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UM CORPO NA BIBLIOTECA / Agatha Christie
UM CORPO NA BIBLIOTECA / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM CORPO NA BIBLIOTECA

                       

      Há certos chavões que pertencem a determinados tipos de ficção. O “mau e ousado baronete” no melodrama, “o corpo na biblioteca” na ficção policial. Durante muitos anos estudei a possibilidade de uma adequada “Variação do Conhecido Tema”. Propus-me certas condições. A biblioteca em questão deveria ser uma biblioteca altamente ortodoxa e convencional. O cadáver, de outro lado, deveria ser um corpo extravagantemente fantástico e extremamente sensacional. Esses eram os termos do problema, mas durante alguns anos permaneceram como tais, representados apenas por algumas linhas mal redigidas num caderno de exercícios. Depois, veraneando por alguns dias num elegante hotel à beira-mar, observei uma família a uma das mesas da sala de jantar; um senhor idoso, paralítico, numa cadeira de rodas, e com ele pessoas da família uma geração mais jovem. Felizmente partiram no dia seguinte, de modo que minha imaginação pôde trabalhar sem o embaraço de qualquer espécie de conhecimento. Quando me perguntam: “A senhora põe pessoas reais em seus livros?” respondo que para mim é inteiramente impossível escrever sobre qualquer pessoa que eu conheça, ou mesmo com quem tenha conversado, ou de quem apenas tenha ouvido falar! Não sei por que motivo, isso é o suficiente para destruí-los completamente. Todavia, posso tomar um “manequim” e dotá-lo de qualidades e idéias concebidas por mim.

      Assim um senhor idoso e paralítico tornou-se o pivô da história. O Coronel e a Sra. Bantry, amigos íntimos de minha Miss Marple, tinham apenas a espécie de biblioteca que eu queria. À maneira de uma receita culinária acrescentem-se os seguintes ingredientes: um instrutor de tênis, uma jovem dançarina, um artista uma jovem guia, uma recepcionista de um salão de dança etc., e sirvam-se à la Miss Marple!

      

                                      

 

      A SRA. BANTRY estava sonhando. Suas ervilhas de cheiro tinham sido classificadas no primeiro lugar na exposição de flores. O pároco, de batina e sobrepeliz, distribuía os prêmios na igreja. Sua esposa perambulava por perto, vestida num roupão de banho, mas como sói acontecer nos sonhos, esse fato não provocou a desaprovação do pároco como certamente o leria feito na vida real...

      A Sra. Bantry deleitava-se no seu sonho. De modo geral adorava os sonhos ao amanhecer, que terminavam com a chegada do café da manhã. Em alguma parte de sua consciência mais profunda, percebia os ruídos domésticos no início da manhã. O guizo das argolas da cortina das escadas, quando a empregada as corria, os ruídos da pá de lixo e da vassoura da segunda empregada no passeio da casa. A distância, o barulho pesado do ferrolho da porta da frente, ao ser puxado.

      Começava mais um dia. Entrementes, devia retirar todo prazer possível da exposição de flores — pois a sensação de que tudo não passava de um sonho começava a se manifestar...

      Lá embaixo, fazia-se ouvir o ruído das grandes venezianas de madeira, da sala, que estavam sendo abertas. Ela ouvia e, não obstante, não ouvia. Por mais uma meia hora os ruídos domésticos continuariam, discretos, abafados, que não perturbavam por serem tão familiares. Culminariam num som rápido e controlado de passos no corredor, o guizo de atavios, o tinido abafado do serviço de chá quando a bandeja era colocada sobre a mesa lá fora, em seguida a batidas de leve na porta e a entrada de Mary para abrir as cortinas.

      Em seu sono a Sra. Bantry franziu o cenho. Algo de perturbador estava perpassando por seu sonho, algo fora de hora. Pisadas pelo corredor, passos apressados demais e tão cedo. Seus ouvidos ouviam inconscientemente o tinido de louça, mas não havia tinido de louça.

      Bateram na porta. Do fundo de seus sonhos, a Sra. Bantry disse automaticamente:

      — Entre.

      Abriu-se a porta. Agora ouviria os guizos das argolas da cortina. Da luz verde fraca veio a voz de Mary, sem fôlego, histérica.

      — Oh, que coisa horrível, há um corpo na biblioteca. E em seguida, com um acesso histérico de soluços, saiu correndo do quarto.

     

      A Sra. Bantry assentou-se na cama.

      Ou seu sono tinha tomado um rumo estranho ou coisa que valha, ou realmente Mary tinha entrado ali correndo e teria dito (incrível, fantástico!) que havia um corpo na biblioteca.

      Impossível, disse a Sra. Bantry para si mesma. Devo ter sonhado.

      Mas mesmo ao afirmar isso, sentiu-se ainda mais certa de que não estivera dormindo, que Mary, sua Mary autocontrolada e superior, tinha realmente dito aquelas terríveis palavras.

      A Sra. Bantry refletiu por alguns instantes e em seguida com e cotovelo conjugal cutucou seu marido ainda adormecido.

      — Arthur, Arthur, acorde.

      O Coronel Bantry grunhiu, resmungou e virou-se para o outro lado.

      — Arthur, levante-se. Não ouviu o que ela disse?

      — Talvez — respondeu o Coronel Bantry indistintamente. — Concordo com você, Dolly.

      E caiu de novo no sono.

      A Sra. Bantry o sacudiu.

      — Você deve ter ouvido. Mary entrou aqui e disse que há um corpo na biblioteca.

      — Há o quê?

      — Um corpo na biblioteca.

      — Quem disse isso?

      — Mary.

      O Coronel Bantry reuniu todos os seus sentidos dispersos e procurou inteirar-se da situação.

      — Tolice, minha velha — disse ele. — Você deve ter sonhado.

      — Não, não estava sonhando. No início, realmente, pensei que estivesse. Mas não estava. Mary de fato entrou e disse isso.

      — Mary entrou e disse que havia um corpo na biblioteca?

      — Disse.

      — Mas não, não pode ser.

      — Mas então por que Mary disse que havia?

      — Ela não pode ter dito.

      — Disse.

      — Você deve ter imaginado isso.

      — Não, não é imaginação minha.

      O Coronel Bantry estava agora completamente acordado e preparado para avaliar a situação real.

      — Você esteve sonhando, Dolly — disse ele bondosamente. — É tudo. É aquele conto policial que você estava lendo. A Pista do Pau de Fósforo Quebrado. Lord Edgbaston encontra o lindo corpo de uma loura sobre o tapete da biblioteca. Corpos estão sendo sempre encontrados nas bibliotecas, nos livros. Nunca soube de um caso real.

      — Talvez desta vez você verá — disse a Sra. Bantry. — De qualquer maneira, Arthur, levante-se e vá ver.

      — Ora, Dolly, deve ter sido um sonho. Os sonhos muitas vezes são tão maravilhosamente vivos, que ao acordar nos parecem uma realidade.

      — Eu estava tendo um sonho muito diferente. Era uma exposição de flores e a mulher do pároco vestida num roupão de banho. Mais ou menos isso.

      Com uma súbita manifestação de energia, a Sra. Bantry pulou da cama e puxou as cortinas. A luz de um lindo dia de outono invadiu o quarto.

      — Não foi sonho coisa nenhuma — disse ela firmemente. — Levante-se logo, Arthur, desça e vá ver isso.

      — Você quer que eu desça para perguntar se há um cadáver na biblioteca?

      — Não precisa perguntar nada — respondeu a Sra. Bantry. — Se houver um corpo na biblioteca e, naturalmente, é bem possível que Mary tenha ficado louca e pense que viu coisas que não existem... alguém lhe dirá logo. Você não precisará dizer nada.

      Resmungando, o Coronel Bantry vestiu seu roupão e saiu do quarto. Caminhou pelo corredor e desceu a escada, ao pé da qual se acotovelava um pequeno grupo de criadas, algumas delas soluçando. O mordomo adiantou-se com um ar impressionante.

      — Graças a Deus o senhor veio, patrão. Tinha ordenado que nada fosse feito antes de o senhor chegar. Acha que eu já deveria ter chamado a Polícia?

      — Chamar a Polícia? Para quê?

      O mordomo lançou um olhar de repreensão para uma jovem que estava chorando histericamente no ombro da cozinheira.

      — Eu pensei que Mary já o tivesse informado, patrão. Ela me disse que o fizera.

      Mary falou ofegante.

      — Eu estava tão excitada que não sei o que disse. Lembrei-me de tudo de novo e minhas pernas começaram a tremer e vi tudo embaralhado. Encontrar uma coisa daquelas... oh, oh, oh!

      E apoiou-se de novo no ombro da Sra. Eccles, que dizia para tranqüilizá-la:

      — Acalme-se, acalme-se, minha filha.

      — Mary, como é natural, está muito agitada, patrão, tendo sido ela a autora da descoberta macabra — explicou o mordomo. — Entrou na biblioteca, como de costume, para correr as cortinas e... quase tropeçou no corpo.

      — Você quer dizer — perguntou o Coronel Bantry, — que há um cadáver na minha biblioteca... na minha biblioteca?

      O mordomo tossiu.

      — Talvez fosse bom o senhor ir ver pessoalmente.

     

      — Alô, alô, posto policial. Sim, quem está falando?

      O policial Palk com u’a mão abotoava sua farda e com a outra segurava o fone.

      — Sim, é da Polícia de Gossington. Como? Oh, bom dia, senhor.

      O tom de voz do policial passou por uma ligeira modificação. Tornou-se menos impaciente, reconhecendo a voz do generoso patrono dos esportes da Polícia e do principal magistrado do distrito.

      — Às suas ordens, senhor. Em que lhe posso ser útil?... Desculpe, mas não compreendi bem... o senhor disse um corpo?... Sim. Sim, como o senhor preferir... Está bem, senhor... O senhor disse... uma jovem que não conhece?... Está bem. Pode deixar tudo por minha conta.

      O policial repôs o fone no suporte, tirou um longo assobio e começou a discar o número de seu superior.

      A Sra. Palk espiou da cozinha de onde vinha o cheiro apetitoso de bacon frito.

      — O que é que há?

      — A coisa mais estranha que já se ouviu — respondeu o marido. — Foi encontrado o corpo de uma jovem em Hall. Na biblioteca do Coronel.

      — Assassinada?

      — Estrangulada, conforme disse ele.

      — Quem era ela?

      — Diz o Coronel que nunca a viu.

      — Mas então o que estava fazendo na biblioteca?

      O policial Palk fê-la calar com um olhar de repreensão e começou a falar de modo oficial pelo telefone.

      — Inspetor Slack? Aqui fala o Palk. Acabo de ser informado de que foi achado hoje, às sete e quinze, o corpo de uma jovem...

     

      O telefone de Miss Marple tocou enquanto ela se vestia. A chamada a excitou um pouco. Seu telefone não costumava tocar àquela hora. Sistemática e afetada em sua vida de solteirona, uma chamada imprevista era uma fonte de vivida conjetura.

      — Deus meu — disse Miss Marple, olhando perplexa para o aparelho que soava. — Quem será?

      Das nove às nove e trinta da noite era a hora de praxe na aldeia para as conversas telefônicas, resultando sempre planos para o dia seguinte, convites e assim por diante. O açougueiro tinha o costume de chamar um pouco antes das nove, no caso de ocorrer alguma coisa no mercado de carne. Durante o dia o telefone podia tocar ocasionalmente, embora fosse considerado pouco delicado fazer chamadas à noite, depois das nove e meia. Era verdade que um sobrinho de Miss Marple, um escritor, e por conseguinte excêntrico, tinha o costume de chamar nas horas mais inconvenientes, às vezes mesmo por volta da meia-noite. Mas quaisquer que fossem as excentricidades de Raymond West, levantar-se cedo não era uma delas. Nem ele nem ninguém do conhecimento de Miss Marple tinha costume de telefonar antes das oito da manhã. Realmente, faltavam quinze para às oito.

      Cedo demais, mesmo para um telegrama, uma vez que o telégrafo não abria antes das oito da manhã.

      — Deve ser engano — decidiu Miss Marple.

      Tendo assim decidido, dirigiu-se ao aparelho, impaciente, e o fez calar, retirando o fone.

      — Alô — disse ela.

      — É você, Jane?

      Miss Marple ficou muito surpresa.

      — Sim, é Jane. Você se levanta muito cedo, Dolly.

      A voz da Sra. Bantry chegava trêmula e agitada.

      — Aconteceu a coisa mais pavorosa.

      — O quê, querida?

      — Acabamos de encontrar um corpo na biblioteca.

      Miss Marple achou por alguns instantes que sua amiga tinha ficado maluca.

      — Vocês encontraram o quê?

      — Eu sei. Ninguém acredita, não é? Eu também pensava que essas coisas só aconteciam nos livros. Tive que discutir longamente com Arthur esta manhã até que ele resolvesse descer e ir ver.

      Miss Marple procurava controlar-se. Perguntou quase sem fôlego:

      — Mas de quem é o corpo?

      — É uma loura.

      — Uma o quê?

      — Uma loura. Uma linda loura... como nos livros também. Ninguém aqui de casa a conhece. Mas lá está, estendida na biblioteca, morta. É por isso que você precisa vir aqui imediatamente.

      — Você quer que eu vá aí?

      — Sim, estou mandando o carro apanhá-la.

      — Está bem, querida — disse Miss Marple indecisa, — se acha que posso confortá-la...

      — Oh, não, não preciso de conforto. Mas você é muito competente em matéria de cadáveres.

      — Oh, não, por favor, Dolly. Meus modestos sucessos têm sido na sua maioria teóricos.

      — Mas você é a tal em assassinatos. Ela foi estrangulada, sabe? Tenho a impressão de que se alguém quisesse ter um assassinato em sua própria casa, a oportunidade não poderia ter sido melhor. Não sei se está-me compreendendo. É por isso que quero que venha ajudar-me a descobrir quem fez isso e esclarecer todo o mistério. É realmente excitante, não acha?

      — Bem, é claro, querida, se é que lhe posso ser de alguma utilidade.

      — Ótimo. Arthur está-se tornando difícil. Parece pensar que eu não deveria alegrar-me com isso. Sei, é claro, que é muito triste e tudo, mas não conheço a jovem e quando você a vir compreenderá o que quero dizer quando afirmo que ela não parece real.

     

      Um pouco afobada, Miss Marple saiu do carro dos Bantrys, cuja porta lhe foi aberta pelo motorista.

      O Coronel Bantry surgiu nos degraus da entrada e parecia um tanto surpreso.

      — Miss Marple?... prazer em vê-la.

      — Sua mulher me telefonou — explicou Miss Marple.

      — Ótimo, ótimo. Dolly precisa ter alguém com ela. Caso contrário sofrerá um colapso. Por enquanto está-se fazendo de forte mas a senhora sabe o que é...

      Naquele momento apareceu a Sra. Bantry que exclamou:

      — Vá acabar de tomar seu café, Arthur. O bacon está esfriando.

      — Pensei que fosse o inspetor que estivesse chegando — explicou o Coronel Bantry.

      — Ele não vai demorar — disse a Sra. Bantry. — É por isso que acho bom ir tomar seu café primeiro. Você precisa alimentar-se.

      — Você também. É melhor ir para dentro comer alguma coisa Dolly...

      — Irei nesse instante — disse a Sra. Bantry. — Vá, Arthur.

      O Coronel Bantry foi enxotado para dentro como uma galinha recalcitrante.

      — Finalmente! — disse a Sra. Bantry com uma entonação de triunfo. — Vamos, entre.

      Ela tomou rapidamente a dianteira no corredor, dirigindo-se para o lado oriental da casa. Do lado de fora da porta da biblioteca estava de guarda o policial Palk, que interceptou a Sra. Bantry com um ar de autoridade.

      — Sinto muito, madame, mas ninguém pode entrar. São ordens do Inspetor.

      — Bobagem, Palk — disse a Sra. Bantry. — O senhor sabe perfeitamente quem é Miss Marple.

      O policial Palk confessou que não conhecia Miss Marple.

      — É muito importante que ela veja o corpo — disse a Sra. Bantry. — Deixe de bobagem, Palk. Afinal de contas, a biblioteca é minha, não é?

      O soldado afastou-se. Era velho seu hábito de ceder a pessoas importantes. O Inspetor não pode jamais saber disso, pensava ele.

      — Nada deve ser tocado ou manuseado — advertiu, às senhoras.

      — É claro que não — disse a Sra. Bantry impaciente. — Sabemos disso. O senhor pode entrar e vigiar, se quiser.

      Palk beneficiou-se dessa permissão. De qualquer maneira tinha sido sua intenção.

      A Sra. Bantry conduziu sua amiga triunfantemente pela biblioteca na direção da grande lareira já fora de moda.

      — Eis ali! — disse ela com o sentimento dramático de clímax.

      Miss Marple compreendeu então exatamente o que sua amiga quisera expressar quando dissera que a moça morta não parecia real. A biblioteca era uma sala muito característica de seus proprietários: ampla, gasta e desordenada. Tinha uma grande poltrona já decadente; cachimbos, livros e documentos cobriam uma mesa imensa. Havia um ou dois velhos retratos da família nas paredes e péssimas aquarelas vitorianas com algumas cenas de caça pretensamente engraçadas. Havia um grande vaso de ásteres num canto da sala, que era sombria, simples e descuidada. Ela falava de uma longa ocupação, do uso familiar e de vínculos com a tradição.

      E de lado a lado do tapete central de pele de urso jazia estatelado algo de novo, rude e melodramático.

      A figura extravagante de uma jovem. Uma jovem com uma cabeleira de beleza artificial que lhe caía sobre o rosto em cachos e anéis. Seu corpo franzino trazia um vestido toalete de cetim, sem costas, de cor branca reluzente. O rosto estava grosseiramente pintado, o pó sobressaindo grotescamente sobre a pele inchada e azulada. A base da maquilagem permanecia espessa sobre as maçãs do rosto desfigurado; o vermelho vivo dos lábios parecia um corte profundo. As unhas das mãos estavam pintadas com esmalte vermelho escuro, como também os dedos dos pés, metidos num par de ordinárias sandálias cor de prata. Era uma figura comum, espalhafatosa, extravagante, mais do que imprópria naquele ambiente austero e antiquado da biblioteca do Coronel Bantry.

      — Está vendo agora o que quis dizer? Não parece verdadeiro! — disse a Sra. Bantry em voz baixa.

      A velha senhora a seu lado assentiu com a cabeça. Ficou contemplando pensativa a figura mal posta. No fim disse em tom moderado:

      — Era muito jovem.

      — Sim, sim, acho que era.

      A Sra. Bantry parecia quase surpresa como quem faz uma descoberta.

      Miss Marple curvou-se. Não tocou na moça. Olhou os dedos que apertavam freneticamente a gola do vestido, como se o tivesse rasgado em sua última luta frenética pelo ar.

      Ouviu-se o barulho de um carro que rangeu sobre o cascalho do lado de fora.

      — Deve ser o Inspetor... — disse o policial Palk afobado.

      Confirmando sua arraigada convicção de que pessoas de bem não nos desapontam, a Sra. Bantry dirigiu-se imediatamente à porta, seguida de Miss Marple.

      — Não haverá problemas, Palk — disse a Sra. Bantry.

      Palk sentiu-se imensamente aliviado.

     

      Deglutindo os últimos fragmentos de torrada e marmelada com um gole de café, o Coronel Bantry saiu correndo para o saguão e respirou aliviado ao ver o Coronel Melchett, Chefe de Polícia do município, descendo do carro acompanhado do Inspetor Slack. Melchett era amigo do Coronel. Quanto a Slack, nunca lhe tinha sido apresentado. Era um homem forte que contradizia o seu próprio nome, que em inglês significa indolente, e que acompanhava suas atitudes dinâmicas com uma boa dose de desconsideração para com os sentimentos de quem quer que fosse, desde que não os julgasse importantes.

      — Bom dia, Bantry — disse o Chefe de Polícia. — Achei que seria melhor vir logo. Isso me parece um caso fora do comum.

      — É... é, sim — o Coronel Bantry procurava expressar-se — É incrível... absurdo!

      — Tem alguma idéia de quem seja a mulher?

      — Não faço a menor idéia. Nunca a vi em minha vida.

      — O mordomo sabe de alguma coisa? — perguntou o Inspetor Slack.

      — Lorrimer está tão surpreso quanto eu.

      — Ah! — disse o Inspetor Slack. — É estranho.

      — O café está servido, Melchett. Não quer tomar alguma coisa?

      — Não, não. É melhor irmos logo ao trabalho. Haydock deverá estar aqui a qualquer momento. Ah, está chegando.

      Outro carro parou e dele saiu um homem grande e espadaúdo, o Dr. Haydock, que era também médico da Polícia. Um segundo carro da Polícia tinha descarregado dois homens vestidos em trajes simples, um deles com uma câmera fotográfica.

      — Tudo pronto? — perguntou o Chefe de Polícia.

      — Ótimo. Vamos ver. Na biblioteca, conforme me disse Slack.

      O Coronel gemeu.

      — Incrível! Você sabe quando minha mulher insistiu esta manhã em que a empregada tinha entrado no quarto e dito que havia um corpo na biblioteca, eu não quis acreditar nela.

      — É claro, posso compreender perfeitamente. Espero que sua esposa não tenha ficado muito sobressaltada com isso.

      — Ela se comportou maravilhosamente. Realmente, de modo admirável. Convidou sua velha amiga, Miss Marple, a vir aqui. Ela é lá da aldeia, sabe?

      — Miss Marple? — formalizou-se o Chefe de Polícia. — Por que mandou chamá-la?

      — Oh, as mulheres sempre precisam de outra para tagarelar, não acha?

      O Coronel Melchett disse com um certo sorriso de mofa:

      — Se quer minha opinião, sua esposa vai querer bancar a detetive amadora. Miss Marple é a perfeita investigadora local. Ela já nos passou a perna, uma vez, não foi, Slack?

      — Aquilo foi diferente — disse o Inspetor Slack.

      — Diferente de quê?

      — Daquela vez era um caso local, Sir. A velha sabe de tudo que se passa na aldeia, isso é verdade. Mas aqui ela não tomará pé.

      — Nem você sabe muito a respeito desse caso, Slack — disse Melchett secamente.

      — Ah, espere, chefe. Não vou precisar de muito tempo para esclarecer tudo.

     

      Na sala de jantar, a Sra. Bantry e Miss Marple tomavam, por sua vez, o café da manhã.

      Depois de servir à sua hóspede, disse a Sra. Bantry com insistência.

      — Que tal, Jane?

      Miss Marple levantou a vista e olhou para ela perplexa.

      A Sra. Bantry perguntou esperançosa:

      — Isso não a faz lembrar de alguma coisa?

      Miss Marple tinha-se tornado famosa por sua capacidade de ligar acontecimentos triviais da aldeia com problemas mais graves, a ponto de lançar luz sobre os últimos .

      — Não — respondeu Miss Marple pensativa. — Não posso dizer se me lembro de algo, no momento. Pensei na caçula da Sra. Chetty, Edie, você a conhece. Mas acho que foi somente porque essa pobre moça mordia unhas e por ter os dentes da frente um pouco para fora. Nada mais do que isso. E, é claro — continuou Miss Marple, acompanhando a comparação. — Edie adorava também o que eu chamo de coisas baratas.

      — Você se refere ao seu vestido? — perguntou a Sra. Bantry?

      — Sim, um cetim de mau gosto, de qualidade inferior.

      — Eu sei — disse a Sra. Bantry. — Uma dessas lojinhas imundas, onde tudo é vendido por ninharias. Deixe ver — continuou esperançosa, — o que aconteceu a Edie da Sra. Chetty.

      — Ela acaba de ir para o segundo lugar e está indo muito bem, creio.

      A Sra. Bantry sentiu-se um pouco desapontada. O paralelo da aldeia não lhe parecia muito promissor.

      — O que não posso compreender — disse a Sra. Bantry — é o que estaria fazendo no escritório de Arthur. A janela foi forçada, disse-me Palk. Ela poderia ter entrado aqui com um ladrão e depois os dois brigaram... mas isso parece não ter sentido, não é?

      — Ela não estava adequadamente vestida para um roubo — disse Marple pensativa.

      — Não, ela estava vestida para um baile ou para alguma festa. Mas não há nada disso aqui, nem por perto.

      — Não, não há — disse Miss Marple em tom de dúvida.

      A Sra. Bantry empolgou-se.

      — Você tem alguma idéia, Jane.

      — É, estava apenas pensando..

      — Em quê?

      — Em Basil Blake.

      — Oh, não — exclamou a Sra. Bantry, acrescentando como explicação: — Eu conheço a mãe dele.

      As duas mulheres se entreolharam.

      Miss Marple suspirou e meneou a cabeça.

      — Posso compreender como você se sente nesse caso.

      — Selina Blake é uma criatura excelente. Sua cerca de ervas é simplesmente maravilhosa. Fico doida de inveja. E dá mudas com muita generosidade.

      Miss Marple, ignorando essas considerações da Sra. Bantry, acrescentou:

      — E, no entanto, você sabe, correm muitos boatos por aí.

      — Oh, sim, eu sei. E naturalmente Arthur fica lívido quando ouve o nome de Basil Blake. Ele foi realmente muito grosseiro com Arthur, e desde então Arthur não quer ouvir falar dele. Não tolera esse modo estúpido e desdenhoso de falar dos jovens de hoje em dia, escarnecendo das pessoas que defendem sua escola ou o Império ou coisa semelhante. E, depois, é claro, o tipo de roupas que ele usa!

      — Dizem — continuou a Sra. Bantry, que não tem importância o que se usa no interior. Nunca ouvi tamanho contra-senso. Pois é exatamente no interior que todo mundo nota as coisas. — Fez uma pausa e acrescentou espirituosamente: — Ele era uma criancinha adorável em seu banho.

      — Há uma linda fotografia do assassino de Cheviot quando criança, no jornal de domingo passado — disse Miss Marple.

      — Sim, Jane, mas você não acha que ele...

      — Não, absolutamente. Não quis dizer isso. Seria saltar para conclusões. Estava apenas procurando explicar a presença do cadáver da jovem aqui. St. Mary Mead é um lugar tão inverossímil. Então me pareceu que a única explicação possível era Basil Blake. Ele dá festas. Vem gente de Londres e dos estúdios. Lembra-se de julho passado? Gritando e cantando, um barulho horrível, todo mundo bêbado, infelizmente. E a confusão e vidros quebrados na manhã seguinte, era incrível, conforme me contou a velha Sra. Buny. E uma jovem dormindo no banheiro praticamente nua!

      — Gente de cinema, provavelmente — disse a Sra. Bantry indulgente.

      — É provável. E depois, acho que você ouviu falar, ultimamente trás com ele todo fim de semana uma jovem loura platinada.

      — Não vá você me dizer que o cadáver é dela!

      — Bem, estava pensando. É claro que nunca a vi de perto mas só entrando e saindo do carro, e uma única vez no jardim do bangalô tomando banho de sol, só de short e soutien. Realmente nunca vi seu rosto. E todas essas moças com suas maquilagens, seus cabelos e unhas se parecem umas com as outras.

      — É, bem que poderia ser. É, é uma idéia, Jane.

 

      ERA UMA IDÉIA que estava sendo discutida naquele momento pelo Coronel Melchett e o Coronel Bantry.

      O Chefe de Polícia, depois de examinar o corpo e mandar seus subordinados executarem as tarefas de rotina, tinha-se dirigido com o proprietário para o escritório, na outra ala da casa.

      O Coronel Melchett era um tipo de aspecto irascível, que tinha o hábito de puxar os fios do bigode curto e ruivo. Era o que estava fazendo no momento, lançando indagativos olhares de esguelha para o outro Coronel. Finalmente, perguntou com rudeza:

      — Olhe aqui, Bantry. Tenho uma dúvida e gostaria de me livrar dela. Você, realmente, não sabe quem é aquela moça?

      A resposta do Coronel Bantry ia ser explosiva mas o policial o interrompeu.

      — Eu sei, eu sei, meu caro, mas olhe bem. O negócio poderia ser um bocado incômodo para você. Um homem casado, que ama sua mulher e tudo mais. Mas, aqui entre nós, se tem qualquer ligação com a vítima, é melhor dizer agora. É muito natural querer esconder o fato. Eu faria o mesmo. Mas não convém. Trata-se de um crime. Os fatos acabam vindo à luz. Não estou sugerindo que você tenha estrangulado a jovem... não o creio capaz disso. Suponhamos que ela tenha entrado aqui e o estivesse esperando e um sujeito ou outro a tivesse acompanhado e matado aqui dentro. É possível, sabe. Compreende o que eu quero dizer?

      — Ora essa, Melchett, eu lhe asseguro que nunca vi aquela moça na minha vida! Eu não sou homem dessa espécie.

      — Está bem, então. Não o queria ofender, chamando-o de mundano. Mas a questão continua de pé: o que estaria ela fazendo aqui? O certo é que não é daqui deste lugar.

      — Até parece um pesadelo — disse o dono da casa tomado de raiva.

      — Aí está a questão, meu caro. O que estaria fazendo na sua biblioteca?

      — Como posso saber? Eu não a chamei aqui.

      — Não, não. Mas, seja lá como for, ela veio. Parece que queria vê-lo. O senhor não recebeu nenhuma carta estranha ou coisa que valha?

      — Não, não recebi nada.

      O Coronel Melchett perguntou delicadamente:

      — O que esteve fazendo na noite passada?

      — Estive numa reunião na Associação Conservadora. Às nove horas, em Much Benham.

      — E quando voltou para casa?

      — Saí de Much Benham um pouco depois das dez. Ocorreu, porém, um bocado de contratempos no caminho e tive de trocar um pneu. Quando cheguei a casa faltavam quinze para meia-noite.

      — Esteve na biblioteca?

      — Não.

      — Foi pena.

      — Estava cansado. Fui direto para a cama.

      — Ninguém o esperava?

      — Não. Eu sempre levo as chaves. Lorrimer recolhe-se às onze horas, a não ser que lhe dê ordens em contrário .

      — Quem fecha a biblioteca?

      — Lorrimer. Geralmente às sete e meia nesta época do ano.

      — Teria ele estado lá durante a noite?

      — Durante minha ausência, não. Ele deixou a bandeja com uísque e copos no salão.

      — Está bem. E sua senhora?

      — Não sei. Ela estava deitada quando cheguei, e adormeci logo. Pode ter estado na biblioteca ontem à noite, ou na sala de estar. Esqueci de lhe perguntar.

      — Está bem. Saberemos logo todos os detalhes. É claro que algum criado pode estar envolvido, não acha?

      O Coronel Bantry meneou a cabeça.

      — Não o creio. São todos muito corretos. Estão conosco há anos.

      Melchett concordou.

      — É, não parece provável que estejam metidos nisso. Tudo indica que a moça veio da cidade, talvez com algum jovem. Mas por que teriam entrado nesta casa...

      Bantry o interrompeu.

      — De Londres. É o mais provável. Não temos dessas ocorrências por aqui, pelo menos...

      — O que quer dizer com isso?

      — Palavra de honra! — explodiu o Coronel Bantry. — Basil Blake!

      — Quem é ele?

      — Um jovem ligado à indústria cinematográfica. Um sujeito grosseiro e pernicioso. Minha mulher o defende porque foi colega de sua mãe na escola. Mas’ não passa de um mequetrefe dessa juventude inútil e decadente! Precisa de um pontapé na traseira! Mora naquele bangalô na Lansham Road, sabe, nesse estilo de construção horrivelmente moderno. Dá festas ali, com grupos barulhentos e estridentes, e recebe moças nos fins de semana.

      — Moças?

      — Sim, na semana passada tinha uma. Uma dessas louras platinadas...

      O Coronel deixou cair o queixo.

      — Uma loura platinada, hein? — disse Melchett pensativo.

      — Exato. Você não acha, Melchett...

      O policial interrompeu-o incontinenti.

      — É uma possibilidade. Explica uma jovem desse tipo em St. Mary Mead. Acho que preciso ter uma conversa com esse jovem... Braid... Blake... como é mesmo seu nome?

      — Blake. Basil Blake.

      — Estaria em casa agora?

      — Vamos ver. Que dia é hoje? Sábado? Em geral não sai daqui nas manhãs de sábado.

      — Vamos ver — disse Melchett sombriamente.

     

      A casa de Basil Blake, que reunia todas as comodidades modernas encerradas numa horrível concha de estrutura aparente e pretenso estilo Tudor, era conhecida pelos funcionários dos correios e pelo construtor William Booker como Chatsworth (Casa de Tordos); por Basil e seus amigos como A Peça da Época, e para a aldeia de St. Mary Mead, em geral, como “a casa nova do Sr. Booker”.

      A casa estava a pouco mais de quatrocentos metros da aldeia, situada numa nova área de construção que tinha sido comprada pelo empreendedor Sr. Booker, pouco adiante do Blue Boar, de frente para o que tinha sido uma vereda particularmente intacta. Gossington Hall estava a mais ou menos um quilômetro e meio, ao longo da mesma estrada.

      St. Mary Mead foi tomada de vivo interesse, quando correu a notícia de que “a casa nova do Sr. Booker” tinha sido comprada por um astro de cinema. Todos estavam ansiosos para presenciar o primeiro aparecimento da importante personalidade na aldeia. E pode-se dizer, que no tocante às aparências, Basil Blake era tudo que poderia ser imaginado. Pouco a pouco, entretanto, a realidade dos fatos começou a transpirar. Basil Blake não era astro de cinema, nem tampouco trabalhava em filmes. Era ainda muito jovem e se comprazia com o título de ser mais ou menos o décimo quinto da lista dos responsáveis por Decorações de Ambiente nos Estúdios Lenville, sede da British New Era Films. As mulheres da aldeia perderam o interesse e a classe dirigente de solteironas reprovadoras criticava o sistema de vida de Basil Blake. Só o proprietário do Blue Boar continuava entusiasmado com Basil e seus amigos. As rendas do Blue Boar tinham aumentado desde a chegada do jovem ao lugar.

      O carro da Polícia parou do lado de fora do portão rústico e retorcido, nascido da fantasia do Sr. Booker, e o Coronel Melchett, com uma expressão de aborrecimento pelo excesso de estrutura aparente da casa, dirigiu-se à porta de entrada e bateu energicamente com a aldrava.

      A porta abriu-se muito mais rapidamente do que esperava. Apareceu um jovem de cabelos pretos, lisos, um pouco compridos, usando calças de belbutina cor de laranja e uma camisa azul-escuro.

      — O que é que o senhor deseja?

      — O senhor é o Sr. Blake?

      — Sou eu mesmo.

      — Gostaria de conversar um pouco com o senhor.

      — Com quem falo?

      — Sou o Coronel Melchett, Chefe de Polícia do município .

      — Oh, não diga. Que interessante! — disse o Sr. Blake insolentemente.

      E o Coronel Melchett, entrando atrás dele, compreendeu as reações do Coronel Bantry. Estava começando a se irritar.

      Contendo-se, entretanto, disse, procurando mostrar-se agradável:

      — O senhor é um madrugador, Sr. Blake.

      — O senhor se engana. Eu não me deitei ainda.

      — De fato?

      — Mas não creio que o senhor veio aqui para saber a hora em que me recolho. Se for, será um desperdício de tempo e de dinheiro do município. O que é que o traz aqui?

      O Coronel Melchett limpou a garganta.

      — Ouvi dizer, Sr. Blake, que neste último fim de semana o senhor recebeu uma visita, ou melhor, uma loura.

      Basil Blake arregalou os olhos, jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

      — As gatas velhas do condado foram procurá-lo por causa disso? Por causa de meus costumes? Ora essa, a moral não é assunto para a Polícia. O senhor sabe disso.

      — Como o senhor diz — ponderou Melchett secamente, — não me interessa sua moral. Vim procurá-lo por causa do cadáver de uma moça loura, de aparência, diria, um tanto extravagante, que foi encontrada... assassinada.

      — Como? — Blake o encarou. — Onde?

      — Na biblioteca, em Gossington Hall.

      — Em Gossington? Na casa do Coronel Bantry? Aquele ricaço. O velho Bantry! Aquele velho trapaceiro!

      O Coronel Melchett ruborizou-se.

      — Por favor, queira controlar sua língua. Vim aqui interrogá-lo na esperança de lançar alguma luz sobre o caso — disse o Coronel, incisivamente, ao jovem que se mostrava de novo sorridente.

      — Quer dizer que veio precisamente para me perguntar se perdi uma loura? É isso?

      Um carro parou à porta rangendo os freios. Uma jovem, vestindo pijama preto e branco, saiu dele. Tinha lábios vermelhos, cílios escurecidos e cabelos louros. Encaminhou-se a passos rápidos na direção da porta, abriu-a violentamente e exclamou zangada:

      — Por que você me abandonou, seu salafrário?

      Basil Blake tinha-se levantado.

      — Já vem você! Por que eu a abandonaria? Eu lhe pedi para vir embora. E você não quis.

      — Mas por que diabo eu teria de vir embora, só porque você queria? Estava-me divertindo.

      — Sim, divertindo-se com o nojento do Rosemberg. Você sabe com que ele se parece?

      — Ah, você está enciumado.

      — Não se lisonjeie. Detesto ver moça, de quem gosto, ficar bêbada sem poder segurar seu copo, e não repelir a pata de um nojento europeu central.

      — Isso é pura mentira. Você é que estava bebendo demais e atrás daquela cadela morena da Espanha.

      — Se a convido para uma festa, espero que seja capaz de se comportar devidamente.

      — O negócio é que não aceito ordens. Você disse que iríamos à festa e voltaríamos para aqui depois. Não vou deixar uma festa antes de estar pronta para partir.

      — É claro, e foi por isso que a deixei estendida. Eu estava pronto para sair e não iria ficar à toa, esperando pelos caprichos de qualquer tola.

      — Como é gentil e educado, querido!

      — Parece que você me imita em tudo!

      — Eu quero dizer-lhe o que penso a seu respeito!

      — Se acha que me vai dominar, engana-se totalmente.

      — E se pensa que me pode dar ordens, está perdendo seu tempo!

      Eles se encararam com olhar feroz.

      Foi nesse momento que o Coronel Melchett aproveitou a oportunidade e limpou a garganta fortemente.

      Basil Blake voltou-se.

      — Desculpe-me, esqueci que o senhor estava aqui. Pelo tempo, pensei que já tivesse ido embora. Permita-me apresentar-lhe Dinah Lee. O 007 da Polícia local. E agora, Coronel, que o senhor viu que minha loura está viva e gozando boa saúde, talvez lhe convenha continuar o negócio da piranha do velho Bantry.

      — Aconselho-o a usar uma linguagem mais educada, meu jovem, ou acabará tendo dificuldades — disse o Coronel Melchett e saiu bruscamente, vermelho de raiva.

     

      EM SEU ESCRITÓRIO em Much Benham, o Coronel Melchett recebia e examinava os relatórios de seus subordinados:

      — ...parece, portanto, bastante claro, concluía o Inspetor Slack, que a Sra. Bantry assentou-se na biblioteca depois do jantar e foi-se deitar pouco antes das dez. Apagou as luzes ao sair da sala e, ao que parece, ninguém entrou ali depois. Os criados recolheram-se às dez e meia e Lorrimer, depois de colocar as bebidas no saguão, foi-se deitar às quinze para as onze. Ninguém ouviu nada de anormal, com exceção da terceira criada, e como ouviu! Gemidos e um grito pavoroso, além de pisadas ameaçadoras e não sei mais o quê. A segunda criada que partilha com ela o mesmo quarto diz que sua companheira dormiu profundamente a noite toda. São dessas coisas que complicam tudo

      — E sobre a janela forçada?

      — Negócio de amador, chefe — disse Simmons. Foi arrombada com um formão ordinário, não deve ter feito muito barulho. Devia ser um formão da casa, mas ninguém o encontrou. Aliás, isso é muito comum quando se trata de instrumentos.

      — O senhor acha que algum empregado sabe de alguma coisa?

      — Não, senhor, não creio — respondeu o Inspetor Slack um tanto relutante. Parecem muito chocados e sobressaltados. Tive suspeita de Lorrimer... estava reticente, acho que o senhor me compreende, mas não tenho nenhum fundamento para incriminá-lo.

      Melchett assentiu com a cabeça. Não dispensava nenhuma importância à reticência de Lorrimer. O enérgico Inspetor Slack produzia muitas vezes esse efeito nas pessoas que interrogava.

      A porta se abriu e o Dr. Haydock entrou.

      — Achei que seria bom vir aqui para lhe dar os dados principais do caso.

      — Oh, sim, ótimo. Prazer em vê-lo. E então?

      — Quase nenhuma novidade. É exatamente como o senhor pensava. Morte por estrangulamento. Uma tira de cetim do próprio vestido enrolada no pescoço e amarrada atrás. Coisa muito fácil e simples de se fazer. Não haveria necessidade de muita força, isto é, caso a moça tenha sido apanhada de surpresa. Não há sinais de luta.

      — E quanto à hora do crime?

      — Entre dez e meia-noite, mais ou menos.

      — Não pode precisar mais?

      Haydock meneou a cabeça com um ligeiro sorriso.

      — Não quero arriscar minha reputação profissional. Nem antes das dez nem depois da meia-noite.

      — Mas, pessoalmente, que hora o senhor estaria inclinado a precisar?

      — Depende. A lareira estava acesa; a sala estava quente, o que retardaria a rigidez cadavérica.

      — Não tem mais nada a informar sobre a moça?

      — Não muito. Era jovem, digamos, de dezessete ou dezoito anos. Sob certos aspectos, imatura, mas de músculos bem desenvolvidos. Um tipo sadio. A propósito, era virgem intacta.

      Com uma inclinação de cabeça, o médico saiu do gabinete.

      — Você tem certeza de que a moça nunca foi vista em Gossington? — perguntou Melchett ao Inspetor.

      — Os criados são categóricos nesse sentido. Ficam mesmo indignados. Dizem que se teriam lembrado dela se a tivessem visto alguma vez pelas redondezas.

      — Espero que sim — disse Melchett. — Qualquer pessoa daquele tipo se faria notar nesses dois quilômetros. Veja aquela moça de Blake.

      — É pena que não tenha sido ela — disse Slack; — poderíamos resolver um bocado de coisas.

      — Tenho a impressão de que essa moça deve ter vindo de Londres — disse o Chefe de Polícia, pensativo. — Não pense em descobrir pistas locais. De qualquer maneira, acho que deveríamos recorrer à Scotland Yard. É um caso para ela e não para nós.

      — Alguma coisa, porém, deve tê-la trazido aqui — disse Slack, acrescentando uma hipótese. — Tenho para mim que o Coronel e a Sra. Bantry devem saber de alguma coisa. É claro, eu sei que são amigos seus, chefe...

      O Coronel Melchett lançou-lhe um olhar frio e lhe disse secamente:

      — Esteja certo de que estou considerando toda possibilidade. Toda possibilidade. — E continuou: — O senhor deu uma olhadela na lista de pessoas desaparecidas?

      Slack assentiu com a cabeça e apresentou uma folha de papel datilografada.

      — Ei-los. A Sra. Saunders, dada como desaparecida há uma semana. Cabelos escuros, olhos azuis, trinta e seis anos. Não é ela e, além disso, todo mundo sabe, menos seu marido, que ela fugiu com um comerciário de Leeds. A Sra. Barnard, com trinta e cinco anos. Pamela Reeves, dezesseis anos, desaparecida de casa na noite passada, esteve num torneio de tênis, tem cabelos castanhos, usa tranças, um metro e cinqüenta de altura e...

      — Deixe de detalhes idiotas, Slack — disse Melchett irritado. — A moça não tem nada de escolar. Na minha opinião...

      Melchett foi interrompido pelo telefone.

      — Alô... sim, sim, é da Chefatura de Polícia de Much Benham... Como? Espere um momento...

      Melchett ouvia e escrevia rapidamente. Em seguida falou de novo, com uma nova tonalidade de voz:

      — Ruby Keene, dezoito anos, dançarina profissional, um metro e sessenta, magra, cabelos louros platinados, olhos azuis, nariz arrebitado, devia estar usando um vestido toalete branco brilhante e sandálias prateadas. Certo? O quê? Sim, não há dúvida. Mandarei Slack aí imediatamente .

      O Chefe de Polícia desligou o telefone e olhou seu subordinado com crescente excitação.

      — Temos uma pista, acho. Foi da Polícia de Glenshire (Glenshire era o município vizinho). Uma jovem é dada como desaparecida pelo Majestic Hotel, em Danemouth.

      — Danemouth — disse o Inspetor Slack. — É bem possível.

      Danemouth era um grande e moderno balneário litorâneo, não muito longe dali.

      — Está mais ou menos a trinta quilômetros daqui — disse o Chefe de Polícia. — A moça era dançarina ou coisa que valha, no Majestic. Não se apresentou para o seu número na noite passada e a gerência ficou preocupada com isso. Hoje, pela manhã, continuando ainda desaparecida, alguém, uma das outras moças talvez, espalhou a notícia. Isso parece um bocado obscuro. Seria melhor você ir imediatamente a Danemouth, Slack. Apresente-se ali ao Inspetor Harper e colabore com ele.

     

      A atividade era sempre do gosto do Inspetor Slack. Sair correndo num carro, fazer calar rudemente as pessoas que estivessem ansiosas para lhe contar coisas, interromper conversações a pretexto de necessidade urgente, tudo isso significava vida para Slack.

      Por conseguinte, em tempo incrivelmente curto, chegou a Danemouth, apresentou-se à chefatura de polícia, teve uma breve entrevista com o gerente do hotel, apreensivo e distraído, e, deixando-o com o conforto duvidoso — de primeiro descobrir se era realmente a moça antes de começar as investigações — partiu de volta a Much Benham na companhia de uma parente próxima de Ruby Keene.

      Tinha-se comunicado imediatamente com Much Benham antes de sair de Danemouth, de modo que o Chefe de Polícia estava preparado para recebê-lo, embora não estivesse para a breve apresentação.

      — Apresento-lhe Josie, chefe.

      O Coronel Melchett olhou seu subordinado friamente. Dava a impressão de que Slack tivesse perdido o bom senso.

      A jovem, que acabava de sair do carro, veio em seu socorro.

      — É que sou conhecida como profissional — explicou ela, mostrando momentaneamente uma dentadura alva e bonita. — Raymond e Josie, assim nos chamamos, eu e meu companheiro. Todo o hotel me conhece como Josie. Meu nome verdadeiro é Josephine Turner.

      O Coronel Melchett ajustou-se à situação e convidou a Srta. Turner a se sentar, observando-a entrementes, de relance, com um olhar de profissional.

      Era uma jovem simpática, de mais de vinte anos e menos de trinta. Sua beleza dependia mais de atavios habilidosos do que de aspectos reais. Parecia competente, calma e possuidora de senso comum. Não era o tipo que se pudesse chamar de glamorosa mas, não obstante, era muito atraente. Pintava-se discretamente e usava um costume escuro. Embora parecesse preocupada e sobressaltada, na realidade, concluiu o Coronel, não estava particularmente pesarosa.

      — Parece terrível demais para ser verdade — disse ela ao se sentar. — Acha que realmente seja Ruby?

      — Sinto muito, mas é exatamente isso que nós lhe queremos perguntar. Lamento que possa ser desagradável para a senhora.

      — Ela parece... parece muito horrível?: — perguntou a Srta. Turner apreensiva.

      — Bem, tenho receio de que isso possa chocá-la

      Melchett lhe ofereceu sua carteira de cigarros e Josie tirou um e agradeceu.

      — Quer que eu vá vê-la agora mesmo?

      — Acho que seria bom, Srta. Turner. Não seria muito bom fazer perguntas antes de nos certificarmos. É melhor resolver logo.

      — Perfeito.

      Desceram ao necrotério.

      — É Ruby mesmo, não há dúvida — disse ela com um calafrio. — Pobre menina! Santo Deus, parece que estou tonta. Os senhores não têm um pouco de gim por aí? — perguntou, correndo a vista pela sala.

      Não havia gim mas conhaque. Após tomar uns dois goles, a Srta. Turner recobrou a calma.

      — Já teve ocasião de ver coisa semelhante? — perguntou ela francamente. — Pobrezinha da Ruby! Como os homens são imundos, não é?

      — A senhora acha que foi um homem?

      Josie foi apanhada um tanto de surpresa.

      — Não foi? Bem, quero dizer... pensei naturalmente.

      — A senhorita teria pensado especialmente em algum homem?

      Ela meneou a cabeça vigorosamente.

      — Não, eu não. Não tenho a menor idéia. É claro que Ruby não faria segredo para mim se...

      — Se o quê?

      Josie hesitou.

      — Bem, se ela fosse sair com alguém.

      Melchett lançou-lhe um olhar penetrante. Não disse mais nada até chegar ao escritório. Então começou:

      — Srta. Turner, preciso de toda informação que possa dar-me.

      — Perfeitamente. Por onde devo começar?

      — Gostaria de ter o nome e endereço completos, seu parentesco com ela e tudo que souber a respeito.

      Josephine Turner assentiu com a cabeça. Melchett se convenceu mais uma vez de que Josie não estava particularmente sentida. Estava chocada e angustiada e nada mais. Falava com bastante espontaneidade.

      — Ela se chamava Ruby Keene, isto é, seu nome profissional. Seu nome real era Rosy Legge. Sua mãe era prima da minha. Conheço toda sua vida, mas não tão profundamente. Acho que o senhor entendeu o que quero dizer. Temos muitos primos. Alguns no comércio, outros no palco. Acho que Ruby estava estudando para ser bailarina. Ela teve bons contratos no ano passado em teatros de revista e coisa do gênero. Não eram companhias muito chiques mas eram boas companhias provinciais. Desde então esteve contratada como par de dança no Palais de Danse em Brixwell, no sul do Londres. É um lugar respeitável, que procura moças direitas, mas pagam muito mal.

      Fez uma pausa. O Coronel Melchett assentiu com a cabeça.

      — E agora, eis a razão por que vim aqui. Há três anos sou recepcionista da sala de jogo, e de dança, no Majestic, em Danemouth. É um emprego bom, agradável e bem pago. Procuramos as pessoas que chegam — avaliamo-las, é claro — algumas gostam de ficar sozinhas e outras são solitárias e querem ficar a corrente das coisas. Procuramos reunir as pessoas certas para o jogo e tudo mais e fazer com que dancem. É preciso um bocado de contato e de experiência.

      Melchett tornou a assentir com a cabeça. Ele achava que aquela moça devia desempenhar bem suas funções; tinha maneiras agradáveis e simpáticas, inteligentes sem serem intelectuais.

      — Além disso — continuou Josie, — eu faço umas duas apresentações por noite com Raymond. Raymond Starr, professor de tênis e de dança. Bem, como acontece, neste verão eu escorreguei um dia nas pedras me banhando e torci o tornozelo.

      Melchett tinha observado que ela caminhava claudicando um pouco.

      — É claro que não podia dançar durante algum tempo e isso era horrível. Eu não queria que o hotel arranjasse alguém para me substituir. Isso é sempre perigoso. — Por alguns instantes seus olhos azuis e serenos tornaram-se duros e penetrantes: era a fêmea lutando por sua subsistência. — Isso pode significar fim de carreira, sabe. Por isso pensei em Ruby e pedi ao gerente para trazê-la. Eu ficaria encarregada das funções de recepcionista e tomaria conta da sala de jogo e tudo mais. Ruby se encarregaria da dança. Ficaria tudo em família, o senhor sabe o que quero dizer.

      Melchett disse que sim.

      — Bem, eles concordaram, eu contratei Ruby e ela veio. Era uma oportunidade para ela. Era de classe muito acima de tantas quantas já tiveram. Isso foi há um mês.

      — Compreendo. E teve sucesso? — perguntou o Coronel Melchett.

      — Oh, sim — disse Josie despreocupada, — ela se saía muito bem. Não dançava tão bem como eu, mas Raymond é inteligente e a conduzia. E ela era muito simpática, sabe, delgada, bonita e de feições infantis. Exagerava um pouco na pintura e eu sempre lhe chamava a atenção por causa disso. Mas o senhor sabe como são as moças. Tinha apenas dezoito anos e nessa idade todo mundo exagera as coisas. Mas isso não convinha a um lugar de classe como o Majestic. Quase sempre tinha de chamá-la à parte e fazê-la atenuar a pintura.

      — Todos gostavam dela? — perguntou Melchett.

      — Oh, sim. Mas, olhe, Ruby quase não falava. Era um bocado calada. Dava-se melhor com homens mais idosos do que com jovens.

      — Tinha algum namorado especial?

      Os olhos da moça encararam os do Coronel Melchett expressando perfeita compreensão da pergunta.

      — Não no sentido em que o senhor quer dizer. Ou pelo menos quanto eu soubesse. Nesse caso ela não me teria dito.

      Melchett refletiu por alguns instantes por que não — Josie não dava a impressão de ser uma disciplinadora severa. Mas disse apenas:

      — A senhorita poderia dizer-me agora a última vez que viu sua prima.

      — Na noite passada. Ela e Raymond fizeram duas apresentações, uma às dez e outra à meia-noite. Terminariam a uma hora. Depois disso, vi Ruby dançando com um dos jovens hospedados no hotel. Eu estava jogando cartas na sala. Há um grande painel de vidro entre a sala e o salão de baile. Foi a última vez que a vi. Logo depois da meia-noite, Raymond apareceu apreensivo, perguntando onde estava Ruby, que não tinha aparecido e já estava na hora de começar. Fiquei amolada, pode crer! É a espécie de coisa que as moças fazem, aborrecendo os patrões que as põem na rua. Fui com ele ao quarto de Ruby mas ela não estava lá. Observei que havia trocado de roupa. O vestido de dança — um vestido cor-de-rosa, espumante, e saia larga — estava em cima de uma cadeira. Ela, geralmente, ficava com o mesmo vestido, a menos que se tratasse de um número especial, como na noite de quarta-feira.

      — Não tinha nenhuma idéia de para onde teria ido. Pedimos à orquestra para tocar mais um fox-trote e nada de Ruby aparecer. Eu, então, disse a Raymond que iria dançar com ele. Escolhemos um número fácil e curto, que não machucasse meu tornozelo, mas no final de contas isso seria impossível. Está todo inchado esta manhã. Ruby não tinha aparecido ainda. Ficamos esperando por ela até às duas horas. Fiquei furiosa por causa dela.

      Sua voz tremia ligeiramente. Melchett percebeu uma nota de raiva no tom. Ficou refletindo por alguns instantes. A reação lhe pareceu um pouco mais intensa do que seria de esperar... Teve a impressão de que alguma coisa estava sendo deliberadamente escondida.

      — E esta manhã, quando Ruby Keene não voltou e sua cama continuou intacta, a senhorita procurou a Polícia?

      Melchett sabia, pelo telefonema de Slack, de Danemouth, que não fora ela quem chamara a Polícia. Mas queria saber o que Josephine Turner diria.

      Ela não hesitou; respondeu logo.

      — Não, não procurei.

      — Por que não, Srta. Turner?

      Seus olhos o encararam francamente.

      — O senhor no meu lugar não o faria! — disse ela.

      — Acha que não?

      — Tinha de pensar no meu emprego. A única coisa de que um hotel não gosta é de escândalo, sobretudo quando envolve a Polícia. Não achava que algum mal tivesse acontecido a Ruby. Isso não me passou nem um instante pela cabeça. Pensava que tivesse perdido a cabeça com algum jovem; que apareceria logo e eu iria dizer-lhe umas boas quando chegasse! As meninas de dezoito anos são tão irresponsáveis.

      Melchett deu a impressão de estar consultando suas anotações.

      — Ah, sim, segundo consta foi o Sr. Jefferson que procurou a Polícia. É um dos hóspedes do hotel?

      Josephine Turner respondeu laconicamente.

      — Sim.

      — O que levou o Sr. Jefferson a tomar essa atitude? — perguntou o Coronel Melchett.

      Josie alisava o punho do costume. Havia um pouco de constrangimento em suas maneiras. Mais uma vez o Coronel Melchett teve a impressão de que escondia alguma coisa.

      — É um inválido — disse ela sombriamente. — Assusta-se facilmente. Quero dizer, por ser inválido.

      Melchett passou adiante e perguntou:

      — Quem era o jovem com quem você viu sua prima dançando por último na noite passada?

      — Chama-se Bartlett. Está hospedado no hotel há dez dias.

      — Estavam-se namorando?

      — Não propriamente. Pelo menos que eu soubesse.

      Melchett notou mais uma vez um tom de raiva em sua voz.

      — O que diz ele?

      — Disse que, depois da dança, Ruby subiu para se empoar.

      — Foi quando trocou de roupa?

      — Suponho que sim.

      — Foi a última notícia que teve dela? Depois disso ela...

      — Desapareceu — disse Josie. — É tudo.

      — A Srta. Keene conhecia alguém em St. Mary Mead? Ou na vizinhança?

      — Não sei. Pode ter conhecido. O senhor sabe, vêm jovens de toda parte para o Majestic, em Danemouth. Não é possível saber onde moram, a menos que o digam ocasionalmente.

      — Você ouviu alguma vez sua prima se referir a Gossington?

      — Gossington?

      Josie mostrou-se evidentemente intrigada.

      — Gossington Hall.

      Ela meneou a cabeça.

      — Nunca ouvi falar nesse lugar.

      Havia uma nota de convicção no tom de voz, assim como de curiosidade.

      Gossington Hall — explicou o Coronel Melchett — é o lugar onde foi encontrado o cadáver de Ruby.

      — Gossington Hall? — Josie arregalou os olhos — Que curioso!

      Melchett disse para si mesmo: “Curioso é modo de dizer” e, depois, em voz alta:

      — A senhorita conhece um Coronel ou uma Sra. Bantry?

      Mais uma vez Josie meneou a cabeça.

      — Ou um Sr. Basil Blake?

      Ela franziu ligeiramente os sobrolhos.

      — Acho que já ouvi este nome. Sim, tenho certeza, mas não me lembro de nada a respeito dele.

      O diligente Inspetor Slack estendeu a seu superior uma folha arrancada de sua caderneta de anotações, onde se liam os seguintes dizeres escritos a lápis:

      “O Coronel Bantry jantou no Majestic na semana passada.”

      Melchett levantou a vista e encontrou o olhar de Slack. O Chefe de Polícia corou-se. Slack era um policial industrioso e ativo, mas Melchett não gostava dele. Mas não podia desconhecer o desafio. O Inspetor estava acusando-o tacitamente de favorecer sua própria classe, de apadrinhar um “velho amigo”.

      — Srta. Turner — disse, voltando-se para Josephine Turner, — incomodar-se-ia em me acompanhar a Gossington Hall?

      O olhar de Melchett, frio e desafiador, quase ignorando o murmúrio de assentimento de Josie, encontrou-se com o de Slack.

 

      HÁ MUITO TEMPO St. Mary Mead não tinha uma manhã tão movimentada como aquela.

      A Srta. Wetherby, solteirona impertinente, de nariz comprido, foi a primeira a espalhar a notícia inebriante. Entrou toda afobada na casa de sua amiga e vizinha, a Srta. Hartwell.

      — Perdoe-me vir aqui tão cedo, querida, mas pensei que talvez você não tivesse sabido da notícia.

      — Que notícia? — perguntou a Srta. Hartwell.

      A Srta. Hartwell tinha um timbre de voz muito baixo e visitava os pobres infatigavelmente, por mais que eles procurassem evitar seus auxílios.

      — Sobre o cadáver na biblioteca do Coronel Bantry... o cadáver de uma mulher...

      — Na biblioteca do Coronel Bantry?

      — Sim. Não é terrível?

      — E sua pobre esposa.

      A Srta. Hartwell procurou disfarçar seu prazer intimo e ardente.

      — Realmente. Não acho que ela tenha qualquer idéia.

      A Srta. Hartwell observou em tom de censura:

      — Ela vive ocupada demais com o seu jardim e não cuida do marido. É preciso estar sempre de olho nos homens, sempre, sempre — repetia a Srta. Hartwell.

      — Eu sei, eu sei. É realmente triste.

      — Imagino o que Jane Marple vai dizer. Acha que já soube disso? Ela é tão perspicaz nesses casos.

      — Jane Marple foi a Gossington.

      — O quê? Esta manhã?

      — Muito cedo. Antes do café.

      — Não diga! Imagino! Bem, a meu ver, isto é levar as coisas longe demais. Jane gosta de meter o nariz em tudo. Mas isso não é decente!

      — Mas foi a Sra. Bantry que mandou buscá-la.

      — A Sra. Bantry mandou buscá-la?

      — Bem, veio o carro, com Muswell na direção.

      — Santo Deus! É muito estranho...

      Ficaram caladas por uns dois segundos, digerindo a notícia.

      — De quem é o corpo? — perguntou a Srta. Hartwell.

      — Você conhece aquela mulher horrorosa que anda com Basil Blake?

      — Aquela loura de cabelos horrivelmente oxigenados? — a Srta. Hartwell estava um tanto atrasada, pois não passara ainda do oxigenado para o platinado. — Aquela que fica deitada no jardim, praticamente nua?

      — Sim, minha cara. Lá estava ela... sobre o tapete... estrangulada!

      — Não me diga, em Gossington?

      A Srta. Wetherby assentiu com uma expressão infinitamente feminina.

      — Então, até o Coronel Bantry...?

      A Srta. Wetherby assentiu novamente com a cabeça.

      — Oh!

      Houve uma pausa, enquanto as senhoras saboreavam aquela nota a mais no escândalo da aldeia.

      — Que mulher ruim! — exclamou a Srta. Hartwell com justa raiva.

      — Infelizmente, era muito devassa.

      — E o Coronel Bantry... parecia um homem tão quieto...

      — Os quietos muitas vezes são os piores, assim afirma Jane Marple — disse a Srta. Wetherby picantemente.

     

      A Sra. Price Ridley estava entre as últimas a saber da notícia. Viúva rica e autoritária, morava numa casa enorme, vizinha à casa paroquial. Sua informante foi sua empregadinha Clara.

      — Você disse uma mulher, Clara? Encontrada morta no tapete do Coronel Bantry?

      — Sim. E dizem que estava completamente nua, sabe, nuazinha.

      — Chega, Clara. Não precisa descer a detalhes.

      — Está bem. Dizem que primeiro acharam que era a mulher que anda com o Sr. Blake... Aquela que vem passar fins de semana com ele na casa nova do Sr. Booker. Mas dizem agora que é uma mulher inteiramente estranha. E o rapaz do peixeiro diz que nunca pensou que o Coronel Bantry fosse capaz disso... ele que faz a coleta no culto dominical.

      — Há muita maldade neste mundo, Clara — disse a Sra. Price Ridley. — Que lhe sirva de exemplo.

      — Sim, senhora. Minha mãe nunca me deixará empregar-me numa casa onde haja um homem.

      — Ela está certa, Clara — disse a Sra. Price Ridley.

     

      Da casa da Sra. Price Ridley para a casa paroquial era um pulo.

      A Sra. Price Ridley teve sorte de encontrar o pastor assentado em seu escritório.

      O pastor, um senhor gentil, de idade madura, era sempre o último a saber de qualquer coisa.

      — Que coisa horrível — disse a Sra. Price Ridley, um pouco ofegante, porque tinha caminhado depressa demais. — Achei que lhe devia pedir sua opinião, seu conselho.

      O Sr. Clement mostrou-se um pouco alarmado.

      — Aconteceu alguma coisa? — perguntou.

      — Se aconteceu alguma coisa? — a Sra. Price Ridley repetiu a pergunta dramaticamente. — Um escândalo horroroso! Ninguém poderia imaginar isso. Uma mulher devassa, completamente despida, estrangulada na casa do Coronel Bantry.

      O pastor arregalou os olhos.

      — A senhora... a senhora está-se sentindo bem? — perguntou .

      — Não admira que o senhor não possa acreditar. Eu também no início não pude. A hipocrisia do Coronel. Durante todos estes anos!

      — Conte-me, por favor, tudo que aconteceu.

      A Sra. Price Ridley mergulhou numa narrativa pormenorizada. Quando terminou, o pastor Clement perguntou-lhe calmamente:

      — Mas nada indica que o Coronel Bantry esteja envolvido, não é?

      — Oh, meu caro pastor, como o senhor é ingênuo! Preciso contar-lhe uma historiazinha. Na quinta-feira passada... ou foi na outra quinta-feira? Bem, não importa . Eu ia a Londres pelo trem diurno, o mais barato. O Coronel Bantry estava no mesmo carro. Tive a impressão de que estava muito distraído. E durante quase todo o trajeto enterrou-se atrás do The Times. Pelo visto, sabe, não queria conversa.

      O pastor assentiu com muita compreensão e possível simpatia.

      — Em Paddington, eu me despedi dele. Ofereceu-se para chamar um táxi mas eu ia tomar um ônibus para a Oxford Street; ele entrou num carro e o escutei dizendo claramente ao motorista para ir, sabe para onde!

      O pastor parecia intrigado.

      — Para um endereço em St. John’s Wood!

      A Sra. Price Ridley fez uma pausa, triunfante.

      O pastor continuava completamente sem compreender .

      — Acho que isso prova tudo — disse a Sra. Price Ridley.

     

      Em Gossington, conversavam, assentadas na sala de estar, a Sra. Bantry e Miss Marple.

      — Sabe — disse a Sra. Bantry, — sinto-me feliz por terem levado o corpo. Não é nada agradável ter um cadáver em casa.

      Miss Marple assentiu com a cabeça.

      — Eu sei, minha cara. Avalio como se sente.

      — Não, você não pode fazer idéia — disse a Sra. Bantry, — até que tenha um em sua casa. Eu sei que uma vez quase teve um, mas não é a mesma coisa. Só espero — continuou — é que Arthur não tome antipatia pela biblioteca. Gostamos tanto de ficar ali. Que vai fazer, Jane?

      Miss Marple, olhando o relógio, pôs-se de pé:

      — Bem, estava pensando em ir para casa. Não lhe posso ser útil em mais alguma coisa?

      — Não vá ainda — pediu a Sra. Bantry. Os datilocopistas e os fotógrafos e quase todos da Polícia já se foram, eu sei, mas tenho a impressão de que alguma coisa poderia acontecer. Acho que você não deve perder nada.

      O telefone tocou e ela foi atender, voltando, em seguida, com uma expressão radiante.

      — Não lhe disse que iam acontecer mais coisas? Era o Coronel Melchett. Estão trazendo para aqui a prima da pobre moça.

      — Por que seria? — perguntou Miss Marple curiosa.

      — Oh, deve ser para ver o que aconteceu e tudo mais.

      — Creio que mais do que isso — disse Miss Marple.

      — Que quer dizer com isso, Jane?

      — Bem, acho, quem sabe, que poderiam querer acareá-la com o Coronel Bantry.

      — Para ver se o reconhece? — perguntou a Sra. Bantry com veemência. — Ah, acho que devem estar inclinados a suspeitar de Arthur.

      — Sinto muito.

      — Como se Arthur tivesse alguma coisa a ver com isso.

      Miss Marple calou-se. A Sra. Bantry voltou-se para ela acusadoramente.

      — E não me venha citar o velho General Henderson ou algum velho terrível que andasse com sua criada. Arthur não é gente dessa espécie.

      — Não, não, é claro que não.

      — Não, não, realmente não é. Só de vez em quando se mostra um tanto ridículo com algumas mocinhas bonitas que vêm jogar tênis. Um tanto insensato e avuncular. Não há nenhum mal nisso. E por que o faria? Afinal de contas — concluiu a Sra. Bantry, um tanto obscuramente, — eu conheço meu gado.

      Miss Marple sorriu.

      — Não se preocupe, Dolly — disse ela.

      — Não, não estou preocupada. Mas de qualquer maneira não posso ficar indiferente. Arthur também. Isso vai aborrecê-lo. Todos aqueles policiais rondando por aqui. Ele foi ao sítio. Olhar os porcos e as coisas sempre o aliviam quando fica tenso. Ei-los, estão chegando.

      O carro do Chefe de Polícia freou lá fora.

      O Coronel Melchett entrou acompanhado de uma jovem elegantemente vestida.

      — Apresento-lhe a Srta. Turner, Sra. Bantry. É prima da... vítima.

      — Prazer — disse a Sra. Bantry, adiantando-se com a mão estendida. Tudo isso deve ser terrível para a senhora.

      — Oh, sim — disse francamente a Srta. Josephine Turner. Tudo me parece irreal, como se fosse um pesadelo.

      A Sra. Bantry apresentou Miss Marple.

      — Seu marido está? — perguntou Melchett casualmente.

      — Foi a uma de suas propriedades. Não vai demorar-se.

      — Oh... — Melchett pareceu embaraçado.

      — A senhorita gostaria de ver onde... onde aconteceu? Ou preferiria não ver? — perguntou a Sra. Bantry a Josie.

      — Acho que sim — respondeu Josephine depois de uma pequena pausa.

      A Sra. Bantry a conduziu à biblioteca, seguida de Melchett e de Miss Marple.

      — Ela estava ali — disse a Sra. Bantry, apontando dramaticamente para o tapete.

      — Oh! — Josie estremeceu, mas ao mesmo tempo parecia perplexa. — Só que não posso compreender. Não posso — disse ela com a testa franzida.

      — Nem nós tampouco — disse a Sra. Bantry.

      — Não é a espécie de lugar... — ia dizendo Josie, mas de repente parou.

      Miss Marple assentiu gentilmente com a cabeça, expressando sua solidariedade com o sentimento inacabado.

      — É isso — murmurou ela — que torna tudo muito curioso.

      — Então, Miss Marple — perguntou o Coronel Melchett de bom humor, — conseguiu alguma explicação?

      — Oh, sim, já tenho uma explicação — respondeu, — uma explicação muito plausível. Mas é apenas uma idéia. Tommy Bond — continuou — e a Sra. Martin, nossa nova professora. Ela foi dar corda no relógio e do relógio pulou uma rã.

      Josephine Turner ficou perplexa. Ao sair da biblioteca, murmurou para a Sra. Bantry:

      — Sua amiga é um pouco gira da cabeça?

      — De modo algum — respondeu a Sra. Bantry indignada.

      — Desculpe-me — disse Josie. — Pensei que talvez pensasse que ela fosse uma rã ou coisa semelhante.

      O Coronel Bantry acabava de entrar pela porta lateral. Melchett o chamou e observou Josephine Turner quando apresentou-os um ao outro. Mas ela não apresentou nenhum indício de interesse ou de reconhecimento em sua expressão. Melchett deu um suspiro de alívio. Maldito Slack com suas insinuações!

      Respondendo a perguntas da Sra. Bantry, Josie contou toda a história do desaparecimento de Ruby Keene.

      — Que coisa horrível para você, minha cara — disse a Sra. Bantry.

      — Eu estava mais zangada do que preocupada — disse Josie. — Eu não sabia até então que lhe tivesse acontecido alguma coisa.

      — E não obstante — disse Miss Marple, — a senhorita foi procurar a Polícia. Desculpe-me mas não acha que foi um pouco prematuro?

      — Oh, não, não fui eu. Foi o Sr. Jefferson... — respondeu a Srta. Josephine Turner com veemência.

      — Jefferson? — perguntou a Sra. Bantry.

      — Sim, um inválido.

      — Seria Conway Jefferson? Eu o conheço muito. É um velho amigo nosso. Escute, Arthur, Conway Jefferson. Está hospedado no Majestic e foi ele quem chamou a Polícia! Não é uma coincidência?

      — O Sr. Jefferson esteve lá também no verão passado — disse Josephine Turner.

      — Engraçado! E nós não soubemos. Há muito tempo não o vemos. — E voltando-se para Josie: — Como está ele ultimamente?

      Josie refletiu.

      — Eu o acho realmente maravilhoso, muito simpático mesmo. Tendo em vista as circunstâncias, a senhora me compreende. Está sempre alegre, sempre dizendo brincadeiras.

      — A família está com ele?

      — A senhora se refere ao Sr. Gaskell? E à jovem Sra. Jefferson? E a Peter? Oh, sim.

      Havia algo que inibia a franqueza natural de Josephine Turner. Ao se referir aos Jeffersons havia algo de artificial em sua voz.

      — São todos muito bonitos, não é? Refiro-me aos jovens.

      — Oh, sim, realmente, Eu... nós... sim, são realmente bonitos.

     

      — O que queria dizer com aquele realmente? — perguntava a Sra. Bantry ao olhar pela janela o carro do Chefe de Polícia que se afastava. — Você não acha, Jane que há algo...

      Miss Marple não esperou que ela terminasse a frase.

      — Sem dúvida alguma. Não há possibilidade de erro. Sua atitude mudou imediatamente quando os Jeffersons foram mencionados. Até então parecia muito espontânea.

      — Mas que acha que poderia ser, Jane?

      — Ora minha cara, você os conhece. Tudo que sei é que deve haver algo, como você diz, a respeito dos Jeffersons que preocupa a moça. Outra coisa, você notou que quando lhe perguntou se não se afligiu com o desaparecimento da jovem, ela disse que ficou zangada? E parecia zangada, realmente zangada! Isso me pareceu estranho, sabe. Tenho a impressão — talvez me engane — de que essa é a sua principal reação ao fato da morte da jovem. Estou certa de que não se importou com ela. Não está sentida de modo algum. Mas acho que a lembrança da moça, Ruby Keene, acende sua ira. E aí está o ponto interessante: por quê?

      — Descobriremos! — disse a Sra. Bantry. — Iremos a Danemouth e nos hospedaremos no Majestic. — Sim, você também, Jane. Preciso restaurar meus nervos depois de tudo que aconteceu aqui. Uns dias no Majestic é o de que estamos precisando. E você conhecerá Conway Jefferson. É muito simpático, um perfeito cavalheiro. É a história mais triste que se possa imaginar. Ele tinha um filho e uma filha, que adorava. Eram ambos casados, mas ainda assim passavam grande parte do tempo com eles. Sua esposa, também, era uma criatura adorável e ele lhe era muito dedicado. De volta de uma viagem à França, o avião em que viajavam sofreu um acidente e morreram todos: o piloto, a Sra. Jefferson, Rosamund e Frank. Conway teve as pernas fraturadas e com tal gravidade que foi obrigado a amputá-las. Mas foi maravilhoso, com sua coragem e resignação! Era um homem muito ativo e agora é um aleijado irrecuperável, mas nunca se queixa. Sua nora reside com ele. Era viúva quando Frank Jefferson a desposou e tinha um filho de suas primeiras núpcias — Peter Carmody. Moram ambos com Conway. E Mark Gaskell, marido de Rosamund, passa ali a maior parte do tempo. Enfim, foi tudo uma terrível tragédia.

      — E, agora — disse Miss Marple, — há uma outra tragédia...

      — Oh, sim, mas nada tem a ver com os Jeffersons.

      — Não tem? — perguntou Miss Marple. — Foi o Sr. Jefferson quem procurou a Polícia.

      — Realmente, Jane... é curioso.

 

      O CORONEL MELCHETT estava diante de um gerente de hotel bastante irritado. Acompanhava-o o Inspetor Harper da Polícia de Glenshire e o inevitável Inspetor Slack, um tanto aborrecido com a usurpação deliberada do caso pelo Chefe de Polícia.

      O Inspetor Harper estava disposto a tolerar o Sr. Prestcott quase choroso, enquanto o Coronel Melchett tendia para uma moderada rudeza.

      — Não adianta gritar depois do leite derramado — disse rispidamente. — A moça está morta, estrangulada. Vocês foram felizes por não ter sido estrangulada no hotel. Isso leva o inquérito para outro município e seu hotel fica quase totalmente excluído. Mas algumas perguntas têm de ser feitas e quanto mais rapidamente nos atender, melhor. Pode estar certo de que seremos discretos e prudentes. Sugiro, portanto, que deixe de tolices e vamos direto aos fatos. O que é que o senhor sabe exatamente sobre a moça?

      — Não sei nada a seu respeito. Absolutamente nada. Foi Josie que a trouxe para aqui.

      — Há quanto tempo Josie trabalha aqui?

      — Há dois anos... não, três.

      — O senhor gosta dela?

      — Gosto, pois é uma boa menina. Uma menina excelente. Competente. Compreende as pessoas e sabe acalmá-las. O bridge, o senhor sabe, é o tipo de jogo que irrita.

      O Coronel Melchett assentiu demonstrando compreensão. Sua esposa gostava muito de bridge, mas era uma péssima jogadora.

      — Josie — continuou o Sr. Prestcott — sabe conter os insatisfeitos. Sabe tratar as pessoas. É inteligente e firme, acho que o senhor entende o que quero dizer.

      Melchett mais uma vez fez um gesto positivo com a cabeça. Ele sabia agora o que lhe lembrava a Srta.. Josephine Turner. Apesar da pintura e de suas roupas, havia nela um tipo característico da governanta.

      — Eu confio nela — continuou o Sr. Prestcott, assumindo um tom de lamentação. — Que diabo tinha ela de ir brincar sobre rochas escorregadias? Temos aqui uma linda praia. Por que não foi banhar-se nela? Para escorregar, cair e torcer o tornozelo. Não foi correta comigo. Pago-lhe para dançar, jogar bridge e manter os fregueses alegres e felizes, mas não para ir tomar banho fora e torcer o tornozelo. Quem dança deve ter cuidado com os tornozelos. Precisa evitar riscos. Fiquei muito aborrecido com isso. Não foi correta com o hotel.

      Melchett interrompeu a narração.

      — E então ela sugeriu a vinda daquela moça, sua prima?

      Prestcott concordou relutante.

      — Exato. Pareceu-me uma boa idéia. Notem bem, eu não ia ter despesa alguma. A moça podia ter seus meios de sustento; mas quanto a salários, era assunto para ser resolvido entre ela e Josie. Foi assim que ficou acertado. Nada sei sobre a jovem.

      — Tudo ia bem com ela?

      — Oh, sim, não observava nada de anormal, pelo menos, na aparência. Era muito jovem, é claro, talvez um pouco vulgar para um lugar desta espécie, mas de boas maneiras. Comportava-se realmente muito bem. Dançava bem. O povo gostava dela.

      — Era bonita?

      A julgar pela cara sombria e inchada do gerente, a pergunta parecia de difícil resposta.

      Prestcott refletiu.

      — Mais ou menos. Bastante artificial, se compreende o que quero dizer. Não seria tanto sem a pintura. Ela procurava, por assim dizer, fazer tudo para se tornar atraente.

      — Era muito assediada por jovens?

      — Eu sei aonde o senhor quer chegar — disse o Sr. Prestcott agora excitado. — Nunca vi nada, nada de especial. Um ou dois rapazes estão sempre por aí mas todos trabalhando, por assim dizer. Nada na linha de estrangulamento, diria. Dava-se também com pessoas mais velhas que gostavam de conversar com ela. Parecia uma criança, se me compreende. Isso os distraía.

      O Inspetor Harper disse num tom de voz profundo e melancólico:

      — O Sr. Jefferson, por exemplo.

      O gerente concordou com um gesto de cabeça.

      — Sim, o Sr. Jefferson era quem eu tinha em mente. Ela gostava, muito de sentar-se com ele e sua família. O Sr. Jefferson costumava levá-la para passear de vez em quando. Ele adora pessoas jovens e é muito bom para elas. Não quero ser mal interpretado. O Sr. Jefferson é aleijado, portanto, seu campo de ação é muito limitado, isto é, só até onde sua cadeira de rodas pode levá-lo. Mas está sempre apreciando os jovens se divertirem — assiste às partidas de tênis, aos banhos e a tudo mais, e dá festa para os jovens daqui. Ele gosta da juventude e não é homem de rabugices, como seria de esperar. Em suma, é um senhor muito popular, uma excelente pessoa.

      — Teria algum favoritismo por Ruby Keene? — perguntou Melchett.

      — A conversa dela o distraía muito.

      — Seus familiares também gostavam dela?

      — Pelo menos eram sempre muito amáveis com ela.

      — Foi o Sr. Jefferson quem comunicou à Polícia seu desaparecimento, não foi? — perguntou Harper.

      Ele procurou dar às suas palavras um tom de uma conversa a que o gerente prontamente reagiu.

      — Ponha-se no meu lugar, Sr. Harper. Nem por um minuto pensei que houvesse alguma coisa errada. O Sr. Jefferson veio ao meu escritório, esbravejando, e aí os fatos começaram a se agravar. A moça não dormira no seu quarto. Não tinha aparecido para dançar na noite passada. Poderia ter saído para um passeio de carro e talvez tivesse sido acidentada. A Polícia precisava ser informada imediatamente. Abrir inquéritos! Ele estava muito excitado e despótico. E dali discou para a Polícia.

      — Sem consultar a Srta. Turner?

      — Josie não gostou muito disso, conforme observei. Ela estava muito aborrecida com tudo aquilo, quero dizer, aborrecida com Ruby. Mas o que poderia dizer?

      — Não acha, Harper, que seria bom conversarmos com o Sr. Jefferson?

      O Inspetor Harper concordou.

     

      O Sr. Prestcott os acompanhou ao apartamento do Sr. Jefferson. Era uma suíte no primeiro andar, de frente para o mar.

      — É um ricaço que se trata muito bem, não é? — disse Melchett casualmente.

      — Realmente, trata-se muito bem. Não se economiza nada quando ele está aqui. Os melhores quartos ficam reservados, alimentação à la carte, vinhos caros, tudo do melhor.

      Melchett balançou a cabeça.

      Prestcott bateu na porta da frente e se ouviu uma voz feminina que respondeu:

      — Entre.

      O gerente entrou, seguido dos policiais.

      A atitude do Sr. Prestcott era de quem pede desculpas, ao falar com a mulher que voltou a cabeça para as visitas, assentada junto à janela.

      — Perdoe-me o incômodo, Sra. Jefferson, mas estes senhores são... da Polícia. Eles gostariam de ter uma palavrinha com o Sr. Jefferson. Coronel Melchett, o Inspetor Harper e o Inspetor Slack, Sra. Jefferson.

      Ela correspondeu à apresentação com inclinação da cabeça.

      Uma mulher comum, foi a primeira impressão de Melchett. Mas, depois, quando aflorou um sorriso em seus lábios femininos, e ela falou, mudou de opinião. Tinha uma voz agradável e cativante, e lindos olhos castanhos claros. Vestia-se simplesmente mas não chegava a se vestir mal e, pela aparência, devia ter trinta e cinco anos.

      — Meu sogro está dormindo — disse ela. — Não é muito forte e todo esse negócio chocou-o terrivelmente. Tivemos de chamar o médico que lhe aplicou um sedativo. Logo que acordar, estou certa de que quererá atender os senhores. Entrementes, poderia eu mesma ajudá-los? Querem assentar-se?

      Prestcott, ansioso para escapar, disse ao Coronel Melchett:

      — Bem... ainda posso ser útil em mais alguma coisa?

      Agradecido, recebeu a permissão para sair.

      Ao bater a porta atrás de si, a atmosfera ambiente tornou-se mais alegre e social. Adelaide Jefferson tinha o poder de criar uma atmosfera repousante. Era uma mulher que nunca parecia dizer coisa alguma notável, todavia tinha a faculdade de estimular os outros a conversar e ficar à vontade. Ela foi direto à questão quando disse:

      — Ficamos todos muito chocados com o acontecimento. Vivíamos muito com a moça, sabe. Parece incrível. Meu sogro está horrivelmente abalado. Ele gostava muito de Ruby.

      — Segundo me consta, foi o Sr. Jefferson quem comunicou à Polícia o desaparecimento da jovem, não foi? — perguntou o Coronel Melchett.

      Ele queria ver exatamente como ela reagia à pergunta. Havia um indício, mas só um indício, de mal-estar? De preocupação? Melchett não podia saber exatamente, mas havia algo, e lhe pareceu que a Sra. Jefferson tivera de se concentrar, antes de prosseguir, como se diante de uma difícil tarefa.

      — Sim — respondeu, — foi ele. Por ser inválido, assusta-se com tudo e se preocupa facilmente. Procuramos persuadi-lo de que tudo estava bem, que haveria alguma explicação natural e que a própria moça não iria gostar se a Polícia fosse notificada. Ele insistiu e, no fim — fez um pequeno gesto, — ele e não nós, era quem estava com a razão.

      — Queira explicar-nos, Sra. Jefferson, como foi que ficou conhecendo Ruby exatamente — pediu Melchett.

      Adelaide Jefferson refletiu.

      — É difícil dizer. Meu sogro gosta muito de jovens e adora viver cercado deles. Ruby era um tipo novo para o Sr. Jefferson. Ele se divertia muito com as conversas dela. Ruby assentava-se freqüentemente conosco no hotel e meu sogro a levava de vez em quando para passeios de carro.

      Sua voz era muito cautelosa. Ela bem que poderia dizer mais, se quisesse — refletiu Melchett.

      — A senhora poderia dizer-nos tudo que puder sobre o curso dos acontecimentos na noite passada? — perguntou o Coronel Melchett.

      — Perfeitamente. Mas acho que há muito pouca coisa que se possa aproveitar. Depois de jantar, Ruby veio assentar-se conosco no salão. Permaneceu ali mesmo depois de iniciada a dança. Tínhamos programado uma partida de bridge para mais tarde mas estávamos esperando Mark, isto é, Mark Gaskell, meu cunhado. Ele era casado com a filha do Sr. Jefferson, sabe. Tinha algumas correspondências importantes para fazer. Tivemos também de esperar por Josie que viria completar o quarteto conosco.

      — Isso acontecia freqüentemente?

      — Muito freqüentemente. É uma jogadora de primeira categoria, e muito simpática. Meu cunhado é um aficionado do bridge e sempre que possível convida Josie para completar o quarteto, em vez de jogar com estranhos. É claro que, sendo encarregada de formar os pares, nem sempre pode vir jogar conosco. Mas sempre que pode, vem. E — seus olhos brilharam maliciosamente — como meu sogro gasta muito dinheiro no hotel, o gerente aprecia muito a preferência de Josie por nós.

      — A senhora gosta de Josie? — perguntou Melchett.

      — Oh, sim, gosto. Está sempre bem-humorada e alegre, trabalha muito e parece gostar de seu serviço. É inteligente, embora não tenha muita cultura e, bem... não é pretensiosa. É natural e espontânea.

      — Queira continuar, Sra. Jefferson.

      — Como estava dizendo, Josie estava ocupada formando pares de bridge e Mark escrevendo, de modo que Ruby ficou conversando conosco mais do que de costume. Depois Josie chegou e Ruby saiu para apresentar o seu primeiro número de dança com Raymond, o instrutor de tênis e de dança. Voltou a estar conosco logo depois que Mark chegou. Em seguida saiu para dançar com um jovem e começamos nossa partida de bridge.

      A Sra. Jefferson fez uma pausa, seguida de um pequeno gesto de desânimo.

      — Bem, é tudo que sei. Depois pude vê-la uma vez, de relance, a dançar, mas o bridge é um jogo absorvente e quase não olhava pela parede de vidro que nos separava do salão de baile. Depois, à meia-noite, apareceu Raymond, muito excitado, a perguntar a Josie onde estava Ruby. Josie, naturalmente, procurou acalmá-lo mas...

      O Inspetor Harper a interrompeu.

      — Por que naturalmente, Sra. Jefferson?

      — Bem — ela hesitou, parecendo um pouco desconcertada, pensou Melchett. — Josie não queria que a ausência da moça chamasse muito a atenção. Considerava-se, de certo modo, responsável por ela. Disse que Ruby possivelmente estaria no seu quarto, que a moça lhe havia dito antes que estava com dor de cabeça. Diga-se de passagem, acho que não era verdade. Josie estaria apenas procurando uma desculpa. Raymond saiu e telefonou para o quarto de Ruby mas ninguém atendeu e ele voltou furioso. É um tipo temperamental, sabe. Josie saiu com ele, tentando acalmá-lo e, no fim, foi dançar no lugar de Ruby. Foi muita dedicação da parte dela, pois a gente podia ver depois como machucara seu tornozelo. Ela voltou para nossa mesa depois da dança e procurou acalmar o Sr. Jefferson, que já estava excitado. Nós o persuadimos a ir deitar-se, dissemos-lhe que Ruby provàvelmente teria saído para uma volta de carro e talvez tivesse furado um pneu. Ele foi deitar-se preocupado e hoje pela manhã levantou-se excitado. — Fez uma pausa. — O resto o senhor já sabe.

      — Obrigado, Sra. Jefferson. Gostaria agora de lhe perguntar se a senhora teria alguma idéia de quem poderia ter feito isso?

      — Nenhuma — disse ela, imediatamente. — Sinto muito, mas nesse ponto não posso ser de nenhuma utilidade.

      O Coronel Melchett a pressionou.

      — A moça nunca lhe contou nada? Nada sobre ciúme? Sobre algum homem que ela temesse? Ou algum homem com quem tivesse intimidade?

      A Sra. Adelaide Jefferson meneava a cabeça a cada pergunta.

      Parecia não haver mais nada que lhes pudesse dizer.

      O Inspetor sugeriu entrevistar primeiro George Bartlett e depois voltar a falar com o Sr. Jefferson. O Coronel Melchett concordou e os três policiais saíram, com a promessa da Sra. Jefferson de os mandar chamar logo que o Sr. Jefferson acordasse.

      — Uma senhora simpática — disse o Coronel ao fechar a porta atrás de si.

      — Realmente, muito simpática — concordou o Inspetor Harper.

     

      George Bartlett era um jovem magro e desengonçado, com um proeminente pomo-de-adão, que se expressava com imensa dificuldade. Estava de tal modo excitado, que era difícil arrancar dele uma frase calma.

      — É horrível, não é? O tipo da coisa que se lê nos jornais de domingo. Mas a gente tem de se convencer de que de fato aconteceu, não é?

      — Infelizmente, não há a menor dúvida a respeito, Sr. Bartlett — disse o Inspetor.

      — É claro, não há a menor dúvida. Mas parece tão esquisito. A quilômetros daqui e tudo mais. Numa casa de campo, não foi? Num município estranho. Criou um bocado de agitação nas vizinhanças, não foi?

      O Coronel Melchett iniciou o ataque.

      — O senhor conhecia muito a vítima, Sr. Bartlett?

      George Bartlett pareceu alarmado.

      — Oh, não, n-ã-o muito bem, senhor. Não, quase não a conhecia, se compreende o que quero dizer. Dancei com ela uma ou duas vezes, para passar tempo, e joguei um pouco de tênis. O senhor sabe.

      — Teria sido o senhor, acho, a última pessoa que a viu ainda viva na noite passada?

      — Acho que sim... Não parece horrível? Quero dizer, estava perfeitamente bem quando a vi, perfeitamente.

      — Que horas eram, então, Sr. Bartlett?

      — Bem, o senhor sabe, nunca me preocupo com o tempo. Não era muito tarde, acho que o senhor me compreende.

      — O senhor dançou com ela?

      — Sim, realmente, dancei. Mas foi nas primeiras horas da noite. Foi exatamente depois de seu número com o instrutor. Deviam ser dez, dez e meia ou onze horas, não tenho certeza.

      — Não se preocupe com a hora. Podemos precisar isso. Queira-nos contar exatamente o que aconteceu.

      — Bem, nós dançamos, o senhor sabe. Embora eu não saiba dançar muito bem.

      — Não interessa muito como o senhor dança, Sr. Bartlett.

      George Bartlett lançou um olhar espantado para o Coronel e gaguejou:

      — Não, n-ã-o, acho que não. Bem, como estava dizendo, dançamos para lá e para cá, conversamos, mas Ruby não falava muito e bocejava constantemente. Como eu disse, não danço muito bem e as moças, o senhor sabe, nos evitam. Disse-me que estava com dor de cabeça. Eu sabia onde ela queria chegar, de modo que a liberei logo, e foi tudo.

      — O que ela estava fazendo a última vez que a viu?

      — Subia as escadas.

      — Não se referiu a um encontro com alguém? Ou se iria sair de carro? Ou... se teria um encontro?

      Bartlett meneou a cabeça.

      — A mim não. — E numa expressão um tanto pesarosa, concluiu: — Só sei que me repeliu.

      — Como ela estava? Parecia preocupada, distraída ou com alguma coisa em mente?

      George Bartlett refletiu. Em seguida, fez um gesto negativo com a cabeça.

      — Parecia um pouco aborrecida. Bocejava, como disse. Nada mais.

      — E o que é que o senhor fez, Sr. Bartlett? — perguntou o Coronel Melchett.

      — Hein?

      — O que é que o senhor fez depois que Ruby Keene o deixou?

      George Bartlett olhava-o boquiaberto.

      — Vejamos agora... o que foi que o senhor fez?

      — Estamos esperando que nos conte.

      — Sim, sim, é claro. É um bocado difícil lembrar as coisas, não é? Deixa ver. Acho que devo ter ido ao bar e tomado alguma coisa.

      — O senhor foi ao bar e tomou alguma coisa?

      — Exato. Tomei uma bebida. Mas não acho que tenha sido logo depois. Tenho a impressão de que fiquei andando por aí, sabe, procurando ar fresco. Está muito quente para o outono. Lá fora estava melhor. Sim, foi isso. Caminhei um pouco, depois regressei, tomei uma bebida e voltei ao salão de baile. Não tinha muito a fazer. Observei que — como é o seu nome? — ah, sim, Josie estava dançando de novo. Com o instrutor. Ela estivera na lista de adoentados... torcedura de tornozelo ou coisa semelhante.

      — Isso fixa a hora de seu regresso à meia-noite. O senhor quer convencer-nos de que passou mais de uma hora passeando sem rumo?

      — Bem, eu bebi, como disse. Eu estava... sim, estava pensando algumas coisas.

      Essa declaração foi recebida com mais credulidade do que qualquer outra.

      — Que coisas estava pensando? — perguntou o Coronel Melchett asperamente.

      — Oh, não sei. Coisas — respondeu Bartlett vagamente.

      — O senhor tem carro, Sr. Bartlett?

      — Oh, sim, tenho um carro.

      — Onde estava, na garagem do hotel?

      — Não, estava no pátio. Pensei em sair para um passeio sabe.

      — E quem sabe, se o senhor não saiu para um passeio?

      — Não, não. Não saí. Juro que não saí.

      — O senhor não teria saído, por exemplo, para dar uma volta com a Sta. Keene?

      — Já disse. Olha aqui, aonde os senhores querem chegar? Não saí. Juro que não saí.

      — Obrigado, Sr. Bartlett, acho que não há mais nada no momento. No momento — repetiu o Coronel Melchett com uma forte ênfase nas palavras.

      Deixaram Bartlett olhando-os com uma expressão cômica de alarme estampada no rosto simplório.

      — Um tolo — disse o Coronel Melchett. — Ou não é?

      O Inspetor Harper meneou a cabeça.

      — Temos ainda um longo caminho pela frente.

 

      NEM O PORTEIRO da noite nem o gerente do bar se mostraram muito prestativos. O porteiro da noite lembrava-se de ter discado para o quarto da Srta. Keene logo depois da meia-noite e ninguém atendera. Não vira o Sr. Bartlett saindo do hotel ou voltando. Como a noite estava boa, havia muita gente entrando e saindo. E havia portas laterais no corredor e outra que dava para o saguão principal. Estava certo de que a Srta. Keene não saíra pela porta principal, mas se tivesse vindo de seu quarto, que era no primeiro andar, poderia ter descido por uma escada pegada ao quarto, saído por uma porta, no fim do corredor, que dava para um terraço lateral. Poderia, facilmente, sair sem ser vista. Aquela porta só era fechada às duas horas da manhã, quando terminava a dança.

      O gerente do bar lembrava-se de que o Sr. Bartlett estivera no bar na noite passada, mas não podia precisar quando. Mais ou menos umas dez horas, achava. O Sr. Bartlett assentava-se encostado à parede e parecia muito melancólico. Não se lembrava quanto tempo ficou ali. Havia muitos hóspedes entrando e saindo do bar. Observara o Sr. Bartlett, mas não podia de modo algum determinar a hora.

     

      Quando os policiais deixaram o bar, foram abordados por um garoto de mais ou menos nove anos de idade, que logo começou uma conversa animada.

      — Os senhores, por acaso, são detetives? Sou Peter Carmody. Foi meu avô, o Sr. Jefferson, quem telefonou para a Polícia sobre Ruby. Os senhores são da Scotland Yard? Não se importam que eu fale com os senhores, importam?

      O Coronel Melchett olhou como se estivesse para cortar a conversa mas o Inspetor Harper interveio. Falou de modo benigno e cordial.

      — De modo algum, meu filho. Isso naturalmente lhe interessa, não é?

      — É claro que interessa. Os senhores gostam de contos policiais? Eu gosto. Já li todos e tenho autógrafos de Dorothy Sayers, de Agatha Christie, de Dickson Can e H. C. Bailey. O assassino aparecerá nos jornais?

      — Com certeza — respondeu Harper inflexível. — Sabe, vou voltar à escola na próxima semana e vou contar a todos os meus colegas que eu a conhecia... que a conhecia realmente muito.

      — O que é que achava de Ruby?

      Peter refletiu.

      — Bem, eu não gostava muito dela. Era uma espécie de moça boba. Nem mamãe nem tio Mark tampouco gostavam muito dela. Só vovô. A propósito, vovô queria ver os senhores. Edwards está à procura dos senhores.

      O Inspetor Harper murmurou encorajadoramente:

      — Então sua mãe e seu tio Mark não gostavam muito de Ruby Keene? Por quê?

      — Oh, não sei. Ela se intrometia em tudo. E não gostavam de que vovô fizesse tanto barulho em torno dela. Acho — disse Peter alegremente — que estão felizes por vê-la morta.

      O Inspetor Harper olhou para ele pensativo.

      — Você os ouviu dizer isso?

      — Oh, não exatamente. Tio Mark disse: “Bem, uma já se foi” e mamãe: “Sim, mas de modo horrível” e tio Mark disse que não se deve ser hipócrita.

      Os policiais trocaram olhares. Naquele momento, um senhor respeitável, de barba bem feita, convenientemente vestido num serge azul, aproximou-se deles.

      — Desculpem-me, cavalheiros. Sou o criado do Sr. Jefferson. Ele já acordou e mandou-me procurá-los porque está ansioso para falar com os senhores.

      Subiram de novo aos aposentos de Conway Jefferson. Na sala de estar, Adelaide Jefferson conversava com um senhor alto, irrequieto, que caminhava de um lado para outro da sala. Quando os visitantes entraram, ele se voltou rapidamente para vê-los.

      — Oh, sim. Felizmente, vieram. Meu sogro estava procurando pelos senhores. Acaba de acordar. Por favor, façam tudo para acalmá-lo. Sua saúde não é muito boa. Admiro-me, realmente, de que esse choque não o tenha liquidado.

      — Não imaginava que seu estado de saúde fosse tão precário — disse o Inspetor Harper.

      — Ele próprio não sabe — disse Mark Gaskell. — É o coração, sabe. O médico recomendou a Addie que não deve superexcitá-lo ou assustá-lo. Ele deu a entender que o fim poderia vir a qualquer momento, não foi, Addie?

      A Sra. Jefferson assentiu com a cabeça e disse:

      — É incrível que tenha resistido como resistiu

      — O assassinato não é exatamente um incidente tranqüilizante. Teremos o máximo cuidado possível — disse o Coronel Melchett.

      Ele avaliava Mark Gaskell enquanto falava. Não simpatizou muito com o sujeito. Uma fisionomia ousada, inescrupulosa e agressiva. Um daqueles homens que geralmente agem por conta própria e a quem as mulheres freqüentemente admiram.

      Mas não é o tipo do indivíduo em que se deve confiar, pensava o Coronel para si mesmo.

      Inescrupuloso, eis o seu verdadeiro adjetivo.

      A espécie de indivíduo que não se detinha diante de nada...

      

      Conway Jefferson estava assentado em sua cadeira de rodas junto à janela do grande dormitório, de frente para o mar.

      Mal se entrava no quarto dele e já se sentia a força e o magnetismo que emanavam de sua pessoa. Era como se os danos físicos que o haviam transformado num aleijado tivessem resultado numa concentração de vitalidade de seu corpo danificado num foco mais estreito e mais intenso.

      O Sr. Jefferson tinha uma bonita cabeça. Os cabelos ruivos estavam ligeiramente pintados de cabelos brancos. Seu rosto, embora sulcado de pregas, era vigoroso, profundamente bronzeado pelo sol, e seus olhos tinham a coloração azul-brilhante. Não havia sinal de doença ou de fraqueza. As linhas profundas de sua face eram os sulcos de sofrimento e não de fraqueza. Ali estava um dos homens que nunca afrontam o destino, mas o aceitam e se tornam vitoriosos.

      — Agradeço-lhes muito por terem vindo — disse ele, olhando-os com seus olhos penetrantes. — O senhor é o Chefe de Polícia de Radfordshire? Certo. E o senhor é o Inspetor Harper? Assentem-se. Em cima da mesa, ao lado dos senhores, há uma carteira com cigarros.

      Os policiais agradeceram e se sentaram.

      — Pelo que sei, Sr. Jefferson, o senhor gostava muito da moça assassinada — disse o Coronel Melchett.

      Um sorriso rápido e retorcido estampou-se na face enrugada.

      — Sim, todos já lhes disseram isso! Bem, não é segredo. O que mais lhes disse minha família?

      Ele correu o olhar rapidamente de um para outro ao fazer a pergunta.

      Foi Melchett quem respondeu.

      — A Sra. Jefferson nos contou muito pouco além do fato de que a tagarelice da jovem o divertia e que ela tinha sido sua favorita. Trocamos apenas umas duas palavras com o Sr. Gaskell.

      Conway Jefferson sorriu.

      — Addie é uma criatura discreta. Mark provavelmente teria sido mais franco. Melchett, acho melhor lhe contar todos os fatos, plenamente. É importante, para que o senhor possa compreender minha atitude. E, para começar, preciso remontar à grande tragédia de minha vida. Há oito anos perdi minha esposa, minha filha e meu filho num acidente aéreo. Desde então, tenho vivido como um homem que tivesse perdido a metade de si mesmo... e não me estou referindo ao meu defeito físico! Era um homem que vivia para minha família. Minha nora e meu genro têm sido muito bons para mim. Têm feito tudo a seu alcance para preencherem o vazio de minha vida. Mas cheguei à conclusão, sobretudo ultimamente, de que eles, afinal de contas, precisam viver suas próprias vidas.

      — Portanto, o senhor deve compreender que sou, essencialmente, um homem solitário. Gosto de pessoas jovens. Divirto-me com elas. De vez em quando me passava pela cabeça a idéia de adotar alguma menina ou menino. Neste último mês fiquei muito amigo da criança que foi assassinada. Ela era absolutamente espontânea, completamente ingênua. Falava freqüentemente de sua vida e de sua experiência, nos teatros de revista, nas companhias itinerantes, com sua mamãe e seu papai, quando criança, em casas baratas. Uma vida totalmente diferente de quantas até então conheci! Nunca se queixava e nunca via as coisas pelo lado negativo. Era uma verdadeira criança, natural, conformada, operosa, impoluta e encantadora. Não era uma senhora, talvez, mas, graças a Deus, não era tampouco vulgar nem... palavra abominável... refinada.

      — Eu cada vez mais gostava de Ruby. Tinha resolvido, senhores, adotá-la legalmente. Ela se tornaria, por força da lei, minha filha. Isso, espero, explica meu interesse por ela e as providências que tomei quando soube de seu desaparecimento inexplicável.

      Houve uma pausa. Em seguida, o Inspetor Harper, com seu timbre de voz que não demonstrava qualquer emoção, tirando à pergunta qualquer sentido de ofensa, perguntou:

      — Posso saber o que seu genro e sua nora acharam de sua atitude?

      A resposta de Jefferson veio imediata.

      — O que poderiam achar? É possível que não tivessem gostado. É a espécie de coisa que suscita preconceitos. Mas se comportaram muito bem; sim, muito bem. Não é porque dependessem de mim. Quando meu filho Frank se casou, eu lhe passei a metade de meus bens. Eu acreditava no princípio que diz: Não deixem seus filhos esperando até sua morte. Eles precisam do dinheiro quando são jovens e não quando já estão na idade madura. Do mesmo modo, quando minha filha Rosamund insistiu em se casar com um homem pobre, fiz-lhe a doação de uma grande soma de dinheiro. A importância ficou para seu marido com sua morte. Como os senhores vêem, isso simplificou a matéria do ponto de vista financeiro

      — Compreendo, Sr. Jefferson — disse o Inspetor Harper.

      Mas havia uma certa reserva no seu tom. Conway Jefferson o percebeu.

      — O senhor não concorda, não é?

      — Não quero dizer isso, senhor, mas as famílias, na minha experiência, nem sempre agem razoavelmente.

      — Ouso afirmar que o senhor tem razão, Inspetor, mas deve-se lembrar de que o Sr. Gaskell e a Sra. Jefferson não são, falando estritamente, minha família. Não são parentes consangüíneos.

      — Isso, realmente, faz diferença — admitiu o Inspetor.

      Os olhos de Conway Jefferson cintilaram por um momento.

      — Não quero dizer com isso que eles não achem que eu seja um velho tolo! — disse ele. — Essa serio a reação das pessoas em geral. Mas não sou tolo. Conheço as pessoas. Com educação e trato, Ruby Keene não me envergonharia em lugar nenhum.

      — Lamento muito — disse Melchett, — se estivermos sendo impertinentes e importunos com tantas perguntas, mas é importante que conheçamos todos os fatos. O senhor propôs sustentar a moça, isto é, doar-lhe dinheiro, mas não chegou a fazê-lo?

      — Eu sei aonde o senhor quer chegar — disse Jefferson. — A possibilidade de alguém ter-se beneficiado com a morte da jovem? Mas não era possível. As necessárias formalidades para a adoção legal estavam em andamento mas não tinham sido ainda concluídas.

      — Então, se alguma coisa acontecesse ao senhor... ? — disse Melchett calmamente, deixando a sentença inacabada, como uma dúvida.

      Jefferson reagiu imediatamente.

      — Não há probabilidade de me acontecer nada! Sou um aleijado mas não sou inválido. Embora os médicos gostem de fazer caretas e dar conselhos para não se exagerem as coisas. Nada de exageros! Eu sou tão forte como um cavalo! Não obstante, tenho bastante consciência das fatalidades da vida. Meu Deus, e como tenho razões para isso! A morte colhe às vezes os homens mais fortes, mormente nestes dias de acidentes de estradas. Mas já tinha cuidado disso. Há dez dias fiz novo testamento.

      — Um novo testamento? — perguntou o Inspetor Harper, inclinando-se um pouco para a frente.

      — Deixei a quantia de cinqüenta mil em custódia para Ruby Keene, até que ela completasse vinte e cinco anos, quando então entraria em posse do principal.

      O Inspetor Harper arregalou os olhos. E o Coronel Melchett também.

      — Mas é uma grande soma, Sr. Jefferson — disse Harper num tom de voz quase assustado.

      — Nos dias de hoje realmente é.

      — E o senhor ia deixar tudo isso para uma moça que conhecera havia poucas semanas?

      A indignação se refletiu nos olhos azuis do Sr. Jefferson.

      — Preciso repetir e repetir a mesma coisa? Não tenho mais parentes, nem sobrinhos, nem sobrinhas, e nem mesmo primos distantes! Poderia deixar tudo para uma casa de caridade. Prefiro deixar minha fortuna para um indivíduo — sorriu. — Cinderela tornou-se princesa da noite para o dia. Um Papai Noel ao invés de uma fada. Por que não? O dinheiro é meu. Está acabado.

      — Há outros legados? — perguntou o Coronel Melchett.

      — Uma pequena herança para o meu camareiro, e o resto para Mark e Addie em partes iguais.

      — Perdoe-me, Sr. Jefferson, o restante chegaria a ser uma grande soma?

      — Talvez não. É difícil dizer exatamente. Os investimentos flutuam o tempo todo. A soma total, depois de pagas as despesas de funeral, talvez ficasse entre cinco e dez mil libras livres.

      — Compreendo.

      — E não vá pensar o senhor que eu esteja sendo sovina com eles. Como já disse, dividi minha fortuna com meus filhos casados. Fiquei, pessoalmente, com uma pequena soma. Mas, depois, depois da tragédia, eu precisava de alguma coisa para encher minha vida. Entrei nos negócios. Em minha casa em Londres uma linha particular ligava meu quarto de dormir ao meu escritório. Trabalhei muito. Isso me ajudava a não pensar e me dava a impressão de que minha mutilação não me tinha vencido. Atirei-me ao trabalho — sua voz assumiu um timbre mais profundo, falando mais para si próprio do que para os presentes — e por uma curiosa ironia, tudo que eu fazia prosperava! Minhas especulações mais absurdas davam resultado. Se eu jogava, ganhava. Tudo que eu tocasse virava ouro. Era o que se poderia chamar a maneira irônica do destino de equilibrar a balança.

      Os traços de sofrimento estamparam-se de novo em seu rosto.

      Recobrando-se, sorriu secamente para os policiais.

      — Como os senhores vêem, a quantia que deixei para Ruby era indiscutivelmente minha, para fazer dela o que me desse na cabeça.

      — Certamente, meu caro senhor, não pusemos isso em dúvida momento algum — disse imediatamente o Coronel Melchett.

      — Está bem — disse Conway Jefferson. — Agora, se me permitem, sou eu quem quer fazer algumas perguntas. Preciso saber mais sobre esse terrível acontecimento. Tudo que sei é que ela... a coitadinha da Ruby... foi encontrada estrangulada numa casa a cerca de trinta quilômetros daqui.

      — Perfeito. Em Gossington Hall.

      Jefferson franziu os sobrolhos.

      — Gossington ? Mas não é...

      — A casa do Coronel Bantry

      — Bantry! Arthur Bantry? Eu o conheço. Conheço também sua esposa! Nós nos conhecemos no exterior alguns anos atrás. Não sabia que moravam por essas bandas. Ora essa, é...

      Interrompeu-se. O Inspetor Harper entrou insinuante.

      — O Coronel Bantry jantou aqui no hotel na terça-feira. O senhor não o viu?

      — Terça-feira? Terça-feira? Não, chegamos tarde. Tínhamos ido a Harden Head e jantamos no caminho.

      — Ruby Keene nunca lhe falou dos Bantrys? — perguntou Melchett.

      Jefferson meneou a cabeça.

      — Nunca. Não creio que ela os conhecesse. Certamente não os conhecia. Todas as suas relações eram com gente do palco — fez uma pausa e em seguida perguntou bruscamente: — Que é que Bantry tem a dizer de tudo isso?

      — Não sabe como explicar. Estivera numa reunião no Clube dos Conservadores naquela noite. O corpo foi descoberto na manhã seguinte. Ele afirma que nunca tinha visto a moça na sua vida.

      Jefferson meneou a cabeça.

      — Parece um sonho — disse.

      O Inspetor Harper limpou a garganta e disse:

      — O senhor teria alguma idéia, Sr. Jefferson, de quem poderia ter sido?

      — Quisera ter! — as veias estremeceram na sua fronte. — É incrível, inconcebível Eu diria que isso jamais poderia acontecer, se não tivesse acontecido!

      — Não há nenhum amigo dela, de sua vida passada, nenhum homem que vivesse atrás dela, ameaçando-a?

      — Tenho certeza de que não havia. Se houvesse ela me teria falado. Nunca teve um namorado fixo. Ela mesma me disse isso.

      O Inspetor Harper pensava: Bem, isso é o que ela lhe disse. Resta saber se era verdade.

      Conway Jefferson continuou:

      — Jane saberia melhor do que ninguém se houvesse algum homem perseguindo ou importunando Ruby. Ela não poderia esclarecer?

      — Ela diz que não.

      — Não posso deixar de pensar que isso deve ter sido obra de algum maníaco — disse Jefferson com a testa franzida. — A brutalidade do método, levar para uma casa de campo, tudo tão desconexo e tão sem sentido. Há homens desse tipo, homens aparentemente sãos, mas que seduzem moças... às vezes, até crianças... para matá-las depois. Deve ser crime de natureza sexual.

      — Oh, sim, acontecem casos assim, mas não temos conhecimento de nada desse gênero nesta região — disse Harper.

      Jefferson prosseguiu.

      — Pensei em todos os homens que vi com Ruby. Hospedes e estranhos... o homem com quem ela dançava. Parecem todos inofensivos, tipos comuns. Ela não tinha amigo íntimo de espécie alguma.

      O Inspetor Harper mantinha-se impassível mas Conway Jefferson não percebia que havia ainda um brilho de especulação em seu olhar.

      Era muito possível, pensava ele, que Ruby Keene pudesse ter um namorado, embora Conway Jefferson não o soubesse.

      Mas não disse nada. O Chefe de Polícia lançou-lhe um olhar de indagação e se levantou.

      — Obrigado, Sr. Jefferson — disse ele. — Era tudo de que precisávamos para o momento.

      — Os senhores me manterão informados de seus progressos? — perguntou Jefferson.

      — Perfeitamente, manteremos contato com o senhor.

      Os dois policiais se retiraram.

      Conway Jefferson recostou-se na cadeira.

      Suas pálpebras se fecharam, ocultando o azul vivo de seus olhos. Pareceu de repente um homem excessivamente cansado.

      Em seguida, passados uns dois minutos, suas pálpebras vibraram.

      — Edwards! — chamou em voz alta.

      Da porta do quarto contíguo apareceu imediatamente o camareiro. Edwards conhecia seu patrão como ninguém jamais o conhecera. Outros, mesmo os mais íntimos, conheciam apenas seu vigor. Edwards conhecia sua fraqueza. Vira Conway Jefferson fatigado, desanimado, aborrecido da vida, momentaneamente derrotado pela enfermidade e pela solidão.

      — Às ordens, senhor.

      — Vá procurar Henry Clithering. Ele está em Melborne Abbas. Diga-lhe que lhe mando pedir para vir aqui hoje, se possível, em vez de amanhã. Diga-lhe que é urgente.

 

      JÁ DO LADO DE FORA do apartamento de Jefferson, o Inspetor Harper disse:

      — Bem, aqui para nós, conseguimos um motivo.

      — Hum — disse Melchett. — Cinqüenta mil libras, eh?

      — Sim, Coronel. Já se tem matado por muito menos

      — Sim, mas...

      O Coronel Melchett deixou a frase incompleta. Harper, entretanto, o entendeu.

      — Não acha que é muito provável nesse caso? Bem, pelo que tudo indica, acho que não é nenhum deles. Mas de qualquer maneira, temos sempre de admitir a hipótese.

      — Oh, sim, naturalmente.

      Harper continuou:

      — Se, como diz Jefferson, o Sr. Gaskell e a Sra. Jefferson já estão providos e percebem uma renda considerável, não é provável que se tivessem arriscado a cometer um brutal assassinato.

      — Concordo. Mas sua posição financeira terá de ser investigada, naturalmente. Não posso dizer que simpatizei muito com Gaskell: parece um sujeito mordaz e inescrupuloso. Mas daí a fazer dele um assassino, a distância é muito grande.

      — Oh, sim, como disse, não vejo probabilidade de ser nenhum deles e, considerando o que disse Josie, não vejo como teria sido humanamente possível. Estavam ambos jogando bridge desde vinte para as onze até meia-noite. Não, a meu ver, há outra possibilidade.

      — Algum namorado de Ruby Keene? — perguntou Melchett.

      — Exatamente, Coronel Algum jovem entediado, não muito certo da cabeça. Alguém, diria, que a conhecesse antes de ela vir para cá. Esse plano de adoção, se teve conhecimento disso, pode ter desencadeado os fatos. Vendo que ia perdê-la, que Ruby ia ser levada para uma esfera de vida totalmente diferente da sua, perdeu o juízo e ficou cego de raiva. Ele a teria convidado para sair e encontrar-se com ele na noite passada; teve uma briga com ela por causa da adoção, perdeu o controle e a assassinou.

      — E como teria ido parar na biblioteca de Bantry?

      — Acho muito viável Estavam fora, digam s, no carro dele. Ele voltou a si, viu o que tinha feito e sua primeira preocupação teria sido de livrar-se do corpo. Digamos que estivesse no momento perto do portão de uma casa grande. Ocorreu-lhe a idéia de que se fosse encontrada ali, o cerco ao criminoso seria centralizado em torno da casa de seus moradores e ele ficaria comodamente fora da história. Ruby era de pequena estatura. Poderia carregá-la facilmente. Tinha um formão no carro. Força uma janela e joga sua vítima em cima do tapete. Sendo um caso de estrangulamento, não havia nem sangue nem sinais de luta para incriminá-lo. Compreende o que quero dizer, Coronel?

      — Oh, sim, Harper. É perfeitamente plausível. Mas há ainda uma coisa a ser feita. Cherchez l’homme.

      — O quê? Oh, boa idéia, Coronel.

      O Inspetor Harper aplaudiu habilmente a brincadeira de seu superior, embora, devido à perfeição do sotaque francês do Coronel Melchett, quase não tivesse compreendido o sentido das palavras.

     

      — Será... quero dizer, será que eu poderia falar com os senhores por um instante.

      Era George Bartlett que abordava assim de surpresa os dois policiais.

      O Coronel Melchett, que não simpatizara com Bartlett e estava ansioso para ver o resultado das investigações no quarto da moça, a cargo do Inspetor Slack, e para conversar com as camareiras, respondeu asperamente:

      — O que é que há? Vamos, o que é que há?

      O jovem Bartlett recuou uns dois passos, abrindo e fechando a boca, imitando inconscientemente um peixe num aquário.

      — Bem... talvez não seja muito importante, sabe. Achei que devia falar com os senhores. Não consigo achar o meu carro.

      — O quê? Não consegue achar o seu carro?

      — Quer dizer que teria sido roubado? — perguntou o Inspetor Harper.

      George Bartlett, gaguejando, explicou que o que queria dizer era que não sabia onde estava o automóvel.

      — O senhor acha que foi roubado? — perguntou o Inspetor Harper.

      George Bartlett voltou-se, grato para a voz mais branda.

      — É exatamente isso. O senhor sabe. Talvez, sabe, alguém o tenha apanhado só por brincadeira, sem querer fazer dano. Acho que o senhor me compreende

      — Quando o senhor o viu pela última vez, Sr. Bartlett?

      — Bem, estava procurando lembrar-me. É engraçado quando a gente procura lembrar-se das coisas, não é?

      O Coronel Melchett respondeu friamente:

      — Não, pelo menos para uma inteligência normal. Tenho a impressão de ter ouvido o senhor dizer há poucos instantes que o carro estava no pátio do hotel na noite passada...

      — Bartlett foi bastante ousado para interromper:

      — Ah, estava?

      — O que é que o senhor quer dizer por “estava?” O senhor disse que estava.

      — Bem, quero dizer que achava que estivesse. Quero dizer, bem, eu não saí para ir ver, sabe.

      O Coronel Melchett suspirou. Reuniu toda sua paciência e disse:

      — Vamos esclarecer isso de uma vez. Quando foi que o senhor viu, viu realmente, seu carro pela última vez A propósito, qual é sua marca?

      — Minoan 14.

      — E quando o viu pela última vez?

      O pomo-de-adão de George Bartlett movia-se convulsivamente para cima e para baixo.

      — Estava procurando lembrar-me. Saí com ele ontem antes do almoço. Ia sair para uma volta à tarde. Mas senhor sabe como é, acabei indo dormir. Então, depois d chá, fui jogar tênis e em seguida tomei um banho.

      — E o carro estava então no pátio do hotel?

      — Acho que sim. Quero dizer, foi lá que o deixe Pensava, sabe, em levar alguém para um passeio. Depois do jantar, sabe. Mas não estava com sorte na noite passada. Não tinha nada para fazer. Nunca tomei o velho ônibus para sair.

      — Mas, para o senhor, o carro ainda estava no pátio

      — Bem, naturalmente. Eu o tinha posto lá...

      — O senhor teria notado se não estivesse?

      Bartlett meneou a cabeça.

      — Acho que não, sabe. Há muitos carros entrando e saindo. O pátio está cheio de Minoans.

      O Inspetor Harper assentiu com a cabeça. Olhando de relance pela janela calculara que, naquele momento, havia nada menos de oito Minoans no pátio. Era o carro popular do ano.

      — O senhor não tem o hábito de guardar seu carro à noite? — perguntou o Coronel Melchett.

      — Em geral não me dou este trabalho — respondeu o Sr. Bartlett. O tempo está bom, sabe. É incômodo manobrar carro numa garagem.

      Lançando um olhar para o Coronel Melchett, disse o Inspetor Harper:

      — Eu o encontrarei lá em cima, Coronel. Só vou chamar o sargento Higgins e encarregá-lo de colher as informações do Sr. Bartlett.

      — Ótimo, Harper.

      Bartlett murmurou ansioso:

      — Achei que seria bom informá-los, sabe. Talvez fosse importante, não é?

     

      Prestcott tinha arranjado para a nova dançarina alimentação e pousada. Qualquer que fosse o tipo de alimentação, o alojamento era o mais pobre do hotel.

      Josephine Turner e Ruby Keene tinham ocupado quartos na extremidade de um pequeno corredor comum e escuro. Os quartos eram pequenos, de frente para o norte, numa parte do paredão que sustentava o hotel, e eram mobiliados com restos de apartamentos que outrora, trinta anos atrás, representavam o luxo e a magnificência dos melhores aposentos. Agora, depois que o hotel tinha sido modernizado e os quartos providos de armários embutidos, esses grandes guarda-roupas vitorianos de carvalho e de mogno eram relegados àqueles quartos ocupados pelo estafe do hotel, ou cedidos a hóspedes no auge da estação, quando todos os quartos estavam ocupados.

      Melchett verificou de imediato que a localização do quarto de Ruby Keene era ideal para a finalidade de se sair do hotel sem ser observado, e isso era ruim, infelizmente, do ponto de vista de esclarecimento das circunstâncias daquela saída.

      No fim do corredor havia uma pequena escada que conduzia a outro corredor no andar térreo igualmente escuro. Havia ali uma porta de vidro que dava para o terraço lateral do hotel, lugar pouco freqüentado, sem nenhuma vista. Podia-se passar dali para o terraço principal na frente, ou se podia descer um caminho tortuoso e sair numa pista que, finalmente, alcançava a estrada do penhasco um pouco mais adiante. Como sua superfície não era boa, raramente era trilhado.

      O Inspetor Slack estivera ocupado, apoquentando a camareira e procurando pistas no quarto de Ruby; tivera a sorte de encontrar o quarto exatamente como tinha sido deixado na noite anterior.

      Ruby Keene não tinha o hábito de se levantar cedo. Seu costume, conforme apurara Slack, era de dormir até dez e meia e em seguida pedia o café da manhã. Por conseguinte, logo que Conway Jefferson começara a fazer suas reclamações junto ao gerente, a Polícia se encarregara da coisa ainda cedo, antes que as criadas tocassem no quarto. Elas nem tinham descido àquele corredor. Os quartos daquela ala, naquela estação do ano, só eram abertos e varridos uma vez por semana.

      Todas as circunstâncias eram favoráveis, dizia Slack melancólico. Se houvesse alguma coisa para ser encontrada, tê-la-íamos encontrado. Mas não há nada.

      A Polícia de Glenshire já tinha estado no quarto colhendo impressões digitais mas não havia nada que não pudesse ser explicado. Eram impressões da própria Ruby, de Josie e das duas camareiras — uma do turno da manhã, outra da tarde. Havia também umas duas impressões de Raymond Starr, mas eram explicáveis pelo fato de ter subido com Josie para procurar Ruby, quando ela não apareceu para o número da meia-noite.

      Havia um monte de cartas e papéis em geral, nos pequenos compartimentos de uma escrivaninha de mogno maciço no canto do quarto. Slack tinha acabado de separá-los cuidadosamente. Mas não encontrara nada de sugestivo. Contas, recibos, impressos de teatro, canhoto de cinema, recortes de jornais, sugestões de beleza tiradas de revistas. Entre as cartas havia algumas de “Lil”, provavelmente uma amiga do Palais de Danse, contando-lhe vários acontecimentos e boatos e dizendo que “sentia muita falta de Ruby. O Sr. Fideison perguntou muitas vezes por você! Puxa, ele está sempre por fora! O jovem Reg está namorando com May depois que você foi embora. Barny está sempre perguntando por você. As coisas vão indo como de costume. O velho Grouser mesquinho como sempre conosco. Ele marcou Ada por ter saído com um sujeito”.

      Slack anotava cuidadosamente todos os nomes mencionados. Iria interrogá-los. Quem sabe, talvez daí pudesse surgir alguma pista. O Coronel Melchett concordou, como também o Inspetor Harper que já havia chegado. Fora disso, o quarto tinha muito pouco a oferecer a título de informação.

      Em cima de uma cadeira, no meio do quarto, estava o vestido de dança, cor-de-rosa, espumante, que Ruby usara no início da noite com um par de sandálias de salto alto, de cetim cor-de-rosa, atiradas negligentemente sobre o assoalho. Duas meias de seda pura tinham sido enroladas como uma bela e jogadas no chão. Uma tinha um fio corrido. Melchett lembrou-se de que a moça morta estava descalça e sem meias. Slack ficou sabendo que era seu costume. Preferia usar pintura nas pernas a botar meias e só algumas vezes as usava para dançar, a título de economia. A porta do guarda-roupa estava aberta e mostrava uma variedade de vestidos cintilantes de toalete e, embaixo, uma fila de sapatos. Havia ainda roupas internas na cesta de roupas sujas, aparas de unha, lenços de limpeza facial usados e pedaços de algodão manchados de ruge e esmalte, na cesta de papéis. Enfim, nada fora do comum! Os fatos pareciam muito claros. Ruby Keene tinha subido apressadamente as escadas, trocado de roupa e saído de novo apressada — para onde?

      Josephine Turner, que poderia estar em condições de conhecer a vida de Ruby e a maioria de seus amigos, não pudera ajudar muito. Mas isso, afirmava Slack, podia ser natural.

      — Se o que o senhor está-me dizendo for verdade... sobre esse negócio de adoção... então Josie faria tudo para que Ruby rompesse com velhos amigos que pudesse ter e pudessem estragar os planos, por assim dizer. Conforme me parece, esse senhor inválido fazia tudo na suposição de ser Ruby Keene uma criança pura e inocente. Ora, suponhamos que Ruby fosse vista com um namorado vulgar; isso poria por terra todos os planos. Portanto, o negócio de Ruby era manter-se na obscuridade. Josie não sabe muito a seu respeito, nem sobre seus amigos e tudo mais. Mas com uma coisa ela não concordaria: que Ruby arruinasse tudo envolvendo-se com algum sujeito indesejável. Por conseguinte, parece razoável que Ruby (que, como imagino, era um bocado sapeca!) faria tudo para não ser vista com algum namorado. Não contaria nada a Josie, que certamente lhe diria: “Não, menina, você não pode fazer isso”. Mas o senhor sabe como são as moças... especialmente essas meninas-moças... estão sempre prontas a se fazerem de tolas com um sujeito qualquer. Ruby quer vê-lo. Ele vem aqui, fica furioso com essa história da adoção e aperta o pescoço da moça.

      — Talvez você tenha razão, Slack — disse o Coronel Melchett, disfarçando sua repugnância natural pela maneira desagradável de Slack ver as coisas. — Se assim for, teremos a possibilidade de descobrir facilmente a identidade desse namorado violento.

      — Deixe isso comigo, chefe — disse Slack com sua confiança habitual. — Hei de descobrir essa tal de “Lil”, no Palais de Danse, e a virarei pelo avesso. Chegaremos breve à verdade.

      O Coronel Melchett se perguntava se tudo seria assim tão fácil. A energia e a atividade de Slack fazia-o sentir-se sempre cansado.

      — Há outra pessoa de quem se poderia arrancar alguma coisa, Coronel — continuou Slack — e essa pessoa é o instrutor de dança e de tênis. Ele deve ter visto muita coisa e deve saber mais da vida de Ruby do que Josie. É bem provável que Ruby se tenha aberto com seu companheiro de dança.

      — Já discuti esse ponto com o Inspetor Harper.

      — Ótimo, Coronel. Esgotei as camareiras com perguntas. Não sabem de nada. Tratei-as com superioridade, tanto quanto pude aparentar. Faziam o serviço apressadamente, dentro de suas obrigações. A camareira esteve aqui pela última vez às sete horas da noite passada, quando arrumou a cama e puxou as cortinas para clarear um pouco o quarto. Há um banheiro ali naquela porta, os senhores querem ver?

      O banheiro estava entre o quarto de Ruby e um quarto um pouco maior ocupado por Josie. Estava iluminado. O Coronel Melchett admirava em silêncio a quantidade de ingredientes de beleza que uma mulher podia usar. Filas de vidros de creme facial, creme de limpeza, creme de remover, creme de conservação da pele! Caixas de pó-de-arroz de diferentes tonalidades. Um monte desordenado de toda variedade de batom. Loções de cabelo e aplicações para “clarear”. Base, máscara, corante azul para os olhos, lenços de limpeza, pedaços de algodão, pompons sujos. Vidros de loções: adstringente, tônica, suavizante, etc.

      — Você acha — murmurou debilmente — que uma mulher usa tudo isso?

      Slack, que sempre sabia de tudo, o esclareceu gentilmente.

      — Na sua vida privada, Coronel, a mulher usa, por assim dizer, um ou dois sombreados distintos, um para a noite, outro para o dia. Ela sabe o que lhe convém. Mas essas jovens profissionais, elas sim, têm de variar, por assim dizer. Dão espetáculos de dança, uma noite dançam um tango e na noite seguinte já é uma dança vitoriana, depois uma espécie de dança apache, depois a dança comum e, é claro, a maquilagem varia um bocado.

      — Santo Deus! — disse o Coronel. — Não é de admirar que as pessoas que fabricam esses cremes e poções façam uma fortuna.

      — O negócio é que ganham dinheiro com facilidade — disse Slack. — Dinheiro fácil. Ganho, é claro, para gastar em publicidade.

      O Coronel Melchett afastou o pensamento do fascinante e eterno problema dos adornos femininos.

      — Há ainda aquele dançarino — disse a Harper que acabava de alcançá-los. — É sua presa, Inspetor?

      — Acho que sim, Coronel.

      Ao descerem as escadas, Harper perguntou:

      — Que acha da história do Sr. Bartlett?

      — Sobre o carro? Acho, Harper, que aquele moço precisa ser observado. É uma história duvidosa. Suponhamos, afinal de contas, que tenha saído de carro com Ruby Keene na noite passada?

     

      A atitude do Inspetor Harper era calma, agradável e absolutamente descomprometida. Esses casos em que as Polícias de dois municípios tinham de trabalhar juntas eram sempre difíceis. Gostava do Coronel Melchett e o tinha em conta de um Chefe de Polícia capaz, não obstante gostaria de poder conduzir sozinho a presente entrevista. Nunca fazer demais de uma só vez era a norma do Inspetor Harper. Simples inquérito de rotina primeiro Isso deixava as pessoas entrevistadas mais à vontade e as predispunha a ficarem menos prevenidas na entrevista seguinte.

      Harper já conhecia Raymond Starr de vista. Um tipo de bela aparência, alto, esbelto e simpático, com dentes muito alvos, num rosto bastante bronzeado. Era moreno e elegante. Tinha maneiras agradáveis e cordiais e era muito popular no hotel.

      — Sinto muito, Inspetor, mas não creio que lhe possa ser muito útil. É claro que conheci muito Ruby. Esteve aqui mais de um mês e ensaiávamos juntos nossas danças e tudo mais. Mas, realmente, tenho muito pouco a dizer. Era uma jovem simpática, embora um tanto ingênua.

      — É sobre suas amizades que gostaríamos muito de saber. Suas amizades masculinas.

      — Imagino. Bem, eu não sei de nada! Ela se encarregava de alguns jovens no hotel mas nada de especial. Sabe, ela era quase sempre monopolizada pela família Jefferson.

      — Ah, sim, a família Jefferson — Harper fez uma pausa para refletir. Lançou um olhar arguto para o jovem. — O que é que o senhor acha daquele negócio, Sr. Starr.

      — Que negócio? — perguntou Raymond Starr friamente.

      — O senhor sabia que o velho Jefferson estava disposto a adotar Ruby Keene como filha? — perguntou Harper.

      Isso pareceu uma novidade para Starr. Contraiu lábios e assobiou.

      — Que menininha danada! — disse ele. — Oh, si não há ninguém tão louco como um louco velho.

      — É assim que o senhor considera o fato?

      — Bem... o que mais se pode dizer? Se o velho queria adotar alguém, por que não escolheu uma jovem de sua própria classe?

      — Ruby Keene nunca lhe falou a respeito disso?

      — Nunca. Notei que vivia exultante com alguma coisa mas não sabia o que era.

      — E Josie?

      — Oh, Josie deve ter percebido alguma coisa no ar. Quem sabe se não foi ela quem planejou tudo? Josie não é boba. Aquela menina tem crânio, sabe.

      Harper assentiu com a cabeça. Foi Josie quem mandou buscar Ruby Keene. Foi Josie, sem dúvida, quem estimulava a intimidade. Não admira que tivesse ficado aborrecida quando Ruby deixara de se apresentar para o show daquela noite e Conway Jefferson começara a entrar em pânico. Ela previu o malogro de seus planos.

      — O senhor acha que Ruby era capaz de guardar segredo?

      — Perfeitamente. Não falava muito de seus problemas pessoais.

      — Nunca lhe disse nada, absolutamente nada, de algum amigo, alguém de sua vida anterior que viesse vê-la aqui, ou com quem tivesse alguma dificuldade? Acho que o senhor entendeu o que quero dizer.

      — Compreendo perfeitamente. Bem, tanto quanto me foi dado saber, não havia ninguém dessa espécie. Nem por alguma referência da parte dela.

      — Obrigado, Sr. Starr. Agora o senhor vai dizer-me com suas próprias palavras exatamente o que aconteceu na noite passada.

      — Perfeitamente. Ruby e eu dançamos juntos às dez e trinta...

      — Não notou, então, nada de anormal com ela?

      Raymond refletiu.

      — Acho que não. Não notei o que aconteceu depois. Eu tinha meus próprios pares para cuidar. Lembro-me de ter notado que não estava no salão de baile. À meia-noite ela não apareceu. Fiquei muito aborrecido e fui procurar Josie. Josie estava jogando bridge com os Jeffersons. Não tinha a menor idéia de onde estaria Ruby e tive a impressão de que tomou um susto. Notei que lançou um olhar rápido e preocupado para o Sr. Jefferson. Persuadi os músicos a tocarem outro número, fui ao escritório pedi para discarem para o quarto de Ruby. Ninguém atendia. Voltei a Josie. Ela sugeriu que talvez Ruby estivesse dormindo. Uma sugestão realmente tola, mas, naturalmente, feita por causa dos Jeffersons! Saiu comigo e me chamou para subir com ela.

      — Muito bem, Sr. Starr. E o que foi que ela lhe disse quando estava só com o senhor?

      — Tanto quanto posso lembrar-me, parecia muito aborrecida e dizia: “Que menina tola! Ela não pode fazer isso. Perderá todas as chances. Você sabe com quem ela estava?” Eu lhe disse que não fazia a menor idéia. A última vez que a vira estava dançando com o jovem Bartlett. Josie então disse: “Ela não devia estar com ele. Para onde teria ido? Será que teria saído com o moço do cinema?”

      — Moço do cinema? — perguntou Harper abruptamente. — Quem é ele?

      — Eu não sei seu nome — respondeu Raymond. Nunca se hospedou aqui. É um sujeito de aspecto exótico... cabelos pretos e modos teatrais. Acho que está li gado à indústria cinematográfica, assim teria dito a Ruby. Ele já veio jantar aqui uma ou duas vezes e dançou com Ruby depois mas não creio que ela tivesse muita intimidade com ele. Daí porque fiquei surpreso quando Josie o mencionou. Eu disse que achava que ele não estivesse aqui naquela noite. Josie disse: “Bem, ela deve ter saído com alguém. O que é que vou dizer aos Jeffersons?” Então eu perguntei que é que os Jeffersons tinham a ver com isso? E Josie disse que tinham e muito. E disse, ainda que nunca perdoaria Ruby se ela pusesse tudo a perder. A essa altura chegamos ao quarto de Ruby. Ele não estava ali, é claro, mas estivera, porque o vestido usado no seu último número de dança estava em cima de uma cadeira. Josie olhou o guarda-roupa e disse acha que ela tinha posto um vestido branco. Normalmente teria vestido um vestido de veludo preto para nosso número de dança espanhola. Eu estava muito aborrecido por Ruby ter feito isso comigo. Josie fez tudo para me acalmar, disse que ela mesma ia dançar, de modo que Prescott não se aborrecesse conosco. Ela foi ao seu quarto mudou o vestido, descemos e dançamos um tango num estilo exagerado e aparatoso mas não excessivamente exaustivo para seus tornozelos. Apesar disso, pude ver que Josie se machucara muito. Depois, me pediu para ajudá-la a tranqüilizar os Jeffersons. Ela disse que isso era importante. Sendo assim, não podia deixar de ajudá-la.

      O Inspetor Harper assentiu com a cabeça.

      — Obrigado, Sr. Starr — disse ele.

      Era importante, não tem dúvida. Cinqüenta mil libras, dizia para si mesmo.

      Ele observou Raymond Starr que se afastava airosamente. Desceu os degraus do terraço e no caminho apanhou um saco de bolas de tênis e uma raquete. A Sra. Jefferson, também com uma raquete, juntou-se a ele e se dirigiram para as quadras de tênis.

      — Desculpe, Inspetor.

      Era o sargento Higgins, um tanto esbaforido, que se postava ao lado de Harper.

      O Inspetor, despertado abruptamente dos pensamentos em que estava absorto, olhou espantado.

      — Acaba de chegar uma mensagem da sede para o senhor. Um trabalhador comunicou esta manhã que tinha visto um clarão como se fosse fogo. Meia hora depois foi encontrado um carro incendiado numa pedreira. A Pedreira de Venn, a cerca de três quilômetros daqui. Há indícios de um corpo carbonizado.

      As feições severas do Inspetor Harper ruborizaram-se.

      — Santo Deus, que está acontecendo a Glenshire? Uma epidemia de violência? Não venham dizer-me que vamos ter uma onda de crimes por aqui.

      Após uma pequena pausa, perguntou:

      — Conseguiram o número da placa?

      — Não, Inspetor, mas puderam identificá-lo, é claro, pelo número do motor. Acham que se trata de um Minoan 14.

 

      O SR. HENRY CLITHERING, ao passar pelo salão do Majestic, quase não reparou em ninguém. Estava preocupado. Não obstante, como acontece na vida, seu subconsciente registrou alguma coisa que aguardou seu momento pacientemente.

      Henry se perguntava, ao subir as escadas, o que teria motivado a súbita mensagem de seu amigo. Conway Jefferson não era o tipo de homem de mandar chamar alguém com urgência. Alguma coisa fora do comum acontecera, sem dúvida.

      Jefferson não perdeu tempo com rodeios.

      — Agradeço-lhe muito por ter vindo — disse. — Edwards, traga uma bebida para Henry. Assente-se, meu caro. Pelo visto, acho que não sabe de nada. Não apareceu ainda nos jornais?

      Henry Clithering meneou a cabeça, com a curiosidade ainda mais aguçada.

      — De que se trata?

      — De assassinato. Estou envolvido no caso assim como seus amigos, os Bantrys.

      — Arthur e Dolly Bantry? — perguntou incrédulo.

      — Sim. O corpo foi encontrado na casa deles.

      Conway Jefferson narrou de modo sucinto e claro toda a história. Henry Clithering ouviu-o sem interromper. Ambos estavam acostumados a ir direto ao cerne do assunto. Henry, durante sua gestão como Superintendente da Policia Metropolitana, tornara-se famoso por sua rapidez em ir à essência dos fatos.

      — É um absurdo — comentou quando Jefferson terminou. — Tem idéia de como os Bantrys se meteram nessa encrenca?

      — É isso que me preocupa. Veja., Henry, tenho a impressão de que possivelmente o fato de eu os conhecer poderia ter alguma relação com o caso. É a única conexão que posso encontrar. Nenhum deles, que eu saiba, jamais viu a moça antes. É o que eles dizem e não há motivo para não se acreditar neles. Era mais do que improvável que a conhecessem. Então não é possível que tenha sido assassinada em alguma parte e levada deliberadamente para a casa de amigos meus?

      — Acho que é ir longe demais — disse Clithering.

      — Todavia é possível — persistiu o outro.

      — Sim, mas improvável. E o que você quer que eu faça?

      Conway Jefferson disse amargamente:

      — Sou um inválido. Disfarço a realidade, recuso encará-la, mas agora isso começa a ter sentido para mim. Não posso sair por aí como seria de minha vontade, fazendo perguntas, olhando as coisas. Tenho de ficar aqui humildemente agradecido por migalhas de informações quando a Polícia é bastante generosa para reparti-las comigo. A propósito, conhece Melchett, Chefe de Polícia de Badfordshire?

      — Sim, conheço.

      Alguma coisa martelava a cabeça de Henry Clithering. Um rosto, uma pessoa, distraidamente percebidos ao passar pelo salão. Uma velha empertigada, cuja fisionomia lhe era familiar, que lhe fazia recordar a última vez que vira Melchett.

      — Quer dizer que pretende fazer de mim um detetive amador? Isso não é de meu feitio — disse ele.

      — Você não é um amador, aí é que está — retorquiu Jefferson.

      — Nem sou um profissional tampouco. Estou na lista dos aposentados.

      — Isso simplifica o negócio — disse Jefferson.

      — Quer dizer que se eu estivesse ainda na Scotland Yard não me poderia intrometer no caso? Isso é verdade.

      — Assim sendo — disse Jefferson, — sua experiência o qualifica para se interessar pelo caso e qualquer cooperação que prestar será bem acolhida.

      — A ética profissional o permite, concordo — disse Clithering calmamente. — Mas o que você quer que eu faça realmente, Conway? Descobrir quem matou essa moça?

      — Exatamente.

      — Você mesmo não tem nenhuma idéia?

      — Nenhuma, absolutamente nenhuma.

      — Talvez não me queira acreditar mas você tem lá embaixo, no salão do hotel, neste exato momento, uma pessoa perita em solução de mistérios. Alguém melhor do que eu no assunto e que com toda a probabilidade pode ter informações locais.

      — De quem está falando?

      — Lá, no salão, junto à terceira coluna à esquerda, está assentada uma senhora idosa, com uma fisionomia tranqüila e plácida de solteirona e u’a mente que penetra as profundezas da iniqüidade humana e as revela à luz do dia. Chama-se Miss Marple. É da aldeia de St. Mary Mead, que fica a um quilômetro e meio de Gossington, e é amiga dos Bantrys. E no que diz respeito ao crime, ela é a tal, Conway.

      Jefferson o encarou com o cenho carregado.

      — Você está brincando — disse sério.

      — Não, não estou. Você se referiu agora mesmo a Melchett. A última vez que o vi foi numa tragédia na aldeia. U’a moça que, segundo se supunha, tinha-se afogado. A Polícia imediatamente suspeitou não se tratar de suicídio mas de assassinato. Achavam que as pessoas soubessem quem o tinha feito. Veio ter comigo a velha Miss Marple, nervosa e agitada. Lamentaria muito, dizia ela, se enforcassem um falso assassino. Não tinha provas mas sabia quem era o verdadeiro criminoso. Passou-me um pedaço de papel no qual escrevera um nome. Por Deus, Jefferson, ela estava com a razão!

      Os sobrolhos de Conway Jefferson tornaram-se ainda mais pesados. Murmurou incredulamente:

      — Intuição feminina — disse com ceticismo.

      — Não, ela diz que não; técnica especializada é a sua pretensão.

      — E o que quer dizer com isso?

      — Bem, você sabe, Jefferson, usamos isso no trabalho policial. Tomamos conhecimento de um arrombamento. Geralmente sabemos muito bem quem o fez, isto é, entre os contumazes comuns. Conhecemos a espécie de arrombador que age dessa ou daquela maneira. Miss Marple tem uma série interessante, embora às vezes trivial, de paralelos com a vida da aldeia.

      Jefferson perguntou num tom cético:

      — O que é que ela poderia saber de uma jovem que foi criada num meio teatral e provavelmente nunca esteve na sua aldeia?

      — Acho que ela poderia ter algumas idéias — disse Henry Clithering firmemente.

     

      Miss Marple corou-se de prazer quando o Sr. Henry inclinou-se diante dela.

      — Oh, Sr. Henry, é muita sorte encontrá-lo aqui.

      — Para mim é um grande prazer — disse Henry, muito cortês.

      Miss Marple, corando-se, retorquiu:

      — É bondade de sua parte.

      — A senhora está hospedada aqui?

      — Bem, realmente estamos.

      — Estamos? Quem mais?

      — A Sra. Bantry está também — lançou-lhe um olhar inquiridor. — Não sabe ainda de nada? Sim, posso ver que já sabe. É terrível, não é?

      — O que é que Dolly Bantry veio fazer aqui? Seu marido veio também?

      — Não. É claro que cada um reage a seu modo. O Coronel Bantry, coitado, prefere encerrar-se no seu escritório ou ir a um de seus sítios, quando acontecem coisas dessa espécie. Como tartaruga, sabe, encolhe a cabeça na esperança de que ninguém o veja. Dolly, naturalmente, é muito diferente.

      — Dolly, na realidade, deve estar-se divertindo com isso — disse Henry que conhecia muito bem sua velha amiga.

      — Ah... coitada de minha amiga.

      — Trouxe a senhora para tirar os coelhos do chapéu para ela?

      Miss Marple respondeu calmamente.

      — Dolly acha que uma mudança de ambiente lhe faria bem e não queria vir sozinha. — Ela viu os olhos de seu interlocutor piscando e piscou os seus também. — Mas, naturalmente, sua maneira de ver as coisas é bastante correta. É um tanto incômodo para mim, pois, é claro, não estou habituada a isso.

      — Não tem nenhuma idéia? Nenhum paralelo na aldeia?

      — Quase não sei de nada ainda.

      — Posso remediar um pouco essa situação, Miss Marple. Vou colocá-la a par dos acontecimentos.

      Ele fez um breve relato das ocorrências. Miss Marple ouvia com grande interesse.

      — Pobre Sr. Jefferson — disse ela. — Que história triste. Esses acidentes terríveis. Deixá-lo vivo, aleijado, parece ter sido mais cruel do que se tivesse morrido também.

      — Realmente. Essa é a razão por que seus amigos o admiram tanto, pela maneira corajosa como enfrenta tudo, dominando a dor, a tristeza e os incômodos físicos.

      — Formidável.

      — A única coisa que não posso compreender é esse súbito extravasamento de afeição por essa moça. Ela devia ter, realmente, qualidades excepcionais.

      — Provavelmente, não — disse Miss Marple calmamente.

      — A senhora pensa assim?

      — Não creio que suas qualidades tenham entrado no negócio.

      — Jefferson não é um velho corrupto, sabe — disse o Sr. Henry Clithering.

      — Oh, não, nem pensei nisso por um segundo — disse Miss Marple com as faces ligeiramente enrubescidas. — O que estava querendo dizer... fui um tanto infeliz na expressão... é que ele estaria apenas à procura de uma moça bonita e inteligente para tomar o lugar de sua filha morta... e então essa moça teve sua oportunidade e desempenhava seu papel da maneira mais perfeita possível! Isso pode parecer falta de caridade de minha parte, sabe, mas tenho visto tantos casos dessa espécie. A empregadinha da casa do Sr. Harbottle, por exemplo. Uma mocinha muito vulgar, mas tímida e de boas maneiras. A irmã dele foi chamada para assistir, como enfermeira, um parente moribundo e quando voltou encontrou a moça completamente desvanecida, assentada na sala de estar, rindo e conversando, sem a touca e o avental. A Srta. Harbottle lhe falou rudemente e a moça lhe respondeu com altivez. Foi então que o velho Sr. Harbottle deixou-a estupefata, dizendo que achou que ela já cuidara dele por muito tempo e que estava procurando então outra solução.

      — Tal foi o escândalo criado na aldeia, que a pobre da Srta. Harbottle teve de ir-se embora e vive atualmente em quartos os mais inconfortáveis em Eastbourne. O povo fala muito, sabe, mas acredito que não tenha havido intimidades de qualquer espécie. O negócio é simplesmente que o velho achou que era muito mais agradável ter uma jovem, uma jovem alegre, para lhe dizer como ele era inteligente e divertido do que ter uma irmã que só vivia a lhe apontar faltas, muito embora fosse uma administradora muito econômica.

      Houve um momento de pausa; em seguida Miss Marple concluiu:

      — Houve também o caso do Sr. Badger, que era dono da farmácia. Ele se afligia muito com uma jovem senhora que trabalhava na seção de perfumaria. Disse à sua mulher que deviam cuidar dela como de uma filha e a convidaram para morar com eles. A Sra. Badger não via as coisas desse modo.

      — Se fosse pelo menos uma moça de sua classe... filha de um amigo... — ia dizendo Henry Clithering mas foi interrompido por Miss Marple.

      — Mas a coisa não teria sido tão satisfatória do seu ponto de vista. É como o caso do Rei Cophetua e a mendiga. Quando se trata de um homem realmente solitário, velho, cansado e, quando a própria família o abandona... — Miss Marple fez uma pequena pausa — ...bem, proteger alguém que será esmagado por sua magnificência (para dizer em termos mais melodramáticos, mas acho que o senhor me compreende), enfim, isso é muito mais interessante. Isso o leva a se considerar uma grande personalidade... um monarca beneficente. O beneficiado, naturalmente, fica deslumbrado e isso para ele, é claro, constitui um sentimento agradável. — Fez uma pausa e continuou. — O Sr. Badger, sabe, comprou para sua empregada presentes caríssimos, uma pulseira de diamantes e uma radiola de primeira categoria. Lançou mão de várias economias para atender a essas despesas. Todavia, a Sra. Badger, que era uma mulher muito mais astuta do que a pobre Srta. Harbottle (o casamento, naturalmente, ajuda), deu-se ao trabalho de descobrir algumas coisas. Quando o Sr. Badger constatou que a moça estava mantendo relações com um jovem muito inconveniente, ligado a corridas de cavalo, e tinha inclusive penhorado a pulseira para lhe arranjar dinheiro, bem, aí ficou completamente desapontado e terminou tudo. E no Natal seguinte deu um anel de ouro à Sra. Badger.

      Seus olhos vivos e alegres encontraram os de Henry. Ele se perguntava se aquilo que ela estivera dizendo teria a forma de insinuação.

      — A senhora estaria sugerindo que se tivesse havido um jovem na vida de Ruby Keene, a atitude de meu amigo para com ela se teria alterado? — perguntou Henry Clithering.

      — Acho que sim. Posso afirmar que dentro de um ou dois anos ele poderia ter gostado de arranjar ele próprio seu casamento, embora mais provavelmente não o fizesse... os cavalheiros em geral são egoístas. Mas tenho quase certeza de que se Ruby Keene tivesse tido um namorado ela teria tido todo o cuidado para não deixar transparecer.

      — E o jovem teria ficado ressentido com isso?

      — Acho que é a solução mais plausível. Chocou-me sabe, que a prima, — a jovem que esteve hoje pela manhã em Gossington, parecesse realmente zangada com a morte. O que o senhor me disse explica por quê. Não há dúvida de que estava conduzindo o negócio visando vantagens futuras.

      Um tipo frio e calculista, não é?

      — Talvez seja um juízo muito severo. A pobre diabo teve de ganhar sua vida e não se pode esperar que tivesse pena porque um homem e uma mulher abastados, como o senhor descreveu o Sr. Gaskell e a Sra. Jefferson, iam ser privados de uma maior soma de dinheiro à qual na realidade não têm nenhum direito de ordem moral. Eu diria que a Srta. Turner é antes uma jovem ambiciosa e teimosa, dotada de força de vontade e considerável joie de vivre. Um pouco semelhante a Jesie Golden, a filha do padeiro — acrescentou Miss Marple.

      O que lhe aconteceu?

      — Ela treinava para ser babá e se casou com o filho do dono da casa, que veio da Índia para passar as férias. Acho que tem sido uma esposa muito boa para ele.

      Henry Clithering procurou desvencilhar-se dessas fascinantes questões laterais.

      — A senhora acha que existe algum motivo pelo qual meu amigo Conway Jefferson teria, de repente, desenvolvido esse “complexo de Cophetua”, como a senhora diz? — perguntou.

      — Poderia haver.

      — Em que sentido?

      — Eu acho... — respondeu Miss Marple um pouco hesitante. — É apenas uma sugestão... de que talvez seu genro e sua nora pudessem querer casar-se de novo.

      — E certamente não poderia opor-se a isso?

      — Não se trata de oposição. Mas é preciso encarar o fato de seu ponto de vista. Ele passou por um golpe terrível, e eles também; vivem todos eles, desolados, uma vida comum e o vínculo que os une é a perda que todos sofreram. Mas o tempo, como costumava dizer minha querida mãe, cura muitas coisas. O Sr. Gaskell e a Sra. Jefferson são jovens. Sem que eles mesmos possam ter percebido, estão começando a se sentir inquietos, a ressentir os elos que os prende a uma dor passada. E então, pensando assim, o velho Jefferson ter-se-ia tornado consciente de uma súbita perda de solidariedade sem saber sua causa. É geralmente assim. Os homens facilmente se sentem abandonados. Com o Sr. Harbottle foi a Srta. Harbottle que partiu. E com os Badgers foi a Sra. Badger interessada pelo espiritismo e freqüentando assiduamente as sessões.

      — Permita-me que lhe diga — disse Henry Clithering pesaroso, — que não gosto da maneira como a senhora reduz tudo a um denominador comum.

      Miss Marple meneou a cabeça tristemente.

      — A natureza humana é sempre a mesma em toda parte, Sr. Henry.

      — Sr. Harbottle! Sr. Badger! E o pobre do Conway! Detesto introduzir qualquer nota pessoal mas a senhora teria algum paralelo para minha humilde pessoa em sua aldeia? — perguntou Henry aborrecido.

      — Bem, é claro, temos Briggs.

      — Quem é Briggs?

      — Era o jardineiro-chefe em Old Hall. O melhor empregado que já tinham tido. Sabia exatamente quando os jardineiros subalternos estavam-se descuidando... era realmente impressionante! Lidava apenas com três homens e um rapaz e a praça era mais bem cuidada com eles do que tinha sido com seis. Ganhou várias vezes o primeiro lugar com suas ervilhas de cheiro. Atualmente está aposentado.

      — Como eu — disse Henry.

      — Mas ainda faz alguma tarefa, quando gosta das pessoas.

      — Ah! — disse Henry, — também igual a mim. É exatamente o que estou fazendo agora... trabalhando para ajudar um velho amigo.

      — Dois velhos amigos.

      — Dois?

      Henry Clithering olhou um pouco espantado.

      — Suponho que se referiu ao Sr. Jefferson — disse Miss Marple. — Mas não estava pensando nele. Estava pensando no Coronel e na Sra. Bantry.

      — Ah, sim, é verdade. — E de modo abrupto: — Por que seria que a senhora se referiu há pouco à Sra. Bantry, no início da conversação, como “coitada de minha amiga”?

      — Sim. Ela não começou ainda a avaliar bem a situação. Eu sei porque tenho tido mais experiência. Sabe, Sr. Henry, parece-me que há uma grande possibilidade de estarmos diante daquela espécie de crime que nunca é esclarecido. Como os assassinos da estrada de Brigton. E se isso acontecer será um desastre para os Bantrys. O Coronel Bantry é realmente de uma sensibilidade fora do comum. Reage muito rapidamente à opinião pública. Durante algum tempo não notará, mas pouco e pouco ir-se-á apercebendo. Uma descortesia ali, uma desconsideração acolá, um convite recusado, desculpas oferecidas, etc., pouco a pouco se abaterão sobre ele e então se recolherá à sua concha e se tornará terrivelmente mórbido e digno de pena.

      — Deixe-me ver se realmente a compreendi. A senhora quer dizer que, por ter sido o cadáver encontrado em sua casa, o povo pensará que ele tem algo a ver com isso?

      — É claro que sim! Não tenho a menor dúvida de que já estarão falando nisso. E dirão ainda mais coisas. O povo tratará os Bantrys com desprezo e os evitará. Eis a razão por que a verdade deve ser estabelecida e por que vim aqui com a Sra. Bantry. Uma acusação aberta é uma coisa, uma situação muito fácil para um soldado enfrentar. Ele ficará indignado mas terá uma chance de luta. Mas essa espécie de boatos ao pé do ouvido o arrasará... destruirá a ambos. Temos, portanto, Sr. Henry, de descobrir a verdade.

      — Não se tem nenhuma idéia de como aquele corpo foi parar na casa do Coronel? Deve haver uma explicação para isso. Alguma conexão.

      — Certamente, é claro.

      — A moça foi vista aqui pela última vez cerca das dez e quarenta. Por volta da meia-noite, conforme o laudo médico, ela estava morta. Gossington está a trinta quilômetros daqui. A estrada de vinte e cinco quilômetros até entrar na principal é muito boa. Um bom carro poderia fazer esse percurso em menos de meia hora. Praticamente, qualquer carro poderia fazer u’a média de trinta e cinco minutos. Mas por que alguém ou a mataria aqui e levaria o corpo para Gossington, ou a levaria para Gossington e a mataria lá? Não sei.

      — É claro que não sabe, pois não aconteceu.

      — A senhora quer dizer que foi estrangulada por alguém que saiu com ela de carro e depois resolveu jogá-la dentro da primeira casa que encontrou?

      — Não penso em nada disso. Acho que havia um plano preconcebido. O que aconteceu foi que o plano não deu certo.

      Henry Clithering a encarou.

      — Por que o plano não deu certo?

      Miss Marple respondeu num tom explicativo:

      — Acontecem coisas curiosas, não é? Se eu dissesse que esse plano particular saiu errado porque os seres humanos são muito mais vulneráveis e sensíveis do que se pensa, não pareceria sensato, não é? No entanto, essa é a razão por que acredito... e...

      Interrompeu-se.

      — Ali está a Sra. Bantry.

 

      A SRA. BANTRY, que estava com Adelaide Jefferson, ao se aproximar de Henry Clithering, exclamou:

      — O senhor?

      — Sim, eu mesmo — respondeu Clithering, tomando as mãos da Sra. Bantry e apertando-as calorosamente. — Permita-me que lhe diga como me aflige tudo o que está acontecendo, Sra. B.

      — Não me chame de Sra. B! — disse a Sra. Bantry mecanicamente e continuou. — Arthur não veio. Ele está levando tudo muito a sério. Miss Marple e eu viemos para aqui para investigar. O senhor conhece a Sra. Jefferson?

      — Oh, sim, naturalmente.

      Apertaram-se as mãos.

      — Esteve com meu sogro? — perguntou Adelaide Jefferson.

      — Sim, estive.

      — Ótimo. Estamos preocupados com ele. Foi um terrível golpe.

      — Vamos para o terraço tomar alguma coisa e conversar um pouco — convidou a Sra. Bantry.

      Saíram os quatro e foram juntar-se a Mark Gaskell que estava assentado sozinho, na extremidade do terraço.

      Após algumas observações desconexas e a chegada das bebidas, a Sra. Bantry foi direta ao assunto, com seu gosto habitual pela ação direta.

      — Podemos conversar sobre isso, não podemos? Quero dizer, somos velhos amigos, com exceção de Miss Marple, que é a tal em crimes. E ela quer ajudar.

      Mark Gaskell olhou para Miss Marple um tanto perplexo.

      — A senhora escreve contos policiais?

      As pessoas mais inverossímeis, sabia ele, escreviam contos policiais. E Miss Marple, com suas roupas de solteirona fora da moda, parecia uma pessoa singularmente fora do comum.

      — Oh, não, não tenho tanta inteligência para isso.

      — Ela é maravilhosa — disse a Sra. Bantry impaciente. — Não posso explicar agora, mas realmente o é. Agora, Addie, eu quero saber de tudo. Como era realmente essa moça?

      — Bem... — Adelaide Jefferson fez uma pausa, olhou para Mark e sorriu. — Você é tão direta! — disse.

      — Você gostava dela?

      — Não, realmente não gostava.

      — Como era ela exatamente?

      A Sra. Bantry passou a interrogar Mark Gaskell, que respondeu refletidamente.

      — Uma aventureira comum, uma cavadora de níqueis, que conhecia sua arte. E enfiou suas garras no velho Jeff.

      Ambos chamavam o sogro de Jeff.

      Sujeito indiscreto. Não precisava ser tão franco, pensava Henry Clithering.

      Ele sempre desaprovava um pouco as atitudes de Mark Gaskell. O sujeito era simpático mas não merecia confiança. Falava demais e de vez em quando se mostrava jactancioso. Não era de merecer confiança, pensava Clithering. Às vezes se perguntava se Jefferson não pensaria também como ele.

      — Mas o senhor não podia fazer nada a esse respeito? — perguntou a Sra. Bantry.

      — Poderíamos ter feito, se tivéssemos descoberto em tempo — respondeu Mark secamente, lançando um olhar em Adelaide que se corou ligeiramente. Havia um quê de censura naquele olhar.

      — Mark acha que eu deveria ter visto o que estava acontecendo — disse Adelaide.

      — Você deixou o velho muito só, Addie. As lições de tênis e tudo mais.

      — Bem, eu precisava fazer um pouco de exercício — falava num tom de desculpa. — De qualquer maneira, nunca poderia sonhar...

      — É claro — disse Mark, — que nenhum de nós poderia jamais ter sonhado. Jefferson foi sempre muito sensato, um velho que conservava sempre a cabeça no lugar.

      Miss Marple deu uma contribuição para a conversa.

      — Os cavalheiros — disse ela, com sua maneira de velha solteirona de se referir ao sexo oposto, como se tratasse de um animal selvagem — nem sempre têm a cabeça tão assentada quanto parecem.

      — Eu diria que a senhora tem razão — disse Mark. — Infelizmente, Miss Marple, não nos demos conta disso. Nós nos perguntávamos o que o velho teria visto naquela criaturinha insípida e sedutora. Mas nos conformávamos por vê-lo alegre e feliz. Achávamos que não havia nenhum perigo da parte dela. Nenhum perigo! Como eu gostaria de lhe ter torcido o pescoço!

      — Mark — disse Addie, — você precisa realmente ter cuidado com o que diz.

      Ele sorriu para ela insinuantemente.

      — É, acho que preciso. Caso contrário vão pensar que realmente lhe torci o pescoço. Oh, de qualquer maneira, suponho que esteja sob suspeição. Se alguém teria interesse em ver aquela moça morta seria Addie e eu.

      — Mark — gritou a Sra. Jefferson, meio sorrindo e meio zangada, — você realmente não deve falar assim.

      — Está bem, está bem — disse Mark pacificamente. — Mas gosto de dizer o que penso. Cinqüenta mil libras é o que nosso caro sogro estava querendo doar àquela gata manhosa e imbecil.

      — Mark, não fale assim... ela está morta.

      — Sim, ela está morta, pobre diabo. E, afinal de contas, por que não usaria as armas que a natureza lhe deu? Quem sou eu para julgar? Eu mesmo já fiz um bocado de bobagens na minha vida. Não, vamos admitir que Ruby tivesse o direito de conspirar e planejar e que nós tenhamos sido bastante otários para não descobrirmos logo sua trama.

      — O que foi que o senhor disse quando Conway o informou de sua disposição de adotar a moça? — perguntou Henry.

      Mark estendeu as mãos.

      — O que é que poderia dizer? Addie, sempre bancando uma senhora, manteve admiravelmente seu autocontrole. Encarou tudo impassivelmente. Eu me esforcei para seguir seu exemplo.

      — Eu teria feito uma confusão — disse a Sra. Bantry.

      — Bem, falando francamente, não tínhamos o direito de criar caso. O dinheiro era de Jeff. Nós não somos seus parentes consangüíneos. Ele sempre nos ajudou muito. Não havia nada a fazer a não ser morder o beiço. — Mark acrescentou pensativo: — Mas nós não gostávamos da pequena Ruby.

      — Se ao menos fosse outra espécie de menina — disse Adelaide. — Jeff tem dois netos, sabe. Se fosse um deles, bem, seria compreensível. — E acrescentou com uma sombra de ressentimento: — E sempre adorou Peter.

      — É claro — disse a Sra. Bantry. — Eu sempre soube que Peter era filho de seu primeiro marido... mas havia esquecido. Sempre o imaginava como neto do Sr. Jefferson.

      — Eu também — disse Adelaide. Sua voz tinha um tom que fez Miss Marple virar-se na cadeira e olhar para ela.

      — A culpa foi de Josie, que a trouxe para aqui — disse Mark.

      — Oh, mas você não quer dizer com isso que foi deliberadamente. Ora essa, você sempre gostou de Josie.

      — Sim, eu gostava dela. Sempre a tive em conta de uma boa pessoa.

      — Foi meramente casual sua vinda para aqui.

      — Josie tem uma boa cabecinha em cima dos ombros, minha cara.

      — Sim, mas ela não poderia prever...

      — Não, é claro, não poderia prever — disse Mark. — Admito. Eu não a estou acusando de ter planejado tudo. Mas não tenho dúvida de que viu para onde soprava o vento muito antes de nós e ficou quietinha.

      — Não acho que a possamos censurar por isso — disse Adelaide com um suspiro.

      — Oh, não podemos censurar ninguém por coisa alguma — disse Mark.

      — Ruby Keene era muito bonita? — perguntou a Sra. Bantry.

      Mark olhou para ela.

      — Pensei que a senhora a tivesse visto...

      — Oh, sim — disse a Sra. Bantry, imediatamente. — Mas tinha sido estrangulada, sabe, e não se poderia dizer... — teve um calafrio.

      Mark disse pensativo:

      — Não acho que fosse realmente bonita. Certamente não o teria sido sem qualquer maquilagem. Um rostinho fino e miúdo, pouco queixo, dentes para dentro, uma espécie de nariz indefinível...

      — Parece repugnante — disse a Sra. Bantry.

      — Oh, não, ela não era. Como disse, com pintura conseguia um bom efeito; não acha, Addie?

      — Sim, parecia uma caixa de chocolate, rosa e branco. Tinha lindos olhos azuis.

      — É verdade. Um olhar inocente de criança. E os cílios bem escurecidos ressaltavam ainda mais o azul de seus olhos. Seus cabelos eram platinados. Realmente, quando penso naqueles cabelos, naquele colorido... embora artificial... Tinha uma espécie de semelhança espúria com Rosamund, minha esposa, sabe. Ouso afirmar que foi isso que chamou a atenção do velho para ela.

      Mark suspirou.

      — Bem, é uma triste história. O trágico de tudo isso é que Addie e eu não podemos deixar de estar alegres com a sua morte...

      Ele reprimiu um protesto de sua cunhada.

      — Não está direito, Addie; eu sei como você se sente. Eu sinto a mesma coisa. E não vou fingir! Mas, ao mesmo tempo, você sabe o que quero dizer; realmente, estou muito mais preocupado com Jeff. Isso o chocou horrivelmente . Eu...

      Ele se interrompeu e olhou para a porta do salão que se abria para o terraço.

      — Ora, vejam, quem está ali. Que mulher inescrupulosa é você, Addie.

      A Sra. Jefferson olhou por cima do ombro, fez uma exclamação e se levantou, corando-se ligeiramente. Caminhou apressadamente ao longo do terraço e se dirigiu a um senhor de idade madura, com um rosto moreno e fino, que olhava vagamente ao redor, como se estivesse à procura de alguém.

      — Não é Hugo Mclean? — perguntou a Sra. Bantry.

      — Exato, Hugo Mclean. Também conhecido por Willian Dibbin.

      — Ele é muito fiel, não é? — murmurou a Sra. Bantry.

      — De dedicação canina — disse Mark. — Basta um gesto de Addie e Hugo vem correndo de qualquer lugar do mundo. Alimenta sempre a esperança de que ela o esposará um dia, e tenho quase certeza de que isso irá acontecer.

      Miss Marple olhou sorridente para eles.

      — Compreendo. Um romance?

      — E nos moldes os mais antigos — assegurou-lhe Mark. — Já dura anos. Addie é dessa espécie de mulher.

      E acrescentou pensativo:

      — Acho que Addie lhe telefonou esta manhã. Ela não me disse mas eu suponho.

      Edwards, vindo pelo terraço, aproximou-se discretamente de Mark e lhe disse:

      — Perdoe-me, senhor. O Sr. Jefferson pede-lhe o obséquio de ir estar com ele.

      — Agora mesmo.

      Levantou-se.

      — Até mais logo — disse, com um gesto de cabeça, e se retirou.

      Henry Clithering inclinou-se para Miss Marple e lhe perguntou:

      — Então, qual é sua opinião sobre os principais beneficiários do crime?

      Miss Marple olhando, pensativa, para Adelaide Jefferson, que conversava com seu amigo, respondeu:

      — Eu diria que é u’a mãe muito extremosa.

      — Realmente — disse a Sra. Bantry. — Vive para Peter.

      — É a espécie de mulher — disse Miss Marple, — que todo mundo aprecia. O tipo da mulher que se casará quantas vezes quiser. Não quero dizer com isso que seja uma mulher vulgar. É muito diferente.

      — Compreendo o que a senhora quer dizer.

      — O que vocês ambos querem dizer — entoou a Sra. Bantry — é que ela é uma boa ouvinte.

      Henry Clithering deu uma risada.

      — E Mark Gaskell? — perguntou.

      — Ah — disse Miss Marple. — Um sujeito esperto.

      — Algum paralelo na aldeia, por favor?

      — O Sr. Cargill, construtor. Ele engana um bocado de gente para mandar fazer serviços em suas casas, serviços que nunca imaginavam. E como cobra por isso! Mas é sempre capaz de explicar suas contas. Um sujeito sabido. Casou-se com o dinheiro. Assim também o Sr. Gaskell, a meu ver.

      — A senhora não gosta dele.

      — Sim, não gosto. A maioria das mulheres gostaria. Mas eu não caio nessa. É uma pessoa atraente, acho. Mas, talvez, um pouco imprudente para se falar como fala.

      — Imprudente, eis a palavra — disse Henry. — Mark se meterá em dificuldades se não tiver cuidado.

      Um jovem moreno e alto, vestido num terno de flanela, subia os degraus do terraço e se deteve por alguns instantes, observando Adelaide Jefferson e Hugo Mclean.

      — Aquele é a incógnita, que poderíamos descrever como parte interessada. É o instrutor de tênis e de dança. Raymond Starr, par de Ruby Keene — informou Henry Clithering obsequioso.

      Miss Marple o observava com interesse.

      — Parece muito bonito, não é?

      — Acho que sim.

      — Não seja ridículo, Henry — disse a Sra. Bantry, — nada de suposição. Ele é bonito.

      — A Sra. Jefferson teria dito que está tomando lições de tênis — murmurou Miss Marple.

      — Você vê alguma implicação nisso, Jane?

      Miss Marple não teve condições de responder a essa pergunta direta. O garoto Peter Carmody atravessou o terraço e juntou-se a eles. Dirigiu-se a Henry Clithering:

      — O senhor é detetive também? Eu o vi conversando com o Inspetor. Aquele gordo não é o Inspetor?

      — Exato, meu filho.

      — E alguém me disse que o senhor era um detetive muito importante de Londres. Chefe da Scotland Yard ou coisa parecida.

      — O chefe da Scotland Yard é em geral uma completa nulidade nos livros, não é?

      — Oh, não, não nos nossos dias. Rir da Polícia é coisa fora de moda. O senhor já sabe quem é o assassino?

      — Sinto muito, mas ainda não.

      — Você está-se divertindo com isso, não é, Peter? — perguntou a Sra. Bantry.

      — Ah, sim, estou. É uma novidade, não é? Estou atrás de alguma pista, mas eles têm sorte. Ainda assim consegui um souvenir. Querem ver? Bobagem, mamãe queria que eu o jogasse fora. Os pais às vezes chegam a ser exasperantes.

      Tirou do bolso uma pequena caixa de fósforo. Abrindo-a, mostrou o precioso conteúdo.

      — Vejam, é uma unha. A unha dela! Vou escrever aqui em cima: “Unha da Mulher Assassinada” e levar para a escola. É uma boa lembrança, não acham?

      — Onde você a achou? — perguntou Miss Marple.

      — Bem, tive um bocado de sorte, sabe. Pois, é claro, não sabia que ela ia ser assassinada. Ruby meteu sua unha no xale de Josie e a quebrou. Mamãe a cortou e me deu para jogar na cesta do lixo. Eu ia jogar fora, mas ao invés coloquei no bolso e esta manhã me lembrei fui ver se ainda estava aqui e estava, de modo que a guardei como um souvenir.

      — Repugnante — disse a Sra. Bantry.

      — A senhora acha? — perguntou Peter polidamente.

      — Conseguiu outros souvenirs? — perguntou Henry Clithering.

      — Bem, eu não sei. Consegui algo que poderia ser...

      — Explique-se, meu jovem.

      Peter olhou para ele pensativo. Em seguida tirou um invólucro. De dentro retirou um pedaço de cadarço marrom.

      — É um pedaço do laço do sapato daquele rapaz, George Bartlett — explicou. — Eu vi seus sapatos do lado de fora da porta esta manhã e apanhei um pedaço só para o caso...

      — Para o caso de quê?

      — No caso de que pudesse ser o assassino, é claro. Ele foi a última pessoa que a viu e isso dá lugar a muita suspeita, sabe. Está quase na hora de jantar, não é? Estou com uma fome danada. Parece-me sempre longo demais o espaço entre o chá e o jantar. Alô, lá está tio Hugo. Eu não sei por que mamãe o chamou. Ela sempre o faz quando está em apuros. Josie está chegando. Ei, Josie!

      Josephine Turner, chegando pelo terraço, parou e olhou um tanto espantada ao ver a Sra. Bantry e Miss Marple.

      — Como vai, Srta. Turner? — disse a Sra. Bantry toda afável. — Viemos fazer algumas investigações!

      Josie lançou um olhar de culpa ao redor, baixou a voz e disse:

      — É horrível. Ninguém sabe ainda. Quero dizer, não está ainda nos jornais. Acho que todo mundo vai fazer-me perguntas e é tão incômodo. Não sei o que dizer.

      Seu olhar fixou-se em Miss Marple que disse:

      — É, será lamentavelmente uma situação muito difícil para a senhora.

      Josie animou-se com essa demonstração de simpatia.

      — Sabe, o Sr. Prestcott recomendou-me que não falasse nada sobre o caso. E ele tem razão, mas todo mundo vem-me fazer perguntas e a gente não pode ser grosseira com as pessoas, não é? O Sr. Prestcott me disse que esperava que eu fosse capaz de enfrentar tudo como de costume, mas não estava agora muito certo disso. Preciso, portanto, fazer o melhor possível. E realmente não vejo por que todos acham de me censurar.

      — A senhora não se incomodaria se lhe fizesse uma pergunta muito franca, Srta. Turner? — perguntou Henry Clithering.

      — Oh, faça a pergunta que o senhor quiser — disse Josie insinceramente.

      — Houve algum desentendimento entre a senhora e a Sra. Jefferson e o Sr. Gaskell sobre tudo isso?

      — O senhor se refere ao crime?

      — Não, não me refiro ao assassinato.

      Josie estava de pé, torcendo os dedos. Respondeu um pouco mal-humorada.

      — Bem, há e não há, se compreende o que quero dizer. Nenhum deles disse coisa alguma. Mas acho que me culpam pelo fato de o Sr. Jefferson ter sido envolvido por Ruby. Mas não foi culpa minha, foi? Essas coisas acontecem e eu nunca pensei, antes, nem por um momento, que tal coisa pudesse acontecer. Eu... eu fiquei estarrecida.

      Suas palavras saíram com o que parecia uma inegável sinceridade.

      — Não tenho a menor dúvida de que tenha ficado — disse Henry Clithering afavelmente. — Mas uma vez que acontecera?

      Josie levantou o queixo.

      — Bem, foi uma questão de sorte, não foi? Todo mundo tem direito a ter às vezes um pouco de sorte.

      Ela correu o olhar pela mesa numa maneira desafiadora de perguntar e em seguida atravessou o terraço e entrou no hotel.

      — Não acho que ela tenha culpa — disse Peter judiciosamente.

      Miss Marple murmurou:

      — É interessante, aquele pedaço de unha. Isso me preocupa muito, sabe. Como explicar suas unhas?

      — Unhas? — perguntou Henry.

      — As unhas da morta — explicou a Sra. Bantry. — Eram muito curtas e agora que Jane diz isso, é claro que era um pouco inverossímil. Uma moça como ela gosta de unhas compridas.

      — Mas, naturalmente — disse Miss Marple, — se ela cortou uma, deveria ter cortado todas as demais para igualar. Os policiais não teriam encontrado aparas de unhas no seu quarto?

      Henry Clithering olhou curioso para ela.

      — Perguntarei ao Inspetor Harper quando ele voltar.

      — Voltar de onde? — perguntou a Sra. Bantry. — Não foi a Gossington, foi?

      Henry Clithering respondeu gravemente:

      — Não, aconteceu outra tragédia. Um carro em chamas numa pedreira...

      Miss Marple prendeu a respiração.

      — Havia alguém no carro?

      — Lamentavelmente, parece.

      — Acho que deve ser a moça-guia que estava desaparecida... Patience... não, Pamela Reeves — disse Miss Marple pensativa.

      Henry Clithering olhou para ela.

      — Como é que a senhora pode pensar uma coisa dessas, Miss Marple.

      Miss Marple corou-se um pouco.

      — Bem, foi noticiado que ela desapareceu de sua casa desde ontem à noite. E sua casa era no Daneleigh Vale, que não estava muito longe dali. E foi vista pela última vez na reunião de moças-guias em Danebury Downs. Tudo muito perto. Na realidade ela tinha de passar por Danemouth para ir para casa. Portanto, tudo parece ajustar-se, não é? Isto é, parece que ela poderia ter visto ou talvez ouvido algo que ninguém devia ver ou ouvir. Se assim foi, é claro, ela seria uma fonte de perigo para o assassino e teria de ser... afastada. Duas coisas como essas devem estar relacionadas, não acha?

      Henry Clithering disse, deixando cair a voz:

      — A senhora pensa... num segundo assassinato?

      — Por que não? — seu olhar tranqüilo encontrou-se com o dele. — Quem comete um crime não teme cometer um segundo, teme? E até um terceiro.

      — Um terceiro? A senhora acha que vai haver um terceiro?

      — Imagino apenas essa possibilidade... Sim, acho que seja bastante possível.

      — Miss Marple — disse Henry Clithering, — a senhora me assusta. A senhora sabe quem vai ser assassinado?

      — Tenho uma idéia e bem fundamentada — respondeu.

     

      O INSPETOR HARPER olhava para o montão de ferro queimado e retorcido. Um carro incendiado era sempre uma cena chocante, mesmo sem a horrenda carga de um cadáver tostado e enegrecido.

      A Pedreira de Venn era um local distante, longe de qualquer habitação humana. Embora na realidade só distasse três quilômetros de Danemouth, o acesso era feito por uma dessas estradas estreitas, tortuosas e cheias de sulcos, um pouco mais do que uma trilha de carroças que conduzia exclusivamente à própria pedreira. Há muito tempo que a pedreira tinha sido abandonada e as únicas pessoas que ainda transitavam por ali eram visitantes casuais em busca de amoras silvestres. Como lugar para se desfazer de um carro era ideal. O veículo poderia ter ficado ali semanas sem ser visto, não fora o acidente do brilho no céu, observado pelo lavrador Albert Biggs, a caminho de seu trabalho.

      Albert Biggs estava ainda ali, embora tudo que tivesse a contar já tivesse sido ouvido, mas continuava a repetir a história eletrizante com tantos enfeites quantos lhe ocorressem.

      — Uai, arregalei os olhos e me perguntei, o que seria aquilo. Era um brilho lá no céu. Poderia ser uma fogueira, mas quem estaria acendendo fogueira na Pedreira de Venn? Não, deve ser um grande incêndio. É perto de Venn, é lá, certamente. Fiquei sem saber o que devia fazer, mas nesse momento, vendo o policial Gregg que se aproximava de bicicleta, eu lhe contei o que tinha visto. Àquela altura já se estava apagando tudo, mas eu lhe mostrei onde era. É naquela direção, disse, um grande brilho no céu. Talvez seja um montão de palha. Algum vagabundo lhe teria ateado fogo. Mas nunca imaginei que pudesse ser um carro... e muito menos que pudesse haver alguém se queimando dentro dele. É realmente uma tragédia.

      A Polícia de Glenshire estivera ocupadíssima. Batera fotografias e a posição do carro incendiado tinha sido cuidadosamente anotada antes que o médico da Polícia começasse sua própria investigação.

      Este último apresentou-se a Harper, sacudindo a cinza escura das mãos, com os lábios cerrados e expressão carrancuda.

      — Um serviço bem feito — disse. — Parte de um pé e de um sapato, é tudo que escapou. Pessoalmente não saberia dizer nesse momento se o corpo é de homem ou de mulher, embora tenhamos alguns indícios dos ossos. Mas o calçado é daquele tipo de alças, muito usado por escolares.

      — Há uma jovem do município vizinho desaparecida — disse Harper, — muito perto daqui. De mais ou menos dezesseis anos de idade.

      — Então é provável que seja ela — disse o médico. — Pobre criança.

      — Ela não estava viva quando... — ia perguntando Harper apreensivo.

      — Não, não, não creio. Não há nenhum sinal de que tivesse tentado sair. O corpo estava simplesmente atirado no assento, com os pés para fora. Eu diria que estava morta quando foi posta ali. Em seguida, incendiaram o carro numa tentativa de eliminar qualquer prova.

      Fez uma pausa e perguntou:

      — Ainda precisam de mim?

      — Acho que não, obrigado.

      — Está bem. Vou andando — disse o médico e saiu andando na direção de seu carro.

      Harper se dirigiu para onde um de seus sargentos, um homem especializado em assuntos de carro, estava ocupado. Ao ver Harper, levantou a vista.

      — Um caso muito simples, Inspetor. Gasolina derramada em cima do carro e fogo ateado deliberadamente. Há três latas vazias ali na cerca.

      Um pouco mais adiante estava outro homem arrumando cuidadosamente alguns objetos retirados do sinistro. Havia um sapato de couro preto chamuscado e com ele alguns fragmentos de material tostado e escurecido. Quando Harper aproximou-se, seu subordinado levantou a vista e exclamou:

      — Olhe isso, Inspetor. Parece que se prende aqui.

      Harper tomou o pequeno objeto em suas mãos.

      — Um botão de uniforme de guia?

      — Sim, senhor.

      — É verdade — disse Harper, — parece resolver o caso.

      Homem digno e de bom coração, o Inspetor Harper começou a se sentir mal. Primeiro Ruby Keene e agora esta criança, Pamela Reeves.

      E disse para si mesmo, como já dissera antes:

      “O que está acontecendo com Glenshire?”

      Sua providência imediata foi telefonar para o seu próprio Chefe de Polícia e depois entrar em contato com o Coronel Melchett. O desaparecimento de Pamela Reeves tinha tido lugar em Radfordshire, embora seu corpo tivesse sido encontrado em Glenshire.

      A tarefa seguinte que tinha diante de si não era nada agradável: levar a triste notícia aos pais de Pamela Reeves...

     

      O Inspetor Harper contemplou a fachada de Braeside ao tocar a campainha da porta principal.

      Uma elegante casinha de vila, com um pequeno jardim de mais ou menos um acre e meio de dimensão. O tipo do lugar que vinha surgindo profusamente por todo o interior nos últimos vinte anos, constituído por militares reformados, funcionários aposentados, gente desse tipo. O pior que se poderia dizer deles era que eram um bocado tolos. Gastar tanto dinheiro que poderia ser empregado na educação dos filhos. Não é a espécie de pessoas que a gente pudesse ligar a tragédias. E agora uma tragédia chegava até eles. Harper suspirou.

      Foi introduzido numa sala em que um senhor cerimonioso, de bigode cinza, e uma senhora, cujos olhos estavam vermelhos de chorar, se levantaram. A Sra. Reeves exclamou ansiosa:

      — O senhor tem notícias de Pamela?

      Em seguida, recuou como se o olhar de comiseração do Inspetor a tivesse atingido como um golpe.

      — Lamento ter de lhes pedir que se preparem para más notícias.

      — Pamela... — balbuciou a senhora.

      O Major Reeves perguntou rispidamente:

      — Aconteceu alguma coisa... à minha filha?

      — Sim, senhor.

      — O senhor quer dizer que está morta?

      — Oh, não, não — disse a Sra. Reeves e irrompeu num mar de lágrimas.

      O Major Reeves passou o braço pela cintura da esposa e a apertou contra si. Seus lábios tremiam mas olhava indagadoramente para Harper que inclinara a cabeça.

      — Acidente?

      — Não propriamente, Major Reeves. Foi encontrada num carro incendiado que fora abandonado numa pedreira.

      — Num carro? Numa pedreira?

      Sua perplexidade era evidente.

      A Sra. Reeves sucumbiu totalmente e se deixou cair num sofá, soluçando violentamente.

      — O senhor gostaria de me dispensar alguns momentos?

      O Major Reeves perguntou ainda com rispidez:

      — Que quer dizer com isso? Trata-se de crime?

      — É o que tudo indica, senhor. Eis por que gostaria de lhe fazer algumas perguntas, se não for muito penoso para o senhor.

      — Não, não, o senhor tem razão. Não se pode perder tempo, se for verdade o que está sugerindo. Mas não posso acreditar. Quem poderia querer fazer mal a uma criança como Pamela?

      — O senhor já comunicou à Polícia local as circunstâncias do desaparecimento de sua filha — disse o Inspetor Harper impassível. — Ela saiu para assistir a uma reunião de guias e os senhores a esperavam para o jantar, não é verdade?

      — É.

      — Devia voltar de ônibus?

      — Sim.

      — Acho que, de acordo com a informação de suas colegas de associação, quando terminou a reunião, Pamela disse que ia a Danemouth, à Casa Woolworth e dali tomaria um ônibus para casa. O senhor acha que esse procedimento era normal?

      — Oh, sim, Pamela gostava muito de ir à Casa Woolworth. Ia muitas vezes a Danemouth para fazer compras. O ônibus passa pela estrada principal, a apenas uns quinhentos metros daqui.

      — Não sabe se ela teria outros planos?

      — Nenhum.

      — Não teria ido encontrar-se com alguém em Danemouth?

      — Não, tenho certeza de que não. Ela o teria dito. Nós a esperávamos para o jantar. Foi por isso que, quando ficou tarde e ela não aparecia, resolvi telefonar para a Polícia. Não era seu costume não voltar para casa.

      — Sua filha não tinha amigos indesejáveis... quer dizer, amigos de quem o senhor não gostava?

      — Não, nunca tive nenhuma dificuldade dessa espécie.

      A Sra. Reeves disse entre lágrimas:

      — Pam era apenas uma criança. Era muito nova para sua idade. Gostava de esporte e tudo. Não era uma menina precoce.

      — O senhor conhece George Bartlett, hóspede do Majestic Hotel, em Danemouth?

      Major Reeves olhou-o espantado.

      — Nunca ouvi falar nele.

      — Não crê que sua filha o conhecesse?

      — Tenho absoluta certeza de que não o conhecia.

      E acrescentou imediatamente.

      — E como é que ele entra no caso?

      — É o dono do Minoan 14 em que foi encontrado o corpo de sua filha.

      — Mas então ele deve... — gritou a Sra. Reeves.

      O Inspetor Harper a interrompeu prontamente:

      — Ele comunicou o desaparecimento de seu carro hoje pela manhã. Ontem, na hora do almoço, estava no pátio do Majestic Hotel. Alguém poderia tê-lo apanhado.

      — Mas ninguém viu quem o apanhou?

      O Inspetor Harper meneou a cabeça.

      — Dezenas de carros entram e saem todo o tempo. E o Minoan 14 é uma das marcas mais comuns.

      — Mas os senhores estão fazendo alguma coisa? — perguntou a Sra. Reeves. — Estarão procurando o... demônio que fez uma coisa dessas? Minha filhinha, oh, minha filhinha! Ela não foi queimada viva foi? Oh, Pam, Pam...!

      — Ela não sofreu, Sra. Reeves. Asseguro-lhes que já estava morta quando o carro foi incendiado.

      — Como foi morta? — perguntou Reeves tenso e abatido.

      — Não sabemos — respondeu Harper, lançando-lhe um olhar significativo. — O fogo destruiu todo e qualquer indício.

      E voltou-se para a Sra. Reeves, prostrada no sofá.

      — Creia-me, Sra. Reeves, que estamos fazendo tudo ao nosso alcance. É uma questão de provas. Mais cedo ou mais tarde encontraremos alguém que viu ontem sua filha em Danemouth e com quem ela estava. Isso requer tempo, sabe. Teremos dezenas, centenas de informações sobre uma jovem guia que foi vista aqui, ali e em toda parte. É uma questão de seleção e de paciência... mas, no fim, descobriremos a verdade, não se preocupe.

      — Onde... onde ela está? Posso ir vê-la? — perguntou a Sra. Reeves.

      O Inspetor Harper olhou novamente para o Major Reeves.

      — O médico está cuidando de tudo. Sugeriria que seu marido viesse comigo agora para preencher algumas formalidades. Enquanto isso, procure lembrar-se de tudo que Pamela possa ter dito... de alguma coisa em que talvez, no momento, a senhora não tivesse prestado atenção, mas que poderia lançar alguma luz sobre os acontecimentos. A senhora compreende o que quero dizer... às vezes uma única palavra ou frase. É a melhor maneira de nos ajudar.

      Ao se dirigirem para a porta, Reeves, apontando para uma fotografia, disse:

      — Ei-la ali.

      Harper a contemplou atentamente. Era um grupo de hóquei. Reeves apontou para Pamela, que estava no centro do time.

      Uma linda garota, pensou Harper, ao ver o rosto grave da menina de trança.

      Sua boca se contraiu numa linha rígida quando pensou no corpo carbonizado no carro.

      Jurou para si mesmo que o assassino de Pamela Reeves não ficaria entre os mistérios insolúveis de Glenshire.

      Ruby Keene, admitia intimamente, poderia ter criado essa situação para si própria, mas Pamela Reeves era um caso totalmente diferente. Uma linda menina, talvez a mais bonita que já tinha visto. Não descansaria até pôr a mão no homem ou na mulher que a matou.

     

      UM DIA OU DOIS DEPOIS, o Coronel Melchett e o Inspetor Harper estavam de frente um para o outro à mesa de trabalho do primeiro. Harper viera a Much Benham para conferenciar com Melchett.

      — Bem sabemos onde estamos... ou melhor, onde não estamos! — disse Melchett tristemente.

      — Onde não estamos expressa melhor a realidade, Coronel.

      — Temos duas mortes para investigar — disse Melchett. — Dois assassinatos. Ruby Keene e a mocinha Pamela Reeves. Só restou o suficiente para identificá-la, pobrezinha. Aquele sapato que escapou de ser queimado foi positivamente identificado como dela pelo pai, e este botão do uniforme de guia. Um negócio diabólico, Inspetor.

      O Inspetor Harper disse com toda tranqüilidade:

      — Eu diria que você está com a razão.

      — É um consolo se ter quase certeza de que ela foi morta antes de incendiarem o carro. A maneira como estava estendida no banco o demonstra. Provavelmente foi golpeada na cabeça, pobrezinha.

      — Ou talvez estrangulada — completou Harper.

      Melchett olhou para ele de modo penetrante.

      — Você acha?

      — Bem, Coronel, há assassinos desse tipo.

      — Eu sei. Já estive com os pais dela. A mãe da infeliz moça está desvairada. É de fazer dó. O nosso problema é saber: os dois crimes estão interligados?

      — Eu diria que sim.

      — Eu também.

      O Inspetor marcava os pontos com os dedos.

      — Pamela Reeves esteve presente a uma reunião de guias em Danebury Downs. Suas companheiras afirmaram que tudo decorreu normal e alegremente. Não voltou com as três companheiras pelo ônibus para Medchester. Disse-lhes que ia à Casa Woolworth, em Danemouth, e dali tomaria o ônibus para casa. A estrada principal que conduz a Danemouth a partir dos baixios faz uma grande curva para o interior. Pamela Reeves tomou um atalho pelos dois campos e uma trilha que a conduziria a Danemouth perto do Majestic Hotel. A trilha, na realidade, passa pelo hotel do lado oeste. É possível, por conseguinte, que tivesse ouvido ou visto alguma coisa — algo concernente a Ruby Keene — o que a tornaria perigosa para a segurança do assassino. Digamos, por exemplo, que ela o ouvisse combinando para se encontrar com Ruby Keene às onze da noite. O assassino constata que aquela escolar o teria escutado e, portanto, tem de silenciá-la.

      — Presume-se assim, Harper, que o crime de Ruby Keene foi premeditado e não espontâneo — disse o Coronel Melchett.

      O Inspetor Harper concordou.

      — Eu creio que foi, Coronel. As aparências parecem indicar o contrário, súbita violência, um acesso de paixão ou de ciúme, mas começo a crer que não foi assim. Não posso ver como seria possível explicar a morte da garota Reeves. Se ela tivesse sido testemunha do crime, isso teria sido tarde na noite, por volta das onze horas. Ora, o que ela estaria fazendo pelo Majestic naquele momento? Ora, às nove horas seus pais já estavam ansiosos porque ela não voltara.

      — A alternativa é de que teria ido encontrar-se com alguém em Danemouth, desconhecido de sua família e de seus amigos, e que sua morte nada tem a ver com a outra.

      — Está certo, Coronel, mas não acredito que tenha sido assim. Veja, até a velha Miss Marple acha que há uma conexão. Perguntou imediatamente se o corpo no carro incendiado seria o corpo da guia desaparecida. As velhas, às vezes, são assim. Astutas, sabe. Põem o dedo na ferida.

      — Miss Marple já fez isso mais de uma vez — disse o Coronel Melchett secamente.

      — E além disso, há o carro, que parece ligar sua morte definitivamente com o Majestic Hotel. Era o carro de George Bartlett.

      Mais uma vez os olhos dos dois homens se encontraram.

      — George Bartlett? Quem sabe? Que é que acha?

      Harper mais uma vez expôs seu ponto de vista metodicamente.

      — Ruby Keene foi vista pela última vez com George Bartlett. Diz ele que ela subiu para o seu quarto (afirmação corroborada pelo encontro ali do vestido que estivera usando), mas não teriam acertado para sair juntos mais tarde? Não teriam discutido isso, digamos, antes do jantar, e Pamela Reeves por acaso os teria ouvido?

      — Ele só comunicou o desaparecimento do carro na manhã seguinte — disse Melchett, — e estava extremamente vago a respeito disso, dizendo que não podia lembrar-se exatamente de quando o tinha visto pela última vez.

      — Isso poderia ser muita sabedoria, Coronel. A meu ver, ou ele é um finório querendo passar por ingênuo, ou então, bem, é realmente um simplório.

      — O de que precisamos — disse Melchett — é do motivo. Do modo como as coisas estão, ele não teria qualquer motivo para matar Ruby Keene.

      — Bem, é aí que estacamos toda vez. Motivo. Se não me engano, todas as informações vindas do Palais de Danse em Brixwell são negativas, não são?

      — Inteiramente! Ruby Keene não tinha nenhum namorado especial. Slack esquadrinhou tudo. E, convenhamos, o Slack nesse ponto é extraordinário.

      — Extraordinário, é a palavra.

      — O que houvesse para investigar, ele investigaria. Mas não havia nada. Conseguiu uma lista de seus pares de dança mais freqüentes. Todos checados e julgados corretos. Indivíduos inofensivos e todos em condições de apresentar álibis para aquela noite.

      — Ah! — disse o Inspetor Harper. — Álibis. É com eles que esbarramos.

      Melchett olhou para ele seriamente.

      — Pensa assim? Deixei essa parte da investigação com você.

      — Sim, Coronel. Tudo foi feito. Pedimos, inclusive, nesse sentido, o auxílio de Londres.

      — E então?

      — O Sr. Conway Jefferson pode achar que o Sr. Gaskell e a jovem Sra. Jefferson estejam bem de vida, mas essa não parece ser a realidade. Ambos estão realmente em apuros.

      — É verdade?

      — Absoluta, Coronel. Como disse o Sr. Conway Jefferson, ele fez uma considerável doação em dinheiro a seu filho e a sua filha quando se casaram. Mas isso foi há dez anos. O jovem Sr. Jefferson tinha-se na conta de entendido em investimentos. Mas ele não investiu um tostão em nada, estava sem sorte e demonstrava menos discernimento do que outrora. Sua riqueza vinha decaindo dia a dia. Devo dizer que a viúva tem dificuldade para viver dentro de seu orçamento e para pagar uma boa escola para seu filho.

      — Mas ela não pediu o auxílio de seu sogro?

      — Não, Coronel. Tanto quanto pude saber, ela vive com ele e por conseguinte não tem despesas de casa.

      — E a saúde dele está de tal modo abalada, que não se espera que viva ainda muito.

      — Exato, Coronel. Agora, quanto ao Sr. Mark Gaskell. É um aventureiro pura e simplesmente. Acabou com o dinheiro da esposa logo. Está atualmente metido numa enrascada. Precisa urgentemente de dinheiro e muito dinheiro.

      — Não posso dizer que tivesse simpatizado com ele — disse o Coronel Melchett. — Um sujeito de aspecto selvagem, não é? E ele teria uma motivo. Vinte e cinco mil libras era o que significava para afastar aquela moça de seu caminho. Sim, seria um perfeito motivo.

      — Ambos teriam um motivo.

      — Não estou pensando na Sra. Jefferson.

      — Sim, Coronel, sei que não está. E, de qualquer maneira, o álibi isenta a ambos. Eles não o poderiam ter feito. Só isso.

      — Você conseguiu o roteiro detalhado de seus movimentos naquela noite?

      — Sim, consegui. Comecemos pelo Sr. Gaskell. Jantou com o sogro e a cunhada, tomou café com eles depois quando Ruby Keene chegou. Em seguida disse que ia escrever umas cartas e saiu. Na realidade apanhou seu carro e foi dar uma volta pela praia. Confessou-me com toda a franqueza que não suportava ficar jogando bridge a noite toda. O velho era louco por isso. Portanto, falou de cartas para se desculpar. Ruby Keene ficou com os outros. Mark Gaskell voltou quando ela estava dançando com Raymond. Depois da dança, Ruby veio e bebeu com eles, depois saiu dançando com o jovem Bartlett, e Gaskell e os outros fizeram os pares e começaram a partida de bridge. Isso foi às vinte para as onze, e ele ficou à mesa até depois da meia-noite. Isso é exato, Coronel. Todos o confirmam. A família, os garçons, todo mundo. Por conseguinte, não poderia ser ele o assassino. E o álibi da Sra. Jefferson é o mesmo. Ela também não saiu da mesa. Eles estão fora, completamente fora.

      O Coronel Melchett inclinou-se para trás, batendo na mesa com um cortador de papel.

      — Isto é, supondo-se que a moça tenha sido assassinada antes da meia-noite — disse o Inspetor Harper.

      — Haydock disse que foi. Ele é um sujeito muito seguro em suas opiniões técnicas. Quando diz uma coisa, é aquilo mesmo.

      — Poderia haver razões: saúde, idiossincrasia física, ou outras coisas.

      — Eu o consultarei sobre o assunto.

      Melchett olhou de relance seu relógio, tirou o fone do suporte e pediu um número.

      — Haydock deve estar em casa. E, agora, suponhamos que tenha sido morta depois da meia-noite?

      — Então poderia haver uma chance — respondeu Harper. — Depois dessa hora há muita gente entrando e saindo. Suponhamos que Gaskell tenha pedido à moça para encontrar-se com ele lá fora, em algum lugar, digamos à meia-noite e vinte. Ele se esgueirou por um minuto ou dois, estrangulou-a, voltou e dispôs do corpo mais tarde, nas primeiras horas da manhã.

      — E a levou de carro por quarenta e tantos quilômetros e a atirou na biblioteca de Bantry? — perguntou Melchett. — Isso é inverossímil.

      — Realmente, é inverossímil — admitiu o Inspetor imediatamente.

      O telefone tocou. Melchett atendeu.

      — Alô, Haydock, é você? Ruby Keene. Seria possível admitir que ela tivesse sido morta depois da meia-noite?

      — Eu lhe disse que ela morreu entre dez e meia-noite.

      — Mas não seria possível estender um pouco?

      — Não, você não pode estender esse tempo. Quando digo que morreu antes da meia-noite, quero dizer antes da meia-noite e nada de adulterar um parecer técnico.

      — Sim mas não poderia haver algum fator psicológico? Você sabe o que quero dizer.

      — Eu sei que você não sabe o que está dizendo. A moça estava gozando perfeita saúde e não era de modo algum anormal. E não vou dizer que foi depois da meia-noite só para ajudá-lo a passar a corda no pescoço de algum pobre coitado em que vocês agentes da Polícia botaram as mãos. Não proteste. Eu conheço seus métodos. E, a propósito, a moça não foi estrangulada consciente, quer dizer, foi drogada primeiro. Um narcótico muito forte. Morreu estrangulada, mas foi drogada primeiro.

      E desligou.

      — É isso mesmo — disse Melchett tristemente.

      — Pensei que tivesse encontrado outro provável autor — disse Harper, — mas gorou.

      — Outro autor? Quem?

      — Falando francamente, Coronel, é a sua presa. Chama-se Basil Blake. Mora perto de Gossington Hall.

      — Jovem arrogante e imprudente! — a fisionomia do Coronel anuviou-se quando se lembrou da rudeza injuriosa de Basil Blake. — Como é que ele está metido nisso?

      — Parece que conheceu Ruby Keene. Jantou várias vezes no Majestic e dançou com a jovem. Lembra-se do que Josie disse a Raymond quando Ruby desapareceu? “Será que não está com aquele sujeito do cinema?” Descobri que era Blake a quem ela se referia. Ele é empregado do Lemville Studios, sabe. Josie não tem nada a acrescentar, a não ser que Ruby era grande admiradora dele.

      — Muito promissor, Harper, muito promissor.

      — Não tanto quanto parece, Coronel. Basil estava numa festa, na companhia, naquela noite. O senhor sabe como são essas festas. Começam às oito com coquetéis e vão até o ar ficar tão denso que quase não se pode ver uma pessoa que passa na nossa frente. De acordo com o Inspetor Slack, que o interrogou, Basil saiu da festa por volta da meia-noite. E Ruby Keene foi assassinada à meia-noite.

      — Alguém confirma essa declaração?

      — A maioria, Coronel, conforme pude apurar, já se tinha ido. A mulher que agora está no bangalô... a Srta. Dinah Lee... diz que sua declaração é correta.

      — Não significa nada!

      — Talvez, não, Coronel. Depoimentos colhidos de outras pessoas que estiveram na festa confirmam totalmente a declaração do Sr. Blake, embora as idéias quanto ao tempo sejam um tanto vagas.

      — Onde são esses estúdios?

      — Em Lemville, Coronel, a quarenta e cinco quilômetros a sudoeste de Londres.

      — Hum, quase a mesma distância daqui?

      — Exato, Coronel.

      Melchett coçou o nariz.

      — É, pelo visto, parece que podemos eliminá-lo.

      — Acho também, Coronel. Não há prova de que estivesse seriamente atraído por Ruby Keene. Na realidade — o Inspetor Harper tossiu afetadamente — parece plenamente satisfeito com sua própria companheira.

      — Bem, continuamos com a incógnita, um assassino desconhecido, tão desconhecido que Slack não consegue arranjar uma única pista! Ou o genro de Jefferson, que poderia ter querido matar a moça, mas não teve ocasião de fazê-lo. Idem, com relação à Sra. Jefferson. Ou George Bartlett, que não tem álibi, mas, infelizmente, não tem motivo também. E é tudo. Não, espere. Acho que devemos pensar no dançarino... Raymond Starr. Afinal de contas, estava muito a par da vida da moça.

      — Não possa crer que tivesse muito interesse por ela — disse Harper calmamente, — a menos que seja um artista finíssimo. E, para sermos práticos, tem um álibi também. Foi visto, mais ou menos entre vinte para às onze até meia-noite, dançando com vários pares. Não vejo como levantar suspeição contra ele.

      — Realmente — concordou o Coronel Melchett, — não podemos levantar suspeição contra ninguém.

      — George Bartlett é a nossa melhor esperança. Se pudéssemos encontrar pelo menos um motivo.

      — Investigou sua vida?

      — Sim, Coronel. É uma criança. Mimado pela mãe. Recebeu uma boa herança com a morte dela no ano passado. Está acabando com tudo. É mais fraco do que viciado.

      — Talvez seja um débil mental — disse Melchett esperançoso.

      O Inspetor Harper assentiu com a cabeça.

      — Ocorreu-lhe essa idéia, Coronel, de que pode ser a explicação de todo o caso? — perguntou Harper.

      — Você quer dizer... um lunático criminoso?

      — Sim, Coronel. Um desses indivíduos que saem por aí estrangulando mocinhas. Os médicos têm um nome comprido para eles.

      — Isso resolveria todas as nossas dificuldades — disse o Inspetor Harper.

      — Só não gosto de uma coisa, Coronel — disse o Inspetor Harper.

      — O que é?

      — É fácil demais.

      — Hum, talvez seja. Portanto, como disse no começo, onde estamos?

 

      CONWAY JEFFERSON agitou-se no seu sono e se espreguiçou. Seus braços se estenderam. Eram braços compridos e poderosos em que toda a força de seu corpo parecia ter-se concentrado desde o acidente.

      A luz da manhã penetrava suavemente através das cortinas.

      Conway Jefferson sorriu para si mesmo. Sempre, depois de uma noite de descanso, acordava assim, feliz, reconfortado, com a sua grande vitalidade renovada. Mais um dia!

      Ficou ainda deitado por alguns instantes. Em seguida tocou uma campainha à altura da mão. E de repente foi empolgado por uma onda de recordações.

      Edwards, ágil e silencioso, ao entrar no quarto, ouviu ainda um gemido de seu patrão.

      Edwards se deteve segurando a cortina.

      — Está sentindo alguma coisa, Sr. Jefferson? — perguntou.

      — Não, puxe as cortinas.

      A luz clara invadiu o quarto. Edwards, compreensivo, não olhou para seu patrão.

      Com a fisionomia contraída, Conway Jefferson continuava recordando e pensando. Diante de seus olhos via de novo o rostinho bonito, mas desenxabido, de Ruby. Só que na sua mente não usava o adjetivo desenxabido. Na noite passada ele teria dito inocente. Uma criança ingênua, inocente! E agora?

      Conway Jefferson foi tomado de um grande enfado. Fechou os olhos e murmurou de modo quase inaudível:

      — Margaret...

      Era o nome de sua falecida esposa.

     

      — Gosto muito de sua amiga — disse Adelaide Jefferson à Sra. Bantry.

      As duas mulheres estavam assentadas no terraço.

      — Jane Marple é uma mulher notável — disse a Sra. Bantry.

      — É muito simpática também — disse Addie sorrindo.

      — O povo a chama de fofoqueira — disse a Sra. Bantry — mas na realidade não é.

      — Apenas um mau juízo? Não é?

      — Exato.

      — Isso é um tanto confortador — disse Adelaide Jefferson, — depois de se ter tido tanto do contrário.

      A Sra. Bantry olhou para ela indagadoramente. Addie explicou-se:

      — Tanta exaltação e idealização de um objeto indigno!

      — Você se refere a Ruby Keene?

      Addie assentiu com a cabeça.

      — Não quero ser injusta com ela. Não tinha más intenções. Pobre diabo, tinha o direito de lutar pelo que queria. Não era má. Um tipo comum, um tanto ingênua e de boa natureza, mas uma decidida caçadora de níqueis. Não creio que tenha feito planos. O negócio é que era hábil em tirar vantagem de uma oportunidade. E soube conquistar um velho solitário.

      — Quer dizer — perguntou a Sra. Bantry, — que Conway vivia solitário?

      Addie mexeu-se impaciente.

      — Vivia... neste verão — fez uma pausa e em seguida explodiu: — Mark diz que a culpa foi minha. Talvez seja, não sei.

      Ficou calada por alguns instantes; depois, impelida por alguma necessidade de falar, continuou com dificuldade, quase relutante.

      — Eu... eu tenho levado uma vida fora do comum. Mike Carmody, meu primeiro marido, morreu logo depois de nos casarmos. Isso me abalou muito. Peter, como você sabe, nasceu depois de sua morte. Frank Jefferson era um grande amigo de Mike. Portanto eu o via freqüentemente. Foi o padrinho de Peter. Mike já o havia escolhido. Fiquei gostando dele também... oh, para a sua infelicidade.

      — Infelicidade? — perguntou a Sra. Bantry com interesse .

      — Sim, para sua infelicidade. Parece esquisito. Frank tivera tudo que quisera. O pai e a mãe não poderiam ter sido melhores para ele. E, não obstante, como posso dizê-lo?... sabe, a personalidade do velho Sr. Jefferson é muito forte. Se a senhora vivesse com ele, não poderia ter sua própria personalidade. Era o que acontecia com Frank.

      — Quando nos casamos, éramos muito felizes. O Sr. Jefferson foi muito generoso. Doou a Frank uma grande soma de dinheiro... Disse que queria que seus filhos fossem independentes e não precisassem de esperar por sua morte. Foi um gesto muito bonito da parte dele... generoso. Mas foi cedo demais. Deveria ter acostumado Frank pouco a pouco com a independência.

      — Frank perdeu a cabeça. Queria ser tão competente como seu pai, tão conhecedor de finanças e de negócios, tão previdente e bem sucedido. E, é claro, não era nada disso. Ele propriamente não especulou com o dinheiro, mas investiu em coisas erradas, no tempo errado. É impressionante como o dinheiro desaparece logo, quando não se sabe lidar com ele. Quanto mais Frank afundava, maior era sua avidez para recuperar o perdido com algum negócio inteligente. De modo que as coisas iam de mal a pior.

      — Mas, querida — perguntou a Sra. Bantry, — por que Conway não o aconselhava?

      — Ele não queria conselhos. Fazia questão de fazer tudo por sua conta. É por isso que nunca deixamos que o Sr. Jefferson o soubesse. Quando Frank morreu, restava muito pouco de seus recursos... uma pequenina renda para mim. E eu ... eu nunca disse nada a seu pai. A senhora vê...

      Virou-se abruptamente.

      — Eu me consideraria traidora de Frank. Frank não teria gostado disso. O Sr. Jefferson ficou doente durante muito tempo. Quando se restabeleceu, tinha-me em conta de uma viúva em boa situação financeira. Eu nunca o decepcionei. Tem sido uma questão de honra. Sabe que sou muito cautelosa em questão de dinheiro, mas concorda com isso. Acha que sou o tipo da mulher econômica. E, naturalmente, Peter e eu, desde então, temos vivido com ele, que cobre todas as nossas despesas. Portanto, nunca tinha motivo para preocupações.

      E acrescentou calmamente:

      — Temos vivido como uma família durante todos esses anos. Só que... para ele, sabe (ou você não vê) nunca sou a viúva de Frank, mas a esposa de Frank.

      A Sra. Bantry compreendeu a implicação.

      — Quer dizer que nunca aceitou a morte deles?

      — Não. Ele tem sido maravilhoso. Triunfou sobre a horrível tragédia recusando-se a reconhecer a morte. Mark é o esposo de Rosamund e eu sou a esposa de Frank e embora Frank e Rosamund não estejam aqui conosco, eles ainda existem.

      — É um maravilhoso triunfo da fé — disse a Sra. Bantry admirada.

      — É um fato. E assim vivíamos, anos após anos. Mas de repente, neste verão, alguma coisa estranha começou a tomar conta de mim. Eu me senti... me senti rebelde. É difícil de explicar, mas eu não queria pensar mais em Frank! Tudo estava acabado, meu amor por ele e minha dor por sua morte. Foi algo que existiu e que não existia mais... É difícil descrever. É como se eu quisesse recomeçar tudo de novo. Eu queria ser eu, Addie, ainda razoavelmente jovem, forte e capaz de jogar, nadar e dançar. Eu queria ser uma pessoa. Até Hugo (você conhece Hugo Mclean?) de quem gosto e que quer casar-se comigo, mas é claro, nunca pensei nisso. Mas neste verão, comecei a pensar nele, embora sem levar a sério, mas só vagamente...

      Ela parou e meneou a cabeça.

      — E assim, acho que é verdade. Eu me descuidei de Jefferson. Não quero dizer que realmente o tivesse abandonado mas minha mente e meus pensamentos não estavam com ele. Quando via Ruby distraindo-o, até que gostava. Isso me deixava mais livre para fazer o que eu quisesse. Nunca imaginei, é claro, que ele viesse fazer aquilo... insuflado por ela!

      — E quando você descobriu?

      — Fiquei aturdida... realmente aturdida! E, infelizmente, aborrecida também.

      — Eu também me aborreceria — disse a Sra. Bantry.

      — Pensei em Peter, sabe. Todo o futuro de Peter depende de Jeff. Jeff praticamente o considerava como seu neto, mas é claro que não era seu neto. Não havia nenhum parentesco. E pensar que ia ser... deserdado! — — suas mãos firmes e bem feitas faziam tremer a parte do colo onde estavam apoiadas. — E tudo isso por causa de uma atoleimada caçadora de níqueis. Oh! Eu poderia tê-la matado!

      Ela parou, acabrunhada. Seus lindos olhos castanhos encontraram com os da Sra. Bantry com uma expressão de súplica.

      — Que coisa horrível de dizer! — exclamou.

      Hugo Mclean, que se tinha aproximado por detrás, sem ser percebido, perguntou:

      — O que é horrível de dizer?

      — Assente-se, Hugo. Conhece a Sra. Bantry.

      Mclean já tinha cumprimentado a Sra. Bantry e repetiu a pergunta de modo pausado e insistente.

      — O que é horrível de dizer?

      — Que eu gostaria de ter matado Ruby Keene — respondeu Addie Jefferson.

      Mclean refletiu por uns dois minutos. Em seguida disse:

      — Não, se eu fosse você não diria isso. Talvez fosse mal interpretado.

      Seus olhos, olhos cinza, firmes e refletidos, encararam-na significativamente.

      — Você precisa controlar-se, Addie — disse ele.

      Havia um tom de advertência em sua voz.

     

      Quando Miss Marple saiu do hotel e veio juntar-se à Sra. Bantry poucos minutos depois, Hugo Mclean e Adelaide Jefferson caminhavam juntos na direção do mar.

      Miss Marple, assentado-se, observou:

      — Ele parece muito dedicado.

      — Tem sido fiel há anos — disse a Sra. Bantry. — É daquele tipo de homens.

      — Eu sei. Como o Major Bury. Viveu atrás de uma viúva anglo-indiana durante dez anos. Era motivo de chacota entre as amigas dela! No fim ela aceitou mas, infelizmente, dez dias antes de se casarem, fugiu com o motorista! Era também uma mulher bonita e de modo geral também ponderada.

      — As pessoas fazem coisas esquisitas — concordou a Sra. Bantry. — Eu gostaria de que você estivesse aqui agora mesmo, Jane. Addie Jefferson estava-me contando sua vida. Como seu marido acabou com a sua fortuna, e como esconderam o fato do Sr. Jefferson. E então, que neste verão, começou a ver as coisas de modo diferente...

      Miss Marple assentiu com um gesto da cabeça.

      — Sim. Ela se rebelou contra sua escravidão ao passado, não foi? Afinal de contas, há tempo para tudo. Não se pode viver eternamente encerrado entre quatro paredes. Suponho que a Sra. Jefferson as tenha derrubado e despido suas vestes de viúva e que seu sogro, é claro, não tenha gostado disso. Sentiu-se abandonado ao relento, embora não acredite por um só instante que tenha constatado quem a instigou a isso. Não obstante, certamente não teria gostado. E assim, naturalmente, como o velho Badger quando sua esposa se envolveu com o espiritismo, estava apenas maduro para o que aconteceu. Qualquer jovem de relativa simpatia que o percebesse ter-se-ia aproveitado.

      — Você acha, Jane — perguntou a Sra. Bantry, — que aquela prima, Josie, a teria trazido deliberadamente... que era um complô de família?

      Miss Marple meneou a cabeça.

      — Não creio, não creio nisso de modo algum. Não acho que Josie seja dotada de tal inteligência que possa prever as reações das pessoas; é um tanto obtusa nesse sentido. É dotada daquela espécie de mente astuta, limitada e prática que nunca prevê o futuro e geralmente se surpreende com o mesmo.

      — Parece que todos foram tomados de surpresa — disse a Sra. Bantry. — Addie e Mark Gaskell também, ao que parece.

      Miss Marple sorriu.

      — Ouso dizer que ele também tem suas próprias dificuldades. Um tipo atrevido, de olhar vago! Não é homem para viver curtindo as dores da viuvez durante muitos anos, por mais que tivesse querido bem à esposa. Chego a pensar que estão ambos impacientes, sob o jugo da eterna lembrança que o Sr. Jefferson lhes impõe.

      — Só que é mais fácil para os homens, é claro — acrescentou Miss Marple maliciosamente.

     

      Naquele mesmo instante Mark estava confirmando esse juízo sobre si mesmo em conversa com Henry Clithering.

      Com a franqueza característica, Mark fora direto ao assunto.

      — Começo a perceber — dizia ele — que sou o suspeito número 1 para a Polícia! Andaram investigando minhas dificuldades financeiras. Estou falido, sabe, ou quase falido. Se o querido velho Jefferson morrer, conforme se espera dentro de um ou dois meses, e Addie e eu dividirmos a gaita também de acordo com o programado, tudo estará bem. Na realidade, tenho muitas dívidas... Se vier o colapso, será terrível! Se puder protelar, a coisa será completamente diferente... chegarei ao apogeu e serei um homem rico.

      — O senhor é um aventureiro, Sr. Mark — disse Clithering.

      — Sempre fui. Arriscar tudo, eis o meu lema! Sim, foi sorte minha que alguém tenha estrangulado aquela pobre menina. Eu não fiz isso. Não sou estrangulador. Não creio que fosse capaz de matar alguém. Sou um tipo sereno. Mas não creio que possa levar a Polícia a acreditar nisso! Devo ser para eles a resposta à oração do detetive! Eu tinha um motivo, estava no local, não sou portador de altos escrúpulos morais! Não posso compreender por que não estou ainda na cadeia! Aquele Inspetor me olhou com um olhar irritante.

      — Você conseguiu uma coisa útil, um álibi.

      — Um álibi é a coisa mais duvidosa do mundo! Nenhuma pessoa inocente jamais teve um álibi! Além disso, tudo depende da hora do crime, ou de coisa semelhante, e pode estar certo de que, se três médicos afirmam que a moça foi morta à meia-noite, no mínimo outros seis haverão de jurar que foi morta às cinco da manhã... e onde estaria então meu álibi?

      — De qualquer maneira você não precisa levar isso a sério.

      — Um negócio de mau gosto, não acha? — perguntou Mark em tom de gracejo. — Realmente, nada disso me abala. O negócio é com o assassino! E, sabe, no fundo lamento por causa do velho Jeff. Lamento. Mas foi a melhor maneira, por pior que tenha sido o choque, do que se a tivesse ele próprio desmascarado.

      — O que é que quer dizer se a tivesse desmascarado?

      Mark piscou os olhos.

      — Para onde ela foi naquela noite? Aposto o que quiser que foi encontrar-se com um homem. Jeff não teria gostado disso. Não teria gostado de modo algum. Se tivesse descoberto que ela o estava enganando, que não era aquela coisinha tagarela e inocente como parecia, bem... meu sogro é um tipo bastante esquisito. É um homem de muito autocontrole, mas aquele autocontrole pode romper-se. E, nesse caso, cuidado!

      Henry Clithering olhou curiosamente para Mark.

      — Você gosta dele ou não?

      — Gosto muito dele mas ao mesmo tempo tenho meus ressentimentos. Procurarei explicar. Conway Jefferson é um sujeito que gosta de dominar todos os que o cercam. É um déspota benevolente, bondoso, generoso e afetivo, mas é o músico e todos têm de dançar a música que ele tocar.

      Mark Gaskell fez uma pausa.

      — Eu adorava minha esposa. Nunca amarei alguém como a amei. Rosamund era toda alegria, sorriso e flores, e quando ela morreu eu me senti como um lutador que recebeu um nocaute no ringue. Mas o árbitro ficou marcando ponto o tempo todo. Afinal de contas, eu sou humano. Gosto de mulheres. Não quero casar-me de novo, de modo algum. Está bem. Tenho de ser discreto mas, em compensação, tenho tido minhas horas de felicidade. Mas a pobre da Addie não tem. Addie é realmente uma mulher bonita É o tipo da mulher com quem todo homem gostaria de casar, e não dormir com ela. Dê-lhe meia oportunidade e ela se casará novamente. E será muito feliz e fará feliz seu companheiro. Mas o velho Jeff a vê sempre como a esposa de Frank e a condicionou de tal modo que ela assim se considera. Ele não sabe mas temos estado numa prisão. Eu a rompi, discretamente, há muito tempo. Addie a rompeu neste verão e isso abalou o velho Jeff. Desintegrou seu mundo. Resultado: Ruby Keene.

      Mark irreprimivelmente começou a cantar:

      “Mas ela está enterrada e, oh,

       Eu não estou”

      — Vamos beber alguma coisa, Clithering.

      Não era de surpreender, refletiu Henry Clithering, que Mark fosse objeto de suspeição para a Polícia.

 

      DR. METCALF ERA UM dos médicos mais conhecidos de Danemouth. Não tinha uma maneira agressiva de tratar de doentes acamados, mas sua presença no quarto do enfermo tinha, invariavelmente, o efeito de estímulo. Era um homem de idade madura, com uma voz serena e agradável.

      Ouvia atentamente o Inspetor Harper e respondia às suas perguntas com serenidade e precisão.

      Harper perguntou:

      — Então, Dr. Metcalf, posso aceitar como verdadeira a informação da Sra. Jefferson sobre o estado de saúde de seu sogro?

      — Sim, seu estado de saúde é precário. Há muitos anos ele vem desenvolvendo um esforço hercúleo querendo viver como um homem normal. Por isso tem vivido num ritmo muito mais intenso do que o de um homem normal na sua idade. Recusa-se a descansar, a não fazer esforço, a ter calma, enfim, a aceitar qualquer outro conselho dessa espécie que eu e seus outros médicos lhe temos dado. O resultado é que o homem é u’a máquina sobrecarregada. Coração, pulmões, pressão sanguínea, tudo está supertenso.

      — Quer dizer que o Sr. Jefferson tem-se recusado a ouvir suas recomendações?

      — Sim. Não sei se devo censurá-lo. Não digo isso a meus pacientes, Inspetor, mas um homem pode também destruir-se pela inação. Muitos de meus colegas fazem assim e, pode acreditar-me, não é um mau método. Num lugar como Danemouth a gente vê exatamente o contrário, inválidos apegando-se à vida, com medo de se exercitarem demais, com medo de apanhar uma corrente de ar, com medo de germes, de uma alimentação imprudente!

      — Espero que tudo isso seja verdade — disse o Inspetor Harper. — O importante então é o seguinte: Conway Jefferson é bastante forte, do ponto de vista físico, ou, digamos, falando de músculos. A propósito, o que é que ele pode fazer realmente?

      — Tem muita força nos braços e nos ombros. Era um homem muito vigoroso antes do acidente. É extremamente ágil no manejo de sua cadeira de rodas, e com a ajuda de muletas pode locomover-se pelo quarto, por exemplo, da cama para a cadeira.

      — Não seria possível a um aleijado como o Sr. Jefferson andar com pernas artificiais?

      — No seu caso, não. Sua espinha dorsal foi atingida.

      — Compreendo. Deixe-me resumir de novo. Jefferson é bastante forte do ponto de vista muscular. Sente-se bem e tudo mais.

      Metcalf assentia com a cabeça.

      — Mas seu coração vai mal. Qualquer superexcitação ou esforço, ou um susto ou um súbito alarme lhe poderia ser fatal. Estou certo?

      — Mais ou menos. O excesso de esforço o está matando lentamente, pois não se quer dar por vencido quando fica cansado. Isso agrava seu estado cardíaco. É improvável que o excesso de esforço venha a matá-lo de repente. Mas uma emoção forte ou um susto o poderia fazer. Foi por isso que adverti sua família.

      O Inspetor Harper disse calmamente:

      — Mas na realidade o choque não o matou. Quero dizer, doutor, que não poderia passar por uma emoção mais forte do que esse negócio. E, no entanto, está vivo!

      Dr. Metcalf encolheu os ombros.

      — Eu sei. Mas se o senhor tivesse minha experiência, Inspetor, saberia que nesses casos é impossível fazer um prognóstico com precisão. Pessoas que deviam morrer de susto e de frio não morrem de susto nem de frio etc. etc. A estrutura humana é mais forte do que se pode imaginar. Além disso, na minha experiência, um choque físico é muitas vezes mais fatal do que um choque mental. Numa linguagem elementar, uma porta que se bate subitamente teria mais possibilidade de matar o Sr. Jefferson do que a notícia da morte trágica de u’a moça por quem tivesse particular afeição.

      — Poderia explicar-me por quê?

      — O golpe de uma notícia ruim quase sempre suscita uma reação de defesa. Entorpece quem o recebe. A pessoa, de início, não a assimila. A plena constatação leva um pouco de tempo. Mas uma porta que sé bate, alguém que salta para fora de um armário, o súbito ataque de um carro quando se atravessa a rua, tudo isso é de ação imediata. O coração parece querer sair do peito, como diz o povo.

      O Inspetor Harper perguntou em voz submissa:

      — Mas, pelo visto, a morte do Sr. Jefferson poderia facilmente ter sido causada pelo choque da morte da garota?

      — Oh, com certeza — o médico olhava indagadoramente para o Inspetor. — O senhor acha...

      — Eu não sei o que eu acho — disse o Inspetor agitado.

     

      — Mas o senhor admite que as duas coisas se ajustam muito bem — dizia ele pouco depois a Henry Clithering. — Matar dois coelhos de uma cajadada. Primeiro, a moça; depois, a notícia de sua morte mataria também o Sr. Jefferson, antes que tivesse qualquer oportunidade de alterar seu testamento.

      — O senhor acha que o modificará?

      — O senhor teria mais condições de saber isso do que eu. O que diz a respeito?

      — Não sei. Antes de Ruby Keene entrar em cena, fiquei sabendo, por acaso, que deixara sua fortuna para ser dividida entre Mark Gaskell e a Sra. Jefferson. Não sei por que teria mudado de pensamento. Mas é um direito que lhe assiste. Poderia deixar seu dinheiro para quem quisesse, para uma Casa de Gatos ou para subsidiar dançarinos profissionais.

      O Inspetor Harper concordou.

      — A gente nunca sabe o que se passa na cachola de um sujeito, sobretudo quando não está preso a qualquer obrigação moral de como dispor de sua fortuna. E nesse caso, nenhuma relação de parentesco.

      — Ele gosta muito do menino Peter — disse Henry.

      — Acha que o considera como neto? O senhor deve saber disso melhor do que eu.

      — Não, acho que não — respondeu Clithering com voz pausada.

      — Há outra coisa que gostaria de lhe perguntar, Sr. Clithering. É sobre algo que não tenho a mínima condição de constatar. Trata-se de amigos seus e como tais o senhor deve saber. Qual seria o grau de afeição do Sr. Jefferson pelo Sr. Gaskell e pela jovem Sra. Jefferson?

      Henry Clithering franziu a testa.

      — Não sei se o entendi bem, Inspetor.

      — É o seguinte, Sr. Clithering: à parte o parentesco do Sr. Jefferson com seu genro e com sua nora, como os considera como pessoas?

      — Ah, compreendo o que quer dizer.

      — Exato. Ninguém põe em dúvida que o Sr. Jefferson lhes seja muito afeiçoado. Mas, a meu ver, seu apego se explica pelo fato de os considerar, respectivamente, marido e esposa de sua filha e de seu filho. Mas, suponhamos, por exemplo, que um deles, ou os dois, se casem?

      Henry Clithering refletiu e disse:

      — É um ponto interessante a ser levantado. Não sei. Estou inclinado a acreditar, é uma mera opinião, que isso alteraria muito sua atitude. Não iria querer-lhe mal por isso, não guardaria rancor, mas acho que não teria mais interesse por eles.

      — Em ambos os casos?

      — Acho que sim. No caso do Sr. Gaskell, tenho quase certeza. No caso da Sra. Jefferson também, mas não estou tão certo. Tenho para mim que gosta dela por causa dela mesma.

      — O sexo talvez tenha algo a ver com isso — disse o Inspetor Harper, sapientemente. — É mais fácil para ele considerá-la como uma filha do que ao Sr. Gaskell como filho. Isso é válido para ambos os sexos. As mulheres aceitam um genro com mais facilidade mas é raro uma mulher considerar a esposa de seu filho como uma filha.

      O Inspetor Harper continuou:

      — O senhor se incomodaria se continuássemos a discorrer sobre o assunto no pátio de tênis? Miss Marple está ali assentada. Quero pedir a ela para fazer uma coisa para mim. Para dizer a verdade, quero envolver a ambos no mesmo serviço.

      — Em que sentido, Inspetor?

      — Para conseguir um material que eu próprio não posso conseguir. Gostaria que o senhor se encarregasse do Edwards.

      — Edwards? O que quer com ele?

      — Tudo que possa imaginar! Tudo que sabe ou que acha! Sobre as relações entre os vários membros da família, sua opinião sobre o negócio de Ruby Keene. Problemas íntimos. Ninguém melhor do que ele está a par de tudo. Aposto como está! E a mim não diria nada. Mas ao senhor contará tudo. E alguma coisa poderia resultar daí. Isso tudo, é claro, se o senhor não se opuser.

      — Não me oponho — disse Henry Clithering sombriamente. — Fui chamado urgentemente para apurar a verdade. Tenho de fazer o possível.

      E acrescentou:

      — E qual será o serviço de Miss Marple?

      — Junto a algumas moças.. Algumas daquelas moças-guias de turismo. Já reunimos uma meia dúzia delas, as mais intimas de Pamela Reeves. É possível que saibam de alguma coisa. Sabe, estive pensando. Parece-me que, se aquela menina tivesse realmente ido à Casa Woolworth, teria tentado persuadir uma das outras moças a acompanhá-la. As moças, em geral, gostam de fazer compras com amigas.

      — É, acho que o senhor tem razão,

      — Por conseguinte, é possível que a Casa Woolworth tivesse sido apenas um pretexto. Quero saber realmente onde a moça teria ido. Talvez tenha deixado transpirar alguma coisa. Se isso aconteceu, Miss Marple é a pessoa indicada para arrancar a informação das moças. Tenho para mim que ela já sabe de alguma coisa, mais do que eu. E, de qualquer maneira, elas ficariam assustadas com a Polícia.

      — Parece-me a espécie de problemas de aldeia próprios da rua de Miss Marple. Ela é muito sagaz, sabe.

      O Inspetor sorriu e disse:

      — Acho que o senhor tem razão. Nada lhe escapa.

     

      Miss Marple levantou a vista à aproximação deles e os recebeu com vivo interesse. Ouviu o pedido do Inspetor e aceitou imediatamente a incumbência.

      — Gostaria muito de ajudá-lo, Inspetor, e acho r talvez possa ser útil de alguma forma. Ver o que se pina Escola Dominical, sabe, nas Brownies, na associa das jovens guias e no Orfanato, ali perto. Faço parte da comissão, sabe, e muitas vezes tenho uma conversinha com a diretora. E depois, as empregadas. Geralmente tenho empregadas muito jovens. Oh, sim, tenho muita experiência para saber quando uma jovem está dizendo a verdade e quando esconde alguma coisa.

      — Realmente a senhora é perita no assunto — disse Henry Clithering.

      Miss Marple lhe lançou um olhar reprobativo e continuou:

      — Oh, por favor, não zombe de mim, Sr. Henry.

      — Nem me passou pela idéia zombar. A senhora é que tem sorrido de mim muitas vezes.

      — A gente vê tantas coisas ruins numa aldeia — murmurou Miss Marple, num tom de explicação.

      — A propósito — disse Henry, — consegui a informações que a senhora me pediu. O Inspetor me disse que havia aparas de unha na cesta de papéis de Ruby.

      — Havia? — perguntou Miss Marple pensativa. — Então é por isso...

      — Por que a senhora queria saber, Miss Marple? — perguntou o Inspetor.

      — Era uma das coisas que... bem, pareciam estranhas, quando vi o corpo. Havia algo de errado nas mãos e, inicialmente, não podia atinar por quê. Depois me lembrei de que as moças se pintam muito, e em geral quase todas se pintam exageradamente e têm unhas compridas. Sei também que há moças em toda parte que roem unha. Um hábito muito difícil de ser dominado. Mas muitas vezes a vaidade ajuda muito. Não obstante, presumi que aquela moça não se cuidava muito. Depois veio o garotinho Peter, o senhor sabe quem é. Disse uma coisa que demonstrava que as unhas dela eram compridas, só que tinha quebrado uma. Então, é claro, preferiu aparar todas as outras, pelo menos para salvar as aparências. Daí por que perguntei pelas aparas e o Sr. Henry informa que foram encontradas.

      — A senhora disse agora mesmo “uma das coisas que me pareceram estranhas quando vi o corpo” — observou Henry Clithering. — Havia algo mais?

      — Oh, sim! Havia o vestido. O vestido estava todo errado! — respondeu Miss Marple energicamente.

      Ambos os policiais olharam para ela curiosos.

      — Por quê?

      — Bem, sabe, era um vestido velho. Josie mesmo disse que o vestido era velho e eu pude ver por mim mesma que estava surrado e rasgado. Ora, tudo isso é anormal.

      — Não vejo por quê.

      Miss Marple enrubesceu um pouco.

      — Bem, a idéia é de que Ruby Keene trocou de roupa e saiu para se encontrar com alguém por quem estaria “gamada”, na linguagem de meus sobrinhos. Não é assim?

      O Inspetor deu uma piscadela.

      — É uma hipótese. Teria um encontro com algum namorado, como se diz.

      — Então por que — perguntou Miss Marple — iria vestir um vestido surrado?

      O Inspetor coçou a cabeça pensativo.

      — Compreendo seu ponto de vista. A senhora acha que deveria ter usado um vestido novo?

      — Acho que teria usado o melhor que tivesse. É assim que fazem as moças.

      Henry Clithering se interpôs.

      — Está certo, mas olhe aqui, Miss Marple. Suponhamos que tenha saído para esse rendez-vous; saído em carro aberto ou que, talvez, fosse caminhar a pé por um terreno acidentado. Então, não iria arriscar-se a sujar um vestido novo e por isso botou um velho.

      — O que seria muito sensato — ponderou o Inspetor.

      Miss Marple voltou-se para ele e falou com animação.

      — Muito sensato seria vestir calças compridas e um pullover. É isso, naturalmente (não quero ser esnobe, mas tenho para mim que seja inevitável), o que faria uma moça... de nossa classe. U’a moça bem educada — continuou Miss Marple, reforçando seu argumento — é sempre muito ciosa de usar roupas próprias para uma ocasião Quero dizer que, por mais quente que seja o dia, u’a mulher de certa classe nunca vestiria um vestido de seda florido.

      — E qual seria o vestido adequado no caso? — perguntou Henry.

      — Se fosse encontrar-se com ele no interior do hotel ou em alguma parte em que se usa vestido toalete, usaria seu melhor vestido de toalete, é claro. Mas fora, ela se sentiria ridícula com vestido toalete, e por conseguinte usaria a roupa esporte mais atraente.

      — Isso em se tratando de uma jovem da sociedade, mas Ruby Keene...

      Miss Marple o interrompeu.

      — Ruby, naturalmente, não era moça da sociedade ou, para falar de modo mais claro, Ruby não era uma senhora. Pertencia à classe que usa qualquer vestido para qualquer ocasião. No ano passado, sabe, tivemos um piquenique em Scrantor Rocks. Era curioso observar o vestido que as moças usavam. Roupas de fular, sapatos de verniz e chapéus bem trabalhados. Para escalar rochas, tojos e urzes. E os jovens com seus melhores ternos. Isso é geralmente comum e as moças não parecem constatar que os shorts são muito impróprios, a menos que sejam muito esbeltas.

      — E a senhora acha que Ruby Keene?... — perguntou o Inspetor pausadamente.

      — Acho que teria conservado o vestido que estava usando... seu melhor vestido cor-de-rosa. Ela o teria trocado se tivesse algum vestido ainda mais novo para usar.

      — E qual é sua explicação, Miss Marple? — perguntou o inspetor.

      — Não tenho nenhuma... ainda. Mas não posso deixar de pensar que seja importante...

     

      Raymond Starr estava acabando de dar uma aula na quadra de tênis.

      Uma senhora gorda e de meia-idade pronunciou alguns guinchos apreciativos, apanhou uma jaqueta de lã azul celeste e saiu na direção do hotel.

      Raymond lhe gritou algumas palavras alegres.

      Em seguida voltou-se para os bancos onde estavam assentados três espectadores. As bolas balançavam numa cesta em sua mão, enquanto sustentava a raquete embaixo do braço. A expressão alegre e sorridente em seu rosto desapareceu como se apagada pela esponja de uma lousa. Parecia cansado e preocupado.

      Aproximando-se deles disse:

      — Esta está terminada.

      Em seguida o sorriso estampou-se de novo em seu rosto, aquele sorriso encantador, juvenil e expressivo, que combinava tão bem com sua tez bronzeada pelo sol, sua elegância e agilidade.

      Henry Clithering perguntava-se quantos anos teria Raymond: vinte e cinco, trinta ou trinta e cinco? Era impossível dizer com certeza.

      — Ela nunca jogará bem — disse Raymond meneando um pouco a cabeça.

      — Tudo isso deve ser bem aborrecido para o senhor

      — disse Miss Marple.

      — Às vezes. Especialmente no fim do verão. Durante algum tempo a gente se anima um pouco com o pensamento do salário, mas no fim até isso deixa de ser estimulante!

      O Inspetor Harper levantou-se.

      — Virei buscá-la dentro de meia hora, Miss Marple se tudo correr bem, certo?

      — Ótimo, obrigada. Estarei pronta.

      Harper saiu. Raymond ficou olhando-o.

      — Não se incomodam se me assentar um pouco aqui? — perguntou.

      — De modo algum — disse Henry Clithering. — Aceita um cigarro?

      Henry ofereceu sua carteira, perguntando-se por que tinha agido assim, uma vez que tinha um ligeiro sentimento de antipatia por Raymond Starr. Seria só por se tratar de um dançarino e instrutor de tênis? Se positivo, não era o tênis, mas era a dança. O inglês, concluiu Henry Clithering., tinha uma especial antipatia por homem que dança bem demais! Aquele sujeito se movimenta com tanta elegância! Ramon... Raymond... como é mesmo seu nome? Abruptamente fez a pergunta.

      — Ramon foi meu primeiro nome profissional. Ramon e Josie... efeito espanhol, sabe? — Mas havia um certo preconceito contra estrangeiros, por isso tornei-me Raymond, muito britânico...

      — E seu nome verdadeiro é diferente? — perguntou Miss Marple.

      Raymond Starr sorriu para ela.

      — Na realidade chamo-me Ramon. Minha avó era argentina, sabe. (Isso explicava aquele gingar das cadeiras, pensou Henry Clithering). Mas meu nome é Thomas.

      Voltou-se para Henry Clithering.

      — O senhor é de Devonshire, não é? De Stane? Meu pessoal mora ali por perto, em Alsmonston.

      — O rosto de Henry Clithering iluminou-se.

      — O senhor é um dos Starrs de Alsmonston? Nunca poderia supor.

      — É claro que não.

      Havia um pouco de amargura no seu tom de voz.

      Henry Clithering disse embaraçado:

      — É uma questão de pouca sorte.

      — Porque a casa foi vendida depois de pertencer à família durante três séculos? Certamente. E mais ainda, nosso pessoal teve de se ir embora, suponho. Nós sobrevivemos à nossa utilidade. Meu irmão mais velho foi para Nova York. É editor. Está indo bem. O restante se espalhou por todo o mundo. Eu diria que não é fácil se conseguir hoje em dia um emprego quando não se tem nada para dizer sobre si mesmo a não ser que se tem um diploma de escola pública! Às vezes se tem sorte e se consegue o emprego de recepcionista num hotel. A gravata e as boas maneiras valem muito ali. O único emprego que pude conseguir foi o de exibidor numa casa de ferragens. Vender lindos banheiros de porcelana cor de pêssego e de limão. Salas enormes de exposição, mas como nunca conseguia saber o preço do diabo das mercadorias e nem como poderia entregá-las logo, fui dispensado. A única coisa que eu sabia fazer era dançar e jogar tênis. Empreguei-me num hotel na Riviera. Ganha-se muito ali. Até que estava indo bem. Então por acaso ouvi falar um velho Coronel, realmente velho, inglês até a medula e sempre falando de Poona. Ele procurou o gerente e lhe disse com toda a altura de sua voz: “Onde está o gigolô? Preciso pegar aquele gigolô. Minha esposa e minha filha querem dançar, sabe. Onde está aquele sujeito? O que é que está fazendo por aí? Preciso do gigolô.”

      Raymond continuou.

      — Era demais. Parecia bobagem mas abandonei o emprego. Vim para cá. Ganha-se menos mas o trabalho é mais agradável. Ensinar tênis a mulheres gordas que nunca, jamais, aprenderão a jogar tênis. Isso e ainda dançar com moças que ninguém quer e vivem tomando chá de cadeira, filhas de fregueses ricos. É a vida. Desculpe-me por essa história de má sorte!

      Deu uma risada, mostrando seus dentes alvos e pregueando o canto dos olhos. Pareceu de repente saudável, alegre e animado.

      — Gostaria de conversar um pouco com o senhor. Pode ser?

      — Sobre Ruby Keene? Não creio que lhe possa ser útil. Não sei quem a matou. Sei muito pouco a seu respeito. Ela não confiava em mim.

      — O senhor gostava dela?

      — Não muito. Mas não a antipatizava tampouco.

      Sua voz era tranqüila, despreocupada.

      — De modo que o senhor não tem nenhuma sugestão a fazer? — perguntou Clithering.

      — Lamentavelmente acho que não... Teria dito a Harper se tivesse. Parece-me exatamente uma daquelas coisas! Um crime mesquinho, sórdido, sem motivo, sem pistas.

      — Duas pessoas têm um motivo — disse Miss Marple.

      — É mesmo? — Raymond parecia surpreso.

      Miss Marple olhava insistentemente para Henry Clithering que disse a contra-gosto:

      — Sua morte provavelmente beneficia a Sra. Jefferson e o Sr. Gaskell em cinqüenta mil libras.

      — O quê? — Raymond parecia realmente espantado mais do que espantado, aturdido. — Oh, mas isso é absurdo, absolutamente absurdo. A Sra. Jefferson! Nenhum deles pode ter tido algo a ver com isso. Seria inconcebível pensar numa coisa dessas.

      Miss Marple tossiu e disse gentilmente.

      — Sinto muito, mas o senhor parece um idealista.

      — Eu? — deu uma risada. — Eu não! Sou cínico e insensível.

      — O dinheiro — disse Miss Marple — é um motivo poderosíssimo.

      — Talvez — disse Raymond acremente. — Mas que um ou outro tenha estrangulado uma jovem friamente...

      Raymond meneava a cabeça.

      Depois levantou-se.

      — Lá está a Sra. Jefferson. Vem para sua lição de tênis. Está atrasada — seu tom de voz era divertido. — Dez minutos de atraso!

      Adelaide Jefferson e Hugo Mclean vinham caminhando rapidamente na direção deles.

      Com um sorriso de desculpa por seu atraso, Addie Jefferson dirigiu-se para a quadra. Mclean assentou-se no banco. Depois de perguntar polidamente se Miss Marple não se incomodava com a fumaça de cachimbo, acendeu-o e fumou em silêncio durante algum tempo, observando criticamente as duas figuras a se movimentarem na quadra de tênis.

      — Não posso ver por que Addie precisa de aulas — disse finalmente. — Jogar está certo. Ninguém gosta mais disso do que eu. Mas por que aulas?

      — Para aperfeiçoar seu jogo — disse Henry Clithering.

      — Ela não joga mal — disse Hugo. — Ao contrário, joga bastante bem. Afinal de contas não creio que vá disputar algum campeonato.

      Ficou calado por alguns instantes, depois prosseguiu:

      — Quem é esse tal de Raymond? De onde vêm esses instrutores? Parece-me um tipo de ascendência latina...

      — É um dos Starrs de Devonshire — disse Henry Clithering.

      — O quê? Não é possível!

      Henry Clithering batia com a cabeça. Era evidente que essa notícia não fora agradável para Hugo Mclean. Carregou os sobrolhos como nunca.

      — Não sei por que Addie me mandou chamar. Ela parece não dar a menor importância a tudo isso! Nunca pareceu tão bem. Por que me mandou chamar?

      — Quando foi que ela o mandou chamar? — perguntou Clithering com curiosidade.

      — Oh, quando tudo isso aconteceu.

      — Como o senhor soube? Por telefone ou telegrama?

      — Telegrama.

      — Por uma questão de curiosidade, quando foi expedido?

      — Na verdade, não sei.

      — Quando o recebeu?

      — Não sei exatamente. Foi-me transmitido por telefone.

      — Por quê? Onde se encontrava?

      — Tinha saído de Londres na tarde anterior. Estava hospedado em Danebury Head.

      — Oh, tão perto daqui?

      — Engraçado, não é? Recebi a mensagem quando chegava de uma partida de golfe e vim imediatamente.

      Miss Marple olhou para ele pensativa. Hugo Mclean parecia excitado e constrangido.

      — Ouvi dizer que Danebury Head é um lugar muito agradável e não muito caro — disse ela.

      — Não, não é caro. Nem poderia ter ido para lá se o fosse. É um lugar muito bonito.

      — Precisamos dar um passeio de carro até lá um dia desses — disse Miss Marple...

      — Ah, sim? O quê? Oh, sim, é bom.

      Levantou-se.

      — Preciso fazer um pouco de exercício para estimular o apetite.

      Afastou-se desajeitadamente.

      — As mulheres tratam muito mal seus admiradores fiéis — disse Henry Clithering.

      Miss Marple sorriu mas não disse nada.

      — Ele lhe deu a impressão de ser um cão fiel? — perguntou Clithering. — Eu gostaria de saber.

      — Um pouco curto das idéias, talvez — respondeu Miss Marple. — Mas acho que tem possibilidades. Possibilidades certamente limitadas.

      Henry Clithering levantou-se também.

      — Preciso ir andando. A Sra. Bantry está chegando para lhe fazer companhia.

     

      A Sra. Bantry chegou sem fôlego e assentou-se com um suspiro.

      — Estive conversando com as criadas. Mas não valeu a pena. Não consegui nada de novo! Você acha que aquela moça poderia estar-se comportando mal no hotel e ninguém tivesse conhecimento de nada?

      — É uma observação muito interessante, querida. Eu diria taxativamente que não. Alguém sabe, o negócio é saber se é verdade. Mas ela deve ter sido muito sabida nesse ponto.

      A atenção da Sra. Bantry foi desviada para a quadra de tênis.

      — Addie está progredindo muito no tênis disse aprovativamente. — Está muito bonita. Ainda é uma mulher atraente. Não me admiraria se se casasse novamente.

      — E será uma mulher rica também quando o Sr. Jefferson morrer — disse Miss Marple.

      — Oh, não fique sempre pensando nessas coisas nojentas, Jane. Por que não decifrou ainda esse mistério? Parece que não estamos fazendo progresso algum. Eu pensei que você iria descobrir tudo imediatamente.

      Havia um tom de censura em suas palavras.

      — Não, ainda não, querida. Não descobri imediatamente, mas não precisou de muito tempo.

      A Sra. Bantry olhou para ela espantada e incrédula.

      — Quer dizer que já sabe quem matou Ruby Keene?

      — Oh, sim — respondeu Miss Marple. — Já sei.

      — Mas, Jane, quem é? Diga-me imediatamente.

      Miss Marple meneou a cabeça firmemente e cerrou os lábios.

      — Sinto muito, Dolly, mas não convém.

      — Por que não convém?

      Porque você é tão indiscreta. Sairia falando por aí com todo mundo. Ou, mesmo que não dissesse, deixaria perceber.

      — Ah, não, não o faria. Ficaria muda.

      — As pessoas que falam assim são sempre as últimas a cumprir o prometido. Não convém, querida. Há ainda um longo caminho a percorrer. Há ainda muitas coisas obscuras. Você se lembra de quando fui contra deixar a Sra. Partridge fazer coleta para a Cruz Vermelha e não podia dizer por quê. A razão era que torcia o nariz do mesmo modo como minha empregada o fazia quando lhe mandava pagar os livros. Sempre os pagava com uma pequena diferença a menos e dizia: “na próxima semana cobrirei”. Era exatamente o que fazia a Sra. Partridge, só que numa escala muito maior. Setenta e cinco libras foi o que ela embolsou indevidamente.

      — Deixe a Sra. Partridge para lá.

      — Mas teria de lhe explicar. E se você prestar atenção lhe darei uma pista. A dificuldade neste caso é que todo mundo tem sido crédulo e ingênuo demais. Não se pode simplesmente dar-se o luxo de acreditar em tudo que as pessoas nos dizem. Quando há algo de suspeito, nunca acredita em nada! Sabe, conheço muito a natureza humana.

      A Sra. Bantry ficou calada por alguns instantes. Em seguida disse num tom de voz diferente:

      — Eu disse, não foi, que, não sabia por que, não me podia divertir com esse crime. Um assassinato real em minha própria casa! A espécie de coisa que não acontecerá jamais de novo.

      — Espero que não — disse Miss Marple.

      — Eu também. Uma vez é o bastante. Mas o crime é meu, Jane, eu quero distrair-me com ele.

      Miss Marple lhe lançou um olhar reprobatório.

      — Não acredita nisso? — perguntou a Sra. Bantry belicosamente.

      — É claro, querida, já que você mesma é quem o diz — respondeu Miss Marple delicadamente.

      — É, mas você nunca acredita no que as pessoas lhe dizem, não é? Acaba de dizê-lo. No fim, você tem razão — a voz da Sra. Bantry assumiu de repente um tom amargo. — Não sou tola. Você pode pensar, Jane, que não sei o que estão dizendo em toda St. Mary Mead, em todo município! Estão todos dizendo que onde há fumaça há fogo; que, se o corpo da moça foi encontrado na biblioteca de Arthur, então Arthur deve saber de algo a respeito Estão dizendo que a moça era amante de Arthur, que era sua filha ilegítima, que estava fazendo chantagem com ele. Dizem tudo que lhes vem à cabeça. E vão continuar assim! Arthur não vê isso; não quer ver o que está errado. Ele é tão estúpido que acha que as pessoas não podem pensar isso dele. Será desprezado e olhado de través (o que quer que isso signifique!) e ficará no ostracismo e de repente ficará horrorizado e aniquilado. Irá recolher-se como um caramujo e sofrer dias após dias de angústia. Foi por tudo isso que vai acontecer com ele que vim para cá: para esmiuçar tudo que pudesse! Esse crime tem de ser solucionado! Se não o for, toda a vida de Arthur estará arruinada e não quero que isso aconteça. Não quero! Não quero! Não quero!

      Fez uma pausa por alguns minutos e disse:

      — Não quero que meu marido sofra por algo que não fez. Esta é a única razão por que vim a Danemouth e o deixei sozinho em casa... para descobrir a verdade.

      — Eu sei, querida — disse Miss Marple. — É para isso que estou aqui também.

 

      NUM TRANQÜILO QUARTO do hotel, Edwards ouvia Henry Clithering com deferência.

      — Há várias perguntas que gostaria de lhe fazer, Edwards, mas quero primeiro que você compreenda exatamente qual é minha situação aqui. Fui Comissário de Polícia na Scotland Yard. Agora estou aposentado. Seu patrão mandou-me chamar quando ocorreu a tragédia. Quer que use de minha habilidade e experiência para descobrir a verdade.

      Henry Clithering fez uma pausa.

      Edwards, com seus olhos inteligentes, inclinou a cabeça e disse:

      — Compreendo, Sr. Clithering.

      Clithering continuou lenta e pausadamente:

      — Em todo caso policial há necessariamente muita informação que deve ser mantida em segredo. E isso por várias razões: porque diz respeito a uma situação de família, porque é considerado como não tendo relação com o caso ou porque envolveria inconveniências e embargos para as partes interessadas.

      — Compreendo, Sr. Clithering — repetiu Edwards.

      — Espero, Edwards, que possa compreender claramente os pontos principais deste negócio. A moça morta estava para se tornar filha adotiva do Sr. Jefferson. Duas pessoas tinham motivo para fazer tudo para que isso não acontecesse. Essas duas pessoas são o Sr. Gaskell e a Sra. Jefferson.

      Os olhos do criado brilharam repentinamente.

      — Poderia perguntar se estão sob suspeição, senhor?

      — Não estão em perigo de serem presos, se é isso que quer dizer. Mas a Polícia está inclinada a suspeitar deles e continuará assim até que o assunto seja esclarecido.

      — Uma situação desagradável para eles, senhor.

      — Muito desagradável. Mas agora, para chegarmos à verdade, precisamos dispor de todos os fatos do caso. Muita coisa depende, deve depender, das reações, das palavras e dos gestos do Sr. Jefferson e de sua família. Como se sentiram, o que demonstraram, que disseram? Estou-lhe perguntando, Edwards, para uma informação interna... a espécie de informação que só você tem condições de dar. Você conhece as manias de seu patrão. De sua observação pode saber o que as provoca. Estou-lhe perguntando isso, não como policial mas como amigo do Sr. Jefferson. Quer dizer, se tudo que você disser não for, na minha opinião, importante para o caso, não o passarei à Polícia

      Fez uma pausa. Edwards disse calmamente:

      — Eu o compreendo, Sr. Clithering. O senhor quer que eu fale com muita franqueza. Que eu diga coisa que numa situação normal não deveria dizer. E coisas que o senhor nunca sonharia ouvir.

      — Você é um sujeito muito inteligente, Edwards — disse Henry. — É exatamente isso que quero dizer.

      Edwards ficou calado por um ou dois minutos, depois começou a falar.

      — É claro que hoje conheço o Sr. Jefferson muito bem. Há anos que o acompanho. E sei quando está “fora” de si e quando está “em si”. Às vezes me tenho perguntado se conviria realmente a alguém lutar contra o destino como o Sr. Jefferson tem lutado. Tem pago um pesado tributo por isso, senhor. Se às vezes pudesse ter cedido, sendo um homem infeliz, solitário e alquebrado, bem, acho que no fim teria sido melhor para ele. Mas é orgulhoso demais para isso! Morrerá lutando. É o seu lema. Mas essa espécie de coisas, Sr. Clithering, conduz a muita reação nervosa. Ele parece um homem de temperamento brando e controlado. Tenho-o visto tomado de acesso de cólera, quando quase não pode falar de raiva. E a única coisa que o irrita, senhor, é ser enganado...

      — Você está dizendo isso por algum motivo particular, Edwards?

      — Sim, senhor. O senhor não me pediu para falar francamente?

      — Perfeito.

      — Então, Sr. Clithering, na minha opinião, a jovem por quem o Sr. Jefferson foi tão atraído não era digna disso. Para ser franco, era uma mulher comum. Ela não morria de amores pelo Sr. Jefferson. Toda aquela demonstração de afeto e gratidão era conversa fiada. Não digo que houvesse qualquer malícia da parte dela mas não era, de modo geral, o que o Sr. Jefferson pensava dela. Era engraçado, pois o Sr. Jefferson foi sempre uma pessoa sagaz; são era de se enganar facilmente com as pessoas. Mas aí está, um cavalheiro não se controla quando está em jogo uma jovem senhora. A jovem Sra. Jefferson, sabe, de quem ele dependera sempre pela solidariedade, mudara um bocado neste verão. Ele notou isso e não gostou. Ele lhe queria muito bem, sabe. Já do Sr. Mark, nunca gostou muito.

      Henry Clithering o interrompeu:

      — E, não obstante, o conservou sempre consigo, não é?

      — Sim, mas isso foi por causa da Srta. Rosamund. Era a Sra. Gaskell. Era a menina de seus olhos. O Sr. Mark era o marido de Rosamund. Ele sempre o concebeu assim.

      — Suponhamos que o Sr. Mark se tivesse casado novamente?

      — O Sr. Jefferson teria ficado furioso.

      Henry Clithering levantou as sobrancelhas.

      — Chegaria a tanto?

      — Não o demonstraria, mas ficaria.

      — E se a Sra. Jefferson se casasse de novo?

      — Sr. Jefferson não haveria de gostar tampouco.

      — Continue, por favor, Edwards.

      — Estava dizendo, senhor, que o Sr. Jefferson foi tomado de afeição por aquela menina. Não foi a primeira vez que vi patrões como ele fazerem isso. A coisa se abate sobre eles como uma doença. Querem proteger a moça, defendê-la e a cobrem de benefícios; e em cada dez, nove das moças sabem aproveitar-se disso e não perdem a oportunidade .

      — Então, na sua opinião, Ruby Keene era uma calculista?

      — Bem, Sr. Clithering, era muito inexperiente, sendo tão jovem, mas tinha tudo de uma boa calculista, quando tivesse começado sua carreira, por assim dizer! Com mais cinco anos teria sido uma perita no assunto!

      — Gosto muito de ouvir sua opinião sobre ela, Edwards — disse Henry. — É uma opinião valiosa. Agora, recorda-se de algum incidente em que esse assunto fosse discutido entre o Sr. Jefferson e seus familiares?

      — Houve apenas uma pequena discussão. O Sr. Jefferson anunciou o que pretendia fazer e não aceitou o protesto. Isto é, calou o Sr. Mark, que foi um bocado franco. A Sra. Jefferson não falou muito; é uma senhora muito calma. Só lhe pediu para que não fizesse tudo tão apressadamente.

      Henry Clithering assentiu com a cabeça.

      — Mais alguma coisa? Qual foi a atitude da moça?

      Com declarado enfado o criado respondeu:

      — Eu poderia dizer, senhor, que era de exaltação.

      — Ah, de exaltação? Você não tinha razão para crer, Edwards, que... (procurava uma frase adequada para Edwards)... que seu coração não estaria em outro lugar qualquer?

      — O Sr. Jefferson não estava propondo casamento, senhor. Ele ia adotá-la.

      — Tire as palavras “em outro lugar qualquer” e permanece a pergunta.

      — Houve um incidente, senhor — disse o criado calmamente. — Aconteceu que fui testemunha.

      — Isso é interessante. Conte-me.

      — Talvez não haja nada de importante, senhor. Foi só que um dia, ao abrir a bolsa, a mocinha deixou cair um instantâneo. O Sr. Jefferson apontou para ele e perguntou: “O que é isso, Kitten? Quem é?”

      — Era a fotografia de um jovem, um jovem moreno, de cabelo desalinhado e a gravata mal-arrumada.

      — A Srta. Keene protestou dizendo não saber de nada. Ela dizia: “Não tenho a menor idéia, Jeffie. Não tenho a menor idéia. Não sei como isso foi parar na minha bolsa. Não fui eu quem o pôs ali!”

      — Ora, o Sr. Jefferson não era nenhum bobo. Essa história não estava bem contada. Ficou zangado, carrancudo e sua voz estava rouca quando disse: “Essa, não, Kitten, essa não, Kitten. Você sabe muito bem quem é”.

      — Ela mudou de tática imediatamente. Parecia amedrontada. “Ah, reconheço-o agora”, disse ela. “Vem aqui às vezes e tenho dançado com ele. Não sei seu nome. É possível que aquele pobre diabo tenha posto isto na minha bolsa. Esses rapazes são capazes de tudo!” Virou a cabeça, deu uma risadinha e ficou nisso mesmo. Mas a história não estava bem contada, não é? Depois disso, olhou-a umas duas vezes com a fisionomia carregada, e às vezes, quando ela saía, perguntava-lhe aonde tinha ido.

      — Por acaso você viu alguma vez o original da foto no hotel? — perguntou Henry Clitrering.

      — Não vi, Sr. Clithering. Mas, como o senhor sabe, muito raramente freqüento os lugares públicos do hotel.

      Henry Clithering assentiu com a cabeça. Fez mais algumas perguntas mas Edwards tinha muito pouco para lhe dizer.

     

      No posto policial de Danemouth, o Inspetor Harper entrevistava Jessie Davis, Florence Small, Beatrice Henniler, Mary Price e Lillian Ridgeway.

      Eram jovens mais ou menos da mesma idade mas de mentalidades um tanto diferentes. Iam desde aldeãs até filhas de fazendeiros e de comerciantes. Todas diziam a mesma coisa — Pamela Reeves não manifestara nada fora do comum, não dissera nada a nenhuma delas, a não ser que ia à Casa Woolworth e que voltaria mais tarde de ônibus, para casa. No canto da sala do Inspetor estava assentada uma senhora idosa. As moças quase não a notaram. Se tivessem dado por sua presença, ter-se-iam perguntado quem seria. Certamente não era a mãe de algum policial. Possivelmente teriam pensado tratar-se de outra testemunha como elas próprias.

      Tinha sido entrevistada a última moça. O Inspetor Harper enxugou a fronte e se virou para olhar para Miss Marple. Seu olhar era indagador mas não muito esperançoso.

      Miss Marple, entretanto, falou com voz firme.

      — Gostaria de falar com Florence Small.

      O Inspetor franziu os sobrolhos, mas concordou e tocou uma campainha. Apareceu um policial.

      — Florence Small — disse Harper.

      A moça reapareceu, conduzida pelo policial Florence Small, filha de um rico fazendeiro, era uma moça alta, de cabelos claros, boca meio torta e olhos castanhos que pareciam assustados. Torcia as mãos e parecia nervosa.

      O Inspetor Harper olhou para Miss Marple, que assentiu com a cabeça. Harper levantou-se e disse:

      — Esta senhora lhe fará algumas perguntas.

      E saiu, fechando a porta atrás de si.

      Florence olhava espantada para Miss Marple. Seus olhos tornavam-na semelhante a uma das bezerras do pai.

      — Assente-se, Florence — disse Miss Marple.

      Florence Small assentou-se obedientemente. Sem saber por que, sentiu-se subitamente mais à vontade, menos inconfortável. A atmosfera fria e aterrorizadora de um posto policial fora substituída por outra mais familiar. Não havia mais o tom habitual de comando de alguém cuja função era dar ordens.

      — Você deve compreender, Florence — disse Miss Marple, — que é de primordial importância se saber tudo sobre os passos da pobre Pamela no dia de sua morte.

      Florence murmurou que compreendia perfeitamente.

      — Acho que deve fazer tudo de sua parte para nos ajudar.

      Florence tinha uma expressão de desconfiança quando respondeu que sim.

      — Esconder qualquer peça de informação é um crime muito grave — disse Miss Marple.

      Florence Small torcia nervosamente os dedos no seu colo. Engoliu seco umas duas vezes.

      — Posso levar em conta — continuou Miss Marple — o fato de estar naturalmente alarmada por ter sido conduzida à Polícia. Você receia também de vir a ser censurada por não ter falado antes. É possível que tenha receio de poder também ser censurada por não ter advertido Pamela em tempo. Mas precisa criar coragem e se desabafar contando tudo. Se você se recusa agora a dizer o que sabe, o negócio poderá complicar-se, tornar-se grave e chegar mesmo a ser um perjúrio que, como você sabe, pode dar cadeia.

      — Eu... eu não...

      Miss Marple a interrompeu inflexível.

      — Chega, Florence! Conte-me tudo imediatamente! Pamela não ia à Casa Woolworth, ia?

      Florence lambeu os lábios com a língua seca e olhou para Miss Marple com um olhar de misericórdia, como um animal prestes a ser abatido.

      — Alguma coisa a ver com o cinema, não era? — perguntou Miss Marple.

      Uma expressão de profundo alívio e de estupefação estampou-se no rosto de Florence. Suas inibições desapareceram.

      — Oh, sim! — respondeu com a voz entrecortada.

      — Foi o que pensei — disse Miss Marple. — Agora, queira contar-me os detalhes.

      As palavras saíram de Florence aos borbotões.

      — Oh! Eu estava tão preocupada. Tinha prometido a Pam, sabe, que não diria nada a ninguém. E então, quando foi encontrada toda queimada naquele carro... Oh! foi horrível e achei que eu devia morrer... Achei que a culpa fora minha. Eu devia tê-la impedido. Só que não pensei, nem por um instante, que houvesse alguma coisa de errado. E depois fui perguntada se tudo fora normal com ela naquele dia e respondi que sim, antes que tivesse tempo para pensar. E, não tendo dito nada não sabia como poderia dizer alguma coisa depois E, afinal de contas, eu não sabia de nada, realmente de nada, a não ser o que Pam me disse.

      — O que foi que Pam lhe disse?

      — Nós estávamos caminhando pela avenida para ir tomar o ônibus para a reunião. Ela me perguntou se seria capaz de guardar um segredo e eu disse que sim; fez-me jurar que o guardaria. Pam ia fazer um teste fotográfico em Danemouth, depois da reunião! Conhecera um produtor de filmes, e de Hollywood mesmo. Ele queria um certo tipo para personagem e disse a Pam que ela era exatamente o tipo de pessoa que buscava. Mas a advertiu dizendo que só isso não bastava. O teste fotográfico era que decidia tudo. Depois de fotografada, muitas vezes a pessoa não serve. Era uma espécie de parte de Bergner, disse ele. Precisava de alguém muito jovem. Era uma escolar que trocara de lugar com uma artista de revista e conseguiu uma carreira maravilhosa. Pam representava em peças na escola e trabalhava muito bem. Disse que queria ver como ela desempenhava, mas para isso precisaria de treinamento intensivo. Tudo teria de ser espontâneo, dizia ele, caso contrário prejudicaria todo o trabalho. Será que ela perseveraria?

      Florence Small parou de respirar. Miss Marple sentiu-se angustiada ao ouvir os chavões batidos de romance e histórias cinematográficas sem fim. Pamela Reeves» como a maioria das moças, teria sido advertida para não conversar com estranhos. Mas a magia dos filmes a teria feito esquecer tudo.

      Ele lhe propunha o negócio em termos realmente comerciais — continuou Florence. — Dizia que, se passasse no teste, lhe daria um contrato; mas como ela era jovem e inexperiente precisava mandar um advogado ler os termos do contrato antes de assiná-lo. Mas que não dissesse a ninguém que ele lhe havia dito isso. Perguntou se teria alguma dificuldade com seus pais e Pam respondeu que sim, que provavelmente teria. E ele disse: “Bem, é sempre assim quando se trata de pessoas jovens como você mas acho que se os convencermos de que é uma chance maravilhosa para você, chance que acontece uma vez em um milhão, eles consentirão. Mas, de qualquer maneira, disse ele, não seria bom tocar no assunto antes do resultado do teste.” Ela não deveria ficar decepcionada, se não desse certo. Falou sobre Hollywood e sobre Vivien Leigh; como ela tomara Londres de assalto e como se desenvolveu aquela arrancada sensacional para a fama. Ele mesmo voltara dos Estados Unidos para trabalhar com os Estúdios Lemville e dar um pouco de vida às companhias cinematográficas da Inglaterra

      Miss Marple meneou a cabeça.

      Florence continuou.

      — Assim ficou tudo acertado. Pam devia ir a Danemouth depois da reunião e encontrar-se com o produtor em seu hotel e ele a levaria para os estúdios (tinham um pequeno estúdio de teste em Danemouth, lhe dissera). Ela passaria pelo teste e depois tomaria o ônibus de volta para casa. Poderia dizer que tinha vindo fazer compras e dentro de poucos dias lhe daria o resultado. Se fosse favorável, o Sr. Harmsteiter, o patrão, iria conversar com seus pais. Tudo parecia maravilhoso! Fiquei morta de inveja de Pam. Ela passou toda a reunião sem pestanejar. Nós a chamávamos sempre de “a impossível”. Então, quando disse que ia fazer compras em Danemouth, piscou para mim. Eu a vi descendo a estrada — Florence começou a chorar. — Eu devia tê-la parado. Não devia tê-la deixado ir. Devia saber que tudo aquilo não podia ser verdade. Devia ter dito a alguém. Oh, querida, antes eu tivesse morrido.

      — Acalme-se, acalme-se — Miss Marple lhe bateu levemente no ombro. — Não há nada de errado. Ninguém a censurará. Você muito bem em me contar tudo.

      Miss Marple ficou alguns minutos a consolar a moça.

      Cinco minutos depois estava contando a história ao Inspetor Harper, que tinha o olhar sombrio.

      — Aquele demônio! — disse ele. — Eu lhe destruirei todos os planos. Isso dá outro sentido aos acontecimentos.

      — Sim, dá.

      O Inspetor Harper olhou-a de viés.

      — Isso não a surpreende?

      — Esperava algo dessa espécie.

      — Por que a senhora foi direta nessa jovem? — perguntou Harper com curiosidade. — Todas pareciam mortas de medo e não havia, quanto eu pudesse ver, qualquer indício para distinguir uma das outras.

      Miss Marple disse calmamente:

      — O senhor não tem a experiência que tenho com moças que mentem. Florence, se o senhor se lembra, olhava-o muito de frente, e ficou rígida e tinha os pés irrequietos como todas as demais. Mas o senhor não a observou quando saiu da sala. Vi imediatamente que estava escondendo alguma coisa. Elas quase sempre relaxam imediatamente. Minha empregadinha Janet é assim. Ela explica muito convincentemente que os ratos comeram o resto de um bolo e se afasta com um sorriso afetado,

      — Agradeço-lhe muito, Miss Marple — disse Harper.

      E acrescentou pensativo:

      — Estúdios Lemville, eh?

      Miss Marple não disse nada. Levantou-se.

      — Sinto muito, mas preciso ir logo. Alegro-me por lhe ter podido ser útil.

      — A senhora vai voltar ao hotel?

      — Sim, para arrumar a mala. Preciso voltar a St. Mary Mead o mais breve possível. Tenho muito que fazer ali.

 

      MISS MARPLE PASSOU pela porta envidraçada de sua sala de estar, atravessou com passos leves e curtos seu jardim bem tratado, saiu pelo portão, entrou pelo portão do jardim da casa paroquial, atravessou o gramado e se aproximou da janela da sala de estar, onde bateu de leve na almofada.

      O pastor estava ocupado em seu gabinete, preparando o sermão de domingo, mas sua esposa, uma mulher jovem e simpática, admirava o progresso de seu filho engatinhando no tapete.

      — Posso entrar, Griselda?

      — Como não, Miss Marple. Olha David. Ele fica zangado porque só pode engatinhar no sentido contrário. Quer apanhar alguma coisa e quanto mais ele tenta, mais se distancia.

      — Não está muito magro, Griselda?

      — Mas não está doente, não é? — disse a jovem mãe, esforçando-se para assumir uma atitude de indiferença. — É claro que não me incomodo muito com ele. Todos os livros dizem que se deve deixar uma criança o mais possível à vontade.

      — Muito sábio, querida — disse Miss Marple. — Bem, vim saber se você está angariando donativos para alguma finalidade especial neste momento.

      A esposa do pastor olhou-a espantada.

      — Oh, um bocado de coisas — disse alegremente. — Há sempre.

      Começou a contá-las nos dedos

      — Para a restauração da nave, para a Missão de St, Giles, para nosso leilão na próxima quarta-feira, para as Mães Solteiras, para uma excursão de escoteiros, para a Associação das Costureiras, para a Campanha do Bispo para os pescadores de alto mar.

      — Qualquer uma delas serve — disse Miss Marple. — Achei que poderia ajudá-la um pouco... com um livro, sabe, se me autorizar a fazê-lo.

      — A senhora está tramando alguma coisa? Creio que está. Mas é claro que a autorizo. Faça pela exposição; seria tão bom conseguir dinheiro de verdade em vez dessas horríveis camisolas infantis e espanadores, tudo feito para se parecer com bonecas. Será que a senhora — continuou Griselda, acompanhando-a à porta — não gostaria de me dizer de que se trata?

      — Mais tarde, querida. Mais tarde — disse Miss Marple apressando-se.

      Com um suspiro a jovem mãe voltou ao tapete e, como para se desfazer de seus princípios de ostensiva despreocupação, deu três marradas no estômago do filho, de modo que pudesse agarrar seu cabelo e puxasse com gritos de alegria. Em seguida rolaram numa luta selvagem, até que a porta se abriu e a empregada da casa paroquial anunciou o fiel mais influente da paróquia (que não gostava de criança).

      — A dona da casa está.

      Ao ouvir isso, Grisela levantou-se e procurou uma postura mais digna de esposa de um pastor.

     

      Miss Marple, segurando um caderno preto com anotações feitas a lápis, caminhava rapidamente pela rua da aldeia até que chegou ao cruzamento. Ali voltou-se para a esquerda, passou pelo Blue Boar e parou diante da “casa nova do Sr. Booker”.

      Entrou pelo portão, subiu as escadinhas que conduziam a porta principal, onde bateu com pancadinhas rápidas.

      A porta foi aberta pela jovem loura que se chamava Dinah Lee. Estava menos maquilada do que de costume e, na realidade, parecia um pouco suja. Usava calças cinza e uma blusa cor de esmeralda.

      — Bom dia — disse Miss Marple num tom rápido e alegre. — Posso entrar por alguns instantes?

      Ela avançava enquanto falava, de modo que Dinah Lee, espantada com a visita, não teve tempo de tomar uma resolução.

      — Muito obrigada — disse Miss Marple, mostrando-se amável e assentando-se cuidadosamente numa cadeira de bambu muito na moda.

      — Quente demais para esta época do ano, não acha? — continuou Miss Marple, desfazendo-se em amabilidades.

      — Sem dúvida, faz muito calor — concordou a Srta. Lee.

      Sem saber como tratar com a situação, abriu uma caixa de cigarros e ofereceu a Miss Marple.

      — Aceita um cigarro?

      — Obrigada, não fumo. Só vim aqui, sabe, para pedir seu auxilio para nosso leilão de prendas, na próxima semana.

      — Leilão de prendas? — disse Dinah Lee, como quem repete uma frase numa língua estrangeira.

      — Na paróquia — disse Miss Marple. — Na próxima quarta-feira.

      — Oh! — a Srta. Lee ficou de boca aberta. — Sinto muito, mas não posso...

      — Nem mesmo uma pequena subscrição... talvez uma meia coroa?

      Miss Marple lhe apresentou o livrete.

      — Oh, sim, mas não sei se tenho algum trocado aqui.

      A moça parecia aliviada e se voltou para remexer na bolsa.

      O olhar astuto de Miss Marple percorria toda a sala.

      — Estou vendo que a senhora não tem tapete diante da lareira — observou.

      Dinah Lee virou-se e a encarou. Não tinha a menor dúvida de que a velha senhora a estivesse passando por um escrutínio, mas não teve outro sentimento que não fosse de tédio. Miss Marple o percebeu.

      — É perigoso, sabe. As fagulhas podem saltar e chamuscar o tapete.

      Gata bisbilhoteira, pensava Dinah, mas lhe respondeu de modo afável, embora um tanto vago.

      — Havia um aqui. Não sei onde foi parar.

      — Acho que era de um tecido macio e lanoso não era?

      — De pele de ovelha — disse Dinah. — Era com que se parecia.

      Ela agora se divertia. Que velha excêntrica era aquela?

      Ofereceu-lhe meia coroa.

      — Está aqui — disse ela.

      — Oh, muito obrigada, querida.

      Miss Marple a recebeu e abriu o livrete.

      — Que nome devo escrever aqui?

      O olhar de Dinah tornou-se de repente duro e desdenhoso.

      Velha nojenta, pensava Lee, foi para isso que ela veio... para espalhar o escândalo.

      Respondeu claramente e com prazer malicioso.

      — Srta. Lee.

      Miss Marple olhou para ela firmemente.

      — Não é a casa do Sr. Basil Blake?

      — Sim, e eu sou a Srta. Dinah Lee!

      Sua voz assumiu o tom de desafio, jogou a cabeça para trás e seus olhos azuis faiscaram.

      Miss Marple continuava a fixá-la.

      — A senhorita me permitiria dar-lhe um conselho, muito embora possa parecer impertinente? — perguntou.

      — Eu o considerarei impertinente. É melhor a senhora não dizer nada.

      — Não obstante, vou dizer. Quero aconselhá-la, veementemente, a não continuar a usar seu nome de solteira na aldeia.

      Dinah olhou para ela.

      — O que a senhora quer dizer com isso?

      Miss Marple respondeu num tom grave e solene:

      — Brevemente a senhora poderá precisar de toda simpatia e boa vontade que puder encontrar. Seria importante para seu marido também que se pense bem dele. Há no interior muito preconceito com relação a pessoas que vivem juntas sem serem casadas. Estou certa de que isso os divertia muito, se é o que procuravam. Manter o povo a distância, de modo que não fossem incomodados pelo que os senhores devem chamar de “matronas”. No entanto, as matronas também têm suas utilidades.

      — Como foi que a senhora ficou sabendo que éramos casados? — perguntou Dinah.

      Miss Marple esboçou um sorriso suplicante.

      — Oh, querida! — disse ela.

      Dinah insistiu.

      — Mas como foi que a senhora soube? A senhora não foi... não foi à Somerset House?

      Os olhos de Miss Marple cintilaram momentaneamente.

      — Somerset House? Oh, não. Mas era muito fácil de se imaginar. Tudo corre pela aldeia, sabe. A espécie de brigas que vocês têm... típicas dos primeiros dias do casamento. Muito... muito diferente das relações ilícitas. Já se disse, a senhora sabe, (e eu acho que é uma verdade), que um casal só pode brigar de verdade quando é realmente casado. Quando não há nenhum vínculo legal, as pessoas são muito mais cuidadosas, têm que se convencer de que tudo é feliz e sereno. Elas têm, sabe, de se justificar. Não ousam discutir. As pessoas casadas, já notei, gostam muito de brigar e também das reconciliações.

      Fez uma pausa, piscando os olhos benignamente.

      — Bem, eu... — Dinah parou e deu uma risada. Assentou-se e acendeu um cigarro. — A senhora é maravilhosa.

      E continuou:

      — Mas, por que a senhora quer que confessemos a verdade e aceitemos a respeitabilidade?

      A expressão de Miss Marple tornou-se sombria.

      — Porque, a qualquer momento, seu marido poderá ser preso por assassinato.

     

      Dinah ficou olhando para ela durante alguns instantes. Em seguida, perguntou incrédula:

      — Basil? Assassino? A senhora está pilheriando?

      — Não, de modo algum. Não tem lido os jornais?

      Dinah prendeu a respiração.

      — A senhora se refere àquela moça... do Majestic Hotel? Acha que suspeitam de Basil como seu assassino?

      — Sim, suspeitam.

      — Mas é um contra-senso!

      Ouviu-se um ranger de pneus do lado de fora e em seguida a batida de um portão. Basil Blake escancarou a porta e entrou carregando umas garrafas.

      — Trouxe o gim e o vermute. Você...?

      Parou e fixou seus olhos incrédulos na visitante empertigada e ereta.

      Dinah explodiu ofegante:

      — Ela está louca? Está dizendo que você vai ser preso pelo assassinato daquela moça, Ruby Keene.

      — Meu Deus! — disse Basil Blake. — As garrafas caíram de suas mãos no sofá. Ele se jogou sobre uma poltrona, afundou-se nela e cobriu o rosto com as mãos. — Meu Deus! Meu Deus! — repetiu.

      Dinah atirou-se sobre ele, sacudindo seus ombros.

      — Basil, olhe para mim! Não é verdade! Eu sei que não é verdade! Nem por um momento posso crer nisso!

      Basil levantou as mãos e segurou as de sua esposa.

      — Obrigado, querida.

      — Mas por que eles iriam suspeitar... Você nem a conhecia, conhecia?

      — Oh, sim, eu a conhecia.

      — Sim, ele a conhecia — disse Miss Marple.

      — Cale a boca, bruxa velha — gritou altivo. — Ouça, Dinah querida, eu quase não a conhecia. Encontrei-a umas duas vezes no Majestic. É tudo, juro que é tudo.

      — Não compreendo — disse Dinah, perplexa. — Por que, então, iriam suspeitar de você?

      Basil gemeu. Cobriu os olhos com as mãos e se balançava para lá e para cá.

      — O que é que o senhor fez do tapete? — perguntou Miss Marple.

      — Eu o joguei na lata de lixo — respondeu automaticamente.

      — Foi uma tolice, uma tolice. Ninguém joga fora tapetes bons. Havia ali lantejoulas do vestido dela, não havia?

      — Sim, não consegui arrancá-las.

      Dinah gritou:

      — De que vocês estão falando?

      Basil respondeu mal-humorado:

      — Pergunte a esta senhora. Ela parece saber de tudo

      — Se quiser, poderei dizer-lhe o que acho que aconteceu — disse Miss Marple. — Queira corrigir-me, Sr. Blake, se cometer algum erro. Acho que depois de ter uma briga violenta com sua esposa numa festa e depois de ter, talvez, bebido muito, o senhor apanhou o carro e voltou para casa. Não sei a que horas o senhor chegou...

      — Por volta das duas da madrugada — disse Basil Blake, num tom sombrio. — Pensei primeiro em ir à cidade, mas quando cheguei aos subúrbios mudei de idéia. Achei que Dinah pudesse chegar depois de mim. Por isso voltei para cá. Tudo estava escuro. Abri a porta e acendi a luz e vi... e vi...

      Engoliu seco e parou. Miss Marple continuou:

      — Viu uma moça estendida no tapete... uma moça vestindo um toalete branco... e estrangulada. Não sei se a reconheceu logo...

      Basil Blake sacudiu a cabeça violentamente.

      — Não pude reconhecê-la à primeira vista. Seu rosto estava azulado... inchado. Tinha sido morta havia algum tempo e estava aqui... na minha sala.

      Ele estremeceu.

      — É claro que o senhor não estava em si — disse Miss Marple compreensiva. — Estava bêbado e seus nervos não estão bons. Deve ter sido tomado de pânico. O senhor não sabia o que fazer...

      — Pensei que Dinah chegasse a qualquer momento. Haveria de me encontrar aqui com um cadáver, o cadáver de uma moça, e iria pensar que eu a tivesse matado. Então tive uma idéia. No momento, não sei por que, me pareceu uma boa idéia. Pensei: vou colocá-la na biblioteca do velho Bantry. Aquele diabo de velho pomposo, sempre me olhando com desprezo, zombando de mim como artista e efeminado. Aquele velho merece isso, pensei. Vai ficar maluco quando for encontrado no seu tapete o corpo desta loura.

      E acrescentou, com uma ansiedade patética de explicar:

      — Eu estava um bocado bêbado no momento, sabe. Tudo me parecia divertido. O velho Bantry com uma loura morta.

      — Pois é — disse Miss Marple, — o pequeno Tommy Bond teve exatamente a mesma idéia. Era um garoto muito sensível, com um complexo de inferioridade. Dizia que sua professora estava sempre espicaçando-o. Pôs uma rã no relógio, que saltou em cima dela.

      — O senhor fez a mesma coisa — continuou Miss Marple. — Só que os cadáveres, naturalmente, são mais graves do que rãs.

      Basil gemeu de novo.

      — Pela manhã já estava bom. Foi então que me dei conta do que tinha feito. Fiquei alarmado. Depois a Polícia veio aqui. Outro ásino pomposo, aquele Chefe de Polícia. Fiquei assustado. E a única maneira que achei para dissimular meu temor foi tratá-lo com extrema rudeza. No meio disso tudo, Dinah chegou.

      Dinah olhou pela janela.

      — Está chegando um carro... com alguns homens.

      — Deve ser a Polícia — disse Miss Marple.

      Basil Blake levantou-se. De repente tornou-se calmo e resoluto. Chegou mesmo a sorrir, e disse:

      — Então não há outro remédio, não é? Está bem. Dinah, querida, controle-se. Procure o velho Sims. É o advogado da família. Vá e conte a mamãe tudo sobre nosso casamento. Ela não vai zangar com isso. Não se preocupe. Eu não sou criminoso. Portanto, tudo se esclarecerá. Está bem, querida?

      Bateram à porta.

      — Entre — gritou Basil.

      O Inspetor Slack entrou com outro policial.

      — Sr. Basil Blake? — perguntou.

      — Sim — respondeu Basil.

      — Trago um mandado de prisão contra o senhor, sob a acusação de ter assassinado Ruby Keene, na noite de 21 de setembro. Advirto que qualquer coisa que o senhor disser poderá ser usada em seu julgamento. Queira acompanhar-me. Todas as facilidades lhe serão proporcionadas para entrar em contato com seu advogado.

      Basil assentiu com a cabeça.

      Olhou para Dinah, mas não a tocou.

      — Até logo, Dinah.

      Sujeito frio, pensou o Inspetor Slack, que reconheceu a presença de Miss Marple, com uma meia inclinação e um “bom dia” e pensou para si mesmo: Velha sabida, está sempre em todas. Foi um bom trabalho termos apanhado aquele tapete. Aquilo e a informação do guardador de carro do estúdio de que ele saiu da festa às onze e não à meia-noite. Não é possível que aqueles seus amigos pretendam cometer perjúrio. Eles estão encalacrados e Blake lhes disse no dia seguinte que saíra à meia-noite e acreditaram nele. Bem, ele está frito. Deve ser um débil mental. É caso de hospício e não de forca. Primeiro, foi a garota Reeves. Provavelmente a estrangulou, levou-a de carro para a pedreira, voltou a pé para Danemouth, apanhou seu próprio carro em alguma estrada lateral, voltou a Danemouth, trouxe Ruby Keene para aqui, estrangulou-a, colocou-a na biblioteca do velho Bantry; depois, provavelmente, foi terminar o trabalho com o carro na pedreira. Foi lá, pôs fogo no carro e voltou. Um louco sequioso de sexo e de sangue. Foi sorte dessa moça escapar. É isso que se chama de mania periódica.

      Só com Miss Marple, Dinah Blake voltou-se para ela.

      — Não sei quem é a senhora, mas quero que fique sabendo disto: Basil não fez isso!

      — Sei que ele não fez — disse Miss Marple. — Eu sei quem foi. Mas não vai ser fácil prová-lo. Tenho a impressão de que algo que a senhora disse agora mesmo pode servir. Deu-me uma idéia... a conexão que estava tentando encontrar. Agora, o que era?

 

      EIS-ME DE VOLTA, Arthur! — exclamou a Sra. Bantry, anunciando o fato como uma Proclamação real, ao irromper pela porta escancarada de seu gabinete.

      O Coronel Bantry levantou-se, beijou a esposa e disse cordialmente:

      — Ótimo, ótimo, esplêndido!

      As palavras não eram de censura mas a Sra. Bantry, afetuosa e companheira de tantos anos, não se enganava. Perguntou imediatamente:

      — Algum problema?

      — Oh, não, é claro que não, Dolly. O que poderia haver?

      — Oh, não sei — respondeu a Sra. Bantry vagamente: — As coisas andam tão esquisitas, não andam?

      Ela tirava o casaco enquanto falava. O Coronel Bantry o apanhou e o estendeu cuidadosamente sobre o encosto do sofá.

      Tudo como de costume. Mas de qualquer maneira havia algo de anormal. Seu marido, pensava a Sra. Bantry, dava a impressão de se ter encolhido. Parecia mais magro e mais encurvado; estava de olheiras e seus olhos evitavam encará-la.

      Continuou falando, embora com uma cordialidade afetada.

      — Então, distraiu-se bastante em Danemouth?

      — Oh, foi muito divertido. Você deveria ter ido, Arthur.

      — Não podia afastar-me, querida. Tinha muita coisa para fazer.

      — Mas continuo achando que a mudança lhe teria feito bem. E não gosta dos Jeffersons?

      — Sim, sim, pobre coitado. Um belo sujeito. Tudo muito triste.

      — O que é que andou fazendo durante minha ausência?

      — Não muito, não muito. Estive nos sítios, como você sabe. Concordei em que Anderson precisa de um novo teto. Não agüenta mais consertos.

      — Como foi a reunião do Conselho de Radfordshire?

      — Bem, para dizer a verdade, não fui.

      — Não foi? Mas você não ia tomar posse?

      — Sabe, Dolly, parece que houve um engano. Perguntaram-me se não me incomodaria de ceder o lugar para Thompson.

      — Ah, compreendo — disse a Sra. Bantry.

      Arrancou uma luva e a atirou deliberadamente na cesta de papéis usados. Seu marido foi apanhá-la mas ela o deteve, dizendo abruptamente:

      — Deixe para lá. Detesto luvas.

      O Coronel Bantry olhou para ela constrangido.

      A Sra. Bantry perguntou-lhe rispidamente:

      — Você foi jantar com os Duffs na quinta-feira?

      — Ah, sim! Foi adiado. O cozinheiro estava doente.

      — Gente estúpida! — disse a Sra. Bantry. E continuou: — Foi à casa dos Naylons ontem?

      — Eu lhes telefonei, pedindo desculpas, porque não me sentia bem. Eles compreenderam.

      — Compreenderam, não é? — disse a Sra. Bantry carrancuda.

      Assentou-se junto à escrivaninha e distraidamente apanhou uma tesoura de jardineiro. Com ela cortou os dedos, um a um, de sua segunda luva

      — O que está fazendo, Dolly.

      — Sinto-me destrutiva — disse a Sra. Bantry.

      E levantou-se.

      — Onde nos sentaremos depois do jantar, Arthur? Na biblioteca?

      — Bem... acho que não... não é? Não está bom aqui ou na sala de estar?

      — Acho que nos assentaremos na biblioteca — disse a Sra. Bantry.

      Seu olhar firme cruzou-se com o dele. O Coronel Bantry empertigou-se todo. Seus olhos faiscaram.

      — Você tem razão, querida. Vamos assentar-nos na biblioteca!

     

      A Sra. Bantry recolocou o fone no suporte com um suspiro de enfado. Ligara duas vezes e a resposta tinha sido a mesma: “Miss Marple não está”.

      De natureza impaciente, não era dessas pessoas que se conformam com uma derrota. Discou numa rápida sucessão para a casa paroquial, para a Sra. Price Ridley, para Miss Hartwell, Miss Wetherby e, em último recurso, para o peixeiro que, em virtude de sua vantajosa situação geográfica, sabia geralmente onde se encontrava todo mundo na aldeia.

      O peixeiro sentia muito, mas naquela manhã não tinha visto Miss Marple na aldeia. Não tinha feito seu passeio habitual.

      — Onde estará aquela mulher? — perguntou em voz alta a Sra. Bantry, impaciente.

      Ouviu uma tosse característica atrás de si. O discreto Lorrimer murmurou:

      — A senhora está procurando Miss Marple, madame? Acabo de vê-la aproximando-se desta casa.

      A Sra. Bantry correu para a porta da frente, abriu-a e saudou Miss Marple, ofegante.

      — Estive procurando-a por toda parte. Onde você se meteu? — olhou por cima do ombro: Lorrimer tinha desaparecido. — Tudo é horrível demais! Estão começando a isolar Arthur. Parece anos mais velho. Precisamos fazer alguma coisa. Você precisa fazer alguma coisa!

      — Não se preocupe, Dolly — disse Miss Marple, num tom de voz peculiar.

      O Coronel Bantry apareceu à porta do escritório.

      — Ah, Miss Marple. Bom dia. Muito prazer em vê-la. Minha mulher procurava-a como uma louca.

      — Achei bom vir dar a notícia — disse Miss Marple, ao acompanhar a Sra. Bantry ao escritório.

      — Notícia?

      — Basil Blake acaba de ser preso pelo assassinato de Ruby Keene.

      — Basil Blake? — exclamou o Coronel.

      — Mas não foi ele — disse Miss Marple.

      O Coronel Bantry não prestou atenção a essa afirmação. Dava a impressão mesmo de não a ter ouvido.

      — A senhora quer dizer que estrangulou aquela moça e depois a arrastou e a pôs na minha biblioteca?

      — Ele a pôs na sua biblioteca — respondeu Miss Marple, — mas não a matou.

      — É um contra-senso! Se a colocou na minha biblioteca, então a matou. As duas coisas vêm juntas.

      — Não necessariamente. Ele a encontrou morta na sua casa.

      — Uma história verossímil — disse o Coronel ironicamente. — Se encontrarmos um cadáver e formos gente honesta, o que é que deveremos fazer? Chamar a Polícia, não é?

      — Ah — disse Miss Marple, — mas nem todos têm nervos de ferro como o senhor, Coronel Bantry. O senhor pertence à velha escola. A geração mais nova é diferente.

      — Não tem fibra — disse o Coronel, repetindo uma opinião já batida.

      — Alguns deles — continuou Miss Marple — têm passado por maus momentos. Fiquei sabendo de muita coisa sobre Basil. Ele praticou um ato de heroísmo, sabe, com apenas dezoito anos. Entrou numa casa incendiada e salvou quatro crianças, uma depois da outra. Voltou para apanhar um cão, embora lhe dissessem que não era seguro. O prédio desabou em cima dele. Tiraram-no dali, mas seu peito foi esmagado e teve de ficar engessado quase um ano e ficou doente durante muito tempo. Foi quando passou a se interessar por desenho.

      — Oh — o Coronel tossiu e assoou o nariz. — É, eu nunca soube disso.

      — Ele não toca nesse assunto — disse Miss Marple.

      — Muito bem. Uma grande alma. O rapaz tem mais qualidades do que eu pensava. Sempre achei que fosse um desertor, sabe. Isso mostra que não nos devemos precipitar nas conclusões.

      O Coronel Bantry parecia envergonhado.

      — Mas, seja como for — sua raiva voltou à tona, — por que teria querido atirar-me a responsabilidade de um crime?

      — Não creio que essa tenha sido sua intenção — disse Miss Marple. — Acho que o fez mais por brincadeira. Na ocasião, sabe, estava sob a influência do álcool.

      — Ah, estava bêbado? — perguntou o Coronel Bantry com a solidariedade do inglês com o excesso alcoólico. — Realmente, não se pode julgar um sujeito pelo que faz no estado de embriaguez. Quando eu estava em Cambridge, lembro de ter posto um certo utensílio... bem, bem, deixemos para lá. Foi uma confusão dos diabos.

      Ele riu por entre os dentes. Em seguida se conteve tornando-se carrancudo. Olhou Miss Marple com um olhar penetrante, inteligente e indagador.

      — A senhora acha que não foi ele, não é?

      — Tenho certeza de que não foi.

      — E sabe quem foi?

      Miss Marple assentiu com um gesto de cabeça.

      — Ela não é maravilhosa? — exclamou a Sra. Bantry como um coro grego extático para um mundo indiferente .

      — Então, quem é?

      — Venho pedir sua ajuda. Acho que se formos a Somerset House teremos uma boa idéia.

 

      HENRY CLITHERING tinha o semblante carregado.

      — Não gosto disso — disse ele.

      — Sei que não é o que o senhor chama de ortodoxo — ponderou Miss Marple. — Mas é tão importante, não é, termos a absoluta certeza... “estar duplamente certos”, como dizia Shakespeare. Acho que se o Sr. Jefferson concordasse...

      — E Harper? Não precisa ficar sabendo também?

      — Poderia ser embaraçoso para ele saber demais. Mas o senhor pode dar-lhe uma pista. Vigiar certas pessoas... seguir-lhes os passos, sabe...

      — Sim, isso resolveria o caso...

     

      O Inspetor Harper encarava Henry Clithering com um olhar penetrante.

      — Vamos esclarecer isso tudo. Sr. Henry. O senhor vai dar-me uma pista?

      — Estou-lhe dando conta do que acabo de ouvir de meu amigo. Ele não me pediu reserva. Pretende procurar amanhã um advogado em Danemouth para fazer um novo testamento.

      As espessas sobrancelhas do Inspetor baixaram sobre seus olhos fixos.

      — O Sr. Conway Jefferson pretende informar seu genro e sua nora de sua intenção? — perguntou.

      — Sim, esta noite.

      — Compreendo.

      O Inspetor batia na mesa com a caneta.

      — Compreendo... — repetiu.

      Mais uma vez seu olhar penetrante fixou os olhos de seu interlocutor.

      — Quer dizer, então, que não está satisfeito com a solução Basil Blake? — perguntou Harper.

      — O senhor está?

      O bigode do Inspetor tremeu.

      — E Miss Marple?

      Os dois homens se entreolharam.

      — Deixe isso comigo — disse Harper. — Tenho gente especializada no assunto. Não será nada divertido, pode estar certo.

      — Há mais uma coisa — disse Henry. — Veja isto.

      Henry Clithering desdobrou uma folha de papel e a estendeu em cima da mesa.

      Dessa vez o Inspetor perdeu toda aquela calma que lhe era característica. Assobiou.

      — Ah, então é isso? Então todo o negócio muda de aspecto. Como é que o senhor descobriu isso?

      — As mulheres, sabe — explicou Henry Clithering, — e tão eternamente interessadas em casamentos.

      — Especialmente as velhas solteironas — completou o Inspetor Harper.

     

      Conway Jefferson levantou a vista quando seu amigo entrou.

      Seu rosto sombrio abriu-se num sorriso.

      — Já lhes comuniquei. Receberam tudo muito bem.

      — O que foi que lhes disse?

      — Disse-lhes que, uma vez que Ruby Keene morrera, achei que as cinqüenta mil libras que quisera deixar para ela deviam ser destinadas a alguma coisa que eu pudesse associar à sua lembrança. Iria doá-las a uma casa para jovens dançarinas em Londres. Surpresos, engoliram, sem nada objetar, esta maneira estranha de legar uma fortuna. Como se eu fosse fazer uma coisa dessas!

      E acrescentou pensativo:

      — Sabe, eu perdi o juízo com aquela menina. Quem sabe se não estou ficando um velho caduco? Agora compreendo. Era uma bela criança, mas a maior parte do que eu via nela era criação minha. Pretendia que fosse outra Rosamund. A mesma aparência, sabe. Mas não o mesmo coração, nem a mesma alma. Dê-me esse papel... é um interessante problema de bridge.

     

      Henry Clithering desceu as escadas e fez uma pergunta ao porteiro.

      — O Sr. Gaskell? Acaba de sair de carro. Deve ter ido a Londres.

      — Oh, compreendo. A Sra. Jefferson está por aí?

      — Acaba de se recolher.

      Henry Clithering correu a vista pelo salão do hotel e pela sala de dança. Hugo Mclean, que fazia palavras cruzadas no salão, parecia completamente absorto. Na sala de dança, Josie sorria corajosamente na cara de um senhor gordo e suado, quando seus pés pequenos e ágeis escapavam de ser esmagados pelos pés de seu companheiro. O homem gordo evidentemente se deliciava com a dança. Raymond, elegante mas enfadado, dançava com uma jovem de aspecto anêmico, com adenóides, cabelos castanho fosco, e que trazia um vestido caro e excessivamente impróprio.

      — Então vamos para a cama — murmurou Henry Clithering e subiu as escadas.

     

      Eram três horas da madrugada. O vento tinha cessado e a lua brilhava por sobre o mar tranqüilo.

      No quarto de Conway Jefferson não se ouvia outro som além de sua respiração pesada.

      Não havia nenhuma brisa para agitar as cortinas da janela, mas elas se mexiam... Num dado momento, abriram-se e uma silhueta se delineou à luz da lua. Em seguida, voltaram ao seu lugar. Tudo estava quieto novamente, mas havia alguém mais no quarto.

      O intruso aproximava-se lentamente da cama. A respiração profunda sobre o travesseiro não parou.

      Não se ouvia nada, ou quase nada. Um dedo e um polegar já estavam prontos para segurar uma dobra de pele, enquanto a outra mão segurava uma seringa.

      Nesse momento, surgiu da sombra u’a mão que se fechou na mão que segurava a seringa, enquanto o outro braço agarrava fortemente o intruso.

      Uma voz fria, a voz da lei, exclamou:

      — Dê-me essa seringa!

      A luz foi acesa e de seu travesseiro Conway Jefferson encarou sombriamente a assassina de Ruby Keene.

 

      COMO DIZ WATSON, preciso conhecer seus métodos, Miss Marple — disse Henry Clithering.

      — Eu gostaria de saber o que foi que a conduziu à primeira pista — disse o Inspetor Harper.

      — É incrível, mas a senhora nos passou para trás mais uma vez. Quero ouvir tudo desde o começo.

      Miss Marple alisou a seda castanho-avermelhada de seu melhor toalete. Corou-se e sorriu. Parecia muito constrangida.

      — Lamento que os senhores julguem meus “métodos”, como o Sr. Henry Clithering os chama, como métodos amadores. A verdade é que a maioria das pessoas... e não excluo os policiais... confia demais neste mundo mau. Acreditam no que lhes dizem. Eu não. Sinto muito., mas gosto sempre de provar as coisas por mim mesma.

      — É uma atitude científica — disse o Sr. Henry.

      — Nesse caso — continuou Miss Marple, — certas coisas foram admitidas como certas desde o início, em vez de serem confirmadas pelos fatos. Os fatos, como os observei: a vítima era muito jovem, roia unhas e tinha os dentes um pouco para fora, como acontece muitas vezes com as moças, se não corrigem o defeito em tempo, com um aparelho (e as crianças desobedientes costumam tirar o aparelho quando os mais velhos não vêem).

      — Mas estou fazendo uma digressão. Onde estava. Oh, sim, descrevendo a moça morta e lamentando, pois é sempre triste ver uma vida tão nova ceifada tão cedo, e pensando que quem tivesse feito aquilo deveria ser uma pessoa muito má. Naturalmente a coisa tornou-se confusa pelo fato de ter sido o cadáver encontrado na biblioteca do Coronel Bantry. Parecia coisa que só se vêem em livros. Na realidade, o plano não deu certo. A confusão estava no fato de não ter sido intencional. A idéia verdadeira tinha sido a de jogar o corpo na casa de Basil Blake (uma pessoa muito mais verossímil). Mas a sua ação de levar o cadáver para a biblioteca do Coronel Bantry atrasou tudo consideravelmente, e deve ter sido uma fonte de grande aborrecimento para o verdadeiro assassino.

      — Originalmente, sabe, o Sr. Blake deveria ser o primeiro objeto de suspeição. Fizeram pesquisas em Danemouth, descobriram que conhecia a moça, depois souberam que estava ligado a outra jovem e, então, se presumiria que Ruby veio fazer chantagem com ele, ou algo semelhante, e que Basil Blake a tinha estrangulado num acesso de raiva. O tipo do crime ordinário, sórdido, que se pode chamar de crime de night-club.

      — Mas tudo saiu errado, é claro, e tudo se concentrou cedo demais na família Jefferson, para grande embaraço de uma certa pessoa.

      — Como já lhes disse, sou muito propensa à suspeição. Meu sobrinho Raymond me diz (é claro que por brincadeira e afetuosamente) que minha mente é como uma fossa; que, aliás, é assim a mente da maioria dos vitorianos. Tudo que posso dizer é que os vitorianos conhecem muito a natureza humana.

      — Como estava dizendo, com esse tipo de mente insanitária... ou sanitária?... procurei imediatamente o ângulo do dinheiro. Duas pessoas se beneficiariam com a morte da moça. Não se pode ignorar isso. Cinqüenta mil libras é dinheiro para valer, mormente quando se está em dificuldades financeiras, como era o caso de ambos. Naturalmente, todos pareciam pessoas decentes, agradáveis. Não pareciam as pessoas prováveis, mas nunca se pode afirmar, não é?

      — A Sra. Jefferson, por exemplo, todo mundo gostava dela. Mas parecia claro que se tornara muito irrequieta neste verão, e que estava cansada da vida que levava, completamente dependente de seu sogro. Sabia, porque o médico lhe dissera, que ele não poderia viver muito, de modo que tudo ia muito bem, falando com certa insensibilidade, ou teria corrido muito bem se Ruby Keene não tivesse aparecido. A Sra. Jefferson era apaixonadamente devotada ao filho, e algumas mulheres têm uma idéia esquisita de que crimes cometidos por causa de seus filhos são quase moralmente justificáveis. Já tive desses casos na aldeia. “Bem, tudo foi por causa de Daisy, Miss Marple”, dizem elas e parecem pensar que isso justifica sua conduta duvidosa. Um pensamento muito lasso.

      — O Sr. Gaskell, naturalmente, era um concorrente muito mais provável, se posso usar essa expressão esportiva. Era um aventureiro e não tinha, suponho, um código moral muito elevado. Mas, por certas razões, estava convicta de que havia uma mulher envolvida nesse crime.

      — Como disse, à procura de um motivo, o ângulo do dinheiro me pareceu bastante sugestivo. Era, por conseguinte, irritante verificar-se que ambos tinham álibis para o tempo em que Ruby Keene, de acordo com o laudo médico, tinha sido morta.

      — Mas logo depois, veio a descoberta do carro incendiado com o corpo de Pamela Reeves dentro dele e então tudo saltou à vista. Os álibis, naturalmente, não tinham valor.

      — Tinha então duas metades do caso, e ambas muito convincentes, mas não se casavam. Devia haver uma conexão, mas não podia descobri-la. Uma pessoa que sabia estar envolvida no crime não tivera motivo.

      — Como fui boba — disse Miss Marple pensativa. — Não fosse Dinah Lee, eu não teria pensado nisso, a coisa mais lógica do mundo. Somerset House! Casamento! A questão não estava restrita ao Sr. Gaskell ou à Sra. Jefferson... havia mais algumas possibilidades de casamento. Se um ou outro fosse casado, ou mesmo se estivesse para se casar, então a outra parte do contrato matrimonial estaria envolvida também. Raymond, por exemplo, poderia alimentar a esperança de poder desposar uma viúva rica. Estava sempre com a Sra. Jefferson, e foi seu charme, creio, que a despertou de sua longa viuvez. Ela se contentara em ser considerada como filha do Sr. Jefferson, como Ruth e Naomi, só que Naomi, lembram-se, teve muita dificuldade em achar um marido conveniente para Ruth.

      — Além de Raymond, havia o Sr. Mclean. Ela gostava muito dele e, ao que tudo indicava, acabariam casando-se. Não está em boa situação financeira e não estava muito longe de Danemouth na noite do crime. Portanto, parecia, não acham — perguntou Miss Marple — que qualquer um poderia ter sido o assassino?

      — Mas, é claro, no meu íntimo eu sabia realmente. Vocês não puderam esquecer aquelas unhas roídas, puderam?

      — Unhas? — respondeu Henry Clithering. — Mas ela partiu uma unha e cortou as outras.

      — Bobagem — disse Miss Marple. — Unhas roídas e unhas cortadas rentes são coisas muito diferentes! Quem conhece unhas de moças não pode enganar-se com isso. Unhas roídas são muito feias, eu sempre digo às meninas na minha sala. Aquelas unhas, como vêem, era um fato. E só poderiam significar uma coisa. O corpo na biblioteca do Coronel Bantry não era de Ruby Keene.

      — E isso leva diretamente à única pessoa que devia estar envolvida. Josie! Josie identificou o corpo. Ela sabia, devia saber, que o corpo não era de Ruby Keene. Ela disse que era. Josie ficou perplexa, realmente perplexa ao saber ter sido o corpo encontrado na biblioteca. Ela, praticamente, traiu o fato. Por quê? Porque sabia, melhor do que ninguém, onde deveria ter sido encontrado! Na casa de Basil Blake. Quem voltou nossa atenção para Basil Blake? Josie, ao dizer a Raymond que Ruby poderia ter saído com o moço do cinema. E, antes disso, introduzindo furtivamente na bolsa de Ruby uma fotografia de Basil Blake. Quem nutriria tanta raiva contra a moça morta, raiva que não pôde dissimular nem mesmo diante do cadáver da vítima? Josie! Josie! Josie que era inteligente, prática e dura como unha, e tudo por causa de dinheiro.

      — Eis o que quero dizer quando falo na rapidez de se acreditar nas coisas. Ninguém pensou em pôr em dúvida a afirmação de Josie de que o corpo era de Ruby Keene. Simplesmente porque na ocasião não parecia que pudesse ter motivo algum para mentir. O motivo foi sempre o problema. Josie estava evidentemente envolvida mas a morte de Ruby, parecia, no mínimo, contrária a seus interesses. Se Dinah Lee não tivesse mencionado Somerset House eu não teria chegado a uma conexão.

      — Casamento! Se Josie e Mark Gaskell fossem casados, então tudo estaria claro. Como os senhores sabem agora, Mark e Josie se casaram há um ano. Manteriam seu casamento em segredo até a morte do Sr. Jefferson.

      — Foi realmente interessante, sabe, traçar o curso dos acontecimentos, ver exatamente como o plano funcionou. Complicado, e não obstante, simples. Antes de tudo, a escolha da pobre criança, Pamela, sua abordagem com vista à vida artística. Um teste de tela... É claro que a pobre criança não resistiria. Mormente quando a coisa lhe foi exposta de modo tão plausível por Mark Gaskell. Ela vem ao hotel, ele está à sua espera, a conduz pela porta lateral e a apresenta a Josie, uma de suas técnicas de maquilagem! A pobre menina... como me sinto mal só em pensar nisso!... assentou-se no banheiro de Josie, enquanto Josie cuidava de seus cabelos, pintava-a e passava esmalte em suas unhas. Entrementes, lhe terá dado um copo de refrigerante com alguma droga. Ela entrou em estado de coma. Imagino que devem tê-la colocado num dos quartos vazios do outro lado do corredor. Aqueles quartos que só são varridos uma vez por semana, lembram-se?

      — Depois do jantar, Mark Gaskell saiu de carro, segundo ele disse, para a beira-mar. Foi quando levou o corpo de Pamela para o bangalô de Basil Blake, metido num vestido velho de Ruby, e o depositou em cima do tapete. Ela estava ainda inconsciente, mas não morta, quando ele a estrangulou com o cinto do vestido... Horrível, mas espero e peço a Deus que ela não tenha sentido nada. Mas, em compensação, experimento uma grande satisfação em imaginá-lo enforcado... Isto deve ter-se passado pouco depois das dez. Em seguida voltou rapidamente e encontrou os outros no salão onde Ruby Keene, ainda viva, apresentava seu número da noite com Raymond.

      — Quero crer que Josie deve ter dado antes instruções a Ruby. Ruby estava acostumada a fazer o que Josie mandasse. Deveria trocar de roupa, ir para o quarto de Josie e esperar. Ela também fora drogada, provavelmente no café, depois do jantar. Bocejava, lembram-se, quando conversava com o jovem Bartlett.

      — Josie subiu mais tarde para “procurá-la”, mas ninguém, com exceção de Josie, entrou no quarto de Ruby. Ali pôs fim à vida da moça, talvez com uma injeção ou, quem sabe, com um golpe na cabeça. Desceu, dançou com Raymond, discutiu com os Jeffersons sobre o paradeiro de Ruby e, finalmente, foi deitar-se. Nas primeiras horas da madrugada vestiu a moça com as roupas de Pamela, arrastou o corpo pelas escadas laterais... é uma mulher muito forte... apanhou o carro de George Bartlett, conduziu-o para a pedreira a três quilômetros de distância, derramou gasolina no carro e lhe ateou fogo. Em seguida, voltou a pé para o hotel, cronometrando sua chegada ali por volta das oito ou nove horas... já preocupada com o paradeiro de Ruby!

      — Uma trama intrincada — disse o Coronel Melchett.

      — Não mais intrincada que os passos de uma dança — disse Miss Marple.

      — Acho que não.

      — Ela era muito meticulosa — disse Miss Marple. — Previu mesmo a discrepância das unhas. Foi por isso que conseguiu fazer com que Ruby partisse uma unha em seu xale. Isso explicava o fato de Ruby ter cortado rente suas unhas.

      — Sim, ela pensou nos mínimos detalhes — disse Harper. — E a única prova que a senhora tem, Miss Marple, são as unhas roídas de uma escolar.

      — Mais do que isso — disse Miss Marple. — As pessoas falam demais. Mark Gaskell falava demais. Ao se referir a Ruby disse que “tinha os dentes para dentro”. Mas a moça morta na biblioteca do Coronel Bantry tinha os dentes para fora.

      — E foi esta sua última idéia dramática, Miss Marple? — perguntou gravemente Conway Jefferson.

      — Bem, na realidade, foi — confessou Miss Marple. — É tão bom se ter à certeza, não é?

      — Não há dúvida — disse Conway Jefferson taciturno.

      — O senhor sabe — continuou Miss Marple, — logo que Mark e Josie souberam que o senhor ia fazer um novo testamento, decidiram que teriam de fazer alguma coisa. Já haviam cometido dois crimes por causa de dinheiro. Portanto, podiam muito bem cometer um terceiro. Mark, naturalmente, devia ficar inteiramente isento de qualquer suspeita. Assim, foi a Londres e criou um álibi, jantando num restaurante com amigos e indo a uma boate. Josie devia executar a tarefa. Queriam ainda que a morte de Ruby fosse atribuída a Basil, de modo que a morte do Sr. Jefferson fosse considerada como resultante de uma deficiência cardíaca. Havia digitalina na seringa, conforme me disse o Inspetor. De modo que, qualquer médico daria como causa mortis uma crise cardíaca, muito natural nas circunstâncias. Josie tinha soltado uma das bolas de pedra que estavam em cima do balcão e iria deixá-la cair e se espatifar depois. A morte do Sr. Jefferson seria atribuída a um susto.

      — Demônio inteligente — disse Melchett.

      — Então a terceira morte a que se refere seria a de Conway Jefferson? — perguntou Henry Clithering.

      Miss Marple meneou a cabeça.

      — Oh, não. Referia-me à morte de Basil Blake. Eles queriam vê-lo enforcado.

      — Ou encerrado numa clínica de alienados mentais — disse Henry Clithering.

      Conway Jefferson gemeu.

      — Sempre achei que Rosamund tinha esposado um patife. Esforçava-me para não admitir isso. Era louca por ele. Louca por um assassino! Bem, ele será enforcado e Josie também. Regozijo-me com o fracasso de Gaskell e por ter posto tudo a perder.

      — Josie era de caráter forte. O plano foi inteiramente dela. A ironia de tudo é que foi ela quem trouxe a moça para o hotel, sem jamais sonhar que iria entrar na fantasia do Sr. Jefferson e botar por terra todos os seus castelos — disse Miss Marple.

      — Pobre moça. Coitada da Ruby... — disse o Sr. Jefferson.

      Adelaide Jefferson e Hugo Mclean entraram. Adelaide estava linda naquela noite. Aproximou-se de Conway Jefferson e pôs u’a mão no seu ombro.

      — Preciso dizer-lhe uma coisa, Jeff. Imediatamente. Vou casar-me com Hugo.

      Conway Jefferson olhou para ela por alguns instantes e lhe disse rispidamente:

      — Já é tempo de você se casar de novo. Minhas congratulações para ambos. A propósito, Addie, vou fazer um novo testamento amanhã.

      Ela assentiu com a cabeça.

      — Oh, sim, eu sei.

      — Não, você não sabe. Vou deixar dez mil libras para você. Tudo mais fica para Peter quando eu morrer. Como recebe isso, minha filha?

      — Oh, Jeff! — faltou-lhe a fala. — Você é maravilhoso!

      — É um garoto promissor. Gostaria de ver um dia seu sucesso. Mas nessa época já não existirei mais.

      — Por que não, Jeff!

      — Peter tem uma grande sensibilidade pelo crime — disse Conway Jefferson pensativo. — Não só tem a unha da moça assassinada... de uma das moças assassinadas... mas teve muita sorte de conseguir um pedaço do xale de Josie arrancado com a unha. Portanto tem também um souvenir da criminosa! Isso o torna muito feliz!

     

      Hugo e Adelaide passaram pelo salão de dança. Raymond aproximou-se deles.

      — Tenho uma notícia para lhe dar — Adelaide foi logo dizendo. — Vamo-nos casar.

      O sorriso estampado no rosto de Raymond era perfeito. Um sorriso galhardo e melancólico.

      — Espero — disse, ignorando a presença de Hugo e olhando-a nos olhos, — que seja muito feliz, muito feliz...

      Eles continuaram e Raymond os acompanhou com o olhar.

      Uma linha mulher, dizia para si mesmo. Linda de verdade. E rica também. O negócio é que não posso livrar-me do azar dos Starrs de Devonshire... Que posso fazer, se não tenho sorte? Dance, dance, meu caro.

      E voltou para o salão de dança.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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