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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM AMOR COMO O NOSSO / D. H. Lawrence
UM AMOR COMO O NOSSO / D. H. Lawrence

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

No alto da estrada ressoou o grito da buzina. Um potente Matford apareceu e, bruscamente, imobilizou-se a meio metro das cancelas da passagem de nível.

Mais outra! enfureceu-se André Joranne, que a custo detivera o carro. E com esta ia quase chocando.

Assustaste-me, André! lamentou na retaguarda a voz da senhora Joranne, cujo rosto aflito emergia das mantas de viagem. Sempre tens um modo de guiar!

Não tenho culpa, minha mãe. É a quinta passagem de nível que encontro em menos de meia hora. É de endoidecer, palavra de honra!... E, por azar, também está fechada!...

Premiu duas ou três vezes a buzina com mão impaciente, sem mais resultado do que distrair do seu lento trabalho de mastigação um par de vacas pachorrentas que pastavam no prado.

O crepúsculo de outono desdobrava já pelos campos o seu manto cor de violeta...

Mais uma ideia disparatada dos Millane, virem enterrar-se nestas solidões! - comentou, rabugento, o condutor do Matforã, relanceando em redor olhares irritados e a sua ideia não foi muito melhor, minha mãe, no arrastar-me a visitá-los...

Bem sabes que era indispensável e, pronunciando esta palavra, cravou no rosto contrariado do filho significativo olhar indispensável que saísse de Paris... pelo menos por algum tempo.

André voltou-se com mau humor.

Para isso não era necessário vir enterrar-me nestas estepes.

A caça abunda na região, segundo parece... Distrair-te-ás, caçando...

Detesto esse género de desporto... e os caçadores causam-me horror.

A senhora Joranne suspirou.

Vamos, estás hoje mal disposto e vês tudo por mau prisma... Amanhã, segundo espero, serás mais optimista... A Abadia é uma propriedade encantadora.

 

 

 

 

 

 

Calou-se, porque, era evidente, André já não a ouvia. Fixava, hostil, a linha férrea cujos carris cintilantes serpenteavam entre dois taludes de erva cor de ferrugem.

 

Provavelmente o comboio ainda não deu o sinal! Teria tido tempo de passar dez vezes em lugar de uma... E aquela idiota que está além nem sequer me ouve!... Não mexe um dedo!... Parece uma estátua ou um manequim!

 

Teve um gesto ameaçador para a guarda da linha, muito direita, junto da sua casinhola.

 

Agudo, implacável, insistente, a buzina mais uma vez interrompeu a calma tranquila da tarde... As duas notas prolongadas partiram como aves à conquista do espaço, penetraram nos tímpanos das vacas, ecoaram pelo souto próximo e foram perder-se ao longe nos outeiros melancólicos que as sombras da noite começaram a invadir.

 

Ouça lá! bradou André com as mãos em porta-voz. Conta deixar-me aqui até amanhã?

 

Má vontade ou indiferença, a interpelada não fez um movimento, parecendo apenas preocupada em aguardar conscienciosamente o tal comboio que nunca mais chegava.

 

Eh, lá, mulherzinha!... É surda? perguntou o condutor, exasperado.

 

Não obteve melhor resposta.

 

As lâmpadas tinham-se acendido todas ao mesmo tempo. E o clarão avermelhado dardejado pela que se acendera na frontaria da casita, permitia que a mulher se distinguisse melhor. Embrulhada numa capa escura e pesada, em cujas fartas pregas a brisa se engolfava, cobria-se com um desses chapéus de grandes abas usados pelas mulheres de campo para protegerem o rosto; na mão, que emergia do abafo, segurava a pequena lanterna vermelha do regulamento.

 

Assim, imóvel e muito direita, mal se destacando nas trevas que iam ensombrando tudo, semelhava uma estátua, porém, uma estátua sem graça e sem beleza, posta ali de propósito para simbolizar o carácter agreste da região.

 

Isto é demais! gritou o automobilista, enfurecido.

 

Abriu a portinhola do carro e saltou para a estrada. Encostado à cancela, a sua alta figura ergueu-se ameaçadora.

 

Apostrofou a empregada:

 

Então não vê que tenho tempo de passar, com mil diabos?... O tal comboio nem sequer ainda deu sinal...

 

Com o braço designava a linha, que, tão longe quanto a vista podia alcançar, se conservava deserta e na qual apenas se avistavam os clarões amarelados dos raros candeeiros.

 

Julga que desejo dormir aqui?

 

A mulher voltou ligeiramente a cabeça, não parecendo impressionar-se com as invectivas. Desanimado, André encolheu os ombros.

 

É parva de todo resmungou, dirigindo-se à mãe, que esperava tranquilamente dentro do carro.

 

Talvez não compreenda o que dizes? sugeriu a senhora Joranne. Os camponeses desta região em geral só falam os seus dialectos.

 

Mas que diabo! Podia ao menos compreender os gestos... Que idiota! Fica a olhar para mim como se julgasse que estou exibindo alguma cena de fantoches... Que mulher tão estúpida!... Começa a irritar-me os nervos...

 

Deliberadamente, abriu a cancela e, com poucas passadas das suas pernas compridas e ágeis, estava rapidamente junto da guarda. Desinteressada dos seus actos e gestos, esta examinava de novo a linha.

 

Diga-me cá inquiriu rudemente, tocando-lhe no ombro vossemecê é surda ou parva?

 

A interpelada deu meia volta com todo o vagar e encarou o seu interlocutor. Sob as abas do chapéu, que protegiam o rosto desconhecido, ouviu-a dizer:

 

E o senhor, está doido... ou é pouco educado?... Talvez as duas coisas, julgo eu...

 

A réplica deixou o turista assombrado.

 

Tão intrigado quão espantado, mergulhou o olhar nesse rosto meio oculto e cujas feições começava a distinguir a pouco e pouco. Adivinhava-se, agora, um rosto fresco, juvenil como o som da voz, e, na sombra do grande chapéu, dois olhos cintilantes de cólera fitavam André.

 

Não pode esperar pelo sinal, não?...

 

Era ela agora quem se irritava e não fazia cerimónia em o manifestar.

 

Agitava a lanterna perto da cara do impaciente viajante.

 

Quem é aqui o funcionário... o senhor ou eu?

 

Indiscutivelmente... é a senhora! concordou ele ainda num tom que traduzia profunda surpresa.

 

Então com que direito se intromete no serviço que me diz respeito?

 

Erguia a cabeça com dignidade.

 

As linhas do perfil muito puro acentuavam-se o nariz levemente arrebitado, a boca carnuda como um fruto acabado de sazonar, as faces cheias, marcadas por graciosas covinhas... Que extraordinária guarda de linha!

 

Pareceu-me que o comboio se demorava demais! formulou André como desculpa.

 

E desejava que a pequena encantadora, não havia dúvida não tivesse ouvido os epítetos com que a mimoseara pouco antes.

 

E que culpa tenho eu disso?... Não sou o maquinista do comboio...

 

Também eu não declarou com leve sorriso mas sou automobilista e um tanto apressado... e por isso... se quisesse... talvez pudesse deixar-me passar...

 

Sim?... E se ele vier antes de atravessar?

 

Tinha tempo de passar cem vezes! Encolheu os ombros com desdém.

 

Conquanto me seja absolutamente indiferente que o senhor fique reduzido a pó, com o seu carro, fique sabendo...

 

É pouco amável! gracejou noutro tom.

 

Não, senhor, não sou amável. Sou idiota, imbecil, bronca e não sei que mais...

 

Minha senhora... Menina, peço-lhe que me desculpe esses... esses epítetos um pouco vivos que apenas exprimiam a minha legítima impaciência. Garanto-lhe que se soubesse com quem estava a falar...

 

Está a falar com a guarda da linha, mais nada atalhou ela com rudeza. Se lhe apetece ser grosseiro não tenho nada com isso. Por mim, sou obrigada a cumprir o regulamento.

 

Falava com voz cortante, mas a dignidade das frases e a importância das palavras formavam contraste inesperado e divertido com a boca encantadora que as pronunciava.

 

Leve sorriso assomou aos lábios de André Joranne.

 

A rapariga viu-o e a sua irritação aumentou.

 

Além disso, que faz o senhor aqui?... Não é este o seu lugar... É proibido estacionar na linha... Vamos, volte para o carro.

 

O braço saia das pregas da capa para designar imperiosamente a cancela e, nos bicos dos pés, empertigava-se com ares autoritários.

 

-Primeiro desejo dizer-lhe.

 

Não diga nada. Está a dar o sinal!

 

O retinir penetrante da campainha quebrou o silêncio. A guarda, sem mais cerimónias, virou as costas ao seu interlocutor e, aproximando-se da linha férrea começou a agitar a lanterna que havia levantado do chão.

 

Sem se apressar, o automobilista regressou ao carro.

 

Ria ainda, divertido, quando se deixou cair no assento estofado.

 

”Que engraçada criaturinha!”

 

A senhora Joranne informou-se. Muito bem embrulhada nas quentes mantas de viagem, tinha ouvido o ruído da discussão sem conseguir distinguir as palavras trocadas.

 

O filho narrou-lhe o incidente. Dissipara-se-lhe de todo o mau humor... Com voz jovial, explicou:

 

Um verdadeiro amorzinho, minha mãe... pelo que pude observar... e exprime-se em linguagem tão correcta como a de um professor de gramática... A mãe disse-me que as guardas da linha só falavam o dialecto da região!...

 

Depende... essa, se é como a descreves, parece-me uma excepção...

 

Pode acreditar que é!... Nova e bonita... E, além disso, uma rapariguita que não deve ser nada tola!

 

Sendo assim observou a senhora Joranne é curioso que ocupe semelhante lugar...

 

Talvez viva com a mãe...

 

Ou com o marido... As raparigas do campo em geral casam cedo.

 

Joranne fez uma careta incrédula e ao mesmo tempo compadecida... depois, como um clamor estridente anunciasse a passagem do comboio, apressou-se a carregar no acelerador.

 

Não contava, porém, com a lentidão do desfile. Teve de esperar uns bons cinco minutos, vendo passar diante dos olhos a máquina ofegante que projectava nas trevas húmidas da noite o clarão lívido dos seus grandes olhos amarelos e alguns vagões de gado, pouco iluminados, que davam a impressão de se arrastarem e vencerem a custo o percurso.

 

O comboio desapareceu por fim, arquejante, asmático, com um forte ranger metálico das rodas. A empregada aproximou-se. Abriu a cancela com todo o vagar sem voltar a cabeça para o lado do automóvel que rodava agora lentamente.

 

Não se apresse tanto gracejou André com ironia estou desolado por ter de a deixar tão depressa.

 

O mesmo não acontece comigo ripostou ela agressiva, enquanto o carro atravessava a linha.

 

Nunca vi guarda da linha mais bonita... nem também mais irascível...

 

E o senhor é o automobilista mais desastrado que até hoje passou por aqui!...

 

Durante esta troca de amabilidades, a distância ia aumentando entre eles e André, obrigado a prestar atenção ao volante, teve de desviar com certa pena o olhar do vulto grácil que em breve se desvaneceu na escuridão da noite.

 

Encantadora, não achou, minha mãe?

 

Como queres que te responda?... Mal a vi. Estava tão escuro...

 

A senhora Joranne tornou a aninhar-se nas mantas depois de ter encolhido os ombros.

 

Sempre o mesmo rapaz fantástico e desconcertante, aquele André!... Rabugento, mal disposto e aborrecido e, de repente, bastava uma ninharia... um rosto gracioso entrevisto de passagem... uma paisagem que lhe agradasse... um raio de sol que interrompesse a monotonia do céu plúmbeo, e parecia outro. Recuperava a alegria e voltava a ser o rapaz delicado, encantador, a cuja sedução, as mulheres não sabiam resistir.

 

De resto, vendo bem, aquela despreocupação intermitente, a instabilidade de carácter não seriam a justa compensação da concentrada atenção que lhe exigia a sua carreira?

 

Porque, era preciso fazer-lhe justiça, desde que o solicitavam os cuidados da profissão tornava-se um homem diferente.

 

Mal transpunha a porta da clínica que dirigia ou do consultório, quando se integrava no seu papel social e voltava a ser o doutor André Joranne, cuja competência se tornara já bem conhecida, a sua personalidade tomava o cunho austero que lhe competia.

 

E assim, aos trinta e dois anos dirigia uma Casa de Saúde e ocupava, entre a classe médica de Paris, um lugar de destaque... tanto mais invejável quanto o seu futuro se apresentava pleno de promessas. Muitos dos seus mais ilustres colegas não receavam recorrer, para intervenções delicadas, à sua habilidade e à audácia tranquila, cujo segredo residia talvez no seu sangue moço e no instinto que o dirigia, mesmo nos casos mais complicados.

 

Além disso, a sorte bafejava-o. Duas ou três operações consideradas por alguns como uma loucura e nas quais ele obtivera, contra todas as previsões pessimistas, os melhores resultados, valeram-lhe um sucesso retumbante.

 

Passou a ser o médico de quem todos falavam. A clientela aumentou rapidamente... clientela feminina, na sua maior parte atraída mais ainda pela sedução do homem do que pelo prestígio do clínico e que o consagrou definitivamente médico da moda.

 

Passou a dar nota de elegância e distinção frequentar o seu consultório.

 

Enquanto a senhora Joranne recordava em pensamento as diversas fases da fulminante ascensão desse filho pelo qual se sentia tão orgulhosa, o auto, munido de potentes faróis cujo foco luminoso rasgava o manto sombrio da noite, corria agora com toda a rapidez.

 

De repente, ouviu-se no motor um ruído insólito. Houve uma diminuição de velocidade de mau agouro.

 

A senhora Joranne, que começava a dormitar, ergueu a cabeça assustada.

 

Que aconteceu?

 

O carro parava lentamente como se tivesse as forças esgotadas.

 

Não sei... vou ver... deixe-se estar, mãe... Levantado o capot sobre o mistério do motor,

 

cujo mecanismo Joranne conhecia pouco, abanou a cabeça, perplexo.

 

Não compreendo o que é isto!... A gasolina queima bem!...

 

Algumas tentativas para o pôr de novo a trabalhar resultaram infrutíferas. Sem convicção, André abriu a caixa da ferramenta...

 

Passeando pelo interior do capot a lâmpada de bolso arriscou algumas verificações... Velas?... Carburador?... Magneto?... Por fim teve de confessar a sua incompetência. O organismo humano era-lhe bem mais familiar do que o do automóvel.

 

Sim, senhor! Estamos arranjados!... exclamou, dirigindo-se à mãe com expressão desolada. É uma panne, mas uma panne estúpida, inexplicável.

 

Meu Deus! gemeu a mãe aflita. Estás certo disso?... Viste bem?...

 

Vi... conquanto não visse grande coisa!... Sabe que a mecânica não é o meu forte. Depois, com estes motores modernos é tão raro suceder um desastre que nos julgamos sempre ao abrigo de contratempos.

 

A senhora Joranne estremeceu.

 

Que vamos fazer agora? exclamou relanceando um olhar receoso para a paisagem nocturna.

 

Pareceu-lhe hostil. A aragem da tarde refrescara e arrastava em turbilhões, de um e de outro lado da estrada, as primeiras folhas do outono que corriam como assustadas. Um nevoeiro pesado e sombrio pairava baixo, emanado das valas donde subia o cheiro da terra húmida.

 

Não faço a mais pequena ideia do ponto onde nos encontramos confessou André.

 

Devíamos chegar à Abadia às dez horas. Que horas são?

 

André fez incidir sobre o relógio de pulso o foco da lâmpada.

 

Oito e meia...

 

Lá em cima e ao longo das encostas cobertas de verdura, por onde se embrenhava a estrada, nem uma luzinha que indicasse a existência de um casal ou povoado!

 

Com um suspiro de aborrecimento procurou na bolsa interior do carro a carta da região e começou a consultá-la.

 

A sua estatura atlética recortava-se harmoniosamente.

 

Inebriada pelo orgulho maternal, do ponto onde se encontrava, a mãe contemplava o belo perfil de linhas correctas e acentuadas destacando no fundo escurecido.

 

André aproximou-se. Tudo nele respirava força, calma e essa segurança que nunca o abandonava e parecia subjugar à sua vontade os próprios acontecimentos.

 

Acendeu a luz do mostrador para consultar o conta-quilómetros e declarou:

 

Estamos apenas a quatro quilómetros da casa da guarda da linha. Deve existir ali telefone. Vou lá e pedirei a qualquer garage de Limoges que venha arrancar-nos daqui.

 

Tu não vais deixar-me sozinha bradou a voz alarmada da senhora Joranne.

 

Receio ter de o fazer. Não posso obrigá-la a percorrer a pé quatro quilómetros...

 

Preferia andar dez a ficar aqui.

 

Então, minha mãe, isso é criancice! Num sítio tão deserto, que tem a recear?...

 

Pouco importa! retorquiu ela com certo nervosismo. Morreria de medo!... O campo, de noite, inspira-me pavor, fica sabendo... e quanto mais numa região desconhecida... Vou contigo!

 

Ágil, não obstante a idade, saltou para o chão e apoderou-se do braço do filho.

 

Como queira acedeu o médico, libertando-se ligeiramente para abrir a cigarreira. Não se admire, porém, se a obrigar a andar depressa. As noites de outono são traiçoeiras e receio que a aragem fresca lhe faça mal...

 

Corajosamente, pôs-se a caminho. Ligeira e desembaraçada, avançava ao lado do filho, muito alto para ela. Várias vezes teve de abrandar o passo para o harmonizar com o dele.

 

A caminhada não foi longa. A estrada descia, na paz dos campos adormecidos, vagamente batida pelo luar tímido e velado que, por contraste, tornava mais pesadas as sombras projectadas pelos castanheiros e plátanos que a ladeavam.

 

Quando na escuridão avistou o farol vermelho aceso na frontaria da carita da guarda da linha, André apressou o passo e não pôde reprimir leve sorriso. Que diria a jovem ao deparar-se-lhe de novo o belicoso turista de há pouco?

 

No íntimo, o contratempo divertia-o e se não fosse a fadiga imposta à mãe quase se sentiria satisfeito com o incidente.

 

À aproximação de ambos um cão ladrou no minúsculo jardim, mas era um animal mansarrão que se contentou com farejá-los e logo regressou à casota, sem mais insistir.

 

Um raio de luz filtrava-se pela janela fechada; a empregada não se deitara ainda. Ouvia-se o toc-toc dos tamancos no lajedo da cozinha.

 

André bateu duas fortes pancadas no postigo. Imediatamente cessou o ruído dos tamancos...

 

Sucedeu-lhe um som de louça entrechocando-se e depois um murmúrio confuso.

 

Ela não está sozinha concluiu o doutor e, sem bem saber porquê, esta conclusão desagradou-lhe.

 

No mesmo instante, a janela entreabriu-se com precaução.

 

Quem está aí? indagou uma voz rude.

 

A senhora Joranne sobressaltou-se, pois tanto ela como o filho não esperavam aquele timbre masculino, com acentuada pronúncia da região.

 

André aproximou-se com vivacidade.

 

Tivemos uma pamne a quatro quilómetros daqui explicou após algumas palavras de desculpa. Desejo telefonar para Limoges. Permite-me que utilize o seu telefone?

 

O telefone não trabalha a esta hora resmungou a voz, conservando-se a janela quase fechada.

 

O tom traduzia desconfiança e aborrecimento. Percebia-se que o homenzinho só tinha um desejo: mandar os importunos para as profundezas do inferno!

 

A tentativa esboçada para fechar de todo a janela encontrou, como obstáculo, a mão de André que, resolutamente, a empurrou.

 

Um instante se faz favor intimou o cirurgião com a habitual autoridade. Não pode recusar-me os esclarecimentos indispensáveis. Vem comigo minha mãe, que já não é nova e se encontra bastante fatigada pela caminhada que deu até aqui.

 

Elevou a voz na esperança vaga de ser ouvido pela rapariga que obstinadamente se conservava no interior da casa.

 

De facto, e conforme esperava, ouviu alguém mexer na cozinha. O toc-toc dos tamancos denunciou os passos curiosos que se aproximavam da janela... mas ninguém apareceu. André continuou a avistar somente parte do rosto do homem adornado por farto bigode.

 

Era o pai, naturalmente...

 

Que desejam saber? inquiriu o homem, sempre carrancudo.

 

Visto que não há maneira de telefonar... onde poderei encontrar hospedagem mais próxima para passar a noite?

 

A pensão mais próxima...

 

O homem hesitou, parecendo reflectir demoradamente.

 

Têm de ir até Martre, porque Fournery, que fica mais perto, compõe-se de dez casas... e não tem nenhuma espécie de hotel, como é de calcular.

 

A que distância fica Martre? indagou André, enquanto a mãe se aproximava, inquieta.

 

Hum! A uns doze quilómetros... e sempre a subir!

 

Mau, mau! comentou André, dando com a boca um estalido de aborrecimento, acompanhado por uma exclamação horrorizada da senhora.

 

É claro que não é ali ao voltar da esquina comentou o homem, que parecia encarar filosoficamente o mal do próximo.

 

Perplexo, André consultava a mãe com o olhar antes de tomar uma decisão. Nesse momento o homem voltou-se e afastou-se da janela, solicitado, sem dúvida, por qualquer observação que lhe faziam do interior da casa.

 

Esperem! resmungou.

 

André ficou mais animado. Aquela gente, tão hostil ainda há pouco, iria humanizar-se a ponto de lhe oferecer a ele e à senhora Joranne a hospitalidade da sua casinha rústica?

 

O homem trocava com a invisível companheira algumas palavras em voz baixa... tão baixa que os seus auditores não conseguiram apreender a mais leve palavra... Depois, o antipático bigodeiro reapareceu entre os batentes entreabertos.

 

Esquecia-me de lhes indicar Fonscouloiibre, a três quilómetros daqui, no cimo desse monte em frente... se andarem bem, basta uma hora para lá chegarem.

 

Que é isso de Fonscauloubre? retorquiu o médico sem poder reprimir uma careta.

 

Sonhara outra solução!

 

É o castelo.

 

O castelo?... E supõe que estarão dispostos a receber-nos?

 

É claro. Durante o verão aceitam hóspedes e têm quartos sempre preparados.

 

Bem... sendo assim...

 

Olhe indicou ainda o guarda, que visivelmente ansiava por se ver livre dos exigentes desconhecidos. Tomem pelo atalho que sobe através da mata. Vêem-se, do outro lado da linha?

 

Nesse momento, o homem foi mais uma vez chamado de dentro. A sua obstinada companheira propunha-lhe, sem dúvida, outra solução.

 

Belo! concluiu André. A garota, apesar de arisca, interessa-se por nós...

 

Dizia por nós, mas pensava por mim, experimentando com isso oculta satisfação.

 

Querem uma lanterna? ofereceu o porta-voz da juvenil guarda da linha.

 

Obrigado. Tenho a minha lâmpada de bolso replicou André com um vislumbre de mau humor.

 

Era então aquela a única prova de interesse que lhe dava?

 

Agora, boa viagem!

 

E fechou a janela com uma pancada seca.

 

André Joranne reprimiu um suspiro.

 

Na sombra, a senhora Joranne sorria. Não que a perspectiva desse passeio de três quilómetros, de noite e por caminhos desconhecidos, lhe fosse agradável, mas conhecia suficientemente o filho para observar o seu desapontamento.

 

Foi um sucesso! concluiu com inocente gracejo. Confessa que preferias outra coisa?

 

É claro concordou ele, tomando alegremente o seu partido seria muito mais agradável falar com a pequena do que com esse velho rabugento.

 

Não duvido!... E agora que vamos fazer?

 

Que vamos fazer? Seguir o conselho desse imbecil. Não temos outra solução. Vamos pedir hospitalidade a Fouscoulaubre...

 

Que novas surpresas nos estarão reservadas? - suspirou a senhora Joranne, erguendo as mãos para a sombria abóbada celeste.

 

Ora! Em lá chegando, veremos.

 

E, sem mais hesitações, André deu o braço à mãe e meteu-se pelo atalho.

 

Maria Cláudia acordou no seu quartinho claro com as paredes de um branco-azulado, caiadas de fresco.

 

Lá fora a claridade rósea da madrugada envolvia as colinas e os casais de telhados pontiagudos, que se alcandoravam de rocha em rocha até ao vale.

 

”Que horas serão?” pensou Maria Cláudia, esfregando os olhos.

 

Como resposta chegou-lhe aos ouvidos o chocalhar dos baldes e o martelar de tamancos no lajedo já gasto do pátio.

 

”Nanon vai mungir as vacas. São seis horas” concluiu Maria Cláudia.

 

Erguida sobre um cotovelo, ouviu, em qualquer parte, vindo talvez no estábulo próximo, o tinir das correntes que as vacas, impacientes, agitavam.

 

Afastou, então, preguiçosamente, os lençóis e bocejou, deixando ver o céu da boca, rosado como o dum animalzinho novo e vigoroso e os alvíssimos dentinhos... O bocejo, porém, terminou num arrepio.

 

”Brr!... Está fresquinho!...”

 

Ia aninhar-se de novo debaixo dos cobertores quando uma ideia a fez levantar de repente.

 

”Arriba!” exclamou com brusca decisão.

 

Quando os morenos pezitos tocaram o sobrado nu, fez uma careta e apressou-se a enfiar as chinelas.

 

O espelho do toucador devolveu-lhe a confusa imagem de um rostozinho ensonado, eriçado de madeixas cor de ébano, em desalinho.

 

”Muito feiazinha estás esta manhã!” declarou à sua imagem, deitando-lhe a língua de fora, num ademane travesso.

 

Em seguida, tropeçando na comprida camisa de noite, qual garotita ou colegial, correu para o quarto vizinho cuja porta se conservava aberta.

 

Mamã... mãezinha?...

 

Um olhar para o leito onde a colcha de rendas se estendia sem uma ruga sobre a curva arredondada no colchão de penas, outro olhar à cadeira arrumada no lugar habitual, e ao genuflexório encimado pela pia de água benta e colocado num cantinho discreto, e a jovem convenceu-se, por fim, de que a ocupante do quarto se havia levantado há muito.

 

Os olhos de Maria Cláudia revelaram enternecida expressão.

 

”Os cuidados que teve para não me acordar!... Querida mãezinha!...”

 

O reflexo de profunda adoração suavizou as feições juvenis, mas, quase logo, com a espantosa mobilidade que parecia ser o traço dominante do seu carácter, Maria Cláudia, leve e ágil, envolta na comprida camisa, correu para o aposento contíguo.

 

Era ali que, em seguida à morte do senhor Hameline, havia precisamente dez anos, ela adormecia todas as noites ao abrigo da meiga protecção materna.

 

Bem disposta e alegre, cantarolando trechos de canções ingénuas, lavou-se, não sem que a frialdade da água lhe arrancasse gritinhos, e enxugou-se a áspera toalha; depois vestiu-se, rápida, e precipitou-se para a janela, sempre saltitando como um passarito.

 

Pelo carreiro descia uma pastora atrás do seu rebanho de carneiros. Das quatro ou cinco choupanas agrupadas em volta do adro da humilde igreja subiam grunhidos de animais. Sob o céu das seis horas um céu muito puro de tons rosados de pérola a vida desse rústico cantinho da montanha despertava e renascia.

 

Maria Cláudia contemplou a massa dos castanheiros de folhagem cor de ouro que se estendia a seus pés, aspirou o perfume fresco que subia do vale com os ruídos um pouco amortecidos e apagados pela humidade do ar e suspirou:

 

”Chegou o outono!...”

 

Como que a seu pesar fechou a vidraça...

 

Desceu à cozinha, uma cozinha de tectos baixos e quente, em cujo armário se ostentavam pratos de faiança de cores vivas. Mal entrou, deliciou-a o agradável aroma do café.

 

Mãezinha! -chamou a voz harmoniosa.

 

E, ligeira, correu pelo chão lajeado para Hameline, que se encontrava perto da chaminé.

 

Já a pé, meu amor?

 

E depôs na fronte fresca um beijo de infinda ternura.

 

-Estou envergonhada porque te deixei sozinha com tanto trabalho esta manhã... Por que não me chamaste?

 

Dormias tão bem! desculpou-se a senhora Hameline, sorrindo. De resto, deram agora seis e meia. Ainda é cedo.

 

Emolduradas pelos bandós de cabelos escuros, por entre os quais se viam já alguns fios prateados, as feições tinham o desenho correcto dos rostos das madonas que se vêem encimando os pórticos das velhas igrejas provincianas.

 

Não obstante o grosseiro avental que lhe cingia os quadris o seu porte era verdadeiramente distinto e o corpo, moldado no simples vestido preto, conservava uma harmonia de linhas que a idade não conseguira destruir.

 

Vou dar de comer às galinhas! declarou Maria Cláudia, apressada, dirigindo-se a um canto e tirando do cabide um avental azul de peitilho bordado.

 

Almoça primeiro. O café está feito. Porém, a rapariga abrira já a porta. Imediatamente surgiu um vulto escuro que saída da casinhola ao lado. Uma cadela de pastor, de pêlo áspero e cor fulva precipitou-se, saltando, erguendo-se nas patas, roçando o focinho húmido pelos calcanhares da dona, dando, enfim, as maiores demonstrações de entusiasmo.

 

Eh! lá! exclamou esta rindo, curvando o corpo flexível para acariciar o animal; queres atirar-me ao chão!?... Então, quieta, minha menina!... Vamos à capoeira. As tuas amigas esperam-te...

 

Do outro extremo do pátio, por detrás da rede de arame galináceos atropelavam-se com estrídulos cacarejos, esperando a chuva dourada da aveia que, como maná do céu, iria cair nos seus domínios.

 

Meu Deus! Como toda esta gente está apressada hoje! exclamou jovialmente Maria Cláudia, atravessando o pátio a correr, perseguida pelos sonoros ladridos de Finette, cuja alegria ruidosa não conhecia limites.

 

Então, no limiar da porta, apareceu o vulto da senhora Hameline.

 

Ouve, querida!...

 

Maria Cláudia voltou-se. A mãe avançou alguns passos: colocava um dedo nos lábios, com ar misterioso.

 

Não faças tanto barulho, vais acordá-los...

 

Acordá-los?...

 

Nas pupilas da jovem lia-se o maior espanto.. O olhar acompanhou o gesto maternal que indicava uma dependência do castelo, de pedra escura e telhado vermelho.

 

Acordá-los... Mas quem?

 

Os nossos hóspedes...

 

Maria Cláudia aproximou-se com vivacidade. No avental arregaçado guardava ainda a ração dos animais.

 

Mas... eu não sabia declarou, perplexa.

 

Pois é claro. Chegaram esta noite pelas dez horas. Tu dormias a sono solto... e eu estava já deitada também. Foi a Nanon quem lhes abriu a porta... Em seguida acomodei-os nos quartos do segundo andar, que dão para o castelo. São os menos frios.

 

Esta agora! murmurou Maria Cláudia, muito interessada.

 

Esqueceu as galinhas e a cadela que se sentara no chão a seu lado, pronta a saltar à primeira voz.

 

É curioso... não ouvi nada... nem sequer a sineta.

 

Não a tocaram... Limitaram-se a bater à porta. Estava muito escuro e eles vinham fatigadíssimos.

 

Maria Cláudia olhou para a mãe.

 

Que ideia, chegarem a semelhante hora!

 

São turistas, vítimas de uma panne e que não encontraram abrigo mais próximo... indicaram-lhes a nossa casa, mas não calcularam que a subida fosse tão custosa.

 

Cada vez mais intrigada Maria Cláudia arqueava as delicadas sobrancelhas. Era tão raro receberem visitas, principalmente naquela época do ano, que essa chegada imprevista constituía para ela inesperada ventura.

 

Turistas detidos por uma panne... Nesse caso é possível que não se demorem! observou desapontada.

 

Sim... É de calcular.

 

Maria Cláudia encolheu os ombros, reprimindo leve suspiro.

 

Que pena!

 

Pensativa por momentos, indagou quase logo:

 

Quantas pessoas são?

 

Duas... um rapaz e uma senhora de idade... Uma ruga vincou a fronte de Maria Cláudia, que parecia reflectir...

 

Sabes donde vêm?

 

A senhora Hameline começou a rir.

 

À hora a que chegaram e extenuados como se encontravam... principalmente a senhora... não os obriguei, como decerto supões, a preencher o boletim!... Vais tu levá-lo daqui a pouco... e logo ficarás informada minha grande curiosa!

 

A mão delicada, cujo traço harmonioso os pesados trabalhos caseiros haviam respeitado, apoiaram-se no queixo da filha, obrigando-a a levantar a cabeça. As pupilas claras mergulharam naquelas outras aveludadas e salpicadas de pontos de ouro.

 

Interessa-te muito, essa gente? Maria Cláudia fez um trejeito.

 

Como todos os que passam por Fonscouloubre... É tão raro vir para aqui alguém!

 

No olhar pensativo da senhora Hameline passou uma sombra de melancolia.

 

Tens razão, filhinha, confesso!... Não encontras aqui as distracções próprias da tua idade!...

 

Num impulso, os braços de Maria Cláudia rodearam o pescoço materno.

 

Porque dizes uma coisa dessas, mãezinha! Como se eu pudesse aborrecer-me estando a teu lado!... Se tivesse de me separar de ti, então sim, não voltaria a ter alegria!

 

A cabeça grisalha conservou-se uns segundos unida à cabecita da morena.

 

Algum dia terás de me deixar...

 

Nunca!... Ouves bem, mãezinha, nunca! Libertou-se dos braços da mãe deixando ver a expressão exaltada e as faces vermelhas pela emoção devida a essa perspectiva.

 

Hameline sorriu docemente. O olhar parecia rejuvenescido por uma claridade nova.

 

Criança!...

 

Ui! exclamou André Joranne, mal desperto ainda do pesado sono. Dormi como uma pedra!... Deve ser horrivelmente tarde...

 

Nem o mais pequeno rumor interrompia a calma silenciosa do aposento, mas o sol, já alto, penetrava ali, não obstante as persianas fechadas e os duplos cortinados, e difundia-se pelos objectos cujos contornos arrancava pouco a pouco da penumbra.

 

O olhar indolente de André analisava as imagens desconhecidas que iam surgindo: o armário barrigudo, uma cómoda atiga colocada entre as duas janelas, o reflexo esverveado de um espelho que brilhava por cima do tremo de estilo, na madeira esculpida, a mesita Império sobre a qual, um naperon de finas rendas se via a garrafa da água em cristal opalino a que o sol arrancava cintilações irisadas.

 

No ar pairava um aroma indefinido, misto de fruta madura e desse outro mais subtil ainda que emana dos objectos antigos e preciosos...

 

”Extraordinário hotel!” pensou o rapaz, cuja atenção se voltou para o leito que ocupava.

 

Achou graça ao ver-se tão acima do chão: um enxergão alto e dois colchões, não contando o terceiro, de penas e muito fofo, contribuíam para dar ao leito a sua majestosa altura.

 

”Que singular aventura!” proferiu em voz alta, distendendo, enérgico, os braços musculosos.

 

De cérebro já desanuviado, pesou a situação. As circunstâncias apareceram-lhe com todas as suas consequências imediatas e desagradáveis: o auto imobilizado, na estrada, a alguns quilómetros de distância... teria de telefonar para a cidade mais próxima a fim de obter um mecânico... que chegaria Deus sabe quando!... Depois, a reparação do caprichoso carro demoraria talvez algum tempo... Quem sabe se não seriam obrigados a recorrer a outro meio de condução para alcançar a Abadia...

 

Esta perspectiva seduzia-o pouco... de resto, tanto como a de ter de se submeter a esse exílio forçado na propriedade de recreio dos seus amigos Millane, tão longe da capital.

 

Acudiram-lhe à memória as circunstâncias que o haviam forçado a essa estada e, de súbito, tornou-se sombrio.

 

De tudo, o que lhe fazia mais falta, devia confessar, era o trabalho. Amava apaixonadamente a sua profissão e havia sido mesmo com certa relutância que entregara a direcção da clínica ao substituto.

 

Quanto ao resto, ligava-lhe importância relativa. De longe, os factos tomavam as devidas proporções e, agora, experimentava apenas por eles um desprendimento absoluto e uma espécie de vácuo imenso o deixava totalmente desiludido.

 

Para fugir a estes pensamentos e a esse estado de espírito, alimentado talvez pela tepidez do leito demasiadamente macio, levantou-se, ansioso por aspirar uma atmosfera mais pura e sadia.

 

Correu o cortinado e abriu as persianas. O sol entrou triunfante com o cheiro fresco da terra molhada e o aroma acre de marmelos maduros. Mesmo debaixo da janela dois marmeleiros vergavam ao peso dos frutos dourados.

 

A paisagem encantou Jorane. Na noite anterior mal a adivinhara. Amparando a mãe, cuja fadiga aumentara de momento a momento, toda a atenção se tornara pouca para percorrer o caminho envolto em trevas, íngreme, escavado e cheio de covas como o leito de uma torrente. Maldiziam ambos a triste ideia que os impelira a seguir o conselho do guarda da linha. Teria o homem querido zombar deles?

 

Fazer semelhante caminhada, de noite, por uma estrada direita, ainda vá, mas trepar aquele carreiro de cabras, impregnado de humidade e de emanações de água estagnada! E depois, lá em cima, que poderiam eles encontrar?... Um abrigo, sim, mas desprovido de todo o conforto e asseio, seria o mais provável!...

 

Pequena tabuleta indicadora, cuja inscrição rudimentar Joranne decifrou com o auxílio da lâmpada de bolso, confirmou-lhe a existência do castelo de Fonscouloubre, justamente quando começavam já a considerá-lo um mito criado pela imaginação de um camponês disposto a gracejar, e reanimara-lhes as energias esgotadas no momento em que, fatigados de subir, se dispunham a retroceder.

 

Coragem, estamos a chegar! dissera Joranne, amparando sua mãe.

 

Com efeito, decorridos dez minutos viam surgir, recortando-se confusamente no fundo sombrio do firmamento, dois vultos escuros, as autênticas torres do castelo de Fonscouloubre.

 

Ao redor, um edifício baixo, pesado... agrupadas mais além algumas casitas pequenas e tudo isto com o aspecto fantasmagórico da noite sem luar.

 

Guiou-os o ladrar de um cão quando, hesitantes, não sabiam onde dirigir-se. Finette, no pátio da quinta, ao pressentir a chegada insólita dos recém-chegados, agitava, inquieta, a corrente.

 

André arrastou a mãe na direcção desse ruído o único que indicava a existência de um ser vivo na aldeia adormecida.

 

Nesta terra deitam-se todos muito cedo

 

observou, enquanto batia à porta com energia.

 

Meu Deus! proferira a voz desfalecida da senhora Joranne. Contanto que consintam em nos receber! Seria na verdade uma infelicidade espantosa treparmos em vão até esta aldeia perdida na montanha.

 

Bem perdida, de facto... E pergunto: que mais nos esperará ainda?

 

Tranquilizara-os a aparição de alguém de touca branca, à janela, cujas persianas acabavam de se abrir, por cima das suas cabeças.

 

Com a sua voz decidida e onde vibrava a costumada autoridade, André pediu hospitalidade. E, pela pressa com que a mulherzinha correu a abrir-lhe a porta, concluíram que todos os seus receios haviam sido infundados.

 

Pouco depois a dona da casa aparecera na sala baixa onde a criada os introduzira e onde a senhora Joranne se aquecia junto do fogo rapidamente reavivado.

 

Com simplicidade, apresentou-se aos seus hóspedes:

 

Sou Hameline, dona de Fouscouloiibre...

 

O seu aspecto distinto e porte fidalgo, não obstante a atitude simples e trajo modesto, surpreenderam o médico.

 

Hamelin dispunha-se a mandar servir-lhes uma refeição... mas a viajante, extenuada, só ambicionava um leito fresco e macio onde repousasse. Tomou apenas um grogue, bem quente, enquanto André, com o apetite próprio da idade, fazia honra ao saboroso presunto e aos ovos estrelados que Nanon lhe viera servir.

 

Sentado à comprida mesa da cozinha, de madeira escura e avermelhada, apresentando nalguns pontos entalhes feitos pelas facas dos pastores, e de pernas estendidas num cómodo à vontade, pela primeira vez naquele dia, tão fértil em incidentes, ele achara a vida bela e digna de ser vivida.

 

A senhora Hameline desculpou-se por não abrir a hora tão tardia a casa de jantar.

 

Nesta altura não nos utilizamos dela explicou com voz suave e pronúncia correcta. Nunca temos pensionistas nesta época... Receio também que os quartos lhes pareçam muito frios, não obstante ter mandado acender o fogão.

 

E, de facto, fora um lume alegre, cujas centelhas pareciam cantar, que acolheu André no aposento onde o conduziram para passar a noite... mas nem sequer teve tempo para o admirar... pois o sono empolgava-o nas suas garras tirânicas...

 

Atirou o fato ao acaso para cima de uma cadeira e adormeceu envolto nesse perfume delicioso de resina e de sarmentos que não se lembrava de respirar desde os longínquos tempos da sua infância... tendo ainda a feliz surpresa de encontrar a cama aquecida por uma botija, delicada atenção de Nanon.

 

No fim de contas, ainda tivemos uma verdadeira sorte! concluía agora nessa manhã, apoiado no parapeito da janela e observando, curioso, a paisagem que o rodeava.

 

A seus pés um mar de folhagem cor de cobre galas sumptuosas de outono dos castanheiros e plátanos ondulava, cobrindo o pátio, vasto quadrilátero que separava a granja do castelo.

 

Este último apresentava um aspecto inesperado, a fachada no mais puro estilo Renascença terminando por dois torreões; uma verdadeira jóia arquitectónica que ninguém esperaria encontrar em semelhante lugar.

 

Diante da escadaria de pedra estendia-se um lago calmo, misterioso e glauco, semeado de largas folhas aquáticas.

 

Demónios me levem se conhecia a existência desta relíquia! murmurou André, acendendo o seu primeiro cigarro. E tenho de confessar que não é feiazinha de todo!

 

O mau humor desaparecia a pouco e pouco para dar lugar a uma espécie de bem-estar proruzido pela contemplação desses campos desconhecidos, ao longo dos quais o outono arrastava já o seu manto dourado e melancólico.

 

Lembrou-se de ir acordar a mãe que ficara instalada no mesmo andar, num quarto na extremidade do corredor... Depois pensou que seria melhor deixá-la descansar. Havia tempo. Mais tarde se tomariam disposições referentes ao carro. Agora era preferível gozar o imprevisto da situação.

 

De repente, sentiu vontade de comer. O ar fresco da manhã abrira-lhe o apetite.

 

Reparou que perto da cama, pendia o cordão arcaico de uma campainha e puxou-o. No silêncio da casa uma sineta ecoou e, pouco depois, uns passinhos rápidos percorriam o mosaico do corredor.

 

Ouviram-se duas leves pancadas no batente da porta.

 

O meu almoço! pediu Joranne através da porta fechada. Café sem leite e pão com manteiga, se for possível.

 

Chegou-lhe aos ouvidos uma resposta confusa no dialecto da região... e os passos afastaram-se.

 

A cozinha deve ficar noutro ponto da casa. Não se ouve nada para estes lados comentou o jovem cirurgião, a quem, segundo parecia, agradava imenso tamanha tranquilidade.

 

Recordou que, de facto, na véspera, para chegar ao quarto tivera de percorrer um dédalo de corredores enquanto a criada os precedia com o candeeiro de petróleo aceso, cujos reflexos luminosos pareciam dançar no tecto. Aquela edificação devia ser enorme.

 

”Em conclusão, um hotel curioso e cuja dona é muito amável. Que terá ela de comum com este castelo de aparência tão remota?

 

Estes pensamentos cruzavam-se-lhes descuidadamente no cérebro enquanto, diante da janela aberta, executava os movimentos rítmicos a que habituara o corpo todas as manhãs.

 

Esse primeiro dever físico com que inaugurava o dia provocava-lhe excelente disposição. Pouco depois, assobiando, dava-se ao trabalho de fazer a barba... felicitando-se por, na véspera, antes de abandonar o automóvel, ter tido a boa ideia de trazer consigo a pequena mala que continha o pijama e os objectos de toilette indispensáveis.

 

Uma pancadinha na porta interrompeu-lhe o estribilho e desviou-lhe o curso dos pensamentos.

 

Entre!...

 

A porta entreabriu-se... Um delicioso aroma de café moka penetrou no aposento com o leve ruído dos passos da portadora. A bandeja tilintou no mármore da mesa.

 

Aqui está o almoço.

 

Joranne voltou-se. Tinha uma das faces coberta de espuma de sabão e segurava na mão direita o pincel da barba.

 

Primeiro fixou com assombro a figurinha esbelta revestida com o seu avental bordado. Depois, franziu a testa...

 

Esta agora! resmungou.- Encontro-a em toda a parte!

 

O mesmo posso eu dizer a seu respeito! retorquiu ela, num tom brusco, agarrando na bandeja vazia.

 

Em seguida rodou nos calcanhares e desapareceu.

 

Joranne, com um movimento rápido, seguiu-a:

 

Menina!... Menina!... Vamos, não se zangue! Ouça cá...

 

Alcançou-a no corredor e, sem a magoar, mas com autoridade irresistível agarrou-a pelos ombros e fê-la dar meia volta.

 

-Diga-me! Foi ou não a menina quem ontem à noite vi nas cancelas agitando a lanterna vermelha à passagem daquele comboio?

 

Ela conservava-se diante dele, muito direita, de cabeça erguida, ao mesmo tempo impertinente e furiosa. No rectângulo de luz projectado na sombra do corredor pela porta aberta, via-a melhor do que na véspera: o oval do rosto, a tez cetinosa e tão fresca que dir-se-ia ser branca quando, afinal, apresentava um tom de âmbar levemente carregado, orelhas pequeninas e rosadas, olhos grandes, escuros e aveludados semeados de pequeninos pontos de ouro.

 

Conservava a bandeja encostada ao peitilho do avental e fitava o seu interlocutor com hostilidade... De repente, o rostozinho feroz distendeu-se... Um clarão malicioso brilhou no corte levemente oblíquo das pálpebras... a boca carnuda entreabriu-se num movimento irresistível para deixar ouvir a gargalhada mais alegre, mais trocista e mais cristalina que se possa imaginar...

 

Depois, como que envergonhada pelo intempestivo ataque de riso, libertou-se das mãos que maquinalmente lhe prendiam ainda os ombros e, deitando a correr pelo corredor, desapareceu na escada com a vivacidade de uma cotovia esperta, enquanto o eco argentino das frescas gargalhadas chegava aos ouvidos de Joranne, completamente abismado.

 

Que tem ela? disse em voz alta, meio humilhado, meio intrigado, voltando para o quarto com passo vagaroso.

 

Foi então que se viu reflectido no espelho, de pincel em punho... uma das faces coberta de espuma branca, o ar espantado e nos olhos uma expressão de perplexidade...

 

Sorriu, divertido a seu turno:

 

”Endiabrada garota!...”

 

E não mais pensou no caso.

 

Quando acabou de almoçar com excelente apetite, voltou a encontrar-se à janela. A paisagem respirava calma e doçura. A claridade luminosa do outono, muito suave, levemente dourada, espalhava-se pelos campos que desciam em declive, acariciava a folhagem avermelhada dos castanheiros, arrancava cintilações prateadas ao espelho cristalino da água que se estendia aos pés desse castelo estranho erguido na montanha como um ninho de águias. Em redor, o silêncio imperava como soberano.

 

Na verdade, ali esquecia-se a existência de Paris e a sua vida agitada!...

 

Realmente, não deve ser desagradável repousar algum tempo nesta região tão calma e sossegada.

 

Depois, o seu pensamento vagabundo voou para novos horizontes...

 

Na memória reviveram imagens adormecidas... Em vão tentou expulsá-las. Não o conseguiu. Lábios sensuais e pupilas ávidas surgiam no écran das suas recordações.

 

Mau! exclamou aborrecido.

 

E sacudiu os ombros como se quisesse libertar-se de pesado fardo.

 

Baixinhos e atarracados, os marmeleiros, carregados de frutos resplandecentes, evocavam a visão de um jardim das Hespérides. Um perfume adocicado enchia a atmosfera e envolveu André, mal este apareceu no pátio.

 

Bem-posto, barbeado de há pouco, a pele moça levemente crestada e a farta cabeleira deitada para trás, deixando a descoberto a testa bem modelada, davam-lhe uma aparência de mocidade e de força.

 

Contemplou o firmamento, de um azul transparente e suave, com leves nuvens prateadas e depois avançou, hesitante, sem bem saber para onde dirigir-se... Quando passou junto do cerrado, interpelou-o uma voz jovial:

 

Hu! hu!... Deseja alguma coisa? Avistou, encostada ao tronco de uma árvore,

 

uma escada de mão. Como se aproximasse do valado descobriu, empoleirada no último degrau, a figura graciosa de Maria Cláudia.

 

Para o interpelar, inclinara um pouco para a frente o busto flexível... e, com esse movimento, o cesto, já quase cheio de belos frutos, semelhantes a blocos de ouro puro, ameaçava transbordar.

 

O médico transpôs o valado, aproximou-se da árvore e ergueu os olhos para essa radiosa visão.

 

Cuidado!... Vai deixá-los cair!... avisou num jeito, para endireitar o cesto perigosamente inclinado.

 

Não teve, porém, tempo de o segurar... e uma porção de marmelos tombou-lhe em cima da cabeça.

 

E então!... Que lhe dizia eu! exclamou, dando um salto para o lado, a fim de evitar essa chuva intempestiva.

 

Maria Cláudia soltou um gritinho e tapou a boca com a mímica de uma criança ao cometer uma travessura.

 

Desculpe!... Acredite que não o fiz de propósito.

 

Mas, involuntariamente, os olhos riam enquanto confessava desolada:

 

-Ando em maré de pouca sorte!

 

Também eu replicou André, rindo. Observava-a, interessado, e ela sorria-lhe com inesperada simpatia.

 

É curioso... comentou, decorridos instantes, e meneando a cabeça.

 

O quê?

 

Dá-me a impressão... de um Frégoli... mas um Frégoli encantador, com gracioso avental azul.

 

Frégoli... Que quer isso dizer?

 

Frégoli é um homem que se transforma com facilidade... E a menina não é também uma garota hábil em transformar-se?...

 

Garota!... protestou ela, ofendida. Engana-se. Não sou nenhuma petiza. Já fiz dezoito anos.

 

Dezoito anos!

 

Desde o S. João...

 

Ora vejam!... Tão velhinha!... E não tem cabelos brancos?...

 

Como o senhor?... objectou, apontando a madeixa prateada que maculava, num único ponto, o negro retinto dos cabelos de Joranne.

 

Eu tenho trinta e dois anos!

 

É novo ainda afirmou ou, pelo menos, bastante novo para ter assim os cabelos brancos... Algum desgosto? informou-se com súbito interesse.

 

Ele gracejou:

 

Que me fizesse branquear a cabeça numa só noite, como sucede nos romances-folhetins?...

 

Não. Isto é de família... Há seguramente dez anos que esta madeixa prateada apareceu e o mesmo sucedeu a meu pai. Faz parte do nosso património.

 

Não é feio admitiu ela, em amável apreciação.

 

Agradeço-lhe a sua indulgência retorquiu André, rindo alegremente.

 

Contemplava-a com prazer, empoleirada na escada, a cabeça graciosa toucada pela folhagem do marmeleiro, cujos pesados ramos lhe emolduravam o fino rosto.

 

Que rapariguinha tão enigmática! exclamou, após breve silêncio. Ontem era guarda de nível, com a pesada capa, agitando com a mão a lanterna vermelha; esta manhã uma gentil criadinha de avental cor do céu equilibrando nas mãos a bandeja do almoço... Agora aparece-me como a ninfa tutelar deste caminho silvestre... Na realidade, quem é a menina?

 

De novo o semblante se iluminou... Travessa e misteriosa, fez um gesto vago:

 

Chi Io sã...

 

Também fala italiano?

 

Isso sim! retorquiu, saltando do seu poleiro com a ligeireza de um esquilo. É maneira de dizer.

 

Já no chão, curvou-se diante dele, levantando um pouco a saia na ponta dos dedos numa reverência cerimoniosa e propositadamente afectada, cuja graça ele apreciou.

 

Maria Cláudia Hameline, uma sua criada.

 

Maria Cláudia!... Que lindo nome. Eu sou André Joranne, médico.

 

Ela estendeu-lhe a mão, morena e esguia, de uma finura extrema.

 

André apertou-lha exageradamente, grave e”” solene, para harmonizar com a nova atitude que ela adoptara.

 

Posso ser-lhe útil em qualquer coisa? inquiriu, atenciosa, como verdadeira dama de sociedade.

 

Exactamente... Desejava telefonar.

 

Aqui não temos telefone. Vou conduzi-lo à aldeia.

 

Ao mesmo tempo, ia desatando as fitas do avental.

 

Lançou uma olhadela à escada e ao tapete de folhas secas que aos pés das árvores brilhava, juncado de frutos.

 

Vim arrancá-la à sua agradável tarefa.

 

Não tem importância! retorquiu Maria Cláudia despreocupada. Concluirei depois a minha colheita. O tempo ainda se conservará bom durante uma semana.

 

É profeta? perguntou o médico, oferecendo-lhe a mão para transpor o valado.

 

Não... mas estou habituada.

 

Tomou de novo o ar grave e peremptório que tanto divertia Joranne.

 

Atravessaram o pátio um ao lado do outro, o médico esforçando-se por regular os seus passos largos pelos dela, e pararam diante da janela da cozinha.

 

Espera um momento, sim?

 

Atirou o avental com ligeireza para os braços da criada, que acabava de aparecer com sua touca branca.

 

Nanon, dize à mãezinha que fui acompanhar o nosso hóspede à loja de Jaquenaude.

 

Alcançou o hóspede, que se afastara por discrição, e dirigiram-se para o pesado portão encastrado nos pilares de pedra carcomida.

 

É perto sossegou ela mesmo no centro da aldeia.

 

Finette saltara da casota e seguia-os com o passinho miúdo, de focinho baixo, encostado à saia da dona.

 

O caminho é péssimo notou Joranne, que não conseguiu reprimir uma careta à vista do lameiro negro que em diversos pontos se estendia diante dos humildes casebres.

 

A Câmara não tem verba replicou ela, corando.

 

O médico receou ter-lhe ferido o amor-próprio de filha de Fonscouloubre.

 

No entanto, a sua casa é pitoresca... emendou e o castelo parece magnífico...

 

Lindo, não é verdade?

 

Pela vivacidade da resposta e pelo rubor que lhe coloriu as faces até à raiz dos cabelos escuros, compreendeu que acabava de lhe dar grande alegria.

 

Há-de visitá-lo prometeu de olhar brilhante.

 

E ao ouvi-la dir-se-ia anunciar-lhe maravilhosa recompensa.

 

Infelizmente, não sei se terei tempo para isso declarou, traduzindo delicado pesar.

 

Conta retirar-se breve?

 

Pronunciara a frase em tom de desolada censura, erguendo para ele o rosto desapontado.

 

Tem pena? inquiriu ele, incrédulo.

 

Pois com certeza!... Queria mostrar-lhe tanta coisa ainda... o castelo... a mata dos castanheiros... a igreja, muito antiga...

 

Enumerava-as contando pelos dedos, atenta e preocupada, não fosse esquecer alguma atracção susceptível de lhe despertar o interesse.

 

Intimamente, André apreciou essa ausência de afectação, essa espontaneidade que estava tão pouco acostumado a encontrar nas suas belas clientes.

 

O seu olhar, subitamente isento de ironia, procurou o dela.

 

Simpatiza então comigo, não obstante a nossa discussão de ontem? - observou.

 

Sem dúvida... E depois, minha mãe está menos triste quando temos hóspedes.

 

É por sua mãe que...

 

E por si também emendeu ela, rapidamente, porque, observadora, notara, no tom menos afável da voz dele que a sua explicação lhe esfriara o entusiasmo.

 

Ergueu para ele os olhos meigos... uns olhos estranhos, algo anamitas devido ao corte oblíquo, mas nos quais se podia ler sinceridade e pureza absolutas.

 

Os lindos cabelos, sedosos, fartos, plenos de seiva, caíam à vontade com as pontas levemente encaracoladas. E, quando sacudia a cabecita, essa cabeleira dava-lhe um aspecto quase selvagem. Inconscientemente, André evocou as rapariguitas exóticas de um filme recentemente visto: Sombras Brancas.

 

Vive aqui todo o ano? interrogou, enquanto Maria Cláudia, uns passos adiante dele, pulava de pedra em pedra, incapaz de regular o seu passo saltitante pelo andar pausado do médico.

 

Vivo, sim...

 

Pois quê!... Nunca abandona esta solidão?... Mas deve ser terrível!... proferiu, contemplando-a levemente penalizado.

 

Maria Cláudia encolheu os ombros, indiferente.

 

Não tenho tempo para me aborrecer...

 

Ah! sim?! observou ele, incrédulo.

 

Há muito que fazer, fique sabendo.

 

E seria indiscreto perguntar quais as suas ocupações durante as horas em que não guarda a linha ou colhe fruta?

 

Teve de novo o seu sorriso malicioso acompanhado por um engraçado franzir de sobrancelhas.

 

Intriga-o a minha presença de ontem na linha, não é verdade?

 

Para ser franco, confesso que ainda não percebi...

 

Ouça dignou-se explicar, condescendente e logo compreenderá. Aqui, em Fronscouloutre, vivemos isolados e longe de tudo de modo que o abastecimento se torna muito difícil. De Verão ainda passa: o padeiro vem de dois em dois dias e temos carne três vezes por semana...

 

Mas mal chegam as primeiras chuvas, os fornecedores não se dão ao incómodo de subir a montanha... Então, cada um trata de se arranjar conforme pode. Jeannette, a guarda da linha, quando vai à vila, todas as terças-feiras, acede a fazer-nos as compras. É claro que, ao ausentar-se, é o marido quem a substitui... contudo, acontece às vezes que este é também requisitado pelos proprietários da região para dar uma ajudazinha nos dias de maior faina... E então sou eu quem desempenha as funções da Jeannette, enquanto ela não retoma o seu posto... Ora foi essa a razão por que me encontrou dando passagem ao comboio...

 

Muito bem... assim, tudo se explica declarou André, que não cabia em si de espanto.

 

Intimamente admirava e achava engraçadíssima a forma como nessa terra de gente simples tudo se combinava em família, sem qualquer atrito ou complicação. Que diria a sacrossanta Administração se tivesse conhecimento dessa infracçãozinha dada ao regulamento!...

 

Não havia, porém, probabilidade de que a Administração viesse a saber da forma por que a guarda da linha, Jeannette, se arranjava, para sua comodidade e dos vizinhos!...

 

Provavelmente essa tarefa dá-lhe prazer? indagou o médico, olhando para a sua gentil companheira.

 

Imenso!... Se lhe parece!... Há quase catorze anos que não saio de Fonscouloubre...

 

Catorze anos! exclamou Joranne num brado de assombro.

 

Catorze anos de vida passados numa região isolada do mundo...

 

Sim, é isso mesmo confirmou ela, subitamente grave não saio daqui desde que a mãezinha regressou das Colónias com o meu pai, bastante doente. Ora, como vê, cá acima não vem ninguém. Não há, por assim dizer, caminho ou, pelo menos, estrada para carros... Quando aqui nos instalamos prometeram construir uma, mas não passou de promessa... E como a mãezinha não gosta de reclamar... Em resumo, pouca gente se atreve a visitar Fonscouloubre, apesar do seu encantador castelo. No Verão sucede às vezes termos dois ou três hóspedes... pessoas sossegadas que não gostam de barulho. No resto do ano só vemos carvoeiros ou pastores... Assim tudo me serve de distração até, quero dizer, essa de substituir a guarda da linha.

 

Fitou em André as pupilas brilhantes de sonho e de entusiasmo.

 

Quando o comboio passa diante de mim, espirrando ondas de fumo e resfolegando, não sei que sinto... Vejo as sombras escuras do maquinista e do fogueiro, curvadas sobre os manípulos da máquina... rostos desconhecidos através dos vidros... carruagens onde avultam, letreiros com nomes dos portos: Sèete... Marselha... ou das grandes cidades: Paris!... E fico perturbada e comovida... como se a locomotiva negra e fumegante tivesse o dom de me conduzir a todas essas coisas que não conheço, coisas magníficas que os livros descrevem: ruas brilhantes de luz, estabelecimentos deslumbrantes, cinemas...

 

”Um cinema!...”

 

Cruzou Sobre o peito as pequeninas mãos, vibrantes e ávidas.

 

Dizer que nunca vi um cinema... E, segundo parece, é lindo.

 

Encontrou, de súbito, o olhar estupefacto do médico e informou-se, inquieta:

 

Aborreço-o?... Ainda não me calei um minuto!... A mãezinha costuma chamar-me incorrigível tagarela confessou com um rubor de confusão que a tornava mais encantadora.

 

Não... não afirmou. Pelo contrário, tudo quanto diz me interessa imenso...

 

Para falar com franqueza aquele gentil fenómeno que chegara a 1937 sem nunca ter visto um cinema nem visitado uma cidade, deixava-o completamente assombrado!

 

”Será possível dizia de si para si que na nossa época existam ainda seres tão primitivos, criando-se como animaizinhos em plena natureza, ignorando todos os hábitos da vida moderna?...”

 

Aquela jovem era seguramente um desses exemplos... exemplo que enchia Joranne de espanto, mas que o encantava ao mesmo tempo. Abandonara, havia pouco, um meio tão falso e convencional que não podia deixar de se sentir felicíssimo ao encontrar-se de repente transportado por uma espécie de milagroso acaso, a um ambiente simples e primitivo.

 

Aqui está o posto do correio... anunciou a voz alegre de Maria Cláudia.

 

André avistou então um casebre ao qual dava acesso um degrau de pedra já gasto. Exposto por detrás dos vidros esverdeados que serviam de montra, via-se o mais curioso e heteróclito mostruário: bilhetes postais com motivos ingénuos, mas desbotados pelo tempo, carrinhos de linha, fivelas para cintos e toucas, fraternizavam com os frascos de bonbons multicores e pacotes de algodão hidrófilo.

 

O viajante não pôde evitar esta exclamação incrédula:

 

O posto do correio, aqui?

 

Sim, é aqui. E também há uma cabina telefónica e a Jacquenaude vende os selos.

 

Entrou atrás dela na lojita apertada onde uma mulher bastante nutrida se ocupava em despejar o milho de uma saca.

 

Bom-dia, Jacquenaude... Este senhor é nosso hóspede e deseja fazer uma chamada.

 

A mulher desfez-se em cumprimentos e, antes de estender a mão ao freguês, limpou-a cuidadosamente ao avental.

 

Em seguida, arrastando os tamancos dirigiu-se ao fundo da loja e abriu uma porta.

 

Por aqui se faz favor...

 

Vá... acompanhe-a insistiu Maria Cláudia, risonha.

 

Um tanto admirado, Joranne atravessou a curta distância que o separava da casa interior da loja. Saltou por cima de sacas de arroz, quase fez cair um monte de chouriços equilibrado num banco e entrou no aposento sombrio que devia servir ao mesmo tempo de casa de jantar.

 

Uma panela fervia na chaminé, exalando forte cheiro a lentilhas... Uma criança dormia no berço... e a um canto da casa, entre tabiques de madeira pintados de cinzento viu a cabina telefónica, encimada por um letreiro:

 

Estação de correio

 

Que extraordinária estação de correio!

 

E, transpondo o limiar desse recinto, que cheirava a fumo de cachimbo e a leite azedo, Joranne concluiu com divertido espanto:

 

”E que extraordinária terra também!...”

 

Do doutor André Joranne a Alberto Millane, Secretário de Embaixada, de licença na sua quinta da ”Abadia”.

 

Uzerche (Corrèze)

 

”Meu velho amigo:

 

”Não! Não é ainda esta carta que vai anunciar-te a nossa chegada. Julgo mesmo que será melhor não contares connosco. Suplico-te que não te ofendas nem te exaltes, alcunhando-me de traidor e mau amigo... Ouve primeiro as minhas explicações e acolhe-as com toda a indulgência.

 

”Na minha última carta que escrevi em seguida ao telegrama, contava-te, segundo creio, como, por deplorável fatalidade, eu e minha mãe tínhamos vindo parar, depois da panne do meu carro, a esta aldeia perdida no Maciço Central e que, a respeito de conforto e de civilização, se encontra ainda na época dos trogloditas.

 

”Expliquei-te que o mecânico, vindo de Limoges de propósito para consertar o carro, prognosticou uma biela partida e pediu três dias para fazer a reparação.

 

”A essa carta respondeste-me por telegrama, propondo-me amavelmente vires buscar-me aqui com o teu auto... Essa proposta valeu-te da minha parte um sincero e caloroso agradecimento... mas também uma recusa categórica.

 

”Não fiques mal disposto comigo, por causa disso, meu bom amigo. É que, nestas paragens, que de princípio me pareceram hostis e aborrecidas, encontrei durante as horas de forçada inacção a que me condenou este contratempo imprevisto tal sossego, tão grande tranquilidade de espírito, que não pude resistir à tentação de prolongar por mais tempo a minha permanência aqui.

 

”Deves compreender-me... Depois dos... acontecimentos que conheces, acontecimentos estúpidos que me forçaram a abandonar temporariamente Paris segundo opinião de minha mãe era uma questão imperiosa de conveniências e só Deus sabe como minha mãe leva longe o respeito das conveniências que chega a ponto de lhes sacrificar as suas mais queridas aspirações pois, como ia dizendo, após o meu... retumbante golpe de Estado, eu tinha, de facto, necessidade de um ambiente completamente novo.

 

”Convidaste-me para a tua aprazível Abadia... e fico-te imensamente reconhecido, a ti e à Genoveva. Não te oculto, porém, que aceitava contrariado esse convite, porque tinha a certeza de ir encontrar em tua casa um pouco desse Paris a que fugi... é isto mesmo, meu velho, não protestes!... Por certo não organizaste as tuas caçadas sem convidados, não é verdade?

 

”E, admitindo até que nenhum deles fosse conhecido, eu sabia de antemão que a minha presença em tua casa iria despertar curiosidades... Para os teus hóspedes eu sou Joranne... o doutor Joranne e, além disso, sou ainda, nesta ocasião, um sujeito particularmente original: o protagonista duma aventura... uma espécie de herói mundano que uns cercam duma auréola e outros censuram... Sim, sim, é escusado negar, eu bem sei que as opiniões divergem e que não foi por simples prazer que minha mãe desejou subtrair-me por umas semanas à curiosidade das multidões!...

 

”Pois bem! Imagina tu agora, meu amigo, que, por uma espécie de milagre, tive a sorte de vir cair num meio invulgar e típico no qual se supõe viver com alguns séculos de atraso. O nome de Joranne é aqui tão conhecido como o do Grão-Turco... Paris aparece aos olhos desta gente como um Éden inacessível, um paraíso mais difícil de alcançar do que esse que as Escrituras prometem como recompensa às virtudes terrestres.

 

”Não existem jornais... nem T. S. F... nem sequer electricidade. Os autos não podem subir até aqui... o padeiro, que vem três vezes por semana, a respeito de novidades traz apenas aquelas que colhe na pobre gazeta do distrito.

 

”Coloca-te no meu lugar e imagina a maravilhada surpresa que me causou a descoberta desta feliz tebaida!...

 

”Além de tudo isto, tive ainda a sorte de encontrar como hospedeira, em vez de rústicos e grosseiros camponeses, uma mulher perfeitamente educada que, em questões de delicadeza e discrição, poderia dar lições à maior parte das nossas elegantes da alta sociedade.

 

”Uma camponesa?... Não... Uma senhora, uma verdadeira senhora em toda a acepção do termo. Como pode ser isto? dirás, incrédulo. Como pode uma mulher tão distinta sujeitar-se a viver nesse retiro inacessível?...

 

”Também eu, de princípio, me admirei, mas tenho hoje a explicação desse enigma. O velho castelo de Fonscouloubre, magnífico exemplar arquitectónico do século XV, pertenceu sempre à família da senhora Hameline e constituiu o seu dote. O domínio compreendia, além disso, herdades e extensas terras... pobres terras cujo rendimento não bastava para fazer face às despesas do castelo!...

 

”Contudo, como nessa época a senhora Hameline possuía ainda certo capital... e tinham a mais os vencimentos do marido, um médico colonial, conseguiam viver com certo desafogo...

 

”Aconteceu, porém, que há poucos anos o doutor Hameline regressou a França atingido por uma dessas enfermidades adquiridas nas colónias e que dificilmente perdoam. A mulher pensou ainda que o ar pátrio, o sossego e o descanso poderiam restituir-lhe a saúde perdida e veio instalar-se com ele neste cantinho solitário. Com essa esperança inabalável das mulheres que amam e julgam por isso ser mais fortes do que o Destino felizmente ainda existem algumas para quem o amor significa abnegação e sacrifício dedicou-se a tratá-lo numa luta tenaz e constante.

 

”Essa luta... e talvez também outras causas que a crónica não menciona, arruinaram-na... (Apresso-me a acrescentar que a cronista é a senhora do correio que se encarregou de contar toda a história da senhora Hameline a minha mãe, que em seguida ma transmitiu...) Em resumo, depois da morte do marido a viúva encontrou-se a braços com uma situação financeira das mais difíceis... O castelo estava hipotecado até à última pedra, iam vender-lhe as terras e a infeliz ter-se-ia encontrado sem recursos se não lhe acudisse a influência de amigos bem colocados.

 

”Conseguiram que o Ministério das Belas-Artes classificasse o castelo como monumento e o comprasse. A senhora Hameline foi nomeada guarda, ou antes, sua conservadora. Encarregaram-na de mostrar aos turistas de passagem o seu antigo solar, transformado em propriedade do Estado e, por esse cargo, recebe pequena remuneração.

 

”Com resignação e até reconhecimento decididamente, o coração de certas mulheres é um verdadeiro relicário aceitou enterrar tudo quanto lhe restava de mocidade junto das cinzas do esposo adorado.

 

”Instalou-se na casa de uma das herdades, tornada muito confortável pelos seus cuidados e, para aumentar os seus modestos recursos, montou uma pensão onde no Verão recebe algumas senhoras idosas sem ambições, casais modestos, humildes funcionários dos arredores que desejam mudar de ares sem abrir grandemente os cordões a bolsa.

 

”Aqui tens tu o meio aonde certa noite me conduziu um acidente ou, quem sabe, talvez a minha boa estrela... Lembrei-me, então de que, pelo menos durante algum tempo, precisava isolar-me da sociedade... ver rostos diferentes... novas paisagens... imagens desconhecidas... ouvir vocábulos ignorados... e procurar para a minha misantropia um ambiente adequado.

 

”Além disso, afigurou-se-me que esta espécie de convento laico era o retiro sonhado para concluir e aperfeiçoar o difícil trabalho que conto apresentar no próximo congresso de cirurgia.

 

”E aqui tens, meu velho amigo, as razões por que nem tu, nem os teus hóspedes, me verão este outono cavalgar ao lado das vossas gentis amazonas. Eu conheço-me: teria sido detestável conviva, companheiro de disposição versátil, hóspede aborrecido, em resumo. As minhas... contrariedades parisienses estão ainda muito vivas na memória para que pudesse ouvir, a sangue-frio, evocá-las na minha presença, quer as classificassem como feito heróico quer as comentassem com zombarias... Evidentemente, é notório que não costumo encarar nada a sério... pelo menos, esta espécie de acontecimentos... e por certo não deixariam de tomar o sucedido como assunto para inocentes gracejos... Sucede, porém, que, desta vez, não levo, nem tenho o mais pequeno desejo que levem o caso a rir... Preciso de paz e de silêncio.

 

”Entretanto, pelo amor de Deus, não te alarmes com esta declaração... Em breve nos tornaremos a encontrar em Paris... Não desejo passar por santo e não ignoro que esta espécie de mística sede de solidão que hoje experimento não resistirá três ou quatro semanas à prova de aborrecimento a que, fatalmente, devo ficar sujeito nestas paragens.

 

”Acima de tudo não comeces a fantasiar tolices... e não consintas que Genoveva esboce esse sorriso meio trocista, meio compadecido que, na sua maioria, as senhoras minhas amigas arvoram quando falam de mim. Não, não entra mulher no caso. A senhora Hameline não é pessoa que possa inspirar paixões. Atingiu a idade imutável das santas de mármore, cujo olhar extasiado parece perdido num sonho íntimo... E em Fonscouloubre não há outra representante do belo sexo... Não me referindo, é claro, à mulher do correio, que tem bigode e é barriguda, e algumas naturais da terra cuja contemplação bastaria para inspirar ao mais renitente a vocação religiosa e fazê-lo frade até ao fim da vida...

 

”Ah! Esquecia-me de mencionar... a filha da dona da casa que não obstante os seus dezoito anos, parece ter quinze... pelo menos no que se refere a juízo e ingenuidade.

 

”De facto, constitui um exemplar de espécie rara, que não seria fácil encontrar senão em Fonscouloubre: uma garota um pouco selvagem talvez, mas espontânea, toda impulsos instintivos e que apenas conhece a vida pelo que lê nos livros...

 

”Nestes oito dias em que, com zelo comovedor, procura todos os meios para nos tornar a vida agradável a mim e a minha mãe, tenho-a estudado e interessa-me infinitamente... É o caso mais extraordinário que tenho encontrado na minha carreira... um caso de ingenuidade crónica.

 

Supõe tu uma rapariga de pureza extrema, cujo espírito não foi ainda contaminado nem por leituras perniciosas nem pela convivência com outras da sua idade... Uma petiza que cresceu debaixo de cuidadosa vigilância de uma mãe afectuosa, sua única educadora e que lhe ensinou o máximo que, em minha opinião, uma mulher deve saber: escrever, ler, tocar um pouco de piano, passar a ferro, coser, cuidar de jardinagem, confeccionar excelentes bolos e compotas... e ocupar os seus dias em tareias simples e humildes...

 

”Em conclusão, um fenómeno que só nesta aldeia perdida se poderia encontrar. É com tudo isto um espírito impulsivo, entusiasta, sempre pronto a exaltar-se ou a indignar-se... Para te confessar a verdade, é aqui a minha única distracção quando não quero trabalhar ou pretendo fugir aos meus pensamentos... uma distracção que é, ao mesmo tempo, uma experiência de laboratório no domínio moral, é claro.

 

”Esta pequena constitui admirável assunto para estudo...

 

”E, com excepção dela, levo nestas solidões, verdadeira vida de cenobita... O mesmo é dizer-te que não se prolongará por muito tempo. Prevejo o momento em que as minhas garras crescerão de novo... E é por isso que, com a maior convicção, me despeço de ambos com estas palavras: Até breve... Em Paris!...

 

André.”

 

Com o candeeiro aceso na mão, a senhora Hameline entrou na sala contígua à casa de jantar, e para a qual se descia por dois degraus.

 

Quando ali penetrou, julgando o aposento deserto, ouviu um gritinho de susto e viu um vultozinho branco mover-se junto da janela. Ao mesmo tempo chegava-lhe aos ouvidos o protesto indignado de Maria Cláudia:

 

Não é preciso luz, mãezinha. Está ainda tão claro...

 

Maria Cláudia tem razão, minha senhora confirmou a voz grave de Joranne esta meia claridade é tão suave... Passa-se bem sem candeeiro...

 

O quê!... observou a voz surpreendida de Hameline. Estavam aí?... Não os ouvi entrar.

 

Demos a volta lá por cima explicou Maria Cláudia, que se aproximou da mãe, oferecendo a testa ao beijo maternal. Quis mostrar a igreja ao senhor Joranne.

 

E fiquei encantado!... A capela é linda! Respira paz e religiosa poesia afirmou ele.

 

Não é verdade? Tão tranquila e calma, dá-nos impressão de que os desgostos ali não nos atingem com tanta intensidade e a oração nos traz maior conforto... Meu marido gostava muito dela acrescentou a dona da casa em voz baixa.

 

Nunca perdia a ocasião de associar o ausente a todas as circunstâncias da sua vida, como se nunca tivesse admitido a realidade da separação. Conservava ainda a bengala do marido no bengaleiro do vestíbulo, com o seu último chapéu pendurado por cima e na secretária do escritório o mata-borrão, a caneta e o papel que as suas mãos haviam tocado; e assim alimentava no coração como que o reflexo da sua presença. André, sempre que nova ocasião se proporcionava verificar esta constância inabalável, experimentava comovida admiração.

 

Então, decididamente não querem luz, meus filhos?...

 

Não, por enquanto não! pediu a voz suplicante de Maria Cláudia. O senhor Joranne estava a contar-me coisas de Paris... Se soubesses como é interessante, mãezinha!

 

Na tua idade é natural que te interessem comentou a mãe sorrindo e envolvendo a filha, que retomava o seu lugar junto da janela num olhar de ternura.

 

E voltando-se para o hóspede, acrescentou como a fazer apelo à sua indulgência.

 

Aqui tem tão pouca ocasião de deixar expandir a sua mocidade entusiasta e ardente... É devido a isso que fiquei contentíssima por ter decidido hospedar-se em minha casa algum tempo, senhor Joranne. A minha pequena entende-se tão bem consigo...

 

Não o indicava. As primeiras impressões foram péssimas objectou Maria Cláudia, sorridente.

 

Concordo confessou André, de bom humor mas depois tive a compensação, não é verdade?

 

Pois decerto... afirmou com calorosa convicção. Gosto tanto de o ouvir. Tem sempre coisas interessantes a contar...

 

Mas, finalmente, de que falavam agora?

 

Descrevia-me a noite da chegada de Lindberg depois da travessia do Atlântico. O senhor Joranne assistiu. Não é maravilhoso, mamã?... Viver essas horas inesquecíveis... presenciar a febre de uma cidade em peso, reunida no campo da aviação... a emoção de todos aqueles corações que a mesma ansiedade fazia vibrar... os projectores cortando o céu... a multidão compacta e palpitante... eu teria morrido de entusiasmo, mãezinha...

 

Cruzou no peito os braços nus, como se quisesse comprimir as tumultosas palpitações do coração.

 

A senhora Hameline dirigiu ao hóspede um sorriso levemente comovido:

 

É uma criança... Vê tudo pelo prisma colorido da sua imaginação exaltada...

 

Mas esta ingenuidade é encantadora! declarou Joranne...E tão rara...

 

Sua mãe estava na cozinha comigo declarou. Vou preveni-la de que chegaram.

 

Antes de mais nada avise-a de que não esqueça o tricot recomendou ele com voz jovial.

 

Riram os três. A senhora Joranne tinha a inocente mania de não poder passar sem um trabalho de tricot. Quando André lhe manifestara o desejo de ficar em Fouscouloubre e de passar aí as férias em vez de se instalarem na Abadia, acedera docilmente.

 

Mas encarregou, desde logo Maria Cláudia de pedir a Jeannette, quando esta fosse à vila, para lhe trazer um jogo de agulhas e um fornecimento de lã. Em seguida, começou um pull-over. Daí em diante ninguém mais a viu desocupada, o aço cintilante das agulhas volteando nos dedos ágeis ou dobando as lãs, das quais fazia basto consumo.

 

Não tem frio? inquiriu Maria Cláudia, quando os passos de Hameline deixaram de se ouvir.

 

-Nenhum. Mas deseja que deite uma acha no lume?

 

Daqui a pouco, quando as nossas mães chegarem... assaremos castanhas debaixo da cinza.

 

Na penumbra que envolvia o canto onde se encontrava, André sorriu. A frase causou-lhe prazer... Criava entre eles uma espécie de cumplicidade... aproximava-o mais de Maria Cláudia e colocava-o ao nível da sua juventude quase infantil... e esta aproximação agradou-lhe como se o rejuvenescesse.

 

Pela primeira vez reconheceu o perigo que Maria Cláudia poderia apresentar para os seus trinta e dois anos. Até então convivera pouco com adolescentes... Nenhuma das que conhecera, porém, lhe despertara o curioso interesse que Maria Cláudia lhe inspirava.

 

Como eu adoro este final do dia suspirou ela, sentando-se na cadeira baixa.

 

Num gesto de pudor, puxou o vestido para cobrir as pernas. Uma onda de ternura subiu ao coração de André. Aproximou-se vagarosamente da janela sem desviar a vista de Maria Cláudia.

 

O dia, que morria lentamente, nimbava-lhe num halo luminoso o perfil correcto do nariz um poucochinho curto. As faces cheias, sem a mais leve sombra de pintura, tinham o aveludado e a frescura da flor que só nas crianças se encontram e quando levantou a cabeça descobriu nas pupilas que o fitavam qualquer coisa de muito puro e ingénuo que o comoveu.

 

Desviando o olhar, encostou-se à janela contemplando a paisagem através dos vidros. O crepúsculo afogava-se em sombras e no horizonte as trevas subiam do vale ameaçando apagar o tom desmaiado do céu.

 

Será possível murmurou, pensativo que durante tantos anos todo o seu universo se resumisse nisto?... E, contudo, vejo-a palpitar de vida e de mocidade...

 

Uma inquietação uniu as sobrancelhas de Maria Cláudia.

 

Não compreendo bem o que pretende dizer... E observava-o, pensativa e atenta.

 

Simplesmente, que a Maria Cláudia deve ter outras aspirações e não desejar limitar a sua existência nesta aldeia isolada e inculta!... Por Deus! Dir-se-ia que vive num mundo diferente do nosso!... Na sua idade...

 

Ela esboçou leve sorriso e, num gesto afectuoso e cheio de graça, pousou-lhe a mão no braço.

 

Na minha idade... fala exactamente como a mamã... É a sua frase constante... pelo menos, há uns anos para cá. Pensou mesmo em me enviar para um pensionato em Limoges... mas eu não quis deixá-la... Podia lá deixar a minha mãezinha! terminou, encolhendo os ombros.

 

A boca torceu-se num jeito desgostoso e indignado.

 

Desde que nasci, nunca nos separamos... Suponho que seria superior às minhas forças não a ter junto de mim, ao alcance das minhas perguntas, das minhas expansões, das minhas carícias...

 

Mas não pensou ainda que há-de casar-se um dia? objectou.

 

Fitou-o, rindo, como se o médico tivesse formulado a hipótese mais inverosímil do mundo.

 

Nunca me lembrei disso confessou, sacudindo a escura e anelada cabeleira.

 

Que extraordinária rapariguinha!... Então nunca sonhou com um príncipe encantador?

 

É claro... Não sou tão destituída de imaginação como supõe... Sonhei com o príncipe encantador, sim. Primeiramente fantasiei-o vestido de veludo e sedas, como uma das personagens do meu livro de contos. Apresentava-se no castelo... trepava por uma escada de corda e transportava-me nos braços levando-me para o coche... sabe, o velho coche que lhe mostrei a um canto da cocheira... Como é de calcular, tinham-no restaurado para esse efeito...

 

Enquanto descrevia, alegremente, estas coisas pueris, sem a mais pequena afectação, com sincero entusiasmo, ele contemplava-lhe a boquita húmida e fresca em seu falar.

 

Mais tarde sonhei com um aviador que viria pousar suavemente no espelho cristalino do lago... Agora...

 

Calou-se bruscamente e velou as pupilas com a franja escura das pestanas.

 

Agora...? interrogou André, atento. Teve um gesto despreocupado, mas, enleada, voltou a cabeça.

 

Agora já não penso nessas tolices...

 

E como se pretendesse mudar de conversa, levantou-se com vivacidade, afastou-se dele e deu alguns passos para o piano.

 

Será melhor acender a luz disse. Escureceu de todo.

 

Com efeito, mal se distinguia, junto da sombra escura do instrumento, a mancha clara do seu rosto. Sem bem saberem porquê, como que um constrangimento pairou no aposento, envolto em trevas.

 

Vou ajudá-la declarou.

 

Ofereceu-lhe o acendedor enquanto ela punha em cima da mesa o abajur de seda cor-de-rosa e tirava o vidro do candeeiro.

 

Ora aqui está uma coisa que não me lembro de fazer há muito tempo observou o médico.

 

O quê?

 

Acender um candeeiro de petróleo... Está, decerto, ao facto de que existem por esse mundo fora terras onde se usa a electricidade...

 

Maria Cláudia não se ofendeu com a ironia acentuada do tom. Sorriu, e os seus dentes brilharam enquanto colocava de novo o quebra luz no candeeiro.

 

Não me julgue assim ignorante. Na vila, aonde algumas vezes acompanho Jeannette, também se usa electricidade!...

 

Entretanto, as duas mães chegavam, trazendo cada uma o seu trabalho. Maria Cláudia correu para a mãe e passou-lhe um braço pela cintura.

 

Ora vejam lá declarou André, em tom convicto desde que aqui estou cheguei à conclusão de que podemos passar muito bem sem uma infinidade de coisas até então julgadas indispensáveis...

 

E que coisas são essas? informou-se a senhora Joranne, que viera sentar-se numa cadeira junto da chaminé.

 

Silenciosa e cheia de atenções, a senhora Hameline andava pela sala, acendia os candelabros e lançava no lume uma braçada de troncos secos.

 

O aposento alegrou-se, claro, tépido e conchegado, com os móveis brilhantes cuja madeira acetinada parecia ter a macieza de uma pele aveludada.

 

Maria Cláudia correu os cortinados. Lá fora anoitecera por completo.

 

Então quais são essas tais coisas? insistiu a senhora Joranne, enrolando o novelo que tinha no regaço.

 

Ora! Tudo isso... que constitui a vida de Paris e o seu suposto conforto... automóvel... telefone... teatros... cinemas... discussões políticas e as tagarelices dos meus concidadãos...

 

A mãe teve um risinho incrédulo que continha boa dose de ironia.

 

A prova replicou André, designando num gesto eloquente o cenário que os rodeava-veja como este ambiente é simpático. Sinto-me aqui admiravelmente bem.

 

Procurou as pupilas de Maria Cláudia que lhe relanceou um olhar de reconhecimento.

 

Não é difícil acreditá-lo observou a senhora Joranne. Há três semanas que nos encontramos aqui e não falas em partir.

 

Está aborrecida? indagou a senhora Hameline, contristada.

 

Não, absolutamente nada assegurou a interpelada, com delicadeza mas tenho razões para me surpreender com as novas preferências de meu filho.

 

Há três semanas já! suspirou Maria Cláudia. Como é extraordinário... parece-me que chegaram ainda ontem...

 

É gentil da sua parte pensá-lo... e muita amabilidade dizê-lo...

 

E sem-cerimónia foi sentar-se no braço da poltrona onde a jovem se instalara.

 

Não vais trabalhar? inquiriu a mãe, com vivacidade.

 

Os lábios de André uniram-se num jeito que exprimia bem o seu pouco entusiasmo.

 

Trabalhar... sim... talvez...

 

Já? interrompeu a voz desapontada de Maria Cláudia. Trabalhar outra vez!... Não fez outra coisa toda a manhã... E tinha prometido continuar esta noite ensinar-me a dançar.

 

É verdade, tem razão declarou André, levantando-se alegremente. Depressa, a grafonola!

 

A senhora Joranne ergueu os olhos ao céu e as agulhas agitaram-se com impaciência, movidas pelos dedos nervosos.

 

Correndo ligeira, a jovem foi reunir-se ao companheiro, no outro extremo da sala. Abriu com precaução a caixa escura... e deu à manivela.

 

Hameline sentou-se em frente da hóspeda e desdobrou o bordado.

 

Seu filho teve excelente ideia em trazer para aqui a grafonola... Desde que Maria Cláudia a viu chegar com as bagagens, entusiasmou-se com ela como uma criança diante de um novo brinquedo.

 

A senhora Joranne não lhe respondeu. Por cima dos óculos o seu olhar penetrante observava. André voltava as folhas, anunciando os títulos.

 

I wish! I dreamed with you... Este é excelente para dançar.

 

Que significa o título? perguntou ela, enquanto colocava o disco.

 

Desejo sonhar consigo... É um tango, venha...

 

Dócil, deixou-se enlaçar, procurando seguir o ritmo, o que facilmente conseguia. Mal conhecia os passos complicados que André lhe ensinara numa das noites precedentes, mas o corpo flexível acompanhava todos os movimentos do par...

 

Simples pressão da mão deste no ombro, um impuLso apenas perceptível do busto... e deixava-se embalar no compasso lento e harmonioso do tango, as pálpebras semicerradas e os lábios entreabertos num sorriso feliz.

 

Reprimindo um suspiro, a Joranne baixou os olhos sobre o trabalho.

 

A outra mãe seguia o par juvenil com olhar satisfeito.

 

Baixinha, mas admiravelmente proporcionada, Maria Cláudia mal atingia o ombro desse jovem atlético que poderia, evidentemente, levantá-la sem esforço como se fosse uma pena, mas que tomava para ela a atitude de um gigante diante de um saxe frágil.

 

Depois, pensativa, desviou o olhar, fixou-o nas chamas inquietas da lareira e sorriu vagamente... a alguma sedutora miragem, talvez?

 

Um amor como o nosso Não existe outro igual cantava agora na grafonola uma voz levemente fanhosa.

 

Adoro esta canção! declarou Maria Cláudia.

 

Tinham parado de dançar e, junto um do outro escutavam silenciosos, tendo ambos a mesma expressão sonhadora no olhar.

 

Quanto a mim, essa cantilena faz-me dores de cabeça. Seria melhor pará-la, sim, André? interrompeu bruscamente a senhora Joranne, com aborrecimento.

 

O filho relanceou-lhe um olhar de surpresa.

 

Peço-lhe perdão, minha mãe.

 

E foi travar a grafonola, enquanto a senhora Joranne, procurando fazer esquecer o seu movimento de mau humor, sorria a Maria Cláudia.

 

Tenho um princípio de enxaqueca... Suponho que foi devido a estar toda a tarde ao cantinho do lume...

 

É natural, nunca sai retorquiu André.

 

Bem sabes que o ar livre não me tenta, nem gosto de passear pelos campos.

 

Sim, bem sei. Prefere Paris... as visitas, os chás, as conversas mundanas e a atmosfera viciada dos grandes armazéns.

 

A mãe encolheu os ombros e entregou-se de novo ao manejo das suas agulhas evitando continuar a discussão que tendia a azedar-se. Por momentos, pairou na sala uma atmosfera de tempestade.

 

Hameline, que saíra para dar ordens a Nanon voltou à sala e com ela pareceu entrar uma corrente benéfica e apaziguadora. Há pessoas assim, com o dom de transmitirem ao ambiente a sua serenidade...

 

Maria Cláudia sentou-se num tamborete junto do fogo e deu-se ao trabalho de folhear um álbum de capa colorida.

 

A senhora Hameline retomou o seu lugar perto da chaminé e entre as duas mulheres, com a cabeça inclinada sobre o livro, o semblante aureolado pelo clarão rubro e caprichoso das chamas, a rapariga era como que a figura principal de um quadro encantador de graça e de intimidade.

 

”Estarei apaixonado por ela?” pensou, de repente, Joranne ao verificar o prazer intenso que experimentava em contemplá-la...

 

Repeliu esta ideia que lhe provocou singular impressão de espanto e de desagrado. Precisamente nesse momento, porém, acordou nele como que uma alvorada de felicidade, só por que ela ergueu a cabeça e lhe sorriu.

 

Não se senta, senhor Joranne?

 

Tinha uma forma algo arrastada de acentuar as sílabas, o que lhe dava à voz inflexões de singular doçura. Como era diferente da rapariguita agressiva e desagradável do primeiro dia!... Lá em baixo, perto da linha e da casa triste em que se dera o seu primeiro encontro conservara-se hostil e na defensiva... Agora entregava-se-lhe, moralmente, com uma espontaneidade, uma franqueza comovedoras, reflectindo nas escuras pupilas toda a pureza da sua alma.

 

E tudo isto constituía para Joranne tão grande novidade, que não podia deixar de se sentir maravilhado.

 

Não pode pôr de lado esse trato de senhor? - informou-se, deixando-se escorregar e sentando-se muito simplesmente no tapete, junto dela.

 

Horroriza-me. Acha-me assim tão respeitável?

 

Mas, enfim, André, já tens trinta e dois anos! objectou a mãe, descontente. Não és precisamente da geração dessa menina...

 

O médico pareceu não ouvir aquela pouco agradável observação.

 

Chame-me apenas André... eu também a trato por Maria Cláudia... não somos nós dois bons camaradas? Consente, minha senhora? pediu, dirigindo-se à senhora Hameline.

 

Porque não?... É uma honra para minha filha... O senhor Joranne é um homem eminente...

 

Junto de pessoas amigas ninguém é eminente... e Maria Cláudia e eu seremos, segundo espero, dois grandes amigos, não é verdade?

 

Ela fitou-o com olhar brilhante.

 

Com certeza aprovou num tom tão convicto, que o médico não pôde deixar de sorrir.

 

Então, confusa, baixou os olhos sobre o álbum.

 

Sente-se na cadeira pequena aconselhou Hameline a André. Assim não está bem.

 

Faria melhor se fosse trabalhar resmungou a senhora Joranne que, decididamente, não se encontrava em boa disposição. Ainda temos uma hora antes do jantar.

 

Já não sou um rapazinho de escola, minha mãe...

 

O tom não admitia réplica e obrigou a boa senhora a calar-se. Ouviu-se o tinir mais rápido das agulhas de aço.

 

Curvado sobre o ombro de Maria Cláudia, André ia vendo desfilar as fotografias.

 

Olhe, veja... aqui tem a nossa casa de Taiti...

 

Taiti!... repetiu Joranne, interessado e curvando-se para ver mais de perto.

 

O dedito moreno de Maria Cláudia designava na fotografia, já meio apagada, uma espécie de bungalow no meio de um jardim luxuriante. No limiar da porta via-se um homem alto e forte, com o capacete colonial e, apoiada à balaustrada, a imagem franzina de uma indígena com o busto moldado num páreo. No chão, a seus pés, folgava uma criança nua.

 

Este era o paizinho declarou Maria Cláudia, apontando o colonial. E este horrível mondongo, que chucha no dedo, sem-cerimónia nem vergonha, sou eu aos dezoito meses.

 

Já era encantadora nesse tempo - gracejou Joranne. E esta linda senhora que se parece consigo quem era?

 

Maria Cláudia riu-se.

 

Não pode parecer-se comigo... é a indígena que me criou... De facto, era muito bonita. Tenho no meu quarto um retrato dela que lhe hei-de mostrar... Morreu de febres apanhadas quando cuidava de mim numa grave doença... E parece que me tratou muito bem, não é verdade, mãezinha?

 

Sim afirmou a senhora Hameline sem levantar os olhos do bordado. Com muita dedicação. Estiveste a morrer, mas afinal a vítima foi ela... Nesse tempo tinhas pouca saúde... O clima daqui fez-te muito bem.

 

Segundo suponho elucidou Maria Cláudia, voltando-se para o seu amigo quando a mãezinha me trouxe para Fonscauloubre encontrava-me em estado deplorável... Foi o ar da montanha que me restituiu a saúde.

 

Mas não conseguiu salvar teu pai murmurou Hameline como se falasse consigo própria.

 

As mãos de Maria Cláudia continuavam a voltar as folhas do álbum...

 

Pensar que viveu tão longe!... proferiu Joranne, pensativo. Chega a ser inacreditável.

 

Até aos quatro anos confirmou Hameline.

 

Não me recordo de coisa alguma afirmou Maria Cláudia. Ou, por outra, talvez apenas de vagas imagens... um lago manso como um espelho e cujas águas eram umas vezes verdes, outras de um azul esbatido... o jardim com os seus coqueiros... e o banho quando Titã me transportava nos braços.

 

Quem era Titã?

 

A minha criada... a mesma que viu na fotografia.

 

A tua ama emendou docemente Hameline que parecia, contudo, não prestar grande atenção à conversa.

 

Sim, dela lembro-me muito bem. Brincava comigo todo o dia... rebolávamos na areia... e fazia coroas de flores para me enfeitar os cabelos...

 

As mulheres naturais dessas terras têm sempre uma alma de criança declarou sentenciosamente a mãe.

 

André entusiasmava-se.

 

Tal como nas Sombras brancas... exclamou. Parece-me estar a vê-la, Maria Cláudia, rodeada de belas indígenas de corpo bronzeado, olhos grandes e meigos, voz harmoniosa...

 

Depois, dirigindo-se alegremente a Hameline.

 

Não acha, minha senhora, que a sua Maria Cláudia tem qualquer coisa dessas mulheres de Taiti, tímidas e ariscas? A responsabilidade disso cabe talvez à ama indígena. Afigura-se-me vê-la, envolta no páreo, deslizar na água profunda, orlada de mangueiras... mergulhar... reaparecer à superfície... e nadar indolente no meio de flores de lotus que flutuam na superfície tranquila do lago.

 

Oh! oh! que poético está hoje o meu filho!... ironizou a voz trocista e um pouco agressiva da senhora Joranne. Decididamente, o cinema transtornou-te a cabeça...

 

A dona da casa permaneceu calada. Continuava a bordar com aplicação.

 

Em que pensaria, enquanto a mão puxava maquinalmente a agulha?... Tentaria ressuscitar, em pensamento, esses felizes anos da sua perdida mocidade, evocados pelos entusiásticos dizeres do médico?... Reviveria o tempo em que debaixo das verdejantes sombras do Taiti, esposa venturosa, saboreando as doçuras de um amor partilhado, passeava tendo a figura robusta de um homem a seu lado e uma gentil criança nos braços?

 

André viu-lhe, sem dúvida, passar na fronte curvada uma nuvem de melancolia. E arrependeu-se de tão inconsideradamente haver aberto, com a sua evocação, o caminho à torrente de amargas recordações, para essa mulher hoje tão desamparada e que tão corajosamente suportava a dor da sua felicidade perdida...

 

Sentiu a imperiosa necessidade de se desculpar.

 

Perdoe-me, minha senhora. Falando-lhe dessas terras, receio ter-lhe despertado recordações dolorosas e tristes...

 

Hameline abanou negativamente a cabeça e ergueu para ele o rosto fino de mártir, emoldurado nos negros cabelos estriados de fios de prata.

 

A terra mais bela do mundo é para nós aquela onde se encerram as nossas mais queridas afeições murmurou. As minhas melhores recordações, a época mais feliz da minha vida decorreu aqui... neste cenário humilde que viu crescer a minha filha... onde lhe formei a alma e a ensinei a pensar... a amar... a viver... aqui, onde, junto de meu marido, passei as minhas horas mais calmas, as mais preciosas também, talvez porque sobre elas pairava terrível ameaça... Quanto ao resto, tudo esqueci...

 

...Minha senhora, o jantar está na mesa!

 

anunciou Nanon, aparecendo no limiar da porta.

 

Ora ainda bem! exclamou a senhora Joranne, levantando-se com evidente satisfação.

 

Não me desagrada ir jantar... Os ares do campo abriram-me o apetite.

 

Parecia encantada com essa diversão que conduzia agora os espíritos para um ambiente mais prosaico.

 

Maria Cláudia?...

 

Minha mãe...

 

Não dormes?

 

Não posso... estou a pensar...

 

Em que pensas, meu amor?... Há quanto tempo te ouço dar voltas e reviravoltas na cama!

 

Um suspiro de Maria Cláudia chegou aos ouvidos atentos da mãe. Para dizer a verdade, não só Maria Cláudia não dormia, como nem sequer se havia deitado ainda.

 

Sentada na cama, as mãos cruzadas nos joelhos o olhar grave fixo nas trevas que a envolviam, parecia meditar.

 

Mãezinha tornou a vozinha comovida após breve silêncio é pecado pensar muito em alguém?

 

Pecado porquê?... Não pode nunca haver mal num sentimento sincero...

 

Mesmo se... se tratar de um homem?... acrescentou a voz juvenil que baixou em tom de confidência.

 

Mãe Hameline não respondeu logo. Sem dúvida reflectia por sua vez. Maria Cláudia sentiu leve angústia oprimir-lhe o coração inquieto.

 

Queres falar do senhor Joranne? inquiriu a senhora Hameline, depois de um silêncio.

 

Eu... eu não posso deixar de pensar nele!... confessou a jovem, desolada.

 

Ouviu-se o choque dos pezitos no sobrado... o roçar da camisa de noite e, toda candura e comoção, veio refugiar-se na cama da mãe.

 

Perdoa-me, mãezinha querida... é preciso que to diga... eu... confesso que não sei como isto aconteceu...

 

Vamos... sossega! encorajou a mãe que lhe rodeou os ombros com os braços, num gesto protector.

 

Acariciou-lhe a testa húmida e os cabelos sedosos.

 

Que excitada estás!... Acalma-te, minha filha, e desabafa... far-te-á bem.

 

A lamparina que, por hábito, ficava acesa no quarto toda a noite desde o tempo em que Maria Cláudia fora pequena, para que a mãe lhe pudesse acorrer ao primeiro chamamento, difundia pelos objectos o seu pálido clarão.

 

A esta luz suave, a mãe distinguiu o pobre rostozinho transtornado, no qual se viam ainda os sulcos deixados pelas lágrimas recentes.

 

Mãezinha, tenho medo de sofrer horrivelmente quando ele partir... gemeu, rompendo de súbito a soluçar.

 

A senhora Hameline deixou correr livremente essa vaga apaziguadora.

 

Mas porquê? inquiriu com meiguice quando sentiu acalmar-se o tremor convulsivo que fazia vibrar o corpito juvenil.

 

Não sei bem dizer-to murmurou Maria Cláudia olhando, pensativa, a parede fronteira.

 

Hameline não provocou confidências. Sabia que nenhum sentimento desse coraçãozinho cândido e ingénuo ficaria oculto para ela. Com a face encostada à face húmida da filha, aguardou. Talvez que a própria Maria Cláudia ignorasse a natureza do sofrimento que a pungia.

 

De princípio... julgo que o detestei começou a rapariga com hesitação sim, quando tentou dar-me ordens, lembras-te, no dia em que substitui a Jeannette?... A voz dura e autoritária desagradou-me... Contudo, quando soube que estava aqui, a notícia quase me deu prazer... Talvez porque me lembrei da surpresa que sentira ao encontrar-me em Fonscouloubre...

 

Falava devagar, num murmúrio, como se tentasse penetrar o difícil enigma.

 

Depois, a pouco e pouco, tudo mudou em mim. Falava-me com doçura... contava-me histórias... a sua presença transformou a casa. Percorri com ele a região e parecia-me que, a seu lado, encontrava novos atractivos em tudo quanto lhe mostrava... Tornámo-nos dois grandes amigos... e quase desde o primeiro dia... Agora, quando se fecha no quarto para trabalhar, sinto que não sou a mesma... Vagueio de casa em casa como um corpo sem alma... Os animais já não me interessam e o mesmo acontece com as flores. Não experimento o menor prazer em acompanhar a Jeannette... quando vai às compras. Qualquer coisa me entristece e sinto vontade de chorar... Mas, quando o vejo a meu lado tudo se transforma, tudo em volta se torna luminoso e alegre... e então apetece-me rir, cantar, dançar... Esta tarde...

 

Calou-se e inclinou a cabeça para o lado de sua mãe, como se esperasse uma palavra que a encorajasse.

 

Hameline apoiou-lhe os lábios na testa febril.

 

Vamos, minha filha... bem sabes que podes dizer-me tudo, meu amor...

 

Pois bem! eu... fomos os dois, à tarde, visitar a aldeia de Onglets... Levei-o à igreja e disse-lhe: ”Exprima um desejo. É a primeira vez que entra nesta capela, não é verdade?

 

”Com certeza... respondeu.

 

Então fechou os olhos e durante alguns minutos conservou-se diante do altar, rezando numa atitude grave e recolhida.

 

Quando transpusemos o portal, perguntei:

 

”Qual foi o desejo que formulou?

 

Ӄ segredo...

 

Ao pronunciar estas palavras, olhou-me com uma expressão diferente, quase terna... Por momentos supus que ia estreitar-me nos braços e se soubesse como desejei que eles me cingissem fraternalmente... que os seus lábios ardentes beijassem as minhas pálpebras... e que murmurassem ao meu ouvido: ”Pedi para um dia a trazer aqui, pelo meu braço, com o imaculado vestido das noivas...” Sim, muito em segredo, o meu coração expressava essas palavras... Mãezinha... querida mãezinha... sinto que o amo!... Que desgraça a minha!

 

Refugiara-se nos braços maternais, chorando de novo convulsivamente.

 

A que vem esse desespero todo! objectou docemente à filha. Nada prova que os teus sentimentos não sejam correspondidos.

 

Maria Cláudia deixou de chorar. Abriu os grandes olhos, reprimindo as lágrimas que tremiam ainda na franja das pestanas.

 

Como se conhece quando um homem nos ama, minha mãe?... Nunca me disse nada... ÀS vezes aperta-me a mão com mais força... ou afaga-me os cabelos... É isto uma prova de amor?

 

A senhora Hameline sorriu:

 

Talvez...

 

Nunca pronunciou as palavras que tanto desejava ouvir... Nunca teve dessas palavras que se devem dizer quando se está apaixonado...

 

Talvez tudo isso prove, exactamente, o seu amor observou a mãe.

 

Uma prova?! Como? admirou-se Maria Cláudia.

 

Os sentimentos verdadeiros e sinceros dispensam bem gestos e palavras. É justamente quando existe apenas uma aparência deles que se recorre a essas coisas...

 

Não compreendo declarou Maria Cláudia, desolada.

 

Mais tarde compreenderás... Por enquanto, ignoras tudo a esse respeito.

 

No entanto, não ignoro o que se passa em mim... e creio... sim, creio que o amo...

 

E eu replicou Hameline tenho a certeza disso...

 

Tu? Porquê?

 

Porque já te fez chorar, minha adorada pequenina.

 

Com fundo suspiro Maria Cláudia deixou tombar a cabeça na almofada.

 

Assim observou a mãe, passando a mão pela nuca palpitante admitirias, sem pesar, a ideia de partir com ele?

 

Com certeza! exclamou impetuosamente a filha, enquanto as pupilas cintilantes brilhavam na penumbra.

 

Não te custava abandonar Fonscouloubre... a tua casa... a tua mãezinha?

 

Interdita, Maria Cláudia conservou-se calada. Depois escondeu a cara no ombro materno.

 

Mãezinha querida balbuciou sou um monstro, não é assim?... No meio de tudo isto não pensei em ti!... No teu desgosto... que ficavas só... eu... Não, nunca poderei resolver-me a separar-me de ti!

 

Pelo contrário, espero que, se ele to pedir, o sigas até ao fim do mundo... e crê que o desejo de todo o coração, meu amor.

 

Um amor como o nosso Não existe outro igual Este não morrerá...

 

André interrompeu a canção que assobiava alegremente quando ouviu abrir a porta.

 

É a mãe?... Julguei que fosse a Nanon com a minha água quente. Então já levantada?

 

Curvou-se para aflorar com os lábios a fronte materna. Notou logo que ela não tinha a fisionomia indulgente dos dias felizes. Viu-lhe as feições endurecidas sob o império de oculta resolução, e a boca contraída indicava que se dispunha para a luta.

 

”Bom pensou, aborrecido. Tem de ser esta manhã.”

 

Havia dias já que previa a discussão e sempre procurara evitá-la, talvez por indolência e para não modificar uma situação que lhe dava prazer, mas que bem sabia não poder eternizar-se.

 

Já decidiste alguma coisa sobre a nossa retirada? perguntou a mãe enquanto o médico continuava a polir as unhas.

 

Para quê! Não tenho pressa...

 

Um relâmpago de descontentamento atravessou as pupilas da senhora Joranne.

 

Já reparaste que estamos a 10 de Novembro? observou, fitando-o com insistência.

 

É possível... O calendário não faz grande falta aqui...

 

Há muitas outras coisas que não te fazem falta aqui! ripostou ela com súbita acrimónia. Em todo o caso é a primeira vez que me encontro longe de Paris depois dos Santos. Desejaria regressar antes do Natal.

 

Por que se lamenta? objectou, muito calmo, pois se sentia tanto mais senhor de si quanto mais enervada via a mãe. Não foi a minha mãe a primeira a insistir para sairmos de Paris?...

 

Sim, nunca, porém, com a intenção de me instalar em Fonscouloubre...

 

Ele encolheu os ombros.

 

Não se trata disso agora...

 

Largou o polidor e, assobiando, dirigiu-se à janela.

 

O inverno ainda não chegou observou. Este céu de outono, tão suave, aparecendo por entre a folhagem dourada dos castanheiros, que magnificência! Paris não nos proporciona espectáculos que se comparem com este.

 

Trazes o espírito muito dado à poesia, de há tempos para cá ironizou a mãe.

 

E como, sem lhe responder, ele recomeçasse a assobiar, protestou com impaciência:

 

André, estás a irritar-me. Já não tens idade para estas canções sentimentais...

 

Não compreendo o motivo por que minha mãe me recorda constantemente a minha idade! Sou, por acaso, algum velho decrépito?

 

Estava irritado, os lábios contraídos numa expressão altiva.

 

Pelo contrário. Em minha opinião procedes como um garoto! Por um capricho... uma súbita fantasia... desinteressas-te de tudo... da tua carreira... dos teus doentes...

 

Por sua imposição fui obrigado a afastar-me momentaneamente da atmosfera parisiense. O substituto que arranjei dirige todos os assuntos com bastante competência... Escrevo-lhe todos os dias... envio-lhe as minhas indicações...

 

Ora! Bem sabes que não é a mesma coisa...

 

Os teus doentes reclamam-te com insistência... Essa substituição não pode durar muito...

 

O médico passeava pela casa, aparentemente distraído; depois pareceu escolher com o maior cuidado o pull-over, o casaco e a calça.

 

Quer dizer, quando finalmente me decidi a gozar umas pobres breves férias, minha mãe pretende restringi-las e amargurá-las. Contudo, faço-lhe notar que há cinco anos não tenho um dia de verdadeiro descanso, um pequeno feriado, porque não se pode dar esse nome aos dois dias que às vezes eram, como que um oásis, na paragem bem ganha depois de árduo trabalho. Quando, excepcionalmente, disponho de uns dias para presenciar o cenário feérico do outono neste cantinho agreste e desconhecido não queira perturbar, com as suas observações, esse prazer tão raro para mim!

 

E estás certo de que é apenas o cenário feérico do outono que te prende aqui? replicou a mãe com voz levemente alterada.

 

O filho não lhe respondeu logo. Simulava entregar-se por completo à tarefa de endireitar uma gravata sobre o joelho.

 

E se fosse outro o motivo? volveu-lhe por fim, sem a fitar.

 

A senhora Joranne avançou alguns passos e numa ansiosa expressão parou atrás dele fixando-lhe a nuca robusta e a cabeça curvada em atitude voluntariosa, cuja significação hostil ela conhecia de sobejo.

 

André, tu não vais fazer alguma tolice por causa dessa pequena!

 

Voltou-se bruscamente:

 

Tolice! E tolice porquê?

 

Leve tremor agitou as pálpebras da senhora Joranne, que empalideceu sob o pó de arroz que lhe cobria as faces.

 

Tu... não pensaste casar com ela, não é assim?

 

E porque não?

 

A mãe desolada abanou a cabeça.

 

Era bem isso o que eu receava! lamentou, enrolando, maquinalmente, nos dedos as extremidades do agasalho de peles.

 

Uma expressão de pesar afinou-lhe o rosto, varreu dele toda a hostilidade. Os cantos da boca descaíram num vinco de dor.

 

Como eu amaldiçoo o malfadado desastre que nos fez vir para aqui! murmurou, deixando-se cair numa cadeira.

 

Joranne, ao vê-la acabrunhada, com as mãos abandonadas no regaço, compadeceu-se e fitou-a com afecto:

 

Não a compreendo, minha mãe... Parece-me, no entanto, que esta solução devia agradar-lhe. Não censurava constantemente a minha vida... um tanto desequilibrada... irregular... Não me aconselhou, tanta vez, a constituir o meu lar?

 

Maria Cláudia não é a mulher que te convém retorquiu ela, meneando a cabeça.

 

Porquê? Sou suficientemente rico e julgo vir a alcançar um futuro razoavelmente brilhante para poder ter a liberdade de escolher a mulher que me agrade... mesmo que seja pobre.

 

Bem sabes que não me prendo por questões de fortuna...

 

Então o quê?

 

E como ela encolhesse levemente os ombros e continuasse calada, prosseguiu com entusiasmo:

 

Maria Cláudia não é encantadora? Meiga? Bem-educada? Bondosa e de génio agradável?... Não será para si a nora ideal?

 

A mãe levantou bruscamente a cabeça e encontrou o olhar do filho.

 

Não é dela que tenho medo afirmou com ar resoluto.

 

Não?

 

É de ti.

 

André tornou-se, de súbito, sombrio e as feições tomaram um ar duro e irritado. Abriu a boca, talvez para replicar com aspereza quando do jardim subiu uma voz cristalina.

 

Uh! uh! Seu preguiçoso! Ainda a dormir estando um dia tão lindo!

 

A cólera de André desapareceu como por encanto. Correu à janela.

 

No pátio, Maria Cláudia, com o chapéu descaído para as costas, um cesto no braço, chamava-o com as mãos em porta-voz.

 

Logo que o avistou o rosto iluminou-se-lhe, radioso, e deixou ver num sorriso os dentinhos alvejantes.

 

Vou apanhar maçãs anunciou. Não esqueci ainda a compota que lhe prometi para o almoço...

 

No fundo verdejante da videira brava que cobria o velho muro, envolta na claridade luminosa e transparente da manhã, era como a própria encarnação da mocidade e da beleza. Ergueu o cesto vazio e mostrou-lho com os braços levantados num movimento harmonioso e cheio de graça, que pôs em evidência o busto esbelto e os ombros arredondados; depois, ágil e ílexível, curvou-se e começou a apanhar a fruta, olhando-o de revés como a convidá-lo a ir ter com ela.

 

Não vê como é adorável? exclamou Joranne, voltando-se para a mãe. Não acha que será para mim a nascente pura e cristalina depois de todas essas bonecas pretenciosas e provocantes, artificiosas e completamente desprovidas de sensibilidade, que até hoje me monopolizavam?

 

A senhora Joranne continuava de lábios contraídos, de testa enrugada e pensativa.

 

Aqui entre nós... demonstravas muito boa vontade em te deixares monopolizar.

 

Fez um gesto aborrecido.

 

Porque todos nós não passamos duns palhaços que repetimos, dia a dia, as cabriolas a que nos habituaram. Uma bela manhã, porém, acordamos e reconhecemos de repente quanto essa espécie de passatempos são idiotas... Sente-se a necessidade de encontrar outra coisa... um pouco de frescura moral... de sinceridade... de simplicidade...

 

Quantos meses... ou quantas semanas, mesmo, durará essa necessidade?

 

Como ele tentasse protestar, impôs-lhe silêncio colocando o índex na boca.

 

Ouve... julgo de meu dever dizer-te o que penso, conquanto esteja convencido de que para ti será letra morta e persistirás nas tuas ideias. Simpatizo imenso com as duas senhoras que tão amavelmente nos acolheram, a sua situação é digna do maior interesse e, justamente por isso devo mostrar-te os inconvenientes do teu recente entusiasmo... Tu não tens o direito de fazer sofrer essa pequena... e eu conheço-te, André! És volúvel, inconstante e fraco perante a satisfação dos teus desejos... Essa garota está desarmada... cheia de ilusões e de confiança... Isso é perigoso para um homem como tu. Receio que tudo isto acabe mal, meu pobre filho...

 

Não quer então acreditar que me modifiquei por completo? declarou André, gravemente.

 

A mãe fitou-o, perplexa. Tinha de confessar, de facto, que era a primeira vez que persistia assim no que ela costumava classificar como um dos seus caprichos. Nunca o julgaria capaz de permanecer tanto tempo num local totalmente desprovido das distracções que constituíam para ele o maior atractivo da vida.

 

Não é fácil mudar-se em tão poucas semanas protestou.

 

A resolução que tomei de fazer dela minha mulher... se ela consentir... deveria ser para si garantia da minha sinceridade objectou o filho com uma espécie de impaciência mal reprimida.

 

Não, não é uma prova, como afirmas... Neste momento Maria Cláudia é para ti uma espécie de brinquedo que só podes obter por meio do casamento. Esse casamento... uma escravatura horrível como ainda há bem pouco tempo lhe chamavas... afigura-se-te presentemente a coisa mais simples do mundo... Tomaste essa decisão e não vês ou não lhe queres ver obstáculos... Estás aqui longe de Paris, das tuas relações, dos teus hábitos... Vives num outro meio, num ambiente diferente do teu e encaras tudo por um prisma que não é o verdadeiro... Já pensaste bem no que virá depois quando regressares à tua vida normal? Não tens, presumo, a intenção de te enterrares em Fonscouloubre?

 

Não, evidentemente... Que ideia essa!

 

Já pesaste bem todas as dificuldades que encontrarás no regresso?

 

Que dificuldades?

 

Mas encontrou o olhar significativo de sua mãe e desviou o seu.

 

Eu as aplanarei, descanse. Se soubesse acrescentou num tom desiludido como acho hoje absurda e vã a vida que tenho levado até aqui!

 

A senhora Joranne meneou a cabeça devagar.

 

E, contudo, dificilmente te libertarás dela... Ora é necessário que alguém te abra os olhos... te previna antes da tolice se realizar... Tenho observado muito essa menina, fica sabendo... Afirmas que não se parece com as outras e tens razão... É uma natureza recta e leal: alma ávida de ternura, coração exigente... Actualmente tudo ignora... e espera... mas, pensa bem, porque essa mesma ignorância, essa esperança, são um perigo para ti! Se um dia desces do teu pedestal... se destróis todas as suas ilusões, será para ela a derrocada moral, completa e irremediável... Já reflectiste bem em tudo isto?

 

O filho ouvira-a de fisionomia anuviada e profunda ruga entre as sobrancelhas.

 

De baixo, a vozinha fresca e vibrante subia num apelo terno e apaixonado:

 

Um amor como o nosso Não existe outro igual...

 

Amo-a disse simplesmente. Como se tivesse vinte anos, com o entusiasmo de um colegial... Compreende agora?

 

A Joranne deixou cair os braços num gesto desalentado. Teve um sorriso meio zombeteiro, meio enternecido:

 

Se é assim...

 

Sepultada pelas cinzas do inverno a bela e ardente fogueira do outono morrera lentamente. As folhas amareladas e manchadas apodreciam nos valados e as árvores exibiam o seu frágil esqueleto.

 

A neve de Dezembro estendera sobre o velho castelo, envolto em brumas, sobre as humildes casas da aldeia e sobre a pequenina igreja de Santa Clara, o seu manto imaculado.

 

Chegara o tempo dos agasalhados serões durante os quais na vasta cozinha de Fonscoulovre se assavam castanhas, enquanto o fogo palrava na sua linguagem sussurrante e lá fora o clamor veemente do temporal subia do vale e varria o planalto.

 

Como sucedia todos os invernos, as mulheres da aldeia frequentavam a casa de Hameline. Lá se reuniam Jacquenaude, Bertrande, irmã do cura de Onglets, que morava numa pequenina casa junto da igreja e se ocupava dos objectos do culto todos os domingos; a velha Teresa e a senhora Saurin que tinha uma filha em idade de casar e possuía a única casa de Fonscouloubre construída em alvenaria e com varanda de ferro fundido.

 

Algumas vezes mesmo, a Jeannette lá de baixo, como chamavam à guarda da linha, subia até ali com o marido para levar as encomendas de que a encarregavam.

 

Aproveitava então o ensejo para saborear as castanhas assadas da Nanon e o seu vinhinho branco... e, como compensação, contava-lhe as novidades da vila.

 

Porque, presentemente, Maria Cláudia já ali se não encontrava para servir de intermediária benévola e infatigável, entre a aldeia e a pequena casa da linha.

 

Havia sido esse o grande acontecimento da estação. Maria Cláudia, pouco depois do Natal, casara com o sábio e austero senhor que nesse outono se hospedara na pensão.

 

Jacquenaude, a senhora Bertrande, a senhora Saurin e a filha, e Teresa, como é natural, haviam assistido todas à cerimónia e o grupo comovido e interessado tinha acordado os ecos da igreja de Santa Clara com o roçagar dos seus vestidos de seda preta tirados dos armários propositadamente para a cerimónia e cujo forte cheiro a naftalina se confundia com o perfume suave das rosas Noel, que guarneciam os altares.

 

Maria Cláudia, com o seu trajo nupcial semelhava, segundo a opinião de todos e de todas, um anjo que abatera as asas ao tocar a terra.

 

Envergava um vestido de cetim branco, presente da mãe do noivo, que lho trouxera de Paris na véspera do casamento...

 

Este enlace dera mesmo motivo a certos comentários quando no fim de Novembro os hóspedes da pensão regressaram a Paris. Nas aldeias pende-se naturalmente para a maledicência, mesmo quando se trata das pessoas mais estimadas. Assim, quando Maria Cláudia anunciou o seu próximo casamento, com a expressão de uma jovem idealmente feliz, encontrou no seu caminho muitos sorrisos cépticos ou pelo menos cheios de compaixão.

 

Nunca mais cá torna a pôr os pés o elegante senhor! segredavam as mulherzinhas abanando a cabeça, condoídas.

 

E a senhora Saurin não deixou de murmurar ao ouvido da Bertrande:

 

Casar com tanta facilidade essa pequena quase sem dote! E para mais sabendo-se o que se sabe...

 

E tudo isto era acompanhado por trejeito significativo e cheio de reticências.

 

Ora o elegante senhor voltou. Fora a Paris tratar dos papéis e organizar os pormenores da sua união, deixando à senhora Hameline o cuidado de regularizar as restantes particularidades.

 

Contra todas as previsões pessimistas o casamento teve lugar na data fixada.

 

Como era comovedora a atitude dessa noivazinha pura e radiosa quando penetrou na humilde igreja arrastando vagarosamente a longa cauda! A expressão grave, a cabecita airosa e delicada, ostentando com ingénuo orgulho o diadema de pérolas que lhe aureolava os cabelos brilhantes e seus olhos, nos quais os pequenos pontos dourados se multiplicavam, fixando com fervor o sacerdote que a esperava junto do altar!

 

Quanto ao jovem senhor, de Paris, o médico tão célebre que viera escolher esposa nesse cantinho perdido, todo ele irradiava orgulhosa felicidade.

 

O cortejo não fora protocolar.

 

Como o pai da noiva e o do noivo já houvessem falecido, tinha sido o próprio doutor Joranne quem conduzira a noiva pelo braço.

 

A única testemunha do noivo era o senhor de Millane que, segundo se dizia, possuía na região, perto de Uzerche, a propriedade da Abadia. Esse importante cavalheiro conduzia pelo braço a mãe da noiva.

 

Quanto à mãe do noivo que ostentava um primoroso vestido de rendas pretas como nunca se houvera visto outro igual em Fonscouloubre e um casaco de autêntico astrakan ia pelo braço do senhor Quimperlé, um notário, primo da senhora Hameline, o qual viera expressamente de Angers para ser testemunha do casamento da sua parenta.

 

E a eles se limitava o cortejo nupcial.

 

Dando como pretexto o seu luto bem longínquo, contudo, mas sempre vivo no seu coração Hameline não quis fazer convites.

 

E depois quem poderia ela convidar? Desde que se encerrara como reclusa em Fonscouloubre, os amigos haviam-na esquecido pouco a pouco. Quanto a parentes, com excepção desse primo notário a quem tinham recorrido para estabelecer o contrato, achavam-se disseminados pelos quatro cantos da França e não julgara oportuno incomodá-los.

 

Esta resolução encantou a Joranne, que não desejava também, provavelmente, arrastar os seus conhecimentos para uma região tão desprovida de conforto e, para mais, na estação invernosa.

 

A missa foi rezada pelo padre Jardin, prior de Onglets, que oficiava uma vez por semana na humilde paróquia.

 

A pequenina capela estava florida devido aos cuidados da aldeia em peso, que caprichara em festejar assim a gentil Maria Cláudia, alegria e orgulho de Fonscouloubre.

 

Terminada a missa e quando toda ruborizada a gentil noiva surgira no portal, ternamente apoiada no braço do marido, fora acolhida por alegres aclamações enquanto João, o ferrador, desempenhando nessa ocasião o ofício de sineiro, fazia com todo o entusiasmo repicar os sinos.

 

O pequeno Gaspar e seu irmão Maurício, os dois meninos do coro, ofereciam à rainha do dia um lindo ramo branco, muito redondo, engrinaldado numa guarnição de folhagem brilhante.

 

Maria Cláudia, comovida até às lágrimas, balbuciava agradecimentos entrecortados, erguendo para o marido, que sorria, as meigas pupilas, como se quisesse depor-lhe aos pés todas essas homenagens de calorosa afeição de que a rodeavam.

 

Então o noivo teve um gesto encantador. Curvou-se para a gentil esposa e, diante de todos, num meigo impulso que desencadeou o entusiasmo nos presentes, depôs-lhe na fronte terno beijo.

 

Este testemunho de amor, recebido assim em público, levou ao auge a perturbação de Maria Cláudia, tanto mais que se sentia observada por todos. No seu emocionado e rosado rosto passou ligeira hesitação. Iria ela retribuir o beijo que o marido lhe dera à face do céu, como se quisesse confirmar assim que daí em diante era sua e bem sua? Com enleio volveu aos semblantes sorridentes que a rodeavam olhares hesitantes.

 

Depois voltou-se para o marido e, num impulso veemente de paixão, apoiou o dedo na fitinha vermelha da Legião de Honra que lhe ornava a banda da casaca e beijou-a.

 

Sim, tinha sido um lindo dia! A gente da aldeia comeu e bebeu à vontade no bem guarnecido bufete da Nanon.

 

Os convidados retiraram-se. Então Maria Cláudia teve um capricho. Pediu ao marido, numa voz vibrante de ansiedade:

 

Gostaria tanto de iniciar a nossa linda viagem nesse comboiozinho que tantas vezes transportou os meus sonhos, André!

 

Consentes que dê nele os primeiros passos que me conduzirão ao limiar da minha vida nova!

 

André acedeu a esta fantasia, que classificou de maravilhosa, mas que a senhora Joranne acolheu com um encolher de ombros. O Matford, guiado pelo motorista, partiu sem passageiros atrás do carro do senhor de Millane, que levava consigo Joranne, a mãe.

 

À noite, fugindo ao bulício da aldeia em festa, a anfitriã de Fonscouloubre refugiou-se na sala onde nascera esse romance que tivera como epílogo o casamento da adorada filha, cuja sombra não tornaria daí em diante a acompanhar a sua como irmã gémea.

 

Para não entristecer Maria Cláudia conseguira conservar até ao fim a fisionomia calma e o olhar risonho, mas perante o piano ainda aberto, a cadeira preferida, agora abandonada, as flores recentemente colhidas por sua mão e que murchavam nas jarras, a pobre mãe fraquejou.

 

Quimperlé, que tinha querido ficar junto dela, nessa primeira noite de separação, foi a única testemunha daquele desfalecimento. Era seu primo, quase da mesma idade, acompanhara, passo a passo, as diversas fases da existência da senhora Hameline e conhecia-lhe as menores particularidades. Sentia por ela profunda estima e afecto.

 

Sentado na sua frente, junto da chaminé, no lugar tanta vez ocupado por Maria Cláudia, via desolado as lágrimas correrem pelas faces magoadas de sua prima.

 

Minha pobre Isabel! murmurou, compadecido. Cumpriste heroicamente o teu dever. Podes orgulhar-te do resultado... Mas como ficarás só daqui em diante!

 

Um pouco desastrado nas suas manifestações carinhosas dava-lhe palmadinhas nas mãos para lhe exprimir a sua estima.

 

Melancólico sorriso adejou nos lábios da senhora Hameline.

 

Passando rapidamente o lenço pelos olhos húmidos, murmurou:

 

Se a minha adorada filha for feliz considerar-me-ei largamente recompensada... Quanto a ficar sozinha...

 

Baixou a cabeça e leve tremor lhe agitou os lábios.

 

Tem sido tanta vez esse o meu quinhão!

 

Nessa mesma noite, antes de adormecer, Hameline teve o cuidado de levar para o quarto o álbum que continha grande número de fotografias tão queridas à sua alma.

 

Agora podia acrescentar mais uma a essa espécie de relicário: o retrato de Maria Cláudia. Quando os filhos partem a fim de construírem o seu lar, morrem um pouco para nós.

 

Desfilaram-lhe diante dos olhos todas as imagens familiares que marcavam as épocas principais da sua vida passada. Era primeiro o retrato marcial do seu amado, na altura do casamento, nesse tempo em que ela fora também ingênua noivazinha, vibrante de mocidade e de ilusórias esperanças.

 

Um pouco mais adiante, ele ainda, tempo antes de ser nomeado para uma colónia longínqua. As recordações acudiam-lhe de tropel. Felizes ou dolorosas, povoavam-lhe a memória com um frémito de asas, um murmúrio confuso onde havia risos e lágrimas.

 

A fisionomia da senhora Hameline anuviou-se. Os olhos, velados por súbita tristeza, pareciam seguir no espaço as fases de uma época amargurada da sua vida.

 

Os lábios agitaram-se.

 

”Meu Deus implorou afastai dela os desgostos e as provações que a vossa justiça me infligiu! Mas, se ela tem de sofrer a prova inevitável da dor, concedei-lhe a coragem necessária para a suportar!”

 

Em seguida permaneceu absorta por muito tempo, o pensamento completamente virado para o passado, enquanto os olhos fixavam numa expressão vaga essa miragem quase apagada do bungalow de Taiti... essa fotografia que representava a figura masculina, vigorosa e forte, também uma criança nua com a ama de uma beleza estranha e talvez perigosa, envolta no seu páreo exótico...

 

Minha senhora anunciou Nanon. Aqui está uma carta da menina.

 

A senhora Hameline assomou no topo da escada e desceu com passo rápido e ao qual a impaciência parecia ter dado a agilidade da juventude.

 

Já o distribuidor, depois de ter bebido o copo de vinho perfumado que a velha criada lhe servira, se afastava, levando delicadamente a mão ao boné.

 

Quando chegarás a convencer-te de que a menina deixou de o ser e é uma senhora? observou a mãe, apoderando-se da missiva. Já lá vão três meses... e todavia assististe ao casamento!...

 

Se assisti! E chorei como uma Madalena. Pobre amorzinho, tão linda... tão fresca como um botão de rosa!...

 

Vamos, Nanon! Nada de enternecimentos. Ela é feliz, Que mais poderemos desejar?

 

Quanto a isso creio bem que acertou! afirmou Nanon, enquanto Hameline abria o sobrescrito. Segundo parece, fez uma linda viagem! extasiou-se a boa mulher, que com o entusiasmo de falar na ausente até se esquecia de que tinha de preparar a comida para os pintainhos.

 

A senhora Hameline começou a ler a extensa carta. Uma irradiação de infinita ternura iluminava-lhe o rosto meigo.

 

Sim, mas já regressou há muito tempo... Demoraram-se apenas um mês, percorrendo todo o Egipto. O doutor Joranne não podia abandonar a clínica.

 

E, levando consigo a carta a fim de fugir às ansiosas perguntas de Nanon, Hameline dirigiu-se para a mata. Contornou o lago, cujas águas imóveis pareciam enorme espelho a reflectirem o céu luminoso e transparente de Março.

 

O inverno travava a sua derradeira batalha. As árvores, ainda despojadas de folhas, patenteavam os corpos nus como de atletas, de músculos flexíveis como o aço. Mas, desde os troncos mais robustos às mais delgadas extremidades dos ramos, em todas se sentia vibrar o trabalho oculto da seiva que, sangue moço e vivificador, as faria renascer.

 

Agora nesse cenário campesino calmo e agreste, todas as descrições de Maria Cláudia pareciam estranhas e deslocadas!

 

Falava de Paris... da sua nova vida... do seu palacete na avenida Hoche, onde havia uma casa de banho feita de mármore verde que ”lhe provocava arrepios”, três salões e uma saleta COR de junquilho, destinada a seu uso particular e exclusivo!...

 

E o entusiasmo dos primeiros dias... esse entusiasmo que era a manifestação do seu maravilhado amor... mantinha-se ardente e inalterável!

 

”Mãezinha querida:

 

”Como eu gostaria que pudesses ver a tua Maria Cláudia no meio de todas estas lindas coisas de que o meu marido me rodeou!... Porque não sei se sabes que ele me estraga com mimos... É todos os dias uma nova fantasia, um novo presente, uma atenção...

 

”A tal ponto me acostumei a isso que, mal chega, ando em volta dele como um bebé que espera a recompensa quotidiana. Olho-lhe as mãos, revisto-lhe as algibeiras numa atitude de gatinha gulosa, como André me chama, rindo... Quando consigo descobrir o objecto dos meus desejos: colar, anel, caixa de pó de arroz ou qualquer outra dessas adoráveis bagatelas que só Paris sabe fabricar, bato as palmas, danço e sinto-me feliz como uma deusa... E então ele ri ainda com mais gosto do que eu.

 

”Tudo isto faz com que a mãe Maria Cláudia tratava assim a sogra franza um pouco a testa. Foi mesmo por causa destas brincadeiras que tive o meu primeiro desgosto... Quero contar-te tudo, mãezinha querida. Agora já lá vai, mas durante horas consecutivas sofri horrivelmente.

 

”Aqui tens como o caso se deu. Um destes dias, passando pelo corredor, junto à porta da sala, ouvi a mãe dizer a André em tom de censura:

 

”É ridícula a tua maneira de proceder com tua mulher. Nunca te supus capaz de semelhantes criancices. Maria Cláudia não é uma petiza de três anos, e estás a habituá-la muito mal... Quando te aborreceres das suas expansões pueris e dos seus gritinhos de colegial, admirar-se-á se modificares a tua atitude para ela.

As suas expansões pueris, os seus gritinhos de colegial!...

 

”Pensei muito nestas palavras e fiz um exame de consciência. Ora, para te falar com franqueza, mãezinha, senti-me de repente envergonhada de mim própria. O meu André, tão inteligente, tão digno de admiração, tão superior aos outros, pelo seu valor, não merecia melhor, como esposa, do que uma mulherzinha insignificante como eu, uma mulher-criança, como diz minha sogra, uma garota que não sabe colocar-se à altura da sua situação?...

 

”Quem sabe se, lá muito no íntimo, André não me acha também ”idiota e pueril?...” e sofra e se desgoste por ter de me tratar como uma bonequinha e não como uma verdadeira esposa que fosse todo o seu orgulho!

 

”Uma infinidade de pequeninas circunstâncias me acudiu à memória. Por exemplo, desde que regressámos eu e André vivemos isolados, entregues um ao outro. Não que eu me lamente... Deus do céu! Longe de mim semelhante pensamento! Só desejo estar a seu lado e afigura-se-me que, de antemão, detesto a sociedade que nos obrigará por vezes a separação momentânea.

 

”No entanto, formava outra ideia da vida de uma mulher casada. Recordava-me do que me descrevias acerca da tua própria vida: recepções, bailes, chás, visitas...

 

”Sucede que, com excepção de algumas pessoas de idade, parentes de minha sogra, que vieram uma ou duas vezes jantar connosco e que, compreendo-o bem, ardiam em curiosidade a meu respeito nunca oferecemos um jantar. Nunca tive o orgulhoso prazer de exibir todas essas lindas coisas que me ofereceram pelo casamento, nem de demonstrar a André os meus talentos de dona de casa.

 

”Conforme já lhe disse uma vez, meu marido passa os dias na Casa de Saúde que dirige. E logo de princípio me fez compreender que o seu trabalho o absorvia por completo e não podia contar com ele durante esse tempo.

 

”Nem mesmo posso ir fazer-te uma visita arrisquei uma visita muito pequenina para suavizar as tristes horas que vou passar sem ti?...

 

”Mas a esse respeito mostrou-se intransigente. O ingresso na clínica está-me interdito. Nem sequer acedeu a mostrar-ma.

 

”O meu trabalho disse-me com uma energia que de ordinário não costuma demonstrar-me o meu trabalho é sagrado. A minha carreira nada tem com a minha vida particular ou vice-versa.

 

”Compreendi o que ele desejava e obedeci. Assim, passo os meus dias a esperá-lo. De longe em longe vem almoçar a casa, o que é para mim uma surpresa inesperada que me enche de júbilo. Mas a maioria das vezes só volta à noite para jantar e durante o dia apenas obtenho dele breves telefonemas feitos ao acaso dos seus incertos descansos.

 

”Uma vez por outra acompanho a ”mãe” aos armazéns, às costureiras ou a qualquer exposição. De princípio, tudo isso me maravilhava. Sou ainda muito nova e a minha curiosidade não teve ocasião de ser satisfeita. No entanto, confesso que, em geral, prefiro ficar em casa, nesse ninho que o seu amor alindou para mim, a pensar nele Sonho, bordo, toco piano, ouço na grafonola a minha canção predilecta ou ponho a T. S. F. a trabalhar.

 

”André chega, porém, e tudo se ilumina.

 

”Arranja-te, minha Maria Cláudia, faz-te bonita. Vamos jantar fora.

 

”Ele bem sabe como eu adoro estas evasões nocturnas. Caminhamos os dois muito cingidos sob a claridade dos candeeiros que se acendem a pouco e pouco. A multidão desconhecida passa, empurra-nos por vezes, os garotos dizem-nos gracejos inocentes: ”Então, meus amiguinhos, para quando o casamento?...” Tomam-nos por dois namorados e André diverte-se imenso com estes incidentes que me enchem de prazer. Meu marido, afirma:

 

”Pareço mesmo um caixeiro que passeia com a sua costureirinha, não há dúvida. É uma situação engraçadíssima!...

 

”Quanto a mim, saboreio o inefável prazer de estar junto dele no meio dessa multidão anónima, sentindo o seu braço protector em volta da cintura e o seu olhar atento e carinhoso.

 

”Jantamos no restaurante... Depois vamos ao teatro, ao concerto ou ao cinema... Todos os dias novas surpresas... Ao domingo conduz-me, a cem quilómetros à hora, para longe de Paris. E vamos por fim parar a uma dessas belas pousadas dos arredores, pitorescas quanto possível, cheias de música, de risos e de pares juvenis naturalmente casados de fresco, como nós que se beijam sem-cerimónia no intervalo de dois pratos.

 

”Acho mesmo que André demonstra demasiada circunspecção em semelhantes meios. Por exemplo, um domingo desejei imitar os meus vizinhos de mesa. Vais talvez censurar-me, mãezinha, mas que queres, todo aquele ruído me embriagava um pouco e André, ao deitar-me o Champanhe, olhou-me de um modo tão terno! Então fiz como vira pelo espelho fazer a uma jovem que estava atrás de nós. Tomei a cabeça de meu marido entre as mãos e quis beijá-lo.

 

”Queres acreditar? André zangou-se e repeliu-me com mau modo:

 

”Está quieta! Não vês que nos estão observando?

 

”Objectei:

 

”Mas repara, André, toda a gente faz o mesmo. Todos estes parzinhos são, naturalmente, casados há pouco tempo, como nós, e a sua recente felicidade exalta-os, inebria-os.

 

”Sim, talvez, mas não sabem comportar-se como devem...

 

”Conto-te tudo isto, mãe querida, para fazeres uma ideia da forma como decorrem os meus dias.

 

”Pois bem! Os comentários da minha sogra, abrindo-me novos horizontes, conseguiram tornar-me todas estas coisas suspeitas.

 

”Pensei: ”Se não recebemos ninguém, se sai sempre sozinho comigo, é talvez porque o envergonho um pouco e não deseja apresentar-me na sociedade...”

 

”O resultado de todas estas reflexões foi uma crise de lágrimas, complicada com terrível enxaqueca, que me obrigou a conservar-me toda a tarde fechada na minha salinha, estendida num divã.

 

”Foi ali que meu marido me encontrou ao regressar a casa às oito da noite. Em vão passei rapidamente pelas pálpebras pisadas a borla de pó de arroz, mordi os lábios para lhes avivar a cor e sorri. André percebeu logo que alguma coisa se passava.

 

”Ficou aflito.

 

”Que tens, minha adorada?

 

”Minha adorada”... O terno epíteto que tantas vezes emprega e cujas inflexões meigas e apaixonadas despertam em mim inefável prazer, desta vez provocou-me novas lágrimas, acirrando a minha dor.

 

”Lamentei, encostada ao seu ombro:

 

”André, tenho a consciência de não ser uma esposa digna de ti...

 

”Fitou-me, estupefacto.

 

”Que história é essa?... Que queres tu dizer com isso?

 

”Parecia seriamente preocupado.

 

”O desgosto que nessa tarde me avassalara voltou a dominar-me. Os soluços sufocavam-me.

 

”Receio ser muito pueril, muito infantil para ti, eu...

 

”Baixei a cabeça para lhe ocultar a minha perturbação.

 

”Então, com esse tom autoritário a que não sei resistir, ordenou:

 

”Vamos!... Olha bem para mim!

 

”Ergui timidamente as pálpebras inchadas e vi-o de testa franzida e fisionomia grave.

 

”Que significa isto?...

 

”A voz era tão severa que senti a garganta contraída. Mas, já que começara, tinha de levar até ao fim as minhas explicações.

 

”Penso que talvez... talvez te envergonhes de mim...

 

”E ocultei a cabeça nas almofadas.

 

”Com firmeza obrigou-me a levantar e a descobrir o rosto que mergulhara nas mãos crispadas.

 

”Envergonhar-me de ti!... Mas, com todos os demónios, como pudeste conceber pensamentos tão disparatados? exclamou, fitando-me com espanto.

 

”Então, conforme pude, expus-lhe as minhas observações, os meus escrúpulos e a minha estranheza pela forma como estava organizada a nossa vida parisiense.

 

”Mas logo em seguida protestei:

 

”Não vás agora supor, André, que sinto a falta dos outros... de convivência... Não ambiciono outras alegrias, todo o meu prazer se resume em esperar por ti, com os olhos fitos no relógio, cujos ponteiros se me afiguram andar tão devagar quando não te encontras junto de mim... Receio apenas ter sido para ti uma desilusão.

 

”À medida que falava, vi passar-lhe no semblante como que uma vibração de íntima emoção e os olhos suavizaram-se-lhe numa expressão de imensa ternura.

 

”Apertou-me nos braços, impetuoso e exaltado:

 

”Louquinha... minha adorada louquinha! murmurava, enquanto os beijos me cobriam as faces, os cabelos e as pálpebras pisadas... Pois não compreendes, meu amor, que isso a que chamas puerilidade, quer dizer, o teu modo de ser expressivo e franco, a tua encantadora simplicidade, essa espontaneidade feita de sinceridade, frescura de alma e graça instintiva foi o que mais me agradou em ti?... Assemelhas-te assim às flores das montanhas que crescem bem perto do céu, batidas pelo vento, crestadas pelo sol, em plena liberdade, sem necessitarem de cuidados para o seu desabrochar ou então a essas árvores exóticas, cheias de seiva vigorosa, que se erguem altivas debaixo do céu luminoso do teu país natal...

 

”As minhas lágrimas tinham cessado como por encanto e o sorriso estava prestes a aflorar-me os lábios. É sempre assim, mãezinha. Basta que ele me fale e toda a minha dor se apazigua, tudo se ilumina e irradia em volta de mim.

 

”Sentou-se no braço do divã e enquanto eu descansava a cabeça nos seus joelhos, acariciou-me os cabelos e disse-me, olhando vagamente o espaço:

 

”Vês tu, quando regresso à noite, depois de um dia ocupado, por vezes nas mais árduas tarefas, que me escravizam tiranicamente cérebro e nervos, depois de ter recebido numerosas pessoas que vêm confirmar-me as suas misérias, de ter lutado, hora a hora, contra o mal físico meu espectáculo quotidiano basta-me olhar para ti e é como se de súbito encontrasse um oásis verdejante, uma corrente de água cristalina que me purifica a alma e o corpo...

 

”Depois, em tom mais grave, acrescentou numa confidência:

 

”Ignoras, por certo, que os homens como eu nunca aproveitam o feliz tempo da mocidade. Essa descuidada época dos sonhos e loucuras passam-na eles, em geral, agarrados aos livros. Mais tarde, já senhores importantes, com a sua situação definida e segura, tendo algumas horas de ócio diante de si, lançam-se então no turbilhão da vida, sem saberem escolher nem discernir... Como crianças estouvadas, colhem as flores do prazer e da alegria às braçadas, sem repararem que entre essas flores perfumadas existem ervas ruins. Apanham tudo, ao acaso, sem escolherem...

 

”Mas contigo não foi assim. Escolhi-te, compreendes?...

 

”...Se soubesses o júbilo que experimentei ao ouvir aquelas palavras pronunciadas nessa voz vibrante que sabe ter para mim inflexões tão ternas e persuasivas!...

 

”Escolhi-te...

 

”Fechei os olhos para melhor saborear essa afirmação... Senti-lhe, então, os dedos ardentes afagarem-me as pálpebras e a sua voz murmurar:

 

”Compreendes agora a razão por que te ocultei ciosamente, por que te conservei para mim somente durante mais algum tempo depois do nosso casamento? Não queria que me estragassem a minha florzinha silvestre, a minha plantazinha exótica... E agora estás ainda zangada comigo por causa disso?

 

”Tomou-me a cabeça entre as mãos para melhor se certificar, naturalmente. Respondi-lhe com entusiasmo:

 

”Se quiseres, meu adorado André, iremos os dois para uma ilha deserta até ao fim da nossa vida!...

 

”Bem disposto, soltou uma gargalhada franca, embora grave, que o rejuvenesceu.

 

”Não te peço tanto, querida. De resto, por muito que afirmasses o contrário, acabarias por te aborreceres.

 

”-A teu lado, nunca...

 

”E a nossa grande discussão, a nossa primeira discussão, acabou como deves calcular.

 

”Entretanto, suponho que as minhas observações algum efeito fizeram no ânimo de meu marido, porque à noite disse à mãe:

 

Desejaria que levasse a Maria Cláudia à sua modista a fim de encomendar dois ou três vestidos de noite. Antes de terminar a época tenho tenção de aceitar alguns convites.

 

”Notei que ficou contrariada.

 

”Já pensaste bem no que vais fazer? perguntou num tom o menos afável possível. Não achas que é um pouco prematuro? Pesa-te a tranquilidade que desfrutas?

 

André fez um movimento de impaciência.

 

”Então, minha mãe... a nossa lua de mel não podia prolongar-se indefinidamente. Mais cedo ou mais tarde tenho de apresentar minha mulher na sociedade,

 

”Podias esperar mais algum tempo.

 

”Esperar porquê?

 

”Encolheu os ombros.

 

”Seja... faze o que quiseres.

 

”Mas bastava olhar-lhe os lábios contraídos para se adivinhar a sua opinião.

 

”Objectei:

 

”Por mim, não tenho pressa nenhuma.

 

”E, rindo, fitei intencionalmente André antes de acrescentar:

 

”A ilha deserta, lembras-te, não é verdade, meu querido André?

 

Minha sogra interrompeu-me bruscamente:

 

”É fácil de dizer. Mas quando se tem a sua idade não se teme o perigo e afronta-se temerariamente.

 

Fez um gesto que significava: ”Pior para si!”, fixando André com olhar intencional.

 

”Nesta altura, meu marido, que conservava o seu ar descontente, levantou-se e levou-me para a sala.

 

”Não compreendo bem a atitude de minha sogra para comigo. Correntemente, é muito boa para mim, rodeia-me de pequenas atenções, procura todos os meios de me distrair... De repente, não sei que capricho a instiga, modifica-se, fica mal disposta, olha-me de revés, demonstra a meu respeito súbita hostilidade, como se me tornasse responsável por calamidades que ignoro.

 

”Nanon, segundo o seu costume, classificá-la-ia de lunática.

 

”Todavia, é a pessoa mais bondosa que conheço, e, não obstante as suas irregularidades de génio, tenho a certeza de que é muito minha amiga.

 

”Não é culpa sua, se vê tudo com cores sombrias e prevê sempre os piores desastres.

 

”Ontem levou-me à sua modista, Janine e Irmã, sita nos Campos Elísios. Não podes sequer fazer ideia dum luxo tal! Tem um pretinho para abrir a porta, salas sumptuosas onde desfilam diante de nós gentis raparigas, tão lindas e elegantes como estrelas do cinema.

 

”Provei o meu primeiro vestido de baile. Estava radiante e dei mil voltas diante do espelho, fazendo esvoaçar aquele conjunto de fitas, sedas, tules, que me envolviam como uma corola...

 

”A vendedora, que me tratava por mademoiselle, sorria das minhas demonstrações.

 

”Eu emendei:

 

”Madame, se faz favor:

 

”Então a ”mãe” explicou:

 

”Sim, esta senhora é esposa do doutor André Joranne, meu filho.

 

”A rapariga ficou admirada e confusa. Desculpou-se, pretextando que eu tinha a aparência de uma menina.

 

”Uma menina! Se já se viu uma coisa destas! Depois de três meses de casada!... E para ela ficar bem convencida, fiz girar no dedo à aliança de casamento.

 

”Arlette é esse o nome dela acabou por exclamar:

 

”Como esta senhora parece feliz!

 

”Então minha sogra retorquiu em voz tão baixa que tive a impressão de que falava só para si:

 

”É, por enquanto, e bem pode aproveitar. Os desgostos chegarão a seu tempo...

 

”Mas porque hão-de eles forçosamente chegar?... Está provado que a pobre senhora tem um carácter pessimista. De mim para mim, tenho a ideia de que não foi feliz com o marido. Doutra forma, por que motivo seria tão descrente perante a alegria dos outros?

 

”Ora! Sinto pois em mim um tão abundante manancial de alegria, de radiosa ventura e de profunda confiança que os fúnebres prognósticos de minha sogra não podem entenebrecer a minha actual felicidade. As negras borboletas da ”mãe” Joranne não encontram em mim acolhimento favorável.

 

”E assim mesmo, esta minha felicidade só seria completa se tu estivesses junto de mim, mãezinha adorada! Mas, infelizmente, sei bem que nunca conseguirei arrancar-te a Fonscouloubre, ao quarto onde viveu e morreu o paizinho, a esse cantinho onde repousa debaixo da pedra tumular que o teu piedoso e constante carinho cobre de flores todos os dias...

 

”Vês tu, mãezinha? Quem, como eu, teve sempre diante dos olhos o espectáculo de um amor como o vosso, um amor que, nem o tempo, nem a ausência, nem a dolorosa separação conseguiram apagar, não pode deixar de fazer desse sentimento uma ideia elevada e pura...

 

”André ama-me como meu pai te amou, estou certa... e essa segurança é como luz radiosa que me guia e ampara.

 

”Beija por mim a Nanon e a minha Finette. Quanto a ti, bem sabes que tens o melhor e o mais ardente quinhão no afecto da tua feliz,

 

Maria Cláudia”

 

No alto da escadaria do palacete da rua da Faisanderie, diante do qual estacionavam desde as nove horas as mais luxuosas conduites, um criado, devidamente fardado, chamou com voz forte:

 

O carro do doutor Joranne.

 

Potente, de linhas sóbrias, o oito cilindros destacou-se da fila. Enquanto o coro dos klaxons acompanhava a manobra com sons estridentes e rápidos, Patrick, o motorista, deslizou habilmente por entre os carros aglomerados e veio encostar ao passeio.

 

A gentil esposa de Joranne arrancou-se às efusões dos seus amigos de poucas horas, que a rodeavam com simpatia. O contentamento irradiava-lhe do semblante, rosado pelo prazer, cuja deliciosa frescura nem a excitação, nem a insónia haviam conseguido alterar.

 

Alcançou André que, três degraus mais abaixo, a esperava, sorrindo.

 

Se assim continuamos, seremos chamados à ordem, querida observou, indulgente. Repara!

 

À retaguarda do Matforã os autos comprimiam-se, mantidos pelos seus condutores num rodar lento, parecendo cavalos de corridas impacientes pelo sinal da partida.

 

Perdoa-me!... exclamou, envergonhada.

 

Apoiou-se no braço que o marido lhe oferecia, dardejou-lhe de revés o olhar apaixonado das suas pupilas luminosas e meigas e, apanhando na pequenina mão, num gesto já habitual, as pregas do vestido branco desceu, leve e saltitante, a escadaria.

 

Seguiu-se um concerto de elogios:

 

É encantadora!

 

E tão novinha!...

 

Um amor...

 

Um felizardo, aquele doutor Joranne! Alcança todos os êxitos!

 

E ainda por cima foi descobrir um tesouro semelhante.

 

Por detrás dos vidros, ela continuava a sorrir-lhes ingenuamente, mostrando os belos dentinhos, reconhecida, mas muito nova ainda para saber distinguir nesse incenso que a embriagava o entusiasmo momentâneo ou a parcela de verdadeira sinceridade.

 

Pelo jardim minúsculo, húmido pelo orvalho da manhã, pelo palacete onde morria o eco do último tango, pela rua que os autos abandonavam pouco a pouco, levando os homens de casaca e as mulheres com sumptuosos vestidos, estendia-se já a branda luz rósea da madrugada.

 

Os retardatários, os que haviam ficado até aos últimos minutos, apressavam-se. Na atmosfera pura e mais silenciosa, as vozes subiam:

 

Quer que o conduza,

 

Não, tenho o meu carro. Obrigado. Mas onde diabo se meteria ele?... Aquele diabo do Gervais é sempre o último a aparecer...

 

Quem conduz Regina Halloy?

 

Eu! Eu! apressaram-se a oferecer vários convidados.

 

O mais indicado sou eu! Moro muito perto dela.

 

Mentiroso!... Talvez tomando pelo caminho mais longo...

 

As vozes subiam de tom. Vibrava certo enervamento nos risos que esfuziavam. Depois, e de repente, um silêncio pôs ponto na discussão.

 

Escultural, envolta na riquíssima capa de veludo preto, sobrecarregada pela farta gola de arminho, Regina acabava de aparecer na varanda envidraçada.

 

Não lhe faltam cavalheiros! gracejou o dono da casa, Jacques Beauchamp, o célebre juiz dos tribunais cuja bela voz sonora ecoava mais forte do que as outras. Todos eles disputam a honra de a acompanhar...

 

E, na verdade, devo sentir-me orgulhosa por esse motivo! gracejou, sem bem se compreender se o timbre, habitualmente grave e um pouco velado traduzia desprezo ou apenas satisfação.

 

Com um sorriso, pô-los de acordo.

 

São todos muito amáveis, meus caros senhores... Mas tenho o meu carro e costumo eu própria guiá-lo.

 

Pareceu não ouvir as exclamações desapontadas e, para os despedir, agitava com gentileza e graça a mão onde cintilavam pedrarias, talvez menos brilhantes do que as suas unhas carminadas.

 

Passando diante da senhora Beauchamp, parou:

 

Encantadora a sua festa, Josseline. Nunca me diverti tanto...

 

É muito indulgente, minha amiga... dá-me, contudo, grande prazer se fala sinceramente.

 

E por que não? replicou Regina com afabilidade. São quase quatro horas... e só agora me retiro. Se lhe disser que tinha determinado levantar-me cedo para ir pintar um adorável cantinho do cais, que esta semana descobri... já vê que pode considerar isto um triunfo!...

 

Confesso ser esta a primeira vez, pelo menos que eu saiba, que a vejo trocar as suas ocupações de artista pelos seus deveres mundanos.

 

Regina Halloy teve um trejeito desdenhoso que lhe ergueu os cantos dos lábios.

 

Os meus deveres! Não sou mulher que admita deveres, minha querida... sou fantástica, essencialmente versátil e, acima de tudo, independente. Mas, na verdade, não dou por mal empregada a noite de hoje...

 

Ambíguo sorriso entreabriu-lhe a boca deixando entrever vagamente a alvura dos dentes.

 

De resto, ofereceram-me uma atracção que eu não desejaria perder por coisa alguma deste mundo.

 

O semblante de Josseline Beauchamp exprimiu certo aborrecimento. Lançou um olhar furtivo ao marido, em cujas pupilas maliciosas brilhava um relâmpago de ironia.

 

Esboçou um gesto instintivo para se despedir da sua convidada, mas esta resistiu, prolongando por momentos o aperto de mão final.

 

Sim... a pequena Joranne é indiscutivelmente muito atraente... um pouco provinciana, é certo, mas bonita a valer, ainda que possua um género particular de beleza que nem a todos deve agradar! Não acham?

 

É uma criança replicou em tom indiferente a senhora Beauchamp mas muito simpática, não há dúvida!

 

Muito! confirmou a voz quente de Jacques Beauchamp. Não será, de facto, mulher moderna, mas basta falar-lhe uma vez para se compreender que tem um coração recto e puro. Dispõe de uma tal frescura moral, tão grande espontaneidade que subjuga imediatamente todos os corações.

 

Regina Halloy soltou uma risadinha algo fatigada.

 

E o nosso belo Joranne capitulou à primeira vista... Pergunto muitas vezes a mim própria onde foi ele descobri-la murmurou, pensativa, enquanto a linha sinuosa das sobrancelhas se aproximou, acentuando-lhe a expressão felina que era o traço predominante da sua fisionomia.

 

Ignora-se... Este casamento é um mistério para todos. Os Millane afirmam que o idílio começou por uma panne de automóvel...

 

Em resumo, obras do acaso. Decididamente o nosso cirurgião, glória nacional, é ainda para mais verdadeiro herói de romance...

 

O seu riso soou de novo em três notas breves e destacadas. Fechou hermeticamente a gola sobre o colo cintilante e desceu a escada tomando a atitude de uma estrela no final do terceiro acto.

 

Adeus, meus bons amigos. Que noite encantadora passei!...

 

Debruçados na balaustrada, os donos da casa seguiam-na com o olhar, enquanto ela se dirigia para o sítio onde arrumara o carro. Ouviram mais uma vez o seu riso irónico com o qual despedia definitivamente dois ou três obstinados, que insistiam em lhe constituírem guarda de honra.

 

Vamos, meus senhores!... Deixem-me em paz, por favor!... Sei muito bem andar sozinha.

 

E, numa arrancada, o cabriolet aberto não obstante a vivacidade da aragem matinal cortante transpôs o portão e desapareceu na rua, agora deserta.

 

Vai furiosa! comentou Josseline Beauchamp, enrolando nos ombros nus a écharpe de zibelina.

 

Pudera! redarguiu o marido, cujo riso malicioso era completamente destituído de indulgência coloca-te no seu lugar. Que derrota para a bela Regina Halloy! Por mim, se fosse o André desconfiaria...

 

Entravam os dois no hall. A senhora Beauchamp, dissimulando um bocejo dirigiu-se aos aposentos.

 

Porém, numa voz ligeiramente ensonada, replicou:

 

André está apaixonado e não quer saber da Regina. É a primeira vez que o vejo tão serenamente feliz, tão radiante, alardeando a sua felicidade com um orgulho quase insolente. Está provado que essa pequena, com toda a sua ingenuidade, alcançou retumbante vitória. E sem dar por isso! afirmou ainda. É tão simples, tão alegre, tão ignorante de tudo!...

 

Jacques Beauchamp tornou-se pensativo. Abanou a bela cabeça, em cujas fontes já alvejava uma poalha de prata:

 

É essa mesma ignorância que me inquieta. Está completamente desarmada para lutar com mulheres da espécie de Regina Halloy. André tem um temperamento terrível. Conheço-o perfeitamente. No fundo, não passa de um fraco. Não faço ideia de até que ponto está curado do seu feitio inconstante. Talvez esteja apenas adormecido e, se assim é, cautela com o acordar!...

 

A suave fisionomia de Josseline, um pouco abatida por essa noite de fadiga, anuviou-se de tristeza:

 

Tu supões André capaz de se comportar mal com aquela jovenzinha tão confiante, tão cândida?

 

Que queres, minha querida; André é homem e um homem que até hoje só conheceu sorrisos na vida!... E, acredita, a sua profissão representa terrível escolho para a tranquilidade da mulher!...

 

A senhora Beauchamp agitou, num movimento de revolta, os caracóis um pouco desfeitos da sua permanente:

 

É isto! Os homens atribuem sempre à profissão todas as suas tolices, por mais imperdoáveis que sejam!... Tem as costas largas, a tal profissão... No tribunal ou no consultório são sempre na vossa boca as lindas clientes que vos fazem olhos bonitos!...

 

Jacques apoderou-se da mãozita esguia que o ameaçava e encostou-lhe a face.

 

Ter ciúmes, que coisa tão feia! Espero que não me englobes no rol desses desagradáveis indivíduos, infiéis por uso e costume.

 

Como saber?...

 

Mas estava demasiadamente cansada para poder protestar com energia. O marido reteve-a, enquanto ela se lhe encostava ao ombro, perdida de sono e de fadiga.

 

Um instante ainda... quero dizer-te uma coisa... Visto que essa pequena te é tão simpática, desejaria que a pusesses em guarda contra certos perigos que podem vir a ameaçar-lhe a felicidade...

 

A mulher endireitou-se, de olhar admirado e subitamente mais vivo:

 

Julgas isso necessário?... Mas...

 

Será preciso proceder com infinita delicadeza.

 

Por certo! afirmou ela num tom sério. Por coisa alguma deste mundo desejaria lançar uma sombra na radiante alegria dessa gentil rapariga, tão confiante que chega a comover...

 

Pois claro... e é por isso que te encarrego da missão... Sei que procederás com o maior tacto...

 

Ela agradeceu com doce sorriso e prometeu:

 

Tentarei!...

 

Enquanto terminava assim a festa nocturna em casa dos Beauchamps, Maria Cláudia deixava-se conduzir para o seu domicílio.

 

Aninhada junto do marido, vivendo ainda no encantamento dessas horas maravilhosas que a haviam embriagado, recordava todas as fases daquela noite inesquecível a fim de nada omitir e gravar bem na memória as recordações que no dia seguinte transmitiria a sua mãe na carta quotidiana.

 

Que encantadora festa... como é agradável frequentar a sociedade!...

 

Esta exclamação foi proferida num tom por tal forma convicto, que trouxe aos lábios graves do cirurgião um sorriso divertido.

 

Vamos! observou por brincadeira. Estou vendo que preferes esta vida à tal instalação na ilha deserta, ambos sozinhos...

 

André!

 

O sorriso desaparecera e fitou-o com ar ofendido.

 

Não, não penses semelhante coisa! Sinto-me sempre mais feliz, sozinha contigo.

 

Tens a certeza?

 

Duvidas?

 

Contudo, esta noite foi verdadeiramente de triunfo para ti objectou ele e, segundo as aparências, esse triunfo agradou-te imensamente.

 

Há algum mal nisso?

 

Não, é claro... Pelo contrário! A tua alegria deu-me infinito prazer.

 

Maria Cláudia parecia reflectir, com a testa enrugada enquanto o marido se dispunha a ouvi-la numa afectada seriedade.

 

Evidentemente... a dança... a música... o Champanhe... todas essas pessoas que me trataram com tanta amabilidade... as mulheres, tão lindas... os homens, delicados e atenciosos... foi tudo tão novo para mim... tão curioso de ver!... Mas é incomparavelmente melhor, após tais horas de agitação encontrar-me aqui a teu lado, muito juntinha a ti, meu amor!...

 

Encostou-se a ele, semicerrando as pálpebras, numa atitude feliz de gatinha amimada. E repetia com voz cariciosa essas palavras que só empregava nos momentos de expansiva ternura:

 

Só contigo, meu amor!...

 

A fisionomia de Joranne iluminou-se docemente. Apertou contra si a juvenil esposa, esse corpito flexível e dócil que se lhe abandonava nos braços com tão confiante afecto.

 

Minha adorada! murmurou, mais comovido do que desejava deixar perceber.

 

Maria Cláudia, como se o pudor a inibisse de pronunciar certas palavras, proferiu baixinho:

 

Vês tu, para mim nunca haverá nada mais belo do que aquele cantinho sombreado pela folhagem dos castanheiros, onde pela primeira vez me disseste que gostavas de mim... Lembras-te?

 

André respondeu com olhar vago:

 

Lembro...

 

Evocando esse minuto delicioso, que fora para ela alvorada deslumbrante da sua imensa ventura, continuou também com olhar absorto:

 

Amavas-me!... Nunca julguei possível semelhante felicidade... e ainda hoje me admiro... me espanto de como tu, tão superior aos outros, pudeste escolher para mulher uma camponezita humilde e apagada.

 

Queres que te dê cumprimentos, minha vaidosazinha!... Não me ilude com essa falsa modéstia fique sabendo, minha senhora!... Não passa de uma pequena hipócrita...

 

Apertava-lhe o queixo como se o fizesse a uma garota, envolvendo-a num olhar indulgente.

 

Afirmo-te, André insistiu que ao ter a certeza de que desejavas casar comigo, quase ia morrendo de emoção.

 

Ele tentou gracejar, lutando contra esse enternecimento que naquela ocasião o humilhava e se lhe tornava molesto sem bem compreender porquê.

 

Oh! oh! para moribunda tinhas excelente aspecto, vamos com Deus!... Nunca te vi com aparência mais bem disposta.

 

Não zombes! suplicou Maria Cláudia não rias quando se trata dos momentos mais graves da nossa vida...

 

”Momentos deliciosos” cantarolou ele para a arreliar. Mas compreendeu que a desgostava, sentiu-a nervosa, triste, quase a chorar, e mudou de tom:

 

Como és louquinha, minha querida... Não é caso para lágrimas.

 

O nosso amor é para mim sagrado, André. Parece-me que nunca mulher alguma foi tão feliz como eu!

 

Se continuas assim, vais tornar-me vaidoso. Não a deteve a entoação levemente trocista.

 

Percebeu, porém, que nessa noite ele não estava como habitualmente; pressentia-o mais retraído, mais misterioso, menos natural, uma vaga inquietação bailando no fundo das suas pupilas escuras...

 

Pressentiu, teve ela a intuição dessa vaga mudança, apenas sensível, e que ele procurava ocultar com aparências de forçada jovialidade? Mas a alegria palpitava em todo o seu ser e a felicidade trasbordava dela como torrente impetuosa. Adivinhava a agitação do marido e quis desvanecê-la com palavras de reconhecimento e de amor.

 

A voz meiga prosseguiu num êxtase:

 

O nosso romance é tão lindo!... Tão extraordinário!... Antes de te conhecer, eu não vivia... era uma gaiatita bastante ingénua, alegre, sem dúvida, mas não podia supor que um dia penetraria por tua mão num mundo maravilhoso e desconhecido... num mundo onde viveria esta imensa e magnífica certeza, num desabrochar diferente de todo o meu ser, numa perpétua exaltação que transformaria toda a minha vida dando-lhe novo sabor e novos cambiantes... Meu belo príncipe encantado!

 

Pronunciou tudo isto em tom apaixonado e ao mesmo tempo tão ingénuo como criança deslumbrada, mas sem abandonar o seu ar grave de mulher que uma onda de ternura cresceu no peito de André. Curvou-se para ela e os lábios acariciaram os belos cabelos perfumados, a linda fronte pura que nenhuma dor profunda vincara ainda.

 

Minha adorada, como eu desejaria que nunca viesses a sofrer por minha causa!... murmurou em tom vibrante e apaixonado, no qual palpitava não se sabia que oculta tristeza.

 

A mãozinha suave de Maria Cláudia procurou a sua e conservou-a prisioneira numa terna pressão:

 

Nunca tal coisa poderia acontecer, André!... Há seis meses que entraste na minha existência e, desde então, vivo num perpétuo encantamento. Não preciso agora de fantasiar sonhos de ventura. A realidade é cem vezes mais deslumbrante do que todos eles!

 

O marido puxou-lhe a cabecita para o peito e fechou-lhe a boca num beijo.

 

Cala-te! Não digas loucuras. Como te excitas com facilidade, minha querida!

 

É uma censura? perguntou ela, endireitando-se com vivacidade.

 

Não penses nisso!... Apenas me sinto um pouco assustado por inspirar tão intenso e exclusivo sentimento. É... é terrível...

 

Terrível... porquê?

 

Na voz menos firme vibrava uma nota de ansiedade. Na meia luz que os envolvia, tentou fitá-lo com as pupilas subitamente dilatadas e mais brilhantes. Os reflexos da rua, àquela hora incerta da madrugada, enchiam o carro de fugazes lampejos, impedindo a jovem de distinguir bem o rosto do marido e lhe apreender a expressão.

 

Com gesto protector, André acariciou-lhe a mãozinha nua.

 

Porque tenho receio, minha adorada, de não ser digno-... não poder atingir o pedestal onde o teu amor me colocou. Quando se é um simples mortal torna-se difícil passar por um deus!

 

Calorosa, forte pela sua confiança, Maria Cláudia protestou com entusiasmo:

 

Tu és o melhor dos homens, o mais belo, o mais valoroso... Esta noite, entre tantos que observei, não vi um só, fica sabendo, que se comparasse contigo... um único que ambicionasse para companheiro!

 

Ele interrompeu-a, rindo, com um riso falso, que mal dissimulava a sua persistente perturbação.

 

Basta, minha senhora! Ponto em tantos louvores!... À força de querer cobrir-me de flores acabará por me tornar ridículo. Se o motorista ouvisse...

 

Ridículo! revoltou-se, indignada. Ridículo, porquê?... Quero lá saber da opinião de Patrick!... É um pecado reconhecer que se tem um marido admirável e dizê-lo?

 

Mas justamente, eu nada tenho de admirável!...

 

Não deves ser tão modesto com tua mulher... Bem sabes que não posso por forma alguma ignorar que és um médico célebre... um cirurgião de grande nomeada. Li todos os artigos escritos a teu respeito. Tua mãe mostrou-mos...

 

É sempre a família que nos trai! lamentou o médico, com fingido desespero.

 

Em todas as casas que tenho visitado, ouvi sempre falar do teu valor... da tua carreira brilhante... do esplêndido futuro que se abre diante de ti... diante de nós! suspirou em voz branda, encostando-se mais a ele. Quanto ao resto... sob o ponto de vista da tua sedução masculina...

 

Murmurou mais baixo, com entoação fervorosa que bem traduzia o seu apaixonado entusiasmo.

 

Julgas que não notei a impressão que causamos, esta noite, ao entrarmos naquele salão desconhecido?

 

”É o notável cirurgião André Joranne e a mulher. Era isto que diziam enquanto nos seguiam com olhares de admiração.

 

André teve um movimento de impaciência.

 

Uma questão de curiosidade, nada mais!... Não me haviam ainda tornado a ver na sociedade depois do nosso casamento.

 

Curiosidade cheia de simpatia, em todo o caso, porque os homens cumprimentavam-te com deferência e os seus apertos de mão eram calorosos... Quanto às mulheres...

 

Velado pelas pálpebras semicerradas. o olhar de Joranne pousou no rostozinho aninhado no seu ombro e que o fitava com maliciosa ternura.

 

Como elas te sorriam!... Como pareciam felizes quando lhes falavas... quando dançavam contigo... Uma, principalmente... esplêndida, vestida de voludo lilás... lembras-te, com os cabelos de um louro prateado e que parecia uma princesa dos contos de fadas... artista pintora, creio eu...

 

Sim... e depois? atalhou André um pouco brusco.

 

Depois! Se tu lhe visses a expressão do rosto quando te falava... Estavam ambos juntos do bufete... e eu passei pela frente, dançando... Tu devias talvez dar-lhe qualquer explicação... e ela ”bebia-te”, positivamente, as palavras. Não negues, toda a gente reconhece o teu valor!... E eu sinto-me tão orgulhosa com isso, meu querido André!... É mais uma alegria ignorada, essa que soubeste dar-me... Tive ímpetos de gritar bem alto para que todos me ouvissem! ”É meu marido!... Pertence-me!...”

 

”Depois pensei que pecava por vaidade... e contive-me.

 

Felizmente! comentou André com um sorriso forçado, dando-lhe uma palmadinha na face. Não faltaria mais nada, senhora minha, senão essa manifestação de intempestivo entusiasmo... inadmissível na nossa sociedade quando se está em público.

 

Não me desiludas dessa sociedade que me pareceu tão acolhedora, mas que detestarei se é tal como a descreves!

 

Ele respondeu com uma expressão de desdém:

 

Sim! Em geral só muito tarde se reconhece, e quase sempre à nossa custa, que o mundo não é o que sonhamos.

 

E por que de súbito ela se calou, sem dúvida entristecida e desolada como criança a quem acabassem de quebrar o brinquedo preferido, apressou-se a emendar o seu erro involuntário: Contudo, estou certo de que, para ti, esse mundo só terá sorrisos, minha queridinha! afirmou com meiguice.

 

”Querida mãezinha:

 

”Perdoa-me se te escrevo tão pouco. Mas não tenho um minuto de meu... Nunca supus que frequentar a sociedade constituísse uma tal canseira!... Festas, exposições de pintura, bailes, recepções...

 

”Anteontem fui à ópera. Que esplendor, mãezinha!... Um deslumbramento de luzes... um tal aparato luxuoso de jóias e ricas toilettes!... Mulheres que não pareciam verdadeiras, pois as suas faces apresentavam pintura ora de tom rosa-vivo, ora cor de açafrão a destacar-se na pele muito branca, e penteavam-se como se os cabelos estivessem colados à cabeça?...

 

”Como conseguem elas isto?... Os meus, quando danço ou me agito, esvoaçam logo como doidinhos.

 

”O cabeleireiro que me foi indicado por Josseline Beauchamp uma das minhas novas amigas, com quem simpatizo deveras porque é muito amável e condescendente aconselhou-me a fazer uma permanente, aproveitando a minha ondulação natural.

 

”Uma permanente!... Que horror! Não sabes o que isso é, mãezinha?... Felizmente, e queira Deus que nunca o saibas na tua vida... nem eu também! Põe na tua ideia uma cadeira semelhante às dos dentistas... nas quais temos de permanecer sentadas muito tempo, hirtas e direitas; um verdadeiro suplício... Por cima de nós, um aparelho medonho, de aço e ebonite, cheio de bicos ameaçadores.

 

”Pcem esse instrumento brutal em comunicação com a nossa cabeça isto mesmo, minha mãe, com a nossa própria cabeça por meio de uma infinidade de fios que nos arrepelam as sobrancelhas e o couro cabeludo pela forma mais dolorosa possível... Assim paramentadas assemelhamo-nos a deusas bárbaras e exóticas que algum deus inimigo raptasse para fazer perecer no meio das maiores torturas.

 

”Por fim, o suplício acaba. Tiramos todos esses apetrechos. Mas julgas que terminaram os nossos trabalhos?... Isso sim!... Inexorável, a mão do cabeleireiro puxa, enrola, dá-nos mil voltas ao cabelo como se este fosse coisa inerte e sem vida.

 

”Em seguida temos ainda o capacete secador que nos encaixam na cabeça e faz um barulho infernal. Depois de uma sessão deste género que durou quatro horas, Josseline saiu do cabeleireiro vermelha como uma beterraba.

 

”Ah! mãezinha, quando Dante escreveu a sua obra-prima, não visionou, por certo, a futura existência dos salões de cabeleireiros para a mulher moderna. Senão, tê-los-ia incluído nos seus ciclos infernais. Que lacuna!

 

”Seja como for, recuso-me a suportar esse suplício bárbaro. Quando testemunhei a minha indignação a esse respeito, André manifestou certo descontentamento.

 

”Mas é preciso que te convenças observou-me com a sua voz mais severa de que Paris não é um sertão e que a aparência de um indígena de Fonscouloubre ou de Taiti não pode ser a mesma de uma elegante que frequenta os meios mundanos da capital.

 

”Ai de mim! Bem sabes, mãezinha, que não sou uma ”elegante”... e, o que ainda é pior, receio nunca o vir a ser! Por exemplo, detesto arranjar a cara, como elas dizem.

 

”Arranjar a cara... que termo tão feio! Não há maneira de me resolver a cobrir o rosto com cremes gordurosos, com cores vivas, untar as pestanas com cosméticos e pintar as pálpebras de azul ou de roxo.

 

”Certo dia não foi há muito tempo para fazer uma surpresa a André, Josseline tentou a experiência. Durante uma hora obrigou-me a estar no gabinete de toilette, sentada numa cadeira, muito quieta, diante de uma quantidade de boiõezinhos misteriosos, de todas as cores e formas, de que se servia com método.

 

”Quando terminou precipitei-me para o espelho, e soltei um grito. Pois aquela cara era a minha?... Misericórdia!...

 

Os meus olhos tinham mudado de forma e as sobrancelhas também; o nariz parecia mais comprido, as maçãs do rosto mais salientes por efeito da cor muito rosada que as avivava... Quanto às pestanas, conservavam-se muito hirtas e gomadas, como as das bonecas de trapos, estúpidas e sem expressão, bonecas que o Pai Natal me dava quando eu era pequena.

 

”Em conclusão, não me reconheci. E protestei logo, assustada:

 

André, se me vê assim põe-me na rua! Nunca conseguirei convencê-lo de que isto sou eu!

 

”E num pulo, toca para a casa de banho e, como diria a Nanon, esfrega que esfrega com a esponja, até que saí de lá com as faces a arder. Mas ao menos tinha recuperado cara de gente! Uf!...

 

”É curioso... Todas as outras mulheres usam essas pinturas para se embelezarem. Eu, porém, achei-me horrível... e renuncio a elas, com excepção de um pouco de pó de arroz que julgo bastante agradável de aplicar no decorrer das noites de calor e de animação.

 

”No entanto, mãe querida, nada disto impede que me divirta e sinta feliz como uma rainha... São todos muito amáveis para mim... homens... e senhoras... acham-me graça, fazem-me perguntas, dão-me conselhos e zombam um pouco da minha pronúncia, mas com tanta cordialidade que não posso ofender-me... Todos se interessam e procuram facilitar a minha aprendizagem de parisiense, modelo 1937... e todos procuram, também, arrastar-me no turbilhão.

 

”Não obstante... há momentos... em que me detenho e fecho os olhos a fim de procurar no fundo da minha memória a imagem tranquila de Fonscouloubre... o castelo reflectindo-se nas águas profundas do lago, o cerrado das macieiras... e, acima de tudo, o teu adorado rosto, mãe querida, esse rosto sereno que conservaste emoldurado nos teus cabelos grisalhos onde tanto gostava de pousar os meus lábios, uma beleza que nunca encontrei igual nas brilhantes mulheres com quem convivo.

 

”Sabes, mãezinha... penso algumas vezes que a tua felicidade, essa ventura inefável que deixou nos teus olhos tão radioso reflexo, era de uma essência rara!... Uma felicidade idêntica desejaria eu atingir ao lado de André... daqui a algum tempo... quando me fatigar desta vida fictícia e mundana...

 

”Por agora, sigo no agitado turbilhão com um tanto de embriaguez, confesso e deixo-me arrastar na vertigem louca da grande cidade, vertigem que nem sequer nos dá tempo para respirar quanto mais para reflectir... Com certeza não reconhecerias a tua selvagenzinha nesta parisiense que, com excepção da pintura e da permanente, está prestes a ser, graças à costureira, à modista e ao ambiente, uma réplica perfeita de todas as suas semelhantes...”

 

A primeira parte do concerto terminou com o último acorde da Serenata Espanhola, de Albeniz. Os aplausos romperam vibrantes. Depois, quando o maestro agradeceu por três vezes, voltado para o público, o pano baixou para o intervalo.

 

Como é belo! suspirou Maria Cláudia com voz distante, parecendo abandonar com pesar o mundo maravilhoso aonde a havia transportado o talento prestigioso do músico.

 

Em volta dela as outras senhoras manifestavam-se com gritinhos e exclamações exageradas, como: ”Um encanto!... Formidável!... Um génio, este Albeniz...” ao mesmo tempo que passavam rapidamente pelas faces as borlas do pó de arroz.

 

Encontrava-se ali Josseline Beauchamp; estava de casaco verde-Nilo, guarnecido com raposas, que mais acentuava a sua beleza de loura e a sua linha esguia e aristocrática; a gorducha, mas gentil senhora Letardier, a condessa Aspath e Germana Hiver, mulher de um colega de André, pois todas tinham querido honrar com a sua presença esse concerto dado a favor das vítimas de uma catástrofe mineira no Norte.

 

Com o acender das luzes, intensificou-se o ruído confuso das vozes. Abriram-se as portas dos camarotes, bateram os assentos dos fauteuils... a voz arrastada de uma vendedeira apregoou em tom monótono: ”Caramelos... chocolates... rebuçados...”.

 

A senhora Beauchamp consultou o relógio de pulso:

 

Cinco horas!... E essa Exposição de Arte Feminina, nas Tulherias!... Não sei como hei-de arranjar tempo para lá ir!

 

Também vai? inquiriu a condessa Aspath, ocupada em abotoar em volta do pescoço magro e ossudo a gola de vison do elegante tailleur.

 

Tinha voz rouca que não condizia bem com a cabeça de águia e o corpo muito esguio e anguloso. Mas discutia todos os assuntos e dava a sua opinião com a autoridade que lhe conferia a consciência do seu valor e da sua superioridade.

 

Pois claro! Ninguém falta! declarou Huguette Letardier, que acabava de avivar os lábios, carminados em desenho de coração.

 

Afastavam-se as cadeiras para o recanto do camarote. Diante do espelho, Huguette colocava sobre os cabelos brilhantes, de um castanho-avermelhado de acaju, um excêntrico boné de polícia, em feltro preto e concedia à própria imagem um olhar aprovador e satisfeito.

 

Maria Cláudia, por fim levantou do programa os olhos.

 

Pois quê!... Não esperamos pelo fim! exclamou, admirada e contristada.

 

Todas as senhoras a olharam com espanto.

 

Esperar pelo fim?... Como se houvesse tempo para isso!... Ainda se o concerto se tivesse realizado à noite... Mas assistir a uma matinée do princípio ao fim quando o pequenino carnet breviário inseparável do baton e da caixa de pó de arroz na malinha de toda a parisiense que se preza indicava tantas entrevistas, visitas, compras, obrigações inadiáveis, que... aliás nunca se chegariam a cumprir todas, é claro!...

 

Não se pode faltar à Exposição sentenciou a condessa no seu tom imperioso...

 

E tenho ainda um cocktail às seis horas em casa dos Limerey! lamentou Huguette. Que época!... Não sei como não morro de cansaço!

 

De si para si, Maria Cláudia pensou que, em face de tanta fadiga, seria mais sensato para quem assim se queixava ficar sossegadamente em casa ou então permanecer tranquila no camarote, ouvindo até à última nota essa música maravilhosa, tão impressionante e ao mesmo tempo de tão apaziguadora doçura.

 

Mas em questão de mundanismos via-se bem que não passava de uma profana.

 

Vem connosco, não é assim? inquiriu Huguette, dirigindo-se a Maria Cláudia.

 

Esta hesitou, perplexa.

 

Não, não! interveio Josseline com certa vivacidade Maria Cláudia tem de regressar a casa cedo, não é verdade?

 

O quê! Já!... exclamaram em coro as outras, indignadas.

 

A senhora Beauchamp encolheu os ombros.

 

Pois decerto. Acho-as extraordinárias!... Parecem esquecer que Maria Cláudia é uma recém-casada, uma avezita que anseia pelo seu ninho... pelo seu carcereiro.

 

É comovente! comentou a voz mordaz de Huguette Letardier, enquanto Germana Hiver afirmava, indulgente:

 

Por mim, acho isso muito natural.

 

Mas André não está à minha espera protestou Maria Cláudia com certo desagrado.

 

Não regressa a casa antes das oito. Gostaria de ficar até ao fim do concerto.

 

Pois fica! aprovou Josseline. Queres que te faça companhia?

 

Não. Não desejo que por minha causa deixes de comparecer no Salão...

 

Nesse caso, o remédio é simples. Venha connosco! decidiram em coro as outras três.

 

A condessa Aspath acrescentou, peremptória:

 

Verá coisas muito curiosas que servirão para aperfeiçoar a sua iniciação parisiense. Além disso, estou persuadida de que arde em desejos de nos acompanhar. Não é assim, minha gentil senhora?

 

A gentil senhora achou melhor ceder. Não queria ser desmancha-prazeres. Não obstante a insistência de Josseline, cujo desejo de ir às Tulherias parecia ter esfriado de repente, levantou-se e seguiu o grupo.

 

Sem entusiasmo, Josseline imitou-a.

 

Na Avenida dos Campos-Elísios tomou de súbito uma resolução.

 

Estou com uma enxaqueca terrível; a música fez-me mal. Prefiro regressar a casa. Irei ver os quadros em qualquer dia desta semana, quando ali houver menos gente. De passagem, deixo-te em casa, queres Maria Cláudia?

 

Não, mil vezes não! protestou a condessa com a sua voz grossa. Recomeçamos?... A senhora Joranne prometeu ir connosco e nós não a dispensamos. Já basta termos de passar sem a sua agradável companhia, minha querida amiga.

 

Encarrego-me de levar a casa Joranne declarou Huguette. Tenho o meu carro.

 

Maria Cláudia dirigiu a Josseline tímido sorriso.

 

Como vês, não posso resistir. De resto, se te sentes assim mal disposta é preferível que regresses directamente a casa.

 

Isso mesmo! Vamos acompanhá-la... Vamos, suba depressa, sua desertora! exclamou, rindo a pequena Letardier e abrindo a portinhola do carro para Josseline entrar.

 

A Beauchamp obedeceu sem entusiasmo. Uma sombra de contrariedade escurecia-lhe o semblante e o sorriso que dirigiu às amigas, enquanto estas se despediam dela, traduzia certa inquietação. Quando o carro se pôs em marcha, envolveu ainda Maria Cláudia num olhar estranho e pensativo.

 

Pouco depois, o carro azul e branco que a própria Huguette Letardier guiava habilmente, percorria as movimentadas ruas da capital e depunha as suas ocupantes na rua Rivoli, diante da porta de entrada do Salão.

 

O poente de Abril tingia de tons delicados as árvores em flor e as pedras do velho palácio tomavam esse adorável cambiante, misto de rosa muito pálido e de lilás suave, que só a luminosa doçura da primavera parisiense saberia dar-lhes.

 

Nas salas onde se efectuava a tal Exposição de Artistas Femininas acotovelava-se a multidão dos grandes dias. Aquela manifestação mundana transformara-se num verdadeiro concurso de elegância.

 

”Misericórdia! pensou Maria Cláudia quando se viu arrastada pelas companheiras por entre a aglomeração febril dos visitantes. Como consegue toda esta gente ver os quadros? Tenho a impressão de me encontrar na sala de espera de uma gare, aguardando o expresso.”

 

Com efeito, para passar de uma sala à outra era necessário deslizar por meio dos numerosos e compactos grupos que se formavam em diversos pontos e se cumprimentavam com exclamações e apertos de mãos, sem se dignarem lançar simples olhar às paredes onde se exibiam as várias obras-primas, reais ou supostas.

 

De quando em quando uma conhecedora colocava-se diante das telas de lorgnon assestado. Imóvel, imperturbável, o ar inspirado, detinha a onda dos visitantes que subia e descia, provocando, ela sozinha, a aglomeração.

 

Espantada, sacudida, empurrada, fixando a gola fulva de Huguette Letardier a fim de não se perder do seu grupo, Maria Cláudia conseguiu alcançar a sala do fundo quando a condessa Aspath virou para ela as duas agressivas penas do seu chapéu.

 

Por aqui, minha amiguinha!... Para a esquerda. Trata-se de descobrir o quadro de Regina Halloy que, segundo dizem, é o melhor do Salão.

 

Com muito custo, servindo-se dos cotovelos para conseguir avançar e defender-se ao mesmo tempo dos encontrões, Maria Cláudia, conforme pôde, reuniu-se às companheiras.

 

Compacta massa de gente animada, vibrante, falando muito alto, comprimia-se em determinado ponto. Maria Cláudia, de passagem, reconheceu alguns dos rostos já entrevistos no decorrer das suas peregrinações parisienses.

 

Ao defrontarem-na, as fisionomias tomaram bruscamente uma expressão singular. Sentiu-se alvo de curiosidades e, mal disposta, tentou atingir o primeiro plano. Os homens afastaram-se para lhe dar passagem; as mulheres sorriam, mas a tudo isto faltava naturalidade. Um mal-estar súbito oprimiu o coração da jovem provinciana...

 

Foi, porém, uma impressão fugitiva. Recomeçaram as conversas. Trocavam-se exclamações elogiosas: ”Admirável!... Fulgurante!... Incomparável... Maravilhoso pincel... Esplêndida composição!...” e ainda outras palavras cujo sentido Maria Cláudia mal compreendia: ”Dinamismo... musicalismo, etc...”.

 

Mas, desde que o seu olhar recaiu na tela sentiu-se subjugada. A pintora dera o nome de O Rapto ao quadro que representava um corcel fogoso arrastando uma mulher para horizontes onde os tons violentos e audaciosos haviam sido distribuídos com profusão.

 

O conjunto havia sido realizado sob raro poder de concepção: os azuis aveludados, os roxos metádicos, os vermelhos ardentes, animavam a tela com uma vida intensa. O traço era perfeito. A artista conseguira exprimir pelo simples milagre da cor, violência e ao mesmo tempo infinita suavidade, fazendo dessa composição uma obra notável, principalmente por ser assinada por uma mulher.

 

Sensível por instinto a toda a manifestação do belo, fosse onde fosse que a encontrasse, boquiaberta Maria Cláudia contemplava a tela, o olhar cintilante de admiração.

 

Agrada-lhe, querida senhora? inquiriu de repente uma voz grave junto dela.

 

A juvenil senhora estremeceu um pouco, envergonhada por ter esquecido por instantes que não estava sozinha no meio dessa multidão ruidosa.

 

E viu sorrir-lhe Regina Halloy que, misteriosa e bela como sempre, lhe estendia a mão.

 

Via-se ser aquela a sua verdadeira moldura. Muito decotada, exibia orgulhosamente os seus cabelos louro-pálido, penteados altivamente, coroando o rosto miudinho. Uma dessas túnicas lilases cor que preferia por ser, sem dúvida, a que melhor se harmonizava com o tom violeta raro e estranho das suas pupilas aveludadas envolvia-a em pregas sedosas, presas na cintura por largo fecho de prata lavrada.

 

Tal como se apresentava, revestia-se de um aspecto muito Montparnasse... mas aos olhos inexperientes de Maria Cláudia surgiu como um desses seres privilegiados que parecem dotados de sobrenatural sedução.

 

Foi na verdade a senhora quem pintou... isto?... exclamou a jovem, corando.

 

E com o dedo apontava ingenuamente o quadro.

 

As pálpebras de Regina baixaram devagar, velando-lhe o olhar insistente. E esse olhar apoiou-se pesado e fixo sobre a visitante, como para a apreciar e medir desde a ponta dos sapatinhos de pelica até ao encantador barretinho russo que acompanhava o seu tailleur de veludo.

 

Sim, fui eu...

 

Oh!

 

Gosta?

 

De princípio, Maria Cláudia não encontrou palavras que exprimissem o que sentia. Depois, uniu as mãos com graça infantil.

 

É prodigioso! exclamou com entusiasmo, escolhendo, sem querer e sem dar por isso, o termo no repertório que lhe feria os ouvidos desde a sua entrada na sala.

 

Regina Halloy teve um risinho quebrado que dava mais a nota de irónica zombaria do que de manifesto júbilo.

 

É muito amável...

 

Não, digo apenas o que penso, asseguro-lhe afirmou Maria Cláudia, com simplicidade. Em torno das duas mulheres estabelecera-se como por encanto profundo silêncio... à parte leves murmúrios rápidos e fugidios.

 

Maria Cláudia notou que as observavam e sentiu-se mal disposta.

 

Deve sentir-se feliz por saber pintar assim prosseguiu, corando mais ainda por causa dos olhares insistentes que a observavam.

 

Gosta de pintura? inquiriu Regina Halloy, insinuante.

 

Sim, gosto muito... de boa pintura. Arriscou um olhar rápido pelo cenário que a rodeava.

 

Hoje, porém, pouco consegui ver ainda. Está tanta gente...

 

Num dia de vernissage entra-se aqui, não para admirar os quadros, mas, sim, para se ser admirado, o que não é bem a mesma coisa.

 

Foi isso exactamente o que pensei! confessou Maria Cláudia, rindo, o que pareceu dispô-la melhor.

 

Regina Halloy propôs amavelmente:

 

Visto que se interessa pela pintura, venha outro dia e mostrar-lhe-ei o Salão. Verá que há quadros dignos de serem apreciados...

 

Como aquela genial artista sabia ser simples e amável!... Maria Cláudia quase nem podia acreditar e ficou-lhe reconhecida.

 

Agradeço-lhe muito. Será para mim uma grande honra... e uma felicidade!

 

Regina Halloy pensou um momento e o seu olhar veio pousar de novo no rostozinho expressivo e franco erguido para ela.

 

-Por acaso tem já destinada a noite de quarta-feira próxima?

 

Quarta-feira...

 

Maria Cláudia, de testa franzida, tentou recordar-se.

 

Não, suponho que não... Mas espere! Vou consultar o meu carnet.

 

Procurou na malinha e, muito orgulhosa por mostrar que estava em forma e cumpria o ritual exigido a uma autêntica parisiense, exibiu o seu livrinho.

 

Não, nada tenho de urgente. Apenas um bridge em casa de minha sogra... posso, porém, adiá-lo...

 

Isso mesmo... Sua sogra joga outro dia! declarou resolutamente Regina. Dê-me então o prazer de vir ao meu estúdio tomar uma taça de Champanhe. Encontrará ali pessoas interessantes...

 

Com todo o gosto, se André estiver livre, como espero prometeu Maria Cláudia, encantada.

 

Os cílios da artista bateram imperceptivelmente.

 

E Maria Cláudia teve a impressão de que não se demonstrara ainda bastante reconhecida pelo convite feito por aquela artista eminente.

 

André vai ficar lisonjeado com o seu amável convite, sabe... Estou certa de que tem nele um admirador entusiasta... É dotado de um gosto artístico tão requintado!

 

Ah! sim?

 

Sim afirmou a jovem recém-casada com voz que de súbito se tornou mais meiga e onde palpitava o seu apaixonado entusiasmo tem um gosto muito apurado, eclético...

 

Eclético... realmente?

 

Realmente... Tudo o impressiona e encanta!

 

Pelo que vejo, é um homem pródigo em sensações murmurou sarcasticamente Regina Halloy, num pálido sorriso.

 

Acima de tudo é sincero! protestou Maria Cláudia. André não sabe mentir.

 

Esta afirmativa teve o dom de fazer passar nas pupilas da sua interlocutora um lampejo de irónica alegria. Suspirou, risonha.

 

Como é belo o amor!...

 

Não me acredita? protestou Maria Cláudia, sufocada.

 

Regina Halloy teve um riso indulgente. Curvando um pouco a alta estatura para se colocar ao nível de Maria Cláudia, garantiu:

 

Pelo contrário, minha gentil senhora!... Quem melhor do que sua mulher deve conhecer esse célebre Joranne?

 

E sublinhou esta declaração com um olhar tão especial que fez corar a face aveludada da galante recém-casada.

 

Então contraria-te assim tanto que eu aceitasse esse convite para quarta-feira e ter prometido que iríamos os dois?...

 

De boquita contraída num jeito de tristeza, Maria Cláudia mantinha-se diante do marido com expressão desolada e atitude de uma criança que recebe repreensão. Era tão grande o seu desapontamento que nem reparava que o café, servido por ela nessa altura, esfriava na chávena que distraidamente conservava na mão.

 

André fumava com nervosismo febril que mal ocultava as suas secretas preocupações. Os cigarros, apenas acesos e logo apagados, amontoavam-se no cinzeiro diante dele.

 

Fumar era o seu desforço quando qualquer coisa caminhava mal na clínica, quando uma operação o preocupava e não podia calcular se terminaria mal ou bem.

 

Perguntei-te se estavas livre na quarta-feira defendeu-se Maria Cláudia com voz débil. Respondeste-me que sim. Então julguei poder telefonar a essa senhora, confirmando a nossa visita... Ela já me enviara uma carta para recordar o convite verbal feito no Salão... Não calculas como me aflige que isso te contrarie tanto.

 

Não me contraria absolutamente nada. Não tenho é tempo para perder com essas ninharias!

 

Era a primeira vez que lhe falava com tamanha aspereza... Maria Cláudia, surpreendida e infinitamente desgostosa, perguntava a si mesma o que poderia ter feito para lhe provocar semelhante mau humor.

 

A senhora Joranne entrou na sala, trazendo o seu tricot. Como não tomava café, ausentara-se para dar algumas ordens na cozinha.

 

Que aconteceu? inquiriu, vendo a atitude aborrecida do filho, enterrado na sua poltrona, o olhar distante, e o aspecto desolado de Maria Cláudia.

 

É simples! Vá sozinha e apresente as desculpas por seu marido.

 

Mas eu não quero também que ela vá! toadou André com violência. Não me agrada saber que minha mulher se encontra num meio duvidoso, bebendo Champanhe, em companhia de pessoas que mal conhece...

 

André!... Num meio duvidoso! Mas é uma amiga da condessa Aspath e de Josseline. Não é também uma estranha para ti. Conhece-la muito bem.

 

De quem se trata, afinal? informou-se a senhora Joranne, levantando a cabeça com vivacidade.

 

Foi Maria Cláudia quem respondeu:

 

De Regina Halloy... uma pintora que já encontrei várias vezes em casa de amigos comuns.

 

Ah!...

 

A Joranne não pronunciou mais palavra e entregou-se ao seu tricot com atenção invulgar.

 

Ouve prosseguiu bruscamente André, virando para a mulher a fisionomia irritada desde que começaste a sair, a frequentar a sociedade, a conviver com todas essas bonecas que se julgam obrigadas a levar uma existência oca...

 

Como tu me falas, André!

 

Ferida, olhava o marido doloridamente. Nunca ele usara para ela de semelhantes modos.

 

É um verdadeiro requisitório! lamentou-se com as lágrimas nos olhos.

 

Nada disso! atalhou, impaciente não tomes sempre as minhas simples observações por censuras.

 

Contudo, em presença do rostozinho pálido e de feições contraídas, abrandou o tom:

 

Admito perfeitamente, minha filha, que gostes de te divertir... Sou um triste companheiro para uma rapariga da tua idade... A minha profissão absorve-me...

 

Ela exclamou, suplicante.

 

Mas bem sabes que prefiro auxiliar-te, em vez de sair, de me distrair, como dizes... Gostaria imenso de me tornar útil... Queria aprender, seguir cursos...

 

És uma criança!... Não casei com uma enfermeira, mas, sim, com uma mulher capaz de ser a minha companheira e a minha alegria. Já uma vez te disse que considerava a minha carreira perfeitamente à parte da minha vida particular.

 

A voz retomara o tom seco e ríspido. Maria Cláudia sentiu o coração oprimido e a custo reprimiu as lágrimas prestes a soltarem-se.

 

Portanto, saíres, frequentares a sociedade, é perfeitamente normal. Mas quando quiseres comprometer-te para a noite... ou adquirires um novo conhecimento, consulta-me primeiro, que demónio!

 

Eu não calculava que isso pudesse desagradar-te... Regina Halloy frequenta as mesmas casas que nós frequentamos... casas onde tu próprio me apresentaste... É recebida nelas com toda a consideração... Ignorava, portanto, que fosse uma pessoa... pouco recomendável...

 

Não quero dizer isso! interrompeu André num protesto.

 

Nesse caso... não te compreendo!... Fitava-o com os seus grandes olhos ingénuos, aos quais assomava confusa ansiedade.

 

A Joranne levantou-se e, enrolando o trabalho, desapareceu silenciosamente.

 

Com nervoso movimento, André deitou fora o cigarro. Conservou-se uns momentos imóvel, evitando encarar sua mulher e mantendo o olhar fito no desenho do tapete.

 

A perplexidade de Maria Cláudia igualava a sua desorientação. André não gostava de Regina Halloy, era evidente. Vira-os no entanto conversar durante bastante tempo até, na festa de Josseline Beauchamp...

 

É verdade que conversar podia não indicar por parte de André viva simpatia pela sua interlocutora... Se esta última o distinguia, a sua delicadeza, o seu trato de homem de sociedade exigiam que se mostrasse atencioso com ela.

 

Em todo o caso parecia tão aborrecido com o incidente que chegou à convicção de que havia cometido um erro grave. Não teria procedido inconsideradamente?...

 

Aproximou-se do marido, com um sorriso trémulo e receoso, ansiosa por se reconciliar com ele, pôr ponto na estúpida discussão.

 

Perdoa-me, amor replicou com meiguice. Como sempre, julgo que tens razão. Vejo que fui imprudente...

 

Vagarosamente, o olhar de André veio pousar sobre ela. E nesse olhar podia ler-se muita coisa... coisas que não conseguiu bem compreender. Nos olhos dele só viu a ternura imensa que lhe sobrelevava o rosto.

 

Minha adorada - pronunciou em voz baixa e quase suplicante.

 

Aqui me tens.

 

E num gesto encantador de espontaneidade e submissão, ajoelhou junto da poltrona.

 

O semblante contraído de André cobriu-se bruscamente de violento rubor e fez um movimento rápido para a levantar:

 

Maria Cláudia!... Peço-te!

 

Ela resistiu à mão que se esforçava por erguê-la e num gesto meigo encostou a cabeça aos joelhos do marido...

 

Porquê?... Deixa-me estar assim... Sinto-me tão bem...

 

Não gosto de te ver nessa posição... de suplicante... ou de criminosa. Eu é que devia ajoelhar a teus pés concluiu, com uma espécie de acre energia.

 

Maria Cláudia deitou a cabeça para trás, oferecendo-lhe a luminosa pureza das suas pupilas admiradas.

 

Tu, a meus pés! protestou com sorriso confiante. Porque eu, como uma tolinha, me ofendi... com uma observação tua... que presentemente considero de todo o ponto justificada?... Sim, sim! prosseguiu com vivacidade, tapando-lhe a boca com a mãozinha para não o deixar falar. Tiveste imensa razão não consentindo que fosse a esse estúdio. Não te agrada o género de Regina Halloy... Por meu lado confesso também que nos primeiros tempos me surpreendeu. Tem um modo tão... tão audacioso, tão desenvolto de nos fitar... de nos falar... Sim, acho-a singular... devido talvez à sua beleza estranha concluiu pensativamente.

 

Maria Cláudia, escuta...

 

Não julgues que tenho empenho em me dar com Regina Halloy. Além disso, Josseline não gosta dela, já o compreendi. No outro dia mesmo quis acompanhar-me ao Salão para ver os quadros expostos por ela... e quando lhe anunciei o convite para quarta-feira, pareceu tão contrariada como tu agora.

 

Maria Cláudia...

 

Não, deixa-me falar, querido, não me consideres sempre uma criança sem perspicácia... Eu compreendo muitas coisas, fica sabendo...

 

A mão de André, que acariciava os cabelos de Maria Cláudia, imobilizou-se. As suas pupilas pareciam querer penetrar o pensamento da juvenil esposa, fitando-a.

 

Ela suspirou:

 

Sim... vejo bem que a sociedade não é essencialmente perfeita. Nem sempre se faz o que se deseja e somos obrigados a uma infinidade de pequeninas concessões... Ser amável com pessoas com quem não simpatizamos... mostrar boa cara aos indiferentes... Quanto a mim, porém, resolvo o caso com muita facilidade. Visto não te agradar o meio onde gravita a bela Regina Halloy, fica sossegado que nunca lá porei os pés. Além disso, evitarei com todo o cuidado encontrar-me com essa senhora. Estás contente?

 

Encostou a cabeça ao peito do marido. Este contemplou-a assim, encantadora no seu abandono afectuoso, e a sua fisionomia exprimia singular perturbação, quase dolorosa.

 

Com esforço visível, abriu a boca como se quisesse comunicar-lhe palavras que lhe custava a pronunciar.

 

Mas precisamente nesse momento, Maria Cláudia perguntou-lhe: ”ÉS feliz?”, erguendo para ele, numa carícia, os olhos luminosos e puros.

 

E no belo rosto havia uma tal expressão radiante e carinhosa que o médico recalcou as confidências prestes a brotarem-lhe dos lábios e contentou-se em a estreitar silenciosamente nos braços, num ímpeto apaixonado.

 

Maria Cláudia acabava de pôr na cabeça o gracioso chapéu de veludo, quando a sogra lhe perguntou:

 

Sai esta tarde?

 

Saio... Vou fazer compras com Josseline. Marcámos encontro no Ritz, às cinco horas. Mas primeiro quero passar pelo correio... Tenho uma encomendazinha para enviar à mamã.

 

Bem de saúde, sua mãe? informou-se.

 

Felizmente bem, sim... Agradeço-lhe o cuidado...

 

E um pouco mais habituada à sua existência solitária?

 

Um véu de melancolia enublou o olhar de Maria Cláudia.

 

Evidentemente que é pouco alegre para ela. Mas tem tanto com que preencher os seus dias! A mãezinha não é como eu, ocupa-se de trabalhos úteis e proveitosos...

 

Ora! replicou a Joranne, indulgente a minha filha é muito nova ainda... e tem tempo para tudo. Janta hoje em casa, não é verdade? informou-se após breve silêncio.

 

Janto, sim. André tem, segundo creio, de se demorar no consultório, e avisou que vinha tarde. Mandei servir o jantar às nove horas.

 

Muito bem.

 

A senhora Joranne compôs as almofadas do divã, apanhou uns restos de lã que se tinham agarrado ao tapete, junto da mesa de trabalho.

 

Mas, antes de deixar o aposento, aproximou-se da nora:

 

Espero disse, pousando-lhe afectuosamente a mão no ombro que a pequena nuvem do outro dia se dissipasse por completo!... Sabe... refiro-me à ligeira discussão levantada entre si e André, a respeito de...

 

De Regina Halloy?

 

O semblante de Maria Cláudia iluminou-se:

 

Já lá vai, por completo... André não tornou a falar-me no assunto. Foi um incidente sem importância. Enviei um atencioso bilhete, apresentando as minhas desculpas e as de André, e ficou o caso arrumado.

 

Num gesto travesso de garota, deu um estalido desdenhoso com os dedos:

 

Regina Halloy... que importância tem para mim... quero lá saber dela para nada! É bonita, tem talento... mas logo que meu marido não simpatiza com ela, nem mesmo chega a ser um dissabor não conviver com essa senhora.

 

Soltou alegre risada.

 

A senhora Joranne suspirou com alívio.

 

Antes assim exclamou, tranquilizada. Sabe? André é às vezes um pouco brusco, mas tem excelente coração.

 

Meigo sorriso iluminou o rosto da jovem esposa:

 

A quem o diz, ”mãe!”... Sei isso perfeitamente.

 

E num tom de plena confiança, acrescentou:

 

E esse coração é meu, pertence-me e sinto-me tão feliz!

 

Joranne ocultou com leve ataque de tosse a comoção que a dominava e não queria deixar perceber.

 

Num gesto verdadeiramente maternal e pouco habitual nela abraçou Maria Cláudia.

 

Minha querida filha proferiu, enternecida. A felicidade entrou consigo nesta casa. Meu filho não parece o mesmo... Nem calcula quanto lhe agradeço!...

 

Ainda que um pouco admirada com essa manifestação de ternura, pois era bastante reservada, Maria Cláudia retribuiu o abraço com afecto.

 

Tinha um carácter essencialmente generoso e nada havia que mais a sensibilizasse do que um testemunho de afeição.

 

O gesto da senhora Joranne aquecera-lhe a alma e foi cantarolando alegremente que abriu a porta dos seus aposentos.

 

Quando ia transpô-la, esbarrou com um rapaz ostentando o fardamento dos correios.

 

A senhora André Joranne inquiriu.

 

Sou eu...

 

Trago uma carta que lhe é dirigida disse o rapaz tirando o boné.

 

Maria Cláudia aceitou-a e procurou, na malinha, uma moeda para o gratificar.

 

”Bem! pensou deve ser de Josseline, a avisar-me de que não conte com ela.

 

Contente com a gorjeta, o moço deu meia volta e desceu a escada.

 

Enquanto descia por sua vez, Maria Cláudia examinava o sobrescrito.

 

Não é a letra de Josseline. Tenho tempo de a ler no carro pensou, impelida pelo desejo urgente de expedir a sua encomenda para Fonscouloubre antes da partida do correio. Deve ser da modista adiando a prova para outro dia.”

 

Na avenida, diante da porta, Patrick esperava, atento. Maria Cláudia dirigiu-lhe um sorriso bondoso que o motorista acolheu com olhar reconhecido. A patroazinha nova, com os seus modos afáveis, era adorada por todos os seus serviçais.

 

Que lindo dia, não é verdade, Patrick?

 

E sorria ao sol radioso, perfeita imagem do que lhe aquecia a alma.

 

Lindo, minha senhora!... concordou Patrick, olhando a gentil patroa, tão graciosa e juvenil no seu tailleur de veludo.

 

Vamos primeiro ao correio, Patrick, e depois siga para o Ritz.

 

Sim, minha senhora.

 

Fechou, cuidadoso, a portinhola e subiu para o seu lugar.

 

Também ele experimentava a doce influência dessa tarde primaveril. Manobrava o volante com vitoriosa energia, deslizando por entre a fila compacta de autos e autocarros. Se a correcção lho permitisse teria assobiado como esses garotos que passavam de mãos nas algibeiras e nariz levantado, arrastando as alpercatas no asfalto e aspirando o ar morno e carregado de aromas.

 

De repente sentiu tocarem-lhe ao de leve no ombro e ao mesmo tempo a voz da patroa uma voz alterada não sabia bem por que íntima emoção ordenou-lhe:

 

Patrick... não... não vamos ao correio... espere!... Pare um pouco!...

 

Travou imediatamente, com risco de fazer esbarrar contra ele o carro que vinha na retaguarda, o que lhe valeu um epíteto pouco agradável do motorista do referido carro que, ao passar, lhe chamou: motorista de água morna.

 

Mas Patrick estava demasiadamente preocupado para lhe responder. Virara-se para o interior do carro a fim de se certificar de que à jovem patroa nada tinha acontecido.

 

Esta fez-lhe sinal para parar um momento. Obediente, foi encostar ao passeio. Em seguida voltou de novo para ela o rosto inquieto.

 

A senhora sente-se doente?

 

Com efeito Maria Cláudia estava afogueada e um brilho estranho fazia-lhe cintilar o olhar.

 

Não... não... Não se preocupe com isso... respondeu com o espírito visivelmente alterado.

 

Amarfanhava o bilhete nos dedos febris e o motorista ouviu-a murmurar em tom indignado e colérico...

 

É indigno!... Que miséria... acusar... inventar... uma infâmia destas!

 

Perplexo, não se atrevendo a novas perguntas com receio de se tornar indiscreto, Patrick esperava ordens.

 

Deseja que a conduza a casa? arriscou, decorridos minutos.

 

Só então Maria Cláudia pareceu notar que estava na rua, dentro de um carro encostado ao passeio e que os transeuntes lhe lançavam olhares curiosos.

 

O quê?... Não, não, leve-me à Casa de Saúde! intimou bruscamente.

 

À Casa de Saúde?... À do senhor doutor?

 

Sim, a Neuilly.

 

A ordem não admitia réplica.

 

Está bem, minha senhora.

 

Como motorista sempre obediente, Patrick não manifestou espanto por essa mudança de itinerário e pôs o carro em andamento.

 

Muito excitada, Maria Cláudia continuava a ruminar a sua cólera.

 

Era provável que André não ficasse muito satisfeito por ver a mulher aparecer na clínica quando lhe proibira todo o acesso ali como de resto igualmente a sua mãe mas podia ela esperar um minuto mais que fosse para o pôr ao facto da desprezível intriga que se tramava a fim de o desonestar aos olhos da sua mulher?...

 

Não, não era possível.

 

Encolheu os ombros num gesto brusco, mordendo o lábio inferior. Em pensamento acusava e revoltava-se contra o autor desconhecido do bilhete anónimo... o indivíduo cobarde que, para satisfazer não sabia que inconfessáveis rancores, havia recorrido a meios tão infames!

 

Quem poderia ser o ente abjecto que se arriscara a semelhante tentativa?... O inimigo velhaco e indigno que odiava André e Maria Cláudia, a ponto de tentar destruir a sua felicidade por forma tão vil?...

 

A juvenil senhora estava revoltada e ao mesmo tempo aterrada perante tanta maldade e baixeza. A ofensa feita a André afigurava-se-lhe intolerável e queimava-a a ela própria como uma afronta, como ferro em brasa.

 

Ansiava por se encontrar junto do marido a fim de lhe transmitir a sua raiva, a sua profunda indignação... Tardava-lhe chegar e parecia-lhe que Patrick, conduzia o carro num andamento propositadamente vagaroso.

 

E sempre no seu espírito, recto e leal, alheio ao maquiavelismo da maldade humana, se erguia a mesma interrogação: Quem, mas quem, seria o autor desprezível dessa absurda carta anónima?

 

Ela calculava já que André não iria levar o caso para o lado trágico. Limitar-se-ia a sorrir com desdém e a encolher os ombros. Podia ser até que zombasse um pouco da sua revolta, da veemente e indignada exaltação... Era, porém, mais forte do que ela: não conseguia dominar a cólera vingadora que lhe despertara essa mão malfazeja que se atrevia desse modo a atacar a honra do doutor Joranne.

 

E porque até então haviam sido sempre ambos amimados e lisonjeados, porque a vida só lhes apresentara sorrisos, o ultraje feria-a mais fundo, tomando proporções tremendas.

 

Enquanto o auto se imobilizava por segundos à ordem do sinaleiro, apanhou o bilhete que num gesto de cólera amachucara e atirara violentamente para o chão pouco antes.

 

Endireitou-o com a ponta dos dedos como se tivesse receio de os manchar, enquanto um gesto de repugnância lhe franzira os lábios.

 

Era escrito à máquina, com ortografia propositadamente errada, o protótipo, enfim, dos papeluchos desse género: papel ordinário, erros inverosímeis e a assinatura da regra.

 

”Uma amiga que lhe quer bem...

 

Uma amiga! Abjecta criatura!...

 

Com involuntário estremecimento, releu as linhas pérfidas:

 

”Minha senhora:

 

”É muito ingénua se imagina que o seu marido emprega os seus dias com os duentes. Se quer saber onde passa todas as tardes, das cuatro às sete, dê uma volta pela avenida Port-Royal e vigie o número 60, murada duma pintora muito conhecida.

 

”Ficará çabedora.

 

”A bom entendedor...

 

60 Avenida Port-Royal... Era a morada de Regina Halloy.

 

Fora mesmo para ali que Maria Cláudia recebera o convite na semana anterior.

 

”Ocupo uma vivenda ao fundo de um jardim tinha explicado Regina. É agradável e sossegado, verá...”

 

E fora esse o alvo que o miserável autor da carta escolhera para despertar as suspeitas de Maria Cláudia contra o marido... Se esta fosse tão obtusa e tão indigna para ter a menor inquietação a esse respeito, bastaria aquele pormenor para a tranquilizar!

 

Regina Halloy seria precisamente a única mulher de quem Maria Cláudia não teria ciúmes... André achava-a pouco recomendável e experimentava por ela verdadeira antipatia.

 

Chegamos, minha senhora avisou Patrick.

 

Maria Cláudia voltou à realidade.

 

Reparou então que o carro parara e que o motorista, de boné na mão, se conservava diante da portinhola aberta.

 

É ali? interrogou, hesitante, designando a casa, do outro lado do passeio.

 

Sim, minha senhora. Veja...

 

E apontava-lhe a placa afixada num dos pilares do portão.

 

Maria Cláudia olhou esse sítio onde vinha pela primeira vez. Era ali que André vivia, trabalhava e curava.

 

Para lá desses vidros nus havia pessoas que sofriam, sem esperança, a quem ele restituía a saúde e que o esperavam, todas as manhãs, como quem espera a visita do Bom Deus...

 

Sentiu-se comovida e por momentos esqueceu o motivo que ali a levava.

 

Onde fica a entrada? inquiriu antes de atravessar o passeio, porque o portão se conservava fechado.

 

Patrick designou uma porta mais pequena, ao lado:

 

Ali. Só abrem o portão grande de manhã, quando entro com o carro do senhor doutor. À tarde serve-se sempre do carro pequeno para deixar este à disposição da senhora.

 

Maria Cláudia decidiu-se.

 

Bem, obrigada, Patrick. Espere por mim.

 

Poi bater à porta pequena que se abriu automaticamente. Diante da visitante estendia-se uma avenida estreita bordada por tabuleiros de relva.

 

A casa ficava ao fundo. Era uma construção em tudo semelhante às que a enquadravam: rés-do-chão bastante alto e mais dois andares. Tinha acesso por larga escadaria. Os aposentos dos criados seriam naturalmente nas caves.

 

As janelas do rés-do-chão eram guarnecidas de cortinas e deviam ficar situadas ali a sala de espera, o consultório e o gabinete do médico.

 

Através das largas janelas dos outros dois andares Maria Cláudia, enquanto subia a alameda com passo de súbito hesitante via toucas brancas de enfermeiras, cabeças ligadas e cabeceiras de camas de ferro pintadas de branco.

 

Quando atingiu o patamar apareceu uma mulher no alto da escada do subsolo.

 

Que deseja? perguntou com modos bruscos, encarando a visitante.

 

Eu... queria falar ao doutor Joranne replicou Maria Cláudia que, impressionada, nem se atreveu a declinar a sua identidade.

 

Naquela ocasião sentia o coração oprimido e teve de repente a sensação de que praticava uma acção repreensível.

 

A hora da consulta já passou. O senhor doutor não pode recebê-la declarou num tom mais ameno.

 

É para um assunto particular.

 

A mulher observou-a com desconfiança.

 

Os fornecedores são admitidos apenas das nove às dez da manhã dignou-se explicar apontando um aviso.

 

Não sou fornecedora... Desejo falar ao doutor Joranne. Sou mulher dele acabou por declarar a custo a visitante.

 

A fisionomia da porteira mudou acto contínuo:

 

A senhora Joranne!... Por favor!... Corou, balbuciou desculpas incompreensíveis e curvou-se tanto diante de Maria Cláudia que esta não ouviu uma palavra das que pronunciava com volubilidade. Depois, solícita:

 

Queira seguir-me.

 

Rebolou o corpanzil gorducho em direcção ao vestíbulo com uma agilidade de admirar na sua rotunda pessoa. Maria Cláudia seguiu-a.

 

Queira entrar, minha senhora! Aqui, para a sala de espera! Eu vou chamar.

 

Abriu uma porta à esquerda da entrada. Maria Cláudia entrou num aposento vasto, iluminado por duas largas janelas que abriam para o espaço arrelvado.

 

Do lado de fora da grade avistavam-se os autocarros que corriam pela avenida Bineau.

 

A ideia de que esperava assim o marido, como simples cliente, divertiu Maria Cláudia um instante.

 

Com curiosidade e simpatia examinou o que a rodeava. O aposento estava artisticamente mobilado e não tinha por forma alguma o aspecto banal de sala de espera para doentes: as paredes pintadas de claro, os cortinados vistosos. Esplêndido tapete de Chiras desdobrava-se, macio e sedoso, aos pés das poltronas largas e profundas, que convidavam ao repouso.

 

Tal como se lhe apresentava, o ambiente era calmo e agradável.

 

Maria Cláudia viu ainda alguns belos quadros pendurados pelas paredes e isso veio recordar-lhe o motivo que ali a conduzira. Imediatamente se lhe anuviou o semblante. A mão crispada apertou, num gesto maquinal e febril, o fecho da carteira que continha o asqueroso bilhete, cuja leitura lhe despertara profunda indignação.

 

A porta abriu-se e ela pôs-se de pé quase num salto, com o nome de André a palpitar-lhe nos lábios.

 

Foi, porém, e apenas o vulto branco de uma enfermeira que surgiu no limiar.

 

A senhora Joranne? inquiriu com sorriso atencioso.

 

Maria Cláudia sorriu por sua vez.

 

Sim... desejava falar a meu marido. Contanto que não venha perturbá-lo nas suas ocupações! - apressou-se a acrescentar, vendo a recém-chegada esboçar um gesto de pesar.

 

A enfermeira adiantou-se um pouco para a visitante.

 

Eu sou Ourcade, a enfermeira-chefe...

 

Muito prazer em a conhecer... disse amavelmente Maria Cláudia, estendendo-lhe a mão.

 

A outra apertou-lha com deferência e em seguida declarou em tom pesaroso:

 

O doutor vai ficar penalizado, mas não está.

 

Não está? repetiu a esposa desapontada. Nesse caso, espero por ele aqui.

 

É que... ignoro se voltará esta tarde objectou Ourcade, hesitante.

 

Que aborrecimento!

 

A jovem pronunciara a frase em voz contrariada. Procurara o marido movida por impulso irresistível, disposta a tudo, até a ouvir resignada uma admoestação de André por ter desobedecido aos seus desejos, mas essa ausência imprevista desorientava-a.

 

Queria falar-lhe imediatamente? informou-se a enfermeira.

 

Sim, o mais depressa possível.

 

Mas... se é caso urgente, posso talvez tomar a liberdade de chamar o doutor?...

 

Sabe onde ele está? exclamou Maria Cláudia.

 

É claro, minha senhora. O doutor Joranne nunca se ausenta sem nos deixar meio de comunicarmos com ele... Por causa dos doentes, compreende?...

 

Compreendo muito bem.

 

Em geral não o incomodamos senão em casos de urgência, quando não podemos dispensar a sua presença. Mas...

 

Maria Cláudia não se deu ao trabalho de reflectir. O desejo imperioso de ver André, de lhe falar, de lhe transmitir os seus exasperados rancores, não a deixou dominar a impaciência.

 

Com a sua voz mais persuasiva, pediu:

 

Então, se não lhe custa, minha senhora, previna-o de que estou aqui e diga-lhe que desejo falar-lhe quanto antes!...

 

Com todo o gosto.

 

A enfermeira consultou um livrinho que tirou da algibeira da bata e dirigiu-se para o telefone.

 

Vou transmitir-lhe imediatamente. E se assim o desejar, creio até que poderia falar com o doutor ao telefone observou, tirando o auscultador.

 

Não podendo conservar-se sentada, Maria Cláudia aproximou-se e seguiu atentamente todos os gestos da enfermeira, que marcava no disco o número. Ouviu-se pequeno estalido.

 

A enfermeira perguntou:

 

Gobelins 75-33?

 

Gobelins 75-33... Ao ouvir mencionar o número, a Joranne estremeceu bruscamente. Olhava a enfermeira com mudo assombro, como se julgasse ter ouvido mal.

 

Impassível, esta continuava:

 

Pode dizer-me se o doutor Joranne se encontra aí?... Daqui fala a enfermeira Ourcade.

 

Maria Cláudia fez um movimento para a impedir de continuar e depois imobilizou-se de novo, com o olhar sempre fito no mostrador. De sobrolhos carregados, numa atitude concentrada como alguém que tenta compreender, esforçava-se por conter os frémitos involuntários dos lábios, que pareciam de súbito crestados pela febre.

 

A enfermeira continuou:

 

Quer ter o incómodo de lhe pedir para vir ao telefone, caso seja possível? Obrigada.

 

Voltou-se e anunciou-lhe, sorridente:

 

O doutor vem já falar-lhe.

 

As palavras, porém, morreram-lhe nos lábios. A esposa do médico estava de uma palidez assustadora e encarava-a com uma expressão que a perturbou.

 

Foi bem ”Gobelins 75-33”, que disse? murmurou Maria Cláudia, fitando-a com olhar penetrante e intenso.

 

Sim. Foi o número que o doutor me deu antes de sair.

 

O de Regina Halloy? insistiu Maria Cláudia com voz alterada.

 

Não sei de quem é declarou a enfermeira, perturbada.

 

Com movimento automático Maria Cláudia afastou-a e agarrou no auscultador.

 

Encostou-o ao ouvido. De maxilas contraídas e olhar parado, esperou.

 

Está?... Não desligue... O doutor vem já anunciou na outra extremidade do fio uma voz indiferente.

 

Profundo estremecimento agitou Maria Cláudia. Rápida, em voz breve e imperiosa, chamou:

 

Está... Está?

 

Estou! respondeu a outra com voz calma,

 

Está... É de casa de Regina Halloy que fala?

 

Exactamente.

 

E... quem fala?

 

-A criada de quarto.

 

O doutor Joranne encontra-se com certeza aí? articulou Maria Cláudia, pronunciando a custo as palavras.

 

Sim, minha senhora. O doutor Joranne está cá. Encarregou-me de o avisar se alguém o chamasse... Queira esperar um pouco... Ele aí vem!...

 

É inútil...

 

Deixou cair o auscultador.

 

Lívida, até os lábios haviam perdido a cor e o olhar tomara expressão alucinada.

 

Com gestos automáticos e indiferentes, depôs o auscultador no descanso.

 

A enfermeira contemplava-a estupefacta. Viu-a passar a mão pela testa como uma pessoa que acaba de receber um golpe esmagador.

 

Minha senhora!

 

Precipitou-se para a amparar, mas Maria Cláudia reagiu:

 

Não é nada!

 

Ourcade encontrou-lhe o olhar desesperado, onde podia ler-se não se sabia bem que misteriosa súplica.

 

Nesse momento, a campainha do telefone retiniu de novo. A enfermeira correu para o aparelho:

 

Deve ser, com certeza, o doutor balbuciou.

 

Mas já Maria Cláudia se dirigia para a porta, de saída, sem voltar sequer a cabeça.

 

Patrick viu-a aterrado encaminhar-se para o carro.

 

Se não conhecesse bem os hábitos de temperança daquela casa, poderia pensar que a mulher do médico bebera alguns cocktails a mais no consultório do marido, tanto o seu andar se tornara vacilante.

 

Em vez de parar e entrar no auto, cuja porta Patrick conservava aberta, prosseguiu o seu caminho com atitude absorta e passo de sonâmbula em direcção a Neuilly.

 

Alcançou-a uns metros adiante, no momento preciso em que ia atravessar a rua, cortada pela corrida perigosa dos autocarros.

 

A senhora esqueceu-se de me dar as suas ordens! observou-lhe com respeitosa solicitude.

 

Volveu para ele o olhar vago, e em seguida passou a mão pela testa.

 

Ah! é verdade... estava aqui... Parecia infinitamente cansada.

 

A senhora deseja que a conduza à avenida Hoche?

 

Não.

 

Ficou imóvel um instante, de olhar fixo no espaço.

 

A testa vincava-se-lhe em profundas rugas como se se entregasse a penosas reflexões que a fizessem sofrer.

 

A senhora parece mal disposta... Se eu fosse chamar o senhor doutor?

 

E designava a casa próxima. Estremeceu.

 

Não... isso não!...

 

Perplexo, Patrick esperou, dissimulando mal a sua surpresa. Ela compôs o chapéu num gesto distraído e depois perguntou, sempre com o seu ar abatido.

 

Que horas são?

 

O motorista consultou o relógio. Cinco e dez. Maria Cláudia murmurou, falando consigo:

 

Josseline deve esperar-me ainda. Decidiu-se bruscamente.

 

Leve-me ao Ritz...

 

Num passo vacilante, seguiu Patrick até ao carro.

 

Quando se viu sentada, aninhada nas almofadas macias, curvada e dobrada sobre si mesma como se quisesse defender-se dessa sensação de frio que acabava de a tomar de súbito, tentou um esforço para recuperar a serenidade, para se dominar e lutar contra os pensamentos que se lhe entrechocavam no cérebro. O cristal polido dos vidros reflectia-lhe o rosto macerado pela dor.

 

Não, não podia negar a obsidiante evidência. André mentia-lhe e o desprezível, o atroz bilhete falava verdade!... André declarara não querer convivência com essa mulher, proibira Maria Cláudia de a visitar e era em casa dela que passava longas horas quando ela o supunha no consultório!...

 

Ainda mais!... Em casa de Regina Halloy procedia como pessoa familiar e não como visita. A criada de quarto falava da sua presença como de coisa natural e habitual. As enfermeiras tinham o número do telefone para o chamar em caso de urgência...

 

Maria Cláudia ainda não compreendia bem. Porém, lancinante e aguda como um punhal, a suspeita penetrara-lhe no coração; essa falsidade, por parte de um ente em quem depositava fé absoluta e em quem acreditava como em si própria, confundia-a e esmagava-a.

 

E essa verificação desmoralizadora deixava-lhe o cérebro em dolorosa confusão e a alma despedaçada.

 

Não teria sido para poder visitar sozinho Regina Halloy, sempre que lhe apetecesse, que André havia procurado afastar a mulher do atelier da avenida Port-Royal?... E essa proibição de o procurar, a recomendação de nunca pôr os pés na Casa de Saúde não teria por fim salvaguardar a sua independência?...

 

Os lábios exangues de Maria Cláudia murmuraram:

 

”Porquê?... Para que fez ele isto? Para que me mentiu?...”

 

Este pensamento persegui-a implacavelmente. Era como que um leit motiv de que não podia libertar-se.

 

Contudo, pouco a pouco, conseguiu dominar-se. Acabou por conseguir um simulacro de calma e tentou ver claro em si e na desoladora realidade.

 

Talvez que daí a pouco André lhe pudesse dar uma explicação plausível! Era impossível que ele não encontrasse uma atenuante para a sua mentira... para aquela singular maneira de proceder!...

 

Agarrava-se a esse pensamento com a esperança febril de encontrar nele um bálsamo para o seu sofrimento atroz.

 

Logo em seguida, porém, abanava a cabeça e a dor voltava a persegui-la com dilacerante intensidade.

 

Nunca... nunca mais poderei acreditá-lo... não voltarei a ter nele essa confiança cega e absoluta doutros tempos!...

 

Quando entrou no Ritz ia ainda tão perturbada que não viu Josseline, apesar desta lhe fazer repetidos sinais, da sua mesa.

 

Teve de a chamar quando passava junto dela, com olhar vago e andar hesitante.

 

Maria Cláudia!... Estou aqui!... Como passaste?... Há mais de uma hora que te espero, minha querida.

 

A jovem deixou-se cair numa cadeira.

 

Desculpa... eu... atrasei-me um pouco.

 

A voz desfalecida, as feições contraídas, a sua palidez tudo isso chamou a atenção inquieta da Beauchamp, que a examinou com surpresa.

 

Que tens? Aconteceu-te alguma coisa? indagou, pousando a mão enluvada no braço da retardatária. Pareces transtornada.

 

Maria Cláudia esboçou um gesto vago e desalentado.

 

Está doente? insistiu Josseline, alarmada.

 

Não... Tive uma contrariedade.

 

Uma contrariedade... tu?... Vamos!... Vamos! não deve ser nada de grave comentou Josseline, tentando gracejar para a animar. Conta-me lá isso.

 

Maria Cláudia hesitou. Mas o coração parecia estalar-lhe no peito e o seu desgosto crescia como onda impetuosa que de momento a momento se tornava mais difícil conter.

 

Venho da clínica de André.

 

A senhora Beauchamp tornou-se mais atenta.

 

E então?

 

Então...

 

O olhar amortecido de Maria Cláudia voltou-se para ela.

 

Então, não estava lá.

 

Ah!

 

Josseline Beauchamp afectou um tom despreocupado.

 

E depois! É essa a tal contrariedade? Não te disseram onde ele estava?

 

Disseram.

 

Qualquer coisa de muito doloroso perpassou pelas pupilas da amiga.

 

Estava em casa da Regina Halloy proferiu vagarosamente Maria Cláudia.

 

Pronto!

 

Josseline não conseguiu reprimir esta exclamação, nem o gesto contrariado que a acompanhou. Imediatamente teve a consciência da tolice cometida e mordeu os lábios. Era tarde, porém!... Maria Cláudia agarrava-lhe o pulso e apertava-o nos dedos esguios, que de repente se tornaram nervosos e crispados.

 

E tu sabias, Josseline, tu sabias!... No rosto ardente os olhos flamejavam.

 

Eu!... Mas não, que ideia! defendeu-se Josseline, aterrada.

 

Não mintas, tu também!... Estou então rodeada de traidores?... Tudo se desmorona em volta de mim... Só agora começo a adivinhar um mundo de ignomínias!

 

Repeliu brutalmente um cinzeiro que um groom, solícito e importuno acabava de colocar diante dela.

 

Como eu era ingénua e confiante!... Estupidamente confiante!...

 

Alarmada com essa exaltação, Josseline Beauchamp sentia-se sobre brasas. Volvia em redor olhares assustados pelo receio de que o nervosismo da juvenil senhora despertasse a atenção dos ocupantes das mesas vizinhas.

 

Maria Cláudia parecia ter esquecido completamente o lugar onde se encontrava.

 

Falava em voz alta, com energia e os seus gestos traduziam a mais profunda exaltação.

 

Então, minha filha!... proferiu Josseline. Mas, em vez de a acalmar, essa intervenção teve o condão de aumentar a irritação e a exasperação da infeliz.

 

Deixa-me! Suplico-te! Não é de compaixão que preciso agora!

 

Curvada para ela, de dentes cerrados batendo na mesa com o punho fechado, articulou:

 

A verdade... Quero saber a verdade!

 

A voz cortante e agressiva dominava o sussurro das conversas. Algumas cabeças se voltaram para a mesa das duas mulheres... Discreto, o gerente aproximou-se.

 

Tem cautela!... Estão a reparar em nós! suplicou a Beauchamp.

 

Que me importam os outros? exclamou surdamente Maria Cláudia. Trata-se de mim e de André, de mais ninguém... da nossa felicidade... da minha vida!

 

Bateu no peito, a fisionomia numa expressão de desespero, os lábios trémulos e a garganta contraída pelos soluços que não conseguia sufocar.

 

Trata-se de André e dessa mulher prosseguiu com amargura. E tu sabias tudo!... Toda a gente o sabia!... É horrível!

 

Invadiu-a súbito desfalecimento e deixou cair a cabeça nos punhos fechados, com os quais comprimiu convulsivamente os olhos.

 

Saiamos! Vem comigo! ordenou Josseline com autoridade.

 

Ela descobriu o rosto afogueado:

 

Não antes de me dizeres...

 

Josseline compreendeu que não conseguiria coisa alguma dessa jovem veemente e desesperada.

 

Tudo, dir-te-ei tudo... tudo quanto sei!... Mas não aqui... Não queres, por certo, fazer escândalo!

 

Maria Cláudia não parecia muito convencida. Que lhe importavam palavras e convenções.

 

Só via, só tinha pensamento para o que se ligasse à sua tortura, ao seu sofrimento atroz. Quanto ao resto, tudo quanto pudessem dizer-lhe não tinha sentido para ela.

 

Dir-me-ás o que sabes?... Juras? repetiu com olhar sombrio cravado no semblante alterado da amiga.

 

Dou-te a minha palavra de honra.

 

Sem mais uma palavra, Maria Cláudia levantou-se.

 

Hirta, de cabeça erguida, seguiu Josseline que quase a arrastava.

 

Quando se viu na avenida, Josseline respirou. Compadecida, contemplou Maria Cláudia.

 

Queres que te acompanhe a casa? propôs docemente.

 

Não, não! protestou Maria Cláudia com horror.

 

Então vem para a minha. Estaremos ali mais à vontade para conversar.

 

Silenciosamente, acedeu.

 

A senhora não precisa do carro por agora declarou Josseline a Patrick vai comigo.

 

Sim, pode regressar a casa articulou Maria Cláudia.

 

O motorista não esperou por novas ordens. Estava profundamente intrigado. Mas a atitude da patroa não lhe deu margem a qualquer veleidade de a interrogar.

 

O meu carro está ali indicou a mulher do advogado, passando a mão pelo braço contraído da sua amiga.

 

Esta apresentava o rosto duro, e olhar seco. A ruga obstinada da fronte, o vinco doloroso dos lábios, impressionaram Josseline, que pensou, contristada:

 

”Isto havia de acontecer!...”

 

...Na pequena sala de Josseline, as duas mulheres encontravam-se face a face. Em vão a senhora Beauchamp tentara apertar nos braços a torturada amiga, obrigá-la a repousar a dolorida cabeça no seu ombro, acalmar nesse amplexo fraternal toda a amargura que desvairava a sua alma revolta.

 

Sentada na borda da cadeira, muito direita, Maria Cláudia esperava. O tom rosado da lâmpada, que a dona da casa acendera junto dela, não conseguia suavizar-lhe a expressão dura das feições nem a fixidez triste do olhar.

 

Fazes mal em te afligires desse modo, minha pobre filha! suspirou Josseline, desolada. Farias melhor se tivesses uma franca explicação com André.

 

Não quero ter explicações com o André replicou, com voz exaltada e sem timbre. Mas, Josseline, lembra-te do que prometeste. Deste-me a tua palavra de honra...

 

Valha-me Deus! exclamou a outra, começando a soluçar. Terei de ser eu então quem irá desvendar-te coisas tão íntimas?

 

As lágrimas, essa suprema arma feminina, rolavam-lhe pelas faces. Essas lágrimas, porém, não conseguiram comover a pobre, que esperava, curvada ao peso da sua dor, de cotovelos apoiados nos joelhos e com o rosto lívido, donde desaparecera de repente todo o brilho moço e feliz.

 

É preciso que alguém me elucide murmurou com teimosia feroz. Não posso viver eternamente nesta atmosfera de mentira... neste horror terminou, ocultando o rosto nas mãos.

 

Não exageres! exclamou Josseline, chorosa ainda. Seria difícil para André explicar-te...

 

A razão das suas visitas a Regina Halloy? atalhou Maria Cláudia, com amargura.

 

Não se trata disso... observou com embaraço a mulher do advogado. Esse é um facto recente... e...

 

As pupilas da sua interlocutora ergueram-se para ela, implacáveis.

 

Nesse caso, existiam factos anteriores?

 

Pois é claro... é... é uma história bastante antiga... Colocas-me numa situação bem singular... Ouve, minha querida, as confidências que exiges de mim são infinitamente desagradáveis. Repugna-me fazê-las porque pratico uma traição.

 

Doloroso sorriso perpassou no rosto torturado de Maria Cláudia.

 

Mais uma, menos uma, que importa!... A traição rodeia-me por todos os lados... apertava-me nas suas malhas... há muitos meses já, sem eu o saber, sem ter a menor suspeita, sequer! Não vês como isto é horrível? bradou com violência.

 

Logo em seguida, porém, num supremo esforço, conseguiu dominar-se.

 

Prometeste dizer-me tudo acentuou, pálida e obstinada, cravando em Josseline o olhar carregado de fulgores.

 

Deus do céu! Como isto me penaliza! lamentou mais uma vez Josseline, transtornada. Enfim, visto que assim o queres!... O caso é este... Regina...emendou a senhora Halloy foi em tempos uma das grandes paixões do André...

 

Amou-a? interrogou Maria Cláudia, que empalideceu mais ainda.

 

Talvez... Todos supunham até que casaria com ela. A própria Regina deixou entrever aos seus íntimos a possibilidade desse acontecimento, que não admiraria ninguém, pois de sobejo eram conhecidos os sentimentos do doutor Joranne pela bela artista.

 

Maria Cláudia respirava com dificuldade.

 

E por que não o fez?

 

Julgo que a senhora Joranne se opunha a esse casamento. Regina Halloy tem um passado acidentado. É divorciada duas vezes. Os preconceitos da mãe de André revoltavam-se contra semelhante casamento. Ele era o primeiro a hesitar. Não podia eximir-se à sedução de Regina; entretanto, antes de se resolver a tomar a grave decisão, tergiversava. Depois... seguiu-se... o... enfim, o drama... em Setembro passado.

 

Que drama?

 

Os olhos de Maria Cláudia, sumidos nas órbitas, não abandonavam a fisionomia hesitante da amiga.

 

Um duelo...

 

Ah!

 

As pupilas da pobre senhora abriram-se desmedidamente e a garganta contraída parecia deixar passar a custo qualquer coisa difícil de engolir.

 

Um duelo!...

 

A palavra tomava aos seus ouvidos uma ressonância medonha. Meneou a cabeça repetidas vezes.

 

Por causa dela, naturalmente? murmurou.

 

Sim, foi.

 

E com quem, esse duelo?

 

Com um flirt da Regina que desde o verão se constituira seu cavalheiro. André não gostou. Tanto meu marido como eu pensamos sempre que tudo isto não passava de uma manobra de Regina para obrigar André a declarar-se. O doutor Joranne representava um belo partido para ela... sentia-se lisonjeada com os seus galanteios, que encorajava com as suas seduções e suponho que se irritava com André pela demora em se decidir a realizar a sua oculta ambição, que era a de casar com ele. Fosse como fosse, o caso terminou mal prosseguiu gravemente.

 

Seguiu-se curto silêncio. Josseline observava a amiga às furtadelas e sentiu-se inquieta.

 

Continua proferiu esta em voz breve.

 

Que interesse tens nisso? Só servirá para te fazer sofrer mais ainda.

 

Compadecida, aproximou-se dela. Tentou enlaçar os ombros daquela que sofria silenciosamente, sem uma lágrima, e que apenas manifestava o seu desespero cruciante pelo tom lívido das faces e pela fixidez do olhar.

 

Com uma espécie de ferocidade, porém, Maria Cláudia repeliu essa manifestação de simpatia.

 

Quero saber tudo. Tenho esse direito! Desanimada, a Beauchamp cedeu.

 

Seja! O caso passou-se no decorrer de uma festa de caridade no Grémio Interaliado. A sociedade elegante de Paris encontrava-se ali toda. Regina não faltou, é claro, e com ela André e o Evans... sabes, o moço desportista, campeão do torneio de Wimbledon do ano passado... Não? Não conheces... Pois, esquecia-me de que até há poucos meses todo esse mundo era ignorado por ti.

 

Sim, ignorava-o por completo! concordou Maria Cláudia, pensativa.

 

Josseline fitou-a com expressão dúbia:

 

E teria sido preferível, talvez, que não chegasses a conhecê-lo murmurou entre-dentes.

 

Então... esse tal Evans? insistiu. Josseline suspirou:

 

És teimosa!... Pois bem! Continuemos! O tal Evans era o homem que Regina pretendia fazer passar como rival de André. Toda a noite se divertiu a incitar e a irritar os dois homens um contra o outro. Dançou com Evans, isolava-se com ele pelos cantos, acompanhava-o ao bufete. O nervosismo de André ia aumentando.

 

Por duas ou três vezes, meu marido se viu obrigado a atraí-lo para a sala de fumo. Mas dir-se-ia que Regina experimentava maligno prazer em levar ao auge aquela exaltação.

 

”A ceia foi servida em mesas pequenas... Por capricho, Regina quis sentar-se entre os dois apaixonados e, por capricho também, André, cujo orgulho não lhe permitia ceder o passo a Evans, aceitou. O champanhe, a excitação produzida pelo ambiente, e também, a ousada garridice da bela pintora... contribuíram para aumentar a sua irritação.

 

”O que se passou em seguida nunca ninguém conseguiu sabê-lo ao certo. É provável que o jovem Evans nessa idade é-se quase sempre fanfarrão se mostrasse agressivo. Em resumo, a certa altura ouviu-se o ruído de uma altercação. A voz de Evans ecoou mordaz, insolente, insultante, André meteu-o imediatamente na ordem, mas o outro não se contentou... e tomou uma atitude tão provocante que André perdeu a paciência e esbofeteou-o.

 

Suspendeu-se, ainda impressionada pela recordação desse escândalo e olhou furtivamente a amiga.

 

Esta não fizera um movimento. Ouvia a narrativa com o mesmo ar rígido, obstinado, impassível, contraídos os lábios pálidos sobre os dentes cerrados.

 

Como é natural, o rapaz quis ripostar. Tornara-se louco de cólera. Os homens presentes intervieram. André, esse parecia aborrecidíssimo com o incidente. Não era, por certo, com medo de Evans, muito mais fraco do que ele, pelo menos na aparência. Mas na nossa sociedade estes casos não se regulam assim.

 

Evans declarou que desejava uma reparação pelas armas. Escolheu testemunhas. Trocaram-se os cartões. André, ainda que sem entusiasmo, não pôde eximir-se. O outro parecia um galo de combate. Ora André é esgrimista exímio. Maneja o florete como um espadachim de profissão. Todos aconselharam Evans a escolher outra arma. Por bravata e talvez também para deslumbrar Regina, foi a espada justamente que preferiu. E como era ele o ofendido, impôs as mais apertadas condições para o duelo.

 

André matou-o! exclamou Maria Cláudia num brado de horror.

 

Não... não! Tranquiliza-te! Mas não foi por culpa de Evans se tal desastre não aconteceu... Travado o duelo, o endiabrado rapaz batia-se à doida, dificultando a tarefa a André, que se limitava a aparar os golpes e a defender-se, não querendo por forma alguma ferir o adversário. Na opinião de todos os que o presenciaram, André portou-se como um verdadeiro cavalheiro, generosamente.

 

-Mas enfim... como terminou? apressou-se a perguntar Maria Cláudia que, abandonando por instantes a sua atitude abatida, seguia a narrativa anelante e ansiosa.

 

Como era de esperar... À força de se defender contra esse insensato que lhe vibrava golpes furiosos, André fez uma parada desastrosa e o adversário veio atravessar-se na ponta da sua espada.

 

Oh! proferiu Maria Cláudia, tapando os olhos.

 

A ferida podia ter sido mortal... Felizmente, André é um hábil cirurgião. E no próprio campo do duelo procedeu à intervenção cirúrgica e operou o adversário. Está provado que lhe salvou a vida. Foi então depois deste incidente que desapareceu da sociedade por algum tempo. O resto sabes tu.

 

E sublinhou estas palavras com profundo suspiro de alívio, evidentemente satisfeita por ter chegado ao fim da narrativa.

 

Maria Cláudia conservava a cabeça entre as mãos. Josseline via-lhe apenas curvada a nuca, os ombros descaídos, vergados ao peso de infinita lassidão.

 

Como vês concluiu, acariciando-lhe os cabelos num gesto afectuoso de compaixão. Não há motivo para te impressionares assim com um caso tão longínquo... tão anterior ao vosso casamento.

 

Maria Cláudia levantou a cabeça, deixou ver o rosto pálido e transtornado.

 

Não é isso que me impressiona declarou em voz surda nem sequer também o facto dele não ter tido suficiente confiança em mim para me confessar esse passado... tão próximo ainda... O que me indigna é a circunstância de André ter falado de novo a essa mulher... ter voltado a casa dela... porque tem voltado lá várias vezes... e tu não o ignoravas, não é assim? Josseline desviou os olhos.

 

Que ideia! protestou debilmente.

 

Não sabes mentir, Josseline.

 

Ouve, Maria Cláudia disse-lhe a Beauchamp, cuja fisionomia descomposta fazia dó ver essa mulher é muito perigosa, de facto, e André é um fraco, digno de perdão... Mas é a ti que ele ama, Maria Cláudia, e deves lutar para impedir que essa sereia destrua a vossa felicidade.

 

Lutar!... A minha felicidade!... repetiu Maria Cláudia com desolador sorriso. Eis palavras que para mim não têm sentido... Eu não nasci para a luta... e a minha felicidade consistia na fé, na cega e absoluta confiança que depositava em meu marido... Essa confiança, perdi-a... e com ela desvaneceu-se toda a minha ventura...

 

Tinha-se posto de pé.

 

Com terror Josseline examinava o rostozinhopálido que, em poucas horas, parecia ter-se afilado, vincado como se invisível algoz lhe tivesse acentuado todas as linhas.

 

Maquinalmente, a pobre senhora calçava as luvas e apertava a fivela do cinto.

 

-Adeus, Josseline... e obrigada por me haveres elucidado.

 

Vou acompanhar-te! ofereceu espontaneamente Josseline.

 

A visitante fez um gesto de enérgica recusa.

 

Não, suplico-te. Desejo regressar sozinha. A sua atitude era tão resoluta que Josseline

 

Beauchamp, por muito que lhe custasse deixá-la sair no estado de espírito em que a via, não se atreveu a insistir.

 

Não obstante, ofereceu ainda:

 

Não tens o teu carro. Queres que mande chamar um táxi?

 

Não te preocupes com isso.

 

Com trémulo sorriso agradecia-lhe a solicitude, mas o olhar duro obstava a novas tentativas.

 

A senhora Beauchamp abanou a cabeça.

 

Minha pobre amiga, que história tão aborrecida! Espero entretanto que não vás encará-la pelo lado mais trágico.

 

Pitava a amiga, alarmada pela expressão do pobre rosto torturado.

 

Maria Cláudia sustentou-lhe o olhar.

 

Vejo duas soluções para o caso declarou com resolução tomarei aquela que se impõe. Adeus!...

 

Estendia-lhe a mão febril.

 

Maria Cláudia! exclamou Josseline, ansiosa, apertando nos seus os dedos que tremiam. Pensa bem, não pratiques tolices!... Não deves tomar decisões de que mais tarde te arrependerás!... ÉS ainda uma criança e...

 

Não! atalhou em voz convulsa, profundamente ferida. Se fosse ainda uma criança sofreria como sofro?...

 

A Beauchamp olhou-a fixamente, impressionada pelo tom doloroso em que estas palavras tinham sido proferidas... e todas as observações lhe morreram nos lábios.

 

Não, não era já, de facto, uma criança.

 

A gentil Maria Cláudia, despreocupada e risonha, alegre como uma avezita, que supunha ter diante de si um futuro perene de sonhos, de esperança e de amor, transformara-se, pela dor, numa verdadeira mulher.

 

Josseline lamentava essa transformação... e teve de empregar violento esforço para reprimir as lágrimas que lhe assomavam aos olhos.

 

A enfermeira Ourcade volteava nos dedos compridos e esguios as fitas da bata branca. No olhar perplexo com que fitava o rosto carrancudo do patrão lia-se certo embaraço.

 

Valha-me Deus! Não sei o que dizer-lhe mais, senhor doutor declarou em voz pausada e levemente hesitante, respondendo a uma pergunta mais insistente do médico. Foi a primeira vez que vi a senhora Joranne, não é assim?... não me foi possível, portanto, discernir se, quando chegou aqui, ela vinha na sua habitual disposição...

 

Mas pode, pelo menos, dizer se estava nervosa, agitada?...

 

Pareceu-me, acima de tudo, aborrecida por não encontrar o senhor doutor... Posso afirmar que ao ouvir o número do telefone, se impressionou. Obrigou-me a repeti-lo...

 

André deu um estalo com os dedos, num gesto de impaciente despeito.

 

E afirma que saiu logo sem querer esperar a ligação?

 

Sim. Logo que a criada de quarto declarou ao aparelho que o senhor doutor estava lá e que não se demorava. Pôs o auscultador no descanso... muito pálida. Quando a campainha soou de novo, fui eu quem teve de correr ao telefone. E depois, quando o senhor doutor me perguntou o que havia, não soube responder-lhe porque a senhora, enquanto eu o atendia, já havia desaparecido. Corri ao jardim... A porteira disse-me que a vira transpor o portão e também notou que ela tinha um ar estranho. Deu-lhe as boas-tardes e não só não lhe respondeu como quase a empurrou.

 

André mordeu os lábios. Pressentia que a situação se tornava grave. A enfermeira, que viu bem como a fisionomia do médico se ia ensombrando à medida que falava, não pôde deixar de inquirir:

 

Espero que não tenha acontecido nada de desagradável...

 

Posso lá sabê-lo? retorquiu Joranne. E acrescentou entre-dentes:

 

”Como se alguém conseguisse decifrar os caprichos das mulheres...”

 

E, repentinamente, decidiu-se a sair.

 

Se precisarem de mim, em caso urgente, telefonem-me para casa.

 

A enfermeira Ourcade aproximou-se da janela. Com olhar pensativo seguiu o seu director, que atravessava o pátio a passo largo. Através do gradeamento viu-o subir para o carro, pô-lo em marcha com rapidez e desaparecer na avenida como um bólide.

 

Temos novidade concluiu abanando a cabeça.

 

Alarmou-a o nervosismo manifestado por esse homem, habitualmente tão calmo e sabendo sempre conservar o domínio de si próprio. Teve a impressão de haver cometido uma tolice.

 

Não deveria, talvez, ter revelado à pobre senhora onde estava o marido suspirou com pesar. Mas não tinha recebido qualquer recomendação para guardar segredo. E, por outro lado, podia lá calcular que o número indicado pelo patrão era o dessa mulher que, como toda a gente sabia, tão perigosamente influira no seu passado? Foi muito imprudente voltar a visitá-la pensou, um pouco escandalizada. E agora, que mais virá?... Valha-nos Deus! Não bastava o trabalho que temos aqui e ainda nos aparece mais esta complicação!...

 

Por seu lado, o doutor Joranne não pensava nos doentes nem em operações. Percorria a distância que o separava da sua habitação, com tal velocidade que, por duas vezes os sinaleiros o mandaram parar. Por duas vezes também, o seu cartão de médico, colocado diante dos olhos dos exigentes representantes da ordem pública, o livrou do inevitável processo verbal e da multa.

 

Estas demoras, contudo, exacerbavam-lhe o enervamento.

 

Manobrando brutalmente os travões, perguntava de si para si, com ansiedade, que singular e misterioso concurso de circunstâncias conduzira Maria Cláudia à clínica. Mostrava-se habitualmente tão submissa e dócil, que nem por instantes admitia a possibilidade de que infringisse as suas ordens categóricas...

 

Mas não só o facto se dera, como quisera a fatalidade que fosse justamente nesse dia.

 

Desta vez André compreendia bem que chegara o momento de ter uma explicação com. sua mulher e de lhe desvendar factos que havia meses se esforçava por ocultar. Essa obrigação causava-lhe, porém, mais irritação do que pesar. No fim de contas, aquela pateta, desobedecendo às suas ordens, era também culpada e essa desobediência servir-lhe-ia para cavalo de batalha a fim de não lhe deixar todas as vantagens da situação.

 

”Maria Cláudia pensou é fácil de iludir... e, quem sabe, talvez pudesse ainda remediar a tolice cometida...

 

Estava bem longe de supor os estragos que a brusca revelação que ela classificava de duplicidade havia causado nessa alma até aí tão confiante. Não podia calcular também que Maria Cláudia conseguira arrancar confidências a Josseline Beauchamp.

 

A presença do carro parado diante da porta, acabou de o tranquilizar: Maria Cláudia já estava em casa.

 

Preparou-se para o embate e afivelou no rosto, apesar de tudo bastante transtornado, uma aparência despreocupada e até severa. Os homens são assim. Quanto mais culpados se sentem mais agressivos se mostram...

 

Deixei a senhora no Ritz disse Patrick, quando o médico o interrogou. Ficou com a senhora Beauchamp.

 

As incertezas de André recomeçaram. E a descrição que este último fez da atitude estranha da patroa, do seu parecer abatido, da sua visível perturbação, mais lhe aumentou as preocupações.

 

O seu primeiro impulso foi correr a casa dos Beauchamp. Em seguida, porém, reflectiu melhor e viu que seria um passo inútil.

 

Se Maria Cláudia estava magoada, irritada com ele, seria preferível dar-lhe tempo para que o seu ressentimento acalmasse sob a influência apaziguadora de Josseline.

 

No entanto, quando às oito horas, impaciente por ver que sua mulher não regressava, telefonou para a rua da Faisanâerie, ficou estupefacto e sobressaltado ao ouvir a própria Beauchamp declarar-lhe que Maria Cláudia saíra de sua casa havia pouco mais ou menos uma hora.

 

Às sete, então?

 

Deviam ser até sete horas menos um quarto precisou Josseline. Sua mulher retirou-se muito nervosa e não consentiu por forma alguma que a acompanhasse.

 

André sentiu-se desvairar.

 

Em vão a mãe tentou tranquilizá-lo.

 

Maria Cláudia foi talvez visitar qualquer amiga lembrou, pouco convencida do que dizia, mas fingindo-se despreocupada a fim de acalmar o desassossego do filho. Compreendes que, depois do que se passou esta tarde, é natural que deseje retardar o mais possível o momento de se encontrar contigo.

 

O médico encolheu os ombros.

 

Uma amiga!... Bem sabe que, exceptuando Josseline, não tem nenhuma... E Maria Cláudia não é mulher para desabafar com indiferentes os seus desgostos.

 

A ideia de que sofria nesse momento por sua culpa, que havia morrido nela toda a estima e admiração sentida pelo marido, que a dúvida e a incerteza lhe laceravam a alma com as suas garras, enlouquecia-o.

 

Desejaria poder apertá-la nos braços, embalá-la com palavras de infinito amor, dulcificar-lhe o desgosto com apaixonados beijos, obrigá-la a repousar no seu peito a cabecita dolorida para que lhe sentisse bater o coração e compreender que, não obstante as aparências, este palpitava por ela e lhe pertencia por completo.

 

Quem sabe se tua mulher sugeriu a mãe, não sabendo já que pensar se refugiou numa igreja... No estado de desesperação em que se encontra, sentiu talvez a necessidade de orar... de confiar a Deus o seu sofrimento, a Deus, o único que não engana nem trai.

 

André curvou a cabeça. Submetia-se e aceitava a censura indirecta. Não ignorava que a mãe o julgava com severidade e que, se não manifestava claramente todo o seu pensamento, era para não tornar mais intensa, nesse momento doloroso e cruel, a angústia em que o via mergulhado.

 

Passaram assim uma hora. A senhora Joranne, de minuto a minuto consultava o relógio e em vão tentava absorver-se no seu tricot; quanto a André, numa angústia horrível, não podia sossegar e punha-se de pé num sobressalto sempre que ouvia tocar a campainha. Com receio de não estar presente no momento em que a ausente regressasse, não ousava sair de casa, mas a ansiedade cruciante em que se debatia aumentava de momento para momento.

 

Finalmente, perto das nove horas a criada de quarto entrou com um bilhete. O médico quase lho arrebatou das mãos.

 

Era a letra de Maria Cláudia!... Primeiro respirou... A certeza de que estava viva, de que nada lhe acontecera, quando essa insólita demora o havia feito supor e recear o pior, libertou-lhe o peito dum peso enorme.

 

No entanto, ao abrir o sobrescrito os dedos tremiam-lhe. A mãe adandonara o trabalho no regaço e voltava para o filho um olhar interrogador.

 

Viu-o percorrer rapidamente com os olhos as poucas linhas escritas e pela onda de sangue que de repente lhe coloriu as faces pálidas compreendeu que essas linhas continham qualquer coisa de grave.

 

Então? murmurou, ansiosa.

 

Com movimento violento, André amarfanhava o pequeno papel.

 

Como tudo isto é aborrecido! exclamou. A senhora Joranne agarrou por sua vez no

 

bilhete e leu-o. A mão febril de Maria Cláudia manejara a pena com tal nervosismo que chegara a rasgar o papel em diversos pontos. Eis o que escrevera:

 

”André, não quero tornar a ver-te. Podes considerar-te livre. Nunca mais reaparecerei na tua vida. A minha resolução é irrevogável.

 

Maria Cláudia.”

 

Joranne parecia completamente fora de si.

 

Acendeu uns atrás dos outros três cigarros, que em seguida atirou para o cinzeiro, onde se apagaram após terem provocado um fumozinho acre que o médico não notou nem mesmo depois de ouvir a tossezinha seca de sua mãe.

 

Que se teria passado? observou esta com dolorosa e aflitiva ansiedade.

 

Hei-de sabê-lo! exclamou ele com súbita resolução.

 

Libertando-se repentinamente da sua prostração, levantou-se e atravessou a sala em passo precipitado.

 

Joranne seguiu-o até ao vestíbulo.

 

Aonde vais? perguntou, vendo-o agarrar no chapéu.

 

A casa de Josseline. E há-de dizer-me tudo quanto sabe.

 

Havia oculta ameaça nestas palavras. A mãe juntou as mãos, como numa prece.

 

Voltamos à mesma murmurou com desespero.

 

Ficou parada diante da porta já então fechada, muito pálida, nervosa e aborrecida, mas tão impotente como meses antes quando sentira pairar em volta da sua casa uma atmosfera de tempestade.

 

Os Beauchamp não ficaram surpreendidos com a brusca chegada de André.

 

Josseline contara tudo ao marido e depois do telefonema do médico viveram horas de ansiedade.

 

Quando este entrou foi ela a primeira a precipitar-se ao seu encontro com a fisionomia transtornada.

 

Então?

 

Então, aqui está...

 

Sem mais explicações, o médico estendeu-lhe o bilhete que durante o percurso havia apertado nos dedos nervosamente.

 

As feições de Josseline distenderam-se um pouco, enquanto o lia:

 

Deus seja louvado suspirou receava coisa pior...

 

Pior do que isto? trovejou ele. Que mais esperavam ainda?

 

Mas, meu pobre André, nem sei como vivo desde que você nos telefonou. Sua mulher saiu daqui tão exaltada, tão fora de si...

 

E, finalmente, que significa tudo isto?... O que motivou semelhante passo... sem esperar uma explicação, uma justificação minha? É insensato, palavra de honra!...

 

Maquinalmente deixou que o desembaraçassem do chapéu e das luvas e seguiu o amigo para a sala de fumo onde Josseline, que os acompanhara, se deixou cair numa poltrona, rosto transtornado, a soluçar.

 

Beauchamp interveio.

 

Meu amigo, estou desolado, pode crer... Josseline contou-me tudo. Lamento vê-la envolvida, ainda que indirectamente, neste drama íntimo. Maria Cláudia arrancou-lhe certas confidências...

 

André Joranne deu um salto.

 

Confidências... Disseram-lhe...

 

Fitava o dono da casa com olhar cintilante, do qual desaparecera toda a simpatia. O advogado agarrou-o pelo braço, tentando acalmá-lo.

 

Sossega, suplico-te... Não ignoras quanto eu e minha mulher te somos dedicados. Se Josseline se viu obrigada a falar foi porque Maria Cláudia estava já ao facto de parte da situação e tirara dela as piores deduções...

 

Juro-lhe, André acudiu Josseline com voz alterada pelo pesar que não podia proceder de outra maneira... Maria Cláudia ameaçava fazer escândalo no Ritz se não lhe dissesse a verdade. Estava como louca e não queria ouvir conselhos nem palavras conciliadoras!... Nunca a vi tão exaltada...

 

Deus do Céu! bradou o cirurgião. Mas porquê?!

 

Josseline ergueu para ele um olhar carregado de censuras.

 

Quanto a isso, André...

 

Hesitante, baixou as pálpebras e mordeu os lábios, como se lhe custasse exprimir pensamentos pouco lisonjeiros para o seu interlocutor.

 

Vamos, continue! incitou ele, violento.

 

Suponho que a visita feita à clínica e as conclusões que daí tirou não eram de molde a agradar-lhe.

 

Joranne fez um movimento para o advogado, que assistia à dramática cena calado e pensativo como se o quisesse tomar por testemunha.

 

Oh! As mulheres!... São todas as mesmas quando se trata de acusar... de condenar...

 

Sim? exclamou Josseline, exasperada. Acha então você que o seu lugar era em casa de Regina Halloy?...

 

A voz irritada de André vibrou com violência:

 

E quem lhe diz que o motivo que lá me levou não era desculpável?

 

A fisionomia perturbada de Josseline tornou-se mais hostil.

 

É claro suspirou com desânimo. Os homens como você encontram sempre desculpa para os seus actos mais censuráveis.

 

André abriu a boca prestes a ripostar com mordacidade... mas calou-se. Aceitou a condenação. Depois de se ter insurgido com a atitude de Josseline, esta parecia-lhe lógica. Ficou-lhe até reconhecido por defender assim a ausente.

 

Reconheço que não sou santo confessou, baixando a cabeça, vencido e aniquilado mas desta vez o móbil que me impeliu não era repreensível. Daria dez anos de vida para que minha mulher ignorasse sempre esta desgraçada história... O que me intriga continuou, envolvendo a dona da casa num olhar ansioso é a visita de Maria Cláudia à minha clínica. Que motivo a conduziu lá quando não estava nos seus hábitos fazê-lo, quando nunca lá foi?

 

Também me admirei. Mas não consegui obter dela qualquer explicação.

 

André apertou a cabeça entre as mãos ardentes.

 

A fatalidade!... exclamou com voz surda. Desta vez o Destino foi-me bem adverso.

 

A voz desfalecia-lhe. Ficou aniquilado, prostrado, com o rosto oculto nas mãos.

 

O advogado aproximou-se e tocou-lhe no ombro.

 

Não creio na fatalidade...

 

André levantou a cabeça e fitou-o de testa franzida.

 

Que queres dizer com isso?

 

Que alguém tinha empenho em que Maria Cláudia fosse procurar-me justamente...

 

Alguém...

 

De fisionomia concentrada e olhar penetrante observava o advogado e tentava adivinhar-lhe o pensamento no rosto impenetrável.

 

Este desfechou em tom indiferente:

 

”Procura a quem o crime aproveita...” É um axioma cuja exactidão temos muitas vezes ocasião de verificar na nossa carreira.

 

Um relâmpago perpassou nas pupilas de André. As linhas do seu perfil pareceram acentuar-se e as maxilas apertadas deram-lhe um aspecto duro e feroz que pareceu envelhecê-lo de repente.

 

Se eu tivesse a certeza... proferiu de dentes cerrados, perfilhando sem discussão a hipótese que adivinhava ter nascido no espírito do advogado.

 

Indaga, investiga aconselhou com voz grave. Servirá de lenitivo ao teu desgosto e talvez te consigas libertar de uma certa sentimentalidade que até hoje te tem prejudicado bastante...

 

Vibrante de impaciência, André despediu-se logo.

 

Juro-te que hei-de obter a chave do enigma prometeu surdamente, apertando as mãos de Jacques Beauchamp.

 

Dirigiu a Josseline um sorriso melancólico e num desses impulsos que o tornavam tão simpático e atraente, desprezando a mão que esta lhe estendia, puxou-a para si.

 

Permita-me que a beije... Você procedeu como uma irmã o faria... Obrigado!

 

Após a sua saída, Josseline Beauchamp, ainda emocionada voltou para o marido o rosto perturbado.

 

Mas, no fim de tudo isto qual é a tua opinião?...

 

O advogado, satisfeito, esfregou as mãos: Creio que a bela Regina Halloy desta vez perdeu a partida... e definitivamente.

 

Regina Halloy encontrava-se no seu atelier quando soou a campainha da porta. Lançou uma olhadela ao relógio disposto na mesinha de Boule, num ângulo perto do divã e notou a hora tardia. Então, no rosto pálido emoldurado no ouro brilhante do cabelo, as pupilas cor de violeta cintilaram como diamantes.

 

Naturalmente, a senhora não recebe, não é assim? inquiriu, aparecendo no limiar da porta a figura fotogénica de uma criadinha que parecia fugida do écran.

 

Regina Halloy arredou o banquinho e largou a paleta.

 

Depende disse, dirigindo à criada o seu habitual sorriso enigmático que lhe erguia os cantos dos lábios sinuosos. Se for o doutor Joranne...

 

A gentil criada de quarto em cuja cabeça os caracóis escuros esvoaçavam fora da touca bordada replicou:

 

Já compreendi pronunciou com risinho intencional.

 

Ia retirar-se.

 

Ouve lá, Huguette...

 

Minha senhora...

 

O perfil impertinente e os olhos travessos voltaram a aparecer na moldura da porta.

 

Manda-o entrar para aqui...

 

Huguete piscou os olhos, maliciosa e compreensiva.

 

O toque da campainha da entrada cortou de novo o silêncio, num som insistente e prolongado.

 

Como está apressado! -comentou, desaparecendo ligeira.

 

O sorriso de Regina tomou uma expressão triunfante. Tirou a blusa de trabalho, prestando atenção ao diálogo travado no vestíbulo, cujo eco lhe chegava aos ouvidos.

 

Antes de abandonar o aposento veio dispor a agulha da grafonola no disco negro de antemão preparado. Dolente, lancinante e nostálgica como um lamento, uma canção cigana elevou-se, algo abafada pelas tapeçarias e acentuando duas notas tristes, voluptuosas, que se repetiam como um leit motiv.

 

Depois, como um passo apressado e forte se aproximasse da porta, deslizou, ligeira, para a separação gradeada de ferro forjado que dava acesso ao aposento contíguo.

 

O reposteiro de seda verde-mar recaiu, escondendo-lhe a ondulante figura, precisamente no momento em que André penetrava no atelier.

 

No mesmo instante o aroma opiado do tabaco que pairava por todos os cantos da sala envolveu o recém-chegado, suave e insinuante. André Joranne fez um trejeito de desagrado seguido de imperceptível encolher de ombros.

 

Com olhar hostil, observou o aposento. A um canto, sobre o estrado, em cima do tamborete da pintora, junto da caixa das tintas, via-se ainda a blusa chinesa que a artista costumava envergar quando pintava. Assim abandonada, tinha a aparência de uma coisa viva e palpitante que conservasse ainda o calor e o perfume do corpo que cingira... Na tela, as tintas não tinham tido ainda tempo de secar.

 

Os olhos de André seguiram o vulto da dona da casa até ao reposteiro sedoso, corrido sobre a intimidade do aposento vizinho, e depois voltaram-se de novo para o cenário que se lhe conservava vivo na memória: -a lâmpada velada pelo abajur opalino, perto do divã de estofo branco com almofadas de pele... violetas de Parma em taças de Sèvres e, junto da poltrona revestida de seda antiga, uma cabeça de Circe moldada em âmbar dourado e que se assemelhava a Regina.

 

O lamento discordante da canção cigana enchia o aposento com as suas notas roucas e trágicas.

 

Joranne atravessou a sala e travou a grafonola. O silêncio que se seguiu deu-lhe uma sensação de alívio.

 

Não gosta dessa música? perguntou uma voz lânguida em cujo timbre grave e um pouco abafado vibrava uma doçura ardente.

 

O médico voltou-se. Regina Halloy conservava ainda o reposteiro erguido e surgia como aparição luminosa no fundo da penumbra criada pela claridade esbatida da lâmpada.

 

Trajava um desses vestidos de seda maleável, que ela preferia, cingido nas ancas esguias por um cinto exótico de pesados anéis de metal lavrado. Oferecia ao visitante a graça subtil do seu sorriso sedutor, terno e um pouco trémulo como se hesitasse em assomar à boca mimosa de dentinhos alvejantes.

 

Boa-noite disse em voz baixa, de inflexões suaves, cuja sedução ela conhecia bem. Muitas vezes bastava essa voz para operar o sortilégio. Ouvida pelo telefone com as ressonâncias misteriosas dadas talvez pelas ondas invisíveis que a transmitiam, essa voz era como que um sopro mágico que varria a hostilidade ou a desconfiança. Fora essa mesma voz que conseguira vencer a vontade tenaz de André.

 

Porque, vá lá uma pessoa defender-se dessa intrusa tirânica que atravessa paredes e portas e vem forçar a nossa intimidade quando menos se espera?

 

Mais uma vez André compreendeu à sua custa quanto a vida moderna nos submete a uma escravidão a que ninguém se exime ou foge. Podemos fechar as nossas portas, dar ordens severas, evitar cuidadosamente todos os encontros. Nada obstará que, insidiosa, obstinada, insistente, uma vontade estranha, transmitida pelo delgado fio que se estendeu ao longo das paredes e entra em nossa casa, contra todos os nossos desejos, se imponha, perturbe a nossa tranquilidade e, a qualquer hora do dia ou da noite, contrarie e destrua a paz e o esquecimento que ambicionamos.

 

Fora exactamente o que se havia passado com o cirurgião.

 

Tinham decorrido já alguns meses depois do seu regresso a Paris, e André evitava com cuidado todos os meios que pudessem ressuscitar-lhe os fantasmas da sua vida passada, principalmente os encontros com a heroína de uma aventura que a todo o preço queria riscar da memória, quando um belo dia Regina Halloy lhe telefonou.

 

O seu primeiro impulso foi desligar. Depois, a vozinha parecia tão desfalecida, tão triste, que o comoveu. Era aquele o seu feitio. Nunca pudera presenciar as consequências de uma ferida aberta por ele. Que sofressem, mas que ele o ignorasse, ainda vá... o seu egoísmo admitia bem essa situação... mas se o fizessem pôr o dedo na chaga que sangrava por sua culpa, isso acordava-lhe sempre tardio remorso.

 

Se Regina lhe aparecesse furiosa e ameaçadora, tê-la-ia metido na ordem sem custo, não temendo provocar-lhe nova tempestade de cólera... e ainda mesmo que para isso se visse obrigado a confessar à mulher essa página do seu passado, a fim de que ela não se impressionasse caso qualquer rumor da aventura lhe chegasse aos ouvidos.

 

Porém, essa mulher que na outra extremidade do fio lhe falava, palpitante e desesperada, nada tivera de agressivo. Afigurava-se-lhe não ser já a criatura provocante que, com os seus manejos tão hábeis como perigosos, havia levado André ao escândalo que meses antes tão brutalmente encerrara o seu idílio.

 

Logo de princípio, para lhe adormecer a desconfiança, Regina só lhe falara da sua saúde abalada, em tom tão dolente que justificara os seus receios.

 

Pretendia e foi essa a única alusão que se permitiu fazer aos trágicos acontecimentos que haviam provocado a ruptura das suas relações sim, sofrer de uma depressão nervosa devida ao abalo moral desencadeado por esses acontecimentos e da qual não conseguia restabelecer-se.

 

Secamente, André indicou-lhe então o nome dum especialista.

 

Mas, paciente e obstinada, prosseguiu as suas manobras; umas vezes era um conselho que desejava pedir-lhe, outras, uma receita que só ele sabia passar ou ainda um medicamento que não se atrevia a tomar sem a opinião dele.

 

Depois do que se havia passado entre ambos, esta atitude, se por um lado se tornava aborrecida para o antigo apaixonado, por outro, lisonjeava-o intimamente. O amor persistente que, por esta forma, Regina deixava discretamente adivinhar, fingindo querer ocultá-lo, tornara-se numa obsessão. A sereia confessava-se vencida; imolava o seu orgulho, penitenciava-se pelos seus erros e culpas, acusava apenas o Destino adverso e implacável e tudo isto somente por meias palavras, encobertas e habilmente escolhidas, empregando todas as precauções para não acordar os escrúpulos do cirurgião.

 

Estas conversas telefónicas prolongaram-se por diversas semanas e terminavam quase sempre por iniciativa um pouco brusca de André, que logo em seguida se arrependia da sua vivacidade, lembrando-se de que se tratava de uma doente cujo estado se podia agravar com a sua falta de tacto.

 

De princípio não conhecera o risco que corria. Julgava dispor de suficiente energia e sentia-se bastante forte para dirigir, desta vez, a partida à sua vontade.

 

Quando, finalmente, viu o perigo e isso deu-se na ocasião do encontro ocasional da mulher com Regina Halloy no Salão quis atalhar, mas já era tarde.

 

Primeiro, Regina obtivera uma vantagem conseguindo ser apresentada a Maria Cláudia e adquirindo a sua simpatia.

 

Esse facto criava uma espécie de ambiente duvidoso que dificultava a confissão sincera da aventura que, para se colocar bem, André poderia ter feito a sua mulher.

 

Em seguida quando intimara a ardilosa criatura a afastar-se para sempre da sua vida, viu-a revoltar-se às primeiras palavras. Falou de suicídio. Declarou que não podia mais... a vida já não tinha encantos para ela... Comunicou-lhe, com dolorosa resignação, que poria termo à existência que a crueldade de um homem lha transformara num deserto horrível...

 

Fez discreta alusão à sua idade, a esse período angustioso que representa para uma mulher isolada a proximação do outono da vida quando a sua beleza mal denuncia a garra dos anos, o que a torna mais comovente ainda. Em termos patéticos, lamentou a sua felicidade morta e as suas esperanças perdidas.

 

André julgou-se culpado e condenou-se com severidade. Depois de ter quase provocado a morte de um homem, o absurdo procedimento do ano anterior iria agora ocasionar novo drama e desencadear segundo escândalo que atingiria sua mulher, ignorante e inocente de tudo?

 

Esta perspectiva aterrou-o. E acedeu a visitar Regina Halloy de princípio simplesmente como profissional e em companhia do seu médico assistente mais tarde, sozinho, duas ou três vezes, acorrendo até apelo insistente de Regina que se dizia de novo vítima e perseguida pelos seus pensamentos fúnebres.

 

Durante estas curtas visitas, no decorrer das quais o jovem médico se mantinha dentro das normas da mais estrita reserva, nunca a finória se permitiu uma alusão ao passado, nem deixou adivinhar as suas ocultas esperanças.

 

Aparentava uma atitude humilde e submissa que, nessa mulher altiva e habituada a triunfar e a vencer, era, pelo menos, inesperada.

 

Assim, vencida e desarmada, era mil vezes mais comovedora do que no período dos seus êxitos insolentes e dos seus caprichos de sedutora sempre vitoriosa.

 

Vencida?... Desarmada?... André iludira-se facilmente, reconhecia-o agora e a si mesmo perguntava que abismos de perfídia se ocultavam no fundo dessas pupilas glaucas.

 

Bem sabia que virias murmurou, avançando para ele, coleante e felina.

 

Tinhas a certeza disso?

 

Alarmou-a qualquer coisa de insólito que vibrou na voz do seu interlocutor. As narinas palpitaram-lhe imperceptivelmente.

 

O médico prosseguiu agressivo:

 

Não costumo fazer visitas tão tardias aos meus clientes.

 

Não sou, por certo, uma simples cliente protestou com tristeza.

 

Bem sabe, minha senhora, que só a esse título acedi a vir a sua casa.

 

Aproximou-se dele, insinuante e meiga. - lamenta-o?

 

Fitou-a com desprezo, e com firmeza libertou os ombros da pressão das mãos pálidas que acabavam de se apoiar neles.

 

Que infâmia perpetrou a senhora? inquiriu com dureza, cravando nela o olhar glacial.

 

AS pálpebras tremeram-lhe. Corou violentamente.

 

Não sei o que pretende dizer? balbuciou, enquanto um lampejo lhe perpassava nas pupilas que desviou dos olhos dele.

 

Simplesmente que a senhora não é estranha ao que se passou esta tarde.

 

Não lhe respondeu logo, ocultando a expressão indefinida do rosto.

 

Não se senta? observou, despreocupada, como se não tivesse ouvido o que lhe diziam.

 

Os dedos remexiam, indolentes, num cofre donde tirou um cigarro, mas pelo simples movimento que fez ao rolá-lo nos dedos, o médico adivinhou o seu nervosismo.

 

Eu fiz-lhe uma pergunta observou ele. Conservava-se senhor de si. No entanto, essa impassibilidade aparente ocultava qualquer coisa de terrível.

 

Afectando uma despreocupação que estava longe de sentir, ela encolheu os ombros.

 

Que hei-de responder-lhe?... E em primeiro lugar, o que se passou hoje de tarde?

 

Ignora-o? Com certeza?

 

A voz era sarcástica e o olhar de André parecia queimá-la. Semicerrou as pálpebras, velando as pupilas claras.

 

Sei apenas que saiu daqui como doido, esquecendo-se de se despedir de mim. Costuma usar para comigo de mais delicadeza.

 

Meio voltada, esforçava-se por accionar um acendedor recalcitrante. A chama fulgurou de súbito junto da cara, iluminando-lhe a boca irónica e dura e a curva acentuada do queixo.

 

Em tom áspero, ele atalhou:

 

Foi a senhora quem preparou a cilada em que minha mulher caiu. De que maneira?

 

Está doido?...

 

Levantou a cabeça com vivacidade e tentou encará-lo; mas, ao fitar-lhe a fisionomia rígida, o olhar perspicaz que a penetrava, perturbou-se, não podendo manter por mais tempo o seu papel.

 

E quando assim fosse? murmurou, agressiva. Não acha que tinha desculpa?

 

As maxilas de André contraíram-se. Fez um esforço para conter o impulso violento que o imPelia para ela.

 

Eis que visava toda essa comédia!

 

Ela recalcitrou.

 

Defendi-me com as armas de que dispunha.

 

Armas venenosas!...

 

As únicas que a minha fraqueza possuía para lutar contra o teu egoísmo ripostou com amargura. Supunhas talvez que ia aceitar o teu casamento de cara alegre?... Eu amava-te, André! gemeu, modificando de repente a sua atitude, tentando reconquistar o terreno perdido.

 

Eu é que já não a amo articulou com firmeza se amor se pode chamar ao sentimento que por algum tempo me impeliu para si!...

 

Oh!... exclamou Regina com expressão alterosa. O que não impede que nos entendêssemos!... Esse estúpido duelo com Evans...

 

Não fale em semelhante coisa balbuciou o médico com entoação terrível, dominando-a com o olhar. A senhora foi a única responsável por esse infeliz incidente, que podia ter terminado com a morte de um homem e com a desgraça de outro; porque não sei se mede bem o que teria sido depois a minha vida se tal desastre se desse...

 

A boca crispou-se-lhe num jeito de repulsa.

 

Louvado seja Deus! Essa sua última proeza bastou para me abrir os olhos... A senhora é uma inconsciente que julga poder brincar impunemente com as coisas mais sagradas... E, fique sabendo, para mim a tranquilidade e a felicidade de Maria Cláudia entram nesse número...

 

Agarrou-lhe bruscamente os pulsos e torceu-os com brutal impulso.

 

Que fez a senhora?... Quero sabê-lo imediatamente... e remediar o mal se ainda for tempo...

 

Ela gemeu:

 

Magoa-me!

 

O médico nem a ouvia. Espiava nessa cara enigmática qualquer indício que lhe revelasse os ocultos pensamentos.

 

Nesse momento sentia acordar em si a alma de um carrasco... No seu coração não restava já o mais pequeno vestígio do interesse sentimental que em tempos experimentara por essa Regina que naquele momento odiava pela dor infligida a Maria Cláudia... e que desejaria poder esmagar com o tacão como se fosse um animal venenoso.

 

Largou-a por fim. Enquanto ela friccionava os pulsos, olhando-o de revês com ar assustado e submisso, ele pronunciava-lhe bem perto do rosto pálido:

 

Não compreendeu ainda que estou disposto a tudo para lhe arrancar a confissão do que se passou? Esse bilhete que o motorista viu entregar a minha mulher fiz o meu inquérito e estou bem informado foi-lhe dirigido por si, não é verdade?

 

A artista cedeu, numa brusca reviravolta, com o desejo feroz de o fazer sofrer por sua vez:

 

Pois bem! Sim! Fui eu! Era o único meio de que dispunha para lhe despertar suspeitas... Desejava que ela o surpreendesse em minha casa; sem isso, cega pela sua absurda confiança, nunca teria acreditado no que lhe pudessem contar!... Eu bem sabia que, depois disso, não tardaria a cair do pedestal em que essa tola o colocou... Joranne elevado à categoria de santo!... Ah!... Ah!... é cómico, na verdade!...

 

Ria, através das lágrimas de raiva que lhe tremiam nas pestanas.

 

Se a senhora não fosse mulher!... murmurou de dentes cerrados, lívido pelo esforço que fazia em se conter.

 

E, bruscamente, dirigiu-se para a porta, compreendendo que a cena já durava demasiado e que não conseguiria dominar-se por mais tempo. De resto, estava elucidado.

 

Com um grito estridente, numa dessas reviravoltas que lhe eram habituais, Regina correu para ele, desvairada:

 

André... tu não vais correr atrás dessa garota... Não é uma companheira digna de ti, vê bem!... E depois, não queiras iludir-me... casaste com ela por despeito, para colocares entre nós o irreparável...

 

Agarrava-se a ele, oferecendo-lhe o rosto transtornado e a sedução das suas pupilas suplicantes.

 

Com o simples movimento de uma pessoa que afugenta um bicho importuno, repeliu-a para longe dele.

 

Está totalmente fora da verdade. Vejo que não me comprendeu declarou, fitando-a com olhar pensativo que parecia ver mais além, muito longe dali.

 

Então Regina deu largas ao seu rancor... Modificou a expressão da fisionomia, e a máscara meiga e suplicante foi substituída por outra onde se podia ler o ódio mais profundo.

 

Pois bem! Vá, corra a implorar perdão!... Ajoelhe aos pés dessa insignificante! Desempenhe até ao fim o seu papel grotesco... Deixe-me, no entanto, fazer-lhe uma prevenção: essa provincianazita teimosa a quem deu o seu nome, estudei-a bem... graças a Deus sou perspicaz e poucos momentos me bastaram para isso!... Será intransigente e nunca lhe perdoará.

 

O médico deixou pesar sobre ela um olhar relampagueante que a fez estremecer:

 

Praza a Deus que se engane! Será uma felicidade para si... acentuou ameaçador.

 

E saiu do aposento sem se dignar ver que Regina rolava pelo tapete, debatendo-se no inevitável e cómodo ataque de nervos.

 

”Será intransigente... nunca lhe perdoará.”

 

O dardo envenenado penetrara bem fundo no coração de André.

 

Ao entrar no seu quarto em seguida a essas horas de angústia não foi senhor de si e chorou. Maria Cláudia afigurava-se-lhe, de facto, irremediavelmente perdida.

 

Numa tortura imensa, recordava os termos da carta.

 

”André, não quero tornar a ver-te...”

 

Confundia-o, desnorteava-o que ela, tão dócil e timorata, confiante e meiga que se lhe aninhava nos braços com apaixonado abandono, pudesse escrever-lhe essas frases secas, duras, desprovidas de toda a ternura... que tivesse tido a coragem de tomar, por sua iniciativa, a decisão que dizia irrevogável de abandonar o marido, o seu lar.

 

Era evidente: a garota pueril revelava-se de súbito uma mulher... com energia, dignidade e amor-próprio tenaz e obstinado!...

 

Passou uma noite horrível, procurando na almofada a seu lado o contacto sedoso da sua face, o seu perfume... evocando todas as fases desse período feliz, de uma intimidade tão doce e apaixonada...

 

Parecia-lhe sentir ainda no peito o peso suave da cabecita perfumada e supunha às vezes estreitar nos braços o corpo adorado.

 

Ao mesmo tempo pungiu-o o doloroso remorso pela decepção atroz que ela sofria por sua causa.

 

Como pudera ele proceder tão levianamente, com tal ausência de escrúpulos?

 

E assim, ora debatendo-se no horrível desespero, ora esmagado pelo arrependimento tardio, foram passando as horas.

 

Surpreendido e assustado, reconhecia de repente o lugar absoluto que Maria Cláudia em pouco tempo ocupara na sua vida. Nunca, nem mesmo nas horas mais triunfantes da mocidade, mulher alguma o dominara àquele ponto.

 

O seu riso harmonioso... a maneira de falar... esse olhar de revés, meio risonho meio zangado, que lhe lançava quando a arreliava, todas essas recordações o perseguiam como se quisessem fazer-lhe sentir mais dolorosamente toda a amargura do seu desolador presente.

 

A madrugada veio encontrá-lo de pé, encostado à janela, fumando, nervoso, cigarro após cigarro, as fontes latejantes sob a garra tenaz da enxaqueca e, no coração, o vácuo imenso, profundo.

 

Os ruídos da rua feriam-no como luz violenta incidindo numa retina doente.

 

Enquanto se vestia, tentou pensar nas operações a realizar essa manhã na sua clínica, mas essas preocupações, que nos outros dias o absorviam por completo, não conseguiam agora ocupar-lhe o cérebro.

 

Recordava o canto alegre que costumava acompanhar-lhe o despertar porque, como as toutinegras, aquela mocidade exuberante usava saudar o dia expandindo a sua alegria em trilos e modulações vibrantes... E tudo isso lhe tornava mais pungente a angústia.

 

Voltaria?... Não ousava esperá-lo. Para sua mulher tomar a iniciativa de partir assim, sem uma palavra, sem uma advertência ela que lhe pedia autorização para o acto mais simples, uma visita, aceitar um convite, um chá, um jantar era preciso que profunda transformação se tivesse operado nela.

 

Apeado do pedestal onde o seu amor o havia colocado, André perdera toda a influência sobre Maria Cláudia e a ideia dessa exautoração humilhava-o tanto quanto o magoava. Acudiu-lhe à memória a forma altiva como, no decorrer do seu primeiro e fortuito encontro na passagem de linha do comboio, ela soubera metê-lo na ordem.

 

Mais tarde, o seu amor conseguira transformá-la nessa mulherzinha apaixonada, submissa e confiante, poder de que ele abusava às vezes um pouco, para afirmar a sua autoridade de marido e de senhor... A mulher tinha por ele uma admiração ingénua, veemente... e para prova bastava a forma cerimoniosa de o tratar, que às vezes gostava de empregar como se quisesse com isso demonstrar-lhe a sua terna submissão...

 

Agora, Maria Cláudia libertara-se de todos esses sentimentos. A louca, a imperdoável imprudência de André e a traição de Regina, haviam destruído esse mundo maravilhoso, o ambiente encantado em que ela soubera envolver a sua união... de tudo isso só restavam escombros e destroços...

 

À hora do primeiro almoço, o cirurgião passou à casa de jantar. Não quis tomá-lo no quarto como costumava fazer com Maria Cláudia, todas as manhãs: teria sido doloroso para ele.

 

E, condoída, a mãe veio fazer-lhe companhia, procurando tranquilizá-lo, ainda que intimamente se sentisse tão inquieta e preocupada com ele quanto ao resultado desse desagradável incidente.

 

O correio da manhã não trouxe coisa alguma, mas, ao meio-dia, quando se sentavam ambos à mesa, olhando tristemente o lugar da ausente, chegou um telegrama.

 

André empalideceu ao rasgar o papelinho azul, seguido pelo olhar ansioso da mãe. Esta respirou logo que viu o súbito clarão que lhe iluminou o semblante e o ouviu soltar um suspiro de alívio.

 

O filho estendeu-lhe o telegrama.

 

”De Fonscouloubre” disse em voz breve.

 

Este vinha assinado pela senhora Hameline e era concebido nestes termos:

 

”Maria Cláudia acaba de chegar. Suplico-lhe não venha por enquanto. Segue carta.”

 

A Joranne fitou o filho.

 

- Ficas agora liberto de grande peso observou.

 

Tem razão. Um peso enorme! exclamou com voz branda.

 

E, bruscamente, numa reacção, começou a chorar convulsivamente, sob o olhar da mãe, dando largas ao seu desgosto, que já não era senhor de conter.

 

Sem uma palavra, a mãe deixou correr essas lágrimas masculinas que lhe revelavam quanto o filho estava mudado.

 

Levantou-se e aproximou-se dele.

 

Como tu a amas! disse-lhe bondosamente, acariciando-lhe os cabelos.

 

Foi precisamente no momento em que o compreendi, que a perdi para sempre! bradou numa explosão de sombrio desespero.

 

-Mas não, sossega... não será tanto assim... Ela também te ama... saberá perdoar-te.

 

É muito nova para ser indulgente.

 

Está demasiadamente apaixonada para manter por muito tempo a sua intransigência.

 

Julga isso?

 

Um raio de esperança cintilou-lhe nas pupilas ardentes. Voltou-se bruscamente, agarrou as mãos da mãe e apertou-as.

 

Se a mãe soubesse como até hoje a minha vida tem sido estúpida... Mas se a recuperar, se Maria Cláudia voltar, sinto que ficarei curado dos males que me envenenavam o coração e o cérebro.

 

A senhora Joranne abanou a cabeça. No íntimo, não estava muito convencida do que afirmava. André talvez tivesse razão. Maria Cláudia era muito nova para compreender e admitir certas fraquezas e perdoá-las.

 

Além disso, até aí não conhecera nunca o sofrimento.

 

Por fim, chegou uma carta da senhora Hameline. Esta última não fazia ao genro a mais pequena censura, mas suplicava-lhe que não empreendesse qualquer tentativa para se reconciliar com sua mulher sem decorrerem alguns dias, a fim de dar tempo a Maria Cláudia medir bem o desgosto e atenuá-lo pela reflexão.

 

André submeteu-se e resolveu esperar... Mas, decorrida uma semana, não podendo dominar-se mais, exasperado por ver devolvidas, sem terem sido abertas, todas as cartas insistentes que dirigira a Maria Cláudia, telegrafou para Fonscouloubre a anunciar a sua chegada.

 

André fez vibrar a sineta com mão convulsa. Do outro lado respondeu-lhe um ladrar alegre: Finette tinha-o reconhecido e manifestava o seu contentamento com ladridos sonoros, raspando com as patas a madeira carunchosa do portão.

 

Intensa comoção oprimia o peito do visitante. Há pouco, quando se dispunha a enveredar pelo atalho, e a paisagem, à medida que subia, se lhe apresentava fresca e exuberante, palpitante de vida que renascia, sentia-se dominado por indizível emoção.

 

Tudo ali lhe recordava Maria Cláudia; as sinuosidades da colina, os tenros rebentos dos castanheiros, as pedras do caminho, tudo lhe evocava o rosto adorado do ente querido cuja ausência lhe abrira no coração uma ferida que sangrava constantemente.

 

Contudo, a paisagem de agora não possuia as mesmas tonalidades, nem o mesmo aspecto da que vira nascer o seu ardente amor. O Outono ia já bem longe... a Primavera chegara, semeando os prados de esmeraldas; pelas copas das macieiras as flores mimosas, tão frágeis, tão transparentes, tão nacaradas, no fundo de um azul muito suave daquele céu de Abril, pareciam quiméricas, idealizadas por um pintor fantástico e caprichoso.

 

O Outono... a Primavera... Duas palavras apenas... e, todavia, nelas coubera todo um drama, essa tragédia doméstica que o doutor Joranne receava obscuramente sem saber como terminaria.

 

Do lado oposto da porta ouviu-se o ruído do ferrolho e André estremeceu. O semblante contraiu-se-lhe enquanto os olhos exprimiam ansiosa expectativa. Que rosto magoado, obstinado, ou transformado pelo ressentimento lhe iria aparecer?

 

Com um suspiro de alívio reconheceu o sorriso doce e acolhedor de sua sogra.

 

Entre depressa!... Esperava-o...

 

Mais delicada do que nunca no simples vestido preto, as pupilas interrogadoras, fitando com interesse a fisionomia alterada de André, afastou-se para o deixar passar.

 

O médico fez um movimento... hesitou como que envergonhado... Mas foi ela quem lhe abriu os braços.

 

Como sou desgraçado, ”mãe!”

 

Estreitou-o um momento com maternal carinho enquanto ele se lhe encostava ao ombro, escondendo uma emoção que o fazia tremer como uma criança.

 

Então? indagou, em seguida, levantando a cabeça e recuando para melhor a observar. E ela?

 

O olhar angustiado, insistente, examinava o rosto pensativo, tão calmo sob os bandós grisalhos e cuja contemplação bastava para lhe restituir a serenidade.

 

Falamos já disse ela. Venha! Dirigiram-se ambos para casa, mas os passos de André não soavam já com a antiga segurança.

 

Não parou para respirar o ar puro, carregado de aroma silvestre, não viu, no pomar, o cenário feérico das árvores polvilhadas de flores, nem o grande lilás que no cerrado ostentava os seus cachos lilases ou brancos. Não reparou também em Finette que, doida de alegria, lhe saltava aos ombros e se revestira de pêlo novo e sedoso.

 

Em toda essa paisagem de Abril, os seus olhos apenas procuravam um vultozinho vestido de azul, cuja imagem o coração lhe recordava ansiosamente.

 

Entraram na sala. Também aí se desvanecera o aroma do outono, mistro de humidade e de fumo acre da madeira queimada... Porém, subtil, o perfume suave das violetas que as mãos piedosas da senhora Hameline depunham todos os dias debaixo do retrato do marido, continuava a pairar no ambiente.

 

A dona da casa tirou a capa que cobria a poltrona e fê-lo sentar. Indagou, solícita:

 

Não almoçou ainda, não é assim? A Nanon vai trazer-lhe o café.

 

Primeiro recusou, mas por fim concordou com lassitude:

 

Pois sim... Passei a noite no comboio.

 

Valha-me Deus! Deve estar morto de cansaço!...

 

Saiu para dar as suas ordens, enquanto André se deixava cair pesadamente na poltrona.

 

Quando voltou, a mãe de Maria Cláudia notou-lhe o parecer abatido e as faces pálidas.

 

Também ela sofria assim quando aqui chegou a semana passada!... comentou abanando a cabeça.

 

Se soubesse o suplício que representaram para mim estes dias de inacção a que me submeteu!... Não sei como consegui obedecer-lhe. Quando recebi o seu telegrama, o meu primeiro impulso foi correr aqui.

 

Teria sido uma imprudência declarou ela. Creia-me... tanto para si como para sua mulher foi muito conveniente esta semana calma, de separação, de reflexão...

 

Ele fez um gesto de desânimo.

 

Que história tão estúpida!

 

Silenciosa, a sogra deixou-o entregue aos seus pensamentos e a recuperar a serenidade. De repente, levantou a cabeça, bravio.

 

Se soubesse as censuras que dirijo a mim próprio... o pungente remorso que me tortura!... Porque eu amo-a! exclamou, apertando as mãos. Sim, amo-a, não obstante as aparências, a despeito de tudo quanto ela possa imaginar... O meu procedimento presta-se a todas as suposições, bem sei. Fui simplesmente odioso! Entretanto, na carta que lhe escrevi e na qual lhe falava com o coração nas mãos a si, que consentia em me ouvir, quando ela me devolvia, fechadas, todas as minhas missivas pois bem, juro-lhe que nessa carta não havia uma palavra que não fosse a rigorosa expressão da verdade!

 

Ele, tão calmo de ordinário, exaltava-se, com a voz entrecortada e trémula, no seu desejo ardente de a convencer.

 

Hameline sossegou-o com um gesto e respondeu com brandura:

 

Se não tivesse a certeza disso, não se encontraria agora aqui...

 

Sim exclamou, sem poder reprimir um movimento de alegria. Acredita-me, então?

 

A sua maneira de falar não engana. De resto, uma pessoa da minha idade é sempre um tanto psicóloga.

 

Agora aparecia Nanon.

 

Mal lançou um olhar a Joranne e colocou diante dele a bandeja onde fumegava a chávena de café com um: ”Pronto, aqui tem, senhor!” cheio de despeito.

 

Como ela se dirigisse para a porta, André seguiu com os olhos o seu modo hostil.

 

Também esta me quer mal! murmurou.

 

Ora! observou Hameline. Há-de passar-lhe. Não pode perdoar-lhe ter feito chorar a Maria Cláudia, que ela adora.

 

Também eu não encontro perdão para mim! afirmou, sombrio.

 

Com desespero, apertou a cabeça entre as mãos.

 

Mas o que eu não consigo compreender prosseguiu com voz surda é como fui tão fraco... tão idiota... como tive em tão mínima conta a minha felicidade e a tranquilidade do meu lar para me arriscar a comprometê-las, acedendo a visitar essa mulher... essa mulher por quem já não experimentava qualquer sentimento afirmou, enquanto um lampejo de ódio lhe fuzilava no olhar nada, nem amor... nem estima... antes aversão... Ontem ainda, podia dizer que sentia por ela certa compaixão e foi debaixo dessa impressão que...

 

A sogra esboçou um sorriso melancólico.

 

A compaixão!... Nada há que mais se assemelhe ao amor! observou com ar pensativo.

 

André bebeu o café de um trago. Nervoso, levantou-se e veio colocar-se diante de Hameline, dizendo-lhe com tristeza:

 

Então duvida se lhe afirmar que era esse o único sentimento que me impelia?... Posso garantir-lhe que as três ou quatro visitas que exigiu de mim e eu lhe concedi, tinham apenas por fim impedi-la de praticar uma tolice irremediável e à qual podia ser arrastada pelo seu temperamento nervoso. Afirmava que o meu casamento a lançara no desespero... que, se não consentisse em a tornar a ver, se mataria... sei lá que mais?... Mil loucuras que um cérebro desiquilibrado como o dela concebe quando o amor-próprio é ferido!... Sim, porque era, acima de tudo, o amor-próprio que sangrava... E eu tão tolo que não o compreendi! Implorava de mim, na ausência do amor, uma afectuosa camaradagem...

 

E uma tal insistência, por parte de uma mulher, mesmo que já não haja amor, lisonjeia sempre um homem-observou.

 

Pode ser... Não quero passar por melhor do que sou e sei bem que não tenho desculpa. Afagava-me talvez o orgulho essa adoração persistente que pretendia professar por mim. Fosse por vaidade, por bondade, ou até por pusilanimidade, receava por tal forma que um escândalo viesse perturbar a tranquilidade de Maria Cláudia que me prestei à comédia!... Sim, porque esse tão apregoado amor mascarava um rancor profundo. Essa miserável visava destruir a minha felicidade!...

 

De dentes cerrados e com mal reprimida violência, declarou:

 

A autora da carta anónima foi ela... Obriguei-a a confessá-lo... e, apelando para a minha piedade, a pretexto de lhe mitigar a sua dor e solidão, atraiu-me a uma verdadeira cilada!...

 

Hameline ouvia-o condoída, e com um clarão de simpatia brilhando-lhe no fundo das pupilas.

 

Ah! exclamou André apertando-lhe as mãos febrilmente. Não pode supor como a sua atitude me fez bem!... Sofri tanto depois que ela partiu. Onde está ela?

 

-Não lhe anunciei ainda a sua chegada... Os cílios de André tremeram e a boca teve uma contracção dolorosa.

 

Ainda não abrandou o ressentimento? Continua implacável?

 

A mãe de Maria Cláudia meneou a cabeça:

 

Sofre... Não consegue admitir e compreender o facto doloroso. Tinha criado em volta do seu cândido amor um mundo tão belo, tão maravilhoso!...

 

Sou um miserável! articulou sombrio. A sogra colocou-lhe brandamente a mão na boca.

 

Foi apenas arrastado por influências antigas. Um homem, com uma mocidade tempestuosa como a sua, não se transforma em bom marido de um momento para o outro.

 

Como é indulgente! exclamou, reconhecido.

 

Melancólico sorriso adejou nos lábios sem frescura.

 

Não, vivi... e a vida ensinou-me que não devemos ser intransigentes. Ela... está ainda na alvorada do seu destino. Diante dos seus olhos crédulos abriam-se horizontes risonhos, esplêndidos, sem nuvens... Não a condene; é a primeira desilusão, o primeiro desgosto, e por isso se encontra incompreensiva e revoltada.

 

Posso falar-lhe?

 

Foi levar flores à capela de Santa Clara.. Sabe onde fica?

 

Sei... declarou com súbita comoção.

 

Vá... advogue a sua causa com calor... Mas se não quiser ouvi-lo...

 

Então?... inquiriu o médico com a garganta contraída e olhar desesperado.

 

Eu intervirei! prometeu Hameline.

 

Viu-a surgir no atalho e encaminhar-se naquela sua direcção e, nesse momento, foi como se o coração lhe parasse de bater no peito.

 

Nunca, no outono anterior, quando ela o levava, ligeira e saltitante, e ele a seguia, contente e já um pouco perturbado talvez, nem depois no período risonho do seu noivado, não, nunca se sentira dominado por essa intensa emoção que lhe contraía a garganta e fazia latejar as fontes.

 

Envergava ainda o vestido preto que trouxera de Paris... Viu-lhe o rosto pálido e abatido, sob o penteado despretencioso, e quando Maria Cláudia se aproximou, notou, estremecendo, os olhos cercados por um círculo negro e o desiludido vinco da boca.

 

Ao primeiro relance não o viu. Caminhava de cabeça baixa. A senhora Hameline prendera Finette, que teimava em seguir o médico e este não quis denunciar a sua presença nesse primeiro minuto. Imóvel, via-a descer o carreiro e avançar para ele. Palpitante e ansioso, esperava o choque inicial. Só quando estava a dois passos é que reparou no marido. Então, soltou um grito débil e recuou assustada.

 

Maria Cláudia! exclamou, não ousando arriscar outro gesto senão o de estender para ela as mãos suplicantes.

 

Ela, porém, logo se dominou. -Para que veio? observou com tristeza. É inútil...

 

Maria Cláudia... oiça, não posso admitir que não consinta que me justifique... Concordo que essa justificação é difícil. Mas se soubesse como sofro!

 

Instintivamente e sem que desse por isso, empregava esse tratamento cerimonioso que nunca usara depois do casamento. Isso significava que alguma coisa se havia dado e que, a seus olhos, a jovenzinha se transformara numa verdadeira mulher... uma mulher que ele temia e em cujo olhar glacial lia a sua sentença.

 

Lamento que em parte seja a causadora do seu desgosto replicou mas nada posso fazer para o evitar...

 

Falava sem acrimónia, com uma espécie de obstinada doçura, mais temível do que uma explosão de cólera.

 

De resto, julgo que esse desgosto não durará muito tempo afirmou sem qualquer ironia.

 

Não me esmague com o seu desprezo! suplicou. Reconheço o conceito que deve fazer de mim...

 

Ela fitou-o sem cólera, até com surpresa.

 

Não me julgo no direito de o desprezar. Procedeu conforme o seu carácter... Eu é que ingenuamente idealizei fantasias... fantasias estúpidas concluiu, passando a mão pela testa.

 

O marido contemplava-a aterrado. Não encontrava palavras para lhe dizer. Chegava vibrante de paixão, cheio de remorso, disposto a justificar-se, a implorar, a lutar contra as censuras, recriminações e lágrimas... Mas encontrava diante de si essa mulher que lhe opunha uma impassibilidade fria... que parecia infinitamente cansada e ambicionar apenas que ele não a fatigasse mais com inúteis discussões!...

 

Afigurou-se-lhe de súbito uma estranha... dele tão afastada como se o mar imenso os separasse...

 

Revoltou-se contra essa impressão e exclamou numa súplica:

 

Só lhe peço que me escute, Maria Cláudia... consinta que me defenda, que lhe manifeste todo o meu arrependimento... Não pode calcular a influência que teve em mim... como conseguiu transformar-me...

 

Uma avezita, que gorjeava nos ramos duma árvore por cima da sua cabeça, calou-se, assustada pelas ressonâncias metálicas da sua voz.

 

Sim continuou, veemente, readquirindo a esperança porque a via imóvel e paciente diante dele, deixando-o falar sem o interromper eu era um sujeito pouco recomendável... estróina... volúvel, inconstante, tratando as mulheres e o amor como se fossem simples brinquedos que hoje se tomam e amanhã se desprezam. Mas encontrei-te, Maria Cláudia... e não podes supor como a tua pureza, a tua confiança e a tua candura me modificaram, e realizaram o milagre de fazer de mim um homem completamente diferente!

 

Como ela não se manifestasse, prosseguiu com maior ardor:

 

Minha adorada...exclamou em tom fervoroso e apaixonado que luz trouxeste à minha casa... que equilíbrio à minha existência!... Essa... mulher... que segundo te revelaram, teve tão perniciosa influência na minha vida... enfim, com quem supuseste que eu traía todos os meus deveres... e o amor imenso, exclusivo, que soubeste inspirar-me... essa mulher... hoje... sinto por ela horror... aversão!

 

As pálpebras de Maria Cláudia, até aí impassível e como que petrificada, tremeram nervosamente.

 

Como se pode renegar assim o que ontem se adorou!... exclamou ela, com doloroso espanto.

 

Mas eu nunca a adorei! protestou o médico com evidente sinceridade. Há coisas que tu não podes compreender, tu, minha ingénua, cuja vida decorreu, desde os mais verdes anos, simples, serena e calma como a água cristalina do regato que serpenteia entre margens floridas... tão magnificamente pura!... Não, não sabes o que é o coração dos homens... de certos homens... o que oculta essa máscara viril que afivelamos para vós, cândidas rapariguitas sem passado! Tudo em nós é vaidade, fraqueza, inconstância, irresolução... sem falar de outras influências menos confessáveis que por vezes nos atiram para as mais deploráveis aventuras... onde encontramos, por fim, miseráveis compensações que só satisfazem o que em nós existe de menos nobre e elevado... Vês tu?... Falo-te de coisas que deverias ignorar sempre... sou obrigado a arrancar do seu pedestal o ídolo que tinhas criado... e que fica tão inferior às tuas quimeras... É esse o meu castigo.

 

Ela estremeceu imperceptivelmente... O marido viu-a crispar no peito as mãos pálidas, enquanto o rostozinho, de arcanjo ferido, tomava patética expressão.

 

Sim... reconheço-o... fiz-te muito mal, minha pequenina. Só desejo prostrar-me a teus pés e implorar-te o meu perdão... Suplico-te que me perdoes... Agora já sabes tudo... talvez possas compreender-me... e julgar-me com alguma indulgência...

 

Não me insurgi contra si, André, mas sim contra mim própria murmurou, de olhos erguidos ao céu como se quisesse por essa forma isolar-se melhor visionei um mundo de ilusões... um mundo quimérico e falso, mas essas ilusões eram a própria essência da minha vida. Hoje perdi-as e parece-me que tudo morreu para mim...

 

Então... serás inflexível?... Não voltarás a amar-me?

 

Maria Cláudia fitou-o e ele verificou que nesse olhar morrera, de facto, toda a ardente paixão que o animava.

 

Já não tenho confiança retorquiu ela, baixando a cabeça. A minha alma é hoje um jardim abandonado. A erva cresceu, matou a flor preciosa da minha crença em ti, sufocou tudo... Agora sinto apenas uma sede imensa de paz...

 

Na intensidade da sua dor, protestou:

 

Esqueces que és minha mulher?

 

Também o senhor se esqueceu de que era meu marido declarou ela sem elevar a voz, mas fitando-o com sereno desprezo.

 

Bruscamente, André voltou-se... Compreendeu, de repente, com nítida percepção, que aquela conversa não podia terminar senão com uma derrota para ele.

 

Essa mulher tão diferente que lhe aparecia obstinada, desiludida, senhora de si, nada tinha de comum com a meiga Maria Cláudia que o amara com tão absoluta confiança. Sim, era evidente, nem lágrimas, nem súplicas, nem a violência conseguiriam demovê-la...

 

E porque fugia agora, fazendo rolar debaixo dos pés as pedras do caminho não viu que ela esboçara um gesto para o reter... para o chamar... nem tão-pouco que a fisionomia rígida se distendia numa súbita e rápida emoção.

 

E não viu também que, de ombros vergados e ar abatido... em vez de prosseguir para a aldeia, ela retrocedera em direcção à capela.

 

Tão profunda era a desorientação de André que quase passou pela porta de casa sem entrar.

 

Na soleira das portas as mulheres surgiam, atraídas pela sua presença insólita na aldeia, e saudavam-no com uns ”Bons-dias, senhor doutor”, cheios de deferência.

 

Ele mal lhes correspondia... tirando o chapéu num gesto maquinal. Nas suas costas trocavam-se comentários desolados:

 

Eu bem dizia que este casamento acabaria mal! suspirava, de olhos no céu, a senhora Saurin, que estivera espiando da sua janela.

 

Lançou uma olhadela à filha, muito magra, esguia e macilenta, vendo já bem longe a mocidade e suspirando por um noivo que jamais aparecia.

 

”Se ao menos aquele doutor Joranne tivesse escolhido a sua Isabel... não haveria mosquitos por cordas no seu lar!

 

Toda a gente pressentia acontecimentos graves. Os ditinhos e comentários ferviam e voavam de casa para casa como avezitas chocalheiras.

 

O regresso de Maria Cláudia, tão triste, tão desolada, e que, era evidente, vivia consumida, atormentada... os telegramas trocados... tudo isto provocara o sobressalto e despertara a atenção da gente da terra.

 

No entanto, a senhora Hameline fora tão discreta, tão reservada, que desanimava todas as curiosidades. Quanto a Maria Cláudia, passava muito apressada e respondia apenas com monossílabos às pessoas que lhe perguntavam pela saúde... e pela do marido.

 

Mas que importava!... As linguinhas afiadas trabalhavam sempre, arquitectando mil suposições às quais a chegada do doutor Joranne viera dar novo alimento.

 

Ao portão da herdade, Hameline espreitava a chegada do genro. Deteve-o:

 

Então?...

 

Parou como um corcel extenuado e deixou ver a fisionomia desesperada:

 

Então, nada a fazer... Nem sequer me ouviu. Ou, para melhor dizer, nem mesmo me prestou atenção. Conservou-se concentrada no seu desgosto e quando supunha que acedera a escutar-me, verifiquei que nenhuma das minhas palavras lhe feria a sensibilidade.

 

Com autoridade, arrastou-o para o furtar à curiosidade de algumas mulheres que, com os petizes agarrados às saias, se iam aproximando com ar inocente.

 

Tentou justificar-se?... Ele encolheu os ombros.

 

Como o poderia fazer? Sou culpado... ofendia-a... desiludia-a... traí a sua confiança. Nunca me perdoará.

 

Com passo maquinal, seguiu a sogra para a sala. Estava visivelmente acabrunhado. Quando saíra de Paris, ansioso, com o coração despedaçado, pusera toda a sua esperança naquela entrevista.

 

Sentia-se disposto a lutar, a vencer.

 

”Saberei convencê-la! pensava. Conseguirei persuadi-la da sinceridade do meu amor. Transigirá e perdoar-me-á!...”

 

Nesse momento, porém, referia-se à Maria Cláudia apaixonada e confiante de outros tempos... Nunca encarara a possibilidade de defrontar essa máscara rígida, contraída em feroz obstinação... essa fronte pálida que parecia encerrar um mundo de pensamentos misteriosos e hostis...

 

Perdi-a!... concluiu, de olhar tragicamente fito no espaço.

 

E acrescentou surdamente:

 

Para mim representa um desastre...

 

Para ela também objectou a voz suave da senhora Hameline.

 

O médico fitou-a, de pupilas sombrias.

 

É claro... Reconheço que a responsabilidade de tudo isto é minha... E é terrível!

 

Levantou-se pesadamente... relanceou à sua volta o olhar alucinado. Se qualquer dos seus amigos o pudesse ver nesse momento, os ombros curvados, a cabeça baixa, a atitude acabrunhada, teria com certeza verificado, com a maior surpresa, que o belo Joranne em poucas horas envelhecera alguns anos.

 

É inútil que lhe imponha por mais tempo o pavor da minha presença disse com amargura. Vou partir quanto antes.

 

Para aonde? inquiriu Hameline, condoída.

 

Lá para baixo, esperar o comboio. Já me informei: deve passar um ao meio-dia e cinquenta.

 

Não quer tornar a vê-la?

 

Não. É superior às minhas forças defrontar de novo o seu olhar... esse olhar terrível que me julga com desprezo, me condena... indignado, quando até aqui só lia nele ternura, admiração e amor... Não, não posso! É muito doloroso para mim! confessou com voz estrangulada pela dor.

 

Ouça disse a mãe de Maria Cláudia. Quando ela me apareceu aqui e refugiada nos meus braços desabafou o seu desgosto, a sua cruciante desilusão, eu não quis intervir. Não lhe dei conselhos, nem aprovações. Nada, absolutamente nada. Preferi deixar-lhe o espírito livre de sugestões para ver claro nos seus sentimentos... para tomar decisões... No entanto, hoje, vou tentar falar-lhe.

 

Ele esboçou um sorriso triste.

 

Para quê?... Nenhuma esperança me resta já. Despedacei esse coração que só palpitava por mim. Nem eu, nem a mãe, ninguém conseguirá reunir os fragmentos dispersos, sarar a ferida que sangra!... O caso está perdido. Pior para mim!...

 

Qualquer coisa de insólito passou nas pupilas claras, de um brilho tão moço ainda, de Hameline.

 

Tenho ainda um trunfo na mão! afirmou.

 

E, como o genro levantasse a cabeça com vivacidade, o rosto de súbito iluminado, bateu-lhe no ombro num gesto afectuoso e animador.

 

O comboio parte ao meio-dia e cinquenta, não é assim?... Pois bem! Talvez que até lá os acontecimentos mudem de aspecto. Disponho ainda de duas horas e três quartos para convencer Maria Cláudia.

 

Se fosse verdade!...

 

Logo em seguida, porém, recaiu no seu sombrio desespero. A inquietação e a dúvida voltaram a anuviar-lhe o semblante.

 

Mas, ai de mim!... Não julgo possível semelhante felicidade!

 

Vamos! Vamos! Nada de desânimos! Coragem e optimismo, eis o que é preciso! Com essas duas virtudes consegue-se ganhar as mais difíceis partidas...

 

Joranne apertou-lhe silenciosamente as mãos e desceu o atalho; ia incrédulo, de atitude desesperada e abatida, sem ter a coragem de olhar mais uma vez essa aldeia onde deixava o seu maior tesouro: Maria Cláudia e o seu amor.

 

A senhora Hameline encontrava-se na cozinha quando Maria Cláudia a atravessou para se dirigir ao quarto.

 

André já se foi embora anunciou a mãe num tom que traduzia leve censura.

 

Era o melhor que tinha a fazer declarou a filha com modos ásperos, pouco habituais nela,

 

E, precipitadamente, subiu a escada de carvalho encerado.

 

A mãe ouvia-a percorrendo o quarto com passo febril. Deixou passar alguns minutos antes de subir por sua vez.

 

Quando lhe bateu à porta, decorreu ainda um instante e só depois a filha lhe respondeu com voz um pouco rouca:

 

Pode entrar!

 

Curvada sobre uma gaveta onde arrumava roupa, não voltou a cabeça ao ouvir-lhe os passos. A mãe compreendeu que Maria Cláudia tentava ocultar-lhe a expressão dolorosa e os sulcos das lágrimas que não tivera ainda tempo de dissimular.

 

Sofres? perguntou-lhe, aproximando-se, com um gesto de profunda ternura.

 

Eu?... Não insurgiu-se, já revoltada.

 

Então, então! Queres agora ter segredos para mim? observou-lhe a mãe, puxando para si a rebelde.

 

Não tem importância - redarguiu Maria Cláudia, enxugando furtivamente os olhos.

 

Se o amas ainda para que o deixaste partir?

 

Já não o amo! negou Maria Cláudia num ímpeto.

 

Se fosse verdade não o afirmarias com tanta energia.

 

A filha defrontou-a quase agressiva.

 

E depois!... Mesmo que o ame, que importa?... Hei-de conseguir desenraizar essa planta nociva do meu pensamento... e do meu coração.

 

Pobre rapaz! É tão infeliz! afirmou ainda Hameline.

 

Não vais agora exigir que o lastime ainda por cima?

 

Deu uma reviravolta e, libertando-se dos braços da mãe, foi encostar a fronte ao vidro da janela.

 

Conservou-se assim, com as mãos pendidas ao longo do corpo, muda e concentrada no seu desespero.

 

A mãe contemplou-a por momentos, abanando a cabeça.

 

Depois inquiriu brandamente:

 

No fim de contas, que decidiste? Bruscamente, voltou-se para fitar o semblante maternal com olhar indignado e cintilante.

 

Não decidi nada. Ele que proceda como entender. Fica à vontade para praticar as suas torpezas!

 

Maria Cláudia! protestou a mãe, magoada.

 

Maria Cláudia corou violentamente.

 

Perdoa, minha mãe; eu bem sei que a minha maneira de falar te fere. Mas não sou senhora de moderar as minhas expressões... Não pude vê-lo sem me impressionar.

 

Bem vês!... Confessas...

 

E depois?... Resulta daí que devo abdicar da minha dignidade... rebaixar-me na minha própria estima?... Fez bem em se ir embora. Só de vê-lo fico transtornada, sim... mas porque me causa horror!...

 

Um lampejo de satisfação, logo extinto, iluminou as pupilas cinzentas de Hameline.

 

Como és impulsiva e exaltada! Como és nova ainda, minha pobre filha!...

 

E julga que se fosse mais velha me indignaria menos? insurgiu-se, violenta. Que a ferida seria menos profunda... Que o meu coração deixaria de sangrar?

 

Tremia, convulsa, esforçando-se por reprimir as lágrimas prestes a correrem, porque jurara conservar a sua serenidade e não se portar como uma criança pueril e nervosa nessa hora tão grave da sua vida.

 

Contudo, é forçoso chegarem a uma solução objectou, com a sua voz maternal e serena, que caía sobre a excitação da filha qual bálsamo apaziguador. Esta situação não pode eternizar-se.

 

Disse e repito. Proceda como melhor lhe parecer. Entre nós tudo acabou e nada mais quero ter de comum com ele.

 

É teu marido. Não tens o direito de despedaçares, pela simples força da tua vontade, os laços que vos unem.

 

Então protestou Maria Cláudia, fora de si serei obrigada a cumprir os meus deveres, quando ele me atraiçoou, me iludiu... me mentiu, isto muito antes do nosso casamento?... Quando apareceu aqui e se refugiou em nossa casa foi para esquecer a desagradável aventura em que se vira envolvido por causa desta miserável mulher... Quando nessa altura dizia amar-me, sentia já...

 

Talvez nessa ocasião fosse sincero...

 

Ilusão!... Eu não fui para ele mais do que um capricho de momento, consequência da sua inacção, do seu isolamento forçado. Como não podia realizar esse capricho se não casando... e como não lhe sofria o ânimo deixar de o satisfazer, casou... não se preocupando com o que poderia suceder, de futuro. Os sagrados laços do matrimónio!

 

Teve um riso amargo que se esvaiu num soluço.

 

Existe lá alguma coisa sagrada para ele?... As promessas de fidelidade e de amor que me fez aos pés do altar impediram-no, por acaso, de voltar às suas antigas... fantasias?... E eu terei de consentir, para respeitar juramentos que por seu lado quebrou, em viver nessa atmosfera envenenada de mentira e de hipocrisia na qual pretende encerrar-me?... Não, mãezinha, não exijas de mim semelhante coisa!... Tenho vinte anos! exclamou, erguendo os braços numa prece suplicante. Preciso de luz... de um ambiente puro em volta de mim... e de tranquilidade também... Deixem-me entregue ao meu desgosto...

 

Não tenho, ao menos, o direito de chorar em paz?...

 

A apóstrofe violenta terminou numa crise de lágrimas e os soluços sufocaram-na.

 

Demoradamente, a mãe apertou-a nos braços, deixando expandir-se essa dor tanto tempo sufocada... e a sua fisionomia traduzia infinita tristeza. O olhar alheado pairava numa expressão vaga, recordando íntima visão ou talvez pungente angústia muito semelhante à que oprimia a filha.

 

Meiga, numa voz impregnada de acariciadora ternura, murmurou-lhe como nos dias longínquos da sua infância, quando uma palavra e uma carícia bastavam para dissipar os seus ingénuos e pueris desgostos.

 

Minha filha... minha adorada filhinha! Pobre dela!... A criança tinha crescido. E o

 

desgosto de hoje feria uma verdadeira mulher. Teria a mãe poder suficiente para o suavizar como outrora o fazia?

 

Quando os soluços que convulsionavam o peito juvenil foram acalmando pouco a pouco, quando a mãe compreendeu que os nervos sobreexcitados se distendiam sob a acção benéfica das lágrimas, trouxe a filha para o divã onde tantas vezes velara os sonos febris de Maria Cláudia.

 

Vês tu, minha querida filha disse-lhe com extraordinária meiguice criei-te desde pequenina bem junto de mim, procurando quanto possível subtrair-te e ocultar-te as misérias da vida... as suas decepções... as suas dores inevitáveis. A tua mocidade, nesta tebaida onde procurei construir para ti um ninho inacessível às maldades do mundo, decorreu excepcional e diferente das outras. Hoje pergunto a mim própria se não fiz mal... Não te preparei para a luta e censuro-me por isso...

 

Não fales assim, mãezinha! suplicou Maria Cláudia, fechando com os deditos trémulos os lábios maternais. Aqui, tudo era simples, belo, de uma tranquilidade profunda e serena, imagem do que foi a tua felicidade. Nesse mundo para aonde parti cheia de ilusões, descobri coisas que me horrorizam. Nunca mais lá voltarei!... Prefiro, abrigada por estas paredes queridas, recomeçar a viver como antigamente... a minha vida de rapariga ingénua e ignorante... Não me recuses, mãe querida!...

 

A mãe envolveu o semblante alterado e vincado por umas rugas precoces, num olhar melancólico.

 

Eu não to recuso, meu amor. Bem sabes que tens aqui um refúgio pronto a acolher-te... que, quando partiste, a casa perdeu a sua alegria. Contudo, já hoje não és uma criança... a dor fez de ti uma mulher... é, portanto, como mulher que devo falar-te. Já pensaste bem o que será essa vida solitária que hoje ambicionas?

 

Maria Cláudia ergueu as sobrancelhas e protestou:

 

Solitária!... E tu?

 

Eu nem sempre estarei a teu lado.

 

Oh!

 

A filha pareceu repelir a ideia com um gesto desolado.

 

Tens de te habituar a esse pensamento, minha filha. É a lei inevitável das coisas. De resto, eu não sou companheira que possa preencher as aspirações de um coração ardente e jovem como o teu. Como disseste há pouco, tens vinte anos... Mediste bem a perspectiva de semelhante futuro... dessa sequência interminável de dias sombrios, melancólicos, tristes... sem o calor de uma afeição?... Tiveste a revelação do amor...

 

Maria Cláudia esboçou um movimento de revolta que uma pressão afectuosa da mão de Hameline logo acalmou.

 

Ouve ainda... Do amor, sim, digo bem, e essa revelação seduziu-te, subjugou-te. Quer queiras ou não, nada te fará esquecer o encanto suave dessa vida a dois, cuja perda é para todas nós, viúvas ou traídas, uma ferida que sangra eternamente no mais íntimo da nossa alma...

 

Hoje, tudo isso me causa horror exclamou Maria Cláudia com voz surda porque só agora compreendo bem quanta hipocrisia, quanta duplicidade encerra essa suposta ventura!

 

Porque és talvez intransigente em excesso... porque exiges uma felicidade que não cabe na natureza humana... uma felicidade demasiado perfeita... quase sobrenatural.

 

As pupilas de Maria Cláudia exprimiram o maior assombro.

 

Eu... eu exijo a coisa mais simples do mundo... o que toda a mulher tem direito de ambicionar: um amor sincero, verdadeiro, fiel.

 

O amor mais sincero e verdadeiro, pode em dado momento ter intermitências... falhar...

 

Os homens nunca conseguem ser santos...

 

Nesse caso, renego o amor! exclamou com sombria exaltação.

 

O amor ideal e perfeito não existe neste mundo, minha filha.

 

Maria Cláudia protestou, incrédula.

 

Queres dizer com isso que não há amor sem traições, sem mentira?

 

Não sou tão categórica... Existem, de facto, seres que resistem às tentações, ao enfado, ao tempo... sentimentos que a ausência não consegue enfraquecer, que o ciúme não envenena, mas são tão raros, vês tu, que o mais sensato é contentarmo-nos com os outros... Tanto mais que, com um pouco de indulgência, chegamos a reconstruir uma felicidade que julgávamos perdida para sempre.

 

Maria Cláudia fitou a mãe com censura.

 

Sim comentou amargurada a indulgência é fácil de aconselhar quando se teve a dita de partilhar um desses amores excepcionais e tão raros como afirmaste!... É culpa minha se, à força de viver neste ambiente maravilhoso que foi o da vossa felicidade... depois de ter contemplado, primeiro, ainda em vida do paizinho, com infantil despreocupação; mais tarde com a compreensão de adolescente, a serena, a íntima irradiação do teu rosto, mãezinha, é culpa minha, dize, se depois de ter ambicionado ardentemente um amor como o vosso... eu poderei contentar-me com uma imitação grosseira?

 

Um amor como o nosso!... murmurou a senhora Hameline.

 

Abandonara as mãos de Maria Cláudia e agora com as suas cruzadas nos joelhos e o olhar distante parecia evocar visões misteriosas, cuja recordação lhe velava o rosto pensativo com sombras nostálgicas.

 

Lembras-te ainda do teu pai? inquiriu de repente, cravando as pupilas claras na filha, que a fitava, muito atenta.

 

Eu?... Que pergunta, mãezinha!... É claro que me lembro.

 

Um clarão de orgulho brilhou-lhe nos olhos.

 

Como era belo... elegante! Que rosto atraente, que sorriso encantador e a chama ardente, a cintilar-lhe no olhar!

 

Sim! concordou Hameline, o semblante iluminado como se íntima e súbita irradiação lhe nimbasse a fronte. A doença não lhe roubou essa admirável energia, esse ardor combativo de que não quis abdicar mesmo perante o mal físico, mesmo perante o sofrimento.

 

Falavam as duas com voz idêntica e pensativa, como se o facto de evocarem a recordação do querido ausente as aproximasse de novo como no passado.

 

Lembras-te, mãezinha, quando, nas noites de verão, transportavas a sua cadeira de doente para o jardim... A mão dele não abandonava a tua mão. Lia-te versos como um jovem galã... e com que olhar amoroso seguia todos os teus gestos! Chegava a tal ponto afirmou com um sorriso, o primeiro que lhe descerrava os lábios depois da sua chegada a Fanscouloubre que, muitas vezes, se me afigurava que a minha presença os incomodava... E então retirava-me discretamente para junto do meu cão e da minha boneca... É isto mesmo... O paizinho dava-me a impressão de que te fazia constantemente a corte.

 

Que ideia! exclamou a mãe, algo envergonhada.

 

Corou e essa comoção rejuvenescia-a extraordinariamente. Parecia terem desaparecido de repente as rugas, as fontes amarelecidas, as pálpebras pisadas e até os cabelos brancos... porque nas pupilas, que haviam conservado todo o seu fulgor, continuava a brilhar essa ternura ardente que os anos não tinham conseguido extinguir...

 

Comovida também, Maria Cláudia deixou-se escorregar para uma almofada aos pés do divã e abraçou os joelhos da mãe.

 

Como ficas bonita, mãezinha, quando pensas no papá!... E como o teu amor sabe conservar toda a sua ardente intensidade!

 

Tens razão confessou pensativa. Esse amor perfumou toda a minha existência... E hoje que estou velha, no declinar da vida, persiste ainda como planta vivaz que já não dá flores, mas cuja folhagem não morreu...

 

Maria Cláudia ouvia-a com toda a sua alma. Era a primeira vez que a mãe sua querida confidente abordava com ela esses assuntos íntimos e lhe patenteava o mundo desconhecido que até então conservara como seu domínio exclusivo, onde não permitia incursões. Agitava-a uma excitação febril. Hesitava antes de formular uma pergunta... uma pergunta absurda que lhe queimava os lábios... de súbito, decidiu-se.

 

Mãe... o paizinho foi, é claro... o teu primeiro amor?

 

Os olhos húmidos da mãe brilharam como diamantes.

 

Nunca a imagem de outro homem me ocupou o pensamento declarou com orgulho que lhe punha vibrações na voz um pouco grave.

 

Era natural! suspirou Maria Cláudia.

 

Teria ela sonhado que, em época mais ou menos distante, um outro homem viesse, com o seu amor, dulcificar-lhe a dolorosa amargura que presentemente lhe pungia o coração?...

 

E quando casaste... já o amavas?

 

Esperei cinco anos por ele...

 

Fitou aquele rostozinho ansioso que se erguia para ela.

 

Sabes, no nosso tempo, era hábito prolongarem-se estes noivados. Durante cinco anos, dia a dia, me preparei para o tornar feliz.

 

Era bonito?

 

Encantador... Um pouco frívolo, talvez... sempre com um sorriso despreocupado a entreabrir-lhe os lábios e um lampejo de ironia a brilhar-lhe no olhar... Ambicioso, também... dessa ambição de conquistador que deseja sempre o que não possui... Mas o coração era excelente... e quando supunha ter-me causado um desgosto implorava o seu perdão por forma tão insinuante e meiga!

 

Calculo que esses desgostos nunca foram dos mais graves comentou Maria Cláudia, rindo.

 

Enganas-te. Às vezes... eram.

 

E perdoavas sempre?

 

Se é esse o nosso papel... Ser feliz não é coisa fácil, fica sabendo... e para se obter a felicidade são necessários tantos sacrifícios!

 

Mas por que motivo as mulheres são as únicas a sacrificarem-se? revoltou-se Maria Cláudia.

 

A mãe curvou-se um pouco para ela.

 

Porque nós sabemos amar melhor, minha filha. Mas temos a nossa compensação!... Por nosso intermédio, o amor realiza milagres... embeleza-nos, seduz-nos, perfuma a nossa vida para sempre e, em conclusão, não o parecendo, somos nós as privilegiadas!

 

Maria Cláudia ouvia, boquiaberta, esta extraordinária declaração. Hameline expunha tudo isto com tanta segurança e fitava a filha com um sorriso tão sereno e suave, que ele era como que a prova das suas afirmativas.

 

Mesmo assim, mãezinha, se o pai te tivesse enganado, traído, sem rebuço nem consideração?

 

A senhora Hameline continuava debruçada sobre o rosto da filha, revoltada. As suas pupilas, pareciam confundir-se com as pupilas brilhantes de Maria Cláudia.

 

E quem te assegura que o não fez? Maria Cláudia estremeceu.

 

Tu?... Mas...

 

Quando teu pai partiu para as Colónias a minha saúde não consentiu que o acompanhasse. Precisamente na data de embarcar tive uma doença grave... e fiquei longos meses de cama.

 

Não sabia. Nunca me disseste nada.

 

Há muitas coisas que era preferível ignorares. Hoje, porém, vejo que é necessário dizer-tas, para que tires delas exemplo e lição.

 

A jovem fitou a mãe com inquietação. A sua atitude, subitamente grave, parecia-lhe singular.

 

Quando regressou, decorridos dois anos prosseguiu sem que o seu olhar abandonasse o rosto perturbado da sua interdocutora estava já curada mas não suficientemente forte para suportar, sem perigo, a fadiga da viagem e a mudança do clima. Supus então que meu marido, cuja ausência me torturava, iria pedir transferência para a Metrópole. Podia fazê-lo com facilidade. E não o fez...

 

Porquê? indagou Maria Cláudia em voz baixa.

 

Foi essa a pergunta que fiz também... tanto mais que não gozou a licença até ao fim e voltou a partir com certa precipitação. Tínhamos decidido que eu iria ter com ele logo que estivesse completamente restabelecida. Nas suas cartas, porém, pedia-me sempre que não o fizesse, dando-me uma série de desculpas pouco aceitáveis. Não tardou que soubesse toda a verdade!

 

O paizinho! gemeu Maria Cláudia no terror do que iria ouvir.

 

Hameline velou com as pálpebras o olhar ardente que vira já tanta coisa na vida.

 

As suas mãos procuraram as da filha, que a escutava numa espécie de desvairamento e apertaram-nas com força.

 

Vim a saber que tinha outra mulher...

 

casara, como é uso casar-se nessas paragens, sem formalidades... e... também, que tinha um filho... Um filho!.,. exclamou Cláudia, estupefacta e indignada. Como devias ter sofrido, mãe, e como o odiaste, por certo...

 

Não, lamentei-o... A culpada fora eu... e as circunstâncias... Ele estava longe, sozinho, nessas regiões depressoras... e não era mais do que um homem!

 

E conseguiste perdoar-lhe? balbuciou Maria Cláudia com as faces inundadas de lágrimas.

 

Bem o sabes!... Estivemos quatro anos separados, sem notícias um do outro. Considerava-me definitivamente abandonada, quase viúva, quando um dia me chamou...

 

Teve essa ousadia...

 

A jovem indígena havia morrido... Ele estava doente, com as forças esgotadas... Pedia-me perdão e implorava a minha presença...

 

Trémula, Maria Cláudia uniu as mãos.

 

E tu partiste!...

 

Assim julguei de meu dever retorquiu com simplicidade. Meu marido precisava de mim...

 

Fitaram-se em silêncio, como se o olhar de ambas se tivesse confundido e não pudesse separar-se. Na fisionomia serena de sua mãe podia ler uma ternura e uma compaixão infindas... Na de Maria Cláudia uma emoção intensa e dilacerante. Num grito, precipitou-se nos braços dessa que assim lhe dava uma tão grande lição de generosidade, nobreza e bondade.


Mãezinha!

 

De repente, as pupilas dilataram-se-lhe e fitou Hameline...

 

Mas... e a criança?

 

Suavemente, prendeu nas mãos aquele rosto ardente, pelo qual as lágrimas corriam como um orvalho benéfico e libertador. Uma ternura imensa dulcificou-lhe as feições.

 

A criança, meu amor... a criança eras tu!

 

As roseiras floridas trepavam e enroscavam-se pelas paredes da casita da guarda da linha e nos parapeitos das janelas os junquilhos floresciam em vasos, como estrelas brilhantes cor de ouro.

 

Sentado no banco, exposto a esse sol primaveril que escaldava, André ouviu o som trémulo da campainha.

 

O comboio está a chegar! avisou a guarda, aparecendo entre os umbrais da porta.

 

Era atarracada e rubicunda, com um sorriso desajeitado, pondo a descoberto os dentes desiguais. O avental arregaçado, o carrapito descaído no pescoço largo, as mãos grossas inchadas pelas frieiras, constituía um tipo que se podia classificar de grosseiro.

 

O passageiro único da sua classe que esperava o comboio e desejava tomá-lo na sua rápida paragem, sentiu-se animado por violenta cólera contra essa criatura que vinha, com a sua presença, envenenar o seu sonho e destruir-lhe uma doce recordação.

 

Levantou-se, carrancudo e hostil, e, sem se dignar responder-lhe, aproximou-se da linha.

 

Os olhos ardiam-lhe por terem fixado demoradamente o atalho que se embrenhava sob fresca abóbada de verdura, trepando pela colina até às alturas. Mas, por entre as copadas nogueiras, o caminho conservava-se implacavelmente deserto.

 

Suspirou. Sentiu-se de repente mais velho, cansado, cheio de desânimo.

 

A mão em pala sobre os olhos, observou a linha e as compridas fitas de aço brilhante, que se perdiam entre taludes de um verde-esmeraldino, como pedras preciosas. Ao longe, um penacho de fumo acinzentado subia no azul prateado do firmamento, como enorme e vaporoso balão.

 

Enfim, a respiração ofegante da máquina anunciava a aproximação do comboio. Em breve o viu aparecer como comprida e escura lagarta... Na curva afrouxou o andamento e arquejou como extenuado.

 

Distinguia-se já o maquinista, com o busto inclinado para fora da cabina. Na retaguarda, as carruagens atreladas semelhavam graciosos brinquedos do Natal.

 

Na estação, o comboio parou, expelindo um fumo negro que, por instantes, ensombrou a claridade loira e radiante desse luminoso dia de primavera. O condutor do comboio saltou em terra... e também o fogueiro, enfarruscado e mal barbeado.

 

Apertaram a mão à guarda das cancelas, que ria com um riso um tanto alvar e lhes devolvia os gracejos na sua pronúncia bastante arrevesada.

 

Abriu-se uma portinhola... e uma camponesa desceu, o rosto macilento cingido pelas fitas negras da touca, um cesto de verga no braço e a outra mão atravancada com pesado embrulho.

 

Olhou de revés para André, que subia nesse momento para uma carruagem de primeira classe a única que o comboio trazia e saudou a guarda com um ”Bom-dia, Frásia”, marcando grande consideração.

 

Pouco depois ouvia-se o apito do condutor. Os dois homens retomaram os seus postos. A mulher agitou a bandeirinha vermelha... O pequeno comboio, arquejante já, como se a perspectiva do caminho a vencer o fatigasse de antemão, começou a resfolegar de mansinho... e entrou em movimento lentamente...

 

Foi então que do outro lado da linha, no cimo do atalho que subia para Fonscouloubre, um vulto apressado surgiu.

 

Envergava um casaco azul que punha no horizonte uma grande mancha luminosa... um chapeuzinho escocês... e corria... corria para o comboio, agitando os braços.

 

O coração de André pulsou-lhe desordenadamente. Reconhecera o casaco azul... o gracioso chapéu... e a figurinha esbelta de Maria Cláudia.

 

Num impulso de demente abriu a portinhola e saltou para o cascalho, com o risco de ficar despedaçado. E, sem se preocupar mais com o combóio, precipitou-se para a recém-chegada, de braços abertos, transfigurado pela emoção e pela ventura.

 

Quando Maria Cláudia chegou perto dele, quando iam reunir-se, parou. Estava ainda afogueada pela corrida e o coração palpitava-lhe com tanta força que teve de comprimir o peito com as mãos. As faces revestiam o carminado das rosas e os lábios tremiam-lhe ligeiramente.

 

No entanto, sorria-lhe... com um sorriso hesitante e suave... e pedia-lhe num gesto para esperar... para esperar que ela pudesse falar... que essa emoção que tão profundamente a agitava se desvanecesse um pouco... que desse tempo a que se lhe acalmassem as loucas pulsações do coração.

 

Ficaram por momentos assim, parados em frente um do outro. Ela fitava-o com os seus belos olhos pensativos e que pareciam iluminados por desconhecida cintilação. Muito outra era também a expressão que lhe transparecia nas feições, mais graves, como se a vida tivesse ocultamente e de súbito desempenhado para ela a sua missão de grande educadora.

 

Comprendeu que tinha na sua presença uma mulher completamente diferente dessa que no outono precedente ele arrebatara, cheia de entusiasmo e de ilusões pueris, naquele comboio minúsculo.

 

A mulher agora presente estava talvez mais próxima dele que a outra... e se nos lindos olhos velados de melancolia não lia já a cega admiração que o tornara tão orgulhoso, a fisionomia, em compensação, traduzia profunda ternura e uma indulgência sem limites.

 

Como ele a contemplasse com apaixonado ardor, incapaz de pronunciar palavra, tão profunda era a sua comoção, Maria Cláudia murmurou, velando com os cílios palpitantes o olhar radioso:

 

Vamos perder o comboio...

 

Que me importa o comboio!... Deve ir longe... mas tu estás aqui!

 

Ora, precisamente nesse instante, o apito estridente da máquina cortou o espaço.

 

André voltou-se: o comboiozito estava parado... e o chefe chamava o juvenil casal com gestos frenéticos e desordenados:

 

Vamos! Vamos! Meus pombinhos!...

 

A guarda da linha corria, tão depressa quanto lho permitiam as saias rodadas e o carrapito que se lhe desenrolara pelas costas e cujas madeixas rebeldes compunha com as mãos avermelhadas.

 

Maria Cl... senhora Joranne!... Senhor doutor!... Reparem, estão atrasando a partida do comboio!

 

Maliciosa resolução brilhou nas pupilas do médico.

 

Não, se Deus quiser, desta vez não chegaremos com atraso!... E saberemos aproveitar as lições da vida! murmurou, envolvendo sua mulher num ardente e carinhoso olhar.

 

Como a pressa fizesse Maria Cláudia tropeçar no cascalho da linha, ergueu-a nos braços.

 

Upa!... A caminho!...

 

Transportando o precioso fardo, tão leve para a sua robustez, saltou os carris e correu para o comboio. A porta donde saltara havia pouco conservava-se ainda aberta, acolhedora.

 

Com carinhosa precaução, depôs Maria Cláudia no banco da carruagem.

 

Pronto, minha adorada!... Vamos recomeçar tudo desde o princípio... mas desta vez será a valer! exclamou ofegante.

 

Ela encarou-o com ternura confiante, menos ingénua, porém.

 

Creio que assim será observou, pensativa e desejo-o ardentemente...

 

Mas um solavanco do comboio, que bruscamente reentrara em marcha, interrompeu-a... Projectada para a frente, caiu, um pouco atordoada, sobre o peito do marido. Instintivamente, baixou os olhos.

 

E os lábios apaixonados de André cerraram-lhe as pálpebras num beijo ardente, profundo tão solene como um juramento.

 

 

                                                                  D. H. Lawrence

 

 

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