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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM CLUB DA MÁ-LINGUA / Fiódor Dostoiévski
UM CLUB DA MÁ-LINGUA / Fiódor Dostoiévski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Maria Alexandrovna Moskalev é com toda a certeza a dama de mais subida importancia em Mordassov, nem haverá quem o conteste. Ao contemplál-a, dirieis que não precisa seja de quem fôr, e que, antes pelo contrario, toda a gente lhe deve obrigações. Goza de poucas sympathias, na verdade, é cordialmente detestada, até: mas temida tambem universalmente, e é isso que ella quer. E não representará isto um rasgo de finura politica? Por que será que, por exemplo, apezar de nutrir paixão por mexericos e de não poder dormir descansada no dia em que não soube nada de novo, por que será, sim, que pela apparencia de Maria Alexandrovna, tal é a sua majestade, não occorre á mente, seja de quem fôr, o facto de ella ser a primeira coscovilheira d'este mundo, ou quando menos, de Mordassov? Dir-se-ia antes que assim que apparece deveriam cessar, actocontinuo, de todo os mexericos, as comadres tremerem como garotetes em presença do prefeito, e as conversas guindarem-se desde logo aos assuntos mais transcendentes. E todavia, ella, a respeito de uns certos Mordassovenses está em dia com umas chronicas tão escandalosas{6} que, se as dissesse a proposito e provando-lhes—como ella o sabe  fazer—a authenticidade, Mordassov em pêso tremeria tal qual tremeu Lisboa em tempos. Mas se ella quanto a segredos é o proprio tumulo; é necessario dar-se um concurso de circumstancias extraordinarias para que ella consinta em falar n'umas certas coisas,—e isto ainda entre amigos da maxima intimidade. Poderá arriscar uma allusão, dar a entender que "está em dia"; mas pella-se por manter a qualquer individuo— homem ou mulher—na sugestão de um temor perpetuo, em vez de o esmagar de um golpe. Isto é que é intelligencia, isto é que é tactica! Maria Alexandrovna sempre se distinguiu mercê do seu irreprehensivel comme il faut. É citada como modêlo. Lá quanto ao comme il faut não tem rival em toda Mordassov.
Poderá, com uma palavrinha, matar, esfacelar, anniquilar uma pessoa que lhe haja cahido no desagrado,—mas sem lhe tocar, sem suspeitar, dir-se-hia, a importancia da dita palavrinha. Semelhante traço de caracter assás trescala a alta sociedade.


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Tem optimas relações. A Mordassov ainda não veiu pessoa que não ficasse penhorada com as recepções de Maria Alexandrovna. O maximo numero até de taes visitantes accidentaes ficaram-se carteando com ella. Houve até um poeta que lhe dedicou versos: Maria Alexandrovna exhibe-os com desvanecimento. Um litterato de arribação offereceu-lhe uma novélla da qual fizera leitura em casa da nobre senhora, durante um sarau: produziu optimo effeito. Um sabio allemão, vindo expressamente de Carlsruhe no intuito de estudar uma especie singular de vermezinhos chavelhudos que se encontram no nosso governo (o dito{7} sabio escreveu ácerca do alludido vermezinho quatro volumes in-quarto) tão encantado ficou com a amabilidade de Maria Alexandrovna, que ainda hoje, lá de Carlsruhe, lhe escreve cartas respeitosas e moraes. Chegaram até a estabelecer parallelos entre Napoleão e Maria Alexandrovna. Foi brincadeira, facecia de ciumentos, e comtudo, apontando a estranheza de semelhante comparação, atrever-mehei a fazer uma pergunta ingenua; por que seria que a Napoleão, no acume da sua gloria, o tomaria uma vertigem? Os legitimistas attribuem uma tal fraqueza á vilã extracção de Bonaparte, que nem era de estirpe realenga nem sequer de nobreza limpa. Por espirituosa que seja semelhante opinião,—pois tresanda á mais brilhante épocha da antiga côrte franceza,—atrever-me-hei ainda a perguntar: mas por que é que a Maria Alexandrovna não a tomaram nunca vertigens? Pois é um facto; veiu a ser e depois ficou sendo sempre a dama de mais subida importancia em Mordassov. Conheceu horas atribuladas, não ha duvida, e, em certas circumstancias, houve até quem dissesse lá comsigo: «Mas que é que ha de agora fazer Maria Alexandrovna?» E o obstaculo achava-se transposto como que por encanto.
Toda a gente estará lembrada da maneira porque o marido, o Aphanassi Matveich, perdeu a posição. Deu-se isso em seguida a uma inspecção aos fiscaes a quem esta achou tolos em demasia. E a cuidarem que Maria Alexandrovna não deixaria de perder o sizo, humilhar-se, supplicar, n'uma palavra, "rebaixar a sua linguarice." Longe d'isso! Percebendo que as supplicas nada adeantariam, houve-se de modo que a sua influencia não soffreu a minima quebra, e que a sua casa continuou a ser a primeira casa de Mordassov.{8} Anna Nikolaievna Antipova, inimiga figadal de Maria Alexandrovna, a despeito das exteriorizações de mundana amizade, já cantava victoria. Mas não tardaram em perceber que era difficil atrapalhar Maria Alexandrovna, e que esta era mais fina do que a suppunham.
Aqui, vem ao pintar umas palavras a respeito de Aphanassi Matveich, marido de Maria Alexandrovna. É um homem muito bem parecido, a correcção em pessoa. Mas, nos casos criticos, assustava-se que nem um borrêgo que percebesse que lhe mudaram o que quer que fosse ao cancêlo do redil. Circumstancia que lhe não tolhia o ostentar ordinariamente uns ares de summa importancia, sobretudo nos jantares de apparato, quando punha a gravata branca. A majestade de taes sujeitos dura até ao momento de abrirem a bôca: mas então é tratar de metter rolha nos ouvidos. Semelhante homem, com toda a certeza, é indigno de pertencer a Maria Alexandrovna. É esta a opinião geral.
E d'ahi, é unicamente devido á genialissima esposa o facto de elle se conservar no seu posto. A meu ver, ha muito tempo que o deveriam ter espetado na horta á laia de espantalho para os pardaes.
Alli, e só alli, poderia ter sido de alguma utilidade. Maria Alexandrovna fez, pois, muito bem em exilar Aphanassi Matveich para a aldeia de cento e vinte almas que ella possuia a tres verstas de Mordassov. E de caminho, digamos que a dita propriedade representava a totalidade dos bens facultando a Maria Alexandrovna o custear tão bem, e com tamanho estadão, a sua casa. Facil foi pois o perceberem que havia supportado Aphanassi Matveich unica e exclusivamente por causa do seu cargo, dos respectivos ordenados{9} e... e ainda de uns certos emolumentosinhos. Agora, que, velho, já nem representava ordenados nem emolumentos, não seria de justiça affastá-lo na qualidade de inutil trambolho?
Aphanassi Matveich leva no campo uma vida agradabilissima. Fiz-lhe uma visita e passei com elle uma hora encantadora. Ensaia ao espelho as gravatas brancas, engraxa as proprias botas, não por necessidade, mas sim por amor da arte, porque gosta de ver as botas a luzir muito. Toma chá tres vezes ao dia, vae a miudo ao banho e não se rala com coisa nenhuma... 
Estão lembrados d'aquella nojenta historia, ha dezoito mêses, a proposito da Zinaida Aphanassièvna, filha unica, de Maria Alexandrovna e de Aphanassi Matveich? Zinaida é uma beldade, e uma menina muito bem educada, de mais a mais; mas tem vinte e trez annos e ainda está solteira. Uma das principaes causas a que atribuem o celibato da Zina, é o boato vago da estrambotica ligação que dizem haver tido, ha exactamente dezoito mêses, com um réles utchitel[1]—boato que ainda se não desvaneceu.—Citam uma missiva amorosa escrita pela Zina e que dizem ter corrido Mordassov de um extremo ao outro. Mas, por favor, não me dirão, leram a tal epistola? Não houve em Mordassov pessoa que a não visse. E então! onde pára ella actualmente? Toda a gente ouviu falar nella, mas quem foi que a viu? Eu, da minha parte, ainda não encontrei uma só pessoa que a tenha visto com seus proprios olhos.{10}
Alluda alguem á tal epistola na presença de Maria Alexandrovna e aposto desde já que ella não perceberá sequer esse alguem. Mas supponhamos que tenha havido o que quer que fosse de verdade em semelhante atoarda, e que a Zina haja escrito a decantada epistola, (effectivamente, estou convencido de que a escreveu): admirem então a habilidade de Maria Alexandrovna.
Como se havia de atabafar caso tão escandaloso?—Pois bem, procurem, nem vestigios, prova, que é della? Maria Alexandrovna nem sequer se digna tomar conhecimento de calumnia tão soez, e comtudo, Deus sabe o trabalho que lhe custou conservar intacta a honra da filha unica! Que a Zina não tenha ainda casado, isso percebe-se, de mais, até:
onde iria ella por aqui encontrar noivo? A Zina só pode casar com um principe reinante! Já alguem viu mais peregrina formosura? É soberba, lá isso é... Dizem que Mozgliakov a pedira em casamento, mas semelhante consorcio jámais se effectuará. Quem vem a ser esse tal Mozgliakov? É môço, assás bem parecido, elegante, peterburguense, proprietario de cento e cincoenta almas livres de hypotheca. Mas não fura paredes! Leviano, tagarélla, apaixonado pelas novas ideias... E que representarão cento e cincoenta almas com ideias novas? O casamento nunca se realizará.
Quanto acaba de ler o amavel leitor foi escrito, ha cinco mêses, unicamente por admiração. Devo convir em que nutro uma tal ou qual sympathia por Maria Alexandrovna. Quizera escrever o panegyrico de tão magnifica dama sob a forma de uma carta dirigida a um amigo, a exemplo d'aquellas que outrora publicavam as revistas, n'esses bons{11} tempos que já lá vão, e que, louvôres a Deus! não voltam cá outra vez!
Mas se não tenho um unico amigo, e, graças á incuravel timidez que de mim se apodera assim que se trata de litteratura, a minha obra ficou na gaveta na qualidade de tentame sem seguimento.
Cinco mezes eram pois decorridos, quando em Mordassov se deu um acontecimento extraordinario.
Um dia, de madrugada, eis que chega o principe K... e vae hospedar-se em casa de Maria Alexandrovna.
As consequencias d'este acontecimento são incalculaveis. O principe passou apenas trez dias em Mordassov. Mas esses trez dias deixaram recordações fataes e inexpungiveis. Direi mais: o principe foi causa de uma verdadeira revolução n'esta nossa cidade. A narrativa da alludida revolução virá a ser, certamente, a pagina mais importante da historia de Mordassov. E é essa pagina que eu, após innumeras hesitações, me resolvi a offerecer, sob forma litteraria ao criterio do respeitavel publico.
A minha narrativa poder-se-ia intitular: "Grandeza e Decadencia de Maria Alexandrovna." Grande e seductor assumpto para um poeta.{12}
 
Direi desde já que o principe K... não era um ancião centenario.
Á primeira vista, comtudo, ninguem podia deixar de pensar que ia reverter outra vez aos elementos, a tal ponto se achava gasto! Corriam em Mordassov as historias mais estranhas a respeito do dito principe. Affirmavam que estava um tanto ou quanto tinôco.
Effectivamente, parecia exquisito que um pomiestchik[2] de uma das mais notaveis familias, dono de quatro mil almas, em posição de obter consideravel influencia na provincia, permanecesse enclausurado, tal qual um eremitão, na sua magnifica propriedade. Muitos que o tinham visto, seis ou sete annos atraz, por occasião da primeira vinda do principe a Mordassov, affirmavam que nesse tempo nem podia supportar a solidão nem tinha ainda aquelles seus costumes de eremita.
Eis os esclarecimentos que pude colher a seu respeito bebidos das mais seguras fontes.
Outrora—e onde irá isso!—o principe havia effectuado na sociedade um ingresso de aurora... Durante os annos todos da juventude levara vida airada, requestando as damas, esbanjando por vezes repetidas o seu dinheiro em{13} viagens ao estrangeiro, cantando romanzas, fazendo trocadilhos; mas não se distinguia mediante uma intelligencia acima da marca. Em semelhante vida, não tardou em dar cabo do que tinha, e, quando chegaram os dias da senéctude, ficou sem um kopek. Aconselhou-lhe alguem que voltasse para a sua aldeia, que principiava já a ser vendida em hasta publica.
Aproveitou o conselho, e foi nessa occasião que veiu passar seis mêses em Mordassov. Agradou-lhe immenso a vida de provincia, e pelo espaço de seis mêses acabou de se "alimpar" em amorios com as mundanas provinciaes. Era aliás excellente pessoa, de um fausto principesco (em Mordassov o fausto é o signal caracteristico da mais alta aristocracia.)
As damas sobretudo não cessavam de se alegrar com um hospede encantador a tal ponto. Deixou entre nós curiosissimas recordações; entre outras exquisitices, contavam que o principe gastava a maxima parte do dia ao toucador. Parecia todo elle feito de pedacinhos enxertados. Scismavam onde e como fôra que elle se haveria decomposto d'aquella maneira. Usava chinó, bigode, suissas, e inclusivé uma pêra, tudo postiço até o minimo pellinho, e tudo preto como o proprio azeviche—uma lindeza! Levava todo o santo dia a pôr caio e carmim. Affirmavam que dispunha de um talento especialissimo em disfarçar as rugas do rosto por meio de umas mólazinhas escondidas com o chinó. Affirmavam ainda que trazia espartilho, havendo ficado sem uma costella ao saltar desastradamente de uma janella abaixo durante uma aventura amorosa, na Italia. Coxeava da perna esquerda, uma perna postiça de cortiça, affirmavam,{14} havendo quebrado a verdadeira em Paris, em outra aventura. É possivel que houvesse exaggêro, mas o que é certo, é que o olho direito era de vidro: illudia completamente, aliás; ninguem diria que não era natural. Os proprios dentes eram artificiaes. Passava dias inteiros a lavar-se com aguas-garantidas, a perfumar-se, a encalamistrar-se. Ultimamente, comtudo, principiava a fazer-se velho e a tresler. Parecia estar prestes a terminar a sua carreira, e sabia toda a gente que se achava arruinado,—e eis que de repente lhe morre uma sua parenta muito chegada, senhora de muita edade, vivendo em Paris, e de quem não esperava herdar, em seguida a haver enterrado um mez, exactamente, antes de fallecer, o unico herdeiro. Eram quatro mil almas e uma soberba propriedade a sessenta verstas de Mordassov a reverterem no principe sem a minima partilha. Abalou desde logo para Petersburgo a fim de pôr em ordem seus negocios. Por occasião da partida, offereceram-lhe as damas um sumptuoso banquete por subscripção. Ha quem se lembre ainda de como, n'aquelle dia, o principe foi seductor e espirituoso! Era um tiroteio de calemburgos, de anecdótas extraordinarias. Prometeu voltar o mais breve possivel para a sua nova propriedade e jurou que na volta daria meza franca e uma festa—bailes e luminarias—que nunca havia de ter fim. Depois da sua partida, ficaram as senhoras um anno a falar da tal promettida festa e impacientes á espera do encantador velhinho. Organizavam até excursões a Dukhanovo, a aldeóla do principe, onde se admirava um antigo solar acastellado, um parque adornado de acacias a imitar leões, colinas artificiaes, lagos em que navegavam barquinhos tripulados{15} por turcos de madeira, a tocar flauta, pavilhões de Mon-Plaisir, e quejandos attractivos.
Até que por fim veiu o principe, com grande espanto e não menor decepção de toda a gente, nem sequer passou por Mordassov e foi encerrar-se em absoluto isolamento em Dukhanovo. Correram boatos singularissimos. A datar d'esse momento, torna-se obscura e phantastica a historia do principe. A principio constou que lá por Petersburgo lhe não tinham corrido bem os negocios, que os herdeiros, em vista do seu estado senil, queriam nomear-lhe um conselho judicial receando que voltasse a esbanjar os seus bens. Ainda mais: accrescentavam que aquelles ávidos caçadores de heranças tinham querido internál-o n'uma casa de saude! Afortunadamente para o principe, um seu parente, personagem de summa importancia, saiu em sua defêsa, provando á evidencia que o pobre homem, semi-morto e todo elle artificial, não estava para muita dura, certamente. E que n'essa conformidade os seus bens viriam a reverter nos herdeiros sem que estes se vissem na necessidade de recorrer á casa de saude. Eis o que se diz. São compridinhas as linguas lá em Mordassov. Tudo isto havia assustado o principe, a tal ponto, que se lhe tinha demudado o genio, descambando em eremitão. Por mera curiosidade, vieram felicitál-o varios Mordassovenses: e ou não foram recebidos, ou se o foram foi de modo um tanto exquisito. O principe nem mesmo reconheceu, ou antes, não quiz reconhecer os seus amigos de outrora.
O proprio governador o foi visitar, mas voltou pelo mesmo caminho dizendo que o principe estava tinôco. D'alli em deante notaram que o governador punha uma cara de palmo,{16} assim que lhe falavam na jornada a Dukhanovo... Indignavam-se as senhoras. Até que por fim se veiu a saber uma coisa capital; o principe vivia submettido á tutella de uma figurona por nome Stepanida Matveiévna,—Deus sabe que casta de mulher!—que tinha vindo lá de Petersburgo, velha, obêsa, usando constantemente o mesmo vestido de cassa, e sempre com um mólho de chaves na mão. O principe obedece-lhe em tudo e por tudo e não se atreve a dar um passo sem a consultar. Ella, lava-o com suas proprias mãos, apaparica-o, passeia-o e entretem-n'o, como se fôra um néné; em conclusão, é ella quem bate com a porta na cara aos parentes que principiam a saber o caminho de Dukhanovo... Foi muito discutida, sobretudo entre as senhoras, tão incomprehensivel ligação. Accrescentavam que Stepanida Matveiévna regia com plenos poderes, e sem ter quem lhe fosse á mão, a totalidade dos bens do principe. Substitue feitores, creados, arrecada os rendimentos; é aliás boa a sua administração, e os camponêzes não vêem outra coisa. Com respeito ao principe, este nem já arreda um passo do toucador, a ensaiar chinós, pêras postiças, casacos. Uma vez por outra, joga ás cartas com Stepanida Matveiévna; de vez em quando, dá o seu passeio n'uma egua inglêsa muito mansa: Stepanida Matveiévna acompanha-o sempre em carruagem fechada, prompta á primeira voz, visto como o principe só monta a cavallo por garridice e mal se pode ter em cima do selim. Acontece-lhe tambem o sair a pé, embrulhado n'um sobretudo, com um chapéu de palha enterrado na cabeça, um lenço de mulher ao pescoço, um monoculo no olho e pendurado na mão esquerda um açafate para recolher cogumelos e flôres campestres.{17} Stepanida Matveiévna, vae-lhe seguindo as pisadas, levando á tréla dois latagões de dois lacaios; e um pouco mais atráz, uma carruagem. Se calha encontrarem um mujik que pára e tira o bonné para lhe fazer a sua contumélia dizendo: "Bom dia, paezinho principe. Nossa Excellencia, nosso solzinho!" o principe assesta-lhe o monoculo, acêna-lhe com a cabeça com bom modo e diz-lhe em francêz: "Bom dia, amigo, bom dia!" Qual não foi porém o espanto de toda a gente quando, uma bella manhã, se espalhou o boato de como o principe, aquelle eremitão, aquelle original, tinha vindo em pessoa a Mordassov e se hospedara em casa de Maria Alexandrovna! Foi um reboliço por ahi além! Estavam á espera de uma explicação, e perguntavam uns aos outros: "Que quererá isto dizer?" Não faltou quem se estivesse enfeitando para ir a casa de Maria Alexandrovna. Carteavam-se as senhoras, visitavamse, mandavam as creadas e os maridos colher informações. O que maior espectação causava era a circunstancia de se ter ido o principe hospedar em casa de Maria Alexandrovna, e não em qualquer outra parte. Anna Nikolaievna Antipova ficou mais escandalizada do que outra qualquer pessoa, visto o principe ser ainda seu parente, parente muito arredado, é verdade.{18}
 
São dez horas da manhã. Estamos em casa de Maria Alexandrovna, na Rua Grande, no aposento que a dona da casa, nos dias duplices, enfeita com o titulo de sala. (Maria Alexandrovna, dispõe tambem de um camarim.) O papel das paredes é correctissimo. Os moveis, pouco commodos, arvoram com verdadeira predilecção a côr vermelha. Ha um fogão, e em cima do fogão um espelho; deante do espelho um relogio tendo por assunto um Cupido do mais execrando gosto. Nas paredes, no intervallo das janéllas, dois espelhos a que já tiraram as capas. Adeante dos espelhos, duas banquinhas, e ainda dois relogios. Toma a metade de um apainelado um piano de cauda. (Mandaram vir o dito piano para a Zina: cultiva a musica.) Ao pé do fogão, no qual arde uma bôa fogueira, estão dispostas umas poltronas em desalinho pinturesco a mais não poder ser. Ao meio outra banquinha. No outro extremo da casa, ainda outra mesa, tapada com uma toalha immaculada e em cima, um samovar de prata, a ferver, no meio de um lindissimo serviço para chá. Uma senhora, residente em casa de Maria Alexandrovna, a titulo de parenta affastada, Nastassia Petrovna Ziablova, está especialmente incumbida do chá.
Duas palavras ácerca da alludida senhora. É viuva, frescalhona, com uns olhos castanhos escuros muito vivos, assaz bem parecida; é alegre, velhaca, até; linguareira, escusado{19} será dizê-lo, e sabendo levar agua ao seu moinho; tem dois filhos no collegio, para ahi, algures. Não se lhe daria de tornar a casar; vive com bastante independencia; o marido era official.
Maria Alexandrovna em pessoa está sentada ao pé do fogão: acha-se de boa catadura. Traja um vestido verde claro, assentando-lhe a primor. Está contentissima com a vinda do principe. N'este ensejo, o principe está lá em cima, todo elle entregue á tarefa de se infunicar.
Maria Alexandrovna nem sequer pensa em esconder o seu contentamento. Deante d'ella, um rapaz a fazer boquinhas e a cantar, muito animado, seja o que fôr. Percebe-se que se desvéla por agradar a quem o está escutando. Tem vinte e cinco annos. Se não fossem as suas exuberancias, se não fossem tambem as suas pretensões a engraçado, seria toleravel. Está bem vestido, é loiro e de agradavel presença. Já a elle nos referimos, é o senhor Mozgliakov, môço sobre quem se fundaram esperanças matrimoniaes. Maria Alexandrovna acha-lhe a cabeça um tanto ôca, mas nem por isso deixa de o receber muito bem. Diz elle que está loucamente apaixonado pela Zina. Dirige-se a esta continuamente, ancioso por alcançar um ar de riso a poder de bons ditos e de azoamento. Ella, comtudo, mantem-n'o a distancia, com extrema frialdade. A joven está de pé junto ao piano, a folhear um almanaque. É uma dessas mulheres que produzem effeito geral ao entrarem numa sala. É peregrinamente formosa: alta, morena, com uns immensos olhos quasi pretos, esbelta, com um collo magnifico, uns pésinhos encantadores, espaduas e mãos de molde classico, e um pisar de rainha. Está hoje um tanto descoráda,{20} a pallidez, comtudo, torna-lhe mais conspicuo o rubido fulgor dos labios por entre os quaes lhe luzem, tal qual perolas em fio, uns dentinhos miudinhos e regulares. Era caso para qualquer de nós sonhar com elles, três dias a fio, só de lhes ter posto a vista em cima. É séria a sua expressão.
O senhor Mozgliakov dir-se-hia arrecear-se do olhar fito da Zina, pelo menos não ergue para esta os olhos sem um tal qual enleio.
É singelissimo o vestido da joven, de gaze branca: Está-lhe bem o branco, está-lhe lindamente o branco... E d'ahi, que haverá que lhe não fique bem? Traz enfiado n'um dedo um annel de cabello entrançado. A julgar pela côr, aquelles cabellos não são os da mamã. Mozgliakov nunca se afoitou a perguntar de quem seriam aquelles cabellos. Está taciturna, esta manhã, triste, até, ou preoccupada, pelo menos. Em compensação, Maria Alexandrovna acha-se em maré de dar á lingua. De vez em quando, esguêlha uns olhos desconfiados para a Zina, e olhos furtivos quanto possivel, como que não se arreceando menos da joven.
—Estou tão contente, Pavel Alexandrovitch, (dir-se-hia pipilar) que estou capaz de gritar da janella abaixo o meu contentamento a quem passa pela rua. Sem falarmos da agradabilissima surpreza que nos proporcionou, a mim e á Zina, com vir quinze dias mais cedo do que o esperavamos. É caso á parte. Mas o que mais me penhorou foi a attenção que teve comnosco trazendo comsigo o principe. Se soubesse como eu adoro aquelle encanto aquelle vélhinho! Não pode comprehender-me! As pessoas da sua edade seriam incapazes de semelhante affeição. Não sabe{21} as circumstancias que entre mim e elle se deram, ha seis annos? Lembras-te, Zina? E eu sem me lembrar de que n'esse tempo estavas em casa de tua tia. Estou que me não acreditaria, Pavel Alexandrovitch, se eu lhe dissesse, que servi de guia ao principe, que fui para elle, irmã, mãe? Havia lhaneza, carinho, nobreza n'aquella nossa ligação. Era... pastoril!... Nem eu sei como a hei de definir. Eis o motivo porque elle se lembrou da minha casa com tamanha gratidão, o pobre do principe! E se eu lhe disser, Pavel Alexandrovitch, que é possivel até que o salvasse trazendo-o para minha casa? Não podia evitar o confrangerse-me o coração, durante aquelles seis annos, sempre que me punha a pensar n'elle!... Eu... quer acreditar?... até sonhava com elle! Dizem que aquella creatura, a tal sua carcereira, o enfeitiçou, que o deitou a perder... mas, emfim, o senhor arrancou-o das garras d'aquella harpia! Urge aproveitar a occasião para o salvar completamente... Mas conte-me, mais uma vez, como foi que o conseguiu? Descreva-me, muito por miudos, o encontro de um e outro. Eu ainda agora fiquei tão sobresaltada! Não vi senão os traços geraes, mas não ha pormenor que não seja precioso a meus olhos. Se eu sou assim! Pello-me pelas minudencias, nos acontecimentos de maior vulto, são os pormenores que primeiramente me chamam attenção... e... emquanto elle se está arrebicando... 
—Mas se eu já lhe contei tudo, apressa-se em responder Mozgliakov, prompto a recapitular a narrativa pela décima vez. Tinha viajado toda a noite... não tinha pregado olho; estava com tanta pressa de chegar ao meu destino! (Esta ultima phrase ia sobrescritada para a Zina.) Tive que aturar{22} contendas, berreiros por occasião das mudas. Eu proprio, confesso, não fiz tambem pouca algazarra. É um poema moderno, sem tirar nem pôr. Mas vamos adeante. Ás seis horas da manhã, em ponto, eis que chêgo á ultima muda, em Ignichévo. Tranzido, mas, isso sim! nem sequer tiro uns minutos para me aquécer. Pégo a gritar: "Cavallos!" Estou em dizer, até, que metti um susto á mulher do capataz das mudas: tinha ao collo um néné, de peito, e estou com receio que se lhe talhasse o leite.—Era admiravel o despontar do sol! Sabe, aquelle pó da geada escarlate e prateada? E eu, sem attentar em coisa nenhuma, ia a vapor!
Empalmo uns cavallos a um tal conselheiro de collegio,—com quem por um triz que não tenho um duéllo. Afiançam-me que um quarto de hora antes tinha abalado da dita muda um certo principe que viaja com cavallos proprios. Que pernoitara na muda. Quasi que nem lhes dou ouvidos, salto para a carruagem, vôo por ali fóra tal qual um prisioneiro escapulido.—Ha uma situação parecida em uma elegia de Fet[3].—Ora, a nove verstas da cidade, justamente, em vista do retiro de Svietozerskaia, avisto o que quer que seja de singular! Uma grande carruagem de jornada caída na estrada. O cocheiro e dois latagões de dois lacaios, de pé, junto da mesma, e muito atrapalhados. Lá do fundo da carruagem vinham uns bérros que me confrangiam a alma!... Eu podia seguir por deante, não tinha nada com isso, mas levou a melhor a humanidade, pois,{23} como diz Heine, mette o nariz em toda a parte. Paro, pois. Eu, o meu yamstchik Semene, e uma outra alma russa, accudimos a ajudar e entre nós seis pômos em pé a carruagem. Pômol-a de pé,—quero dizer, sobre os patins.—Uns mujiks que levavam uma carga de lenha para a cidade ajudaram-nos tambem, (apanharam bem boa gorgêta). E eu a dizer commigo: É o tal principe que passou a noite na muda. Ólho: Santo Deus! É o principe Gavrila! Que encontro este! "Principe! bradei: tiozinho!" Á primeira vista, não me conheceu; nem sei se me reconheceria á segunda: e agora mesmo não estou bem certo em que me reconhecesse. Creio que nem sequer já se lembra do nosso parentesco. Vi-o pela primeira vez, em Petersburgo. N'esse tempo era eu um garoto. Lembro-me muito bem, mas elle, podia-se lá lembrar de mim? Apresento-me: fica encantado! Beija-me, e depois pega a tremer de susto e, em conclusão, desata a soluçar. Por Deus! Vi-o com meus proprios olhos: até chorou! Palavra puxa palavra e, em conclusão, acabei por lhe propôr que viesse até Mordassov tomar um dia de descanso. Consentiu sem hesitações. Declarou-me que ia para o retiro de Svietozerskaia, para casa do arcypreste Missail a quem tem em grande conta; que a Stepanida Matvéina—qual de nós, parentes do Principe, não terá ouvido falar de Stepanida Matveiévna? O anno passado, escorraçou-me de Dukhanovo com o pau da vassoira!... Que a Stepanida Matveiévna recebera pois uma carta exigindo a sua presença em Moscou pelo fallecimento de alguem, o pae ou a filha, nem sei nem quero saber,— talvez que pae e filha ao mesmo tempo, e ainda por cima para ahi qualquer segundo sobrinho empregado na{24} fiscalização dos vinhos. N'uma palavra, tivera que conformar-se, desamparar o seu principe por uns dez dias e levantar vôo, a toda a pressa, para a capital.
O principe demóra-se um dia; dois dias, sem se mexer, a experimentar chinós, a encalamistrar-se, a pentear-se, a fazer paciencias: em conclusão, a solidão acabou por lhe ser pesada. Foi então que mandou pôr o trem e metteu a caminho do retiro de Svietozerskaia. Alguem do seu séquito, com medo do phantasma da Stepanida Matveiévna, atrevera-se a ir-lhe á mão. Mas o principe é cabeçudo e tinha abalado na vespera, depois de jantar, pernoitando em Ignichevo, largara da muda de madrugada, e, justamente na volta do caminho que vae ter á residencia do arcypreste, por pouco se não despenha com a carruagem n'uma barroca. Salvei-o e persuadi-o a vir para casa da nossa amiga commum, a dignissima Maria Alexandrovna. Diz elle que a senhora é a dama mais encantadora que tem encontrado em toda a sua vida, e cá estamos. O principe está a pôr em ordem os arrebiques com o criado particular de quem porfiou em não prescindir. Mais depressa se deixaria morrer do que apresentar-se em casa de uma senhora sem a roupa toda da ordem... E aqui tem a historia toda... é uma historia deliciosa!
—Que humorista, hein! Zina? exclama Maria Alexandrovna. Que captivante narrador! Escute, Pavel, uma pergunta: explique-me bem o seu parentesco com o principe. O senhor trata-o de tio.
—Por Deus! Maria Alexandrovna, se eu sou o proprio a não saber, como é que sou seu parente. Estou em dizer, até, que talvez seja preciso para ahi um cento de gravêtos{25} para sermos do mesmo ramo. Mas eu cá trato-o de tiozinho, e elle responde-me. E ahi tem, até hoje, todo o nosso parentesco... 
—Foi Deus em pessoa que o inspirou em m'o trazer para aqui. Arrepio-me só de pensar que poderia ter ido hospedar-se para outra qualquer parte. Devoravam-n'o! Atiravam-se a elle como quem se atira a um thesouro, a uma mina!... Eram capazes de lhe tirar a camisa! Não põe na sua ideia o que por ahi vae de almas sofregas, vis e arteiras n'esta nossa Mordassov.
—Ah! meu Deus! mas para onde queria que o levassem a não ser para sua casa? Sempre tem cada uma, Maria Alexandrovna, interveiu Nastassia Petrovna, a incumbida do chá. Talvez quisesse que carregassem com elle para casa da Anna Nikolaievna!
—Mas com tudo isso, por que se demorará elle tanto? É exquisito! disse Maria Alexandrovna, erguendo-se, impaciente.
—O tio? Aquillo ainda é negocio para cinco horas! E d'ahi, bem sabe que está perdido da memoria; é capaz de se ter esquecido de que é seu hospede. É um homem extraordinario, Maria Alexandrovna. Se soubesse!
—Ora vamos! Que está a dizer?
—A verdade, Maria Alexandrovna. É um homem mecanico. Não o vê ha seis annos, mas sei o que ha a esse respeito. É a recordação de um homem, esquéceram-se de o enterrar. Tem olhos de vidro, pernas de cortiça; todo elle de engonços, a propria voz é artificial.
—Valha-nos Deus, sempre é um tal esturdio! exclamou Maria Alexandrovna com uns modos doridos. Não tem vergonha,{26} o senhor, a falar assim de um veneravel ancião, que é seu parente? (A voz de Maria Alexandrovna, n'esta altura assume entonação tocante.) Sequer ao menos, lembre-se de que é uma reliquia da nossa aristocracia! Meu amigo, essas leviandades provêm-lhe das taes novas ideias em que está sempre a falar. Meu Deus! tambem eu participo dessas ideias; comprehendo que o principio que rege as suas opiniões é nobre, honrado. Presinto n'essas ideias novas o que quer que é de elevado, de sublime. Mas tudo isso não me impede de ver os lados praticos, por assim dizer—da questão. Tenho vivido na sociedade, conheço melhor que o senhor os homens e as coisas, pois que o senhor é apenas um rapaz. Este vélhinho afigura-se-lhe ridiculo lá por causa da edade. O senhor, ha dias, affirmava que queria dar alforria aos seus servos, que cada qual deve ir com o seu século. Tudo isso, sem duvida, lá por que o leu para ahi algures no tal seu Shakespeare! Acredite, Pavel Alexandrovitch, o seu Shakespeare já lá vae ha que tempos. Se elle resuscitasse, apezar de ser um génio, não percebia uma palavra do viver moderno. Se alguma coisa existe de majestoso, de cavalheiresco n'esta nossa sociedade contemporanea, é com certeza a aristocracia. Um principe é sempre um principe; faz um palacio ainda que seja de uma cabana. Ao passo que o marido da Natalia Dmitrievna, que mandou construir um palacio, fica sendo o marido da Natalia Dmitrievna, e mais nada,—e a Natalia Dmitrievna pode pôr em cima de si meio cento de crinólines, que nunca passará de ser a Natalia Dmitrievna como d'antes. Tambem o senhor, meu caro Pavel, é um representante da aristocracia, de lá veiu. Aqui onde me vê, ouso{27} tambem ter-me na conta de não ser alheia á aristocracia. Pois bem! Ai do filho que chasqueia dos proprios antepassados! E d'ahi, não deixará de convir, d'aqui a nada, meu amiguinho, que é preciso pôr de lado o seu Shakespeare, sou eu que lh'o digo. Estou certa em que agora mesmo não é sincéro. Está armando ao effeito!... Mas... eu para aqui a dar á lingua! Deixe-se estar, meu querido Pavel; vou saber noticias do principe. Talvez precise de alguma coisa, e com estes meus criados!... E saiu apressada Maria Alexandrovna.
—Maria Alexandrovna parece estar contentissima pelo facto de o principe não se ter ido hospedar para casa da elegante Anna Nikolaievna; e comtudo, a Anna Nikolaievna tem pretensões a ser parente do principe. É capaz de estoirar de raiva!—observou Nastassia Petrovna.
Mas, notando que lhe não respondem, Madame Ziablova, depois de haver esguelhado uma olhadéla para a Zina e para Pavel Alexandrovitch, percebe que é alli de mais e sae, tambem, como quem vae procurar qualquer coisa. E d'ahi, desforra-se da propria discreção deixando-se ficar atráz da porta, de ouvido á escuta.
Pavel Alexandrovitch trata logo de se approximar da Zina; está commovidissimo, com a voz a tremer:
—Zinaida Aphanassievna! Não está zangada commigo? diz timidamente e com modo supplice.
—Com o senhor? Mas por quê? pergunta a Zina um tanto ruborizada, erguendo sobre elle os esplendidos olhos.
—Pela minha vinda prematura, Zinaida Aphanassievna, já não podia supportar mais longo apartamento. Ainda mais quinze dias! E eu a vêl-a sempre em sonhos!{28} Vim para saber a minha sorte... Mas por que franze as sobrancelhas, está zangada? Com que então, ainda hoje não apanho resposta decisiva?
Á Zinaida, effectivamente, carregou-se-lhe o parecer.
—E eu antevia que me havia de falar a esse respeito, encetou ella em voz rispida com uns vislumbres de despeito. (Declina a vista.) E como semelhante apprehensão me maguou em extremo, acho melhor cortar de vez toda e qualquer indecisão... mais vale assim... O senhor exige, quero dizer, pede uma resposta? Seja assim. A minha resposta será a mesma que já lhe dei: espere. Repito-lhe, ainda não estou resolvida, não lhe posso prometter o ser sua mulher... Não é coisa que se obtenha por exigencia, Pavel
Alexandrovitch; mas, para o tranquillizar accrescentarei que o não rejeito definitivamente. E comtudo, note que, se o deixo esperar uma decisão favoravel, é por dó da sua inquietação. Repito-lhe que quero tomar em plena liberdade a minha decisão, e se eu em conclusão lhe declarar que o rejeito, nem por isso depois me deve increpar por lhe ter dado esperanças. E fique isto assente por uma vez!
—Mas então, então! exclamou Mozgliakov em voz de mais em mais supplice, será isso uma esperança? Poderei fundar uma qualquer esperança n'essas suas palavras, Zinaida Aphanassievna?
—Lembre-se de tudo que lhe tenho dito e funde tudo que quiser: é livre. E nada mais acrescentarei. Não o rejeito, digo-lhe, tão somente: Espere! Reservo-me o direito de o rejeitar se assim o julgar necessario... Far-lhe-hei ainda notar o seguinte, Pavel Alexandrovitch: se veiu{29} mais cedo do que tinha dito com o sentido em operar por meios indirectos, esperançado em fazer valer a sua influencia, a da mamã, por exemplo, enganou-se nos seus calculos. Se assim fôra, rejeitál-o-hia de vez, entendeu? E agora, basta, se me faz favor! Até que eu proprio lhe torne a falar n'isso, nem palavra a semelhante respeito.
Foi proferido em tom firme, sêcco, o conjuncto d'este discurso, sem hesitações, como se fôra decorado de antemão. E Pavel sente o nariz a crescer-lhe. N'este comenos eis que entra Maria Alexandrovna. Logo atráz d'esta entra madame Ziablova.
—Já ahi vem, Zina! Quer-me parecer que não tarda ahi! Nastassia Petrovna, avie-se... o chá!
E Maria Alexandrovna n'uma azafama, toda ella.
—A Anna Nikolaievna já mandou saber noticias; a Aniutka, a creada, até já veiu pedir informações á copa. Ha de estar como uma bicha! disse a Nastassia Petrovna, investindo com o samovar.
—E a mim que me importa? responde Maria Alexandrovna, a desfechar as palavras por cima do hombro a madame Ziablova. Como se me interessasse o que poderá pensar Anna Nikolaievna! Tenho a certeza em como não serei eu que mande seja quem fôr á sua copa. E demais, fique sabendo, muito me admiro de que me façam passar por inimiga da Anna Nikolaievna, coitada! Pois é opinião corrente em Mordassov. Ora seja juiz, Pavel Alexandrovitch. Conhece-nos a ambas: por que é que eu havia de ser sua inimiga? Para lhe disputar a supremacia? Sou indifferente a essas coisas! Ella que seja a primeira, eu lhe irei dar os parabens! Emfim, é injusto, e quero defendêl-a. É{30} meu dever. Mas para que é que a calumniam, para que hão de andar a malhar assim na pobre da creatura? É nova, gosta de se enfeitar: será por isso? Quanto a mim, acho que vale mais gostar dos trapos do que um certo numero de coisas de que tanto gosta a Natalia Dmitrievna, das taes coisas que nem sequer se podem nomear. Será ainda lá porque a Anna Nikolaievna gosta de visitas e não pode parar em casa? Mas, santo Deus! Se ella não tem instrucção de qualidade nenhuma, e com certeza que lhe havia de ser difficil o abrir um livro e entreter-se dez minutos a fio fosse com o que fosse. É garrida, dá de olho, da janella abaixo, a todo e qualquer que passa pela rua. E d'ahi?... Mas para que será que andam para ahi a apontál-a como uma beldade? É macilenta, que até mete medo! Dansa que é um riso vê-la, chega a ser comica, convenho, mas por que será que dizem que a polkar é um portento? Usa uns chapeus inconcebiveis! E d'ahi, ella terá culpa de lhe faltar o gosto? Affirme-lhe que faz bem em pregar na cabeça um papel de rebuçado, e verá que o faz. É linguareira, mas se por aqui não haverá quem o não seja. O senhor Suchilov, com aquellas suas enormes suissas, está pregado em casa della de manhã até á noite, e de noite até manhã, tenho a certeza. E d'ahi, santo Deus! para que é que o marido joga as cartas até ás cinco horas da madrugada? Se o que se vê por ahi são maus exemplos! E demais, não deixará de ser talvez mais outra calumnia. N'uma palavra, hei de sair sempre, sempre, sempre, sempre a defendêl-a... Mas! ai, Senhor! Ahi vem o principe! É elle! é elle! conheci-lhe os passos! Era capaz de os distinguir entre mil. Até que o vejo, afinal, meu principe!... {31}
 
Á primeira vista, ninguem confundiria o principe com um velho, mas examinado de mais perto, ninguem deixaria de verificar que é um cadaver movido por mólas; empregaram toda a casta de artificios para disfarçar n'um adolescente semelhante mumia. Um chinó estupendo, suissas, bigodes postiços, mais pretos que o proprio ébano, lhe tapam metade do rosto. As faces estão pintadas com singular pericia; nem uma ruga: que é d'ellas?... Vestido no rigor da moda, dir-se-hia saído de um figurino de alfaiate. Traz assim a modos de uma visite, isto é, qualquer coisa elegantissima feita expressamente para as visitas matutinas. Luvas, gravata, collete, tudo isso de brancura deslumbrante e do mais requintado gosto. O principe manqueja um tudo-nada, mas tão levemente! Dir-se-hia mais um tempêrozinho exigido pela móda.
Um monoculo no olho,—n'aquelle, exactamente, que é de vidro,—vem saturado de perfumes. Quando fala, arrasta umas certas palavras, talvez por impotencia senil, ou por serem postiços os dentes, ou ainda por elegancia. Pronuncia umas certas syllabas com doçura extraordinaria e accentua a letra e. Tem uma pontinha de não se-me-dá que lhe ficou da sua vida de homem feliz em amores. Se não perdeu de todo a transmontana, pelo menos está sem memoria. Engana-se a cada instante, fica-se a mascar e a metter{32} os pés pelas mãos. É necessario ter um certo dom de opportunismo para sustentar com elle uma conversa. Maria Alexandrovna, todavia, tem a consciencia dos proprios recursos, e a presença do principe léva-a ao auge do enthusiasmo.
—Mas não o acho nada mudado, nada, nada! exclama ella agarrando em ambas as mãos ao hospede e amesendando-o n'uma commoda poltrona. Sente-se! sente-se, principe! Seis annos! seis annos, inteirinhos e integrados sem nos vermos, e nem uma carta, nem uma linha, durante todo o tempo! Oh! quantas culpas não tem para commigo, principe! Se soubesse o quanto eu estava zangada comsigo, meu caro principe! Mas, e esse chá! esse chá! Ah! meu Deus! Nastassia Petrovna, o chá!
—Obrigado... ô—ôbrigado!... sou cul... cul... pado... gaguejou o principe. 
(Esqueceu-nos dizer que gaguejava um tanto; e d'ahi, é moda.)
—Cul... culpado! Ora imagine que, o anno passado, quiz abs... absolutamente vir aqui, acrescentou a mirar a casa através da luneta.
Mas tinham-me mettido medo: disseram-me que por aqui andava a có... cólera... 
—Não, principe, não a tivemos por cá, affirmou Maria Alexandrovna.
—Tinhamos a morrinha, meu tiozinho, interrompeu Mozgliakov, que se quer tornar conspicuo.
Maria Alexandrovna méde-o com olhar sevéro.
—Ha de ser isso... a mo... mo... rrinha ou coisa que o valha. E vae, eu então deixei-me ficar. E seu marido,{33} minha que.. querida Maria Nikolaievna, ainda está na ma... a... gistratura?
—Não, principe, diz Maria Alexandrovna, meu marido não está na ma... a... gistratura.
—Iá apostar que o tiozinho a está confundido com a Anna Nikolaievna Antipova! exclama o perspicaz Mozgliakov.
Acto continuo, porém, mordeu o beiço, percebendo que nem por isso está muito á vontade Maria Alexandrovna:
—Pois é isso, é... A Anna Nikolaievna, e... e... e eu sempre a esquecer-me... e então! Antipovna, exactamente, An... ti... povna, confirma o principe.
—Não, principe, está equivocado! disse Maria Alexandrovna com um rizinho azêdo. Eu não me chamo Anna Nikolaievna, e, confesso, nunca suppuz que se esquecesse de mim. Estou espantada, principe, sou a sua velha amiga, a Maria Alexandrovna Moskalieva. Não se recorda, principe, da Maria Alexandrovna?
—Maria Ale... lexan... xandrovna! Ora vejam! E eu a confundi-la com a Anna Vassiliévna... é delicioso!... Dizia eu, pois, que me não fui hospedar em casa da... E eu, amigo, a cuidar que me levavas exactamente para casa da tal Anna Matveina!
É impagavel! E dahi, acontece-me isto tanta vez! Quanta vez não vou eu parar onde não quizéra!... Em geral, fico sempre contente, sempre contente, aconteça o que acontecer. Com que então não é a Nastassia Vassiliévna!
É interessante!
—Maria Alexandrovna, principe! Maria A—lex—androvna!{34} Se é coisa que se faça! Esquecer-se assim da sua melhor amiga!
—Melhor amiga, sim, é verdade! Perdão, pe... er... dão! silva o principe fixando a attenção na Zina.
—A minha filha Zina! O principe ainda a não conhece! Não estava em minha casa quando aqui veiu pela ultima vez; lembra-se?
—Sua filha! É um encanto! um encanto! murmura o principe assestando ávido a luneta na Zina.—Mas que belleza; disse com visivel sobresalto.
—Serve-se de chá, principe? pergunta Maria Alexandrovna desviando a attenção do jarreta para um groom, parado defronte d'elle com uma bandeja.
O principe serve-se de uma chavena de chá e contempla o groom de bochechas rochonchudas e rosadas.
—Ah! ah! ah! É seu filho? Perfeito, muito perfeito! e... e... e... bem comportado, já se vê?
—Perdão, principe... accode pressurosa Maria Alexandrovna. Ainda estou toda a tremer... Com que, então, deu uma quéda? Não se magoaria? Não é prudente arriscar a sua pessoa em semelhantes aventuras!... 
—Virou-se! virou-se! O cocheiro virou a carruagem commigo dentro! exclama o principe com extraordinaria animação. E eu, a pensar que era o fim do mundo ou coisa parecida. Os santos me perdoem: apanhei um susto... vi as estrellas ao meio dia, eu esperava lá!... eu es... pera... va lá!... E tudo aquillo, por culpa do meu cocheiro, do Pamphilio: entrego-te este negocio, meu amigo, has de tratar do inquerito... Estou convencido de que attentou contra a minha vida!{35}
—Muito bem! muito bem, tiosinho! responde Pavel Alexandrovitch, fica a meu cuidado. Mas oiça lá; se lhe perdoasse por esta vez, hein, que lhe parece?
—Por caso nenhum! Tenho a certeza de que quiz dar cabo de mim, elle e mais o Lavrenty, que eu deixei lá em casa. Ora imaginem, encasquetaram-se-lhe as taes ideias novas, uma negação... que eu sei lá... e era um communista em toda a extensão da palavra. Quando me vejo a sós com elle... fico logo em suores frios.
—Ah! que verdade, principe! Não pôe na sua ideia o que eu tambem tenho aturado a esta sucia! Já despedi por duas vezes toda a creadagem. Que gente tão estupida! Anda uma pessoa a ralhar com elles de manhã até á noite.
—E... stá claro! Gosto de ver um lacaio que não fure paredes, observou o principe, satisfeito, como aliás succede aos velhos, de que lhes escutem com respeito a tagarelice,—é até a principal qualidade de qualquer lacaio,... uma to... leima sincera... em certas occasiões. Incute-lhes uma certa imponencia... solemnidade! N'uma palavra, é mais distincto, e eu, a primeira qualidade que exijo a um serviçal é a distincção. É por isso, que conservo o Tarenty, estás lembrado do Tarenty, meu amigo? Assim que o vi, percebi-lhe a vocação: Has de ser porteiro. É phe... e-nome-nalmente es... tupido. Com aquelles olhos de carneiro mal morto: Mas que boa presença! que solemnidade! Em pondo a gravata branca, faz um figurão! Gosto d'elle deveras! Eu, ás vezes, ponho-me a olhar para elle, e não me canço de o ver: ali onde o vêem, está escrevendo um livro... É um verdadeiro philosopho a... al... lemão,{36} o proprio Kant, ou antes, um, perú gordo e bem comido, um ser incompleto, tal qual cumpre a todo e qualquer se... er... viçal.
Maria Alexandrovna ri ás gargalhadas e bate palmas; Pavel Alexandrovitch faz côro: acha immensa graça ao tio. A Nastassia Petrovna ri tambem; e a propria Zina dá um ar de riso.
—Mas que graça, principe! que alegria! exclama Maria Alexandrovna. Que preciosa faculdade de observar ridiculos... E desappareceu o senhor da sociedade! Privar assim de um talento o mundo durante cinco annos inteiros!... Mas podia até escrever comedias, principe! Podia muito bem restituir-nos Visine, Griboiedov, Gogol!
—É verdade, é verdade!... confirma encantado o principe... eu podia restituir... Quer crêr? Eu d'antes tinha muita graça, até escrevi para o theatro um vô... ô... deville. Com umas coplas que eram uma delicia! Por signal que nunca foi representado.
—Que pena! Como havia de ser divertido? Sabes o que te digo, Zina, que vinha mesmo a proposito. Nós, justamente, principe, andamos a combinar umas récitas de amadores com um fim de beneficencia patriotica, em favor dos feridos... Vinha mesmo ao pintar o seu vaudeville.
—E... stá claro, estou prompto a escrevêl-o. De mais a mais, já nem me lembra uma palavra, mas tenho de memoria um ou dois trocadilhos que... (O principe beija as pontas dos dedos.) Eu, em geral, quando estava no estrangeiro... fazia um verda... deiro furor... Lembro-me de mylord Byron... fomos muito intimos... Dansava á maravilha a krakoviak no congresso de Vienna... {37}
—Mylord Byron, meu tio? Ora vamos, que está para ahi a dizer!
—Está claro!... Byron. E d'ahi, talvez fosse outro. Exactamente, era um polaco, lembrome agora muito bem; um grande original, o tal polaco! Intitulava-se conde, e porfim, veiu-se a saber que era cozinheiro.
Mas dansava lindamente a krakoviak. Quebrou uma perna. Foi n'essa occasião, até, que lhe fiz estes versos:
O nosso conde polaco Dansava a krakoviak
E d'ahi... já me esqueceu... ah!
Desde que partiu a perna, Nunca mais pôde dansar.
—Sim, sim, deve de ser isso, rico tiozinho! exclama Mozgliakov, pôdre de riso! 
—Está c-claro! Quer-me parecer que seria isto ou coisa que o valha. E d'ahi é possivel que não seja. O que lhes sei dizer é que os versos me saíram muito bons. Escapam-me certas coisas, tenho tanto que fazer!
—Mas, não me dirá, principe, pergunta com muito interesse Maria Alexandrovna, em que é que se occupa n'aquella sua solidão? Lembrava-me tanta vez do principe! Estou a arder de impaciencia por saber tudo por miudos... 
—Em que é que me occupo! Ora essa... immensa coisa em que me occupar... em geral. Umas vezes descanso, outras vezes dou o meu passeio... a imaginar cá umas coisas... {38}
—Deve de ter muita imaginação, rico tiozinho.
—Muita, meu caro. Ás vezes, acontece-me imaginar coisas de que eu proprio fico pasmado. Quando eu estava em Kadnievo... A proposito, tu não foste vice-governador em Kadnievo?
—Eu, tiozinho? Que está dizendo! Pelo amor de Deus! exclama Pavel Alexandrovitch.
—E eu a confundir-te com elle... 
E dizia eu commigo: Por que será que elle está tão mudado?... Porque o outro tinha uma phisionomia imponente, espirituosa... um homem extra-a-ordina... ria... mente intelligente. Compunha sempre versos... a proposito... De perfil, era tal qual um rei de copas.
—Acredite, principe, interrompeu Maria Alexandrovna, essa vida ha de deitál-o a perder, lhe juro eu! Encerrar-se durante cinco annos n'um ermo! Não ver, não ouvir pessoa alguma!... Sabe o que lhe digo, o principe é um homem perdido! Pergunte a algum dos seus amigos, que lhe sejam fieis, e todos lhe dirão isto mesmo: é um homem perdido!
—De... de... vé-éras? arrasta o principe.
—Com certeza... Digo-lh'o como se fôra uma irmã, porque sou muito sua amiga,—pois que as recordações do passado, para mim são sagradas. Que interesse poderia eu ter em o enganar? Nada, nada, é preciso absolutamente mudar de vida, aliás, não resiste?... 
—Valha-me Deus! pois eu hei de morrer, assim, tão depressa? exclama o principe, assustadissimo. E caso é que adivinhou: as minhas humorroides dão cabo de mim, e ha uns tempos para cá, principalmente... e quando me{39} atacam as crises, tenho sin-tó-ómas es... espan... tosos... Eu já lhe vou contar tudo... por miudos... 
—Deixe lá, tiozinho, contará isso tudo, para outra vez. Agora, não será tempo de irmos dar o nosso passeio?
—Pois, sim, vá lá, ficará para outra vez; e d'ahi talvez não interésse... Mas com tudo isso... é uma doença... extrê-ê-mamente interessante. Com uma tal variedade de episodios! Vê se me lembras, meu caro, contar esta noite, com todos os pormenores, uma certa particularidade das humorroides.
—Ora, escute, principe, atalhou ainda Maria Alexandrovna. Devia ir ao estrangeiro, para ver se se curava.
—É isso, é! Ao estrangeiro, absolutamente. Lembro-me de que, ahi por 1820, a gente divertia-se im-men-sa-mente no estrangeiro. Estive para casar com uma viscondessa, e era francêsa. Eu estava apaixonado por ella, e queria consagrar-lhe toda a minha vida. Que ella, aliás, casou com outro... Caso exquisito!... Tinha estado em casa della não havia ainda duas horas, e foi n'este meio tempo que um barão allemão a conquistou. Veiu a acabar n'um hospital de doidos.
—Mas, caro principe, estavamos falando na sua saúde, e dizia-lhe eu que devia pensar n'isso muito a sério. Ha grandes medicos lá pelo estrangeiro. De mais a mais a mudança de ar, já por si, é importantissima. Terá que renunciar a Dukhanovo, por uns tempos, quando menos.
—Abso-o-lu-tamente! Já me conformei, tenciono tratar-me pela hy-dro... the... rapia.
—Pela hydrotherapia?{40}
—Está claro! Foi isso mesmo que eu disse, pela hy... dro... the... rapia. Já me tratei pela hy... drotherapia. Estava eu nas aguas. Tambem lá estava uma senhora de Moscou, varreu-se-me o nome, uma mulher muito poetica, com setenta annos, ou coisa assim; tinha uma filha com uns cincoenta annos, e com uma belida n'um olho. Falavam ambas sempre em verso. Aconteceu-lhe um desastre! N'um fogacho de genio, matou o criado. Teve seus da-res e to... mares com a justiça. E como eu ia dizendo, puzeram-me no regimen da agua; que eu, ainda assim, não estava doente: mas se não faziam senão dizer-me "Trate de si! trate de si!" E eu, por delicadeza, puz-me a beber a agua e, effectivamente, senti allivio. Bebi, bebi, e tornei a beber! Acho que bebi um lago inteiro... É optima coisa a tal hy-dro-the-rapia. Dou-me muito bem. Eu, se não tivesse caído de cama, tinha passado lindamente.
—Lá isso é verdade, rico tio. Ora dize-me, rico tio, aprendeste logica? 
—Valha-o Deus! Que pergunta? observa Maria Alexandrovna, escandalizada.
—Está c-claro, meu amigo... ha muito tempo, aqui para nós. Estudei philosophia, na Allemanha. Frequentei os cursos todos mas d'ali a pouco esqueceu-me tudo... Mas... confesso, metteu-me um tal susto no corpo com as taes do... enças que... fiquei atarantado... Eu volto já. Dêem-me licença!
—Aonde vae, principe? exclama, pasmada, Maria Alexandrovna.
—Não tardo aqui. Não me demoro... Vou apenas... assentar um pensamento... Até já... {41}
—Que tal lhe pareceu? exclama Pavel Alexandrovitch, á gargalhada.
Maria Alexandrovna perde de todo a paciencia.
—Eu não o entendo, na verdade, não posso comprehender de que é que se ri!—começa ella com animação. Rir de um ancião respeitavel, de um parente! Rebentar a rir a cada palavra que elle solta da bôcca! Abusar d'aquella bondade evangelica! Tenho até vergonha de o ouvir, Pavel Alexandrovitch! Mas não me dirá o que é que lhe encontra de ridiculo? Ainda não fui capaz de lhe notar o lado ridiculo.
—Mas se nunca conhece ninguem, se não faz senão metter os pés pelas mãos! 
—Ahi tem as consequencias do tal sequestro de cinco annos entregue á guarda d'aquella megéra! Devemos antes ter dó d'elle, em vez de rirmos á sua custa. Veja lá, nem a mim mesmo me conheceu, até! O senhor foi testemunha. Pois não é terrivel! É preciso salvá
lo. Eu, se lhe propuz ir ao estrangeiro, foi na esperança de que se resolva a largar de mão aquella... regateira.
—Sabe o que lhe digo, é preciso casál-o, Maria Alexandrovna.
—E o senhor a dar-lhe! É incorrigivel, senhor Mozgliakov.
—Não sou, acredite, Maria Alexandrovna, eu, d'esta vez, estou falando até muito a sério. Por que é que o não havemos de casar? É uma ideia como outra qualquer. Em que é que isso o pode prejudicar? No estado a que elle chegou, é um expediente que o pode salvar, creio eu. A lei ainda lhe permitte casar. D'esse modo, vê-se livre d'aquella desavergonhada,{42} desculpe a expressão. Escolherá para ahi qualquer menina, ou qualquer viuva honesta, intelligente, carinhosa e pobre, sobretudo, que não deixará de o tratar como filha e que comprehenderá que lhe deve ser grata. Que coisa melhor lhe poderia acontecer? Um coração terno e fiel, em vez d'aquella... moita! Está claro que convem que seja bonita, pois o tio professa ainda o culto da belleza. Não viu os olhos que elle deitava á Zinaida Aphanassievna?
—E onde irá desencantar semelhante ideal? pergunta Nastassia Petrovna toda ella ouvidos.
—Não está má pergunta? A senhora, por exemplo, sem irmos mais longe... se me dá licença, perguntar-lhe-hei por que é que não ha de casar com o principe? Primeiro e segundo, porque é bonita, e viuva, ainda por cima. Terceiro, por que é fidalga. Quarto, por que é honestissima. Ha de amá-lo, amimá-lo, pôr na rua a tal carcereira, carregar com o principe para o estrangeiro, dar-lhe papinha e goloseimas... tudo isto até que chegue o dia em que elle diga adeus a este mundo de amarguras, o que tardará para ahi um anno, quando muito, ou um mez ou dois, quem sabe; depois fica sendo princesa, viuva, rica e, para compensar o trabalho, casa para ahi com um marquez qualquer, ou um general. É bonito, pois não acha?
—Ai! Deus meu! Que amor eu lhe havia de ter, por gratidão, quando por mais não fosse, se elle pedisse a minha mão! exclama Madame Ziablova.
Os olhos feriram-lhe lume, até.
—Mas, isso sim!... são sonhos!... 
—Sonhos? Tem empenho em que se realisem? Experimente,{43} peça-me que lhe alcance essa pechincha. E corto desde já este dedo se hoje mesmo não fôr noiva do principe. Não ha nada mais facil do que persuadir o meu tio. Diz sempre a tudo, que sim. A senhora bem o ouviu, ha boccado. Casamol-o sem elle dar por isso. Enganamolo, é verdade, mas se é para seu bem, pois não acha? Em todo o caso, a senhora do que devia tratar era de ir arranjando uma toilette á altura das circumstancias, Nastassia Petrovna.
A animação de Mozgliakov transforma-se em enthusiasmo. A Madame Ziablova, com o seu tino todo, está-lhe a crescer até agua na bôcca.
—Eu bem sei; nem é preciso que m'o lembre, que estou para aqui uma trapalhona... Pareço até uma cozinheira, pois não pareço?
Maria Alexandrovna está com um cara de palmo. Afoito-me a affirmar que ouviu a proposta de Pavel Alexandrovitch com uma pontinha de terror. Quer sim quer não, teve mão em si.
—Tudo isso é muito bonito, mas é um chorrilho de futilidades sem pés nem cabeça, e que não vem nada a proposito! disse, com sequidão, dirigindo-se ao Mozgliakov.
—Então por quê, minha querida Maria Alexandrovna? Por que é que diz que são futilidades fóra de proposito?
—O senhor está em minha casa, e o principe é meu hospede. Não consinto que ninguem se esqueça do respeito que se deve á minha casa! Tomo as suas palavras como mera brincadeira, Pavel Alexandrovitch; mas, ahi vem o principe, graças a Deus!
—Eu... c... cá... es... tou, guincha o principe ao entrar.{44} É espantoso, querida amiga,... que fecundidade com que acordou hoje este m... meu espirito! Ás vezes— talvez não acredites—mas acontece-me estar um dia inteiro sem me accudir um pensamento a esta cabeça... 
—Seria a tal queda d'inda agora que lhe abalou os nervos... 
—Tambem me quer parecer, meu amigo, ach... acho util, até, o tal accidente, tanto assim que estou resolvido a perdoar ao meu Pheophilo. Queres que te diga?—Palpitame que não premeditará attentar contra os meus dias. E demais... já está bem castigado, cortaram-lhe as barbas.
—Cortaram-lhe as barbas!—Que me diz? Elle, que tinha umas barbas mais compridas que um principado allemão.
—Es... tá c-claro!... sim... um principado. Em geral, meu amigo, são muito acertadas as tuas conclusões. Mas as barbas d'elle são postiças. Ora imaginem: Mandaram-me um catalogo: acabam de chegar do estrangeiro umas optimas barbas quer para cocheiros quer para gentlemen: suissas, barbas á hespanhola, pêras á império, etc.; tudo de primeira qualidade, por preços muito mó-mó-di... cos. E eu, então, encommendei umas barbas para cocheiro. Mandaram-m'as: Ma-a... gnificas! Mas a do Pheophilo era duas vezes mais comprida. E eu muito atrapalhado: que hei de eu fazer? Recambiar as barbas postiças, ou mandar rapar as do Pheophilo? Reflecti maduramente e resolvi em favôr das barbas postiças. 
—Prefere a arte á natureza, rico tiozinho?
—Pois está claro!... E que desgosto que elle teve quando se viu de cara rapada. Cada pêllo que lhe cortavam{45} era um dia de vida que lhe tiravam. Mas não serão horas de sair, meu caro?
—Estou ás suas ordens, tio.
—Principe, ouso esperar que só irá a casa do governador! exclamou Maria Alexandrovna, muito sobresaltada. O principe, pertence-me, faz parte da minha familia, por todo o dia. Escusado é dizer, que não tenho nada que ensinar-lhe, pelo que diz respeito a Mordassov. Talvez queira ir fazer a sua visita á Anna Nikolaievna, e não tenho direito de o dissuadir de dar semelhante passo. Tanto mais que estou persuadida de que a sua propria experiencia lhe servirá de guia. Lembre-se de que, hoje, sou sua irmã, sua mãe e sua aia por todo o dia... Ah! Estou toda a tremer por sua causa, principe!... O principe não conhece esta gente, não conhece, digo-lho eu... Não, que elle é preciso tempo para os conhecer.
—Deixe o caso por minha conta, Maria Alexandrovna, disse Mozgliakov; tudo se passará conforme lhe prometti.
—Entregar-me nas suas mãos, eu?... O senhor é um estouvado? Cá o espero para jantar, principe. Costumamos jantar cedo. Que pena que eu tenho de que, n'esta occasião, meu marido esteja no campo! Havia de gostar tanto de o ver! Estima-o tanto! Dedica-lhe tão sincera amizade!
—Seu marido?—Com que então,... tem marido?—
—Valha-me Deus! Que pessima memoria é a sua, principe? Pois esqueceu o passado a esse ponto? E meu marido, o Aphanassi Matveich, querem ver que tambem se não lembra d'elle? Está no campo, mas o principe, em tempos, viu-o, até, muita vez. Veja lá se se lembra; o Aphanassi Matveich?{46}
—Aphanassi Matveich! No campo? Ora vejam lá! Mas é delicioso! Tem então marido! Que ratice! Existe um vô... ô... de ville versando sobre o mesmo assunto: O marido á porta e a mulher na... Conceda-me licença!... já me não lembro lá muito bem... a mulher safa-se para Tula... ou para Yoroslav!... 
O marido á porta e a mulher em Tver, rico tio, sopra-lhe o Mozgliakov.
—Está c-claro, sim, é isso! Obrigado, caro amigo, exa... cta... mente... em Tver... É um encanto... um en... can... to... É assim,... é!... a mulher em Koxtroma... quero dizer... em conclusão... safou-se... Um encanto! um encanto! Mas já não sei o que é que eu ia dizendo!... Ah! sim! vamo-nos embora, hein? Até á vista! minha rica senhora! Adeus... minha linda menina!
O principe beija as pontas dos dedos á Zinaida.
—O jantar! O jantar, principe!
—Demore-se o menos que puder! brada Maria Alexandrovna deitando a correr atráz d'elle.{47}
 
—Nastassia Petrovna, não seria mau ir deitar a sua rabisáca pela cozinha, disse ella apóz de haver acompanhado o principe. Palpita-me que aquelle traste do Nikitka é capaz de se tomar da pinga e deita-nos a perder o jantar.
Obedeceu Nastassia Petrovna. Á saída, olhou para Maria Alexandrovna e percebeu que estava animadissima a digna senhora. Em vez de ir vigiar o tratante do Nikitka, Nastassia Petrovna dirige-se a uma saleta contigua, d'alli, enfiando pelo corredor, vae ao quarto, e esgueira-se para um cubiculo de despejos, atulhado de bahús, de vestidos velhos e de roupa suja de toda a familia. Nos bicos dos pés, acerca-se de uma porta fechada, sustendo a respiração, e espreita pelo buraco da fechadura: Aquella porta é uma das três que abrem para a sala (está condemnada). Maria Alexandrovna sabe que a Nastassia Petrovna é velhaca, pouco delicada, de poucos escrupulos, e muito capaz de escutar ás portas. N'este momento, comtudo, Madame Moskalieva está tão preoccupada, que se descuida de toda e qualquer cautélla.
Senta-se n'uma poltrona e despede significativa olhadela á Zina. E a Zina a sentir o pêso d'aquelle olhar. Dá-lhe um pulo o coração!
—Zina!
A Zina volta com muito vagar para a mãe o descorado semblante e aquelles olhos sonhadores.{48}
—Zina, tenho que te falar em negocio importante.
Está de pé a Zina; cruza os braços e espera. Deslisa-lhe pelo semblante expressão fugaz de despeito e de ironia.
—Quero perguntar-te qual é a tua opinião a respeito d'este tal Mozgliakov? 
—Está farta de saber a conta em que o tenho, responde a Zina com modo constrangido.
—Pois sim, filha, mas está-me parecendo que se vae tornando um tanto ou quanto impertinente, atrevido; e em conclusão, aquella sua insistencia... 
—Diz elle que me ama; se assim fôr, acho perdoavel a sua insistencia.
—Admiro-me de uma circumstancia: tu, d'antes, não o desculpavas, assim, tanto;... antes pelo contrario, eras, até, muito rispida para com elle, sempre que eu a elle me referia.
—E a mim, o que me causa admiração é outra circumstancia: A mamã, d'antes, estava sempre a defendêl-o, e é agora a propria a condemnál-o.
—Confesso que me sorria este casamento. Custava-me vêr-te assim sempre, tão triste.—Avaliava bem a tua tristeza,—pois sou capaz de a comprehender, seja qual fôr o juizo que faças a meu respeito.—Chegou até a tirar-me o somno! Em summa, estou convencida de que só uma mudança radical na tua vida te poderia salvar, e essa mudança, ha de ser o casamento. Não somos ricos, não podemos ir dar a nossa volta pelo estrangeiro. Os asnos que povoam esta cidade espantam-se de te ver ainda solteira
aos vinte e três annos e inventam fabulas a tal respeito. Mas{49} poderei eu dar-te por marido para ahi um conselheiro d'esta estupida cidade ou o Ivan Ivanovitch, nosso procurador? Haverá por aqui marido á altura dos teus merecimentos? É certo que o Mozgliakov é apenas um peralvilho, e com tudo isso, de todos elles, é ainda o mais acceitavel. É de boa familia, dôno de cincoenta mil almas: sempre valerá mais que um procurador que vive de propinas e á custa Deus sabe de que tranquibernias. E eis o motivo porque me lembrei d'elle. Tanto menos verdadeira simpathia me merecia, e tanto mais me convenço hoje de que era o Suprêmo Senhor quem me enviava semelhante desconfiança como advertencia. Pensa bem! Se porventura se offerecesse agora um partido mais vantajoso, não serias tu a propria a louvar-me de não ter até hoje dado a tua palavra a ninguem? Pois, ouso crer, Zina, que tu hoje, nada lhe terás dito de positivo.— Pois não é verdade?
—Para que servirão tantos rodeios, mamã? quando podia muito bem ter-me dito tudo isso em duas palavras, replica a Zina com modo resoluto.
—Rodeios, Zina! Serão coisas que se digam a tua mãe? Ah! Vejo que de modo nenhum te mereço confiança! Consideras-me como inimiga muito mais do que como mãe!
—Acabemos com isto, minha mãe. Parece-lhe bonito ficarmos para aqui a fazer questão de palavras? Não estaremos fartas de nos conhecermos uma á outra?
—Repara em que me estás offendendo, minha filha. Pois não vês que estou resolvida a tudo, a tudo, comtanto que tu sejas feliz?
A Zina põe-se a olhar para a mãe com aquella singularissima expressão de despeito e ironia.{50}
—Não estará morrendo por que eu case com o principe para complemento da minha ventura? pergunta a joven com extranho sorriso.
—Nem sequer te disse uma palavra a semelhante respeito, mas visto que isso veiu á teia, dir-te-hei que, se fosse possivel, representaria para ti a felicidade, effectivamente.
—Pois eu acho isso pueril, exclama a Zina toda assommada, pueril, pueril e mais que pueril! e acho, ainda, que a mamã é dotada de excessiva imaginação: é uma mulher poetica; e tanto mais que é assim que a classificam em Mordassov. Está sempre a fazer planos. Nem lhe mettem medo impossibilidades. Assim que vi o principe, tive um presentimento, de como não deixaria de lhe accudir semelhante ideia. Quando o Mozgliakov mettia o caso a ridiculo e pretendia que era urgente casál-o, li no semblante á mamã o pensamento. E d'ahi, foi para me falar n'esse jarreta que a mamã principiou por se referir ao Mozgliakov. Mas esses seus sonhos aborrecem-me de morte, não sei se sabe? E peço-lhe que fiquêmos por aqui!... Nem mais uma palavra, entendeu, mamã? Nem mais uma palavra! Peço-lhe que tome a serio isto que acaba de ouvir da minha bocca.
—És uma criança, Zina, uma criança doente, e com mau genio! responde Maria Alexandrovna em voz meliflua; e estás-me faltando ao respeito.—Offendes-me! Não ha mãe que aturasse o que eu te tenho aturado! Mas padeces, e eu acima de tudo sou christã. Vou aturando, e perdôo-te. Responde-me a uma pergunta, só e mais nada, Zina.
Vamos que eu, effectivamente, tivesse sonhado semelhante{51} alliança, onde é que está a puerilidade?—Quanto a mim, nunca o Mozgliakov falou com tanto acerto como ainda agora, quando tentava demonstrar que o casamento é uma necessidade para o principe. O disparate era o ter-se lembrado d'aquella fufia da Nastassia.
—Mamã, declare-me com franqueza, se me está dizendo isso por méra curiosidade ou com um fim qualquer.
—Peço-te que me respondas: onde vês tu n'isto puerilidade?
—Que aborrecimento! Triste sorte é a minha! exclama a Zina a bater o pé. Vou dizerlh'o, se é que ainda o não percebeu: aproveitar o ensejo d'esse velho se achar caído em demencia para o enganar, para o desposar, assim, enfermo e caduco, para lhe extorquir o dinheiro e andar todo o santo dia a desejar-lhe a morte, representa, a meu vêr, não só uma puerilidade, mas uma vilania, e não serei eu quem lhe dê os parabens por semelhante ideia, mamã.
Silencio.
—Zina, já te esqueceste d'aquillo que se passou ha dois annos? pergunta de chofre Maria Alexandrovna.
Estremece a Zina.
—Mamã, profere com accentuada seriedade, lembre-se de que me prometteu não me tornar a falar em semelhante coisa.
—Pois bem, minha filha—que eu até hoje ainda não tornei a dizer-te uma palavra— peço-te que por uma vez tão somente me desligues da minha promessa. Zina! Soou a hora de uma franca explicação. Foram mortaes estes dois annos de silencio! Isto assim não pode continuar!... Estou prompta a supplicar-te de joelhos que me permittas{52} falar. Entendes, Zina, é a tua propria mãe que cae de joelhos a teus pés! E demais—doute a minha palavra solemne—a palavra de uma mãe desgraçada que adora a propria filha—seja qual for o pretexto, em circumstancia alguma d'este mundo, com risco até da propria vida, de nunca mais abrir a bocca a tal respeito.
—Fale! diz Zina, muito enfiada.
Maria Alexandrovna calculou optimamente o lance.
—Obrigada, Zina. Ha dois annos, pois, que frequentava esta casa, por causa do teu irmãozinho, do Mitra, que Deus tem, um utchitel.
—Mas para que foi que a mamã assumiu esses modos tão solemnes, para que estará a desperdiçar toda essa eloquencia, esses pormenores tão escusados e penosos que ambas estamos fartas de conhecer? interrompeu a Zina com enfado. 
—Porque a mim, que sou tua mãe, Zina, me assiste o dever de me justificar a teus olhos. E demais, quero apresentar-te este negocio, todo elle, sob uma luz nova para ti e que é a unica verdadeira. Emfim, sem estas promessas, não poderias comprehender a conclusão
que d'ellas pretendo deduzir. Não creias, minha filha, que intento fazer pouco dos teus sentimentos. Não Zina, has de encontrar em mim uma verdadeira mãe, e quem sabe se não serás tu a propria a cair-me aos pés, lavada em lagrimas, a supplicar-me que conclua essa reconciliação á qual o teu orgulho se nega ha tanto tempo. Tenho pois que recapitular as coisas desde o principio, ou calar-me.
—Fale, repetiu a Zina, a maldizer de todo o coração a grandiloquencia maternal.{53}
—Continúo, Zina. Esse tal utchitel da escóla communal, um fedêlho, por assim dizer, produziu em ti inconcebivel impressão. Contei sempre com que o teu sizo, a elevação dos teus sentimentos e tambem a indignidade do individuo, (visto que é preciso dizer tudo) evitariam qualquer approximação entre tu e elle. E de repente, vens ter commigo e declarar-me com firmeza que tens tenção de casar com elle. Foi uma punhalada que me déste no coração, Zina! Soltei um grito e caí sem sentidos, mas... não deixarás de te lembrar do incidente. É certo que julguei necessario empregar n'aquella occorrencia toda a minha auctoridade: e por signal que a acoimaste de tyrannia. Reflécte, pois: um garotête, filho d'um diatchok,[4] com um salario de doze rublos mensaes, um escrevinhador de máus versos que lhe imprimem por dó na Bibliothéca de Leitura, que não sabe falar em outra coisa a não ser n'esse maldito Shakspeare,—aquelle fedêlho, teu marido! marido da Zinaida Moskalieva! São coisas que só acontecem nas novéllas pastorís de Florian. Perdão, Zina, mas quando me lembro de tal, saio fóra de mim! Neguei-me a consentir. Não houve influencia que conseguisse convencer-te. Teu pae, naturalmente, manteve-se na neutralidade, incapaz de comprehender-me quando tentei expor-lhe o caso e sem saber fazer outra coisa além de pestanejar. Mantens relações com esse garoto, proporcionas-lhe até ensejo de te ver, e o que é ainda muito peor que tudo isso, tens o arrojo de lhe escrever! E as más linguas desde logo a trabalhar! Fazem{54} allusões offensivas na minha presença. Estão a pular de contentes, a embocar as mil trombetas da calumnia. As minhas antecipações a semelhante respeito vão se realizando uma por uma. Dá-se entre ti e elle um desaguizado e elle manifesta-se indigno de ti. Ameaça-te de mostrar as tuas cartas, e tu, num assômo de justa indignação, dás-lhe uma bofetada!... Sim, Zina, conheço tambem essa circumstancia, estou inteirada de tudo—de tudo, sim! Esse traste, n'esse mesmo dia, mostra uma das tuas cartas áquelle miseravel do Zanchine, e, d'alli a uma hora a carta está em poder da Natalia Dmitrievna, minha inimiga figadal! Á noite, aquelle, doido, arrependido já de semelhante acção inqualificavel, por toleima tenta envenenar-se! N'uma palavra, um escandalo medonho! Aquella pécora da Nastassia accode toda assustada, a participar-me que ha uma hora que a Natalia Dmitrievna se acha de posse da tua carta: não se passarão duas horas, sem que a cidade em pêso apregôe para ahi a tua vergonha. E eu a esticar os nervos para não caír para ali inanimada. Que lance, Zina! Aquella descarada, aquella desavergonhada!
A Nastassia exige duzentos rublos para inutilizar a carta. Eu propria, deito a correr, com os sapatos de trazer por casa, até, atravéz da neve, para ir a casa do judeu Bumschtein empenhar o meu abrochador, recordação da minha virtuosa mãe! D'alli a duas horas tinha a carta em meu poder: roubou-a a Nastassia: arrombou uma boceta e está salva a tua honra. Nem vestigios, sequer! Mas que dia de angustias! Logo ao outro dia, encontrei entre os meus cabellos immensos fios brancos,—os primeiros, Zina! Tu foste a propria a avaliar até que ponto era indigno de ti{55} aquelle garoto, pois concordas agora, não sem amargura, talvez, que teria sido uma loucura entregar-lhe o teu destino. Depois, comtudo, pégas a atormentar-te, a soffrer, não podes varrêl-o da lembrança,— não a elle,—foi sempre coisa tão rasteira que a tua vista nem sequer podia deter-se n'elle,—mas ao teu primeiro sonho de amor. Hoje, esse desgraçado está a expirar—nem sequer já se levanta.—Dizem que morre tisico, e tu—anjo de bondade,—não queres casar emquanto elle fôr vivo; para lhe poupar soffrimento, visto que é ciumento... e não obstante, nunca te teve amor, tenho a certeza, amor sincero, elevado! O que o não impede de espionar os passos do Mozgliakov, de te rondar a casa, de tirar indagações...—Tens dó delle, minha filha, adivinhou-te o meu coração, e Deus sabe as lagrimas amargas que me tem encharcado o travesseiro.
—Veja se acaba com tudo isso, mamã! atalhou Zina com enfado. O seu travesseiro não vem cá fazer coisa nenhuma! Não poderá falar com singeleza?
—Não me acreditas, Zina! Não me trates tão mal, minha filha! Já lá vão dois annos, e não faço outra coisa senão chorar, mas tenho-te encoberto as minhas lagrimas, Zina, durante esses dois annos mortaes!... Ha muito tempo que conheço os teus sentimentos. Medi todo o alcance da tua magua. Poderá alguem lançar-me em rosto, minha querida, o haver considerado semelhante ligação como uma phantasia romanesca, nascida sob a influencia do tal maldito Shakspeare? Qual seria a mãe que condemnasse os alvitres de que tenho lançado mão e achasse rigoroso em demasia o modo por que avalio este caso? E comtudo, a mim propria represento o teu longo padecer, comprehendo{56} e apprecio a tua sensibilidade. Acredita: comprehendo-te melhor, talvez, do que te comprehendes a ti propria. Estou certa de que o não amas, a esse garoto ridiculo: a quem tu amas é ao teu sonho, á tua ventura mallograda, ao esvair das tuas illusões. Eu tambem amei, não cuides que não, e com mais excesso de paixão do que tu; tambem eu padeci; tinha tambem as minhas illusões!... Não falo pois sem experiencia, e se affirmo que uma alliança com o principe representaria para mim a salvação, mereço talvez que me dêem ouvidos.
A Zina ouviu com espanto aquella estirada declaração, farta de saber que a mamã nunca assume aquelle tom pathetico sem designio occulto. E comtudo, a conclusão deixa confundida a joven.
—É pois a sério, que fala em casar-me com o principe? exclama pasmada a considerar a mãe que assumiu attitude majestatica; não é então uma hypothese, como se dissessemos? É tenção firme e assente, pelo que vejo? Mas... como é que poderia salvarme semelhante casamento? E... e... que relação terá tudo isso com o que acaba de expôrme, com essa historia toda?... Declaro que a não percebo, mamã.
—E a mim, meu anjo, espanta-me que o não percebas! exclama Maria Alexandrovna, com subita animação. Primeiramente, o facto só por si de teres de transferir-te para outra sociedade, para um mundo differente; de teres de dizer adeus de uma vez para sempre a esta nojenta cidade das duzias, semeada para ti de tão temiveis recordações, á qual te não prende a minima affeição, onde te assacaram calumnias, onde essa sucia de pêgas te detestam por{57} causa da tua formosura, esse facto só por si, repito, é já capital. E depois, podes, ainda esta primavera, ir para o estrangeiro, para a Italia, para a Suissa, para a Hespanha,—Zina—para a Hespanha, onde irás ver a Alhambra, o Guadalquivir! Não estarás farta d'este immundo riacho de Mordassov, com aquelle seu nome inconveniente?
—Mas se me dá licença, mamã! está falando como se eu já estivesse casada, ou pelo menos como se o principe me tivesse já pedido em casamento... 
—Lá quanto a isso não te dê cuidado, meu anjo, sei o que estou dizendo. Deixa-me continuar. Eu disse primeiramente, e ahi vae o segundo ponto: Comprehendo, minha filha, quanto te contraría o dares a mão de esposa a este Mozgliakov... 
—Sei muito bem, nem preciso de que m'o digam—que nunca serei sua mulher! interrompeu Zina com arrebatamento.
—Se tu soubesses, meu amor, como eu avalio essa repugnancia! É terrivel o ter que jurar perante o altar de Deus amor e fidelidade áquelle a quem se não pode ter amor! É terrivel o pertencer a um homem a quem se não pode respeitar. E todavia, exigir-te-hia amor; foi para te possuir que elle casou comtigo: isso adivinha-se nos olhos que elle te deita quando não olhas para elle. Mas como simular perpetuamente amor? Ah! minha filha, aqui estou eu que ando a padecer ha vinte e cinco annos com esta comedia necessaria. Teu pae deitou-me a perder. Posso afirmar, até, que envenenou de todo a minha mocidade, e quantas vezes não terás visto correr as minhas lagrimas?{58}
—O papá está no campo; não esteja a atacál-o, por quem é!
—Sim, tu saes sempre em sua defêsa, bem o sei... Ah! Zina! Confrangia-se-me o coração quando a prudencia me obrigava a desejar o teu casamento com o Mozgliakov! Com respeito ao principe, com esse não tinhas tu necessidade de representar nenhuma comedia. Escusado é dizer que lhe não poderás dedicar o que se chama amor. E demais, elle proprio é incapaz de exigir semelhante amor.
—Que disparate, meu Deus! E eu affirmo-lhe que se engana de meio a meio: não tenciono sacrificar-me,—ignoro aliás o fim com que o faria. Fique sabendo que não quero casar. Não casarei seja com quem fôr; ficarei solteira. Tem-se farto de me atormentar ha dois annos para cá, por causa de eu ter rejeitado quantos noivos me tem apparecido, mas não tem remedio senão conformar-se; não quero, já disse!
—Zinotchka, não te alteres, pelo amor de Deus, sem me ouvires, meu amorzinho! Que cabeça tão esturrada! Consente em que eu te exponha o caso em conformidade com o meu modo de ver, e verás que has de vir a concordar commigo. O principe poderá ainda viver um anno, dois, talvez, mas não vae além, com certeza. Ora, mais vale ser viuva e nova do que velha solteirona, isto sem falarmos em que depois de elle fechar o olho ficas sendo princêsa, rica e livre. Minha querida, desprezas talvez estes meus calculos baseados na morte de um homem, mas sou mãe, e quem haverá ahi que condemne a minha previdencia? Em conclusão, se tu, anjo de bondade, ainda tens pena d'esse tal garoto, se tu, conforme eu suspeito, não queres casar emquanto{59} elle fôr vivo, considera que, se casares com o principe, vaes resuscitar aquelle a quem amas! Se é que a elle lhe restam ainda uns vislumbres de bom senso, comprehenderá, manifestamente, que o ter ciumes a respeito do principe, seria coisa fora de proposito, ridiculo. Comprehenderá que não casas com este velho a não ser por interesse, por necessidade. N'uma palavra, comprehenderá... quero dizer—depois de fallecido o principe, já se vê,—que poderás casar segunda vez, se fôr da tua vontade... 
—Casar com o principe, expoliá-lo, e estar á espera de que elle morra para depois ir casar com o meu amante, não é assim? É muito habil; quer seduzir-me propondo-me... Percebo-a á legua, minha mãe, percebo-a optimamente. Só o lembrar-me eu de que não pode deixar de fazer alarde de nobres sentimentos, até, n'um negocio tão pouco limpo? Seria muito mais estimavel o dizer-me, singelamente: "É uma ignominia, Zina, mas é lucrativa; e portanto, acceita." Sequer ao menos era mais franco.
—Mas que teimosia será essa tua em encarar o negocio no ponto de vista da trapaça, da arteirice, da cobiça? Consideras os meus calculos como uma soez hypocrisia; mas, em nome de quanto venéras como mais sagrado, onde estará a baixeza, onde a hypocrisia? Vê-te bem n'aquelle espelho: és formosa o sufficiente para conquistares com esses teus olhos, sem mais nada, um reino! E tu, tão formosa, sacrificas a um velho os teus melhores annos; tu, estrella magnifica, vaes embellezar-lhe o occaso da vida; tal qual a hera viçosa, florir na sua velhice! Está afeito á companhia de uma feiticeira que o sequestra lá n'um canto do mundo, e d'essa feiticeira, és tu, tu, Zina, quem vaes ser successora!{60} O dinheiro e o titulo d'elle podem lá equiparar-se ao teu valor? Onde vês pois n'isto a baixeza, a hypocrisia?
Nem sabes o que estou dizendo, Zina!
—O dinheiro e o titulo d'elle valem mais do que eu, visto que para os alcançar, teria que resignar-me a casar com um enfermo. Dêmos ás coisas os seus nomes: é uma ignobil hypocrisia, mamã!
—Pelo contrario, minha querida, pelo contrario! O caso pode até ser encarado de um ponto de vista superior, christão. Declaraste-me, um dia, em um assômo de enthusiasmo, que querias ser irmã da caridade: o teu coração exaltara-se de amor ao pensares nos humanos soffrimentos, outro qualquer amor parecia-te tibio e mesquinho. Pois bem! Se ainda queres acreditar no amor, acredita na dedicação, com sinceridade, tal qual uma creança, com candura. Dedica-te, e abençoar-te-ha Deus! Tem padecido este velho; é desditoso, perseguem-n'o. Conheço-o ha muitos annos e sempre lhe dediquei incomprehensivel simpathia, carinho, por assim dizer: presentia o futuro. Sê sua amiga, minha filha, seu brinquedo, até, se é forçoso dizêl-o, mas aquenta-lhe o coração e fál-o por amor de Deus! Admittamos que é ridiculo? Elle nem sequer d'isso tem consciencia. Não chega a ser a metade de um homem. Tem dó d'elle, tu, que és christã. Contrafaze-te; com força de vontade consegue-se domar a alma para semelhantes façanhas. Quanto não custa o pensar as chagas nos hospitaes, com que repugnancia se não respira o ar viciado dos lazaretos: mas não ha anjos que desempenham sem asco essas repugnantissimas taréfas e que ainda dão graças a Deus pela triste sorte que lhes coube? E ahi está o remedio de que{61} tanto necessitava o teu magoado coração: uma tarefa heroica! Onde vês tu n'isto egoismo? Baixeza? Não me acreditas, suppões que estou representando uma comedia, não podes comprehender que uma mulher mundana, n'este meio de viver leviano, possa ter uns sentimentos de tanta elevação? Pois bem, não me acredites, minha filha! Desconfia do coração de tua mãe! mas sequer ao menos concorda em que as minhas palavras são sensatas e salutares. Esquece que sou eu quem te estou falando, fecha os olhos, volta-me as costas e põe na tua ideia que é uma voz misteriosa que estás ouvindo... O que acima de tudo te prende, é a questão de dinheiro, essa apparencia de compra e venda. Pois bem, rejeita o dinheiro visto que lhe tens tamanha aversão, acceita apenas o necessario, e o resto, dá-o aos  pobres. Por exemplo, estende o teu braço áquelle desgraçado que está ás portas da morte.
—Elle nunca acceitaria, disse a Zina, baixinho, como se estivera falando comsigo.
—Dado o caso de que elle rejeite, lá está a mãe para o acceitar em nome d'elle, responde Maria Alexandrovna sentindo que conseguiu acertar-lhe com a corda sensivel. Acceitará sem que elle proprio o saiba. Já vendeste os teus brincos (presente de tua tia) para lhe accudir, ha seis meses, que eu bem o sei, e tambem sei que a mãe, a pobre da velha, anda a lavar roupa para sustentar o filho.
—Dentro em pouco deixará de precisar seja do que fôr.
—Comprehendo-te! apanha de relance Maria Alexandrovna, (accode-lhe uma inspiração, uma verdadeira inspiração.) Dizem que morre tisico: mas quem é que o affirma? Indaguei a seu respeito, ha dias, do Kalist-Stanislavitch... {62} Pois sou a primeira a interessar-me pelo pobre rapaz, tambem tenho coração, Zina! E o KalistStanislavitch respondeu-me que a doença é grave, não ha duvida, mas que, até hoje, existe apenas uma forte affecção dos bronchios,—tu mesmo lh'o podes perguntar. E accrescentou que a mudança de clima, impressões fortes, podiam curar o doente. Contou-me elle que, em Hespanha—e já não é a primeira vez que o oiço... li-o, até—ha uma ilha extraordinaria, Malaga, creio eu... emfim, um nome que lembra o de um qualquer vinho—onde não só os que padecem do peito, mas até os proprios tisicos saram de todo, graças ao clima. Vão ali tratar-se fidalgos, e commerciantes ricos. Que elle, effectivamente, a Alhambra—esse palacio encantado—as murtas e os limoeiros, os hespanhoes a cavallo nas mulas, não será o sufficiente a produzir impressão n'uma natureza de poeta? Suppões que rejeitaria o teu dinheiro?... Enganas-te se tens dó d'elle! A mentira é perdoavel, quando d'ella depende a vida. Alimenta-lhe a esperança, promette-lhe o teu amor, dize-lhe que casarás com elle quando enviuvares,—tudo se pode dizer com nobreza: tua mãe não era capaz de te dar maus conselhos, Zina!—Has de fazer tudo isso para o salvar e o bastante para te justificares. Recuperará alento assim que souber que está esperando por ti. Tratar-se-ha, seguirá rigorosamente as recommendações do medico, ha de querer resuscitar para a ventura. Se elle se curar, ainda quando não viesses a ser sua mulher, sequer ao menos têl-o-has salvo! e se a desventura o tiver mudado, se o houver tornado digno de ti, casarás com elle. Effectuada a cura, poderás alcançar-lhe uma situação na sociedade, facultar-lhe{63} uma carreira. O teu casamento, n'estas condições, tornar-se-ha possivel. Hoje!... que é que os espera a ambos, se porfiassem em perpetrar o acto de loucura de casarem. O desprezo de toda a gente e a miseria.
Pensas acaso que a leitura entre ambos do seu Shakspeare lhes havia de compensar tudo isso? Ficariam a vegetar aqui em Mordassov até que elle morresse, o que não tardaria, aliás. Mas se está na tua mão o incutir-lhe gosto pelo trabalho e pela virtude!
Perdoa-lhe e adorar-te-ha. O remorso d'aquelle seu acto vergonhoso apavóra-o! O teu perdão tudo irá ápagar e reconciliál-o-ha comsigo mesmo.
Passa ao serviço activo, sobe postos, e se morrer, sequer ao menos morrerá feliz, nos teus braços (visto que poderás achar-te a seu lado), seguro do teu amor, do teu perdão, á sombra das murtas e dos limoeiros, debaixo da cupula azul de um ceu exotico. Ah! Zina! Tudo isto se acha nas tuas mãos; basta que consintas em casar com o principe.
Cala-se Maria Alexandrovna. Segue-se prolongado silencio. A Zina acha-se no auge da afflicção.
Não nos abalançaremos a descrever os seus sentimentos: não os conhecemos. Mas, a julgar pelas apparencias, Maria Alexandrovna encontrou o verdadeiro caminho para o coração da filha. Não ha duvida de que a excellente mãe andou um tanto ás apalpadélas, até que por fim conseguiu pôr o dedo na ferida, principiou por maguar sem precaução os pontos mais sensiveis das feridas ainda abertas, a despeito de um desenvolvimento por ahi além de sentimentos.{64}
Agora, comtudo, logrou introduzir na mente da Zina o pensamento que a si lhe convinha: produzindo-se o effeito, alcançou-se o fim desejado. A Zina escuta com soffreguidão, com as faces afogueadas, o seio a arfar.
—Ora escute, mamã,... diz por fim, resoluta, comquanto a subita pallidez manifeste claramente quanto lhe custa semelhante resolução.
—Escute, mamã... 
N'este ensejo, comtudo, resôa no vestibulo um ruido: uma voz aguda a chamar por Maria Alexandrovna.
Maria Alexandrovna levanta-se com vivacidade.
—Ah! meu Deus! demonios levem aquella pêga! É a coronela! E eu que quasi que a despedi, ha quinze dias! accrescenta, desesperada... 
Mas é impossivel recebêl-a agora! De todo impossivel! E comtudo isso... quem me diz que me não virá trazer noticias... aliás, nunca se atreveria. É caso sério, Zina, é-me indispensavel sabêl-o, nada se póde desprezar... 
—Como lhe fico grata por esta sua visita... quanto estimo!... exclama correndo ao encontro da coronela. A que feliz acaso serei eu devedora de se ter lembrado de mim, minha preciosa Sofia Petrovna? Encantadora surpreza!
A Zina deitou a fugir.{65}
 
A coronela Sofia Petrovna Farpukhina apenas suggere moralmente o tipo da pêga. Quanto ao phisico, participa antes do pardal. É uma mulherita cincoentona com sardas entre ruivas e amareladas pela cara e uns olhos que nunca param. O corpo ético, implantado sobre umas sólidas pernas de pardal, esconde-se por debaixo das amplas pregas d'um vestido escuro, de seda, em continuo restralar, visto como a coronela nunca póde estar quiéta. É uma linguareira ruim e vingativa, perde o tino com a seguinte ideia:
"Sou coronela." Ella e o marido, coronel reformado, jogavam a unhada a toda a hora: elle ostentava no rosto os signaes das garras da consorte. Ella, préga no bucho com quatro copinhos de vodka, todas as manhãs, e outros tantos ao deitar. Vota um odio figadal a Anna Nikolaievna Antipova e á Natalia Dmitrievna Padknvina, que a sacudiram das suas salas, ha oito dias.
—Demoro-me apenas um instantinho, meu anjo, pia a dama; nem sequer me quero sentar. Traz-me aqui unicamente o desejo de lhe contar os singularissimos acontecimentos que se estão dando. O tal principe faz andar n'uma roda viva esta nossa Mordassov. Os nossos espertalhões—comprehende—não lhe largam o rastro, a farejál-o por todos os cantos, a puxál-o para todos os lados, obrigam-n'o a beber champanhe. Eu se o não visse não o acreditava.{66} Como é que o deixou saír? Não sei se sabe que, n'este instante, está em casa da Natalia Dmitrievna?
—Em casa de Natalia Dmitrievna? exclama Maria Alexandrovna dando um pulo na cadeira. Mas se elle ia apenas fazer a sua visita ao governador e a casa de Anna Nikolaievna, e sem tenção de se demorar.
—Para se não demorar, isso sim! E agora, corra atrás d'elle!
Não encontrou em casa o governador, foi visitar a Anna Nikolaievna, e prometteu-lhe jantar com ella, e a Natachka[5], bem sabe, que nunca sáe de casa, lá estava pespegada; carregou com elle para almoçar. E ahi tem o seu principe!
—Que me diz! E o Mozgliakov a prometter-me... 
—Pois sim! O tal seu Mozgliakov a quem a senhora não se farta de pôr nas nuvens!... Está em casa delles! Olho n'elle! Veja lá se o obrigam a jogar as cartas e principia para ahi a perder como succedeu o anno passado. E o principe é capaz de se deixar limpar que nem um prato. E que calumnias que ella inventa, aquella Natachka! A atordoar os ouvidos a toda a gente com a galga de como a senhora faz a côrte ao principe com o sentido em... com um certo sentido, não sei se m'entende? E pespega-lh'o a elle na cara, até; e elle sem perceber patavina, sentado para ali como um gato encharcado e a responder, a cada palavra: "Ah! Está claro, está claro!" E sabidas as contas é ella a propria que... Mandou saír a Sonka[6]. Ora imagine! Com{67} quinze annos e anda ainda de vestido curto que mal lhe chega ao joelho; tambem mandou vir aquella orfã, a Machka,[7] com um vestido ainda mais curto. Impingiram a ambas uns casquêtesinhos encarnados cheios de plumas, não sei para quê, e ao som do piano põem-se a dansar, aquelles dois espinafres, deante do principe, a Kozatchok.[8] Ora a minha amiga está farta de conhecer o fraco ao principe! A babar-se todo: "Que... e... fó... órmas!" diz elle "... Que... e... fó... ó... órmas!" E a mirál-as pelo monóculo, e ellas com uns módinhos, as duas perúas! Todas afogueadas á força de levantarem a perna! E toda a gente a rir, faça ideia como e porquê!... Que nojo! E chamam áquillo dansar! Aqui estou eu que dansei de chale, quando saí do collegio aristocratico de Madame Jarmé: fiz sensação, acredite... pela nobreza!
Fartaram-se até de dar palmas uns senadores. Estavam a educar nesse mesmo collegio filhas de principes e de condes.—Mas a tal Kozatchok, aqui para nós, é tal qual o Cancan! E eu com a cara a arder, de envergonhada! Não me pude conter... 
—Mas, então... tambem estava em casa da Natalia Dmitrievna? A senhora? Cuidei que... 
—Então que quer! Ella offendeu-me, a semana passada, e não me ensaiei para o pespegar a toda a gente. Mas que quer, minha amiguinha, se eu estava morta por ver o principe, ainda que fosse por uma greta da porta, e ahi tem por que é que lá fui, apezar de tudo, a casa da Natalia Dmitrievna;{68} a não ser o principe, não era eu que lá tornava a pôr os pés! Ora imagine; servem chocolate a toda a gente, e a mim, nem raça, nem sequer abrem a bocca para me pedir desculpa! Ha de ter noticias minhas! Mas adeus, meu anjo, vou-me embora, estou com muita pressa... é-me indispensavel encontrar em casa a Apulina Panfilovna para lhe contar o caso. Ah! Pode-se desde já considerar viuva da lindeza do tal principe, não é elle que volta para sua casa. Está perdido da memoria, bem sabe, e a Anna Nikolaievna terá cuidado em o não deixar saír.
Estão com medo de que a minha amiga... todas ellas... não sei se percebe? a proposito da Zina... 
—Que horror!
—É como lhe digo; já corre até por essa cidade. A Anna Nikolaievna não o deixa saír sem jantar e depois não o larga. Os planos d'ella são todos elles armados contra a senhora, meu anjo! Fui deitando o olho para o pateo: que reboliço! Prepararam um jantar com trinta entradas, mandaram vir champanhe. Quer um conselho? Veja se trata de lhe deitar a mão antes de que elle vá a casa d'ella. Não, que elle, pertence-lhe, é seu hospede! Não se deixe engazupar por aquella espertalhona, por aquella ranhosa! Não vale a sola de um sapato, lá com ser mulher de um procurador. E eu, aqui onde me vê, sou coronela, fui educada no collegio aristocratico de Madame Jarmé... Forte nojo! Adeus, meu anjinho, tenho o trenó á espera, se não fosse isso, fazia-lhe companhia.
E abalou a gazeta viva.
Maria Alexandrovna, desesperada, toda ella n'um tremor. Não padece duvida que o conselho da coronela é seguro e{69} pratico; não ha tempo para perder, mas subsiste ainda a grande difficuldade.
Maria Alexandrovna investe para o quarto da Zina. A Zina andava ás voltas pela casa, de mãos no peito, muito enfiada, cabisbaixa, no auge da afflicção. Borbotavam-lhe nos olhos as lagrimas. Fulge-lhe porém no semblante uma expressão de decisão, assim que põe os olhos na mãe. Engole as lagrimas e refega-lhe os labios um risinho sarcastico.
—Mamã, diz ella, antecipando-se a Maria Alexandrovna, desperdiçou thesouros de eloquencia em minha honra, de mais, até, visto que me não conseguiu cegar a vista, e eu não ser nenhuma creança. Querer persuadir-me de que, eu, casando com o principe, ia praticar um acto de irmã de caridade,—profissão para que não sinto a minima vocação,—justificar mediante um nobre fim baixezas egoistas, tudo isso representa apenas o mais grosseiro egoismo, entendeu?
—Porém, meu anjo... 
—Cale-se, mamã, tenha paciencia, e oiça-me até ao fim. Saiba, pois, que tenho a consciencia da sua hypocrisia. Estou pois plenamente convencida de que o verdadeiro fim de tudo isto é vil; e comtudo, acceito a sua proposta, completamente, mas completamente, entendeu? Estou prompta a casar com o tal principe, prompta a ajudar os seus esforços no sentido de o convencer a casar commigo. O motivo d'esta minha resolução, não é da conta da mamã, baste-lhe saber que me prontifico a tudo: ajudál-ohei a enfiar as botas, serei sua creada, hei de dansar para que elle se não arrependa de ter casado commigo. Mas, em troca, peço-lhe{70} que me diga, o modo por que pretende alcançar semelhante resultado. Não ponho em duvida, visto que se empenha n'este negocio, o facto da mamã ter já urdido o seu plano. Transmita-m'o, seja franca uma vez na sua vida, eis as minhas condições.
Maria Alexandrovna ficou tão embatucada, que emudeceu sem bulir com um dedo, com os olhos espipados. Contara com a lucta contra as ideias romanescas da filha, e ficou estupefacta ao vêl-a decidida a agir contra as proprias convicções. O negocio toma verdadeira consistencia. Maria Alexandrovna, lá por dentro, não cabe em si de contente.
—Zinotchka! exclama enthusiasmada, és a carne da minha carne e o osso dos meus óssos!
Nem uma palavra mais pode accrescentar, lança-se nos braços da filha.
—Ah! meu Deus! Dispense-me dos seus abraços, mamã! respondeu, enfadada, a Zina. É absolutamente deslocado esse seu enthusiasmo. Exijo uma resposta á minha pergunta, e nada mais!
—Mas, Zina, eu amo-te, adoro-te, e tu a repelires-me! É para te ver feliz que eu ando a trabalhar. E, dos olhos de Maria Alexandrovna borbotavam lagrimas sincéras. Effectivamente, ama a seu modo a Zina, e d'ahi, a commoção do triumpho torna-a tão sentimental como qualquer baba,[9] áquelle general de saias. A Zina sente bem, a despeito de tudo, que a mãe é sua amiga; mas pésa-lhe semelhante amor, preferir-lhehia o odio.{71}
—Pois bem! Não se zangue, mamã; sei muito bem o que vou fazer, se eu estou tão afflicta!... disse para tranquillizál-a.
—Eu não me zango, não me zango, meu anjinho, cacarêja Maria Alexandrovna recuperando animo. Não deixo de avaliar a tua agitação. Mas não vês tu, querida amiguinha... tu pediste-me franqueza... Seja assim, serei franca, mas acredita-me. Lá quanto a um plano inteiramente definido, é coisa que ainda não tenho, nem o posso ter: tudo depende das circumstancias. Antevejo até algumas difficuldades.
... Se aquella pêga, aindagora, esteve-me para ahi a grasnar um chorrilho de pessimas noticias. (Ah! meu Deus! não tenho tempo para perder!) Serei pois franca: juro-te que hei de conseguir o meu fim. Não vás acreditar n'uma miragem qualquer, n'uma illusão; o meu plano assenta todo elle na toleima do principe, e representa isso uma talagarça em que se pode bordar tudo que se quiser. O mais importante é que nos deixem operar. E demais, essas fufias nada podem contra mim! exclama Maria Alexandrovna assentando um murro na mêsa. Tem confiança, mas cumpre operar depressa! Hoje ainda façamos o principal, se for possivel.
—Está bem, mamã; escute ainda... uma franqueza. Sabe o motivo porque tanto me interessa esse seu plano? É porque não estou segura de mim propria. Disse-lhe que me achava decidida a praticar semelhante baixeza. Mas se os pormenores d'esse seu plano forem repugnantes em demasia, desde já lhe declaro que me verei obrigada a desistir. Sei que será mais uma baixeza, o resignar-me a entrar{72} no lodaçal e não ter animo de lá ficar. Mas que se lhe ha de fazer? Se não pode deixar de ser assim!
—Mas, Zina, meu anjo, onde é que tu vês n'isto baixeza? replica, timida, Maria Alexandrovna. Trata-se de um bom casamento, de uma coisa normal; encara as coisas d'este ponto de vista e verás que te ha de parecer muitissimo razoavel.
—Ah! mamã, pelo amor de Deus, nada de dissimulações para commigo! Estou prompta para tudo, bem vê; que mais quer? Não se escandalize, peço-lh'o eu, por eu dar ás coisas o nome que lhes compete: será, talvez, actualmente, essa a minha unica consolação.
E sorriu com tristeza.
—Ora vamos! Vamos! Está bom, meu anjinho; pode haver estima reciproca sem identidade de convicções. Quanto ao meu plano, tem a certeza em como te não irá salpicar de lama, isso te juro eu! Quererás talvez comprometter-me? Tudo ha de correr bem, com muita dignidade, até. Não ha de haver escandalo. E ainda quando o houvesse, n'esse caso, d'este ou d'aquelle modo... já nós estariamos d'aqui muito longe... diziamos adeus a Mordassov. E depois, essas gralhas que piassem para ahi até rebentar, já nos não fazia mossa. Merecem que façamos caso d'ellas, porventura? E como é que tu, Zina, tão soberba, podes arrecear-te de semelhante gente?
—Ah! mamã, a mim não me mettem medo, acredite! Não me entende! respondeu a Zina, irritadissima.
—Está bom, está bom, minha joia, não te zangues! Onde eu queria chegar era a que essa gentalha praticam vilanias a cada instante, e que tu... por uma só vez... Mas,{73} que digo eu... sempre sou muita tola! Trata-se até de uma nobre acção! Depende tudo do ponto de vista... 
—Basta, mamã, basta! exclama a Zina.
E bate o pé.
Deixa lá! meu anjo, não torno mais!
Silencio. Maria Alexandrovna fica a olhar pelas costas para a Zina, que seguiu por a casa fora com uma expressão de cachorro a olhar para a chibata. 
—Nem sequer chego a perceber como é que tenciona dar-lhe volta, prosegue com enfado a Zina. Tenho a certeza de que o resultado que tirará será uma affronta. Pela parte que me toca, tanto se me dá, mas vae ter desgosto, creia. 
—Ora! Se é só isso que te dá cuidado, vae descançada, meu anjo!
Comtanto que estejamos de accordo, quanto ao mais, pouco importa! Se tu soubesses os transes de que eu tenho escapado, sã e a salvo! Em summa, permitte-me fazer uma tentativa. É urgente que eu tenha quanto antes uma conferencia com o principe. Já estou adivinhando o que d'aqui sairá. De quem eu tenho medo é do tal Mozgliakov.
—Do Mozgliakov? perguntou a Zina com desdem.
—Do Mozgliakov, sim, pois que cuidas? Mas não te assustes, ainda assim, Zina, hei-de induzil-o a auxiliar-me, até. Nem tu sabes ainda quem aqui está, Zina! Ah! tão certa tenha eu a salvação, mas assim que ouvi falar no principe, accudiu-me logo semelhante ideia! Foi uma revelação. Quem havia de dizer que elle havia de vir parar a nossa casa! Bem podiamos estar cem annos á espera d'uma occasião d'estas! Ah! és tão linda, minha Zina! Que{74} belleza! Olha, eu, se fosse homem, atirar-te-hia aos pés um reino! Sucia de asnos! Quem não ha de estar morrendo por beijar esta mãozinha? (Maria Alexandrovna, effusiva, beija a mão da filha.) É a carne da minha carne!... É preciso casál-o dê por onde der, áquelle imbecil! E que bem viveriamos depois, Zina! Pois nunca nos havemos de apartar, não é verdade? Não pões na rua tua mãe, quando te vires feliz? Tivemos os nossos desaguizados, mas aonde irás tu encontrar outra amiga como eu? Eu, apezar de tudo... 
—Mamã, se está resolvida, é tempo de fazer alguma coisa. Está perdendo minutos preciosos! disse a Zina, com impaciencia.
—E já vae apertando. Vae, sim, effectivamente. E eu aqui a dar á lingua! Querem açambarcar o principe! Vou já a correr. É já; mando chamar o Mozgliakov e carrégo com o principe, á força, se fôr preciso. Adeus, Zinotchka! Adeus, meu amor, minha pomba! Não te desconsoles, não desanimes, não estejas triste. Então!... Tudo ha de correr com dignidade, com muita, até. Tudo está no modo de encarar as coisas. Emfim! adeus, adeus!
Maria Alexandrovna faz o signal da cruz á Zina e sae. Investe para o quarto, detem-se um momento em frente do espelho e, d'alli a dez minutos, lá vae rodando por essas ruas de Mordassov, na carruagem de patins (já dissemos que Maria Alexandrovna vivia á larga.)
—Não, não são vocês que podem luctar de esperteza commigo! A Zina annue, e já é meio caminho andado! Não ser bem succedida! Que asneira! Ah! Zina, com que então, ha calculos que influem no teu animo? Commovi-a fazendo-lhe luzir deante dos olhos um risonho porvir... Como{75} ella estava linda, hoje! Ora, tivera eu sido tão formosa, e haveria revolvido, até, meia Europa. Em summa, paciencia, esperemos. O tal Shakspeare ha-de-lhe passar assim que ella se vir princêsa... E que princêsa não ha de ser!... Gosto de a ver assim; tão soberba, tão senhora de si!... Tem uns olhos de rainha!... Como é que ella poderia deixar de conhecer que ia n'isso o seu interesse?—Até que emfim percebeu-o! Ficarei vivendo em sua companhia, e ha de consentir em tudo que eu quiser. É princêsa? pois tambem eu! Hão-de falar de mim, em Petersburgo, até... E adeus... cidadezinha da asneira! O principe e o garoto hão-de ir marchando d'esta para melhor, e eu, caso-a com uma testa coroada! Ha só uma coisa que me mette medo: não terei usado para com ella excesso de franqueza? Assusta-me! Assusta-me deveras!
E engolfa-se em suas cogitações Maria Alexandrovna.
Assim que se viu entre quatro paredes, a Zina poz-se ás voltas no quarto, de mãos atráz das costas, a pensar. E não lhe faltava em quê, com certeza! E a revezes e quasi inconscia repetia: "é urgente, é urgente, ha já muito tempo que devia estar feito!" Que quereria dizer aquella exclamação? Por mais de uma vez as lagrimas lhe refulgiram n'aquellas pestanas tão longas e sedeúdas. Nem pensava, sequer, em as enxugar. A mãe fazia mal em estar-se inquietando! A Zina achava-se disposta para tudo... 
"Eu te direi, deixa estar! pensou a Nastassia Petrovna ao saír do seu cadoz da farrapada depois de se haver retirado a coronela. E eu com tenções de pôr uma gravata côr de rosa por causa do tal principe! Sempre sou bem{76} tola! A enfeitar-me para casar com elle! Ora, uma gravata depressa se põe! Deixa tu estar, minha Maria Alexandrovna! Com que então, eu, sou uma pécora, uma miseravel? Acceito duzentos rublos para arrombar uma bocêta! Pois já se vê, não deixar escapar a occasião!... E demais... eu se o fiz foi por ser generosa, pois ainda tive que fazer despêsa... Eu te direi! Hei-de-lhes fazer ver a ambas se sou uma pécora ou se o não sou! Hão de aprender a lidar com a Nastassia Petrovna!{77}
 
Maria Alexandrovna, comtudo, deixava-se arrastar pelo proprio talento. Concebeu um plano grandioso quanto audaz. Casar a filha com um ricaço, com um principe e um moribundo; casál-a sem que ninguem o soubesse, aproveitando a senilidade do seu hospede, era não só ousadia, mas imprudencia, até. Não havia duvida, o projecto era seductor, porém, em caso de malogro, poderia vir a reverter para o autor n'uma confusão sem antecedentes. Maria Alexandrovna bem o sabia, mas não era mulher para recuar.
—Tenho-me visto em peores lances, dissera ella á Zina, e era verdade. E seria uma heroina, se assim não fôra?
Certamente, o projecto tinha seus visos de bandoleirismo á mão armada; Maria Alexandrovna não era, porém, mulher para se prender com taes ninharias. Resumia o caso n'um dito muito acertado: "uma pessoa não fica para sempre casada." Era simplicissima semelhante ideia, mas apresentava á imaginação tamanhas vantagens, que Maria Alexandrovna era a propria a assustar-se.
Como mulher de recursos, dotada de legitima faculdade creadora, urdiu o seu plano n'um revez de mão. É certo que apenas se lhe pintiparava na mente a largos traços, um tanto vagos, até. Escasseavam pormenores e havia que contar com circumstancias imprevistas. Maria Alexandrovna tinha porém confiança em si mesmo. Não era{78} o malogro que lhe mettia medo, lá isso, não; o que a sobresaltava, era a impaciencia em encetar a lucta. A impaciencia, a nobre impaciencia minava-a, ao pensar nos possiveis obstaculos. 
As mais sérias difficuldades, antecipava-as Maria Alexandrovna por parte dos seus nobres concidadãos de Mordassov, e acima de tudo, da nobre sociedade das damas Mordassovenses: Conhecia, por experiencia propria, até onde ia o odio de semelhante gente. Nem sequer punha em duvida, já se vê, que n'aquelle ensejo toda a gente lhe avaliava as intenções, supposto que ninguem houvesse dito ainda uma palavra fosse a
quem fosse. Sabia, á força de triste experiencia, que não havia um unico acontecimento, por mais secreto que fosse, referente á sua vida, que, dando-se pela manhã, não andasse á noite na lingua de todas as mexeriqueiras. Maria Alexandrovna, pois, antevia apenas o perigo, esta casta de presentimentos, porém, que jamais a haviam enganado, não a enganariam ainda d'esta vez.
Eis, effectivamente, o que succedera, e de que ella ainda não tinha conhecimento. Pela volta do meio dia, isto é, tres horas, minuto por minuto, depois de haver chegado o principe a Mordassov, corriam pela cidade uns boatos algo singulares. Qual teria sido o ponto de partida? Ninguem o sabia, mas caso é que se espalharam acto continuo.
Afiançava toda a gente que Maria Alexandrovna já tinha promettido a mão da filha, da sua Zina, com vinte e tres annos e sem um kopek de dote, ao principe: que o Mozgliakov tinha sido posto a andar e que estava tudo resolvido e assignado.{79}
Qual era a causa de semelhantes boatos? Tão bem conheciam Maria Alexandrovna que lhe tivessem adivinhado, com tão perfeita unidade, os mais intimos pensamentos? Nem a inverosemelhança de um tal boato, visto como um projecto d'aquelle genero se não leva a effeito no espaço de uma hora, nem a falta evidente de todo e qualquer fundamento, pois ninguem sabia d'onde partira a noticia, puderam dissuadir os Mordassovenses. O mais surprehendente, era o haver-se principiado a espalhar o boato no proprio ensejo em que Maria Alexandrovna encetava aquella sua conversa com a Zina a semelhante respeito. Tal é o faro dos provincianos! O instincto dos novelleiros das cidadécas attinge por vezes as raias do maravilhoso. E todavia, o caso explica-se. Baseia-se no estudo intimo e perseverante do proximo. Todo o provinciano vive debaixo de uma redoma de vidro, como se disséssemos. É-lhe absolutamente impossivel esconder seja o que fôr aos seus honrados concidadãos. Sabem a seu respeito aquillo que elle é o proprio a ignorar. O provinciano, de sua natureza, devia de ser um psicologo profundissimo. E eis o motivo porque eu ás vezes pasmava sincéramente d'encontrar na provincia tão poucos psicólogos e tanto imbecil! Mas ponhamos isso de banda.
Estoirou a noticia tal qual o raio. O casamento com o principe antolhava-se tão vantajoso a toda a gente, tão brilhante, que a face extranha d'aquelle negocio a todos escapou. Dava-se ainda uma circumstancia: A Zina era tão odiada ou mais ainda que a propria Maria Alexandrovna; e por quê? Ninguem o sabia. Entraria talvez em linha de conta a formosura da Zina, talvez pelo facto de{80} Maria Alexandrovna, apezar de todos os pezares, ser, muito mais do que a filha, da mesma massa das outras Mordassovenses. Ausentasse-se ella da cidade, e quem sabe, é possivel que deixasse saudades. Dava animação á sociedade mediante incidentes variados. Sem ella aborrecerse-hiam. Por outro lado, a Zina, pela sua attitude, parecia pairar nas nuvens e não em Mordassov. Não era da mesma raça, e talvez, inconsciamente, até, tivesse uns modos demasiado altivos. E eis que esta mesma Zina, ácerca de quem corria tanta historia escandalosa, aquella soberbona, apparecia millionaria, princêsa e entrava no rol da aristocracia. Dentro de um ou dois annos, talvez, vem a enviuvar e casa para ahi com algum duque, ou algum general, e quem sabe, com o governador, e coincide exactamente o estar viuvo e o ser grande admirador da formosura o governador de Mordassov. Desde então virá a ser a primeira senhora da provincia, e um tal pensamento, só por si, era intoleravel, nem haveria noticia capaz de provocar tanta indignação em Mordassov.
Estrugiam por todos os lados clamores de raiva. Diziam que era indigno; que o jarreta não tinha o juizo todo; que o tinham enganado, embaído; que urgia livrál-o da soffreguidão d'aquellas garras; que, apuradas as contas, era immoral,—uma ladroeira! Que não faltavam meninas valendo tanto como a Zina e em condições de casar com o principe.
Todas estas exclamações e estas linguarices eram apenas supposições da parte de Maria Alexandrovna, e já era demais. Estava farta de saber que toda a gente se achava prompta a praticar o possivel e o impossivel, até, para se{81} oppôr a seus projectos. Pois não haviam confiscado o principe e não tinha agora que o reconquistar a unhas e dentes? E d'ahi, dado ainda o caso de que ella lograsse tornál-o a agarrar e trazêl-o outra vez para sua casa, não poderá comtudo têl-o preso a toda a hora. Em summa, quem é que lhe podia affiançar que hoje, ainda, dentro em duas horas, o côro solemne em peso das damas de Mordassov se não terá congregado na sua sala, e a pretexto de ordem tal que se torne impossivel recebêl-as? Se ella lhes fechar a porta, entram-lhe pela janella. Em conclusão, não se podia perder um instante, e todavia, nada estava feito ainda.
De subito, eis que brota na mente de Maria Alexandrovna, e amadurece do mesmo jacto, uma ideia genial. Referir-nos-hemos á dita ideia em logar competente: n'este ensejo, a nossa heroina lá ia rodando a toda a pressa através das ruas de Mordassov, tremenda e inspirada, decidida a dar batalha para reconquistar o principe. Nem sequer sabia o alvitre que esposaria nem onde o iria encontrar; mas sabia com certeza que mais depressa devia afundar-se Mordassov do que falhar-lhe um unico de seus projectos.
Do seu primeiro passo não podia saír-se melhor. Encontrou o principe na rua e carregou com elle para jantar.
Se me perguntarem o modo porquê, cercada por tantas ciladas armadas contra si, conseguiu pôr o nariz a uma banda á Anna Nikolaievna, declaro que considero esta pergunta offensiva para Maria Alexandrovna. Deteve o principe no acto d'este estar á porta da casa da sua rival, e a despeito de tudo, a despeito até das objecções do proprio Mozgliakov, receoso de um escandalo, atirou com o{82} ginjinha para dentro do trem. Era n'isto exactamente que Maria Alexandrovna levava as lampas ás suas rivaes. Nos lances decisivos, não se detinha em presença de um escandalo, tendo como axioma que o exito a tudo justifica. Escusado será dizer que o principe não oppôz resistencia de maior, e como sempre esqueceu-se de tudo e ficou muito contente da sua vida.
Ao jantar, não fez senão dar á lingua, muito alegre, a fazer trocadilhos, a contar anecdótas que nunca concluia e passando de uma para outra sem dar por isso. Tinha bebido tres copos de champanhe em casa de Natalia Dmitrievna. Ao jantar, bebeu mais alguns e ficou alegrinho. Maria Alexandrovna era a propria a lhe não deixar nunca o copo vazio.
Eram irreprehensiveis as iguarias, aquelle ladrão do Nitichka esquecera-se de as chamuscar. A dona da casa desvelava-se em electrizar os seus hospedes com os enlevos da sua amabilidade. A Zina, comtudo, mantinha gélido silencio, e o Mozgliakov nem por isso estava nos seus dias. Comia pouco, estava muito preoccupado, a pensar; e, coisa que raras vezes lhe succedia, Maria Alexandrovna estava inquieta. A Nastassia Petrovna, mazomba, fazia ás escondidas signaes ao Mozgliakov e este sem dar por tal.
A não serem Maria Alexandrovna e o principe, haveria descambado em jantar de enterro.
E comtudo, Maria Alexandrovna encobre intima afflicção: assusta-a a Zina, com aquelles seus modos tristonhos, de olhos vermelhos. E demais, o tempo não sobeja, e Mozgliakov, esse obstaculo material, está para alli como um marco de pedra. Ergue-se da mêsa Maria Alexandrovna,{83} minada por funda inquietação. Mas qual não é o seu espanto, deixem-me assim dizer, quando vem ter com ella o Mozgliakov e lhe declara, que sente muito, mas que se vae retirar immediatamente!
—Aonde é que vae, então? indaga ella, com simpatia.
—Eu lhe digo, Maria Alexandrovna, enceta o Mozgliakov atrapalhado, aconteceu-me um caso um tanto esquisito... Nem sei até como lh'o diga... Mas, pelo amor de Deus, dême um conselho.
—Que é, diga lá?
—Meu padrinho, o Borodoniev... conhece, aquelle commerciante... encontrei-o hoje... está irritadissimo, dirigiu-me exprobações, diz que sou um soberbo. Com esta é a terceira vez que venho a Mordassov sem ir para sua casa. "Vem hoje, me disse elle, tomar uma chavena de chá commigo". São quatro horas em ponto, e elle toma o chá, á antiga, ahi pelas cinco horas, depois da sésta. Que quer que lhe eu faça... Eu avalio, Maria Alexandrovna... Mas colloque-se no meu logar! Foi elle que teve mão em meu pae que se queria enforcar, quando perdeu aquelle dinheiro do Estado!... Foi n'essa occasião, por signal, que elle insistiu em ser meu padrinho. Se fôr a effeito o meu casamento com Zina Aphanassievna, bem sabe que disponho apenas de cento e cincoenta almas, ao passo que elle é millionario, e mais que isso, até, segundo affirmam. Não tem filhos. Se eu estiver a bem com elle, pode deixar-me cem mil rublos. Ora elle está com setenta annos, lembre-se d'isto!
—Ah! meu Deus! Mas então que é que o prende? Por que está para ahi a marralhar? exclama Maria Alexandrovna,{84} disfarçando a custo o contentamento. Vá-se embora, vá! Com essas coisas não se brinca! E era por isso então que estava tão absorto durante o jantar? Vá, meu amigo, não se demore! Mas devia de ter ido vêl-o esta manhã para lhe provar que aprecia a sua benevolencia. Ai! esta mocidade!
—Mas, se Maria Alexandrovna tem sido a propria a arguir-me de semelhantes relações! Tudo era dizer-me que era um mujik, parente de taberneiros e agentes de negocio!
—Ah! meu amigo, quanta coisa se diz sem pensar! Tambem sou sujeita a enganarme.—Não me tenho na conta de infallivel. E d'ahi... não me recordo... mas... é possivel que eu me achasse numa tal disposição de espirito... em summa, o senhor não tinha ainda formulado o seu pedido. Certamente, que houve da minha parte egoismo maternal, mas agora devo encarar as coisas de um ponto de vista novo. Qual seria a mãe que m'o levasse a mal? Vá e não perca um instante. Passe a noite com elle... e oiça lá! Fale-lhe a meu respeito, diga-lhe que o tenho em muita conta, que sou muito sua amiga... Proceda com habilidade. Ah! meu Deus! Tinha-se-me varrido de todo. E era eu que lh'o devia ter lembrado.
—Resuscitou-me, Maria Alexandrovna! exclama Mozgliakov encantado. E agora obedecer-lhe-hei em tudo e por tudo. E eu sem me atrever a falar-lhe n'isso! Pois bem, adeus! vou-me embora. Desculpe-me para com a Zinaida Aphanassievna. E d'ahi, hei de voltar.
—Receba a minha benção, meu amigo. E não se esqueça de falar a meu respeito. Effectivamente, é um velho estimabilissimo.{85} Ha muito tempo que mudei de opinião a seu respeito. E demais, eu sempre o estimei na qualidade de Russo dos bons tempos, tão despido de artificios. Até mais ver, meu amigo, até mais ver!
"Foi uma fortuna carregar com elle o demonio! Que estou dizendo, foi o proprio Deus que veiu em meu auxilio."
Pavel Alexandrovitch estava já no vestibulo a enfiar a chuba, eis que rompe por alli dentro, saída não se sabe d'onde, a Nastassia Petrovna.
—Aonde vae? diz, agarrando-o pela mão.
—A casa do Borodoniev, Nastassia Petrovna, a casa do meu padrinho. Coube-lhe a honra de me baptizar. Um velho rico, um padrinho de quem se herda, um homem que se deve amimar.
—A casa do Borodoniev! Pois diga adeus, desde já, á sua noiva, disse com sequidão Nastassia Petrovna.
—Como assim?
—Assim mesmo. Suppõe que a tem segura? Isso sim! Vae, mas é casar com o principe.
—Com o principe. Que me diz, Nastassia Petrovna?!
—Que me diz, quê?—Quer ver com os proprios olhos e ouvir com os proprios ouvidos? Pendure para ahi a chuba, e venha commigo.
Pavel Alexandrovitch, aturdido, atira para o lado a chuba e deixa-se levar para o quarto escuro, cuja porta dá para a sala.
—Mas que quer isto dizer! Nastassia Petrovna, não percebo patavina.
—Perceberá assim que ouvir. A comedia não tarda a principiar.{86}
—Qual comédia?
—Chiton! Não fale tão alto! Qual comédia? E é o senhor que paga as despêsas; andam a enganál-o; esta manhã, assim que o senhor saíu com o principe, a Maria Alexandrovna pôz-se a apoquentar de dôr d'ilharga a Zina, mais de uma hora, com o sentido em persuadil-a a aceitar para marido aquelle jarreta d'engonços. Dizia ella que não havia nada mais facil do que era o enredál-o. Propunha uns taes alvitres que a mim propria me causavam asco. Ouvi-os d'aqui, a Zina annuiu. E que cama lhe não fizeram ao senhor, ambas de duas! Tem-n'o na conta de um imbecil, e a Zina declarou formalmente que não casava com o senhor por coisa nenhuma d'este mundo. E eu, tão tola, que já me estava até enfeitando para pôr ao pescoço uma gravata côr de rosa!
Mas escute! escute!
—Se assim é,... é uma infamia! murmurou Pavel Alexandrovitch, esparvoado, fitando olho a olho a Nastassia Petrovna... 
—Mas escute! Vae ouvir o bom e o bonito!... 
—Escutar onde?
—Debruce-se se ali n'aquella frincha da porta.
—Mas... Nastassia Petrovna, eu sou lá homem que me ponha a escutar ás portas?!
—Emprega bem o seu tempo! Aqui, meu paezinho, é preciso metter a honra na algibeira. Desde que cá veiu, escute... 
—Comtudo... 
—Se não quer, resigne-se a ficar a chuchar no dedo! E a mim que me importa? Eu com dó do senhor, e o senhor{87} com ceremonias! Será para mim que eu ando a trabalhar? Eu, por mim, já nem cá fico esta noite. 
Pavel Alexandrovitch, muito contra sua vontade, encosta o ouvido á fisga da porta. Referve-lhe o sangue nas arterias. Não percebe uma palavra de quanto em volta de si se está dando.{88}
 
—Com que, então, divertiu-se muito, principe, em casa da Natalia Dmitrievna? indaga Maria Alexandrovna, deitando olhar soffrego para a futura prêsa.
(Enceta de proposito as hostilidades do modo mais innocente. De commovida, tem o coração aos pulos.)
Depois de jantar, transferiram o principe para a sala onde este havia entrado pela manhã. O ginjinha, com lastro de seis copos de champanhe, já não conserva equilibrio. Em compensação, não cessa de badalar. Maria Alexandrovna percebe que é apenas uma excitação de momento e que o hospede, d'alli a nada, ferra comsigo a dormir. Cumpre pois aproveitar a occasião. Nota com jubilo que o voluptuario ginjinha dispara á Zina uns olhares de gula. Rejubilam os seus maternaes sentimentos.
—Ex-trê-ê-ma-mente! e, não sabe? é uma mulher incom-pa-ra-á-vel... aquella Natalia Dmitrievna, uma incompa-ra-vel mulher!
A despeito dos muitos cuidados, aquelles louvores tributados á rival fazem sangrar o ciume a Maria Alexandrovna.
—Ora vamos, principe! exclama com os olhos a ferir lume, se essa sua Natalia Dmitrievna é uma mulher incomparavel, tapa-me a boca, mas é preciso que o principe conheça muito mal esta nossa sociedade! Não passa tudo de um alarde descarado de sentimentos ausentes, comédia, verniz, oiro ao de cima.{89}
Erga uma pontinha ás apparencias, e encontrará um verdadeiro inferno escondido por baixo das flores, uma ninhada de viboras promptas a tragál-o.
—De-vé-ras! Estou pa-a-asmado!
—Sou eu que lh'o digo! Ah! meu principe! Ora escute, é a Zina! Assiste-me o dever—e a tanto me vejo obrigada—de contar ao principe uma aventura ridicula que se deu a semana passada, com aquella Natalia Dmitrievna—lembras-te?—Sim, principe, com aquella Natalia a quem tanto admira.
Ah! meu caro principe, affirmo-lhe que não sou mexeriqueira, mas devo contar-lhe isto unicamente para lhe dar uma amostra viva e irrisoria da nossa sociedade.
Haverá quinze dias veiu visitar-me essa tal Natalia Dmitrievna. Estavam servindo o café, e eu tinha que sair. Lembro-me muito exactamente das pedras de açucar que ficaram no meu açucareiro de prata: estava cheio. Volto, e que hei de eu ver? Restavam apenas tres pedrinhas. Ora, a Natalia Dmitrievna tinha ficado sósinha! Que me diz a isto?
Tem casa, dinheiro, tudo que lhe apetece... É comico e pequenino, pois não acha?—E por aqui já pode avaliar o que é esta nossa sociedade em Mordassov. 
—De-ve-ras?—É uma gulodice... sobre-natural! Mas como é que ella pôde engulir um açucareiro?
—E ahi tem a sua mulher incomparavel, principe; se já se viu uma vergonha assim? Eu por mim estou que antes queria morrer, do que resolver-me a praticar um acto tão nojento!
—Está c... claro!... está... claro!—Mas ainda assim—sempre lhe digo, que é uma linda mulher!{90}
—Quem? A Natalia Dmitrievna! Ora vamos, principe, ella o que é é uma pipa. Ah! principe, principe, que está dizendo? Sempre fiz outra opinião do seu bom gosto!
—Está—c... claro—uma pipa!—Mas ainda assim—sempre lhe digo que é bem feita; e depois, aquella pequer... rucha que dansava... essa tambem é... bem feita.
—A Sónitchka? Ora! Uma pequena! Tem apenas quatorze annos.
—Está... claro!—mas ainda assim,... é tão leve... e com umas formas..., tão... geitozinhas!... E a outra que dan... sou com ella?
—Ah! aquella serigaita d'aquella orphã, principe?
—Está claro—orphã! É porquinha,—devia ao menos ter lavado as mãos,—mas é seduu-ú-ctora.
E o principe, emquanto vae falando, não despega, com crescente avidez, o monóculo do semblante da Zina.
—Mas... que... linda... me... nina! tartamudéa... meio estarrecido... 
—Zina, vê se tocas alguma coisa, ou antes... canta. Canta que é uma delicia, principe; chega a ser uma virtuose, ouso affirmál-o, uma verdadeira virtuose. E se soubesse, principe, prosegue a meia voz Maria Alexandrovna emquanto Zina se approxima do piano, com aquelle seu andar, lento e cadenciado, que põe num sobresalto o jarreta, e se soubesse a que ponto é amoravel, como é carinhosa para commigo! Que coração! Que sentimentos!
—Está claro! Sentimentos! E se quer que lhe diga... ainda não conheci senão uma mulher que se lhe possa comparar como formosura, responde o principe a engulir a saliva, é a condessa Naniskara; que Deus tem. Já lá vae{91} ha trinta annos. Que mulher! Que maravilhosa formosura! Casou com o cozinheiro.
—Com o cozinheiro, principe!?
—Está claro—o cozinheiro, um francez, no estrangeiro.—E arranjou-lhe lá no estrangeiro um titulo de conde. Um homem muito instruido, com uns bigodinhos.
—E como é que viviam, e onde, principe?
—Está claro—viviam muito bem! E d'ahi, não tardou muito que se não apartassem.— Elle roubou-a e safou-se. Quer-me parecer que jogaram as cristas lá por causa de um môlho.
—Que queres que eu toque, mamã?
—Por que não cantas, antes? Se soubesse como ella canta, principe! Gosta de musica?
—Está c... laro! Um encanto—um encanto! Gosto immenso de musica! Co... onheci muito Beethoven, no estrangeiro.
—Beethoven! Ora imagina, filha, o principe conheceu Beethoven! clamou Maria Alexandrovna, maravilhada. Ah! principe, pois devéras, conheceu Beethoven?
—Está c... laro: Eramos intimos amigos. Tinha o nariz sempre atulhado de rapé... Que sujeitinho tão ratão!
—Quem, Beethoven?
—Está c... laro,—Beethoven? E não seria talvez Beethoven... mas sim outro qualquer. Ha muito allemão, por toda a parte... Que eu, afinal, parece-me que estou equivocado.
—E que hei de eu cantar, mamã?
—Ah, Zina! Canta-me aquella romança, não te lembras? Aquella que tem um accento tão cavalheiresco: a castellã{92} e o seu trovador—Ah principe, sou doida pelos assuntos cavalheirescos! Os castéllos! aquelle viver mediéval! Trovadores, arautos! Festas e torneios!... Vou te fazer o acompanhamento, Zina... Sente-se aqui, mais perto, principe! Ai! os castéllos, os castéllos!
—Está c... laro! os castéllos... tambem gosto de cas... tellos, repete o principe assestando na Zina o olho solitario: Mas... santo Deus! que romança!... Estou a conhecêl-a... Ha que tempos... que tempos que a ouvi... recorda-me... ah! meu Deus!... 
Não me incumbo de dizer o que foi que succedeu ao principe, quando a Zina entrou a cantar. Cantava uma romança francêsa, muito antiga e que estivera em moda, nos seus tempos. A Zina cantou a primor. A voz pura de contralto ia direita ao coração. O lindo rosto, os magnificos olhos, os dedos fusiformes a voltarem as folhas, os bastos e negros cabellos, tão lustrósos, o seio afflante, a sua pessoa féra e linda, toda ella, concorria tudo a enfeitiçar o pobre do gêbo. Não despegou os olhos de cima d'ella emquanto ella esteve a cantar. Suffocava de commovido. Aquelle senil coração, esquentado pelo champanhe, pela musica e pelas reminiscencias, palpitava cada vez com mais força, e como não havia palpitado ha tanto tempo! Estava a ponto de chorar quando ella acabou.
—Oh! minha linda menina! exclamava, a beijar-lhe os dedos, estou encantado!—E só agora é que me lembro... mas... mas... Oh! minha linda menina!... 
O principe nem foi senhor de concluir.
Maria Alexandrovna sentiu haver chegado o momento psicologico.{93}
—Para que anda a dar cabo de si, principe?—encetou com solemnidade. Quantos sentimentos, quantas forças vitaes, quanta riqueza moral lhe não resta ainda? E com tudo isso, foi emparedar-se por toda a vida num carcere! Fugir do mundo! Das amizades! É imperdoavel! Pense bem, principe! Encare a vida, como se dissessemos, com uns olhos limpidos! Lembre-se do passado, da sua aurea juventude, dos seus dias sem cuidados. Resuscite esse passado, resuscite-se a si proprio! Volte a viver entre a sociedade dos vivos: vá até ao estrangeiro... á Italia, á Hespanha, principe, á Hespanha. Precisava de um guia, de um coração que lhe tivesse amor, que o estimasse e que lhe fosse simpathico.
Pois bem! O principe tem amigos, appelle para elles e virão em monte. Cá estou eu que seria a primeira a dar de mão a tudo, e a deitar a correr para acudir ao seu chamado! Não me esqueço da nossa antiga amizade, principe! Deixaria, até, meu marido, se estivesse mais nova, e fosse tão formosa como minha filha, fazia-me sua companheira, sua amiga, sua mulher, até, se o desejasse.
—Estou certo de que, nos seus tempos, deve de ter sido uma mulher encantadora, disse o principe a assoar-se.
Tinha os olhos arrazados de lagrimas.
—A nós proprios sobrevivemos nos nossos filhos, principe, responde effusiva Maria Alexandrovna. Tambem eu tenho o meu anjo da guarda, a amiga dos meus pensamentos, do meu coração, principe! Rejeitou até agora sete pedidos de casamento, por se não querer apartar de mim.
—E por conseguinte, vae comsigo quando me ac... com... ompanhar ao estrangeiro? Sendo assim, irei para o estrangeiro... {94} está resolvido... exclama o animadissimo principe.—Absolutamente!... E se eu pudesse lison... jear-me com a es... pe... rança... Mas é uma menina po... rtentosa, portentosa! Ah! minha linda menina!
E o principe volta outra vez a beijar os dedos á Zina. Tentou até ajoelhar-lhe aos pés, o pobre do homem.
—Então!... então, principe, ia dizendo que se pudesse lisonjeál-o a esperança?... agarrou no ar Maria Alexandrovna, sentindo brotar-lhe novo accesso de eloquencia. Que homem tão singular é o principe!... Não se considera então digno da attenção das mulheres! A formosura não consiste apenas na mocidade! Lembre-se de que é uma reliquia da aristocracia russa! É o representante dos mais refinados, dos mais cavalheirescos sentimentos, e das mais requintadas maneiras! E a Maria não amou o Mazeppa[10] porventura? Li algures que Lauzun, um marquêz seductor da côrte de Luis... não sei quantos... já velho, conquistou uma das mais supinas beldades do seu tempo!... E demais, quem foi que lhe metteu em cabeça que já era velho? Quem se atreveu a afirmál-o? Homens como o senhor envelhecerão jámais, porventura? O principe, tão opulentamente dotado de sentimento, de alegria, de espirito, de força vital, de tão delicadas maneiras! Fosse o principe para ahi a qualquer estação balnear com uma mulher joven, com uma beldade como a Zina, para não irmos mais longe,—e eu lhe diria que effeito colossal não havia de produzir, o senhor, reliquia da nossa aristocracia;{95} ella, uma belleza de rainha! Ella, com aquelle seu pisar majestatico, de braço dado com o principe, a cantar n'uma sociedade aristocratica; o principe, pela sua parte, a fuzilar ditos de espirito! Era caso para acudirem os banhistas em pêso a fazerlhe côrte! Dava brado por toda essa Europa! Pois teria a seu favor os jornaes, todos elles folhetins, e surgia um grito unanime: "Principe! Principe!"
E o senhor a dizer: "Pudesse eu lisonjear-me com a esperança?"
—Os jornaes... está claro, está claro!... Os folhetins... balbucia o principe, que não percebeu nem metade do aranzel de Maria Alexandrovna e cada vez está mais lamecha... Mas... minha rica menina... se se não sen... te fa... tigada, repita outra vez aquella romança que cantou inda'gora... 
—Ah! principe, ella sabe outras ainda mais bonitas! Conhece a Andorinha? Já a ouviu?
—Está claro... mas já não me lembra... 
Não... não!... aquella que cantava ha pouco: não quero a Andorinha! Quero aquella tal romança: disse o principe a pedinchar como um pequerrucho. 
A Zina recommeça a alludida romança. O principe não pode ter mão em si e ajoelha-lhe aos pés a chorar... 
—Oh! minha formosa castellã! (Treme-lhe a voz de senilidade e de commoção). 
Oh! minha en... can... tadora castellã! Oh! minha querida menina! Quanta coisa me não veiu recordar do passado!... E eu, então, vivia esperançado em outro porvir. N'esse tempo cantava eu com a viscondessa... uns duêtos... {96} essa mesma romança... e agora... ah! Sei muito bem o que me espera!
O principe proferiu aquella discurso em voz entrecortada e offegante, intoiriu-se-lhe a lingua... tornam-se inintelligiveis algumas palavras. Apenas se vê que atingiu o acume da commoção. Maria Alexandrovna apressa-se em lançar azeite no lume.
—Principe! quer me parecer que se vae apaixonando pela Zina.
A resposta do principe vae além de quanto ousaria esperar Maria Alexandrovna.
—Estou apaixonado por ella a ponto d'enlouquecer! exclama o velhito muito exaltado e sempre de joelhos.
Estou prompto a sacrificar-lhe a minha vida... pudesse eu ao menos ter esperança... Mas levante-me, por quem é... sinto-me um tanto fraco... Se eu... ao menos, pudesse nutrir a es... pe... perança offerecia-lhe o meu coração... e então... eu... Havia de cantar-me todos os dias ro—ro—man—manças, e eu a olhar para ella sempre... sempre... sempre... ai, meu Deus!
—Principe, principe! Está offerecendo a minha filha a sua mão, quer-m'a roubar, a mim, a minha Zina! O meu enlevo, o meu anjo, Zina! Não te deixarei nem por quanto ha! Zina! Venha alguem arrancál-a dos braços, dos braços de sua mãe; se é capaz!
Maria Alexandrovna atira-se á filha e estreita-a nos braços, comquanto se sinta repellida com força. A mamã exaggera um tanto ou quanto a comedia, e a Zina está em transes de asco. Mas não abre a bôca, é tudo quanto deseja Maria Alexandrovna.{97}
—Já rejeitou nove partidos só para se não apartar da mãe! clama. Agora, comtudo, o meu coração antevê o apartamento. Não ha ainda um instante, reparei que olhava para o principe de modo particularissimo... A sua aristocracia, a sua finura seduziram-n'a, principe!.. Oh! O principe apartar-nos-ha... estou-o a sentir.
—A... dó... óro-a! murmura o principe a tremelicar como uma folha.
—Com que então desamparas a tua mãe! exclama Maria Alexandrovna atirando-se outra vez ao pescoço da filha.
A Zina, morrendo por pôr ponto a tão penosa scena, estende ao principe a linda mão, e faz esforço para sorrir. O principe agarra respeitoso n'aquella mão e por pouco a não come com beijos.
—Agora, sim, agora é que eu principío a viver!... 
—Zina! diz com solemnidade Maria Alexandrovna: é o mais delicado, o mais nobre dos homens! Um cavalleiro da edade média! Ella bem o sabe, principe, e sabe-o até demais,
por minha desgraça!... Ah!... Oxalá cá não tivesse apparecido... Entrego nas suas mãos o meu thesouro... Conserve-o, principe!... Escute os rógos de uma mãe! Qual será a mãe que poderá levar-me a mal a minha magua?!
—Basta! mamã! murmura a Zina.
—Ha de defendêl-a, principe, a sua espada ha de fulgir se as calumnias se atreverem a tocar-lhe!
—Basta mamã, aliás... 
—Está c... claro... a minha espada!... murmura o principe. Quero que o ca... casamento se realize, quanto antes... agora... é que eu devéras prin... cipío a viver!... {98} Tenciono mandar desde já a Dur-kha-khanovo... Tenho lá uns brilhantes, quero pôl-os a seus pés.
—Que ardor, que arrebatamentos, que nobreza de alma! E lembrar-me eu, principe, de que se estava a perder n'aquelle ermo!... Não me canço em repetir... Eu, quando me lembro d'aquella... infernal... toda eu me horrorizo!... 
—Mas que queria que eu fizesse?
Tinha tanto... mê... mêdo! choraminga o principe. Queriam pregar commigo numa casa de saude... e tive... mê... mêdo!
—N'uma casa de saude! Ah! que miseraveis! Que vileza, que crueldade!... Já me constou isso mesmo, principe! Mas essa gente está doida! Mas por quê... por quê?... 
—Se quer que... lhe diga, nem eu o sei, responde o ginjinha caindo derrengado de cansaço na poltrona. Foi assim—estava eu n'um ba... baile, e contei-lhe uma anecdóta.—Desagradou-lhes e ahi está... e resultou d'ahi uma historia... uma histo... ria.
—E foi esse apenas o motivo?
—Não foi, eu tambem tinha jogado as cartas com o principe Pedro Dmirititch, e perdido immenso... tinha dois reis e três... da... damas... quero dizer, três da... da... mas e dois r... reis... Não é isto... um r... r... rei e só... da... damas!
—E foi só por isso!—por isso!—Infernalissima protervia! Não chore, principe! Não lhe torna a acontecer! D'aqui em diante, encontra-me a seu lado, meu principe!—Pois não me aparto da Zina, e veremos quem é que se atreve a abrir bocca. Sabe o que lhe digo, principe? Que o{99} seu casamento vae deixál-os consternados; vae envergonhál-os! Hão de ver que ainda é capaz... quero dizer... comprehenderão que tão peregrina beldade nunca iria casar com um mentecapto!—E agora, pode olhar para elles rosto a rosto, de cabeça erguida!
—Está—claro... rosto a rosto!—murmura o principe fechando os olhos.
—Está derreado de todo, diz comsigo Maria Alexandrovna; creio que estarei a soltar palavras ao vento.
—Está commovido, meu principe, precisa de ir descançar, diz debruçada sobre elle com maternal sollicitude.
—Está... c... claro... encostar-me um bocadinho.
—É tal qual... Estes abalos!—Espere ahi, vou acompanhál-o. Eu propria irei deitál-o, se for necessario... Por que é que está a olhar tanto para aquelle retrato, principe?
É o retrato de minha mãe, não era uma mulher, era um anjo! Oh! oxalá ella ainda cá estivesse! Era uma santa, uma santa, sim, nem lhe posso dar outro nome!
—Uma s... anta, é bonito!... Eu tambem tive mãe, uma senhora extrê... ê... ma... mente nut... trida... E d'ahi, não é isso que eu queria dizer... Estou um tanto fatigado... Adeus... minha linda menina... amanhã... em sum... ma... não importa... Até mais ver... até mais ver!... 
Tenta fazer um gesto gracioso, mas escorrega no pavimento encerado, e por pouco se não desiquilibra.
—Cuidado, principe. Encoste-se ao meu braço! grita Maria Alexandrovna.
—Um encanto! um encanto! Agora sim, agora começo a viver!{100}
Ficou a sós a Zina. Sentia uma oppressão, um desprezo para comsigo mesmo. Com as faces a escaldar, as mãos contraídas, os dentes enclavinhados. Inérte, e a vergonha a arrazar-lhe os olhos de lagrimas... 
N'este lance, eis se abre a porta e investe pela sala dentro o Mozgliakov—fulvo de raiva!{101}
 
—Ouvi tudo, tudo!
A Zina a fitar-lhe uns olhos espantados.
—Ah! E são esses os seus sentimentos! exclama com a voz tomada. Até que por fim aprendi a conhecêl-a!
—A conhecer-me? repete a Zina (fulgem-lhes os olhos, de colera). Atreve-se a falar-me assim?
Dá um passo para o mancebo.
—Tudo ouvi! insiste solemne o Mozgliakov, recuando porém um passo, mau grado seu.
—Ouviu?—Espionou, diga! emenda a Zina a mirál-o com desprezo.
—Espionei, seja? É verdade, decidi-me a praticar semelhante vilania! Mas, graças a ella... fiquei afinal sabendo que é a mais... nem sei como qualificar a sua... tartamudeava o mancêbo, de mais em mais atrapalhado sob o olhar da Zina.
—E quando haja ouvido a tudo, que é que me poderá lançar em rosto? Quem lhe deu o direito de me accusar, de me falar n'esse tom?
—Com que direito!... Eu!? E ainda m'o pergunta!? Intenta casar com o principe... e a mim não me assiste o direito...!... Pois não me deu a sua palavra?
—Quando?
—Quando, essa é melhor!
—Esta manhã, sem irmos mais longe, o senhor a apertar{102} commigo e a minha resposta formal foi que nada lhe podia afirmar de positivo.
—Mas não me rejeitou em absoluto, e por conseguinte, guardava-me para o não chega—poupava-me!... 
Contrahiu-se o semblante á Zina com dolorosa sensação, mas não se atenua o desprezo que sente para comsigo.
—Se o não escorraçei, responde em voz grave e compassada, mas algo trémula, foi unicamente por compaixão. Supplicava-me que esperasse, que lhe não dissesse que não. "Vá aprendendo a conhecer-me"—disse o senhor um dia, "e quando se houver convencido de que sou um homem de caracter digno, é possivel que me não rejeite." Foram estas as suas palavras, no principio das nossas relações, não as poderá renegar: E agora atreve-se a dizer, que o guardo para o não chega! Pois não percebeu, esta manhã, o meu aborrecimento por ver como antecipava de quinze dias o seu regresso? E todavia, não lhe encobri esse meu enfado, e o senhor foi o proprio a notál-o, visto que me perguntou se me não agastava este seu regresso permaturo. Chama então poupar um homem o não lhe poder encobrir o fastio que alguem experimenta em ver esse homem? Ah! Eu então guardava-o para o não chega!? Não! eu dizia commigo, a seu respeito: "Se não é demasiado intelligente, é bondoso, quando menos"... agora, comtudo, fiquei sabendo—a tempo, felizmente—que tem tanto de mau como de tolo, e só o que me resta é desejar-lhe boa jornada! Adeus!
A Zina volta-lhe as costas e caminha, de seu vagar, para a porta. Mozgliakov comprehende que tudo está perdido; referve-lhe a raiva.{103}
—Ah! com que, eu, então, sou tolo! vociféra; tolo!—Muito bem! Adeus! Mas, antes de me ir embora, saiba que a toda a gente ha de constar a infame comédia que aqui estão representando... tanto a senhora como sua mãe. Vou contar tudo a toda a gente, que embebedam o principe, que o subornam! Ha de ouvir falar de Mozgliakov!
Estremece a Zina, vae para reponder, mas, volvido um instante de reflexão, encolhe os hombros, desdenhosa, e bate-lhe com a porta na cara. N'este conflicto, assoma aos hombraes Maria Alexandrovna. Ouviu as ultimas exclamações de Mozgliakov e adivinhou o restante. O Mozgliakov sem, se ir ainda embora! O Mozgliakov á ilharga
do principe! O caso espalhado por toda a cidade pelo Mozgliakov! E todavia, é indispensável guardar segredo... Maria Alexandrovna, n'um relance, tudo calculou, a tudo preveniu, e urde um plano para aplacar o Mozgliakov.
—Que tem, meu amigo? diz estendendo-lhe a mão, cordial.
—Como meu amigo! exclama o outro furibundo. E depois de tudo isto; meu amigo! Morgen Früh [11], minha senhora. Metteu-se-lhe então em cabeça embaçar-me outra vez?
—Sinto, devéras, acredite, sinto immenso vêl-o em um estado de espirito tão estranho, Pavel Alexandrovitch. Que linguagem! Nem sequer méde as palavras em presença de uma senhora!
—Em presença de uma senhora!... Será quanto quiser... menos uma senhora. 
(Ignoro o que é que elle queria dizer, mas, com certeza, devia de ser um qualquer ultrage, de esmagar.) Maria{104} Alexandrovna com os olhos n'elle e um risinho de commiseração:
—Sente-se, diz, com tristeza, apontando para a cadeira na qual, um quarto de hora antes, estivéra sentado o principe.
—Mas no fim de contas, não me dirá, Maria Alexandrovna?... exclama Mozgliakov, desnorteado. Está-me tratando como se a senhora estivesse innocente e fosse eu o culpado! Não pode ser!... Vae muito além dos limites! É abusar da paciencia... de todo... digo-lh'isto!
—Meu amigo... responde Maria Alexandrovna—e deixe-me dar-lhe ainda este titulo, pois neste mundo não terá melhor amiga...—o senhor está afflicto, excitado, ferido no coração, e devo pois relevar-lhe semelhantes desmandos de linguagem. Pois bem, vou abrir-me com o senhor. Tanto mais que eu, até certo ponto, não deixo de ter culpas para com o senhor. Sente-se, pois, e conversemos. A voz de Maria Alexandrovna assumiu o auge da meiguice, é compungida a sua expressão phisionomica.
Senta-se Mozgliakov.
—Esteve escutando á porta, diz ella com uns modos de exprobação e de indulgencia, ao mesmo tempo.
—Escutei, sim! E por que não? Nem que eu fôra um asno!... Se quer ao menos fiquei sabendo o que andava a maquinar contra mim, responde Mozgliakov, haurindo valôr da propria colera.
—E resolver-se a senhora, com a sua educação, as suas maneiras, a representar semelhante papel! Santo Deus! Mozgliakov está aos pulos na cadeira. 
—Maria Alexandrovna, não posso ouvir-lhe uma palavra{105} mais! Melhor será que se lembre do que está fazendo, a despeito da sua educação e das suas maneiras, e digame se lhe assiste o direito de accusar a outrem!
—Ainda uma pergunta, prosegue ella sem responder. Quem foi que lhe suggeriu a ideia de escutar á porta? Quem será que anda por aqui a espiar-me os passos? É isso o que eu não se me dava de saber!
—Lá quanto a isso, tenha paciencia, não serei eu quem lh'o diga.
—Muito bem, eu tratarei de o saber... Dizia eu, pois, Pavel, que não deixo de ter culpas para com o senhor, mas, se é que póde julgar-me com conhecimento de causa, verá que se tenho alguma culpa é a de lhe querer bem em demasia.
—Com que então, quer-me bem?—Esta a caçoar commigo, e certifico-lhe que não torna a enganar-me; serei muito creança mas nunca até esse ponto!
E elle, n'um sarilho na poltrona, e a poltrona a tremer.
—Por quem é, meu amigo, socegue se é possivel, escute com attenção, e verá que ha de concordar commigo. Eu, a principio, tencionava contar-lhe tudo, pôl-o em dia com tudo sem que se lhe tornasse necessario aviltar-se ao ponto de escutar ás portas. Se o não fiz, foi unicamente porque o negocio se achava ainda em estado de projecto e podia mallograr-se. Bem vê a franqueza de que uso para com o senhor. E, acima de tudo mais, não se volte contra minha filha, que de nada tem culpa. É doida pelo senhor, e custoume os olhos da cara arrancar-lh'a ao senhor e persuadil-a a acceitar o offerecimento do principe. 
—E eu, que com os meus proprios ouvidos, ouvi,—n'este{106} instante, provas d'esse tal louco affecto, replica ironico Mozgliakov.
—Muito bem! Mas em que termos se lhe dirigiria o senhor? É assim que se expressa um namorado? Será essa a linguagem propria de um homem de fino trato? Offendeu-a, irritou-a.
—Como se fosse questão de fino trato, Maria Alexandrovna! Esta manhã, ambas me faziam boa cara, mas assim que eu saí e mais o principe, puzéram-me pelas ruas da amargura.—Estou sciente de tudo... tudo.
—Bebido da mesma fonte ignobil, provavelmente, observou Maria Alexandrovna com risinho de desdem. É verdade, Pavel Alexandrovitch, púl-o pelas ruas da amargura e, confesso, Deus sabe quanto me custou. Quanto não tive eu que luctar com os proprios sentimentos! Mas bastará o facto de eu me ver na necessidade de o calumniar para lhe provar a difficuldade que eu encontraria em obter d'ella que desistisse do senhor! É possivel que não veja um palmo adeante do nariz? Se ella lhe não tivesse amor, eu teria alguma necessidade de appellar para calumnias? E ainda o senhor não sabe o melhor! Tive que valer-me da minha maternal auctoridade para lh'o arrancar a ella do coração! Em conclusão, depois de esforços inauditos, consegui alcançar uns arremedos de consentimento... E visto que esteve á escuta, não deixaria de notar que ella não me ajudou em presença do principe com uma palavra, sequer, ou com um gesto. Cantou para alli como um automato; em visiveis afflições toda ella, e foi por ter dó d'ella, que eu carreguei com o principe. Tenho a certeza, até, de que se pôz a chorar, assim que se apanhou sósinha.{107} O senhor bem viu, quando entrou... Mozgliakov recorda-se de que effectivamente a Zina estava a chorar quando elle entrou.
—Mas a senhora, a senhora, por que é que está assim tão contra mim, Maria Alexandrovna? Por que é que me foi calumniar segundo é a propria a affirmál-o. 
—Ora, isso agora é outro negocio; e se o senhor m'o tivesse perguntado em termos logo ao principio, ha muito tempo que lhe teria dado resposta. Sim, tem razão, fui eu que fiz tudo, eu, sósinha: não esteja a accusar a Zina. Por que foi que o fiz? E eu respondo-lhe: primeiramente, por interesse da Zina. O principe é rico, representante de nobilississima casa, tem relações, e casando com elle a Zina faz um optimo casamento. Emfim, se elle morrer, o que não poderá tardar muito, pois todos nós, mais ou menos, somos mortaes,—n'esse caso, a Zina, nova e viuva, pertencendo á alta sociedade, fica riquissima e casa com quem quizer. Ora, está claro que irá casar com o homem a quem ama, e que foi o primeiro a quem teve amor, e cujo coração terá martirizado casando com o principe. E bastará o arrependimento... O acto que terá mais a peito será o de remediar a propria falta.
—Hum! rosna Mozgliakov pensativo, a contemplar os bicos das botas.
—Em segundo logar... mas serei breve a semelhante respeito, é possivel que me não comprehendesse. O senhor só o que sabe é ler o tal seu Shakspeare, fonte aonde exclusivamente vae beber os seus nobres sentimentos; e d'ahi, o senhor está tão moço! Eu, comtudo, sou mãe, Pavel Alexandrovitch. Caso a Zina com o principe um tanto por{108} causa d'elle tambem, visto que para elle o casamento pode representar a salvação! Ha tanto tempo que voto amizade áquelle honradissimo ancião, tão bondoso, cavalheiresco! Quero arrancál-o ás garras d'aquella infernal creatura que ha de pregar com elle na cova!... Invoco a Deus por testemunha em como foi patenteando á Zina todo o alcance do heroismo da sua dedicação que eu pude convencêl-a.
Arrastou-a o irresistivel prestigio da abnegação. Ella propria tem o que quer que seja de cavalheiresco. Submetti-lhe o meu projecto sob colôr de um acto christão. Vaes ser, lhe disse eu, o amparo, a consolação, a amiga, a filha, a beldade, o idolo de um homem que talvez que nem um anno tenha de vida. Mas sequer ao menos, extinguir-se-ha no dôce calôr do amor. Estes seus ultimos dias parecer-lhe-hão um paraiso. Onde é que vê n'isto egoismo, Pavel? Não! e não! É um acto de irmã de caridade.
—A senhora, então, procede desse modo, por amizade para com o principe... á laia de irmã de caridade? commenta o ironico Mozgliakov.
—Comprehendo essa sua pergunta, Pavel Alexandrovitch, é clarissima. Suppõe que estou fazendo uma confusão jesuitica dos interesses do principe com os meus. Pois bem, é possivel que me tivesse atravessado pela mente semelhante calculo, inconscientemente, porém, e sem resquicios de jesuitismo. Espanta-o esta minha franqueza? Peço-lhe apenas uma mercê, Pavel Alexandrovitch: não involva a Zina n'este negocio! Está pura que nem uma pomba. Não calcula; sabe apenas amar, pobre pequena! Se houve alguem que calculasse, esse alguem fui eu, e só eu! Indague, porém, sinceramente da sua consciencia e diga-me{109} quem seria que no meu logar não haveria calculado? Calculamos os nossos interesses, as nossas mais generosas acções, até, sem darmos por isso, instinctivamente. Pois; se enganam, quantos alarmam que procedem movidos por pura nobreza de alma. Eu, porém, não quero enganál-o. Confesso que calculei. Mas, sempre quero que me diga, seria levando em vista o meu interesse pessoal? A mim, Pavel Alexandrovitch, que mais me será preciso? Vivi o meu
seculo[12], calculei para bem d'ella, do meu anjo, da minha filha: e qual será a mãe que m'o lance em rosto?
As lagrimas inundavam o rosto de Maria Alexandrovna.
Pavel Alexandrovitch tem escutado com pasmo semelhante confissão: latejam-lhe as palpebras, esforça-se por comprehender.
—Qual seria a mãe, sim! diga lá!... pergunta elle, em conclusão.
Mas cae em si, acto continuo, e:
—Canta lindamente, Maria Alexandrovna, mas tinha-me dado a sua palavra, tinha-me alentado a esperança... Como posso eu supportar semelhante coisa? Terei que engulir a propria vergonha!
—E acredita talvez que não pensei no senhor, meu querido Pavel? Pelo contrario, em todos os meus calculos, o senhor tinha a sua parte. Ouso dizer, até, que foi por sua causa que eu emprehendi este negocio.
—Por minha causa! exclama Mozgliakov, desnorteado, d'esta vez. Como assim?! 
—Meu Deus! Como é que se pode ser tão simples, ter{110} vistas tão limitadas! exclama Maria Alexandrovna erguendo as mãos ao ceu. Esta mocidade! O tal Shakspeare! E ahi tem o que elle lhe arranjou, aquelle sonhador, aquelle phantasista! Viver da intelligencia e dos pensamentos alheios! E o senhor a perguntar—meu bom Pavel Alexandrovitch, qual é n'este caso o seu interesse. Para maior clareza, consintame uma leve digressão. A Zina ama-o, é incontestavel Mas tenho notado que, a despeito do seu manifesto amor, o caracter de Pavel Alexandrovitch, as suas aspirações lhe tem incutido uma tal ou qual desconfiança. Por vezes, e como que de caso pensado, contêmse, é fria para com o senhor. Eis o resultado das reflexões que a levaram a desconfiar. Pois não reparou tambem n'isto que lhe estou dizendo, Pavel Alexandrovitch?
—Reparei, sim, hoje ainda. Mas que quer dizer com isso, Maria Alexandrovna? 
—Bem vê, o senhor foi o proprio a reparar n'isso: logo, não me enganei. E acima de tudo, foi a estabilidade do seu caracter, a sua constancia o que mais duvidas lhe incutiu. Sou mãe, e não havia de conhecer o coração de minha filha! Ora imagine agora que, em vez de entrar aqui com exprobações, e até com injurias, em vez de a irritar, de a offender, de a melindrar, a ella tão bella, tão pura e soberba, e por esse facto, a despeito ainda da sua vontade, ir tornar-lhe mais firme a desconfiança com respeito ás suas inconstancias; supponha que acceitava com brandura a noticia, com lagrimas de magua, com desespero, até, mas com dignidade... 
—Hum!
—Mau! Não me interrompa. Pavel Alexandrovitch. Quero{111} expôr-lhe um quadro que possa ferir-lhe a imaginação. Ora imagine que ia ter com ella e lhe dizia: "Zina, amo-te mais que a propria vida, mas afastam-nos umas razões de familia. Comprehendo essas razões: trata-se da tua ventura e não me atrevo a insurgir-me contra ella. Perdôo
te, Zinaida; sê feliz se puderes!" E dito isto, lhe lançava uns olhos, uns olhos de cordeiro nas vascas da agonia, se me é licita a expressão. Ponha tudo isto na sua ideia e calcule o effeito que haveria produzido uma scena assim no coração della!
—Pois sim, Maria Alexandrovna, supponhamos tudo isso—É certo que eu podia ter me expressado d'esse modo... mas nem por isso deixaria de voltar pelo mesmo caminho com um não pelas ventas.
—Não, não, e não, meu amigo. Não me interrompa! Quero acabar de pintar-lhe o quadro para que no animo lhe produza uma impressão nobre e completa. Imagine, pois, que a vinha a encontrar; d'ahi a tempos, na alta sociedade, num baile illuminado à giorno, ao som de uma musica enebriante, no meio de um sem numero de beldades, e, no melhor da festa tão deslumbrante, o senhor, para alli, sósinho e triste, a scismar, pállido, encostado para alli, algures, a uma columna, mas de modo a dar nas vistas; o senhor a seguil-a com os olhos na vertigem da dansa; ao pé do senhor a vibrarem os divinos accordes de Strauss. Fuzila por todos os lados nas conversas o espirito da alta sociedade; e o senhor sósinho, enfiado, melancholico, immerso na propria paixão.
Considere—em que estado ficará a Zina quando o vir! E com que olhos o não ha de ella contemplar! "E eu," pensará{112} ella, "que duvidei d'aquelle homem! Tudo me sacrificou! Despedaçou o proprio coração por minha causa!" Certamente, o seu amor de outr'óra resuscitar-lhe-hia lá dentro com força irresistivel.
Deteve-se Maria Alexandrovna para cobrar alento. Mozgliakov a barafustar na cadeira, que por pouco não estoira de todo. Maria Alexandrovna prosegue:
—A Zina, por causa da saude do principe, parte para o estrangeiro, para Italia ou para Hespanha, o paiz das murtas, dos limoeiros, do azulino céu do Guadalquivir, o país do amor, o país onde se não pode viver sem amar, onde as rosas e os beijos adejam por assim dizer no ar. E o senhor vae atrás d'ella, compromette a sua situação, as suas relações, tudo!... E principia então o seu romance de amor: amor, mocidade, Hespanha... Deus meu!... É certo que será platonico o seu amor, puro... mas o senhor... em summa, enlanguescem a contemplarem-se um ao outro... Espero que me haverá comprehendido, meu amigo?—Não faltarão, por lá, entes soêzes, vis, miseraveis para affirmar que não foi a lembrança do seu parentesco com o velho que o arrastou ao estrangeiro. Muito de proposito me referi ao platonismo do seu amor; não ignoro que haverá quem lhe atribua differente significação.
Mas sou mãe, Pavel Alexandrovitch e seria incapaz de o impellir para mau caminho!... É claro que o principe os não poderá vigiar a ambos; isso que importa, comtudo? Poderse-ha fundar n'isso semelhante accusação?
Até que por fim, morre o principe abençoando o proprio destino. Ora diga-me quem é que depois ha de casar com a Zina, a não ser o senhor? É parente tão afastado do{113} principe que o parentesco nunca poderia representar um impedimento ao consorcio. Acceita-a, joven, rica, princêsa, e em que ensejo? Quando os mais nobres senhores se poderiam ufanar da sua alliança! Por causa d'ella, entra na mais alta sociedade; obtêm um posto de summa importancia, promoções. Diz o senhor que dispõe de cento e cincoenta almas? Mas depois será rico. O principe não deixará de fazer um testamento nos termos, por isso lhe respondo eu. E em conclusão, o principal, é o ella estar segura
dos seus sentimentos e o senhor vir a ser para ella um heroe pela virtude e pela abnegação. E ainda me pergunta, onde vae n'isto o seu interesse? Tem-n'o deante dos olhos, a contemplál-o, a rir-se para o senhor, e a dizer-lhe: "Aqui me tens!" Ora vamos, Pavel Alexandrovitch!... 
—Maria Alexandrovna! exclama Pavel Alexandrovitch, a tudo fiquei percebendo, agora! Portei-me como homem grosseiro, vil, reles!... 
Levanta-se com vivacidade e puxa pelos cabellos ás mancheias.
—E como homem inconsiderado, accrescenta Maria Alexandrovna, inconsiderado, eis o que o senhor é!
—Sou um asno, Maria Alexandrovna! exclamou com desespero o môço. E agora, está tudo perdido! E eu que a amava com loucura!
—É possivel que não esteja tudo perdido, declara Madame Moskalieva, baixinho, como quem está reflectindo.
—Ah! se fosse possivel! Ajude-me! aconselhe-me! Valha-me! E pôs-se a chorar o Mozgliakov.
—Meu amigo, diz em apiedada voz Maria Alexandrovna e estende-lhe a mão,— praticou esse seu acto no ardor do{114} seu affecto, estava exasperado, nem sequer tinha consciencia do que fazia. E ella não deixará de o avaliar.
—Amo-a com loucura e estou prompto a sacrificar-lhe seja o que for! clama o Mozgliakov.
—Ora escute, justifica-lo-hei aos olhos d'ella.
—Maria Alexandrovna!
—Sim, fica tudo por minha conta: collocál-os-hei em presença um do outro. E o senhor diz-lhe tudo tal qual eu acabo de lh'o dizer.
—Ah! meu Deus! Que bondade a sua, Maria Alexandrovna!... Mas... não seria possivel procedermos a isso desde já?
—Deus nos defenda! Sempre é muito estouvado, meu amigo! Ella, então, que é tão soberba! Ia tomar isso como uma nova insolencia, um ultraje, até! Eu arranjarei tudo, e não ha de passar d'amanhã; agora, comtudo, vá se embora, vá até casa do tal negociante, ou para onde lhe apetecer... Ou, se, antes quer, volte esta noite, mas não serei eu que lh'o aconselhe.
—Vou m'embora! vou m'embora!
Meu Deus! Resuscitou-me! Mas uma pergunta, ainda: e se o principe não morre tão cedo?
—Valha-nos Deus! Sempre é muito ingenuo, meu caro Pavel! O senhor o que deve é rogar a Deus que conserve os dias d'aquelle vélhito, todo elle bondade, carinho, cavalheirismo! Devemos desejar-lhe longa vida, de todo o coração! E eu serei a primeira; noite e dia, com lagrimas, a rezar pela ventura de minha filha! Mas, ai de mim! A saude do principe, coitado, quer me parecer que está muito abalada! E demais, elle não deixará de fazer a sua{115} visita á capital, de levar a Zina aos bailes, e receio muito, muito, acredite, que isso concorra a dar cabo d'elle! Orêmos, porém, meu caro Pavel, e quanto ao mais, entreguêmo-nos nas mãos de Deus! Espére, arme-se de paciencia, seja viril, e viril, acima de tudo! Nunca puz em duvida a nobreza dos seus sentimentos... Aperta-lhe com força as mãos, e o Mozgliakov sáe do aposento em bicos de pés.
—Até que em fim! Vi-me livre de um imbecil! diz com ares de triumpho. E agora vamos aos outros... Abre-se a porta e entra por ali dentro a Zina. Vem mais pallida do usual; fulgem-lhe os olhos com febril clarão.
—Mamã, veja se acaba com isto, que eu estou, que já nem posso mais; é tão nojento tudo isto que me vem tentações de fugir por ahi fora. Não me faça padecer por muito mais tempo, não me irrite! Este lodaçal causa-me engulho, entendeu?
—Zina, que tens tu, meu anjo?... Estiveste escutando á porta! exclama Maria Alexandrovna olhando de fito para a filha.
—Escutei, é verdade.—Veja se m'o quer lançar em rosto, como o fez aquelle imbecil? Juro-lhe que se porfiar em obrigar-me a representar semelhante papel em tão vergonhosa comedia, renuncío a tudo, e acabo com tudo, com uma só palavra. Não ha duvida que me resolvi a prestar-me á principal vilania, mas foi por me não conhecer a mim mesma; atabáfo com semelhante vergonha!
E sae atirando com a porta.
Maria Alexandrovna segue-a com a vista e fica a scismar.
"É andar ligeira, depressa! É de si que depende tudo,{116} e em si que consiste o maior perigo, e se esses miseraveis porfiarem em se colligar contra nós, se principiam para ahi a dar á lingua, tudo está perdido! E ella não poderá resistir contra tantas arrelias e acabará por entregar-se mediante uma rejeição. Custe o que custar e sem demora, urge carregar para o campo com o principe. Prego commigo lá, n'um pulo, e carrégo com aquelle estafermo do senhor meu esposo para aqui. Sequer ao menos sirva para alguma coisa! E assim que o outro accordar, safamo-nos."
Toca a campainha.
—E então! a parêlha? pergunta ao creado que entra.
—Está prompta, ha que tempos, responde o criado.
(Maria Alexandrovna mandou pôr o trem no acto de acompanhar o principe ao quarto d'este.)
Veste-se á pressa e corre ao quarto da Zina para lhe transmitir o seu plano e dar-lhe as devidas instrucções. A Zina, comtudo, nem lhe quer dar ouvidos, debruçada no leito com o rosto enterrado no travesseiro ensopado de lagrimas; a arrancar com as niveas mãos os compridos cabellos; tem os braços nus até ao cotovêlo. Saccóde-a, a revézes, um estremeção. A mãe dirige-lhe a palavra, sem que a Zina consinta em erguer a cabeça.
Maria Alexandrovna insiste por instantes, depois, sae, inquietissima. Sobe para a carruagem e recommenda que espertem a parelha.
"O peor de tudo", vae ruminando comsigo, "é a Zina ter ouvido a conversa que eu tive com o Mozgliakov. Empreguei com ella e com elle quasi que os mesmos argumentos; ella é orgulhosa e offender-se-hia, talvez... Hum! o que a tudo sobreleva, é a necessidade de por mãos á obra,{117} antes de que conste seja o que fôr! Que desgraça! E se eu, para mais ajuda, não fosse encontrar em casa aquelle meu imbecil?!"
Ante esta hypothese, enraivece-se, toma-se de um rancor que nada vaticina de bom para Aphanassi Matveich. E Maria Alexandrovna impaciente, a esfervilhar! 
Os cavallos despedem a galope.{118}
 
A carruagem não corre, vôa.
Dissémos que, n'aquella mesma manhã, emquanto ella andava em procura do principe, por todos os cantos da cidade, já havia accudido á mente de Maria Alexandrovna um alvitre genial: era o confiscar por sua vez o principe quanto antes, e pregar com elle no campo;—n'aquella aldeia onde floria em paz o beatifico Aphanassi Matveich. Ia pois realizar aquella sua inspiração. Mas não encubramos ao leitor que principiava a sentir-se atribulada por uma inquietação inexplicavel. Aos proprios heroes acontece outro tanto, e no ensejo, justamente, em que estão prestes a atingir seus fins. Advertia-a um qualquer instincto de que havia perigo na permanencia em Mordassov.
"Uma vez no campo, vire-se tudo isto pés, com cabeça, que a mim tanto se me dá!"
É certo, que ainda no proprio campo, não ha tempo para perder: tudo poderá acontecer, tudo... E n'essa conformidade, Maria Alexandrovna acha-se resolvida a concluir immediatamente o consorcio. O cura da aldeia procederá á ceremonia na propria residencia. D'alli a dois dias, no outro dia, talvez, em caso de urgencia. Quantos casamentos se não tem visto, aldravados para alli em duas horas! Quanto ao principe, é levál-o a acceitar como necessidade de bom sizo uma tal precipitação, semelhante ausencia de toda e qualquer festa. "Será mais decente e mais{119} nobre"... Poder-sehia até seduzil-o pelo lado romanesco do negocio e fazer-lhe vibrar assim a fibra sentimental do coração. Enebriál-o-ha, se tanto fôr necessario, mantêl-o-ha n'aquelle estado de embriaguez, e a Zina ha de ser princêsa.
Se houver algum escandalo lá por Petersburgo ou por Moscou entre a parentéla do principe, consolações não hão de faltar. Em primeiro logar, são coisas que ainda estão para vir; em segundo, Maria Alexandrovna está convencida de que, na alta sociedade, nada se faz sem escandalo, e muito mais tratando-se de casamento: que é estilo. Mas os escandalos da alta sociedade, a seu ver, tem uma côr mui particular de grandiosidade, no genero do Monte-Christo e das Memorias do Diabo. Finalmente, a Zina bastar-lhe-ha mostrar-se, e a mãe ajudál-a com seus conselhos, e toda a gente ficará desarmada, actocontinuo, entre todas aquellas condessas e princêsas, não havendo uma só que seja capaz de resistir á mordassoviana habilidade de Maria Alexandrovna, sósinha contra todas ellas juntas ou contra cada uma em particular.
E é animada por semelhante pensamento que Maria Alexandrovna vem ter com Aphanassi Matveich o qual lhe é necessario, segundo seus planos.
Effectivamente, levar o principe para o campo é levál-o para casa de Aphanassi Matveich com quem o principe é possivel não se dar lá muito de travar conhecimento: mas se Aphanassi Matveich fôr o proprio a convidál-o, o caso muda de figura. E demais, a apparição de um chefe de familia, de edade veneranda, de gravata branca, casaca, chapeu na mão, acorrendo expressamente das suas propriedades, á noticia de que se acha em Mordassov o principe{120} K... é caso para produzir optimo effeito no amor proprio d'aquelle ginjinha.
Até que por fim, havendo tragádo três verstas a carruagem, o cocheiro Safron pára junto ao patim de um comprido edificio com um unico andar, casarão de madeira, com uma extensa fieira de janélas, e envolto n'umas tilias venerandas. É a residencia estável de Maria Alexandrovna.
Já se acham illuminadas as janélas.
—Onde está o manequim? clama Maria Alexandrovna caíndo como uma trovoada, no vestibulo. Que faz aqui esta toalha? Ah! estava aborrecido, e ainda não saiu do banho! E sempre n'aquelle fadario do chá! E então! Para que estarás tu para ahi a esbogalhar esses olhos, meu idiota incuravel? Por que é que se não corta esse cabello?!
Grichka! Grichka! Por que é que não cortaste o cabello ao barine conforme te dei ordem, a semana passada?
Maria Alexandrovna premeditára operar em casa de Aphanassi Matveich uma entrada menos violenta. Mas ao vêl-o entretido a sorver o seu cházinho, com toda a sua pachorra, não foi senhora de sopitar a indignação. Para ella, tamanhos cuidados, e para elle, para aquelle ente inutil, aquella paz podre! Semelhante contraste chóca de modo cruel Maria Alexandrovna. E todavia, o manequim, ou para nos expressarmos com mais urbanidade, aquelle a quem applicam o ápodo, está sentado em frente do samovár; inerte, bôcca e olhos escancarados, petrificado, quasi, pela apparição da consorte. O adormecido vulto do Grichka assoma ao vestibulo. O Grichka tosqueneja os olhos durante toda esta scena.
—Se elle não deixa... E ahi esta porque é que o não{121} fiz, profere em voz encatarroada e socarrôna. Peguei na tesoira para ahi umas dez vezes, e a dizer-lhe: A barinia não tarda por ahi e apanhamos ambos a nossa conta!—E vae elle e diz-me:—
Não—espera ahi: quéro que me frizes no domingo; e é preciso para isso que o cabello tenha comprimento.
—Muito me contas: Com que então elle, friza-se? Inventaste então essa obra dos frizados, assim que eu virei costas?
Que termos são esses? Cuidas talvez que embellezas assim essa tua cabeça de idiota? Santo Deus! Que desordem que por aqui vae! E que cheiro! Não me dirás, miseravel, d'onde provém semelhante cheiro? vociféra a consorte a crescer de mais em mais ameaçadora para o innocente e assarapantado de todo Aphanassi Matveich.
—Ah... mi-minha mãezinha, balbucía o esposo sem se erguer e desfechando sobre o seu generalissimo uns olhos assustados e suplices, mi... mi... minha mãezi... 
—Quantas vezes não tenho eu tentado encaixar-te n'essa cabeça de burro que não sou tua mãezinha, pedaço de pygmeu? Como te atreves a tratar por semelhante nome uma senhora nobre cujo logar é na alta sociedade, e não ao pé de um aguadeiro da tua laia?
—Mas, Maria Alexandrovna, tu com tudo isso não deixas de ser minha mulher em face das leis! e eu... estou-te falando... na qualidade de marido! Objecta Aphanassi Matveich, levando a um tempo a mão aos cabellos para os defender.
—Ah! Carranca! Cêpo! Se já se viu! Mulher d'elle em face das leis!... Que quererá dizer uma mulher em face{122} das leis? Haverá na alta sociedade alguem que empregue semelhante termo de seminarista:—em face das leis?—E quem te deu o atrevimento de me recordares que sou tua mulher, a mim que faço quanto posso para o esquecer? E para que estavas tu a tapar a cabeça com as mãos?
Olhem para este cabello! Todo encharcado! Não está enxuto estas tres horas mais chegadas! Como hei de eu carregar com elle? Haverá meio de o arrancar d'aqui?—Que hei de eu fazer? Maria Alexandrovna péga ás carreiras pela casa fóra, a estorcegar as mãos. A desgraça é nulla e facil de remediar, não ha duvida, mas se ella não pode ter mão n'aquelle seu genio imperial, impaciente em presença do minimo impecilho! Sente que precisa de desabafar a colera na pessoa de Aphanassi Matveich, visto como a sua habitual tirannia desandou para si em necessidade. E depois, toda a gente sabe o acervo de inopinadas grosserias de que são capazes, longe das vistas dos mirones, uns certos entes delicados e pechósos da sociedade mais graúda. Aphanassi Matveich, estupido e tremelica, cança a vista a seguir com os olhos as evoluções todas da consorte. 
—Grichka, exclama esta por fim, traze já, já, ao barine tudo que é preciso para se vestir de ceremonia, calça, casaca, gravata e colete, brancos. Vá, despacha!
Onde iria parar a escova do cabello?
—Mas se eu acabo de sair do banho, minha mãezinha, vou apanhar algum resfriamento... 
—Qual historia!... 
—Estou com a cabeça encharcada!... 
—Ênxuga-se. Grichka, escova o cabello ao barine, até{123} que enxugue. Com mais força... mais... ainda mais... Assim!
O fiel e zeloso Grichka esfréga, com quanta força tem, o seu barine a quem, para mais commodidade, agarrou pelo cachaço, encostando-o para trás no divan.
Aphanassi Matveich por pouco não desata a chorar.
—E agora, em pé!... Vê se o levantas, Grichka, dá cá a pomada... 
—Vá, abaixas-te ou não, miseravel!
Abaixa-te, já te disse, meu papa jantares.
Maria Alexandrovna com as proprias mãos besunta a grenha ao marido, puxando sem dó nem consciencia pelos cabellos, bastos e grisalhos que elle, por sua desgraça, não deixou cortar. Aphanassi Matveich põe-se a gemer, a suspirar e aguenta, Deus sabe como, semelhante provação.
—Miseravel! Foste tu que murchaste as flores da minha mocidade!... Abaixa mais essa cabeça, não ouves! Abaixa-te!
—Mas como é que eu murchei as tuas flores, minha mãezinha? regouga o esposo de bruços no divan.
—Manequim! Nem sequer percebeste a allegoria! Agora vê se te penteias.
—Grichka, veste-o depressa, anda!
A nossa heroina senta-se n'uma poltrona a vigiar com olhos de inquisidor a ceremonia indumentaria.
Aphanassi Matveich lá conseguiu tomar folego, e, quando se chegou ao laço da gravata, afoita-se a ponto de emittir opiniões ácêrca do feitio e da perfeição da laçada. Em conclusão, assim que envergou a casaca, a distincta personagem{124} tem reconquistado de todo o aprumo e pega a rever-se ao espelho com manifesto desvanecimento.
—Mas para onde é que tu me levas, Maria Alexandrovna? indága, a fazer moquenquices á propria imagem.
Maria Alexandrovna hesita em acreditar n'aquillo que ouviu.
—Não ouvem isto? Ora o manequim! E como te atreves tu a perguntar-me para onde é que eu te lévo?
—Mas já se vê que o devo de saber, minha mãezinha.
—Caluda! Torna-me tu a tratar de mãezinha, e muito mais no sitio aonde vamos, e ficas sem chá um mês inteiro.
O marido, espavorido, nem bole sequer.
—Se já se viu? Nem sequer conseguiu apanhar a mais réles condecoração?
Colherão de marmita!—exclama ao contemplar com desprezo a casaca do marido, casaca virgem de toda e qualquer insignia.
Até que por fim, Aphanassi Matveich sente-se melindrado.
—Eu não sou colherão de marmita, sou conselheiro, minha mãezinha, pondéra com assômo de nobre indignação.
—Quê—quê—quê?—A raciocinar, por mais que me digam! Ora o mujik, o ranhoso! Tenho pêna de me faltar tempo para te ensaboar esse bestunto, quando não... Mas não as perdes, deixa estar!... Grichka, dá-lhe o chapéu e a chuba[13]. Assim que eu saír, arruma estes três quartos e o quarto aberto. Vá, pega n'essa vassoira! tira as capas aos espelhos, aos relogios e quero tudo prompto em menos de{125} uma hora! E tu, tambem, veste a casaca, e dá luvas aos criados! Ouviste, Grichka? Ouviste?
Sobem para a carruagem. Aphanassi Matveich está com uma cara espantada. Maria Alexandrovna dá voltas ao miolo para lhe encasquetar na cabeça e na memoria as recommendações mais essenciaes, elle, porém, interrompe-lhe as suas cogitações.
—Maria Alexandrovna, eu esta noite tive um sonho tão exquisito, diz, após breve silencio.
—Ápre! Manequim de uma figa! E eu que estava a pensar!... Como te atreves tu a virme para cá com esses teus sonhos de mujik? Escuta, e olha que t'o digo pela ultima vez, se te atreveres, hoje, a fazer a minima allusão aos taes sonhos ou ao quer que seja,... toma sentido... nem sei o que ha de ser de ti! Escuta bem: o principe K... está hospedado em nossa casa. Lembras-te do principe K... 
—Se lembro! minha mãezinha, lembro-me muito bem! E por que é que elle nos dispensou tamanha honra?
—Cala-te, não é da tua conta! Tu, com a maxima amabilidade, e como dono de casa, vaes convidál-o a vir comnosco para o campo. Partimos ainda hoje. Mas se lhe disseres uma palavra só que seja, em toda a noite, ou amanhã... ou no outro dia... ou em toda a roda do anno, mando-te guardar gansos! Nem palavra! São essas as tuas funcções—e mais nada! Intendeste?
—Mas se me fizerem perguntas?
—Não importa! Cálas-te.
—Pois sim, mas uma pessoa nem sempre pode ficar calado, Maria Alexandrovna!{126}
—Responde com monosylabos, um hum!... ou coisa que o valha, para que fiquem na persuasão de que és homem espirituoso e que reflectes antes de responder.
—Hum!... 
—E atenta bem n'isto que te estou dizendo. Carrégo comtigo: ouviste falar do principe, e acto-continuo, doido de contente, deste-te pressa em vir apresentar-lhe os teus respeitos e convidál-o a ir para o campo. Percebeste? 
—Hum!
—Para que estás tu já a dizer: hum! meu parvalhôco! Responde.
—Está bom, minha mãezinha, tudo se fará á medida dos teus desejos. Mas, não me dirás por que é que eu tenho que o convidar?
—Quê, quê? pois ainda te mettes a raciocinar?! Que tens tu com isso? E ainda te atreves a fazer-me perguntas?
—Mas... é que eu, por mais que faça não posso perceber como é que eu o hei de convidar sem dizer palavra!
—Eu falarei por ti, e tu, fazes-lhe a tua cortesia, e mais nada, percebeste?—De chapeu na mão... 
—Percebi..., minha mãe... Maria Alexandrovna.
—O principe é espirituosissimo: diga elle o que disser, ainda quando se não dirija á tua pessoa, responde-lhe a tudo com um sorriso bonacheirão e alegre, percebeste?
—Hum!
—E elle a dar-lhe com o hum! Vê se acabas com o tal hum!—a mim, responde-me ao que eu te perguntar. Percebeste?
—Percebi, Maria Alexandrovna, percebi muito bem. E como é que eu não havia de perceber? Mas estou a dizer{127} hum! para me ir exercitando. O que tu queres é que eu me ponha a olhar para o principe, com um ar de riso... mas quando elle não me vir?
—Forte espantalho! Forte idiota! Cala-te, cala-te, e cala-te! Olha e sorri. 
—Mas se elle é capaz de suppor que sou surdo!
—Olhem a desgraça! Sequer ao menos não ficará sabendo que és um imbecil. 
—Hum! E se mais alguem me fizer perguntas?
—Ninguem t'as faz, deixa estar! E demais, não estará lá ninguem. E se por infelicidade, do que Deus nos defenda, apparecer alguem e te perguntarem alguma coisa, responde desde logo com um sorriso sarcastico. Sabes o que vem a ser um sorriso sarcastico?
—Uma careta muito espirituosa, pois não é verdade, minha mãezinha?
—Eu te darei o espirituoso, deixa estar, manequim! E quem é que te iria suppor capaz de ter espirito, meu asneirão? Um risinho de escarneo, percebeste? De escarneo e de desdem.
—Hum!
—Ai! Estou toda eu em suores frios por causa d'este estafermo! murmura Maria Alexandrovna. Não ha mais que ver, acho que fez uma jura em como me havia de murchar de todas as minhas flores! Teria sido muito melhor o prescindir delle.
A raciocinar por esta forma, Maria Alexandrovna tudo é olhar pela vidraça do trem e atiçar o cocheiro. Voam os cavallos, e ella a achar que se não mexem. Aphanassi Matveich, alapardado a um canto, a repetir mentalmente a{128} lição. Até que emfim a carruagem alcança a casa de Maria Alexandrovna! Mas ainda bem a nossa heroina não tinha posto pé no patim, eis que vê passar ao lado do seu proprio trem um trenél coberto, de dois assentos, o trenél da Anna Nikolaievna Antipova.—Vinham n'elle duas senhoras. Uma dellas é a propria Anna Nikolaievna Antipova, a outra a Natalia Dmitrievna, duas amigas sinceras e recentes. Maria Alexandrovna olha para ellas, e o coração dá-lhe um báque. Ainda bem não abrira a bocca para exclamar, eis que chega outra carruagem, com outra visitante. Ouvem-se alegres exclamações.
—Maria Alexandrovna com o Aphanassi Matveich... ambos no mesmo trem! Feliz coincidencia! E nós que vinhamos passar a noite em sua casa! Agradabilissima surpreza!
As visitantes galgam a escada a pipilarem que nem andorinhas, Maria Alexandrovna contempla-as, estupefacta.
—E não vos tragar o chão! diz, lá comsigo; cheira-me isto a conluio... Pois sim!... vocês o que não tem é unhas para luctar commigo, minhas amiguinhas!... Esperem um nadinha!... {129}
 
Mozgliakov saíu de casa de Maria Alexandrovna, consoladissimo. Não foi a casa do Borodoniev, pois necessitava de estar sósinho. Sentia a cabeça atravancada de romanescos devaneios. Phantaziava a explicação solemne com a Zina, o generoso perdão, scena melancolica no baile, lá em Petersburgo; Hespanha, o Guadalquivir, o principe no leito da agonia a juntar nas proprias mãos as mãos dos dois amantes, e em conclusão, o amor d'uma mulher tão formosa, vencido por tanto heroismo; por aqui e por acolá, um ou outro favor de alguma baronêsa, ou condessa de alto cothurno, n'aquella sociedade onde semelhante casamento lhe daria certamente ingresso, um logar de vice-governador, dinheiro; n'uma palavra, toda a eloquente descripção de Maria Alexandrovna. Mas, emfim, como explicál-o?—Através de todos aquelles arrebatamentos eis lhe surge o seguinte pensamento, algo desagradavel, que, em todo o caso, tudo aquillo estava ainda em vêl-o-hemos, e no momento actual, elle, com o que ficara, fôra com um nariz de palmo! De subito, nota que se alargou demais pelo arrabalde menos central de Mordassov. Vem caíndo a noite. Pelas ruas, ladeadas de pardieiros, ladram, como aliás succede em toda e qualquer cidade provincial, aquelles innumeros cães que infestam de preferencia os bairros em que nada ha que guardar ou que roubar. Derrete-se a neve. De vez em quando, topa-se com algum mestchanine retardado,{130} ou com qualquer baba[14] enfunicada n'uma tulupa e a arrastar umas botifarras. Tudo aquillo principiava a irritar a Pavel Alexandrovitch: mau signal, visto como, quando uma pessoa está contente, a tudo acha risonho. Pavel Alexandrovitch lembra-se com despeito de que, até aquelle dia, era elle quem dava o tom em Mordassov. Era recebido por toda a parte como um noivo, uma situação tão interessante, e felicitavam-n'o, e elle todo desvanecido. E eis que, de subito, vinha a constar que se achava reformado; rir-se-hiam á sua custa por toda a parte. E com tudo isso não é exequivel estar a iniciar toda a gente ao segredo do tal baile de Petersburgo, da columna melancolica e do Guadalquivir!
Triste e pensativo, acaba por formular este pensamento que secretamente lhe faz sangrar o coração desde alguns instantes: "Mas tudo isto será verdade, realmente? Virá tudo a acontecer conforme m'o pintou Maria Alexandrovna?" Occorre-lhe, n'aquelle ensejo, exactamente, que Maria Alexandrovna é mulher arteira quanto possivel; que, apezar da estima geral que disfructa, é uma enredadeira de respeito, que mente com o maximo desplante, que é possivel que tivesse motivos particulares para o afastar; que, emfim, o descrever um quadro seductor não compromete a coisa nenhuma. Pensa na Zina, revóca aquelle seu olhar de despedida tão pouco compativel com um desatinado amor. Lembrase de que uma hora antes foi tratado por ella na qualidade de asno—sem tirar nem pôr. Ante uma{131} tal recordação, Pavel Alexandrovitch estaca de vez, como que pregado ao chão, e ruboriza-se a ponto de lhe virem as lagrimas aos olhos. E como que de proposito, d'ali a instantes, acontece um desagradavel incidente: escorrega e estatéla-se num montão de neve... Emquanto elle escabuja e patinha, um bando de canzoada, que vinham atrás d'elle a ladrar, accodem por todos os lados; um d'elles, o mais pequeno e mais atrevido, aferra-se-lhe á aba da chuba. Pavel Alexandrovitch desenvencilha-se dando ao diabo a cainçada e o destino e, com a aba do casacão esfarrapada e uma indefinivel tristeza na alma, lá se vae arrastando até á esquina da rua. Ali, percebe que vae perdido.
É sabido que um homem, quando se acha perdido em um bairro que lhe é extranho, e muito mais de noite, nunca se resolve a meter a direito por uma rua larga. Impelle-o, mau grado seu, um poder misterioso para toda a casta de betesgas que topa a geito. Em harmonia com este sistema, Pavel Alexandrovitch perde-se de todo. "Diabos levem tanta chiméra!" exclama e cospe com engulho. "Leve o diabo os sentimentos elevados e o tal Guadalquivir!"
Não me abalanço a afiançar, que Mozgliakov n'aquelle ensejo apresentasse aspecto por demais seductor. Até que emfim, extenuado, fatigado, em seguida a haver andado a êsmo para cima de duas horas, alcança a escadaria de Maria Alexandrovna. Fica espantado ao dar com os olhos em tanta carruagem: "Tem visitas? Alguma soirée? Com que intenção?"
Informado por um lacaio de que Maria Alexandrovna tinha carregado com Aphanassi Matveich do campo, de gravata branca, que o principe já está acordado, mas que{132} ainda não desceu do quarto, Pavel Alexandrovitch, sem dizer palavra, vae lá acima ter com o tio. Acha-se n'aquella disposição de animo em que um homem de caracter fraco se decide pela ideia de maior malignidade, em favor da vingança, sem se lembrar de que virá talvez a arrepender-se, durante toda a sua vida.
Sobe. Dá com os olhos no principe, sentado n'uma poltrona em frente do seu toucador de viagem, com a caréca á vela, mas com a cara já rebocada e com as suissas e a pêra postiça já pegadas. O chinó está entre mãos do edoso criado particular, Ivan Pakhomitch. Ivan Pakhomitch está a penteál-o com modo absorto e respeitoso. O principe apresenta aspecto lamentavel. Não se acha ainda restabelecido d'aquella sua temulencia. Enterrado na poltrona, a tosquenejar as palpebras, todo elle engelhado, amarrotado, e a olhar para o Mozgliakov como se o não conhecesse.
—Como vae de saude, rico tiozinho? indaga Mozgliakov.
—Como? Ah! És tu? acaba por dizer o tio. Pois eu, manozinho, dormi a minha somnéca. Ai! meu Deus! exclama de subito, animadissimo. E eu que estou sem o chi... chi... n... nó!
—Não se assuste, tiozinho! Eu ajudo-o a pôl-o se quiser.
—Ora esta! E ahi estás tu senhor do meu segredo! Eu bem dizia que era pr... preciso fe... fe... char a po... rta! Pois então, meu amigo, vaes já, já, dar-me a tua palavra de honra que... que, não has-de abu... sar do meu segredo, e que não dizes, a nin... guem que é po... pos... tiça a minha cab... be... leira!
—Ora vamos, tiozinho, pois suppõe-me capaz de semelhante{133} vilêza? exclama Mozgliakov que deseja agradar ao ancião.
—Está, claro... está... c... laro, e como eu sei que és cavalheiro... vá... la... vaes fi... car espantado: vou te des... vendar de todo os meus se... segredos—Que me dizes a estes bi... bigodes—m... meu caro?
—Um portento, rico tio, espantosos! Como é que os pode conservar do mesmo comprimento, por tanto tempo?
—Socéga, meu amigo... s... são postiços, diz o principe a olhar muito ufano para Pavel Alexandrovitch.
—Postiços!?—É inacreditavel! E as suissas, então? Confesse que as pinta, tiozinho!
—Não só as pin... into, como são postiças e mais que... que pos... tiças!
—Postiças! Isso agora, tenha paciencia, o tio está a caçoar commigo!
—Pa... lavra de honra, amigo! exclama o principe desvanecido. Ora põe na tua ideia, que toda a gente... sem excepção—anda ill... udida, como tu. A propria Stepanida Matveina não quer acreditar que o sejam, e olha que é ella quem m'as põe. Mas tenho a certeza, meu amigo, de que me has de guardar segredo—Dá-me a tua pa... palavra de honra... 
—Conte desde já com ella, querido tio! Mas, insisto, suppõe-me então capaz de semelhante vilania?
—Ai! meu amigo! Que tombo que eu apanhei! Não fazes ideia! O Pamphili, tornou-me a virar a car... a carruagem.
—Pois elle tornou a pregar-lhe outro tombo? Mas quando?
—Iamos nós quasi a chegar ao... mo... mos... teiro... {134}
—Já sabia, tiozinho!
—Não, não é isso... se ainda não ha duas horas. Fui ao mo... mosteiro. Foi elle que me levou... e pregou-me um tombo! Que susto que... que eu apanhei! Ainda nem tenho o co... coração no seu logar.
—Mas o tio estava a dormir?
—Está... c... laro... estava a dormir... E vae... d'ahi fui... vi... viajar... E d'ahi... d'ahi... talvez fosse... Ah! que coisa tão exquisita!... 
—Afirmo-lhe que estava a dormir, tiozinho... que sonhou... Depois de jantar ferrou-se a dormir muito socegado.
—De... devéras?!
O principe pós-se a scismar.
—Sim... sim... effec... tivamente, talvez fôsse. E d'ahi, lembro-me muito bem do sonho... todo. Primeiramente, sonhei com um toiro muito bravo... com uns páus!... Depois com um pró... ó... curador... mas tambem tinha p... páus!
—Havia de ser o Nikolai Vassiliévitch Antipov, tiozinho.
—Está... claro... era elle... era... E depois tambem sonhei com Na... napoleão... Bo... bo... naparte. Não sabes, amigo, diz toda a gente que n... nos parecêmos?... De perfil... pelos modos... faço lembrar um papa... muito antigo: Tu, que dizes?... Achas que te... terei ares de papa?
—Acho que se parece mais a Napoleão.
—Está... c... laro... é assim... mesmo... de... de... frente. E d'ahi, tambem d'isso estou conven... cido, meu{135} caro. Vi-o em sonho, sentado lá na sua ilha... Não sabes? A fô... legar... muito contente... muito lam... peiro!... Que graça que... eu lhe achei!
—Refére-se a Napoleão, tiozinho? indaga Pavel Alexandrovitch, todo elle absorto, a observál-o.
Principiava a surgir-lhe na mente um estranho pensamento, sem que elle pudesse formulál-o com clareza.
—Está claro... Na... na... po... leão. Tivémos uma pa... palestra filosó... fica... Não sabes? tenho pena de que os Inglezes lhe fizessem aquillo que... que lhe fizeram... É verdade que se elles o não tivessem en... gaiolado... atirava-se para ahi a to... toda a gente... aquelle damnado! Mas com... apezar d'isso... foi pena!... Eu cá... por mim não era capaz de o fazer! Prega... va com elle n'uma ilha deserta... 
—Deserta... então para quê? perguntou, distrahido, Mozgliakov.
—Está... claro... De... deserta, não, mas habitada por gente com juizo. E depois arranjava-lhe distracções... theatro, mu... musica... ba... bailados e tu... tudo isso por conta do Estado. Dáva-lhe licença para passear... vi... vigiado... já se vê... qu... quando não... pi... pisgava-se... Elle gostava de uns certos bôlos... Pois bem! faziam-se-lhe todos os dias... Tratava-o com pa... pater... nal carinho: Elle... commigo... arre... pen... dia-se... di... digo... t'o eu.
Mozgliakov escuta distrahido a garrulice do vegête, a roer as unhas, impaciente. Elle a querer desviar a conversa para o assunto do casamento, e nem sequer sabe o motivo, mas referve-lhe lá dentro uma maldade,{136} infame. De subito, eis que exclama o tio, muito espantado:
—Ai! meu amigo! E eu que me esquecia de t'o par... parti... cipar... Saberás que fiz ho... je o meu pe... pedido!
—O seu pedido, tiozinho?... exclama Mozgliakov animando-se acto-continuo. 
—Está... c... claro... o meu pedido! Já te vaes embora, Pakhomitch? Está bem. É uma menina encanta... dora!... Mas confesso... amigo, que andei com leviandade, estou-o per... cebendo agora... Ai! meu Deus!
—Mas, se me dá licença, querido tio, quando é que fez esse tal pedido!
—Confesso, que... não... sei ao certo, qu... ando foi, amiguinho!... Querem ver que... seria sonho, tam... tam... bem?... Que co... isa t... tão ex... quisita! 
Mozgliakov estremece de contentamento... Accode-lhe uma ideia luminosa.
—Mas a quem, e quando é que fez o tal pedido? repete impaciente, já.
—Á... á... fi... lha da casa, meu amigo... áquella... lin... da me... nina! E d'ahi... esqué... ceu... me o nome. O peor, meu amiguinho... é que não posso casar,... impos... sivel, meu amigo! Que hei de eu fazer?
—Pois decerto... semelhante casamento iria deitál-o a perder! Mas, uma pergunta: Tem a certeza de haver feito o pedido?
—Está... claro... tenho a certeza... tenho... 
—E se fosse sonho, como aquella sua quéda da carruagem?{137}
—Valha-me Deus!... E o c... caso é que é possivel... no tal sonho... E o... peor é que e... eu já nem tenho cara para lhe apparecer... E não... achas que se poderia saber... indi... recta... mente, se eu faria ou não o tal pedido? 
—Sabe o que lhe digo, querido tio? Que acho até escusado ir tirar informações.
—E... por-quê?
—Por que tenho a certeza de que tudo foi sonho, tambem.
—Tambem... me quer... parecer... m... meu ca... ro, e tanto... m... mais que eu estou sempre a ter sonhos... assim.
—Então já vê, tiozinho... Faça de conta que beberia mais um copito ao almoço... ou ao jantar... e ahi tem... 
—Está... claro... amigo... foi isso foi,... é o que havia de ser.
—Tanto mais, que o tio, por mais influido que estivesse, nunca se iria arriscar a fazer um pedido tão disparatado. O tiozinho, desde que o conheço, tive-o sempre na conta de um homem de muitissimo tino.
—Está... c... laro. Está... c... laro.
—Ora considére: ponha na sua ideia que os seus parentes, tão mal dispostos já, para com o tio, vinham a ter conhecimento do caso, que acontecia?
—Ai! meu Deus! exclama o assustadissimo principe... que acontecia?... é verdade!
—Então, já vê! Punham-se a berrar todos á uma que estava doido, que era preciso nomear-lhe tutôres, que o{138} tinham embaçado, e catrafilavam-n'o para ahi em qualquer parte, guardado á vista.
O Mozgliakov estava farto de saber que o argumento éra de molde a deixar espavorido o principe.
—Ai! meu Deus! exclamou o jarrêta, todo elle a tremer... engaiolavam-me?! 
—Ora considére, tiozinho, passar-lhe-ia nunca pela cabeça o ir fazer um pedido tão disparatado? O tio avalia muito bem os seus interesses! Affirmo-lhe que foi sonho.
—So... nho, sim, é o que foi! So... nho... e mais nada! Ah! tu... é que... que acertaste... com a coisa! E fico... te grato, muito grato... por me teres con... vencido.
—E eu, contentissimo, tiozinho, por termos vindo á fala. Se não fosse eu, o tio ficava acreditando que estava noivo, e procederia n'esse sentido. Veja lá do que se livrou!
—Está c... laro... me... livrei... dizes bem!
—Lembre-se de que está com vinte três annos essa menina! Não ha quem a queira, e eis se não quando, apparece o tio, rico, nobre e vae pedil-a em casamento! E ellas, já se vê, apanham a pélla no ar: affirmam a toda a gente que o tio está noivo e impingem-lh'a em casamento. E em seguida, põem-se á espera de que o tio se vá indo desta para melhor.
—Que... me dizes!
—E depois, tiozinho... é lá coisa que convenha a um homem da sua jerarchia... 
—Está c... claro! Jerarchia... 
—Tão intelligente... tão amável... 
—Está... c... claro... intelligente... é is... so... é!{139}
—E em conclusão, é principe... Será partido que lhe convenha, porventura? Se é que, por qualquer motivo insiste em querer casar. Lembre-se do que diriam os seus parentes.
—Ai, meu amigo, comiam-me em vida! Elles que já me não têm feito poucas terrafi... as... aquelles des... almados! Ora imagina! Desconfio até que... qué-rem pregar commigo n'uma casa... de... sa... saúde! Ora, dize-me, achas que se... ja razoavel? Que é que eu havia de fa... zer numa casa de saúde?
—Pois certamente, rico tio, e ahi está o motivo porque eu já o não largo quando o tio fôr lá para baixo. Estão lá visitas.
—Vi... sitas! Ai! valha-me Deus!
—Não se assuste, tiozinho, eu vou com o tio.
—Sou-te m... muito obrigado... muito! Fô... ste a minha redempção! Mas, qu... éres que te diga, eu antes queria ir-me embora!
—Amanhã, tiozinho, amanhã, ás sete horas da manhã! Hoje, despede-se de todos e declara que se vae embora.
—Ab... so... lu... tamente!... safo... me... ab... solu... tamente!... vou para casa do padre Missail... Mas... meu amiguinho, e se ella casar commigo contra minha vontade?... 
—Não lhe dê cuidado, tiozinho, cá estou eu. E demais, digam o que disserem, responda sempre que foi sonho... o que é verdade, aliás.
—Es... tá... c... claro, sonhei!... Mas sempre te direi... meu a... mi... miguinho, que foi um sonho delicioso!... {140} Que for... mosura! É um por... tento! E se... soubesses!... Com umas... fórmas!
—Pois então, até logo, tiozinho, vou indo lá para baixo... E o tio... 
—Ora... essa!... Então para aqui me deixas?... exclama o principe, assustado.
—Não é isso, tiozinho, eu o que vou é indo adiante... não vamos juntos. Primeiro eu, depois, o tio. É melhor assim.
—Está-c... laro... melhor. E eu, demais a mais, tenho que tomar nota d'um pensamento... capital.
—Pois é o que deve fazer, tio, vá assentando o seu pensamento, e depois, não se demore, appareça, e conte que, amanhã... 
—Amanhã, de manhã, para casa do-arci-préste... sem fa-lta,... casa... do ar... ci... ci... Magnifico! Mas olha que... ella é um por... tento de formosura! Que... fórmas! Se não houvesse outro remedio senão casar com ella... eu... então... 
—Deus o livre de tal, querido tio!
—Está claro!... livre... Está dito! até já, meu amigo! Eu não tardo lá. É só tomar no... ta... A proposito,... e... ago... ra me lembra que te queria perguntar... se... j... já tinhas lido as memorias de Cásanova?
—Já, tiozinho... Mas por quê?
—Está... c... claro—Por quê?—Mas... deixa lá... já me não lembro do que é que te queria dizer.
—Depois se lembrará, tiozinho, até logo.
—Até logo, amiguinho, até logo...—Mas que foi uma... delicia... o tal sonho... lá isso foi!{141}
 
—Viémos vêl-a todas, todas! A Prakovia Ilinicha não tarda por ahi! A Luisa Karbovna tambem queria vir, pipila a Anna Nikolaievna dando entrada na sala e a inspeccionar tudo em redor com uns olhos de bisbilhoteira.
É uma mulherzinha, bonitinha, veste com riqueza, mas com umas côres espalhafatosas, e com presunção na sua boniteza. Fareja-lhe que o principe deve de estar alapardado n'um cantinho qualquer e mais a Zina.
—E a Katerina Petrovna tambem não deixa de apparecer, accrescenta Natalia Omstrievna, mulherão com proporções de colosso á qual tem reduzido o pêso os jejuns e dando ares de um granadeiro.
Traz um chapelinho, minusculo, côr de rosa, pespegado na nuca. Ella, vae em três semanas, é a mais intima amiga da Anna Nikolaievna, de quem ella anda atrás, ha muito tempo, e a quem se pudesse nem a pelle lhe deixava.
—O alegrão que ambas me deram em vir passar a noite commigo, nem ha palavras que o possam exprimir, cantaróla Maria Alexandrovna, um tanto refeita já da instantanea surpreza. Mas não me dirão a que feliz acaso devo o prazer?... Nem contava, já, com semelhante honra!
—Valha-me Deus! Maria Alexandrovna, não seja má! diz muito açucarada a Natalia Dmitrievna, com voz de pipía, e tregeitos, toda ella—o que estabelecia curiosissimo contraste com o seu exterior.{142}
—Mas minha querida, pipila Anna Nikolaievna, precisamos concluir os arranjos do tal theatro. Ainda hoje o Petre Mikailovitch disse ao Kalist Stanislavitch que está contrariadissimo por não terem corrido bem as coisas, e porque andassemos a jogar as cristas. E como succedesse ajuntarmo-nos todas quatro, dissémos comnosco: "E se nós fossemos ter com a Maria Alexandrovna a ver se levamos a cabo este negocio?" A Natalia Dmitrievna passa palavra ás outras, e cáem aqui todas. D'este modo poderiamos chegar a um accordo e as coisas entravam no seu curso regular. É para que não digam que apenas sabemos andar á unhada, pois não é assim, meu anjo? accrescentou dando um beijo a Maria Alexandrovna.
Valha-me Deus! Zinaida Aphanassievna, está cada dia mais linda!
Anna Nikolaievna atira-se á Zina e prega-lhe um beijo.
—Mas se a menina não tem outra coisa que fazer a não ser o ir embellezando dia a dia, affirma com affectada amabilidade Natalia Dmitrievna a esfregar as mãos.
—Demonios as levem! E eu que nem sequer já me lembrava do tal theatro! Sim, senhor, estas pêgas tem apurado a malicia! murmura Maria Alexandrovna fula de raiva.
—E tanto mais, meu anjinho, accrescenta Maria Nikolaievna, que o nosso querido principe se acha hospedado em sua casa. Bem sabe que não ha pomietok de Dukhanova, de paes a filhos, que não tenha tido um theatro. Tomámos informações e viémos a apurar que existe algures um armazem atulhado de scenario velho, e um panno, e fatos, até. O principe esteve hoje em minha casa, mas se quer que lhe diga, fiquei tão assarapantada com a visita, que de{143} todo me esqueceu tocar-lhe em semelhante coisa. Agora, comtudo, tencionamos conversar com elle a esse respeito; ha de ajudarnos, e o principe não deixará de dar as suas ordens para que nos remetam toda essa cangalhada. Pois a quem haviamos de encommendar por aqui coisa que se pareça com uma vista de theatro? E d'ahi, queremos que o principe em pessoa participe da nossa empresa. É necessario levál-o a subscrever: é para os pobres. Quem sabe se elle se não encarregará, até, de qualquer papel; é tão condescendente, tão dado! Correria tudo ás mil maravilhas.
—Pois já se vê, que acceita um papel! Tanto mais que nada ha mais facil do que induzilo a desempenhar seja que papel fôr, accrescenta significativamente Natalia Dmitrievna.
Anna Nikolaievna não tinha enganado Maria Alexandrovna. Vão chegando de instante para instante senhoras. Maria Alexandrovna quasi que nem tem tempo de se levantar para recebêl-as e de proferir as exclamações da praxe em semelhantes casos, exigidas pelas conveniencias.
Não me afoitarei a descrever uma por uma as visitantes. Direi apenas que cada uma d'ellas desfecha insidiosa olhadella para a dona da casa. Todas ellas denunciando na fisionomia ávida impaciencia. Entre as nobres damas, mais de uma, até, concorria ali na espectativa de presencear a qualquer escandalozinho extraordinario: ficariam desconsoladissimas se se não désse o dito escandalo. Exteriormente, desfaziam-se em amabilidades, Maria Alexandrovna porém estava armada para a lucta. Choviam perguntas a respeito do principe, naturalissimas todas ellas, na apparencia, mas por detrás de todas lá estava uma allusão.{144}
Serve-se o chá. Sentam-se todas á mêsa. Apodera-se do piano um grupo, Zina, ao convite de tocar ou de cantar, responde, muito sêca, que se acha incommodada. A pallidez do rosto abona-lhe aliás a veracidade. Segue-se um tiroteio de perguntas simpáticas, e isso mesmo dá motivo para uma allusão.
Indagam noticias á cêrca de Mozgliakov, é á Zina que são dirigidas. Maria Alexandrovna não tem mãos de medir: acha-se presente a um tempo em cada canto da sala, ouve tudo que dizem as visitantes, supposto sejam mais de dez. Responde a quanta pergunta lhe dirigem sem ter necessidade de remexer as algibeiras á procura de palavras. Está toda ella a tremer com o sentido na Zina, e muito admirada por esta não sair da sala, conforme é seu costume em taes occasiões. Notam tambem a presença de Aphanassi Matveich. Por via de regra fazem escarneo d'elle para melindrarem Maria Alexandrovna na pessoa do marido. Hoje, porém, tudo é quererem sacar as palavras do bucho ao tão singelo e franco Aphanassi Matveich. Maria Alexandrovna, inquieta, não tira os olhos do marido, collocado em estado de sitio.
Elle, responde a todas as perguntas: Hum! com uns modos tão entalados e pouco naturaes que é de uma pessoa se derramar.
—Maria Alexandrovna, não ha quem saque uma palavra a Aphanassi Matveich! exclama uma caçapa de uma dama com uns olhos vivos e uns ares de intrepidez, como quem não tem medo seja de quem fôr, e se não atrapalha com coisa nenhuma. Veja se lhe diz que seja mais delicado com as senhoras.{145}
—Ainda estou para saber o que é que elle terá hoje, responde Maria Alexandrovna, toda ella sorrisos e interrompendo a sua palestra com a Anna Nikolaievna e com a Natalia Dmitrievna. Não está nada expansivo; aqui estou eu que ainda não fui capaz de lhe ouvir uma palavra. Por que é que não respondes á Felissata Mikhailovna, Athanasio?— Que foi que lhe perguntou, Felissata Mikhailovna?
—Mas... mas... minha mãezinha... tu não me recommend... encéta Aphanassi Matveich assarapantado, desnorteado.
N'este ensejo, está espécado ao pé do fogão acêso, com o dedo pollegar enfiado no bolso do collete, em atitude pinturesca e a chuchurrebiar o seu cházinho.
Atrapalham-n'o as perguntas das senhoras, põe-se córado qual candida donzella. Porém, ainda bem não encetara a propria justificação, eis que topa com uns olhos tão irritados da consorte furibunda que fica petreficado de terror. Sem saber o que ha-de fazer e desejoso de remediar a asneira, e reconquistar a estima de Maria Alexandrovna, engole um golo de chá, mas o chá está a ferver, Aphanassi Matveich escalda-se, engasga-se, toma-se de um froixo de tosse, e pisga-se da sala para o quarto, deixando banzada toda a assembleia. Perceberam tudo, e Maria Alexandrovna nem põe em duvida o estarem cabalmente informadas as suas visitas, e o haverem-se congregado em sua casa com intuito malevolo.
É perigosa a situação. Podem muito bem obrigál-o a descoser-se, enredál-o na propria presença da mulher. São capazes, até, de carregar com o principe e de o malquistar{146} com Maria Alexandrovna... Em summa, cumpre contar com o peor.
A sorte reserva á nossa heroina ainda outra prova. Abre-se a porta, e dá entrada o Mozgliakov, a quem ella suppunha em casa de Borodoniev. A previdente senhora estremece como se o que quer que fosse lhe houvera trespassado o coração. Mozgliakov pára nos umbraes da porta, um tanto intimidado, e põe-se a examinar a assembleia. Não consegue dominar o sobresalto a ler-se-lhe no semblante.
—Ai, meu Deus! Pavel Alexandrovitch! exclamam diversas vozes.
—Ai, meu Deus! Mas é o Pavel Alexandrovitch!
—E a senhora a dizer-nos, Maria Alexandrovna, que elle a estas horas devia estar em casa do Borodoniev?
E a dizerem que estava escondido, Pavel Alexandrovitch, lá em casa do Borodoniev, ladra Natalia Dmitrievna.
—Escondido? repete Mozgliakov com sorriso contrafeito. É um tanto exquisita a expressão! Queira perdoar, Natalia Dmitrievna, eu não me escondo nem tenho motivos para me esconder seja de quem fôr, accrescenta vibrando significativo olhar a Maria Alexandrovna.
Estremece Maria Alexandrovna.
—"Ora esta! querem ver que se insurge tambem este bonifrate? diz comsigo, a examinar Mozgliakov. Não faltava mais nada!"
—Será verdade. Pavel Alexandrovitch, que está reformado... das suas funcções?— arrisca a atrevida da Felissata Mikhailovna, a olhar para elle, ironica.
—Reformado? Reformado de quê?{147}
Fui apenas transferido; tenho o meu logar lá em Petersburgo, responde com secura Mozgliakov.
—Ainda bem! E desde já o felicito; continua a Felissata Mikhailovna. Tivemos um susto por sua causa, quando nos disseram que andava a ver se arranjava um logar em Mordassov. Que, logares, por aqui, são pouco estaveis. Pavel Alexandrovitch, de um dia para o outro apanha-se uma demissão.
—A não ser que se trate de um logar de utchitel, para ahi em qualquer escola communal... Esses têm ferias... observa a Natalia Dmitrievna. 
É tão transparente a allusão, tão grosseira, que á propria Anna Nikolaievna assoma-lhe o rubor ás faces e pega ás cotoveladas á peste da amiga.
—Persuadem-se então que Pavel Alexandrovitch seria homem para marchar nas piugadas de um reles utchitel? insiste a Felissata Mikhailovna.
Pavel Alexandrovitch, sem saber o que ha de dizer, volta costas e dá de rosto com Aphanassi Matveich de mão estendida para elle. Mozgliakov, alvar, não acceita a mão do conselheiro e faz-lhe rasgada contumélia, com pretenções a ironica. Acerca-se da Zina e, mirando-a a fito, socina-lhe:
—É a culpada de tudo isto... mas espere, e ainda esta noite, verá se eu sou, ou não sou um asno!
—Esperar, eu?—Como se já se não estivesse vendo o sufficiente! retruca a Zina muito de rijo, a medir com uns olhos desdenhosos o recem-rejeitado.
Mozgliakov precipita a retirada, espavorido pela expansão vocal da donzella.{148}
—Vem de casa do Borodoniev? resolve-se por fim a perguntar Maria Alexandrovna.
—Não; venho de estar com meu tio.
—Com seu tio?—Esteve com o principe?
—Ai meu Deus! Com que então o principe já está acordado? E a dizer-nos que estava ainda recolhido, acode Natalia Dmitrievna a enterrar pelo chão abaixo Maria Alexandrovna com uns olhos em que transluz odio e triunfo.
—Não lhe dê cuidado o principe, Natalia Dmitrievna, replica o Mozgliakov; está acordado, e, graças a Deus, recuperou as suas faculdades. Tinha bebido uns copitos a mais, hontem, em sua casa, e acabaram aqui de o toldar de todo; de modo que se lhe tinha varrido completamente o tino. Bem sabe, que está um tanto fraco de cabeça. Agora, comtudo, eu e elle tivemos uma conversa, e está com o juizo no seu logar. Não tarda por ahi, meia hora, Maria Alexandrovna, para lhe dizer adeus, e lhe dar os agradecimentos pela sua franca hospitalidade. Logo de madrugada vamos até á Charneca, tenciono acompanhál-o até Dukhanovo, a vêr se lhe evito para ahi algum tombo, como aquelle que hoje apanhou. Voltará a collocar-se ao abrigo do broquel da Stepanida Matveiévna, que a estas horas já deve ter regressado de Moscou, e lhe não tornará a consentir o expôr-se outra vez aos riscos de uma jornada, isso lhe asseguro eu!
E o Mozgliakov, maligno, a examinar Maria Alexandrovna, embatucada e estupefacta.
(Pêsa-me o ter de confessar que, pela primeira vez na sua vida, sente medo a nossa heroina).{149}
—Retira-se ámanhã! Mas então... como assim? indaga de Maria Alexandrovna a Natalia Dmitrievna.
—Como assim? repete Anna Alexandrovna, pasmada.
—Como assim? effectivamente, écoam outras vozes. E nós a julgarmos que... É extraordinario, na verdade.
A dona da casa nem atina sequer com o que ha de dizer. Eis que, de subito, é attrahida a geral attenção por um episodio da mais extraordinaria excentricidade. Ouve-se, na saleta contigua, um alarido de vozes, de exclamações, e rompe por ali dentro a Sofia Petrovna Karpukhina.
A Sofia Petrovna é sem discussão possivel a mulher mais original em toda Mordassov; é original a ponto que tiveram que a excluir da sociedade. E cumpre advertir que ella, regularmente, ás sete horas, despacha a sua merenda, e que depois de a despachar fica sempre n'uma disposição de espirito... mais que muito emancipada... para não irmos mais longe. E é n'esse estado, exactamente, que ella effectua em casa de Maria Alexandrovna tão inesperada apparição.
—E esta! Com a senhora é sempre assim, Maria Alexandrovna! berra ella estrugindo a tudo: isto será modo de proceder para commigo?!... Não se assuste, vim aqui de corrida, nem me sento, sequer. Vim de proposito para saber se é verdade aquillo que me disseram. A senhora a dar bailes, banquetes e n'este meio tempo, a Sofia Petrovna para ali a um canto, em casa, a concertar as meias! A senhora a ajuntar em sua casa a cidade em peso, menos a mim! Commigo, d'antes, tudo era: minha amiguinha, meu anjo,— quando lhe conveio saber o enredo que a Natalia Dmitrievna a seu respeito e do principe andava a tecer,{150} e vae senão quando, a Natalia Dmitrievna, de quem a senhora— hoje mesmo—como ella aliás diz da senhora—disse cobras e lagartos—está para ahi amesendada na sua soirée! Não se assuste, Natalia Dmitrievna, passo muito bem sem o tal seu chocolate de dois kopeks cada pau. Eu, quando me appetece beber seja o que fôr, lá em minha casa não falta, graças a Deus; tomára a senhora!
—Bem se vê! observa a Natalia Dmitrievna.
—Ora vamos, Sofia Petrovna, exclama Maria Alexandrovna, afogueada de despeito, que é que tem? Socegue!
—Não lhe dê cuidado a minha pessoa, Maria Alexandrovna, estou sciente de tudo, de tudo! guincha com a voz de pipia a Sofia Petrovna, á qual fazem cêrco as visitantes, que não cabem em si de contentes com o escandolozinho. Estou informada de tudo e foi lá a sua Nastassia quem m'o pespegou, tim-tim por tim-tim! A senhora pregou uma camoéca ao tal principe e tanto apertou com elle, até que lhe pediu em casamento a sua filha— que já nem tem quem a queira! E a senhora a ver-se já toda emproada, a julgar-se uma duquêsa, com manto e tudo.—Pfu-u! Não cuide que me mete mêdo! Tenho visto muitas duquêsas e aqui onde me vê sou coronela! Ah! A senhora então nem sequer me convidou para a bôda!—Cá por mim, escarro-lhe em cima!—Tenho muito com quem me dar, tomára a senhora. O ponto está que eu queira! Vá ouvindo: Hontem jantei eu com a princesa Zalikhvatskaia, e por signal que até o commissario principal, o Kuropchkine, me pediu em casamento. Estou-me ninando para o tal seu salsifrê.
Pfu-u! Arreda!
—Escute, Sofia Petrovna, responde Maria Alexandrovna{151} fora de si, fique sabendo que assim ninguem se atreve a pôr pé numa casa decente;... e n'esse seu estado, de mais a mais!... Se me não favorece desde já com a sua ausencia... obriga-me a appellar para... 
—Bem sei, chama os criados para me pôrem no olho da rua? Não lhe dê cuidado, sei muito bem o caminho. Adeuzinho! Case lá a sua filha com quem muito bem quiser. E a senhora, Natalia Dmitrievna, escusa de se rir á minha custa: eu cá, ao tal seu chocolate, só se lhe cuspir dentro! Ella convidava-me lá! Isso sim! Não, que lá em minha casa não ha quem danse o kazatchok diante de principes! E lá a senhora, tambem, Anna Nikolaievna, de que é que se está a rir? O seu Suchilov partiu indagora uma perna: e lá o levaram em charóla para casa—ha de-lhe fazer falta, já se vê! Pfu-u! E a senhora, Felissata Mikhailovna, se não avisa aquelle calcanhar rachado do seu Matvehka que, se torna a consentir que a sua vacca esteja todo o santo dia aos bérros debaixo da minha janéla, parto-lhe as pernas, ao tal seu Matevchka! Adeuzinho, Maria Alexandrovna! A bom intendedor, o resto já se sabe! Saúde!
Pfu-u!
Some-se a Sofia Petrovna. Desata toda a gente á gargalhada. Maria Alexandrovna ficou entupida de todo.
—Estou em dizer que beberia a sua pinga, diz a Natalia Dmitrievna, muito de mansinho.
—Se já se viu semelhante desaforo;
—Abominavel criatura!
—Se quer ao menos fartámo-nos de rir!
—Que chorrilho d'inconveniencias!
—É ella abrir a bôca!—Passa fora!{152}
—Mas que queria ella dizer com as taes bôdas? indaga em ar de mofa a Felissata Mikhailovna.
—É temivel! exclama Maria Alexandrovna. E são uns monstros d'este calibre que andam para ahi a desacreditar a toda a gente, com a estupida linguarice! E sabe o que lhe digo, Felissata Mikhailovna, é que me não admira, que umas fufias assim sejam recebidas na nossa sociedade, quando, o que é ainda mais para admirar, ha gente que a ellas recorra, que lhe dê ouvidos, e que lhes dê credito... cambada!... 
—O principe! O principe! gritam á uma.
—Valha-me Deus! O principe!
—Graças a Deus! Até que emfim vamos ficar sabendo a verdade.{153}
 
Entra o principe, dilatados, os labios por aquelle seu meigo sorriso. A inquietação insuflada pelo Mozgliakov n'aquelle descuidado coração desapparece de todo, ao dar com os olhos nas damas: derrete-se desde logo que nem um rebuçado.—Elle, em geral, entretem muitissimo o bello sexo. A Felissata Mikhailovna affirmava, até, esta manhã, por brincadeira, já se vê, que estava pronta a sentar se-lhe nos joelhos, se elle quisesse, pois era "um encanto de um ginjinha, um encanto nunca visto, até." E Maria Alexandrovna sem tirar d'elle os olhos, a estudál-o, tentando prever-lhe no semblante o desfecho de tão critica situação. É evidente haver o Mozgliakov comprometido gravemente o negocio e o estar um tanto vacilante a emprêsa. E não obstante nada se pode ler no rosto do principe... está, como sempre, insipido e encantador.
—Ai, meu Deus! Até que ahi vem o principe! E nós todos á sua espera! exclamam diversas damas.
—Com impaciencia, principe, com impaciencia, pipilam as restantes.
—Li... son... son... jeia... me... sum... ma... mente, diz o principe sentando-se á mêsa defronte do samovar a ferver.
As damas atrigam-se em fazer-lhe cerco. A Anna Nikolaievna e a Natalia Dmitrievna são as unicas que se deixam ficar ao pé de Maria Alexandrovna. Aphanassi Matveich{154} sorri, respeitozissimo. Mozgliakov sorri tambem a olhar com uns ares de provocação para a Zina a qual, sem fazer caso delle, se acerca do pae e se senta ao lado d'este n'uma poltrona.
Ah! principe—sempre é verdade que se retira? indaga a Felissata Mikhailovna.
—Está c... claro... minhas senhoras, retiro-me; vou... im... me... diata.. mente para o estrangeiro.
—Para o estrangeiro, principe!
—Para o estrangeiro! clama toda a gente em côro. Que ideia!
—Pa... ra o est... est... rangeiro, affirma o principe, a tomar atitudes, e n... não sabem?— eu se vou é... é... por causa das taes... ideias novas.
—Como assim? As ideias novas?
—De que é que se trata? perguntam as damas a olhar umas para as outras.
—Está... c... laro!... As ideias novas! insiste o principe com uns modos de intima convicção; vae lá toda a gente, agora, por causa das ideias novas, e eu se vou é... com... o sentido tambem de me sa... turar.
—É capaz de estar com o sentido em ir filiar-se por lá em alguma loja maçonica? intervem o Mozgliakov desejoso de fazer brilhar o seu espirito na presença das damas.
—Está... c... claro, meu amigo, não t'enganas. Eu, em tempos, pertenci, effectivamente, a uma loja maçónica. Animavam-me, até, umas ideias, muitissimo generosas... Propunha-me a fazer muita coisa... em... em favor da... in... instrucção... mo... moderna. Queria dar carta... de... al... fo... forria ao meu Si... do... dor, mas safou-se{155} antes de tempo, com grande es... panto da minha parte. Que lemb... rança tão ra... tona! Depois, um dia, encontrei-o cara... a... cara... lá em Paris, vestido como um dandy, com umas suissas,... a passear pelo bou... levard... com uma "menina". Acenou-me com a cabeça... e mais nada. E a tal menina, que levava p... pelo braço tinha uns ares tão agai... atados... tão ape... titosa.
—O tiozinho, então, d'esta vez, em se apanhando em Paris, dá a liberdade aos servos todos, sem excepção?
—Está..., c... claro... adivinháste-me o pensamento, meu c... caro. É tal qual... quero dar liberdade a to... dos elles.
—Ora vamos, principe, safam-se-lhe todos de casa, e depois, quem é que lhe paga o dizimo? exclama a Felissata Mikhailovna.
—Pois já se vê, que se safam, acode, inquieta, Anna Nikolaievna.
—Ai, meu Deus! Que me diz? Então parece-lhe que o façam?
—Safam-se, safam-se, pudera não... Tão certo! E o senhor, depois, vê-se sósinho, confirma a Natalia Dmitrievna.
—Ai! meu Deus! Visto isso... então n... não lhes dou... al... for... ria! E d'ahi, eu dizia isto... por dizer.
—Antes assim, tiozinho.
Maria Alexandrovna, até agora, tem estado caláda a observar. Parece-lhe que o principe se esqueceu d'ella, totalmente, e não acha isso natural.
—Principe, enceta elevando a voz e com dignidade, peço-lhe licença para lhe apresentar Aphanassi Matveich,{156} meu marido. Veiu expressamente do cantinho da sua aldeia, assim que soube que o principe se achava hospedado em minha casa.
Aphanassi, todo elle sorrisos e a fazer papo. Afigura-se-lhe que acabam de lhe endereçar um cumprimento.
—Ah! Fol... go im... menso... Apha-anassi Matveich. Dê me licença... está-me a parecer que... me lembro... do que quer que seja... Aphana-assi Matvei... tch? Ah! sim! sim! Aquelle que estava no campo?... Encantado! encantado! Quanto esti... imo... Meu amigo, exclama o principe dirigindo-se a Mozgliakov... mas foi elle que... que... como se intende, então?... O marido lá por fóra... e a mulher... em... Sim, sim, lá n'uma cidade... e a mulher... 
—Ah! principe,... isso pelos modos ha de ser: o Marido lá por fóra, e a mulher em Tvor, o tal vaudeville, que uma companhia ambulante representou lá em casa o anno passado?
—Está c... claro, em Tvor, e... eu... sempre a esqué... quécer-me! Encantado, encantado! Com que, então, é o senhor? Quanto estimo conhecêl-o! diz o principe sem se erguer da cadeira, de mão estendida para Aphanassi Matveich. E então, como vae?
—Hum!... 
—Está optimo, optimo! acode Maria Alexandrovna.
—Está... c... claro... bem se vê... Com que, então, vive sempre no campo? Pois, senhor, estimo muito.—Mas que bochêchas tão corádas que elle tem! E não faz senão rir!... 
Aphanassi Matveich sorri e faz-lhe a sua vénia, a arrastar{157} o pé pelo sobrado. E comtudo, assim que ouve a ultima observação do principe, não se pode suster e desata uma gargalhada alvar. E imita-o toda a gente. As damas soltam guinchos de alegria. A Zina, corrida, ruboriza-se e vibra uns olhos coruscantes a Maria Alexandrovna, que se está comendo de raiva. É tempo de desviar a conversação.
—Dormiu bem, meu principe? indaga com voz tranquilla, intimando ao mesmo tempo, com uma olhadella vivaz, Aphanassi Matveich a que volte quanto antes para o seu logar.
—Dormi op... ti... mamente... E, não sabem, tive um sô... ônho deliciôso, deli... ciô... so!
—Um sônho! Gósto tanto de que me contem sônhos! exclama a Felissata Mikhailovna.
—Tambem eu! accrescenta a Natalia Dmitrievna.
—Um sô... nho... deliciôso... repete o principe com meigo sorriso; mas é segredo o tal sônho.
—Como assim, principe? Nem sequer se pode contar? observa Maria Alexandrovna.
—Um grande segredo! repete o principe.
Recrudesce a curiosidade.
—Mas, então, deve de ser interessante, interessantissimo, exclamam de todos os lados.
—Não se me dava de apostar que o principe, no tal seu sônho, estava de joelhos aos pés de alguma beldade a fazer-lhe a sua declaração de amor! exclama a Felissata Mikhailovna. Ora vamos, principe, confesse! Confesse!... então, meu rico principezinho da minha alma!
—Confesse, principe, confesse! exclamam por todos os lados.{158}
E o principe deliciado, a escutar aquella gralhada. Lisonjeia-o a supposição, e lambe-se todo, até.
—Comquanto seja um grande segredo, não tenho remedio senão confessar que ma... madame, com grande espanto da minha parte, por pouco o não adivinha de todo.
—Adivinhei! exclama com arrebatamento Felissata Mikhailovna. E então, principe, é preciso dizer-nos quem é essa tal belleza!
—Tem obrigação de o dizer!
—Achar-se-ha aqui?
—Diga, diga, meu rico principezinho!
—Principe... meu amorzinho! Diga! Morra depois, mas diga!
—Mi... nhas... senhoras! Minhas se... senho... ras, se insistem em absoluto por que lh'o diga, apenas lhes po... derei desvendar uma coisa: era a mais seductora, a mais virtuosa menina, de quantas... tenho conhecido em minha vi... vida!
—A mais seductora... de quantas aqui estão? Quem será? indagam entre si as damas a trocarem signaes de connivencia.
—Com toda a certeza que deve de ser aquella que disputa a fama de ser a primeira beldade de Mordassov, prorompe a Natalia Petrovna a bater as palmas com aquellas manápolas côr de lagosta e sem tirar os olhos de cima da Zina.
E toda a gente com os olhos pregados na Zina.
—Mas como é, então, que o principe, com uns sonhos assim, não se casa por uma vez? indaga a Felissata Mikhailovna.{159}
—Soubessemol-o nós, e que noivazinha lhe não teriamos arranjado! affirma, d'ali, outra dama.
—Case-se! case-se, principezinho da minha alma—pipíla uma terceira.
—Case! case-se!—guincham por todos os lados. Por que é que não ha de casar?
—Está... c... claro... por que é que eu me... n... não hei-de casar? acóde o principe, atrapalhado.
—Tiozinho! exclama o Mozgliakov.
—Está... c... claro, meu amigo, já te percebi. O que eu queria dizer-lhes, minhas senhoras, é que me não posso casar. Concluida esta deliciosa soirée, em casa da nossa amabilissima hospeda, amanhã tenciono ir até a charnéca, e d'ali, para o es-trangeiro, quero ir estudar a ins-tru-cção euro-ro-pêa.
A Zina está enfiada e vibra á mãe uns olhos rancorosos. Maria Alexandrovna, comtudo, assentou n'uma resolução. Até agora, estava á espera, a apalpar o terreno, supposto lhe parecesse achar-se sufficientemente compromettido o negocio e haverem-se-lhe antecipado seus inimigos. Percebe tudo, finalmente, e, de um golpe, quer acabar com aquella hydra das cem cabeças. Ergue-se, majestatica, acerca-se da mêsa a passo firme e com soberbo olhar enterra pelo chão abaixo aquelles pygmeus que a rodeiam. Reluz-lhe
nos olhos o fogo da inspiração. Vae aniquilar aquella sucia de coscovilheiras peçonhentas, esmagar aquelle sevandija do Mozgliakov como quem esmága uma barata, e com um golpe decisivo, reconquistar de todo a influencia que perdeu sobre a pessoa d'aquelle idiota d'aquelle principe. Claro está que para isso ha mister de appellar{160} para um atrevimento extraordinario, mas não será isso que escasseie a Maria Alexandrovna.
—Minhas senhoras, enceta com modo solemne (Maria Alexandrovna nutre paixão pela solemnidade), minhas senhoras, tenho estado a ouvir calada as suas gracinhas e acho que já vae sendo tempo de que eu, pela minha vez, lhes dirija algumas. Bem sabem que nos achamos aqui juntas, unicamente por mero acaso. Estimo isso muito... Nunca me haveria resolvido a tornar publico um tão importante negocio de familia antes de o exigirem os dictames do mais estricto decoro. E acima de tudo, pedirei perdão ao nosso distinctissimo hospede. Mas quer me parecer que é elle o proprio quem, mediante remotissimas allusões a semelhante circunstancia, me suggere o pensamento de que a formal declaração d'este segredo lhe será grata, mas que ella lhe inspira apprehensões. Não é verdade, meu principe, que me não enganei?
—Está claro... não se enganou... e estimo muito... muito... diz o principe sem perceber palavra d'aquillo de que se está tratando.
Maria Alexandrovna, no intuito de melhor dispôr o seu lance, toma o folego e põe-se a examinar todo o auditorio, todos á uma a escutál-a com ávida e inquieta curiosidade. O Mozgliakov, todo elle a tremer, a Zina, muito afogueada, levanta-se... Aphanassi Matveich, n'estes assados, assôa-se.
—Sim, minhas senhoras, folgo immenso de as tornar participes d'este segredo familial. Hoje, depois de jantar, o principe, seduzido pela formosura de... pelas qualidades de minha filha... conferiu-lhe a honra de lhe pedir a mão. Principe, conclue ella com um tremor na voz, querido{161} principe, não me deve querer mal por esta minha indiscreção. O auge do contentamento, eis o que conseguiu arrancar-me do coração, um tanto prematuramente, este segredo estremecido, e... qual será a mãe que m'o leve a mal? Nem encontro sequer palavras que descrever possam o effeito produzido pela inspirada saída de Maria Alexandrovna. Ficaram todos varados de espanto. As visitantes, que suppunham assustar Maria Alexandrovna, deixando-lhe antever o estarem senhoras do seu segredo, matál-a com a divulgação do segredo, esfacelál-a com o poder unico das allusões, ficam estupefactas perante uma tão denodada franqueza. Uma tal valentia era um signal certo de bom exito.
—Por conseguinte, é por sua propria vontade que o principe vae casar com minha filha Zina. Ninguem o enganou, ninguem o embriagou... E por tanto, não foi com esconderijos, á laia de ladrão, que o obrigaram a tomar estado! Maria Alexandrovna, n'essa conformidade, não se arreceia seja de quem fôr, e não ha ninguem que possa malograr este casamento.
Paira um borborinho que desde logo se transforma em jubiloso alarido. A Natalia Dmitrievna arremete de braços abertos para Maria Alexandrovna, segue-lhe o exemplo a Anna Nikolaievna, e a Felissata Mikhailovna vem na trazeira do rancho. Põem-se todos de pé, baralham-se. Das damas, algumas ha que estão fulas de raiva. Pegam a dirigir parabens á Zina, atrapalhada, e atiram-se, até, ao Aphanassi Matveich. Maria
Alexandrovna estende os braços com enfase, e á viva força, quasi, agarra-se á filha aos abraços a ella. Tão sómente o principe, todo elle a rebulir, a considerar{162} esta scena, de olhos espantados. E d'ahi, agrada-lhe aquillo. Ao ver a filha nos braços da mãe, saca, até, do lenço e limpa o canto do olho onde bugalhou uma lagrima. Atiram-se a elle, tambem, para lhe dar os parabens.
—Parabens, principe, parabens! guincham por todos os lados.
—Com que então é certo, sempre vae casar?
—Sempre se casa, effectivamente?
—Ora até que se casa, principezinho da minh'alma!
—Está... c... claro... está... c... claro! responde o principe, encantado de semelhante enthusiasmo. Confesso-lhe que a sua simpatia me tocou o coração... Nunca me ha... de esquecer! Encan... tado! Encan... tado! Fizeram... me, até, vir as lagrimas aos olhos.
—Venha um beijo, principe! guincha mais que todas juntas a Felissata Mikhailovna.
—E confesso-lhe... prosegue o principe, que fiquei pasmado por ver que a nossa digni... ssima hos... peda, adivinhasse... com tanta pers... picacia, um sonho tão extraordi... nario, como se fosse ella... que o sonhou... tal qual—Es... panto... sa pers... pica... cia.
—Ora esta! E o principe ainda a insistir no tal sonho?
—Então, vamos, principe, confesse! clama o côro das damas a fazer-lhe cerco.
—Deixe lá, principe, é escusado estar com esconderijos, é tempo de patentear o seu coração, declara em tom categorico Maria Alexandrovna. Não me escapou a fina alegoria, a delicadeza cavalheiresca, que se revelam na forma discreta por que tornou publico o seu pedido. Sim, minhas senhoras, é verdade, hoje ainda, o principe ajoelhou aos{163} pés de minha filha, e de modo real e verdadeiro, que não em sonho, formulou solemnemente o seu pedido.
—Quan... to... ha de mais real... e nas mê... mêsmas circunstancias, appoiou o principe. Minha me... nina, proseguiu com summa delicadeza dirigindo-se á Zina cada vez mais atrapalhada, juro-lhe que jamais me atreveria a proferir o seu n... ôme, se acaso o não tivessem outros... mencion... ado antes. Foi um sonho de... licioso... uma... de... licia de um... sonho! E folgo immenso... em ter ensejo... de o manifestar Um encanto!... Um encanto!
—Mas, como se intende isto? Elle insiste em se referir ao tal sonho! murmura a Anna Nikolaievna dirigindo-se a Maria Alexandrovna, inquieta e um tanto enfiada.
Mas, ai! O coração de Maria Alexandrovna está alanceado por tristissimos presentimentos.
—E então? murmuram as damas a olharem umas para as outras.
—Ora vamos, principe, profere Maria Alexandrovna com um sorriso amarello, confesso-lhe que me deixou pasmada.—Admira-me que esteja a insistir n'essa sorna do tal sonho! Eu até agora, estava na fé, de que fosse méro gracejo da sua parte... mas... se o é, ha de convir, que se vae prolongando um tanto fora de proposito... Não posso nem devo admitir que seja outra coisa além de uma distracção... 
—Deve de ser por distracção, efectivamente, assobia a Natalia Dmitrievna. 
—E... stá... c... claro!... Di... distracção! repete o principe sem perceber o que é que d'elle pretendem... Ora... ima... ginem, vou contar-lhes uma anecdó... ta. Fui convidado{164} pa... ra assistir a um enterro, em Petersburgo, n'uma casa burguêsa, mas decente, e... e fiz confusão... suppús que era para festejar o nas... cimento de uma creança, (o tal dia... nata... licio já lá... ia, havia mais de uma semana)... e fui comprar um lindo rama... lhete de camelias para a pessoa... fes... tejada. Entro... e que hei de eu ver? Um su... jeito mui... to digno, de uma certa edade, estendido em cima da mesa... Fiquei passádo, sem saber onde me havia de meter e mais o meu ramo.
—Pois sim, principe, não se trata agora de anecdótas! atalhou Maria Alexandrovna despeitadissima. Minha filha, louvado Deus, não tem necessidade de andar á pesca de noivos, mas inda agora, o senhor, em pessoa, ali ao pé d'aquelle piano, a pediu em casamento. Ninguem o obrigava... para mim propria foi uma surpreza... mas sou mãe, e ella, é minha filha... Acaba de referir-se a um sonho; sempre estive na fé de que fosse uma allusão aos seus esponsorios... Sei e mais que sei, que o viraram de dentro para fora—desconfio quem fosse—tal qual uma luva, mas...—queira explicar-se, principe, e queira fazêl-o quanto antes! Semelhantes gracejos não tem cabimento n'uma casa respeitavel.
—E... stá.. c... claro! Não são brin... cadeiras para... uma casa respeitavel, concorda o principe... inconsciente, mas um tanto inquieto.
—Então, não me responde, principe! Já lhe pedi que quisesse explicar-se de modo peremptorio: confirme, confirme, desde já, diante de toda a gente, o facto de haver pedido hoje minha filha em casamento.
—Es... tá... c... claro... estou pronto a confirmar... {165} Tanto mais, que já lhes contei tudo, e Felissata Yako... kolevna adivinhou ca... balmente o meu sonho.
—Sonho! Qual sonho!? exclama rabiosa Maria Alexandrovna; não foi sonho. Foi realidade, principe, intendeu? Realidade e mais que realidade!
—Rea... li... dade... repete o principe erguendo-se da cadeira... Está-se dando... tudo aquillo de que... tu me preveniste, accrescenta dirigindo-se a Mozgliakov. Afirmo-lhe, Maria Alexandrovna... que ha equi... voco da sua parte. Tenho toda a certeza em como foi sonho!
—Meu Deus! geme Maria Alexandrovna.
—Não se afflija, Maria Alexandrovna, intervem a Natalia Dmitrievna; ao principe, varreu-se-lhe da memoria... elle se lembrará.
—Isso nem parece seu, Natalia Dmitrievna! responde furibunda Maria Alexandrovna. Isso são lá coisas que se esqueçam? Ora vamos, principe, deixemo-nos de facecias! Darse-ha o caso de que esteja armando em Lovelace? Mas, tenha a certeza, sem falarmos em que é pouco proprio da sua edade, juro-lhe, que lhe não ha de valer! Minha filha não é para ahi qualquer viscondessa francêsa! Não ha ainda muito tempo, lhe estava ella a cantar uma romança e o senhor de joelhos a seus pés, a formular o seu pedido de casamento.—Serei eu que estou a sonhar? Fale, principe... Estarei a dormir, porventura?
—Es... tá c... claro!... e d'ahi, talvez que não, responde o principe, desnorteado de todo... Quero dizer... não creio... que estou a sonhar... pre... sente... mente. Mas... não vê a senhora... que eu, indagora, estava a sonhar... e depois vi... em sonhos, que eu, a sonhar... {166}
—É preciso paciencia, meu Deus!... Que quer dizer com isso? Em sonhos, que eu, a sonhar! Nem o proprio demonio era capaz de o perceber!... O principe estará a delirar?
—Está c... claro!... Nem o proprio demonio... E d'ahi... eu é que não percebo uma pa... palavra, declara o principe a olhar para todos os lados, inquieto.
—Mas como é que o principe póde ainda acreditar que é sonho, depois de eu lhe ter contado os pormenores d'esse tal supposto sonho do qual o senhor não tinha dado parte a ninguem?
—Mas quem nos affirma que o não tivesse já contado a alguem, insinua n'este ensejo a Natalia Dmitrievna.
—Está... claro... a alguem, confirma o principe.
—Que comedia! murmura a Felissata Mikhailovna á vizinha.
—Ah! meu Deus! excede a humana paciencia! vocifera Maria Alexandrovna, a estorcer as mãos, no auge do exaspero. Se ella até lhe estava a cantar uma romança; uma romança! Tambem a veria no tal sonho?
—Está... claro... effectivamente, uma romança, murmura, absorto, o principe.
De repente, vem ressuscitá-lo uma reminiscencia.
—Meu amigo, exclama dirigindo-se a Mozgliakov, tinha-me esquecido dizer-te, indagora, que ella me tinha cantado uma romança... em que havia uns cas... tellos... muitos... com um tro... vador... Está... claro... recordo-me... e por signal... que até chorei... e agora nem sei já, se seria realidade ou se foi sonho.
—Tiozinho, responde o Mozgliakov com a maxima{167} tranquilidade que pôde assumir (com quanto lhe trema a voz) não me parece lá muito grave a dificuldade. Na realidade, não direi que não tenha ouvido uma romança, canta tão bem a Zinaida Aphanassievna! Acordar-lhe-hia reminiscencia dos seus bons tempos de outrora, dos instantes ditosos, talvez que da tal viscondessa com quem o tio cantava tambem, algum dia, romanças e á qual se referiu esta manhã. E depois, a dormir, sonharia talvez que estava apaixonado e que tinha formulado o seu pedido de casamento.
Maria Alexandrovna fica atordoada com semelhante insolencia.
—Ai! meu amigo! effectivamente! Ha de ser isso! exclama o principe, contentissimo. Sim, sim, a dor... dormir!... umas agrad... aveis sensações... Lembro-me da romança, e eu a querer casar... Um sonho! E tambem ali estava a viscondessa... Ah! como tu desen... vencilhaste bem tu... do isso... meu caro! Muito bem! É eu agora estou convencido:—era um sonho, Maria Vassilievna! Affirmo-lhe que está... equi... vocada: foi sonho!... eu... nunca seria capaz de estar gracejando... com a sua... respeita... bilidade.
—Ah! agora, agora estou vendo quem foi o autor de tudo isto! exclama fora de si Maria Alexandrovna com os olhos fitos em Mozgliakov. Foi o senhor, o senhor! homem sem dignidade! Foi o senhor! Enganou este pobre idiota para se vingar de ter apanhado um não pelas ventas! Mas tu m'as pagarás, miseravel! Tu m'as pagarás, deixa estar!
—Maria Alexandrovna, vociféra por sua vez Mozgliakov,{168} vermelho que nem uma lagosta cozida, são tão... as suas palavras... nem sei até que ponto as suas palavras... uma senhora da sociedade jámais se permittiria... Estou defendendo meu tio... e confesse que o querer seduzir de semelhante modo... 
—Es-tá... c-claro—seduzir... seduzir... de semelhante... modo—mia o principe, que se ergueu da cadeira e tudo é querer esconder-se por detrás de Mozgliakov.
—Aphanassi Matveich—despulmôa-se a berrar Maria Alexandrovna, não ouves que estão para aqui a desacreditar-me? Perderias tu o sentimento dos teus deveres, porventura? Não serás tu mais que um cêpo? Para que estás tu para ahi a piscar os olhos? Outro qualquer no teu logar tinha já lavado com sangue o ultraje que nos estão fazendo!
—Minha esposa! enceta com solemnidade Aphanassi Matveich, lisonjeado por ver que se lembram delle, minha esposa! não seria sonho, effectivamente? E depois, tu, ao acordar, ficares suppondo que era verdadeiro... 
Aphanassi Matveich, nem tempo tem de concluir a sua espirituosa interpretação. As visitantes, até ali, contiveram-se mantendo uns módos de cortês hypocrisia, mas d'esta vez a risota foi geral.
Maria Alexandrovna, esquecendo de todo as conveniencias, atira-se ao marido, para lhe arrancar os olhos, provavelmente; vêem-se na necessidade de a segurar á força.
A Natalia Dmitrievna aproveita a circunstancia para entornar uma doze d'alcatrão no lume.
—Ah! Maria Alexandrovna, quem nos diz que não foi sonho, effectivamente? emitte em voz represada.{169}
—Um sonho? Um sonho o quê? clama Maria Alexandrovna sem perceber.
—Então! Maria Alexandrovna, são coisas que acontecem.
—Acontece? Mas que é que acontece?
—Talvez que a senhora tenha visto tudo isso a sonhar!
—A sonhar! Eu? A sonhar! E atreve-se a dizer-m'o na cara!
—E d'ahi, é possivel, insiste a Felissata Mikhailovna.
—Está... c-claro!... é po... pos-possivel, murmura por sua vez o principe. 
—Pois tambem elle! Elle! Santo Deus! Maria Alexandrovna enclavinha as mãos. 
—Não se desconsole, Maria Alexandrovna! Lembre-se de que os sonhos é Deus que os manda! Não ha coisa nenhuma n'este mundo que possa ir ávante contra a sua santa vontade... nem é motivo para que se altere.
—Está... c-claro... não ha motivo... 
—Cuidam talvez que sou alguma doida? consegue apenas silvar Maria Alexandrovna esganada de raiva.
Encheu-lhe a medida ás forças semelhante scena. Procura á pressa uma cadeira e deixase cair, exanime.
Segue-se uma algazarra.
—Acudiu a tempo o chelique!
N'este conflicto, porém, eis que surge por entre a balburdia geral, a intervir, uma personagem muda até então, e se transforma desde logo a feição da scena.{170}
 
Era sobremodo romanesco o caracter da Zinaida Aphanassievna. Não sabemos se teria abusado da leitura daquelle "pateta do tal Shakspeare", lá, com o tal seu utchitelzinho, mas até agora ainda não havia praticado um tão heroico acto de loucura como o que praticou n'este conflicto.
Enfiada, com os olhos a relampejarem-lhe de resoluta, toda ella n'um tremor, um portento de formosura e de colera, avança, varre com a provocação nos olhos toda aquella gente em redor de si, e por entre o silencio geral, dirige-se á mãe a qual, assim que a Zina se levantou, tornou a abrir os olhos.
—Para que é estar com fingimentos, mamã? É já tão sujo, tudo isto a que estamos assistindo! Basta de mentiras! Não vale a pêna estar a tapar lama com a propria lama.
—Mas que é isto, Zina! Tu não estás em ti! exclama Maria Alexandrovna, erguendo-se de repellão.
—Eu bem a tinha avisado, mamã, de que não podia supportar semelhante vergonha! Não estejamos a sujar-nos mais do que o estamos já!... Assumirei a responsabilidade de tudo. Fui, eu, visto que consenti, que teci toda esta vilissima... intrigalha. A mamã estava na fé de que trabalhava com o sentido em me tornar feliz, sequer ao menos tem desculpa: eu, nenhuma!{171}
—Que vaes tu dizer, Zina! Bem me dizia o coração que me estava ainda guardado mais este desgosto!
—É assim mesmo, mamã! Vou declarar tudo! Nem sei como não morri de vergonha... cobrimo-nos de opprobrio, tanto a mamã como eu... 
—Estás exagerando, Zina! Nem sabes o que estás dizendo! Contar tudo, para quê?... Não ha a minima necessidade... Quem se cobriu de opprobrio não fômos nós, e vou provál-o!
—Deixe-me falar! Não quero estar calada por mais tempo na presença de uma gente que desprézo e que vieram aqui unica e exclusivamente para se rirem á nossa custa. Entre estas mulheres, sem excepção, não ha uma unica a quem assista o direito de me condemnar! Todas ellas estão prontas a fazer cem vezes peor do que fizemos, eu, e a mamã. Com que direito poderiam ellas, com que direito se atreveriam a fazêl-o?
—Então! Já viram?
—Quem n'a ouve falar!... 
—Mas está nos offendendo!... 
—E ella, sim, que será?
—Ella sabe lá o que está dizendo? remata a Natalia Dmitrievna. Seja dito, entre parenteses, que a Natalia Dmitrievna não deixava de ter razão. Se a Zina considerava aquellas damas indignas de julgar á mãe e a si, por que era então que se ia confessar na sua presença? Em summa, a Zina tinha procedido com excessiva precipitação. E mais tarde, era esta, até, a opinião das pessoas mais sensatas em Mordassov. Tudo se poderia haver conciliado. É certo que Maria Alexandrovna, pela sua parte, se havia{172} prejudicado pela sua precipitação e sua altivez. Ter-lhe-hia bastado meter a ridiculo o idiotazito do ginja e pôl-o a andar. A Zina, comtudo, de caso pensado e como que para arrostar com o bom senso e a sisudez mordassovense, dirigiu-se ao principe.
—Principe, diz a Zina ao velho que desde logo se põe de pé com deferencia, a tal ponto o impressionou a fisionomia da Zina, queira perdoar-nos, mas saiba que o enganámos!
—Não te calarás por uma vez! desgraçada! vocifera Maria Alexandrovna.
—Minha—menina,—minha... menina... minha... en... en... cantadora... murmura o principe, pasmado.
O caracter soberbo, fogoso e mistico da Zina leva-a a transpôr quaesquer limites. Esquece-se dos transes por que estará passando a mãe ante esta publica confissão; só vê a salvação, a redempção na franqueza, e vae até ao fim.
—Enganámol-o, sim, uma e outra, principe; a mamã resolvendo-me a aceitar a sua mão, e eu em consentir. Embriagámo-nos, eu, puz-me a cantar e a fazer tregeitos na sua presença com sentido em o saquear, conforme se expressou ha pouco Pavel Alexandrovitch, para lhe roubar a sua fortuna e o seu titulo. Era ignobil! E peço-lhe perdão! E comtudo, juro-lhe, principe... que a minha intenção... O que eu queria era... mas é duplicar a injuria o estar a procurar desculpas. E todavia, declaro-lhe, principe, que se eu tivera casado com o senhor, se eu o houvesse saqueado e roubado, em compensação, haver-me-hia tornado o seu brinquedo, a sua criada, sua escrava... A{173} mim propria m'o havia prometido, e cumpriria o meu juramento... 
Veiu interrompêl-a um deliquio, as visitantes estão de pé, todas ellas, com os olhos esgazeados. A tão imprevista quanto incomprehensivel expansão (para ellas) da Zina desorientou-as. O principe, tão sómente, tem os olhos arrazados de lagrimas, de commovido, supposto não perceba metade sequer do que ella tem dito.
—Mas... es... tá... claro... que hei de casar com a menina... com a minha... l... linda menina, visto que tanto o... o deseja. E isso para mim re... representa... até, subida hon... ra... Mas, não deixarei... de insistir em que foi sonho!... Vejo tan... ta coisa, a so... sonhar! Por que é que se hão-de estar a inquietar? Eu não percebi coisa nenhuma, meu amigo, prosegue dirigindo-se a Mozgliakov; explica-m'o, se fazes favor!
—E o senhor, Pavel Alexandrovitch, que se vingou de mim de modo tão cruel, como é que pôde combinar-se com semelhante gente para me esfacelar desacreditando-me? Allegava amar-me!... Mas para que estarei eu para aqui a prégar-lhe moral!... Sou mais culpada que o senhor, offendi-o; tambem para com o senhor me vali de hyprocrisia, de mentira! Nunca lhe tive amor, e se eu um dia me resolvesse a desposál-o, seria unicamente para me ver livre d'esta maldita cidade... Mas declaro-lhe, que se tal houvesse succedido, teria em mim uma esposa fiel e carinhosa.
—Zinaida Aphanassiévna!
—E se ainda me conserva rancor... 
—Zinaida Aphanassiévna!!{174}
—Se é que, algum dia, prosegue a Zina a rebalsar as lagrimas, se é que algum dia me teve amor... 
—Zinaida Aphanassievna!!!
—Zina! Zina! Minha filha!
—Sou um miseravel, Zinaida Aphanassievna, um miseravel, e nada mais!... 
Produz-se um reboliço estupendo, uma vozearia de espanto, de indignação, de atroar a tudo. Mozgliakov ficou que nem que fôra de pedra, incapaz de pensar, de falar.
Sempre que um caracter fraco e ôco, afeito a constante submissão, se decide a insurgirse, pára sempre perante um certo limite. A principio, a insurreição manifesta-se com summa energia, é a energia do desespero, comtudo; arremete contra os obstaculos, de olhos vendados, e assumme sempre fardos pesados demais para os seus hombros. Chega um momento em que o desatinado se assusta de si mesmo, estaca, como que atordoado, e diz comsigo: "Mas que estou eu fazendo?" E distende-se o arco, pede perdão o insurrecto, supplíca, implora que as coisas "voltem a estar como estavam", comtanto que isso se effectue quanto antes... Foi o que se deu com o nosso Mozgliakov. Afflictissimo com o desastre de que fôra autôr, a si proprio se abomina, despedaça-o o remorso, as ultimas palavras da Zina anniquilaram-n'o de todo. O passar de um extremo a outro extremo representa para si obra de momentos.
—Sou um jumento, Zinaida Aphanassievna! Um jumento, nem mais nem menos! Ou ainda peor! Mas hei de provar-lhe, Zinaida Aphanassievna, que hei de saber tornar-me um homem de bem!... Saiba que o enganei—tiozinho! Fui eu, fui eu que o enganei!—O tio não estava a sonhar, e{175} pediu effectivamente a mão de Zinaida Aphanassievna! Quando lhe disse que fora sonho, enganei-o de meio a meio... 
—Mas que coisas tão espantosas que estão vindo a lume! assobia a Natalia Dmitrievna.
—Es... tá... cclaro... um sonho... responde o principe... Mas socéga, por favor! Assustaste-me... pa... pa... lavra de honra! E que bella voz que tu tens! Estou pronto a ca... sar, se fô... fôr... necessario... Mas tu foste o pro... prio a af... firmar-me que... que foi sonho!
—E como é que eu agora o hei de despersuadir? Que hei de eu fazer? tiozinho, considére em que se trata de um negocio muito sério, de familia!
—Está... cclaro... Pen... sarei. Espera ahi! Deixa ver se me vou recordando... por p... partes... Pri... meiramente, o Phio... philo, o meu cocheiro.
—Não se trata agora do Phiophilo, querido tio!
—Está... cclaro!.. Não se trata... já se vê... que era de Napoleão... E depois, tomámos chá... Appareceu uma se... senhora... e comeu-nos o açucar... todo... 
—Não é nada d'isso, tiozinho, destampa para ali o Mozgliakov, fóra de si, quem lhe contou essa historia foi a Maria Alexandrovna, a respeito da Natalia Dmitrievna! Eu estava ali, escondido, atrás da porta; ouvi tudo!
—Ora esta, Maria Alexandrovna! agarra no ar a Natalia Dmitrievna, com que então foi pespegar ao principe que eu lhe tinha furtado o açucar? Eu, então, venho a sua casa para furtar açucar!
—Passa fora! mal encontra forças para emitir Maria Alexandrovna.{176}
—Não, lá isso, tenha paciencia, Maria Alexandrovna, não lhe assiste o direito de se negar a responder. Eu, então, furtei-lhe o açucar? Estou farta de saber que não faz senão cortar-me na pelle, ha muito tempo!... Sou eu, então quem lhe furto o açucar!... 
—Mas... mi... minha senhora... isso de açucar... era sonho... o tal sonho... 
—Dorna d'uma figa! resmunga entre dentes Maria Alexandrovna.
—Eu lhe direi quem é a dorna! ulula a Natalia Dmitrievna. E a senhora, que será então? Ha muito tempo que me pôz essa linda alcunha! Mas, sequer ao menos, tenho um marido, emquanto a senhora se contenta com um cêpo.
... Es... tá... cclaro... Tam... bem me lembro da Dorna... 
—Ah! elle é isso?... Tambem veiu meter a sua colherada?—Atreve-se a injuriar uma senhora fidalga?! Com que, então, sou uma dorna; olha quem fala, que nem sequer tem pernas!
—Es... tá... cclaro... Sem pernas... 
... Como foi... que disse?
—Pois está sabido—nem pernas—nem dentes—Ora apanha!
—E um olho, só!... accrescenta Maria Alexandrovna.
—Um espartilho a suprir as costellas!
—Com a cara de mólas, toda ella!
—E nem um pello nessa careca!
—O proprio bigode, é postiço, pateta das duzias, agrava Maria Alexandrovna. 
—Res... peitem—o meu na... nariz... sequer ao menos!{177} É verdadei... ro! exclama, o principe banzado de todo.—Fôs... te... tu que me de... nunciaste, meu amigo!
Para que fôste contar que o meu—cabêllo era—po... postiço?
—Tiozinho!
—Não, meu amigo, já aqui não posso ficar... leva-me para qu... alquer parte... Que gente!
Para onde tu me trouxeste!... Valha-me Deus!
—Idiota! vocifera Maria Alexandrovna.
—Ai! meu Deus! suspira o coitado do principe. Já nem sei porque seria que aqui vim parar—mas vou ver se me lembro.—Leva-me d'aqui para fora—mano! Faziam-me em bo... bocadinhos!—E depois, é urgente que eu vá anotar um... uma ideia... ca... capital.
—Venha d'ahi, querido tio, ainda estamos a tempo. Vem commigo ahi para um hotel, qualquer, e não me aparto do tio... 
—Mas... está... cclaro, com o senhor... 
Adeus minha lin... da menina!
... A menina... e só a menina é a unica... que é virtuosa. É uma.. nobi... lis... sima donzella!
Vamos lá... meu caro... 
Ai! meu Deus!
Não me abalançarei a descrever o epilogo da tão desagradavel scena, que se seguiu á retirada do principe. Os visitantes foram-se safando n'um berreiro de estrugir a tudo. Maria Alexandrovna ficou sósinha, em meio d'aquelle seu desastre. Já é infelicidade! Poderío, riqueza, gloria, foi-se tudo no espaço de um dia! Percebia e mais que percebia que nunca mais levantaria cabeça! A tirannia{178} por ella exercida durante tão longo prazo sobre Mordassov estava aniquilada de todo. Que lhe restava? Não era filosofa, Maria Alexandrovna. Passou uma noite pavorosa. Desacreditada a Zina, um nunca acabar de linguarice! Hórror, hórror, hórror! Na minha qualidade de historiografo sincero, cumpre-me mencionar que Aphanassi Matveich esteve a tiritar toda a santa noite no cubiculo, ás escuras, onde se fôra alapardar para conservação dos seus olhos.
O dia immediato não amanheceu fagueiro: isto de desgraças vem sempre aos pares.{179}
 
Desde as oito horas da manhã que corria pela cidade um boato inacreditavel. Repetia-o cada qual com maligno contentamento, conforme é da praxe sempre que se trata d'algum escandalo do qual foi victima qualquer pessoa d'amizade.
—Perder áquelle ponto a vergonha!
—Rebaixar-se daquella maneira!
—Arrostar assim com todas as conveniencias!
—Que costumes!
Eis o que succedera:
Logo de manhanzinha, ahi pelas sete horas, salvo erro, entrava em casa de Maria Alexandrovna uma pobre vélhita, afflictissima, a supplicar da aia que fosse quanto antes accordar a barichina[15], mas esta, tão sómente, ás escondidas de Maria Alexandrovna. A Zina, assustada, accudira desde logo. Cae-lhe de joelhos aos pés a velhota, aos beijos a elles, a inundar-lh'os de lagrimas, a exorar-lhe que venha ver o Vassia.
—Passou tão mal a noite! Suppõe-se até que não chega ao outro dia! Accrescenta a velha que foi o proprio Vassia quem manifestou desejos de tornar a ver a sua amada,{180} antes de morrer; e supplica-lhe em nome do passado, e que, se ella se negar, morrerá no auge do desespero!
A Zina despede por ali fora, sem dizer nada á mãe. Vae de corrida até o extremo de um dos arrabaldes mais pobres de Mordassov. Ali, n'uma baiuca muito velha e escalavrada, á qual suprem as janelas umas como que ráchas abertas nas paredes, n'um cochichólo muito baixo de tecto e fedorento, meio atravancado com uma fornalha, jazia, em cima de uma camada de taboas, cobertas com uma enxerga, delgada que nem uma folha de papel, um môço, escondido debaixo de um capóte todo elle farrápos. Tinha livido e refegado o semblante, os olhos, a luzir com o fôgo da fébre, as mãos, seccas e transparentes. Quasi que nem respirar podia; era o estertor. Comquanto o houvesse desfigurado a doença, conservava retraços de formosura. Triste espectaculo, na verdade, aquelle rosto de tisico, do moribundo. A edosa mãe que, ainda hontem, acreditava na cura percebe finalmente que vae em breve ficar sósinha n'este mundo. Com os braços cruzados, olhos sêcos, para ali está, sem comprehender, sem poder desviar a vista de cima do enfermo, aniquilada, perseguida pela visão da cova, na terra fria do velho cemiterio atascado de neve.
Não olha para ella o Vassia, irradia-lhe no semblante a ventura: até que por fim vê aquella a quem, vae n'um anno, durante aquellas suas eternas noites de doente apenas viu em sonhos. Percebe que ella lhe perdoou, visto que veiu, visto que lhe aperta as mãos, visto que o contempla com aquelles seus lindos olhos, a chorar e a rir ao mesmo tempo. Resuscita de todo na alma do enfermo o passado:{181} desperta-lhe dentro d'alma a vida como se quiséra tornar-lhe sensivel a que ponto é triste o ter que a deixar.
—Zina! Zinotchka! Não chores... não me estejas a lembrar que vou morrer... deixa-me contemplar-te, pensar que me perdoáste. Vou morrer sem pensar que morro, até, beijando-te as mãos... Estás tão magrinha, Zinotchka! Anjo querido, a bondade com que tu estás a olhar para mim! Lembras-te do gosto com que te rias, d'antes? Ai! Zina! Eu já nem sequer te peço perdão!... Nem quero lembrar-me do que aconteceu... eu é que m'o não perdôo, a mim proprio... E quanta noite sem poder dormir, Zina! Quanta noite não levei eu a pensar, a recordar-me, a estalar, quasi, com saudades!... É melhor que eu morra! Sou incapaz de viver, Zinotchka!
E a Zina, lavada em lagrimas, muda, a apertar nas suas as mãos do seu amado, como se quiséra arrancál-o á morte.
—Então, não chores! insistia o enfermo. Eu morrerei hoje, porventura? Se ha tanto tempo que está morta a felicidade! És mais intelligente e vales mais do que eu... bem sabes que valho menos do que tu, por que será que me tens amor? Bem sabes que te não mereço! Oh! quanto me não tem feito padecer semelhante pensamento! Ah! querido amor, foi um sonho a minha vida: não vivi, sonhei! E eu a desprezar a multidão: e que razões tinha eu para ser tão soberbo? A purêza do meu coração? A nobreza dos meus sentimentos? Mas se tudo isso tinha apenas a consistencia dos meus sonhos, nada mais, Zina!
—Basta! basta! Matas-me!
—Não me interrompas, Zina!... Perdoáste-me, bem sei:{182} e ha já muito tempo, talvez, mas avaliáste-me e comprehendeste o que eu era, e é isso que me atormenta. Sou indigno do teu amor, Zina! Fôste sempre leal e generosa; fôste ter com tua mãe e declaraste-lhe o teu firme desejo de casar commigo, ou com mais ninguem: e cumpriste a palavra dada, pois que para ti, palavra e acção são uma e a mesma coisa! Ao passo que eu,... eu! Não sabes, eu até hoje não tinha comprehendido, sequer, a extensão toda do sacrificio que fazias em ser minha mulher. E lembrar-me eu de que tu, commigo, te arriscavas a morrer de fome! Mas se a mim parecia-me que nada ha n'este mundo que se compare á honra de ser esposa de um grande poeta... sem nome,... é certo! Não quiz intender o motivo que alegavas para retardar o nosso casamento. Tu a padeceres por minha causa, eu a martirizar-te, a exprobar-te, a desprezar-te... até que por fim te ameacei com aquella carta... Eu, n'esse instante, nem sequer cheguei a ser um miseravel, mas sim um ente abjecto, e nada mais! Ah! nem quero pensar até onde iria o teu desprezo! Não, não! É bom que eu morra! Obrigado por não haveres querido pertencerme! Iriam correndo os annos, e quem sabe se eu afinal não viria a ver em ti um tropêço ao meu porvir. Sim, antes assim! E agora, o amargor das minhas lagrimas, sequer ao menos, purificou este meu coração. Ah! Zina! Concede-me um quinhão no teu amor, tão sómente, no teu amor de algum dia!—N'esta hora derradeira, sequer ao menos! Sou indigno do teu amor, bem o sei! mas... mas... mas... ai meu anjo!
E a Zina, desfeita em pranto, a escutar. Tentava interrompêl-o, elle porém, ia proseguindo... supplice, a gesticular,{183} e aquella sua voz debil... abafada e sibilante,... fazia mal á Zina... 
—Não me tiveras tu encontrado, e não me terias amado, e não morrias... disse a Zina. Ah! Oxalá nunca nos tivessemos encontrado!
—Não, meu amor, não! Não te estejas arguindo da minha morte! A culpa foi minha, e só minha! O amor proprio... o romantismo!... Nunca te contaram, Zina, a minha estupida historia? Existiu aqui, ha três annos, um prisioneiro, um miseravel, um ladrão. Mas no dia em que chegou o castigo, faltou-lhe o animo. Sabendo que não levam a justiçar um enfermo, alcançou uma garrafa de vinho, deitou-lhe de infusão tabaco e enguliu-o. Tomaram-n'o uns vomitos que duraram tanto que principiou a escarrar sangue e deu cabo dos pulmões. Levaram-n'o para o hospital e, d'ali a dias, morreu tisico. Pois bem! Occorreu-me á memoria esse ladrão, no dia em que se deu aquelle caso da carta... E resolvi acabar commigo da mesma maneira. E por que foi que eu, de proposito, escolhi a tisica? Por que foi que me não enforquei ou me não deitei a afogar? Seria porque me assustasse uma morte tão abrupta? Talvez; mas a mim quer-me parecer que concorreriam, e não pouco, para isso, as minhas ideias romanescas. Não me largava este pensamento: Que morte tão bella não será a minha, estirado como agora o estou, n'uma cama, com o estertor da tisica!... E tu, ao pé de mim, a lamentar-me, e a padecer com a ideia de que eras talvez a causa da minha doença! E eu a ver-te entrar por ali dentro, arrependida, ajoelhar á beira do meu leito... E eu a perdoar-te e a expirar nos teus braços!... Toleima, Zina, pois não era?{184}
—Esquece-te de tudo isso, nem me tornes a falar das tuas culpas, que tu estás a exaggerar; lembrêmo-nos dos momentos ditosos, dos dias de ventura.
—Não m'o perdôo, meu amor, e é por isso que falo a semelhante respeito. Ha já dezoito mêses que te não via. Queria alliviar este meu coração! Durante esse tempo todo, eu para aqui, sósinho, e não houve um só instante, em que eu não pensasse em ti, meu amor. O que não desejaria eu fazer para reconquistar a tua estima? Até ao derradeiro instante não acreditei que morria; não me entreguei á cama desde logo, andei a pé, por muito tempo, com o peito escangalhado. E que sonhos tão ridiculos! Ás vezes suppunha ser um grande poeta e em vesperas de publicar um poema como ainda não tinha apparecido outro egual n'este mundo, que ninguem tivera genio para o escrever. E eu a pensar que me iriam n'elle todos os meus sentimentos, a minha alma, toda inteira, e que, d'este modo, me acharia sempre a teu lado, e que qualquer que fosse o sitio em que te encontrasses, os meus versos ir-te-hiam recordar a minha existencia, e o meu sonho unico era acreditar que tu em conclusão poderias dizer: "Não, elle a final não é tão mau como eu o suppunha". Toleima, Zina, toleima, pois não é?
—Não, não, Vassia, exclamava a Zina.
E debruçada sobre o peito d'elle, pôz-se-lhe aos beijos ás mãos.
—E o ciume! Como me atormentava o ciume durante esse tempo, todo! Eu, se tivesse ouvido falar no teu casamento, caía morto, redondamente!... E eu a vigiar-te, a espreitarte... Era ella quem lá ia (apontando para a mãe).{185} Tu nunca tiveste amor ao Mozgliakov, pois não é verdade? Ai! meu anjo! Lembrar-te-has tu de mim quando eu já não fôr d'este mundo? Lembras, sim, que eu bem sei! Mas os annos hão de ir passando, arrefecer-te-ha esse teu coração, o inverno ir-te-ha tomando posse da alma, e olvidarme-has, Zina!... 
—Não, não, nunca! E nunca me hei-de casar, tem a certeza!... Foste o meu primeiro amor e serás o derradeiro.
—Tudo morre, Zinotchka, tudo, até a propria recordação, até os mais nobres sentimentos. Dão logar a um certo raciocinio: frio, que acalma as saudades. Insurgirmonos, para quê? Trata de aproveitar a vida, ama, sê feliz. Ama um vivo! Para que serve o teu amor a um morto?—E comtudo, não me esquéças de todo! Tivémos horas atribuladas, é certo, mas quantos dias de tanta doçura? Ah!—Foram-se de uma vez para sempre!... Escuta,... amei sempre o pôr do sol... Oh! não!... morrer, por quê?... Ah! viver, viver! Lembra-te da primavera! Do sol! Tão lindo! Das flores! Vivemos por uns tempos n'uma festa! E agora, olha! Olha!
E o pobre enfermo a apontar com a mão diáfana o vidro empanado pela giada. Depois agarrou-se ás mãos da Zina e entrou a chorar com amargor. E os soluços a esfacelaremlhe o já dilacerado peito.
E assim se passou todo o dia: A Zina a dizer-lhe que jamais o olvidaria, que a ninguem n'este mundo viria a dedicar amor egual áquelle que a elle lhe dedicára. E elle a acreditál-a, a sorrir-lhe, a beijar-lhe as mãos.
N'este meio tempo, Maria Alexandrovna, inquiéta, havia já mandado por mais de dez vezes indagar o que seria{186} feito da Zina, a supplicar-lhe que voltasse para casa, que não acabasse de se desacreditar na publica opinião. Até que por fim, ao lusco fusco, resolveu-se, esparvoada de receio, a ir, em pessôa, em procura da filha. Exorou-lhe de joelhos; a Zina a ouvil-a sem a intender. Maria Alexandrovna saíu desesperada. A Zina estava decidida a passar a noite junto do moribundo. Não lhe largou da cabeceira. O estado do infermo ia peorando a olhos vistos: quando rompeu a madrugada, quasi que nem conservava sopro de vida. E não obstante, viveu ainda um dia inteiro. Porém, no momento em que o sol no occaso abrasáva as vidraças, exalou-se a alma com os ultimos raios.
Deu-se então horrivel scena. A edosa mãe abraçou-se com o corpo do filho, e, voltada para a Zina:
—Fôste tu que o deitaste a perder, maldita! clamou.
A Zina, porém, não ouvia coisa nenhuma; estava para ali, qual estatua insensivel, como se, a ella, a alma a tivera deixado tambem. Até que por fim, abaixou-se, fez sobre o defunto o signal da cruz, beijou-o na testa, e saíu do quarto.
Tão tremendas sensações, e aquellas duas noites de véla, quasi que a haviam enlouquecido de todo... e depois, sentia-se prestes a entrar em um novo viver, triste, ameaçador.
Não teria ainda andado dois passos, eis lhe surge na frente o Mozgliakov como se com elle se abrira o chão.
—Zinaida Aphanassievna, disse com timidez, rodando a vista para todos os lados, Zinaida Aphanassievna, sou um jumento; isto é, não é isto que... Se me dá licença, não serei um jumento, visto que procedi briozamente,{187} apezar de todos os pezares... Mas lá que fui um jumento, fui... e estou mais que arrependido... Está-me a parecer que estou a meter os pés pelas mãos, Zinaida Aphanassievna. Perdoe-me, atendendo a este concurso de circunstancias... 
E a Zinaida, inconsciente, a olhar para elle, e a seguir seu caminho, sem tugir. Como no passeio não houvesse logar para dois, Mozgliakov desceu para a calçada.
—Zinaida Aphanassievna—proseguiu o mancebo, se m'o consente, estou pronto a renovar o meu pedido, pronto a esquecer tudo, a perdoar-lhe—com uma condição:— Ficará tudo sendo segredo por emquanto. Ausenta-se d'esta terra o mais breve possivel, eu sigo atras, ás escondidas, casamos para ahi seja onde fôr, sem que ninguem dê por isso, e vamos para Petersburgo. E então! Que me diz? Consente, Zinaida Aphanassievna? Responda, depressa, por quem é! Não posso esperar; poderiamos ser vistos.
A Zina não respondeu: olhou para o Mozgliakov, tão somente, mas fêl-o, porém, de modo tal, que elle comprehendeu desde logo, cumprimentou-a e sumiu-se por detrás da primeira esquina.
"Ora esta! matutava; ella, ainda não haverá dois dias, a lançar em rosto a si propria as culpas todas, e agora!..."
N'este comenos, em Mordassov, precipitavam-se os acontecimentos.
O principe, acarretado pelo Mozgliakov para o hotel, n'aquella mesma noite caíu perigosamente enfermo. Os Mordassovenses só vieram a ser informados do caso ao romper do dia. Kalist Stanislavitch não largava a cabeceira do doente. Ao anoitecer, effectuou-se uma conferencia{188} dos medicos todos de Mordassov. Os convites para comparencia eram redigidos em latim. E não obstante, a despeito do latim, o principe achava-se em estado de delirio, e tudo era pedir ao Kalist Stanislavitch que lhe cantasse uma certa romança, a fallar a respeito de chinó e bigode postiço e, de vez em vez, muito assustado, soltava uns berros. Concluiram os medicos que era uma inflammação do estomago, resultante do excesso de hospitalidade mordassovense, e que d'ali tinha passado á cabeça. Alegaram, tambem, não sei com que fundamentos, um tal qual abalo nervoso. E d'ahi, não se esqueceram de notar que o principe havia muito que manifestava predisposições para a morte e que, por conseguinte... está claro!—e que por conseguinte, morria. Esta ultima hypothese pareceu ter certo fundamento: o pobre do ginjinha expirou ao terceiro dia, ahi pelo anoitecer. Obito a tal ponto inesperado consternou Mordassov. Acudiram em chusmas ao hotel, discutiam, abanavam a cabeça, e concluiram acusando directamente "os assassinos do principe, coitado!" (aludindo assim a Maria Alexandrovna e á filha).
Concordava toda a gente em que tão escandalosa historia não deixaria de dar brado, e podia, até, "ir muito longe".
Mozgliakov nem sabia já que fazer á sua vida. A situação, effectivamente, antolhava-se perigosa. Não fôra elle quem accarretara com o principe para casa de Maria Alexandrovna? Não fôra elle tambem que carregara com elle para o hotel? Não sabia o que havia de fazer com o cadaver, onde o enterrar, a quem informar. E de mais a mais, como passava por ser sobrinho do principe, o seu medo todo{189} era não se lembrassem de o accusar de ter morto o veneravel ancião.
Eis que de repente mudam as scenas. Uma bella manhã, chega á cidade um viajante, desconhecido. E Mordassov, em peso, pespegado á janella, a commentar o adventicio.
—O tal viajante era nem mais nem menos que o celebre principe Chtchepilov, parente do defunto, sujeito de seus trinta e cinco annos, usando dragonas de coronel e as agulhetas de ajudante de ordens. Aquella gran-cruz compenetrava de um respeitoso pavor a todos os tchinovnicks[16] do logar. O prefeito de policia por pouco não indoidece.
Em breve se veiu a saber que o principe vinha de S. Petersburgo e já havia passado por Dukhanovo. Não encontrando ali ninguem, viera seguindo as piugadas do principe até Mordassov, onde o surprehendera a fatal noticia. Tomou desde logo a tudo sobre si, e Mozgliakov retirou-se muito encolhido em presença do lidimo sobrinho.
O illustre defunto foi trasladado para o mosteiro. Ao outro dia, a cidade em peso congregou-se a ouvir a missa funeraria. Entre as senhoras, corria que Maria Alexandrovna compareceria em pessoa na egreja, para pedir perdão alto e bom som perante o caixão, em conformidade com as exigencias da lei. Escusado será dizer que tal Maria Alexandrovna não appareceu.
Fôra para o campo e levára a Zina, parecendo-lhe insustentavel a situação na cidade. Lá da sua aldeia, ia recolhendo com inquietação as atoardas e mandava tomar informações.{190}
Do mosteiro a Dukhanovo, o caminho passava a uma versta das janellas de Maria Alexandrovna. Teve pois occasião de ver desfilar o prestito funebre. Atrás do féretro seguia uma longa cauda de trens. E por largo espaço, n'aquelle campo branco de neve, foi perfilando aquelle seu vulto negro, lento e majestoso, o carro melancólico.
D'ali a oito dias, Maria Alexandrovna, com a filha e Aphanassi Matveich, transferiu-se para Moscou. A aldeia e a casa foram postas em leilão.
E assim perdeu para sempre Mordassov uma senhora, o mais comme il faut possivel!
O caso não escapou a commentarios; nem faltou quem affirmasse que o Aphanassi Matveich se achava tambem á venda juntamente com a aldeia... 
Rodou um anno, outro ainda, e ninguem tornou a falar em Maria Alexandrovna. 
E comtudo, correu que havia adquirido outra aldeia em outro governo, e que outra capital de districto não tardaria em tremer entre as suas potentissimas mãos. A Zina estaria ainda á espera de noivo.
O Aphanassi Matveich... 
Mas não nos tornemos éco de boatos sem fundamento. É falso tudo isso.
 
Já lá vão três annos desde que eu escrevi as linhas que acabaes de ler. Quem me diria que ainda havia de vir a folhear o manuscripto para lhe accrescentar ainda mais uma lauda?{191}
Mas vamos ao facto:
Principiarei por Pavel Alexandrovitch Mozgliakov.
Ao ausentar-se de Mordassov, foi direitinho a Petersburgo, onde alcançou o logar que lhe andava prometido havia muito tempo. Não tardou em se lhe franquearem as portas da sociedade, infronhou-se n'umas intrigalhas, guindou-se ás alturas de espirito do século, tornou a apaixonar-se, renovou o seu pedido, voltou a apanhar um não pelas ventas, enguliu-o, e não podendo digeril-o, sollicitou o ser incorporado a uma expedição enviada a um dos cantos mais remotos d'este nosso paiz sem limites.
O corpo expedicionario transpôz sem novidade de maior florestas e desertos, alcançando a capital da longinqua região.
Foi acolhido pelo general-governador.
Era um homem magro e de semblante severo, um velho militar, ferido em diversas campanhas, condecorado com dois cráchás e com uma cruz branca. Convidou a todos os tchinovniks para um baile effectuado aquella mesma noite.
Pavel Alexandrovitch estava encantado. Envergara a sua casaca petersburguense, com a qual contava para produzir immenso effeito, e deu entrada nas salas nobres com modo desassombrado. Não tardou porém a perder o aprumo em presença de tanta dragona de cachos e de tanta farda enfeitada de commendas. Cumpria-lhe ir fazer a sua venia á esposa do governador, nóva, diziam, e formosissima. Aproxima-se, muito senhor de si,—mas—de subito,—escancara a bôca, e fica pregado ao chão, de assombrado. Com um sumptuoso vestido de baile, surge-lhe na frente a Zina, feraz, soberba, linda, e resplandecente{192} de joias, toda ella. Nem conheceu o Pavel Alexandrovitch, os seus olhos nem se detiveram sequer no semblante de mancebo. Mozgliakov recuou e foi perder-se entre a turba-multa, e soube da bôca de um juvenil tchinovnick coisas interessantissimas.
Soube que o governador era casado ia já em dois annos, desde uma viagem que fizéra a Moscou. Desposara uma joven muito rica, de optima familia. A generala era muito soberba e só dansava com generaes, (havia nove no baile). A generala tem em sua companhia a mãe, senhora intelligentissima da mais alta aristocracia, mas que se submete á vontade da filha. E d'ahi, o general extasia-se tambem deante d'esta. Mozgliakov referia-se ao Aphanassi Matveich, mas n'aquella região remota ninguem dava noticia delle.
Um tanto restabelecido d'aquelle seu sobresalto, Mozgliakov deu uma volta pelas salas e lobrigou Maria Alexandrovna, vestida com singeleza e, muito animada, a falar com uma personagem graúda. Faziam-lhe cerco varias senhoras que lhe sollicitavam a boa sombra. Maria Alexandrovna era amavel com toda a gente.
Mozgliakov arriscou-se e foi-se-lhe apresentar. Maria Alexandrovna teve assim a modos de um estremeção, mas sopitou-se, acto-continuo. Dignou-se reconhecêl-o e pediu-lhe novas dos seus amigos de Petersburgo. A respeito de Mordassov, nem palavra e foi como se tal coisa não existisse, em conclusão, proferiu o nome de um qualquer principe estranho ao Mozgliakov, voltou-lhe as costas sem affectação, dirigindo-se a uma personagem graúda de cabello grisalho e aromatizado, e d'ali a instantes, dir-se-hia haver-se esquecido de todo de Pavel Alexandrovitch, que ficou{193} para ali com cara de tolo, diante della. Mozgliakov, engatilhando um sorriso sarcastico, e de chapeu na mão, regressou para a sala nobre. Não sei dizer o motivo, mas considerava-se offendido e não se prestou a dansar. Nunca mais lhe desampararam o semblante quer uns ares tristes e de distracção quer um méfistofélico sorriso! Recovado em pinturesca atitude a uma columna, (parecia que de proposito, tinha columnas o salão), e toda a santa noite, horas a seguir, para ali se deixou estar no mesmo posto, a seguir com os olhos a Zina. Tempo perdido, infelizmente! Todas aquellas artimanhas, aquelles tregeitos todos, aquelles ares romanticos e de nimia decepção... etc... etc... nada lhe valeu... A Zina nem sequer deu fé da sua presença. Até que por fim, estafado, exasperado, com os pés dormentes em resultado da immobilidade, faminto, pois não tinha ceado a fim de melhor sustentar o seu papel de amante dolorido, recolheu para sua casa, derreado, abatido. E esteve a pé horas esquecidas, a matutar no passado... Logo no dia immediato, pediu transferencia e alcançou uma missão que o reconduziu a Petersburgo. Voltou a serenidade a entrar-lhe na alma assim que voltou costas á cidade. Lá ao longe, o espaço, o infinito, o deserto, a denegrida neve das florestas nos confins do horizonte. Ao som das patas dos cavallos a chofrarem, e a acompanharem o retinir e o telintar das campainhas. Pavel Alexandrovitch esteve pensativo, por instantes, mas depois, adormeceu muito socegado da sua vida.
Acordou na terceira muda, fresco, bem disposto, e a pensar noutra coisa.

 

 

                                                                  Fiódor Dostoiévski

 

 

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