Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UM AMOR COMO NUNCA SE VIU
Desde o primeiro momento, quando um jovem médico muito bem-sucedido regressa a Mia-mi de uma conferência médica e é recebido pela mulher que ama — também ela uma médica de prestígio — até o emocionante clímax, quando ambos enfrentam crises que põem à prova sua resistência profissional e pessoal, esta história de ritmo rápido e cheia de suspense toma conta do coração e da imaginação do leitor. Em Um amor como nunca se viu, Frank Slaughter mais uma vez combina sua perícia no campo da medicina com um enredo absorvente, cheio de personagens notáveis.
Aos 33 anos, bem-apessoado, o Dr. Ted Bronson, médico diplomado em Harvard, está próximo do topo de sua especialidade, transplantes de órgãos. Com base nas técnicas e pesquisas mais modernas, ele está prestes a conseguir uma vitória na difícil área dos implantes de rins e fígado. Essas promissoras circunstâncias, no entanto, tornam-se por demais pessoais quando seu melhor amigo, um promotor público empenhado numa cruzada contra o tráfico de drogas em Miami, é vítima de uma tentativa de assassinato pela Máfia. À medida que Ted se empenha em salvar seu amigo, vem a se dar conta de que a sua própria vida também está em perigo.
Ao mesmo tempo, a bela e resoluta companheira de Ted, a obstetra Liz MacGowan, se vê envolvida numa trama de política internacional quando um embaixador junto às Nações Unidas recorre à sua ajuda para acompanhar a gestação da princesa mulher do governante de seu país. Quando o avião que traz a princesa do Oriente Médio sofre um acidente que põe em risco tanto a vida da mãe quanto a do futuro herdeiro, Liz descobre que as complicações que se seguem vão muito além de uma questão de ética médica.
O Dr. Ted Bronson atravessou o portão automático da sala provida com ar condicionado da seção de retirada de bagagem para o calor de uma noite do início de junho. Arriando a mala na beira da calçada, olhou para a parte reservada do estacionamento, além das pistas de táxis e ônibus do aeroporto. Com um metro e oitenta e cinco de altura e o porte ágil do atleta universitário que fora, Ted Bronson era a encarnação de um jovem cirurgião bem-sucedido. Suas calças verde-claro e o casaco esporte de pêlo de camelo estavam no entanto um tanto amassados, devido ao apertado assento do Boeing 737 que acabara de trazê-lo, no curto espaço de três horas, de Pittsburgh, na Pensilvânia, até Miami, na Flórida.
Ao descobrir o que estava procurando — um elegante cupê esporte Mercedes 380-SL com uma bonita jovem de cabelos vermelhos na direção — ele pegou de novo sua bagagem. Desviando-se do tráfego de saída do aeroporto com a mesma perícia com que havia conquistado um "H" como beque traseiro em Harvard — antes de haver terminado seus estudos e colado grau como médico naquela universidade — ele atravessou as pistas em direção ao estacionamento.
Alô, querida! — disse ele, inclinando-se para beijar a Dra. Elizabeth MacGowan, antes de abrir a porta do lado direito do carro e colocar a mala atrás do assento da frente. — Está esperando há muito tempo?
Talvez uns dez minutos. Foi gentil de sua parte telefonar-me do aeroporto de Atlanta para dizer que iria atrasar-se.
É um pecado uma pessoa tão bonita como você ser médica — disse ele, lançando-lhe um rápido olhar apreciador a suas compridas e bem-torneadas pernas, passando pelo corpo atlético mas ainda visivelmente feminino, até a rica cor irlandesa de suas faces e de seu cabelo.
O que mais você queria que eu fosse? — Ela lançou-lhe um rápido e amável sorriso enquanto tirava de marcha à ré o elegante carrinho de uma vaga marcada "Reservada para a Polícia de Mia-mi". — Uma femme du monde?
Por Deus, não! Diga uma só palavra, no entanto, e eu a farei esposa e mãe num instante.
Nesta altura dos acontecimentos eu já deveria saber quão potente você é... Mas como posso estar segura de que você é também fértil?
Por hereditariedade: tenho seis irmãos e irmãs...
Ah! sim — comentou ela, fingindo-se exultante. — Você acaba de confessar a ambição que tem de transformar-se numa porca com uma ninhada de bacorinhos!
Ainda continuo a dizer que uma mulher que é tão bonita às sete horas da manhã quanto às sete da noite, quando está vestida para jantar, está fugindo a seu verdadeiro destino por não ter pelo menos dois rebentos à sua volta. Além disso, ainda existe uma coisa que se chama babá...
E elas são caras.
E daí? Nós dois juntos ganhamos mais da metade do que recebe o presidente dos Estados Unidos, e estamos apenas no início de nossa capacidade de ganhar dinheiro.
Como foi o seminário? — Liz MacGowan mudou abruptamente de assunto.
Fantástico! Quem pensaria que a velha e querida Pittsburgh, durante um tempo tão poluída, poderia vir a tornar-se o centro de transplantes do Leste, talvez até sobrepujando Stanford na Califórnia um dia destes.
Pittsburgh produziu o homem que irá fazer de Miami o centro de transplantes do Sul, não foi? Isto seria uma boa prova.
Aos trinta e três anos, Ted Bronson já estava quase no topo do mais glamouroso campo da cirurgia — o do transplante de órgãos. Especializado em cirurgia no famoso Hospital Geral de Massachusetts, ele concluíra uma bolsa de estudos em transplante de órgãos em Pittsburgh antes de vir para o Hospital Geral Biscayne, hospital universitário da Escola de Medicina da Universidade Biscayne.
Recém-saída de uma residência de OB-GIN (Obstetrícia e Ginecologia) em Duke, Elizabeth MacGowan chegara a Miami mais ou menos ao mesmo tempo. A química romântica entre os dois fora instantânea e apaixonada, com apenas um ponto de tensão: como professora-assistente na Escola de Medicina — do mesmo modo que Ted — Liz havia recusado suas propostas de casamento repetidamente. Em geral ela argumentava que sua carreira ainda não estava estabelecida de modo bastante satisfatório para assumir as responsabilidades extras do casamento e filhos, e essa controvérsia tinha algumas vezes se tornado tão intensa que chegara a ameaçar seu relacionamento — embora nunca por muito tempo.
— Nos últimos seis meses o grupo de transplantes de Pittsburgh atingiu uma porcentagem de casos bem-sucedidos com rins de cadáveres de quase 90% — disse Ted. — Meu melhor índice até agora não vai muito além de 50%!
— Isto ainda é melhor do que a média nacional.
Talvez! Mas usando ciclosporina, mais doses, porém menores, de esteróides do que o usual no pós-operatório, espero em breve estar nas pegadas deles lá de Pittsburgh.
Ciclosporina? — Liz MacGowan franziu o sobrecenho enquanto dirigia o Mercedes para fora da área de estacionamento do aeroporto para a via expressa Leste-Oeste. — Eu pensava que isto era um dos novos antibióticos anunciados em todos os novos números do JAMA. — A sigla identificava o prestigioso jornal da American Medicai Association.
Ciclosporina foi apenas uma outra droga descoberta — e que não era lá de grande sucesso — até que alguém notou que ela atacava os linfócitos no corpo e chegou daí a uma conclusão lógica — explicou ele.
Esta conclusão sendo obviamente que se a ciclosporina atacava os linfócitos de uma doença maligna, ela também poderia atacar aqueles que são a causa primária da rejeição em um transplante de órgãos?
— Bingo! Você é tão esperta quanto bonita!
— Isto é porque tenho estado intimamente associada a você nos últimos dois anos — retorquiu ela. — Um camarada com mente de pista dupla.
— O que você quer dizer?
Primeiro, você se meteu em minha cama; depois, tornou isto permanente...
A falta que senti de você desde quinta-feira à noite quando parti para Pittsburgh convence-me de que a segunda parte é ainda mais importante do que nunca. — E ele mudou de assunto: — Qual é o último escândalo no corpo docente da escola?
Nada de novo, a não ser as costumeiras uniões e separações.
Enquanto nós não estivermos entre essas últimas, não irei discutir acerca do direito de qualquer um ir para o inferno da forma que mais lhe agradar.
Você quer parar no Terrace e mudar a roupa antes de irmos para Coconut Grove? — perguntou Liz.
Tendo sido um hotel de luxo de frente para a baía, o Biscayne Terrace fora transformado num condomínio ultra-elegante quando os terrenos com frente para a baía Biscayne foram ocupados com direito a preempção para o agora maciço Centro Médico da universidade. Uma nova amurada de proteção guardava a terra extremamente valiosa dragada do fundo da baía contra os furacões que às vezes assolam este extremo sul da península da Flórida. O Terrace, localizado do lado oposto ao hospital, oferecia acomodações extremamente convenientes para os membros de nível mais alto do corpo docente, que possuíam recursos para custear os caros apartamentos em condomínio; Liz e Ted, chefes de departamentos em ascensão, eram dos que podiam custeá-los.
Imaginei que o avião iria atrasar-se, e assim tomei um chuveiro e mudei de roupa antes de ir para o aeroporto esta tarde — disse Ted. — Se for conveniente para você, poderemos ir diretamente para Coconut Grove.
Por falar nisso, ainda não lhe desejei um feliz aniversário — disse Liz. — Lembre-me de dar-lhe um beijo mais tarde.
O beijo que estou esperando de você pelo meu aniversário pode vir muito mais tarde...
Não force a mão! Você me disse que este jantar com a família de Michael Corazón tem sido um acontecimento anual, mas não recordo de você tê-lo mencionado no ano passado. Que companheira de cama em perspectiva você levou lá então?
Eu estava fora no ano passado, numa reunião da Sociedade de Transplante de Órgãos. E por esta razão que você ainda não foi apresentada aos Corazón. Desde que meus pais morreram, eles são a coisa mais próxima de uma família que tenho. Michael e eu decidimos, enquanto estávamos na universidade, que uma vez que ambos tínhamos a mesma data de aniversário, e éramos tão bons amigos, que tentaríamos sempre celebrar juntos — de preferência com Mama Maria e o restante da família.
Soa como uma espécie de clube do último homem na Terra...
Eu costumava passar todas as férias de Natal na mansão dos Corazón em Coconut Grove — explicou ele. — Acredite-me, era uma abençoada mudança daqueles invernos de Boston, e além disso você nunca experimentou a verdadeira cozinha cubana, até haver provado a de Maria Corazón.
Liz arregalou os olhos e comentou:
Dizem que eles formam uma das famílias mais ricas de emigres cubanos na Flórida — e ela ainda cozinha?
Ela adora cozinhar. Papai Juan deixou Cuba nos anos 50, quando Fulgêncio Batista era o ditador. Conseguiu também tirar seu dinheiro de lá e teve o bom senso de comprar um lote de terra em Coconut Grove e a área de Homestead, ao sul de Miami, bem como laranjais na costa mais ao norte por perto de Vero Beach. Quando Papai Juan morreu, Pedro e Manuel já tinham idade bastante para tomar conta das propriedades. Pedro encarrega-se dos laranjais em volta de Vero e Manuel, das hortas na área de Homestead. Michael teve a opção de ser ou padre ou advogado, como é costume nas velhas famílias espanholas, mas ele escolheu o Direito e o serviço público.
Pelo que tenho lido, ele vai indo muito bem — comentou Liz.
Ele é um verdadeiro dínamo; você irá gostar dele. Mike veio para casa depois de colar grau em Direito em Harvard e passou um par de anos como auxiliar de um juiz distrital federal. Quando se candidatou ao legislativo estadual, naturalmente conquistou todos os votos dos cubanos...
Naquela ocasião, um dos maiores blocos de eleitores no Condado de Dade.
Ted concordou com a cabeça e continuou:
Mike poderia ter-se tornado senador estadual depois de seu primeiro período como um deputado estreante em Tallahassee, mas desde a universidade que ele era um verdadeiro idealista, como você. Com o tráfico de drogas e de cocaína sendo o que é em Miami, tornar-se promotor público federal foi a escolha natural para ele, e num desses dias ele será senador dos Estados Unidos ou juiz da corte federal.
Michael é o filho mais moço?
Não; houve um filho muito mais tarde, que se chama Arturo. Você irá conhecê-lo esta noite.
Devo entender que tenho de ser passada em revista pelos Corazón se algum dia decidir-me a deixar que você faça de mim uma mulher honesta?
Ninguém, homem ou mulher, que tenha a cabeça nos ombros, poderá deixar de apreciar suas reais qualidades — assegurou-lhe Ted.
Muito obrigada; você é capaz de ter ganho um presente extra de aniversário com este cumprimento.
— É um paraíso tropical! — exclamou Liz alguns minutos mais tarde, quando entrou com o carro pelo largo portão aberto no alto muro revestido de estuque. Como muitas outras grandes mansões neste mais antigo dos locais de luxo de Miami, o muro isolava da rua a opulenta casa à beira-mar. Do lado de fora, as frondes das palmeiras farfalhando com a brisa que soprava da baía eram a única coisa que se via por cima do muro, agora que a noite estava caindo. Do lado de dentro, no entanto, banhado pelo brilho quase mágico das luzes colocadas aqui e ali entre as árvores e os canteiros de flores, o efeito total era de um encantado reino tropical, como Liz à primeira vista o havia chamado.
Grupos de jacarandás com suas flores azuis entremeavam-se com as mangueiras azul-escuras pejadas de frutas amarelas amadurecendo. As laranjeiras ainda ostentavam enormes laranjas Temple, mesmo já no fim da estação, lembrando o observador das maçãs douradas da mitologia grega. Canteiros de flores localizavam-se por toda parte por entre as árvores, oferecendo uma visão capaz de fazer prender a respiração com suas estupendas colorações, cada uma mais bela que as outras.
É evidente que alguém adora este lugar — comentou Liz enquanto dirigia o carro ao longo da pista curva em direção à casa, ainda em grande parte oculta pela folhagem. — É seu amigo Mi-chael?
A manutenção da propriedade fica a cargo de Arturo — disse-lhe Ted. — Os canteiros, em particular, são seu orgulho e sua alegria.
Ele deve manter-se muito ocupado.
Para ele é um trabalho de amor.
O caminho terminava em um círculo em frente da casa grande e baixa, no estilo espanhol, de estuque branco, e enquanto parava o carro, Liz ainda podia ver mais canteiros de flores em volta da casa, rodeando-a com uma orgia de cores.
Ted abriu a porta do carro e saltou, passando para o outro lado a fim de ajudá-la a descer e dar-lhe um beijo, que desviou sua mente por completo do jardim.
Upa! Se você fizesse mais de um aniversário por ano, não sei como eu poderia agüentá-lo!
Segurando o braço de Liz para que os altos saltos de suas frágeis sandálias não afundassem no cascalho e a fizessem cair, Ted guiou-a até a porta e apertou a campainha. A porta abriu-se quase no mesmo momento revelando o sorridente rosto de um jovem de terno branco, camisa azul e gravata vermelha. Liz ficou com a respiração suspensa involuntariamente ao vê-lo, pois embora jamais o tivesse visto antes, suas feições lhe eram tão familiares quanto as ilustrações num compêndio médico sobre anomalias congênitas.
A cabeça do jovem era pequena em proporção a seu corpo, um tanto robusto, e bastante achatada, quando vista de perfil, para situar-se fora dos limites do estritamente normal. Seus olhos eram azuis e de um brilho quente, mas as dobras das pálpebras na base de uma proeminência nasal ligeiramente achatada davam aos olhos uma aparência quase oriental. Em resumo: o conjunto completo de suas feições casava-se perfeitamente com um quadro médico com o qual Liz era bastante familiarizada — a de uma síndrome de Down — um termo mais brando do que mongolismo, pelo qual a síndrome havia sido a princípio conhecida, devido ao feitio oriental dos olhos.
Dr. Ted! — O jovem abraçou calorosamente Ted Bronzon, sua infantil felicidade ao ver o cirurgião brilhando-lhe nos olhos. Ted retribuiu o abraço sem qualquer embaraço e depois pegou Liz pela mão e disse:
Liz, este é Arturo Corazón. Arturo, aperte a mão da Dra. Elizabeth MacGowan.
Bem-vinda à nossa casa, doutora. — A ligeira hesitação no modo de falar de Arturo era também uma característica da síndrome de Down, e a mesma felicidade brilhou nos olhos dele, como quando abraçara Ted. Quando pegou a mão dele, Liz não pôde evitar de notar que seus dedos eram curtos e que havia amplo espaço entre o polegar e o indicador, provas adicionais da anormalidade congênita da qual ele sofria.
Obrigada — disse ela, sorrindo, pois sua cordialidade era comunicativa, como era muitas vezes o caso dos portadores da síndrome de Down, que ela conhecia.
A casa era magnífica, no estilo mediterrâneo clássico, característico de tantos edifícios do período primitivo da Flórida. Um pequeno saguão de entrada comunicava-se com uma sala de estar de elevado pé-direito, um dos lados da qual era formado parcialmente por quatro portas corrediças de vidro que davam acesso a uma piscina de azulejos iluminada. À frente dela a extensa vista da baía Bis-cayne e as luzes da parte residencial de Key Biscayne,logo ao sul de Miami Beach, eram visíveis ao longe, do outro lado do espelho d'água, uma cena de beleza subtropical de estarrecer.
Quando Liz e Ted seguiram Arturo Corazón até a sala de estar, diversas pessoas que estavam sentadas do lado fronteiro às portas de vidro levantaram-se para recebê-los. Fia imediatamente reconheceu Michael Corazón, pelos retratos dos jornais. Mais alto que a maioria dos cubanos, provavelmente de uns trinta e tantos anos, mais ou menos da mesma idade de Ted, mas com o rosto comprido de um aristocrata espanhol e um pouco de cabelo grisalho em sua negra cabeleira.
Liz, este é Michael. — Ted fez as apresentações e os dois apertaram-se as mãos, enquanto Arturo permanecia ao lado deles sorrindo-lhes feliz.
Ted desmancha-se em elogios a seu respeito cada vez que o vejo, Dra. MacGowan, o que não acontece muitas vezes — disse Corazón.
Por favor chame-me de Liz — pediu ela. — Sua casa é muito bonita e os jardins...
Você pode agradecer a Arturo por eles. Ele é um gênio para plantar coisas. — Michael Corazón ofereceu-lhe o braço num gesto de cortesão do Velho Mundo. — Deixe-me apresentar-lhe minha mãe e Estrellita Mendoza, minha noiva.
Você é tão bonita como Ted disse. — Em seus 70 anos, Maria Corazón era empertigada e esbelta, seu cabelo de um cinza de aço não revelando nenhuma sombra da tintura azul artificial tão do gosto de tantas mulheres mais idosas. — Por favor, chame-me de Mama, querida, como todos fazem.
E esta é minha noiva, Estrellita Mendoza. — Michael Corazón estendeu a mão para uma moça de cabelos escuros que havia seguido Maria ao atravessar a sala ao encontro dos recém-chegados.
Nós temos um amigo comum no Dr. Paul Fraser, Dra. MacGowan — disse Estrellita. — Foi ele que me trouxe ao mundo.
Fraser era professor de Obstetrícia e Ginecologia, e chefe do serviço do qual Liz era parte vital no Hospital Geral Biscayne.
Paul foi muito bom para mim — disse Liz. — Ele confiou-me minha própria seção no hospital antes que eu tivesse um ano completo.
Seção na qual Liz já é autoridade em amniocentese — disse
Ted.
Parabéns! — disse Maria Corazón. — Nós estávamos justamente bebendo pina coladas antes do jantar, Dra. MacGowan. Nós cubanos pensamos que essa bebida é praticamente como o leite materno, mas você não tem que bebê-la se não lhe agrada.
Adoro pina coladas. E, por favor, chame-me de Liz.
Está tão quente hoje que abrimos as janelas que dão para a baía — disse-lhe Michael. — Se estiver um pouco frio para você, Liz, com esse vestido de mangas curtas, terei prazer em fechá-las.
Estou-me sentindo muito bem — assegurou-lhe Liz, enquanto o grupo se movimentava cruzando a sala em direção ao sofá e às cadeiras. — Passei seis meses no Alasca pouco antes de vir para Miami; vai ser preciso mais um ano, ou dois, para expulsar o frio de meus ossos.
Se me perdoa a curiosidade, o que você estava fazendo no Alasca? — perguntou Estrellita Mendoza.
Minha subespecialidade é o estudo das condições geneticamente relacionadas — explicou Liz.
Você quer referir-se aos cromossomas e genes que venho vendo na televisão e lendo nas revistas, mas sem entender? — perguntou a moça cubana.
Eles são um pouco difíceis — admitiu Liz. — Eu tive uma dotação do governo para estudar o efeito da endogamia em alguns dos grupos de esquimós que não entram muito em contato com o que nós chamamos de civilização.
Não me diga que você teve que viver num iglu! — disse Michael.
Provavelmente eu teria me aquecido melhor se o houvesse feito — riu-se Liz. — O Grande Pai Branco de Washington resolveu que casas pré-fabricadas são habitações mais apropriadas para os esquimós, mas as paredes eram muito menos eficientes em manter fora o frio do que os trinta centímetros de neve comprimida de um iglu.
Arturo apareceu sorrindo com uma bandeja de copos longos de pina coladas.
Obrigada, Arturo. — Liz aceitou um e foi premiada com um amplo sorriso de Arturo.
Ted me disse que a senhora fez sua residência em Duke, doutora, quero dizer, Liz — falou Estrellita. — Eu colei grau em Direito na Universidade da Carolina do Norte, em Chapei Hill.
Então talvez tenhamos sido praticamente vizinhas — disse Liz. — Aquela parte da Carolina do Norte foi considerada por uma de nossas principais revistas como um dos dez melhores lugares para viver neste país.
Pittsburghfoi um dos outros — falou Ted, entrando na conversa — mesmo com seu clima horroroso.
Miami era uma beleza quando aqui chegamos — disse Maria Corazón, como a recordar. — Mas isto foi antes que a venda de drogas e o crime se tornassem a maior indústria do Condado de Dade.
Eu mudarei isto tudo — disse Michael com firmeza.
Não acredito que um homem sozinho possa fazer muito — comentou Liz.
Você não conhece este homem — respondeu Estrellita Mendoza, passando o braço pela cintura de Michael. — Um novo grand jury federal reúne-se amanhã de manhã. Michael vai soltar uma bomba que ecoará nas primeiras páginas de todos os jornais do país.
Você vai tentar romper a conexão colombiana, Mike? — perguntou Ted. Era de conhecimento geral que, vindas da Colômbia e de outras áreas vizinhas da América Central, pelo sul da Flórida entrava mais cocaína e maconha do que por qualquer outro local.
Agências federais e estaduais de incentivo ao cumprimento da lei vêm trabalhando neste projeto há meses, mas sob um ângulo um tanto diferente — explicou o advogado. — A costa da Flórida tem tantos portos ocultos onde pequenos barcos podem descarregar cocaína e maconha depois de recebê-las de navios no alto-mar que é quase impossível impedir a entrada dessas drogas. Desta vez nós vamos agir contra os homens de dinheiro que mais lucram com o tráfico de entorpecentes. Um dos maiores bancos de Miami vem lavando a receita das vendas de cocaína diretamente para contas em bancos suíços, de forma que vamos atingir os magnatas dos narcóticos no ponto exato, onde realmente dói... em seus bolsos.
Com a saída de dinheiro para a Suíça e outros países fechada, os traficantes e reis da droga provavelmente irão começar a matar-se uns aos outros a fim de apropriar-se de uma parte dos despojos — acrescentou Estrellita. — E é aí que a repartição do promotor público estadual entrará em ação.
Você faz parte dela? — perguntou Liz.
Uma parte modesta.
Não deixe que ela a engane — interveio Michael Corazón com orgulho. — Ela é a mais brilhante assistente do promotor público na Flórida.
Vocês parecem formar uma dupla imbatível — comentou
Ted.
Nos velhos tempos, quando Papa e eu chegamos aqui, vindos de Cuba, Miami era uma cidade amável e todo mundo em Co-conut Grove se conhecia. — Maria Corazón levantou-se quando um sino soou em outra parte da casa. — O jantar está pronto. Vamos passar para a outra sala?
A comida correspondeu a tudo o que Ted prometera a Liz. E o evidente prazer da família Corazón e da noiva de Michael em estarem juntos fez com que Liz se sentisse mais à vontade do que ela podia lembrar-se de ter-se sentido desde que viera para Miami. O arroz con pollo estava delicioso, do mesmo modo que a salada de fatias de abacate e pêssegos frescos, os delicados biscoitinhos e a fatia de torta de limão coberta com cremechantilly; e depois o café bem quente servido no intensamente iluminado pátio em torno da piscina.
Este processo no qual Ted diz que você é autoridade, Liz — Michael Corazón perguntou durante uma pausa na conversa — em que consiste exatamente?
A amniocentese é um procedimento médico usado em obstetrícia para obter informações acerca do feto — explicou Liz.
Você quer dizer revelando se vai ser menino ou menina?
Isto também, mas além disso também podemos descobrir muito acerca de possíveis condições hereditárias e anormalidades no desenvolvimento do feto.
Para mim soa como mágica... — admitiu Maria.
Na realidade o procedimento é bem simples — continuou Liz. — Como sabem, durante os nove meses em que o bebê se desenvolve dentro do útero da mãe, ele fica em um saco chamado saco ammiótico, que contém uma boa quantidade de líquido.
O que nós costumamos chamar de bolsa d'água? — perguntou Maria.
Este é o nome popular; na verdade o líquido contém uma certa quantidade de produtos químicos, bem como algumas células da pele e de outros tecidos do feto. Inserindo uma agulha comprida pela parte inferior do abdome da mãe no saco amniótico, pode-se retirar uma pequena quantidade do líquido e fazer uma cultura com as células que ele contém. Em algumas semanas elas se desenvolvem até um ponto em que podemos estudar os cromossomas e os genes nas células do corpo do feto e determinar não apenas seu sexo como também a presença ou ausência de um certo número de defeitos herdados.
Recordo-me agora de ter visto um programa de tevê sobre este assunto — disse Estrellita com um arrepio. — Eu tenho pavor de agulhas de injeção, e o programa deixou-me nervosa, mas era realmente fascinante.
Fico contente que os doutores não sabiam dessas coisas quando eu estava tendo meus filhos; eu teria ficado apavorada se soubesse de todas as coisas que poderiam acontecer. — Maria virou-se para Arturo: — Por que você não mostra à Dra. MacGowan algumas de suas pinturas, filhote?
Você gostaria? — perguntou Arturo ansioso.
Adoraria vê-las.
O mano tem seu estúdio onde era a garagem — explicou Michael. — Nós temos de fato muito orgulho do trabalho dele.
E tinham razão de tê-lo, pensou Liz quando o filho mais moço levou-a até a ala onde se localizava seu ateliê. As pinturas dele poderiam ser classificadas, julgou ela, como primitivas, ao estilo de Grandma Moses, mas tinham uma personalidade toda própria, por outro lado, indicando distintamente um talento fora do comum. A maioria das pinturas eram dos arbustos e flores em volta da casa, mas algumas eram vistas da baía, com vários tipos de barcos, alguns em movimento, outros ancorados. Umas poucas continham imagens de pessoas, e Liz distinguiu com facilidade Maria Corazón com Michael e dois outros homens.
Há quanto tempo você pinta? — perguntou Liz.
Desde que tinha dez anos de idade. Você um dia deixaria que eu pintasse seu retrato?
Naturalmente. Gostaria muito que você me pintasse.
Estrellita deixou-me fazer o retrato dela; está ali naquela parede.
O retrato era pequeno, mas feito com muita habilidade, revelando a beleza morena da noiva de Michael e ao mesmo tempo preservando o toque característico do pincel de Arturo.
Você deve andar muito ocupado cuidando do jardim e também pintando, Arturo.
Gosto de manter-me ocupado. — E mudou abruptamente de assunto de novo, como parecia ser seu hábito. — Você vai casar-se com o Dr. Ted?
Um dia, por quê?
Eu gosto de ver felizes as pessoas que amo, e o Dr. Ted é como se fosse um dos meus irmãos.
Qual é sua idade, Arturo?
Farei vinte e cinco em meu próximo aniversário. Você virá a minha festa? O Dr. Ted sempre vem.
Então eu virei também — prometeu ela. — Talvez seja melhor voltarmos para a sala agora. O Dr. Ted e eu teremos que partir logo. Ele está afastado do hospital há quatro dias, de forma que precisa ver seus pacientes amanhã de manhã, e eu tenho que operar lá pelas dez horas.
— Deve ser maravilhoso poder curar as pessoas doentes. Quando Liz voltava-se para a porta que conduzia à casa, ficou
surpresa de ver um rifle calibre 22 pendurado num gancho na parede.
Você também caça? — perguntou.
Apenas cobras venenosas, que aparecem no jardim — respondeu Arturo. — Às vezes serpentes venenosas nadam pelo canal, vindas dos Everglades, e escondem-se nos canteiros. Se eu descubro uma, pego a espingarda e mato-a.
Liz MacGowan estava retocando seu batom no toalete ao lado do saguão da casa dos Corazón antes de sair quando ouviu uma batida na porta.
Posso entrar, Dra. MacGowan? — perguntou Estrellita do outro lado da porta.
Pois não. — Liz voltou-se do espelho quando a moça mais nova abriu a porta. — Eu estava justamente saindo.
Fique um momento, por favor; quero falar com você. — Entrando no toalete, Estrellita fechou a porta. — Estou aflita acerca de algo e espero que você possa dar-me a resposta.
— Certamente o farei, se puder.
É acerca do mano... Arturo.
Liz pressentiu o que poderia estar perturbando Estrellita, mas esperou que ela continuasse.
O que você achou das pinturas dele? — perguntou Estrellita.
São muito bonitas, especialmente seu retrato. É evidente que ele gosta muito de você, mas isto não é o que a está preocupando, é?
Não. Você deve ter entendido, naturalmente, que ele é diferente da maioria das pessoas.
Arturo nasceu com a síndrome de Down — disse Liz, concordando com a cabeça. — Chama-se assim por causa do homem que primeiro a descreveu. A maior parte das crianças com a síndrome de Down são entretanto muito mais retardadas mentalmente do que ele parece ser. Você tem uma idéia de qual o nível do QI dele?
Michael diz que é em torno de setenta ou oitenta. Quando entrou para a escola, algumas das outras crianças mexeram com ele, porque ele era diferente!
Isto não é incomum.
Ele tinha dificuldade para ler, e ainda tem, por isso a família tirou-o da escola pública e mandou-o para uma escola em Coral Gables especial para crianças retardadas.
Sua atitude frente à vida parece ser muito feliz — disse Liz. — Efetivamente tenho a suspeita que ele seja uma pessoa muito melhor do que muitos com inteligência normal, que têm problemas emocionais.
A síndrome de Down é hereditária? — Estrellita deixou escapar a pergunta, confirmando a suspeita de Liz de que esta era a razão pela qual ela viera ao toalete.
É congênita, mas comumente não é considerada hereditária.
Você poderia... poderia explicar a diferença?
Quando a primeira célula fetal é formada pela união do esperma do pai com o óvulo da mãe, uma mudança às vezes ocorre num cromossoma da nova célula. Daí em diante, todas as células do corpo do embrião irão apresentar os mesmos cromossomas alterados, e irão desenvolver, como aconteceu como Arturo, o quadro que nós costumávamos chamar pelo horrível nome de "mongolismo", devido à forma alterada dos olhos e o rosto redondo, junto com outras características. Quando você se casar com Michael, a única coisa que aumentaria a probabilidade de seu bebê ser como Arturo — acrescentou ela — seria se você esperasse até depois dos trinta e cinco anos para engravidar.
Ao deixarem Coconut Grove um pouco antes das dez horas, Ted dirigia o Mercedes, e Liz se esticava no assento ao lado. Enquanto ele guiava o carro ao longo do parque de Coconut Grove, que fron-teava a baía, em direção a South Bay Shore Drive, Liz falou pela primeira vez desde que eles tinham deixado a mansão dos Corazón.
Você é um refinado patife — disse ela, mas sem nenhum rancor na voz.
O que você quer dizer com isso? — perguntou Ted, fingindo inocência.
Não negue que você me trouxe aqui esta noite porque queria que eu visse Arturo.
Não vou negar, mas Arturo é por si mesmo uma pessoa que vale a pena conhecer.
Concordo, e é por isso que não estou zangada. Você por acaso saberia que idade tinha Maria Corazón quando Arturo nasceu?
Uns trinta e oito anos, talvez um pouco mais. Por quê?
Não finja que você não sabe que cada ano depois que a mãe alcança os trinta e cinco as chances de uma gravidez resultando numa síndrome de Down crescem rapidamente.
E daí?
Eu tenho apenas trinta e dois, de forma que as probabilidades em minha idade não são muito altas.
Pelo que sei, você vem usando a pílula há um ano — lembrou-lhe ele. — Mulheres que usam a pílula muitas vezes têm dificuldade em engravidar depois que param de tomá-la, e algumas até durante vários anos. Por essa época você já terá trinta e cinco anos, ou até mais!
Não com um garanhão como você por marido...
Obrigado pelo cumprimento. — Ele deu-lhe um ligeiro apertão na perna. — Mas eu ainda acho que você precisa ser lembrada que os anos estão passando por nós... não que você mostre muito os efeitos deles...
Você está sendo muito galante esta noite — atalhou ela. — Talvez você tenha um motivo oculto.
Eu? É claro que não — respondeu Ted, enquanto dirigia o carro por sobre a pequena ponte que cruza o rio Miami e entrava na tráfego pesado da parte central de Miami. — Você sabe que sou sempre galante e encantador...
Onde o Biscayne Boulevard acompanha o Parque Bayfront, eles seguiram a corrente do tráfego em direção ao norte, até que o topo superiluminado da torre do Hospital Geral Biscayne, com seu terraço para aterrissagem de helicópteros, apareceu contra o céu a leste do bulevar. Quando Ted fez a curva e entrou numa larga porém menos congestionada avenida, que dava acesso ao complexo hospitalar pelo lado da baía e ao Biscayne Terrace pelo lado oposto, uma ambulância, com as sirenas berrando e as luzes de alerta piscando, passou disparada por eles e virou para a entrada de emergência do hospital.
Parece que a SE (o jargão hospitalar para Sala de Emergências) vai estar muito movimentada esta noite... — observou Ted.
Espero que não seja uma prenhez tubária reta, pois estou de plantão na Ginecologia.
Sou solidário com você nesta apreensão. Você tem operação marcada pela manhã?
Uma histerectomia vaginal às dez — disse ela, enquanto ele subia com o carro pela rampa que dava acesso à garagem do estacionamento do hospital, que também servia para aqueles que viviam no Biscayne Terrace. — E você?
Eu estarei trabalhando todo o dia no SAM (Serviço de Arquivos Médicos) do hospital.
Está atrasado com sua papelada de novo? Os funcionários de escritório dos hospitais estão sempre se queixando de que os médicos são negligentes na finalização de seus relatórios.
Mostre-me um hospital onde tal coisa não seja verdade. Desta vez, no entanto, eu estarei procurando pacientes cujos transplantes de rim tenham sido rejeitados. Quaisquer deles que tenham tido a sorte de sobreviver por meio de diálise após a rejeição são candidatos de primeira escolha para novo transplante, usando a ciclosporina e a técnica de esteróides que eles vêm empregando em Pittsburgh. Se eu puder oferecer a bastantes deles uma oportunidade de se livrarem da diálise, estarei inaugurando uma área inteiramente nova de transportes no Biscayne.
Você pensa realmente que poderá dar a muitos pacientes cujos organismos rejeitaram um transplante anterior uma nova chance de viver? — perguntou Liz, enquanto ele estacionava o carro num espaço designado pelo nome dela pintado na parede da garagem.
Disso estou certo. Até aqui, o registro de casos bem-sucedidos com doadores sem parentesco era apenas de 50%, mesmo nas melhores clínicas, mas cerca dos últimos cem casos realizados em Pittsburgh com a nova técnica resultaram numa proporção de sucessos próxima a 90%. A diferença poderia significar não ficar acorrentado a uma máquina de diálise e dar vida nova a uma porção de pessoas que estão tendo agora apenas meia vida. Mesmo que só a metade dos rejeitados opte por uma nova tentativa, minha equipe de cirurgia irá ser a mais ocupada no Biscayne!
É um sonho maravilhoso! Espero que quando acordar você descubra que ele é real.
Por que não levo correndo a mala para meu apartamento enquanto você liga a cafeteira para tomarmos um café irlandês antes de dormir? — perguntou ele quando entrava no elevador. — Posso descer dentro de uns minutos.
Para mim parece uma boa idéia. Espero você.
Ela havia mudado de roupa, Ted viu logo quando ela abriu a porta, uns dez minutos mais tarde. Com um belo robe de seda que ele lhe dera de presente no Natal, e com o cabelo recentemente escovado, e caindo-lhe sobre os ombros, ela era a coisa mais bonita que ele já vira. Quando a tomou nos braços, o prolongado beijo que deram deixou a ambos quase sem respiração.
O café está pronto — disse ela quando Ted a largou. — Comprei uma garrafa de uísque irlandês esta tarde a caminho do aeroporto, para que pudéssemos celebrar seu aniversário.
Neste momento eu tenho uma idéia melhor de como um aniversário deve ser comemorado. — Tomando-a nos braços, caminhou, sem oposição, em direção ao quarto de dormir.
Às sete da manhã seguinte Ted estava preparando bacon na cozinha do apartamento de Liz e assistindo às notícias matutinas no pequeno aparelho de televisão da cozinha. Ela saiu do banheiro vestindo um robe felpudo e uma grande toalha enrolada na cabeça formando um turbante para ajudar a secar-lhe o cabelo.
Você me arrebatou na noite passada antes que eu pudesse dar-lhe o presente que comprei. — Ela entregou-lhe uma pequena caixa com um laço de fita vermelha maior do que a própria caixa.
E depois... receio haver-me esquecido...
Ele abriu a caixa revelando um par de abotoaduras de ouro com um emblema estranho estampado no metal de uma forma rústica.
São moedas antigas — explicou ela. — Recuperadas do fundo do mar no canal da Flórida ao largo de Key West onde alguns galeões espanhóis carregados de ouro afundaram durante uma tempestade no século XVI... de acordo com o caixeiro que as vendeu para mim.
Provavelmente vindos das Filipinas — falou Ted, levantando uma das abotoaduras para examinar mais de perto a inscrição.
Os espanhóis mandavam seus galeões dos portos do Extremo Oriente para a costa ocidental do Panamá, que era então chamada de SpanishMacem. Dali eles transportavam o ouro através do istmo em lombo de burro e carregavam-no em navios que cruzavam o Atlântico para a Espanha seguindo ao longo dos estreitos da Flórida e da Corrente do Golfo. Num Natal, quando eu estava na Faculdade de Medicina e em visita aos Corazón, Mike e eu andamos mergulhando, mas não encontramos nenhum tesouro...
Lembro que você me falou sobre isso. Foi por este motivo que comprei as abotoaduras.
Elas são maravilhosas! Vou usá-las com fraque e gravata branca em nosso casamento. Dentro de quanto tempo você estará pronta para o desjejum?
Dentro de quinze minutos — respondeu Liz, caminhando para o quarto. — O cheirinho do café está deli...
Ela interrompeu-se no meio da palavra quando a cena na tela da tevê mudou para uma que eles reconheceram imediatamente. Era a rua em Coconut Grove em frente ao portão da mansão dos Corazón, pelo qual eles haviam passado há menos de doze horas.
Interrompemos este programa — o jovem locutor, encarregado em geral de ler as notícias da manhã e o boletim meteorológico, estava francamente gaguejando de excitação — para trazer-lhes notícia da tragédia cujos efeitos ainda estão sendo sentidos neste exato momento. Há menos de quinze minutos, quando saía de carro pelos portões da mansão da família em Coconut Grove, o promotor federal especial Michael Corazón foi atingido por uma rajada de tiros partida de um carro que obviamente estava esperando por ele do outro lado da rua. Uma ambulância da Brigada de Resgate está levando o Sr. Corazón para o hospital neste momento, de forma que não podemos dizer-lhes a gravidade de seus ferimentos. Mas, uma vez que se informa que ele dirigia um jipe na ocasião, seu corpo teria pouca, quiçá nenhuma, proteção da carroceria do veículo. Receia-se que os ferimentos do Sr. Corazón sejam conside...
O bip de Ted Bronson, pendurado em seu cinto, emitiu um som esganiçado logo seguido pela voz da telefonista encarregada da procura: "Dr. Bronson! Dr. Theodore Bronson! Por favor, chame 355-7677 imediatamente."
Reconhecendo o número do telefone da casa dos Corazón, Ted deu dois largos passos cruzando a cozinha e levantou o fone do aparelho na parede ao lado da janela, apertando os botões rapidamente.
Aqui é o Dr. Bron... — disse ele quando a ligação se completou.
Dr. Ted, os homens maus atiraram em Michael. — Arturo estava soluçando, o que tornava suas palavras quase irreconhecíveis.
Vi a notícia na televisão, mano. Para onde a Brigada de Resgate levou-o?
Eu disse-lhes que fossem para o Hospital Biscayne, Ted, e chamassem você. — A voz de Maria Corazón apareceu numa extensão. — Eu estava cortando flores próximo ao portão e vi o que aconteceu. Eles atiraram nele com um rifle automático, Ted. Você tomará conta dele?
Naturalmente. A senhora e Arturo venham para o hospital e notifiquem o resto da família. Falarei com vocês depois de examinar Mike.
Graças a Deus que você está aí. Estamos dependendo de você para salvá-lo.
Salve Michael, Dr. Ted. — Arturo parou de soluçar por tempo suficiente para dizer estas palavras antes que Ted desligasse.
Acredita-se que o motivo para a tentativa de assassinato do promotor especial Corazón — a voz do locutor de tevê agora estava firme — seja o fato de que ele deveria acusar esta manhã diversas figuras situadas nos altos escalões dos meios bancários de Miami perante um grand jury federal especialmente escolhido para investigar o lucrativo tráfico de narcóticos.
Vou andando para a Sala de Emergências, Liz. — Apanhando seu paletó e gravata, Ted cruzou a sala de estar em direção ao hall de entrada. — Chame a Sala de Emergências e diga-lhes que Mike é meu paciente e que estou indo para lá.
Quando Ted saía da entrada do Biscayne Terrace, ouviu a sirena de uma ambulância. Enquando corria atravessando a larga pista em direção ao hospital, o veículo fez uma curva fechada ganhando a entrada do hospital e freou ao lado da plataforma de descarga. As rodas mal tinham acabado de girar quando o técnico que estava dirigindo abriu a porta e saltou rapidamente para abrir as portas de trás da ambulância, a fim de permitir que a maca pudesse ser removida.
Ele não está nada bem, Dr. Bronson. — O técnico sentado ao lado de Michael Corazón reconheceu Ted. — Quatro ou cinco balas penetraram-lhe no tronco. Eu comecei uma EV (endovenosa) tão logo o colocamos na ambulância, mas sua pressão continua caindo.
Eu seguro o frasco — disse Ted enquanto os dois homens removiam a maca da ambulância e carregavam-na para a plataforma. — Qual foi a última leitura de pressão?
Oito por quatro, mas difícil de medir.
Os números não auguravam nada de bom quanto à vida de Corazón. E quando Ted tomou o pulso do ferido, enquanto a padiola era rolada para cima da rampa em direção à Sala de Emergências do Biscayne, ele verificou que o pulso estava fino e rápido demais pafa contar.
O residente da Sala de Emergências, um jovem médico de cabelos ruivos, chamado Edward Thomas, que Ted ajudara na prática, encontrou-os na entrada da Sala de Emergências.
Escutei pelo rádio quando estava na cafeteria, Dr. Bronson — disse ele — e vim correndo caso eles o trouxessem para cá.
A família telefonou-me pedindo para que me encarregasse dele — disse-lhe Ted. — Comece uma transfusão com sangue tipo O tão logo seja possível, Ed.E enquanto está providenciando, um frasco de Fluosol também ajudaria.
Nós sempre o temos pronto. — O Dr. Thomas dirigiu-se a uma grande geladeira. — Devo substituir a solução salina e a glicose que ele já está recebendo pelo Fluosol ou começar outra endovenosa?
Você conseguirá administrá-lo mais rápido pela agulha que já está colocada. — Ted estava auxiliando a enfermeira supervisora da Sala de Emergências a cortar as roupas de Michael Corazón, para permitir-lhe examinar a parte inferior de seu peito e o abdômen. Momentos mais tarde, uma técnica de laboratório apareceu com uma bandeja para tirar sangue e rapidamente colocou um torniquete no outro braço de Corazón.
Sua pressão deve estar muito baixa — comentou ela enquanto batia na pele abaixo do torniquete procurando sentir as veias na depressão da curva do braço. — Está difícil encontrar uma veia.
Tão logo tirar o sangue para análise, comece a fazer uma prova cruzada para a transfusão — instruiu Ted à enfermeira. — Enquanto isso, combateremos o choque da melhor forma que pudermos com sangue tipo O e Fluosol.
Um produto químico notável que pode fornecer oxigênio, função normalmente desempenhada pela hemoglobina e pelos glóbulos vermelhos da corrente sanguínea, Fluosol salvara muitas vidas nos Estados Unidos desde sua introdução, vindo do Japão há alguns anos. O sangue tipo O provinha de doadores universais e podia portanto ser administrado a qualquer pessoa com razoável segurança. Era sempre estocado no hospital como medida para salvar vidas.
Enquanto a enfermeira retirava o sangue, o Dr. Thomas substituiu a injeção de glicose e soro fisiológico, iniciada pelo pessoal da Equipe de Resgate por um frasco de Fluosol. Abrindo o grampo de controle do tubo de alimentação endovenosa, ele fez com que o líquido corresse tão rapidamente quanto possível para combater o choque. Enquanto isso, a enfermeira supervisora da Sala de Emergências embrulhava uma almofada de pressão em torno do braço do ferido para substituir aquela que os técnicos da ambulância tinham usado.
A pressão está subindo — comunicou ela minutos depois.
Vejo quatro furos de entrada, todos acima do umbigo; poderemos procurar os orifícios de saída quando o colocarmos na mesa de raios X. — Enquanto examinava a parte superior do abdome e a parte inferior do peito de Michael Corazón, Ted estava visualizando com os olhos de sua mente a anatomia da cavidade abdominal do ferido e que caminho teriam provavelmente seguido as balas. O que ele concluiu não previa nada de bom para a vida de seu amigo.
Estou numa veia relativamente grande, Dr. Bronson — informou a técnica de laboratório ao tirar o sangue numa seringa para o teste de emergência. — O senhor quer colocar um cateter-eletrodo de Swan-Gauz?
Ted tinha que tomar uma decisão rápida e de grande importância. Se houvesse qualquer perigo do coração de seu amigo parar devido ao choque, um cateter com um fio elétrico por dentro de suas paredes poderia ser enfiado pela grande veia do braço até dentro do peito e daí ao lado direito do coração; ali ela tocaria a parede do ventrículo direito, permitindo que impulsos elétricos fossem usados como um marcapasso interno para manter o coração batendo até que sua própria função pudesse ser restaurada. Este procedimento no entanto levaria tempo, por isso Ted o recusou naquele momento.
Colocarei um através de um trocarte na veia subclávia se necessitarmos — disse ele à técnica. — A pressão dele está subindo e nenhuma das balas parece ter passado perto do coração.
Nove por cinco — informou a enfermeira com o instrumento de medida da pressão. — O pulso também está se firmando um pouco.
Vamos colocá-lo numa maca do hospital e levá-lo para a Radiologia. — Mãos hábeis moveram o corpo do ferido para a pesada maca, que também poderia funcionar como mesa de operação de emergência, se necessário. Neste ínterim, Ted examinou rapidamente o lado esquerdo e as costas de Corazón, procurando sinais de que as balas que lhe haviam penetrado no corpo teriam talvez também saído. Achou apenas dois orifícios de saída, no lado esquerdo, o que significava que dois dos projéteis ainda estavam dentro do corpo.
Depois que Ted deixou seu apartamento, Liz vestiu-se rapidamente e parando apenas para uma xícara de café atravessou o bulevar até o hospital, entrando pela porta da Sala de Emergências. Ela não esperava que Ted necessitasse dos serviços dela, sabendo que ele era capaz de enfrentar qualquer cirurgia de emergência, mas esperava dar apoio a Maria e Arturo. Eles ainda não haviam chegado, disse-lhe a enfermeira de cabelos grisalhos, supervisora da Sala de Emergências, levantando a cabeça da mesa onde estava fazendo um registro de entrada no relatório do dia.
A senhora sabe de alguma coisa acerca da condição do Sr. Corazón, Sra. Burke? — perguntou Liz.
O Dr. Bronson acaba de levá-lo para a Radiologia, Dra. MacGowan. Ele estava em choque profundo quando a ambulância o trouxe para cá, mas melhorou rapidamente com Fluosol EV. Ouvi o Dr. Bronson dizer que quatro balas entraram no abdome superior e peito inferior do Sr. Corazón, mas que duas delas parecem ter atravessado completamente. Ele está tentando localizar as outras duas com os raios X, enquanto uma sala de operação está sendo preparada no andar de cima.
O Dr. Bronson e eu jantamos com os Corazón ontem à noite; é duro de acreditar que algo como isto possa acontecer numa comunidade civilizada.
A ante-sala está cheia de repórteres e de câmaras de tevê esperando que o Dr. Bronson saia da Radiologia — disse a enfermeira grisalha. — Se a senhora quiser estrelar na tevê basta atravessar a porta da ante-sala e dizer a eles que jantou com a família Corazón ontem à noite.
De jeito nenhum...
Eu era supervisora na Obstetrícia quando Arturo Corazón nasceu — acrescentou a enfermeira. — A senhora o viu ontem à noite?
Sim. Ele é muito amável e muito talentoso também. Mostrou-me algumas de suas pinturas.
Dra. MacGowan... 2401 — a voz da telefonista de busca fazia-se ouvir do alto-falante no teto da grande sala de azulejos brancos. — Dra. Elizabeth MacGowan...2401.
Pegando o telefone na mesa da enfermeira, Liz discou o número do Dr. Paul Fraser, chefe do departamento de Liz na movimentada metrópole que era o grande hospital e escola de medicina.
Aqui é a Dra. MacGowan, Peggy — disse ela para a secretária do departamento que atendeu. — Você quer falar comigo?
O Dr. Fraser chegou há alguns minutos e gostaria de vê-la no consultório dele tão logo a senhora puder.
Estarei aí em dois minutos.
Michael Corazón gemeu e abriu os olhos quando Ted Bronson estava ajudando o técnico a virá-lo na mesa de raios X para tirar uma radiografia lateral da parte inferior do tórax e superior do abdome. As vistas anteriores-posteriores já tiradas dariam a localização das balas no plano horizontal do corpo do ferido, mas vistas laterais também eram necessárias para determinar sua posição num plano vertical. Estudando as duas vistas, depois de terem sido revelados os filmes, o cirurgião e o radiologista poderiam localizar com bastante precisão as balas que haviam ficado no corpo.
Que azar, Mike! — disse Ted batendo no ombro de Corazón. — Como você se sente?
Meu lado direito dói pra burro, e minha barriga apenas um pouco menos — balbuciou Corazón. — Lembro-me de ter ouvido tiros e sentido qualquer coisa bater no meio de meu corpo antes de cair do jipe.
O que bateu no meio de seu corpo foram balas — disse-lhe Ted. — Alguém estava esperando você do outro lado da rua, em frente à entrada de sua casa, com uma metralhadora. Por acaso você reconheceu o homem que atirou em você?
Não o que estava com a arma, mas consegui ver o que estava guiando... bastante para saber que era Sam Gianno. Isto o torna cúmplice se eu sobreviver para testemunhar.
Você irá sobreviver, mas vou ter que operá-lo. Mama e Arturo insistiram que você seja meu paciente.
Não poderia estar em melhores mãos. Você poderia começar dando-me algo para a dor?
Chame a Sra. Barnes na Emergência, por favor — disse Ted à técnica de raios X que estava tirando as chapas. — Peça-lhe para mandar 50 miligramas de Demerol e quatro décimos de miligrama de atropina.
Uma segunda técnica apareceu na porta da sala quando a primeira saiu para obter a medicação e disse:
Os primeiros filmes serão revelados em cerca de um minuto, Dr. Bronson. O Dr. Davis irá examiná-los com o senhor. — Lu-ke Davis era o chefe da Radiologia do hospital.
Ted? — a voz de Michael Corazón ainda estava muito fraca. — Deve haver uma porção de repórteres...
Ouvi dizer que o saguão está cheio deles, mas...
Fale com eles antes de operar...
Mas...
...e diga-lhes que reconheci Sam Gianno dirigindo o carro.
Você está seguro disso?
O bastante para colocá-lo no fogo. Se nós prendermos Gianno até que eu volte a trabalhar, isto vai pôr uma pedra no sapato do ramo da Máfia de Nova Jersey, que ele representa no comércio de drogas de Miami.
A equipe da Sala de Operações logo estará aqui para levar você para cima e aprontá-lo para a cirurgia — disse Ted, enquanto se voltava para sair do quarto. — Eu agora vou olhar os raios X.
Na sala de negatoscópios do Departamento de Radiologia, suas paredes cobertas de quadros de vidro fosco, o Dr. Luke Davis observava uma técnica colocar uma série de Filmes recém-revelados nos quadros de uma das paredes.
Ouvi acerca dos tiros no rádio quando estava estacionando meu carro na garagem, Ted — disse Davis. — Como está Michael Corazón?
Saindo de choque mas ainda meio tonto. Tão logo eu examinar estes filmes e falar com o pessoal da mídia, vou fazer uma exploratória de seu abdome.
Mais uma polegada para cima e uma das balas teria roubado a você qualquer chance de operar. — Usando o cachimbo que estava fumando, Davis apontou para a primeira na série de chapas de raios X: — Julgando por aquela mossa na aresta inferior da costela, uma bala apenas arranhou o osso o suficiente para reduzir-lhe a velocidade. Você pode ver a bala sob a pele nas costas dele, mas se ela tivesse atingido a aresta superior da costela e tivesse sido desviada um pouquinho para cima, poderia ter destruído a base do coração.
E quanto ao fígado?
A bala que tocou na aresta inferior da costela foi desviada o suficiente para baixo para mergulhar no topo do fígado também. Com apenas uma pequena diferença de ângulo, poderia ter atingido a aorta, a veia cava inferior, ou ambas, e ele nunca teria chegado ao hospital vivo.
Graças a Deus pelo menos por isto...
Há algum gás no abdome, o qual parece que pode estar fora do intestino, e assim você provavelmente encontrará perfurações intestinais.
Isto era de se esperar. Que mais?
Não gosto daquele agrupamento de fragmentos de chumbo na área do pólo superior do rim direito. — Davis apontou com a haste do cachimbo para outra área, algo mais baixa do que o local em que eles podiam observar uma única bala. — Do jeito que as coisas aparecem, uma bala atingiu o centro da segunda ou terceira vértebra lombar, e literalmente explodiu.
Junto com um rim?
Provavelmente! Aqui está a vista lateral dessa área. Hum... — Davis cofiou sua densa barba negra enquanto a técnica continuava colocando filmes na fila de negatoscópios. — Pela localização dos fragmentos de chumbo, meu palpite é que você encontrará o rim direito bem destruído, mas só poderá estar seguro com um pielo-grama endovenoso.
Não há tempo para isto — disse o cirurgião. — Vou explorar aquela área em primeiro lugar, quando começar a operação.
Do lado de fora da porta do Departamento de Radiologia, Ted encontrou dois homens que ele nunca tinha visto antes. Um era baixo e encorpado, o outro alto.
Nick Patterson, agente especial do FBI junto ao Grupo de Trabalho de Narcóticos em Miami, Dr. Bronson — disse o homem alto. — E este é Steve Pagano, chefe do Escritório de Repressão de Narcóticos do Ministério da Fazenda na Flórida. Como está Mike Corazón?
Saindo do choque, mas ele foi gravemente baleado. Espero que tenham apanhado os assassinos.
Ainda não — disse rudemente o chefe do Escritório de Narcóticos — mas iremos apanhá-los. O Sr. Corazón falou algo acerca de ter reconhecido qualquer um dos dois homens no carro? — perguntou Patterson.
Ele acha que Sam Gianno dirigia o carro...
Acha não é bastante definitivo — disse Patterson com firmeza.
Concordo — disse Ted. — Além disso, um chefão da Máfia como Sam Gianno iria tomar parte pessoalmente num atentado desses?
Gianno ainda não tem um posto muito alto na hierarquia da Máfia; a operação em Miami é uma espécie de campo de prova para ele — disse Pagano. — A fim de provar que ele é elegível para ser promovido a algo como o posto de "padrinho" de segunda classe na hierarquia da Máfia, ele teria pelo menos que estar presente num atentado bem-sucedido, embora pessoalmente não manejasse as armas.
Apenas o fato de estar presente faz dele cúmplice, não?
Pode ficar certo de que o prenderemos sob a suspeita de ser cúmplice numa tentativa de assassinato — disse Patterson — mas ele já terá sido libertado sob fiança antes que o senhor acabe sua cirurgia, Dr. Bronson — a não ser que Mike faça um testemunho juramentado antes que o senhor o anestesie afirmando a presença de Gianno na cena do atentado.
Ele não está em condições de fazer isto agora, e ainda não estará por alguns dias — disse-lhes Ted. — Mike deseja que eu promova uma reunião com a imprensa e identifique Gianno como o motorista do carro do atentado, mas eu não posso esperar tanto antes de operá-lo. Os senhores vão ter que se encarregar dos repórteres até que eu acabe a cirurgia.
Nós os manteremos afastados — assegurou Nick Patterson. — Diga a Mike que nós todos estamos torcendo por ele.
Rezando seria talvez mais apropriado — disse-lhes Ted sério, enquanto se dirigia para o andar do Centro Cirúrgico.
— Pode entrar direto, por favor, Dra. McGowan — disse a secretária do Dr. Paul Fraser quando Liz entrou na sala de espera do consultório do chefe do departamento. — Ele está esperando pela senhora.
Próximo aos setenta anos, Paul Fraser era alto, com o rosto bem marcado e enérgico. Ele estava falando no telefone quando Liz entrou no escritório, e acenou para ela sentar-se numa confortável cadeira ao lado da mesa dele. Como em muitos dos consultórios dos médicos na suíte que ocupava um andar da torre do Hospital Geral Biscayne, uma ampla janela envidraçada até o chão abria-se para a baía Biscayne. Através dela, a fila de hotéis ao longo de Miami Beach era visível do outro lado da brilhante superfície da baía e, num plano mais próximo, um lado da janela proporcionava uma vista enviesada de uma parte do centro comercial de Miami e dos vários navios de cruzeiro, com sua reluzente pintura branca, atracados no porto.
O Dr. Paul Fraser desligou o telefone e olhou por cima da mesa para Liz McGowan com um sorriso afetuoso.
Você está maravilhosa — disse. — Como está Ted?
Neste momento está se preparando para operar Michael Co-razón.
Vi a notícia na tevê acerca da tentativa de assassinato esta manhã quando tomava café. Ted conseguirá salvá-lo?
Se for humanamente possível... Nós jantamos na mansão dos Corazón ontem à noite, para celebrar o aniversário de Ted. É difícil de acreditar que tudo isso possa ter acontecido menos de doze horas depois!
É um lugar muito bonito, uma das poucas fazendas em Co-conut Grove que ainda restam — disse Fraser. — Os Corazón e os Mendoza faziam parte da aristocracia espanhola em Cuba, antes que Fulgêncio Batista assumisse o poder. Você foi apresentada a Arturo?
Ele recebeu-nos à porta e depois do jantar mostrou-me suas pinturas.
Eu fiz o parto dele no antigo hospital Jackson Memorial pouco depois de Juan e Maria virem para Miami. Se você viu os quadros de Arturo, você sabe que, como acontece ocasionalmente com os portadores da síndrome de Down, ele é muito talentoso, além de ser uma das pessoas mais felizes e generosas que já conheci.
Ele certamente parece ser tudo isso.
Recebi uma chamada ontem à noite que irá interessá-la — disse Fraser. — Foi de um velho amigo, o xeque Yossuf Almani, embaixador de Telfa junto às Nações Unidas.
Receio nunca ter ouvido falar dele, ou de seu país — disse Liz franzindo a testa.
Nem a maioria das pessoas, exceto aquelas que se ocupam com importação de petróleo. Telfa é um dos Emirados Árabes e tem sido há séculos governado pela família Elzama. O atual governante, Hassim Elzama III, é um monarca absoluto, da mesma forma que o foram seu pai e seu avô. Na verdade Telfa tem muito pouco para distingui-la, exceto uma grande quantidade de areia, duas ou três cidades de médio porte e o fato de que o emirado está assentado diretamente sobre o que parece ser uma bacia inesgotável de petróleo bruto.
Do que me recordo da geografia daquela área dos meus tempos de ginásio, isto não faz de Telfa algo fora do comum, não?
Talvez não, mas mesmo assim é diferente da maioria dos Emirados Árabes, pelo menos por uma razão. A maior parte dos royalties dos poços de Telfa destina-se a benefícios para seu próprio povo, em vez de ir para gordos parentes do governante, que despendem a maior parte de seu tempo jogando em Monte Carlo ou vivendo em Paris.
Isto recomenda o país, e seu governo.
Telfa tem também a mais alta renda per capita de todos os Emirados Árabes. Hassim Elzama foi educado na América e suas escolas e hospitais são os mais modernos.
Ele parece ser uma raridade: um potentado árabe esclarecido.
Infelizmente, ele está morrendo de leucemia.
Que azar!
Pior do que isso. Ele não tem herdeiro... a não ser que o feto no ventre da princesa Zorah, sua mais jovem e mais recente esposa, seja um menino.
O que isto tem a ver conosco? — perguntou Liz.
Foi exatamente por isto que eu lhe pedi para dar uma passadinha aqui antes de ir para a Sala de Operação — falou Fraser. — Quando eu era um jovem professor-assistente em Georgetown, antes de vir para Miami, minha esposa e eu morávamos perto do xeque Yossuf Almani. Ele tinha acabado de formar-se pelo Massa-chusetts Institute of Technology e estudava na Faculdade John Hopkins de Estudos Internacionais Avançados. Eu fiz o parto de seus dois filhos e nós temos sido amigos desde então. Mais tarde, Yossuf tornou-se embaixador de Telfa junto às Nações Unidas e porta-voz de seu país e da maioria dos outros Emirados Árabes. Desculpe-me incomodá-la com história antiga, mas você precisava saber disso antes de decidir-se a aceitar a paciente que estou a oferecer-lhe.
Se é mulher, aceito com sua recomendação, de qualquer maneira.
O emir Hassim Elzama pediu a Yossuf Almani para encarregar-se de um assunto muito delicado, algo que precisa ser mantido pelo menos tão secreto quanto os assuntos internacionais concernentes à realeza sempre o são. Hassim tem 46 anos de idade e já foi pai de seis filhas de duas esposas, porém, de acordo com a lei de Telfa, a sucessão ao título de emir é restrita à linhagem masculina.
Naturalmente... — disse Liz com uma pitada de sarcasmo.
Se Hassim morrer sem gerar um herdeiro masculino — continuou Fraser — o controle político de Telfa ficará sujeito a uma disputa que poderá levar a uma guerra civil entre as duas principais famílias e uma facção política dissidente, de tendência esquerdista, fomentada por Moscou. Com o dinheiro que os russos estarão dispostos a gastar visando possuir um pedaço de terra estrategicamente localizada na península árabe, com um movimentado porto, os dissidentes poderão até ganhar o controle em sua pretensão de transformar o país numa democracia.
Uma horrorosa possibilidade, pelo menos para o emir, estou certa.
E para os Estados Unidos. Esperando gerar um herdeiro,
Hassim tomou uma bela e jovem mulher de uma boa família em Telfa como sua esposa consensual no ano passado. Nesta altura ela é realmente sua concubina, mas se ela lhe der um filho macho, ele a fará rainha... e a família dela se tornará subitamente importante na política de Telfa.
Uma situação bem complicada... — comentou Liz.
De acordo com o que Yossuf me disse ao telefone ontem à noite, a princesa Zorah está agora no quinto mês de gravidez e Hassim está naturalmente ansioso para saber se o bebê é menino ou menina. Yossuf Almani leu, suspeito que num dos artigos que você publicou, acerca do progresso que tem ocorrido através da am-niocentese e biópsia do córion aqui no Hospital Biscayne sobre a diagnose do sexo, bem como de doenças hereditárias, antes das crianças nascerem. Ele telefonou-me para pedir que me encarregasse da tarefa de determinar o sexo da criança que agora se desenvolve no útero da princesa Zorah.
Parece como algo saído de uma versão moderna de As Mil e Uma Noites.
E realmente é! Tentei telefonar para você ontem bem à tarde, quando acabei de falar com Yossuf Almani em Nova York, mas você havia saído.
Fui encontrar-me com Ted no aeroporto; ele estava justamente voltando de uma reunião de cirurgiões de transplantes em Pittsburgh. Fomos direto do aeroporto para o jantar na mansão dos Corazón.
Yossuf não precisa de uma resposta definitiva até esta tarde, e eu não quis interferir com um compromisso social chamando-a pelo bip ontem à noite — disse Fraser. — Mas tomei a liberdade de dizer-lhe que você é mais qualificada em amniocentese do que qualquer outra pessoa no país. E prometi-lhe que iria pedir a você esta manhã para encarregar-se da tarefa de determinar se a princesa Zorah está grávida de um menino ou de uma menina.
Com quantos meses o senhor disse que ela está?
Yossuf não sabia com certeza, mas julgava que em torno de vinte semanas.
Vinte semanas quase exclui a realização de uma biópsiacoriònica sem alguma possibilidade de interferir com a gravidez ou de por a criança em perigo — disse Liz. — Especialmente se eles esperam que eu leve a cabo o processo de determinação do sexo em... como disse que era o nome do país árabe?
— Eu deixei bem claro para Yossuf que você não iria arriscar-se a realizar o que seria um procedimento bastante delicado com as poucas disponibilidades em Telfa. Ele assegurou-me que o emir compreende isso e que se você assumir o caso a princesa Zorah será transportada para Miami pelo avião particular do emir.
Quando ela poderá estar aqui?
Tão logo Yossuf possa chamar o emir Hassim pelo telefone transatlântico. Você poderia proceder à amniocentese dentro de dois ou três dias após a chegada dela, não poderia?
Sim, mas suponhamos que o bebê seja menina, como as outras seis? O que acontecerá então?
Eu também fiz esta pergunta a Yossuf, por simples curiosidade — disse Fraser. — Ele respondeu que, antes de morrer, Hassim deixará para a mãe bens em depósito suficientemente volumosos para sustentá-la e à criança, porém sem qualquer chance delas se tornarem o que poderia ser chamado de família real.
Em outras palavras, ele não a faria rainha!
Não haveria a menor chance. Imagino que ele simplesmente procuraria outra jovem saudável, a engravidaria, se possível, considerando que ele está sendo tratado da leucemia, e provavelmente a enviaria também a você, tão logo ela esteja em adiantado estado para que o sexo do feto possa ser determinado. Devo chamar Yossuf Almani em Nova York e dizer-lhe que notifique o emir Hassim que você aceitará a mãe e a criança ainda não nascida como suas pacientes?
Naturalmente, se é isso que o senhor deseja que eu faça.
A decisão final tem que ser sua, Liz, mas você é longe a médica mais qualificada em qualquer parte para esta tarefa particular. Nós tentaremos os meios de comunicação sem ficar muito animados sobre todo o assunto, mas este será um pitéu para eles.
Princesa ou não, ela será para mim apenas mais uma paciente — concluiu Liz com firmeza.
Na Sala de Operação nº 1, localizada num andar muito alto da Torre do Hospital Geral Biscayne, Ted Bronson olhava desanimado para o que restava do rim direito de Michael Corazón, e concluía que as chances de preservá-lo para uma futura função eram nulas. Depois de atingir o corpo de uma vértebra lombar, a maior e mais fronteira porção das unidades ósseas que formam a própria coluna vertebral, os fragmentos de chumbo da bala do assassino tinham literalmente feito explodir o tecido mole que compunha o rim direito, da mesma forma que a própria bala explodira após atingir o osso. Como resultado, o que fora um rim que funcionava normalmente, capaz de remover todos os produtos residuais do corpo não purificados pelo fígado, tinha sido reduzido a uma massa sanguinolenta.
Retirando com uma esponja o acúmulo de sangue e tecidos danificados no espaço do flanco direito de Michael Corazón onde o rim se aninhava abaixo do fígado, Ted olhou para o Dr. Donald Taylor, chefe do Departamento de Urologia, a quem ele pedira para assisti-lo.
O que você pensa, Don?
Não há dúvida de que o rim direito estákaput — disse o urologista.
Pensa que devo explorar o esquerdo para ver se uma das balas o teria também atingido?
Nós poderemos fazer isso depois que você tiver estancado a hemorragia removendo o rim direito — respondeu Taylor, encolhendo os ombros. — Ou, melhor ainda, a não ser que haja muito sangue na urina do rim esquerdo, um pielograma endovenoso vai dizer-lhe em que situação ele se encontra, de forma que não há necessidade de uma segunda incisão, que aumentaria o grau do choque.
São exatamente as minhas conclusões — concordou Ted Bronson, e virou-se para a instrumentadora: — Pinça de pedículo, por favor.
Usando o pesado instrumento que a enfermeira lhe passou, Ted pinçou a artéria e a veia principais do que uma vez fora um rim, controlando assim a principal fonte da hemorragia. A seguir cortou os tecidos gravemente lesados e ligou os vasos usando linha de seda grossa.
Esta ligadura de seda permitirá que você localize a artéria e veia renais facilmente se tiver que fazer um transplante mais tarde — observou o Dr. Taylor enquanto completava esta parte da operação.
Rezemos a Deus para que o rim esquerdo ainda funcione e nós não tenhamos que transplantar. Vou abrir a cavidade abdominal e procurar perfurações.
Faz uma idéia de quanto tempo vai demorar? — perguntou o anestesista, Dr. Peter Craig.
Bastante tempo! — Ted virou-se para a supervisora da Sala de Operação, que estava funcionando como circulante de sala. —
A Dra. MacGowan não estará operando até as dez horas. Você pode pedir-lhe para vir até a galeria? Ela conhece a família e poderá dar-lhes uma mensagem.
Antes que Ted houvesse completado uma extensão da incisão através dos músculos do abdômen superior, Liz apareceu na galeria. Uma área envidraçada tomando toda uma parede do pequeno quarto que se projetava cerca de três metros acima da sala maior toda revestida de azulejos brancos, a galeria destinava-se a permitir aos assistentes observarem de perto o que estava acontecendo no palco central, abaixo, sem pôr em perigo as condições assépticas estritas que eram mantidas na sala de operação propriamente dita.
Dra. MacGowan. — Ted preferiu o tratamento profissional quando falou com Liz pelo intercomunicador que permitia a um cirurgião descrever o que ia encontrando aos observadores, em geral estudantes de Medicina e gente da casa, acomodados na galeria. — Quer procurar os parentes do Sr. Corazón e dizer-lhes que sua condição é relativamente boa?
Eles estão agora na Sala de Espera da UTI — disse Liz por intermédio do intercomunicador da galeria. — Algum detalhe?
Apenas que tivemos que remover seu rim direito, mas que, julgando por seu excelente estado, este foi o dano mais sério. Diga-lhes que levarei cerca de uma hora mais, e se Pedro e Manuel Corazón chegarem, mande-os para o banco de sangue para serem classificados.
Perfeito... — Liz deixou a galeria, mas nem ela nem Ted poderiam ter suspeitado no momento como ele estava errado em seu prognóstico otimista.
Maria e Arturo Corazón levantaram os olhos preocupados quando Liz entrou na Sala de Espera de fora da UTI.
Alguma notícia? — perguntou Maria.
Eu estou vindo da Sala de Operação — disse Liz. — Ted pediu-me para dizer-lhes que Michael está passando muito bem. Uma bala atingiu a coluna...
Ele está paralisado? — perguntou o que parecia mais velho dos dois cubanos morenos que Liz não reconhecia.
A medula não foi lesada, mas uma bala atingiu uma vértebra e fragmentou-a. Ela avariou o rim direito tão gravemente que o Dr. Bronson teve que removê-lo.
Este é meu filho mais velho, Dra. MacGowan — disse Maria _ e este é nosso segundo filho, Pedro.
Lamento conhecê-los em tais circunstâncias — disse Lizaos dois irmãos Corazón. — O Dr. Bronson gostaria que vocês fossem ao banco de sangue no subsolo do hospital a fim de que o sangue de vocês possa ser comparado com o de Michael para o caso de serem necessárias novas transfusões.
E eu? — Arturo estava visivelmente ofendido.
Você também, naturalmente — disse-lhe Liz. — Neste momento seria uma boa ocasião para vocês todos irem, enquanto se espera que o Dr. Bronson termine a cirurgia.
Graças a Deus que pudemos contar com Ted! — disse Maria.
Se alguém pode salvar Michael, será ele — prometeu Liz.
Trabalhando com rapidez, uma vez que estava certo que o suprimento de sangue ao rim direito gravemente danificado fora controlado com segurança, Ted Bronson estendeu a incisão ao longo dos músculos do abdome de Corazón o suficiente para permitir o exame dos órgãos contidos dentro da cavidade abdominal. Quando abriu a fina membrana chamada peritônio que forra a cavidade, uma espécie de líquido escuro espirrou e com ele um pequeno pedaço do que parecia ser bacon.
Isto é parte de seu desjejum — observou o Dr. Taylor — de forma que você pode estar certo que pelo menos uma bala perfurou o estômago.
Não sinto odor fecal, de forma que talvez o Senhor tenha sido caridoso com ele e nenhuma delas perfurou o cólon. — Ted pegou a ponteira de plástico esterilizada que estava ao lado da mesa de instrumentos e inseriu-a no abdome. Uma grande quantidade do fluido turvo que já havia sido observado começou a acumular-se no frasco da máquina de sucção, mas ele não continha muito sangue.
Com o lado cego de um fórceps, o Dr. Taylor indicou uma perfuração pequena mas bem perceptível na superfície escura do peritônio, cobrindo o fígado.
Isto parece ser o lugar onde a bala que lascou o lado inferior da costela deve ter atravessado por completo o fígado.
É provavelmente aquela que vimos sob a pele das costas no raios X.
Talvez, mas não parece haver nenhum sangramento na perfuração.
Por alguma coisa temos que ser gratos... — Prosseguindo cuidadosamente, Ted examinou todo o trato digestivo, começando pelo estômago e terminando no lado esquerdo do abdome, com o cólon descendente. Encontrou diversas penetrações no intestino delgado além de duas no estômago, mas estas foram facilmente fechadas com alguns pontos.
Penso que será melhor darmos uma olhada na parte inferior do fígado, considerando quão perto dele está o rim direito — disse ele quando todas.as perfurações do trato digestivo haviam sido fechadas.
Cobrindo suas mãos enluvadas com uma toalha esterilizada como se fora um regalo, ele movimentou-se para uma posição em frente às diversas caixas de observação nas quais as chapas de raios X tiradas antes haviam sido colocadas.
Posso ver alguns fragmentos da bala que atingiu o rim — disse ele. — Parecem estar sobre ou dentro do lado inferior do fígado.
Posso ver algum sangue porejando nessa área — disse o Dr. Taylor.
É melhor examinarmos. — Ted voltou à mesa de operação e largou a toalha com que vinha cobrindo as mãos. — Se a bala que lascou a costela tivesse se fragmentado em vez de atravessar diretamente o fígado, ela poderia ter estourado no parênquima do fígado, e então as coisas estariam pretas.
Quando Ted levantou a borda inferior do fígado com uma gaze úmida, imediatamente viu de onde o fio de sangue estava vindo. Uma rotura irregular era visível na parte inferior escura do órgão, da qual um fluxo constante de sangue vermelho vivo podia ser observado correndo.
Ali está o seu vilão — disse o urologista — mas parece comprometer apenas uma pequena área na parte inferior do fígado.
Concordo — disse Ted, enquanto removia um pedacinho irregular de chumbo da área ensangüentada e o colocava numa cuba.
— Uma gaze absorvível deverá controlar o sangramento, e não teremos que nos preocupar com o trauma de removê-la mais tarde, como tínhamos que fazer nos velhos tempos.
Colocando uma longa tira do material absorvível contra a área de sangramento, onde alguns fragmentos de chumbo haviam arranhado a superfície mole do fígado, Ted preparou-se para fechar a incisão.
Fico contente por não termos que explorar o lobo principal do fígado à procura daquela bala que o atravessou, mas lembre-me de retirá-la quando eu acabar de fechar a incisão.
Por que preocupar-se com ela? — perguntou o Dr. Taylor. — Não está perturbando nada.
Talvez a polícia encontre uso para ela.... Eles sempre fazem isso, nas tentativas de assassinato que vejo na tevê.
Então retire-a de qualquer maneira — disse Taylor. — Nós não queremos agir contra o protocolo.
A família Corazón estava na sala de espera da UTI quando Ted saiu do Centro Cirúrgico.
Mike reagiu muito bem à cirurgia — disse-lhes Ted. — A maior parte do dano foi causada por uma bala que atingiu uma vértebra e explodiu. O rim direito estava sem possibilidade de reparação e tive que removê-lo.
E quanto ao do lado esquerdo? — perguntou o irmão mais velho.
Não havia sangue na urina, por isso estou bem seguro de que está OK — respondeu Ted. — A única coisa que nos deve preocupar agora é o fígado. O rim direito fica exatamente embaixo dele, e uma pequena área foi arranhada por vários fragmentos de bala. Consegui entretanto controlar a hemorragia com um tampão, e não deverá haver nenhum problema. Uma outra bala atingiu uma costela e foi desviada através do fígado, mas ferimentos de bala em órgãos maciços em geral não causam muita hemorragia.
Mas nisso, como mais tarde se viu, Ted estava enganado.
A histerectomia naquela manhã levou mais tempo do que Liz Mac-Gowan esperava. Olhando para o relógio na parede do corredor quando saiu do vestiário das médicas, depois de um chuveiro e de ter colocado um vestido de passeio, ela viu que já era meio-dia e decidiu almoçar na cafeteria antes de ir para seu consultório enfrentar o desfile de pacientes à tarde. O Dr. Fraser estava na frente dela na fila da caixa, mas esperou após haver pago sua conta até que ela saísse.
Está sentada com alguém, Liz? — perguntou.
Com o senhor, espero — disse ela sorrindo.
Vamos para a sala de refeições dos médicos; o barulho aqui é bastante para levar você a beber.
É a hora social do hospital. — Liz seguiu o cirurgião mais velho até a sala menor, reservada para os médicos do corpo hospitalar e para visitantes. — Na realidade este é o principal ponto de partida para as fofocas; aqui tudo se observa e de tudo se sabe. Às vezes até mesmo antes que as coisas aconteçam...
Recebi um telefonema de Yossuf Almani um pouco antes do meio-dia — disse Fraser enquanto colocavam as bandejas numa mesa vazia. — Ele vai falar com Telfa esta tarde e fazer os arranjos para a princesa Zorah voar para Miami, possivelmente amanhã.
O emir não parece ter muita paciência.
Se eu estivesse morrendo de leucemia e desejasse saber se tinha um herdeiro antes de morrer, suponho que também não seria paciente — comentou Fraser. — Reservei uma suíte para a princesa no andar VIP e Yossuf está voando de Nova York para receber o avião do emir quando ele aterrissar. Ele vai trazê-la diretamente para o hospital.
O xeque Almani teve alguma informação adicional sobre o período da gravidez da princesa?
Nada além do número aproximado que eu lhe dei, de cerca de vinte semanas. — Fraser lançou a Liz um rápido olhar inquisitivo _ Está preocupada com o risco de amniocentese tão tarde?
Um pouco — admitiu Liz. — Com dezesseis semanas o risco provavelmente não é muito maior do que a probabilidade normal de qualquer gravidez terminar com um aborto espontâneo. Quatro semanas mais não deveriam aumentar muito mais as chances de iniciar os trabalhos de parto prematuro, possivelmente nada.
Ou de ter que trazer à luz por uma cesária um bebê prematuro cujas chances de sobrevivência são mínimas — observou Fraser.
O senhor tinha que mencionar isso também?
De qualquer forma, espero que você não tenha que atrasar-se amanhã à tarde, esperando que o avião de Telfa aterrisse.
Ted Bronson e o chefe Nick Patterson do FBI, ambos carregando suas bandejas, entraram na sala de refeições dos médicos naquele momento. Quando Ted viu Liz com Paul Fraser, abriu caminho através da sala agora bastante cheia até a mesa deles, onde ainda havia dois lugares vagos.
Importam-se se nós nos sentarmos com vocês?
De forma alguma — respondeu Fraser antes que Liz pudesse falar.
Paul, este é Nick Patterson, à testa do grupo especial do FBI que está ajudando a acabar com o tráfico de drogas em Miami — disse Ted. — O Dr. Fraser é professor de Obstetrícia e Ginecologia aqui na universidade, Nick.
É um prazer vê-lo por aqui, Sr. Patterson — disse Fraser apertando a mão do chefe do FBI depois que ele pousou a bandeja sobre a mesa. — O senhor conhece a Dra. MacGowan?
Alô — disse Liz, e voltando-se para Ted: — Como está Mike?
Ele saiu da operação em boa forma, considerando que tive de remover o rim direito e tamponar o local onde a bala que estourou o rim arranhou o fígado. Extraí uma outra, que penetrou no fígado e alojou-se sob a pele nas costas de Mike. A polícia ficou com ela.
— Quais são as chances de Corazón? — perguntou Fraser. —
Uma porção de gente está confiando nele para mudar as coisas por aqui.
A recuperação de Mike vai depender de como seu fígado reaja ao choque e aos danos causados por duas das quatro balas que o atingiram. Não achei prudente exagerar na cirurgia exploratória.
Nolle nocere ainda é a primeira lei da Medicina, e segundo creio, parte do juramento de Hipócrates — concordou Fraser.
Você falou com a família? — perguntou Liz a Ted.
Sim. O sangue de todos os três irmãos combina com o de Mike e o banco de sangue tirou uma unidade de cada um deles caso seja necessário. Eles estavam todos bastante exaustos e Mike não recobrará a consciência por algumas horas; por isso mandei-os para casa descansarem um pouco.
Como estava Arturo? — perguntou ela.
Ele foi mais atingido por tudo isso do que qualquer outra pessoa, mesmo Maria. Arturoidolatra Mike.
Escutei no rádio quando estava vindo para a cafeteria que Sam Gianno foi preso sob a acusação de tentativa de assassinato — disse o Dr. Fraser ao chefe do FBI. — Fico contente em saber que vocês agiram rápido.
Receio no entanto que tenha sido uma perda de tempo prendê-lo — disse Patterson, um pouco secamente. — Uma vez que o atentado contra a vida do Sr. Corazón ocorreu no Condado de Dade, a Polícia Metropolitana fez a prisão; isto quer dizer que a audiência foi perante um juiz do Condado de Dade.
Qual foi a fiança estabelecida? — perguntou Fraser.
Meio milhão de dólares, mas o advogado de Gianno trouxe a importância para a corte numa pasta. Em uma hora ele estava livre.
E quanto às provas que Mike ia apresentar ao grand jury federal esta manhã? — perguntou Liz.
Foram apresentadas pelo assistente do Sr. Corazón, mas não da forma como ele teria feito — disse o homem do FBI, encolhendo os ombros. — O júri pediu provas mais específicas contra os dois bancos, mas isto só irá dar-lhes mais tempo para esconder as transações de lavagem em seus livros ou enviar o dinheiro para fora do país. Além disso, e infelizmente, eles não são bancos nacionais, de forma que não podemos obter nenhuma ajuda do escritório do controlador federal em Atlanta ou Washington.
— A chave de tudo é Mike — concordou Ted. — Foi por isto que Sam Gianno estava disposto a correr o risco de assassiná-lo antes que as provas chegassem ao grand jury.
Então como é que vocês se situam agora? — perguntou Fraser a Patterson.
Na expectativa, mas ainda temos alguns trunfos em nossas mangas... se pudermos colocar Gianno nas mãos das autoridades federais.
Uma tentativa de assassinato contra um assistente de promotor público dos Estados Unidos não o coloca nessa categoria? — perguntou Liz.
Nós achamos que sim — disse Patterson. — Se pudermos encontrar um juiz federal que concorde, entraremos na questão, apesar de Gianno ter prestado fiança numa corte do condado. A dificuldade é que mesmo quando Michael Corazón estiver suficientemente bem para confirmar sob juramento seu testemunho, os advogados de Gianno por certo irão trazer à baila o fato de ele ter estado sob a influência de pesadas medicações desde que a ambulância apareceu na cena do crime.
Se J. Edgard Hoover ainda estivesse à testa do FBI — disse o Dr. Fraser — aposto que ele encontraria meios de levar Gianno à jurisdição federal... ou os forjaria.
Naquela ocasião eu ainda não trabalhava para o FBI, mas, pelo que tenho ouvido dizer, o senhor provavelmente está certo, doutor — concordou Patterson.
O que impede vocês de usarem a mesma estratégia hoje em dia? — perguntou Ted.
O Congresso! — O tom de Patterson tornou-se subitamente amargo. — Desde Watergate, senadores e deputados têm estado tão ocupados disputando um lugar em frente aos holofotes das câmaras de tevê — porque sabem que podem chegar às manchetes dos jornais atacando praticamente qualquer agência de investigações do governo, em particular o FBI e a CIA — que hoje em dia nós temos que operar quase o tempo todo expostos à publicidade. Antes que se possa fazer um movimento como apertar o pescoço dos Sam Gian-nos deste país com intimações federais, você precisa estar cem por cento seguro de que tem toda a lei a seu lado. E mesmo assim os advogados das quadrilhas estão fazendo fortunas amarrando nossas investigações com artifícios legais destinados a libertarem seus clientes.
Acredito que Michael Corazón não estaria na UTI lutando Por sua vida se não se houvesse feito tanta publicidade sobre o Grupo de Trabalho de Combate aos Entorpecentes — comentou Liz ao pegar sua bandeja vazia. — Por favor, desculpem-me, cavalheiros. Dentro de alguns minutos a sala de espera de meu consultório começa a encher-se de pacientes e tenho que ditar algumas cartas antes de começar a recebê-los.
— E eu tenho um encontro marcado com os terminais do computador de registros clínicos à caça dos gráficos dos pacientes de transplantes de rins cujos implantes fracassaram — disse Ted Bronson.
Da UTI Ted foi para seu consultório, planejando passar o resto da tarde e a maior parte da noite no SAM (Serviço de Arquivos Médicos) do hospital. Ele já avisara por telefone o diretor do serviço de arquivos para iniciar uma pesquisa de computador sobre as histórias de pacientes cujos transplantes de rins foram rejeitados.
O Dr. Letterman gostaria de vê-lo tão logo o senhor esteja livre, Dr. Bronson — avisou a secretária quando ele entrou no consultório.
Disse-lhe sobre que assunto?
Seu pedido acerca dos registros do hospital, creio.
Por que isto necessitaria de uma consulta ao chefe do pessoal? — perguntou Ted, franzindo o sobrolho.
Sem dúvida que não sei, doutor.
Subirei logo para ver o Dr. Littman e cuidarei da correspondência depois — disse Ted ao dirigir-se para o elevador.
Enquanto o elevador especial do pessoal da casa o levava rápido para os escritórios administrativos no alto da torre do hospital, Ted imaginava por que seu pedido de antigos registros podia possivelmente preocupar o famoso cirurgião que era o chefe do pessoal do hospital, um posto em especial administrativo num hospital universitário tão grande quanto o Biscayne. Tanto quanto Ted sabia, entretanto, tudo vinha andando bem com o Serviço de Transplante de Órgãos, criado com o propósito especial de atraí-lo de Pittsburgh para Miami com a promessa de uma virtualcarte blanche para dirigir as atividades do departamento.
O Dr. Letterman está falando no interurbano, Dr. Bronson — disse a secretária do chefe de pessoal, localizada na sala de espera luxuosamente mobiliada. — Pode entrar; ele não vai demorar muito.
Henry Letterman fez um sinal com a mão para Ted sentar-se numa confortável cadeira ao lado de sua mesa, enquanto continuava a falar. Quando desligou o telefone, ele rodou a cadeira a fim de ficar de frente para o cirurgião mais jovem.
Estou contente em vê-lo de volta, Ted — disse ele à guisa de cumprimento. — Valeu a pena o seminário?
Mais do que isso; o que aprendi em Pittsburgh no último fim de semana irá revolucionar a cirurgia de transplantes do Bis-cayne General.
Boas notícias! Por que você não apresenta um relatório sobre o assunto na CCP de Cirurgia na sexta-feira?
As Conferências Clínicas Patológicas (CCP) eram realizadas com freqüência para o pessoal do hospital, professores e estudantes da Escola de Medicina. E como a análise da história de casos onde haviam surgido complicações seguidas de morte era uma excelente maneira de ensinar todas as fases da Medicina, o salão de conferências estava sempre lotado.
Terei muito prazer. Foi por isto que você me pediu para subir, Henry?
Não exatamente. A Sra. Ponder, do Serviço de Arquivos Médicos, telefonou-me logo antes do almoço acerca de seu pedido dos gráficos para todos os transplantes de rins que foram rejeitados. Você importaria de dizer-me o que tenciona fazer com eles?
Vou escrever cartas aos pacientes cujos transplantes falharam, sugerindo-lhes que voltem ao hospital para umcheck-up. Poderei então atualizá-los sobre os recentes progressos nesse campo e sugerir-lhes que se submetam a um novo transplante.
Esses exames vão ser grátis? — perguntou Letterman.
Não tinha pensado acerca de custos. É por esse motivo que você objeta a que eu o faça?
Eu não disse que objetava, Ted.
Se nós pudermos oferecer nova esperança àqueles a quem falhamos, isto por certo seria um boa promoção de relações públicas para o hospital — disse Ted incisivamente.
Concordo cem por cento. Também penso que os novos exames devam ser grátis, mesmo que o controlador vá sem dúvida fazer um escarcéu por causa das pessoas. Por acaso, quem já irá assinar essas cartas que você está pensando enviar?
Receio também não haver pensado muito sobre isso. — Ted começou a perceber por que o chefe do pessoal o havia convocado a seu escritório. — Eu sou o único cirurgião no registro dos transplantes que foram feitos nos últimos dois anos desde que vim para Miami, de forma que talvez o cirurgião registrado de cada caso realizado antes de eu ter vindo poderia assinar as cartas para seus pacientes. Realmente ele poderia até fazer o segundo transplante, se lhe agradar, e eu ficaria contente em assisti-lo.
Você está sendo muito magnânimo — admitiu Letterman. — Já falou com qualquer dos outros cirurgiões acerca desse plano?
Não houve tempo, mas terei muito prazer em discutir todo o programa na CCP de sexta-feira, se lhe agradar.
Não creio que isto seja prudente — disse Letterman. — Os médicos podem ser muito sensíveis quando se trata de fracassos no tratamento. Além disso, suas cartas poderiam recordar a alguns pacientes que eles haviam gasto um monte de dinheiro em custos hospitalares e honorários profissionais sem qualquer proveito. E isto poderia eventualmente provocar reações sob a forma de processos por imperícia médica.
Agradecido por haver-me impedido de meter os pés pelas mãos... — disse Ted encabulado. — Mas ainda não vejo como negar a pacientes cujos tecidos rejeitaram o transplante o direito a uma vida inteiramente no...
A questão de negar nem entra em consideração — interrompeu-o Letterman. — O que me preocupa muito mais é seu próprio futuro aqui.
Receio não estar entendendo...
Você é um dos mais brilhantes cirurgiões novos que já entraram para o corpo docente desta Faculdade de Medicina, Ted. Até agora você tem-se dado bem com o resto do corpo médico, embora seus conhecimentos e habilidade como cirurgião obviamente excedam os da maioria daqueles que estão no corpo docente da faculdade. Eu detestaria vê-lo desencadear uma onda de antagonismo assim tão cedo em sua carreira, apenas porque alguns dos homens mais velhos possam ficar enciumados com sua proficiência.
A resposta ao problema subitamente tomou forma na cabeça de Ted.
Por que você mesmo não assina as cartas como chefe do pessoal, representando todo o corpo médico do hospital?
Esta poderia ser a resposta — concordou Letterman. — Mas a idéia foi sua, e você deverá receber o crédito.
Esqueçamo-nos disso; é com o bem-estar dos pacientes que estou preocupado. Projetar minha própria imagem não é importante, comparado com ajudar pessoas a se livrarem da diálise.
Por que então não ir até o fim? — sugeriu Letterman. — Tão logo você tenha descoberto quantos possíveis candidatos para um retransplante ainda estão vivos entre seus antigos pacientes, eu convoco uma conferência de imprensa e anuncio todo o plano como um projeto do Hospital Biscayne e da Faculdade de Medicina. Desta forma você não somente apela para seus próprios insucessos como também ganha outros possíveis candidatos.
Estou de acordo com você nisso.
Há mais uma coisa que eu desejava perguntar-lhe — prosseguiu Letterman. — Ouvi dizer que foi convocada uma coletiva com a imprensa sobre as condições de Michael Corazón para esta tarde, às cinco horas. Ainda não é um pouco cedo para fazer um prognóstico definitivo?
Eu não queria a entrevista, mas Nick Patterson, o chefe do grupo do FBI, pediu-a. Ele está ansioso para colocar toda a pressão que puder sobre o homem que tentou matar Mike Corazón esta manhã.
Corazón sabe quem ele é?
Antes que o levássemos para a sala de cirurgia ele identificou a pessoa que guiava o carro como sendo Sam Gianno...
Fazendo de si mesmo um alvo.
Esta parece ser a idéia dele... além de talvez forçar a mão de Gianno.
Não me agrada muito esta idéia — disse Letterman categoricamente. — Até mesmo a possibilidade pouco provável de uma tentativa de assassinato de Corazón enquanto ele está no hospital é um risco para o pessoal daqui.
Neste momento, o próprio Patterson está protegendo Mike na UTI.
Você vai ser o porta-voz do hospital na entrevista com a imprensa?
Isto é um assunto para você e a administração do hospital decidirem — responde Ted. — Eu apenas encarreguei-me do caso esta manhã porque a família chamou-me logo após o tiroteio e pediu-me para tomar conta de Mike.
Eles não poderiam ter feito melhor escolha; Don Taylor falou-me sobre a operação na hora do almoço.
Obrigado por ter evitado que eu entrasse de mau jeito nesta idéia de retransplantes, irritando uma porção de gente — disse Ted levantando-se para sair. — Se você e o reitor decidirem contra a entrevista com a imprensa, avisem-me.
— Se nós tentássemos esconder uma coisa como esta da mídia, iria ser um inferno — disse Letterman. — Vou esclarecer o assunto com a administração de forma que você pode ir tocando para a frente e planejar o que vai dizer.
A caminho do Arquivo Médico, Ted parou na UTI para ver como estava Michael Corazón, e não viu razão para alarme. A pressão sanguínea do paciente estava estabilizada e as batidas do coração, segundo o pequeno monitor à cabeceira do leito, bem como no banco central de monitores na Sala das Enfermeiras do lado de fora, apareciam firmes e fortes. A enfermeira destacada para o cubículo de Corazón — na proporção de um-para-um que fazia o conceito da UTI tão eficiente no cuidado dos pacientes seriamente enfermos — sorriu com discrição para o médico.
O paciente vai indo muito bem, Dr. Bronson — disse ela. — Eu é que estou com os nervos à flor da pele...
Por quê?
O senhor gostaria de ter dois desconfiados homens do FBI espiando por cima de seu ombro toda vez que faço algo com o paciente?
O que faz você pensar que eles alimentam suspeitas?
Sem dúvida que eles suspeitam! Eu estava ligando uma dose Q-6-H de ampicilina para administração EV ainda há pouco e um deles não me deixou começar até ter verificado o rótulo do pequeno saco de ampicilina, comparando-o com a prescrição pós-operatória.
Num romance que li recentemente — disse Ted sorrindo — um homem foi morto quando uma enfermeira ligou o suprimento principal de oxigênio na cabeceira da cama ao tubo de EV, enchendo seu sistema circulatório de oxigênio. Talvez o guarda que fiscalizou você tenha lido o livro...
Na sala de Arquivos Médicos, uma grande área do segundo andar ao lado da biblioteca da Escola de Medicina, Ted encontrou a funcionária-chefe sentada em frente à mesa do terminal do computador do departamento. Levantou os olhos quando ele entrou na sala e sorriu um pouco sem jeito.
— Espero que o senhor não esteja zangado comigo porque confirmei com o Dr. Letterman a expedição de sua carta, Dr. Bronson disse ela.
Na verdade sou-lhe grato — respondeu Ted. — Você provavelmente impediu-me de fazer com que uma porção de médicos da casa ficassem aborrecidos.
Eu já vi isto acontecer; foi por isto que telefonei ao Dr. Letterman.
Tudo está acertado agora. Ele próprio irá assinar as cartas.
Sei disso; ele acabou de ditar a minuta da carta que será despachada para todos os pacientes de transplantes de rins em nossos registros.
Bom. Você já encontrou muitos rejeitados com o computador?
Até agora, mais ou menos uma dúzia, mas alguns deles podem ter morrido. Se não obtivermos resposta de algumas cartas, ainda poderemos encontrar os pacientes verificando os registros de diá-lises nos computadores nacionais em Washington.
Isto é o que se chama uma verdadeira detetive médica... Eu não teria pensado em enveredar por este caminho.
Nós sempre fazemos coisas assim — disse ela. — O governo paga o tratamento de diversos pacientes em diálise, e você pode apostar que algum computador em Washington tem um registro de cada um deles.
Você poderia retirar os relatórios do hospital de alguns dos rejeitados e deixá-los em meu consultório antes de sair hoje? — perguntou Ted. — Tenho que ficar no hospital até que o Sr. Corazón esteja fora de perigo e posso ir-me familiarizando com alguns dos casos enquanto estou por aqui.
Vou deixá-los em sua mesa quando for para casa — prometeu-lhe ela. — Se este novo tratamento pós-operatório tem tanto sucesso quanto o Dr. Letterman estava me dizendo que o senhor acredita que tem, muita gente vai poder escolher entre a morte ou a diálise, que é a coisa mais próxima dela.
Liz MacGowan estava descrevendo a evolução do caso na ficha do último paciente da tarde — uma jovem grávida que tinha permitido que seu peso e sua pressão subissem acima de um nível seguro, criando a possibilidade de uma perigosa toxemia — quando o telefone em sua mesa tocou.
O Dr. Fraser está aqui com um cavalheiro e gostaria de vê-la, Dra. MacGowan — disse a secretária.
Vou recebê-los.
Quando ela cruzou o consultório para abrir a porta, Paul Fraser e um homem impressionante, de pele escura e nariz aquilino de aristocrata árabe, estavam aguardando do outro lado da porta.
O xeque Almani acaba de chegar de Nova York, Liz, e eu o trouxe para cá imediatamente — disse Fraser. — Yossuf — continuou, virando-se para o árabe — esta é a Dra. Elizabeth MacGowan.
Tenho muito prazer em conhecê-lo, senhor — cumprimentou Liz estendendo-lhe a mão. — Por que título devo dirigir-me ao senhor?
Meu posto oficial é o de embaixador de Telfa junto às Nações Unidas, Dra. MacGowan. — O homem moreno sorriu ao apertarem as mãos. — No entanto, prefiro ser chamado de xeque Almani.
Vou ter que deixar Yossuf em suas mãos, Liz — desculpou-se Fraser. — Agora mesmo deveria estar numa conferência de pessoal da casa.
Faça o favor de entrar e sentar-se — disse Liz.
Obrigado, doutora. — O árabe era agradável e falava inglês sem praticamente nenhum sotaque. Liz ficou espantada pensando por que motivo ela sentia uma certa antipatia por ele em seu primeiro encontro; decidiu que deveria ser porque ele era demais obsequioso e seguro de si — apesar da pequena nação que representava — para ser inteiramente confiável.
Pelo que sei, o senhor está nos Estados Unidos há muito tempo — disse ela.
Intermitentemente há vinte e cinco anos; até peguei um sotaque bostoniano durante meus quatros anos em Harvard — respondeu Amani. — É muito conveniente para minha posição como professor convidado na Escola de Pós-Graduação em Estudos Internacionais da John Hopkins, em Washington. Não irei tomar seu tempo com conversa fiada — acrescentou ele bruscamente. — Acredito que o Dr. Fraser já lhe relatou que o emir Hassim deseja que a princesa Zorah seja submetida a estudos aqui a fim de determinar o sexo da criança que ela está esperando.
Sim — disse Liz. — Devo admitir que nunca tive entre minha clientela membros da realeza...
Talvez eu deva explicar algo, Dra. MacGowan — interrompeu-a o xeque Almani sorrindo e mostrando seus brancos e perfeitos dentes. — Especialmente depois que o Dr. Fraser alertou-me que a senhora é assaz ativa na promoção dos movimentos das mulheres por direitos iguais.
O tom de sua voz mudou sutilmente ao fim de sua fala e Liz pôde sentir sua antipatia começar a tomar forma. Apesar disso, manteve rígido controle de sua própria voz ao dizer:
Eu apoio a aprovação da Emenda sobre Igualdade de Direitos. Mas posso assegurar-lhe que isto nada terá a ver, de forma alguma, com o fato de eu tratar da rainha...
Perdoe-me doutora — disse Almani — mas "rainha" não é o termo. Em Telfa as mulheres escolhidas pelo emir como consortes mantêm este título até que dêem à luz uma criança do sexo masculino; apenas então é-lhes permitido assumir o título de rainha.
O que acontece se por acaso derem à luz uma menina? — Liz não fez nenhum esforço para excluir de sua voz o tom de sarcasmo. — Elas são descartadas?
Almani sorriu um tanto tolerantemente.
Posso assegurar-lhe que elas conservam todos os direitos de uma jovem mulher escolhida pelo emir. Vivem no palácio real com o status de princesas e suas filhas são educadas de forma a serem totalmente emancipadas. De fato, muitas delas freqüentam universidades americanas quando têm idade suficiente para adquirir educação mais avançada.
O que acontece se não derem ao emir criança alguma?
Mesmo assim ainda têm o título e ostatus de princesa e recebem todas as honras devidas. Como a senhora vê, Telfa não é tão cheia de preconceitos resultantes de tradição e de ignorância como se poderia esperar de alguns de nossos costumes, que se mantiveram ao longo dos séculos. Como vivemos sobre o maior depósito isolado de petróleo bruto do mundo, mesmo as pessoas comuns de Telfa têm uma vida muito melhor que as da maior parte dos outros estados árabes. É um fato que mesmo os mais pobres desfrutam de uma renda mais elevada do que muitos americanos naquilo que vosso governo chama de "nível de pobreza".
Então o cidadão comum lucra com a prosperidade da nação?
Imensamente. Nós temos o mais alto nível educacional do Oriente Médio, a mais alta renda per capita e o mais alto grau do que se poderia chamar de liberdade política.
O emir não é ainda monarca absoluto?
Não no sentido que a senhora foi ensinada a definir o termo — disse Almani. — Aliás, nós alardeamos com algum orgulho o fato de termos sido governados durante séculos pela monarquia mais benevolente em todo o mundo árabe, sob a família da qual descende o emir Hassim. Se houvesse hoje uma eleição geral em Telfa, posso assegurar-lhe que todos os votos iriam para o emir, exceto os de um pequeno grupo de radicais subsidiados pela União Soviética.
Acredito em sua palavra sobre este assunto — assegurou-lhe Liz com um sorriso. — Exatamente o que deseja o emir que eu faça quando sua atual — digamos, "consorte" — chegar ao Bis-cayne?
A princesa Zorah está voando para Miami num dos aviões reais, com paradas para reabastecimento de combustível em Dacar, na costa oeste da África, e Recife, na costa leste do Brasil. A hora prevista para a chegada no Aeroporto Internacional de Miami é amanhã de manhã mais ou menos às dez horas. Do aeroporto a princesa será levada de limusine diretamente para o hospital.
E quanto à imprensa americana? — perguntou Liz. — Uma história como esta pode ser para os repórteres um "doce de coco".
A imprensa já foi notificada que a princesa Zorah está visitando os Estados Unidos a fim de manter-se informada sobre recentes desenvolvimentos na construção de hospitais. Em verdade, nós estamos em vias de construir um novo hospital em Telfa e a princesa tem grande interesse nele.
Engenhoso — admitiu Liz. — Deduzo que supostamente eu deva seguir isto como a razão oficial para sua visita?
Até onde isto for necessário sem comprometer seus próprios princípios — disse o xeque Almani suavemente. — A princesa Zorah será exataminada pela senhora na sua posição de obstetra. Se a senhora decidir que é seguro usar a amniocentese para determinar o sexo da criança que ela tem em gestação, as necessárias providências serão tomadas pela senhora, a seu critério. Se a princesa gostar da senhora, um convite real será enviado um pouco antes dela terminar seu período de gravidez para a senhora visitar Telfa e estar presente ao nascimento real.
Dependendo, naturalmente, de eu descobrir ou não que o infante real é um menino?
Naturalmente.
E se eu descobrir que não é?
Então seu serviço estará completo e a princesa Zorah retornará a Telfa para juntar-se às outras mães de crianças reais. Porém tenho a esperança que a senhora descubra o contrário, e que desfrute uma visita a Telfa. — O embaixador levantou-se. — Estou certo de que acharia a viagem bastante interessante, e de muitas formas compensadora.
Nós alimentamos a mesma esperança. — Liz também levantou-se e estendeu a mão para o embaixador real. — O senhor deve entender, estou certa, que eu — para usar uma frase americana — tenho que jogar esta mão com as cartas que recebi...
Naturalmente — disse o árabe com um sorriso. — Já estou nos Estados Unidos tempo suficiente para saber que um bom jogador de pôquer não tem outra alternativa.
Ted havia terminado a entrevista com a imprensa e estava de volta a seu consultório um pouco depois das cinco e meia. Sua secretária já tinha ido embora e a porta estava aberta, por isso ele não teve dificuldade para observar Liz MacGowan quando ela entrou na sala de espera do consultório. Ela trazia na mão um jornal dobrado e mostrou-o para ele ver a primeira página.
Você está nas manchetes — disse ela. — Pensei que gostaria de ver.
A grande manchete acima de duas fotos dizia:
TENTATIVA PARA ASSASSINAR MICHAEL CORAZÓN FRACASSA CIRURGIÃO DO BISCAYNE SALVA VIDA DO PROMOTOR
A legenda das fotos e a notícia contavam a dramática tentativa para matar Michael Corazón naquela manhã, incluindo também um relato da prisão de Gianno e da fiança de meio milhão de dólares que tinha sido paga imediatamente, libertando-o.
Você alguma vez já viu Sam Gianno em pessoa? — perguntou Liz.
Não. E você, já o viu?
— Sim, quando fiz o parto do filho dele no ano passado. — Como é? Diga de novo... — perguntou Ted com um olhar
espantado.
O Dr. Fraser estava programado para fazer o parto da Sra. Gianno, mas ele não se encontrava na cidade quando ela entrou em trabalho de parto. O bebê era um menino, e bem grande; além disso, foi uma apresentação de nádegas, e eu tive que usar o fórceps para puxá-lo pela cabeça. Felizmente, no entanto, tudo correu muito bem.
Os Giannos tiveram sorte por você ter feito o parto — disse Ted. — Já ouvi Paul Fraser dizer mais de uma vez que você é a mais habilidosa operadora que ele já viu no emprego do fórceps obstétrico.
A família ficou grata. Eles quiseram até pagar-me um bônus de dez mil dólares, mas eu persuadi-os, em vez disso, a darem para o hospital uma nova incubadora para a UTI de recém-nascidos. Apesar disso, eu conheci toda a família; são sicilianos típicos e muito encantadores.
Assim também são as cobras... até que estejam prontas para dar o bote!
Você pensa que Mike Corazón pode fazer a acusação valer se Gianno for levado a julgamento por tentativa de assassinato?
Se Mike viver, é capaz disso; ele pode ser muito convincente. Por enquanto, porém, estou mais interessado em mantê-lo vivo.
É por isso que você vai permanecer no hospital esta noite?
Que há com você? Você é médium? — perguntou ele intrigado.
Liz riu-se com aquele tom franco que Tom aprendera a amar.
Acabei de ver Maria Corazón e ela me disse que você iria ficar aqui. Ela estava preocupada em incomodá-lo, mas eu lhe disse que você ficaria de qualquer maneira, quer ela pedisse ou não.
Parece que você me conhece muito bem.
Não deveria? Depois do que nós temos sido um para o outro no último ano e meio?
E o que seremos a vida inteira, não se esqueça disso.
Não sei não... — disse ela sorrindo provocadoramente. — Do jeito que as coisas estão caminhando, sou capaz de receber uma oferta que não posso dar-me ao luxo de rejeitar.
Proposta de casamento?
Não. Como chefe de serviço num novo hospital da Arábia.
Você nunca me disse nada acerca disso antes.
É porque só soube nesta tarde. — Ele escutou enquanto ela relatava sua conversação daquela manhã com o Dr. Paul Fraser e, mais tarde, com o xeque Almani.
Isto é uma grande honra — disse ele quando ela concluiu o relato.
É uma responsabilidade — completou ela sobriamente. — Mesmo em gestações normais, cerca de três por cento das mulheres sujeitas a amniocentese, por uma razão ou outra, mais tarde perdem o bebê.
Não é mais ou menos esta a proporção das que abortam sem amniocentese?
Sim.
Então o método dificilmente pode ser responsabilizado, se isto acontecer com a rainha.
Ela não é a rainha... e não será, a não ser que dê à luz um filho homem. Uma vez que você vai ficar preso aqui esta noite, acho que vou até a biblioteca da universidade ler um pouco sobre Telfa.
Quando é que ela está sendo esperada?
A uma certa hora amanhã de manhã. O avião deve reabastecer-se na costa oeste da África e de novo em Recife, no Brasil.
Com um roteiro desses, eles não deverão ter qualquer dificuldade — concordou Ted.
Mas nisto, de acordo com o que aconteceu, ambos estavam errados.
No alojamento dos médicos, ao lado da Sala de Emergências, onde os médicos residentes de serviço podiam cochilar por algumas horas — se tivessem sorte — Ted Bronson acordou como de hábito às seis e meia da manhã seguinte. Trabalhara até quase meia-noite na pilha de fichas sobre transplantes de rins que lhe foram entregues pela funcionária do Centro de Registros Médicos naquela tarde. Quando ele tomou o elevador para o primeiro andar, onde ficava a UTI, as enfermeiras estavam mudando de turno e a área estava cheia de mulheres de uniformes brancos, bem como um certo número de homens também de branco, usando placas de identificação com a designação RN (Registered Nurse — Enfermeiro Diplomado) — prova de que um número cada vez maior de homens estava escolhendo enfermagem como uma profissão bem paga e compensadora.
Na seção da UTI Ted encontrou Michael Corazón dormindo. Os sinais vitais registrados durante a última noite eram, entretanto, bons, e ele não acordou o ferido. Uma vez que passava apenas um pouco das sete, decidiu ir a seu apartamento no Biscayne Terrace onde poderia fazer a barba, tomar um banho e mudar de roupa antes de voltar ao hospital para iniciar as obrigações do dia. Quando porém saiu do hospital, mal podia distinguir o enorme e volumoso edifício de apartamentos do outro lado da rua, tão pesada era a cerração que caíra durante a noite — um acontecimento nada fora do comum nas costas da baía Biscayne na primavera. Mesmo o sinal luminoso na esquina onde ele cruzou o bulevar brilhava com uma luminosidade fantasmagórica, e ele sentiu uma clara sensação de alívio quando chegou ao outro lado da rua.
Estava colocando uma camisa limpa, depois de uma rápida barba e do banho, quando o telefone tocou.
Yossuf Almani acaba de me chamar do aeroporto — a voz de Liz estava tensa. — O avião de Telfa tentou aterrissar no meio da cerração e arrebentou-se na pista. O piloto e o co-piloto morreram.
E a princesa Zorah?
Ela está viva, de acordo com Almani, mas gravemente ferida; uma ambulância a está trazendo para o Biscayne. Você poderia encontrar-me na Sala de Emergências e ajudar-me a avaliar o estado dela, além do fato de estar grávida?
Naturalmente. Onde está você agora?
Na Sala de Emergências. Estamos esperando a ambulância a qualquer momento.
Estarei aí dentro de cinco minutos. Ed Thomas está de serviço?
Está.
Ele saberá o que fazer acerca das condições gerais da princesa e você pode certamente cuidar da prenhez e do bebê melhor do que qualquer de nós dois. Se ela estiver muito ferida, talvez você tenha que fazer uma cesariana.
Duvido que o feto sobreviva com vinte semanas de gestação — contestou Liz.
Decidiremos sobre isto quando eu a vir. Estarei aí logo.
Uma ambulância, com as sirenas a todo volume e as luzes piscando, entrou na plataforma de carga da Sala de Emergências quando Ted estava cruzando o tráfego da movimentada rua de manhã cedo. Quando chegou à rampa que dava para a Sala de Emergências, viu um homem alto, de pele escura e aparência distinta, saltar de uma limusine que tinha chegado atrás da ambulância e caminhar em direção à plataforma.
Do lado de dentro da sala, a Sra. Burke, enfermeira supervisora da Emergência, estava orientando os técnicos da Brigada de Resgates enquanto eles conduziam a padiola que transportava a mulher ferida para um dos vários cubículos intensamente iluminados. Liz cruzou a sala em direção a Ted, enquanto os técnicos e as enfermeiras, sob a competente orientação do residente da Sala de Emergências, o Dr. Thomas, estavam transferindo a acidentada para a maca do hospital. A cabeça dela, Ted notou, estava envolta em uma pesada atadura de pressão, e quando ele se movimentou para perto da maca,viu o residente apanhar uma lanterna elétrica e examinar o reflexo pupilar da acidentada, um indicador preciso das condições do cérebro de pacientes que sofreram sérias lesões na cabeça.
Suas pupilas estão fixas — comunicou Thomas. — A esquerda maior do que a direita.
Ela não se moveu desde que a tiramos do avião — um dos paramédicos da Brigada de Resgates informou. — Tive que colocar a atadura de pressão para controlar a hemorragia de uma profunda ferida na cabeça.
Como estão o pulso e a respiração? — perguntou Ted.
O pulso estava irregular, mas forte quando nós a pegamos — informou o técnico. — A PA estava a 15 por 8 há alguns minutos, mas seu ritmo respiratório está diminuindo devagar e gradualmente desde que deixamos o aeroporto.
A mulher acidentada estava na Sala de Emergências há menos de cinco minutos, porém, neste breve período, três observações muito importantes tinham sido feitas e a Ted Bronson não escapava sua significação: primeiro, o ferimento no crânio fora bastante grave para requerer um curativo compressivo a fim de controlar a hemorragia; segundo, pupilas fixas e dilatadas tinham sido notadas, um quadro que podia muito bem indicar uma severa lesão do cérebro, uma vez que o sangue correndo de uma artéria danificada por uma fratura do crânio e rigidamente contida dentro da caixa óssea em que está o cérebro pode comprimir com perigo o tecido mole porém vital deste; mais importante do que tudo isso, o decréscimo do ritmo respiratório da paciente quase com certeza indicava uma pressão intracranial crescente devida à hemorragia, que poderia em curto espaço de tempo causar a morte pela pressão sobre centros vitais — a não ser que medidas drásticas fossem tomadas imediatamente para aliviar a pressão.
Chame o residente da neurologia aqui — disse Ted ao funcionário da Sala de Emergências. — A lesão na cabeça é o problema mais importante por enquanto.
Liz tinha estado escutando com seu estetoscópio colocado sobre a saliência proeminente que era o aparentemente frágil abdômen da mulher acidentada. Quando levantou a cabeça e removeu os fones do estetoscópio, Ted perguntou-lhe:
Como está o feto?
Suas batidas do coração são boas e não há sangramento da vagina, de forma que acho que não há perigo de início imediato de um trabalho de parto prematuro — ela informou. — As batidas são um pouco rápidas, mas o feto provavelmente foi muito chacoalhado durante a queda do avião. Como está a princesa?
Ela parece estar formando um hematoma extradural, com sua pressão arterial subindo e o ritmo respiratório caindo; Ned Pierce provavelmente vai precisar fazer alguns orifícios no crânio com trépano muito em breve, a fim de ver o que está acontecendo lá dentro. Aliás, se Ned não chegar dentro em pouco, vou fazê-los eu mesmo.
Sabia que poderia contar com você para as emergências extra-obstétricas — disse Liz agradecida. — Neste ínterim é melhor que eu fale com o xeque Almani, se puder encontrá-lo.
Estou quase certo que o vi chegando de limusine quando eu entrava na Sala de Emergências. Provavelmente, ele deve estar na Sala de Espera.
O Dr. Thomas cortara a atadura de pressão em volta da cabeça da princesa Zorah, revelando uma laceração do couro cabeludo na região da têmpora esquerda com cerca de quinze centímetros. Colocando uma luva esterilizada de borracha que tirou de uma bandeja que a Sra. Burke tinha encostado na maca, ele examinou delicadamente a ferida com seu dedo indicador.
Ela tem uma fratura afundada na área da têmpora esquerda, Dr. Bronson — informou o jovem médico. — O sangramento que está reduzindo o ritmo respiratório deve provir desta área.
Ted estava-se dirigindo ao telefone de parede na Sala das Enfermeiras enquanto escutava o relato de Thomas. Pegando o fone, discou zero, e quando a telefonista atendeu, disse:
Quer fazer o favor de ver se o Dr. Ned Pierce ainda está em casa?
Aqui é Ted Bronson, Norma — disse ele quando uma voz de mulher atendeu. — Ned está aí?
Ele está a caminho do hospital, Ted, e deverá chegar aí num minuto. Alguma coisa errada?
Um avião da Arábia espatifou-se no aeroporto...
Apareceu na tevê agora mesmo; a mulher que retiraram do avião parecia ainda estar viva. O repórter que estava lá disse que ela é a esposa grávida do emir Hassim, de Telfa. O bebê está bem?
Liz diz que sim. Eu estou levando a princesa para a Radiologia. Ned terá provavelmente que operar logo que chegar aqui.
Espero que ambos saiam vivos.
O telefone desligou quando Ted pôs o fone no gancho e discou novamente para a telefonista.
Quando o Dr. Ned chegar, por favor, peça-lhe para ir ao Departamento de Radiologia — disse ele.
Assim que Ted desligou o fone, viu Liz MacGowan dirigindo-se para ele em companhia do homem alto que ele vira saltar da li-musine logo atrás da ambulância.
Xeque Yossuf Almani, Dr. Bronson — disse ela. — O embaixador estava no aeroporto esperando pela princesa Zorah quando o avião caiu.
Foi uma tragédia, embaixador Almani — disse Ted ao apertar a mão do árabe.
Foi terrível, doutor! Pode dizer-me algo sobre o estado da princesa?
Apenas que ela tem uma grave ferida na cabeça com fratura e afundamento do crânio, e o que aparentemente é uma hemorragia no cérebro. O Dr. Ned Pierce, nosso neurocirurgião-chefe, está vindo para cá agora e estou certo que irá ter que operar imediatamente. O senhor tem autoridade para assinar uma permissão para cirurgia de emergência na princesa?
Eu o farei e obterei a permissão oficial mais tarde — disse Almani decidido. — Já pedi uma ligação para Telfa.
Bom!
A Dra. MacGowan informa-me que o bebê parece estar em boas condições — acrescentou Almani. — Não preciso dizer-lhe que tudo deverá ser feito para proteger tanto a princesa quanto a criança.
O xeque Almani acha que a princesa está com vinte semanas de gravidez — interveio Liz. — Isto é cedo demais para que uma operação cesariana ofereça muita esperança de salvar a criança.
Neste momento nossa principal preocupação tem que ser com a mãe e sua lesão na cabeça — disse Ted. — O que vai acontecer com a gravidez poderá ser determinado mais tarde.
Se a criança for menino é muito importante que ele seja mantido vivo — disse Almani incisivamente.
Para nós médicos é muito importante que o feto seja salvo, não importa qual o sexo. — A voz de Ted assumira um tom severo e decidido.
O xeque Almani não se deixou intimidar pelo tom de Ted.
Eu compreendo bem a questão de ética médica envolvida numa situação como esta, Dr. Bronson. No entanto, um herdeiro masculino asseguraria a linha de sucessão da família Elzama, e em Telfa este fato poderia ter precedência sobre qualquer outra consideração.
O senhor agora não está em Telfa, Sr. Almani — disse Liz com firmeza.
Naturalmente, doutora. Quando eu falar com o emir Has-sim hoje pelo telefone, direi a ele que todos os esforços serão feitos para salvar tanto a mãe quanto a criança. Esperemos que a necessidade de decidir entre o bem-estar de um ou do outro não surja.
O Dr. Ned Pierce entrou na sala dos negatoscópios justamente quando os primeiros filmes do crânio da princesa Zorah estavam saindo do revelador. Baixo, calvo e com uma pequena barriga, Pierce não tinha o tipo físico do neurocirurgião ideal imaginado pelo público, mas mesmo assim era uma autoridade reconhecida no campo de lesões da cabeça.
O que está acontecendo, Ted? — perguntou ele. — A telefonista me disse que corresse para cá tão logo chegasse.
Eu não poderia ficar mais feliz vendo uma pessoa agora do que você, Ned — assegurou Ted ao neurocirurgião. — A princesa Zorah é uma das esposas do emir de Telfa, uma pequena nação do Oriente Médio que aparentemente flutua sobre petróleo. Ela está grávida e estava vindo para aqui num dos aviões reais para que Liz MacGowan determinasse por amniocentese se ela tem em gestação o herdeiro macho daquele emirado. O avião ficou destruído quando caiu, há menos de uma hora, tentando aterrissar naquela cerração lá fora. Todo mundo a bordo morreu, menos a princesa e o feto.
Ouvi acerca do desastre no rádio do carro — disse Ned Pierce vivamente. — Que mais você pode dizer-me sobre ela?
É aparente que ela tem uma fratura afundada do crânio e muito provavelmente um grande hematoma extradural, que está fazendo pressão sobre o cérebro. Liz diz que o feto está bem, mas ali também há uma complicação.
— No dia em que eu tiver um paciente que tenha apenas uma única coisa para que eu opere e cure, provavelmente morrerei de surpresa! — Ned Pierce estava estudando os raios X expostos no painel de vidro fosco. — Desta vez o que é? — perguntou.
A princesa Zorah está grávida de cerca de cinco meses e o emir de Telfa quer muito um herdeiro homem. Mesmo que você salve a mãe, mas se o bebê morrer e a autópsia revelar que era um menino, vai ser um Deus nos acuda!
Por que Liz não faz uma cesariana agora? — perguntou Ned Pierce. — Eu já a vi operar e ela poderia resolver tudo em dez minutos, deixando-me tempo suficiente para descobrir onde a artéria meníngea média foi provavelmente rompida e colocar um clipe metálico nela.
Nesta altura Liz não está segura de que o bebê já esteja suficientemente desenvolvido para sobreviver fora do útero.
Não me diga isso! Neste caso a coisa se resume a decidir o que é mais importante: a mãe ou a criança. Em minha opinião não há opção: a mãe vem em primeiro lugar.
Não nego isso, e Liz também — disse Ted ao neurocirurgião. — Mas você não precisa ser vidente para entender que na mente do pai, o emir Hassim, e, quem sabe, talvez até mesmo perante a história do mundo, o bem-estar de uma criança do sexo masculino que iria ser herdeira de um dos mais antigos tronos do Oriente Médio é preponderante.
— Você já fez seu desjejum? — Ted perguntou a Liz quando a princesa Zorah estava sendo transferida da mesa de raios X para a maca que a levaria a um dos andares superiores destinado a operações cirúrgicas. Com um competente neurocirurgião agora encarregado dela, a responsabilidade deles quanto à princesa Zorah estava temporariamente suspensa.
Ainda não — respondeu ela.
Nem eu. Vamos comer alguma coisa enquanto Ned se prepara para começar a descompressão subtemporal.
Na cafeteria do hospital eles escolheram pãezinhos dinamarqueses e café e procuraram uma mesa de canto no refeitório dos médicos.
— Você dormiu um pouco ontem à noite? — perguntou Liz.
Dormi, depois da meia-noite. Estudei os antigos registros de transplantes de rins do hospital até essa hora.
Encontrou algo promissor?
Mais até do que eu esperava. Já selecionei uns doze pacientes cujos primeiros e até segundo transplantes falharam.
Você pensa que pode convencê-los a submeterem-se a uma nova operação?
Provavelmente necessitarei de meus mais fortes poderes de persuasão. Mas se eu estivesse atrelado a uma máquina de diálise, pularia em cima da oportunidade de tornar-me são de novo.
Como está Mike esta manhã? — perguntou Liz enquanto começava a cortar com o garfo um pãozinho quente.
Seu estado é surpreendentemente bom, para alguém que tem vinte e quatro horas de uma operação séria. O hematócrito ainda está baixo, mas eu mandei fazer outra transfusão, que deverá provocar uma rápida subida. Mike era um bom corredor de milha na universidade e Estrellita Mendoza disse-me que ele ainda corre dez quilômetros pelo menos cinco vezes por semana, por isso ele tem boa estrutura física para recuperar-se.
Lá está Arturo Corazón na fila da cafeteria — exclamou Liz. — O que poderá ele estar fazendo aqui tão cedo, e sozinho?
Não sei — admitiu Ted. — Depois que examinei Mike esta manhã, telefonei a Maria e disse-lhe que ele estava ainda melhor do que eu esperava... Importa-se se eu trouxer Arturo para cá? Ele provavelmente vai se sentir melhor na companhia de amigos.
Traga-o, por favor! Não sabia que a família deixava-o ir onde ele desejasse.
Arturo saiu-se tão bem na escola especial para onde a família o mandou que, quando a terminou, Mike deu-lhe uma bicicleta motorizada. Ele não anda muito rápido e nunca sofreu um acidente, por isso eles o deixam ir praticamente onde ele deseja.
Ted atravessou a sala da cafeteria até a caixa onde Arturo estava justamente pagando sua nota.
Venha comer com a Dra. MacGowan e comigo, mano — disse ele, empregando a forma afetuosa de tratamento que era dada ao mais jovem dos Corazón pela família. — Nós estamos ali naquele canto.
O rosto redondo de Arturo abriu-se num sorriso satisfeito e seus olhos brilharam de prazer com o convite. Carregando sua bandeja, ele seguiu Ted até a mesa onde Liz estava sentada.
Bom dia, Dra. MacGowan. — Como a maior parte das vítimas da síndrome de Down, a voz de Arturo era ligeiramente alta demais, em especial quando ele estava excitado, como era óbvio neste momento, e as palavras tendiam a atropelar-se. — Aposto que não pode adivinhar por que estou aqui.
Desisto — disse Liz sorrindo.
O banco de sangue do hospital chamou-me em casa há cerca de uma hora. Eles disseram que meu sangue combinava com o de Michael e que o Dr. Ted aqui havia ordenado outra transfusão esta manhã. Mamãe e meus irmãos ainda não tinham tomado o café da manhã, eu vim logo em minha motoneta.
Você já doou o sangue? — perguntou Liz.
Eles fizeram isso há uns minutos. Não doeu nem um pouco! E disseram-me para comer um bom desjejum para compensar a perda de sangue.
Você certamente obedeceu bem a essa ordem. Se eu comesse tudo isso, teria que ficar de dieta pelo resto da semana.
Estava com fome. — Arturo começou a atacar uma refeição realmente pantagruélica, consistindo de dois ovos, duas panquecas, uma partida dupla de bacon, dois copos de leite e dois de suco de laranja. — Além disso, o fato de poder ajudar Michael faz-me feliz e eu sempre como muito quando estou feliz.
Acho formidável você ter dado seu sangue para ajudar a salvar a vida de seu irmão — disse-lhe Liz.
Você realmente pensa que irá salvá-lo?
Estou certa que sim.
E eu também — concordou Ted Bronson.
Isto faz-me sentir muito bem! Realmente muito contente! Depois que nós chegamos em casa ontem à noite, fui cortar algumas flores para trazer para o quarto de Michael esta manhã. Uma grande cobra estava num dos canteiros e deve ter vindo pelo canal dos Everglades. Mas eu liquidei-a ali mesmo com meu rifle — acrescentou ele com um forte gesto de orgulho.
Fico satisfeita de não ter sido eu quem encontrou a cobra em seu canteiro — disse Liz. — Pélo-me de medo delas!
Eu não tive medo desta — vangloriou-se Arturo, com a boca um tanto cheia de panquecas e bacon. — Apenas peguei minha 22 e atirei na cabeça dela. Esta foi a última vez que ela se meteu em meu jardim...
Gostaria de poder dizer o mesmo acerca do homem que atirou em seu irmão — disse-lhe Ted. — Mas cobras humanas são difíceis de destruir.
Quando puxei o gatilho do rifle na noite passada, disse para mim mesmo que estava atirando no homem mau que tentou matar Michael — segredou-lhes Arturo. — Se eu pudesse, estouraria a cabeça dele como fiz com a da cobra.
— O FBI ainda vai apanhá-lo — disse Ted.
Sem dúvida desejo que o senhor esteja certo, Dr. Ted, mas
de qualquer forma lubrifiquei a 22 ontem. Se Sam Gianno um dia mostrar seu focinho lá pelo meu jardim, vou atirar nele exatamente como fiz com a cobra ontem à noite.
— Estamos monitorando o feto e ele parece estar bem — assegurou o Dr. Ned Pierce a Ted e Liz, que estavam observando a operação da princesa Zorah da galeria envidraçada que ficava por cima da Sala de Operação n? 1. — Gostaria de dizer o mesmo acerca da mãe — acrescentou. — Ela evidentemente levou uma forte pancada no osso temporal para afundar tanto aquela parte, e estou certo de que iremos encontrar uma grande hemorragia por baixo do osso junto com uma série de danos superficiais devido a contrecoup.
Nenhum dos dois médicos necessitava de uma interpretação para esta palavra. Em severas lesões na cabeça, o cérebro não ficava apenas machucado embaixo da área do crânio onde a força fora aplicada diretamente e sobre sua superfície, mas também era empurrado contra o lado oposto do crânio. Esta força, conhecida como contrecoup, muitas vezes causava uma contusão que podia ser tão grave quanto a da área em que a força original fora aplicada.
Se a lesão na cabeça da mãe for fatal, Dra. MacGowan — perguntou um dos estudantes de Medicina na galeria que agora estava quase repleta — a senhora pensa que poderá salvar o feto com uma operação cesariana?
A Lex Caesaris diz que devo tentar. — Liz citou uma lei, em geral não escrita mas que muitas vezes aparecia nos estatutos, dizendo que quando uma mãe morria enquanto um feto com chances de sobreviver está em seu útero, a cirurgia deve ser realizada por qualquer pessoa disponível para remover a criança e tentar salvar sua vida. — Porém salvar um bebê com apenas vinte semanas é, muitas vezes, difícil — completou ela. — Assim, vamos ser otimistas e torcer para que a mãe viva também.
Ela é realmente princesa? — perguntou uma jovem estudante.
Assim estou informada — respondeu Liz. — A princesa Zo-rah estava sendo trazida para aqui a fim de fazer uma amniocentese para determinar o sexo do feto.
Vou remover o fragmento de osso amassado — ouviu-se a voz do Dr. Pierce pelo alto-falante.
Através da parede de vidro da galeria os observadores acompanharam, enquanto ele introduziu um elevador de perióstico — um instrumento com acentuada semelhança com uma chave de fenda
por sob a borda do osso num dos buracos de broca que ele havia feito retirando parte do osso craniano ao longo da fratura. Por um momento nada aconteceu, a seguir os observadores ouviram um nítido estalo e viram o fragmento que estava pressionando o cérebro ser levantado.
Obviamente estamos lidando com um grande hematoma ex-tradural. — A voz do neurocirurgião ficou de repente tensa, quando uma corrente de sangue escuro apareceu por baixo do fragmento de osso. — Evidentemente há uma rotura num vaso sanguíneo, usualmente a artéria meníngea média. — Enquanto falava, o Dr. Pierce estendeu a mão para um pesado instrumento chamado ron-geur. Suas mandíbulas são montadas num sistema duplamente articulado de forma que transmitem uma tremenda força para a ponta da ferramenta, fazendo com que o rongeur seja capaz de decepar um dedo ou, mais importante do que isso, pegar e retirar seções do crânio.
Mesmo através da parede de vidro do local de observação, Liz e Ted podiam ouvir o rangido do rongeur progredindo através do fragmento de crânio que fazia pressão sobre o cérebro. Momentos mais tarde, o cirurgião removeu um pedaço do crânio mais ou menos do tamanho da palma da mão de um homem, descartando o osso. Quando ele fez isso, a membrana exterior que cobre o cérebro
a dura-máter — apareceu. Nela podia-se ver o trajeto da artéria meníngea média, formando um modelo ramificado, como uma árvore, ao dividir-se em muitos vasos menores.
Ali está a laceração! — Pierce subitamente colocou a mão na poça de sangue que enchia a falha que ele acabara de criar no crânio e apertou seu dedo contra o pequeno rasgo na parede da artéria, fazendo parar o fluxo de sangue.
Pinça hemostática!
Quando o instrumento lhe chegou às mãos, ele levantou o dedo rapidamente, expondo o corte na artéria vital. O sangue esguichou num jato fininho, mas ele pôde pinçar a artéria com a hemostática interrompendo o fluxo. Duas ligaduras, acima e abaixo do corte na artéria, controlaram o fluxo de sangue, e o cirurgião começou a remover o acúmulo de coágulos contra o cérebro com um aspirador. À medida que o fazia, o pulso da paciente no monitor começou a cair continuamente enquanto a respiração aproximava-se do normal.
Vou remover todos os coágulos que puder em direção à base do cérebro por meio de sucção — Pierce explicou para a galeria. — Mas uma vez que não posso retirar todos eles, deixarei um dreno de tecido de borracha na ferida quando a fecharmos.
Pegando o microfone da galeria pelo qual era possível comunicar-se com o cirurgião lá embaixo, Ted pediu:
Você pode dar uma olhada na superfície do córtex, Ned?
Tenciono fazê-lo — assegurou-lhe Pierce.
Apenas alguns minutos foram necessários para abrir a dura-máter por sobre a superfície imediata do cérebro num espaço suficientemente grande para ver uma porção do córtex corrugado do cérebro logo abaixo do ferimento craniano. Mesmo aqueles que se encontravam na galeria podiam ver pela aparência do cérebro que a situação era de fato grave. Normalmente branca, sua superfície estava bem escura, devido a muitas pequenas hemorragias.
Se eu expusesse o lado oposto do cérebro, estou certo que a aparência seria também ruim, devido à lesão do contrecoup — comentou Pierce enquanto colocava uma tira de tecido de borracha profundamente no espaço antes ocupado pelos coágulos que ele tinha podido remover.—O prognóstico aqui é muito ruim, mesmo com a melhoria da respiração e das batidas do coração devidas à redução da pressão sob a fratura.
O xeque Yossuf Almani estava esperando no consultório de Liz quando ela chegou, depois de fazer um breve relatório para os repórteres dos jornais e da tevê que aguardavam no saguão as notícias dos ferimentos da princesa Zorah após o dramático desastre.
— Receio não ter notícias muito esperançosas para o senhor, Sr. Embaixador — disse Liz cumprimentando o alto e bem-apessoado árabe. — A princesa Zorah sofreu uma grave lesão na cabeça durante a queda do avião com uma fratura afundada do crânio e uma enorme hemorragia extradural. Isto significa...
Estou familiarizado com o termo, Dra. MacGowan — disse ele com uma nota de impaciência na voz. — Por favor, prossiga.
Liz esforçou-se para permanecer calma apesar de sua irritação pelo tom de voz do xeque.
A hemorragia foi controlada — continuou ela — mas o córtex cerebral foi seriamente danificado no lado da fratura do crânio, e quase com certeza do outro lado também, pelo que é conhecido pelo termo médico de contrecoup. O Dr. Pierce considera as chances dela recuperar-se consideravelmente menores que 50%.
E a criança, ou o feto, como os senhores chamam?
Não temos nenhum sinal de que esteja em perigo.
Que maravilha! — a expressão de Almani era de verdadeira satisfação. — Direi isto ao emir Hassim quando telefonar esta noite. Posso também dizer-lhe que a senhora irá remover o feto por cesariana?
Não há indicação para cesariana no momento — disse Liz com firmeza. — Dispomos aqui no Biscayne de uma das melhores UTIs para recém-nascidos do país, mas o feto está muito melhor dentro do corpo da mãe do que fora dele. Tenciono deixá-lo ali tanto tempo quanto for possível.
Mas a senhora disse que a princesa Zorah irá certamente morrer — protestou Almani. — Por certo a senhora não iria deixar a criança morrer com a mãe.
Naturalmente que não, mas enquanto a circulação da mãe estiver levando oxigênio para o feto, não há necessidade de intervir por meio de cirurgia.
Yossuf Almani sacudiu a cabeça aparentemente espantado.
O único propósito ao trazer a princesa Zorah aqui foi verificar se ela carregava em seu útero o herdeiro legal do trono de Tel-fa, doutora. Foram feitos até planos antes que ela deixasse Telfa para a designação de um regente a fim de assegurar os direitos do infante, se for menino. Esta criança deve viver...
Tenho todo o propósito de dar-lhe a melhor chance de viver, Sr. Almani. — O tom de Liz tornara-se duro. — Da mesma forma que faria com qualquer outro paciente a meus cuidados.
Mas se a princesa Zorah morrer...
Uma idéia brotou na cabeça de Liz e ela enunciou-a antes que Almani pudesse prosseguir:
Talvez o senhor fosse o regente de que falou?
Tenho muita honra em que o emir Hassim deposite suficiente confiança em minha lealdade para com ele e com Telfa por considerar-me o guardião de um possível sucessor. — O tom de Almani era áspero de cólera. — Suas insinuações...
Talvez eu lhe deva desculpas — admitiu Liz. — Lembro-me agora que o Dr. Fraser disse que o emir Hassim está desenganado.
Com leucemia — confirmou Almani. — Durante os últimos seis meses um famoso hematologista suíço está vivendo no palácio enquanto ministra ao emir injeções de uma poderosa droga usada em quimioterapia. Durante algum tempo parecia que a doença tinha entrado novamente em remissão, mas nas duas últimas semanas a saúde do emir declinou muito. Efetivamente o Dr. Eckstein informou à família que não espera que o doente viva além deste mês.
Oh, lamento muito! — disse Liz sinceramente.
Talvez a senhora possa entender agora por que a determinação do sexo da criança da princesa Zorah tem tanta importância. E por que a extração de uma criança viva é também essencial. Por que não poderia a senhora atender a ambos os requisitos com uma operação imediata?
Nós poderíamos determinar o sexo, naturalmente, se eu removesse o feto do corpo da mãe por uma incisão — anuiu Liz — mas somente colocando em risco a vida da criança.
Não vejo o motivo.
Bebês nascidos prematuramente correm risco muitíssimo maior fora do corpo da mãe, principalmente porque seus pulmões não estão desenvolvidos em sua totalidade. Mesmo quando se usa ventiladores especiais para dar-lhes oxigênio, muitas vezes há dificuldades em introduzir o oxigênio através das membranas que revestem os pulmões para a circulação pulmonar.
Eu persuadi o emir Hassim a deixar-me trazer a princesa Zorah a fim de que a senhora pudesse determinar o sexo da criança por amniocentese. Ainda é possível fazer isso?
A amniocentese leva apenas uns poucos minutos — disse Liz — mas o líquido que se remove do âmnio — o saco no qual o feto se desenvolve — ainda tem que ser submetido a uma cultura durante várias semanas. Durante esse período novas células se desenvolvem a partir daquelas provindas da pele do feto para o líquido. O diagnóstico final é feito estudando-as ao microscópio.
Duas semanas é tempo demais, Dra. MacGowan — protestou Almani. — Se o emir Hassim morresse neste intervalo de tempo, ocorreria em Telfa um vácuo político, por assim dizer, com tantas facções lutando pelo controle que se criaria uma situação parecida com uma anarquia. Não há outra maneira de determinar se existe um herdeiro masculino para o trono?
Podemos tentar outro processo: o do ultra-som.
Conheço o termo, doutora. Mas como a senhora o emprega?
A técnica é realmente muito simples. Ondas sonoras de alta-freqüência refletem-se do feto dentro do útero e a imagem produzida é fotografada. De fato hoje em dia eu uso ultra-som quando introduzo a agulha para a amniocentese, para saber com exatidão onde colocá-la. Se o feto estiver bastante desenvolvido, pode-se às vezes mesmo ver os órgãos genitais e determinar o sexo imediatamente.
Quando poderá fazê-lo, Dra. MacGowan? — perguntou Almani interessado.
Talvez até amanhã à tarde, se as condições da princesa Zorah o permitirem.
Por favor, então faça isso — disse Almani. — Eu assinarei os papéis que forem necessários antes de iniciar o processo.
O telefone do consultório de Liz tocou quando ela estava para pedir a sua secretária que mandasse entrar o primeiro paciente do horário da tarde. A voz no fone, quando ela pegou o aparelho, era masculina e muito enérgica.
Dra. MacGowan? — perguntou o homem.
Sim.
Aqui é Steven Longaker, do Ministério de Relações Exteriores em Washington. Creio que a princesa Zorah de Telfa é sua paciente aí no hospital.
É, sim.
— O embaixador de Telfa junto às Nações Unidas, o xeque Yossuf Almani, telefonou ao ministro há alguns minutos, mas ele não está na cidade e eu atendi ao telefonema. Diz o embaixador que a princesa e a criança da qual ela está grávida estão morrendo ai no hospital. É verdade?
A princesa está em estado grave devido a uma pancada recebida na cabeça quando o avião dela caiu — disse Liz. — Esperamos a morte cerebral provavelmente amanhã, mas o feto está bem vivo e espero mantê-lo assim.
Numa incubadora, doutora?
Com nosso sistema avançado de apoio à vida, podemos manter um corpo funcionando sustentando a respiração e a ação do coração muito depois de ocorrer a morte cerebral, Sr. Longaker. C melhor incubador para o feto é o corpo da mãe, e eu pretendo usá-lo com essa finalidade.
Por quanto tempo, doutora?
O último caso registrado foi, segundo creio, de sessenta e quatro dias, mas não temos idéia, neste caso, que o feto precise permanecer no útero mais do que duas semanas.
Mesmo um período destes não é arriscado, doutora?
Não mais do que trazê-lo ao mundo antes que se tenha desenvolvido de forma a poder viver sem sérias complicações. Eu julgava que o xeque Almani tivesse entendido a situação.
O embaixador está numa posição bastante difícil — explicou o homem do Ministério. — Nosso embaixador em Telfa tem estado em contato com o médico que está tratando o emir de leucemia. Ele está muito fraco e pode não durar mais uma semana.
Não vejo como a saúde do emir Hassim poderia justificar que eu pusesse em risco a vida da criança fazendo uma cesariana prematura, Sr. Longaker.
A situação é muito delicada, Dra. MacGowan. O emir Hassim parece ter dito ao embaixador Almani que se a criança que a princesa carrega for do sexo masculino, ele será indicado como regente, tornando-o praticamente o governante de Telfa.
Ele também me disse isso — confirmou Liz — mas não vejo por que isto faria qualquer diferença. De fato, penso que o xeque Almani deveria estar até mais ansioso para saber que o feto tem a melhor chance de sobrevivência.
A política nos reinos onde existe petróleo é sempre incerta, Dra. MacGowan — disse Longaker. — Sem dúvida haveria objeções da parte de algumas facções em Telfa à ascensão do embaixador Almani ao governo como regente. Com toda a franqueza, doutora, ele é provavelmente o homem mais capaz de Telfa, mas está muito longe de ser o mais popular. E com os agentes soviéticos e iranianos por toda parte, uma tentativa de apossar-se do governo atual sem uma prova tangível da existência de um herdeiro do trono poderia lançar a inquietação ao emirado de Telfa.
Mas é um lugar tão pequeno, Sr. Longaker. Por que o senhor está tão preocupado?
Telfa é uma das maiores fontes de óleo cru para os Estados Unidos, e seu governo é mais amistoso conosco do que qualquer outro da península árabe. O país tem sido governado há séculos por uma família que trata bem seus súditos. Por exemplo: a renda per capita do povo de Telfa é inferior apenas à do povo do Kuwait, graças à política do emir Hassim e sua família. A morte do emir sem um sucessor nomeado e um governo forte, como o atual — e que sem dúvida continuaria sob o xeque Almani como regente representando o herdeiro do trono — poderia ser muito importante para a estabilidade de muitos outros pequenos países na península árabe, isto sem falar no preço do petróleo. Assim a senhora pode ver por que esta situação é muito importante para os Estados Unidos.
O senhor está me dizendo que o futuro de um país poderá estar dependendo de ser o feto que a princesa Zorah tem em seu ventre macho ou fêmea?
A senhora disse-o melhor do que eu poderia ter feito, Dra. MacGowan.
Como médica, o sexo do feto é para mim de muito menos importância do que a vida dele, Sr. Longaker.
Concordo — disse o funcionário do Ministério. — Mas sob a lei de Telfa, e quase em qualquer outra parte do mundo, uma criança que ainda não nasceu não é uma pessoa. Mesmo que a criança ainda esteja no corpo de sua mãe, mas que se saiba ser um menino, o xeque Almani poderia controlar o país em seu nome como regente. Porém sua pretensão seria muito mais fortalecida se a criança fosse menino e já tivesse nascido.
O senhor está me pedindo para colocar em perigo a vida do feto que a princesa Zorah tem no ventre, extraindo-os antes do momento que creio ser seguro mesmo nas mais sofisticadas incubadoras, como as que temos aqui, Sr. Longaker?
Certamente que não, Dra. MacGowan. Mas o xeque Almani me disse que a senhora pode determinar o sexo do bebê.
Isto é verdade — concordou Liz — mas há certos perigos nisto também. O método menos perigoso é pelo uso de ultra-som, que hoje em dia se crê não implicar nenhum perigo para o feto. O segundo é através de amniocentese, que infelizmente requer de quatorze a vinte um dias para que o fluido colhido em volta do próprio feto seja cultivado a fim de dar lugar ao crescimento de células. Estas podem ser estudadas sob o microscópio eletrônico para se verificar a presença ou ausência dos cromossomas que determinam o sexo.
Que processo a senhora preferiria adotar neste período da gravidez, doutora? — perguntou Longaker.
Sem dúvida, primeiro o ultra-som, na esperança de que o feto já esteja suficientemente desenvolvido para que possamos identificar os órgãos genitais externos.
E a seguir?
A amniocentese. Mas como adverti, este método requer pelo menos duas a três semanas antes que um diagnóstico final possa ser feito, e o xeque Almani objeta-se fortemente a esta demora.
Nós precisamos de uma conclusão muito mais cedo — disse Longaker.
E isto o senhor não vai obter, a não ser que eu tenha a sorte de identificar os órgãos genitais do feto com o ultra-som — disse Liz com decisão.
Nós vamos obedecer à sua decisão, doutora, por certo, mas por favor tenha em mente que o embaixador Almani vem servindo a seu país e à família reinante bem e fielmente. O governo dos Estados Unidos teria muita satisfação em vê-lo em Telfa como força estabilizadora, quer na posição oficial como regente... ou alguma outra.
Manterei o senhor informado, Sr. Longaker — prometeu Liz, e desligou o telefone.
No momento em que Liz concluiu sua conversa com o representante do Ministério do Exterior, Ted Bronson estava na Sala das Enfermeiras da UTI do hospital estudando os relatórios das amostras de sangue tiradas aquela manhã pelos técnicos de laboratório para análise química. O que ele viu não foi, no entanto, animador. Embora a curva de temperatura do paciente tivesse uma tendência a baixar sob a influência de poderoso antibiótico, os resultados da análise de sangue ainda estavam indo na direção errada.
Enquanto Ted folheava os resultados de análises do laboratório central, o chefe do Serviço Médico, Sr. Mattew Arnold, a quem ele tinha pedido que visse Michael Corazón, entrou no pequeno quarto atrás da Sala das Enfermeiras, onde havia microfones vermelhos para ditados, de forma que os médicos pudessem imediatamente ditar ordens após haver examinado o paciente no andar.
Prazer em vê-lo, Ted — disse Arnold. — Examinei seu paciente especial há alguns minutos e ia chamá-lo.
Você já viu o resultado dos últimos exames de sangue?
Não.
Aqui estão. — Ted entregou ao consultor o maço de relatórios e o chefe do Serviço Médico folheou-os rapidamente antes de devolvê-los.
Não há nada aqui que eu não esperasse como resultado de meu exame há alguns minutos. A fosfatase alcalina, a bilirrubina sérica e a transaminase estão todas mais acentuadamente elevadas do que você esperaria de um simples trauma no fígado devido a ferimento de bala. Da mesma forma a creatinina, e não preciso dizer-lhe o que o elevado nível de nitrogênio na uréia do sangue significa.
Iminência de colapso do fígado. — A voz de Ted era dura. — A pior coisa que poderia acontecer agora.
Concordo com você — disse o Dr. Arnold. — Depois de ter sido atingido dessa forma, eu esperaria que o fígado mostrasse alguma diminuição de função durante as primeiras vinte e quatro horas, mas agora ele já deveria estar se recuperando.
E muito mais do que se recuperou — concordou Ted. — Vou encomendar outros exames esta noite e poderemos ver o que os resultados revelam amanhã de manhã. Tem alguma outra sugestão?
Você tem certeza que cessou a hemorragia no interior do fígado onde penetrou aquela bala?
Inteiramente, não. Vou fazer uma varredura por ressonância nuclear magnética nele pela manhã, a fim de ver como está a situação.
Avise-me quando começar e eu tentarei ir até lá para ver o que o teste vai revelar. Aquela máquina de Ressonância Nuclear Magnética ainda é um mistério para mim.
Muito bem — disse Ted. — E obrigado por ter ido vê-lo esta tarde, Matt.
Não há de quê — disse Arnold. — Eu ainda acho que promotores públicos como Mike Corazón são a única chance que se tem de fazer de novo de Miami um lugar decente para se viver. Boa noite. Se você precisar de mim, estarei em casa.
Ted Bronson tinha acabado de ver os pacientes que o estavam esperando no consultório, e planejava ir para os Arquivos Médicos do hospital a fim de continuar durante o resto da tarde sua pesquisa de possíveis candidatos a um segundo transplante de rins, quando sua secretária lhe disse que Estrellita Mendonza estava na sala de espera para vê-lo. Dirigindo-se para a porta que dava para aquela sala, ele abriu-a e fez Estrellita entrar no consultório.
Fico contente que você tenha vindo — disse-lhe Ted. — Você já viu Michael esta tarde?
Estou chegando da UTI. Ele não está indo muito bem, está, Ted?
Não tão bem quanto eu desejava, mas não há nenhuma razão real para ficar por demais preocupada por enquanto. Era fatal que houvesse uma considerável reação à lesão que aquelas balas causaram em seu corpo.
Eu tive "mono" quando estava na universidade — disse Es-trellita — de forma que estou muito familiarizada com a coloração amarela de icterícia no branco dos olhos dele. Mike também está manifestando icterícia, não?
Sim.
O que isso significa?
Que seu fígado não está exercendo suas funções e que a bile está sendo absorvida pela corrente sangüínea — disse-lhe Ted. — Nós tivemos prova disso pela elevação da bilirrubina sérica no relatório do exame de sangue esta manhã.
E se esta situação continuar a agravar-se?
Nós enfrentamos esta complicação quando, como e se ela se apresentar — respondeu Ted. — Neste momento estou fazendo tudo o que sei fazer.
A família e eu sabemos que podemos contar com você nisso — assegurou ela.
Você sabia que Arturo doou sangue para uma transfusão em Michael?
Sim. Ele telefonou-me para o escritório um pouco depois de lhe haverem tirado o sangue. Estava muito excitado e feliz por ter sido capaz de ajudar Mike — disse ela sorrindo — e estava falando tão alto no telefone que quase estourou-me os tímpanos...
Quando acabou de falar com o homem do Ministério das Relações Exteriores, Liz ligou para o consultório do Dr. Moe Harris no Laboratório de Pesquisas Genéticas.
Eu quero que você resolva um problema para mim — disse
ela.
É? Pode especificá-lo.
Liz deu ao especialista em genética um rápido resumo da questão da determinação do sexo no que se referia à princesa Zorah e ao feto que ela carregava.
Você é perita em amniocentese, Liz, e eu pelo menos passo por isso em genética, de forma que não deveríamos ter nenhum problema para determinar o sexo desse feto — disse Harris. — O que está preocupando você?
Tanto o Ministério das Relações Exteriores quanto o xeque Almani querem saber o resultado ontem...
Então estão pressionando você; os clínicos fazem isso comigo a toda hora. Que mais há de novo?
O problema é que estou matutando o que poderíamos fazer para apressar o diagnóstico — confessou Liz. — Se o emir Hassim está morrendo, seria uma tremenda satisfação para ele se soubesse que havia sido pai de um filho homem para perpetuar a dinastia que vem governando Telfa há séculos.
Você pensará em alguma coisa — assegurou-lhe Moe Harris. — E basta telefonar-me se precisar de alguma ajuda.
A afluência de visitantes à Sala de Emergências do Hospital Biscay-ne diminuiu por volta das quatro e meia. A maior parte dos "externos", para os quais a Sala de Emergências era o "médico da família", eram examinados pelos residentes de primeiro ano, conferindo-lhe valiosa experiência e preparando o dia em que começassem sua prática por conta própria ou como empregados numa clínica já estabelecida. O acúmulo de casos de acidentes, tanto graves quanto leves, causados pelo êxodo das cinco horas do pessoal de escritórios do centro da cidade em direção às suas casas nos subúrbios, ainda não havia começado, de forma que a equipe da Sala de Emergências, tanto enfermeiras quanto médicos, estava descansando.
A supervisora das enfermeiras do turno de três às onze estava atrasada devido a uma consulta dentária, de modo que a Sra. Bur-ke, a supervisora grisalha do dia, tinha ficado após as três horas esperando que a outra enfermeira se apresentasse. Ela ficou um pouco espantada quando um homem forte, com uma longa cicatriz no rosto, entrou na sala, queixando-se de dor de cabeça.
Ao encaminhar o paciente para um dos cubículos fechados com cortinas — agora na maior parte vazios — a Sra. Burke chamou o Dr. Ed Thomas, chefe dos residentes, sabendo que uma dor de cabeça poderia possivelmente significar uma súbita alta de pressão e um ataque iminente. Para surpresa dela, enquanto estava orientando o paciente para sentar-se numa mesa de exame, viu um outro homem, quase do mesmo tamanho e constituição, entrar e dizer também a uma das enfermeiras que ele estava com dor de cabeça. Quando ela virou-se para olhar para ele, seu pé tropeçou numa banqueta baixa junto à mesa, forçando-a a agarrar o braço do paciente para apoiar-se. Ao fazer isso sentiu o inconfundível volume de uma pistola num coldre preso ao ombro.
Que diabo, enfermeira, olhe o que está fazendo! — reagiu zangado o homem.
Desculpe-me senhor, o chão está escorregadio. — Fingindo estar perturbada, ela virou-se para o Dr. Thomas, que estava entrando no cubículo, e disse: — As coisas parecem estar sob controle aqui. Penso que vou descansar um instantinho antes do afluxo de gente das cinco e meia.
Pois não — disse o residente, com um sorriso. — Quando voltar, traga-me uma caneca de café preto com dois torrões de açúcar.
Certo. — Dirigindo-se para a porta que dava para a plataforma de desembarque, a enfermeira passou depressa por outra porta, que dava acesso ao almoxarifado. Agarrando o primeiro telefone que viu, discou para a telefonista do hospital.
Você tem na UT1 um telefone designado para a turma do FBI que está guardando o Sr. Corazón? — perguntou a telefonista.
Sim, por que, Mabel?
Chame-o, por favor, e continue na linha até alguém responder.
O que está acontecendo? — perguntou a telefonista. — Você parece estar nervosa...
Esqueça isso. Chame logo aquele telefone.
Turma de segurança — respondeu uma voz masculina e firme ao primeiro toque da campainha. — Aqui é Patterson.
Aqui é a Sra. Burke, da Sala de Emergências, Sr. Patterson — disse ela rapidamente — penso que um atentado está para ser praticado contra o Sr. Corazón.
Onde está a senhora?
No almoxarifado. Escapei da Sala de Emergências quando verifiquei que dois pacientes que entraram queixando-se de dores de cabeça pareciam bandidos. Um deles, além disso, carrega uma pistola num coldre pendurado no ombro.
O que eles estavam fazendo quando a senhora deixou seu posto, Sra. Burke? — A voz de Patterson tornou-se subitamente tensa.
O Dr. Thomas tirava a pressão do primeiro. O outro entrou quando eu ia saindo^, mas ele usava um paletó e seu peito parecia muito largo, de forma que ele também pode estar carregando uma pistola.
Não volte para a Sala de Emergências.
Se eles começarem a atirar, minhas enfermeiras, o Dr. Thomas e alguns estudantes poderão ser atingidos.
Nós os protegeremos — assegurou-lhe Patterson. — Obviamente, se for feita uma tentativa, será através da porta dupla entre a Sala de Emergências e da UTI.
Foi isto que pensei. Espero que não haja nenhum tiroteio.
Os dois homens de plantão na porta de seu departamento estão usando "maças" — disse-lhe Patterson. — Eles saberão o que fazer, mas por favor fique onde a senhora está.
Na Sala de Emergências a situação subitamente mudou de uma forma dramática quando os dois homens acerca dos quais a Sra. Burke havia alertado o chefe do FBI sacaram dos coldres sob os braços duas pistolas automáticas pesadas.
Vocês todos aí do hospital, deitem-se no chão e ninguém sairá machucado — mandou o cara com a cicatriz, evidentemente o chefe.
Assustados, todos obedeceram, menos um estudante; este, quando protestou, levou logo uma coronhada e foi derrubado pelo segundo bandido.
Aquela porta dá para a enfermaria da UTI onde está Corazón, não é? — perguntou o líder ao Dr. Thomas, que continuava deitado no chão.
Thomas assentiu com a cabeça, por demais surpreendido pela súbita virada dos acontecimentos para poder falar.
Nós vamos entrar ali para pegar Corazón e vamos voltar por este mesmo caminho — disse o chefe para os que estavam no chão. — Fiquem deitados e nada sofrerão, mas quem tentar interceptar-nos vai ser parado por uma bala...
Na seção da UTI, Nick Patterson havia ordenado aos dois agentes que guardavam a porta da Sala de Emergências que se colocassem em posição em ambos os lados da porta; cada um tendo na mão direita uma pistola e na esquerda uma arma química de defesa, conhecida como "maça".
Quando os dois bandidos entraram violentamente pela porta dupla da Sala de Emergências momentos mais tarde, nenhum dos dois teve a chance de disparar sua arma antes que os produtos químicos contidos na "maça" os atingissem em cheio nos olhos, cegando-os com a corrente do irritante gasoso. Gritando de dor, os pistoleiros prontamente esqueceram qualquer intenção de usar as pistolas que portavam; em poucos segundos os agentes do FBI os agarraram, jogaram-nos ao chão e torceram seus braços para as costas, colocando-lhes algemas.
O que está acontecendo? — perguntou Michael Corazón num tom sonolento do outro lado do quarto, acordado pelos gritos de dor dos indesejados visitantes.
Sam Gianno mandou alguns meliantes disfarçados de pacientes da Sala de Emergências para acabar com o senhor — disse-lhe Nick Patterson. — Estou quase certo de reconhecer um deles como um bandido da quadrilha de Jersey que está na lista dos procurados pelo FBI.
Parece que você não estava dormindo no ponto, Nick!
Você pode agradecer à enfermeira-chefe da Sala de Emergências — disse o agente do FBI. — Se ela não houvesse suspeitado de algo quando esses dois patifes entraram queixando-se de vagas dores e descobrisse que o líder dos dois estava portando uma arma, teria havido uma verdadeira batalha quando eles se lançassem sobre meus homens que guardavam a porta.
Alguém foi ferido? — perguntou Michael.
Apenas seus pretensos assassinos — respondeu Patterson sério. — E eles terão muito tempo na cadeia para se recuperarem.
Ted Bronson e Erasmus Brown, o administrador do hospital, chegaram à UTI justamente quando quatro guardas da Polícia Metropolitana estavam retirando os ainda meio cegos bandidos para um carro-patrulha da polícia.
Que aconteceu? — perguntou Ted.
Sam Gianno deve ter decidido que seria melhor terminar o serviço de destruir as provas contra ele e os banqueiros matando seu paciente aqui na UTI.
Como você soube que eles estavam vindo?
Nós não sabíamos, até que a Sra. Burke suspeitou de dois pacientes externos que se queixavam de dores de cabeça e deu um jeito de sair da Sala de Emergências para nos avisar. Quando os bandidos entraram porta adentro, nós estávamos esperando por eles com tudo a que eles tinham direito... — A voz de Patterson tornou-se de novo séria. — Precisamos remover o Sr. Corazón para um lugar onde possamos vigiá-lo melhor, Dr. Bronson. Tenho estado preocupado acerca deste local desde que ele veio da Sala de Operação.
Estou de acordo com você — disse Ted sobriamente.
Autorizarei o uso de uma daquelas suítes VIP, do décimo andar — disse Erasmus Brown.
O Dr. Peter Craig, anestesiologista-chefe, que também era encarregado da UTI, entrara no quarto.
Você poderá instalar todos os monitores de que necessitamos no décimo andar, Peter? — perguntou Ted.
Já estou preparando um quarto daquele andar equipado com monitores para observar as reações da princesa árabe, que é paciente dos doutores MacGowan e Pierce. Estamos usando monitores tanto para a mãe quanto para o feto, de forma que podemos certamente arrumar outro conjunto para registrar os sinais vitais do Sr. Co-razón.
A Polícia Metropolitana do centro irá indiciar esses dois patifes que prendemos — disse Nick Patterson, observando seu relógio. — Se pudermos pressioná-los bastante antes que o advogado de Sam Gianno possa obter uma ordem de habeas-corpus de um dos juízes locais que estão em sua folha de pagamento e soltá-los sob fiança, poderemos obter provas suficientes para prender Gianno novamente.
Apoio esta idéia — disse Corazón de seu leito. — Com outra acusação de "conspiração para assassinato" contra Gianno talvez se possa convencer um juiz federal a mantê-lo preso sem fiança.
Liz MacGowan estava voltando do andar conhecido como VIP — porque era composto de suítes de luxo de dois quartos cada uma — para a qual a princesa Zorah fora transferida da Sala de Operação, quando encontrou o Dr. Ned Pierce no elevador.
Alguma mudança em seu diagnóstico, Ned? — perguntou ela ao neurologista.
O eletroencefalograma contínuo que mandei fazer mostrou um quadro muito fraco de atividade do cérebro toda a tarde, e estou preocupado — disse ele.
Isto é algo contra o que não se pode fazer muito, não é verdade?
Se a gravidade da contusão no lado oposto, causada pelo contrecoup, for algo parecido com o que pudemos ver quando abrimos a dura-máter para examiná-la, ela com certeza vai acabar como uma morta-viva, ou como bela adormecida. Ela deve ter sido uma beldade estonteante.
O emir Hassim parece ter tido bom gosto para escolher consortes — concordou Liz secamente. — Os jornais da tarde têm algumas fotos de suas outras esposas, e a maioria parece estrela de cinema. Mesmo assim, nenhuma foi capaz de gerar um herdeiro masculino para ele, a não ser talvez aquele que está no útero da princesa Zorah. Moe Harris e eu, no entanto, esperamos determinar o sexo do feto muito em breve.
Por amniocentese?
Mais ultra-som; porém não tentarei nenhum dos dois até que você julgue ser seguro para ela.
Em suas mãos, Liz, fazer uma punção no útero para retirar líquido amniótico não poderá de forma alguma ter influência sobre a paciente maior do que lhe introduzir uma agulha de injeção intravenosa. Pode fazer quando você quiser.
Então farei amanhã de manhã.
Espero que seja um rapazinho e que você possa salvá-lo — disse Pierce quando a porta do elevador se abriu e ele entrou. — Então talvez Sua Alteza Real dê alguns de seus bilhões do petróleo para financiar bolsas de estudo para a Escola de Medicina.
Ted Bronson telefonou para Liz no consultório um pouco depois das cinco. A secretária dela já havia ido embora, mas ela estava ditando algumas cartas para serem datilografadas pelas estenógrafas da noite, a partir do cassete no gravador em cima de sua mesa, as quais estariam prontas para ela assinar após haver corrido as enfermarias.
Depois dos últimos dois dias e daquele quase tiroteio esta tarde na UTI, sinto necessidade de algo para acalmar meus nervos antes do jantar — disse ele. — Que tal encontrar-se comigo no Dol-phin Lounge?
Você pode me dar quinze minutos? Ainda preciso ditar mais duas cartas para que possam ser enviadas amanhã de manhã.
Certo. Vou roer um pratinho de amendoins até você chegar.
Quando Liz chegou, Ted estava no popular bar local, situado ao lado do hospital na esquina da quadra, batendo papo com obarman.
Reservei aquela mesa no canto, está bem? Bourbon e gin-ger ale, OK?
Cai muito bem!
Eu levo para a mesa.
Quando Liz já se havia acomodado na mesa de canto, Ted cruzou o salão equilibrando as bebidas em um prato de pretzels numa bandeja que ele mantinha no alto numa das mãos, à moda dos garçons. O salão ainda não estava cheio com o afluxo de estudantes, pessoal médico e enfermeiras, e vários reservados estavam vazios, além daquele onde ela se sentara. Manuseando a bandeja com destreza, ele descansou-a na mesa e entregou-lhe um copo antes de enfiar-se no reservado suficientemente perto de Liz para sua perna roçar a dela por sob a mesa.
Fico satisfeito por ver que ainda posso manejar uma bandeja — disse ele. — Ganhei dinheiro para meus gastos quando estava na Escola de Medicina trabalhando numa cervejaria que ficava na mesma rua do hospital. Você está com aspecto de cansada, mas mesmo assim bonita. Foi um dia duro, não foi?
Sim, mas estou especialmente preocupada com a princesa Zorah. Ned Pierce não está nada otimista acerca de seu prognóstico.
Ele me disse que ela teve um dos maiores hematomas extra-durais que ele já viu. É sempre difícil retirar todos os coágulos por debaixo da base do crânio onde eles podem causar danos aos centros mais importantes.
O córtex cerebral foi gravemente contundido também.
O bebê está bem?
Estava, quando parei para examinar o monitor ao vir para cá. Como está Michael Corazón?
Com breves intervalos de consciência entre medicações, mas está com um pouco de icterícia.
O fígado está reagindo?
Não reagindo é mais adequado; eu ficaria muito mais feliz se a bile produzida pelas células do fígado estivesse sendo jogada no intestino delgado, para onde ela deve ir, em vez de ser absorvida pela corrente sangüínea. — O tom de Ted mudou e tornou-se estudadamente despreocupado. — Você falou com o xeque Almani nestas últimas duas horas?
Não. — Liz lançou-lhe um olhar inquisidor. — Por que pergunta?
Henry Letterman telefonou-me ainda há pouco. Ele estava justamente vindo de uma reunião com Almani no escritório de Eras-mus Brown.
Não era preciso dizer a Liz o significado de tal reunião. Co-reitor de assuntos médicos da universidade, bem como administra-dor-chefe do hospital, Brown ocupava uma posição muito importante na bem organizada e complexa hierarquia de administração que caracteriza a maioria dos hospitais universitários e faculdades de Medicina.
Henry já estava de saída do hospital, mas ele sabia que eu providenciaria para que você fosse alertada.
Alertada...?
Aparentemente, Almani está preocupado com o que irá acontecer com o bebê da princesa Zorah.
Eu também estou, mas por motivo diferente. Quero manter aquele feto vivo onde ele se encontra agora até que possa ser extraído por uma cesariana com a melhor chance de sobrevivência possível .
Por que Almani desejaria qualquer outra coisa?
Pelo que ele diz, o emir Hassim de Telfa está morrendo de leucemia e muito ansioso para saber se terá ou não um herdeiro masculino para o trono... se é nisso que os emires se sentam...
Isto é, certamente, uma preocupação natural.
Sem dúvida, e eu vou fazer todo o possível para satisfazer seu desejo — disse Liz. — Mas Almani está me pressionando para determinar o sexo do feto, mesmo que eu tenha que pôr em perigo sua vida por uma cesária imediata.
Ned Pierce mencionou que a mãe está provavelmente próxima da morte cerebral. Por que Almani estaria pressionando você para remover o feto?
Segundo parece, a lei em Telfa diz que um feto não é um indivíduo em separado até que nasça por qualquer que seja o meio — explicou Liz. — Pelo que Almani me disse, o emir Hassim vai nomeá-lo regente em nome da criança, se esta for do sexo masculino. Assim, quanto mais cedo o sexo do feto for determinado, e ele extraído do corpo da mãe, tanto mais cedo Almani estará na posição de comando para ser o verdadeiro governante de Telfa quando o emir morrer.
Parece que você está com uma batata quente na mão, querida — disse Ted dando um assobiozinho. — Posso fazer alguma coisa para refrescar a situação?
Nada além de apoiar-me. Prefiro amparar-me em você do que em qualquer outra pessoa.
Agora está falando como gente. Se eu conseguir que você se apoie em mim bastante, talvez você se decida a fazê-lo permanentemente, e em breve... — Ele olhou para seu relógio. — É melhor eu apanhar um sanduíche no bar e me mandar. Tenho uma entrevista no canal da tevê educativa às sete horas.
Sobre Michael?
A entrevista foi marcada há semanas sobre o tema de expansão do banco de órgãos aqui no Biscayne. Mas com tantas coisas acontecendo nas últimas vinte e quatro horas, estou certo de que o assunto do ataque a Michael irá surgir.
Vou ficar no hospital toda a noite para estar perto da princesa Zorah caso haja qualquer súbita mudança no padrão do ele-troencefalograma e ocorra morte cerebral — disse Liz. — Vou ver você na tevê da Sala dos Médicos.
Quando faltava um minuto para as oito, Liz instalou-se num sofá da Sala dos Médicos em frente ao aparelho de tevê e sintonizou no canal da estação de televisão educativa de Miami. Ted tinha-se dirigido aos estúdios da TVE quarenta e cinco minutos mais cedo devido ao pesado tráfego no Palmetto Parkway que contorna Miami. Depois dos créditos às companhias cujas doações haviam tornado o programa possível, o quadro na tela foi focado numa jovem loura cuja saia com um generoso corte lateral permitia ao espectador uma visão ocasional de um joelho e um pedaço de coxa bem torneados.
Boa noite e bem-vindos a Aqui Está Sua Saúde — anunciou ela. — Eu sou Gwen Jones e esta noite meu convidado é o Dr. Theodore Bronson, chefe do Serviço de Transplante de Órgãos do Hospital Geral Biscayne e professor-assistente de Cirurgia na Escola de Medicina. Dr. Bronson, bem-vindo a Aqui Está Sua Saúde.
A câmara movimentou-se para Ted, que parecia um pouco acanhado.
Obrigado, Srta. Jones. Tenho muito prazer em comparecer aqui.
Para começar, Dr. Bronson — disse a entrevistadora — digamos que o senhor nos dê um rápido resumo de seu currículo profissional para o importante posto que agora ocupa no Hospital Biscayne.
Fiz o pré-médico em Harvard e recebi meu diploma de médico naquela instituição. Minha residência hospitalar foi no Hospital Biscayne, e sobre cirurgia vascular.
O senhor estava se especializando em transplante de órgãos durante sua residência, Dr. Bronson?
Não especificamente, embora como chefe dos residentes em meus dois últimos anos tenha assistido a um certo número de operações de transplantes. Foi através delas que me tornei curioso a respeito dos problemas com os transplantes de órgãos hoje em dia.
Os senhores realizavam transplantes de coração?
Por esta época, a maior parte do entusiasmo acerca de transplantes de coração, despertado pela primeira operação bem-sucedida do Dr. Christian Barnard na África do Sul, havia-se desvanecido devido à infeliz experiência da maioria dos cirurgiões de transplantes com a rejeição do órgão pelo recipiente. Apenas um grupo na Califórnia estava fazendo muitos transplantes bem-sucedidos naquela época, mas para cada transplante de coração que atingia as manchetes dos jornais mesmo então, um número muito maior de rins era transplantado com sucesso. Estes salvavam a vida de pessoas que de outra forma estariam condenadas a viver uma vida um tanto precária com diálise, ou então morrer.
Uma vez nós visitamos um centro de diálise aqui no programa Aqui Está Sua Saúde — disse Gwen Jones. — Não me recordo de ver muitos pacientes ali.
A perspectiva de despender o resto da vida acorrentado, por assim dizer, a uma máquina de diálise, depois que os dois rins falharam ou que um transplante tenha sido rejeitado pelo corpo, é tremendamente depressiva — concordou Ted. — Hoje mesmo recebi uma carta de uma mãe de um jovem em quem fiz um transplante de rim logo depois de chegar a Miami, há uns dois anos. O transplante não deu certo, e se me dão licença, eu gostaria de 1er a carta.
É uma carta pessoal, doutor?
É, mas eu telefonei para a autora da carta esta tarde e ela deu-me permissão para lê-la no ar porque acredita que possa ajudar outras pessoas a procurarem auxílio em vez de acabarem com suas vidas.
— Nesse caso, pode lê-la.
Ted começou a 1er a carta:
"Caro Dr. Bronson,
Sua carta convidando meu filho David para voltar ao Bis-cayne para umcheck-up, e possivelmente tentar outro transplante de rim com a nova técnica que o senhor descreve chegou-nos esta manhã — com três dias de atraso, pois enterramos David há três dias, depois que ele se suicidou. David passou bem durante um ano depois que o senhor fez o transplante, mas então o novo rim começou a falhar. Alguns meses depois, teve que voltar à diálise, mas desde o começo ele a odiava e o amargo desapontamento de ter de voltar a ela, segundo suponho, foi demasiado para ele suportar.
Antes do rim falhar, David tinha podido voltar para a faculdade, morando aqui em casa. Estava fazendo um curso pré-médico, mas logo que o transplante começou a falhar, ele compreendeu que nunca seria capaz de entrar para a Escola de Medicina. Estou certa de que ele seria um médico maravilhoso, especialmente porque se basearia em sua própria experiência de sofrimento e depressão, tanto antes como depois que o senhor fez o transplante, quando ele tratasse de outras pessoas. Rezo para que outros pacientes de rins recebam suas cartas em tempo e de forma que o senhor possa usar neles o novo tratamento, e manterei o senhor e o grande trabalho que vem fazendo em minhas orações.
Sinceramente,
Louise Worthington."
Que Pena! — A voz de Gwen Jones estava rouca de emoção. — O senhor se recorda de David Worthington, Dr. Bronson?
Muito bem. Ele foi um dos primeiros transplantes de rim que fiz quando vim para Miami; um bonito garoto, estudante universitário com boa cabeça e apetite para aprender que um futuro médico deve ter para ser bem-sucedido.
O suicídio é fato comum após transplantes?
Mais comum do que você pode imaginar — disse Ted. — Um recente relatório no jornal da AMA (American Medicai Asso-ciation), na semana passada, citava um estudo de duzentos casos em Denver num período de cerca de dois anos. Cinqüenta e quatro deles morreram durante o período do estudo, oito por suicídio.
Por que, Dr. Bronson? Eu pensaria que alguém que fez um transplante com sucesso deveria ficar tomado de alegria.
Nós estamos falando sobre experiências do passado, Srta.
Jones. Tão recentemente quanto um ano atrás, receber um novo rim — ou qualquer outro órgão — significava ter que tomar grandes doses de poderosas drogas para suprimir a resistência do sistema de imunidade do corpo a tecidos que não são seus próprios.
Durante quanto tempo, doutor?
Em geral durante a vida inteira. Infelizmente as drogas que ajudam a impedir a rejeição também fazem diminuir as forças do corpo que produzem a imunidade. Como resultado, o paciente tem muito pouca, até mesmo nenhuma resistência a infecções por bactérias comuns que o corpo normalmente rejeita com facilidade. A maior parte dos pacientes que morrem após um transplante — quer seja de coração, rins, fígado ou até pâncreas — morrem por causa de infecção.
O senhor está pintando um quadro deveras desanimador, Sr. Bronson — disse Gwen Jones. — Se o quadro é tão sombrio, por que um cirurgião tão experiente como o senhor escolheria o campo do transplante de órgãos?
A Medicina, e a Cirurgia em particular, é uma profissão de constante desafio, Srta. Jones, e em nenhuma outra parte foi mais do que no transplante de órgãos.
Noto que o senhor está usando o tempo passado, Dr. Bronson. Isto foi porque alguma descoberta importante ocorreu em seu campo? Talvez até algo que o senhor hesite em mencionar devido à muito conhecida dúvida da profissão médica toda vez que se trata de idéias novas?
Esta noite, Srta. Jones, posso assegurar-lhe que uma verdadeira alteração na técnica e nos resultados — do transplante de órgãos em seres humanos realmente ocorreu. Resumidamente, uma nova droga, chamada ciclosporina, está literalmente revolucionando a técnica — e os resultados — do transplante de órgãos. Usando ciclosporina, juntamente com pequenas doses dos poderosos este-róides já empregados, em breve será possível dobrar as probabilidades de vida de uma pessoa que receba um transplante quase que de qualquer órgão.
Em sua própria experiência, Dr. Bronson, que órgão apresenta a maior dificuldade para levar a efeito uma bem-sucedida cirurgia de transplante?
Sem a menor dúvida, o fígado.
Mas mesmo isso ainda é bem possível, não? Os jornais estão cheios de apelos para doadores de fígado todos os dias.
E de comunicações de operações bem-sucedidas — concordou Ted. — Quando expandirmos o banco de órgãos no Biscayne, estou certo que encontraremos muitas oportunidades de salvar vidas por transplante de figado.
Uma última pergunta, Dr. Bronson, uma vez que estamos chegando ao fim de nosso tempo. O transplante de fígado só é apropriado para essas criancinhas bem pequenas sobre as quais tenho lido tanto nos jornais e escutado tantas histórias na televisão?
De forma alguma. De fato eu tenho um paciente adulto de trinta e poucos anos que terá possivelmente a necessidade de um transplante na próxima semana ou nos próximos dez dias, a fim de salvar sua vida.
Por que motivo, doutor?
Um ferimento a bala.
Esperemos que o senhor encontre um doador quando chegar a ocasião — disse Gwen Jones, encerrando a entrevista. — Com Miami aparentemente na disputa para ser a capital dos assassinatos no país, as probabilidades de sucesso parecem ser muito grandes...
Estou rezando para que sejam — disse Ted, com muita convicção, enquanto a câmara fugia dele e de Gwen Jones para focalizar a lista dos créditos pelo programa.
Eu não lhe perguntei no ar — disse Gwen Jones, enquanto retirava o pequeno microfone da gravata de Ted — mas o paciente que o senhor mencionou agora ao final deve ser Michael Corazón.
Sim. E gostei que não mencionasse...
Nós não iríamos mencionar o nome dele, especialmente agora quando a pressão sobre o senhor deve ser muito grande. Mas se a necessidade de um doador no caso de Corazón surgir, pode ficar seguro que nós aqui na televisão teremos muito prazer em ajudá-lo de qualquer maneira que pudermos.
Eram nove e meia quando Ted Bronson bateu na porta de Liz Mac-Gowan no Biscayne Terrace. Ela lhe dissera que iria ficar no hospital, mas ele saltou do elevador com um palpite que ela talvez tivesse decidido vir para casa. Quando ela abriu a porta, estava vestindo um négligé por cima de sua camisola de dormir e calçava chinelinhos.
— Estava com a esperança que você iria parar aqui para um drinque antes de dormir — disse-lhe ela. — Deixe-me preparar um; você está com uma cara de quem precisa mesmo.
Viu a entrevista na tevê?
Sim — respondeu ela, entregando-lhe um copo e um guardanapo.
Como você acha que foi?
Muito bem. Gwen Jones é uma jovem muito bonita.
Eu nem notei. Ela me manteve ocupado respondendo perguntas.
Não me diga que nem percebeu até que altura a saia dela estava cortada! Conheço você bem demais para acreditar nisso.
Bem...
Fiquei contente de você ler a carta da Sra. Worthington — acrescentou ela. — Deverá ser capaz de convencer a qualquer um que esteja em diálise a vir ao hospital imediatamente para uma avaliação.
Estou esperando que tenha esse efeito.
Há uma coisa no entanto que eu gostaria que você tivesse mencionado.
A possibilidade de Michael Corazón vir a necessitar de um transplante de fígado?
Sim.
Não o fiz porque pensei que ao fazê-lo poderia deixar a família muito preocupada.
Certamente que qualquer pessoa familiarizada com o caso dele — e isto significa na prática todo mundo no Biscayne — deve saber agora que a possibilidade de um transplante existe. Isto não é, entretanto, realmente o que está me afligindo.
O que é, então?
Se as pessoas que duas vezes já tentaram matar Mike Corazón ouviram você pela televisão esta noite — e alguém irá dizer a eles se não ouviram — eles irão compreender que você é um perigo tão grande para eles como o próprio Corazón.
Como é que você conclui isso?
Você conhece algum outro cirurgião aqui em Miami que haja feito um transplante de fígado?
Bem... não, esses transplantes não são uma coisa de todos os dias, particularmente em adultos.
Se Sam Gianno e sua turma se convencem que Michael Corazón morrerá, a não ser que você encontre um doador e faça um transplante de fígado, eles podem muito bem decidir que com você fora da jogada suas preocupações desaparecem.
Prova de que Liz MacGowan não era a única pessoa preocupada acerca da menção de Ted de um possível transplante de fígado durante a entrevista na tevê veio cedo na manhã seguinte. Ele estava tomando um rápido desjejum no café do hospital no primeiro andar quando viu Nick Patterson entrar na fila para se servir. Quando o agente do FBI acabou de pagar pelo que escolhera, aproximou-se de onde estava Ted.
Posso acompanhá-lo? — perguntou Patterson.
Com prazer; puxe uma cadeira.
Eu ia telefonar-lhe esta manhã depois de você ver Michael Corazón... — disse o agente do FBI enquanto colocava sua bandeja na mesa. — Ele está morrendo vagarosamente de suas lesões no fígado, não é?
Ted estudou o resto de pó de café no fundo de sua xícara por um instante, como se na esperança de encontrar uma resposta à pergunta que lhe fora feita, mas não encontrou.
Tanto o Dr. Arnold, o consultor médico, quanto eu achamos que o fígado de Michael está deixando de funcionar — concordou ele. — O que significa que a única coisa que poderia possivelmente salvá-lo seria um transplante.
O senhor deu a entender isso em sua entrevista na tevê ontem à noite.
Parece que meti os pés pelas mãos naquela ocasião — admitiu Ted de nariz torcido. — Não achei que muita gente iria saltar à conclusão de que eu estava falando sobre Michael Corazón, mas evidentemente isso aconteceu. A moça que estava conduzindo a entrevista levantou esta suspeita logo após, e quando passei pelo apartamento da Dra. Liz MacGowan, mais tarde, ela me disse a mesma coisa.
O senhor praticamente convidou Gianno a fazer uma tentativa para impedi-lo de realizar o transplante — disse Patterson com rudeza. — De agora em diante, vamos ter que guardar duas pessoas em vez de uma.
Lamento muito Nick, eu estava tão ansioso para convencer as pessoas cujos transplantes de rins tinham fracassado a virem ao hospital e permitir-nos fazer uma outra operação que acredito que nem pensei nisso.
A moça que o entrevistou foi esperta — assegurou-lhe Nick Patterson. — Ela praticamente levou-o a admitir de público que Mike está morrendo.
E eu engoli a isca, com anzol e tudo...
Não se sinta mal por causa disso — falou o chefe da equipe do FBI. — Fazendo com que os médicos em todas as Salas de Emergências dos hospitais de todo o sul da Flórida, coberto por aquela estação, saibam que o senhor poderá vir a necessitar em breve de um fígado de um saudável jovem ou de uma moça que morra de acidente, aumentam consideravelmente as chances de encontrar um doador antes que Mike esteja em situação tão grave que nem um transplante possa salvá-lo.
Ainda há uma possibilidade que seu fígado possa começar de novo a exercer sua função de eliminar resíduos tóxicos do corpo — disse Ted. — Enquanto eu não estiver seguro de que ele já ultrapassou este ponto, realmente não poderia de qualquer forma recomendar um transplante.
Reze para que os riscos não sejam por demais exagerados, Dr. Bronson — disse o agente do FBI. — Caso contrário, o trabalho de um ano terá sido inútil, provavelmente, além do que o estado e o país perderão um de seus mais promissores promotores públicos.
Se eu operasse cedo demais e o transplante falhasse, isto corresponderia a um assassinato.
Porém um pelo qual o senhor certamente não poderia ser punido...
Exceto por minha própria consciência de cirurgião. E esta seria a pior punição de todas.
Liz MacGowan acabou a operação que havia programado para aquela manhã às dez horas e começou a percorrer o andar VIP. Quando foi para a Sala das Enfermeiras, encontrou o Dr. Ned Pierce ditando uma nota para o pool de estenógrafas pelo telefone vermelho no pequeno escritório dos médicos atrás daquela sala.
Tentei falar com você pelo telefone depois de ter visto sua cliente especial ainda há pouco, Liz — disse ele, desligando o telefone.
Eu estava em cirurgia.
Foi o que me disse a telefonista. Queria perguntar-lhe se você faz objeção a que eu mande realizar uma angiografia isotópica na princesa, no próprio leito. — Uma anginografia isotópica é uma técnica relativamente sofisticada na qual elementos radioativos inofensivos são injetados na corrente sangüínea; seu percurso através do corpo, em particular sua concentração em certos órgãos, pode então ser estudada por meio de instrumentos eletrônicos ultra-sensíveis.
O que você está procurando? — perguntou Liz.
Seu padrão de ondas cerebrais está achatado nos monitores do EEG durante as últimas horas, por isso estou quase seguro de que a morte cerebral já ocorreu. Gostaria de certificar-me para uma questão de registro.
Os sistemas circulatório e respiratório dela pareciam estar agüentando muito bem quando a examinei há pouco. E o coração do feto parecia OK também. Você tem alguma razão particular para fazer o angiograma cerebral imediatamente, Ned? — Liz tinha o cuidado de manter sua voz num tom despreocupado, o que estava longe de refletir seus sentimentos.
Bem... por nada, exceto que gostaria de ter os registros completos... — A resposta algo evasiva de Pierce confirmou a suspeita de Liz de que ele não estava revelando o motivo real. Antes que ela pudesse falar, no entanto, ele arriou na mesa zangado a papeleta que estava ditando.
Droga, Liz! Eu não poderia jamais ser um ator, e por isso não deveria tentar enganá-la. A verdade é que Henry Letterman me chamou esta manhã e pediu para mandar fazer o angiograma.
Ele disse por quê?
Algo acerca do Ministério das Relações Exteriores desejar saber as condições exatas da princesa Zorah.
E sobre o feto? — a voz de Liz tornara-se de repente irritada.
Henry nada disse acerca da gravidez. Além disso, você sabe que eu não iria intrometer-me nessa área, que é seu campo exclusivo.
Fico contente por saber que alguém está convencido disso...
Olhe aqui, Liz — Pierce corara e estava obviamente perturbado. — Você sabe que eu não agiria pelas suas costas...
Desculpe-me, Ned — disse ela. — É apenas que eu já estou cheia com o Ministério. O xeque Almani e o emir de Telfa.
Se você não quer que se faça o angiograma, eu não o encomendarei — acrescentou Pierce.
Não; toque para a frente. Se a morte cerebral finalmente ocorreu, eu desejo sabê-lo tanto quanto qualquer outra pessoa. Jerry Rubin e Peter Craig precisam sabê-lo também, de forma que toda a Equipe Avançada de Sustentação da Vida fique de alerta.
Por que o Ministério do Exterior estaria tão preocupado sobre o estado da princesa de qualquer maneira, quando eles sabem que ela vai provavelmente morrer de suas lesões?
É Almani que está nervoso. O emir Hassim está morrendo de leucemia, e se o feto for macho, Almani pensa que ele será o regente quando Hassim morrer. Isto é a coisa mais próxima de ser o único governante de Telfa que posso imaginar. Se conheço Almani ele irá assumir o controle total do país e das rendas de uma das maiores reservas de petróleo do Oriente Médio.
Quando você poderá determinar o sexo do feto?
Pretendo examinar o útero da princesa hoje, com ultra-som, na esperança de poder ver os genitais do feto claro o bastante para determinar seu sexo. Se não puder, vou tentar com amniocentese e tirar algum líquido para Moe Harris examinar, mas isto significa pelo menos um atraso de duas semanas enquanto a cultura de células do líquido se desenvolve. E estou certa de que nem Almani nem o Ministério vão ficar muito felizes com isto...
Por quanto tempo você pretende manter sua vida artificialmente?
Até que esteja segura de que posso extrair um bebê por cesariana com probabilidade de sobrevivência. Isto poderia significar algumas semanas, dependendo das medidas que nós pudermos tirar do feto com o ultra-som. Com sorte, isto nos dirá o estágio exato de desenvolvimento.
No fim do corredor, onde os dois médicos estavam de pé ao lado da estante das papeletas, abriu-se um elevador e saíram dois técnicos do Departamento de Medicina Nuclear. Eles estavam guiando uma grande máquina motorizada com rodas de borracha e eram seguidos por um jovem médico alto com longo jaleco branco.
Aí está Tim Donovan com o osciloscópio — disse Ned Pierce. — Logo teremos a resposta sobre a questão da morte cerebral.
Acho que vou ficar e observar — disse Liz. — Nós não fazemos essa espécie de coisa em meu departamento todos os dias.
Tenho que ir andando agora — disse Pierce. — Você me chama quando Tom puder dar um resultado?
Certamente. E obrigado, Ned, por contar-me acerca de Henry Letterman e seu pedido.
Nick Patterson acertara, reconheceu Ted quando entrou no quarto de Michael Corazón um pouco depois de conversar com agente do FBI no café da manhã. Os números inflexíveis do exame de sangue indicavam uma subida significativa nos subprodutos do metabolismo normal do corpo que poderiam envenenar todo o sistema se não fossem desintoxicados pelo fígado. Além disso, as condições do paciente eram ainda menos encorajadoras.
Embora ele estivesse dormindo devido a uma injeção de Deme-rol, registrada nas notas da enfermeira como tendo sido dada por volta de cinco horas da manhã para aliviar dores abdominais, os monitores que registravam a respiração, a velocidade do pulso, o ECG e os níveis de oxigênio do sangue estavam agora todos na zona de anormalidade. Ainda mais significativa era a diminuição do fluxo de urina do rim restante, indicando redução da passagem do sangue através do órgão devido à reduzida eficácia do sistema circulatório, sem dúvida produzida pela toxicidade geral do organismo.
O ferimento abdominal tinha cessado de drenar e parecia estar cicatrizando normalmente. Mas quando Ted levantou uma das pálpebras do doente, viu que o colorido amarelo da esclerótica — o branco do olho — tinha-se acentuado muito desde a véspera, uma indicação precisa de maior absorção de bile pela corrente sangüínea devido às células danificadas do fígado.
Estimulado pela luz incidente em seu olho esquerdo, Michael abriu os olhos e tentou sorrir.
Alô, Ted! — murmurou. — Estou tão mal como me sinto?
Depende de quão mal você se sente...
Horrível! Tudo parece nebuloso, além disso.Isto é por causa da injeção que tomei esta manhã?
Provavelmente. Onde doía esta manhã?
_ Aqui — Corazón moveu sua mão direita; a esquerda estava
amarrada por uma tira que mantinha em posição uma agulha intravenosa através da qual uma solução de glicose e de sal pingava em uma veia, junto com uma solução de antibiótico que provinha de um saco plástico pendurado no mesmo suporte.
A injeção eliminou a dor — disse Corazón. — A cocaína faria isso se você a estivesse usando em vez de Demerol?
Provavelmente. Por que você pergunta?
Estou começando a entender por que algumas pessoas que estiveram doentes por muito tempo podem viciar-se em drogas.
Acontece com alguns pacientes, mas não muitos; a maior parte começa usando a droga como estimulante.
Nick Patterson disse-me ontem à noite que o caso contra Sam Gianno e os banqueiros que emprestaram dinheiro para os traficantes de drogas está suspenso até que eu possa testemunhar contra eles.
Então você deve apressar-se para ficar bom — disse-lhe Ted da forma mais animada que ele conseguiu.
Será que vou ficar bom?
Naturalmente — Ted esperava que sua voz fosse mais animadora do que suas convicções. — Quando você absorve tanto chumbo quanto o fez em alguns segundos, leva um pouco mais de tempo para superar os efeitos.
Quanto tempo, Ted? Seja honesto comigo, por favor; é muito importante que eu saiba o que posso esperar.
Honestamente, não sei, Mike. Neste momento seu fígado ainda está arrastando os pés, mas uma reviravolta poderá acontecer qualquer dia.
Esperemos que sim. O fato de eu estar doente é duro principalmente para mamãe e o mano; eles sempre foram muito ligados a mim.
Arturo está muito orgulhoso porque nós usamos seu sangue para uma das suas transfusões. Fica sempre perguntando quando poderá doar mais.
O mano daria a vida por mim. Sei disso.
No quarto da princesa Zorah, Liz observava do pé do leito enquanto os técnicos e o Dr. Timothy Donovan, que chefiava o Departamento de Medicina Nuclear, manobravam uma enorme câmara em posição diretamente por cima da cabeça e pescoço da princesa. Era duro até para Liz acreditar que a frágil mulher no leito estava legalmente morta, mesmo que o teste em andamento mostrasse que o sangue não mais fluía através das artérias que o conduziam a seu cérebro. Ajudada pelo ventilador, sua respiração era regular e o padrão do ECG movendo-se ao longo da tela na cabeceira da cama era firme, embora um pouco mais rápido que o normal.
Quando o Dr. Timothy Donovan e seus técnicos iniciaram seu serviço, Jerry Rubin veio para onde Liz estava, aos pés da cama.
Você tem tido mais experiência com técnicas avançadas de sustentação da vida do que eu, Jerry — disse ela ao alto e jovem residente de pediatra que era também o chefe de uma das duas equipes de sustentação da vida. — Por quanto tempo você pensa que poderemos manter a atividade do coração dela?
O mais longo que eu já vi um paciente sobreviver — se você pode chamá-lo assim depois que o cérebro morre — num sistema avançado de sustentação da vida foi cerca de três semanas.
Quem finalmente decidiu desligar a tomada e deixar o paciente morrer? — perguntou Liz.
A família, graças a Deus! Naquela ocasião eu já estava começando a me sentir um pouco como Deus, e acho que isso é uma convicção perigosa para qualquer médico desenvolver.
A respiração foi o que cessou primeiro depois que se desligou a tomada?
Sim. O padrão do ECG no monitor ainda ficou forte por uns cinco minutos, depois começou a cair. Observar o padrão caindo vagarosamente até que o músculo cardíaco afinal ficou sem oxigênio, porque não estava recebendo nenhum dos pulmões, realmente me chocou. Em especial quando eu sabia que fornecendo oxigênio permitiria que ele continuasse a bater por muito tempo e que eu poderia ter feito isso apenas acionando uma válvula.
Posso compreender como você deve ter-se sentido.
Quando tivermos que desligar os aparelhos neste caso, espero que a senhora não se incomode em fazê-lo, Dra. MacGowan — disse Jerry. — A princesa deve ter sido bonita quando estava realmente viva e eu me sentiria como um assassino se tivesse que desligar as correntes elétricas que vão para todos os motores que usamos em técnica avançada de sustentação da vida.
Eu sou a responsável por vocês manterem-na tecnicamente viva por causa do bebê — disse-lhe Liz. — É apenas justo que eu dê o passo final quando tiver que ser dado.
Na cabeceira do leito, o Dr. Donovan estava ajustando uma forte tira de borracha em torno da cabeça da paciente justamente acima dos olhos e das orelhas.
Por que vocês fazem isto, Tim? — perguntou Liz.
Se você se recorda de sua anatomia, Dra. MacGowan, a artéria carótida externa sai da carótida comum abaixo da mandíbulainferior e irriga principalmente o rosto e o couro cabeludo. Quando a pressão sangüínea está sendo mantida tão bem por sustentação avançada da vida como neste caso, haverá provavelmente alguma circulação através da carótida externa, mesmo se o próprio cérebr não estiver mais recebendo sangue. Esta bandagem de borracha age como um torniquete para interromper o fluxo de sangue do lado de fora do crânio, que poderia dar-nos um quadro falso do que está ocorrendo com o próprio cérebro dentro da cabeça.
Muito engenhoso — disse Jerry Rubin. — Qual o próximo passo, Tim?
Vamos injetar algum tecnécio 99 em bilirrubina sérica em bolo numa veia do braço. A câmara pegará a radiação do tecnécio à medida que ele passa pelo coração e é mandado em direção à circulação do cérebro.
Quanto tempo leva?
Nós tiramos fotografias em série com a câmara a cada três segundos durante um minuto, para obtermos um quadro de toda a circulação do cérebro. — Donovan movimentou-se para onde um dos técnicos estava descobrindo o antebraço da princesa. Remove-do a cobertura esterilizada da bandeja onde estavam uma seringa e uma agulha com a solução para injeção, ele preparou ambas. Neste ínterim, o técnico apertou o torniquete em volta do frágil braço da paciente acima do cotovelo, fazendo avolumar-se uma veia na altura dele.
Pronto? — perguntou Donovan ao outro técnico, que estava manipulando os controles da câmara.
Tão logo o senhor estiver, Dr. Donovan.
Observe o monitor da câmara — disse Donovan a Liz e Jerry. — Vocês verão o fluxo do sangue através das artérias até o cérebro, mas se a morte cerebral já ocorreu, o fluxo não deverá ir além da base do crânio.
Com toda a destreza, Donovan injetou a radionuclídeo na veia da paciente. Quase imediatamente apareceu um padrão na tela do monitor da câmara quando o sangue estava sendo bombeado para fora do lado esquerdo do coração e fluindo em direção ao cérebro. Andou somente uma pequena distância, entretanto, e logo parou de progredir.
Vocês podem ver que a circulação no próprio cérebro cessou — disse-lhes Donovan.
Fantástico! — exclamou Jerry Rubin.
Nós estamos fotografando as imagens que vocês estão observando com a câmara para registro, mas o diagnóstico não oferece dúvidas — assegurou-lhes Donovan. — A morte cerebral já ocorreu.
Ela está sob a responsabilidade de você e de Peter Graig de agora em diante, Jerry — disse Liz. — Sei que não irão falhar.
A conferência da manhã, próxima ao meio-dia, no consultório de Ted Bronson, sobre a condição de Michael Corazón, não foi caracterizada por um ambiente alegre. Estavam presentes o Dr. Matthew Arnold, chefe dos Serviços Médicos, Ted Bronson e o Dr. Henry Letterman, chefe do pessoal do hospital, representando os médicos de todos os serviços conjuntos. Para que Letterman, que não estava necessariamente familiarizado com os detalhes do caso, se familiarizasse com a situação, Ted fez um rápido resumo da melhora de Michael Corazón, ou melhor, da falta de progresso, desde a tentativa de assassinato.
Quando ele terminou, o Dr. Arnold acrescentou:
Estamos obviamente enfrentando aqui o desenvolvimento de uma insuficiência do fígado. Os crescentes níveis de fosfatase alcalina, bilirrubina, creatinina e transaminase sérica, mais o sintoma clínico de icterícia aumentada, tudo indica que Corazón está morrendo vagarosamente porque seu fígado parece estar danificado sem possibilidade de reparação.
Mas por quê? — perguntou Letterman. — A hemorragia no próprio fígado parece ter cessado após a cirurgia de Ted.
Não tenho a resposta — Ted foi forçado a admitir.
Que tal a lesão causada pela bala que você extraiu sob a pele nas costas de Corazón? — perguntou Letterman. — Aparentemente ela penetrou por completo no fígado, e tais ferimentos em geral não são fatais.
_ Não sei — admitiu Ted francamente, mas de repente seu ros- to iluminou-se. — Mas há uma maneira de descobri-lo.
Como?
Por ressonância nuclear magnética; não sei por que não pensei nisso antes! Se há um hematoma se espalhando dentro do fígado, nós deveremos ser capazes de vê-lo claramente como esse exame.
Então de qualquer forma façamo-lo — disse Letterman.
Telefonarei já para o laboratório — disse Ted. — Isto é uma emergência que justifica que se programe o exame tão rápido quanto for possível.
Na sala dos negatoscópios do Laboratório de Análises Biomédicas, o Dr. Harvey Chung e Ted Bronson observavam um técnico que passava carregando os filmes que continham as imagens do abdômen de Michael Corazón, concentrados no fígado. Pouco tempo antes, Corazón tinha sido transferido para uma padiola móvel que estava em frente a uma grande máquina cujo núcleo era um enorme magneto com o feitio de um grande pneumático. O espaço vazio central era suficientemente grande para permitir que o corpo fosse colocado no interior do anel, empurrando para dentro dele o carrinho; neste, o paciente estava colocado na posição conveniente para o estudo da região do corpo que se investigava.
Quando o técnico colocou os filmes sobre as telas fortemente iluminadas, várias seções do corpo de Michael Corazón tornaram-se visíveis. Nelas o fígado, que ocupava mais da metade do conteúdo abdominal naquele nível, estava claramente delineado e, como era evidente, seu aspecto não era normal.
Sei que esta fotografia é produzida quando os núcleos dos elementos químicos no interior do corpo são alinhados pelo campo magnético numa posição paralela, e depois forçados a fazer um quarto de volta por uma rotação do campo magnético — explicou Ted Bronson. — E depois, quando a rotação é reduzida, produz-se uma imagem que o computador define. Mas ainda penso que isto é mágica...
Mágica científica e um bocado cara... — disse Chung. — Este brinquedinho custou mais de um milhão de dólares, e diariamente eles estão construindo aparelhos melhores e mais caros que irão tornar este obsoleto em alguns anos.
Se a ressonância nuclear magnética pode dizer-nos o que está se passando no interior do corpo e evita submeter os pacientes ao que chamamos de cirurgia exploratória — apenas para ver o que está se passando dentro de sua barriga ou de seu peito — então o aparelho vale cada tostão que custou... — disse Ted.
Eu concordo. — Pegando uma varinha de cima do balcão em frente do qual estavam sentados, Chung usou a ponta dela para delinear os contornos do fígado nos filmes. Muitos dos maiores vasos sangüíneos do órgão estavam efetivamente mostrados em diferentes cores, uma vez que cada elemento envolvido no efeito magnético produzia sua própria imagem característica.
Algo está acontecendo dentro daquele órgão, algo muito grande — disse o perito em biomédica. — Meu palpite é que isto é muito perigoso para o que resta do fígado normal após aquelas duas balas terem aberto caminho através dele.
O centro do fígado está muito mais escuro do que o resto — disse Chung — de forma que considerável quantidade de sangue provavelmente acumulou-se na área escura, misturado com a bile produzida pelas células que ainda são capazes de funcionar.
A bala que atravessou o fígado deve ter lesado alguns ramos da artéria hepática, causando hemorragia suficiente para fechar todo o sistema de dutos que carrega a bile para o duto comum e para a vesícula biliar a caminho do intestino delgado — disse Ted.
Isto faz sentido — concordou Chung — especialmente desde que a vesícula não está de maneira alguma distendida. O que deve significar que certa quantidade da produção normal de bile está retornando para aquele hematoma no centro do fígado.
Acho que isto não me deixa nenhuma escolha, exceto ver se posso remover a pressão contra os dutos da bile aspirando o sangue daquele hematoma e desse modo procurando reduzir parte da icterícia que Mike está mostrando. — Ted levantou-se do banquinho onde estava sentado. — Reze por mim, Harvey. Vou necessitar de muita ajuda, e irei aceitá-la de qualquer fonte que esteja disposta a provê-la.
A senhora tem visita — disse a secretária de Liz quando ela voltou para o consultório após ter examinado o angiograma que tinha fornecido o diagnóstico da morte cerebral da princesa Zorah, fora de qualquer dúvida.
Almani?
Sim. A senhora não tem, porém, nenhuma outra consulta marcada esta tarde, por isso pode escapar sem vê-lo, se quiser. Eu sou boa para inventar desculpas...
Obrigada, Lillian. Até que o caso da princesa Zorah esteja resolvido, p xeque Almani vai ser minha cruz, de forma que é melhor eu carregá-la.
Boa tarde, Dra. MacGowan — disse Almani levantando-se quando Liz entrou. — Peço-lhe desculpas por aparecer aqui, mas estou informado que a princesa Zorah está para morrer e...
Como o senhor soube disso? — perguntou Liz com um olhar espantado.
Num hospital aquilo que se diz que "um passarinho me contou" anda mais rápido — continuou Almani com um meio sorriso
digamos, do que uma bala...
Nunca vi andar tão rápido, Sr. Almani — disse Liz num tom meio frio — mas não vou usar de subterfúgios: o angiograma que o Dr. Pierce mandou fazer esta manhã, devido à pressão que lhe foi imposta pelo Dr. Letterman, a pedido do Ministério do Exterior, e sem dúvida do senhor mesmo...
Eu preciso manter-me em contato com eles, doutora — disse Almani, encolhendo os ombros.
Naturalmente. Bem, voltando ao que estava dizendo, o angiograma de fato estabeleceu o diagnóstico de morte cerebral. Antes de explicar a significado médico do termo, eu devo explicar outra coisa, que no meu entender é muito importante. Estatísticas de milhares de casos provam que um feto que nasce depois de vinte e cinco semanas de gestação tem 38% de chances de sobrevivência. Mesmo uma semana adicional no útero aumenta essa chance para 61°7o, e com vinte e sete semanas, a probabilidade de sobrevivência é de 76%, dobrando a perspectiva das vinte e cinco semanas. Com isto em mente, estou certa de que o senhor compreenderá que aumentando o período de permanência do feto no corpo da mãe — desde que seu coração e seus pulmões sejam mantidos em funcionamento pelo que se chama de sustentação avançada da vida — torna-se extremamente importante no que tange a assegurar-se que uma criança viva possa ser trazida ao mundo, digamos, com vinte e sete semanas de gestação.
Vinte e sete semanas! Mas a gravidez da princesa Zorah estava apenas na vigésima quarta semana!
Não podemos estar certos disso — disse Liz. — A estimativa do período de gestação é muitas vezes sujeita a erro de até quatro semanas, devido à dificuldade em determinar-se quando cessou a menstruação.
Por quanto tempo a senhora planeja manter vivo o corpo da princesa Zorah, doutora?
Até há pouco, supúnhamos que manter o feto vivo com a mãe por medidas para sustentação da vida pudesse limitar-se a duas ou três semanas. Recentemente, no entanto, apareceu um relatório indicando que o feto pode ser mantido vivo em segurança no útero por até sessenta dias depois do diagnóstico da morte cerebral da mãe.
Certamente a senhora não espera...
Não. Não neste caso; penso que três semanas seriam suficientes para assegurar-se que o feto estará desenvolvido ao ponto de poder ser feito o parto por uma cesariana com toda a esperança de sobrevivência.
A senhora acabou de dizer que a princesa Zorah já apresenta morte cerebral, não foi?
Sim.
Mas seu coração continua batendo. Eu vi a imagem do ECG no monitor quando estive em seu quarto.
Está batendo, e eu espero que continue a fazê-lo sem termos que estimulá-lo. Até recentemente, o critério estabelecido para a morte era uma pupila fixa, sem reação à luz, cessação da respiração e incapacidade de ouvir-se a batida do coração com o estetoscópio Nos últimos anos, entretanto, aprendemos que o cérebro pode morrer, mas o resto do corpo — o que nós chamamos de parte somática — pode continuar a existir. Isto é particularmente verdadeiro quando o corpo é mantido com medidas que nós chamamos de sustentação avançada da vida, um processo altamente técnico e com- plicado pelo qual a circulação e o fluxo de oxigênio através do pulmão até as células do corpo — e neste caso o do feto — são preservados.
Receio ter alguma dificuldade para compreender a diferen ça entre as duas formas de morte, Dra. MacGowan. E mesmo um homem tão inteligente como o emir Hassim ficaria ainda mais confuso pela distinção.
Imagino que sim — concordou Liz. — Efetivamente, alguns médicos são contra o uso de técnicas de sustentação da vida após ocorrer a morte cerebral. Seu uso principal é preservar órgãos como o coração ou o fígado até que possam ser transplantados para outra pessoa, mas, neste caso, minha única razão para usar sustentação da vida é com o fim de dar ao feto todas as probabilidades de sobrevivência.
Muito obrigado, doutora. — Almani levantou-se mas parou com a mão na maçaneta da porta que dava para a sala de espera. — Entendo sua preocupação pelo bem-estar do feto, mas não posso entender suas razões para fazer com que o pai espere talvez mais três semanas para saber se tem ou não um herdeiro. Parece-me que, neste caso, os desejos de um homem agonizante deveriam ser respeitados sempre que possível.
O emir terá sempre toda a liberdade de entregar sua mulher a um outro obstetra, Sr. Almani.
É verdade, mas o que considero apenas uma intransigência de sua parte, doutora, coloca-me numa situação muito difícil. Fui eu que sugeri a vinda da princesa Zorah para Miami, por conselho de meu amigo o Dr. Paul Fraser. Se algo acontecer à criança dela — ainda mais se for do sexo masculino — eu poderia ser acerbamente criticado em Telfa por não ter insistido que a criança fosse retirada do corpo da princesa Zorah antes de sua morte.
Morte cerebral, Sr. Almani — disse Liz. — Isto pode ser muito diferente da morte somática.
Uma diferença, creio eu, que a senhora teria muita dificuldade em explicar a um pai que perdeu seu herdeiro devido a sua teimosia.
O senhor quer ter a bondade de informar-me se o emir Hassim deseja colocar a princesa sob os cuidados de um outro obstetra? — perguntou secamente Liz.
Sem dúvida, mas eu o aconselharei contra isso. Estou certo de que a senhora é uma pessoa compassiva, Dra. MacGowan. Quando tiver tido tempo para pensar acerca dessa situação particular, e especialmente em aliviar a preocupação de um homem que está morrendo sobre a sucessão de seu trono, a senhora mudará sua opinião acerca da operação.
Saindo apressada do elevador no sétimo andar da torre do Biscayne, onde ficavam localizados os consultórios dos cirurgiões, Liz quase atirou ao chão Ted Bronson quando este tentava entrar no elevador.
Por que você não olha onde está indo? — perguntou ela antes de reconhecer com quem se havia chocado.
Espere um momento! — Ted a estava segurando um pouco mais apertado do que era necessário para impedi-la de cair.
Aquele maldito Almani! Ele é insuportável!
Há uma máquina de fazer café neste andar que é uma prova absoluta do moto perpétuo — disse ele para acalmá-la. — Que tal fazermos uma paradinha para uma xícara antes que você derrube outra pessoa e seja processada por danos pessoais?
Muito bem — disse ela. — Preciso de qualquer forma descarregar minha tensão antes que comece a ver meus pacientes, ou sou capaz de passar uma descompostura em alguma jovem mãe da sociedade que tenha ganho mais alguns quilos do que deveria...
Na sala onde havia o café, Ted trouxe-lhe uma xícara fumegante da máquina e sentou-se num banquinho ao lado dela.
Descarregue tudo agora, enquanto tem alguém que a ama para ouvi-la — sugeriu ele.
Desta vez Almani foi longe demais, subornando uma enfermeira especial de serviço com a princesa Zorah para deixá-lo observar o monitor.
Parentes espionando gráficos do hospital são um acontecimento normal...
Mas Almani não é nem membro da família Elzama — disse Liz tomando um gole de café e controlando-se com esforço.
Ele representa Telfa nos Estados Unidos, não é?
Sim, mas isso não lhe dá o direito de dizer-me como eu devo tratar de uma cliente.
O que ele deseja que você faça?
O emir Hassim tem leucemia e é provável que esteja perto
de morrer. Su eu puder assegurar-me de que o feto tem chance de desenvolver-se no útero da mãe por mais umas semanas, isto aumentará consideravelmente suas probabilidades de sobrevivência.
Em que nível está agora a gravidez?
Vinte semanas, pela informação que temos. A enfermeira árabe que estava com a princesa desde que ela ficou grávida morreu no acidente do avião, e não sabemos exatamente com que nível de gestação estamos lidando.
O que quer dizer que o feto poderia ter mais um mês de adiantamento do que você julga, ou vice-versa.
Não menos do que vinte semanas, julgando pelo tamanho do abdome, provavelmente mais uma ou duas semanas. O que de fato me queima é que tanto Almani quanto o Ministério do Exterior estão mais preocupados com o sexo do embrião do que com seu bem-estar.
Que grau de certeza você poderia ter para determinar o sexo neste estágio de gestação usando ultra-som?
Na prática, nenhuma; depende de poder efetivamente ver os órgãos genitais do feto. O que posso fazer, no entanto — disse ela pensativa — é usar o filme do ultra-som para avaliar o estágio da gestação medindo o diâmetro biparietal do crânio. Medindo-o na foto do ultra-som, mais outras dimensões do feto, é possível fazer uma estimativa bastante precisa de seu desenvolvimento.
E talvez decidir fazer a intervenção um pouco mais cedo?
É possível, mas não provável.
Então tudo se resume no seguinte: você não tem nada a perder usando o ultra-som — sugeriu Ted. — Não é verdade?
Sim.
E mesmo que você provavelmente não vá descobrir que o próximo governante de Telfa está no útero da mãe, poderá pelo menos precisar o grau de desenvolvimento e planejar sua estratégia a partir disso!
— Você está certo — anuiu Liz. — Vou tocar para a frente o exame pelo ultra-som tão logo o tenha programado com o laboratório. Enquanto estou fazendo isso, será bom ao mesmo tempo ter uma bandeja pronta no Laboratório de Sonar para a amniocentese, e colocar a agulha dentro do útero sob visão direta. — E ela inclinou-se para beijar Ted Bronson.
Por que isso? Não que eu não tenha gostado...
Por evitar que meu temperamento de mulher de cabelos vermelhos superasse meu bom senso — disse-lhe ela.
No andar VIP, Ted encontrou a família Corazón no quarto ao lado do de Michael. Arturo estava sentado perto da mãe segurando-lhe a mão, e ambos levantaram os olhos cheios de expectativa e mesmo experançosos quando Ted entrou.
Como está ele, Ted? — perguntou Maria.
A aspiração a que acabei de proceder provou que o diagnóstico que fizemos esta manhã com a varredura estava correto. Ele tem um grande hematoma, isto é, um acúmulo de sangue no interior do fígado.
O fato de só lhe restar um rim tem alguma coisa a ver com isto? — perguntou Manuel Corazón.
Se tudo estivesse funcionando tão bem como o rim esquerdo, eu não estaria de forma alguma preocupado — disse-lhe Ted.
Você poderá dar-lhe um de meus rins — disse Arturo gaguejando, muito animado. — Dar sangue ao Michael não me incomodou de forma alguma, e estou pronto para doar mais a qualquer hora.
O problema agora está quase que inteiramente com o fígado — explicou Ted.
O que faz o fígado, exceto produzir cálculos biliares — perguntou Maria. — Eu tive que ser operada disso há alguns anos.
O fígado tem duas funções deveras importantes — disse Ted. — Produz a bile, que ajuda a digerir as gorduras do organismo e, neste processo, às vezes, se formam pedras, principalmente de colesterol, a partir dos elementos químicos da bile. Mas o fígado é também o mais importante agente na desintoxicação dos subprodutos do metabolismo, bem como de quaisquer substâncias nocivas acidentalmente absorvidas pelo organismo.
É por isso que as pessoas que bebem muito têm o que se
chama de cirrose do fígado? — perguntou Maria. — Um de nossos vizinhos morreu disso recentemente.
A cirrose é em geral produzida por excesso de álcool — concordou Ted. — No caso de Michael, entretanto, a dificuldade parece decorrer da bala que atravessou todo o fígado. Presumimos que ela não tivesse causado muito dano, mas deve ter atingido um grande vaso sangüíneo dentro do órgão. A hemorragia parece ter estancado, mas não antes de considerável parte do tecido do fígado ter sido danificada, bem como alguns dutos muito pequenos, transportadores de bile. Depois que o exame com Ressonância Magnética Nuclear, nesta manhã, mostrou uma mancha escura dentro do fígado de Mike, eu introduzi uma agulha grande e removi boa quantidade de sangue velho e bile que se havia acumulado no local.
O que mais você poderá fazer? — perguntou Manuel.
No momento, nada mais senão manter as condições gerais de Mike com fluidos e mais sangue, se ele necessitar, e provavelmente também fazer uma outra varredura amanhã. Se esta mostrar mais hemorragia no interior do fígado, causada pela bala que o atravessou inteiramente, talvez eu tenha que abrir de novo, retirar o grande coágulo e encher o espaço, da mesma forma que fiz com a área onde fragmentos de bala lesaram o tecido do fígado.
Ele poderia sobreviver a tal operação, em suas presentes condições? — perguntou Manuel.
Muito melhor do que poderia dentro de alguns dias. — Ted respirou fundo antes de falar de novo. — O problema agora é um colapso do fígado, e é melhor que lhes diga que só há um tratamento para isso: um transplante.
Quando Liz ligou para o telefone na suíte da princesa Zorah, Jerry Rubin atendeu.
Vocês já colocaram a paciente em sustentação avançada de vida, Jerry? — perguntou ela.
Estamos quase prontos, Dra. MacGowan. Eu ia chamá-la e perguntar-lhe se a senhora estava planejando usar ultra-som...
Estou, mas como você sabia?
O embaixador Almani esteve perguntando acerca disso, mas eu fiquei de bico calado até ter falado com a senhora.
Você acha que é seguro transferir a paciente para o Laboratório de Sonar? Se eu não puder descobrir o que desejo saber com ultra-som, introduzirei uma agulha de amniocentese, usando á imagem do ultra-som para guiar-me.
Um respirador portátil manterá os movimentos respiratórios — assegurou-lhe Jerry Rubin. — Levarei também um conjunto de marcapasso e desfibrilador portátil, para o caso de necessitarmos usá-los.
Bom! Levem-na então para o Laboratório de Sonar e avisem-me quando tudo estiver pronto — disse Liz. — Enquanto isso, peço que a Sala de Operação mande para baixo a bandeja de amniocentese.
Connie Matsumoto, técnica encarregada do Laboratório de Sonar, chamou Liz trinta minutos mais tarde:
A princesa está na mesa, doutora — a voz da técnica nipo-americana tinha um tom preocupado. — O pulso dela está muito rápido e sua respiração é fraca, mas o Dr. Rubin está aqui e diz que tudo sairá bem.
Logo estarei aí, Connie.
Connie Matsumoto tinha razão de ficar apreensiva, viu Liz quando entrou no Laboratório de Sonar onde a princesa Zorah estava deitada numa mesa acolchoada. De um lado dela havia o aparelho para registrar as ondas de ultra-som de alta-freqüência que iriam se refletir dos tecidos internos do corpo que estavam sendo examinados por esta aparelhagem extremamente valiosa para um diagnóstico. A não ser pela intumescência de seu abdome causada pelo útero grávido e pelo turbante de ataduras em torno de sua cabeça, a princesa Zorah quase que poderia estar sem vida. Sua respiração vinha sendo mantida por um ventilador portátil e seu pulso, visualizado no pequeno monitor do marcapasso desfibrilador, era irregular.
Farei este exame tão rápido quanto possível, Jerry — prometeu Liz.
Ligando a máquina de sonar, Connie Matsumoto pegou o transdutor pelo qual era possível enviar as ondas de ultra-som para bem dentro do corpo. Quando elas se refletiam, eram registradas na tela do monitor do aparelho, num preto e branco que brilhava no laboratório escurecido e também sobre um filme para os registros clínicos do hospital.
Delineados em detalhes precisos sobre a pequena tela do monitor enquanto a técnica movimentava o transdutor para a frente e nara trás, estavam a cabeça, o pescoço, o peito e os braços do pequeno ocupante do útero. Começando nos limites inferiores da caixa torácica, entretanto, uma mancha se interpunha entre os observadores e o resto do pequeno corpo, exceto a parte inferior das pernas e os minúsculos pezinhos,os quais, fechados como se estivessem dobrados contra a parte inferior do corpo, eram visíveis acima do limite superior da obstrução à visão.
_ Que inferno! — exclamou Liz. — A placenta está colocada na parte anterior do útero.
A senhora provavelmente não vai ser capaz de identificar a genitália de qualquer forma, Dra. MacGowan — disse Connie Mat-sumoto. — Com as nádegas mergulhadas na parte inferior da cavidade uterina, o feto está praticamente sentado na vertical.
Aquela placenta não vai facilitar em nada a operação cesariana quando a senhora estiver pronta para executá-la, Dra. MacGowan — comentou Jerry Rubin.
Ou para pôr a agulha de amniocentese sem penetrar na placenta e, pior ainda, talvez introduzi-la na cabeça ou no tórax do feto — concordou Liz. — Qual é sua estimativa do estágio de gestação, julgando pelo tamanho do feto, Connie?
Eu diria vinte e quatro semanas, ou talvez ainda mais, Dra. MacGowan.
Ele tem um bom tamanho, sem dúvida — concordou Jerry Rubin. — Com sorte não me causará nenhum problema na UTI de recém-nascidos, depois de a senhora fazer o parto por cirurgia daqui a algumas semanas.
O feto parece realmente ter vinte e quatro semanas de desenvolvimento pelo menos — concordou Liz. — Graças a Deus que a cabeça não está obscurecidapela placenta; devemos ser capazes de obter um número bastante preciso do DBP quando você medi-lo nos filmes, Connie.
A técnica acionou uma chave e em algum lugar dentro do aparelho de sonar uma câmara Polaroid fotografou a imagem na tela. No mesmo momento o feto dentro do útero fechou subitamente seus minúsculos punhos e pareceu dar um soco contra as paredes do útero da mãe que o confinavam.
Vejam só isso — exclamou Connie Matsumoto. — Ele até tem gênio!
O que significa que é provavelmente mulher — disse Jerry Rubin.
O que quer que seja, rezemos a Deus para que mantenha seu gênio sob controle pelo menos durante duas semanas e que não comece um trabalho de parto prematuro — disse Liz. — Vou prosseguir com a amniocentese, Connie.
Foram necessários apenas alguns minutos para pintar o abdome crescido da frágil paciente com anti-séptico e cobri-lo com um lençol esterilizado, no qual tinha sido aberta uma pequena janela através da qual podia-se fazer uma cirurgia menor. Enquanto Connie Matsumoto mantinha firme o transdutor do ultra-som, Liz introduziu uma longa agulha com uma guia no centro para dar-lhe rigidez. Observando a imagem no ultra-som do feto dentro de seu casulo protetor de membrana e líquido, Liz conduziu cuidadosamente a ponta da agulha através dos músculos da parede abdominal, depois através dos músculos do útero, até que a ponta penetrou o casulo no interior justamente no topo superior da sombra placentária, por dentro da parede frontal do útero.
Está indo muito bem! — Jerry Rubin estava observando o monitor. — Parece que a senhora evitou a placenta por completo, Dra. MacGowan.
Veremos — disse Liz, removendo a guia de dentro da agulha e adaptando uma seringa esterilizada vazia à extremidade flan-geada. Puxou com delicadeza o êmbolo, esperando ver o líquido amniótico ligeiramente opalescente surgir na seringa, mas, em vez disso, apareceu um líquido sangüíneo.
Maldição! — disse Liz. — Sangue!
Isto é provavelmente sangue placentário com talvez um pouco de tecido da placenta — disse Connie Matsumoto. — Se empurrar a agulha um pouco mais para diante, Dra. MacGowan, a senhora ainda poderá tirar líquido claro.
Vamos tirar uma amostra desta área primeiro. — Liz continuou a puxar o êmbolo da seringa, carregando para a agulha parte do material sanguinolento onde ela havia entrado logo depois da camada muscular.
Mande esta amostra para o Dr. Harris, Connie — determinou ela. — Mesmo que não consiga nenhum líquido amniótico claro nesta amostra pode haver um número suficiente de células fetais para ele fazer uma cultura.
Reintroduzindo a guia na agulha, Liz empurrou-a cuidadosamente mais um centímetro para dentro. Desta vez, quando removeu a guia, um líquido claro pingou do extremo exterior da agulha.
Parece que acertamos numa mosca bem pequena... — disse ela enquanto adaptava uma seringa vazia à extremidade da agulha e a enchia. — O Dr. Harris vai ficar feliz quando vir isso. Tenho certeza de que facilmente fará uma cultura das células de que necessita para determinar o sexo do feto.
Tome cuidado e rotule os dois espécimes para o Dr. Harris — disse Liz para a técnica do sonar quando ela saía da sala. — E muito obrigada por sua ajuda, Connie.
A senhora não precisa me agradecer, Dra. MacGowan — disse Connie. — Um dia desses vou ter um bebê, se Deus quiser, e não quero outra pessoa para fazer o parto a não ser a senhora.
Por favor, toque para a frente e coloque a princesa na rotina de sustentação avançada da vida — disse Liz ao alto e jovem residente. — Eu acho que vou dar-me ao luxo de um drinque.
Ela estará em sustentação da vida totalmente automática dentro de trinta minutos — prometeu Jerry.
Do lado de fora do Laboratório de Sonar, Ted viu Liz andando pelo corredor em direção ao elevador.
Está indo para casa? — perguntou ele.
Sim, estou estourada.
Comigo, são dois. Vai a algum lugar esta noite?
Vou. Ficar em casa!
Há alguma chance de eu poder induzi-la a tomar primeiro um drinque sossegado no Dolphin Lounge?
Não estou muito disposta para diverti-me esta tarde, mas poderia certamente beber um pouco daquele bourbon que você me convenceu a guardar em minha adega. Por que não vamos tomar um drinque enquanto relaxamos com a brisa da baía Biscayne em minha varanda?
O sol estava quente quando eles atravessaram a pista para o Biscayne Terrace, mas na portaria do edifício o ar condicionado era uma mudança bem-vinda. Na porta do apartamento de Liz, ela entregou a chave para Ted, que abriu a porta afastando-se para deixá-la entrar primeiro.
Prepare os drinques para nós — disse ela, cruzando a sala de estar em direção aos dois quartos nos fundos. — Estarei de volta num minuto.
Tem certeza de que não precisa de alguém para desabotoar sua roupa?
Valeu a tentativa, mas não, obrigada. — Ela lançou-lhe um sorriso. — Vou apenas tirar esta roupa e enfiar um négligé.
_ Use aquele que lhe dei no Natal — sugeriu ele. _ E fico parecida com a página dupla central doPlayboy? Não, obrigado.
No pequeno bar ao lado da cozinha, Ted tirou uma garrafa de uísque bourbon de um armário e serviu duas medidas para cada um. Tirando pedras de gelo do congelador na parte de cima da geladeira e colocando-as nos copos antes de acrescentar ginger ale, ele pegou da geladeira um vidro pela metade de amendoins para coquetel. Colocou-os num pratinho que pôs numa bandeja de prata junto com os drinques e passou para a sala de estar, colocando-a numa mesinha em frente ao sofá que ficava do lado oposto da janela envidraçada através da qual o vasto panorama da baía Biscayne podia ser observado, estendendo-se para o leste. Quando ele concluía suas tarefas, Liz saiu do quarto de dormir com um vestido de casa comprido, de seda azul, fechado na frente por um fecho ecler.
— Estou começando a pensar que você daria um bom marido
disse ela quando juntou-se a ele no sofá e levantou o copo para brindar. — Que tenhamos sorte os dois com os nossos pacientes mais doentes!
Bebo por isso também, e parece que vou necessitar muito
respondeu ele em tom sério.
Por quê?
Estou começando a duvidar de minha própria habilidade como cirurgião.
Que tolice! Nenhum cirurgião em Miami poderia ter cuidado de uma lesão no fígado melhor do que um que está acostumado a transplantar órgãos inteiros. Além disso, como uma ferida trans-fixante, você tinha toda a razão para esperar que os tecidos do fígado se fechassem em volta do percurso da bala, estancando a hemorragia.
Espero que você esteja certa. — Ted tirou os sapatos e colocou os pés em cima da mesa de coquetel. — Como foi seu dia?
Muito bem... até que tive que enfrentar o xeque Almani, como já lhe contei.
Ele parece ser sua bete noir. Algo de novo?
Nada realmente. O estudo pelo ultra-som esta tarde mostrou que a gravidez está, com probabilidade, várias semanas mais adiantada do que havíamos julgado pelas poucas informações que tínhamos de Almani. Enquanto a princesa estava no Laboratório de Sonar, fiz uma amniocentese sob visão direta, mas receio que isto também não tenha auxiliado muito.
Por quê?
Quando introduzi a agulha a primeira vez, aspirei sangue, provavelmente porque estava muito próximo à placenta, que está localizada na superfície anterior do útero...
Quando você tiver que fazer a cesariana mais tarde, vai ser muito duro ter que atravessar três ou quatro centímetros de tecido placentário a fim de alcançar o âmnio e o feto — comentou ele.
Felizmente consegui empurrar a agulha um pouco mais para dentro e obtive algum líquido amniótico com o qual Moe Harris poderá fazer uma cultura.
Você disse isso a Almani?
Não. Telefonei para o quarto da princesa Zorah mas ele não estava lá. Provavelmente está telefonando para o Ministério do Exterior, tentando pressionar-me mais para fazer uma intervenção imediata para que ele possa saber depressinha se vai ser o regente...
Você realmente o culpa por isso?
Talvez não — acedeu Liz. — Procurando ser justa, penso que ele antagonizou-me desde o começo dando-me a impressão que tinha algumas dúvidas sobre se uma mulher teria capacidade de tratar de um caso tão difícil como da princesa. Para começo de conversa, ele é um indivíduo muito autoritário, e com essa espécie de atitude ele podia facilmente ter-me irritado.
Por falar nisso — a voz de Ted assumiu um tom deliberadamente despreocupado — Henry Letterman conversou comigo esta tarde acerca da princesa.
Sobre o quê?
O conteúdo do que ele disse resultou de uma conversa muito franca entre ele e o xeque Almani. O resumo é que, se as coisas andarem bem e você fizer o parto de um bebê do sexo masculino que sobreviva, o emir Hassim doará alguns de seus milhões de dólares de petróleo para a Fundação de Pesquisas Biscayne, como demonstração de sua gratidão.
Almani não mencionou nada disso para mim.
Duvido que ele o fizesse. Um homem na posição dele, como intermediário entre um monarca do Oriente Médio e o país que compra a maior parte do óleo que o dele produz, provavelmente está cheio até as orelhas de intrigas. Sendo este o caso, ele não hesitaria em influenciar você ou outros por uma abordagem direta: dinheiro.
Por que Henry Letterman falou com você? — a voz de Liz tornou-se de repente tensa.
Todo mundo no hospital sabe de nossas relações — justificou Ted. — Talvez eu não devesse ter dito nada sobre isto agora, mas não queria que o deão da Escola de Medicina surpreendesse você amanhã inesperadamente.
_ Ponha as cartas na mesa — ordenou Liz. — Você deve saber mais alguma coisa para ficar com rodeios comigo...
_ Eis aqui o curto-comprido da história. A expansão do banco de órgãos que venho tentando promover desde que vim para Miami está na vez para a próxima doação vultosa para a Fundação de Pesquisas Biscayne. Infelizmente, no entanto, não têm havido quaisquer doações grandes nos últimos seis meses.
Continue — disse Liz, séria.
Almani assegurou ao deão que se o feto da princesa Zorah for macho, e sobreviver ao parto, ele pode praticamente garantir que o emir Hassim doará vários milhões de dólares para a Fundação.
E seu projeto de expansão do banco de órgãos será o beneficiário final?
Este parece ser o lado para onde a coisa se inclina, mas, acredite-me querida, não engoli a isca. Disse a Letterman ainda esta tarde que ninguém iria influenciar você através de mim. Para começar, o bem-estar do feto vem em primeiro lugar cm sua estimativa, e além disso existe o fato que o bebê só tem uma probabilidade no máximo de 50°7o de ser do sexo masculino.
Você não julga que eu tenha restrições contra Almani porque ele me irritou desde o começo, pensa? E porque todo mundo em Telfa envolvido no assunto parece olhar a princesa Zorah como nada mais do que uma porca prenhe!
Por Deus que não! Além disso, ela é uma rainha.
Não em Telfa, e penso que isto é outra coisa que me deixou ressentida. O único título que Hassim lhe deu foi o de consorte, com as honras de princesa, e pelo que Almani me disse, o país deve estar cheio dessas... Tão-somente se a criança que ela está gerando for macho — e assim em linha para governar Telfa — é que a princesa Zorah teria qualquer chance de vir a ser chamada de rainha.
Ted acabou seu drinque e olhou interrogativamente para Liz, mas ela sacudiu a cabeça numa negativa.
As coisas que você me contou demandam uma séria consideração, e a excitação desta bebida após uma segunda rodada não me permite muita clareza mental... — admitiu ela.
Você quer então que eu vá para casa?
Por que você não dá um pulo até a Pizzaria Hut ali da esquina e traz uma pizza para nós? Enquanto você vai lá, eu preparo uma salada e podemos discutir todo esse problema de um modo mais inteligente e racional depois que acabarmos de comer.
É a segunda melhor notícia que tive hoje — disse Ted.
Qual foi a primeira... não, não responda!
Algum dia ainda vou escrever um trabalho sobre as qualidades afrodisíacas de um bourbon de 101° e umsuprême de pizza com aliche e salame italiano da Pizzaria Hut — ele falou, com um sorriso, enquanto abria a porta para sair. — E assim ainda tenho esperança de não dormir sozinho esta noite...
Jamais percebi que você precisasse de afrodisíacos.
Pode chamar-me de Sempre Machão e Disposto.
Disposto, sim, mas nunca machão — assegurou-lhe ela. — Penso que uma das minhas razões para amá-lo tanto é que você é o homem mais terno que já conheci.
E espero que um dos poucos que você tem — ou terá — no sentido bíblico...
Logo após a meia-noite, Liz acordou, aquecida, confortável e amorosa nos braços de Ted, onde adormecera depois de um assalto particularmente intenso de atividade amorosa. Quando se virou para o lado dele, ele não acordou, mas o braço que a rodeava apertou-a de modo instintivo, pressionando suavemente seu corpo nu contra o dele.
Ela não o acordou por quase meia hora, entretanto, enquanto recordava em sua mente — com uma imparcialidade que não tinha sido capaz de reunir quando os acontecimentos ocorriam — as últimas vinte e quatro horas. Finalmente, quando terminou seu raciocínio, ela tocou no ombro de Ted.
— Acorde — disse ela. — Tenho alguma coisa a dizer-lhe. Ted passou o braço pelos ombros dela enquanto despertava,
apertando os seios macios contra o corpo dele ao dar-lhe um sonolento beijo.
Tenho pensado sobre toda a questão da princesa Zorah, seu bebê, o emir Hassim e o emirado de Telfa — disse ela. — E estou certa de que você estava com a razão quanto a eu ter-me enfezado porque Almani conseguiu irritar-me. Agora que já fiz o exame de ultra-som e a amniocentese, vou deixar a situação desenvolver-se naturalmente.
Penso que este é o modo mais simples de agir. — Ted estava totalmente acordado. — Tem certeza disso?
Sem a menor dúvida! Agora vamos dormir de novo.
_ Você merece uma recompensa por essa decisão - disse-lhe ele. — Pelo menos um beijo.
Mas este mínimo não foi o suficiente para qualquer um deles durante muito tempo.
No andar VIP, um pouco depois das oito da manhã seguinte, Ted Bronson estudava a papeleta de Michael Corazón e não conseguia encontrar nada encorajador no que via. O paciente, segundo lhe disseram, tinha sido levado ao Centro Biomédico de Análise de Imagem onde os exames do dia anterior estavam sendo repetidos com o analisador Ressonância Nuclear Magnética, como Ted havia requisitado.
Observei que o Dr. Groover esteve aqui esta manhã para a consulta que pedi — disse Ted à enfermeira especial atarefada em fazer a cama de Michael Corazón — mas não há nenhuma observação de seu exame na papeleta.
O Dr. Max Groover era o chefe do Departamento de Gastroenterologia e Hepatologia.
Ele esteve aqui esta manhã e ditou uma longa nota, que provavelmente ainda não foi datilografada pelo grupo de estenógrafas — informou a enfermeira.
Telefonarei para ele tão logo termine de visitar meus doentes — disse Ted pendurando a papeleta no gancho ao pé do leito, onde normalmente fica. — Há quanto tempo o Sr. Corazón desceu para o Laboratório Biomédico de Imagem?
Há cerca de meia hora. Como eles tinham gente suficiente para assisti-lo, voltei para arrumar o leito e ajeitar o quarto antes que o tragam de volta.
O exame agora provavelmente já terminou; vou descer e dar uma olhada nos filmes. Se a família Corazón aparecer, diga-lhes que estarei de volta para falar com eles ainda esta manhã, quando tiver o resultado do exame de sangue e outros relatórios. _ Pois não, doutor.
No Laboratório Biomédico de Imagem, Michael Corazón estava justamente sendo transferido para uma maca do hospital da plataforma móvel sobre a qual estivera deitado enquanto o magneto do NMR realizava o milagre científico de olhar para dentro dele com um olho meticulosamente inquiridor. Ele sorriu ao ver Ted, mas seus olhos brilhavam de febre.
Como vão as coisas, Mike? — perguntou Ted. — Sentindo muita dor?
Não; dormi a maior paite da noite sem tomar injeção, mas esta maldita coceira está me enlouquecendo. Será que você pode ajudar-me?
Ela provém da icterícia e do pigmento bilioso em sua pele — explicou-lhe Ted. — Vou receitar algo que poderá aliviá-lo.
No quarto dos negatoscópios do Laboratório de Análises Biomédicas, o Sr. Harvey Chung estava estudando uma cópia das imagens que tinham acabado de ser feitas pela máquina de NMR.
Você pode observar alguma mudança no quadro de ontem para hoje, Harvey? — perguntou Ted.
A massa dentro do fígado dele está consideravelmente menor. Quanto sangue você removeu daquele hematoma ontem?
Algo mais do que uns 200cc, tanto bile como sangue.
Não parece ter-se enchido nada durante a noite — mostrou Chung no filme que estava no quadro à frente deles. — Isto provavelmente significa que a hemorragia cessou.
Espero que você esteja certo, mas a bilirrubina sérica ainda está notavelmente alta, bem como o nitrogênio uréico do sangue e vários outros indicadores da função do fígado. Max Groover viu o paciente esta manhã cedo; vou dar uma passada no consultório dele e saber o que ele pensa.
Do jeito que o Dr. Groover levanta cedo, com certeza já fez uma grande parte de seu trabalho diário a esta hora — disse Chung com um sorriso. — O pessoal bem-informado diz que a Fundação de Pesquisas irá provavelmente receber dinheiro para pesquisas do marido de uma das pacientes da Dra. MacGowan, e você será o sortudo.
Ontem fiz uma exposição à Fundação a respeito de alguns fundos para expandir o banco de órgãos, mas receio que vão depender de várias coisas. Uma delas é se o feto do qual a princesa
Zorah está grávida é o de um menino; a outra, é se Liz vai poder extraí-lo do útero vivo e capaz de sobreviver.
Se há alguém que possa fazê-lo, é ela — disse Chung. — Espero que você não tenha que aguardar tanto tempo para conseguir os fundos para seu banco de órgãos quanto nós até arranjarmos o dinheiro para o analisador de ressonância magnética nuclear.
No radar destinado aos serviços médicos, Ted parou no consultório do Dr. Max Groover. O especialista em sistema digestivo estava ao telefone quando ele entrou.
Minha nota sobre a papeleta de Corazón já foi datilografada? — perguntou Groover quando largou o telefone.
Não — disse o cirurgião. — A datilografa teria que ter acordado no meio da noite para tê-la pronta. Você deve levantar ao raiar do dia, Max.
Em geral já estou na faina antes do sol nascer. Por falar nisso, você já viu o sol nascer por de trás da praia de Miami e da baía?
Uma ou duas vezes, quando ia para casa depois de uma operação de emergência ou de haver passado a noite na cidade.
Você e Liz deveriam casar-se. — Groover andava pelos sessenta anos, com um monte de filhos e netos. — A dificuldade com mulheres brilhantes na Medicina é que, se têm uma cabeça boa para progredirem, muitas vezes ficam absorvidas pela carreira e não querem casar-se. Ou não se dispõem a ter filhos até que alcançam a idade em que correm o risco deles terem a síndrome de Down.
Há um ano que venho dizendo isto a Liz, mas ainda não consegui nada... O que você achou do estado de Michael Corazón quando o examinou esta manhã?
O fígado dele está se deteriorando rapidamente — disse Groover.
Tem alguma idéia do que está se passando dentro dele?
Provavelmente não mais do que você tem depois de sua experiência em Pittsburgh com colapso do fígado em pacientes que estão sendo preparados para transplantes.
A maior parte eram crianças com atresia biliar congênita. Isso é diferente.
Talvez não tanto quanto você pensa. Em ambos os casos você está lidando com um fígado em insuficiência.
Isto quase qualquer pessoa pode ver agora, mas ainda não compreendo por quê. Especialmente desde que a hemorragia dentro do órgão parece ter estancado.
— Eu acho que você está numa situação difícil neste caso. O que quer dizer que seu único recurso vai ser um transplante de fígado.
_ Estou começando a desejar que tivesse ficado de bico calado na tevê e não o tivesse mencionado. Para transplantar um fígado _ se tiver a sorte de encontrar um doador — você tem primeiro que extirpar esse órgão. E não consigo convencer-me que o de Mike seja impossível de ser recuperado.
Talvez não impossível — disse Groover sem rodeios — mas bem perto disso, em minha opinião.
Penso que realmente era isso o que eu queria que você me dissesse, Max — concluiu Ted, pondo-se de pé. — Ainda não quis fazer um apelo público por um doador, mas não parece que seja seguro protelá-lo por muito tempo mais.
Com isto eu concordo — disse Groover. — Como você vai tratar disso?
Penso que a melhor coisa a fazer é convocar uma entrevista com a imprensa e colocar todo o sul da Flórida em alerta. Desta forma poderemos alimentar a esperança de ter alguma chance de conseguir o fígado de qualquer pessoa jovem que tenha a infelicidade de sofrer morte cerebral depois de um acidente.
Liz MacGowan entrou no saguão de entrada do Hospital Biscayne um pouco antes das nove horas e foi direto ao andar VIP ao quarto da princesa Zorah. Jerry Rubin, que estava ajustando os controles do ventilador, levantou os olhos para ela e sorriu.
Bom dia, Dra. MacGowan. Espero que tenha dormido bem.
Como uma pedra. — Liz cruzou o quarto a fim de observar de perto o monitor. — Essas contrações do coração estão certamente mais fortes do que estavam no Laboratório de Sonar ontem à tarde.
Quando nós a trouxemos do Sonar ontem à tarde e começamos a ligá-la à aparelhagem de sustentação da vida — disse Jerry — eu chamei Pete Craig e sugeri que adicionássemos um pouco de digoxina à solução endovenosa. Isto imediatamente diminuiu o ritmo cardíaco e ao mesmo tempo aumentou a pressão arterial.
Quando vocês vão começar com a alimentação endovenosa?
Esta era uma técnica bem nova pela qual alimentação concentrada, que era muito mais eficiente do que a glicose e solução salina comumente empregadas para injeção endovenosa, podia ser introduzida diretamente na corrente sangüínea; este Rrocesso, chamado de alimentação endovenosa, era agora bastante usado tanto para preservar quanto para aumentar a resistência de pacientes seriamente doentes há muito tempo.
É provável que comecemos hoje — respondeu Jerry.— O feto tem se agitado muito; talvez esteja com fome.
Estou contando com você e Jerry para mantê-lo ativo — disse Liz. — Pelo que se vê no monitor do feto, entretanto, vocês não terão muita dificuldade nisso.
O monitor que registra o pulso do feto tem um sistema de alarme próprio: se o ritmo se torna notavelmente mais vagaroso ou mais rápido, o alarme soa — assegurou-lhe Jerry. — Com tal aviso, poderemos logo informá-la de qualquer mudança séria em suas condições e dar-lhe tempo suficiente para retirar o feto do útero através da cesariana.
Você viu o xeque Almani esta manhã? — perguntou Liz.
Ele esteve aqui durante algum tempo, quando trouxemos a princesa de volta do Sonar ontem à tarde, mas hoje não o vi — disse Jerry. — Ele contou-me que estudou tanto eletrônica quanto geologia de petróleo no MIT há muito tempo, daí ter entendido tudo que lhe expliquei acerca da aparelhagem de sustentação da vida.
— A senhora tem um visitante... e um presente — disse a secretária de Liz quando ela entrou em seu consultório depois de fazer suas visitas às enfermarias naquela manhã. O visitante era Arturo Corazón, com um feliz sorriso nos lábios e nas mãos um embrulho plano e bastante grande.
Arturo! — disse Liz dirigindo-se a ele calorosamente. — Que prazer em vê-lo!
Para mim também. — Ainda sorridente, Arturo virou o volume que estava segurando de forma que ela pudesse vê-lo.
Que beleza! — disse Liz ao observar um quadro emoldurado de uma orquídea espetacularmente bela.
_ Eu o pintei há alguns dias — disse ele. — Ela me fez lembrar de você e gostaria que ficasse com ela.
Adorei! Pode dizer-me o nome da orquídea?
Ela se chama "Lua do Sul" — respondeu Arturo, sentando-se ao lado da mesa de Liz.
Vou pendurá-la na parede do consultório, num lugar onde possa vê-la todos os dias... e pensar em você! — assegurou-lhe Liz.
Gostaria muito disso — falou Arturo, com um sorriso ainda mais feliz. — Você quer ser minha amiga?
Naturalmente. Terei muito prazer em ser sua amiga.
O Dr. Ted também é um bom amigo meu.
Sei disso. Ele fala muito de você e de sua família; pensa em vocês como se fossem sua própria família.
O Dr. Ted vai salvar Michael.
O Dr. Ted é um grande cirurgião. Estou certa que o salvará.
Você vai casar-se com ele?
Isto é um segredo — disse Liz sorrindo. — Mas como você e eu somos bons amigos, e amigos sempre devem contar uns aos outros seus segredos, vou confessar a você: a resposta é sim...
Quando?
De fato, o Dr. Ted e eu estamos trabalhando em projetos muito importantes neste momento — explicou ela. — Ele está tentando encontrar pacientes que fizeram operações de transplante de rins que fracassaram para que ele possa dar-lhes novos órgãos que tenham sucesso. Eu estou tentando salvar um bebê que ainda não nasceu e que, se for menino, será rei.
Um rei de verdade!
Um emir, que é como se chamam os governantes de pequenos reinos. Por isso é como se fosse rei.
Quando você tiver feito isso, irá casar-se com o Dr. Ted?
Provavelmente marcaremos uma data tão logo tudo esteja resolvido — prometeu ela. — Você gostaria de ser pajem no nosso casamento?
Gostaria. Michael e Estrellita vão também casar-se um dia desses e querem que eu seja pajem no casamento deles também.
Pelo visto você vai andar muito ocupado... — brincou Liz. — E estou certa que ficará muito feliz porque você gosta tanto de lazer coisas para sua família e para aqueles que se tornam seus amigos. E Liz levantou a bela pintura para examiná-la de novo. — Vou guardá-la como um tesouro por toda minha vida, Arturo. Não apenas por ser ela tão bonita, mas porque você pintou-a especialmente para mim.
Um pouco depois das dez horas naquela manhã o telefone no consultório de Ted Bronson tocou enquanto ele estava examinando sua correspondência matutina.
A enfermeira do Sr. Corazón telefonou, pois o senhor queria ser avisado quando a família dele chegasse ao hospital — disse a telefonista. — Ela informa que eles estão agora no quarto adjacente ao do Sr. Corazón.
— Obrigado — disse Ted. — Estou a caminho de lá. Estrellita Mendonza estava com Maria e os três irmãos.
O exame que você ia fazer esta manhã cedo revelou algo de novo, Ted? — perguntou Estrellita.
Apenas que a hemorragia no fígado parece ter estancado, — disse ele, tentando assumir um tom otimista que estava longe de sentir.
Tenho estado ocupada tentando processar as denúncias contra Sam Gianno e sua quadrilha, de forma a podermos mantê-los inquietos até que Michael fique suficientemente bom para assumir o caso; por isso não tive tempo para visitar Mike tanto quanto gostaria. No entanto, falando francamente, fiquei chocada ao ver a piora em seu estado esta manhã.
Todos os testes que fizemos nos últimos dias confirmam que ele está piorando bastante rapidamente devido à insuficiência do fígado — disse Ted. — Um certo grau de supressão da função do fígado poderia ser esperada de uma lesão tão severa quanto a que Mike sofreu, mas nós estávamos esperando que seu funcionamento se normalizasse.
Então isso não aconteceu?
Não. Se tivesse que acontecer, já teríamos visto alguns sinais de diminuição na intensidade da icterícia.
Ela está até pior — comentou Manuel.
Você quer dizer que o estado dele é desesperador? — Estrellita fez a pergunta que Ted temia.
Ainda não, mas este ponto pode não estar muito longe no futuro.
O que acontecerá então?
Sua única chance será um transplante. — Ted decidira revelar a verdade com toda a franqueza.
Mas isto é um recurso extremo! — exclamou Estrellita horrorizada.
Sem qualquer dúvida — concordou Ted. — E por isto que
ainda não estou decidido a recomendá-lo.
Arturo vinha escutando enquando segurava com força a mão de sua mãe; então, subitamente, enterrou a cabeça no colo dela e seus ombros começaram a tremer num acesso de soluços. Maria tentou confortá-lo e Estrellita, de quem ele gostava muito, segurou sua mão, mas Arturo continuou soluçando.
Creio que uma demora maior arriscaria as chances de sucesso de um transplante — disse Estrellita.
Exato — disse Ted sobriamente. — E também encurta o tempo disponível para encontrar um doador.
Não sei exatamente se estou entendendo — atalhou Pedro. — Você é um cirurgião de transplantes, não é?
Sim.
Então por que você não pode dar-lhe um novo fígado?
Para um transplante bem-sucedido nós precisaríamos de um fígado de alguém que morresse de um trauma — explicou Ted pacientemente. — Os candidatos mais prováveis são em geral encontrados nas Salas de Emergências, para onde são trazidas pessoas com severas lesões na cabeça e que sofrem o que nós chamamos de morte cerebral.
Eu tenho conhecimento disso — respondeu Estrellita. — Como assistente do promotor público do Estado, já fiz acusação em casos onde o veredicto final dependia quase por completo de quando exatamente tinha ocorrido a morte cerebral.
De acordo com os jornais da tarde, um diagnóstico de morte cerebral foi feito acerca daquela princesa de Telfa — disse Mana. — Aquela que ficou ferida num desastre de avião no aeroporto no dia seguinte ao dos tiros em Michael. Você acha...
A princesa Zorah tem um feto em seu útero — disse Ted com firmeza. — Além disso, ela é por demais frágil e miúda para que seu fígado pudesse ser selecionado para Michael, mesmo que ela não estivesse grávida.
— Então o que faremos? — perguntou Estrellita. Rezemos — disse Maria numa voz sem esperanças. — Rezar para que o fígado de Michael ainda possa recuperar sua função.
E se isto não acontecer, que apareça um doador numa Sala de Emergências em algum lugar próximo daqui antes que seja tarde demais.
O senhor não deveria notificar a imprensa falada e escrita, Dr. Ted? — perguntou Estrellita. — Dessa forma os médicos nas Salas de Emergências próximas poderiam ficar alertados para um possível doador.
Ainda não estou inteiramente convencido de que Mike chegou a um ponto em que nada senão um transplante poderá salvá-lo — admitiu Ted. — Se surgisse um fígado disponível, eu ficaria numa posição de ter que prosseguir com o transplante quando não estou completamente convencido de que uma cirurgia não possa ser evitada.
Parece que nós estamos colocando você çntre a cruz e a caldeirinha — disse Manuel Corazón.
Vamos ver como Michael se comporta durante o fim de semana — sugeriu Ted. — Pacientes que aguardam um transplante de fígado às vezes passam semanas esperando que se encontre um doador, de forma que não estaremos perdendo muito terreno no caso em que seu fígado se recuse a começar a funcionar de novo.
Isto parece razoável — concordou Estrellita. — Se ele não melhorar durante o fim de semana, você poderá chamar a imprensa, e esteja certo que a mídia lhe dará ampla cobertura.
No meio da tarde Liz recebeu um telefonema solicitando-lhe que comparecesse ao Laboratório de Pesquisas Genéticas. Tomou logo o elevador para o subsolo do hospital, e quando entrou, o Dr. Moe Harris estendeu-lhe uma eletromicrografia por sobre a mesa e deu-lhe uma grande lente de aumento.
Diga-me o que você vê, Liz — disse ele.
Parece um cromossoma Y.
É exatamente o que isto é — assegurou-lhe o gordo geneticista de barba encanecida. — E parabéns por havê-lo reconhecido.
Já vi muitas eletromicrografias para ser capaz de reconhecer algo tão grande como um cromossoma, Moe — disse ela, meio azeda. — Que diabo significa tudo isso?
Lembra-se daquela amostra sangrenta que você me mandou para examinar ontem?
Naturalmente! A princípio quis descartá-la.
Foi muito bom que não o tivesse feito. Quando chegou aqui ao laboratório, eu a coloquei na ultracentrifugadora. Um dos meus técnicos fez um longo serão à noite para preparar uma montagem em parafina das células no fundo do tubo de ensaio de forma que eu pudesse examiná-las esta manhã.
Isto foi muito trabalho para uma simples contaminação sanguínea do fluxo de amniocentese — disse Liz. — Será que estou enxergando um elemento de mistério aqui?
Um mistério não, mas a solução de um.
Devo adivinhar ou você vai-me contar?
Tudo a seu tempo... — assegurou-lhe o gorducho médico. — Não estrague minha surpresa com sua pressa.
Você quer me dizer — Liz teve uma súbita inspiração — que o cromossoma Y que acabo de ver é de uma célula do corpo do feto no útero da princesa Zorah?
Lá vai você estragar minha brincadeira — queixou-se Moe Harris. — Eu deveria ser mais esperto e não tentar manter uma moça viva como você no escuro. A prova é irrefutável: sua princesa está grávida do único descendente masculino do emir de Telfa.
Que poderá um dia reinar sobre a maior reserva de óleo cru do Oriente Médio! — Os olhos de Liz brilhavam de alegria e excitação. — Esperem até que eu conte isso ao xeque Alrriani!
Suponho que isto significa que o emir terá que cumprir aquela oferta de uma substancial doação para o fundo de pesquisas — disse Harris um tanto ansiosamente.
Não vejo outra saída; Almani praticamente prometeu a Henry Letterman a doação se o feto fosse do sexo masculino.
Você sabia que o projeto de Ted para expandir o banco de órgãos daqui do Biscayne General talvez dependa da gratidão do emir?
Foi isso que ele me disse ontem à noite. Como você soube?
Estive na reunião do Comitê da Fundação ontem à tarde, com a mão estendida solicitando fundos para usar na tentativa de descobrir um gene nas famílias com tendência hereditária para o câncer. Mas com a promessa da ciclosporina na cirurgia dos transplantes, posso compreender a razão pela qual o projeto de Ted deve vir primeiro. Por falar nisso, quanto tempo você pensa que pode manter a princesa Zorah em sustentação avançada da vida antes de fazer o parto do infante real?
Eu diria por duas semanas, mas mesmo isto depende de vários se... Jerry Rubin e Peter Craig são uns gênios para manter a sustentação da vida, mas nunca se pode dizer quando qualquer coisa pode dar errado. E neste caso eu tenho que retirar aquele feto do útero da princesa às pressas.
Liz encontrou o xeque Yossuf Almani no quarto ao lado da suíte VIP da princesa no 10? andar da torre do Hospital Biscayne. Ele parecia estar muito preocupado.
_ Anime-se — disse ela. — Tenho uma boa notícia para o senhor.
_Que notícia poderia ser? A princesa Zorah está morta apesar de toda aquela complicada aparelhagem que vocês estão usando para fazer parecer que ela ainda está viva. Quando eu contar para o emir Hassim, ele vai culpar-me por haver insistido em que ela viesse de avião para Miami.
Já lhe expliquei que morte cerebral e morte somática não são a mesma coisa — disse Liz incisiva. — O senhor não estava escutando?
Francamente, acho essas distinções Filosóficas que vocês médicos fazem entre estágios de morte pouco convincentes — respondeu o alto árabe, encolhendo os ombros. — Se o cérebro está morto, a personalidade e conseqüentemente a alma também estão mortas. Assim, o que resta?
Um corpo que pode ser mantido funcionando por processos artificiais científicos durante algum tempo — disse-lhe Liz. — No caso de uma mulher grávida, recentemente relatado na literatura médica, seu corpo foi mantido funcionando como a melhor incubadora possível para um feto vivo por mais de sessenta dias.
E o bebê viveu?
O relatório diz que a criança era muito saudável. Os médicos encarregados prolongaram a vida até quase o final da gravidez, mas no caso da princesa, o mais que espero é talvez duas semanas. Com peritos em sustentação avançada da vida como os doutores Craig e Rubin, não deveremos ter muita dificuldade em atingir este prazo.
Para fazer a cultura da célula do líquido amniótico que a senhora colheu ontem vai levar duas semanas, não?
Este é o prazo usual, sim.
Uma vez que de qualquer maneira a senhora não irá determinar o sexo da criança mais cedo, o que ganhamos no sentido de evitar possíveis distúrbios em Telfa?
Vim aqui para dizer-lhe algo diferente. — Liz não fez qualquer esforço para esconder a nota de triunfo em sua voz. — Com base no líquido que retirei do útero da princesa ontem de manhã, o Dr. Harris acaba de assegurar-me que o feto é do sexo masculino.
A senhora pode ter certeza disso? — Estranhamente, Almani não pareceu ficar tão entusiasmado com as notícias que ela acabara de dar-lhe como já esperava.
O Dr. Harris disse que aposta sua reputação profissional neste diagnóstico. E essa, caso o senhor não saiba, é internacional...
Quer notificar o emir Hassim que ele tem o filho que o senhor diz que ele tanto deseja?
Certamente.
Não se esqueça de dizer-lhe que no útero da mãe há um feto saudável e com probabilidade de vida. E que vamos mantê-lo vivo e se desenvolvendo normalmente por tempo suficiente para assegurarmo-nos de que terá o melhor começo de vida possível.
O emir Hassim acredita fortemente na tradição e nos velhos hábitos, Dra. MacGowan — disse o árabe sacudindo a cabeça e expressando óbvia dúvida. — Eu já tive bastantes dificuldades para convencê-lo de que mandando a princesa Zorah para a senhora o sexo do bebê seria determinado antes que ocorresse o nascimento normal. Como posso explicar-lhe o que a senhora se propõe a fazer com o corpo da princesa?
— Qual a necessidade de falar-lhe sobre a morte cerebral? Almani cofiou sua barba grisalha com ar pensativo antes de dizer:
Os jornais americanos circulam amplamente em Telfa, Dra. MacGowan, por isso no mais tardar amanhã, a notícia do que a senhora planeja fazer, tanto no caso da mãe como no da criança, já será conhecida ali. Quando o emir Hassim chamar-me amanhã e pedir-me detalhes, como posso assegurar-lhe que seu filho não irá morrer no útero da mãe?
Eu não deixarei que isto aconteça — disse Liz com firmeza.
Estou certo de que a senhora responde pelo que diz, doutora. — Almani não parecia muito tranqüilo com a promessa de Liz.
Mas quando o emir reinante morrer, o que pode acontecer a qualquer momento, não haverá governo, a não ser que exista um sucessor vivo na família real. De acordo com as leis de Telfa, uma criança ainda não nascida não é sucessora no trono.
O senhor quer que eu faça o parto mesmo sabendo que ao fazer isso posso pôr em perigo as chances de a criança sobreviver?
perguntou Liz sem rodeios.
A senhora falou de complicações. Quão sérias elas podem ser?
Bastante sérias para determinar se o bebê viverá ou morrerá.
A decisão é de ordem médica — disse Almani, surpreendendo Liz. — Deixo-a a critério da senhora.
Fico satisfeita em que o senhor concorde com isso — afirmou Liz. — Pode confiar em que escolherei o caminho que parecer melhor para o feto. E nenhum médico poderia prometer-lhe mais do que isso.
Em seu consultório no sétimo andar da torre do Hospital Biscayne, Liz fez uma ligação para o Sr. Longaker, funcionário do Ministério do Exterior com o qual ela havia falado mais cedo. Naquela ocasião já passava um pouco das cinco e ela alcançou-o na limusine indo do escritório para sua casa em Georgetown.
O que está acontecendo por aí, doutora? — perguntou Longaker. — Algo sério?
Eu não o teria incomodado, mas o senhor me disse para chamá-lo quando julgasse que precisava saber de alguma coisa.
Minhas desculpas, Dra. MacGowan. Tenho diversas outras dores de cabeça no Oriente Médio, além de Telfa, e é sempre difícil estabelecer as prioridades entre elas...
Não sei qual é a prioridade desta, mas julguei que o senhor gostaria de saber que determinamos que o feto no útero da princesa Zorah é do sexo masculino.
Isto é realmente uma notícia! A senhora já informou o embaixador Almani, Dra. MacGowan?
Sim. Acabei de falar com ele.
Ele deve ter ficado muito contente.
Ele está, no que diz respeito ao sexo do feto. Mas tive dificuldade em explicar-lhe por que não deve ser extraído imediatamente.
Houve um momento de silêncio e depois Longaker perguntou:
A senhora se incomodaria de explicar isso para mim também, Dra. MacGowan?
De forma alguma. Quando falei com o senhor logo após o Dr. Pierce ter operado o cérebro da princesa, eu lhe disse, como bem me recordo, que ele não deu nenhuma esperança de sobrevivência para ela.
Também me lembro disso.
Ontem de manhã verificamos que já ocorrera a morte cerebral, mas espero manter o que suponho o senhor poderia chamar de vida artificial por talvez mais duas semanas, a fim de dar tempo ao feto para desenvolver-se mais.
Seria mais seguro extrair o bebê agora por uma cesariana ou deixá-lo permanecer no corpo da mãe por esse período? Não estou questionando sua decisão, doutora, apenas não a entendo corretamente.
O curto-comprido da história, Sr. Longaker, é, em poucas palavras, isto: se for extraído daqui a duas semanas, o bebê terá uma chance duas vezes maior de sobreviver sem sérias complicações do que teria se fosse extraído agora.
A senhora explicou isso ao embaixador Almani?
Sim.
O que falou ele?
Ele teve dúvidas, como o senhor parece ter, sobre a conveniência de não extrair o feto por cesariana agora. Mas seu raciocínio é baseado exclusivamente em considerações políticas.
É melhor que eu lhe diga que o Ministério do Exterior inclina-se a concordar com o embaixador neste caso, Dra. MacGowan.
Isto é quase como jogar roleta-russa com um feto ainda não nascido que não pode se defender — retrucou Liz rispidamente. — E eu não tomo parte nisto!
A senhora disse isto ao embaixador?
Sim.
E o que lhe respondeu ele?
Ele deixou a decisão para mim, como médica.
Penso que teremos que fazer o mesmo — concordou Longaker. — Quer ter a bondade de manter-me informado acerca do progresso da princesa e do feto?
Certamente.
Apenas mais uma pergunta, Dra. MacGowan — disse Longaker. — Há uma frase que às vezes ouço, quando casos como este são discutidos na televisão ou em artigos nas revistas: o que acontece se alguém, para usar a gíria, puxa a tomada da aparelhagem de sustentação avançada da vida da princesa?
Ninguém irá fazer isto aqui no Biscayne General — respondeu Liz com firmeza.
Mas suponha que aconteça? Por exemplo, por falta de energia!
A aparelhagem tem uma bateria capaz de mantê-la em funcionamento ao menos pelo tempo suficiente para permitir-me realizar a cesariana. Eu preferiria não ser forçada a fazer isso, mas temos um dos melhores departamentos de prematuros do país; assim, ainda que o bebê fosse mais prematuro do que gostaríamos, as chances são de que ele sobreviveria. Posso dar-lhe minha palavra, no entanto, de que nada disso vai acontecer.
O telefone desligou e Liz bateu com força o fone no aparelho, deixando extravasar a raiva que contivera durante a conversa com Almani e também com o Ministério do Exterior.
O telefone tocou quase imediatamente, e retirando com um arranco o fone do gancho, Liz respondeu brusca:
Sim!
Opa! — Era Ted Bronson. — Você parece irritada!
Irritada é a palavra certa! Onde você está?
No saguão. Ia convidá-la para tomar um drinque comigo no Dolphin Lounge antes do jantar.
Estarei aí em dez minutos.
Vou arranjar uma mesa para nós. Sendo sexta-feira, uma porção de gente estará começando ali o fim de semana.
Liz não precisava de maiores explicações; chegou ao Dolphin Lounge com o lugar fervilhando de pessoas alegres. Quando Ted acenou-lhe com a mão de um reservado no canto do salão, ela observou que já havia dois copos na mesa.
Com o que você está preocupada? — perguntou quando ela deslizou pelo banco para chegar-se a ele.
O de costume: o xeque Almani e o Ministério do Exterior.
Eu julgava que a notícia de que o feto é do sexo masculino, portanto tornando certo que a sucessão do trono de Telfa continuará pelo menos por mais uma geração, iria agradar a ambos.
Como você soube disso? — perguntou Liz descansando subitamente o copo.
Cruzei com Moe Harris no saguão agora mesmo e ele me contou. Encontrar uma célula em crescimento numa amostra com sangue não aconteceria de novo em mil tentativas; penso que você também deveria ficar contente!
Estou, ou melhor, estava... até que falei com Almani e com o Sr. Longaker, do Ministério do Exterior. Você tem qualquer idéia do que eles desejam que eu faça?
Algo que você não quer fazer, posso imaginar.
Tanto Almani quanto Longaker querem que eu retire o bebê imediatamente.
Não vou perguntar-lhe qual foi sua resposta, mas posso adivinhá-la.
Agi como uma dama — respondeu ela. — Mas quase me matou de raiva...
O que disseram eles?
Ambos disseram que a decisão era minha; penso que estavam vendo que de qualquer forma iria ser...
Prometeram não pressioná-la mais?
Não. E não acredito nem por um minuto que eles vão parar apenas descarregando o peso da decisão sobre mim.
É provável que não — concordou ele. — A dificuldade é que você não sabe de que lado virá a pressão, não é?
Não virá de Paul Fraser, disto estou certa. Mas estou um pouco menos certa acerca de Henry Letterman. — Liz descansou seu copo e estendeu a mão para cobrir a de Ted. — Desculpe-me, não tenho o direito de descarregar meus problemas sobre você...
Não sei de ninguém que tenha mais direito que você.
Você já tem o bastante para preocupar-se com a situação de Mike Corazón declinando a cada passo — disse ela. — Ele está caminhando para um colapso do fígado, não?
Receio que já tenha chegado a este ponto — admitiu Ted.
Quando falei com a família na hora do almoço, Arturo emocionou-se e chorou. Ele está recebendo a má perspectiva de Mike mais duramente que o resto da família; suponho que seja porque ele está mais próximo à infância do que eles, tanto em idade quanto em desenvolvimento intelectual.
Ele parecia estar muito feliz quando me trouxe um belo quadro de uma orquídea a meu consultório esta manhã.
Isto deve ter sido antes que eu o visse na suíte de Corazón.
Estou certa de que foi, porque ele me disse que você iria salvar Michael.
Acho que Arturo ficou muito duramente afetado quando tive que dizer aos Corazón e a Estrellita que éu não estava seguro de que Michael iria salvar-se.
Tive algumas vezes que fazer isso — ponderou ela. — É uma carga que nenhum médico pode passar a outrem.
Gostaria de levar você para jantar — disse ele — mas tenho que trabalhar até tarde no arquivo médico do hospital, acabando aquelas cartas sobre transplantes fracassados.
De qualquer forma não posso me afastar muito do hospital
disse Liz. — O pessoal da Sala de Operação preparou uma bandeja esterilizada especial que será deixada no quarto da princesa de agora em diante. Jerry Rubin também regulou os parâmetros dos monitores do feto de forma a soar um alarme com qualquer mudança significativa em seu ritmo cardíaco. Se isso acontecer, tenho que estar lá em cinco minutos, por isso é melhor não me afastar muito.
Liz estava comendo um hambúrguer na lanchonete do hospital quando o bip que tinha preso a seu guarda-pó branco fez-se ouvir estridentemente:
O Sr. Brown gostaria de vê-la nos escritórios da administração, Dra. MacGowan — disse a telefonista.
Sabendo que se Erasmus Brown estava trabalhando depois das seis horas — e já eram quase sete e meia — deveria ser algo muito importante, Liz decidiu ir imediatamente ao escritório da administração, que ocupava todo o andar superior da torre. Os quatro homens que estavam no amplo escritório do chefe da administração levantaram-se quando ela foi anunciada por uma secretária.
Obrigado por atender tão prontamente, Dra. MacGowan — disse Erasmus Brown. — Acredito que a senhora conheça todos aqui.
Alô, Sr. Nathan — disse Liz enquanto aceitava uma das confortáveis cadeiras. — O senhor não está trabalhando um pouco além do horário para uma tarde de sexta-feira?
Repórteres estão sempre a postos para revelação de furos jornalísticos, Dra. MacGowan. — Alto, de cabelos grisalhos e elegante, Robert Nathan era o editor científico do Herald de Miami. Usualmente ele limitava suas reportagens a notícias sobre assuntos médicos ou científicos, o que o fazia uma figura familiar no grande hospital. Os outros dois homens eram Ed Mclntire, chefe das Relações Públicas do hospital, e Nero Staige, funcionário de ligação entre o hospital e a mídia do rádio.
Caso a senhora esteja se perguntando por que solicitei que se juntasse a nós, Dra. McGowan — disse Brown — por acaso assistiu ao noticiário nacional das seis e meia hoje na televisão?
Não.
Bem no fim da tarde, o Ministério do Exterior dos Estados Unidos emitiu uma nota para a imprensa descrevendo o que parece ter sido uma tentativa abortada de um golpe de estado por um grupo dissidente que se opõe ao governo do emir Hassim de Telfa. O golpe falhou, mas o emir escapou por um triz de ser assassinado.
Eu falei com o Sr. Longaker, do Ministério, um pouco antes das cinco, e também com o xeque Almani — disse Liz. — Nenhum dos dois mencionou qualquer coisa acerca de perturbações políticas em Telfa.
— Pelo que parece, as notícias não chegaram ao Ministério senão depois das cinco horas — adiantou voluntariamente o repórter do Herald de Miami. Tão logo o Ministério do Exterior liberou-as para os serviços noticiosos, tentei telefonar para o embaixador Almani no Dupont Plaza. O hotel informou que ele abandonara o hotel há menos de uma hora, tomando um táxi para o aeroporto, provavelmente com destino a Nova York.
Houve qualquer coisa de especial em sua conversa com o embaixador, Dra. McGowan?
Muito especial! Eu lhe disse que o Dr. Harris tinha descoberto que o feto da princesa Zorah era menino.
E herdeiro do trono de Telfa! — disse Nathan. — Com Almani como regente?
Estou informada — disse Liz — que de acordo com a lei de Telfa, a fim de estar efetivamente na linha da real sucessão, o bebê deve estar vivo e fora do útero da mãe quando o emir Hassim falecer.
O Dr. Pierce e a Dra. MacGowan colocaram a princesa Zorah em sustentação avançada da vida ontem, Bob — falou Mclnti-re.
E quanto ao feto, Dra. MacGowan? — perguntou Robert Nathan.
O pulso do feto está forte e ele está se movimentando ativamente dentro do útero.
Quantos meses de gravidez tem a princesa? — perguntou Nathan enquanto fazia anotações num bloco de papel daqueles que os repórteres carregam sempre consigo.
Quando ela entrou no hospital, foi-nos dito pelo xeque Almani que o período de gestação era provavelmente de vinte a vinte e duas semanas — disse Liz. — No entanto, as medidas tomadas enquanto se estudava o feto por meio de ultra-som ontem de manhã parecem indicar várias semanas mais.
O suficiente para tornar o bebê viável se a senhora fizesse uma cesariana agora? — perguntou Robert Nathan.
Viável, certamente — admitiu Liz — mas também sujeito a sérias complicações. Com o corpo da mãe funcionando como excelente incubadora para o feto, não vejo razão para reduzir suas chances de sobrevivência ao fazer uma cesariana agora, mesmo que o xeque Almani e o funcionário do Ministério do Exterior, com quem falei, queiram que eu a faça.
Por quanto tempo a senhora planeja deixar o feto no que considera tão excelente incubadora? — perguntou Nathan.
Estimo que mais duas semanas de vida intra-uterina duplicariam as probabilidades de fazer o parto de uma criança viva sem muitas perspectivas de complicações — disse Liz.
Que tal se a senhora soubesse que o emir Hassim está morrendo e deseja saber da existência de um sucessor masculino, doutora? — perguntou Erasmus Brown. — Isto não alteraria sua decisão de não operar agora?
Minha primeira consideração é com a vida de uma criança ainda não nascida, quer seja um membro da realeza ou um feto de um negro das favelas! — disse Liz com firmeza. Então a possível razão para esta conferência despertou subitamente nela. — Quem o está pressionando, Sr. Brown, para fazer-me mudar minha decisão?
O que a faz pensar isso? — contra-atacou ele.
Apenas um palpite, mas estou certa, não estou?
Um alto funcionário de uma das maiores companhias de petróleo telefonou-me há cerca de uma hora — confessou Brown. — Ofereceu para fazer uma substancial doação para a Fundação de Pesquisas do hospital se o bebê Elzama nascer vivo.
O senhor não ficou surpreso? — perguntou Liz.
Naturalmente, até que ele admitiu que o embaixador Almani tinha-lhe telefonado e pedido que ele falasse comigo.
Agora temos interesses internacionais de petróleo envolvidos — disse Nero Staige. — Esta história está ficando mais sensacional a cada minuto... e mais inacreditável.
Sensacional, certamente, mas talvez não inacreditável — replicou Robert Nathan. — Durante o período de escassez de óleo imposta aos Estados Unidos pelos produtores árabes há alguns anos, eu voei para o Oriente Médio e passei algum tempo ali despachando uma série de artigos sobre a crise.
O senhor visitou Telfa? — perguntou Liz.
Sim, bem como diversos outros emirados e os maiores produtores de petróleo. Havia rumores então de que um homem controlava toda a produção dos campos de Telfa e determinava seu preço.
Yossuf Almani? — arriscou Nero Staige. — Tudo está começando a ajustar-se como as peças de um quebra-cabeça.
Penso que você está certo, Nero — concordou Nathan. — O embaixador Almani disse-lhe que ele já foi designado regente do filho do emir se Hassim morrer, Dra. MacGowan?
Quanto me lembro da palavra que ele usou, ele foi "indicado" — disse Liz. — Mas ele estava muito confiante de que seria o regente.
Como regente de um recém-nascido sucessor do emir Hassim, Almani poderia assumir o controle do governo de Telfa como virtual ditador — observou Erasmus Brown.
Não penso assim — disse Liz. — Ele foi particularmente enfático acerca do fato de que a lei de Telfa impõe que a criança nasça viva e saudável antes que ele possa agir como regente.
E com a senhora se recusando a fazer o parto do bebê até que esteja segura de sua sobrevivência, Almani estava numa ratoeira — disse Nathan. — Não é de admirar que ele tentasse forçá-la a operar imediatamente, levando um dos dirigentes de uma companhia de petróleo cliente dele a telefonar ao Sr. Brown para fazer um donativo.
O executivo da companhia de petróleo citou um número para esse donativo? — perguntou Liz a Erasmus Brown.
Sim. Um milhão de dólares.
Fiu... — assoviou Mclntire. — Almani estava de fato nervoso...
Meu palpite é que há mais por detrás disso do que parece — disse Robert Nathan. — Quando a senhora disse a Almani esta tarde que o feto era do sexo masculino, Dra. MacGowan, ele pareceu ter ficado muito satisfeito?
Isto foi o que mais me espantou com relação a esse negócio todo — respondeu Liz. — Eu esperava que ele ficasse extasiado, depois da maneira como vinha insistindo para que a criança nascesse logo, para que seu sexo pudesse ser conhecido. Mas a notícia parece tê-lo feito ficar apenas nervoso.
A senhora descreveu a reação de Almani exatamente como se ele soubesse que uma trama para matar o emir Hassim já estava em andamento — disse-lhe Nathan.
Mas isto é absurdo! — protestou Erasmus Brown.
Talvez não; escute o seguinte relato e diga-me como ele lhe soa — disse Nathan. — Yossuf Almani vem controlando a produção de petróleo de Telfa há anos, fazendo contratos com as companhias americanas de petróleo e sem dúvida recebendo uma participação nas transações antes que elas sejam pagas ao emir Hassim. Provavelmente ele tem milhões armazenados em contas de bancos suíços, como uma porção de outros árabes que fizeram fortuna com petróleo; com Hassim morrendo de leucemia, entretanto, ele pode prever agora o fim de sua participação. A coisa lógica para ele fazer então é assumir o próprio controle de Telfa.
— Como poderia fazer isso? — perguntou Erasmus Brown.
A maneira mais fácil sendo indicado regente para um menino que é oficialmente o sucessor de seu pai. Assim ele convence o emir Hassim a deixá-lo trazer a princesa Zorah para Miami, onde a Dra. MacGowan poderia determinar o sexo do bebê com antecedência. E se este viesse a ser do sexo masculino, persuadi-la a fazer o parto imediatamente. Desta forma ele poderia assegurar-se que um pai moribundo seria bastante grato para apontá-lo como regente, a tomar posse quando o emir morresse, o que ouvimos pode acontecer qualquer dia destes.
Sua história é engenhosa — disse Liz ao jornalista — mas eu posso perceber um sério defeito nela.
Qual é?
O xeque Almani é sem dúvida bastante esperto para ter sabido antes de trazer a princesa Zorah para cá que as probabilidades eram favoráveis a que o feto que ela carregava fosse do sexo feminino.
Por que você diz isso? — perguntou Erasmus Brown.
No curso ordinário das coisas, porque a concepção nos seres humanos produz mais comumente fêmeas do que machos, mais o fato que todos os rebentos que o emir Hassim gerou até agora foram fêmeas.
Eu penso que Almani é bastante esperto para ter tido outra carta na manga... — disse Nathan. — Com sua participação nos milhões do petróleo de Telfa, provavelmente reuniu um grupo político que está pronto para assumir o controle de Telfa se o emir morrer sem herdeiro...
Então por que ele está tão ansioso que o bebê nasça agora que está até disposto a arriscar sua vida? — perguntou Liz. — Como regente, podia-se ser levado a pensar que ele desejaria assegurar-se que a criança sobreviveria e seria saudável.
A designação de Almani para aquele posto ainda não é oficial — lembrou-lhe Nathan. — O emir Hassim sempre pode mudar de idéia.
Sigo seu raciocínio; prossiga com sua história, que a cada minuto se torna mais fascinante.
Nesta altura, o plano de Almani, cuidadosamente elaborado, começa a degringolar — continuou Nathan. — Em primeiro lugar, a princesa é fatalmente ferida. Em segundo lugar, você lhe diz Que pelo menos duas semanas são necessárias após a amniocentese para que as células fetais que removeu possam crescer até poderem ser identificadas como masculinas ou femininas.
— Desta vez a sorte esteve conosco — lembrou-lhe Liz. — Fomos capazes de determinar em vinte e quatro horas que o feto era do sexo masculino.
A senhora ainda se recusa a fazer o parto do bebê antes que considere seguro fazê-lo — lembrou-lhe Nathan. — O emir Hassim parece estar perdendo muito rapidamente a guerra contra a leucemia, mais rápido do que qualquer um esperava, e pode muito bem morrer antes que a senhora considere seguro extrair o bebê, deixando Telfa sem governo.
Este foi um dos argumentos que o embaixador Almani usou para tentar convencer-me a tocar para a frente a operação — respondeu Liz.
Obrigado por ter feito minha história ainda mais crível — disse Nathan com um sorriso. — Se Almani tiver que esperar pelas duas semanas que a senhora insiste, e se o emir Hassim morrer antes que o herdeiro do trono nasça de fato, alguém em Telfa poderia adiantar-se e apossar-se do governo. Assim Almani não se arrisca: antes que a princesa Zorah venha para Miami, ele contrata um bando de assassinos, que nos países árabes estão sempre prontos a matar qualquer um por dinheiro. Sua tarefa era assassinar o emir quando Almani lhes desse o sinal, e depois ele poderia alegar a promessa de Hassim emfazê-lo regente se a criança fosse menino. Desta maneira ele poderia manter a situação confusa até que a senhora fizesse o parto e um verdadeiro sucessor de acordo com as leis de Telfa existisse, com Almani não só como regente mas como virtual ditador.
Ele está jogando com um pau de dois bicos — exclamou Liz. — Mas de acordo com o boletim de notícias do Ministério do Exterior, que o senhor mencionou, a tentativa de assassinato do emir Hassim fracassou. Em que situação fica Almani?
Duvido que ele tenha ordenado a seus asseclas para fazerem a tentativa de assassinato tão cedo como a fizeram, mas Almani ainda tem as rédeas na mão — argumentou Nathan. — A única pessoa que pode fazer o emir Hassim saber em Telfa que ele é pai de um filho homem antes que Almani chegue lá para dar a notícia em pessoa é o funcionário do Ministério com o qual a senhora falou esta tarde, Dra. MacGowan. Acredito que a senhora tenha entrado em contato com ele por meio de um telefone móvel na limusi-ne que o levava para casa.
Sim.
Washington sendo o que é ao entardecer de uma sexta-feira, o Ministério do Exterior não vai ocupar-se do assunto da sucessão em Telfa antes de segunda-feira. Seria capaz de apostar que Almani não vai parar em Nova York a não ser para trocar de avião antes de dirigir-se a Telfa para controlar a situação pessoalmente.
Os aviões para vôos transatlânticos estão sempre muito lotados nas tardes de sexta-feira — objetou Ed Mclntire.
Com um passaporte diplomático, o embaixador junto às Nações Unidas, mesmo de um pequeno emirado como Telfa, poderia alijar alguém do primeiro avião que vá cruzar o Atlântico e tomar-lhe o lugar — disse Nathan. — Alguém pode descobrir falhas em minha história?
Quando ninguém se manifestou, o jornalista dirigiu-se para a porta:
Se me desculparem, tenho muito pouco tempo para escrever a história para a edição da manhã.
De acordo com as linhas aqui esboçadas? — perguntou Liz.
Ainda não. Este artigo será o primeiro de uma série que espero desenvolver à medida que este negócio eclodir, agora que a senhora me deu a dica — disse Nathan já com a porta aberta. — Mas para dar-lhe alguma idéia da direção que podem tomar as coisas, vou citar-lhe a manchete do artigo que aparecerá amanhã de manhã:
"MÉDICA LUTA PARA SALVAR CRIANÇA AINDA NÃO NASCIDA E ATRASA NASCIMENTO REAL"
Não fique surpresa se vir seu retrato na primeira página amanhã de manhã, Dra. MacGowan — acrescentou ele. — Não irá estragar em nada minha história, pois a senhora é a médica mais fotogênica que qualquer pessoa gostaria de ver.
O sol mal estava se levantando sobre a baía Biscayne, às seis da manhã de sábado, quando Liz MacGowan começou a cruzar a pista quase deserta entre o Biscayne e seu apartamento no Terrace. Ela dormira no quarto contíguo ao da princesa Zorah, na suíte do hospital, mas não havia sido perturbada. E quando deu uma olhada na paciente, antes de sair de seu quarto, a aparelhagem de sustentação avançada da vida funcionava tão suavemente que era difícil acreditar que sem ela a frágil mãe estaria morta.
O pulso do camaradinha baixou para normal e ele chuta a noite inteira — disse a enfermeira especial de serviço no turno de onze às sete.
Esperemos que ele continue ativo. Se algo de ruim acontecer, estou do outro lado da rua, onde vou tomar um banho e mudar de roupa.
Chovera um pouco durante a noite, dando ao ar a fresca fragrância das flores do jardim que rodeava tanto o hospital quanto o Terrace, um aroma agradável que em breve seria substituído pelas descargas venenosas dos carros no tráfego pesado da manhã. O guarda de segurança do lado de fora do saguão do hospital levantou a cabeça de sua mesa e sorriu.
A senhora está novamente na primeira página do jornal com aquela sua paciente árabe, Dra. MacGowan — disse ele. — Fico contente de não ser eu que tem a responsabilidade de manter aquela mãe e aquela criança vivas até que a criança possa nascer, mas todo mundo aqui sabe que a senhora pode fazê-lo.
Isso faz parte de minha obrigação — respondeu Liz.
Enquanto se vestia após ter se banhado, Liz pensava em preparar seu desjejum, mas desistiu de fazê-lo. No hospital, a enorme cafeteria estava começando a ficar movimentada, a turma que entrava de serviço pegando café e um rápido desjejum antes da mudança de turno às sete horas. Ela ficou surpresa de ver o Dr. Ned Pierce numa mesa vazia e pegou sua bandeja para juntar-se a ele.
Não é muito comum ver você aqui num sábado de manhã, Ned — disse ela. — Você em geral não joga golfe nos fins de semana?
Não nesta manhã — respondeu o neurocirurgião. — O paciente de tumor no cérebro que operei ontem começou a ter ataques há cerca de duas horas. Vim para cá a fim de examiná-lo.
Ele não poderia ser um adulto jovem, com a possibilidade de morte cerebral, poderia? — perguntou Liz apressada. — Ted precisa muito de um fígado para Michael Corazón.
Infelizmente não, embora haja provavelmente vários candidatos antes que termine a semana. Ted decidiu que será necessário um transplante?
A não ser que Michael apresente melhoras até segunda-feira ao meio-dia, Ted vai fazer um apelo pela televisão e pelo rádio procurando um doador,
O que traz você aqui tão cedo? — perguntou Pierce.
Vou dormir no hospital enquanto a princesa Zorah estiver submetida à sustentação avançada da vida.
Dei uma olhada nas manchetes esta manhã quando passei pelo saguão...
Estou disposta a salvar aquele bebê, Ned.
A julgar pela história do Herald, você vai ter todo o pessoal do Ministério do Exterior, inclusive o emir de Telfa, como seus devedores se o fizer. Meu paciente do tumor no cérebro também está no décimo andar, e eu dei uma olhada no quarto da princesa quando estive lá. Parece-me que tanto a mãe quanto a criança estão ótimas, com a sustentação da vida.
Jerry Rubin e Peter Craig são craques em fazer que os mortos pareçam vivos.
No entanto há muita discussão hoje em dia acerca de manter as pessoas vivas quando elas já estão mortas de acordo com os padrões que usávamos há poucos anos — disse Pierce ponderada-mente. — Uma porção de médicos parece pensar que as funções do corpo devem ser preservadas por tanto tempo quanto possível, sem ligar para o cérebro, embora seja um processo muito dispendioso...
Segundo se diz, o emir de Telfa é um dos homens mais ricos do mundo.
Concordo em que a questão de custo não se aplica neste caso particular, mas alguns pensadores bastante importantes — tanto dentro da medicina quanto fora dela — questionam a conveniência de colocar pacientes extremamente doentes em sustentação da vida por longo prazo.
Estou fazendo-o tão curto quanto possível neste caso, enquanto poupo ao feto muitas das complicações que sabemos que ocorrem a bebês muito prematuros. Mas ainda não me esqueci de quantos prematuros ficaram mais tarde cegos devido à fibroplasia retrocular causada pelas grandes quantidades de oxigênio que costumávamos dar-lhes.
Esta é uma das coisas que me faz duvidar da adoção da vida artificial em muitos casos, particularmente em recém-nascidos. A probabilidade de complicações na criança muito além do período pós-natal é bastante ponderável.
Ainda é melhor do que morrer, Ned.
Talvez! Mas quando vejo uma criança com síndrome de Down, mais um defeito do tubo neural, como espinha bífida ou hidrocefalia, não posso evitar de sentir que tanto o paciente quanto a família estariam em muito melhor situação se tivesse sido feita uma amniocentese durante o primeiro trimestre da gravidez. Uma vez que seja feita a diagnose da Down pelo estudo dos cromossomas, uma seringa cheia de concentrado salino injetada no útero pode fazê-lo esvaziar-se num aborto inofensivo, sem maior perigo do que o que ocorre quando se extrai um dente de siso.
Poderia discutir este ponto com você, Ned, mas estaríamos dispendendo tempo que poderia ser mais bem aproveitado — respondeu Liz. — Minha impressão é que a questão do prolongamento da vida será discutida durante anos, especialmente desde que alguns membros das famílias começaram a processar os médicos por haverem desligado a tomada cedo demais.
Na segunda-feira de manhã, oito dias depois do atentado contra a vida de Michael Corazón, havia se tornado evidente, mesmo para um observador não-médico, que seu fígado danificado não tinha possibilidade de recuperação. E que sem uma reposição sob a forma de um transplante, o paciente estava condenado.
A única coisa que pode salvar Mike é um transplante — disse Ted à família Corazón quando terminou seu exame matinal. — E desde que ele não me pode dar permissão para fazer uma chamada para doadores e operá-lo imediatamente, se aparecer um doador, vocês, como a família dele, devem fazê-lo.
O doador não tem que estar morto antes que você retire o fígado do corpo? — perguntou Estrellita.
Apenas um diagnóstico de morte cerebral é necessário — explicou Ted. — De fato, quando tiramos o fígado do doador, preferimos que o coração ainda esteja batendo.
Mas o doador ainda estaria vivo! — protestou Maria.
Clinicamente não — explicou Ted. — Já foi mostrado em centenas de casos que nenhum paciente viverá uma vez que a corrente elétrica que acompanha a atividade do cérebro não possa mais ser medida.
Arturo estava escutando, mas um ar de espanto agravava-se continuamente em seus olhos e seu semblante.
Michael está morrendo, Dr. Ted? — perguntou ele.
O que estou dizendo, Arturo, é que não há forma de mantê-lo vivo a não ser que possa ser achado o fígado de uma outra pessoa para transplantá-lo para o lugar do fígado dele.
Então faça isso! — Com sua preocupação a voz de Arturo tinha se tornado quase um grito, e quando Estrellita procurou sua mão para confortá-lo, ele agarrou-se a ela com uma força que deve tê-la machucado.
Não deixe Michael morrer!
Que caminho você se propõe seguir agora? — perguntou Estrellita.
Eu gostaria de convocar uma entrevista com a imprensa antes do meio-dia de hoje, para podermos alcançar os programas de notícias do meio-dia do rádio e na tevê. Ao mesmo tempo, notificarei o pessoal das Salas de Emergências de todos os hospitais de Miami, e também os de uma área dentro de algumas horas de vôo daqui, que necessitamos muito do fígado de uma pessoa mais ou menos da mesma idade e do mesmo porte de Michael. Se aparecer um fígado disponível de um caso de acidente ou outra causa, voarei diretamente para o hospital e pessoalmente o removerei e trarei para Miami, tão rápido quanto for possível.
Você não deveria então convocar logo a entrevista com a imprensa? — perguntou Estrellita.
Estou apenas aguardando a aprovação da família, mas desejava que todos vocês compreendessem bem a situação.
Maria olhou para seus filhos e voltou-se para Ted.
Nós confiamos em você — ela disse. — Se alguém pode salvá-lo, estamos certos de que esse alguém é você.
Meu avião estará disponível para voar para onde quer que você deseje ir vinte e quatro horas por dia — assegurou-lhe Pedro.
A reunião com a imprensa foi convocada para pouco antes do meio-dia, e o pequeno auditório de aulas do hospital estava com metade dos lugares ocupados com os representantes da mídia quando Ted subiu à plataforma.
Chamei os senhores aqui porque uma grave mudança ocorreu nas condições do Sr. Michael Corazón — começou Ted. — Como sabem, um atentado contra sua vida não teve sucesso há cerca de dez dias, em grande parte devido à pronta ação dos técnicos da Brigada de Socorro que atendeu à chamada de emergência da casa do Sr. Corazón na segunda-feira passada. Uma bala que atravessou inteiramente o fígado do Sr. Corazón parece ter causado danos suficientes dentro do órgão para provocar o que é chamado de colapso do fígado. É opinião tanto das equipes cirúrgicas quanto médicas deste hospital que, a não ser que um fígado sadio possa se encontrado para transplantar a curto prazo, o Sr. Corazón não sobreviverá.
O que o senhor quer dizer com fígado sadio? — perguntou um repórter da primeira fila.
Idealmente, o órgão de que necessitamos deveria ser o de uma vítima de acidente sadia, homem ou mulher, de preferência com uma lesão na cabeça, na qual a morte cerebral tenha sido determinada por uma eletroencefalografia.
Estou certo em concluir que o senhor convocou esta conferência para lançar a procura de um fígado transplantável a tempo de salvar a vida do Sr. Corazón, doutor? — perguntou outro repórter.
Sim, está correto.
Posso perguntar que outras medidas foram tomadas?
Desde cerca de dez horas desta manhã, eu telefonei pessoalmente a todos os hospitais na área da cidade bem como àqueles a algumas horas de vôo — respondeu Ted. — Pedi aos chefes de seus serviços de emergência para alertar todo seu pessoal a fim de ficarem à espera de um paciente que preencha nossos requisitos.
Quais são estes, além da morte cerebral? — perguntou uma jovem repórter.
Alguém de preferência com idade entre dezoito e quarenta e cinco anos.
Com o mesmo tipo de sangue que o Sr. Corazón?
Nós não acreditamos mais que uma diferença no tipo de sangue entre o doador e o receptor seja necessariamente uma barreira para um transplante bem-sucedido.
Supondo que o senhor encontre um doador, que faça a operação e que realize um transplante tecnicamente perfeito, mas que o Sr. Corazón não sobreviva! — inquiriu outro repórter. — Sua morte seria legalmente classificada como homicídio?
As autoridades legais terão que estabelecer isto. Minha única preocupação é com a vida do Sr. Corazón, e estou pedindo a todos vocês para fazerem o que puderem para tornar público o fato que nós necessitamos de um doador. Talvez a família de alguma vítima de acidente que nos convenha possa escutar nosso apelo e ofereça um fígado intacto antes que seja tarde demais.
A entrevista terminou com os repórteres saindo apressados para colocarem suas histórias nos jornais e no ar. Ted não vira Liz entrar no fundo do auditório, mas quando ele saía pelo corredor seguindo a corrente dos representantes da imprensa que se retiravam, ficou contente de vê-la ali de pé.
Não vi você entrar — disse-lhe.
Pensei que um desses camaradas da imprensa pudesse perguntar por que a princesa Zorah não pode ser usada como doadora, uma vez que a ocorrência de morte cerebral foi anunciada há alguns dias.
Como está ela?
Funcionando lindamente como incubadora, que é tudo o que desejo que seu corpo faça. Mas suponha que eu me oferecesse para fazer o parto agora e deixasse que você removesse o fígado da princesa Zorah imediatamente para salvar a vida de Michael Corazón?
Não daria certo.
Por quê?
Para começo de conversa, a diferença entre o tamanho dos vasos sangüíneos é grande demais. Além disso, não sabemos, pelo fato de você estar mantendo-a em sustentação avançada da vida, em quanto pode ter diminuído suas funções vitais.
Você acaba de tirar um peso da minha consciência — disse-lhe ela quando deixavam o auditório. — Estava com receio de que se não aparecesse nenhum doador que você poderia sugerir usarmos a princesa Zorah e eu tivesse que dizer não por causa do feto.
Você já disse não uma vez; fico contente de não ter que lhe pedir para repeti-lo. Por falar nisso, o que anda fazendo o embaixador Almani?
Acalmando-se em Nova York ou em Telfa, até onde sei, esperando que eu ponha o novo emir de Telfa a seus cuidados como regente.
Mas aí, como os fatos vieram a provar, Liz estava errada.
Um pouco antes das oito horas, Liz dispensou sua aula para jovens mães — e os poucos pais recrutados por suas esposas para assisti-la — com a finalidade de prepará-las não apenas para os rigores de uma gravidez porém, mais importante do que isso, para as respectivas responsabilidades. Bastante certa de que Ted estaria trabalhando na sala dos arquivos médicos do hospital, ela passou por lá e encontrou-o debruçado sobre o teclado do computador principal. Com o auxílio deste, ele estava estudando os registros do hospital de pacientes nos quais os transplantes de rins tinham sido rejeitados, tanto antes quanto durante os dois anos em que ele era o chefe do Serviço de Transplante de Órgãos.
Está na hora de dar uma parada... para o resto da noite — disse-lhe Liz.
A perspectiva de passar noites sozinho não é exatamente animadora quando você vem estudando seus próprios fracassos — e o dos outros — desde as seis horas — comentou ele com um certo tom desanimado enquanto desligava o computador. — Mesmo durante os dois últimos anos, quando tudo estava sob minha responsabilidade, houve muito mais insucessos do que eu imaginava.
E como era antigamente, antes de você vir para cá?
Realmente não devo criticar os cirurgiões da época, e não o faço. Eles certamente eram tão bons com sua técnica operatória quanto eu sou.
Duvido! Um cirurgião ganha proficiência na técnica operatória pela experiência. Você teve muito disso em Pittsburgh e durante os dois anos em que tem sido chefe do serviço aqui. Como vai sua pesquisa sobre insucessos de transplantes de rins?
A última das cartas será posta no correio amanhã — disse ele.
Já teve alguma resposta, além daquela da Sra. Worthington?
Ainda não, mas elas começarão a chegar em breve. Como vai indo sua incubadora humana?
Tão perfeita quanto eu poderia desejar. O feto também parece ótimo nos monitores.
Gostaria de poder dizer o mesmo sobre Mike.
Nenhuma indicação ainda para um possível doador? — perguntou Liz, mas ele sacudiu a cabeça.
Não, e receio que a espera vai ser dura para a família, particularmente para Arturo. Ele não parece entender por que eu não posso tirar o fígado de qualquer um que morra, não importa qual seja a causa.
Ambos se sobressaltaram quando o telefone ao lado do teclado do computador soou estridente. Ted pegou o fone.
Há uma chamada para o senhor, Dr. Bronson — disse a telefonista. — Diz que é interurbana e acerca do Sr. Corazón.
Falarei com ele, Mary. — A voz de Ted ficou subitamente tensa enquanto punha a mão sobre o microfone e dizia para Liz, a meia-voz: — É sobre Mike, interurbano.
Houve uma breve pausa enquanto a ligação era completada, e depois uma voz de homem fez-se ouvir.
Dr. Bronson?
Sim.
Aqui e o Dr. Jonas Ellington, de Everglades City — cerca de cem quilômetros a oeste do senhor, na Trilha de Tamiami.
Sei onde fica Everglades City, doutor. Um dos professores daqui do Biscayne guarda a lancha dele aí. Eu saí com ele para uma pescaria nos Everglades no ano passado.
Então sabe como chegar até aqui. Ouvi no rádio que o senhor está procurando um doador de fígado.
Com toda a certeza estou, Dr. Ellington. — O pulso de Ted se acelerara com a pergunta do outro médico. — O senhor tem um?
Talvez tenha, Dr. Bronson. Um marinheiro de um dos barcos de pesca daqui acidentou-se esta tarde quando voltava para casa: sua motocicleta saiu da estrada, chocou-se contra uma árvore e ele bateu com a cabeça violentamente. Está em coma desde o acidente e em meu julgamento não poderá viver por muito mais tempo. Quando disse à família que o senhor está procurando um doador de fígado para o Sr. Corazón, consegui convencê-los a deixar-me telefonar-lhe.
O senhor pensa que eles darão permissão se nós pudermos estabelecer morte cerebral?
Acredito que sim, se o senhor vier aqui e conversar com eles.
O homem acidentado não poderia ser trazido para Miami de ambulância?
Eu sugeri isso, mas eles não gostaram da idéia. Disseram que não podiam entender porque transportá-lo cem quilômetros ou mais até Miami se ele iria morrer de qualquer maneira, e ter que transportá-lo de volta. Se o senhor vier, é melhor que traga seus instrumentos e tudo que for necessário para retirar o fígado tão logo ele possa ser declarado morto.
Poderei estar aí dentro de uma hora e meia...
Ele deverá resistir durante este tempo; tenho-o sob um ventilador. Tenho uma clínica de emergências nos limites da cidade, na estrada que vai a Everglades City partindo da Trilha Tamiami. Poderá reconhecê-la por um anúncio luminoso.
Estarei aí no máximo em uma hora e meia, doutor — disse-lhe Ted. — E muito obrigado!
Era um Dr. Ellington de Everglades City — falou Ted para Liz quando desligou o aparelho. — Ele tem um caso de acidente lá que provavelmente está próximo a sofrer morte cerebral e pensa que a família me deixará remover o fígado.
A que distância fica Everglades City?
A uns noventa ou cem quilômetros a oeste daqui, e a uns poucos quilômetros ao sul da Trilha Tamiami. O Dr. Ellington disse que se eu for imediatamente ele acha que pode manter o paciente vivo com um ventilador até a minha chegada. E se a família der permissão, posso remover o fígado lá mesmo e trazê-lo para Miami numa geladeira portátil. Vou partir tão logo consiga uma bandeja de laparotomia esterilizada na Sala de Operação...
Tenho uma no quarto da princesa Zorah, para o caso em que tenha que fazer uma dissecção. Você economizará tempo pegando-a, e a turma da noite da Sala de Operação arrumará uma outra para mim. Você vai de avião?
Pedro Corazón ofereceu-me o avião dele — respondeu Ted sacudindo a cabeça — mas eu posso chegar a Everglades em meu Porsche em uma hora ou menos, e perderíamos esse tempo aquecendo o motor do avião e obtendo aprovação para um plano de vôo. Tudo que tenho que fazer antes de partir é pegar sua bandeja, uma grande geladeira portátil da área do banco de sangue no subsolo e colocar algum gelo dentro dela. Depois de extrair ô fígado, a viagem de volta não levará mais do que uma hora e meia, e isto está dentro dos limites de segurança para o transporte do órgão.
Você poderia usar alguém com experiência cirúrgica para ajudá-lo a remover o fígado — disse ela. — Que tal deixar-me ir com você?
E o bebê Elzama?
Eu dormi no hospital a noite passada porque precisava estar certa da estabilidade dele com a princesa em sustentação avaça-da da vida. O feto está indo muito bem e qualquer dificuldade que venha a ter não irá acontecer pelo menos durante alguns dias, quando ele poderá começar a absorver alguns produtos tóxicos com a situação de metabolismo artificial que criamos dentro do organismo da mãe com a sustentação avançada da vida. De qualquer forma, estaremos de volta pela meia-noite.
Ótimo! Pego você na garagem do outro lado da rua em vinte minutos.
Liz estava esperando quando Ted dirigiu seu belo Porsche pela rampa de saída da garagem. Ela usava calças compridas, blusa de malha e lenço azul na cabeça. Abrindo a porta direita do Porsche quando ele freou o carro, ela deslizou para dentro e fechou a porta.
Fico contente de ver que você teve tempo para consertar a antena da Faixa do Cidadão — disse Liz enquanto afivelava o cinto de segurança e ele entrava com o carro no tráfego na direção oeste. — Sempre me sinto mais segura viajando à noite quando sei que a Faixa do Cidadão está disponível e posso usá-la pedindo auxílio se necessitar.
Vestida como você está, é melhor que eu a mantenha escondida quando chegarmos a Everglades City — disse Ted para ela. — Se o cérebro do doador ainda não estiver completamente morto, vendo você ele é capaz de despertar e nós perderemos qualquer chance de arranjar um fígado transplantável...
A noite já havia caído bem quando eles chegaram à linha divisória do Condado de Dade. À medida que o tráfego na Trilha Ta-miami rareava, Ted pôde aumentar a velocidade do rápido Porsche acima dos permissíveis noventa quilômetros por hora. O terreno era plano, a planície nivelada dos Everglades — apropriadamente conhecida como o Rio de Capim — entrecortada apenas por grupos de árvores em terreno ligeiramente mais elevado, conhecidos como hammocks. Com as janelas do aerodinâmico carro fechadas, os dois estavam isolados num veículo espacial com ar condicionado, por assim dizer, projetando-se para oeste naquela que, até o estabelecimento de uma outra estrada mais ao norte — conhecida com o pitoresco nome de Aléia dos Crocodilos — fora a rodovia mais conhecida da Flórida.
Quando o cartaz de "Saindo do Condado de Dade e Entrando no Condado de Collier" apareceu na estrada, Liz pegou a chave comutadora do rádio da Faixa do Cidadão que ficava por baixo do painel e ligou o aparelho.
Por que não chamo o Canal 9 da Polícia Rodoviária em Miami? — disse ela. — Talvez eles tenham uma radiopatrulha estacionado em Everglades City que poderia escoltar-nos de volta para Miami. Após realizarmos aquele transplante, quanto mais rápido você o colocar no abdome de Mike e ligá-lo à sua circulação melhor será para ele.
Boa idéia — aprovou Ted. — Tente de qualquer forma contactar com a polícia.
Sargento Peters, da Polícia Rodoviária da Flórida — uma voz firme, masculina, respondeu à chamada de Liz, e ela passou o microfone para Ted.
Aqui é o Dr. Theodore Bronson, do Hospital Biscayne, sargento.
Ouvi no noticiário das seis que o Sr. Corazón necessita de um transplante, doutor. Que posso fazer pelo senhor?
Recebi um telefonema há cerca de uma hora de um Dr. El-lington em Everglades City, sargento. Uma vítima de acidente ali parece estar morrendo de uma lesão na cabeça e o doutor acredita que posso convencer a família a deixar-me transplantar seu fígado para o Sr. Corazón.
Um acidente quase fatal em Everglades City, o senhor disse?
Sim.
Não tivemos nenhuma notícia disso!
O Dr. Ellington disse que um marinheiro de um dos barcos de pesca que operam na área estava indo de motocicleta, aparentemente do porto para casa, e chocou-se contra uma árvore. É possível que ninguém tenha pensado nisso como o tipo de acidente que precisasse ser comunicado à Polícia Rodoviária.
O senhor provavelmente está certo — concordou o policial. — Nós temos um patrulheiro que vive em Everglades City, doutor; agora mesmo houve um bom engarrafamento na estrada de Okel-chobee, em Hialeah, mas quando o tráfego começar a movimentar-se novamente, entrarei em contato com ele. Posso fazer alguma coisa para ajudá-lo?
Se o ferido morrer e eu puder convencer a família a deixar-me remover o fígado, gostaria de ter uma escolta da polícia pelo menos do limite do Condado de Dade até o Biscayne.
Tão logo o senhor tiver o órgão para o transplante, doutor, chame o patrulheiro Harold Muldoon. Ele escoltará o senhor até o hospital. O número dele em Everglades City é 555-1212.
Obrigado, sargento. Eu o chamarei quando estivermos prontos para voltar para Miami.
Boa sorte, doutor.
Fora dos limites metropolitanos de Miami, o tráfego na Trilha Ta-miami diminuiu notavelmente e Ted acelerou o Porsche até cento e quinze quilômetros por hora. Ninguém os ultrapassava e apenas muito raramente viam as lanternas traseiras de um carro pela frente antes de rapidamente ultrapassá-lo.
Esta trilha era uma artéria movimentada quando comecei a passar férias em Coconut Grove com os Corazón, há uns quinze anos — disse Ted a Liz. — Grande parte do tráfego hoje passa por uma nova estrada chamada Aléia dos Crocodilos. Ela corta os Everglades em linha reta a cerca de cinqüenta quilômetros ao norte daqui e vai de Naples a Fort Lauderdale. Embora seja uma estrada de pedágio, fica mais barato do que gastar os pneus nesta trilha, a não ser que você seja obrigado a passar por esta estrada, como é o nosso caso esta noite!
Nós parecemos estar seguindo uma espécie de canal — observou Liz. — Em alguns lugares a água não parece estar a mais de cinco ou seis metros da margem da estrada.
Quando a terra é tão plana como esta, e é em grande parte coberta d'água na maior parte do tempo, exceto peloshammocks, é fácil escavar um canal e amontoar o material para fazer uma estrada ao longo dele — da forma como foi feito na década de 20, quando a Trilha Tamiami foi construída. Naturalmente que chamam o canal também de Tamiami.
O canal é muito fundo?
Fundo bastante para que carros que derrapam para fora da estrada e que caem dentro do canal por qualquer razão às vezes não sejam descobertos por anos. Certamente que eu não gostaria de andar dirigindo por esta estrada com muito álcool na corrente sanguínea.
Vamos ter que viajar ao longo do canal até Everglades City? — perguntou Liz.
Não. A trilha faz uma curva para o norte e abandona o canal não muito longe de um lugar chamado Paolita Station. Deveremos chegar lá em mais ou menos uns vinte minutos.
Ficarei contente de ver o danado desse canal desaparecer; ele me dá arrepios... Há crocodilos nele?
Muitos — disse ele. — Mike e eu muitas vezes víamos uma porção quando pescávamos ao longo do canal durante as férias. Caçá-los para aproveitar suas peles para sapatos e bolsas de senhora era uma atividade muito lucrativa; pelos anos 20 e 30 tantos crocodilos foram mortos que o governo do Estado teve que intervir e protegê-los. Porém eles se reproduzem muito rapidamente, e ultimamente tantos deles têm rastejado para fora dos rios da Flórida, entrando pelos dutos de águas pluviais nos quintais das pessoas que vivem próximo à água, que o Estado começou a permitir a captura de algumas peles. Em geral os crocodilos atacam cães e porcos, mas para um animal realmente grande, até um homem é uma presa fácil.
Liz vinha olhando pela janela a faixa escura da estrada com o canal ao lado, a água às vezes oculta por algumas centenas de metros pelos bosquetes de casuarinas que em muitos trechos cresciam entre a água e o acostamento da estrada. De repente Liz inclinou-se para a frente num movimento súbito e puxou para baixo o pára-sol que durante a noite estava dobrado contra o pára-brisa. No meio dele havia um pequeno espelho que as mulheres usavam a fim de retocar sua maquilagem; movimentando-o cuidadosamente, ela olhou atentamente para ele.
Nós não vamos chegar a Everglades City pelo menos dentro de uns trinta ou quarenta minutos — disse-lhe Ted. — Não precisa incomodar-se por enquanto em ajeitar sua maquilagem.
Julguei ter visto o reflexo de um farol em seu espelho retrovisor ainda há pouco — disse ela. — Por este espelho estou vendo um carro que parece querer ultrapassar-nos.
Ted lançou um olhar ao espelho retrovisor e em seguida ao espelho externo localizado à frente da porta.
Ele realmente parece também estar apressado. Nós estamos a cento e trinta e ele está se aproximando de nós rapidamente, de forma que deve estar correndo a cento e quarenta e cinco ou cento e cinqüenta.
Quem estaria dirigindo por aqui neste ermo a esta velocidade e à noite?
Não atino por quê! Uma coisa posso apostar, no entanto: não é um patrulheiro da Polícia Rodoviária.
Como você pode afirmar isso?
Se fosse, ele já teria ligado seu farol de sinalização há muito tempo, avisando-nos para encostar o carro.
Momentos mais tarde, o carro que se aproximava silencioso, como uma pantera antes de dar o bote em sua presa, começou a passar por eles.
Está passando perto demais, para meu gosto... — reclamou
Ted.
Quando o outro carro os estava ultrapassando, eles puderam ver que era um Jaguar, um carro tão possante quanto o Porsche e facilmente capaz de ultrapassá-lo a uma velocidade muito maior.
Estou fazendo tudo o que posso para manter o Porsche nesta velha estrada na velocidade em que vamos, mas tente dar uma boa olhada para o motorista do Jaguar e para a placa dele quando passar à frente — disse Ted a Liz. — Nós nos queixaremos ao patrulheiro Muldoon quando chegarmos a Everglades City.
O vidro da porta lateral é de uma cor muito escura! — Liz havia-se voltado no assento e estudava o carro que corria paralelo a eles. — Porém poderei observar pela janela traseira, tão logo ele passe bem adiante de nós e nossos faróis iluminem o interior dele. Por que você não anda mais devagar e deixa-o passar?
Eu estou diminuindo a marcha, mas ele também está, e nos fechando! — A voz de Ted ficou subitamente tensa e o Porsche encostou um pouco para a direita quando ele o dirigiu mais para perto da faixa de acostamento da estrada, que em muitos lugares estava destruído. O carro que estava ao lado deles deu uma guinada também e de repente ouviu-se um ruído de metal raspando contra metal quando os pára-lamas dianteiros momentaneamente se tocaram, dando origem a um chuveiro de fagulhas.
Tive uma rápida visão das pessoas no Jaguar — informou Liz. — São dois homens e um deles tem na mão um rifle ou uma metralhadora portátil.
Agache-se no chão mas tente alcançar a chave da Faixa do Cidadão e pegue o microfone.
Já estou com ele — confirmou ela imediatamente, do chão do Porsche onde se colocara.
Ted agarrou com força a direção e calçou-se contra o encosto do banco quando os dois carros em alta velocidade rasparam novamente um contra o outro, produzindo outro chuveiro de centelhas e forçando o Porsche a derrapar perigosamente.
Eles estão tentando matar-nos, fazendo-nos cair no canal! — gritou Liz.
Onde poderemos não ser achados por anos — acrescentou Ted sério. — Chame o Canal 9 na Faixa do Cidadão. — Ted recomendou enquanto o outro carro, tendo desistido da estratégia de forçá-los para fora da estrada, começou a adiantar-se sobre eles.
Chamando Canal 9! Chamando Canal 9! — A voz de Liz era estridente com o pavor daquele ataque sobre eles numa estrada deserta e à noite.
Aqui Canal 9, sargento Peters! — Soou uma voz abençoada.
Aqui é a Dra. MacGowan com o Dr. Bronson, sargento. Nós estamos em algum lugar na Trilha Tamiami e um Jaguar está tentando jogar-nos para fora da estrada, para dentro do canal.
Dá para ver a placa do Jaguar, doutora?
Sim, eles não conseguiram jogar-nos no canal e estão nos ultrapassando. A placa está aparecendo na luz de nossos faróis agora. É DRU 724, Condado de Dade.
O Jaguar agora estava na frente deles. Na luz dos faróis do Porsche, Liz viu um homem inclinar-se para fora da janela do lado direito. Tinha nas mãos um rifle automático e estava apontando para o Porsche.
Fique, abaixada, Liz — disse Ted enquanto tirava o pé do acelerador na esperança de aumentar sua distância para o outro carro a fim de tornar-se um alvo mais difícil. — Ele está atirando em nossos pneus.
Uma súbita chama apareceu no cano da arma à frente deles e balas ricochetearam no pára-choque e na capota.
Escore-se bem, Liz! — gritou Ted. — Se ele atingir os pneus da frente...
Um grande estrondo repercutiu dentro da proteção metálica do pequeno carro quando um pneu da frente explodiu penetrado por uma bala.
Não posso manter o carro na estrada! — gritou Ted enquanto o Porsche dava uma violenta guinada para a direita. — Vamos para dentro do canal!
Ainda enquanto ele falava, o Porsche abandonou a estrada, pulou pelo acostamento e lançou-se inexoravelmente para as escuras e ameaçadoras águas do Canal Tamiami.
Acocorada no chão do carro, Liz foi jogada para um lado e para o outro enquanto o carro pulava por sobre a parte não-pavimentada do acostamento e mergulhava na superfície do canal. Ainda agarrando o cabo do microfone, embora ele não mais pudesse ajudá-los, ela conseguiu endireitar-se dentro do carro quando este começou a estabilizar-se. E sentindo os braços de Ted fecharem-se em torno dela quando ele se deslocou no banco para seu lado, ela agarrou-se a ele com sua mão esquerda enquanto com a direita procurava instintivamente a maçaneta interna da porta.
Não tente abri-la! — a voz dele estava rouca de tensão.
Mas é a única maneira de escaparmos!
Você não conseguiria abrir essa porta agora contra a pressão da água do lado de fora por mais que tentasse — disse ele. — Reze apenas para que o Porsche sente no fundo do canal sem tombar e a uma profundidade suficiente para a antena da Faixa do Cidadão ficar mergulhada.
Por quê? De qualquer maneira vamos afogar-nos!
Não nos afogaremos se nos mantivermos calmos. — A voz dele era intencionalmente autoritária, tentando livrá-la do terror que a estava tomando. — A água já está entrando pelo assoalho, mas o carro é bastante vedado. Se nós nos agüentarmos aqui enquanto ele se enche d'água, suficiente quantidade de ar ficará presa dentro da carroceria para que possamos respirar por algum tempo.
Quando o Jaguar passou à nossa frente, para que o homem com a arma automática pudesse atirar em nossos pneus, os faróis iluminaram o interior do carro. — Liz já recuperara seu controle, com a segurança do braço de Ted em volta dela. — Era Sam Gian-no que o dirigia!
Você tem certeza?
Eu fiz o parto de seu último filho, de forma que naturalmente pude identificá-lo.
Então procure respirar menos; nós vamos precisar disso. Respire normalmente e você utilizará uma quantidade menor do oxigênio do ar que está se acumulando contra o teto do carro. Tão logo a pressão interna se aproximar da pressão do lado de fora, nós poderemos abrir a porta e nadar para a superfície. — As palavras dele foram interrompidas por um súbito solavanco quando as rodas do carro tocaram no fundo. — Se você rezou alguma vez, reze agora.
Segure-me com força, querido. Se vamos morrer, quero que isto aconteça em seus braços.
Nós não vamos morrer — assegurou-lhe ele. — O carro assentou no fundo sem emborcar. Se o ar preso por baixo do teto durar bastante tempo para que aqueles dois aí fora decidam que nos afogamos e dar-nos por mortos, nós conseguiremos viver.
Por talvez uns dez minutos — embora tenha parecido uma eternidade — Ted ficou sentado ereto no Porsche com Liz em seus braços. A pressão do ar aprisionado estava tornando a respiração muito mais difícil à medida que o nível da água subia até seus ombros, depois até o queixo, no espaço cada vez mais exíguo sob o teto do carro.
Há quanto tempo estamos aqui? — perguntou Liz.
Talvez uns vinte minutos.
Vinte minutos! A água chegou a meu queixo.
Vire sua cabeça para trás e mantenha o nariz para cima por tanto tempo quanto puder — recomendou ele. — Cada minuto que possamos ficar submersos aumenta nossa chance de que Gianno e seu pistoleiro decidam ir embora. Graças a Deus que insisti por comando manual dos vidros — acrescentou ele. — Mesmo que a gente não possa abrir a porta, eu poderei abaixar os vidros, o que nos deixará espaço bastante para escapar pela janela e nadar para a superfície. Quando eu abrir a porta — disse ele — saia e nade em direção à parte de trás do carro, para tão longe quanto puder antes de vir à tona. Depois vá para o barranco ao lado da estrada, onde o capim que cresce ao longo dele poderá evitar que eles percebam que escapamos.
Diga quando devo sair — ela falou, beijando-o antes de aspirar quanto ar seus pulmões podiam conter. Aspirando ao mesmo tempo profundamente, Ted empurrou para baixo a tranca da porta, forçando-a para fora. Ela abriu-se vagarosamente, e quando Ted julgou que o espaço era bastante para Liz escapar, empurrou-a para fora através do apertado espaço e seguiu-a.
A turbulência causada pelo rápido bater de seus pés contra o rosto dele revelavam-lhe que ela estava indo para tão longe do carro quanto possível, antes de ser forçada a vir à tona para respirar. Seguindo-a de bem perto, de forma a até poder tocar seus calcanhares de vez em quando, ele veio à tona quando não podia mais ficar sem respirar. Quando emergiu, agarrou um punhado de vegetação que crescia ao longo do barranco do canal, e ao fazer um movimento largo do braço procurando por Liz, sua mão tocou-lhe no peito. Ela pegou-lhe a mão e Ted puxou a ambos, procurando afastar-se o mais possível do local onde o carro havia mergulhado no canal, agarrando-se ao capim e à vegetação ao nível da água.
Içando-se até a altura da borda do canal por um rápido momento, Ted pôde ver o lugar onde o Porsche saíra da estrada. Os dois homens estavam usando o poderoso facho de uma lanterna elétrica para varrer de um lado a outro a margem do canal, obviamente procurando descobrir se os dois que eles haviam tentado matar poderiam ter talvez escapado.
Já faz meia hora que eles pularam o acostamento, Sam. — A voz de quem falava tinha um característico acento de Nova Jer-sey. — Ninguém jamais ficou embaixo d'água tanto tempo e sobreviveu.
Acho que você tem razão — admitiu o outro homem.
Então vamos nos mandar daqui antes que apareça algum carro e alguém nos veja. A não ser que algum pescador encontre esses dois daqui a alguns anos, ninguém vai saber o que aconteceu com eles.
Espero, em seu próprio interesse, que você esteja certo, Abe — disse o homem chamado Sam, que evidentemente era o chefe, concordando. — Esta poderia ser a terceira vez que você falharia; primeiro você não conseguiu matar Corazón...
Meti duas balas no fígado dele, de acordo com as histórias que saíram nos jornais — a voz com acento de Jersey soava indignada. — Corazón vai morrer dentro de uns dias e você estará safo; então por que diabos está se preocupando? Quando se descobrir que aquele cirurgião do Biscayne está desaparecido, tudo o que você desejava fazer estará terminado.
Se você tivesse apontado quinze centímetros mais para cima naquela manhã em Coconut Grove — interpôs o homem chamado Sam — nós não teríamos que nos preocupar com coisa alguma.
Qualquer um pode espalhar uma porção de balas com uma metralhadora — protestou a voz de Jersey — mas é preciso um atirador de escol para colocar uma bala onde é necessário.
Muito bem! Então você é um profissional — disse o homem chamado Sam. — Vamos dar o fora daqui!
Escutando de uma posição junto ao barranco, onde Ted segurava com a mão as raízes de uma casuarina que crescia ao lado do canal, eles ouviram o ruído do Jaguar dando a partida. Este foi seguido pelo guincho dos pneus quando o motorista deu marcha à ré, virou e saiu disparado pela Trilha Tamiami em direção a Miami.
Usando de toda a força que podia reunir, Ted conseguiu içar-se para cima do barranco num local onde o capim crescia em sua margem. Debruçando-se para baixo, puxou Liz para seu lado, e eles ficaram abraçados por um longo momento, saboreando a alegria de estarem vivos e juntos, a despeito do frio em seus corpos molhados que logo fez sua pele ficar toda arrepiada. Finalmente Ted ficou de pé e levantou Liz do chão.
Estamos tão longe da estrada que qualquer carro que passe por ali pode não nos ver — disse ele. — Além disso, temos que arranjar ajuda para levar-nos a Everglades City de forma que possamos pegar aquele fígado e levá-lo de volta para Miami.
Você quer dizer que ainda vai lá depois do que aconteceu? — Depois ela mesma respondeu à pergunta. — Mas naturalmente que irá, sendo você quem é!
Mesmo que aquela chamada do Dr. Ellington tenha sido falsa — e provavelmente foi — para levar-me a um lugar onde Sam Gianno pudesse livrar-se de mim deixando meu corpo no canal, não posso negar a Mike sua única possível chance de viver.
Acho melhor começarmos então a caminhar — disse Liz resignada.
Andando ao longo da trilha em direção à Paolita Station, onde Ted esperava encontrar ajuda, eles tinham marchado menos de dois quilômetros quando viram os faróis de um carro que se aproximava vindo do oeste. Corria em alta velocidade, e quando Ted viu o farol que piscava, identificando-o como um carro de polícia, puxou um lenço molhado de seu bolso traseiro e agitou-o nervosamente. O carro passou por eles, mas o súbito barulho da freada revelou que os tinha visto. Em seguida o carro de polícia fez a volta e parou ao lado deles. Deixando os faróis acesos, o motorista abriu a porta e rodeou o carro. Era um policial jovem e alto, uniformizado, e Ted não podia se lembrar de quando tinha ficado tão contente de ver um guarda.
Dr. Bronson? — perguntou o patrulheiro.
Sim; esta é a Dra. MacGowan.
Sou o sargento Muldoon, de Everglades City. Onde está o seu carro?
Dentro do canal.
Diga de novo, por favor — disse o policial lançando-lhes um olhar espantado.
O carro está mergulhado — explicou Ted — mas felizmente eu me lembrei de algo que li há muito tempo acerca de como enfrentar uma situação como esta. Nós ficamos dentro do Porsche enquanto ele se enchia d'água, e pudemos respirar o ar que ficou preso embaixo do teto. Quando a pressão do ar interno e a do lado de fora se igualaram, abri a porta e nadamos para fora do carro.
Foi um milagre — disse o policial com um tom de espanto.
O Dr. Bronson faz milagres todos os dias, sargento — disse Liz. — O que sabe acerca daquele paciente de um acidente em Ever-glades City cujo fígado ia ser doado para o Sr. Corazón?
Nunca houve nenhum caso de acidente...
Mas o Dr. Ellington... — protestou Ted.
Não há nenhum Dr. Ellington tampouco — acrescentou o patrulheiro. — Alguém forjou uma chamada telefônica de Evergla-des City para atraí-lo à trilha esta noite, doutor, onde o senhor pudesse ser morto e seu carro oculto no canal, com os corpos de vocês dentro dele.
Como é que você...
Quando o sargento Peters chamou-me para fornecer-lhe uma escolta de volta a Miami hoje à noite, com o transplante, eu disse a ele que não havia nenhum Dr. Ellington em Everglades e não tinha acontecido nenhum acidente quase fatal essa tarde. O sargento e eu concordamos que tudo era uma armadilha planejada pela organização criminal chefiada em Miami por Sam Gianno para matar o senhor, para que não pudesse salvar o Sr. Corazón, mesmo que um doador fosse encontrado a tempo. Ele tentou entrar em contato com o senhor pela Faixa do Cidadão, mas seu rádio não respondeu.
Devo tê-lo desligado depois que falamos com o sargento Peters, quando saímos de Miami — disse Liz. — Agora me lembro que tive que ligá-lo de novo para dizer-lhe que estávamos sendo ultrapassados por outro carro que tentava jogar-nos fora da estrada.
Vou chamar o sargento Peters e dizer-lhe para montar um bloqueio na estrada no limite do Condado de Dade! — disse Mul-doon. — Qual o carro que eles estão usando, doutor?
Um, Jaguar vermelho. Deve-se ver alguma tinta raspada no pára-lama direito, onde os dois carros se entrechocaram.
Se tivermos sorte, esta pintura raspada mandará seus pretensos matadores para a cadeira elétrica — disse o sargento Muldoon ao dirigir-se para a radiopatrulha e apanhar o microfone do rádio.
Muldoon chamando a central de Dade! — disse ele. — Mul-doon chamando a central de Dade!
Aqui é a central de Dade — respondeu uma voz longínqua. — Prossiga, Muldoon.
Estou a alguns quilômetros de Monroe Station com o Dr. Bronson e a Dra. MacGowan. Eles estão bem.
Então o carro deles não foi jogado no canal?
Foi, mas eles usaram a cabeça e deixaram o carro se encher d'água antes de abrir a porta e nadaram para fora. O Dr. Bronson diz que as pessoas que tentaram matá-lo estavam dirigindo um Jaguar vermelho e que parte da pintura do carro dele deve estar no Jaguar. — Muldoon virou-se para Ted, que estava com o braço passado em torno da cintura de Liz, a qual agora tremia de frio devido ao ar fresco da noite em suas roupas molhadas. — De que cor é seu carro, doutor?
É um Porsche azul-celeste. Nós abalroamos o pára-lama do Jaguar duas vezes antes que ele nos ultrapassasse. Depois um homem com uma arma automática colocou o corpo fora da janela do lado direito e atingiu meu pneu dianteiro direito, fazendo meu carro ir para dentro do canal.
Quando você os pegar, procure por mancha de tinta azul-celeste no pára-lama dianteiro direito do Jaguar — disse Muldoon ao policial de Miami.
Bom trabalho, Jimmy — respondeu ele. — Vamos montar um bloqueio na Trilha Tamiami nos limites do Condado de Dade. Traga o Dr. Bronson e a Dra. MacGowan diretamente para o escritório do xerife do Condado de Dade. Eu gostaria de registrar seus depoimentos de forma a dispor deles caso tivermos a sorte de pegar aqueles bandidos no bloqueio da estrada. Algum dos doutores viu os dois homens no carro suficientemente bem para identificá-los?
Eu... — Liz começou a falar, mas Ted fez um sinal negativo com a cabeça e ela não continuou.
Recolocando o microfone no gancho, Muldoon abriu a porta traseira do carro e tirou uma grande capa de chuva.
Isto vai parecer mais uma barraca, Dra. MacGowan — disse ele, segurando-a para que ela pudesse enfiar os braços nas mangas — mas vai manter a senhora aquecida, evitando um resfriado. Se o senhor puder mostrar-me onde saiu da estrada e caiu no canal, doutor, eu preciso tirar algumas fotos comflash antes que a chuva apague as marcas no asfalto.
O lugar foi fácil de identificar quando eles lá chegaram, a cerca de um quilômetro e meio a leste de onde Ted e Liz tinham encontrado o patrulheiro de Everglades City.
O senhor deve ter feito um enorme esforço para segurar a direção e manobrar o carro entre aquelas duas casuarinas ali — disse o patrulheiro Muldoon enquanto fotografava o local. — Se o senhor tivesse batido numa delas, com aquela velocidade, em vez de cair dentro d'água ambos teriam sido esmagados dentro do Porsche. — Voltando para seu carro, o policial tirou um objeto redondo de dentro dele e trouxe-o para onde eles estavam de pé na estrada. — Vou colocar um fogo de sinalização aqui para marcar a área onde vocês saíram da estrada de forma a podermos encontrá-la de manhã. Trarei um carro-socorro e puxaremos seu carro para fora.
Você pensa que terá qualquer chance de encontrar a bala que furou o pneu dianteiro direito? — perguntou Ted enquanto o patrulheiro acendia a mecha da sinaleira.
Certamente vamos procurá-la, doutor. Se o sargento Peters pegar aqueles dois no Jaguar, o laboratório de balística poderá ser capaz de comparar a bala com a arma que a atirou, e aí teremos os dois realmente fritos.
No escritório do xerife do Condado de Dade, em Miami, Ted e Liz tiveram que esperar um pouco enquanto um escrivão da corte de justiça era convocado para transcrever suas histórias do que havia acontecido mais cedo naquela noite. Enquanto eles tomavam café no escritório vazio, Liz perguntou:
Ainda devo manter-me calada acerca de ter reconhecido Sam Gianno dirigindo o Jaguar?
Preferia que você ficasse calada.
Incomoda-se de me dizer por quê?
O sargento Peters acabou de me dizer que apenas o assassino contratado com sotaque de Jersey foi apanhado no Jaguar pela polícia no bloqueio. Isto quer dizer que Sam Gianno conseguiu cair fora em algum lugar da trilha antes do bloqueio, e ele certamente deve ter preparado um álibi antes de seguir-nos para fora de Miami, de forma que, se for preso esta noite, seus advogados o libertarão sob fiança antes que amanheça. Você é a única pessoa em que um júri acreditaria, se seu testemunho o colocasse atrás da direção do Jaguar esta noite. Com os recursos criminais de que Gianno e seus advogados podem dispor, sua vida não valeria o proverbial tostão no momento em que ele estivesse solto!
Não havia pensado nisso.
Se Gianno foi capaz de ir aos extremos que foi esta noite apenas porque eu posso ser capaz de salvar a vida de Mike Corazón — se eu for capaz de encontrar um doador vivo — ele certamente não hesitaria em mandar matá-la. E não desejo ir a seu funeral antes de nosso casamento...
Ainda não me sinto de modo algum contente por deixá-lo impune.
Nem eu, mas pense que as circunstâncias justificam isso. — De repente ele teve uma idéia brilhante. — Vou dizer-lhe uma coisa: a polícia me disse que o bandido que estava usando o rifle automático foi entregue a Nick Petterson e ao FBI. Depois de contarmos nossa história às autoridades do Condado de Dade, telefonarei para Nick e falarei com ele sobre o que você deve fazer.
Eu me sentirei muito melhor se ele concordar com você — disse ela.
O escrivão da corte apareceu logo e eles passaram a hora seguinte contando sua aventura daquela noite, sem qualquer menção a Sam Gianno. Quando o escrivão estava saindo, Nick Patterson entrou no escritório onde se realizava o depoimento.
Acho que vocês compreendem a sorte que tiveram esta noite — disse ele num tom de leve reprovação. — Eu puxei as orelhas do agente que estava guardando o senhor, Dr. Bronson, embora ele me tenha informado que o senhor lhe disse que ele poderia aguardar no saguão enquanto o senhor trabalhava nos arquivos médicos do hospital. Como o senhor conseguiu sair sem que ele o visse?
Esqueci-me inteiramente dele — confessou Ted. — Peguei uma geladeira portátil do banco de sangue no subsolo do hospital e saí pela plataforma de carregamento, onde os agentes funerários apanham os cadáveres. Desculpe-me.
Por favor, comunique-nos antes que o senhor caia numa outra cilada... Foi uma pena que nenhum dos dois tenha dado uma boa olhada para o homem que estava guiando o Jaguar.
Eu pensava que eles só tinham apanhado um — disse Liz com um ar espantado.
É verdade, mas um Jaguar não é a coisa mais fácil de guiar quando uma pessoa não está acostumada a manejar um possante carro estrangeiro com mudança convencional de alavanca. O bandido que a polícia pegou estava dirigindo muito mal quando a policia o pegou no bloqueio da estrada. Ele tentou fazer uma volta, mas em vez disso engrenou marcha à ré.
O que significa isso? — perguntou Ted.
Em seu depoimento agora mesmo, o senhor disse que ia a cento e dez quilômetros por hora quando o Jaguar o ultrapassou. No depoimento da Dra. MacGowan, ela descreveu o homem com o rifle automático muito bem e disse que ele estava pendurado para fora da janela da frente no lado direito quando atingiu o pneu de seu Porsche. Isto quer dizer que outra pessoa estava dirigindo, mas conseguiu deixar o carro na trilha a oeste do bloqueio da estrada. Quer-me dizer por que a senhora não descreveu o segundo homem, Dra. MacGowan?
Liz olhou interrogativamente para Ted, que respondeu por ela:
Liz identificou positivamente Sam Gianno, Nick, mas eu disse a ela que não o mencionasse porque, se o fizesse, ela passaria a ser seu alvo número um.
Julguei que poderia ter sido isso — comentou o agente do FBI. — A senhora está certa de sua identificação, Dra. MacGowan?
Sem a menor sombra de dúvida. Nossos faróis iluminaram o interior do carro pela janela traseira e eu o vi claramente quando virou a cabeça.
A senhora o conhece assim tão bem?
Logo depois que vim para Miami, fiz o parto de seu filho mais moço — explicou Liz. — A família até convidou-me para almoçar em sua mansão de Coral Gables num domingo depois da missa.
Isto deverá convencer qualquer júri quando chegar a ocasião da senhora depor — disse Nick Patterson.
Mas não agora — insistiu Ted.
Concordo com o senhor — retrucou Patterson. — Tendo que guardar vocês dois, exigiria de qualquer maneira maior número de agentes do que eu posso dispor; é provável que o assassino profissional apanhado esta noite tenha sido quem usou a arma em ambas as tentativas de assassinato; quando ele descobrir as provas que temos contra ele, provavelmente desejará fazer um acordo conosco.
O senhor iria deixá-lo escapar com essa facilidade? — perguntou Liz. — Com duas acusações de assassinato contra ele — de fato três — se contar-nos como dois esta noite?
Assassinos profissionais são hoje em dia fáceis de encontrar para quaisquer pessoas que estejam disposta a pagar de vinte e cinco a cem mil dólares para um deles crivar de balas os cidadãos que estão procurando condená-los. São os caras no topo que empregam os pistoleiros que estamos caçando, e desta vez parece que poderemos colocar Sam Gianno onde a Família em Jersey que ele representa aqui não terá possibilidade de livrá-lo.
Assim espero — disse Liz. — Durante alguns momentos, quando a água subia pelo meu corpo em direção à pequena quantidade de ar presa junto ao teto do carro, foi muito duro sentir-me frente a frente com meu Criador!
A senhora teve sorte que o Dr. Bronson lembrou-se do que fazer — disse-lhe Nick Patterson. — Em seu lugar, acho que eu tentaria tê-lo sempre por perto de agora em diante.
Pode apostar nisso, Sr. Patterson — disse Liz com firmeza.
Agora mesmo um bando de repórteres e pessoal da tevê está esperando do lado de fora para crivá-los de perguntas. Mas considerando o número de vezes que estiveram na primeira página dos jornais, e destacados nas notícias das seis na tevê recentemente, estou certo de que nenhum dos dois ficará encabulado com as câmaras.
Na entrevista à imprensa, Ted contou sua história, começando com o telefonemado falso Dr. Ellington em Everglades City e terminando quando eles se esconderam do carro que os procurava depois de escaparem do Porsche submerso nas escuras águas do canal Tamiami.
O senhor poderia identificar o homem que atirou no pneu e precipitou o carro no canal, Dr. Bronson? — perguntou um dos repórteres.
Eu estava muito ocupado cuidando da direção — respondeu Ted.
E a senhora, Dra. MacDowan?
Vi o homem com o rifle claramente sob as luzes dos faróis de nosso carro — disse Liz. — O Sr. Patterson me diz que minha descrição confere exatamente com a que foi fornecida ao FBI pelo escritório do xerife.
Alguém tinha que estar dirigindo o Jaguar — insistiu o repórter. — Algum dos Senhores pôde vê-lo claramente?
_ A cento e dez por hora um pneu estourado é algo que você não deseja ter que enfrentar muitas vezes — respondeu Ted. — Eu estava por demais ocupado com a direção do carro, como disse.
O motorista só tinha a parte de trás da cabeça visível para nós — acrescentou Liz. — De qualquer forma, a polícia diz-nos que haverá ainda melhores provas no pneu dianteiro do Porsche, quando ele for retirado do canal e recuperarem a bala que o estourou.
Como a senhora se sentiu ali, esperando que o carro se enchesse d'água para poderem escapar, Dra. MacGowan? — perguntou uma jovem repórter da televisão.
Foi um inferno! — respondeu Liz sem hesitação. — Mesmo alguns poucos minutos nesse tipo de situação podem parecer uma eternidade.
A aventura de Liz e Ted terminara tarde demais para pegar os jornais da manhã, mas as breves notícias locais durante as transmissões matutinas da rede de rádio mostraram gravações da conferência de imprensa no escritório do xerife. Quando eles chegaram a seus consultórios pela manhã, o hospital inteiro estava fervendo de notícias. Ted ficou ocupado toda a manhã falando com dois pacientes cujos transplantes de rim tinham fracassado e que aproveitaram a oferta do hospital de avaliar sua condição e a possibilidade de uma segunda operação. Era quase meio-dia quando sua secretária disse que Estrellita Mendoza estava na Sala de Espera e queria falar com ele.
Mande-a entrar, por favor.
Desculpe-me por estar incomodando, Dr. Ted, mas queria falar-lhe por um momento antes que o senhor visse o resto da família — disse Estrellita. — Até eu mesma posso ver que não houve melhora nas condições de Michael.
Ainda estamos esperando que apareça um doador numa dessas Salas de Emergências dos hospitais da cidade ou em algum lugar a uma distância de vôo conveniente.
Eu queria falar com você principalmente acerca de Arturo. Ele está sendo muito afetado pela doença de Michael.
Notei isso ontem.
Arturo e eu temos mais intimidade do que os outros, talvez porque sejamos quase da mesma idade. Ele adora Michael e receio
que esteja tendo dificuldade para compreender que seu irmão está morrendo.
Quando uma pessoa é tão sensível como Arturo, penso que deverá ser duro compreender por que nada pode ser feito para ajudar — Ted comentou e olhou para Estrellita inquisitivamente. — Entretanto algo mais está perturbando você, o que é?
Tenho receio de que Arturo possa ficar violento — admitiu ela. — Faz muito tempo que ele não mostra sinais disso, e talvez eu esteja apreensiva demais porque já vi alguns pacientes da síndrome de Down arranjarem dificuldades com a lei durante crises de violência. Arturo não fala muito com os outros, mas esta manhã ele me disse que gostaria de pegar o rifle que usa para matar cobras e ir atrás de Sam Gianno.
Nick Patterson falou com você esta manhã?
Ele me disse por que a Dra. MacGowan não revelou o fato que ela pode fazer uma identificação positiva de Sam Gianno como o chofer do outro carro. Eu concordo, mas você não precisa ser mais inteligente do que Arturo para concluir que Gianno estava por trás da tentativa de assassinato de vocês à noite passada.
Penso que não.
Ou que ele tentará pegar você de novo. Nick Patterson também me disse que está dobrando sua proteção.
Do jeito que as coisas vão, tenho receio de que eu não seja uma ameaça muito grande para ninguém...
Sua habilidade como cirurgião ainda representa a única chance possível de vida para Michael — ponderou ela. — Quando penso quão perto você e a Dra. MacGowan estiveram de morrer afogados no canal ontem à noite, me arrepio toda.
Eu também tive alguns pesadelos — admitiu Ted. — A coisa importante, no entanto, é que Liz reconheceu de fato Gianno no Jaguar e pode testemunhar que ele estava dirigindo o carro — se vocês advogados conseguirem levá-lo à barra do tribunal.
Nem nosso escritório ao nível estadual nem o Grupo de Trabalho federal deseja ver Gianno preso de novo fazendo seus advogados conhecerem todos os detalhes do caso que nós montamos contra ele — especialmente depois da noite passada. Voltando a Arturo: ele o considera muito e penso que você talvez pudesse conversar com ele a qualquer hora hoje e tentar acalmá-lo um pouco.
Naturalmente. Subirei logo.
Por falar nisso — disse ela já da porta — como a Dra. Mac-Growan conhece tão bem Sam Gianno para fazer uma identificação tão positiva?
Por uma , jriosa coincidência, ela fez o parto de seu último filho. E diz que ele e sua família são encantadores.
Os sicilianos muitas vezes são, e alguns espanhóis — disse Estrellita rindo. — Eu quase me casei com um antes de voltar para casa e apaixonar-me por Michael. Ele é Juan Perez, coordenador dos programas de notícias de uma estação de tevê daqui, que irradia tanto em espanhol quanto em inglês, especialmente para refugiados cubanos. Depois que Juan e eu terminamos tudo, ele se casou com minha melhor amiga na comunidade de emigrados cubanos, e ainda somos amigos íntimos.
Ted teve uma súbita inspiração e comentou:
Sem querer que isto se reflita na população de emigrados cubanos, tenho a impressão de que há mais violência em Little Havana do que no resto de Miami.
Você está certo, especialmente depois que Castro deixou os Marielos saírem de Cuba.
Você supõe que seu amigo me deixaria fazer um apelo num de seus programas de notícias? Poderia ajudar-nos a localizar um doador.
Posso descobri-lo imediatamente. — Pegando o telefone da mesa de Ted, Estrellita discou 9 e depois um número local. Quando atenderam o telefone, ela disse: — Aqui é Estrellita Mendoza; posso falar com Juan Perez?
Momentos depois ocorreu uma rápida troca de palavras em espanhol da qual Ted nada compreendeu. Quando acabou, Estrellita descansou o fone e virou-se para Ted:
Juan terá muito prazer em pôr sua mensagem no ar, em espanhol.
Mas eu não falo a língua...
Tudo o que tem a fazer é ditar o que você diria em inglês para ele pelo telefone. Então, no momento oportuno, durante as notícias das seis e também das onze, Juan pegará um telefone diante das câmaras de tevê no estúdio e terá uma conversa com você... fingida, naturalmente.
Ótimo. Quando faremos isso?
Imediatamente. — E ela passou-lhe o telefone. — Seja objetivo. Juan vai introduzir sua mensagem nas notícias, mas você tem que ser breve a fim de não interferir com os comerciais que já estão programados.
Buenos dias, Senor Perez — falou Ted ao telefone.
Seu espanhol é horroroso, doutor — respondeu uma voz masculina em perfeito inglês. — Eu me formei em Harvard quatro anos depois do senhor e Mike Corazón. Diga-me apenas qual a mensagem que o senhor deseja que seja transmitida e quando chegar a hora o senhor a ouvirá em espanhol coloquial cubano. Quando eu disser "agora", faça seu pedido em tão poucas palavras quanto possível.
Certo — concordou Ted.
"Agora" — veio a voz pelo telefone, e Ted começou a falar, imaginando que estavam numa estação de tevê olhando diretamente para a câmara e fazendo o apelo que, com sorte, poderia salvar a vida de seu amigo.
Sou o Dr. Theodore Bronson do Serviço de Transplante de Órgãos do Hospital Geral Biscayne de Miami — começou ele. — A não ser que nos próximos dias eu tenha a possibilidade de fazer um transplante de fígado de alguma vítima de acidente que não tenha chance de viver, Michael Corazón — que chefia o grupo de trabalho que tenta controlar o tráfico de drogas nos Estados Unidos que entra por Miami — morrerá. Imploro a qualquer um de vocês que tenha um parente, homem ou mulher, ferido em acidente, e cujo prognóstico seja considerado sem esperanças pelos médicos encarregados, que nos dê permissão para transplantar seu fígado para o corpo de Michael Corazón.
Isto foi resumido e objetivo, Dr. Bronson — a voz de Juan Perez apareceu de novo no telefone. — Dê-me um número de telefone onde o senhor possa ser encontrado a qualquer hora; ele aparecerá na tela em seguida a seu apelo.
Ted deu-lhe o telefone da mesa do hospital.
Veja o programa de notícias das seis horas e a repetição das onze horas — disse-lhe Juan Perez. — Você poderá não entender seu fervoroso apelo pela vida de seu amigo Mike em espanhol, mas pode acreditar que estarei fazendo o melhor que posso.
Liz MacGowan visitou a suíte VIP da princesa Zorah logo depois das nove, quando fazia suas visitas da manhã. Jerry Rubin estava verificando os aparelhos de sustentação da vida, os quais, ela observou, haviam-se tornado muito mais complicados desde que ela os vira um pouco depois de meia-noite.
— Como é que você consegue ter essa aparência?
Que aparência?
Conseguir parecer como se estivesse a caminho de um almoço de sociedade. Se eu tivesse passado pelo que você passou à noite — de acordo com as reportagens dos jornais — eu ainda estaria tremendo.
— Eu também, se tivesse estado sozinha — respondeu-lhe Liz.
Sou totalmente a favor da emancipação das mulheres, mas devo admitir que ter um homem por perto numa ocasião como aquela é definitivamente confortador.
Não apenas qualquer homem — observou Jerry. — Mais do que qualquer espécie de médico que eu conheço, um cirurgião de transplantes necessita dos proverbiais nervos de aço. E Ted Bronson os tem.
Como vão as coisas por aqui?
Não poderiam ir melhor. Não tivemos necessidade de estimular o coração dela nem uma vez com o cateter-eletrodo que Peter Craig colocou através da veia subclávia ontem à noite como precaução. As análises de sangue também parecem boas.
Quando você começou a alimentação endovenosa?
Esta manhã. O pequeninho estava dando chutes com tanta força que achei que ele talvez estivesse com fome. A alimentação EV está funcionando muito bem.
Fico pensando que você e Peter Craig devem sentir-se como dois deuses menores em casos como neste, Jerry — disse Liz.
Afinal de contas vocês realmente estão mantendo a vida de duas pessoas.
Da segunda parte estou certo, quanto à primeira, não sei... Em alguns casos — não neste, naturalmente — às vezes sinto que estamos interferindo com os propósitos de Deus, preservando a vida quando um cérebro que não funciona poderia talvez não sentir nenhum prazer em estar ligado a um corpo que nem sabe que está vivo — e que nunca o saberá...
No consultório dos médicos na Sala das Enfermeiras no andar VIP, Ted Bronson terminou o registro clínico de Michael Corazón e colocou-o no local onde eles ficavam à disposição dos médicos encarregados dos pacientes para examiná-los e tomar notas.
Estamos perdendo a batalha, Cheryl — disse à enfermeira especial que ele havia solicitado fosse destacada para o caso de Michael, como muitas vezes fazia com seus casos mais sérios. — E o pior é que nada posso fazer para controlá-la. Você sabe onde anda a família?
Eles desceram para jantar, exceto Arturo. Ele insistiu em ficar por aqui e eles não tentaram levá-lo. Perturbado como está, ele não pode evitar ser bastante teimoso para fazer exatamente o que deseja.
A Srta. Mendoza receia que Arturo possa ter um daqueles acessos inexplicáveis de violência que parecem atacar as pessoas com síndrome de Down quando têm que enfrentar coisas que não podem controlar.
Se isto ocorrer, não estou certa que será o que o senhor chama de um surto de violência inexplicável — disse a enfermeira. — Eu estava conversando com Arturo ainda há pouco e tive a clara impressão de que ele possivelmente reagiria de uma forma muito mais lógica do que o senhor esperaria.
O que quer dizer com isso?
Não sei exatamente — admitiu a enfermeira. — Penso que estou interessada porque estou fazendo um curso de Psicologia das Personalidades Criminais, na Universidade Nova, pelas manhãs, antes de entrar em serviço. De alguma forma, tenho a impressão que estamos representando aqui as cenas de uma típica tragédia grega, na qual ninguém pode fazer muito para adivinhar ou prevenir o inevitável fim.
A Srta. Mendoza receia que Arturo possa tomar alguma espécie de atitude drástica contra os homens responsáveis pelo estado de Mike. Ela pensa que talvez eu possa fazê-lo desistir disso.
Ele estava no quarto ao lado há alguns minutos, ouvindo música cubana numa estação de língua estrangeira que é muito popular em Little Havana.
Conheço Arturo talvez desde que era um menino e nunca vi ninguém que ame seus semelhantes tanto quanto ele — disse Ted. — Mas isto é o que acontece muitas vezes com gente com a síndrome de Down, e o fato de seu nível de inteligência ser abaixo do normal faz com que muitas pessoas afastem-se deles. Vou falar com ele antes de sair deste andar e tentar descobrir se está tão perto de um ponto de ruptura como você e Estrellita Mendoza parecem pensar que ele está. Eu detestaria vê-lo envolvido em qualquer espécie de violência e, sabe lá, preso. Quando isto acontece, uma porção de gente conclui precipitadamente que a pessoa é de fato perigosa e insiste em que seja recolhida a um hospício.
Quando Ted entrou no quarto ao lado, viu Arturo de pé à janela olhando para a rua lá embaixo. O rádio estava tocando alto, e quando o discotecário fez a propaganda, foi em espanhol.
Michael está morrendo, Dr. Ted — disse Arturo voltando-se da janela.
Seu irmão está muito doente, mas ainda não desisti...
Ouvi Juan Perez no rádio agora mesmo. — A voz de Arturo era alta e mais hesitante, prova de que segundo Ted concluiu, ele estava sob considerável tensão. — Ele disse que você lhe confiou que Michael morrerá a não ser que alguém lhe doe um novo fígado.
Isto é verdade — admitiu Ted — mas nós temos esperança que os apelos de Juan Perez no rádio e na tevê ajudem-nos a encontrar um doador com o resultado de um dos tiroteios que ocorrem tão comumente em Little Havana. Ou de um acidente de automóvel.
Por que não posso ser eu? — deixou escapar Arturo.
Isto é impossível; sem o fígado você morreria.
Mas Michael viveria?
Provavelmente, mas não podemos nem pensar nisso. Matar uma pessoa para que outra possa ficar com seu fígado seria assassinato.
Suponha que seja alguém como Sam Gianno!
Gianno tem que ser julgado e condenado antes que o Estado possa executá-lo na cadeira elétrica — explicou Ted. — Isto levaria muito tempo.
Então você não pode fazer nada?
Não até que alguém nos forneça um fígado que eu possa transplantar para o corpo de Michael. Mas anime-se: com tanta violência quanto nós temos aqui em Miami, isto pode acontecer a qualquer momento, e espero que aconteça.
Arturo não respondeu, mas voltou para a janela. Seus ombros estavam caídos numa atitude de profunda depressão. E quando Ted lhe deu até logo, ele nem respondeu.
Na esperança de encontrar a família Corazón, Ted deu uma passada pela cafeteria antes de deixar o hospital e ir para seu apartamento do outro lado da rua. Ele não os viu, no entanto, e desde que nada teria a ganhar voltando para o andar VIP na expectativa de encontrá-los, saiu do hospital e cruzou para o Biscayne Terrace, entrando pela garagem. A Mercedes de Liz MacGowan estava na vaga, por isso ele parou em seu andar e tocou a campainha. Ela atendeu imediatamente.
Telefonei para o quarto de Mike Corazón e perguntei por você há uns minutos, mas Cheryl me disse que você acabara de sair — disse ela. — Ia convidá-lo para tomar um drinque e talvez a gente mande vir uma pizza mais tarde.
Alegro-me então de ter parado aqui — ele falou, passando o braço em torno da cintura dela e apertando-a para um longo beijo.
Este é o melhor tratamento para depressão que conheço — disse ele quando ela afastou-o um pouco com falta de ar. — Também vou tomar um gole daquele ótimo bourbon que você guarda para visitantes sedentos.
Vá para a sala de estar e veja as notícias das seis enquanto preparo os drinques — ordenou-lhe ela. — Ouvi Juan Perez no rádio há pouquinho; ele ainda está transmitindo seu apelo por um doador de fígado. Se você sintonizar naquela estação de tevê que fala espanhol poderá ouvir seu apelo... em espanhol.
Arturo me disse que ele o ouviu no rádio esta tarde. — Ted estava de pé na porta que dava para a pequena mas eficiente cozinha do apartamento dela observando Liz enquanto ela misturava com perícia os drinques. Apenas o fato de estar ali aliviava algo da profundeza de sua depressão depois da visita a Michael Corazón e de sua conversa com Arturo.
Tenho esperança de fazer apenas isso todas as tardes pelo resto de minha vida — disse quando ela lhe passou o copo.
Tome cuidado, sou uma feminista bem ativa — disse ela rindo-se. — Servir de escrava para um homem não é permitido em nossa filosofia.
Vou preparar os drinques antes do jantar e providenciar para que as crianças façam seus deveres de casa — prometeu ele. — Desde que você seja a mãe delas...
Se eu esquecer de novo de tomar a pílula, como aconteceu ontem à noite, depois que cheguei em casa do escritório do xerife, você provavelmente terá que executar essas tarefas muito antes do que está esperando — disse ela.
Isto me cabe à perfeição! Sou até capaz de colocar as fraldas no bebê como parte do acordo.
— Agora aí está uma proposta que me tenta — respondeu Liz.
Já encontrou mais pacientes para transplantes de rim em perspectiva hoje?
Tenho vários na fila, mas hesito em prender-me por três ou quatro horas a uma operação podendo um doador aparecer para Mike e ser preciso começar o transplante com urgência.
O Dr. Taylor sempre pode assumir a operação de rins se você ficar ocupado.
Isto poderia não funcionar; alguns dos pacientes poderão ter sido operados por ele da primeira vez. Embora o fracasso não tenha sido sua culpa, o paciente pode não sentir-se muito feliz com isso. Pensando nisso, o que você diria se eu escolhesse Cheryl Rubin como coordenadora de transplantes no Biscayne?
Não poderia haver melhor escolha. Ela é competente demais para limitar seu trabalho à simples enfermagem.
A indicação de Jerry Rubin como professor-assistente de Neonatologia, quando ele terminar sua residência em julho próximo, será submetida à aprovação na próxima reunião dos curadores do hospital. Estou certo de que será aprovada, e se eu der o emprego a Cheryl, com um bom salário, eles são capazes de decidir ficar em Miami.
Espero que você possa fazê-lo. Jerry é por demais valioso para a UTI de recém-nascidos para que nós deixemos um grupo médico esperto qualquer atraí-lo com um salário de sessenta e cinco mil dólares por ano, ou mais.
Infelizmente a universidade só poderá pagar-lhe cerca de trinta e cinco, e ele poderia fazer o dobro disso, e talvez mais, em uma dúzia de grupos médicos pelo país — disse Ted. — Da mesma forma que você numa clínica particular, poderia fazer o dobro do que está ganhando.
O que não desejo — assegurou-lhe Liz. — Além disso, se eu não tivesse vindo para o Biscayne e para a Escola de Medicina da Universidade como professora-assistente de Obstetrícia há dois anos, nunca teria conhecido você.
E eu nunca teria sido capaz de limitar meu trabalho a transplantes se não tivesse tomado o mesmo caminho que você, ensinando em vez de montar clínica particular — concordou ele. — Um cirurgião que limita seu trabalho a transplante de órgãos não vale muito para um grupo nos dias de hoje.
Um que se sente à vontade em cirurgia torácica ou do abdome, ou em qualquer espécie de operação envolvendo microcirur-gia para ligar artérias, vasos sangüíneos e nervos, pode pedir o que quiser. Você algum dia se arrependeu de ter-se limitado estritamente ao campo de transplantes?
— Apenas em dias como hoje, em que tenho que ficar assistindo meu melhor amigo morrer. Pelo fim da semana estou certo de que terei uma dúzia de transplantes de rins programados para o próximo mês usando ciclosporina. No entanto, não posso encontrar um único fígado para salvar a vida de meu melhor amigo. Se você pudesse ter visto o olhar de Arturo ainda há pouco, quando tive que admitir que Mike vai provavelmente morrer, você se sentiria tão desanimado como eu.
Ted Bronson visitou as enfermarias cedo na manhã de quinta-feira e estava em seu consultório conversando com um possível paciente de transplante de rim quando a enfermeira do turno da manhã chamou-o da suíte de Michael Corazón.
Os irmãos Corazón estão aqui, Dr. Bronson — disse ela.
Desejam vê-lo.
Estarei aí em alguns minutos — prometeu ele. — Arturo está com eles?
Não, doutor. Disseram que ele e a Sra. Corazón ainda estavam em casa, mas poderão vir depois do almoço.
Tendo terminado o exame físico do paciente do rim, Ted mandou-o ao laboratório para exames de sangue como começo do intenso estudo necessário antes de decidir se as probabilidades de sucesso justificavam uma nova cirurgia. Tomando o elevador para o décimo andar, ele entrou no quarto de Michael e passou os olhos brevemente pelas observações da enfermeira antes de passar para o quarto ao lado onde Manuel e Pedro Corazón estavam esperando.
Estamos vendo que Michael não está nada melhor, Dr. Ted
disse o irmão mais velho.
Receio que ele esteja pior.
Quanto tempo mais ele pode durar?
Uma semana, talvez dez dias! Vocês viram o programa de tevê ontem à noite?
Vimos. Depois que jantamos aqui embaixo, fomos para casa vê-lo e depois fomos de carro até a catedral. Mamãe queria falar com o padre Mulcahy acerca dos últimos sacramentos para Michael.
Ainda não chegamos a este ponto, ainda podemos achar um doador. Estou contando com o apelo de Juan Perez na tevê para alertar a comunidade cubana de nossa necessidade.
Nós todos sabemos que você fez tudo que podia para salvar a vida de Mike — disse Manuel. — O padre Mulcahy diz que o que acontecer agora será a vontade de Deus, mas é duro acreditar que um Deus justo deixe nosso irmão morrer.
Como Arturo recebeu isso?
Ele não foi conosco. Quando voltamos, ele perguntou-nos o que dissera o padre Mulcahy, mas receio que isto apenas tenha-o perturbado mais. Durante a noite ele teve pesadelos e manteve todos nós acordados.
Uma ou duas vezes mamãe também ouviu-o chorando em seu quarto — acrescentou o irmão mais moço.
Não fico surpreso — disse Ted. — A noite passada Arturo perguntou-me à queima-roupa se Michael estava morrendo e tive que lhe dizer a verdade. Ele falou em tentar matar Sam Gianno de forma que pudéssemos tirar-lhe o fígado para salvar Mike, mas eu lhe expliquei por que isto não poderia funcionar.
Arturo contou a mamãe o que você lhe falou — assegurou-lhe Manuel. — Esperamos que isto o impeça de fazer qualquer coisa perigosa. Mamãe ficou em casa esta manhã com ele na esperança de acalmá-lo um pouco.
Gostaria que houvesse qualquer coisa que eu pudesse fazer por Arturo — disse Ted — mas receio que não haja.
Como o padre disse ontem à noite, o que acontecer agora é a vontade de Deus. Tudo o que podemos fazer é procurar entendê-lo.
Liz tinha duas operações programadas para terça-feira de manhã. Quando terminou, era quase hora do almoço, de forma que tomou um banho de chuveiro e trocou de roupa. Sabendo como Ted estaria se sentindo à medida que as horas se passavam e a perspectiva de salvar Michael Corazón tornava-se mais e mais sombria, ela não sentia vontade de comer. Em vez disso limitou-se a uma xícara de café no posto das enfermeiras no andar VIP, onde uma máquina de fazer café funcionava constantemente. O único consolo que tinha era que a princesa Zorah e o feto vinham exibindo um padrão de literatura médica em eficiência de sustentação avançada da vida, com toda as perspectivas que as funções do corpo da paciente continuariam tranqüilamente pelas próximas duas semanas.
Quando Liz estava terminando o café, a porta da saleta abriu-se e a Srta. Boardman, a enfermeira de serviço com a princesa Zo-rah de sete às três, enfiou sua cabeça na porta e anunciou:
Há uma chamada interurbana para a senhora no telefone do quarto ao lado da suíte, Dra. MacGowan — disse ela. — Creio que é de Nova York.
O xeque Almani? — Liz enunciou o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça.
Acho que não — respondeu a enfermeira — mas não estou certa.
Saindo da saleta, Liz movimentou-se rapidamente pelo corredor até o segundo quarto da suíte da princesa, e pegou o telefone.
Aqui é a Dra. MacGowan — disse.
Aqui é Gordon Tallant, do escritório da United Press Internacional em Nova York, doutora — disse uma voz masculina apressada. — Segundo creio, a senhora está cuidando da princesa Zorah de Telfa e de seu bebê aí nesse hospital.
Seu bebêque ainda não nasceu, para ser precisa, Sr. Tallant.
Naturalmente, doutora. Nós divulgamos uma história acerca de como a senhora está cuidando da gravidez da princesa Zorah há alguns dias. A senhora já fez o parto do bebê?
Não, Sr. Tallant, mas ele vai indo muito bem com sua mãe mantida em sustentação avançada da vida. Posso saber por que telefonou?
Nosso correspondente na Arábia Saudita foi para Telfa logo após o recente atentado contra a vida do emir Hassim Elzama. Ele acaba de enviar uma história sobre a situação do emirado, que ainda não está muito clara. A senhora sabia que o emir Hassim está morrendo de leucemia?
Sim, o xeque Almani me disse antes de partir para Nova York...
E Telfa. Nosso correspondente viu-o ali durante o fim de semana. A senhora tem qualquer idéia por que o xeque Almani deixou Miami tão subitamente, quando nós sabemos que ele foi o principal responsável pela transferência da princesa para aí?
A princesa foi trazida para cá para que nós pudéssemos determinar o sexo da criança que ela estava gerando — explicou Liz. — O xeque Almani partiu para Nova York — e para Telfa, segundo me diz — logo depois que eu lhe disse que nós havíamos determinado sem sombra de dúvida que o feto é do sexo masculino.
E o sucessor do emir Hassim — disse Tallant. — Nosso correspondente soube disso em Telfa.
Supunha que o xeque Almani tivesse ido a Telfa para dar as boas-vindas ao emir — disse Liz. — Aparentemente tinha-lhe sido prometido que ele seria apontado como regente quando o emir Hassim morresse.
A senhora disse "prometido", doutora? — perguntou Tallant.
Foi o que ele me disse.
Nosso correspondente em Telfa foi informado há poucas horas que o príncipe Khalil Elzama foi nomeado regente da criança. Khalil é o irmão mais moço do emir e vive nos Estados Unidos há quatro anos como estudante no MIT. Tentamos falar com ele em Cambridge mas não obtivemos resposta, de forma que supus que ele estivesse a caminho de Miami para assumir suas obrigações como regente do bebê.
Mas a criança ainda não é nem uma pessoa, tanto de acordo com as leis dos Estados Unidos quanto com as de Telfa.
Entendemos isto, doutora. Se o príncipe Khalil aparecer em Miami, lhe agradeceria se pedisse para ele telefonar aqui para nós na UPI em Nova York.
Depois que a ligação de Nova York terminou, Liz ficou olhando pensativa o telefone silencioso por algum tempo. Em seguida, saindo do quarto, tomou o elevador para o sétimo andar, onde ficava seu consultório.
Por favor, ligue-me com o Sr. Robert Nathan do Herald de Miami, Lilian — disse Liz a sua secretária quando passou pela ante-sala do consultório, que ainda não estava cheio com os pacientes da tarde.
O telefone do consultório de Liz tocou alguns minutos mais tarde e uma voz feminina disse:
Aqui é a secretária do Sr. Nathan, Dra. MacGowan. Ele ainda não chegou; quer que ele chame a senhora? Espere um momento, por favor — acrescentou ela. — Parece que o ouço no saguão.
Robert Nathan entrou na linha um momento mais tarde.
A senhora deve ser paranormal, Dra. MacGowan. Eu ia chamá-la dentro de alguns minutos.
Acabei de falar com um Sr. Tallant do escritório da UPI em Nova York...
Ainda estamos na mesma onda psíquica, doutora. Tenho um despacho recente da UPI em minha mesa que veio pelo serviço telegráfico há alguns minutos. Tallant lhe disse que o príncipe Khalil Elzama, irmão mais moço do emir Hassim, foi nomeado regente do bebê que a senhora está mantendo em vida sustentada?
Sim! Com certeza parece que estava correto em seus palpites sobre a "situação" em Telfa na outra tarde, no escritório do Sr. Brown. Talvez o senhor seja o paranormal...
Não creio ter tais talentos, doutora — riu-se Robert Nathan. — Dez anos com a Associated Press no Oriente Médio deu-me um conhecimento bastante amplo da mentalidade dos árabes. Tallant não lhe disse quando o príncipe Khalil aparecerá para saber de seu pequeno sobrinho, disse?
Ele nem sabe onde o príncipe está. Ou mesmo o xeque Almani.
Um momento, Dra. MacGowan. Minha secretária está me passando um despacho da Associated Press sobre Telfa. É muito mais longo que o da UPI e aparentemente tem muito mais detalhes sobre o que está acontecendo naquela região. Quer ficar na linha enquanto eu o leio?
Por certo.
De acordo com este despacho, a situação em Telfa ainda está nebulosa — disse Nathan quando voltou ao telefone alguns minutos mais tarde. — Pelo que parece, algo como uma revolução palaciana ocorreu desde a tentativa de assassinato do emir Hassim noutro dia. A família Elzama parece estar se movimentando para assegurar-se que alguém que não seja de seu sangue venha tomar o governo.
O xeque Almani me disse que a família governa Telfa há mais tempo que qualquer outra monarquia na história do mundo.
Eles parecem dispostos justamente a continuar a fazê-lo. Consta que o emir Hassim está em coma, possivelmente terminal, mas ele recobrou a consciência por tempo suficiente para nomear um primo, o general Armim Elzama, como presidente de um tríplice Conselho de Governo. Conheço Armim muito bem: ele é o chefe do pequeno exército de Telfa e é pessoa de absoluta confiança. Os dois outros membros do conselho são ambos parentes do Elzama, e já ocupavam lugares importantes no governo. Estes três aparentemente decidiram fazer do irmão mais moço, Khalil, tecnicamente o regente, embora pareça que o conselho irá na verdade governar o país em nome do descendente masculino do emir Hassim que está a seus cuidados.
O despacho da AP diz algo sobre onde se encontra o príncipe Khalil? — perguntou Liz.
Não. Almani foi demitido de seu posto nas Nações Unidas, e parece fazer sentido que o general Armim soube de sua participação no complô para matar o emir e assumir o controle.
Exatamente como o senhor previu naquela noite, Sr. Nathan — disse Liz. — Faça o favor de olhar em sua bola de cristal e diga-me o que irá acontecer a seguir.
Não posso ajudá-la nisso, mas desde nossa reunião no escritório do Sr. Brown venho me consultando com alguns amigos no Oriente Médio. Eles me dizem que há anos Almani vem recebendo uma porcentagem alta dos milhões que as companhias de petróleo americanas vêm pagando pelo óleo cru de Telfa. Esperto como ele é, estou certo que depositou a maior parte desse saque em bancos suíços, de forma que ainda é capaz de comprar apoio suficiente para obter o controle do governo de Telfa. Se isto não der certo, ele sem dúvida se dirigirá para um país com o qual Telfa não tenha um tratado de extradição e viverá ali no maior luxo durante o resto de sua vida. De uma coisa a senhora pode estar certa, doutora: ele não vai mais intrometer-se com sua vida.
Mas aí, conforme os fatos revelavam, o repórter estava enganado.
Ted estava saindo do quarto onde conversara com os irmãos Corazón quando o telefone tocou. Pegando-o, ele disse:
Aqui é o Dr. Bronson.
Graças a Deus que o encontrei, Ted. — Era Maria Corazón e parecia muito perturbada.
Que há de errado, Maria?
Estou preocupada com Arturo. Tão logo ele acabou seu desjejum esta manhã, foi para seu estúdio e fechou a porta. E está tocando a vitrola a manhã toda.
Posso ouvi-la pelo telefone. Manuel e Pedro disseram-me que ele estava muito perturbado e não quis vir ao hospital.
Ele nunca esteve assim antes. Não sei como pode suportar o barulho daquela coisa a todo volume.
As pessoas com a condição mental de Arturo muitas vezes tocam música muito alto. Parece acalmá-los quando estão sob tensão e perturbados.
Não me preocupei com ele até que me lembrei que tem um rifle calibre 22 em seu armário. Ele o usa de vez em quando para matar cobras venenosas que vêm nadando pelo canal dos Evergla-des e aparecem em seus canteiros de flores. Será que você poderia dar um pulinho até aqui, Ted? Arturo o admira quase tanto quanto ama Michael; talvez ele o ouvisse.
Talvez não haja tempo, se ele está trancado naquele quarto com uma arma. No estúdio há uma extensão do telefone?
Sim, por quê?
Bata na porta com força e diga-lhe que quero falar com ele. Talvez ele responda e eu possa convencê-lo a não fazer nada que possa vir a prejudicá-lo.
Vou tentar chamá-lo. Fique na linha.
Uma onda de música em alto volume nos ouvidos de Ted revelaram-lhe que Arturo havia pegado a extensão do telefone em seu próprio quarto.
Não tente impedir-me. — A voz era apenas distinguível no meio da torrente de ruídos que saíam do receptor do telefone.— Vou ajudar Michael da única maneira que qualquer pessoa pode fazê-lo agora.
Espere, Arturo! Durante o fim de semana deverá aparecer um doador.
Michael não pode esperar. — A voz hesitante do outro lado da ligação transformou-se num soluço e por um momento só havia a música ensurdecedora; depois ele continuou: — Ele morrerá se eu não salvá-lo. Eu tenho meu rifle.
Não faça isso, Arturo — implorou Ted. — Deve haver outra maneira...
Diga a mamãe e a meus irmãos adeus por mim. — O estampido de um tiro de rifle fez-se ouvir mesmo com toda a música e depois uma surda pancada como de um corpo caindo no chão, seguido pelo silêncio, exceto pela música, revelando a Ted que o fone havia por certo caído de uma subitamente inerte mão.
Oh, meu Deus! — o grito de Maria Corazón no outro telefone abafou a música. — Meu filho! Meu filho!
Maria! — Ted viu que estava gritando no telefone e procurou acalmar-se. — Fique no telefone um momento, Maria! É importante!
Ele se matou, Ted! — Ela estava soluçando. — Eu nem posso chegar até ele, pois a porta está trancada.
Escute com atenção e faça exatamente o que eu disser. Arturo deu um tiro em si mesmo porque pensava que não havia outro meio de salvar Mike, de forma que nós temos que agir com rapidez. Vou mandar uma ambulância da Brigada de Salvamento trazê-lo para o hospital...
Mas se ele estiver morto...
Ele talvez não tenha conseguido matar-se. Vou me encontrar com a ambulância na Sala de Emergências e farei tudo o que puder para salvá-lo, naturalmente. Mas se não puder, preciso de sua permissão para transplantar o fígado de Arturo para o corpo de Michael. Isto é o que Arturo deseja, é a razão pela qual ele acabou de tentar matar-se.
Epode ter conseguido, disse Ted para si mesmo, mas não pronunciou tais palavras em voz alta.
Você tem a permissão para fazer tudo que for necessário.
Ted podia sentir a agonia na voz dela quando compreendeu a decisão que ela estava tendo que tomar, pois de qualquer forma tinha quase a certeza de perder um filho.
Se for possível, salvarei Arturo, mas se não puder, Michael terá o fígado dele, disto você pode estar certa — assegurou-lhe Ted.
Agora consiga alguma ajuda e derrube a porta do quarto de Arturo de forma que a Brigada de Salvamento não se atrase em trazê-lo para cá.
Ouviu o estalido do telefone em seu ouvido quando a ligação foi desfeita. Colocando o fone no descanso por um momento, ele discou em seguida 911, o número da Emergência Médica.
Brigada de Salvamento, sargento Jones — respondeu uma
voz.
Sargento, aqui é o Dr. Bronson, do Biscayne. O Sr. Arturo Corazón deu um tiro em si mesmo na casa dos Corazón em Coco-nut Grove. Você pode procurar o endereço...
Sei onde é, doutor. Continue, por favor.
Mande logo uma Equipe de Salvamento para lá e traga-o para a Sala de Emergências do hospital. Eu o encontrarei lá.
Imediatamente, doutor.
Diga aos técnicos para usarem o ventilador e também o mar-capasso externo, mesmo que o Sr. Corazón pareça estar morto, e para não perderem tempo tentando ressuscitá-lo. Eu quero que ele esteja respirando e que seu coração esteja batendo mesmo que isto tenha que ser feito artificialmente. Se ele estiver desenganado, vou transplantar seu fígado para seu irmão Michael.
Compreendo, doutor. Nossa melhor equipe de Coral Gables estará a caminho num momento. Eles levarão o Sr. Corazón à Sala de Emergências em menos de trinta minutos.
Arturo tentou matar-se para que Michael pudesse receber seu fígado — explicou Ted aos irmãos quando se dirigia para a porta. — Vou encontrar a Equipe de Salvamento na Sala de Emergências.
Você salvará Arturo se puder? — perguntou Pedro.
Naturalmente. Mas se não puder, vou tirar o fígado dele e transplantá-lo para o corpo de Michael. Os transplantes entre irmãos de sangue em geral dão certo, de forma que o fígado de Arturo é o melhor que Michael poderia de qualquer forma receber. Enquanto isso, um de vocês pode ir buscar Maria.
Os irmãos pareciam estarrecidos pelo rápido rumo que os acontecimentos tomaram, mas Pedro conseguiu dizer:
Vou buscar mamãe; Manuel pode ficar aqui. Ele é o mais velho e poderá assinar quaisquer papéis que o senhor precisar que sejam firmados, Dr. Ted.
Pegando de novo o telefone, Ted discou para a supervisora do andar do Centro Cirúrgico.
Aqui é o Dr. Bronson — ele disse quando ela atendeu. — A Sala de Cirurgia de Emergência está preparada?
Tudo o que temos que fazer é tirar as tampas das bandejas, doutor. Para que espécie de operação devemos prepará-la?
Nessa sala, remoção de um fígado para transplante. Se chegarmos até esse ponto, usaremos a Sala de Cirurgia Principal no anfiteatro para o próprio transplante, mas a senhora terá muito tempo para prepará-la. Somente a remoção do fígado leva de três a quatro horas.
Então o senhor encontrou um doador para o Sr. Michael Corazón?
Sim; o irmão dele, Arturo, tentou matar-se com um tiro. Não saberei de suas condições até que a ambulância de salvamento chegue aqui, mas quando souber, alertarei a senhora para que as enfermeiras comecem a esterilizar-se. Chame o cirurgião-chefe residente e diga-lhe que preciso que ele me assista. E diga ao Dr. Young que posso querer que ele remova os rins de Arturo Corazón para transplante mais tarde, bem como alguns outros órgãos que não tenham sido atingidos pelo tiro.
Assim farei, doutor — disse a supervisora.
Quando Ted deixou a sala correndo para o elevador, ouviu a sirena de uma ambulância à distância. Por sorte a Sala de Emergências não estava superlotada de casos de acidentes quando ele chegou.
A Brigada de Salvamento está trazendo um caso de ferimento na cabeça — disse Ted ao residente do Centro de Traumatologia que estava vendo uma novela de tevê no alojamento dos residentes ao lado. — É melhor esquentar a máquina de eletroencefalograma.
Para determinar se houve morte cerebral?
Sim. Se as curvas estiverem planas no EEG, nós temos o fígado atrás do qual andamos.
Tem alguma idéia de quem é a pessoa que levou o tiro, Dr. Bronson? — perguntou o residente.
O irmão dele, Arturo.
Deus do céu! Que coincidência!
Desta vez não foi. Arturo atirou em si mesmo para que seu irmão pudesse viver. Vamos assegurar-nos de que seu sacrifício não foi em vão.
Tão logo Liz MacGowan desligou o telefone, depois de falar com Robert Nathan, o aparelho tocou de novo, fazendo-a dar um pulo.
A Srta. Boardman deseja falar com a senhora, doutora — disse a secretária.
Coloque-a no aparelho. — A Srta. Boardman era a enfermeira especial de serviço com a princesa Zorah no turno da tarde. Quando o estalido do telefone revelou a Liz que a ligação fora completada, ela perguntou:
Alguma coisa errada, Srta. Boardman?
Não com a princesa ou o feto, Dra. MacGowan. Mas acho que a senhora gostaria de saber que o embaixador Almani apareceu aqui há uns minutos.
Perguntou por mim?
Não, mas achei que a senhora iria querer falar com ele, de forma que estou lhe telefonando enquanto fui buscar uma xícara de café que ele pediu. Estou tentando falar-lhe há uns quatro ou cinco minutos, mas seu número estava ocupado.
Volte para o quarto mas não diga ao Sr. Almani que estou indo para aí — recomendou Liz. — Estarei aí num instante.
Sim, dou... — a voz da enfermeira interrompeu-se subitamente, e depois voltou, agora tensa de agitação e alarme. — Faltou energia no andar, doutora. Não há eletricidade.
Volte para o quarto e verifique se o gerador do sistema avançado de sustentação da vida entrou em ação. Onde está o Dr. Rubin?
Tirou uma folguinha.
Avise a enfermeira do andar para procurá-lo pelo sistema de alto-falantes e dizer-lhe para ir para aí o mais rápido possível. Se aquele gerador não está funcionando, estamos em sérias dificuldades.
Sem esperar que a enfermeira respondesse, Liz desligou o telefone e dirigiu-se para a porta que dava para o corredor central que dividia cada andar. No bloco dos elevadores ela viu que todos estavam em andares diferentes, e sem hesitação abriu com um arranco uma porta com a inscrição ESCADAS e subiu correndo os três andares até o 10? andar. Com a respiração ofegante, ela abriu a porta da escada de emergência, e vendo que as luzes ainda estavam apagadas em todo o andar, ficou a pensar por que uma falha de energia poderia ocorrer apenas num andar antes de encaminhar-se ao quarto da princesa Zorah.
Quando abriu a porta e entrou, Liz viu que a Srta. Boardman havia ligado uma potente lanterna elétrica e estava examinando os monitores com seu facho. Liz olhou primeiro para o monitor que registrava as batidas do coração do feto e seu pulso ficou acelerado de medo quando viu que ele estava escuro, como estavam os que registravam o pulso e a respiração da paciente.
Ninguém sabe o que aconteceu, doutora. — A Srta. Boardman estava quase histérica. — Eu tinha saído do quarto havia apenas uns minutos, quando faltou energia. O gerador de emergência também não ligou, mas o Dr. Rubin guarda a lanterna elétrica dele aqui e eu a tirei do armário.
A tomada elétrica da aparelhagem foi desligada? — perguntou Liz enquanto procurava apressada por seu estetoscópio no bolso de seu longo guarda-pó branco.
Ainda está no lugar! A primeira coisa que fiz quando cheguei aqui foi verificá-la.
Colocando o estetoscópio nos ouvidos, Liz puxou para baixo o lençol que cobria o corpo da princesa Zorah e colocou o diafragma redondo do aparelho em cima da protuberância do abdome da paciente mais ou menos entre o umbigo e o púbis. Não pôde deixar de notar, enquanto procurava escutar as batidas do coração do feto, que a pele da princesa Zorah já estava adquirindo o matiz cinzento da falta de oxigênio, uma indicação segura, ela sabia, de que o feto, aprisionado naquilo que até momentos atrás era o abrigo seguro do útero de sua mãe, em breve estaria sofrendo a mesma falta potencialmente fatal, a não ser que um suprimento vital de oxigênio pudesse ser providenciado em questão de minutos.
O som das batidas do coração do feto no ouvido de Liz diziam-lhe que ele ainda batia forte, mas ela não precisava do relógio para contar o número de batidas e verificar que havia aumentado muito, um sinal seguro que as dificuldades não estavam distantes. Jerry chegou enquanto ela escutava o coração, e puxando seu próprio estetoscópio colocou o diafragma por sobre a área do coração de Zo-rah.
Ainda está batendo sozinho — informou ele — mas o sistema de emergência de gerador já deveria ter começado a funcionar.
A primeira coisa que fiz foi telefonar para o sistema de energia de emergência — disse a Srta. Boardman. — Eles disseram que só este andar estava afetado e que alguma coisa — talvez um curto-circuito — deve ter desligado a chave do andar.
O gerador deveria ter entrado — repetiu Jerry Rubin.
Não entrou e não temos tempo a perder. — Puxando o estetoscópio dos ouvidos, Liz arriou-o na cama e começou a remover o longo jaleco branco que estava usando. — Vou fazer uma cesariana e tirar aquele bebê dali.
Vou trazer-lhe um ventilador portátil da UTI de recém-nascidos — disse Jerry Rubin, dirigindo-se para a porta.
Onde está a bandeja cirúrgica de emergência que recomendei que fosse mantida aqui? — perguntou Liz à enfermeira, falando com energia na esperança de animar a perturbada jovem enfermeira e fazê-la agir com mais rapidez.
Na prateleira de cima do armário, doutora.
Limpe a mesa e coloque-a atravessada ao lado da cama, de forma que eu possa abrir a bandeja em cima dela. — Liz moveu-se rapidamente em direção ao armário enquanto falava.
A grande bandeja, envolta em panos, ocupava a maior parte da prateleira superior. Retirando-a, ela colocou-a na mesa que a enfermeira tinha posicionado ao lado do leito da paciente e começou a desamarrar os envoltórios esterilizados para expor os instrumentos, ataduras e um par de luvas. Calçando as luvas, ela pegou o bisturi com a mão direita e com a esquerda apanhou um pacote de gaze.
Segure a lanterna de forma que eu possa ver o abdome, Srta. Boardman — ordenou ela. — Haverá algum sangue e muito líquido amniótico quando eu abrir o útero, mas poderemos limpar isto depois.
Uma hábil incisão com o bisturi na mão direita de Liz abriu a barriga da princesa do umbigo até o púbis, expondo a camada de músculos por baixo. Um segundo golpe do bisturi cortou os músculos, permitindo que o peritônio, o fino e frágil revestimento da cavidade abdominal, se estofasse para fora. Liz rasgou-o rapidamente, expondo a superfície do útero por debaixo, já quase preto com a falta de oxigênio.
Agindo agora mais cuidadosamente de forma a não arriscar-se a ferir o feto, ela cortou a parede muscular na parte superior do útero, acima da espessa placenta — revelada dias antes pelo ultra-som — que a teria retardado para alcançar o feto se ela tivesse feito a incisão na área normal para uma cesariana, a frente do útero. Uma torrente de líquido amniótico jorrou para fora da membrana que envolvia o feto. Deixando de lado o bisturi, Liz pegou um par de tesouras da bandeja.
Inserindo dois dedos de sua mão esquerda para afastar o feto de forma que ele não fosse machucado, ela usou a tesoura para alargar a incisão uterina até que pôde meter a mão e pegar um minúsculo pé com seus dedos. Tateando em volta do útero com os dedos, ela localizou o segundo pé, e agarrando os dois, extraiu o feto delicadamente do refúgio onde ele estivera durante os primeiros sete meses de sua vida. Com um rápido movimento, ela colocou duas pinças sobre o gelatinoso cordão umbilical e cortou entre elas com a tesoura, separando o bebê de qualquer ligação com o corpo de sua mãe.
Segurando o bebê, agora totalmente azul, pelos pés, ela deixou sua sua cabeça pender para drenar qualquer quantidade de líquido amniótico que estivesse no trato respiratório, do qual ele agora iria depender para o vital suprimento de oxigênio que anteriormente vinha sendo fornecido pelo próprio sangue da mãe. Ela tinha a esperança de ouvir um súbito hausto de respiração, talvez até um grito, mas nada ouviu, e assim, colocando a mão atrás da parte superior do bebê, ela apertou o pequeno corpo a fim de comprimir os pulmões e fazê-los respirar artificialmente.
Depois de um breve momento, Liz aliviou a pressão esticando o corpo do bebê mais uma vez, mas não escutou nenhuma entrada de ar em seus pulmões, como esperava que ocorresse. Sem hesitar, repetiu os movimentos, mas de novo não obteve sucesso. Compreendendo que este método algo primitivo de respiração artificial não iria alcançar sucesso, ela sabia que tinha que recorrer a uma medida mais desesperada a fim de expandir os minúsculos pulmões.
— Tire esta bandeja cirúrgica da mesa — disse Liz à enfermeira, que prontamente obedeceu. Esticando o bebê em cima da mesa, ela com todo o cuidado colocou sua própria boca sobre a boca e o nariz do bebê, e então, com um leve esforço, soprou para dentro do pequeno corpo. Sentiu um assomo de agradecimento quando o pequenino peito expandiu-se por baixo de sua mão, e tão suavemente como ela havia inflado os pequenos pulmões, ela agora apertou-lhe o peito para expulsar o ar que forçara para dentro dele. Quando aliviou a pressão, no entanto, nenhuma aspiração espontânea de ar ocorreu, de forma que ela repetiu a ressuscitação boca a boca mais uma vez. Quando estava em sua terceira tentativa, Jerry Rubin abriu a porta do quarto e empurrou para dentro um dos ressuscitadores portáteis de emergência usados na UTI de recém-nascidos.
Não consigo fazê-lo respirar espontaneamente, de forma que estou fazendo respiração boca a boca — disse-lhe Liz.
Julgando pela cor da pele, você provavelmente salvou-lhe a vida — assegurou-lhe Jerry. — Eu tomo conta dele agora.
Quando ela colocou o bebê no cobertor esterilizado que Jerry lhe estendeu, Liz teve a consciência de que o quarto estava cheio de gente. Reconheceu os membros da equipe do Código Cinco, chamada para casos de parada cardíaca e semelhantes emergências desesperadas. Mas quando o anestesista residente que chefiava a equipe começou a dar início à rotina clássica de RCP — ressuscitação cardiopulmonar — sobre a princesa Zorah, Liz sacudiu a cabeça.
A paciente sofreu morte cerebral há alguns dias, Joe — disse ela ao residente. — Vínhamos mantendo seu coração e seus pulmões funcionando por meio de sustentação avançada de vida como proteção para seu bebê. Agora que ele está fora do útero, e com vida própria, eu realmente penso que não faz sentido pôr seu coração para funcionar de novo.
O residente colocou seu estetoscópio sobre a área do coração da princesa Zorah por um momento, depois levantou a cabeça e balançou-a concordando.
A senhora está certa, Dra. MacGowan. A morte somática ocorreu quando faltou energia na bomba do ventilador, mas ainda não consigo entender por que a corrente foi interrompida somente neste andar. Ou por que o gerador de emergência não entrou no circuito quando isto aconteceu.
Talvez nunca venhamos a saber. — Liz voltou-se para Jerry Rubin, que agora estava com toda a perícia introduzindo um delgado tubo de borracha pela traqueia do bebê e ligando-o ao ventilador do aparelho que ele trouxera da UTI de recém-nascidos. — Você tem qualquer idéia do que pode ter acontecido?
Verifiquei o gerador esta manhã, como o Dr. Craig e eu fazemos sempre que entramos de serviço — assegurou-lhe Jerry Rubin. — Ele estava em perfeito estado.
E como está o bebê? — perguntou Liz. — Você acha que ele tem chance?
Diria que mais do que isso! Por um lado, meu palpite é que ele deve ter por volta de vinte e seis semanas, o que é um pouco mais do que você pensou antes. O ventilador temporário está ajudando a aumentar o nível de oxigênio no sangue, mas tão logo eu leve este futuro emir lá para baixo para a UTI, vou colocá-lo num ventilador de alta-freqüência.
O que é isto? — perguntou um residente do primeiro ano da equipe do Código Cinco.
É uma maravilhosa geringonça que fornece muito oxigênio por meio de pequenas injeções desse gás com uma freqüência de milhares de vezes por minuto.
Quando Jerry empurrava o aparelho com seu precioso ocupante em direção à porta que dava para o corredor, a enfermeira supervisora do andar VIP entrou.
Um eletricista da manutenção está tentando religar as chaves do andar — disse ela. — Mas cada vez que ele tenta, elas desligam de novo.
Virando-se para o lado do quarto onde o cabo do equipamento de sustentação avançada da vida estava ligado numa tomada na parede, Jerry puxou-o.
Volte para o eletricista e diga a ele para tentar de novo — disse ele.
A enfermeira saiu e momentos depois as luzes do quarto se acenderam de novo. Quando Jerry abriu a porta para empurrar por ela o carrinho para o corredor, dirigindo-se para UTI de recém-nascidos, as luzes de todo o andar estavam acesas e brilhantes de novo.
Não deixe ninguém retirar a aparelhagem de sustentação da vida deste quarto antes que eu tenha uma oportunidade de voltar aqui para examiná-lo — disse Jerry Rubin à enfermeira supervisora enquanto ela o ajudava a empurrar o carrinho em direção ao elevador.
O que o senhor acha que houve de errado? — perguntou-lhe ela.
Meu palpite é de que houve sabotagem — disse-lhe ele vivamente, enquanto empurrava o carrinho para dentro do elevador e acionava o botão de FECHAR A PORTA.
Quase no mesmo momento, em que as chaves elétricas do décimo andar desligaram, uma ambulância da Brigada de Salvamento parava na plataforma de descarga da Sala de Emergências. Movimentando-se rapidamente, os técnicos removeram com perícia a maca com rodas na qual jazia Arturo Corazón, empurrando-a ao longo da plataforma de descarga e para dentro da Sala de Emergências num só movimento.
Sua intuição acerca de necessitarmos de um ventilador estava correta, Dr. Bronson — disse o sargento que comandava a equipe de emergências. — A respiração dele havia parado antes de chegarmos lá, mas o coração ainda batia. E tão logo começamos a bombear oxigênio para dentro dos pulmões com o ventilador, suas cores voltaram.
Olhando para o corpo pálido e imóvel de Arturo Corazón na maca da ambulância, Ted não pôde observar nenhuma ferida aparente onde a bala do rifle penetrara em seu corpo. Antes mesmo que pudesse perguntar, o sargento deu-lhe a resposta.
É difícil meter uma bala na cabeça com um rifle, mas ele sabia qual era o melhor meio. Colocando a ponta do cano em sua boca, ele podia alcançar o gatilho. O furo de entrada através do véu palatino é tão pequeno que quase não se nota, mas sua nuca, por onde a bala saiu, é uma massa de sangue, miolos e fragmentos do crânio. O melhor neurocirurgião do mundo não poderia salvá-lo com esse tipo de ferimento.
O técnico não havia exagerado, verificou Ted ao examinar o rombo de saída. Arturo poderia não ter conhecimento de anatomia envolvida, mas algum instinto deve ter-lhe dito como ele podia certificar-se de que seu fígado serviria para salvar a vida do irmão. Colocando uma única bala através da medula na base do cérebro, onde o controle das funções da respiração e das batidas do coração está localizado, ele se assegurara de que seu sacrifício não seria em vão.
Coloque-o numa padiola móvel e ponha um tubo intratra-queal de forma que possamos inflar e desinflar os pulmões — disse Ted ao residente do Centro de Traumatologia. — Enquanto isso eu introduzo um cateter na veia subclávia para atingir o lado direito do coração. As probabilidades para um transplante bem-sucedido serão consideravelmente melhores se o fígado for colocado em perfusão enquanto eu o removo e com o melhor líquido de perfusão possível: o próprio sangue dele. Alguém arranje uma tesoura e corte-lhe os cabelos de forma que a técnica de eletroencefalograma possa colocar-lhe os eletrodos de agulhas tão logo ela chegue aqui.
O senhor acha que vale a pena, Dr. Bronson? — perguntou um dos residentes-assistentes.
Provavelmente não, mas não posso pedir à família para deixar-me remover seu fígado e talvez outros órgãos para transplantes até que a morte cerebral tenha sido legalmente estabelecida por um EEG. A bandeja com os cateteres está pronta?
Está aqui, doutor. — A supervisora da Sala de Emergências tinha aberto uma bandeja na qual havia um comprido cateter por dentro do qual corria um eletrodo de arame para levar a corrente elétrica de um marcapasso. Na bandeja havia também uma longa agulha, com uma seringa presa a ela e mais um bisturi com uma lâmina pontuda.
Com movimentos rápidos e hábeis, Ted cortou a fina camisa em estilo cubano usada no verão por muitos homens em Miami. Cortando a camiseta por baixo dela, ele expôs a pequena cavidade formada logo abaixo da clavícula no lado direito de Arturo Corazón e com o bisturi pontudo fez uma incisão na pele, de tamanho suficiente para permitir que a agulha comprida penetrasse facilmente na pele. Pegando a seringa ligada à comprida agulha, ele usou-a para forçar a ponta da agulha na incisão que havia feito com o bisturi e através dos músculos por debaixo até que talvez uns quatro centímetros da agulha desaparecessem através do pequeno ferimento na pele.
Movendo-se agora devagar, ele sentiu mais do que ouviu o ligeiro ruído quando a ponta da agulha atravessou a parede da grande veia chamada subclávia, que coleta o sangue do braço e o leva para veias ainda maiores, que se ligam ao lado direito do coração. Quando puxou para trás o êmbolo da seringa, o sangue apareceu, revelando-lhe que ele havia penetrado a fina parede da veia.
Retirando a seringa, Ted pegou o eletrodo e enfiou-o através da agulha ria veia subclávia. Empurrando-o firmemente, teve outra sensação de resistência quando a ponta do cateter tocou a válvula tricúspide entre as câmaras superior e inferior do lado direito do coração. Seguindo a contração seguinte do músculo numa batida normal do coração, com a resultante abertura de sua válvula, entretanto, ele pôde inserir o eletrodo talvez uns cinco centímetros, até que sentiu que ele esbarrava numa barreira sólida. Isto, sabia ele, era a camada interna do coração no lado do ventrículo direito, a porção muscular que manda um fluxo de sangue para os pulmões a cada batida.
Pode retirar seu marcapasso, sargento — disse Ted ao técnico da Brigada de Salvamento. — Vamos ligar o nosso a este eletrodo.
A troca foi feita rapidamente, mas no breve período entre a estimulação pelo marcapasso da Brigada de Salvamento e a ligação da máquina maior do hospital, Ted não pôde detectar qualquer sinal de qualquer batida espontânea do coração sem o estímulo elétrico.
A técnica do EEG chegou justamente então e começou a colocar pequenos eletrodos de agulhas no crânio recentemente raspado de Arturo Corazón.
Uma meia dúzia de eletrodos será o bastante — disse Ted.
A senhora não precisará colocar os vinte e quatro usuais.
Conhecia Arturo desde que ele era criança — disse a Sra. Burke, a enfermeira supervisora da Sala de Emergências, num tom quase de reverência. — O senhor notou como ele tem um ar de paz em seu rosto? É quase como se ele desse boas-vindas à morte.
Ele se matou com um propósito, de forma que acho que se pode dizer que ele sabia o que estava fazendo, mesmo com a desvantagem de uma inteligência abaixo do normal — concordou Ted.
Estou tentando lembrar-me de algo que li no Novo Testamento há muito tempo, com referência ao que Arturo fez esta tarde, mas não consigo recordar.
A técnica do EEG ligou sua máquina e a fita de papel que normalmente registra as ondas elétricas do cérebro começou a rolar. No entanto, nenhuma das agulhas sutilmente equilibradas que registravam essas ondas demonstrou qualquer sinal de movimento, e após um minuto ou dois, a técnica comentou:
Não há nenhuma atividade elétrica no cérebro, Dr. Bronson.
Indique no registro ter-se verificado que o Sr. ArturoCorazón sofreu morte cerebral às... — Ted interrompeu-se e olhou para o relógio sobre a porta que dava para a UTI e para o corpo central do hospital — ... às treze horas e quinze minutos. Não se esqueça de incluir esta hora em seu registro do EEG, embora ele não acuse nada, e anote também os nomes de todas as pessoas aqui que testemunharam a verificação da morte cerebral — disse ele à técnica. — Poderemos assinar mais tarde. Vou começar a retirar o fígado tão logo possamos levá-lo para o andar do Centro Cirúrgico, e poderemos também retirar outros órgãos para transplantes, depois que eu falar com a família e eles assinarem os formulários necessários.
Cuidarei disso, doutor — disse a técnica.
Faça o favor de chamar a equipe de transplantes e dizer-lhes que desejo todo mundo no Centro Cirúrgico imediatamente, prontos para a esterilização — recomendou ele à enfermeira supervisora da Sala de Emergências. — Tão logo eu possa falar com a família Corazón, estarei pronto para iniciar o primeiro estágio do procedimento: remover o fígado que iremos usar no transplante.
Olhe aqui, Dr. Bronson, lembrei-me daquela passagem da Bíblia que o senhor estava procurando ainda há pouco — disse a Sra. Burke. — É a seguinte: Maior amor um homem não pode ter que o de oferecer sua vida pela de seus amigos.
Ted encontrou os Corazón num canto do saguão do hospital. Maria estava chorando suavemente e Estrellita Mendoza, sentada ao lado dela, passara um braço confortador em torno dos ombros da mulher mais velha.
Arturo está morto — disse-lhes ele com simplicidade. — Aconteceu o que ele desejava.
Você acha que ele sentiu alguma dor? — perguntou Maria.
Nenhuma, estou certo — disse Ted. — Arturo sabia para onde apontar a arma de forma a assegurar-se do que nós chamamos de morte cerebral.
Você vai fazer o transplante imediatamente? — perguntou o irmão mais velho.
Sim. Quanto mais rápido eu puder terminá-lo, maiores as chances que ele tem.
Quais são essas chances agora? — perguntou Manuel.
Quase cem por cento.
Quase? — interveio Estrellita Mendoza. — Depois do que Arturo fez, há alguma probabilidade de um fracasso?
A única maneira de eu poder estar certo de um sucesso seria se Mike e Arturo tivessem sido gêmeos idênticos — explicou Ted. — Do jeito que as coisas são, eles têm sangue do mesmo grupo e como irmãos as chances de sucesso são praticamente de cem por cento. Iremos precisar das assinaturas de vocês no formulário rotineiro de permissão, mas há outra coisa que acho que Arturo quereria.
O que você quer dizer? — perguntou Manuel.
O mais importante presente que Arturo deu por meio do sacrifício de sua vida foi o fígado que irá salvar a vida de Michael. Mas eu também tenho outros pacientes esperando por transplantes de rins e diversos outros órgãos podem ser transplantados quando pacientes que os necessitam podem ser avisados. Eu gostaria de ter a permissão de vocês para remover ou deixar que o hospital remova qualquer órgão transplantável de seu corpo.
O próprio Arturo desejaria isso — assegurou-lhe Estrellita, e os outros deram sua concordância.
Os formulários necessários serão preparados no escritório do Departamento de Cirurgia e alguém vai dá-los a vocês para todos assinarem — disse Ted à aflita família. — Vamos levar o corpo de Arturo para o andar do Centro Cirúrgico agora. Quero começar a remover seu fígado tão logo for possível.
Você tem idéia do tempo que levará a operação de transplante? — perguntou Estrellita.
Possivelmente oito horas, mas nós temos uma vantagem: de eu poder remover o fígado de Arturo numa sala e, por meio do uso de uma bomba coração-pulmão, manter o sangue circulando por ele até uns poucos minutos antes que eu tenha que colocar uma pinça temporária na artéria principal de suprimento. Comumente a gente tem que remover o fígado do doador, acondicioná-lo em gelo e às vezes voar algumas centenas de quilômetros até o recipiendário. Graças ao sacrifício de Arturo, tudo está a favor de Mike.
Quando o corpo da princesa Zorah foi enviado para a morgue, Liz pegou o elevador para seu consultório no sétimo andar e discou o número em Washington que o subsecretário Longaker lhe dera.
Escritório de secretário Longaker — respondeu uma voz feminina. — Em que posso ser útil?
Aqui é a Dra. Elizabeth MacGowan do Hospital Geral Bis-cayne em Miami. Posso falar com o Sr. Longaker?
Ele está na Embaixada de Telfa a tarde toda, doutora — disse a secretária. — Posso dar-lhe uma mensagem.
Se a senhora está certa de que ele a receberá — disse Liz. — É muito importante.
Eu a colocarei na mesa dele com a anotação de URGENTE, doutora. Devido à situação em Telfa, ele espera permanecer aqui toda a noite, de forma que certamente verá o recado.
Peço o favor de dizer-lhe que fiz o parto do bebê Elzama por meio de uma cesariana mais ou menos à uma e meia desta tarde. E que o bebê parece estar em excelentes condições.
Esta é de fato uma boa notícia, doutora! Mandarei esta mensagem para a Embaixada de Telfa imediatamente.
Obrigada — disse Liz. — O Sr. Longaker pode entrar em contato comigo no hospital até cerca de dez horas da noite, e depois disso em meu apartamento.
Sangue e líquido amniótico tinham sujado o vestido de verão que Liz estava usando por baixo de seu comprido jaleco branco quando operou a princesa Zorah, de forma que ela decidiu dar um pulinho até seu apartamento do outro lado da rua e mudar de roupa antes de ver os pacientes da tarde. Quando cruzava o saguão a caminho do Biscayne Terrace, viu a família Corazón amontoada num canto, como para se confortarem mutuamente, e compreendeu que algo deveria ter acontecido a Mike. Algo que, tendo estado ocupada com a falta de energia no décimo andar e a dramática série de acontecimentos, ela ainda não ouvira.
Aproximando-se de onde o grupo estava sentado, colocou a mão no ombro de Maria e perguntou:
Há alguma coisa que eu possa fazer? Estive operando até poucos minutos atrás.
Foi Arturo — explicou Estrellita. — Ele se matou há menos de meia hora a fim de poder ser o doador do fígado para Mi-chael.
Deus do céu! — exclamou Liz. — Ele está...
O Dr. Ted acaba de levar o corpo de Arturo para a Sala de Operação — respondeu Estrellita. — Ele vai fazer o transplante; era isso o que Arturo queria.
Que coragem teve ele! — disse Liz.
Coragem... e amor. — Na voz de Maria notava-se uma for te inflexão de orgulho. — Mais amor do que ninguém poderia pedir lhe.
O que diz Ted acerca da probabilidade de sucessso do transplante? — perguntou Liz.
Quase cem por cento — adiantou-se Manuel. — O que : senhora pensa?^
Isto deve estar aproximadamente certo. Transplante entre irmãos pegam quase tão comumente como entre gêmeos idênticos.
Seu vestido está todo sujo de sangue. O que aconteceu? — perguntou Estrellita.
Houve uma falta de energia do décimo andar. Tive que fazer uma operação cesariana de emergência na princesa Zorah em seu próprio quarto para salvar o bebê.
Será que o embaixador Almani sabia disso? — disse Estrellita. — Eu o vi cruzar o saguão há uma meia hora. Reconheci-o PEla fotografia que acompanhou a notícia que Robert Nathan publicou sobre ele no Herald de Miami.
Ele parecia estar com pressa? — perguntou Liz rápido.
Mais do que isso, ele estava quase correndo. Por que seria'
Penso que sei por quê — disse Liz incisivamente. — Tenho que ir ao outro lado da rua até meu apartamento para trocar de roupa. Não deixem de chamar-me se houver algo que eu possa fazer
Não podemos fazer nada senão esperar — disse Maria. -Esperar e rezar para que Deus guie as mãos de Ted.
Disso a senhora pode estar certa — disse Liz sem hesitação — Eu poria minha vida nas mãos dele a qualquer momento.
Voltando para o Hospital Biscayne depois de ter tomado um banho de chuveiro e mudado de roupa, Liz telefonou para a UTI de recém nascidos.
— Como vai indo Sua Alteza Real, Jerry? — perguntou ela.
Quando o levei para a UTI o oxigênio em sua corrente sangüínea estava baixo demais para registrar no instrumento, mas o ventilador de alta-freqüência fê-lo subir rapidamente. A única coisa com que temos que nos preocupar agora é com a possibilidade de dar-lhe oxigênio demais.
Como está o seu fator Apgar? — Este fator é uma expressão numérica usada para avaliar a condição física de recém-nascidos; como rotina, é determinada sessenta segundos depois do nascimento e a intervalos regulares daí em diante, até concluir-se que está dentro de limites normais. O fator é calculado pela soma de pontos ganhos por uma estimativa das batidas do coração, do esforço respiratório, do tônus muscular, do reflexo de irritabilidade e da cor, e fornece uma valiosa avaliação do estado edas perspectivas de qualquer recém-nascido.
Se eu tivesse tentado avaliar o Apgar da forma que costumamos fazer, sessenta segundos depois que você o tirou do útero, teria sido inútil — disse Jerry. — Agora eu diria que ele está praticamente OK para a sua idade fetal.
Qual é sua estimativa dessa idade?
De acordo com as medidas que tomei, eu lhe daria umas vinte e seis semanas, talvez até vinte e oito. É uma criaturinha bem desenvolvida, particularmente considerando a forma como ele se recuperou depois de uma quase completa anóxia por vários minutos enquanto você o retirava do útero depois da falta de energia.
Você acredita que ele sobreviverá?
Apostaria com você e lhe daria vantagem — disse Jerry, animado. — Ele estava tendo um pouco de dificuldade em conseguir bastante oxigênio mesmo com o ventilador de alta-freqüência, de forma que coloquei um pouco de surfactante no oxigênio. Isto deve ter limpado quaisquer restos de membrana hialiana que ele talvez tivesse nos alvéolos pulmonares, e agora o oxigênio está cruzando a barreira entre os pulmões e os alvéolos livremente.
Ouvi você dizer à enfermeira supervisora do andar VIP que queria examinar a aparelhagem de sustentação da vida antes que fosse mandada de volta para o depósito — disse Liz. — Encontrou alguma coisa?
Ainda não tive tempo de fazê-lo, mas estou indo para lá agora. Manterei você informada do que descobrir.
Tão logo Liz desligou o telefone, ele tocou de novo. Quem chamava era Robert Nathan, do Herald de Miami.
Estou lhe telefonando por causa do blecaute no hospital que causou a morte da princesa Zorah e do bebê Elzama há alguns minutos — disse ele.
De que está falando? — perguntou Liz.
Um dos repórteres do Herald também trabalha para a United Press International. Ele acabou de receber um telefonema dizendo que uma interrupção de corrente no Biscayne pôs seu sistema de sustentação da vida fora de operação, do que resultou a morte tanto da princesa quanto do feto.
Quem deu esse telefonema?
Nosso homem não soube o nome da pessoa. Tão logo ele se identificou como o correspondente da UPI na redação do Herald, a pessoa que o chamou deu-lhe a informação a que me referi e desligou. Houve uma falha de corrente no Biscayne cedo esta tarde, Dra. MacGowan?
Houve, mas a princesa Zorah já estava morta como o senhor sabe, Sr. Nathan. O bebê Elzama está passando muito bem em nossa UTI de recém-nascidos. Acontece que eu estava no andar quando faltou a corrente e operei a princesa imediatamente, no próprio quarto.
Então o bebê está vivo?
Foi isso o que acabei de dizer-lhe — replicou Liz um pouco azeda. — Ele estava um pouco anóxico quando fiz o parto por cesariana, mas eu lhe apliquei ressuscitação boca a boca até que o Dr. Rubin pudesse começar a dar-lhe oxigênio. Agora quer-me dizer que diabo significa isto tudo?
Penso que lhe devo uma desculpa, doutora, mas eu estava um pouco chateado pelo fato que, sabendo de meu interesse no caso, a senhora não me houvesse telefonado.
Foi apenas uma simples cesariana, Sr. Nathan...
Não tão simples, Dra. MacGowan — disse Nathan. — Estou familiarizado com vários casos semelhantes e sei que, uma vez que faltou a eletricidade, a senhora tinha que tirar a criaturinha de dentro do útero da mãe sem perda de tempo.
Levei cerca de três minutos para toda a operação — admitiu Liz. — Já notifiquei o Ministério do Exterior que o bebê Elzama está vivo e passando bem, mas estou muito curiosa acerca do telefonema.
Tudo o que posso dizer-lhe é que quem deu o telefonema foi um homem que perguntou especificamente pelo correspondente da UPI antes de transmitir a mensagem e logo em seguida desligar.
Por que ele iria especificar seu correspondente da UPI?
Provavelmente sabia que a UPI estava seguindo a situação em Telfa muito de perto e desejava que a informação chegasse lá rapidamente, por motivos próprios, mas de que eu posso suspeitar.
Pode imaginar quem telefonou?
A mesma pessoa que desligou a tomada, doutora. Quando o xeque Almani voltou para Miami?
Realmente ninguém puxou a tomada, mas o senhor está certo acerca do xeque Almani. A enfermeira de serviço informou que ele apareceu apenas uns poucos minutos antes do blecaute. Ele pediu-lhe para ir buscar uma xícara de café na cozinha do andar, mas ela levou algum tempo para notificar-me que ele estava lá, de forma que ele ficou sozinho com a princesa uns cinco a dez minutos.
Tempo bastante para sabotar o equipamento de sustentação da vida?
Provavelmente, especialmente uma vez que a enfermeira estava fora do quarto telefonando para mim quando faltou energia no décimo andar.
Almani estava lá, assim ele tem que ter sido responsável pela tentativa de destruir o herdeiro do trono de Telfa cortando o oxigênio que o feto estava recebendo através da circulação da mãe.
Mas por quê? E como? A tomada ainda estava em posição, lembra-se? E todo o andar ficou sem luz, não apenas o quarto da princesa Zorah ou o sistema de sustentação da vida.
Mesmo assim eu ainda apostaria que foi Almani — disse Nathan. — Além da enfermeira, alguém o viu durante ou depois do blecaute?
Estrellita Mendoza reconheceu-o momentos depois do blecaute, quando ele cruzava o saguão do hospital andando muito depressa. Ele desapareceu pela entrada principal e eu não soube mais dele desde então.
Isto encerra o assunto — disse Nathan. — A senhora chamou a polícia?
De que poderia eu acusar um homem conhecido internacionalmente como o xeque Almani? Prisão com falso motivo é um assunto sério...
Acho que a senhora está certa, doutora — disse Nathan. — Parece que a senhora está às voltas com um verdadeiro mistério. Desejo-lhe boa sorte para resolvê-lo.
Enquanto Liz estava refletindo sobre o que poderia fazer — se é que podia fazer alguma coisa — para ter a certeza de que o xeque Almani seria punido pela tentativa de assassinato de uma criança ainda não nascida, o telefone chamou de novo. Desta vez era Jerry Rubin, e parecia afobado.
Estou no quarto da princesa Zorah, Dra. MacGowan — disse ele. — A senhora pode vir até aqui? Penso que descobri a resposta.
Estarei aí num minuto — respondeu Liz. — Se sua resposta for suficientemente convincente, nós talvez tenhamos tempo para apanhar um possível assassino.
No quarto em que ela tinha realizado uma dramática operação cirúrgica há apenas um pouco mais de uma hora, Liz encontrou Jerry Rubin sentado num lençol estendido no chão, com as peças do sistema de sustentação da vida que ele havia meticulosamente desmontado em volta dele.
Quer dar um palpite como é que foi feito? — perguntou ele a Liz com um sorriso maroto.
Não perca tempo, Jerry — disse Liz, séria. — O que nós precisamos é de uma prova. Prova capaz de condenar um homem por assassinato.
Ei-la aqui. — Jerry pegou o pesado cabo elétrico que levava a vital corrente elétrica da tomada na parede até os motores que acionavam as bombas que mantinham o sangue circulando pelo corpo da mulher morta; que enchiam e esvaziavam seus pulmões com oxigênio — passando-o ao feto secundariamente através da circulação dela; que enviavam as soluções nutrientes de alimentação endovenosa para as células de seu corpo, exceto aquelas já mortas do cérebro; e que até forneciam estímulos rítmicos para o músculo do coração, fazendo-o contrair-se e bombear o sangue através de suas artérias e veias.
Dobrando o cabo em volta de seu dedo, ele afastou o pesado isolamento que cobria os fios, revelando um nítido corte através da borracha, expondo a brilhante superfície do cobre ao longo do qual a corrente elétrica passava.
Eis aí! — exclamou ele triunfante. — Um curto-circuito.
Posso vê-lo mas não compreendo exatamente — admitiu Liz. — Talvez seja melhor você explicar, Jerry.
Lembra-se de quando puxei a tomada do sistema de susten-
tação da vida e o eletricista que trabalhava no painel de chaves pôde ligar de novo a corrente no andar?
Sim.
Naquele momento tive a certeza de que havia um curto-circuito em algum lugar dentro deste conjunto de fiação, motores e bombas aqui em volta de mim, que havia permitido a passagem de uma corrente suficientemente forte para desligar as chaves de todo o andar.
E daí? — perguntou Liz com certa impaciência.
Quer que eu reproduza o crime fazendo caírem de novo as chaves e causando um outro blecaute, apenas neste andar?
Por favor, não — disse Liz. — Um choque como este por dia é mais do que bastante. Continue com sua encenação.
Imagine que você deseje interromper o funcionamento de um sistema de sustentação da vida — por motivos que só você sabe — e, ao mesmo tempo, criar suficiente confusão para você fugir antes que alguém suspeite do que fez.
Estou imaginando. Continue.
E também imagine que você veio preparada com uma faca pesada e afiada, provida da espécie de cabo isolado que os eletricistas usam para cortar cabos de energia. Para conseguir seu propósito de fazer parar a máquina de sustentação da vida, você simplesmente pega o cabo e o corta.
Inteiramente?
Não bem assim — disse Jerry com um ar de triunfo. — Você simplesmente coloca o cabo no chão e o corta até uma profundidade suficiente para atingir o isolamento que reveste cada um dos fios de cobre dentro do cabo que transportam a corrente.
E o que isto provoca?
Quando a lâmina de sua faca toca nos fios de cobre, toda a corrente passa através da lâmina, no que se chama de um curto-circuito, causando um súbito aumento de corrente...
Que desliga as chaves do andar?
Exatamente! Como você sabe, as chaves magnéticas são colocadas no painel para proteger tudo o que usa eletricidade exatamente de um aumento de corrente tal como o que se produz num curto-circuito. No entanto, você não cortou de fato o cabo alimentador do sistema, e um exame superficial poderia deixar de detectar os cortes no isolamento.
Muito engenhoso! — disse Liz. — Mas onde está a prova?
Encontrei os cortes que acabei de mostrar-lhe, e também isto. — Jerry Rubin pegou um pequeno pedaço de esponja de borracha, talvez de cinco centímetros de largura e dez de comprimento.
Este pedaço de borracha, mais o isolamento existente no cabo da faca que o suposto assassino estava usando eram o suficiente para impedi-lo de receber o choque, forte o bastante para imediatamente desligar as chaves magnéticas do andar.
Você conseguiu, Jerry! Você conseguiu a sentença de morte contra o xeque Almani.
O que não entendo é por que ele iria dar-se a todo este trabalho quando, como regente do futuro governante de Telfa, Almani deveria ter todos os motivos para desejar que o bebê fosse mantido vivo.
Agora não mais — explicou Liz. — Em vez de indicar o xeque Almani regente de um herdeiro que ainda nem tinha nascido, quando o emir Hassim soube que tinha um filho, ele escolheu três membros de sua família como um Conselho de Governo para o caso em que ele morresse antes que o herdeiro legal efetivamente nascesse. Seu irmão, príncipe Khalil, foi nomeado regente, mas todo o grupo — todos membros da família Elzama — irá sem dúvida funcionar como regente até que a criança que está agora sob sua responsabilidade tenha atingido a idade necessária para tornar-se o monarca.
Os lábios do jovem médico emitiram um assobio quase inaudível:
Isto está começando a cheirar cada vez mais como um drama de espionagem do Oriente Médio. Desde que ele não foi nomeado regente, a melhor opção de Almani era destruir o herdeiro legítimo do emirado de Telfa, criando, por assim dizer, um vazio naquele governo...
Um vazio que ele sempre esteve planejando preencher — disse Liz. — Eu agora estou mesmo começando a pensar se o xeque Almani não persuadiu o emir Hassim a mandar a princesa Zorah para mim, a fim de fazer a amniocentese e determinar o sexo do feto em seu útero, apenas para ele poder destruir o feto se fosse verificado que era menino e herdeiro legal do trono de Telfa.
Tudo parece ajustar-se — concordou Jerry.
Você já descobriu provas suficientes da sabotagem do sistema de sustentação da vida e de uma tentativa de manter uma criança ainda não nascida para justificar uma acusação de assassinato deliberado contra o xeque Almani — assegurou-lhe Liz. — Mas se quisermos que a polícia o pegue, temos que agir rapidamente.
— Almani não tem uma espécie de imunidade diplomática?
Ele não ocupa mais aquela posição. Porém mesmo que ainda a tivesse, isto não lhe daria o direito de assassinar uma criança não nascida — disse Liz indignada. A seguir seu rosto iluminou-se. — Parece-me ter visto Nick Patterson no corredor do lado de fora do quarto de Michael Corazón quando cheguei a este andar.
O Sr. Corazón ainda não voltou da cirurgia — informou a enfermeira que estava ajudando Jerry Rubin — mas eu vi o Sr. Patterson usando o telefone na Sala das Enfermeiras há alguns minutos.
Um agente de alto posto no FBI deverá saber o que fazer numa situação como esta, Jerry — disse Liz. — Vamos falar com ele. E traga com você aquele cabo de energia cortado, que é prova suficiente de uma tentativa de assassinato capaz de mandar Almani para a cadeira elétrica.
No pequeno escritório dos médicos, o chefe do FBI escutou atentamente as histórias contadas tanto por Liz quanto por Jerry Rubin.
A senhora já chamou a Polícia Metropolitana, Dra. Mac-Gowan? — perguntou Patterson.
Jerry apenas comunicou-me a descoberta que fez da sabotagem há alguns minutos — disse Liz. — Mas estou pronta para fazer qualquer coisa que possa para Almani ser apanhado e punido. O senhor acha que eu deveria entrar em contato com a polícia?
Imediatamente, não — respondeu ele.
Mas o xeque Almani poderá escapar — protestou Liz zangada.
Tratar com diplomatas estrangeiros, mesmo ex-diplomatas, pode criar situações bem embaraçosas...
O bastante para deixar um criminoso presuntivo escapar?
Ninguém está advogando isso, eu muito menos, doutora. O crime do xeque Almani é contra o governo de Telfa, e afinal de contas o melhor será que eles o punam.
Há em Telfa um governo com autoridade para pedir a extradição do xeque Almani se ele for preso por assassinato em Miami? — perguntou Liz. — Pela última história que ouvi, Almani poderá acabar sendo o governo de Telfa, com as bênçãos do nosso Ministério do Exterior.
A senhora notificou o Ministério que já há um herdeiro do trono de Telfa? — perguntou Patterson.
Sim. O Sr. Longaker tinha saído — parece-me que sua secretária disse que ele estava numa reunião na Embaixada de Telfa — mas ela me prometeu que o notificaria imediatamente.
Então creio que a senhora deveria entrar em contato com o Sr. Longaker e contar-lhe acerca desse novo aspecto. Quer que eu faça a ligação? O FBI às vezes pode localizar pessoas do governo que um cidadão comum pode ter dificuldade em encontrar.
Faça-o, então, por obséquio — pediu-lhe Liz.
É melhor que eu volte para a UTI de recém-nascidos — disse Jerry Rubin enquanto Patterson discava. — Se o xeque Almani ficou em Miami e descobre que o bebê Elzama ainda está vivo, há sempre a possibilidade que possa fazer outra tentativa de matar o futuro governante de Telfa.
Nick Patterson passou o telefone para Liz após alguns minutos.
Steve Longaker está no telefone, Dra. MacGowan. Ele acaba de voltar para seu escritório depois de passar a tarde na Embaixada de Telfa.
Parece que a senhora teve uma tarde muito ocupada, Dra. MacGowan — disse Longaker depois de Liz haver-lhe feito um resumo dós sensacionais acontecimentos do dia. — O governo de Telfa deve-lhe muito por ter feito o parto do herdeiro do trono em tempo de frustrar uma tentativa do xeque Yossuf Almani e de um grupo de radicais de apoderar-se do governo.
Então eles não obtiveram sucesso?
Não, graças à senhora. Quando minha secretária me telefonou para a Embaixada com as boas-novas de que Hassim Elzama III estava vivo e passando bem, o general Armim Elzama, que chefia o Conselho de Governo nomeado pelo emir Hassim antes de sua morte...
O senhor disse que o emir morreu, Sr. Longaker? — perguntou Liz.
O emir Hassim morreu mais ou menos às três horas, pelo nosso horário, Dra. MacGowan. Cerca de uma hora e meia depois — de acordo com o que minha secretária me transmitiu numa ligação para a Embaixada de Telfa enquanto eu estava em reunião ali — da senhora ter feito uma cesariana de emergência e retirado vivo o herdeiro do trono.
Então não houve nenhum vácuo no governo?
Nenhum vácuo e muito pouca perturbação política em Telfa, de acordo com os informes recebidos na Embaixada. O general Armim e o exército puderam abafá-la sem qualquer dificuldade. A maior parte dos terroristas que o xeque Almani tinha conseguido recrutar para uma tentativa de revolução — por sinal patrocinada pela KGB soviética — ou foram mortos ou capturados.
Fico satisfeita com isso — disse Liz. — Mas o que o senhor vai fazer com relação ao xeque Almani?
Nossa posição no Ministério é que não deveremos fazer nada, doutora, pelo menos por enquanto.
Não fazer nada? — exclamou Liz. — O senhor vai deixá-lo partir livremente, quando ele é culpado de uma tentativa de assassinato de umfetus in utero!
O feto em questão não está maisin utero, para usar sua própria descrição médica, doutora. E punir o xeque Almani envolveria uma porção de manobras diplomáticas em escala internacional. Um julgamento, mesmo em Telfa, poderia revelar uma porção de detalhes acerca de relações internacionais que seria melhor não trazer à luz!
O senhor não está me embrulhando com sua falsa lógica, Sr. Longaker — disse Liz. — Mas ouvirei a voz da razão...
—- É só isto que pedimos, doutora — comentou Longaker. — A senhora fez um grande favor a seu país tratando de um assunto delicado de uma forma muito inteligente e muito ética. Veja: quando o xeque Almani verificou que a senhora estava intransigente acerca de usar o corpo da princesa Zorah, mesmo após a morte cerebral, para assegurar-se de que o feto teria chance de viver quando a senhora finalmente o extraísse, ele sem dúvida teve que encarar o fato que, com a existência de um herdeiro legal e protegido por um forte Conselho de Governo, as probabilidades de poder ele assumir o controle do governo em Telfa eram nulas. A coisa lógica a fazer então era não permitir que o filho do emir vivesse, dando a Almani uma oportunidade de desestabilizar o governo e talvez ainda tomar-lhe o controle. Por esta razão ele voou para Miami, sem pousar em Washington ou Nova York, onde tínhamos agentes nos aeroportos aguardando para prendê-lo. Ele poderia ter tido sucesso, entretanto, se a senhora não estivesse no hospital quando ele interrompeu a corrente do sistema de sustentação de vida provocando um curto-circuito. Afortunadamente, a senhora operou de imediato para remover Hassim Elzama III do corpo de sua mãe. E ao fazer isso conseguiu realizar o que deve ter sido algo como um milagre em obstetrícia.
Pode deixar os confetes de lado, Sr. Longaker — respondeu Liz, porém sem rancor. — O senhor ainda vai deixar Almani escapar sem ser punido?
O fracasso pessoal num empreendimento capital de qualquer espécie é a pior punição que pode ser imposta a um homem ambicioso como o xeque Yossuf Almani, Dra. MacGowan. Pelo que a senhora nos disse, ele deixou o hospital tão apressado, depois de sabotar o sistema de sustentação da vida, que é possível que não tenha tido meios de saber que fracassara.
A tentativa dele de notificar o governo de Telfa, por intermédio da UPI, que Hassim Elzama III — como o senhor o chama — estava morto prova isso, Sr. Longaker.
Concordo com a senhora — disse o homem do Ministério.
E então, o que devo fazer agora?
Exatamente o que a senhora faria tratando de qualquer bebê um tanto prematuro, Dra. MacGowan. Cuide para que Hassim III receba os mesmos cuidados que qualquer outra criança em sua UTI de recém-nascidos receberia.
Eu irei mais adiante — informou Liz. — Vou pedir a Nick Patterson que ponha um agente do FBI de guarda ao lado do cubículo do bebê Elzama na UTI até sabermos onde anda o xeque Almani e se ele ainda está procurando eliminar o bebê.
Excelente precaução, doutora — disse Longaker. — Neste meio tempo, se aqui em Washington pudermos cuidar da situação diplomática em Telfa com a metade da eficiência com que a senhora tratou de uma situação muito sensível por aí, estou certo que tudo dará certo.
E acerca do príncipe Khalil Elzama, que é agora regente? Nessa posição ele deveria estar tomando conta do bebê Elzama, mas eu jamais o vi ou recebi qualquer notícia dele.
Em breve a senhora terá notícias, Dra. MacGowan — respondeu Longaker. — Tão logo soubemos que o príncipe Khalil era membro do Conselho de Governo, mandamos agentes do Serviço Secreto para Boston a fim de protegê-lo e trazê-Io para Washington. Ele está aqui desde ontem e vai de avião para Miami amanhã de manhã. A senhora vai achá-lo encantador e muito consciente de tudo o que está acontecendo. Afinal de contas ele tem um diploma do Massachusetts Institute of Technology.
O sol estava justamente começando a nascer na baía de Biscayne e seus raios iniciando a exploração do saguão vazio do hospital quando Ted Bronson cruzava-o um pouco depois das seis horas da manhã seguinte. Ele deixara Michael Corazón em boas mãos, de volta a seu quarto na seção VIP depois de completar a cirurgia que durara cerca de seis horas.
Remover o fígado de Arturo para o transplante não fora difícil, mas o trabalho de colocá-lo no corpo de Michael e fazer todas as ligações entre os vasos sanguíneos e o sistema de dutos da bile fora cansativo, especialmente porque o paciente sofrera uma peritonite química benigna devida às perfurações em seu intestino delgado causadas pelo menos por uma das balas que lhe penetraram o corpo.
Uma vez que as primeiras horas da recuperação de uma operação tão extensa quanto um transplante de fígado são o período mais crítico da fase pós-operatória, Ted passara a noite no quarto ao lado do de Michael, no andar VIP, onde a família mantivera uma exaustiva vigília. Ao entrar no Biscayne Terrace, ele viu um elevador com a porta aberta e entrou nele, mas quando ia apertar o botão de seu andar, recuou com o dedo. Obedecendo a um súbito impulso, apertou o botão do andar onde ficava o apartamento de Liz MacGowan. Ele a tinha visto com a família Corazón quando voltou ao quarto com Michael depois da cirurgia, mas havia ficado ao lado do leito dele por várias horas. E quando finalmente fora ao outro quarto, onde estava reunida a família, disseram-lhe que Liz tinha ido para seu apartamento.
Teve que tocar a campainha três vezes antes que ela respondesse. E quando ela abriu a porta, viu que devia estar na cama porque era evidente que pusera um robe apressadamente sobre sua camisola de dormir e ele podia ver o leve tecido desta roçando-lhe os tornozelos.
Desculpe-me — disse ele contrafeito — não tive a intenção de acordar você.
Não tem importância, fico contente de você ter vindo. Mi-ke está bem?
Ele está indo muito bem. Quando liguei a vesícula biliar ao jejuno, no fim do transplante, bile fresca já estava vindo do novo fígado.
Isto é maravilhoso. Entre, e eu farei um café e torradas para nós.
Provavelmente vou cair de sono com minha cabeça em cima da sua mesa da cozinha — disse ele.
Isso também não fará mal. — Tomando-lhe o braço, ela levou-o pela sala de estar até a cozinha. — Sente-se e fale-me da operação enquanto eu faço o café e preparo as torradas.
Correu como uma demonstração num texto acadêmico. Arturo e Michael são felizmente quase do mesmo tamanho, de forma que pude fazer as ligações sem ter de compensar qualquer diferença.
Michael suportou bem a anestesia?
O coma em que ele se encontrava era quase suficientemente profundo para eu poder trabalhar sem anestesia, mas mesmo assim levou tempo para fazer todas aquelas importantes conexões.
A veia cava superior e a inferior, a veia porta, a artéria hepática e os dutos biliares, certo? — perguntou ela enquanto se movia na pequena cozinha, pondo a máquina de fazer café para funcionar e colocando pão na torradeira.
Você merece grau dez em anatomia — comentou ele. — Só que em vez de tentar ligar os dutos biliares, eu liguei o duto comum abaixo de vesícula biliar e depois fiz uma ligação entre ela e o intestino delgado. Desta forma, há melhor chance de cicatrização.
Ele está em tão boas condições quanto você esperava?
Na realidade, melhor. Antes da operação não pude acordá-lo para dizer-lhe o que ia fazer.
Provavelmente não fez diferença. — Ela colocou duas torradas no prato dele e com uma faca passou manteiga nelas. — Ele teria querido saber quem era o doador e isto tê-lo-ia perturbado muito.
Vou evitar contar-lhe por tanto tempo quanto puder.
Você retirou também os rins que queria?
Don Taylor retirou-os depois que acabei de remover o fígado de Arturo. Enquanto ele estava com o abdome aberto ele tirou o pâncreas também; e depois um dos cirurgiões cardíacos removeu o coração. Ele está agora em Atlanta no peito de uma jovem mãe que estava morrendo de doença reumática cardíaca. O Departamento de Oftalmologia tirou ambos os olhos para transplantes de córneas e os otologistas ficaram satisfeitos de tirar dois jogos de ossículos do ouvido.
Então, sacrificando sua vida, Arturo deu a certeza de vida a dois pacientes de rins...
Sim; vou transplantá-los amanhã.
Além de salvar uma paciente do coração e talvez um caso grave de diabetes; ao todo, quatro pessoas.
Isto sem contar em devolver a vista a duas pessoas cegas por fibrose da córnea e a duas mais que não podem ouvir porque seus ossículos estão mobilizados no ouvido médio.
É fantástico! — disse ela, servindo o café e puxando uma cadeira para sentar-se do outro lado da pequena mesa. — Gostando tanto de seus semelhantes como Arturo gostava, tenho certeza de onde ele está agora. E sei também que está feliz por ter salvo tantas vidas e ter dado nova vida a tantas outras pessoas.
Você e eu parecemos estar no mesmo negócio estes dias — disse Ted, enquanto ela servia-lhe uma segunda xícara de café. — Você deu vida ao bebê Elzama permitindo-lhe que se desenvolvesse por tempo suficiente in útero para ficar a salvo das complicações de um nascimento prematuro quando finalmente fez a cesariana.
Isto não foi nada, em comparação com o que você fez esta noite — comentou ela.
Eu teria sido impotente não fora o sacrifício de Arturo para salvar Mike — lembrou-lhe Ted.
E Michael Corazón teria morrido de coma hepática numa questão de dias se sua perícia — em ligar artérias, veias e dutos para permitir que o fígado que Arturo deu a Mike funcionasse — não o houvesse assistido no momento oportuno.
Ted conseguiu esboçar um sorriso, embora o cansaço estivesse a envolvê-lo como um manto.
Como disse, estamos no mesmo negócio... Então por que não empreendemos uma fusão?
Fusão? — Ela ergueu as sobrancelhas e sorriu do modo que há muito ele aprendera a amar.—O que há a negociar?
Nada, a não ser uma licença de casamento que permitirá que você pare de tomar aquela maldita pílula...
Parei ontem à noite, quando vi o que Arturo havia feito apesar de suas limitações. Pensando bem, elas não eram realmente limitações para ele ao fazer mais do que qualquer um — sem ter o amor pela humanidade que havia nele — poderia ter feito, embora ele fosse vítima do que classificamos de limitações.
Há sempre modo de transformar estas em vantagens. Creio que Arturo conseguiu-o melhor do que ninguém que eu tenha conhecido.
Quando deixei os Corazón no hospital à noite passada, desci para ver o bebê Elzama na UTI de recém-nascidos — comentou Liz. — Ele estava ligado a todas as coisas que nós médicos sabemos como usar para preservar a vida: um tubo intratraqueal ligado ao ventilador para garantir a respiração; um marcapasso para estimular o coração se for necessário, o que não aconteceu, graças a Deus! O amoroso cuidado, que é parte tão valiosa da UTI de recém-nascidos, estava em volta dele como um protetor anjo e eu decidi então que quero um ou mais bebês, meus próprios, tão logo possa tê-los.
Deixe-me apenas dormir duas ou três horas em seu sofá...
Por que não em minha cama? Você já esteve lá muitas vezes. Além disso, do jeito que as coisas vão, em breve você será um residente definitivo...
O funeral de Arturo Corazón foi na sexta-feira de manhã, às onze horas. Liz parou com o Mercedes em frente à entrada do hospital cerca das dez e meia e deslizou para o lado direito do banco antes mesmo que Ted abrisse a porta.
Espero que você saiba onde é o cemitério — disse-lhe ela.
É um cemitério particular, pequeno, em South Miami — respondeu ele ao sentar-se na direção do carro.
Teve alguma notícia da garagem sobre seu Porsche?
Eles ainda o estão limpando, depois que o guindaste tirou-o do canal Tamiami e que o levaram para Miami num caminhão.
A lama preta do fundo do canal chegou até acima dos assentos. O pessoal da garagem disse que levará pelo menos mais alguns dias para limpá-lo, e mesmo assim ainda terá que secar.
Ficou muito danificado?
Apenas algumas mossas na pintura, onde as balas ricochetearam antes que aquele último tiro de rifle estourasse o pneu dianteiro, mais um pára-lama arranhado. Nick Patterson e sua turma também encontraram a bala que estavam procurando. A camada de borracha do pneu diminuiu sua força antes que ela se achatasse contra a camada de aço do próprio pneu. O departamento de balística da repartição do xerife pôde compará-la com a bala que tirei do flanco de Mike na primeira operação.
Elas são iguais?
Quando eu o vi no hospital ontem à noite, Nick Patterson me disse que as marcas das raias do cano são exatamente as mesmas, estabelecendo sem sombra de dúvida que o homem que tentou matar Mike foi o mesmo que tentou nos liquidar naquela noite, quando íamos para Everglades City. Eles o apertaram e ele bateu com a língua nos dentes.
Ted fez uma curva à esquerda no Biscayne Boulevard e entrou no pesado tráfego que se dirigia para o sul em direção à Dixie High-way, Coconut Grove e South Miami.
Eu trouxe o jornal da manhã — disse Liz. — Caso você não tenha visto, você não somente é o homem do dia, como fala-se que vão dar-lhe a Medalha de Honra do Congresso.
Tive apenas tempo de olhar para as manchetes antes de visitar as enfermarias esta manhã, mas não acho que gostarei de ser herói nacional.
Como estão os dois pacientes de rins que você operou depois do transplante de Michael?
Estão bem, assim como Mike. Nunca tive um transplante de fígado que corresse tão bem em tão pouco tempo, mas isso era de se esperar. Eu pedi ao laboratório para fazer uma comparação entre ele e Arturo antes do corpo deste ir para o necrotério. A semelhança não poderia ter sido melhor se eles fossem gêmeos, de forma que não espero que Mike tenha qualquer dificuldade.
E sobre os pâncreas?
Coloquei-o numa mulher cujo diabetes estava fora de controle há uma semana. Quando a vi muito rapidamente esta manhã, seu teor de açúcar no sangue permanecia firme em um nível normal.
Arturo certamente ficaria feliz com isto.
E também com o que você vem fazendo nos últimos dois dias — assegurou-lhe ele. — Levante o jornal para que eu possa ver de novo essas manchetes.
Os cabeçalhos das notícias eram negros e enormes e diziam: REIS DOS TRÁFEGOS DE DROGAS PRESOS ANTES DE FUGIREM DE AVIÃO. Embaixo da manchete havia um relato da dramática prisão de Sam Gianno e dos presidentes de dois grandes bancos de Miami, que estavam sob severa investigação pelo FBI, no momento em que se aprontavam para embarcar num luxuoso avião particular a jato no isolado aeroporto de Opa-Locka, no extremo oeste de Miami.
Nick me disse ontem à noite que seu testemunho perante o grand jury ontem de manhã foi o que finalmente selou a sorte de Sam Gianno — disse Ted.
A idéia foi assustá-lo para ele sair da toca — afirmou Liz.
Não estou certa, mas acho que Nick fez com que meu testemunho vazasse para Gianno e os banqueiros que o grupo de trabalho de drogas estava tentando apanhar, para que eles tentassem fugir e fossem apanhados.
Ainda não gosto da idéia de Nick ter exposto você a um risco como este — disse Ted meio zangado. — Se Gianno não tivesse decidido fugir, ele poderia muito bem ter tentado matá-la, da mesma forma que fez com Mike na casa dele aquela manhã e com você e comigo procurando jogar-nos no canal.
Eu estava protegida por uma pesada guarda tanto antes como depois da sessão do grand jury — assegurou-lhe Liz. — A idéia era forçar uma atitude de Sam Gianno e fazê-lo tentar algo que assegurasse ao FBI poder prendê-lo e aos banqueiros numa situação em que nenhum juiz federal pudesse libertá-los sob fiança para fugirem do país da forma que estavam tentando fazer quando foram agarrados.
Nick lhe disse isso ele mesmo?
Sim.
Por que você não me disse que iria arriscar seu pescoço?
perguntou ele zangado.
Porque você insistiria em que eu não o fizesse.
Pode apostar que eu faria exatamente isso!
O assistente do promotor público federal teria assinado uma intimação e eu de qualquer maneira teria que testemunhar. Mas Gianno teria sabido disso no momento em que a intimação fosse feita.
É, penso que você andou certa — admitiu Ted um tanto relutante. — Mas ainda não gosto da idéia de terem usado você para fazer Gianno sair da toca.
Funcionou, querido. Meu testemunho de que ele estava dirigindo o Jaguar que nos forçou para fora da trilha e para dentro do canal ajudará a condená-lo e talvez venha a fazer diminuir parte do tráfico de entorpecentes.
Ao sul de Coconut Drive, Ted abandonou a Dixie Highway e tomou uma rua menos freqüentada em direção a sudoeste.
É um cemitério particular? — perguntou Liz.
Sim. Há muitos anos a família Corazón comprou este pedaço de terra, que estava então bastante afastado da zona metropolitana de Miami. Ao longo dos anos, a maioria dos descendentes do grupo de cubanos que fugiu do regime de Batista têm sido enterrados aqui, inclusive o papai Juan Corazón. Arturo tinha muito a ver com o jardim e gostava de vir aqui e trabalhar nele, portanto é justo que seja enterrado aqui.
Mais alguns minutos e eles entraram no portão. O cemitério era pequeno, localizado às margens da baía Biscayne, num belo cenário tropical.
Que bonito! — exclamou Liz. — Posso ver agora por que Arturo desejava ser enterrado aqui. É quase como se ele estivesse entre suas flores em casa.
Isto foi o que Maria disse quando me contou que Arturo seria enterrado num dos canteiros de flores que ele tanto amava. A família pediu-me para carregar o caixão, mas verei você depois que terminar o serviço.
— O Sr. Longaker telefonou-me ontem para dizer que o xeque Almani está no Rio — disse Liz a Ted enquanto caminhavam do parqueamento para o túmulo aberto ao lado da rústica capelinha. — Aparentemente ele voou para lá na mesma tarde em que tentou matar o bebê.
Há alguma chance dele ser processado? — perguntou Ted.
De acordo com o Ministério do Exterior, não. O Conselho de Governo em Telfa não o quer de volta lá porque, se eles tivessem que submetê-lo a julgamento, isto poderia estimular seus seguidores políticos e causar de novo reais dificuldades. Os Estados Unidos também não têm nenhum desejo de processá-lo. E uma vez que nem os Estados Unidos nem Telfa têm tratado de extradição com o Brasil, provavelmente ele vai viver lá.
Suponho que é punição bastante para Almani o fato de seu desejo de governar Telfa ter sido frustrado.
Eu lhe disse que Jerry e Cheryl Rubin vão para Telfa com o bebê quando o príncipe Khalil levá-lo para casa dentro de algumas semanas?
Não para ficarem lá, espero!
Eles tiveram essa oportunidade. O príncipe Khalil ofereceu a Jerry colocá-lo à testa do serviço de pediatria em seu novo hospital e Cheryl poderia ter a posição de enfermeira-chefe, bastava-lhe pedir; mas eles preferem ficar aqui no Biscayne. e eu não discuti com eles. Erasmus Brown lhe disse que o príncipe Khalil assegurou-lhe que o governo de Telfa fará uma doação à Fundação de Pesquisas do hospital de pelo menos meio milhão de dólares em retribuição a havermos salvo seu próximo governante?
Ainda penso que esse dinheiro deveria ser gasto em seu departamento, Liz. Afinal de contas, você foi a única responsável pela salvação da vida do bebê.
Eu não teria uso para o dinheiro; pesquisa nunca foi meu forte — disse Liz. — Além disso, planejo estar muito ocupada nos próximos anos. O melhor lugar para onde esse dinheiro poderia ir seria para expandir seu banco de órgãos, agora que a questão de transplantes está vicejando de novo.
A breve cerimônia à beira do túmulo começou com uma leitura pelo padre Mulcahy, o jovem sacerdote católico amigo da família Corazón, e particularmente de Arturo, desde que viera para Miami.
— Este é meu mandamento: que vós vos ameis uns aos outros como eu vos amei — leu ele. —Maior amor o homem não tem do que quando entrega sua vida pelos seus amigos. — Fechando a Bíblia, da qual ele vinha lendo, o jovem padre continuou: — Estamos todos aqui para entregar ao solo o corpo terreno de uma pessoa a quem todos amávamos e que nos amava. Hoje poderemos ter alguma dificuldade em entender um amor tão forte que levou o falecido a dar sua vida para salvar a vida de seu irmão. E, talvez igualmente importante, para salvar as vidas de pessoas que ele não conhecia, pessoas cujas próprias vidas serão salvas por órgãos dos quais ele não mais necessitava.
"As duas pessoas que já receberam seus rins não sabiam de quem eles provinham. Agora, devido às técnicas da ciência médica moderna, elas poderão ter a esperança de viver sem o medo de serem dependentes de diálise para continuar vivas. Nem poderia nosso amigo Arturo ter previsto que seu próprio corpo iria fornecer as córneas com as quais duas pessoas que ele não conhecia ficariam livres da escura cortina da cegueira. Ou que — muito importante para aqueles que sofrem com a incapacidade de ouvir aqueles suaves sons que caracterizam o mundo à nossa volta — alguém de novo iria deleitar-se com a beleza desses sons graças a ele.
"Maior amor, certamente, não tem o homem do que aquele de dar a vida por seus amigos. O corpo que estamos entregando à terra não mais contém a verdadeira alma e o espírito daquele cujo nome reverenciamos: desde aquele momento em que ele fez o extremo sacrifício, podemos ficar seguros de que a alma de Arturo Corazón está entre os abençoados por Deus."
Caminhando de volta para o Mercedes, Liz depois do breve e comovente serviço fúnebre procurou a mão de Ted, e encontrando-a, agarrou-a com firmeza.
Estou certa de que Arturo deve estar contente porque seu corpo descansa agora num dos lugares que ele mais amava — disse ela. — Mas sei quanto Mama Maria sente falta dele e não desejo arriscar-me por mais tempo a sentir sua falta sem ter pelo menos uma pequena réplica para confortar-me.
Agora que Mike Corazón está fora de perigo e o bebê Elzama em breve irá reivindicar seus direitos hereditários, não há razão para adiar mais isso — respondeu ele.
Concordo inteiramente — disse ela. — Além disso, se eu não me casar logo com você, posso ser tentada pela oferta que o príncipe Khalil me fez ontem à noite de dirigir o hospital que eles estão construindo em Telfa. E mais, se você não se casar logo comigo, haverá um escândalo no Biscayne.
Você quer dizer que...
A não ser que os sintomas de uma gravidez normal que Paul Fraser lista em seu manual de obstetrícia estejam errados, penso que você deve apresentar-se a fazer de mim uma mulher honesta...
Faremos isso amanhã — gritou ele tão alvoroçado, inclinando-se para beijá-la, que o motorista de um carro que se aproximava procurou o acostamento ao ver o Mercedes dar uma forte guinada.
Você acaba de me fazer o homem mais feliz do mundo — disse ele jubiloso. — Onde você quer se casar? Na sua terra, na Virgínia?
Gostaria de um casamento simples naquela capelinha lá do cemitério.
É um lugar encantador, e por mim está bem. Mas você não é católica, nem eu!
Isso não faz qualquer diferença. Você sabe, prometi a Arturo que ele seria pajem em meu casamento, e desta forma não estarei quebrando minha promessa, pois ele não estará muito longe. Realmente, onde quer que ele esteja — e penso que não há dúvidas sobre isso — sei que observar-nos quando nos casarmos vai fazê-lo muito, muito feliz.
Frank Slaughter
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