualquer forma. Guerreou a vida inteira. Agora era hora de descansar. De aproveitar a vida que lhe foi dada.

        — Coração. — disse — Me perdoe por gritar com você. Não farei isso outra vez, dou minha palavra. Minha única desculpa é que fiquei apavorado pensando em você lá fora, ferida e ensanguentada, e eu completamente ignorante, incapaz de ajudar se precisasse de mim.

        Um momento se passou. Ela abaixou a cabeça.

        Ele sentiu a vibração das suas palavras e teve que interrompê-las.

        — Preciso vê-la para entender, coração.

        Seu cabelo fez um ruído ao cair pelos seus ombros quando ela se endireitou.

        — Desculpa. — disse ela. — Estava dizendo que não podia deixar o tigre sozinho com seu sofrimento.

        Era estranho saber que ela falava, ver sua boca se mexer e não ouvir nada. Ainda mais estranho era saber que ele falava e não ouvia nada. Mas essa sempre foi regra para ela.

        — Eu sei. Você me perdoa?

        Suas pálpebras se abriram, revelando aqueles olhos de ameixa que ele achava tão irresistíveis. Interessante. Daquela vez só tinham trocado os ouvidos, não os olhos.

        — Claro.

        Outra vez ela oferecia seu perdão com muita facilidade. Outra qualidade que ele nunca foi capaz de resistir.

        Ela estendeu a mão e torceu a gola da sua camiseta.

        — Então, o que quer com a câmera? Por que a pegou?

        — Talvez eu queira tirar umas fotos safadas suas.

        — Nesse caso… — Sorrindo ela tirou a câmera da sua mão e segurou-a pendurada no ar. — O que está disposto a fazer por elas?

        — Qualquer coisa. — ele disse, completamente sério.

        — Qualquer coisa? — Uma risada despreocupada. — Jura?

        — Juro. — Uma negociação aberta. Algo que ele nunca fez antes. Algo que nunca faria com outra pessoa.

        Ela deu um beijo estalado em seus lábios antes de ceder o controle da câmera.

        — E o que você vai querer que eu faça? — ele perguntou, nem um pouco preocupado.

        — Vamos começar com mais três desejos.

        Não sorria.

        — Odeio revelar isso para você, coração, mas não sou um gênio da lâmpada.

        Ela o ignorou, dizendo.

        — Vou fazer uma lista e te mostro tudo que fará por mim.

        Não sorria mesmo.

        — Não vejo a hora de ler essa lista.

        — Espere ser surpreendido.

        Certo. Dessa vez ele sorriu.

        — Vamos dar uma olhada nessas fotos antes que eu a jogue na cama. — Ele pressionou os botões da câmera e descobriu fotos de uma pequena Vika com menos de cinco anos de idade. Em cada uma daquelas fotos ela sorria tanto que era só dentes. Seu cabelo estava escovado e brilhando e de maria-chiquinhas na altura das orelhas. Em uma ela estava no meio de um rodopio. Em outra, segurava um sutiã enorme com lantejoulas em cima do peito diminuto. Em outra ainda, estava colada a uma versão mais velha de si mesma, e as duas sopravam beijos para a câmera com os rostos melados de chocolate.

        — Acho que você tem um vício por chocolate. — ele disse, com um aperto no peito.

        — Um bem pequeno. Posso ficar cinco minutos inteiros sem pensar nele nem ansiar um pedaço.

        Ele compraria uma fábrica de chocolate, então. Ela poderia nadar nele, se desejasse.

        — E quem é a outra mulher? — ele perguntou, já suspeitando da resposta.

        — Minha mãe. — disse com saudades. — Ela era volúvel e emocional, mas eu a amava.

        — Sinto que a tenha perdido.

        — Eu também.

        A perda de alguém que se amava poderia deixar um buraco enorme e vazio no peito. Um que se temia nunca ser preenchido. Era assim que ele se sentia com relação aos seus pais, e ainda assim aquela mulher o preenchia de tal forma que duvidava que pudesse se sentir vazio outra vez. Poderia carregar a lembrança dela consigo para sempre.

        Não poderia permitir que se machucasse.

        Colocou a câmera de lado.

        — Que tal treinarmos um pouco de luta? — Se ele a deixasse ali — e a cada segundo que se passava estava cada vez mais certo que teria que deixá-la — ele a queria o mais preparada possível.

        — Certo. — ela disse, e se estava confusa com a mudança de assunto, não demonstrou.

        — Me dê alguns minutos para aprontar tudo. — Ele se levantou com Vika nos braços, colocou-a na cadeira e saiu para a sala de estar para tirar o sofá e a mesinha de café do lugar.

        Quando terminou, voltou ao quarto. Ela estava no mesmo lugar em que a deixou.

        — Pronto? — ela perguntou.

        Ele franziu o cenho. Tinha ouvido sua voz, suave e sensual, mas seus ouvidos não zumbiram. Não dessa vez.

        Ela também franziu o cenho.

        — Solo. — disse, testando.

        Também ouviu dessa vez.

        — Pode me ouvir?

        Com uma sacudida da cabeça, ela disse.

        — Não. Você pode?

        — Sim. — Então trocaram novamente.

        Ela mostrou o mesmo alívio de antes.

        — Gosto de compartilhar com você, realmente gosto, mas fico feliz que possa ouvir. A culpa me fritaria que nem um frango empanado.

        Ele… não tinha ideia de qual ditado popular que ela havia assassinado daquela vez.

        — Disse para que não se sentisse culpada.

        — Disse sim. E lembra quando mandei você ir morder outro?

        Tão linda quando fica irritada.

        — Não. Mas só para constar, deveria me mandar morder você.

        — Por que iria querer isso?

        — Porque eu garantiria que gostasse da mordida. Agora venha para a sala e me force a ir morder outra pessoa.

        — É isso que vou fazer, e você vai se arrepender. — irradiando ímpeto, ela o seguiu.

        Eles pararam no tapete que ele isolou e encararam um ao outro.

        — O que vem primeiro na nossa agenda? — ela perguntou, as mãos de lado e com as pernas afastadas.

        — Você vai praticar o que ensinei e aprender mais alguns truques.

        — E se eu quiser te ensinar uma coisa? — Sem mais aviso, ela chutou seus tornozelos, derrubando-o de joelhos. Estava em cima dele um segundo depois. Empurrando-o para o chão e montando em sua cintura, uma adaga em seu pescoço. — Como isso.

        Tão linda quando fica violenta.

        — Onde conseguiu a faca?

        — Peguei do armário quando saí da cozinha. Ia levá-la na bolsa já que é tão contra que eu ande com uma arma.

        E ele nem viu. Ou tinha perdido a prática ou não tinha defesas contra aquela mulher.

        — Boa garota. — Rapidamente ele a girou, prendendo-a no chão com o próprio peso. — Mas o que vai fazer agora?

        Ela riu.

        Tão linda quando se diverte.

        — Vou me apiedar de você e manter os joelhos parados.

        — Não estou certo de que isso seja sábio. Não tenho plano nenhum de me apiedar de você.

 

       A noite caiu, mas Solo não estava cansado. E nem Vika, a julgar por sua agitação. Ela mexeu em todas as gavetas da cômoda e do guarda-roupa, tirando tudo que precisava de reparos. Agora estava sentada em frente à lareira da sala costurando, uma luz alaranjada suave envolvendo-a, e uma pilha de roupas ao seu lado.

        Ela mostrou umas seis vezes o trabalho que fizera, observando suas feições com atenção. Ele não tinha muita certeza do que estava acontecendo, mas garantiu tecer-lhe elogios pelos seus esforços. E ela era boa. Só queria saber o que se passava em sua mente.

        Uma leve pressão em sua bochecha direita fez com que virasse o rosto. X estava em seu ombro, franzindo o cenho para ele.

        — Consegue me ouvir? — Sua voz encheu a cabeça de Solo.

        — Não. Minha habilidade de ouvir foi dada a Vika novamente.

        Vika olhou para ele.

        — Como... esqueça. Tenho que te dizer uma coisa. E sinto muito. Não soube até que era tarde demais. Tentei impedi-los, mas falhei. Eu sinto muito.

        — Do que está falando?

        — Dr. E. Ele está aqui.

        — Eu sei. Falei com ele.

        — Não. Ele está aqui. Com Jecis. Dr. E contou a ele onde estavam e trouxe-o até a cabana.

        Solo pulou de pé. Vika fez o mesmo.

        — Qual é o problema? — ela exigiu.

        Silenciosamente ele andou até a janela da sala e, ajoelhando espiou pela brecha entre as cortinas. Tudo parecia estar bem. Não havia sombras em movimento. As árvores não balançavam. E não havia possibilidade de Jecis ter passado pelo campo minado de armadilhas como Vika e X fizeram. Ele era grande e pesado demais.

        Ainda assim, Solo trancou a janela e se levantou, agarrando a mão de Vika e levando-a na direção da passagem secreta que levava à garagem. Ficava no quarto, debaixo da cama. Ele entrou debaixo, empurrou o tapete de lado e abriu a porta. Um poço de escuridão aberto o recebeu. Já tinha descido ali e verificado tudo. Já tinha carregado a caminhonete com tudo o que pudessem precisar, só por precaução.

        Seu nariz se encheu de poeira quando desceu o primeiro degrau, ajudou Vika a fazer o mesmo, depois fechou a porta e desceu rapidamente. Chegou ao chão e ligou a luz.

        Nada.

        Tentou ligar novamente.

        Uma vibração contra o peito o fez perceber que Vika falava.

        — Eu preciso... — ele disse e parou. Algo no ar… errado, familiar… terrível… pesado e nauseante, cheio de maldade.

        Jecis e Dr. E estavam ali na garagem, ele percebeu.

        Uma risada soou de repente em sua mente. Outra vez, familiar. A risada do Dr. E. Um segundo depois um crânio em chamas com olhos vermelhos e brilhantes apareceu do outro lado da garagem com a boca aberta, com os dentes afiados à mostra.

        Aquele crânio se movimentou rápido, ficando a poucos centímetros de Solo em um piscar de olhos. Ele empurrou Vika para trás de si, esperando protegê-la do que quer que estava prestes a acontecer, bem quando aqueles ossos em chamas o alcançaram — e o engoliram inteiro.

 

               Vika ouviu uma pancada.

Um segundo depois luz enchia o aposento frio do subsolo para onde Solo a levou, e viu que ele estava no chão imóvel, os olhos fechados. Cheia de preocupação ela começou a se abaixar para ajudá-lo — quando viu Jecis, Matas e Audra do outro lado, e congelou.

Eles a encontraram.

Pavor e horror se misturaram, formando um lodo tóxico em suas veias. Jecis olhava com ódio, Matas sorria, e para variar, Audra a olhava com simpatia. Ela estava pálida e tremendo, não era mais uma bela mulher. Seu rosto estava inchado, sem cor e cheio de cicatrizes dos anéis de Jecis.

Cicatrizes que Vika levava de tantas e tantas surras ao passar dos anos.

Apesar do seu divertimento, Matas também parecia ter entrado em contato com os punhos do seu pai. Um dos seus olhos estava fechado de tão inchado e havia um nódulo em sua mandíbula.

Todos usavam roupas de verão: regatas, calças leves. Mesmo assim a podridão de suas almas conseguia protegê-los do frio. O crânio deformado que viu dentro de Big Red a fitava pelos olhos de seu pai. Sombras negras pairavam sobre os ombros de Matas, mais espessas do que nunca.

— Não. — ela disse sacudindo a cabeça. — Não.

— Achou que teria uma vida melhor sem mim, não achou? — disse Jecis, com uma pitada de loucura em seu tom. Loucura, fúria e maldade. Pura maldade. — Achou que um extraterrestre nojento cuidaria de você de um jeito que eu não cuidaria?

Ele não tinha ideia que podia ouvi-lo, ela percebeu. Um fato que poderia usar em sua vantagem. Só tinha que descobrir como.

— Bem? — ele exigiu uma resposta.

— Sim. —disse ela, feliz de descobrir que sua voz não tremia. — Achei. Ainda acho.

Os olhos dele se arregalaram de surpresa e ele veio em sua direção. Não vou me acovardar. Quando ele a alcançou, agarrou seus braços em um aperto doloroso e a sacudiu.

— Eu amava você. — Choveu cuspe em todo seu rosto. — Como pôde me trair assim?

— Você nunca me amou.

— Eu te dei tudo.

— Não me deu nada além de dor e tristeza.

Ele levantou a mão para golpeá-la, mas ao invés de recuar, ao invés de implorar por uma piedade que ele nunca daria, ela levantou o queixo. A surpresa retornou, agora ainda maior e ele abaixou o braço devagar.

— Você mudou. — ele disse e não parecia feliz com isso.

— Mudei. — E nunca mais voltaria a ser a mesma. Foi longe demais naquela estrada, foi de covarde a corajosa. Mesmo ao olhar para trás, não conseguia mais ver onde sua jornada começou. — Como chegou aqui?

— Um homenzinho, Dr. E, me procurou. Ele me disse onde encontrá-la e jurou me encher de poderes com os quais só sonhava… contanto que eu jurasse matá-la.

Matá-la. As palavras ecoaram em sua mente, deixando um vazio doloroso em seu peito.

— E você concordou?

Ele mostrou os dentes em uma paródia de sorriso.

— Concordei. E você merece morrer depois do que fez comigo. Mas primeiro — ele disse —, vou te ensinar a mesma lição que ensinei à sua mãe: deixe-me e sofra.

Ele acenou chamando Matas.

Seu antigo guarda se aproximou, abaixou-se, e esforçando todos os músculos, colocou Solo no ombro. Vika queria tanto explodir, fazer alguma coisa, qualquer coisa para salvá-lo. Mas não fez. Ainda não. No momento eram três contra um e ela não tinha meios de transportar Solo. Solo, que não se moveu nem emitiu som algum desde que caiu. O que seu pai fez com ele?

— Com o poder que Dr. E me deu — Jecis disse —, posso criar explosões solares ainda maiores. Posso escolher aonde ir, quando ir — até certo ponto. Só posso viajar distâncias curtas, mas quanto mais fizer isso, melhor eu me torno. — Ele levantou um braço, murmurou um punhado de palavras que ela não entendia — palavras que arrepiaram os pelos do seu corpo e deixaram um gosto amargo em sua boca.

De repente um raio cortou o ar bem na sua frente, criando uma divisão. As extremidades estavam repletas de névoa, mas pelo centro ela pôde ver… o lado de fora da cabana. O ar de inverno gélido até soprou dentro da garagem.

Jecis a empurrou, e um segundo depois ela estava lá fora, no lugar exato que havia visto. Matas e Audra vieram em seguida e o bolsão de ar se fechou atrás deles.

— Só mais um e estará em casa. — disse Jecis. Ele ergueu os braços mais uma vez murmurando, e novamente o raio partiu o ar, criando um portal. Uma cortina que acabava de ser aberta, revelando outra localidade do outro lado.

Revelando o pesadelo que deixou para trás. O circo. Só que agora estava cercado de luz.

Pouco antes de Jecis conseguir empurrá-la, um rugido feroz soou na noite.

— O que foi isso? — sussurrou Audra.

— Vamos. — Jecis comandou, seu olhar varrendo a distância.

O tigre branco ferido saltou da escuridão e pulou nele antes que pudesse dar um passo, derrubando-o no chão cheio de neve. Ele continuou segurando Vika e levou-a consigo. Com o impacto, o ar deixou os seus pulmões.

Seu pai uivou de dor quando o tigre mordeu seu braço, arrastando-o por alguns metros, sacudindo-o. Jecis finalmente soltou Vika, mas apenas para atirar um raio no tigre, fazendo com que o animal voasse.

— Não! — ela gritou, tentando pular, mas escorregando no gelo.

Um Jecis ensanguentado se levantou, agarrou-a e a empurrou pelo portal. Dessa vez, Matas e Audra não entraram andando, mas correndo, quase passando por cima dela.

        Outro rugido e ela pôde ouvir os passos frenéticos das patas do tigre no gelo. Ele estava correndo, determinado a atacar novamente seu pai. Mas Jecis acenou com a mão e o ar se fechou, tirando a criatura de vista e impedindo que ela entrasse no circo.

        Ele vai ficar bem, disse a si mesma. Está melhor onde está. Ela não o queria perto de Jecis nunca mais. Jecis se aproveitaria dos ferimentos do tigre.

        Do mesmo modo que usou Solo contra Vika.

        — Lar, doce lar. — disse Jecis abrindo os braços.

        Vika respirou… e exalou… ao olhar em volta a visão que a recebia fez seu estômago embrulhar. Tendas brancas, Big Red, trailers, jogos e artistas andando em todas as direções, preparando-se para o espetáculo de amanhã. O frio foi substituído por um calor opressivo e as montanhas por planícies.

        — Depois que você foi embora — disse Jecis —, mudamos de cidade, achando que você poderia colocar a polícia atrás de mim. Felizmente ficamos fora só por alguns dias desde que o homenzinho me abordou e me mostrou uma maneira melhor.

        Uma avalanche de sons de repente assaltou seus ouvidos e ela quase não conseguiu controlar uma careta. Vozes, tanta vozes. Conversas, risos, discussões. O rangido de metal no metal. O chiado de pneus. O barulho das pedrinhas esmagadas por sapatos.

        Jecis empurrou Vika para Audra.

        — Prenda-a no trailer. Lidarei com ela assim que fizer um curativo no meu ferimento. E se ela fugir, culparei você, minha querida Audra. — Quase sem parar ele olhou para Matas e disse. — E você. Coloque a besta de volta na jaula.

 

       Solo acordou de um pulo, enchendo-se instantaneamente de pânico. Lembrou-se da cabana, e do crânio em chamas arremessado em sua direção. Mas depois disso? De nada.

        — Vika! — gritou, colocando-se de pé. Onde ela estava? O crânio também a atingiu? — Vika!

        — Acalme-se, guerreiro.

        A voz do Targon penetrou sua mente e ele girou. O sol brilhava alto no céu e ele teve que piscar rapidamente para enxergar. Por entre barras de metal familiares pôde ver o extraterrestre, seu vizinho de cela.

        Barras. Jaula.

        Com o pavor corroendo-o, ele olhou em volta. Estava de volta à jaula, percebeu. De volta ao circo, de volta ao jardim zoológico. Ele… foi capturado. O resto dos extraterrestres o observavam. Alguns com raiva. Alguns com pena. Kitten, com esperança.

        — Não se desespere. — ela disse. — Conseguiu uma vez, algo que nenhum de nós fez e poderá conseguir de novo.

        Eles estavam mais sujos do que quando os deixou, como se ninguém tivesse se importado de limpá-los sequer uma vez. Estavam mais magros também, como se não tivessem se alimentado. Mas ao menos estavam vivos.

        E podia ouvi-los. Mais uma vez seus ouvidos estavam funcionando. Isso queria dizer que Vika, onde quer que estivesse, mais uma vez estava surda.

        — Onde está Vika? — ele exigiu do Targon. — Quanto tempo fiquei apagado? — A paisagem havia mudado. Montanhas foram substituídas por planícies, tundra nevada por terra vermelha e plantações de trigo.

        — Ela está trancada no trailer e você dormiu a noite inteira.

        Seu alívio foi tão potente que seus joelhos cederam. Ele caiu, chacoalhando a jaula inteira.

        — Ela é a sua mulher. — disse o Targon. — Você a reivindicou.

        — É sim. E eu o fiz. — E não a perderia. Não dessa forma. Não de qualquer forma. — Onde está Jecis? Matas?

        Um brilho de fúria nos olhos do Targon.

        — Estão se aprontando para o espetáculo de amanhã.

        Era o momento de colher informações, Solo decidiu, de saber os motivos do Targon.

        — Você o odeia. Matas. Odeia mais do que Jecis, o homem responsável pela situação em que se encontra. Por quê?

        — Ei, Jolly Red. — chamou Criss. — Está querendo demais. Tem muita coragem de dar as caras por aqui outra vez. Meus irmãos estão vindo por mim, sabe, e eles terão algo para falar. Você me deixou para trás!

        O Targon estendeu os braços e o mundo simplesmente… parou… de se mover, até ficou silencioso. Solo franziu o cenho — ou tentou. Como o mundo à sua volta, ele ficou imóvel. Parecia que seu corpo estava coberto por cimento, até seus braços pesados para levantar. A única parte dele que ainda tinha controle eram os olhos, e ele os manteve fixos no extraterrestre.     

        Somente o Targon podia se mover. Ele andou até o lado da jaula, os lábios se curvando em um sorriso que não era bem um sorriso.

        — Não se preocupe. Diferente de você, as mentes deles estão travadas. Não têm ideia do que está havendo. E notou que estou mais forte do que antes? Andei praticando.

        Mais forte, apesar das algemas.

        As algemas!

        — Sim, você também está preso. — disse o Targon, e de repente a cabeça de Solo pôde se mover.

        Ele baixou os olhos. Como previsto, o metal das algemas cercava os seus pulsos. Jecis… oh, Jecis pagaria.

        — Não existe chave, sabe.

        — Como foi capaz de exercer tanto controle com as drogas sendo injetadas no seu organismo? — perguntou Solo.

        — As drogas são inibidoras.

        — Eu sei. E daí?

        — E daí que há uma falha fatal nesse tipo de drogas. Uma falha constante no nome. Elas inibem, não cancelam.

        — Por que continua aqui, então?

        Um retorno da raiva, agora com uma ponta de tristeza.

        — Sua mulher uma vez tomou conta da minha. Mara era o seu nome, e ela e as amigas ouviram falar do circo mágico chamado Cirque de Monstres e vieram visitá-lo. Matas a viu, cobiçou, estuprou e sumiu com ela antes que pudesse encontrá-la. Ele não tinha ideia de que éramos ligados e que eu sabia de tudo o que fez com ela. — Cada vez mais raiva se derramava em seu tom. — Poderia matá-lo desde o início, e talvez devesse, mas queria passar por tudo que Mara passou. Queria ver o meu torturador todos os dias — até destruí-lo.

        Ele queria se punir por não salvar sua mulher, e ele entendia. Realmente entendia. Não tinha certeza de como reagiria se descobrisse que Vika fora ferida de alguma forma.

        Vika… a garota que amava.

        É. Ele a amava. Com todo seu coração, com toda sua alma, ele a amava. Ela era a pessoa certa. A outra metade de seu ser. De algum modo tinha se emaranhado em sua vida, como se ele fosse uma árvore e ela uma trepadeira, e não conseguia mais separar suas folhagens. Eram duas metades de um todo, melhores juntos, dependentes um do outro.

        — Nada a dizer? — o Targon perguntou com ironia.

        — Nove dias. — Solo respondeu por uma garganta agora áspera, lembrando o que o Targon dissera na noite de sua fuga. — Planeja destruir o circo.

        — Sim. Mas agora só faltam quatro dias.

        — Não espere. Faça agora.

        O Targon fingiu que ele não havia falado.

        — Vi o modo em que Vika tomou conta da minha Mara. Ouvi as conversas que tiveram — até Mara cortar nossa conexão. Fiquei feliz quando você apareceu e começou a tomar conta da pequena Vika. — Os cantos dos seus olhos se encheram de tensão. — Não vi a mente de Mara outra vez até a noite de sua morte, quando o pai de Vika a encontrou, entregou a Matas e o homem… o homem… a destruiu.

        — Sinto muito, Kaamil-Alize. Sei que tem um plano e quer se manter nele, mas minha mulher ainda vive e precisa de mim. Me ajude agora. Juntos podemos acabar com isso.

        Uma sacudida daquela cabeça escura.

        — Eu disse a você. Primeiro preciso experimentar tudo o que Mara experimentou.

        — Foi violentado? — Uma pergunta brusca, mas uma que precisava ser feita.

        Um estalo do músculo debaixo dos olhos dourados do extraterrestre.

        — Não.

        — Então não passou por tudo que ela passou e nunca passará. Não há razão para agir. Pode ficar com Matas, eu com Jecis, e garantimos assim que ninguém mais sofra pelas mãos deles.

        Silêncio.

        — Podemos salvar Vika, a garota que ajudou sua Mara.

        Mais uma vez, silêncio.

        — Se não fizer nada, é tão ruim quanto o homem que despreza.

        O Targon estalou a mandíbula.

        — Todos vimos Jecis aumentar a dosagem do seu inibidor. Se ficar emotivo ou se alguém apertar aquele botãozinho mágico da sua jaula, ficará fraco demais para lutar.

        — Nunca. — Não quando a segurança de Vika estava em jogo.

        — E todos nós ouvimos quando discutiram suas novas algemas mais resistentes. — continuou o extraterrestre como se ele não tivesse falado. — Se os ossos dos seus pulsos se expandirem, o que suponho que seja o que acontece quando se transforma em sua outra metade mais bonita, vai ativar as cerras e agulhas e perderá as mãos.

        Não era necessário pensar em uma resposta.

        — Esse é um risco que estou disposto a correr.

        O Targon estudou-o por um bom momento.

        — Acho que gosto mais de você a cada segundo que passa. E acho que até estou disposto a te ajudar… por um preço.

        — Diga.

        Um sorriso passageiro, sem nenhum traço de divertimento.

        — Ler mentes é um pequeno passatempo meu. Sei sobre a sua fazenda, e a quero.

        Novamente, pensar não era necessário.

        — Feito. Ajude-me hoje, ajude Vika depois, se algo me acontecer, e ela é sua. Eu prometo.

 

        Vika andava de um lado a outro do trailer, lembrando-se do tigre na floresta. Só que os ferimentos dela não eram visíveis. Seu coração se partia dentro do peito, um sentimento de impotência cortando-a.

        Perdeu a habilidade de ouvir e toda a mobília e bugigangas que havia deixado para trás foi removida, deixando o espaço sem nada, desprovido de qualquer arma. Na verdade, a única arma por perto estava na mão de Audra.

        Audra, que estava de pé na única saída. Guardando-a com a própria vida.

        Vika parou, simplesmente parou e encarou sua amiga de infância, sua captora. Na verdade, aquela não era a única arma, percebeu. Ela era uma arma. Solo se certificou disso — e ela não decepcionaria suas lições.

        — Deixe-me sair, Audra. — disse. — Do contrário, não vai gostar do que vai te acontecer.

        — Não gostarei do que me acontecerá se deixar que saia. Seu pai me matará.

        — Se continuar com ele, ele a matará de qualquer forma.

        — Não. — Olhos verdes brilharam. — Ele não vai mais me bater. Ele me prometeu.

        — Ele mentiu.

        — Ele me ama.

        — Ele não sabe nada de amor! E nem você, eu acho. O amor protege. O amor cultiva. O amor a levanta e não a derruba. O amor faz você voar e eu amo Solo.

        Uma pontada de tristeza, rapidamente passageira.

        — Sua fera será o primeiro a morrer, Vika. Não pode salvá-lo. Ninguém pode.

        Não! Ela se recusava a aceitar uma coisa dessas. Poderia salvá-lo. Salvaria.

        — Última chance. — ela disse, fechando os punhos.

        — Cale a boca e...

        Vika bateu o punho no nariz de Audra.

        A garota gritou quando sangue escorreu dela e derrubou a arma para segurar a cartilagem machucada. Vika mergulhou para pegar a arma e quando se levantou, mirou o cano no peito de Audra.

        Com os olhos arregalados, Audra se colou à porta.

        — Desculpe por te machucar — disse Vika —, mas farei pio, se necessário. Pior do que acontecerá em três segundos, se não sair do caminho.

        — Eu não ligo. — respondeu Audra sacudindo a cabeça de modo desafiador.

        — Um.

        — Jecis fará bem pior.

        — Dois.

        O desafio diminuiu e lágrimas se formaram em seus olhos. Audra saiu do caminho.

        Vika passou por ela e entrou na claridade do sol. Mas antes de dar três passos, X apareceu em seu ombro, apertando as mãos.

        — Entre debaixo do trailer. — ele comandou. — Agora!

        Com o coração de repente martelando nas costelas, ela mergulhou embaixo do metal. Sabia que não devia questioná-lo. A melhor coisa que fez também. Alguns segundos depois, ela viu as botas do seu pai e de Matas.

        O par desapareceu dentro do trailer. Vários segundos se passaram.

        — Solo está com problemas. — disse X. — Ele e o Targon bolaram um plano. Começaram a gritar chamando seu pai e Matas faz alguns minutos. Mas ao invés de confrontá-los de frente, seu pai quer usar os sentimentos de Solo por você contra ele.

        Tão baixo. Tão o estilo de Jecis.

        — O que devo fazer? — ela sussurrou.

        — Você sabe o que precisa fazer, Vika.

        Sabia, não sabia? E era algo brutal. Ia contra tudo em que acreditava. Ou melhor, contra tudo que sempre achou que acreditava. Depois provavelmente choraria.

        Provavelmente? Não. Choraria. Mas aquilo era guerra. As coisas não funcionavam como em melhores circunstâncias. Medidas precisavam ser tomadas. Coisas tinham que ser feitas. Os fortes não podiam pisotear os fracos e continuarem com seu reinado.

        O trailer sacudiu e ela mal sufocou um ofego. Jecis ou tinha socado a parede… ou Audra. Dois pares de botas reapareceram, dessa vez se afastando. Ela esperou um minuto, dois e então saiu para a luz.

        — Pode fazer o que precisa ser feito? — perguntou X.

        — Sim. — ela disse e caminhou com esse propósito.

 

       — Você! o que fez com a minha filha? — Jecis bateu na jaula de Solo cuspindo palavrões, apertando o botão para encher seu corpo de sedativos. Dr. E estava sentado no ombro do homem, dando risada. — Eu planejava esperar, matá-lo lentamente, mas quero que ela ouça seus gritos e venha correndo. Quero que veja o que faço com você... e quero que você veja o que farei com ela.

        Solo continuava calado ao cair no chão.

        — Matas. — o Targon rosnou.

        — Cale a boca. — o guarda rosnou em resposta.

        — Eu me calarei no dia em que arrancar seu coração negro e dançar no seu sangue.

        Matas bufou, nem um pouco intimidado.

        — É, boa sorte nisso.

        Jecis estava perdido demais em sua fúria para notar que os dois discutiam. E perdido demais naquela fúria para perceber que Solo não estava mesmo dormindo. Por causa disso ele cometeu o erro de abrir a jaula.

        — Agora. — gritou Solo, a mandíbula pesada, mas ainda funcionando.

        Em processo de adentrar mais o confinamento Jecis congelou, o Targon tomando controle do seu corpo. Cada pedacinho da força de Solo foi necessário para colocá-lo sentado, mas ele conseguiu. Seu olhar encontrou o do inimigo e ele sorriu devagar, com prazer.

        Dr. E parou de rir.

        — O que está havendo? Como está fazendo isso?

        Ignorando-o, Solo disse a Jecis:

        — Só para que saiba, o único que vai sofrer hoje aqui é você.

        Medo se juntou à fúria nos olhos de Jecis. Solo podia ver o crânio se retorcendo sobre a sua pele, tentando escapar do controle do Targon. Apertando os dentes, Solo chutou sua perna, derrubando-o de barriga no chão.

        Dr. E desapareceu.

        Solo foi rápido em seguir seu oponente, pulando fora da jaula. Cada ação destravava seus músculos e tirava um pouco do peso das drogas. Agora era hora de fazer uma piscininha bem suja. Ele chutou outra vez — atingindo entre as pernas de Jecis.

        O ar explodiu pela boca do homem, mas essa foi sua única reação.

        — Está livre! — disse Kitten, golpeando o ar com o punho fechado em vitória. — Eu disse que isso aconteceria. Não disse?

        — Me solte! — gritou Criss.

        — Eu também! Qual é, cara? Aqui!

        O Bree Lian pulava na jaula.

        — Homem-fera! Aqui!

        — Não posso… segurá-los por muito tempo. — disse o Targon. — A mágica deles… está lutando comigo.

        Solo se abaixou e agarrou Jecis pelo pulso. Ele arrastou o homem por um Matas congelado até a cela do Targon, onde pressionou o polegar de Jecis na fechadura. Um brilho de luz branca e o mecanismo cedeu.

        O Targon saiu correndo da jaula e se jogou em Matas. Foi aí que ele perdeu o controle dos corpos, tanto Jecis quanto Matas irromperam em atividade.

        Jecis se soltou de Solo e se levantou. Não houve troca de palavras. Eles simplesmente se lançaram um no outro, os punhos voando. Solo conseguiu dar vários socos, mas também levou um. A consequente dor o enfureceu. O que Vika havia suportado daquele homem todos aqueles anos?

        Fúria… fria, implacável.

        Drogas… entrando, entrando, tentando enfraquecê-lo.

        Calma, disse a si mesmo. Fique calmo. Não podia se permitir se transformar, de modo algum. E pela primeira vez, aquela era uma tarefa impossível. Vika o ensinara uma maneira melhor de se viver.

        Ele bloqueou um soco, abaixou e deferiu um, esmagando na altura dos rins de Jecis. Ele ouviu um chiado, embora soubesse que o homem não estava fora de combate. Longe disso. A violência deve ter enfurecido seu lado negro porque o crânio foi expelido, pequenas chamas douradas aparecendo na escuridão quando tentou morder Solo. Pouco antes do contato uma versão gigante de X apareceu, capturando o crânio como uma bola de basquete e caindo ao chão com ele preso ao peito.

        Jecis soltou um pranto dolorido, como se o mal estivesse ligado a ele e pudesse sentir sua derrota. Solo atacou, batendo em sua têmpora uma, duas, três vezes. A cabeça do homem era jogada de um lado para o outro, mas no quarto soco de Solo ele conseguiu levantar as mãos e bloqueá-lo.

        Solo mirou mais abaixo. Contato. Outra vez o ar saiu pela boca de Jecis.

        Pelo canto do olho viu que o Targon tinha Matas preso ao chão. As sombras que sempre pairavam sobre os ombros de Matas tinham se expandido e estavam mordendo o extraterrestre, mas o homem nem se importava com elas. Continuava a fazer chover punhos de fúria no rosto do seu oponente. Várias e várias vezes. Até que não era só sangue que voava em todas as direções. Até que as sombras começaram a recuar… parando… caíram ao chão e desapareceram.

        Jecis usou sua distração contra ele e deu outro soco em sua mandíbula. Sua cabeça voou para o lado e seu corpo seguiu o movimento, caindo de lado e chutando as pernas. Suas botas fizeram Jecis bater os dentes com força, atirando-o para trás.

        Solo se levantou e o seguiu, agarrando-o pelo colarinho. Olhos inchados e injetados de sangue o fitaram.

        — Mate-me e ela jamais o perdoará. — cuspiu Jecis.

        Não. Ele não acreditaria nisso.

        Boom!

        O corpo de Jecis se sacudiu, os olhos se arregalando. Ele caiu de lado, mas Solo continuou segurando-o, mantendo-o em pé. Ele reconheceu o disparo da arma quando o ouviu e agarrou-se ao homem para usá-lo como escudo, se necessário. Rastreou o som com o olhar. Vika estava a alguns metros de distância segurando uma arma da qual saía fumaça, lágrimas escorrendo pelas bochechas.

        Solo soltou os dedos na intenção de soltar o homem e correr ao seu lado, pegá-la nos braços, oferecer conforto ou o que mais pudesse precisar. O que ela fez… tudo para protegê-lo…

        — Minha própria filha. — ofegou Jecis. — Como pôde?

        Boom! Boom! Boom!

        Os disparos vieram de uma direção diferente, de trás de Jecis, mas ainda assim o homem pulava com cada um. E as três picadas cortantes se registraram no peito de Solo — todas bem no coração — ele levantou os olhos para ver Audra com uma arma. Dr. E estava em seu ombro e voltava a dar risada.

        — Se não posso ter você — o homenzinho falou —, ninguém mais terá.

        A garota havia atirado em Jecis, mas as balas o atravessaram e atingiram Solo. Ele finalmente soltou o homem, mas não para ir até Vika. Não possuía mais força. O homem responsável pelo seu tormento todas aquelas semanas caiu sem vida no chão e Solo desmoronou de joelhos ao seu lado.

        — Solo! — Vika gritou, correndo para o seu lado. Suas mãos o tatearam, tentando parar o sangramento. — Vai se curar, sim? Já fez isso antes. Muitas vezes. Eu vi. Tem que se curar disso também. Certo?

        Ele ouviu um grito, viu quando X colidiu com Dr. E, derrubando Audra. Quando X e Dr. E caíram, o corpo do Dr. E alongou, crescendo e ficando do mesmo tamanho que o de X. Talvez estivesse vendo coisas.

        Vertigem o consumia. Pontos pretos pairavam em sua visão. A cada batida do seu coração ferido sua vida se esvaía um pouco mais.

        — Vika. — ele conseguiu falar estrangulado quando sangue subiu pela sua garganta.

        — Diga o que fazer, que eu farei. — ela se apressou em dizer. — Só me diga!

        — Nada a ser… feito. — Seus ferimentos eram severos demais. Já causara aquele ferimento em outros. Viu o resultado inúmeras vezes. Ele sabia.

        — Há sim!

        — Não posso mentir… Vika… isso é… o fim. — Ele lutou para manter os olhos nela quando seus dedos das mãos e dos pés gelaram.

        X apareceu, ajoelhando ao seu lado. Ainda gigantesco, tão grande quanto Solo.

        — Despeça-se dele, Vika.

        — O quê? Não! Nunca.

        Solo se inclinou para frente, incapaz de segurar o próprio peso. De algum modo Vika conseguiu pegá-lo, apoiando-o na suavidade do seu corpo estremecido.

        — Despeça-se dela, Solo. — X ordenou.

        — Não! — Vika gritou outra vez. — Nada de adeus. Só boa noite. Você vai dormir Solo, e vamos cuidar de você. Reviverá pela manhã. Vai sim. Verá. Você jurou me dar tudo o que eu queria e é isso que eu quero.

        — Amor… — Ele tinha que dizer o quanto a amava. Tinha que explicar tudo o que significava para ele. Até ela, nunca viveu de verdade. Mas os pontinhos negros piscando em sua visão se expandiram, aumentaram de quantidade e o sangue subindo pela sua garganta bloqueou suas vias aéreas. De repente, já não conseguia respirar.

        — Ele morrerá em casa. — disse X. — E não ouse protestar, Vika. Tem que ser assim.

        — Não! Ele não vai me deixar. Ele também prometeu me levar à sua fazenda e sempre cumpre as promessas que faz. — Para Solo, ela disse. — Você vai melhorar, sei disso. Sinto isso. Tenho um jeito de saber. Só… melhore. Por favor, Solo. Por favor. Por favor.

        Braços fortes o apertaram em volta da cintura, puxando-o para trás, afastando-o de Vika.

        — Não. — ela disse, e agora estava soluçando. — X, não....

        Foram as últimas palavras que Solo ouviu.

 

       Vika não tinha certeza de por quanto tampo ficou ajoelhada onde estava, fitando a poça de sangue que Solo deixou para trás. X colocou os braços em volta dele e o par desapareceu. Tudo o que se deu conta foi que, quando finalmente levantou os olhos, o circo estava repleto de chamas.

        Ela riu sem humor. O orgulho e o prazer do seu pai estava sendo destruído pedacinho por pedacinho, todo o seu trabalho prestes a ser arruinado. A justiça finalmente chegou. Mas também, ela sempre vinha, não era? De algum jeito. De alguma forma.

        Os extraterrestres ainda estavam nas jaulas gritando para que fossem soltos. Artistas gritavam e corriam em todas as direções. O corpo do seu pai estava imóvel ao lado dela. Matas estava jogado a alguns metros. Ou melhor, o que restava dele. O Targon ensopado de sangue estava em cima do corpo com os braços erguidos enquanto dançava no sangue do homem. Audra estava no mesmo lugar de antes, ainda segurando a arma. Estava pálida e tremia — e não tinha mais tatuagens. As aranhas se foram.

        Audra notou seu olhar e estremeceu.

        — Não queria matar a sua fera. — disse ela. — Só queria ferir Jecis do jeito que ele me feriu.

        — Solo não era uma fera! Ele era o melhor homem que já conheci. — Horrorizada com suas palavras, Vika se apressou a corrigi-las. — Ele é o melhor homem que conheço. — Ele ainda estava vivo. Não acreditaria no contrário. Ele era forte demais, vigoroso demais e tinha prometido. Ele jamais quebrava suas promessas.

        Audra assentiu, como se envergonhada e derrubou a arma no chão. Sirenes soaram ao fundo. Sirenes que Vika ouvia. Não tão claramente como antes na cabana, mas o bastante. Ainda assim, não conseguia se importar com o fato.

        — O que devo fazer? — perguntou Audra.

        Ela também podia ouvir a voz da garota.

        — Começar uma nova vida. — disse Vika.

        Onde estava Solo? Aonde X o levou? Para casa, a criatura disse. Isso queria dizer para a fazenda? Ou talvez a casa de X, naquele outro domínio?       

        Um tapinha em seu ombro fez com que levantasse a cabeça.

        O Targon a fitava e estava sorrindo. Encharcado como estava de sangue, o sorriso era de arrepiar.

        — Vai querer fechar os olhos agora. — ele falou.

        Ele não esperou pela sua resposta, mas virou-se para o seu pai e desembainhou uma adaga. Vika ficou olhando. Com um movimento rápido, ele decepou o polegar de Jecis. A brutalidade da ação mal foi registrada. Ela sabia o que ele planejava fazer com aquele apêndice, sabia que era necessário.

        Ele apanhou o dedo e o rolou na palma.

        — Mara era a minha esposa. Matas a matou.

        Mara. A Mara de Vika.

        — Matou? Não. Eu a soltei.

        — Sim. Seu pai a encontrou e a entregou a Matas. Eu tinha uma conexão com ela e assisti tudo pelos seus olhos.

        Mara estava morta. Mara não tinha abandonado-a. Nem esquecido. Ela foi capturada, morta.

        — Sinto tanto. Eu...não há palavras. Eu a amava.

        — Sei que amava. É por isso que ainda está viva. — Ele foi para a jaula ao lado e começou a libertar os extraterrestres.

        A maioria saiu das jaulas e correu sem nem olhar para trás. Uma pelagem castanho-avermelhada cresceu dos poros de Kitten, cobrindo seu corpo inteiro quando ela desapareceu em um canto, mas voltou rapidamente com um artista de circo inconsciente e ensanguentado. Ela derrubou o corpo em cima do de Jecis, chutou-o — o artista ainda estava vivo, a julgar pela exalação dolorida que Vika ouviu — e desapareceu novamente… só para retornar com outro corpo. Dessa vez ela também estava um pouco ensanguentada e com vários tufos de pelos faltando.

        O Bree Lian correu em direção a Vika, as garras de fora.

        O Targon o agarrou pelo cabelo e atirou no chão. Ele cercou o extraterrestre e o olhou com raiva.

        — Não toque na garota. Jamais. Ela cuidou de você e era o único tipo de proteção que tinha.

        Um vacilante.

        — Tudo bem.

        O Targon o soltou, e ele se colocou de pé. Nem se incomodou em olhar na direção de Vika ao ir embora correndo.

        Criss saiu da jaula caminhando, parou e deu uma olhada nas cutículas.

        — Corra. — disse o Targon. Ele tinha acabado de libertar os extraterrestres e atirou o polegar do seu pai no chão. — Não te devo proteção alguma, Cortaz, e não oferecerei. Sua atitude precisa de muita melhora.

        — Acho que vou ficar. — disse a garota com um sorriso confiante. — Quando Jecis morreu, meus irmãos finalmente conseguiram me localizar. Eles apareceram um segundo depois.

        O Targon abriu os braços.

        — E onde estão? Porque eles podem se sentir livres para darem as caras.

        Um sorriso ainda mais brilhante.

        — Viu o fogo? — Olhando para trás do extraterrestre, ela disse. — O circo já fritou, meninos, então parem de se exibir. Estou pronta para voltar para casa.

        Um segundo depois cinco luzes cintilantes a cercaram, tirando-a de vista. Aquelas luzes tinham forma de homens, e quando desapareceram Criss sumiu, suas pegadas nada mais que grama tostada.

        Kitten jogou outro corpo na pilha crescente e saiu para procurar outra vítima. Mas policiais de repente varreram a área, as armas apontadas, fazendo-a parar. Ela levantou as mãos e disse.

        — Não atirem. Eu sou do IRA e o Targon e a loira estão comigo.

        — Kitten? — uma voz masculina rosnou.

        — Dallas?

        Um belo homem de cabelo escuro com olhos azuis de extraterrestre que lembravam a Vika de Solo — uma dor forte no peito — aproximou-se. Kitten o viu, deu um grito agudo e se jogou em seus braços.

        Ele a abraçou, sem jamais abaixar sua pyre-gun.

        Pyre. Algo que só agentes do IRA carregavam. E Kitten disse que era uma agente, não foi? Mesmo assim, Jecis a escravizou. Bem, ele assinou seu atestado de óbito no momento que fez isso. Se Audra não tivesse atirado nele, o IRA eventualmente o encontraria. Todos sabiam que eles nunca desistiam.

        — O que está fazendo aqui? — exigiu Kitten. — Aqui não é Nova Chicago… Acho que não. A não ser que estejamos em uma seção contaminada que nunca visitei.

        — Não. Não é Nova Chicago. — o agente de olhos azuis disse. — Espalharam um boato que certo circo tinha uma Teran enjaulada. Esperávamos que fosse você, mas não achávamos realmente que fosse. Mesmo assim ficamos de sobreaviso, e no momento que soubemos que o circo havia se instalado na região plana ontem à noite, peguei um avião.

        Oh sim. A queda de Jecis aconteceria de um modo ou de outro.

        — Uma reunião de família. Que lindo. — o Targon riu, e no momento seguinte o mundo inteiro parou. As chamas pararam de estalar, a fumaça de subir. — Vamos, pequena Vika. Eu disse ao seu homem que tomaria conta de você. Jurei na verdade.

        Bem ao estilo de Solo.

        — O que pediu dele em troca? — ela duvidava que a criatura estivesse disposta a ajudar por pura bondade do coração. Papai Spanky não era desse tipo.

        Ele a colocou de pé.

        — Não importa. Não queria realmente o que ele me oferecia, só queria ver o quanto estava disposto a ceder. A propósito, ele estava disposto a desistir de tudo por você.

        Em um milésimo de segundo, lágrimas queimaram seus olhos. Ela piscou-as — eram lágrimas tolas. X o traria de volta, Solo insistiria nisso, se Solo já não estivesse na fazenda, e ela teria a oportunidade de agradecê-lo, de contar do seu amor.

        — Agora vamos. Estou fraco, e sei que isso não quer dizer muita coisa. A minha fraqueza vale a força de dez homens, mas não tenho certeza do quanto mais consigo parar um grupo tão grande de pessoas com o magnífico poder da minha mente. Se ficarmos eles nos interrogarão. Se isso acontecer, podem decidir prendê-la. Não gosto da ideia de tirá-la de uma prisão.

        — Sim. Vamos embora.

        Eles dobraram uma das tendas agora negras, rodearam os corpos congelados no ar, as chamas chuviscantes, as nuvens de fumaça.

        — Caso esteja se perguntando, farei outra promessa. — disse o Targon. — Vou levá-la aonde quer que deseje ir. Qualquer lugar do mundo. Não posso abrir tempestades solares como seu pai, mas posso dirigir e tirar os policiais da sua cola. Duvido que vá receber uma oferta melhor do que essa.

        — A fazenda. — ela se apressou em dizer. — Quero ir para a fazenda de Solo. — Ela disse o endereço que Solo a forçou a memorizar.

        — Ela fica a alguns estados de distância. Se comprar um carro, dar tempo de se limpar e descansar, posso deixá-la lá em três dias. Se roubar um rádio-patrulha da polícia, em dois dias. Se me pedir para dirigir a noite inteira, em um.

        — Roube e dirija a noite inteira. — ela disse. — Pode mandar um cheque depois para o Departamento de Polícia local.

        — Achei que diria isso. — ele resmungou.

 

        — Chegamos. — ele disse. O Targon parou o carro, puxou o freio de mão e saiu.

        Vika abriu a porta do passageiro, foi banhada por um ar morno, incrivelmente fresco e limpo, cheio de aromas que lembrava de muito tempo atrás. Animais. Pelos, feno, pinho.

        O sol batia em uma casa de dois andares branca com uma cerca de madeira em volta. Além dela, montanhas formavam o plano de fundo perfeito. Árvores se expandiam em todas as direções.

        Seus joelhos quase cederam, mas conseguiu correr, chamando.

        — Solo! Solo!

        Um homem mais velho com cabelo grisalho saiu de dentro da casa. Ele usava luvas sujas de terra.

        — Posso ajudar, senhora? — ele perguntou.     

        — Estou procurando Solo. — Ela correu pelos degraus da frente, o coração galopando no peito. A porta da frente estava destrancada e ela entrou, deixando que o Targon tratasse com o humano. Uma salinha de estar linda a recebeu.

        Um sofá de três lugares de couro macio. Outro de dois já bem gasto. Uma mesinha de centro retangular com livros espalhados em cima. Uma lareira apagada, um tapete simples, mas com uma aparência macia. A cozinha lembrava a da cabana de madeira, com uma bancada divisória e panelas e frigideiras penduradas do teto, só que um pouco mais alto. Ela nunca conseguiria alcançá-las sem uma escadinha — ou sem a ajuda de Solo.

        Havia dois quartos no andar de cima e ela não viu problema em adivinhar o de Solo. Tinha o seu cheiro, com uma pitada sutil de turfa queimada. A cama era enorme, a maior que já viu, e não tinha cobertas, apenas um lençol. Um lençol sem nenhuma dobra sequer. O guarda-roupa estava cheio de camisas, calçar e sapatos, todos pretos. Mas não havia sinal de Solo.

        E o outro quarto estava vazio.

        Ele não estava ali, ela percebeu.

        Com os ombros curvados, ela desceu a escadaria. O Targon estava escorado na ombreira da porta, os braços cruzados.

        — Assumo que não achou o que procurava. — ele disse.

        Aquela era a fazenda de Solo. Sua casa. Mas ele não estava ali.

        Ela explodiu em lágrimas.

 

       — Dr. E está morto. Eu o matei. — X escorou em uma coluna, os braços cruzados. Ele ainda estava alto, ainda musculoso.

        Solo podia ouvi-lo, mas a sua voz — e todos os sons, de fato — estavam em um volume bem mais baixo.

        — Queria que o tivesse matado antes.

        — Se tivesse me dito para matá-lo antes, teria matado. Você o aceitou em sua vida, e eu jamais poderia interferir no seu livre-arbítrio. Mas no momento que o rejeitou, pude agir.

        Todos aqueles anos… todo o tormento… e a culpa era só sua.

        Ele estava do lado de fora, deitado em cima de uma plataforma de alabastro. Um lençol cobria a parte mais baixa do seu corpo, mas o resto estava exposto, permitindo que os raios de sol passassem pelas copas das árvores e o acariciassem. Raios que na verdade estavam curando-o. As algemas foram tiradas, graças ao Senhor.

        Queria se levantar, mas ainda não possuía energia para isso. As três perfurações em seu peito ainda estavam em processo de cicatrização.

        — Como está tão grande? — ele perguntou.

        — Neste reino, eu sou grande. No seu reino, pequeno.

        — Também ficou grande no meu reino. Por um tempo.

        — Não. O que você viu foi o meu reino.

        — Por que não mudei então, agora que estou no seu?

        — Você não é como eu. E além do mais, esse pode ser o meu reino, mas não é o meu mundo. É o seu. Alloris.

        Ele olhou em volta com novos olhos. Grama fresca e verde o cercava. Flores de todas as cores desabrochavam em jardins majestosos, docemente aromatizando o ar. Homens e mulheres iguais a ele caminhavam por um caminho calçado com pedras. Todos vestiam branco. Todos sorriam.

        E atrás de cada pessoa havia um ser ainda mais alto de pele translúcida.

        Ninguém parecia se importar por Solo estar ali, meio coberto.

        X sorriu.

        — Vai adorar aqui, prometo.

        — Não sem Vika. — Sua doce e querida Vika. A cada segundo que passava, estava mais determinado a voltar para ela.

        Onde ela estava? Não na fazenda; ele deu-a ao Targon. Ou talvez estivesse lá. O Targon jurou protegê-la, e o homem não quebraria uma promessa. Não só porque ao fazê-lo lhe causaria dor, mas porque tinha o coração de um guardião sob aquele exterior irreverente.

        Ela achava que Solo estava morto?

        Ela chorou?

        Odiava pensar em suas lágrimas. Queria vê-la feliz. Sempre feliz e só.

        — Por que nunca me disse que podia me trazer para cá? — perguntou Solo.

        — Porque você iria querer voltar — disse X — e não seria bem-vindo.

        — Por quê?

        — Seu temperamento. Seu trabalho. Dr. E. Muitas outras razões.

        — Eu fui a razão dos meus pais fugirem e irem para a Terra?

        — Não. Isso foi por conta do seu pai. Ele roubou sua mãe de outro homem e fugiu com ela para que não a tirassem dele.

        — Então o marido viajou até a Terra e atirou neles?

        — Não! Claro que não. — X se virou e o encarou. Ele fechou a distância e sentou na ponta da plataforma. — Seu pai entrou em problemas na Terra. Ele… tem certeza que quer saber dos detalhes?

        — Sim.

        — Ele roubou outra vez a mulher de outro homem, um homem do pior tipo. Sua mãe não sabia que ele planejava deixá-la.

        E a mim, Solo entendeu. Ele se esforçou e percebeu que ele só lembrava da sua mãe ao lado do seu berço, cantando para ele. Não tinha muitas imagens mentais de seu pai.

        — Estava lá na noite em que foram baleados. Por que não os salvou? — Não havia nada de acusação em seu tom. Simplesmente estava curioso.

        — Tudo aconteceu muito rápido. Quando percebi, você estava terrivelmente machucado e tive que usar minha energia para salvá-lo.

        — É por isso que não o vi mais depois de anos? Estava se curando?

        — Isso e o fato de você, de algum modo, ter me bloqueado. Mas sempre estive presente, sempre fazendo o melhor para proteger, sussurrando sugestões melhores de escolhas em seu ouvido, sugestões que sempre assumiu que vinham de sua própria mente. Mas depois você brigou com aquele garoto na escola e ficou muito chateado. A intensidade das suas emoções deve ter rompido quaisquer barreiras que tenha construído.

        — Fico feliz por ter conseguido ver você.

        — Eu também.

        — Mas…

        — Mas você quer voltar.

        — Sim.

        Havia tristeza nos olhos de X quando ele disse.

        — Eu não viajo por meio de tempestades solares. Apenas sou rebocado entre esse mundo — e você. Posso trazê-lo para cá porque ainda estou ligado a esse lugar, mas não posso levá-lo de volta a Terra.

        — Não. — disse Solo, sacudindo a cabeça.

        — Você era a única coisa que me ligava, e não está mais lá. Eu… esperava que ficasse feliz, apesar de perder Vika. Era a única maneira de salvá-lo.

        Perder Vika. Perder Vika. Não. Nunca. Precisava dela. Tinha que tê-la.

        — Não tenho nada sem ela. Estou ligado a ela, à Terra. Devo conseguir viajar até lá.

        X curvou os ombros.

        — Não pode. Sinto muito, Solo. De verdade.

 

       O Targon continuou na fazenda por vários dias. Ele ajudou Vika a dispensar os ajudantes que Solo tinha contratado, e finalmente deixou-a com uma promessa de voltar em algumas semanas para ver como estava. Gostava dele, apreciava sua ajuda, mas ficou feliz pela solidão.

        Não queria uma audiência quando Solo voltasse. Queria correr para seus braços, beijá-lo, abraçá-lo, despi-lo, cair no chão e fazer amor com ele. E faria. Um dia.

        Sim, um dia.

        Porém mais dias se passaram e Solo nunca aparecia. Sua esperança começou a minguar.

        Mais semanas se passaram, e Solo não apareceu. Sua esperança se desfez.

        Ele nunca voltaria, não é? Seu "um dia" nunca viria.

        O horror daquilo a atingiu enquanto estava na cozinha espiando pela janela e lembrando da época na Sibéria, e desmoronou, soluçando incontrolavelmente, soluçando até seus canais lacrimais se fecharem de tão inchados, soluçou até se engasgar, quase incapaz de respirar. O que faria sem ele?

        O que está fazendo, sentindo pena de si mesma? Ele não morreu.

        Mas se estivesse vivo, estaria ali.

        E quanto à certeza?

        É verdade. Antes, quando segurou seu corpo ensanguentado nos braços, tinha a sensação da certeza de que ele sobreviveria. Não podia permitir que outras coisas distraíssem sua mente da verdade.

        Ela fechou os olhos e se concentrou na imagem de Solo. Tão alto e forte e belo. Tão perfeito. Bem no fundo, onde morava o instinto, havia um buquê de esperança que conseguia suportar as flamas, as pétalas desabrochando… abrindo… e a certeza crescendo.

        Ah, sim. Ainda tinha a certeza. Ele estava vivo.

        Encheu-se de alívio e riu. Riu! Ele estava vivo, e voltaria. Assim que fosse capaz, voltaria. Para ela, para a fazenda, ou para os dois, ela não ligava. Tudo o que importava era que ele voltaria.

        Nesse meio tempo, ele ia querer que ela ficasse e cuidasse dos animais e dos jardins. Ia querer que cuidasse de suas coisas. Foi isso o que a contratou para fazer, afinal. Agora ela faria. De graça.

        Vika se levantou com as pernas bambas e foi até o banheiro para usar o seu chuveiro de enzima. Vestiu uma das suas camisetas e uma calça de moletom. Já havia incinerado a roupa em que veio do circo, então não tinha nada seu. E além do mais, gostava de saber que usava algo que entrou em contato com o corpo forte e belo de Solo.

        Marchou para o lado de fora. O sol brilhava forte, aquecendo sua pele. Ela passava tanto tempo fora que pegou um bronzeado. As vacas, galinhas, porcos, ovelhas, burros e bodes ainda não queriam conversa com ela, sempre se assustando quando chegava perto.

        — Vocês vão chegar a me amar. — disse a eles. — Vou garantir isso. E se não, vou pegar o meu tigre da Sibéria e ele vai ensinar umas liçõezinhas a vocês.

        Uma das vacas mugiu. Alguns porcos roncaram.

        — Tudo bem. Quero ir atrás dele, mas jamais o usaria contra vocês.

        Nenhuma resposta.

        — Tenho experiência com os tipos de vocês, sabe.

        Um burro a chutou, e ela teve que pular fora do caminho para evitar ser golpeada.

        Apontando o dedo para ele, ela disse.

        — Faça isso outra vez e seu nome será Princesa Bolinho Fofinho.

        Ele balançou o focinho no ar e cavalgou para longe.

        Ao meio-dia, ela começou a tirar ervas daninhas do jardim, colher os vegetais que já estavam maduros e algumas frutas das árvores. Havia acres e acres de terra que Solo não usava, e incontáveis mulheres no mundo. Mulheres abusadas. Mulheres que achavam que estavam presas pela situação e circunstância do mesmo jeito que ela achou. Elas ainda não sabiam que havia algo melhor longe de onde estavam.

        Mas saberiam. Solo tinha ensinado Vika e ela ensinaria a outras.

        Sim. Construiria cabanas e criaria um lugar para as mulheres e para os seus filhos correrem livres. Um lugar de proteção e segurança. Talvez o propósito saísse de sua dor. As mulheres a ajudariam com a terra e com os animais e finalmente entenderiam como realmente eram valiosos.

        Solo definitivamente aprovaria.

        Quando o sol se pôs no horizonte, lançando uma confusão de roxos e rosas no céu, ela levou uma cesta de alimentos para a cozinha. A porta de tela rangeu ao fechar atrás de si. Ela...

        Viu um homem estranho sentado atrás da mesa, uma arma descansando bem à sua frente. Mesmo relaxado como aparentava, ela não tinha dúvida de que ele poderia alcançar o gatilho com tempo de sobra para colocar um buraco em seu peito se fizesse um movimento sequer em sua direção. Ele tinha o mesmo brilho de estou preparado para qualquer coisa nos olhos que Solo tinha.

        — Quem é você e o que quer? — ela perguntou com um suspiro cauteloso.

        — Eu farei as perguntas aqui, garota. Quem é você e o que está fazendo aqui? — ele exigiu. — E não ouse mentir para mim. Eu saberei e isso me irritará.

        — Senhor, não há nada que possa me fazer que já não tenham feito. — ela disse. Mais que isso, a pior coisa que poderia acontecer, já aconteceu. — E para ser sincera, estou cansada demais no momento para me importar com o que vai fazer.

        Ele franziu o cenho.

        — Quem é você e o que faz aqui?

        — Quem é você? — ela repetiu.

        — Alguém que foi convidado.

        — Bem, eu também. Sou Vika Lukas. — Se ele tentasse tirar a fazenda dela, lutaria com ele. Com tudo o que tinha, lutaria. — E estou aqui esperando por alguém.

        Uma pausa enquanto a estudava.

        — Meu nome é Michael e quero saber onde Solo Judah está.

        — Michael. Você é o chefe de Solo, não é? — perguntou quando uma pequena gota de empolgação se formou.

        Ele arregalou os olhos.

        — Ouviu falar de mim?

        — Sim. Solo mencionou você. Você o viu? Ouviu notícias dele? — Talvez Solo tivesse entrado em contato com ele. Talvez “casa” fosse algum lugar que Vika desconhecia.

        — Não.

        Decepção foi um peso esmagador em seus ombros, apagando a agitação.

        — Ele nunca mencionou uma mulher. — disse Michael.

        — Porque você o forçava a matar gente?

        O queixo dele caiu.

        — Eu nunca o forcei.

        — Bem, ele não trabalha mais pra você. Já cansou daquele tipo de vida. Ele me disse, e como sabe, ele nunca trai a palavra.

        Olhos escuros se estreitaram.

        — Há quanto tempo não vê nem sabe dele?

        — Trinta e dois dias. — Ela colocou a cesta na mesa e sentou na cadeira na frente dele, enxugando o suor da testa. — Precisa comer. — A pele dele estava pálida e as bochechas bem fundas. Ele tinha cicatrizes no rosto e nas mãos e essas cicatrizes iam até o começo das roupas; apostava que continuavam debaixo dos tecidos.

        Outra pausa. Outro cenho franzido.

        — Quero saber de tudo. — ele disse com frieza.

        Ela suspirou.

        — A última vez que o vi, ele foi… ele foi… — queixo estúpido, estremecido. — Estávamos no circo. Ele me deu um beijo de boa noite e ele… e ele…

        — Fale. — Uma ordem áspera.

        — Desapareceu. — ela sussurrou. — Mas ele não está morto, eu te garanto.

        Ele exigiu os detalhes que ela omitiu, e ela deu cada um deles, sem deixar nada de fora. Ela contou como Solo foi capturado, como foi mantido enjaulado, o que seu pai fez, o que ela fez, como eles fugiram, a luta no final, suas palavras finais para ela.

        Michael não reagiu do jeito que ela esperava. Ele esfregou dois dedos no queixo.

        — Até que eu veja um corpo, não acredito que ele esteja morto.

        — Isso é bom, porque como eu disse, ele ainda está vivo. — ela respondeu.

        — E como sabe disso?

        — Simplesmente sei.

        Um pequeno sorriso recebeu suas palavras.

        — Anos atrás, Solo costumava me dizer a mesma coisa. Ele parou. — O sorriso desapareceu e ele fechou a cara, puxando o lóbulo da orelha. — Se minha assistente não tivesse me traído, não haveria explosão alguma. E não havendo uma explosão, meus garotos no momento estariam trabalhando em um caso. — Ele apertou os punhos. — Solo mencionou algo sobre Corbin Blue ou John Sem Sobrenome?

        — Sim. São amigos deles, e ele os ama. Ele planeja procurá-los.

        — Ele me seria bem útil. Tenho homens à procura desde que acordei no hospital, e até achamos algumas pistas, mas sem sucesso. Eles ainda estão por aí. Eu sei disso. Quanto a Solo, não sabia nada sobre ele até que invadiu minha casa na Sibéria, mas não tinha ideia da profundidade da traição da minha assistente ou se outra pessoa trabalhava com ela e não quis responder às tentativas de contato que ele fez. Esperei, esperando que um traidor se revelasse. — Ele se levantou, a cadeira deslizando atrás dele. — Um apareceu, e no momento que o peguei, corri para a cabana, mas quando cheguei lá, Solo não estava mais.

        E eles poderiam muito bem ter se beneficiado da ajuda.

        — Acha que tudo acontece por um motivo?

        — Não. Claro que não. Acho que coisas ruins acontecem, mas essas coisas ruins podem ser trabalhadas para nos beneficiarem. Se deixarmos que isso aconteça. Tenho o pressentimento que você é a coisa boa que surgiu na situação de Solo. — Ele a olhou por um bom momento antes de assentir. — É por isso que decidi deixá-la ficar aqui.

        Ele parecia tão seguro de si mesmo.

        — É muita gentileza sua, mas sinceramente? Se sua decisão apontasse em outra direção, seria incapaz de me expulsar daqui. Solo me ensinou alguns truques.

        Ele deu uma risada áspera.

        — Se houver algo que possa fazer por você, me diga.

        — Tudo o que quero é que me contate se ouvir notícias dele.

        — Ok, e espero o mesmo de você. Esse aqui é o meu número. — Ele jogou um cartão de identificação, um IDC, na mesa, um aparelho pequeno e redondo que ela só teria que tocar para ativar. Os espectadores do circo os usavam. Uma tela apareceria no ar bem acima da base, e naquela tela estaria o número e qualquer outra informação que ele acrescentar. — Vejo você por aí, Vika.

        Ele saiu da casa, seus passos silenciosos. Se ele tinha um carro escondido em algum lugar, ela não viu. Se não, ele andaria bastante. A casa ficava a milhas de distância de outra, e ainda mais longe do único mercado. Solo tinha um carro estacionado no celeiro, mas ela não encontrou a chave.

        Suspirando, Vika derrubou as frutas e vegetais na pia e começou a lavá-los.

        Um feixe de luz surgiu atrás dela e ela agarrou uma maçã e se virou, preparada para atirá-la. A última luz forte que viu tinha arrancado-a do único lar de verdade que já conheceu e levado de volta ao circo… à destruição e desaparecimento de Solo.

        Um homem alto e musculoso saiu do centro da luz, e ela arremessou a fruta. Ela bateu em seu peito, caiu no chão e rolou.

        — Que recepção. — disse uma voz familiar.

        O ar ficou preso em sua garganta.

        — Solo?

        A luz apagou e ela conseguiu discernir suas feições. Ele havia perdido um pouco de peso e havia olheiras em seus olhos, mas era a visão mais bela que ela já contemplou.

        — Estava esperando outra pessoa, coração?

        — Solo! — Ela se jogou em seus braços e ele a envolveu no seu abraço. Ele pressionou o nariz em seu pescoço e respirou profundamente. — Sabia que estava vivo! Eu sabia, eu sabia, eu sabia! E sabia que voltaria!

        — Claro que voltei. Você está aqui.

        Espere. Seu rosto estava enterrado no pescoço dele, e mesmo assim ele a ouvia.

        — Nós dois podemos ouvir. — ela disse, olhando para ele.

        — Meus ouvidos estão funcionando em uma altura bem baixa.

        — Os meus também.

        — Estamos dividindo a habilidade, então. E antes que comece a se sentir culpada, devia saber que estou feliz em dividir. Eu… eu amo você, Vika Lukas.

        Seus ossos quase derreteram.

        — Você me ama?

        — Com tudo que sou.

        — Oh, Solo, eu também amo você. Muito, muito.

        Ele tocou suas bochechas e a beijou.

        — Onde está o Targon?

        — Foi embora.

        — Sério? — Confuso, ele a fitou. — Mas eu dei a fazenda a ele.

        Seu coração quase explodiu.

        — Trocou a fazenda por mim? — O extraterrestre mencionou que Solo estava disposto a desistir de tudo por ela, mas amais suspeitou que ele se referisse à fazenda. Àquele paraíso.

        — Trocaria a minha vida pela sua.

        — Oh, Solo. — ela suspirou.

        — Vika, minha Vika. — Ele a acariciou com os polegares. — Você vai casar comigo e não tolerarei nenhuma discussão.

        — Só discutirei se quiser um noivado bem longo.

        — Isso é bom porque planejo me casar com você hoje.

        — Isso é longo. — ela disse e riu com abandono. — Oh, vamos ter a vida mais maravilhosa.

        — Sim, vamos. — Ele a tirou do chão e a girou. Com o peito batendo contra o seu, os dois formando um ritmo perfeito. Ela deixou a cabeça cair para trás, observou o teto rodar. Então ele a levou para a cama e a derrubou em cima do colchão.

        Estava em cima dela antes que parasse de pular, seu peso prendendo-a.

        Ele a beijou, depois levantou a cabeça e a olhou nos olhos.

        — Está preparada para trocar os votos?

        — É simples assim? Sério? Só com isso você será meu?

        — Para sempre.

        — Faça então. Faça os votos.

        Ele sorriu com a sua exuberância.

        — Eu sou seu, seu marido agora e para sempre. O que é meu é seu, e o que é seu é meu. Eu prometo. Agora você diz o mesmo para mim. — ele instruiu.

        Com prazer.

        — Eu sou sua, sua esposa agora e para sempre. O que é meu é seu, e o que é seu é meu. Eu… prometo.

        Ela não esperava que nada acontecesse; fizera promessas a ele antes e nada aconteceu. Mas oh, estava errada. Suas costas arquearam e um gritinho abriu seus lábios. As costas dele arquearam na direção oposta, e um grito abriu os lábios dele. De repente ela sentiu ser dividida, membro por membro, pedaço por pedaço e até no meio do corpo.

        Lentamente, muito lentamente, os pedaços começaram a retornar, como se ela fosse Humpty Alexandre Dumpty[3], sendo colado outra vez. Só quando a transformação se completou foi que conseguiu relaxar no colchão.

        Solo caiu em cima dela. Ele estava ofegando, molhado de suor.

        — O que foi isso?

        — Não tenho certeza.

        — Bem, nunca mais faça isso.

        — Eu? — Ele de algum modo recuperou a força e depositou uns mil beijos na curva da sua mandíbula. — Talvez tenha sido você.

        — Não, foi você. Então estamos casados agora ou o quê?

        — Estamos sim, e não se esqueça disso. — Ele levantou e colou os lábios nos dela.

 

       As mãos de Solo tremiam quando despiu sua esposa. Sua bela esposa. Cabelo claro se espalhava sobre o seu — de ambos — travesseiro. E agora… agora, suas curvas rosadas estavam em cima da cama deles, exatamente do jeito que tinha imaginado.

        Poderia tê-la todas as noites. Todas as manhãs.

        Eles poderiam conversar e ficar abraçados. Envelheceriam juntos. Teriam filhos.

        — Uma vez acreditei que as palavras mais importantes já criadas eram “o que quer que se prove necessário”. — ele disse.

        — E agora? — Ela ofegou em sua boca.

        — Agora sei que estava errado. As três palavras mais importantes são “eu amo você”.

        A expressão dela já estava suave, completamente derretida. Ela estendeu os braços, passando os dedos pelo cabelo dele.

        — Meu "um dia" finalmente chegou, e é mais maravilhoso do que supus possível.

        — Para mim também. Senti mais falta de você do que posso expressar em palavras. Senti falta de trocar os sentidos com você. Senti falta do seu cheiro, da sua voz e do seu toque.

        Quando estava no Alloris, ele brevemente considerou ir atrás de alguém que soubesse como usar magia negra para abrir uma tempestade solar. Mas então lembrou o preço que Jecis pagou para possuir tal habilidade, e o modo que o homem mudou ao passar dos anos, e soube que não deveria mexer com certas coisas, mesmo para obter o que mais desejava.

        Felizmente, havia outra maneira. A maneira que sua mãe e seu pai usaram.

        Tempestades solares naturais.

        Tudo o que teve a fazer foi esperar em uma área de quarentena que todos os Alloris evitavam. Só raros deles já deixaram o Alloris ou já quiseram partir. Era uma terra de beleza, de paz, de alegria. Poucos, como seu pai, viraram as costas para a utopia, escolhendo violar as regras, motivo da área não ter sido destruída.

        Solo não virou as costas. Ele simplesmente não queria ficar sozinho ali. Um dia, levaria Vika para lá. Um dia, veria X novamente.

        — Também senti sua falta. — ela disse. — Muito, muito, muito.

        Ele pôs os lábios nos de Vika para prová-la, apreciando-a, reaprendendo seu sabor. Ele a acariciou e quando ela não pôde mais aguentar, quando lutava para respirar, tremendo incontrolavelmente, ele se forçou a desacelerar.

        Estava tão excitado, tão preparado, tão perto, e precisava dela, precisava de uma forma tão desesperadora que se sentiu perdido sem ela, desejando tanto tê-la de volta nos braços, reivindicá-la de uma vez por todas, permanentemente.

        Ela mordiscou sua mandíbula.

        — Senti falta disso.

        — Coração, você não tem ideia.

        — Nunca mais me deixe.

        — Nunca.

        Ela soltou um gemido quando ele a tomou do jeito que sonhava, marcando-a, marcando a si mesmo.

        Ela jogou a cabeça para trás e as pontas do seu cabelo fizeram cócegas em suas coxas. Mas também, tudo nela o deleitava. E é assim que deveria ser. Um homem e sua esposa deviam ver o melhor um no outro, deviam trabalhar juntos, deviam curtir um ao outro.

        Solo nunca daria aquela mulher por garantida. Nunca se esqueceria da beleza que havia em seu coração. E ele sempre se esforçaria ao máximo para ser o homem que ela precisava. Eles não teriam só uma vida juntos. Eles teriam um futuro e esperanças.

        — Oh, Solo. — ela gritou. — Isso!

        Em um instante, prazer o golpeou, inegável, incontrolável, e ele gritou seu nome.

        Ela desmoronou em seu peito, ofegando.

        Sua mulher, ele pensou, contente. Suas peles encharcadas de suor se esfregaram e um contentamento completo o inundou. Ela lhe dava tudo o que tinha pra dar, e ele sempre a trataria com carinho.

        Havia só uma coisa incompleta.

        — Odeio trazer esse assunto à tona agora. — ele disse depois de recuperar o fôlego. Ele traçou sua coluna com os dedos. — Mas tenho que trabalhar em mais um caso antes que possa me tornar fazendeiro em tempo integral.

        — Homem esperto, esperando até que eu ficasse cansada demais para me mover. — Não havia condenação em seu tom. Só divertimento.

        — Exatamente.

        — Você planeja ir atrás dos seus amigos. — ela disse.

        — Sim.

        — E entendo, e como disse antes, até posso ajudar. Conheci uns personagens bem duvidosos no circo, e até tentei comprar uma identidade nova para um. Claro, ele aumentou o preço conforme o tempo passava, fazendo com que tivesse que juntar mais e mais fundos, mas tudo bem. A espera trouxe você até a minha porta.

        — Algo que sempre agradecerei. — Ele beijou sua testa. Um dia substituiria todas as suas lembranças ruins por boas. Ela olharia para trás e sorriria, só sorriria.

        — Encontraremos os dois. — ela disse. — Não se preocupe.

        — Sei que sim. Juntos, podemos fazer qualquer coisa.

 

 

[1] ‘One Day’: “Um Dia”, em inglês.

[2] Veículo que roda em qualquer tipo de terreno.

[3] Personagem de fábulas infantis que é um ovo.

 

 

                                                     Gena Showalter

 

 

 

 

Leia o Segundo Volume...

Corbin Blue é um homem de muitos talentos. Um dos mais poderosos extraterrestres jamais nascido, ele é um rico astro do futebol americano profissional e uma lenda no quarto. Mas somente uns poucos sabem que ele também é um agente Black Ops... e que não havia melhor assassino. Quando ele e sua equipe são atacados e separados, é forçado a se virar para a filha do seu chefe para obter ajuda — uma mulher com mais segredos do que Blue.

... ELA SE TORNA SUA ÚNICA OBSESSÃO

Evangeline Black sempre foi cautelosa, reservada. Nenhum homem jamais abriu uma brecha em suas paredes. Até Blue. Nunca foi negado a ele o que quer, e agora decidiu que a quer. Enquanto a varre para dentro de sua vida dupla de sedução, intriga e perigo, ele a ajuda a enxergar por trás da escuridão do passado dela. Mas enquanto um inimigo se aproxima, Blue terá que deixar Evie ir para mantê-la segura — mesmo que prefira morrer a viver sem ela.

 

 

 

 

CORBIN BLUE COLOCOU A SUA namorada de lado, deu seu sorriso patenteado de quem acabou de sair da cama e encarou as câmeras, interpretando o papel de safado irreverente com perfeição. Como sempre.

Na realidade, ele é o Melhor Espião e Assassino do Mundo (essa marca registrada ainda estava pendente), com a habilidade singular de matar todos ao seu redor com apenas um pensamento. Que pena que homicídio em massa não estivesse na ordem da noite.

Outra leva de flashes quase o cegou, e vozes assaltaram seus ouvidos.

— Blue! Noelle! Aqui!

— Vamos ouvir os sinos da igreja no futuro agora que a Ordem do Novo Mundo legalizou o casamento entre humanos e extraterrestres?

— Blue, como se sentiu ao quebrar a coluna de Mack no jogo da semana passada?

A multidão ficou em silêncio, desta vez disposta a esperar pela sua resposta.

— Senti que deveria ter batido mais forte. — ele disse. Futebol americano era o seu disfarce. E Mack, bem, ele era o zagueiro dos Strikes, o segundo melhor time na Liga Nacional de Futebol Extraterrestre, e era um efeito colateral.

Além disso, não é como se o cara tivesse sofrido por mais que alguns dias. Ele era Arcadian, como Blue, e se curava com uma rapidez sobrenatural. Na verdade, o filho da mãe arrogante já estava recuperado.

Noelle bateu no peito de Blue, seus olhos cinzentos brilhando de modo travesso.

— Está esperando por um dano mais permanente da próxima vez. — ela anunciou com sua voz de eu-só-quero-é-ficar-nua.

Enquanto ofegos de choque e alegria rolavam pelos paparazzi — os tubarões sentiram cheiro de sangue — Blue levou Noelle até o salão de baile lotado do hotel que foi transformado em um país das maravilhas cintilante. Flores multicoloridas penduradas no teto e veludo negro incrustado com luzes de...

 

 

 

 

 

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