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Jack Armstrong sentou na cama hospitalar de segunda mão posta em um dos cantos de seu quarto improvisado. Ele havia sido pai aos 19 anos e seu segundo filho fora concebido quando ele estava de licença do Exército. Quando a guerra no Oriente Médio começou, fazia cinco anos que ele estava nas forças armadas. Servira no Afeganistão e fora condecorado com um Coração Púrpura depois de levar um tiro no braço. Posteriormente esteve no Iraque em várias missões. Em uma delas, recebera um segundo Coração Púrpura após se ferir quando o Humvee em que estava foi destruído pelo inimigo. Tinha ganhado ainda uma Estrela de Bronze por arriscar a vida ao resgatar três soldados da sua unidade. E depois de tudo isso ali estava ele, definhando depressa naquele quartinho com paredes revestidas de madeira barata, em Cleveland, na zona industrial do estado de Ohio. Seu objetivo era simples: aguentar até o Natal. Inalou com força o oxigênio que saía do tubo preso ao nariz. O cilindro instalado em um dos cantos do cômodo ficava regulado no máximo, mas Jack sabia que em breve o aparelho teria um descanso. Antes do dia de Ação de Graças, tinha certeza de que duraria mais um mês. Agora nem sequer acreditava que pudesse aguentar mais um dia. Mas iria aguentar, sim. Tenho que aguentar. No ensino médio, bonito e com 1,88 metro de altura, Jack fora um atleta premiado em três modalidades esportivas, zagueiro do time de futebol americano e sucesso entre as garotas. Apesar disso, desde a primeira vez em que vira Elizabeth O’Toole, os tempos de paquera terminaram para ele. Talvez tivesse sido conquistado antes mesmo de perceber. Sua boca se curvou com um sorriso ao pensar no momento em que conhecera Lizzie.
......
A família dela era da Carolina do Sul e Jack muitas vezes se perguntara por que teriam se mudado para Cleveland, onde não havia mar, o sol aparecia pouco, a neve e o gelo surgiam sempre e não se via sequer uma palmeira. Mais tarde, ficara sabendo que o motivo fora uma mudança de trabalho do pai de Lizzie. Ela havia entrado em sua turma no colégio. Era alta, de cabelos ruivos compridos, olhos de um verde vivo e um rosto já maduro e encantador. Os dois começaram a namorar ainda no ensino médio e desde então nunca mais se separaram, exceto pelo tempo em que Jack lutou nas duas guerras. – Jack. Jack, amor? Lizzie estava agachada à sua frente, segurando uma seringa. Ainda era linda, embora sua beleza tivesse adquirido um viés frágil. Os olhos exibiam olheiras escuras e rugas de preocupação recém-surgidas marcavam seu rosto. A pele já não tinha viço e o corpo andava menos flexível. Quem estava doente era Jack, mas de certa forma ela também estava morrendo. – Está na hora do analgésico. Ele assentiu e ela injetou o remédio em um cateter inserido abaixo da clavícula do marido. Isso permitia que o medicamento caísse diretamente na corrente sanguínea, de modo que o efeito fosse mais rápido. O que fazia muita diferença quando todos os nervos de seu corpo pareciam estar sendo incinerados. Ao terminar, Lizzie sentou-se e abraçou o marido. Sua doença era rara, os médicos tinham dito a eles, raríssima. Quando Jack perguntara sobre suas chances de sobrevivência, os médicos haviam se entreolhado antes que um deles por fim respondesse: – Na verdade, não há nada que possamos fazer. Eu sinto muito. – Faça as coisas que sempre quis e nunca teve oportunidade – aconselhara outro médico. – Eu tenho três filhos para criar e uma hipoteca para pagar – respondera Jack, ainda zonzo com aquela súbita sentença de morte. – Não posso me dar ao luxo de fazer uma lista dos desejos antes de morrer. Depois de um tempo, mesmo temendo a resposta, ele havia feito a pergunta decisiva: – Quanto tempo? – O senhor é jovem e forte – respondeu um dos médicos. – E a doença está nos estágios iniciais. Jack havia sobrevivido ao talibã e à Al-Qaeda. Quem sabe conseguiria aguentar o suficiente para ver a filha mais velha se formar na faculdade? – Quanto tempo, então? – tornara a perguntar. – Seis meses – respondera o médico. – Talvez oito, se o senhor tiver sorte.
Naquele momento Jack não se considerara um cara de sorte. Lembrava-se nitidamente da manhã em que havia começado a se sentir estranho. Uma dor difusa no antebraço, uma pontada na perna direita. Ele trabalhava como empreiteiro, de modo que estava acostumado a dores e desconfortos, mas aquilo não lhe parecia normal: seus membros se cansavam após três horas de esforço físico, em vez de dez. As pontadas de dor se tornaram mais frequentes e ele começou a perder o equilíbrio. Logo não conseguia mais subir a escada carregando ripas de madeira, porque suas costas não permitiam. Depois bastavam dez minutos com o filho mais novo no colo para ele começar a sentir dor. Então veio a queimação nos nervos e suas pernas começaram a parecer as de um velho. E certo dia de manhã ele acordou com a sensação de que os pulmões estavam cheios d’água. Depois disso, o progresso da doença foi rápido, como se o corpo se rendesse diante do que quer que o estivesse invadindo. Seu caçula de 2 anos, Jack Jr., que todos chamavam de Jackie, entrou no quarto e subiu no colo do pai, descansando a cabeça contra o peito encovado. Jackie tinha cabelos compridos e negros feito tinta, encaracolados nas pontas. Seus olhos eram da cor de pão tostado e suas grossas sobrancelhas quase se juntavam no meio. Jackie tinha sido a pequena surpresa do casal. Seus dois outros filhos eram bem mais velhos. Jack passou o braço devagar em volta do filho. Dedinhos rechonchudos agarraram seu antebraço e um hálito morno tocou sua pele. Teve a impressão de que várias agulhas o espetavam, mas simplesmente cerrou os dentes e não se mexeu, pois já não tinha muito tempo para ganhar abraços como aquele. Virou a cabeça devagar e olhou pela janela. A neve caía sem parar. Na época das festas de fim de ano, a Carolina do Sul, com suas palmeiras, perdia feio para Cleveland. Aquilo era uma cena realmente linda de se ver. Jack segurou a mão da mulher. – O Natal – disse ele com a voz chiada. – Vou passar o Natal com vocês. – Promete? – perguntou Lizzie, com a voz já começando a embargar. – Prometo.
Jack acordou, olhou em volta e não soube onde estava. Não sentia nada. Nem sequer tinha certeza de ainda estar respirando. Será que eu morri? Será que é isso? – Pai-pai – disse Jackie, subindo na cama. Jack se virou e viu as bochechas gordinhas e os olhos castanho-claros. Afagou os cabelos do filho. Fios fortes e grossos, como ele próprio tinha antes de a doença também os levar embora. Curioso, Jackie tentou puxar o tubo de oxigênio do nariz do pai, que interceptou a mão do menino e a envolveu com a sua. Lizzie chegou com os remédios e os injetou no cateter. Os alimentos e líquidos ingeridos por Jack eram dados através de uma sonda, porque ele já não conseguia comer nada sólido. – Acabei de deixar as crianças no colégio – disse-lhe Lizzie. – E a Mikki? – perguntou Jack. Lizzie fez uma careta. Michelle faria 16 anos no verão seguinte, mas a rebeldia da filha vinha se mostrando forte desde que ela entrara na adolescência. Mikki gostava de música e de tocar guitarra, usava roupas estranhas, saía às escondidas e nem sequer abria os livros da escola. – Pelo menos ela fez a prova de matemática. Mas acho que seria demais imaginar que ela vá ser aprovada. Em compensação, tirou dez em teoria musical. Jackie desceu da cama e correu até o outro cômodo, provavelmente para buscar algum brinquedo. Jack viu o filho sair do quarto com um misto de orgulho e tristeza. Nunca veria aquele menino se tornar um rapaz. Nem mesmo o veria entrar para o jardim de infância. Mas era assim que as coisas seriam. Depois de receber a notícia de que lhe restava pouco tempo de vida, Jack tinha atravessado um período excepcionalmente longo de negação. Isso se devia em parte ao fato de ele sempre ter sido um sobrevivente. Uma infância difícil e duas guerras não o haviam derrotado, de modo que no início ele tivera certeza de que
poderia vencer a doença, apesar da sentença de morte dos médicos. Porém, à medida que o tempo foi passando e seu corpo continuou a se deteriorar, ficou claro que essa era uma batalha impossível de ganhar. Ele havia chegado a um ponto em que o melhor a fazer era aproveitar ao máximo o tempo que lhe restava. De nada adiantaria ficar batendo a cabeça na parede. Mais importante ainda, queria deixar para os filhos uma lembrança positiva de seus últimos dias. Jack havia concluído que, se tinha que morrer cedo, não esperaria a morte deprimido e deixando todo mundo à sua volta infeliz. Antes de adoecer, Jack tinha conversado muitas vezes com a filha sobre a importância da escola e de tomar as decisões certas na vida, mas nada disso parecia fazer diferença para Mikki. Agora a distância que os separava era nítida. Quando Mikki era pequena, tinha um amor incondicional pelo pai e queria ficar perto dele o tempo todo. Agora ele raramente a via. Jack tinha a impressão de que, para a filha, ele poderia muito bem já ter morrido. – Mikki parece perdida quando está comigo – disse ele devagar. Lizzie sentou ao seu lado e segurou sua mão. – Ela está com medo, amor, está confusa. Parte disso tem a ver com a idade. A maior parte tem a ver com... – Comigo. Jack não conseguiu olhar para Lizzie ao dizer isso. – Nós duas conversamos. Bom, quem falou fui eu, ela não disse muita coisa. Mikki é uma menina inteligente, Jack, mas ainda assim não consegue entender por que isso está acontecendo. E o mecanismo de defesa dela é simplesmente se afastar. Só que essa não é a maneira mais saudável de lidar com as coisas. – Eu entendo – disse Jack. Lizzie olhou para ele: – Por causa do seu pai? Ele assentiu e afagou a mão dela com os dedos, sentindo as lágrimas brotarem ao recordar a morte dolorosa do pai. Puxou o oxigênio várias vezes. – Lizzie, se eu pudesse mudar as coisas... Ela descansou o corpo ao lado do marido, passou os braços em volta de seus ombros e o beijou. Quando falou, sua voz saiu rouca e prestes a falhar: – Jack, está sendo difícil para todo mundo. Só que é mais difícil ainda para você. Você tem sido muito corajoso. Ninguém poderia ter lidado... Ela não conseguiu continuar. Deitou a cabeça ao lado da do marido e começou a
chorar baixinho. Jack a abraçou com a pouca força que lhe restava. – Eu te amo, Lizzie. Aconteça o que acontecer, nada nunca vai mudar isso. Ele agora dormia na cama hospitalar porque, mesmo com ajuda, já não conseguia subir a escada até o quarto do casal. Havia evitado aquilo enquanto pudera, porque, à medida que sua vida se esvaía, ele queria desesperadamente poder sentir o corpo cálido de Lizzie contra o seu. Era mais um pedaço de sua vida a ser arrancado, como se ele estivesse sendo demolido, tijolo por tijolo. E estou mesmo, tijolo por tijolo. Depois de alguns minutos, Lizzie se controlou e secou os olhos. – Cory vai fazer o papel do Grinch na peça de Natal da escola, lembra? – Lembro – confirmou Jack, assentindo. – Vou filmar para você. Cory, de 12 anos, era o filho do meio e o ator da família. – O Grinch! – Jack sorriu ao repetir. Lizzie lhe sorriu de volta e falou: – Tenho uma teleconferência daqui a uma hora. Vou ficar trabalhando na cozinha depois de dar café da manhã para o Jackie. Lizzie passara a trabalhar de casa depois que Jack adoecera. Quando precisava sair, um vizinho ou os pais dela ficavam com ele. Quando Lizzie saiu, Jack se sentou, levou a mão devagar até debaixo do travesseiro e pegou o calendário e a caneta. Olhou para as datas do mês de dezembro, todas marcadas com um xis até o dia 20. Mais de três décadas de vida, o casamento, a paternidade, a defesa da pátria e o trabalho duro, tudo isso havia se reduzido a marcar os poucos dias que ainda lhe restavam. Ele olhou para a rua pela janela. Tinha parado de nevar, mas, segundo o noticiário, outro vendaval estava previsto, com mais gelo do que neve. Alguém bateu à porta e instantes depois Sammy Duvall apareceu no quarto. Era um homem de 60 e poucos anos, cabelos grisalhos compridos e barba bemaparada. Tinha a mesma altura de Jack, mas era mais magro, embora os braços e ombros fossem musculosos devido ao trabalho. Sammy era bem mais forte do que a maioria dos homens com metade da sua idade e mais corajoso do que qualquer pessoa que Jack conhecia. Havia passado vinte anos nas forças armadas, lutado no Vietnã e, depois disso, feito algumas coisas mundo afora sobre as quais nunca falava. Autodidata, carpinteiro e faz-tudo de primeira categoria, Sammy era o motivo pelo qual Jack tinha entrado para o Exército. Depois que Jack deixara o Exército, ele e Sammy tinham aberto uma empresa de construção. Sammy não tinha família e havia adotado os Armstrong. Os olhares dos dois se encontraram, depois Sammy desviou o dele, observando os equipamentos que ajudavam a manter o amigo vivo. Balançou a cabeça de leve e contraiu um pouco a boca. Era o mais perto que podia chegar de mostrar alguma emoção. – Como vai o trabalho? – perguntou Jack, puxando uma golfada de oxigênio. – Tudo bem. Tudo andando, o dinheiro entrando. Jack sabia que, apesar de estar fazendo os serviços sozinho, Sammy vinha entregando todos os pagamentos recebidos a Lizzie. – Pelo menos metade do dinheiro é seu, Sammy. É você quem está fazendo o trabalho. – Eu tenho a pensão do Tio Sam, que é mais do que eu preciso. Se a situação mudar, eu aviso. Sammy morava em uma garagem com vaga para apenas um carro, que fora convertida em apartamento para ele. Ainda dividia o espaço com Sam Jr., seu imenso cão da raça boiadeiro bernês. Levava uma vida simples e não parecia desejar mais que isso. Sammy penteou os cabelos de Jack e fez sua barba. Os amigos então conversaram um pouco. Ou pelo menos Sammy disse algumas palavras e Jack escutou. Passaram o restante do tempo sentados em silêncio. Jack não se importava: o simples fato de estar com Sammy o fazia se sentir melhor. Depois que o amigo foi embora, Jack pegou a caneta e fez um xis no dia 21 de dezembro. Sabia que aquilo era muito otimismo da sua parte, porque na verdade o dia havia acabado de começar. Guardou o calendário e a caneta e se deitou novamente. E foi então que aconteceu. Não conseguia respirar. Com o corpo tomado por espasmos, sentou-se, mas a nova posição só fez piorar as coisas. Podia sentir o coração acelerado, os pulmões oprimidos. O rosto ficou primeiro vermelho e em seguida pálido, quando o oxigênio saiu de seu corpo e nada entrou para substituí-lo. Dia 21 de dezembro, pensou, o meu último. – Pai-pai? Jack ergueu os olhos e viu o filho segurando a ponta do tubo de oxigênio que ficava presa ao cilindro. O menino a ergueu mais alto, como se quisesse entregá-la ao pai. – Jackie! Lizzie apareceu na porta, aterrorizada, arrancou o tubo da mão do filho e correu para tornar a conectá-lo. Instantes depois, o oxigênio fluía pelo tubo e Jack se deixava cair na cama outra vez, respirando com força para tentar encher os pulmões. Lizzie passou correndo pelo filho caçula e chegou ao lado de Jack em um segundo. – Ai, meu Deus, Jack, ai, meu Deus. Lizzie tremia. Ele ergueu a mão para lhe mostrar que estava bem. Ela se virou para o filho: – Isso foi muito feio, Jackie, muito feio mesmo. O menino começou a chorar. Lizzie pegou o filho no colo e o carregou para fora do quarto. O menino lutava para se soltar, olhando para Jack por cima do ombro e estendendo os braços para o pai. Tinha uma expressão de súplica no rosto. – Pai-pai! – berrava. Assim que o choro do filho sumiu ao longe, lágrimas rolaram pelo rosto de Jack. Mas ele então ouviu Lizzie soluçar e imaginou a mulher aos prantos se perguntando o que teria feito para merecer tudo aquilo. Às vezes viver era mais difícil do que morrer, pensou.
No dia seguinte, Jack despertou de um cochilo a tempo de ver a filha abrir a porta da frente com o case da guitarra debaixo do braço. Acenou para chamá-la. Obediente, ela fechou a porta e foi até o quarto do pai. Mikki tinha cabelos ruivos como os da mãe. No entanto, já os havia tingido de várias cores diferentes e Jack não fazia ideia de qual seria o nome do tom atual. Ela estava crescendo: pernas mais compridas e esguias, quadril e seios mais volumosos. Embora sob muitos aspectos já se comportasse como se fosse adulta, seu rosto estava preso naquela fronteira do tempo que tinha deixado de ser o de menina, mas ainda não se transformara no de mulher. Mikki entraria para o ensino médio no ano seguinte. Como é que o tempo havia passado tão depressa? – O que foi, pai? – perguntou ela, sem encará-lo. Jack refletiu sobre o que dizer. Na verdade, os dois não tinham muito sobre o que conversar. Nos últimos tempos, mesmo antes da doença, suas vidas tinham tomado rumos diferentes. Foi culpa minha, pensou ele. Não dela. – Você tirou dez – falou, tentando sorrir, e teve de respirar fundo. – Ah, é. Em teoria musical. Mas foi o único – disse, dando um sorriso torto. – Tenho certeza de que a mamãe também contou isso, não contou? – Mas é um dez. – Obrigada – falou, então encarou o chão. – Olha, pai, eu preciso ir. Estão me esperando. A gente vai ensaiar. Jack sabia que a filha tocava em uma banda, embora no momento não conseguisse lembrar o nome. – Está bem, cuide-se. Ela se virou para sair, então hesitou, os dedos irrequietos na alça do case. A garota olhou para trás, mas ainda sem conseguir encarar o pai. – Só para você saber, quando você estava dormindo eu prendi o tubo do seu oxigênio com fita adesiva para ele não sair mais. Jackie não sabia o que estava
fazendo. Mamãe não precisava ter dado uma bronca tão grande nele. Jack sorveu mais oxigênio e disse: – Obrigado. Parte dele ansiava que a filha o encarasse, mas outra parte não queria ver a pena nos olhos dela. O pai alto e forte reduzido àquilo. Perguntou-se com quem Mikki iria se casar, onde moraria? Seria longe de Cleveland? Será que ela vai visitar o meu túmulo? – Mikki... – Pai, tenho que ir, sério. Já estou atrasada. – Espero que você tenha um ótimo... dia, querida. Ele pensou ter visto os lábios da filha tremerem, mas então ela lhe deu as costas e saiu. Jack espiou pela janela. Viu Mikki entrar no carro de um amigo. Ele nunca se sentira mais distante da filha do que agora. Nessa noite, depois do jantar, Cory representou para o pai o papel do Grinch. Cory era um menino atarracado, embora os pés grandes e os braços e pernas compridos indicassem que ele ficaria alto. Seus cabelos castanhos lembravam os de Jack na mesma idade. Os pais de Lizzie tinham ido jantar com eles e assistir ao espetáculo. Levaram junto a avó de Lizzie, Cecilia. Era uma senhora de quase 90 anos cheia de estilo, que usava um andador e tinha o próprio balão de oxigênio portátil. Fora criada e passara a maior parte da vida na Carolina do Sul. Depois da morte do marido e já com a saúde debilitada, havia se mudado para a casa da filha em Cleveland. Tinha uma risada contagiante e falava de um jeito doce que lembrava a água correndo por cima de pedras lisas. Cecilia brincou dizendo que Jack e ela deveriam abrir uma revendedora de oxigênio, uma vez que já mantinham um estoque tão grande. Ela também estava morrendo, embora não tão depressa quanto Jack. Provavelmente aquele também seria seu último Natal, mas Cecilia tivera uma vida boa e longa e parecia conformada com o destino. Vivia animada, contando histórias sobre sua vida no Sul, os chás e bailes, quando ela fumava e bebia atrás da igreja. Ainda assim, às vezes Jack a surpreendia a encará-lo e podia perceber quanto ela ficava triste por ele. Quando Cory terminou a apresentação, Cecilia se curvou e sussurrou no ouvido de Jack: – É Natal, época dos milagres. Não era a primeira vez que ela dizia isso. No entanto, por algum motivo, o ânimo
de Jack se acendeu por um instante. Mas então se lembrou do prognóstico do médico: “Seis meses; oito, se o senhor tiver sorte.” A ciência sempre parecia derrotar a esperança. Às onze horas, a porta da frente se abriu e Mikki entrou em casa. Jack pensou ter visto a filha relancear os olhos na sua direção, mas ela não entrou no quartinho. Quando Jack tinha saúde, ele e a esposa vigiavam de perto as idas e vindas da filha. Por muitos meses depois de ele adoecer, Lizzie havia mantido essa vigilância. Mas agora mal tinha tempo para tomar banho ou comer algumas colheradas e Mikki se aproveitava disso. Depois de todos já terem ido se deitar, Jack levou a mão embaixo do travesseiro e puxou a caneta. Dessa vez não foi para marcar com um xis as datas do calendário. Pegou um papel e o desdobrou cuidadosamente, estendendo-o em cima de um livro que mantinha ao lado da cama. Começou a escrever. Levou muito tempo, no mínimo uma hora, para preencher menos de uma página. Os pensamentos eram claros, mas, como ele estava fraco, a letra saiu ruim. Dali a algum tempo, haveria sete cartas como aquela. Uma para cada dia de sua última semana de vida, a data posta com todo o esmero no alto da página – ou com o máximo de esmero de que a mão trêmula de Jack era capaz. Todas as cartas começavam com “Querida Lizzie” e terminavam dizendo “Com amor, Jack” . No corpo do texto, ele dava o melhor de si para transmitir à mulher o que sentia por ela. E para lhe dizer que, mesmo quando já não estivesse vivo, continuaria presente ao lado dela. Jack considerava aqueles textos a coisa mais importante que faria na vida e se esforçava para que cada palavra fosse a mais adequada possível. Ao terminar, punha a carta dentro de um envelope, marcava-o com um número e guardava na mesa de cabeceira ao lado da cama. Iria escrever a sétima e última carta na véspera de Natal, depois de todos já terem ido dormir. Jack virou a cabeça e olhou pela janela. Mesmo no escuro, pôde ver a neve que caía com força. O tempo que lhe restava era valioso, mas não havia muito que Jack pudesse fazer com ele. Embora não tivesse cometido nenhum crime, agora conhecia a sensação de ser um condenado.
Jack marcou com um xis o dia 24 de dezembro. Restava-lhe apenas uma carta a escrever. Esta seria guardada na gaveta com o número 7 anotado no envelope. Esperava que suas palavras trouxessem algum alento a Lizzie depois que ele se fosse, como tinham trazido a ele. As cartas o haviam feito se concentrar no que realmente importava na vida. A sogra de Jack, Bonnie, tinha ficado para lhe fazer companhia enquanto o restante da família ia ver Cory na peça do colégio. Lizzie tivera de insistir para que Mikki fosse também. Bonnie havia preparado uma xícara de chá e se acomodado para ler um livro, enquanto Jack, sentado em uma cadeira junto à janela, esperava a van chegar com sua família. Sammy passou para visitá-lo. Bateu com as botas no chão do lado de fora para soltar a neve dos sapatos e, já dentro de casa, puxou seu gorro de lã e liberou os cabelos desgrenhados. Sentou-se ao lado de Jack e lhe entregou um presente. Ao abri-lo, Jack ergueu os olhos, surpreso. Eram cinco ingressos da Disneylândia, válidos por um ano. Sammy segurou o amigo pelo ombro: – Quero que você e sua família façam essa viagem. Jack olhou para o outro lado e viu Bonnie balançar a cabeça, em um gesto sutil de reprovação. Bonnie O’Toole não era mulher de acreditar em milagres. Mas Jack conhecia bem o amigo e sabia que Sammy acreditava mesmo que ele usaria aqueles ingressos. Deu uns tapinhas no braço de Sammy, sorriu e assentiu com a cabeça. Depois que Sammy foi embora, Jack ficou um tempo observando os ingressos. A confiança do amigo o tocava, mas Jack sabia que seu fim estava próximo. Havia lutado quanto podia. Não queria deixar a família, mas também não podia viver daquele jeito. Desviou os pensamentos para a última carta que escreveria. Quando houvesse concluído suas palavras e o papel estivesse seguro dentro do envelope, poderia morrer em paz. Era um marco pequeno, mas importante. No entanto, iria
esperar o Natal passar, os presentes serem abertos e um novo dia nascer. Era reconfortante saber que ainda tinha algum controle sobre o próprio destino, mesmo que isso se resumisse à hora exata da sua morte. Viu através da janela a luz dos faróis da van que chegava. Bonnie foi abrir a porta da frente e Jack ficou olhando preocupado enquanto os filhos desciam do carro. O pai de Lizzie os conduziu do carro até a casa, carregando Jackie no colo porque o chão estava muito escorregadio. Ainda nevava, embora o último boletim meteorológico tivesse avisado que as temperaturas continuariam estáveis e haveria mais gelo do que neve – o que aumentava os riscos de sair de carro. Ele fixou os olhos em Lizzie enquanto ela fechava a porta da van e depois se virava não em direção à casa, mas para o outro lado. Jack não tinha reparado na pessoa que se aproximava dela porque tinha a atenção fixa na esposa. O homem então entrou em foco: era Bill Miller. Os dois haviam estudado juntos. Bill era um dos bloqueadores que defendiam Jack quando ele era zagueiro. Tinha ido ao casamento deles. Era solteiro, bem de vida e trabalhava com instalações hidráulicas. Ao ver Bill chegar perto de sua mulher, Jack pressionou o rosto contra o vidro. Lizzie pôs a bolsa no ombro e afastou os cabelos do rosto. Estavam tão próximos que Jack não conseguia enxergar um raio de luz entre os dois. Seu hálito embaçava o vidro. Ele viu Bill se aproximar de Lizzie. Viu a mulher se erguer. E então Bill cambaleou para trás quando Lizzie lhe deu um tapa no rosto. Embora estivesse fraco, Jack deu um pulo na cadeira como se quisesse sair para defendê-la. Mas não havia necessidade. Bill Miller se afastou de volta para o lugar de onde viera enquanto Lizzie lhe dava as costas e marchava em direção à casa. No minuto seguinte, ele ouviu a mulher entrar e bater a neve das botas. Lizzie adentrou o quartinho, tirando primeiro o cachecol e depois esfregando as mãos uma na outra por causa do frio. Seu rosto estava vermelho e ela não olhou para o marido. – Está na hora dos presentes. Aí mamãe e papai vão embora. Eles voltam amanhã, tudo bem, meu amor? Vai ser um dia ótimo. – Como está a sua mão? Ela o encarou. – O quê? Jack apontou para a janela: – Acho que Bill tem sorte de ainda estar consciente.
– Ele também estava bêbado, senão acho que não teria tentado uma coisa dessas. Idiota. Jack ia dizer algo, mas desistiu e olhou para outro canto. Lizzie aproveitou a deixa e foi se sentar ao seu lado. – Jack, você não está achando que Bill e eu... Ele segurou sua mão. – Claro que não. Deixe de ser maluca – falou, dando-lhe um beijo no rosto. – Então o que foi? Você está incomodado com alguma coisa. – Você é jovem e tem três filhos. – Isso eu já sabia. Ela tentou dar um sorriso, que se apagou ao ver a expressão ansiosa no rosto do marido. – Você precisa de alguém na sua vida – refletiu ele. – Não quero falar sobre isso. Ela tentou se levantar, mas ele a segurou. – Lizzie, olhe para mim. Olhe para mim. Ela se virou de frente para ele. Lágrimas cintilavam em seus olhos. – Você vai encontrar outra pessoa. – Não. – Vai, sim. – A minha vida é completa. Não tenho espaço para... – Tem, sim. – A gente precisa mesmo falar sobre isso agora? É véspera de Natal. – Lizzie, não posso ficar escolhendo muito o momento certo – disse ele, um pouco ofegante. Ela corou. – Não foi isso que eu quis dizer. Eu... Você parece melhor hoje. Quem sabe... Os médicos... – Não, Lizzie. Não – disse Jack com firmeza. – Isso não vai acontecer. A gente já passou desse estágio, amor. Com os olhos cravados na mulher, ele puxou um pouco de oxigênio. Ela levou uma das mãos aos olhos. – Se eu ficar pensando nessas coisas... Isso quer dizer que... Eu não quero... Você pode... Ela desistiu de falar e abraçou o marido.
– Vai dar tudo certo. Vá com calma, só isso. E seja feliz. Jack fez com que Lizzie olhasse para ele e enxugou as lágrimas dos olhos da esposa. Sorveu uma grande lufada de oxigênio e conseguiu esboçar um sorriso. – E, pelo amor de Deus, não vá escolher o Bill. Ela riu. E então, enquanto ele a abraçava, o riso se transformou em um soluço. Instantes depois, quando eles se afastaram um do outro, Lizzie limpou o nariz com um lenço de papel e disse: – Na verdade, eu estava pensando no próximo verão. Queria conversar com você sobre isso. Jack se animou pelo fato de ela ainda querer saber sua opinião. – O que tem o verão? – Você vai achar besteira. – Pode falar. – Andei pensando em levar as crianças ao Palácio. – O Palácio? Você não vai lá desde... – Eu sei. Eu sei. Mas acho que chegou a hora. Pelo que eu soube, a casa está em péssimo estado. Sei que precisa de muita obra. Mas só por um verão acho que deve dar. – Eu sei como foi difícil para você. Ela levou a mão ao bolso e sacou uma foto, que mostrou para Jack. – Fazia anos que eu não olhava essa foto. Lembra-se dela? Era uma foto do casal O’Toole quando seus filhos eram pequenos. – Essa ao seu lado é Tillie, sua irmã gêmea. – Mamãe fala que nunca conseguia distinguir uma da outra. Jack teve que se recostar no travesseiro e puxar várias lufadas de ar do tubo enquanto Lizzie aguardava, paciente. – Ela morreu com 5 anos, não foi? – perguntou ele por fim. – Quase 6. De meningite. Os médicos não puderam fazer nada. Ela relanceou os olhos rapidamente para o marido, depois olhou para o outro lado. A frase que não ousou dizer em voz alta poderia ter sido: Como no seu caso. – Eu me lembro de quando meus pais me disseram que Tillie tinha ido para o céu – comentou Lizzie, sorrindo enquanto duas lágrimas escorriam por sua face. – Tem um velho farol no terreno da casa. Era tão lindo! – Você já me contou alguma coisa a respeito. A sua avó... o Palácio é dela, não é?
– É. Pensei em perguntar a ela se a gente podia ir passar o próximo verão lá. – O casal O’Toole, trocar a fria Cleveland pelo mar ensolarado? Ele tossiu várias vezes e Lizzie foi ajustar o nível do oxigênio. Jack conseguiu respirar melhor. – Bom, eu acho que eles foram embora do Palácio por minha causa – disse ela. – Como assim? – Nunca contei isso a você antes, talvez eu mesma tenha esquecido por um tempo, mas tenho pensado na Tillie ultimamente. Sua voz falhou. – Lizzie, por favor, continue. Ela se virou para encará-lo. – Quando meus pais me disseram que minha irmã tinha ido para o céu, eu... eu quis encontrar a Tillie. Não entendia direito que ela havia morrido. Sabia que o céu ficava lá em cima. Então eu comecei, bom, comecei a procurar no céu para poder encontrá-la. – Você era uma criança. – Eu subia no farol. Na época, ele ainda funcionava. Apontava a luz para o alto e ficava vasculhando o céu à procura da Tillie. Ela parou de falar e soltou um pequeno soluço. – Mas nunca encontrei. Jack a abraçou. – Tudo bem, Lizzie, está tudo bem – disse ele com a voz suave. Ela enxugou os olhos na camisa do marido e falou: – Acho que isso virou uma espécie de obsessão. Não sei por quê. Mas cada dia que passava sem encontrar minha irmã era uma dor insuportável para mim. Aí, quando eu fiquei mais velha, meus pais tentaram me explicar que Tillie tinha morrido. Bom, não adiantou muito. Ela fez uma pausa. – Não acredito que nunca lhe contei isso. Mas eu acho que sentia um pouco de vergonha. A angústia da esposa o estava afetando. Ele passou vários segundos respirando fundo antes de dizer: – Você perdeu uma irmã gêmea. Era só uma criança. – Quando nossa família se mudou para Ohio, eu já sabia que nunca iria encontrar Tillie olhando para o céu. Sabia que ela estava morta. E o farol também já tinha
deixado de funcionar. Mas acho que meus pais, principalmente minha mãe, queriam me afastar dali. Ela não achava que aquilo estivesse me fazendo bem. Mas era só... uma bobagem. – Era o que você estava sentindo, Lizzie. – Eu sei. É por isso que pensei em voltar lá. Para ver a casa de novo. Mostrar para as crianças o lugar onde eu fui criada. Ela olhou para o marido. – É uma ótima ideia – disse Jack com um arquejo. Ela afagou seu ombro. – Talvez você goste, também. Poderia consertar aquilo lá. Quem sabe até fazer o farol voltar a funcionar? Era evidente que ela estava tentando a todo custo se agarrar à crença de que aquilo poderia mesmo acontecer. Jack ensaiou um sorriso. – É – respondeu ele. Apesar das palavras cheias de esperança, a expressão no rosto de ambos era clara: Jack jamais chegaria a ver o Palácio.
Mais tarde naquela mesma noite, o sogro ajudou Jack a se sentar em uma cadeira de rodas e o empurrou até a sala, onde estava montada a pequena árvore de Natal. Era feita de um material prateado brilhante, com enfeites azuis e vermelhos. Jack costumava arrumar uma árvore de verdade para o Natal, mas naquele ano não fora possível. As crianças tomaram chocolate quente e fizeram um lanche. Mikki chegou até a tocar algumas cantigas natalinas na guitarra, embora aparentemente morrendo de vergonha. Cory contou ao pai sobre a peça e Lizzie ficou de um lado para o outro cuidando para que todos estivessem bem-servidos. Então pôs a filmagem da peça do filho para Jack ver. Por fim, seus sogros se prepararam para partir. O gelo estava se acumulando na estrada e eles queriam chegar em casa logo. Antes de sair, o pai de Lizzie ajudou Jack a voltar para a cama. Na porta da frente, Lizzie deu um abraço na mãe e no pai. Jack ouviu Bonnie dizer à filha para ser forte, porque depois da tempestade vinha sempre a bonança. – O que mais importa são as crianças – disse o pai de Lizzie. – E nós sempre vamos estar ao seu lado. Então Jack ouviu Lizzie dizer: – Ando pensando em falar com Cee. Ela estava se referindo à avó, Cecilia. – Sobre o quê? – perguntou Bonnie depressa, com um tom desconfiado. – Pensei em levar as crianças para o Palácio no próximo verão, talvez para passar as férias. Queria ter certeza de que Cee não se importaria. Houve alguns instantes de silêncio, então Bonnie falou: – O Palácio! Lizzie, você sabe... – Mãe, não comece. – Você não precisa disso. Principalmente agora. É doloroso demais. – Já faz tanto tempo... – disse Lizzie baixinho. – Agora é diferente. Está tudo bem.
Eu estou bem. Na verdade, já estou bem há muito tempo e você teria percebido isso se tivesse prestado atenção. – Nunca vai fazer tempo suficiente – disparou sua mãe em resposta. – Não vamos tocar nesse assunto hoje. Hoje não – decidiu Lizzie. Depois que os sogros foram embora, Jack escutou os passos da mulher vindo na direção de seu quarto. Lizzie apareceu na soleira da porta: – Foi uma ótima véspera de Natal. Ele meneou a cabeça em silêncio, sem deixar de encará-la um instante sequer. As batidas do relógio ao lado da cama latejavam com violência dentro de sua cabeça. – Não deixe que ela convença você a não ir ao Palácio, Lizzie. Seja firme. – Minha mãe às vezes é um pouco... – Eu sei. Mas você me promete que vai? Ela assentiu e lhe deu um sorriso. – Tudo bem, prometo. Quer mais alguma coisa? – perguntou. Jack olhou para o relógio e apontou para o cateter abaixo da clavícula, por onde eram administrados os analgésicos. – Ai, meu Deus. Seus remédios! Ela começou a tomar a direção do pequeno armário de canto onde guardava a medicação. Mas então estacou, parecendo tomada pelo pânico. – Esqueci de ir à farmácia hoje. Com a peça e... Esqueci de buscar os remédios – explicou, então verificou o relógio: – Ainda dá tempo. Vou lá buscar agora. – Não precisa. Posso ficar sem os remédios por um dia ou dois. – Vai levar só uns minutos. Volto daqui a pouquinho. E aí vamos ficar só você e eu. Quero conversar mais sobre o verão. – Lizzie, não precisa... Mas a esposa já tinha saído. A porta da frente bateu. Jack ouviu o barulho do motor sendo ligado e depois o do carro saindo depressa pela rua. Mais tarde, Jack despertou confuso. Virou-se devagar e viu Mikki cochilando na cadeira ao lado da sua cama. A filha devia ter descido enquanto ele dormia. Olhou pela janela. Fachos de luz passaram chispando pela casa. Por alguns instantes, ocorreu-lhe a ideia absurda de que o Papai Noel tinha acabado de chegar. Tentou sentar-se, estava ouvindo barulhos estranhos. Barulhos no telhado. Serão as renas? O que estaria acontecendo? Tornou a ouvir os barulhos. Só então percebeu que não vinham do telhado. Alguém estava batendo na porta da frente.
– Mãe? Pai? Era a voz de Cory aproximando-se. Sua cabeça apareceu na porta do quartinho. O menino estava usando uma cueca samba-canção e uma camiseta e parecia nervoso. – Tem alguém na porta – falou. A essa altura, Mikki já havia acordado. Ela se espreguiçou e viu o irmão ali em pé. – Tem alguém na porta da frente – repetiu Cory. Mikki olhou para o pai, que olhava para fora, para as luzes que giravam. Parecia que um disco voador havia aterrissado no seu jardim. Em Cleveland? Devia estar tendo uma alucinação. Porém, quando se virou para Mikki, ficou claro que a filha também via as luzes. Jack ergueu uma das mãos, apontou para a porta da frente e meneou a cabeça para a filha. Com um ar assustado, Mikki foi depressa atender a porta. Deparou com um policial alto, de arma na cintura. Ele parecia estar com frio, cansado e pouco à vontade. Principalmente pouco à vontade. – Seu pai está em casa? – perguntou ele a Mikki. A garota deu um passo para o lado e apontou para o quartinho de Jack. O homem bateu as botas no chão para tirar a neve e entrou. Ele foi até o lugar para o qual Mikki apontara, viu Jack na cama todo entubado e murmurou algo entre os dentes. Então olhou para Mikki e Cory. – Ele entende o que eu digo? Quer dizer, ele está muito doente? – Ele está doente, mas entende – respondeu Mikki. O policial se aproximou da cama. Jack se apoiou nos cotovelos. Estava arquejante. Sua aflição era tanta que os pulmões murchos exigiam uma quantidade de ar maior do que o cilindro de oxigênio era capaz de fornecer. O policial engoliu em seco. – Sr. Armstrong? O policial fez uma pausa e Jack nada disse, apenas ficou olhando para ele. – Lamento informar que sua esposa sofreu um acidente.
Lizzie havia avançado um sinal vermelho e fora atingida por um limpa-neve. Tinha morrido na hora. Agora, sentado em uma cadeira de rodas, com o tronco amarrado para lhe dar sustentação, Jack encarava o caixão da esposa. Mikki e Cory estavam sentados ao seu lado. Jackie, pequeno demais para ir ao enterro da própria mãe, tinha ficado com uma vizinha. O céu estava tomado por nuvens e fazia frio. O vento penetrava o mais grosso dos casacos. As estradas continuavam traiçoeiras, cobertas de gelo. A família tinha sido levada ao cemitério no carro da funerária. Fred, sogro de Jack, seguira na frente, ao lado do motorista, enquanto ele e os filhos se espremeram no banco de trás junto com Bonnie. A mulher mal havia pronunciado uma palavra desde que soubera da morte da filha. O sermão do padre foi breve, talvez por ele entender que os idosos ali presentes estavam desconfortáveis com tanto frio. Ministrou a comunhão às crianças e a Jack, que quase engasgou com a hóstia. Por ironia, aquele era o primeiro alimento sólido que ele ingeria em muitos meses. No enterro da minha mulher. Jack olhou para Mikki. A filha tinha prendido os cabelos para trás e usava um vestido preto abaixo dos joelhos. Encarava o caixão com o olhar vazio. Cory não havia fitado o ataúde uma única vez sequer. No final da cerimônia, alguém levou a cadeira de Jack até o caixão. Ele tocou a madeira com uma das mãos, balbuciou algumas palavras e se recostou na cadeira de rodas, desnorteado. Havia ensaiado aquela cena em sua mente centenas de vezes. Só que era sempre ele quem estava no caixão, enquanto Lizzie se despedia do lado de fora. Nada naquela situação parecia certo. O mundo estava de cabeça para baixo. – Daqui a pouco vou estar com você, Lizzie – falou, com a voz embargada. As palavras lhe soaram ocas, forçadas, mas ele não conseguiu pensar em mais
nada para dizer. Quando começou a desabar, a mão forte de alguém o segurou. – Está tudo bem, Jack. Vamos levá-lo para o carro agora. Ele ergueu os olhos e viu Sammy Duvall. Sammy o conduziu até o carro da funerária em tempo recorde. Antes de fechar a porta, pousou a mão no ombro do amigo em um gesto reconfortante: – Pode contar comigo, Jack. O carro os levou de volta para casa. A ausência de Lizzie era uma ferida aberta, uma dor que nenhum bálsamo seria capaz de aliviar. Jackie foi trazido pela vizinha e amigos da família começaram a chegar com travessas de comida. As pessoas conversavam em voz baixa. Mais de uma vez Jack surpreendeu alguém olhando para ele e sem dúvida pensando: Meu Deus, e agora? Ele próprio estava pensando o mesmo: E agora? Duas horas mais tarde, só restavam na casa Jack, os filhos e os sogros. As três crianças logo se recolheram. Minutos depois, Jack ouviu o som da guitarra vindo do quarto de Mikki: melodias curtas e tristes. Cory e Jackie dividiam o mesmo quarto, mas nenhum ruído vinha de lá. Jack imaginou o filho mais velho soluçando baixinho enquanto Jackie tentava consolar o irmão, mesmo sem entender direito o que estava acontecendo. Bonnie e Fred O’Toole pareciam tão transtornados quanto Jack. Sua filha era uma mulher saudável e os dois haviam se preparado para ajudá-la e aos netos quando Jack se fosse. Fred não parava de suspirar e esfregar as mãos grandes na calça engomada do terno. Bonnie, ainda de preto, estava imóvel sentada no sofá, com o olhar fixo num canto do teto, mas sem parecer registrar nada do que via. Fred era um homem corpulento, com uma barriga suficientemente avantajada para prenunciar problemas de saúde. Acatava as opiniões da mulher sobre qualquer assunto, exceto esportes e venda de carros – o trabalho que os levara a viver em Cleveland. Era do tipo que preferia olhar para o chão a encarar a outra pessoa (a menos que estivesse tentando lhe vender o último modelo da Ford, quando se mostrava até animado). Bonnie era mais baixa do que Lizzie fora. Mãe de quatro filhos adultos, tinha agora quase 70 anos e perdera a forma de outros tempos. A cintura e o quadril haviam adquirido a mesma largura. Seus cabelos eram brancos, curtos, e os óculos ocupavam a maior parte do rosto quadrado. Sem Lizzie para servir de intermediária, Jack agora percebia que seu relacionamento com os sogros sempre fora bastante superficial.
Fred tornou a suspirar e isso pareceu despertar Bonnie. – Bom – disse ela. – Bom – repetiu. Fred olhou para ela e Jack fez o mesmo. Bonnie ergueu os olhos e lançou um olhar rápido e indecifrável para o genro. Seguiu-se mais um pouco de silêncio. Alguns minutos mais tarde, Fred ajudou Jack a se deitar e então acompanhou Bonnie até o quarto da filha. Iriam ficar hospedados na casa até que se encontrasse outra solução. Jack ficou deitado encarando o teto. Os dias que se seguiram à partida de Lizzie tinham sido muito piores do que os posteriores ao anúncio da própria sentença de morte. Tinha aceitado seu fim, mas não o da esposa. Não conseguiria. Mikki e Cory mal haviam aberto a boca desde que o policial viera lhes dar a terrível notícia. Jackie perambulava pela casa à procura da mãe e chorava por não encontrá-la. Jack abriu a gaveta da mesa de cabeceira e pegou as seis cartas. Obviamente não havia escrito nenhuma na véspera do Natal. Naquelas páginas, havia aberto seu coração para a pessoa que mais amava no mundo. Fitou as cartas, agora inúteis, e se sentiu ainda mais deprimido. Jack raramente chorava. Vira colegas do Exército morrer nos campos de guerra, presenciara o fim de seu pai, vítima de um câncer no pulmão, assistira ao enterro da esposa. As lágrimas tinham chegado a seus olhos em cada uma dessas ocasiões, mas não muitas e não por muito tempo. Contudo agora, com os olhos pregados no teto e a mente tomada de angústia, ele chorava. Chorava em silêncio por finalmente se dar conta de que Lizzie jamais voltaria.
Na manhã seguinte, Bonnie assumiu as rédeas da situação. Acompanhada por Fred, foi conversar com o genro. – Não vai ser fácil, Jack – alertou ela –, mas a verdade é que não temos muito tempo. Ela empertigou a coluna e pareceu tentar adotar uma expressão de empatia. – Em primeiro lugar, é claro, é preciso pensar nas crianças – continuou. – Já conversei com Becky e Frances várias vezes. Frances e Becky eram as irmãs mais velhas de Lizzie, que moravam na Costa Oeste. O único irmão, Fred Jr., estava servindo no Exército na Coreia. Não tinha podido comparecer ao enterro. – Becky pode ficar com Jack Jr. e Frances concordou em ficar com Cory. Só falta saber o que seria de Michelle. Bonnie nunca chamaria a neta de Mikki. – É só Michelle que falta nessa conta? – insinuou Jack. Bonnie pareceu surpresa. Quando voltou a falar, foi com um tom menos autoritário e mais conciliatório. – Isso é difícil para todos nós. Você sabe que Fred e eu tínhamos planejado mudar para Tempe no ano que vem, quando as coisas estivessem mais tranquilas para Lizzie e as crianças. Íamos este ano, mas aí você adoeceu e nós ficamos, porque é isso que os pais devem fazer em casos assim. Tentamos ajudar da melhor forma possível, por todos vocês. – E sua ajuda foi muito importante para nós. O comentário pareceu agradar a Bonnie, que sorriu e apertou a mão do genro. – Obrigada. É muito bom ouvir isso – disse, fazendo uma pausa antes de retomar seu discurso: – Vamos levar Michelle conosco e, como Jack Jr. vai estar em Portland, com Becky, e Cory em Los Angeles, com Frances, os três ficarão mais ou menos próximos. Tenho certeza de que vão se ver com bastante frequência. Foi a
única solução que consegui encontrar. – Quando? – perguntou Jack. – O feriado de Natal está quase acabando e achamos que vai ser possível levar as crianças já no mês que vem. Vai ser melhor para elas de forma geral. – E para vocês também – disse Jack. Ele se arrependeu assim que pronunciou essas palavras. A expressão conciliatória de Bonnie desapareceu imediatamente. – É, para nós também. Jack, nós estamos cuidando das crianças. Todas elas vão ter lares com pessoas a quem amam e que também as amam. Não é possível que você ache isso ruim. Jack tocou o próprio peito. – E eu? – É, bom... Esse era o próximo assunto. Ela se levantou, mas sem olhar para ele. Em vez disso, encarou um ponto logo acima da sua cabeça. – Um asilo – anunciou. – Posso cuidar dos detalhes. Só então ela o encarou e Jack teve de reconhecer que a sogra não parecia feliz com aquilo. – Jack, se pudéssemos cuidar de você pelo tempo que lhe resta, nós cuidaríamos. Mas não somos mais jovens e ainda por cima com Michelle morando conosco... – E com a morte de Lizzie – acrescentou Fred. Jack e Bonnie passaram algum tempo a encará-lo. Ambos pareciam surpresos com a presença dele e mais ainda pelo fato de ter se pronunciado. – É, e com Lizzie... bom, é. Jack respirou fundo e reuniu todas as suas forças: – Eles são meus filhos, quem decide sou eu. Fred olhou para Jack, em seguida para a esposa, mas Bonnie não tirava os olhos do genro. – Você não tem condições de cuidar das crianças. Não tem condições nem de cuidar de si mesmo. Quem fazia tudo era Lizzie. E ela não está mais aqui. Os olhos dela brilhavam, seu tom estava áspero outra vez. – Mesmo assim, a decisão é minha – disse ele, desafiador. Não fazia ideia de onde estava querendo chegar com aquilo, mas as palavras simplesmente lhe saíram da boca. – E quem pegaria três crianças para criar? Se não fizermos nada, a situação vai
fugir do controle e elas vão ser entregues para adoção. Provavelmente nunca mais vão se ver. É isso que você quer? Ela se sentou ao seu lado, com o rosto a poucos centímetros do de Jack. – É isso mesmo que você quer? Jack inalou mais um pouco de ar e sentiu a determinação se esvair junto com sua energia. – Por que não posso ficar aqui? – perguntou, inspirando fundo outra vez. – Até as crianças irem embora. – O asilo é bem mais barato do que contratarmos enfermeiros 24 horas por dia. Desculpe se parece insensível, mas não sabemos se teríamos dinheiro suficiente para isso. Foi uma decisão muito difícil. – Quer dizer que eu vou morrer sozinho? Bonnie olhou para o marido. Pela expressão em seu rosto, era óbvio que concordava com este argumento de Jack. – Isso não parece certo, Bonnie – disse Fred. – Separar a família assim. Depois de tudo o que aconteceu. Jack lançou um olhar agradecido para o sogro. Bonnie pareceu inquieta. – Na verdade, eu estive pensando nisso – suspirou ela. – Jack, não quero ser insensível. Eu gosto de você. Não quero fazer nada disso – falou, fazendo uma pausa antes de prosseguir: – Mas as crianças acabaram de perder a mãe e... Ela emudeceu. Jack começava a entender aonde ela queria chegar. – E agora vão ver o pai morrer também? Bonnie abriu os braços. – Mas você tem razão: é o pai delas. A decisão é sua. Diga o que quer que eu faça, Jack, e eu farei. Podemos deixar as crianças aqui até... até você falecer. Elas podem ir ao enterro e depois se mudar. Podem ficar com você até o fim. Ela olhou para Fred, mas o marido não parecia ter nada a acrescentar. Foi uma surpresa para Jack quando o sogro falou: – Nós vamos fazer o que você decidir, Jack, seja o que for. Tudo bem? Jack passou tanto tempo calado que Bonnie por fim se levantou, puxou o cardigã em volta dos ombros e disse: – OK, então vamos procurar os enfermeiros. Lizzie tinha seguro de vida. Podemos usar o dinheiro para... – Podem levar as crianças.
Fred e Bonnie olharam para ele. – Podem levar as crianças – repetiu. – Tem certeza? – perguntou Bonnie. Ela pareceu sincera, mas Jack sabia que essa alternativa facilitava bastante a vida da sogra. – Assim que puderem – esforçou-se para falar. Não vai demorar muito. Não agora. Não sem Lizzie. Bonnie se virou para sair, mas estacou de repente. Mikki e Cory estavam em pé diante dela. – Pensei que vocês estivessem lá em cima – disse Bonnie com uma voz nervosa. – Você não acha que isso diz respeito a nós? – indagou Mikki, seca. – Eu acho que os adultos precisam tomar decisões sobre o que é melhor para as crianças. – Eu não sou criança! – disparou Mikki. – Michelle, isso é difícil para todo mundo – apaziguou a avó. – Só estamos tentando fazer o melhor possível nas atuais circunstâncias. Vocês perderam a mãe e eu perdi uma filha. Mikki encarava a avó e a voz de Bonnie falhou. – Nada disso é fácil, querida – retomou Bonnie por fim. Mikki olhou para o pai. Ele podia sentir a raiva que a filha mais velha irradiava. – Vocês todos são ridículos! – gritou ela, então se virou e saiu correndo da casa, batendo a porta atrás de si. Bonnie balançou a cabeça e esfregou os olhos antes de tornar a olhar para Jack. – Isso é um grande sacrifício para todos nós. Ela então saiu do quarto e Fred, obediente, foi atrás. Cory apenas ficou ali, encarando o pai. – Cory... – começou Jack. Mas o filho lhe virou as costas e subiu correndo a escada. Um minuto se passou enquanto Jack ficava deitado ali, sentindo-se um incapaz. – Jack? Quando ele olhou, Bonnie estava em pé a alguns metros da sua cama, com algo na mão. – A polícia veio trazer isto ontem – explicou, erguendo uma sacola. Eram os remédios de Jack.
– Encontraram dentro da van – disse a sogra. – Foi mesmo uma falta de sorte Lizzie ter saído naquela noite. Se ela tivesse ficado em casa, ainda estaria viva. – Eu disse a ela para não ir. – Mas ela foi. Por você – retrucou Bonnie. As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto e ela saiu depressa do quarto.
O quarto do asilo era pequeno, mas limpo. Não era esse o problema. Jack já tinha passado meses dormindo em uma barraca com mais dez soldados no meio de um deserto que era ou frio demais ou quente demais. O que o desagradava ali eram os sons. Os barulhos que as pessoas fazem quando estão à beira da morte não são nada agradáveis. Tosses, engasgos, gritos de dor – mas sobretudo gemidos. Estes nunca cessavam. E havia também o rangido das rodas das macas quando o corpo de alguém era levado embora, enquanto o quarto era arrumado para próximo paciente terminal. A maioria dos pacientes era de idosos. Mas Jack não era o mais jovem. Duas portas adiante havia um menino com leucemia. Quando estava sendo levado para o quarto em sua cadeira de rodas, Jack tinha visto o corpinho estendido na cama: a cabeça calva, os olhos vazios, vários tubos saindo de seu corpo. O menino mal respirava, parecia apenas esperar que aquilo tudo terminasse. A família vinha visitá-lo todos os dias; a mãe muitas vezes ficava com ele o dia inteiro. Os parentes tentavam exibir uma expressão feliz perto do menino, mas começavam a chorar assim que saíam. Jack tinha notado isso quando eles passavam pela porta de seu quarto: costas curvadas e rostos enterrados nas mãos, aos prantos. Eles também estavam esperando pelo fim. E ao mesmo tempo tinham medo de que ele chegasse. Jack levou a mão até debaixo do travesseiro e pegou o calendário. Dia 11 de janeiro. Fez um xis sobre a data. Fazia cinco dias que estava no asilo. Tinha ouvido dizer que a duração média de uma estada ali era de três semanas. Sem Lizzie, seriam três semanas intermináveis. Levou novamente a mão até debaixo do travesseiro e sacou os seis envelopes agora amassados que continham suas cartas para a esposa. Havia pedido a Sammy que as pegasse em sua casa antes de ela ser posta à venda. Observou os envelopes. O papel estava manchado de lágrimas, porque ele lia aquelas cartas várias vezes ao dia. O que mais teria para fazer? Aquelas palavras agora eram um peso a mais em
seu coração: Lizzie jamais as leria e jamais saberia o que ele estava sentindo nos últimos dias de vida. Ao mesmo tempo, elas eram a única coisa que lhe permitia morrer em paz, com alguma dignidade. Guardou as cartas e ficou apenas deitado ali, ouvindo os rangidos da última viagem de maca de algum outro paciente. Aquele som ocorria com uma regularidade assustadora. Em breve, ele sabia, o corpo sobre a maca seria o seu. Virou a cabeça em direção à porta quando seus filhos entraram no quarto seguidos por Fred. Ficou surpreso ao ver Cecilia com seu andador e seu balão de oxigênio, que ia preso a uma tira bordô. Naquele frio, era difícil para uma senhora daquela idade sair de casa, mas ela havia feito um esforço por Jack. Assim que entrou no quarto, Jackie subiu no colo do pai, enquanto Cory se sentou na cama. De braços cruzados, em um gesto desafiador, Mikki permaneceu em pé junto à porta, o mais longe possível dos outros. Usava uma calça jeans com rasgos nos joelhos, botas pesadas, uma capa desbotada sem mangas e uma camiseta preta de mangas compridas com os dizeres a áfrica quer paz. O cabelo agora estava laranja e a cor contrastava muito com suas olheiras escuras. Somente quando Cory já estava no meio de uma frase Jack conseguiu prestar atenção no que o filho dizia. – Mas, pai, você vai estar aqui e a gente vai estar lá longe – disse o menino. – Parece que é isso que o papai quer – disse Mikki, incisiva. Jack se virou para ela. Pai e filha trocaram olhares firmes, até que por fim ela desviou o seu, revirando os olhos. Cory chegou mais perto do pai: – Mas, pai, acho que o melhor mesmo é a gente ficar aqui com você. Faz sentido. Jackie, que estava aprendendo a pedir para ir ao banheiro, deslizou até a lateral da cama e desceu dela com a mãozinha entre as coxas. – Vovô, o Jackie quer ir ao banheiro – disse Mikki. – E dessa vez não sou eu quem vai levar. Fred viu o que Jackie estava fazendo e guiou o neto depressa em direção ao banheiro no final do corredor. Assim que os dois saíram, Jack disse: – Cory, você precisa ir – falou, mas não olhou para Mikki ao completar: – Vocês todos precisam ir. – Mas, pai, a gente não vai ficar junto – disse Cory. – Não vai se ver nunca. – Cory – interveio Cecilia, falando baixinho –, eu prometo que você vai ver seu
irmão e sua irmã não apenas logo, mas também muitas vezes. Mikki se aproximou. Sua expressão, antes emburrada, agora estava desafiadora. – Tudo bem, mas e o papai? Ele vai simplesmente ficar aqui sozinho? Não é justo. – Eu vou estar com vocês – disse Jack. – E a sua mãe também, em espírito – acrescentou ele, sem saber mais o que dizer. – A mamãe morreu. Ela não pode estar com ninguém – disparou Mikki. – Mikki – repreendeu Cecilia. – Não precisa falar assim. – Mas é verdade. Não precisam mentir. Já é ruim o suficiente eu ter que ir morar com eles no Arizona. Os olhos de Cory se encheram de lágrimas e ele começou a soluçar baixinho. Jack puxou o filho mais para perto. Jackie e Fred tornaram a entrar no quarto e a visita durou mais meia hora. Cecilia foi a última a sair. A caminho da porta, virou-se para Jack: – Você nunca vai estar sozinho, Jack. Nós todos carregamos uns aos outros no coração. As palavras eram gentis e sinceras, ele sabia, mas Jack Armstrong nunca se sentira tão só quanto agora. Apesar disso, tinha uma pergunta a fazer: – Lizzie me disse que queria levar os meninos ao Palácio no próximo verão. Cecilia chegou mais perto dele. – Ela disse isso a você? – indagou. – Ao Palácio? Meu Deus! Depois de todo esse tempo... – Eu sei. Mas quem sabe... quem sabe as crianças possam ir lá um dia? Cecilia segurou sua mão. – Vou cuidar disso, Jack. Prometo a você.
A família toda, inclusive Bonnie e Fred, foi visitar Jack pela última vez. Cory e Jackie abraçaram e beijaram o pai, os dois tentando falar com ele ao mesmo tempo. Mais tarde nesse dia, cada um dos filhos pegaria um avião rumo a seu novo lar. Jack estava deitado, usando uma camisola hospitalar. Tinha o corpo e o rosto emaciados e os aparelhos que garantiam seu conforto até a hora da morte estavam ligados na potência máxima. Olhou para cada um dos filhos na certeza de que seria a última vez. Já tinha instruído Bonnie a cremar seu corpo quando chegasse a hora. “Nada de enterro” , dissera. “Não vou fazer as crianças passarem por isso de novo.” – Eu ligo para você assim que chegar lá, pai – prometeu Cory, que não tirava os olhos dele. – Eu também! – entoou Jackie. Jack respirou fundo várias vezes enquanto se preparava para fazer o que devia ser feito. Dali a poucos minutos seus filhos iriam embora para sempre. Estava decidido a fazer com que esses últimos momentos juntos fossem tão felizes e marcantes quanto possível. – Tenho uma coisa para vocês – falou. Tinha pedido a Sammy que lhe trouxesse as três caixas. Tirou-as devagar do armário ao lado da cama e entregou uma para Cory e outra para Jackie. Segurando a última caixa, olhou para Mikki: – Esta aqui é para você. – O que é? – perguntou ela, tentando se mostrar desinteressada, mas o pai pôde perceber sua curiosidade aguçada. – Venha ver. Ela suspirou, chegou mais perto e pegou a caixa da mão do pai. – Podem abrir – instruiu Jack.
Cory e Jackie abriram suas caixas e depararam com um pedaço de metal enfeitado com uma fita roxa. O de Mikki era diferente. – É uma Estrela de Bronze – disse-lhe Fred. – É concedida por heroísmo em combate. Seu pai foi um herói de verdade. As outras duas medalhas são Corações Púrpura por... bem, por ter sido ferido em combate – terminou ele, lançando um olhar constrangido para Cory e Jackie. – Pensem em mim quando abrirem essas caixas – pediu Jack. – Assim vou sempre estar com vocês. Até mesmo Bonnie teve de enxugar os olhos. Porém Jack não estava olhando para a sogra, e sim para a filha. Mikki tocou a medalha com cuidado e sua boca começou a tremer. Quando ergueu os olhos e viu o pai a observá-la, fechou a caixa e a enfiou depressa na bolsa. Depois de todos terem saído, Cecilia ficou ainda alguns minutos. Sentou-se ao lado de Jack e lhe afagou a mão com seus dedos enrugados. – O que você está sentindo, Jack? De verdade. – Em relação a morrer ou a me despedir dos meus filhos para sempre? – indagou ele, fraco. – Quer dizer, você está sentindo que quer desistir? Jack se virou para encará-la. A incompreensão e até a raiva que iam tomando conta de seu rosto foram recebidas por uma clara serenidade no de Cecilia. – Cee, isto aqui é um asilo. Eu já estou morto. – Não está, não. Ainda não. Jack desviou os olhos e inspirou com dificuldade. – É uma questão de tempo. Horas. – Você quer desistir? – perguntou ela. – Quero. Sim, eu quero. – Tudo bem, querido, tudo bem. Depois que Cecilia se foi, Jack ficou ali deitado. Tinha rompido os últimos vínculos com sua família. Era o fim. Ele não precisava mais pegar o calendário. Não haveria datas a marcar com um xis. Sua mão se moveu em direção à campainha. Tinha combinado tudo com o médico. As máquinas que o mantinham vivo seriam desligadas. Ele não aguentava mais. Estava na hora de ir embora. Tudo o que queria agora era encontrar Lizzie. Imaginou o rosto dela. – Está na hora, Lizzie – falou. – Está na hora.
Sentiu-se aliviado imediatamente. Mas sua mão se afastou da campainha quando Mikki tornou a entrar no quarto, erguendo sua medalha: – Eu só queria dizer que... que isto aqui foi bem legal. Pai e filha se entreolharam de um jeito estranho, como se fossem dois amigos há muito afastados que o acaso houvesse tornado a reunir. Havia algo nos olhos dela que Jack não via ali fazia tempo. – Mikki... – disse ele, com a voz embargada. Ela atravessou o quarto correndo e lhe deu um abraço. Ele sentiu o hálito quente da filha em seu pescoço gelado, aquecendo-o, transmitindo energia a cada parte de seu corpo. Retribuiu o abraço com o máximo de força que conseguia. – Eu te amo muito – disse ela. – Muito. O corpo inteiro de Mikki tremia com a dor de uma jovem que logo ficaria órfã de pai e mãe. Ao soltar o abraço, Mikki não olhou para o pai. Quando falou, sua voz saiu rouca: – Tchau, pai. Ela virou as costas e saiu depressa. – Tchau, Michelle – murmurou Jack para o quarto vazio.
Jack passou várias horas ali deitado, até que a noite chegou. O relógio tiquetaqueava os segundos e ele não se movia. Sua respiração seguia regular, sustentada pelo aparelho que o mantinha vivo. Algo ardia em seu peito, mas Jack não saberia dizer o que era nem exatamente onde. Seus pensamentos estavam no último abraço dado pela filha, em seu pedido mudo para que ele não a abandonasse. Com seu último suspiro, as três crianças da família Armstrong se tornariam órfãs. Passara o dia inteiro levando o dedo em direção à campainha que chamava a enfermeira, pronto para mandar vir o médico e acabar com aquilo. Mas não a havia apertado. À medida que os segundos passavam, a ardência no peito de Jack aumentava. Não era uma dor; na verdade, aquilo lhe aquecia a garganta, os braços, as pernas, os pés, as mãos. Seus olhos lacrimejaram e depois secaram, lacrimejaram de novo e tornaram a secar. Soluços vieram e se foram. E, durante todo esse tempo, ele não parou de pensar na filha. Naquele último abraço. No seu último pedido mudo. As enfermeiras iam e vinham. Jack recebeu sua alimentação líquida, introduzida na sonda com a rapidez de uma bala. O relógio continuava sua trajetória e o ar seguia entrando em seus pulmões. À meia-noite em ponto, Jack começou a se sentir estranho. Sentiu que os pulmões se esforçavam, como no dia em que o filho caçula tinha arrancado o tubo em casa. Talvez seja agora, pensou ele, com ou sem campainha. Parecia que nem mesmo as máquinas seriam capazes de mantê-lo vivo por mais tempo. Muitas vezes ele havia se perguntado como aquele momento seria. No Iraque, quando estava preso em seu Humvee em chamas, em meio a pedaços de metal retorcidos, também tinha imaginado se seus últimos instantes na Terra seriam a milhares de quilômetros de Lizzie e dos filhos. Como seria morrer? O que estaria à sua espera? Quem não teria medo? Ou ficaria aterrorizado, até? A última viagem. Aquela que todos faziam sozinhos. Sem uma companhia que o reconfortasse. E, exceto para
quem tinha alguma fé, sem a garantia de que houvesse algo mais do outro lado. Respirou fundo outra vez, depois mais outra. Com certeza seus pulmões estavam mais fracos. Já não conseguiam puxar oxigênio suficiente. Ergueu a mão para mexer na sonda que tinha no nariz. Foi então que percebeu: não estava passando ar por ali. Acendeu o abajur na cabeceira e se virou para a parede. Ali estava o problema: o tubo havia se soltado da conexão na parede. Pensou em apertar a campainha para pedir ajuda, mas decidiu ver se conseguiria refazer a conexão ele mesmo. Foi então que se deu conta. Há quanto tempo estou respirando sozinho? Olhou para o monitor que controlava suas funções vitais. O alarme não havia disparado. Avaliou com mais atenção e então entendeu por que o alarme não havia soado. Seus níveis de oxigenação não tinham caído. Como era possível? Conseguiu reconectar o tubo e inspirou várias vezes. Então retirou a sonda do nariz e respirou sozinho pelo máximo de tempo que foi capaz. Dez minutos depois, seus pulmões começaram a se cansar. Ele tornou a pôr a sonda no nariz. Mas o que está acontecendo aqui? Ao longo das duas horas seguintes, Jack continuou a retirar o tubo e conseguiu chegar a respirar sozinho por quinze minutos. Costumava ter a sensação de que os pulmões eram dois sacos de cimento. Agora eles pareciam quase normais. Às três da manhã, sentou-se no colchão e fez o impensável: baixou a grade lateral e girou o corpo, fazendo os pés penderem da cama. Esticou as pernas até os dedos tocarem o chão frio. Cada parte de seu corpo sentia o esforço, mas aos poucos ele foi se levantando, até a maior parte do peso estar apoiada nas pernas. Só conseguiu se sustentar por alguns segundos antes de tornar a desabar sobre os lençóis. Ofegante e sentindo a dor varar os pulmões enfraquecidos, repetiu o movimento mais duas vezes. Todos os músculos de seu corpo se retesaram, exauridos. No entanto, enquanto o suor esfriava em sua testa, Jack sorriu – e por um bom motivo. Havia acabado de ficar em pé sozinho pela primeira vez em muitos meses. Na manhã seguinte, depois de a enfermeira passar para vê-lo, ele se aproximou outra vez da beirada da cama e tocou o chão com os dedos dos pés. Mas então suas mãos escorregaram na roupa de cama e ele desabou no chão. Entrou em pânico.
Tentou alcançar a campainha, mas estava longe demais. Então se acalmou, deixando-se invadir pela mesma atitude metódica e prática que lhe permitira sair ileso do Iraque e do Afeganistão. Levou a mão à beirada da cama, segurou-a e fez força. Foi puxando seu corpo frágil até que por fim conseguiu se deitar outra vez. Ficou ali, tomado por uma sensação silenciosa de vitória, enquanto o suor encharcava suas roupas. Nessa noite, ele meio andou, meio engatinhou até o banheiro para se olhar no espelho pela primeira vez em meses. Não foi uma bela visão. Em vez de 34 anos, parecia ter mais de 80. Sentiu a esperança esvair-se: estava se enganando. No entanto, enquanto continuava a se olhar no espelho, uma voz conhecida soou dentro de sua cabeça. Você vai conseguir, Jack. Ele olhou em volta, atarantado, mas continuava sozinho. Você vai conseguir, amor. Era Lizzie. É claro que não podia ser, mas era. Jack fechou os olhos. – Será que vou mesmo? Vai, sim, disse ela. Você tem que conseguir, Jack. Pelos nossos filhos. Jack rastejou de volta até a cama e ficou deitado. Será que Lizzie havia mesmo falado com ele? Não tinha certeza. Parte dele sabia que isso era impossível. Mas aquela recuperação repentina também seria. Fechou os olhos, visualizou a esposa e sorriu. O próximo som que ouviu foi o gemido de uma maca. O paciente do quarto ao lado não iria mais sofrer. Aquela pessoa agora estava em um lugar melhor. Jack tinha visto o pastor passar com a Bíblia na mão. Um lugar melhor. Mas Jack não estava mais pensando em morrer. Pela primeira vez desde o anúncio de sua morte, estava concentrado em viver. Na noite seguinte, quando o relógio soou a meia-noite, Jack se levantou da cama e deu uma volta pelo quarto devagar, apoiado na parede com uma das mãos. Estava se sentindo mais forte e seus pulmões funcionavam quase normalmente. Era como se sua saúde estivesse melhor a cada minuto. Sentiu um ronco na barriga e percebeu que estava com fome. E não era uma fome que pudesse ser saciada com um coquetel líquido inserido em uma sonda. Queria comida de verdade, algo que ele pudesse mastigar. De vez em quando beliscava a si mesmo para ter certeza de não estar sonhando.
Por fim convenceu-se de que aquilo era real. Não, não apenas real. Era um milagre.
Quinze dias se passaram e Jack comemorou a semana de seu trigésimo quinto aniversário ganhando quase dois quilos e livrando-se de uma vez do tubo de oxigênio. Milagre ou não, ainda tinha um longo caminho pela frente, já que seu corpo havia enfraquecido com o passar dos meses. Precisava recuperar a força e ganhar peso. Passava horas a fio sentado. Com o auxílio de um andador, ia ao banheiro sozinho. Outra semana se passou e ele ganhou mais dois quilos. Coisas desimportantes para a maioria das pessoas passaram a representar vitórias significativas naquela sua improvável recuperação. Segurar um garfo e usá-lo para levar comida sólida à boca. Lavar o rosto. Usar o vaso sanitário em vez de uma comadre. Tocar os próprios dedos dos pés. Respirar. Quando ficou claro que ele estava melhorando, os funcionários do asilo se mostraram extremamente solidários com Jack, talvez por estarem cansados de só verem as pessoas saírem de lá em cima da maca com um lençol a lhes cobrir o corpo. Jack ligava de seu celular para os filhos sempre que podia. O caçula conversava sobre coisas em sua maioria incoerentes, mas Jack sentia que os mais velhos se perguntavam o que estaria acontecendo. – Pai, você não pode vir morar com a gente? – quis saber Cory. – Vamos ver, parceiro. Vamos com calma. Com a ajuda dos funcionários do asilo e usando o laptop de um deles, Jack pôde até conversar com os filhos e vê-los via Skype. Cory e Jackie ficaram entusiasmados ao notarem a melhora do pai. Mikki se mostrou mais discreta e cautelosa do que os irmãos, mas Jack percebeu que a filha estava curiosa. E esperançosa. – Você está com uma cara mais saudável, pai. – Estou me sentindo melhor. – Isso quer dizer... Então você vai... Embora acreditasse mesmo estar presenciando um milagre, o maior medo de
Jack era que sua melhora fosse temporária. Não queria obrigar os filhos a passarem de novo por aquele pesadelo. Mas isso não significava que não pudesse falar com eles. Ou vê-los. – Não sei, meu amor. Também estou tentando entender. E venho fazendo o melhor que posso. – Bom, continue fazendo o que estiver fazendo – respondeu ela. E então sorriu. Esse simples sorriso pareceu deixar todos os músculos do corpo de Jack ainda mais fortes. Certa vez, Bonnie apareceu na tela do computador depois de Mikki sair do cômodo. Ao ver Jack sentado na cama, a abordagem da sogra foi bem mais direta. – O que está acontecendo? – Eu continuo vivo. – Seu médico não quer falar comigo. Sigilo profissional, segundo ele. – Eu sei – disse Jack. – Mas eu posso contar. Estou me sentindo melhor. Venho ficando mais forte. Como andam as coisas com a Mikki? – Bem. Ela se instalou bem, mas nós precisamos cuidar da sua situação. – Eu estou cuidando da minha situação. Todos os dias. E assim o tempo foi passando, dia após dia, semana após semana. Usando o Skype e o celular e respondendo a todas as perguntas das crianças. Cada vez mais, Jack podia ver que até mesmo Mikki começava a entender o que vinha acontecendo. E sempre que via o sorriso ou escutava a risada da filha depois de algum comentário engraçado feito por ele, aquilo parecia deixá-lo ainda mais forte. Foi na manhã de uma segunda-feira fria de fevereiro que Jack percorreu todo o corredor sozinho. Ganhara mais dois quilos e meio, seu rosto estava mais cheio e o cabelo recomeçara a crescer. Seu apetite voltara com força total. Os médicos também haviam parado de lhe administrar analgésicos, porque ele já não sentia dor. No final da semana, o médico veio se sentar ao seu lado: – Jack, não sei muito bem o que está acontecendo, mas vou pedir mais uns exames de sangue e outros testes. Só não quero que você se anime demais por enquanto. Jack só fez encará-lo, com uma colherada de sopa suspensa junto aos lábios. O médico seguiu falando: – Olhe, se isso continuar assim, maravilha. Ninguém vai ficar mais feliz do que eu... bom, a não ser você, claro. Para ser franco, Jack, todos os nossos pacientes
morrem. E nós tentamos ajudá-los a passar por isso com dignidade. – Mas... – disse Jack. – Mas a sua doença é complicada. E é sempre fatal. Talvez isso seja uma falsa melhora. – Talvez. – Bom, sem querer destruir as suas esperanças, é provável que seja. – Há outros casos de pessoas que melhoraram assim? O médico pareceu espantado. – Não, não que eu saiba. – É só isso que eu precisava saber. O médico pareceu confuso: – Isso o quê? – Eu sei que estava morrendo e agora não estou mais. – Como pode ter tanta certeza? – Às vezes a gente sabe e pronto. – Jack, preciso dizer que o que está acontecendo é clinicamente impossível. – A medicina não é tudo. O médico olhou para ele com atenção e viu os músculos recém-surgidos, o rosto mais cheio e os olhos que ardiam com uma intensidade firme. – Por que você acha que isso está acontecendo com você, Jack? – perguntou ele, por fim. – Você é médico. Não entenderia. – Também sou um ser humano, Jack, e gostaria muito de saber. Jack levou a mão à gaveta e pegou uma fotografia, que entregou ao médico. Era uma imagem de Lizzie com as crianças. – Por causa deles – explicou Jack. – Mas eu pensei que sua mulher tivesse falecido. Jack confirmou balançando a cabeça. – Não faz mal – disse. – Como assim? – Quando você ama alguém, é para sempre.
Dois dias se passaram e Jack ganhou mais um quilo e meio. Estava no quarto, fazendo uma refeição completa, quando o médico entrou e se sentou na beirada da cama: – Então é isso, agora eu acredito oficialmente em milagres – disse. – Seu exame de sangue deu negativo. Nenhum sinal da doença. É como se alguma coisa a tivesse posto para correr. Nunca vi nada igual. Do ponto de vista da medicina, não há explicação. Jack engoliu uma garfada de purê de batatas e sorriu. – Que bom que você mudou de ideia. Naquela tarde ele conversou com os filhos pelo computador. Ficou bastante convencido de que havia explicado direito a Jackie o que estava acontecendo, porque o menino saiu dizendo: – O dodói do papai passou. Já Cory quis logo saber: – Quando você vem me visitar? – Em breve, garotão, assim espero. Eu aviso. Ainda tenho muito chão pela frente. Mas estou chegando lá. A reação de Mikki o surpreendeu, mas não de uma forma agradável. – Isso é algum tipo de truque? – perguntou ela. Jack sentou mais ereto, devagar, sem tirar os olhos dela. – Truque? – Pai, quando a gente se despediu, você estava morrendo. Por isso foi para o asilo. Você disse adeus para todo mundo e me obrigou a vir morar com o vovô e com ela. – Não é truque nenhum, meu amor. Estou melhorando. De repente Mikki caiu em prantos. – Bom, quer dizer então que você vai vir buscar a gente? Porque eu estou
odiando isto aqui. – Estou fazendo o melhor que posso, querida. Daqui a um tempinho acho que... Mas Mikki apertou uma tecla e a tela do computador ficou preta. Jack se recostou na cama devagar. Nem sequer escutou o gemido da maca quando a mulher no quarto em frente fez a última viagem para longe dali. A noite chegou e Jack continuou no mesmo lugar. Sem comer, sem beber nada, sem dizer qualquer palavra às pessoas que entraram no quarto. Por fim, mais ou menos às duas da manhã, ele se mexeu. Levantou-se da cama e pôs-se a andar para cima e para baixo pelo corredor, depois convenceu uma enfermeira a ir procurar algo para ele na cozinha. Depois de comer, ficou observando o próprio reflexo na janela. Estou indo, Mikki. Papai está indo buscar você.
Uma semana depois disso, Jack já pesava 72 quilos e caminhava pelos corredores por uma hora sem parar. Estava reaprendendo a controlar seu corpo. Mexia os dedos das mãos e dos pés, flexionava e estendia os braços, dobrava as pernas. A equipe de enfermagem o observava com cautela, desacostumada com aquele tipo de coisa. As famílias dos outros pacientes olhavam para ele curiosas. No início Jack teve medo de que elas ficassem arrasadas ao vê-lo melhorar enquanto seus parentes continuavam à beira da morte. Pelo menos pensava assim até ser abordado por uma mulher que tinha cerca de 60 anos e ia ao hospital todos os dias. Jack sabia que o marido dela estava nos últimos estágios de um câncer e já havia passado em frente ao quarto dele e visto a silhueta frágil sob os lençóis. Aquele homem estava esperando pela morte, como todos ali. Todos menos eu. A mulher passou o braço pelo seu e disse: – Que Deus o abençoe. Ele a encarou sem entender nada. – Você dá esperança a todos nós – completou ela. Jack se sentiu tomado por um leve pânico. – Não sei por que isso está acontecendo comigo – falou com franqueza. – Mas ainda assim é algo realmente improvável.
– Não foi isso que eu quis dizer. Eu sei que meu marido vai morrer. Mas mesmo assim você nos traz esperança, querido. Jack voltou para o quarto e se olhou no espelho. Agora estava parecendo mais com ele mesmo. O queixo estava ficando mais definido, os cabelos mais fartos. Ele andou devagar até a janela e olhou para a paisagem lá fora, ainda dominada pelo inverno, embora a primavera se aproximasse. No tempo que servira no Exército, passara vários invernos longe da família. Mesmo estando em um alojamento no outro lado do mundo, fechava os olhos e imaginava o Natal com Lizzie e as crianças, as risadas de Mikki e Cory ao abrir os presentes na manhã do dia 25 de dezembro. E havia também a lembrança do sorriso da esposa diante dos pequenos mimos que Jack lhe dera antes de partir para o exterior pela primeira vez. Era verão, de modo que ele tinha lhe comprado filtro solar, um biquíni e um livro sobre churrasco. Mais tarde, Lizzie lhe mandara uma foto em que aparecia usando o biquíni enquanto preparava bifes na churrasqueira, com montes de neve ao fundo. Aquela imagem lhe dera forças para enfrentar muitas batalhas terríveis. Sua mulher. Aquele sorriso. A vontade imensa de voltar para junto dela. Tudo isso parecia ter acontecido muito tempo atrás. Ele caminhou até a mesinha de cabeceira e pegou o maço de cartas. Cada envelope tinha um número escrito. Jack escolheu o número 1 e tirou dele a primeira carta que havia escrito para Lizzie, em 18 de dezembro. Observou aquela caligrafia. Era sua, mas ao mesmo tempo não era, pois a doença o deixara extremamente debilitado. Às vezes, enquanto escrevia, era obrigado a largar a caneta porque não aguentava mais segurá-la. Mesmo assim, era possível ler o texto. A carta demonstrava o que ele queria dizer. Era o último ato da vida de um homem.
Querida Lizzie, Há muita coisa que quero dizer a você, mas simplesmente não tenho mais fôlego. Por isso resolvi lhe escrever estas cartas. Gostaria que você as guardasse quando eu tiver ido embora. Mas não quero que elas sejam um motivo de tristeza, só uma chance para que eu fale com você pela última vez. Você me fez mais feliz do que qualquer pessoa no mundo pode desejar. Quando eu estava no outro lado do mundo, sabia que olhava para o mesmo céu que você, que pensava as mesmas coisas que você. Queria estar com você e ansiava para que essa hora chegasse. Você
me deu três filhos lindos, um presente maior do que eu merecia. Estou lhe dizendo tudo isto, embora você já saiba, porque às vezes as pessoas não falam o suficiente sobre essas coisas. Se eu tivesse escolha, teria ficado mais tempo. Lutei quanto pude. Nunca vou entender por que fui obrigado a abandoná-la tão cedo, mas aceitei isso. Mesmo assim, quero que você saiba que para mim não existe nada mais importante do que você. Eu a amei desde a primeira vez em que a vi. E o dia mais feliz da minha vida foi quando você aceitou compartilhar a sua comigo. Eu prometi estar sempre ao seu lado e meu amor por você é tão grande que, mesmo não estando aí fisicamente, estarei com você de todas as outras formas possíveis. Vou cuidar de você. Estarei ao seu lado quando quiser conversar. Nunca vou deixar de amá-la. Nem mesmo a morte pode sufocar o que sinto por você. Lizzie, meu amor por você é mais forte do que tudo. Com amor, Jack
Ele tornou a guardar a carta no envelope e recolocou o maço na gaveta. Tirou a fotografia do bolso do roupão e a olhou. Na imagem colorida, sua família lhe sorria. Pensou em todos os outros pacientes que jamais sairiam vivos dali. Ele havia sido poupado. Por que eu? Jack não tinha resposta para essa pergunta, mas de uma coisa ele sabia: não iria desperdiçar sua segunda chance.
Jack Armstrong foi transferido para um centro de reabilitação alguns dias mais tarde. Fez o trajeto na van do asilo. O motorista era um sujeito de certa idade que usava uma boina de feltro e tinha uma barba branca bem-aparada. Jack era seu único passageiro. Durante o trajeto, Jack ficou olhando com um assombro quase infantil para coisas que pensava que nunca mais veria na vida. Um passarinho voando. Um carteiro fazendo suas entregas. Uma criança correndo para pegar o ônibus escolar. Prometeu a si mesmo jamais deixar de prestar atenção no que quer que fosse. – Eu nunca trouxe ninguém de lá para cá – falou o motorista quando chegaram ao centro de reabilitação. – Imagino que não. Jack levava somente uma bolsa pequena de lona. Dentro dela havia algumas roupas, um par de tênis e as cartas que escrevera para Lizzie. Quando chegou ao quarto, correu os olhos pela mobília simples e pela única janela, com vista para o pátio interno, agora coberto de neve. Depois de guardar os poucos pertences, sentou-se na cama. Ergueu os olhos ao ver alguém conhecido entrar no quarto. – Sammy? O que você está fazendo aqui? Sammy Duvall usava um conjunto de moletom cinza e tinha uma bandana quadriculada amarrada na cabeça. – O que você acha? Vim fazer você entrar em forma. Olhe só para você: é óbvio que anda fazendo corpo mole. E disseram que você estava melhorando. Sua cara está péssima. – Não estou entendendo. Você não foi me visitar no asilo. E eu liguei e deixei recados. A alegria sumiu dos olhos de Sammy. Ele sentou na cama ao lado de Jack. – Eu deixei você na mão – falou.
– Que história é essa? Você fez tudo por mim. – Não fiz, não. No cemitério, eu disse que você podia contar comigo. Ele fez uma pausa. Era a primeira vez que Jack o via nervoso. Essa emoção simplesmente não combinava com um homem daqueles. Nada abalava Sammy Duvall. A voz de Sammy tremeu quando ele disse: – Eu deveria ter ido visitar você. Mas... ver você lá naquele lugar, só esperando para... Jack pôs a mão no ombro do amigo: – Tudo bem, Sammy, eu entendo. – De toda forma, agora estou aqui. – Sammy enxugou os olhos. – E você provavelmente vai desejar que eu não estivesse. – Por quê? – Vou ser o seu oficial superior. – Meu o quê? – Fiz um acordo com o pessoal daqui. – Como é? – Eu disse a eles que você era um caso especial e que precisava de tratamento especial. E, se você concordar, eles também concordam e vou ajudar você na reabilitação. – É claro que eu concordo. – Lembre-se bem dessas palavras, garoto, porque eu vou pegar no seu pé.
As semanas passaram depressa. E com dor. Muita dor. Com o suor a escorrer pelo corpo durante uma sessão particularmente árdua de exercícios, Jack disse a Sammy: – Não consigo fazer mais nenhuma droga de flexão. Não dá! – Não consegue ou não quer? Porque isso faz toda a diferença. Jack fez mais uma flexão, depois outra e uma terceira, até não conseguir mais sentir os braços. Ele levantava dezenas de quilos, corria quilômetros e mais quilômetros na esteira, pulava corda até os joelhos ficarem bambos. Ele praguejava e Sammy apenas ria e o incentivava a fazer cada vez mais.
– E você se considera um soldado? Sam Jr. tem mais fibra do que você e ele não passa de um bebezão gordo. Mas Sammy não dava ordens apenas, também se deitava no chão para fazer os exercícios com Jack. – Se um velho feito eu consegue fazer isso, você com certeza também consegue – provocava o amigo. E assim o tempo passou. Com Sammy berrando ordens e Jack cerrando os dentes, franzindo a testa e fazendo mais um abdominal, outra flexão, correndo um quilômetro a mais, aumentando a série de bíceps, fazendo outro agachamento com mais cinquenta quilos nas costas. Mas o fato era que Jack ia ficando mais forte a cada exercício. Ele falava com os filhos diariamente. Os três sabiam que o pai estava no centro de reabilitação. Sabiam que ele estava se fortalecendo. Durante uma conversa com vídeo pelo Skype, Jack exibiu os novos músculos para Cory e Jackie. – Você está saradão, pai – disse Cory. – Saadão – balbuciou Jackie. Mais tarde na mesma noite, Jack falou com Mikki. Fazia algum tempo que a filha vinha se recusando a conversar com ele pelo Skype, mas os insistentes telefonemas dele e de Sammy por fim a dobraram. – Você está ótimo, pai – disse ela devagar. – Está mesmo. – E você está magra – retrucou ele. – É, bom, a vovó está fazendo dieta, então todo mundo aqui acaba comendo feito passarinho. – Pode deixar que eu pago o cheesebúrguer. – Quando? – indagou ela depressa. – Mais cedo do que você imagina, querida. Sei que eu provavelmente já deveria ter ido visitar você. E estou morrendo de saudades. Mas... mas quero fazer tudo certo. Quando estava no Exército e a gente saía para alguma patrulha, eu sempre analisava todos os aspectos do que poderia acontecer. Alguns dos meus companheiros preferiam improvisar. Simplesmente dançavam conforme a música. E às vezes é mesmo necessário agir assim em combate. Mas, Mikki, a melhor maneira de sobreviver é estando preparado para tudo. Espero que você entenda. Quero fazer as coisas do jeito certo. Por todos vocês.
– Eu entendo, pai – disse ela, e depois arrematou, brincalhona: – E o Skype vai preparar você para quando eu for para a faculdade e você sentir saudades de mim. Por fim, o dia chegou: uma manhã de primavera surpreendentemente quente. A bolsa de Jack estava arrumada e ele esperava sentado na cama quando Sammy entrou no quarto. – Está na hora. – Eu sei – falou Sammy. – Eu não teria conseguido sem você. – É claro que teria, mas não se divertiria tanto. Enquanto a documentação de sua saída era finalizada, Jack ficou sentado em uma cadeira em frente ao escritório do centro de reabilitação. Os meses haviam passado como um borrão. Ele inspirou devagar, tentando organizar os pensamentos. Olhou pela janela: o inverno dera lugar à primavera. Flores de açafrão brotavam da terra e as árvores começavam a se cobrir de brotos. O mundo está despertando e eu também. Ele abriu a bolsa e puxou o envelope marcado com o número 2. Retirou a carta que havia lá dentro.
Querida Lizzie, Faltam cinco dias para o Natal e eu lhe prometi continuar vivo até lá. Nunca deixei de cumprir uma promessa que fiz a você, nem jamais vou deixar. É difícil dizer adeus, mas às vezes somos obrigados a fazer coisas contra a nossa vontade. Jackie veio ao meu quarto agora há pouco e a gente conversou. Bom, ele falou em jackiês e eu fiquei escutando. Gosto de escutar meu filho, porque sei que um dia, muito em breve, não vou mais poder fazer isso. Ele está crescendo rápido e acho que provavelmente não vai se lembrar do pai, mas tenho certeza de que continuarei vivo na memória de vocês. Por favor, diga a ele que o pai o amava muito, que lhe desejava sempre o melhor e que gostaria de ter jogado bola com ele e assistido a seus jogos de beisebol. Sei que Jackie vai ter uma vida incrível. Cory é um menino muito especial. Tem a mesma sensibilidade, a mesma compaixão que você. Sei que o que está acontecendo comigo provavelmente o afeta mais do que aos outros. Ontem à noite ele veio deitar na cama comigo. Perguntou se doía muito e eu respondi que não. Então me pediu que dissesse olá a Deus por ele quando o encontrasse. E eu prometi dizer. E Mikki.
Nesse ponto da carta, a mão de Jack tremeu um pouco. Ele se lembrou de que havia parado naquele mesmo trecho quando a estava escrevendo. Uma antiga mancha de lágrima tinha borrado a tinta. Retomou a leitura.
Mikki é a mais complicada de todos. Não é mais criança, mas também ainda não é adulta. Ela é uma boa menina, embora eu saiba que vocês duas tiveram suas dificuldades. É inteligente, carinhosa, ama os dois irmãos. E ama você, mesmo que às vezes não demonstre. Meu maior arrependimento em relação à minha filha foi ter deixado que ela crescesse longe de mim. A culpa é minha, hoje vejo isso claramente. Gostaria de ter percebido antes, quando ainda tinha chance de fazer algo a respeito. Quando eu for embora, por favor, diga a ela que o dia em que voltei do Afeganistão e a vi pela primeira vez me senti o pai mais orgulhoso do mundo. Olhei para o rostinho dela e senti a mais pura alegria que um ser humano é capaz de sentir. Tive vontade de protegê-la e nunca deixar que nada de mau lhe acontecesse. É claro que a vida não é assim. Mas diga a ela que eu era seu maior fã – e que, o que quer ela faça na vida, continuarei sendo. Com amor, Jack
Depois de ter alta, Jack foi com Sammy até a casa do amigo. No caminho, pediulhe que passasse pela casa onde morara com a família. Ficou espantado ao ver sua picape na garagem. – Ouvi dizer que ela foi vendida com a casa – explicou Sammy. – Bonnie e o agente imobiliário cuidaram de tudo. E aquilo ali no fundo é a minha caixa de ferramentas? – É. Acho que foi no pacote também. Foi tudo bem rápido. Sam espiou Jack de esguelha. – Eu sabia que você iria vencer aquela porcaria de doença – afirmou. – Ainda tem os ingressos da Disney? – Tenho – respondeu Jack, olhando desanimado pela janela. Cinco ingressos. Mais tarde, Jack foi ao banco. Haviam mantido uma conta aberta para cobrir suas despesas. Ainda restava algum dinheiro. Seus cartões de crédito continuavam desbloqueados, a carteira de motorista estava em ordem, a licença de trabalho era válida. Já era um começo. Foi até sua antiga casa e ofereceu ao novo dono 800 dólares pela picape e as ferramentas. Depois de alguma negociação, fecharam negócio por 850 e o dono pareceu contente em tirar aquele trambolho da garagem. Ele saiu ao volante de seu antigo carro. Então ligou para os filhos e lhes disse que tinha saído do centro de reabilitação e iria arrumar uma casa para morarem todos juntos. Depois falou com Bonnie e lhe explicou tudo. – Que maravilha, Jack – disse ela. Mas suas palavras soaram ocas. Ela perguntou ao genro qual seria seu próximo passo. – Como eu disse, quero minha família de volta. Vou passar aí muito em breve.
– Você acha uma boa ideia? – Bonnie, eu sou o pai das crianças. O lugar delas é comigo. Naquela noite ele convidou Sammy para jantar. Enquanto o amigo pediu um hambúrguer, fritas e café preto, Jack fez três viagens ao bufê de saladas antes de devorar uma porção de carne e frutos do mar. – E aí, chefe, quais são os planos? – Pegar meus filhos de volta imediatamente. Mas preciso de um lugar para ficar com eles. – Podem ficar na minha casa pelo tempo que quiserem. A casa de Sammy tinha apenas um cômodo com um banheiro nos fundos, além de uma única porta de entrada. Sua imensa moto Harley-Davidson ficava estacionada lá dentro e, além disso, havia seu “cachorrinho” , Sam Jr., que era quase do tamanho de uma Honda. – Para mim estaria ótimo, mas com três crianças eu vou precisar de um pouco mais de espaço.
Mais tarde na mesma noite, Jack percorreu as estradinhas estreitas do cemitério ao volante da picape. Tinha ido lá apenas uma vez, em um dia muito frio, com o chão todo coberto de gelo e neve. No entanto, mesmo doente, havia decorado o caminho. Jamais esqueceria o lugar em que a mulher estava enterrada. Caminhou entre as lápides até chegar à de Lizzie, uma placa simples, de bronze, posta na grama. Abaixou-se para retirar algumas folhas mortas. Havia um pequeno vaso soldado à placa e as rosas nele já estavam marrons. Jack as retirou e substituiu pelas flores que levara consigo. Agachou-se e leu a inscrição na placa: “Elizabeth Armstrong, esposa, mãe e filha amorosa. Saudades eternas. Amor eterno.” Jack acompanhou as letras com os dedos, sentindo os olhos se encherem de lágrimas. – Eu vou buscar as crianças, Lizzie. Vou trazê-las para casa e nós vamos ser uma família de novo – prometeu, reprimindo um soluço e tentando ignorar a dor no peito. – Queria que você estivesse aqui comigo. Queria isso mais do que tudo. Mas você estava comigo no hospital quando eu precisei de você. E prometo cuidar bem das crianças. Elas vão se orgulhar de mim. E vou criá-las da melhor maneira
possível. Como você. Por fim as palavras lhe faltaram. Então ele se deitou sobre a grama e chorou. Acabou ficando tão exausto que adormeceu. Ao acordar, levou alguns segundos para reconhecer onde estava, até que ergueu os olhos e viu a lápide. O dia já raiava e o ar estava gelado. Quando olhou para o céu, viu bandos de pássaros chegando para o início da primavera. As roupas de Jack estavam úmidas de orvalho. Ele tossiu para limpar a garganta. Seus olhos e seu rosto ardiam. Ao longe, pôde ouvir o barulho do tráfego do início da manhã nas estradas próximas. Voltou devagar para a picape e saiu do cemitério.
Um dia depois, Jack encontrou o que procurava: a antiga residência de um casal de idosos que havia se mudado para uma casa de repouso. Os donos não tinham posto a casa à venda porque ela precisava de muitos reparos. Além disso, de qualquer forma seria improvável que alguém a comprasse, porque a dificuldade de pagar a hipoteca causara um crescimento repentino na oferta de imóveis naquela rua. Jack ligou para o agente imobiliário e se ofereceu para consertar a casa em troca de morar lá de graça. Como o casal não estava mesmo ganhando nenhum dinheiro com aquilo, logo concordou. Não era o lugar perfeito, mas Jack não precisava de perfeição. Só precisava ter os filhos sob o mesmo teto que ele. No dia seguinte, depois de assinar a documentação necessária, Jack levou seus poucos pertences para a casa. Fez alguns consertos emergenciais e comprou móveis de segunda mão. Agora estava na hora. Reservou as passagens de avião, fez a mala e partiu rumo ao aeroporto. Buscaria Mikki primeiro porque, se fosse antes às casas das irmãs de Lizzie, elas ligariam para Bonnie antes mesmo que Jack se despedisse. Aterrissou em Phoenix, alugou um carro e foi até Tempe. Chegou à casa de Fred e Bonnie, mas passou direto por ela. Estacionou um pouco mais embaixo na rua e aguardou. Uma hora depois, um carro encostou em frente à casa e Fred e Mikki desceram. Sua filha estava usando uniforme escolar, camisa polo branca e saia quadriculada, e carregava a mochila. Tinha os cabelos presos em um rabo de cavalo, com uma fina mecha rosa e lilás. Jack sentiu o coração apertado ao vê-la. Reparou que estava ainda mais alta e que seu rosto também havia mudado. Parecia a mais infeliz das criaturas. Avô e neta entraram. Jack estacionou em frente à casa, respirou fundo, desceu do carro e foi até a porta. – Pai? Mikki o encarou, boquiaberta. Quando ele estendeu os braços para abraçá-la, ela
hesitou antes de retribuir. Jack afagou seus cabelos e beijou-lhe o topo da cabeça. – Pai, é você mesmo? – Sou eu, querida. Sou eu mesmo. Bonnie e Fred apareceram, viram o genro e se detiveram. – Jack? – exclamou Fred. – Meu Deus! Bonnie simplesmente ficou parada, com uma expressão de incredulidade no rosto. Jack entrou na casa com Mikki. Estendeu a mão, que Fred apertou. Então olhou para Bonnie. A sogra ainda parecia atordoada. – Meu Deus – repetiu as palavras do marido. – É verdade. É verdade mesmo. Apesar de todos os telefonemas e de ter visto você no computador... não é a mesma coisa. – Que bafafá todo é esse? Cecilia entrava na sala apoiada no andador, arrastando atrás de si o balão de oxigênio. Ao ver Jack, não congelou como Fred e Bonnie tinham feito. O que ela fez foi dar uma estridente gargalhada. – Eu sabia! – falou, então avançou o mais depressa que pôde e lhe deu um abraço demorado. – Jack, querido, eu sabia – repetiu, com os olhos erguidos para ele e piscando para reprimir lágrimas. Foram todos se sentar à mesa da cozinha para tomar chá gelado. Jack olhou para Bonnie: – Os médicos disseram que estou curado – informou. Bonnie só fez sacudir a cabeça, mas Fred deu um tapa de alegria no ombro do genro: – Jack, filho, estamos muito felizes por você. Mais tarde, quando os dois ficaram sozinhos, Bonnie perguntou: – Quanto tempo você vai ficar? – Daqui vou para Los Angeles e depois para Portland. – Para visitar os meninos? – Não, Bonnie, para levá-los de volta comigo. Já disse para Mikki arrumar as coisas dela. – Mas o ano letivo termina daqui a menos de dois meses. – Ela pode estudar em Cleveland do mesmo jeito que aqui. – Mas a casa foi vendida. – Eu aluguei outra.
– E como vai sustentar as crianças? – Tenho minha empresa. – Tudo bem, mas quem vai ficar com elas quando você estiver no trabalho? – Mikki e Cory passam o dia inteiro na escola. E já têm idade suficiente para ficarem sozinhos por algumas horas em casa se for preciso. Jackie vai ficar na creche em tempo integral. E, se algum imprevisto acontecer, a gente resolve. Como qualquer família. Bonnie franziu os lábios. – Michelle já se acostumou com a vida aqui. Jack não disse nada sobre como a filha tinha sido infeliz ali. – Acho que ela não vai se importar – falou apenas. – Você poderia ter ligado antes de vir. – É, poderia. Talvez devesse ter ligado, mas não vejo que mal fiz. – Mal? Você simplesmente espera que nós devolvamos a menina, sem nenhum aviso, nenhuma preparação? Depois de tudo o que fizemos? – Eu nunca deixei de manter contato. Mantive vocês informados sobre a minha evolução. Ora, você viu o meu progresso. E eu disse que logo buscaria as crianças, de modo que isso não deveria ser surpresa. Além disso, o fato de eu levar meus filhos não significa que você precise ficar longe deles para sempre – argumentou, então fez uma pausa e seu tom de voz mudou: – Mesmo que tenha feito isso comigo. – Você concordou. Você autorizou que fizéssemos isso. E nós acreditávamos que você estivesse morrendo. – Por favor, Bonnie, o que mais eu poderia ter dito naquela situação? Mas, só para ficar registrado, morrer sozinho é muito ruim. Jack se arrependeu assim que terminou de falar. Bonnie se levantou, o rosto vermelho de raiva: – Não se atreva a vir me falar sobre morrer sozinho. Minha Lizzie está morta e enterrada. Não tinha ninguém com ela no fim. Ninguém! Certamente não você. Jack a encarou. – Vamos lá, Bonnie, diga o que quer dizer. – Era você quem deveria estar morto, não ela. Bonnie pareceu chocada com as próprias palavras. – Desculpe-me, eu não quis dizer isso – falou. – Sinto muito. – Eu daria a minha vida para ter a Lizzie de volta. Mas não posso. Tenho três
filhos que precisam de mim. Nada é mais importante do que isso. Espero que entenda. – O que eu entendo é que você está trocando o certo pelo duvidoso. – Eu sou o pai deles – disse Jack, exaltado. – Um pai solteiro. Lizzie não está mais aqui para tomar conta das crianças. – Eu posso tomar conta delas. – Pode mesmo? Porque eu acho que você não faz ideia do que tem pela frente. Jack ia dizer algo, mas se conteve. Será que ela tem razão?
– Sr. Armstrong? Jack olhou para baixo. Estava no alto de uma escada, consertando o revestimento de madeira da parede de um cliente. O dia estava quente e ensolarado e uma grossa camada de suor cobria sua pele. Ele usava uma camiseta branca, uma bermuda cargo azul-escura já suja, meias brancas e velhas botas com ponteiras protetoras. A mulher que o encarava do chão era bonita: tinha os cabelos castanho-claros encaracolados cortados curtos, usava calça preta, blusa branca e sapatos de salto – que agora afundavam na grama úmida. – Pois não? – Meu nome é Janice Kaplan. Sou jornalista. Gostaria de conversar com o senhor. Jack desceu da escada e limpou as mãos na parte de trás da bermuda. – Conversar sobre o quê? – Sobre como é ser o homem-milagre. Jack estreitou os olhos: – Que história é essa? – O senhor é Jack Armstrong, que recebeu o diagnóstico de uma doença terminal? – Bom, sim, sou eu. – Não parece mais estar em estágio terminal. – Não. Eu melhorei. – Então: um milagre. Pelo menos foi isso que o médico que conversou comigo disse. Jack ficou incomodado: – A senhora conversou com meu médico? Pensei que esse assunto fosse confidencial. – Na verdade ele é um amigo meu. Mencionou o senhor por acaso. Eu fiquei interessada, fiz algumas pesquisas e aqui estou.
– Está aqui para fazer o quê? – indagou Jack, intrigado. – Para escrever uma reportagem sobre o senhor. É raro uma pessoa estar à beira da morte e receber uma segunda chance. Gostaria de conversar sobre essa experiência. E sei que meus leitores vão se interessar. Fazia quase quatro semanas que Jack e as crianças tinham voltado para Cleveland. Único responsável pelo sustento da família e a criação dos filhos, Jack mal tinha tempo para comer ou dormir. Sob este aspecto Bonnie estava certa: ele não fazia ideia do que tinha pela frente. Mikki havia se oferecido para ajudar e assumira a cozinha e a limpeza da casa, além de fazer as compras e cuidar dos irmãos mais novos. Jack sempre havia trabalhado muito, mas agora percebia que não chegava nem perto da mulher. Mais do que nunca, reconhecia o trabalho dela. Lizzie fazia tudo: levava as crianças à escola, preparava as refeições, fazia as compras, mantinha a casa em ordem e ainda tinha um emprego em tempo integral. À meia-noite, quando ele ia para a cama entorpecido de cansaço, lembrava humildemente que Lizzie ainda estaria cheia de energia. – Reportagem? – falou Jack, balançando a cabeça enquanto cavava um buraco na grama com o bico da bota. – Olhe, na verdade não é nada tão especial assim. – Não seja modesto. E eu soube também que o senhor transformou sua vida, retomou seu negócio, arrumou uma casa e foi buscar seus filhos, que estavam morando com parentes depois da morte trágica de sua esposa. Fiquei muito sentida ao saber disso – arrematou ela. – E ainda por cima na véspera de Natal. A irritação de Jack se transformou em raiva. – A senhora não descobriu tudo isso com meu médico. Isso é realmente uma invasão de privacidade. – Por favor, não fique bravo, Sr. Armstrong. Eu sou jornalista. Cavar informações faz parte do meu trabalho. E eu provavelmente não lhe expliquei direito... Ela respirou fundo enquanto Jack a encarava, com os punhos cerrados de tão nervoso. – É uma matéria muito alto-astral – garantiu. – Um homem que vence os obstáculos contra todas as expectativas, uma família reunida outra vez. As coisas andam difíceis para as pessoas, principalmente por aqui. Tudo o que ouvimos são notícias ruins: guerra, crimes, gente perdendo o emprego e a casa. Escrevo sobre essas coisas o tempo todo. Sei que elas são notícia, mas também são muito, muito deprimentes. Mas seu caso é diferente. É uma reportagem incrível, que vai trazer um sorriso para as pessoas. É este o meu objetivo: fazer as pessoas se sentirem bem,
para variar. Jack olhou em volta enquanto avaliava o pedido da jornalista, sentindo a raiva sumir. Viu Sammy no alto de outra escada a observá-lo com atenção. Acenou para mostrar que estava tudo bem. Então se virou para a mulher outra vez. – O que eu tenho de fazer, exatamente? – Basta me contar a sua história. Vou tomar notas, escrever um rascunho e mostrá-lo para o senhor. Depois eu melhoro o texto e ele sai no nosso jornal e no nosso site na internet. – Só isso? – Só. Acho mesmo que vai ser algo realmente bom para muitas pessoas. Tem muita gente por aí enfrentando obstáculos que parecem impossíveis de vencer. Ler sobre como o senhor superou o seu pode fazer bem a elas. Pode mesmo. – Eu acho que tive sorte, só isso. – Pode ser que sim, pode ser que não. Pela pesquisa que fiz sobre sua doença, as chances de o senhor se recuperar eram zero. Nunca aconteceu antes. – Bom, então estou feliz por ter sido o primeiro. Que tal amanhã depois do jantar? – Maravilha. Lá pelas oito? Jack lhe deu seu endereço. Ela olhou para o braço dele, depois para as cicatrizes nas pernas. – Sei que o senhor esteve no Exército. Foi lá que ganhou essas cicatrizes? Ela apontou para a marca irregular de tiro em seu antebraço e para a trama de cicatrizes nas panturrilhas. – O braço foi no Afeganistão e as pernas, no Iraque. – Dois Corações Púrpura, então? – É. A senhora serviu nas forças armadas? – Meu filho acabou de voltar do Oriente Médio... inteiro, graças a Deus. – Então acho que nós dois temos muito a agradecer. – É verdade. Até amanhã, então.
A matéria foi publicada e, alguns dias depois, Janice Kaplan ligou.
– Jack, a AP vai reproduzir minha matéria. Ele havia acabado de tirar a mesa do jantar. – Que AP? – perguntou. – AP, Associated Press. É uma agência de notícias. Isso significa que minha matéria sobre você e sua família vai ser publicada em jornais do país todo. Meu editor ainda não está acreditando. – Parabéns, Janice. – Não, parabéns a você. Não foi o texto, foi a história. E a foto de você com seus filhos ficou linda. Acho que muitas famílias vão se inspirar em sua luta e sua vitória. Só liguei para avisar. Você agora é famoso. Pode se preparar.
As palavras de Janice Kaplan se revelaram proféticas. Começaram a chover cartas, incluindo convites para contar sua história em programas de TV e revistas de circulação nacional – uma editora queria até que Jack escrevesse um livro. Mas ele recusou tudo. Sentia-se sufocado com aquilo. Queria apenas levar uma vida normal com os filhos. Imaginou que, com o passar do tempo, outras histórias fossem surgir e desviar o foco dele. Mal podia esperar pelo fim dos seus quinze minutos de fama. Sabia que não era nenhum homem-milagre, apenas um cara que tinha tido sorte. Uma semana depois do telefonema de Janice, Jack estava deitado na cama quando ouviu vozes no andar de baixo. Vestiu a calça e desceu pé ante pé até o térreo. – Não, Chris! Para! Jack desceu os últimos três degraus de uma vez só. Mikki estava na porta. Um jovem a puxava em sua direção, enquanto ela se debatia. Foi preciso apenas dois segundos para Jack chegar até eles, erguer o rapaz do chão e empurrá-lo contra a parede. – Que parte da palavra não você não está entendendo, seu imbecil? – disparou, então olhou para Mikki: – O que está acontecendo aqui? – A gente... Ele só veio aqui para fazer o trabalho de... Pai, solta ele, por favor. – Já para cima – ordenou Jack. – Pai! – Agora. – Eu sei me virar. Não sou mais criança. – É, estou vendo. Já para cima. Mikki subiu para o quarto. Jack virou novamente para o rapaz: – Se encostar um dedo nela outra vez, ninguém vai encontrar seus pedacinhos para juntar, entendeu? Aterrorizado, o rapaz só balançou a cabeça.
Jack o arremessou para fora de casa e bateu a porta. Ficou parado ali, controlando sua raiva. Então subiu a escada, decidido, e bateu à porta da filha. – Me deixe em paz! Mas ele a abriu e entrou. Mikki estava sentada no chão, com a guitarra no colo. – A gente precisa estabelecer algumas regras por aqui – disse Jack. Ela o encarou friamente: – Que regras? Regras para você estragar a minha vida? – O que eu deveria ter feito, deixado aquele tarado agarrar você? – Eu disse que sei me virar. – Mas nem sempre consegue. É para isso que pai e mãe servem. – Ah, é isso que você está brincando de ser? Jack ficou pasmo. – Brincando? Eu trouxe vocês todos de volta para casa para podermos ficar juntos. Acha que eu fiz isso à toa? – Sei lá por que você fez isso. E se quer saber, nunca me perguntou se eu queria voltar. Só me disse para fazer as malas, como se eu fosse uma criança. – Pensei que você detestasse a casa dos seus avós. Você me disse isso umas dez vezes. – Bom, eu odeio esta casa aqui também. – O que você quer de mim? Estou fazendo o melhor que posso. – Você passou muito tempo fora. – Eu já expliquei isso. Lembra? Contei aquela história sobre o Exército, sobre ir com calma e estar preparado para qualquer eventualidade. – Que babaquice! – O quê? – Não sei se você reparou, pai, mas isto aqui não é o Exército. Isto aqui é uma família. – Pois eu fiz tudo isso para que a gente conseguisse ser uma família – disparou ele de volta. – Você não tem a menor ideia do que fazer com a gente. Pode confessar. Você não é a mamãe. – Eu sei disso, pode acreditar. Mas vocês duas viviam brigando. – Isso não quer dizer que eu não respeitasse o que ela fazia por nós. Agora eu praticamente cozinho, faço faxina, lavo a roupa e cuido do Jackie sozinha. E a sua habilidade para fazer compras é uma piada.
Jack sentiu a raiva aumentar. – Olhe aqui, eu sei que não chego aos pés da sua mãe, mas estou tentando fazer as coisas darem certo. Eu amo vocês. – Ah, é? Bom, o Cory sofrendo bullying no colégio. Você sabia disso? As notas dele estão baixas, mesmo ele sendo tão inteligente. Os professores já mandaram vários bilhetes para casa, mas você nunca olha a mochila dele, não é? E o aniversário do Jackie é daqui a duas semanas. Você planejou alguma coisa? Comprou um presente para ele? Pensou em fazer uma festa ou em pelo menos comprar um bolo? O rosto de Jack empalideceu. – Duas semanas? – Duas semanas, pai. Então acho que você precisa se esforçar um pouco mais. – Mik, eu... – Por favor, pode me deixar sozinha? Quando Jack saiu do quarto da filha, Cory estava em pé no corredor, de cueca. Jack pareceu envergonhado. – Cory, você está sofrendo bullying? Cory fechou a porta, deixando o pai sozinho no corredor.
Jack e Sammy estavam descarregando a picape em frente à casa de Jack depois de um longo dia de trabalho quando ele quase deixou cair um martelo em cima do próprio pé. Sammy olhou para o amigo. – Você está bem? Faz uns dias que tem andado esquisito. Jack recolheu a ferramenta devagar e a jogou de volta na caçamba. – O que você acha que Jackie iria gostar de ganhar no aniversário? O dia está chegando e eu queria dar um presente legal para ele. Sammy deu de ombros. – Ahn, uma arma de brinquedo? – Não acho que Lizzie aprovaria. E onde consigo um bolo e umas coisas de festa? Sabe, chapéus, essas coisas? – A mercearia no alto da rua tem uma confeitaria. – Como você sabe? – Fica bem em frente à seção de cerveja. Jack foi à loja e comprou alguns artigos para a festinha de Jackie. Estava esperando sua vez na fila da caixa quando viu. Nunca tinha ficado mais espantado na vida. Estava olhando para uma foto sua na capa de uma revista de fofocas. Estendeu a mão e pegou um exemplar. A manchete dizia “Homem-milagre na lama”. Que diabo é isso? Jack virou as páginas da revista e começou a ler a matéria. Sua raiva aumentava a cada palavra que lia. Agora entendia a manchete. O repórter tinha distorcido tudo. Fazia parecer que Jack forçara Lizzie a sair em uma noite fria e perigosa para buscar seus analgésicos. E depois, o que era ainda pior, sugeria que Jack desconfiara de que a mulher estivesse tendo um caso com um vizinho. Obviamente perturbada, Lizzie teria avançado um sinal e morrido. Nada disso era verdade, mas provavelmente milhões de pessoas agora o consideravam um monstro.
Ele largou as compras ali mesmo e voltou correndo para casa. No caminho, não demorou muito a entender o que tinha acontecido. A fonte do repórter era Bonnie. Mas de onde ela podia ter tirado aquilo? Foi então que lhe ocorreu. Lizzie devia ter ligado para a mãe a caminho da farmácia e lhe dito para onde estava indo. Talvez tivesse mencionado alguma coisa sobre Bill Miller e Bonnie houvesse interpretado mal a reação de Jack. Mas o mais provável era que Bonnie simplesmente tivesse alterado o que Lizzie lhe dissera para servir aos próprios objetivos. Jack podia imaginar a ira silenciosa da sogra. Jack sendo alvo de toda aquela fama, adulação e empatia, enquanto Lizzie estava numa cova por culpa dele. Pelo menos era provável que Bonnie pensasse assim. Parte de Jack não podia culpá-la. Mas ela havia aberto uma caixa de Pandora que talvez Jack não conseguisse fechar. E o que mais o preocupava era o que poderia acontecer quando seus filhos descobrissem. Queria ser o primeiro a conversar com eles sobre aquilo, sobretudo com Mikki. Acelerou a picape. Infelizmente, não chegou a tempo.
Mikki o esperava em frente à porta de casa segurando um exemplar de outra revista de fofocas, que exibia uma manchete parecida. Ela tremia e começou a agredir o pai assim que ele desceu da picape. – A escola inteira está sabendo. Como você foi deixar a mamãe sair naquela noite? E como pôde pensar que ela trairia você? – Essa matéria está cheia de mentiras – explodiu Jack. – Nunca acusei sua mãe de nada. Eu a vi dar um tapa na cara do Bill Miller. Ela e eu rimos disso. E eu não pedi para que ela saísse, disse para não ir. – Não acredito em você. – Mikki, é verdade. Essas revistas vivem de mentiras. Você sabe disso. – Isso nunca teria acontecido se você não tivesse aceitado aquela matéria ridícula do homem-milagre. É tudo culpa sua. – Tudo bem, você tem razão. Eu gostaria de não ter aceitado, mas... – E agora todo mundo acha que a mamãe era uma sem-vergonha e que você é um idiota. E eu vou passar o resto do ano ouvindo os outros falarem pelas minhas costas. – Quer me ouvir um seg... Antes que ele conseguisse terminar a frase, ela já havia corrido para dentro de casa e batido a porta atrás de si. Quando ele pensou em entrar também, ouviu a tranca sendo fechada. Cory o encarava pela janela lateral. Depois de lançar um olhar furioso para o pai, o menino também sumiu. No aniversário de 3 anos de Jackie, Jack acabou levando o caçula e Cory a uma pizzaria. Estava usando um boné de beisebol e óculos escuros, tentando impedir que o reconhecerem por seus quinze minutos de “infâmia” . Tinha meia pizza de queijo sobre a mesa e um bolo de aniversário comprado num supermercado. Enquanto Jackie brincava em uma piscina de bolas com dezenas de outras crianças, Cory se mantinha encolhido, sentado em um canto com cara de quem preferiria
ser atacado por tubarões a estar ali. Jack nem sequer sabia onde Mikki estava. O único momento pior na vida dele fora quando o policial tinha lhe dito que Lizzie estava morta. Mais tarde, depois de voltar para casa, Jackie ficou brincando com o caminhão que o pai tinha comprado às pressas na noite anterior. Cory se refugiou no quintal dos fundos. – Gostou do presente? – perguntou Jack em voz baixa ao caçula. Jackie imitou o barulho de um caminhão e fez o brinquedo rolar pelos ombros do pai. Pelo menos eu ainda tenho um filho que não me odeia. Com o pequeno no colo, Jack subiu a escada e espiou para dentro do quarto de Mikki. Era um cômodo pequeno, com uma única luminária de teto que emitia uma luz fraca, e as roupas da filha estavam todas espalhadas. A guitarra e o teclado ocupavam uma quina das paredes e um aparelho para mixar músicas estava no chão. Uma caixa de papelão servia de apoio para um pote de Nutella deixado pela metade. Havia partituras empilhadas por toda parte e um microfone surrado sobre uma mesinha metálica dobrável que Mikki usava como escrivaninha. Jack pôs o filho no chão, entrou no quarto e pegou algumas partituras. Na verdade, eram folhas brancas com notas escritas a lápis, obviamente por sua filha. Jack não sabia ler música nem entendia o que aquelas marcações significavam, mas parecia um trabalho elaborado. Como Mikki era capaz de criar uma coisa assim e não conseguia tirar sequer um sete em matemática? Pensando bem, ele também não tinha sido um aluno tão exemplar. Pegou Jackie pela mão e entrou no quarto que os dois meninos dividiam. O espaço estava bem mais abarrotado do que o quarto de Mikki, porque era menor e abrigava duas pessoas. As camas quase se encostavam. Havia uma pequena estante embutida lotada de brinquedos, livros e coisas que os meninos colecionavam. Cory havia guardado suas roupas com cuidado nas gavetas da pequena cômoda usada que Jack lhe comprara. As roupas de Jackie estavam empilhadas em cima da cômoda. Jack reparou em uma caixa cheia de papéis ao lado da cama de Cory. Começou a examiná-los. Quando viu a primeira página, pôs-se a folhear o restante. Eram páginas impressas sobre sua doença. Viu que havia anotações nelas feitas com a caligrafia de Cory. – Ele pensou que talvez conseguisse encontrar a cura.
Jack se virou e flagrou Mikki em pé na porta. Ela entrou no quarto. – Ele queria salvar você. Bobo, né? Mas a intenção foi boa. Jack se levantou devagar. – Eu não sabia. – Bom, você não estava em condições de saber. Ela se sentou em uma das camas enquanto Jackie corria na sua direção e estendia o caminhão para ela ver. – Que legal, Jackie – disse, abraçando o irmão. – Parabéns, garotão. – Garotão – repetiu Jackie com um enorme sorriso. Mikki olhou para o pai. – Que presente bacana. – Obrigado – falou. – Então, como a gente fica? – Não dá para simplesmente dizer coisas idiotas, se abraçar, chorar até dizer chega e depois ficar tudo bem enquanto uma música cafoninha toca ao fundo. Tem que ser um dia de cada vez. A vida é assim. Alguns dias vão ser bons, outros vão ser horríveis. Vai ter dias em que eu vou olhar para você e sentir raiva; em outros, vou ficar péssima por sentir raiva de você. Vai ter dias em que eu não vou sentir nada. Mas você continua sendo meu pai. – O problema é que quem deveria ter morrido era eu, não sua mãe. Eu já tinha aceitado que morreria. Mas aí foi ela quem partiu. E, não sei como, eu melhorei. Não era para ter sido assim. – Mas foi exatamente assim que aconteceu. Você está aqui. A mamãe, não. – Então o que a gente vai fazer a partir de agora? – Você está mesmo perguntando isso para mim? – Bem, você sabe muito mais sobre esta família do que eu. O celular de Jack tocou. Ele checou o identificador de chamadas. Era o número de Bonnie. O que seria dessa vez? Ela já não tinha causado problemas suficientes? – Alô – atendeu ele, preparando-se para uma briga. Era Fred. Sua voz soou cansada e algo nela fez Jack se retesar. – Fred, está tudo bem? – perguntou ele. – Não, Jack, na verdade não. – O que foi? Bonnie? – Não – respondeu o sogro, fazendo uma pausa antes de prosseguir: – É a Cecilia. Ela morreu faz umas duas horas.
Embora tivesse morado por algum tempo no Arizona e houvesse passado os últimos dez anos em Ohio com a filha e o genro, Cecilia Pinckney era sulista até o último fio de cabelo. Tinha pedido para ser enterrada em Charleston, na Carolina do Sul, no jazigo da família. Então Jack pôs as crianças na Kombi 1964 azul-bebê com teto branco que Sammy restaurara e pegou a estrada rumo ao sul. O enterro reuniu um grupo grande sob um sol bem quente e uma forte umidade. Bonnie parecia ter envelhecido dez anos, encurvada e abatida. Vendo-a naquele estado, Jack não conseguiu fazer nada além de lhe dar os pêsames. Quando a sogra o encarou, Jack pensou ter visto alguma afeição por ele sob toda aquela tristeza. – Obrigada por ter vindo – disse ela. – Cecilia era uma pessoa muito especial. – Era, sim. – Precisamos conversar outra hora. Ela assentiu devagar. – Está bem. Seria bom para todos. Quando a cerimônia fúnebre terminou, Jack e as crianças voltaram para o hotel, onde dividiam um único quarto. Jack tinha acabado de tirar o paletó e a gravata quando o telefone tocou. Ele atendeu achando que talvez fosse o sogro, mas era uma voz estranha. – Sr. Armstrong, meu nome é Royce Baxter. – Sim. Pois não? – Tive o prazer de ser advogado da Sra. Cecilia Pinckney nos últimos vinte anos. – Advogado? – Exato. Gostaria de saber se poderíamos nos encontrar hoje. Imagino que o senhor precise voltar logo para Ohio, então pensei em conversarmos antes. Fred O’Toole me disse onde o senhor está hospedado. Meu escritório fica a um quarteirão daí. Sei que é um momento ruim, mas é importante e não vai demorar
muito. Jack olhou para os filhos. Jackie dormia sentado em uma cadeira e Cory e Mikki assistiam à TV. – Diga o endereço. Cinco minutos mais tarde, ele estava sentado em frente ao elegante Royce Baxter, que usava um terno escuro. O advogado tinha 60 e poucos anos, por volta de 1,80 metro, rosto afável e um pouco de gordura acumulada no abdome. – Deixe-me ir direto ao assunto – falou o advogado, puxando um documento de uma pasta. – Este é o testamento da Sra. Cecilia. – Olhe, se ela tiver me deixado alguma coisa, não acho correto aceitar. Baxter o espiou por cima do papel. – Por quê? – É meio complicado. – Bom, ela fez uma alteração no testamento recentemente. Disse que, mesmo que o senhor nunca usasse, estaria sempre à sua disposição. – Bom, e o que é, exatamente? – perguntou Jack, curioso. – A antiga casa da família Pinckney no litoral da Carolina do Sul, em uma cidade chamada Channing. – O Palácio, o senhor quer dizer? – Exato. Então já ouviu falar? – Lizzie me contou sobre essa casa, mas minha esposa não voltou mais lá depois que se mudou para Ohio, então nunca fui lá. – Bom, deixe-me dizer: embora fique bem em frente à praia, a casa não está em bom estado. É uma construção grande, velha e precisa de consertos. Nunca chegou a ser devidamente reformada. Mas a localização é ótima, uma região litorânea muito bonita. E digo isso com orgulho de ser um filho da Carolina do Sul. A Sra. Cecilia me disse que o senhor é muito habilidoso. Imagino que ela o considerasse a pessoa ideal para cuidar da casa. – Em frente à praia? Eu nunca poderia pagar o imposto territorial. – Não há imposto. Anos atrás, a Sra. Cecilia solicitou o tombamento do imóvel, para evitar que no futuro ele fosse vendido ou desse lugar a um condomínio. Ela e os seus descendentes têm o direito de usar a casa, mas nunca poderão vendê-la. Em troca, o imposto territorial caiu para quase zero. – Mas nós moramos em Cleveland. E as crianças estão na escola. – A Sra. Cecilia imaginou que o senhor talvez hesitasse um pouco. Mas, como
estamos bem no início do verão, a escola na verdade ainda não seria problema. Jack se recostou na cadeira. – É verdade. Mas mesmo assim eu não acho... Baxter o interrompeu. – E Cecilia comentou que a neta estava pensando em levar as crianças para lá neste verão. – É, estava, sim. Minha esposa me disse isso. Achei boa ideia, mas... A voz de Jack foi se extinguindo. Ele tinha feito Lizzie prometer que levaria as crianças ao Palácio. Agora ela não poderia fazer isso. Baxter bateu com o dedo no testamento e estudou o rosto de Jack. – Gostaria de ver o documento antes de se decidir? – Sim, por favor – respondeu Jack.
Menos de duas horas depois de sair do escritório de Royce Baxter, Jack e as crianças estavam numa estrada arenosa ladeada de arbustos altos, seguindo as coordenadas que o advogado dera. Jack observou a paisagem. Havia uma área alagadiça próxima e o cheiro de maresia era forte, inebriante. – Uau! – exclamou Cory quando por fim a casa apareceu. Jack parou a Kombi e todos saltaram. Foi levando Jackie pela mão enquanto se aproximavam da frente da casa, abrigada pela sombra de duas grandes palmeiras. Era uma estrutura comprida e de formato irregular, com paredes de madeira e uma ampla varanda que se estendia por quase toda a fachada. Uma porta dupla de madeira maciça convidava a entrar. O revestimento das paredes estava desbotado, mas o olhar experiente de Jack avaliou que as tábuas continuavam firmes e sólidas. Os reforços que protegiam as janelas em caso de furacão eram pretos, mas a maior parte da tinta havia descascado, deixando a madeira exposta. Cinco degraus parcialmente apodrecidos conduziram à porta da frente. A mobília da varanda tinha sido coberta com panos. Quando Jack e as crianças os ergueram, encontraram muita sujeira e ninhos de animais. Um esquilo pulou de um dos móveis e subiu correndo uma das vigas da varanda até o telhado, onde muitas telhas faltavam. Uma cobra surgiu de uma pilha de lenha, fazendo Cory e Mikki gritarem e saírem correndo. Jackie, entretanto, tentou pegá-la e teve de ser afastado pelo pai. Ele olhou para os outros dois filhos, encolhidos junto à Kombi. – É uma corredora-azul. Não é venenosa, mas ataca, então fiquem longe. Ele observou a cobra descer lentamente os degraus e sumir na vegetação em volta da casa. – Em Cleveland não há cobras gigantes assim – disse Cory, ofegante. – Essa cobra tinha só um metro, filho. E há cobras em Ohio, sim. A informação não pareceu reconfortar Cory. – Venham – chamou Jack. – Já que estamos aqui, vamos pelo menos dar uma
olhada. Usando a chave que Baxter tinha lhe dado, ele abriu a porta da frente e entrou levando Jackie. Virou-se para procurar os outros filhos. Continuavam junto à Kombi. – Pessoal, a cobra está aí fora com vocês, não aqui dentro com a gente. Segundos depois, os dois subiam afobados os degraus da frente e passavam correndo pelo pai para dentro da casa, Cory aos gritos e olhando para trás à procura da “droga da cobra gigante”. Jackie e o pai se entreolharam. O pequeno apontou para o irmão e disse: – Cory é engraçado. – É, hilário – disse Jack, balançando a cabeça. Os cômodos eram arejados e amplos, com um pé-direito alto e teto enviesado, de onde pendiam ventiladores. A cozinha era espaçosa, mas tinha janelas minúsculas, e os banheiros eram poucos e pequenos. O salão principal exibia uma imensa lareira de pedra e uma grande mesa de jantar já bastante gasta. Dali era possível passar a vários cômodos, incluindo a lavanderia e uma pequena biblioteca. No subsolo havia uma imensa mesa de bilhar, com a superfície de feltro verde já lisa, e uma mesa de pingue-pongue com a rede rasgada. Brinquedos de praia, pés de pato, bolas murchas e coisas do tipo se amontoavam em um quarto que servia de depósito. Os móveis eram velhos, mas estavam quase todos em bom estado. O piso era de tábuas e as paredes, de gesso. Jack bateu com o nó dos dedos em uma delas e ficou impressionado com a qualidade da estrutura. Quando chegou aos fundos da casa, respirou fundo, extasiado. A parte posterior da casa era praticamente toda em janelas e portas de vidro. Além disso, havia uma varanda fechada com degraus que levavam ao quintal. A vista era para o Atlântico, que estava a pouco mais de cinquenta metros de distância, com a areia no caminho. Jack inspirou novamente a maresia e apontou para a água. – Daqui até a Europa ou a África não existe terra – falou. – É tudo mar. Enquanto as crianças admiravam a vista, Jack foi dar uma olhada no quintal dos fundos. O chão era arenoso, com dunas cobertas de vegetação. Ele tornou a entrar na casa e pôde sentir o cheiro da madeira queimada na lareira tempos atrás. Todos subiram juntos ao segundo andar e olharam os quartos, nenhum deles extraordinário, mas todos funcionais. Mas os olhos de empreiteiro de Jack notavam um potencial ali. Todos os quartos tinham vista para o mar e o maior
possuía ainda uma pequena sacada. – O que vocês acham que tem lá em cima? Quem fez a pergunta foi Mikki, apontado para uma escada no final do corredor. – Um sótão, imagino – respondeu Jack. Ele abriu a porta e tateou à procura de um interruptor. Encontrou-o, mas nada aconteceu quando o acionou. A casa estava vazia fazia tempo, era de esperar que a energia estivesse desligada. O cômodo ficava diretamente sob o telhado, com o teto subindo inclinado. Era bem amplo, com duas janelas que deixariam entrar a luz da manhã, embora àquela hora o sol já estivesse descendo. Havia uma velha cama de ferro com dossel, uma grande escrivaninha de madeira, uma estante cheia de livros e um baú antigo em um canto. Uma porta conduzia a um closet vazio. Jack pisou com cuidado nas tábuas do chão para testar sua solidez. – Tudo bem – disse ele, uma vez encerrada a inspeção. – Podem explorar. Cory foi direto na direção do baú, enquanto Jack conduzia o caçula até a escrivaninha e o ajudava a abrir gavetas. Olhou para Mikki, que continuava no limiar da porta. – Não quer dar uma olhada? – Por quê? Você não está pensando em se mudar para cá, está? – Talvez. O rosto dela ficou vermelho de raiva. – Eu já tive que me mudar para o Arizona. E todos os meus amigos estão em Cleveland. Minha banda, tudo. – Estou só olhando, está bem? Mas Jack já fazia planos para reformas e melhorias. Lembrou-se de Lizzie sentada ao seu lado na cama naquele que seria o último dia de vida da esposa. “Talvez você goste, também. Poderia consertar aquilo lá. Quem sabe até fazer o farol voltar a funcionar?”, ela dissera. – Quer dizer que a bisa deixou esta casa para você? – perguntou Mikki. Jack foi trazido de volta de sua divagação. – É, deixou. – Bom, então por que você não vende? A gente bem que precisa de dinheiro. – Não posso. Tem uma questão jurídica que impede a venda. E, mesmo que eu pudesse, não me sentiria bem. Mikki deu de ombros e se apoiou no batente da porta com uma expressão de tédio. Jack olhou para Cory, que havia aberto o baú e quase mergulhara nele. O
garoto agora vestia uma cartola, um sobretudo preto e uma máscara que lhe cobria metade do rosto. – Uuu-aaah – disse ele com uma voz muito grave. – É o Cory? – perguntou um Jackie assustado, agarrando-se com força ao pai. – É o Cory brincando – disse Jack com um tom animado enquanto liberava delicadamente uma mecha de seus cabelos das mãozinhas do caçula. Jack pegou um livro, abriu, e sua boca se escancarou. – O que foi? – perguntou Cory, que tinha visto a reação do pai. Jack suspendeu o livro. Havia uma etiqueta na contracapa. – “Propriedade de Lizzie O’Toole” – leu Jack. – Este livro era da sua mãe. Talvez todos fossem – especulou, então olhou em volta, animado. – Aposto que este aqui era o quarto dela. Naquele momento Mikki foi se juntar aos outros. – O quarto da mamãe? Jack assentiu e apontou para a escrivaninha com entusiasmo. – Olhem só isto aqui. Na madeira estavam gravadas as iniciais EPO. Mikki olhou para o pai, sem entender. – Elizabeth Pinckney O’Toole – disse ele, entusiasmado. – Era o nome da sua mãe. Pinckney era o sobrenome de solteira da bisa. Ela o manteve mesmo depois de casada. – Por que a mamãe deixou os livros dela aqui? – indagou Mikki. – Vai ver ela pensava em voltar – cogitou Jack. – Eu me lembro de ela ter falado sobre a casa de praia em que foi criada, mas ela nunca deu muitos detalhes. Você sabia muita coisa sobre esta casa? – Sua mãe chegou a me falar dela, mas nunca vim aqui antes. – Por que ela nunca trouxe a gente? – perguntou Mikki. – Bem, ela queria. Na verdade, estava planejando trazer vocês para cá neste verão depois que eu... Enfim, era esse o plano dela. – Então é por isso que a gente está aqui? Para cumprir a vontade da mamãe? – Talvez em parte seja isso. Jackie puxou a orelha do pai. – Cory, é? – balbuciou ele. Estava apontando para o irmão, agora enrolado em um boá cor-de-rosa, usando
luvas brancas compridas e uma tiara na cabeça. – É, sim, ainda é o Cory – assegurou Jack com um largo sorriso. – E ele obviamente tem total confiança na própria masculinidade. Então relanceou os olhos para Mikki, que corria os dedos por cima das iniciais da mãe. Depois olhou pela janela. – Pessoal, olhem só isso – falou. As crianças foram depressa até a janela e, boquiabertas, descobriram um farol que se erguia em uma ponta rochosa próxima à casa. – Fica bem perto – comentou Mikki. – Você acha que ele também é nosso? – emendou Cory. – Tenho certeza de que é – respondeu Jack. – Sua mãe me contou. Era um dos lugares preferidos dela. Eles saíram da casa depressa e foram até a ponta rochosa. O farol era pintado com listras pretas e brancas e tinha mais de dez metros de altura. Jack tentou abrir a porta. Estava trancada, mas ele espiou pelo vidro na parte superior dela. Viu uma escada de madeira em caracol. Havia caixas empilhadas junto a uma das paredes e tudo estava coberto de poeira. – Que bagunça – comentou Mikki, espiando por outra vidraça. Na parede externa do farol havia uma placa velha e desgastada pelo tempo. Jack raspou um pouco da sujeira: – “Farol da Lizzie” – leu. Deu um passo para trás e ergueu os olhos, como se reverenciasse aquele lugar. Cory examinou a placa: – Como é que este podia ser o farol da mamãe? – Bom, como eu disse, era um dos lugares preferidos dela – respondeu-lhe o pai, que agora dava a volta na estrutura para ver se havia outra entrada. – Não é legal? – É só um farol, pai – resmungou Mikki. Ele se virou para encará-la. – Não, era o farol da sua mãe. Ela amava isto aqui. Jackie puxou a perna da calça do pai e apontou para o farol. – Queisso? – É um farol, Jackie – respondeu Cory. – Uma luz bem forte. – Uma luz bem forte – repetiu o pequeno. Jack olhou para o terreno em volta. – Eu me rendo.
– O quê?! – exclamou Mikki. – Vai ser um lugar incrível para passar o verão. – Mas, pai – protestou Mikki –, esta casa é um lixo. E os meus amigos... – Esta casa não é um lixo, é o lugar onde sua mãe cresceu – disparou ele. – E a gente vai se mudar para cá – anunciou, então fez uma pausa e, com um tom mais calmo, concluiu: – Pelo menos por um verão.
De volta a Cleveland, eles saíram da casa alugada e guardaram os poucos móveis na casa de Sammy, que os acompanharia à Carolina do Sul. “O que vou ficar fazendo sozinho o verão inteiro?” , perguntara ele ao ouvir os planos da família Armstrong. “E Sam Jr. agora quer ver as crianças sempre. Fica ganindo quando elas não estão por perto. Eu consigo me virar sem vocês, mas estou preocupado é com o pobre cachorro.” Trancaram a garagem em que Sammy morava, empurraram o corpanzil de Sam Jr. para dentro do carro e partiram. Sammy ia na frente dirigindo a Kombi e Jack o seguia ao volante da picape com a Harley do amigo na caçamba. Antes de deixar a cidade, porém, fizeram uma última parada: foram visitar o túmulo de Lizzie. Jack sabia que aquilo seria difícil para todos, mas também não queria que as crianças fossem embora de Cleveland sem visitar a mãe. Eles puseram flores novas no vaso e cada uma das crianças disse alguma coisa para a mãe. Ninguém conseguiu entender o que Mikki sussurrara. Em pé atrás dos filhos, Jack tentava conter as lágrimas. Quando Jackie quis saber onde a mãe estava, Mikki lhe disse que ela estava dormindo. O menino então se deitou ao lado do túmulo da mãe e começou a falar baixinho, como se não quisesse acordá-la. Nessa hora, Jack se escondeu atrás de alguns arbustos, colocou as mãos no rosto e chorou. A viagem duraria dois dias, por isso passaram a noite em um hotel de beira de estrada perto de Winston-Salem, na Carolina do Norte. Deixaram Sam Jr. dentro da Kombi com os vidros abaixados e uma grande tigela de água. No entanto, por volta da meia-noite, o bicho começou a uivar de um jeito tão infeliz que Jack e Sammy foram obrigados a levá-lo para dentro do quarto correndo, antes que alguém os visse. Sam Jr. terminou a noite enroscado em volta de Jackie sobre um cobertor no chão. Jack acordou cedo na manhã seguinte e saiu para tomar um pouco de ar.
Encontrou Mikki já vestida, encostada na Kombi. – O que houve? – perguntou, esticando as costas. – Por que a gente está fazendo isso? – devolveu ela com um tom mal-humorado. – Fazendo o quê? – Você sabe o quê! Ele chegou mais perto da filha. – Qual é o problema com você? – Eu não tenho problema nenhum. E você? – Que pergunta é essa? – Pai, a gente acabou de se mudar de volta para Cleveland. E agora você está levando a gente para a Carolina do Sul. – É, para a casa onde sua mãe foi criada. – Está bem, pai, mas eu não sei se você percebeu: a mamãe não está lá. Ela virou as costas e voltou para o quarto. Jack viu a filha se afastar, balançou a cabeça e foi se aprontar para o restante da viagem. Saíram cedo e chegaram a Channing antes do almoço. Jack tinha mandado religar a energia e a água da casa. Também fizera uma assinatura de TV a cabo, de modo que quando eles ligaram o televisor que haviam levado, ele funcionou perfeitamente. Jackie e Cory, que adoravam ver televisão, ficaram muito aliviados com a novidade. Guardaram a Harley debaixo de um terraço na lateral da casa e não demoraram muito a descarregar os carros. Quando estavam levando as bagagens para dentro, Jack encontrou um envelope sobre a mesa de pinho da cozinha. Estava endereçado a ele e continha um bilhete assinado por Royce Baxter. Dizia:
A Sra. Cecilia me instruiu que lhe entregasse esta carta quando o senhor se mudasse para a casa.
– Cara – disse Sammy, deixando cair no chão a velha bolsa de lona do Exército e olhando em volta. – É uma senhora casa. – Esta “senhora casa” precisa de muitos consertos – disse Jack. – Mas a estrutura é muito boa. Fiz uma lista da última vez em que estive aqui. Vamos precisar de bastante material e de muito trabalho. O advogado recomendou uma loja de materiais de construção não muito longe.
Sammy fitou o amigo com uma expressão curiosa. – Consertar a casa? Mas eu achei que você não pudesse vender. – E não posso. – Então por que está planejando consertar? – Porque a Lizzie... Digo, porque talvez a gente fique por aqui. – Ficar por aqui? Por quanto tempo? Jack não respondeu, em vez disso apontou pela janela. – Aquilo ali é um farol?! – exclamou Sammy. – É. – E funciona? – Não. Mas já funcionou. É o Farol da Lizzie. – Farol da Lizzie? – É. Era o lugar dela, por assim dizer. Sammy olhou de esguelha para a carta que Jack tinha na mão. – E isso aí, o que é? – É só uma coisa que o advogado de Cecilia mandou. Jack pôs a carta no bolso e todos passaram as horas seguintes guardando coisas, limpando a casa e explorando o local. Depois disso, vestiram suas roupas de banho. As crianças correram para a água, com Mikki na frente, Cory no meio e Jackie na retaguarda. Sam Jr. acompanhava Jackie, indo no mesmo ritmo do menino de 3 anos, que corria com suas perninhas rechonchudas. Sammy e Jack levaram as toalhas e um cooler, além de cadeiras de praia e uma barraca para fincar na areia que haviam encontrado no subsolo do Palácio. Depois de brincar no mar por algum tempo, Cory subiu até a casa e voltou com uma bola de futebol americano esgarçada. – Ei, pai – chamou ele. – Quer jogar bola comigo? Jack não se animou muito com a ideia; estava cansado. No entanto, quando estava prestes a recusar, uma lembrança lhe veio à mente. Era uma bola de basquete, não de futebol americano. O local era a entrada de carros em frente à casa em que passara a infância. Seu pai estava chegando do trabalho e Jack, então com 6 anos, quicava a bola que acabara de ganhar. Pedira ao pai para jogar com ele. Nem sequer tinha certeza de que havia recebido uma resposta. Tudo de que conseguia se lembrar era a porta lateral da casa se fechando com um baque. E se aquela lembrança o havia acompanhado durante todos esses anos...
Ele se levantou da cadeira. – Vamos lá. – É isso aí, garotão, mostre ao seu pai como se joga – brincou Sammy. Os dois passaram mais de uma hora jogando. Jack não tinha perdido as habilidades do tempo de colégio. E Cory, depois de deixar cair algumas bolas, começou a pegar todas. Jack podia imaginar um atleta despontando por baixo do corpo gordinho e pré-adolescente do filho. Jackie e por fim até Mikki vieram se juntar a eles e Jack os fez ensaiar alguma velhas jogadas de que se lembrava da época da escola. Quando todos ficaram exaustos, Cory disse: – Valeu, pai, foi demais. Jack afagou a cabeça do filho. – Você tem mãos muito boas. Queria ter tido você no meu time da escola. Cory ficou radiante. – E eu também? – gritou Jackie. Jack pegou o caçula no colo, virou-o de cabeça para baixo e correu para o mar. – Você também. Horas depois, enquanto as crianças ainda corriam com água até os joelhos, construíam castelos de areia, perseguiam o imenso Sam Jr. e jogavam um Frisbee que também haviam encontrado na casa, o sol começou a se pôr. Sammy e Jack se recostaram nas cadeiras de praia, Jack tomando uma Coca-Cola e Sammy uma cerveja. Por fim, Sammy cobriu os olhos com o boné de beisebol e se deitou, acomodando-se de tal modo na cadeira que o fundo dela chegou a tocar a areia. Jack tirou a carta do bolso e a abriu. Com uma caligrafia miúda, Cecilia expressava o carinho que sentia por ele e seu desejo de que Jack e as crianças se divertissem e fossem tão felizes naquela casa quanto ela e Lizzie haviam sido. Enquanto lia, Jack teve a impressão de estar ouvindo a velha senhora lhe falar com seu sotaque calmo e cadenciado de sulista. A carta dizia:
Minha estada neste mundo acabou, é claro, do contrário você não estaria lendo esta carta. Mas eu tive uma vida longa e boa, fiz tudo o que queria e, ora, aquilo que porventura deixei de fazer não precisava mesmo ter feito. Nunca vi uma criança que amasse mais o mar e a areia do que Lizzie. E ela
adorava essa velha casa, mesmo que, como você sabe, suas paredes carreguem algumas lembranças ruins. E tem ainda o Farol da Lizzie, como ela o chamava. Aquela menina vivia no farol. Acho que Mikki, Cory e Jackie também vão amar essa casa. Pelo menos é o que eu espero. E tenho certeza de que você, Jack, vai encontrar um pouco de consolo e paz no lugar em que Lizzie foi criada. Sei que os últimos tempos foram muito difíceis e dolorosos para você. Sei que amava Lizzie mais do que qualquer um poderia amar. E ela sentia o mesmo por você. O destino lhes pregou uma peça terrível ao separá-los tão cedo. Mas lembre-se: a cada dia em que você acordar e deparar com seus três filhos tão queridos, estará vendo as coisas mais preciosas que você e Lizzie fizeram juntos. Por causa deles, você nunca estará longe da mulher que ama. Isso pode não parecer o bastante agora, quando você deseja tanto estar ao lado dela, mas, conforme o tempo for passando, vai perceber que na verdade fará toda a diferença do mundo. Não estou dizendo que o tempo cura todas as feridas, mas o passar dos anos nos ensina a lidar com a dor. Sei que, depois da sua cura, as pessoas o chamaram de homem-milagre. Mas quero que saiba que eu já o considerava um milagre desde o instante em que entrou na vida de Lizzie. E sei que ela também. Você teve uma segunda chance, filho, então viva da melhor forma que puder. Lizzie estará à sua espera quando a hora chegar. E eu mesma provavelmente vou aparecer para tomar um café com vocês. Até lá, continue abraçando muito essas crianças maravilhosas e cuide-se bem. Com carinho, Cecilia
Jack guardou a carta no envelope, respirou fundo e enxugou os olhos. Mesmo sem nunca ter estado naquele lugar antes, tinha a sensação de que enfim chegara em casa. Levantou-se, tirou os sapatos e correu para junto dos filhos. Quando as crianças foram vencidas pelo cansaço e pela fome e entraram na casa para comer algo, Jack continuou na praia, caminhando pela areia enquanto o sol sumia no horizonte, pintando o céu com nuvens em tons de rosa e laranja. A água morna do Atlântico molhava seus pés. Ele olhou para o mar enquanto apalpava distraidamente a carta dentro do bolso. Tinha sido um bom primeiro dia. – Paaai! Jack se virou e viu Cory acenando freneticamente para ele por trás da tela da varanda dos fundos. Ele acenou de volta.
– O que foi, amigão? – O Jackie abriu a mangueira. – Ahn... Está bem. – Depois de ter trazido a ponta para dentro de casa. Jack começou a andar depressa em direção ao Palácio. – Dentro de casa? Cadê o Sammy? – Lendo uma revista no banheiro. Jack se pôs a correr. – E a Mikki? Cory balançou a cabeça com um ar impotente. – Sei lá. Jack acelerou enquanto gritava: – Não dá para desligar a mangueira ou tirar de dentro de casa? – Eu bem tentei, mas aquele negocinho de fechar saiu na minha mão e o Jackie não quer soltar a ponta da mangueira. Ai, que droga! Jack começou a correr a toda, levantando areia atrás de si. – Jackie! Minhas três crianças maravilhosas. Essa é para você, Cecilia.
No dia seguinte, enquanto Sammy ficava com os dois meninos, Jack e Mikki foram até a loja de materiais de construção no centro de Channing, a uns cinco quilômetros da casa na praia. No caminho, passaram por um trecho de litoral ocupado por casas magníficas, verdadeiras mansões, pensou Jack. Havia gente muito rica por ali. Se ele conseguisse arrumar algum trabalho com aquele pessoal endinheirado, poderia ser muito bom. – Essas construções são condomínios? – perguntou Mikki. – Não, são mansões mesmo. Cada casa dessas deve valer milhões de dólares. – Que desperdício. Quer dizer, quem precisa de tanto espaço? – comentou ela. Jack relanceou os olhos para a filha. – E esse desdém fez você se sentir melhor? – Não. Quando eles passaram em frente a uma construção ainda maior do que as outras, uma adolescente surgiu na entrada de carros. Vestia apenas o sutiã do biquíni e um short minúsculo onde atrás se lia “pode apertar” . A garota era loura, queimada de sol e tinha o porte de uma modelo. Entrou em um Mercedes conversível mais ou menos na hora em que chegou um rapaz alto, esguio e de cabelos despenteados, de bermuda de surfista e camiseta. Ele se sentou no banco do carona e o carro saiu com um rugido de motor, entrando bem na frente da velha picape de Jack e quase forçando-a a sair da rua. Mikki abriu a janela e gritou: – Imbecis! A garota fez um gesto obsceno. – Alcance aqueles dois, pai! Vou acertar aquele nariz empinado. – Desde quando você ficou tão brava, meu docinho de coco? – Que doci... Ela parou a frase no meio ao ver que o pai sorria.
– Ah, pare com isso – murmurou ela, sorrindo também. Os dois chegaram ao centro da cidade e desceram da picape. Jack estava de jeans, camisa de malha branca e tênis. Mikki usava um short de algodão na altura dos joelhos e uma camiseta preta. Tinha a pele muito branca e seus cabelos agora exibiam mechas verdes e roxas. Seu estoque de tinturas parecia inesgotável. Mikki olhou em volta enquanto Jack conferia sua lista. – Isto aqui parece cenário de programa de TV – comentou ela. – Que lugar mais ultrapassado. Jack olhou em volta e teve que admitir: era como voltar no tempo. As ruas eram amplas e limpas e as fachadas das lojas, conservadas. Quase todos os estabelecimentos eram pequenos, provavelmente negócios tocados por famílias. Não parecia haver nenhuma loja de grandes redes. Jack avistou um banco, uma mercearia, uma loja de materiais de construção, uma barbearia com um poste listrado na frente, restaurantes, uma sorveteria e uma delegacia com uma viatura estacionada. Havia ainda uma biblioteca pública, com um cartaz oferecendo internet sem fio gratuita lá dentro. – Bom, pelo menos dá para usar internet aqui – disse Mikki. As pessoas que passavam por eles estavam de short e sandália, algumas das senhoras mais velhas tinham echarpes em volta da cabeça e um senhor trajava short de anarruga, meias brancas e sandálias da mesma cor. Havia ainda quem andasse em bicicletas com cestinhas de vime presas ao guidom. Crianças corriam pela rua e adultos passeavam com cachorros na coleira. Estavam todos muito bronzeados. Aquele ambiente inspirava prosperidade. Os carros estacionados junto ao meio-fio eram, em sua maioria, conversíveis caríssimos ou sedãs de luxo do último modelo. Alguns tinham placas de outros estados, mas a maioria era da Carolina do Sul. Mas então Jack reparou nas picapes sujas e cheias de mossas e nos velhos Fords e Dodges que passavam pela rua. Os ocupantes desses carros eram mais parecidos com ele, pensou. Trabalhadores. Pai e filha passaram por um prédio antigo, com uma marquise na qual uma placa indicava casa de espetáculos de channing. Um velho varria a calçada em frente às suas portas duplas. Ao lado delas ficava um guichê. O homem parou de varrer para cumprimentá-los. Apresentou-se como Ned Parker. – Que tipo de espetáculo acontece aqui? – perguntou-lhe Jack. – Antigamente, este era um dos melhores teatros da região. Os espetáculos vinham de Nova York para ser apresentados aqui. Cantores, bailarinos, atores:
tinha de tudo. – E agora? – Bom, ainda temos um ou outro show de vez em quando, mas não chega nem perto do que era antes. Hoje em dia, com tantos video games e filmes de orçamentos milionários... Ele se dirigiu a Mikki: – É esta a sua geração. A garota apontou para uma placa onde se lia concurso de talentos de channing. – E aquilo, o que é? – perguntou. – Esse concurso que acontece todo ano, em agosto. Gente de qualquer idade compete e pode fazer o que quiser. Apresentações com bastão, danças, canto, tocar um instrumento. É bem divertido. O vencedor ganha cem dólares e a foto dele é publicada no Channing Gazette. Jack e Mikki seguiram em frente até chegar à grande e bem-abastecida loja de materiais de construção, onde compraram tudo de que precisavam. Um funcionário da loja foi ajudar Jack a pôr as compras no carro. Jack reparou que o rapaz estava dando muito mais atenção a Mikki do que a ele. Postou-se entre a filha e o jovem: – Algumas dessas coisas não vão caber na minha picape – observou. Antes que o funcionário dissesse qualquer palavra, um homem atarracado, na casa dos 70 anos, saiu da loja. Tinha cabelos brancos feito neve e usava uma calça de lona cáqui com vinco e camisa polo azul-escura, com o nome e o logotipo da loja. – Não tem problema. Nós entregamos – prometeu. – Pode ser hoje mesmo. Vocês estão na casa dos Pinckney, não é? Jack o avaliou por um instante. – Isso mesmo. Como o senhor sabe? O homem estendeu a mão e sorriu. – Você foi mais rápido do que eu. Ia visitá-los hoje para me apresentar. Meu nome é Charles Pinckney, sou o irmão “mais novo” de Cecilia. Ele se virou para Mikki e estendeu a mão: – E esta deve ser a famosa Mikki. Cee sempre me escrevia falando muito bem de você. Deixe-me ver... Ela disse que você tocava guitarra melhor do que qualquer
um e que era tão bonita quanto sua mãe. Eu não ouvi você tocar, mas, em relação à beleza, Cee acertou em cheio. Mikki enrubesceu. – Obrigada – balbuciou. Pinckney olhou para o jovem ajudante. – Billy, pegue o resto desse material e prepare para entrega. – Pois não, Sr. Pinckney. O rapaz se afastou depressa. – Agora me lembro – disse Jack. – O senhor estava no enterro, mas não tivemos oportunidade de conversar. Pinckney assentiu devagar. – Agora sou o único que sobrou. Tinha certeza de que a Cee iria viver mais do que eu, mesmo sendo bem mais velha. – Eram dez irmãos? Pelo menos foi isso que a Lizzie me contou. – Isso. Eu era o mais chegado a Cee. Nós nos falávamos quase todos os dias. Sinto como se tivesse perdido minha melhor amiga. – Ela era uma pessoa muito boa. Me ajudou muito. – Ela era mesmo especial – concordou Pinckney. – E tinha orgulho das suas origens. As mulheres da nossa geração não mantinham o nome de solteira, mas ela nem sequer hesitou. Na verdade, disse ao marido que ele podia até mudar o sobrenome para Pinckney, se quisesse, mas que não mudaria o dela. A lembrança o fez sorrir. – Isso é a cara de Cecilia. – Ela pensava muito em você. Acho que foi por isso que lhe deixou o Palácio. Ela amava aquela casa. Não a teria deixado para qualquer um. – Fico muito honrado. Mas foi uma surpresa e tanto para mim. Eu sabia que a casa existia, mas nunca tinha estado aqui. – Cee chegou a me falar sobre o assunto. Sei que ela queria que você ficasse com a casa. No que me diz respeito, eu a apoio totalmente. Sobretudo depois que Lizzie morreu. Ela também amava aquela casa, talvez ainda mais do que Cee. Mikki, que vinha escutando com atenção, perguntou: – Se ela amava tanto a casa, por que se mudou para Cleveland? – Acho que teve a ver com o trabalho do Fred – respondeu Pinckney. – As pessoas aqui não compram carros? – Mikki, pare com isso – repreendeu-a seu pai.
– Por que a casa se chama Palácio? – perguntou ela. Pinckney sorriu. – Foi coisa da nossa mãe. Os pais dela, meus avós, eram muito carolas, mas ela não. Chamar a casa de Palácio fazia com que parecesse uma casa de festas ou algo do tipo. Funcionou. Até onde eu sei, os pais dela nunca puseram os pés lá – conclui ele, ainda a sorrir. – Essa era das minhas – disse Mikki, brincalhona. Pinckney olhou para os materiais na picape de Jack. – Você vai arrumar a casa? – Vou. – Cee disse que você era muito habilidoso. – Se souber de alguém que esteja precisando dos meus serviços, por favor, me avise. Não estou em condições de simplesmente tirar o verão de férias. Tenho muitas bocas para alimentar. – Vou espalhar a notícia. Boa sorte com o Palácio. Adoraria ver aquela casa do jeito que era antigamente. – Obrigado – disse Jack. – A estrutura é ótima, só precisa de um pouco de carinho. – Disso todo mundo precisa – falou Pinckney. – Todo mundo.
– Que gente simpática – admitiu Mikki, enquanto desciam a rua. – É a hospitalidade sulista. Ei, que tal almoçarmos aqui? – Pai, você não precisa... – É só um almoço, Mikki. Não pode colaborar um pouco? – Tudo bem – disse ela, emburrada. Quando dobraram a esquina, o Mercedes esportivo que quase os tinha feito bater mais cedo surgiu em alta velocidade na rua. A motorista se balançava ao ritmo da música estridente que saía dos alto-falantes do carro. O mesmo rapaz estava sentado ao seu lado no banco do carona. – Ei! – gritou Mikki. – Mik – falou seu pai com um tom de alerta. Mas ela já estava no meio da rua, acenando para fazer o carro parar. A motorista pisou no freio: – O que você está fazendo? Está maluca? – Em primeiro lugar, desligue essa porcaria que você chama de música – ordenou Mikki. A loura bronzeada fez uma careta, mas o rapaz apertou um botão e desligou o som. – Você fechou a gente agora há pouco e quase fez meu pai bater. A menina riu. – Essa é a cor natural do seu cabelo ou alguém vomitou em cima dele? – provocou. O rapaz fez uma careta: – Pare com isso, Tiff – falou. A menina lançou um olhar de superioridade para Mikki, depois riu com desdém. – Está bem, que se dane. Ei, fofa, por que não vai arrumar algum lugar para brincar? – zombou, pisando fundo no acelerador e partindo.
– Imbecis – gritou Mikki para o carro que se afastava. Olhou para o pai com uma expressão irada: – Onde será que foi parar a hospitalidade sulista? Instantes depois, quando ela avistou uma placa, seu rosto se iluminou. – É aqui que a gente vai almoçar – decidiu. Jack olhou na direção em que a filha estava apontando. – Bar e Restaurante Little Bit of Love – leu ele. – “Um pouquinho de amor”? Por que tem de ser aqui? – Venha, pai, quero ver se é mesmo o que estou achando que é. Ela entrou apressada e Jack a seguiu. O lugar tinha vinte mesas em estilo retrô, com toalhas de vinil vermelho e cadeiras forradas com vinil amarelo. O chão era um padrão desordenado de quadrados pretos e brancos. As paredes estavam cobertas de cartazes de bandas de rock famosas. Atrás do bar, que ocupava uma parede inteira, havia violões, baixos e guitarras, bem como vários figurinos usados por integrantes de bandas, tudo protegido por vitrines de acrílico. Outra parede estava coberta de letras de canções de rock famosas. Parecia que Mikki tinha acabado de achar uma mina de ouro em uma pequena cidade litorânea da Carolina do Sul. – Eu sabia! Que demais! A maioria das mesas estava ocupada e o bar era animado. Garçons e garçonetes de jeans e camiseta circulavam carregando bandejas cheias. Encostadas em outra parede estavam máquinas de fliperama, todas com temas musicais. Uma mulher mais ou menos da mesma idade de Jack veio caminhando na direção deles. – Mesa para dois? – indagou ela. Jack se pegou encarando a mulher. Era alta, magra e tinha cabelos escuros que iam até o pescoço. Seus olhos eram azul-claros e, quando ela sorriu, Jack sentiu a própria boca automaticamente corresponder o sorriso. – Ahn, sim – disse ele depressa. – Obrigado. Eles a seguiram até uma das mesas e a mulher lhes entregou os cardápios. – Posso trazer logo as bebidas, se quiserem. Eles lhe disseram o que queriam beber. A mulher anotou o pedido. – Nunca os vi por aqui – comentou ela. Jack se apresentou e apresentou Mikki. – Meu nome é Jenna Fontaine – disse a mulher. – Sou a dona.
– Eu entendi o nome assim que vi a placa – disse Mikki. Jack olhou para a filha. – Como assim? Jenna e Mikki trocaram um sorriso. – Def Leppard, não é? – perguntou Mikki. – Você é boa em letras de rock – elogiou Jenna, depois, vendo que Jack ainda parecia intrigado, completou: – “Little Bit of Love” é uma música do Def Leppard. – Quer dizer que você gosta de música? – indagou Jack. – Gosto, mas não tanto quanto aquele cara ali. Ela apontou para um adolescente alto e magrelo, de cabelos pretos compridos, que servia a mesa ao lado. – Aquele é meu filho Liam. O louco por música da família é ele. Quando decidi largar a vida de advogada de cidade grande e me mudar para cá para abrir o restaurante, foi ele quem deu a ideia do tema e da decoração. Mikki deu uma espiada em Liam e tornou a se virar para Jenna. – Ele toca? – Praticamente todos os instrumentos que existem. Mas a especialidade dele é percussão. Os olhos de Mikki cintilaram de entusiasmo pela primeira vez desde que pusera os pés na Carolina do Sul. – Você também toca? – continuou Jenna. – É, um pouco – falou Mikki, modesta. – Onde vocês estão hospedados? – Minha bisavó nos deixou uma casa. – Nossa, que legal. Bom, espero que gostem da comida. Ela se afastou e Jack baixou os olhos para o cardápio, sem de fato prestar atenção. Mikki tocou sua mão e ele se sobressaltou. – Pai? – O quê? – Ela é bem bonita. – É? Não reparei. – Pai, não tem... – Mik, vamos comer alguma coisa, voltar para casa e pronto, está bem? Tenho muito o que fazer.
Quando Mikki se refugiou atrás do cardápio, Jack deu uma espiada discreta em Jenna, que recebia outros clientes, mas logo balançou a cabeça e olhou para o outro lado.
Foram necessários vários dias de trabalho árduo para limpar a casa toda. As crianças ajudaram, embora Mikki tivesse trabalhado de má vontade e reclamado muito. “O verão todo vai ser assim?” , perguntara ao pai enquanto esfregava as pias da cozinha. “Vou ter que trabalhar feito uma escrava?” Mas Jack apenas respondera que servir no Exército seria muito mais difícil. “Lá você tem que limpar o chão com uma escova de dentes. Leva só umas doze horas, aí um oficial vem e manda você fazer tudo de novo” , dissera. A filha lhe lançara um olhar raivoso enquanto ele saía da cozinha carregando um saco de lixo. Depois começaram a cuidar da parte externa, limpando os canteiros de flores, podando arbustos, removendo as plantas mortas e lavando os terraços e móveis de jardim com jatos d’água. O restante da propriedade estava além da sua capacidade – a capacidade financeira de Jack. Após muitos trancos e palavrões, Jack e Sammy finalmente conseguiram abrir a porta do farol. Quando Jack entrou no pequeno saguão, viu poeira e teias de aranha arrancadas flutuando no ar. Tossiu e olhou em volta. Os degraus frágeis pareciam prestes a desabar. Ele examinou o conteúdo de algumas das caixas empilhadas contra a parede. A maior parte era de tralhas sem importância, mas ele encontrou um par de tênis cor-de-rosa pequeninos com o nome de sua esposa escrito à caneta nas laterais. Imaginou Lizzie menina correndo com aqueles tênis. Verificou algumas das outras caixas e encontrou umas poucas coisas interessantes, que levou para seu quarto. Naquela tarde, eles decidiram almoçar na praia, com o sol e o vento batendo em seus corpos. Depois da refeição, Jack olhou para Mikki, sorriu e disse: – Quero lhe mostrar uma coisa. – O quê? – Levante. Ela obedeceu.
– Tudo bem, agora me ataque. – O quê? – Parta pra cima de mim e me segure. Mikki olhou em volta para os outros, encabulada. – Pai, que história é essa? – Me ataque, confie em mim. – Está bem. Ela partiu correndo na sua direção e o agarrou, ou pelo menos tentou fazê-lo. No instante seguinte, estava caída de bruços na areia. Ficou deitada ali por um tempo, atônita, antes de rolar de barriga para cima e fitá-lo com um ar ofendido. – Nossa, pai, valeu. Foi demais esse fim de almoço na praia. Jack a ajudou a se levantar. – Vamos tentar de novo e eu lhe mostro exatamente o que fiz. – Por quê? – perguntou ela. – Hoje é o Dia Nacional de Sacanear as Filhas e ninguém me avisou? Sammy se intrometeu. – Ele está lhe mostrando algumas táticas básicas de defesa pessoal, Mik. Mikki ergueu os olhos para o pai. – Para você saber como se defender em certas situações. Sem a minha ajuda – acrescentou ele. – Ah – disse, seu rosto transparecendo que ela compreendera a intenção do pai. Eles repetiram os mesmos movimentos dezenas de vezes, até Mikki conseguir deixar primeiro o pai, depois Sammy e depois Cory caídos de bruços na areia. Jackie implorou para que a irmã o derrubasse também, depois começou a chorar quando ficou com os olhos cheios de areia. – Olá! Todos se viraram e viram Jenna Fontaine chegando à praia. Ela estava de short e camiseta e usava um chapéu de aba larga. Acenava enquanto suspendia no ar uma cesta de piquenique. – Trouxe algumas coisas do restaurante para vocês. Jack se adiantou: – Não precisava. – Imagina! Sei como é se mudar. Ela lhe mostrou o que havia na cesta e Jack lhe apresentou Cory, Sammy e Jackie, que se escondeu atrás do pai. Jenna sorriu e se agachou ao seu lado.
– Ora, olá, rapazinho. Você é a cara do seu papai. – Onde você mora, Jenna? – quis saber Mikki. Jenna apontou para o sul. – Mais ou menos um quilômetro naquela direção. É só chegar à próxima ponta rochosa. Nossa casa é a de telhado azul que vibra. – Telhado que vibra? – indagou Mikki, curiosa. Jenna olhou para Jack. – Esse é o outro motivo que me fez vir aqui. Se eu não fizer logo o isolamento acústico para o estúdio do meu filho, ou eu o mato ou vou parar num sanatório. Charles Pinckney comentou comigo que você era um gênio da construção e me disse que vocês estavam morando aqui. – Ele tem um estúdio? – exclamou Mikki. – Bom, é assim que ele chama. A maioria dos equipamentos é de segunda mão, mas ele tem muita coisa. Não entendo a maior parte do que ele faz, mas o que sei é que está acabando com os meus ouvidos. Ela tornou a olhar para Jack: – Você poderia passar lá em casa e fazer um orçamento? Jack pareceu hesitar por alguns instantes, mas então disse: – Claro, seria um prazer. – Pode ser amanhã à noite? Liam vai estar em casa e pode lhe explicar o que precisa. – Talvez saia um pouco caro – disse Jack. – Mas já trabalhamos com isolamento acústico antes. Faz uma diferença e tanto. – Acho que pago qualquer preço para salvar meus ouvidos e minha sanidade mental. Às oito, pode ser? – Combinado – respondeu Jack. Jenna lhe deu seu endereço, acenou e foi embora. Jack a observou partir. Quando se virou, viu que Mikki e Sammy o encaravam. – Ahn, tenho umas coisas para fazer – falou, claramente nervoso. Entregou o cesto de piquenique para Mikki e voltou para o Palácio com passos longos e pesados. Sammy olhou para Mikki: – Está tudo bem com ele? Mikki olhou na direção de Jenna, depois na do pai, que entrava em casa.
– Não sei – respondeu. Nessa noite, Jack adormeceu com o minúsculo par de tênis cor-de-rosa sobre o peito.
Mikki havia insistido para acompanhar Jack à casa da família Fontaine, então Sammy ficou com os meninos no Palácio. Jenna os recebeu na porta e os conduziu pela casa. Era uma construção antiga, embora bem-conservada, e o interior era surpreendente. Em vez do estilo tipicamente praiano, tinha móveis sólidos, escuros e que pareciam feitos à mão. Havia paredes com texturas em tons fechados de salmão e laranja, quadros a óleo retratando montanhas cobertas de neve e desertos de areia lisa, além de tapetes de tear em cores fortes com desenhos geométricos. Jenna sentou-se em frente a Jack. Ele a olhou de cima a baixo, depois afastou o olhar. Ela estava descalça e usava calça capri branca e suéter azul-claro. – Uma bela decoração – comentou Jack. – Obrigada. Tentamos fazer com que lembrasse a nossa antiga casa. – E onde ficava? – perguntou Mikki, olhando em volta. – No Arizona? Estive lá faz pouco tempo. Jenna riu. – Nunca estive no Arizona nem em qualquer estado do Sudoeste. Foi por isso que decorei a casa deste jeito. Provavelmente é o mais próximo que vou conseguir chegar de lá. Adoro a sensação que esse estilo cria. Nós somos da Virgínia. Eu estudei e me formei lá. Mas acabei indo parar em Washington. – Você parece bem jovem para ter um filho adolescente – comentou Mikki. – Mik! – repreendeu-a Jack. – Vou interpretar isso como um enorme elogio – riu Jenna. – Tive o Liam quando ainda estava no ensino médio – explicou. – Foi a melhor coisa que saiu daquele casamento. – Mas como foi que vocês vieram para cá? – quis saber Jack. – Eu me cansei do ritmo de vida de Washington. Tinha ganhado um bom dinheiro e investido bem. Nós viemos passar um verão em Charleston, fomos
passear de carro, acabamos descobrindo Channing e nos apaixonamos pela cidade. Ela olhou para Jack com interesse: – Quando conversei com Charles Pinckney, ele me contou que a irmã dele tinha deixado o Palácio para você. Aquela casa é maravilhosa. Nunca entrei nela, mas sempre adorei o farol. – É, é bem legal – disse Mikki, olhando para o pai. – Minha mulher cresceu naquela casa – disse Jack. – Charles me falou sobre isso também – comentou ela, depois seu tom ficou solene: – Sinto muito pela sua perda. – Obrigado – disse Jack baixinho. Jenna se levantou e tornou a adquirir um ar alegre. – Bom, querem ver o quarto do músico louco? Mikki se levantou com um pulo. – Claro. Mikki viu na hora que o quarto era um estúdio de gravação, ainda que montado com um orçamento limitado. Para seu olhar experiente, a mesa de som, os aparelhos de mixagem, os microfones e o restante do equipamento eram velhos e pareciam ter sido apenas minimamente consertados para que funcionassem. Sabia disso porque sua banda tinha feito o mesmo. Equipamentos novos eram caros demais. Havia um teclado encostado em uma das paredes. No canto, um baixo repousava em seu suporte. Um banjo e um violino pendiam de ganchos na parede. No entanto, não havia partitura alguma. – Cadê o Liam? – quis saber Mikki. – Pensei que você tivesse dito que ele estaria aqui. – Ele está a caminho. Estava fazendo o controle de estoque do restaurante. Você vai entrar em que série no ano que vem? Primeiro ano do ensino médio? – É. – Liam também. Ele estuda na Channing High. É a única escola de ensino médio da cidade. – Ele é alto – comentou Jack. – Joga futebol americano? Jenna sorriu e fez que não com a cabeça. – Ele é bom atleta, mas o que ama na verdade é isto aqui – falou, apontando para o quarto em volta. Mikki se aproximou do baixo. – Acha que ele iria se importar se eu tocasse um pouco?
– Pode ficar à vontade. Mikki passou a correia do baixo em volta do corpo, posicionou os dedos e começou a tocar. – Uau – exclamou Jenna. – Muito bom. Mikki começou a tirar a correia do ombro, mas alguém falou: – Toque aqueles dois últimos acordes de novo. Todos se viraram e depararam com Liam em pé na soleira da porta. Estava usando óculos de armação de metal e uma camiseta que dizia salvem o planeta porque eu ainda moro nele. – Oi, Liam. Não ouvi você chegar – falou Jenna. – Tudo bem lá no restaurante? – Tudo em ordem e no devido lugar – confirmou, depois tornou a olhar para Mikki. – Então, repita aqueles dois últimos acordes. Surpresa mas feliz com o pedido, ela obedeceu. O som tornou a encher o quarto. Liam se aproximou dela e posicionou o indicador de Mikki em um ponto ligeiramente diferente das cordas. – Tente assim. O som vai sair mais profundo – explicou ele. O sorriso de Mikki desapareceu e ela corou, zangada. – Eu sei posicionar meus dedos. Comecei a tocar com 8 anos. Ele não pareceu se abalar com aquela hostilidade: – Então me deixe ouvir agora. – Que seja, então. Ela verificou a nova posição do indicador e tocou o acorde. Seu espanto foi inegável. O som realmente saíra bem mais encorpado. Ela olhou para Liam com muito mais respeito. – Como você percebeu? Ele ergueu uma das mãos. Tinha os dedos surpreendentemente longos, cheios de calos nas pontas. – É anatômico. – Ahn? – A ponta do dedo tem vários pontos de força. Quando você entende quais são e posiciona os dedos de acordo com eles, o retesamento das cordas aumenta. O som fica mais cheio porque o braço do instrumento vibra menos. – Você descobriu isso sozinho? – Não, não sou tão inteligente assim. Eu li em um artigo da Rolling Stone – respondeu ele. – Qual é o seu nome? – Mikki Armstrong. Esse é meu pai. Jack e Liam se cumprimentaram com um aperto de mãos. – O Sr. Armstrong veio ver se consegue salvar meus ouvidos – disse Jenna. – Pode me chamar de Jack. Liam sorriu. – Você acha que pode ajudar? Não quero que minha mãe fique surda. Se bem que, pensando melhor, talvez isso tenha lá suas vantagens. Jenna lhe deu um tapinha no braço. – Não me obrigue a lhe dar uma palmada na sua idade. Jack examinou o quarto, depois percorreu o espaço batendo nas paredes. – Divisórias de gesso com suportes a intervalos regulares – falou, depois deu algumas batidinhas no teto rebaixado. – O teto também. É, dá para fazer, se a loja de materiais de construção tiver tudo de que preciso. Jenna pareceu impressionada. – Quando você pode começar? – Assim que comprar o material. Vou fazer um orçamento para você saber qual vai ser o impacto no seu bolso. – Meu pai é ótimo nisso – disse Mikki de repente. – Sabe construir qualquer coisa. – Eu acredito em você – disse Jenna, sorrindo. Mikki correu os olhos pelo quarto. – Liam, cadê suas partituras? – perguntou. Ele bateu com o dedo na cabeça. – Estão todas aqui dentro. – Mas e as músicas novas? Você precisa das partituras para aprender. – Não sei ler música. Eu toco de ouvido. – Está de brincadeira? Ele sorriu. – Quer me testar? Ela olhou para o baixo que ainda estava segurando. Ao ver que instrumento era, exclamou: – Isto aqui é um Gibson EB-3 do final dos anos 1960. O Jack Bruce do Cream tocava um baixo desses. É uma relíquia. Onde você arrumou? – No eBay. Passei dois verões economizando para comprar. Foi uma pechincha.
O corpo é tão suave e o som, tão puro! Acho que é o melhor quatro cordas que existe. Jenna olhou para Jack: – Não sei quanto a você, mas eu não falo essa língua. Quer tomar um café enquanto nossos filhos conversam sobre música? Jack hesitou, mas, diante do olhar de súplica de Mikki, falou: – Claro. Quando os dois saíram, Mikki disse: – Está bem, Doutor Toca de Ouvido, aqui vai o seu teste. Ela tocou um minuto de uma música que havia composto recentemente. Então passou o Gibson para Liam. – Certo, pode começar – provocou. Ele passou a correia do baixo em volta do corpo, posicionou os dedos e tocou a música de novo, acertando todas as notas. – Você parece o Mozart, só que na percussão e no baixo – exclamou Mikki. – Já tocou em alguma banda? – Não tem banda nenhuma em Channing – brincou. – Quais são as suas preferidas? – Hendrix, AC/DC, Led, Robert Plant, Aerosmith... – Nossa, são as que eu mais amo também! Liam pegou as baquetas. – Quer tocar? Ela tornou a pegar o baixo. – Estou morrendo de vontade de testar os pontos de força dos meus dedos.
Jenna e Jack estavam sentados no terraço dos fundos da casa com suas canecas de café quando a música começou. O piso de fato vibrou. – Entendeu por que preciso do isolamento acústico? – perguntou ela, tapando os ouvidos. Jack aquiesceu e riu. – É. Entendi. Lá em Cleveland, tivemos que mandar Mikki ensaiar na casa de outra menina. Mesmo assim, acho que ainda não escuto muito bem com o ouvido direito. – Pais de músicos sofrem! Quer tomar o café lá na praia? Minha cabeça já está doendo. Eles saíram caminhando juntos pela areia. Já passava bastante das oito, mas ainda estava claro lá fora. Um homem correndo passou por eles e um casal idoso brincava com um labrador preto jogando-lhe bolas de tênis. Quando o cachorro saiu correndo atrás da bola, os donos se deram as mãos e foram andando atrás dele. Jenna olhou para o casal e disse: – É assim que deve ser. Jack olhou para ela. – É assim que o que tem que ser? Ela apontou para o casal. – A vida. O casamento. Envelhecer juntos. Ter alguém para dar a mão – disse, depois sorriu para concluir: – Ter um cachorro gorducho para brincar. Jack olhou para os idosos. – Tem razão, é assim que deve ser. Depois de um instante em que não se disse nada, Jenna falou: – Então quer dizer que sua mulher foi criada aqui? – É.
– Foi por isso que você veio para cá? Por causa das lembranças? – Acho que sim – respondeu Jack devagar. Ele parou e se virou para ela. – E minha mulher estava planejando trazer as crianças aqui neste verão – prosseguiu. – Então quis fazer isso por ela. E também queria conhecer a casa. – Você nunca tinha vindo aqui antes? Jack fez que não com a cabeça. – Minha mulher tinha uma irmã gêmea que morreu de meningite. A família ainda passou mais um tempo morando aqui, mas acho que já não era muito... ahn... muito bom – concluiu ele, com certo constrangimento. – Eu sinto muitíssimo. Os dois recomeçaram a andar. – Como seus filhos estão lidando com a mudança e tudo o mais? – Cada um tem seu próprio jeito de lidar com as coisas. Eu tento acompanhar os três. – Isso faz minha vida parecer bem simples. Eu tenho só um filho. – Bom, Mikki é muito independente. Igualzinha à mãe. – Ela parece ser uma menina incrível. E, em se tratando de música, Liam não se deixa impressionar facilmente. – Temos muita dificuldade em nos entendermos. Meninas nessa idade precisam de... de coisas nas quais os pais não são muito bons. – Também sinto essa dificuldade com o Liam. – Ele parece estar bem. – Mas não deve ser graças a mim. Fez-se um instante de silêncio até que Jack retomou a conversa: – Quer dizer que você é divorciada? – Já faz tempo. Foi logo depois de o Liam nascer. Meu ex se mudou para Seattle e nunca se importou em ter um relacionamento com o filho. Acho que preciso pôr isso na conta das minhas más escolhas em matéria de homem. – Como você conseguiu fazer faculdade e se formar em direito com um filho pequeno? – Meus pais ajudaram bastante. Mas às vezes eu levava o Liam para a aula comigo. A gente dança conforme a música. Jack parou, catou um seixo do chão o jogou nas ondas que quebravam na praia. – É, dança mesmo.
Jenna tomou um gole de café enquanto o observava. – Então vocês só estão aqui passando o verão? – O plano é esse. Olhe, vou fazer o orçamento e passo para você amanhã. – Vamos fazer diferente? Eu assino logo um cheque, você compra o material e começamos a obra. – Não vai querer um orçamento? – perguntou ele, surpreso. – Não. – Por quê? – Porque confio em você. – Mas você não me conhece. – Conheço o suficiente. – Tudo bem, então. Obrigado pelo café – disse, depois sorriu e completou: – E pela confiança. – Passe no restaurante outra vez. Você precisa provar nossos anéis de cebola. São uma delícia. Quando já estavam voltando, ela falou: – Sinto muito mesmo pela sua mulher. – Eu também. Jack tornou a olhar para o casal mais velho, que ainda caminhava lentamente de mãos dadas. – Eu também – repetiu.
Mikki acordou em seu quarto do sótão. Espreguiçou-se, bocejou e puxou os travesseiros para se recostar na cama. Então se levantou, pegou a guitarra e começou a tocar uma música nova na qual vinha trabalhando, usando a técnica que Liam lhe ensinara. Os dedos compridos de sua mão esquerda subiam e desciam pelo braço do instrumento, enquanto a direita fazia o dedilhado. Ela soltou a guitarra, foi até a escrivaninha, pegou umas pautas em branco e começou a escrever notas e a rascunhar uma letra. Então pôs-se a cantar enquanto tocava. Um minuto depois, alguém bateu à sua porta. Espantada, ela parou de cantar: – Oi? – respondeu. – Posso entrar? – perguntou Jack do outro lado. – Pode. Ele entrou. Trazia uma bandeja de café da manhã. Bacon, ovos, um muffin com Nutella e um copo de leite. Pôs a bandeja em frente à filha. Mikki deixou a guitarra de lado. – Como você sabe que eu gosto de Nutella? – Fiz um reconhecimento de terreno à moda antiga. Ele puxou uma cadeira bamba com encosto de ripas até junto da cama. – O quê? – Ah, vi um pote no seu quarto lá em Cleveland. Coma antes que esfrie. Mikki começou a comer. – Cadê todo mundo? – perguntou ela. – Dormindo. Ainda é cedo. Você se divertiu ontem à noite com o Liam? Mikki engoliu um pedaço de bacon e disse: – Nossa, pai, ele é incrível. Sabe aquele negócio que ele me mostrou com os dedos, os pontos de pressão? Funciona mesmo. A gente tocou um pouco junto, ele gosta das mesmas bandas que eu e é um cara engraçado e... – Quer dizer que a resposta é sim?
– O quê? – Você se divertiu ontem à noite? Ela deu um sorriso encabulado. – Me diverti, sim. E com a Jenna, como foi? – Eu aceitei o trabalho. Ela já me deu um cheque. Sammy e eu vamos comprar o material e começar a obra. – Ela parece bem legal, você não acha? – Ela é muito simpática. Jack tirou alguma coisa do bolso e entregou à filha. – Encontrei isto aqui dentro de uma caixa no farol hoje mais cedo. – No farol? Mas não é meio cedo para você já ter ido lá? – Olhe a foto. Mikki segurou a fotografia com força, franzindo o cenho. – É a mamãe? – É. Tem uma data escrita atrás. Sua mãe tinha mais ou menos a sua idade nessa foto. Foi tirada aqui mesmo, na praia. Deve ter sido no verão antes de eles se mudarem para Cleveland. O farol aparece ao fundo. Ele parou um instante, enquanto a filha olhava para a fotografia. – Dá para ver, não dá? – falou ele. – Dá para ver o quê? – Que você é a cara dela. Mikki estreitou os olhos para a imagem da mãe. – Sou mesmo? – Com certeza. Bom, tirando essa cor de cabelo esquisita e as roupas góticas. Sua mãe era mais estilo rabo de cavalo e tons pastel. – Ha, ha, ha, muito engraçado. E as minhas roupas não são góticas. Isso é coisa, sei lá, do século passado. – Desculpe. Por que você não termina de comer e a gente dá um passeio pela praia antes de começar o dia? – Isso faz parte daquele papo de você agir como pai? – indagou ela, sem rodeios. – É, um pouco. – E o que mais? – Fiquei muito tempo sozinho depois que vocês foram embora e detestei. Nunca mais quero ficar sozinho na vida. O sol estava nascendo quando eles chegaram à praia. O céu parecia um lençol
rosado sobre o mar. Um vento agora soprava, afastando o calor da noite anterior. Gaivotas davam rasantes no mar, mergulhando e voltando à superfície com um peixe no bico. – Aqui é mesmo diferente – disse Mikki, rompendo enfim o silêncio. – Mar, areia, calor... – Não é só isso. – Acho que qualquer lugar em que a gente estivesse seria diferente agora – disse ele. – Às vezes eu acordo e acho que ela ainda está aqui. Jack parou de andar e olhou para o oceano. – Todo dia de manhã eu acordo achando que vou encontrar a sua mãe. É só quando vejo que ela não está ao meu lado que... Ele voltou a andar. – Mas aqui é diferente – retomou ele. – Eu sinto... eu me sinto próximo dela, de alguma forma. Mikki olhou para o pai com um ar de preocupação, mas não disse nada. Eles jogaram seixos no mar e ficaram assistindo às ondas trazê-los de volta para a areia. Mikki achou uma concha diferente e a guardou no bolso para mostrar aos irmãos mais tarde. – Você tem uma voz incrível – disse ele. – Fiquei escutando atrás da porta hoje de manhã. – Dá para o gasto – respondeu ela com modéstia, embora estivesse claramente feliz com o elogio. – Vai querer estudar música na faculdade? – Não tenho certeza se quero fazer faculdade. Você não fez. – É verdade. – Não tenho certeza se o que quero tocar seria bem-visto na universidade ou na indústria da música. – E o que você quer tocar? – Quer mesmo saber ou está perguntando só para ser educado? – Por que você tem que complicar tanto as coisas? Eu quero saber, só isso. – Está bem, está bem. Tem umas batidas bem alternativas, arrojadas, e mistura os instrumentos de um jeito que não é tradicional. Nada de sintetizadores e letras água com açúcar. A ideia é usar palavras que realmente signifiquem alguma coisa.
Jack ficou impressionado. – Parece que você andou pensando bastante no assunto. – A música é uma parte importante da minha vida, pai. É claro que eu pensei no assunto. – Que bom que você tem alguma coisa que a deixa tão entusiasmada. – Você já se entusiasmou assim? – Só quando conheci sua mãe. Mikki fez uma careta. – Que coisa mais eca de se contar para a própria filha. – Antes de a sua mãe aparecer, eu estava perdido. Tinha o esporte, mas era só isso. E meu pai estava morrendo de câncer. – Mas você ainda tinha sua mãe. – É, mas nós tínhamos nossos problemas. – Vocês não conseguiam se entender? Feito nós dois? – acrescentou ela, cutucando as costelas do pai. – Digamos que eu passava bem mais tempo na casa dos O’Toole do que na minha. – Qual era o problema entre vocês? A expressão dele se tornou séria. – Eu na verdade nunca conversei sobre isso com ninguém a não ser com a sua mãe. Não havia nenhum segredo entre nós. – Tudo bem, eu só estava curiosa. Não precisa me contar. Jack parou de andar e Mikki também estacou. – OK, confissão completa: eu cheguei ao ponto de me perguntar se a minha mãe me amava de verdade. Mikki pareceu perplexa: – Não tinha como não amar você. Ela era sua mãe. – O normal seria isso, não é? – Por que você achava isso? – Provavelmente porque ela foi embora de casa quando eu tinha 17 anos. Logo depois de o meu pai morrer. – O quê? Ninguém nunca me contou isso. – Bom, não é o tipo de coisa que se anuncie para o mundo. – O que houve? – Ela conheceu um sujeito e se mudou para a Flórida. Manteve a casa de Cleveland e eu fiquei morando lá até me casar com sua mãe e me alistar. Ela
morreu em um acidente de barco quando você ainda era bebê e eu estava no Exército. Mikki olhava para ele, pasma. – E você ficou morando sozinho? – Eu não tinha outros parentes, então, sim. – Mas ainda nem tinha terminado o ensino médio. – Mas eu tinha mais de 16 anos. Não me encaixava no perfil de crianças que são adotadas. Eu trabalhava em meio expediente para pagar as contas. – Meu Deus, pai. Quer dizer que você ficou totalmente sozinho? – Você gosta de ficar sozinha. – É, mas basta eu descer a escada para encontrar todo mundo. – Bom, eu tinha sua mãe. Ela era minha melhor amiga. Me ajudou a atravessar momentos muito difíceis. Quando eles voltaram para o Palácio, Mikki falou: – Obrigada pelo passeio e pela conversa. – Espero que seja uma de muitas neste verão. Enquanto ela subia correndo os degraus na frente do pai, Sammy apareceu vindo da lateral da casa. – Vocês dois madrugaram – falou, vendo a garota entrar em casa. – Momento a sós entre pai e filha? – Ela é uma menina incrível, Sammy, incrível mesmo. Passei metade da vida dela longe, no Exército, e a outra metade sem vê-la realmente, porque estava ocupado demais trabalhando. Tenho muito a aprender sobre a Mikki. – Deve ser por isso que eu nunca me casei – refletiu Sammy. – É complicado demais. – Você se arrepende? De não ter tido filhos, uma mulher? – Não me arrependia. Até começar a conviver com a família Armstrong.
Na mesma semana, antes que o pai saísse para trabalhar e ela tivesse de cuidar dos irmãos, Mikki vestiu um short e uma camiseta, calçou um par de tênis, alongou as pernas e foi correr na praia. Gostava de esportes – uma característica que herdara do pai –, mas nunca havia se interessado em entrar para qualquer equipe da escola. Achava os atletas de sua escola antipáticos e ficava incomodada com a competitividade que surgia nesses grupos. Simplesmente gostava de correr, sem ter de pensar em derrotar ninguém. Desceu até a praia ouvindo música em seu iPod. Sua pele continuava branca, reflexo do inverno sombrio e da primavera gelada de Ohio, então ela passara bastante filtro solar. Era maravilhoso sentir o sol na pele e a vista da praia era de tirar o fôlego. Foi acelerando a passada, com os braços movendo-se no mesmo ritmo. Apesar de ainda ser cedo, já havia pessoas pescando, crianças brincando na areia, adolescentes pegando jacaré nas ondas fortes. Outras descansavam sobre toalhas, lendo ou batendo papo. – Mas que... – ofegou ela. Um rapaz corria bem a seu lado. – Oi – disse ele, sorrindo. Mikki viu que era o rapaz do Mercedes conversível. Estava de bermuda, só que agora sem camisa. Era esbelto e musculoso. De perto, parecia um modelo da Ralph Lauren, o que despertou nela um desprezo instantâneo. Mikki tirou os fones de ouvido, mas continuou correndo. – A praia é bem grande – disse ela, tentando aparentar indiferença. – Escolha outro lugar. – Meu nome é Blake Saunders. Ele estendeu a mão para um cumprimento enquanto os dois corriam. Ela o ignorou. – Bom pra você.
– Será que dá para a gente parar de correr um segundo? – Para quê? – É importante. Ela parou. – Tudo bem, o que foi? – quis saber Mikki. – Eu queria pedir desculpas pelo que aconteceu no outro dia. A Tiff às vezes é bem difícil. – Tiff? – Tiffany, Tiffany Murdoch. – Ela tem mesmo cara de Tiffany – bufou Mikki. – É, ela é bem mimada. O pai dela era um investidor dos grandes em Nova York antes de eles se mudarem para cá e construírem a maior casa da praia. – Então por que você anda com ela? – Ela também sabe ser divertida às vezes. Mikki lhe lançou um olhar incrédulo. – Ah, sim, com certeza – zombou ela, então deu um tapa na própria bunda. – Pode apertar? – Não, não foi isso que eu quis dizer. – Vou terminar minha corrida – cortou Mikki. – Posso correr com você? Sou zagueiro do time de futebol americano da escola e estou tentando manter a forma. – Como quiser, senhor zagueiro. – E o seu nome, qual é? Ela hesitou, mas então respondeu: – Mikki. Mikki Armstrong. Os dois voltaram à corrida. – Em que ano você está? – Vou entrar no primeiro do ensino médio ano que vem. – Eu vou estar no terceiro. Quer dizer que vocês acabaram de se mudar para cá? – perguntou Blake. – É, de Cleveland. – Uau, Cleveland. Ela o encarou: – É, Cleveland. Algum problema? – Não, eu quis dizer que é bacana. Cleveland tem um time profissional de futebol
americano. E tinha o LeBron James no basquete. – É, mas ainda temos o Hall da Fama e Museu do Rock and Roll. – Maneiro. Você toca? – Um pouco. Mais guitarra. E baixo. – Gostaria de ouvir um dia. – Por quê? – Você é difícil, hein! – Sou mesmo. – Quem sabe a gente pode fazer alguma coisa um dia desses? – Para quê? Se o seu tipo de garota é a Tiffany, seria perda de tempo. Porque de jeito nenhum eu seria assim. – Porque é legal conhecer gente que não é daqui. Cidades pequenas às vezes são bem chatas. – Bom, estou planejando vir correr na praia mais ou menos a esta hora todo dia. – Ótimo. Quem sabe da próxima vez eu não receba olhares tão feios. Ele lhe deu um soquinho brincalhão no braço e Mikki deixou escapar um leve sorriso. – Finalmente uma fenda na armadura – brincou ele. – Você conhece Liam Fontaine? – perguntou ela. – Conheço. Ele é legal, mas é meio estranho. – Estranho? Por quê? – Não pratica nenhum esporte, apesar de ser bom atleta. – Bom, ele trabalha no restaurante e toca. Não sobra muito tempo para mais coisas. – Parece que vocês já se conhecem. – A gente se conheceu outro dia. Ele é um músico e tanto. Blake sorriu. – Quem sabe você não chama o Liam para sair? – Ah, pare com isso. Eu nem o conheço direito. – É só isso que estou pedindo. Uma chance para conhecer você. Dali a pouco, os dois terminaram a corrida. – Até amanhã, então? – falou Blake. – Está bem. – Você corre bem.
– Você também – admitiu ela. – Bom dia, então. Ele saiu correndo a toda a velocidade. E Mikki se pegou admirando suas costas e pernas bronzeadas e musculosas. Então voltou para o Palácio.
Na loja de Charles Pinckney, Jack e Sammy encheram a picape de materiais para a obra da casa de Jenna Fontaine. Charles foi cumprimentá-los e Jack apresentou Sammy. – Obrigado pela indicação, Jack – disse ele, enquanto erguia mais uma caixa até a caçamba da picape. – E obrigado por conseguir este material tão depressa para mim. Sei que não são coisas que você tenha normalmente em estoque. – É um prazer. O Little Bit of Love é o restaurante mais popular da cidade, de modo que esse pode ser um ótimo começo para outras indicações. Jenna é uma ótima pessoa. – Além de ser uma gata – emendou Sammy. Os dois estavam usando bermuda cargo, camiseta e botas de trabalho. Ainda era cedo, mas a temperatura já se aproximava dos 30oC. – Charles, eu queria perguntar uma coisa – disse Jack. – Andei pensando no farol, na história dele. – Foi meu pai quem o construiu, junto com a casa. Ele chegou a ser citado nas cartas de navegação oficiais, mas um dia simplesmente parou de funcionar. – Alguém já tentou fazê-lo funcionar de novo? O rosto de Pinckney deixou transparecer sua surpresa. – Ora, não. De que adiantaria? Quando ele quebrou, já não era mais usado para auxiliar a navegação. – Estou só perguntando – disse Jack. Ele e Sammy deixaram Pinckney e foram para a casa de Jenna. Ela fora para o restaurante, mas havia deixado um bilhete na porta da frente avisando que a entrada do subsolo estava destrancada. Eles levaram seus equipamentos para dentro e, depois de cobrir todos os móveis e os instrumentos musicais de Liam, começaram o trabalho. Cortariam parte do gesso das paredes e do teto, de forma a poder preenchê-los com material isolante, depois os restaurariam usando um
material especial, mais denso, que também ajudaria a isolar o som. Por volta da uma da tarde, ouviram alguém no andar de cima. – Olá? Era a voz de Jenna. – Estamos aqui embaixo – respondeu Jack. Ela desceu os degraus carregando uma grande sacola branca. Suspendeu a sacola no ar: – Bom, espero que ainda não tenham almoçado, rapazes. – Não precisava – disse Jack. – Bom, para mim precisava – emendou Sammy. – Estou faminto. Jenna sorriu e foi pondo o conteúdo da sacola sobre uma mesa encostada em uma das paredes: dois grandes sanduíches de peru com queijo, batatas fritas, picles, cookies e refrigerantes. Enquanto o fazia, correu os olhos pelo quarto. – Puxa, vocês já fizeram bastante coisa. Jack aquiesceu: – O trabalho está rendendo melhor do que eu imaginava. Isso significa que vai custar menos para você. Sammy largou as ferramentas, limpou as mãos em uma estopa limpa e se aproximou da mesa para examinar a comida que ela havia trazido. Fez uma mesura e disse: – És uma deusa enviada pelos céus para salvar dois andarilhos cansados. Jenna riu. – Como é bom conhecer um cavalheiro de verdade. Jack limpou as mãos em um pano úmido e sentou em frente a Sammy. – Não trouxe nada para você? – perguntou a Jenna. – Eu sempre como cedo, antes de o movimento do almoço começar. Aquilo lá fica lotado. No verão é sempre assim. – Parece um negócio bem lucrativo – comentou Jack. Ela se sentou sobre um pequeno pufe, cruzou as pernas e disse: – Estamos indo bem. Mas as margens de lucro são pequenas e o expediente é longo. – Um amigo meu uma vez abriu um restaurante – comentou Sammy, depois de engolir um pedaço de sanduíche. – Segundo ele, nunca trabalhou tanto na vida. Jack mastigou uma batata frita e perguntou: – Mas então por que você continua, Jenna?
Jenna estava de saia preta e blusa branca. Tinha tirado os sapatos de salto para esfregar os pés. Os olhos de Jack percorreram suas longas pernas antes de se desviarem depressa. Se ela percebeu, não reagiu. – Sou minha própria chefe, gosto do contato com as pessoas e é um barato entrar naquele restaurante sabendo que é meu. Além disso, é algo que posso deixar para o Liam, bem, se ele quiser. Provavelmente vai preferir pegar a estrada com alguma banda. Mas o restaurante vai continuar lá. – Seria muito bom para seu filho – concluiu Sammy. – Sobre o Jack eu já sei, mas e você, Sammy? Tem filhos? – Não, não tenho. Minha família foi o meu país. Isso bastou. – Seu país? Como assim? – O Sammy foi militar – respondeu Jack. – Primeiro combateu no Vietnã. Depois foi da Força Delta. Jenna olhou para Sammy com assombro. – Nossa, estou impressionada. Sammy limpou a boca com um guardanapo. – Bom, Jack não quer falar sobre ele porque é modesto demais. Então vou fazer as honras. – Sammy – repreendeu Jack com um tom de alerta. – Vamos falar sobre outras coisas. – Dois Corações Púrpura e uma Estrela de Bronze – prosseguiu Sammy, lançando um olhar desafiador a Jack e então apontando para a cicatriz de bala no braço do amigo. – Um Coração por isso – explicou, e apontou para as marcas na panturrilha. – E outro por isso. E a Estrela por salvar os companheiros de uma emboscada. Ele quase morreu. Jenna encarou Jack com os lábios entreabertos e os olhos arregalados. – Incrível. – Faz tempo. Jack terminou de comer e amassou o papel do sanduíche, que pôs dentro da sacola branca que ela havia trazido. – Muito obrigado pelo almoço, Jenna – agradeceu, levantando-se. – Sammy, temos que voltar ao trabalho. Jack recomeçou a cortar o gesso da parede. Jenna olhou de relance para Sammy. – Ele é um cara complicado – explicou ele em voz baixa.
– Estou começando a perceber – comentou ela, no mesmo tom.
Mais tarde naquela noite, depois de as crianças irem dormir, Jack pegou uma lanterna e foi até o farol. Abriu a porta e vasculhou em volta com o facho de luz. Já tinha examinado as caixas encostadas na parede. Dessa vez foi subindo com cuidado os degraus frágeis, testando cada um deles antes de prosseguir. Ouviu passinhos apressados e moveu a lanterna a tempo de ver um camundongo passar depressa junto ao seu pé. Seguiu em frente, fazendo os velhos degraus de madeira rangerem sob seu peso. Por fim chegou ao patamar superior, bem debaixo da porta de acesso à área onde ficava o mecanismo do farol. Enquanto ele movia o facho de luz à sua volta, objetos se revelavam, suas silhuetas passando velozes, como um filme em preto e branco em um velho projetor. Ele parou em um ponto e chegou mais perto. Era um colchão. Ajoelhouse para vê-lo melhor. Sentada no colchão, apoiada de costas na parede do farol, estava uma boneca. Ele estendeu a mão e a pegou. Os cabelos estavam sujos e bolorentos, o rosto manchado. Mesmo assim, ele a fitava como se fosse uma barra de ouro. Sabia que tinha pertencido a Lizzie. Tinha visto uma foto em que ela segurava aquela boneca. Levantou-se e tornou a mover o facho da lanterna à sua volta. Em uma das paredes havia um desenho que parecia ter sido feito com hidrocor. Era uma menina de maria-chiquinha e com um largo sorriso. Abaixo do desenho estava escrito o nome “Lizzie” . Ao lado da menina havia um farol com o facho de luz aceso. Sob ele, a palavra “Céu” . Jack observou que o facho de luz do farol havia sido estendido para abarcar essa palavra. Estava prestes a sair dali quando deparou com outra coisa. Ele se ajoelhou e segurou o facho junto à parede. O desenho havia sido parcialmente apagado, mas Jack ainda podia ver o que era. Outra menina de maria-chiquinha. Poderia ter sido uma segunda representação de Lizzie, porém, ao examinar o desenho mais de perto, viu que havia uma diferença importante. Aquela menina não estava
sorrindo. Os cantos de sua boca apontavam para baixo. – Você não parece uma menina feliz – sussurrou Jack. Olhou um pouco mais para baixo e se aproximou para ler o que estava escrito na parede. Conseguiu distinguir três letras: “T-i-l”. Aquela devia ser Tillie, a irmã gêmea de Lizzie que morrera de meningite. Jack ficou de cócoras para analisar o desenho inteiro. As outras letras estavam apagadas demais para serem lidas. A luz do farol se estendia para a frente, mas não chegava a incluir Tillie. A menina permanecia no escuro. – Você nunca encontrou o Céu onde Tillie estava, Lizzie. Jack sentiu lágrimas brotarem em seus olhos e o peito ficar oprimido. Segurando a boneca sob um dos braços, ele empurrou a porta que dava para a área externa do farol. Ergueu os olhos para as estrelas. Com certeza havia um Céu em algum lugar lá em cima. Tillie estaria lá. E agora Lizzie também. Ele ergueu a mão para acenar para a esposa. Então, sentindo-se tolo, baixou-a, mas continuou com os olhos voltados para cima. Sua mulher parecia estar bem ali do seu lado. Ele fechou os olhos para visualizar o rosto dela. Mais de seis meses. Não podia fazer tanto tempo desde a última vez que ele ouvira sua voz e sua risada, tocara sua pele ou a vira sorrir. Não pode fazer tanto tempo assim, Lizzie. Jack ergueu a mão para o céu. Seu dedo tapou uma estrela, talvez localizada a um trilhão de anos-luz de distância e do tamanho do Sol. Se seu dedo conseguia cobrir uma estrela, Lizzie não podia estar perto dele? Com cuidado, ele pôs a boneca no chão e tirou o envelope do bolso. O número 3 estava escrito do lado de fora. A carta fora escrita no dia 20 de dezembro. Ele já sabia o que dizia. Havia decorado cada palavra de cada uma das cartas. Mas, se Lizzie não podia lê-las, ele as leria para ela.
Querida Lizzie, Faltam cinco dias para o Natal e esta é uma boa época para refletir sobre a vida. A sua vida. Vai ser difícil para mim escrever esta carta e certamente para você também não será fácil lê-la, mas estas palavras precisam ser ditas. Você é jovem e tem muitos anos pela frente. Cory e Jackie ainda vão passar muito tempo morando com você. E até Mikki vai ganhar com isso. Lizzie, estou falando sobre você encontrar outra pessoa. Sei que no início você não vai querer. Vai se sentir até culpada por pensar em ter
outro homem na sua vida, mas, Lizzie, é assim que tem de ser. Não posso deixar que você passe o resto da vida sozinha, não seria justo com você. E isso não vai mudar em nada o amor que sentimos um pelo outro. Nada mudaria. Nosso amor é grande demais, vai durar para sempre. Mas existem diversos tipos de amor e é possível amar muitas pessoas. Lizzie, você é maravilhosa e pode tornar maravilhosa a vida de alguém. O amor foi feito para ser compartilhado, não escondido nem guardado.
Jack fez uma pausa e uma lágrima solitária caiu sobre o papel.
E você tem muito amor para dar. Isso não significa que seu amor por mim vá diminuir, só que você vai encontrar mais amor em seu coração para oferecer a outra pessoa. Você vai fazer essa pessoa feliz e ele vai fazê-la feliz também. E Jackie, principalmente, vai ter um pai para ajudá-lo a se tornar um homem bom. Nosso filho merece isso. Acredite em mim, Lizzie, se as coisas pudessem ser de outro jeito, eu faria de tudo para que fossem. Mas é preciso lidar com o que a vida nos oferece e eu estou dando o melhor de mim para fazer isso. Amo você com todo o meu coração, amo demais para impedir que você seja feliz. Com amor, Jack Ele guardou a carta no envelope e o colocou de volta no bolso. Pegou a boneca e passou um longo tempo olhando o mar. Por fim, desceu a escada e saiu do farol. Ergueu os olhos para aquela construção. O Farol da Lizzie. Jack caminhou de volta para casa pensando em como tudo deveria ter sido.
Mikki se revirou na cama. Lá fora, as ondas quebravam na praia. Até pouco tempo antes, aquele som lhe era totalmente desconhecido. Agora, era algo tão familiar que Mikki não tinha certeza de que um dia fosse querer viver sem ele. Ela bocejou, sentou na cama e se espreguiçou demoradamente. Olhou para o relógio e viu que eram seis e meia da manhã. Gostava de sair para correr a essa hora, de forma que pudesse estar de volta antes que o pai e Sammy saíssem para o trabalho. Despiu a camisa de mangas compridas que geralmente usava para dormir e vestiu um short de corrida, camiseta, meias de cano curto e tênis. Passou rapidamente no banheiro para fazer um rabo de cavalo. Antes de sair, foi dar uma olhada nos irmãos, que dividiam um quarto no final do corredor, perto do quarto do pai. Os dois ainda dormiam, Cory esparramado de bruços e Jackie de costas, mas com as duas pernas tão dobradas que suas cobertas formavam uma tenda. Ela sorriu ao escutar o leve ronco dos meninos. Quando passou pelo quarto do pai, Mikki ouviu movimentos lá dentro. Bateu de leve na porta. – Pai, estou saindo para correr – avisou. – Vou ligar a cafeteira. Volto daqui a mais ou menos uma hora. – OK, obrigado – respondeu Jack sonolento. Preparou a cafeteira e tirou duas canecas do armário, uma para o pai e outra para Sammy. Eles cuidavam do próprio café da manhã, mas Mikki vinha fazendo o dos irmãos. Às vezes era só um cereal. Mas em outras ocasiões ela havia preparado ovos mexidos e bacon, ou então um mingau com grits, uma farinha de milho típica do Sul, que seus irmãos tinham amado na hora e que ela não suportava. Desceu saltitando os degraus da varanda e cruzou as dunas até o trecho plano da praia. Fez um alongamento e começou a correr. Seguia pela parte dura e compacta da areia e seus passos largos a levavam pela praia em ritmo acelerado. Quando
havia percorrido cerca de um quilômetro, Blake apareceu para se juntar a ela. Eles conversavam enquanto corriam e Mikki se pegou gostando da companhia dele, apesar de o rapaz ser amigo de uma garota como Tiffany Murdoch. Blake a fazia rir. Alguns quilômetros depois, ele se despediu e foi embora, correndo em direção à rua. Foi quando Mikki se virou para voltar ao Palácio e reconheceu alguém no mar. – Liam? Correu até mais perto da água enquanto ele ficava em pé e acenava. – Natação matinal? – perguntou ela. Ele caminhou por entre as ondas até junto dela. – Músicos e cozinheiros em início de carreira costumam vir aqui manter a forma. E eu não gosto de correr. Ela sorriu e olhou para o mar. – Minha mãe me ensinou a nadar em uma piscininha no nosso quintal – disse ela. – É sempre bom saber nadar – comentou ele, tentando tirar a areia dos cabelos. – Parece que você estava se exercitando. Não quero atrapalhar. – Faltam só alguns quilômetros. – Quilômetros! Eu já estaria passando mal. – Que nada! Você parece estar super em forma. – Se eu continuar comendo no restaurante, vão ter que começar a me tirar da cozinha dentro de um carrinho de mão. – Meu pai disse que o trabalho na sua casa já andou bastante. – Aí a gente vai poder tocar para valer. E minha mãe não vai me matar. – Mal posso esperar. De volta ao Palácio, Mikki tomou uma ducha e trocou de roupa. O pai havia lhe feito uma surpresa e preparado o café para todo mundo: panquecas e presunto. – Eu ajudo – anunciou Jackie, antes de despejar uns dez litros de calda em cima das panquecas do pai. Enquanto os outros ainda comiam, Mikki subiu correndo e foi até o armário de seu quarto pegar as coisas que levaria para a praia com os meninos. Quando estava voltando, sua bolsa virou. Ela se abaixou e começou a rastejar pelo chão para recolher tudo. Foi então que notou uma tábua solta perto dos fundos do armário. Pressionou-a e viu surgir a borda de uma fotografia. Pegou-a e observou a imagem. Desceu até o térreo para mostrar a foto ao pai, que estava terminando de
tomar café. Jack examinou o retrato de Lizzie menina. Ela estava rodeada pela família. Fred e Bonnie, bem mais novos, e todos os filhos. – Está vendo, pai? – indagou Mikki, apontando para uma das pessoas na foto. – Estou, querida. Estou vendo, sim. – É a gêmea da mamãe, não é? A que morreu? – É. O nome dela era Tillie. – Foi por isso que eles se mudaram daqui? E não por causa do emprego do vovô? Por causa da tristeza pela morte dela? – É – admitiu Jack. – Acho que foi em parte por causa disso. – Não sei o que eu faria se acontecesse alguma coisa com Cory ou Jackie. E perder um irmão gêmeo... De certa forma, é como perder uma parte de você mesmo. – Acho que você tem razão. Ele estendeu a mão para pegar a foto, mas Mikki recuou. – Posso ficar com ela? – pediu a garota. – Claro, meu amor. É sua.
–Bonnie? A sogra era a última pessoa que Jack esperava encontrar quando foi atender a porta. Ela estava vestida de forma casual: calça, camisa azul-turquesa, sandálias. Tirou os óculos de sol e perguntou: – Posso entrar? – Claro. Ele se afastou e olhou por cima de seu ombro. – O Fred não veio – informou Bonnie. – Quando você chegou? – Uns dois dias atrás. Alugamos uma casa. – Aqui? – É. Eu sou daqui, afinal de contas. – Claro. Só fiquei surpreso. Os dois se sentaram no sofá da sala da frente. – Tenho que dizer que fiquei surpresa por minha mãe ter lhe deixado esta casa – começou ela. – Não mais do que eu. – É – comentou, distraída. – Imagino que não. Jack hesitou, mas decidiu falar: – Ouvi Lizzie comentar com você que queria trazer as crianças para cá depois que eu morresse. Bonnie o encarou, mas não disse nada. – Você ficou espantada, não foi? Por ela querer voltar para cá. – Onde estão as crianças? – perguntou sua sogra, ignorando a pergunta. – Na praia. Posso chamá-las se quiser. – Não, vamos conversar primeiro – falou ela, olhando então em volta. – Reparei nas tábuas novas da varanda e da escada e o quintal está muito bem-cuidado.
– Sammy e eu estamos fazendo alguns pequenos consertos. Parte elétrica, hidráulica, telhado, um pouco de paisagismo. – Devem ser mais do que alguns pequenos consertos – cortou ela, encarando-o novamente. – Imagino que tenha sido por isso que ela deixou a casa para você. Porque só você poderia reformar isto aqui. – Como eu disse, foi uma grande surpresa para mim. – Ela me deixou uma carta explicando tudo. – Também deixou uma para mim. – Mamãe sempre pensava em tudo – observou Bonnie, seca. – Andei pensando em reformar o farol também. O Farol da Lizzie. – Por favor, não faça isso. Sabia que ela ficou obcecada por esse maldito farol? – Ela me contou – disse Jack. – Mas era só uma menina. – Não, ela passou meses obcecada. Subia lá todas as noites. Nos obrigava a acender a luz para procurar Tillie. – No Céu – emendou Jack. – O quê? – Lizzie dizia que estava procurando Tillie no Céu. – É, bom, foi muito estressante para todo mundo. Aí a luz parou de funcionar e ela ficou tão triste... Quando Fred recebeu a proposta de emprego em Cleveland, não perdemos a oportunidade de ir embora deste lugar. E, para responder à sua pergunta, eu fiquei espantada quando ela disse que estava pensando em voltar aqui. – Mas Lizzie era uma mulher feita, mãe de três filhos. Não iria ficar aqui procurando o Céu e a irmã falecida. – Tem certeza? – Tenho, sim. – Como? – Porque eu conheço a Lizzie. Bonnie desviou o olhar, mas não pareceu convencida. Jack resolveu mudar de assunto: – Você e Fred podem ficar à vontade para usar a casa sempre que quiserem. Ela com certeza é mais sua do que minha. – É muita bondade sua, mas eu não conseguiria. Precisei de todas as minhas forças para vir aqui hoje. Ela se levantou e foi até um batente de porta que exibia marcas horizontais na madeira.
– Era aqui que eu media a altura das crianças. Lizzie crescia mais depressa do que as irmãs mais velhas. Elas ficavam doidas com isso. – Já tínhamos visto essas marcas – disse Jack. – Pensei em começar a fazer o mesmo com Cory e Jackie. Bonnie foi até a janela e ergueu os olhos para o farol. Estremeceu. – Não consigo acreditar que essa porcaria continue de pé. Ela tornou a se sentar. – Gostaria de visitar as crianças enquanto Fred e eu estivermos aqui. – Claro. Quando quiser. Jack começou a dizer alguma outra coisa, mas então se conteve. Aqueles instantes de trégua entre eles agora eram tão incomuns que ele não queria estragar tudo. Mas Bonnie percebeu seu dilema. – O que foi? – Sabe aquela matéria na revista de fofoca? – começou ele. – Foi repulsiva. Se eu tivesse conseguido encontrar aquele repórter, teria estrangulado o desgraçado. A expressão no rosto de Jack deixou clara sua confusão: – Se tivesse conseguido encontrar o repórter? Ela o encarou e então pareceu compreender o que ele estava pensando. Enrubesceu, zangada. – Acha mesmo que eu teria falado com uma revista de fofocas ordinária sobre a minha própria filha? – Mas as coisas que estavam escritas naquela matéria... Quem mais poderia saber? – Não sei. Mas posso garantir a você que não fui eu. Eles fizeram Lizzie parecer... bem, alguém que ela realmente não era. – Mas você nunca me ligou para falar sobre isso. – E por que ligaria? Eu sabia que nada daquilo era verdade. Lizzie trair você? Isso é tão absurdo quanto pensar que você a traísse. Sei que você nunca a acusaria de uma coisa dessas. – Mas e quanto a ela ter saído naquela noite para ir à farmácia? Você parecia muito zangada quando me entregou os remédios. Bonnie ficou claramente constrangida. – Eu estava zangada. Mas sabia que não era culpa sua. Liguei para Lizzie pensando que ela estivesse em casa e ela estava na farmácia. Disse que você tinha pedido a ela
que não fosse. Só agi daquele jeito porque... bom, eu tinha acabado de enterrar minha filha e não estava pensando direito. Sinto muito. – Tudo bem, eu entendo. – Eu amo meus netos. Quero o melhor para eles. – Eu sei. Eu também quero. Ela inspirou fundo. – Jack, eu sei que é difícil, mas ouça o que eu tenho a dizer. Pronto, lá vem, pensou ele. O motivo real da visita. – Desde que você se recuperou, eu conversei com vários médicos. – Por que fez isso? – indagou ele, ríspido. – Porque as crianças vão ficar órfãs se perderem o pai, só por isso. – Não sei se você percebeu, Bonnie, mas eu estou vivo. – Todos os médicos com os quais conversei me disseram que isso era impossível. A doença que você tem é fatal, sem exceção. Desculpe, mas foi o que eles disseram. – Tinha. A doença que eu tinha. Não tenho mais. Meus exames estão todos normais. – Coisa que esses mesmos médicos, um deles de uma clínica muito renomada, também disseram ser impossível. A doença não some. Ela pode entrar em um estado de hibernação, mas sempre volta. E, quando voltar, o consenso é que você não vai ter mais do que umas poucas semanas. – Bonnie, por que estamos falando nisso? Olhe para mim. Eu não estou mais doente. – Essas três crianças já sofreram tanto... Você à beira da morte. Lizzie morta. Terem de ir cada uma para uma cidade. – Isso quem fez foi você, não eu. – E que alternativa eu tinha? Diga. Jack olhou para o outro lado. – Tudo bem, talvez você não tivesse alternativa. Mas não estou entendendo aonde quer chegar agora. – E se a doença voltar? E se você morrer? Tem ideia de como as crianças vão ficar? Ninguém aguentaria tanta tristeza. Elas são só crianças; uma coisa assim as arrasaria para sempre. – O que você quer que eu faça? Que lhe devolva meus filhos? Que vá me encolher em um canto esperando para ver se a doença volta? – Não, mas vocês poderiam vir morar conosco no Arizona. Você e as crianças.
Assim elas podem ter uma rotina regrada. E, se alguma coisa acontecer a você, nós estaremos lá para ajudar e as crianças já vão estar acostumadas a morar conosco. Jack olhou para ela desconfiado. – Está me dizendo que vocês estão dispostos a acolher nós quatro? – Estou. Mamãe lhe deixou o Palácio, mas também deixou bastante dinheiro para mim. Agora temos condições de comprar uma casa maior e de sustentar todos vocês. – Obrigado, mas posso sustentar minha família – disse ele com firmeza. – Não foi isso que eu quis dizer. – Tudo bem. – Só estou tentando ajudar. – Fico grato. – Quer dizer que não vai pensar na minha proposta? – Não, não vou. Bonnie se levantou. – Bom, acho que é isso, então – disse. – Posso ver as crianças? – Claro. Eu a levo até lá. Gostaria muito que participasse da vida delas. – Eu também.
No domingo, enquanto Sammy dava uma volta de moto, Jack pôs os filhos na Kombi e foi até o centro de Channing. Vinha trabalhando muito na casa de Jenna e em alguns outros lugares e as crianças precisavam sair um pouco do Palácio. Jack tinha conversado com Ned Parker, que concordara em fazer um tour com a família pelos bastidores da casa de espetáculos da cidade. Parker os encontrou em frente ao prédio e, ao longo da hora seguinte, foi seu guia pelo teatro. Mostrou a Cory como acionar a iluminação da casa, suspender e baixar cenários, movimentar equipamentos no palco e acionar um alçapão no meio que fazia as pessoas em cena desaparecer. Jackie adorou essa parte. Ao sair do teatro, eles seguiram pela rua avaliando as entradas dos restaurantes. Alguém chamou Jack da outra calçada. Era Charles Pinckney, que ia caminhando apressado em sua direção. Estava vestido de forma casual, com uma camiseta sob a camisa de botão, bermuda cáqui e sandálias de couro. – Tirou o domingo para aproveitar o sol e os encantos de Channing? Jack assentiu. – Para sair um pouco de casa. Olhar a cidade. – Estão com fome? – Estamos decidindo onde comer – respondeu Jack. Os olhos de Charles brilharam. – Nesse caso, vocês na verdade só têm uma opção. – O Little Bit of Love – disse Mikki na hora. – A gente já foi lá – disse Jack. – Que tal um lugar diferente desta vez? Vi três restaurantes só aqui neste quarteirão. – Mas Jackie e Cory ainda não foram ao Little Bit – argumentou a garota, virando-se para os irmãos. – Tem várias coisas de música lá. É muito legal. – É muito legal – repetiu Jackie. Mikki sorriu.
– Você vai gostar de lá, Jackie. O menino começou a pular. – Eu vou gostar. Eu vou gostar – ele começou a repetir, agarrando a perna do pai. – Que golpe baixo, Mikki – comentou Cory. – A verdade é que Jenna tem o melhor brunch da cidade – apaziguou Charles. – Eu mesmo estava indo para lá. – Então está certo – disse Jack, resignado. Jenna sorriu ao vê-los entrar. O restaurante estava cheio, mas ela disse: – Tenho uma bela mesa na janela. Dá para pegar um pouco da brisa. Venham comigo. Ela os acomodou, distribuiu os cardápios e anotou os pedidos de bebida. – Liam está por aqui hoje? – quis saber Mikki. – Está cuidando dos grelhados. Ele se sai muito bem na cozinha. – Nós combinamos de eu passar na casa de vocês hoje à noite para tocar um pouco. Jack olhou para a filha. – Ah, é? Ela retribuiu seu olhar: – É. Passar o dia inteiro em casa vigiando Cory e Jackie não era exatamente o que eu tinha planejado para o meu verão. – Você não precisa ficar me vigiando – disse Cory. – É – contribuiu Jackie. – Nem eu. Jenna olhou para Jack e, percebendo o seu mal-estar, falou: – Bom, seu pai está trabalhando bastante no isolamento, mas ainda não ficou pronto. E, embora o som de vocês seja incrível, gosto de ter um pouco de paz e tranquilidade à noite. Mas vamos fazer o seguinte: pode passar lá às oito. Liam já vai estar em casa e nesse horário eu costumo dar uma volta pela praia. Demoro mais ou menos uma hora. Está bom assim? – Está ótimo, Jenna, obrigada. Jenna olhou para Jack. – E está ótimo para o pai também? – Está – respondeu Jack devagar. – Seu amigo da Força Delta não veio? – indagou ela. – Ele foi passear de Harley – respondeu Cory.
– Ah. Bom, é melhor ele se cuidar. Conheço algumas solteironas por aqui que não hesitariam em agarrá-lo. Quando Jenna se foi, Jack se inclinou e sussurrou para a filha: – Essa história entre você e o Liam é só música, certo? – Pai! – Estou só perguntando. Ele então mudou o foco e se virou para Charles: – Bonnie veio me visitar – falou. – Ela me disse que iria. – E contou qual era o assunto? – Contou. Eu me encontrei com ela depois. Ela me falou da conversa que tiveram. Eu disse a ela que concordava com você. Não acho que era o que ela queria ouvir, mas paciência. – O que ela queria ouvir? – perguntou Mikki, que estava prestando atenção na conversa. – Outra hora, Mik, agora não – respondeu-lhe o pai, indicando os meninos num rápido movimento dos olhos. Então completou. – Foi tudo bem na visita da sua avó? – Ela estava mais relaxada do que no Arizona – respondeu Mikki. – Lá ela queria controlar tudo. Me deixava maluca. Jack se virou para Charles, encerrando ali o assunto. – Fui dar uma olhada no farol outro dia – contou a Pinckney. – Ah, foi? E como está aquilo lá? – Nada bem, na verdade. – Aquele farol era mesmo sensacional antigamente. – Aposto que sim – disse Jack. – Aposto que sim.
Depois do almoço, eles estavam voltando para a Kombi quando Charles apontou para o outro lado da rua e disse: – Falando em assombração... Jack olhou para onde o amigo apontava. Bonnie e Fred entravam em uma loja de presentes. Mikki chegou perto do pai e disse, em voz baixa: – O que está acontecendo? O que a vovó veio fazer aqui de verdade? – Só fazer uma proposta. Mikki aguardou, ansiosa. – Ela convidou todos nós para morarmos com eles no Arizona – completou Jack. – De jeito nenhum. Você não está pensando em fazer isso, está? – Não. Mikki estava prestes a dizer algo mais quando viu Blake Saunders descendo a rua com dois outros rapazes musculosos. Todos usavam camisas de futebol americano nas quais se lia channing high. – Oi – cumprimentou-o Mikki. Jack olhou para a filha com um ar intrigado. – Blake e eu nos conhecemos na praia quando eu estava correndo – explicou ela. – E às vezes corremos juntos. – Obrigado por me avisar – ralhou Jack e olhou então para o rapaz: – Você me é familiar. Blake pareceu encabulado. – Eu estava no carro que quase tirou o senhor da rua no outro dia. – O nome da menina que estava dirigindo é Tiffany – informou Mikki. – E ela é super-rica, o que não surpreende. – Eu disse a ela para ir mais devagar, mas ela não ouve ninguém – emendou Blake. – É, aposto que não – disse Mikki.
Blake se virou para ela. – Vamos dar uma festa na praia sábado que vem. Estava pensando se você gostaria de ir. Vai ter comida, fogueira e música. – E ninguém vai beber, claro – interveio Jack. – Não, senhor – respondeu Blake no ato, apesar do sorriso que seus amigos deixaram escapar. – Certo. Ela vai ter que pensar um pouco antes de responder – disse Jack, enquanto Mikki o fitava com uma expressão irada. – Vai ser às nove. Mais ou menos no meio do nosso trajeto de corrida, perto daquela casa amarela grande – acrescentou Blake. – Está bem. – Então está bem, espero ver você lá. Os rapazes se afastaram. – Que história é essa? – quis saber Jack. – Você está namorando? – perguntou um Cory sorridente. – Pensei que gostasse daquele tal de Liam. O rosto de Mikki ficou vermelho. – Querem parar com isso, vocês dois? – Esse cara nem usa brinco e tem os cabelos totalmente normais – disse Jack. – Ele não faz seu tipo. Pelo amor de Deus, ele joga futebol americano! Você odeia jogadores de futebol americano. – Quem falou isso? – Sua mãe. Fazia piada com isso porque ela se casou com um jogador de futebol americano. – Acho que posso decidir sozinha quem faz meu tipo – rebateu Mikki, exaltada. – Bom, eu continuo sendo seu pai e não gosto de ideia de... – Ei, homem-milagre! Jack se virou para ver de onde tinha vindo aquela voz. – Aqui, milagre. Ao se virar, viu dois homens grandes sentados na cabine de uma picape, olhando na sua direção. Um deles colocou a cabeça para fora. – Estou precisando de um milagre. Pode vir aqui despejar um pouco de água benta na minha cabeça? – zombou, acenando com uma nota de cinco dólares. – Não estou querendo de graça. Pago um bom dinheiro. Os dois homens na picape desataram a rir. Desceram do carro e se encostaram
nele, cruzando os braços fortes. Usavam calça jeans, camisas sujas e bonés sebentos na cabeça. Seus braços nus estavam cobertos de tatuagens. – Pai? – disse Cory, assustado. – Tudo bem, filho. Vamos continuar andando. Eles passaram pelos homens. – Ei, milagre, você é bom demais para falar com pobres feito nós? – provocou um deles. Mikki não se controlou: – Cresçam, seus imbecis! – Mikki – repreendeu Jack. – Continue andando e pronto. – É, Mikki – arremedou um dos homens. – Continue andando e pronto, docinho. O comentário fez Jack se retesar. Ele quase se virou, mas estava com os filhos, e sabia que brigar não seria bom para ninguém. – Quando chegarmos em casa, vamos descer até a praia e... – começou a dizer às crianças. – Ei, Milagre, é verdade que a vadia da sua mulher estava chifrando você com seu melhor amigo? Jack se moveu tão depressa que a mão de Cory continuou no ar onde estivera segurando a do pai. Quando partiu para cima dos dois homens, um deles desferiu um soco. Jack se abaixou, segurou a mão dele, torceu-a para trás, virou o homem de costas e o empurrou de cabeça contra a picape. Quando ele se virou todo ensanguentado e tentou novamente atingir Jack, este deu um passo para o lado e revidou com um soco no queixo que o fez desabar. O segundo homem agarrou Jack pelas costas, empurrando-o de cara para um poste de rua. Um segundo depois, ele conseguiu se desvencilhar, desferiu um soco no diafragma do sujeito que o obrigou a se dobrar e em seguida lhe passou uma rasteira. Por fim, uma cotovelada na nuca o derrubou na calçada, onde ele permaneceu, gemendo. Jack apoiava as mãos nos joelhos, arquejando, com sangue a escorrer do rosto por causa da pancada no poste. Quando se endireitou e olhou em volta, pareceulhe que a cidade de Channing inteira o observava. Ninguém se mexia, ninguém sequer parecia respirar. Do outro lado da rua, Jenna e Liam o encaravam da porta do restaurante. Quando se virou para a esquerda, viu Bonnie e Fred, boquiabertos, parando em frente à loja de presentes. Bonnie olhou para Jack, em seguida para os dois homens no chão, depois de volta para o genro que sangrava.
– Papai! – chamou Jackie. O menino chorava alto, em pé na calçada. Cory, imóvel, olhava assombrado para o pai, enquanto Mikki fitava com raiva e desprezo os dois homens caídos na calçada. – Idiotas! – xingou ela. Jack levou os filhos depressa para a Kombi e voltou para o Palácio.
Sentado à mesa da cozinha, Jack segurava algumas pedras de gelo enroladas numa toalha contra o lado esquerdo do rosto. Havia sangue seco em sua testa no ponto em que havia batido no poste. Quando alguém bateu à porta, ele pensou que fosse a polícia. – O velhinho e a moça bonita – anunciou seu filho caçula depois de conseguir abrir a porta. Jenna e Charles entraram. Ela, que carregava uma pequena bolsa, sentou-se ao lado de Jack. Começou a retirar objetos de lá: antisséptico, Band-Aids, uma bolsa de gelo e uma pomada. – O que vocês estão fazendo aqui? – perguntou Jack. Jenna afastou a mão de Jack do rosto machucado e limpou os cortes, depois passou a pomada e cobriu tudo com um Band-Aid grande. – Achamos que você talvez fosse precisar de uma ajudinha – disse Charles. – Aqueles dois idiotas – disse Jenna. – Provocando as pessoas desse jeito. Deviam estar bêbados. – Você os conhece? – perguntou Jack. – Eles aparecem no Little Bit de vez em quando. Mas não posso dizer que os conheça. – São de Sweat Town – acrescentou Charles. – É o bairro pobre de Channing. Toda cidade praiana tem o seu. A maioria das pessoas que trabalham por aqui moram lá. – Peguei esta bolsa de gelo – disse Jenna. – Vai aliviar o inchaço. – Obrigado. Ela lhe entregou a bolsa, se recostou na cadeira e avaliou o rosto de Jack. – Pronto, acho que você está medicado. – Você tem talento para isso – comentou Mikki. – É só o procedimento-padrão de qualquer mãe.
Jackie tentava insistentemente pegar a bolsa de primeiros-socorros. Jenna pôs um Band-Aid no seu dedo e deu um beijo ali. – Agora o seu dodói também passou. Ela ajeitou a coluna e olhou com firmeza para Jack: – Parece que você não esqueceu o treinamento militar. Aqueles caras não eram fracotes e você os derrubou bem depressa. Jack fez uma careta: – Foi estupidez minha. Não deveria ter feito aquilo. A porta se abriu e Sammy entrou carregando seu capacete. – Que passeio mais agradável... – ia dizendo, mas ao ver Jack mudou de tom: – O que aconteceu? Você caiu de alguma escada? – Papai bigou – berrou Jackie. O menino deu um chute no ar, seguido por um soco tão forte que o derrubou no chão. – Brigou? Com quem? – quis saber Sammy. Mikki e Cory se puseram a contar ao mesmo tempo o que tinha acontecido. A expressão de Sammy foi ficando mais séria à medida que ele os ouvia. Quando chegaram ao que um dos homens tinha dito sobre Lizzie, Sammy foi até sua caixa de ferramentas e buscou um pé de cabra. – Onde eu encontro esses idiotas? – Sammy, não – disse Jack. – Não vou deixar dizerem uma coisa dessas e ficar por isso mesmo – vociferou Sammy. – Deixe que eu cuide disso. – Por quê? Você acha que eu sou velho demais? – A questão não é essa. Se você bater neles, vai acabar preso. – Ele tem razão, Sammy – apoiou Charles. – Não é assim que devemos lidar com isso. – Ih – fez Jackie, que estava olhando pela janela. – O que foi, Jackie? – perguntou-lhe a irmã. O menino apontou para a porta, com os olhos arregalados. – Os tiras – disse ele, com um sussurro bem pouco característico, antes de sair correndo para se esconder no outro cômodo. Jack olhou para os filhos mais velhos com seriedade: – “Tiras”? Onde foi que ele aprendeu isso?
Mikki olhou para o chão, pouco à vontade. Cory pôs-se a analisar o teto, mordendo o lábio inferior. – Maravilha – ralhou Jack, enquanto se levantava para atender à porta. O xerife se apresentou como Nathan Tammie. Era um homem grande, com um rosto largo, sério, e cabelos escuros encaracolados. Ele ouviu o depoimento de Jack e coçou o queixo. – Isso corresponde ao que as outras pessoas disseram que aconteceu. Mas o senhor de fato partiu para cima deles. – Eles provocaram. Aqueles homens disseram coisas horríveis da nossa mãe! – exclamou Mikki. – O que o senhor queria que meu pai fizesse? – Xerife, Charles e eu vimos tudo – disse Jenna. – Foi exatamente como Mikki está dizendo. Jack foi provocado. Qualquer um teria reagido da mesma forma. – Não estou dizendo que eu não teria feito o mesmo, Jenna, mas também não posso deixar esse tipo de coisa acontecer na nossa cidade sem nenhuma consequência. Já disse àqueles rapazes para esquecerem o assunto. E espero que o senhor também controle seu temperamento, Sr. Armstrong. Se alguma coisa tornar a acontecer, venha me avisar e eu resolvo, entendido? Porque, se houver uma próxima vez, alguém vai acabar na cadeia. – Entendido. Depois que o xerife saiu, Charles Pinckney foi o primeiro a se pronunciar: – Ele é um bom sujeito. E também um homem que cumpre com a palavra – falou e então se virou para Jenna: – Quer uma carona de volta à cidade? – Quero, sim, mas você me daria licença um minuto antes de irmos? Charles a deixou a sós com Jack. Contrariado, Sammy se retirara para o outro cômodo e as crianças haviam desaparecido na primeira oportunidade. – Homem-milagre? – perguntou Jenna a Jack. Jack a encarou, segurando a bolsa de gelo junto ao rosto. – É uma longa história. – Gosto de escutar histórias. – Obrigado, Jenna, mas é que... – Já vi que você é do tipo que não se abre com facilidade. Guarda tudo para si. – Talvez a gente converse sobre isso. Mas não agora. – Bom, se precisar de alguma coisa, é só avisar – falou ela, levantando-se para ir embora.
– Jenna? – Sim? Ele tocou o Band-Aid em seu rosto. – Obrigado por ter vindo. Foi muito importante para mim. Ela sorriu. – Da próxima vez espero não ter que trazer meu kit de primeiros-socorros.
O barulho os acordou. Acenderam a luzes e Jack e Sammy correram para ver se as crianças estavam bem. Só então foram conferir o restante da casa. – Pareceu uma bomba – disse Sammy. – Ou um prédio desabando. – Droga! – disse Jack, e saiu em disparada em direção aos fundos da casa. – Jack! O que foi? Sammy foi correndo atrás dele. Jack atravessou o quintal às pressas, indo para a ponta rochosa. Abriu a porta do farol com violência e estacou. A escada tinha desabado. Ele moveu o facho da lanterna para cima. Todos os degraus tinham vindo abaixo. Sammy chegou ofegante: – Nossa! Você não veio lá de cima agora há pouco? Jack aquiesceu, com o olhar ainda pregado na estrutura em ruínas. Agora não podia chegar ao pavimento superior. – Foi por pouco, rapaz – emendou Sammy. Jack se virou para ele. – Vou ter que reconstruir a escada. – O quê? – Podemos ir buscar o material amanhã. – Mas ainda temos outros serviços para terminar. E Charles nos indicou para mais alguns trabalhos. Uma tal Anne Bethune tem uma casa grande na praia e quer fechar uma varanda com tela, além de outras coisinhas. Paga bem. – Vou fazer isto aqui no meu tempo livre. – É, no pouco tempo livre que você tem. – Eu preciso fazer isso, Sammy. Sammy observou a montanha de madeira quebrada. – Vai sair caro. – Vou tirar da minha parte. E não precisa me ajudar.
O amigo franziu o cenho. – Desde quando nós temos parte? E desde quando não ajudamos um ao outro? – Mas isso é diferente, Sammy. Não posso pedir que você faça essa escada também. Sammy olhou para as palavras pintadas à mão ao lado da porta e, em voz baixa, falou: – Podemos tirar as medidas e comprar o material de manhã. Fazemos os outros serviços durante o dia e isto aqui depois do expediente. Fica bom assim? – Fica – respondeu Jack. – Obrigado, Sammy. Ele já voltava para a casa, mas parou e se virou para o amigo: – Jack, eu nunca fui casado, mas sei o que é perder alguém. Principalmente alguém como Lizzie. Sammy seguiu andando na direção do Palácio e Jack ficou ali um pouco mais, olhando para o farol que iria reconstruir.
– Para que tudo isso? – quis saber Charles Pinckney ao ver Jack e Sammy terminarem de encher a caçamba da picape. Charles espiou os objetos na caçamba: – Um andaime... E vocês encomendaram madeira suficiente para construir outra arca de Noé. – Houve um pequeno acidente no Palácio – disse Sammy, quando entendeu que Jack não responderia. – Acidente? Alguém se machucou? – perguntou Charles, preocupado. – A escada do farol desabou – disse Jack. – Mas não machucou ninguém. – Então você vai reconstruir a escada? – concluiu Charles, agora perplexo. – Vou – respondeu Jack, apenas. Sammy olhou para Charles de soslaio e deu de ombros. – Mas o farol nem acende mais – comentou o mais velho. – Ele está planejando consertar isso também – retrucou Sammy. – Mas por quê? Aquilo lá não tem serventia para os navios. Jack terminou de prender o material na caçamba da picape antes de mostrar um papel a Charles:
– Encontrei um diagrama do sistema de iluminação. Gostaria que você visse se é possível encomendar essas peças. Charles examinou a lista. – Talvez leve algum tempo. E não vai sair barato. Jack entrou no carro. – Obrigado. Sammy lançou um olhar impotente para Charles e subiu na picape também. Quando já estavam deixando o centro da cidade, Sammy falou: – Aquela ali não é a Bonnie? Jack olhou para onde o amigo apontava. De fato, era mesmo ela. Estava dentro de um carro com um homem mais jovem de terno. – Quem é aquele? – perguntou Sammy. – Nunca vi mais gordo. – Que mulher esquisita. – É. Jack se virou para olhar para a sogra, então seguiu dirigindo. Os dois descarregaram o material no Palácio. Depois Sammy pegou a Kombi e saiu para negociar com Anne Bethune, enquanto Jack ia para a casa de Jenna na picape. Esta o recebeu na porta, ainda de roupão e chinelo. – Desculpe pelos trajes. Nunca consigo fazer um turno de oito horas no restaurante. Acabo ficando lá umas quatorze. Quer um café? Jack hesitou. – É por conta da casa – disse ela, sorrindo. – Quero sim, obrigado. Jenna preparou o café e levou uma xícara até o quarto onde Jack trabalhava. Ficou observando-o refazer uma parede. – Você entende mesmo disso – comentou. – É só uma parede. Depois que você pega o jeito, é fácil. – Sei. Eu não consigo nem pendurar um quadro. – Duvido que trabalhar como advogada em Washington tenha sido fácil. – É só usar um monte de palavras pomposas. – Se você está dizendo... Jenna tomou um gole de café e continuou a observar.
– Nossos filhos se deram superbem tocando juntos. – É. Mikki me contou. – É a primeira vez que eu vejo Liam se interessar de verdade por alguém daqui. – Ele parece um bom rapaz. E o humor de Mikki melhorou muito. Isso não tem preço. Ele soltou a ferramenta que usava e bebeu um gole do café. – Você se importa se eu fizer uma pergunta pessoal? Ela o encarou com um ar brincalhão: – Vai ser o tipo de pergunta que assusta? – Não. – Então manda. – Você já pensou em se casar de novo? – Já pensei, claro. – Quer dizer, pelo que você falou, já faz algum tempo que está divorciada. Você é jovem, tem uma vida estável, é inteligente, culta e... muito bonita. – Posso contratar você para ser meu relações-públicas? – Estou falando sério, Jenna. Ela pousou a xícara, sentou e cobriu os joelhos com o roupão. – Já tive propostas de relacionamentos sérios. Até aqui, em Channing. – Mas...? – Mas nenhum deles era o homem certo. E estou disposta a esperar a pessoa certa. Sobretudo levando em conta quanto errei da primeira vez. Jack tornou a pegar a ferramenta. – Lizzie e eu nos conhecemos no ensino médio. Faríamos dezessete anos de casados agora. – Parece que você encontrou a pessoa certa na primeira tentativa. – Encontrei, sim – respondeu ele, franco. – Imagino que isso torne a perda ainda mais difícil. – É, torna. Mas tenho nossos filhos para criar e preciso fazer isso do jeito certo. Por Lizzie. – E por você, Jack. Você também faz parte dessa equação. – E por mim – concordou ele. – Espero que você encontre a pessoa certa. – Eu também – disse Jenna com um ar sonhador, sem tirar os olhos dele.
Sammy se virou para Jack e disse: – Acho que está na hora de parar. Já é quase meia-noite. – Pode ir. Vou só terminar umas coisinhas. Os dois estavam no farol. Fazia três dias que trabalhavam na casa de Anne Bethune, depois jantavam o mais rápido possível e cumpriam um turno extra de quatro horas no farol. Tinham retirado todos os escombros da escada antiga e montado o andaime até o patamar superior, que também precisava de reparos. A madeira comprada na loja de Charles Pinckney já estava do lado de fora, em pilhas bem-arrumadas. – Jack, você trabalhou dezesseis horas hoje. Precisa descansar um pouco. – Vou descansar, Sammy. Só mais meia hora. Sammy balançou a cabeça, apoiou seu cinto de ferramentas na barra mais baixa do andaime, esticou as costas doloridas e foi andando devagar de volta ao Palácio. Jack conferiu os encaixes do andaime, depois subiu nele até o patamar superior do farol e dali seguiu para a área externa. Ficou tentando imaginar o que Lizzie teria achado da vista ali de cima quando menina. – Você ficou com medo no começo? Pensou que fosse cair? Ou amou esta vista logo na primeira vez? Ele admirou o mar todo negro e deixou a brisa soprar em seu rosto. Ergueu os olhos para onde um dia Lizzie procurara o Céu de sua irmã gêmea. E agora é lá que você está, Lizzie. Mais ao longe, avistou as luzes dos navios que avançavam devagar. Fechou os olhos e sua mente o levou de volta ao cemitério gelado quatro dias depois do Natal, quando haviam enterrado Lizzie. Era lá que ela estava agora, sozinha, no escuro. – Pare com isso, Jack – ordenou a si mesmo. – Não faça isso. Não vai adiantar nada ficar pensando nessas coisas. Lembre-se de Lizzie viva, não assim.
Ele olhou para a direita e ficou surpreso ao ver alguém caminhando pela praia. Quando a pessoa chegou mais perto, Jack percebeu que era Jenna. Ela carregava as sandálias e as balançava devagar enquanto seguia beirando a água. Jack olhou para o relógio. Era quase uma da manhã. O que ela estava fazendo ali? De repente ela olhou para cima e, à luz da lua, conseguiu avistar Jack. Acenou para ele e começou a tomar a direção das pedras. – Fazendo serão? – perguntou ela, lá de baixo. – Estou só terminando umas coisas – respondeu ele. – Que surpresa ver você por aqui. – Às vezes dou uma volta pela praia depois de fechar o restaurante. Ajuda a relaxar – explicou, depois olhou para o farol e disse: – Ouvi dizer que você estava consertando isso aí. – Estou tentando – falou ele. Então, depois de uma pausa, completou: – Acho que deve parecer maluquice. – Eu acho uma boa ideia. A resposta o surpreendeu. – Por quê? – Acho uma boa ideia, só isso. Ele não disse nada. – Aliás, o isolamento acústico ficou ótimo – falou Jenna. – Não estou ouvindo mais nada. Minha qualidade de vida aumentou mil por cento. E não vou mais ter que matar meu filho. – É bom saber que fui útil. – Bem, acho melhor eu voltar. Jack olhou para a direção de onde ela viera. – Quer que eu a acompanhe? Está bem escuro na praia. – Não, tudo bem. Não tem perigo. E você ainda parece ter algumas coisas em que pensar. Antes que ele dissesse qualquer coisa, Jenna já havia se virado e saído. Ele desceu do andaime devagar. Quando passou pela porta, virou-se e olhou para as palavras pintadas à mão na parede externa. – Lizzie, eu juro que este farol vai voltar a funcionar. Aí você vai poder olhar do Céu e ver a luz dele. E quem sabe me encontrar.
–Ah, que ótimo – disse Mikki. Era sábado à noite e ela estava na festa para a qual Blake Saunders a convidara. Muitos dos convidados eram rapazes fortes que usavam camisas de futebol americano e meninas adolescentes de blusinhas justas e saias ou shorts curtíssimos. Tiffany Murdoch já havia chegado. A garota era o centro de uma rodinha junto à fogueira, que lançava faíscas em direção ao céu. A van de um bufê estava parada na rua perto da praia. Mikki, que tinha trazido um cobertor e um saco de marshmallows, ficou boquiaberta ao ver garçons e garçonetes circularem com suas bandejas pela faixa de areia oferecendo comida e bebida aos jovens que se divertiam. Blake a viu e se aproximou, com uma garrafa na mão. – Oi. Que bom que você veio. – É a primeira vez que eu vou a uma festa na praia com bufê – disse ela, em tom de reprovação. – É que o pai da Tiffany é patrocinador do time e banca esta festa todo ano. – Então é por isso que ela veio, imagino. – Ah, é. Ela é o centro das atenções, como sempre. Uma verdadeira abelharainha. – Abelhas picam – disparou Mikki em resposta. – O que tem nesse saco aí? – perguntou ele. – Nada – respondeu ela depressa, escondendo os marshmallows às costas. Ele ergueu a garrafa. – Quer provar? – Obrigada, mas não. – Não é alcoólico. – Tudo bem... – Bem, tem bastante comida e bebida – disse Blake, um pouco desapontado. – Fique à vontade, sirva-se, depois venha ficar com a gente. Ele se afastou e Mikki foi até as mesas, onde funcionários de paletó branco atendiam os convidados. Pediu uma Coca-Cola a uma mulher de pele enrugada e cabelos grisalhos. – Obrigada – agradeceu Mikki. A mulher pareceu espantada. – O que foi? – perguntou logo, desconfiando de que houvesse algo errado com a calça jeans e a camiseta que usava. – Você não é daquele grupo, é? – perguntou a mulher em voz baixa. – Não, minha família veio de Ohio neste verão. Por quê? – Você disse obrigada. – E isso é incomum? A mulher espiou os outros convidados. – No caso de algumas pessoas, é aparentemente impossível. Ohio? Vocês são os parentes de Cee Pinckney? – Ela era minha bisavó. Meu nome é Mikki. – Prazer em conhecê-la, Mikki. A Sra. Pinckney era uma mulher e tanto. Uma pena ela ter partido. – A senhora mora em Channing? – Desde que nasci, só que não na parte turística. – Como assim? – Eu moro na área que os turistas nunca visitam, a que fica longe do mar. – A senhora está falando de Sweat Town? – Então você já ouviu falar? – Alguém comentou comigo. Qual é o seu nome? – Fran. – Foi um prazer conversar com você, Fran. – Igualmente, meu bem. A mulher se virou para servir outra pessoa. Mikki pôs-se a passear entre os grupos que haviam se formado pela praia. Muitas das pessoas já estavam bastante embriagadas. Os garotos a olhavam com desejo e as garotas, com hostilidade. O que é que eu vim fazer aqui? – Ora, vejam só quem apareceu. Mikki fechou os olhos, reprimindo um grunhido, e tornou a abri-los. As coisas
estavam prestes a piorar. Tiffany estava à sua frente segurando um copo de cerveja e balançando levemente o corpo. Usava apenas a parte de baixo de um biquíni de lacinho e uma blusa curta que mal lhe cobria o peito. – Qual é o seu nome mesmo? – Mikki – respondeu ela entre os dentes cerrados. – Ah, que nem o Mickey Mouse. Tiffany deu uma risadinha e olhou para as colegas em volta, depois fez uma mesura exagerada. – Gente, esta aqui é a Mickey Mouse. Uma risada percorreu o grupo. Blake chegou nervoso e passou o braço em volta da cintura de Tiffany. – Ei, Tiff, vamos pegar algo para comer. – Não estou com fome – disse Tiffany, fazendo beicinho. Mikki imaginou que fosse assim que a garota conseguisse o que queria, unindo os lábios grossos e agindo como se tivesse 2 anos de idade. Olhou para a cerveja, em seguida para o conversível vermelho de Tiffany, estacionado junto à van do bufê. – Espero que você não esteja dirigindo – falou. – Eu faço o que quiser – retrucou Tiffany com um sorriso afetado. Blake a puxou pelo braço. – Vamos, Tiff, vamos comer alguma coisa. Você não quer que o seu pai fique bravo de novo, lembra? – Cale a boca! – disparou Tiffany, depois olhou de volta para Mikki. – Ouvi dizer que você e Blake têm corrido juntos na praia. – É, e daí? – Fiquei muito surpresa. – Por quê? – perguntou Mikki, com um tom cáustico na voz. – Não imaginava que ele gostasse de andar com gente esquisita. Mikki olhou para as roupas da outra. – Que tal da próxima vez tentar usar alguma coisa que cubra esse seu traseiro enorme? – Cale a boca! – Bem, eu vou indo – falou Mikki, virando para se afastar. – Ei, eu estou falando com você! Tiffany a puxou pelo ombro. Os braços e pernas de Mikki pareceram se mover
sozinhos. Sua mão agarrou o pulso da outra, então torceu o braço dela nas costas e lhe deu um empurrão, fazendo uma alavanca com os pés. Em um segundo Tiffany estava caída de cara na areia. Blake fitava Mikki espantado. – Como você fez isso? – perguntou. Mikki encarou as próprias mãos como se pertencessem a outra pessoa. – Meu... meu pai me ensinou. Ambos baixaram os olhos para Tiffany, que cuspia areia e chorava. Outras pessoas já começavam a se aproximar. – É melhor eu ir – disse Mikki, em pânico. Ela se virou, passou por entre algumas pessoas e saiu correndo. Quando olhou para Fran, a mulher lhe deu uma piscadela e ergueu um copo em uma saudação silenciosa.
Enquanto andava apressada pela praia, Mikki trombou com alguém que surgiu de repente na escuridão. – Liam? O rapaz alto e comprido estava usando calça de moletom e casaco com capuz. – O que você está fazendo aqui? – perguntou ela, ofegante. – Andando. E você? – quis saber ele. Então espiou por cima do ombro dela: – A festa da Tiffany? Não me diga que você passou para o lado negro da força? – Foi uma idiotice – reconheceu Mikki. – Bom, se quiser vir comigo, eu mostro uma festa bem melhor. – O quê? – Mas lá não vai ter bufê – brincou. – Como você sabe que a festa da Tiffany tinha bufê? – Porque minha mãe foi responsável pelo bufê da festa durante alguns anos, até a Tiffany pedir para começarem a servir bebida alcoólica. Aí minha mãe mandou o velho Murdoch ir se catar. – Fez muito bem. – É. O mais engraçado é que depois disso, por algum motivo, eu nunca mais fui convidado para a festa. Bom, mas chega de falar nos ricos e mimados. Vamos. Ele começou a se afastar e Mikki o seguiu. – Para onde estamos indo? – Como eu disse, para uma festa melhor. As ondas quebravam na praia, proporcionando um coro lento e melodioso para seus passos na areia dura. Uns quinhentos metros adiante, eles começaram a ouvir o barulho e a ver as luzes. – É ali a festa melhor? – perguntou ela. – É. Foram se aproximando. A fogueira estava cheia de lenha, com as chamas bem
altas. Os jovens se reuniam ao redor dela comendo salsichas e marshmallows. Mikki escutou a vibração das cordas de uma guitarra e baquetas batendo em uma percussão eletrônica. O som de risos e conversas se misturava ao barulho das ondas. Alguns casais se beijavam, mas a maioria dos jovens simplesmente se divertia, conversando e dançando. – Oi, Liam – cumprimentou-o um rapaz. – Todo mundo estava torcendo para você conseguir vir – falou, entregando um graveto comprido a cada um. – As salsichas estão no fogo. Mikki e Liam foram se juntar aos outros. Mikki viu algumas pessoas usando uniformes de futebol americano, mas a maioria estava de calça jeans e camiseta. Ninguém ali parecia preocupado em exibir roupas de grife. Todos cumprimentaram Liam batendo com a mão espalmada na sua, trombando nele de leve ou trocando um soquinho. – Nossa, você é popular – comentou Mikki. – Que nada... É que os garotos acham minha mãe gostosa e as meninas querem trabalhar no restaurante. Todo mundo só está querendo se aproveitar. Mikki riu. – Vocês todos estudam juntos? – É. Mas a maioria das pessoas aqui é de Sweat Town. E, para mim, são bem mais legais do que o pessoal rico da Tiffany. Liam olhou para os dois rapazes na guitarra e na percussão. Então se virou para Mikki: – Está a fim de animar esta festa? Ela entendeu na hora. – Vamos nessa! Eles tocaram por quase meia hora, ao som dos gritos e aplausos. A plateia chegou a acompanhar Mikki em alguns trechos de uma canção que ela vinha ensaiando e decidiu cantar ali. Depois disso, ela então assumiu as baquetas e se mostrou tão boa na percussão quanto na guitarra. Até mesmo Liam a olhava com assombro quando a apresentação terminou. – Quando eu formei minha banda, aprendi a tocar todos os instrumentos – explicou ela. – Sou meio controladora. Depois de tocar, eles foram se servir de cachorros-quentes. Quando alguém colocou um CD para tocar, Liam perguntou: – Quer fazer a dança da areia?
– O que é isso? – Ahn, é bem complicado. É dançar na areia sem sapato. Ela sorriu. – Acho que eu consigo. Ele passou os dois braços ao redor da cintura de Mikki e ela apoiou as mãos em seu ombro. Os dois começaram a se mover devagar pela praia. – Chega a dar um calafrio – comentou Mikki depois de algum tempo. – Porque os pés ficam gelados – acrescentou depressa. – Nos meus também – disse ele com um sorriso. – Tudo bem, agora chegou a hora da antiga tradição dos anjos de areia. Vou explicar: é... – Deixe que eu adivinhe. Ela se deitou de costas na areia e começou a mover os braços e pernas para cima e para baixo, formando o desenho de um anjo. – Uau. Além de bonita, é inteligente. Liam se deitou na areia e a imitou. A música seguiu tocando e eles voltaram a dançar, dessa vez um pouco mais próximos. – Isso aqui é muito legal, Liam. – É, sim. Ela segurou o queixo do rapaz. – Mikki? – disse ele, sem entender. Ela o beijou e em seguida deu um passo para trás. – Eu me diverti muito, Liam. Obrigada por me trazer aqui. – De nada. Na semana que vem vou estar no turno da noite no restaurante. Pode passar lá, que eu preparo alguma coisa especial para você. – Como é que você consegue? – Nada acontece naquela cozinha sem mim. Mikki riu. – Quer que eu leve você em casa? – perguntou ele. – Na verdade, eu vim em uma bicicleta que encontrei lá no Palácio. Deixei na rua perto da praia. Não é muito longe. – Também estou de bicicleta. Vou com você. É caminho. – Não precisa. – Eu sei. Mas eu quero – confessou, então se calou, encabulado. – Quero dizer... – Eu sei o que você quer dizer – disse ela com uma voz suave.
Ele a acompanhou até em casa, acenou e foi embora pedalando. Quando Mikki entrou, a sala estava às escuras, mas foi de lá que veio a voz do pai: – E aí? – perguntou ele. Ela entrou na sala, estreitando os olhos para encontrar o pai. Ele a observava do sofá. – E aí o quê? – Você se divertiu? – Sim, só que em outra festa. Ela contou ao pai o que havia acontecido. – Parece que você fez a escolha certa. Ela se sentou ao lado dele. – Como vai o farol? Você tem trabalhado bastante lá. Ele baixou os olhos. – Sei que deve parecer estranho... – Pai, não parece nada estranho. Está bem, talvez um pouquinho – emendou ela com um sorriso. – Mas você disse que a gente viria para cá para passar mais tempo juntos, lembra? Só que você Sammy passam o tempo inteiro trabalhando e eu fico presa aqui, cuidando de Cory e Jackie. O comentário da filha fez Jack baixar a cabeça. – É que... sei lá. É complicado, Mikki. Complicado mesmo. Mikki se levantou. – É, imagino que seja – falou com um tom decepcionado. – Mas vou tentar melhorar. Quem sabe a gente faz alguma coisa no fim de semana que vem? Ela se animou. – Tipo o quê? – Ahn, ainda não pensei. A animação de Mikki desapareceu. – Claro. Boa noite. Enquanto a garota subia a escada para ir se deitar, Jack pensou em chamar a filha de volta, mas se deteve. Simplesmente continuou ali, sentado no escuro. Nenhum dos dois percebeu que Sammy estava em pé na soleira de seu quarto, escutando a conversa. O antigo soldado da Força Delta entrou no cômodo, fechou a porta, pegou o celular e deu um telefonema.
Alguns dias depois, quando Mikki estava correndo na praia, Blake veio se juntar a ela. – Sinto muito pelo que aconteceu na festa – disse ele na mesma hora. – Tiff estava muito doida. – Ah, é? – Ela em geral não é tão desagradável. – Dá um tempo. Ela é um pesadelo, isso sim. – É, talvez seja. Para onde você foi depois que saiu de lá? – Para outra festa na praia. – Que festa? – Liam Fontaine me levou. E a maioria dos convidados era de Sweat Town. Já ouviu falar? – Mikki, eu moro em Sweat Town. De tão chocada com essa informação, ela parou de correr. – Como é? – Minha mãe é faxineira na casa dos Murdoch. – Então por que você anda com a Tiffany? – Como eu disse, minha mãe trabalha para a família dela. – E isso meio que obriga você a fazer o que ela quer? Blake deu uma risadinha nervosa. – Eu não faço o que ela quer. Só saio com ela de vez em quando. Os dois recomeçaram a correr. – Bom, parabéns. Diga-me com quem andas e eu te direi quem és. – E qual é o problema em eu ser amigo dela? Você está dizendo que pobre só pode andar com outros pobres? – Não, é claro que não. – Tenho muitos amigos em Sweat Town. Jogo futebol com vários deles. E
também frequento a casa de Tiffany e me divirto com ela. E daí? – Olha, você pode fazer o que quiser. – Bom, o que eu quero mesmo é sair com você. Dessa vez foi Blake quem parou de correr, forçando Mikki a fazer o mesmo. – Que tal? Quer sair comigo? – convidou ele. – Por quê? – Como assim, por quê? Porque eu gosto de você. – Você nem me conhece. – Excelente motivo para a gente sair. Vamos nos conhecer melhor. Mas tudo bem se você não estiver interessada. Tenha um bom dia e desculpe se não me encaixo no seu ideal de perfeição. Talvez Liam se encaixe. Ele começou a correr na outra direção. – Espere. Ele parou e Mikki se aproximou dele. – Como seria se saíssemos? – Ahn? – O que você planejou para nós, Blake? Preciso saber mais ou menos em que você está pensando. Não estou a fim de encontrar um bando de gente rica de novo e ter que dar uma rasteira em alguém. A menos que seja a Tiffany. Na verdade, eu até gostei. – Não vai ser nada disso. Tem um café lá na cidade que tem música à noite. Não é ao vivo, mas o DJ é muito bom. Pensei que a gente pudesse ir lá ouvir um som, dançar e curtir. Só isso. Ela pensou um pouco. – Parece legal. Mas só dançar e ouvir um som. Ele a examinou com mais atenção. – Por quê? Você está com alguém? – Não, é que... – É o Liam? – Isso não é da sua conta – disse ela, exaltada. – Está bem, está bem. Tem razão. Olha, eu tenho carteira de motorista. Posso pegar você amanhã por volta das sete? – Vou confirmar com meu pai, mas acho que tudo bem. – Ótimo – disse Blake. – Que bom que a gente chegou a um acordo. Quer terminar a corrida?
Ela sorriu e o empurrou para trás, para cima de um monte de areia. Blake caiu sentado. – Quero ver você me pegar – falou ela enquanto saía correndo, aos risos. Ele se levantou com um pulo e partiu em disparada atrás dela.
–Vamos, Jack, estou com fome. Ele e Sammy tinham estacionado perto do restaurante de Jenna. Sammy estava pronto para comer lá, mas Jack não parecia disposto a descer do carro. – Sammy, esse não é o único lugar que serve comida na cidade. Sammy abriu a porta do carona. – Você tem que superar isso e pronto. – Superar o quê? – Ela é só uma mulher simpática que está tentando ser sua amiga – disparou Sammy. – E você não dá uma chance a ela porque sente culpa em relação a Lizzie. – Não sei de que porcaria é essa que você está falando! Eu trato a Jenna muito bem. – Ótimo. Se é assim que você quer agir... Eu vou lá comer. Pode ficar aqui, se preferir. Sammy bateu a porta da picape e entrou no Little Bit of Love. Jack ficou sentado dentro do carro, aborrecido e tamborilando no volante. Por fim, entrou no restaurante atrás de Sammy. Seu amigo estava sentado em uma mesa de canto, estudando o cardápio. Jenna não estava na recepção, de modo que Jack foi direito até o amigo e sentou em frente a ele. Sammy lhe passou o cardápio. – Imaginei que sua barriga vazia fosse acabar fazendo você cair em si. Jack pegou o cardápio, deu uma olhada rápida e em seguida o deixou cair sobre a mesa. – Não sei o que você quer de mim. – Eu não quero nada de você. – Bom, com certeza tem alguma coisa incomodando você. Sammy também largou seu cardápio. – Está bem, cara, vamos lá. Quando foi a última vez que você brincou com o Jackie? Ou com Cory? Ou que trocou duas palavras com a Mikki?
– Conversei com Mikki ainda na outra noite. – Eu sei, estava escutando. Mas o que mudou na sua vida, exatamente? Você passa o dia inteiro trabalhando, depois passa a noite inteira consertando aquela porcaria de farol. Isso não é saudável, Jack. Já pensou em voltar a se divertir algum dia? Jack encarou o amigo. – E por que você acha que eu mereço me divertir? – Você fez de tudo para se recuperar daquela doença. E para quê? Para passar o resto da vida infeliz? Jack tornou a pegar o cardápio. – Você está simplificando demais as coisas. – E você está complicando tudo além da conta. Jack, você tem três filhos. Eles precisam do pai. – Estou me acabando de trabalhar para sustentar as crianças. – E é só isso? – Como assim? – Esse é o único motivo para você se acabar de trabalhar? Eles? – Eu sei que não tenho sido um pai perfeito. Minha filha já me lembrou desse fato. – Ela faz isso porque gosta de você. E Mikki está com quase 16 anos, droga. Provavelmente quer fazer outras coisas além de cuidar dos irmãos. – Ela foi a uma festa na praia. Tem tocado com Liam. – OK, tudo bem, me desculpe por me preocupar. Esse último comentário fez a raiva de Jack se dissipar. – Você tem razão. Não basta sustentar meus filhos. Eu tenho que estar presente. Sammy pareceu surpreso e aliviado. – Ora, aleluia. Talvez trabalhar tanto naquele farol esteja fazendo você começar a ver a luz. Mas Jack não escutou o final da frase do amigo. Estava pensando em algo que Sammy tinha dito. Mikki está com quase 16 anos, droga. A data pipocou na mente de Jack. O aniversário de Mikki estava chegando. – Estão prontos para pedir? Jack ergueu os olhos e viu uma garçonete em pé ao lado da mesa. – Hein?
A mulher sorriu e bateu com o dedo no cardápio. – Estamos em um restaurante. E isto aqui é um cardápio. Então deduzi que talvez vocês quisessem comida. – Pode deixar que eu cuido deles, Sally – disse uma voz. Então Jenna apareceu. – Esses clientes às vezes dão problema – acrescentou ela com um sorriso brincalhão. – OK, chefe – respondeu Sally afastando-se. Sammy olhou para Jenna e sorriu. – Quais são os especiais do dia? – Ora, Sr. Duvall, o senhor sabe que tudo no cardápio é especial e já provou a maioria dos pratos. Jack olhou para Sammy, surpreso: – Já? – Sou um homem faminto – respondeu Sammy, na defensiva. – Só porque você não come não significa que eu tenha que fazer o mesmo. – Que tal nosso famoso sanduíche de carne de porco grelhada com rodelas de cebola frita e salada de repolho com maionese? É péssimo para as artérias, mas você morre sorrindo. A casa garante. – Parece bom – disse Sammy, depois encarou Jack e completou: – Pode trazer dois. E não se esqueça de desenhar um sorriso no dele. Talvez assim o humor desse sujeito melhore – falou, piscando para Jenna. – Bom, Jack, eu precisava mesmo conversar com você. Vou só passar seu pedido e já volto. Ela se afastou e voltou dali a um minuto, puxando uma cadeira. – Vou direto ao assunto. Sua filha quer trabalhar aqui como garçonete. E eu quero contratá-la. – O quê? – estranhou Jack. – Ela não comentou nada comigo. – Ela quis comentar, mas você não tem andado muito presente – disse Sammy, impaciente. Jack o ignorou e olhou para Jenna. – Garçonete? – É uma profissão honesta e eu pago um salário justo. Jack relanceou os olhos para Sammy. – Eu teria que arrumar alguém para cuidar dos meninos. – Na verdade, já pensei nisso – disse Jenna. – Sabe aquela senhora para quem
vocês estão trabalhando, Anne Bethune? Ela tem uma colônia de férias. Fica bem na praia. Os meninos podiam ficar lá. Iriam se divertir muito. – Tenho conversado com a Anne. Ela parece ser uma boa pessoa e vi como organiza a colônia – afirmou Sammy. – Eles vão adorar. – Mas eu não conheço essa mulher direito. – Ela é diretora da escola de ensino fundamental da cidade, Jack – informou Jenna. – É mãe de dois filhos. Quando nos mudamos para cá, pus Liam na colônia dela e ele amou. E a equipe dela é muito boa. – Assim a Mikki poderia trabalhar aqui durante o dia – acrescentou Sammy. – Ganhar o dinheiro dela, sair um pouco de casa. Ter uma vida. – E comer de graça – completou Jenna. – Acho que vai ser bom para ela. – Quanto custa essa colônia? – Isso é o mais interessante – disse Sammy. – Estou fazendo uns serviços a mais para Anne e ela concordou em deixar os meninos frequentarem a colônia em troca da minha mão de obra. – Sammy, não precisava. – Não precisava uma ova. Eles também precisam se divertir. Jack olhou para Jenna e para Sammy. – Por que será que estou com a sensação de que essa história toda foi armada? – Você tem algum bom motivo para dizer não? – disparou Sammy. – Bom, não. Na verdade, parece uma excelente ideia – Então qual é o problema? Os dois ficaram se encarando, até que Jack desviou o olhar. – OK, tudo bem. Sammy deu um tapa na mesa. – Assim é que se fala. Não foi tão difícil, foi? Jenna, pode acrescentar duas cervejas ao nosso pedido? Estou com vontade de comemorar. Jenna saiu para pegar as cervejas enquanto Jack se levantava para ir ao banheiro. Mas, em vez disso, ele foi atrás dela. – Posso falar com você um instante? Ela o olhou com surpresa. – Está tudo bem? – Está – respondeu ele depressa. – Só preciso lhe perguntar uma coisa. – Olhe, Jack, Eu sei que parece que nós nos juntamos contra você nessa história da colônia e da Mikki trabalhar aqui, mas...
Ele sorriu. – Na verdade, estou muito agradecido pelo que vocês estão fazendo. – Agradeça ao Sammy. A ideia foi toda dele. Ele é um bom amigo. – Tem razão. Ele é, mesmo – disse, encarando-a. – E você também é. O comentário pareceu pegar Jenna desprevenida. – Eu só estou... não é que... Ela parou no meio da frase e olhou para o outro lado, confusa. – Sei que tenho sido meio antipático com você e sinto muito por isso – falou Jack. Ela tornou a olhar para ele. – Não precisa pedir desculpas, Jack. Você não fez nada de errado. Mas o que você queria me perguntar? – Não quero perguntar agora. A que horas seria bom para você mais tarde? – Consigo sair daqui lá pelas nove. – Posso buscar você e levá-la para casa, tudo bem? – Ótimo. Liam tem carteira. Ele pode levar meu carro. – Então até mais tarde.
O café estava lotado e Blake e Mikki tentaram ficar o mais perto possível do DJ. A música já ia a todo vapor e as pessoas dançavam na pista. Compraram duas Cocas no bar e foram se sentar em um canto. – Você está muito bonita – elogiou Blake. Mikki estava usando um short jeans, sandálias rasteirinhas, uma blusa branca sem mangas e um par de brincos que a mãe havia lhe dado de presente no seu aniversário de 14 anos. Prendera os cabelos em um rabo de cavalo, e os últimos resquícios de tinta já tinham saído. Estava bronzeada e seu rosto irradiava um brilho especial. Blake estava usando calça jeans e dobrara a manga da camisa. Ela o avaliou: – Você também não está mal. Ele riu. – Muito obrigado. Quer dançar? – Pode ser. Os dois foram para a pista e passaram meia hora balançando o corpo, suando e perdendo o fôlego junto com outros jovens. Depois de umas duas horas de música e dança, o movimento no café começou a diminuir. – Quer dar uma volta na praia? – sugeriu Blake. – A noite está bonita. – Pode ser, mas lembre o que eu fiz com Tiffany – brincou ela, erguendo as mãos em um gesto que imitava artes marciais. Blake riu. – Não vou me meter com você. Nem com seu pai. Eles começaram a caminhar pela areia. Mikki carregava as sandálias em uma das mãos. Enquanto andava, sua mão livre tocava a de Blake e ele lhe envolveu um dos dedos. De início ela se afastou, mas instantes depois os dois estavam de mãos dadas. Chegaram a um ponto isolado da praia, com dunas altas cobertas por uma
vegetação densa e emaranhada. – Acho melhor a gente voltar – disse Blake. – OK. Ele se virou para ela. Mikki o encarou. – Foi legal – disse ela. – Não está falando da boca para fora? – Não. – Geralmente consigo entender a cabeça das garotas. Mas a sua, não. – Ouço isso o tempo todo. Ele sorriu e segurou seu queixo com a mão. Inclinou a cabeça em direção à dela. Mikki recuou. – O que houve? – falou Blake, parecendo perturbado. – Você nunca beijou? – É claro que já – respondeu ela, exaltada. – Tenho quase 16 anos. – Então qual é o problema? – Não tem problema nenhum. Ela o segurou pelo pescoço e lhe deu um beijo na boca. Quando os dois se afastaram, ele exclamou: – Nossa! No entanto, a julgar pela expressão de Mikki, o beijo não tinha surtido o mesmo efeito nela. Na verdade, ela parecia ligeiramente culpada. – Vamos voltar – falou, apressada. Os dois tinham percorrido apenas uns poucos metros quando Blake se virou para as dunas: – O que foi isso? – indagou. – Isso o quê? – perguntou Mikki. Então o barulho se repetiu. Alguma coisa estava se movendo lá. – O que é? – perguntou Mikki, fechando os dedos em volta do pulso de Blake. – Não sei. Mas tem alguma coisa lá em cima. – Talvez um cachorro ou um gato? Outro barulho. – Isso não foi cachorro nem gato – disse Mikki. – Foi alguém falando. Blake, vamos embora daqui agora. – Espere, tem alguma coisa estranha. Acho que conheço essa voz. Dukie? – chamou ele. – Dukie, é você? – Quem é Dukie?
– Ele joga no meu time de futebol. É um cara grandalhão. Não sei o que estaria fazendo aqui – explicou, olhando em volta. – Espere aqui um instante. Eu já volto. – Blake, não vá lá. – Espere aqui. Eu já volto – repetiu ele. Ele andou depressa em direção aos montes de areia e logo desapareceu na escuridão. Mikki ficou ali parada, nervosa, olhando em volta. Não havia lua nessa noite e era difícil dizer onde terminava a areia e onde começava o mar. – Blake? – sussurrou ela, assustada, mas não houve resposta. Ela chegou mais perto das dunas. – Blake? Alguém surgiu do nada e a agarrou. Ela tentou gritar, mas alguma coisa lhe tapou a boca. Enquanto ela olhava ao redor, frenética, viu que as pessoas à sua volta estavam usando máscaras e capuzes. Sua boca foi coberta com silver tape. Outra pessoa amarrou suas mãos às costas. Ela se contorceu, puxou os braços, caiu no chão. Mãos a mantinham presa contra a areia e outras cobriam seus olhos. De repente algo foi despejado sobre seus cabelos e ela sentiu que borrifavam um líquido em suas roupas. Continuou a se debater e a tentar gritar. Lágrimas escorriam por seu rosto. Alguém gritou e então se ouviu um gemido de dor. De repente, a pessoa que a estava segurando caiu para trás com força. Os outros se afastaram depressa. Mikki se sentou e fez um esforço para ver o que estava acontecendo. Quando conseguiu focar os olhos, viu Liam batendo em um dos mascarados e a pessoa desabou no chão. Alguém pulou nas costas dele, mas o rapaz girou o corpo e se livrou do agressor. Quando este caiu na areia, a máscara caiu e Mikki viu Tiffany Murdoch olhando para ela. Mikki conseguiu retirar as cordas que lhe prendiam as mãos e arrancou o silver tape da boca enquanto outra pessoa de máscara, mais alta, acertava Liam e o derrubava. Dois outros encapuzados pularam em cima dele. Então um terceiro afastou a dupla e sentou em cima de Liam. Mikki se levantou com um pulo, correu pela areia e pulou em cima do agressor, puxando sua cabeça para trás e arranhando seu rosto. Ele gritou alguma coisa e a empurrou enquanto se contorcia e caía no chão. Então levantou rápido, deixando a máscara escorregar. Sentada na areia, Mikki ergueu os olhos, incrédula. – Blake?
Ele esfregou as marcas dos arranhões no rosto, virou as costas e começou a correr. Mikki o viu dar a mão a Tiffany e os dois fugiram em direção às dunas. Mikki desgrudou o olhar deles a tempo de ver um garoto que havia ficado para trás dar um chute na barriga de Liam. Ela agarrou um punhado de areia, levantou o mais rápido que pôde e puxou a máscara do sujeito, jogando areia em seus olhos. Ele gritou e começou a cambalear, com as mãos nos olhos. Ela o empurrou e ele caiu, depois conseguiu se levantar e seguiu atrás dos outros. Mikki correu até Liam, que estava caído de bruços na areia com as mãos na barriga. – Ai, meu Deus, Liam, você está bem? Ele se sentou devagar, ofegante. Ela limpou a areia de seu rosto e das roupas. – Nossa, você sabe mesmo se divertir – comentou ele, com um sorriso fraco. – O que você está fazendo aqui? – perguntou ela. – Acabei de sair do trabalho. Estava dando uma volta para relaxar antes de pegar o carro e ir para casa, aí escutei uns barulhos estranhos e vi pessoas atrás da duna. Depois vocês apareceram. Quando atacaram você, eu vim correndo. – Você... você estava olhando a gente? Então viu...? – Ah, não se preocupe. Só fico feliz por você estar bem. Ele se levantou com cuidado. – Venha – chamou ele. – Vou levá-la para casa. Mikki não se mexeu. – Liam, desculpe. – Pelo quê? – Não foi nem de longe tão legal quanto o nosso beijo. Ele baixou os olhos, cerrando os punhos. – Sério? – Sério, mesmo. Ela ficou em pé. – Foi muita coragem sua fazer isso. Você me salvou. – Aqueles imbecis – desabafou, então olhou para ela e soltou um arquejo. – Droga! – O que foi? – Seu cabelo. Suas roupas. Ela baixou os olhos para as próprias roupas. Estavam pintadas de spray vermelho,
assim como sua pele. Ela tocou os cabelos: pegajosos, emaranhados e com cheiro de ovo podre. – Idiotas – falou ela. Olhou na direção das dunas pensando no que acontecera. – Blake estava metido nisso. Não acredito que fui tão burra. – Você saiu com ele, não foi? Quero dizer, parece legal. Ele é zagueiro do time de futebol americano e também não é um cara feio. – Foi um erro – disse ela, segurando-o pelo braço. – Por vários motivos. E ele me trouxe para uma armadilha. Tenho certeza de que isso tem a ver com eu ter batido na Tiffany na festa da praia. Liam pareceu perplexo. – Você bateu na Tiffany? Não me contou isso. – Bom, ela provocou. Ele riu e segurou as costelas. – Tem certeza de que está bem? – perguntou Mikki, preocupada, enquanto punha uma das mãos ao redor do corpo dele para ampará-lo. Quando se tocaram, os dois se entreolharam. – Eu estou horrível, Liam – disse ela. – Não está, não. Você continua linda. Mikki ficou na ponta dos pés e Liam, que era bem alto, se inclinou na sua direção. Os dois se beijaram e dessa vez o beijo foi muito mais duradouro. Quando se separaram e abriram os olhos, ela disse: – Você é meu príncipe num cavalo bran... – Ela olhou para as roupas escuras que ele estava usando e sorriu. – Meu príncipe de armadura preta e botas de caminhada. Ele tocou-lhe o rosto e sorriu. – E você, minha donzela de spray vermelho com uma gosma fedida no cabelo. – Liam, a gente não pode contar isso para os nossos pais. Meu pai vai sair atrás de todos eles e provavelmente vai acabar sendo preso. – Mas e a sua roupa? E o seu cabelo? – Vou me limpar e depois entro em casa de fininho. – Então a gente não vai se vingar da Tiffany e dos amigos dela? – perguntou Liam. – Ah, eu não disse isso. A gente vai se vingar, sim, mas vai fazer isso direito, não do jeito idiota que eles tentaram fazer.
– Como, então? – Você vai ver. Ela mergulhou no mar e começou a se esfregar.
Jack esperava em frente ao restaurante quando Jenna saiu, às nove em ponto. Ela entrou na Kombi e ele deu a partida. – Que carona mais vintage – brincou ela. – A Kombi é do Sammy. Ele gosta de brincar com carros velhos. – Não é só disso que ele gosta de brincar. Ele a olhou de relance. – Como assim? – Ele e Anne Bethune estão namorando. – Por que eu sempre sou o último a saber? Ela apertou seu ombro de leve. – Você só precisa sair mais. – Quando foi que começou? – Ah, mais ou menos no instante em que eles se viram pela primeira vez. Pelo menos foi isso que Anne disse. Ele estava com ela no dia em que você bateu naqueles dois caras. Tinham ido passear na Harley. Jenna se inclinou, tirou os sapatos e começou a massagear os pés. – Desculpe, depois de dez horas de trabalho meus pés ficam moídos – falou ela, já baixando o vidro para deixar entrar o ar puro da noite. – Tive um namorado na faculdade que tinha uma Harley. Uma vez, quando Liam estava com a minha mãe, fomos passear por uma estrada fora da cidade. Foi demais. – Você passava muito tempo longe de Liam? Ela tornou a fechar a janela. – Na verdade, quase nenhum. Fiz faculdade perto de casa para facilitar. Minha mãe estava divorciada e tinha um negócio próprio. Mas cuidava do Liam para mim quando eu estava na aula ou no trabalho. – No trabalho? – Foi o único jeito de pagar pelos estudos. Não éramos ricos. Eu sabia que queria
ser advogada e trabalhar em um escritório importante. – Parece que você tinha tudo planejado. – Bom, tudo, menos Liam. Ele simplesmente aconteceu. Dois adolescentes burros – falou, antes de assumir um tom solene e concluir: – Mas não sei o que seria da minha vida sem ele. Liam é um garoto de ouro. E ele e Mikki parecem mesmo estar se dando bem. Ele ficou radiante quando contei que Mikki ia trabalhar no Little Bit. – Bom, na verdade é este o assunto que eu queria discutir com você: Liam. – O que tem ele? Jack lhe contou seu plano. Quando ele terminou, ela estava sorrindo e aquiescendo. – OK, parece maravilhoso. Na verdade, estou muito orgulhosa de você, pai. Mas em troca você vai ter que fazer uma coisa por mim. Ele a fitou, desconfiado. – O quê? – Me leva para passear na Harley? Jack foi até o Palácio e pediu a moto emprestada a Sammy. Jenna subiu na garupa e os dois partiram, seguindo pela longa estrada sinuosa que beirava o mar. Com o vento a bater em seu rosto, Jenna comentou: – Nossa, quantas lembranças isso traz. – Está se divertindo, então? – Você sabe que sim. Ela se segurava com mais força a Jack quando vinham as curvas. Meia hora depois, ele a levou para casa. – Liam ainda não chegou. Quer entrar para tomar um chá, um café ou algo mais forte? Os dois se acomodaram no terraço dos fundos tomando vinho. Depois de conversarem mais detalhadamente sobre o plano de Jack, Jenna perguntou: – E como vai o farol? Jack pousou sua taça: – Bem. A escada está ficando pronta e Charles conseguiu as peças para consertar a luz. – Vai ser incrível vê-lo funcionando de novo. – É, acho que vai, sim – disse Jack, distraído. – E por que será que tenho a impressão de que o motivo do conserto é outro?
Ele ergueu os olhos para ela. – Eu conserto coisas. É isso que faço na vida. – Algumas coisas não podem ser consertadas com martelo e prego. Ele terminou o vinho. – É melhor eu ir andando – disse, levantando-se. – Avise quando o farol voltar a funcionar. Eu adoraria ver. – Pode deixar, Jenna. – E obrigada pelo passeio. Há muito tempo eu não me divertia tanto. Antes de perceber, Jack já tinha falado: – Nem eu.
Na manhã seguinte, à mesa do café, Jack disse: – Não ouvi você chegar ontem à noite, Mik. – Deve ser porque cheguei cedo – disse Mikki enquanto se servia um copo de suco de laranja. – E como foi? – Foi legal. Mas a gente não combina muito. – Acontece. – É, acontece. Pai, eu vou à cidade hoje. – Por quê? – Preciso fazer umas coisas, não vou demorar. Liam vai comigo. Sammy falou que podia cuidar de Jackie para mim. – Quando você começa a trabalhar no restaurante? – Amanhã. E Cory e Jackie começam na colônia de férias. – Você podia ter conversado comigo sobre isso, sabe? Ela levou a mão à cintura e disse: – Podia, pai? Podia mesmo? Ele olhou para o outro lado. – Como é que você vai à cidade? Quer que eu leve você? – Liam vem me buscar. – Olhe, Mikki, quero que você possa conversar comigo sobre qualquer assunto. Se a gente não conseguir fazer isso, não vamos ter a menor chance nesse negócio de pai e filha. – Está falando sério? – Estou, sim. – Bom, então seria um bom começo se você não passasse o dia inteiro no trabalho e a noite inteira no farol. – Mas eu estou quase terminando.
– Tudo bem, pai, não faz mal. A gente pode conversar quando você terminar.
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Liam já aguardava Mikki no carro quando ela chegou à rua. – Quando você me ligou hoje de manhã para falar sobre o plano, fiquei meio em dúvida – confessou ele, sorrindo. – Agora estou animadíssimo. – Que bom, porque eu também estou. Os dois chegaram ao centro de Channing e estacionaram em frente ao teatro. Alguns carros estavam parados junto ao meio-fio, incluindo o conversível vermelho de Tiffany. A marquise informava: concurso de talentos de channing – inscrições hoje. Mikki sorriu. – Quando eu vi esse cartaz ontem à noite, não prestei muita atenção. Quem liga para um concurso de talentos, não é? Mas agora... a oportunidade não poderia ser melhor. – Vamos lá – disse Liam. Os dois entraram no saguão do teatro e foram para o final da fila, que levava a uma mesa comprida onde algumas mulheres de cabelos muito armados e roupas provavelmente mais caras do que certos carros realizavam as inscrições. Uma delas, uma loura bonita de vestido justo, parecia estar no comando. – Deixe eu adivinhar – sussurrou Mikki para Liam, apontando para a mulher. – Aquela é a mãe de Tiffany. Liam aquiesceu. – Como você descobriu? – Foi só imaginar a Tiffany daqui a uns 25 anos. – O nome dela é Chelsea Murdoch. Uma vez ouvi minha mãe dizer que ela era ainda pior do que a filha. – Ora, está aí alguém que eu preciso conhecer. Quando Liam e Mikki chegaram à mesa, Chelsea Murdoch os olhou com tanta arrogância que Mikki sentiu vontade de lhe dar um tapa. – Pois não? – Gostaríamos de nos inscrever no concurso – disse Mikki, educada. A Sra. Murdoch olhou para Liam e pareceu não entender.
– Os dois? – Isso. Juntos. – Liam Fontaine, não é? – indagou ela. – O primeiro e único. A mulher deu um sorriso sarcástico e então desviou os olhos para Mikki. – E você é...? – Michelle Armstrong. Sou de Cleveland. Vim passar o verão aqui. A mulher pareceu achar graça. – Cleveland? – É, é a maior cidade do estado de Ohio. A senhora sabia? – perguntou Mikki, fazendo ar de inocente. – Não, nunca tive um bom motivo para descobrir – respondeu ela, seca, dando uma cotovelada na mulher ao seu lado, que soltou uma risadinha, e empurrando um papel na direção deles. – Preencham isto aqui. A taxa de inscrição é de dez dólares. O que vocês vão apresentar? – Um número musical – respondeu Mikki. – Percussão, teclado e guitarra. A Sra. Murdoch a fitou com um olhar frio. – Que ambicioso. – Também gosto de pensar que seja – respondeu Mikki, docemente. – Tenho certeza de que é um concurso muito disputado. – É, mesmo. Na verdade, uma jovem venceu três anos seguidos e está querendo emplacar a quarta vitória. – Seria Tiffany, por acaso? – Sim. Minha filha. – Claro. Mas eu já sabia que ela havia ganhado três vezes. – Como? Mikki apontou para o imenso banner pendurado na parede atrás da mesa, que exibia uma grande foto de Tiffany segurando três troféus e tendo a palavra tricampeã acima da cabeça. – Aquilo ali foi uma pista – zombou discretamente. A mulher torceu o nariz e Mikki retribuiu com um sorriso. – É só pôr o formulário naquela caixa ali e dar o dinheiro para a senhora de vestido azul – finalizou Chelsea, ríspida. – Ótimo. Obrigada pela ajuda, Sra. Murdoch – agradeceu Mikki com sua voz mais
educada de aluna do ensino médio. Pôde sentir Chelsea fulminando-a com os olhos enquanto os dois se afastavam. Preencheu o formulário, colocou-o na caixa e entregou a taxa de inscrição à mulher de vestido azul. – Certo, o primeiro passo está dado – disse Liam. – E lá vem o segundo. Tiffany acabara de adentrar o saguão do teatro com algumas amigas. Quando Mikki se aproximou a passos firmes, a menina se retesou. – Oi, Tiff. Tiffany fez uma cara intrigada, então relanceou os olhos para as amigas antes de tornar a olhar para Mikki. – Oi – respondeu, fria. – Preciso lhe agradecer pela diversão na praia. Foi mesmo inesquecível. Tiffany revirou os olhos e as outras meninas riram. – Tudo bem – disse ela, forçando um sorriso. Mikki chegou mais perto. – E, só para avisar, a gente vai detonar você no concurso de talentos. O sorriso desapareceu do rosto de Tiffany e as amigas pararam de rir. Mikki chegou ainda mais perto. – Ah, e mais uma coisa. Se você algum dia encostar um dedo em mim outra vez, ninguém vai encontrar seus pedacinhos para juntar, querida. Inconscientemente, ela acabara de repetir a ameaça que entreouvira o pai fazer ao empolgado Chris. Tiffany piscou e deu um passo para trás. – Você se acha muito corajosa? – disse. Mikki chegou com o rosto a dois centímetros do da outra menina. – Eu sou de Cleveland. É um pré-requisito. Do lado de fora, ao passarem pelo conversível vermelho de Tiffany, Liam olhou em volta para se certificar de que ninguém estivesse olhando, então levou a mão ao bolso e sacou um tubo branco. Fingindo pegar alguma coisa dentro do carro, ele apertou o tubo e espalhou um líquido transparente pelo banco do motorista. Por cima do couro, o líquido ficava invisível. – O que é isso? – quis saber Mikki. – Depois do que eles fizeram com você, acho que a ocasião pede uma Super Bonder.
– Cara, estou gostando muito do seu estilo.
–Tudo bem, que conspiração é essa? Jenna havia entrado na cozinha do restaurante e encontrado Liam e Mikki aproveitando o intervalo para cochichar em um canto. – Nada, mãe – respondeu Liam de um jeito tão inocente que foi suspeito. – Esqueceu que eu sou advogada, filho? Meu detector de mentiras é bem eficiente. Ele pareceu encabulado e olhou para Mikki: – Quer contar para ela? – A gente se inscreveu no concurso de talentos com um número musical – disse Mikki. – Ah, que ótimo. E por que o segredo? Quem respondeu foi Liam: – A gente vai competir com a Tiffany e a família dela é influente. Se a gente impedir sua quarta vitória seguida, os Murdoch podem querer descontar em você. – Eles podem até tentar, mas não acho que vá adiantar muito. O restaurante veio para ficar – falou ela, depois encarou ambos, curiosa. – Mas que interesse repentino é esse em derrotar Tiffany Murdoch? Os dois se entreolharam e Jenna percebeu que eles estavam omitindo alguma coisa importante. – Está bem, vocês dois, quem manda aqui sou eu. E quero saber a verdade. Agora. Então Mikki e Liam contaram o que havia acontecido na praia. Quando terminaram de falar, a expressão no rosto de Jenna era de preocupação. – Mikki, essa agressão contra você foi crime. E contra você também, Liam. Vocês dois poderiam ter se machucado de verdade. – Não foi nada, mãe – disse Liam. – Foi, sim. Esses meninos precisam ser responsabilizados pelo que aconteceu. Senão podem fazer de novo.
– Mãe, não faça nada, por favor. A gente quer resolver isso do nosso jeito. – E se meu pai descobrir, irá atrás deles e provavelmente vai acabar na cadeia – acrescentou Mikki. – Eu o conheço, é superprotetor. Eram só uns adolescentes e meu pai foi do Exército. Você viu o que ele fez com aqueles grandalhões. Quando quer, ele vale por uma equipe inteira da SWAT. Por favor, Jenna, não fale nada. Por favor. Por fim, a expressão de Jenna se abrandou. – OK, eu entendo o seu raciocínio. Mas seu pai sabe que vocês entraram no concurso de talentos? – Ainda não. – Bom, quanto mais cedo ele souber, melhor. Mikki a encarou: – Você se importaria de contar a ele? – Eu? Por quê? – Talvez seja melhor ele ouvir de outro adulto. Não acho que vá se importar, mas ele tem tido muitas preocupações ultimamente. E a gente já se inscreveu. Não posso desistir agora. Jenna pensou a respeito por alguns segundos. – Está bem, eu converso com ele. Ela olhou para o relógio e sorriu: – O intervalo acabou, galera. O negócio aqui é trabalho pesado. Vamos lá, mãos à obra. Mikki lhe deu uma braço rápido. – Obrigada. Você nos salvou. Quando acha que vai poder conversar com ele? – Acho que sei um bom momento para falar com ele.
Pouco depois da meia-noite, Jack estava em pé na área externa do farol, admirando um céu claro. Havia tentado não voltar ali depois que percebera como isso magoava a filha, mas algo o impelira e lá estava ele. Tinha passado o dia inteiro trabalhando com Sammy na casa de Anne Bethune, o que lhe dera oportunidade de ver a colônia de férias. Tinha de admitir que Jackie e Cory estavam se divertindo a valer, além de estarem aprendendo. Anne tinha um
instrutor que levava as crianças até a praia para lhes ensinar sobre a vida marinha e outros temas. Cory estava muito à vontade pintando telas e representando cenas que havia escrito no ateliê de artes cênicas. Aquele era sem dúvida o tipo de diversão que Jack desejava proporcionar aos filhos quando os trouxera para passar o verão ali. No entanto, tentava não pensar no fato de não estar participando diretamente dessa experiência, de que ela estava sendo oferecida por outras pessoas. Se ao menos eu conseguisse terminar o farol... Tornou a entrar no farol e olhou para a nova escada. Havia acabado de bater o último prego minutos antes. Ainda precisava fazer alguns ajustes, sobretudo no acabamento, mas já era seguro usá-la e ela certamente duraria bastante. Jack planejava começar a desmontar o andaime na noite seguinte para devolvê-lo à loja. Pegou a boneca de Lizzie e voltou para a área externa do farol. Suado de tanto trabalhar, tirou a camisa e deixou a brisa fresca soprar em seu corpo. Olhou para a boneca, depois ergueu os olhos para as estrelas. O Céu ficava em algum lugar lá em cima. Ele vinha imaginando onde uma menininha poderia tê-lo posicionado. Pôs-se a examinar trechos isolados da abóbada celeste, mais ou menos como havia analisado seções do deserto em busca de explosivos ou atiradores ocultos. Só que agora estava em busca de anjos e santos. E de Lizzie. Pôs a boneca no chão e tirou uma carta do bolso da camisa. Agora que havia concluído a escada, dissera a si mesmo que estava na hora de ler a carta seguinte. O envelope trazia o número 4. Puxou o papel de dentro dele e olhou a data: 21 de dezembro. Recostou-se no parapeito e começou a ler.
Querida Lizzie, O Natal está quase chegando e prometo viver até lá. Será um grande dia. Ver a expressão das crianças ao abrirem os presentes vai me fazer mais bem do que todos os remédios do mundo. Sei que as coisas têm sido difíceis para todos, sobretudo para você e as crianças, e vejo que sua mãe e seu pai têm lhe ajudado bastante. Nunca cheguei a conhecê-los como gostaria. Às vezes sinto que sua mãe desejava que você tivesse se casado com alguém mais adequado, mais bem-sucedido. Mas no fundo sei que ela gosta de mim e que ama você e os netos de todo o coração. É uma bênção poder contar com alguém assim. Como você sabe, meu pai morreu quando eu ainda
era criança. E você conhece a história sobre minha mãe. Mas seus pais sempre estiveram a meu lado, sobretudo Bonnie, e de muitas maneiras eu a considero mais minha mãe do que a mulher que me deu à luz. Ações valem mais que palavras. É no dia a dia que realmente se expressa o amor. Por favor, diga a seus pais que sempre tive o maior respeito por eles e que os considerava pessoas boas. Espero que um dia sua mãe possa dizer que fui um bom pai, que tentei fazer o que era certo. E que mereci você. Com amor, Jack
–Estou atrapalhando? Jack se virou e topou com Jenna em pé ao seu lado, trazendo uma garrafa de vinho e duas taças. Ela viu a carta que ele segurava, mas não disse nada quando ele a guardou no bolso da calça e vestiu a camisa, apressando-se em abotoá-la. – O que você está fazendo aqui? – perguntou ele, um pouco ríspido. Ela deu um passo para trás. – Desculpe se assustei você. – Bom, assustou, sim. – Acho melhor eu ir embora. Ela se virou para sair, mas ele a impediu: – Não, tudo bem. Desculpe. Não quis ser grosseiro com você. É que eu não estava esperando ninguém. Ela sorriu. – Por que será? Já passa da meia-noite e você está no alto de um farol, dentro do seu terreno. Achei que haveria algumas centenas de pessoas por aqui a esta altura. A raiva dele foi embora e um sorriso começou a se formar em seu rosto. – Dezenas, pode ser, mas não centenas – brincou, depois olhou para o vinho e disse: – Está vindo de alguma comemoração? Ela olhou em volta, encontrou um caixote velho, pôs as taças sobre ele e começou a abrir a garrafa com um saca-rolhas. – Não, estava torcendo para chegar a uma. – Como assim? Ela serviu o vinho e lhe entregou uma das taças, fazendo um brinde. – Saúde! Sorveu um gole e deixou a bebida descer devagar pela garganta enquanto admirava a vista. – Meu Deus, como é bonito aqui em cima.
– É, sim – concordou ele. – Vi que você terminou a escada. – Ainda tenho que arrematar algumas coisas, mas a parte mais pesada acabou. – Imagino que você esteja se perguntando o que estou fazendo aqui. – Sinceramente? Estou, mesmo. Ela lhe contou sobre Liam e Mikki terem se inscrito no concurso de talentos, mas omitiu o motivo. – Ah, que ótimo. Aposto que eles têm uma boa chance de ganhar. – Na verdade, têm sim. Não sou nenhuma especialista, mas eu pagaria para ouvir os dois tocarem. Jack bebeu um pouco de vinho. – Mas por que Mikki não me contou pessoalmente? – Não sei muito bem. Ela me pediu para contar e eu concordei. Talvez você devesse perguntar a ela. Jack assentiu devagar. – Não tenho sido muito bom em definir minhas prioridades. – Bem, reconhecer o problema é o primeiro passo para resolvê-lo. E, como você mesmo disse, o que você faz na vida é consertar coisas. – Bom... faróis são mais fáceis de consertar do que relacionamentos. – Acho que tudo é mais fácil de consertar do que relacionamentos. Mas isso não significa que eles possam ser ignorados. – É o que estou começando a entender. – Por que este farol é tão importante para você, Jack? Ele pousou sua taça. – Sinto que consigo ficar mais próximo dela aqui – disse ele devagar. Jack relanceou os olhos para Jenna e viu que ela o fitava com uma expressão preocupada. – Calma, não estou ficando louco. – Não achei que estivesse – rebateu ela depressa. – Mas mesmo assim é meio loucura, não é? – Se é o que você está sentindo, não é loucura, Jack. Você passou por muita coisa. – Homem-milagre... – murmurou ele. Jenna ficou encarando-o muda, esperando que ele falasse. – Jenna, não era para eu estar aqui, para eu estar vivo. Eu estava lutando para sobreviver até o Natal, pelos meus filhos, pela Lizzie.
Jenna tocou o ombro de Jack: – Eu não deveria ter perguntado. Você não me deve explicações. – Não, tudo bem. Eu preciso desabafar – confessou, então fez uma pausa e respirou fundo, como se assim pudesse organizar os pensamentos, antes de prosseguir: – Passei metade dos meus anos de casado no Exército, a maior parte do tempo longe de casa. Ele relanceou os olhos para o céu escuro. – Eu era louco pela minha mulher. Sabe aquilo que dizem sobre a distância aumentar o amor? Eu sentia saudades da Lizzie quando ela estava no quarto ao lado, que dirá do outro lado do mundo. Ao mesmo tempo que uma lágrima rolava do olho direito de Jack, Jenna tentava evitar o choro. Sua boca estremeceu e ela engoliu em seco. – Sempre vi a mim e a Lizzie como um todo, metades que tinham se separado por algum motivo, mas depois tornado a se encontrar. Para você ter uma ideia de como tive sorte na vida. – A maioria das pessoas nunca encontra sua metade, Jack – disse Jenna em voz baixa. – Você foi mesmo abençoado. – Na última noite em que estivemos juntos, Lizzie me disse que queria passar o verão aqui. Ela queria acreditar que eu estaria vivo para isso. Chegou até a falar que eu poderia consertar a casa, o farol. Eu nunca pensei que teria essa oportunidade. – Quer dizer que você está realizando o último desejo de Lizzie? – Acho que sim – falou ele, virando-se de novo para olhar o mar. – Porque ela não teve chance de voltar aqui. – Mas você melhorou de vez? – indagou Jenna. Ele a olhou de relance, com os olhos marejados. – Foi, mas sabe por quê? Porque Lizzie me acompanhou em cada passo do caminho. Ela não queria me deixar morrer. – Por que está me contando tudo isso? – Porque, se eu não contar para alguém, acho que vou... que vou... sei lá. E você me pareceu ser alguém que entenderia. Uma chuva fina começou a cair e os dois permaneceram ali, parados. Então Jenna pousou sua taça sobre o caixote, segurou Jack pelos ombros e o puxou para um
abraço. – Eu entendo, Jack. Entendo mesmo.
–Jenna, você não precisa fazer isso, sério – disse Mikki. As duas estavam em uma loja de roupas femininas no centro de Channing. Era hora do intervalo no restaurante. – Não é nada – continuou ela. – Digo, é só um jantar em família. Nem papai, nem Sammy, e com certeza nem Cory ou Jackie vão dar a mínima para a minha roupa. – Mas é seu aniversário de 16 anos, querida, e isso só acontece uma vez na vida. As duas haviam escolhido algumas roupas e Mikki as estava experimentando. Depois de ela se decidir por um vestido escuro sem mangas, Jenna a ajudou a escolher sapatos, uma bolsa e outros acessórios. – Obrigada, Jenna. Não dá para sair com meu pai e comprar sutiãs. – Imagino que não mesmo – concordou, dando um sorriso cúmplice. – Se bem que poderia ser divertido ver o soldado durão morrer de vergonha comparando tamanhos de bojo. Depois de olhar todas as etiquetas e calcular o total da compra, Mikki enrubesceu. – Vou ter que devolver algumas coisas – falou ela. – Por quê? – Porque... o meu dinheiro não vai dar. – É claro que vai. Você acaba de receber um adiantamento de salário. – O quê? – Faço isso com todos os meus funcionários, ou pelo menos com os que vão fazer 16 anos e precisam de uma roupa nova. – Não estou querendo nada de mãos beijadas. – E nem eu estou dando. O dinheiro vai ser deduzido do seu salário em parcelas fixas pelos próximos sessenta anos, mocinha. Mikki riu. – Tem certeza?
– Absoluta. Falando sério, você é uma ótima garçonete e trabalha bastante. Isso merece uma recompensa. Quando elas saíram da loja, Jenna falou: – Que tal um sorvete? Queria conversar sobre uma coisa com você. As duas se acomodaram em um banco de rua com suas casquinhas. – Vamos começar pelo começo. Falei com seu pai sobre o concurso de talentos e ele não vê problema algum em você participar. – Nossa, que ótimo! – Mas ele quis saber por que você não foi falar com ele pessoalmente. – E o que você disse? – Nada, só me fiz de desentendida. Jenna deu uma lambida no sorvete e pareceu escolher as palavras seguintes com cuidado. – E... sabe o farol? Mikki deu um suspiro. – O que tem o farol? – Seu pai tem passado muito tempo lá. – Como é que você sabe? – Bom, além de ter percebido essa sua expressão infeliz, eu simplesmente sei e pronto – falou Jenna, antes de prosseguir: – Mas você já foi lá com ele? – Não. – Por quê? – Eu não vou lá, mas não tem um motivo especial. – Você não gosta dele? – Se não gosto daquela construção inútil? Que pergunta mais boba – disse Mikki, irritada. – É mesmo? Mikki terminou o sorvete, limpou os dedos e jogou seu guardanapo em uma lixeira próxima ao banco. – Olha, se ele prefere ficar lá a passar tempo com a família, quem sou eu para reclamar? – Acho que você acabou de responder à minha pergunta. Você sabe que aquele era o farol da sua mãe? – É, foi o farol da minha mãe quando ela era pequena – respondeu Mikki, fechando a cara.
– E você não acha estranho ele estar tão... – Obcecado? Acho, um pouco. O que você acharia? – É difícil dizer. Mas me conte que história foi aquela de homem-milagre que aqueles imbecis ficaram gritando para o seu pai na rua. Mikki pareceu pouco à vontade e inspirou fundo. – Na verdade, eu não quero falar sobre isso. – Por favor, Mikki. Quero ajudar, quero mesmo. Mas preciso saber. Nos minutos que se seguiram, Mikki contou a Jenna o que acontecera. A mulher ouvia pensativa. – Então quer dizer que o jornal inventou tudo? – perguntou por fim. – Bom, pelo menos é o que o meu pai diz. – E você não acredita nele? Prefere confiar em um jornal que ganha milhões vendendo mentiras? Qual a lógica disso? Mikki não conseguia encará-la. – Onde há fumaça, há fogo – foi o que disse. – Isso teve menos lógica ainda. – É fácil para você dizer. Não foi a sua família que desmoronou. – Não, mas vou bancar a advogada um pouquinho e analisar a situação – disse, e fez uma pausa, mas só por alguns instantes, antes de prosseguir: – Seu pai perde a mulher que ama em uma tragédia que na verdade não foi culpa de ninguém. Depois perde o restante da família e vai parar num asilo, onde morreria sozinho. De alguma forma ele consegue sobreviver, reúne a família outra vez e tenta se virar como pai solteiro. Aí a imprensa espalha um monte de mentiras, as pessoas começam a chamá-lo de coisas horríveis com base nessas mentiras e ele tem que ficar quieto e aguentar. Jenna parou e olhou diretamente para Mikki. – Que sujeito malvado esse seu pai – concluiu. A menina olhava fixamente para os próprios pés, parecendo abalada. – Acho que nunca enxerguei as coisas desse jeito – disse ela após um longo silêncio. – Dá para ver por que você era advogada. – A coisa mais difícil do mundo é se colocar no lugar de outra pessoa, tentar sentir o que ela sente, entender os motivos dela. Sobretudo quando é tão fácil simplesmente rotulá-la. – E o farol?
– Sua mãe amou aquele farol. Foi algo importante para ela e ela queria que ele voltasse a funcionar. Para seu pai, isso já basta. Ele vai dar o sangue para tentar consertar o farol. – Por ela? – Seu pai não é maluco, Mikki. Tem consciência de que sua mãe morreu. Está fazendo isso em memória dela. Pelo menos em parte. Cada pessoa lida de forma diferente com o luto. Essa foi a que seu pai encontrou, só isso. – Então o que você acha que eu devo fazer? – Tomar coragem e conversar com ele. – Sobre o quê? – Acho que você vai descobrir. Mikki pousou a mão no braço de Jenna. – Obrigada pelo sorvete. E pelo conselho. – Às ordens para os dois, querida.
No sábado à noite, Jenna ajudou Mikki a se arrumar e lhe fez um penteado. Prendeu a maior parte do cabelo, mas deixou algumas mechas caírem pelo longo pescoço da menina. Cory e Jackie estavam sentados lado a lado no sofá, vendo TV . Ambos encararam a irmã com olhos esbugalhados quando ela desceu a escada seguida por uma Jenna toda orgulhosa. – Mikki, você está linda – falou Jackie. Cory não disse nada. Ficou mudo encarando-a, como se houvesse acabado de perceber que a irmã era menina. Sammy saiu da cozinha, viu Mikki e disse: – Uau! OK, pessoal, arrasa-corações na área. Abram caminho, por favor, abram caminho. Mikki ficou muito vermelha. – Pare com isso, Sammy! – pediu ela. – Querida, aceite os elogios dos homens – aconselhou Jenna. – Jack, venha logo – gritou Sammy. – Temos um problema. Jack chegou da cozinha e, ao ver a filha, congelou. Mikki olhou para todos aqueles homens a encará-la e por fim perguntou: – O que foi? – Nada, meu amor – disse Jack. – Você está maravilhosa. – Jenna me ajudou. Jack lançou um olhar agradecido à amiga. – Que bom. Eu não sou lá essas coisas em se tratando de cabelo e maquiagem. Jenna deu uma risadinha. – Ué, não ensinam isso no Exército? – Então, aonde a gente vai? – perguntou Mikki. – Como eu disse, vamos jantar em família. Para comemorar os seus 16 anos.
Ela olhou para Cory e Jackie, que assistiam a um desenho animado e comiam salgadinhos de queijo. O rosto e as mãos de Jackie estavam inteiramente cor de laranja e com um aspecto grudento. Cory deu um arroto. – Que maravilha! – disse ela, tentando parecer animada. Sammy olhou para Jack. – Espere aí um instante. Você disse que a gente tinha de terminar aquele serviço hoje. Prometeu para a cliente, lembra? – Ah, que droga, é mesmo. Onde será que eu estava com a cabeça? Jack deu um tapa na própria testa, frustrado. Mikki fez cara feia. – Esta a noite? Que serviço? – quis saber. Jack fez uma cara triste. – Um serviço importante. Eu tinha esquecido, querida. Mikki enrubesceu e seus olhos chisparam. – Pai, é meu aniversário. – Eu sei, meu amor, eu sei. Graças a Deus tenho um plano B. – Que plano B? Ele abriu a porta da frente e Mikki soltou um arquejo. Liam estava em pé do outro lado, usando uma calça de algodão bem-passada e uma camisa social branca. Seu rosto estava rosado e os cabelos brilhavam. Trazia um buquê de flores na mão. Mikki olhou para ele, depois para o pai. – Que história é essa? Jack sorriu. – Até parece que você iria querer comemorar seus 16 anos com o pai e os irmãos mais novos. Por favor... – E por que não? – disse ela, tentando controlar o entusiasmo. – Sei! – desdenhou Sammy. Ele então se virou para Liam, que não tinha se mexido. – Bom, filho, entre e entregue as flores para a dama. Ele pegou Liam pelo braço e o puxou para dentro da sala. Liam entregou o buquê a Mikki. – Você está linda mesmo – falou, tímido. – Você também está muito bem – falou, depois se voltou para o pai: – Como foi que você conseguiu fazer isso sem nem Cory nem Jackie entregarem tudo? – Simples: não contei nada para eles. E Jenna foi minha cúmplice. Jenna fez uma mesura.
– Assumo a culpa. – Qual é o plano, então? – perguntou Mikki. – Como eu disse, um jantar – respondeu Jack. – Para dois. As reservas estão feitas. – E não são no Little Bit – emendou Jenna. – Vocês vão àquele restaurante chique no centro da cidade. Eu conheço os donos. Separaram uma mesa ótima para vocês e prepararam um cardápio especial. – Nossa, não acredito que isto esteja acontecendo. Estou me sentindo uma Cinderela. Jack passou o braço em volta da filha. – É bom saber que ainda consigo lhe fazer uma surpresa. – Obrigada, pai. Bom, acho que é melhor a gente ir – disse ela. – Espere um instante – disse Jack. – Feche os olhos. – Pai! – Por favor, feche os olhos. Mikki suspirou teatralmente e fechou os olhos. Jack tirou um colar do bolso e o pôs em volta do pescoço da filha. – Pronto. Ela baixou os olhos para o colo e soltou um arquejo. Correu até o espelho pendurado na parede: – Este colar era da mamãe – falou baixinho. Jack aquiesceu. – Eu dei a ela de presente no nosso primeiro aniversário de casamento. Mikki se virou para ele com lágrimas a cintilar nos olhos. – Feliz aniversário, filha. Então pai e filha deram um abraço demorado. Depois que Liam e Mikki saíram para jantar, Jack foi para a varanda da frente e ficou em pé lá, olhando para o quintal de areia. Estava com os olhos marejados quando Jenna foi se juntar a ele, e evitou encará-la. – Tudo bem, pai? – perguntou ela. – Eles crescem rápido. – Crescem. Mas crescer não faz mal. O que não queremos é que eles se afastem. – Você é bem boa nisso de criar filhos. – Quando você passa muito tempo fazendo uma coisa por conta própria, ou fica bom nela ou fica louco.
– Então ainda tenho salvação? – Eu diria que sim – respondeu Jenna, passando o braço pelo de Jack. – Ela é uma ótima menina. – Graças a Lizzie. – Ora, se dê um pouco de crédito também. Você se saiu bem hoje, Jack Armstrong. – Você acha mesmo? – Acho, acho sim.
Mikki e Liam tinham acabado de jantar quando ele pediu licença para ir ao banheiro. Segundos depois, ela se espantou ao ver Blake Saunders se aproximar da mesa. – O que você está fazendo aqui, seu falso? – rosnou ela. – Eu trabalho aqui. – Trabalha? – Limpo as mesas. Sou de Sweat Town, lembra? – Ué, a fofa da Tiffany não lhe dá mesada? – Olhe, você tem todo o direito de estar brava. – Não estou brava. Poderia estar se ligasse para o que aconteceu, só que não ligo. Vocês se divertiram com aquela palhaçada, mas por pouco não machucaram Liam de verdade. – Não era para ninguém se machucar. Eu tirei aqueles dois idiotas de cima do Liam, caso você não tenha percebido. Pulei em cima dele para tentar proteger o cara. Mas aí você voou em mim e quase arrancou minha cara fora. – Bem, não vamos esquecer que nada disso teria acontecido se você não tivesse armado para cima de mim. Aliás, por que fez aquilo? Blake baixou os olhos. – Por causa do que você fez com a Tiff. Ela ficou brava. Quis se vingar de você. – E você faz tudo que ela manda? Lastimável. – É, acho que você tem razão – reconheceu Blake. – Pode poupar sua saliva, porque não vai me enganar com essa história de “eu sinto muito”. – Foi você quem pôs cola no banco do carro dela? – Não sei do que você está falando. – Bom, caso esteja interessada, ela ficou bastante zangada. Precisou tirar a calça para sair do carro. E estava sem calcinha. Teve que subir correndo a escada para
entrar em casa. Só que escorregou e caiu em cima dos arbustos. Parece que se ralou feio. Pelo menos foi o que minha mãe falou. Acho que todos os empregados riram bastante. Ao ouvir a história, Mikki não conseguiu conter um sorriso. – Aqui se faz, aqui se paga, não é? – Ouvi dizer que você se inscreveu no concurso de talentos. – Foi. Eu e Liam. Com certeza você vai lá torcer pela sua preciosa Tiff. – Na verdade, eu estou torcendo para você arrasar com ela. Ele virou as costas e se afastou. Depois de saírem do restaurante, Liam e Mikki seguiram para a praia, para caminhar descalços pela areia. – Antes de vir para cá, eu nunca tinha visto o mar – disse Mikki, deixando a água lhe cobrir os pés. – Mamãe e eu sempre moramos perto da água. Bom, relativamente perto. – Eu gosto daqui. Não achei que fosse gostar, depois de morar a vida inteira na cidade, mas gosto. – Também precisei de um tempo para me acostumar, mas morar aqui pode ser bom. – Blake Saunders veio falar comigo no restaurante enquanto você estava no banheiro. Liam não pareceu irritado com isso, apenas curioso. – Sério? O que ele queria? – Pedir desculpas por ter ajudado Tiffany naquela emboscada que armaram para mim. Ele disse que estava tentando proteger você, não machucar. – É, na verdade eu acredito nele. – Sério? – Blake não é um típico jogador de futebol americano valentão, Mikki. Ele na verdade é um cara legal. OK, ele anda demais com Tiffany, mas nunca tive problemas com ele. Sempre foi legal comigo na escola. A gente até sai junto de vez em quando. – Eu não sabia. – Pois é. Começou a chover e eles correram até um velho posto de salva-vidas para se protegerem sob o beiral do telhado. – Sua mãe é muito legal, Liam.
– É, sim. Meu pai foi embora logo depois de eu nascer e ela me criou sozinha. Nem me lembro dele. – Deve ter sido difícil para você. – Acho que poderia ter sido, mas minha mãe deu conta de tudo pelos dois, inclusive do amor – afirmou Liam. – Sinto muita saudade da minha mãe. Liam pôs o braço à sua volta. – É normal, Mikki, não tem como não sentir. Ela era sua mãe, criou você, deu amor. E com certeza você também a amava. – Você é bem sensível para um garoto. Ele sorriu. – Eu sou músico. Está no sangue. Ele a puxou para si e os dois se beijaram enquanto a chuva e o vento iam aumentando e as ondas começavam a quebrar com mais força. – Outro dia, sua mãe veio conversar comigo sobre meu pai – disse Mikki. – Me fez começar a pensar nas coisas que fiz. – Ah, é? Em quê? – Eu não lidei bem com a situação quando meu pai ficou doente. Na verdade, me comportei bem mal. – Como assim? – Quando alguém pede ajuda, ou você estende a mão ou foge. Eu fugi. Tratei minha mãe mal. Não ajudei meu pai. Na verdade, evitei meu pai. Fui rebelde, criei problemas, dificultei muito a vida deles. Lágrimas escorriam pelo rosto da menina. – E sabe por que fiz tudo isso? – falou Mikki. Liam olhou nos olhos dela. – Porque estava com medo? Ela retribuiu seu olhar. – Eu estava apavorada por ver meu pai morrendo. E em vez de tentar tornar agradável o tempo que ele ainda tinha, simplesmente saí correndo na direção oposta. Eu não soube lidar com a situação. Não queria perder meu pai, mas uma parte de mim sentia ódio por ele estar abandonando a gente. Por estar me abandonando. Ela deixou escapar um soluço. – E agora que minha mãe morreu isso está acabando comigo – desabafou ela. –
Tudo em que consigo pensar é que transformei o final da vida dela em um inferno. Um inferno. Liam a abraçou novamente. Quando ela finalmente controlou as lágrimas, enxugou os olhos na camisa dele. – Obrigada. – Tudo bem, Mikki. Essas coisas são difíceis. Não existe resposta simples. Não é como a música: as notas todas estão lá e você só toca e se diverte. Família é uma coisa bem difícil. – Sua mãe disse que eu tenho de conversar com meu pai. – Acho que ela está certa. A chuva começou a diminuir e eles correram até o carro. Liam a levou em casa. Quando Mikki estava descendo, falou: – Obrigada por este aniversário tão maravilhoso. – Ah, você facilitou muito as coisas para mim. – Sei! Chorar no seu ombro... fácil à beça. – Sempre pensei que isso fizesse parte de um bom relacionamento. Ela se inclinou outra vez para dentro do carro e o beijou. – Faz, sim. E nós temos.
Jack estava deitado de costas no cômodo em que ficava o mecanismo do farol. Tinha as mãos sujas de graxa, estava suado e com calor, cheio de poeira na garganta, e o trabalho não avançara muito. Tinha seguido à risca os diagramas da instalação elétrica e da parte mecânica, mas mesmo assim alguma coisa continuava errada. Ele posicionou o facho da lanterna para dentro de uma fenda estreita entre duas placas de metal. – Pai? Jack se levantou com um sobressalto e bateu a cabeça em uma peça metálica. Saiu do lugar em que se confinara esfregando o lugar da pancada. Olhou para a abertura que dava para o espaço sob o cômodo. Mikki o encarava lá de baixo, com os cabelos grudados na testa. – Mik, tudo bem? – Tudo, pai. Ele a examinou com atenção. – Você parece um pinto molhado. – Está chovendo. Ele olhou pela janela. – Ah, é. Acho que entrei antes de ela começar. – Posso subir aí? Ele lhe estendeu a mão e a puxou para dentro do espaço diminuto. Quando ela chegou mais perto, ele disse: – Você está com cara de quem andou chorando. Liam não... – Não, pai. Não tem nada a ver com ele. Liam foi ótimo. A gente teve uma noite incrível. Eu... eu gosto muito dele. Muito. Jack relaxou. – Está bem, mas então por que...? Ela segurou a mão do pai e o puxou até o peitoril que margeava as paredes, logo
abaixo da janela. Os dois se sentaram. – A gente precisa conversar. – Sobre o quê? – perguntou ele, desconfiado. – Sobre o que aconteceu com a mamãe, com você, comigo. Enfim, sobre tudo. – Agora? – É, acho que sim. Jack limpou as mãos com uma estopa, que depois jogou no chão. – Olhe, sei que vocês acham uma loucura o que estou fazendo aqui. E talvez seja mesmo... Mikki tocou seu braço para silenciá-lo. – Não, pai. Eu não acho uma loucura – falou. Ela fez uma pausa e tomou coragem: – Jenna conversou comigo sobre umas coisas. – Que coisas? – Ela me mostrou como as coisas têm sido difíceis para você. Falou que a gente precisa lhe dar um desconto, que todo mundo tem a sua maneira de lidar com o luto. – Ah. Jack olhou para o mecanismo de iluminação antes de tornar a virar os olhos para a filha. – Estou tentando superar, Mikki, estou mesmo. Mas não é fácil. Tem dias em que me sinto bem, em outros fico totalmente perdido. Mikki não conseguiu mais se conter e começou a soluçar enquanto desabafava: – É que eu tive tanto medo quando você ficou doente, pai. Não sabia o que fazer. Achei que, se fugisse, não teria que lidar com a situação. Eu fui egoísta. Me perdoe. Ele abraçou a filha e a deixou chorar. Quando ela se acalmou, ele lhe entregou uma estopa limpa para que enxugasse os olhos. – Mikki, você é uma menina inteligente, mas tem só 16 anos. Ninguém espera que você saiba todas as respostas. Nem eu, com 35, tenho todas as respostas. Acho que as pessoas também precisam dar um desconto a você. – Mas mesmo assim eu devia ter percebido – disse ela, enquanto outro soluço escapava de sua garganta. Ele afagou seus cabelos. – Vou lhe contar um segredo. Quando meu pai estava morrendo, eu fiz mais ou menos a mesma coisa. No início fiquei triste, depois com medo. Ia dormir com
medo, acordava com medo. Via meu pai andando para lá e para cá de pijama em pleno dia. Ele estava só esperando a morte. Não havia esperança. Era um cara alto, forte, que eu tinha admirado a vida toda. E ali estava ele, impotente. Eu não queria me lembrar do meu pai daquele jeito. Então me fechei e afastei todo mundo, inclusive ele. Eu também fui egoísta. Fui um covarde. Talvez por isso tenha entrado para o Exército, para provar que tinha alguma coragem em mim. Ela o fitava com olhos arregalados. – Sério que você fez isso? – Sério. – A vida é mesmo uma droga às vezes – disse Mikki enquanto se recostava e assoava o nariz. – É, às vezes é. Mas outras vezes é maravilhosa e faz você esquecer tudo de ruim. Ela baixou os olhos, torcendo os dedos com nervosismo. – Tem mais alguma coisa que você queira me contar, Mik? – Você promete que não fica bravo? Jack deu um suspiro. – Se eu não prometer, você vai me contar mesmo assim? – Vou, mas estava torcendo para você prometer. – Pode me contar o que quiser. Ela se virou de frente para ele e respirou fundo. – Fui eu quem falou com aquela revista de fofocas. Jack a encarou, pasmo. – Você? Mais lágrimas rolaram pelas faces de Mikki. – Sei que foi uma burrice. E as coisas fugiram do controle. A maioria das porcarias que o jornalista escreveu ele simplesmente inventou. – Mas como você sabia aquelas coisas? – Eu ouvi você e mamãe conversando na noite em que ela morreu. E vi o que aquele imbecil do Bill Miller fez. – Mas por que falar com uma revista de fofocas? Você sabe o que essa gente faz. Ficou parecendo que sua mãe... – Eu sei. Eu me arrependi tanto, pai. Fui tão burra. Eu... não sei por que fiz isso. Estava confusa, com raiva. Você deve estar me odiando. Eu mesma me odeio por isso. As palavras saíam de sua boca em uma enxurrada, deixando-a tão ofegante que
ela quase engasgou. Jack envolveu a filha nos braços e a puxou para si. – Calma, calma. Não tem mais importância. Você fez uma bobagem e reconheceu seu erro. É preciso muita coragem para isso. Mikki tremia. – Não me sinto corajosa. Me sinto uma porcaria. Você deve estar me odiando, não está? – Na verdade, é contra a lei um pai odiar a filha. – Me perdoe, pai... Eu sinto muito mesmo. Agora sei que o que fiz foi uma burrice enorme. – Acho que nenhum de nós dois estava raciocinando muito bem durante algum tempo. – Você acha que um dia vai conseguir me perdoar? E confiar em mim outra vez? – Vou, sim. As duas coisas. – Simples assim? Ele tocou o rosto da filha. – Simples assim. – Por quê? – É uma coisa chamada amor incondicional, querida.
Jenna ergueu os olhos do balcão do restaurante e viu Jack em pé na sua frente. Ela sorriu. – Ouvi dizer que as crianças se divertiram muito. – É, Mikki ainda não parou de falar no assunto. – Quer comer alguma coisa? O especial de hoje é sanduíche de filé. – Não, obrigado. Escute, eu estava pensando se hoje você teria tempo para ir jantar. Jenna saiu de trás do balcão e foi se postar ao seu lado. – Jantar? Claro. Em que lugar você pensou? Aqui, não. Já estou enjoada do cardápio – brincou. – Eu posso cozinhar para você. – Não, não quero que tenha trabalho. – Eu adoro cozinhar. Na verdade, é uma terapia para mim. Mas você vai ter que ser meu ajudante. – E o que seu ajudante precisa fazer? – Descascar e picar, basicamente. – Isso eu posso fazer. Mas você consegue sair do trabalho? – Por uma noite, consigo. O restaurante agora praticamente anda sozinho e meu filhão e Mikki vão estar aqui. Acho até que eles nem precisam mais de mim. Lá pelas sete e meia? – Está ótimo. – Você quer conversar sobre algum assunto em especial? – Sobre várias coisas.
Naquela noite, quando Jack chegou à casa de Jenna, havia música tocando, o vinho estava servido e velas aromáticas enfeitavam o ambiente. – Não fique nervoso com nada disso – disse ela ao recebê-lo na porta. – É que eu gosto de ficar à vontade. Não estou dando uma de Sex and the City para cima de você – explicou, antes de perceber que ele estava mais arrumado que de costume. – Você está bonito. Ele baixou os olhos para a calça jeans nova, a camisa de colarinho bem-passada e o par de sapatos impecáveis que lhe apertava os pés. Então olhou para Jenna. Ela usava um vestido amarelo sem mangas com detalhes na frente e estava sem sapatos. – Não tanto quanto você – retrucou ele. – Posso ficar descalço também? Estes sapatos novos estão me matando. Jack olhou para os pés de Jenna e ela sorriu. – Fique à vontade. Quando eu era pequena, adorava sentir a grama sob os pés. Só usava sapatos quando minha mãe me obrigava. Acho que um dos motivos que me fez mudar para o sul foi aqui não ter muita gente que usa sapatos fechados. Ela o levou até a cozinha e apontou para a tábua de cortar e uma pilha de vegetais e tomates logo ao lado. – Seu trabalho está esperando. Jack foi picando e fatiando os ingredientes enquanto Jenna se movia pela cozinha cuidando do restante. – Quer dizer que você gosta de cozinhar? – Na verdade, já quis ser chef. – Mas em vez disso virou advogada. – É, foi um daqueles desvios malucos da vida. Quando Liam ficou maior, eu fiz aulas de culinária. Depois, quando comecei a pensar em mudar de ramo, ter um restaurante pareceu uma boa opção. O cardápio do Little Bit não é extenso, mas fui eu que elaborei todos os pratos. Ela pôs uma travessa de frango no forno. – É na cozinha de casa que eu realmente impressiono. – Estou ansioso para ser impressionado, então. Uma hora mais tarde, os dois se sentavam para comer. Depois de algumas garfadas, Jack ergueu a taça de vinho em um brinde aos dotes culinários de Jenna. – Não sou especialista, mas isto aqui está uma delícia. Ela bateu sua taça levemente na dele: – Tenho certeza de que o jeito como você cortou e picou os legumes fez toda a diferença.
– Ah, claro. Ela pousou a taça e olhou para ele. – Então está bem. Vamos conversar agora ou na hora da sobremesa e do café? – Que tal depois da sobremesa e do café? – Por quê? Ele pareceu encabulado. – Porque estou me divertindo muito. – E acha que o que tem a dizer vai estragar a noite? – perguntou ela, um pouco preocupada. – Não, não é nada disso. Mas vai ser diferente. Depois de uma torta e do café, eles foram caminhar na praia. Jack andava devagar e Jenna adaptou seus passos ao ritmo dele. – Mikki falou que vocês duas conversaram. – Ela é uma menina muito inteligente. Mikki entende as coisas, Jack. Entende mesmo. – Nós conversamos ontem, depois que ela voltou do jantar. Mikki disse que você a aconselhou a tentar enxergar as coisas do meu ponto de vista. – Eu disse que isso era importante. – Entendo por que ela ficou chateada comigo. Ele parou e chutou um pouco de areia. – Depois que me recuperei e busquei as crianças, voltei para a velha rotina. E Mikki se ressentiu disso. – Disso o quê? – Do fato de eu não ter a menor ideia de como administrar uma família. – E quem tem? Nós todos levamos as coisas num esquema meio de tentativa e erro. – É muita gentileza sua dizer isso, Jenna. Mas está me dando um crédito que eu na verdade não mereço. – Você se cobra demais. Aposto que fazia isso no Exército também. – É o único jeito de sobreviver. É preciso exercitar a perfeição. Você recebe uma missão, se prepara ao máximo para ela e depois executa o que planejou. Numa obra é a mesma coisa. Você tem um projeto, junta o material e constrói de acordo com a planta. – Certo, mas todas as suas missões e todas as suas obras correram de acordo com o planejado?
– Bom, não. Isso quase nunca acontece. – E nesse caso a pessoa faz o quê? – Improvisa. Vai resolvendo na hora. – Acho que você acabou de definir em poucas palavras o que é ser pai ou mãe. – Você acredita mesmo? – Acreditar não é um termo forte o suficiente. Eu basicamente vivo isso. – Eu já devia saber disso, sendo pai de três filhos. – Cada filho é um filho. Não existe uma fôrma ou um modelo em que todos se encaixem. Eu só tive Liam, mas meu pai e minha mãe tiveram seis. Nós deixávamos os dois malucos. Não é tranquilo, quase nunca faz sentido e é o trabalho mais difícil e estressante que uma pessoa pode ter. Mas a recompensa também é a maior que existe. – Algum dia fica mais fácil? – Para ser sincera, algumas partes ficam, sim, mas aí elas são substituídas por outras partes ainda mais difíceis. Jenna pôs a mão no ombro de Jack. – Tempo, Jack. Tempo. E um passo de cada vez. Você quase morreu. Perdeu a mulher que amava. Mudou-se para outra cidade. É muita coisa. – Obrigado, Jenna. Eu precisava ouvir tudo isso. – Estou sempre disposta a dar conselhos, mesmo que a maioria deles estejam errados. – Acho que a maioria está certa, pelo menos para mim. Ela retirou a mão do seu ombro devagar. – Jack, qualquer coisa pode se complicar depressa. Por isso acredito que o melhor é ir com calma. – Acho que estou começando a entender isso. Obrigado pelo jantar. Ela lhe deu um beijo na bochecha. – Obrigada pelo convite. Mas por que você achou que essa conversa fosse mudar o clima do jantar? Ela só me fez pensar que você precisava de um pouco de segurança, um pouco de reconforto. – Mas essas coisas são difíceis para mim. Não falo sobre esses assuntos. Sou meio solitário. Quando a Lizzie era viva, eu conversava com ela. – Sua alma gêmea? – E minha melhor amiga. Não havia assunto proibido para nós.
Jenna deu um suspiro resignado. – Você acaba de descrever a minha imagem... não, o meu sonho... do relacionamento perfeito. – Nem tudo era perfeito. Tínhamos nossos problemas também. – Mas resolviam juntos? – Bom, sim. Casamento é isso, não é? – Supostamente, sim. Mas cada vez mais sou levada a pensar que não. Parece que as pessoas desistem umas das outras com muita facilidade. Ficam achando que a grama do vizinho é mais verde... – Me espanta você nunca ter se casado de novo. Tenho certeza de que não foi por falta de pretendentes. – Não – admitiu ela. – Mas, como eu já disse antes, acho que não apareceu o homem certo. Quando estavam voltando para casa, ela perguntou: – E como vai o farol? – Não muito bem – confessou ele. – Acho que vou morrer tentando fazer aquilo lá voltar a funcionar. Mais tarde, com uma expressão preocupada no rosto, Jenna ficou olhando da varanda enquanto ele ia embora de carro.
Uma semana depois, Jack prendeu mais um parafuso com a chave inglesa, fechou uma conexão elétrica com fita isolante, girou o botão de funcionamento para a posição adequada e recuou alguns passos. Desde o jantar na casa de Jenna, passara todas as noites ali, no farol, trabalhando até de madrugada. Sentia-se um maratonista próximo do final da corrida. Por três vezes havia acreditado ter finalmente conseguido. Por três vezes descobrira estar errado. E a cada uma delas se sentira mais frustrado. Nos últimos dias, ele tinha sido ríspido com Sammy e com todos os três filhos. Chegara a fazer Jackie chorar uma vez, e depois disso passara dias se sentindo mal. No entanto, ali estava ele. – Vamos lá – falou, olhando para o mecanismo de iluminação. – Vamos lá. Está tudo certo. Até o menor dos detalhes. Não há motivo algum para você não funcionar. Ele estendeu a mão para acionar o interruptor e ligar o sistema. Contou até três, fez um pedido, respirou fundo, prendeu o fôlego e apertou o botão. Nada aconteceu. Mas dessa vez não foi a decepção que o tomou. Toda a infelicidade, toda a frustração, toda a perda reprimidas dentro dele subitamente se libertaram. Ele pegou a chave inglesa e a atirou contra o mecanismo. A chave bateu na parede, depois quebrou uma vidraça. Jack desceu correndo a escada, pegou um caixote no outro andar, levou-o para fora e o atirou o mais longe que pôde. Todo o seu conteúdo se espalhou num estrondo pelas pedras. Ele então correu desvairado até a praia, berrando e soltando palavrões, até cair na areia e ficar sentado ali, balançando-se para a frente e para trás, com o rosto enterrado nas mãos e lágrimas a escorrer por entre os dedos. – Desculpe, Lizzie, me desculpe. Eu tentei, tentei de verdade, mas não consigo fazer o farol funcionar. Não consigo fazer isso – repetiu, em voz mais baixa. – E não consigo aceitar que você foi embora. Não consigo! Quem deveria estar aqui
era você, não eu. Não eu! O ritmo de sua respiração foi desacelerando. Seus pensamentos clarearam. Foi ficando mais calmo. Deixou o olhar se perder na escuridão do oceano. Viu os pontinhos de luz habituais dos navios distantes. Pareciam estrelas vindo em direção à Terra, pensou Jack. Tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes. Ergueu os olhos buscando o lugar onde Lizzie poderia estar. Nunca conseguira encontrá-lo. O céu é tão grande e nós, tão pequenos. Agora entendia como uma menininha ficara tão obcecada por um farol. Havia acontecido o mesmo com ele, que era homem feito. – Pai? Jack se virou e deu com Mikki em pé atrás de si. Usava camiseta e calça de pijama e parecia assustada. – Tudo bem com você? – perguntou ela, ofegante. – Eu... eu ouvi você gritar. Ela passou os braços em torno dos ombros fortes de Jack. – Pai, está tudo bem? – tornou a perguntar. Ele respirou fundo devagar. – Estou tentando compreender o incompreensível. – Sei – disse ela, hesitante. Jack olhou para o Palácio atrás deles. – Fui muito egoísta por fazer a gente se mudar para cá. Sua mãe cresceu aqui e eu queria ficar perto dela. A casa estava cheia de coisas que tinham pertencido a ela. Todos os dias eu encontrava algo que ela havia tocado. – Eu entendo. No início, não queria vir para cá. Mas agora estou feliz por ter vindo – falou, fazendo um carinho no braço do pai. – Todo dia eu olho aquela foto da mamãe que você me deu. Às vezes isso me faz chorar, mas também é bom. Ele apontou para o farol. – Quer saber por que estou me acabando para tentar fazer esse troço voltar a funcionar? Mikki sentou ao seu lado. – Porque a mamãe adorava esse farol? – arriscou ela. – E queria que você o consertasse? – No início, também achei que fosse isso. Mas agora, vendo você em pé aqui, ao meu lado, foi como se uma névoa saísse da frente dos meus olhos – falou, depois fez uma pausa e enxugou o rosto com a manga da camisa. – Percebi que tudo o que eu queria era consertar alguma coisa, qualquer coisa. Eu queria ter um manual de
instruções para poder seguir e fazer as coisas funcionarem, como num passe de mágica. Aí tudo iria ficar bem de novo. – Mas não foi assim? – Não, não foi. E sabe por quê? Mikki fez que não com a cabeça. – Porque a vida não é assim. Você pode tentar ser perfeito, pode cumprir seus compromissos, corresponder às expectativas que as pessoas têm de você e, mesmo assim, não obter os resultados que consideraria justos. A vida é uma loucura, irrita e muitas vezes não faz sentido. Jack olhou para a filha e ficou um instante em silêncio. – Tem gente que deveria estar aqui, mas não está; tem gente que está, mas não deveria. E não há nada que se possa fazer a respeito. Não dá para mudar isso, por mais que se queira. Ele se calou e pôs-se a fitar o oceano. Mikki se recostou nele e segurou sua mão. – Nós estamos aqui para ajudar você, pai. Eu estou aqui para ajudar você. Ele sorriu e, com esse sorriso, a expressão de medo no rosto de Mikki por fim se desfez. – Eu sei que está, filha – disse, abraçando-a. – Lembra que eu disse que fiquei com medo quando meu pai estava morrendo, que me afastei de todo mundo? – Lembro. – Bom, quando minha mãe foi embora, eu me retraí mais ainda. Se não fosse pela sua mãe, acho que aquilo teria virado um buraco negro. Eu praticava esportes, mas não tinha muitos amigos, acho que porque não queria. Então a gente se casou e eu fui para o Exército. Depois, quando voltei para casa, escolhi uma profissão que exigia muitas horas de trabalho. – Você tinha que sustentar a família. – Sim, mas de certa forma ainda estava tentando me esconder. – Mas você foi um pai presente. – Perdi muita coisa que não deveria ter perdido. Eu sei disso e você também. – Mas ainda vai participar de muita coisa– falou ela, em voz baixa. Ele aquiesceu. – Tem razão, meu amor. Uma vida inteira de coisas. Ela estremeceu. Ele passou o braço à sua volta. – Venha – chamou ele. – Vamos entrar. Quando estavam passando pelo farol, Mikki ergueu os olhos para a estrutura e
perguntou: – Tem certeza? Jack nem sequer desviou o olhar. – Certeza absoluta, Mikki. Absoluta.
Ao voltar para o quarto, exausto, Jack desabou na cama, mas não adormeceu. Passou algum tempo deitado, com os olhos pregados no teto. A vida muitas vezes era injusta, insana, dolorosa. No entanto, Jack tinha consciência de que era um milagre o fato de ele ainda tê-la. Já havia desperdiçado muito desse milagre. Precisava parar com isso. Imediatamente. Abriu a gaveta da mesa de cabeceira e pegou o maço de cartas. Escolheu o envelope marcado com o número 5, retirou a carta e acendeu a luz. Acreditava realmente no que tinha acabado de dizer à filha, já havia posto aqueles sentimentos no papel. No entanto, em sua busca pelo impossível, havia esquecido ou, mais provavelmente, ignorado esse fato. Começou a ler.
Querida Lizzie, Depois de passar algum tempo observando as coisas da minha cama, tenho uma confissão a fazer. Uma confissão e um pedido de desculpas. Não fui um bom pai, nem um bom marido. Passei metade do nosso casamento fora do país, lutando em guerras, e a outra metade trabalhando demais. Uma vez ouvi dizer que o último desejo de alguém nunca seria ter passado mais tempo no trabalho. Eu também não desejaria isso, mas agora é tarde para fazer o que realmente gostaria. Já tive minha chance. Quando olho para nossos filhos, percebo quanto perdi. Mikki cresceu, tem sua própria vida. Cory é introspectivo e tem um temperamento complexo. Até mesmo Jackie tem sua personalidade. E eu perdi a maior parte disso tudo. Meu maior arrependimento na vida vai ser deixar você muito antes do que deveria. Meu segundo maior arrependimento será não ter participado mais da vida dos nossos filhos. Acho que pensei que ainda teria tempo para compensar essa falha, mas na verdade isso não é desculpa. É triste perceber o que realmente importa na vida quando já é tarde demais para fazer algo a respeito. Dizem que Natal é tempo de segundas chances. Minha esperança é fazer destes últimos dias a minha segunda chance de agir certo com as pessoas que mais amo.
Com amor, Jack Jack dobrou o papel com cuidado e o pôs de lado. Quando escrevera aquelas cartas, elas eram tudo o que lhe restava, sua chance de demonstrar seus sentimentos mais sinceros, as questões que vêm à tona quando nosso tempo restante é precioso demais e pomos de lado o que não tem importância. O mundo seria um lugar bem melhor se as pessoas vivessem como se todos os dias fossem o último, pensou. Mas, no fim das contas, suas cartas eram apenas palavras. Lizzie as teria lido e talvez elas a fizessem sentir melhor, mas só isso. Agora era hora de agir. Ele sabia o que tinha de fazer. Ser um pai para meus filhos. Consertar essa parte da minha vida. Jack se levantou e foi de quarto em quarto olhar os filhos. Sentou-se ao lado de Jackie enquanto o menino dormia, tranquilo, com a mão fechada em volta do caminhão de brinquedo. Cory estava de bruços, com os braços encolhidos sob o corpo. Um leve ronco lhe escapava da boca. Em seguida, Jack foi se postar à porta do quarto de Mikki para observar o leve sobe e desce de seu peito, o ruído suave de sua respiração. Fechou a porta do quarto da filha e desceu a escada, depois saiu para a varanda dos fundos. Dali podia ver o farol. Tinha transformado-o em uma espécie de ídolo, mas não passava de uma pilha de tijolos e blocos de concreto recheados de metal. Aquilo não era Lizzie. Não tinha coração. Não era como as três pessoas que agora dormiam no andar de cima e que precisavam tanto dele. Em sua última carta, ele havia lamentado não ter uma segunda chance. Mas aquele mundo insano e injusto do qual ele às vezes sentia tanta raiva tinha lhe oferecido algo inestimável: outra chance de viver. Chega de fugir. Jack voltou para a cama e, pela primeira vez em muito tempo, dormiu a noite inteira.
Daquele dia em diante, em vez de pegar novos trabalhos, Jack passou a levar Jackie e Cory de carro até a colônia de férias de Anne Bethune. Mas não os deixava lá e simplesmente ia embora. Ficava desenhando ou construindo estruturas de Lego com Jackie e depois, aos risos, eles a destruíam juntos. Ensinava o caçula a amarrar os sapatos e a cortar a própria comida. Ajudava a montar o cenário de uma peça na qual Cory iria atuar. Repassava as falas com ele. Depois da colônia, eles iam à praia nadar, erguer castelos de areia e jogar bola ou Frisbee. Jack ensinou os filhos a soltar pipa e, quando descobriram equipamentos de pesca sob o terraço do Palácio, tentaram pegar peixes nas ondas. Não conseguiram um sequer, mas se divertiram muito. Jenna e Liam os visitavam com frequência. Às vezes Liam trazia os instrumentos musicais e ele e Mikki ensaiavam para o concurso de talentos. Como o Palácio não tinha isolamento acústico, os dois iam para o farol. Pelo menos o farol serve para alguma coisa, pensava Jack. Ele e Mikki davam longos passeios pela praia e conversavam sobre assuntos que nunca haviam abordado antes. Sobre Lizzie – e também sobre a escola, os meninos, a música e as coisas que ela desejava fazer no futuro. Mikki seguia trabalhando como garçonete no restaurante. Jack e Sammy eram clientes assíduos. Também faziam alguns serviços para Jenna, mas só porque ela se recusava a lhes cobrar pela comida. Charles Pinckney os visitava no Palácio. Contava histórias do passado, de quando Lizzie era uma menina mais ou menos da idade de Jackie, e todos se sentavam para escutar, fascinados. Jack levava Jenna para passear na Harley e às vezes um almoçava ou jantava na casa do outro. Caminhavam pela praia conversando. Riam e, de vez em quando, deixavam braços e dedos se tocarem, mas só. Eram amigos. O verão estava enfim transcorrendo como Jack desejara. À noite ele ficava deitado na cama, com as luzes apagadas, tentando distinguir a respiração de cada
filho nos outros quartos. Quando Jackie tinha pesadelos, abria de supetão a porta do pai e se aninhava na cama com ele. O menino se apertava junto ao corpo de Jack, que afagava delicadamente os cabelos do filho até ele tornar a adormecer. Certa noite, ele e Sammy estavam tomando cerveja na varanda dos fundos, enquanto Mikki e Liam faziam no farol o último ensaio antes do concurso e Cory e Jackie construíam um castelo de areia. O sol começava a se pôr, flamejando o céu de vermelho e laranja. Sammy olhou para o amigo. – A vida está boa? Jack assentiu. – Com certeza. – O verão já está quase no fim. – Eu sei. – Algum plano? – Ainda estou pensando – respondeu Jack, olhando para o amigo. – E você? – Ainda estou pensando. Ambos se viraram quando alguém bateu à porta da varanda. Era Jenna. – Vim buscar Liam e a parafernália de percussão – disse ela, sentando-se também. – Amanhã é o grande dia. Eles precisam descansar. – Vou lá ajudá-lo – disse Sammy. Antes que Jack ou Jenna pudesse dizer mais alguma coisa, Sammy já havia tomado o rumo do farol, deixando-os a sós. – E então, o que aconteceu, afinal? – perguntou ela. Jack olhou para ela confuso: – Como assim? – Você mudou, Jack Armstrong. Estava me perguntando por quê. Ele terminou a cerveja. – Às vezes a gente precisa abrir os olhos para enxergar a vida – respondeu ele. – Pode parecer piegas, mas é verdade. – Fico feliz por você. De verdade. – Você ajudou muito, Jenna. Ela fez um gesto indicando que aquilo não tinha importância. – Ah, você teria descoberto isso sozinho. – Não sei se teria. Já tinha passado muito tempo às cegas. Ambos olharam para o mar e em seguida para o farol.
– Não consegui fazer aquilo lá funcionar – disse ele. – Às vezes as coisas só funcionam quando você realmente precisa. Ele aquiesceu devagar. – Você vai ao concurso amanhã? – perguntou ele. – Está de brincadeira? É claro que vou. – Por que não vem conosco? Sammy vai levar os instrumentos na picape e podemos ir todos na Kombi. – Parece uma boa ideia. Jenna foi embora com Liam e o Palácio se aquietou para o fim de mais um dia. Jack bateu na porta do quarto de Mikki e entrou. Ela estava sentada na cama revisando o programa das músicas que iria tocar com Liam. Jack sentou-se junto a ela. – Você já sabe tudo isso de cor – falou. – Preparação nunca é exagero. – Agora você está começando a falar como o seu pai. – E isso é ruim? Ele lhe lançou um sorriso de cumplicidade. – Tomara que não. Escute, vai ser tudo ótimo amanhã, quer vocês ganhem ou não. Ela o encarou por cima das partituras. – Ah, pai, a gente vai ganhar com certeza. – Não tem nada de errado em se sentir confiante, mas cuidado com o salto. – Não é isso. Eu dei uma olhada nas outras apresentações. Cheguei a ver um vídeo da exibiçãozinha de bastão que Tiffany fez no ano passado. Medíocre, no mínimo. Não sei como ela conseguiu ganhar três anos seguidos. Bom, meio que sei, sim. Quem organiza o concurso é a mãe dela. Mas ninguém se preparou tanto quanto Liam e eu. – Bom, aconteça o que acontecer, eu vou estar na plateia torcendo por vocês. Ele se levantou para sair do quarto. – Mas você precisa de uma boa noite de sono, então nada de ficar acordada até tarde, certo? Quando Jack se virou para a porta, Mikki o chamou e ele se virou de novo para ela. – O que foi, Mikki? Ela pulou da cama e lhe deu um abraço apertado.
– Obrigada, pai. Jack retribuiu o abraço. – Pelo quê, querida? Ela ergueu os olhos para ele. – Por ter voltado para nós.
–Bem, nossa apresentação vai ser a penúltima – disse Mikki, entrando na coxia do teatro. Liam olhou para ela. – Quem vai entrar por último? Mikki fez uma careta. – Adivinhe? A Srta. Detentora do Título. Assim ela pode ver todas as outras apresentações e a dela fica mais fresca na lembrança dos jurados. Liam deu de ombros. – Não acho que isso vá fazer diferença. Eu vi os jurados. São todas amiguinhas da mãe dela. – Nada de perder a confiança. A gente ensaiou muito e nossa apresentação está incrível. – E a plateia, como está? – Bastante cheia. Nosso pessoal está sentado bem no meio. Quando Mikki se virou, deparou com Tiffany vestida num roupão branco curto. – O fio dental vai ser surpresa para o público? – zombou Mikki. – Papai sempre me disse para não dar nada de graça, meu bem – respondeu Tiffany, enquanto examinava Mikki de cima a baixo. – Mas quando você não tem nada que os outros queiram, imagino que seja obrigada a dar de graça. Mikki abriu um sorriso de ironia. – Nossa, quanta profundidade. Mas me diga uma coisa: sua apresentação este ano vai ser com bastões em chamas? Tiffany a olhou como se ela estivesse louca. – Não. Por que seria? Isso é perigoso. – Bom, porque você vai ter que se esforçar muito se quiser derrotar a gente. O nível desta competição acabou de aumentar, meu bem. E muito. Tiffany riu, mas, pela expressão em seus olhos, Mikki percebeu que tinha
alcançado seu objetivo, intimidar o adversário. Antes que o concurso começasse, ela e Liam foram até a plateia falar com os pais. A família Armstrong, Sammy, Charles Pinckney e Jenna estavam sentados todos juntos. Jenna sorriu e abraçou Mikki e o filho. – Estou muito orgulhosa de vocês dois – disse. – Botem pra quebrar! – gritou Cory. – É, pra quebar! – imitou Jackie. Chelsea Murdoch passou rodeada por seu séquito. Estava usando saltos altos demais e um vestido excessivamente justo e curto para alguém da sua idade. Parecia a filha, só que 25 anos mais velha. – É a primeira vez que vejo você aqui – disse, quando avistou Jenna. – Nunca tive motivo para vir antes – disse Jenna. – É a primeira vez que Liam vai competir. A outra mulher deu um sorriso de superioridade. – Tiffany vai tentar ganhar pela quarta vez seguida. O público sempre ama a apresentação dela. Tiff está até pensando em continuar treinando o bastão na faculdade – concluiu, arrogante. – Ah, que ótimo – interveio Mikki. – É sempre bom ter um plano de carreira. Antes que Chelsea Murdoch conseguisse dizer qualquer coisa, Mikki acrescentou: – Bem, está na nossa hora. O espetáculo vai começar. – Boa sorte, Mik – disse Jack. Olhando bem para o rosto da mãe de Tiffany, Mikki falou: – Não se trata de sorte, pai. Isto aqui é um concurso de talentos.
Foram 21 apresentações, a maior parte de jovens, mas houve um quarteto de cantores mais velhos bastante bom. Mikki assistia a tudo das coxias, avaliando quem eram seus adversários mais fortes. Liam ficou no camarim, relaxando e batucando distraidamente com as baquetas. Ela foi buscá-lo e pegou a guitarra. – Hora do show, rapaz. – Que bom. Eu estava quase pegando no sono. – É disto mesmo que eu preciso: um baterista com sangue-frio. Liam sorriu.
– Então vamos sacudir esta cidade preguiçosa – falou ele. – Oh, yeah!
As primeiras melodias foram suaves. Mesmo assim, a plateia reagiu com vivas e aplausos. Sentindo a energia aumentar, Mikki deu a Liam a deixa que eles haviam combinado. Aumentou a potência do amplificador, pisou no pedal wah-wah e sua mão começou a voar pelo braço da Fender. Eles começaram a tocar um clássico do Queen e Liam se movia com tanta agilidade, alternando-se entre a bateria e o teclado, que parecia ser duas pessoas. O público se levantou para cantar a letra. Mikki sabia que a hora de surpreender a plateia era exatamente quando ela pensasse que eles já tivessem dado o melhor de si. Desplugou a guitarra do amplificador, tirou-a do ombro e a lançou para o outro lado do palco. Ao mesmo tempo, Liam jogava as baquetas na outra direção. Ela pegou as baquetas e assumiu a percussão, ele empunhou a Fender, reconectou-a ao amplificador e começou a dedilhar suas cordas com habilidade. Mikki fez o teatro vir abaixo tocando por seis minutos e arrematando a apresentação com notas poderosíssimas. Movia as mãos tão depressa que parecia ter seis pares delas. Então, quando a plateia já não tinha mais fôlego ou força para aplaudir, Liam executou um solo de guitarra que teria deixado qualquer profissional boquiaberto. Sustentou o último acorde por um minuto inteiro e o som amplificado fez a Casa de Espetáculos de Channing estremecer. Então fez-se silêncio. Mas ele durou apenas alguns segundos, o tempo que a plateia levou para recuperar o fôlego, e em seguida os gritos, palmas e vivas vieram numa enxurrada. Mikki deu a mão para Liam e os dois se curvaram várias vezes para agradecer. Quando voltaram para o camarim, os outros artistas correram para lhes dar os parabéns. – Vocês são feras – elogiou o barítono do quarteto de cantores, um homem de uns 50 anos. – Conseguiram me levar de volta aos tempos em que eu escutava Three Dog Night. Ofegantes e exibindo um sorriso rasgado, Liam e Mikki voltaram para a coxia.
Tiffany passou por eles sem dizer nada. Desamarrou o roupão e o deixou cair. O traje que usava só escondia o que seria proibido mostrar. Ela se virou para os dois e deu um risinho de desprezo. Mikki apontou para o palco. – Vamos ver quem ri por último, meu bem. Com exceção de dois tropeços e de quase deixar cair o bastão, Tiffany se saiu razoavelmente bem. As palmas foram comedidas a não ser no grupo liderado por sua mãe, que continuou a aplaudir por tanto tempo que algumas pessoas chegaram se virar para trás para ver quem ainda estava prestigiando aquela apresentação sem graça. Alguns minutos depois, todos os competidores foram chamados para subir ao palco. Mikki achou o pai no meio da plateia e lhe fez um sinal de “tudo beleza” com o polegar. Jack respondeu erguendo os dois polegares, enquanto Sammy batia uma continência. Cory fez uma mesura e Jackie o imitou. Jenna cruzou olhares com Liam e lhe jogou um beijo. A principal jurada ficou em pé e pigarreou. – O júri já se decidiu. Mas primeiro eu gostaria de agradecer a todos os participantes por suas ótimas apresentações. A frase foi seguida por palmas educadas. – Pois bem. O terceiro lugar vai para Judy Ringer, por sua excelente apresentação do balé O quebra-nozes. Judy, uma adolescente bem magra de 14 anos, correu para pegar seu troféu e um buquê de flores. – Obrigada, Judy. O segundo lugar vai para Dickie Dean e seu quarteto. Sob os aplausos do público, o senhor que havia elogiado a apresentação de Mikki e Liam recebeu o troféu em nome do grupo. – E agora, o primeiro lugar. A plateia inteira prendeu a respiração. A jurada pigarreou outra vez. – Pelo quarto ano consecutivo, Tiffany Murdoch, por sua fabulosa apresentação de bastão. Tiffany deu um passo à frente, toda sorrisos, e, sob o olhar radiante da mãe, avançou para pegar o troféu, o cheque de cem dólares e as flores. Com o troféu e as flores na mão, foi até o microfone.
– Estou realmente transbordando de tanta gratidão. Quatro anos seguidos. Quem teria imaginado que isso fosse possível? Gostaria de agradecer aos jurados e... – Marmelada! – gritou alguém. Todas as cabeças se viraram, incluindo as de Jack e Jenna, e viram Cory em pé na cadeira, apontando um dedo acusador para a jurada principal. – Que injustiça! – vociferou Cory. – Injustiça! – repetiu Jackie, também em pé na cadeira com o dedo apontado. – Cory – repreendeu Jack. – Jackie, desça já daí e fique quieto. Mas Jenna levou a mão ao seu braço. – Não. Sabe de uma coisa? Eles têm razão – falou ela, levantando-se para gritar também: – Roubalheira! Jack deu de ombros, levantou-se por sua vez e falou bem alto: – Estão dizendo que Mikki e Liam não terminaram nem entre os três primeiros? Ficaram malucos? A jurada principal e Chelsea Murdoch os encararam com uma expressão irada. Outro coro se fez ouvir, mais para o fundo do teatro. Mikki esticou o pescoço para ver. Era Blake e outros moradores de Sweat Town, incluindo Fran, a mulher que trabalhara no bufê da festa de Tiffany. – Queremos uma recontagem dos votos! – exigiu Blake. – Recontagem! Mikki sorriu para ele. – Recontagem! Recontagem! – entoou a plateia. Parada no meio do palco, Tiffany segurava o troféu e posava para um fotógrafo do jornal da cidade, tentando fingir não ligar para as críticas. Então o pedido da plateia mudou: – Mais um! Mais um! – começou a gritar. Mikki olhou para Liam. – Dane-se, então: vamos tocar um Deep Purple – disse ele. Ela aquiesceu, pegou a guitarra, aumentou a potência do amplificador, afundou o pé no pedal wah-wah e tocou um acorde tão alto que Tiffany deu um grito e quase caiu do palco. Mikki então olhou para Liam e meneou a cabeça. Instantes depois, a batida visceral e estrondosa de “Smoke on the Water” se espalhava pelo teatro. Dali a minutos, quando a última nota da música silenciou, Liam e Mikki, abraçados, agradeceram juntos à plateia. Foi o que bastou para o público extasiado subir ao palco, ovacionando a apresentação. Tiffany teve que sair correndo para
não ser arrastada pela multidão. O fotógrafo e o repórter do jornal se uniram aos outros, deixando-a sozinha com seu bastão. Ela desceu do palco pisando firme de tanta raiva e jogou o troféu no lixo, enquanto Chelsea a seguia para fora do teatro tentando acalmar sua fúria. Mais tarde, sentados no banco de trás da Kombi, Mikki e Liam reluziam de empolgação e suor. – Hoje foi o dia mais incrível da minha vida – disse Liam. – Quer dizer, eu nunca me senti tão bem por ter perdido. Jack espiou a filha pelo retrovisor. – Diga uma coisa: o que aconteceu com as batidas alternativas e a mistura de instrumentos de um jeito não tradicional? Mikki sorriu. – Nossa... você estava mesmo prestando atenção. Estou impressionada. Bem, pai, às vezes não dá para fazer nada melhor do que um bom e velho rock’n’roll. – A melhor parte foi ver Tiffany ir embora fula da vida – disse Cory. Jenna olhou para a traseira da Kombi e deu um tapinha no braço de Jack, movendo os olhos naquela direção. Ele olhou pelo retrovisor e viu Liam e Mikki trocarem um beijo discreto. – Acho que, para eles dois, a melhor parte é essa – sussurrou ela.
–Ei! – gritou Jack. Ele e Sammy tinham acabado de sair da mercearia no centro de Channing quando Jack viu um homem pegar seu cinto de ferramentas na carroceria da picape e sair correndo. Os dois dispararam atrás do sujeito. Como estava alguns passos à frente do amigo, Jack pôde ver o ladrão entrar por uma rua lateral. Dobrou a esquina e acelerou o passo, com Sammy logo atrás. A rua se estreitava até se tornar uma viela, então se alargava novamente e terminava num grande muro de tijolos. Os dois pararam de correr, ofegantes. Não havia saída dali. Então os dois amigos entenderam do que realmente se tratava. – É uma armadilha – falou Jack. – E nós caímos nela como dois idiotas. Quando olharam de volta para o caminho por onde tinham vindo, viram cinco homens corpulentos saírem de trás de uma caçamba de lixo segurando tacos de beisebol. O que vinha na frente era o mesmo que havia provocado Jack algum tempo antes (e que ele empurrara de cabeça contra a picape). Os homens foram avançando enquanto Jack e Sammy recuavam até encostarem no muro. Jack tirou o cinto da calça, o enrolou parcialmente na mão e se preparou. Sammy arregaçou as mangas da camisa e adotou uma postura defensiva. Ele acenou para os homens, chamando-os: – Então, quem vai querer dar entrada no hospital primeiro? – perguntou. O maior dos cinco homens avançou na direção deles. Jack girou o cinto e atingiu seu braço, abrindo um talho na carne e fazendo-o gritar de dor e largar o taco. Sammy então lhe deu um chute na barriga, deixando-o de joelhos, e o prendeu com uma chave de pescoço. – Não tenho tempo para desperdiçar com amadores – falou. Usando o punho direito, Sammy esmagou a mandíbula do homem, que despencou no asfalto. Então tornou a erguer os olhos para o grupo:
– Um já foi, faltam quatro. Quem vai ser a próxima vítima? Dois outros homens, incluindo aquele em quem Jack já tinha batido, correram para eles. Jack segurou o taco que o primeiro trazia, girou o quadril e deu um puxão com força. O homem passou voando por ele e foi parar no muro. Levantouse ainda grogue, apenas para ser derrubado pelo punho de Jack, que o atingiu em cheio no rosto. O segundo homem foi ao chão com uma rasteira de Sammy, que usou o taco para nocauteá-lo. Quando Jack e Sammy tornaram a erguer os olhos, não havia mais ninguém. – Ora, até que foi divertido – brincou Sammy. Seu sorriso desapareceu no minuto seguinte, quando o xerife Tammie surgiu pisando firme, acompanhado por um assistente magricela. Ele sacou a arma imediatamente ao ver os homens caídos no chão enquanto Jack e Sammy seguravam tacos de beisebol. – Larguem esses tacos agora – ordenou furioso. – Vocês dois estão presos. – Foram eles que nos atacaram! – exclamou Jack, ao mesmo tempo que ele e Sammy largavam os tacos. – Então como é que eles estão no chão e vocês, segurando os tacos? – Porque eles não sabem brigar – respondeu Sammy. – Por acaso é culpa nossa? Jack apontou para um dos homens caído na calçada. – Olhe, é o mesmo cara com quem eu briguei daquela vez. Ele e os outros vieram atrás de nós para se vingar. Nós só nos defendemos. – Isso quem vai decidir é o juiz. – Então nós vamos ser julgados? – quis saber Jack. – E esses caras aqui? – Também vão para a cadeia. – Bom, pelo menos a justiça existe em algum lugar – disparou Sammy. – E nós vamos deixar que ela siga seu curso. É assim que tem de ser – disparou Tammie. Jack e Sammy foram algemados, postos na viatura do xerife e conduzidos até a delegacia. Jack apenas se deixou cair num banco nos fundos da cela, mas Sammy reclamou: – Ei, nós temos direito a um advogado, não temos? – Foi o que eu disse quando li seus direitos – retrucou Tammie. O xerife deixou Jack dar um telefonema. – Jenna, é o Jack – disse ele. – Estou com um probleminha.
Dez minutos depois, Jenna e Charles Pinckney entravam apressados na sala do xerife e eram conduzidos até os fundos da delegacia para ver os prisioneiros. – Meu Deus, Jack, o que aconteceu? – perguntou ela. Ele explicou tudo o que havia se passado no beco. – Convenci o xerife a liberar vocês, mas sob a condição de que se comprometam a comparecer ao tribunal – disse ela. – Então podemos ir embora? – Por enquanto, sim, mas parece que aqueles sujeitos vão prestar queixa. Pelo menos foi o que o Tammie falou. – Mas não é a nossa palavra contra a deles? – indagou Sammy. – Mesmo assim, vocês vão ter que ir ao tribunal. – Mas nós não fizemos nada de errado. – Eu sinto muito, Jack – disse Jenna. – Fiz o melhor que pude. A raiva dele evaporou. – Eu sei. E agradeço por ter vindo tão depressa. Não sabia para quem mais ligar. – Bom, por enquanto vocês estão livres para voltar para casa. Vou chamar o xerife.
Dois dias depois, um homem de terno bateu à porta do Palácio e Jack foi atender. – Jack Armstrong? – Sou eu. E o senhor, quem é? O homem estendeu uns papéis na direção de Jack. – Uma intimação para o senhor. O homem se afastou enquanto Sammy se aproximava da porta. – O que é isso? – perguntou ele. – Intimação para quê? Aqueles imbecis lá do beco estão mesmo nos processando? Jack leu rapidamente os documentos. Quando ergueu os olhos, sua expressão era um misto de raiva e medo. – Não, é bem pior. Bonnie está me processando para pedir a guarda das crianças.
–Não acredito que a vovó está fazendo isso – disse Mikki. – Por quê? A família Armstrong estava espalhada pelo o sofá e pelo chão da sala no Palácio. Sammy também estava presente, assim como Liam e Jenna. Ela havia lido os documentos, para dar sua opinião de advogada. – Não sei – respondeu Jack, embora na verdade tivesse uma boa ideia. Jenna ergueu os olhos dos papéis: – Ela solicitou antecipação de tutela. Em não juridiquês, significa que ela quer que o juiz deixe as crianças com ela mesmo antes de haver uma sentença final. – Ela pode fazer isso? – indagou Sammy. – Pode, mas ela vai ter que provar o que está alegando. É difícil tirar crianças do pai ou da mãe. – Quando e onde exatamente isso tudo vai acontecer? – perguntou Jack. – Daqui a dois dias. Na vara de família de Charleston. – Mas nós moramos em Ohio. – Só que você é dono de um imóvel na Carolina do Sul e está morando aqui agora, mesmo que só durante o verão. Se você preferir, posso alegar que o tema está fora da área de atuação do judiciário da Carolina do Sul. – Você pode alegar? – estranhou Jack. – Está pensando em outra pessoa para representá-lo no tribunal? – Você já trabalhou com direito de família? – perguntou Mikki. – Um pouco. E sei como um tribunal funciona – disse, depois ergueu os documentos: – Mas não temos muito tempo para nos prepararmos. – Jenna, não precisa. Você tem seu restaurante para administrar. Antes que ela respondesse, Liam falou: – Eu posso cuidar do restaurante. Minha mãe me ensinou tudo. Não vai ser problema. – Viu? – falou Jenna, com um sorriso.
– Tem certeza? – Ora, é uma boa mudança. Ficar assando tortas e atendendo clientes é muito bom, mas chega uma hora em que a pessoa sente vontade de dar um soco em alguém. Ir ao tribunal vai ser uma oportunidade para dar uma boa surra em alguns idiotas... não no sentido literal, é claro, mas você entende o que eu quero dizer. – Tudo bem, mas você vai cobrar pelo seu trabalho. – Depois a gente vê isso. – E o que ela vai dizer no tribunal para tentar tirar a gente do papai? – perguntou Mikki. A expressão de Jenna ficou séria e ela olhou para Jack com um ar de dúvida. Ele aquiesceu: – Pode contar para eles. – Basicamente, ela alega que seu pai é incapaz de ser o responsável pelos filhos, que ele é um risco para si mesmo e para os outros. – Que idiotice – disse Cory, levantando-se com um pulo. – É, idiotice – repetiu Jackie, que surpreendeu a todos por cruzar os braços e permanecer sentado, em vez de imitar o gesto do irmão mais velho. – Eu não concordo com ela, só estou contando o que ela alegou – falou Jenna. – Ela tem alguma prova? – perguntou Mikki, exaltada. – É claro que não, porque não é verdade. – Bem, ela vai mostrar o que tiver no tribunal – falou Jenna. Ela tornou a olhar para Jack: – E nós temos que dar provas de que você é capaz de cuidar das crianças. – Como vamos fazer isso? – Você pode prestar depoimento. Mikki e Cory também. Jackie é novinho demais, claro. Posso pedir a Charles para depor como testemunha do seu caráter. E Sammy também. Não faço ideia do que Bonnie vá apresentar, mas não acredito que seja algo suficiente para tirar do pai três crianças que já não têm mãe. Mais tarde, Jack acompanhou Jenna até o carro. – Jack, só tem uma coisa que eu não quis dizer na frente das crianças. – O quê? – Não acredito que Bonnie tenha entrado com essa ação agora por mera coincidência. Acho que isso tem a ver com o fato de você ter sido preso. Seria fácil ela ter ficado sabendo. E posso garantir que ela vai usar isso como prova para alegação dela. – Mas eu sou inocente.
– Não importa. Se eles conseguirem convencer o juiz de que você é um homem violento, não vai ser nada bom. – Que ótimo, sou culpado até que se prove o contrário. – Jack, se você tiver alguma coisa para me contar sobre isso tudo, agora seria um bom momento. – Como assim? – Por que você acha que sua sogra está fazendo isso? – Ela me culpa pela morte de Lizzie. Veio aqui fingindo que estava querendo fazer as pazes, mas eu recusei a proposta de me mudar para a casa dela no Arizona. E ela só veio ver os netos uma vez o verão inteiro. Uma avó e tanto. – Ahn, na verdade não é bem assim, pai. Os dois se viraram e deram com Mikki em pé atrás deles. – Como é? – disse Jack. – A vovó veio aqui umas seis vezes enquanto você estava trabalhando. – Você nunca me contou isso. – Ela pediu para a gente não contar. Disse que você ficaria bravo. – Eu disse a ela que ficaria feliz se ela participasse da vida de vocês. Nunca teria ficado bravo. – Bom, não foi isso que ela falou. Jenna olhou para a menina. – Sobre o que vocês conversaram? Mikki deu de ombros. – Sobre várias coisas. – Ela alguma vez perguntou sobre seu pai? – Perguntou – respondeu Mikki, nervosa. – Mikki, você tem que contar tudo. Não podemos ter nenhuma surpresa no tribunal. Os olhos de Mikki começaram a ficar marejados. – Foi naquela época em que papai estava trabalhando muito e passava aquele tempo todo no farol. – Não tem problema, meu amor – disse Jack, gentil. – Eu entendo. Só nos conte o que você disse a ela. Mikki se acalmou. – Ela me perguntou como o seu humor andava, se estava fazendo alguma coisa
estranha, se parecia não estar se sentindo bem. – E você contou para ela sobre o farol e... tudo o mais? – quis saber Jack. Mikki assentiu com uma expressão desolada no rosto. – Desculpe, pai. Eu não podia imaginar que ela fosse processar você. – Não é culpa sua. Vai ficar tudo bem. – Tem certeza? – Absoluta – respondeu, e inclinou a cabeça em direção a Jenna. – Eu tenho uma ótima advogada. Agora volte lá para dentro, Mikki. Jackie já deve estar destruindo a casa toda. Quando a filha se afastou, Jack olhou para Jenna. – Já perdi meus filhos uma vez. Não posso perdê-los de novo. Ela segurou sua mão entre as dela. – Escute o que eu vou dizer, Jack. Você não vai perder seus filhos, OK? Agora tenho de ir. Preciso preparar o caso. Ela pegou o carro e se foi, deixando Jack em pé em frente ao Palácio a encarar o chão e se perguntar se sua segunda chance de ser feliz com os filhos acabaria tão cedo.
As crianças tinham tomado banho e vestido suas melhores roupas. Jack e Sammy haviam comprado blazers e calças sociais para usarem na audiência. Jenna vestia um terninho preto com saia, meia-calça e sapatos de salto. Liam tinha tirado folga para ir lhes dar apoio. Ele e Mikki estavam sentados de mãos dadas na primeira fila. Jenna já havia ensaiado com Jack, as crianças, Sammy e Charles Pinckney as perguntas que iria fazer e as que supunha que seriam feitas pela outra parte. O tribunal era surpreendentemente pequeno e Jack se sentiu claustrofóbico assim que entrou. Além disso, o silêncio era inquietante. Jack não gostava da ausência de sons. Tinha vivido isso muitas vezes no campo de batalha. Em geral, era prenúncio de emboscada. O juiz ainda não havia chegado, mas o meirinho já estava a postos. O advogado de Bonnie também estava à mesa. Jack sentiu seus músculos se contraírem ao ver os sogros sentados logo atrás dele. Fred estudava as próprias mãos, enquanto Bonnie estava entretida conversando com o advogado e com outro homem mais jovem, de terno. Com exceção deles, o tribunal estava deserto. Depois de observar o rapaz de terno por algum tempo, Jack se lembrou de repente de onde o conhecia. Era o homem que estava com Bonnie dentro de um carro estacionado nas ruas de Channing. Jenna se aproximou para falar com o meirinho por alguns minutos antes de abordar o advogado de Bonnie. Os dois foram até um canto para uma conversa reservada, enquanto Bonnie continuava sentada conversando com o outro homem, que lhe mostrava algo em um laptop. Jack viu o advogado de Bonnie entregar a Jenna um maço de papéis. Ela franziu o cenho e perguntou alguma coisa, mas o colega sacudiu a cabeça fazendo que não. Ela então lhe disse mais alguma coisa que Jack não conseguiu escutar, mas que fez o outro homem enrubescer e parecer zangado. Jenna deu meia-volta e marchou
para junto de Jack. Sentou-se e puxou a cadeira mais para perto dele e das crianças. Nessa hora, Sammy entrou no tribunal acompanhado de Charles Pinckney, que cumprimentou Jack, Jenna e as crianças. Em seguida olhou para Bonnie e, para surpresa de Jack, caminhou em direção a ela. – Como vai, Fred? – disse ele. Fred O’Toole ergueu os olhos e pareceu espantado ao ver Pinckney na sua frente. Mesmo assim, o cumprimentou com um aperto de mão. – Bem, Charles, e você? – Na verdade já estive melhor, mas obrigado pelo interesse – falou. Ele se virou para Bonnie, que o encarava com um olhar firme. – Olá, Bonnie. Ela deu um meneio rápido de cabeça. – Olá. – Graças a Deus Lizzie e Cee não estão vivas para presenciar isso – disse ele, firme. Foi como se Bonnie tivesse levado um tapa. Charles lhe deu as costas e saiu. Jenna apontou para o maço de documentos e se dirigiu a Jack: – O advogado da outra parte acaba de me entregar isto – sussurrou ela. – Perguntei se ele aceitaria adiar a audiência, mas ele recusou. – Que papéis são esses? – perguntou Jack. – Ainda não tive tempo de ler, mas dei uma olhada em algumas páginas. Parece que sua sogra contratou um detetive particular para seguir você – falou, indicando um homem com um laptop. – Como é que é? – perguntou Jack, estupefato. – Mas que loucura isso – acrescentou Mikki. Jack olhou nervoso para o detetive. – O que tem naquele laptop? – Um vídeo, parece, que pretende mostrar ao juiz. – Vídeo? Vídeo de quê? – Não sei. – Não sabia que esse tipo de coisa era permitido – comentou Sammy. – Surpreender a outra parte com o que você quiser. – Normalmente não é. Mas isto aqui é uma vara de família. As regras são diferentes. A ideia é que tudo seja feito tendo em mente o interesse das crianças. Isso às vezes contorna os procedimentos oficiais. Eles estão alegando que as
crianças vivem em um ambiente inseguro e até perigoso. – Que palhaçada – disse Charles. – E nós vamos provar isso – prometeu Jenna. Instantes depois, o meirinho anunciou a entrada do juiz. Era um homem baixo, magro, careca e de óculos grossos chamado Leroy Grubbs. Todos se levantaram quando ele entrou no recinto e em seguida tornaram a se sentar. O caso foi anunciado e o advogado de Bonnie, Bob Paterson, pôs-se de pé. Jenna, porém, o interrompeu e pediu ao tribunal um adiamento da audiência, mencionando a entrega tardia de documentos importantes. O adiamento foi negado por Grubbs quase antes mesmo de Jenna terminar de falar. Paterson fez seu discurso inicial. – Muito bem, pode chamar suas testemunhas – ordenou Grubbs. – Gostaria de chamar Bonnie O’Toole – disse o advogado.
Bonnie prestou juramento e sentou-se no banco das testemunhas. – A senhora é avó das crianças? – indagou Paterson. – Sim. – Pode nos relatar a série de acontecimentos que a levou a entrar com esta ação? Bonnie falou sobre a doença de Jack, a morte da filha e a ida do genro para um asilo, contou que as crianças moraram com parentes por algum tempo e que Jack pegou os filhos de volta depois de se recuperar. Por fim, relatou sua proposta de que fossem todos morar com ela porque, depois de consultar alguns médicos, estava preocupada com a forte probabilidade de a doença de Jack voltar e dessa vez ser fatal. – E qual foi a reação do Sr. Armstrong à sua proposta? – Ele a recusou categoricamente. – E qual foi o acontecimento específico que levou a senhora a mandar vigiar seu genro? – Eu vi Jack espancar dois homens nas ruas de Channing, em plena luz do dia, quando os filhos estavam com ele. O mais novo, Jackie, chorava de dar dó. Foi horrível. Não sei se isso poderia ser um indício de que a doença estaria voltando, mas fiquei apavorada e pude ver que as crianças também ficaram. O advogado terminou de questionar Bonnie e Jenna se levantou. – Sra. O’Toole, a senhora ama seus netos? – É claro que amo. – Mas mesmo assim está tentando separá-los do pai? – É para o bem deles. – E não para punir o Sr. Armstrong? – Não, é claro que não. – Quer dizer que a senhora não está zangada com seu genro? Não o culpa pela morte de sua filha?
– Eu nunca o culpei por isso. Disse a ele que sabia que tinha sido um acidente. – Mas a senhora acreditava mesmo nisso? Por acaso não disse ao Sr. Armstrong que, na sua opinião, quem deveria estar morto era ele, não a sua filha? Bonnie contraiu os lábios e permaneceu calada. – Sra. O’Toole... – Não quero me lembrar disso. – Mas ainda guarda rancor contra ele? – Não, acho que não. – E isso explica em parte o fato de a senhora ter movido esta ação para solicitar a guarda de seus netos, vingança? – Protesto – disse Paterson. – A testemunha já afirmou que não guarda rancor. – Retiro o que disse – falou Jenna. – Sem mais perguntas. – Podem chamar a testemunha seguinte – ordenou Grubbs. Jack e os outros ficaram surpresos ao ver o xerife Nathan Tammie adentrar o tribunal com seus passos largos, parecendo não muito satisfeito por estar ali. Ele prestou juramento e Paterson iniciou o interrogatório. – Quer dizer então que, na época em que o Sr. Armstrong se envolveu na primeira agressão, o senhor o alertou das possíveis consequências daquele comportamento? – Sim, mas alertei os outros também. Aparentemente, o Sr. Armstrong foi provocado. – E houve uma segunda agressão mais recente envolvendo o Sr. Armstrong, correto? – Sim. – Pode nos relatar as circunstâncias? Tammie deu um suspiro, olhou de relance para Jack e explicou o que acontecera no beco. – Resumindo o que o senhor acaba de nos contar, o Sr. Armstrong e o Sr. Duvall estavam empunhando tacos de beisebol em um beco e havia três homens inconscientes caídos a seus pés – ressaltou o advogado. Ele relanceou os olhos para o juiz, sem dúvida para avaliar sua reação. O magistrado tinha toda a sua atenção voltada para o interrogatório. – Então o senhor deteve o Sr. Armstrong e seu amigo, o Sr. Duvall? – prosseguiu o advogado. – Sim. Mas detive os outros também.
– Mas o Sr. Armstrong vai responder por essas acusações no tribunal? – Sim. – E é possível que ele seja condenado à prisão? – Duvido muito que... – É possível? – Bem, sim, é. – Sem mais perguntas. Jenna se levantou. – Xerife Tammie, por que o senhor não indiciou o Sr. Armstrong naquele primeiro episódio? – Bem, pelos relatos das testemunhas, ficou claro que ele foi provocado. Jenna olhou de relance para Bonnie. – Provocado como? Tammie sacou seu bloquinho. – Três testemunhas afirmaram que um dos homens que o Sr. Armstrong agrediu tinha gritado alguma coisa sobre ele ser o homem-milagre e lhe oferecido uma nota de cinco dólares para que operasse um milagre nele. O homem também disse outras coisas, acho que para tentar irritar o Sr. Armstrong. – Todos esses comentários foram dirigidos diretamente ao Sr. Armstrong? – Sim. – O Sr. Armstrong atacou os homens imediatamente, quando estava sendo alvo desses comentários? – Não. Ele continuou andando com os filhos. – Prossiga, por favor. Tammie examinou as anotações do bloquinho. – Então o mesmo sujeito falou: “Ei, Milagre, é verdade que a vadia da sua mulher estava chifrando você com seu melhor amigo?” Jenna se virou para Bonnie a tempo de vê-la lançar um olhar incisivo para Jack. – E foi nessa hora que o Sr. Armstrong os agrediu, depois que xingaram sua falecida esposa? – Sim. – Ou seja, ele demonstrou grande autocontrole quando os xingamentos estavam sendo dirigidos somente a ele? – Provavelmente mais autocontrole do que eu teria se estivesse em seu lugar.
– E quanto à segunda suposta agressão? É verdade que um dos envolvidos era o mesmo homem envolvido no primeiro episódio? – Sim. – De modo que é possível que aqueles homens tenham atacado o Sr. Armstrong no beco e que ele estivesse apenas se defendendo? – Protesto – interrompeu Paterson. – A pergunta pede uma conclusão que a testemunha não está apta a fornecer. – Aceito – disse Grubbs, mas lançou um olhar curioso para Tammie e em seguida olhou para Jack. – Sem mais perguntas – disse Jenna. – Eu gostaria de chamar Michelle Armstrong para depor – disse Paterson. Depois de se levantar e avançar alguns passos, Mikki se deteve junto ao pai. Este lhe deu um sorriso de incentivo e apertou sua mão. – É só dizer a verdade, meu amor.
–Srta. Armstrong – começou Paterson, educado. – Ao longo deste verão, a senhorita teve algumas conversa com sua avó, não teve? Mikki olhou para o pai, mas o advogado deu um passo para o lado, de forma a obstruir sua linha de visão. – A senhorita deve responder às minhas perguntas com a verdade, e não olhar para seu pai para pedir instruções. Mikki respirou fundo. – Sim, eu conversei com a vovó. – E o que a senhorita lhe disse sobre o... hum... sobre o comportamento de seu pai ao longo do verão? – Não entendi a pergunta. – Vou reformular. Em relação ao farol, por exemplo. – Farol? – estranhou o juiz. Paterson se dirigiu ao magistrado. – Aparentemente, o farol era o lugar preferido da falecida esposa do Sr. Armstrong quando criança e ele estava passando a maior parte das noites lá. Jenna se levantou. – Protesto, Meritíssimo. O Sr. Paterson não prestou juramento para depor e não tem conhecimento direto das circunstâncias. – Está bem – disse Grubbs. – Protesto aceito. Paterson tornou a se virar para Mikki. – O que a senhorita disse sobre o farol? Pode contar ao tribunal, por gentileza? Mikki se remexeu na cadeira. – Eu só disse a ela que papai estava trabalhando no farol, só isso. – Ele trabalhava lá até tarde da noite? – Sim. – Junto com o Sr. Duvall?
– Sim. – Enquanto três crianças ficavam sozinhas na casa? O rosto de Mikki ficou vermelho. – Eu não sou criança. Tenho 16 anos. – Certo, enquanto a senhorita e os seus irmãos mais novos ficavam sozinhos na casa? – Às vezes, mas nunca aconteceu nada. – Mas a senhorita não disse à sua avó em pelo menos três ocasiões que o seu irmão caçula, Jack Jr., saiu da cama e uma vez chegou a cair da escada? Jack se espantou ao ouvir aquilo. Mikki engoliu em seco. – Mas não foi nada. Ele só ficou com um arranhão nas costas. – E em outra ocasião Jack Jr. não saiu da casa e a senhorita passou pelo menos uma hora sem conseguir encontrá-lo? E depois ele apareceu andando pelo meio da rua? Jack afundou na cadeira, desnorteado. – Sim. Mas não aconteceu nada com ele. – E a senhorita falou com seu pai sobre esses incidentes? – Não. – Por quê? – Eu... eu não queria que ele ficasse chateado. – Ele costuma ficar chateado com frequência? – Bom, não. Não, não costuma. – A senhorita também não contou à sua avó que seu pai estava obcecado com a casa e com o farol porque sua falecida mãe amava muito esses lugares? Não comentou que tinha a impressão de que ele estava tentando se comunicar com ela de alguma forma? Mikki ficou ainda mais vermelha e sua respiração se acelerou. Lágrimas brotaram de seus olhos. – Eu estava brava com ele. Foi por isso que falei essas coisas. – Então não era verdade? Lembre-se de que está sob juramento. Jenna se levantou. – Excelência, o advogado está pressionando a testemunha. Solicito um intervalo para que ela possa se recompor. Grubbs olhou para Mikki. – Tudo bem?
Mikki inspirou fundo, enxugou os olhos e assentiu. – Tudo. – Prossigam – ordenou o juiz. Paterson continuou. – E a senhorita também não disse à sua avó que seu pai não fazia a menor ideia de como administrar uma família e que não parecia se importar com a senhorita ou com seus irmãos? Jack baixou os olhos. Os de Mikki tornaram a ficar marejados. – Isso foi antes de ele mudar. – Mudar? Mikki foi tomada pelo nervosismo e começou a falar depressa demais. – É, quer dizer, ele estava assim antes. Mas não era nada. Ele amava a gente. Quer dizer, ele ama a gente. Ele cuida muito bem de nós três. – Mas a senhorita também não disse à sua avó que estava preocupada com o estado mental de seu pai? – Não, eu não me lembro de ter dito isso – respondeu Mikki em voz baixa. – Quer dizer que nunca o viu agir de forma irracional, nem ter um acesso de raiva? – Não, nunca. Paterson se virou para o homem de terno sentado ao lado de Bonnie. – Sr. Drake, quer ter a bondade? O homem se levantou e empurrou para a frente um carrinho com rodas sobre o qual estavam instalados uma televisão e um DVD e inseriu um disco no aparelho. Dirigindo-se ao juiz, Paterson falou: – Excelência, o Sr. Drake é um detetive particular contratado pela Sra. O’Toole para vigiar as crianças da família Armstrong. O vídeo ao qual o senhor vai assistir constitui um dos resultados de seu trabalho. A tela da TV ganhou vida e todos viram Jack sair correndo do farol com um caixote na mão. Ele o atirou sobre as pedras, depois saiu correndo pela praia, contorcendo o corpo no que tudo indicava ser um acesso de raiva. Então caiu na areia e começou a chorar. A imagem seguinte mostrava Mikki chegando perto do pai. A um sinal de Paterson, o DVD foi interrompido e o advogado tornou a se virar
para Mikki. – A senhorita obviamente viu seu pai nessa noite, não? Mikki assentiu. – E não descreveria o comportamento dele como irracional, ou mesmo diria que ele teve um acesso de raiva? – Ele estava chateado, mas depois melhorou. – “Melhorou”? Quer dizer que, do seu ponto de vista, ele estava... doente? – Não, não foi isso que eu quis dizer – reclamou ela, levantando-se. – O senhor está pondo palavras na minha boca! – exclamou. – Minha jovem, eu entendo que esta situação seja muito estressante, mas, por favor, tente controlar suas emoções – disse Grubbs. – Isto aqui é um tribunal. Mikki fungou e tornou a se acomodar na cadeira. – Se seu pai ficasse doente de novo enquanto vocês estivessem morando com ele, quem iria tomar conta da família? – retomou o advogado. – Eu. Paterson sorriu. – A senhorita pode não ser criança, mas também não é maior de idade para morar sozinha com seus irmãos. Mikki exibia uma expressão de fúria. – E Sammy. Ele é o melhor amigo do meu pai. – Ah, sim, o Sr. Duvall. Paterson remexeu em algumas anotações. – A senhorita sabia que, depois de voltar do Vietnã, o Sr. Duvall passou por um tratamento psiquiátrico e que foi detido duas vezes por dirigir embriagado? Sammy se levantou com um pulo. – A droga da minha unidade inteira foi obrigada a fazer terapia, porque depois de servir duas vezes no Vietnã tínhamos visto atrocidades que você nunca poderia imaginar, seu almofadinha. E essas detenções foram há mais de trinta anos. Isso nunca mais voltou a acontecer. O juiz bateu com o martelo na mesa. – Mais um rompante desses, Sr. Duvall, e o senhor será retirado deste tribunal. Paterson tornou a se virar para Mikki: – Quer dizer que o Sr. Duvall vai ser responsável por vocês? – Sim – insistiu Mikki. O advogado se virou novamente para Drake e meneou a cabeça. A tela da TV
tornou a se acender. Primeiro, todos viram imagens de Sammy andando de moto em alta velocidade e sem capacete. A segunda cena mostrou Sammy cochilando na praia com duas latinhas de cerveja vazias caídas a seus pés, enquanto Jackie e Cory brincavam perto demais da água. – Um responsável e tanto – comentou Paterson, seco. – Srta. Armstrong, pode nos dizer que efeito acha que a morte de sua mãe teve sobre seu pai? Jenna se levantou com um pulo. – Protesto. Não é relevante. – Excelência, nós estamos tentando estabelecer as condições do ambiente em que as crianças vivem. O estado mental da pessoa responsável por elas é altamente relevante. – Pode prosseguir. – Srta. Armstrong, responda à pergunta, por favor. – Ele ficou arrasado. Todos nós ficamos. – Ele continua arrasado? – Como assim? – Seu pai se envolveu em duas brigas, uma das quais pode levá-lo à cadeia. A senhorita viu imagens que o mostram arremessando objetos e correndo pela areia totalmente fora de si, depois viu o Sr. Duvall, aparentemente embriagado ou adormecido quando deveria estar cuidando de seus irmãos. A senhorita afirmou que seu pai negligenciou os três filhos para trabalhar em um farol e que, nesse período, seu irmão caçula sofreu um acidente doméstico. Acredita que esse seja o comportamento de um homem racional? – Mas eu já disse que ele melhorou. – Quer dizer que houve um tempo em que ele estava pior? – Olhe aqui, eu sei o que o senhor está tentando fazer, mas meu pai não é maluco, OK? Não é. – Mas a senhorita não está qualificada para fazer essa avaliação, correto? Na realidade, cabe ao tribunal decidir se seu pai é capaz de manter a guarda dos filhos. Mikki tornou a se levantar, com lágrimas a escorrer pelo rosto. – Meu pai não é maluco. Ele ama a gente. Ele é um ótimo pai. Paterson lhe lançou um sorriso protocolar. – Tenho certeza de que a senhorita ama seu pai. – Amo mesmo – disse Mikki, num rompante.
– E diria qualquer coisa para protegê-lo. – Diria, sim... Quando Mikki percebeu o próprio erro, já era tarde. – Sem mais perguntas. Enquanto Paterson se afastava do banco das testemunhas, Mikki olhou para Jack. – Pai, eu sinto muito. Muito, mesmo – falou baixinho. – Tudo bem, meu amor – respondeu ele. Quando Jenna se levantou para interrogar Mikki, Jack pôs a mão em seu braço e fez que não com a cabeça. – Não, Jenna. Ela já sofreu demais. – Mas, Jack... – Chega – disse Jack com firmeza. Jenna se virou para o juiz. – Sem perguntas – falou ela com relutância. Grubbs olhou para Paterson. – Mais alguma testemunha? – Só uma antes de encerrarmos, Excelência – respondeu, virando-se depois para a mesa de Jenna: – Gostaríamos de chamar Jack Armstrong para depor.
Jack prestou juramento e sentou desconfortavelmente no banco das testemunhas, ajeitando seu blazer. Paterson se aproximou. – Sr. Armstrong, o senhor sabia que sua doença pode causar grave depressão e até mesmo desequilíbrio mental? – Eu não tenho doença alguma. – Perdão? – Os médicos me deram alta. Olhe para mim. Eu pareço alguém que esteja morrendo? Paterson pegou alguns documentos e os entregou ao meirinho. – Isto aqui são pareceres de três médicos, todos profissionais de renome, afirmando categoricamente que sua doença não tem cura e que é fatal em cem por cento dos casos. – Então eles vão ter que atualizar essa porcentagem. – O senhor se culpa pela morte da sua esposa, Sr. Armstrong? – As pessoas sempre se culpam, mesmo quando não podiam fazer nada para evitar. Faz parte da natureza humana. – Então a resposta é sim? – Sim. – Isso deve ser um golpe emocional e tanto. – Não é fácil. – Fale sobre sua obsessão pelo farol. – Protesto – interrompeu Jenna. – Meu colega está tirando conclusões precipitadas. – Aceito. – Sr. Armstrong, fale sobre seus motivos para trabalhar tantas horas e com tanto afinco no farol.
Jack franziu o cenho e se inclinou para a frente. – É complicado. – Faça o melhor que puder – pediu Paterson, educado. – Aquele era o lugar especial dela – disse Jack apenas. – Era aonde ela gostava de ir quando criança. Encontrei alguns pertences dela no farol, uma boneca, uma placa que ela fez dizendo “Farol da Lizzie” , algumas outras coisas também. E, quando estava viva, minha esposa me disse que queria voltar ao Palácio. Agora que ela não pode mais fazer isso, acho que o fato de eu estar lá e consertar a casa e o farol é uma forma de realizar o desejo dela. – Muito bem. E o que mais? Jack sorriu. – Lizzie achava que conseguia ver o Céu do farol. – E o que há de incomum nisso? – Não estou falando do céu físico, mas do Paraíso – explicou Jack. – Ela acreditava nisso quando era menina. – Mas o senhor é adulto. Não acreditou nisso também, acreditou? Jack hesitou. Jenna olhou de relance para o juiz e viu suas sobrancelhas se erguerem mais um pouco a cada segundo que Jack demorava para responder. – Não, mas... Jack sacudiu a cabeça e se calou. O advogado deixou o silêncio se prolongar mais um pouco enquanto ele e o juiz trocavam olhares. – Bem, o senhor quis consertar o farol, não? – Sim. A escada desabou e eu a reconstruí. Quero religar a luz, também. – Religar a luz? Pelo que entendi, o farol em questão já não serve de auxílio aos navios. – Não, não serve. Mas ele parou de funcionar enquanto Lizzie ainda morava lá. Então resolvi tentar consertá-lo. – Deixe-me ver se entendi direito – disse Paterson em tom cético. – O senhor negligenciou seus filhos para consertar um farol que não é mais usado para auxílio à navegação, só porque sua falecida esposa, quando criança, pensava que podia ver o Paraíso de lá? Vou reformular minha pergunta: o senhor pensou que poderia ver o Paraíso de lá? – perguntou ele, com reprovação. – Não – respondeu Jack, firme. – Temos mais um vídeo para exibir, Excelência.
– Está bem. Paterson se virou para Drake, que acionou os controles, e Jack surgiu na tela, em pé na área externa do farol enquanto lia uma das cartas que escrevera para Lizzie. – Pode nos dizer o que está fazendo nessa imagem, Sr. Armstrong? – Não é da sua conta – disparou Jack, com os olhos grudados na TV. Jenna se levantou. – Qual a relevância disso, Excelência? – Condição mental, como antes – respondeu Paterson. – Responda à pergunta – instruiu o juiz. – É uma carta – disse Jack. – Uma carta? De quem? – Eu escrevi para minha esposa. – Mas sua esposa faleceu. – Eu escrevi as cartas antes de ela... antes de ela morrer. Escrevi quando estava doente. Queria deixá-las para ela ler quando... quando eu morresse. – Mas ela não pode lê-las agora. Então por que o senhor as estava lendo? Obviamente já conhecia o conteúdo delas. – Não há nada de errado em ler cartas antigas. Tenho certeza de que todo mundo faz isso o tempo todo. – Talvez, mas não no meio da noite, no alto de um farol, com três crianças pequenas sozinhas em casa. – Protesto. Meu colega está tirando conclusões, meritíssimo – disparou Jenna. – Aceito – disse Grubbs. Jack olhou para Paterson e disse: – O senhor está tentando me fazer passar por louco, mas não sou louco. E não sou incapaz de cuidar dos meus filhos. – Isso cabe a este tribunal decidir, não ao senhor. Jack se controlou por mais alguns segundos. Mas então as paredes do tribunal pareceram se fechar sobre ele, impedindo-o de respirar. Foi quando sua raiva, que estivera à flor da pele desde que Bonnie havia movido aquela ação, explodiu. Ele olhou para Paterson. – O senhor já perdeu alguém que amava? – indagou. Paterson pareceu espantado, mas logo se recuperou. – Quem faz as perguntas aqui sou eu.
Jack então olhou diretamente para Bonnie. – Você sabe quanto eu amava Lizzie. – Sr. Armstrong, isso não é permitido – disse Paterson. Jack o ignorou. Pôs-se de pé, com os olhos cravados na sogra. – Eu teria dado a minha própria vida, sem hesitar, para salvar a dela. Você sabe disso. – Sr. Armstrong – alertou o juiz. – Ela era tudo para mim. Mas ela morreu. – Sr. Armstrong, sente-se! – bradou Grubbs ao mesmo tempo que batia com o martelo na mesa. Jack apontou o dedo para Bonnie e seguiu gritando: – Ninguém se sente pior do que eu pelo que aconteceu. Ninguém! Cada dia é um inferno para mim. Eu perdi a única mulher que já amei, a única pessoa com quem eu quis compartilhar minha vida, a melhor amiga que poderia ter! Lágrimas escorriam pelo rosto angustiado de Jack. – Meirinho! – vociferou o juiz. – Nossos filhos são as melhores coisas que Lizzie e eu fizemos juntos. Nossos filhos. Como você se atreve a tirar o pai deles só porque está com raiva de mim? Como se atreve? Jack foi retirado à força do tribunal enquanto Bonnie o observava, perplexa com aquele rompante. – Nada mais, Excelência – disse Paterson. Ele voltou para sua cadeira mal conseguindo conter o sorriso. O juiz olhou para Jenna como se a repreendesse: – Algo a acrescentar, doutora? Jenna olhou para as crianças abaladas e em seguida para o juiz. – Não, Excelência – falou. – Darei meu parecer sobre esta ação hoje à tarde – anunciou Grubbs. Jack foi liberado alguns minutos depois. Em vez de aguardarem no tribunal, eles pegaram o carro e voltaram para o centro de Channing em silêncio. Ficaram esperando em um quartinho nos fundos do restaurante de Jenna. Todos se sobressaltaram quando o celular dela tocou. Ela atendeu a ligação, escutou, e a expressão de seu rosto informou a Jack tudo de que ele precisava saber. – O juiz aceitou o pedido de tutela antecipada – disse ela. E a culpa é minha, pensou Jack. Perdi minha família. De novo.
Sentado em sua cama no Palácio, Jack segurava a carta número 6. Ainda não a tinha lido. Sua cabeça estava em outro lugar. Não importa o que você faça ou quanto se esforce, às vezes a vida simplesmente não faz sentido. Bonnie e os funcionários do departamento de Assistência Social viriam nessa mesma noite tirar as crianças de Jack, talvez para sempre. Ele baixou os olhos para a carta e então a amassou e jogou em cima da cama junto com as outras cinco. Enquanto olhava pela janela, viu três carros chegarem, um deles a viatura do xerife Tammie. Embora fossem apenas sete horas, o céu estava escuro como se fosse meia-noite. Uma tempestade se aproximava do litoral e o vento começava a aumentar sua força. Esse era o principal motivo pelo qual levariam as crianças naquela noite. Como iriam para o interior, estariam mais seguras lá. Jack não relutara, sobretudo por querer o bem dos filhos. A energia elétrica da casa não parava de cair. Alguém bateu na porta do seu quarto. – Pode entrar. Era Jenna. – Jack, eles chegaram – informou ela em voz baixa. – Eu sei. Ao descer a escada, Jack viu as três malas prontas junto à porta da frente. Então olhou para os filhos. Cory e Mikki choravam sentados no sofá. Mesmo sem entender direito o que estava acontecendo, Jackie chorava também. Ele segurava o caminhão de brinquedo com uma das mãos e abraçava os irmãos com a outra enquanto seu corpinho tremia inteiro. Liam estava em pé na sala, parado, sem saber o que fazer. O nervosismo o fazia abrir e fechar as mãos sem parar. Jack se aproximou dos filhos:
– Vai ficar tudo bem, eu juro – sussurrou. – Isso vai ser só temporário. Jack e Jenna atenderam a porta juntos. Bonnie, Fred e os assistentes sociais estavam do outro lado segurando guarda-chuvas abertos. – As crianças estão prontas? – perguntou um dos assistentes sociais a Jack. Ele aquiesceu, com os olhos grudados na sogra. – Bonnie... Ela olhou para ele e corou. – Precisamos mesmo fazer isso desta forma? – suplicou ele. – Só estou pensando nas crianças, Jack. – Tem certeza? – Absoluta. Sammy, Liam, Jackie e Cory agora haviam se juntado a eles na varanda da frente. – Por favor, não faça isso, vovó – pediu Cory. – Por favor. A gente quer ficar com o papai. Um dos assistentes sociais, uma mulher, se aproximou e disse: – Não é hora nem lugar para discutir isso. O juiz já tomou a decisão dele – falou, depois se virou para Jack: – Queremos fazer isso da melhor forma possível. E, pelo bem de seus filhos, tenho certeza de que o senhor também quer. A mulher olhou por cima do ombro para o xerife Tammie, que permanecera ao lado de sua viatura. O homem estava claramente desconfortável com a situação. Sammy olhou para Jack, mas foi Jenna quem se adiantou para dizer: – Nós queremos, sim. Sammy deu um passo para trás e Jack olhou para os dois filhos. – Então está bem, meninos, vocês vão voltar para cá num piscar de olhos – disse ele. Cory aquiesceu, mas as lágrimas continuaram a descer por seu rosto. Jackie olhou para o irmão e seus olhos tornaram a ficar marejados. Jack abraçou os dois. – Vai ficar tudo bem – disse ele. – A gente é uma família. E sempre vai ser, OK? Ambos assentiram. – Vamos pegar suas malas – falou Jack. – Liam, vá chamar a Mikki, por favor. Tenho certeza de que vai querer se despedir dela. Eles precisam pegar a estrada antes de a tempestade piorar. Sammy e Jack levaram as malas até o carro e Jack prendeu o caçula na cadeirinha enquanto Cory sentava ao lado do irmão e punha o cinto de segurança. Quando Jack ergueu os olhos para a varanda, viu que alguma coisa estava errada. Liam
estava imóvel, pálido e parecia desnorteado. Bonnie percebeu a mesma coisa. Apesar do vento e da chuva, ela desceu do carro. – O que foi? – perguntou Jack enquanto corria para junto de Liam. – Não consigo encontrar a Mikki. Jack e os outros entraram em casa correndo. Vasculharam todos os cômodos. Sua filha tinha desaparecido.
A meio quilômetro dali, Mikki caminhava aos prantos pela praia. O vento e a chuva a fustigavam, mas ela seguia adiante, enfrentando as rajadas vindas do mar. Ia se afastando da água à medida que a tempestade fazia o mar avançar pela areia. Estava tão abalada que por pouco não viu a palmeira que o vento atirara na direção dela. Num reflexo, jogou o corpo para o lado e escapou por um triz de ser atingida pela árvore. Mas o movimento a fez chegar perto demais da água no exato momento em que uma imensa onda quebrava. Mikki nem sequer teve tempo de gritar antes que o mar a levasse.
Da sala da frente do Palácio, Jack fitava o céu escuro. A chuva agora caía com mais força. Liam tinha pegado o carro e voltado depressa com a mãe para casa para ver se Mikki estava lá, mas ligara dizendo que não. – O que vamos fazer, Jack? – indagou Bonnie. – O que vamos fazer? Sua voz estava histérica. Jack se virou para a sogra e falou: – A primeira coisa que vamos fazer é não entrar em pânico. – Vamos chamar a polícia – falou um dos assistentes sociais. – O xerife foi embora antes de a menina sumir, mas tenho certeza de que pode voltar para cá. Jack fez que não com a cabeça e disse, num tom decidido: – São só Tammie e um assistente lá na delegacia e eles devem estar ocupados com a tempestade. Podemos até ligar para lá, mas não podemos simplesmente ficar parados esperando que comecem a procurar minha filha. Temos que começar a busca. Vamos nos dividir e procurar na rua e na praia também. Ele apontou para o sogro: – Fred, você e Bonnie peguem o carro e vão na direção oeste. Andem devagar para terem mais chances de vê-la. Virou-se para os dois assistentes sociais: – Vocês dois vão de carro para o leste e façam a mesma coisa. Vamos trocar nossos números de celular. Quem encontrar Mikki liga para os outros. Sammy e eu vamos pela praia em direções opostas. Por último, se dirigiu a Cory: – Filho, preciso da sua ajuda. Você pode ficar aqui e cuidar de Jackie? Vão para o subsolo e fiquem longe das janelas. Cory engoliu em seco e olhou para o pai com uma expressão aterrorizada. – A Mikki vai voltar, não vai? – É claro que vai. Aposto que ela vai aparecer a qualquer momento. E alguém precisa estar aqui quando isso acontecer, está bem?
– Está bem, pai.
Jack seguiu para a direita na praia, enquanto Sammy foi para a esquerda. O vento fazia a chuva cair quase na horizontal e o mar já havia tomado a maior parte da faixa de areia. Jack girava o facho da lanterna em círculos amplos, mas este mal conseguia penetrar a escuridão. Por fim, a luz destacou um objeto. Quando Jack viu o que era, seu coração quase parou. Era um pé de tênis de Mikki, dentro de uma poça de água salgada. Ele olhou em todas as direções à procura da filha, mas não viu nada. Chamou seu nome, mas a única resposta foi o uivo do vento. Correu para verificar os quintais de outras casas e atrás das dunas, mas não encontrou ninguém. – Não consigo enxergar nada – disse para si mesmo. Olhou para o mar revolto. A tempestade que se aproximava da costa o tornava infinitamente mais perigoso. Virou-se e voltou correndo para casa, olhando alternadamente para a terra e para o mar. O vento o obrigava a curvar o corpo para a frente para não ser carregado. De tempos em tempos, chamava o nome da filha. Já perto do Palácio, encontrou Sammy, que relatou seu fracasso na busca. Jack lhe mostrou o tênis. – Isso não é nada bom, Jack – disse-lhe o amigo. – Nosso tempo está se esgotando. A tempestade está prestes a chegar para valer. – O que você quer fazer? – perguntou Sammy. – Precisamos conseguir ver um pedaço grande de terra e de mar. – Com este tempo, ninguém vai mandar um helicóptero de busca para cá para varrer a praia com um holofote. Ao ouvir essa frase, Jack teve um estalo. Virou-se para o farol e saiu correndo na direção dele, com Sammy em seu encalço. Abriu a porta do andar de baixo com um chute e subiu a escada pulando os degraus de dois em dois. Quando chegou ao piso superior, se lançou imediatamente pela porta de acesso à casa de máquinas. Segundos depois, um Sammy ofegante punha a cabeça lá para dentro: – Mas o que é que você está fazendo? – Acendendo uma luz. – Jack, esta droga não funciona.
– Mas vai funcionar! Porque eu vou encontrar minha filha – gritou Jack em resposta. Ele abriu com violência a caixa de ferramentas que tinha deixado no canto, pegou uma chave inglesa e o diagrama que explicava o funcionamento do mecanismo de iluminação. Começou a analisar o desenho, correndo os olhos pelas ilustrações complexas. Depois foi conferindo cada seção do mecanismo, enquanto Sammy segurava o diagrama para ele. O conserto agora era urgente. Observando-o trabalhar, Sammy falou: – Mas nós precisamos de uma luz que possa ser direcionada, não de uma que vai ficar gir... – Tem um controle manual – disparou Jack, enquanto espremia o corpo para dentro de um pequeno nicho para verificar a fiação. Ele saiu de dentro do nicho e acionou o interruptor. – Que droga! – gritou, atirando a chave inglesa no chão. Apoiou a cabeça na vidraça e olhou para a escuridão lá fora. Sua filha estava perdida em algum lugar. Um arrepio percorreu seu corpo. Não. Eu não vou perder minha filha. Um raio varou o mar e foi seguido por uma trovoada, anunciando a tempestade. Ouviram-se passos no andar de baixo e primeiro o rosto de Jenna depois o de Liam surgiram na abertura que conduzia à casa de máquinas. Estavam ambos encharcados. – Nós procuramos na rua e na praia perto de casa, mas nem sinal de Mikki – disse Jenna a Sammy enquanto encarava as costas de Jack. – Tentamos acender o farol, mas não deu em nada – explicou Sammy. – Bonnie telefonou – continuou ele. – Os outros também. Ninguém a encontrou. Ele ergueu no ar o tênis encharcado de Mikki. Ao ver aquilo, Jenna e Liam empalideceram. Todos os três olharam instintivamente para o mar. Jack continuava imobilizado junto ao vidro, fitando a escuridão. A eletricidade caiu, fazendo as lâmpadas piscarem, e no instante entre a falta de energia e seu retorno, Jack viu um feixe irregular de corrente elétrica refletido na vidraça em que se apoiava. No início, pensou que fosse outro raio iluminando a água, mas não houve trovão em seguida. Ele girou o corpo e deu um pulo em direção ao mecanismo do farol. – Sammy, apague a luz! – gritou.
– O quê? – Apague a luz! Apague tudo! Sammy desligou as lâmpadas, fazendo todos mergulharem na escuridão. Aquela era sua última chance. Com o peito arfando de medo, Jack começou a vasculhar o mecanismo. Sua concentração era tanta que ele não ouvia nada: nem a tempestade, nem a respiração de Sammy, Jenna e Liam, nem mesmo a dele. Nada mais existia no mundo, apenas ele e aquele monstro de metal que não se deixava desvendar. Se Jack não conseguisse vencê-lo agora, era provável que perdesse a filha para sempre. – Acenda de novo. Sammy acionou o interruptor. E foi então que Jack viu: o lindo arco de corrente elétrica quase enterrado entre duas peças de metal, em uma fenda tão estreita que ele nem sequer tinha percebido sua existência. Era aquilo que tinha se refletido na janela. Ele caiu de joelhos, engatinhou para a frente e mirou a lanterna na fenda. Dois fios apareceram. Estavam a menos de um centímetro de distância um do outro, mas sem se tocar. – Sammy, me passe a fita isolante, depois desligue a chave geral. Sammy pegou a fita na caixa de ferramentas, jogou-a para Jack, depois desligou a força. Enquanto Jenna segurava a lanterna para ajudá-lo, Jack enfiou a mão dentro da fenda e uniu os dois fios. Depois se colocou de pé e pediu: – Religue a chave geral, depois acione o interruptor. Ninguém olhe para o farol. Sammy ligou a energia e acionou o interruptor. No início, nada aconteceu. Então, como se despertasse de um sono de muitos anos, a luz do farol começou a ganhar vida, aumentando até se acender por completo com uma explosão de energia. O facho potente começou a girar em volta da parte superior do farol e iluminou a praia e o mar de uma forma espantosa. Jack deu a volta correndo até a parte de trás do mecanismo, apertou um botão e segurou um controle. Na mesma hora, a luz parou de girar e se transformou em um facho que ele podia guiar. – Sammy, segure isto aqui. Comece pelo norte e vá avançando devagar em direção ao sul. Enquanto Sammy manobrava a luz, Liam, Jack e Jenna se mantiveram colados ao vidro, olhando para a paisagem noturna subitamente iluminada. Foi Jenna quem a viu primeiro.
– Ali! Ali! – Pare a luz, Sammy! – gritou Jack. – Pare bem aí. Jack desceu os degraus de três em três. Quase atropelou Bonnie, que vinha subindo a escada. – O que... Jack nem sequer se deu o trabalho de responder. Continuou correndo. A luz tinha revelado a posição de Mikki. Ela estava no mar, agarrada a um pedaço de madeira enquanto era fustigada por ondas gigantescas. Talvez só lhe restassem alguns minutos de vida. Então para mim também, pensou Jack.
Jack correu como nunca tinha corrido antes. Nem jogando futebol americano, nem mesmo no campo de batalha, quando sua vida dependia daquilo, alcançara tamanha velocidade. Estava pulando por cima de ondas de mais de um metro de altura quando uma onda maior surgiu da escuridão e o derrubou. Bateu com a cabeça em um pedaço de madeira trazido pela tempestade, se levantou atordoado, cambaleou e seguiu em frente. Conseguia ver o trecho iluminado pelo farol, mas não enxergava Mikki. Lançou-se com urgência em direção ao ponto onde a luz batia. – Mikki! Mikki! Outra onda tornou a derrubá-lo. Ele se levantou novamente, cuspindo água salgada. Continuou a correr, lutando contra uma chuva agora tão forte que parecia um milhão de vespas a atacá-lo. – Mikki! – Pai! O som foi fraco, mas suficiente para que Sammy a ouvisse e redirecionasse a luz para a esquerda. E foi então que ela apareceu: uma cabecinha boiando dentro d’água. Mikki estava sendo arrastada pela força do mar. – Pai! Socorro! Jack se lançou ao centro da tempestade sem pensar em mais nada. Uma onda veio para cima dele, bem mais alta do que ele, mas Jack conseguiu furá-la no último instante. Quando voltou à superfície, seus pés já não conseguiam tocar o chão. A força da correnteza era multiplicada por dez pela tempestade, mas Jack resistia, mergulhando e tornando a emergir enquanto gritava “Mikki!” . A cada vez ela respondia ao seu chamado e Jack nadava com todas as forças na direção de sua voz. Raios cortavam o céu, seguidos pelo estrondo de trovões. Jack respirou fundo e tornou a mergulhar enquanto mais uma onda feroz se abatia sobre ele. Voltou à tona.
– Mikki! Dessa vez não houve resposta. – Mikki! Nada. – Michelle! Segundos depois, ouviu um fraco: – Pai... Jack redobrou os esforços. Ela estava perdendo as forças. Era um milagre ainda estar viva. Se largasse aquele pedaço de madeira, certamente seria o fim. E então ele a viu, a dez metros dele. A luz forte do farol agora a deixava evidente. Apesar de fraca, Mikki continuava agarrada à madeira. Jack nadou o mais rápido que conseguiu, furando ondas e mais ondas e praguejando quando alguma delas o desviava de sua rota, custando-lhe preciosos segundos. Mas não tirou os olhos da filha um só instante. Entretanto, a cada segundo que passava, Mikki se afastava um pouco mais. A tempestade, a correnteza, o vento, tudo ia contra eles. Jack nadou com mais força. Mas agora estava a quinze metros da filha. Respirou fundo e mergulhou para ver se conseguia avançar mais depressa por baixo d’água. Mas o mar estava um breu abaixo da superfície e a correnteza era tão forte quanto lá em cima. Ao voltar à tona, não conseguiu mais ver Mikki e amaldiçoou a si mesmo por ter tirado os olhos dela. Seus braços e pernas pareciam de chumbo. Jack olhou para a praia e em seguida para o céu revolto. Agora ele também estava sendo puxado para longe. E não tinha certeza de que teria forças para voltar à areia. Mas não tinha importância. Não vou voltar sem ela. Jack seguiu nadando, olhando em todas as direções, enquanto a tempestade castigava o litoral da Carolina do Sul. Ele estava tremendo de raiva, de medo... e de tristeza. Eu sinto muito, Lizzie. Sinto tanto. E se eu simplesmente parar de nadar? E se parar e pronto? Se parasse, ele iria afundar. Olhou para a praia. Podia ver as luzes. Sua família – o que restava dela – estava lá. Bonnie criaria os meninos. E ele e Mikki iriam se juntar a Lizzie. Tornou a olhar para o alto. Quando um raio desceu rasgando e iluminou o céu, pensou ter visto o rosto de Lizzie, sua mão estendida, acenando para ele. Podia
simplesmente parar de nadar naquele instante. – Pai! Jack se virou na água. Mikki estava a apenas três metros dele. Dessa vez, o movimento da água os havia aproximado. Recorrendo a uma reserva de força que não pensava ter, Jack saiu nadando furiosamente. O mar tentava impedi-lo, lançava-o contra uma sucessão de paredes de água, mas ele seguiu batendo os braços e pernas cada vez com mais força, cortando as ondas, lutando contra a tempestade. Um metro. Trinta centímetros. Quinze. Todos os músculos de Jack gritavam de exaustão, mas ele superou a dor. – Pai! Ela estendeu a mão para ele. – Mikki! Ele se esticou para a frente e fechou a mão em volta do pulso da filha, puxando-a para si. Ela o abraçou. – Pai, desculpe. Me desculpe. – Está tudo bem, filha. Estou segurando você. Deite de costas. Ela obedeceu e ele passou o braço por baixo dos dela e começou a bater as pernas em direção à praia. Agora tudo que preciso fazer é conseguir voltar, pensou. Foi nadando em direção à praia. Quando chegou mais perto, se posicionou de forma a aproveitar o impulso das ondas. O problema era que a correnteza o puxava de volta para trás antes que ele conseguisse pisar na areia. Então uma onda imensa engolfou os dois, quase os afogando. Jack era um homem forte e, na época em que estava no Exército, havia nadado muitos quilômetros sob condições adversas, mas não no meio do que agora devia ser um furacão e tendo outra pessoa agarrada a si. Estava preso em um vaivém sem fim e não iria aguentar muito mais tempo. Talvez sozinho conseguisse chegar à praia, mas estava disposto a morrer com a filha. – Jack! Ele olhou na direção da praia. Liam e Sammy estavam em pé na areia segurando um comprido rolo de corda com uma boia vermelha na ponta. Jack acenou, sinalizando que havia entendido. Sammy lançou a boia, mas ela caiu perto demais
da praia. Ele a recolheu e tentou outra vez. Foi mais longe, mas não o suficiente. – Sammy! – gritou ele. – Espere as ondas nos empurrarem em direção à praia, aí jogue a boia. Sammy aquiesceu, aguardou o momento certo e lançou. Dessa vez, a boia caiu a poucos metros de distância. Sammy tornou a lançar. Jack se esticou na direção da boia e a alcançou. Naquele exato momento, uma onda gigantesca quebrou sobre ele e Mikki e a menina foi arrancada de seus braços. Quando abriu os olhos, viu Mikki passando por ele na direção oposta à da praia, rumo ao mar. Tudo se movia em câmera lenta. – Não! – gritou Jack. Ele enfiou a mão dentro d’água e agarrou os cabelos da filha um segundo antes de ela se afastar dele talvez para sempre. Sammy e Liam puxaram a corda com todas as forças. Aos poucos, pai e filha foram rebocados até a praia. Mikki estava inconsciente quando Jack a carregou para longe das ondas. Ele a apoiou na areia e se agachou para verificar sua respiração. Nada. Começou a respiração boca a boca imediatamente. Apertou o nariz de Mikki e soprou ar para dentro de seus pulmões. Virou-a de bruços e pressionou suas costas para forçar a água a sair. Deu início à massagem cardíaca. Enquanto Jack tentava reanimar a filha, Sammy ligava para a emergência. Dali a um minuto, Jack se sentou, sua respiração entrecortada. Olhou para Mikki a seus pés. Ela não se mexia e a pele estava ficando azulada. Sua filha estava morta. Ele a havia perdido. Não conseguira salvá-la. Um raio varou o céu escuro e Jack ergueu os olhos, talvez para o ponto exato que sua mulher havia tentado encontrar tantos anos antes. Com um soluço, gritou: – Lizzie, me ajude! Por favor, me ajude! Olhou para baixo. Sua cota de milagres havia se esgotado. Ele havia gastado o único milagre que aconteceria em sua vida. Liam se ajoelhou junto de Mikki com lágrimas a escorrer pelas faces. Tocou seus cabelos, depois enterrou o rosto nas próprias mãos e começou a chorar. De repente, Jack sentiu uma pressão na nuca. No início, pensou que Sammy estivesse tentando puxá-lo para longe da filha morta. Mas a pressão não o estava puxando; ela o estava empurrando de volta para ela. Jack se curvou, sorveu uma enorme quantidade de ar, prendeu a respiração, encostou a boca na de Mikki e soprou com toda a força que lhe restava. Conforme o ar saía de dentro dele e entrava em Mikki, Jack sentiu tudo parar e a
tempestade sumir. Era assim que ele havia imaginado a morte. Silenciosa, tranquila, isolada, solitária. Quando o ar deixou seu peito, os acontecimentos do último ano passaram correndo por sua mente. E agora aquilo: Mikki. Morta. Jack sentiu que estava sendo levado para longe, como se navegasse por águas calmas rumo a um lugar ainda desconhecido. Mas estava sozinho. Nem Lizzie nem Mikki o acompanhavam. Ele já não queria viver. Nada importava mais. Havia paz. Mas também não havia mais nada, porque ele estava sozinho. A chuva bateu em seu rosto, trazendo-o de volta. Os pensamentos sobre o passado se dissolveram e ele se viu outra vez no presente. Ainda estava chovendo, mas não era isso que o havia espantado. Ele baixou os olhos e viu Mikki estremecer e cuspir a água que estava em seus pulmões. Seus olhos se abriram, se fecharam com um agitar de pálpebras, tornaram a abrir. Ela conseguiu focalizar o rosto do pai. Estendeu os braços e envolveu seu pescoço com força. – Pai? – falou, com uma voz miúda. Jack se deixou cair no chão e a abraçou. – Estou aqui, filha. Estou aqui.
A ambulância levou Mikki e Jack para o hospital. Sammy a seguiu na Kombi com Liam, enquanto Jenna ficou no Palácio com os dois meninos. Ela havia preparado um chá quente para Bonnie, que assistira ao heroico resgate da neta do alto do farol. Agora estava simplesmente sentada na beira do sofá, parecendo menor de tão curvada, os soluços a lhe escaparem dos lábios. Jenna tentava reconfortá-la e Fred, sentado em outra cadeira, encarava as próprias mãos. Quando Sammy ligou do hospital dizendo que voltariam dali a pouco e que estavam todos bem, Jenna finalmente relaxou e chorou. Enquanto aguardava que os outros voltassem do hospital, Jenna entrou no quarto de Jack. Não sabia muito bem por que estava ali. Ao percorrer o cômodo com o olhar, deteve-se nas cartas, ainda em cima da cama. Foi até lá, sentou-se, pegou-as e começou a ler. Dez minutos depois, saiu do quarto com os olhos inchados. Foi até Bonnie e tocou de leve seu ombro. Quando ela ergueu os olhos, Jenna falou: – Acho que a senhora precisa ler isto. Bonnie pareceu não entender, mas aceitou as cartas que Jenna lhe estendia, pôs os óculos de leitura e desdobrou a primeira.
A tempestade perdera força depois de atingir o litoral e já estava quase no fim quando eles voltaram para casa. Levaram Mikki direto para a cama e Cory e Liam ficaram velando seu sono como dois anjos da guarda. Jack contou a todos que Mikki não teria nenhuma sequela e que logo estaria totalmente recuperada. – O médico disse que ela é muito forte – completou Sammy.
– Como a mãe – disse Jack, olhando para Bonnie. Ele saiu da casa e foi até o alto do farol. Fitou o céu agora claro, onde o sol surgia no leste. Curvou-se e viu os fios que tinha unido na noite anterior. Era um milagre ele ter finalmente descoberto o problema que o havia desafiado por tanto tempo. No entanto, pensou, por mais irracional que isso fosse, era mesmo com um milagre que estava contando. Ele se apoiou na parede de vidro e ficou admirando o que parecia ser o início de um lindo dia de final de verão. Virou-se ao ouvi-la entrar. Levemente ofegante, Bonnie surgiu no alto da escada. Ele a ajudou a entrar e os dois ficaram em pé se entreolhando. – Dou graças a Deus pelo que você fez ontem à noite, Jack. Jack se virou e tornou a olhar pelo vidro. – Foi a Lizzie. – O quê? – perguntou Bonnie, chegando mais perto dele. – Eu já tinha desistido – disse Jack. – Mikki estava morta. Eu não tinha mais fôlego. Ela estava morta, Bonnie, e eu pedi ajuda a Lizzie. Ergui os olhos para o céu e pedi que Lizzie me ajudasse. Ele se virou para a sogra. Um soluço lhe escapou da garganta. – E ela me ajudou. Ela me ajudou. Quem salvou Mikki foi ela, não eu. Bonnie aquiesceu devagar. – Foram vocês dois, Jack, você e Lizzie. Duas pessoas feitas uma para a outra. Ele a encarou, surpreso por aquelas palavras. Bonnie tirou as cartas do bolso. – Acho que isto aqui é seu. Jack pegou as cartas. Bonnie estendeu a mão e tocou o rosto do genro. – Jack, às vezes não vemos o que está bem diante do nariz. É estranho que isso aconteça tanto. Quantas vezes magoamos as pessoas que deveríamos amar – disse ela, fazendo uma pausa antes de prosseguir: – Eu amo você, meu filho. E uma coisa da qual tenho certeza é que você amou minha filha e ela amou você. Isso deveria ter sido suficiente para mim antes. Agora é. Eles se abraçaram. Depois, ela se virou para ir embora. – Bonnie? Ela olhou para trás. – E as crianças? – perguntou, incerto.
– Elas estão exatamente onde deveriam estar, Jack. Com o pai.
Quando Mikki abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi o pai. Logo em seguida viu Liam, espiando ansioso por cima do ombro de Jack. – Está tudo bem, gente, sério – falou, grogue. Jack sorriu e olhou para Liam. – Pode nos dar um minutinho? Liam assentiu, lançou um sorriso reconfortante para Mikki e saiu do quarto. Jack segurou a mão da filha e ela apertou a dele. – Sinto muito por todas as emoções que causei – disse ela. – Fui mesmo uma idiota. – Foi, sim – concordou ele. – Mas nós todos estávamos sob muita pressão. – Então quer dizer que o farol finalmente funcionou? Ele soltou devagar o ar dos pulmões. – Funcionou. Se não tivesse funcionado... A voz dele falhou e pai e filha começaram a chorar juntos, abraçados, trêmulos de tanta emoção. – Não consigo acreditar que quase perdi você, filha. – Eu sei, pai, eu sei – disse ela com uma voz abafada. Eles finalmente se soltaram. – E agora? Ainda vamos embora com a vovó? – Não, vocês vão ficar bem aqui comigo. Mikki deu um grito de alegria e tornou a abraçá-lo. – Liam já sabe? – perguntou, animada. – Não, achei melhor deixar você contar – falou, levantando-se. – Vou chamá-lo. Quando ele se virou, ela disse: – Pai? – Sim? – Aconteça o que acontecer na minha vida, você sempre vai ser meu herói.
Ele se curvou e tocou a bochecha da filha. – Obrigado... Michelle. Mais tarde, em pé na soleira da porta vendo os dois adolescentes conversarem animadamente e trocarem um abraço, Jack primeiro abriu um sorriso, depois sentiu os olhos marejarem e por fim tornou a sorrir. Era óbvio que sua filha não era mais uma garotinha. E Jack podia ver facilmente como a vida dela e a sua iriam mudar nos próximos anos. Mais tarde, enquanto caminhava pela praia, ouviu uma voz chamá-lo: – Vou sentir saudades da família Armstrong quando ela voltar para Ohio. Virando-se, viu Jenna andando na sua direção. – Não vai, não, porque nós vamos ficar por aqui – respondeu. Ela chegou mais perto. – Tem certeza? Ele sorriu. – Não, mas vamos ficar mesmo assim. Ela passou o braço em torno dele. – Que bom que as coisas deram certo. – Eu não teria conseguido sem você. – Está sendo generoso. – É sério, Jenna. Você ajudou de várias maneiras. Várias. – Mas então... o que vamos fazer com esse romance que está nascendo? – Ahn? – indagou ele espantado. – Entre nossos filhos. – Ah. Ela riu e ele deu um sorriso encabulado. – Acho que vamos viver um dia depois do outro – disse ele, então a encarou nos olhos. – Tudo bem por você, Jenna? – Tudo ótimo, Jack.
Pouco mais de dois anos depois, Jack estava sentado na praia quase exatamente no mesmo lugar em que ele e Mikki estavam na noite em que ele percebera quantos motivos tinha para viver. A casa agora estava mais silenciosa. Mikki e Liam tinham ido para a faculdade. Ela havia completado com louvor os dois últimos anos do ensino médio e ganhado uma bolsa para estudar em Berkeley. O baterista Liam havia cortado os cabelos e agora cursava a academia militar de West Point. Embora estivessem tão distantes, os dois continuavam sendo grandes amigos. Cory trabalhava em meio período no teatro de Channing, onde Ned Parker lhe ensinava a rotina de uma casa de espetáculos. Jackie, que antes basicamente repetia as frases do irmão, tinha começado a falar pelos cotovelos um belo dia fazia cerca de um ano e nunca mais havia parado. Mas, para orgulho de Jack, uma coisa o tempo não mudara: seu brinquedo preferido continuava sendo o caminhão. Ele se levantou da areia e foi até o alto do farol. Não subia lá desde a manhã que se seguira ao acidente de Mikki. Caminhou até a área externa e dirigiu os olhos para o mar. Seu olhar foi atraído para o ponto onde pai e filha haviam lutado pelas próprias vidas. Ele então desviou os olhos e os ergueu para um céu de verão límpido e azul. O Farol da Lizzie. Funcionou quando teve de funcionar. Nesse dia, Jack tinha duas coisas muito importantes a fazer. E a primeira estava à espera dele. Jack saiu do farol e se pôs a andar pela areia. Tinha as mãos nos bolsos e ensaiava mentalmente as palavras que iria dizer. Conforme foi chegando mais perto, Jack percebeu que havia acabado de percorrer cerca de um quilômetro de praia, mas que, sob certos aspectos, isso representava a jornada de uma vida inteira. Como combinado, ela estava à sua espera. Ele envolveu Jenna nos braços e a beijou. Em seguida, mais ou menos da mesma forma como tinha feito duas décadas
antes, Jack se ajoelhou e perguntou a uma mulher que amava se ela lhe daria a honra de se tornar sua esposa. Jenna chorou e deixou que ele pusesse o anel em seu dedo trêmulo. Depois disso, passaram muito tempo abraçados naquela praia da Carolina do Sul enquanto uma leve brisa os acariciava. – Sammy vai ser o padrinho – disse Jack. – E Liam vai me conduzir ao altar – retrucou Jenna. – Eu te amo, Jack. – Eu também te amo, Jenna. Os dois tornaram a se beijar e passaram algum tempo conversando e fazendo planos. Então Jack voltou para o Palácio. Dessa vez, seus passos não foram tão rápidos. A distância para voltar lhe pareceu bem maior. E havia um motivo para isso. Fizera o primeiro trajeto criando uma ponte em direção ao seu futuro. Na volta, ele teria de efetuar uma dolorosa separação com o passado. Sentou-se na areia da praia em frente à casa e tirou do bolso uma foto de Lizzie. Ainda tinha dificuldades em acreditar que ela partira havia quase três anos. Isso lhe parecia simplesmente irreal. Mas era a verdade. Acompanhou com os dedos a linha do sorriso da falecida esposa enquanto encarava os lindos olhos verdes que por tanto tempo ele acreditara que seriam a última imagem que ele levaria do mundo. Embora amasse Jenna e houvesse acabado de pedi-la em casamento, sabia que uma parte dele sempre amaria Lizzie. Bonnie tinha razão quanto a isso. Lizzie e Jack tinham sido feitos um para o outro, para ficarem juntos para sempre. Só que às vezes a vida não é como deveria. As coisas são como são e pronto. Por mais difícil que seja, é preciso aceitar esse fato. Precisamos ter respeito pelo passado e nunca esquecê-lo, mas não podemos viver nele. E agora ele tinha mais uma tarefa a concluir. Uma tarefa muito importante. Sacou uma folha de papel e uma caneta do bolso do casaco. Com a mão tremendo de leve e lágrimas já escorrendo pelo rosto, Jack Armstrong encostou a caneta no papel e começou a escrever.
Querida Lizzie, Muita coisa aconteceu que preciso lhe contar.
Uma hora mais tarde, concluiu a carta da mesma forma de sempre:
Com amor, Jack.
Ainda passou algum tempo sentado ali, deixando o sol e a brisa secarem suas lágrimas. Dobrou a carta com cuidado e a colocou dentro de um envelope marcado com o número 7. Pôs o envelope no bolso junto com a foto de Lizzie e tomou o caminho de casa. Quando chegou ao gramado, virou-se e olhou para o céu. Sorriu quando de repente percebeu para o que estava olhando. Finalmente havia encontrado o que tanto procurara. Lizzie estava ali. Tinha certeza disso. Não sabia como, mas tinha. Por ironia, como tantas coisas complicadas na vida, a resposta estava bem diante dele desde o início. – Pai-pai! Quando se virou, viu Jackie correndo na sua direção. O menino deu um pulo e Jack o pegou no ar. – Oi, parceiro. – O que você está fazendo? Jack ia dizer algo, mas preferiu virar-se para que os dois ficassem de frente para o mar. Apontou para o céu. – A mamãe está lá em cima olhando para a gente, Jackie. Jackie fez uma cara de assombro. – A mamãe? Jack assentiu. – Oi, mamãe. O menino acenou para o céu e jogou um beijo. Jack então deu meia-volta e carregou o filho para casa. Logo antes de entrar, olhou para trás devagar em direção àquele pedacinho azul de céu. Tchau, Lizzie. Por enquanto.
David Baldacci
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