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UM ASSASSINATO / Anton Tchekhov
UM ASSASSINATO / Anton Tchekhov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM ASSASSINATO

 

Na estação de Progonaia celebravam-se as vésperas. Perante a grande imagem pintada de cores garridas sobre fundo de ouro, agrupavam-se os empregados dos caminhos de ferro, com suas mulheres e filhos, e também os lenhadores e serradores que trabalhavam nas imediações, ao longo da linha. Todos se mantinham silenciosos, fascinados pelo brilho das luzes e pelo ruído da tempestade de neve que, apesar de serem já as vésperas da Anunciação se desencadeara quando já ninguém a esperava. Oficiava o velho sacerdote de Vedeniapino, e os cânticos estavam a cargo do salmista e de Matvei Terekov.

Matvei resplandecia de felicidade; e desapertara o colarinho, no auge do entusiasmo. Cantava com voz de tenor, recitando no mesmo timbre, impregnado de um vigor terno. Na altura de "A Voz do Arcanjo", principiou a agitar a mão como um director de orquestra e, esforçando-se por acompanhar a voz de baixo profundo do sacristão, soltou um complicado trinado. Via-se que isso lhe causava uma satisfação intensa.

Terminadas as vésperas, dispersaram-se todos tranquilamente. Voltaram à penumbra, ao vazio, e àquele silêncio que apenas se nos depara nas estações de caminho de ferro erguidas em pleno campo, ou nos bosques, quando o vento sopra e não deixa ouvir mais nada e quando se sente o vazio em redor e toda a angústia da vida que decorre monotonamente.

Matvei vivia perto da estação, na pousada de um seu primo, mas não se sentia com disposição de regressar a casa. Deixara-se ficar com o cantineiro., por detrás do balcão, conversando a meia voz:

- Tínhamos o nosso coro na fábrica de azulejos. E digo-lhe mais: apesar de constituído por simples operários, cantávamos, na verdade, maravilhosamente. Mandavam-nos com frequência à cidade, e enquanto o vigário Joann oficiava na Igreja da Trindade o coro da diocese cantava à direita e o nosso à esquerda. A única coisa de que se queixavam na cidade era de prolongarmos muito o canto, e de se tornar demasiado demorado. Bem, é verdade que principiávamos às sete horas o hino de Santo André' e o hossana, e acabávamos depois das onze; assim, quando chegávamos à fábrica, passava da meia-noite. Que bem se estava lá! - suspirou Matvei. - Pode-se mesmo dizer muito bem, Serguei Nikanorich. Pelo contrário, aqui, na casa familiar, não existe a mínima alegria. A igreja mais próxima está situada a cinco verstas; com a minha falta de saúde não me é possível frequentá-la. Não têm cantores. Na nossa família não há sossego: só há barulho, blasfémias e sujidade. Comemos todos na mesma malga, como os mujiques, e aparecem baratas na sopa... Deus não me dá saúde, Serguei Nikanorich. Se não fosse isso já me tinha ido embora há muito tempo.

Matvei Terekov não era velho. Tinha apenas quarenta e cinco anos, mas a sua expressão doentia, o rosto cheio de rugas, e a barbicha, branca, rala e transparente, faziam-no aparentar muito mais. Falava com voz débil, cautelosa, e quando tossia levava as mãos ao peito; nesses momentos, notava-se-lhe uma inquietação no olhar, como as pessoas muito apreensivas. Nunca dizia ao certo onde lhe doía, mas gostava de contar detalhadamente como numa ocasião, ao levantar um pesado caixote, sentira uma profunda dor, e se lhe formara uma hérnia que o obrigara a abandonar o trabalho na fábrica de azulejos, e recolher a casa. Mas não sabia explicar o que era uma hérnia.

- Para dizer a verdade não gosto do meu primo - prosseguiu servindo-se de uma chávena de chá. -- É mais velho do que eu, e pode parecer pecado criticá-lo; temo a Deus nosso Senhor, mas não posso com meu primo. É um homem orgulhoso, muito sisudo, com maus modos; tortura a família e criados; e não vai à igreja. No domingo passado pedi-lhe com carinho: "Primo, vamos à missa de Pakomovo", e ele replicou: "Não quero; o padre de Pakomovo joga às cartas." E também não veio hoje aqui, porque, segundo diz, o sacerdote de Vedeniapino fuma e bebe. Não gosta dos padres! Reza ele próprio, em sua casa, a missa, as matinas e as vésperas, servindo-lhe a irmã de sacristão. Começa com o Oremus e ela responde com uma voz muito fina, como uma galinha, "Senhor, tende piedade de nós!...". Um verdadeiro pecado. Digo-lhe todos os dias: "Olha o que estás a fazer, primo. Arrepende-te", mas não me dá ouvidos.

Serguei Nikanorich, o cantineiro, encheu cinco chávenas de chá e levou-as numa bandeja à sala de espera das senhoras. Mal entrara, ouviu-se um grito:

Que maneiras são estas, focinho de porco? Nem sequer sabes servir?

Era a voz do chefe da estação. Seguiu-se um tímido murmúrio e logo outro grito, mal humorado e duro: Fora daqui!

O cantineiro voltou muito perturbado.

- Noutros tempos eu contentava condes e príncipes - murmurou. - Agora diz que não sei servir chá... Repreendeu-me à frente do sacerdote e das senhoras!

Serguei Nikanorich tivera em tempos muito dinheiro, e fora dono da cantina de uma estação de primeira classe, numa capital de província onde se cruzavam duas linhas férreas. Nesses tempos usava fraque e relógio de ouro. Mas a vida começou a correr-lhe mal: investiu todos os seus recursos num serviço de luxo; os criados roubavam-no; e, de mal a pior, passou para outra estação menos importante. Aí fugiu-lhe a mulher levando-lhe todo o dinheiro, e isso obrigou-o a mudar para uma terceira estação ainda de menos categoria, onde já não se serviam pratos quentes. Depois, foi para uma quarta estação. Mudando com frequência e descendo cada vez mais, chegou a Progonaia, onde só se vendia chá, vodka barato e, como aperitivo, ovos cozidos e um pastel em que não se conseguia cravar os dentes e que cheirava a breu, e a que ele próprio chamava, em ar de graça, "pastel musical". Estava completamente calvo, tinha olhos azuis e salientes e usava umas espessas e cómicas patilhas que penteava frequentemente, olhando-se num pequeno espelho. As recordações do passado perseguiam-no constantemente; não conseguia acostumar-se ao pastel musical, à grossaria do chefe da estação e, sobretudo, aos mujiques que regateavam os preços, porque, segundo ele, regatear na cantina era tão indecoroso como numa farmácia. Sentia vergonha da sua pobreza e humilhação, e este sentimento era o ponto dominante da sua vida.

- A Primavera, este ano, vem atrasada - disse Matvei, escutando o assobiar do vento. - E tanto melhor. Não gosto da Primavera. Há muita lama, Serguei Nikanorich. Vem escrito nos livros que quando chega a Primavera cantam os pássaros e o sol aquece. Que tem isso de agradável? O pássaro não é mais do que um pássaro. A mim agrada-me a boa sociedade; ouvir falar as pessoas, conversar sobre assuntos religiosos ou cantar em coro qualquer música bonita; mas os rouxinóis e as flores, que tenham muita saúde!

Principiou novamente a falar na fábrica e no coro, mas o ofendido Serguei Nikanorich não havia maneira de se acalmar, e não parava de encolher os ombros e resmungar. Matvei despediu-se, e dirigiu-se para casa.

Não havia gelo e já escorriam gotas dos telhados, mas a neve caía em farrapos grossos que se enrodilhavam no ar, e as suas nuvens brancas rodopiavam por cima da via férrea. O carvalhal, que se estendia de ambos os lados dos carris, apenas iluminado pela Lua, que se escondia lá no alto atrás das nuvens, deixava ouvir um sibilar agudo e prolongado. As árvores infundem medo quando um forte vendaval as açoita! Matvei caminhava pela estrada, ao longo da linha, protegendo a cara e as mãos, e era empurrado pelo vento. De súbito, apareceu um cavalinho coberto de neve, um trenó resvalou pelas pedras nuas da estrada; e um mujique, com a cabeça tapada e todo branco, fez estalar o seu chicote. Quando Matvei se voltou para olhar, já o trenó e o mujique tinham desaparecido, como se tudo tivesse sido uma visão, e Matvei acelerou o passo, com um vago sentimento de medo.

Chegou à passagem de nível e à humilde casinha do guarda. A barreira estava levantada. Junto a ela tinham-se formado verdadeiras montanhas de neve e as estrigas giravam como bruxas em noite de sábado. Naquele ponto cruzava a linha um velho caminho, importante noutros tempos, e a que continuavam a chamar calçada. Para a direita, perto da passagem de nível e mesmo à beira da estrada, ficava a taberna de Terekov, que antes fora uma pousada. Ali, à noite, brilhava sempre uma luz. Quando Matvei chegou, havia, em todos os quartos, inclusivamente no vestíbulo, um intenso cheiro a incenso. Seu primo Yakov Ivanich continuava a celebrar as vésperas. Num canto do quarto do oratório, onde a cerimónia se realizava, estava uma redoma com velhas imagens, herdadas dos avós, em molduras douradas; e, à direita e à esquerda, havia imagens antigas e modernas, algumas dentro de redomas. Sobre a mesa, coberta com uma toalha que tocava o chão, estavam dispostas uma imagem da Anunciação, uma cruz de cipreste e um incensório. Ardiam as velas de cera. Junto da mesa havia uma estante. Ao passar pelo quarto do oratório, Matvei parou e assomou a cabeça. Yakov Ivanich estava a ler junto da estante. Acompanhava-o nas orações sua irmã Aglaia, uma velha alta e magra, vestida de azul, com um lenço branco na cabeça. Estava também Dashutka, a filha de Yakov Ivanich, jovem de dezoito anos, feia e sardenta, que andava sempre descalça e com o mesmo vestido que usava quando, de tarde, dava de beber ao gado.

- Glória a ti, que nos mostraste o caminho da luz! - entoava Yakov Ivanich em voz cantante, fazendo uma profunda reverência.

Aglaia, com o queixo apoiado nas mãos, acompanhou o cântico com uma voz fina e gritante. Em cima, do tecto, ressoavam também umas vozes confusas que ameaçavam ou anunciavam qualquer coisa aziaga. No segundo andar, como resultado de um incêndio que deflagrara há muito tempo, não vivia ninguém; as janelas estavam pregadas; e o chão, entre as traves, estava coalhado de garrafas vazias. Agora, soprava ali o vento e parecia ouvir-se alguém correr, tropeçando nas traves.

Metade do primeiro andar era destinada à taberna; a outra metade era ocupada pela família Terekov: de modo que, quando na taberna altercavam os viajantes embriagados, ouviam-se nos quartos todas as palavras. Matvei ocupava um quarto junto à cozinha; nele havia um grande forno em que noutros tempos, quando aquilo era pousada, coziam pão todos os dias. No mesmo quarto, atrás do forno, dormia Dashutka, que não tinha quarto só para si. Todas as noites cantavam os grilos e ouvia-se o barulho das ratazanas.

Matvei acendeu uma vela e pôs-se a ler um livro que lhe emprestara o guarda da estação. Entretanto, tinham terminado as rezas, tendo-se ido todos deitar. O mesmo fez Dashutka, que principiou a ressonar acto contínuo, acordando logo a seguir, para dizer bocejando:

- Não devias ter a vela acesa sem necessidade, tio Matvei.

- A vela é minha - replicou ele. - Comprei-a com o meu dinheiro.

Dashutka deu umas voltas na cama e não tardou a adormecer novamente. Matvei continuou a ler ainda um bocado porque não tinha sono e, quando terminou a última página, tirou um lápis do baú e escreveu na primeira: "Eu, Matvei Terekov, li este livro e acho que é dos melhores que tenho lido, pelo que expresso a minha gratidão a Kuzma Nikolaievich Zhukov, suboficial da guarda da Direcção dos Caminhos de Ferro, proprietário deste livro precioso." Significava para ele um dever de cortesia fazer tais anotações nos livros que lhe emprestavam.

 

No dia de Nossa Senhora da Assunção, depois da partida do comboio correio, Matvei tomava chá com limão na cantina, conversando animadamente.

Escutavam-no o cantineiro e o guarda Zhukov.

Devo dizer-lhes - explicava Matvei - que me senti atraído pela religião, desde muito pequeno. Aos doze anos já lia a epístola na igreja, coisa que dava grande alegria a meus pais, fazendo todos os anos uma peregrinação com minha defunta mãe. Enquanto os outros cantavam ou apanhavam caranguejos, eu costumava ficar com ela. Os mais velhos animavam-me, sentindo eu próprio prazer em observar tão bom comportamento. E, sempre que minha mãe me mandava à fábrica, fora das horas de trabalho, era eu o tenor do nosso coro, e não havia para mim maior alegria. Não é preciso dizer que não bebia nem fumava e que tomava banho frequentemente, e esta vida, conforme se sabe, não agrada ao inimigo do género humano. O maldito quis perder-me e tratou de obscurecer o meu entendimento, como faz agora com o meu primo. Primeiro que tudo, fiz voto de observar vigília às segundas-feiras e nunca comer carne. Com o decorrer do tempo, principiei a ser dominado por toda a espécie de fantasias. Na primeira semana da Quaresma, até sábado, conforme ordenaram os santos padres, não se pode comer nada quente, ainda que as pessoas que trabalham e os débeis possam tomar chá; mas eu não tocava em nada até mesmo ao domingo e depois, durante toda a Quaresma, não comia manteiga, e às quartas e sextas fazia jejum integral. Fazia o mesmo nas vigílias menores. Na quaresma de S. Pedro, o pessoal da fábrica costumava tomar sopa de couve com esturjão, mas eu, procurando não ser visto, mastigava um pedaço de pão seco. Cada um tem a sua força, já se sabe, mas eu falo de mim: nos dias de vigília, não me custava nada jejuar, e quanto maior era o meu zelo mais feliz me sentia. Apenas sentia fome, nos primeiros dias do jejum, mas depois acostumava-me, sentindo-me cada vez melhor, e ao fim de uma semana encontrava-me perfeitamente bem. As minhas pernas estavam tão ligeiras que mais me parecia viver nas nuvens do que na Terra. Além do mais, impunha-me toda a espécie de obrigações: levantava-me de noite para fazer reverências, arrastava pesadas pedras de um lugar para o outro, andava descalço na neve e, claro está, usava cilício. Mas, ao fim de algum tempo, quando me ia confessar, pensei: "Este padre é casado, come carne e fuma. Como poderei confessar-me? Que poder tem para me absolver, se é mais pecador do que eu? Eu chego a privar-me da manteiga e ele possivelmente come esturjão." Fui a outro padre, e este, por coincidência, era gordo, usava uma sotaina de seda, que fazia um ruído semelhante às saias das senhoras e cheirava igualmente a tabaco. Fui praticar os meus jejuns para um convento, mas ali o meu coração não se sentia tranquilo; tinha a sensação de que os monges não observavam as regras. Depois disto não havia nenhum serviço religioso que me satisfizesse: num sítio a missa acabava demasiado cedo; noutro, não tinham cantado como deviam; num terceiro, o sacristão era fanhoso... Havia ocasiões, e que o Senhor perdoe este pecador, em que o meu coração estremecia de raiva em pleno templo. Que oração era aquela? Achava que as pessoas não se benziam nem escutavam como era devido; em qualquer lado para que me voltasse, eram bêbados, glutões, fumadores, libertinos, jogadores. Eu era o único que cumpria os mandamentos. O espírito maligno não dormia e, com o decorrer do tempo, agravava aquele estado de coisas. Deixei de cantar no coro e de frequentar a igreja. Julgava-me um justo, e ao verificar a imperfeição da Igreja, desgostei-me; ou seja, à semelhança do anjo caído, tornei-me soberbo no mais alto grau.

"Depois disto quis ter uma igreja só para mim. Aluguei a uma mulher surda um pequeno quarto, nos arredores, perto do cemitério, e converti-o num oratório no género daquele do meu primo, ainda que no meu houvesse candelabros e um verdadeiro incensário. Neste oratório praticava as regras do santo monte de Atos; ou seja, as matinas principiavam, diariamente, à meia-noite e nas festas mais solenes a missa durava dez e até mesmo doze horas. Os frades, segundo as regras, permanecem sentados durante a leitura do Evangelho, mas eu, para me tornar mais agradável a Deus, costumava lê-lo de joelhos. Lia e cantava durante largo tempo, com lágrimas nos olhos e suspirando, erguendo os braços, e assim que terminava a oração ia para a fábrica, sem dormir, e não parava de rezar durante o trabalho. Por fim, principiou a correr um rumor pela cidade: Matvei é santo, Matvei cura os doentes e os loucos. Claro que não curara ninguém, mas é sabido que quando aparece um cisma ou uma falsa doutrina, as mulheres nunca mais nos largam. Acodem como moscas ao mel. Principiaram a perseguir-me casadas e solteironas de todas as espécies: faziam-me vénias, beijavam-me as mãos e afirmavam que eu era um santo. Uma delas chegou a ver-me com a cabeça aureolada. O oratório estava a tornar-se pequeno, pelo que aluguei um quarto mais espaçoso, que se transformou numa verdadeira torre de Babel. O diabo apoderou-se de mim definitivamente e tapou a luz dos meus olhos com a sua peçonha repugnante. Parecíamos todos possessos, Eu lia, e as casadas e solteironas cantavam, e assim, sem comer nem beber, permanecíamos de pé dias inteiros. As mulheres principiavam de repente a tremer como se tivessem febre, e punham-se a gritar umas atrás das outras. Até metia medo! Eu também tremia como um judeu no caldeirão. Nem eu próprio sei a razão, mas as minhas pernas começavam a agitar-se. Era prodigioso: saltava, gesticulando, mesmo contra a minha vontade. A seguir vinham os gritos e a berraria, dançávamos, e corríamos uns atrás dos outros até cairmos exaustos. Assim, num momento de absurda loucura, caí no pecado da luxúria. O guarda deu uma gargalhada, mas ao reparar que ninguém o seguia tornou-se sério, dizendo:

Isso chama-se "molokanismo". Já li algures que no Cáucaso todos o praticavam.

Mas não me fulminou um raio - prosseguiu Matvei, fazendo o sinal da cruz diante da imagem e murmurando uma oração. - Decerto intercedeu por mim, no outro mundo, a minha defunta mãe. Quando na cidade já me consideravam santo, e mesmo senhoras e senhores me procuravam secretamente em busca de consolo, fui despedir-me do nosso amo, Osip Varlamich. Era dia de perdão. Osip Varlamich aferrolhou a porta e ficámos os dois sós. Principiou a fazer-me um sermão. Devo dizer que Osip Varlamich era um homem sem estudos, mas com muitos conhecimentos; todos o respeitavam e temiam, porque era rigoroso e trabalhador, e levava

uma vida exemplar. Foi durante vinte anos presidente do Município, desempenhando muito bem o seu lugar: empedrou a Rua Novo-Moskovskaia e mandou pintar a catedral e as colunas, de cor de malaquita. Pois bem, fechou a porta e principiou: "Já há tempo que queria falar contigo, filho, de umas coisas e doutras... Julgas-te santo? Nada disso, és um apóstata, um malvado herege...", e assim por diante.... Não sou capaz de reproduzir o bem que falou, com que talento, como se estivesse escrito, a ponto de me comover. Falou durante duas horas. As suas palavras tocaram-me o coração, abriram-me os olhos. Acabei por romper num pranto. "Sê - disse-me - uma pessoa como as demais: come, bebe, veste-te e reza como toda a gente; tudo o resto vem do diabo. O teu silício é coisa do demónio, assim como os teus jejuns e o teu oratório. Tudo isso provém do teu orgulho."

"No dia seguinte, que era a primeira segunda-feira da Quaresma, Deus quis que caísse doente. Apareceu-me uma hérnia ao levantar um peso e levaram-me para o hospital. Passei por grandes tormentos e chorei amargamente, sem parar de tremer. Pensava que do hospital ia parar ao Inferno, porque na realidade estive a ponto de morrer. Padeci seis meses no leito de dor, e quando tive alta a primeira coisa que fiz foi acabar com os jejuns e senti-me pessoa outra vez. Quando se despediu, Osip Varlamich insistiu: "Lembra-te, Matvei, que tudo aquilo que sai do normal vem do diabo." E agora como, bebo e rezo como toda a gente... Se, por exemplo, o pope cheira a tabaco ou a vodka, não ouso censurá-lo, porque ele é um homem como qualquer outro. E logo que se diz que na cidade ou numa aldeia apareceu um santo que passa semanas sem comer e impõe as suas regras, compreendo de quem tudo isso é obra. É esta, meus senhores, a história da minha vida. Agora, eu, como fez Osip Varlamich, trato de convencer os meus primos, mas a minha voz clama no deserto. Deus não me concedeu esse dom.

O relato de Matvei não pareceu produzir qualquer efeito. Serguei^ Nikanorich não disse uma palavra e dedicou-se a retirar as sanduíches] do balcão. O guarda referiu-se à fortuna de Yakov Ivanich, o primo de Matvei.

- Terá pelo menos trinta mil rublos - disse.

O guarda Zhukov, ruivo, de cara redonda - quando andava! tremia-lhe a face -, robusto e nédio, costumava, quando não estava| em presença dos seus superiores, refastelar-se na cadeira de pernas cruzadas, e enquanto falava baloiçava-se e assobiava despreocupadamente, ao mesmo tempo que o seu rosto exprimia o contentamento de quem acaba de comer uma boa refeição. Possuía algum dinheirinho, e falava sempre deste assunto como grande conhecedor da matéria. Dedicava-se à corretagem e qualquer pessoa que desejasse vender uma quinta, um cavalo ou um carro usado recorria a ele.

Sim, tem com certeza de parte uns trinta mil rublos - concordou Serguei Nikanorich. O seu avô possuía uma enorme fortuna - disse, dirigindo-se a Matvei. -- Enorme! O seu pai e o seu tio herdaram tudo. Seu pai morreu novo, seu tio foi o herdeiro, e depois, claro, foi tudo para seu primo Yakov Ivanich. Enquanto você andava em peregrinação com sua mãe e cantava na fábrica, aqui não ficaram de braços cruzados.

- A si correspondiam-lhe quinze mil - disse o guarda, baloiçando-se. - A taberna pertence a ambos, quanto ao capital devia ser o mesmo. No seu lugar, tinha levado o caso aos tribunais. Compreende-se. E depois, enquanto as coisas se esclareciam, ter-lhe-ia dado, a sós, uma boa sova...

Ninguém gostava de Yakov Ivanich porque, quando alguém professa crenças fora do comum, desagrada até mesmo àqueles que são indiferentes em matéria religiosa. Além do mais, o guarda invejava-o porque se dedicava igualmente à venda de cavalos e carros em segunda mão.

Se não quer apresentar queixa contra seu primo, é porque você possui também bastante dinheiro - disse o cantineiro a Matvei, lançando-lhe um olhar de inveja. - Quem tem recursos vive satisfeito, mas eu, por exemplo, creio que hei-de rebentar sem nunca ter saído desta miséria...

Matvei tratou de o convencer de que não tinha dinheiro algum, mas Serguei Nikanorich já não o ouvia; afluíam-lhe as recordações do passado e das ofensas que diariamente sofria. A sua cabeça calva começou a transpirar, tornou-se corado, e principiou a pestanejar.

Maldita vida! exclamou furioso, arremessando a sanduíche ao chão.

 

Dizia-se que o albergue fora construído no tempo de Alexandre I por uma viúva que ali se instalara com um filho. Chamava-se Avdotia Terekova. A todos quantos viajavam na mala-posta, principalmente em noites de luar, o pátio sombrio, com o alpendre e o portão sempre fechado, infundia um sentimento de angústia e de vaga inquietação, como se ali vivessem bruxos ou bandidos. E o cocheiro, sempre que passava no largo, voltava a cabeça e incitava os cavalos. Os viajantes ficavam de má vontade, porque os donos se mostravam sempre muito austeros e cobravam muito caro. O pátio estava atravancado até ao Verão. Enormes porcos chafurdavam na lama, e os cavalos que os Terekov negociavam andavam à solta. Por vezes, os cavalos, na sua ânsia de liberdade, fugiam do pátio e lançavam-se em galope desordenado pelo caminho, assustando a quem por ali passava. Por essa altura, havia ali muito movimento e passavam longas caravanas com mercadorias. Davam-se casos como o ocorrido, trinta anos atrás, quando os carreteiros enfurecidos mataram, numa contenda, um comerciante que ia de passagem: existia ainda, a meia versta da casa, a cruz de madeira meio apodrecida. Passavam diligências com as suas campainhas e pesados trens senhoriais. Entre mugidos e nuvens de pó, cruzavam também manadas de vacas e touros.

Quando construíram o caminho de ferro, aquilo era um simples apeadeiro, que dez anos mais tarde se converteu na actual estação de Proganaia. A circulação pelo velho caminho das diligências cessou] quase por completo: apenas se serviam dele os proprietários e os mujiques da comarca e na Primavera e no Outono os ranchos trabalhadores. A pousada transformou*se em taberna. Ardeu o andar de cima, o tecto adquiriu uma cor amarelada, devido à oxigenação da chapa, e o alpendre ruiu, enquanto no pátio continuavam a chafurdar na lama os enormes porcos, rosados e repugnantes. Como noutros tempos, fugia às vezes um cavalo, que, com a cauda encolhida, galopava desabridamente pelo caminho. Na taberna vendiam chá, feno, aveia, farinha e também vodka e cerveja, para beber ao balcão ou levar. As bebidas alcoólicas eram vendidas em contrabando, e nunca era tirada a respectiva licença.

Os Terekov foram sempre muito religiosos, a ponto de serem conhecidos por os "Beatos". Mas, talvez porque viviam isolados, como ursos, afastavam-se das pessoas, guiavam-se em tudo pela sua própria cabeça, mostravam-se propensos à fantasia e às divagações em matéria religiosa, e sustentavam que cada geração tinha a sua própria fé. Avó Avdotia, a que construíra a pousada, pertencia ao velho rito, mas o filho e os dois netos (os pais de Matvei e Yakov iam à igreja ortodoxa, recebiam o clero em sua casa e rezavam diante das novas imagens com a mesma devoção que diante das antigas. O filho, ao chegar à velhice, deixou de comer carne e fez voto de silêncio, vendo em todas as conversas um pecado. Os netos apresentaram a particularidade de entenderem as escrituras à sua maneira, não como toda a gente, mas buscando nelas um sentido oculto e afirmando que cada palavra sagrada devia conter um segredo. Matvei, o bisneto de Avdotia, lutou desde a infância com visões que quase lhe custaram a vida. O outro bisneto, Yakov Ivanich, era ortodoxo, mas depois da morte da mulher deixou de frequentar a igreja e fazia as suas orações em casa. Influenciou sua irmã Aglaia, que não ia à igreja nem deixava ir Dashutka. Dizia-se também de Aglaia que costumava ir na sua juventude a Vedeniapino, onde havia uma seita de flageladores a que ela pertencia secretamente, e esse era o motivo por que usava lenço branco.

Yakov Ivanich era mais velho dez anos do que Matvei. Era um velho bem parecido, alto, barba comprida e grisalha quase até à cintura, e espessas sobrancelhas que lhe davam uma expressão severa e vagamente perversa. Usava um jaquetão comprido de boa fazenda ou uma pelica preta, e gostava de andar sempre bem vestido, tratando cuidadosamente da sua roupa; não descalçava os tamancos, mesmo quando o chão estava enxuto. Não frequentava a igreja porque, segundo ele, o ritual não era cumprido à letra e porque os sacerdotes bebiam vinho fora da missa e fumavam. Lia com Aglaia as Escrituras e cantavam os salmos todos os dias em casa. Em Vedeniapino não liam a Epístola às matinas, e as vésperas não eram celebradas nem sequer por ocasião das grandes festas; em compensação, Yakov Ivanich rezava em casa as orações correspondentes a cada dia, sem saltar uma só linha e lentamente, e nas horas vagas lia em voz alta a vida dos santos. Cingia-se fielmente aos preceitos em todos os aspectos da vida; e assim, se em determinado dia da Quaresma era permitido beber vinho "em recompensa do zelo no trabalho", tomava-o ainda que não sentisse desejos de beber.

Recitava as suas orações, cantava os salmos, incensava a casa e observava fielmente o jejum, não para alcançar favores de Deus, mas para observar a ordem estabelecida. O homem não pode viver sem fé, e a fé deve adquirir uma expressão justa, de ano a ano, dia após dia, segundo determinada ordem, de tal modo que todas as manhãs e todas as tardes Deus seja invocado precisamente com as palavras e os pensamentos que correspondem ao dia e hora. Há que viver e, portanto, rezar como é da vontade de Deus; por isso é necessário cantar e recitar diariamente apenas o que é da sua vontade; quer dizer, segundo o ritual. Assim, o primeiro capítulo segundo S. João só devia ser lido no dia da Páscoa, e desde a Páscoa até à Ascensão não se podia cantar o "Digníssimo". E assim por diante. A consciência desta ordem de coisas e a sua importância proporcionavam a Yakov Ivanich uma profunda satisfação durante as; suas orações. Quando as circunstâncias o obrigavam a alterar aquela; ordem,por exemplo, quando tinha de ir à cidade buscar provisões ou, ao banco, atormentava-se-lhe a consciência e sentia-se infeliz.

O primo Matvei, que chegara inesperadamente da fábrica e se] instalara na taberna como em sua própria casa, principiou a infringir! as regras desde o primeiro dia. Negava-se a participar nas rezas em conjunto, comia e tomava chá a horas indevidas, levantava-se tarde e| às quartas e sextas-feiras tomava chá alegando que se sentia fraco;| quase todos os dias, durante as rezas, entrava no oratório gritando* "Toma cuidado com o que fazes, primo! Arrepende-te, primo!'* Estas palavras faziam perder a cabeça a Yakov Ivanich, e Aglaia, sem se poder conter, principiava a injuriá-lo. Ou então, pela calada da noite, Matvei entrava no oratório dizendo a meia voz: "Primo, a| tuas orações não são gratas a Deus, porque está escrito: reconcilia-ti primeiro com teu irmão e vem então oferecer as tuas dádivas. E tu emprestas dinheiro a juros e vendes vodka. Arrepende-te!"

Nas palavras de Matvei, Yakov não via mais do que o habitual pretexto dos homens fúteis e negligentes que, se falam no amor ao próximo ou em reconciliar-se com o irmão, é apenas para não orar, não jejuar e não ler as Sagradas Escrituras; e se falam com desprezo do lucro e dos juros é porque não têm amor ao trabalho. Porque ser pobre e não economizar é muito mais fácil que ser rico.

Apesar de tudo, sentia-se preocupado e já não conseguia rezar como dantes. Apenas entrava no oratório e abria o livro, perturbava-o o temor de que seu primo viesse incomodá-lo. E efectivamente Matvei não tardava em aparecer para gritar com voz emocionada: "Toma cuidado com o que fazes, primo! Arrepende-te, primo!" A irmã principiava com as suas injúrias e Yakov, igualmente fora de si, gritava: "Sai da minha casa!", a que Matvei replicava: "A casa é de todos."

Yakov recomeçava a leitura e o canto, mas já não conseguia recuperar a calma e, mesmo sem dar por isso, ficava pensativo diante do livro. Apesar de considerar uma estupidez as palavras do primo, começava também ultimamente a cismar que é difícil aos ricos entrar no reino dos céus; que comprara três anos antes, muito barato, um cavalo roubado; que, ainda em vida da mulher, morrera nesta mesma taberna um homem em estado de embriaguez por causa do vodka...

Dormia mal de noite, com um sono muito leve, e ouvia Matvei, que também não podia dormir e não cessava de suspirar, com saudades da sua fábrica de azulejos. E enquanto dava voltas na cama recordava o cavalo roubado, o bêbado e as palavras do Evangelho acerca do camelo.

Parecia que o invadiam as alucinações doutros tempos. E para cúmulo, apesar de já ser fins de Março, nevava todos os dias e o vento soprava no bosque como se fosse Inverno; e parecia que a Primavera não chegava, não chegava nunca mais. O tempo predispunha ao tédio, às desordens, ao ódio, e de noite, quando o vento soprava no telhado, tinha a impressão de que alguém vivia lá em cima, no andar vazio, e as visões principiavam, pouco a pouco, a surgir; e ardia-lhe a cabeça, não podendo conciliar o sono.

 

Na segunda-feira da Semana Santa pela manhã, Matvei".ouviu no seu quarto Dashutka dizer a Aglaia:

-- O tio Matvei assegurou ontem que não é preciso jejuar.

Matvei recordou toda a conversa da véspera com Dashutka e sentiu-se irritado.

- Não mintas, rapariga! - disse com voz plangente, como se estivesse moribundo. - É impossível viver sem jejuar. O próprio Deus jejuou quarenta dias. A única coisa que te disse foi que as pessoas doentes não devem fazê-lo.

- Acredita naquilo que te dizem na fábrica; eles te ensinarão o que se deve fazer - disse em tom de gracejo Aglaia, que estava a esfregar o chão (costumava fazer este trabalho aos dias de semana, o que a punha de mau humor com toda a gente). - Já se sabe como jejuam na fábrica. Tu, pergunta ao teu tio pela víbora, que te conte como ambos bebiam leite nos dias de jejum. Ele gosta de ensinar aos outros, mas esquece, por seu lado, o caso da víbora. Pergunta-lhe a quem deixou o dinheiro.

Matvei ocultava cuidadosamente de todos, como uma úlcera repugnante, que naquele período da sua vida em que velhas e novas acudiam ao oratório para saltar e correr com ele mantivera relações com uma mulher de quem tinha tido um filho. Quando chegou a casa entregou-lhe tudo quanto amealhara na fábrica. Para as despesas da viagem tivera que pedir emprestado ao senhorio; e depoisl restaram-lhe apenas alguns rublos, que reservou para chá e velas. Aí tal mulher comunicou-lhe mais tarde que o filho tinha morrido, perguntava-lhe na carta que destino devia dar ao dinheiro. A carta em questão fora trazida da estação por um operário; Aglaia abrira-a e| lera-a, e por isso recriminava depois Matvei diariamente.

Não é brincadeira: novecentos rublos! - prosseguiu Aglaia. - Aí está, dar novecentos rublos a uma víbora, a uma perdida da fábrica! Oxalá rebentes! perdera o domínio em si e gritava exaltadamente. - Calas-te? A minha vontade é fazer-te em pedaços, inútil! Dar novecentos rublos como se fossem um kopek! Podias tê-los deixado a Dashutka, que é do teu sangue, e não a uma estranha; ou podias tê-los mandado a Belev, para os infelizes órfãos de Maria. Porque não rebentou a tua víbora? Seja mil vezes maldita e malvada! Oxalá não tenha um só dia de felicidade na vida!

Yakov Ivanich chamou-a: era o momento de rezar as horas. Aglaia lavou-se, pôs o lenço" branco e precipitou-se para o oratório a reunir-se ao seu amado irmão, já cheia de compunção. Quando falava com Matvei ou servia chá no albergue aos homens, era uma velha magra, sempre alerta e mal-humorada; mas no oratório a sua cara adquiria uma expressão pura e devota, parecia rejuvenescer, e sentava-se calmamente e até comprimia os beiços num trejeito de humildade.

Yakov Ivanich principiou a ler o livro de horas com a voz tranquila e melancólica que sempre reservava para a Quaresma. Momentos depois parou a fim de prestar atenção ao silêncio que reinava em toda a casa. Recomeçou a leitura com ar de satisfação. Tinha as mãos postas em atitude devota, com os olhos muito abertos, e abanava a cabeça e suspirava constantemente. Mas nesta altura ouviram-se vozes. O guarda e Serguei Nikanorich acabavam de chegar de visita a Matvei. Yakov Ivanich não ousava ler ou cantar quando havia gente estranha em casa, e agora, ao ouvir vozes, prosseguiu a leitura num sussurro e com lentidão. No oratório ouviu-se o cantineiro dizer:

- O tártaro de Schepovo trespassa o seu negócio por mil e quinhentos rublos. Pode pagar-se quinhentos rublos em dinheiro e assinar uma letra para o resto. Oiça, Matvei Vasilich, peço-lhe o favor de me emprestar esses quinhentos rublos. Dar-lhe-ia dois por cento mensalmente.

- Onde quer que vá buscar esse dinheiro? - perguntou Matvei com espanto. - Onde vou buscá-lo?

- Os dois por cento mensais significam para si uma bênção do t-éu explicou o guarda -,e se guardar o seu dinheiro em casa, este será comido pela traça sem proveito nenhum.

Os visitantes partiram e voltou o silêncio. Mas, apenas Yakov Ivanich recomeçara a leitura em voz alta e o canto, ecoou uma voz do outro lado da porta:

- Primo, necessito de um cavalo para ir a Vedeniapino. Era Matvei. Yakov voltou a sentir-se inquieto.

- Qual há-de ser? - perguntou depois de meditar. - O baio levou-o um criado com um porco, e o potro necessito dele para ir a Shuteikino logo que acabe de rezar. .

Primo, porque podes tu dispor dos cavalos e eu não? - perguntou Matvei, irritado.

- Porque vou tratar de negócios, e não passear.

- Os bens são de ambos; portanto os cavalos também. Devias compreender isto, irmão.

Fez-se um silêncio. Yakov, sem- recomeçar as orações, esperava que Matvei se afastasse.

- Primo - insistiu Matvei -, sou um homem doente e não quero a propriedade. Que vá com Deus, dispõe dela. Mas dá-me ao menos uma pequena parte para que possa sustentar-me durante a minha doença. Dá-me essa parte e partirei.

Vakov calou-se. Tinha muito empenho em ver-se livre de Matvei, mas não podia dar-lhe dinheiro porque o tinha todo investido. Além do mais, na linhagem dos Terckov não existia um único exemplo de repartição de bens. Reparti-los significava a ruína.

Yakov continuava calado, à espera que Matvei se fosse embora, e não deixava de fitar a irmã, temendo que esta se intrometesse no assunto e recomeçassem os insultos da manhã. Quando, finalmente Matvei se retirou Yakov retomou a sua leitura, mas já sem prazer algum. As genuflexões provocaram-lhe dor de cabeça e sentia o olhos turvados; causava-lhe tédio a sua própria voz apagada tristonha. Quando um tal estado de depressão se produzia nele, à noite, atribuía-o à falta de sono; mas quando o acometia de dia assustava-se, e então principiava a imaginar que os demónios lhe tinham subido à cabeça e aos ombros.

Terminadas as horas o melhor que pôde, descontente e irritado Yakov Ivanich partiu para Shuteikino. No último Outono tinham estado alguns operários a abrir uma vala perto de Progonaia, tendo feito na taberna uma despesa de dezoito rublos; necessitava encontrar agora em Shuteikino o encarregado da obra a fim dí cobrar esse dinheiro. O degelo e os nevões haviam deteriorado o caminho, que estava escuro e cheio de buracos; nalguns pontos parecia que se ia afundar. A neve dos lados estava abaixo do nível do caminho, e por isso Yakov tinha de caminhar como se andasse na parte mais alta de um estreito terrapleno, sendo muito difícil encostar-se a um lado quando vinha alguém em direcção oposta. O céu estava carregado desde manhã e soprava um vento húmido... Um grande grupo em fila indiana veio ao seu encontro: eram mulheres carregando ladrilhos. Yakov teve que dar passagem, o cavalo enterrou-se na neve até à barriga, o trenó inclinou-se para a direita e ele, para não cair, teve que inclinar-se para a esquerda e assim permaneceu enquanto o comboio de mulheres desfilava lentamente. Entre o sibilar do vento, ouviu os guinchos dos trenós e o resfolgar dos cavalos esquálidos. As mulheres diziam entre si: "É o Beato", e uma delas, olhando o cavalo com comiseração, disse em voz rápida: Parece que vai haver neve até São Jorge. Que tormento!

Yakov sentia-se desconfortável, feito num novelo, e conservava os olhos meio cerrados por causa do vento. À sua frente passavam ora os cavalos, ora os ladrilhos vermelhos. E, talvez porque permanecia numa posição incómoda e lhe doíam as costas, sentiu-se irritado, pareceu-lhe que o seu assunto não era assim tão importante e que podia ter mandado um criado a Shuteikino noutro dia qualquer. De novo, como na noite de insónia anterior, recordou a história do camelo, e em seguida começou a pensar no mujique que lhe vendera um cavalo roubado, e no bêbado, e nas mulheres que traziam os samovares de presente. É evidente que qualquer negociante trata de obter o máximo de lucro, mas Yakov sentiu uma sensação de agonia ao pensar que tinha querido ir mais além do geralmente admitido; e incomodava-o pensar que naquele dia tinha ainda que ler as vésperas. O vento batia-lhe na cara e produzia um zumbido na gola do sobretudo, como se lhe sussurrasse estas mesmas ideias, que trazia do extenso campo branco... Ao olhar este campo, familiar desde a sua infância, Yakov lembrou-se de que essa mesma inquietação e essas mesmas ideias o haviam assaltado nos seus jovens anos, quando tinha visões e a sua fé vacilava.

Sentiu medo de ficar sozinho no campo. Deu a volta e seguiu devagar o comboio de mulheres, enquanto estas riam e comentavam. O Beato regressa a casa.

Em casa,por ser Quaresma, não tinham cozinhado, nem acendido o samovar, pelo que o dia parecia compridíssimo. Yakov Ivanich já há um bom bocado que desatrelara o cavalo, mandara farinha para a estação e, por duas vezes, principiara a ler o saltério, mas restava todavia ainda muito tempo. Aglaia esfregara todos os soalhos e, sem nada que fazer, dedicou-se a arrumar o seu baú, cuja tampa estava toda ornamentada por dentro com etiquetas de garrafas. Matvei, esfomeado e triste, lia ou aproximava-se da estufa holandesa para contemplar os azulejos, que lhe faziam lembrar a fábrica. Dashutka dormia; depois, quando acordou, foi dar de beber aos animais. Ao tirar água do poço partiu-se a corda, e o balde caiu à água. Um criado foi buscar um gancho para o pescar. Dashutka, descalça e com os pés vermelhos como as patas de um ganso, seguiu atrás dele pela neve suja repetindo sem cessar que o poço era mais fundo do que o que podia alcançar o gancho; mas o criado não lhe dava ouvidos, e provavelmente cansado voltou-se e dirigiu-lhe os piores impropérios. Yakov Ivanich, que saía neste momento para o pátio, ouviu Dashutka responder-lhe com uma chusma de grosseiros insultos, que só podia ter ouvido aos bêbados na taberna.

- Que dizes, desavergonhada? - gritou horrorizado. - Que palavras são essas?

Dashutka olhou para o pai, perplexa, com cara de estúpida, sem compreender porque não se podiam pronunciar semelhantes palavras. Yakov Ivanich quis dar-lhe uma lição, mas a rapariga pareceu-lhe tão selvagem e ignorante que, pela primeira vez, percebeu que ela não tinha fé nenhuma. E toda aquela vida passada no bosque, entre a neve, entre bêbados e blasfémias, afigurou-se-lhe tão ignorante e selvagem como a própria moça, e, em vez de a repreender, fez um gesto de desalento e meteu-se no seu quarto.

O guarda e Serguei Nikanorich tinham voltado para falar com Matvei. Yakov Ivanich lembrou-se que estes também não tinham fé alguma, sem que se preocupassem com isso, e a vida pareceu-lhe estranha, insensata e sombria como a de um cão. Sem se dar ao trabalho de pôr o gorro, deu uma volta pelo pátio; em seguida saiu para a estrada e principiou a andar de punhos cerrados. Começou a nevar, o vento agitava-lhe a barba, e Yakov não parava de abanar a cabeça, sentindo esta e os ombros oprimidos por qualquer coisa, como se os diabos lhe tivessem trepado em cima. Afigurou-se-lhe que não era ele quem caminhava, mas uma fera, enorme e terrível, e que se gritasse a sua voz ecoaria como um rugido pelo campo inteiro e pelo bosque, assustando toda a gente.

 

Quando voltou para casa, o guarda tinha partido. O cantineiro, sentado no quarto de Matvei, fazia contas. Aparecia quase diariamente; antes vinha visitar Yakov Ivanich, mas ultimamente era Matvei quem o atraía. Fazia as suas contas com a ajuda da tabuada, suarento e concentrado; ou pedia dinheiro; ou então, acariciando as patilhas, contava, como estando uma vez numa estação de primeira categoria, preparara um ponche para uns oficiais, e como nos banquetes ele mesmo servia a sopa de esturjão. A única coisa que lhe interessava eram as cantinas, e só sabia falar de pratos variados, de serviços e de vinho. Uma vez, quando estava a servir uma chávena de chá a uma jovem senhora que estava a amamentar um filho, disse-lhe, com a intenção de ser agradável:

O peito da mãe é a cantina do filho.

Enquanto fazia as suas contas no quarto de Matvei e lhe pedia dinheiro emprestado, afirmando que em Progonaia a vida.se lhe tornara impossível, ia dizendo repetidas vezes num tom lacrimejante: Para onde havia de ir? Diga-me, para onde havia de ir?

Em seguida Matvei entrou na cozinha e principiou a descascar batatas cozidas que tinha, decerto, guardadas desde a véspera. Tudo estava silencioso e Yakov Ivanich pensou que o cantineiro se fora embora. Chamou Aglaia e, imaginando que não estava ninguém em casa, começou a cantar em voz alta, despreocupado. Cantava e recitava as orações, mas mentalmente pronunciava outras palavras: "Perdoa-me, Senhor! Salva-me, Senhor!", e com uma invocação atrás da outra, não parava de fazer genuflexões como se quisesse torturar-se. Abanava incessantemente a cabeça, de tal maneira que Aglaia o fitava assombrada. Yakov temia que Matvei entrasse, estava mesmo certo que este o faria, sentindo contra ele um rancor que nem as rezas e genuflexões podiam vencer.

Matvei abriu com suavidade a porta e entrou no oratório.

- Que pecado, que pecado! - disse em tom de censura, deixando escapar um suspiro. - Arrepende-te! Olha o que fazes, primo!

Yakov Ivanich, com os punhos cerrados e sem o olhar, para evitar bater-lhe, saiu rapidamente do oratório. Assim como o fizera antes na estrada, sentindo-se uma fera enorme e terrível, atravessou também o vestíbulo para entrar no quarto cinzento, sujo e cheio de fumo, onde os mujiques costumavam tomar chá. Ali, caminhou durante muito tempo de um lado para o outro, com passo tão pesado que a baixela tilintava nos aparadores e as mesas tremiam. Adquirira a clara noção de que a sua fé não o satisfazia e já não podia rezar como dantes. Devia arrepender-se, voltar à razão, viver e orar doutro modo. Mas como consegui-lo? E se tudo isto fosse obra do demónio e não fosse necessário mudar nada?... Qual o caminho a seguir? Que fazer? Quem poderia aconselhá-lo? Que sensação de impotência! Parou e, com a cabeça entre as mãos, tratou de reflectir; mas o facto de Matvei se encontrar ali perto impedia-o de pensar tranquilamente. Dirigiu-se com rapidez para os quartos.

Matvei permanecia sentado na cozinha, diante de uma escudela com batatas que ia comendo. Junto da estufa, uma à frente da outra, Aglaia e Dashutka dobavam uma meada. Entre a estufa e a mesa onde Matvei estava sentado tinham colocado uma tábua de engomar que tinha em cima um ferro frio.

- Prima •- suplicou Matvei -, dá-me um pouco de manteiga. Quem come manteiga num dia como o de hoje? - perguntou

Aglaia.

- Eu, prima, não sou frade, mas um simples paroquiano. E considerando a minha débil saúde, não só me está permitida a manteiga, como também o leite.

Sim, na fábrica permite-se tudo.

Aglaia tirou da cantoneira uma garrafa de azeite e colocou-a diante de Matvei, pousando-a com força sobre a mesa; e sorriu rancorosa, como se estivesse satisfeita por ele ser um tão grande pecador.

-- Já te disse que não podes tomar alimentos com gordura! gritou Yakov.

Aglaia e Dashutka estremeceram. Matvei, fingindo que não ouvia, deitou azeite na escudela e continuou a comer.

Estou-te a dizer que não podes ingerir comidas gordurosas! - repetiu Yakov com voz ainda mais alta, congestionado; e agarrando num ímpeto a escudela, levantou-a acima da cabeça, arrojando-a violentamente ao chão. - Nem uma palavra! - vociferou frenético, apesar de Matvei não ter aberto a boca. Não pronuncies uma só palavra! - repetiu, dando um murro na mesa.

Matvei levantou-se pálido.

Primo - disse sem cessar de mastigar -, primo, olha o que fazes.

Fora da minha casa, já! - gritou Yakov. Repugnava-lhe a cara enrugada de Matvei, a sua voz, as migalhas que se desprendiam do bigode, o simples facto de o ver mastigar. Fora daqui!

Acalma-te, irmão! Deixaste-te dominar pelo orgulho de Satanás!

Cala-te! Yakov bateu com o pé no chão. - Sai daqui, demónio!

Se queres saber - prosseguiu Matvei em voz alta, pois também já começava a enervar-se -, és um apóstata e um herege. Os malditos demónios impedem-te de ver a verdadeira luz; as tuas orações não sào gratas a Deus. Arrepende-te antes que seja tarde! Aquele que morre em pecado não tem salvação! Arrepende-te, primo!

Yakov agarrou-o pelos ombros, afastando-o da mesa. Matvei, ainda mais pálido, assustado e desnorteado, balbuciava: "Que estás a fazer? Que é isto? "; e resistindo, esforçando-se por se libertar de Yakov, agarrou-o instintivamente pela camisa, desapertando-lhe o colarinho. Aglaia, imaginando que ele tentava matar Yakov, deu um grito, empunhou a garrafa do azeite e vibrou, com todas as suas forças, um profundo golpe na fronte do seu odiado primo. Matvei cambaleou, e o seu rosto adquiriu no mesmo instante uma expressão de tranquilidade e indiferença. Yakov, ofegante e excitado, satisfeito por a garrafa, ao bater na cabeça de Matvei, ter produzido um som cavo como se fosse um ser vivo, agarrou-o para evitar que caísse e, repetidas vezes (havia de o recordar nitidamente), chamou a atenção de Aglaia para o ferro de engomar. E quando o sangue lhe escorreu pelas mãos e se ouviu o pranto de Dashutka, quando a tábua de engomar caiu com estrondo e sobre ela escorregou pesadamente o corpo de Matvei, Yakov só então sentiu que a sua ira se desvanecia, e compreendeu o que acabava de suceder.

- Que rebente o patife! - exclamou Aglaia com repugnância, sem largar o ferro de engomar. O lenço branco, salpicado de sangue, deslizara-lhe para os ombros e os seus cabelos cinzentos estavam desgrenhados. - Era o que ele merecia!

Era um quadro horrível. Dashutka, sentada no chão junto da estufa, com a meada nas mãos, soluçava, balançando-se de trás para a frente e repetindo a cada inclinação: "Ai, ai!" Mas nada horrorizava tanto Yakov como as batatas cozidas manchadas de sangue, e que temia pisar. Havia também uma coisa aterradora, que o oprimia como um pesadelo, e representava um perigo maior, ainda que ao princípio não conseguisse entender de que se tratava: era o cantineiro Serguei Nikanorich, que se mantinha no limiar da porta muito pálido e contemplando horrorizado o que sucedera na cozinha. Só quando aquele se voltou e, atravessando o vestíbulo, saiu para o pátio, Yakov compreendeu de quem se tratava e foi atrás dele.

Enquanto limpava as mãos com neve, sem se deter, ia raciocinando. Lembrou-se de que o criado pedira licença para passar a noite em sua casa, na aldeia, e saíra havia um bom bocado; na véspera tinham morto um porco e a neve estava salpicada de grandes manchas avermelhadas, assim como o trenó e até um dos lados do monte de lenha, não sendo portanto de suspeitar que toda a família de Yakov estivesse manchada de sangue. Era monstruoso ocultar a morte, e mais monstruosa lhe parecia ainda a ideia de que acorreria o guarda da estação e daria um assobio sorrindo ironicamente; viriam outros que lhe poriam as algemas assim como a Aglaia, levando-os em ar de triunfo à sede do distrito e daí para a cidade; e pelo caminho todos os apontariam dizendo alegremente: "Vão ali os Beatos!" Era necessário deixar passar o tempo, fosse como fosse, e não sofrer esta vergonha agora, mas mais tarde.

- Posso emprestar-lhe mil rublos... - disse ao acercar-se de Serguei Nikanorich. - Se disser alguma coisa não ganhará nada... e já não é possível ressuscitá-lo.

Não tinha outro remédio senão seguir o cantineiro, que nem sequer voltava a cabeça e cada vez apressava mais o passo. Prosseguiu:

- Posso dar-lhe mil e quinhentos...

Parou ofegante, continuando Serguei Nikanorich sem abrandar o passo, temendo provavelmente que o assassinassem também. Só depois de atravessar a passagem de nível e de ter percorrido metade do caminho da estação, voltou por momentos a cabeça e afrouxou o passo. Na estação e ao longo da via brilhavam já as luzes verdes e encarnadas. O vento acalmara, apesar de continuar a nevar, e o caminho ficara de novo todo branco. Mas, quase ao chegar à estação, Serguei Nikanorich estacou, pensou uns segundos, e voltou atrás com passo decidido.

- Dê-me os mil e quinhentos, Yakov Ivanich - disse a meia voz e tremendo. - De Acordo.

 

Yakov Ivanich guardava parte do seu dinheiro no banco da cidade e o resto tinha-o investido em hipotecas; só guardava em casa o indispensável para as despesas diárias. Ao entrar na cozinha procurou às apalpadelas a caixa metálica dos fósforos e, à luz azulada do enxofre, pôde lançar um olhar a Matvei, que continuava estendido junto à mesa, no mesmo lugar, mas já coberto por um lençol que apenas deixava a descoberto as botas. Os grilos cantavam. Aglaia e Dashutka não estavam nos quartos: encontravam-se atrás do aparador, dobando a meada em silêncio. Yakov Ivanich, alumiando-se com uma palmatória, dirigiu-se ao seu quarto e tirou debaixo da cama a pequena arca em que guardava o dinheiro. Desta vez tinha quatrocentos e vinte rublos em notas pequenas e trinta e cinco em moedas de prata; as notas exalavam um cheiro intenso e desagradável. Depois de meter o dinheiro todo no gorro, Yakov Ivanich atravessou o pátio e saiu para a estrada. Olhou à sua volta, mas o taberneiro tinha desaparecido.

- É, lá! - gritou.

Junto à cancela da passagem de nível surgiu uma silhueta escura que se aproximou com passo indeciso.

- O que anda a fazer de um lado para o outro? - exclamou Yakov irritado ao reconhecer o cantineiro. - Aqui tem: falta qualquer coisa para os quinhentos... Não tinha mais em casa.

- Está bem... Fico-lhe muito agradecido - balbuciou Serguei Nikanorich, agarrando avidamente o dinheiro e guardando-o nos bolsos.

Apesar da escuridão notava-se que não parava de tremer.

Pode ficar tranquilo, Yakov Ivanich... Para que havia de falar? Estive lá mas já me tinha vindo embora. Não sei de nada... - e acrescentou com um suspiro: - Maldita vida!

Permaneceram uns momentos silenciosos, sem se olharem.

- É inacreditável o que aconteceu por nada... - disse o cantineiro, tremendo. - Estava eu ali tão sossegado a fazer as minhas contas, quando se armou uma algazarra... Aproximei-me da porta e você, por um pouco de azeite... Onde está agora?

- Continua na cozinha. Deviam levá-lo para qualquer sítio... Porque esperam?

Yakov acompanhou-o em silêncio até à estação, depois voltou para casa e aparelhou o cavalo a fim de levar Matvei a Limarovo. Pensava em transportar o cadáver para o bosque e deixá-lo aí, no caminho. Diria depois a toda a gente que Matvei fora a Vedeniapino e não voltara; pensariam assim que teria sido morto por qualquer transeunte. Sabia que não enganaria ninguém com isto, mas movimentar-se, fazer qualquer coisa, estar ocupado, não era tão doloroso como deixar-se ficar quieto e esperar. Chamou Dashutka e transportaram ambos o cadáver de Matvei. Aglaia ficou para esfregar a cozinha.

No regresso Yakov e Dashutka encontraram a passagem de nível fechada. Passava nessa altura um longo comboio de mercadorias puxado por duas locomotivas que resfolgavam penosamente, lançando chispas de fagulhas vermelhas. Quando chegou à passagem de nível, ao entrar na estação, a máquina da frente apitou estridentemente:

Apita... - articulou Dashutka.

Quando a última carruagem passou, o guarda foi abrir as cancelas, com todo o seu vagar.

És tu, Yakov Ivanich? - perguntou. - Não'te tinha conhecido, sinal de que vou ficar rico.

Quando chegaram a casa eram horas de dormir. Aglaia e Dashutka deitaram-se juntas num colchão que estenderam no chão da loja. Yakov acomodou-se no balcão. Não rezaram nem acenderam a lamparina. Nenhum dos três pôde conciliar o sono até de madrugada, mas não pronunciaram uma só palavra. Tinham a sensação de que por cima, no andar vazio, havia alguém que não parava de andar de um lado para o outro.

Dois dias depois vieram da cidade o comissário da Polícia do distrito e o juiz de instrução, e principiaram por passar uma busca ao quarto de Matvei e depois por toda a casa. Em primeiro lugar interrogaram Yakov, que declarou que Matvei fora na segunda-feira, ao cair da tarde, a Vedeniapino com a intenção de jejuar e que devia ter sido assassinado no caminho pelos serradores que trabalhavam na linha. Quando o juiz de instrução lhe perguntou por que razão Matvei aparecera na estrada e o seu gorro em casa, sendo inadmissível que tivesse ido a Vedeniapino com a cabeça descoberta, e por que motivo na neve do caminho, junto ao cadáver, não tinham encontrado nem uma gota de sangue, não obstante ter a cabeça esmigalhada e a cara e o peito cobertos de sangue, Yakov perturbou-se e respondeu atrapalhado:

- Não sei que dizer-lhe.

Sucedeu precisamente o que tanto temia: chegou o guarda, um polícia rural pôs-se a fumar no oratório e Aglaia invectivou-o, cobriu-o de insultos que tornou extensivos ao comissário. E, a seguir, quando levaram Yakov e Aglaia para o portão, aglomeraram-se os mujiques, comentando: "Vão levar os Beatos!", e davam a impressão de que estavam contentes.

O guarda declarou categoricamente que Yakov e Aglaia tinham assassinado Matvei para não repartirem os bens, dado que este possuía também o seu pecúlio; se não aparecia era porque Yakov e Aglaia se tinham apoderado dele. Interrogaram igualmente Dashutka. Esta disse que o tio Matvei e a tia Aglaia se disputavam diariamente e quase chegavam a vias de facto por causa do dinheiro; o tio era rico, porque chegara ao extremo de oferecer novecentos rublos à sua amada.

Dashutka ficou sozinha na taberna. Não vinha ninguém tomar chá ou vodka, e ela entretinha-se a fazer a limpeza dos quartos ou passava o tempo comendo mel e rosquilhas. Mas alguns dias mais tarde interrogaram o guarda da passagem de nível e este disse que na segunda-feira, já tarde, vira Yakov e Dashutka que regressavam de Limarovo.

Dashutka foi também detida e levada para a prisão da cidade. Não tardou em saber-se por Aglaia que Serguei Nikanorich presenciara o feito; passaram-lhe uma busca à casa; e encontraram dinheiro em lugar muito pouco apropriado, dentro de uma bota de feltro escondida debaixo do forno. Era tudo em notas pequenas; havia trezentas de um rublo. Serguei Nikanorich assegurava que amealhara o dinheiro na cantina e que havia mais de um ano que não ia à taberna. Mas as testemunhas declararam que ele era pobre e que ultimamente andava com muita falta de recursos. Além do mais, ia todos os dias à taberna, procurando obter um empréstimo de Matvei; o guarda declarou que no citado dia acompanhara duas vezes o cantineiro à taberna para ajudar a obter o empréstimo. Recordaram também que na segunda-feira à tarde Serguei Nikanorich não estava presente à chegada da composição mista, tendo-se ausentado. Foi igualmente detido e conduzido à cidade.

Onze meses depois realizava-se o julgamento.

Yakov Ivanich envelhecera muito, estava magro e falava com voz apagada como um doente. Sentia-se débil e miserável, diminuído, e parecia que os remorsos e as visões, que não o tinham abandonado na prisão, o haviam feito envelhecer e emagrecer a sua alma tanto como o seu corpo. Quando se descobriu que se recusava a frequentar a igreja, o presidente perguntou-lhe: É cismático?

- Não sei - respondeu ele.

Já não tinha fé em nada, e nada sabia nem compreendia. As suas antigas crenças surgiam-lhe agora como repulsivas, insensatas, duvidosas. Aglaia não se conformava com a sua sorte e continuava maldizendo o defunto Matvei, a quem tornava responsável por todas as desditas. A Serguei Nikanorich, que antes usava patilhas, crescera-lhe a barba; na sala de audiência suava e corava, envergonhando-se da sua farda de prisioneiro e de que o tivessem feito sentar no mesmo banco que uma classe de gente ordinária. Justificava-se torpemente e na sua ânsia de demonstrar que durante o último ano não estivera na taberna discutia com todas as testemunhas, fazendo rir o público. Dashutka engordara durante a sua estada na prisão; e não compreendia as perguntas que lhe faziam, limitando-se a dizer que se assustara muito quando mataram o tio Matvei, mas depois passou-lhe tudo.

Foram os quatro culpados de assassinato com fins lucrativos. Yakov foi condenado a vinte anos de trabalhos forçados; Aglaia, a treze anos e seis meses; Serguei Nikanorich, a dez anos; e Dashutka a seis.

 

Ao cair da tarde um barco estrangeiro ancorou na baía de Due, na ilha de Sacalina, para se abastecer de carvão. Pediram ao capitão para esperar até ao dia seguinte de manhã, mas este não quis aguardar nem uma hora, alegando que, se durante a noite o tempo piorasse, corria o risco de partir sem carvão. No estreito de Tartária o tempo pode mudar bruscamente em meia hora, e então as costas de Sacalina tornam-se perigosas; e já começava a refrescar, sendo a ondulação bastante forte.

Da colónia penal de Voievodskaia, o mais miserável e rigoroso de todos os presídios de Sacalina, levaram para as minas um grupo de prisioneiros. Havia que carregar o carvão nas barcaças, que eram depois rebocadas por uma lancha a vapor até ao barco, que se encontrava a mais de meia versta da margem, onde devia principiar o transbordo da carga; era um trabalho árduo quando a barcaça batia contra o barco; e as pessoas a custo conseguiam manter-se de pé por causa da ondulação. Os presidiários, a quem tinham feito levantar dos seus catres, caminhavam sonolentos pela margem, tropeçando na obscuridade e fazendo soar as suas grilhetas. À esquerda apenas se distinguia o escarpado da margem, extraordinariamente sombrio, e à direita, rodeado por uma densa escuridão, gemia o mar, emitindo um prolongado e monótono a...a...a...a... Só quando o guarda acendia o cachimbo, alumiando por momentos o soldado da escolta, com a sua espingarda, e os dois ou três presidiários mais próximos, de feições grosseiras, ou quando aproximava a lanterna da água, se podiam distinguir as cristas brancas das primeiras ondas.

Entre os presidiários encontrava-se Yakov Ivanich, a quem na colónia penal tinham dado o cognome de "Vassoura", por causa da sua comprida barba. Já ninguém o chamava pelo seu nome e patronímico mas somente pelo diminutivo pejorativo de Yashka. Não era bem visto, pois três meses depois de ter chegado, movido por um irreprimível sentimento de nostalgia, sem poder esquecer a sua terra natal, não resistiu à tentação de fugir; mas foi logo capturado, condenado a trabalhos forçados perpétuos e a levar quarenta açoites. Os açoites repetiram-se mais duas vezes, sob a acusação de ter vendido a farda de presidiário, embora em ambas as ocasiões houvesse na verdade sido roubado. A sua nostalgia principiou no preciso momento em que, quando o comboio de presidiários o levava a Odessa, parou de noite em Progonaia. Yakov, com o rosto colado à janela, procurou descobrir a sua casa, sem ter conseguido o seu propósito em virtude da escuridão.

Não havia ninguém com quem pudesse falar da sua terra. Sua irmã Aglaia fora conduzida ao presídio através da Sibéria e Yakov não sabia onde se encontrava. Dashutka estava em Sajalin, mas fora entregue como concubina a um colono de um lugar muito afastado. Não sabia nada dela, ainda que uma vez outro colono que fora parar à colónia penal de Voievodskaia contasse a Yakov que Dashutka já tinha três filhos. Serguei Nikanorich prestava serviço como criado a um funcionário perto dali, em Due, mas não seria fácil verem-se, pois o antigo cantineiro envergonhava-se dos seus conhecimentos entre os presidiários da baixa extracção.

O grupo chegou à mina e tomou posição junto ao embarcadouro. Dizia-se que não se poderia efectuar o carregamento porque o tempo continuava a piorar e o barco estava em risco de zarpar. Viam-se três luzes. Uma delas movia-se: era a lancha a vapor, que se aproximara do barco e regressava, segundo parecia, para comunicar se o trabalho se fazia ou não. Tiritando com o frio outonal e a humidade do mar, embrulhando-se na sua curta e andrajosa pelica, Yakov Ivanich olhava fixamente, sem pestanejar, na direcção onde estava situada a sua aldeia. Desde que convivia no mesmo presídio com pessoas vindas de diferentes pontos russos, ucranianos, tártaros, georgianos, chineses, fineses, ciganos, judeus - e desde que principiara a prestar atenção às suas conversas e observara os seus padecimentos, começara novamente a levantar as suas preces a Deus, chegando à conclusão de que encontrara, por fim, a verdadeira fé, aquela por que tanto ansiavam e tanto tinham procurado, sem a descobrir, todos os seus antepassados, desde a avó Avdotia. Já sabia tudo e descobrira onde está Deus e como havia que servi-lo. Não compreendia, porém, a razão por que a sorte das pessoas é tão diferente, por que motivo esta fé tão simples que Deus concedia graciosamente a uns juntamente com a vida, lhe custara a ele o preço de tantos horrores e castigos que, a julgar pela evidência, se prolongariam até ao dia da sua morte. Isto fazia-lhe tremer os braços e as pernas como se estivesse embriagado. Olhava fixamente as trevas, parecendo-lhe ver, através de milhares de verstas de escuridão, a sua terra natal, a sua província, o seu distrito, Progonaia. Parecia-lhe ver a ignorância, o selvagismo, a insensibilidade e a torpe e bestial indiferença das pessoas que havia deixado ali. As lágrimas toldavam-lhe os olhos, mas continuava olhando ao longe, onde apenas de distinguiam as pálidas luzes do barco, e sentia o coração oprimido e dominado pela nostalgia. Sentia desejos de viver, de voltar para casa, de falar aí da sua nova fé, salvar da perdição nem que fosse uma só alma, e viver sem sofrimentos nem que fosse um só dia.

A lancha chegou e o guarda anunciou em voz alta que o carregamento não se fazia.

- Para trás - ordenou. - Sentido!

Podia ouvir-se a azáfama suscitada no barco pelo levantar da âncora. Começava a soprar um vento forte e áspero. Em cima, na margem escarpada, rangiam as árvores. Avizinhava-se a tempestade.

                                                                                            Anton Tchekhov

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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