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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM CIRCO QUE PASSA / Patrick Modiano
UM CIRCO QUE PASSA / Patrick Modiano

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ela tinha deixado as chaves do carro em cima do tabliê. Entrou no prédio. Perguntei a mim próprio se ela voltaria. Após alguns instantes, saí do carro e plantei-me à porta do edifício, uma porta envidraçada com ferragens. Talvez houvesse uma porta dupla. Ela desaparecera e deixara-me ali com aquele carro inútil. Tentei raciocinar.
No caso de ela fugir eu tinha vários pontos de referência: o café da Rua Washington do qual Jacques era cliente assíduo, o apartamento de Ansart e principalmente as malas. Porquê este medo de a ver desaparecer? Eu conhecia-a há vinte e quatro horas e não sabia nada dela. Até o seu nome próprio eu tinha sabido por terceiros.
Ela não parava num sítio, andava de um lado para o outro como se fugisse de um perigo. Tinha a sensação de a não conseguir deter.

 

 

 


 

 

 


Eu tinha dezoito anos e aquele homem de quem eu já esqueci os traços fisionómicos batia as minhas respostas à máquina à medida que eu declinava o meu estado civil,
o meu endereço e uma pretensa qualidade de estudante. Ele perguntou-me como ocupava os meus tempos livres.
Hesitei durante alguns segundos:
- Vou ao cinema e às livrarias.
- Com certeza que não vai só ao cinema e às livrarias.
Ele mencionou o nome de um café. Tive de lhe repetir várias vezes que nunca lá tinha posto os pés, mas percebi que ele não me acreditava. Por fim, resolveu-se a
escrever a frase seguinte:
"Eu passo os meus tempos livres no cinema e nas livrarias. Nunca frequentei o Café da Tournelle, n° 61, no cais do mesmo nome."
De novo perguntas sobre a forma como passava os meus tempos livres e sobre os meus pais. Sim, frequentava aulas na Faculdade de Letras. Não corria nenhum risco em
lhe contar esta mentira porque me tinha inscrito naquela Faculdade, mas unicamente para prolongar o adiamento do serviço militar. Quanto aos meus pais, tinham ido
para o estrangeiro e eu ignorava a data do regresso, e era possível que nunca mais voltassem.
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Então, ele mencionou o nome de um homem e de uma mulher e perguntou-me se eu os conhecia. Respondi-lhe que não. Pediu-me para pensar bem. O facto de eu não dizer
a verdade, poderia acarretar-me graves consequências. Esta ameaça fora proferida num tom calmo, frio. Não, realmente eu não conhecia essas duas pessoas. Ele bateu
a minha resposta à máquina depois estendeu-me a folha, onde em baixo se encontrava escrito: leitura feita, confirma e assina. Nem sequer li o meu depoimento e assinei
com uma esferográfica que estava por ali.
Antes de sair, quis saber a razão daquele interrogatório.
- O seu nome figurava na agenda de uma pessoa.
Mas não me disse quem era essa pessoa.
- Voltaremos a convocá-lo se precisarmos de si.
Ele acompanhou-me até à porta do escritório. No corredor, num banco de couro, estava sentada uma rapariga de uns vinte e dois anos.
- Agora é a sua vez - disse-lhe ele.
Ela levantou-se e trocámos um olhar. Pela porta que ele deixou entreaberta, vi-a sentar-se no mesmo lugar onde eu tinha estado antes.
Encontrei-me novamente no cais. Eram mais ou menos cinco horas da tarde. Caminhei na direção da Ponte Saint-Michel com o fito de esperar pela saída daquela rapariga
após o interrogatório. Mas eu não podia ficar plantado em frente da entrada do edifício da polícia. Decidi refugiar-me no café que fazia esquina para o cais e para
o Boulevard du Palais. E se ela tivesse ido pelo caminho oposto até à Pont-Neuf ? Mas eu não tinha pensado nisso.
Estava sentado por detrás do vidro da esplanada, com o olhar fixo no Quai des Orfevres. O seu interrogatório foi mais longo que o meu. Anoitecia quando a vi caminhar
em direção ao café.
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No momento em que ela passava em frente da esplanada, bati com as costas da mão no vidro. Reconheceu-me surpreendida e veio ter comigo.
Sentou-se à mesa como se já nos conhecêssemos e tivéssemos marcado encontro. Foi ela quem falou primeiro:
- Ele fez-lhe muitas perguntas?
- O meu nome estava escrito na agenda de uma pessoa.
- E sabe quem era essa pessoa?
- Não me quiseram dizer. Mas talvez me possa informar.
Ela franziu o sobrolho.
- Informá-lo de quê?
- Acho que o seu nome também aparecia escrito nessa agenda e foi interrogada pelo mesmo motivo.
- Não. Eu fui para testemunhar.
Parecia preocupada. Tive até a impressão de que se esquecia a pouco e pouco da minha presença. Fiquei calado. Ela sorriu-me. Perguntou-me a idade. Respondi-lhe que
tinha vinte e um anos. Acrescentei mais três anos: a idade da maioridade, naquela época.
- Trabalha?
- Sou agente livreiro - disse-lhe ao acaso num tom que me esforçava para que fosse firme.
Ela observava-me, pensando sem dúvida se podia confiar em mim.
- Faz-me um favor? - perguntou-me.
Praça do Châtelet, ela quis apanhar o metro. Era hora de ponta. Estávamos comprimidos ao pé das portas. Em cada estação, os que desciam empurravam-nos para o cais.
Depois voltámos a subir para a carruagem com os novos passageiros. Ela encostou a cabeça no meu ombro e disse-me sorrindo que "ninguém nos poderia encontrar no meio
daquela multidão".
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Na estação da Gare du Nord, fomos levados pela onda de passageiros que iam para os comboios dos subúrbios. Atravessámos o átrio da estação e na sala dos cacifos
automáticos ela abriu um e tirou uma mala preta de couro.
Eu carregava a mala que pesava muito. Achei que ela devia conter tudo menos roupas. Novamente o metro, a mesma linha, mas na outra direção. Desta vez tivemos lugares
sentados. Descemos na Cité.
No extremo da Pont-Neuf, esperámos que o sinal passasse a vermelho. Eu sentia-me cada vez mais ansioso. Perguntava a mim próprio qual seria a receção de Grabley
à nossa chegada ao apartamento. Não deveria eu falar-lhe de Grabley, de forma a ela não se sentir apanhada de surpresa com a sua presença?
Seguimos ao longo do edifício da Monnaie. Ouvi bater as nove horas no relógio do Instituto.
- Tem a certeza de que eu não vou incomodar ninguém ao ir para sua casa? - perguntou-me ela.
- Não. Ninguém.
Não havia nenhuma luz nas janelas do apartamento que davam para o cais. Ter-se-ia Grabley retirado para o seu quarto que dava para o pátio? Normalmente, ele estacionava
o carro no meio da pequena praça entre a Monnaie e o Instituto, mas não se encontrava lá.
Abri a porta do quarto andar e atravessámos o vestíbulo. Entrámos no escritório do meu pai. A luz vinha de uma lâmpada nua pendurada no teto. Não havia mais nenhum
móvel à exceção de um velho canapé de ramagens cor de vinho.
Pus a mala ao pé do canapé. Ela dirigiu-se para uma das janelas.
- Tem uma bela vista...
À esquerda, a extremidade da Ponte das Artes e o Louvre. Em frente, a ponta da ilha da Cité e o jardim do Vert-Galant.
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Sentámo-nos no canapé. Ela olhava à sua volta e parecia admirada com o vazio da casa.
- Vai-se mudar?
Disse-lhe que, infelizmente, nós devíamos deixar aquele lugar dentro de um mês. O meu pai tinha partido para a Suíça para ali acabar os seus dias.
- Porquê a Suíça?
Era realmente muito complicado explicar-lho, naquela noite. Encolhi os ombros. Grabley estava a chegar de um momento para o outro. Qual seria a sua reação ao ver
aquela rapariga e a mala? Receava que telefonasse para a Suíça para o meu pai e que este, num derradeiro assomo de dignidade em relação a mim, pretendesse ainda
assumir o papel dos pais nobres falando-me dos meus estudos e do meu futuro comprometido. Mas seria totalmente inútil da sua parte.
- Estou cansada...
Convidei-a a estender-se sobre o canapé. Ela não despiu o impermeável. Lembrei-me de que o aquecimento não funcionava.
- Tem fome? Vou buscar qualquer coisa à cozinha...
Ela estava no canapé, com as pernas dobradas, sentada sobre os calcanhares.
- Não vale a pena. Só qualquer coisa para beber...
Já não havia luz no vestíbulo. A clarabóia do enorme corredor que levava à cozinha iluminava a casa com uns reflexos pálidos, como se fosse luar. Grabley tinha deixado
aceso o candeeiro do teto da cozinha. Em frente do antigo monta-cargas, uma tábua de passar a ferro em cima da qual reconheci as calças e o seu fato príncipe de
Gales. Era ele próprio que passava as camisas e os fatos. Em cima da mesa de bridge, onde eu às vezes comia com ele, estava um frasco de iogurte vazio, a casca de
uma banana e uma carteira de Nescafé. Ele tinha jantado lá nessa noite.
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Encontrei dois iogurtes, uma fatia de salmão, alguma fruta e uma garrafa de whisky quase vazia. Quando voltei ela lia uma das revistas que Grabley empilhava há várias
semanas em cima da lareira do escritório, revistas "ligeiras" como ele próprio dizia e pelas quais tinha uma grande predileção.
Coloquei o tabuleiro à nossa frente, no chão.
Ela deixou ao seu lado uma revista grande aberta e eu distingui uma fotografia a preto e branco de uma mulher nua, de costas, os cabelos apanhados em rabo de cavalo,
a perna esquerda estendida, a da direita dobrada, o joelho em cima do colchão de uma cama.
- Lê coisas muito curiosas...
- Não, não sou eu que leio isso... é um amigo do meu pai...
Ela trincava uma maçã e serviu-se de um pouco de whisky.
- O que é que meteu naquela mala? - perguntei-lhe eu.
- Oh, nada de interessante... coisas pessoais...
- Era pesada. Pensei que continha lingotes de ouro.
Ela sorriu atrapalhada. Explicou-me que vivia numa casa nos arredores de Paris, do lado de Saint-Leu-la-Forêt, mas os proprietários tinham chegado ontem à noite
de imprevisto. Ela preferira sair porque não se entendia muito bem com eles. Amanhã, ia alugar um quarto num hotel enquanto aguardava um alojamento definitivo.
- Pode ficar aqui o tempo que quiser.
Eu tinha a certeza de que Grabley, após a surpresa inicial, não encontraria nada para dizer. Quanto à opinião do meu pai, ela já não contava para mim.
- Se calhar tem sono?
Prontifiquei-me a ceder-lhe o quarto lá de cima.
Eu dormiria no canapé do escritório.
Subi atrás dela, com a mala na mão, a pequena escada que levava ao quinto andar. O quarto estava tão vazio como o escritório. Uma
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cama encostada à parede do fundo. Não havia nem mesa de cabeceira nem candeeiro. Acendi os dois néons dos dois armários, de cada lado da lareira, onde o meu pai
guardava a sua coleção de peças do jogo de xadrez, mas estas haviam desaparecido, assim como o pequeno armário chinês e o quadro falso de Monticelli, que deixara
marca na madeira azul-celeste. Eu tinha confiado estes três objetos a um antiquário, um certo Dell Aversano, para ele os vender.
- E o seu quarto? - perguntou-me ela.
- Sim.
Pousei a mala em frente da lareira. Ela pôs-se à janela como há pouco, no escritório.
- Se olhar bem para a direita - disse-lhe eu -, vê a estátua de Henrique IV e a Torre de Saint-Jacques.
Ela deu uma olhadela pelos livros, entre as duas janelas. Depois, estendeu-se em cima da cama e tirou os sapatos com um movimento indolente do pé. Perguntou-me onde
ia eu dormir.
- Lá em baixo, no canapé.
- Fique aqui - pediu-me. - Não me incomoda nada.
Ela mantinha ainda vestido o impermeável. Apaguei a luz dos armários. Estendi-me a seu lado.
- Não acha que faz frio?
Ela aproximou-se e deitou docemente a cabeça no meu ombro. Reflexos e sombras em forma de grades deslizavam pelas paredes e pelo teto.
- O que é isto? - perguntou-me ela.
- É o bateau-mouche a passar.
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Acordei sobressaltado. A porta da entrada tinha batido.
Ela estava deitada encostada a mim, nua, com o seu impermeável. Eram sete horas da manhã. Ouvi os passos de Grabley. Estava a telefonar no escritório. A sua voz
tornava-se cada vez mais forte, como se estivesse a discutir com alguém. Depois saiu do escritório e foi para o quarto.
Ela acordou por sua vez e perguntou-me as horas. Disse-me que tinha de se ir embora. Deixara umas coisas na casa de Saint-Leu-la-Forêt e preferia ir buscá-las o
mais cedo possível.
Ofereci-lhe um pequeno-almoço. Havia ainda algumas carteiras de Nescafé na cozinha e um desses pacotes de biscoitos Choco BN que Grabley comprava regularmente. Quando
voltei ao quinto andar com o tabuleiro, ela estava na casa de banho grande. Saiu de lá vestida com a sua saia e a sua camisola pretas.
Telefonar-me-ia ao princípio da tarde. Não tinha papel para anotar o número. Tirei um livro das prateleiras, arranquei a página de guarda onde escrevi o meu nome,
a minha direção e DANTON 55-61. Ela dobrou-a em quatro e enfiou-a num dos bolsos do impermeável. Depois, os seus lábios afloraram os meus e disse-me em voz baixa
que me agradecia e que estava ansiosa por voltar a ver-me.
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Ela caminhava pelo passeio do cais na direção da Ponte das Artes.
Fiquei à espera alguns instantes à janela olhando a sua silhueta lá em baixo, na ponte.
Arrumei a mala no cubículo ao cimo das escadas. Pu-la deitada no chão. Estava fechada à chave. Deitei-me de novo e senti o seu perfume na concavidade de uma das
almofadas. Ela acabaria por me confessar porque é que a tinham interrogado ontem à tarde. Tentei lembrar-me dos nomes das duas pessoas que o polícia tinha mencionado,
perguntando-me se as conhecia. Um dos nomes soava mais ou menos como "Beaufort" ou "Bousquet". Em que agenda teria ele encontrado o meu nome? Talvez se quisesse
informar sobre o meu pai? Ele perguntou-me para que país estrangeiro ele tinha ido. Baralhei as pistas e respondi:
- Para a Bélgica.
Na semana anterior, eu acompanhara o meu pai à estação de Lyon. Ele levava o seu velho sobretudo azul-escuro e como bagagem apenas um saco de couro. Tínhamos chegado
antes da hora, e esperámos o comboio de Genève na grande sala do restaurante do primeiro andar de onde avistávamos o hall e as vias férreas. Seria da luz do fim
do dia, dos dourados do teto, dos lustres, o brilho que batia em nós? O meu pai pareceu-me subitamente envelhecido e cansado, como alguém que há muito tempo joga
"ao gato e ao rato" e está prestes a render-se.
O único livro que levava para esta viagem chamava-se La Chasse à courre. Ele tinha-mo recomendado por várias vezes, porque o autor fazia alusão ao nosso apartamento,
onde vivera durante vinte anos. Que coincidência engraçada... A vida do meu pai, em certos períodos, não se assemelhara ela a uma caça a cavalo na
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qual ele tinha sido o javali? Mas, até então, conseguira livrar-se sempre dos caçadores.
Estávamos frente a frente com os nossos cafés expresso. Ele fumava com o cigarro ao canto dos lábios. Falava-me dos meus "estudos" e do meu futuro. Segundo ele,
era interessante querer escrever romances tal como eu tencionava fazer mas era mais prudente obter alguns "diplomas". Fiquei calado, a ouvi-lo. Os termos "diplomas",
"situação estável", "profissão", adquiriam um som estranho na sua boca. Ele pronunciava-os com respeito e uma certa nostalgia. Após alguns instantes, calou-se, deitou
uma nuvem de fumo e encolheu os ombros.
Não trocámos nem mais uma palavra até ao momento em que entrou na carruagem e se debruçou na janela aberta. Eu fiquei no cais.
- Grabley vai viver no apartamento contigo. Depois, resolvemos. Vai ser preciso alugar outro apartamento.
Mas ele tinha dito isto sem a menor convicção. O comboio de Genève estremeceu e eu tive a sensação nesse mesmo momento de ver afastar-se para sempre aquela cara
e aquele casaco azul-escuro.
Cerca das nove horas, desci ao quarto andar. Tinha ouvido os passos de Grabley. Ele estava sentado com o seu roupão escocês, no canapé do escritório. Ao lado, um
tabuleiro com uma chávena de chá e um Choco BN. Não estava barbeado e tinha uma cara cansada.
- Bom dia, Obligado...
Tinha-me posto aquele nome por causa de uma discussão amigável entre nós. Uma noite, combinámos um encontro em frente de um cinema da Avenida da Grand-Armée. Ele
tinha-me explicado que era na estação de metro Obligado. Mas esta
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estação chamava-se agora Argentine e ele não quis admitir. Fizemos uma aposta que eu ganhei.
- Dormi duas horas esta noite. Fiz uma "digressão".
Ele acariciava o bigode loiro e franzia os olhos.
- Sempre pelos mesmos sítios?
- Sempre.
A sua "digressão" começava invariavelmente às oito horas no Café Deux Magots onde tomava um aperitivo. Depois ia para a margem direita e parava na Praça Pigalle.
Ficava neste bairro até de madrugada.
- E você, Obligado?
- Eu alberguei uma amiga, ontem à noite.
- O seu pai está ao corrente?
- Não.
- Devia tê-lo consultado. Vou com certeza falar com ele ao telefone.
Ele imitava o meu pai quando este se pretendia mostrar sério e responsável, mas soava ainda mais a falso que o original.
- E qual é o género dessa jovem?
Ele adquiria o tom afetado com o qual me convidava, todos os domingos de manhã, a acompanhá-lo à missa.
- Primeiro, não é uma jovem.
- É bonita?
Eu achava aquele sorriso abusador e de uma fatuidade de caixeiro viajante que nos conta as suas aventuras em frente de uma cerveja, num café de uma estação qualquer.
- A minha também não era nada má...
O tom tornava-se agressivo, como se se pusesse a competir comigo. Não sei muito bem o que sentia naquela altura na presença daquele homem sentado no escritório vazio,
que evocava uma mudança demasiado rápida dos móveis e dos quadros empenhados na casa de penhores ou mesmo confiscados. Ele
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era o duplo do meu pai. Tinham travado conhecimento muito jovens, numa praia da costa atlântica e o meu pai desviou esse pequeno-burguês francês. Desde há trinta
anos que Grabley vivia na sua sombra. O único hábito que conservava da sua infância e da sua boa educação era o de ir todos os domingos à missa.
- Apresenta-me essa rapariga?
Deu-me uma piscadela de olho cúmplice.
- Podíamos mesmo sair juntos, se quiser... Gosto muito dos casais jovens.
Eu imagináva-nos, ela e eu, no carro de Grabley a atravessar o Sena na direção de Pigalle. Um jovem casal. Acompanhei-o uma noite ao Deux Magots, antes de ele partir
para a sua "digressão" habitual. Sentámo-nos numa mesa da esplanada. Fiquei surpreendido ao vê-lo cumprimentar um casal com uns vinte e cinco anos: a mulher, uma
loira muito graciosa, o homem, um moreno muito elegante. Ele foi mesmo falar-lhes, à mesa, enquanto eu ficava sentado a observá-los. A idade deles e o seu porte
formavam um tal contraste com os gestos obsoletos de Grabley que até perguntei a mim próprio como é que ele os podia conhecer. O homem parecia divertir-se com os
ditos de Grabley, a mulher mantinha-se mais distante. Ao deixá-los, Grabley apertou a mão do homem e cumprimentou a mulher com um aceno cerimonioso de cabeça. Quando
saímos, ele apresentou-mos mas eu esqueci-me dos seus nomes. Depois, ele disse-me que aquele "jovem" era "uma relação muito útil" e que o tinha conhecido durante
as suas "digressões" por Pigalle.
- Está com um ar pensativo, Obligado... Está apaixonado?
Ele tinha-se levantado e mantinha-se de pé à minha frente,
com as mãos nos bolsos do roupão.
- Vou ter de trabalhar durante todo o dia. Tenho de organizar e de fazer toda a mudança dos papéis do nº 73.
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Era um escritório que o meu pai tinha alugado, no Boulevard Haussmann. Eu ia frequentemente lá ter com ele ao fim da tarde. Uma divisão esquinada com um pé alto
muito grande. O dia entrava pelas quatro portadas das janelas de sacada que davam para o boulevard e para a Rua de l'Arcade. Havia prateleiras nas paredes e uma
mesa maciça em cima da qual se encontravam arrumados tinteiros, mata-borrões e uma escrivaninha.
Em que é que ele trabalhava ali? Encontrava-o sempre ao telefone. Trinta anos depois acabo de descobrir, por acaso, um envelope que tinha impresso no verso: Sociedade
Civil de Estudos de Tratamento de Minerais, 73, Boulevard Haussmann Paris 8º
- Pode ir ter comigo ao nº 73 com a sua amiga. Poderíamos jantar juntos...
- Acho que ela não está disponível esta noite.
Ele parecia desiludido. Acendeu um cigarro.
- Em todo o caso, telefone-me para o nº 73 para me dizer o que pensa fazer... Terei imenso prazer em a conhecer...
Achei que tinha de manter as distâncias senão arriscava-me a tê-lo em cima de mim vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. Mas eu nunca soube dizer não.
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Fiquei no escritório, a ler, à espera do seu telefonema. Ela havia-me dito: ao princípio da tarde. Eu coloquei o telefone em cima do canapé. A partir das três horas,
comecei a sentir uma vaga inquietação que, pouco a pouco, se foi agravando. Temia que ela não me telefonasse mais. Tentei retomar a minha leitura em vão. Finalmente
o telefone tocou.
Ela ainda não tinha ido buscar o resto das suas coisas a Saint-Leu-la-Forêt. Marcámos um encontro às seis horas no Tournon.
Eu tinha tempo de ir a casa de Dell' Aversano para saber por quanto é que ele estava a pensar comprar-me o falso Monticelli, o pequeno contador chinês e as figuras
de xadrez que eu lhe tinha confiado.
Atravessei a Pont-Neuf e segui pelo cais. Dell' Aversano tinha uma loja de antiguidades na Rua François-Miron, depois da Câmara Municipal. Conhecera-o mais ou menos
há dois meses enquanto escolhia alguns livros em segunda mão que estavam expostos à entrada da loja.
Era um homem moreno, quarentão, com cara de romano e olhos claros. Falava francês com um ligeiro sotaque. Tinha-me contado que fazia comércio de antiguidades entre
a França e a Itália, mas não lhe fiz muitas perguntas sobre isso.
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Ele estava à minha espera. Levou-me a tomar um café no cais perto da Igreja Saint-Gervais. Estendeu-me um envelope dizendo que me comprava tudo por sete mil e quinhentos
francos. Agradeci-lhe. Podia subsistir bastante tempo graças a essa quantia. Depois, tinha de deixar o apartamento e desenvencilhar-me sozinho.
Como se adivinhasse os meus pensamentos, Dell' Aversano perguntou-me o que é que eu pensava fazer no futuro.
- Já sabe, a minha proposta continua de pé...
Ele sorria-me. Na minha última visita, tinha-me dito que me podia arranjar um emprego em Roma, num livreiro seu conhecido que precisava de um empregado francês.
- Pensou nisso? Concorda em ir para Roma?
Disse-lhe que sim. Além do mais já não tinha nenhum motivo para ficar em Paris. Estava certo de que Roma seria o mais adequado para mim. Lá haveria uma nova vida.
Tinha de arranjar um mapa da cidade, estudá-lo diariamente, saber de cor os nomes de todas as ruas e de todas as praças.
- Conhece bem Roma? - perguntei-lhe.
- Conheço. Nasci lá.
- Virei visitá-lo de vez em quando com o meu mapa, e vou fazer-lhe todas as perguntas acerca dos bairros da cidade. Assim, quando chegar a Roma, não me sentirei
desorientado.
Aceitaria ela acompanhar-me? Vou falar-lhe nisso esta noite. Aqui está talvez uma solução que também lhe possa resolver os problemas.
- Viveu em Roma?
- Com certeza - respondeu-me. - Durante vinte e cinco anos.
- Em que rua?
- Nasci no Bairro San Lorenzo e a minha última morada foi na Via Euclide.
Deveria ter anotado os nomes do bairro e da rua, mas ia tentar lembrar-me e identificá-los no mapa.
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- Pode ir no mês que vem. Esse amigo arranja-lhe alojamento. Não acho que o trabalho seja muito difícil. Trata-se de livros franceses.
Ele aspirou longamente o cigarro, depois, com um gesto elegante, como que ao ralenti, levou a chávena de café aos lábios.
Contou-me que em Roma, precisamente, durante a sua juventude, ele e os amigos se sentavam na esplanada de um café. Faziam um concurso para ver qual deles levava
mais tempo a beber uma laranjada. A maior parte das vezes, aquilo durava a tarde inteira.
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Cheguei adiantado ao encontro e fui passear pelo jardim do Luxemburgo. Pela primeira vez tive a sensação do inverno a chegar. Até à data, tínhamos tido dias soalheiros
de outono.
Quando saí do jardim, a noite caía e os guardas apressavam-se a fechar os portões.
Escolhi um lugar ao fundo no Café do Tournon. No ano anterior, este café fora para mim um refúgio quando andava no Liceu Henrique IV, frequentava a biblioteca municipal
do Sexto Bairro e o cinema Bonaparte. Observei lá um cliente assíduo, o escritor Chester Himes, sempre rodeado por músicos de jazz e por mulheres loiras muito bonitas.
Cheguei ao Tournon cerca das seis horas e às seis e meia ela ainda não tinha aparecido. Chester Himes estava sentado num banco, perto da montra, na companhia de
duas mulheres. Uma tinha uns óculos de sol. Conversavam animadamente, em inglês. Alguns clientes bebiam, em pé, ao balcão. Para acalmar o meu nervosismo, tentava
seguir a conversa de Himes e das suas amigas, mas eles falavam muito depressa, à exceção de uma das mulheres com sotaque escandinavo de quem eu percebia algumas
coisas. Ela queria mudar de hotel e perguntava a Himes como se chamava aquele onde tinha ficado no início da sua estadia em Paris.
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Eu espreitava-a pela montra. Já era de noite. Um táxi parou em frente do Tournon. Ela saiu. Trazia vestido o seu impermeável. O motorista saiu por sua vez. Abriu
o porta-bagagens e estendeu-lhe uma mala, mais pequena que a da noite anterior.
Ela veio na minha direção, com a mala na mão. Parecia contente por me ver. Voltava de Saint-Leu-la-Forêt onde fora buscar o resto das coisas. Tinha arranjado um
quarto de hotel para essa noite. Pedia-me simplesmente para levar aquela mala para minha casa. Preferia que ela ficasse "num lugar seguro", lá, com a outra. Voltei
a dizer-lhe que aquelas malas continham lingotes de ouro. Mas ela respondeu-me que se tratava simplesmente de objetos que não possuíam nenhum valor especial, exceto
para ela.
Observei-lhe, num tom veemente, que ela tinha feito mal em ter alugado um quarto de hotel, porque eu podia muito bem alojá-la no meu apartamento, todo o tempo que
ela quisesse.
- É preferível que eu fique no hotel.
Senti reserva da sua parte. Escondia-me qualquer coisa e eu perguntava a mim próprio se era porque não tinha confiança em mim ou porque receava chocar-me ao revelar
a verdade.
- E você, o que é que tem feito?
- Nada de especial. Vendi os móveis do apartamento para ter algum dinheiro.
- E rendeu alguma coisa?
- Sim.
- Precisa de dinheiro?
Ela fitava-me com o seu olhar azul-pálido.
- É uma parvoíce. Eu posso emprestar-lhe dinheiro.
Sorria. O empregado veio atender-nos. Ela quis uma groselha.
Eu imitei-a.
- Tenho algum dinheiro de lado - disse-me. - Está à sua disposição.
- É amável, mas parece-me que encontrei trabalho.
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Pu-la a par da proposta de DellAversano: ir para Roma para trabalhar numa livraria. Hesitei um instante e depois decidi-me:
- Podia vir comigo...
Não pareceu espantada com a minha proposta.
- Sim... Era uma boa ideia. Sabe onde vai ficar em Roma?
- O livreiro com quem vou trabalhar arranja-me alojamento.
Ela bebeu um gole de groselha. A cor desta harmonizava-se
muito bem com a cor pálida dos seus olhos.
- E parte quando?
- Dentro de um mês.
Fez-se silêncio entre nós. Como na véspera, no café de L'ile de la Cité, tive a impressão de que ela se esquecia da minha presença e que ainda se levantava e se
despedia.
- Sempre sonhei viver em Londres ou em Roma - disse-me.
Novamente o seu olhar pousava em mim.
- Numa cidade estrangeira podemos estar tranquilos... Ninguém nos conhece...
Ela já me tinha feito uma observação semelhante no metro na noite anterior. Quis saber se havia alguém em Paris que lhe quisesse fazer mal.
- Não propriamente. É por causa do interrogatório de ontem... Sinto-me vigiada. Fazem-nos tantas perguntas... Interrogaram-me sobre pessoas que eu conheci, mas que
já não vejo há muito tempo.
Ela encolheu os ombros.
- O aborrecido é que eles não acreditaram em mim... Devem pensar que eu estou sempre em contacto com elas...
Uns clientes vieram sentar-se na mesa ao lado da nossa. Ela aproximou a sua cara da minha.
- E a si - perguntou-me em voz baixa. - Quantos é que o interrogaram?
- Só um. O que estava lá quando você entrou...
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- Comigo foram dois. O segundo chegou um pouco depois. Fingiu que viera ali por acaso, mas começou a fazer-me perguntas. E o outro também. Sentia-me uma bola de
pingue-pongue.
- Mas quem são essas pessoas que conheceu?
- Não as conhecia muito bem. Devo-as ter encontrado uma ou duas vezes, muito simplesmente.
Ela via que essa resposta não me satisfazia.
- Foi o mesmo que consigo, quando lhe disseram que o seu nome estava escrito numa agenda... Você nem sequer sabia do que se tratava...
- E agora, tem a impressão de que está a ser vigiada?
Ela franziu o sobrolho. Olhava-me com um olhar estranho, como se lhe tivesse passado subitamente pela cabeça uma suspeita. Adivinhei o que estava a pensar: ela tinha-me
visto pela primeira vez quando saí do gabinete da polícia e, três horas mais tarde, ainda estava nas redondezas, sentado na esplanada do café.
- Acha que fui encarregado de a vigiar? - perguntei-lhe a sorrir.
- Não. Não tem cara de chui. Nem idade.
Ela não tirava os olhos de mim. A sua expressão descontraiu-se e, por fim, acabámos por desatar a rir.
A mala era menos pesada que a da noite anterior. Pela Rua de Tournon e a Rua de Seine, chegámos ao cais. Não havia luz nas janelas do apartamento. Eram cerca das
sete horas e meia e Grabley, no escritório do nº 73 do Boulevard Haussmann, devia estar ainda a ordenar a "papelada" da qual eu não supusera a existência. Tinha
pensado sempre que esse local era tão vazio como os tinteiros em cima da mesa e que o meu pai o utilizava como sala de espera. Também fiquei surpreendido, trinta
anos mais tarde, ao descobrir um vestígio palpável da sua passagem
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pelo Boulevard Haussmann, através daquele envelope que tinha inscrito Sociedade Civil de Estudos de Tratamento de Minerais. Mas na realidade uma inscrição nas costas
de um envelope não prova grande coisa: bem a podemos ler e reler, que se fica sempre na ignorância.
Quis mostrar-lhe onde tinha guardado a primeira mala e então trepámos pela pequena escada interior até ao quinto andar. A porta do cubículo abriu-se para o lado
esquerdo, exatamente antes do quarto. Pairava no ar do cubículo um cheiro a couro e a chipre. Pus a mala que tinha na mão ao lado da outra e apaguei a luz. A chave
do cubículo estava na porta. Dei-lhe duas voltas e estendi-lha.
- Guarde-a - disse-me ela.
Descemos até ao escritório. Ela queria telefonar. Marcou um número mas ninguém atendeu.
Desligou, com um ar desapontado.
- Esta noite, tenho de jantar com uma pessoa. Pode ir comigo?
- Se quiseres.
Tratei-a por tu sem dar por isso.
Ela ia acrescentar alguma coisa, mas estava visivelmente embaraçada.
- Posso pedir-lhe um favor? É o de não falar no interrogatório de ontem e de dizer que é o meu irmão...
Não fiquei admirado com esta proposta. Estava pronto para fazer tudo o que ela quisesse.
- Tem um irmão a sério?
- Não.
Mas isso não tinha nenhuma importância. Esse "alguém" com quem nós íamos estar daí a pouco, ela não o conhecia há muito tempo e era evidente que até então nunca
lhe tinha feito referência à existência de um irmão que vivia nos arredores de Paris. Ou seja, em Montmorency, muito próximo de Saint-Leu-la-Forêt.
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O telefone tocou. Ela sobressaltou-se. Atendi. Grabley. Estava ainda no nº 73 do Boulevard Haussmann e tinha posto em ordem uma série de dossiês. Acabara de falar
com o meu pai pelo telefone e ele tinha-lhe dado instruções para se desfazer o mais depressa possível de todos os papéis. Ele estava indeciso entre duas atitudes
a tomar: esperar que a porteira do 73 levasse os caixotes do lixo do prédio para o passeio do boulevard e "despejar" lá os dossiês ou então, muito simplesmente,
deitá-los num esgoto que ele tinha visto na Rua de l'Arcade. Mas tanto num caso como no outro, arriscava-se a atrair as atenções.
- É como se eu tivesse de me livrar de um cadáver, meu pobre Obligado...
Quis saber notícias da minha "amiga". Não, não nos podíamos encontrar os três esta noite. Ela ia jantar com o irmão algures entre Montmorency e Saint-Leu-la-Forêt.
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O táxi deixou-nos à esquina da Avenida dos Champs-Elysées com a Rua Washington. Foi ela que quis pagar a corrida.
Seguimos ao longo da rua pelo passeio do lado esquerdo. Entrámos no primeiro café. Uns clientes estavam à volta do flipper, junto da montra, e enquanto um deles
jogava, falavam ruidosamente.
Atravessámos a sala. Ao fundo ela estreitava-se tomando a dimensão de um corredor ao longo do qual se encontravam, como numa carruagem-restaurante, mesas e bancos
de napa alaranjada. Um homem moreno, com apenas trinta anos, levantou-se à nossa chegada.
Ela fez as apresentações.
- Jacques... O meu irmão Lucien...
Com um gesto, convidou-nos a sentar no banco em frente dele.
- Podíamos jantar aqui... Concorda?
E sem esperar pela nossa resposta, levantou o braço na dire-ção do criado que veio atender. Escolheu um prato do dia para nós. Ela parecia indiferente ao que ia
comer.
Ele observava-me com curiosidade.
- Não estava ao corrente da sua existência... Estou muito contente de o conhecer...
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Ele também a observava e depois fixou o olhar em mim.
- É verdade... Vocês são parecidos...
Mas eu vislumbrei uma dúvida nessa observação.
- Ansart não pode vir. Vamos ter com ele depois do jantar.
- Não sei - disse ela. - Estou um bocado cansada e nós temos de voltar para Saint-Leu-la-Forêt.
- Não há problema. Levo-os lá de carro.
Ele tinha uma expressão amável e uma voz doce. E uma certa elegância no seu fato escuro de flanela.
- O que é que faz na vida, Lucien?
- Ele ainda estuda - disse ela. - Letras.
- Eu também, eu também andei a estudar. Medicina.
Ele pronunciou esta frase com uma ponta de tristeza como se se tratasse de uma recordação dolorosa. Serviram-nos um prato de salmão e de peixe fumados.
- O dono é dinamarquês - disse-me ele. - Se calhar não gosta de cozinha escandinava.
- Sim, sim. Gosto muito.
Ela desatou a rir. Ele virou-se para ela.
- Porque é que estás a rir?
Tratava-a por tu. Há quanto tempo é que a conhecia e em que circunstâncias se tinham encontrado?
- É o Lucien que me faz rir.
E ela indicava-me com um gesto do queixo.
Qual seria exatamente a sua ligação? E porque é que ela me fazia passar por seu irmão?
- Eu tê-los-ia convidado com muito prazer para jantarem em minha casa - disse ele. - Mas esta noite não tinha nada na cozinha.
Ela comeu umas garfadas do prato e acendeu um cigarro.
- Não tens fome?
- Não. Por agora não.
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- Estás com um ar triste...
E ele pegou-lhe na mão com um gesto de ternura. Ela tentou libertar-se mas ele segurava-a e ela acabou por ceder. Ele mantinha a mão dela na sua.
- Já se conhecem há muito tempo? - perguntei eu.
- A Gisèle nunca lhe falou de mim?
- Eu e o meu irmão temo-nos visto muito pouco ultimamente. Ele anda sempre em viagem.
Ele sorriu para mim.
- A sua irmã foi-me apresentada há cerca de quinze dias por um amigo... Pierre Ansart... Conhece Pierre Ansart?
- Não - disse ela. - Ele não o conhece.
Ela parecia subitamente cansada e desejosa de se levantar da mesa. Mas ele continuava a agarrar-lhe na mão.
- Não está a par da vida da sua irmã?
Dissera esta última frase com um ar suspeito.
Ela abriu a mala de mão e tirou uns óculos de sol. Pô-los.
- A Gisèle é muito discreta - observei eu num tom displicente. - Ela não se abre muito.
Era-me estranho pronunciar o seu nome pela primeira vez. Nunca me tinha dito como se chamava. Virei-me para ela. Estava impassível por detrás dos seus óculos de
sol, distante, como se não tivesse seguido a conversa e como se se tratasse de uma outra pessoa.
Ele olhou para o relógio de pulso. Eram dez e meia.
- O teu irmão vem connosco a casa de Ansart?
- Sim, mas não demoramos muito - disse ela. - Tenho de voltar com ele esta noite para Saint-Leu-la-Forêt.
- Então eu levo-os de carro e volto para ver Ansart.
- Não pareces muito satisfeito...
- Sim - disse ele secamente. - Estou satisfeito.
Talvez não lhe quisesse dar uma explicação na minha presença.
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- Não vale a pena andares para trás e para a frente. Apanhamos um táxi para voltar para Saint-Leu-la-Forêt.
Entrámos num carro azul-escuro que estava estacionado numa paralela aos Champs-Elysées. Ela sentou-se no lugar da frente.
- Tem carta de condução? - perguntou-me ele.
- Não. Ainda não.
Ela voltou-se para mim. Eu imaginei o seu olhar azul-pálido por detrás dos óculos de sol. Sorria-me.
- É engraçado... Não imagino nada o meu irmão a conduzir...
Ele arrancou e deslizou lentamente pela Avenida dos Champs-
-Elysées. Ela continuava voltada para mim. Com um movimento quase impercetível da boca, enviou-me um beijo. Eu aproximei a minha cara da sua. Estava quase a beijá-la.
A presença daquele homem não me incomodava absolutamente nada. Tinha um desejo tão grande de sentir os seus lábios e de a acariciar que nem dava por ele.
- Devia convencer a sua irmã a utilizar este carro. Isso evitava-lhe os táxis e o metro...
A sua voz causou-me um sobressalto e trouxe-me à realidade. Ela voltou-se.
- Tu ficas com o carro quando quiseres, Gisèle...
- Posso ficar com ele esta noite para voltar para Saint-Leu-la-Forêt?
- Esta noite? Se realmente precisares...
- Quero ficar com ele esta noite. Tenho de me habituar a conduzir.
- Como quiseres.
Seguíamos ao longo do Bois de Boulogne. Porte de la Muettte. Porte de Passy. Baixei um bocado o vidro da janela e respirei uma
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corrente de ar fresco e um odor de folhas e de terra molhada. Tive vontade de passear com ela pelas alamedas do bosque, à beira dos lagos, do lado da Cascade ou
da Croix-Catelan onde ia frequentemente, sozinho, ao fim da tarde, depois de ter apanhado o metro para me afastar do centro de Paris.
Ele meteu-se pela Rua Raffet e estacionou na esquina da Rua Docteur-Blanche. Conheci melhor o bairro alguns anos mais tarde e passei várias vezes em frente do edifício
onde nos fomos encontrar com Ansart, nessa noite. Era o número 14 da Rua Raffet. Mas os pormenores topográficos têm um efeito curioso em mim: em vez de me darem
a imagem de um passado próximo e mais nítido, causam-me uma sensação dolorosa de laços completamente quebrados e de vazio.
Atravessámos o pátio do prédio. Ao fundo, uma pequena construção de um andar. Ele tocou à campainha. Um homem moreno, baixo e gordo, quarentão, apareceu. Trazia
vestida uma camisa com o colarinho aberto sob uma camisola creme. Beijou Gisèle e deu um abraço a Jacques.
Entrámos numa sala com as paredes brancas. Uma rapariga loira de uns vinte e tal anos estava sentada num divã vermelho. Ansart estendeu-me a mão com um grande sorriso.
- É o irmão de Gisèle - disse Jacques. - E este é Pierre Ansart.
- Muito prazer em conhecê-lo - disse-me Ansart.
Ele falava com uma voz grave, com um ligeiro sotaque suburbano. A rapariga loira levantou-se e beijou Gisèle.
- Apresento-lhe Martine - disse-me Ansart.
A loira cumprimentou-me com um ligeiro aceno de cabeça e com um sorriso tímido.
- Então, tu tinhas-nos escondido a existência do teu irmão? -disse Ansart.
Ele olhava-nos, a ela e mim, com um olhar perscrutador. Teria ele acreditado nesta mentira? Sentámo-nos os três nos sofás
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da mesma cor encarnada do divã. Ansart sentou-se no divã e pôs o braço à volta dos ombros da rapariga loira.
- Vocês jantaram na Rua Washington?
Jacques assentiu com a cabeça. Ao fundo havia uma escada com um corrimão. Por um alçapão no teto, tinha-se acesso ao que era, sem dúvida, o quarto de dormir. A esquerda,
a sala comunicava com uma enorme cozinha que devia servir de sala de jantar e onde pude ver, do sofá onde me encontrava, a brancura e o equipamento novo e brilhante.
Ansart surpreendeu o meu olhar.
- Era uma velha garagem que eu transformei em apartamento.
- Está muito agradável - disse-lhe eu.
- Quer beber qualquer coisa? Um chá de tília?
A jovem loira levantou-se e dirigiu-se para a cozinha.
- Arranja-nos três chás de tília, Martine - disse Ansart com uma autoridade paternal.
O seu olhar mantinha-se sempre fixo em mim, como se procurasse adivinhar o que se passava comigo.
- É muito jovem...
- Tenho vinte e um anos.
Repeti a minha mentira da véspera. Ela tirou os óculos de sol e olhou-me como se me estivesse a ver pela primeira vez.
- Ele estuda - disse Jacques olhando por sua vez para mim.
Sentia-me incomodado por ser o alvo das atenções. Acabei
por perguntar a mim próprio o que estava eu ali a fazer no meio daquelas pessoas que não conhecia. E a ela, não a conhecia mais do que aos outros.
- Estuda o quê? - perguntou Ansart.
- Letras - disse Jacques.
A rapariga loira saiu da cozinha, com um tabuleiro que colocou no meio de nós, em cima da alcatifa. Estendeu-nos a cada um, com um gesto gracioso, uma chávena de
tília.
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- E quando é que termina os estudos? - perguntou-me Ansart.
- Daqui a dois ou três anos.
- Enquanto isso, são os seus pais que velam por si, suponho...
Eles continuavam com os olhos postos em mim, como se eu
fosse um animal estranho. Pareceu-me que a voz de Ansard deixava transparecer um certo gozo.
- Têm sorte em terem pais que vos ajudam...
Ele falara com uma certa amargura e o seu olhar enevoou-se.
Que lhe havia de responder? Pensei no meu pai, na sua fuga para a Suíça, em Grabley, no apartamento vazio, DellAversano, na minha mãe perdida no Sul de Espanha...
Era melhor, apesar de tudo, que ele me considerasse um jovem bem comportado sustentado pelos pais.
- Vocês enganam-se - disse ela subitamente. - Ninguém o ajuda. O meu irmão desenvencilha-se sozinho...
Fiquei comovido quando ela veio em meu auxílio. Tinha-me esquecido de que éramos irmão e irmã e que, consequente-mente, tínhamos os mesmos pais.
- Além disso não nos resta nenhuma família. Isto simplifica as coisas...
Ansart fez um largo sorriso:
- Meus queridos filhos...
A atmosfera desanuviou-se. A rapariga loira deitou-nos novamente chá nas chávenas. Ela parecia sentir muita simpatia por Gisèle e tratava-a por tu.
- Passas pelo restaurante esta noite? - perguntou Jacques.
- Passo - disse Ansart.
Gisèle virou-se para mim:
- O Pierre tem um pequeno restaurante no bairro.
- Oh, uma coisa simples - disse-me Ansart. - Um negócio que estava a ir por água abaixo e que eu retomei, muito simplesmente, só para me entreter...
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- Vamos levá-lo lá a jantar uma noite destas - disse Jacques.
- Não sei se o meu irmão irá. Ele nunca sai.
Ela falou num tom firme como se me quisesse proteger deles.
- De qualquer das formas era simpático jantarmos os quatro -disse a rapariga loira.
Ela olhava com o seu olhar franco ora para Gisèle ora para mim. Parecia ter boas intenções a nosso respeito.
- Temos de voltar para Saint-Leu-la-Forêt, o Lucien eeu-disse Gisèle.
- Não querem ficar mais um bocado? - perguntou Jacques.
Respirei fundo e disse num tom firme:
- Não. Temos de ir imediatamente. Estamos com problemas com a casa, eu e a minha irmã...
Com certeza que ela lhes tinha falado da casa de Saint-Leu-la-Forêt. Talvez lhes tivesse dado outros pormenores a este respeito que eu não soubesse.
- Então, tu levas o carro? - perguntou Jacques.
- Sim.
Ele virou-se para Ansart:
- Empresto-lhe o carro. Não te faz diferença se eu andar com um dos teus? - perguntou-lhe Jacques.
- Está bem. Vamos já à garagem.
Levantámo-nos, ela e eu. Ela beijou a rapariga loira. Apertei a mão de Ansart e de Jacques.
- Quando é que nos voltamos a ver? - perguntou-lhe Jacques.
- Telefono-te.
Ele parecia desiludido com a saída dela.
- Cuide bem da sua irmã.
Ele deu-lhe as chaves do carro.
- Tenham cuidado na estrada. Se amanhã ninguém responder aqui de casa, telefonas para o restaurante.
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Ansart observava-me, tal como fizera quando cheguei.
- Gostei muito de o conhecer. Se alguma vez precisar de alguma coisa...
Fiquei espantado com esta súbita solicitude.
- Às vezes é difícil ter a vossa idade... Sei muito bem o que é, também passei por isso...
O olhar tinha uma expressão triste que contrastava com a voz timbrada e com os traços fisionómicos enérgicos.
A rapariga loira acompanhou-nos até à porta.
- Podemo-nos ver amanhã - disse ela a Gisèle. - Fico aqui durante todo o dia.
Na entrada, na penumbra do pátio, a cara daquela rapariga parecia ainda mais jovem. Pensei que Ansart devia ter idade para ser seu pai. Atravessámos o pátio, e ela
ficou lá, a seguir-nos com o olhar. A sua silhueta recortava-se no quadro iluminado da porta. Pareceu-me que ela se queria juntar a nós. Acenou-nos com o braço.
Tínhamo-nos esquecido do sítio onde estava estacionado o carro. Descemos a rua à procura.
- E se apanhássemos o metro? - perguntou-me. - É complicado, aquele carro, além disso devo ter perdido as chaves...
O seu ar desenvolto provocou-me uma imensa vontade de rir com que a contagiei. Depressa deixámos de ter controlo. As nossas gargalhadas ressoavam na rua deserta
e silenciosa. Chegados ao fim desta seguimo-la no sentido inverso no outro passeio. Por fim, encontrámos o carro.
Ela abriu a porta após ter experimentado as quatro chaves do molho. Sentámo-nos nos bancos de couro.
- Agora é preciso fazê-lo andar - disse ela.
Conseguiu ligar a ignição. Fez uma brusca marcha-atrás que conseguiu controlar no preciso momento em que o carro subia o passeio e se arriscava a bater na porta
de um prédio.
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Ela meteu pela rua na direção do Bois de Boulogne, com o busto muito direito, o pescoço ligeiramente esticado para a frente, como se estivesse ao volante pela primeira
vez.
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Chegámos aos cais pelo Boulevard Murat. No sítio onde se curva para a direita, ela disse-me:
- Vivi aqui.
Devia ter-lhe perguntado em que altura e em que circunstâncias, mas deixei passar a ocasião. Quando se é jovem, negligenciamos certos detalhes que teriam sido preciosos
mais tarde. Novamente, o boulevard vira para a direita em ângulo reto e desemboca no Sena.
- Então, acha que conduzo bem?
- Muito bem.
- Não tem medo de andar comigo?
- De maneira nenhuma.
Ela carregou no acelerador. Depois do Cais Louis-Blériot, a calçada estreita-se, mas ela ia cada vez mais depressa. Um semáforo vermelho. Tive receio de que não
parasse. Mas não. Ela travou bruscamente.
- Acho que já estou habituada a este carro...
Agora, ela conduzia a uma velocidade normal. Chegámos aos jardins do Trocadéro. Atravessou a Ponte d'Iéna, depois seguiu pelo Champ-de-Mars.
- Onde vamos? - perguntei-lhe.
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- Ao meu hotel. Mas antes, queria ir buscar uma coisa de que me esqueci.
Estávamos na praça deserta da École Militaire. O enorme edifício parecia abandonado. Via-se o Champ-de-Mars como uma pradaria que desce suavemente até ao Sena. Ela
seguiu em frente. Havia a massa escura e o muro de uma caserna. Consegui ver ao fundo da rua o viaduto do metro aéreo. Parámos em frente de um edifício da Rua Desaix.
- Fica aqui à minha espera? Não vou demorar muito tempo.
Ela tinha deixado as chaves do carro em cima do tabliê. Entrou
no prédio. Perguntei a mim próprio se ela voltaria. Após alguns instantes, saí do carro e plantei-me à porta do edifício, uma porta envidraçada com ferragens. Talvez
houvesse uma porta dupla. Ela desaparecera e deixara-me ali com aquele carro inútil. Tentei raciocinar. No caso de ela fugir eu tinha vários pontos de referência:
o café da Rua Washington do qual Jacques era cliente assíduo, o apartamento de Ansart e principalmente as malas. Porquê este medo de a ver desaparecer? Eu conhecia-a
há vinte e quatro horas e não sabia nada dela. Até o seu nome próprio eu tinha sabido por terceiros. Ela não parava num sítio, andava de um lado para o outro como
se fugisse de um perigo. Tinha a sensação de a não conseguir deter.
Eu andava de um lado para o outro no passeio. Atrás de mim, senti fechar-se a porta do prédio. Ela veio ter comigo rapidamente. Já não trazia vestido o seu impermeável
que vinha dobrado no braço, mas um casaco de peles.
- Ia-se embora? - perguntou-me. - Não queria esperar mais por mim?
Ela sorriu-me inquieta.
- De modo nenhum. Eu é que pensei que tinha fugido.
Ela encolheu os ombros.
- Que parvoíce... o que é que o fez pensar isso?
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Fomos para o carro. Peguei-lhe no impermeável e meti-o ao ombro.
- Tem um casaco muito bonito - disse-lhe eu.
Ela estava atrapalhada.
- Sim... é uma senhora que eu conheço... Ela vive ali... uma costureira... entreguei-lhe o casaco para ela coser as bainhas.
- E avisou-a de que vinha tão tarde?
- Isso não a incomoda... ela trabalha durante a noite...
Escondia-me a verdade e eu estive quase a fazer-lhe perguntas concretas, mas contive-me. Acabaria por se habituar a mim, e pouco a pouco ganharia confiança e confessar-me-ia
tudo.
Estávamos novamente no carro. Pus o seu impermeável no banco de trás. Ela arrancou, desta vez com calma.
- O meu hotel fica perto...
Porque é que ela tinha escolhido um quarto naquele bairro? Certamente que não fora por acaso. Qualquer coisa a devia reter ali, um ponto de mira. A presença daquela
misteriosa costureira?
Metemos por uma das ruas que vão da Avenida de Suffren em direção a Grenelle, na fronteira do Sétimo e do Décimo Quinto bairros. Parámos em frente de um hotel com
a fachada iluminada por um reclamo luminoso de uma garagem da esquina. Gisèle tocou e o porteiro da noite veio abrir. Seguimo-lo até à receção. Ela pediu a chave
do quarto. Ele deitou-me um olhar desconfiado.
- Pode preencher uma ficha? Preciso de um cartão de identificação.
Não tinha o passaporte comigo. De qualquer das formas eu era menor.
Ele pôs a chave em cima do balcão da receção. Ela agarrou-a com um gesto nervoso.
- É o meu irmão...
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O outro hesitou, um instante.
- Então, tem de o provar. Tem de me mostrar os papéis.
- Esqueci-me deles - respondi.
- Nesse caso, não o posso deixar subir com a menina.
- Porquê? Se é meu irmão...
Ele observava-nos em silêncio fazendo-me lembrar o polícia da véspera. O candeeiro iluminava uma cara quadrada, uma cabeça semicareca. Em cima do balcão estava um
telefone. Esperava a todo o momento que ele pegasse no auscultador e avisasse a polícia mais próxima.
Formávamos um par estranho e devíamos ter os dois um ar suspeito. Lembro-me dos maxilares fortes deste homem, da sua boca sem lábios e do puro desprezo com que nos
olhava. Estávamos à sua mercê. Não éramos nada.
Voltei-me para ela:
- Devo ter perdido os papéis quando fomos jantar com a mamã
- disse eu com uma voz tímida. - Se calhar a mamã encontrou-os.
Acentuei a palavra "mamã" para lhe dar uma impressão mais convincente sobre nós dois. Ao contrário de mim, pressenti que ela estava pronta para enfrentar o porteiro
da noite.
Gisèle tinha a chave na mão. Tirei-lha sem ela estar à espera e coloquei-a calmamente em cima do balcão da receção.
- Vem... Vamos tentar encontrar esses papéis...
Levei-a pelo braço. Tínhamos de andar uma dezena de metros até à porta do hotel. Tinha a certeza de que o homem nos seguia com os olhos. Caminhar o mais naturalmente
possível. Principalmente, não dar a impressão de estar a fugir. E se ele tivesse fechado a porta à chave, e nós tivéssemos sido apanhados numa armadilha? Mas não.
Lá fora, senti-me aliviado. Aquele porteiro da noite não podia fazer nada contra nós.
- Quer voltar sozinha ao hotel?
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- Não. Mas tenho a certeza de que se tivéssemos insistido ele nos tinha deixado sossegados.
- Eu não.
- Tem medo dele?
Ela olhava-me com um sorriso trocista. Tive vontade de lhe confessar que me tinha feito mais velho do que era e que só tinha dezoito anos.
- Então, onde é que vamos? - perguntou-me.
- Para minha casa. Estaremos muito melhor do que no hotel.
No carro, enquanto seguíamos pela Avenida de Suffren, em
direção aos cais, senti a mesma apreensão que havia sentido frente ao porteiro. Perguntei a mim próprio se naquele carro e com aquele casaco de peles não daríamos
ainda mais nas vistas. Temia que no próximo quarteirão fôssemos mandados parar por um desses bloqueios da polícia, frequentes em Paris naquela altura, depois da
meia-noite.
- Tem carta de condução?
- Deve estar na minha mala de mão - respondeu-me. - Pode ver.
A sua mala estava em cima do tabliê. Não continha grande coisa e dei imediatamente com a carta de condução. Estive tentado a abri-la para saber o seu nome, a sua
direção, a sua data e local de nascimento. Mas não o fiz, por discrição.
- E acha que temos os documentos do carro?
- Com certeza... algures no porta-luvas.
Ela ergueu os ombros. Parecia indiferente a todos os perigos que eu receava que nos acontecessem. Ligou o rádio e a música pouco a pouco acalmou-me. Eu voltava a
sentir-me confiante. Não tínhamos feito nada de mal. De que é que nos podiam acusar?
- Devíamos descer até ao Midi neste carro - disse-lhe.
- Pensei que queria ir a Roma.
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Até ali, era de comboio que eu tinha imaginado a viagem a Roma. Agora procurava imaginar o nosso trajeto pela estrada: iríamos primeiro ao Midi. Depois passaríamos
a fronteira em Vintimille. Com um pouco de sorte tudo se passaria sem aborrecimentos. Como eu era menor, eu próprio escreveria uma carta assinada pelo meu pai autorizando-me
a pernoitar no estrangeiro. Estava habituado a esse tipo de falsificação.
- Acha que eles nos emprestam o carro?
- Claro que sim... Porque não?
Ela não me queria responder de uma forma concreta.
- A verdade é que não os conhece há muito tempo...
Ficou calada. Eu voltei à carga.
- O que se chama Jacques, conheceu-o através de Ansart?
- Sim.
- Mas, Jacques, o que é que ele faz na vida?
- É sócio de Ansart nuns negócios.
- E Ansart, conheceu-o como?
- Num café.
Ela acrescentou:
- Jacques vive num belo apartamento na Rua Washington. Chama-se Jacques de Bavière...
A partir daí passei a ouvir frequentemente esse nome na sua boca: Jacques de Bavière. Será que eu estava a perceber mal? Não se tratava de um nome tão prosaico como:
de Bavier ou Debaviaire? Ou era simplesmente um pseudónimo?
- Ele é de nacionalidade belga, mas vive em França desde sempre. Vive com a madrasta na Rua Washington.
- Com a madrasta?
- Sim. A viúva do pai.
Tínhamos chegado à Ponte da Concorde. Em lugar de entrar pelo Boulevard de Saint-Germain, ela atravessou o Sena.
- Prefiro seguir os cais - disse-me.
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- Esse Jacques de Bavière... ele parece estar apaixonado por si...
- Talvez. Mas eu não quero viver com ele. Quero manter a minha independência.
- Prefere ficar em Saint-Leu-la-Forêt?
Falei num tom irónico, como se não acreditasse na existência dessa casa de Saint-Leu-la-Forêt.
- Tenho o direito de ter a minha vida própria...
- Um dia tem de me levar a Saint-Leu...
Ela sorriu.
- Está a troçar de mim?
- De modo nenhum. Tenho muita curiosidade em conhecer a sua casa...
- Infelizmente, já não vivo lá desde ontem... Sabe muito bem... A Pont-Neuf. Estávamos a percorrer o mesmo caminho que
tínhamos feito a pé, na véspera. Ela estacionou o carro no recanto do Cais Conti, à esquina do beco.
As janelas do escritório e as do quarto contíguo tinham luz. Desta vez, não poderíamos evitar Grabley e esta perspetiva incomodava-me. Disse-lhe:
- Vamos andar em bicos de pés.
Mas quando atravessávamos o vestíbulo na semiobscuridade, Grabley abriu a porta do quarto ao lado do escritório.
- Quem está aí? É você, Obligado?
Ele tinha vestido o roupão escocês.
- Podia apresentar-me...
- Gisèle - disse eu num tom hesitante.
- Henri Grabley.
Ele avançou para ela e estendeu uma mão que ela não apertou.
- Muito prazer. Peço-lhe desculpa por a receber assim vestido. Ele estava a fazer as honras da casa. Aliás toda a sua pessoa se adequava muito bem àquele apartamento
vazio...
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- O senhor Grabley é um amigo do meu pai - disse-lhe eu.
- O seu mais velho amigo.
Ele fez-nos sinal para entrarmos naquele quarto, ao lado do escritório, que nunca tivera uma utilização determinada: ou sala - a mobília antes tinha consistido num
canapé de veludo azul-escuro, dois cadeirões da mesma cor, e uma mesa baixa - ou "quarto para os amigos".
As janelas sem cortinas davam para o cais.
- Já estava farto da vista para o pátio. Instalei-me aqui. Dá-me licença, Obligado?
- Esteja como em sua casa.
Ele entrou no quarto, mas nós ficámos à entrada. Havia um colchão no chão, no canto esquerdo. A luz vinha de uma lâmpada posta no pé de um candeeiro. Não havia mais
nenhum móvel. Em cima da lareira de mármore, o saco de oleado preto com o qual Grabley às vezes fazia as compras da manhã, e o rádio enorme.
- Preferem ir antes para o escritório?
Ele olhava fixamente para ela, com um sorriso pretensioso e a cabeça ligeiramente levantada.
- É encantadora, menina...
Ela não reagiu a esta observação mas tive medo de que se fosse embora por causa dele.
- A menina não leva a mal a minha franqueza, pois não?
O nosso silêncio atrapalhava-a. Ele voltou-se para mim.
- Não consigo encontrar o seu pai. O número de telefone que ele me deixou não responde.
Não era de admirar. Podia mesmo dizer que o telefone tocaria eternamente no vazio.
- Só tem de insistir - disse-lhe. - Vai acabar por atender.
Ele parecia agora um pouco desamparado, ali, à nossa frente, como um vendedor que não conseguiu convencer o seu público.
- E se jantássemos os três, amanhã?
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- Não sei se Gisèle está livre.
Eu olhei para ela à procura de apoio.
- Agradeço-lhe muito, mas não poderei estar em Paris amanhã à noite.
Estava-lhe grato por ter falado naquele tom amável, porque cheguei a recear que ela não o fizesse. Subitamente senti uma certa piedade por Grabley, com o seu bigode
loiro e o seu saco em cima da chaminé, por causa do meu pai que tinha fugido... Hoje, revejo essa cena à distância. Por detrás do vidro de uma janela, numa luz difusa,
eu distingo um loiro cinquentão em roupão escocês, uma rapariga de casaco de peles e um jovem... A lâmpada, no pé do candeeiro, era demasiado pequena e demasiado
fraca. Se eu pudesse voltar atrás no tempo e regressar àquele quarto, poderia trocar a lâmpada. Mas sob uma luz mais forte, tudo se poderia dissipar.
No quarto do quinto andar, ela estava deitada encostada a mim. Eu escutava uma música e a voz monótona de um locutor.
Em baixo, Grabley ouvia rádio.
- Ele tem um ar estranho, aquele tipo - disse-me ela. - O que é que ele faz na vida?
- Oh, um pouco de tudo.
Um dia, dei com uma pasta que ele tinha esquecido no escritório. Entre outros papéis que ela continha, um deles, muito velho, surpreendeu-me: era um pedido de inscrição
na qualidade de comerciante de legumes e de fruta no mercado de Reims.
- E o teu pai? É o mesmo género de homem?
Ela tratava-me por tu pela primeira vez.
- Não. De modo nenhum...
- Ele partiu para a Suíça porque tinha chatices em França?
- Sim.
51

Nada disto a parecia perturbar muito.
- E tu? Tens família? - perguntei-lhe eu.
- Verdadeiramente não.
Ela olhava-me bem nos olhos e sorria:
- Tenho um irmão que se chama Lucien...
- Mas o que é que tu fazes?
- Um pouco de tudo...
Ela franziu o sobrolho, como se procurasse as palavras. Acabou por dizer:
- Até fui casada.
Fiz de conta que não tinha ouvido. A mínima palavra e o mínimo gesto podiam interromper esta confidência. Mas ela ficou em silêncio, com o olhar fixo no teto.
Reflexos deslizavam pelas paredes. A sua forma e movimento pareciam folhas que sussurravam e tremiam ao vento. Era a passagem do último bateau-mouche, com os seus
projetores apontados para as fachadas dos cais.
52

 

No dia seguinte era sábado. O sol e o céu azul contrastavam com as nuvens e o cinzento da véspera. No cais, um dos alfarrabistas abrira já o quiosque. Voltei a ter
uma sensação de férias que já tinha sentido nos raros sábados do passado em que acordava no mesmo quarto, espantado por me encontrar longe do dormitório do colégio.
Ela parecia, essa manhã, mais descontraída que no dia anterior. Pensei na nossa próxima partida para Roma e decidi arranjar o mais depressa possível um mapa da cidade.
E depois perguntei-lhe se queria passear no Bois de Boulogne.
Grabley tinha-me deixado um bilhete no escritório:
Meu caro Obligado,
Tenho ainda de voltar ao Boulevard Haussmann para fazer desaparecer o resto dos papéis que o seu pai deixou. Esta noite, é a noite da minha "digressão". Se quiser
vir, com a sua amiga, ter comigo, encontramo-nos às oito horas no Magots. Essa rapariga é realmente encantadora... Trate de a levar consigo... Terei muito prazer
em lhe apresentar durante a noite uma pessoa que também não é nada desinteressante.
H. G.
53

Ela quis verificar se as malas ainda se encontravam no cubículo. Depois explicou-me que tinha de ir buscar uma coisa antes do meio-dia ao cais do lado de Passy.
Vinha a calhar, porque ficava a caminho do Bois de Boulogne.
Quando ia a entrar no carro, disse-lhe para esperar um bocado e corri até ao quiosque do alfarrabista. Na fila de livros consagrados às viagens e à geografia, encontrei
um velho guia de Roma, acaso que me pareceu um bom presságio.
Já nos tínhamos habituado àquele carro e tinha a sensação de que sempre nos tinha pertencido. Nessa manhã de sábado, havia pouco trânsito como nos períodos de férias
em que a maior parte dos parisienses deixam a cidade. Chegámos à margem direita atravessando a Ponte da Concorde. Os cais ainda se encontravam mais desertos desse
lado. Depois dos jardins do Trocadéro, parámos à esquina da Rua de l'Alboni, debaixo do viaduto do metro.
Ela pediu-me para a deixar ali. Marcou encontro para uma hora depois no café, no cais.
Voltou-se para mim e acenou com o braço.
Perguntei a mim próprio se ela não iria desaparecer para sempre. Na véspera eu tivera um ponto de referência: vira-a entrar no prédio, mas agora não quis que eu
a acompanhasse até ao fim. Com ela não estava seguro de nada.
Preferi andar a ficar quieto, à espera no café, e enfiei-me pelas ruas mais próximas e pelas escadas com balaústres e candeeiros. Mais tarde, voltei várias vezes
a estas paragens e as escadas da Rua Alboni lembraram-me sempre o sábado em que andei por ali, enquanto esperava. Era o mês de novembro, mas na minha memória, por
causa do sol daquele dia, uma luz estival inundava o bairro. Manchas de sol no passeio e sombra sob o viaduto do metro. Uma passagem estreita e escura que outrora
fora um caminho de campo subia por entre os edifícios até à Rua Raynouard.
54

De noite, à saída da estação de Passy, os candeeiros lançam uma luz pálida sobre as folhas.
Outro dia, quis mais uma vez reencontrar os lugares. Desemboquei naquela zona de pavilhões administrativos, à beira do Sena. Estavam a começar a destruir a maior
parte deles. Montes de caliça, paredes esventradas, como após um bombardeamento. Os buldózeres, com o seu movimento lento, revolviam os escombros. Dei meia-volta
pela Rua Charles-Dickens. Perguntei a mim próprio qual teria sido a direção para onde ela tinha ido nesse sábado. Era com certeza a Rua Charles-Dickens. Quando nos
separámos vi-a virar à esquerda e, uma hora mais tarde, apressei-me a ir ter com ela ao café do cais onde tínhamos combinado encontro. Eu ia pelo passeio da Rua
Frémiet em direção ao Sena e ouvi alguém chamar-me pelo meu nome. Virei-me: Ela avançava para mim e segurava uma trela com um labrador preto.
O cão, ao ver-me, abanou a cauda. Apoiou as duas patas da frente nas minhas pernas. Fiz-lhe festas.
- É engraçado... dir-se-ia que ele te conhece.
- É teu, este cão? - perguntei-lhe.
- É, mas entreguei-o a uma pessoa porque não me pude ocupar dele nestes últimos tempos.
- Como é que ele se chama?
- Raymond.
Ela parecia radiante de o ter outra vez.
- E agora, ainda tens de ir buscar mais alguma coisa?
- Não. De momento não.
Sorria-me. Apercebera-se, sem dúvida, de que eu gozava amavelmente com ela. As malas, o casaco de peles, o cão... Hoje compreendo melhor aquelas idas e vindas procurando
juntar os pedaços dispersos de uma vida.
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O cão deslizou para dentro do carro e deitou-se no banco detrás como se aquele lugar lhe fosse familiar. Ela disse-me que, antes de ir ao Bois de Boulogne, tinha
de passar por casa de Ansart. Queria perguntar a Jacques de Bavière se podíamos ficar com o carro. Ansart e Jacques de Bavière estavam sempre juntos ao sábado no
apartamento ou no restaurante de Ansart. Por conseguinte, aquela gente tinha os seus hábitos, e eu, agora, fazia mais ou menos parte do seu grupo, sem saber muito
bem porquê. Eu era aquele viajante que sobe para um comboio em marcha e se encontra na companhia de quatro desconhecidos. E pensa se não se terá enganado no comboio.
Mas que importa... À volta dele, os outros começam a falar-lhe.
Virei-me para o cão.
- E o Raymond, conhece Ansart e Jacques de Bavière?
- Sim, conhece-os.
Ela desatou a rir. O cão levantou a cabeça e olhou para mim com as orelhas em riste.
Quando ela os encontrou pela primeira vez estava com o cão. Vivia ainda em Saint-Leu-la-Forêt. As pessoas a quem confiara o cão, por sua vez, tinham uma casa perto
de Saint-Leu-la-Forêt e um apartamento em Paris. Hoje tinham-lhe levado o animal para Paris.
Pensei se devia acreditar nela. Essas explicações pareciam-me excessivas e incompletas, como se ela escondesse a verdade sob uma profusão de pormenores. Porque é
que ela tinha demorado uma hora se se tratava simplesmente de ir buscar um cão? E porque é que não quis que eu a acompanhasse? Quem eram essas pessoas?
Pensei que não valia a pena fazer-lhe perguntas. Só a conhecia há quarenta e oito horas. Alguns dias de intimidade e as barreiras desapareceriam. Brevemente eu ia
saber tudo.
Parámos em frente do edifício da Rua Raffet e atravessámos o pátio. Ela não pôs a trela no cão, mas ele seguia-nos docilmente.
56

Foi Martine, a rapariga loira, quem nos abriu a porta. Beijou Gisèle. Depois, beijou-me a mim também. Fiquei surpreendido com aquela familiaridade.
Ansart e Jacques de Bavière encontravam-se os dois sentados no divã e viam fotografias grandes, algumas das quais se encontravam dispersas, aos seus pés, na alcatifa.
Não ficaram admirados com a nossa chegada. O cão subiu para o divã e fez-lhes uma festa.
- Então, estás contente por teres recuperado o teu cão? - perguntou Jacques de Bavière.
- Muito contente.
Ansart juntou as fotos e pô-las na mesinha baixa.
- Tu não tiveste problemas com o carro? - perguntou Jacques de Bavière.
- Nenhuns.
- Sentem-se dois minutos - disse Ansart com o seu sotaque ligeiramente suburbano.
Sentámo-nos nas poltronas. O cão veio deitar-se em frente de Gisèle. Martine sentou-se no chão, entre Jacques de Bavière e Ansart, com as costas apoiadas no rebordo
do canapé.
- Queria pedir-vos se podíamos ficar com o carro por mais uns tempos - disse Gisèle.
Jacques de Bavière fez um sorriso irónico:
- Com certeza. Podem ficar com ele o tempo que quiserem.
- Com uma única condição... - observou Ansart.
Levantou o dedo para chamar a nossa atenção. Com um sorriso estampado na cara, podia pensar-se que ele ia dizer uma piada.
- Com a condição de me fazerem um favor...
Tirou um cigarro do maço, de cima da mesinha baixa, depois acendeu-o nervosamente com o isqueiro. Olhava para mim, bem nos olhos, como se se me dirigisse e Gisèle
já estivesse mais ou menos ao corrente.
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- Bem... É muito simples... só têm de fazer de meus mensageiros...
Jacques de Bavière e Martine contemplavam o cão que estava numa posição esfíngica, aos pés de Gisèle, mas eu tive a impressão de que era por discrição e para não
se cruzarem com o meu olhar. Receavam talvez que eu ficasse chocado com a proposta de Ansart.
- Não é muito complicado... Amanhã à tarde, vocês vão a um café que vos vou indicar... Esperam que esse tipo entre no café...
Ele agarrou numa das fotografias que estavam em cima da mesinha baixa e mostrou-a de longe. A cara de um homem moreno, de quarenta e tal anos. Gisèle não tinha um
ar nada chocado com esta proposta mas Ansart certamente se deu conta da minha desconfiança. Inclinou-se para mim:
- Tranquilize-se. Não há nada de mais simples... Este homem é um dos meus contactos de negócios... Quando ele se sentar a uma mesa, um de vocês apresenta-se-lhe
e diz-lhe simplesmente: "O senhor Pierre Ansart espera-o no carro à esquina da rua..."
Ele sorria novamente, um grande sorriso infantil. Decididamente, o seu olhar inspirava franqueza.
Gostaria de ter sabido a opinião da Gisèle. Ela inclinou-se e agarrou na fotografia que Ansart pusera na mesinha baixa. Observámo-la os dois. Dir-se-ia uma ampliação
de uma fotografia de bilhete de identidade. Uma cara de traços regulares. Cabelos pretos penteados para trás. Uma testa desafogada.
Martine e Jacques de Bavière viam também por sua vez as outras fotografias que representavam o mesmo homem, sob ângulos diferentes, sozinho ou na companhia de outras
pessoas.
- E o que é que ele faz na vida? - perguntei eu com uma voz tímida.
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- Uma profissão totalmente honesta - respondeu-nos Ansart sem mais explicações. - Então, vocês esperam por esse homem e transmitem-lhe a minha mensagem... isto será
em Neuilly, perto do Bois de Boulogne.
- E depois? - perguntou Gisèle.
- Depois, têm carta branca. E como não tenho o hábito de fazer as pessoas trabalharem para nada, ofereço-lhes dois mil francos a cada um por esta tarefa.
- Agradeço-lhe mas não preciso de dinheiro - disse eu.
- Isso é uma parvoíce, meu pequeno. Na sua idade precisa-se sempre de dinheiro...
O tom era paternal e o olhar tinha uma expressão tão doce e tão triste que me inspirou subitamente uma certa simpatia.
59

 


Fizera um sol muito bonito durante toda a tarde mas estávamos naquele período do ano em que anoitece por volta das cinco horas. Ansart quis que nós fôssemos almoçar
ao seu restaurante. Estava situado um pouco mais a norte do Sexto Bairro, na Rua de Belles-Feuilles. Ansart, Jacques de Bavière e Martine entraram para dentro de
um carro preto e nós seguimo-los através das ruas desertas de sábado.
- Achas que lhe podemos fazer o favor que ele nos pediu? - perguntei a Gisèle.
- Isso não nos obriga a nada...
- Mas, fora o restaurante, não sabes que tipo de profissão ele exerce?
- Não.
- Era interessante sabê-lo...
- Achas?
Ela encolheu os ombros. Num sinal vermelho, no Bairro de Suchet, juntámo-nos a eles. Os dois carros ficaram à espera, lado a lado. Martine estava sentada na parte
detrás e sorriu-nos. Ansart e Jacques de Bavière estavam absortos numa conversa muito séria. Com um gesto do indicador, Jacques de Bavière deitou a cinza do cigarro
pela janela semiaberta.
61

- Já foste ao restaurante dele?
- Já, duas ou três vezes. Sabes, não os conheço há muito tempo...
Com efeito, ela só os conhecia há três semanas. Nada nos ligava a eles de um modo definitivo, a menos que ela me escondesse qualquer coisa. Perguntei-lhe se tinha
a intenção de continuar a dar-se com eles. Explicou-me que Jacques de Bavière tinha sido muito simpático com ela e que a tinha ajudado desde a primeira vez em que
se encontraram. Até lhe emprestara dinheiro.
- Não foi por causa deles que foste interrogada pela polícia, no outro dia?
Essa ideia passara-me subitamente pela cabeça.
- Não. De modo nenhum...
Ela franziu as sobrancelhas e deitou-me um olhar preocupado.
- Eles não podem saber, de maneira nenhuma, que fui interrogada...
Ela já me tinha feito essa recomendação na véspera, sem me dizer mais nada.
- Porquê? Eles podem ter aborrecimentos por causa disso?
Ela carregou no acelerador. O cão endireitou-se no banco de
trás e apoiou a cabeça no meu ombro.
- Eles convocaram-me para ir lá porque encontraram o meu nome numa ficha do hotel. Mas, de qualquer forma, eu tê-los-ia ido visitar de bom grado...
- Porquê?
Ultrapassámos o carro de Ansart e de Jacques de Bavière. íamos muito depressa e pareceu-me que tínhamos passado um sinal vermelho. Sentia a respiração do cão no
meu pescoço.
- Eu deixei o meu marido e ele anda à minha procura. Nos últimos meses que passei com ele, não parava de me ameaçar... Contei tudo à polícia...
- Vivias com ele em Saint-Leu-la-Forêt?
62

- Não.
Ela respondeu-me secamente. Já lamentava o facto de se ter aberto comigo. Arrisquei uma outra questão:
- O teu marido, que tipo de homem é?
- Oh... Um homem como outro qualquer...
Percebi que já não tirava nada dela, por agora. Os outros tinham-nos apanhado. Jacques de Bavière inclinou-se na janela aberta. Gritou:
- Pensam que estão nas Vinte e Quatro Horas de Le Mans?
E ultrapassaram-nos, depois abrandaram a velocidade. Ela também. íamos agora atrás deles, muito perto, e os para-choques quase que se tocavam.
- Depois do almoço, podemos passear os dois no Bois de Bou-logne? - perguntei-lhe.
- Com certeza... Não somos obrigados a ficar com eles...
Fiquei contente por ela me dizer isso. Sentia-me dependente
dos adultos e da sua boa vontade. O colégio que eu conhecera durante seis anos e a ameaça de uma ida próxima para a tropa davam-me a impressão de roubar cada instante
de liberdade e de viver em fraude.
- É verdade... Não temos de lhes prestar contas...
Esta observação fê-la rir. O cão continuava a respirar no meu pescoço e de vez em quando passava-me com a língua áspera na orelha.
63

 


O restaurante tinha o nome da rua: Les Belles Feuilles.
Uma sala pequena. Madeiras claras. Um bar de caju. Mesas cobertas com toalhas brancas e bancos de napa vermelha.
Quando entrámos, estavam três clientes a almoçar. Fomos recebidos pelo empregado, um homem moreno com cerca de trinta e cinco anos e um casaco branco a quem eles
chamavam Rémy. Sentou-nos numa das mesas do fundo. Gisèle não despiu o seu casaco de peles.
Ela perguntou a Ansart:
- Acha que há alguma coisa para dar de comer ao cão?
- Com certeza.
Ele chamou Rémy e todos escolhemos o prato do dia. Ansart levantou-se e dirigiu-se para a mesa dos clientes. Falou-lhes muito delicadamente. Depois veio ter connosco.
- Então, o que é que acha da minha casa? - perguntou-me brindando-me com o seu enorme sorriso.
- Gosto muito.
- Era um velho café-charbon que eu frequentava quando tinha a sua idade, durante a guerra. Na época, nunca poderia imaginar que o transformaria em restaurante.
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Estava pronto a fazer-me confidências. Por causa da minha timidez? Do meu olhar atento? Da minha idade que lhe trazia recordações?
- A partir de hoje, tem esta casa à sua disposição.
- Obrigado.
Jacques de Bavière foi telefonar ao bar. Estava de pé atrás do balcão, como se fosse o dono.
- Tenho uma clientela perfeitamente calma - disse Ansart.
- Pessoas do bairro...
- Também trata do restaurante? - perguntei a Martine.
- Ajudou-me um pouco na decoração.
Ele pôs-lhe afetuosamente a mão no ombro. Gostaria de ter sabido mais concretamente em que ocasião se tinham encontrado e também como Ansart e Jacques de Bavière
se tinham conhecido. Ansart tinha pelo menos uma dezena de anos a mais que ele. Imaginava-o com a minha idade, numa noite de novembro, a entrar no café que ainda
não se devia chamar Les Belles Feuilles. O que é que ele fazia naquela época ali no bairro?
Depois do almoço, ficámos um bocado a conversar no passeio. Gisèle explicou-lhes que íamos passear o cão ao bosque. Ansart quis levar Jacques de Bavière a casa,
na Rua Washington. Dissemos-lhe que não valia a pena e que Jacques de Bavière podia ficar com o carro. Mas não, ele insistia para que ficássemos com ele. Era muito
simpático da sua parte.
Perguntei a Ansart em que sítio de Neuilly devíamos empreender a nossa curiosa missão de amanhã à noite.
Era na Rua de Ferme, à beira do bosque.
- Quer conhecer os sítios? Tem razão. É mais prudente. É melhor verificarmos antes todas as saídas possíveis.
66

E ele deu-me uma palmada no ombro, com o seu sorriso aberto e franco.
Depois da Porta Dauphine, tomámos a estrada que leva aos lagos e estacionámos em frente do Pavillon Royal. Uma tarde soalheira de sábado, de fim de outono, como
aqueles sábados da minha infância em que eu chegava à mesma hora ao mesmo lugar, no autocarro 63 que parava na Porte de la Muette. Havia já muita gente no guichê
onde se alugam os barcos.
Caminhávamos ao longo do lago. Ela tinha tirado a trela ao cão que corria na alameda à nossa frente. Quando ele se afastava muito, ela chamava-o: Raymond! e imediatamente
o cão dava meia-volta. Já tínhamos ultrapassado o embarcadouro de onde partiam as canoas a motor para Chalet des Iles.
- Somos obrigados a ir ter com eles daqui a bocado?
Ela levantou a cabeça e fixou-me com os seus olhos azul-pálido.
- É melhor - disse-me. - Eles podem ajudar-nos... E depois emprestaram-nos o carro.
- Tu achas realmente que temos de aceitar o que eles nos pediram para fazer?
- Tens medo?
Ela deu-me o braço e seguimos pela alameda que se tornava cada vez mais estreita, entre as árvores.
- Se prestarmos um serviço ao Pierre, podemos pedir-lhe tudo e mais alguma coisa. Pierre é muito simpático, sabes...
- Pedir-lhe o quê, por exemplo?
- Para nos ajudar nesta viagem a Roma.
Ela não se esquecera do projeto de que lhe tinha falado. Eu guardava o guia de Roma num dos bolsos e já o tinha consultado diversas vezes.
- Também eu - disse-me - estaria melhor em Roma.
Queria que ela me explicasse de uma vez por todas a sua situação.
67

- Mas o que é que se passa concretamente com o teu marido?
Ela parou de andar. O cão subiu para um talude e farejava o
tronco das árvores. Gisèle apertava-me o braço com mais força.
- Ele tenta encontrar-me, mas até agora ainda não conseguiu. No entanto tenho medo de dar com ele.
- Ele está em Paris?
- De vez em quando.
- Ansart e Jacques de Bavière estão ao corrente?
- Não. Mas temos de ser simpáticos com eles. Podem-me proteger dele.
- E qual é a sua profissão?
- Oh... Depende dos dias...
Estávamos no Carrefour des Cascades. Tínhamos caminhado até ao outro lado do lago. Ela não me fez muitas confidências, apenas que se tinha casado aos dezanove anos
e que o marido era bastante mais velho que ela. Propus-lhe passarmos de carro pelo sítio onde Ansart nos tinha marcado a nossa missão.
Atalhámos pelo bosque até à beira de Neuilly e chegámos à Rua da Ferme. O local do encontro era num bar-restaurante, à esquina da Rua de Longchamp. Os últimos raios
de sol espalhavam-se lentamente pelos passeios.
Sentia-me estranho por me encontrar aqui. Eu conhecia bem aquele bairro. Tinha andado por lá com o meu pai e um dos seus amigos, depois com o Charell e o Karvé,
uns colegas de colégio. Não havia nem um só transeunte na Rua da Ferme e os picadeiros pareciam fechados.
Entretanto anoitecera quando chegámos a casa de Ansart. Este e Jacques de Bavière estavam sentados no divã vermelho, como da primeira vez. Martine trouxe, da cozinha,
um tabuleiro com chá e bolinhos.
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As fotos continuavam ainda em cima da mesa baixa. Peguei numa, ao acaso, mas era a que eu já tinha visto.
- Acha que o conseguimos reconhecer? - perguntei a Ansart.
- Claro que sim. Com certeza que não vai estar muita gente no café amanhã à noite... E vou-lhe dar um pormenor que lhe saltará à vista imediatamente: esse tipo deve
ter, quase de certeza, rabo de cavalo.
Aspirei bem fundo para ganhar coragem e disse-lhe:
- Mas porque é que não vai você mesmo a esse café?
Ansart deitou-me um olhar triste e terno que contrastava com
o seu grande sorriso.
- Vai compreender imediatamente o problema: não estava combinado nenhum encontro entre esse tipo e eu, amanhã à noite... Vai ser uma surpresa para ele...
- Uma boa surpresa?
Ele não respondeu à minha pergunta. Acho que se ele não tivesse um olhar tão terno, eu teria sentido uma certa inquietação. Martine sevia-nos o chá. Ansart deixou
cair, nas nossas chávenas, na de Gisèle e na minha, um bocado de açúcar que agarrara entre o polegar e o indicador.
- Não se preocupe - disse Jacques de Bavière olhando distraidamente para uma das fotos. - É uma partida que lhe vamos pregar...
Eu não me sentia realmente convencido mas Gisèle, ao meu lado, parecia achar tudo isto natural. Ela bebia o chá com pequenas goladas. Deu um bocado de açúcar ao
cão.
- Este senhor monta a cavalo? - perguntei para quebrar o silêncio.
Jacques de Bavière fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Conheci-o num picadeiro da Rua da Ferme onde tenho uma box para o meu cavalo.
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Gisèle voltou-se para mim e como se pretendesse que a conversa tomasse um tom mais futil:
- Jacques tem um cavalo muito bonito. Chama-se Plaine au Cerf.
- Não sei se vou ficar com ele muito mais tempo - disse Jacques de Bavière. - Um cavalo - custa caro e já não disponho de muito tempo livre para desfrutar dele.
Ele não possuía o sotaque ligeiramente suburbano de Ansart e a existência daquele cavalo intrigava-me. Fiquei com curiosidade de ver o apartamento da Rua Washington
e essa "madrasta" de que a Gisèle me tinha falado.
- Amanhã, pode passar primeiro por aqui ou ir diretamente para a Rua da Ferme - disse Ansart. - Não se esqueça... o encontro é às seis horas... Tome, isto é para
si e para a sua irmã...
E estendeu-me dois envelopes que não ousei recusar.
Parámos ao cimo dos Champs-Elysées e tivemos dificuldade em estacionar. Lá fora, a temperatura era tão tépida como numa noite primaveril de sábado.
Decidimos ir ao cinema, mas não queríamos deixar o cão no carro. Pensei que no Napoléon, do lado da Avenida da Grande-Armée, seriam mais indulgentes com o cão do
que nas grandes salas. Com efeito, a senhora da bilheteira e a arrumadora deixaram-no entrar connosco. O filme chamava-se O Aventureiro de Rio Grande.
A saída do cinema, propus-lhe jantarmos num restaurante. Eu trazia sempre comigo o dinheiro de Dell.'Aversano, ao qual se vieram juntar os dois envelopes que Ansart
me tinha dado e que continham, cada um deles, dois mil francos.
Eu queria convidá-la, mas sentia-me intimidado pelos restaurantes dos Champs-Elysées. Pedi-lhe para escolher um.
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- Podíamos voltar para a Rua Washington - disse-me ela.
Eu receava encontrar lá Jacques de Bavière. Ela tranquilizou-me. Ele ia ficar com Ansart e só voltava para casa muito tarde.
Estávamos sentados perto da montra.
- O Jacques vive em frente.
E ela apontou para o portão do número 22.
Teria preferido que nos esquecêssemos da sua existência, mas seria difícil enquanto não saíssemos de Paris. Visto que ela me dizia que essas pessoas nos podiam ajudar,
eu queria acreditar. Pretendia simplesmente saber um pouco mais acerca deles.
- Tu já foste ao apartamento de Jacques de Bavière? - perguntei-lhe.
- Já. Várias vezes.
- Tinha curiosidade de saber em que género de sítio ele vive...
- A madrasta deve estar lá.
Depois do jantar, atravessámos a rua e, em frente do portão do 22, tive um momento de hesitação.
- Não vale a pena...
Ela insistiu. Diríamos à madrasta que tínhamos um encontro com Jacques de Bavière ou, muito simplesmente, que estávamos no bairro e pensámos em lhe fazer uma visita.
- Mas não é muito tarde para fazer visitas? Conheces essa mulher?
- Mais ou menos.
Entrámos no número 22 e Gisèle tocou a uma porta do rés do chão. Por cima da campainha, numa pequena placa de prata estava gravado o nome: Ellen James.
Uma voz de mulher perguntou:
- Quem é?
Havia um óculo na porta. Ela devia estar a observar-nos.
- Somos amigos do Jacques - disse Gisèle.
71

A porta abriu-se e surgiu uma mulher loira com cerca de quarenta e cinco anos, com um vestido de seda preta. No pescoço, tinha uma fiada de pérolas.
- Ah, é você... - exclamou ela a Gisèle. - Não a estava a reconhecer...
Deitou-me um olhar interrogador.
- O meu irmão - disse Gisèle.
- Entrem...
Uns apliques de vidro fosco iluminavam tenuamente o vestíbulo. Num canapé, junto à parede, estavam colocados lado a lado casacos de homem e de mulher.
- Não sabia que tinha um cão - observou-lhe ela.
Levou-nos para uma sala grande cujas janelas de sacada davam
para um jardim. Ao fundo, do compartimento vizinho, vinha-nos um blablá de conversas.
- Juntei uns amigos para uma partida de cartas. Mas Jacques não está cá esta noite...
Não nos dizia para despirmos os casacos. Eu tinha a sensação de que ela se ia livrar de nós para ir ter com os outros e deixar-nos sozinhos na sala.
- Não sei a que horas ele volta...
Ela tinha uma expressão inquieta no olhar.
- Viu-o hoje? - perguntou a Gisèle.
- Sim, almoçámos juntos. O senhor Ansart levou-nos ao seu restaurante.
A expressão da mulher loira descontraiu-se.
- Eu não o vi esta manhã... ele saiu muito cedo...
Era uma mulher muito bonita, mas lembro-me que nessa noite ela me pareceu ser já muito velha, uma pessoa adulta da idade dos meus pais. Tive uma sensação análoga
à que senti com Ansart. Jacques de Bavière fazia-me lembrar aqueles jovens que partiam para a guerra da Argélia quando eu tinha dezasseis anos.
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- Desculpem-me - disse ela mas eu tenho de ir ter com os meus convidados.
Dei uma olhadela rápida pela sala. Madeiras azul-celeste, biombo, lareira de mármore claro, vidros e espelhos. Ao pé de uma consola, a alcatifa estava usada até
ao fio e, numa das paredes, reparei na marca de um quadro que fora retirado. Por detrás das portadas das janelas viam-se as árvores sob a lua, e eu não distinguia
os limites do jardim.
- Parece que estamos no campo, não é? - disse-me a mulher loira que surpreendera o meu olhar. - O jardim vai até aos edifícios da Rua Berri...
Tive vontade de lhe perguntar diretamente se ela era realmente a madrasta do Jacques de Bavière. Ela acompanhou-nos até à porta.
- Se eu vir o Jacques, quer que lhe diga alguma coisa?
Ela fizera esta pergunta num tom distraído. Estava desejosa, sem dúvida, de ir ter com os seus convidados.
Ainda era cedo. As pessoas faziam bicha no cinema Norman-die para a segunda sessão da noite.
Nós descíamos a avenida com o cão.
- Tu achas realmente que ela é a madrasta? - perguntei-lhe.
- É o que ele diz. Ele explicou-me que ela dirige um clube de bridge no apartamento e que, de tempos a tempos, ele a ajuda.
Um clube de bridge. Aqui estava a explicação para o meu mal-estar. Não teria ficado surpreendido se os móveis estivessem cobertos com capas. Eu até tinha reparado
nas pilhas de revistas em cima de uma mesinha baixa, como nessas salas de espera dos dentistas. Assim, o apartamento em que viviam Jacques de Bavière e a sua pretensa
madrasta era na realidade um clube de bridge. Pensei no meu pai. Também ele próprio teria recorrido a
73

isso, e Grabley teria servido de secretário e de porteiro. Decididamente, eles pertenciam todos ao mesmo mundo.
Tínhamos chegado à altura das arcadas do Lido. Uma terrível vontade de fugir daquela cidade invadiu-me, como se eu sentisse uma ameaça a rondar-me.
- O que é que tens? Estás muito pálido...
Ela parou de andar. Um grupo de transeuntes roçou por nós de passagem. O cão, com a cabeça levantada para nós, também parecia inquieto.
- Não é nada... Uma tontura...
Esforcei-me por sorrir.
- Queres-te sentar um bocado para beber qualquer coisa?
Ela apontou para a esplanada de um café mas eu não me podia
sentar no meio daquela multidão de sábado à noite. Sufocaria. De todas as formas, não havia lugar livre.
- Não... continuemos a andar... vai ser melhor...
Dei-lhe a mão.
- Não queres partir imediatamente para Roma? - perguntei-lhe. - Senão, tenho medo que seja demasiado tarde...
Ela olhava-me com os olhos arregalados.
- Porquê imediatamente? Temos de esperar que Ansart e Jacques de Bavière nos ajudem... Não podemos fazer grande coisa sem eles...
- E se atravessássemos? É mais calmo do outro lado...
Com efeito, havia menos gente no passeio da esquerda. Nós íamos na direção da Étoile, onde tínhamos estacionado o carro. E hoje que tento lembrar-me dessa noite,
vejo dois vultos com um cão, a subirem a avenida. À volta deles, os transeuntes são cada vez mais raros, as esplanadas dos cafés esvaziam-se, os cinemas apagam-se.
No meu sonho, nessa noite, eu estava sentado numa esplanada dos Champs-Elysées entre alguns clientes notívagos. Já tinham apagado a luz da sala e o criado punha
as cadeiras em
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cima das mesas para nos dar a entender que estava na hora de se ir embora. Saí. Caminhava na direção da Étoile e ouvi uma voz longínqua dizer-me: "Temos de esperar
que Ansart e Jacques de Bavière nos ajudem" - a sua voz grave, sempre um pouco rouca.
No Cais de Conti, as janelas do escritório tinham luz. Ter-se-ia Grabley esquecido de apagar a luz quando partiu para a sua digressão?
No preciso momento em que atravessávamos o vestíbulo na semiobscuridade, com o cão, ouvimos umas gargalhadas.
íamos em bicos de pés e Gisèle levava o cão pela coleira. Esperávamos deslizar pelas escadas sem atrair a atenção de ninguém. Mas precisamente no instante em que
chegámos em frente da porta entreaberta do escritório, ela abriu-se subitamente e Grabley apareceu, com um copo na mão.
Teve um sobressalto ao ver-nos. Permaneceu de pé no limiar da porta e olhou para o cão, surpreso.
- Olha... Não conheço esse...
Teria ele bebido de mais? Com um gesto cerimonioso, fez-nos sinal para entrarmos.
Uma jovem mulher morena com a cara redonda e os cabelos curtos estava sentada no canapé. Aos pés, uma garrafa de champanhe. Tinha um copo na mão e a nossa chegada
não pareceu perturbá-la em nada. Grabley apresentou-nos.
- Sylvette... Obligado e a Menina...
Ela sorriu-nos.
- Podia oferecer-lhes um pouco de champanhe - disse ela a Grabley. - Aborrece-me beber sozinha.
- Vou buscar copos...
Mas ele não encontrou nenhuns na cozinha. Só restavam dois: o seu e o da rapariga. Ele ficaria constrangido de ir buscar
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chávenas, ou até um desses copos de cartão que utilizávamos já há algumas semanas.
- Não se incomode - disse-lhe eu.
O cão aproximou-se da rapariga morena. Gisèle segurou-o pela coleira.
- Deixe-o... gosto muito de cães...
Ela fez-lhe festas no focinho.
- Adivinha onde conheci a Sylvette? - perguntou Grabley.
- Acha realmente que isso lhes interessa? - perguntou-lhe ela.
- Conheci-a no Tomate...
Gisèle franziu o sobrolho. Fiquei com medo que ela se fosse embora.
A rapariga morena bebia uma golada de champanhe, para disfarçar a atrapalhação.
- Não conhece o Tomate, Obligado?
Lembrei-me que passava em frente desse estabelecimento todos os domingos à noite quando ia ter com a minha mãe que representava num teatro de Pigalle.
- Sou dançarina - disse ela com um sorriso embaraçado - e contrataram-me por quinze dias... mas não vou ficar lá... É mau como espetáculo...
- De forma nenhuma - observou Grabley.
Ela corou e baixou os olhos.
Era uma parvoíce sentir-se incomodada na nossa presença. Lembrei-me desses domingos à noite em que atravessava Paris a pé, da Rive Gauche a Pigalle, e o anúncio
luminoso ao fundo da Rua Notre-Dame-de-Lorette, vermelho, e depois verde, e depois azul.
O TOMATE STRIP-TEASE PERMANENTE
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Um bocado mais acima, o teatro Fontaine. A minha mãe representava lá um vaudeville: "A Princesa Perfumada". E o nosso regresso no último autocarro àquele apartamento
do Cais Conti, já quase tão deteriorado como naquela noite.
- A saúde do Tomate - disse Grabley erguendo o copo.
A rapariguinha morena levantou o copo também, como por desafio. Nós ficámos imóveis, Gisèle e eu. E o cão. Os copos deles bateram um no outro. Houve um grande momento
de silêncio. Estávamos todos de pé sob a luz baça da lâmpada do teto, com um ar de estar a festejar um misterioso aniversário.
- Desculpem-me - disse Gisèle -, estou a cair de sono.
- Amanhã domingo podíamos todos ir ao Tomate para ver a Sylvette - disse Grabley.
De novo voltei a pensar nas velhas noites de domingo.
Dormi um sono agitado. De vez em quando, acordava em sobressalto e verificava se ela se encontrava bem a meu lado na cama. Eu tinha febre. O quarto transformara-se
num compartimento de comboio. Os vultos de Grabley e da rapariguinha morena apareciam no enquadramento da janela. Estavam de pé no cais e esperavam pela nossa partida.
Seguravam ambos uma chávena de cartão e erguiam os braços para brindar, como se fosse ao ralenti. Eu ouvia a voz de Grabley semiabafada:
- Amanhã, domingo, encontro no Tomate...
Mas eu sabia muito bem que não iríamos ao encontro. íamos deixar Paris para sempre. O comboio estremecia. Os edifícios e os pavilhões dos arredores surgiam pela
última vez, pretos num céu crepuscular. Estávamos abraçados numa couchette, e a confusão da carruagem sacudia-nos com muita força. Amanhã de manhã, o comboio iria
parar numa gare inundada de sol.
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Era domingo. Levantámo-nos muito tarde, com a sensação de estarmos engripados. Era preciso encontrar uma farmácia de serviço no bairro para comprar uma embalagem
de aspirinas. E, qualquer forma, tínhamos de passear o cão.
Grabley já tinha saído. Deixara um bilhete, bem visível, em cima do canapé do escritório.
Meu querido Obligado,
Você ainda não acordou, e eu vou à missa das onze horas a Saint-Germain-des-Prés.
O seu pai telefonou esta manhã mas a ligação era muito má porque ele estava a falar de uma cabine na rua: ouviam-se as buzinas e os barulhos do trânsito, que abafavam
a voz.
E cortaram-nos a chamada mas tenho a certeza de que ele vai voltar a telefonar. A vida não deve ser fácil para ele na Suíça. Dissuadi-o de ir para lá. É um país
muito duro para os que não têm dinheiro...
Aconteça o que acontecer, esperamos por vocês no Tomate.
As duas últimas sessões são às vinte e às vinte e duas e trinta. Fica à vossa escolha.
Vamos cear a seguir no bairro. Venham connosco.
Henri
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Estava aberta uma farmácia na Rua Saint-André-des-Arts. Fomos tomar as aspirinas a um café, depois, no cais, andámos até à Ponte da Tournelle com o cão sem a trela.
Estava bom tempo, como na véspera, mas mais frio, de modo que podia ser um dia ensolarado de fevereiro. Em breve seria primavera. Ao menos embalava-me com esta ilusão,
porque a perspetiva de passar todo o inverno em Paris sem ter a certeza de poder ficar no apartamento causava-me um ligeira inquietação.
No decurso do nosso passeio, sentimo-nos melhor. Almoçámos num hotel do Cais Grands-Augustins que se chamava Le Relais Bisson. Quando nos demos conta de que os pratos
eram muito caros, encomendámos apenas uma sopa, uma sobremesa e um bocado de carne picada para o cão.
E a tarde decorreu num doce torpor sobre a cama do quarto do quinto andar e, mais tarde, a ouvir rádio. Ligámos o rádio no escritório. Lembro-me que a emissão era
dedicada aos músicos de jazz.
Subitamente, o encanto dissipou-se. Dentro de uma hora, tínhamos de ir ao encontro que Ansart nos tinha marcado.
- Se não fôssemos ao encontro? - perguntei eu.
Ela hesitou um momento. Senti-a quase convencida.
- Assim, não temos de os ver mais e deixamos o carro na Rua Raffet...
Ela tirou um cigarro de um maço de Camel que Grabley havia esquecido. Acendeu-o e aspirou uma baforada. Tossiu. Era a primeira vez que a via fumar.
- Era uma parvoíce chatearmo-nos com eles...
Estava desiludido por ela ter mudado de opinião. Ela apagou o cigarro no cinzeiro.
- Vamos fazer o que nos disseram e, depois, peço muito dinheiro a Ansart para podermos ir para Roma.
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Tive a impressão de que ela dizia aquilo para me convencer mas ela própria não acreditava. Um último raio de sol banhava a ponta da ilha até à extremidade do jardim
Vert-Galant. Havia apenas alguns transeuntes no cais e os alfarrabistas fechavam os quiosques. Ouvi dar as cinco horas no relógio do Instituto.
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Decidimos deixar o cão no apartamento com a intenção de voltar a buscá-lo o mais depressa possível. Mas, assim que a porta se fechou, ele não parou de ladrar e de
ganir. Então, não tivemos outro remédio senão levá-lo connosco ao encontro.
Ainda era de dia quando chegámos ao Bois de Boulogne. Tínhamos chegado antes da hora e parámos em frente do antigo castelo de Madrid. Andámos pela clareira de pinheiros
mansos até ao charco Saint-James onde eu vira deslizar patinadores, num inverno da minha infância. O perfume da terra molhada e a noite que caía lembraram-me de
novo as velhas noites de domingo, até provocarem em mim uma angústia tão surda como a que eu sentia perante a perspetiva de voltar na manhã seguinte para o colégio.
Certamente que, agora, a situação era diferente, eu andava no Bois de Boulogne com ela e não com o meu pai ou os meus amigos Charell ou Karvé. Mas algo idêntico
flutuava no ar, o mesmo odor, e era também domingo.
- Vamos... - disse Gisèle.
Ela tinha um ar igualmente angustiado. Para me descontrair, não tirava os olhos do cão que corria à nossa frente. Perguntei-lhe se íamos de carro. Disse-me que não
valia a pena.
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Seguimos a pé pela Rua da Ferme. Agora ela segurava o cão pela trela. Passámos em frente do portão dos Charell e a seguir pelo picadeiro Howlett que parecia abandonado.
Os Charell tinham com certeza deixado a casa. Pertencem a esse tipo de gente que não se fixa em lugar nenhum. Onde se poderia encontrar Alain Charell esta noite?
Algures no México? Eu ouvia ao longe um ruído de patas de cavalo. Virei-me: dois cavaleiros cuja cara eu não conseguia distinguir, acabavam de surgir no princípio
da rua. Seria algum deles o homem que nós deveríamos abordar daí a um bocado?
Aproximaram-se de nós, pouco a pouco. Ainda se estava a tempo de arrepiar caminho, de pegar no carro, de o deixar em frente do edifício da Rua Raffet e de desaparecer
com o cão sem voltar a dar notícias.
Ela apertou-me o braço com força.
- Isto não vai demorar muito tempo - disse-me.
- Achas?
- Assim que tivermos falado com o tipo, saímos do café e deixamo-los desenvencilharem-se.
Os dois cavaleiros tinham virado à direita, na pequena Rua Saint-James. O barulho dos cascos dos cavalos extinguiu-se.
Chegámos em frente do café. Em baixo, na parte da Rua da Ferme que vai dar ao Sena, vi o carro de Ansart. Alguém estava sentado num dos guarda-lamas. Jacques de
Bavière? Não tinha a certeza. Dois vultos ocupavam o banco da frente.
Entrámos. Fui surpreendido pelo conforto do local porque estava à espera de um simples café. Havia um bar e mesas redondas em caju. Poltronas de couro um bocado
usadas. Madeiras nas paredes. Na lareira de tijolo, tinham acendido o lume.
Ocupámos um lugar na mesa mais próxima da entrada. À nossa volta, alguns clientes, mas não reconheci entre eles o homem.
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O cão deitou-se docilmente aos nossos pés. Pedimos dois cafés e a conta para sair assim que transmitíssemos a mensagem a esse desconhecido.
Gisèle tirou do bolso do impermeável o maço de cigarros de Grabley e acendeu um. Deu uma baforada, desajeitadamente. A sua mão tremia.
Perguntei-lhe:
- Tens medo?
- Nenhum.
A porta abriu-se e três pessoas entraram: uma mulher e dois homens. Um deles era o da fotografia: testa alta, cabelos castanhos penteados para trás.
Vinham em conversa animada. A mulher desatou à gargalhada.
Sentaram-se a uma mesa, ao fundo, perto da lareira. O homem tirou o casaco azul-escuro. Não trazia rabo de cavalo.
Gisèle apagou o cigarro no cinzeiro. Mantinha a cabeça baixa. Estaria ela a evitar o olhar do homem?
Ele estava de frente para nós na mesa do fundo. Os outros dois, uma morena de uns trinta e tal anos e um homem loiro de cara comprida e nariz aquilino, mantinham-se
de perfil.
A mulher falava bastante alto. O homem parecia mais jovem do que na fotografia.
Levantei-me, as mãos húmidas.
Fui avançando, e encontrei-me em frente da mesa deles. Interromperam a conversa:
- Fui encarregado de uma mensagem para si.
- Uma mensagem da parte de quem?
Ele tinha uma voz com um timbre agudo, meio estrangulado, e parecia irritado por eu o ter ido incomodar.
- Da parte de Pierre Ansart. Ele está à sua espera no carro, à esquina da rua.
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Eu tinha-me endireitado e pronunciara esta frase esforçando-me por articular as sílabas o melhor possível.
- Ansart?
A sua cara exprimia o embaraço que se sente quando nos chamam a atenção num lugar e num momento em que não estamos à espera.
- E ele quer-me ver já?
- Sim.
Ele deitava um olhar preocupado para a entrada do bar.
- Desculpem-me por um momento - disse aos seus acompanhantes. - Tenho de ir cumprimentar um amigo que está à minha espera lá fora.
Os outros dois observavam-me com uma certa altivez: por causa de ser demasiado jovem ou por causa do meu aspeto desleixado? Pensei que eles me poderiam reconhecer
mais tarde. Teriam reparado na presença de Gisèle?
Ele levantou-se e enfiou o casaco azul-escuro. Virou-se para o rapaz loiro e disse-lhe:
- Marcas para esta noite... Somos oito...
- É uma parvoíce - exclamou a mulher. - Podia ter organizado um jantar em minha casa...
- De forma alguma... Até já...
Eu fiquei plantado na frente deles. Ele perguntou-me:
- Então, onde é que está esse carro?
- Vou-lhe mostrar.
Segui atrás dele até à saída. Gisèle esperava, de pé em frente da mesa, com o cão. Ele pareceu surpreendido com a sua presença. Abri a porta e deixei-os passar aos
dois.
O carro aproximara-se. Estava estacionado à esquina da Rua Longchamp. Jacques de Bavière mantinha-se de pé, ligeiramente apoiado na carroceria. Ansart saiu deixando
a porta da frente aberta e fez-nos um sinal com o braço. A rua encontrava-se
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bem iluminada. No ar frio e límpido, as fachadas dos edifícios, a superfície das paredes, o automóvel destacavam-se nitidamente.
O homem avançou para eles, e nós, nós ficámos imóveis no passeio. Ele tinha-se esquecido de mim e de Gisèle. Levantou o braço, por sua vez, na direção de Ansart.
Disse:
- Que surpresa...
Falavam os dois no meio da rua. Nós ouvíamos só o murmúrio das vozes. Podíamos ter-nos juntado a eles. Teriam bastado apenas alguns passos. Mas tinha a impressão
de que se fôssemos ao seu encontro teríamos entrado numa zona perigosa. Além disso, nem Ansart nem Jacques de Bavière nos prestavam a menor atenção. Subitamente,
eles encontravam-se longe de nós, num outro espaço, e agora que esta cena se congelou para sempre, eu diria num outro tempo.
O próprio cão, que não tinha a trela, ficou imóvel, ao nosso lado, como se ele também sentisse uma fronteira invisível entre eles e nós.
Jacques de Bavière abriu uma das portas e deixou entrar o homem, depois sentou-se ao seu lado. Ansart tomou o lugar da frente. O que estava ao volante não saíra
do carro e eu não pude distinguir as suas feições. As portas bateram. O carro deu meia-volta e, pela Rua da Ferme, dirigiu-se para o Sena.
Segui-o com a vista até ele desaparecer na volta do cais.
Perguntei a Gisèle:
- Onde é que tu achas que eles vão?
- Levam-no para a Rua Raffet...
- Mas ele disse aos amigos que voltava imediatamente...
E, no entanto, eles não o tinham empurrado à força para o carro. Fora sem dúvida Ansart que o convencera a acompanhá-los durante a breve conversa que tiveram no
meio da rua.
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- Vou talvez prevenir os outros para não ficarem à espera dele - disse eu.
- Não... não nos vamos misturar nisto...
Fiquei surpreendido com o seu tom categórico e tive a impressão de que ela sabia mais do que eu.
- Achas mesmo que não os devemos prevenir?
- Com certeza... Vão desconfiar de nós... e fazer-nos perguntas...
Eu imaginava-me de pé em frente da mesa, a explicar-lhes que o amigo se tinha ido embora de carro. E as perguntas choveriam, cada vez mais numerosas e insistentes:
Viu-o ir-se embora? Com quem?
Quem foram as pessoas que o encarregaram desse recado?
Onde vive essa gente?
Quem é você exatamente?
E eu, não podendo escapar-me à avalanche de perguntas, sentia as pernas pesadas como chumbo, tal como nos pesadelos.
- Não devemos ficar aqui - disse-lhe eu.
Eles podiam sair de um momento para o outro para ver se o amigo estava ali. Seguimos pela Rua da Ferme em direção ao bosque. Ao pé do domicílio dos Charell, perguntei
a mim próprio o que é que Alain teria pensado disto.
Eu tinha uma sensação de mal-estar. Um homem havia deixado duas pessoas dizendo-lhes: "Até já." Fizeram-no entrar para um carro que partiu em direção ao Sena. Nós
éramos, ela e eu, não só as testemunhas mas também os cúmplices desse desaparecimento. Tudo isto se passou numa rua de Neuilly, perto do Bois de Boulogne, um bairro
que me fazia lembrar outros domingos... Eu passeava nas alamedas com o meu pai e um dos seus amigos, um homem muito alto, muito magro, a quem restavam, de um período
mais farto da sua vida, apenas uma peliça e um blazer que ele vestia consoante a estação. Reparei, na altura,
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como estavam usados os seus fatos. Acompanhámo-lo à noite, até um hotel de Neuilly que parecia uma pensão de comensais. O seu quarto, dizia, era pequeno mas bastante
confortável.
- Em que é que estás a pensar?
Ela deu-me o braço. Descemos ao longo da clareira de pinheiros mansos. Se a atravessássemos, teríamos chegado mais depressa ao sítio onde se encontrava estacionado
o carro. Mas estava muito escuro e só o Boulevard Richard-Wallace se encontrava iluminado.
Pensava na figura daquele homem, no seu sorriso e na sua cara ainda jovem. Mas, em pouco tempo, via-se bem que ele se tornara inseparável do blazer e da peliça já
gastos e que algo nele se tinha quebrado. Quem era? O que seria feito dele? Certamente que tinha desaparecido, como o outro, ainda há pouco.
Ela arrancou e seguimos em direção ao jardim da Acclimatation. Eu olhava para as luzes das janelas dos prédios.
Gisèle parou no semáforo vermelho da Avenida Madrid. Franziu o sobrolho. Parecia sentir o mesmo mal-estar que eu.
As fachadas desfilavam com as suas luzes. Era uma pena que não conhecêssemos ninguém. Teríamos tocado à campainha de um desses apartamentos confortáveis. Ter-nos-iam
convidado para jantar na companhia de pessoas distintas e instaladas na vida. A frase do homem veio-me à mente:
- Tu marcas para esta noite... Somos oito...
Será que eles tinham feito a reserva mesmo depois de terem esperado em vão pelo seu regresso? Nesse caso, os sete convivas estariam todos ainda à espera do oitavo.
Mas o lugar permaneceria vazio.
Um restaurante aberto ao domingo à noite... Nós frequentávamos um, o meu pai, o amigo e eu, perto da Étoile. íamos para
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lá cedo, por volta das sete horas e meia. Os clientes começavam a chegar quando nós já tínhamos terminado o nosso jantar. Um domingo à noite, um grupo de pessoas
muito elegantes entrou e, apesar dos meus onze anos, fiquei maravilhado com a beleza e o fulgor das mulheres. O olhar de uma delas pousou subitamente no amigo do
meu pai. Ele tinha vestido o seu blazer coçado. Ela parecia estupefacta de o ver ali, mas em breves instantes a sua expressão acalmou e tornou-se impassível. Foi
sentar-se com os seus acompanhantes numa mesa afastada da nossa.
Ele ficou muito pálido. Inclinou-se para o meu pai e disse-lhe uma frase que me ficou gravada na memória:
- Gaelle acabou de passar... reconheci-a logo... Mas, eu mudei tanto desde o fim da guerra...
Tínhamos chegado à Porta Maillot. Ela virou-se para mim.
- Onde é que queres ir?
- Não sei...
Sentíamo-nos desamparados, um e outro. Tocar à porta do Ansart para saber mais coisas? Mas não tínhamos que nos misturar com os seus assuntos. Eu nunca mais queria
ver essas pessoas e pretendia deixar Paris rapidamente.
- Agora é que deveríamos ir para Roma - disse-lhe eu.
- Sim, mas não há dinheiro suficiente.
Eu guardava comigo os sete mil e quinhentos francos que Dell'Aversano me tinha dado e os quatro mil francos de Ansart. Era mais do que suficiente. Não ousava perguntar-lhe
quanto dinheiro ela tinha.
Voltei a dizer-lhe que me tinham prometido um trabalho certo em Roma e que não teríamos mais nenhum problema. Acabei por convencê-la.
- Temos de levar o cão - disse-me.
- Com certeza...
Após um momento de reflexão, acrescentou:
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- O mais prático era irmos neste carro. Mesmo que não lhes perguntemos a opinião, eles não nos podem apanhar...
Ela riu-se, com um riso nervoso. Com efeito, não nos podiam apanhar porque essa noite tornáramo-nos seus cúmplices e precisavam do nosso silêncio. Esta ideia causava-me
um frio na espinha. Fora mesmo eu quem havia pronunciado a frase: "Fui encarregado de uma mensagem para si da parte de Pierre Ansart. Ele está à sua espera no carro,
à esquina da rua." E isso, na frente de testemunhas. E toquei no dinheiro.
Certamente que a minha cara adquiriu uma expressão esquisita porque ela me pôs o braço à volta dos ombros e senti os seus lábios aflorarem a minha face.
- Não te preocupes - disse-me ao ouvido.
Vamos ver Grabley...? Ele vai estar às nove horas no Tomate...
A sonoridade da palavra "tomate" possuía algo de infantil e tranquilizador.
- Se quiseres...
Com certeza eu não esperava o menor apoio moral da parte de Grabley. Ele tinha um ponto comum com o meu pai: um e outro usavam fatos, gravatas e sapatos como toda
a gente. Falavam francês sem sotaque, fumavam cigarros, bebiam espressos e comiam ostras. Mas na sua companhia era-se assaltado por uma dúvida e ficava-se com vontade
de se lhes tocar, como se toca num tecido, para nos certificarmos de que existem realmente.
- Achas que ele pode fazer alguma coisa por nós? - perguntou-me ela.
- Quem sabe?
Era muito cedo para o ir procurar. Tínhamos de esperar ainda duas horas. À esquerda, muito perto, na avenida, reparei na fachada iluminada do Maillot Palace, e propus-lhe
irmos ver o filme que lá estava: A Rainha da Pradaria. A arrumadora não fez qualquer reparo ao cão.
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Quando nos sentámos nas poltronas de veludo vermelho, o meu mal-estar dissipou-se.
A Rua de Notre-Dame-de-Lorette estava escura e os passeios desertos. A essa hora, as pessoas acabavam de jantar e iam-se deitar cedo. Amanhã, era preciso regressar
ao colégio e ao trabalho. Lá no alto, o anúncio luminoso do Tomate brilhava inutilmente, numa rua morta. Quem é que ia assistir à sessão do domingo à noite? Um marinheiro
de licença, antes de apanhar na estação de Saint-Lazare o comboio de Cherburgo?
A arrumadora indicou-nos o caminho para os bastidores. Ficavam na cave. Descemos umas escadas que davam para um pequeno hall com as paredes decoradas com velhos
cartazes da casa.
Grabley estava em frente de uma das portas que abriam para os camarins, de fato príncipe de Gales e uma gravata de camurça. Parecia preocupado.
- Que surpresa boa... foram simpáticos em virem...
Mas confessou-nos que a Sylvette estava com muito mau humor e que nesse momento se estava a arranjar no camarim. Tínhamos feito bem em ter vindo agora, porque não
ia haver sessão às dez e meia. Sugeriu-nos que fôssemos para a sala. Disse-lhe que preferíamos ficar ali, com ele. De todas as formas, não nos deixariam entrar com
o cão.
- Que pena.
Ele sentia-se visivelmente despeitado com a nossa falta de entusiasmo pelo espetáculo.
A porta do camarim abriu-se e Sylvette apareceu. Ela tinha uma máscara preta e um corpete de leopardo. Cumprimentou-nos com um tom seco. Depois, virando-se para
Grabley, disse-lhe que ele não era obrigado a ficar à espera dela nos bastidores.
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Ela tinha vergonha de participar naquele espetáculo, mas, se alguém a acompanhasse e ficasse no seu camarim, era ainda pior... Subiu de tom. Sim, qualquer homem
sensível teria compreendido que, para uma dançarina, era humilhante degradar-se mas tinha de ganhar a vida porque ninguém ajudava. Depois, repreendeu-o por ele nos
ter feito vir. Apesar de tudo, ela ainda não era um animal de circo ou um dos que se vai ver ao jardim zoológico ao domingo. Grabley baixou a cabeça. Ela deixou-nos
plantados ali e dirigiu-se para a escada que começou a subir a custo com os seus saltos altos, e o seu ar desengonçado lembrou-me qualquer coisa: pois era, aquela
rapariga nua com o cabelo apanhado em rabo de cavalo que aparecia numa das revistas do escritório, era ela.
Grabley seguiu-a com os olhos até ela desaparecer. Os primeiros acordes de uma música mexicana soaram acompanhados das suas trompetes. Ela acabara certamente de
entrar em cena.
- Ela é muito desagradável, muito desagradável... - disse ele.
Trocámos um olhar, Gisèle e eu, e tivemos dificuldade em controlar uma vontade louca de rir. Felizmente, ele não nos prestava nenhuma atenção. Fixava o alto da escada,
com um ar idiota, como se ela tivesse desaparecido para sempre.
Ao fim de alguns instantes, não sabíamos se nos havíamos de escapar ou não. E eu já não tinha mais vontade de rir. Por causa da luz amarela do hall, dos velhos cartazes
nas paredes indicando que aquela casa tinha sido um teatro de cançonetistas, de trompetes mexicanas e deste homem vestido de príncipe de gales e engravatado, tratado
com maus modos? Pairava sobre nós uma tristeza difusa.
De novo pensei no meu pai. Imaginava-o na mesma situação, vestido com o seu casaco azul-escuro à espera atrás da porta dum camarim de uma casa semelhante a esta:
algum Kit Cat ou algum Carroussel de Genève ou de Lausanne. Lembrei-me do último
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Natal que passámos juntos. Tinha quinze anos. Ele fora-me buscar ao colégio de Haute-Savoie onde não me podiam ter durante as férias.
Em Genève, uma mulher estava à sua espera, mais nova que ele vinte anos, uma italiana com cabelos amarelo-palha, e apanhámos os três o avião para Roma. Dessa estadia
resta uma fotografia que eu descobri no fundo de uma mala cheia de papéis, trinta anos mais tarde. Ela fixa para sempre a imagem de uma passagem de ano, numa boite
perto da Via Veneto, onde a italiana nos levara após ter feito uma cena ao meu pai: ouviam-se os seus gritos no corredor do hotel.
Sentámo-nos em frente de um balde de champanhe. Alguns casais dançavam atrás de nós. À volta da mesa, um homem moreno de cabelos penteados para trás. Na sua cara,
uma expressão de alegria forçada. Ao lado dele, uma mulher de uns trinta anos, maquilhagem muito carregada, os cabelos amarelo-palha muito frisados e apanhados num
carrapito. E um adolescente de smoking alugado demasiado grande e com um olhar vago como todas as crianças que se encontram em má companhia porque não têm uma palavra
a dizer e ainda não podem ter vida própria. Se eu queria voltar para Roma, era para esconjurar esse passado.
- Vamos embora? - perguntou-me Gisèle.
O cão impacientava-se. Tinha subido a escada, depois, apercebendo-se de que nós não o seguíamos, voltou a descer e deitou-se ao pé dos degraus.
Grabley saiu subitamente da sua prostração:
- Não se vão embora, hem? A Sylvette vai ficar desiludida... E vai ser ainda mais desagradável...
Mas eu não tinha pena dele. Ele lembrava-me o meu pai, os cabelos amarelo-palha da mulher e aquela noite de passagem de ano. Hoje eu era livre de ir para onde quisesse.
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- Nós não podemos ficar, meu velho - disse eu. - Tenho de acompanhar Gisèle a Saint-Leu-la-Forêt.
- Vocês não querem mesmo cear connosco?
Ele tinha a mesma expressão inquieta do meu pai quando estávamos no passeio da Via Veneto. A nossa frente um grupo de foliões soprava umas cornetas de papel. A mulher
de cabelos amarelo-palha parecia aborrecida. Subitamente, começou a andar dando grandes passadas, depois desatou a correr como se quisesse ver-se livre de nós. O
meu pai disse-me:
- Depressa... Apanha-a... sê simpático com ela... Diz-lhe que gostamos muito dela... que precisamos dela... dá-lhe isto...
E deu-me um pequeno embrulho em papel de prata.
Corri. Era muito jovem na época. E agora sentia uma espécie de tristeza associada à indiferença por esse passado ainda recente. Já nada disso contava. Nem o meu
pai, nem Grabley, nem esse tipo que entrara no carro, ainda há pouco. Que se danem todos.
No passeio, eu sentia-me leve, desligado de tudo. Quis que ela partilhasse do meu estado de espírito. Passei-lhe o braço pelos ombros e caminhámos para o carro.
O cão ia à nossa frente. Sugeri-lhe que partíssemos imediatamente para Roma. Mas ela deixara o dinheiro numa das malas.
Era só passar pelo Cais Conti e meter as malas no porta-bagagens do carro.
- Se tu quiseres - disse-me ela.
Gisèle retomara o seu tom negligente, como eu.
No entanto, um pensamento veio chamar-me à pedra. Eu era menor e tinha de arranjar um formulário de autorização para ir ao estrangeiro, onde imitaria a assinatura
do meu pai. Não queria confessar-lho.
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- Não é possível partirmos esta noite - disse-lhe. - Preciso primeiro que o italiano me dê todas as informações.
Rua Fontaine, o teatro estava fechado. Apenas algumas luzes, na parte de cima. Depois de termos andado ao acaso pelas ruas do bairro, parámos em frente do Gavarny.
Jantámos lá. A princípio receei ver entrar Grabley e Sylvette, mas pensei para mim próprio que eles preferiam lugares mais concorridos.
Éramos os únicos clientes. Reconheci o homem de casaco branco que nos servia, das raras vezes em que eu jantava lá com a minha mãe, ao domingo à noite, depois do
teatro.
Quando entrámos, ele fazia palavras cruzadas, sentado a uma mesa. Perguntei a mim próprio se a música vinha de um altifalante ao fundo da sala ou de um posto de
rádio: uma música com a sonoridade lunar de um címbalo.
O cão estendeu-se aos meus pés. Fiz-lhe festas para me assegurar da sua presença. Estava sentado à frente dela. Não despregava o meu olhar do seu. Passei a mão pela
cara. De novo, voltei a ter medo que ela desaparecesse.
A partir dessa noite, desligávamo-nos de tudo. Mais nada fazia sentido à nossa volta. Nem Grabley, nem o meu pai, perdido na Suíça, nem a minha mãe, algures no Sul
de Espanha, nem as pessoas com quem me tinha cruzado sem saber nada delas: Ansart, Jacques de Bavière... A sala do restaurante também estava desligada da realidade,
como um desses lugares que frequentámos no passado e que revisitamos em sonho.
A saída de Gavarny, nós apanhávamos, a minha mãe e eu, o autocarro 67 Praça de Pigalle que nos deixava no Cais do Louvre. Isto fora há três anos e pertencia já a
uma outra vida... Apenas o homem de casaco branco continuava no seu
96

lugar. Tive vontade de lhe falar, mas o que é que ele teria para me dizer?
- Belisca-me para ver se não estou a sonhar...
Ela beliscou-me a face.
- Com mais força.
Ela desatou a rir. E o seu riso ecoou na sala deserta. Perguntei-lhe se também tinha a sensação de estar a sonhar.
- Sim, às vezes.
O homem de casaco branco ficara absorto novamente nas suas palavras cruzadas. A partir de agora não haveria mais clientes.
Ela segurou-me na mão e olhou-me com os seus olhos azuis-pálidos, a sorrir.
Ergueu a mão e beliscou-me na face ainda com mais força do que das outras vezes.
- Acorda...
O homem levantou-se e foi ligar um rádio atrás do balcão. Um indicativo seguido da voz do locutor a ler um boletim informativo. Eu só ouvia aquela voz como um ruído
de fundo.
- Então, acordaste?
- Não sei - disse-lhe eu. - Prefiro ficar na incerteza.
Aos domingos à noite, no dormitório do colégio, depois do regresso de férias, o vigilante desligava a luz às nove menos um quarto e o sono vinha a pouco e pouco.
Eu acordava em sobressalto, durante a noite, e não sabia onde estava. A lâmpada de presença que iluminava com uma luz azul as filas das camas trazia-me brutalmente
à realidade. E desde essa época, cada vez que sonhava, eu tentava retardar, no interior do meu sonho, o instante de acordar com medo de me encontrar no dormitório.
Procurei explicar-lhe.
- Eu também - disse-me ela -, acontece-me muitas vezes... Tenho medo de acordar na prisão...
Perguntei-lhe porquê: na prisão?, mas ela tinha um ar aborrecido e acabou por me responder:
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- É assim...
Lá fora, hesitei. A perspetiva de voltar ao Cais Conti pareceu-me fastidiosa. Preferia que nos encontrássemos num local que não evocasse nada do passado. Mas ela
disse-me que isso não tinha importância nenhuma desde que estivéssemos juntos.
Descemos a Rua Blanche. De novo voltava a ter a sensação de estar a sonhar. E um sonho em que tenho uma sensação de euforia. O carro desliza sem que eu oiça o barulho
do motor, como se estivesse a descer uma ladeira em roda livre.
A Avenida da Opera, as suas luzes e a sua calçada deserta abrem-se diante de nós. Ela virou-se para mim:
- Podemos partir amanhã, se quiseres.
Pela primeira vez na minha vida, sinto que os entraves e os contratempos que me retinham até então são abolidos. Talvez seja uma ilusão que se dissipará amanhã de
manhã. Baixo o vidro e o ar frio aumenta ainda mais a minha euforia. Não há a mínima humidade, nem o círculo que se costuma formar à volta das luzes que cintilam
ao longo da avenida.
Fomos pela Ponte do Carrousel e, na minha memória, nós seguimos o cais, à esquerda, desrespeitando o sentido único, passámos em frente da Ponte das Artes, íamos
com pouca velocidade, sem que nenhum carro viesse no outro sentido.
Grabley ainda não estava lá. Atravessámos o vestíbulo e o apartamento destaca-se do passado. Eu entro aí pela primeira vez. É ela que me guia. Ela sobe à minha frente
a pequena escada que leva ao quinto andar. No quarto não acendemos a luz.
Os candeeiros do cais projetam no teto um raio luminoso tão claro como o que é filtrado, no verão, pelas fendas das persianas. Ela está deitada na cama com a saia
e a camisola pretas.
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No dia seguinte de manhã, quando deixámos o apartamento, Grabley ainda não tinha voltado. Decidimos devolver o carro a Ansart e não o voltar a ver, nem a ele nem
ao Jacques de Bavière. Contávamos partir para Roma o mais depressa possível.
Tentámos encontrá-los por telefone, mas ninguém atendia de casa de Ansart, nem na pretensa morada de Jacques de Bavière. Tanto pior. Estávamos prestes a abandonar
o carro na Rua Raffet.
Era um dia soalheiro de outono, como na véspera. Eu possuía um sentimento de leveza e de bem-estar perante a nossa perspetiva de partir. Deixava atrás de mim apenas
coisas que se começavam a desagregar: Grabley, o apartamento vazio... Eu tinha de arranjar a autorização de que me tinha servido no ano anterior para uma viagem
à Bélgica e tinha de falsificar a data e o destino. Em Roma, havia de surgir uma oportunidade que me permitisse escapar à administração francesa e às minhas obrigações
militares.
Gisèle disse-me que não tinha nenhum problema em sair de França. Tentei saber mais acerca desse marido de que me tinha falado.
Ela não o via há muito tempo - quase há três meses. Tinha-se casado por devaneio. Mas quem era ele em concreto?
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Olhou-me nos olhos e, com um sorriso constrangido, disse-me:
- Oh, um tipo engraçado... Tem um circo...
Perguntei a mim próprio se ela estava a brincar ou se era verdade.
Parecia estar à espera da minha reação.
- Um circo?
- Sim, um circo...
Ele tinha partido em digressão com o circo mas ela não o quis acompanhar.
- Aborrece-me falar disto...
E fez-se um silêncio entre nós até chegarmos em frente do edifício da Rua Raffet.
Tocámos à campainha do apartamento. Ninguém respondeu.
- Talvez estejam no restaurante - disse Gisèle.
Uma mulher observava-nos, à entrada do pátio. Veio na nossa direção.
- Procuram alguém?
O tom era seco, como se desconfiasse de nós.
- O senhor Ansart - disse Gisèle.
- O senhor Ansart saiu muito cedo esta manhã. Ele deixou-me as chaves do apartamento. Só volta daqui a três meses.
Por conseguinte, era a porteira.
- Ele não lhe disse para onde ia? - perguntou Gisèle.
- Não.
- Não lhe podemos escrever para uma direção qualquer?
- Ele disse-me que me escrevia para me mandar a nova direção. Se lhe quiser escrever, deixa-me a carta.
O tom de voz tinha-se suavizado um pouco. Ela seguiu-nos com os olhos enquanto atravessámos o pátio com o cão. Parecia ter achado natural a partida do "Senhor Ansart".
Ela acabaria por começar a perguntar a si própria quem seria aquele senhor amável
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e bem-educado. Depois, seriam os outros a fazerem-lhe perguntas, talvez no gabinete onde tínhamos sido interrogados, Gisèle e eu. Pedir-lhe-iam para se lembrar do
mínimo detalhe a respeito de Ansart, e das visitas que ele recebia. E lembrar-se-ia que no dia seguinte ao seu desaparecimento um jovem e uma rapariga, com um cão,
tinham tocado à campainha da porta do apartamento.
- O que é que fazemos com o carro? - perguntei a Gisèle.
- Ficamos com ele.
Ela vasculhou o porta-luvas e tirou o livrete. Estava em nome de Pierre Louis Ansart, nascido a 22 de janeiro de 1921 em Paris 10º, domicílio 14 Rua Raffet, Paris
16º
Circulámos ao longo do Bois de Boulogne, pelo caminho que tínhamos feito no sábado para irmos jantar ao restaurante de Ansart. Eu segurava na mão o livrete. Metemos
pela Rua das Belles-Feuilles. O restaurante estava fechado. Batemos na fachada de painéis de madeira com a pintura verde estalada que datavam certamente da época
em que o Belles-Feuilles era, como dissera Ansart, um café-charbon.
Desta vez, ela parecia inquieta. Devia existir uma ligação entre o súbito desaparecimento de Ansart e o que se tinha passado na véspera em Neuilly onde fôramos apenas
testemunhas.
- Achas que Jacques de Bavière também se foi embora? - perguntei.
Ela encolheu os ombros. A cara de Martine veio-me à memória e a forma como ela se despediu de nós com o braço estendido quando atravessávamos o pátio, na outra noite.
- E Martine? Podemos encontrá-la em algum sítio?
Ela não sabia quase nada acerca da Martine, apenas que vivia com Ansart já há alguns anos. A única coisa de que se lembrava, era do nome: Martine Gaul.
Acabámos num café da Rua Spontini onde pedimos duas sanduíches e dois sumos de laranja. Ela tirou uma agenda da mala
101

e pediu-me para eu ir telefonar para a casa de Jacques na Rua Washington para saber se ele estava lá.
- Está lá... Quem fala?
Uma mulher com voz grave. A mesma que nos recebera no sábado?
- Desejava falar com Jacques de Bavière...
- Quem é você?
O tom era seco, o tom de alguém que está alerta.
- Somos amigos de Jacques. Fomos aí no sábado à noite...
- Jacques foi para a Bélgica.
- Por muito tempo?
- Não lhe sei dizer.
- O Senhor Ansart foi com ele?
Houve um momento de silêncio. Pensei mesmo que a chamada tinha sido cortada.
- Eu não conheço esse senhor. Lamento muito, mas tenho de desligar.
Ela desligou.
Por conseguinte, eles tinham partido os dois. Com a Martine sem dúvida. Para a Bélgica ou algures. Como saber?
- Tens a certeza de que ele se chama de Bavière? - perguntei a Gisèle.
- Sim. De Bavière.
O que é que isso podia adiantar? Ele não se encontrava certamente na lista nem no Gotha como o seu nome sugeria.
Ela disse-me que queria ir a outro sítio onde talvez tivéssemos a sorte de saber notícias de Ansart. Seguimos pelos grandes boule-vards. Ela não dava nenhuma explicação.
Chegados à Praça da República, metemos pelo Boulevard du Temple e parámos numa rua paralela um pouco mais abaixo. À nossa frente, o Circo de Inverno.
Ela apontou para um café, ao fundo, na rua, a uns cinquenta metros.
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- Perguntas ao tipo que está atrás do balcão pelo senhor Ansart...
Porque é que ela não me acompanhava?
Eu caminhei ao longo da rua e voltei-me para ver se ela continuava lá. Pensei que estivesse à espera que eu entrasse no café para desaparecer como os outros.
O café não tinha nome, mas na fachada havia a marca de uma cerveja belga. Entrei. Ao fundo da pequena casa, algumas mesas onde almoçavam os clientes.
Atrás do balcão estava um homem alto, moreno, com o nariz um pouco achatado e com um fato azul-escuro, ao telefone. Eu fiquei à espera. Um criado de casaco cor de
vinho dirigiu-se para mim.
- Um quarto de Vittel.
A conversa telefónica prolongava-se. O homem ouvia o seu interlocutor e respondia de tempos a tempos com um "sim... sim... de acordo..." ou um breve murmúrio de
assentimento. Ele entalou o auscultador entre a cara e o ombro para acender um cigarro e pousou o olhar em mim, mas eu não sabia se ele me via. Desligou.
Perguntei-lhe com uma voz tímida:
- Tem notícias do senhor Ansart?
Ele sorriu-me. Mas eu senti que esse sorriso era de fachada e que marcava uma distância entre nós.
- Conhece o senhor Ansart?
Ele possuía uma voz com um timbre juvenil que me fazia lembrar o ator Jean Marais. Veio ter comigo do outro lado do balcão e apoiou os cotovelos:
- Sim conheço-o e conheço também Martine Gaul.
Porque é que eu acrescentei este pormenor? Para ganhar confiança?
- Passei esta manhã na casa da Rua Raffet e eles tinham partido.
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Ele observava-me com um olhar perscrutador e sempre a sorrir. O corte elegante do seu fato e a sua voz destoavam daquele café. Seria ele realmente o patrão?
- Eles partiram mas com certeza que vão voltar. É tudo o que lhe posso dizer.
O seu sorriso alargava-se e o seu olhar fazia-me compreender que, realmente, não me iria dizer mais nada.
Apressei-me a pagar o quarto de Vittel, mas ele fez um gesto com o braço.
- Não... Deixe...
Ele próprio me abriu a porta e acenou com a cabeça em sinal de despedida. Sorria sempre.
No carro, Gisèle perguntou-me:
- O que é que ele te disse?
Ela devia conhecer aquele homem de sorriso inalterável. Sem dúvida que o tinha conhecido através de Ansart e de Jacques de Bavière.
- Ele disse-me que com certeza vão voltar, mas não quis dizer-me mais nada de concreto.
- Isso não tem nenhuma importância. De todas as formas não os veremos mais. Estaremos em Roma.
Seguimos pelo boulevard até à Praça da Bastilha. Não estávamos muito longe da loja do Dell'Aversano. Pedi a Gisèle para passarmos por lá a fim de tratarmos da nossa
viagem.
- Tu já tinhas entrado no café de há bocado? - perguntei-lhe.
- Já. Várias vezes.
Ela hesitou e depois disse-me, como se o lamentasse:
- Quando o meu marido trabalhava no Circo de Inverno.
Calou-se. Pensei no homem de azul-escuro. O seu sorriso
marcou-me e dez anos depois ainda me lembrei disso quando me vi, por acaso, uma tarde, perto do Circo de Inverno. Não resisti a entrar naquele café. Foi por volta
de 1973.
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Ele estava atrás do balcão, menos elegante do que da primeira vez, a cara marcada, os cabelos grisalhos. Na parede havia coladas uma série de fotografias, algumas
com dedicatórias, onde figuravam artistas do Circo de Inverno, clientes do café.
Uma das fotografias, maior do que as outras, atraiu-me a atenção. Mostrava um grupo de pessoas em frente do balcão, à volta de uma mulher loira vestida de amazona.
E entre elas, reconheci Gisèle.
Pedi, como da primeira vez, um quarto de Vittel.
Aquela hora morta da tarde, nós estávamos sozinhos, ele e eu. Subitamente perguntei-lhe:
- Conheceu aquela rapariga?
Fui ter com ele atrás do balcão e apontei para Gisèle na fotografia. Ele não pareceu minimamente admirado com o meu gesto.
Inclinou-se para a fotografia.
- Ah sim, conheci-a... Ela era muito nova... Passava as noites aqui... O marido trabalhava no circo... Ela ficava à sua espera... Tinha sempre um ar de quem está
aborrecida... Já lá vão uns dez anos...
- Mas o que é que o marido fazia?
- Devia pertencer ao pessoal do circo. Era mais velho do que ela.
Senti que responderia a todas as perguntas que lhe fizesse. Eu era ainda novo na época e tinha um ar tímido e bem educado. E ele queria sem dúvida conversar com
alguém para passar aquela fase árida dos princípios de tarde de verão.
Parecia-me bastante mais acessível do que há dez anos atrás. Tinha perdido o ar misterioso ou, melhor, o ar que eu fantasiara. O homem esbelto de fato azul-escuro
atualmente não era mais do que o dono de um café da Rua Amelot, quase um carvoeiro.
- Conheceu um Pierre Ansart?
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Ele deitou-me um olhar espantado e reencontrei o seu sorriso e fachada de outrora.
- Porquê? Você conheceu o Pierre?
- Foi a rapariga que mo apresentou há dez anos.
Ele franziu o sobrolho.
- A rapariga da fotografia?... Pierre deve tê-la encontrado aqui... Ele vinha frequentemente ver-me...
- E um homem mais novo, que se chamava Jacques de Bavière, não lhe diz nada?
- Não.
- Era um amigo de Ansart.
- Eu não conheci todos os amigos do Pierre...
- Não sabe o que é feito dele?
O seu sorriso de novo.
- Pierre? Não. Ele já não está em Paris, pelo menos.
Eu calei-me. Esperava que pronunciasse a frase que me tinha dito da primeira vez: "foram-se embora, mas com certeza que vão voltar".
Pela porta entreaberta, o sol desenhava manchas claras nas paredes e nas mesas vazias, ao fundo.
- Então você era muito amigo de Ansart?
O seu olhar e o seu sorriso tinham uma expressão irónica.
- Conhecemo-nos em 1943. E nesse mesmo ano, mandaram-nos aos dois para a Centrale de Poissy... Como vê não data de ontem...
Eu mantinha-me silencioso. Ele acrescentou:
- Mas não pense mal dele... Toda a gente pode cometer erros de juventude...
Tive vontade de lhe dizer que já ali tinha vindo há dez anos para lhe pedir notícias de Ansart e que ele não me quis responder. Nessa altura, havia ainda segredos
a preservar.
Mas agora, tudo isso já tinha passado e acabara por perder a sua importância.
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- E você continua a ver a rapariga?
Fiquei tão surpreendido com aquela pergunta que balbuciei uma vaga resposta. Uma vez só, no boulevard, desatei estupidamente a chorar.
107

 

Voltámos ao Sena e seguimos pelo Cais dos Célestins. Ao vasculhar no meu bolso à procura de cigarros, apercebi-me de que tinha guardado o livrete de Ansart.
- Tu podes realmente confiar nesse tipo que vamos ver? -perguntou-me Gisèle.
- Sim. Acho que ele gosta muito de mim.
Com efeito, hoje que penso nisso, meço melhor a simpatia que me votava Dell'Aversano. Ele ficara comovido com a minha situação familiar, se se puder empregar este
último adjetivo quando os pais são completamente negligentes. A primeira vez que o visitei, ele fez-me algumas perguntas sobre os meus estudos e aconselhou-me a
prossegui-los, pensando sem dúvida que um adolescente entregue a si próprio se arriscava a acabar mal. Segundo ele, eu merecia mais do que vender móveis como último
recurso aos revendedores do bairro Saint-Paul. Tinha-lhe confiado que sonhava ser escritor e impressionei-o favoravelmente ao declarar-lhe que o meu livro de cabeceira
era uma recolha da correspondência de Stendhal, intitulada: As Almas Sensíveis.
Dell'Aversano estava sentado no seu escritório, ao fundo do armazém. Observou surpreendido Gisèle e o cão.
Apresentei-lha como minha irmã.
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- Tenho todas as informações para si - disse-me.
O meu trabalho em Roma no seu colega livreiro só podia começar daí a dois meses.
- Queria partir já?
Não ousei dizer-lhe que dispúnhamos de um carro, senão tinha de mostrar o livrete de Ansart e explicar-lhe tudo. Numa outra altura talvez... Mas confessei-lhe que
queria partir com Gisèle. Acreditaria ele que ela era realmente minha irmã? Não li no seu olhar nenhum sinal de desaprovação. Ele virou-se para ela:
- Está disposta a arranjar trabalho em Roma?
Perguntou-lhe a idade. Ela respondeu vinte e um anos. Ele sabia
qual era a minha idade, e eu enterrava as unhas nas palmas das mãos com medo de que fizesse alguma alusão em frente de Gisèle.
- Eu até sei a sua direção lá... Se quiser peço ao meu amigo para o alojar mais cedo do que o previsto...
Agradeci-lhe. Era possível a minha irmã viver nesse sítio comigo?
Ele olhou para nós, observando-nos com atenção. Eu pensei que ele procurava uma semelhança física entre nós e não a encontrava.
- Depende - disse-me. - A sua irmã sabe escrever à máquina?
- Sei - respondeu Gisèle.
Tinha a certeza de que ela estava a mentir. Não a imaginava nada em frente de uma máquina de escrever...
- O meu amigo vai precisar de alguém que escreva à máquina em francês... Vou-lhe telefonar esta noite para lhe pedir pormenores.
Ele levantou-se e convidou-nos para irmos tomar um café. Passámos em frente do carro mas eu não disse nada e Gisèle foi cúmplice do meu silêncio. Amanhã, sem falta,
explicar-lhe-ia o que nos aconteceu. Eu não tinha o direito de esconder nada a este homem que se mostrava tão benevolente connosco.
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Ele perguntou-me quanto tempo mais é que eu ainda podia ficar no apartamento do Cais de Conti.
- No mínimo três semanas...
Ele não compreendia que um pai e uma mãe tivessem deixado num total abandono um rapaz apaixonado pela literatura e cujo livro de cabeceira era Às Almas Sensíveis.
E o que o espantava ainda mais, era o facto de a atitude dos meus pais me parecer perfeitamente natural e que nunca me tivesse sequer passado pela cabeça esperar
deles qualquer ajuda.
- Tem de estar instalado em Roma daqui a três semanas e a sua irmã a viver consigo...
Pela forma como tinha pronunciado as palavras "sua irmã", percebi que ele não era parvo.
- A sua irmã gosta tanto de literatura como você?
Gisèle ficou com um ar aborrecido. Desde que nos conhecemos, nunca tínhamos falado de literatura.
- Estou a tentar que ela leia Às Almas Sensíveis - disse-lhe.
- E gosta? - perguntou Dell'Aversano.
- Muito.
Ele fez-lhe um sorriso encantador. Havia sol e a temperatura estava amena para a estação. Sentámo-nos na única mesa que havia livre na esplanada do café. O sino
da Igreja Saint-Gervais deu meio-dia.
- Sabe o nosso futuro endereço em Roma? - perguntei-lhe.
Dell'Aversano tirou do bolso interior do casaco um envelope.
- É no número 7 da Via Frescobaldi.
Virou-se para Gisèle:
- Conhece Roma?
- Não - respondeu ela.
- Então não estava com o seu irmão quando ele fez lá a passagem de ano há quinze anos?
Ele sorriu-lhe e ela retribuiu-lhe.
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- E a Via Frescobaldi, é em que bairro? - perguntei-lhe.
- Vou-lhe explicar.
Com uma esferográfica, fez dois traços paralelos no envelope.
- Aqui, é a Via Veneto... Já conhece a Via Veneto...
Eu tinha-lhe contado como, a pedido do meu pai, tentara apanhar aquela mulher de cabelos amarelo-palha e com uma maquilhagem demasiado carregada que desatara a correr
à nossa frente.
- Segue pela Via Pinciana ao longo dos jardins da Villa Borghèse...
Ele continuou a traçar linhas no envelope e com a ponta da esferográfica indicava-nos o caminho.
- Viram à esquerda sempre ao longo da Villa Borghèse e vão dar à Via Frescobaldi... é ali...
Desenhou uma cruz.
- A vantagem do bairro é que está rodeado de verdura... A sua rua é muito perto do jardim zoológico...
Não conseguíamos desviar nem um nem outro o olhar do plano que ele acabara de desenhar. Eu caminhava com a Gisèle, no verão, pelas sombras da Via Frescobaldi.
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Cais Conti, Grabley tinha deixado um bilhete em cima do canapé do escritório:
Meu caro Obligado,
Telefonaram para si por volta das 14 horas. Um homem que dizia ser da polícia. Deixou o nome: Samson, e um número onde o pode encontrar: Turbigo 92-00.
Espero que não tenha feito nada de que se possa arrepender.
Ontem, a noite terminou melhor do que eu o previa e lamentámos muito a sua ausência. Quer juntar-se outra vez a nós esta noite, no Tomate, na sessão das 22 e trinta?
Seu Grabley.
Perguntei a Gisèle se devia telefonar para saber imediatamente o que pretendia aquele homem. Mas decidimos que lhe competia a ele voltar a ligar.
Passámos a tarde na expectativa, e a tentarmos ultrapassar o nervosismo. Amachuquei e desfiz a nota de Grabley onde ele escrevera: "Espero que não tenha feito nada
de que se possa arrepender."
- Achas que eles sabem o que fizemos ontem à tarde?
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Gisèle encolheu os ombros e sorriu para mim. Parecia mais calma do que eu. Estendemos no chão o mapa de Roma e procurámos familiarizar-nos com o bairro decorando
o nome das ruas, dos monumentos e das igrejas que estavam próximos do nosso futuro domicílio: Porta Pinciana, Igreja Santa Teresa, Templo de Esculápio, Museu Colonial...
Ninguém nos encontraria ali.
Mais tarde começou a escurecer e nós estávamos estirados no canapé. Ela levantou-se e enfiou a saia e a camisola pretas.
- Vou buscar cigarros.
Gisèle preferia que eu ficasse para atender o telefone. Pedi-lhe para comprar um jornal da tarde.
Observei-a da janela. Não foi de carro. Caminhava com um passo indolente, as mãos nos bolsos do impermeável desabotoado.
Desapareceu na esquina do edifício Monnaie. Estendi-me novamente no canapé. Tentei lembrar-me dos móveis que tinham estado, outrora, no escritório.
O telefone tocou. Uma voz surda, um pouco hesitante.
- Telefono-lhe da parte do senhor Samson que lhe pediu informações na última quinta-feira. Uma jovem foi convocada a seguir a si... Vocês encontraram-se mais tarde
no Café Soleil d'Or...
Ele fez uma pausa. Mas eu não disse nada. Sentia-me incapaz de proferir uma só palavra.
- Passaram estes quatro dias juntos e ela vive em sua casa... Queria avisá-lo...
O escritório encontrava-se agora na penumbra e ele continuava a falar com a sua voz surda.
- Ignora muitas coisas a respeito dessa pessoa... Suponho que ela até lhe mentiu em relação ao nome... Chama-se Suzanne Kraay...
Soletrava o nome, mecanicamente: K.R.A.A.Y. Tive a sensação de estar a ouvir uma voz gravada num disco, como o das horas.
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- Ela já cometeu vários delitos que lhe valeram vários meses na Petite-Roquette... Mas isto, suponho que lho escondeu... Também certamente lhe escondeu que era casada...
- Estou ao corrente - respondi-lhe numa voz que eu pretendi seca.
Houve um silêncio.
- Não está com certeza ao corrente de tudo.
- Isso não me interessa - disse-lhe.
- Mas interessa-me a mim e esquece-se de que é menor...
A voz era novamente surda, longínqua.
- E corre graves riscos...
Ouvi um ruído de interferências como se o meu interlocutor se encontrasse no outro canto do mundo. Mas o ruído cessou e a voz chegou-me muito próxima e muito clara.
- Gostaria de o encontrar rapidamente para tirarmos as coisas a limpo. É do seu interesse. Tem de saber a que é que se expõe visto que é menor... Está de acordo
em encontrar-se comigo?
Ele pronunciou a última frase no tom simultaneamente untuoso e autoritário de certos vigilantes de colégio.
- Está bem - disse-lhe.
- Esta noite, às dez horas, perto da sua casa... No café, no cais, em frente da colunata do Louvre... Vê-o das suas janelas... Espero-o sem falta às dez horas...
Eu sou o Senhor Guélin.
Soletrou o nome, depois desligou.
Eu também desliguei. A sua voz lembrou-me a de um homem com quem me cruzei, um sábado, quando ia ao jardim do Luxemburgo ou ao cinema Danton. Ele vestia um fato
de treino cinzento e vinha de um ginásio. Um homem loiro de quarenta e tal anos, de cabelos muito curtos e de faces cavadas. Uma tarde, dirigiu-me a palavra num
desses cafés tristes do Carrefour do Odéon. Era escritor e jornalista. Eu disse-lhe que também gostaria de escrever, um dia. Então, ele teve um sorriso desdenhoso:
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- Muito trabalho, sabe... Muito trabalho... Com certeza que não chega lá...
E citou-me o exemplo de um jovem e célebre bailarino por quem sentia admiração que "trabalhava no duro vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas".
- E isso escrever, como vê... vinte e quatro horas de exercício por dia... duvido que tenha essa força de vontade... Nem vale a pena experimentar.
Quase me convenceu.
- Posso-lhe mostrar como escrevo...
Marcou-me um encontro em sua casa, na Rua Dragon. Duas assoalhadas com paredes brancas de cal, traves de madeira escura, um escritório rústico da mesma cor e cadeiras
muito direitas com espaldar grande. Ele trazia vestido o seu fato de treino cinzento. Dedicou-me um livro de que esqueci o título. Para minha grande surpresa, aconselhou-me
a ler Les Jeunes Filles de Montherlant. Depois, quis acompanhar-me ao meu domicílio no seu carro, um Dauphine Gordini. Nos meses seguintes, via da minha janela,
durante a noite, esse carro azul com os frisos brancos estacionado em frente do prédio. E tinha medo.
Olhei para ver se por acaso não estaria lá hoje.
Mas não. O silêncio. A noite caiu. Eu preferia os reflexos dos candeeiros nas paredes, à luz abafada da lâmpada que pendia do teto. Novamente, receei que a Gisèle
não voltasse. A voz que eu ouvira ao telefone aumentava ainda mais a minha sensação de solidão e de abandono. Ela correspondia bem a este escritório onde eu tinha
dificuldade em me lembrar do lugar dos móveis.
A Petite-Roquette... Andei um dia pela rua do mesmo nome -e passei em frente do edifício da prisão. Frequentemente, nos meus sonhos, a Rua Roquette desemboca numa
praça como as que existem em Roma, no meio da qual se eleva uma fonte. É sempre verão. A praça está deserta e inundada de sol. O silêncio
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só é quebrado pelo murmúrio da fonte. E eu fico ali, na sombra, à espera que Gisèle saia da prisão.
A porta da entrada bateu: reconheci os seus passos. Ela estava ali, na minha frente, com o seu impermeável desabotoado. Acendeu a luz. Disse-me que eu estava com
uma cara esquisita.
- O tipo telefonou.
- Então?
Expliquei-lhe que era alguém que queria informações sobre o meu pai e que marcou encontro comigo nessa noite, às dez horas, no café, mesmo em frente, do outro lado
do Sena.
- Não vai demorar muito tempo.
Tomei a sua cara nas minhas mãos e beijei-a. Pouco me importava se ela se chamava Gisèle ou Suzanne Kraay e se tinha passado uns tempos na Petite-Roquette. Se a
tivesse conhecido na época, não teria falhado uma só ocasião de a visitar no parlatório. E mesmo que tivesse cometido um crime, era-me indiferente, conquanto ela
estivesse viva, agarrada a mim, com a sua saia e a sua camisola pretas.
- Não tens medo que ele nos venha incomodar? - perguntou-me ao ouvido.
Primeiro, pensei que se referia ao homem que tinha telefonado. Mas era de Grabley que falava.
- Não. Está no Tomate...
Mesmo assim empurrámos o canapé para bloquear a porta do escritório.
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Eu via brilhar a luz do café do outro lado do Sena, à esquina do cais. O homem já teria chegado? Gostava de ter ali uns binóculos potentes para o observar. Ele,
do café, também podia verificar se havia luz nas janelas do apartamento. E esta ideia causou-me uma sensação súbita de inquietação, como se uma armadilha se fechasse
sobre mim.
- O que é que estás a ver?
Ela estava estendida no canapé. A sua saia e a blusa foram atiradas para cima da mesinha baixa.
- Estou à espera do bateau-mouche - disse-lhe.
Entreabri a janela. O Cais Conti permanecia vazio por um bom bocado, o tempo do sinal vermelho passar a verde, lá em baixo, ao nível da Pont-Neuf. E antes que os
poucos automóveis aparecessem novamente, fazia-se um silêncio, o mesmo que sem dúvida o meu pai conheceu nas noites da Ocupação atrás da mesma janela.
Nessa época, o café em frente não brilhava e a colunata do Louvre mergulhavam na escuridão. A vantagem de hoje, era a de se saber onde estava o perigo: aquela luz
do outro lado do Sena.
- Tenho de ir ao encontro.
Vi as horas. Dez horas menos um quarto.
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Ela sentara-se na beira do canapé. Apoiou o queixo na palma das mãos.
- És obrigado a ir?
- Se não for agora, esse tipo não me deixa... É melhor desenvencilhar-me imediatamente dele.
Repeti-lhe que se tratava de um antigo sócio do meu pai. Quis dizer-lhe a verdade. Contive-me a tempo. Ela preferia acompanhar-me a ficar sozinha no apartamento.
Saímos com o cão. Pensou que íamos a pé até ao café atravessando a Ponte das Artes. Mas disse-lhe que era melhor ir de carro.
No momento de entrarmos na Ponte do Carrousel, tive de lhe pedir para continuar em frente, ao longo do cais. Depois, para a margem direita, à medida que nos aproximávamos
do café, comecei a raciocinar. Sentia-me pronto agora para esse encontro e estava ansioso para ver a cara daquele homem.
Parámos na esquina do cais e da Rua do Louvre, em frente da entrada do café. Havia apenas um cliente sentado na esplanada. Ele lia um jornal em cima da mesa e não
reparou no nosso carro. Senti a mão de Gisèle apertar-me o braço. Ela fixava o homem, com a boca aberta. A sua cara tomou-se lívida.
- Não vás, Jean... suplico-te.
Fiquei admirado por ela me ter tratado pelo meu nome. Segurava-me no braço.
- Porquê? Tu conhece-lo?
Ele continuava a ler o jornal, sob a luz do néon. Antes de voltar a página, passava a língua no indicador.
- Se fores, estamos perdidos... Já tive problemas com esse homem...
Uma expressão de terror crispava-lhe a cara. Mas eu, eu estava muito calmo. Acariciei-lhe carinhosamente a testa e os lábios. Tive vontade de a beijar e de lhe sussurrar
palavras reconfortantes. Disse-lhe simplesmente:
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- Não tenhas medo... Esse tipo não NOS PODE FAZER NADA...
Ela tentou ainda reter-me mas eu abri a porta e saí do carro.
- Espera-me aí... E se isto demorar muito tempo, volta para o apartamento.
Pela primeira vez na minha vida, eu estava seguro de mim. A minha timidez, as minhas dúvidas, esse costume de me desculpar por tudo e por nada, de me denegrir, de
dar frequentemente razão aos outros contra mim, tudo havia desaparecido como o cair de uma pele morta. Eu via-me num desses sonhos onde encontramos os perigos e
os tormentos do presente mas os evitamos sempre porque já conhecemos o futuro e nos sentimos invencíveis.
Empurrei a porta envidraçada. Ele levantou a cabeça do jornal. Um homem de quarenta e tal anos, de cabelos castanhos, uma calvície em forma de coroa. Vestia um casaco
castanho-claro.
Plantei-me em frente dele.
- O senhor Guélin, presumo?
Observou-me com um olhar frio, como se avaliasse o preço que me iria fazer pagar pela minha aparente desenvoltura.
- Ficamos melhor lá ao fundo...
A sua voz era mais metálica que ao telefone. De pé, com o seu casaco, de ombros largos e atarracado, a calvície e aquela cara brutal, fazia-me lembrar um antigo
jogador de futebol.
Sentámo-nos a uma mesa, ao fundo do café, ele no banco de napa vermelha. Não havia ninguém além de nós. Exceto um homem de fato ao balcão onde se vendiam cigarros.
Mas ele parecia ignorar-nos.
Mantinha-se apoiado na mesa, com os cotovelos afastados, observando-me sempre com um olhar frio e com o queixo ligeiramente levantado:
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- Fez muito bem em ter vindo... senão arriscava-se a complicar a sua situação...
Ele tentava fazer-me baixar o olhar. Mas não, não conseguia. Aproximei mesmo a minha cara da sua, em sinal de desafio.
- Passou-se algo de muito grave, ontem à tarde, em Neuilly... Está a ver o que quero dizer?
- Não.
- A sério? Você é um rapaz inteligente, é melhor falar-me francamente...
Eu não baixava os olhos e a sua cara estava tão próxima que quase tocava na minha. O seu hálito cheirava a anis.
- Primeiro, você é menor... E a sua noiva prostitui-se já há algum tempo...
Estas palavras foram pronunciadas numa voz áspera mas ele observava a minha reação.
Fiz um esforço para lhe sorrir, um sorriso grande que devia parecer um esgar.
- Ela frequenta um apartamento, 34 Rua Desaix... Conheço bem o endereço da dona... e mesmo a maior parte dos clientes... Você também, suponho?
Lembrei-me da outra noite, quando estava à espera em frente dos prédios. O viaduto do metro aéreo, no princípio da rua. E o muro interminável da caserna Dupleix.
Vi-a sair de um dos prédios e caminhar na minha direção.
- Imagino que também conhece o marido da sua noiva?
- Essas coisas não me dizem respeito, meu caro senhor.
Falei num tom sonhador, ausente.
- Sim, sim, dizem-lhe respeito. E vai explicar detalhadamente o que se passou ontem à tarde.
O jornal estava dobrado dentro do bolso do casaco. Há pouco tinha pedido a Gisèle para me trazer o jornal da tarde, mas ela esquecera-se.
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- Não se passou nada ontem à tarde.
Afastei-me dele para não sentir mais o seu hálito anisado. Apoiei-me nas costas do assento.
- Nada? Está a brincar...
Ele cruzou os braços.
Eu não conseguia despregar os olhos do jornal, no seu bolso. Talvez mo fosse desdobrar e mostrar a fotografia do homem que víramos entrar para o automóvel do Ansart
e dizer-me que tinham pescado o corpo que flutuava debaixo da ponte de Puteaux. Mas essa perspetiva deixava-me indiferente. Foi mais tarde, por volta dos trinta
anos, que comecei a sentir uns vagos remorsos quando pensava nesses episódios do passado, como o equilibrista que ainda sente uma vertigem depois de já ter atravessado
o abismo, no seu arame.
- Você vem comigo, a casa de uns amigos. E aconselho-o a dar-nos explicações, senão arrisca-se a grandes aborrecimentos...
O tom não admitia réplica nem o seu olhar duro sempre fixo em mim. Senti que perdia o pé e, para ganhar coragem, disse:
- Mas afinal quem é você?
- Eu sou um amigo muito próximo do senhor Samson.
O que é que ele queria insinuar com isso? Que pertencia à polícia?
- Um amigo muito próximo é o quê?
Ele ficou aborrecido com a minha pergunta. Retomou tudo de novo:
- É alguém que o pode mandar imediatamente para a prisão.
Produziu-se então um fenómeno curioso: eu não baixei os
olhos, e aquele homem perdia a sua postura. Fazia-me lembrar, pouco a pouco, aquela série de indivíduos que se iam encontrar com o meu pai no hall dos hotéis ou
dos cafés como este. Eu acompanhava-o frequentemente. Tinha catorze anos mas observava toda essa gente à luz dos néons. O mais elegante de entre
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eles, o que à primeira vista parecia ser o mais respeitável, acabava sempre por se mostrar como um feirante falido.
- Porque é que se quer ocupar da minha educação?
O outro pareceu desconcertado:
- Daqui a um bocado já não se arma em espertinho.
Mas era demasiado tarde para ele. Afastava-se no tempo. Iria juntar-se a todos os figurantes, e a todos os pobres acessórios de um período da minha vida: Grabley,
a mulher dos cabelos amarelo-palha, o Tomate, o apartamento sem móveis, um velho sobretudo azul-escuro entre a multidão de passageiros da estação de Lyon...
- Adeus, meu caro senhor.
Estava cá fora. Lá em baixo, na pequena praça, ela estava à minha espreita. Fez-me um sinal com o braço. Tinha estacionado o carro na penumbra da Igreja de Saint-Germain-l'Auxerroi


s.
- Tive medo que ele te levasse...
A sua mão tremia. Ela teve de dar várias voltas à chave da ignição para arrancar.
- Não era preciso ter medo - disse-lhe.
- Ele estava no escritório quando o outro me interrogou. Mas eu já o conhecia... Ele não te falou de mim?
- Não. Nada.
Seguimos pela Rua de Rivoli. Novamente me invadiu uma sensação de euforia. Se continuássemos ao longo das arcadas entre as quais cintilavam os candeeiros a perder
de vista, íamos desembocar numa grande praça à beira-mar. Pela janela aberta, respirava já o ar do alto-mar.
- Juras-me que ele não te disse nada sobre mim?
- Juro-te.
O que me dissera aquele fantasma não tinha nenhuma importância: a Petite-Roquette, o número 34 da Rua Desaix e a tarde
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em Neuilly onde se tinha passado "algo de grave". Tudo isto estava tão longe... Tinha dado um salto para o futuro.
- Esta noite, é melhor não ficar no apartamento.
Tive de lhe repetir que não corríamos nenhum risco, ela parecia tão inquieta, tão nervosa, que acabei por lhe dizer:
- Iremos onde quiseres...
Mas senti um aperto no coração ao vê-la prisioneira daquelas sombras e daqueles acontecimentos que me pareciam já terminados. Era como se eu tivesse atingido o alto-mar
e a visse debater-se contra a corrente, atrás de mim.
Voltámos ao apartamento do Cais Conti para recolher as suas malas. Ela ficou à minha espera ao pé da pequena escada que levava ao quinto andar.
No preciso momento em que abria a porta do cubículo, o telefone tocou. Ela ficou petrificada a olhar para mim.
- Não atendas.
Desci a escada com as duas malas e entrei no escritório. O telefone continuava a tocar. Procurei-o às apalpadelas:
- Está lá...
Silêncio.
- Ainda está no café, Guélin? - perguntei.
Nenhuma resposta. Parecia-me ouvir a sua respiração. Ela pegou no auscultador. Estávamos de pé, perto de uma das janelas. Não pude deixar de deitar uma espreitadela
para o outro lado do Sena. Lá em baixo, o café tinha luz.
- Como é que vai isso, seu imbecil? - perguntei eu.
Uma respiração, novamente. Parecia o murmúrio do vento nas folhas. Ela queria que eu desligasse e agarrava no auscultador com muita força tentando arrancar-mo, mas
não conseguia. Eu segurava-o, colado ao meu ouvido. Uma noite, à mesma hora,
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no mesmo local, durante a Ocupação, o meu pai recebeu uma chamada semelhante. Ninguém respondia. Era sem dúvida um homem como aquele de há pouco, de cabelos castanhos,
um bocado careca, sobretudo castanho-claro e que pertencia ao Service Permilleux encarregado de descobrir os judeus clandestinos.
Um ruído de chuva. Desligaram.
- Temos de ir embora imediatamente - disse-me ela.
Ela transportava uma das malas, a mais leve, e atravessámos o vestíbulo. No momento em que íamos a sair, pousei a outra mala:
- Espera. Eu já volto...
Subi muito depressa a pequena escada e no quarto do quinto andar agarrei em alguns livros que ainda estavam nas prateleiras no intervalo das duas janelas entre os
quais As Almas Sensíveis.
Pu-los ao monte em cima de um dos lençóis da cama e dei um nó como uma trouxa. Aqueles já se encontravam ali muito antes da chegada do meu pai ao apartamento. Fora
o locatário anterior, o autor da La chasse à courre, que se esquecera deles. Alguns tinham o nome, na página de guarda, de um misterioso François Vernet.
Quando voltei a descer com o meu saco improvisado, ela encontrava-se à minha espera no patamar.
Bati com a porta e tive a sensação de deixar o apartamento para sempre, por causa dos livros que levava comigo.
Desta vez tínhamos deixado o cão no carro. Quando nos viu, deu uma espécie de latido e fez-nos uma festa.
Pusemos as duas malas e a trouxa de livros no porta-bagagens.
- Onde vamos? - perguntei-lhe.
- Ao hotel onde aluguei um quarto.
Pensei no porteiro da noite, com o seu maxilar quadrado, os lábios finos e o olhar de desprezo que nos deitara, na outra noite. Agora, eu já não tinha medo dele.
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Nem tão-pouco Gisèle, porque me disse:
- Se lhe tivéssemos dado dinheiro ele tinha fechado os olhos.
Voltei-me para ela.
- Tens algum dinheiro para ir para Roma?
- Tenho. Economizei trinta mil francos.
Com o dinheiro de Dell'Aversano e de Ansart, fazia mais de quarenta mil francos entre os dois.
- Tenho metade numa mala e escondi o resto na casa de Saint-Leu-la-Forêt. Tenho de o ir buscar amanhã.
Não ousei perguntar-lhe a proveniência desse dinheiro. Seriam as economias do marido? Ou era o que ela ganhara no nº 34 da Rua Desaix, naquele apartamento a que
o homem fizera alusão ainda há pouco? Mas isso não tinha nenhuma importância. Pertencia ao passado. Em Roma, numa noite de primavera, começaríamos a viver a nossa
verdadeira vida. Esqueceríamos todos esses anos da adolescência e até o nome dos nossos pais.
Seguíamos pelo cais. A fachada apagada da estação d'Orsay com os seus alpendres enferrujados que não davam para coisa nenhuma. E o hotel, no mesmo edifício da estação.
Parámos no sinal vermelho e eu vi a entrada e o balcão da receção.
Ela perguntou-me:
- Queres alugar um quarto aqui?
Seríamos os únicos clientes daquele hotel que se confundia no exterior com a estação abandonada.
Às vezes sonho que estou com ela, no meio do hall da receção. O porteiro da noite tem um uniforme coçado de chefe de estação. Ele acabou de nos dar a chave. O elevador
não funciona e nós subimos uma escada de mármore. No primeiro andar, tentamos em vão encontrar o nosso quarto. Atravessamos a grande sala de jantar mergulhada na
escuridão e perdemo-nos nos corredores. Acabamos por desembocar numa antiga sala de espera iluminada por uma lâmpada nua, no teto. Sentamo-nos no único
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banco que ainda resta. A estação já não funciona mas nunca se sabe: o comboio para Roma pode passar, por engano, e parar alguns segundos, o tempo de subirmos para
uma das carruagens.
Estacionámos o carro à esquina da Avenida de Suffren e da ruazinha do hotel. Eu levava as duas malas e ela a trouxa dos livros. O cão ia à nossa frente, sem trela.
A porta do hotel não se encontrava fechada como da primeira vez. O mesmo porteiro da noite estava atrás do balcão da receção. Não nos reconheceu logo. Deitou um
olhar desconfiado à trouxa de lençol que Gisèle levava e ao cão.
- Queríamos um quarto - pediu Gisèle.
- Não alugamos quartos apenas por uma noite - disse ele num tom glacial.
- Então, por quinze dias - disse eu com uma voz doce.
- E pago-lhe em dinheiro, se quiser.
Tirei do bolso do meu casaco o maço de notas que me tinha dado Dell'Aversano.
Ele pareceu interessado. E disse:
- Levo meia tarifa pelo cão.
Foi nesse instante que ele me reconheceu. Fixou em mim o seu olhar de croupier.
- Você já aqui veio noutra noite... Era o irmão da menina... Só tem de mo provar...
Meti-lhe umas notas de cem francos no bolso da frente do casaco. O seu olhar suavizou-se.
- Muito obrigado, senhor.
Voltou-se e retirou uma chave dos cacifos.
- O quarto número três para si e para a sua irmã...
Ele agora dava mostras, perante nós, de uma amabilidade profissional.
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- É no primeiro andar.
Ele estendeu-me a chave e inclinou-se para nós.
- Não se engane... O hotel só ocupa o primeiro andar do edifício. O resto, são apartamentos mobilados.
Ele sorriu.
- Evidentemente que não é muito regulamentar... Mas há muitas coisas na vida que não estão conforme o regulamento, não é?
Agarrei na chave, uma simples chave de metal branco que não tinha o aspeto de uma chave de quarto de hotel.
- Infelizmente, juntamente com a conta, não lhe posso dar uma fatura.
Ele tinha um ar desolado.
- Não se incomode - disse-lhe eu. - É muito melhor assim.
Subimos a escada, coberta com uma passadeira vermelha e
usada.
Várias portas, de cada lado do corredor. Cada uma delas com um número escrito a lápis.
Entrámos no quarto número três. Era espaçoso e com o teto alto. Uma janela envidraçada dava para a rua. A cama, muito grande, tinha uns lençóis azuis-celeste e uma
colcha escocesa. Uma pequena escada de madeira branca dava até uma mezzanine. O cão deitou-se no chão, ao pé da cama.
- Nós podemos ficar aqui até à nossa partida para Roma -disse Gisèle.
Com certeza. Enquanto se esperava pela partida, nunca mais deixaríamos o bairro, tal como os passageiros na sala de um aeroporto antes do embarque. Nem tão-pouco
deixaríamos aquele quarto nem aquela cama. E eu imaginava o homem de casaco castanho-claro de há pouco, a tocar à porta do apartamento do Cais Conti, de manhã cedo,
para nos vir buscar como fizera vinte anos atrás com o meu pai e como o faria eternamente. Mas ele nunca nos deitaria a mão.
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- Em que é que estás a pensar? - perguntou-me.
- Em Roma.
Ela apagou o candeeiro da mesa de cabeceira. Estávamos na cama e não tínhamos aberto as cortinas da janela grande. Eu ouvia o ruído das vozes e do bater das portas
que vinha da garagem em frente. Os reflexos do anúncio luminoso projetavam-se em nós. Cedo tudo ficou silencioso. Eu sinto os seus lábios na minha fronte e na minha
orelha. Ela pergunta-me, em voz baixa, se a amo.
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No dia seguinte, levantámo-nos por volta das dez horas. Não havia ninguém na receção do hotel.
Tomámos o pequeno-almoço na Rua do Laos num café com o mesmo nome.
Ela disse-me que ia imediatamente buscar o resto do dinheiro a Saint-Leu-la-Forêt e que esperava que "tudo corresse bem". Sim, ela arriscava-se a encontrar o marido
e as outras pessoas que viviam na casa. Mas, no fundo, que importância tinha? Já não precisava de prestar contas a ninguém.
Dispus-me a acompanhá-la, mas disse-me que era melhor ir sozinha.
- Telefono-te à uma hora, se precisar de ti.
Voltámos ao hotel para ela anotar o número do telefone. O porteiro ainda não estava lá mas descobrimos no balcão uma pilha de cartões beges onde estava escrito:
Hotel-Pensão Ségur - apartamentos mobilados, 7 Rua da Cavalerie (15.0) SUFFREN 75-55. Meteu um no bolso do impermeável.
Fomos até ao carro. Ela deu-me o braço. Queria levar o cão. Sentou-se ao volante e ele no banco de trás. Encontrei um pretexto para não me separar logo dela. Será
que me podia deixar numa banca de jornais?
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Gisèle seguia de Suffren para o Sena. Parou em frente da primeira banca.
- Até já.
Ela inclinou-se pela janela aberta e acenou-me com a mão.
Enfiei o jornal no bolso. Virei na primeira rua, à esquerda, segui e desemboquei num lugar no meio do qual havia uma grande praça com um coreto.
Sentei-me num dos bancos ao pé do coreto para ler o jornal. À minha frente, a fachada da caserna Dupleix.
Fazia sol. Um céu sem nuvens. No banco vizinho ao meu, uma mulher morena de trinta e tal anos vigiava um rapazinho que andava de bicicleta.
Fui surpreendido pelo aproximar de um ruído de cascos de cavalo. Um grupo de cavaleiros de farda militar entrava a passo na caserna. Lembrei-me dos domingos da minha
infância em que ouvia o mesmo barulho quando o cortejo da Guarda republicana passava no cais.
Na página das notícias, não encontrei a fotografia do homem que eles fizeram entrar para o carro no domingo à tarde. Não havia nada sobre Ansart nem Jacques de Bavière
nem sobre Mar-tine Gaul.
Lembrei-me de que na outra noite estávamos muito perto daqui e decidi ir até à Rua Desaix, sem saber exatamente onde ela estava. Mas era só seguir ao longo da parede
da caserna.
Reconheci o edifício do número 34. Sim, fora exatamente ali que ficara à espera dela. O viaduto aéreo do metro, à esquerda, fechava a perspetiva da rua. Em que andar
era o apartamento?
Tomei o mesmo caminho e estava novamente na praça em frente da caserna.
Enfiei pela Avenida Suffren até à rua do hotel.
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Continuava a não haver ninguém na receção. O telefone estava assente no rebordo de madeira por cima dos cacifos. Era quase uma hora. Fiquei agarrado ao balcão. Uma
hora. Uma hora e um quarto. Nenhum toque. Levantei o auscultador para verificar se funcionava bem e ouvi o sinal.
Ela marcara comigo às duas horas, no café, Rua do Laos. Não me apetecia voltar para o quarto. Saí e segui pela Avenida Suffren, mas desta vez no outro sentido. A
avenida era mais calma desse lado. Ao longo do passeio oposto, ficavam os edifícios antigos da Escola Militar. E as filas de plátanos. Não veríamos as folhas da
próxima primavera porque estaríamos em Roma.
À medida que andava, parecia-me que estava já numa cidade estrangeira, que era outra pessoa. O que tinha vivido na minha infância e nos anos que se seguiram, até
ao meu encontro com Gisèle, desprendia-se lentamente de mim como se de farrapos se tratasse, diluía-se, a ponto de, de tempos a tempos, eu ter de fazer um último
esforço para reter alguns trechos antes que se volatilizassem: os anos do colégio, a figura do meu pai de casaco azul-escuro, a minha mãe, Grabley, os reflexos do
bateau-mouche no teto do quarto...
Às duas menos dez, cheguei ao café da Rua do Laos. Ela ainda não se encontrava lá. Quis comprar-lhe, na florista em frente, um ramo de rosas, mas não tinha dinheiro
comigo. Fui até ao hotel. Quando entrei, o porteiro da noite estava atrás do balcão da receção.
Olhava para mim fixamente. Estava muito corado.
- Senhor...
Ele não encontrava as palavras mas compreendi mesmo antes de o ouvir. A sua amiga. Um acidente. Exatamente após a ponte de Suresnes. Tinham descoberto a carta do
hotel no bolso do seu impermeável e telefonaram para aqui.
Saí maquinalmente. Lá fora, havia um ambiente leve, claro, indiferente, como o céu de janeiro quando está azul.

Ela tinha deixado as chaves do carro em cima do tabliê. Entrou no prédio. Perguntei a mim próprio se ela voltaria. Após alguns instantes, saí do carro e plantei-me à porta do edifício, uma porta envidraçada com ferragens. Talvez houvesse uma porta dupla. Ela desaparecera e deixara-me ali com aquele carro inútil. Tentei raciocinar.
No caso de ela fugir eu tinha vários pontos de referência: o café da Rua Washington do qual Jacques era cliente assíduo, o apartamento de Ansart e principalmente as malas. Porquê este medo de a ver desaparecer? Eu conhecia-a há vinte e quatro horas e não sabia nada dela. Até o seu nome próprio eu tinha sabido por terceiros.
Ela não parava num sítio, andava de um lado para o outro como se fugisse de um perigo. Tinha a sensação de a não conseguir deter.

 


https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/UM_CIRCO_QUE_PASSA.jpg

 


Eu tinha dezoito anos e aquele homem de quem eu já esqueci os traços fisionómicos batia as minhas respostas à máquina à medida que eu declinava o meu estado civil,
o meu endereço e uma pretensa qualidade de estudante. Ele perguntou-me como ocupava os meus tempos livres.
Hesitei durante alguns segundos:
- Vou ao cinema e às livrarias.
- Com certeza que não vai só ao cinema e às livrarias.
Ele mencionou o nome de um café. Tive de lhe repetir várias vezes que nunca lá tinha posto os pés, mas percebi que ele não me acreditava. Por fim, resolveu-se a
escrever a frase seguinte:
"Eu passo os meus tempos livres no cinema e nas livrarias. Nunca frequentei o Café da Tournelle, n° 61, no cais do mesmo nome."
De novo perguntas sobre a forma como passava os meus tempos livres e sobre os meus pais. Sim, frequentava aulas na Faculdade de Letras. Não corria nenhum risco em
lhe contar esta mentira porque me tinha inscrito naquela Faculdade, mas unicamente para prolongar o adiamento do serviço militar. Quanto aos meus pais, tinham ido
para o estrangeiro e eu ignorava a data do regresso, e era possível que nunca mais voltassem.
9

Então, ele mencionou o nome de um homem e de uma mulher e perguntou-me se eu os conhecia. Respondi-lhe que não. Pediu-me para pensar bem. O facto de eu não dizer
a verdade, poderia acarretar-me graves consequências. Esta ameaça fora proferida num tom calmo, frio. Não, realmente eu não conhecia essas duas pessoas. Ele bateu
a minha resposta à máquina depois estendeu-me a folha, onde em baixo se encontrava escrito: leitura feita, confirma e assina. Nem sequer li o meu depoimento e assinei
com uma esferográfica que estava por ali.
Antes de sair, quis saber a razão daquele interrogatório.
- O seu nome figurava na agenda de uma pessoa.
Mas não me disse quem era essa pessoa.
- Voltaremos a convocá-lo se precisarmos de si.
Ele acompanhou-me até à porta do escritório. No corredor, num banco de couro, estava sentada uma rapariga de uns vinte e dois anos.
- Agora é a sua vez - disse-lhe ele.
Ela levantou-se e trocámos um olhar. Pela porta que ele deixou entreaberta, vi-a sentar-se no mesmo lugar onde eu tinha estado antes.
Encontrei-me novamente no cais. Eram mais ou menos cinco horas da tarde. Caminhei na direção da Ponte Saint-Michel com o fito de esperar pela saída daquela rapariga
após o interrogatório. Mas eu não podia ficar plantado em frente da entrada do edifício da polícia. Decidi refugiar-me no café que fazia esquina para o cais e para
o Boulevard du Palais. E se ela tivesse ido pelo caminho oposto até à Pont-Neuf ? Mas eu não tinha pensado nisso.
Estava sentado por detrás do vidro da esplanada, com o olhar fixo no Quai des Orfevres. O seu interrogatório foi mais longo que o meu. Anoitecia quando a vi caminhar
em direção ao café.
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No momento em que ela passava em frente da esplanada, bati com as costas da mão no vidro. Reconheceu-me surpreendida e veio ter comigo.
Sentou-se à mesa como se já nos conhecêssemos e tivéssemos marcado encontro. Foi ela quem falou primeiro:
- Ele fez-lhe muitas perguntas?
- O meu nome estava escrito na agenda de uma pessoa.
- E sabe quem era essa pessoa?
- Não me quiseram dizer. Mas talvez me possa informar.
Ela franziu o sobrolho.
- Informá-lo de quê?
- Acho que o seu nome também aparecia escrito nessa agenda e foi interrogada pelo mesmo motivo.
- Não. Eu fui para testemunhar.
Parecia preocupada. Tive até a impressão de que se esquecia a pouco e pouco da minha presença. Fiquei calado. Ela sorriu-me. Perguntou-me a idade. Respondi-lhe que
tinha vinte e um anos. Acrescentei mais três anos: a idade da maioridade, naquela época.
- Trabalha?
- Sou agente livreiro - disse-lhe ao acaso num tom que me esforçava para que fosse firme.
Ela observava-me, pensando sem dúvida se podia confiar em mim.
- Faz-me um favor? - perguntou-me.
Praça do Châtelet, ela quis apanhar o metro. Era hora de ponta. Estávamos comprimidos ao pé das portas. Em cada estação, os que desciam empurravam-nos para o cais.
Depois voltámos a subir para a carruagem com os novos passageiros. Ela encostou a cabeça no meu ombro e disse-me sorrindo que "ninguém nos poderia encontrar no meio
daquela multidão".
11

Na estação da Gare du Nord, fomos levados pela onda de passageiros que iam para os comboios dos subúrbios. Atravessámos o átrio da estação e na sala dos cacifos
automáticos ela abriu um e tirou uma mala preta de couro.
Eu carregava a mala que pesava muito. Achei que ela devia conter tudo menos roupas. Novamente o metro, a mesma linha, mas na outra direção. Desta vez tivemos lugares
sentados. Descemos na Cité.
No extremo da Pont-Neuf, esperámos que o sinal passasse a vermelho. Eu sentia-me cada vez mais ansioso. Perguntava a mim próprio qual seria a receção de Grabley
à nossa chegada ao apartamento. Não deveria eu falar-lhe de Grabley, de forma a ela não se sentir apanhada de surpresa com a sua presença?
Seguimos ao longo do edifício da Monnaie. Ouvi bater as nove horas no relógio do Instituto.
- Tem a certeza de que eu não vou incomodar ninguém ao ir para sua casa? - perguntou-me ela.
- Não. Ninguém.
Não havia nenhuma luz nas janelas do apartamento que davam para o cais. Ter-se-ia Grabley retirado para o seu quarto que dava para o pátio? Normalmente, ele estacionava
o carro no meio da pequena praça entre a Monnaie e o Instituto, mas não se encontrava lá.
Abri a porta do quarto andar e atravessámos o vestíbulo. Entrámos no escritório do meu pai. A luz vinha de uma lâmpada nua pendurada no teto. Não havia mais nenhum
móvel à exceção de um velho canapé de ramagens cor de vinho.
Pus a mala ao pé do canapé. Ela dirigiu-se para uma das janelas.
- Tem uma bela vista...
À esquerda, a extremidade da Ponte das Artes e o Louvre. Em frente, a ponta da ilha da Cité e o jardim do Vert-Galant.
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Sentámo-nos no canapé. Ela olhava à sua volta e parecia admirada com o vazio da casa.
- Vai-se mudar?
Disse-lhe que, infelizmente, nós devíamos deixar aquele lugar dentro de um mês. O meu pai tinha partido para a Suíça para ali acabar os seus dias.
- Porquê a Suíça?
Era realmente muito complicado explicar-lho, naquela noite. Encolhi os ombros. Grabley estava a chegar de um momento para o outro. Qual seria a sua reação ao ver
aquela rapariga e a mala? Receava que telefonasse para a Suíça para o meu pai e que este, num derradeiro assomo de dignidade em relação a mim, pretendesse ainda
assumir o papel dos pais nobres falando-me dos meus estudos e do meu futuro comprometido. Mas seria totalmente inútil da sua parte.
- Estou cansada...
Convidei-a a estender-se sobre o canapé. Ela não despiu o impermeável. Lembrei-me de que o aquecimento não funcionava.
- Tem fome? Vou buscar qualquer coisa à cozinha...
Ela estava no canapé, com as pernas dobradas, sentada sobre os calcanhares.
- Não vale a pena. Só qualquer coisa para beber...
Já não havia luz no vestíbulo. A clarabóia do enorme corredor que levava à cozinha iluminava a casa com uns reflexos pálidos, como se fosse luar. Grabley tinha deixado
aceso o candeeiro do teto da cozinha. Em frente do antigo monta-cargas, uma tábua de passar a ferro em cima da qual reconheci as calças e o seu fato príncipe de
Gales. Era ele próprio que passava as camisas e os fatos. Em cima da mesa de bridge, onde eu às vezes comia com ele, estava um frasco de iogurte vazio, a casca de
uma banana e uma carteira de Nescafé. Ele tinha jantado lá nessa noite.
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Encontrei dois iogurtes, uma fatia de salmão, alguma fruta e uma garrafa de whisky quase vazia. Quando voltei ela lia uma das revistas que Grabley empilhava há várias
semanas em cima da lareira do escritório, revistas "ligeiras" como ele próprio dizia e pelas quais tinha uma grande predileção.
Coloquei o tabuleiro à nossa frente, no chão.
Ela deixou ao seu lado uma revista grande aberta e eu distingui uma fotografia a preto e branco de uma mulher nua, de costas, os cabelos apanhados em rabo de cavalo,
a perna esquerda estendida, a da direita dobrada, o joelho em cima do colchão de uma cama.
- Lê coisas muito curiosas...
- Não, não sou eu que leio isso... é um amigo do meu pai...
Ela trincava uma maçã e serviu-se de um pouco de whisky.
- O que é que meteu naquela mala? - perguntei-lhe eu.
- Oh, nada de interessante... coisas pessoais...
- Era pesada. Pensei que continha lingotes de ouro.
Ela sorriu atrapalhada. Explicou-me que vivia numa casa nos arredores de Paris, do lado de Saint-Leu-la-Forêt, mas os proprietários tinham chegado ontem à noite
de imprevisto. Ela preferira sair porque não se entendia muito bem com eles. Amanhã, ia alugar um quarto num hotel enquanto aguardava um alojamento definitivo.
- Pode ficar aqui o tempo que quiser.
Eu tinha a certeza de que Grabley, após a surpresa inicial, não encontraria nada para dizer. Quanto à opinião do meu pai, ela já não contava para mim.
- Se calhar tem sono?
Prontifiquei-me a ceder-lhe o quarto lá de cima.
Eu dormiria no canapé do escritório.
Subi atrás dela, com a mala na mão, a pequena escada que levava ao quinto andar. O quarto estava tão vazio como o escritório. Uma
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cama encostada à parede do fundo. Não havia nem mesa de cabeceira nem candeeiro. Acendi os dois néons dos dois armários, de cada lado da lareira, onde o meu pai
guardava a sua coleção de peças do jogo de xadrez, mas estas haviam desaparecido, assim como o pequeno armário chinês e o quadro falso de Monticelli, que deixara
marca na madeira azul-celeste. Eu tinha confiado estes três objetos a um antiquário, um certo Dell Aversano, para ele os vender.
- E o seu quarto? - perguntou-me ela.
- Sim.
Pousei a mala em frente da lareira. Ela pôs-se à janela como há pouco, no escritório.
- Se olhar bem para a direita - disse-lhe eu -, vê a estátua de Henrique IV e a Torre de Saint-Jacques.
Ela deu uma olhadela pelos livros, entre as duas janelas. Depois, estendeu-se em cima da cama e tirou os sapatos com um movimento indolente do pé. Perguntou-me onde
ia eu dormir.
- Lá em baixo, no canapé.
- Fique aqui - pediu-me. - Não me incomoda nada.
Ela mantinha ainda vestido o impermeável. Apaguei a luz dos armários. Estendi-me a seu lado.
- Não acha que faz frio?
Ela aproximou-se e deitou docemente a cabeça no meu ombro. Reflexos e sombras em forma de grades deslizavam pelas paredes e pelo teto.
- O que é isto? - perguntou-me ela.
- É o bateau-mouche a passar.
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Acordei sobressaltado. A porta da entrada tinha batido.
Ela estava deitada encostada a mim, nua, com o seu impermeável. Eram sete horas da manhã. Ouvi os passos de Grabley. Estava a telefonar no escritório. A sua voz
tornava-se cada vez mais forte, como se estivesse a discutir com alguém. Depois saiu do escritório e foi para o quarto.
Ela acordou por sua vez e perguntou-me as horas. Disse-me que tinha de se ir embora. Deixara umas coisas na casa de Saint-Leu-la-Forêt e preferia ir buscá-las o
mais cedo possível.
Ofereci-lhe um pequeno-almoço. Havia ainda algumas carteiras de Nescafé na cozinha e um desses pacotes de biscoitos Choco BN que Grabley comprava regularmente. Quando
voltei ao quinto andar com o tabuleiro, ela estava na casa de banho grande. Saiu de lá vestida com a sua saia e a sua camisola pretas.
Telefonar-me-ia ao princípio da tarde. Não tinha papel para anotar o número. Tirei um livro das prateleiras, arranquei a página de guarda onde escrevi o meu nome,
a minha direção e DANTON 55-61. Ela dobrou-a em quatro e enfiou-a num dos bolsos do impermeável. Depois, os seus lábios afloraram os meus e disse-me em voz baixa
que me agradecia e que estava ansiosa por voltar a ver-me.
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Ela caminhava pelo passeio do cais na direção da Ponte das Artes.
Fiquei à espera alguns instantes à janela olhando a sua silhueta lá em baixo, na ponte.
Arrumei a mala no cubículo ao cimo das escadas. Pu-la deitada no chão. Estava fechada à chave. Deitei-me de novo e senti o seu perfume na concavidade de uma das
almofadas. Ela acabaria por me confessar porque é que a tinham interrogado ontem à tarde. Tentei lembrar-me dos nomes das duas pessoas que o polícia tinha mencionado,
perguntando-me se as conhecia. Um dos nomes soava mais ou menos como "Beaufort" ou "Bousquet". Em que agenda teria ele encontrado o meu nome? Talvez se quisesse
informar sobre o meu pai? Ele perguntou-me para que país estrangeiro ele tinha ido. Baralhei as pistas e respondi:
- Para a Bélgica.
Na semana anterior, eu acompanhara o meu pai à estação de Lyon. Ele levava o seu velho sobretudo azul-escuro e como bagagem apenas um saco de couro. Tínhamos chegado
antes da hora, e esperámos o comboio de Genève na grande sala do restaurante do primeiro andar de onde avistávamos o hall e as vias férreas. Seria da luz do fim
do dia, dos dourados do teto, dos lustres, o brilho que batia em nós? O meu pai pareceu-me subitamente envelhecido e cansado, como alguém que há muito tempo joga
"ao gato e ao rato" e está prestes a render-se.
O único livro que levava para esta viagem chamava-se La Chasse à courre. Ele tinha-mo recomendado por várias vezes, porque o autor fazia alusão ao nosso apartamento,
onde vivera durante vinte anos. Que coincidência engraçada... A vida do meu pai, em certos períodos, não se assemelhara ela a uma caça a cavalo na
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qual ele tinha sido o javali? Mas, até então, conseguira livrar-se sempre dos caçadores.
Estávamos frente a frente com os nossos cafés expresso. Ele fumava com o cigarro ao canto dos lábios. Falava-me dos meus "estudos" e do meu futuro. Segundo ele,
era interessante querer escrever romances tal como eu tencionava fazer mas era mais prudente obter alguns "diplomas". Fiquei calado, a ouvi-lo. Os termos "diplomas",
"situação estável", "profissão", adquiriam um som estranho na sua boca. Ele pronunciava-os com respeito e uma certa nostalgia. Após alguns instantes, calou-se, deitou
uma nuvem de fumo e encolheu os ombros.
Não trocámos nem mais uma palavra até ao momento em que entrou na carruagem e se debruçou na janela aberta. Eu fiquei no cais.
- Grabley vai viver no apartamento contigo. Depois, resolvemos. Vai ser preciso alugar outro apartamento.
Mas ele tinha dito isto sem a menor convicção. O comboio de Genève estremeceu e eu tive a sensação nesse mesmo momento de ver afastar-se para sempre aquela cara
e aquele casaco azul-escuro.
Cerca das nove horas, desci ao quarto andar. Tinha ouvido os passos de Grabley. Ele estava sentado com o seu roupão escocês, no canapé do escritório. Ao lado, um
tabuleiro com uma chávena de chá e um Choco BN. Não estava barbeado e tinha uma cara cansada.
- Bom dia, Obligado...
Tinha-me posto aquele nome por causa de uma discussão amigável entre nós. Uma noite, combinámos um encontro em frente de um cinema da Avenida da Grand-Armée. Ele
tinha-me explicado que era na estação de metro Obligado. Mas esta
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estação chamava-se agora Argentine e ele não quis admitir. Fizemos uma aposta que eu ganhei.
- Dormi duas horas esta noite. Fiz uma "digressão".
Ele acariciava o bigode loiro e franzia os olhos.
- Sempre pelos mesmos sítios?
- Sempre.
A sua "digressão" começava invariavelmente às oito horas no Café Deux Magots onde tomava um aperitivo. Depois ia para a margem direita e parava na Praça Pigalle.
Ficava neste bairro até de madrugada.
- E você, Obligado?
- Eu alberguei uma amiga, ontem à noite.
- O seu pai está ao corrente?
- Não.
- Devia tê-lo consultado. Vou com certeza falar com ele ao telefone.
Ele imitava o meu pai quando este se pretendia mostrar sério e responsável, mas soava ainda mais a falso que o original.
- E qual é o género dessa jovem?
Ele adquiria o tom afetado com o qual me convidava, todos os domingos de manhã, a acompanhá-lo à missa.
- Primeiro, não é uma jovem.
- É bonita?
Eu achava aquele sorriso abusador e de uma fatuidade de caixeiro viajante que nos conta as suas aventuras em frente de uma cerveja, num café de uma estação qualquer.
- A minha também não era nada má...
O tom tornava-se agressivo, como se se pusesse a competir comigo. Não sei muito bem o que sentia naquela altura na presença daquele homem sentado no escritório vazio,
que evocava uma mudança demasiado rápida dos móveis e dos quadros empenhados na casa de penhores ou mesmo confiscados. Ele
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era o duplo do meu pai. Tinham travado conhecimento muito jovens, numa praia da costa atlântica e o meu pai desviou esse pequeno-burguês francês. Desde há trinta
anos que Grabley vivia na sua sombra. O único hábito que conservava da sua infância e da sua boa educação era o de ir todos os domingos à missa.
- Apresenta-me essa rapariga?
Deu-me uma piscadela de olho cúmplice.
- Podíamos mesmo sair juntos, se quiser... Gosto muito dos casais jovens.
Eu imagináva-nos, ela e eu, no carro de Grabley a atravessar o Sena na direção de Pigalle. Um jovem casal. Acompanhei-o uma noite ao Deux Magots, antes de ele partir
para a sua "digressão" habitual. Sentámo-nos numa mesa da esplanada. Fiquei surpreendido ao vê-lo cumprimentar um casal com uns vinte e cinco anos: a mulher, uma
loira muito graciosa, o homem, um moreno muito elegante. Ele foi mesmo falar-lhes, à mesa, enquanto eu ficava sentado a observá-los. A idade deles e o seu porte
formavam um tal contraste com os gestos obsoletos de Grabley que até perguntei a mim próprio como é que ele os podia conhecer. O homem parecia divertir-se com os
ditos de Grabley, a mulher mantinha-se mais distante. Ao deixá-los, Grabley apertou a mão do homem e cumprimentou a mulher com um aceno cerimonioso de cabeça. Quando
saímos, ele apresentou-mos mas eu esqueci-me dos seus nomes. Depois, ele disse-me que aquele "jovem" era "uma relação muito útil" e que o tinha conhecido durante
as suas "digressões" por Pigalle.
- Está com um ar pensativo, Obligado... Está apaixonado?
Ele tinha-se levantado e mantinha-se de pé à minha frente,
com as mãos nos bolsos do roupão.
- Vou ter de trabalhar durante todo o dia. Tenho de organizar e de fazer toda a mudança dos papéis do nº 73.
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Era um escritório que o meu pai tinha alugado, no Boulevard Haussmann. Eu ia frequentemente lá ter com ele ao fim da tarde. Uma divisão esquinada com um pé alto
muito grande. O dia entrava pelas quatro portadas das janelas de sacada que davam para o boulevard e para a Rua de l'Arcade. Havia prateleiras nas paredes e uma
mesa maciça em cima da qual se encontravam arrumados tinteiros, mata-borrões e uma escrivaninha.
Em que é que ele trabalhava ali? Encontrava-o sempre ao telefone. Trinta anos depois acabo de descobrir, por acaso, um envelope que tinha impresso no verso: Sociedade
Civil de Estudos de Tratamento de Minerais, 73, Boulevard Haussmann Paris 8º
- Pode ir ter comigo ao nº 73 com a sua amiga. Poderíamos jantar juntos...
- Acho que ela não está disponível esta noite.
Ele parecia desiludido. Acendeu um cigarro.
- Em todo o caso, telefone-me para o nº 73 para me dizer o que pensa fazer... Terei imenso prazer em a conhecer...
Achei que tinha de manter as distâncias senão arriscava-me a tê-lo em cima de mim vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. Mas eu nunca soube dizer não.
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Fiquei no escritório, a ler, à espera do seu telefonema. Ela havia-me dito: ao princípio da tarde. Eu coloquei o telefone em cima do canapé. A partir das três horas,
comecei a sentir uma vaga inquietação que, pouco a pouco, se foi agravando. Temia que ela não me telefonasse mais. Tentei retomar a minha leitura em vão. Finalmente
o telefone tocou.
Ela ainda não tinha ido buscar o resto das suas coisas a Saint-Leu-la-Forêt. Marcámos um encontro às seis horas no Tournon.
Eu tinha tempo de ir a casa de Dell' Aversano para saber por quanto é que ele estava a pensar comprar-me o falso Monticelli, o pequeno contador chinês e as figuras
de xadrez que eu lhe tinha confiado.
Atravessei a Pont-Neuf e segui pelo cais. Dell' Aversano tinha uma loja de antiguidades na Rua François-Miron, depois da Câmara Municipal. Conhecera-o mais ou menos
há dois meses enquanto escolhia alguns livros em segunda mão que estavam expostos à entrada da loja.
Era um homem moreno, quarentão, com cara de romano e olhos claros. Falava francês com um ligeiro sotaque. Tinha-me contado que fazia comércio de antiguidades entre
a França e a Itália, mas não lhe fiz muitas perguntas sobre isso.
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Ele estava à minha espera. Levou-me a tomar um café no cais perto da Igreja Saint-Gervais. Estendeu-me um envelope dizendo que me comprava tudo por sete mil e quinhentos
francos. Agradeci-lhe. Podia subsistir bastante tempo graças a essa quantia. Depois, tinha de deixar o apartamento e desenvencilhar-me sozinho.
Como se adivinhasse os meus pensamentos, Dell' Aversano perguntou-me o que é que eu pensava fazer no futuro.
- Já sabe, a minha proposta continua de pé...
Ele sorria-me. Na minha última visita, tinha-me dito que me podia arranjar um emprego em Roma, num livreiro seu conhecido que precisava de um empregado francês.
- Pensou nisso? Concorda em ir para Roma?
Disse-lhe que sim. Além do mais já não tinha nenhum motivo para ficar em Paris. Estava certo de que Roma seria o mais adequado para mim. Lá haveria uma nova vida.
Tinha de arranjar um mapa da cidade, estudá-lo diariamente, saber de cor os nomes de todas as ruas e de todas as praças.
- Conhece bem Roma? - perguntei-lhe.
- Conheço. Nasci lá.
- Virei visitá-lo de vez em quando com o meu mapa, e vou fazer-lhe todas as perguntas acerca dos bairros da cidade. Assim, quando chegar a Roma, não me sentirei
desorientado.
Aceitaria ela acompanhar-me? Vou falar-lhe nisso esta noite. Aqui está talvez uma solução que também lhe possa resolver os problemas.
- Viveu em Roma?
- Com certeza - respondeu-me. - Durante vinte e cinco anos.
- Em que rua?
- Nasci no Bairro San Lorenzo e a minha última morada foi na Via Euclide.
Deveria ter anotado os nomes do bairro e da rua, mas ia tentar lembrar-me e identificá-los no mapa.
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- Pode ir no mês que vem. Esse amigo arranja-lhe alojamento. Não acho que o trabalho seja muito difícil. Trata-se de livros franceses.
Ele aspirou longamente o cigarro, depois, com um gesto elegante, como que ao ralenti, levou a chávena de café aos lábios.
Contou-me que em Roma, precisamente, durante a sua juventude, ele e os amigos se sentavam na esplanada de um café. Faziam um concurso para ver qual deles levava
mais tempo a beber uma laranjada. A maior parte das vezes, aquilo durava a tarde inteira.
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Cheguei adiantado ao encontro e fui passear pelo jardim do Luxemburgo. Pela primeira vez tive a sensação do inverno a chegar. Até à data, tínhamos tido dias soalheiros
de outono.
Quando saí do jardim, a noite caía e os guardas apressavam-se a fechar os portões.
Escolhi um lugar ao fundo no Café do Tournon. No ano anterior, este café fora para mim um refúgio quando andava no Liceu Henrique IV, frequentava a biblioteca municipal
do Sexto Bairro e o cinema Bonaparte. Observei lá um cliente assíduo, o escritor Chester Himes, sempre rodeado por músicos de jazz e por mulheres loiras muito bonitas.
Cheguei ao Tournon cerca das seis horas e às seis e meia ela ainda não tinha aparecido. Chester Himes estava sentado num banco, perto da montra, na companhia de
duas mulheres. Uma tinha uns óculos de sol. Conversavam animadamente, em inglês. Alguns clientes bebiam, em pé, ao balcão. Para acalmar o meu nervosismo, tentava
seguir a conversa de Himes e das suas amigas, mas eles falavam muito depressa, à exceção de uma das mulheres com sotaque escandinavo de quem eu percebia algumas
coisas. Ela queria mudar de hotel e perguntava a Himes como se chamava aquele onde tinha ficado no início da sua estadia em Paris.
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Eu espreitava-a pela montra. Já era de noite. Um táxi parou em frente do Tournon. Ela saiu. Trazia vestido o seu impermeável. O motorista saiu por sua vez. Abriu
o porta-bagagens e estendeu-lhe uma mala, mais pequena que a da noite anterior.
Ela veio na minha direção, com a mala na mão. Parecia contente por me ver. Voltava de Saint-Leu-la-Forêt onde fora buscar o resto das coisas. Tinha arranjado um
quarto de hotel para essa noite. Pedia-me simplesmente para levar aquela mala para minha casa. Preferia que ela ficasse "num lugar seguro", lá, com a outra. Voltei
a dizer-lhe que aquelas malas continham lingotes de ouro. Mas ela respondeu-me que se tratava simplesmente de objetos que não possuíam nenhum valor especial, exceto
para ela.
Observei-lhe, num tom veemente, que ela tinha feito mal em ter alugado um quarto de hotel, porque eu podia muito bem alojá-la no meu apartamento, todo o tempo que
ela quisesse.
- É preferível que eu fique no hotel.
Senti reserva da sua parte. Escondia-me qualquer coisa e eu perguntava a mim próprio se era porque não tinha confiança em mim ou porque receava chocar-me ao revelar
a verdade.
- E você, o que é que tem feito?
- Nada de especial. Vendi os móveis do apartamento para ter algum dinheiro.
- E rendeu alguma coisa?
- Sim.
- Precisa de dinheiro?
Ela fitava-me com o seu olhar azul-pálido.
- É uma parvoíce. Eu posso emprestar-lhe dinheiro.
Sorria. O empregado veio atender-nos. Ela quis uma groselha.
Eu imitei-a.
- Tenho algum dinheiro de lado - disse-me. - Está à sua disposição.
- É amável, mas parece-me que encontrei trabalho.
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Pu-la a par da proposta de DellAversano: ir para Roma para trabalhar numa livraria. Hesitei um instante e depois decidi-me:
- Podia vir comigo...
Não pareceu espantada com a minha proposta.
- Sim... Era uma boa ideia. Sabe onde vai ficar em Roma?
- O livreiro com quem vou trabalhar arranja-me alojamento.
Ela bebeu um gole de groselha. A cor desta harmonizava-se
muito bem com a cor pálida dos seus olhos.
- E parte quando?
- Dentro de um mês.
Fez-se silêncio entre nós. Como na véspera, no café de L'ile de la Cité, tive a impressão de que ela se esquecia da minha presença e que ainda se levantava e se
despedia.
- Sempre sonhei viver em Londres ou em Roma - disse-me.
Novamente o seu olhar pousava em mim.
- Numa cidade estrangeira podemos estar tranquilos... Ninguém nos conhece...
Ela já me tinha feito uma observação semelhante no metro na noite anterior. Quis saber se havia alguém em Paris que lhe quisesse fazer mal.
- Não propriamente. É por causa do interrogatório de ontem... Sinto-me vigiada. Fazem-nos tantas perguntas... Interrogaram-me sobre pessoas que eu conheci, mas que
já não vejo há muito tempo.
Ela encolheu os ombros.
- O aborrecido é que eles não acreditaram em mim... Devem pensar que eu estou sempre em contacto com elas...
Uns clientes vieram sentar-se na mesa ao lado da nossa. Ela aproximou a sua cara da minha.
- E a si - perguntou-me em voz baixa. - Quantos é que o interrogaram?
- Só um. O que estava lá quando você entrou...
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- Comigo foram dois. O segundo chegou um pouco depois. Fingiu que viera ali por acaso, mas começou a fazer-me perguntas. E o outro também. Sentia-me uma bola de
pingue-pongue.
- Mas quem são essas pessoas que conheceu?
- Não as conhecia muito bem. Devo-as ter encontrado uma ou duas vezes, muito simplesmente.
Ela via que essa resposta não me satisfazia.
- Foi o mesmo que consigo, quando lhe disseram que o seu nome estava escrito numa agenda... Você nem sequer sabia do que se tratava...
- E agora, tem a impressão de que está a ser vigiada?
Ela franziu o sobrolho. Olhava-me com um olhar estranho, como se lhe tivesse passado subitamente pela cabeça uma suspeita. Adivinhei o que estava a pensar: ela tinha-me
visto pela primeira vez quando saí do gabinete da polícia e, três horas mais tarde, ainda estava nas redondezas, sentado na esplanada do café.
- Acha que fui encarregado de a vigiar? - perguntei-lhe a sorrir.
- Não. Não tem cara de chui. Nem idade.
Ela não tirava os olhos de mim. A sua expressão descontraiu-se e, por fim, acabámos por desatar a rir.
A mala era menos pesada que a da noite anterior. Pela Rua de Tournon e a Rua de Seine, chegámos ao cais. Não havia luz nas janelas do apartamento. Eram cerca das
sete horas e meia e Grabley, no escritório do nº 73 do Boulevard Haussmann, devia estar ainda a ordenar a "papelada" da qual eu não supusera a existência. Tinha
pensado sempre que esse local era tão vazio como os tinteiros em cima da mesa e que o meu pai o utilizava como sala de espera. Também fiquei surpreendido, trinta
anos mais tarde, ao descobrir um vestígio palpável da sua passagem
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pelo Boulevard Haussmann, através daquele envelope que tinha inscrito Sociedade Civil de Estudos de Tratamento de Minerais. Mas na realidade uma inscrição nas costas
de um envelope não prova grande coisa: bem a podemos ler e reler, que se fica sempre na ignorância.
Quis mostrar-lhe onde tinha guardado a primeira mala e então trepámos pela pequena escada interior até ao quinto andar. A porta do cubículo abriu-se para o lado
esquerdo, exatamente antes do quarto. Pairava no ar do cubículo um cheiro a couro e a chipre. Pus a mala que tinha na mão ao lado da outra e apaguei a luz. A chave
do cubículo estava na porta. Dei-lhe duas voltas e estendi-lha.
- Guarde-a - disse-me ela.
Descemos até ao escritório. Ela queria telefonar. Marcou um número mas ninguém atendeu.
Desligou, com um ar desapontado.
- Esta noite, tenho de jantar com uma pessoa. Pode ir comigo?
- Se quiseres.
Tratei-a por tu sem dar por isso.
Ela ia acrescentar alguma coisa, mas estava visivelmente embaraçada.
- Posso pedir-lhe um favor? É o de não falar no interrogatório de ontem e de dizer que é o meu irmão...
Não fiquei admirado com esta proposta. Estava pronto para fazer tudo o que ela quisesse.
- Tem um irmão a sério?
- Não.
Mas isso não tinha nenhuma importância. Esse "alguém" com quem nós íamos estar daí a pouco, ela não o conhecia há muito tempo e era evidente que até então nunca
lhe tinha feito referência à existência de um irmão que vivia nos arredores de Paris. Ou seja, em Montmorency, muito próximo de Saint-Leu-la-Forêt.
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O telefone tocou. Ela sobressaltou-se. Atendi. Grabley. Estava ainda no nº 73 do Boulevard Haussmann e tinha posto em ordem uma série de dossiês. Acabara de falar
com o meu pai pelo telefone e ele tinha-lhe dado instruções para se desfazer o mais depressa possível de todos os papéis. Ele estava indeciso entre duas atitudes
a tomar: esperar que a porteira do 73 levasse os caixotes do lixo do prédio para o passeio do boulevard e "despejar" lá os dossiês ou então, muito simplesmente,
deitá-los num esgoto que ele tinha visto na Rua de l'Arcade. Mas tanto num caso como no outro, arriscava-se a atrair as atenções.
- É como se eu tivesse de me livrar de um cadáver, meu pobre Obligado...
Quis saber notícias da minha "amiga". Não, não nos podíamos encontrar os três esta noite. Ela ia jantar com o irmão algures entre Montmorency e Saint-Leu-la-Forêt.
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O táxi deixou-nos à esquina da Avenida dos Champs-Elysées com a Rua Washington. Foi ela que quis pagar a corrida.
Seguimos ao longo da rua pelo passeio do lado esquerdo. Entrámos no primeiro café. Uns clientes estavam à volta do flipper, junto da montra, e enquanto um deles
jogava, falavam ruidosamente.
Atravessámos a sala. Ao fundo ela estreitava-se tomando a dimensão de um corredor ao longo do qual se encontravam, como numa carruagem-restaurante, mesas e bancos
de napa alaranjada. Um homem moreno, com apenas trinta anos, levantou-se à nossa chegada.
Ela fez as apresentações.
- Jacques... O meu irmão Lucien...
Com um gesto, convidou-nos a sentar no banco em frente dele.
- Podíamos jantar aqui... Concorda?
E sem esperar pela nossa resposta, levantou o braço na dire-ção do criado que veio atender. Escolheu um prato do dia para nós. Ela parecia indiferente ao que ia
comer.
Ele observava-me com curiosidade.
- Não estava ao corrente da sua existência... Estou muito contente de o conhecer...
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Ele também a observava e depois fixou o olhar em mim.
- É verdade... Vocês são parecidos...
Mas eu vislumbrei uma dúvida nessa observação.
- Ansart não pode vir. Vamos ter com ele depois do jantar.
- Não sei - disse ela. - Estou um bocado cansada e nós temos de voltar para Saint-Leu-la-Forêt.
- Não há problema. Levo-os lá de carro.
Ele tinha uma expressão amável e uma voz doce. E uma certa elegância no seu fato escuro de flanela.
- O que é que faz na vida, Lucien?
- Ele ainda estuda - disse ela. - Letras.
- Eu também, eu também andei a estudar. Medicina.
Ele pronunciou esta frase com uma ponta de tristeza como se se tratasse de uma recordação dolorosa. Serviram-nos um prato de salmão e de peixe fumados.
- O dono é dinamarquês - disse-me ele. - Se calhar não gosta de cozinha escandinava.
- Sim, sim. Gosto muito.
Ela desatou a rir. Ele virou-se para ela.
- Porque é que estás a rir?
Tratava-a por tu. Há quanto tempo é que a conhecia e em que circunstâncias se tinham encontrado?
- É o Lucien que me faz rir.
E ela indicava-me com um gesto do queixo.
Qual seria exatamente a sua ligação? E porque é que ela me fazia passar por seu irmão?
- Eu tê-los-ia convidado com muito prazer para jantarem em minha casa - disse ele. - Mas esta noite não tinha nada na cozinha.
Ela comeu umas garfadas do prato e acendeu um cigarro.
- Não tens fome?
- Não. Por agora não.
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- Estás com um ar triste...
E ele pegou-lhe na mão com um gesto de ternura. Ela tentou libertar-se mas ele segurava-a e ela acabou por ceder. Ele mantinha a mão dela na sua.
- Já se conhecem há muito tempo? - perguntei eu.
- A Gisèle nunca lhe falou de mim?
- Eu e o meu irmão temo-nos visto muito pouco ultimamente. Ele anda sempre em viagem.
Ele sorriu para mim.
- A sua irmã foi-me apresentada há cerca de quinze dias por um amigo... Pierre Ansart... Conhece Pierre Ansart?
- Não - disse ela. - Ele não o conhece.
Ela parecia subitamente cansada e desejosa de se levantar da mesa. Mas ele continuava a agarrar-lhe na mão.
- Não está a par da vida da sua irmã?
Dissera esta última frase com um ar suspeito.
Ela abriu a mala de mão e tirou uns óculos de sol. Pô-los.
- A Gisèle é muito discreta - observei eu num tom displicente. - Ela não se abre muito.
Era-me estranho pronunciar o seu nome pela primeira vez. Nunca me tinha dito como se chamava. Virei-me para ela. Estava impassível por detrás dos seus óculos de
sol, distante, como se não tivesse seguido a conversa e como se se tratasse de uma outra pessoa.
Ele olhou para o relógio de pulso. Eram dez e meia.
- O teu irmão vem connosco a casa de Ansart?
- Sim, mas não demoramos muito - disse ela. - Tenho de voltar com ele esta noite para Saint-Leu-la-Forêt.
- Então eu levo-os de carro e volto para ver Ansart.
- Não pareces muito satisfeito...
- Sim - disse ele secamente. - Estou satisfeito.
Talvez não lhe quisesse dar uma explicação na minha presença.
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- Não vale a pena andares para trás e para a frente. Apanhamos um táxi para voltar para Saint-Leu-la-Forêt.
Entrámos num carro azul-escuro que estava estacionado numa paralela aos Champs-Elysées. Ela sentou-se no lugar da frente.
- Tem carta de condução? - perguntou-me ele.
- Não. Ainda não.
Ela voltou-se para mim. Eu imaginei o seu olhar azul-pálido por detrás dos óculos de sol. Sorria-me.
- É engraçado... Não imagino nada o meu irmão a conduzir...
Ele arrancou e deslizou lentamente pela Avenida dos Champs-
-Elysées. Ela continuava voltada para mim. Com um movimento quase impercetível da boca, enviou-me um beijo. Eu aproximei a minha cara da sua. Estava quase a beijá-la.
A presença daquele homem não me incomodava absolutamente nada. Tinha um desejo tão grande de sentir os seus lábios e de a acariciar que nem dava por ele.
- Devia convencer a sua irmã a utilizar este carro. Isso evitava-lhe os táxis e o metro...
A sua voz causou-me um sobressalto e trouxe-me à realidade. Ela voltou-se.
- Tu ficas com o carro quando quiseres, Gisèle...
- Posso ficar com ele esta noite para voltar para Saint-Leu-la-Forêt?
- Esta noite? Se realmente precisares...
- Quero ficar com ele esta noite. Tenho de me habituar a conduzir.
- Como quiseres.
Seguíamos ao longo do Bois de Boulogne. Porte de la Muettte. Porte de Passy. Baixei um bocado o vidro da janela e respirei uma
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corrente de ar fresco e um odor de folhas e de terra molhada. Tive vontade de passear com ela pelas alamedas do bosque, à beira dos lagos, do lado da Cascade ou
da Croix-Catelan onde ia frequentemente, sozinho, ao fim da tarde, depois de ter apanhado o metro para me afastar do centro de Paris.
Ele meteu-se pela Rua Raffet e estacionou na esquina da Rua Docteur-Blanche. Conheci melhor o bairro alguns anos mais tarde e passei várias vezes em frente do edifício
onde nos fomos encontrar com Ansart, nessa noite. Era o número 14 da Rua Raffet. Mas os pormenores topográficos têm um efeito curioso em mim: em vez de me darem
a imagem de um passado próximo e mais nítido, causam-me uma sensação dolorosa de laços completamente quebrados e de vazio.
Atravessámos o pátio do prédio. Ao fundo, uma pequena construção de um andar. Ele tocou à campainha. Um homem moreno, baixo e gordo, quarentão, apareceu. Trazia
vestida uma camisa com o colarinho aberto sob uma camisola creme. Beijou Gisèle e deu um abraço a Jacques.
Entrámos numa sala com as paredes brancas. Uma rapariga loira de uns vinte e tal anos estava sentada num divã vermelho. Ansart estendeu-me a mão com um grande sorriso.
- É o irmão de Gisèle - disse Jacques. - E este é Pierre Ansart.
- Muito prazer em conhecê-lo - disse-me Ansart.
Ele falava com uma voz grave, com um ligeiro sotaque suburbano. A rapariga loira levantou-se e beijou Gisèle.
- Apresento-lhe Martine - disse-me Ansart.
A loira cumprimentou-me com um ligeiro aceno de cabeça e com um sorriso tímido.
- Então, tu tinhas-nos escondido a existência do teu irmão? -disse Ansart.
Ele olhava-nos, a ela e mim, com um olhar perscrutador. Teria ele acreditado nesta mentira? Sentámo-nos os três nos sofás
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da mesma cor encarnada do divã. Ansart sentou-se no divã e pôs o braço à volta dos ombros da rapariga loira.
- Vocês jantaram na Rua Washington?
Jacques assentiu com a cabeça. Ao fundo havia uma escada com um corrimão. Por um alçapão no teto, tinha-se acesso ao que era, sem dúvida, o quarto de dormir. A esquerda,
a sala comunicava com uma enorme cozinha que devia servir de sala de jantar e onde pude ver, do sofá onde me encontrava, a brancura e o equipamento novo e brilhante.
Ansart surpreendeu o meu olhar.
- Era uma velha garagem que eu transformei em apartamento.
- Está muito agradável - disse-lhe eu.
- Quer beber qualquer coisa? Um chá de tília?
A jovem loira levantou-se e dirigiu-se para a cozinha.
- Arranja-nos três chás de tília, Martine - disse Ansart com uma autoridade paternal.
O seu olhar mantinha-se sempre fixo em mim, como se procurasse adivinhar o que se passava comigo.
- É muito jovem...
- Tenho vinte e um anos.
Repeti a minha mentira da véspera. Ela tirou os óculos de sol e olhou-me como se me estivesse a ver pela primeira vez.
- Ele estuda - disse Jacques olhando por sua vez para mim.
Sentia-me incomodado por ser o alvo das atenções. Acabei
por perguntar a mim próprio o que estava eu ali a fazer no meio daquelas pessoas que não conhecia. E a ela, não a conhecia mais do que aos outros.
- Estuda o quê? - perguntou Ansart.
- Letras - disse Jacques.
A rapariga loira saiu da cozinha, com um tabuleiro que colocou no meio de nós, em cima da alcatifa. Estendeu-nos a cada um, com um gesto gracioso, uma chávena de
tília.
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- E quando é que termina os estudos? - perguntou-me Ansart.
- Daqui a dois ou três anos.
- Enquanto isso, são os seus pais que velam por si, suponho...
Eles continuavam com os olhos postos em mim, como se eu
fosse um animal estranho. Pareceu-me que a voz de Ansard deixava transparecer um certo gozo.
- Têm sorte em terem pais que vos ajudam...
Ele falara com uma certa amargura e o seu olhar enevoou-se.
Que lhe havia de responder? Pensei no meu pai, na sua fuga para a Suíça, em Grabley, no apartamento vazio, DellAversano, na minha mãe perdida no Sul de Espanha...
Era melhor, apesar de tudo, que ele me considerasse um jovem bem comportado sustentado pelos pais.
- Vocês enganam-se - disse ela subitamente. - Ninguém o ajuda. O meu irmão desenvencilha-se sozinho...
Fiquei comovido quando ela veio em meu auxílio. Tinha-me esquecido de que éramos irmão e irmã e que, consequente-mente, tínhamos os mesmos pais.
- Além disso não nos resta nenhuma família. Isto simplifica as coisas...
Ansart fez um largo sorriso:
- Meus queridos filhos...
A atmosfera desanuviou-se. A rapariga loira deitou-nos novamente chá nas chávenas. Ela parecia sentir muita simpatia por Gisèle e tratava-a por tu.
- Passas pelo restaurante esta noite? - perguntou Jacques.
- Passo - disse Ansart.
Gisèle virou-se para mim:
- O Pierre tem um pequeno restaurante no bairro.
- Oh, uma coisa simples - disse-me Ansart. - Um negócio que estava a ir por água abaixo e que eu retomei, muito simplesmente, só para me entreter...
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- Vamos levá-lo lá a jantar uma noite destas - disse Jacques.
- Não sei se o meu irmão irá. Ele nunca sai.
Ela falou num tom firme como se me quisesse proteger deles.
- De qualquer das formas era simpático jantarmos os quatro -disse a rapariga loira.
Ela olhava com o seu olhar franco ora para Gisèle ora para mim. Parecia ter boas intenções a nosso respeito.
- Temos de voltar para Saint-Leu-la-Forêt, o Lucien eeu-disse Gisèle.
- Não querem ficar mais um bocado? - perguntou Jacques.
Respirei fundo e disse num tom firme:
- Não. Temos de ir imediatamente. Estamos com problemas com a casa, eu e a minha irmã...
Com certeza que ela lhes tinha falado da casa de Saint-Leu-la-Forêt. Talvez lhes tivesse dado outros pormenores a este respeito que eu não soubesse.
- Então, tu levas o carro? - perguntou Jacques.
- Sim.
Ele virou-se para Ansart:
- Empresto-lhe o carro. Não te faz diferença se eu andar com um dos teus? - perguntou-lhe Jacques.
- Está bem. Vamos já à garagem.
Levantámo-nos, ela e eu. Ela beijou a rapariga loira. Apertei a mão de Ansart e de Jacques.
- Quando é que nos voltamos a ver? - perguntou-lhe Jacques.
- Telefono-te.
Ele parecia desiludido com a saída dela.
- Cuide bem da sua irmã.
Ele deu-lhe as chaves do carro.
- Tenham cuidado na estrada. Se amanhã ninguém responder aqui de casa, telefonas para o restaurante.
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Ansart observava-me, tal como fizera quando cheguei.
- Gostei muito de o conhecer. Se alguma vez precisar de alguma coisa...
Fiquei espantado com esta súbita solicitude.
- Às vezes é difícil ter a vossa idade... Sei muito bem o que é, também passei por isso...
O olhar tinha uma expressão triste que contrastava com a voz timbrada e com os traços fisionómicos enérgicos.
A rapariga loira acompanhou-nos até à porta.
- Podemo-nos ver amanhã - disse ela a Gisèle. - Fico aqui durante todo o dia.
Na entrada, na penumbra do pátio, a cara daquela rapariga parecia ainda mais jovem. Pensei que Ansart devia ter idade para ser seu pai. Atravessámos o pátio, e ela
ficou lá, a seguir-nos com o olhar. A sua silhueta recortava-se no quadro iluminado da porta. Pareceu-me que ela se queria juntar a nós. Acenou-nos com o braço.
Tínhamo-nos esquecido do sítio onde estava estacionado o carro. Descemos a rua à procura.
- E se apanhássemos o metro? - perguntou-me. - É complicado, aquele carro, além disso devo ter perdido as chaves...
O seu ar desenvolto provocou-me uma imensa vontade de rir com que a contagiei. Depressa deixámos de ter controlo. As nossas gargalhadas ressoavam na rua deserta
e silenciosa. Chegados ao fim desta seguimo-la no sentido inverso no outro passeio. Por fim, encontrámos o carro.
Ela abriu a porta após ter experimentado as quatro chaves do molho. Sentámo-nos nos bancos de couro.
- Agora é preciso fazê-lo andar - disse ela.
Conseguiu ligar a ignição. Fez uma brusca marcha-atrás que conseguiu controlar no preciso momento em que o carro subia o passeio e se arriscava a bater na porta
de um prédio.
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Ela meteu pela rua na direção do Bois de Boulogne, com o busto muito direito, o pescoço ligeiramente esticado para a frente, como se estivesse ao volante pela primeira
vez.
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Chegámos aos cais pelo Boulevard Murat. No sítio onde se curva para a direita, ela disse-me:
- Vivi aqui.
Devia ter-lhe perguntado em que altura e em que circunstâncias, mas deixei passar a ocasião. Quando se é jovem, negligenciamos certos detalhes que teriam sido preciosos
mais tarde. Novamente, o boulevard vira para a direita em ângulo reto e desemboca no Sena.
- Então, acha que conduzo bem?
- Muito bem.
- Não tem medo de andar comigo?
- De maneira nenhuma.
Ela carregou no acelerador. Depois do Cais Louis-Blériot, a calçada estreita-se, mas ela ia cada vez mais depressa. Um semáforo vermelho. Tive receio de que não
parasse. Mas não. Ela travou bruscamente.
- Acho que já estou habituada a este carro...
Agora, ela conduzia a uma velocidade normal. Chegámos aos jardins do Trocadéro. Atravessou a Ponte d'Iéna, depois seguiu pelo Champ-de-Mars.
- Onde vamos? - perguntei-lhe.
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- Ao meu hotel. Mas antes, queria ir buscar uma coisa de que me esqueci.
Estávamos na praça deserta da École Militaire. O enorme edifício parecia abandonado. Via-se o Champ-de-Mars como uma pradaria que desce suavemente até ao Sena. Ela
seguiu em frente. Havia a massa escura e o muro de uma caserna. Consegui ver ao fundo da rua o viaduto do metro aéreo. Parámos em frente de um edifício da Rua Desaix.
- Fica aqui à minha espera? Não vou demorar muito tempo.
Ela tinha deixado as chaves do carro em cima do tabliê. Entrou
no prédio. Perguntei a mim próprio se ela voltaria. Após alguns instantes, saí do carro e plantei-me à porta do edifício, uma porta envidraçada com ferragens. Talvez
houvesse uma porta dupla. Ela desaparecera e deixara-me ali com aquele carro inútil. Tentei raciocinar. No caso de ela fugir eu tinha vários pontos de referência:
o café da Rua Washington do qual Jacques era cliente assíduo, o apartamento de Ansart e principalmente as malas. Porquê este medo de a ver desaparecer? Eu conhecia-a
há vinte e quatro horas e não sabia nada dela. Até o seu nome próprio eu tinha sabido por terceiros. Ela não parava num sítio, andava de um lado para o outro como
se fugisse de um perigo. Tinha a sensação de a não conseguir deter.
Eu andava de um lado para o outro no passeio. Atrás de mim, senti fechar-se a porta do prédio. Ela veio ter comigo rapidamente. Já não trazia vestido o seu impermeável
que vinha dobrado no braço, mas um casaco de peles.
- Ia-se embora? - perguntou-me. - Não queria esperar mais por mim?
Ela sorriu-me inquieta.
- De modo nenhum. Eu é que pensei que tinha fugido.
Ela encolheu os ombros.
- Que parvoíce... o que é que o fez pensar isso?
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Fomos para o carro. Peguei-lhe no impermeável e meti-o ao ombro.
- Tem um casaco muito bonito - disse-lhe eu.
Ela estava atrapalhada.
- Sim... é uma senhora que eu conheço... Ela vive ali... uma costureira... entreguei-lhe o casaco para ela coser as bainhas.
- E avisou-a de que vinha tão tarde?
- Isso não a incomoda... ela trabalha durante a noite...
Escondia-me a verdade e eu estive quase a fazer-lhe perguntas concretas, mas contive-me. Acabaria por se habituar a mim, e pouco a pouco ganharia confiança e confessar-me-ia
tudo.
Estávamos novamente no carro. Pus o seu impermeável no banco de trás. Ela arrancou, desta vez com calma.
- O meu hotel fica perto...
Porque é que ela tinha escolhido um quarto naquele bairro? Certamente que não fora por acaso. Qualquer coisa a devia reter ali, um ponto de mira. A presença daquela
misteriosa costureira?
Metemos por uma das ruas que vão da Avenida de Suffren em direção a Grenelle, na fronteira do Sétimo e do Décimo Quinto bairros. Parámos em frente de um hotel com
a fachada iluminada por um reclamo luminoso de uma garagem da esquina. Gisèle tocou e o porteiro da noite veio abrir. Seguimo-lo até à receção. Ela pediu a chave
do quarto. Ele deitou-me um olhar desconfiado.
- Pode preencher uma ficha? Preciso de um cartão de identificação.
Não tinha o passaporte comigo. De qualquer das formas eu era menor.
Ele pôs a chave em cima do balcão da receção. Ela agarrou-a com um gesto nervoso.
- É o meu irmão...
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O outro hesitou, um instante.
- Então, tem de o provar. Tem de me mostrar os papéis.
- Esqueci-me deles - respondi.
- Nesse caso, não o posso deixar subir com a menina.
- Porquê? Se é meu irmão...
Ele observava-nos em silêncio fazendo-me lembrar o polícia da véspera. O candeeiro iluminava uma cara quadrada, uma cabeça semicareca. Em cima do balcão estava um
telefone. Esperava a todo o momento que ele pegasse no auscultador e avisasse a polícia mais próxima.
Formávamos um par estranho e devíamos ter os dois um ar suspeito. Lembro-me dos maxilares fortes deste homem, da sua boca sem lábios e do puro desprezo com que nos
olhava. Estávamos à sua mercê. Não éramos nada.
Voltei-me para ela:
- Devo ter perdido os papéis quando fomos jantar com a mamã
- disse eu com uma voz tímida. - Se calhar a mamã encontrou-os.
Acentuei a palavra "mamã" para lhe dar uma impressão mais convincente sobre nós dois. Ao contrário de mim, pressenti que ela estava pronta para enfrentar o porteiro
da noite.
Gisèle tinha a chave na mão. Tirei-lha sem ela estar à espera e coloquei-a calmamente em cima do balcão da receção.
- Vem... Vamos tentar encontrar esses papéis...
Levei-a pelo braço. Tínhamos de andar uma dezena de metros até à porta do hotel. Tinha a certeza de que o homem nos seguia com os olhos. Caminhar o mais naturalmente
possível. Principalmente, não dar a impressão de estar a fugir. E se ele tivesse fechado a porta à chave, e nós tivéssemos sido apanhados numa armadilha? Mas não.
Lá fora, senti-me aliviado. Aquele porteiro da noite não podia fazer nada contra nós.
- Quer voltar sozinha ao hotel?
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- Não. Mas tenho a certeza de que se tivéssemos insistido ele nos tinha deixado sossegados.
- Eu não.
- Tem medo dele?
Ela olhava-me com um sorriso trocista. Tive vontade de lhe confessar que me tinha feito mais velho do que era e que só tinha dezoito anos.
- Então, onde é que vamos? - perguntou-me.
- Para minha casa. Estaremos muito melhor do que no hotel.
No carro, enquanto seguíamos pela Avenida de Suffren, em
direção aos cais, senti a mesma apreensão que havia sentido frente ao porteiro. Perguntei a mim próprio se naquele carro e com aquele casaco de peles não daríamos
ainda mais nas vistas. Temia que no próximo quarteirão fôssemos mandados parar por um desses bloqueios da polícia, frequentes em Paris naquela altura, depois da
meia-noite.
- Tem carta de condução?
- Deve estar na minha mala de mão - respondeu-me. - Pode ver.
A sua mala estava em cima do tabliê. Não continha grande coisa e dei imediatamente com a carta de condução. Estive tentado a abri-la para saber o seu nome, a sua
direção, a sua data e local de nascimento. Mas não o fiz, por discrição.
- E acha que temos os documentos do carro?
- Com certeza... algures no porta-luvas.
Ela ergueu os ombros. Parecia indiferente a todos os perigos que eu receava que nos acontecessem. Ligou o rádio e a música pouco a pouco acalmou-me. Eu voltava a
sentir-me confiante. Não tínhamos feito nada de mal. De que é que nos podiam acusar?
- Devíamos descer até ao Midi neste carro - disse-lhe.
- Pensei que queria ir a Roma.
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Até ali, era de comboio que eu tinha imaginado a viagem a Roma. Agora procurava imaginar o nosso trajeto pela estrada: iríamos primeiro ao Midi. Depois passaríamos
a fronteira em Vintimille. Com um pouco de sorte tudo se passaria sem aborrecimentos. Como eu era menor, eu próprio escreveria uma carta assinada pelo meu pai autorizando-me
a pernoitar no estrangeiro. Estava habituado a esse tipo de falsificação.
- Acha que eles nos emprestam o carro?
- Claro que sim... Porque não?
Ela não me queria responder de uma forma concreta.
- A verdade é que não os conhece há muito tempo...
Ficou calada. Eu voltei à carga.
- O que se chama Jacques, conheceu-o através de Ansart?
- Sim.
- Mas, Jacques, o que é que ele faz na vida?
- É sócio de Ansart nuns negócios.
- E Ansart, conheceu-o como?
- Num café.
Ela acrescentou:
- Jacques vive num belo apartamento na Rua Washington. Chama-se Jacques de Bavière...
A partir daí passei a ouvir frequentemente esse nome na sua boca: Jacques de Bavière. Será que eu estava a perceber mal? Não se tratava de um nome tão prosaico como:
de Bavier ou Debaviaire? Ou era simplesmente um pseudónimo?
- Ele é de nacionalidade belga, mas vive em França desde sempre. Vive com a madrasta na Rua Washington.
- Com a madrasta?
- Sim. A viúva do pai.
Tínhamos chegado à Ponte da Concorde. Em lugar de entrar pelo Boulevard de Saint-Germain, ela atravessou o Sena.
- Prefiro seguir os cais - disse-me.
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- Esse Jacques de Bavière... ele parece estar apaixonado por si...
- Talvez. Mas eu não quero viver com ele. Quero manter a minha independência.
- Prefere ficar em Saint-Leu-la-Forêt?
Falei num tom irónico, como se não acreditasse na existência dessa casa de Saint-Leu-la-Forêt.
- Tenho o direito de ter a minha vida própria...
- Um dia tem de me levar a Saint-Leu...
Ela sorriu.
- Está a troçar de mim?
- De modo nenhum. Tenho muita curiosidade em conhecer a sua casa...
- Infelizmente, já não vivo lá desde ontem... Sabe muito bem... A Pont-Neuf. Estávamos a percorrer o mesmo caminho que
tínhamos feito a pé, na véspera. Ela estacionou o carro no recanto do Cais Conti, à esquina do beco.
As janelas do escritório e as do quarto contíguo tinham luz. Desta vez, não poderíamos evitar Grabley e esta perspetiva incomodava-me. Disse-lhe:
- Vamos andar em bicos de pés.
Mas quando atravessávamos o vestíbulo na semiobscuridade, Grabley abriu a porta do quarto ao lado do escritório.
- Quem está aí? É você, Obligado?
Ele tinha vestido o roupão escocês.
- Podia apresentar-me...
- Gisèle - disse eu num tom hesitante.
- Henri Grabley.
Ele avançou para ela e estendeu uma mão que ela não apertou.
- Muito prazer. Peço-lhe desculpa por a receber assim vestido. Ele estava a fazer as honras da casa. Aliás toda a sua pessoa se adequava muito bem àquele apartamento
vazio...
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- O senhor Grabley é um amigo do meu pai - disse-lhe eu.
- O seu mais velho amigo.
Ele fez-nos sinal para entrarmos naquele quarto, ao lado do escritório, que nunca tivera uma utilização determinada: ou sala - a mobília antes tinha consistido num
canapé de veludo azul-escuro, dois cadeirões da mesma cor, e uma mesa baixa - ou "quarto para os amigos".
As janelas sem cortinas davam para o cais.
- Já estava farto da vista para o pátio. Instalei-me aqui. Dá-me licença, Obligado?
- Esteja como em sua casa.
Ele entrou no quarto, mas nós ficámos à entrada. Havia um colchão no chão, no canto esquerdo. A luz vinha de uma lâmpada posta no pé de um candeeiro. Não havia mais
nenhum móvel. Em cima da lareira de mármore, o saco de oleado preto com o qual Grabley às vezes fazia as compras da manhã, e o rádio enorme.
- Preferem ir antes para o escritório?
Ele olhava fixamente para ela, com um sorriso pretensioso e a cabeça ligeiramente levantada.
- É encantadora, menina...
Ela não reagiu a esta observação mas tive medo de que se fosse embora por causa dele.
- A menina não leva a mal a minha franqueza, pois não?
O nosso silêncio atrapalhava-a. Ele voltou-se para mim.
- Não consigo encontrar o seu pai. O número de telefone que ele me deixou não responde.
Não era de admirar. Podia mesmo dizer que o telefone tocaria eternamente no vazio.
- Só tem de insistir - disse-lhe. - Vai acabar por atender.
Ele parecia agora um pouco desamparado, ali, à nossa frente, como um vendedor que não conseguiu convencer o seu público.
- E se jantássemos os três, amanhã?
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- Não sei se Gisèle está livre.
Eu olhei para ela à procura de apoio.
- Agradeço-lhe muito, mas não poderei estar em Paris amanhã à noite.
Estava-lhe grato por ter falado naquele tom amável, porque cheguei a recear que ela não o fizesse. Subitamente senti uma certa piedade por Grabley, com o seu bigode
loiro e o seu saco em cima da chaminé, por causa do meu pai que tinha fugido... Hoje, revejo essa cena à distância. Por detrás do vidro de uma janela, numa luz difusa,
eu distingo um loiro cinquentão em roupão escocês, uma rapariga de casaco de peles e um jovem... A lâmpada, no pé do candeeiro, era demasiado pequena e demasiado
fraca. Se eu pudesse voltar atrás no tempo e regressar àquele quarto, poderia trocar a lâmpada. Mas sob uma luz mais forte, tudo se poderia dissipar.
No quarto do quinto andar, ela estava deitada encostada a mim. Eu escutava uma música e a voz monótona de um locutor.
Em baixo, Grabley ouvia rádio.
- Ele tem um ar estranho, aquele tipo - disse-me ela. - O que é que ele faz na vida?
- Oh, um pouco de tudo.
Um dia, dei com uma pasta que ele tinha esquecido no escritório. Entre outros papéis que ela continha, um deles, muito velho, surpreendeu-me: era um pedido de inscrição
na qualidade de comerciante de legumes e de fruta no mercado de Reims.
- E o teu pai? É o mesmo género de homem?
Ela tratava-me por tu pela primeira vez.
- Não. De modo nenhum...
- Ele partiu para a Suíça porque tinha chatices em França?
- Sim.
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Nada disto a parecia perturbar muito.
- E tu? Tens família? - perguntei-lhe eu.
- Verdadeiramente não.
Ela olhava-me bem nos olhos e sorria:
- Tenho um irmão que se chama Lucien...
- Mas o que é que tu fazes?
- Um pouco de tudo...
Ela franziu o sobrolho, como se procurasse as palavras. Acabou por dizer:
- Até fui casada.
Fiz de conta que não tinha ouvido. A mínima palavra e o mínimo gesto podiam interromper esta confidência. Mas ela ficou em silêncio, com o olhar fixo no teto.
Reflexos deslizavam pelas paredes. A sua forma e movimento pareciam folhas que sussurravam e tremiam ao vento. Era a passagem do último bateau-mouche, com os seus
projetores apontados para as fachadas dos cais.
52

 

No dia seguinte era sábado. O sol e o céu azul contrastavam com as nuvens e o cinzento da véspera. No cais, um dos alfarrabistas abrira já o quiosque. Voltei a ter
uma sensação de férias que já tinha sentido nos raros sábados do passado em que acordava no mesmo quarto, espantado por me encontrar longe do dormitório do colégio.
Ela parecia, essa manhã, mais descontraída que no dia anterior. Pensei na nossa próxima partida para Roma e decidi arranjar o mais depressa possível um mapa da cidade.
E depois perguntei-lhe se queria passear no Bois de Boulogne.
Grabley tinha-me deixado um bilhete no escritório:
Meu caro Obligado,
Tenho ainda de voltar ao Boulevard Haussmann para fazer desaparecer o resto dos papéis que o seu pai deixou. Esta noite, é a noite da minha "digressão". Se quiser
vir, com a sua amiga, ter comigo, encontramo-nos às oito horas no Magots. Essa rapariga é realmente encantadora... Trate de a levar consigo... Terei muito prazer
em lhe apresentar durante a noite uma pessoa que também não é nada desinteressante.
H. G.
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Ela quis verificar se as malas ainda se encontravam no cubículo. Depois explicou-me que tinha de ir buscar uma coisa antes do meio-dia ao cais do lado de Passy.
Vinha a calhar, porque ficava a caminho do Bois de Boulogne.
Quando ia a entrar no carro, disse-lhe para esperar um bocado e corri até ao quiosque do alfarrabista. Na fila de livros consagrados às viagens e à geografia, encontrei
um velho guia de Roma, acaso que me pareceu um bom presságio.
Já nos tínhamos habituado àquele carro e tinha a sensação de que sempre nos tinha pertencido. Nessa manhã de sábado, havia pouco trânsito como nos períodos de férias
em que a maior parte dos parisienses deixam a cidade. Chegámos à margem direita atravessando a Ponte da Concorde. Os cais ainda se encontravam mais desertos desse
lado. Depois dos jardins do Trocadéro, parámos à esquina da Rua de l'Alboni, debaixo do viaduto do metro.
Ela pediu-me para a deixar ali. Marcou encontro para uma hora depois no café, no cais.
Voltou-se para mim e acenou com o braço.
Perguntei a mim próprio se ela não iria desaparecer para sempre. Na véspera eu tivera um ponto de referência: vira-a entrar no prédio, mas agora não quis que eu
a acompanhasse até ao fim. Com ela não estava seguro de nada.
Preferi andar a ficar quieto, à espera no café, e enfiei-me pelas ruas mais próximas e pelas escadas com balaústres e candeeiros. Mais tarde, voltei várias vezes
a estas paragens e as escadas da Rua Alboni lembraram-me sempre o sábado em que andei por ali, enquanto esperava. Era o mês de novembro, mas na minha memória, por
causa do sol daquele dia, uma luz estival inundava o bairro. Manchas de sol no passeio e sombra sob o viaduto do metro. Uma passagem estreita e escura que outrora
fora um caminho de campo subia por entre os edifícios até à Rua Raynouard.
54

De noite, à saída da estação de Passy, os candeeiros lançam uma luz pálida sobre as folhas.
Outro dia, quis mais uma vez reencontrar os lugares. Desemboquei naquela zona de pavilhões administrativos, à beira do Sena. Estavam a começar a destruir a maior
parte deles. Montes de caliça, paredes esventradas, como após um bombardeamento. Os buldózeres, com o seu movimento lento, revolviam os escombros. Dei meia-volta
pela Rua Charles-Dickens. Perguntei a mim próprio qual teria sido a direção para onde ela tinha ido nesse sábado. Era com certeza a Rua Charles-Dickens. Quando nos
separámos vi-a virar à esquerda e, uma hora mais tarde, apressei-me a ir ter com ela ao café do cais onde tínhamos combinado encontro. Eu ia pelo passeio da Rua
Frémiet em direção ao Sena e ouvi alguém chamar-me pelo meu nome. Virei-me: Ela avançava para mim e segurava uma trela com um labrador preto.
O cão, ao ver-me, abanou a cauda. Apoiou as duas patas da frente nas minhas pernas. Fiz-lhe festas.
- É engraçado... dir-se-ia que ele te conhece.
- É teu, este cão? - perguntei-lhe.
- É, mas entreguei-o a uma pessoa porque não me pude ocupar dele nestes últimos tempos.
- Como é que ele se chama?
- Raymond.
Ela parecia radiante de o ter outra vez.
- E agora, ainda tens de ir buscar mais alguma coisa?
- Não. De momento não.
Sorria-me. Apercebera-se, sem dúvida, de que eu gozava amavelmente com ela. As malas, o casaco de peles, o cão... Hoje compreendo melhor aquelas idas e vindas procurando
juntar os pedaços dispersos de uma vida.
55

O cão deslizou para dentro do carro e deitou-se no banco detrás como se aquele lugar lhe fosse familiar. Ela disse-me que, antes de ir ao Bois de Boulogne, tinha
de passar por casa de Ansart. Queria perguntar a Jacques de Bavière se podíamos ficar com o carro. Ansart e Jacques de Bavière estavam sempre juntos ao sábado no
apartamento ou no restaurante de Ansart. Por conseguinte, aquela gente tinha os seus hábitos, e eu, agora, fazia mais ou menos parte do seu grupo, sem saber muito
bem porquê. Eu era aquele viajante que sobe para um comboio em marcha e se encontra na companhia de quatro desconhecidos. E pensa se não se terá enganado no comboio.
Mas que importa... À volta dele, os outros começam a falar-lhe.
Virei-me para o cão.
- E o Raymond, conhece Ansart e Jacques de Bavière?
- Sim, conhece-os.
Ela desatou a rir. O cão levantou a cabeça e olhou para mim com as orelhas em riste.
Quando ela os encontrou pela primeira vez estava com o cão. Vivia ainda em Saint-Leu-la-Forêt. As pessoas a quem confiara o cão, por sua vez, tinham uma casa perto
de Saint-Leu-la-Forêt e um apartamento em Paris. Hoje tinham-lhe levado o animal para Paris.
Pensei se devia acreditar nela. Essas explicações pareciam-me excessivas e incompletas, como se ela escondesse a verdade sob uma profusão de pormenores. Porque é
que ela tinha demorado uma hora se se tratava simplesmente de ir buscar um cão? E porque é que não quis que eu a acompanhasse? Quem eram essas pessoas?
Pensei que não valia a pena fazer-lhe perguntas. Só a conhecia há quarenta e oito horas. Alguns dias de intimidade e as barreiras desapareceriam. Brevemente eu ia
saber tudo.
Parámos em frente do edifício da Rua Raffet e atravessámos o pátio. Ela não pôs a trela no cão, mas ele seguia-nos docilmente.
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Foi Martine, a rapariga loira, quem nos abriu a porta. Beijou Gisèle. Depois, beijou-me a mim também. Fiquei surpreendido com aquela familiaridade.
Ansart e Jacques de Bavière encontravam-se os dois sentados no divã e viam fotografias grandes, algumas das quais se encontravam dispersas, aos seus pés, na alcatifa.
Não ficaram admirados com a nossa chegada. O cão subiu para o divã e fez-lhes uma festa.
- Então, estás contente por teres recuperado o teu cão? - perguntou Jacques de Bavière.
- Muito contente.
Ansart juntou as fotos e pô-las na mesinha baixa.
- Tu não tiveste problemas com o carro? - perguntou Jacques de Bavière.
- Nenhuns.
- Sentem-se dois minutos - disse Ansart com o seu sotaque ligeiramente suburbano.
Sentámo-nos nas poltronas. O cão veio deitar-se em frente de Gisèle. Martine sentou-se no chão, entre Jacques de Bavière e Ansart, com as costas apoiadas no rebordo
do canapé.
- Queria pedir-vos se podíamos ficar com o carro por mais uns tempos - disse Gisèle.
Jacques de Bavière fez um sorriso irónico:
- Com certeza. Podem ficar com ele o tempo que quiserem.
- Com uma única condição... - observou Ansart.
Levantou o dedo para chamar a nossa atenção. Com um sorriso estampado na cara, podia pensar-se que ele ia dizer uma piada.
- Com a condição de me fazerem um favor...
Tirou um cigarro do maço, de cima da mesinha baixa, depois acendeu-o nervosamente com o isqueiro. Olhava para mim, bem nos olhos, como se se me dirigisse e Gisèle
já estivesse mais ou menos ao corrente.
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- Bem... É muito simples... só têm de fazer de meus mensageiros...
Jacques de Bavière e Martine contemplavam o cão que estava numa posição esfíngica, aos pés de Gisèle, mas eu tive a impressão de que era por discrição e para não
se cruzarem com o meu olhar. Receavam talvez que eu ficasse chocado com a proposta de Ansart.
- Não é muito complicado... Amanhã à tarde, vocês vão a um café que vos vou indicar... Esperam que esse tipo entre no café...
Ele agarrou numa das fotografias que estavam em cima da mesinha baixa e mostrou-a de longe. A cara de um homem moreno, de quarenta e tal anos. Gisèle não tinha um
ar nada chocado com esta proposta mas Ansart certamente se deu conta da minha desconfiança. Inclinou-se para mim:
- Tranquilize-se. Não há nada de mais simples... Este homem é um dos meus contactos de negócios... Quando ele se sentar a uma mesa, um de vocês apresenta-se-lhe
e diz-lhe simplesmente: "O senhor Pierre Ansart espera-o no carro à esquina da rua..."
Ele sorria novamente, um grande sorriso infantil. Decididamente, o seu olhar inspirava franqueza.
Gostaria de ter sabido a opinião da Gisèle. Ela inclinou-se e agarrou na fotografia que Ansart pusera na mesinha baixa. Observámo-la os dois. Dir-se-ia uma ampliação
de uma fotografia de bilhete de identidade. Uma cara de traços regulares. Cabelos pretos penteados para trás. Uma testa desafogada.
Martine e Jacques de Bavière viam também por sua vez as outras fotografias que representavam o mesmo homem, sob ângulos diferentes, sozinho ou na companhia de outras
pessoas.
- E o que é que ele faz na vida? - perguntei eu com uma voz tímida.
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- Uma profissão totalmente honesta - respondeu-nos Ansart sem mais explicações. - Então, vocês esperam por esse homem e transmitem-lhe a minha mensagem... isto será
em Neuilly, perto do Bois de Boulogne.
- E depois? - perguntou Gisèle.
- Depois, têm carta branca. E como não tenho o hábito de fazer as pessoas trabalharem para nada, ofereço-lhes dois mil francos a cada um por esta tarefa.
- Agradeço-lhe mas não preciso de dinheiro - disse eu.
- Isso é uma parvoíce, meu pequeno. Na sua idade precisa-se sempre de dinheiro...
O tom era paternal e o olhar tinha uma expressão tão doce e tão triste que me inspirou subitamente uma certa simpatia.
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Fizera um sol muito bonito durante toda a tarde mas estávamos naquele período do ano em que anoitece por volta das cinco horas. Ansart quis que nós fôssemos almoçar
ao seu restaurante. Estava situado um pouco mais a norte do Sexto Bairro, na Rua de Belles-Feuilles. Ansart, Jacques de Bavière e Martine entraram para dentro de
um carro preto e nós seguimo-los através das ruas desertas de sábado.
- Achas que lhe podemos fazer o favor que ele nos pediu? - perguntei a Gisèle.
- Isso não nos obriga a nada...
- Mas, fora o restaurante, não sabes que tipo de profissão ele exerce?
- Não.
- Era interessante sabê-lo...
- Achas?
Ela encolheu os ombros. Num sinal vermelho, no Bairro de Suchet, juntámo-nos a eles. Os dois carros ficaram à espera, lado a lado. Martine estava sentada na parte
detrás e sorriu-nos. Ansart e Jacques de Bavière estavam absortos numa conversa muito séria. Com um gesto do indicador, Jacques de Bavière deitou a cinza do cigarro
pela janela semiaberta.
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- Já foste ao restaurante dele?
- Já, duas ou três vezes. Sabes, não os conheço há muito tempo...
Com efeito, ela só os conhecia há três semanas. Nada nos ligava a eles de um modo definitivo, a menos que ela me escondesse qualquer coisa. Perguntei-lhe se tinha
a intenção de continuar a dar-se com eles. Explicou-me que Jacques de Bavière tinha sido muito simpático com ela e que a tinha ajudado desde a primeira vez em que
se encontraram. Até lhe emprestara dinheiro.
- Não foi por causa deles que foste interrogada pela polícia, no outro dia?
Essa ideia passara-me subitamente pela cabeça.
- Não. De modo nenhum...
Ela franziu as sobrancelhas e deitou-me um olhar preocupado.
- Eles não podem saber, de maneira nenhuma, que fui interrogada...
Ela já me tinha feito essa recomendação na véspera, sem me dizer mais nada.
- Porquê? Eles podem ter aborrecimentos por causa disso?
Ela carregou no acelerador. O cão endireitou-se no banco de
trás e apoiou a cabeça no meu ombro.
- Eles convocaram-me para ir lá porque encontraram o meu nome numa ficha do hotel. Mas, de qualquer forma, eu tê-los-ia ido visitar de bom grado...
- Porquê?
Ultrapassámos o carro de Ansart e de Jacques de Bavière. íamos muito depressa e pareceu-me que tínhamos passado um sinal vermelho. Sentia a respiração do cão no
meu pescoço.
- Eu deixei o meu marido e ele anda à minha procura. Nos últimos meses que passei com ele, não parava de me ameaçar... Contei tudo à polícia...
- Vivias com ele em Saint-Leu-la-Forêt?
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- Não.
Ela respondeu-me secamente. Já lamentava o facto de se ter aberto comigo. Arrisquei uma outra questão:
- O teu marido, que tipo de homem é?
- Oh... Um homem como outro qualquer...
Percebi que já não tirava nada dela, por agora. Os outros tinham-nos apanhado. Jacques de Bavière inclinou-se na janela aberta. Gritou:
- Pensam que estão nas Vinte e Quatro Horas de Le Mans?
E ultrapassaram-nos, depois abrandaram a velocidade. Ela também. íamos agora atrás deles, muito perto, e os para-choques quase que se tocavam.
- Depois do almoço, podemos passear os dois no Bois de Bou-logne? - perguntei-lhe.
- Com certeza... Não somos obrigados a ficar com eles...
Fiquei contente por ela me dizer isso. Sentia-me dependente
dos adultos e da sua boa vontade. O colégio que eu conhecera durante seis anos e a ameaça de uma ida próxima para a tropa davam-me a impressão de roubar cada instante
de liberdade e de viver em fraude.
- É verdade... Não temos de lhes prestar contas...
Esta observação fê-la rir. O cão continuava a respirar no meu pescoço e de vez em quando passava-me com a língua áspera na orelha.
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O restaurante tinha o nome da rua: Les Belles Feuilles.
Uma sala pequena. Madeiras claras. Um bar de caju. Mesas cobertas com toalhas brancas e bancos de napa vermelha.
Quando entrámos, estavam três clientes a almoçar. Fomos recebidos pelo empregado, um homem moreno com cerca de trinta e cinco anos e um casaco branco a quem eles
chamavam Rémy. Sentou-nos numa das mesas do fundo. Gisèle não despiu o seu casaco de peles.
Ela perguntou a Ansart:
- Acha que há alguma coisa para dar de comer ao cão?
- Com certeza.
Ele chamou Rémy e todos escolhemos o prato do dia. Ansart levantou-se e dirigiu-se para a mesa dos clientes. Falou-lhes muito delicadamente. Depois veio ter connosco.
- Então, o que é que acha da minha casa? - perguntou-me brindando-me com o seu enorme sorriso.
- Gosto muito.
- Era um velho café-charbon que eu frequentava quando tinha a sua idade, durante a guerra. Na época, nunca poderia imaginar que o transformaria em restaurante.
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Estava pronto a fazer-me confidências. Por causa da minha timidez? Do meu olhar atento? Da minha idade que lhe trazia recordações?
- A partir de hoje, tem esta casa à sua disposição.
- Obrigado.
Jacques de Bavière foi telefonar ao bar. Estava de pé atrás do balcão, como se fosse o dono.
- Tenho uma clientela perfeitamente calma - disse Ansart.
- Pessoas do bairro...
- Também trata do restaurante? - perguntei a Martine.
- Ajudou-me um pouco na decoração.
Ele pôs-lhe afetuosamente a mão no ombro. Gostaria de ter sabido mais concretamente em que ocasião se tinham encontrado e também como Ansart e Jacques de Bavière
se tinham conhecido. Ansart tinha pelo menos uma dezena de anos a mais que ele. Imaginava-o com a minha idade, numa noite de novembro, a entrar no café que ainda
não se devia chamar Les Belles Feuilles. O que é que ele fazia naquela época ali no bairro?
Depois do almoço, ficámos um bocado a conversar no passeio. Gisèle explicou-lhes que íamos passear o cão ao bosque. Ansart quis levar Jacques de Bavière a casa,
na Rua Washington. Dissemos-lhe que não valia a pena e que Jacques de Bavière podia ficar com o carro. Mas não, ele insistia para que ficássemos com ele. Era muito
simpático da sua parte.
Perguntei a Ansart em que sítio de Neuilly devíamos empreender a nossa curiosa missão de amanhã à noite.
Era na Rua de Ferme, à beira do bosque.
- Quer conhecer os sítios? Tem razão. É mais prudente. É melhor verificarmos antes todas as saídas possíveis.
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E ele deu-me uma palmada no ombro, com o seu sorriso aberto e franco.
Depois da Porta Dauphine, tomámos a estrada que leva aos lagos e estacionámos em frente do Pavillon Royal. Uma tarde soalheira de sábado, de fim de outono, como
aqueles sábados da minha infância em que eu chegava à mesma hora ao mesmo lugar, no autocarro 63 que parava na Porte de la Muette. Havia já muita gente no guichê
onde se alugam os barcos.
Caminhávamos ao longo do lago. Ela tinha tirado a trela ao cão que corria na alameda à nossa frente. Quando ele se afastava muito, ela chamava-o: Raymond! e imediatamente
o cão dava meia-volta. Já tínhamos ultrapassado o embarcadouro de onde partiam as canoas a motor para Chalet des Iles.
- Somos obrigados a ir ter com eles daqui a bocado?
Ela levantou a cabeça e fixou-me com os seus olhos azul-pálido.
- É melhor - disse-me. - Eles podem ajudar-nos... E depois emprestaram-nos o carro.
- Tu achas realmente que temos de aceitar o que eles nos pediram para fazer?
- Tens medo?
Ela deu-me o braço e seguimos pela alameda que se tornava cada vez mais estreita, entre as árvores.
- Se prestarmos um serviço ao Pierre, podemos pedir-lhe tudo e mais alguma coisa. Pierre é muito simpático, sabes...
- Pedir-lhe o quê, por exemplo?
- Para nos ajudar nesta viagem a Roma.
Ela não se esquecera do projeto de que lhe tinha falado. Eu guardava o guia de Roma num dos bolsos e já o tinha consultado diversas vezes.
- Também eu - disse-me - estaria melhor em Roma.
Queria que ela me explicasse de uma vez por todas a sua situação.
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- Mas o que é que se passa concretamente com o teu marido?
Ela parou de andar. O cão subiu para um talude e farejava o
tronco das árvores. Gisèle apertava-me o braço com mais força.
- Ele tenta encontrar-me, mas até agora ainda não conseguiu. No entanto tenho medo de dar com ele.
- Ele está em Paris?
- De vez em quando.
- Ansart e Jacques de Bavière estão ao corrente?
- Não. Mas temos de ser simpáticos com eles. Podem-me proteger dele.
- E qual é a sua profissão?
- Oh... Depende dos dias...
Estávamos no Carrefour des Cascades. Tínhamos caminhado até ao outro lado do lago. Ela não me fez muitas confidências, apenas que se tinha casado aos dezanove anos
e que o marido era bastante mais velho que ela. Propus-lhe passarmos de carro pelo sítio onde Ansart nos tinha marcado a nossa missão.
Atalhámos pelo bosque até à beira de Neuilly e chegámos à Rua da Ferme. O local do encontro era num bar-restaurante, à esquina da Rua de Longchamp. Os últimos raios
de sol espalhavam-se lentamente pelos passeios.
Sentia-me estranho por me encontrar aqui. Eu conhecia bem aquele bairro. Tinha andado por lá com o meu pai e um dos seus amigos, depois com o Charell e o Karvé,
uns colegas de colégio. Não havia nem um só transeunte na Rua da Ferme e os picadeiros pareciam fechados.
Entretanto anoitecera quando chegámos a casa de Ansart. Este e Jacques de Bavière estavam sentados no divã vermelho, como da primeira vez. Martine trouxe, da cozinha,
um tabuleiro com chá e bolinhos.
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As fotos continuavam ainda em cima da mesa baixa. Peguei numa, ao acaso, mas era a que eu já tinha visto.
- Acha que o conseguimos reconhecer? - perguntei a Ansart.
- Claro que sim. Com certeza que não vai estar muita gente no café amanhã à noite... E vou-lhe dar um pormenor que lhe saltará à vista imediatamente: esse tipo deve
ter, quase de certeza, rabo de cavalo.
Aspirei bem fundo para ganhar coragem e disse-lhe:
- Mas porque é que não vai você mesmo a esse café?
Ansart deitou-me um olhar triste e terno que contrastava com
o seu grande sorriso.
- Vai compreender imediatamente o problema: não estava combinado nenhum encontro entre esse tipo e eu, amanhã à noite... Vai ser uma surpresa para ele...
- Uma boa surpresa?
Ele não respondeu à minha pergunta. Acho que se ele não tivesse um olhar tão terno, eu teria sentido uma certa inquietação. Martine sevia-nos o chá. Ansart deixou
cair, nas nossas chávenas, na de Gisèle e na minha, um bocado de açúcar que agarrara entre o polegar e o indicador.
- Não se preocupe - disse Jacques de Bavière olhando distraidamente para uma das fotos. - É uma partida que lhe vamos pregar...
Eu não me sentia realmente convencido mas Gisèle, ao meu lado, parecia achar tudo isto natural. Ela bebia o chá com pequenas goladas. Deu um bocado de açúcar ao
cão.
- Este senhor monta a cavalo? - perguntei para quebrar o silêncio.
Jacques de Bavière fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Conheci-o num picadeiro da Rua da Ferme onde tenho uma box para o meu cavalo.
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Gisèle voltou-se para mim e como se pretendesse que a conversa tomasse um tom mais futil:
- Jacques tem um cavalo muito bonito. Chama-se Plaine au Cerf.
- Não sei se vou ficar com ele muito mais tempo - disse Jacques de Bavière. - Um cavalo - custa caro e já não disponho de muito tempo livre para desfrutar dele.
Ele não possuía o sotaque ligeiramente suburbano de Ansart e a existência daquele cavalo intrigava-me. Fiquei com curiosidade de ver o apartamento da Rua Washington
e essa "madrasta" de que a Gisèle me tinha falado.
- Amanhã, pode passar primeiro por aqui ou ir diretamente para a Rua da Ferme - disse Ansart. - Não se esqueça... o encontro é às seis horas... Tome, isto é para
si e para a sua irmã...
E estendeu-me dois envelopes que não ousei recusar.
Parámos ao cimo dos Champs-Elysées e tivemos dificuldade em estacionar. Lá fora, a temperatura era tão tépida como numa noite primaveril de sábado.
Decidimos ir ao cinema, mas não queríamos deixar o cão no carro. Pensei que no Napoléon, do lado da Avenida da Grande-Armée, seriam mais indulgentes com o cão do
que nas grandes salas. Com efeito, a senhora da bilheteira e a arrumadora deixaram-no entrar connosco. O filme chamava-se O Aventureiro de Rio Grande.
A saída do cinema, propus-lhe jantarmos num restaurante. Eu trazia sempre comigo o dinheiro de Dell.'Aversano, ao qual se vieram juntar os dois envelopes que Ansart
me tinha dado e que continham, cada um deles, dois mil francos.
Eu queria convidá-la, mas sentia-me intimidado pelos restaurantes dos Champs-Elysées. Pedi-lhe para escolher um.
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- Podíamos voltar para a Rua Washington - disse-me ela.
Eu receava encontrar lá Jacques de Bavière. Ela tranquilizou-me. Ele ia ficar com Ansart e só voltava para casa muito tarde.
Estávamos sentados perto da montra.
- O Jacques vive em frente.
E ela apontou para o portão do número 22.
Teria preferido que nos esquecêssemos da sua existência, mas seria difícil enquanto não saíssemos de Paris. Visto que ela me dizia que essas pessoas nos podiam ajudar,
eu queria acreditar. Pretendia simplesmente saber um pouco mais acerca deles.
- Tu já foste ao apartamento de Jacques de Bavière? - perguntei-lhe.
- Já. Várias vezes.
- Tinha curiosidade de saber em que género de sítio ele vive...
- A madrasta deve estar lá.
Depois do jantar, atravessámos a rua e, em frente do portão do 22, tive um momento de hesitação.
- Não vale a pena...
Ela insistiu. Diríamos à madrasta que tínhamos um encontro com Jacques de Bavière ou, muito simplesmente, que estávamos no bairro e pensámos em lhe fazer uma visita.
- Mas não é muito tarde para fazer visitas? Conheces essa mulher?
- Mais ou menos.
Entrámos no número 22 e Gisèle tocou a uma porta do rés do chão. Por cima da campainha, numa pequena placa de prata estava gravado o nome: Ellen James.
Uma voz de mulher perguntou:
- Quem é?
Havia um óculo na porta. Ela devia estar a observar-nos.
- Somos amigos do Jacques - disse Gisèle.
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A porta abriu-se e surgiu uma mulher loira com cerca de quarenta e cinco anos, com um vestido de seda preta. No pescoço, tinha uma fiada de pérolas.
- Ah, é você... - exclamou ela a Gisèle. - Não a estava a reconhecer...
Deitou-me um olhar interrogador.
- O meu irmão - disse Gisèle.
- Entrem...
Uns apliques de vidro fosco iluminavam tenuamente o vestíbulo. Num canapé, junto à parede, estavam colocados lado a lado casacos de homem e de mulher.
- Não sabia que tinha um cão - observou-lhe ela.
Levou-nos para uma sala grande cujas janelas de sacada davam
para um jardim. Ao fundo, do compartimento vizinho, vinha-nos um blablá de conversas.
- Juntei uns amigos para uma partida de cartas. Mas Jacques não está cá esta noite...
Não nos dizia para despirmos os casacos. Eu tinha a sensação de que ela se ia livrar de nós para ir ter com os outros e deixar-nos sozinhos na sala.
- Não sei a que horas ele volta...
Ela tinha uma expressão inquieta no olhar.
- Viu-o hoje? - perguntou a Gisèle.
- Sim, almoçámos juntos. O senhor Ansart levou-nos ao seu restaurante.
A expressão da mulher loira descontraiu-se.
- Eu não o vi esta manhã... ele saiu muito cedo...
Era uma mulher muito bonita, mas lembro-me que nessa noite ela me pareceu ser já muito velha, uma pessoa adulta da idade dos meus pais. Tive uma sensação análoga
à que senti com Ansart. Jacques de Bavière fazia-me lembrar aqueles jovens que partiam para a guerra da Argélia quando eu tinha dezasseis anos.
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- Desculpem-me - disse ela mas eu tenho de ir ter com os meus convidados.
Dei uma olhadela rápida pela sala. Madeiras azul-celeste, biombo, lareira de mármore claro, vidros e espelhos. Ao pé de uma consola, a alcatifa estava usada até
ao fio e, numa das paredes, reparei na marca de um quadro que fora retirado. Por detrás das portadas das janelas viam-se as árvores sob a lua, e eu não distinguia
os limites do jardim.
- Parece que estamos no campo, não é? - disse-me a mulher loira que surpreendera o meu olhar. - O jardim vai até aos edifícios da Rua Berri...
Tive vontade de lhe perguntar diretamente se ela era realmente a madrasta do Jacques de Bavière. Ela acompanhou-nos até à porta.
- Se eu vir o Jacques, quer que lhe diga alguma coisa?
Ela fizera esta pergunta num tom distraído. Estava desejosa, sem dúvida, de ir ter com os seus convidados.
Ainda era cedo. As pessoas faziam bicha no cinema Norman-die para a segunda sessão da noite.
Nós descíamos a avenida com o cão.
- Tu achas realmente que ela é a madrasta? - perguntei-lhe.
- É o que ele diz. Ele explicou-me que ela dirige um clube de bridge no apartamento e que, de tempos a tempos, ele a ajuda.
Um clube de bridge. Aqui estava a explicação para o meu mal-estar. Não teria ficado surpreendido se os móveis estivessem cobertos com capas. Eu até tinha reparado
nas pilhas de revistas em cima de uma mesinha baixa, como nessas salas de espera dos dentistas. Assim, o apartamento em que viviam Jacques de Bavière e a sua pretensa
madrasta era na realidade um clube de bridge. Pensei no meu pai. Também ele próprio teria recorrido a
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isso, e Grabley teria servido de secretário e de porteiro. Decididamente, eles pertenciam todos ao mesmo mundo.
Tínhamos chegado à altura das arcadas do Lido. Uma terrível vontade de fugir daquela cidade invadiu-me, como se eu sentisse uma ameaça a rondar-me.
- O que é que tens? Estás muito pálido...
Ela parou de andar. Um grupo de transeuntes roçou por nós de passagem. O cão, com a cabeça levantada para nós, também parecia inquieto.
- Não é nada... Uma tontura...
Esforcei-me por sorrir.
- Queres-te sentar um bocado para beber qualquer coisa?
Ela apontou para a esplanada de um café mas eu não me podia
sentar no meio daquela multidão de sábado à noite. Sufocaria. De todas as formas, não havia lugar livre.
- Não... continuemos a andar... vai ser melhor...
Dei-lhe a mão.
- Não queres partir imediatamente para Roma? - perguntei-lhe. - Senão, tenho medo que seja demasiado tarde...
Ela olhava-me com os olhos arregalados.
- Porquê imediatamente? Temos de esperar que Ansart e Jacques de Bavière nos ajudem... Não podemos fazer grande coisa sem eles...
- E se atravessássemos? É mais calmo do outro lado...
Com efeito, havia menos gente no passeio da esquerda. Nós íamos na direção da Étoile, onde tínhamos estacionado o carro. E hoje que tento lembrar-me dessa noite,
vejo dois vultos com um cão, a subirem a avenida. À volta deles, os transeuntes são cada vez mais raros, as esplanadas dos cafés esvaziam-se, os cinemas apagam-se.
No meu sonho, nessa noite, eu estava sentado numa esplanada dos Champs-Elysées entre alguns clientes notívagos. Já tinham apagado a luz da sala e o criado punha
as cadeiras em
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cima das mesas para nos dar a entender que estava na hora de se ir embora. Saí. Caminhava na direção da Étoile e ouvi uma voz longínqua dizer-me: "Temos de esperar
que Ansart e Jacques de Bavière nos ajudem" - a sua voz grave, sempre um pouco rouca.
No Cais de Conti, as janelas do escritório tinham luz. Ter-se-ia Grabley esquecido de apagar a luz quando partiu para a sua digressão?
No preciso momento em que atravessávamos o vestíbulo na semiobscuridade, com o cão, ouvimos umas gargalhadas.
íamos em bicos de pés e Gisèle levava o cão pela coleira. Esperávamos deslizar pelas escadas sem atrair a atenção de ninguém. Mas precisamente no instante em que
chegámos em frente da porta entreaberta do escritório, ela abriu-se subitamente e Grabley apareceu, com um copo na mão.
Teve um sobressalto ao ver-nos. Permaneceu de pé no limiar da porta e olhou para o cão, surpreso.
- Olha... Não conheço esse...
Teria ele bebido de mais? Com um gesto cerimonioso, fez-nos sinal para entrarmos.
Uma jovem mulher morena com a cara redonda e os cabelos curtos estava sentada no canapé. Aos pés, uma garrafa de champanhe. Tinha um copo na mão e a nossa chegada
não pareceu perturbá-la em nada. Grabley apresentou-nos.
- Sylvette... Obligado e a Menina...
Ela sorriu-nos.
- Podia oferecer-lhes um pouco de champanhe - disse ela a Grabley. - Aborrece-me beber sozinha.
- Vou buscar copos...
Mas ele não encontrou nenhuns na cozinha. Só restavam dois: o seu e o da rapariga. Ele ficaria constrangido de ir buscar
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chávenas, ou até um desses copos de cartão que utilizávamos já há algumas semanas.
- Não se incomode - disse-lhe eu.
O cão aproximou-se da rapariga morena. Gisèle segurou-o pela coleira.
- Deixe-o... gosto muito de cães...
Ela fez-lhe festas no focinho.
- Adivinha onde conheci a Sylvette? - perguntou Grabley.
- Acha realmente que isso lhes interessa? - perguntou-lhe ela.
- Conheci-a no Tomate...
Gisèle franziu o sobrolho. Fiquei com medo que ela se fosse embora.
A rapariga morena bebia uma golada de champanhe, para disfarçar a atrapalhação.
- Não conhece o Tomate, Obligado?
Lembrei-me que passava em frente desse estabelecimento todos os domingos à noite quando ia ter com a minha mãe que representava num teatro de Pigalle.
- Sou dançarina - disse ela com um sorriso embaraçado - e contrataram-me por quinze dias... mas não vou ficar lá... É mau como espetáculo...
- De forma nenhuma - observou Grabley.
Ela corou e baixou os olhos.
Era uma parvoíce sentir-se incomodada na nossa presença. Lembrei-me desses domingos à noite em que atravessava Paris a pé, da Rive Gauche a Pigalle, e o anúncio
luminoso ao fundo da Rua Notre-Dame-de-Lorette, vermelho, e depois verde, e depois azul.
O TOMATE STRIP-TEASE PERMANENTE
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Um bocado mais acima, o teatro Fontaine. A minha mãe representava lá um vaudeville: "A Princesa Perfumada". E o nosso regresso no último autocarro àquele apartamento
do Cais Conti, já quase tão deteriorado como naquela noite.
- A saúde do Tomate - disse Grabley erguendo o copo.
A rapariguinha morena levantou o copo também, como por desafio. Nós ficámos imóveis, Gisèle e eu. E o cão. Os copos deles bateram um no outro. Houve um grande momento
de silêncio. Estávamos todos de pé sob a luz baça da lâmpada do teto, com um ar de estar a festejar um misterioso aniversário.
- Desculpem-me - disse Gisèle -, estou a cair de sono.
- Amanhã domingo podíamos todos ir ao Tomate para ver a Sylvette - disse Grabley.
De novo voltei a pensar nas velhas noites de domingo.
Dormi um sono agitado. De vez em quando, acordava em sobressalto e verificava se ela se encontrava bem a meu lado na cama. Eu tinha febre. O quarto transformara-se
num compartimento de comboio. Os vultos de Grabley e da rapariguinha morena apareciam no enquadramento da janela. Estavam de pé no cais e esperavam pela nossa partida.
Seguravam ambos uma chávena de cartão e erguiam os braços para brindar, como se fosse ao ralenti. Eu ouvia a voz de Grabley semiabafada:
- Amanhã, domingo, encontro no Tomate...
Mas eu sabia muito bem que não iríamos ao encontro. íamos deixar Paris para sempre. O comboio estremecia. Os edifícios e os pavilhões dos arredores surgiam pela
última vez, pretos num céu crepuscular. Estávamos abraçados numa couchette, e a confusão da carruagem sacudia-nos com muita força. Amanhã de manhã, o comboio iria
parar numa gare inundada de sol.
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Era domingo. Levantámo-nos muito tarde, com a sensação de estarmos engripados. Era preciso encontrar uma farmácia de serviço no bairro para comprar uma embalagem
de aspirinas. E, qualquer forma, tínhamos de passear o cão.
Grabley já tinha saído. Deixara um bilhete, bem visível, em cima do canapé do escritório.
Meu querido Obligado,
Você ainda não acordou, e eu vou à missa das onze horas a Saint-Germain-des-Prés.
O seu pai telefonou esta manhã mas a ligação era muito má porque ele estava a falar de uma cabine na rua: ouviam-se as buzinas e os barulhos do trânsito, que abafavam
a voz.
E cortaram-nos a chamada mas tenho a certeza de que ele vai voltar a telefonar. A vida não deve ser fácil para ele na Suíça. Dissuadi-o de ir para lá. É um país
muito duro para os que não têm dinheiro...
Aconteça o que acontecer, esperamos por vocês no Tomate.
As duas últimas sessões são às vinte e às vinte e duas e trinta. Fica à vossa escolha.
Vamos cear a seguir no bairro. Venham connosco.
Henri
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Estava aberta uma farmácia na Rua Saint-André-des-Arts. Fomos tomar as aspirinas a um café, depois, no cais, andámos até à Ponte da Tournelle com o cão sem a trela.
Estava bom tempo, como na véspera, mas mais frio, de modo que podia ser um dia ensolarado de fevereiro. Em breve seria primavera. Ao menos embalava-me com esta ilusão,
porque a perspetiva de passar todo o inverno em Paris sem ter a certeza de poder ficar no apartamento causava-me um ligeira inquietação.
No decurso do nosso passeio, sentimo-nos melhor. Almoçámos num hotel do Cais Grands-Augustins que se chamava Le Relais Bisson. Quando nos demos conta de que os pratos
eram muito caros, encomendámos apenas uma sopa, uma sobremesa e um bocado de carne picada para o cão.
E a tarde decorreu num doce torpor sobre a cama do quarto do quinto andar e, mais tarde, a ouvir rádio. Ligámos o rádio no escritório. Lembro-me que a emissão era
dedicada aos músicos de jazz.
Subitamente, o encanto dissipou-se. Dentro de uma hora, tínhamos de ir ao encontro que Ansart nos tinha marcado.
- Se não fôssemos ao encontro? - perguntei eu.
Ela hesitou um momento. Senti-a quase convencida.
- Assim, não temos de os ver mais e deixamos o carro na Rua Raffet...
Ela tirou um cigarro de um maço de Camel que Grabley havia esquecido. Acendeu-o e aspirou uma baforada. Tossiu. Era a primeira vez que a via fumar.
- Era uma parvoíce chatearmo-nos com eles...
Estava desiludido por ela ter mudado de opinião. Ela apagou o cigarro no cinzeiro.
- Vamos fazer o que nos disseram e, depois, peço muito dinheiro a Ansart para podermos ir para Roma.
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Tive a impressão de que ela dizia aquilo para me convencer mas ela própria não acreditava. Um último raio de sol banhava a ponta da ilha até à extremidade do jardim
Vert-Galant. Havia apenas alguns transeuntes no cais e os alfarrabistas fechavam os quiosques. Ouvi dar as cinco horas no relógio do Instituto.
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Decidimos deixar o cão no apartamento com a intenção de voltar a buscá-lo o mais depressa possível. Mas, assim que a porta se fechou, ele não parou de ladrar e de
ganir. Então, não tivemos outro remédio senão levá-lo connosco ao encontro.
Ainda era de dia quando chegámos ao Bois de Boulogne. Tínhamos chegado antes da hora e parámos em frente do antigo castelo de Madrid. Andámos pela clareira de pinheiros
mansos até ao charco Saint-James onde eu vira deslizar patinadores, num inverno da minha infância. O perfume da terra molhada e a noite que caía lembraram-me de
novo as velhas noites de domingo, até provocarem em mim uma angústia tão surda como a que eu sentia perante a perspetiva de voltar na manhã seguinte para o colégio.
Certamente que, agora, a situação era diferente, eu andava no Bois de Boulogne com ela e não com o meu pai ou os meus amigos Charell ou Karvé. Mas algo idêntico
flutuava no ar, o mesmo odor, e era também domingo.
- Vamos... - disse Gisèle.
Ela tinha um ar igualmente angustiado. Para me descontrair, não tirava os olhos do cão que corria à nossa frente. Perguntei-lhe se íamos de carro. Disse-me que não
valia a pena.
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Seguimos a pé pela Rua da Ferme. Agora ela segurava o cão pela trela. Passámos em frente do portão dos Charell e a seguir pelo picadeiro Howlett que parecia abandonado.
Os Charell tinham com certeza deixado a casa. Pertencem a esse tipo de gente que não se fixa em lugar nenhum. Onde se poderia encontrar Alain Charell esta noite?
Algures no México? Eu ouvia ao longe um ruído de patas de cavalo. Virei-me: dois cavaleiros cuja cara eu não conseguia distinguir, acabavam de surgir no princípio
da rua. Seria algum deles o homem que nós deveríamos abordar daí a um bocado?
Aproximaram-se de nós, pouco a pouco. Ainda se estava a tempo de arrepiar caminho, de pegar no carro, de o deixar em frente do edifício da Rua Raffet e de desaparecer
com o cão sem voltar a dar notícias.
Ela apertou-me o braço com força.
- Isto não vai demorar muito tempo - disse-me.
- Achas?
- Assim que tivermos falado com o tipo, saímos do café e deixamo-los desenvencilharem-se.
Os dois cavaleiros tinham virado à direita, na pequena Rua Saint-James. O barulho dos cascos dos cavalos extinguiu-se.
Chegámos em frente do café. Em baixo, na parte da Rua da Ferme que vai dar ao Sena, vi o carro de Ansart. Alguém estava sentado num dos guarda-lamas. Jacques de
Bavière? Não tinha a certeza. Dois vultos ocupavam o banco da frente.
Entrámos. Fui surpreendido pelo conforto do local porque estava à espera de um simples café. Havia um bar e mesas redondas em caju. Poltronas de couro um bocado
usadas. Madeiras nas paredes. Na lareira de tijolo, tinham acendido o lume.
Ocupámos um lugar na mesa mais próxima da entrada. À nossa volta, alguns clientes, mas não reconheci entre eles o homem.
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O cão deitou-se docilmente aos nossos pés. Pedimos dois cafés e a conta para sair assim que transmitíssemos a mensagem a esse desconhecido.
Gisèle tirou do bolso do impermeável o maço de cigarros de Grabley e acendeu um. Deu uma baforada, desajeitadamente. A sua mão tremia.
Perguntei-lhe:
- Tens medo?
- Nenhum.
A porta abriu-se e três pessoas entraram: uma mulher e dois homens. Um deles era o da fotografia: testa alta, cabelos castanhos penteados para trás.
Vinham em conversa animada. A mulher desatou à gargalhada.
Sentaram-se a uma mesa, ao fundo, perto da lareira. O homem tirou o casaco azul-escuro. Não trazia rabo de cavalo.
Gisèle apagou o cigarro no cinzeiro. Mantinha a cabeça baixa. Estaria ela a evitar o olhar do homem?
Ele estava de frente para nós na mesa do fundo. Os outros dois, uma morena de uns trinta e tal anos e um homem loiro de cara comprida e nariz aquilino, mantinham-se
de perfil.
A mulher falava bastante alto. O homem parecia mais jovem do que na fotografia.
Levantei-me, as mãos húmidas.
Fui avançando, e encontrei-me em frente da mesa deles. Interromperam a conversa:
- Fui encarregado de uma mensagem para si.
- Uma mensagem da parte de quem?
Ele tinha uma voz com um timbre agudo, meio estrangulado, e parecia irritado por eu o ter ido incomodar.
- Da parte de Pierre Ansart. Ele está à sua espera no carro, à esquina da rua.
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Eu tinha-me endireitado e pronunciara esta frase esforçando-me por articular as sílabas o melhor possível.
- Ansart?
A sua cara exprimia o embaraço que se sente quando nos chamam a atenção num lugar e num momento em que não estamos à espera.
- E ele quer-me ver já?
- Sim.
Ele deitava um olhar preocupado para a entrada do bar.
- Desculpem-me por um momento - disse aos seus acompanhantes. - Tenho de ir cumprimentar um amigo que está à minha espera lá fora.
Os outros dois observavam-me com uma certa altivez: por causa de ser demasiado jovem ou por causa do meu aspeto desleixado? Pensei que eles me poderiam reconhecer
mais tarde. Teriam reparado na presença de Gisèle?
Ele levantou-se e enfiou o casaco azul-escuro. Virou-se para o rapaz loiro e disse-lhe:
- Marcas para esta noite... Somos oito...
- É uma parvoíce - exclamou a mulher. - Podia ter organizado um jantar em minha casa...
- De forma alguma... Até já...
Eu fiquei plantado na frente deles. Ele perguntou-me:
- Então, onde é que está esse carro?
- Vou-lhe mostrar.
Segui atrás dele até à saída. Gisèle esperava, de pé em frente da mesa, com o cão. Ele pareceu surpreendido com a sua presença. Abri a porta e deixei-os passar aos
dois.
O carro aproximara-se. Estava estacionado à esquina da Rua Longchamp. Jacques de Bavière mantinha-se de pé, ligeiramente apoiado na carroceria. Ansart saiu deixando
a porta da frente aberta e fez-nos um sinal com o braço. A rua encontrava-se
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bem iluminada. No ar frio e límpido, as fachadas dos edifícios, a superfície das paredes, o automóvel destacavam-se nitidamente.
O homem avançou para eles, e nós, nós ficámos imóveis no passeio. Ele tinha-se esquecido de mim e de Gisèle. Levantou o braço, por sua vez, na direção de Ansart.
Disse:
- Que surpresa...
Falavam os dois no meio da rua. Nós ouvíamos só o murmúrio das vozes. Podíamos ter-nos juntado a eles. Teriam bastado apenas alguns passos. Mas tinha a impressão
de que se fôssemos ao seu encontro teríamos entrado numa zona perigosa. Além disso, nem Ansart nem Jacques de Bavière nos prestavam a menor atenção. Subitamente,
eles encontravam-se longe de nós, num outro espaço, e agora que esta cena se congelou para sempre, eu diria num outro tempo.
O próprio cão, que não tinha a trela, ficou imóvel, ao nosso lado, como se ele também sentisse uma fronteira invisível entre eles e nós.
Jacques de Bavière abriu uma das portas e deixou entrar o homem, depois sentou-se ao seu lado. Ansart tomou o lugar da frente. O que estava ao volante não saíra
do carro e eu não pude distinguir as suas feições. As portas bateram. O carro deu meia-volta e, pela Rua da Ferme, dirigiu-se para o Sena.
Segui-o com a vista até ele desaparecer na volta do cais.
Perguntei a Gisèle:
- Onde é que tu achas que eles vão?
- Levam-no para a Rua Raffet...
- Mas ele disse aos amigos que voltava imediatamente...
E, no entanto, eles não o tinham empurrado à força para o carro. Fora sem dúvida Ansart que o convencera a acompanhá-los durante a breve conversa que tiveram no
meio da rua.
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- Vou talvez prevenir os outros para não ficarem à espera dele - disse eu.
- Não... não nos vamos misturar nisto...
Fiquei surpreendido com o seu tom categórico e tive a impressão de que ela sabia mais do que eu.
- Achas mesmo que não os devemos prevenir?
- Com certeza... Vão desconfiar de nós... e fazer-nos perguntas...
Eu imaginava-me de pé em frente da mesa, a explicar-lhes que o amigo se tinha ido embora de carro. E as perguntas choveriam, cada vez mais numerosas e insistentes:
Viu-o ir-se embora? Com quem?
Quem foram as pessoas que o encarregaram desse recado?
Onde vive essa gente?
Quem é você exatamente?
E eu, não podendo escapar-me à avalanche de perguntas, sentia as pernas pesadas como chumbo, tal como nos pesadelos.
- Não devemos ficar aqui - disse-lhe eu.
Eles podiam sair de um momento para o outro para ver se o amigo estava ali. Seguimos pela Rua da Ferme em direção ao bosque. Ao pé do domicílio dos Charell, perguntei
a mim próprio o que é que Alain teria pensado disto.
Eu tinha uma sensação de mal-estar. Um homem havia deixado duas pessoas dizendo-lhes: "Até já." Fizeram-no entrar para um carro que partiu em direção ao Sena. Nós
éramos, ela e eu, não só as testemunhas mas também os cúmplices desse desaparecimento. Tudo isto se passou numa rua de Neuilly, perto do Bois de Boulogne, um bairro
que me fazia lembrar outros domingos... Eu passeava nas alamedas com o meu pai e um dos seus amigos, um homem muito alto, muito magro, a quem restavam, de um período
mais farto da sua vida, apenas uma peliça e um blazer que ele vestia consoante a estação. Reparei, na altura,
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como estavam usados os seus fatos. Acompanhámo-lo à noite, até um hotel de Neuilly que parecia uma pensão de comensais. O seu quarto, dizia, era pequeno mas bastante
confortável.
- Em que é que estás a pensar?
Ela deu-me o braço. Descemos ao longo da clareira de pinheiros mansos. Se a atravessássemos, teríamos chegado mais depressa ao sítio onde se encontrava estacionado
o carro. Mas estava muito escuro e só o Boulevard Richard-Wallace se encontrava iluminado.
Pensava na figura daquele homem, no seu sorriso e na sua cara ainda jovem. Mas, em pouco tempo, via-se bem que ele se tornara inseparável do blazer e da peliça já
gastos e que algo nele se tinha quebrado. Quem era? O que seria feito dele? Certamente que tinha desaparecido, como o outro, ainda há pouco.
Ela arrancou e seguimos em direção ao jardim da Acclimatation. Eu olhava para as luzes das janelas dos prédios.
Gisèle parou no semáforo vermelho da Avenida Madrid. Franziu o sobrolho. Parecia sentir o mesmo mal-estar que eu.
As fachadas desfilavam com as suas luzes. Era uma pena que não conhecêssemos ninguém. Teríamos tocado à campainha de um desses apartamentos confortáveis. Ter-nos-iam
convidado para jantar na companhia de pessoas distintas e instaladas na vida. A frase do homem veio-me à mente:
- Tu marcas para esta noite... Somos oito...
Será que eles tinham feito a reserva mesmo depois de terem esperado em vão pelo seu regresso? Nesse caso, os sete convivas estariam todos ainda à espera do oitavo.
Mas o lugar permaneceria vazio.
Um restaurante aberto ao domingo à noite... Nós frequentávamos um, o meu pai, o amigo e eu, perto da Étoile. íamos para
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lá cedo, por volta das sete horas e meia. Os clientes começavam a chegar quando nós já tínhamos terminado o nosso jantar. Um domingo à noite, um grupo de pessoas
muito elegantes entrou e, apesar dos meus onze anos, fiquei maravilhado com a beleza e o fulgor das mulheres. O olhar de uma delas pousou subitamente no amigo do
meu pai. Ele tinha vestido o seu blazer coçado. Ela parecia estupefacta de o ver ali, mas em breves instantes a sua expressão acalmou e tornou-se impassível. Foi
sentar-se com os seus acompanhantes numa mesa afastada da nossa.
Ele ficou muito pálido. Inclinou-se para o meu pai e disse-lhe uma frase que me ficou gravada na memória:
- Gaelle acabou de passar... reconheci-a logo... Mas, eu mudei tanto desde o fim da guerra...
Tínhamos chegado à Porta Maillot. Ela virou-se para mim.
- Onde é que queres ir?
- Não sei...
Sentíamo-nos desamparados, um e outro. Tocar à porta do Ansart para saber mais coisas? Mas não tínhamos que nos misturar com os seus assuntos. Eu nunca mais queria
ver essas pessoas e pretendia deixar Paris rapidamente.
- Agora é que deveríamos ir para Roma - disse-lhe eu.
- Sim, mas não há dinheiro suficiente.
Eu guardava comigo os sete mil e quinhentos francos que Dell'Aversano me tinha dado e os quatro mil francos de Ansart. Era mais do que suficiente. Não ousava perguntar-lhe
quanto dinheiro ela tinha.
Voltei a dizer-lhe que me tinham prometido um trabalho certo em Roma e que não teríamos mais nenhum problema. Acabei por convencê-la.
- Temos de levar o cão - disse-me.
- Com certeza...
Após um momento de reflexão, acrescentou:
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- O mais prático era irmos neste carro. Mesmo que não lhes perguntemos a opinião, eles não nos podem apanhar...
Ela riu-se, com um riso nervoso. Com efeito, não nos podiam apanhar porque essa noite tornáramo-nos seus cúmplices e precisavam do nosso silêncio. Esta ideia causava-me
um frio na espinha. Fora mesmo eu quem havia pronunciado a frase: "Fui encarregado de uma mensagem para si da parte de Pierre Ansart. Ele está à sua espera no carro,
à esquina da rua." E isso, na frente de testemunhas. E toquei no dinheiro.
Certamente que a minha cara adquiriu uma expressão esquisita porque ela me pôs o braço à volta dos ombros e senti os seus lábios aflorarem a minha face.
- Não te preocupes - disse-me ao ouvido.
Vamos ver Grabley...? Ele vai estar às nove horas no Tomate...
A sonoridade da palavra "tomate" possuía algo de infantil e tranquilizador.
- Se quiseres...
Com certeza eu não esperava o menor apoio moral da parte de Grabley. Ele tinha um ponto comum com o meu pai: um e outro usavam fatos, gravatas e sapatos como toda
a gente. Falavam francês sem sotaque, fumavam cigarros, bebiam espressos e comiam ostras. Mas na sua companhia era-se assaltado por uma dúvida e ficava-se com vontade
de se lhes tocar, como se toca num tecido, para nos certificarmos de que existem realmente.
- Achas que ele pode fazer alguma coisa por nós? - perguntou-me ela.
- Quem sabe?
Era muito cedo para o ir procurar. Tínhamos de esperar ainda duas horas. À esquerda, muito perto, na avenida, reparei na fachada iluminada do Maillot Palace, e propus-lhe
irmos ver o filme que lá estava: A Rainha da Pradaria. A arrumadora não fez qualquer reparo ao cão.
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Quando nos sentámos nas poltronas de veludo vermelho, o meu mal-estar dissipou-se.
A Rua de Notre-Dame-de-Lorette estava escura e os passeios desertos. A essa hora, as pessoas acabavam de jantar e iam-se deitar cedo. Amanhã, era preciso regressar
ao colégio e ao trabalho. Lá no alto, o anúncio luminoso do Tomate brilhava inutilmente, numa rua morta. Quem é que ia assistir à sessão do domingo à noite? Um marinheiro
de licença, antes de apanhar na estação de Saint-Lazare o comboio de Cherburgo?
A arrumadora indicou-nos o caminho para os bastidores. Ficavam na cave. Descemos umas escadas que davam para um pequeno hall com as paredes decoradas com velhos
cartazes da casa.
Grabley estava em frente de uma das portas que abriam para os camarins, de fato príncipe de Gales e uma gravata de camurça. Parecia preocupado.
- Que surpresa boa... foram simpáticos em virem...
Mas confessou-nos que a Sylvette estava com muito mau humor e que nesse momento se estava a arranjar no camarim. Tínhamos feito bem em ter vindo agora, porque não
ia haver sessão às dez e meia. Sugeriu-nos que fôssemos para a sala. Disse-lhe que preferíamos ficar ali, com ele. De todas as formas, não nos deixariam entrar com
o cão.
- Que pena.
Ele sentia-se visivelmente despeitado com a nossa falta de entusiasmo pelo espetáculo.
A porta do camarim abriu-se e Sylvette apareceu. Ela tinha uma máscara preta e um corpete de leopardo. Cumprimentou-nos com um tom seco. Depois, virando-se para
Grabley, disse-lhe que ele não era obrigado a ficar à espera dela nos bastidores.
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Ela tinha vergonha de participar naquele espetáculo, mas, se alguém a acompanhasse e ficasse no seu camarim, era ainda pior... Subiu de tom. Sim, qualquer homem
sensível teria compreendido que, para uma dançarina, era humilhante degradar-se mas tinha de ganhar a vida porque ninguém ajudava. Depois, repreendeu-o por ele nos
ter feito vir. Apesar de tudo, ela ainda não era um animal de circo ou um dos que se vai ver ao jardim zoológico ao domingo. Grabley baixou a cabeça. Ela deixou-nos
plantados ali e dirigiu-se para a escada que começou a subir a custo com os seus saltos altos, e o seu ar desengonçado lembrou-me qualquer coisa: pois era, aquela
rapariga nua com o cabelo apanhado em rabo de cavalo que aparecia numa das revistas do escritório, era ela.
Grabley seguiu-a com os olhos até ela desaparecer. Os primeiros acordes de uma música mexicana soaram acompanhados das suas trompetes. Ela acabara certamente de
entrar em cena.
- Ela é muito desagradável, muito desagradável... - disse ele.
Trocámos um olhar, Gisèle e eu, e tivemos dificuldade em controlar uma vontade louca de rir. Felizmente, ele não nos prestava nenhuma atenção. Fixava o alto da escada,
com um ar idiota, como se ela tivesse desaparecido para sempre.
Ao fim de alguns instantes, não sabíamos se nos havíamos de escapar ou não. E eu já não tinha mais vontade de rir. Por causa da luz amarela do hall, dos velhos cartazes
nas paredes indicando que aquela casa tinha sido um teatro de cançonetistas, de trompetes mexicanas e deste homem vestido de príncipe de gales e engravatado, tratado
com maus modos? Pairava sobre nós uma tristeza difusa.
De novo pensei no meu pai. Imaginava-o na mesma situação, vestido com o seu casaco azul-escuro à espera atrás da porta dum camarim de uma casa semelhante a esta:
algum Kit Cat ou algum Carroussel de Genève ou de Lausanne. Lembrei-me do último
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Natal que passámos juntos. Tinha quinze anos. Ele fora-me buscar ao colégio de Haute-Savoie onde não me podiam ter durante as férias.
Em Genève, uma mulher estava à sua espera, mais nova que ele vinte anos, uma italiana com cabelos amarelo-palha, e apanhámos os três o avião para Roma. Dessa estadia
resta uma fotografia que eu descobri no fundo de uma mala cheia de papéis, trinta anos mais tarde. Ela fixa para sempre a imagem de uma passagem de ano, numa boite
perto da Via Veneto, onde a italiana nos levara após ter feito uma cena ao meu pai: ouviam-se os seus gritos no corredor do hotel.
Sentámo-nos em frente de um balde de champanhe. Alguns casais dançavam atrás de nós. À volta da mesa, um homem moreno de cabelos penteados para trás. Na sua cara,
uma expressão de alegria forçada. Ao lado dele, uma mulher de uns trinta anos, maquilhagem muito carregada, os cabelos amarelo-palha muito frisados e apanhados num
carrapito. E um adolescente de smoking alugado demasiado grande e com um olhar vago como todas as crianças que se encontram em má companhia porque não têm uma palavra
a dizer e ainda não podem ter vida própria. Se eu queria voltar para Roma, era para esconjurar esse passado.
- Vamos embora? - perguntou-me Gisèle.
O cão impacientava-se. Tinha subido a escada, depois, apercebendo-se de que nós não o seguíamos, voltou a descer e deitou-se ao pé dos degraus.
Grabley saiu subitamente da sua prostração:
- Não se vão embora, hem? A Sylvette vai ficar desiludida... E vai ser ainda mais desagradável...
Mas eu não tinha pena dele. Ele lembrava-me o meu pai, os cabelos amarelo-palha da mulher e aquela noite de passagem de ano. Hoje eu era livre de ir para onde quisesse.
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- Nós não podemos ficar, meu velho - disse eu. - Tenho de acompanhar Gisèle a Saint-Leu-la-Forêt.
- Vocês não querem mesmo cear connosco?
Ele tinha a mesma expressão inquieta do meu pai quando estávamos no passeio da Via Veneto. A nossa frente um grupo de foliões soprava umas cornetas de papel. A mulher
de cabelos amarelo-palha parecia aborrecida. Subitamente, começou a andar dando grandes passadas, depois desatou a correr como se quisesse ver-se livre de nós. O
meu pai disse-me:
- Depressa... Apanha-a... sê simpático com ela... Diz-lhe que gostamos muito dela... que precisamos dela... dá-lhe isto...
E deu-me um pequeno embrulho em papel de prata.
Corri. Era muito jovem na época. E agora sentia uma espécie de tristeza associada à indiferença por esse passado ainda recente. Já nada disso contava. Nem o meu
pai, nem Grabley, nem esse tipo que entrara no carro, ainda há pouco. Que se danem todos.
No passeio, eu sentia-me leve, desligado de tudo. Quis que ela partilhasse do meu estado de espírito. Passei-lhe o braço pelos ombros e caminhámos para o carro.
O cão ia à nossa frente. Sugeri-lhe que partíssemos imediatamente para Roma. Mas ela deixara o dinheiro numa das malas.
Era só passar pelo Cais Conti e meter as malas no porta-bagagens do carro.
- Se tu quiseres - disse-me ela.
Gisèle retomara o seu tom negligente, como eu.
No entanto, um pensamento veio chamar-me à pedra. Eu era menor e tinha de arranjar um formulário de autorização para ir ao estrangeiro, onde imitaria a assinatura
do meu pai. Não queria confessar-lho.
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- Não é possível partirmos esta noite - disse-lhe. - Preciso primeiro que o italiano me dê todas as informações.
Rua Fontaine, o teatro estava fechado. Apenas algumas luzes, na parte de cima. Depois de termos andado ao acaso pelas ruas do bairro, parámos em frente do Gavarny.
Jantámos lá. A princípio receei ver entrar Grabley e Sylvette, mas pensei para mim próprio que eles preferiam lugares mais concorridos.
Éramos os únicos clientes. Reconheci o homem de casaco branco que nos servia, das raras vezes em que eu jantava lá com a minha mãe, ao domingo à noite, depois do
teatro.
Quando entrámos, ele fazia palavras cruzadas, sentado a uma mesa. Perguntei a mim próprio se a música vinha de um altifalante ao fundo da sala ou de um posto de
rádio: uma música com a sonoridade lunar de um címbalo.
O cão estendeu-se aos meus pés. Fiz-lhe festas para me assegurar da sua presença. Estava sentado à frente dela. Não despregava o meu olhar do seu. Passei a mão pela
cara. De novo, voltei a ter medo que ela desaparecesse.
A partir dessa noite, desligávamo-nos de tudo. Mais nada fazia sentido à nossa volta. Nem Grabley, nem o meu pai, perdido na Suíça, nem a minha mãe, algures no Sul
de Espanha, nem as pessoas com quem me tinha cruzado sem saber nada delas: Ansart, Jacques de Bavière... A sala do restaurante também estava desligada da realidade,
como um desses lugares que frequentámos no passado e que revisitamos em sonho.
A saída de Gavarny, nós apanhávamos, a minha mãe e eu, o autocarro 67 Praça de Pigalle que nos deixava no Cais do Louvre. Isto fora há três anos e pertencia já a
uma outra vida... Apenas o homem de casaco branco continuava no seu
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lugar. Tive vontade de lhe falar, mas o que é que ele teria para me dizer?
- Belisca-me para ver se não estou a sonhar...
Ela beliscou-me a face.
- Com mais força.
Ela desatou a rir. E o seu riso ecoou na sala deserta. Perguntei-lhe se também tinha a sensação de estar a sonhar.
- Sim, às vezes.
O homem de casaco branco ficara absorto novamente nas suas palavras cruzadas. A partir de agora não haveria mais clientes.
Ela segurou-me na mão e olhou-me com os seus olhos azuis-pálidos, a sorrir.
Ergueu a mão e beliscou-me na face ainda com mais força do que das outras vezes.
- Acorda...
O homem levantou-se e foi ligar um rádio atrás do balcão. Um indicativo seguido da voz do locutor a ler um boletim informativo. Eu só ouvia aquela voz como um ruído
de fundo.
- Então, acordaste?
- Não sei - disse-lhe eu. - Prefiro ficar na incerteza.
Aos domingos à noite, no dormitório do colégio, depois do regresso de férias, o vigilante desligava a luz às nove menos um quarto e o sono vinha a pouco e pouco.
Eu acordava em sobressalto, durante a noite, e não sabia onde estava. A lâmpada de presença que iluminava com uma luz azul as filas das camas trazia-me brutalmente
à realidade. E desde essa época, cada vez que sonhava, eu tentava retardar, no interior do meu sonho, o instante de acordar com medo de me encontrar no dormitório.
Procurei explicar-lhe.
- Eu também - disse-me ela -, acontece-me muitas vezes... Tenho medo de acordar na prisão...
Perguntei-lhe porquê: na prisão?, mas ela tinha um ar aborrecido e acabou por me responder:
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- É assim...
Lá fora, hesitei. A perspetiva de voltar ao Cais Conti pareceu-me fastidiosa. Preferia que nos encontrássemos num local que não evocasse nada do passado. Mas ela
disse-me que isso não tinha importância nenhuma desde que estivéssemos juntos.
Descemos a Rua Blanche. De novo voltava a ter a sensação de estar a sonhar. E um sonho em que tenho uma sensação de euforia. O carro desliza sem que eu oiça o barulho
do motor, como se estivesse a descer uma ladeira em roda livre.
A Avenida da Opera, as suas luzes e a sua calçada deserta abrem-se diante de nós. Ela virou-se para mim:
- Podemos partir amanhã, se quiseres.
Pela primeira vez na minha vida, sinto que os entraves e os contratempos que me retinham até então são abolidos. Talvez seja uma ilusão que se dissipará amanhã de
manhã. Baixo o vidro e o ar frio aumenta ainda mais a minha euforia. Não há a mínima humidade, nem o círculo que se costuma formar à volta das luzes que cintilam
ao longo da avenida.
Fomos pela Ponte do Carrousel e, na minha memória, nós seguimos o cais, à esquerda, desrespeitando o sentido único, passámos em frente da Ponte das Artes, íamos
com pouca velocidade, sem que nenhum carro viesse no outro sentido.
Grabley ainda não estava lá. Atravessámos o vestíbulo e o apartamento destaca-se do passado. Eu entro aí pela primeira vez. É ela que me guia. Ela sobe à minha frente
a pequena escada que leva ao quinto andar. No quarto não acendemos a luz.
Os candeeiros do cais projetam no teto um raio luminoso tão claro como o que é filtrado, no verão, pelas fendas das persianas. Ela está deitada na cama com a saia
e a camisola pretas.
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No dia seguinte de manhã, quando deixámos o apartamento, Grabley ainda não tinha voltado. Decidimos devolver o carro a Ansart e não o voltar a ver, nem a ele nem
ao Jacques de Bavière. Contávamos partir para Roma o mais depressa possível.
Tentámos encontrá-los por telefone, mas ninguém atendia de casa de Ansart, nem na pretensa morada de Jacques de Bavière. Tanto pior. Estávamos prestes a abandonar
o carro na Rua Raffet.
Era um dia soalheiro de outono, como na véspera. Eu possuía um sentimento de leveza e de bem-estar perante a nossa perspetiva de partir. Deixava atrás de mim apenas
coisas que se começavam a desagregar: Grabley, o apartamento vazio... Eu tinha de arranjar a autorização de que me tinha servido no ano anterior para uma viagem
à Bélgica e tinha de falsificar a data e o destino. Em Roma, havia de surgir uma oportunidade que me permitisse escapar à administração francesa e às minhas obrigações
militares.
Gisèle disse-me que não tinha nenhum problema em sair de França. Tentei saber mais acerca desse marido de que me tinha falado.
Ela não o via há muito tempo - quase há três meses. Tinha-se casado por devaneio. Mas quem era ele em concreto?
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Olhou-me nos olhos e, com um sorriso constrangido, disse-me:
- Oh, um tipo engraçado... Tem um circo...
Perguntei a mim próprio se ela estava a brincar ou se era verdade.
Parecia estar à espera da minha reação.
- Um circo?
- Sim, um circo...
Ele tinha partido em digressão com o circo mas ela não o quis acompanhar.
- Aborrece-me falar disto...
E fez-se um silêncio entre nós até chegarmos em frente do edifício da Rua Raffet.
Tocámos à campainha do apartamento. Ninguém respondeu.
- Talvez estejam no restaurante - disse Gisèle.
Uma mulher observava-nos, à entrada do pátio. Veio na nossa direção.
- Procuram alguém?
O tom era seco, como se desconfiasse de nós.
- O senhor Ansart - disse Gisèle.
- O senhor Ansart saiu muito cedo esta manhã. Ele deixou-me as chaves do apartamento. Só volta daqui a três meses.
Por conseguinte, era a porteira.
- Ele não lhe disse para onde ia? - perguntou Gisèle.
- Não.
- Não lhe podemos escrever para uma direção qualquer?
- Ele disse-me que me escrevia para me mandar a nova direção. Se lhe quiser escrever, deixa-me a carta.
O tom de voz tinha-se suavizado um pouco. Ela seguiu-nos com os olhos enquanto atravessámos o pátio com o cão. Parecia ter achado natural a partida do "Senhor Ansart".
Ela acabaria por começar a perguntar a si própria quem seria aquele senhor amável
100

e bem-educado. Depois, seriam os outros a fazerem-lhe perguntas, talvez no gabinete onde tínhamos sido interrogados, Gisèle e eu. Pedir-lhe-iam para se lembrar do
mínimo detalhe a respeito de Ansart, e das visitas que ele recebia. E lembrar-se-ia que no dia seguinte ao seu desaparecimento um jovem e uma rapariga, com um cão,
tinham tocado à campainha da porta do apartamento.
- O que é que fazemos com o carro? - perguntei a Gisèle.
- Ficamos com ele.
Ela vasculhou o porta-luvas e tirou o livrete. Estava em nome de Pierre Louis Ansart, nascido a 22 de janeiro de 1921 em Paris 10º, domicílio 14 Rua Raffet, Paris
16º
Circulámos ao longo do Bois de Boulogne, pelo caminho que tínhamos feito no sábado para irmos jantar ao restaurante de Ansart. Eu segurava na mão o livrete. Metemos
pela Rua das Belles-Feuilles. O restaurante estava fechado. Batemos na fachada de painéis de madeira com a pintura verde estalada que datavam certamente da época
em que o Belles-Feuilles era, como dissera Ansart, um café-charbon.
Desta vez, ela parecia inquieta. Devia existir uma ligação entre o súbito desaparecimento de Ansart e o que se tinha passado na véspera em Neuilly onde fôramos apenas
testemunhas.
- Achas que Jacques de Bavière também se foi embora? - perguntei.
Ela encolheu os ombros. A cara de Martine veio-me à memória e a forma como ela se despediu de nós com o braço estendido quando atravessávamos o pátio, na outra noite.
- E Martine? Podemos encontrá-la em algum sítio?
Ela não sabia quase nada acerca da Martine, apenas que vivia com Ansart já há alguns anos. A única coisa de que se lembrava, era do nome: Martine Gaul.
Acabámos num café da Rua Spontini onde pedimos duas sanduíches e dois sumos de laranja. Ela tirou uma agenda da mala
101

e pediu-me para eu ir telefonar para a casa de Jacques na Rua Washington para saber se ele estava lá.
- Está lá... Quem fala?
Uma mulher com voz grave. A mesma que nos recebera no sábado?
- Desejava falar com Jacques de Bavière...
- Quem é você?
O tom era seco, o tom de alguém que está alerta.
- Somos amigos de Jacques. Fomos aí no sábado à noite...
- Jacques foi para a Bélgica.
- Por muito tempo?
- Não lhe sei dizer.
- O Senhor Ansart foi com ele?
Houve um momento de silêncio. Pensei mesmo que a chamada tinha sido cortada.
- Eu não conheço esse senhor. Lamento muito, mas tenho de desligar.
Ela desligou.
Por conseguinte, eles tinham partido os dois. Com a Martine sem dúvida. Para a Bélgica ou algures. Como saber?
- Tens a certeza de que ele se chama de Bavière? - perguntei a Gisèle.
- Sim. De Bavière.
O que é que isso podia adiantar? Ele não se encontrava certamente na lista nem no Gotha como o seu nome sugeria.
Ela disse-me que queria ir a outro sítio onde talvez tivéssemos a sorte de saber notícias de Ansart. Seguimos pelos grandes boule-vards. Ela não dava nenhuma explicação.
Chegados à Praça da República, metemos pelo Boulevard du Temple e parámos numa rua paralela um pouco mais abaixo. À nossa frente, o Circo de Inverno.
Ela apontou para um café, ao fundo, na rua, a uns cinquenta metros.
102

- Perguntas ao tipo que está atrás do balcão pelo senhor Ansart...
Porque é que ela não me acompanhava?
Eu caminhei ao longo da rua e voltei-me para ver se ela continuava lá. Pensei que estivesse à espera que eu entrasse no café para desaparecer como os outros.
O café não tinha nome, mas na fachada havia a marca de uma cerveja belga. Entrei. Ao fundo da pequena casa, algumas mesas onde almoçavam os clientes.
Atrás do balcão estava um homem alto, moreno, com o nariz um pouco achatado e com um fato azul-escuro, ao telefone. Eu fiquei à espera. Um criado de casaco cor de
vinho dirigiu-se para mim.
- Um quarto de Vittel.
A conversa telefónica prolongava-se. O homem ouvia o seu interlocutor e respondia de tempos a tempos com um "sim... sim... de acordo..." ou um breve murmúrio de
assentimento. Ele entalou o auscultador entre a cara e o ombro para acender um cigarro e pousou o olhar em mim, mas eu não sabia se ele me via. Desligou.
Perguntei-lhe com uma voz tímida:
- Tem notícias do senhor Ansart?
Ele sorriu-me. Mas eu senti que esse sorriso era de fachada e que marcava uma distância entre nós.
- Conhece o senhor Ansart?
Ele possuía uma voz com um timbre juvenil que me fazia lembrar o ator Jean Marais. Veio ter comigo do outro lado do balcão e apoiou os cotovelos:
- Sim conheço-o e conheço também Martine Gaul.
Porque é que eu acrescentei este pormenor? Para ganhar confiança?
- Passei esta manhã na casa da Rua Raffet e eles tinham partido.
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Ele observava-me com um olhar perscrutador e sempre a sorrir. O corte elegante do seu fato e a sua voz destoavam daquele café. Seria ele realmente o patrão?
- Eles partiram mas com certeza que vão voltar. É tudo o que lhe posso dizer.
O seu sorriso alargava-se e o seu olhar fazia-me compreender que, realmente, não me iria dizer mais nada.
Apressei-me a pagar o quarto de Vittel, mas ele fez um gesto com o braço.
- Não... Deixe...
Ele próprio me abriu a porta e acenou com a cabeça em sinal de despedida. Sorria sempre.
No carro, Gisèle perguntou-me:
- O que é que ele te disse?
Ela devia conhecer aquele homem de sorriso inalterável. Sem dúvida que o tinha conhecido através de Ansart e de Jacques de Bavière.
- Ele disse-me que com certeza vão voltar, mas não quis dizer-me mais nada de concreto.
- Isso não tem nenhuma importância. De todas as formas não os veremos mais. Estaremos em Roma.
Seguimos pelo boulevard até à Praça da Bastilha. Não estávamos muito longe da loja do Dell'Aversano. Pedi a Gisèle para passarmos por lá a fim de tratarmos da nossa
viagem.
- Tu já tinhas entrado no café de há bocado? - perguntei-lhe.
- Já. Várias vezes.
Ela hesitou e depois disse-me, como se o lamentasse:
- Quando o meu marido trabalhava no Circo de Inverno.
Calou-se. Pensei no homem de azul-escuro. O seu sorriso
marcou-me e dez anos depois ainda me lembrei disso quando me vi, por acaso, uma tarde, perto do Circo de Inverno. Não resisti a entrar naquele café. Foi por volta
de 1973.
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Ele estava atrás do balcão, menos elegante do que da primeira vez, a cara marcada, os cabelos grisalhos. Na parede havia coladas uma série de fotografias, algumas
com dedicatórias, onde figuravam artistas do Circo de Inverno, clientes do café.
Uma das fotografias, maior do que as outras, atraiu-me a atenção. Mostrava um grupo de pessoas em frente do balcão, à volta de uma mulher loira vestida de amazona.
E entre elas, reconheci Gisèle.
Pedi, como da primeira vez, um quarto de Vittel.
Aquela hora morta da tarde, nós estávamos sozinhos, ele e eu. Subitamente perguntei-lhe:
- Conheceu aquela rapariga?
Fui ter com ele atrás do balcão e apontei para Gisèle na fotografia. Ele não pareceu minimamente admirado com o meu gesto.
Inclinou-se para a fotografia.
- Ah sim, conheci-a... Ela era muito nova... Passava as noites aqui... O marido trabalhava no circo... Ela ficava à sua espera... Tinha sempre um ar de quem está
aborrecida... Já lá vão uns dez anos...
- Mas o que é que o marido fazia?
- Devia pertencer ao pessoal do circo. Era mais velho do que ela.
Senti que responderia a todas as perguntas que lhe fizesse. Eu era ainda novo na época e tinha um ar tímido e bem educado. E ele queria sem dúvida conversar com
alguém para passar aquela fase árida dos princípios de tarde de verão.
Parecia-me bastante mais acessível do que há dez anos atrás. Tinha perdido o ar misterioso ou, melhor, o ar que eu fantasiara. O homem esbelto de fato azul-escuro
atualmente não era mais do que o dono de um café da Rua Amelot, quase um carvoeiro.
- Conheceu um Pierre Ansart?
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Ele deitou-me um olhar espantado e reencontrei o seu sorriso e fachada de outrora.
- Porquê? Você conheceu o Pierre?
- Foi a rapariga que mo apresentou há dez anos.
Ele franziu o sobrolho.
- A rapariga da fotografia?... Pierre deve tê-la encontrado aqui... Ele vinha frequentemente ver-me...
- E um homem mais novo, que se chamava Jacques de Bavière, não lhe diz nada?
- Não.
- Era um amigo de Ansart.
- Eu não conheci todos os amigos do Pierre...
- Não sabe o que é feito dele?
O seu sorriso de novo.
- Pierre? Não. Ele já não está em Paris, pelo menos.
Eu calei-me. Esperava que pronunciasse a frase que me tinha dito da primeira vez: "foram-se embora, mas com certeza que vão voltar".
Pela porta entreaberta, o sol desenhava manchas claras nas paredes e nas mesas vazias, ao fundo.
- Então você era muito amigo de Ansart?
O seu olhar e o seu sorriso tinham uma expressão irónica.
- Conhecemo-nos em 1943. E nesse mesmo ano, mandaram-nos aos dois para a Centrale de Poissy... Como vê não data de ontem...
Eu mantinha-me silencioso. Ele acrescentou:
- Mas não pense mal dele... Toda a gente pode cometer erros de juventude...
Tive vontade de lhe dizer que já ali tinha vindo há dez anos para lhe pedir notícias de Ansart e que ele não me quis responder. Nessa altura, havia ainda segredos
a preservar.
Mas agora, tudo isso já tinha passado e acabara por perder a sua importância.
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- E você continua a ver a rapariga?
Fiquei tão surpreendido com aquela pergunta que balbuciei uma vaga resposta. Uma vez só, no boulevard, desatei estupidamente a chorar.
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Voltámos ao Sena e seguimos pelo Cais dos Célestins. Ao vasculhar no meu bolso à procura de cigarros, apercebi-me de que tinha guardado o livrete de Ansart.
- Tu podes realmente confiar nesse tipo que vamos ver? -perguntou-me Gisèle.
- Sim. Acho que ele gosta muito de mim.
Com efeito, hoje que penso nisso, meço melhor a simpatia que me votava Dell'Aversano. Ele ficara comovido com a minha situação familiar, se se puder empregar este
último adjetivo quando os pais são completamente negligentes. A primeira vez que o visitei, ele fez-me algumas perguntas sobre os meus estudos e aconselhou-me a
prossegui-los, pensando sem dúvida que um adolescente entregue a si próprio se arriscava a acabar mal. Segundo ele, eu merecia mais do que vender móveis como último
recurso aos revendedores do bairro Saint-Paul. Tinha-lhe confiado que sonhava ser escritor e impressionei-o favoravelmente ao declarar-lhe que o meu livro de cabeceira
era uma recolha da correspondência de Stendhal, intitulada: As Almas Sensíveis.
Dell'Aversano estava sentado no seu escritório, ao fundo do armazém. Observou surpreendido Gisèle e o cão.
Apresentei-lha como minha irmã.
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- Tenho todas as informações para si - disse-me.
O meu trabalho em Roma no seu colega livreiro só podia começar daí a dois meses.
- Queria partir já?
Não ousei dizer-lhe que dispúnhamos de um carro, senão tinha de mostrar o livrete de Ansart e explicar-lhe tudo. Numa outra altura talvez... Mas confessei-lhe que
queria partir com Gisèle. Acreditaria ele que ela era realmente minha irmã? Não li no seu olhar nenhum sinal de desaprovação. Ele virou-se para ela:
- Está disposta a arranjar trabalho em Roma?
Perguntou-lhe a idade. Ela respondeu vinte e um anos. Ele sabia
qual era a minha idade, e eu enterrava as unhas nas palmas das mãos com medo de que fizesse alguma alusão em frente de Gisèle.
- Eu até sei a sua direção lá... Se quiser peço ao meu amigo para o alojar mais cedo do que o previsto...
Agradeci-lhe. Era possível a minha irmã viver nesse sítio comigo?
Ele olhou para nós, observando-nos com atenção. Eu pensei que ele procurava uma semelhança física entre nós e não a encontrava.
- Depende - disse-me. - A sua irmã sabe escrever à máquina?
- Sei - respondeu Gisèle.
Tinha a certeza de que ela estava a mentir. Não a imaginava nada em frente de uma máquina de escrever...
- O meu amigo vai precisar de alguém que escreva à máquina em francês... Vou-lhe telefonar esta noite para lhe pedir pormenores.
Ele levantou-se e convidou-nos para irmos tomar um café. Passámos em frente do carro mas eu não disse nada e Gisèle foi cúmplice do meu silêncio. Amanhã, sem falta,
explicar-lhe-ia o que nos aconteceu. Eu não tinha o direito de esconder nada a este homem que se mostrava tão benevolente connosco.
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Ele perguntou-me quanto tempo mais é que eu ainda podia ficar no apartamento do Cais de Conti.
- No mínimo três semanas...
Ele não compreendia que um pai e uma mãe tivessem deixado num total abandono um rapaz apaixonado pela literatura e cujo livro de cabeceira era Às Almas Sensíveis.
E o que o espantava ainda mais, era o facto de a atitude dos meus pais me parecer perfeitamente natural e que nunca me tivesse sequer passado pela cabeça esperar
deles qualquer ajuda.
- Tem de estar instalado em Roma daqui a três semanas e a sua irmã a viver consigo...
Pela forma como tinha pronunciado as palavras "sua irmã", percebi que ele não era parvo.
- A sua irmã gosta tanto de literatura como você?
Gisèle ficou com um ar aborrecido. Desde que nos conhecemos, nunca tínhamos falado de literatura.
- Estou a tentar que ela leia Às Almas Sensíveis - disse-lhe.
- E gosta? - perguntou Dell'Aversano.
- Muito.
Ele fez-lhe um sorriso encantador. Havia sol e a temperatura estava amena para a estação. Sentámo-nos na única mesa que havia livre na esplanada do café. O sino
da Igreja Saint-Gervais deu meio-dia.
- Sabe o nosso futuro endereço em Roma? - perguntei-lhe.
Dell'Aversano tirou do bolso interior do casaco um envelope.
- É no número 7 da Via Frescobaldi.
Virou-se para Gisèle:
- Conhece Roma?
- Não - respondeu ela.
- Então não estava com o seu irmão quando ele fez lá a passagem de ano há quinze anos?
Ele sorriu-lhe e ela retribuiu-lhe.
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- E a Via Frescobaldi, é em que bairro? - perguntei-lhe.
- Vou-lhe explicar.
Com uma esferográfica, fez dois traços paralelos no envelope.
- Aqui, é a Via Veneto... Já conhece a Via Veneto...
Eu tinha-lhe contado como, a pedido do meu pai, tentara apanhar aquela mulher de cabelos amarelo-palha e com uma maquilhagem demasiado carregada que desatara a correr
à nossa frente.
- Segue pela Via Pinciana ao longo dos jardins da Villa Borghèse...
Ele continuou a traçar linhas no envelope e com a ponta da esferográfica indicava-nos o caminho.
- Viram à esquerda sempre ao longo da Villa Borghèse e vão dar à Via Frescobaldi... é ali...
Desenhou uma cruz.
- A vantagem do bairro é que está rodeado de verdura... A sua rua é muito perto do jardim zoológico...
Não conseguíamos desviar nem um nem outro o olhar do plano que ele acabara de desenhar. Eu caminhava com a Gisèle, no verão, pelas sombras da Via Frescobaldi.
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Cais Conti, Grabley tinha deixado um bilhete em cima do canapé do escritório:
Meu caro Obligado,
Telefonaram para si por volta das 14 horas. Um homem que dizia ser da polícia. Deixou o nome: Samson, e um número onde o pode encontrar: Turbigo 92-00.
Espero que não tenha feito nada de que se possa arrepender.
Ontem, a noite terminou melhor do que eu o previa e lamentámos muito a sua ausência. Quer juntar-se outra vez a nós esta noite, no Tomate, na sessão das 22 e trinta?
Seu Grabley.
Perguntei a Gisèle se devia telefonar para saber imediatamente o que pretendia aquele homem. Mas decidimos que lhe competia a ele voltar a ligar.
Passámos a tarde na expectativa, e a tentarmos ultrapassar o nervosismo. Amachuquei e desfiz a nota de Grabley onde ele escrevera: "Espero que não tenha feito nada
de que se possa arrepender."
- Achas que eles sabem o que fizemos ontem à tarde?
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Gisèle encolheu os ombros e sorriu para mim. Parecia mais calma do que eu. Estendemos no chão o mapa de Roma e procurámos familiarizar-nos com o bairro decorando
o nome das ruas, dos monumentos e das igrejas que estavam próximos do nosso futuro domicílio: Porta Pinciana, Igreja Santa Teresa, Templo de Esculápio, Museu Colonial...
Ninguém nos encontraria ali.
Mais tarde começou a escurecer e nós estávamos estirados no canapé. Ela levantou-se e enfiou a saia e a camisola pretas.
- Vou buscar cigarros.
Gisèle preferia que eu ficasse para atender o telefone. Pedi-lhe para comprar um jornal da tarde.
Observei-a da janela. Não foi de carro. Caminhava com um passo indolente, as mãos nos bolsos do impermeável desabotoado.
Desapareceu na esquina do edifício Monnaie. Estendi-me novamente no canapé. Tentei lembrar-me dos móveis que tinham estado, outrora, no escritório.
O telefone tocou. Uma voz surda, um pouco hesitante.
- Telefono-lhe da parte do senhor Samson que lhe pediu informações na última quinta-feira. Uma jovem foi convocada a seguir a si... Vocês encontraram-se mais tarde
no Café Soleil d'Or...
Ele fez uma pausa. Mas eu não disse nada. Sentia-me incapaz de proferir uma só palavra.
- Passaram estes quatro dias juntos e ela vive em sua casa... Queria avisá-lo...
O escritório encontrava-se agora na penumbra e ele continuava a falar com a sua voz surda.
- Ignora muitas coisas a respeito dessa pessoa... Suponho que ela até lhe mentiu em relação ao nome... Chama-se Suzanne Kraay...
Soletrava o nome, mecanicamente: K.R.A.A.Y. Tive a sensação de estar a ouvir uma voz gravada num disco, como o das horas.
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- Ela já cometeu vários delitos que lhe valeram vários meses na Petite-Roquette... Mas isto, suponho que lho escondeu... Também certamente lhe escondeu que era casada...
- Estou ao corrente - respondi-lhe numa voz que eu pretendi seca.
Houve um silêncio.
- Não está com certeza ao corrente de tudo.
- Isso não me interessa - disse-lhe.
- Mas interessa-me a mim e esquece-se de que é menor...
A voz era novamente surda, longínqua.
- E corre graves riscos...
Ouvi um ruído de interferências como se o meu interlocutor se encontrasse no outro canto do mundo. Mas o ruído cessou e a voz chegou-me muito próxima e muito clara.
- Gostaria de o encontrar rapidamente para tirarmos as coisas a limpo. É do seu interesse. Tem de saber a que é que se expõe visto que é menor... Está de acordo
em encontrar-se comigo?
Ele pronunciou a última frase no tom simultaneamente untuoso e autoritário de certos vigilantes de colégio.
- Está bem - disse-lhe.
- Esta noite, às dez horas, perto da sua casa... No café, no cais, em frente da colunata do Louvre... Vê-o das suas janelas... Espero-o sem falta às dez horas...
Eu sou o Senhor Guélin.
Soletrou o nome, depois desligou.
Eu também desliguei. A sua voz lembrou-me a de um homem com quem me cruzei, um sábado, quando ia ao jardim do Luxemburgo ou ao cinema Danton. Ele vestia um fato
de treino cinzento e vinha de um ginásio. Um homem loiro de quarenta e tal anos, de cabelos muito curtos e de faces cavadas. Uma tarde, dirigiu-me a palavra num
desses cafés tristes do Carrefour do Odéon. Era escritor e jornalista. Eu disse-lhe que também gostaria de escrever, um dia. Então, ele teve um sorriso desdenhoso:
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- Muito trabalho, sabe... Muito trabalho... Com certeza que não chega lá...
E citou-me o exemplo de um jovem e célebre bailarino por quem sentia admiração que "trabalhava no duro vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas".
- E isso escrever, como vê... vinte e quatro horas de exercício por dia... duvido que tenha essa força de vontade... Nem vale a pena experimentar.
Quase me convenceu.
- Posso-lhe mostrar como escrevo...
Marcou-me um encontro em sua casa, na Rua Dragon. Duas assoalhadas com paredes brancas de cal, traves de madeira escura, um escritório rústico da mesma cor e cadeiras
muito direitas com espaldar grande. Ele trazia vestido o seu fato de treino cinzento. Dedicou-me um livro de que esqueci o título. Para minha grande surpresa, aconselhou-me
a ler Les Jeunes Filles de Montherlant. Depois, quis acompanhar-me ao meu domicílio no seu carro, um Dauphine Gordini. Nos meses seguintes, via da minha janela,
durante a noite, esse carro azul com os frisos brancos estacionado em frente do prédio. E tinha medo.
Olhei para ver se por acaso não estaria lá hoje.
Mas não. O silêncio. A noite caiu. Eu preferia os reflexos dos candeeiros nas paredes, à luz abafada da lâmpada que pendia do teto. Novamente, receei que a Gisèle
não voltasse. A voz que eu ouvira ao telefone aumentava ainda mais a minha sensação de solidão e de abandono. Ela correspondia bem a este escritório onde eu tinha
dificuldade em me lembrar do lugar dos móveis.
A Petite-Roquette... Andei um dia pela rua do mesmo nome -e passei em frente do edifício da prisão. Frequentemente, nos meus sonhos, a Rua Roquette desemboca numa
praça como as que existem em Roma, no meio da qual se eleva uma fonte. É sempre verão. A praça está deserta e inundada de sol. O silêncio
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só é quebrado pelo murmúrio da fonte. E eu fico ali, na sombra, à espera que Gisèle saia da prisão.
A porta da entrada bateu: reconheci os seus passos. Ela estava ali, na minha frente, com o seu impermeável desabotoado. Acendeu a luz. Disse-me que eu estava com
uma cara esquisita.
- O tipo telefonou.
- Então?
Expliquei-lhe que era alguém que queria informações sobre o meu pai e que marcou encontro comigo nessa noite, às dez horas, no café, mesmo em frente, do outro lado
do Sena.
- Não vai demorar muito tempo.
Tomei a sua cara nas minhas mãos e beijei-a. Pouco me importava se ela se chamava Gisèle ou Suzanne Kraay e se tinha passado uns tempos na Petite-Roquette. Se a
tivesse conhecido na época, não teria falhado uma só ocasião de a visitar no parlatório. E mesmo que tivesse cometido um crime, era-me indiferente, conquanto ela
estivesse viva, agarrada a mim, com a sua saia e a sua camisola pretas.
- Não tens medo que ele nos venha incomodar? - perguntou-me ao ouvido.
Primeiro, pensei que se referia ao homem que tinha telefonado. Mas era de Grabley que falava.
- Não. Está no Tomate...
Mesmo assim empurrámos o canapé para bloquear a porta do escritório.
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Eu via brilhar a luz do café do outro lado do Sena, à esquina do cais. O homem já teria chegado? Gostava de ter ali uns binóculos potentes para o observar. Ele,
do café, também podia verificar se havia luz nas janelas do apartamento. E esta ideia causou-me uma sensação súbita de inquietação, como se uma armadilha se fechasse
sobre mim.
- O que é que estás a ver?
Ela estava estendida no canapé. A sua saia e a blusa foram atiradas para cima da mesinha baixa.
- Estou à espera do bateau-mouche - disse-lhe.
Entreabri a janela. O Cais Conti permanecia vazio por um bom bocado, o tempo do sinal vermelho passar a verde, lá em baixo, ao nível da Pont-Neuf. E antes que os
poucos automóveis aparecessem novamente, fazia-se um silêncio, o mesmo que sem dúvida o meu pai conheceu nas noites da Ocupação atrás da mesma janela.
Nessa época, o café em frente não brilhava e a colunata do Louvre mergulhavam na escuridão. A vantagem de hoje, era a de se saber onde estava o perigo: aquela luz
do outro lado do Sena.
- Tenho de ir ao encontro.
Vi as horas. Dez horas menos um quarto.
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Ela sentara-se na beira do canapé. Apoiou o queixo na palma das mãos.
- És obrigado a ir?
- Se não for agora, esse tipo não me deixa... É melhor desenvencilhar-me imediatamente dele.
Repeti-lhe que se tratava de um antigo sócio do meu pai. Quis dizer-lhe a verdade. Contive-me a tempo. Ela preferia acompanhar-me a ficar sozinha no apartamento.
Saímos com o cão. Pensou que íamos a pé até ao café atravessando a Ponte das Artes. Mas disse-lhe que era melhor ir de carro.
No momento de entrarmos na Ponte do Carrousel, tive de lhe pedir para continuar em frente, ao longo do cais. Depois, para a margem direita, à medida que nos aproximávamos
do café, comecei a raciocinar. Sentia-me pronto agora para esse encontro e estava ansioso para ver a cara daquele homem.
Parámos na esquina do cais e da Rua do Louvre, em frente da entrada do café. Havia apenas um cliente sentado na esplanada. Ele lia um jornal em cima da mesa e não
reparou no nosso carro. Senti a mão de Gisèle apertar-me o braço. Ela fixava o homem, com a boca aberta. A sua cara tomou-se lívida.
- Não vás, Jean... suplico-te.
Fiquei admirado por ela me ter tratado pelo meu nome. Segurava-me no braço.
- Porquê? Tu conhece-lo?
Ele continuava a ler o jornal, sob a luz do néon. Antes de voltar a página, passava a língua no indicador.
- Se fores, estamos perdidos... Já tive problemas com esse homem...
Uma expressão de terror crispava-lhe a cara. Mas eu, eu estava muito calmo. Acariciei-lhe carinhosamente a testa e os lábios. Tive vontade de a beijar e de lhe sussurrar
palavras reconfortantes. Disse-lhe simplesmente:
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- Não tenhas medo... Esse tipo não NOS PODE FAZER NADA...
Ela tentou ainda reter-me mas eu abri a porta e saí do carro.
- Espera-me aí... E se isto demorar muito tempo, volta para o apartamento.
Pela primeira vez na minha vida, eu estava seguro de mim. A minha timidez, as minhas dúvidas, esse costume de me desculpar por tudo e por nada, de me denegrir, de
dar frequentemente razão aos outros contra mim, tudo havia desaparecido como o cair de uma pele morta. Eu via-me num desses sonhos onde encontramos os perigos e
os tormentos do presente mas os evitamos sempre porque já conhecemos o futuro e nos sentimos invencíveis.
Empurrei a porta envidraçada. Ele levantou a cabeça do jornal. Um homem de quarenta e tal anos, de cabelos castanhos, uma calvície em forma de coroa. Vestia um casaco
castanho-claro.
Plantei-me em frente dele.
- O senhor Guélin, presumo?
Observou-me com um olhar frio, como se avaliasse o preço que me iria fazer pagar pela minha aparente desenvoltura.
- Ficamos melhor lá ao fundo...
A sua voz era mais metálica que ao telefone. De pé, com o seu casaco, de ombros largos e atarracado, a calvície e aquela cara brutal, fazia-me lembrar um antigo
jogador de futebol.
Sentámo-nos a uma mesa, ao fundo do café, ele no banco de napa vermelha. Não havia ninguém além de nós. Exceto um homem de fato ao balcão onde se vendiam cigarros.
Mas ele parecia ignorar-nos.
Mantinha-se apoiado na mesa, com os cotovelos afastados, observando-me sempre com um olhar frio e com o queixo ligeiramente levantado:
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- Fez muito bem em ter vindo... senão arriscava-se a complicar a sua situação...
Ele tentava fazer-me baixar o olhar. Mas não, não conseguia. Aproximei mesmo a minha cara da sua, em sinal de desafio.
- Passou-se algo de muito grave, ontem à tarde, em Neuilly... Está a ver o que quero dizer?
- Não.
- A sério? Você é um rapaz inteligente, é melhor falar-me francamente...
Eu não baixava os olhos e a sua cara estava tão próxima que quase tocava na minha. O seu hálito cheirava a anis.
- Primeiro, você é menor... E a sua noiva prostitui-se já há algum tempo...
Estas palavras foram pronunciadas numa voz áspera mas ele observava a minha reação.
Fiz um esforço para lhe sorrir, um sorriso grande que devia parecer um esgar.
- Ela frequenta um apartamento, 34 Rua Desaix... Conheço bem o endereço da dona... e mesmo a maior parte dos clientes... Você também, suponho?
Lembrei-me da outra noite, quando estava à espera em frente dos prédios. O viaduto do metro aéreo, no princípio da rua. E o muro interminável da caserna Dupleix.
Vi-a sair de um dos prédios e caminhar na minha direção.
- Imagino que também conhece o marido da sua noiva?
- Essas coisas não me dizem respeito, meu caro senhor.
Falei num tom sonhador, ausente.
- Sim, sim, dizem-lhe respeito. E vai explicar detalhadamente o que se passou ontem à tarde.
O jornal estava dobrado dentro do bolso do casaco. Há pouco tinha pedido a Gisèle para me trazer o jornal da tarde, mas ela esquecera-se.
122

- Não se passou nada ontem à tarde.
Afastei-me dele para não sentir mais o seu hálito anisado. Apoiei-me nas costas do assento.
- Nada? Está a brincar...
Ele cruzou os braços.
Eu não conseguia despregar os olhos do jornal, no seu bolso. Talvez mo fosse desdobrar e mostrar a fotografia do homem que víramos entrar para o automóvel do Ansart
e dizer-me que tinham pescado o corpo que flutuava debaixo da ponte de Puteaux. Mas essa perspetiva deixava-me indiferente. Foi mais tarde, por volta dos trinta
anos, que comecei a sentir uns vagos remorsos quando pensava nesses episódios do passado, como o equilibrista que ainda sente uma vertigem depois de já ter atravessado
o abismo, no seu arame.
- Você vem comigo, a casa de uns amigos. E aconselho-o a dar-nos explicações, senão arrisca-se a grandes aborrecimentos...
O tom não admitia réplica nem o seu olhar duro sempre fixo em mim. Senti que perdia o pé e, para ganhar coragem, disse:
- Mas afinal quem é você?
- Eu sou um amigo muito próximo do senhor Samson.
O que é que ele queria insinuar com isso? Que pertencia à polícia?
- Um amigo muito próximo é o quê?
Ele ficou aborrecido com a minha pergunta. Retomou tudo de novo:
- É alguém que o pode mandar imediatamente para a prisão.
Produziu-se então um fenómeno curioso: eu não baixei os
olhos, e aquele homem perdia a sua postura. Fazia-me lembrar, pouco a pouco, aquela série de indivíduos que se iam encontrar com o meu pai no hall dos hotéis ou
dos cafés como este. Eu acompanhava-o frequentemente. Tinha catorze anos mas observava toda essa gente à luz dos néons. O mais elegante de entre
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eles, o que à primeira vista parecia ser o mais respeitável, acabava sempre por se mostrar como um feirante falido.
- Porque é que se quer ocupar da minha educação?
O outro pareceu desconcertado:
- Daqui a um bocado já não se arma em espertinho.
Mas era demasiado tarde para ele. Afastava-se no tempo. Iria juntar-se a todos os figurantes, e a todos os pobres acessórios de um período da minha vida: Grabley,
a mulher dos cabelos amarelo-palha, o Tomate, o apartamento sem móveis, um velho sobretudo azul-escuro entre a multidão de passageiros da estação de Lyon...
- Adeus, meu caro senhor.
Estava cá fora. Lá em baixo, na pequena praça, ela estava à minha espreita. Fez-me um sinal com o braço. Tinha estacionado o carro na penumbra da Igreja de Saint-Germain-l'Auxerroi


s.
- Tive medo que ele te levasse...
A sua mão tremia. Ela teve de dar várias voltas à chave da ignição para arrancar.
- Não era preciso ter medo - disse-lhe.
- Ele estava no escritório quando o outro me interrogou. Mas eu já o conhecia... Ele não te falou de mim?
- Não. Nada.
Seguimos pela Rua de Rivoli. Novamente me invadiu uma sensação de euforia. Se continuássemos ao longo das arcadas entre as quais cintilavam os candeeiros a perder
de vista, íamos desembocar numa grande praça à beira-mar. Pela janela aberta, respirava já o ar do alto-mar.
- Juras-me que ele não te disse nada sobre mim?
- Juro-te.
O que me dissera aquele fantasma não tinha nenhuma importância: a Petite-Roquette, o número 34 da Rua Desaix e a tarde
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em Neuilly onde se tinha passado "algo de grave". Tudo isto estava tão longe... Tinha dado um salto para o futuro.
- Esta noite, é melhor não ficar no apartamento.
Tive de lhe repetir que não corríamos nenhum risco, ela parecia tão inquieta, tão nervosa, que acabei por lhe dizer:
- Iremos onde quiseres...
Mas senti um aperto no coração ao vê-la prisioneira daquelas sombras e daqueles acontecimentos que me pareciam já terminados. Era como se eu tivesse atingido o alto-mar
e a visse debater-se contra a corrente, atrás de mim.
Voltámos ao apartamento do Cais Conti para recolher as suas malas. Ela ficou à minha espera ao pé da pequena escada que levava ao quinto andar.
No preciso momento em que abria a porta do cubículo, o telefone tocou. Ela ficou petrificada a olhar para mim.
- Não atendas.
Desci a escada com as duas malas e entrei no escritório. O telefone continuava a tocar. Procurei-o às apalpadelas:
- Está lá...
Silêncio.
- Ainda está no café, Guélin? - perguntei.
Nenhuma resposta. Parecia-me ouvir a sua respiração. Ela pegou no auscultador. Estávamos de pé, perto de uma das janelas. Não pude deixar de deitar uma espreitadela
para o outro lado do Sena. Lá em baixo, o café tinha luz.
- Como é que vai isso, seu imbecil? - perguntei eu.
Uma respiração, novamente. Parecia o murmúrio do vento nas folhas. Ela queria que eu desligasse e agarrava no auscultador com muita força tentando arrancar-mo, mas
não conseguia. Eu segurava-o, colado ao meu ouvido. Uma noite, à mesma hora,
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no mesmo local, durante a Ocupação, o meu pai recebeu uma chamada semelhante. Ninguém respondia. Era sem dúvida um homem como aquele de há pouco, de cabelos castanhos,
um bocado careca, sobretudo castanho-claro e que pertencia ao Service Permilleux encarregado de descobrir os judeus clandestinos.
Um ruído de chuva. Desligaram.
- Temos de ir embora imediatamente - disse-me ela.
Ela transportava uma das malas, a mais leve, e atravessámos o vestíbulo. No momento em que íamos a sair, pousei a outra mala:
- Espera. Eu já volto...
Subi muito depressa a pequena escada e no quarto do quinto andar agarrei em alguns livros que ainda estavam nas prateleiras no intervalo das duas janelas entre os
quais As Almas Sensíveis.
Pu-los ao monte em cima de um dos lençóis da cama e dei um nó como uma trouxa. Aqueles já se encontravam ali muito antes da chegada do meu pai ao apartamento. Fora
o locatário anterior, o autor da La chasse à courre, que se esquecera deles. Alguns tinham o nome, na página de guarda, de um misterioso François Vernet.
Quando voltei a descer com o meu saco improvisado, ela encontrava-se à minha espera no patamar.
Bati com a porta e tive a sensação de deixar o apartamento para sempre, por causa dos livros que levava comigo.
Desta vez tínhamos deixado o cão no carro. Quando nos viu, deu uma espécie de latido e fez-nos uma festa.
Pusemos as duas malas e a trouxa de livros no porta-bagagens.
- Onde vamos? - perguntei-lhe.
- Ao hotel onde aluguei um quarto.
Pensei no porteiro da noite, com o seu maxilar quadrado, os lábios finos e o olhar de desprezo que nos deitara, na outra noite. Agora, eu já não tinha medo dele.
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Nem tão-pouco Gisèle, porque me disse:
- Se lhe tivéssemos dado dinheiro ele tinha fechado os olhos.
Voltei-me para ela.
- Tens algum dinheiro para ir para Roma?
- Tenho. Economizei trinta mil francos.
Com o dinheiro de Dell'Aversano e de Ansart, fazia mais de quarenta mil francos entre os dois.
- Tenho metade numa mala e escondi o resto na casa de Saint-Leu-la-Forêt. Tenho de o ir buscar amanhã.
Não ousei perguntar-lhe a proveniência desse dinheiro. Seriam as economias do marido? Ou era o que ela ganhara no nº 34 da Rua Desaix, naquele apartamento a que
o homem fizera alusão ainda há pouco? Mas isso não tinha nenhuma importância. Pertencia ao passado. Em Roma, numa noite de primavera, começaríamos a viver a nossa
verdadeira vida. Esqueceríamos todos esses anos da adolescência e até o nome dos nossos pais.
Seguíamos pelo cais. A fachada apagada da estação d'Orsay com os seus alpendres enferrujados que não davam para coisa nenhuma. E o hotel, no mesmo edifício da estação.
Parámos no sinal vermelho e eu vi a entrada e o balcão da receção.
Ela perguntou-me:
- Queres alugar um quarto aqui?
Seríamos os únicos clientes daquele hotel que se confundia no exterior com a estação abandonada.
Às vezes sonho que estou com ela, no meio do hall da receção. O porteiro da noite tem um uniforme coçado de chefe de estação. Ele acabou de nos dar a chave. O elevador
não funciona e nós subimos uma escada de mármore. No primeiro andar, tentamos em vão encontrar o nosso quarto. Atravessamos a grande sala de jantar mergulhada na
escuridão e perdemo-nos nos corredores. Acabamos por desembocar numa antiga sala de espera iluminada por uma lâmpada nua, no teto. Sentamo-nos no único
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banco que ainda resta. A estação já não funciona mas nunca se sabe: o comboio para Roma pode passar, por engano, e parar alguns segundos, o tempo de subirmos para
uma das carruagens.
Estacionámos o carro à esquina da Avenida de Suffren e da ruazinha do hotel. Eu levava as duas malas e ela a trouxa dos livros. O cão ia à nossa frente, sem trela.
A porta do hotel não se encontrava fechada como da primeira vez. O mesmo porteiro da noite estava atrás do balcão da receção. Não nos reconheceu logo. Deitou um
olhar desconfiado à trouxa de lençol que Gisèle levava e ao cão.
- Queríamos um quarto - pediu Gisèle.
- Não alugamos quartos apenas por uma noite - disse ele num tom glacial.
- Então, por quinze dias - disse eu com uma voz doce.
- E pago-lhe em dinheiro, se quiser.
Tirei do bolso do meu casaco o maço de notas que me tinha dado Dell'Aversano.
Ele pareceu interessado. E disse:
- Levo meia tarifa pelo cão.
Foi nesse instante que ele me reconheceu. Fixou em mim o seu olhar de croupier.
- Você já aqui veio noutra noite... Era o irmão da menina... Só tem de mo provar...
Meti-lhe umas notas de cem francos no bolso da frente do casaco. O seu olhar suavizou-se.
- Muito obrigado, senhor.
Voltou-se e retirou uma chave dos cacifos.
- O quarto número três para si e para a sua irmã...
Ele agora dava mostras, perante nós, de uma amabilidade profissional.
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- É no primeiro andar.
Ele estendeu-me a chave e inclinou-se para nós.
- Não se engane... O hotel só ocupa o primeiro andar do edifício. O resto, são apartamentos mobilados.
Ele sorriu.
- Evidentemente que não é muito regulamentar... Mas há muitas coisas na vida que não estão conforme o regulamento, não é?
Agarrei na chave, uma simples chave de metal branco que não tinha o aspeto de uma chave de quarto de hotel.
- Infelizmente, juntamente com a conta, não lhe posso dar uma fatura.
Ele tinha um ar desolado.
- Não se incomode - disse-lhe eu. - É muito melhor assim.
Subimos a escada, coberta com uma passadeira vermelha e
usada.
Várias portas, de cada lado do corredor. Cada uma delas com um número escrito a lápis.
Entrámos no quarto número três. Era espaçoso e com o teto alto. Uma janela envidraçada dava para a rua. A cama, muito grande, tinha uns lençóis azuis-celeste e uma
colcha escocesa. Uma pequena escada de madeira branca dava até uma mezzanine. O cão deitou-se no chão, ao pé da cama.
- Nós podemos ficar aqui até à nossa partida para Roma -disse Gisèle.
Com certeza. Enquanto se esperava pela partida, nunca mais deixaríamos o bairro, tal como os passageiros na sala de um aeroporto antes do embarque. Nem tão-pouco
deixaríamos aquele quarto nem aquela cama. E eu imaginava o homem de casaco castanho-claro de há pouco, a tocar à porta do apartamento do Cais Conti, de manhã cedo,
para nos vir buscar como fizera vinte anos atrás com o meu pai e como o faria eternamente. Mas ele nunca nos deitaria a mão.
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- Em que é que estás a pensar? - perguntou-me.
- Em Roma.
Ela apagou o candeeiro da mesa de cabeceira. Estávamos na cama e não tínhamos aberto as cortinas da janela grande. Eu ouvia o ruído das vozes e do bater das portas
que vinha da garagem em frente. Os reflexos do anúncio luminoso projetavam-se em nós. Cedo tudo ficou silencioso. Eu sinto os seus lábios na minha fronte e na minha
orelha. Ela pergunta-me, em voz baixa, se a amo.
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No dia seguinte, levantámo-nos por volta das dez horas. Não havia ninguém na receção do hotel.
Tomámos o pequeno-almoço na Rua do Laos num café com o mesmo nome.
Ela disse-me que ia imediatamente buscar o resto do dinheiro a Saint-Leu-la-Forêt e que esperava que "tudo corresse bem". Sim, ela arriscava-se a encontrar o marido
e as outras pessoas que viviam na casa. Mas, no fundo, que importância tinha? Já não precisava de prestar contas a ninguém.
Dispus-me a acompanhá-la, mas disse-me que era melhor ir sozinha.
- Telefono-te à uma hora, se precisar de ti.
Voltámos ao hotel para ela anotar o número do telefone. O porteiro ainda não estava lá mas descobrimos no balcão uma pilha de cartões beges onde estava escrito:
Hotel-Pensão Ségur - apartamentos mobilados, 7 Rua da Cavalerie (15.0) SUFFREN 75-55. Meteu um no bolso do impermeável.
Fomos até ao carro. Ela deu-me o braço. Queria levar o cão. Sentou-se ao volante e ele no banco de trás. Encontrei um pretexto para não me separar logo dela. Será
que me podia deixar numa banca de jornais?
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Gisèle seguia de Suffren para o Sena. Parou em frente da primeira banca.
- Até já.
Ela inclinou-se pela janela aberta e acenou-me com a mão.
Enfiei o jornal no bolso. Virei na primeira rua, à esquerda, segui e desemboquei num lugar no meio do qual havia uma grande praça com um coreto.
Sentei-me num dos bancos ao pé do coreto para ler o jornal. À minha frente, a fachada da caserna Dupleix.
Fazia sol. Um céu sem nuvens. No banco vizinho ao meu, uma mulher morena de trinta e tal anos vigiava um rapazinho que andava de bicicleta.
Fui surpreendido pelo aproximar de um ruído de cascos de cavalo. Um grupo de cavaleiros de farda militar entrava a passo na caserna. Lembrei-me dos domingos da minha
infância em que ouvia o mesmo barulho quando o cortejo da Guarda republicana passava no cais.
Na página das notícias, não encontrei a fotografia do homem que eles fizeram entrar para o carro no domingo à tarde. Não havia nada sobre Ansart nem Jacques de Bavière
nem sobre Mar-tine Gaul.
Lembrei-me de que na outra noite estávamos muito perto daqui e decidi ir até à Rua Desaix, sem saber exatamente onde ela estava. Mas era só seguir ao longo da parede
da caserna.
Reconheci o edifício do número 34. Sim, fora exatamente ali que ficara à espera dela. O viaduto aéreo do metro, à esquerda, fechava a perspetiva da rua. Em que andar
era o apartamento?
Tomei o mesmo caminho e estava novamente na praça em frente da caserna.
Enfiei pela Avenida Suffren até à rua do hotel.
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Continuava a não haver ninguém na receção. O telefone estava assente no rebordo de madeira por cima dos cacifos. Era quase uma hora. Fiquei agarrado ao balcão. Uma
hora. Uma hora e um quarto. Nenhum toque. Levantei o auscultador para verificar se funcionava bem e ouvi o sinal.
Ela marcara comigo às duas horas, no café, Rua do Laos. Não me apetecia voltar para o quarto. Saí e segui pela Avenida Suffren, mas desta vez no outro sentido. A
avenida era mais calma desse lado. Ao longo do passeio oposto, ficavam os edifícios antigos da Escola Militar. E as filas de plátanos. Não veríamos as folhas da
próxima primavera porque estaríamos em Roma.
À medida que andava, parecia-me que estava já numa cidade estrangeira, que era outra pessoa. O que tinha vivido na minha infância e nos anos que se seguiram, até
ao meu encontro com Gisèle, desprendia-se lentamente de mim como se de farrapos se tratasse, diluía-se, a ponto de, de tempos a tempos, eu ter de fazer um último
esforço para reter alguns trechos antes que se volatilizassem: os anos do colégio, a figura do meu pai de casaco azul-escuro, a minha mãe, Grabley, os reflexos do
bateau-mouche no teto do quarto...
Às duas menos dez, cheguei ao café da Rua do Laos. Ela ainda não se encontrava lá. Quis comprar-lhe, na florista em frente, um ramo de rosas, mas não tinha dinheiro
comigo. Fui até ao hotel. Quando entrei, o porteiro da noite estava atrás do balcão da receção.
Olhava para mim fixamente. Estava muito corado.
- Senhor...
Ele não encontrava as palavras mas compreendi mesmo antes de o ouvir. A sua amiga. Um acidente. Exatamente após a ponte de Suresnes. Tinham descoberto a carta do
hotel no bolso do seu impermeável e telefonaram para aqui.
Saí maquinalmente. Lá fora, havia um ambiente leve, claro, indiferente, como o céu de janeiro quando está azul.

 

 

                                                                  Patrick Modiano

 

 

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