As instruções do ministro das Colónias de Luís XTV, Jean-Baptiste Colbert, para a Nova França eram de expandir a população, otimizar a agricultura e desenvolver indústrias. No entanto, um dilema persistia entre os líderes da colónia: deveria a população da Nova França ser formada por habitants (no Canadá e Antilhas francesas, camponeses, agricultores), que cultivassem a terra, ou por voyageurs (viajantes, homens que exploravam o Oeste desde os rios), que levassem o comércio de peles, o catolicismo e a influência francesa por todo o continente?
O preço da expansão era uma nova rivalidade, muito mais perigosa que a representada pelos iroqueses ou holandeses, em menor número. Por trás dos Apalaches, as colónias inglesas pareciam tão assentadas uanto as seigneuries (terras e donatários franceses, os seigneurs). E, afinal, na cone em Versalhes, a Nova França não passava de um peão, no jogo de xadrez que era a disputa pelo poder na Europa.
Entre os conflitos dessa sociedade em formação, Angélica vivia as incertezas de um amor ameaçado por interesses obscuros...
"Não me verão derrotada", reage Angélica às mulheres puritanas. "Não sou culpada como dizem!"
No quarto onde a Lua filtrava incidentalmente entre duas nuvens sua luz pálida, Angélica vacilava, tropeçando, chocando-se com as paredes,"com móveis desconhecidos. A necessidade de se esconder dos seres hostis e rumores da aldeia lançara-a para a alcova onde no ano anterior ela e o marido haviam se amado. ?
Num lampejo, tudo voltou com lucidez implacável. O medo, que por um instante a dominara, deixou-a, dando lugar a outra certeza, esmagadora, a de uma irreparável catástrofe. ColinL. O marido-sabia. Acusavâ-a do pior. Os braços enlaçando-a, as mãos buscando seu corpo, os lábios tomando os seus para um beijo interminável. Ela fora vista nua e desfalecendo nos braços do Barba de Ouro.
Como fazer Joffrey compreender, explicar-lhe, fazê-lo admitir... Ao simples nome de Colin ele a mataria. E ela que acreditara que o tempo passado em Wapassu ligara-os para sempre, que seu amor era infalível, inatacável, indestrutível!
Angélica estava só. Uma armadilha fechara-se sobre ela. Emboscada na escuridão, seu corpo todo tremia. Do fundo do precipício, demónios a encaravam com risos escarninhos, olhos reluzentes...
De volta de uma malsucedida expedição para o interior da Nova França, quando fora surpreendida por um ataque dos índios abenakis à aldeia inglesa de Brunswick Falls, Angélica caíra prisioneira dos piratas comandados pelo corsário francês Barba de Ouro, no navio Coeur-de-Marie. Qual não fora sua surpresa ao descobrir que o temível flibusteiro não era outro senão Colin Paturel, seu antigo amante e companheiro de fuga pelo deserto de Marrocos. No calor do reencontro, a impetuosa Marquesa dos Anjos quase esquecera sua atual condição de esposa do Conde Joffrey de Peyrac e por pouco não cedera à irresistível tentação de se abandonar às carícias desse amor proibido. Como poderia imaginar, entretanto, que as cenas do abraço de reencontro e dos beijos trocados no camarote do pirata tiveram testemunhas, que correriam a relatar sua indiscrição ao revoltado marido, que a esperava nos domínios de Gouldsboro?
O BARCO DE JACK MERWIN
CAPITULO I
Angélica despede-se de Colin Paturel - Novos companheiros de aventura
Três dias antes.
Ao norte da baía de Casco.
Uma barca no mar.
Entre tantas outras. Mas o mar-é tão vasto, e tão numerosas as ilhas que o povoam, queli barca parecia sozinha, introduzindo-se entre elas, caça perseguida, espreitada pelas correntes e rochas traidoras. Deitada sob o vento, ela passa, e é vista dobrando um promontório, fundindo-se com a sombra de uma falésia, ressurgindo ao sol; e por vezes o odoradas terras floridas a escolta, ou ela se empina sob o sopro salgado do vento.
Vêem-se nas praias das ilhas silhuetas humanas agitando os braços e correndo, lançando apelos. Há barcas e navios escondidos nas angras. Há outros que navegam ou pescam do outro lado de um rochedo ou aqueles que surgirão assim que a barca tiver passado.
Sempre só, através do labirinto de trezentas e sessenta e cinco ilhas da baía de Casco. Desde a ponta Maquoit, a barca segue a costa, descendo rumo ao sul.
Angélica passara um fim de noite esgotante, procurando mil modos de escapar a Colin.
De manhã, ele entrara na cabina. Éla dormira pouco. Estava cansada e abatida, mas também resolvida a obter a liberdade.
Ele a precedera.
— Venha, senhora - intimara-a bastante friamente.
Estava calmo e distante, sempre impressionante, equipado com suas armas, e ela o acompanhara até a ponte. Uma parte da equipagem demorava-se nas ocupações matinais, buscando principalmente ver a passageira de Barba de Ouro; e ao pé do navio, contra o casco, Angélica avistara uma barca que balançava, protegida dos choques por uma abita de palha.
Era uma chalupa inglesa, uma dessas grandes barcas que, de Nova York a Pémaquid, e até mais distante, não cessavam de fazer cabotagem de uma baía a outra, e de uma colónia a outra. O dono, forte latagão de ar lúgubre, devia ter sido abordado naquela manhã pelos flibusteiros do Coeur-de-Marie, e ninguém sabia o que ele pensava exatamente do butim com que enchiam sua chalupa. Mas o hábito da navegação nessas paragens devia ter-lhe ensinado a mostrar-se circunspecto diante dos hóspedes indesejáveis vindos das Caraíbas. Debruçando-se, Angélica avistou numerosos passageiros, entre os quais reconheceu a face de buldogue do Reverendo Patridge, o rosto dedicado da pequena Miss Pidgeon, o jovem Sammy Stougton e Ademar, cujos gemidos subiam no ar particularmente límpido da aurora cor de glicínia.
- Ah! Cair nas mãos dos piratas! Todas as desgraças me acontecem...
Da amurada, de onde um painel de madeira fora retirado, pendia uma corda.
- Muito bem! - disse Colin com voz abafada, falando próximo e a ela somente -, é melhor separarmo-nos, não é mesmo, minha amiga? O dono da barca disse-me que ia ao Penobscot. Se o vento for bom e ele navegar cortando reto na direção leste-nordeste, você poderá estar lá em quatro dias, o mais tardar...
Apesar de seus esforços e intenções, ele não podia impedir-se de desejá-la, e ela compreendia que toda vez que ele a sentisse próxima, seria sempre como no deserto, quando ele era o único no mundo a contemplá-la e a poder tomá-la nos braços.
Ela ergueu para ele um olhar no qual tentava fazê-lo compreender o que sentia: amizade, gratidão.
Tomada de alegria, pensou que talvez em quatro dias poderia estar junto de Joffrey, e o pesadelo teria acabado.
Poderia respirar e colocar um pouco de ordem em suas ideias.
Então, ao lado do marido, tranquilizada pela voz amada e para ela tão doce, tentaria ver com clareza. Falariam um com o outro... Uma expressão de dor crispou os traços de Colin, diante do sorriso deslumbrante que ela lhe dedicou.
-Ah! você o ama, estou vendo... - murmurou.
Ela mal o ouviu.
Sabia que não devia comover-se.. Fugir, o mais rápido possível.
Aproveitar a ocasião antes que ele se recuperasse. E porque já o reconhecia naquele ato franco e generoso de deixá-la ir, ela sentia um remorso indefinido pungir-Hie o coração.
Apanhou a bolsa, que um marinheiro lhe.estendia, e lançou-a sem cerimonia nos ombros.
Continuava descalça, "mas pouco importava! Que necessidade havia de sapatos na ponte viscosa de "uma chalupa? No último momento, quíse pediu notícias de Barriga Aberta, seu operado... Ela se conteve. Não queria perder um segundo. Recusou a ajuda de um homem, quê" pretendia segurá-la na escada de corda, lançando-lhe alegremente: "Ora, deixe disso, amigo. Eu naveguei no Mediterrâneo".
A mão de Colin pousou em seu ombro. No instante de vê-la distanciar-se, ele não mais se conteve. Fixou-a intensamente, e com seu olhar azul surpreendentemente claro e que mantinha uma espécie de frescor infantil no rosto marcante e endurecido, aureolado pela cabeleira e péla barba descolorida das quais quisera fazer um símbolo de temor, ele a apreendia por inteiro. Parecia tentar retê-la como se retém um fantasma, uma fantasmagoria do espírito, como se ela não fosse totalmente real. No entanto, ela teve a presciência de que ele não pensava apenas em sua paixão por ela, mas em algo mais urgente, mais exterior, mais grave ate que o preocupava. Por duas vezes pareceu a ponto de falar.
- Acautele-se - sussurrou por fim -, acautele-se meu carneirinho... Querem seu mal!... Tanto mal!...
Depois, deixou-a ir. Ela desceu, alerta, aterrizou na ponta da embarcação no momento em que o dono, com um golpe de croque, afastava-a do barco sem se preocupar com que Angélica escorregasse e caísse na água.
Nem por isso ela deixou de saudá-lo cordialmente em inglês, e ele lançou-lhe um olhar inexpressivo como o de um peixe mor-
Angélica instalou-se, contente, junto a Ademar e Sammy, enquanto um grumete de cabelos emaranhados içava a vela triangular e a vela mestra, e o dono do barco remava, largando o navio do corsário para pôr a embarcação ao vento.
Assim começou a barca do inglês Jack Merwin a navegar pelas ilhas da baía de Casco, de uma crista a outra das vagas, como um belo pássaro inclinado para a frente.
Havia três outros passageiros a bordo da embarcação que recolhera Angélica: o soldado francês e os ingleses salvos dos índios.
Um mascate da colónia de Connecticut, um negrinho que lhe servia de ajudante e... um urso. Foi este último que Angélica notou primeiro, irresistivelmente atraída pelo peso de um olhar sagaz, apreciador e divertido, que ela sentia pesar sobre si, sem que pudesse saber de onde vinha.
Aquilo decidiu o urso. Ela o descobriu de repente, deitado sob a falsa ponte que lhe servia de toca, o focinho pontudo mergulhado entre as patas, a fixá-la com seus olhinhos brilhantes. O mascate logo o apresentou:
- Mister Willoagby... Creia-me, milady, eu não teria melhor amigo que esse animal.
Ele se chamava Elias Kempton. Em menos de uma hora, Angélica soube tudo sobre ele. Filho do Massachusetts, deixara aos oito anos a pequena colónia de Newton, com os pais e uma centena de outros habitantes, e sob a direção do Pastor Tomás Hoo-ker, um homem liberal a quem a dura oligarquia puritana desagradava, haviam atravessado a floresta e atingido o rio de vastas águas cinzentas e calmas, o Connecticut. Nas margens, haviam fundado Hatford, no local onde havia apenas um pequeno posto de peles holandês. Agora era uma linda cidade, piedosa e alegre, completamente envolvida com o tráfico marítimo. Não é fácil atracar à beira de um rio como o Connecticut. A corrente puxa sem cessar para a embocadura. O pedaço de terra deles era pobre... Aos vintes anos, Elias partira com uma bolsa bem provida de mercadorias e seu urso. Mister Willoagby acompanhou-o.
-Eu o havia criado e nunca mais nos separamos desde então.
Contou que o urso o acompanhava em todas as viagens, o que por vezes criava alguma complicação, mas trazia uma alegre des-contração aos clientes mais reticentes em puxar dos escudos. O urso sabia dançar e executar alguns volteios. Mas onde era imbatível era na luta. Os homens mais robustos-das aldeias mediam-se com ele. Era um bom lutador e dava-lhfes uma oportunidade; depois, com um leve golpe de pata, e como que negligentemente, triunfava sobre os valentões.
— Willoagby... - disse o Reverendo Patridge, pensativo - mas eu conheci, creio, um pastor com esse nome para os lados de Watertown.
— É bem possível - admitiu o outro. - Meu amigo aqui presente era de tal modo parecido com esse honrado eclesiástico, o qual me dava bastante medo, mas também me divertia em minha juventude, que lhe dei seu nome.
— Eis uma marca de falta de respeito - disse severamente Tomás Patridge, ofendido e depois ameaçador. - Isso poderia trazer-lhe graves aborrecimentos...
— O Connecticut não-é o Massáchusetts, apesar do que possa pensar, reverendo. Em nossa terra, as pessoas são liberais e gostam de rir".
— Terra de tabernas - resmungou o pastor -, bebedores de rum desde o nascimento.
— Mas temos uma Constituição própria e não viajamos no domingo, para satisfazer ao Senhor.
Contente consigo mesmo, Elias Kempton tirou então dos bolsos tabaco, imagens, rendas, pequenos relógios. Tinha de tudo para interessar aos colonos das mais afastadas colónias de todas as regiões, e tendo feito cabotagem nos mínimos recantos de todas as baías, sabia melhor do que ninguém o que era possível encontrar neste lugar, o que faltava em outro, o que podia fazer brilhar os olhos de uma adolescente e não agradar a outra, o que podia encantar um menino ou um avo, iluminar com uma alegria pura,
pela presença de um objeto amado ou- indispensável, a mais humilde cabana.
Ele disse que se dirigia à ilha de Bartlett, a leste do Penobscot, em busca de tecidos de lã tingida em índigo ou vermelho particularmente vivo, pois os carneiros da ilha alimentavam-se de cem espécies de flores diferentes e seus habitantes comerciavam o ca-techu com os navios das Caraíbas.
- Mas essa ilha deve ser vizinha de Gouldsboro - notou Angélica, prometendo a si mesma ir até lá fazer compras.
Elias Kempton conhecia Gouldsboro de ouvir falar, não fizera negócios ali, por não ter encontrado no passado sua clientela habitual:" as mulheres de colonos.
- Agora há mulheres no lugar, e serei sua primeira freguesa
- afirmou Angélica.
Encantado, o mascate lançou-se a seus joelhos, mas apenas para tomar-lhe de imediato as medidas dos pés, pois era também sapateiro ambulante, e prometeu confeccionar-lhe um encantador par de calçados de couro macio, com cordões, e um arremate de cobre nas extremidades para que não se gastassem. Na ilha das raposas, havia um velho escocês solitário que curtia para ele as mais leves peles. Com a condição de encontrarem todos esses ingleses com vida, pois era bem possível que tivessem sido escalpelados nesse meio tempo.
Taciturno e desdenhoso para com os ocupantes da barca, o proprietário concentrava toda a atenção na manobra. Foi ainda o amável mascate que informou aos novos companheiros que o dono atendia pelo nome de Jack Merwin. Encontrara-o em Nova York. Era homem de génio difícil, mas notável piloto.
E era também verdade que Jack Merwin conduzia o esquife pelas correntes brilhantes e temíveis, e pelas perigosas elevações empe-nachadas de espuma com uma mestria a um tempo indolente e ágil, que para um olho entendido era prodigiosa.
Exceto algumas manobras da vela de estai, que ele ditava ao grumete, arrumava-se sozinho com o leme, e a vela mestra quadrada, mantendo por vezes o cabo da escota esticado apenas com o dedo do pé.
Se o tempo continuasse bom, a viagem com ele prometia ser rápida. Mas Angélica, ao cabo de algumas horas, inquietou-se por ver a embarcação dirigir-se obstinadamente para o sul. Pediu informações ao dono do barco. Ele aparentou não entender seu inglês perfeito. O Reverendo Patridge, por sua vez, intimou-o solenemente a responder quando lhe dirigissem a palavra. Ele consentiu em resmungar com o canto dos lábios, enquanto olhava para outro lado, que para sair daquele dédalo sujo de ilhas da baía de Casco sem ali deixar a pele e a barca, o mais curto caminho era ainda descer para Portland e encontrar a saída daquele sorrateiro arquipélago, aproveitando acorrente entre a ilha Peaks e a ilha Cushing, conhecida como Chapéu Branco. Enquanto não se avistasse o Chapéu Branco, concluiu, seriíf preciso seguir a costa no rumo sul. O pequeno Sam-nry começou a arregalar os olhos para tentar ver o famoso Chapéu Branco.
Chocado com o pouco respeito que o marinheiro inglês lhe testemunhava, apesar de sua qualidade de eclesiástico, o Reverendo Tomás começou a examiná-lo com suspeição, dizendo entre dentes que esse homem bem poderia ser da Virgínia, cujos egressos eram na maior parte celerados, velhacos e condenados, ou outros rebotalhos da humanidade... e o fato de terem enriquecido com o tabaco da Virgínia não era motivo para trazer a impiedade até a baía do Massachúsetts. Continuou assim a instruir Miss Pid-geon, que estava forade sua visão, enquanto Ademar, compreendendo parte do que ele dizia, gemia:
— Se esse homem é um» condenado, e isso está claro, irá nos abandonar numa ilha deserta...
— Nenhuma ilha aqui é deserta, pobre Ademar - tranqúilizou-o Angélica.
E era de fato extraordinário estarem- assim sozinhos entre o céu e o mar, entre rochas e praias, vendo rodar em torno, como num caleidoscópio, um pano de vela, uma flotilha de canoas, uma aldeia de madeira, um estaleiro, plataformas de bacalhoeiros, um distante comboio de barcas bojudas, entrever ao redor de uma fogueira homens com ouropéis vistosos, entretidos em derreter p breu, ou gordura de foca ou de baleia em enormes caldeirões, e outros com bonés de lã agitando-se ao redor das redes estendidas e dos cestos de ostras, e outros ainda com chapéu negro pontudo e casaca sombria, e mulheres com toucas brancas, vestidos azuis ou pretos, procurando conchas nos rochedos, reunindo-se em volta das panelas de sopa junto ao únicofogo que lhes restava.
Ha mais de meio século, os habitantes permanentes do arquipélago de Casco eram um amontoado bastante heteróclito de escoceses, irlandeses, ingleses e até franceses huguenotes, aos quais se juntavam, na época da grande migração de bacalhau e de atum, as frotas maluínas de Dieppe ou bostonianas, as baleeiras bascas, e naquele fim de junho tórrido e trágico, os fugitivos da costa.
De fato, a baía formigava com refugiados que escapavam aos massacres índios. Por todo lado, havia barcas carregadas de peças de cozinha de estanho, bíblias, velhos mosquetes. Desde o Baixo Kennebec e o Androscoggin, a tocha abenaki espalhara seu rasto de fogo, e Newehevanik, Brunswick, Freeport, Yarmouth, Fal-mouth, Portland e mais abaixo Saco e Biddeford queimavam. Quando, no fim do dia, a barca se achou na embocadura do pequeno rio Presumpscot, a duas milhas de Portland, o cheiro terrível dos incêndios mal apagados e de carne podre vinha da terra na brisa fresca, misturando-se ao odor balsâmico dos pinheiros. Uma ilhota próxima erguia-se, enfeitada com variedades de coníferas de matizes e desenhos harmoniosos. Os ocupantes da barca viam com apreensão aproximar-se os rochedos batidos pela espuma do estuário. Balançavam e dançavam a algumas braças da ilha, e seus olhos se voltavam com ansiedade para Jack Merwin, que não parecia preocupado. Esse homem frio navegava conforme sua fantasia.
No decorrer do dia, aproximara-se amiúde desta ou daquela ilha, fazendo acreditar que iria atracar. Examinava atentamente as praias, como se buscasse algo ou alguém, e Angélica acabou por se persuadir de que ele tentava reconhecer um dos seus entre os refugiados. O que provava que não era da Virgínia. Por vezes chamava um navio, informava-se sobre a aproximação dos índios na costa...
CAPÍTULO II
Visita à ilha de Mackworth, o paraíso dos indígenas - Noite de sortilégios
Ali, subitamente, 'diante da ilha, ele baixou as velas e a barca rolou molemente, impelida pela vaga, aproximando-se insensivelmente da margem. A ilhota parecia uma coroa de esmeraldas sob os raios do sol poente, q«e faziam cintilar as eopas verdes e azuis com brilhantes agulhas envernizadas. Apesar do ruído da ressaca e do vento, parecia provir dessa ilha uma música celeste, feita de milhares de cantos de pássaros.
- É a ilha de Mackworth - disse o pastor a meia voz. - O paraíso dos índios. Acautelem-se - acrescentou, voltando-se para o dono da barca. - Pode-se apostar que a ilha está infestada de selvagens. Vêm do interior pelo lago Sébago e o Presumpscot. E seu antigo paraíso, dizem, e jamais suportaram ver ali os ingleses. No ano passado, aquele maldito francês de Pentagouet, o Barão de Saint-Castine, apoderou-se dela com seus selvagens. Juntaram-se a outros tarratines que desciam de Sébago e massacraram todos os filhos do velho Mackworth, e os de Richard Vines, e os de Samuel Andrews. Desde então, a ilha está deserta...
Mal concluiu essas palavras,- a barca, dobrando uma ponta, descobriu uma enseada, cintilante de canoas avermelhadas vazias, umas contra as outras, sobre a areia de uma praia. Nessa mesma luz dourada da tarde, os frágeis esquifes de casca, sob o calafate de bálsamo e de resina, brilhavam com a transparência de élitros de insetos, besouros ou escaravelhos gigantes. No mesmo instante, o céu pareceu escurecer como sob uma nuvem que anunciasse tempestade, a sombra da noite caiu literalmente sobre a terra, milhares de pássaros subitamente voaram em bandos de toda a ramagem da ilha, unindo-se numa cortina espessa, chilreante e barulhenta, que em alguns segundos pareceu estender um véu sobre a luz.
E mudos de terror, em meio a essas trevas súbitas e moventes, viram surgir, como fantasmas vermelhos entre os troncos vermelhos dos pinheiros, uma multidão de índios de faces hediondas e pintadas.
Um mesmo movimento lançou-os uns para os outros, e eles se comprimiram com terror; mais tarde, Angélica recordou que estreitava ao mesmo tempo Sammy e Elias Kempton, o mascate de Connecticut. Permaneceram ali, cada vez mais sacudidos pelas vagas, que insensivelmente os aproximavam da barra que fechava a praia.
Aterrada, Angélica lançou um olhar acuado a Jack Merwin, o qual, parecendo subitamente despertar, apoderou-se do leme e, com uma presteza que resgatava sua imprudência, içou num piscar de olhos a vela mestra e arrancou, como num bater de asas, a embarcação às ondas perigosas que rolavam para a praia. Não se apres-' sou por isso em fugir, e, após ter feito alguns nós, mudou novamente o curso e retornou à ilha Mackworth, mantendo-se fora do alcance de uma saraivada de flechas, mas desfilando tão próximo que nenhum detalhe do equipamento dos índios podia escapar-lhes, e eles os viam como em um quadro imóvel e terrífico, misturados às árvores, aos ramos, às rochas da ilha. O imenso turbilhão dos pássaros acima de suas cabeças mantinha-os num crepúsculo sinistro e rumoroso. O inglês Jack Merwin continuava a inspecionar os índios, e a ir e vir diante da praia. Desafio, curiosidade, provocação? Seria bastante manhoso quem pudesse ler-lhe na fisionomia os sentimentos que o animavam.
Por fim, sempre com uma espécie de indolência, acenou ao grumete para que içasse a vela triangular e rumou para o sudeste, afastando-se, desta vez definitivamente, da ilha de Mackworth, o paraíso das lendas índias.
Pouco a pouco, a claridade retornou e não houve mais que alguns pássaros, algumas gaivotas, a escoltá-los.
Angélica tremia quase tanto quanto os ingleses. Ilusão, obsessão, já não sabia mais, porém apostaria que, na sombra cavernosa que subitamente os envolvera, ela discernira lá longe, entre as árvores, a face zombeteira do sagamore Piksarett.
— Falta-lhe prudência, Jack Merwin - notou acremente o mascate. - Há três semanas viajo com você e suporto suas fantasias macabras. Sinto um vazio na estômago. A todo instante em que roçamos um rochedo, ou em que vpcê se decide a partir quando se desencadeia uma tempestade, acredito que minha hora chegou... E Mister Willoagby, pobre animal! Emagrece de terror, não está vendo? Tem a pele caída, flácida, nos flancos. Não mais se move, nem mais pode dançar...
— É melhor que não se mova -resmungou Merwin -, que faríamos neste barco, perguntou-lhe, com um'urso que dança?
E cuspiu rias ondas com supremo desdém/
Angélica não pôde-impedir-se de rir. Era a reação após o medo. E devia-se reconhecer que não deixava de ser pitoresco o grupo reunido naquela casca de noz. O, negrinho, envolto num capote vermelho, redondo rábano negro de olhos brancos esbugalhados, plantava em tudo,, aquilo uma espécie de ponto de interrogação, uma reprimenda muda, uma cândida inverossimilhança.
Onde estava Ademar? Desmaiara? Não, estava doente. Vomitava, debruçado na beira do barco. Jamais suportara o mar.
- E enquanto você desfilava diante da assembleia de serpentes vermelhas, Jack Merwin - continuou em seu solilóquio o desgostoso mascate -, acaso não pensou que uma flotilha de botes poderia por exemplo surgir por trás da ponta e atacar-nos pelas costas?
O dono da chalupa não parecia mais atingido pelas recriminações do homenzinho que pela picada de uma agulha.
Subitamente curiosa em relação a ele, Angélica olhou-o melhor. Sob o boné de lã vermelha desbotado, possuía longos cabelos muito negros como os podem ter muitos ingleses, não se sabe muito bem por que. De traços comuns, leves na facealongada, tez viril, nem amarelada nem avermelhada, uma tez de europeu com boa saúde, que o vento do mar crestara levemente.
Quarenta anos. Talvez mais. Talvez menos... Olhos negros, um pouco como o mercúrio, sob pálpebras pesadas que amiúde apagavam-lhes a luz, conferindo-lhe um ar ausente ou de falta de inteligência.
Mastigava devagar e continuamente um pedaço de tabaco, mas, quando cuspia no mar, fazia-o com uma espécie de distinção negligente.
Sob a camisa de grossa tela entreaberta e o colete com botões de chifre, os ombros eram estreitos mas vigorosos. Vestia calças até abaixo dos joelhos, em droguete, uma lã para marinheiros, áspera e resistente. As panturrilhas eram como cabos de corda trançados. Fazia tudo com elas e com os pés.
Ocorreu a Angélica que aquele Merwin não lhe agradava. Colin não parecia ter sido feliz em abordá-lo. Mas sem dúvida não tivera escolha. Colin...
Barba de Ouro! Sentiu no coração um aperto, um temor, uma súbita vergonha. O dia no mar fora tão fértil em impressões que a lembrança de Colin se esfumara. No fundo experimentava um alívio pelo fato de as coisas terminarem daquele modo. Mas ao sentir-se agora ao abrigo de sua própria fraqueza, a falta de lógica de sua natureza feminina trazia-lhe por instantes um súbito remorso, uma vaga tristeza. Colin... A profundidade de seu olhar azul, inebriado com sua presença, a força de seu abraço primitivo. Algo que ela conhecia, que só a ela pertencia. Um recanto secreto. Por que não é possível amar seguindo-se os impulsos do corpo, do coração? Por que a qualidade e a força de um amor devem depender da difícil escolha?... Como se a dispersão dos sentimentos e da entrega condenasse a jamais se conhecer o amor em sua, maior intensidade. Seria isso uma verdade ou uma ilusão proveniente de sua primeira educação, que punha a fidelidade ao esposo em primeiro plano nas questões de honra de uma mulher? Não estaria ela se embaraçando com constrangimentos inúteis? Se tivesse cedido a Colin, que instante delicioso... e Joffrey jamais teria sabido.
Sentiu-se corar com a ideia e humilhada por simplesmente tê-la formulado no fundo de si mesma.
Com impaciência sacudiu a cabeça ao vento marinho.
Era preciso esquecer... a qualquer preço.
Ao longe, a ilha de Mackworth esfumava-se, parecendo-se mais que nunca a uma coroa de jóias brilhando no crepúsculo cor de menta.
- Lá! Lá! Estou vendo o Chapéu Branco - gritou o pequeno mmy. O Chapéu Branco era uma vasta cúpula granítica que coroava a ilhota de Cushing e dominava com seusfcento e cinquenta pés de altura a entrada abrigada do porto de Portland.
A água proveniente da terra, transformando-se em espuma devido ao choque permanente com a água salgada do oceano, pro-jetava no vento, num perpétuo fluxo e refluxo, as franjas dessa espuma branca, que, ao se acumularem e secarem na fronte de granito cinza, conferiam-lhe ou o aspecto de um vasto chapéu, ou o da cabeça de um homem, idoso de cabelos brancos, conforme a iluminação.
Quando se estava próximo da ilha, via-se a neve de espuma a se dissociar daquela, .também-espessa, com que os pássaros marítimos, chocando ovos ou repousando, guarneciam a mínima rocha. E era numa espécie de turbilhão branco, que se chegava até ela, descobrindo-a e ao seu movimento formrgante sob aqueles penachos macios.
Ali podia-se dizer que nesse fim de junho - com suas flores fugazes e fortes - todas as praias formigavam tanto com puritanos como com lobos-marinhos, misturados aos pássaros em gira-çao alegre, e quem tentasse desembarcar na ronda das gaivotas, andorinhas-do-mar, guinchos e pegas, quem ousasse pôr o pé numa ponta de rocha branqueada de espuma ou de penugem, podia tanto topar com uma foca empertigada e bamboleante como comum grave magister puritano envolto em sua capa genovesa e ambos solenes, severos e ultrajados com tal vizinhança, resignando-se porém a ela. Esmagavam-se ovos nos ninhos, caminhava-se sobre amontoados de conchas de ostras, de lagostas ou caranguejos, amêijoas ou mexilhões, provisão reunida junto ao fogo, sobre tapetes de sargaços, e, para alguém se fazer ouvir, era preciso possuir uma voz mais aguda que a de todos os pássaros do mar.
- Não cheguem até aqui! Não cheguem até aqui! - gritaram refugiados ao verem a barca aproximar-se. - Não temos víveres conosco. Somos demasiado numerosos. Breve não haverá mais mariscos para todo mundo e nossa munição é parca!
Merwin ficou a bordejar a alguma distância. O pequeno Sammy Stougton pôs as mãos em porta-voz:
— O rochedo de Mackworth está cheio de índios - gritou, e seu timbre claro de criança abriu caminho no tumulto da ressaca e dos pios das aves. - Acautelem-se para que não venham degolá-los...
— De onde você vem, garoto?
— De Brunswick Falis, nas fronteiras.
— Que aconteceu ali?
— Morreram todos - gritou o pequeno, com sua voz leve, com palavras que voavam como as notas de uma flauta.
A maré estava alta. A barca podia avançar bastante na angra de atracação, mas Merwin, diante das negativas enérgicas dos primeiros ocupantes da ilha, não tentou abordar. Contentou-se em continuar olhando com curiosidade e atenção em torno.
Uma gorda mulher, que com a saia levantada vasculhava as an-fractuosidades do rochedo para ali pescar lagostas, chamou-os.
— Vocês são da costa?
— Não, venho de Nova York.
— E para onde vão?
Ele apontou com o queixo para o norte.
— Para Gouldsboro.
— Eu o conheço - disse alguém -, fica na entrada da baía Francesa. Vocês serão escalpelados pelos franceses e seus selvagens.
Jack Merwin retomou o leme e manobrou para sair do pequeno porto. Ao dobrar bem próximo à ponta de um rochedo, outra mulher acorreu, gesticulando e arrastando atrás de si uma adolescente com uma pequena trouxa.
- Leve-a - gritou a mulher -, ela não tem mais família, mas sei que tem um tio na baía Francesa, na ilha Matinicus ou na ilha Longue, diante do monte Deserto. Leve-a...
Impelida por ela, a adolescente, aturdida, saltou para a barca, que uma onda quase de imediato levou ao largo.
— Crazy witch! - gritou Merwin perdendo a calma -, está me tomando por um protetor de órfãos? Tenho mais que fazer do que me ocupar com todos esses ledores da Bíblia, que o diabo os carregue!...
— Você fala como um pagão - retorquiu a mulher na ponta do rochedo -, e tem o acento do Devonshire. Deus fez-lhe o co
ração duplamente duro quando nasceu... Porém leve essa criança a lugar seguro, ou o mal o sufocará por mais longe que estiver, garanto-lhe.
Merwin, que se erguera em sua cólera, retomou o leme e evitou por pouco uma rocha à flor da água.
— Old witch! - resmungou ele ainda -, se têm o inferno com eles, que estão esperando para'dominar o mundo?
— Essa mulher não está errada, suas palavras... - começou o Reverendo Tomás.
Mas uma vaga, cobrindo-os e molhando-os copiosamente, interrompeu a discussão. Merwin pôs o marujo para manejar o vertedouro.
O mar tornava-se revolto, e a barca oscilava cada vez mais. Era preciso ocupãr-se seriamente da manobra e estava fora de questão voltar para a ilha do Chapéu Branço, para ali deixar a órfã. Uma bruma cinza-pérola-e rosa anunciava a noite, um longo crepúsculo de junho iria arrastar-Se pelo mar. Era preciso buscar um porto para a noite. Felizmente, Merwin parecia conhecer as paragens. Costeou as margens da ilha Peak, depois as da ilha Longue, que continuava a procissão, seguida pela ilha Chebrague. A meio caminho da ilha Longue, do lado leste, Jack Merwin impeliu a barca para uma praia de cascalho. O lugar parecia menos povoado. Saltou na água e prendeu a barca numa anfractuosidade do rochedo, depois ganhou terra firme, deixando as damas se arrumarem sozinhas para sair dali. O que elas fizeram, sem medo de molhar as saias. Após as longas horas de imobilidade, era delicioso patinhar na água fria e vagar pela areia. A jovem da ilha Cushing, que se chamava Ester Holby, contava suas infelicidades a Miss Pidgeon. O urso Willoagby, saindo de seu abrigo, subiu a praia, com cr nariz na direção dos odores silvestres. Angélica descobriu que era um animal enorme, lento e pacífico. O urso foi vasculhar entre as raízes. Elias Kempton chamava-o por instantes, para evitar que assustasse a vizinhança.
Ao ouvir a jovem Ester, Angélica sentia" estima pela pobre menina. Precipitada no meio de estrangeiros entre os quais descobria uma papista francesa e... um urso, não mostrara qualquer medo e aceitara a situação com bastante dignidade. Na desgraça, os ingleses não têm a loquacidade amiúde barulhenta dos franceses. Como se tudo neles mergulhasse, tal uma pedra num poço escuro, e a superfície ficasse ainda mais lisa, mais imóvel.
Ao ouvir Ester contar como vira o pai, a mãe, os irmãos, escalpelados pelos índios, e sua jovem irmã levada por eles, Angélica tinha vontade de torcer as mãos e de chorar em seu lugar.
Merwin voltou trazendo braçadas de galhos para acender um fogo.
Encheu de água um caldeirão de ferro, lançou-lhe um pedaço de porco salgado e pô-lo a cozinhar. Seus gestos eram precisos, de um homem ordeiro, habituado a viver só. Com uma presteza surpreendente a maré baixou, descobrindo a planície acastanhada com as algas e cintilante com mil pequenos charcos a perder de vista.
Criancinhas inglesas saíram do bosque e puseram-se a procurar conchas nos rochedos descobertos.
A noite caía atrás das árvores negras, e o céu e o mar estavam completamente impregnados de uma agradável cor de laranja madura, que escureceu mais e mais até tingir-se de um rosa ardente e luminoso, que parecia não querer jamais se apagar.
As crianças saltavam de rocha em rocha, cantando um ritorne-lo. Felizes com a colheita, vieram estender os cestos aos recém-chegados na praia. Merwin comprou-lhes duas pintas de mariscos, e Angélica pediu-lhes que entoassem a cantiga que cantarolavam havia pouco. Era uma canção, explicou uma garotinha nascida na ilha, que agradava às conchas. Logo se elevaram suas vozes frescas e bem ritmadas, negando a desgraça próxima. Havia entre eles muitas crianças refugiadas da costa, encantadas com essa escapada na baía, longe dos trabalhos da fazenda ou das horas de estudo na casa de reunião, e não eram os últimos a soletrar e afirmar com convicção:
"Cleams is physic the year ali trough come cat my clams, bid the doctors adieu. As planícies são o remédio para o ano todo. Venham comer meus mariscos e mandem passear todos os médicos".
Com o objetivo de agradecer-lhes a gentileza, o mascate chamou o urso, que, para grande deslumbramento das crianças, ergueu-se sobre as patas e saudou-as solenemente, e depois, intimado a apontar a menina mais bonita, ou mais esperta, ou o garoto mais briguento, ele o fez parecendo refletir, hesitar, colocando por fim, diante da pessoa de sua escolha, uma flor de tecido, uma bagatela qualquer, ou uma peça de prata.
Uma companhia inteira logo se reuniu em torno da fogueira dos estrangeiros. Descobrindo entre os espectadores um atleta de braços nodosos, Elias Kempton pediu-íhe para medir-se com seu urso. O combate era leal. O homem tinha o direito de servir-se de seus punhos, Mister Willoagby prometia não usar as unhas. Com uma arte consumada de comediante, o urso por várias vezes fingiu vacilar sob os golpes, e depois, no instante em que o homem começou a acreditar na vitória, fê-lo rolar no chão, como se lhe tivesse dado um piparote...
Depois dos risos e aplausos, o pastor fez que todos orassem, e em seguida eles se separaram.
Angélica nãpTpôde dormir. A noite era fria e ela não conseguia esquentar-se, mesmo junto ao fogo. Os outros envolviam-se numa manta, ou num capote ou coberta, e o mascate, bem como Mister Willoagby, roncavam juntos, um nos braços do outro. Angélica invejou o homenzinho de Connecticut, que devia encontrar, na pele de seu rústico amigo, um calor reconfortante.
Ela devia tomar uma resolução: doravante, onde estivesse, não dormiria sem ter ao alcance da mão a capa, as pistolas e os sapatos, e seu primeiro movimento, antes.mesmo de abrir os olhos, seria apoderar-se desses objetósindispensáveis à vida; só depois poderia ocupar-se com o que se passasse em torno, descobrir piratas prestes a saqueá-la, ou outra coisa qualquer. Por falta de uma reação pronta, tinha nessa noite os braços seminus no corpete de tecido fino e o frio penetrava-a até a alma, embora o ar fosse de uma secura extrema.
Levantou-se e pôs-se a caminhar ao longo da praia. O ar era cristalino, vibrante, e a ilha adormecida respirava com grandes sopros cantantes de harmoniosos queixumes, onde tudo se mesclava, o vento, os murmúrios e a respiração dos homens, os latidos das focas, a ressaca...
Afastando-se do acampamento, onde a-lanterna de vidro e chifre do marinheiro Merwin deixava um halo amarelado como re-. terencia, Angélica caminhou para uma outra luz entrevista nas arvores e que banhava a praia vizinha, mais extensa. Haviam-lhe dito que nessa ilha existia uma "praia cantante"; ouviam-na quando sopravam certas brisas, numa suave melodia ou como os passos de um exército em marcha... Era isso que ela escutava, como uma alucinação de almas penadas, ou seria a aproximação das canoas dos índios perseguindo suas presas através das ilhas amontoadas?...
A luz ao longe não era o que ela acreditara, mas apenas a claridade da longa noite de junho, que custava a se extinguir, estendendo sobre a terra um toldo de um verde fosforescente...
Ao longo da faixa de areia, havia uma colónia de lobos-marinhos, e os grandes machos, chamados de donos das praias, erguiam-se como sombras monolíticas, voltados para o mar cintilante, vigiando não se sabia o que ao largo, enquanto à sua volta, menores e mais escuras, andavam as fêmeas reluzentes... População pacífica, de grave inocência, inquieta com a agitação dos humanos nesses domínios preservados onde reinara por tanto tempo, as pessoas se surpreendiam a contemplá-los com uma espécie de pena e ternura. Para não perturbá-los, Angélica seguiu pela orla do bosque, e os grandes machos voltaram para ela as cabeças espessas e bi-godudas.
No século precedente, um viajante descrevera as focas, surpreso: "Sua cabeça é como a dos cães, sem orelhas, e o pêlo é da cor do burel acastanhado dos ermitões, como o que carregam os mínimos..."
Angélica havia lido sobre isso em criança, quando sonhava em partir para a América... E eis que ali estava agora, nessa praia perdida da América, uma mulher na metade da existência, e não mais a criança sonhadora e arrebatada do velho castelo de Monteloup, e no entanto parecia-lhe que poucas coisas haviam mudado em si mesma. "Tudo já está dito desde a primeira idade... Só se muda negando-se a si mesmo..."
Que era ao certo essa negação?... Joffrey jamais se negara...
Os braços cruzados no peito, ela esfregava os ombros e os antebraços para se aquecer. Na noite anterior encontrava-se no barco de Barba de Ouro, e Colin tomara-a nos braços. E ela estremecia ainda mais com a lembrança... Toda essa história parecia desde então uma espécie de sonho perturbador, que era preciso esquecer, enterrar, apagar...
Mas na extremidade da praia havia a carcaça encalhada de uma baleia, erguendo na noite luminescente uma macabra e gigantesca estrutura de um branco de neve translúcido - floresta de ossos onde brincavam reflexos nacarados, e através do esqueleto com grandes arcos, como que traçados a giz na noite, viam-se tremeluzir as estrelas no horizonte...
Impressionada, Angélica estremeceu mais violentamente ainda.
Uma mulher surgiu e caminhou até ela, pálida e branca na claridade leitosa.
- Tem frio, irmã? - perguntou com voz suave. - Tome, peço-lhe, pegue meu manto. Devolvê-lo-á quando o sol nascer.
Surpresa, Angélica olhou-a sem estar bem certa de ter diante de si uma pessoa viva.
— Mas você não sentirá frio?
— Partilharei o manto de meu esposo - respondeu a mulher, com um sorriso quase celeste.
E pondo a mão na fronte de Angélica:
- Que o Eterno a-abénçoe!
Ao retornar, avistou Jack Merwin sentado na ponta de um rochedo, numa atitude de vigília.
Angélica, de volta ao acampamento, reconfortada pela capa da caridosa desconhecida, deteve-se a alguns passos dele para examiná-lo.
Aquele homem intrigava-a mais e mais. De manhã, quando o vira pela primeira vez, torrrai-a-o,por um bruto marujo ordinário, porém ali, considerando-o em sua atitude meditativa, pareceu-lhe que ele era sem dúvida um desses seres fora do comum, como os muitos que os mares distantes recebem, escondem e acobertam. Sua imobilidade era tão intensa - ele sequer mastigava seu eterno pedaço de tabaco -, que dele se desprendia uma espécie de solidão quase inquietante, que parecia brilhar como uma chama alta e ardente.
"Deve ser um antigo pirata", pensou ela, "talvez até nobre de nascimento. Um homem cansado de seus crimes, querendo esquecer e também fazer-se esqueeer por companheiros demasiado perigosos... Será a eles que espreita, que teme, que busca, perseguido pelo remorso ou pelo medo?... Ou será o filho mais novo de uma grande família pobre da Inglaterra, que acreditou que as aventuras fariam dele um príncipe? E desgostoso com a companhia encontrada nos navios, abandonou tudo para voltar à solidão do mar...
"E deve ter tido também um grande desgosto amoroso. Tenho a intuição de que detesta as mulheres..."
A curva dos ombros do homem estava como que petrificada. Dir-se-ia que a alma desertara daquele corpo, a ponto de deixá-lo ali, envoltório vazio, para vogar em outro lugar. Que ouvia ele, que descobria, que surpreendia no segredo dessa ausência? Seriam as canoas índias, que ele via avançando lá longe no mar luminoso?
Era uma noite estranha, cheia de perigos imprecisos, de sortilégios ternos e poéticos, e também de malefícios, talvez.
Angélica sentiu um desejo de arrancar o homem à sua bizarra letargia, que quase a atemorizava.
- Bela noite, não é mesmo, Mr. Merwin? - perguntou em voz alta. - Impele à meditação, hão acha?
Estaria dormindo? Tinha os olhos abertos, mas as pupilas estavam sombrias e vazias. No entanto, ao cabo de alguns segundos, voltou a cabeça para ela.
- A beleza desta região me fascina - retomou Angélica, impelida por um impulso incontrolável de tentar comunicar-se com ele -, nela se respira... Não sei como exprimir-me... esse algo desconhecido, desaparecido para sempre da Europa, a ponto de a própria noção dele nos ser estranha, e de só se o descobrir nestas margens... esse algo misterioso e exaltante que chamarei... a essência mesma da liberdade...
Ela divagava em voz alta, consciente de que o pensamento que emitia era complicado e obscuro e que, ao tentar exprimi-lo num inglês ainda hesitante, havia grande possibilidade de que o marinheiro não lhe compreendesse uma só palavra. Sentiu-se quase surpresa em ver que, ao contrário, conseguira arrancá-lo a seus devaneios.
Viu seus traços fremirem, os olhos acenderam-se, e em seguida esses mesmos traços distenderam-se e imobilizaram-se num sorriso sardónico e desdenhoso, enquanto do olhar sombrio brotava um clarão de desprezo, quase de ódio...
- Como ousa permitir-se tais palavras, tais julgamentos?... - perguntou com sua voz lenta, marcando como que por prazer o acento arrastado e vulgar. - Falar de liberdade, você, uma mulher?
Deu uma espécie de risada cortante. E através dele ela acreditou ver brilhar uma face escarninha e inimiga, de um ser superior que a desprezava e rejeitava.,. Um demónio!... Eis o que se escondia em seu envoltório estranho, um demónio à espreita em meio aos homens...
Ela recuou, invadida por uma sensação glacial, e afastou-se dele.
— Espere... - gritou ele. Chamou-a num tom imperioso.
— Wait a minute. Espere um momento! Onde estava há pouco?
— Decidi caminhar um pouco, pois sentia frio.
- Pois bem, cuide de" não se afastar, para não sei que sabá na floresta, pois conto partir com a aurora e não esperarei por
ninguém. ,
"Que grosseiro!", drsse Angélica consigo, estendendo-se junto ao fogo.
Era isso que ele era,- simplesmente, um grosseiro. Um grosseiro com a marca anglo-saxã. Um país de homens grosseiros!... Os mais aborrecidos bárbaros do mundo...
Ela se envolveu nò manto da mulher de olhos iluminados. Todos um pouco loucos, esses ingleses!
"Falar em liberdade! Você, uma mulher!... You, a woman!'
Ela ouvia-lhe a voz desdenhosa.
"You... a woman... You... a woman."
E a contragosto, na lassidão dessa noite, sentiu-se órfã, esmagada por forças que nada, jamais, poderia abater. E seria louca em se opor a elas!...
Felizmente havia um homem, na terra, de quem era companheira e que a amava...
- Joffrey, meu amor - suspirou.
E adormeceu.
CAPITULO III
De volta ao oceano
Ao despertar, Angélica viu que uma bruma espessa envolvia a tudo, e a hora devia estar bastante avançada, pois o sol, que se adivinhava por trás dessa bruma, parecia alto no horizonte.
Jack Merwin retomara o aspecto de um homem comum e amuado, e arrumava com cuidado, no fundo da barca, vários barris de água doce. Era bom sinal. Prova de que o dono da chalupa previa uma longa travessia sem escalas e que talvez renunciasse a perder tempo entre as ilhas. Também desentocara, ignorava-se de onde, a metade de uma roda de queijo e um pão de frumento. Seus passageiros não corriam o risco de morrer de fome na viagem.
— A neblina retardou nossa partida - explicou Miss Pidgeon -, nós a deixamos dormir, minha cara!...
— Devo encontrar a pessoa caridosa que me emprestou sua manta - disse Angélica.
Mas Jack Merwin súbito apressou todo mundo a embarcar imediatamente.
— Como quer orientar-se nessa neblina? - protestou Kemp-ton. - Vamos correr ao encontro da morte.
— A morte! Isso não é razoável - choramingou Ademar, que ia compreendendo melhor o inglês. - Oh! senhora, impeça-o de fazer-se ao mar. Nesta noite tive um sonho terrível: sinto que ele vai acontecer.
Ademar era um simples de espírito, e nas províncias da França acreditava-se de bom grado que os simples são dotados de dupla visão...
— Que sonhou, meu pobre rapaz?
— A senhora se afogava, eu a via no fundo do mar, lá onde ele é verde como uma lâmpada de Veneza, e seus cabelos arrastavam-se como algas...
— Ah! cale-se - gritou Angélica - , você só sabe abrir a boca para semear o medo. Devia afinal rejubilar-se por eu me afogar, já que me toma por um demónio... -
— Senhora, não fale assim - disse Ademar,, persignando-se diversas vezes.
O pastor olhou-o de esguelha, comprimindo os lábios. Já estava mais que farto daquela vizinhança papista à qual se juntava a presença de Merwin, manifestamente ímpio e irreligioso. Pensava em permanecer em Long Island. Miss Pidgeon dissuadiu-o, dizendo-lhe que,, se desejava reencontrar o que lhe restara em Brunswick Falis, seria preciso ir a Gouldsboro.
- Vamos, embarquem -grunhiu.Merwin, acrescentando uma expressão inglesa que Angélica não conhecia muito bem, mas que devia estar entre "corja de vadios" e "bando de vagabundos".
Apesar de suas injunções, ninguém se apressava.
— Você está com a capa de uma quacre! - notou subitamente o Reverendo Padridge, apontando, a roupa que Angélica procurava a quem confiar. - Falou a um membro dessa seita infame! Infeliz! Isso pode colocar em grande perigo a salvação de sua alma. Tem razão, Miss Pidgeon. Não é bom permanecer num lugar onde se corre o risco de encontrar essa gente. Eu acreditava, porém, que dela haviam purgado a Nova Inglaterra. Seria preciso enforcar mais alguns para desencorajar os outros.
— Não vejo por que enforcar pessoas cujo único crime é o de emprestar sua manta a quem tem frio - protestou Angélica.
— Mas os quacres são pessoas muito perigosas para a ordem pública - afirmou o pastor.
— Sim - acrescentou Miss Pidgeon -, ri|o-tÍram o chapéu diante do próprio rei, chamam-no irmão e o tuteiam... Dizem que estão em comunicação direta com Deus.
— A própria irreverência - clamou o pastor.
— Não querem pagar o dízimo...
- A doutrina deve permanecer pura - continuou o pastor.
Ia lançar-se num longo sermão, quando Jack Merwin explodiu.
Primeiro gritou duas ou três imprecações - Bloodyfoots! - que deviam ter sido muito bem escolhidas, pois Miss Pidgeon e a jovem Ester deram um grito de horror e taparam os ouvidos.
- Blasfemador! - rugiu o pastor.
— Cale-se, cretino, homem desprezível - disse Merwin com verdadeiro ódio na expressão de sua boca amarga -, só sabe tomar a palavra para semear desordem e perturbação.
— E você, miserável! Compreendi de imediato que você era um ímpio, um filho de Lúcifer, daquele que ousa olhar seu Deus face a face dizendo: Sou igual a você!...
— Melhor seria que um ignaro como você não se metesse a julgar seus semelhantes. Arrisca-se com isso a cometer graves erros.
O Reverendo Tomás não podia tolerar que um marinheiro vulgar, talvez proveniente de uma ignorada colónia penitenciária, lhe falasse nesse tom e com tais termos diante de frágeis mulheres, cuja conduta depende amiúde da confiança que têm em seu pastor. Aceitar ser derrubado do pedestal de modo tão humilhante era arriscar a mergulhar na dúvida almas cândidas e fiéis. No passado, antes de se entregar aos estudos teológicos, Tomás Patridge fora um jovem cheio de energia e praticara boxe. Suas forças, que ele mantivera e agora recobrava após os ferimentos, tornavam-no ainda temível. Agarrou Merwin pelo colarinho da camisa e ter-lhe-ia amassado a cara com um terrível soco, se o outro, igualmente rápido lutador, não se tivesse desprendido do punho que o segurava, com um golpe seco da lateral da mão. O pastor deu um rugido e ficou roxo.
Angélica lançou-se entre os dois.
- Por favor - disse, usando de toda a sua autoridade -, por favor, senhores, não percam o juízo.
Continha-os com energia, cada uma das mãos nas carcaças musculosas, e sentia-lhes a cólera efervescente prestes a explodir como os rugidos de um vulcão, mas seu olhar imperioso foi mais forte e ela conseguiu mantê-los a distância um do outro.
- Pastor! Pastor! - pediu ela. - Saiba perdoar a quem não recebeu as mesmas luzes espirituais que o senhor. Não esqueça que representa um Deus que condena a violência...
O pastor estava agora pálido sob o esforço para se conter e também sob o efeito da dor. O golpe de Merwin rompera-lhe em parte o pulso.
Tack Merwin também estava pálido como cera. Uma veia nas fontes pulsava com violência, e suas pupilas trilham mais que nunca um brilho de bronze, metálico e insondável.
Angélica sentia sob os dedos o coração de Jack Merwin batendo descompassadamente. Nesse instante, ele lhe pareceu novamente humano e vulnerável.
- Você tampouco está sendo razoável - disse-lhe, como se repreendesse uma criança. - Não é próprio de um bom cristão insultar uma pessoa revestida de autoridade eclesiástica. Ainda mais este ministro ferido. Há poucos dias apenas, foi semi-escalpelado pelos índios.
Os olhos do marinheiro diziam que aquela era uma boa coisa, que devia ter sido levada ate p fim. Foi o Reverendo Tomás quem primeiro cedeu.
— Inclino-me em atenção à senhora, embora_seja francesa e pertença a uma religião extraviada, babilónica e fanática. Inclino-me, pois a senhora nos deu prova de amizade. Mas este...
— Este também... Ele nos deu provas de amizade. Tomou-nos em sua barca e leva-nos a Gouldsboro, onde estaremos abrigados e finalmente fora de perigo.
E manteve os dedos no peito de Jack Merwin, até sentir-lhe o coração acalmar-se e o homem retroceder, recuperando o controle sobre si mesmo.
Com o fim da discórdia, cada qual tomou seu lugar na barca, incluindo-se Mister Willoagby. A neblina se dissipava quando saíam do porto, e eles viram toda uma multidão na praia, acenando-lhes em adeus," e os quacres de chapéu redondo ou grande touca branca mantinham-se agrupados à parte, como empestados, mas sem se mostrar menos alegres e expressivos.
Ficando ao alcance deles, Angélica gritoú-lhes algo sobre o manto que deixara na outra praia com uma pessoa atenciosa.
Depois veio a ponta da ilha Clipp e a da ilha das Jóias, Jewels Island, a ilha mais ao largo na baía de Casco, e portanto a mais afastada de um eventual ataque índio e que organizava sua defesa com uma rapidez que fazia jus a seu chefe, o Capitão Joseph Donnel.
Colonos de Boston, Freeport e Portland, que ele próprio procurara com sua pequena frota, trabalhavam dia e noite, homens e mulheres, nas fortificações, e em menos de uma semana um fortim de paredes com ameias elevava-se na ponta de atracação da ilha. Haviam construído os fornos de cal utilizando conchas para fazer a argamassa destinada a preencher os vãos entre as pranchas e as vigas. E todo um grupo semeava o trigo e ocupava-se das culturas prevendo um longo cerco. Haviam feito a triagem das crianças que desembarcavam. Todos os que estavam em idade de manejar uma faca, meninas ou meninos, haviam sido enviados ao duro trabalho de arroteamento ou de pesca. Quanto aos menores, brincavam sob a guarda de vigilantes escolhidas, nus e rosados no mar gelado, em meio aos lobos-marinhos e às focas.
Essas informações, a barca de Jack Merwin colheu junto com um último cesto de mariscos, antes de lançar-se ao largo.
Depois veio o alto-mar azul, branco e com lantejoulas douradas. E apenas algumas velas, aqui e ali.
Angélica rejubilou-se com o horizonte desnudo. As ilhas haviam desaparecido. A direção se mantinha, leste-nordeste. Cada impulso do vento os afastava da costa ameaçada, aproximando-os de Gouldsboro.
O dia passou rapidamente entre as histórias do mascate e algumas páginas da Bíblia lidas pelo pastor. Durante a leitura, Angélica, com o canto do olho, vigiava Merwin. Mas o dono do White Bird - tal era o nome do barco - readquirira sua expressão desdenhosa e continuava indolentemente a mastigar seu pedaço de fumo e a cuspir com altivez a saliva castanha, cuja longa trajetó-ria causava admiração a Sammy e Timothy, o negrinho.
Coisas sem cessar aconteciam para distrair os passageiros. Por longo tempo um lobo-marinho branco acompanhou a barca. Era gordo como um boi e ágil como uma cobra. Afastava-se e aproximava-se a toda a velocidade, divertindo-se com os gritos das crianças e parecendo a cada vez lançar-lhes um olhar gaiato com seu olhinho porcino.
No meio da tarde avistaram a ilha Monégan. Era uma ilha solitária bastante distante, ao sul do arquipélago de Damariscove e da costa de Pémaquid. Chamavam-na também ilha do Mar porque é solitária, única como uma pedra preciosa, com suas falésias azuis e rosa, carregando como um diadema suas florestas com mil variedades de flores selvagens. Ilha dos Lobos, também. Ali houvera muitos deles no passado, e ejes lhe deram seu nome: ilha dos Moicanos, igualmente o nome de um grande povo índio que ado-tou o lobo como símbolo.
Nela já não havia mais lobos. Nem moicanos.
Mas em contrapartida enc'ontravam-se muitos bascos, bretões e normandos, suecos e holandeses, espanhóis e portugueses, ingleses e escoceses, e todas as frotas do mundo a se infiltrar em seu fiorde estreito, contra a protuberância granítica da ilhota Ramana.
A medida que se tornava mais visível, os passageiros da barca notaram uma enorme nuveiri negra a aureolá-la, nuvem ainda mais escura na direção oeste..._Calaram-se, o coração apertado de angústia.
A nuvem escura parecia.estagnada, Tomava por vezes a forma de um cogumelo achatado, de extremidades em ponta, depois voltava subitamente à forma anterior.
- Será fumaça?"- murmurou Angélica.
O próprio Merwin, ao menos uma vez, pareceu intrigado, mas nada disse. A jovem Ester, que era originária da costa, encontrou a primeira explicação para o enigma. Eram pássaros, disse.
Vindos de todos os pontos do horizonte, giraram acima de Monégan, sem dúvida atraídos por uma presa de qualidade.
Ela não estava enganada.
Ao se aproximarem, chegou-lhes o rumor agudo dos milhares de pássaros a rodar.
Mais tarde, souberam que um navio basco arpoara uma baleia ali perto e rebocara-a até Monégan, onde a equipagem a estava colocando em barricas.
CAPÍTULO IV
Angélica no fundo do mar
Merwin guiou com habilidade o White Bird por entre a crista eriçada das rochas à flor da água e conduziu-o incólume por um corredor estreito, que mal merecia o nome de angra, mas que terminava por uma pequena praia de areia em aclive na direção da floresta.
Saltou na água até a metade do corpo e guiou o barco até sentir a quilha roçar na areia. Então subiu nos rochedos mais próximos para fixar o cabo de amarração. Enquanto agia com rapidez, acenava para que os passageiros saíssem da embarcação.
- Rápido! Rápido! Apressem-se. Não fiquem aí, subam até a
floresta - gritou.
Ele sabia dos perigos que espreitam o homem que se demora nas praias do leste da ilha Monégan. Obedientes, eles se apressaram e subiram correndo a praia, carregando suas bolsas e cestos com as sobras da refeição.
- Quickly! More quickly! Depressa! Mais depressa! - gritou Merwin, sem se saber por quê.
Foi nesse momento que aconteceu o drama.
São terríveis as vagas profundas que vêm chocar-se com as falésias abruptas da Cabeça Negra e da Cabeça Branca, na costa leste da ilha Monégan.
Chegam sorrateiramente, jamais onde são esperadas, e se precipitam, retirando-se de imediato, debruçadas sobre sua presa.
Primeiro, um alto archote esbranquiçado irrompeu à direita, quase diante do grupo de mulheres e de crianças, como um gêi-ser que saísse bruscamente do solo barrando-lhes o caminho. A água caiu feito chuva sobre eles, e como continuassem a olhar para a direita, outra vaga chegou em silêncio, vinda de trás, o dorso curvo, enorme e reluzente, e cobriu-a todos. Caíram de quatro, atabalhoadamente, foram arrastados sobre a areia pelo refluxo e em seguida abandonados de súbito, a maior parte deles ergueu-se prontamente e, agarrando-se às rochas, reuniu seus pertences que boiavam e subiu a praia com rapidez. Alguns até riam da ducha inesperada, porém Angélica, ao se voltar, avistou a cabeça do pequeno Sammy, que flutuava lá longe, na entrada do estreito, em meio à revessa de espuma. Então, sem hesitar, ela correu ao longo da península e lançou-se na água no-momento em que o refluxo trazia o menino em sua direção. Encontrou-o na metade do caminho e o agarrou.
O mar logo os arrastou fium-balé demente. Ao olhar para a costa, Angélica avistou na extremidade rochosa - na ponta que acabava de deixar - a alta silhueta de Jvíerwin. Ele prontamente se postara no lugar preciso. ~Num galope furioso; o mar os trouxe até ele.
- Agarre-o! - gritou Angélica, lançando o inglesinho na direção do homem.
O marinheiro literalmente apanhoti-o no vôo. Angélica, por seu turno, tentara agarrar-se a uma rocha, mas o mar puxou-a de modo tão rápido e irresistível que novamente ela se viu carregada para o largo, no lençol da rede entrelaçada de espuma. O côncavo das vagas aspirava-a como o fundo de um buraco subitamente aberto, depois ela tornava a se encontrar de repente na crista de uma onda tão alta, que lhe parecia que iria ser projetada como uma bala na metade da falésia. A saia encharcada começava a pesar como chumbo, e ela não mais podia mover as pernas para manter-se na superfície. Assim como uma convulsão proveniente do fundo do abismo, a onda- levou-a mais uma vez para terra. Impelida para o promontório onde se achava Jack Merwin, viu-o aproximar-se numa corrida louca. Estava só, agora, na extremidade avançada da península, após ter colocado em lugar seguro o menino salvo.
Surgia só e gigantesco e sombrio no vento que lhe fazia voar os longos cabelos negros, sombrio contra o céu vibrante onde flutuavam fragmentos de espuma branca, e seu boné vermelho sobressaía-se como uma luz que se aproximasse. Ela esten-deu-lhe a mão, pronta para agarrar a dele. Mas, ao contrário do que esperava, ele não se moveu, permaneceu imóvel, os braços cruzados.
Ele não lhe estendeu a mão. Os dedos de Angélica fecharam-se no vazio, esfolaram-se ria pedra áspera, demasiado fracos para agarrar-se nela, e enquanto a monstruosa sucção novamente a levava para trás, ela gritou. Era um grito de criança, de pura perda e de espanto... Ah! se ao menos ele me houvesse estendido a mão, desta vez, eu teria podido... Ele não me estendeu a mão...
A água salgada entrou-lhe pela boca e ela sufocou. Reunindo toda a energia, esforçou-se para ficar calma, a fim de poder manter-se na superfície e deixar-se levar pela corrente que cedo ou tarde a levaria de volta à margem. Sua única possibilidade de salvação era o turbilhão que sem cessar vinha abismar-se nas cavernas da ressaca, onde o choque das vagas contra as paredes explodia como um surdo tiro de canhão, fazendo vibrar o eco das falésias.
A onda negra engoliu-a, depois carregou-a, fazendo-a rolar num furor de torrente, e os olhos de Jack Merwin surgiram-lhe, desta vez, bem próximos.
Então ela compreendeu.
Ele não estava lá para salvá-la, mas para vê-la morrer.
Pois queria sua morte.
Essa resolução estava inscrita em sua face impassível, onde brilhavam duas pupilas do outro mundo, que viam através dela, para além daquele pobre corpo sacudido e inchado, daquele corpo de mulher que o mar começava a querer despedaçar, e que já não era para ele mais que um destroço sem valor.
E ao descobri-lo assim, num último e desesperado lampejo, ele lhe pareceu ainda mais demoníaco que na noite anterior. Um grito de agonia jorrou de suas entranhas:
- Joffrey! Joffrey!
Gritou com desespero. No fundo de si mesma, uma voz chamava: "Joffrey! Socorro! Socorro! Os demónios querem minha morte!... Estão aqui!..."
Depois, num sobressalto de lucidez:
"Inglês sujo!... Deveria ter desconfiado dele. You, a woman, disse ele, e se alegra por ver-me morrer, eu, uma mulher!"
Debateu-se com gestos veementes, numa explosão de pânico, e que a faziam afundar cada vez mais. Bruscamente teve a sensação de que um punho feroz agarrava-a por baixo e puxava-a para o fundo do abismo. Ela deu um impulso. c'om o pé para voltar à superfície, percebeu com horror que sua saia estava presa entre dois rochedos, e a água passava e tornava a passar sobre ela, fazendo-a balançar-se da esquerda pára a direita, presa na armadilha. Suas fontes latejavam a ponto de explodir.. E a cada vez que, com um impulso desesperado, tentava escapar, sentia.o choque, a parada brusca, a impossibilidade de safar-se, de voltar à superfície. O monstro legendário, oculto nas cavernas marinhas, segurava-a com suas garras, mantinha-a ao alcance de seu antro, enquanto ela, prisioneira, girava seb as águas glaucas, entre as algas que a enlaçavam.
Já não podia mais: Ia abrir a boca, aspirar, aspirar a morte.
Um choque brusco liberto"u-a. A saia se rasgava. Ela reencontrou a luz do-dia. Mas estava sem forças, pôde apenas respirar num hausto antes de desaparecer novamente.
A amarga saliva das ondas fazia-a rolar, esma'gava-a, devorava-a, esgotada, impotente.
"Não! Não! Não quero morrer!...", gritou dentro de si mesma, desesperada, "não quero morrer afogada... é horrível demais. Jof-frey, Joffrey, quero revê-ro... não quero ficar só, longe de você, no fundo das águas..."
Ademar não a vira em sonhos, naquela noite, vagando no fundo das águas, no fundo dos verdes abismos, com seus cabelos como algas... sozinha... sozinha... adormecida para sempre?
Um choque na fonte. Era como um prego introduzido com brutalidade. Uma pedra contra a qual se chocou, o que a fez despertar, lançando-a por um breve instante à superfície.
Visão ofuscante do sol, e sempre a mesma forma imóvel e tesa... que subitamente se animou, distendeu-se, mergulhou.
Miragem!...
Ela afundava, afundava, desaparecia para sempre.
CAPÍTULO V
A chegada à ilha dos Moicanos
Alguém puxava-a pelos cabelos para a praia. Angélica sentia o corpo, arrancado aos poucos à viscosidade do mar, adquirir o peso do chumbo e, ao ser arrastado, fazer um sulco profundo nos seixos miúdos da margem. Estava esfolada por todo lado, ensanguentada, inerte. Jack Merwin, igualmente esgotado, puxava-a como a uma barca, a um animal morto.
Só se deteve depois da última linha de sargaços, na orla das árvores, onde o mar não mais podia atingi-los. Então caiu, desmoronou junto dela. Na semi-inconsciência, ela ouviu-lhe a respiração sibilante como a de um fole.
Fora uma luta atroz, na qual ela se agarrara a ele convulsivamente, em que ele tivera que bater-lhe para aturdi-la, onde vinte vezes o mar os arrastara tão longe da costa, que lhes parecia não mais vê-la senão como uma sombra fantasmagórica, inacessível, e eles haviam acabado por abordá-la bastante afastados do ponto de partida.
Os pulmões de Angélica estavam em brasa. Em vão esforçava-se por respirar. A cada vez tinha a impressão de que o peito iria esfacelar-se.
Tentou erguer-se sobre os punhos e os joelhos, como um animal à morte que num último sobressalto busca colocar-se sobre as quatro patas. Tateando cegamente, agarrou-se ao homem junto dela. Sentiu uma náusea e vomitou incoercivelmente. A água salgada parecia corroer-lhe a garganta. Ela caiu de lado.
Jack Merwin pôs-se em pé. Vencido um momento pela fadiga, ele se recuperara. Arrancou o colete enlameado e jogou-o longe, depois tirou a camisa e torceu-a, e em seguida apertou o boné vermelho. Pô-lo novamente na cabeça e colocou a camisa enrolada ao pescoço.
Inclinando-se sobre Angélica, afagou-a com a mão pelo alto do braço, obrigando-a a pôr-sé de joelhos e depois em pé.
- Vamos! Caminhe! Go on!
Ele a empurrava, puxava, e.no timbre alterado de sua voz havia como que uma cólera contida, mas também uma perturbação... Ela conseguiu dar alguns passos, mas seus pés não podiam elevar-se do solo sem um esforço sobre-humano. A terra dançava, fugia. Ela caiu, o rosto contra a areia, que se grudava em suas faces.
"Joffrey! JoffreyL. 'Eles querem matar-me'. 'Eles' sempre quiseram matar-me."
Merwin tentou colocá-la novamente sobre as próprias pernas. Ela tornava a cair. Chorava e vomitava, e a garganta e as narinas doíam-lhe tanto que ela acreditava senti-las sangrar. Tiritava e batia os dentes e enxugava maquinalmente o rosto, soluçando. "Deixe-me... Deixe-me morrer... Aqui posso morrer... Mas não no mar... Morrer afagada, mo, é horrível demais!"
Jack Merwin pusera-se em marcha sem esperar por ela. Virou-se, exasperado por vê-la novamente no chão, e retrocedeu. Pareceu resignar-se e, decidindcPse pegou-a novamente e estendeu-a com o ventre para baixo, os braços esticados para a frente, a cabeça de lado.
Pegando a faca no cinto, cortou as costas do vestido da jovem, arrancando o tecido encharcado que se colava na carne gelada, e que já estava em farrapos devido ao atrito com os recifes. Despiu-a até a altura dos rins.
Em seguida, com ambas as mãos fez algumas pressões na parte baixa dos lados do corpo, e ela se sentiu imediatamente aliviada. A respiração, ajudada por esses movimentos ritmados, tornou-se mais profunda e menos irregular. Ela pôde aspirar um pouco de ar.
Em seguida ele se pôs a friccioná-la energicamente ao longo das costas. Pouco a pouco o sangue gelado voltou a circular nas veias de Angélica. O espasmo que contorcia suas entranhas se desfez. Seus nervos se distenderam, os dentes cessaram de bater descontroladamente, um suave calor invadiu-a e o pensamento se pôs a sobrenadar, fluido, errante, acalmado.
"Este homem é ruim como a peste... mas suas mãos são boas... sim, suas mãos são boas... Que bem-estar!... Que dádiva!... Ah! que dádiva estar viva!" . ..
A terra não dançava mais, voltava a ser sólida e macia sob seu corpo estendido.
"Se continuar assim, ele vai esfolar-me viva... Terá notado a marca da flor-de-lis?... Tenho medo... Seria isso grave? Ele também pode ser um bandido, condenado à forca... Se ele me traísse... Bah! é um inglês. Deve até ignorar o que significa a flor-de-lis..."
Sentindo-se recuperada, ergueu-se por si mesma e sentou-se.
— Thank you. I am sorry! - murmurou. - Obrigada. Sinto muito!
— Everything's right? - perguntou Merwin secamente. - Está tudo bem?
— I am pretty well, yes. Estou muito bem, sim.
Mas esperou demasiado de suas forças, pois novamente um véu negro correu diante de seus olhos. Então deixou cair a cabeça contra o ombro de Jack Merwin. Era um ombro duro como pedra, mas com uma curva macia e segura. Um ombro de homem.
- Estou bem - murmurou em francês.
Ela divagava. Consciente de sua nudez, tentou num gesto de pudor instintivo trazer ao peito os restos do corpete.
Merwin passou-lhe um braço nos ombros e a outra mão sob os joelhos, erguendo-a sem esforço. Angélica sonhou que voltava a ser criança. Nada mais podia atingi-la, e o rugido do mar se desvanecia enquanto ele a levava a passo largo para uma trilha entre as árvores. A caminhada foi curta, sem dúvida. Ela não teve consciência disso. Devia ter adormecido. Não fora um desmaio. Mas, antes, um breve e profundo sono, do qual despertou totalmente repousada, alguns minutos mais tarde. Achava-se sentada, apoiada ao tronco de uma árvore, a cabeça nos joelhos, e acima dela, a voz autoritária de Jack Merwin ordenava que a jovem Ester tirasse uma cie suas saias e a camisa para passá-lãs a Angélica. A jovem correu para uma moita e voltou pouco depois, estendendo as duas peças para Angélica, a qual, por sua vez, retirou-se para trás da moita.
A saia e a camisa haviam conservado o calor do corpo da ingle-sinha, e isso lhe fez bem. Ela enxaguou a cabeleira, pegajosa da água do mar e areia, numa fonte próxima que brotava no musgo, e retornou para junto dos companheiros. O bravo Elias Kemp-ton acendera uma pequena foqueira para aquecer Sammy, embrulhado na sobrecasaca do pastor. Todos >-a fitavam com olhos esbugalhados. Acreditavam que não a veriam mais.
— Coloque-se junto a Mister^Willoagby, Mrs. de Peyrac - insistiu o mascate. - Sim! vera, ele aquece.:.
— É preciso partir - interveio Méfwin. - Encontraremos socorro no outro lado da ilha.
Embrenharam-se uns atrás dos outros na catedral de pinheiros. A noite estava quente é seca, crepitando com faíscas. Mas seria a noite?... Um céu límpido de turquesa continuava a brilhar entre a ramagem.
- É a noite de São João - disse Ademar -, a noite em que o sol não morre, em que os fetos dão uma florzinha vermelha e mágica que dura apenas algumas horas. Parece que os que a vêem florir não voltam jamais. Saiamos rápido deste bosque... Está cheio de fetos por aqui, e a noite vai cair... Noite de São João...
Angélica caminhava como uma sonâmbula. Morria de sono e continuava com uma bola gelada no estômago. Merwin lançou-lhe um_ breve olhar por instantes.
— How are you feeling? Corno esta se sentindo?
— Quite welfi Perfeitamente bem! - respondeu ela. Porém creio que seria melhor se pudesse engolir um bom copo de rum ou algo quente.
Na volta do atalho, surgiu por fim a aldeia do lado oeste, completamente iluminada pelo sol poente, e o alarido das vozes dos pássaros e dos múltiplos chamados dos pescadores irrompeu junto com o odorpotente de peixe podre e de gordura derretida, que a tudo dominava.
Uma granja de ripas de madeira, a primeira à entrada da aldeia, elevava-se à esquerda.
Jack Merwin chamou da soleira, mas como ninguém respondesse, penetrou sem rodeios com todo o grupo em seu interior.
Utilizando-se do princípio da sacrossanta hospitalidade, regra nessas distantes colónias do Novo Mundo, e que autorizava toda pessoa faminta ou perdida a considerar como sua a moradia que a Providência colocava em seu caminho nesses locais ermos, ele foi direto ao guarda-louça de madeira, escolheu um prato fundo de faiança branca e azul e uma concha de estanho, caminhou para o fogão, e ergueu as tampas das panelas.
De uma delas tirou uma boa porção quente de mariscos, e de outra, três batatas cozidas; depois cobriu-os com leite, que permanecia quente num bõião, junto às cinzas.
- Coma - disse, pousando a escudela na mesa, diante de Angélica -, coma rápido.
E continuou a distribuir pratos de sopa a todos com destreza, como se jamais tivesse feito outra coisa a não ser servir a sopa dos pobres do Sr. Vicente.
CAPÍTULO VI
A sopa do Novo Mundo
No futuro, Angélica não esconderia nem de si mesma nem dos outros o que sentia, ôu seja, que jamais degustara algo mais deleitável, mais delicioso; mais reconfortante, que a sopa de mariscos que tomou na pobre granja de um colono da ilha Monégan, após quase ter morrido afogaáa.
Assim descobriu o prato nacional dessa região que se estende do cabo Cod até o alto do golfo Saint-Laurent, passando pelo fundo da baía Francesa e a volta da Nova Escócia: a chaudrée, para os franceses, canadenses e acadianps, the chowder para os ingleses, a nutritiva e divina sopa onde se casam as coisas boas da costa: a batata, fruto selvagem da America, o marisco salvador, fruto do mar fecundo e maternal, e o leite, delícia, sabor do Velho Mundo, lembrança de uma terra distante de capim abundante, luxo da nova terra, tão difícil de domar, e que olha com surpresa algumas vacas exiladas a pastar, bastante desamparadas, na orla da floresta índia...
Tudo isso está contido na tigela generosa de odor perfumado.
Acrescentar uma cebola sumarenta, uma pitada de pimenta ou de noz-moscada, alguns cubos de porco salgado e no último momento um pouco de manteiga por porção...
Em torno de uma caldeirada de mariscos, servida numa sopeira de prata., ou de ouro, por que não? é que deveriam ser feitos os tratados sobre essa parte do mundo... Todos ficariam bem...
CAPÍTULO VII
Festa de São João na ilha dos Moicanos
Comeram com avidez, e só se ouviam suspiros de satisfação e as línguas a estalar.
— Olá! ingleses, fiquem à vontade - disse uma voz francesa. Uma grande camponesa estava na soleira.
— Que é isso, meu Jesus?
— It's but a bear - grunhiu Kempton, lambendo as últimas gotas de sopa. - É apenas um urso.
— Estou vendo, seu malcriado! Mas é preciso que um urso se instale em minha própria casa? Será isto uma pocilga? Devo oferecer a ele também seu mingau em um de meus belos pratos, que minha mãe trouxe do Limousin há quarenta anos, sem que nenhum se tenha quebrado até hoje?
— É francesa, senhora? - perguntou Angélica na mesma língua. - Estaremos numa colónia acadiana?
— Pode ser que sim, pode ser que não, palavra! O que somos em Monégan, não poderia dizer-lhe... De minha parte, sou de Port-Royal, na península da Acádia, aonde cheguei aos cinco anos com o recrutamento do Sr. Pedro d Aulnay, há muito tempo. Mas, aos vinte anos, casei-me com nosso vizinho, um escocês, MacGregor, e instalei-me com ele em Monégan há bem uris trinta e cinco anos.
Jack Merwin interrogou-a èm inglês, perguntando-lhe se os índios haviam tentado atacar a ilha e se se agitavam na baía de Pe-nobscot. EJa sacudiu a cabeça negativamente. Respondeu-lhe em inglês, que falava corretamente, embora com forte acento francês.
Disse que os índios, moicanos, tarratines, mic-macs e etchemins do Penobscot, do Dariscotta mantinham-se tranquilos. Desta vez não desenterrariam o machado de guerra, pois o grande senhor francês de Gouldsboro conseguira dissuadir todos os brancos da baía, e particularmente o furioso Saint-Castine, de envolver-se nessa má campanha. Há não mais que uma serríâna, seu homem, o velho MacGregor, fora com os trçs filhos à ponta de Popham encontrar "o grande senhor de Gouldsboro", e junto com todos os brancos do lugar e os principais sagamores ribeirinhos haviam feito uma aliança, trocado promessas e fumado o cachimbo da paz. O senhor de Gouldsboro era forte e rico. Tinháuma frota e dinheiro a rodo. Prometera proteger de seus respectivos governos aqueles que tivessem aborrecimentos por lerem feito um acordo de paz. E era justo! As pessoas ali já estavam fartas de girar como um pião ao bel-prazer dosTeis da França e da Inglaterra, os quais bem que se poupavam de pôr os pés nas colónias.
Angélica corara de emoção ao ouvir o nome do marido, o Conde de Peyrac. Acossou -a boa mulher com perguntas, e assim soube que Joffrey, após ter deixado a embocadura doKennebec, voltara para Gouldsboro. Tinha pois bastante probabilidade de ali reencontrá-lo se chegassem no dia seguinte, o que era bem possível, se o mar continuasse clemente, apesar das marés de equinócio.
Ao descobrir que recebia em sua humilde choupana a própria esposa do "grande senhor de Gouldsboro", Mrs. MacGregor juntou as mãos, extasiada, fez uma profunda reverência como sua mãe lhe ensinara a executar diante dos nobres, e mostrou-se solícita, misturando o francês e o inglês conforme se dirigia a uns e outros.
Angélica contou-lhe seu infortúnio, o de quase ter-se afogado ao chegar à ilha. A acadiana não lhe ocultou que fatos semelhantes ali ocorriam quase todos os dias. Em cada família havia mais afogados que vivos. Assim eram as coisas!
— Vou dar-lhe boas roupas, senhora - concluiu sem qualquer emoção.
— Não teria um par de calças para meu salvador? Ainda está todo encharcado.
— Calças? Não, não tenho disso em casa, pobre dama! Meus homens só usam suas grandes saias xadrezes, suas tartãs, como eles a chamam. Um escocês só sabe andar com o traseiro ao vento, com todo o respeito. Mas na casa do vendedor da loja, Mr. Winslow, que é de Plymouth, nosso vizinho, estes senhores encontrarão tudo o de que precisam.
Enviou os homens e o urso à casa dos ingleses, ficando apenas com as mulheres e as crianças, incluindo-se o negrinho.
- Um verdadeiro diabrete cuspido do inferno, esse pirralho. Mas hoje é noite de São João, não é fato? Por isso os duendes e anões saem esta noite de todo lado... Vejam! Vejam! Como o céu ainda está claro... A meia-noite, os bascos acenderão fogueiras e dançarão.
Pois as pessoas eram alegres em Monégan, apesar dos tradicionais afogados. Aliás os bascos de Bayonne haviam arpoado na antevéspera uma baleia.
Após uma luta encarniçada de barcas lançadas no ar com um golpe de cauda e um morto, a presa fora conduzida à costa, sob a abóboda ruidosa dos pássaros saqueadores. Já cortada em pedaços brancos e rosados pelas facas dos carneadores, a baleia ainda sobrenadava entre o barco ancorado e uma pequena praia afastada, onde estavam instaladas três enormes caldeiras. Uma fortuna batia, ao sabor da ressaca, nos lados de Monégan, e eram escudos de ouro que os marinheiros manejavam em sonho com os blocos de gordura lançados em cubos nas panelas. Das enorme cavidades da cabeça do cetáceo, tiravam-se baldes de espermacete, essa substância oleosa e branca usada na fabricação de velas de luxo. As barbatanas entrariam na confecção de roupas, penachos, plumas, corpetes, aventais...
A língua, prato escolhido, seria salgada para ser servida à mesa dos príncipes, e o toucinho seria para os pobres o craspois da quaresma. Os ossos se transformariam em vigas, traves, muros...
Orgulhoso, o grande arpoador Hernâni dAstiguerra, também capitão do pequeno navio de cento e cinquenta toneladas, passeava no porto apoiado em seu arpão, como um índio com sua lança. Quando a primeira estrela tremulasse no firmamento e o contorno escuro das florestas se desenhasse no céu esverdeado, ele faria suspender o trabalho e acender grandes fogueiras por toda a margem. Pois era noite de São João, e era preciso dançar e pular as fogueiras.
Enquanto isso, Angélica negociava a compra de uma capa de pele de lobo-marinho com Mrs. MacGregor. A maciez aveludada da pelagem seduzira-a.
— Não tenho com que pagar4he no momento, mas, assim que chegar a Gouldsboro, farei que lhe dêenvoma bolsa de vinte escudos e um presentinho à suá escolha.
— Escute-me - disse a velhaacadiana -, estamos bem-providos e não seria o caso de causar tanto transtorno. Dizem que a senhora sabe curar. Se pudesse pôr em pé meu neto Alistair, eu estaria amplamente paga. Seria uma sorte para o pequeno.
Foram até a casa do jovem Alistair. Mrs. MacGregor tivera doze filhos. Os filhos e filhas sobreviventes, todos casados na ilha, ainda constituíam um clã importante. Para não haver problema com os santos nacionais das duas famílias franco^escocesas, as crianças haviam recebido alternadamente nome francês e nome escocês. Assim, um Leonardo precedia um Ogilvey e a um Alistair seguia-se uma gentil Janeton. Alguns dias antes acontecera uma curiosa aventura ao jovem Alistajr: ao correr pelos rochedos para escapar à maré, quis transpor uma falha comum salto. Um salto que não poderia falhar, pois havia abaixo sessenta pés de queda abrupta. Chegou ao outro lado por pouco, e desde então uma dor terrível impedia-o de pôr os pés no chão.
Angélica logo percebeu-que, ao crispar os artelhos para agarrar-se à rocha, ele deslocara os nervos principais da arcada plantar. Devolvê-los a seu lugar não deixou de provocar dor, mas, após uma hora de massagem, o garoto punha no piso um pé ainda tímido e incrédulo, já contente, porém, por não mais sofrer, chegando depois ao extremo de pretender dançar nessa noite a dança das espadas cruzadas. Angélica dissuadiu-o severamente. Era preciso ainda repousar, pois os ligamentos deviam consolidar-se. Pediu uma boa gordura de marmota, da qual toda dona-de-casa que se preza tem algumas panelas à mão, e após uma última massagem, deixou-o apoiado a uma bengala. Ao menos assistiria à festa... Um povo inteiro envolto em capas drapejadas com capuz, de quadrados vermelhos e verdes e verdes e negros - dois clãs, o dos MacGregor e o dos MacDaylines, cobertos com boinas azuis com pompons, haviam presenciado o milagre. A essa ramagem misturavam-se as sobrecasacas escuras dos comerciantes e colonos ingleses. Suas famílias descendiam dos primeiros habitantes de Plymouth na baía do cabo Cod. Eram os pais peregrinos, e a exemplo do velho Josué, que Angélica encontrara em Houssnock, todos tinham, apesar dos costumes rigorosos, uma alegria que desagradava sobremaneira ao Reverendo Patridge. Havia ainda duas famílias de pescadores irlandeses e uma de origem francesa, os Du-maret, que se vangloriavam de ter atingido o recorde de afogados. O que era inevitável! Nessa terra, em que uma criança, assim que anda sobre as próprias pernas, se lança às ondas, escarranchada numa prancha, como querem que isso não aconteça? Estão sempre navegando entre as ilhas, ali onde o mar é mais traidor, e um dia sobretudo já pelos catorze, quinze anos, idade que nada teme e não tem ainda suficiente experiência, eles se afogam, esses infatigáveis vagabundos dos estreitos.
Na família dos Dumaret, a avó sempre fora advertida da desgraça por presciência. De dia ou de noite, viam-na levantar-se e se pôr a dobrar e arrumar as roupas do menino que estava no mar. "Acaba de se afogar", dizia.
Contaram todo tipo de histórias a Angélica, enquanto a faziam visitar a aldeia e as granjas. Sua visita honrava bastante aos ilhéus, e a cura do jovem Alistair completava a lenda. Marujos de Diep-pe, vindos em duas barcas para abastecer-se de água doce, misturavam-se nessa noite à população. Por todo lado brotava uma linguagem estranha, misto de dialetos índios, de um pouco de francês de Saint-Malo, de uma ponta de inglês. Alguns mic-macs pacíficos, aparentados com os habitantes da ilha, começavam a sair da floresta, depunham peles e caça na soleira das portas e instalavam-se acocorados na parte alta, curiosos por assistir à festa dos brancos. Eram na maior parte muito altos, quase gigantes, com faces quadradas e acobreadas.
Perto das dez horas, Angélica decidiu que sacrificara o suficiente às ocupações mundanas e que precisava dormir um pouco, enquanto aguardava a festa.
Ela se aquecera na casa de Mrs. McGregor. O ar incandescente da noite secara-lhe a pesada cabeleira, mas a fadiga esmagava-a.
Envolvendo-se em seu belo manto de pele de lobo-marinho, foi sentar-se, afastada, apoiando-se nas raízes de um grande carvalho.
No outro dia estaria em Gouldsboro. Tomara Deus que o mar estivesse clemente!
Abaixo dela, a animação crescia em volta das casas, na praia, onde se empilhavam feixes de /amos.
Trouxeram barricas, copos, dispuseram escudelas em mesas sobre cavaletes. A noite avançava, mas as grandes fogueiras de São João só seriam acesas na última hora, à meia-noite.
Crianças passaram aos gritos'e de mãos dadas, arrastando consigo Timóteo, o negrinho, Abbal, ó grumete, e Samuel Corwin.
Monégan, a eterna, Monégan, a mãe de todos os povos marítimos, vivia mais uma noite mágica, e ouvia-se bater seu coração junto com os golpes surdos das vagas contra as falésias e as primeiras batidas dos tambores bascos, repetindo uma dança para os lados de seu acampamento.
Nesse estreito fiorde, impelidas pela bruma, lá pelo ano 1000, barcas com dragões-na proa se haviam introduzido no passado, descobrindo, como nesse dia, as. colinas de granito cobertas de flores. E desde então, na pedra cinza, caracteres misteriosos conservavam a lembrança d£§sa passagem dos vikings: os normandos de barba e cabelos louros. Depois deles viera John Cabot.
Verrazãno, o florentino, pela França, o espanhol Gomez, o inglês Rut, um padre francês, André Théot, Sir Humphrey Gilbert, Gosnold, Champlain e George Weymouth e John Smith, que em 1614 recebera a missão "de explorar a América do Norte com vistas ao ouro e às baleias".
A história era longa, movimentada, multicolorida. Essa saga agitada evolava-se da ilha dos Moicanos. Respirava através desses gritos diversos, eco gaélico das vozes irlandesas e escocesas, desses odores fortes, dessas imprecações em todas as línguas, e desses risos de homens, mulheres e crianças, dessas roupas de todos os lugares: mantas"escoeesas, boinas bascas vermelhas, chapéus negros dos calvinistas e lenços de cetim de alguns bucaneiros de Barbados, e os bonés de lã de todas as cores de marinheiros do mundo inteiro.
Os grilos ocultos no capim conduziam sua aguda sarabanda.
E no horizonte cor de açafrão, lá onde a noite enfim se reunia, espuma escura do firmamento esverdeado, velas continuavam a passar.
E súbito não havia mais nada: o mar ficou deserto, a praia ficou vazia. Angélica estava sozinha diante do mar e da praia abandonada. Por que hoje tanto Bar Harbor, por que agora tantos "portos vazios"?... Por todo lado, na costa denteada até o infinito, Bar Harbor, Bar Harbor, como um dobre de sino... O deserto... As baleias se foram, os cardumes de bacalhau, de sardinha, grandes escudos prateados no mar se foram, os pássaros em nuvens imensas se foram, ê as focas com a toga dos mínimos, e os lobos-marinhos brancos,', os cachalotes azuis, a orca feroz, o terno delfim...
Mas não é apenas isso que oprime... Um desalento se apodera do ser, uma nostalgia infinita, dolorosa, domina a alma... Um desespero surdo das enseadas desertadas...
Um excesso de lembranças, de lutas, de massacres, de afogados, de cobiça, de paixões, de almas errantes, inimigas, desoladas, esquecidas, reunidas, chorando, lamentando-se na bruma, no vento, na espuma das vagas, levadas pelas marés gigantes e terríveis que se precipitam no seio da terra com silvos e soluços.
Tantas praias desertas!...
Neblinas brilhantes, finas e pesadas, derramando-se sobre as florestas de cedros, sobre os espinhos verdes dos pinheiros, sobre a folha envernizada do bordo ou da faia vermelha, derramando-se sobre os campos de tremoços-selvagens e de rododendros, sobre os lilases junto a uma casa em ruínas, sobre as rosas de um jardim esquecido.
País de fantasmas.
Franceses, ingleses, holandeses, suecos, finlandeses, espanhóis, bretões, normandos, escoceses, irlandeses, piratas camponeses, pescadores, bacalhoeiros, baleeiros, andarilhos, puritanos, papistas, jesuítas, e recoletos, etchemins, tarratines, mic-macs, malecitas, onde estão? Onde estão, fantasmas da Acádia, terra de cem nomes, reino das enseadas e das penínsulas, dos refúgios cheios de vegetação, onde passa uma vela...?
O cheiro dos bosques e das algas, o cheiro do índio, dos escal-pos, dos incêndios, das margens, eflúvios vindos do mar e da terra, que incensam e entorpecem, e sobre tudo isso um olhar impávido e frio que os olha morrer...
E um grito que rompe o silêncio, um urro estridente e insólito, que arranca Angélica do sono e do pesadelo e a faz erguer-se, com o coração batendo, ao pé da árvore onde acaba de adormecer.
- Que será isso? Estarão degolando um porco?
Não, eram apenas as gaitas efe' fole dos escoceses na praia.
A alguns passos de onde estava, Angélica;avistou Jack Merwin sentado, o rosto voltado para a praia, onde acabavam de acender grandes fogueiras. Os escoceses, dançavam em torno das espadas cruzadas ou exercitavam-se. numa luta corpo a corpo com o urso negro.
- Tive um sonho - disse Angélica a meia voz. - De tanto bater-se em luta fratricida, os homens haviam tornado estes sítios desertos e esquecidos.
E deu-se conta de que falara em francês.
As costas de Jack Merwin estavam tão imóveis como a rocha. Repousava com os braços-nos joelhos e as mãos pendidas. Pela primeira vez ela notou que, apesar das calosidades, eram mãos longas e nobres. .
A inquietação que amiúde sentira ao observá-lo retornou com mais força, junto com a_xecordação de sua atitude bizarra, ao recusar-se a estender-lhe a mão, enquanto a olhava morrer com seus olhos frios e impávidos.
Que ocorrera ao inglês para deixá-la afundar e debater-se atrozmente, para em seguida mergulhar, quase tarde demais, e salvá-la no último momento, ao preço' de esforços sobre-humanos? Ele era de fato estranho. Talvez louco, afinal!...
- Mostre-me sua mão, Jack Merwin - disse bruscamente. - Quero ler seu destino.
Mas ele lançou-lhe um olhar furioso e apertou fortemente as mãos, deixando claro que as guardava para si.
Súbito, Angélica riu. Decididamente, não estava ainda desperta o suficiente para ousar mostrar-se coquete e provocante com um ser tão misógino e hostil. O coração da jovem era como um barco de velas infladas, prestes a lançar-.se rumo ao horizonte, e toda aquela confusão, até o ritornelo estridente das -gaitas de fole, a encantava.
- É tão maravilhoso estar viva, Merwin, estou feliz... Você me salvou.
Ele se encolheu, as mãos ferozmente comprimidas. De qualquer modo, ao ouvi-la monologar, ele a tomava por louca.
Ela riu novamente, inebriada pela noite de junho, enfeitiçada por sua longa estridência.
Dominando as gaitas de fole, irrompia o canto dos pífaros e dos tambores.
Angélica saltitou.
- Miss Pidgeon, Mrs. McGregor, Mrs. Winslow e vocês, Dorothy, Janeton, venham, venham... vamos dançar a farândola com os bascos.
Tomou-as pela mão e conduziu-as correndo ao longo da encosta.
Os bascos avançavam uns atrás dos outros nas pontas dos pés descalços com viravoltas e batendo os pés no ar, dançarinos prodigiosos cheios de graça e vivacidade. A luz das fogueiras fazia brilhar suas boinas vermelhas como papoulas.
Um longo e flexível diabo girava à frente deles, com os braços erguidos, fazendo ressoar um tamboril guarnecido com peças de cobre, no qual batia com dedos ágeis.
Quando Angélica e as companheiras surgiram no círculo de claridade, eles lançaram um brado cordial, e deram-lhes lugar entre eles.
— Por São Patrício! - exclamou o irlandês Porsons -, essa dia-binha faz nossas mulheres dançarem!
— Contam coisas sobre ela - disse o inglês Winslow. - Parece que é uma diaba.
— Uma diaba! - gargalhou o velho MacGregor. - Cale-se, você não sabe de nada! É uma fada. Encontrei-a nos pântanos da Escócia em criança. Reconheci-a imediatamente. Deixe disso, vizinho. É a noite da loucura. Só de ouvir as flautas bascas, formigam-me as pontas dos pés. Venha dançar também, vizinho. É a noite da loucura.
A farândola prosseguia seu curso sinuoso e dançante entre as fogueiras, as casas, os rochedos, as árvores.
Toda mulher, velha ou jovem, avó, mãe, menina ou garotinha, deve dançar na noite de São João. O grande capitão e arpoador Hernâni dAstiguerra estendera a mão a Angélica e, ao conduzi-la, não tirava dela os olhos. Logo percebeu que ela conhecia a maior parte dos passos tradicionais da farândola basca, e, ao retornarem à praia, ele se precipitou, levando-a vivamente para o meio do círculo. Então, submetendo-se à música envolvente, ela dançou com ele, multiplicando as figuras complicadas, saltitantes e graciosas do folclore basco.
Em Toulouse, na Aquitânia, Angélica executara outrora a maior parte dessas figuras. Preferiam-nas nos castelos às danças da corte, demasiado pomposas, e por várias vezes Jqffrey de Peyrac levara sua jovem mulher ao País Basco, nos Pireneús, para assistir às grandes festas populares, nas quais, mesmo suserana, ela se misturara alegremente às diversões de seíus vassalos.
Todas essas recordações ressuscitavam uma após a outra, com essa música endiabrada.
A saia curta da jovem Ester facilitava-lhe' os passos vivos, em que a perna era jogada para o alto. Ela ria, levada pelo irresistível basco, enquanto seus pés ligeiros não mais tocavam o chão, e a cabeleira clara girava, ora jogada para trás como uma auriflama, ora batendo-íhe nas faces,-e envolvendo-lhe o rosto com sua trama sedosa.
Ele lhe falava em -basco ou em francês, quando as evoluções da dança aproximavam-na dele, e seu braço de ferro estreitava-a com uma pressão cada vez mais possessiva.
— Umâ fada saiu do mar para a noite de São João - disse. - Monégan e uma ilha feliz. Tudo isso é magia, senhora. Como pode conhecer nossas danças?
— Porque me chamo Condessa de-Peyrac de Morens d'Irristru.
— Irristru?... Um nome de nossa terra.
— Aí está.
— Então é da Aquitânia?
— Sim, mas por casamento.
— Por que seu esposo a deixa correr assim sozinha os confins do mundo?
— Ele não está longe. Tenha cautela, senhor.
— Senhora - disse-lhe em basco -, tem a mais bela cintura, a mais bem-conformada que já tive nas mãos, e seus olhos me embriagam... Conhece a giga das colheitas? - continuou em francês.
— Penso que sim.
— Então, vamos a ela.
Arrastou-a loucamente, e ela girou num turbilhão até a vertigem; o céu, de um azul escuro, tremia entre as chamas ru
bras das fogueiras, faces alegres saltavam em torno como bolas.
- Não posso mais - gritou ela -, minha cabeça está girando.
Ele sustou o próprio arrebatamento, não sem antes fazê-la girar várias vezes, erguendo-a do chão com as duas mãos.
Irromperam aplausos.
Sem fôlego, Angélica-ria enquanto lhe estendiam a bolsa de pele de cabra. Devia-se beber à farta, conduzindo o vinho num jorro ao fundo da garganta. Outros aplausos saudaram a nova façanha.
Um pouco acima na costa, o Reverendo Patridge, que reprovava esses divertimentos, e o marinheiro Jack Merwin, que não estava de bom humor para deles participar, ambos apoiados ao tronco de uma árvore, contemplavam a cena com o mesmo olhar sombrio e reprovador.
Angélica avistou-os e se pôs a rir sem parar. Eram deveras cómicos, aqueles dois.
Sua risada alegre provocou a hilaridade dos outros, e todo mundo se pôs novamente a dançar, os adultos aos pares, as crianças em roda, as gaitas de fole sustentando os tambores, a bourrée do Li-mousin cruzando com a giga escocesa e o branle da Cornualha, enquanto as pessoas menos agéis ou mais cansadas sustentavam o ritmo batendo as mãos cadenciadamente.
Por vezes detinham-se junto às mesas, para emborcar uma caneca de cerveja, uma pinta de vinho. Os navios no porto haviam usado suas reservas de festa: vinhos espanhóis das Caraíbas, vinhos da França, e também um vinho rascante e perfumado, obtido das vinhas selvagens da ilha Matinicus. Misturavam-se um pouco, e os sóis de todos os continentes, no fundo dos copos, produziam um bendito calor no estômago e um golpe nas panturrilhas, com o objetivo de enfraquecê-las perigosamente.
Sentadas junto às mesas, duas velhas da região, uma delas a avó Dumaret, que via os afogados em sonhos, abriam mariscos e ostras sem cessar, com uma faca ágil.
O Sr. d'Astiguerra lembrou a Angélica o modo correto de saborear as lubincas, prato favorito .dos bearneses e dos bascos.
Ele tivera o cuidado de não deixar Bayonne sem trazer longas fieiras dessas pequenas salsichas bastante apimentadas. Passavam-nas no fogo, engoliam uma queimando a boca e por cima tragavam uma ostra crua.
Cúmulo da volúpia gustativa! Uma salsicha fervendo, uma ostra fresca. Um pouco de dança, um gole de vinho. E mais uma dessas diabólicas salsichas, apimentada a ponto de arrancar lágrimas, a ostra verde e gelada, bari-hando-se çrri sua água marinha, bebida em sua concha de nácar. A dança, os risos, as mãos batendo em cadência, o vinho ambáriíio de. sabor forte e cantante como o som dos pífaros...
Há aqueles que se sentam, que desabam... que começam a rir sem poder parar. Há aqueles que não se sentem muito bem e estão um pouco aturdidos, mas ninguém lhes presta atenção.
Lá no alto, junto às casas na orla das árvores, os mic-macs e moicanos, quase tão sérios como o Reverendo Patridge, observavam os divertimentos dos brancos. Pensavam não haver vantagem em beber um vinho que.não embriaga o bastante. Só a aguardente é divina e mágica. Quando a'obtivessem em grande quantidade junto aos navios, trocando-a por peles com os marinheiros, organizariam uma tremenda bebedeira- no fundo dõs bosques, e ficariam loucos, e se encontrariam com o Espírito dos Sonhos... Não se contentariam em rir e dançar estupidamente como os brancos... e em só comer alguns mariscos...
A meia-noite, o primeiro saltador brotou das chamas como um diabo negro.
E eia! Um após outro, os bascos de pernas de ferro saltavam, atravessavam os braseiros, as pernas esticadas, os braços erguidos, a cada pulo eram saudados com um grito de medo e de admiração dos espectadores.
— Durante um ano inteiro, o Diabo nada pode contra aquele que atravessa a fogueira de São João,- disse Hernâni dAstiguerra.
— Então eu .também quero saltar - exclamou Angélica.
— As mulheres não podem saltar - protestou um basco, chocado em seu espírito tradicional.
— Quer então abandonar as mulheres ao Diabo? - gritou Angélica, puxando-lhe a boina sobre o nariz.
Admitia estar um pouco desatinada e um pouco embriagada. Mas essa ocasião talvez jamais se repetisse, e ela sempre sonhara com ela.
— Ela pode! - disse Hernâni com força, cobrindo-a com um olhar ardente. - Mas seus cabelos, senhora... É preciso cuidado - acrescentou, pousando a mão num gesto carinhoso na cabeça de Angélica, gesto do qual ela não teve consciência na febre embriagada do momento.
— Nada tema! Sou filha de Sagitário, signo do Fogo, coorte dos Violentos e legião das Salamandras, que atravessam impunemente todas as chamas. Eu devo saltar! Sr. d'Astiguerra, sua mão!
Ele a conduziu a alguns passos da fogueira crepitante, e se fez um profundo silêncio. Angélica lançou fora os sapatos que emprestara de Mrs. MacGregor. Sentia a areia fria sob os pés descalços. Diante dela subia com um ronco a chama alta e dourada.
Angélica, alimentada com as lubincas quentes, com o vinho ardente e o sal do mar, sentia também não ser mais que uma chama prestes a estalar e a saltar.
Hernâni estendeu-lhe uma pequena garrafa achatada. Ela aspirou, reconheceu o perfume.
- Armanhaque de uva "piquepoult"!... Mil vezes obrigada, senhor!
Bebeu um grande gole.
Todos os olhares estavam fixos nela. Não se recordavam muito bem de seu nome, mas o que havia sido dito sobre ela flutuava vagamente nas memórias enevoadas.
Descalça e prestes a se lançar, ela lhes surgia como a encarnação de uma deusa, não de todo terrena, e que no entanto os dominava com sua tranquila independência de criatura segura de si.
Viam que não era frágil sua fina cintura, que seus ombros harmoniosos, apesar de graciosos, haviam suportado uma vida já longa em experiência e lutas, e adivinhavam, ao ver a luz de seus olhos, que esse desafio às chamas era como um selo que ela desejava pôr sobre tantos outros braseiros atravessados.
Angélica, por seu turno, não pensava em nada, absorta pela prova difícil e atraente.
Lançar-se na fogueira fora, de início, um desejo de todo o seu corpo enervado pela noite quente, de seu corpo vivo que quase morrera nesse mesmo dia, e agora, na convulsão das chamas, ela via como que uma face esplêndida e terrível, que parecia chamá-la, o espírito místico da noite de São João, súcubo deslumbrante de cabelos alternadamente escuros e rubros, a Diaba!...
O tamboril vibrava. Hernâni d'Astiguerra, apanhando a mão de Angélica, fê-la correr cada vez^ mais rápido...
A muralha de ouro se elevou.
O punho do basco ergueu a jovem no ar, e ela se lançou, sentiu o hálito do braseiro, atravessou seu fluido e incandescente drapeado, a chama que queria mordê-la, -o turbilhão rutilante que queria envolvê-la e prendê-la; e fugiu, caindo do outro lado no frescor da noite, onde outro basco a aguardava para levá-la ainda mais longe, fora de perigo.
Dois outros precipitaram-se para apagar com as palmas as bordas chamuscadas da saia.
Havia um leve odor de cabelos queimados. Angélica sacudiu a cabeleira.
— Não é nada! Consegui passar! Bendito Deus, obrigada!
— A senhora me deixa doente! - gritou Ademar, chorando para valer. - Que nos aconteceria se tivesse caído na fogueira?... Não lhe basta a água para a morte, quer ainda o fogo?...
Ele estava, aliás, absolutamente bêbado.
A música recomeçou, um pouco trôpega e embaralhada.
O grande Hernâni passou o braço de arpoador pela cintura de Angélica e puxou-a de lado.
Seus olhos negros brilhavam cõtno carbúnculos. Falava em basco, num tom insistente.
- Você significa para mim um encontro inesquecível. Deixou minha alma radiante. Terminaremos a noite juntos, não é mesmo?
Angélica desprendeu-se para olhá-lo melhor, e seu espanto não era causado pelas palavras ousadas que ele lhe dirigia, mas porque, pronunciadas em basco, deveriam, em princípio, ter-lhe permanecido obscuras.
— Que extraordinário! - exclamou. - Parece que entendo o basco!... Eu, compreender o basco! Essa algaravia hermética que não pode aprender quem não nasceu à beira do SouleL. Seu ar-manhaque continha algum filtro mágico;' Sr. dAstiguerra?
— Não... Mas... Não dizem que você fala certos dialetos índios da Acádia?
— Falo, com efeito, a língua abetiaki da região do Kennebec.
- Aí está a explicação do mistério. Nossa língua é aparentada com a dos índios. Suponho que, de origem asiática, nossas raças deram a volta ao mundo em sentido inverso, eles chegando até aqui e nós, a Bayonne. Quando no passado meus avós vieram caçar baleias nestas paragens, não tiveram dificuldade alguma em se entender com os selvagens, e amiúde, sem nada ter aprendido, pudemos servir de intérpretes entre eles e os missionários.
Ele fez novamente ,um movimento para atraí-la para si.
- Então, se compreendeu minhas audaciosas palavras, minha cara... qual é a resposta?
Ela pousou-lhe dois dedos na boca.
- Psiu, senhor! Na noite de São João dizem-se muitos disparates, mas não se deve cometê-los. Pertencem ao domínio da magia, não do corpo.
Parecia chegado o momento de as mulheres honestas se retirarem.
Angélica, com Miss Pidgeon pendurada num braço, e rebocando com o outro Mrs. MacGregor, que por sua vez sustentava uma das filhas, a qual arrastava a filhinha e um bando inteiro de crianças, subiu, não sem dificuldade, a encosta, para o que lhes parecia indistintamente ser, lá adiante, as moradias.
Seus passos em falso faziam-nas morrer de rir, até as lágrimas.
Sombrio justiceiro, o Reverendo Patridge ergueu-se para acolhê-las. Começou a estrondear:
— Condeno seu atual proceder, Miss Elisabeth Pidgeon. Você, tão piedosa...
— Ah! Deixe a pobre criatura - atalhou Angélica, com uma voz que saiu, a contragosto, um pouco rouca. - Ademais, já teve sua cota de horrores e de sofrimento em duas semanas! Tem todo o direito de divertir-se um pouco, agora que estamos fora de perigo!
Fazendo com que Miss Pidgeon, que ria como uma louquinha, desse algumas voltas, recomeçou a dançar.
— Levá-la-ei a Gouldsboro, darling, e lá você estará protegida... Podemos repousar sob seu teto, Mrs. MacGregor?
— Sim, minhas belas - cantarolou Mrs. MacGregor, completamente alegre com a bebida -, minha casa é sua casa.
Estenderam-se para dormir em colchões de sargaços, colocados no chão, na sala comum. Mal haviam encontrado uma posição confortável e propícia ao sono, marinheiros vieram bater nas janelas aos brados, reclamando as mulheres.
Mas o velho MacGregor irrompeu na soleira, camisa ao vento e mosquete na mão, gritando que furaria como uma peneira a quem ousasse perturbar o repouso das rmulheres.
Após o quê, tudo ficou calmo. Ê já chegava a aurora.
Assim terminou a louca noite' de São João na ilha Monégan, a noite mais curta do ano, a noite pagã do solstício de verão, em que se acendem fogueiras nas colinas e nas praias, em que os fetos florescem na parte baixa dos bosques, em que o velho Sha-pleigh caminha pelas florestas do Novo Mundo para colher a verbena-selvagem... lágrimas de Juno... sangue de Mercúrio... alegria dos simples.!.
CAPÍTULO VIII
A traição do enigmático marujo inglês
Era o terceiro dia de viagem. Dia que se seguia a uma festa...
Uma bruma prestes a fundir-se em chuva pairava sobre a ilha, arrastando os miasmas de fogueiras apagadas e de peixes mortos. Só as gaivotas, cormorões e pegas do mar haviam retomado sua ronda ativa e seus gritos cie comadres. "Cada um por sua vez!" pareciam protestar com raiva.
Enquanto Angélica descia para o porto, escoltada por Ademar e pelo pequeno Samuel, a filha de Mrs. McGregor alcançou-a, correndo, com suas duas filhinhas de oito e doze anos atrás.
- Levem-nas, por favor - disse sem fôlego -, levem-nas a Gouldsboro! Parece que ali existe uma escola. Ensinar-lhes-ão um bom francês, como o de minha avó, e suas preces. Já faz três anos que não temos um pastor aqui... Quanto a saber as primeiras letras, pobrezinhas!, aprenderiam antes todas as blasfémias da terra.
Ladeada por Dorothy e Janeton, Angélica sentia certo constrangimento em apresentar-se no embarcadouro.
- Pagar-lhe-ei a passagem das pequenas quando estivermos em Gouldsboro - disse a Jack Merwin.
Ele desviou o rosto com a expressão desgostosa de um homem cujo barco é decididamente tomado por um depósito.
Bocejando e com passo inseguro, os passageiros do White Bird retomavam seus lugares habituais.
No último momento, o Capitão Hernâni surgiu na neblina, tão desperto como na véspera, e pousou no colo de Angélica um presente bastante pesado.
- Para seus amigos de Gouldsboro - sussurrou. - Sei que são de Charentes. Eles o apreciarão..
Era um pequeno tonel de carvalho branco contendo o mais puro armanhaque. Um tesouro sem-preço!
Como Merwin afastasse com uni golpe de croque ultrajado o esquife da margem, Angélica mal pôde agradecer ao amável capitão!
- Vá ver-nos em Gouldsboro - gritou-lhe.
Viram-no permanecer em pé, mandando-lhe beijos, até que a luz vermelha de sua grande boina se apagasse na bruma.
Habituados aos caprichos do dono da_ barca, os passageiros haviam embarcado assim que ele-o ordenara.
Se fossem refletir, perceberiam que era loucura fazer-se ao mar com semelhante nevoeiro.
Felizmente ninguém-estava em perfeitas condições de refletir. O fato de não terem dormido também entorpecia os espíritos. De sua parte, Angélica felicitava-se pela partida apressada. A noite estariam em Gouldsboro nada poderia alterar seu humor alegre, nem o tempo maçante, nem o mar sombrio, nem a fronte ainda mais atormentada do Reverendo Patridge, que se mostrava aborrecido com Miss Pidgeon, a qual o olhava com uma expressão de ovelha arrependida, nem o.sembrante mais que nunca hostil e glacial de Jack Merwin.
Ela achava as duas pequenas escocesas adoráveis, com suas carinhas redondas emergindo das grandes capas de quadrados vermelhos e verdes, com as quais se agasalhavam da cabeça aos pés. Cada uma carregava com cuidado sua pequena bagagem, um grande lenço com um nó em torno de algumas roupas, e a mais jovem apertava contra si uma singela boneca índia feita de barba de milho, com as faces tingidas "com suco de framboesa e cabelos de capim seco.
Angélica pensou em Honorina e na graça da infância que ilumina a vida.
Houve apenas um incidente nesse dia de navegação.
Foram abordados por uma barca de acadianos da península, à caça de ingleses.
Como a neblina aumentasse, Merwin fez o grumete tocar a buzina em advertência. O rapaz, com as faces estufadas, se esfalfava na enorme concha, quando se discerniu o perfil de uma gorda chalupa de pesca derivando na direção deles. Parecia não ter ninguém a bordo. Mas ao aproximar-se, um grito assustador dela brotou, o grito de guerra dos peles-vermelhas. Enquanto eles permaneciam petrificados, o cano de uma longa pistola surgiu sobre o rebordo da chalupa e a voz de um homem invisível chamou-os em francês.
— Pelo Santo Sacramento, vocês são ingleses?
— Franceses! Franceses! - apressaram-se a gritar Angélica e Ademar.
A chalupa abordou o White Bird. Ganchos foram lançados imobilizando-o.
Um rosto jovem, imberbe e dourado, emoldurado por longas tranças negras sob um chapéu de feltro com plumas de águia, surgiu bruscamente, e dois magníficos olhos negros inspecionaram vivamente os passageiros do barco.
- Ei! Parece que estou vendo muitos ingleses por aí.
Ele se ergueu em toda a sua altura.
Uma cruz de prata e medalhas tilintavam sobre o colete de pele de búfalo acamurçada e franjada à moda índia.
Trazia no cinto uma faca e uma machadinha, mas empunhava uma pistola com coronha de nácar. Atrás dele, marujos mostravam faces patibulares de náufragos, misturados com três ou quatro mic-macs com bonés negros pontudos, ornados com pérolas.
O jovem chefe examinou Angélica com um olhar suspicaz e suas pálpebras se estreitaram.
- Está bem certa de ser francesa e não inglesa?
.- E você - retorquiu ela -, está bem certo de ser francês e não índio?
— Eu - exclamou ele, indignado -, mas sou Humberto d'Arpentigny, do cabo Sable. Todo mundo me conhece na Acadia e na baía Francesa!
— E eu, rapaz, sou a Condessa de Peyrac, e creio que todo mundo conhece na Acadia e na baía Francesa o nobre, meu esposo!
Sem se desconcertar, Humberto d'Arpentigny saltou para o barco de Jack Merwin. Se ele possuía do lado materno um grande sagamore das florestas como avô, em contrapartida, seu avô paterno, que fora escudeiro do Rei Luís XIII, ensinara-lhe os costumes da corte da França, e ele beijou a mão de Angélica com elegância.
— Reconheço-a por sua fama senhora: bela e ousada! Longe de mim a ideia de causar-lhe qualquer, dano. Mas me parece que a senhora tem como companheiros um pUhhado de ingleses que me seriam providenciais como,reféns para venda.
— Eles me pertencem, e devo precisamente conduzi-los até meu marido, o Conde de Peyrac.
O jovem d'Arpentigny deu um profundo suspiro.
— E... não haverá algumas provisões, mercadorias nesta chalupa? O inverno foi duro em nossa senhoria e esperamos em vão por um navio de nossa companhia que viria de Bordeaux para abastecer-nos.Se naufragou ou se os piratas dele se apoderaram, ficaremos completamente~despojados de víveres.
— E assim, você pr,5cura praticar pirataria com os outros - disse Angélica, buscando" dissimular o melhor possível atrás das saias o tonel de armanhaque oferecido por Hernâni d'Astiguerra. - Estou desolada, porém nada encontrará aqui.-Somos pobres como Jó.
— Deveras?... Olá! patrão yenngli, saia um pouco daí, para que olhe seu cofre!
Num gesto imperativo com o cano-da pistola, fez sinal para que Merwin se afastasse. Seus companheiros mantinham a barca contra a chalupa, trocavam pilhérias em língua índia, lançando olhadas à jovem Ester, examinando furtivamente Angélica e troçando a plenos pulmões do pastor herético.
Angélica perguntava-se como aquilo tudo iria terminar, quando viu o jovem d'Arpentigny voltar com um salto à própria embarcação e depois acenar-lhe respeitosamente com o chapéu em gestos largos, acompanhados por sorrisos até as orelhas.
— Vá!, navegue, senhora, está livre com seus reféns. Que Deus os proteja!
— Mil vezes obrigada, senhor. Vá a Gouldsboro se se encontrar em dificuldades antes da colheita.
— Não faltarei. O Sr. de Peyrac sempre foi generoso para co-nosco. E quanto à senhora, é tão bela como contam-na baía Francesa. Meu dia não foi perdido...
— Que jovem louco! - disse Angélica, encolhendo os ombros.
Voltaram a ficar sozinhos, balançando na bruma.
E, aos resmungos, Jack Merwin içou novamente as velas e tentou localizar-se. O mascate enxugava a fronte. Se os acadianos houvessem levado seu pobre fardo, ele estaria arruinado.
— Obrigado, milady. Sem a senhora...
— Não precisa me agradecer. Nada tenho a ver com isso. Angélica tinha com efeito a impressão de que a súbita meia-
volta do jovem nobre saqueador não se devia unicamente a sua presença. Seria por ter descoberto Mister Willoagby sob a falsa ponte? Certamente não. Um Humberto d Arpentigny não devia se deixar impressionar por um urso, cativo ou não!
Ela se surpreendeu a olhar em torno, e até para o alto. Teriam aqueles franceses da Acádia, que viviam tanto na água como nas florestas, distinguido sinais de tempestade invisíveis a outros olhos, que os levassem a fugir rapidamente?
Ela já acreditava ver o mar mais revolto. Aparentemente, Jack Merwin retardava o curso. Sem dúvida hesitava em tocar novamente a buzina, para não atrair outros piratas dessas pobres paragens. Também se colocou contra o vento, ziguezagueando através da neblina, com toda a atenção voltada para prever os obstáculos.
Angélica fitou-o com ansiedade.
-Estaremos em Gouldsboro esta noite? - perguntou.
Ele aparentou não a ter ouvido.
Felizmente a neblina se dissipava. Tomou a transparência de uma porcelana, pareceu esgazear-se, e súbito o horizonte descobriu-se como um esmalte brilhante, de cores cintilantes. O sol ainda estava alto no céu, o mar continuava escavado por profundas vagas azul-escuras com cristas brancas, mas a linha da costa já se mostrava visível e em seu perfil verdejante algo havia que lembrava irresistivelmente as paisagens de Gouldsboro.
O coração de Angélica deu um salto.
Ela só podia pensar no encontro próximo e olhava, voltada para a distância, sem ouvir as palavras de satisfação de seus companheiros, que previam, eles também, o fim da viagem.
"Joffrey, querido amor!"
Um tempo interminável se escoara desde que uma corrente inesperada os separara um do outro.
Além dos difíceis acontecimentos, que desde então haviam surgido em seu caminho, ela temia um obstáculo de ordem imaterial, algo que não se pode combater, como a má sorte. Só estaria plenamente tranquila junto dele/podendo tocá-lo, ouvir sua voz. Então tudo se apagaria. Ela conhecia tão'bem o olhar que ele tinha para ela, no qual lia queera bela, e para ele a única, aquele olhar que a encerrava no"círculo encantado de seu amor. Ele possuía no mais alto grau o dom dó isolamento e da separação, apanágio dos homens, quando os invade, a alegria do amor. Esse lado categórico do caráter masculino por vezes chocara Angélica, pois ela era mulher e mesclava tudo, sentimento, paixão, inquietação e desejo, como as grandes profundezas marinhas turbilhonantes na entrada dos rios.
Tal é a natureza feminina, sempre acumulando sensações em demasia. Nefn sempre Angélica seguia Joffrey, mas era preciso segui-lo, e ele-possuía- a âTte de obrigá-la a isso, criando a impressão de que nada mais tinha a fazer a não ser amá-la e prová-lo a ela. Sabia persuadi-la tão bem, ,que dúvidas, temores, perigos, detinham-se à soleira de-nm quarto de amor."E sabia conduzi-la a um mundo onde estivessem a sós, com o coração e o corpo plenos de alegria e de encantamento.
Também ela sabia que de início não lhe falaria sobre Colin. Não! Mais tarde... Depois... Quando houvesse recobrado forças junto a seu peito, quando se tivessem reencontrado na embriaguez do abandono, quando se sentisse descansada na liberdade de seu corpo, abandonado sem reticências à suavidade de seus carinhos, quando houvesse saboreado o enlevo de estar nua e frágil no calor de seus braços.
O olhar de Angélica cruzou o de Jack Merwin, nela pousado.
Há quanto tempo observava-a desse modo?... Que pensamentos pudera ler no rosto sonhador de Angélica?
Quase de imediato, ele desviou o rosto. Ela o viu cuspir no mar um grande jato de tabaco. Sempre calmo e meticuloso, tirou da boca o pedaço que mascava, pô-lo no -boné de lã, segundo o costume dos marinheiros, e tornou a se cobrir. Pôs nesses gestos familiares e comuns algo de definitivo que ela só compreenderia mais tarde. Depois pareceu farejar o vento.
Como que se decidindo, estendeu a perna nodosa, cujo grande artelho possuía a preensão de uma pinça de caranguejo, e manejou o cabo da vela mestra com mais vigor do que um punho o faria, e arrumando-se sozinho com o leme e o cordame deu quase meia-volta à pesada embarcação deitando-a sobre as vagas e se posicionando obliquamente em relação ao vento, o suficiente para ser impelido e levado, mas evitando a meia polegada a mais que o colocaria em face do vento contrário.
Angélica deu um grito.
Não foi arrancado pela manobra, que, executada por um homem menos hábil, poderia tê-los jogado na água.
Ela acabava de descobrir que a costa estava próxima. Viam-se desfilar as árvores e ouvia-se o estrondo da ressaca ao pé das falésias.
Em contrapartida, as duas colinas rosa, chamadas de Bulbos, do monte Deserto, atrás das quais ficava Gouldsboro, afastavam-se e começavam a desaparecer a leste.
- Mas você não está- indo na direção correta - gritou Angélica.
- Gouldsboro fica lá embaixo. Você está dando-lhe as costas.
Sem responder, o inglês prosseguiu o curso, e rapidamente os Bulbos se tornaram invisíveis.
O White Bird virou na direção noroeste e penetrou numa vasta baía coberta de ilhas. A jovem Ester, que já fora uma vez à casa do tio, na ilha Matinicus, reconheceu a baía da embocadura do Pe-nobscot.
Angélica olhou na direção do sol para avaliar a hora. O astro ainda estava alto no céu. Com um pouco de sorte, se Jack Merwin não os fizesse rodar por ali demasiado tempo, ainda poderiam, ajudados pelas longas tardes de junho, estar no porto antes do anoitecer.
- Para onde nos conduz ainda? - perguntou ela.
Era o mesmo que se dirigir a uma porta.
A subida do estuário durou perto de uma hora. Quando o navio enveredou pelo curso estreito de um riozinho umbroso à esquerda, Angélica não pôde impedir-se de trocar um olhar exasperado com Elias Kempton. Ambos sentiam uma vontade assassina de lançar-se sobre Jack Merwin, de dominá-lo de uma vez por todas e tomar-Ihe o barco.
Ao abrigo das árvores, o vento diminuiu. Não era mais que um sopro leve e morno, impelindo molemente o barco contra a correnteza. O inglês baixou a vela e pegou nos remos. Pouco depois, guiou a embarcação para uma praia ensombreada com salgueiros e olmos. Mais adiante, pinheiros, carvalhos, bordos e faias erguiam-se em suntuosa desordem, de onde subia o odor quente da vegetação rasteira do verão. A brisa do mar não chegava até ali. Abelhas selvagens zumbiam.
O marinheiro saltou na água.até o meio das coxas e arrastou o barco para a margem.
— Podem descer - disse calmamente. - Chegamos.
— Mas devemos estar em Gouldsboro esta noite - gritou Angélica fora de si. - Oh! esse maldito inglês me exaspera! Deixa-me louca... Ele... você é um...
Buscava uma expressão adequada para traduzir os sentimentos que lhe inspirava tão obtusa personagem e não encontrava... sobretudo em inglês.
— Você não-é razoável, Jack Merwin - retomou, esforçando-se por ficar calma. - Não deve ignorar que nestas paragens existe um terrível francês, cortador de cabeleiras inglesas, o Barão de Saint-Castine, e, se nos cair em cima com seus etchemins, não estou certa de poder fazer-me reconhecer por ele antes que todos estejamos mortos.
— Ouviu o que ela está dizendo, damned foot! - acrescentou o mascate. - Aqui há um cheiro terrível de francês e de índio. Estamos sem armas. Está querendo fazer que nos massacrem?
— Desembarquem - repetiu Merwin com a mais completa indiferença.
O urso, Mister Willoagby, seguira-o de bom grado. Os odores da terra agradavam-lhe bastante. Devia haver mel silvestre nos arredores. Erguendo-se nas patas traseiras, pôs-se a arranhar um tronco de pinheiro, grunhindo de prazer. Aos suspiros, os outros passageiros obtemperaram. O lugar nada lhes dizia de bom. Sentiam-se oprimidos.
Intrigados, observaram Merwin. Esse, após parecer procurar alguma referência em torno, ajoelhara-se ao pé de uma árvore e começara a afastar uma espessa camada de húmus dentre as raízes.
— Que está fazendo?
— Teria enterrado aqui seu tesouro?
— E bem possível. Muitos piratas vêm a estas margens esconder seu butim.
- Ei, Merwin! maldito tratante! - exclamou o mascate -, sua fortuna compõe-se de dobrões espanhóis, de moedas portuguesas ou de pesos de prata?
O marinheiro continuou a cavar sem responder. Após a camada de folhas apodrecidas, descobriu uma trama de ramos, depois musgo e pedregulhos. Por fim, do fundo do buraco, retirou um pacote bastante volumoso, envolto em peles e tela encerada. Outro pacote menor sèguiu-se a ele, e_o inglês então se ergueu, satisfeito.
- Welil Esperem-me aqui - disse -, não demorarei muito aproveitem minha ausência para comer um pouco. Ainda há queijo na arca, pão e um frasco de vinho, que me foi dado por Mrs. MacGregor.
Seu contentamento por ter encontrado os pacotes no esconderijo era tal, que ele se tornava quase amável. Voltou a repetir:
- Wait just a minutei Esperem apenas um momento!
E mergulhou na mata de salgueiros. Angélica começou a discutir com os companheiros e depois, exortando a si mesma a ter paciência, retornou ao barco para pegar as provisões. Era melhor comer. O lugar parecia afastado e bastante deserto. Se a parada não se prolongasse além da medida, tinham algumas possibilidades de afastar-se antes de despertar o instinto sempre à espreita dos selvagens da região.
Dè nada adiantava enervar-se. Era preciso passar por cima dos caprichos do dono do barco e por seus acessos de mau humor. Considerando-se o caráter difícil do navegador yenngli, os perigos da guerra, e tendo-se em conta que três dias antes todos se encontravam na baía de Maquoit, nas mãos de Barba de Ouro, era preciso reconhecer que a viagem fora particularmente rápida e transcorrera da melhor maneira possível.
Ela voltou para junto dos companheiros e, ajudada por Sammy, começou a dispor em uma grande pedra achatada as porções de cada um. Eles se puseram a comer em silêncio. Ao final da refeição, quando Angélica ergueu a cabeça para pedir que lhe passassem o vinho, ela descobriu todos os ingleses lívidos, a boca aberta de terror, os olhos arregalados fixando ela não sabia o que atrás de si. Teve de fazer enorme esforço para voltar-se e olhar face a face o novo perigo.
Entre os salgueiros, cujas longas folhas de um verde pálido eram agitadas pelo vento, um jesuíta de batina negra acabava de surgir.
CAPÍTULO IX
A verdadeira identidade de Jack Merwin
O primeiro rmovimento de Angélica foi erguer-se e postar-se entre os ingleses aterrados e o recém-chegado. Seu segundo reflexo foi buscar com os olhos no crucifixo do padre a gota de rubi que marcava"a cruz do Padre d-'Orgeval. Não a viu. Aquele tampouco era o Padre d'Orgeval.
O religioso de batina, que se mantinha imóvel a alguns passos na penumbra, era alto e magro, sem barba, com os cabelos escuros a lhe cair sobre os ombros. O alto colarinho negro dobrado, encimado por uma faixa de tecido branco, envolvia um pescoço longo e musculoso, que sustentava uma cabeça de traços nobres e distintos. Um dos braços pendia, imóvel, ao lado do corpo, mas a outra mão estava apoiada no peito, segurando com dois dedos, como se quisesse apresentá-lo, o crucifixo preso ao pescoço por um cadarço de seda negra.-
Dois olhos escuros e impávidos fixavam o grupo petrificado, parecendo querer fixá-los ao chão como animais fascinados.
Por fim ele se moveu e deixou a sombra das árvores, avançando sob o sol, na claridade da pequena praia. Então ela notou, sob a fímbria da sotaina gasta e amarrotada, que o jesuíta tinha os pés descalços. E esses pés lhe pareceram familiares.
- Hello, my fellows, how do you do? Don't you recognize me? - ouviu-se a voz de Jack Merwin. - Olá, companheiros, como estão vocês? Não estão me reconhecendo?
Transformados em estátuas de sal, Angélica e os ingleses não disseram palavra a essa interpelação que - por malefício ou alucinação - parecia ter saído da própria boca do jesuíta.
Este continuou a avançar até eles, que gradativamente recuaram, até ficarem acuados junto ao rio.
Diante do terror deles, ele novamente se deteve.
- Cá está - disse em inglês com um sorrisinho -, cá está o tesouro que retirei há pouco de meu esconderijo: minha pobre sotaina de padre, que aqui abandonei ao partir. E que acabo de poder, enfim, envergar,:após oito meses sem ela.
E voltando-se para Angélica, disse em francês:
— Está tão surpresa com minha metamorfose, senhora? No entanto, eu acreditava ter despertado sua desconfiança.
— Merwin - murmurou ela -, você é Jack Merwin?
— Ele mesmo. E sou também o Padre Luís Paulo Maraícher de Vernon, da Companhia de Jesus. E é assim que, conforme a ocasião, um maldito inglês pode se transformar num maldito francês e até no mais terrível dos papistas.
Um matiz de bom humor iluminou-lhe o rosto transformado. Ele explicou.
- No outono passado, fui encarregado por meu superior de uma missão secreta na Nova Inglaterra. O disfarce de marinheiro é apenas um dos múltiplos aspectos que tive que assumir para levar minha missão a bom termo, sem ser reconhecido. Graças a Deus, eis-me de volta, são e salvo, às terras da Acádia francesa.
Exprimia-se num francês castiço, mas onde subsistia uma ponta de acento inglês, pela força do hábito, por ter tido de se expressar continuamente nessa única língua desde longos meses.
— Mas... você também é francês? - balbuciou Angélica sem compreender.
— Decerto que sou. Minha família é oriunda do Pays dAuge. Mas falo o inglês desde a infância, pois fui pajem da família real da Inglaterra, durante seu exílio na França. Mais tarde fui a Londres, a fim de dominar a língua.
Apesar dessas explicações corteses, Angélica continuava a não compreender que tinha diante de si Jack Merwin, o dono do barco.
Então, devia admitir que durante três dias viajara sob a direção de um certo Jack Merwin, sem duvidar por um só instante que tinha como companhia não um marujo inglês de baixa extração, como ela acreditara, mas ao contrário um jesuíta francês, nobre de nascimento além de tudo, íntimo colaborador do Padre d'Orgeval, sem dúvida.
Longe de esperar por tal metamorfose, pexmanecia confusa, e diante de sua boca entreaberta e-de seus olhos, que hesitavam em compreender, ele não pôde impedir-se de dar uma gargalhada.
- Recobre-se, senhora, por favor! Algumas de suas reflexões me haviam deixado inquieto! Vejo que nada tinha a temer. Não suspeitava de minha real identidade.
Era a primeira vez que viam Jack Merwin rir. Paradoxalmente, foi nisso que o reconheceram. Era de fato o dono do barco que os conduzia, aquele quê ali se achava sob a sotaina tão aviltada, tão temida, o mesmo que há pouco mascava indolentemente seu pedaço de fumo, e domava com o. pé musculoso a vela inflada pelo vento, e rodava de ilha em ilha, curioso, taciturno e solitário...
Num lampejo, Angélica entreviu a personalidade profunda de Jack Merwin, que tanto a intrigara.
Mas claro!..."Claro que_era um'jesuíta!
Como pudera não o perceber de imediato? Ela, que fora criada em conventos católicos, regidos com tanta perfeição pelos membros da mais alta e poderosa ordem religiosa daquele tempo - todas as semanas as alunas, deviam confessar-se com um dos reverendos, sem nada ocultar-lhe dãs sombras de sua consciência -, como pudera se deixar enganar desse modo?
Como, apesar de mil indícios, não tivera ao menos uma suspeita?
Com que então, quando ele estava sentado na outra noite sobre os rochedos de Long Island, tão "ausente" que a assustava, ele rezava como só sabem rezar os filhos do grande Inácio, e aquilo que o habitava e que ela qualificara de ausência, de letargia, era um êxtase, urfl êxtase místico!
E quando ele distribuíra a comida em Monégan, como não reconhecera em seus modos a diligente destreza dos religiosos que, qualquer que seja a ordem ou posição a que pertençam, são acostumados desde o noviciado a servir a"sõpa dos pobres?
E hoje mesmo, a brusca meia-volta do jovem senhor acadiano Humberto dArpentigny não se devera ao fato de ele descobrir, sob o disfarce de um marujo inglês, o missionário que talvez no passado o tivesse levado a fazer a primeira comunhão? Este devia ter-lhe feito sub-repticiamente sinal para que se calasse.
O urso, Mister Willoagby, aproximou-se do jesuíta e farejou-o. Reconhecendo o odor familiar do dono do barco White Bird, esfregou-se na sotaina, e a mão do padre jesuíta acariciou a grande cabeça peluda.
- In fact we've already made acquaintance, Mister Willoagby - murmurou. - De fato, conhecemo-nos há muito tempo, Mister Willoagby.
Pois há poucos dias,'desde Nova York, partilhavam o mesmo abrigo de pranchas batidas pela água do mar, sobre as vagas perigosas. A adesão de Mister Willoagby acabou por convencer os mais incrédulos.
Desmoronaram, transtornados, compreendendo que sua sorte estivera em jogo, e que eles haviam perdido. Angélica não pôde pronunciar uma só palavra. Jamais se sentira tão mortificada; e avaliando as consequências que aquela mistificação traria para ela e os companheiros, sequer encontrava coragem para troçar de si mesma, por se ter deixado enganar tão completamente; pensou: "Teria o acaso trazido o barco do pseudo Jack Merwin próximo ao navio de Colin ou mais uma vez caí numa armadilha?"
Baixou a cabeça, sentindo-se vencida, e uma ruga de amargura marcou-lhe p canto dos lábios.
O jesuíta voltara-se para os ingleses.
- Nada temam - disse-lhes em inglês. - Aqui estão sob minha proteção.
Aproximou-se da beira da água, erguendo os olhos para as árvores, e, pondo as mãos em concha, deu um grito índio, que repetiu por várias vezes como um sinal.
As folhagens se moveram, e pouco depois surgiu um bando de selvagens barulhentos, alguns atravessando o rio a vau, outros descendo pela colina. Lançaram-se de joelhos diante do padre, pedíram-lhe a bênção e fizeram-lhe mil gestos de amizade. E naturalmente o grande sagamore Piksarett apareceu, em toda a sua glória.
- Você acreditava ter-me escapado - disse a Angélica. - Mas sempre soube onde você estava e ocupei-me de você, e o Toga Negra a trouxe de volta. Você é minha cativa.
Selvagens tateavam, rindo, os raros cabelos de Elias Kempton, mais morto que vivo. O urso cativo grunhiu perigosamente.
Ao descobrir o animal, os índios recuaram, uns apontando a lança, outros apanhando o arco/
Com uma palavra, o jesuíta acalmou a agitação. Vendo-o pousar a mão na cabeça do urso, os índios olhârám-no com reverência, porém nada os surpreendia vindo de um Toga Negra.
— O forte de Pentagouet, comandado pelo Barão de Saint-Castine, não está longe - disse o Padre Maraícher a Angélica. - Quer ter a bondade de seguir-me; senhora? Iremos até lá.
— Ah! Bem! - exclamou Ademar subitamente, enquanto começavam a subir a encosta -, o senhor não seria irmão de Jack Merwin, padre? O senKor se parece diabolicamente com ele. Para onde foi o rapaz? Já estava na hora de içar a vela e partir, porque aqui, com todos esses-selvagens! eu...
CAPÍTULO X
Interrogatório no porto francês de Pentagouet
— Veja, veja - disse o Barão de Saint-Castine, indicando com um gesto enfático a parede cheia de cabeleiras inglesas -, veja, padre, não sou um bom oficial a serviço de Deus e de Sua Majestade? Junto com meus etchemins e mic-macs, fiz campanha contra o inglês herético, mais do que o necessário para ganhar o céu. Poderiam acusar-me de frieza em meus sentimentos religiosos, a mim, que suscitei a conversão do grande chefe Mateconondo e de seus' filhos, e que até sou o padrinho de todos eles por não haver outra pessoa para desempenhar esse papel cristão quando de seu batismo nesta costa deserdada? Ora, eis que o Padre d'Orgeval, seu superior, escreveu-me, reprovando o que chama de minha escapada e até de traição à nova guerra santa, à qual acaba de conduzir os abenakis. Primeiramente, devo dizer-lhe que essa campanha me parece demasiado precoce e inesperada. Os índios ainda estão ocupados com as trocas e com a semeadura, o que para eles é vital.
— Uma cruzada pode ser de repente urgente - respondeu o Padre de Vernon -, se for empreendida com a ajuda de todos os corações valorosos. Talvez seja sua... escapada o que a tornará mais longa, sem deixar aos índios o tempo de comerciar as peles e de semear antes das geadas.
— Em todo caso, com isso, os meus serão poupados - disse Saint-Castine, sombrio.
— Não estima então que era dever dos índios baterem-se pelo Deus em nome do qual foram batizados?
Aquele era o dia seguinte à chegada deles em Pentagouet.
Eram três na sala do posto de Pentagouet, onde findava a refeição do meio-dia que os havia reunido.
Angélica estava sentada em uma dás cabeceiras da grossa mesa de madeira. O Padre Maraícher. de Vernon estava no meio. Saint-Castine ia e vinha, agitado, sacudindo toda? as plumas de seu chapéu índio.
Uma neblina espessa, que se erguera com a aurora, encerrava-os num mundo cinza e opaco, o qual atravessava como o chamado de almas errantes, o grito cortante das gaivotas invisíveis.
O posto francês era modesto.
Saint-Castine pusera à disposição de Angélica uma pequena peça, que devia ser seu próprio quarto, mas ela passara uma parte da noite no armazém onde haviam alojado os ingleses, e tentara confortá-los. Eles estavarrrprostrados.
Agora que haviâirf_caído nas mãos dos franceses, seriam sem nenhuma dúvida conduzidos a Quebec e vendidos aos terríveis papistas do Canadáv A menos que o Barão de; Saint-Castine negociasse seu resgate com Soston. O Reverendo- Patridge podia estar seguro de que seus confrades, na maior parte pessoas de destaque e magistrados, não o abandonariam, dispostos a instituir uma taxa a fim de reunir a soma necessária, porém Miss Pidgeon, que não possuía nenhuma família, estaria-destinada a uma longa vida de cativeiro, em que o mais penoso seria resistir, a cada dia, às solicitações para abjurar e receber um batismo católico.
Como estivessem todos cansados, haviam acabado por repousar, após comer um pouco de milho e de peixe. Angélica ficou refletindo longo tempo sobre os meios de fazer chegar uma carta ao marido.
Tudo acabou por se embaralhaf em sua cabeça. Devido a que infeliz acaso Colin "abordara, justo naquela manhã, o barco que trazia para a Acádia o jesuíta disfarçado no término de sua missão de espionagem? E Colin sabia quem era o navegador inglês que mascava fumo e cuspia tão bem no mar?... Seria por isso que ele lhe murmurara: "AcaUtele-se, querem seu mal!"?
A sombra ágil de Piksarett parecia pairar com ubiquidade sobre todas essas peregrinações. Estava em Maquoit na véspera do dia em que o navio de Barba de Ouro ali lançara âncora. Ela acreditara tê-lo visto na ilha Mackworth. E eis que ele também a aguardava nas margens do Penobscot.
Decidida a conversar com o nobre gascão, Saint-Castine, ela não teve de chamá-lo, pois no dia seguinte ele próprio veio convidá-la a partilhar a refeição que fazia com o jesuíta.
Este, desde a véspera, tivera muito o que fazer. Prevenidos pelos tambores, os índios acorriam de todas as partes para encontrá-lo. Parecia-lhes melhor ser batizados por um Toga Negra que pelos modestos e bravos monges recoletos.
Haviam celebrado a missa, cujos cânticos distantes os prisioneiros haviam escutado.
Durante a refeição, o Barão de Saint-Castine dirigiu piscadelas de encorajamento a Angélica. "Tudo se arranjará, nada tema", queria dizer-lhe. Apesar de tudo, freava sua loquacidade diante do jesuíta, o qual, após rezar, comera frugalmente e sem pressa, os olhos baixos. Depois se encetara o debate. Castine defendia-se, dizendo jamais ter recusado ajuda aos reverendos padres em sua pesada e árida tarefa de conversão dos índios e da evangelização católica da América do Norte. Mostrava como prova sua monstruosa panóplia de cabeleiras ruivas, castanhas e louras, que, dependurada em pitões de madeira, ornava com uma pelagem desbotada e repelente toda uma parede da sala. Elas haviam secado sobre pequenos círculos de vime, neles costuradas com fios de tripa, como se faz com a pele dos castores. Haviam secado nas portas de todas as cabanas dos guerreiros etchemins, tarratines e mic-macs e, uma vez prontas, tinham sido levadas ao forte de Pen-tagouet, onde o oficial francês agradecia aos índios em nome do rei da França e dava-lhes um presentinho.
- Quantas eu mesmo não arranquei das cabeças dos heréticos - disse Saint-Castine com a expressão desgostosa de um homem devotado e desprezado -, minha colheita sempre foi o dobro da de meus guerreiros. E finalmente, padre, este ano estávamos em paz! Ficou firmemente entendido, aqui mesmo, quando o senhor se reuniu, antes de sua partida para a Nova Inglaterra, com os padres d'Orgeval e Jeanrousse, que nada deveria ser empreendido contra os heréticos enquanto não voltasse pois devia trazer-nos pretextos para romper os tratados. E eis que o Padre d'Orgeval desenterrou o machado de guerra, como nós, índios, dizemos, mais de dez dias antes de sua chegada!...
— Sem dúvida encontrou uma razão melhor que aquela que eu poderia fornecer-lhe - retorquiu o Padre de Vernon, sem mostrar emoção. - Ele é guiado por Deus< e rararjiente o vi envolver-se numa ação sem pesar todas as. consequências.
— Creio poder fornecer-lhe. a razão que o levou a empreender a guerra sem esperar por sua chegada - interrompeu-o Angélica.
O Padre de Vernon, que durante a conversa só se dirigia a Saint-Castine ou então permanecia pensativo, os olhos baixos diante dos restos de sua frugal refeição, voltou lentamente para ela seu olhar sombrio e enigmático de Jack Merwin.
- Sim - reafirmou Angélica -, estou certa de que o Padre d'Orgeval viu a^possibilidade de me fazer capturar pelos canadenses, quando me dirigi sozinha -à colónia inglesa de Brunswick Falis, a oeste do Kennebec^ logo desencadeou a guerra, pois ele sabia que alguns dias-mais tarde eu estaria em segurança em Gouldsboro e que a possibilidade-de tal ação não poderia mais ser leva da em conta.
Para sua surpresa, o jesuíta balançou a cabeça em sinal de aprovação.
- De fato, é assim que as coisas devem ter-se passado. Que ia fazer naquela colónia inglesa, senhora?
Angélica lançou-lhe um olhar de desafio.
— Ia devolver à família uma pequena cativa que havíamos resgatado aos abenakis.
— Assim, a senhora, uma mulher francesa e católica, achou correto e justo levar de volta áo ninho de obscurantismo da heresia uma menina inocente, quando a sorte, a Providência, devia eu dizer, talvez houvesse decidido dar-lhe a oportunidade de descobrir a verdadeira luz de Cristo no Canadá?
Angélica nada respondeu. Não se habituava com essa linguagem partindo de Jack Merwin. Disse porém, numa tirada, com um meio sorriso:
— Seu ninho, sim!... As crianças são como os pássaros. Por mais obscuro que seja seu ninho, é ali que estão bem.
— Então a senhora se opôs aos desígnios de Deus com relação a ela? - atalhou ele com severidade. - E... como se explica que depois dessa... emboscada, não tenha sido conduzida a Quebec?
- Eu me bati - disse ela, feroz. - Defendi minha vida e minha liberdade.
E recordando-se de seu olhar de desprezo ao luar da praia de Long Island, insistiu: Minha liberdade!
— Atirou nos soldados de Cristo? - perguntou ele.
— Atirei simplesmente em selvagens que queriam escalpelar-me.
— Mesmo assim... .
— E tive a oportunidade de poder entender-me com o saga-more Piksarett, seu grande batizado.
O jesuíta franziu o cenho. Ali estava, sem dúvida, o que lhe parecia inverossímil nessa história.
— E por que então, segundo sua apreciação, senhora, o Padre d'Orgeval desejaria apoderar-se de sua pessoa para levá-la ao Canadá?
— O senhor o sabe tão bem quanto eu...
— Peço-lhe perdão, senhora. Deixei estes lugares há vários meses, durante os quais foi-me bastante difícil corresponder-me com meu superior. Corria perigo entre os ingleses. Se houvessem descoberto minha condição de espião em nome de Cristo e do rei' da França, não teriam deixado de pregar-me uma partida. Quando parti a senhora acabava de chegar a Gouldsboro.
— Mas surgíamos aos seus olhos como importunos, se não como inimigos, que se instalavam em Gouldsboro com meios de que poucos colonos dispõem. Que oportunidade de desacreditar meu marido e apontá-lo à execração fanática dos povos da Nova França seria descobrir em sua mulher a encarnação da Diaba - disse Angélica, amarga. - Disso o senhor está a par tenho certeza... A religiosa visionária não fez a descrição de uma colónia ribeirinha, que poderia ser qualquer uma, mas onde os espíritos mal-intencionados quiseram ver expressamente Gouldsboro?... Não anunciou os cavalos que desembarcamos através do símbolo do Hcorne, animal mítico que a Diaba cavalgava em sua aparição?... E quando fui a cavalo para o interior, a comparação foi inevitável, e todos os canadenses caíram de joelhos... aterrorizados. No entanto, tudo isso é apenas obra do acaso...
— Sim - disse o padre jesuíta pensativamente -, quando as coisas diabólicas se põem a caminho, percebe-se amiuae que o acaso parece ajudar aqueles através dos quais chega o mal. E o tempo deixa de existir.
- Mas quem quer o mal neste* caso - gritou Angélica - e por que é preciso que, definitivamente, seja eu a sua Diaba? Afinal, há outras mulheres que poderiam ter escolhido na Acádia. Não foi você, Saint-Castine, que me falou da pessoa que vive nos confins da baía Francesa, de vida desregrada, e a quem chamam Marcelina, a Bela?
O barão deu uma gargalhada.
— Oh! não, não ela. Oh! não, seria muito engraçado. É boa para fazer filhos com todos os capitães de passagem e abrir mariscos mais rapidamente que todas as mulheres da baía. Dizem que tem um modo de introduzir a faca na fenda e separar as duas metades antes que a- cancha anterior, vazia e jogada fora, atinja o chão... uma malabansta, isso, sim.
— Por que não haveria algo -de mágico nessa habilidade? - perguntou Angélica, rindo._- Respbnda, padre!
Mas Jack Merwin permaneceu rígido e não se deixou levar a leviandades em assuntos tão graves. Pareceu refletir sobre a sugestão, depois sacudiu a cabeça.
— Marcelina Raymondeau?... Não, é.de inteligência demasiado curta.
— Uma Diaba deve ser inteligente?
— Decerto! Reflita. Que inteligência maior, depois da de Deus, existe além da de Lúcifer, senhor dos demónios? E algo que se admite, por ter sido diversas vezes observado, que os demónios súcubos, isto é, femininos, encarnam-se num corpo de mulher e têm grande dificuldade em esconder sua inteligência, em sua estada na terra. E é mesmo por essa qualidade predominante - tão pouco comum nas mulheres mortais - que se pode por vezes desmascará-los. Não esqueçamos que os mais importantes espíritos infernais, Béhémot, a Besta;' Mammon, a Cupidez; Abadom, o Exterminador, são espíritos súcubos.
— Já sei - gritou Saint-Castine, com um ar inspirado. - Sem dúvida alguma, trata-se da Srta. Radegunda de Ferjac, governanta dos filhos do Sr. de La Roche-Posay, em Port-Royal, na península. É ruim como uma doninha, avara como seu Mammon e feia como os sete pecados capitais. Mas outra vez o jesuíta sacudiu a cabeça, negativamente.
— Está enganado, meu caro. A coisa não é possível, pois se trata de uma pessoa pouco agraciada pela natureza. Talvez a feminilidade dos espíritos súcubos não se manifeste de outro modo, mas é um fato que jamais a viram encarnar-se no corpo de uma mulher feia.
— E as feiticeiras, então?
— E mais do que isso. As feiticeiras são seres humanos que comerciam com o Demónio. Ao passo que o espírito infernal que entra no corpo de uma mulher, ou nele se encarna com o nascimento, é realmente um demónio, um dos anjos decaídos que seguiram Lúcifer em sua queda aos Infernos, nas primeiras horas do Mundo.
— Mas o senhor não pode pensar isso de mim, é impossível - disse Angélica, torcendo as mãos. - Eu nada fiz, nada cometi que possa justificar tão horrível reputação!
— No entanto, a predição é expressa. Uma mulher muito bela e sedutora...
— Então sou bela?
Sua perturbação afastava da pergunta qualquer atitude de coqueteria provocante. O jovem Saint-Castine dedicou-lhe um grande sorriso de admiração.
— Sim, a senhora o é. Mas eu não a acusaria por isso...
— E sedutora?... - insistiu Angélica, voltando-se para o jesuíta. - Vamos, padre, o senhor, em cuja companhia permaneci durante mais de três dias...
Ele baixou sobre ela seu olhar de mercúrio, às vezes sombrio, às vezes cintilante, às vezes apático, onde nada se podia ler, e acariciou o queixo com ar pensativo.
- Sedutora?... não sei... mas enfeitiçante, decerto... Na noite de São João, em Monégan...
Temendo que o rubor que lhe subia às faces chegasse à fronte, Angélica interrompeu-o.
- Pois bem! A noite de São João... Falemos dela... De que podem me acusar? Eu ri, bebi, dancei, que seja. Mas já que estava presente, pôde testemunhar que nada cometi de desonesto. A Igreja Católica irá mostrar-se tão severa quanto a Reformada, com relação aos divertimentos?... Reconheço que se eu tivesse sido advertida sobre seus títulos e funções... Foi a "vez de ele interrompe/ com vivacidade:
— Really? Verdade?... não suspeitava de fiada, senhora? Eu por vezes temi seus olhos perspicazes.
— Não! Oh! não!... Não tenjha nenhuma ilusão quanto a isso. No máximo pensava que o senhor,era um capitão de piratas, um franco bandido, sem dúvida... O senhor mesmo pode constatar que, infelizmente, não sou adivinha, apesar dos poderes que me atribuem. Digo que se soubesse que era um jesuíta, certamente me teria mostrado menos... exuberante, mais prudente. Mas, já que o confessei, não lamento nada.
Pensou um instante na noite mágica.
- Como explicar-lhe ã alegria que me deu aquela bela noite de junho, depois dos perigos que corremos... A morte, não me rondara nesse dia? O senhor sabe melhor que ninguém, já que me tirou da água...
Então se interrompeu^compreendendo què fora exatamente o eclesiástico ali sentado, a mão no crucifixo, quem a arrastara pelos cabelos sobre a areia, cuidara dela para trazê-la de volta à vida, e carregara-a em seus braços para junto do fogo.
Angélica jamais se sentira.tàp embaraçada em sua vida e procurava o que dizer, algo que não a fizesse cair de Caríbdis para Sila, quando, por um leve frémito nos lábios do Padre de Vernon, por um brilho fugaz em suas pupilas, uma onda que corria em seus traços marmóreos, ela adivinhou que ele tinha vontade de dar uma gargalhada.
Na verdade, desde o início da conversa ele ria. Ria interiormente, divertia-se em embaraçá-la, confundi-la, fazê-la dizer todas as tolices possíveis.
— E ainda troça de mim! -exclamou ela.
— Por minha fé!...
Então se pôs francamente a rir. Depois fitou-a com ironia, mas também com vivo calor. E pela primeira vez ela descobriu uma luz humana por trás daquele olhar severo. Acreditou ler nela uma amigável cumplicidade.
Era pois de se esperar que, durante os três dias passados no barco de Jack Merwin, entre o urso e o negrinho, ele a tivesse visto com clareza. Não acreditava que ela fosse a Diaba. Ela lia isso em seu olhar.
- Deixe-me partir, Merwin - murmurou ardentemente, com um impulso na direção dele.
Os olhos do padre desviaram-se vivamente. Suas longas pálpebras baixaram-se de novo e ele retomou sua expressão altiva.
- Mas... pode partir,, senhora, quem a impede?... Não é minha prisioneira, ao que eu saiba... É cativa apenas de Piksarett...
CAPÍTULO XI
Retorno a Gouldsboro
Gouldsboro, à noite, era já um burgo.
Assim o descobriu Angélica, enquanto lhe apareciam ao longe, apesar do véu leve de uma chuva contínua, as luzes cintilantes de todas as habitações agrupadas em torno dõ porto, ao longo das margens e~até no alta das falésias.
A barca que os conduzia dançava na onda escura, onde as luzes, amarelas e brancas das lanternas e das velas, e vermelhas, das grandes fogueiras acesas como referência na ponta dos recifes perigosos, punham mil reflexos cintilantes.
O acadiano que os conduzia disse que aportaria do lado oeste. Queria voltar imediatamente para Pentagouet. O Padre de Ver-non deixara-lhes o barco para essa última viagem de volta, e assim que Angélica e seus protegidos ingleses, em companhia do negrinho e do urso, fossem deixados em qualquer ponto da península de Gouldsboro, o homem não deveria demorar.
Angélica respirou, deliciada e alegre, o odor da terra, o odor de cidade que"a brisa trazia até eles.
- Encontrá-la-ei em Gouldsboro -prometera-lhe Piksarett antes de vê-la deixar Pentagouet, - Não se esqueça de que você é minha cativa e de que devo reclamar-o'resgate a seu esposo.
Mas exceto pelo fato de tê-la lembrado de sua situação, ele se mostrara bastante liberal, por razões que só ele conhecia, e deixara-a afastar-se, após dar-lhe solenemente sua bênção.
No sentido próprio e no figurado, pois, como grande sagamore investido de poderes supraterrâneos, ele gostava bastante de pontificar e distribuía de bom grado, imitando os Togas Negras, grandes sinais-da-cruz protetores.
Ao se dissipar, logo após o meio-dia, a bruma permitira-lhes içar vela. O Padre de Vérnon e o Barão de Saint-Castine acompa-nharam-nos até a beira da água. O jesuíta ficou com o menino louro qUe fora seu grumete, Abbal Neals, um órfão que ele recolhera nos cais de Nova .York. Não se sabia se era de origem irlandesa, inglesa ou sueca. Fosse o que fosse, seria batizado.
No último momento, trouxeram uma grande arca, na qual o Barão de Saint-Castine empilhara rapidamente uma parte de seus escalpos.
- O Sr. de Peyrac confiou-me seu projeto de ir a Quebec - explicou à Angélica -, e pensei em pedir-lhe o obséquio de entregar este presente de minha parte ao governador. Espero que cause boa impressão: que as autoridades não me acusem de não me mostrar zeloso o suficiente na guerra contra o inglês.
Acomodaram igualmente o tonel de armanhaque, presente do capitão basco Hernâni dAstiguerra, e depois o marinheiro e camponês acadiano tomou a barra, enquanto Sammy, que fizera seu curso de grumete nos dias precedentes, ajudava-o com a vela."
Rapidamente, a cortina perolada da chuva diluiu os contornos das árvores, furtando aos olhares, lá longe, na margem de um rio perdido, no coração da floresta americana, a longa silhueta de um homem de sotaina negra chamado Jack Merwin.
CAPÍTULO XII
Atormentado pelo ciúme, o Conde de Peyrac decide-se a uma guerra sem fronteiras
Quantas vezes, desde a-noite da véspera, Joffrey de Peyrac virara e revirara.na mente a terrível revelação?
A noite passara sem que ele se rnovesse, sentado à mesa, a fronte apoiada na mão, os olhos fechados.
Quantas vezes durante a noite não ouvira ressoar em si mesmo os ecos da voz zombeteira e áspera do mercenário suíço?
"Seu nome?... Não sei. Mas enquanto a amava, chamava-a Angélica!... Angélica!..."
E todas as vezes, a mesma dor insana atravessava-o.
E depois as palavras de Yann, que o haviam esclarecido. Se se podia falar em esclarecimento no caso dessa horrível maquinação, que súbito colocava no rosto da bem-amada uma máscara hedionda.
"Eles se beijavam como amantes que se reencontram..."
Seria esse o mistério? A explicação da terrível traição? Um amante de outrora? Um homem do passado, do tempo do qual sem dúvida ela sentia saudade, quando era livre, quando levava uma vida menos dura, quando os caprichos de seu corpo encantador podiam satisfazer-se à vontade, sem temer os acessos de um marido ciumento?
Ele agora via como as coisas deviam ter ocorrido... O desconhecido, o homem de outrora, ao d.escobrir o nome de Angélica e saber que ela estava naquelas paragens, enviara-lhe uma mensagem a Houssnock, e ela, pretextando a viagem à aldeia inglesa e aproveitando a ausência de Peyrac, partira ao encontro do outro. Depois um dos cúmplices do homem levara-lhe no Kennebec, a ele, o marido, uma falsa informação a fim de afastá-lo com mais segurança... por mais tempo...
Não... Os fatos não se casavam, havia outra coisa... E Angélica surgia-lhe tal como na última noite em Wapassu, quando, o rosto erguido, escutava o uivo dos lobos, e as últimas luzes da aurora boreal, com o mesmo rosado de sua tez, derramavam-se sobre ela. O brilho de seu olhar sonhador, insondável, maravilhado, despertara nele uma imensa adoração, pois ali ele lia a certeza de que ela era uma mulher única, que não se assemelhava a nenhuma outra - única e sua.
Como era ingénuo e presunçoso! Triplamente imbecil! Como não compreendera que ela era uma libertina, cheia de experiência, magnificamente armada com todas as magias de seu sexo e que usava o que a tornava tão diferente das outras para autorizar-se, levada por seus desejos e prazeres, a ser semelhante a todas as outras? Ou seja, infiel, fraca, sem honra, esquecida de tudo... Nada havia de sagrado para essas criaturas... Primeiro, o prazer do momento, mais tarde então sujeitar-se a apagar as mágoas infligidas com um sorriso, um olhar... E tão fácil ter de volta um homem apaixonado, tão tentador para esse homem acreditar no que uma bela boca lhe afirma: que ela o ama... que nunca amou senão a ele! Mas claro, apesar de tudo, da traição...
Por instantes, uma esperança louca o animava. Era tudo um pesadelo, Angélica voltaria, apareceria! Explicaria tudo com duas palavras... E ele a reencontraria inteira, límpida, sua amiga, amante, entregue somente a ele, carinhosa e apaixonada, como na solidão dos bosques no inverno, sobre seu grande leito, ou na primavera, quando haviam caminhado juntos entre os jacintos selvagens, sentindo-se livres, inebriados pela renovação dessa terra deserta na qual reinavam, soberanos triunfantes, e ele a olhava com enlevo, e a beijava, muitas, muitas vezes, até que, não mais podendo se conter e seguros de estarem a sós...
Os olhos de Angélica, erguidos para as árvores, carregavam o reflexo da vegetação nova. E ela dizia rindo: "Você é louco, meu caro..."
Então entregava-se a ele. Apenas a ele, e só sentia voluptuosi-dade através dele...
Assim a reencontraria... Não poderia ser de outro modo. Nesse momento, o curso de seus pensamentos, como o de um cego, chocava-se contra a irrefutável realidade do£ fatos.
"Enquanto a amava, chamava-a Angélica! Angélica!"
Um golpe, um grito surdo. A cada vez, a lembrança dessas palavras abalava-o, fazia-o inclinar-se para a frente, como que trespassado por uma lâmina aguda.
Ele não podia impedir a mente de voltar sempre ao mesmo ponto. A materialidade dos fatos: ela fora vista, nua e a desfalecer nos braços de Barba de Ouro!
Não lhe passara pela cabeça a ideia de duvidar da história do pobre Curt Ritz. Ignorando tocar na vida privada do mestre, o homem falara-com toda a simplicidade. Ora, o vinho que lhe haviam oferecido, é que ele tomara com o estômago vazio, confundira-lhe o entendimento por um curto instante, e só o fizera ser mais franco. Se estivesse sóbrio, teria percebido o constrangimento do auditório e," desconfiado, teria interrompido a narração, pois era de natureza circunspecta.
Não, não" havia de que duvidar. A cena fora vista pelo fugitivo. Uma noite, longe do marido, Angélica entregara-se às carícias de um homem desconhecido^.. Haviam-na surpreendido, a ela, mulher do Conde de Peyrac, sua mulher, nos braços do pirata Barba de Ouro, e diante disso não havia nenhuma saída...
Aos olhos de Joffrey de Peyrac, ela desaparecia, a outra, a Adorável... Restava apenas a Estrangeira, aquela que ele suspeitava outrora existir, uma mulher orgulhosa e sensual, que havia vivido muito, e livremente, endiabrada, mais hábil por não ter em parte consciência de seus artifícios, achándo-os naturais, necessários...
A vida marcãra-a e, ao afrontá-la, ela adquirira uma insensibilidade afetiva. Só contavam agora as satisfações do momento. A ascendência dessa mulher, Angélica, sobre todos os homens, a qual ele pudera perceber, não vinha precisamente dessa cumplicidade espontânea com eles? Ela os conhecia "demasiado bem, aos homens, estava demasiado próxima deles... Com um sorriso, uma palavra, dominava-os e os atava, nobres ou camponeses. Sua ciência provinha sem dúvida de ter sido por muito tempo e desde muito jovem vítima dos homens... Mas era tarde demais, o mal estava feito, a aterradora realidade ali estava... Ela era agora mais forte que todos os homens, nada temia da parte deles, oferecia a si mesma àqueles que desejava... Todos os homens lhe agradavam, qualquer tipo de homem, tal era o segredo de seu encanto e de seu infalível poder sobre eles... Exceto os tolos, talvez, cheios de si e de sua superioridade militar, como aquele Pont-Briand. Não'houvera mérito no fato de Angélica tê-lo repelido. Ele não lhe agradava. Mas e Loménie-Chambord? Peyrac não deixara de perceber a corrente Calorosa que se estabelecia entre eles, e começou a se perguntar se o virtuoso gentil-homem não o teria traído sob seu próprio teto... Ela não era capaz de levar um santo ao inferno?
Angélica! Angélica!
O véu rubro da vingança passou diante dos olhos de Peyrac.
Primeiro partir, chegar uma noite ao barco de Barba de Ouro... Subir a bordo, surpreender a ambos, matá-los...
Recuperou-se ao preço de um esforço sobre-humano.
O dia se erguia sobre Gouldsboro. A neblina transformava a paisagem em limbos frios, atravessados pelo eco dos tristes apelos das conchas na baía.
Peyrac ignorava que a apenas algumas milhas dali Angélica despertava no forte de Pentagouet, que algumas horas mais tarde ela embarcaria, alegre e impaciente por reencontrá-lo, e que ali estaria à noite, surgindo diante dele.
Esgotado, contemplava no fundo do coração uma imagem destruída, tão cansado que, sem mais buscar desculpas para uma realidade que era preciso enfrentar em toda a sua amargura, a traição de Angélica, ele aceitava vê-la por fim tal como era, como jamais cessara de ser, pensou: vil e enganadora... como todas as outras... Uma mulher como as outras!
Lá estava o dia com suas tarefas esmagadoras, múltiplas, das quais dependiam vidas humanas.
O Conde de Peyrac caminhou para o porto. Solitário nesse sufocante mundo branco, onde, agora deveria caminhar só, com esse luto surpreendente, essa chaga inesperada, de que não avaliava ainda todo o sofrimento: Angélica.
Enquanto descia a praia, o desejo da batalha começava a insuflar sua ardente impaciência. Essa força permitiria que ele permanecesse firme, e ele pensou que a neblina era bem-vinda, pois não ignorava que nenhum dos navios estava em condições de fazer-se ao mar nesse dia e' de dar caça" ao pirata. A bruma defendia peyrac contra uma pressa inoportuna, e lhe;permitiria preparar com cuidado suas baterias. Mais cedo ou ffiais tarde, ele poderia começar sua caçada mortal, e então nada o deteria antes que alcançasse Barba de Ouro e o matasse com as próprias mãos.
Logo começaram o armamento do Gouldsboro, do navio de três mastros e de outras duas chalupas que havia na baía.
Inteiramente ocupado com sua ideia de vingança, ele acolheu de início com indiferença, depois com irritação, a notícia trazida por alguns índios de que dois navios ingleses estavam em perigo na ponta de Shoodic. Que o diabo os carregasse, ingleses, franceses ou quem quer que fossem!
Depois se recompôs.
Não se diria que uma mulher o faria esquecer seus deveres, suas tarefas, destruindo-o-á ponto de torná-lo indiferente à vida de seres humanos que ele era -q, único â poder salvar.
Gouldsboro, que ele criara, era o farol da baía Francesa. Todos ali esperavam ajuda, vida, conselho. Ah! como tudo aquilo lhe era, de repente, indiferente! Mas ele não podia fraquejar, em nenhum instante. O mínimqjJesfalecimento de sua parte levaria ao desmoronar de tudo, e quanto àqueles que já sabiam de tudo, que esperavam dele? Teria vivido até esse dia e triunfado sobre tantas dificuldades para condenar e destruir tudo em algumas horas por um amor maldito?
O hábito de uma forte disciplina interior, de um senso inato de suas responsabilidades, que sempre fizera dele, durante a sua já longa existência, um chefe, um ríomem fora do comum, se fez presente e ajudõu-o a enfrentar a situação.
Enfrentar a situação!...
Prontamente foi para bordo do navio, reuniu a equipagem, ganhou o local do naufrágio e teve a boa sorte de tirar daquele infortúnio a pequena frota que o Estado dò Massachusetts enviava à baía Francesa para vingar-se dos massacres abenakis fomentados pelos franceses. Um dos navios tinha a bordo o bostoniano Phipps e o outro, o almirante inglês Bartolomeu Sherrylgham em pessoa.
Levado ao abrigo do porto de Gouldsboro, o almirante inglês aceitou de bom grado a generosa hospitalidade do Conde de Peyrac. Muito elegante, de peruca empoada, espada à ilharga, ele não escondia que a expedição ao fundo da baía Francesa, para ali acuar um adversário invisível sempre pronto a esconder-se em alguma enseada, não lhe era totalmente agradável. Mas era preciso dar uma lição nos malditos franceses. Obter se possível, do governo de Quebec, que segurasse suas hordas de selvagens devotados. Ora, haviam informado que o Sr. de Ville-d'Avray, governador, da Acádia, achava-se em viagem no rio Saint-Jean, em visita a seu melhor amigo, o Cavaleiro de Grand-Bois. Cercá-lo ali, capturá-lo, seria um excelente negócio para o governo inglês.
Peyrac conseguiu convencê-lo sem muita dificuldade de que essa expedição só poderia ser saldada ao preço de uma guerra franco-inglesa, pois todos os pretextos eram bons para Quebec ampliar o conflito, e que o almirante faria melhor em se juntar a ele para dar caça aos piratas que infestavam a baía Francesa e impediam os bacalhoeiros ingleses, assim como os portugueses e franceses, de se entregar à pesca anual.
Em contrapartida, o bostoniano Phipps, que contava entre seus ascendentes e parentes um bom número de pessoas escalpeladas pelos canadenses e seus abenakis, recusou-se a abandonar a presa e partiu assim que a neblina se dissipou. Mas agindo sozinho, e não mais na companhia do almirante inglês, o alcance diplomático de sua ação seria menor e a batalha do rio Saint-Jean, menos sangrenta. Após refletir sobre os diversos modos de desativar a bomba, Peyrac fez vir os chefes etchemins locais, bem como os principais dos moicanos.
Combinou com eles de enviar mensageiros e dois colares de conchas aos malecitas e suriqueses do leste: que ajudassem, se fosse necessário, os franceses aos quais se achavam ligados por laços de amizade e de família, mas se possível sem matar ingleses. Quando o machado de guerra fosse desenterrado na baía Francesa, que vantagem levariam as tribos, já bastante dizimadas pela fome cruel do inverno? E quem os protegeria das incursões dos iroqueses, que sempre se deviam temer com a chegada do verão?
Após essas sábias palavras, encarregou Cromley de alertar os raros ingleses, apegados ao lugar onde viviam na embocadura dos rios Sainte-Croix e Resquias.
O velho Salprice recusar-se-ia sem dúvida a deixar seu fortim, mas a família Strington, em Mercfinaisbay, encontraria vantagem em ir refugiar-se em julho em-.Gouldsboro;
Cada uma de suas ações, Jóffrey de Peyrac as realizara de início ao preço de um esforço sobre-hurhano; depois, pouco a pouco, numa espécie de estágio secundario„a execução dessas indispensáveis tarefas que se impôs punha-lhe por instantes um bálsamo na ferida viva. Uma espécie de esquecimento.
No entanto, por mais ocupado e rápido que tenha sido esse dia, nenhum, em sua existência, lhe pareceu tão longo, tão mortal, tão cruel!
Nesse meio tgmpo, ele observava os preparativos dos navios para a expedição'do diã seguinte contra Barba de Ouro.
Ele não podia fraquejar
Era preciso .conduzir a vingança com sangue-frio, sem perder de vista o interesse dê todos. Ele não tinha o direito de furtar-se a isso.
E, no entanto, que importavam os outros, que importava sua obra, que importava a vida... sem ela?!
A noite ele novamente convocou as mesmas personalidades da véspera, a fim de retomar a-xeun.ião do* Conselho dramaticamente interrompida pela chegada de Curt Ritz, e pediu ao almirante que se juntasse a ela.
A exceção deste último, que não estava a par de uma situação tão penosa e embaraçante, todos entraram com os clhos no chão e os passos medidos.
Peyrac aguardava-os atrás da mesa de madeira trabalhada onda estavam seu tinteiro, suas penas, seu areeiro, seus instrumentos de medição e, como na véspera, os mapas abertos.
Pediu-lhes afavelmente que se aproximassem e se sentassem.
Diante de sua voz calma, com-o tom grave a que estavam acostumados, eles ergueram os olhos, e apesar deele estar com a aparência de costume, estremeceram.
Ele vestia um magnífico traje de cetim marfim, com pregas minúsculas apanhadas em losangos com pontos de pérolas, e que a cada movimento mostrava, na abertura das pregas, os reflexos ondulados de um tecido escarlate - roupa trazida de Londres pelo Gouldsboro, junto com as botas justas de couro vermelho e as luvas forradas. Peyrac gostava da moda inglesa, cuja fidelidade ao colete, às calças e botas finas era mais conveniente a sua vida aventureira que os gibões e casacos à francesa e as botas de abas muito largas. Em contrapartida, as rendas da gravata, realçadas por pérolas, e as dos punhos seguiam o gosto francês.
Os abundantes cabelos negros, que emolduravam o rosto marcante e costurado, conferiam-lhe uma máscara de pirata, num inquietante constraste com o refinamento e a elegância de sua aparência, e a luz clara que brilhava em suas fontes sublinhava com uma suavidade inesperada sua tez escura de aventureiro, queimado pelo sol e pelo vento. Estaria dissimulando uma palidez sob essa cor, uma emoção sob os traços impassíveis, um sofrimento sob o olhar ousado e penetrante que neles pousava sem se desviar? Ninguém poderia descobrir! Foram eles que desviaram o olhar, parecendo sofrer mil mortes.
Uma lição!, repetiria amiúde mais tarde o flibusteiro Gilles Va-nereick, uma lição! Eis o que nos deu naquela noite aquele Peyrac! A nós, machos, que desde o nascimento e devido à nossa espécie estamos destinados a um dia carregar cornos... Eu lhes afirmo!... Jamais se viu um corno mostrar ao mundo tanta altivez!...
- Senhores - disse-lhes Peyrac -, sabem que devo partir em guerra e ignoro a sorte que o céu me reserva. Ora, a tempestade ameaça em todos os pontos do horizonte. Ao menos posso deixar-lhes o conhecimento exato de uma situação que sua coragem, seu bom senso, sua habilidade, devem poder ajudar a enfrentar. E, acrescentarei, sua vontade de paz. Não temos inimigos. Isso pode fazer sua força. Dirijo-me particularmente a vocês, senhores de La Rochelle, pois é a vocês que entrego neste momento a sorte desta colónia e sua defesa por terra. O Sr. d'Urville deve acompanhar-me, assim como o Sr. Vanereick e nosso aliado inglês, Sir Sherrylgham, na perseguição desse pirata que já causou a todos tantos desgostos. Desta vez, é preciso acabar com isso. Combinaremos, pois, nossos planos de defesa, de perseguição e de ataque. E primeiramente faremos a conta e a divisão da munição de que dispomos.
Absorvidos pelos cálculos e planos, não viram a noite cair. Um espanhol entrou para acender as velas dos castiçais e do lustre de ferro trabalhado que pendia do teto.
Pouco a pouco, voltando aos gestos de costume, esqueciam o incidente da noite anterior. Assim, acredita'ram-se presa de um pesadelo que se renovava, quando a mesma sentinela da véspera passou o mesmo rosto assustado pela porta, gritando para Peyrac - Senhor! Há alguém à sua procura!
Mas desta vez não era CurtRitz, o pálido fugitivo das mãos do pirata.
Desta vez era Ela.
E ao se voltarem para o quadro escuro da noite, como uma aparição deslumbrante, eles A viram!...
CAPITULO XIII
A chegada de Angélica interrompe reunião do conselho em Gouldsboro
Deslumbrante, ela os olhava com um radiante sorriso. E rapidamente seus olhos buscaram no canto da peça a alta estatura do Conde de Peyrac. Joffrey. Num traje que ela não conhecia. Ele estava lá...
Todos, petrificados, contemplavam-na sem uma palavra.
O matiz aveludado e dourado do grande manto de lobo-ma-rinho que a envolvia avivava-lhe a carnação quente, e, contra a noite, sua cabeleira tinha um brilho tão claro, que se diria uma auréola.
Fora o pequeno Laurier Berne quem conduzira Angélica até a porta da grande sala do forte, onde sabia que o pai e as pessoas importantes do lugar, bem como o flibusteiro e o almirante inglês, mantinham-se em conselho com o Conde de Peyrac.
Ela não estava se encontrando dentro do novo aspecto de Gouldsboro. A praia quase deserta formigava no ano anterior, até na penumbra da noite, com tanta vida, que ela se teria acreditado numa outra colónia se não tivesse logo encontrado suas amigas Abigail e Severina Berne.
A impaciência de estar com seu marido o mais cedo possível, e de assegurar-se de sua presença em Gouldsboro, não a fizera discernir de imediato a perturbação e a frieza com que a acolheram as duas mulheres. Mais tarde pensaria nisso e compreenderia a causa. Mas o pequeno Laurier surgira, um cesto de mariscos ao ombro, e lhe saltara ao pescoço com a petulância de seus dez anos. "Dame Angélica! Oh! Dame Angélica!... Que felicidade!..."
A seu pedido, ele a guiara nos meandros da nova Gouldsboro. Ao chegarem aos limites do fortevpassaram por um homem com uma alabarda.
— É o suíço - cochichara Laurier -, chegou ontem à noite...
— Ei! rapaz! já não o vi antes? --- interpelou-o Angélica, com um mal-estar diante do olhar feroz que ele lhe atirou ao passar.
- De fato, senhora! - respondeu. - Já me viu antes.
Havia desprezo em sua voz germânica.
Mas já Laurier fazia-a galgar os degraus de madeira, e a porta da sala do Conselho abria-se diante dela.
Em meio ao profundo silêncio - silêncio esmagador do qual logo sentiu o insólito - ela avançou. 'Rostos conhecidos, rostos de pedra...
- Saudações, Sr. Manigault... Oh! Mestre Berne, como estou contente em revê-loC Caro pastor, como está?...
Entre os reformados de gibão negro, desconhecidos vistosos, um flibusteiro francês, um oficial inglês, além de um recoleto de burel cinza...
Ninguém!...
Ninguém respondia. Ninguém... Ninguém... Olhos seguiam-na. E toda essa gente...
Todos imóveis como santos de madeira, e o próprio Joffrey, sem um movimento, vendo-a chegar.
Ela estava diante dele, e seus olhos buscavam em vão encontrar os dele. No entanto, seu olhar estava sobre ela, com uma fixidez estranha e sombria. Um pesadelo! Joffrey inclinou-se sobre a mão que ela lhe estendeu, mas ela não sentiu os lábios dele sobre sua pele, era apenas um simulacro de cortesia...
Ela se ouviu-perguntando com uma voz distante, que lhe pareceu trémula:
- Que se passa? Aconteceu alguma desgraça em Gouldsboro?
Então a assembleia voltou a si. Todos, um a um, se inclinaram e se retiraram. Ninguém pensou em sor-rhv Na mesma atmosfera de catástrofe da véspera, o mesmo cerimonial recomeçara. E lá fora:
- Era ela? - perguntou Gilles Vanereick, ofegante.
- Ora! Quem você queria que fosse? - resmungou Manigault.
- Oh! mas, é que... ela é admirável! E maravilhosa!... Isso muda tudo... Como quer que uma mulher tão bela não faça conquistas a cada passo e não sucumba por vezes aos amores que desperta?... Seria imoral... Eu mesmo me sinto... Oh! meu Deus, que irá acontecer agora?... É assustador! Tomara que... Não, ela é demasiado bela para que ele a mate... Minhas pernas não podem mais comigo... Sou muito sensível, você sabe...
E teve que se sentar sobre a areia.
CAPITULO XIV
Bofetada por um amor maldito
-Que aconteceu? - repetiu Angélica, voltando-se para o marido. - Alguém morreu?
- Talvez!... De onde você está vindo?
Com os olhos erguidos para a fisionomia tenebrosa e glacial de Peyrac, ela buscava compreender.
— Como? De onde estou vindo?... Yann não pôde encontrá-lo? Não lhe disse que...
— De fato, disse-me... Disse-me que você era prisioneira de Barba de Ouro... Disse-me ainda muitas coisas mais... E Curt Ritz, também.
— Curt Ritz?
— O mercenário suíço a meu serviço, e que Barba de Ouro igualmente capturou no mês passado... Ritz conseguiu evadir-se há três dias... Antes a havia visto no navio de Barba de Ouro... Fugiu numa noite, pelo castelo de popa... A janela estava aberta... Ele a viu... no navio... no quarto dos mapas... com ele... com ele...
Joffrey de Peyrac falava com voz entrecortada, surda e terrível, e, a cada palavra, a verdade surgia na mente de Angélica.
Paralisada pelo excesso de uma aterrada surpresa, via essa verdade avançar para ela como um animal monstruoso, real, prestes a saltar, com as garras à mostra para rasgá-la atrozmente... O homem!... O homem que naquela noite fugia na baía de Casco... então era o mercenário suíço... Um servidor de Peyrac... E ele a vira... Vira Colin entrar e tomá-la nos braços...
- A janela estava aberta - prosseguiu a voz grave e como que distante... - Ele a viu, minha cara! Você estava nua... Nua nos braços de Barba de Ouro, e correspondia a seus beijos... suas carícias... a ele... a ele!...
Que esperara ouvir como eco?... Um grito de indignação, negativas veementes, uma risada, talvez?... Mas não!... O silêncio!
Um silêncio como esse!... A coisa mais terrível após tais palavras.
E no silêncio que caía gota a gota, um segundo trazendo ao outro seu peso de chumbo, Joffrey de Peyrac acreditou morrer de dor.
O tempo passava. Passara o instante... da salvação. Cada segundo caíra como chumbo fundido. Consagrando o inelutável. Ratificando a confissão... traída ainda pela lividez súbita, pela expressão acuada dos grandes olhos dilatados.
O cérebro de Angélica era incapaz de reunir dois pensamentos. Tudo se entrechocava numa névoa terrível.
"Colin! Colin!... É preciso dizer-lhe que era Colin... Não!, será pior... Ele já o odiava antes..."
Mesmo que quisesse, ela seria incapaz de dar a menor explicação, de pronunciar a mínima palavra. Sua garganta não conseguia deixar passar um único som. Ela tremia com o corpo inteiro. Um desfalecimento acometeu-a. Teve de se apoiar à parede e fechar os olhos. E vê-la baixar assim as pálpebras com a expressão terna, dolorosa e secreta que sempre o perturbava, e por vezes o irritava, desencadeou a cólera do conde.
- Não baixe os olhos! - rugiu, quebrando a mesa com o punho. - Olhe-me!
Pegou-a pelos cabelos, obrigando-a com brutalidade a inclinar a cabeça para trás.
Ela acreditou que ele lhe houvesse partido a nuca. Inclinado sobre ela, vasculhava com seu olhar ardente o rosto que para ele se tornara indecifrável, estranho. Ele talvez estivesse falando, mas ela não o ouvia mais. "Então era verdade! Você!... Você!... Você, que eu colocara tão alto!..."
Ele a sacudia furiosamente, com o desejo arrebatado de quebrar a falsa imagem que ela lhe oferecia, e de reencontrar a outra, a outra sua bem-amada.
E súbito bateu-lhe com toda a força, com tanta violência que a cabeça de Angélica balançou, indo chocar-se com a parede de madeira. Um véu vermelho espalhou-se diante de seus olhos. Ele deixou-a, rejeitou-a. Ela não sabia como conseguia permanecer em pé.
Joffrey de Peyrac caminhou até a janela, olhando através da vidraça a noite úmida, respirando com força a fim de recobrar o controle de si mesmo.
Quando se voltou novamente para sua mulher, ela continuava imóvel, com as pálpebras fechadas. No canto do frágil nariz, um delgado filete de sangue começou a brotar lentamente.
- Saia! Saia daqui! - disse ele com voz glacial. - Sua visão me repugna. Saia, estou dizendo! Não quero mais vê-la! Não quero... sentir-me tentado... a matá-la...
CAPÍTULO XV
Angélica sente-se só
Ela vacilava, tropeçando, chocando-se com os cantos das paredes, com móveis desconhecidos, na semi-obscuridade de um quarto onde a luz filtrava incidentalmente, entre duas nuvens, sua luz pálida. A necessidade de se esconder e de desaparecer para sempre lançara Angélica para dentro do forte de madeira, e ao invés de enfrentar o grande vento de fora, os rumores da aldeia, a terrível solidão do espaço sem refúgio em meio a seres hostis, um instinto de animal ferido, que se enterra para morrer, levara-a por entre corredores e escadas até aquela peça vasta e fechada, e, sem reconhecê-la, ela sabia que era o quarto "deles", onde se haviam amado no ano anterior, onde ela havia sonhado reencontrar-se com ele.
Ela tateou, chocou-se com ângulos duros, deteve-se por fim no meio da peça, e então lhe chegou, no centro do caos infernal que a esmagava, o primeiro ruído perceptível, de dois sopros entrecruzados que se espalhavam ao seu redor, e que não eram - ela por fim se deu conta após um momento de espanto - senão o eco de sua própria respiração convulsiva e o da ressaca lá fora, batendo no quebra-mar rochoso ao pé do forte.
Ela estava só.
O medo, que por um instante nela dominara qualquer outra percepção, deixou-a, dando lugar a outra certeza, esmagadora, a de uma irreparável catástrofe. Metade da cabeça parecia-lhe enorme, com uma excrescência disforme, como nas abóboras, parecendo irradiar-se como um tumor de ferro incandescente. Ela levou para ali a mão com cautela, encontrou uma carne insensível, mas não havia tumefação; no entanto, o simples toque de seus dedos atravessou-a com uma dor lancinante. No mesmo lampejo, tudo voltou com lucidez implacável. ColinL. Seus braços enlaçando-'a, as mãos buscando seu corpo, os lábios tomando os seus para um beijo interminável.
Tudo isso, o homem escondido vira à luz da vela... E agora Joffrey sabia... Acusava-a do pior!... Como fazê-lo compreender, explicar-lhe, fazê-lo admitir que...
Ao simples nome de Colin, ele a mataria. Quase a matara nessa noite. Isso ela sentira na carne arrepiada, incapaz de reagir, de esboçar o menor gesto de defesa. Ele tinha então o poder de aniquilá-la, de reduzi-la a nada. Porque ele, para ela, era tudo!
Ela permanece"u assim no escuro, mal respirando, temendo despertar, junto com uma der ffsica-lancinante, os fragmentos de uma visão atroz: Joffrey! Joffrey é seu semblante terrível, os reflexos de seu colete, que sob seus movimentos deixava entrever nas pregas de ouro e de_ cetim marfim um forro escarlate; e fora como se ela ali tivesse visto moverem-se, rolarem sem cessar, gotas de sangue, lágrimas.de sangue. Era sangue a jorrar, sangue!, agora em seu próprio rosto. Seus dedos estavam pegajosos, e em seus lábios insensíveis a língua encontrava um.sabor salgado. Ela o sentia com uma espécie de incrédulo espanto. Ele lhe batera!...
Batera-lhe, e ela o merecera! Assim, um abismo sem fundo abrira-se sob ela...
Emboscada na escuridão, ela tremia com o corpo todo e contemplava o precipício aberto, e o medo novamente rastejava com mil demónios a surgir do abismo e. a arrastar-se para ela com risos escarninhos, olhos reluzentes...
Isso viera muito rápido, na hora em que ela verdadeiramente acreditara que o tempo passado em Wapassu ligara-os para sempre, que seu amor era infalível, inatacável, indestrutível.
Viera como um furacão, como um terremoto, e ao mesmo tempo sorrateiramente.
Uma besta vomitada do inferno, e da qual ela não avistara a tempo os olhos cruéis, rastejara até eles e os atacara.
Uma armadilha fechara-se sobre ela - sobre eles --, da qual ela não discernia exatamente a natureza e a disposição, mas cujas tenazes, começava a sentir, esmagavam-na cruelmente, Tão hábil havia sido a aproximação, que ela e Joffrey haviam sido atingidos, desde o primeiro golpe, em pleno coração.
"Joffrey! Joffrey!, venha, peço-lhe!... Não me deixe só! Tenho medo!"
O quarto pululava com sombras perigosas, e simultaneamente ela media a distância intransponível que acabava de se estender entre ela e ele, ele, seu esposo querido, que ela mortalmente ofendera.
Uma garra pegava-a pela garganta, apertava-a, sufocava-a. E para não desmaiar ela comprimia com ambas as mãos a boca tume-fata, ao mesmo tempo para sufocar as queixas que queriam jorrar e para despertar, através das dores de um sofrimento intolerável, sua consciência, que se afundava, até que finalmente, sob o efeito da dor e de uma visão demasiado fulgurante de tudo o que perdera, com soluços infantis, desesperados, seu sofrimento explodisse... "Se ele não me ama mais... se não me ama mais... o que acontecerá comigo?"
CAPÍTULO XVI
Peyrac entre o anior e o ódio
O instante-que ele acabava de viver parecia-lhe o mais terrível de toda a sua existência.
Dois homens dentro dele,' delirantes, furiosos, haviam dividido o seu ser. E se .não a tivesse expulsado, teria podido resistir por mais tempo ao desejo - tàô poderoso como o de matá-la - de tomá-la nos braços?... Dois seres dentro dele, nesses terríveis minutos, haviam partilhado seu corpo, seu sangue, sua alma, dividindo-o em um ser sedento de vingança e outro, de adoração e volúpia. "Suas veias carreavam em conjunto o ódio e o amor.,
E enquanto a agarrava pelos cabelos, sua mão não lhes desfrutara a fina suavidade, a tepidez macia? E quando ele se debruçara sobre ela, sobre o rosto inclinado para trás, sobre a fronte vasta e lisa como uma praia nacarada, os lábios dele, que cuspiam palavras tão cruéis, não haviam tido o desejo ardente de ali pousar com beijos apaixonados?... E um-pensamento atravessou-o num lampejo: "Que bela fronte ela possui!..."
Assim assolado por correntes de cólera e desejo, ele permanecia tremendo, humilhado, sacudido por um furor contra ela, a quem devia a revelação de um outro eu nele mesmo, que ele descobria capaz da mais cega violência, de-irresistível fome carnal, de covarde indulgência, capaz de se abandonar ao ímpeto dos sentimentos, em toda a sua irracionalidade...
Uma soberba criatura para o amor!... Eis o que ele pensara. Eis o que todos pensaram, quando ela surgira no limiar da noite, e a evidência de sua beleza e feminilidade golpeara-os de tal modo que, num fugidio instante, rancor, suspeitas, indignação, desprezo, desconfiança, se apagavam, permanecendo apenas, para esses homens surpresos e subjugados, o encanto indizível de sua presença. . Uma soberba criatura para o amor!... O machos idólatras, imbecis e sensuais! Sempre prontos a ajoelhar-se diante da deusa!...
Um movimento irrefletrdo levou Joffrey dé Peyrac para fora, para o silêncio da noite profunda.
Nuvens passavam sobre a lua de prata fosca, e em sua luz perfilavam-se as sombras negras dos mastros balançados pela água do porto. Fogueiras tremulavam ao vento, as únicas a se animar, junto com o passo lento de algumas sentinelas.
O mundo estava morto.
Onde ela estava? "Angélica! Angélica!... meu amor!"
Ele entrou no forte e,- com saltos silenciosos, galgou a escada de madeira. Atrás da porta, ouviu-a soluçar alto. E ali permaneceu, queimado e devorado novamente por uma chama selvagem, o corpo tenso até a dor com a tentação que o dilacerava. Desejo de empurrar a porta, de entrar, de estar a sós com ela, de inclinar-se sobre ela, de tomá-la, abraçá-la e esquecer, esquecer na felicidade dos gestos, das carícias, do murmúrio das vozes, das respirações a se cruzar, a se trocar, dos beijos, das palavras ardentes sussurradas baixinho: "Meu amor! Meu amor! não é nada!... Eu te amo!...", de esquecer, esquecer tudo...
Voltou a ficar só, na sala de baixo, onde os círios derretiam-se nos tocheiros, a fronte apoiada à janela onde a aurora empalidecia.
Não, Angélica não faria dele um homem enfraquecido, subjugado ao poder de uma mulher indigna!
Não, isso nunca!
Por que ela chorava tão alto?... Lá em cima... Não sabia o que estava fazendo ao se entregar às carícias do outro, do homem desconhecido?... Ela, que ele colocara tão alto! Não sabia o que estava destruindo?... Não! Não! Ela não o sabia!... Fêmea! Fêmea inconsciente, como as outras!
"Elas" querem tudo. Destroem tudo!
"Jamais deveria ter-lhe perdoado antes... Todas iguais!... Todas iguais!..."
Quando a maré estivesse alta, ele singraria para o largo com seus navios, encontraria Barba de Ouro, persegui-lo-ia até o fundo das Caraíbas... e antes de matá-lo com as próprias mãos, arrancaria daquela face desconhecida e execrada o véu do passado. Saberia a que coitro homem Angélica mostrara seu rosto de amante.
'Ah! se pudesse arrancá-la de meu coração! Consegui-lo-ei, se for preciso."
Uma criatura soberba!...
O Gouldsboro trouxera vestidosda França para ela.
Ele foi até um cofre no fundo da peça e abriu a tampa. Suas mãos ergueram tecidos de ondulados cintilantes, rendas vaporosas, e maquinalmente seus dedos conferiram às pregas pesadas de uma saia e de um corpete a forma abandonada de um corpo de mulher.
"Como ficaria bela dentro deles! Esse tecido rosa-prateado ao redor de seus ombros de rainha!... E eu a teria levado a Quebec comigo... e ela triunfaria sobre todos!..."
Seus dedos crisparam-se sobre a sombra feminina, que pareceu fanar-se e apagar-se, expirar sob'a força dele.
Com um gesto incontrolado, levou o tecido amarrotado ao rosto e ali permaneceu longo tempo, como que ausente e desorientado, respirando com nostalgia o leve perfume de flores e de mulher que se exalava dos suntuosos adornos.
Na névoa da manhã, silhuetas acorriam ao encontro dele.
- Senhor! Deus está conosco. O navio de Barba de Ouro, aquele maldito, não está longe... Acabam de assinalar sua presença no arquipélago.
A DERROTA-DE BARBA DE OURO
CAPÍTULO XvlI
Angélica chora pelos feridos e moribundos
Havia muitas, crianças em Gouldsboro. Estavam sempre descalças, num alegre enxame, oS cabelos das meninas flutuando sob os bonés redondos ou as toucas brancas, os dos meninos, ao vento, saias e calçai arregaçadas para melhor patinhar no mar, trepar nas barcas, saltar na areiaTcorrer atrás dos lobòs-marinhos, engolir um marisco, um ovo de gaivota, sugar uma flor... Em grupo, com os indiozinhos nus, voavam por todo lado.
Curiosos, colavam as carinhas,nas pranchas do armazém para tentar ver por entre as frestas os piratas prisioneiros, depois corriam ao porto para admirar o belo quadro com iluminura que se balançava na proa do Coeur-de-Marie, o navio capturado naquela manhã, depois buscavam água na fonte da floresta e ajoelhavam-se para dar de beber aos feridos.
O dia em Gouldsboro acabava com a derrota de Barba de Ouro.
De manhã, Angélica fora despertada pelos estrondos distantes de um canhoneio.
Com a alma e o corpo doloridos, não compreendia onde estava, e levou algum tempo para entender que se achava em Gouldsboro. Contemplara então ao espelho Q. rosto tumefato. Um lado inteiro estava azul, preto, e o canto da boca, inchado. Movia a cabeça com dificuldade. Dera uma volta pelo quarto, descobrira roupas numa arca, as quais ela havia guardado no outono, antes de deixar o forte, vestira-se e penteara-se, a mente entorpecida.
Precisava achar uma pomada, um bálsamo, qualquer coisa para atenuar o machucado que a desfigurava.
Abrindo a janela, vira ao longe navios que corriam sob o vento, na borda de um céu franjado de chuva, em cujo cinza por vezes explodia um clarão vermelho. Depois chegou-lhe o ruído da deflagração. Um combate naval se desenrolava diante de Goulds-boro, aparentemente três ou quatro navios assediando um único adversário, que, após furtar-se habilmente ao ataque, fugia, perseguido, as velas içadas, deixando o campo de visão de Angélica.
Pouco depois, uma voz de mulher chamou-a do interior da habitação.
- Dame Angélica! Dame Angélica!... Onde está? Ah! Ei-la aqui! Deus seja louvado! Venha, venha rápido!, cara senhora! Há feridos! Sangue por todo lado!
Na mulher miúda que assim a abordava, Angélica reconheceu a Sra. Carrère, de La Rochelle, que emigrara no ano anterior para o Novo Mundo com seus dez filhos e o marido advogado.
— Que acontece? Por que os feridos?
— Eles acabam de ajustar contas com o maldito Barba de Ouro.
— "Eles" quem?
— O conde, o flibusteiro Vanereick, o almirante inglês, todos enfim, ora, todos os que haviam jurado obrigar esse celerado a pedir clemência! Soube-se esta manhã que ele novamente rondava pelas ilhas. O conde logo se pôs a navegar, à caça do pirata. Acuaram-no numa batalha. O Sr. d'Urville acaba de trazer a notícia da vitória. Mas parece que a abordagem foi uma verdadeira carnificina... Os navios estão voltando ao porto com sua presa e todos os feridos. O Sr. de Peyrac mandou-nos pedir sua presença, e que avisássemos para que pudesse cuidar de toda essa pobre gente.
— Está certa de que meu marido pediu que me avisasse?
— Mas claro! Que se faria sem você? Parece que o cirurgião do Sans-Peur também foi ferido e não pode desempenhar seu ofício. Quanto a nosso médico, Parry, você o conhece. Não é de grande ajuda nessa carnificina... Senhor! Que lhe aconteceu?... Está toda machucada!
— Não é nada!
Angélica levou a mão à face.
- Eu... eu naufraguei perto da ilha Monégan e choquei-me com um rochedo... Espere-me, vou com você. É só o tempo de pegar minha bolsa e nela colocar alguns instrumentos indispensáveis... Tem ataduras de reserva?...
Reuniu metodicamente o necessário, agindo como um autómato, embora em sua mente pensamentos torturantes se chocassem.
Colin... Colin morrera pela mão de Joffrey de Peyrac... Se à noite ela houvesse falado... Se tivesse tido a coragem de falar... Mas não, era impossível! Ela nada podia dizer, nada explicar... E agora Joffrey de Peyrac matara Barba de Ouro... Pedia-lhe que tratasse dos feridos... Lembrava-se então que ela existia. Por quê? Planejava outra vingança? E sejosse para jogar o cadáver de Colin em seu caminho? Não poderia suportá-lo. Não poderia impedir-se de cair de joelhos, de tomar a cabeça de Colin nas mãos e de chorar.
- Meu Deus! - rezou'<- faÇa que Joffrey de Peyrac não cometa essa maldade. Oh! Meu Deus, como é possível que tenhamos nos tornado tão súbita é completamente inimigos?
Precipitando-se pela escada~atrás da Sra. Carrère,' correu até a praça, para onde os.habjtantes levavam colchões de sargaços, baldes de couro com água doce, cobertas. Das chalupas, começavam a baixar e estender por terra os primeiros feridos, que gemiam ou cuspiam sonoras imprecações.
A continuação dessa manhã foi um pesadelo em que Angélica não pôde pensar em outra coisa a não ser fazer talhos em corpos, costurar, medicar, correr de um a outro, pedir ajuda, organizar um lazareto, enviar crianças em todas as direções, em busca de plantas, lençóis, água, rum, óleo, fio, agulhas, tesouras.
Com as mangas erguidas, sangue até os cotovelos, durante horas ela não deixou de enfrentar intervenções urgentes, assumindo a responsabilidade de diagnosticar a gravidade dos ferimentos e de indicar os cuidados a serem ministrados e os remédios a serem preparados. Rapidamente voltava ao seu redor a ordem de antes. Reconhecia as mulheres, que espontaneamente se colocavam à sua disposição. Abigail, diligente e eficaz apesar da gravidez, a Sra. Carrère, ativa, as jovens prontas e obedientes, corajosas diante da morte e do sofrimento, à imagem das mais velhas. Súbito, Tia Ana colocou-se perto dela, passando-lhe instrumentos cirúrgicos, precisa e ativa, e também a velha Rebecca, que consolava um moribundo.
Um rapazinho seguia-a por todo lado com uma grande bacia de cobre, da qual renovava a água para que ela pudesse lavar as mãos e ali mergulhar pedaços de pano. Só ao cabo de certo tempo ela reconheceu Marcial, o filho mais velho de Mestre Berne.
Ela retomara de imediato seu lugar entre eles. Mas enquanto se afadigava com sua diligência habitual, sua viva sensibilidade discernia nuanças em seu comportamento para com ela. Um leve tom de desprezo na voz, lábios de repente comprimidos, um olhar hostil... Talvez fosse impressão... Não! As pessoas de Goulds-boro sabiam... Todo mundo sabia.
A Sra. Carrère, no entanto, mostrara-se simples e cordial. Mas jamais fora maledicente. Não fazia caso do boato que começava a correr em Gouldsboro, de que a Condessa de Peyrac enganara o marido com o pirata... Os olhos furtivos que seguiam Angélica nessa manhã, enquanto ela trabalhava, infatigável, suputavam a amplitude ou a possibilidade de calúnia... Ora, o mais terrível é que não se tratava de calúnia, mas de uma verdade... ou meia verdade. Ela estivera nos braços de Barba de Ouro, respondera a suas carícias. Quisera poder gritar ao mundo que não era culpada. Negá-lo a si mesma. Voltar a ser "como antes". Inclinava-se sobre os ferimentos com infinita compaixão, pois também sentia uma ferida aberta, a cada instante, mais dolorosa, e quisera que a mão condoída de alguém nela pousasse. Mas ninguém teria esse gesto.
- Ah! senhora, salve-me - suplicavam os mais feridos.
Mas ela, junto a quem poderia implorar: salve-me?
Sua dor era das que não merecem compaixão. E ela a sentia atravessá-la em instantes repentinos, tão cruelmente, que quase a paralisava.
"Joffrey já não me ama... Como pude fazer isso a ele, tão bom, tão maravilhoso? Humilhá-lo assim, diante do mundo?... Jamais me perdoará. Pediu-me que tratasse dos feridos... Por quê? Mas claro, porque precisava de mim. Seus homens primeiro, seu rancor depois... Bem o reconheço por isso... Mas depois me expulsará, repudiará. Não desejará mais ver-me... Gritou: Não quero mais ve-la.
Apesar de tudo, nessa obrigação de trabalhar para ele, a seu lado, de qualquer forma ela sentia a impressão de uma trégua. A ideia de que ele mandara chamá-la despertava nela uma vaga esperança.
Ele fizera que a chamassem. Lembrara-se dela. Então, ela ainda contava. Dedicou-se com mais fervor à tarefa.
Os infelizes, gritando os sofrimentos sobre os quais ela se debruçava, enquanto os tranquilizava e encorajava, acreditavam ver descer sobre eles um anjo do céu, e se acalmavam assim que ela lhes pousava a mão.
— É a Sra. de Peyrac? - perguntavam os que não a conheciam.
— Sim - gritavam os outros. - Você verá, ela o curará.
E toda essa confiança em torno reanimava a coragem de Angélica, acalmava pouco a pouco seu tormento íntimo, ajudava-a a erguer a cabeça, embora consciente do rosto turnefato, e agora coberto de suor.
Ela aplicava o ouvido, buscava fragmentos de conversa sobre o desenrolar do -combate.
Mas ninguém falava na. morte de Barba de Ouro.
Somente do horrível e sangrento combate entre as equipagens, após a abordagem na ponte do Coeur-de-Marie. "E o Sr. de Peyrac foi o primeiro a saltar.
No meio da manhã, os navios entraram na enseada ladeando a presa.
Inclinado para o lado, com os mastros decepados, cercado de uma fumaça lenta como uma nuvem de maldição, a nave de Barba de Ouro encostou-se em uma ilha no meio da baía.
Conduzidos por chalupas, os prisioneiros começaram a subir a praia, rodeados pelos marujos do Gouldsboro e os soldados da guarnição.
O Sr. d'Urville fê-los conduzir ao celeiro de milho, construção rústica mas bastante vasta, munida de uma só saída, o que facilitaria a guarda.
Enquanto era arrastado, um dos piratas cativos urrava como um possesso.
- Deixem-me, imbecis, assassinos! Estou ferido, muito ferido!... Vão fazer-me morrer.
Angélica aplicou o ouvido a esse timbre gritante e reconheceu o inefável Barriga Aberta, seu operado da baía de Casco.
Foi ao encontro dos homens.
— Esse patife diz a verdade. Não o façam caminhar! Deitem-no aqui.
— Ah! cá está, enfim, não é sem tempo! - gemeu Beaumarchand. - Para onde partiu, senhora? Não foi bonito abandonar-me com essa costura atravessada na pança.
— Cale-se, crápula! Você mereceria mil vezes que o diabo o carregasse, depois da partida que me pregou.
Mesmo assim examinou-o e verificou, satisfeita, que a monstruosa cicatriz de Aristides Beaumarchand tinha um aspecto sadio e estava em vias de cura. Um verdadeiro milagre, pois seus companheiros do Coeur-de-Marie não pareciam ter-se preocupado muito com ele, desde que o tomaram a bordo.
- Como me fez falta, senhora! Ah! Pode-se dizer que fez falta! - repetiu. - Deixaram-me apodrecer a um canto, com os ratos, como uma coisa velha...
Ela removeu as compressas, enfaixando-o como a um recém-nas-cido, e deixou-o à espera na areia.
Pouco mais tarde, ajoelhou-se junto ao Sr. de Barssempuy, para cuidar de seu ombro, cortado por um facão. Era o nobre imediato de Barba de Ouro, que a capturara em Maquoit. Hoje seu rosto estava negro de pólvora, e sua expressão, cansada.
- Seu capitão, Barba de Ouro, onde está? - perguntou a meia voz. - Que destino teve ele? Está ferido? Morto?
Ele lançou-lhe um olhar amargo e desviou a cabeça.
Ela permaneceu preocupada, atormentada pela inquietação.
O sol estava em seu zénite. O calor aumentava o sofrimento e a fadiga.
Nesse meio tempo alguém veio em busca da Sra. de Peyrac, pedindo-lhe o obséquio de ir a bordo do navio pirata a fim de determinar, entre os mais feridos, aqueles que se poderia arriscar a transportar a terra, ou os que era melhor deixar morrer onde estavam.
Ela para lá se dirigiu a bordo de uma chalupa, acompanhada de Marcial, que continuava a carregar sua sacola de emergência, um tonel de água doce e a bacia de cobre. A portinhola do navio, um homem de gibão negro esburacado, avermelhado pela pólvora, e com uma peruca roída pelas traças, colocada de modo divertido, atravessada na cabeça, acolheu-a e guiou-a claudicando para a bateria.
- Sou Nessens, o cirurgião do Sr. Vanereick. Uma bala caiu na despensa do navio onde eu estava operando... Quanto a meu colega do Coeur-de-Marie, encontraram-no duro e morto sobre um amontoado de cadáveres. Assim, muitorferidos estariam em má situação sem sua presença em Gouldsboro, senhora. Assim que se soube que a senhora estava em terra, os feridos cobraram coragem, e dei ordem para que evacuassem o maior número de pessoas possível, para entregá-las a suas mãos, já que eu estava impedido de realizar minha tarefa. Sua reputação é tal que começa a atravessar os mares. Quanto a mim, contentei-me em limpar hoje três navios. Mas há alguns pobres rapazes sobre os quais não posso me pronunciar...
Era difícil mover-se a bordo da nave, cuja ponte se inclinava num ângulo inquietante. Barricas de cidra haviam sido furadas e a bebida acre corria por todo lado, misturada ao sangue. Patinhava-se e escorregava-se nessa mistura infecta, e era preciso agarrar-se às coisas para avançar.
Mas ordens haviam sido dadas para impedir que o navio atingido soçobrasse, e ouviam-se os gritos e interjeições das equipes trabalhando.
- O estrago maior foi neste navio ~»explicou Nessens. - Fomos quatro a abordá-lo. O navio do Sr. de Peyrac, o Gouldsboro e o Sans-Peur. Um pouco mais tarde, o pequeno iate Le Rochelais surgiu no local. Foi uma boa operação policial. A metade desses bandidos está fora de combate.
O cirurgião era jovem, na faixa dos trinta anos. Ao ver que na França sua habilidade de cirurgião não lhe dava qualquer direito de praticar, pois pertencia à religião reformada, não encontrara outro recurso a não ser exilar-se e abraçar a perigosa profissão de cirurgião a bordo dos navios piratas. Após examinarem os pobres moribundos, Angélica propôs-se a tratar dele próprio convenientemente. Ademais, notando que a claudicação não se devia a um ferimento, mas um deslocamento nó" quadril que ele sofrera ao cair no momento do bombardeio, ela o colocou no lugar, massageou-o fortemente para pôr em ordem os nervos distendidos e deixou-o quase bom.
Na ponte que ela atravessava não sem dificuldade, a fim de desembarcar, uma voz fraca chamou-a:
- Senhora! Senhorita!...
Um homem jazia semi-esmagado contra o abrigo da proa, escondido por rolos de cordas que haviam deslizado até ele. Devia ter passado despercebido na desordem e no vaivém de após a batalha. Ela o desprendeu e puxou-o um pouco mais para cima, apoiando-o ao pé do mastro do traquete. Em sua face amarela, imensos olhos negros fixavam-na e não lhe pareciam desconhecidos.
— Sou Lopes - disse num sussurro.
— Lopes... Lopes?
Ela buscou na memória. Ele a esclareceu, com um vago sorriso nos lábios acinzentados:
- A senhora sabe... Lopes!... lá longe. As abelhas...
Ela lembrou. Era então um dos flibusteiros de quem se defendera atirando-lhes uma colmeia de abelhas na cabeça. Hoje, recuperado pelo navio de Barba de Ouro, ele vivia sua hora derradeira.
- É no ventre - murmurou. - Fará algo por mim, como a Beaumarchand? A senhora o costurou, eu vi. E agora ele pula como um coelho... Eu... Eu não queria morrer, senhora, por favor.
Era jovem ainda, o portuguesinho. Caça miserável dos cais de Lisboa, alimentado até os doze anos com poeira, sol e um punhado de figos. E depois o mar. E isso era tudo.
Por questão de consciência, Angélica cortou as calças já esticadas pela carne sulcada e putrefata, sujas de sangue, de sânie, de cidra, de água do mar. As órbitas fundas do homem já a haviam informado. Mesmo se se tivesse ocupado dele a tempo, ele não teria escapado.
- Fará algo por mim, não é mesmo? - repetiu.
Ela dirigiu-Ihe um sorriso tranquilizador.
-Sim, meu pequeno. Vou primeiro aliviar sua dor. Engula isto.
Pôs-lhe na boca uma das últimas pílulas que lhe restavam, com posta de mandrágora e dormideira.
Ele não conseguiu engolir, mas manteve-a na língua, e isso começou a entorpecê-lo um pouco.
— Você é um bom cristão, pequeno? - perguntou ainda.
— Sim, senhorita, sou.
- Então reze ao bom Deus e à Virgem Maria enquanto trato de você.
Cruzou-lhe as mãos sobre o peito e manteve-as assim, comunicando-lhe sua vida, seu calor, num último contato com o mundo que ele deixava? a fim de que não se sentisse só ao franquear a última soleira.
Suas pálpebras pesadas se reabriram.
- Mãe! Mãe! - sussurrou, o$ olhos fixos nela.
Ela largou-lhe as mãos, agora frias e inertes, fechou-lhe os olhos, depois cobriu o rosto do morto com-o fichuque nessa manhã amarrara apressadamente aos ombros. Jamaispuderapermanecer indiferente a essas mortes violentas dos homens em combate, a essas súbitas metamorfoses de seres vivendo,, rindo, agitando-se ao sol algumas horas antes, e que se transformavam de repente numa massa amorfa, ausente, para sempre desaparecida da terra, e breve, do coração de todos. No entanto ela matara por vezes com as próprias mão.Ç mas o llogismo da morte, sua irreparável crueldade, continuava a magoar cada vez mais profundamente sua sensibilidade feminina. Embora soubesse do pouco valor da pobre criatura que ali concluía seu périplo terrestre, algumas lágrimas orvalharam-lhe as pálpebras.
CAPÍTULO XVIII
Notícias de Colin - Inês, a cigana, na agitação do acampamento
Ao se erguer, ela se viu face a face com o Conde de Peyrac. Este, já há alguns instantes, permanecia em pé olhando a mulher debruçada sobre o moribundo.
Griles Vanereick, que o acompanhava nessa última inspeção, fora o primeiro a distinguir aquela cabeleira loura de mulher, finalmente uma visão suave após as horas rudes de combate; e ele pousara a mão no braço do conde. Suspendendo a marcha, ambos haviam-na contemplado, enquanto ela se inclinava sobre a face encovada do moribundo, e haviam surpreendido o murmúrio de sua voz compadecida: "Faça suas preces, meu pequeno!... Vou cuidar de você..."
Depois a viram persignar-se e tirar o lenço para cobrir o rosto do pobre rapaz. Lágrimas brilhavam em seus cílios. Diante de Jof-frey de Peyrac ela se desconcertou de tal modo que Vanereick teve pena. Ela se voltou com dificuldade sob o pretexto de lavar as mãos na bacia que lhe apresentava o jovem Marcial.
— Já indicou todos os feridos em condições de deixar o navio, senhora? - perguntou o Conde de Peyrac, sem marcar qualquer inflexão além de uma calma distante.
— Este está morto - disse, esboçando um gesto para o corpo estendido.
— Ah! Estou vendo - replicou ele secamente.
Ela lhe furtava obstinadamente o rosto, o machucado azulado que o marcava e que ela não cessara de sentir o dia toda Era a primeira vez que o via desde a horrível cena da véspera, e ela sentia uma sensação fria como se estivesse subitamente diante de um estrangeiro... Uma parede erguerá-se entre eles.
O nobre flamengo que acompanhava Peyrac parecia alegre e ingénuo. O gibão amarelo, com laços de fita flutuando ao vento, as plumas vermelhas de avestruz, os punhos e a gravata de rendas, adornavam-no ao gosto faustoso dos flibusteiros das Caraíbas. Em contrapartida, a face jovial estava nesse dia marcada por sulcos ensanguentados que o obrigavam a fechar em parte um olho.
A fim de disfarçar seu constrangimento, Angélica voltou-se para ele.
- Posso fazer alguma coisa pelo senhor?
Gilles Vanereick, encantado por conhecê-la mais de perto, concordou, pressuroso.
Ela fê-lo sentar-se mim .tonel virado para baixo, e enquanto Joffrey de Peyrac se afastava, ela limpou-lhe delicadamente os ferimentos, perguntando-se com que espécie de armas teriam sido feitos.
Ele fez uma careta e gemeu como um cãozinho.
— O senhor está com muito melindre para um nobre aventureiro - disse-lhe ela. - Quem é tão sensível assim não se deve envolver em combates.
— Sou capitão do Sans-Peur.
— Ninguém diria.
— Mas é que jamais fui ferido em toda a vida, cara senhora! Pergunte a sua volta, dir-lhe-ao que Gilles Vanereick sempre se safa sem um arranhão.
— Em todo caso, não desta vez.
— Desta vez também. O que está tratando com seus dedos de fada não é um" ferimento de guerra. Devo-o à raiva de Inês, ontem à noite.
— Inês?
— Minha amante! E ciumenta como uma tigresa, com suas garras pontiagudas, ficou despeitada ao rne~ver elogiar sem cessar sua deslumbrante beleza.
— Mas não o conheço, senhor!
— De fato... Estava ontem na sala do Conselho quando você surgiu. Mas não me sentirei vexado por não ter notado minha humilde pessoa, pois sei que não tinha olhos senão para o Sr. de Peyrac, seu esposo, além de meu caro e venerado amigo das Caraíbas.
Angélica, que lhe enrolava uma bandagem na fronte, conteve-se para não lhe puxar os cabelos, como vingança por sua ironia. O olho negro de. Vanereick espreitava-a, admirado, mas astuto o suficiente para notar no" lado do rosto encantador marcas azuis, ausentes na véspera.
Aparentemente, suputava ele, a cena fora violenta, e os dois esposos ainda estavam agastados, mas aquela mulher era demasiado bela para que as coisas não se arranjassem. Um pouco de ciúme apimenta os amores ardentes. Já vivera isso com sua Inês. E, tal como Peyrac, ele não gostava de dividir. Mas são acidentes aos quais está exposto quem se une a essas belas, que possuem todos os dons da natureza para fazer a felicidade de um homem, inclusive, atrair todas as cobiças.
A louca e errante Condessa de Peyrac tinha esse dom e sabia usá-lo; pior para Peyrac!...
Com as narinas frementes, Vanereick deleitou-se - enquanto ela lhe limpava com delicadeza os arranhões - com seu perfume leve e fugaz de feno cortado, um delicioso odor de mulher, para dizer tudo, de uma verdadeira loura, e que despertava a vontade de procurar mais demoradamente os mistérios de sua pele dourada.
Aproveitando a pretensa fraqueza de combatente, ele deslizara, ao sentar-se, a mão pelo quadril de Angélica. Ela possuía um talhe esplêndido, mas ele pôde apenas roçá-la, pois ela logo se furtou.
Ele disse consigo que, nua, ela deveria revelar curvas opulentas, e no entanto parecia, pela graça e flexibilidade dos movimentos, mais magra que a realidade do corpo esplêndido, escondido sob as roupas. O olho adestrado do jovem corsário adivinhava a linha perfeita de um corpo que, da nuca aos rins, devia ser só de linhas harmoniosas. Um misto de Vénus e Diana Caçadora. Em todo caso, extremamente vigorosa! Deu-se conta disso quando, com uma simples pressão do punho, ela interrompeu-lhe o devaneio sem apelação e colocou-o em pé num só gesto, como faria com um bebe que achasse mole demais.
— Ei-lo curado dos rancores de Dame Inês, meu caro. Amanhã isto já se terá apagado! Ele dirigiu-lhe com o olho inchado uma piscadela de conivência.
- Desejo o mesmo para vocês belíssima dama! Vejo que ontem Vénus e Marte chocaram-se no firmamento, e que ambos fomos vítimas desse desentendimento entre os deuses...
Angélica conteve uma careta,-sentindo uma dor no lado esquerdo do rosto. Trabalhara tanto desde a manhã, que seu desespero se esfumava. Por uma reação natural de,sua natureza indomável, seu otimismo veio à tona, e a reflexão de Vanereick sobre um desentendimento entre os deuses do amor e da guerra quase a fez rir.
Ao vê-la com modos mais familiares, ele insinuou:
- Escute-me - falou em voz sussurrante -, compreendo o amor e não sgu severo para com as fraquezas das pessoas belas, mesmo quando não sou eu o beneficiado. Quer que lhe dê notícias de Barba, de Ouro?
O rosto de Angélica gelòu-se e ela lançou-lhe um olhar de cólera, humilhada por" ele colocá-la çom desenvoltura no grupo das mulheres levianas, e humilhada também pelo"Conde de Peyrac. Agora a coisa era certa, as confidências de Curt Ritz não haviam permanecido em segredo. Todo mundo bisbilhotava sobre as travessuras dela e o desgosto dele.
No entanto, atormentada com o destino de Colin, ela não pôde impedir-se de murmurar na ponta dos lábios:
— Sim!... Que aconteceu a Barba de Ouro?
— Bem, na verdade, ninguém sabe. Ele desapareceu!
— Desapareceu?
— Sim! Que coincidência! Imagine, ele não estava a bordo quando atacamos a nave, e foi pois oimediato quem garantiu toda a defesa. Uns contam que ele deixou o navio à noite num pequeno bote, sem dizer aonde ia, nem quando estaria de volta. Recomendou ao Tenente de Barsempuy que ficasse à vista de Gouldsboro, mas bem escondido no arquipélogo até que ele mesmo voltasse para dar novas ordens. Teria partido em reconhecimento, para tentar ver por quais desvios poderia atacar desta vez a colónia de Gouldsboro? Mas nós rapidamente o pegamos. Desde a aurora o navio de três mastros do Sr. de Peyrac fez o Coeur-de-Marie levantar âncora. Houve a perseguição, a abordagem, o corpo-a-corpo.
— Aí está! Nós, de Gouldsboro, somos os vencedores! Quanto a Barba de Ouro, onde quer que se encontre, acabou, por muito tempo, penso eu, sua hegemonia nos mares e oceanos!
- Muito bem! Agradeço-lhe, senhor.
Angélica voltou ao porto. O sol começava a declinar no horizonte. A poeira e a fumaça nuançavam-se de ouro e de amarelo. O calor, esmagador apesar do vento incessante, cedia por fim.
Atraídos pelo canhoneio, os índios haviam saído dos bosques, trazendo peles para trocar com os navios e caça, que não seria de se desdenhar diante dessa nova afluência de bocas para alimentar. Marujos ingleses e franceses, flibusteiros, e até os feridos que podiam arrástar-se, para lá correram, tão poderosa nessas paragens era a atração que a troca de peles exercia, e o incentivo do ganho que dela se retirava. Trocava-se qualquer coisa, bonés, fumo, aguardente, brincos de argola e até colheres de madeira e de estanho, que eram, junto com a faca, o utensílio mais precioso em sua vida de marinheiros.
Os próprios prisioneiros, através das pranchas da prisão, gritavam para que os índios se aproximassem e estendiam-lhes bugigangas.
Foi nessa oportunidade que Angélica encontrou entre os cativos outro de seus antigos conhecidos da ponta Maquoit.
Nesse combate em que tantos bravos haviam morrido, era preciso que um Jacinto Boulanger sobrevivesse. Ele fazia escândalo, e fora preciso espancá-lo duas vezes para que se mantivesse tranquilo.
- É um bucaneiro, então que o ponham para moquear carne- decretou Angélica. - Nessa tarefa não se tornará nocivo e até se mostrará útil.
Advertiu-o abertamente:
— Não nos faça lamentar termos poupado a sua vida, pobre imbecil! Se preferir que lhe atemos os punhos e os pés ao invés de dispormos de sua pessoa fique à vontade; mas peço-lhe que compreenda que terá vantagem em obedecer-me, pois não lhe resta outra alternativa, além de ser dócil ou ser enforcado como o animal daninho e inútil que é.
— Obedeça, Jacinto! - gritou Aristides do catre. - Bem sabe que não adianta discutir com ela, e, ademais, não esqueça que ela costurou a pança de seu Irmão da Costa!
Subjugado, o horrível bucaneiro fez um sinal de que havia compreendido e lá se foi, balançando 'os longos braços de macaco, apanhar madeira verde para a defumação. Angélica escolheu mais dois ou três bucaneiros em meio à equipagem,'e instalou-os em companhia de Jacinto Boulanger,nurha pequena praia afastada, sob a guarda de uma sentinela armada, com a missão de esfolar, cortar em peças, assar uma parte e moquear uma outra, os cervos e gamos que os índios haviam trazido.
O agradável odor de assado, que logo se elevou na noite dourada, lembrou-lhe que ela nada havia comido o dia todo e mesmo desde a véspera e até... sim, sua última refeição datava de Pentagouet, na baía. do Penobscot, com o Barão de Saint-Castine e o Padre Maraícher de Vernôh, dito Jack Merwin, o jesuíta. Uma eternidade!....Isso parecia distante, e ela pressentia que seus sofrimentos ainda não estavam no fim. :
De repente sentiu fome:
O encontro com Vanereick tranquilizara-a um pouco. Agora que sabia que Colin não estava entre os mortos, sentia-se melhor. Ademais, Vanereick não tinha razão? Era preciso fazer drama e destruir duas vidas, várias vidas, por uma bagatela? Decerto Jof-frey não era um marido fácil de enfrentar, mas era preciso que ela se decidisse e dominasse o medo... "Dir-lhe-ei... Pois bem! Dir-lhe-ei a verdade... Que não o traí como ele acredita... Que Barba de Ouro é Colin... Ele compreenderá... Saberei encontrar as palavras adequadas para que ele compreenda... Hoje as coisas já estão melhores que ontem. Trabalhamos juntos novamente... A vida forçou-o a lembrar-se de mim, de tudo o que nos une... Não conhecemos outras batalhas, outras separações?... outras... traições? E triunfamos sobre elas, conseguimos amar-nos com mais força que nunca."
Ademais, não eram mais crianças, com a intransigência e a inexperiência da juventude. Por eles passara a,vida, que ensina a conhecer o preço dos verdadeiros sentimentos e o que é preciso admitir ou sacrificar para conservar o que ela tem de melhor, de inestimável.
E muitos seres deles dependiam. Devia também dizer-lhe isso.
Não tinham o direito de fraquejar, de decepcionar. Ela pensou nos filhos, particularmente em Cantor, que se arriscava a surgir diante dela de um momento para outro.
Alguém dissera que seu filho mais moço voltara à sua procura na baía de Casco, e ela se sentira aliviada por sabê-lo ausente. Mas pouco depois corria a notícia de que o Le Rochelais voltara justo a tempo'de participar do combate naval da manha. Ainda fazia a patrulha entre as ilhas.
Com Cantor também era preciso que as explicações, as reconciliações, fossem imediatas, antes que os boatos chegassem aos ouvidos do sensível adolescente. Desde a tarde ela buscara estar a sós com Joffrey.
Mas o dia ainda não terminara, restavam-lhe mil tarefas a cumprir. No albergue da Sra. Carrère ela se alimentou com uma espiga de milho tenra que assou rapidamente nas brasas e comeu com pressa enquanto acompanhava uma decocção de plantas. Faltavam-lhe cicuta e mandrágora para suas pílulas calmantes, mas, à falta delas, incenso, cravo-da-índia, dormideira, ha-viam-lhe permitido remediar a situação. Ela correu por todo lado, nas casas, vasculhou as reservas do forte. Alguém lhe disse que havia "um homem de especiarias" no Sans-Peur, como os há em muitos navios, um marujo que sempre tem nas roupas e cantos da mala um punhado disto ou uma pitada daquilo, trazidos de todos os cantos do mundo. Ela o reconheceria pela venda negra no olho e pelo escravo que sempre o acompanhava, um caraíba de tez cor de oliva, que carregava ao pescoço uma pedra verde mágica presa por um cordão de algodão. A venda não bastaria para reconhecê-lo, pois havia muitos cegos de um olho entre os combatentes do mar.
Uma parte das equipagens fora colocada em terra e acampava na extremidade oeste da grande praia. "Estarão .bêbados à noite", disse a Sra. Carrère com ar entendido. Ela servira sem cessar aos homens válidos' cerveja, vinho, rum e aguardente... É verdade que pagavam por vezes com pérolas e até com ducados de ouro.
Trazido por botes, o butim do Coeur-de-Marie era numerado, alinhado em tonéis, barricas, arcas, sacos, sob o olho satisfeito dos marinheiros de todas as nacionalidades que, desse combate, retirariam cada qual um prémio.
A carga do corsário Barba de Ouro tinha a reputação de ser grande.
Os escrivães de cada navio agitavam-se em torno das mercadorias, marcando números e pondo" selos. Havia fumo do Brasil, melado, açúcar mascavo, açúcar branco, arroz, rum, vinho, e todos os víveres de um navio mercante: barris de ervilhas, de favas, de toucinho salgado, de biscoitos^ e mais algumas especialidades: sete barris de orelha de porco, sete panelas de coxa de pato, presuntos, queijos, frutas secas, garrafas dç vinagre, de óleo, de suco de uva, e por fim um cofrezinho guarnecido de pregos, extremamente pesado, que se dizia conter pedras preciosas e as famosas esmeraldas de Caracas....Puseram duas sentinelas para guardar o cofre, à espera de transportá-lo para o forte do Conde de Peyrac.
Erguendo a saia, Angélica abriu passagem por entre a multidão ruidosa. Afraídos-.por tantos espetáculos diversos, os ingleses puritanos do acampamento Champlain, bem como os hugueno-tes de La Rochelfe, entretinham-se de bom grado em meio à multidão, e entre as fogueiras ouviam-s& vozes inglesas e francesas que contavam às crianças extraordinárias aventuras de pirataria no cenário azul das Caraíbas, onde brilham sob as palmeiras longas praias brancas, onde se bebe rum com o suco leitoso e fresco de grandes cocos velosos.
Uma menina de vestido vermelho saltou ao pescoço de Angélica, que, diante desse ato espontâneo, quase não a reconheceu.
- Rose Ann, querida, como estou contente em vê-la!
A inglesinha parecia divertir-se bastante, assim como Dorothy e Janeton. As lições da Bíblia e de leitura ainda não seriam dadas nesse dia.
Por fim Angélica descobriu o homem das especiarias, ladeado por seu caraíba_seminu, e comprou-lhe algumas coisas.
Na noite, o ouro do quadro da Virgem cintilava. Semi-inclinado devido ao navio penso, seus reflexos coloridos tremiam na água do porto; e quanto mais se acentuava a noite, mais o rosto da Virgem e dos anjos pareciam-se a suaves e nostálgicas aparições, velando sobre a multidão variegada, reunida na margem. Subitamente a baía exalava o odor penetrante de algas negras e iodadas, pois o mar se retirava, e nesse incenso marinho trazido pelo vento, misturado à fumaça de madeira e de piche, surgiu uma mulher, pondo-se a dançar loucamente ao som de castanholas. A ampla saia bordada cor de fogo aureolava-a por momentos com ouro e fogo, e seu olhar deslizava, agudo e provocante, na ponta dos cílios ultrajantemente enegrecidos com khôl. Longamente, esse olhar acompanhou a passagem de Angélica.
- É Inês - disseram-lhe -, a amante de Vanereick. Parece que maneja tão bem o sabre como as castanholas.
Angélica deteve-se um instante para ver saltar, com uma graça felina-e-trepidante, a "tigresa".
Havia risos, cantos, gritos, nessa noite em Gouldsboro, e também queixas entre os feridos, os moribundos e os vencidos.
E nessa agitação febril, essa desordem nascida da vitória e da derrota que embaralha e engana os espíritos junto com a agitação sonora das vagas e do vento, o Diabo de pés bifurcados tinha também a oportunidade de dançar, enredar, tecer os fios da desgraça e da discórdia, conduzir seu bale infernal com todos os génios invisíveis do Mal a escoltá-lo.
CAPÍTULO XIX
Misterioso chamado no meio da noite
Ele apareceu para Angélica no final do dia, sob os traços de um homem pálido que, atravessando a baía com a maré baixa, saltando de rocha ern rocha, parecia ter vindo a pé dos confins do mar. Angélica estava na soleira do albergue da Sra. Carrère e, pela enésima vez nesse dia, lavava as mãos numa cuba junto a um tonel de água de chuva, e tentava sub-repticiamente espalhar um pouco de bálsamo na equimose que trazia na fonte. Não pudera tratar-se durante o dia. Estava moída de cansaço.
— O Sr. de Peyrac está chariiando pela senhora - disse o homem -, naquela ilhota lá embaixo; deve ir com urgência.
— Há mais feridos? - interrogou Angélica, dando uma olhada na sacola aberta a seus pés, a qual não largara em momento algum.
— Talvez... Não sei.
Angélica hesitou por uma fração de segundo. A Sra. Carrère acabava de preveni-la que estava esquentando uma tigelada de cozido de porco e couve para "recuperá-la", em substituição aos eternos mariscos. E havia também- algo, que ela não pôde definir no momento, e que a fazia hesitar em seguir o homem.
— Onde está sua barca? - perguntou.
— É inútil tomar uma barca. Pode-se ir a pé. A baía está a descoberto.
Ela o acompanhou, atravessando o espaço entre a margem e a ilhota apontada. As algas viscosas estalavam sob seus pés com um pequeno ruído seco e sibilante.
A reverberação do sol poente nas múltiplas poças ofuscava Angélica, incomodando-lhe os olhos.
A ilhota emergia a cerca de uma milha, destacada na frente de uma cadeia de recifes e coroada com os abetos negros de costume, fincados como lanças, com pinheiros,< moitas de cor verde e bétulas. Uma praia de areia rosada subia em suave aclive rumo às sombras de um pequeno bosque.
— E por aqui - disse o homem, apontando o orla das árvores.
— Não vejo ninguém...
— Há uma clareira um pouco mais distante. O Sr. de Peyrac ali a aguarda, junto a outras pessoas.
Ele falava com voz monocórdia e indiferente. Angélica olhou-o. Espantou-se com sua tez doentia e perguntou-se a que equipagem poderia pertencer.
Lentamente ela subiu a praia, com os pés afundando na areia úmida, atingiu a parte mais rasa do capim e depois a mais espessa.
Havia de fato uma clareira sob as árvores, e ao centro um velho navio encalhado. A silhueta fantasmagórica do barco na sombra verde inclinava-se, emergindo do capim, das moitas e dos cipós. Era uma pequena carraca do século anterior, de apenas cento e vinte toneladas. Podiam-se distinguir seus balaústres recortados e a forma imprecisa de sua figura de proa, roída e semi-apodrecida, que devia ter representado o busto musculoso e a cabeça hirsuta de algum deus marinho. O castelo de popa estava semi-sepultado entre as rochas, os mastros partidos, mas o mastro do traquete, cheio de rombos vermelhos, de cogumelos negros, perdia-se na folhagem.
Uma tempestade, uma vaga profunda, uma maré de equinócio, mais alta e gigantesca que as outras, devia ter levado esse destroço até o fundo desse antro folhoso, depois se retirara, abandonando-o ali para sempre.
Um pássaro piou, lançando uma nota pura e alegre. Seu canto acentuava o silêncio. O local estava deserto.
No mesmo instante, Angélica lembrou-se do que a fizera hesitar em seguir o homem pálido, e que não lhe ocorrera de imediato: não vira ela alguns instantes antes o Conde de Peyrac abordando a praia, para se dirigir ao celeiro dos prisioneiros? Ele não poderia pois estar ao mesmo tempo nesse local e em outro.
Ela se voltou para chamar o desconhecido que a conduzira. Ele desaparecera.
Perplexa e invadida por um sentimento de perigo que lhe eriçava a pele, voltou o olhar para o velho navio. Não se ouvia senão o ruído das pequenas ondas entre as rochas e o canto de um pássaro de trinados voluptuosos, que se derramavam a intervalos regulares como um apelo... uma advertência.
Angélica levou a mão ao cinto, mas sabia que não acharia nenhuma arma.
Oprimida, não ousava chamar, temendo, ao romper o pesado e quente silêncio, desencadear não se sabe que horrível descoberta.
Quando se decidiu por fim a esboçar lentamente um movimento para retirar-se, ouviu o ruíd» de passos. Vinha de trás do navio.
Era um andar pesado abafado pela erva e pelo musgo, mas que pareceu sacudir as profundezas da terra.
Angélica apoiou-se -à quilha apodrecida do navio. Seu coração parou.
Ao anoitecer de um dia penoso, esgotante, que para ela se seguira a uma noite mortal de dores e de lágrimas, o passo inexorável que se aproximava, lento e pesado como o Destino, e que não era o de seu marido, nem o de um marujo ou de um índio, já que ambos caminhavam de prefeTência descalços, nem mesmo - quem sabe! - o de um ser humano, surpreendia-a em pleno derrocamento de suas forças e nela despertava todos os terrores supersticiosos da infância.
Quando uma sombra poderosa perfilou-se no ângulo do navio, destacando-se vagamente na obscuridade glauca da vegetação baixa, ela acreditou estar diante da aparição de um ogro ou de um gigante.
CAPÍTULO XX
Reencontro com Colin às escondidas
Filtrando-se através dos galhos, um raio de luz fez luzir o reflexo de uma cabeleira e de uma barba louras e hirsutas. Barba de Ouro!
- É você? - perguntou ele.
Como ela permanecesse calada, ele continuou a avançar com desconfiança.
As pesadas botas, cujas abas descobriam os joelhos nus, maciços e crestados, esmagavam a erva e suas flores delicadas. Ele trazia uma calça curta, uma camisa branca com o colarinho aberto e uma veste de couro sem mangas atravessada por um largo boldrié. Mas o boldrié estava sem suas quatro pistolas e o sabre de abordagem dele não mais pendia. O próprio corsário estava desarmado.
A alguns passos de Angélica ele fez alto.
- Por que me pediu para vir? - perguntou. - Que você quer de mim?
Angélica sacudiu a cabeça em veemente negativa.
- Não pedi que viesse - conseguiu por fim articular.
Os olhos azuis do normando observavam-na com acuidade. A magia da qual não podia defender-se quando, se encontrava em sua presença já agia sobre ele, fazendo-o abandonar a expressão de fera acuada e enternecendo-lhe o coração.
- Como você está pálido, meu carneirinho! - disse suavemente. - E que tem no rosto?... Está ferida?
Ele avançou a mão e tocou com a ponta dos dedos a fonte machucada.
Angélica estremeceu da cabeça aos pés. Pela dor causada por esse leve toque e ao mesmo tempo pelo horrível pensamento que a atravessou. Estava só na ilhota com Cotín! E se Joffrey aparecesse?...
- Não é nada - gritou com voz entrecortada, feroz e desesperada. - Mas vá embora logo, Colin, fuja daqui... É preciso que eu parta.
Lançou-se na encosta ervosa rumo à praia e correu na direção da passagem que atravessava a baía.
Quando ali chegou, .deteve-se, petrificada de angústia.
Cobrindo com seus reflexos transparentes as rochas há pouco descobertas, a mar estendia-se indolentemente. Uma vaga orgulhosa tomou 'a praiade assalto, com um fervilhar de espuma.
Angélica pôs-se a corrercorrto louca ao longo da praia. Lançou-se para a ponta de uma rocha ainda emersa, e depois para outra. Uma onda cobriu-lhe os pés, outra quase fê-la perder o equilíbrio.
Um punho sólido agarrou-a, puxando-a para trás.
- Que estafazendo? - disse Colin. - Bem vê que a maré está alta.
Angélica lançou-lhe um olhar de terror.
— Estamos cercados na ilha - murmurou.
— E o que parece.
— Mas é preciso partir!
— Não há barca - disse Colin.
— Mas é impossível! Você deve ter uma barca. Como você fez para vir?
— Não sei como fiz para vir --- respondeu ele, bastante enigmaticamente.
— E o homem que me conduziu, onde está? Você não se encontrou com ele? Tinha o rosto branco como cera.
Súbito Angélica desfaleceu e agarrou-se às abas da veste de Colin.
— Colin, era o Demónio! Estou certa disso!
— Acalme-se - disse ele, tomando-a nos braços. - Com a aurora, o mar se retirará...
Ela arrancou-se ao abraço com um grito cortante.
- Não! É impossível!... Não posso passar a noite toda aqui... com você... Sobretudo com você!...
Novamente arremessou-se para a água. Começou a desacolche-tar o vestido. Colin agarrou-a de novo.
— Que quer fazer? Está louca?
— Irei a nado, se for preciso. Tanto pior! Chegarei nua a Goulds-boro, mas não ficarei aqui. Largue-me! ,
— Está louca! - repetiu ele. - A corrente é traiçoeira e você irá afogar-se entre as ilhas.
— Tanto pior! Prefiro afogar-me... Largue-me, estou dizendo.
— Não, não a largarei.
Ela se pôs a debater-se contra ele, gritando. Em vão. Colin machucava-a terrivelmente com os punhos de ferro ao redor de seus braços, mas não a largava, e ela sentia nada poder contra sua força hercúlea. Súbito ele a ergueu como a um filete de palha, levando-a para o alto da praia, e continuou a carregá-la até que, sem forças e com os nervos esgotados, ela se abateu, soluçante, contra seu peito.
— Estou perdida!... Estou perdida!... Ele nunca me perdoará.
— Foi "ele" quem lhe bateu?
— Não! Não! Não foi ele!... Oh, Colin, é horrível!... Ele soube!... Ele soube!... E agora já não me ama!... Oh, Colin!... que acontecerá comigo?... Desta vez ele me matará.
— Acalme-se.
Acalentou-a docemente, apertando-a com força contra si, a fim de dominar os tremores incontrolados que a sacudiam. Quando ela começou a se acalmar um pouco, Colin Paturel ergueu os olhos para a primeira estrela a brilhar no céu esmeralda.
Uma névoa noturna espalhara-se e escondia as luzes de Goulds-boro. Eles estavam verdadeiramente sozinhos. O olhar de Colin voltou para a cabeça loura escondida em seu ombro.
- Isto tudo não é tão grave - disse com sua voz profunda. - No momento não há nada a fazer a não ser esperar o dia. A maré é a maré!... Depois veremos. Acalme-se, Sra. de Peyrac.
O fato de assim intimá-la e de subitamente tratá-la por senhora teve em Angélica o efeito de uma chicotada. Ela se acalmou, ainda tremula como um animal acuado, mas chamada de repente à sua dignidade de mulher e de esposa do Conde de Peyrac.
— Está melhor? - perguntou ele.
— Sim, mas... largue-me.
— Eu a largarei quando me prometer não se precipitar na água e esperar bem comportadamente cjue a passagem não ofereça mais perigo. E então?...
Ele se inclinou, descobrindo seu rosto, olíando-a com terna ironia, como uma menina pouco razoável a quem é preciso convencer.
- Prometido?
Angélica fez "sim" com a "cabeça,.
Ele permitiu-lhe ir, e ela deu alguns passos hesitantes antes de se deixar cair na areia.
Sentia dores por todo Jado. Nos braços, na nuca, na cabeça. Estava toda moída.-Ah!, ela se lembraria--desse dia e de seu retorno a GouldsboroL. Uma forte dor no estômago fe-la contorcer-se.
- E além de tudo,, morro de fome! - gritou, encolerizada. - Agora está tudo completo.
Sem dizer uma palavra, Colin afàstou-se, voltou com uma braçada de madeira seca, acendeu um fogo entre três pedras e afastou-se novamente. Pquco mais rarde ressurgiu com Uma lagosta azulada, com água a escorrer e que agitava com indignação as enormes pinças.
- Eis um camarada que nos ajudará a passar o tempo - disse ele.
Virou habilmente o crustáceo nas brasas até que ele adquirisse um belo vermelho vivo. Depois partiu a quente carapaça e estendeu a melhor parte a Angélica. A carne branca e firme, de sabor delicado, reconfortou-a, e ela começou a encarar a situação sob um aspecto menos trágico.
Colin olhava-a comer, fascinado com seus gestos, que ele reconhecia e que sempre o haviam encantado por sua graça inimitável. Como - que ingénuo ele era! - não soubera de imediato, no passado, somente ao vê-la comer, que se tratava de uma grande dama?... Essa habilidade em manter a comida entre os dedos, a desenvoltura com que nela plantava os dentes, sem vulgaridade, eram de uma elegância que só se aprende à mesa dos reis...
Angélica fartava-se com avidez, mas de tal modo preocupada, que não tinha consciência do olhar de Colin sobre ela.
Sonhara amiúde, em Wapassu, com um instante agradável que viveria em Gouldsboro, quando, em companhia das crianças e de suas amigas, assaria uma lagosta no côncavo de um rochedo. Jamais imaginaria que as coisas pudessem passar-se assim, nas trevas de um pesadelo semidiabólico. Wapassu desaparecera havia muito. Bem longe parecia já estar o Padre de Vernon, Jack Merwin, de olhar impenetrável, em cujas pupilas ela vira brilhar subitamente uma viva faísca. Fora ontem!.,. Ontem que a voz sonhadora de jesuíta murmurara: "Quando as coisas diabólicas se intrometem no caminho, tudo caminha muito rápido... O tempo se detém... Tudo sê passa fora do tempo..."
Há três noites, ela se divertia e dançava em Monégan, e sua consciência estava em paz, não a acusava de nada de muito grave. Hoje compreendia que corria o risco de perder para sempre o amor de Joffrey e talvez a própria vida.
- Tenho medo - disse a meia voz. - Aqui está cheio de espíritos malignos. Sinto-os a rondar-nos, a espiar-nos, a querer nossa perda.
Estendido do outro lado da fogueira, apoiado ao cotovelo, o Normando não tirava dela os olhos. Via-a tão pálida à luz do fogo que não dizia palavra.
Ela se ergueu para lavar os dedos à beira da água, e esse gesto fê-la recordar o trabalho estafante que tivera nesse dia, do qual ela emergia, no silêncio da noite, aturdida e com todos os membros ainda moídos.
Os movimentos lascivos e arrastados das vagas deram-lhe vertigem. Ela voltou sacudindo a saia.
- Minhas roupas cheiram a sangue, a pólvora, a suor daqueles infelizes, a morte... não posso mais!
Sentou-se novamente e, sem querer, aproximou-se dele.
— Informe-me - disse Colin -, que aconteceu em Gouldsboro e na baía? Coisas ruins, aposto. Era meu navio que "eles" queriam?
— Decerto! E "eles" o pegaram. Está no porto agora, com água até o meio. Metade de seus homens mortos, os outros, prisioneiros ou feridos... Para você acabou, Barba de Ouro! Não continuará a aborrecer as pessoas honestas... Onde você estava nesse meio tempo?
Ela se espantava, ao falar, com o ódio, com a violência que punha nas palavras, com o desejo de também golpeá-lo.
Sentada e tensa, os braços em torno dos joelhos, continuava a olhar na direção de Gouldsboro, tão ardente era seu desejo de lá estar.
A bruma não era tão espessa a, ponto de não deixar filtrar, como grandes estrelas avermelhadas, as fogueiras de referência na extremidade dos cabos e no cimo dos recifes mais perigosos. Em braseiros abrigados, pedaços .de resina brilhariam a noite toda, apontando o perigo desses rochedos:
Por vezes, quando o eco da ressaca era menos forte, Angélica parecia perceber o rumor sussurrante do porto, e repetidas vezes o brilho das luzes das casas ou tias lanternas dos navios ancorados, mais claras e mais constantes que as dos faróis, lhe foi perceptível.
Que estaria acontecendo lá? Teriam percebido seu desaparecimento? Procurariam por ela? "Não importa", disse consigo, "estou perdida!"
Colin permaneceu em silêncio, como que esmagado pelas notícias que ela brutalmente acabava de lhe dar.
Atrás deles a lua erguia-se enorme, informe.e dourada no halo que lhe conferia a bruma. Ao espalhar-se, sua claridade branqueava a vaga preguiçosa, a areia da praia, e lutava com a luz agonizante da fogueira. Uma coruja piou. E logo, num sobressalto de medo e de esperança, Angélica acreditou ver formas humanas movendo-se nos rochedos e nadando na curva das ondas. Mas era apenas um pequeno grupo de lobos-marinhos que após alguns folguedos desapareceram ao largo, sem dúvida assustados por descobrir humanos na praia em que costumavam repousar. Seus breves latidos afastaram-se, abafados, nostálgicos.
Ninguém viria essa noite à ilhota do Velho Navio. Angélica viveria com Colin mais uma dessas noites à parte, dessas noites de solidão quE só eonhecem os fugitivos, os amantes condenados, os réprobos e perseguidos, e que.eles haviam partilhado outrora no deserto. Noite de serenidade ou de medo, onde o sentimento do mundo hostil que os rodeia aproxima os corações transidos, os corpos trémulos.
Colin Paturel moveu-se.
- Então perdi tudo - disse, como se falasse consigo mesmo. - É a segunda vez... Não, a terceira... Talvez a quarta, afinal. É a vida do nobre aventureiro e do pobre marujo. Partir... Partir sobre as vagas azuis. Lá longe. Ganhar uma vez, duas vezes. E depois, devido a um navio com que se cruza, a um pé-de-vento, acontece uma reviravolta na vida, outra existência para viver... Doze anos de cativeiro na Barbaria... As pessoas se evadem, partem, refazem fortuna... E, novamente, nada mais... A espera da morte... ou que-outra espécie de vida?... Uma praia onde permanecer sozinho, e é tudo.
Com o coração oprimido por um obscuro remorso, Angélica ouvia-o monologar.
— Também a você eu perdi - retomou ele, erguendo para ela o agudo olhar azul, que toda vez a perturbava, sem que ela pudesse disso se defender. - Antes restava você, uma presença, um sonho, um rosto de mulher, minha riqueza... Hoje tudo se apaga.
— Colin! Colin! - gritou ela -, caro amigo, você me tortura. Ter-lhe-ia feito tanto mal, eu, que tanto o amei?... Por que essas lamentações? Eu não valho a pena. Divinizou não sei que lembrança, da qual se serve para torturar inutilmente seu coração. Sou apenas uma mulher como as outras, que cruzou sua estrada como muitas cruzam a estrada de um marinheiro... E me pergunto o que havia de sedutor na infeliz de pele queimada que eu era, de pés empoeirados, corpo esquelético e que se arrastava pelos pedregulhos, retardando sua marcha, estorvando-o com sua fraqueza...
— Não tente destruir nem explicar - disse Colin suavemente... - Seus pobres pés ensanguentados, seus lábios partidos, suas lágrimas, que punham sal em suas faces, seu corpo cada vez mais miúdo, mais frágil sob o albornoz, de tudo isso fiz o paraíso secreto de meus dias... E ademais não é a você que cabe saber com que "encanto" uma mulher como você pode atingir um homem simples, insuficientemente armado para se defender. O que seus olhos e seu sorriso prometem, seu corpo cumpre muito bem... É para isso que não há cura. Porque não há uma mulher em mil que... Pode-se rodar toda a superfície da terra sem a encontrar, sem jamais a encontrar. Depois disso as outras mulheres não são nada. Depois disso, as outras mulheres são o inferno!...
Pronunciou essas últimas palavras com amargura e surpreendeu-se ao ouvi-la rir.
— Não creio nisso - disse ela.
— Hein? - perguntou ele, erguendo-se, em. parte furioso.
— Quando você diz que as outras mulheres são o inferno, está dramatizando para enternecer-me, porém não creio em você! Vocês, homens, são demasiado libertinos para,não aproveitar uma agradável ocasião, mesmo com -um amor*eterno no coração.
— Ah! Você acredita nisso?.
Sombrio, ele abria e fechava os punhos como se^quisesse estrangulá-la.
— Bem se vê que você fala como" Uma mulher. Imagina que um homem... Era o inferno - repetiu encolerizado -, e sei o que estou dizendo. Quando tomava uma mulher, isso despertava em mim sua lembrança,"ainda mais aguda. E eu bebia para esquecer... E batia na pobre criatura que não tinha culpa de nada... Eis o que você fez de mim. E-ainda ri? Ah! Bem reconheço a insolência da nobre concressa_que_ deu a esmola do amor a seu criado!... Era uma mudança, hein?... Distrair-se com um rústico como eu, era uma mudança em relação aos belos príncipes e marqueses empoados da corte! Divertja-se ver um pobre ignorante, que não sabia ler nem escrever, arrastar-se a seus joelhos, a seus pés, como um animal-;.. Quantas vezes não revivi a descoberta infame que fiz em Ceuta de que você era uma nobre dama da corte... Só de lembrá-lo, acreditei mil vezes morrer de humilhação.
— Colin, você é um orgulhoso - disse Angélica friamente -, e um tolo. Sabe que jamais houve uma relação tão vil entre nós. A prova é que, durante a viagem, você jamais suspeitou, como disse, que eu fosse uma nobre dama da corte, com tudo o que isso comporta de orgulho, de maldade e de cálculo, segundo você. E ademais, você jamais se arrastou a meus pés, que eu saiba! Quanto a mim, eu o admirava, estimava, comparava-o ao próprio rei. Considerava-o o senhor. E chefe, e... você me dava medo. Mais tarde foi aquele que me carregou, me protegeu, me fez feliz - sua voz cedeu num murmúrio -, muito feliz! Colin Paturel, você vai pedir-me perdão pelas palavras de há pouco. Agora é que deverá colocar-se de joelhos.
Ele a escutara, fascinado. Lentamente endireitou o grande corpo maciço, e se pôs de joelhos diante dela.
- Perdão - disse -, perdão, senhora.
Nos belos lábios pálidos de Angélica, ele viu nascer um sorriso maternal, indulgente.
- Você é um tolo, Colin.
A mão da mulher estendeu-se, roçou a fronte rude, e seus dedos finos acariciaram os cabelos espessos como os de uma criança. Ele tomou essa mão leve e beijou-lhe a palma.
— Gomo me domina! - sussurrou ele, - E sem dúvida por isso. Porque é uma grande dama e eu, um camponês.
— Não, você é um. rei, Colin.
— Não, sou um camponês.
— Pois bem, então é o rei dos camponeses!
Riram ambos alegremente, e um reflexo da lua iluminou como que uma faísca nacarada nos dentes de Angélica. Eles estavam tão próximos, tão ternamente cúmplices, que o mínimo movimento teria aproximado seus lábios.
Angélica o soube, à beira de uma vertigem. E, ao retirar a mão da de Colin, fê-lo com um gesto de quem se houvesse queimado, o que transtornou profundamente o homem.
Para ele esse recuo era uma homenagem. Ela lhe dava um poder de que ele por muitos anos duvidara.
Então ele se ergueu e afastou-se alguns passos. Assim, pois, ele, Colin, tinha o poder de comover essa carne altiva, magnífica e principesca, e a felicidade que lhe dava não era uma mentira. Decerto em Miquenez faltara-lhe prudência e discernimento, a ele que no entanto "tinha um bom olho", como reconheciam de bom grado seus súditos cativos. Apesar dos véus mouriscos que envolviam a prisioneira do harém, ele logo deveria ter adivinhado, por seu comportamento, pela finura de trato, pela voz modulada, pela palavra sempre escolhida, por vezes com -uma ponta de ousadia, por sua delicadeza, sua paciência... e sua impaciência, seu modo de ser com todos, sempre justa e fina, por sua coragem também, a coragem ancestral dos senhores, que ele estava tratando com uma grande dama e não com uma aldeã.
Pagara caro o engano.
Que despertar atroz depois, em Ceuta! Que golpe!...
"Afaste-se, meu rapaz! Essa mulher é sem dúvida nenhuma a Marquesa du Plessis-Bellière! Um dos mais altos nomes do reino, um bravo homem... A viúva de um marechal da França... Uma grande dama... e comentam que era... não faz muito tempo, a favorita de Sua Majestade... Foi o próprio rei quem mandou buscá-la. peixe-a... Deixe-nos levá-la aos aposentos do senhor governador..."
E "eles" a haviam arrancado de-seús braços... E "eles" haviam-na levado, inerte, para longe dele. Seu coração! Seu amor. Sua beleza, sua irmã do deserto, sua menina adorada... E ele lá ficara, coberto de ferimentos, de suor e de areia, imóvel, aturdido, por horas, como se "eles" lhe tivessem arrancado o coração vivo do peito, arrancado as entranhas-de seu ventre, deixando no lugar grandes vazios ensanguentados...
Que fantasma para se arrastar por todas a? partes do mundo, o de uma mulher como essa!...
Ora, ele a reencontrara! E ela não mudara! Estava ainda mais bela. Ainda mais mulher. Sempre errante, sempre inacessível. Afaste-se, rapaz. E ele recosdou com uma compunção inexprimível o quanto ela podia sen boa e terna. E alegre... e o quanto era risonha e carinhosa no amor. A mulher mais natural do mundo, a mais verdadeira, a-mais próxima que ele já tivera nos braços...
Mas se era verdade que ela não o desdenhava, ele saberia afastar-se, distanciar-sè unicamente com o tesouro do passado, deixá-la-ia para o "Outro". Ela não lhe havia pedido que a ajudasse a respeitar juramentos sagrados?
CAPÍTULO XXI
Noite de tentação na ilhota do Velho Navio
-Por que você está nesta ilha, Colin? Quem o trouxe até ela? E por que você estava ausente no instante da batalha?
A voz de Angélica tirou-o do devaneio. Era uma voz inquieta, e ele adorou vê-la mudar de assunto para afastar de si a tentação.
Aproximando-se, ele sentou-se e pô-la a par dos acontecimentos suspeitos de que ele fora vítima nesse dia. Ele próprio reconhecia que forças maléficas pareciam ter entrado em jogo para confundi-los e levá-los a essa armadilha.
Nessa manhã, ao alvorecer, enquanto ele permanecia em uma das pequenas enseadas da península de Shoodic, onde se escondia havia alguns dias com a intenção, ele o reconhecia, de preparar um novo assalto a Gouldsboro, um bote com três marinheiros apresentara-se a ele. Os homens diziam-se portadores de uma mensagem da Sra. de Peyrac, que os enviava de Gouldsboro com um pedido de encontro para o Capitão Barba de Ouro, pois tinha uma ajuda a lhe pedir. O caso devia ser conduzido em segredo, e ele não deveria fazer-se acompanhar de nenhum de seus homens.
— Esses desconhecidos não lhe apresentaram uma mensagem, ou uma assim dita mensagem, ou um objeto qualquer de minha parte? - perguntou Angélica, estupefata.
— Não, palavra! E não pensei em exigi-lo. Reconheço que, quando se trata de você, perco minha prudência habitual. Sabia que você estava próxima, em Gouldsboro e... desejava revê-la. Foi o tempo de confiar o navio a meu imediato e saltei no bote sem mais explicações. A neblina era tão espessa que eu não saberia reconhecer a ilha para a qual me conduziram e onde pretendiam que o encontro fora marcado. Começamos a esperar, e isso demorou. Eu pensava que a neblina retardava sua vinda. Quando no meio da manhã o ruído do.canhoneio ghegou até mim, comecei a impacientar-me. Não sei por quê, tinha a impressão de que era meu navio que estava sendo atacado. Pedi aos homens que me levassem de volta a bordo. Tergiversaram e prolongaram a coisa até que me aborreci. Houve uma confusão. Não garanto que nesse momento um dos rapazes não tenha passado para o outro mundo. Mas, quanto a mim, levei uma pancada que me fez desmaiar e da qual sinto até agora dor na nuca. Quando voltei a mim, estava nesta ilhota, despojado de meu facão, de meu sabre e de minhas pistolas. A noite caía. Pouco depois, assim que me senti melhor, dei a-vojta à ilha e... encontrei-a perto do velho navio encalhado.
Ele se erguera^ e como andasse de um lado para outro enquanto falava, Angélica acabarapor juntai-se a ele. Caminharam lado a lado lentamente, percorrendo em ambos os sentidos a prainha que punha-unía claridade no escrínio noturno das árvores. As duas sombras estendiam-se na praia, com uma cor de tinta negra.
- Como eram os homens que vieram procurá-lo? - perguntou Angélica.
Ele deu de ombros.
- Marinheiros como os que se podem encontrar aqui ou nas Caraíbas. Um pouco de todas as raças. Falam um pouco de todas as línguas... Não penso no entanto que eram todos estrangeiros.
Antes, franceses.
Angélica escutara-o, atormentada. Não podia defender-se da opressiva certeza de que eram vítimas de espíritos malignos, que queriam confundi-los. Os acontecimentos se precipitavam e se enredavam com tanta malícia que. ela não sabia mais que fio pegar para desembaraçar a meada.
— Sabia quem era o homem a quem me confiou na baía de Casco, Colin? O inglês; dono do White Birdf
— O jesuíta?
Angélica olhou-o, estupefata.
- Então você sabia? - exclamou,
Colin se deteve e fixou com ar sonhador o horizonte escuro.
— Ele veio naquela manhã - disse ele. - Amarrou o barco na abita. Subiu a bordo. Falava inglês e tomei-o por um marinheiro qualquer. Pediu para falar comigo e na cabina revelou sua verdadeira identidade. Pertencia à Companhia de Jesus; estava em missão secreta, e pediu-me para entregar-lhe a,Sra. de Peyrac. Não duvidei de suas declarações. Ele tinha um modo pronto de exprimir-se e de me olhar com seus olhos negros e penetrantes que não enganavam. Então vi nisso a oportunidade de deixá-la partir, uma ajuda que Deus me prestava, e, justamente por se tratar de um jesuíta, pensei que Deus queria me dar um sinal. Sem ele, sem o jesuíta que ali surgia, eu... eu creio que não a teria deixado partir. Eu o repetia desde a véspera, que devia renunciar a você, mas não podia... Era pior do que em Ceuta... quase pior. Se tivesse ficado, creio que teria tentado retomá-la para mim... e teria causado seu mal... Era melhor assim. Eu disse: "Bem, compreendo. Será feito o que me pede". Então ele me recomendou que não a fizesse saber quem ele era, de deixá-la acreditar que era o dono do barco, um inglês. Isso não me agradou inteiramente. Mas sempre me inclinei ao poder dos padres. Penso que trabalham para o Bem e que sabem o que fazem. No entanto, aquele não me agradou. Eu conservava o sentimento de que desejavam o seu mal... Ele lhe causou algum mal?
— Não! - murmurou ela.
Agora compreendia o que se passara no espírito de Jack Mer-win, o jesuíta, quando estava em pé, no rochedo, vendo-a morrer.
Em Maquoit, ele se apoderara de sua pessoa para conduzi-la a outros, que desejavam que fosse afastada, separada dos seus, contestada, aniquilada. E eis que novamente o mar cruel parecia encarregar-se de fazê-la desaparecer. Tudo se simplificava. Ele devia ter pensado "Deus quer assim!", e cruzara os braços no peito, recusando-se a estender a mão salvadora.
Mas uma coisa é dizer de um ser: "Ele deve morrer", e outra, vê-lo debater-se com a morte.
Ele não havia tido a "santa" coragem de assistir até o fim a sua agonia, de vê-la desaparecer nas vagas e não mais tornar a surgir.
E mergulhara.
— Aqueles que custeiam minhas atividades, em Paris e em Caen, pertencem à companhia do Santo Sacramento - comentou Co-Jin. - Prometi servir aos missionários das novas terras que iria povoar. Mas não pensei que a tarefa fosse tão difícil. Garantiram-me que na região de Gouldsboro ainda não havia colónias inglesas.
— Não somos uma colónia inglesa - disse Angélica. - Essa terra pertence a meu marido por ele ter sido o primeiro a ocupá-la e fazê-la prosperar.
— Por que você desposou o senhor de Gouldsboro?
Angélica sentiu-se desanimada de antemão em fornecer a resposta. Era uma história demasiado longa, e, depois, ela se dava conta de que tudo o que dizia respeito à intimidade de suas vidas, da de Joffrey e dela, era bastante, delicado, e que sentia repugnância em materiajizar com palavras o que não pertencia senão a eles, Joffrey de Peyrac e Angélica de Sancé, os sonhos de ambos, seu drama primeiro, suas provações, combates e desfalecimentos, sua felicidade enfim", tudo o queatava entre eles um laço intangível, a vida em comum, ameaçada sem cessar, sacudida, e onde já de há muito tempo eles se mantinham enlaçados, enlaçados, sim, apesar de tudo, e ninguém poderia separá-los, nunca. "Ninguém, ninguém", pensou, olhando com ardor o céu de nuvens noturnas franjadas de ouro pela lua. E pela primeira vez desde a noite da véspera, ela sofreu atrozmente, como se o golpe que recebera no rosto acabasse de atingir-lhe por fim o coração, após um longo caminho entre as zonas inconscientes da esperança. Joffrey!... Acabara. Ele a detestava, desprezava, não acreditava mais nela.
— Por que o desposou? - insistiu Colin. - Quem pode ser esse homem para que uma mulher como você sinta o desejo de ligar sua existência à dele e a coragem de segui-lo até estas terras perdidas?
— Oh! Que importa? - disse ela com desalento. - É meu esposo e mais que tudo para mim no-mundo, apesar das fraquezas que possam habitar-me, por vezes trair-me.
Permaneceram longo tempo em silêncio."
- Você sabe como pegar-me - disse por fim, Colin, com amarga ironia. - O respeito a juramentos sagrados!... Encontrou-a única coisa que podia deter-me. Permaneci fiel a eles apesar de minhas falhas... Ninguém derrama o próprio sangue durante doze anos com o objetivo de permanecer fiel a seu Deus, sem se ligar mais firmemente a Ele do que a tudo o que de bom se possa encontrar na terra. Que Ele me faça um sinal. Alto, Colin! Seu mestre falou. E acrescentou a meia voz, com profunda fé:
- E sei reconhecer seu sinal.
Menos simples do que Colin, e perdida em caminhos diversos, Angélica admitia com mais dificuldade a intrusão do divino na lógica - ou o ilogismo - de seus atos.
— Não estaríamos tão fortemente ligados aos ensinamentos da infância, a ponto de eles continuarem a nos dirigir contra a nossa vontade, sobretudo contra a nossa vontade? - perguntou ela. - Não teríamos apenas o medo das coisas aprendidas?
— Não - disse Colin -,' não são apenas as coisas aprendidas que nos dirigem. Felizmente. Mas há momentos em que o homem se encontra, quer queira, quer não, no caminho da verdade. Seria tão difícil impedi-lo de segui-lo como impedir uma estrela de atravessar o céu.
Discernindo na fisionomia de Angélica um ar ausente:
— Você está me escutando? - perguntou suavemente.
— Sim, eu o escuto, Colin Paturel. Você fala tão bem! Quantas coisas me ensinou e que permaneceram gravadas em meu coração...
— Fico feliz, Angélica, mas as palavras que acabo de pronunciar foram-me ensinadas, lembro-me bem, pelo Grande Eunuco. Osman Ferradji, o grande diabo negro que a guardava nos haréns de Mulay Ismael. Amiúde, em Miquenez, o rei fazia-me chamar, sentar-me com meus trapos gordurosos em almofadas douradas. E, juntos, ouvíamos Osman Ferradji falar. Que grande sábio aquele negro! Que homem bom! Influenciou minha alma mais que qualquer outro ser no mundo. Era um mago.
— Como eu gostava dele! Como eu gostava dele! - exclamou Angélica, atravessada por pungente nostalgia diante dessas evocações. - Foi meu amigo, mais que qualquer outro.
Ela se interrompeu, atingida no coração, pois, saída do limbo, vinha-lhe a recordação de que fora a mão do próprio Colin que, para salvá-la, matara o nobre eunuco com uma punhalada nas costas.
— Calemo-nos - disse Colin a meia voz. - Calemo-nos, essas lembranças lhe fazem mal. Você está cansada e estamos longe agora, muito longe daqueles locais, e mais longe ainda no caminho de nossas existências. Se eu ainda pudesse dizer que avancei, que caminhei na direção dê algo, apesar de-tudo, aos anos que se seguiram a Ceuta... Não somente recuei comcf estraguei o que havia acumulado na prisão, e que viera de Deus.
— Sempre se avança quando se sofre e quando, apesar disso, não se renuncia, não se sucumbe, não se volta definitivamente as costas ao bem - disse Angélica com fervor.
Pensando no longo túnel cheio de quedas e de recuperações que ela mesma percorrera longe de Joffrey, sentiu-se no direito de encorajar Colin.
— Você nãoestá tão doente quanto declarou há pouco, Colin, meu caro, caro amigo. Eu sei. Sinto-o. A cada instante, parece-me que o velho Colin vai renascer diante de mim, em sua grandeza, despojado de suas roupas de Barba de Ouro, e o vejo ainda maior, mais forte, mais preparadopara cumprir a tarefa que o aguarda...
— Que tarefa"?... Senão-a de me fazer suspender no alto da forca, como um vulgar bandido dos mares?
— Não, não, não você, Colin! Isso não acontecerá. Nada tema, não tema mais nada. Não sei como as coisas irão se arranjar, mas sei que Deus lhe será fiel, você verá. Ele não pode abandoná-lo, você que foi crucificado por Ele...
— No entanto abandonou-me durante muito tempo.
— Não, não, não duvide mais, Colin, você é tão crente, é a essência mesma de seu ser... Não foi em vão que Ele colocou em seu íntimo tantas coisas inestimáveis. Você verá... Eu não duvido de você.
— Oh! Você, você é adorável - disse ele em voz surda, e tomou-a nos braços.
Angélica estremeceu da raiz dos cabelos à planta dos pés.
Em seu infinito desejo de levar Colin, como uma onda o faria, para as praias em que ele seria por fim taí qual era, ela falara com ardor, erguendo para ele o olhar admirável onde ele podia ler o sentimento, mais precioso para um homem que todas as fortunas do universo, da fé que tem uma mulher. Nele, em sua força, em sua grandeza, em seus poderes, na transcendência de seu destino.
E agora, junto dele, no círculo mágico de seu abraço, ela sentia sua exaltação de ternura mudar-se numa corrente selvagem e voluptuosa, a qual reconhecia com terror. Pois o braço de Colin em sua cintura, o braço de aço demasiado amiúde inconsciente de seu poder, soldava-a a ele com irresistível paixão, e desse contato renascia a atração, como uma vaga profunda, um ímpeto torrencial, doce, delicioso.
Unida a ele da cabeça aos pés, ela tombou o rosto para trás, à luz do luar, os olhos fechados como se fosse morrer...
— Nada tema, minha vida - disse com aquela voz profunda e baixa, com uma nuança de carinho e que lhe falava tanto ao coração... e às entranhas -, nada mais tema de mim agora. É a última vez que a aperto assim ao peito. Mas queria ainda uma resposta... Você chorou, disse-me... Chorou, Sra. du Plessis-Bellière, quando parti para Ceuta, dando-lhe as costas para abandoná-la para sempre?
— Sim, você bem o sabe - disse ela num sopro -, bem o sabe... Você o viu...
— Eu não estava certo... Durante anos perguntei-me... Aquelas lágrimas, aquelas lágrimas que vi brilhar nos olhos daquela grande dama eram verdadeiras?... Eram por mim?... Obrigado, obrigado, meu amor...
Abraçou-a com intensidade, depois deixou-a, afastando-a docemente. Recusou-se a ver-lhe os lábios nacarados entreabertos, e que tremiam, oferecendo-se. Ergueu-se, desdobrando sob o céu iluminado pela lua o alto talhe de Hércules.
- Agora sei o que queria saber. Recebi todas as respostas. E de sua boca! De sua boca!... Parece-me que respiro melhor. Obrigado, pequena. Devolveu-me o que eu havia perdido. Vá! Vá agora, você deve repousar, já não pode mais.
E como ela vacilasse, ele tomou-a pelos ombros, apoiando-a contra ele com infinita ternura, e reconduziu-a para junto do fogo. Ela se deixou cair, mais do que propriamente se sentar na areia. Ele avivou um pouco as chamas, depois foi para a outra ponta da praia, onde se estendeu, invisível na sombra projetada pelas árvores, a fim de repousar um pouco, afastado dela.
Pouco antes, quando ela caminhava ao longo da praia, uma vaga mais longa havia envolvido os tornozelos de Angélica. Seus sapatos estavam úmidos. Ela lançou-os fora, pôs os pés sob a saia retomou sua postura friorenta, os braços em torno dos joelhos..
O fogo próximo não a esquentava e ela ainda tremia.
"Como meu corpo é fraco diante do amor!", disse a si mesma com amargura e vergonha. "Errei em-negligenciar as orações por tanto tempo. São elas que conferem a graça de se resistir a tais surpresas." Ela odiava terrivelmente" a si mesma, desprezava-se um pouco. Toda uma parte da noite ela se mostrara bastante razoável, capaz de manter afastada 'a tentação, apesar das lembranças e da presença próxima de Colin, e depois, de repente, aquela onda quente e ávida!...
Chegados a esse ponto, mesmo que se afastassem depois, já era uma traição. Ela escondia o rosto contra os joelhos, invadido por um rubor ardente. Que longa era a noite! "Perdoe-me, Joffrey, perdoe-me, não é culpa minha. É porque você está longe... Eu sou fraca. Você me curou bem'demais, você me ressuscitou, meu mágico. Ah! já vai longe o-tempo em que um homem não podia tocar-me sem que eu tivesse uma convulsão... É culpa sua também. Devolveu-me o gosto dos beijos, de... tudo... Hoje sou fraca!"
Ela falava baixinho, para afastar o medo, e era ao amante, ao esposo adorável e adorado que se dirigia, àquele que a apertara ao peito no grande leito de Wapassu, durante o inverno, evocando-o para esquecer o homem aterrador que, na noite anterior, pegara-a pelos cabelos e batera-lhe tão duramente.
"Se ele souber... se souber deste encontro despropositado, na ilha, a noite inteira... a noite inteira com o pirata que para ele outro não é senão Barba de Ouro, ele me matará. Não escaparei... isso é certo, matar-me-á antes que eu possa abrir a boca... O que serei incapaz de fazer, comõOntem à noite... Oh! meu Deus, como se está desarmado e como se tem medo quando se ama em demasia... Oh! meu Deus, ajude-me...ajude-nos. Tenho medo... Não compreendo mais nada do que está acontecendo... Não sei mais o que fazer..."
Apesar da angústia, ela não conseguia lamentar inteiramente o acaso que nessa noite os reunira, Colin e ela, na ilhota do Velho Navio. Depois que ela o vira erguer-se, dizendo: "Obrigado, pequena. Você me devolveu o que eu havia perdido", sentia um alivio, a consciência mais leve. Vivia o tempo em que se deve livrar-se do peso do passado. Bendito seja Deus, se antes do esquecimento se apresenta a ocasião de reparar a falta. Na plenitude dos dons que haviam feito dela uma mulher, ela atingia a idade extraordinária em que para cada mulher a existência, continuando sua meteórica carreira, parece ficar mais leve, apurar-se, renovar-se na apoteose de uma liberdade da alma e do espírito, pelo qual se pagou caro, mas que é mais preciosa, onde o peso dos erros, que são amiúde apenas os ensinamentos do duro oficio de viver, perde a densidade.
É permitido deixar no caminho os fardos do passado, esquecer aquilo que pode ser esquecido, lembrar-se apenas da riqueza dessa imperfeita e difícil aventura de viver a vida plenamente.
Ela se dava conta de que durante muito tempo arrastara um remorso inconsciente com relação a Colin, seu amante do deserto.
Agora, ele estava salvo.
A única coisa que ele sempre ignoraria é que ela carregara nó ventre um filho seu. Era preciso apagar os laços demasiado íntimos que os uniam. Ah! como era difícil os humanos ajudarem-se mutuamente!
Um lampejo de humor voejou em sua mente entorpecida - ela conhecia bem esse pássaro brincalhão, sempre pronto a levantar voo dentro dela nas horas mais negras, e Angélica disse consigo que gostaria de ser uma velha senhora. A velhice permite ajudar o próximo, os amigos, sem complicar a própria vida nem a deles.
Permite a sinceridade dos impulsos do coração, a ajuda gratuita e eficaz aos semelhantes. Autoriza a viver com franqueza, em companhia do próprio coração, tal qual ele é, sem que se entregue ao perpétuo combate de prudência, recuo, avanço e recuo, que a sedução da carne e seus perigos infligem à vida afetiva.
"Ser velha um dia, eis aí uma boa coisa!", disse consigo Angélica, pondo-se a sorrir, e depois a rir baixinho consigo mesma. Ela tremia, tinha os pés gelados, e a fronte demasiado quente.
Passos que se aproximavam, esmagando a areia e perturbando o leve roçagar de seda das vagas, puseram-na alerta. Colin voltava para ela.
- É preciso dormir, pequena - disse ele em voz baixa, enquanto se inclinava sobre ela. - Não é razoável permanecer assim retorcida como uma mendiga, ruminando sabe-se lá o quê. Deite-se, será melhor. Logo chegará 0 dia...
Ela obedeceu, confiando-se a seus cuidados como outrora, reencontrando suas" mãos seguras e pacientes, enquanto ele a envolvia cuidadosamente em seu manto e punha efh seus pés seu próprio gibão de pele de búfalo.
Ela fechou os olhos. Para seu ser dolorido, a ardente adoração que emanava de Colin era como um bálsamo, um apaziguamen-to para seu coração atormentado pela inquietação e pela tristeza, e que, emergindo do choque, começava a sentir o sofrimento por todo lado.
- Durma agora - sussurrou Colin -, vamos, é preciso dormir.
E deixando-se mergulhar no fundo da corrente escura do sono, ela acreditava ouvi-lo murmurar, na solidão das noites do Maghreb...
- Durma, meu carneirinho, durma, meu anjo. Amanhã, te mos ambos um longo caminho a percorrer no deserto.
Quem sabe não lhe murmurava isso agora?
CAPITULO XXII
Angélica e Colin na armadilha do ciúme
E Colin lá estava novamente, no brilho do céu rosado da aurora, e sacudia-a suavemente.
- A maré está baixando.
Angélica ergueu-se num cotovelo, afastando os cabelos do rosto.
- A neblina ainda está densa - disse Colin. - Se se apressar, poderá atravessar a baía sem ser vista.
Angélica pôs-se em pé prontamente e sacudiu a areia das roupas.
A hora, com efeito, era cúmplice. A bruma estagnava a alguma distância da margem, névoa ligeira, cheia de luz, mas formando um painel protetor entre a ilha e Gouldsboro. O vento ainda não soprava e era a hora calma em que o arrulhar das rolas misturava-se tão docemente ao silêncio que parecia torná-lo mais profundo e enfeitiçante. As gaivotas, pequenas galhetas de alabastro pousadas na ponta castanha dos rochedos emersos, participavam da imobilidade da aurora e, quando se animavam, era apenas para um lento vôo deslizante e sem ruído, que lançava uma luz lirial na bruma rosa e dourada.
Um poderoso odor de sargaço exalava-se no calor da manha, revelando vastas extensões de limo e de algas, deixadas a descoberto pelas ondas que se retiravam.
Angélica sentiu esperança de poder ganhar Gouldsboro sem atrair a atenção, e de que, por um concurso de circunstâncias miraculosas, sua ausência tivesse podido passar despercebida. Pois quem, além de seu marido, poderia preocupar-se em saber se ela passara a noite ou não em seus aposentos?... E ele, dada a frieza glacial de suas relações desde a véspera, não devia ter pedido informações a respeito disso. Com um pouco de sorte, sua escapada fortuita e inexplicável podia'passar ignorada.
Ela se apressou em ganhar a beira da praáa. Colin manteve-se atrás dela, olhando-a tatear com o pé os primeiros seixos da parte rasa.
— E você? Que acontecerá com você? - perguntou ela de súbito.
— Oh! Eu!...
Ele teve um gesto numa direção vaga.
— Tentarei encontrar os que roubaram minhas facas e pistolas. E depois, tentarei... escapar...
— Mas como?.- exclamou-ela. --Você está só, Colin! Não tem mais nada!...
— Não se preocupe cofhigo - disse ele com ironia. - Não sou uma criança de fraldas. Seu Barba de Ouro... não se esqueça.
Ela permaneceu indecisa, equilibrando-se num pé, sem se decidir a deixá-lo.
Sentia o terrível despojamento que pesava sobre aquele homem. Ele sequer tinha armas. Via-o na beira de uma ilha deserta, gigante de mãos nuas, e quando a neblina se houvesse dissipado, não seria mais que um animal perseguido, uma presa para o olho agudo de seus inimigos, e acuada em meio às ilhas.
- Vá! Vá! - disse ele com impaciência. - Vá!
Ela pensou: "E preciso que eu encontre Joffrey... que lhe diga tudo... Que ele o deixe ao menos escapar, fugir, sair da baía Francesa..."
E uma última vez ela se voltou para ele, para levar consigo a visão de seu rosto de viking, seus olhos azuis como duas gotas de céu.
Foi nas pálpebras subitamente horrorizadas de Angélica que ele viu o perigo cair sobre ele. .
Ele se voltou, dando um salto para enfrentá-lo, as mãos poderosas esticadas, prestes a agarrar, a estrangular, a bater, a matar.
Um homem de armadura negra lançou-se sobre ele, depois quatro, depois seis, depois dez. Saíam de todo lado, irrompendo ò bosquete por trás das jochas.
Os espanhóis de Joffrey de Peyrac. Angélica reconheceu-os em meio a uma sensação de pesadelo, como se fossem demónios mascarando os traços ferozes com um rosto familiar.
Eles haviam avançado, surgindo sem perturbar com um ruído, ou sequer com seu passo na areia, o silêncio.
No segundo em queLos vira precipitando-se sobre Colin, ela não compreendera. Era uma visão disparatada, um sonho de sua imaginação aterrorizada.
Esquecia que aqueles homens, escolhidos por Peyrac, eram antigos guerreiros da floresta peruana, formados com a astúcia da serpente, a insídia do felino, a crueldade do índio, e que possuíam sangue mouro.
Pedro, Juan, Francisco, Luís... Conhecia-os todos, mas nesse instante não podia reconhecê-los. Eram a encarnação de uma força má e feroz, encarniçada em relação a Colin, e, no esforço para dominá-lo, seus dentes rilhavam e brilhavam, muito brancos nas faces cor de pão queimado.
Colin batia-se como um leão assaltado por uma malta de "árabes" negros. Com os punhos nus, golpeava, e se machucou contra o cimo de um capacete de aço, e se furtava com tão furioso ímpeto, que por diversas vezes conseguiu arrastar e projetar em terra os homens agarrados a suas roupas.
Acabou por cair de joelhos sob o peso deles. Agarrado pelos ombros, caiu para trás. Uma lança ergueu-se diante dele.
Angélica lançou um grito.
— Não o matem!
— Nada tema, senhora - disse Dom Juan Alvarez. - Queremos apenas espancá-lo. Temos ordens de capturá-lo vivo.
O olhar negro, altivo e carregado de solene reprovação de Dom Juan Alvarez pousou em Angélica. Seu rosto longo e ascético, sempre um pouco amarelo, emergia como de costume de uma antiga gola frisada.
- Faça o favor de seguir-nos, senhora - disse num tom afetado, mas autoritário.
Ela sentiu que, se se rebelasse, ele não hesitaria em empregar a força. Ele obedecia ao Conde de Peyrac, e por ter vivido meses numa intimidade forçada com eles em Wapassu, ela sabia que para Dom Juan e seus homens as ordens do conde eram sagradas.
Um terror sem nome cavou nela como que um buraco negro, e que era ainda o medo de compreender.
Nos olhos de Dom Juan Alvarez ela lia sua condenação. Para ele, a mulher que ele honrara"como esposa do Conde de Peyrac acabava de ser encontrada nos braços de um amante. Tudo desmoronava. E havia dor nos. traços'* altivos do velho espanhol.
Angélica olhou na direção dos bosques de onde eles haviam surgido, tenebrosos em suas couraças de aço negro, suas lanças apontadas para as costas de Colin, e ela esperava vê-lo surgir, "ele" também, o mestre, aquele que lhes dera ordens de agarrar Barba de Ouro e de levá-la como cativa, cúmplice do pirata, uma mulher desprezíveLMas a vegetação sorrateira permaneceu fechada, apenas trêmuja com o sopro do vento.
Então ela acalentou a esperança de que "ele" ainda não soubesse, de que apenas o acaso houvesse trazido os guardas espanhóis à ilha. Não batiam õ arquipélago desde a véspera para encontrar Barba de Ouro?
- Deve seguir-me, senhora! - repetiu o chefe da guarda.
Ele pousou.a mão em seu braço.
Ela se desprendeu e passou à frente dele.
Seria vão tentar desculpar-se aos olhos de um Alvarez. Para ele ela era culpada. Culpada-permaneceria. E merecia a morte.
Wapassu, que os ligara com uma amizade serena durante o inverno, estava longe.
Um sequência de incontroláveis e diabólicos acontecimentos parecia projetá-los num turbilhão onde misturavam-se a estima e a alegria.
Sangue corria da fronte de Cpliri.
Em pé, solidamente rodeado, ele não dizia nada, nem mais procurava se defender. Seus punhos e braços puxados para trás haviam sido fortemente atados, e seus tornozelos, entravados. Uma folga na corda permitia-lhe avançar.
Voltando as costas para a distante Gouldsboro, cujas casas de madeira e falésias rosa começavam a se distinguir na luminosidade da manhã, a pequena comitiva, escoltando Angélica e o prisioneiro, atravessou a ilha, passando junto ao velho navio encalhado. Do outro lado, as rochas eram mais abruptas. Duas barcas esperavam numa enseada. A maré baixa deixava livre um canal que permitia ganhar o mar.
Convidando Angélica a tomar lugar em uma das barcas, Dom Alvarez estendeu-lhe a mão enluvada para ajudá-la. Ela a desdenhou.
Ele sentou-se junto dela. Ela notou que ele estava mais amarelo que de' hábito, e que o tique de expressãp feroz que o fazia descobrir os dentes subitamente a contragosto, e que lhe ficara desde que ele fora torturado pelos índios atakapas, ator-mentava-o particularmente. Era a primeira vez que ela notava fios grisalhos em sua barbicha de senhor espanhol do século anterior. De fato, em dois dias, Dom Alvarez havia envelhecido dez anos. Angélica cruzou seu olhar, a furto, e o que ali viu comoveu-a.
Dividido entre o apego do Conde de Peyrac e aquele que lhe inspirara - oh! muito a contragosto - a nobre condessa que participara com tanto heroísmo de sua invernagem, o nobre espanhol sofria terrivelmente.
Tomou lugar diante dela, como um guarda solene e justiceiro. Marinheiros e mercenários que aguardavam na praia tomaram lugar a bordo e impeliram o barco para a corrente. Outra embarcação foi carregada com o resto do destacamento.
Ela disse consigo:
"Vou morrer; quando ele souber irá matar-me".
Talvez fosse pueril, mas ela não podia afastar da mente essa certeza. Seu cérebro estava como que gelado. A fadiga de um dia penoso, que vivera na véspera, tratando dos feridos, e a de uma noite demasiado curta, entregava-a, sem defesa, à inquietação. Sentia-se doente e estava realmente doente.
Pálida até os lábios e trémula apesar do calor crescente nesse dia de verão, ela tentava no entanto se controlar. A hostilidade dos que a rodeavam era-lhe perceptível como uma chapa de chumbo que nela estivesse pousada.
"E no entanto levei tisanas a toda essa gente", pensou com amargura.
Mas era uma mulher que desonrara o esposo, e aos olhos desses machos fanáticos e ciumentos ela merecia a morte. Ato insensato, mas, na virgindade de uma terra selvagem e áspera, tudo parecia possível e ditado pela própria natureza intransigente. Cólera, furor, ciúme, ódio e gestos de morte fervilhavam na trama sensível e fina dessa bela manhã de verão, como brasas ardentes no coração dos homens.
No vento que lhe atingia ó rosto, ela sentia o mesmo sopro a atiçar as paixões no interior do ser entregue a suas próprias forças. Com a sensibilidade de seus riervos à flor da pele, percebia a solidão deles, de homens e mulheres sem nação nem leis, no seio de uma natureza indomada, e o quanto os atingia, os impregnava a contragosto, no correr dos dias, a selvageria do continente. Em tais circunstâncias, um só homem, um chefe, era tudo.
E dele, de seus atos e de seus sentimentos, dependiam a vida e a morte. Assim quer a lei das Jiordas,e dos povos desde que o homem vagueia sobre a terra. O que ela sentira da força secreta de Joffrey, mesmo na suavidade e na ternura, deixava-a hoje quase sem esperança, e, à mediria que se aproximavam, profundamente aterrada.
Mas para onde iam? As barcas haviam obliquado para leste, ao longo da costa. A ponta de uma península ficou a algumas braças deles, e, ao contornarem o cabo, descobriram quase de imediato uma praia ao abrigo dos rochedos, na extremidade da qual avistavam-se homens armados. O local era escondido, afastado de Gouldsboro e de qualquer habitação.
Junto ao grupo ela distinguiu a alta estatura de Joffrey de Pey-rac, com seu vasto manto inflado pelo vento.
"Ele vai me matar", repetia para si, petrificada por uma espécie de resignação. "Não terei sequer tempo de abrir a boca. No fundo ele não me amava. Já que não pode compreender. Ah! Sentir-me-ia radiante em ser morta..; Se ele não me ama, de que vale viver?"
Ao cansaço que a habitava, ela devia muitos desses propósitos desatinados que lhe povoavam a mente.
"E Cantor! Que dirá Cantor? Que não envolvam meu filho em tudo isso!"
As barcas abordaram. A ressaca era violenta, e dessa vez Angélica teve que aceitar o punho de Dom Juan Alvarez para pôr o pe em terra. De qualquer forma ela o teria feito, pois suas pernas sustentavam-na com dificuldade. Viu-se ao lado de Colin, ambos seguidos de perto por soldados espanhóis, enquanto os marujos amarravam as embarcações.
Destacando-se do grupo distante, o Conde de Peyrac vinha até eles. Angélica jamais acreditara que a visão de seu marido poderia causar-lhe tal apreensão, sobretudo depois dos longos meses de amizade e de amor passados no forte de Wapassu - e ainda tão próximos no tempo!.... Mas... mas... oh! o vento da costa levara tudo - e não era mais o homem que ela amava aquele que para ela avançava. Era o senhor de Gouldsboro, de Katarunk, de Wapassu, e de outros lugares, Um chefe... cópia de um esposo que a mulher havia posto em ridículo diante de seus homens e quase de seu povo.
— E ele? - perguntou Colin surdamente.
— Sim - murmurou Angélica com a garganta seca. O conde não se apressava.
Avançou com indolente altivez, o que no caso presente era um insulto, marcava o desprezo, mas também acentuava a ameaça. Melhor que se apresentasse fora de si, louco de raiva, como na outra noite. Angélica teria preferido esse paroxismo àquela espera horrível, à aproximação de fera que se encolhe para saltar.
Estava tomada de um pânico que lhe esvaziava a mente de quaisquer pensamentos, pois era Colin que estava em jogo. Era um misto de culpabilidade para com seu esposo, de desejo de não perdê-lo, e de fidelidade para com Colin, que a ligava, atava até as entranhas, e despojava-a nesse mesmo instante, devido ao excesso de temor, de suas melhores faculdades.
Entre elas a da palavra. E a do movimento. Ao invés de correr para ele, permaneceu pregada ao solo, muda. Em contrapartida, seu olhar registrava quase maquinalmente os pormenores das roupas de Peyrac, o que era manifestamente inútil em tal momento, e não lhe podia ser de nenhum auxílio para ajudá-la a resolver o dilema inextricável no qual estavam todos mergulhados.
Era um traje verde de veludo! Ela o vira no Gouldsboro no ano anterior, com seus matizes escuros e suntuosos, de que ele gostava, e cujo refinamento era realçado pelas rendas de Flandres, que compunham uma gola cujas pontas de fio de prata cobriam-lhe os ombros. Da mesma renda com realces de prata eram os punhos e os enfeites nas abas das botas inglesas, de fino couro plissado. Um chapéu de castor com plumas brancas agitadas pelo vento
cobria-lhe os bastos cabelos. Nesse dia não trazia armas no cinto.
As duas pistolas de coronha de prata estavam sobre o peito, presas às correias com bordados de "prata que fixavam o boldrié, o qual, atravessando o gibão do ombro ao quadril, sustentava sua espada.
A alguns passos do grupo ele, fez alto.
Angélica esboçou um gesto, sem .saber qual.
Colin trovejou.
- Não se coloque diante de mim. Isso, nunca.
Os espanhóis o agarraram e o dominaram com dificuldade.
Imóvel, o Conde de Peyrac continuava a examiná-lo de longe com extrema atenção.
Com a cabeça um pouco inclinada para o ombro, o senhor de Gouldsboro fixava com intensidade o flibusteiro hormando, e Angélica, que não podia-afástar-os olhos do marido, viu seu olhar velar-se. Depois-um sorriso sardónico crispou a face cortada, onde as cicatrizes se mostravam mais, aparentes nessa manhã, como se branqueadas pelo esforço interior.
Tirou o chapéu com a mão esquerda e continuou a avançar para o prisioneiro. Chegando diante do homem a quem seguravam, levou a mão à fronte e ao peito numa saudação oriental.
— Saiam analeikum --disse.
— Aleikum Saiam - respondeu Colin maquinalmente.
— Saudações, Colin Paturel, Rei dos Escravos de Miquenez - continuou Joffrey de Peyrac em árabe.
Alerta, Colin observava-o com olho escrutador.
— Também o reconheço - disse ele por fim na mesma língua -, é o Rescator, amigo de Mulay Ismael. Vi-o amiúde sentado em almofadas bordadas junto'dele.
— E eu o vi amiúde acorrentado a algum patíbulo, na praça do Mercado, na companhia dos abutres...
— E continuo acorrentado - disse Colin simplesmente.
— E talvez logo pendurado em algUm _patíbulo - replicou o conde com o mesmo sorriso frio que fazia Angélica tremer.
A língua árabe permanecera-lhe familiar, e ela pudera seguir o essencial do surpreendente diálogo, Quase tão alto quanto Colin, Joffrey parecia no entanto, por não se sabe que dimensão senhorial em sua magra estatura, dominar o maciço adversário. Eram dois seres opostos, vindos de horizontes diferentes. O confronto entre eles era nada menos que temível. E um longo silêncio pairou no ar, enquanto o conde parecia meditar.
Ele não tivera nenhum gesto de violência, mesmo contida, nenhum brilho perigoso a atravessar-lhe o olhar* Mas Angélica sentia que ela não mais existia para ele. Ou, se existia, era como um objeto importuno do qual se quer ignorar a presença a qualquer preço. Desligamento ou desprezo. Ela não sabia. E isso parecia-lhe inconcebível, insuportável. Preferiria que ele a matasse, que batesse nela. Ora, aquilo era pior. Com sua atitude, ele lhe impunha a condição de uma mulher que ela não queria parecer, que ela não era, a esposa adúltera e odiada, repelida de seu coração, e ao lado do "amante cúmplice" até o veredicto. Mas mesmo isso se lhe tornava aos poucos indiferente. Indiferentes os que os rodeavam, indiferente o cenário, em sua busca desesperada de apenas um de seus olhares, qualquer coisa vinda dele, qualquer sinal.
Agora que ele sabia quem era Barba de Ouro, compreenderia um pouco... sua fraqueza?... Ela quisera ter a coragem de abrir a boca, de dizer: "Vamos esclarecer as coisas..." Mas sentia que nenhum som transporia seus lábios. A presença dos soldados e dos marujos gelava-a, bem como a dos nobres que faziam um círculo, mudos, dissimulando a curiosidade sob uma atitude indiferente, um pouco compassiva: Gilles Vanereick, o corsário flamengo, Rolando d'Urville, um outro francês que ela não conhecia, e até o almirante inglês, bastante refinado, e seu imediato, ainda mais ataviado.
Por que Joffrey os trouxera a esse trágico encontro, em que sua honra de marido corria o risco de ser duramente posta à prova?
Havia sobretudo o medo. O medo que lhe inspirava o desconhecido que lhe era no entanto tão próximo, Joffrey de Peyrac, o Mágico, o Misterioso, seu esposo!... Tem-se medo quando se ama em demasia. Perde-se a confiança. Seu coração se partia. Ele não lhe dirigiria um só olhar.
Sentia-se tão perturbada e vencida, que não viu que quem a olhava era Colin. Ele captou a furto sua expressão de desalento, a palidez marmórea desse belo rosto de mulher enfeado por uma mancha azul, e o que leu nas pupilas de Angélica em relação àquele que a golpeara fê-lo baixar a fronte, o coração partido.
Acabava de entrever a verdade.
Era somente a esse homem que ela-ámava. O Rescator, a quem ele vira em Miqueiíez, entrando na cidade com.-uma esplêndida escolta. Mais um renegado a insultar a misériá~dos cativos. O ouro, a prata, aureolavam-no com um.prestígio inigualável. Mulay Ismael honrava-o ao extremo.
Hoje, era a ele que Angélica amava. Era ele que a possuía. Era esse nobre tenebroso, magro e vigoroso como um mouro ou um espanhol, que a possuía, esse homem feio, de traços inquietantes, marcados pelos duelos, e belo, pela irradiação de seu espírito, que brotava de seus olhos de fogo. Era esse grande senhor carregado de riqueza e de grandeza que a possuía.
E ela estava possuída... até a-medula, até o ventre, até o coração. Isso podia ser visto, gastava olhá-la... Ler a expressão devoradora e de confusãa infantil que ele jamais conhecera nela, uma mulher corajosa... Mas quando o coração das mulheres é atingido, elas não têm mais vergonha, nem orgulho, nem nada. Voltam a ser crianças. Ele compreendeu.
Ele, Colin - Colin, o Normando, Colin, o cativo -, não era nada para ela. Apesar das fraquezas que tivera por vezes para com ele. Não havia ilusão a esse xespeito.
Diante desse homem, para ela ele não era nada. E ademais, que importava? Ele ia morrer. O lugar deserto, perdido na distância, a terra americana, para ele significava o fim da viagem!...
E seu coração generoso desejou ardentemente fazer ainda algo por ela, Angélica, sua irmã de cativeiro, e que fora toda a luz - quente, paradisíaca, deslumbrante - de sua rude existência.
Ele lhe devia isso. E o faria, pois erá apenas isso o que contava para ela.
- Senhor - disse, erguendo a cabeça orgulhosamente e fixando o olhar azul nos olhos impenetráveis de Peyrac -, hoje estou em suas mãos, e ademais não houve traição. Sou Barba de Ouro. E havia escolhido este trecho da costa para minhas incursões. Minhas razões eram minhas, e as suas eram as suas para impedir-me. Ao mais hábil e mais rápido, a fortuna nos combates. Eu perdi!... Inclino-me, e pode fazer de mim o que lhe aprouver... Mas, antes do processo e do julgamento, é preciso que tudo esteja claro, e se vai enforcar-me é preciso que seja apenas porque sou um pirata inimigo, um bandido dos mares, segundo vocês, um flibusteiro cujo comércio prejudica o seu, e que perdeu no jogo da pirataria, mas... não por outra coisa, senhor! Não há outro motivo, juro-lhe - ele continuou: - Lembranças, é tudo. Deve saber, já que me reconheceu. Permanece-se amigo, quando se foi cativo com outras pessoas na Barbaria... e quando se ganhou junto com essas pessoas a terra crista. São coisas que não se esquecem... para aqueles que se encontram ao acaso da vida. É preciso compreendê-lo. Mas cada qual com seu destino. E posso afirmar-lhe, juro-lhe, senhor, não foi nem por minha vontade nem pela dela - ele esboçou um movimento de cabeça na direção de Angélica - que tiveram lugar os nefastos acontecimentos desta noite. Não se brinca com a maré por estes lados, o senhor o sabe como eu; e quando ela o cerca numa ilha, não há outra coisa a fazer a não ser ter paciência e esperar. Mas eu lhe renovo aqui, como um juramento de homem do mar, diante de sua gente e dos senhores que me escutam, que nada aconteceu nesta noite que possa atentar contra a reputação de sua esposa, a Condessa de Peyrac, nada que possa macular sua honra de marido...
- Eu sei - respondeu Peyrac com sua voz rouca e sem inflexões -, eu sei. Eu estava na ilha.
CAPÍTULO XXIII
A procura da dignidade ultrajada
Dessa vez a cólera tomara Genta de Angélica, sacudindo-a como uma tempestade, devastando;a como um ciclone, e havia instantes em que ela dizia-a si mesma que odiava Joffrey com toda a alma.
O choque atingira-a em pleno coração, despertando-a de seu angustiado estupor, no momento em que ele murmurara com um esgar irônico:"'"Eu sei, eu estava na ilha".
Afastando-se deles, ele fizera um sinal imperioso para que se tomasse o caminho de Gouldsboro.
Recusara-se a ver no rosto de Angélica a expressão aterrada que ela não pudera conter totalmente diante da revelação, e enquanto avançavam num silêncio pesado, pelo atalho irregular à beira-mar, ele caminhava com passo vivo e de cabeça erguida, como de hábito, o grande manto flutuando ao vento, sem se voltar para observar o prisioneiro levado pelos soldados espanhóis, nem a jovem, que caminhava só, fechada em si mesma, escorregando por vezes, sem perceber, na~trilha selvagem.
Ele só teria visto em suas pupilas verdes a raiva exasperada de uma mulher. Aquilo a dominava.A raiva nascida de uma humilhação intensa, de uma vergonha da qual ela não analisava a fonte.
Perturbada, não percebia que sofria sobretudo no pudor íntimo de seus sentimentos. Ele vira sua amizade por Colin, sua ternura por ele. Vira-a pousando a mão na fronte de Colin, e rindo com ele, e a isso ele não tinha direito. Aquilo pertencia a ela, era seu jardim secreto. Um esposo, mesmo o mais querido, não tem o direito de tudo ver, de tudo saber. E aliás, para ela não era mais um esposo querido, mas um inimigo.
Subitamente transformada, ela encontrava a imagem de sempre, o homem, inimigo da mulher, ainda mais profundamente odiado por frustrar e iludir uma expectativa.
Depois, uma onda de cólera e de rancor ajudou-a a tomar pé e avançar, ela também, com a cabeça erguida.
Que ele a insultasse ou lhe batesse, isso ela aceitava, inclinava-se diante das explosões de uma justa cólera. Mas o horror à ma-quiavélica armadilha destruía-o a seus olhos, na confiança cega e na estima sem limite quê lhe votava. Tudo estava arruinado! Tudo! Ele brincara com o coração de sua mulher, com seus sentidos, dos quais conhecia a fragilidade, e impelira-a para os braços de outro homem... para ver!... para ver!... para divertir-se!... A menos que em seu furor ciumento e em seu orgulho ferido, ele procurasse, precipitando-a em nova tentação, um pretexto sobretudo para matá-la... Matá-la!... A ela! Sua mulher! A ela, que acreditava ocupar um lugar privilegiado em sua vida, em seu coração!... Os soluços começavam a apontar. Com um esforço sobre-humano ela conseguiu repeli-los, dominar as lágrimas que lhe subiam aos olhos e erguer o queixo em desafio...
Tamanha era sua vontade de vingança que ela não se interrogava sobre o que iria acontecer. Colocá-la-ia na prisão do forte? Expulsá-la-ia? Exilá-la-ia? De qualquer forma, ela não se deixaria vencer tão facilmente, e saberia defender sua causa dessa vez. Em contrapartida, o destino de Colin aparecia-lhe mais inevitavelmente trágico, e quando nos limites da colónia um rumor de gritos e de clamores subiu dos bosques como um vento de tempestade, seus próprios sentimentos se apagaram, subsistindo apenas urri agudo temor pela vida de Colin. Ela juntou as próprias forças, pronta para defendê-lo com a voz e com os gestos, contra todos, sem se preocupar consigo mesma, pois aquilo não podia acontecer, ela jamais suportaria o fato terrível de ver Colin enforcado, massacrado, de ver a vida de Colin Paturel destruída por sua causa.
Ela se lançaria sobre seu corpo, defendê-lo-ia como a um de seus filhos. Ele não a carregara nas costas no deserto?...
Os gritos que se elevavam dos bosques eram os de uma matilha pronta para matar.
Advertida pelo mensageiro invisível, que se diria passar no vento das margens selvagens, toda a população de Gouldsboro, que durante o verão duplicava com marinheiros estrangeiros, acadianos a passeio, índios vindos para as trocas, acorria, descia as encostas, atravessava os espaços descobertos pela maré, e as toucas brancas das mulheres misturavam-se, como num vôo de gaivotas, à vaga escura ou colorida dos homens. Às pessoas de La Rochelle e aos marujos dos navios juntavam-se refugiados ingleses, índios curiosos e prontos para adotar as querelas e paixões de seus amigos.
- Barba de Ouro! Capturado!...
E "ela" estava com ele. Isso também,já se sábia. Ela passara a noite com ele, na ilhota do Velho Navio. "Eles" eram trazidos acorrentados.
Gritos, urros, insultos criavam como que um imenso rumor, que se precipitava ao'encontro deles, e quando: a multidão desembocou da floresta-e das praias, os soldados espanhóis tiveram de erguer prontamente uma barreira, com as lanças em riste, a fim de que o prisioneiro não fosse, submerso, vítima dos furiosos.
- Morram! Morram!... - urravam. - Cá está Barba de Ouro! Bandido! Pagão!... Queria nossos bens! Está preso! Onde estão suas esmeraldas? E seu navio?... Agora-é nossa vez! Ah! Ah! Sua barba de ouro não o salvará. Servirá para enforcá-lo como punição por seus roubos!
Ao clamor das equipagens e dos colonos, unidos na mesma execração àquele que fora um adversário que estivera a ponto de abatê-los e de arruiná-los quando fizera o cerco à pequena colónia mal saída dos terrores da invernagem, e que hoje era apenas um colosso afinal vencido após o violento combate da véspera, em que alguns dos seus liaviam perdido a vida, em seus gritos de ódio, sua necessidade de insultar, mésclayam-se o triunfo, o alívio, mas também a amargura. A vitória custara caro demais. Seus corações revoltados haviam sido atingidos.
Ao lado de Barba de Ouro estava ela, a Dama de Gouldsboro, a Dama do Lago de Prata, a Fada de mãos milagrosas. Então era verdade o que se contava sobre ela e o pirata! E era atroz descobrir a confirmação disso!
Aquele saqueador de baixa extração havia destruído uma força que se tornara preciosa em seu despojamento da condição de exilados, a estima que tinham sido levados a ter, apesar deles, por dois seres superiores: o Conde e a Condessa de Peyrac.
No tumulto de execração e de hostilidade que os rodeava, escapou a Angélica o único olhar que Joffrey lhe concedera nessa manhã."
Se tivesse surpreendido esse olhar, talvez a dor que a atenazava se tivesse atenuado. Pois esse olhar era um olhar inquieto, assegurando-se vivamente de que ela também estava sob a prote-ção das lanças espanholas.
- ímpio! Ladrão de mulheres! Infame!
Bruscamente, começaram os apupos, os sarcasmos, os escarros. Colin, as mãos atadas, puxado, empurrado, continuava a avançar com dificuldade entre os soldados.
O vento revolvia sua longa cabeleira, a barba emaranhada. O olhar sombrio sob as sobrancelhas desgrenhadas fixava a distância, para além das cabeças agitadas, e ele parecia-se a Prometeu, filho de Titã, entregue sobre um rochedo, impotente, aos abutres.
A entrada da aldeia, o grupo teve que fazer alto mais uma vez, sob o impulso da multidão que as injunções de D'Urville, as ameaças de Vanereick, e o ar pouco amistoso da guarda espanhola não conseguiam acalmar.
Uma pedra sibilante atingiu Colin na fonte. Outra rolou aos pés de Angélica. Sem se saber de onde, um grito se elevou:
- Diaba!
O anátema ressoou longamente no ar vibrante da manhã. E subitamente, como que aterrado com sua própria explosão, o povo fez silêncio.
Então ouviram a voz do conde, cujo passo tranquilo, a mão erguida em sinal de paz, não deixavam de agir sobre os nervos exaltados.
- Acalmem-se - disse com a voz rouca mas calma, solene e firme. - Barba de Ouro, seu inimigo, foi capturado! Deixem-no, agora. Deixem-no à minha justiça!
As cabeças se inclinaram, subjugadas; a multidão recuou. O forte estava próximo.
Angélica ouviu ordens de que o cativo fosse conduzido à sala dos guardas, e encerrado sob dupla vigilância.
Diante da porta da paliçada, abria-se para ela o refúgio dos aposentos no torreão.
Mas ela se imobilizou e, subitamente se voltando, enfrentou a multidão de cernelha endurecida que a vigiava. Nas primeiras fileiras havia protestantes de La Rochelle.
Angélica compreendeu que se assumisse a atitude de mulher culpada, indo esconder o medo nos aposentos do forte, não poderia mais sair sem correr o risco de ser apedrejada.
Conhecia o caráter intransigente das pessoas de La Rochelle, a impulsividade supersticiosa dos marujos, aquela ainda maior dos ingleses; quando começassem a-vociferar contra ela e o marido, cada qual, segundo suas crenças, se armaria de água benta, ou mais perigosamente de mosquetes', como já haviam feito as pessoas de La Rochelle, num moiim~durante a travessia dó mar.
O único modo<le domar as consciências desconfiadas era impor-se, desencorajar ós mexericos com a aparência de uma consciência pura, e na impossibilidade de dissimular a feição de mulher adúltera que lhe atribuíam, ter a coragem de mostrá-la a todos com sua palidez, suas olheiras e as marcas pouco gloriosas dos golpes da vindita conjugal.
Ela se desprendeu da mãe que a puxava, talvez a de Dom Juan Alvarez, que queria conduzi-la para o interior. Não admitia ser julgada nem ser prisioneira, ou então seria preciso empregar a força, e se veria se Joffrey se decidiria a juntar esse novo insulto a todos os outros que já lhe infligira.
Mulher adúltera! Que seja! Pois bem, como deve se conduzir uma mulher adúltera quando quer desviar o fluxo das calúnias, salvar sua dignidade e até a do marido? Enfrentando. Agindo como se nada houvesse acontecido, como se não se soubesse de nada, ' como antes .
- Gostaria de examinar sem-demora o estado dos feridos de ontem - disse em voz bem alta e calma como de costume, dirigindo-se à mulher que lhe estava mais próxima. - Onde puseram aqueles do Sans-Peur?
A mulher afastou-se dela com fúria. Mas Angélica caminhou ousadamente por Gouldsboro, como se caminha sobre as águas, bem decidida a demonstrar quem ela era e como esperava permanecer aos olhos de todos.
A um sinal do conde, dois guardas espanhóis acompanharam-lhe os passos. Ela também não se inquietou com isso. Impor-se-ia, e os boatos se extinguiriam à sua aproximação, por falta de pretextos para alimentá-los. E Angélica não desejava que perturbassem a mente è o coração adolescentes de Cantor.
Tudo isso girava-lhe na mente, dispersa pela fome e o cansaço, mas ela não descansaria enquanto não houvesse retomado Goulds-boro nas mãos, e ia e vinha sem desfalecer de um ferido a outro.
A maior parte dos feridos do Sans-Peur havia retornado ao navio na enseada, porém os gravemente atingidos, bem como os do Gouldsboro, estavam sendo tratados nas casas dos moradores.
Angélica entrava nas moradias pedindo água, panos, bálsamos e ajuda, e os homens e mulheres de La Rochelle viam-se, a contragosto, a assisti-la.
Os feridos acolhiam-na com impaciência e esperança, e ela se acalmou manejando os panos molhados com sangue e com sâ-nie. As feridas abertas, na cura das quais ela via a marca de seu poder, devolviam-lhe a dignidade.
Essa humanidade mal-barbeada e sofredora era, de fato, menos sensível aos boatos que podiam correr sobre a bela e nobre dama encontrada nas selvagens terras distantes da América, num dia de batalha, do que ao alívio causado por sua presença.
- Salvará meu olho, senhora?... Não pude dormir à noite, com todos esses mosquitos, senhora...
Os feridos do Coeur-de-Marie haviam sido colocados com os prisioneiros válidos no celeiro de milho, rodeado por um cordão de sentinelas solidamente armadas. Ademais, o depósito permanecia sob o fogo de um pequeno bastião no ângulo do forte, e essas precauções não eram excessivas, pois as sentinelas disseram a Angélica que os prisioneiros, sabendo da captura de Barba de Ouro, estavam bastante agitados e que haveria perigo em introduzir-se entre eles.
Dois marujos propuseram-se a escoltá-la no interior, de mosquete em riste e mecha acesa, mas ela recusou.
- Conheço essa gente e pouco me importa!
E intimou os guardas espanhóis a permanecer fora com um olhar tão imperioso que eles não ousaram desobedecê-la. Entre a autoridade, para eles sagrada, do Conde de Peyrac e aquela, fascinante, de Angélica, os pobres Luís e Pedro jamais se sentiram tão atormentados como nesse dia difícil.
Angélica não temia voltar a se encontrar sozinha em meio aos piratas do Coeur-de-Marie. Ao contrário. Ali se sentia melhor, pois nesse dia estavam como ela: infelizes e ameaçados.
Feridos inquietos aspirando a alguns cuidados e a um pouco de conforto da mão que sabiam hábil e salvadora. Quanto aos prisioneiros sãos, escondiam a inquietação diante de um futuro pouco invejável que se aproximava a passo largo. Seria aquela a última manhã que saudavam? O Vencedor, o senhor do Goulds-boro, viera inspecioná-los na véspera, pousara nas faces patibula-res seu olho de águia. :
— Senhor - ousou perguntar o Cavaleiro de Barsempuy -, que sorte nos reserva?
— A corda para todos - respondeu Peyrac, enfurecido -, não faltam vergas nos mastros dos naVios.
— Que sorte a nossa! - gemeram os piratas. - Caímos nas mãos de um sanguinário pior que Morgan!
Eles próprios sanguinários em sua maioria, tendo em seu ativo torturas, mãos cortadas, infelizes enforcados ou assados nas churrasqueiras das ilhas, pois o sol 'das Caraíbas faz flamejar o gosto do mal no coração dos homens, não esperavam para si qualquer mercê. Os melhores não mais se felicitavam de ter querido "se arranjar".
- E nós, que contávamos tornar-nos pais de família e colonos!
Essa última campanha terá causado nossa perda.
No negro desespero ou na pálida resignação que os habitava alternadamente, a aparição de Angélica fez erguer-se uma luz. O mundo do homem é duro. O dos aventureiros do mar, mais ainda. Nenhuma falha, nenhuma rachadura na rude carapaça de uma existência vivida, o sabre ao punho, a sede de ouro no coração e a do rum na goela. Súbito uma mulher preenchia o vazio de seus corações, introduzia-se entre eles, uma mulher que não era prisioneira nem prostituta e não havia tempo para -perguntar o que ela era ao certo, pois ela já os pegava pela mão, subjugando-os, não lhes deixando outra alternativa a não ser respeitá-la e obedecer-lhe humildemente.
Foi para todos um alívio vê-la penetrar novamente - nessa manhã em que Barba de Ouro acabava de ser capturado - no celeiro, com a sacola de ataduras e de remédios na mão. Ela ajoelhou-se à cabeceira dos doentes e se pôs de imediato a cuidar de seus ferimentos. Alguns sugeriram apoderar-se dela como refém e salvar a própria pele com uma troca. Negociariam com os sujos de Gouldsboro e, conforme òs resultados obtidos, enviariam um olho, um dedo, um seio da bela ao marido, esse "sanguinário" que queria matá-los a todos, e seria o diabo se, com tal manobra, não conseguissem sair de lá. Em tal extremo, não era uma boa coisa para se fazer, e que já fora feita antes... mais de uma vez? Ali se detiveram as veleidades da execução. Olhos reluzentes seguiam a cabeleira clara de Angélica, que ia e vinha na penumbra malcheirosa. Mas ninguém abriu o bico ou esboçou o menor gesto. Somente o jovem Barsempuy ousou sair de seu m-utismo para lhe fazer uma pergunta:
- E verdade, senhora, que Barba de Ouro foi agarrado?
Angélica aquiesceu em silêncio.
- Que acontecerá com ele? - retomou o tenente, com a voz ansiosa. - Não é possível que o executem, senhora, não a ele... E um homem tão extraordinário! Gostamos de nosso chefe, senhora.
Imediatamente, sob o olhar fulgurante de Angélica, ele se encolheu, os braços cruzados sobre o ventre, que protegia sem cessar como uma mulher grávida que teme ser espancada protege seu precioso fardo.
- Fará melhor em calar-te - lançou-lhe ela friamente -, ou acabarei por degolá-lo.
Os outros riram num acesso de descontração. Tendo acabado sua tarefa, ela os deixou. Não se sentia de bom humor para gracejar com essa canalha, mas assim que a porta foi fechada, ela já não mais os odiava.
Embora argumentasse e se defendesse, sempre acabava por enternecer-se diante de homens feridos ou vencidos. Salteadores ou soldados, mensageiros ou marujos, depois de os ter tratado, não podia impedir-se de gostar deles. Essa ligação irresistível vinha-lhe do conhecimento que adquirira enquanto se debruçava sobre seus ferimentos.
O homem é doente e vulnerável. De bom grado ele se abandona, se entrega, e, se resiste, é fácil-convencê-lo. Atrás de um cará-ter amargo, selvagem e pouco maleável, Angélica sempre acabava por atingir o coração simples .e bastante infantil. Assim que os houvesse posto de pé, ela os tinha à sua mercê. Por vezes, sentiam-se temerosos de que agora ela os conhecesse melhor do que eles próprios.
Fora, ela deu ordens para que levassem aos prisioneiros tabuleiros de gamão, cartas e fumo, a fim de tornar suas horas de cativeiro menos pesadas.
CAPÍTULO XXIV
As mulheres de Gouldsboro
Outra coisa era enfrentar as damas de Gouldsboro! Ali não haveria quartel! Sabia que não havia desfalecimentos a esperar. A virtude delas destilava por natureza um espírito de justiça e de condenação e era dotada de uma virulência que se renovava de modo quase miraculoso, e que nada podia extinguir.
Mas a elas também deveria calar-lhes a boca, antes que a vaga de fel os envolvesse a todos numa lama de amargura, da qual nada poderia renascer.
Antes de empurrar a porta do albergue sob o forte, onde estavam reunidas, Angélica teve uma curta hesitação que tomou a forma de uma instintiva prece aos céus, e naturalmente estavam todas lá de saia escura e touca branca. A Sra. Manigault dominava, mais imponente que nunca, e a Sra. Carrère se agitava. Abigail Berne estava do outro lado da lareira, pálida e digna, uma expressão resoluta inscrita no belo rosto de madona flamenga. A entrada de Angélica parecia ter interrompido uma discussão onde mais uma vez Abigail devia desgostar as companheiras com a benevolência de suas opiniões.
— Sra. Carrère - disse Angélica, dirigindo-se à proprietária do lugar -, faça o obséquio de levar uma refeição aos aposentos do torreão. Peço-lhe também que aqueça uma bacia de água para minhas abluções.
— "A água inteira dos rios não pode lavar uma alma culpada nem o alimento da terra saciar aquele que está morrendo por ter ofendido ao Senhor" - citou a Sra. Manigault.
Angélica recebeu a flechada, mas já esperava por ela.
Para além de sua exasperação, de sua irritação para com as comadres, sabia que essas mulheres, a quem não podia impedir-se de considerar amigas, viam-se presa de atitudes contrárias e que as desolavam.
Por trás da intransigência das damas de Gouldsboro com a conduta presumidamente escandalosa de Angélica, havia indignação em ver traído um homem pelo qual todas, umas mais outras menos, nutriam profunda admiração, ou até um outro sentimento. Sentimento mitigado, dissimulado - mas sentimento assim mesmo, nessas huguenotes de coração sensível - sob a frieza da primeira educação.
Aquele "Eu sempre disse" da Sra. Manigault podia hoje estender-se como umjtapete pelas ruas em dia de festa papista do Corpo de Deus! Ela não denunciara sempre Angélica, a criada de Mestre Berne, como urna perigosa perturbadora?
Ao que Abigail retorquia que o atual comportamento da Sra. de Peyrac provava "que sua consciência de nada a acusava.
- Uma orgulhosa! -retrucou a Sra. Manigault -, eu sempre disse!
"E depois, o que se sabe sobre o que realmente se passou?", replicavam as mulheres fiéis a Angélica... Boatos, alusões, mal-entendidos... O suíço que falara estava bêbado quando fizera afirmações ultrajantes sobre ela, os próprios senhores Manigault e Berne não o haviam testemunhado?... Ora, eis que Angélica acabava de surgir e se mantinha altiva diante delas, respondendo com um sorriso um pouco desdenhoso à alusão da Sra. Manigault.
Próxima delas e tão diferente, tal como era quando partilhava sua existência perseguida em La Rochelle.
E recordaram que Angélica correra com elas pelas charnecas para escapar aos dragões do rei, conduzindo-as para a salvação...
- Eis um belo pretexto e uma bela verdade - disse Angélica, medindo a augusta dama com um olhar tranquilo -, e creio que a mim se dirige essa meditação, não é mesmo cara Sra. Manigault? Agradeço-lhe, mas, no momento, trata-se menos de alimentar minha alma, culpada ou não, que de reparar minhas forças. Desde que cheguei a sua colónia de Gouldsboro, há dois dias, senhoras, devo dizer que tive apenas uma espiga de milho para morder. O que não testemunharia a boa hospitalidade que se encontra entre vocês, se eu não soubesse das preocupações e tarefas que nos esmagam desde ontem, com a batalha e os feridos. Pedindo de comer, não fiz pois senão exprimir aspirações bastante naturais que vocês parecem igualmente sentir.
Ora, uma parte dessas boas senhoras achava-se de fato sentada diante de um belo guisado e de um copo de vinho.. Divididas desde a véspera entre os cuidados com a casa, os filhos, o celeiro e os feridos na batalha, estavam igualmente esgotadas, e haviam aproveitado um momento de calma para vir alimentar-se no acolhedor albergue da Sra. Carrère. Pegas em flagrante delito de não-austeridade, ficaram paradas, a colher na mão.
- Por favor, por favor - insistiu Angélica, condescendente -, não se preocupem comigo. Continuem. Não lhes estou jogando uma pedra. Têm razão em comer, caras amigas. Mas permitam que a Condessa de Peyrac possa fazer o mesmo. Enviar-me-á logo, então, a refeição, Sra. Carrère? - E para a jovem: - Abigail, querida, pode acompanhar-me um instante? Tenho algumas coisas para dizer-lhe em particular.
Com um pé no primeiro degrau da escada que conduzia ao quarto, Angélica ergueu para a mulher de Mestre Berne um olhar franco.
- Duvida de mim, Abigail?
A máscara se partia, seu esgotamento vinha à tona. Abigail fez um movimento em direção a ela.
— Senhora, nada pode alterar a amizade que tenho por sua pessoa, se isso não a ofende.
— Está invertendo os papéis, doce Abigail. Para mim é que sua amizade sempre foi preciosa. Acredita que um dia esquecerei como você foi boa para comigo quando cheguei a La Rochelle com minha filha nos braços? Não mostrou desprezo para com a pobre criada que eu era então. Deixe pois esse tom de reverência que não assenta entre nós. E obrigada pelo que acaba de me dizer. Você me devolveu a coragem. Ainda não posso lhe explicar o que aconteceu, mas não é tão grave como querem dar a entender os espíritos maledicentes.
— Estou intimamente convicta disso - afirmou a filha do Pastor Beaucaire.
Quanto encanto possuía, no desabrochar de sua maternidade próxima, a casta e pura Abigail de La Rochelle!
A felicidade enobrecera-a ainda mais.
Seus olhos claros afirmavam Sua afeição. Angélica cedeu e, sem poder resistir, abandonou a testa -no ombro de Abigail.
— Abigail, tenho medo, parece-me que estou presa num turbilhão infernal... que ameaças se erguem de todas as partes... para cercar-me. Se ele não mais me áma^que acontecerá comigo?... Não sou culpada... não tão culpada quanto dizem... Mas tudo se une para me condenar.
— Conheço a retidão de seu coração - disse Abigail, passando a mão tranquilizante na fronte de Angélica. - Estou do seu lado e gosto de você.
Ouvindo um ruído de passos, Angélica endiíeitou-se vivamente. Ninguém a não ser Abigail deveria vê-la desfalecer. Mas a bondade desta última ,devolvera-lhe as forças.
Teve para a- amiga uma piscadela cúmplice.
- "Elas" queriam ver-me partir, não é mesmo? - perguntou. - Já estão fartas de minta presença de pecadora em Gouldsboro. Mas nada tema, Abigail. Vim para assisti-la em seu parto e permanecerei junto de você, enquanto precisar de mim, mesmo que tenha de enfrentar o inferno da parte delas.
Infelizmente nada acontecera do que ela havia previsto. Sonhara em sentar-se no interior das casas de suas amigas, trocar novidades.
Depois visitariam as instalações do forte, examinariam as contas, e organizariam festas, para as quais seriam convidadas as equipagens dos navios parados no porto. Sempre há algo a festejar no verão. Rápido! Rápido! É o tempo da estação clemente. É preciso viver duplamente, triplamehte, acumular, armazenar, e acontece a proliferação dos humanos junto às margens, a atividade febril. Rápido! Rápido! Logo chegará o inverno.
Mas nada se parecia ao que ela havia sonhado. Longe de ser uma festa, esses dias de outono precipitavam-se como uma torrente lodosa, carreando paixões, tristezas, desesperos, e engrossando-se com o fluxo de perigos misteriosos, de hora em hora.
CAPÍTULO XXV
Cantor, jovem senhor dos mares
Que estaria pensando Joffrey? Que estaria decidindo com relação a ela?... E a Colin?
Esse silêncio, essa ausência, tornavam-se intoleráveis.
A cada instante desse dia que durava séculos ela temia e esperava, alternadamente, que ele fosse mandar chamá-la. Ela compareceria diante dele, claro, mas tudo era preferível à incerteza na qual ele a deixava mergulhar. Gritar, enraivecer-se, implorar, acusar, por sua vez, ter-lhe-ia devolvido a vida.
A raiva e o orgulho, instinto de defesa que a sustentara nessa manhã, desfaziam-se dentro dela à medida que as horas passavam. Afastando-a, ignorando-a, ele a submetia a uma verdadeira tortura, que vencia sua força interior, e foi com dificuldade que conseguiu engolir alguns bocados da refeição pedida e que lhe fora enviada pela Sra. Carrère.
A tarde, partiu à procura de Cantor e encontrou-o ocupado junto ao porto.
— Não escute os boatos que correm a meu respeito - disse-lhe febrilmente. - Você conhece a susperstição dessa gente que nos rodeia. Já não me apontam como... A Diaba no Quebec? Basta que uma mulher se faça capturar por um pirata para que os caluniadores teçam seu véu. Barba de Ouro mostrou-se cavalheiresco para comigo, e explicar-lhe-ei um dia quem ele é e por que lhe tenho amizade.
— Em todo caso não assistirei a seu enforcamento - declarou Cantor, parecendo não querer demorar-se nessas questões. - Parto hoje mesmo com a maré no Le Rochelais. Meu pai acaba de me dar o comando.
Ele se empertigou, bastante vaidoso com suas responsabilidades de capitão de quinze anos pára se preocupar com os boatos que agitavam a pequena colónia. Contente de ter vindo a tempo para participar do combate naval, ainda mais contente de partir como senhor pelo oceano, cuja vida .movimentada lhe era tão familiar, ele estufou o peito e acrescentou, compenetrado de sua importância:
— Devo conduzir a Houssnock mercadorias que serão em seguida encaminhadas a Wapassu por Curt Ritz e seis homens do recrutamento que levo igualmente a tordo.
— Como?! - exclamou Angélica --, um correio parte para Wa-passu em algurnas horas e não sou sequer informada?... Laurier! Laurier! - chamou na direção do garotinho, que passava. - Venha logo ajudar-me a apanhar mariscos para Honorina.
De resto, teve apenas tempo para rabiscar um bilhete para os Jonas e os Malaprade.
- Apressemo-nos, apressemo-nos, a maré não espera - recomendou Cantor.
O suíço Curt Ritz permanecia no molhe, a alabarda na mão, inspecionando os fardos pára a chalupa, bem como seus homens, que como ele, de origem alemã ou helvécia, traziam seu costume de viagem, remanescente da roupa dos soldados alemães, com o colete curto e ajustado, de grandes mangas franzidas e fendidas sobre a camisa, calças douradas bufantes, arregaçadas nos joelhos e enfeitadas no comprimento com fitas escarlates, cuja frouxidão dava à roupa a aparência de uma. rhingrave, e conforme a moda inconveniente e gloriosa do século anterior, a braguilha aparente com laçadas de cetim amarelo dourado.
Apenas um leve peitilho substituíra a gola frisada.
O boné vasto e largo, misto de gorro antigo e do vasto chapéu de feltro moderno, era adornado com uma pluma de avestruz vermelha. Um casco de aço dourado estava preso ao cinturão. Todos, com suas lanças, tinham um porte orgulhoso.
Curt Ritz correspondia bem ao que era recomendável para um sargento, "homem sábio, valoroso, ponderado, cortês, que se tenha encontrado amiúde com o inimigo e, se possível, que seja alto e de boa aparência".
Ademais, trazia a espada, sinal de uma qualidade de nobre que adquirira a serviço do rei da França, na Áustria, contra os turcos.
Angélica não o vira desde a noite em que o surpreendera agarrado aos "pavilhões" do castelo de popa do Coeur-de-Marie, fora uma breve passagem na sombra, na noite de sua volta, e ela buscou-o um momento com os olhos, sem o reconhecer.
Apontaram-no a ela. Ela entregou-lhe a mensagem para Jonas, sem se importar com o olhar altivo e desdenhoso que ele lhe dedicou. Decerto desprezava-a pelo que vira no navio. Falaria nisso em Wapassu? Não podia humilhar-se recomendando-lhe silêncio. Mas enquanto se entretinha com ele em tom afetado, juntando de viva voz diversas instruções essenciais que subitamente lhe ocorriam - tomara que não houvessem esquecido de recolher os brotos de abeto para as tisanas peitorais! - sua intuição convenceu-a de que o estrangeiro era um homem "de bem". Rude, frio, mas com o ar senhorial que os montanheses possuem por natureza, e sem ser mesquinho. Ele não falaria, jamais falaria do segredo surpreendido à luz de uma vela, numa noite em que fugia de um n.wio pirata.
Avistando o Conde de Peyrac, que descia para o porto em companhia de Rolando d'Urville e de Gilles Vanereick, ela fugiu.
Por que fugira? Dele?... Do marido? Vagou através das habitações novas de Gouldsboro, vazias de seus habitantes, que também haviam ido ao porto para assistir à partida do iate...
Não encontrara desta vez coragem para ficar a alguns passos dele, misturada à multidão que os observava. Deveria estar lá, repreendeu-se ela. Agitar o lenço quando o pequeno navio comandado pelo valoroso adolescente Cantor de Peyrac inflasse as velas... Ela não pudera. Era sua primeira grave fraqueza desde a manhã.
Ele a venceria. Mas como acabaria o combate?
Enquanto ela não soubesse do destino de Colin, Joffrey permaneceria como uma ameaça, o braço erguido para golpear e, no fundo do coração, o inimigo a quem não é possível cercar.
Quantas vezes no passado o Conde de Peyrac não afirmara sua resolução implacável de matar quem tentasse roubar-lhe a mulher?
Ela não podia, com a morte no coração, deixar de lembrar-se dessas palavras. A Pont-Briand, a Loménie, ele o afirmara.
Colin estava condenado menos como pirata saqueador do que como rival. Mas isso não podia acontecer. Não por tão pouco! Não por causa dela. "Oh! meu Deus! Não permita que isso aconteça!..."
CAPÍTULO XXVI
Estranho diálogo entre Peyrac e Colin
À noite no forte, para onde ela voltou bem tarde, após ter feito mais uma vez a ronda dos feridos, e onde se refugiou, ébria pelo sono e pelos tormentos, notou contudo, depositados no quarto, dois cofres que não estavam ali antes.
Num deles, vestidos, roupas, rendas; roupa-branca, luvas, sapatos. No outro, objetos diversos e luxuosos, para a comodidade da vida cotidiana.
Adornos e objetos cheiravam a Europa. Joffrey de Peyrac devia tê-los encomendado a Erikson antes da partida no outono, e o Gouldsboro acabava de trazê-los. Refinamento, beleza, de um mundo perdido.
Angélica mal os tocou, revirou-os com mão quase indiferente, como os despojos de um amor morto.
O motivo por que os haviam trazido a seus aposentos nesta noite permanecia-lhe obscuro, e, no estado de espírito em que se encontrava, trazia-lhe antes inquietação, como uma armadilha.
Ela se desviou dos suntuosos presentes como de um insulto a seus sofrimentos, e tentou dormir um pouco.
Tremia com o que poderia acontecer durante esse tempo de inconsciência. E se ao despertar, visse o corpo de Colin, balançando-se ao alvorecer, pendurado no braço de um patíbulo?
Na hora do crepúsculo, tomando-se de coragem, ela buscara o marido a duras penas. Mas não o encontrara em nenhum lugar. Uns diziam que partira para o interior. Outros, que pegara seu navio de três mastros para ir ao encontro de não se sabe que nau. Em desespero de causa, a necessidade fizera-a decidir-se a repousar um pouco.
Mas a sua inquietação permanecia desperta. Assim, após um breve e pesado sono, acordou na noite ainda profunda, e, sem conseguir novamente adormecer, começou a révirar-se, remoendo sombrios pensamentos.
O repouso despertara-lhe p rancor pelo marido. Estava decididamente bastante ferida com aquele comportamento de senhor intolerante e desconfiado.
Joffrey abandonara-a durante anos a si mesma, e hoje queria tudo, mesmo sua fidelidade no passado. Teria, longe dela, mostrado tanto., escrúpulo em ter prazer com outras mulheres?... Mesma assim decidia arrancar com mão brutal os véus de segredos que só a ela pertenciam. E ajustar contas, atribuin-do-lhe aliás mais do que ela fizera durante a "viuvez" que o obsedava de ciúmer
De sua parte, quando se' debruçava sobre as recordações desses quinze anos longe dele,-ria via sobretudo uma longa sequência de noites solitárias, e frias, onde sua vida de mulher jovem e bela se consumira, em chorar, lembrar, lamentar... e em dormir também, felizmente, só e de punhos fechados. Sempre tivera um sono pesado de criança, e íora o. que a salvara. Na época em que gerenciava a Máscara Vermelha, um leito estreito recebia-a extenuada, e a aurora encontrava-a pronta a enfrentar um dia de labuta, onde não havia lugar para o amor, salvo para pôr porta afora algum mosqueteiro ousado demais. Durante seu período de chocolateira, Ninon de Lenclos reprovara-lhe sua vida demasiado comportada.
Como pontos luminosos, ligeiros e vacilantes, cedo apagados, houvera aqui e ali uma noite de amor nos braços de um poeta perseguido pela polícia, ou nos de seu próprio caçador, Desgrez. Ume outro muito ocupados com seu joguinho cruel para envolver-se mais demoradamente com ela.
Na corte, apesar do clima erótico que a rodeava, sua vida amorosa fora mais sensual? Não, e talvez até menos. A paixão do rei a isolava. E sua ambição pessoal, acrescida à saudade inesgotável de um fantasma amado ao qual não cessara de estender os braços, afastava-a das aventuras, das ligações fáceis e que rapidamente lhe teriam sido insuportáveis. Então? Que lhe restara?
Algumas noites com Racoczi, o príncipe perseguido. Um encontro furtivo, numa noite de caça, com o Duque de Lauzun - um passo em falso que lhe custara, aliás, bastante caro. E com Filipe, seu segundo marido? Duas, talvez três vezes. E depois Colin, o reconforto no deserto...
No total, fizera menos amor em quinze anos que qualquer virtuosa burguesa no leito-de um esposo legítimo em três meses... ou que ela própria em menos tempo ainda nos braços de Joffrey. Havia de fato motivo para cobri-la de repente de vergonha!, prendê-la ao pelourinho!, atribuir-lhe um comportamento de Messalina desavergonhada!... Em vão tentaria fazer Joffrey compreender a realidade, mesmo reconstituindo a contabilidade precisa para um homem de ciência que, se o fosse de fato, deveria compreender o alcance lógico de tais argumentos dos fatos. Infelizmente sentia que, mesmo com um sábio como Peyrac, não se devia contar com sua imparcialidade no domínio do coração. Ele se igualava a todos os homens quando o instinto de proprietário estava em jogo. Os homens se descontrolam, e mesmo os mais inteligentes recusam-se a qualquer entendimento.
Mas por que tanta história por um beijo?
Que é um beijo, afinal? Lábios que se tocam e se confundem. E os corações se tocam.
Duas criaturas perdidas se enrodilham no seio de uma segurança divina, se aquecem com seus próprios hálitos, se reconhecem na escuridão de uma noite onde por muito tempo caminharam sós. O homem! A mulher!
Nada além disso.
E que é um abraço senão o prolongamento e o florescer desse estado supraterreno, tão raramente fruído pela criatura humana?... Ou talvez nunca?
Então, se fosse isso... se fosse isso de fato, um beijo? Joffrey teria razão em querer-lhe mal pelo beijo que ela trocara com Colin, que se tornara Barba de Ouro?
A vida era uma obra, uma arte difícil. Para Angélica, o mais difícil de fato era admitir em seu orgulho que o ostracismo, o desprezo, a cólera dos outros, cujos ataques ela sentia até o fundo da consciência, encontravam justificativa em sua própria conduta, que por instantes ela sabia indesculpável.
Para recuperar o equilíbrio, seria preciso colocar esse passo em falso, esse incidente, em seu devido lugar, e ela não conseguia fazer isso sozinha. Alternadamente, condenava-se, ou via apenas, no abandono de um momento, que tivera um agradável interlúdio que uma linda mulher tem por vezes o' direito de roubar à existência.
A aurora úmida, enevoada, arrancou-a à ronda infernal. Ela emergiu, dolorida, cansada de sua agitação no leito frio e deserto. Sua incerteza sobre a sorte de Colin martirizava-a.
A aurora inquietante, rosa-acinzentada, trazia consigo o canto incansável da rola em nptas redondas, cheias,- insinuantes. Angélica antipatizaria pelo resto da vida com esse canto dulcoroso. Doravante esse canto lhe lembraria a estação fulminante que vivera naquele ano etn Gouldsboro e que em sua lembrança chamara de verão maldito. - **'- -
Estação de surdo horror, cujas primícias rodavam, rodavam. Cada quente manhã, cada aurora trágica, doravante pontuadas pela cantata lancinante do pássaro.
Atrás das brumas, o ruído do porto e da aldeia a despertar repercutia, amplificado. Golpes de martelo! Estariam armando um patíbulo?
Uma voz de marinheira cantou a canção do Rei Renaud:
"E quando foi meia-noite
O Rei Renaud entregou a alma.
Ah!, diga, minha mãe, minha amiga,
O que ouço assim batendo?
Minha filha, é o carpinteiro
Que está consertando o celeiro..."
Angélica estremece. Um cadafalso? Um caixão no qual batem pregos?... É preciso precipitar-se para fora e agir.
Mas o dia transcorre nos movimentos do vento incessante e na da acontece.
Era a tarde ainda e já uma escuridão profunda e sem luar, pois o céu carregado, inchado de chuva, arrastava-se sobre o mar, misturava-se às árvores.
Agarrada aos batentes de madeira de uma janela, Angélica olhava através da vidraça dois homens, um diante do outro. Há pouco ela atravessara o pátio e viera para a Câmara do Conselho com a intenção de abordar Joffrey de frente:
- Procuremos nos entender... Quais são suas intenções?
De fora ela os vira. Joffrey... Colin. Face a face, na Câmara do Conselho. Estavam sós e não se sabiam observados.
Colin tinha as mãos nas costas, sem dúvida devido aos punhos amarrados. Joffrey de Peyrac permanecia junto à mesa, sobre a qual havia rolos de pergaminho, mapas.
Lenta e metodicamente, ele desdobrava os documentos um a um e os lia com atenção. Por vezes pegava de um cofre aberto diante dele uma pedra preciosa, que examinava à luz de uma vela, como conhecedor que era. Das pontas de seus dedos, jorrava sub-repticiamente o brilho verde de uma esmeralda.
Quando via seus lábios se moverem, Angélica adivinhava que ele lançava uma pergunta na direção do prisioneiro. Este respondia brevemente. Num dado momento, Colin moveu-se e designou com um dedo um ponto no mapa. Então ela viu que ele não estava amarrado...
Angélica pôs-se a tremer por Joffrey de Peyrac. E se num brusco impulso Colin o pegasse pela garganta?
A tão pouca distância dele, Joffrey não sentia a enorme presença de Barba de Ouro, em sua manifesta força física?
Mas não. Ele fingia nada saber, não dar a isso nenhuma importância, que imprudência! Sempre o desafio lançado aos fatos, aos elementos, aos homens. Sempre essa vontade de ir mais longe, até o extremo limite da experiência... para ver... A morte um dia cairia sobre ele como uma águia. "Joffrey, Joffrey!, tome cuidado!"
Ela tremia^ agarrada aos montantes da janela, impotente, e sentindo por instinto que não tinha o direito de intervir entre o dois homens.
Era preciso deixar que a sorte se pronunciasse e que as vontades poderosas se enfrentassem, num combate em que ela quisera, em seu coração de mulher, que não houvesse vencido nem vencedor.
Os olhares de Angélica iam de um a outro com angústia, e se grudavam, devoradores, atraídos como que por um ímã, na compleição delgada, angulosa e vigorosa do marido. Dele separada pela parede de silêncio das vidraças, aquilo era como surpreendê-lo e observá-lo durante o sono... Ela jamais pudera fazê-lo sem experimentar uma emoção temerosa é por vezes um agudo ciúme, por que, adormecido, ele tinha o semblante de^èú mistério de homem, e lhe escapava.
Um reflexo prateado punha uma suavidade nas fontes castanhas, mas era apenas uma ilusão.- Ele permanecia distante, duro, inacessível. E no entanto não houve uma nuança de sua pessoa que não lhe fosse familiar, a ela, sua mulher, e não lhe pungisse o coração enquanto o contemplava. Detalhe por detalhe, ela recompunha tudo o que sabia dele: sua prudência e seu arrebatamento, seu autocontrole, sua habilidade, sua inteligência, sua ciência, encobertos com- tanta simplicidade humana, e se a expressão meditativa de seu rosto traía a genialidade de seu pensamento, Angélica não deixava de recordar, seguindo os movimentos de seus músculos sob as roupas de veludo escuro, a energia, o vigor, a extraordinária saúde amorosa de que sempre dera prova e que habitava esse corpo indomável e~robusto.
Então os olhos de Angélica voltavam-se para Colin. Proveniente de um tempo distante, era o rei dos cativos de Miquenez que ali estava, na peça estreita. Suas roupas coloridas de Barba de Ouro não pareciam mais que um disfarce zombeteiro sobre os ombros.
Tinha nessa noite seu olhar azul de soberano, o olhar azul do grande Colin, habituado a ler nas distâncias do deserto e até no fundo das almas.
Ora, a contragosto, por ser mulher, e por isso pertencente a uma raça também inferior, esmagada e humilhada há milénios, Angélica não podia impedir-se, diante desse diálogo mudo, de estar do lado do mais fraco, Colin.
Conhecendo a ambos, ela sabia que Joffrey era bem mais forte que o Normando.
Alimentado com as grandes filosofias e ciências do mundo, ocupado com as paixões sutis e infinitas do -espírito, ele podia tudo assumir - ou quase - sem fraquejar, mesmo as mágoas do coração.
Ao passo que Colin, inculto apesar de sua inteligência natural, Colin, que sequer sabia ler, achara-se desarmado diante de golpes imprevistos.
Fora ela quem lhes infligira. Sentia um remorso e uma dor por vê-lo ali, entregue e vencido de antemão, apesar de sua inegável força física.
Súbito seu coração desfaleceu. Vira Joffrey afastar os pergaminhos e caminhar para Colin. E ela sentiu um temor tão terrível, como se o tivesse visto apontar a pistola para Colin e atirar-lhe em pleno peito. Foi-lhe preciso um momento para se convencer de que o conde tinhas as mãos nuas.
E apesar disso o medo continuava.
Atrás das janelas vivia-se um instante decisivo.
Ela o adivinhou por sua própria pele eriçada por um longo calafrio, por seu espírito tenso, seus sentidos alerta, tentando surpreender, compreender.
Algo de definitivo se desenrolava. Mas em meio ao silêncio, através de palavras que ela não podia ouvir, e que jorravam dos lábios dos dois homens como golpes, como pontas afiadas de punhal...
Joffrey falava, próximo do prisioneiro, os olhos cintilantes fixos na face atenta e endurecida de Colin. Pouco a pouco um sombrio furor, a indignação, marcavam a face do Normando, e Angélica viu seus punhos se abrirem e fecharem, e até se erguerem, tremendo com raiva impotente. Repetidas vezes sacudiu a cabeça numa negativa, opondo às palavras de Peyrac um orgulho de leão intratável.
Então Peyrac deixou-o. Pôs-se a caminhar de um lado para outro, como um felino enjaulado, rodeando Colin, lançando-lhe olhares de aguda observação, tal qual um caçador que se interroga sobre o melhor lugar para golpear. Voltando até ele, agarrou o gigante pelas abas do casaco de búfalo, aproximando-o dele como para uma confidência. E desta vez falou baixinho. Havia agora uma espécie de suavidade perigosa nos traços de Joffrey de Peyrac, como que uma ruga ambígua e sutil no canto do lábio, e Angélica quase pôde adivinhar a entonação sedutora de sua voz. Seu semblante nesse instante atraía,.mas a chama em suas pupilas assustava. E o que ela temia estava acontecendo. Colin sucumbia diante de Joffrey de Peyrac.
Pouco a pouco a resolução feroz inscrita em seus traços se apagava, se destruía, substituída por uma expressão de confusão, de desespero, quase de fugidia loucura. Bruscamente ele pendeu a cabeça para a frente, num gesto de esgotamento ou de concordância.
E que pudera dizer o Conde Joffrey de Peyrac para que Colin Paturel, que não curvara a espinha diante de Mulay Ismael e de suas torturas, se visse assim vencido?
Joffrey calou-se. Mas continuava, a seglírar Colin e a espreitá-lo. Por fim á pesada cabeça loura se ergueu. Colin olhou diante dele fixamente. Angélica temeu que ele a tivesse visto contra a escuridão da vidraça.
Mas Colin não via nada fora, pois olhava para dentro de si mesmo. E súbito ela revia nele também aquela espécie de candura que ele tinha no sono, seu rosto de Adão dos primeiros dias. Seu olhar azul, como que maldesperto, voltou-se novamente para Peyrac, e os dois homens se fixaram longamente, sem uma palavra.
Depois Colin inclinou atabeça repetidas vezes, mas agora num gesto afirmativo, de aquiescência.
O Conde de Peyrac voltou para seu lugar atrás da mesa. Sombras moveram-se no-fundò- da peça. Guardas espanhóis entraram e vieram colocar-se atrás do prisioneiro. Angélica não percebera o chamado que os fizera surgir. Saíram levando Colin.
Joffrey permaneceu só na peça. Ele se sentou.
Angélica recuou, tomada de temor à ideia de que ele pudesse suspeitar de sua presença. Mas permaneceu ali, fascinada, e assim como ele a espiara na outra noite, na sombra de uma ilhota, sem que ela o soubesse, também ela queria descobri-lo a nu, enquanto ele não se sabia observado. Que sentimento trairia? Que máscara deixaria cair que poderia revelá-lo a ela? E que permitiria prever seus pensamentos, suas decisões?
Ela o viu estender o braço para o cofre de esmeraldas, as famosas esmeraldas de Caracas, pilhadas aos espanhóis por Barba de Ouro. Pegou uma de excepcional tamanho entre dois dedos; erguendo-a diante de si, contra a luz de um archote, perdeu-se em sua observação.
E sorria, como se houvesse contemplado, através das transparências da pedra preciosa, um alegre espectáculo.
CAPÍTULO XXVII
A chegada do ilustre doutor John Knox Mather - Angélica sofre a censura pública
O dia seguinte era um domingo.
Ouvia-se a distância o toque de uma buzina, e de um campanário pequeno de madeira o sino, com seu toque cálido e límpido como a voz de uma garotinha, chamava para o ofício dos reformados.
Para não ficar de lado, os confessores e o Padre Baure, junto a um outro padre recoleto recentemente saído dos bosques, decidiram realizar um grande ofício católico no cimo da falésia, com altar, procissão e tudo.
Durante toda a manhã houve, em meio a neblina, uma rivalidade de cânticos, mas as cerimónias terminaram sem incidentes.
Depois do culto e da missa, os curiosos foram até o porto, onde se anunciava a chegada dos navios. Ao chamado da buzina de chifre, logo se juntaram mugidos mais autênticos. Um naviozi-nho, chegado de Port-Royal à península, trazia duas vacas e um touro, prometidos como pagamento por um presente de víveres frescos e de quinquilharias que, no ano anterior, salvara a colónia francesa, abandonada pela distante administração de Quebec. O , desembarque dos pobres animais, suspensos por correias e polias, efetuou-se sem muitas dificuldades, em meio às aclamações da população.
A vinda do gado disputava a importância dos comentários com o enforcamento pressentido de Barba de Ouro. Seria naquele dia?
Nessa agitação, a entrada do pequeno barco que trazia John Knox Mather, doutor em teologia, de Boston, acompanhado de seus principais vigários, passou despercebida. Os acadianos, joviais e barulhentos, seguidos de seus mic-macs vermelhos, gigantes de rosto quadrado de cobre, passaram ao lado do hônorável puritano sem o perceber.
Ele vestia uma ampla, escura^ longa capa genovesa, que lhe chegava aos calcanhares, e com a qual se envolvia até os olhos, para se proteger do vento, e a copa do chapéu, com uma austera fivela de prata, parecia mais alta que as outras.
- Quis encontrá-lo - disse Peyrac, indo até ele; - nosso governador lembrou, num sínodo recente, que o Maine pertencia à Inglaterra, e pediu-me que me informasse junto a você se as coisas continuavam assim...
Seus olhos miraram, inquietos, o horizonte.
— Isto cheira a uma saturnal... Diga-me, corre um boato de que você vive com unia feiticeira.
— É exato - respondeu Peynic. - Venha... vou apresentá-la a você.
John Knox Mather empalideceu, e seu espírito estremeceu como um charco à aproximação de uma tempestade. Ele se perturbou. Havia motivo: os reformados haviam suprimido a Santa Virgem e os santos, iiitefcessores benéficos do outro mundo. Só lhes restavam os demónios. E uma intrusão maléfica os deixava desarmados e privados de qualquer recurso. Só podiam contar com sua força de alma pessoal. Felizmente o digno Mather a possuía de sobra; enrijou-se e preparou-se para enfrentar a prova de encontrar a feiticeira.
Sabendo que era convocada com Urgência pelo Conde de Peyrac, Angélica deixou a cabeceira de um ferido e atendeu ao chamado com o coração batendo, para se encontrar diante de um escuro monumento monolítico, que lhe disseram ser um doutor em teologia, de Boston, e que a fixava comum olhar pétreo. No fundo, ele estava tão confuso quanto ela própria. Compreendendo, ela deu-lhe as boas-vindas e fez uma breve reverência. Pelas palavras que ele trocava com o Conde de Peyrac, ela soube que ele seria hóspede de Gouldsboro por alguns dias, e que toda a companhia festejaria nesse dia do Senhor, em agradecimento por Suas dádivas.
Essa afluência a Gouldsboro retardava o acerto de questões pendentes e amargas, que atormentavam os corações e as consciências, e ela não sabia se isso a deixava feliz ou se essa espera a mortificava. Que se pusesse um fim à ansiedade, à comédia que todos representavam. Tinha vontade de gritar, de suplicar "que se acabe com isso, que se saiba, afinal, o que acontecerá!..."
Mas o punho inflexível de Joffrey de Peyrac obrigava-os todos a permanecer na expectativa, e, conforme sua vontade, representar seus papéis até a exaustão. Como seu marido a apresentara, ela devia presidir ao festim.
Entrou no forte para escolher um vestido nas arcas vindas da Europa.
Pouco depois, caiu um forte aguaceiro, e o céu se abriu. Os perfumes do festim que se preparava dos lados do albergue tornaram-se penetrantes e dominaram os fortes odores do mar.
A vozes ressoaram, cantantes. Trombetas soaram repetidas vezes.
Gouldsboro já tinha suas tradições bem instauradas. Angélica ignorava que esses apelos tinham por objetivo reunir a população na esplanada diante do forte, mas saiu, intrigada.
Fora, tudo brilhava, envernizado pela tempestade recente, enquanto estreitas torrentes de lama desciam as falésias, cavando sulcos até a praia. Para saltá-las, as mulheres erguiam as saias.
Semelhantes a essas torrentes, os humanos, em estreitas filas isoladas, emergiram dos navios, das casas, da floresta, e saindo de todo lado convergiram num único ponto para formar uma massa compacta com sua variada assembleia de marinheiros, colonos, huguenotes, índios, ingleses, soldados e nobres, finalmente unida pelo sentimento provisório, mas inesquecível, de pertencer à mesma praia perdida da América, para assistir a um espetáculo escolhido.
Os que haviam vindo do acampamento Champlain a cavalo, pela estrada bordejada de tremoços, ou os que haviam descido de uma pequena aldeia na costa pelo caminho das anémonas, traziam mosquetes e bacamartes e ladeavam as mulheres e as crianças. Havia ordens expressas de não se correr mais de meia légua fora da proteção dos canhões do forte, sem se estar armado. Com o verão abria-se a estação das incursões dos iroqueses, e ademais ninguém estava ao abrigo de um súbito assédio abendki contra os brancos de quem suspeitassem.
A praça diante do forte estava repleta de gente.
Crianças corriam. Angélica oúvia-as chamando umas às outras:
— Parece que vão enforcar .Barba de Ouro!
— E antes irão "torturá-lo"...
Seu sangue gelou-se. Chegara a hora que não cessara de temer desde a captura de Colin.
"Não! Não! Não deixarei que o enforquem", disse consigo, "gritarei, farei escândalo, mas não deixarei que o enforquem! Joffrey que pense o que quiser!"
Avançou em seus adornos até a praça, e, sem se preocupar com os olhares que a-seguiam, veiacolocar-se na primeira fila da multidão. Estava_agora acima da preocupação com o que pudessem pensar e dos comentários que sua presença pudesse suscitar. Sentia um tremor interno, frias conseguia manter um controle altivo que intrigava e desconcertava.
Quase sem pensar escolhera um vestido severo e suntuoso, um estranho vestido de veludo negro ornado com rendas entremeadas de minúsc.ulas.pérolas, e dissera a si mesma: "Um vestido para ir ao enterro dos reis". Mas estava bem decidida a não ir ao enterro de Colin, pois o salvaria!
No último instante, passara com Um dedo rápido, sem tempo para esmerar-se, um pouco de pintura de orcaneta vermelha nas faces pálidas.
Um rosto horroroso. Tanto pior!
Se notaram sua lividez marcada pela febre, ninguém disse palavra.
O brilho verde de seus olhos gelava nos lábios as palavras maledicentes.
- Olhe-a - sussurrou em inglês Vanereick a Lo rd Sherrylgham -, é fascinante! Que bela figura! Que orgulho admirável! Muito inglesa, meu caro. Ah! ela equivale a Peyrac. Enfrenta os olhares, a hostilidade, a reprovação, com a cabeça erguida, e não teria menos arrogância se carregasse, bordada em vermelho no seio, a letra A, que - como não ignora, meu caro - seus puritanos do Massachusetts infligem à mulher adúltera.
O inglês teve um momo desabusado.
- Os puritanos não têm o senso de nuança, meu caro.
Lançou um olhar de canto a Knox Mather, que discutia com seus vigários sobre a oportunidade teológica de enforcar um homem no dia do Senhor. Seria um atentado ao repouso esticar uma corda num patíbulo? Ou, ao contrário, essa escolha permitiria ao Senhor receber com mais tempo disponível uma nova alma para julgar?
— Convenhamos que nós, pessoas do mundo - retomou o lorde inglês -, perdoamos facilmente a uma mulher boriita o fato de ser uma pecadora.
— Quanto aposta que ela vai defender o amante com tanto fogo e paixão como uma Lady Macbeth?
— Vinte libras... Shakespeare se divertiria nestas plagas, inglesas de direito, mas também de espírito, sem dúvida...
O lorde levou aos olhos óculos com fitas que faziam furor nessa estação em Londres, e que lhe pendiam sobre a veste de brocado.
— E você, Vanereick, quanto aposta que essa mulher, que parece tão magra, possui curvas bastante sedutoras, quando surge de seus adornos qual Vénus da espuma das ondas?
— Não apostemos, meu caro, já sei como é, estreitei-a de perto. Decididamente, os príncipes ingleses são pessoas de gosto. Adivinhou, milorde. Quando se põe a mão nessa sílfide, é tenra como uma codorniz.
— Calem-se, devassos! - explodiu o huguenote de La Ro-chelle, Gabriel Berne, que acompanhara com um ouvido essa troca de afirmações libertinas e não podia mais conter-se de indignação.
Seguiu-se em inglês uma troca de grosserias, e Lorde Sherryl-gham falou em duelo. Seu tenente fê-lo observar que não podia bater-se com vulgares burgueses. Diante desse insulto, os homens de La Rochelle o enfrentaram, aproximando-se do almirante en-fitado com os punhos fechados.
Os guardas e a milícia em torno do estrado hesitavam em intervir.
Felizmente o amável D'Urvillé surgiu e conseguiu acalmar os ânimos. Mas não pôde apaziguar inteiramente a ameaça de tempestade que se percebia junto aos homens de La Rochelle, a qual, desvjando-se do hóspede inglês, voltou-se para Angélica, "pomo da discórdia", demasiado vistosa e abusada nesse dia. Olhares fulgurantes dardejavam sobre ela, murmúrios se elevavam, reflexões brotavam ao seu redor e acabaram por chegar a seus ouvidos através da névoa de sua mente atormentada.
Ela olhou a vaga sombria que se aproximava, f onde brilhavam pupilas acusadoras.
- E sua culpa também - apostrofou-a a rígida Sra. Manigault, vendo-a enfim de volta à terra. - Gomo ousa mostrar-se entre as pessoas honestas?
O Sr. Manigault avançou solenemente.
- De fato, senhora - atirou-lhe ele -, sua presença aqui em tal momento é um desafio às leis da honestidade. Como chefe da comunidade dos reformados de Gouldsboro, devo pedir-lhe que se retire.
Ela os fixou com suas pupilas que apareceram subitamente opacas, e eles poderiam acreditar que ela não os havia escutado.
— Que teme de mim,-Sr. Manigault? - perguntou por fim em meio ao silêncio ofegante.
— Que intervenha por esse bandido - exclamou a Sra. Manigault, que não podia ficar sem agir por muito tempo -, e é inútil tergiversar e assumir um ar inocente. Sabe-se que há algum mistério entre você e ele. E é uma história bastante vil e deplorável para nós todos, da qual devia ter vergonha. Sem contar que merecemos ver-nos livres desse celerado que tanto nos fez padecer no mês passado, e nos teria massacrado, se não nos houvéssemos defendido até a morte. E ei-la pronta a interceder por ele e pedir seu perdão. Conhecemo-la bem.
— De fato - concedeu Angélica -, penso que têm razões para conhecer-me.
Não era a primeira vez que tinha que fazer frente ao ódio calvinista. Com o tempo as justas entre eles não a impressionavam mais. Ela se ergueu para enfrentá-los.
- Há um ano, aqui mesmo, era o perdão, para vocês que eu pedia de joelhos... e por crimes que,"segundo as leis domar, mereceriam mais a corda que aqueles cometidos por Barba de Ouro...
A contragosto, um espasmo contraiu-lhe os lábios, e o bravo Vanereick temeu vê-la irromper em soluços, o que ele não poderia suportar.
- De joelhos... - repetiu ela. - Eu o fiz por vocês. Vocês, que nem sequer sabem ajoelhar-se diante de Deus. Vocês que nem mais conhecem seu Evangelho.
Ela voltou-lhes bruscamente as costas.
Um silêncio supersticioso reinou entre a multidão.
CAPÍTULO XXVIII
Peyrac apresenta Colin ao povo de Gouldsboro
O cativo, as mãos nas costas, estava no balcão do forte, que avançava sobre a esplanada.
A guarda espanhola, de couraças cintilantes e morriões ornados com plumas_vermelhas, ladeaVa-o de bem perto.
Colin Paturel-estava com a cabeça descoberta. Trazia um gibão de tecido castanho com abas bordadas com fios de ouro, que deveriam ter ido buscar em seu guarda-roupa no Coeur-de-Marie.
Seu porte simples, a barba e os cabelos cortados curtos impressionavam, pois não se reconhecia- o Barba de Ouro terrível e chamejante nesse gigante de roupa escura, preparado para a morte. Não se acreditava que fosse tão alto!
Joffrey de Peyrac surgiu quase de imediato numa roupa de cetim cor de açafrão, à moda francesa, gibão aberto sobre uma longa veste bastante bordada, uma verdadeira maravilha.
Um "Ah!" correu pelas bocas.espantadas ou admiradas, e houve uma ondulação na multidão de cabeças. Os próprios hugue-notes eram sensíveis a essas representações que lhes reservava o nobre da Aquitânia, personagem para eles fora do comum, que escapava à sua compreensão, mas que um acaso dramático colocara atravessado em seus destinos até então razoáveis, e que agora os mantinha sob seu poder.
Sua presença evitou os apupos e a emoção perigosa, à flor da Pele, que esteve a ponto de explodir quando os outros piratas prisioneiros do Coeur-de-Marie foram trazidos, acorrentados ou amarrados com cordas; solidamente ladeados por guardas armados de mosquetes, foram impelidos em grupo até o pé do estrado.
Alguns contraíam o rosto e rilhavam os dentes, mas a maior parte mostrava a atitude resignada daqueles que, tendo jogado e perdido, sabem que chegaram ao término da viagem e que é chegada a hora de pagar.
O Conde de Peyrác não precisou pedir a "palavra.
Na impaciência do.veredicto que iria ser anunciado, cada qual reteve o fôlego, e o silêncio se estabeleceu por si mesmo. Não se ouvia senão o ruído do mar.
O conde aproximou-se da beira do balcão, inclinou-se e dirigiu-se mais diretamente ao grupo de protestantes de La Rochelle, que, reunidos na primeira fila, formavam o miolo compacto, escuro, incorruptível e indefectível de sua colónia.
- Senhores - disse-lhes, apontando com a mão Colin Patu-rel, de pé entre seus guardas -, apresento-lhes o novo governador de Gouldsboro.
CAPÍTULO. XXIX
Colin aclamado governador de Gouldsboro
No silêncio mudo e de incompreensão que se seguiu a essa declaração, Joffrey de Peyrac levou um tempo a erguer as frágeis rendas dos punhos.
Depois retomou, com sangue-frio:
- O Sr. d'Urville, que-durante muito tempo assumiu essa difícil tarefa, será nomeado almirante de nossa frota. A importância e a tonelagem de nossos navios, tanto os de comércio como os de combate, que se multiplicam sem cessar, pedem à sua frente um homem do mar. Assim também, o desenvolvimento que Gouldsboro teve em alguns meses, graças em parte a suas ativida-des e a suas indústrias, senhores de La Rochelle, obriga-me a escolher como governador um homem com experiência do mar e ao mesmo tempo a de governador de povos e de nações as mais diversas, pois nosso porto, adquirindo aos poucos um lugar primordial e único nas terras que livremente escolhemos, irá receber a partir de agora o mundo inteiro. - Ele continuou: - Ora, vocês sabem que ninguém está mais apto a enfrentar as mil ciladas que isso irá provocar para todos nós que o homem que hoje lhes indico, e nas mãos do qual entrego, com inteira confiança, o destino de Gouldsboro, seu desenvolvimento, sua prosperidade e seu grande futuro.
. Ele se interrompeu, mas não teve o eco de nenhuma voz em resposta. Diante dele havia uma assembleia de pessoas petrificadas.
Angélica não era a que menos se sentia chocada. As palavras de Joffrey tinham-lhe entrado pelos ouvidos como uma sequência de sons, mas seu significado não chegava até ela. Ou antes, ela buscava em vão o sentido, um outro sentido, que significasse que Colin deveria ser enforcado.
Diante do quadro de todas as bocas abertas e dos olhos arregalados, Joffrey de Peyrac esboçou um sorriso sarcático.
Depois continuou:
- Vocês conheceram este homem sob o nome de Barba de Ouro, corsário das Caraíbas. Mas saibam que no passado ele foi durante doze anos o rei cristão dos cativos de Miquenez, no reino do Marrocos, na Barbaria, cujo soberano oprimia duramente os cristãos, e que sob esse título o Sieur Colin Paturel aqui presente governou durante doze anos um povo de milhares de almas. Essas pessoas de todos os cantos do mundo, falando todas as línguas, praticando religiões diversas, abandonadas à miserável condição de escravos numa terra estrangeira, hostil e muçulmana, escravos sem recursos e sem socorro contra as sevícias que os esmagavam e a tendência ao mal que os consumia, nele encontraram durante doze anos um guia seguro e indomável. Ele soube fazer deles um povo digno, forte, unido, pronto a lutar contra as tentações do desespero e da abjuração de sua fé de batismo.
Então Angélica começou a compreender a verdade: Colin não seria enforcado. Ele viveria, reinaria novamente.
Era dele que Joffrey falava quando dizia: "Ele saberá guiá-los pela sabedoria..."
Então a paz nela entrou, junto com uma subjacente dor aguda. Mas era antes de tudo a paz, e ela bebia literalmente as palavras que saíam dos lábios de seu marido, presa de uma emoção que a punha fora de si e finalmente trazia lágrimas a seus olhos. Seria isso o que ele lhe pedia na noite anterior com tanta insistência, na Câmara do Conselho, e a que Colin opunha uma recusa tão feroz? Depois ele inclinara a cabeça pesadamente e dissera sim.
- Sem sermos escravos como os cristãos de Miquenez - retomou Joffrey -, mesmo assim somos alvo de provocações análogas: abandono, animosidade mútua, constante perigo de morte. Ele saberá ajudá-los a enfrentá-los com sua sabedoria, assim como os guiará nas trocas com as nações vizinhas, pois fala o inglês, o holandês, o espanhol, o português, o árabe, e até o basco.
Oriundo da Normandia e católico, ser-lhes-á igualmente precioso nas relações com os franceses da Acádia. Sr. d'Urville, faça o obséquio de repetir em seu porta-voz o essencial da notícia que acabo de dar, a fim de que cada qual possa recebê-la e meditar à vontade sobre ela.
Enquanto o nobre o atendia, as pessoas de La Rochelle saíam por fim de seu estupor - bastante justificado, é preciso reconhecer.
Começaram a agitar-se e a murmurar entre si.
Depois que a notícia foi repetida, Gabriel Berne avançou à frente.
— Sr. de Peyrac, o senhor já nos fez passar por não poucos aborrecimentos. Mas advirto-o claramente de que esse não será aceito. De onde obteve informações tão completas sobre um indivíduo tão perigoso? Déixou-se iludir por suas histórias de vagabundo falastrão, como são todos esses piratas que vivem dos bens alheios?
— Eu próprio conhecido trabalho deste homem quando estive no Mediterrâneo - replicou Peyrac. - E o vi amarrado às colunas de flagelação, pagando por seus irmãos que haviam ousado ouvir a missa mima noite, de Natal. Mais tarde foi crucificado a uma das portas da cidade. Não ignoro que o Sieur Colin Patu-rel não se "sinta desejoso de me ver lembrar esses fatos antigos, mas eu os citarei, contudo, senhores, a fim de que fiquem tranquilos quanto a sua devoção. Estou pondo à sua frente um orgulhoso cristão, que já soube derramar o sangue por sua fé.
O murmúrio entre as pessoas de La Rochelle amplificou-se. Os suplícios padecidos pela fé católica não tinham a seus olhos nenhum valor, e não seria desse modo que elas seriam conquistadas. Ao contrário. Viam nisso a obstinação de um espírito limitado, apegado a crenças diabólicas e supersticiosas.
Houve um rumor crescente:
- A morte! A morte! Traição! Não aceitamos isso... A morte para Barba de Ouro!
Colin, que até então permanecera impassível e como que afastado do debate, em pé entre os mercenários espanhóis, avançou e veio colocar-se ao lado de Peyrac.
Com os punhos nas ancas, deixou cair sobre a assembleia super-excitada seu profundo olhar azul.
Houve como que um recuo diante de sua maciça presença, e os clamores de morte enfraqueceram-se pouco a pouco, morrendo num silêncio aterrado.
Berne reagiu com seu arrebatamento habitual, vindo para a frente.
- É uma loucura - urrou, a mão estendida para o céu,
tomando-o como testemunha do desvario que acometia a todos.
- Deveria enforcá-lo vinte vezes, Sr. de Peyrac, só pelo que causou a Gouldsboro. E o senhor mesmo, conde, esqueceu que ele atentou contra sua honra, que ele...
Com um gesto imperioso, Peyrac interrompeu a frase acusadora, que faria cair a lama sobre Angélica.
— Se ele merecesse ser enforcado, não caberia a mim conduzi-lo ao patíbulo - declarou com voz surda mas irreplicável. - O reconhecimento que devo a ele mo impediria.
— O reconhecimento?!... seu reconhecimento?
— Meu reconhecimento, decerto - apoiou o conde. - Aqui têm os fatos. Entre as façanhas que o Sieur Paturel tem em seu ativo, a menor não é a de sua evasão - odisseia que tentou com muitos cativos, enfrentando os piores perigos a fim de fugir do Marrocos -, evasão coroada de sucesso. Ora, entre aqueles que ele assim ajudou a chegar em terra cristã, encontrava-se uma mulher, cativa dos bárbaros, que ele arrancou ao terrível destino reservado às infelizes cristãs entregues às mãos dos muçulmanos, em um tempo em que meu próprio exílio e meu miserável destino mantinham-me na ignorância sobre a sorte dos meus e não me permitiam socorrê-los no perigo, quando estavam abandonados por todos. Essa mulher era a Condessa de Peyrac, minha esposa, aqui presente. Ora, o devotamento do Sieur Paturel salvou a vida que me era preciosa acima de qualquer coisa. Como poderia esquecê-lo?
Um pequeno sorriso nasceu no canto de seu lábio costurado.
- Eis por que, senhores, esquecendo os mal-entendidos do presente, não podemos ver, a Condessa de Peyrac e eu mesmo, nesse homem que é objeto de sua vindita, senão um amigo, digno de nossa total confiança e estima.
Nessas últimas palavras, uma designação atingia Angélica, despertava-a como uma chicotada, como um chamado imperioso de voz rouca e aparentemente serena, indo de encontro a ela, ordenando-lhe que se submetesse àquilo que ele decidira sobre todo o caso.
"A Condessa de Peyrac e eu mesmo."
Assim, ele a englobava em seu plano, não a autorizava a furtar-se a ele, e seu objetivo velado, o de afastar o opróbrio, surgia diante dela. Apagar o insulto que sua mulher e Colin lhe haviam publicamente infligido. Que havia entre eles? Nada além de recordações de amizade e de reconhecimento que ele próprio se envaidecia de partilhar. Disfarçava assim, aos olhos dos outros, a natureza das paixões que os devoravam, aos três, iludindo as aparências.
Ela mesma, em seu orgulho, não adotara por instinto a mesma atitude?
Seriam os protestantes tolos?
Seria preciso que fossem! Que agissem como se fossem. Joffrey de Peyrac decidira que.Colin Paturel era um homem digno de estar ao lado dele no governo, e que só podia ter para com ele motivos de reconhecimento e de amizade.
Era preciso qu&a multidão se submetesse à imagem que ele lhe impunha.
Quem podia resistir à intensa vontade de um Peyrac?
Jamais Angélica sentira desse modo seu punho de ferro sobre todos eles, agarrando-os, literalmente, mqldando-os segundo as leis de sua personalidade autoritária.
Ela sentia uma admiração submissa, onde porém não entrava nenhum calor de sentimento, e seu sofrimento se fez mais agudo, mais clarividente.
Fora à "Condessa de Peyrac" que ele dera uma ordem, mas nem um olhar dirigira a ela durante a longa explicação, e em nenhum momento sua voz marcara a entonação de ternura que ele não podia conter outrora, quando falava dela, mesmo a um estrangeiro.
Os olhares de todos caminhavam dela para os dois homens, em pé lado a lado, no estrado, e os lábios trémulos de Angélica, o estupor que a contragosto atravessava-lhe as pupilas, acabavam de desconcertar e de inquietar os espíritos...
Colin, impassível, continuava a olhar a distância, para além das cabeças agitadas, os braços cruzados no peito. Seu porte era tão imperioso e de tão extraordinária nobreza, que as pessoas já não o reconheciam mais.
Buscavam fora dali Barba de Ouro, o pirata indecente, carregado de armas e de crimes sangrentos. Junto dele, como que a protegê-lo e a cobri-lo com seu poder, o Conde de Peyrac, desdenhoso mas vagamente sorridente, observava com curiosidade os efeitos de sua encenação.
- Olhem para os três - gritou Berne, com voz ofegante, de signando os dois homens e Angélica -, olhem-nos! Estão nos enganando, nos iludindo, zombando de nós...
Girou sobre si mesmo como um homem desvairado, semi-enlouquecido, fora de si. Arrancou o chapéu e jogou-o longe. - Mas vejam esses três hipócritas! Que estarão ainda tramando?... Deveremos sempre ser enganados por seres dessa espécie? Esquecem que os papistas não têm nenhuma vergonha? Nada lhes custa pôr em prática as intrigas de seus espíritos tortuosos de idólatras. E inconcebível! Aceitarão, irmãos, essas decisões iníquas, esse julgamento derrisório, insultante?... Aceitarão ser colocados sob a dependência do mais vil indivíduo que já enfrentamos até aqui? Aceitarão receber sob nossos muros essa ralé criminosa e corrompida que ele pretende impor-nos como colonos? E seus crimes, Barba de Ouro?, berrou, virando-se num ímpeto de ódio para Colin.
— E os seus, huguenote? - retorquiu este, inclinando-se sobre a balaustrada e fixando o olhar azul -no do protestante.
— Minhas mãos estão limpas do sangue de meu próximo - respondeu Berne, com ênfase.
— Não senhor... Nenhum de nós aqui tem as mãos limpas do sangue do próximo. Procure bem, huguenote, e encontrará a lembrança dos que sacrificou, matou, degolou, estrangulou com suas próprias mãos. Busque bem, huguenote, por mais longe e profundamente que os tenha colocado; verá seus crimes voltarem à tona de sua consciência, com seus olhos mortos e seus membros enrijecidos.
Berne fixou-o em silêncio. Depois vacilou, como que atingido por um raio, e recuou. A voz sonora de Colin Paturel acabava de lançar-lhe ao rosto a lembrança da luta subterrânea conduzida pelos reformados de La Rochelle desde mais de um século. Sentiram o odor acre das trevas, o cheiro de carniça dos poços sobre o mar, onde viravam os cadáveres dos provocadores da polícia ou os dos jesuítas.
- Sim, eu sei - retomou Colin, semifechando os olhos para observá-los. - Eu bem sei. Era para se defender! Mas sempre se mata para se defender. Para se defender: a si, aos seus, à vida, a seus objetívos, a seus sonhos. É bem raro aquele que mata unicamente pelo mal. Mas a indulgência do pecador para com seus erros só Deus pode partilhá-la, pois só Ele sonda os corações. O homem sempre encontrará em seu caminho um irmão para dizer-lhe: "Você é um assassino. Eu, não!'' Ora, não existe em nosso tempo um homem que não tenha matado. Em nosso tempo, um homem digno desse nome sempre tem sangue nas mãos. E direi mesmo que matar é uma tarefa e um direito imprescritível que recebemos ao nascer, nós, machos, pois ainda vivemos no tempo dos lobos sobre aterra, embora- Crista já tenha vindo até nós. Cesse pois de dizer ao vizinho: "Você é um criminoso, eu não!" Mas já que é obrigado-a matar, trabalhe ao menos pela vida... Salvaram sua pele, huguertotes de La Rochelle, escaparam a seus torturadores! Recusarão a outros, a estes que também são condenados, as oportunidades que receberam, mesmo se se acreditam os eleitos do Senhor e que só vocês merecem sobreviver?
Os habitantes-de La Rochelle, a quem o ataque de Colin impressionara, recuperaram-se quando seus olhares caíram sobre a equipagem do Coeuf-de-Marie. Nesse ponto sua consciência não se deixaria enganar.
O Sr. Manigault avançou até o pé do balcão.
— Deixemos de lado suas asserções sobre os pretensos crimes de que temos as mãos carregadas. Deus absolve os seus justos. Mas quer dizer, senhor - ele insistiu no "senhor" com ostentação -, que pretende... impor-nos junto com o acordo do Sr. de Pey-rac, aqui mesmo em Gouldsboro, a. vizinhança desses crápulas perigosos que compõem sua equipagem?
— Menosprezaram minha equipagem - retomou Colin. - A maior parte é de rapazes corajosos e que me haviam acompanhado nesta companha na esperança"de tornar-se colonos e poder enfim lançar âncora num lugar escolhido, onde lhes prometiam boas terras e mulheres para casar. Mesmo o direito de propriedade sobre este local onde se instalaram vocês foi pago por mim e por eles com um bom dinheiro e com contratos. Infelizmente as cartas foram mal distribuídas e percebo que fui enganado por aqueles que me financiam em Paris, os quais indicaram-me expressamente este lugar de Gouldsboro como livre e pertencente aos franceses. No papel, temos mais direito que vocês, fugitivos reformados, e o Sr. de Peyrac o reconheceu, mas nossos grandes doutores ignaros da França parecem ter esquecido que o Tratado de Breda deixava a terra sob jurisdição inglesa. Reconheço-o e inclino-me diante disso. Ora, com os papéis pode-se fazer *o que se quiser. A terra é outra coisa. Homens bons já foram sacrificados em demasia por um desacerto de ignorantes... ou de pessoas maldosas, que nos fizeram de tolos. Do que lhes adianto, o Sr. de Peyrac se declara pronto a fornecer as provas, a discuti-las com vocês em particular. Mas quanto às decisões e os contratos que ambos fizemos, a coisa está feita e não há por que voltar a esse assunto. Somente devemos saber, todos juntos, o que faremos de bom ou de mau...
Sua voz a um tempo implacável e insinuante agia, detinha qualquer veleidade de revolta nos lábios das pessoas, ao mesmo tempo que seu olhar cativava a atenção.
"Aí está", pensou Angélica, enquanto um calafrio irreprimível percorria-a dos pés à cabeça, "aí está, ele os tem... ele os tem... ele os tem todos na mão..."
A poderosa eloquência de Colin Paturel, sua ascendência sobre as multidões, sempre foram suas armas principais.
Acabava de usá-las com ímpeto magistral.
Debruçado sobre eles, e num tom de confidência, mas de longo alcance, retomou:
- Há uma coisa que vou dizer-lhes e que aprendi no cativeiro junto aos sarracenos. É o quanto os filhos de Cristo, os cristãos, se odeiam entre si. Bem mais que os muçulmanos e os pagãos!... E digo-lhes que compreendi que vocês, cristãos, cismáticos, heréticos ou papistas, são todos iguais, chacais de dentes aguçados prontos a se devorar, entre irmãos, por uma vírgula de seus dogmas. E afirmo-lhes què o Cristo que pretendem servir não desejou isso e que Ele não está feliz... Portanto, previno-os desde hoje, huguenotes e papistas de Gouldsboro, que os terei sob minha mira, que os manterei em paz e em bom entendimento, como mantive em paz os escravos de Miquenez durante doze anos. Se houver realmente crápulas entre vocês saberei descobri-los. Mas não os vi até agora, salvo dois ou três em minha tripulação mais recente, dos quais já tentei me livrar, mas que se grudam a minhas pernas como sanguessugas de Málaga. Que esses se mantenham pois tranquilos, senão chegará com certeza sua hora de se balançar na ponta de uma corda.
Uma olhada pouco tranquilizadora colheifBeaumarchand, que se arrastara até a primeira fileira, amparado por seu Irmão da Costa, Jacinto.
- Agora - continuou Colin -, outorgarei três instituições, que vigorarão a partir de hoje, dia marcado como o primeiro de meu governo em Gouldsboro. Primeiro dotarei o porto e a colonia de Gouldsboro de vigias noturnos. Um para cada trinta fogueiras. Nós gostávamos disso, não é mesmo?, em nossas cidades e aldeias da França. Gostávamos de sentir o vigia noturno passando pelas ruas enquanto dermíamos. Mais do que lá, temos necessidade de que velem £or nós à noite, pois o incêndio no deserto é o fim, a ruína, e o inverno, a morte. E num porto em que passarão sem cessar pessoas desordeiras e bêbadas, é preciso uma sentinela bem desperta para vigiar os abusos dos beberrões e dos brutos estrangeiros. Por fim, há o constante perigo dos índios e daqueles que poriam na cabeça a ideia de desalojar-nos. Os vigias noturnos serão nomeados pelo governador, e as despesas com equipamento, mantidas por ele. E meu-presente de chegada a Gouldsboro.
Preparava-se para prosseguir, quando uma voz de mulher elevou-se no pesado silêncio.
- Obrigada, senhor governador - dizia a voz frágil e clara, mas enérgica.
Era a voz de Abigail.
Houve uma movimentação, um murmúrio, onde tímidas expressões de gratidão misturaram-se aos protestos da maior parte dos homens. Então se capitulava!... Eles queriam dar a entender que ainda não haviam dado sua aprovação à entronização, e que não seriam enganados com vigias noturnos...
Abigail olhou firmemente Mestre BerneT Colin Paturel deu um leve sorriso para a jovem e continuou, após estender a mão, pedindo silêncio:
- A segunda instituição vem a propósito, com a intervenção da amável dama. Desejamos, com efeito, reunir a cada três meses um conselho de mulheres ou, antes, de mães, embora uma mulher em idade de dirigir família, mesmo não tendo filhos, possa participar. O Sr. de Peyrac deu-me a ideia e acho a boa. As mulheres sempre têm coisas pertinentes a dizer para o bom andamento de uma cidade, mas não as dizem de medo do porrete do marido.
Sorrisos sublinharam a observação.
— Não haverá mais porrete nesse caso, nem marido para intrometer-se nisso - continuou Golin. - As mulheres discutirão entre si e depois me entregarão o relatório de seu conselho. O Sr. de Peyrac explicou-me que os iroqueses assim se governam, e não se empreende uma guerra que o conselho de mães não tenha julgado necessária para a nação. Vejamos ao menos se conseguimos mostrar-nos tão sábios quanto os bárbaros peles vermelhas.
— Depois de uma pausa continuou: - A terceira iniciativa que tomarei foi-me inspirada pelos colonos da Nova Holanda. Penso que não devemos hesitar em tomar emprestado a nossos vizinhos estrangeiros os segredos que podem fazer a existência mais feliz. Ora, eles têm o costume de oferecer a cada rapaz que se casa uma pipa, ou seja, cento e vinte e cinco galões de vinho madeira. Uma parte em celebração das núpcias, outra para o nascimento do primeiro filho, e a outra, bem!, o último tonel é para consolar os amigos no dia de seu funeral. Agrada-lhes a proposta e estais de acordo com que seja adotada em Gouldsboro?
Foi o tempo do choque, de uma suprema hesitação, e um clamor elevou-se, unânime, misturado a aplausos, aprovações e risos.
Ouvindo esse clamor, Angélica compreendeu que a partida estava ganha para Colin.
Com os punhos nas ancas, ele se mantinha calmo e poderoso sob as ovações, como estivera sob os apupos. Colin Paturel, o rei dos escravos, dos réprobos, dos perseguidos, impunha-se, o mais forte entre eles, apresentava-se a eles com sua grande estatura, empertigado sob o céu carregado como uma muralha inexpugnável, em sua retidão, na limpidez de seu coração simples e na incrível resistência de seu espírito astuto.
Logo souberam que ele seria para sempre seu protetor, seu justo e inflexível governador, e que poderiam apoiar-se nele com toda a segurança.
O homem, o soberano que ele podia ser, Joffrey de Peyrac acabava de fazer nascer sob seus olhds. Naquela mão calosa ele colocara um cetro para o qual era feita. E- agora tudo estava bem, não havia mais Barba de Ouro.
- Viva o governador! - gritaram os adolescentes e as crianças de Gouldsboro, dançando e saltando na praça.
A juventude era a mais entusiasta,.seguida das mulheres e dos marujos de todas as nações, e por fim os hóspedes de passagem, ingleses ou acadíanos, que achavam excelentes as decisões enunciadas, resolvidos que estavam a aproveitar essa vizinhança.
Os índios, sempre de humor-alegre,-misturaram a efervescência de seus sentimentos excessivos a esse divertido tumulto, e os semblantes fechados das pessoas importantes de La Rochelle foram pouco a pouco varridos, como que levados pela maré da aprovação geral.
- Hurra! Hurra! Bravo para nosso governador - bradavam os prisioneiros do Coeur-de-Marie, com movimentos exuberantes, que faziam elevar-se_ um ruído de correntes.
Joffrey fez sinal aos espanhóis para que os libertassem.
- Saiba que me sinto tentado a instalar-me aqui - declarou Gilles Vanereick ao almirante inglês; - as intenções do novo governador parecem-me das melhores. Notou milorde, como ele conseguiu manejar esses huguenotes desbocados? E, sem parecer, acaba de ser aclamado unanimemente como governador? Agora é demasiado tarde para recuar... Quanto ao Conde de Peyrac, deleite-se em examinar sua expressão ambígua de Mefisto que faz as almas dançarem numa noite de sabá„. Um lutador de punhos afia
dos, que para chegar a seus fins não hesita em jogar com a própria sorte, com o próprio coração. Mas ele já fez coisas assim, esse Peyrac. Conheci-o bem nas Caraíbas... Apesar disso, se eu fosse o proprietário dessa soberba mulher, não teria tido sua audácia...
Colocar o amante da mulher à minha direita, no mesmo trono!...
Com a garganta comprimida, Angélica sabia por que sofria, apesar do feliz final do dilema. O Conde de Peyrac, por ser homem e chefe de Estado, tivera mais que ela o poder de salvar Colin. Ele o usara. No entanto, não era apenas esse sutil ciúme que a pungia. Ela o teria desprezado. Mas que Peyrac a tivesse mantido afastada dos debates provava que ela não mais contava para ele, e que não fora por ela que ele assim agira. Não! Fora por Colin... e por Gouldsboro!
Era admirável a solução encontrada. Aquilo arranjava tudo. Mas quanto a ela, ele não mais a amava.
- Minha cara Abigail -.disse Joffrey de Peyrac, descendo os degraus do estrado e indo inçlinar-se diante da esposa de Gabriel Berne -, permita que a conduza à sala do banquete. E você, senhor governador, ofereça seu braço à Sra. de Peyrac. Façamos um cortejo...
O sangue subiu à face de Angélica, ao ouvir a proposta do marido.
Numa névoa, ela viu avançar para ela a alta figura de Colin; ele se inclinou e lhe ofereceu o braço, ela pousou nele a mão, e eles caminharam atrás de Joffrey de Peyrac e de Abigail, enquanto atrás deles formava-se o cortejo. A Sra. Manigault, furiosa por ter sido afastada do lado do senhor do lugar por Abigail, uniu-se a Mestre Berne, completamente abatido.
O Sr. Manigault se viu, não se sabe como, com a bela Inês ao braço. O almirante teve ao lado uma graciosa acadiana. O Reverendo John Knox Mather, cada vez mais descontraído pela atmosfera, atraiu simultaneamente a adesão da deslumbrante Bertille Mercelot e da encantadora Sara Manigault.
Com as duas lindas adolescentes a rodeá-lo, o honorável doutor em teologia avançou orgulhosamente pelo caminho de areia que conduzia do forte ao albergue.
Miss Pidgeon, vermelha, dava o braço ao Reverendo Patridge.
De uma ala de curiosos, os vivas e os aplausos acompanharam as autoridades ao longo do percurso.
— Eis então o que esse homem diabólico encontrou para fazer-nos dançar a seu modo - sussurrou Angélica.
— Não foi uma boa jogada? Ainda estou completamente espantado. Sua força de alma anulou-me.
— Como pôde aceitar isso dele?
— Eu não queria. Mas ele usou de um argumento que me fez consentir em seus planos.
— Qual?
— Ainda não posso dizer-lhe - respondeu Colin pensativamente. - Um dia talvez...
— Ah! sim, de fato, sou sem dúvida demasiado estúpida para partilhar da amplitude das visões é projetos de vocês, homens.
Seus dedos crisparam-se na manga de Colin.
- Na verdade, vocês foram ambos feitos*para entender-se à custa dos outros; deveria ter suspeitado disso antes. Sou bem tola por ter-me preocupado tanto com'você, Golin Paturel! Os homens sempre se entendem à custa das mulheres!...
CAPITULO XXX
A euforia de Angélica
Trombetas soavam. Bandeiras flutuavam ao vento.
A sala era contígua ao albergue e já tão concorrida que lhe davam o título pelo qual se tornaria conhecida em cem léguas ao redor: "O albergue sob o forte".
Fora, na praia, no porto, nas imediações da baía, fogueiras assavam a caça em espetos, e tonéis haviam sido abertos para as tripulações, o povo e os índios.
Enquanto a assembleia dos convidados se repartia nos assentos da imensa mesa do banquete, Angélica correu às cozinhas.
Sem uma bebida não aguentaria. Entre explodir em risos ou soluços, ela não sabia que partido tomar, e jamais se sentira tão próxima de uma crise de nervos. Joffrey passava da medida e zombava dela.
— Dê-me uma caneca desse vinho - disse ela a Davi Carrère, após experimentar o perfume das barricas no entreposto.
— Uma caneca! - disse o rapaz, arregalando os olhos. - Para a senhora! É um bordeaux branco, como sabe, senhora, vivo como o sol.
— Exatamente o que preciso!
Com a caneca na mão, Angélica voltou para a cozinha, diante do fogão onde rodavam os espetos, deixando cair um olhar zombeteiro sobre as damas de Gouldsboro, agitadas com os preparativos.
As senhoras Manigault, Mercelot e companhia também tinham vindo dar uma volta sob pretexto de trabalho, mas sobretudo para dar uma olhada em suas toucas.
- Pois bem! - perguntou Angélica -, que pensam de seu novo governador?
Pendendo a cabeça para trás, deu uma gargalhada.
- Estou vendo o que lhes está desgostando, minhas belas! Fizeram-se intrigas a meu respeito, e não esperavam por essa descoberta. Aí está o mistério... Barba de Ouro é um companheiro que me salvou a vida no passado, ná Barbaria. Pode-se renegar um homem que nos salvou a vida?... Não se temo direito de saltar-lhe ao pescoço quando os acasos do mar o colocam em nossa presença?... Mas com isso se despertam os mexericos, as calúnias, e se faz de um encontro amigável uma vil traição, um pomo da discórdia... Tiveram pressa em demasia em ver o mal onde ele não se encontrava...
O riso mordaz da Condessa de Peyrac humilhava-as bastante.
Sabendo què falava iheia verdade, Angélica quase acreditava no que afirmava/Continuou a comédia. Curt Ritz estava longe, pobre homem! Ninguém lhe pediria que testemunhasse em praça pública o que na verdade vira - ou acreditara ver - à luz de uma vela enfumaçada, em sua noite de fuga.
- Vejam, caras amigas, os boatos causarão a perda do Novo Mundo como a do Velho - concluiu Angélica, esvaziando a caneca de vinho branco até a última gota.
Alguém passou a cabeça pela porta.
— Senhora condessa, chamam-na à sala grande.
— Estou indo.
CAPITULO XXXI
Banquete com discussão filosófica
-É minha vez de oferecer a todos um alegre presente de boas-vindas - declarou Angélica, tomando lugar à mesa do banquete.
E após despertar-lhes a curiosidade:
- Um tonel de puro armanhã que, com que me presenteou a semana passada um galante capitão basco.
A notícia provocou nova ovação.
- Que tragam Ademar - intimou Angélica a um dos homens que passavam os pratos.
Quando o soldado se apresentou, sempre assustado, ela lhe pediu que fosse ao acampamento Champlain em busca das bagagens que ela ali deixara desde a noite de sua chegada.
Como a aparição do curioso soldado do rei da França provocasse comentários, após sua saída Angélica contou a história e as façanhas do bravo rapaz, o que provocou uma conversa das mais divertidas e mil anedotas.
Os pratos desfilavam, abundantes e saborosos. Haviam sacrificado um porco. Para esses americanos dos primeiros tempos, as ostras, a lagosta, o peru, o salmão, a caça, apresentados com muita frequência, eram pratos de pobres.
Angélica achava-se à* direita de Colin, que presidia a uma das extremidades da mesa, enquanto Joffrey se encontrava na outra, com a bela Inês à sua direita, e à esquerda Abigail - tendo à frente a Sra. Manigault. Um pouco mais distante, Gilles Vanereick não tirava de Angélica seus negros olhos de fogo, no rosto redondo de flamengo. Depois se repartiam numa proporção equivalente homens e mulheres, franceses e ingleses, personagens de libré vistosa, ou, ao contrário, de austera roupa escura com peitilho branco, aos quais se juntavam, sem par: um monge recoleto, o Padre Baure, o confessor bretão do Sans-Peur, o abade Lochmer, um pouquinho rude mas jovial, que não se preocupava em ter por vizinhos os pastores Beaucaire ePatridge; um nobre acadiano, o Sr. de Randon, que desembarcara riessa.mesma manhã vindo de Port-Royal, entretinha-se com seu irmãQ de sangue, um grande chefe mic-mac, que, enxugando a boca com os cabelos, mesmo assim parecia presidir à assembleia com toda a sua altivez imperial.
Se sua presença espantava e até escandalizava os anglo-saxòes, eles a aceitavam como uma das consequências da originalidade francesa, que..os deixa amiúde arrepiados, mas que parece no entanto ter sido criada pará"permitir aos estrangeiros conhecer as alegrias da . licença,- dâ~ extravagância e até do pecado, sem constrangê-Los a tomar a iniciativa. Nessa hora, o severíssimo John Knox Mather não se sentia culpado em relação à virtude da temperança, enquanto esvaziava galhardamente se"u copo de estanho, pois os vinhos eram franceses.
Francês era o anfitrião e francesa, a anfitriã, o que a autorizava a ser bela, deslumbrante e a estar suntuosamente adornada para o encanto dos olhos dos -homens, e pouco importava se tais provocações perigosas a conduziam infalivelmente a pecar contra o sexto mandamento, pois para o próprio Deus um pecado francês já está semiperdoado, e se a convidada espanhola desprendia um perfume de jasmim tão intenso quanto o olhar de seus olhos de veludo semi-escondidos atrás do leque de renda negra, o temor e o horror a tal vizinhança atenuavam-se pelo fato de estarem a uma mesa francesa, no solo de uma concessão francesa.
O génio dessa raça desatinada e leviana não era precisamente o de conferir á todas as situações um pouco de sua leviandade?
Não é verdade que a ousadia dessas misturas surpreendentes, das quais os franceses têm o segredo em suas colónias, ao invés de conduzir à explosão sangrenta que era de se esperar, provoca no máximo uma leve embriaguez eufórica, que permite sonhar no espaço de uma hora que os homens são irmãos e a danação está abolida?
O almirante inglês declarou:
— Breve Gouldsboro será o lugar mais faustoso de toda costa americana. Não sei se nas cidades fortificadas da Flórida os espanhóis levam vida tão alegre. É verdade que não lhes dão tempo para isso, senhores flibusteiros - disse a Vanereick.
— Eles respondem duramente. É por isso, aliás, que me encontro aqui. Partilho com você a opinião de que aqui se£Stá melhor que em outro lugar.
— Qual é pois seu génio, Sr. de Peyrac, que faz sair de um Mal que parece irremediável um Bem aceitável?, pois querer o Bem não é suficiente, é preciso que ele seja, como direi, materializável - disse Knox Mather, a quem as numerosas libações impeliam naturalmente a suas atividades dominantes, ou seja, intelectuais e teológicas.
— Não creio que se trate de génio - respondeu Peyrác - preferir a vida. A morte é por vezes um ato que precisa ser infligido, imposto pela imperfeição do mundo, mas, segundo penso, é na vida que se encontra o único bem.
O eclesiástico franziu o cenho.
— Hum... Não seria você um adepto desse Baruch Spinoza de quem falam os filósofos, esse judeu de Amsterdam tão curiosamente em desacordo ao mesmo tempo com o judaísmo e a doutrina cristã...
— Sei que ele declarou: "O que favorece que o ser individual persevere no Ser significa a Vida, chama-se Bem, o que impede chama-se Mal..."
— Que pensa dessas afirmações inquietantes, vagas e que parecem negar a Deus sua presença soberana?
— Que o mundo está mudando! Mas sua gestação é lenta e dolorosa. È próprio dos idólatras, aos quais pertencemos todos aqui por nossas origens, não poder mudar de imagem. Vocês, senhores reformados, já fizeram um esforço nesse sentido quebrando as estátuas das igrejas, e vocês, senhores ingleses, deram um passo para o liberalismo dos homens cortando a cabeça de seu rei. Mas cuidado! Um passo à frente por vezes se paga com dois passos para trás.
— Senhores, senhores - exclamou o Padre Baure, assustado -, que estão dizendo? Eu não deveria estar à sua mesa. Suas afirmações cheiram a enxofre... Cortar a cabeça dos reis!, quebrar estátuas!... Ora, ora! Esquecem que somos criaturas de Deus e que por isso estamos na obrigação de obedecer a Suas leis, de nos inclinarmos diante das hierarquias instituídas por Ele próprio sobre a terra, tais como os dogmas da Santa Igreja, primeiro, e as decisões dos príncipes que por direito divino nos governam. Cortar-lhes a cabeça! Não pensem nisso!... O inferno espera por vocês. Aqui dizem-se coisas que dão, calafrios!...
— E bebe-se também um vinho muito bom - interveio Vane-reick. Beba, pois, meu bom padre. As piores afirmações se esquecem no fundo de um copo.
— Sim, beba - insistiu Angélica, sorrindo para o religioso, para ajudá-lo a se recompor. - O vinho também é um dom de Deus, e não há melhor panaceia para ingleses e franceses, quando estão reunidos, para-esquecer aqtrilo que os separa.
Ademar passou a cabeça pela porta.
- Cá está seu tonel, senhora condessa. - Depois concluiu: - E com a arca dos escalpos ingleses do senhor barão, que se deve fazer?
CAPITULO XXXII
O riso de Angélica
Angélica ria loucamente.
A caneca de vinho, assim como os condimentos dos pratos, haviam-na excitado.
A pergunta de Ademar sobre o que era preciso fazer com os escalpos ingleses do Barão de Saint-Castine completou sua hilaridade.
Graças ao céu a pergunta do simplório soldado perdera-se no alarido das conversas, e o riso de Angélica, sonoro, leve, voejan-te, desviara os hóspedes do banquete da pessoa de Ademar para fixá-los à sedução dessa súbita alegria, tão encantadora, porém, e bastante bem-vinda.
Vendo que polarizava os olhares, Angélica arrastou os convidados para um torneio de ditos engraçados, de trocadilhos, onde tentou justificar sua hilaridade excessiva.
— Não estamos mergulhados no seio da licenciosidade, da falta de vergonha e de perigosas torpezas, irmão? - perguntou aos correligionários John Knox Mather, cujo olhar extático brilhava como o de um mártir numa fogueira.
— É beirando esses precipícios sem neles cair que se reconhece a força com que o Senhor cumula seus eleitos - respondeu o Reverendo Patridge, dominando com sua voz cavernosa as gargalhadas.
Jamais tinham estado tão contentes por se terem aproximado tanto da libertinagem e tão satisfeitos consigo mesmos por resistirem à tentação.
O riso de Angélica voltou com toda a intensidade e por vezes, no esforço que fazia para se conter, ela quase chorava. Arrastados pela generosa bebida, a maior parte dos convivas colocavam-se sem dificuldade no mesmo diapasão.
Pois bem, tanto pior se sua alegria parecia intempestiva e deslocada. O senhor de Gouldsboro não lhe impusera esse papel diante de todos, sem se preocupar com sçu coração partido e com seus tormentos? Ele havia decretado que ela devia ser a Condessa de Peyrac. Sem falhas. O drama quer os separava devia ser escondido, negado. E sem dúvida isso importava menos a ele que a ela. Ela não sabia o que ele pensava. Teria preferido suas explosões do outro dia à sua indiferença aparente, essa espécie de desprendimento que fazia dela apenas um peão a ser colocado no tabuleiro, essa cuidadosa encenaçãa de uma comédia que servia apenas aos planos dele. Levara o mãquiavelismcTaté a fazê-la sentar-se à direita de Colin.
Se Colin tivesse sido menos nobre, talvez a tivesse perturbado menos. Não teria despertado tanto o calor de seu coração. E, com os nervos à flor da pele, ela~sentia o desejo perverso de destruir a cumplicidade que se estabelecera entre ele e Joffrey, de ainda atingi-lo, de testar novamente seu poder sobre ele. E seus olhos brilhantes buscavam-lhe o olhar, e ela enraivecia-se por não encontrar, quando ele se voltava para_ ela, senão uma impassibilidade serena, imposta mas inatacável. Joffrey também a isolara desse homem. Tomava-lhe tudo, arrancava-lhe tudo e repelia-a, totalmente despojada.
Assim se atormentavam seu coração e seu espírito desnorteados, ao passo que, segundo as aparências, ela oferecia aos convidados a visão mais divertida, a mais refinada, surgindo como que numa aparição de luz e de luxo nessa mesa rústica onde exilados buscavam, em sua pobreza, reviver os faustos do Velho Mundo.
Em toda a assembleia, só Joffrey podia discernir o que havia de tensão, de exaltação um pouco forçada no riso de Angélica.
Assim como seus convivas, ele também distinguira nas afirmações de Ademar uma vaga história de "escalpos ingleses", que havia desencadeado a hilaridade de Angélica, mas fazendo como ela, e tendo-se a afirmação se perdido no ruído das conversas, ele preferira não se aprofundar. Mais tarde veriam. O momento não era propício aos interrogatórios duvidosos.
Ela ria, mas sofria. Perturbado por sua deslumbrante beleza, irritado com sua ousadia, com a provocação do fino queixo orgulhosamente erguido, dos belíssimos olhos erguidos para Colin, e a contragosto admirado com a prontidão com a qual ela afastara a luva que ele lhe jogara, e enfrentara as humilhações que lhe infligira, ele não conseguia adivinhar em que fonte se alimentava o sofrimento que sentia nela vibrar.
Por tê-la brutalmente afastado e jogado nas trevas, esse coração feminino se lhe tornava obscuro. Perdera o gosto de nele ler abertamente. Turvara-se a clarividência entre eles.
Não ousava pensar que ela sofria justamente por causa dele.
A marca que lhe maculava o belo rosto, e que ela mal conseguia disfarçar sob a pintura, deixava-o circunspecto. Angélica era orgulhosa, com esse orgulho das mulheres de alta linhagem, misto de vaidade, de consciência de seu valor e de sua posição, o qual, mesmo que tenham comido castanhas e caminhado descalças na infância, as torna tão difíceis de manejar e de conquistar. Sentimento da raça altiva, entranhado na carne. Angélica poderia um dia esquecer o modo como ele a tratara?
Uma inquietação que ele não queria reconhecer atormentava-o desde que lhe descobrira o rosto no dia seguinte ao da noite terrível, em meio às fumaças de uma manhã de batalha não menos dramática. Ele ficara horrorizado. "Não acreditava ter batido tão fortemente", pensara, aterrado. Verificara que jamais uma mulher tivera o poder de pô-lo tão fora de si. "Poderia tê-la matado."
Furioso consigo mesmo, odiava-a duplamente, e seria um paradoxo reconhecer também que ela o atraía duplamente...
Quando pousava nela os olhos, sentia aquela grande vaga, a um tempo sentimental e sensual, que o levava irresistivelmente para ela, com o desejo de tomá-la nos braços. Havia muito que seus braços estavam vazios, sem ela. Gilles Vanereick tivera razão quando, escondendo uma filosofia bastante rica sob a loquacidade de folgazão, aconselhara-o com indulgência: "Creia-me, Sr. de Pey-rac, sua mulher é dessas que 'vale a pena' que se lhes perdoem..."
E ele não podia impedir-se de pensar que, apesar de sua abjeção aparente, ela não falhara no papel de "Condessa de Peyrac" que as circunstâncias exigiam, mostrara-se sua digna companheira em tudo nesses três dias dolorosos e decisivos. Por isso ele lhe seria sempre secretamente reconhecido.
E contemplando-a sub-repticiamente,-ele debato não podia impedir-se de ver que tudo nela "valia a pena" ser perdoado. Não somente sua beleza, a perfeição deseja corpo - abominável tentação e aquilo diante de que ele menos se. teria inclinado de bom grado -, mas sobretudo aquilo qiíe era "ela" e que ele sentia como um tesouro sem preço.
Enquanto acreditava odiá-la, ele se vira pego na armadilha do valor secreto e único de Angélica.
Na manhã do selvagem combate no Coeur-de-Marie, quando, ofegante pelos golpes que deram, ele se detivera, enfim certo da vitória, mas verificando a.que ponto a batalha fora mortífera, pensara espontaneamente: "Por felicidade ela está em Gouldsboro."
Assim que souberam que ela estaya em Gouldsboro, os pobres feridos haviam recobrado coragem, mesmo os que a conheciam de ouvir falar. "A Dama do Lago de Prata! A francesa com poderes de cura! A Bela Mulher! A que conhece todos os segredos das plantas... segredos para curar... Tem nas mãos algo mágico, pelo que dizem... Está na praia, pelo que dizem... Ela vai chegar...Estamos salvos...
Todos os homens a adoravam!... Que fazer?
Nesse momento, sua gargalhada inflamava-o e torturava-o alternadamente, e submetia-o, bem como a todos os homens presentes, a um encanto que o inclinava à indulgência, a uma covarde rendição.
Enquanto ele conversava com os hóspedes à mesa do banquete, no fundo de si mesmo brilhavam dois rostos de mulher. As franquezas de Angélica não podiam diminuir seu valor como ser humano, que havia acabado por subjugá-lo - èle disso se dava conta a luz das provas -, sentimento tão intimamente ligado ao gosto que tinha por ela, que não podia dissociá-lo do outro aspecto feminino, perigoso e versátil, que despertava sua cólera. Queria detestar a mulher de fraqueza carnal, de desprezível leviandade, e desejava ardentemente a presença da outra, sua amiga, sua companheira, sua confidente, seu delicioso refúgio carnal.
Há demasiado tempo seus braços estavam vazios sem ela. Seu corpo reclamava sua presença com uma exigência que o deixava desamparado.
O desentendimento entre eles causava-lhe um ferimento pelo qual sentia fugir um pouco de sua força vital. Dormia mal em noites de impaciência e perturbação. "Onde está você, minha suave, meiga, branca, macia mulher?... Onde está.seu ombro nu onde gosto de pousar a fronte? Onde estão seus dedos leves, seus dedos mágicos, com que por vezes ousavas tomar meu rosto, inclinando-o para si, e me beijava os lábios, num gesto onde eu sentia o irresistível desejo da amante, mas também a quente ternura possessiva que brota no coração das mães e da qual nós, homens, sempre guardamos uma nostalgia particular? Você começava a ter menos medo de mim. Depois tudo foi destruído."
Um suspiro sufocou-se no peito do conde.
Que pensava ela, lá do outro lado da mesa? Ele não sabia mais.
Nos últimos dias, ocorrera-lhe hesitar sobre decisões a serem tomadas, e duvidar de si mesmo.
Só não hesitara em relação a Colin Paturel. Colin, o rei dos escravos, era o homem que ele esperava há muito tempo. E, assim que o reconheceu, cessou de ver nele um rival, decidiu que nenhuma "história de mulher" privá-lo-ia de ligar-se a uma personagem tão influente, um condutor de povos por instinto.
No entanto, fora nessa fronte rude, de cabeleira leonina, que ele vira com seus próprios olhos Angélica pousar a mão fina e acariciante.
Que sofrimento para ele na ilha, acreditar que a cada momento chegava a traição!
No entanto, quando ao primeiro olhar, escondido entre as árvores, ele distinguira a silhueta do pirata, reconhecera o rei dos escravos de Miquenez. Aquilo explicava tudo, tornava tudo mais grave, mais trágico. Ele sempre soubera que Angélica amara esse homem, e com um amor do qual ele não podia se impedir de sentir intenso ciúme.
Pois Colin merecia ser amado por tal mulier.
Pensando nisso, novamente o veneno sutil ii filtrava-se em seu coração. O plano que urdira e executara contr todos parecia-lhe acima de suas possibilidades.
Nesse momento, era para Colin que ela erguia os olhos admirados, buscando uma cumplicidade nos do Normando rígido, que fingia, em sua lealdade para com Peyrac, não compreendera provocação de seu deslumbrante sorriso. Ouvia sua voz cativante, um pouco trocista.
- Senhor governador, creio lembrar-mcde que, quando estávamos na Barbaria, você me chajnava Angélica. Retomemos aqui os costumes fraternais dos cativos cristãos.
Pequena vagabunda! Não ap,enas enfrentava o opróbrio com o rosto descoberto, como respondia com armas afiadas.
Ele era bem tolo em se enternecer por ela. Se sofria, pois bem, que sofresse! Ela merecia uma lição.
Voltou a atenção para a"vizinha da esquerda. Inês y Perdito Te-nares, voluptuoso produto de sangue caraíba, espanhol, português, e cujo olhar de jízeviche vigiava ciumentamente o seu Gilles, demasiado seduzido, para seu gosto, pelo encanto da risonha anfitriã.
Peyrac pousou um dedo no queixo da linda mestiça, a fim de obrigá-la a desviar a cabeça, do aflitivo espetáculo e olhá-lo.
- Consolemo-nos juntos senhorita - disse-lhe gentilmente, baixinho, em espanhol.
CAPITULO XXXIII
Passeio numa praia de presságios
-Colin, ele não me ama mais! Está fazendo a corte àquela Inês. Cansou-se de mim.
Na penumbra do corredor, Angélica oscilava contra o ombro de Colin. A festa terminava. Uma noite coberta de nuvens sobre o fundo dourado do céu vertia sua luz atormentada sobre a desordem da praia, onde grupos alegres riam e dançavam. As pessoas demoravam-se na sala do banquete, grudadas aos escabelos. Deveriam suster-se mutuamente para retornar às casas e aos navios.
— Ele não me ama mais... Eu vou morrer... Jamais suportarei que ame outra mulher!
— Acalme-se, você está bêbada - disse Colin, indulgente.
E ele próprio, aquecido apesar de sua resistência à bebida, tinha dificuldade em ver as pessoas através da leve névoa da embriaguez, e em não tomá-la nos braços. Deixara a sala do festim para inspecionar a tripulação, dizendo consigo: "É preciso que vigie meus bons homens".
Mas Angélica seguira-o. Pendurava-se nele, manifestamente descontrolada por suas repetidas idas ao tonel de armanhaque, mas também por uma dor que vencia sua resistência.
- Ele faz amizade com você, que me induziu em tentação, e me rejeita, me repele, me despreza... É injusto!... É indigno!
Ela soluçava um pouco e repetia as palavras.
- Ouça, pequena! Vá passear ao ar livre - disse Colin. - Tudo ficará melhor depois.
- É isso. Vocês estão sempre de acordo, vocês homens, quando se trata de humilhar uma mulher, de zomb... de zombar dela! Você também me traiu!
- Cale-se!... Agora está tudo arranjado. Não se preocupe. Vá!
Ela sentiu que naquele dia Colin voltava a ser o verdadeiro Colin. Capaz de ser tão intratável como Joffrey e como ele capaz de domar, se assim o decidisse, o mais violento desejo carnal.
Ele a afastou firmemente, observou-a, esúa fisionomia nuançou-se de melancolia.
- Você o ama demais - murmurou, sacudindo a cabeça. - Na verdade, ele a controla de todos os modos. Elè' a domina. É isso o que lhe faz mal. E isso o que lhe dá o diabo no corpo. Vamos, vá dar uma volta, minha bela....minha,bela!
Acompanhou-a até a praia e deixou-a, enquanto ela se dirigia para os promontórios do leste.
Colin tinha razão.
O ar vivo da noite dissipou suas vertigens. Ela caminhava com passo, mais seguro, e começou a avançar para os rochedos, no desejo de não encontrar mais vivalma.
Sua mente turbilhonava, como uma cuba de fermentação de vinho, cheia de fermentos venenosos.
Joffrey parecia afastar-se dela.
Isso não! Jamais suportaria ver Joffrey tomar nos braços outra mulher, buscar nela seu prazer, e quem sabe, o pior... ligar-se a ela, fazer-lhe confidências. Se desejava com isso puni-la, ele o conseguiria bem demais. Ela morreria... ou então mataria a mulher!
Estava ultrajada por sentir que ele perdoava com mais boa vontade a Colin por ter desejado tomá-la, do que a ela por ter-se entregado.
A cumplicidade de isua sensualidade masculina exasperava-a.
Os homens eram seres com os quais era inútil tentar entender-se.
Sempre conseguiam enganar ou desconcertar com algum argumento.
Estava farta dos homens e de suas exigências.
Tratar dos feridos de suas guerras, alimentar e criar os filhos de seu prazer, polir suas armas e, ao longo dos anos, apagar as marcas de seus passos no chão das casas, preparar os animais caçados, limpar os peixes pescados. O sofrimento nobre para eles, o sofrimento ingrato para elas!
Há uma semana ela dançava em Monégan e saltava uma fogueira basca, levada pela alegria de viver e pelo braço do grande Hernâni.
Separada então de Joffrey, estava mais próxima dele do que agora. Há três dias não se dirigiam a palavra. Pareciam não mais existir um pára o outro.
Em alguns dias, menos de uma semana, um abismo se cavara a seus pés, um muro se erguera, inexpugnável. Tudo se enovelava, arrastando-os para uma solução em que seu amor afundaria, ou já afundara.
Uma voz pareceu sussurrar-lhe ao ouvido, no vento:
"Ele os separará... você verá! Você verá!..."
Um calafrio sacudiu-a inteira, e ela se deteve na ponta do promontório. Pensava nesse enredo de circunstâncias que a havia levado a humilhar publicamente o homem que adorava. Havia em tudo isso algo de diabólico. Um entremeio do acaso e de falta de sorte, que parecia não encontrar explicação senão na malignidade dos espíritos infernais, encarniçados em sua perda.
O medo acometeu-a. Um medo que já sentira na outra noite,-quando o desconhecido de rosto branco a havia conduzido à ilha. Eis que agora ela se punha a acreditar no Diabo... como todo mundo nessa maldita terra.
Voltou-se para Gouldsboro. "Há lugares onde sopra o espírito..."
Seria Gouldsboro um desses lugares? Estaria realmente designado, conforme denunciara a freira visionária de Quebec, a ser palco de um drama.extraterreno?
"Mas eu não sou a Diaba", disse Angélica quase em voz alta. "E então?..."
A contragosto voltava-lhe a recordação da predição da religiosa que tanto comovera a população canadense.
"Eu estava junto ao mar. As árvores avançavam até a praia... A areia tinha um reflexo rosa... A esquerda havia um posto de madeira com uma alta paliçada, e um torreão, onde flutuava uma bandeira... Por todo lado na baía, ilhas em grande número, como monstros adormecidos... No fundo da praia, sob a falésia, casas de madeira clara... Na baía, dois navios balançam, ancorados... Do outro lado, a uma ou duas milhas, há uma aldeia de cabanas rodeadas de rosas. Eu ouvia piar as gaivotas e os cormorões..."
O vento revolvia a cabeleira de Angélica. Seus cabelos envolviam-na com uma espécie de presença humana demente, que por instantes a deixava, e em outros a amarrava, sussurrando-lhe palavras assustadoras.
Petrificada na ponta do rochedo, Angélica olhava Gouldsboro.
A praia rosa lá estava, com seus monstros de ilhas esmeralda adormecidos. E "o torreão de madeira onde flutuava uma bandeira", a aldeia do acampamento Champlain onde começavam a florescer as rosas.
"Súbito uma mulher de grande beleza saiu das águas e eu soube que era um demónio fêmea... Ela permaneceu suspensa acima das águas, nas quais seu corpo nu se réfletia.." Do fundo do horizonte galopou um licorne, cuja longa cauda cintilava ao sol poente como um cristal. A Diaba cavalgou-o e lançou-se no espaço. Eu soube que ela iria destruirá Acádiá, esse caro país que tomamos sob nossa proteção...".
Angélica, como que fora de si, mantinha os olhos presos na paisagem. Havia uma espécie de segredo escondido atrás das fórmulas sibilinas. Agora estava certa disso. O lado irracional de nossa natureza, que a torna sensível aos símbolos, alertava-a, man-tinha-a em suspenso, diante do panorama que se abria a seus olhos.
Sim, havia navios ancorados na baía, e o vôo de gaivotas e de cormorões, e casas de madeira clara sob a falésia.
Ela deu um grito. Uma recordação lhe voltou. Quando desembarcara nesse local, no ano anterior, não havia casas de madeira clara sob a falésia. Essas moradias haviam sido construídas pelos huguenotes de La Rochelle durante-o inverno e a primavera.
Ela se pôs a caminhar com agitação, aturdida pelo vento e pelos vinhos, enquanto seus pensamentos se chocavam febrilmente. Dizia entre dentes:
- Eu lhes direi... Direi, a todos... Dir-lhes-ei em Quebec, não sou eu sua Diaba... Vejam! Não havia casasude madeira clara... quando aqui cheguei. E agora estão ali... E agora, agora que ela deve surgir, a Diaba!...
Deteve-se, oprimida por um frio na garganta, um terror impulsivo... As palavras que acabava de anunciar pareceram-lhe loucas e, no entanto, irreprimíveis.
Exceto pelo número de navios - que eram muitos nesse dia, e não apenas dois -, o cenário da predição não estava armado?
Loucas divagações! Se tivesse podido correr para Joffrey, ele teria partilhado ou afastado seus temores, rido deles...
Mas ela -estava só, agora. E só a ela se revelou, por trás das aparências, a ameaça do espírito súcubo, a Diaba, criatura cintilante que sairia das águas, cavalgando um licorne para lançar-se no espaço acima da terra da Acádia e devastar, destruir, destruir tudo à sua passagem... e até no fundo dos corações!
"Eu bebi demais!... E, ademais, estou cansada! Será que vou ficar louca? Seria preciso dormir, não mais pensar."
Assim raciocinava Angélica na noite do dia glorioso para Goulds-boro, em que a colónia festejara a entronização de seu primeiro governador.
Ao cair da noite, Colin ainda falara do alto do estrado e terminara seu discurso lançando à multidão perto de cem libras em peças de ouro.
As aparências eram de alegria. Somente para Angélica eram assustadoras. Desde a "iluminação" que tivera à beira-mar, o drama de estar separada de Joffrey revestia-se de certo temor. Seria possível que ambos fossem vítimas de algum malefício?
Por todo lado via signos tangíveis de seu pressentimento, e os risos, os cantos, as danças, a alegria geral, chocavam-na, pareciam-lhe uma aberração insultante à desgraça que ela acreditava ver avançar para eles. Que talvez já estivesse lá, entre eles! Um verme na fruta. Um espírito súcubo rondando, escarnecendo, pernicioso. O ulular de um pássaro noturno. Era o riso da Diaba! A quem falar de sua angústia?
"Bebi demais!... Amanhã isso passará... Amanhã irei procurar Joffrey. Será preciso que ele consinta em encontrar-se comigo. Em me dizer o que deseja fazer comigo. Expulsar-me? Ou perdoar-me? Mas isso não pode continuar assim... Pois então estaremos fracos e ela nos atingirá, a Diaba... Mas não, estou divagando. Não há nada, realmente... Nada que avance sobre as águas... para nós!... Essa coisa terrível! Seremos mais fortes que ela... Mas é preciso que não estejamos separados... Creio que tenho febre. Já tive minha cota por hoje. Adeus, senhores, deixo-os com seus projetos grandiosos."
Ela foi de grupo em grupo, os quais ainda cantavam em torno das fogueiras acesas na praia ao anoitecer e que a escoltaram com vivas até Joffrey de Peyrac e Colin Paturel, que permaneciam lado a lado ao pé do forte, continuando a receber os cumprimentos e homenagens da assembleia..Em silêncio, ela lhes fez uma reverência e se retirou.
Vacilou no caminho para o forte, inconsciente do olhar com que os dois homens, a contragosto, a acompanharam.
Sob as janelas, no pátio do forte, marujos conversavam, esvaziavam uma última caneca.
- Enquanto esperamos, estamos sendo "enganados" - disse um dos homens do Coeur-de-Marie. - É muito bom isso de se tornar colono num belo lugar, mas não vejo aqui, de fato, mulheres para nós, além das-huguenotes ou das selvagens. Trabalhar nas Américas, que seja, mas não sozinho. Ter uma sopa a esperar por nós em casa e uma mulher branca e católica na cama era o que havia sido combinado! Qaando a mim, era isso que me havia agradado no contrato.
O Tenente de Barsempuy deu-lhe uma cotovelada nos flancos.
— Não seja muito apressado, rapaz. Mais uma vez você viu o sol se pôr, quando era este crdia marcado para sua morte. Esta noite, a mais bela mulher que você terá nos braços é a Vida. A outra logo aparecerá no horizonte. Tenha confiança!
— Isso não impede que até agora não se tenha visto apontar mulheres por aqui.
— Rezem, irmãos - interveio o Padre Baure -, rezem e Deus proverá a tudo.
Eles riram em torno dele.
— Olá, monge - disse um deles -, sem contradizê-lo, será que está vendo como Deus poderia arranjar-se para fazer surgir da areia, de hoje até amanhã, de vinte a trinta boas moças para casar, dignas de se unir aos galantes aventureiros que- somos nós?
— Decerto não vejo - respondeu pacificamente o recoleto -, mas Deus é grande! Tudo pode vir de Sua mão. Orem, meus filhos, e as mulheres lhes serão dadas.
CAPÍTULO XXXIV
Naufrágio às primeiras horas da manhã
Deus é grande. Deus tudo pode, que todos fiquem sabendo!
E eis como, aos bons homens do Coeur-de-Marie, flibusteiros convertidos, suas mulheres lhes foram dadas no dia seguinte a esse estranho dia.
Um homem corre ao longo da trilha que, da enseada Azul, leva a Gouldsboro. Rajadas de chuva inflam-lhe o manto, mas ele se apressa, ofegante. E o papeleiro Mercelot, cujo moinho fica afastado da aldeia.
Ele chega ao forte, alerta as sentinelas:
- Rápido! Apressem-se! Há um navio em perigo na enseada Azul.
Angélica, que dormira como uma pedra, foi despertada por luzes no pátio do forte. A aurora mal despontava. De início, ela acreditou que a festa ainda se prolongasse; depois, pela movimentação, compreendeu que algo insólito se passava. Vestiu-se rapidamente e desceu para informar-se.
A luz das lanternas, Mercelot dava indicações sobre um mapa que o conde tinha nas mãos.
— Devem ter-se chocado com os recifes do morro Moine, na entrada da pequena baía das Anémonas, e depois derivaram para a enseada Azul.
— Ora! Que fariam por lá? - exclamou o conde.
— A tempestade...
— Mas... não há tempestade.
As pessoas ficam surpresas.
Decerto o vento é forte, e o mar está agitado, mas ao menos uma vez o céu está claro, e para os navios ao largo, a costa, com suas fogueiras de referência, deve ser bastante visível.
— E um bacalhoeiro?
— Como saber?... Ainda está muito escuro, mas ouvem-se gritos de arrepiar os cabelos. Minha mulher e minha filha já estão na praia com a criada e o vizinho..
Assim, mal-recuperados de-um dia de festividades, os habitantes de Gouldsboro se acham de pé, sonolentos e angustiados, na aurora ventosa, ouvindo da praia da enseada Azul gritos distantes de horror, que se elevam, trágicos, numa penumbra cinza, onde, intermitentemente, se entrevê, ao longe, à flor das águas, os mastros de um navio semi-afundado.
Angélica está presente, Como a maior parte das mulheres de Gouldsboro...
O navio está imerso até o abrigo da proa. Estranhamente ainda não afundou, eas correntes na entrada da baía o empurram de uma extremidade a outra-das penínsulas que lhe fecham a passagem, onde a cada vez se espera vê-lo esmagar-se e estourar como uma pesada barrica; depois ele parte em sentido inverso, balançando os três mastros, de onde pendem e se agitam velas mal-aparelhadas e ovéns inúteis.
Tomara que resistam até a chegada do navio de três mastros e do pequeno navio de Gouldsboro, os quais, com Joffrey de Peyrac e Colin Paturel a bordo, estão contornando a ponta d'Yvernec para atingi-los por mar.
O vento traz clamores cortantes, pedidos de socorro, mais angustiantes ainda por não se poder avistar, acima da crista das ondas, os ocupantes dos destroços do navio.
A equipe de marujos e de pescadores que veio de Gouldsboro por terra armou-se de croques, arpéus, âncoras, cordas.
Sob a direção de Hervê Le Gall, três deles sobem a bordo da barca de pesca dos Mercelot e remam-vigorosamente.
Os outros se espalham pelos rochedos,"prontos a ajudar na abordagem dos náufragos que tentarem ganhar a costa a nado.
- Vou preparar cobertas, sopa, bebidas quentes - decidiu a Sra. Mercelot. - Venha, Bertille.
Angélica levara bálsamos e ataduras para tratar das prováveis feridas, e uma garrafa de rum. Ia seguir a Sra. Mercelot, quando a algumas braças da margem, uma espécie de jangada feita de pranchas e de tonéis precariamente unidos surgiu a seus olhos da curva de uma onda. Um grupo de criaturas desgrenhadas a ela se agarrava, gritando.
- Mulheres! - exclamou Angélica. - Oh! Senhor! A ressaca as está empurrando para os rochedos. Irão despedaçàr-se.
Mal acabara de pronunciar essas palavras, a jangada, como que animada de malícia própria, erhpinou-se e lançou-se sobre um recife particularmente agudo, onde se partiu e se dispersou em cem pedaços de madeira, virando sem pudor toda a carga no mar. Por felicidade a praia estava próxima. Angélica e as companheiras logo se lançaram à água até a metade do corpo, a fim de socorrer as náufragas.
Angélica empunhou uma longa cabeleira, no instante em que sua proprietária desaparecia sob as águas, nas profundezas de um leito de algas.
Conseguiu manter a cabeça da afogada à superfície e arrastá-la para a margem.
Ocorre que era uma enorme mulher, de pelo menos cento e oitenta libras. Enquanto a tirava da água, Angélica não o percebeu, mas assim que atingiu a areia, descobriu-se subitamente atrelada a um pesado fardo, impossibilitada de deslocar por uma polegada que fosse a massa inerte à qual estava agarrada.
- Ajudem-me! - gritou para as outras.
Um marujo acorreu. Chamaram um segundo, depois um terceiro e um quarto.
- Bom Deus, que terá para fazer no mar uma mulher como esta? - lamentaram-se. - Com esse peso, não se deve embarcar,
deve-se permanecer em terra, como um canhão de fortaleza.
Entrementes, a Sra. Mercelot, a filha, a criada e o criado haviam ajudado as seis outras personagens a abordar.
Algumas tremiam terrivelmente, batiam os dentes incontrola-velmente, outras choravam. Uma delas lançou-se de joelhos e fez o sinal-da-cruz.
- Obrigada, Virgem Santa, por nos ter salvo - disse com fervor.
Eram todas francesas, mas, pelo acento, não eram acadianas.
- E Delfina, que ainda está dependurada lá longe! - gritou uma delas, mostrando uma jovem que conseguira içar-se a um recife.
Sem dúvida bastante esgotada; permanecia semi-inanimada, e arriscava-se a todo momento a. ser levada por uma onda.
Angélica correu até ela pelo promontório descoberto e ajudou-a a ganhar a terra firme.
- Coloque seus braços ao redor de meus ombros, minha cara - recomendou-lhe. - Vou sustentá-la e acompanhá-la à moradia que vê lá embaixo. Logo estará junto a um bom fogo.
A linda moça de cabelos castanhos e olhos inteligentes parecia de boa família. Esforçou-se por murmurar com seus lábios exangues, num fraco, sorriso:
— Obrigada, senhora. É muito boa.
— Estão chegando!
Um grito de esperança brotara com a visão das velas brancas do navio de três mastros e do outro navio, contornando a península de Cernék. Rapidamente ros dois navios de socorro aproximaram-sé do barce^destruído.
— Há ainda muita gente a bordo? - perguntou Angélica, junto à jovem a quem amparava.
— Ao menos vinte de minhas companheiras, creio, alguns homens da equipagem. Oh! meu Deus, faça que não cheguem muito tarde.
— Não! Não! Veja, nossos navios já atingiram o barco e o estão rodeando.
O dia nascera e podia-se seguir de longe as fases do salvamento.
Voltando com sua pequena embarcação ainda carregada de mulheres, Le Gall afirmou que as que lá permaneciam tinham possibilidade de ser salvas.
O navio afundava, decerto, mas muito lentamente, e haveria tempo para passar os sobreviventes para bordo do navio de três mastros. índios do vilarejo haviam posto seus botes no mar. Também eles trouxeram mulheres, tão assustadas e geladas com a situação como com as faces vermelhas emplumadas. Trouxeram igualmente um grumete hirsuto.
Subitamente viram-se mastros afundar com rapidez. As velas brancas das duas embarcações de Gouldsboro navegavam em todos os sentidos, como pássaros agitados em torno de sua agonia. Na margem, as mulheres recusavam-se a se deixar levar, os olhos grudados no navio, em seus últimos momentos.
Quando tudo desapareceu, puseram-se a soluçar e a se lamentar, torcendo as mãos.
CAPÍTULO XXXV
Relato de uma náufraga..
A Sra. Petronilha Damourt - com um T, conforme salientou -, a gorda mulher que Angéliea salvara, apertada nas roupas da Sra. Manigault-^s maiores que se encontrara no lugar -, sentada diante do Conde de Peyrac e de Colin Paturel, tentava explicar-lhes, num longo discurso, interrompido por nãb menos longos períodos de soluços sua situação.
Fora encarregada - por seiscentas libras, conforme orgulhosamente especificava - de escoltar um contingente de umas trinta Moças do Rei a Quebec, para desposar os solteiros do lugar, colonos, soldados ou oficiais, a fim de contribuir para o povoamento da colónia.
— Mas seu navio não estava na rota para Quebec, boa dama - observou o conde -, estava mesmo bastante longe dela.
— O senhor acredita?
Ela olhou Colin, cuja fisionomia simples dava-lhe menos medo do que a do nobre de ar espanhol que acabava de recolhê-las. Colin parecia-lhe mais apto a compreender os tormentos de um coração ingénuo e ignorante.
Ele confirmou a declaração do Conde de Peyrac.
— Não estavam na rota de Quebec.
— Mas então, onde nos encontramos? Acabavam de apontar-nos as luzes da cidade, quando o navio naufragou.
Ela os olhava alternadamente com terror e incredulidade, e as lágrimas corriam como um rio sobre suas faces adiposas.
- Que dirá nossa benfeitora, a Duquesa de Maudribourg, quando souber da notícia?... Oh! mas, é verdade, estou sonhando, ela está morta, afogada... Que horrível desgraça! Oh! não, não é possível. Nossa cara benfeitora. Uma santa! Que acontecerá conosco?
Ela soluçou com vontade, e Colin passou-lhe um lenço grande como um esfregão, pois os marujos são gente precavida. Ela enxugou-se e acalmou-se- com dificuldade.
- Pobre dama! Ela, que tanto sonhava em dar a vida pela Nova França!
Retomou sua história, voltando bastante no passado. Para ela, a aventura parecia ter começado quando entrara como camareira a serviço da Duquesa de Maudribourg.
Alguns anos mais tarde, o Duque de Maudribourg morria aos setenta e cinco anos, após uma vida bastante depravada, mesmo assim deixando uma bela fortuna à mulher.
A nobre viúva, Dame Ambrosina de Maudribourg, que suportara com grande paciência e virtude ao longo de sua vida conjugal as humilhações, os tormentos e as infidelidades do esposo, vira chegar enfim o tempo de realizar seus próprios desejos, a saber: retirar-se a um convento de sua escolha, para ali esperar a morte, em meio às preces e sacrifícios, e também consagrar-se, sob a égide de sábios e astrónomos, ao estudo das matemáticas, para as quais tinha o espírito bastante aberto.
Ingressou, pois, como cônega no convento das agostinianas de Tours. Dois anos mais tarde, porém, seu confessor tirou-a dali, persuadindo-a de que, quando se possuíam tantos bens, devia-se antes pô-los ao serviço da Igreja que ao das matemáticas. Soube entusiasmá-la para a salvação da Nova França e para a conversão dos selvagens.
No entanto, a viúva ainda hesitava, quando, numa manhã, estando bem desperta, uma mulher alta, com um vestido como que de sarja branca, apareceu-lhe e declarou-lhe nitidamente: "Vá ao Canadá. Eu não mais a abandonarei". Ela não duvidou de ter visto a Santa Virgem, embora não tivesse podido distinguir-lhe o rosto, e desde então consagrou-se com toda a alma a socorrer as terras distantes. Tinha tino para os negócios, um grande conhecimento do mundo. Tratou de contatar ministros, obter as autorizações, e formou uma companhia dos associados de Notre-Dame du Saint-Laurent, que tinha a vantagem de ser meio comercial, meio religiosa, e que enquanto se punha a serviço do rei, do governador e dos missionários, garantia a própria subsistência.
A Sra. Petronilha, que se ligara a ess'a boa pessoa e até a seguiria ao convento, desejara permanecer a. seu-serviço/apesar das perspectivas cada vez mais inquietantes que apresentavam os projetos da duquesa.
No entanto, foi preciso chegarem até .aquilo. Subir numa fria manhã de maio naquele universo'oscilante de pranchas e de telas a que se chama navio, transportar essas cento e oitenta libras nos porões do monstro para ali padecer mil mortes, menos pelo mau tempo que pelo humor dasjnoças que ela transportava. Mas poderia deixar a pobre duquesa sozinha e sem ajuda diante de perigos e de coisas desconhecidas? Pois a Sra. de Maudribourg, tendo-se informado sobre âs necessidades mais urgentes da colónia, soubera que se desejavam mulheres para os colonos.
De fato, segundo-ordens do rei, os jovens ali deviam casar-se antes de atingir vinte anos. Senão, o paj de um rapaz recalcitrante deveria pagar a multa e se apresentar a cada seis meses diante da autoridade para justificar a falta.
Recentemente o intendente Carlon, homem de pulso, havia expedido um mandado proibindo os canadenses não-casados de caçar, pescar, comerciar com os índios.pu embrenhar-se nos bosques sob um pretexto qualquer. Da Europa, o Ministro Colbert juntava ao mandado uma ordem para um imposto especial a todos os que fossem contra o casamento. Seriam excluídos de todas as distinções e de todas as honras e trariam, costurada na manga de modo visível , uma marca especial de sua infâmia.
Depois da expedição dessa ordem, de mil homens solteiros em Quebec, oitocentos haviam se dirigido para os bosques.
Peyrac estava bastante a par da questão pois reconhecia em Nicolau Perrot, Maupertuis e o filho, e até em LAubignière, algumas das vitimas diretas dessas leis-
Para os duzentos fiéis que permaneceram em Montreal e em Quebec, resignados com sua sorte, eram necessárias mulheres. A Sra. de Maudribourg quis contribuir para a nobre causa. Tomou a seu cargo um grupo daquelas a quem chamavam de Moças do Rei, deu-lhes um dote, e à imitação do "presente" real que a administração se comprometera a entregar, ofereceu a soma de cem libras para cada moça, dez para o recrutamento, trinta para as roupas e sessenta para a travessia. Mais um pequeno cofre, quatro camisas, um traje completo - manto, saia e saiote -, meias, sapatos, quatro lenços de pescoço, quatro coifas, quatro toucas, dois pares de punhos, quatro lenços de bolso, um par de luvas de pele, uma touca e um lenço de tafetá negro, sem esqueoer os. pentes, escovas e outras miudezas.
Estariam assim bem providas para agradar aos dóceis solteiros que as aguardavam nos cais de Quebec, fazendo fila, com seus belos atavios e grossos sapatos.
Após uma pequena recepção e uma colação, para facilitar um primeiro contato, elas seriam conduzidas a algum convento da cidade, que não haveria de faltar, onde nos dias seguintes receberiam nos parlatórios rapazes sob a égide e o bom conselho dos padres, das freiras e das damas benfeitoras.
- Como sabem, o Sr. Colbert é bastante exigente na escolha das mulheres enviadas ao Canadá - insistiu Petronilha Damourt. - Seguindo-lhe o exemplo, tomamos cuidado com nosso recrutamento. As que trouxemos são todas oriundas de casamentos legítimos, algumas órfãs, e outras pertencentes a famílias arruinadas.
Além disso, a Sra. de Maudribourg fretara um navio. O rei ofertara uma bandeira com sua insígnia, e a rainha, ornatos de igreja.
A Sra. Petronilha vasculhou os bolsos, em busca de papéis que possuía, para provar a esses estrangeiros inquietantes em que piedosas e boas condições se organizara a expedição.
Queria mostrar-lhes as contas exatas, pois ela própria fizera um relatório para cada moça, assinado pelo meirinho, e tinha esses papéis cuidadosamente arrumados num envelope de tela engomada, com a carta do Sr. Colbert...
Lembrando-se de que as roupas que usava não eram as suas e que cofres, roupas e objetos, deviam estar agora no fundo das águas, voltou a chorar copiosamente.
Não havia muito mais para se tirar dela a não ser a certeza de que, tendo embarcado no início de maio num pequeno navio de cento e cinquenta toneladas que levantara vela para Quebec, achava-se como náufraga no início de julho, nas margens do Maine, na baía Francesa.
Como se chamava o capitão do navio perdido? Job Simon. Era um homem encantador, e tão galante!
- Mas um mau piloto, me parece - sussurrou Peyrac. - E onde está no momento Seu capitão? Onde estão os homens da tripulação? O barco era modesto de fato mas forçosamente devia ter uns trinta homens a bordo para manobrá-lo. Onde estão?
Infelizmente logo se ficou sabendo. O mar devolveu corpos mutilados, despedaçados contra os rochedos. Cada enseada, cada fiorde estreito continha alguns deles, e QS índios os trouxeram nas costas. Dispuseram-nos na areia da enseada 'Azul. Joffrey de Peyrac foi reconhecê-los com o grumete, um garoto bretão que mal sabia algumas palavras em francês. O garotinho sentia-se feliz por estar a salvo e por ter conservado sua colher de madeira esculpida, o primeiro tesouro do marujo. Contava que ouvira o casco
do navio rasgar-se,sobre uma barreira de recifes. Fora então que o imediato ordenara-que'se fizesse ao mar a grossa chalupa com algumas mulheres è homens, que deviam buscar socorro no porto da cidade.
— Que cidade?
— Vimos luzes, acreditamos que havíamos chegado a Quebec.
— A Quebee?
— Sim, claro!
CAPITULO XXXVI
As Moças do Rei
Nesse meio tempo, Angélica não cessara de prodigalizar seus cuidados às infelizes salvas da enseada Azul. Após os homens, as mulheres. Após as carnes cobertas de pêlos, peles suaves, lisas e brancas. Deixando de lado essa diferença, mesmo assim ela guardaria desse período confuso, que se seguira a seu primeiro retorno a Gouldsboro, a ideia de ter dado com Dante uma volta nos círculos infernais a que o poeta tinha afeição, e onde ele se divertiu em despejar os condenados num alvoroço de carne nua misturada.
Depois dos feridos, os afogados. Após as imprecações e os estertores, os lamentos e o rilhar de dentes das mulheres.
Angélica pôs-se a pensar em sua calma e pacífica existência em Wapassu como num paraíso inacessível.
As Moças do Rei tinham de quinze a dezessete anos. Algumas eram camponesas, mas a maior parte vinha de Paris, escolhidas entre as órfãs do Hospital Geral. Angélica reconhecia-lhes o acento vivo, um pouco zombeteiro, que trazia tão longe, ao grande vento das Américas, os miasmas das ruas sinuosas, atrás do Châtelet ou do Quai aux Fleurs, os odores do Sena, os odores dos assados e das carnes, e o ruído das carruagens nas lajes redondas.
Havia entre elas quatro demoiselles de boa família, destinadas ao casamento com oficiais, uma moura de tez de pão queimado e uma prostituta notória de nome Juliana.
Desde o primeiro momento, a moça recusou grosseiramente os cuidados de Angélica, embora parecesse sofrer, e arrastou-se para o lado. As companheiras mostravam frieza para com ela, pois ela destoava desse comboio de "noivas" para o Canadá, que deviam ser sempre escolhidas, conforme as diretivas do Sr. Colbert, "dóceis, bem-feitas, laboriosas, industriosas e bastante religiosas".
Delfina Barbier du Rosoy, a linda moça corajosa de cabelos castanhos, insistiu nesse ponto para-explicar que essa moça jamais deveria se encontrar em sua companhia. A excessiva bondade da Sra. de Maudribourg se deixara •pegar de surpresa.
- Vocês, demoiselles, podem falar de fato em bondade!... - gritou Juliana ao ouvi-la. - Precisam de cetim de vinte libras para seus adornos, ao passo que nós, do Hospital Geral, contentamo-nos com tela de Trqyes de trinta centavos a alna.
Ela afetava modos de peixeira, mas sua tentativa de discórdia não deu certo, pois todas as outras jovens eram de fato educadas, modestas e discretas, embora bastante pobres, criadas pelas religiosas do orfanato, e o naufrágio as aproximara das companheiras em melhores condições e mais distintas. Fora Delfina du Rosoy que tivera a ideia de construkwma jangada e as encorajara e amparara nos momentos mais terríveis.
Angélica nãõ tivera outro recurso para abrigar suas protegidas a não ser instalá-las no celeiro de milho, que ficara vazio com a libertação dos prisioneiros. Jístes haviam retornado ao Coeur-de-Marie.
Por hora, eles rodavam nos arredores do celeiro, olhando as cordas com saias e corpetes que flutuavam ao vento.
O Tenente de Barsempuy trouxe nos braços uma forma branca abandonada.
Seus olhos brilhavam com febril excitação.
- Encontrei-a lá embaixo nos rochedos azuis como uma gaivota ferida - explicou. - Ela se parece com o que sonhei. É ela,
tenho certeza, vi-a em sonho; vejam como é linda!
Angélica lançou um olhar ao rosto exangue, que arrastava o peso de uma longa cabeleira loura, pesada de água do mar, de areia e de sangue.
— Infeliz, essa moça está morta... ou é como se estivesse.
— Não, não, peço-lhe, salve-a - disse o rapaz. - Ela não está morta. Faça algo por ela, senhora, peço-lhe, a senhora, que tem mãos miraculosas, trate-a, reanime-a, cure-a... Ela não pode morrer, pois é a ela que eu esperava.
- É Maria, a Meiga - disseram as Moças do Rei, inclinando-se sobre a forma inanimada e ensanguentada. - Pobre infeliz! Seria melhor que morresse. Era a criada da Sra. de Maudribourg e considerava-a sua mãe. Que será dela agora?
Enquanto Angélica, ajudada pela velha Rebeca, empreendia trazer de voha à vida o pobre corpo coberto de equimoses, os náufragos discutiram juntos as condições nas quais a duquesa perdera a vida. Chegaram a um acordo de que fora ao retornar à entre-ponte, em busca do filho de Joana Michaud, do qual se haviam esquecido.
Joana Michaud chorava a um canto. Era a mais velha da companhia, com seus vinte e dois anos. Viúva de um caldeireiro, comovera o coração generoso da Sra. de Maudribourg, que a encorajara a vir ao Canadá com seu pequeno Pedro, de dois anos, onde encontraria com mais facilidade um esposo do que na França. Não se lembrava de nada, a não ser de um despertar em meio às trevas e de gritos, onde ela buscara em vão o filho adormecido a seu lado.
Ela não cessava de gemer:
— É culpa minha. Meu filho está morto e nossa benfeitora perdeu-se para salvá-lo. Uma santa, morta como mártir!
— E penso que faziam muita história por essa diabólica duquesa - gritou com grosseria Juliana. - A benfeitora, permitam-me dizê-lo, era uma maçante! Quanto a mim, deixo-a de bom grado aos anjos do céu se a quiserem. Ela me fez sofrer o suficiente com suas maldades.
— Você fala assim porque ela a obrigava a ir à missa - disse Delfina com severidade - e a rezar e a conduzir-se corretamente.
A jovem deu uma gargalhada rouca, depois deslizou sobre a demoiselle um olhar sorrateiro e astuto.
— Ah! estou vendo. Você também se deixou fisgar, Srta. du Ro-soy. Ela acabou por conquistá-la com seus padres-nossos. No entanto, no início você não gostava mais dela do que eu. Mas ela soube como agir.
— Juliana, você a detestou desde o primeiro dia porque ela procurava recuperá-la. Você detesta o bem.
- O bem dela? Ah! nada disso! Eu me recuso. Quer que lhe diga o que era sua duquesa?... Uma tratante, uma suja...
A sequência perdeu-se num concerto de gritos e de urros, pois três ou quatro Moças do Rei lançaram-se sobre Juliana num paroxismo de indignação.
A outra debatia-se gesticulando e mordendo as mãos com que tentavam fazê-la calar-se.
- Sim, direi o que penso... Não serão vocês a me impedir, estúpidas!
Sua voz apagou-se, enfraqueceu, eela caiu no chão, desmaiada. As que a agrediam ficaram desconcertadas.
— Que aconteceu com ela? Nós mal a tocamos.
— Creio que se feriu no naufrágio - interveio Angélica -, mas não quer que nos aproximemos. Desta vez terá que consentir.
Mal se inclinou, porém, sobre a irredutível, esta se ergueu com um olhar de ódio.
- Não me toque ou eu a massacro!
Angélica encolheu os ombros e deixou-a. Juliana retirou-se para um canto, onde permaneceu encolhida como uma fera.
- Uma moça como essa jovem não deveria fazer parte de um carregamento para o Canadá - repetiram mais uma vez as demoiselles. - Por causa dela irão tomar-nos por vadias e ladras como aquelas que se enviam à ilha Saint-Christophe... Somos pobres, mas não exiladas.
Maria, a Meiga, abria os olhos, belos olhos esverdeados entre os cílios louros, tomados por indizível terror.
- Os demónios - murmurou -, ah! eu os vejo, ouço seus gritos na noite... Eles me batem... Os demónios!... Os demónios!...
CAPITULO XXXVII
O enigma da profecia se completa
Numa praia em que prossegue, ao anoitecer, em suas buscas, Angélica adivinha atrás de si uma presença.
Ela se volta. E desfalece.
O animal mítico lá está!
O licorne.
Erguido, o licorne inclina orgulhosamente o pescoço dourado e suas ventas "brilham ao sol poente como cristal. A praia é minúscula, em forma de meia-lua, fechada por grupos de árvores, que projetam ousadamente suas raízes até o limite dos sargaços. Abre-se sobre o fiorde estreito, chamado de enseada das Anémonas, pois elas ali florescem no verão, com todas as cores. Ora, sobre a areia branca e lisa, emergem o longo pescoço e a cabeça do licorne.
Angélica crê sonhar diante da aparição e não tem coragem de dar um grito de socorro.
Nesse instante, um ser hirsuto, bramindo como um lobo-marinho, surge das águas. Precipita-se para a frente, e seus clamores enchem a enseada e despertam o eco das falésias. Ele passa como uma tromba diante de Angélica, lançando-se diante do licorne, os braços estendidos.
- Não a toquem, miseráveis! Não toquem em minha bem-amada. Ela, que eu acreditava perdida... Ah! não a toquem, ou os matarei a todos!...
Ele é gigantesco. A água e o sangue escorrem de seu rosto barbudo e hediondo pelas roupas andrajosas. Suas pupilas brilham com um fogo assustador e fugaz.
Os homens de Gouldsboro, que acorreram atraídos pelos gritos, empunham as facas ou os sabres e olham com apreensão.
— Não se aproximem, náufragos, ou os estrangulo.
— E preciso abatê-lo - diz Jacques Vignot carregando um mosquete. - Ele ficou louco.
Não - intervém Angélica -, deixem-no. Eu creio compreender. Ele não está louco, mas eorre o risco de perder a razão.
Então ela se aproxima do infeliz que a domina com seu porte enorme, como um gigante perdido e alucinado.
- Como se chamava seu navio, capitão? - pergunta ela suavemente. - Seu navio, o que se despedaçou esta noite contra os recifes.
Sua voz chega ao espírito perturbado de Job Simon. Lágrimas começam a correr pelo rosto de barba desgrenhada. Ele cai de joelhos, rodeia com os braços a figura de proa em madeira dourada do navio perdido,- quase- tão alta como ele.
— Mas La Licorne, senhora - murmura ele. - Meu navio perdido chamava-se La Licorne!
— Venha, vou dar-lhe de comer - disse ela a Job Simon, pousando a mão em seu braço com uma suavidade que penetrou como um bálsamo até o espírito perturbado do infeliz.
— E com ela, que se fará? - balbuciou ele com um gesto para a figura de madeira dourada que emergia da areia. Não façam mal a ela... Ela é tão bela!
— Vamos afastá-la do mar... E mais tarde colocá-la-ei na proa de outro navio, senhor.
— Nunca! nunca! Estou arruinado... Mas ao menos me resta minha amada! Como é bela, hein? Era folhada, a ouro! E eu mesmo lhe plantei no nariz esse belo chifre, de um narval que havia fisgado. Belo marfim rosa-espiralado... Deviam ver como brilha ao sol...
Ele monologava, confiando-se à mulher estrangeira que o dirigia em sua inconsciência, deixando-se arrastar como uma criança.
Chegando à moradia da Sra. Mercelot, ela o fez sentar-se diante da mesa rústica. Na casa dos colonos da América há sempre um caldo cozendo lentamente sobre as brasas do fogão. Angélica derramou num prato um puré de abóboras acompanhado de ostras recheadas.
O náufrago pôs-se a comer gulosamente, dando suspiros, e ressuscitando a cada bocado.
— Pois Bem! Estou arruinado - concluiu, após enxugar uma segunda escudela. - Na minha idade é o mesmo que dizer que estou acabado. O cemitério, eis o navio que me, aguarda. Eu bem que dissera à duquesa: "Tudo isto vai acabar mal". Mas aquela mulher só seguia a própria cabeça, cáspite! Eu bem suspeitava que essa travessia me traria infelicidade, mas em minha idade pega-se o que aparece, não é mesmo? Moças como carga, eis a que me vi reduzido, colonos para as Américas!
— Não deve ter sido fácil tal viagem, com tantas mulheres a bordo!
Os olhos do capitão se revolveram.
- O inferno! - suspirou. - Se quer minha opinião, senhora, as mulheres não deviam existir.
Ele enfiou na boca um naco inteiro de pão e um pedaço de queijo que ela lhe apresentou e, enquanto mastigava poderosamente, examinou-a com seus olhinhos agudos.
— E tudo isso para perder-se numa costa de náufragos - resmungou. - No entanto a senhora não tem o ar de uma bandida! Dir-se-ia que é antes uma boa e honesta mulher. Devia ter vergonha. Permitir a seus homens essa suja ocupação de saqueadores de navios e de assassinos.
— Que está insinuando?
— Que atraem os navios a seus sujos rochedos, dizimando a porretadas os pobres rapazes que tentam escapar. Isso é uma ocupação, não é? Deus e os santos do paraíso os punirão.
Angélica estava sem reações para indignar-se diante de tão ultrajante acusação. Tivera por três dias sua conta de loucos e de loucas, de desesperados e de histéricos. Tudo se desculpava da parte de pessoas que quase haviam perecido no mar.
Ela respondeu sem cólera:
— Está cometendo um equívoco, bravo homem. Somos simples colonos, vivendo do comércio e do trabalho de nossas mãos.
— Mas então por que fui afundar-me naquelas pedras pontudas como agulhas? - rugiu ele, inclinando-se na direção dela -, se não vi dançarem as luzes ao anoitecer? Sei muito bem o que é ser náufrago, e como se balançam as lanternas nas falésias para fazer afundar os navios, levando-os. a acreditar que ali há um porto. Sou de Ouessant, na ponta dá península bretã. Esperava tão pouco pelo choque, que fui projetado na ágtia. E quando eu chegava à costa e começava a subir,' eles" me golpearam aqui e aqui... Veja. Não foi uma rochedo que fez isso.
Lançou para trás a grenha de deus marinho, pegajosa de sal e de sargaços.
Os olhos de Angélica se arregalaram e seu coração quase parou.
- Hein? Que diz disso? - falou o homem, triunfante, feliz por vê-la pálida e estupefata.
Mas era menos .a ferida no couro cabeludo o que fascinava Angélica do que a apartção de um larga mancha cor de vinho que Job Simon trazia na fronte" como marca de nascença.
"Quando vir o grande capitão de mancha violeta, fique sabendo que seus inimigos não estão longe!..."
Quem lhe dissera isso?.... Fora Lopes, o pequeno bucaneiro português do Coêttr-de-Marie% quando estavam juntos na ponta Maquoit.
Mas onde estava Lopes? Morrera na batalha... do Coeur-de-Marie...
CAPITULO XXXVIII
Os marujos disputam a posse das moças
Ela se olha no espelho. A noite rodeia com uma sombra a placa fria do espelho veneziano. As últimas luzes do poente, vindas da janela, lançam-lhe reflexos embaçados. Ela se vê com um rosto fantasmagórico, iluminado por um olhar de carbúnculo.
Os cabelos, como uma auréola enluarada, parecem os de uma louca. O vento os tocara, desgrenhara, enquanto ela vagava pelas praias em busca dos cadáveres, e encontrava o licorne, e ela está cansada das mechas que se movem incessantemente em suas fontes, oprimidas por uma dor lancinante.
"Vou trançá-los", decide-se.
Pegando-os, torce-os, divide-os e ordena seus reflexos de nácar e de ouro. A trança, pesada e opulenta, repousa em seu ombro como um animal brilhante. Ela a repele, desfaz, refaz, ergue-a e prende-a para trás, dando-lhe três voltas. Ela pesa na nuca, mas Angélica se sente por um instante aliviada. Passa a ponta dos dedos na fronte.
Quem lhe dissera: "Quando vir o grande capitão de mancha violeta, fique sabendo que seus inimigos não estão longe"?
Pouco antes lembrara-se. Ah! sim, era o mestiço português Lopes, lá na ponta Maquoit, na baía de Casco.
Mas o pequeno Lopes morrera no combate do Coeur-de-Marie.
Angélica joga-se vestida nesse leito frio onde não mais consegue obter o repouso necessário a sua vida desgastante. Depois de tratar dos feridos e doentes ela se retirou à noite sob as instâncias de Abigail, a única a se preocupar com o estado de fadiga no qual esses últimos dias mergulharam a Sra. de Peyrac.
Avistara ao menos seu marido naquele dia? Já não sabe mais nada. Não tem mais marido. E um estrangeiro, indiferente a seu sofrimento. Ela está só, como antes, num mundo estranho, onde avança lentamente uma ameaça invisível. Sozinha ela se debate e se revolve num amontoado dè corpos nus, homens e mulheres ensanguentados, as feridas abertas, misturados à convulsão de carnes repugnantes do inferno de "Dante,- visão de onde até o cheiro está abolido, e atravessada por instantes por signos assustadores: a figura de proa do licorne em madeira dourada, o capitão de mancha violeta que come gulosamente, as casas de madeira clara na margem cor de aurora.
Se Joffrey lá estivesse, ela lhe comunicaria seus pensamentos extravagantes. E ele zombarisTdela, tranquilizá-la-ia.
Mas está só...
"...Parece-me que está tudo preparado", diria a ele, "que coisas terríveis vão acontecer."
"Que coisas, querida?""
"Não sei,, mas tenho medo!"
Ela ouve a voz do Padre de Vernon: "Quando as coisas diabólicas se põem a caminho..."
Revira-se no leito frio, aviria de.aconchego, de calor. Irá levantar-se, procurá-lo-á e lhe dirá: "Perdoe-me! Perdoe-me! Não o traí, juro, não me rejeite, peço-lhe..."
Mas ela o vê implacável, sombrio e distante, como nos tempos do Rescator, e não pode mais imaginar que um dia ela tenha podido prodigalizar-lhe tantos carinhos e que a vida tenha podido ser entre eles, a cada minuto, tão. preciosa e tão íntima!
"Oh! meu amor! Éramos amantes tão alegres, éramos amantes tão graves. Todas aquelas noites desatinadas... Tantos risos, alegrias sem sombra, e podíamos nos olhar o tempo todo, perdidamente, sem sentir vergonha.
"E quando houve a epidemia de varíola, ypcê se recorda? E sobretudo..." Nesse momento as lágrimas lhe afloram aos olhos. Ela o vê inclinando o alto talhe diante da minúscula silhueta de Ho-norina, ofendida por Cantor: "Venha, Senhorita, farei com que lhe dêem armas...
Eu pensava: "Sempre nos restará o amor... Insensata! Vele, pois não sabe nem o dia nem a hora"...
Angélica se debate no sono. Sonha que a trança de ouro se tornou monstruosa, desliza-lhe ao longo do corpo, e a amarra. São os signos que se misturam, se torcem, como a trança em torno dela, e a sufocam. Surge um demónio, com o ricto cruel de Wolverines, o glutão.
Ela lança um grito horrível, desperta, a boca amarga.
Seu grito ainda verruma seus ouvidos. Enquanto, no seio de Angélica, decrescem os ecos de uma emoção voluptuosa. Sonhou que fazia amor com um ser indistinto, assustador e de estranha suavidade.
Lembra-se de seu grito, mas não foi ela quem o emitiu.
Ele se renova lá fora, atravessando as brumas da aurora, um grito de mulher, agudo.
Angélica lança-se para fora da cama, na direção da janela aberta, e se debruça.
Ao nível do chão, arrastam-se nuvens de um rosa fumoso, neblina marinha velando as primícias de um dia de julho que será sufocante. O silêncio das primeiras horas já tem algo de opaco, de esmagador.
O coração de Angélica parava e não conseguia encontrar um batimento regular. O silêncio era tão profundo, a neblina tão úmi-da, que ela acreditou novamente ter sonhado.
Mas um terceiro grito elevou-se. Vinha do deposito onde estavam as náufragas.
-Bom Deus! - disse ela -, que estará ainda acontecendo?
Lançou-se para fora do quarto, chocou-se com a sentinela sonolenta, fê-la abrir as portas do forte e pediu a um dos espanhóis de guarda a uma poterna do exterior que a acompanhasse. Mal se via o sol.
Perto do celeiro, formas numerosas agitavam-se com o desvario de almas do limbo perdidas.
Angélica chegou a tempo de se jogar entre dois fortes latagões armados de facões que, não obstante o fato de não se poder distinguir o adversário a três passos, pretendiam afrontar-se em combate.
-Perderam a cabeça? - gritou ela. - Por que se batem aqui ao invés de estar a bordo de seus navios?
— E por causa destes que querem pegar nossas mulheres - explicou um dos antagonistas, no qual ela reconheceu Pedro Vanneau, quartel-mestre do Coeur-de-Afarie.
— Que quer dizer com "suas mulheres"?
— Ora! Essas que estão aí dentro.
— E de onde tiraram que são suas mulheres?
— Ora! Foi para nós que o bom Deus as convocou, não é fato?, para nós do Coeur-de-Marie. Estava nó contrato, e o Padre Baure nos disse "Rezem!" Rezamos e...
— Pois estão a par das intenções de Deus a séú respeito? Decidiram que Ele tem que lhes fazer um milagre? E com esse pretexto vocês se atribuem sem "respeito as infelizes que a tempestade jogou em seu caminho... Isso é demais! Surpreende-me que tenha arrastado seus homens a um tal passo, mestre - continuou, fitando-o nos olhos. - Quando o governador, que é também seu capitão, for posto a par disso, ele lhes tirará a pele.
— Mas senhora condessa, devo fazer-lhe notar que...
— De modo algum! - fulminou Angélica. - Que vento de loucura é esse que sopra sobre suas cabeças?... Não escaparão de ser açoitados, "eu os previno, nem de ser amarrados no gurupés ou de perder o comando, Vanneau.
— Mas, senhora, é por causa dos outros.
— Que outros?
Como a bruma começasse a se dissipar, Angélica avistou um grupo de homens do Sans-Peur, o navio flibusteiro de Vanereick, escolhidos entre os mais assustadores. A bela Inês, numa roupa xadrez de cetim amarelo, colar de coral em torno do pescoço am-barino, parecia arrastá-los ao combate.
— Quando eu soube que aqueles grosseiros do Sans-Peur planejavam importunar nossas... enfim, estas moças, vim em seu socorro com alguns companheiros - explicou Vanneau. - Não iríamos deixar esses porcos piratas, esses flibusteiros, esses condenados, pôr-lhes as mãos.
— Com que está se metendo, monte de banha? - retorquiu o adversário, que empunhava sua longa adaga reluzente, e cuja lín gua se embaraçava num forte acento espanhol. - Conhece a lei dos flibusteiros: nas colónias, as mulheres são dos marujos que passam. Estou de acordo com que nos batamos, mas temos tanto direito a essa caça quanto vocês.
Vanneau teve um gesto de ameaça que Angélica sustou com um só olhar, imediatamente, sem se preocupar com a lâmina aguda que girou a poucas polegadas de seu rosto.
Resmungando, rosnando, tempestuosos, os homens das duas tripulações comprimiram-se em torno dela, enfrentando-se com o olhar, lançando entre dentes sólidas injúrias em todas as línguas da Terra.
Inês começou em espanhol a incitar as tropas à rebelião, mas a ela também Angélica reduziu prontamente ao silêncio. Suspeitava que houvesse arrastado os homens a essa expedição para causar aborrecimentos a ela, Angélica, por ciúme infantil. O ar insolente da espanholinha não a impressionava. Conhecia esse género de mulheres e sabia como manejá-las. Não são más sob a aparência arrebatada, perigosas apenas pelo modo de excitar os machos e impeli-los a todas as tolices.
A inteligência dos sentidos. Fora isso, não têm mais raciocínio que um colibri. Ela sabia por onde pegar essas ousadas criaturas.
Com um único olhar interrompeu as arengas da bela Inês, depois puxou-lhe a linda orelha ornada com uma argola de ouro, com um sorriso trocista e indulgente. Sob essa intimação quase maternal, a garota abaixou a cabeça, pois no fundo era apenas uma pequena mestiça arrancada a seu meio índio e que jamais recebera outras atenções além daquelas interessadas dos homens, uma pobre cortesã das ilhas. A altiva mas amigável condescendência de Angélica perturbou-a, e ela se viu subitamente reduzida a uma garota desconcertada.
Privados de sua ardente animadora, que soubera persuadi-los de que nada arriscavam ao lançar-se na aventura, e que ela saberia convencer seu capitão, os homens de Vanereick vacilaram, se entreolharam e começaram a se mostrar menos valentes.
Nesse meio tempo, a bruma acabou de se dissipar e o quadro apareceu em todo o seu brilho, com a gorda Petronilha Damourt, os raros cabelos ao vento, os olhos empapuçados, pois a pobre dama tentara bastante corajosamente defender suas ovelhas. Se não era muito ágil, ao menos colocara ali todo o seu peso. Atrás dela, duas ou três moças curiosas, de camisola, passavam, assustadas, enquanto as outras se haviam refugiado nos fundos do celeiro. Delfina Barbier du Rosoy, muito pálida, os braços nus marcados por manchas lívidas, tentava trazer -ao peito os restos de seu corpete arrancado. Fora o horrível grito que dera, quando se sentira brutalmente agarrada por mãos luxuriosas, o que despertara Angélica.
A seus pés um homem estava estendido um marujo do Gouldsboro que haviam colocado à porta do celeiro como sentinela durante a noite e que os homens do Sanr-Peur haviam espancado
antes de pôr a porta abaixo. Essa última maldade, que bem denunciava suas más intenções, levou ao máximo a indignação de Angélica. Ainda mais que percebia entre os vadios alguns de "seus" feridos, os quais, apesar dos ferimentos nós braços e nas pernas, não se haviam sentido menos valentes para participar da galante expedição.
- Isso é demais! - exclamou, ultrajada. - Merecem todos ser enforcados. Não passam de ralé. Já estou farta! Farta! Se continuarem com isso, eu os deixarei com os olhos vazados, as tripas expostas, seu pus e sua sífilis. Deixá-los-ei apodrecer no lugar, prometo... Morrer .de sede-sob meus olhos, sem lhes dar uma gota de água! Como ousam conduzir-se desse modo em nosso feudo? Não têm honra. Nada! Não passam de carniça, boa como pasto para os cormorões... Lamentd~não-tê-lo feito, quando a ocasião se apresentou.
Subjugados pela cólera de Angélica e pela violência de suas imagens, intimidados por seu ar de rainha enraivecida, sua altivez imperiosa, acentuada nesse dia pela severidade suntuosa do penteado, pelo vestido defaille violeta - quase uma roupa de corte -, pelo brilho de seu colar e o modo que tinhia de se retesar e de se envolver no manto dejobo-marinho, medindo-os como os miseráveis que eram; trazidos de volta a sua condição de indivíduos lastimáveis, os homens do Sans-Peur perdiam toda a loquacidade, e Jacinto Boulanger, bem como seu "amigo Aristides, começavam a esquivar-se lentamente.
- Sr. Vanneau, teve razão em intervir - reconheceu Angélica. - Far-me-ia o obséquio de procurar o Padre Baure e o Abade Lochmer, que vejo lá longe, indo sem dúvida para sua primeira missa?
Quando os religiosos se apresentaram, ela os inteirou do procedimento dos marujos:
- Confio-os a vocês, padres - concluiu. - Tentem fazê-los compreender que se conduziram como maus cristãos, e que merecem séria penitência. Quanto a mim, devo informar o Sr. de Peyrac sobre o caso.
O confessor bretão explodiu em imprecações, prometendo a seus administrados todos os suplícios do inferno, e o recoleto decidiu levar as duas tripulações à missa, com prévia confissão.
Baixando a cabeça, os marujos devolveram a faca ao estojo e, arrastando a perna, o coração dolente e arrependido, seguiram os religiosos colina acima.
CAPÍTULO XXXIX
Conselhos de um flibusteiro amigo
Na cabina da Gouldsboro, Joffrey de Peyrac acabava de tratar de questões comerciaiírcoin Jojín Knox Mather, seus auxiliares e o almirante inglês. Colin Paturel assistia-o, bemcomo D'Urville, Berne e Manigault.-Velas derretidas provavam que eles haviam trabalhado desde a aurora, pois o navio de Boston partiria com a maré.
Angélica se fez introduzir por Enrico. Ela tivera certa dificuldade em descobrir onde o marido passava as noites. No Gould-boro, em seu antro do Pescalot.
No fundo estava contente em ser impelida pelos acontecimentos a agir, a se reintroduzir em sua vida de homens. Já que ele não a expulsara, ela retomaria seu lugar, e ele se veria forçado a dirigir-lhe a palavra. Introdução para explicações que dissipariam os mal-entendidos. Nas primeiras hora do dia, Angélica sentia-se com plenas forças, pronta a retomar seu destino nas mãos.
Ao vê-la, todos aqueles senhores se ergueram, num silêncio dubitativo, pois o fato era que, para cada um, com matizes diversos, aquela mulher fora do comum ocupava seus mais recônditos pensamentos. Suas aparições davam a cada vez um sabor novo à sua existência.
Com voz homogénea e nítida, após tê-los saudado, ela os inteirou do incidente que acabava de fazer com que as tripulações se erguessem entre si, uns decidindo que as mulheres eram seu butim de piratas, ou outros, que o Senhor as enviava justamente para o casamento.
- Mas eis aí uma excelente ideia - exclamou Peyrac, voltando-se para Colin. - Reconheço que a miraculosa presença dessas mulheres pode ser uma solução para a má disposição de seus homens, que se sentiam frustrados a esse respeito. Senhor governador, aí está uma decisão que cabe a você tomar. Não se pode de fato pensar em conduzir esse grupo de moças a Quebec, se deviam mesmo ir para lá. Não dispomos atualmente nem de tempo nem de meios para isso. Pensava em enviá-las a Port-Royal, mas a solução em que seus homens pensaram não seria a mais sábia, a mais vantajosa para todos? Eram escoltadas por uma companhia privada, e pode ser que ninguém as queira tomar a seu encargo nas colónias francesas da Acádia, já bem pobres. Se desejarem permanecer, está bem, nós as acolheremos como esposas de nossos colonos franceses. Deixo-lhe a elaboração desse contrato.
Colin Paturel ergueu-se, enrolando mapas e pergaminhos, que enfiou nos vastos bolsos do gibão. Estava agora vestido com uma sobriedade e uma correção que não excluía algumas concessões de riqueza inerentes às exigências de seu novo papel. O peitilho e os punhos estavam bem-cuidados, e bordados sublinhavam as mangas, o colarinho e os bolsos da roupa roxo-escura, aberta sobre uma veste longa de linho cinza-pérola bordado. Com a barba cortada e sua expressão grave e concentrada, Angélica tinha dificuldade em reconhecê-lo. Era já um outro homem, cujos largos ombros pareciam estar à vontade sob a responsabilidade que lhe fora outorgada.
Tomou sob o braço o chapéu redondo de castor ornado com uma pluma negra.
— De minha parte, também sou partidário de manter essas moças aqui - declarou -, mas Quebec pode aborrecer-se por não receber o que desejava. E seus governantes verão nisso um ato de captura de nossa parte. Isso não pode envenenar suas relações, com a Nova França, Sr. de Peyrac?
— Tomo o caso a meu encargo. Se se lamentarem, fá-los-ei notar que deveriam confiar suas cargas a pilotos que não as perdessem em todos os pontos da Terra. De qualquer modo, nossas relações com a Nova França já estão tão difíceis, que um incidente a mais ou a menos não pode mudar em grande coisa a situação. Tudo, e a todo instante, pode ser pretexto para a guerra, como para a paz. Mas resta um fato. É que hoje não os temo mais, e é a mim que cabe decidir sobre os acordos entre nós, e estimo que se os ventos impeliram esse encantador carregamento para nós, no momento em que o desejávamos, devemos aceitar esse sinal do céu. Partilharei de bom grado neste caso a opinião de seus homens.
— A propósito - retomou Angélica -, eu gostaria que esse Gilles Vanereick, sua Inês e sua equipagem fossem para o diabo. Eles nos atrapalham e complicam a vida, e se nada têm a fazer a não ser divertir-se a nossas custas... "Consegui pô-los nas mãos de confessores. Ficarão talvez tranquilos durante o tempo de uma missa, mas e depois?... Estou desolada, capitão - disse, notando a presença do homem de Dunquerque -, odeio-me por ter falado sem restrições, mas sabe tão bem como eu que seus homens das Caraíbas não são meninos de coro e só podem ser suportados em pequenas doses, nos países escolhidos...
— Está bem! Está bem! - gemeu o. flibusteiro. - Eu parto, estou ferido até a-alma - acrescentou, a mão dolorosamente aplicada no peito.
— Voltemos a terra - concluiu Peyrac.
Subindo a praia ao lado de Vanereick, Angélica tentava atenuar o efeito de suas palavras pouco suaves...
- Em outro tempos, creia-me, Senhor, estaria encantada com sua companhia, pois é muito amável. E não ignoro que meu marido o tem em grande amizade. Você o ajudou outrora em muitos combates, e ainda há pouco...
- Nas Caraíbas éramos Irmãos da Costa. Isso une para sempre...
Mirando minuciosamente a silhueta um pouco cheia, embora bastante ágil, do aventureiro francêsf Angélica pensou que também ele fora envolvido com a vida desconhecida de Joffrey. Tinham toda espécie de recordações-comuns. Ela, não. Ele também conhecia Cantor e falava dele amiúde com afeição, chamando-o "o pequeno" ou "o garoto"..
Decerto, em outros tempos, conforme sinceramente o afirmara, ela teria gostado de falar com ele do passado do marido e de seu filho mais jovem, mas agora já não aguentava mais. E confessou-o espontaneamente.
- Estou cansada de tratar de toda essa gente. Seu destino me atormenta e temo sem cessar que novos desentendimentos façam novos feridos.
Ele dirigiu-lhe uma olhada cúmplice.
— E além disso, diga se seu coraçãozinho não está ferido e se não é isso o que a atormenta, hein? Sim! Como se isso não saltasse aos olhos..'. Conheço as mulheres. Diga-me, bela criança, ainda não acabou o mal-entendido com o senhor seu marido? Vamos! Vamos! Que há de tão grave por trás dessas travessuras? O suíço falou demais, concordo! Se não tivesse estado ali no momento errado, disso tudo não restaria mais nada. Nada de importante, pensando bem. Foi infiel a ele?... Que seja! Grande coisa!... Você é muito sedutora, linda dama, para que isso não aconteça de tempos em tempos, aqui e ali. Devia encontrar-se com ele e explicar-lhe o caso.
— Pobre de mim! - disse Angélica com amargura -, gostaria que meu marido partilhasse sua serenidade no campo dos sentimentos. Pois é verdade que ele me é mais caro que tudo no mundo. Mas é um ser misterioso, e a mim mesma... por vezes dá medo.
— É verdade que, no que lhe diz respeito, ele é coriáceo como um inglês e ciumento como um sarraceno. Embora suspeite de mim, saiba que sou bastante seu amigo para tentar convencer o Sr. de Peyrac do pouco fundamento de seu rancor, ou, antes, do que ele tem de pouco razoável, em se tratando de você. Tento fazê-lo entender que há uma certa categoria de mulheres, às quais um homem, mesmo honrado, deve saber perdoar. "Veja", disse-lhe eu, "eu com minha Inês..."
— Ah!, por favor - protestou Angélica, de mau humor -, não me misture com sua Inês.
— E por que não? Sei o que digo: por mais nobre dama que seja, e ela uma pequena peste, saída de uma concha dos mares quentes, pertencem uma e outra a essa raça delicada de mulheres que por sua beleza, ciência no amor e um não sei quê de misterioso a que chamam encanto, fazem que se perdoe ao Criador a aberração de que se foi vítima no dia em que Ele decidiu tirar Eva da costela de Adão. - Olhando-a, ele continuou: - "Ora", disse-lhe eu, "considere que há mulheres às quais é preciso saber perdoar certos desvios, sob pena de se ser mais cruelmente punido que a própria culpada. Partindo-se do principio de que, tendo-se sido favorecido no jogo do Amor a ponto de se tirar o curinga, não se devem neglicenciar tais vantagens, e deve-se ser grato aos deuses. Tantos outros passam pela .existência sem jamais ter tido nas mãos senão um jogo medíocre..."
- Imagino muito bem comorneu irascíveí marido deve acolher seus raciocínios casuísticos.e imorais - disse Angélica, com um sorriso melancólico. '
Pouco antes, na cabina do Gouldsboro, ele ainda fingira ignorá-la. Com essa atitude, cada vez ele a golpeava mais duramente. Bastaria essa entrevista para que seus acessos de coragem se enfraquecessem. E ela já se sentia como que esgotada; que aconteceria ao anoitecer, já que o dia não lhe trouxera nenhum socorro, e o medo a assaltaria?
Era bem mais grave do que imaginava o bravo Vanereick.
O que ele não sabia eque_ela jamais suportaria ser repelida por Peyrac. Ela morreria. Ó temor desse fisco continha seus impulsos.
— Mas que lhe fez-você para que ele a deseje tanto? - exclamou Vanereick,-cobrindo-a^ com seu olhar escuro, desconfiado, cheio de faíscas. - É inimaginável!... Jamais acreditaria ser tão vulnerável essegrancle pirata, no entanto cheio de experiência, de ciência, de filosofia e de sorte! Ele se impunha a todos nós nas Caraíbas, na ilha de Tojtue, no mar do México, e assim como as mulheres não lhe eram crúéis, ele não lhes dava importância. No entanto, ao vê-la eu compreendo... ele sucumbiu. Com você o amor deve ser algo... inesquecível, prodigioso...
— Acalme sua imaginação, capitão - disse Angélica, rindo.- Sou apenas uma simples mortal, infelizmente!
— Em demasia! Em demasia uma simples mortal. Justo o que nós, homens, precisamos. Bom! Consegui fazê-la rir. Nada está perdido. Ouça pois meus conselhos. Não fale mais nessa história, não pense mais nela! Vá confessasse: é bom começar pelo perdão de Deus. E para o do esposo, introduza-se em sua cama uma noite, sem preveni-lo, no momento adequado. Garanto sua absolvição.
— Decididamente, creio que você é um verdadeiro amigo - conveio Angélica, alegre. - Depois do que me disse, caro Vanereick, e se nada mais tem a fazer aqui'além de consertar corações partidos, reitero-lhe minha proposta de içar vela. A brisa está boa, a neblina se dissipou, e quanto a mim estou cansada de tratar, da manhã à noite, de pessoas que se degolam. Ora, se você não partir rapidamente, com a próxima maré, o sangue correrá ainda, junto com todos os diabos de cabeça quente de sua ilha de Tortue. Os feridos de sua tripulação estão a caminho da cura e eu os entrego de coração à você em bom estado para as próximas expedições.
A Sra. Petronilha Damourt vinha até eles, rolando, mais do que correndo, sempre descabelada e lacrimosa.
- Ah! Senhora, socorro! As moças estão loucas! Não consigo controlá-las. Falam de fugir daqui, de partir pela floresta, a pé, não sei para onde!
CAPÍTULO XL
A insurreição dá moças
-Então, moças, estão se preparando para uma festa?
A voz tonitruante "de Colin e sua aparição gigante na soleira da porta sustaram o choro e o ranger de dentes que enchiam o celeiro. Sem á presença de Angélica a seu lado, as mais emotivas teriam acabado-de morrer de medo. Precipitaram-se para ela e agruparam-se em torno de sua presença feminina tranquilizadora.
— Pois bem, caras crianças, caras meninas, que está acontecendo? Por que esse tumulto? - perguntou Angélica com seu sorriso mais tranquilizador..
— Contem-me tudo - disse Colin, batendo no vasto peito. - Sou o governador do lugar. Prometo-lhes que aqueles que as assustaram serão punidos, gentis senhoritas.
Imediatamente elas se precipitaram, falando todas ao mesmo tempo, cada qual descrevendo suas impressões, que iam do "Eu não ouvi nada, estava dormindo" até "Aquele homem horrível agarrou-me pelo punho e puxou-me para fora... Não sei o que ele queria..."
- Ele fedia a rum - completou com uma careta de repugnância Delfina Barbier du Rosoy, que por falta de sorte fora a mais maltratada na escaramuça; Engolia, por dignidade, lágrimas de humilhação.
Angélica tirou um pente do cinto e começou a pôr em ordem a cabeleira da pobre jovem. Depois enxugou narizes e pálpebras inchadas, retificou as dobras dos xales, dos corpetes, e decidiu trazer uma grande panela de cozido e um bom vinho, sempre a última panaceia para franceses e francesas.
Enquanto isso, Colin Paturel continuava a interrogar, a escutar as queixas, inclinando o alto talhe para as jovens interlocutoras. Sua fisionomia rústica e boa e a atenção que lhes prestava acabaram por reconfortá-las, e até Delfina, melindrada pela algazarra das meninas interrompendo sua fala, ergueu para ele olhos confiantes.
— Oh, senhor governador!, faça que nos conduzam a Quebec, por favor!
— Por terra, principalmente! Nunca mais na vida queremos subir num navio...
Pobres donzelas! Bem se via que não tinham ideia do Canadá, nem haviam ouvido falar da Acádia e da Nova Escócia, ou sequer sabiam que a Terra é redonda ou tinham posto os olhos num mapa.
Aproveitando o assunto, após prometer-lhes que os perigosos indivíduos que se haviam permitido importuná-las ao alvorecer teriam deixado aquelas paragens com o crepúsculo, falou-lhes da colónia de Gouldsboro, aonde o Senhor parecia ter desejado fazê-las vir por um milagre bastante inexplicável - mas todo mundo sabe que os milagres não se explicam - justo no instante em que bravos marinheiros franceses, decididos a abraçar a vida sã e corajosa de colonos, estavam desolados por não terem ao lado mulheres valentes para ajudá-los a tornar-lhes a vida mais suave.
A região era bela, sem nunca ter gelo no inverno, e menos selvagem que o Canadá.
E quando souberam que o presente do rei, que todas tanto lamentavam ter perdido, não era nada comparado àquele que o amável governador, de tão bela figura, ofereceria aos recém-casados da colónia de Gouldsboro, sem mais viagens pelo oceano encapelado, nem por florestas infestadas de índios e de feras, voltaram os sorrisos e trocaram-se piscadelas de tentação. Houve alguns protestos formais.
- Haviam-nos prometido oficiais, para minhas três companheiras e para mim - observou Delfina com séria modéstia. - Aprendemos no convento como cuidar de uma casa, receber pessoas importantes, conversar e fazer a reverência aos príncipes. E estou certa que os esposos que nos reservavam em Quebec não fediam a rum.
— De fato, têm razão - conveio Angélica. - Eles federiam a aguardente de centeio ou de milho. Excelente bebida, diga-se de passagem, e com a qual facilmente "nos habituamos nos rigores do inverno. Vamos, senhoras - acrescentou, rindo -, se se assustam com tudo, agora quê estão nas Américas, como enfrentarão os iroqueses, tempestades, á fome e tudo o que as espera no Novo Mundo, de que o Canadá' não está mais isento que nós? Talvez esteja mais sujeito a ele, por ser mais afastado e mais selvagem.
— E eu - perguntou a moura -, não seria tratada como escrava, assim como nas ilhas, conforme me disseram que ali se tratavam as pessoas depele escura? Fui educada no convento de Neuilly. Uma grande dama pagava .regularmente minha pensão. Sei ler e escrever e bordar na seda.
Colin pegóú-lhe ríó queixo com bondade.
- Encontrará quem a queira, minha bela, se é tão doce e razoável como aparenta - afirmou éle -, e eu próprio cuidarei para que faça um bom casamento. De qualquer modo, deixamo-lhes tempo para refletir sobre esses projetos, e discuti-los com sua dama de companhia. E se não lhes convierem, saibam que o Sr. de Peyrac fará que as conduzam sem delongas a uma colónia acadiana do outro lado da baía Francesa, onde certamente encontrarão boa acolhida.
A Sra. Petronilha estava bastante atormentada. Mais bem informada que as companheiras, e menos aturdida do que parecia, compreendera muito bem que aqueles franceses, misturados a muitos ingleses, sem serem náufragos, conforme os acusava Job Simon, não eram sem dúvida súditos muito fervorosos do rei da França. E por fim elà própria não conseguia situar-se muito bem no espaço, e os mapas que lhe haviam apresentado Colin e o Conde de Peyrac para convencê-la de-que Quebec não ficava ao lado haviam-na confundido.
— Ah! Se ao menos nossa benfeitora estivesse aqui! - suspirou.
— Isso só faria aumentar a confusão - rangeu a voz com acento suburbano de Juliana. - Pois ela. entendia de confusão quase tanto quanto de orações...
Antonieta, sua inimiga pessoal, novamente agarrou-lhe os cabelos. Quando as separaram:
- Você, venha por aqui! - ordenou Colin a Juliana.
Era a única que ele destacava, marcando assim que não estava cego quanto à espécie de mulheres a que ela pertencia.
- Não posso ficar com você - disse ao arrastá-la a um canto.
- Não porque pertença aos arrabaldes, mas porque está doente e não quero isso para meus homens.
Imediatamente Juliana pôs-se a gritar, sem se preocupar em fazer escândalo.
— Eu, doente? Não é verdade! Não faz muito tempo um cirurgião do Châtelet examinou-me e disse-me que eu estava fresca como uma rosa. E como estive depois o tempo todo encerrada no Hospital Geral, com que homens queria que eu tenha apanhado suas doenças? Sra. Angélica, socorro! Ouça o que ele diz! Diz que estou contaminada!
— Essa mulher está doente - reiterou Colin, tomando Angélica como testemunha -, veja sua cabeça.
De fato, o rosto redondo da moça tinha uma estranha cor cerosa, e olheiras escuras marcavam-lhe os olhos, como se ela lhe tivesse posto khôl. Seu olhar brilhante denunciava intensa febre.
- Não creio que esteja doente, mas estou certa de que foi ferida no naufrágio. Recusou o tempo todo ser tratada. Seu ferimento se agrava. Vamos, Juliana, permita que a tratem, está arriscando sua vida...
- Vá para o inferno... - replicou a jovem grosseiramente.
Angélica deu-lhe um par de bofetadas que a derrubou no chão de imediato. De fato, a pobre infeliz não mais se aguentava nas pernas.
- Deixe-se tratar - concluiu Colin -, senão, não terá quartel. Embarco-a esta noite mesmo com os rapazes do Sans-Peur.
Por terra, Juliana parecia vencida e inspirava pena. Seus olhos assustados buscavam desesperadamente uma saída.
- E que tenho medo - lameritou-se, sem argumentos. - Vão cortar-me e machucar-me.
A voz de matraca de Aristides Beaumarchand, o qual se introduzira não se sabia como no celeiro, elevou-se por trás do grupo.
- Não com ela, minha bela! Você não sofrerá com ela, garanto-lhe. Não há quem tenha a mão mais leve. Dê uma espiada nesta pança. Foi costurada à mão, palavra.
Com dedo ágil desamarrou os prendedores das calças e exibiu aos olhos de Juliana, fascinada com sua autoridade, o triste ventre pálido, atravessado de um lado a outro por um longo corte violeta.
— Admire isto! Pois bem, foi ela; Dame Angélica, que me costurou com fio e agulha, de modo perfeito, minha bela. Todas as minhas tripas estavam no chão. Eu estava, perdido!
— Não é possível! - exclamou Juliana, acompanhando a exclamação de sentidas imprecações.
— É como lhe digo. Pois bem, esta vendo isso hoje. E o que está embaixo-continua bem-disposto e a seu serviço minha bela!
— Basta dé atrevimentos - interrompeu Angélica ao ver o rumo que tomava a demonstração. - Aristides, você é um vadio, e a filha do-Diabo ou a pior das prostitutas eu não encorajaria a estar com você. Seria muito borrrpara você e muito ruim para ela.
— Está meofendendõTtenho minha dignidade - disse Aristides, amarrando as calças lentamente... -, e até penso que me insulta.
— Já chega - interveio Colin, afastando-o. - Você nada mais tem a fazer aqui.
Pegou-o pelo colarinho e le-vou-o até a porta.
- Palavra, você é mais persistente e intrometido que um verme. Acabarei por afogá-lo com minhas próprias mãos.
Juliana dava grandes gargalhadas, reconfortada.
— Esse aí me agrada! E um orgulhoso, um homem de verdade, ora!
— Se é o que você pensa... Digo-lhe que é o mais vil crápula dos dois hemisférios.
Ela ajoelhou-se junto à miserável criatura abatida, mas que ainda encontrava os gracejos necessários para insultar e troçar. Um verdadeiro fruto do Pátio dos Milagres de Paris.
— Sei por que não quer se deixar tratar-- sussurrou-lhe a meia voz.
— Não, não pode saber - protestou a outra, com um olhar acuado.
— Sim, posso adivinhar... É porque está marcada com a flor-de-lis!... Escute, prometo-lhe que nada direi ao governador, mas com a condição de que seja dócil e me obedeça em tudo. A expressão aterrada da pobre Juliana era uma confissão.
— É verdade que não dirá nada? - cochichou.
— Palavra de marquesa, juro.
Cruzando dois dedos e cuspindo no chão, Angélica renovou o sinal usado na matterie.
Completamente petrificada, Juliana não disse palavra, deixou Angélica descobrir-lhe as costelas inchadas, aplicar-lhes emplastros, engoliu docilmente poções e tisanas, tão preocupada com os mistérios profundos que a esperavam nas Américas, que até esqueceu de gemer. Tranquilizada quanto a ela, Angélica introduziu-lhe um apoio por baixo da nuca, prendeu-lhe as cobertas e deu-lhe uma palmadinha no rosto antes de deixá-la.
- Aquele que lhe agrada, Aristides, aposto que tem a flor-de-lis na espinha, como você. Cure-se logo, menina. Você também se casará, e farão um belo casal!... Palavra de marquesa...
As pálpebras de Juliana batiam sobre seus olhos de fogo, que o cansaço por fim suavizava.
- Encontra-se gente estranha junto a vocês - cochichou -, quem é você, senhora? A senhora das Américas... E sabe ver o que para outros permance oculto. Essa trança lhe cai bem... Parece aquelas santas rainhas que se vêem... nos missais. Não é possível que eu, uma mendiga, tenha essa sorte...
CAPÍTULO XLI
Apenas dois navios na baía
As bandeiras drapejavarn ao vento. As velas estavam para inflar-se. E mais uma vez todo mundo estava no porto.
- Então, nem ao menos me abraçará? - gritou Vanereick, estendendo os braços a Angélka. - Nem mesmo na hora do adeus?
Ela lançou-se sobre ele e beijou-o nas duas faces, sentindo reconforto em seu bom abraço masculino, sem se preocupar com a população reunida na margem a acompanhar suas demonstrações.
Que pensassem o que quisessem, os ciumentos! Ela possuía o direito de beijar a quem lhe aprouvesse.
- Coragem! - sussurrou-lhe o flibusteiro no ouvido -, você vencerá. Mas lembre-se de meu conselho. Na confissão e na cama...
Ele agitou à volta o grande chapéu emplumado e saltou na barca que devia conduzi-lo a bordo.
O Sans-Peur, fremente sob o impulso irresistível da maré, as vergas cheias de marujos prestes a içar velas, empinava-se como um puro-sangue sobre a âncora.
Vivas, hurras misturaram-se às ordens breves lançadas do tombadilho pela voz de Gilles Vanereick.
— Sr. Prosper Jardin, está pronto?
— Sim, senhor - respondeu o quartel-mestre.
— Sr. Miguel Martínez, está pronto?
- Sim, senhor - respondeu o chefe dos gajeiros.
E quando a enumeração terminou:
- Pronto. Que Deus nos ajude! - gritou o capitão, com um largo gesto.
Soltas as amarras, as velas se estenderam, inflaram-se, ofuscantes de alvura contra o céu azul, e suavemente o Sans-Peur pôs-se em movimento, ziguezagueando por entre as ilhas, acompanhado dos navios do Conde de Peyrac e de Colin Paturel, que escoltavam seus hóspedes até a saída da difícil passagem.
Do alto do tombadilho, a bela Inês agitou o leque e o lenço de cetim amarelo para Angélica. Tranquila com relação aos sentimentos de seu Vanereick, com o qual retomava o mar, a pequena mestiça aventureira consentia em testemunhar a amizade àquela que considerava sua principal rival.
Quando o barco não era mais que um distante conjunto de quadrados brancos, como uma pirâmide contra o horizonte, Angélica voltou para o forte. No caminho encontrou o homem das especiarias e seu caraíba, sentados lado a lado, mastigando cravos-da-índia. Por razões inexplicáveis, haviam pedido para permanecer ali por algum tempo. Tinha havido trocas após a partilha do butim, pedrarias, tecidos, mercadorias, da qual - caso único nos anais da pirataria - o próprio capitão do navio capturado, Paturel, ex-Barba de Ouro, havia participado. Por duas esmeraldas sem preço, Vanereick consentira em levar a bordo os bucaneiros indesejáveis, que apesar da preguiça e das más intenções, conduzidos a chicote, substituiriam os que haviam morrido em combate.
Jacinto Boulanger separara-se pois de seu Irmão da Costa, Aristides, o qual, sob pretexto de sua fraqueza abdominal e multiplicando os juramentos de boa conduta, suplicara que o mantivessem em Gouldsboro. "E depois, fiz uma conquista, compreende?", confessou ao ouvido veloso de Jacinto. "Uma bela moça chamada Juliana. Quando tiver acertado com ela, mandarei avisá-lo e você virá procurar-me..."
Portanto, nenhuma ilusão! Rever-se-ia o Sans-Peur e sua carga de vendas negras, de pernas de madeira, de bocas desdentadas com poderoso hálito de rum da-Jamaica, rever-se-iam os alegres bandidos da ilha de Tortue, emplumados, enfitados, com turbantes de tecidos de chita floridos, carregados de facões, de punhais, de sabres e de pistolas, e de machados assustadores.
O verão mal começava.
E também se reveriam os navios ingleses e bostonianos que haviam partido com a aurora, as chalupas acadianas que se haviam afastado com seus mic-macs, e em troca do gado trazido, um lote escolhido de preciosas mercadorias'de luxo que encantariam as damas de Port-Royal, do outro lado da -baía Francesa: rendas, veludos, passamanarias, sabonetes e perfumes, armas e munição para a defesa do forte, bandeiras bordadas, e um ganho vantajoso, um cibório e um ostensório de prata dourada, tirados do butim espanhol de um pirata convertido. 'Deus não se sentiria com isso duplamente honrado na pobre igreja da mais antiga colónia francesa fundada por Champlain?
Estranha calma parecia_cair sobre a aldeia. Em silêncio, os habitantes se dispersavam e voltavam para suas casas de madeira.
- Oh! vejam, - exclamou de repente a jovem Severina -, não há mais que dois navios ancóTados na baía, o Gouldsboro e o Coeur-de-Marie. Depois de toda aquela floresta de mastros que naqueles dias ali se agitavam, como parece vazia!
"Dois navios ancorados na baía", sussurrou ao ouvido de Angélica a voz de uma freira visionária.
CAPÍTULO XLII
A difícil reconciliação de Angélica com o marido
"Irei a você, meu amor. É preciso que vá a você... Tenho medo. Você é um homem. Tem os pés na terra. Seu sono é profundo e nada pode atingir sua escuridão. Ao passo que eu sou uma mulher... e porque sou mulher, leio através da transparência dos signos... E o que entrevejo é horrível! Não posso mais dormir."
Apesar da volta da paz, apesar das canções dos marujos, que para dívertir-se cantarolavam em torno de suas prometidas:
"Havia dez moças num prado
As dez para casar.
Havia Dina, havia China,
Havia Claudina e Martina".
Apesar da calma que se seguia aos dias de angústia, e da qual participavam todos os colonos de Gouldsboro, Angélica não podia desfrutá-la.
Julho crepitava, subia à superfície do mundo numa lufada de ar quente. Elevava-se o estridular ensurdecedor do canto dos grilos, e do zumbido das abelhas, carregando o odor das flores, das resinas e das seivas superaquecidas. Os altos candelabros dos tre-moços azuis, rosa e brancos, em alas vastas e feéricas, lutavam com o esplendor das ramagens douradas, monumentos de puro metal trabalhado com mil arabescos, guardando a orla dos bosques. A roseira-brava acompanhava as rosas junto às casas. Nuvens de papoulas delicadas acompanhavam a margem até o oceano.
Os pássaros marinhos, em seu longo vôo branco, deslizavam no ar azul, tingido de rosa.
A baía estavarosa. Como uma flor aberta. Como uma carne que se oferecia...
"Ah! Catherinette e Catherina
Havia a bela Suzon
A Duquesa de Montbazon
E havia a do Mai-ai-ne..."
Somente para Angélica, o fabuloso langor do dia, mesclado de cintilações, trazidas ao anoitecer pelas nuvens malva franjadas de fogo, se revelava venenosor
No dia seguinte ao.lda partida dos navios, após nova noite de insónia, ela decidiu procurar armas. Perdera suas pistolas, no ataque à aldeia inglesar
Yann le Couêhnec abri«»lhe o gabinete de trabalho do Conde de Peyrac no forte, do qual o jovem bretão tinha a chave. Ela o encontrara "perto da loja de armas, e ele a prevenira de que um grande lote de pistolas, arcabuzes e mosquetes fora trazido pelo Gouldsboro. O conde ficara-com as peças mais belas dentre os modelos mais recentes, a fim de poder examiná-las à vontade.
Yann tirou de um baú as armas em questão, das quais ele próprio se ocupara, e expô-las na grande mesa, onde havia plumas de ganso e tinteiros; abriu a janela estreita a fim de que a luz entrasse. Nessa pequena peça estreita flutuava o perfume familiar de Joffrey, o tabaco, e ela não sabia com que odor de madeira de sândalo, oriental, ele impregnava suas roupas. Um perfume nítido mas sutilj que enganava quanto à origem e não tentava agradar, mas convinha perfeitamente à personalidade a um tempo distante e sedutora daquele que a usava.
- Quando vir o conde, avise-o de minhaTequisição, por favor - disse Angélica ao escudeiro -, não consegui) encontrá-lo esta manhã.
Responderia a esse chamado que ela lhe lançava sob palavras do cotidiano, mas com o coração tremendo? Será que ele viria?
Debruçou-se sobre as belas armas novas. O exame arrancou-a às preocupações. Algumas platines de espingardas inglesas apresentavam interessantes aperfeiçoamentos. Chamava-se platine ao conjunto de peças que compunham a descarga e que variavam nos detalhes conforme o país. Nas pistolas inglesas a carga e a caçoleta eram acopladas, o que decerto aumentava os riscos de descarga acidental, mas era compensado por uma pequena garra presa ao cão e que os iniciados chamavam dog-lock.
Apesar desse claro aperfeiçoamento, as preferências de Angélica iam para a platine francesa, por hábito, sem dúvida. Demorou-se também junto a um "longo cano" nórdico em marfim realçado por âmbar, cuja aparência elegante mexeu com sua vaidade. O sistema de descarga era bastante grosseiro, mas possuía a vantagem de que se podia usar qualquer sílex pego ao acaso, ao passo que as outras platines exigiam pedras talhadas finamente e calibradas, o que era bastante complicado para uma terra quase selvagem como aquela.
Ela o virava, estudando o cão, o tambor, quando adivinhou a entrada de Joffrey atrás de si.
- Vim procurar armas - disse, voltando um pouco a cabeça.. - Perdi minhas pistolas em Newehevanik.
Era-lhe sensível o peso de seu olhar em sua nuca, e mais uma vez ela avaliava a fraqueza e a perturbação de surda alegria, apesar de tudo o que lhe despertava sua simples presença.
Ele quase não a reconhecera de costas, embora Yann o houvesse prevenido de que a Sra. de Peyrac se encontrava em seu gabinete de trabalho.
O vestido de tafetá violeta, de pregas nobres, e o pesado coque trançado com ouro pálido que ela trazia na nuca tornavam-na diferente. Ele acreditara na aparição de uma nobre estrangeira, de uma grande dama... desembarcada de onde?... Mas tanta gente desembarcava em Gouldsboro naqueles tempos! Podia-se esperar tudo!...
Impressão furtiva mas intensa! Fora pela destreza com que a estrangeira manejava as armas que ele soubera que era ela. E só havia uma mulher no mundo para empunhar uma pistola com tão franca familiaridade: Angélica.
Do mesmo modo que não havia mulher no mundo com tão belos ombros. Ele se aproximou.
— Achou algum óbjeto que lhe seja conveniente? - perguntou com uma võz que desejava neutra, mas que a ela pareceu glacial.
— Na verdade - respondeu, ela, obrigafido-se a ficar calma -, estou hesitando. Alguns me parecem bastante bem concebidos para o tiro, porém muito incómodos. Os outros são elegantes, mas têm defeitos que oferecem perigo.
— Você é exigente. Há nestas armas a marca dos melhores artesãos da Europa. Thuraine, de Paris, Abraham Hill, da Inglaterra. E essa pistola de marfim vem de Maestricht, na Holanda. Reconhece esta cabeça de guerreiro esculpida na extremidade da coronha...
— Decerto-é bastante belo.
— Mas não lhe agrada...
— Estava habituada a minhas velhas pistolas francesas, com todas as peças, roscas, chaves, sílex, que era preciso colocar nos bolsos e que se arriscava a perder, mas que permitiam toda espécie de sutilezas.
Ela estava cóm a impressão de dar a réplica numa peça de teatro. Ambos não estavam inteiramente certos de seus propósitos, mas continuavam aplieaodo-se.
O Conde de Peyrac pareceu hesitar, depois, voltando-se, foi até o baú entreaberto e voltou, depondo diante dela uma longa caixa de acaju marchetado.
- Eis o que havia encarregado Erikson de trazer da Europa para você - disse ele brevemente.
No centro da tampa da caixa, um A de ouro incrustado desenrolava suas espirais num medalhão de flores trançadas de esmalte e nácar. As mesmasflores em buque se desdobravam dos dois lados da insígnia, num trabalho de uma finura aracnídea, onde se podia distinguir o menor detajhe de cada flor, a delicadeza dos pistilos de prata ou de Ouro filigranado, as nervuras das folhas de esmalte verde.
Angélica pousou os dedos na ferragem do fecho. A caixa revelou em seu escrínio de veludo verde duas pistolas e.seus acessórios: polvorinho, pinças, caixa de cápsula, encaixe para balas.
Tudo no material mais escolhido e com a mesma marca de elegância, fineza e beleza.
Ao primeiro olhar, Angélica viu que as armas haviam sido concebidas, desenhadas, confeccionadas para ela.
Executado com extremo cuidado, cada detalhe revelava que o armeiro, o ferreiro, o cinzelador, que se haviam debruçado sobre a confecção desses belos objetos de guerra, haviam-no feito com a preocupação de satisfazer e de encantar aquela que se armaria com eles. Ela, Angélica, uma mulher no outro lado do mundo.
Haviam sem dúvida recebido ordens especiais e adequadas, tinham à disposição épuras, planos bastante precisos, executados pelo Conde de Peyrac, planos que haviam atravessado o oceano para chegar a suas lojas de Sevilha ou de Salamanca, de Rivoli ou de Madri. E como as orientações eram acompanhadas de redondas bolsas de couro, inchadas de dobrões de ouro, eles não poupariam todos os cuidados na execução de um pedido insólito como esse: duas pistolas para a mão de uma mulher.
"Um presente tão belo", pensou Angélica, "que ele quis, que concebeu para mim com amor... com o amor!, e que queria oferecer-me nesta primavera em Gouldsboro!..."
Suas mãos tremiam enquanto ela erguia, uma após a outra, as-armas magníficas. Seriam necessários dias para observar todas as suas perfeições.
Aquelas pistolas não haviam sido executadas apenas para que ela pudesse atirar e se defender com o máximo de rapidez e o mínimo de desconforto - o carregamento das armas de fogo nem sempre era uma sinecura para os dedos delicados -, mas também para satisfazê-la em seus gostos mais pessoais.
Como enfim não se sentir encantada com os buques de flores incrustadas que ornavam igualmente as coronhas brilhantes, entalhadas numa madeira de tonalidade de âmbar vermelho?
Os canos eram longos, de aço espanhol, matéria raríssima, e azulados por óleos, a fim de evitar reflexos traiçoeiros, nas emboscadas. Com estrias no interior para retificar os tiros, porém lisos no bocal.
"Como ele sabe aquilo de que gosto, o que pode agradar-me!"
A platine era uma maravilha. A combinação da carga e da caçoleta numa única peça suprimia a um tempo quatro peças móveis, de onde uma simplificação do mecanismo e a certeza de que o fecho só se abriria no momento desejado, sob o impulso do sílex vindo golpear a carga. Escondida entre dois arabescos de prata, estendia-se a mola principal, e a fato de estar fixada no exterior e não mais no interior devia conferir-lhe uma potência excepcional. A dificuldade de armar era cpmperísada por um anel, que ornava o passo da rosca, a qual regulava o torno. Não somente esse anel, exatamente no talhe do indicador de Angélica, conforme ela logo verificou, permitia estender a grossa mola sem esforço, mas também regular o torno com a mão, o que suprimia o uso incómodo de uma chave de parafusos ou outro instrumento no género, indispensável, e que amiúde, como ela notara há pouco, se perdia.
Por fim, o "cão" possuía na base uma pequena saliência contra a qual agia diretamente a*mola, sem intermédio da "noz" - o que eliminava outra.peça-mais. E por trás desse conjunto de uma fineza e de uma precisão de relojoaria, descobria-se uma culatra móvel que bem poucos artesãos tinham a audácia e a habilidade de fabricar, e que permitia atirar várias vezes- sem perigo e sem ter que recarregar a arma.
Atrás da~qualidade de tão belo presente, Angélica acreditou ver o marido debruçado no último outono sobre planos, às escondidas dela, exatamente antes da partida do navio, rabiscando com sua pluma apressada e decidida, sempre inspirada, perfis anotados com mil números, e traçando com três traços de tinta os elementos daquela obra-prima.
Ele deveria ter-sé interrogado sobre o material a ser empregado: metal, cobre, prata, marfim ou osso?... Optara pela madeira, mais leve que o metal, menos físsil que o marfim, e devia ele próprio ter indicado o estilo encurvado da coronha, mais fina na curva a fim de que os dedos pudessem melhor apertá-la e segurá-la mais solidamente sem fadiga.
Ela reconhecia sua marca diante da dupla utilização do torno, o qual, livre do sílex e convenientemente apertado, podia tornar-se um instrumento de percussão ao bater dentro de uma cavidade arrumada com essa intenção, numa escorva de pólvora da qual o conde possuía o segredo de fabricação, o que constituía um sistema de acionamento absolutamente novo.
E quanto à ornamentação e à cinzeladura, ele quisera, para ela, flores.
Uma emoção pegava-a pela garganta. Ela se fazia uma pergunta. "Por que ele lhe oferecera o presente nessa manhã?" Seria um sinal de reconciliação? Queria fazê-la entender que o ostracismo no qual a mantinha começava a ceder?
Em pé diante da janela, Joffrey de Peyrac seguia com um olhar, que desejaria menos ávido, o curso dos pensamentos de Angélica em seu rosto sensível.:
Uma onda rosa invadira suas faces muito pálidas, quando ela erguera a tampa da caixa, seguida de uma expressão de maravi-lhamento enquanto descobria a beleza das armas. Ele não resistira em dar-lhe essa alegria. Vê-la feliz, nem que fosse por um breve instante!
Ela mordia o lábio inferior, e ele observava o movimento de seus longos cílios.
Por fim ela voltou para ele seus olhos admiráveis e murmurou:
- Como agradecer-lhe, senhor?
Ele estremeceu, pois a frase lembrou-lhe a ocasião do primeiro presente que ele lhe dera nos tempos distantes de Toulouse - um colar de esmeraldas -, e talvez ela também houvesse pensado nisso.
Respondeu secamente, quase em tom arrogante:
— Não sei se notou que se trata de uma platine a la miquelet. A mola exterior permite maior potência de tiro. Um anel especial protege a mão.
— Estou vendo.
Nesse anel figurava uma salamandra ou um lagarto de longa cauda, cuja língua de filigrana dourada estendia-se para uma papoula de esmalte vermelho que adornava a coronha. Uma salamandra, pois o corpo de marfim do pequeno animal tinha pontos brilhantes de jade. Na parte de trás, o metal da platine estava esculpido com flores de espinheiro de delicadeza aracnídea, e o olho do "cão", do qual o artesão cinzelara com a mesma minúcia a pequena goela cruel, em vidro dourado, brilhava com uma luz viva.
Mas sob a beleza, sob o refinamento, escondia-se a nervosa e implacável tensão das engrenagens.
E enquanto com dedo leve, num toque onde ele reconhecia a mágica habilidade que empregava nos trabalhos mais inesperados, ela manobrava os diversos elementos da platine, ele contemplava a beleza dela, em detalhe, e o contraste entre sua feminilidade e o rigor de seus gestos de amazona oprimia-lhe a garganta.
No decote do corpete ele via brilhar uma pele nacarada, mais luminosa por estar cercada de-sombra e por se fundir tào docemente numa cavidade morna- é noturna, cheia de mistério.
Na suavidade leitosa dessa pele de mulher, dessa frágil corola lisa e inflada, ele via o símbolo dè sua fraqueza, a vulnerabilidade de seu sexo.
Uma mulher de seios tenros, eis o que ela continuava a ser por trás da aparência guerreira.
"Ela carregou meusiilhos no ventre", pensou, "meus únicos filhos. Jamais quis outros, dernenhuma outra mulher."
O filtro do encanto que emanava de toda a sua pessoa enfeitiçava-o, inebriava-o, entorpecia-o, penetrava-o com o desejo de tomar nas palmas sua cintara fina,'de pousar as mãos em seus flancos e de sentir-lhes" o calor através do tafetá do corpete, de reflexos ametista. Há muito tempo seus braços sentiam o vazio de sua presença.
Ele se aproximou e intimou com uma voz um pouco rouca, apontando a pistola que ela segurava:
— Carregue-a! Arme-a!
— Não sei se saberei. A platine "patilla" não me é familiar.
Ele tomou-lhe o objeto das mãos e prontamente colocou as balas, derramou a pólvora, colocou a escorveta. E ela acompanhava os movimentos de suas mãos morenas com vontade de inclinar-se e de beijá-las.
Ele devolveu-lhe a arma:
- Cá está.
E com um sorriso cáustico:
- Poderia matar-me, agora... Livrar-se de um marido incómodo.
Angélica empalideceu horrivelmente. Acreditou que não conseguiria recuperar o fôlego, e foi com grande dificuldade que repôs a pistola com mão trémula em seu "compartimento.
— Como pode pronunciar palavras tão estúpidas? - disse por fim. - Você é de uma maldade inacreditável!
— Pois é você a vítima, ao que parece.
— Neste momento, sim... Bem sabe que, falando desse modo, você me tortura de um modo inconcebível.
— E imerecido, sem dúvida?
— Sim... não... sim, decerto mais imerecido do que você pensa... Não o ofendi tanto quanto quer crer... e bem o sabe... Mas você tem um orgulho louco.
— Decididamente sua má-fé e sua impudência ultrapassam tudo o que se possa imaginar!
E acontecia como na outra noite, o desejo insensato de esmagá-la, de abatê-la e de se deixar penetrar a um tempo por seu perfume, seu calor, como por um incenso inebriante, e de perder-se na radiosidade de seus olhos verdes, inflamados de cólera e amor, de desespero e ternura.
Com medo de ceder, ele se dirigiu para a porta.
— Cairemos na armadilha, Joffrey?
— Que armadilha?
— Aquela que nossos inimigos cavaram sob nossos pés.
— Que inimigos?
— Aqueles que haviam decidido separar-nos, para melhor abater-nos. E isso aconteceu; não sei como as coisas foram tramadas, quando começaram e por meio de que artifícios sucumbimos, mas sei que o fato aí está. Aconteceu: Estamos separados.
Ela deslizou até ele, pousou a mão em seu peito.
- Dar-lhes-emos tão pronta vitória, meu amor?
Ele se desprendeu com uma violência onde se lia o temor de fraquejar depressa demais.
— Isso é demais! Você se conduz de modo insensato e depois é a mim que acusa de me comportar sem lógica. Que ideia foi aquela, por exemplo, de partir de Houssnock para a aldeia inglesa?
— Não me mandou uma ordem?
— Eu? Nunca!
— Mas então quem foi?
Ele fitou-a sem palavras, atingido subitamente por um pressentimento assustador.
Embora de inteligência bastante superior, Peyrac permanecia um macho no modo de descobrir o mundo. Os homens avançam por saltos de inteligência, enquanto as mulheres caminham guiadas pelo instinto de presciência cósmica.
Saltos de grandes feras para os homens. Durante muito tempo imóveis, e por vezes numa estagnação, numa inquietante recusa de se mover, subitamente se lançam, atravessam uma nuvem, e então descobrem, abraçam, podem num só olhar, num só lampejo, enxergar mais longe ainda, recuar os limites do horizonte.
Assim estava Peyrac no instante em que a voz de Angélica desencadeava nele uma sequência de movimentos passionais e no qual ele via tudo o que o rodeava se metamorfosear, assumir um outro significado, um outro" aspecto.. Ora, havia diante deles um grave perigo. No entanto, sua lógica masculina descartava um ataque de natureza oculta.
Mas Angélica não se. enganara. Tinha mais que ele o senso místico, e ele sabia que isso também conta.
Ele lutou.
— Sua presciência não*passa de ninharia - resmungou. - Assim seria muito fácil! Assim, as mulheres adúlteras só teriam que invocar continuamente a cumplicidade dos demónios. Seriam eles, senhora, nossos inimigos, ou o acaso, que teriam trazido à baía de Casco seu antigo arrrante, pronto para lhe abrir os braços?
— Não. sei;. Mas o Padre de Vernon dizia que quando as coisas diabólicas se. põem a caminho, ò acaso está sempre do lado daquele que deseja o Mal, quer dizer, do lado do Maligno, da destruição e da desgraça.
— Quem é esse Padre de Vernon?
— Um jesuíta que me conduziu em seu barco de Maquoit a Pentagouet.
Desta vez, Joffrey pareceu atingido por um raio.
— Você caiu nas mãos dos jesuítas franceses? - exclamou com voz alterada.
— Sim! Em Brunswick Falis, por pouco não fui levada como cativa a Quebec.
— Conte-me isso.
Enquanto ela lhe fazia o breve relato de suas aventuras desde a partida de Houssnock, ele revia nàjnemória Utakê, o grande chefe iroquês, a lhe dizer:
"Você possui um tesouro! Tentarão arrebatá-lo de você..." Ele não suspeitara sempre que seria através dela, Angélica, que tentariam atingi-lo?
Ela dissera a verdade.
Inimigos rodeavam-nos, mais astutos, tortuosos e sutis que os próprios Covardes, ou seja, os espíritos infernais do Ar.
Poderia ele negar que não mais duvidava, ele, que conservava no colete a mensagem anónima que um marujo desconhecido lhe entregara na noite da batalha com o Coeur-de-Marie, pedaço de pergaminho no qual uma pluma afiada inscrevera estas palavras:
"Sua esposa está na ilhota do Velho Navio com Barba de Ouro. Aborde pejo norte,1 a fim de que não o possam ver chegar. Poderá assim surpreendê-los nos braços um do outro".
Espíritos infernais, sem nenhuma dúvida, mas que, agachados nas ilhas, podiam armar-se de uma pluma para fazer chegar a quem de direito tão corrosiva denúncia.
Ele respirou profundamente. Tudo mudava a seus olhos, ordenava-se diferentemente e, nesse tumulto, a infidelidade de Angélica não mais lhe aparecia com a mesma vilania calculada. Ela fora presa nos laços de conspirações ajudadas pelo acaso. Tão feminina, era inevitável que se mostrasse vulnerável, mas ele discernira também que havia sob sua fraqueza uma estranha coragem.
Ele evocava a noite na ilha, quando, espreitando de longe os gestos de Colin e de Angélica, fora-lhe perceptível a luta deles contra a tentação.
Decerto não lhe era agradável reconhecer que ela poderia ser tentada por um outro homem, mas nisso sabia que estava sendo tão irrazoável como um adolescente.
O que permanecia era a lealdade de que ela dera provas para com ele naquela noite. Quanto ao que se passara no Coeur-de-Marie, não fazia absolutamente questão de sabê-lo, embora certas palavras de Colin Paturel o tivessem deixado entendê-lo.
Ora, por vezes, parecera-lhe que ele perdoaria de mais bom grado a Angélica um encontro do que um simples beijo apaixonado, pois conhecia-a em suas mais íntimas voluptuosidades. Nela, o beijo parecera envolver mais completamente seu ser do que o dom anónimo de suas entranhas obscuras. Assim era ela, sua deusa imprevisível! Entregava de mais bom grado o corpo que os lábios. Ele apostaria que com os "outros" sempre fora assim.
E ele quisera dizer a si mesmo que só de sua boca ela gostava. Mas nessa exigência ele ainda dava provas de uma adolescência de sentimentos ridículos. Eis ao que ela o havia reduzido após uma existência onde, por uma prudência calculada, ele não quisera dar às mulheres- senão um lugar, decerto atraente e importante, mas que-jamais deveria envolvê-lo, em sua personalidade.
Inútil demorar-se sobre o que já.acontecera.
Mais graves eram os perigos que ela correra, as armadilhas que haviam posto diante dela. Era preciso desemaranhar aquilo.
Ele passava e tornava a passar diante dela, lançando-lhe por instantes um olhar onde ela via brilhar uma luz suave, que depois se endurecia sob o efeito de suas reflexões e de suas desconfianças.
— Por que motivos acredita que o Padre de Vernon a tenha deixado em liberdade?-- lançou-lhe. "
— Na verdade, não sei de nada. Talvez, durante os três dias de navegação, detivesse adqujrido a certeza de que eu não poderia ser a Diaba da Aeádia, como. toda essa gente imagina.
— E Maupêrtuis? E seu filho? Onde estão?
- Penso que os levaram à força ao Canadá.
O conde explodiu:
— Desta vez é a guerra - gritou. - Chega de luta sorrateira! Colocarei .meus barcos em Quebec!
— Não faça isso! Perderíamos nossas forças e mais que nunca eu seria acusada de espalhar a desgraça. Porém não nos separemos! Não deixemos que prevaleçam contra nós, golpeando-nos, machucando-nos... Joffrey, meu amor, você bem sabe que é tudo para mim... Não me rejeite, senão morrerei de dor. Hoje, agora, nada sou, nada mais sou sem você!
E ela lhe estendeu os braços como uma criança perdida.
E ela está em seu braços e ele a aperta a ponto de esmagá-la. Ainda não a perdoou, mas não.que-r que a tomem dele. Não quer que a ameacem, que atentem contra sua vida. Sua preciosa e insubstituível vida.
Seu abraço de ferro a esmaga, e "ela treme, inundada de alegria, o rosto contra a dura face dele. O céu vacila, ofuscante.
- Milagre! Milagre! - grita uma voz-dktante, através do espaço. - Milagre! Milagre!
Fora, as vozes ressoam cada vez mais fortes.
- Milagre! Milagre! Senhor, onde está? Venha rápido. Um verdadeiro milagre.
É a voz de Yann le Couénnec. No pátio sob a janela. O Conde de Peyrac relaxa o abraço, afasta Angélica. Como se lamentasse o gesto impulsivo que o fizera abrir os braços para ela. Vai até a janela.
— Que acontece?
— Um verdadeiro milagre, senhor!... A benfeitora... A nobre dama que protegia as Moças do Rei e que se acreditava afogada... Pois bem, não está. Bacalhoeiros de Saint-Malo recolheram-na numa ilhota da baía com seu secretário, um marujo e um menino que ela salvou. Uma barca os está trazendo... Estão entrando no porto.
CAPÍTULO XLIII
Entre bichos e fantasmas
-Ouviu? - pergunta Peyrac, voltando-se para Angélica -, a benfeitora! Devé-se acreditar que o oceano achou demasiado indigestos a honorável duquesa e seu escrivão.
Seu olhar pousaya nela, hesitante,'perplexo.
- Ver-nos-emos mais tarde - disse, desviando os olhos com hesitação. - Greiò ser meu dever ir ao encontro dessa pobre mulher salva das águas e lançada como Jonas pela baleia em nossas plagas de piratas. Você me acompanha?
- Assim que arrumar estas armas, eu o encontro no porto.
Ele afastou-se.
Angélica bateu o pé.
Decididamente era Juliana quem estava com a razão. Aquela benfeitora era uma maçante sem igual. Afogada há três dias, bem poderia ter esperado algumas horas mais, antes de voltar à superfície, ao invés de apresentar-se justo -no instante em que Joffrey de Peyrac abria os braços para Angélica. Não haviam caído todas as defesas de seu coração desconfiado.
Ela sentira sua inquietação para com ela, mas também sentira seu orgulho. E a sorte subitamente parecia pronunciar-se
contra ela.
Apesar da lembrança de seu abraço demasiado breve, um frio mortal corre nas veias de Angélica, oprime seu espírito.
Ela sente vontade de lançar-se sobre os passos de Joffrey, de chamá-lo, de suplicar-lhe.
Seus pés estão pesados e movem-se com dificuldade, como nos pesadelos.
Contra o alizar da porta, ela vacila e desfalece. No chão, um demónio de presas reluzentes e olhos flamejantes a olha.
Sua carne se arrepia. Ela se contorce de náusea.
- Ah! Mas é você, Wolverines! Deu-me medo.
O glutão não seguira Cantor ao Kennebec. Fareja por todo lado na aldeia, com seu -corpo pesado, flexível e serpentino de fuinha gigante.
Ele ali está. E olha Angélica.
- Vá! Vá embora! - cochicha-lhe, estremecendo. - Vá! Volte para os bosques.
Mas uma sombra velosa, enorme, moveu-se através dos reflexos verdes de uma árvore.
Novamente não é senão uma miragem do perigo que ronda; é apenas o urso, Mister Willoagby, que se bamboleia, fareja as frutas no vento brando e morno.
Revira uma pedra com a garra, descobre formigas, que sua língua rapidamente condena.
Angélica caminhou para a praia com passo de autómato. Guiava-a um rumor distante, que parecia afastar-se à medida que ela avançava. O timbre abafado de um fantasma branco chamou-a quando ela passou.
— Sra. de Peyrac! Sra. de Peyrac!
— Que faz aqui, Maria? Ah! tenha cuidado! Não devia ter-se levantado, com seus ferimentos...
— Ampare-me, peço-lhe, cara senhora; para que possa ir até minha benfeitora.
Angélica sustenta a cintura frágil e flexível da menina de rosto iluminado. Seus pés avançam a contragosto. De tempos em tempos ela se volta, vê o urso e o glutão a segui-la e acena-lhes com veemência.
- Vão embora! Vão embora, bichos horríveis!
CAPÍTULO XLIV
A Duquesa Ambrosina de Maudribourg
Estão todos reunidos na praia. A praia! O anfiteatro que se abre para eles sobre o cenário cada dia enriquecido por novos espetáculos: a baía.
Hoje uma barca avança. Acima da multidão de cabeças, Angélica ouve os chamados, os soluços, os gritos de alegria e de devoção.
- Viva! - repetiu Maria, a Meiga, entre lágrimas. - Que Deus e todos os sltntós do paraíso sejam louvados!
Angélica permaneceu um pouco recuada, no local em que o chão começava a inclinar-se para a água. Assim poderia distinguir melhor o que se estava passando. Viu perfeitamente bem a barca chegar à margem e Yann entrar na água para guiá-la e evitar o choque no momento em que a roda tocaria o fundo.
Quase de imediato as Moças do Rei lançaram-se por sua vez ao encontro da embarcação, numa algazarra histérica.
Em meio a esse rebuliço, Angélica não conseguiu discernir a silhueta da duquesa. Em contrapartida seu olhar foi atraído pela presença insólita de uma mulher muito jovem, cuja roupa, vistosa e suntuosa, punha uma nota colorida na frente da barca.
Apesar da distância, Angélica percebia que a jovem mulher ou adolescente devia ser extraordinariamente encantadora. Em contraste com a cabeleira escura, o brilho de sua tez prendia o olhar como uma lâmpada, ou, antes, como uma dessas flores exóticas - camélia ou magnólia - brilhando na sombra com uma delicadeza de pétala perfumada, branco puro com toques de rosa.
Uma flor. Ou um pássaro, se se considerasse o colorido de seus adornos. Comportavam todas as audácias da moda, e no entanto a associação de seu manto azul-pavão, que se erguia sobre uma curta saia de cetim amarelo, encimada por um corpete de um azul mais claro, aberto sobre um plastrão vermelho, formava um conjunto de surpreendente elegância e que lhe ficava encantador.
O único detalhe que não lhe convinha era o menino miserável que trazia nos braços.
- Salvou meu filho! Bendita seja! - gritou com voz tremula Joana Michaud, elevando-se em meio à confusão.
Seus braços estendidos de mãe agarraram o pequeno Pedro.
Liberada, a mulher de adornos cintilantes estendeu a mão a um homem que se apresentou, e saltou rapidamente em terra, segurando alto a saia de cetim amarelo para evitar a água.
Nesse instante, o que Angélica notou devia permanecer gravado por muito tempo em sua memória, tomando uma importância desmesurada, incompreensível, até o dia em que, tomada pelas lembranças que ela inconscientemente registrava, acabaria por encontrar a chave de muitos mistérios.
Ela notou as meias vermelhas que envolviam suas pernas de. jovem mulher e os pequenos sapatos-tamancos que trazia, em veludo carmim com aplicações de couro branco recortado, enfeitados por uma roseta de cetim dourado.
Angélica ouviu-se perguntar em voz alta:
— Mas... quem é essa mulher?
— Ela - respondeu Maria, a Meiga, num soluço. - Nossa benfeitora! A sra. de Maudribourg!... Olhe-a! Não é bela? Ornada com todas as virtudes e todas as graças!
Escapando aos braços que a sustentavam, a jovem, reunindo as forças, caminhou para a recém-chegada e desabou junto a seus joelhos.
— Ah! senhora bem-amada!... Você! Viva!
— Maria, cara criança! - ouviu-se uma voz de timbre suave e profundo, um contraste comovente, enquanto a duquesa se inclinava sobre Maria para beijar-lhe a fronte.
Um homem de roupa escura, um pouco corpulento, com óculos no nariz, conseguira descer da barca sem que ninguém se preocupasse com ele e esforçava-se em vão em pôr ordem na efusão dos reencontros.
- Vamos, senhoras, vamos - esforçava-se ele. - Por favor, senhoras, permitam à duquesa receber as homenagens do senhor do lugar.
Um pouco mais ao alto, Joffrey de Peyrac aguardava, o grande manto lavrado flutuando ao vento, e se ele também tivera uma surpresa diante do aspecto inesperado da duquesa benfeitora, ela não se traía senão por uma leve irona em seu .sorriso sinuoso.
— Afastem-vos, senhoras - insistia o homem de óculos -, tenham pena da fadiga da senhora duquesa.
— Sr. Armando! - exclamaram as Moças do Rei, decidindo-se por fim a também- reconhecê-lo.
Rodearam-no amigavelmente, e a Sra. de Maudribourg pôde dar alguns passos ná direçâo do Conde de Peyrac.
Vendo-a mais de perto Angélica percebeu que as roupas da duquesa estavam sujas da água do mar e rasgadas em.alguns lugares, e que seus pés, calçados com minúsculos sapatos de couro branco e veludo, pareciam pousar com infinita dificuldade na areia, cuja fluidez aumentava a dificuldade da caminhada, e apesar de sua graça, da delicadeza do tornozelo acentuado por uma pulseira de fio de ouro, pareciam pesados como os de Angélica há pouco, quando ela avançara para o porto.
Ora, seus pés mentiam desavergonhadamente. Ou então era o rosto que mentia. Era menos jovem do que ela acreditara ao vê-la de longe, porém mais belo ainda. De fato, a Duquesa Ambrosina de Maudribourg devia ter uns trinta anos. Possuía todo o desembaraço, a segurança, o ímpeto de juventude a um tempo refinado e animal dessa esplêndida idade.
No entanto, tornava-se cada vez mais visível aos olhos experimentados de Angélica que essa deslumbrante personagem, que subia bravamente a costa, estava desfalecendo. Esgotamento? Medo?... Emoção incontrolável?
E Angélica não compreendia por que ela_.própria se encontrava na absoluta impossibilidade de lançar-se ao encontro dessa jovem esgotada, para acolhê-la e ampará-la, como o faria com qualquer ser humano.
Joffrey de Peyrac varreu três vezes o chão com a pluma do chapéu, e, inclinando-se diante da bela criatura, beijou-lhe a mão estendida.
- Sou o Conde de Peyrac de Morens d'Irristru... gascão. Seja bem-vinda, senhora, a minha colónia das Américas.
Ela ergueu para ele um olhar ambarino que se velava.
— Ah! senhor, que surpresa! Carrega o manto com mais elegância que um cortesão de Versalhes.
— Senhora - respondeu ele galantemente -, saiba que nesta praia há mais gentis-homens bem-nascidos que na antecâmara do rei.
Inclinou-se novamente sobre a mão branca, que estava gelada. Em seguida, apontando Angélica, imóvel a alguns passos:
- E cá está a Condessa de Peyrac, minha esposa, que irá providenciar o reconforto conveniente após sua cruel viagem.
Ambrosina de Maudribourg voltou-se para Angélica, e agora seus olhos estavam escuros como a noite no rosto lirial. Um sorriso sofrido pairou em seus lábios, subitamente descorados.
- Pois, sem dúvida, também não há em todo o Palácio de Versalhes mulher mais bela que sua esposa, Sr. de Peyrac - disse com graça, com sua voz baixa, que parecia cantar.
Sua palidez se acentuava. As pálpebras bateram. Um suspiro, uma levíssima queixa, transpuseram seus lábios.
- Ah! perdoe-me, senhora - murmurou -, estou morrendo!...
E ela deslizou, em seus adornos cintilantes, deslizou docemente como um pássaro maravilhoso abatido em pleno vôo e caiu desmaiada aos pés de Angélica. Esta, após um breve instante, teve a sensação de estar num lugar desconhecido e irreal.
Com o espírito petrificado e tomado de um terror indizível, ela pensou: "Então é ela? Aquela que deve elevar-se das águas? Aquela que deve vir a nós a serviço de Lúcifer?"
No próximo volume
Angélica ea Duquesa Diabólica
"Você possui um tesouro! Tentarão tirá-lo de suas mãos..."
Na ocasião em que o grande chefe iroquês Utakê lhe dirigira estas sábias palavras referindo-se a Angélica, o Conde Joffrey de Peyrac não poderia imaginar a que ponto chegariam seus inimigos para destruir sua vida ao lado da mulher amada.
Tão feminina, Angélica fora enredada numa conspiração de seres astutos, mais tortuosos e sutis que os espíritos infernais. Era inevitável que ela se mostrasse tão vulnerável, assim como não agradara a Peyrac vê-la tentada por outro homem.
Ainda não a perdoara quando, aos gritos de "Milagre! Milagre!", vieram trazer à praia de Gouldsboro uma náufraga sobrevivente, a belíssima Duquesa Ambrosina de Maudribourg, benfeitora das Moças do Rei. Angélica tivera um pressentimento ao vê-la...
No próximo volume, Angélica e a Duquesa Diabólica, novos perigos e armadilhas esperam pela imbatível Marquesa dos Anjos. Desta vez envolvendo encantamentos infernais e magia negra. Seria essa recém-chegada enigmática e perturbadora mais uma artimanha de Lúcifer para confundir os espíritos devotados ao Amor?
Anne e Serge Golon
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